k1_w

Upload: eduardosterzi

Post on 06-Jan-2016

15 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Número 1 do jornal K

TRANSCRIPT

  • 2 K Jornal de Crtica

    Endereo: Rua Dona Ana, 10 A V. Mariana So Paulo CEP 04111-070.Contato/Anncios: [email protected] tel.: (11) 9515-7510.Nenhum texto de K Jornal de Crtica pode ser reproduzido sem a prvia autorizao, por escrito, de seus editorese/ou autores.As crticas e artigos assinados so de total responsabilidade de seus autores, no expressando necessariamentea opinio dos editores.Edio de junho de 2006

    CARLOS FELIPE MOISS

    O nome do crtico literrio e tambmromancista francs Maurice Blanchot(1907-2003) evoca um tempo, umas dca-das atrs, em que literatura era umaespcie de territrio privilegiado onde secruzavam, no necessariamente em harmo-nia, mas sempre com proveito de todas aspartes, a Arte ou as Artes, a Filosofia, aPsicologia, a Poltica, a Histria... Tudodependia da qualidade e da envergadurada obra literria em causa (quem precisa-ria, hoje, recorrer a to amplo repertriopara criticar este ou aquele best-seller,este ou aquele improviso?). E dependiatambm, evidentemente, da competnciado crtico. Blanchot talvez um dos maisnotrios exemplos de crtico literrio deslida formao humanstica, para quemum bom romance, digamos, um espaode reflexo em cujo mbito deve ser postae reposta, incessantemente, a mesma ra-dical indagao em torno da essncia daliteratura e do papel que esta desempe-nha, ou pode desempenhar, no esforocomum em busca da determinao do sen-tido e dos horizontes da condio huma-na em geral. Para Blanchot, a literaturapode at ser, tambm, entretenimento desde que no seja rebaixada a reduto deespecialistas, com suas tecnicalidades, oua sub-ramo da disciplina alcunhada comu-nicao e expresso; mas acima de tudo

    uma forma de conhecimento. O crti-co francs um legtimo arquileitor,como o chamaria este outro crtico, seuconterrneo (um pouco mais jovem)Michel Riffaterre.

    Este O livro por vir d bem mostra daexigente concepo de crtica literria pra-ticada pelo escritor francs. A primeiraseo do volume (O canto das sereias),dedicada a Marcel Proust, contm umaintensa reflexo sobre as relaes entretempo narrativo, tempo histrico e tem-po biogrfico, de tal modo que a obraproustiana e no o objeto da anliselevada a termo, dividindo terreno comuma srie de agudas consideraes sobrea arte narrativa, em geral. A segunda e aterceira sees (A questo literria e Deuma arte sem futuro) ampliam o leque,

    reunindo uma srie de ensaios sobre au-tores como Artaud, Rousseau, Claudel,Broch, Henry James, Musil, HermannHesse e outros, sempre sob o mesmo duploolhar, empenhado em flagrar as peculia-ridades de um autor ou de uma obra, etambm em estender a densa e apaixonada

    Blanchot retoma, neste passo, uma idiade Jean Starobinski, para quem (o resu-mo do prprio Blanchot) Rousseauinaugura o tipo de escritor em que quasetodos nos tornamos, de uma forma oude outra: obstinado em escrever contraa escrita, homem de letras se queixandodas letras, em seguida mergulhando naliteratura por esperana de sair dela, edepois no parando mais de escreverporque perdeu toda possibilidade de co-municar alguma coisa (p. 59). No finaldo precioso ensaio, Blanchot conclui:Rousseau v perfeitamente que a litera-tura a maneira de dizer que diz pelamaneira, assim como v que existe umsentido, uma verdade e algo como umcontedo da forma, no qual se comuni-ca, apesar das palavras, tudo aquilo quedissimula sua enganosa significao(p. 65). Tal o impasse que leva o crticoa falar da literatura comouma arte semfuturo um impasse que se irradia e semultiplica, na medida da variedade dosautores analisados na coletnea.

    E no preciso cogitar de certa van-guarda, com seu vezo potencialmenteautodestruidor, para localizar o extremoa que esse impasse pode levar. Blanchoto detecta, no sem alguma ironia, numcontemporneo de Rousseau, esse obs-curo Joubert... escritor que nunca escreveu

    indagao de base, sobre as formas, a na-tureza ntima e o destino da literatura.A quarta e ltima seo (O livro por vir)enfeixa, numa reflexo-sntese, o pensa-mento de Blanchot sobre a essncia dofenmeno literrio.

    O autor concebe a literatura como umaarte ameaada, e a ameaa no vem pro-priamente de fora (Aquilo que um regi-me tem de duro com relao arte podefazer-nos temer por esse regime, mas nopela arte, p. 39), mas de dentro, isto ,dos impulsos profundos que levam o escri-tor a escrever. Um dos temas mais carosao crtico-terico francs (sucessivamenteretomado neste e em outros livros seus) dizrespeito luta constante que o escritortrava com as palavras, ao seu esforo con-tnuo em busca da expresso justa de umpensamento que corre sempre o risco dedeixar de existir, podendo at nunca terexistido. o caso de Artaud, em cuja obra,no ver de Blanchot, o pensamento coincidecom a impossibilidade de pensar.

    No ensaio sobre Rousseau, essa mes-ma idia se expande: Por um lado, es-crever o mal, pois entrar na mentirada literatura e na vaidade dos costumesliterrios; por outro lado, tornar-se capazde uma mudana encantadora e entrarnuma nova relao de entusiasmo com avontade, a liberdade e a virtude (p. 59).

    K um jornal mensal de crtica literria em suas mais diversas formas: resenhas, comentrios, notas, ensaios, entrevistas,debates. Seu amplo corpo editorial guiar os trabalhos a partir de suas mltiplas preferncias, descobertas e apostas,sem temer contradies. Como lema, a mxima de Kafka: Tudo o que no literatura me aborrece.EDITORES: Carlos Felipe Moiss, Eduardo Sterzi, Fabio Weintraub, Franklin Valverde, Heitor Ferraz, Manuel daCosta Pinto, Reynaldo Damazio, Ricardo Lsias, Ricardo Rizzo, Tarso de MeloEDITORES DE ARTE: Regina Kashihara, Ricardo BotelhoJORNALISTA RESPONSVEL: Franklin Valverde MTB 14.342

    Maurice Blanchot (esq.) e Emanuel Lvinas se conheceram em 1925 na Universidade de Estrasburgo

    O LIVRO POR VIR

    O livro por vir (Le livre venir), Maurice Blanchot,trad. Leyla Perrone-Moiss. So Paulo: MartinsFontes, 2005, 386 p.

  • K Jornal de Crtica 3

    O PARCEIRO INVISVEL da escrita

    MANUEL DA COSTA PINTO

    Estranha, misteriosa consolao dadapela literatura, talvez perigosa, talvezlibertadora: salto para fora do mundo dosassassinos. A frase est numa pgina de1922 do Dirio de Kafka. Poderia ter sidoescrita por Blanchot, para quem o autorde Na colnia penal era o maior escritordo sculo XX.

    Literatura como morte e superao davivncia comum, sacrifcio das coisas emproveito de uma escrita absoluta, que de-signa um ser da linguagem que ultrapas-sa a experincia cotidiana e as palavrasordinrias. Em suma, literatura como as-sassinato ritual dos verdadeiros assassi-nos, que so aqueles que fazem com que omundo continue a se repetir.

    Para Blanchot, a essncia da literatu-ra fugir a qualquer determinao es-sencial. Toda a sua obra ficcional ouensastica pode ser entendida como in-vestigao obsessiva de uma linguagem queno esteja alienada no mundo, e que porisso denuncia a maldio de existir numlugar determinismos empricos e cadeiassimblicas (no duplo sentido da expresso).

    Vem da o oxmoro que atravessaseus livros: o preo da liberdade do su-jeito sua desapario um ocultamentovoluntrio de si que lana luz sobre aque-le espao literrio que d nome a um deseus livros. Nesse sentido, Blanchot fezde sua invisibilidade pblica um modode existncia um modo de existir na epela literatura.

    Diante disso, a tarefa de escrever abiografia dessa personagem parece fada-da ao fracasso. Ou, pior, estaria condena-da a violar um interdito formulado peloprprio biografado. Afinal, foi Blanchotque comentando uma passagem dosCadernos de Malte Laurids Brigge, deRilke escreveu palavras irnicas sobre olugar-comum segundo o qual a literatura expresso da experincia: As lembran-as so necessrias, mas para serem esque-cidas, para que nesse esquecimento, nosilncio de uma profunda metamorfose,

    nasa finalmente uma palavra, a primeirapalavra de um verso. Aqui, experinciasignifica: contato com o ser, renovao desi mesmo nesse contato.

    Entretanto, esse o desafio enfrenta-do por Christophe Bident em MauriceBlanchot Partenaire Invisible. Publi-cado em 1998 (cinco anos da morte doescritor francs, em 2003), o livro umabiografia intelectual na qual os aconteci-mentos da vida desse autor nascido em1907, na cidade de Quain (regio de Sane-et-Loire), servem como deflagradoresde metamorfoses intelectuais. Bident

    no escreveu uma obra nos moldes dosbigrafos norte-americanos, com umacmulo de episdios pitorescos, mas oinventrio dos biografemas de uma vidainteiramente votada literatura e aosilncio lhe prprio.

    Em suas 640 pginas, entretanto, noesto ausentes aqueles pontos cegos quepodem colocar em xeque o significadode uma obra e o mais eloqente, semdvida, o fantasma de suas colabora-es com peridicos de extrema direita.O retrato que da emerge o de um in-telectual elitista e com pendores monar-quistas, defensor de uma austera aristo-cracia do esprito que, no contexto beli-coso e efervescente do Front Populaire(coligao de esquerda que governou aFrana no entre-guerras), chegou a assi-nar textos anti-semitas contra o ldersocialista Lon Blum.

    O alinhamento de Blanchot aos conser-vadores da Action Franaise de CharlesMaurras, contudo, traz um ethos que, em-bora indigesto, deve ser devidamente de-glutido. Ao contrrio das atuais distines

    que colocam a direita conservadora nosantpodas de uma esquerda transfor-madora, existia de fato um furor revolu-cionrio nas tendncias fascistas e a Revuedu Sicle (da qual Blanchot era colabora-dor) chegou a anunciar com destaque apublicao de textos de Mussolini.

    Iluses parte, Blanchot buscava nadireita um radicalismo para ele ausenteentre os comunistas. O marxismo sersempre aos olhos de Blanchot uma emprei-tada de desespiritualizao, de desu-manizao e, portanto, uma traio daidia de revoluo, escreve Bident. Qualseria a idia de revoluo sustentada porBlanchot, que tambm assinou virulentosartigos antinazistas? Era-lhe preciso mos-trar continua o bigrafo que a verda-deira revoluo no se contenta em acres-centar desordem desordem, no se limi-ta a uma profecia sem poder. Recusar omundo tal como no implica objeo ourenncia, mas uma condenao ausn-cia total de repouso. A revoluo deve seimpor como passagem brusca do impos-svel ao necessrio.

    No se sabe ao certo como essa utopiavoluntarista, formulada em termos abs-tratos e no jargo da dialtica hegeliana,poderia se transformar em realidade obje-tiva. Ou melhor, talvez sua objetividadefosse essa recusa do mundo transformadaem literatura uma recusa que inclua asvicissitudes da poltica e o apagamento desi mesmo.

    Curiosamente, e na contramo dasacusaes de anti-semitismo, Bident des-taca na trajetria de Blanchot os traosdeixados pelas presenas de EmanuelLvinas (ao lado de quem ele aparecenuma de suas raras fotografias) e EdmondJabs o poeta egpcio em quem Blanchotidentificou uma homologia entre condi-o, palavra e escrita que encontramosem sua prpria obra.

    Manuel da Costa Pinto jornalista, autor de Alber tCamus Um elogio do ensaio (Ateli).

    um livro. Ele foi, assim, um dos primei-ros escritores completamente modernos[...] sacrificando os resultados desco-berta de suas condies, e no escreven-do para acrescentar um livro a outro, maspara se tornar mestre do ponto de quelhe pareciam sair todos os livros e que,uma vez encontrado, o dispensaria deescrever (p. 70).

    Com base nos exemplos acima, imagi-ne o leitor a riqueza que o aguarda acada pgina da valiosa coletnea, quetanto tempo levou para ser traduzida (aedio original de Le livre venir de1959). A traduo, de primeira qualidade,permite que Blanchot fale, em portu-gus, com propriedade, elegncia e poderde persuaso equivalentes aos do origi-nal. E, ao contrrio do que a aberturadesta resenha possa ter suscitado, no hnada de nostalgia no fato de O livro porvir evocar um tempo pretrito. Munidoda informao (trata-se de um livro ve-lho de quase meio sculo), o leitor sesurpreender ao verificar que, em nenhu-ma de suas pginas, h seja o que for dedesatualizado. Nada a envelheceu.O tempo de uma literatura ameaada,como diz Blanchot, continua a ser per-feitamente este nosso tempo, hoje. E nadaindica que no haja mais, no sculo XXI,literatura altura desse entendimento, ouque no haja mais crticos da mesma ousimilar estirpe humanista. s prestarateno. E no perder a esperana que,como dizia Vincius, sempre melhorter que no ter.

    C ar los Felipe Moiss poeta, t r adutor e ensasta,a u t o r d e A l t a t ra i o ( Ma rco ) e F e r n a n d o Pe s s o a :almoxari fado de mitos (Escr i turas) .

    Maurice Blanchot Partenaire invisible , ChristopheBident. Seyssel: ditions Champ Vallon, 640 p.Pode ser encomendado Livraria Francesa, r. Prof.Atlio Innocenti, 920, So Paulo, tel. 11/3849-7956,[email protected]

    ltima foto de Franz Kafka (1883-1924)

  • 4 K Jornal de Crtica

    O ANJOFABIO WEINTRAUB

    A morte recente da poeta (e tradutora, ensasta, bailarina, bruxa etantas outras coisas que no cabem em um parntesis) Dora Ferreira daSilva deflagrou o convite para a republicao de trechos da entrevista quevocs lero a seguir, feita por mim, em abril de 1999, para a revista Azougue(Poesia & Artes) Ano IV, vol. I. Voltar a esse depoimento permite noapenas reavaliar a importncia da obra potica de Dora, como tambmperceber a amplitude de seus interesses e aes. Seja como tradutora deautores to diversos como Angelus Silesius e San Juan de la Cruz, Rilke eHlderlin, Valry e Saint-John Perse, Jung e Tauler , seja na qualidade deanimadora cultural, dirigindo revistas literrias importantes (Dalogo,Cavalo Azul) e recebendo, desde os anos 50, poetas, intelectuais e artistasplsticos na famosa casa da Rua Jos Clemente o fato que o legado dapoeta no est apenas nos seus livros, mas tambm em um tipo muitoespecial de hospitalidade, que estava no centro do seu modo de ser.

    Dora era uma mulher encantadora e difcil, capaz de gestos os maiscontraditrios. Lembro-me do entusiasmo com que ela recitava os poemasdela e nos pedia para recitarmos os nossos, muitas vezes em posies estra-nhas, fazendo-nos subir na mesa ou nas cadeiras, chamando-nos corporal-mente para uma espcie de ritual.

    Quantas vezes ela no interrompeu a conversa para nos trazer, do fundodo jardim, uma rom recm-colhida por ela, dizendo: Quando duas pessoascomem juntas uma rom, ficam amigas para sempre.

    Lembro-me tambm de uma outra vez em que fui visit-la na compa-nhia de dois grandes amigos poetas, Donizete Galvo e Ruy Proena. Elahavia sado do hospital h pouco tempo, aps um atropelamento grave,com fraturas. Pois no que, no meio da conversa, de modo totalmenteinesperado, ela, j octagenria, se levantava e zupt!, erguia a perna estendida,em pose de bailarina, para nos mostrar como havia se recuperado?

    Por seu temperamento, Dora estava sempre pronta para a celebrao,investindo as tarefas mais cotidianas, os gestos mais comezinhos com umaenergia que os descolava do cho, retirando-os de sua imediatez opaca.Mas justamente esse impulso ascensional e soteriolgico, evidente em suapoesia, que, em determinadas ocasies, a colocava na defensiva em relaoa projetos estticos e existenciais no orientados pela bssola do Sublime.

    Praticante de uma poesia hierofnica, como bem a descreveu Jos PauloPaes, e em total consonncia com o seu modo de ser, Dora me parecia enca-rar com desconfiana projetos marcados pela negatividade dessacralizadora vistos por ela, na melhor das hipteses, como sintomas de desequilbrioanmico (e csmico), que cumpria corrigir.

    Penso, por exemplo na primeira reao de Dora desfavorvel, irada leitura da entrevista aqui republicada. Chateou-a sobretudo o trecho em queela se refere morte do marido, o filsofo Vicente Ferreira da Silva. Trata-se deum trecho da entrevista em que Vicente, diante de uma dor de cabea de Dora alegada como motivo para cancelar a viagem no curso da qual ele morreria mandava a esposa tomar um Melhoral, surdo ao pressentimento da morte.

    Dora repreendeu-me duramente por no ter cortado essa frase que,segundo ela, tornava ridcula a descrio da cena. Tentei defender-medizendo que era isso justamente que tornava a cena mais tocante, introdu-zindo nela uma nota de profunda humanidade, mostrando quo falha ainterpretao dos sinais que nos rodeiam nos momentos decisivos: ao avisode um anjo responde-se com a f nos analgsicos. Falei, falei, mas no houveremdio: o que me parecia belo, soava como desrespeito para Dora.

    Meses depois ela voltaria a brigar comigo por causa de uma resenhaque eu fiz para uma revista de psicologia (Jung: O profeta helvtico.Insight Psicoterapia e Psicanlise, nmero 99 / setembro de 1999),a propsito da biografia de Frank McLinn publicada pela Editora Record(Carl Gustav Jung: uma biografia).

    A biografia, apesar de respaldada por uma extensa pesquisa, eratendenciosa e muito pouco lisonjeira em relao a Jung, chegando arelatar alguns de seus envolvimentos amorosos com pacientes e outrosdeslizes dessa natureza.

    Dora ficou furiosa comigo, no apenas por eu ter me dignado aresenhar um livro que conspurcava a memria de um pensador seminal,traduzido por ela para o portugus. Por sugesto minha, a editora darevista, decidira tambm publicar um poema da prpria Dora sobre oJung, encimado por duas fotos: uma do Jung, outra da prpria Dora,lado a lado, em dilogo.

    Ela achou um despropsito colocarem a foto dela ao lado da domestre, vendo a tambm um sinal de desrespeito: Uma foto enor-me minha ao lado de Jung! Por qu? No sou ningum diante dele, um despautrio.

    De nada valeu eu explicar que eu nada tinha a ver com a diagramaoda revista, que a resenha me havia sido encomendada, que eu estavaprecisando de trabalho, que a inteno da editora foi homenage-la etc.

    Depois nos reconciliamos, mas ela ficou uns bons anos criticandomeu suposto desapreo pelo Jung. Ela inclusive brincava, aludindo aum poema meu, no qual eu dizia guardar uma faca sob a lngua / parao beijo / em mame. Sempre que podia, ela me perguntava, em tombrincalho, se a faca continuava em minha boca.

    Talvez Dora visse neste meu relato uma comprovao daquela suspeita,mas a verdade que conto esses causos tentando alcanar a complexi-dade do carter Dora, sem escamotear as tenses que marcaram nossorelacionamento, entre desastres e analgsicos, lminas e roms.

    Reproduzimos abaixo trechos da entrevista publicada originalmentena revista Azougue, na qual ela fala de seus mitologemas poticos ecomenta os riscos inerentes a toda experincia criadora. Riscos diantedos quais revela, ao final, com meditada alegria, ser realmente umaandarilha do limiar, a mais grata hspede dos labirintos.

    K: A editora Topbooks, do Rio, publicou sua obra potica reunida. Emface dessa retrospectiva, como voc avalia seu percurso lrico desdeAndanas (1970) at agora? Voc percebe mudanas de dico? Obses-ses que ficaram mais ntidas?Dora Ferreira da Silva: Acho que houve um amadurecimento do ponto devista literrio; embora no considere poesia literatura. uma outra coisa.A literatura algo que a pessoa pode fazer com um p atrs. J o poemaacontece com voc dentro dele. um strip-tease muito maior que umromance, por exemplo, em que h personagens entre os quais o autor podeou no estar. Podem estar ele e seus heternimos, com vrios outros per-sonagens. Mas a poesia tem qualquer coisa... No que ela tenha que ser(e ela no ) autobiogrfica, mas h flashes de problemas, buscas... O pro-blema religioso est a, o do amor..., mas sem o p atrs da reflexo estrita.H um elemento arracional no digo irracional intuitivo, sentimento

    e o analgsico

  • K Jornal de Crtica 5

    e pensamento, tudo. E percepo. De vezem quando, voc sente o tato das coisas.Todas as funes trabalham na poesia.Certos poetas so mais perceptivos; outrosso mais intuitivos; outros, mais reflexivos;ou, mais sentimento. No conhecia a tipo-logia junguiana quando fiz meus poemas,mas agora eu conheo. Lendo, comecei umtrabalho crtico, de reflexo sobre o feito.Todo poeta tem um crtico lateral. Ele nopode ser muito forte, pois como a luz queentra na cmara fotogrfica: vela a imagem.Um poeta que seja muito crtico far a poe-sia sofrer. Mas tambm no pode ser total-mente acrtico, no pode acolher tudo o quevem. Poesia no tudo o que vem, no escrita automtica. Se bem que, para alguns,pode ser..., h pessoas que fazem escrita au-tomtica. Eu trabalho com Dioniso e Apolo:o primeiro momento o que vem; depois euedito. Quando escrevo mo, ainda no con-sigo editar. Tenho que bater mquina paratomar distncia, objetivar. H uma objetivi-dade do poema. Quando o poema se desta-ca, se voc comear a mexer demais, estragatudo. H um momento em que ele diz: nas-ci, no mexa mais. Ele no fala, mas vocescuta. Gostei disso que a Inezita me deu(mostra um pndulo com um poliedro decristal na ponta), porque me transmite mui-to a sensao de um trabalho invisvel. A luzpassa... a melhor definio de poesia, paramim, isso aqui. um trabalho que a luz, olgos, atravessa... O mythos foi antes, de-pois tem que vir o lgos. Em certos poetasprepondera o mythos, noutros, o lgos.

    K: Pensando ainda na tipologia potica,muitos se referem ao carter hierofnicoda sua poesia...Dora: A descoberta foi do Jos PauloPaes. A hierofania vem da minha origemgrega, origem mediterrnea, que vai darna Grcia, na Albnia. deles a visohierofnica. Est em mim como um lega-do. Desde criana tenho esses insights.Quando eu estou andando no caminho deItatiaia e, de repente, vem um pssaro, um susto. E eu no sei mais se era umpssaro ou um deus. No um exagero.No literatura. Deu-me o temor sagra-do. Agradeci muito a Jos Paulo Paes porter descoberto essa linha. A Constana(Marcondes Cesar) fala muito no Kerenyi,no Otto, no Mircea Eliade. Eu os conhe-o, mas a minha poesia anterior, no vemdeles. S bebemos nas mesmas fontes.Minha poesia no hierofnica porque liEliade. Seno seria uma poesia intelectual. como o Jung. Quando o li, fiquei muitocomovida. Depois percebi que ele me pu-nha animicamente nua. Quando escrevi,no sabia. No estava suficientemente

    distanciada. Quando h distanciamento,certas coisas, que at eram um pouco her-mticas, vm tona com significado.

    K: Por falar nisso, o Vilm Flusser diz queexistem duas compreenses que a gentepode ter do smbolo na poesia. A primei-ra, do smbolo como conveno humanaque atribui sentido ao mundo. E outra dosmbolo como obra transumana, que per-mite o acesso a um sentido original, divino.No o homem quem cria o sentido; elese vincula a um sentido prvio. Na suapoesia, Flusser diz que o smbolo existenessa segunda acepo...Dora: Exato. Porque para ele, como paraKafka, a decodificao do smbolo revelavao absurdo do mundo. Para mim o contr-rio. Os smbolos so sinais, cuja origem nosei determinar, que tm um sentido trans-cendente, no imanente. Pode ser tambmimanente, mas no um imanente pessoal.Nunca chegaria, pela reflexo, quele ps-saro que me assustou. Nunca inventaria isso.Foi uma percepo captada pelo incons-ciente. Eles chamam de apercepo. umapercepo to rpida que o seu inconscientese assusta e pode no saber se um pssaroou um deus. Acho que, para o autor, o bene-fcio da crtica o esclarecimento sobre coi-sas que o confundem no tocante prpriaexpresso potica. No para promov-loou abat-lo que a crtica serve. H um ele-mento de revelao na crtica. s vezes euconcordo, s vezes no. Mas o que sintomesmo, diante do poema escrito, aquiloque o Eliot falava: No, no era nada dissoo que eu queria dizer. Ele tem razo. Huma distncia entre o poema e aquele mo-mento nascente que o deslancha. Concordotambm com Fernando Pessoa: Escreverpoesia meu modo de estar s. Fui umacriana muito sozinha, no fisicamente sozi-nha, mas o fato de eu no ter conhecido meupai... Depois a perda do Vicente, eu tinhaquarenta e poucos anos, foi uma repetioda orfandade para mim. Viuvez e orfandadeesto muito ligadas... (Silncio).

    K: O Jung, num texto que voc traduziu,Psicologia e Poesia, diz que as obras dearte tm um papel compensador que restaurao equilbrio anmico do mundo. Os arquti-pos que se podem encontrar nas obras deuma determinada poca dialogam com ascarncias anmicas daquela poca. Voctambm vive insistindo que os problemas queestamos atravessando nesse final de sculo,como a violncia, o desemprego, pobreza,epidemias..., devem ser entendidos comodisfunes da anima mundi. Que arquti-pos voc encontra na poesia contempornearespondendo a esse estado de coisas?

    Dora: difcil responder genericamente.No propriamente o arqutipo que estno poema. Cada poeta tem os seus mito-logemas. Esses mitologemas dependem dosancestrais, das primeiras vivncias..., de-pendem s vezes de uma fotografia quepode provocar falsas lembranas. (Levan-ta-se e vai pegar uma fotografia do pai comela, beb, nos braos.) Essa foi a minhaprimeira viagem. Pouco depois meu paimorreu, assim jovem, tinha trinta e doisanos. E eu tinha oito meses, eu, a futuratradutora de So Joo da Cruz. Todas asfotografias dessa poca ficaram escuras.No parece a noche oscura? Era um quin-tal de tarde. Tenho a impresso que elefazia isso (faz o gesto de erguer os braosoferecendo o beb aos cus.) O Donizete(Galvo) me mostrou um texto da MariaZambrano em que ela fala isso: Minhaprimeira viagem foi nos braos do meupai. Fiquei to tocada! Donizete v seme-lhanas entre ns: ela gosta de So Joo daCruz, eu tambm... Mas isso no quer dizernada; muita gente gosta. No tenho umaafinidade muito grande com Maria Zambra-no pelo que conheo dela; se bem que co-nheo pouco. Mas dessa viagem ela fala,um movimento que se alterna: para o alto,e de volta ao peito; para o alto, para opeito. Estranho, no? Isso um mitolo-gema? Um homem com os ps na terra eque me levanta na direo do cu. ummitologema, pegando no o conceito, maso contedo. J vi pais, mes, fazerem isso.A criana at perde um pouco do flego...Ento, para falar do mitologema, tem quese apoiar em fatos, aparentes fatos davida da pessoa. Outro exemplo: o creps-culo. Quando eu era criana, no sabia queo crepsculo era o crepsculo. Eu mora-va em Pinheiros, onde ainda tinha muitomato, muito carrapicho... Minha bab mepunha no colo para eu no pegar carrapi-cho nas perninhas. Um dia, eu me lembro,eu estava no colo dela e vi uma cena terr-vel: meu pai gritando, sangue, estava mor-to. Tinha sido atropelado pela carroa. Noeram pensamentos, eram percepes, fulgu-raes tenebrosas. As primeiras imagensso muito duras. Ento o crepsculo era...,eu entrava chorando em casa, mame, ma-me, o sol caiu do barranco e o cu est cheiode sangue! E ia chorar no quarto. Viviao drama do cu, o drama csmico, comoa perda do pai. Mais tarde eu soube queo pr-do-sol est ligado morte de Cristo.

    K: Voc conhece um poema do Jorge deLima chamado O grande desastre areode ontem, dedicado ao Portinari, em queele comea dizendo Vejo sangue no ar?Ele vai falando dos passageiros caindo,

    Quandodescobrio Jung, fiqueicompletamentesideradado piloto, que levava uma flor para anoiva, abraado com a hlice, do paral-tico, que vm com extrema rapidez, comas pernas do vento...; e vai descrevendo aqueda de um jeito meio ferico. um poe-ma estupendo que termina assim: Chovesangue sobre as nuvens de Deus. E h poe-tas mopes que pensam que o arrebol.Dora: Veja s! Mas quero voltar pergun-ta sobre os arqutipos na poesia de hoje.Na verdade, tenho trabalhado tanto quequase no sobra tempo pra ler os poetas deagora. Acho isso pssimo, porque eu tenhointeresse. Toda a leitura da poesia brasilei-ra ocorreu mais na primeira metade daminha vida. Depois eu fui lendo filosofia,teologia, leituras mais direcionadas para aminha busca interior. Quando descobrio Jung, fiquei completamente siderada.O curioso que fui convidada, pelo Dr.Lon Bonaventure, que foi meu analista,para integrar a comisso responsvel pelaedio brasileira das obras completas doJung. Estou acabando de traduzir com umaamiga de famlia sua, a Maria Luza Appy,Os arqutipos do inconsciente coletivo. um livro de quinhentas pginas, estamosacabando, agora falta s um pouquinho,umas sessenta pginas. Ento voc podeimaginar qual o tempo que me sobra.Tenho tempo, assim, para dar uma voltano quarteiro... Isso tudo com o desastrede automvel, sei l, eu no tenho uma vidartmica. Minha vida desrtmica. No por-que eu queira, acontece. Agora eu estou comproblemas econmicos, como todo mundo,e tenho muitas dificuldades.(...) Essa coisaromntica de o poeta morrer tsico de ummau gosto incrvel. Mas sou otimista. Achoque a situao est to ruim, porque temque ser ruim. Est tudo desequilibrado,muita desigualdade, rapinagem, muita coi-sa esquisita. Ento, as coisas ficam bemruins para depois melhorar. A tal histriada enantiodromia, do Herclito. Na verda-de, no fiz nada para sair esse livro. Nuncame senti infeliz porque a crtica no me elo-giava. Pelo contrrio, quando o elogio

  • 6 K Jornal de Crtica

    RICARDO LSIAS

    Quando pensei no meu texto para oprimeiro nmero do K Jornal de Cr-t ica , achei boa idia resenhar Lospichiciegos, o clssico romance deRodolfo Fogwill. Logo vi, porm, que adificuldade da tarefa ia muito alm dofato de Fogwill ser inteiramente desco-nhecido entre ns: seu ambiente, a his-tria recente da Argentina, completa-mente distinto do brasileiro. Apesar deambos os pases viverem traumas seme-lhantes (ditaduras militares sanguin-rias, um certo populismo que sempretoma conta da vida poltica e sobretudoum cotidiano econmico absolutamentedesorganizado), tanto a maneira comque a sociedade os encara quanto, con-seqncia ou no, a maneira com que asrespectivas literaturas os formaliza socompletamente diferentes.

    No deve ser por outra razo que Lospichiciegos, apesar de festejado por cr-ticos de peso, caso de Beatriz Sarlo, e dej ter sido traduzido em diversos idio-mas sem falar no sucesso de pblicoque o livro atingiu na Argentina aindano saiu no Brasil. Sendo o romance umanotvel radiografia ficcional dos ltimostempos de ditadura no pas de Jorge LusBorges (que, ateno, o pas de Guima-res Rosa ainda no realizou!), que jsuspendeu a vergonhosa lei de anistia,prendeu um punhado de torturadores eno teme levar adiante julgamentos p-blicos contra as atrocidades realizadaspelos militares, de fato pouco na prosacontempornea pode estar to distanteda realidade brasileira.

    visvel na fico argentina o emba-te entre a forma literria e a histria dopas, inclusive a empreendida no calorda hora, como o caso de Fogwill. Defato, salta aos olhos a preocupao for-mal, normalmente girando em torno daespecificidade do narrador que centrali-za a narrativa, recente ou no, dos nos-sos vizinhos. Para ficar nos ltimos anos, fcil ver a luta por uma nova arquite-tura empreendida por, alm de Fogwill,

    NO TEMPO

    Luis Gusmn, Martin Kohan e, entremuitos outros, Rodrigo Fresn.

    Por trs de uma expresso rigorosa-mente estruturada, evidentemente estuma dupla inteno: em primeiro lugar,a fico argentina contempornea se de-bate em meio prpria tradio: ningumpretende esquecer Borges, passar porcima de Jlio Cortzar ou varrer paradebaixo do tapete Juan Jos Saer; domesmo jeito, os autores que procuramuma forma adequadamente nova tam-bm sabem que no podem deixar paratrs, sob o risco de se tornarem irre-levantes, o trauma recente que constituia tradio a que todos querem pertencer.

    Apesar de difcil para quem v de fora,a operao pode ser descrita em poucaslinhas: no se trata de reproduzir na ficoum que outro fato que os jornais (e os tri-bunais) j cuidaram. Ao contrrio, o caso reler a histria, desdobrando a tradioliterria, para, encontrando uma formanarrativa nova, reverter o prprio destinohistrico. Trocando em midos, s mes-mo uma nao com um embate formal,no que toca sua arte, to aguerridocomo a Argentina para, em movimentoanlogo, ter a coragem de mudar a lei, ouseja a forma que estrutura as instituies,

    exagerado eu me sinto humilhada, porqueno acredito naquilo. Eu me acho bastanteinteligente para criticar a crtica. De qual-quer maneira, vou te dizer onde eu vejo oque est acontecendo arquetipicamente nomundo. Vendo filmes para descansar. Nodescansam nada. Digo: Agora vou descan-sar. Da eu tomo um refresco, deito, ouomsica, relaxo eu sei aquela tcnica derelaxamento, de deixar o corpo pesado,respirar lentamente... , depois ligo a tele-viso. E vejo a enantiodromia. H umaguerra espreitando... s fogo. Fogo, inun-daes, crimes hediondos... Rarissima-mente h uma histria razovel, humana.Mas ontem eu vi uma histria humana.De pessoas de meia-idade, solitrias, quede repente sentem que no podem ser da-quele jeito... Acho que eu era a nica pessoaque estava naquele canal, porque no algoque esteja no ar.

    K: Voltando questo da hierofania, queroque voc fale um pouco do Hlderlin, cujopoema O Arquiplago voc traduziu.Trata-se de um poeta tambm muito sinto-nizado com o divino. Era pessimista, enten-dia a modernidade como um perodo deafastamento do divino, de fragmentao dohomem, alienao em face da natureza, dasociedade e de si mesmo. Foi um dos pri-meiros a propor essa compreenso damodernidade que se tornaria um clich po-tico, filosfico, sociolgico e poltico no sc.XX. Pensando nas apropriaes que foramfeitas do Hlderlin nesse sculo, a leitura deHeidegger, do Rilke, do pessoal ligado aoStefan George, a gente encontra interpreta-es muito contrastantes. O Heidegger noseria um leitor suficientemente atento scomplexidades, aos aspectos formais, con-cretos da poesia de Hlderlin...Dora: Olha, do Heidegger eu conheoHlderlin, a essncia da poesia, do qualeu cheguei a traduzir uma boa parte; tradu-zi do francs. Eu acho muito bom. Agora,

    PoesiaAndanas So Paulo: edio da autora,1970 (Prmio Jabuti / Cmara Brasileira doLivro); Uma via de ver as coisas So Pau-lo: Duas Cidades, 1973; Meninaseumundo So Paulo: Massao Ohno, 1976; Jardins(esconderijos) Sa Paulo: Cupolo, 1979;Talhamar So Paulo: Massao Ohno /Roswitha Kempf, 1982 (Meno Honro-sa no Prmio PEN Clube de So Paulo);Retratos da Origem So Paulo: RoswithaKempf, 1988; Poemas da Estrangeira SoPaulo: T. A. Queiroz, 1995 (Prmio Jabuti/ Cmara Brasileira do Livro); Poemas em

    DOS PUNKS

    fuga So Paulo: Massao Ohno, 1997;Obra potica reunida Rio de Janeiro:Topbooks, 1998 (prmio Machado deAssis, Academia Brasileira de Letras);Cartografias do imaginrio. So Paulo: T.A. Queiroz, 2003; Hdrias So Paulo,Odysseus, 2005 (prmio Jabuti / CmaraBrasileira do Livro).

    EnsaioAngelus Silesius (em colaborao comHubert Lepagneur) SP: T. A. Queiroz,1986; Tauler e Jung (em colaborao comHubert Lepagneur) SP: Paulus, 1998.

    Obra de Dora Ferreira da Silva

    Muchacha punk, Rodolfo Fogwill. Buenos Aires:Editorial Sudamericana, 1992.

    Los pichiciegos. Buenos Aires: Editorial Sudame-ricana, 1994.

    toda pessoa que l um texto no introduznele um coeficiente pessoal? O que nslemos de Plato? Voc acha que todos lemo mesmo Plato? Talvez Heidegger inter-fira um pouco mais no poeta do que umleitor mais inocente. (...)

    K: Ainda pensando nos seus poemas, vocdiz que no contratou os servios deDdalo; o labirinto veio de graa. Comogerir essa ddiva?Dora: (Silncio) A vida no um labirinto?E no de graa? Eu no sei se algum ima-gina que a vida no seja um labirinto, mas,por mais simples que a pessoa seja, a vida um labirinto. Nada est predeterminado.Quando o Vicente morreu, fiquei beirada loucura com a idia da Moira. Tudoparecia predeterminado. Eu no queria fa-zer a viagem, estava morrendo de dor decabea. Disse: Vicente, vamos adiar, eu noquero ir, estou morrendo de dor de cabe-a!. Tome um Melhoral, ele me respon-deu. H experincias em que tudo parecepredeterminado. Na estrada, quase doiscaminhes vieram por cima da gente...A nica coisa que me fez superar isso, de-pois que eu entrei em anlise, foi uma ex-ploso, de dentro, religiosa. o Cristo. Eolha que eu sa da Igreja, porque no tenhouma tendncia para me conformar a algoexterno, institucional. Mas sei que o meuDeus o Cristo. No nego tudo o que ficoupara trs. Cada cultura, cada povo tem umaImago Dei. Quando os estudiosos falam emcontexto cultural parece uma coisa fria;no . A religio grega est ligada aos atosde cada dia. Para recolher a gua, existia aCasa da Fonte, onde as mulheres levavamas bilhas..., tudo ritual. (...)

    Dora Ferreira da Silva (01/07/1918 06/04/2006)

    Fabio Weintraub poeta e edit or, autor de Novoendereo (Nankin/Funalfa).

  • K Jornal de Crtica 7

    TARSO DE MELO

    Perteno ao nmero pouco restrito dosque se encantaram e ainda se encantam com a antologia Poesia russa moderna,realizada pelos irmos Augusto e Haroldode Campos e por Boris Schnairderman.Um nmero que cresce sem parar desde aedio original pela Civilizao Brasileira,em 1968, at a mais recente pela Perspec-tiva, ainda mais ampliada que as quatroedies lanadas pela Brasiliense.

    Folheando o exemplar comprado hcerca de 15 anos, lembro bem o quantome deixaram instigados aqueles poemas etambm as breves biografias dos poetas.Prises, suicdios, exlios, fuzilamentos,tudo isso dava ainda mais fora ao senti-do e ao mistrio dos poemas da antolo-gia. Poesia, ali, no era brincadeira.

    Foram poucos, infelizmente, os poetasdaquele time que, depois da antologia,ganharam tradues mais amplas poraqui. Contudo, nos ltimos anos h ace-nos de que essa lacuna vai ser preenchida,lenta e competentemente, por estudiososda lngua russa, um grupo que h poucoera possvel contar nos dedos da mo.

    Assim, ao mesmo tempo em que o Bra-sil ganha as mais esmeradas tradues daprosa russa (das principais obras deDostoivski e Tolsti, por exemplo), a tra-duo de poesia russa tambm colhe seusfrutos. Entre eles, destaco as belssimas tra-dues que o poeta Andr Vallias publicourecentemente de poemas de Mandelstam(nas revistas Et cetera e Errtica). Mas,aqui, quero falar um pouco de dois livrosdedicados obra de Marina Tsvetieva(1892-1941) que saram nos ltimos meses.

    Marina era destaque em Poesia russamoderna. Sua biografia (diversas fugas, ofuzilamento do marido, a filha no campode concentrao, o suicdio) espantava;sua poesia (de versos concisos, speros,severos), ainda mais. Mas faltava algo.Agora, com os volumes traduzidos porDcio Pignatari (Marina Tsvetieva Travessa dos Editores, 2005) e AuroraFornoni Bernardini (Indcios flutuantes Martins, 2006), d para ter mais algumasidias sobre a fora de Marina.

    Lendo os dois lanamentos (que estoem edio bilnge e quem l russo talvez

    tenha uma impresso diferente da mi-nha), a primeira coisa que percebo quesaem dali Marinas bastante diferentes:tanto diferentes entre si, quanto dife-rentes daquela imagem que eu fazia dapoeta Marina a partir da antologia dosconcretos e de alguns outros poemas li-dos esparsamente. A voz da Marina dePignatari guarda poucos traos de seme-lhana com a de Bernardini. E talvez issose deva ao fato de que Marina chegou aoportugus para, digamos, defender tese.

    No caso de Pignatari, a escolha dospoemas e as opes da traduo parecemser determinadas pela tese exposta no pre-fcio como ideologia da composio (etambm outraduo). No de Bernardini,igualmente, a razo da antologia est natese (neste caso, propriamente acadmica)dos indcios flutuantes na poesia deMarina, indcios secundrios de signifi-cado. Tais teses, a meu ver, explicam asdiferentes Marinas que saem de cada li-vro e para quem, como eu, no sabe cote-jar as tradues com o original, implicamuma perplexidade: o que mesmo que aMarina escreveu?

    Um poema traduzido em ambos oslivros, por exemplo, leva essa perplexi-dade ao extremo. Enquanto a Marina deBernardini diz Beijar na testa apagaro cuidado. / Beijo na testa. // Beijar nosolhos tirar a insnia. / Beijo nos olhos.// Beijar nos lbios matar a sede. / Beijonos lbios. // Beijar na testa apagar alembrana. / Beijo na testa., a dePignatari diz Beijo na testa deleta afli-o / imprime afeio / Beijo na testa //Beijo nos olhos deleta pesadelo / im-prime desvelo / Beijo nos olhos // Beijona boca deleta sede e fome / imprimeseu nome / Beijo na boca // Beijo na testa deleta memria / e fim da histria /Beijo na testa.

    para julgar crimes de tortura ou desapa-recimento, por exemplo.

    De fato, no preciso ir mais longepara observar a distncia que o Brasil estdessa realidade. Por aqui, a lei da anistiaest mais forte do que nunca, de vez emquando um torturador levado ao con-gresso para contar que deu uns tapas emum poltico que agora apronta as suas eno temos processo nenhum contra vio-laes gravssimas lei. A propsito, sequerabrimos os arquivos militares. De fato,eu precisaria de um espao enorme paraanalisar, em um contexto to diferente,o belo romance de Fogwill. Como noposso, ao menos por enquanto, tentareino meu espao apresentar sua obra demaneira mais geral.

    Para logo adiantar a caracterstica maisnotvel de seus livros, sejam os contos ouos romances, vale ressaltar que Fogwillsempre, realmente com insistncia, lembrao leitor de que tudo que o narrador podeoferecer fico. O conto Muchachapunk, publicado na coleo de relatoscurtos com o mesmo nome, um exce-lente exemplo disso: j na metade final, onarrador imagina-se mudando o destinodas personagens, inclusive e principalmenteo seu, fazendo um terrorista do IRA (eleest em Londres no final da dcada de se-tenta) explodir o bar onde ele e a garotapunk flertam. No entanto, como no co-meo do texto o leitor logo avisado quenarrador e a personagem punk vo passara noite juntos, evidentemente uma bombado IRA no pode explodi-los.

    A sutileza notvel e comprova o queeu dizia antes sobre a literatura argenti-na: rearranjando a forma, o que no casoprev inicialmente a denncia de seuartificialismo, a prpria histria quese recria, conduzindo-nos a novos senti-dos em Muchacha punk, a bombado IRA no explode, muito embora onarrador anuncie orgulhoso seu poderde fazer isso, para denunciar outro tipode terrorismo, o mesmo, inclusive, quesustenta Los pichiciegos. O reforo condio de artificialidade da literatura justamente o que a torna relevantecomo manifestao engenhosa capaz deintervir em organizaes que de longe ul-trapassam seus limites. Desde j fcilnotar que Fogwill percebeu a lio e, porisso, to relevante. O chato de tudo fazer o raciocnio em negativo para ten-tar descobrir porque ele no interessa cultura brasileira.

    Ric ardo Lsias escritor, autor de, entre outros Duaspraas (Globo) e doutor em Literatura Brasileira pelaUniversidade de So Paulo.

    Olhando para o mesmo original aolado das tradues, identificando ao me-nos a figura das letras russas, o leitor sepergunta: como que um tradutor saiu de701>BC AB5@5BL para apagar o cui-dado e o outro para deleta aflio / im-prime afeio? E, curioso, vai aos dicio-nrios e descobre que, de fato, a Marinade Bernardini est colada no sentido lite-ral daqueles caracteres. Nova pergunta:se deleta aflio reflete, com apeloinformtico (tanto quanto imprime), oque dito no original, de onde saiu o im-prime afeio, entre outros, que a Marinade Pignatari diz?

    lugar-comum que, na traduo depoesia, muitas vezes impossvel recupe-rar aspectos essenciais do original. Domesmo modo, sabido que as soluesliterais s vezes so mais traioeiras do queeventuais criatividades cometidas pelo tra-dutor. A idia do leitor mais clara quantoa isso, obviamente, quando ele conhece alngua original. Quando no a conhece,quase refm do tradutor, tem poucaschances de saber o quanto, de fato, aquelaverso contm do original.

    Como saram quase ao mesmo tempoas duas Marinas que o leitor tem emmos agora, em portugus, inevitvelreparar que, do livro de Pignatari, saiuma poeta mais solta, humorada, maisleve (como a que chama VladmirMaiakvski de Mirinho e SierguiIessinin de Serginho...) do que aquelaartista ao mesmo tempo grave e ternaque aparece nas tradues de Bernardini,uma artista que se mostra tambm naPoesia russa moderna e que sua biogra-fia nos faz supor.

    Com qual Marina ficar? Marina e suapoesia irreprimvel se saem bem emambos os casos. Num ou noutro, ela semantm a poeta que, para Pasternak, pas-sava facilmente sobre as dificuldades daverdadeira criao, resolvia os seus pro-blemas brincando, com um brilho tcnicoincomparvel. Ao mesmo tempo em quea traduo de Bernardini inspira confianaquanto proximidade com o original, ade Pignatari, com seus achados, flagra umaMarina igualmente forte.

    Assim, importante poder contar comtradues mais amplas da poeta, ainda quesuspeitemos que o original tenha sido afe-tado (positiva e negativamente) pelas tesesque o colocaram para defender. A prop-sito, Pignatari quem anota: ParaMarina, a qualidade de um poema de valortransparece at numa traduo literal.

    Tarso de Melo poeta, autor de Planos de fuga eoutros poemas (Cosac Naify).

    DUAS MARINAS

    Marina Tsvetieva, trad. Dcio Pignatari. Curitiba:Travessa dos Editores, 2005, 151 p.

    Indcios flutuantes, trad. Aurora Fornoni Bernardini.So Paulo: Martins, 2006, 208 p.

  • 8 K Jornal de Crtica

    UM CA

    TLOGO

    Os lbuns do portugus Jos CarlosFernandes demonstram que as histrias emquadrinhos podem ser algo mais que pro-duto descartvel da cultura de massas.Ou seja, um hbrido de literatura e arte,onde texto e imagens convivam de modointeligente e provocador e que haja um ver-dadeiro dilogo criativo entre linguagens,no uma mera relao de subservincia.

    As referncias literrias so evidentesnos roteiros e nos personagens de Fernan-des, que declarou em entrevista a RobertoElsio dos Santos, veiculada no site Ome-lete (www.omelete.com.br), ser leitor deBorges, Calvino, Kafka, Perec, Cervantes,Rilke, Pessoa, Whitman, Eco, Juarroz e

    Quevedo, entre tantos outros.To importantes quanto os es-critores, so os cineastas eleitos

    por Fernandes em seu panteo,indo de Welles, Lang, Capra,

    Hitchcock e Hawks a Fellini, Bergmane Tarkovski. No se pode negar que

    estamos diante de uma seleo ao mes-mo tempo ecltica e respeitabilssima.

    A mistura de to diversas e refinadasleituras aparece transfigurada em ro-

    teiros e ilustraes sofisticados, muitodistantes da produo industrial e

    padronizada das gigantes norte-

    americanas Marvel e DC, ou dos mangsjaponeses, que infestam as bancas e oimaginrio da garotada. No h super-poderes nas pginas de Fernandes, massituaes absurdas, poticas, lrico-tr-gicas, que fazem de nosso cotidiano ps-moderno o palco de operetas minimalistasque jamais se juntam num conjunto dota-do de sentido, ou numa harmonia supe-rior qualquer. Em suma, Fernandes colheretratos de uma realidade cujo todo noresulta da somatria das partes. Vide asrie A pior banda do mundo, j noquinto volume.

    No livro Um catlogo de sonhos,relanado em 2004 a primeira ediosaiu em 1996 pelo obscuro selo editorialPedranocharco Fernandes arma um con-texto de angustiante opresso poltica,como em O processo, de Kafka, e 1984,de George Orwell. Mas h tambm asombra obsessiva de Borges, pois o obje-to central do conto, o tal catlogo cobi-ado por poderosos e por anarquistas, temas pginas em branco. O texto s aparece

    sob a luz do luar e seus tex-tos nunca so os mesmos.Qualquer semelhana com ofabuloso e assustador O li-vro de areia borgeano noter sido mera coincidncia.

    O traado da narrativa enxuto, em preto e branco,explorando os contrastes declaro-escuro do romance noir,outra referncia significativanos quadrinhos (ou banda de-senhada, como se diz em Por-tugal) de Jos Carlos Fernandes.O que refora o ambiente ideo-lgico soturno e a dimenso on-rica do personagem Remo, quenasceu literalmente do catlo-go. Nesse trabalho, Fernandespresta homenagem ao norte-ame-

    ricano WinsorMcKay (1869-1934), um dospioneiros doscomics em jornale criador da s-rie Little Nemoin Slumberland,publicada entre1905 e 1911 noNew York He-rald. As via-gens noturnas

    do pequeno Nemo pelo universo parale-lo dos sonhos talvez ofeream o subs-trato remoto para os delrios psicodli-cos do francs (Jean Giraud) Moebius emsua fascinante Garagem hermtica, dosanos 1970.

    Alm do jogo fontico entre Remo eNemo, outro personagem da narrativa deFernandes cita explicitamente o dese-nhista McKay: trata-se de Winsor MKSlumber, responsvel pelo roubo do ca-tlogo e foragido do sistema totalitriode inspirao tecnocrtica imposto peloditador Zar (seria o regime zarista ecode salazarista?). Esse Slumber tem os tra-os fisionmicos do escritor SamuelBeckett, que curiosamente no aparecenas leituras apontadas por Fernandes etampouco nos comentrios sobre Umcatlogo de sonhos espalhados pelaInternet. bvio o parentesco de certospersonagens de Fernandes, especialmen-te nos minicontos de A pior banda domundo, com os da galeria de prias emarginais que povoam o teatro e a fic-o do escritor irlands. A diferena detom entre ambos reside no fato de que amaioria dos protagonistas de Fernandes de burocratas ou gente comum, semqualquer perspectiva de vida minimamenteedificante. Os dois autores, porm, lidamcom a tragdia humana em sua dimen-so mais mundana, trivial, antipica, comose houvesse uma certa normalidade na es-tupidez. Donde se conclui que todos esta-mos atolados, irremediavelmente, na gigan-tesca mesquinharia histrica parida pelacultura ocidental.

    A latente desesperana no livro deFernandes deixa escapar, aqui e ali, umlampejo potico, seja nos dilogos morda-zes, na fuga desesperada de Remo depijamas pelos telhados da cidade, oumesmo na mensagem final de que o sonhopode ser libertrio. Cabe saber que graude liberdade ainda resta a um inconscienteestruturado como linguagem e refm dosarqutipos coletivos.

    Jos Carlos Fernandes nasceu em1964, em Loul, situada no centro doAlgarve. Formou-se em engenharia am-biental, funo que exerceu at 1999.Desde 1989 dedica-se aos quadrinhos,como autodidata. Durante muito tempopublicou em fanzines, chegando a pro-duzir mais de mil pginas em veculosalternativos. Em 2000 ganhou uma bolsade criao do Ministrio da Cultura dePortugal e decidiu arriscar-se na profisso.Escolha acertada, diga-se.

    Reynaldo Damazio editor e poeta, autor de Nu entrenuvens (Cincia do Acidente).

    de so

    nhos

    Um catlogo de sonhos, Jos Carlos Fernandes.So Paulo: Devir, 2004, 32 p.

    REY

    NALD

    O DA

    MAZ

    IO