justificados vivemos: a justificaÇÃo pela fÉ como...

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO MARCOS JAIR EBELING JUSTIFICADOS VIVEMOS: A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DE UM MODO DE VIDA. SÃO BERNARDO DO CAMPO 2014

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

MARCOS JAIR EBELING

JUSTIFICADOS VIVEMOS: A JUSTIFICAÇÃO

PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DE UM MODO

DE VIDA.

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2014

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MARCOS JAIR EBELING

JUSTIFICADOS VIVEMOS: A JUSTIFICAÇÃO

PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DE UM MODO

DE VIDA.

Dissertação apresentada em cumprimento às exigências parciais do Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Religião, Sociedade e Cultura. Linha de Pesquisa: Religião e dinâmicas sócio-culturais Orientador: Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2014

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Ficha Catalográfica

MARCOS JAIR EBELING

EBELING, Marcos Jair Justificados Vivemos: a Justificação pela Fé como

Fundamento de um Modo de Vida. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião.

Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião, Faculdade de Humanidades e Direito, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014. 128 p. Área de concentração: Religião, Sociedade e Cultura. Linha de Pesquisa: Religião e dinâmicas sócio-culturais. Orientador: Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth. 1. Reforma Protestante. 2. Justificação pela Fé. 3. fides Christi. 4. Justiça.

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A dissertação de mestrado sob o título “Justificados Vivemos: a Justificação

pela Fé como Fundamento de um Modo de Vida”, elaborada por Marcos Jair

Ebeling foi apresentada e aprovada em 06 de Março de 2014, perante banca

examinadora composta por Lauri Emilio Wirth (Presidente/UMESP), Helmuth

Renders (Titular/UMESP) e Wilhelm Wachholz (Titular/Faculdades EST).

__________________________________________

Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________

Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Religião Sociedade e Cultura

Linha de Pesquisa: Religião e dinâmicas sócio-culturais

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Agradecimentos

* a Deus por todo cuidado recebido;

* à família que persevera e suporta ausências;

* ao Prof. Lauri pelos diálogos frutíferos;

* à Comunidade Evangélica de Confissão Luterana em Campinas pelo incentivo e compreensão nas ausências necessárias;

* à CAPES/PROSUP pelo apoio financeiro.

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5 EBELING, Marcos Jair. Justificados Vivemos: a Justificação pela Fé como Fundamento de um Modo de Vida. 128 f. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião. Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião, Faculdade de Humanidades e Direito, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.

RESUMO

A Justificação pela Fé no contexto da Reforma protestante do século XVI apresentou-se

como um enunciado libertador das práticas pastorais meritórias. Ressignificou conceitos

teológicos. Apontou para uma nova forma de vida cristã tendo a salvação como seu princípio,

não seu objetivo. Formatou, desta forma, o fundamento de um modo de vida: o modo

justificado de viver. Um modo que define a integralidade do ser. Modo que, dogmatizado com

o passar dos anos, impôs-se como doutrina em detrimento da vivência. Esta pesquisa se

propõe a apontar para a relevância da Justificação pela Fé no contexto do século XVI,

assinalar aspectos que fundamentam e moldam o novo modo de vida da pessoa justificada

pela fé e afirma a Justificação pela Fé como o fundamento de um modo de vida resistente ao

sistema hegemônico da sociedade de mercado do século XXI.

Palavras-chave: Reforma Protestante, Justificação pela Fé, fides Christi, justiça. Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura. Linha de Pesquisa: Religião e dinâmicas sócio-culturais. Orientador: Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth Fomento: CAPES/PROSUP – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior / Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares.

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6 EBELING, Marcos Jair. We live justified: justification by faith as a foundation of a way to live. 128 f. Dissertation (Master of Religious Sciences) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.

SUMMARY

The justification by faith alone, in a context of fear, anguish and pastoral practices based

on merit, of the Protestant Reformation in the 16th century, presented itself as a liberating

enunciation. It gave new meaning to theological concepts. It showed the direction to a new

way of Christian life, having salvation as its principal, not its objective. It formed, in this way,

a foundation of a way to live: a justified way of living. A way that defines the integrity of

being, that defines personal and communitarian acts. A way that, dogmatized over the years,

imposed itself like a doctrine, to the detriment of vivid experience. The purpose of this

research is to point out the relevance of justification by faith in the context of the 16th century,

highlight aspects that formed the foundation of a new way of life of a person justified by faith,

and confirm justification by faith as a foundation of a way of life that resists the hegemonic

system of the market society of the 21st century.

Key words: Protestant Reformation, justification by faith, fides Christi, justice.

Field of Specialization: Religion, Society and Culture. Line of Research: Religion and socio-cultural dynamics. Tutor: Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth

Scholarship format: CAPES/PROSUP – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior / Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares.

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7 SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9

1 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ NO CONTEXTO DO SÉCULO XVI:

CONTEXTUALIZAÇÃO E DELIMITAÇÕES .................................................................. 12

1.1 Século XVI: auge de uma caminhada .............................................................................. 12

1.1.1 Localizando a Idade Média......................................................................................... 13

1.1.2 Na transição o surgimento de importantes práticas religiosas e conceitos teológicos 15

1.2 O Século XVI: contexto social e religioso ....................................................................... 19

1.2.1 O contexto social ........................................................................................................ 19

1.2.2 O contexto religioso ................................................................................................... 25

1.2.3 O princípio teológico facere quod in se est e a imitatio Christi ................................. 36

1.3 Martim Lutero neste contexto........................................................................................... 40

2 A BUSCA POR NOVAS REFERÊNCIAS PASTORAIS E TEOLÓGICAS ................ 44

2.1 Movimentos pré-reformadores ......................................................................................... 45

2.1.1 A Via Moderna ........................................................................................................... 45

2.1.2 João Wyclif e João Hus .............................................................................................. 49

2.2 Martim Lutero e o seu centro teológico: a Justificação pela Fé ....................................... 51

2.3 “imitatio Christi” e “fides Christi”: respostas pastorais diferentes para uma mesma

angústia de vida e fé ................................................................................................................. 56

2.3.1 “imitatio Christi” ....................................................................................................... 56

2.3.2 “fides Christi” ............................................................................................................ 58

2.3.3 Comentários acerca da diferenciação entre imitatio e fides Christi e sua

ressignificação em Lutero ......................................................................................................... 65

2.4 Os escritos de Martim Lutero: Da Liberdade Cristã (1520) e Das Boas Obras (1520) .... 67

2.4.1 O escrito Da Liberdade Cristã, 1520 .......................................................................... 67

2.4.2 O escrito Das Boas Obras, 1520 ................................................................................. 73

3 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ: UMA PROPOSTA DE ATUALIZAÇÃO ................... 79

3.1 Cuidados necessários ........................................................................................................ 79

3.2 A Justificação pela Fé: algo mais que passividade ........................................................... 81

3.3 A Justificação pela Fé: perspectiva de atualização de diferentes autores......................... 85

3.4 A Justificação pela Fé como fundamento de um modo de vida ....................................... 91

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8 3.5 A Justificação pela Fé como fundamento das relações econômicas ................................ 95

3.6 A Justificação pela Fé como fundamento de um modo de vida: o próximo como critério

................................................................................................................................................ 103

3.7 A Justificação pela Fé como fundamento de um modo de vida: movimento em direção à

prática ..................................................................................................................................... 112

CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 120

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 123

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INTRODUÇÃO

A dissertação ora apresentada se propõe a analisar o tema da Justificação pela Fé no

contexto sócio-político-religioso da Reforma protestante do século XVI. Dele quer extrair

consequências para a relevância da Justificação pela Fé no contexto do século XXI.

Considera que a prática e espiritualidade da igreja cristã do século XVI estava

alicerçada na prática de obras meritórias. Entre estas práticas destaca a imitatio Cristi, a

compra de indulgências e a prática da ascese no monastério. Trata-se de estratégias pastorais e

elaborações teológicas que, progressivamente, mostraram-se insuficientes para conquistar paz

às almas, tranquilizar consciências atemorizadas pela morte e dignificar a vida no seu

cotidiano. A exigência por reformas se fez perceber.

Martim Lutero, ao defender a Justificação pela Fé, apresenta uma nova estrutura de

sentido para a vida cotidiana das pessoas: a justificação do ser humano é decorrente da ação

salvífica de Deus em Jesus Cristo e não de obras meritórias. Para aquele contexto esta

redescoberta significou um novo jeito da pessoa se relacionar com Deus e com a igreja. Deus

não é mais compreendido como um juiz rigoroso, mas como aquele que se revela no caminho

do amor. Cristo, na cruz, conquista a justificação que é atribuída ao ser humano pela fé, não

conquistada por obras meritórias. Esta percepção define o primeiro capítulo da dissertação: a

busca pelos fundamentos da Justificação pela Fé no contexto do século XVI.

Para alcançar este objetivo, faz uma rápida releitura histórica no sentido de encontrar as

raízes da teologia que moldam a prática religiosa do século XVI, entre eles os conceitos de

purgatório e inferno. Analisa também a disputa pela primazia entre os poderes secular e

religioso. Relata aspectos do contexto da Idade Média que criam uma espiritualidade do medo

e da morte: crises na agricultura, pestes e guerras. Some-se a este espectro o surgimento de

um novo modelo econômico em substituição ao modelo feudal que também gera impactos

sociais – novos ricos e pobres – e religiosos – esvaziamento da caridade em favor de obras

meritórias – importantes. Evidencia-se, assim, um conjunto de fatores que afeta o corpus

christianum. A igreja e o papado, igualmente afetados e fragilizados, não conseguem oferecer

respostas pastorais que pudessem acalmar vidas e almas na nova conjuntura. O primeiro

capítulo encerra situando Martim Lutero neste contexto e conclui: há um clamor por reformas

tanto religiosas quanto sociais que a igreja é incapaz de conduzir.

No segundo capítulo é analisado o impacto da redescoberta do Evangelho da

Justificação pela Fé na sociedade do século XVI. A forma de Martim Lutero compreender a fé

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10 promove novos relacionamentos. Por primeiro intersubjetivos: o cristão assume as dores do

outro, ajuda a carregar-lhe a cruz, torna-se empático no sofrimento – isto por prerrogativa

cristã; segundo, da pessoa com a igreja e a sociedade da época: a obra meritória não justifica

(é a fé) e os fundamentos transcendentes das diferenciações sociais são superados, pois

todos/as passariam a ser iguais perante Deus. É uma redefinição da relação de Deus com o ser

humano e da pessoa com seu próximo.

Em síntese, o segundo capítulo se preocupa com a materialização da Justificação pela

Fé na vida das pessoas. O que é definido em tese ganha forma prática, vivencial. O capítulo

inicia analisando o clamor por reformas sociais e a resposta da Igreja a estes clamores

sintetizados na análise de movimentos religiosos como a Via Antiqua e a Via Moderna.

Também de movimentos conhecidos como pré-reformadores, ou seja, vozes dissonantes do

modelo religioso hegemônico como a dos franciscanos, de Wyclif e Hus. O texto culmina na

apresentação do centro teológico de Martim Lutero: a Justificação pela Fé como resposta às

angústias vividas e enfrentadas no contexto do século XVI. O ser humano é justificado pela

fé, não por obras meritórias. Deste ponto em diante a pesquisa se ocupa com a materialização

desta proposição. O que esta redescoberta significou na vida e contexto do século XVI? A

pesquisa opta por estabelecer diferenciação entre as propostas e práticas pastorais da imitatio

Christi (imitação de Cristo: proposta teológico-pastoral da escolástica baseada no princípio

facere quod in se est [faz o melhor que podes]) e fides Christi (Fé de Cristo, ou seja, Cristo

vive em mim e molda meu ser e viver): a imitatio Christi prega a imitação de Cristo como

caminho de salvação com a participação ativa do ser humano – a salvação é o alvo, o objetivo

da pessoa que crê; a fides Christi assinala: Cristo vive em mim e, assim como a tinta e a luz

ornam a parede, Cristo orna o ser e agir humano. Ou seja, a salvação é o fundamento e a

pessoa justificada assume um modo de vida moldado pelo próprio Cristo que nela vive. A

pesquisa busca evidenciar como esta fé de Cristo se mostra nos textos Das Boas Obras (1520)

e Da Liberdade Cristã (1520) de Lutero. Estas são fontes primárias de Lutero e conduzem a

reflexão teológica para além da dogmática, ou seja, na perspectiva da vivência da fé, de uma

prática cotidiana da fé.

No terceiro capítulo a pesquisa se pergunta, considerados os fundamentos da

Justificação pela Fé no século XVI e sua aplicação prática na vida de fé, acerca da relevância

deste modo de vida no século XXI. É o esforço por “transfigurar” Lutero e a Justificação pela

Fé para um novo tempo, uma nova sociedade, dotada de novas premissas, relações e

fundamentos; para o contexto de um novo ser humano, moderno e que se move em

conformidade com estas novas premissas. A pesquisa analisa as críticas recentes feitas à

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11 Justificação pela Fé que, como doutrina, prioriza um saber que molda um comportamento

subjetivo como fim último em detrimento de uma prática de cuidado em relação ao próximo,

sendo a-histórica. Apresenta as pesquisas de atualização da temática que já existem e os

caminhos apontados por autores como Altmann, Brakemeier, Hinkelammert, Westhelle e

Tamez. Sintetiza estes caminhos e propõe a Justificação pela Fé como fundamento um modo

de vida que se materializa num princípio que move a pessoa cristã: a fé de Cristo. Este

caminho é assumido pessoal e comunitariamente na forma de uma ética pessoal e na definição

de práticas pastorais que movimentam comunidades religiosas.

O conjunto do texto está baseado em pesquisa bibliográfica. Esta é constituída de fontes

primárias (textos de Martim Lutero encontrados, especialmente, nas Obras Selecionadas,

volumes 1 a 11 e textos do Livro de Concórdia); fontes secundárias – autores que comentam e

dialogam com Martim Lutero (entre eles: Martim Dreher, Gerhard Brendler, Timothy George,

Gerhard Ebeling, Marc Lienhard, Paul Althauss e Wilhelm Wachholz); e autores que ajudam

a pensar a temática para o contexto do século XXI, dando preferência para autores latino-

americanos (entre eles: Walter Altmann, Gottfried Brakemeier, Franz Hinkelammert, Elsa

Tamez e Vitor Westhelle).

Para facilitar a leitura optamos por indicar as fontes no respectivo texto na forma de

autor, ano e página sempre que estas informações estavam à disposição. A indicação das

fontes primárias se dá na forma ObSel 2.1 [ano] (Obras Selecionadas de Martim Lutero,

volume 2, página 1, seguida do ano da publicação) e LC 50.15 (Livro de Concórdia, página

50, numeração de margem 15), seguido da indicação do respectivo texto e ano (CA, 1530 –

Confissão de Augsburgo, ano de 1530; FC, 1575/1576 – Fórmula de Concórdia, ano de

1575/1576). As abreviações LW (Luther’s Works) e WA (Waimarische Ausgabe) referem-se

às edições em inglês e alemão, respectivamente, das Obras de Lutero.

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1 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ NO CONTEXTO DO SÉCULO XVI: CONTEXTUALIZAÇÃO E DELIMITAÇÕES

Propomos neste texto analisar o tema da Justificação pela Fé. Central na Reforma do

século XVI, defendemos, ao longo do texto, que a Igreja institucionaliza o que em sua origem

pretendia ser uma prática, uma vivência.

Para estabelecer este caminho voltamos à Idade Média e o fazemos sob a perspectiva da

Reforma do século XVI. O conceito da Justificação pela Fé não é novo, mas ganha em

Martim Lutero e na Reforma um grande impulso, sendo seu centro teológico. No primeiro

capítulo desta dissertação queremos entender como se deram as definições teológicas que

orientaram a vida religiosa na Idade Média e que foram contrapostos à Justificação pela Fé

por Martim Lutero. Para alcançar este objetivo analisamos a dinâmica religiosa e social da

Idade Média, ambiente da reforma.

1.1 SÉCULO XVI: AUGE DE UMA CAMINHADA

A sociedade e religiosidade que os reformadores encontraram e vivenciaram nos anos

de 1500 não foi gestada no século XVI. Pelo contrário, a realidade social e de vida religiosa

por eles encontrada é resultado de um processo de construção. Com isso afirmamos, por

exemplo, que a prática da venda de indulgências – amplamente difundida no século XVI e um

dos pontos nervais da Reforma – foi gestada muito antes, provavelmente a partir do século XI.

O que se experimenta no século XVI é o resultado de como a Igreja e o Estado lidaram com o

tema ao longo de séculos. Esta percepção nos faz dar um passo atrás ao período da Reforma

do século XVI no sentido de analisar brevemente algumas características da Idade Média que

moldaram o jeito religioso, teológico e social do século XVI.

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13 1.1.1 Localizando a Idade Média

A literatura encontra dificuldades para definir precisamente o período no qual se

localiza a Idade Média. Quando inicia e quando termina o período chamado de Idade Média?

Quais critérios demarcam o início e o fim deste período?

Para fins desta pesquisa acolhemos a tese de Dreher (1994, p. 5-8) que localiza o início

da Idade Média no ano de 529 d. C. quando um decreto do imperador cristão Justino ordenou

o fechamento da academia platônica de Atenas. No mesmo ano Bento de Núrsia funda o

primeiro mosteiro beneditino em Monte Cassino. Dreher afirma que a data é simbólica por

estabelecer um novo saber: a sociedade pautada pela filosofia (por isso chamada de pagã por

Hegel) passa a ser orientada pela teologia. Ou seja, são estabelecidas novas categorias do

pensar e do conhecimento intermediadas agora pela teologia. Esta, por sua vez, é pautada pela

encarnação de Deus em Jesus Cristo no mundo em que vivemos. Ora, um novo tempo, com

novas exigências pede uma “atualização” da fé cristã. Na prática significa que todo o

conhecimento da Antiguidade, inclusive a fé cristã, precisa ser traduzido para dentro dessas

novas categorias. Os mosteiros irão desempenhar aqui um papel importante: é o lugar da

transcrição, do estudo, da preservação, da tradução da Antiguidade para as novas categorias.

Se por um lado há uma nova referência de saber, por outro há também uma nova

perspectiva política. Dreher (1994, p. 8s) lembra e dá importância ao fato de Roma ter sido

saqueada por Alarico, no ano de 410 d.C.: Roma, o símbolo de poder e da ordem estabelecida,

está fragilizada. Cem anos mais tarde não há mais césares ou Império Romano. Há um novo

reino, o Reino Godo e o governante se chama Teodorico (493-526).

E a Igreja? Neste contexto Agostinho escreve “Cidade de Deus” com o objetivo de

distanciar a Igreja do Império Romano sucumbido. Boécio também é importante representante

deste período e vive a situação de ter sido criado no mundo helênico e escrever para um novo

povo, os godos. Sua tarefa é “traduzir a Antiguidade para o mundo germânico. Com ele

iniciou o processo de tradução também da fé cristã para o mundo germânico. A Idade Média

foi um período de tradução.” (DREHER, 1994, p. 9).

Com este mesmo critério Dreher (1994, p. 5 e 10) demarca o fim da Idade Média: Decreta-se o início de um mundo cristão, e cria-se o principal centro onde a Antigüidade vai ser preservada e traduzida para o mundo medieval. Termina quando se evidencia a incapacidade de a fé cristã ser traduzida de suas categorias romano-germânicas para as categorias dos novos povos e continentes que o centro europeu vai conquistar: Américas, África, Ásia e Oceania.

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14 E continua: quando “a simples repetição e apropriação do antigo já não era mais suficiente”

ante a nova configuração geográfica e de poder inicia-se uma nova época que, por sua vez,

pede por novas categorias do pensar.1

Esta percepção fica evidente no aspecto político-econômico. Lindberg (2001, p. 55-57)

afirma que o modelo político-econômico que regeu a Idade Média se esgota diante da

economia monetária emergente. Esta gera novas condições e relações na sociedade: faz

aumentar as tensões entre as cidades autônomas por desunião, dissensões internas ou

suspeitas mútuas; o comércio que se expande cria novos ricos e novos pobres; as cidades

medievais organizam as pessoas de forma mais igualitária, em perspectiva de relacionamento

horizontal e não mais na forma de senhorio-vassalagem como no sistema feudal; com a

Renascença ganha ênfase a noção de individualidade e de consciência individual (cada

indivíduo tem responsabilidade ética com todo o corpo político); indivíduos e novos grupos

conquistam riqueza e poder político por sua iniciativa, relativizando os valores antigos. A moralidade tradicional era incapaz de fazer face ao desenvolvimento urbano e da economia baseada no dinheiro. ‘Na verdade, a tradição recebida era predisposta contra todos os principais elementos da nova economia: contra as cidades, contra o dinheiro e contra as profissões urbanas.’ A moralidade tradicional podia fazer pouco mais do que repetir, em volume mais alto, a máxima da Igreja primitiva que fora preservada como um objeto sagrado dentro da lei canônica: ‘Um mercador raramente ou nunca é capaz de agradar a Deus’. (LITTLE, Lester k. Religious Poverty and the Profit Economy in Medieval Europe. Ithaca : Cornell University, 1978, p. 35, 38, apud LINDBERG, 2001, p. 55)

Novas questões decorrentes da política e da economia emergente são colocadas e a

cultura dominante, a referência até então, não consegue mais oferecer resposta satisfatória. A nova moralidade do empreendimento, das contabilizações e do acúmulo – uma ética capitalista, e não protestante – contagiou a uma só vez as relações pessoais e as religiosas. Esse individualismo (...) estimulou uma sensação inebriante de libertação, mas também uma insegurança e terror mórbidos diante da perda desse self recém-descoberto na realidade da morte. (LINDBERG, 2001, p. 56).

O novo, ao não encontrar resposta nas antigas referências, gera ansiedade e insegurança nas

pessoas: Os limites psicológicos pelos quais a antiga cultura tinha buscado compreender a natureza do ser humano e predizer seu comportamento eram inúteis num momento em que ele já não se sentia inibido pelas pressões da comunidade tradicional (...) Doravante ele parecia jogado, desorientado, de volta para dentro daquele vazio do qual a cultura tinha o encargo de resgatá-lo. [Esta] (...) é a explicação imediata para

1 A questão da periodização da Idade Média em geral e da Reforma em particular não encontra consenso entre os autores. No caso da Reforma, por exemplo, há uma oscilação de impulsos tanto medievais quanto modernos. A justificativa está em que os pontos de partida podem ser diversos: políticos (surgimento da moderna nação-estado x Império), econômicos (a chegado do ouro das Américas à Europa aquece a economia x economia feudal), sociais (imprensa, modo de vida urbano etc), religiosos (bruxaria, indulgências etc), entre outros. Ora os eventos impulsionam a Reforma; ora são impulsionados por ela. (GEORGE, 1994, p. 15-23). Fato concreto é: a Reforma se situa num período de transição que não é marcado por um evento único (há eventos símbolo), mas que está dentro de um período, ou seja, uma série de eventos que vão construindo o novo momento. Assim também a passagem da Idade Média para uma nova era.

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a extraordinária ansiedade de todo esse período. Ela representava uma resposta inevitável à crescente incapacidade, por parte de uma cultura herdada, de revestir a experiência de sentido. (BOUWSMA, William J. Anxiety and the Formation of Early Modern Culture. In: Malament 1980, p. 230, apud LINDBERG, 2001, p. 56).2

A resposta principal para essas novas perguntas era esperada da Igreja. Mas esta é

também incapaz de oferecê-la. A própria Igreja vive uma crise com o cisma ocidental3 e a

teologia do conciliarismo.4 Quem deve oferecer segurança vive a insegurança. Demarca-se,

assim, o final de uma era, pois as antigas categorias não ofereciam mais resposta satisfatória

às novas perguntas e condições de vida.5

1.1.2 Na transição o surgimento de importantes práticas religiosas e conceitos teológicos

No aspecto prático-teológico surgem nesta transição/tradução da Antiguidade para a

Idade Média importantes conceitos teológicos e práticas religiosas que permeiam toda a Idade

Média. Elas orientam a vida de fé do povo e são centrais no movimento da Reforma do século

XVI. Destacamos (DREHER, 1994, p. 20-32):

a) surgimento dos mosteiros como prática religiosa ocidental: o primeiro mosteiro

beneditino foi fundado por Bento de Núrsia em Monte Cassino no ano de 529 d.C. Bento não

2 Para um estudo mais aprofundado disto que o autor chama de “extraordinária ansiedade” veja: DELUMEAU, Jean. O Pecado e o medo: a culpabilização do ocidente (séculos 13-18). Vl. 1 e 2, Bauru: EDUSC, 2003. 3 A Igreja era também envolvida em disputas. A mais acirrada se dava com o poder político instituído. Quem exercia a autoridade suprema: o representante religioso (papa) ou o político (imperador)? O exercício do supremo poder se alternou ao longo da história. Mas a igreja era também alvo de disputas internas. O Cisma Ocidental (1377-1417) é um dos momentos de maior baixa e crise do papado e é marcado pelo governo de dois e, mais tarde, três papas simultâneos. Veja a respeito: GEORGE, 1993, p. 33ss; WACHHOLZ, 2010, p. 23ss; SCHUMANN e JERKOVIC’, 1967, p. 11ss. 4 Conciliarismo é a proposta surgida para por fim ao Cisma Ocidental. Consistiu em declarar o concílio da Igreja a suprema autoridade da Igreja. No ano de 1414 o Imperador Sigismundo convocou o Concílio de Constança que destituiu os três papas e elegeu um novo, Martinho V, colocando fim ao cisma. Veja a respeito: GEORGE, 1993, p. 36ss; LINDBERG, 2001, p. 62ss; WACHHOLZ, 2010, p. 26-28; SCHUMANN, e JERKOVIC’, 1967, p. 11ss. Jerkovic’ afirma (p. 12): “esse sucessivo fracionar-se da Igreja semeia de angústia a cristandade, com suas lutas entre papas e antipapas, entre papas e concílios.” 5 George (1993, p. 17-19) considera a Reforma uma era de transição entre o lento e gradual nascimento de uma nova cultura e a também lenta e gradual morte de outra cultura. O conclui desta forma após analisar que Ernst Troeltsch situa a Reforma na Idade Média sendo a modernidade consequência do iluminismo do século XVIII. Karl Holl, por sua vez, assinala na Reforma progressos positivos na cultura moderna, principalmente nos conceitos de personalidade e de comunidade. Também a relação da Renascença (séc XIV a XVI na Itália e Norte da Europa) com a Reforma faz parte do debate, sendo o humanismo apontado como seu elo de ligação. Embora haja semelhanças e os reformadores tenham estudado o humanismo, os movimentos não podem simplesmente ser igualados. Enno van Gelden defendeu, inclusive, a ideia de que Reforma e Renascença são antíteses. Heiko A. Oberman (1974) tem encontrado “as dores de parto da Era Moderna” em três características da última fase da Idade Média: “1) a descoberta do método indutivo na pesquisa científica, 2) uma nova visão da dignidade humana baseada numa compreensão pactual da relação entre Deus e o homem e 3) o preenchimento da lacuna entre o sagrado e o profano.”

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16 idealizava o mosteiro com monges santos, mas lidava com seres humanos falíveis. Estes,

todavia, tinham que estar submetidos à Regra: um conjunto de 73 artigos que ordenam a vida

monástica beneditina. Destacam-se o trabalho, a pobreza e a oração. Mas também a

estabilidade monástica (o monge fica a vida inteira no mosteiro, a não ser que seja expulso) e

a paternitas: a obediência irrestrita ao abade, o pai. Os mosteiros e conventos se destacam

ainda na preservação da cultura da Antiguidade através do trabalho dos copistas e na difusão

da fé cristã pelas missões (as Ilhas Britânicas, por exemplo, foram missionadas por monges

neste período);

b) na medida em que o Império Romano perde poder o papado vai aumentando o seu. É

neste período que ganha força a tese de que o papa é o primaz dos bispos e sucessor de Pedro.

Significativo é o nome do papa Leão Magno, o Leão I (440-461) que, no dia da sua

ordenação, acentuou (apud DREHER, 1994, p. 24): Assim como perdura aquilo que Pedro acreditou haver em Cristo, mantém-se igualmente o que Cristo instituiu em Pedro (...). São Pedro, mantendo a fortaleza recebida, não larga o leme da Igreja, o qual lhe foi entregue. Instituído antes dos demais, é denominado Pedra, declarado fundamento, constituído porteiro do reino dos céus, preposto como árbitro do que há de ser ligado e desligado por meio de juízos e decisões que hão de permanecer até mesmo nos céus, para que, pelos próprios mistérios destas denominações, cheguemos a conhecer qual é a sua união com Cristo.

Papado significa para ele o cuidado em amor para com toda a Igreja. Assim reafirma a

primazia do bispado de Roma no contexto do conflito com Constantinopla. Neste mesmo

período de afirmação e reafirmação, de busca por espaço e poder, firma-se uma segunda tese

igualmente impactante para toda a Idade Média: a teoria dos dois poderes, firmada pelo papa

Gelásio I (492-496). Ao se dirigir ao Imperador, descreve o relacionamento ideal entre Igreja

e Estado (apud DREHER, 1994, p. 25): Duas são augusto imperador, as (autoridades) pelas quais, principalmente, este mundo é governado: a santa autoridade dos bispos e o poder real. Destes ministérios o dos sacerdotes é de tanto maior importância, porque eles também terão que prestar contas pelos reis dos seres humanos no juízo divino.

É a caracterização de dois poderes, o temporal e o espiritual, ambos divinos. Mesmo com

áreas de atuação delimitadas, Gelásio I afirma a primazia do poder espiritual por lidar com a

salvação das almas, inclusive a do próprio imperador. Esta tese é consolidada quando no ano

800 Carlos Magno é coroado imperador pelo papa Leão III;

c) conforme George (1993, p. 31) o etos medieval concebe um “Deus de ira e de juízo,

diante de cuja ira os homens culpados poderiam apenas estremecer.” Esta ideia era alimentada

por descrição detalhada dos horrores do purgatório e do inferno. Mas como nasce a doutrina

do purgatório, considerado inevitável a todas as almas? O nascimento da doutrina do

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17 purgatório se dá sob o papado de Gregório I (590-604). Gregório I é considerado o último

papa romano e o primeiro medieval. Excelente administrador e negociador, conseguiu

estabelecer tratados de paz com os langobardos (atacaram a Itália) e lançou as bases do poder

econômico da Igreja. No seu pontificado a Igreja aumenta significativamente seu poder

temporal. Mas para nosso interesse de pesquisa seu legado maior é outro: a criação da

doutrina do purgatório. Discípulo de Agostinho, Gregório é reconhecido como quem era de

perfil prático: enquanto Agostinho conjetura a existência de um lugar de purificação para os

que morriam em pecado, Gregório já o tornou uma realidade na doutrina do purgatório.

Dreher (1994, p. 27) diz que

Gregório não compreendeu a doutrina agostiniana da graça irresistível e da predestinação. Mais importante para ele foi explicar como podemos oferecer satisfação a Deus pelos pecados que cometemos, fazendo penitência. Nesta penitência, Gregório distingue entre arrependimento, confissão e penas, às quais segue a absolvição sacerdotal. Quando uma pessoa morre, sem ter feito penitência o suficiente, vai para o purgatório. Os vivos podem ajudar os mortos do purgatório, oferecendo missas em seu nome.6

d) neste período de transição merece destaque ainda outra compreensão teológica: a

mística. Seu principal defensor foi Dionísio Areopagita7. Os escritos do Areopagita são

importantes em duas questões principais: d1) trouxeram para o Ocidente um elemento da

teologia e piedade do Oriente (a mística) para ser contraponto ao racionalismo8 como forma

dominante de interpretação da realidade: Com sua visão das ‘hierarquias’ sedimentou o pensamento latino da ‘ordo’, dando à hierarquia dimensão sagrada, que fundamenta a comunhão humana. Sua reprodução do conceito platônico dos ‘degraus’ a serem percorridos no caminho da perfeição teve importante papel na espiritualidade ocidental. Seus conceitos de purificação, da iluminação e da união descreveram o caminho percorrido pela alma e foram utilizados ainda no século XVI por Teresa de Ávila e por São João da Cruz, bem como mais tarde pelo pietismo. (DREHER, 1994, p. 32)

d2) voltou-se contra todo fazer teológico medieval marcado pela especulação racional ao

nome de Deus. Dreher (1994, p. 32) escreve: “... não podemos dar nome apropriado a Deus, a

não ser que ele próprio tenha revelado. (... Ainda assim) não expressam adequadamente quem

Deus realmente é (...) Deus transcende toda a possibilidade humana”. Como legado é possível

afirmar que a Idade Média aprendeu do Areopagita a reverência ao divino no fazer teológico.

6 Veja informações gerais objetivas sobre o tema em: GEORGE, 1993, p. 30ss; WACHHOLZ, 2010, p. 19-20. Acerca da prática da Igreja e do imaginário popular sobre pecado, perdão e inferno veja BRENDLER, p. 101ss. 7 Trata-se de uma pessoa que viveu por volta do ano 500, contemporâneo de Boécio. Esta pessoa se considerava discípula de Paulo (o que deu importância aos seus escritos) e adotou o nome de Dionísio em alusão ao convertido de Paulo após discurso em Atenas (Atos 17.34). Sob o pseudônimo “Dionísio Areopagita” vários escritos nos foram preservados: “Sobre os nomes de Deus”, “Sobre a hierarquia celeste”, “Sobre a teologia mística”. (DREHER, 1994, p. 31). 8 Boécio (480-524) foi um dos maiores representantes do racionalismo na teologia.

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18

Um adendo precisa ser feito no que diz respeito à relação entre os dois poderes acima

citados (espiritual e secular), pois esta relação nem sempre foi pacífica. Como exemplo pode

ser citada a relação entre o imperador Carlos Magno (768-814) e o papa Leão III. Conforme

Dreher (1994, p. 37-40), sob o regime de Carlos Magno a Europa foi cristianizada à força.

Quem não se submetia a Cristo (diga-se a Carlos) era morto. No ano de 782 quatro mil e

quinhentos saxões foram mortos. Desta forma expandiu o império e a Igreja por grande parte

da Europa. Ele se autocompreendia rei e sacerdote e por isso intervia nas questões de fé.

Negava ao papa uma existência autônoma plena. O papa Leão III, por sua vez, havia sido

derrubado do cavalo durante uma procissão por seus adversários. Ambos, papa e adversários,

buscaram a ajuda de Carlos Magno. Este se dirigiu a Roma para julgar a questão. Ali lhe foi

apresentado um cânone no qual se afirmava que um papa não podia ser julgado.9 Por isso

absolveu o papa. Ao participar da missa de Natal daquele ano (ano 800) também em Roma,

concedeu permissão para que o papa o coroasse imperador. Permissão da qual logo se

arrependeu, pois isto chancelou a união entre Igreja e Estado e consolidou a existência de dois

poderes (ao menos do ponto de vista de Leão III): o poder espiritual na mão do papa e o

secular na mão do rei. Com primazia para o papa, pois ele coroa o rei. Esta disputa entre

poderes se mantém ao longo dos séculos: ora vivem perfeita harmonia, ora um se impõe, ora

outro.

Este fato evidencia que na Idade Média a Igreja impõe, gradualmente, o seu poder até

reinar quase que soberanamente. Outro aspecto que reforça a suspeita de que gradualmente o

papa e a Igreja aumentam seu poder tanto religioso quanto temporal é a doutrina da penitência

e da indulgência: só a Igreja pode conceder indulgências. A compreensão é a de que o céu foi

institucionalizado e o seu maior representante é o papado, sucessor de Pedro. (DREHER,

1994, p. 44-46).10 O poder da Igreja aumenta tanto que ela exerce função de Estado quando

convoca e propõe cruzadas. Recruta seus “soldados” e promete indulgência plena a quem

morrer na batalha. Conforme Dreher (1994, p. 56-61) por detrás do pretexto da fé está a

conquista de bens e de poder. Isto é possível porque a Igreja assume para si o direito jurídico,

o mesmo instrumental que o Estado usa para se relacionar com o mundo. Consolida-se, assim,

o poder secular da Igreja (DREHER, 1994, 62-65). Todo este agir da Igreja é justificado pela

teologia escolástica. A Igreja passa a fundamentar a sociedade e o mundo: “Sua doutrina e

estabelecimentos jurídicos era a garantia de que Deus determinava a ordem do mundo, não se

admitindo qualquer dúvida em relação a essa certeza”. (DREHER, 1994, p. 100).

9 George (1993, p. 33ss) fala da imunidade jurídica do clero da Igreja. 10 Vamos voltar a este tema.

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19 1.2 O século XVI: contexto social e religioso

No século XVI vive-se a consolidação do que é chamado de Corpus Christianum:

comunidade política cristã, ou seja, não se concebia a separação entre religião e vida secular.

A pertença à Igreja era decisão do rei e do imperador. O povo aderia à expressão de fé do seu

rei. A definição moderna de conversão e a adesão religiosa voluntária não eram conhecidas da

época. Todas as pessoas simplesmente faziam parte da Igreja. Fora da Igreja estavam os

hereges e por isso eram perseguidos pela inquisição. O cotidiano era perpassado de significado religioso. Era ritualizado. (...) A pessoa nasce, vive e morre na religião. Batismo, casamento, enterro eram regras. Nesse âmbito, morte e juízo, céu e inferno, purgatório e paraíso faziam parte do cotidiano. (DREHER, 2007, p. 14-17, apud WACHHOLZ, 2010, p. 13).

Neste contexto a religião tem um significado social. Ela é parte da sociedade. Creio que se pode afirmar que, na Pré-Modernidade, a religião é o ar que se respira. A pessoa nasce, vive e morre religião. Não se concebe vida sem batismo, casamento e enterro cristãos. A religião está ligada organicamente à sociedade. (DREHER, 2007, p. 16)

Mais do que parte, através da Igreja a religião fundamenta a sociedade. Dela as pessoas

esperam anúncios seguros seja para esta vida, seja para a vida por vir. Mas os anos anteriores

e posteriores à Reforma são anos de grande efervescência religiosa.11 Para alguns de crise.12

Nesta efervescência a Igreja encontra dificuldades para oferecer respostas teológicas e

práticas seguras às pessoas. Instala-se medo e insegurança. Quais são essas circunstâncias

contextuais imediatas que geram esta dificuldade e medo e que, por extensão, podem ser

acolhidas como impulsionadoras da Reforma?

1.2.1 O contexto social

Embora no cotidiano das pessoas o social e o religioso não pudessem ser separados,

analisamos aspectos que, pela pesquisa, podem hoje ser classificados tendo sua origem em um

ou outro. Analisamos, a seguir, alguns desses aspectos do contexto do século XVI.

11 Lienhard (1998, p. 25) fala em “quadro multicolorido da piedade no alvor do século XVI”. 12 Conforme George (1993, p. 25), Johan Huizinga publicou estudo no qual afirma ser a baixa Idade Média período de declínio, desintegração e decadência. George não concorda com a acusação e vê no período dos séculos XIV e XV características vitais que prepararam a Reforma, especialmente através dos movimentos que apontaram para novas formas de espiritualidade como os hussitas, valdenses e franciscanos.

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20

a) Estratificação social: a existência de diferenciações sociais em si não é nenhuma

novidade. Príncipes, nobres, plebeus, clero, fiel, ... existiam há muito. Mas o novo está em

que agora é perceptível uma estratificação social que ultrapassa estas categorias “sanguíneas”

e é definida pelo econômico. Esta estratificação social fica evidente na trajetória de vida de

Lutero. Conforme Lienhard (1998, p. 17-21), Lutero viveu a maior parte de sua vida em

pequenas cidades que não tinham significativa influência nas questões do império. Nasceu

entre os camponeses13; viveu entre ricos comerciantes em Erfurt quando ficou hospedado na

casa das famílias Cotta e Schalbe – eram famílias abertas à cultura e questões religiosas;

conheceu a camada média das cidades formada por artesãos e pequenos empreendedores que

aspiravam ascensão social. O pai de Lutero fez parte deste grupo, tendo sido dono de mina e

eleito para o conselho de representantes da cidade com a função de supervisionar a

administração municipal (1491)14; Lutero era amigo de funcionários que administravam o

principado15. O estudo do direito era um caminho que conduzia para este grupo e para a

ascensão social. O pai de Lutero, como conselheiro da cidade, desejava para Lutero este

caminho. Lutero também teve contato com as camadas baixas da sociedade formada por

operários, diaristas e empregados domésticos.

A caminhada de vida de Lutero, vista pela ótica social, aponta para a estrutura da

sociedade. Lienhard (1998, p. 21) afirma que esta estratificação social gerava tensões. Uma

destas tensões Lutero experimentou no levante que aconteceu entre 1508 e 1510 na cidade de

Erfurt em consequência do aumento de impostos indiretos16. Conforme George (1993, p. 25)

estes movimentos já são bastante frequentes do ponto de vista político, econômico, social e

religioso por todo o período da baixa Idade Média.

b) Autonomia de cidades e principados: para Lienhard (1998, p. 17s) e Lohse (1983, p.

14s) a autonomia de cidades e principados são um sinal evidente da incapacidade do Sacro

Império Romano Germânico de manter a unidade. É crescente a autonomia de principados

seculares, principados eclesiásticos e cidades livres. O Sacro Império Romano Germânico tem 13 A família dos pais de Lutero era dona de terras e por isso estava em melhor situação social do que os camponeses do sul e do sudoeste da Alemanha onde ainda era difundido o sistema de servidão. (LIENHARD, 1998, p. 20-21). Veja Também BRENDLER, 1983, p. 9ss. 14 Veja também BRENDLER, 1983, p. 9ss. 15 Hoje chamamos este grupo de funcionalismo público. Espalatino, amigo de Lutero, é um deles. 16 Nesta época aconteceram vários levantes sociais. Para Brendler (1983, p. 40s) as causas desses levantes estão nos conflitos entre as antigas oligarquias comerciais e as ricas corporações que surgem com o pré-capitalismo; nas rápidas e acentuadas diferenças que se estabelecem entre ricos e pobres; nos conflitos entre as cidades autônomas motivados principalmente pelos senhores feudais, detentores de um modelo econômico que vai sendo ultrapassado. Brendler não percebe envolvimento de Lutero nestes movimentos. Se algum houve, foi no sentido de reforçar nele o estudo da teologia. Barth (2007, p. 128) busca fazer uma leitura global da teologia de Lutero. Afirma que temas considerados delicados (camponeses, bruxas, judeus, turcos, ...) precisam ser assumidos hoje não de forma apologética, mas autocrítica. Aqui manifestamos ciência da temática.

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21 cerca de 350 entidades mais ou menos autônomas, maiores ou menores, com maior ou menor

influência política, coordenadas por um imperador eleito. A unidade do império era

dificultada porque estas cidades/territórios autônomos não queriam perder espaço e prestígio,

pelo contrário, queriam aumentá-lo. Nas épocas de eleição de novo imperador os príncipes

eleitores negociavam vantagens e pediam altas quantias pelo seu voto. Mas também porque as

diferenças internas eram muitas. Iniciativas de reforma ou políticas comuns não vigoravam.

Foi assim que o projeto de imposto único para o império não vingou ou a ideia de um exército

central também não se sustentou. A negociação entre imperador e príncipes pela unidade era

constante.17 Mas não foi possível. Assim, em 1555 o movimento da Reforma foi reconhecido

legítimo em sua expressão religiosa com a paz de Augsburgo.18 Aqui se consolidou o

princípio cuius régio eius religio (o governante determina a religião do território) segundo o

qual “conselhos municipais e a nobreza decidiam se seus territórios seriam católicos ou

luteranos” (GASSMANN ; HENDRIX, 2002, p. 11). O fator religião também não era mais

sinônimo de unidade do império.

c) O capitalismo emergente: além da estratificação social e da disputa por poder, a

sociedade do século XVI também é marcada pela continuidade da gestação de um novo

modelo econômico que hoje chamamos de capitalismo.19

Para Brendler (1983, p. 11-13)20 a mudança está baseada na passagem de uma economia

natural (pagamento feito com trabalho ou produtos) para uma economia financeira

(pagamento feito em dinheiro). Esta mudança é percebida dentro do sistema feudal como para

além dele.21

Um dos pontos de partida para o impacto e fortalecimento do novo modelo econômico é

a questão de herança familiar: pela prática vigente quem herda as terras da família é o filho

mais novo. Pela sucessão de heranças e divisões, as terras para a produção agrícola diminuem

de tamanho e não dão conta de sustentar toda a família (pais, irmãos, sobrinhos etc). Pelo

convencionado socialmente, o direito de herança é do irmão mais novo. Os irmãos mais 17 Com base nos mesmos autores, registramos que Carlos V, imperador no período da Reforma, tinha uma grande concentração de poder em suas mãos. Mesmo assim precisava da ajuda financeira das casas comerciais (família Fugger, por exemplo) e negociar constantemente com os príncipes. Religião e guerra eram dois temas constantes da pauta e exigiam recursos e força militar. A não acontecida guerra com os turcos – que estavam à porta de Viena em 1529 – e o movimento da Reforma se localizam aqui. No caso da Reforma, o melhor exemplo são as dietas e salvo conduto conquistados em favor de Lutero. 18 Gassmann e Hendrix (2002, p. 193) definem a paz de Augsburgo (1555) como “acordo político da Reforma alemã que outorgou reconhecimento legal aos adeptos da Confissão de Augsburgo (luteranos).” 19 Wachholz (2010, p. 22 e 23) afirma que a mineração, a descoberta da pólvora e a economia não são somente características da sociedade do século XVI, mas impulsionadores do movimento da Reforma. 20 Temos este autor como centro da reflexão deste tema. Veja também: FISCHER, 2006, p. 12ss. 21 O capitalismo moderno é uma construção de muitos anos e motivado por diversos fatores. Defendemos, com Brendler, a tese de que aqui temos sinais evidentes da gestação e continuação deste novo modelo econômico.

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22 velhos precisam trabalhar para o irmão mais novo – quando há terras em quantidade

suficiente – ou encontrar uma alternativa de vida e economia. Gera-se, por isso, uma mão de

obra excedente que vai parar nas cidades. Uma parte desta mão de obra excedente é absorvida

pelas minas de minério, cobre e prata especialmente22. Na medida em que aumenta a demanda

por estes minérios também aumentam as dificuldades em consegui-los. Aqui se intensifica

uma nova relação econômica.

Surgem as sociedades que financiam os mineiros (a mão de obra) e recebem como

pagamento o minério “in natura”. Cria-se uma dinâmica comercial nova, diferente da relação

feudal: as sociedades antecipam recursos financeiros e tecnológicos para o mineiro; este

explora o minério e o vende “in natura” às sociedades que o beneficiam e comercializam. O

resultado é: alguns mineiros tornam-se donos de mina e conquistam influência social;23

muitos outros passam à condição de devedores das sociedades comerciais porque não

conseguem produção suficiente para honrar os compromissos assumidos.

Por esta dinâmica comercial as sociedades comerciais enriquecem e se tornam grandes

potências econômicas da época – a mais conhecida é a dos Fugger. A estratégia principal é

não assumir riscos para não ter perdas. Os riscos ficam somente com os mineiros. Para evitar

falência os mineiros precisam trabalhar muito, viver com pouco dinheiro e agir no sentido de

diminuir os próprios riscos. Ou seja, aqueles que seguem a receita de austeridade (como esta

fórmula é conhecida no capitalismo moderno) vencem economicamente.

Forma-se aqui uma nova classe que é chamada de burguesia emergente: o status social

se dá pelo avanço do trabalho, da conquista e acúmulo de riquezas, não mais pela pertença a

uma família nobre. O pai de Martim Lutero, Hans Luder, se insere nesta categoria.24 Ele deixa

de ser uma família agrícola para ser uma família de empreendedores pré-capitalista.

Este sistema emergente, e que ganha forças, gera outras mudanças nas relações sociais:

há um fortalecimento das cidades (o material humano ali se instala); os senhores feudais

também assumem esta dinâmica e passam a exigir dinheiro (além de produtos e trabalho) de

quem está abrigado no feudo; a Igreja também se beneficia dele. Para esta última relação

queremos olhar agora.

22 Conforme Wachholz (2010, p. 22) grande parte da prata é usada para cunhar moedas e assim facilitar a revolução monetária. 23 Conforme Lienhard (1998, p. 20) o pai de Lutero “conheceu momentos difíceis de endividamento, tendo porém alcançado afinal um relativo bem-estar.” Em 1491 Hans Luder veio a ser um dos 4 conselheiros da cidade de Mansfeld. Estes tinham a tarefa de supervisionar a administração municipal. 24 Febvre (2012, p. 29) afirma que o caminho da ascensão social era o que o pai desejava ao seu filho Martim através do estudo das artes e direito.

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23

d) A Igreja e o capitalismo emergente: ao conquistar espaço na sociedade da época,

também a Igreja se deixa encantar por este novo sistema econômico e passa a fazer parte da

rede de relacionamentos econômicos. Lohse (1983, p. 14-19) nos situa bem neste sistema a

partir da influência das grandes casas comerciais. Afirma que tanto a eleição do imperador

Carlos V do Sacro Império Romano Germânico como a unificação dos bispados de Albrecht

Von Mainz25 foi por elas financiado. No caso da unificação de bispados o interesse é

econômico e de poder, não religioso. Seu perfil é mais de líder terreno do que guia pastoral.

Ora, diante das dívidas com as casas comerciais, da crescente necessidade financeira do

papado e também dos bispados, a Igreja precisa de uma estratégia de arrecadação financeira.

Contribuições, impostos e venda de cargos fazem parte desta estratégia. Mas também a prática

de mandar rezar missas e a venda de indulgências. Especialmente destas últimas vêm os

recursos que fazem a administração eclesiástica ser rentável.26

Percebemos, assim, que a Igreja27 assume essa nova relação econômica. Ela nada

inventa, apenas limita-se a seguir a tendência e prática dos senhores feudais. Não se propõe a

ser espaço de resistência ou discernimento. Pelo contrário, por necessidade de dinheiro (para a

manutenção das Igrejas, da Cúria e para as guerras de defesa do território) ou por luxo e bel

prazer das autoridades religiosas justifica teologicamente o sistema28. As autoridades

eclesiásticas, aliás, são questionadas por seu comportamento em relação ao dinheiro.

Francisco Ferrer escreve sobre os bispos da época: São altivos, cortesãos, vaidosos, amigos do luxo e onzeneiros; medem a fé pela bitola das coisas terrestres e acomodam-na às suas rendas. Cuidam pouco de suas Igrejas; raras vezes aparecem entre os que dão pouco; não têm amor de Deus, nem castidade; a missa e a prédica são aquilo de que menos se ocupam. Sua vida inteira não passa de um escândalo. (citado por ROMAG, Dagoberto. Compêndio de História da Igreja, Vol II: A Idade Média. Petrópolis : Vozes, 1950, p. 299-300, apud SCHUMANN ; JERKOVIC’, 1967, p. 17.)

25 Conforme Lohse, Albrecht von Mainz recebeu autorização concedida por bula papal no 5. Concílio de Latrão (1512-1517) para a unificação dos bispados pela quantia de dez mil ducados. 26 O dinheiro das indulgências tinha muitos destinos. Um deles era a construção da Basílica de São Pedro, em Roma. Lutero (ObSel, 1.26 [1517]) denuncia, na tese 50: “Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa soubesse das exações dos pregadores de indulgências, preferiria reduzir a cinzas a Basílica de S. Pedro do que edificá-la com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas” e 51: “Deve-se ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto – como é seu dever – a dar do seu dinheiro àqueles muitos de quem alguns pregadores de indulgências extraem ardilosamente o dinheiro, mesmo que para isto fosse necessário vender a Basílica de S. Pedro.” Veja também GARCÍA e DOMÍNGUEZ, 2008, p. 30. 27 A Igreja aqui entendida como instituição eclesiástica. As demais contradições da sociedade também a perpassam, o que faz dela solo fértil para germinar a Reforma que ultrapassa o aspecto religioso. 28 Dreher (1994, p. 44-46) afirma que uma das funções da teologia escolástica era justificar teologicamente o sistema religioso vigente.

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24

e) A crise e as pestes criam uma espiritualidade pautada pela morte: conforme

Wachholz (2010, p. 14-19)29, a fome vem a ser um dos grandes problemas da Idade Média.

Por diferentes razões não há alimento. Se nos séculos XII e XIII o aumento da produção de

alimentos elevou o contingente populacional, no século XIV, com a grave crise na agricultura

e um sempre maior número de pessoas na cidade por conta da industrialização (o que diminui

a mão de obra no campo), a fome se instalou. Por volta de 1320, no norte da Europa, sofria-se

com fome por conta de enchentes, invernos rigorosos e secas. No sudeste da Alemanha o

registro é de tremores de terra e enxames de gafanhotos. Há registros de canibalismo por

causa da fome.

Além da fome, doença e peste ameaçavam a vida. Todas eram compreendidas como

castigo de Deus. Wachholz (2010, p. 15) escreve: Fraca e mal nutrida, a população foi atingida por surtos de febre tifóide e da terrível morte negra: peste bubônica, pneumonia, septicemia (germes no sangue). (...) Cerca de 30% da população europeia vieram a morrer. (...) As pessoas não sabiam a razão da peste. Concebiam-na como punição de Deus pelos pecados da humanidade.30

Guerras igualmente fazem parte da história da humanidade. Conforme George (1993, p.

27) a invenção do canhão de pólvora transformou a guerra em nova selvageria. Gerou, “por

outro lado, a obsolescência de uma classe inteira – a dos cavaleiros” (WACHHOLZ, 2010, p.

22), o que aumentou a insegurança social.

O povo sofre. Na dor é lembrado da dor de Cristo na cruz, seu suplício e sofrimento,

bem como do culto à Virgem das Dores. Ou seja, a mensagem de que no sofrimento a pessoa

se segura no sofrimento de Cristo. (DELUMEAU, 1989, p. 63-64).

Medo de morrer e pregação da Igreja no sofrimento fazem nascer uma nova

espiritualidade. Esta tem, como um de seus fundamentos, a concepção de que tudo o que está

acontecendo é castigo de Deus contra a humanidade.31 Este castigo só é amainado com a

prática de penitência. Esta concepção, como vimos, fez nascer a doutrina das indulgências e

do purgatório. As pessoas compravam indulgência e mandavam rezar missas com o objetivo

de garantir a salvação (fosse sua ou de alguém no purgatório). O conceito da obra como ex

29 Wachholz fundamenta sua pesquisa em GEORGE (1994), LINDBERG (2001), DELUMEAU (1989) e FEBVRE (apud GEORGE, 1994). 30 Embora amainada, a peste perdurou até os dias da Reforma, atingindo Wittenberg em 1527. Como a compreensão da origem era teológica, procissões e penitências sangrentas eram realizadas para expiar o pecado. (WACHHOLZ, 2010, p. 15). Em Febvre (2012, p. 231) encontramos a informação assim: o ano teria sido 1521 e a preocupação maior de Lutero salvaguardar lideranças. Ao escrever para Espalatino teria dito: “suplico-lhe, que Felipe (Melanchton) se vá caso venha a peste. Há que preservar um líder assim e que não pereça a Palavra que Deus confiou a ele para a salvação das almas.” 31 Delumeau (1989, 60-61) não considera que o sentimento de dor era algo isolado ou de uma determinada classe social somente. O sentimento era de perdição total. Isto fica claro porque pessoas de todas os níveis culturais e econômicos aderiram à Reforma. Todas buscaram respostas para angústias existenciais. Vive-se uma angústia coletiva. Esta quer resposta coletiva.

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25 opere operato32 (a obra opera por si mesma) era largamente difundido e sustentava a prática

da indulgência. A Igreja soube se adaptar a esta nova teologia e também à prática do mercado

emergente. Este medo da morte na Idade Média é um dos panos de fundo e propulsores da

Reforma. Aproximamo-nos assim do próximo ponto: o contexto religioso. Alguns pontos

mencionados serão retomados sob a ótica religiosa.

1.2.2 O contexto religioso

Neste Corpus Christianum também a Igreja tem o seu papel. Sua postura e prática

religiosa dão sentido e estrutura à sociedade da época. Analisamos brevemente o contexto

religioso do século XVI. Optamos por fazê-lo através de dois caminhos principais: o caminho

institucional e o caminho do cotidiano – a prática religiosa na vida do fiel.

a) A Igreja Institucional: constatamos que a Igreja é a base de sustentação da sociedade

medieval e que, em diferenciação à Antiguidade, a teologia (não mais a filosofia) pauta a vida

religiosa e social. O corpus Christianum é sustentado pelo poder e força da Igreja em

conjunto com o poder secular. Na Igreja o papa é, constantemente, reiterado como sucessor de

Pedro e arroga para si a primazia sobre o poder secular. Esta ideia é conhecida como

curialismo, ou seja, “uma teoria de governo eclesiástico que investia de suprema autoridade,

tanto temporal quanto espiritual, as mãos do papado.” O auge deste governo está no papa

Inocêncio III (1198-1216). Este definia que “na hierarquia do ser, o papa ocupava uma

posição intermediária entre o divino e o humano – ‘inferior a Deus, porém superior ao

homem’.” Esta soberania papal foi reiterada pelo papa Bonifácio VIII na bula Unam Sanctam

(1302) que declara ser “necessário que toda criatura humana esteja sujeita ao Pontífice

Romano.” Portanto, um período de grande força e poder do papado. (TIERNEY, Brian. The

Crisis of Church and State, 1050-1300. Englewood Cliffs, N. J. : Prentice Hall, 1964, p. 13-14

e 189, apud GEORGE, 1993, p. 34s).

Mas essa política curialista foi reconhecida como ineficaz por Dante com consequências

danosas para a Igreja (Purgatório, Canto XVI, 127-129, p. 174, apud GEORGE, 1993, p. 36):

32 Conforme Gassmann e Hendrix (2002, p. 88) esta fórmula surge para combater a reivindicação donatista “de que ministros indignos não podiam administrar sacramentos válidos.” “A fórmula visa a salvaguardar a objetividade da ação sacramental, baseada na crença de que a graça é um dom de Deus que não é ativado nem obstruído pelas qualidades humanas de quem administra ou recebe o sacramento.” O equívoco se dá – e por isso a crítica dos reformadores – por ser compreendido no imaginário e prática popular “como uma espécie de autômato espiritual independente da ação de Deus e da fé dos que recebem o sacramento.”

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26 “visto que a igreja procurou ser dois governos ao mesmo tempo, ela está afundando muito,

conspurcando tanto seu poder quanto seu ministério.” O poder espiritual, o intermediário

entre Deus e as pessoas, dá sinais de estar em crise.

Conforme George (1993, p. 32-37), ao papado de Bonifácio VIII segue-se um período

de grave declínio institucional. A Igreja foi governada por 70 anos a partir de Avinhão, o

chamado Cativeiro Babilônico (1309-1377). Ao cativeiro segue-se o período conhecido como

Cisma Ocidental (1378-1417) quando dois e, mais tarde, três papas foram declarados cabeça

da Igreja. Na crise a ânsia por reformas ganha intensidade. A proposta, neste momento, é a

teológica conciliar33. George (1993, p. 36) escreve: O espectro do corpo de Cristo dividido em obediência a três papas, cada um proferindo anátemas e interditos aos outros dois, tornou urgente o apelo por uma reforma. Dessa crise, surgiu a visão conciliar da igreja, que afirmava a superioridade dos concílios ecumênicos sobre o papa no governo e na reforma da igreja.

A pergunta que permanecia era: quem tem autoridade para convocar um concílio?

Houve quem defendesse a ideia de que qualquer cristão o poderia em situação de emergência.

Mas foi o Concílio de Constança (1414), convocado pelo Imperador Sigismundo, que

destituiu os três papas eleitos e elegeu um novo – Martinho V – colocando fim ao Cisma

Ocidental. A instituição do papado era salva. Porém, a primazia do concílio ao papado nas

decisões da igreja não durou muito. Em 1460 o papa Pio II edita a bula Execrabilis,

reafirmando a supremacia do papado e segurando nas mãos deste a autoridade para

convocação conciliar.

Contribuiu para este fim a reafirmação de poder tanto da Igreja quanto do Estado.

Dreher (1996, p. 14) afirma que as descobertas de novos continentes pelas grandes

navegações gerou uma disputa pelo direito sobre as novas terras descobertas entre os reis de

Espanha e Portugal. O papa Alexandre VI (1492-1503) intermediou este diálogo e os cooptou

estabelecendo o direito de cada qual no Tratado de Tordesilhas (1494). Para nossa pesquisa é

importante perceber que, desde esse momento, a proposta do conciliarismo não era mais

interessante para os reis, pois já tinham do papa o que precisavam: a autorização para tomar

posse das terras e de suas riquezas, ampliando seus poderes. A cooptação dos reinados revela

novamente o importante papel do poder secular na reforma: por um lado os reis e príncipes

eram resistência ao clero que tinha imunidade jurídica; por outro não abrem mão da Igreja

quando recebem e dão apoio, recebem parte do dinheiro das indulgências e podem criar 33 Apontamos aqui para este período como sendo um sintoma de uma igreja em crise. As forças que sempre estavam bem ordenadas, agora não estão mais. A Igreja se divide internamente. Há, todavia, autores que apontam para este momento como sendo também um momento de busca pela verdadeira Igreja. Se o papado não consegue mais apontar para a verdadeira Igreja, o concílio tem o dever de fazê-lo. Veja sobre isto em GEORGE, 1993, p. 33ss.

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27 paróquias e indicar o pregador que será alguém a defender os seus interesses e trabalhar na

perspectiva de manter o status quo.

De fato a teologia conciliar não se implantou. Mas também não foi eliminada do

imaginário popular. O poder da Igreja estava relativizado. Sempre que havia uma contenda

com o papa o concílio era invocado. Foi também o caso de Lutero quando apelou para um

concílio independente em terras alemãs. Conforme Schumann e Jerkovic’ (1967, p. 13), a

ideia de um concílio livre e independente aterrorizava Roma. Sinal de que a solução se

impunha pela força e autoridade, mas não suprimiu o desejo de reformas por parte das

pessoas.

Com a superação do conciliarismo e as concessões feitas aos reis e príncipes ganha

força a ideia das Igrejas Territoriais, sobretudo na Alemanha. Os papas, para vencer o

conciliarismo e reencontrar reconhecimento junto aos príncipes, imperadores e reis, foram

concedendo a estes poderes sobre a própria Igreja. Dreher (1996, p. 14-15) afirma que estas

concessões tornam a igreja sempre mais dependente do poder secular. Este poder podia ser

exercido pelo príncipe, pelo rei ou por um conselho. A concepção de que o príncipe territorial

fosse também bispo tem aqui sua mais pura expressão. A consequência é que poder espiritual

e secular não podem ser claramente distinguidos. O interesse maior não era teológico, mas

solidificar posições políticas e de poder. Esta percepção é importante na organização do

pensamento religioso do século XV e XVI. Dreher (1996, p. 15) conclui: Assim, o príncipe passou a controlar as ofertas do povo. Os decretos episcopais só tinham validade após a autorização real. A pregação de indulgências só era permitida caso o príncipe tivesse parte nos lucros auferidos. As intervenções de príncipes e cidades, que vão possibilitar a introdução da reforma luterana e da calvinista, a criação da Igreja Anglicana ou a introdução das decisões de Trento, não são novidades surgidas no século XVI. São anteriores. Nas cidades, uma burguesia muito consciente de seu poder lutou contra os direitos do clero, especialmente contra suas imunidades fiscais e isenções jurídicas. Por outro lado, à medida que buscava diminuir o poder do clero e introduzir um governo civil, a cidade não desistia de controlar a atividade eclesial. As cidades criaram paróquias, mas se reservaram o direito de nomeação dos pregadores. Também os conventos e suas propriedades passaram a ser administrados pela cidade. Por isso não foi nada difícil fechar mais tarde os conventos e assumir seus bens.

Percebe-se que, institucionalmente, o papado vive uma fragilidade muito grande. Está

diante da necessidade de garantir sua sobrevida e a manutenção de seu poder. A pergunta é:

isso foi ruim de tudo? Reconhecemos que a fragilidade institucional abre brechas para a

prática de abusos (que realmente foram cometidos pelas lideranças – com ou sem o apoio

institucional da Igreja, como no caso das indulgências – e também pelo povo – a análise da

prática religiosa vai mostrar isso). A ortodoxia cristã sofre um duro golpe. Mas também isso

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28 não é ruim, pois portas para um processo de reflexão e reordenamento do religioso na

sociedade da época se abrem. Nisto a reforma contribuiu.

Seja feita ainda uma breve observação (na verdade uma constatação) em relação às

instâncias de poder (secular e religioso): rivalizam quando lhes é interessante ter a primazia

do poder; aliam-se quando o poder lhes confere os benefícios desejados.

b) a prática religiosa: a nova condição da Igreja junto ao poder secular (que privilegia o

aspecto do poder e do econômico em detrimento do teológico) tem consequências para a vida

de fé das pessoas. A fragilidade da instituição eclesial e a pouca ênfase espiritual/pastoral

reflete-se como insegurança na vida das pessoas. A igreja, todavia, não foi relativizada pelas

pessoas, ao contrário. Apesar das não respostas, a época era de grande piedade, sobretudo no

modo de ser das pessoas. Faltava clareza e segurança teológica, mas não fé às pessoas

(FEBVRE, Lucien. The origin of the French Reformation: a bably-put question? In: BURKE,

Peter (ed). A new kind of History. Nova Iorque : Harper and Row, 1973, apud GEORGE,

1993, p. 33). A busca por segurança em meio à ansiedade e medos impulsiona a prática

religiosa e o clamor por reformas. Neste contexto é que surgem movimentos pré-

reformadores. Este “emaranhado” queremos analisar brevemente. Propomos fazê-lo

discutindo conceitos como ansiedade e medo; a prática da penitência e a prática de obras

meritórias.

1) Ansiedade e medo: George (1993, p. 25ss) afirma que, ao contrário do que muitos

historiadores afirmam acerca da baixa Idade Média, ela não foi uma época de trevas, mas de

efervescência. Os dois séculos anteriores à reforma foram sim de desmandos políticos e

religiosos, mas também de apelos por reforma e o surgimento de novas formas de piedade

leiga, interesse por relíquias, movimentos pré-reformadores etc. E conclui (p. 25): “De fato,

vemos um sólido crescimento no poder e na profundidade dos sentimentos religiosos até a

época da Reforma.” George concorda com Paul Tillich (A coragem de Ser, 1952, p. 57-63)

quando afirma que o fim da Antiguidade clássica foi marcado pela ansiedade ôntica, uma

inquietação profunda com o destino e com a morte; o fim da Idade Média pela ansiedade da

culpa e da condenação e abriu caminho para o fim da Era Moderna se manifestar na ansiedade

espiritual do vazio e da falta de sentido. A ressalva de George é: estas ansiedades, porém, não

são características de um período, mas todas são encontradas também no fim da Idade Média

na literatura, na arte e na teologia. E o exemplifica na “saga” de Lutero em busca de um Deus

misericordioso como exemplo dos medos e ansiedades da época.34

34 Febvre (2012, p. 31-37) dá destaque para estas angústias na vida de Lutero e que seriam fruto de uma juventude melancólica. Por elas motivado, ingressaria no convento em busca de paz. Lienhard (1998, p. 32), por

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O maior dos medos é o da morte, como vimos. As causas são várias: fome, doenças,

desastres naturais e guerras mostram por todos os lados o terrível rosto da morte. Esta

percepção e angústia com a morte era reproduzida na Igreja e na arte. George (1993, p. 27)

descreve a existência de xilogravuras com esqueletos e sepulturas “adornadas com imagens de

cadáveres nus, com bocas escancaradas, punhos cerrados e entranhas devoradas por vermes”.

A xilogravura mais popular era a “dança da morte” – a morte na forma de esqueleto dançante

que traga suas vítimas e ninguém (rico, pobre, nobre, plebeu, ...) pode escapar dela. Muitas

xilogravuras tinham uma ampulheta que lembrava as pessoas: a vida passa rapidamente.

Também nos sermões o tema morte era usual. Exemplo é o gesto de João Capistrano

que levou uma caveira para o púlpito e advertiu: “olhem e vejam o que resta de tudo aquilo

que uma vez lhes deu prazer, ou que outrora levou-os a pecar. Os vermes comeram tudo.”

(SEIDLMAYER, Michel. Currents of Medieval Thought, 1960, p. 126, apud GEORGE,

1993, p. 27).

Como este medo da morte se tornou tão presente na vida das pessoas? Não bastasse o

fato da ameaça da morte em si, também o aspecto religioso nos ajuda na compreensão do

medo que se cria em torno dela. A análise da prática da penitência da época ajuda nesta

compreensão.

2) Prática de penitência: a peste ocorria repentinamente e não tinha explicação

plausível. A morte de alguém saudável se dava em questão de dias ou mesmo de horas. Sua

origem e razão eram desconhecidas. Talvez por isso mostrava-se tão ameaçadora no

imaginário das pessoas. O terror da morte iminente e horrível causava o colapso dos costumes

e das normas, provocando mútuo abandono familiar de pais e filhos. Neste contexto

aterrorizador e sem explicação aparente, “a peste foi percebida em grande escala como a

punição de Deus pelos pecados da humanidade.” (LINDBERG, 2001, p. 43).35 Se todos os

males vivenciados e que aterrorizam almas e vidas são oriundos da ira de Deus, a pergunta

que se segue é: como aliviar e aplacar esta ira divina? A resposta passa pela prática da

penitência.

sua vez, constata que a educação recebida foi sim rigorosa, mas “não é nada evidente que tudo isso fosse muito diferente da educação comumente dispensada à época. Quando muito, pode-se admitir que a criança era particularmente sensível.” 35 Conforme também WACHHOLZ, 2010, p. 15. Também para Lutero a sociedade (corpus christianum) está deteriorada. A chegada dos turcos é como uma vara na mão de Deus a castigá-la. “Lutar contra os turcos equivale a opor-se a Deus, que com esta vara açoita nosso pecado”. (ObSel, 6.411 [1529]).

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30

Dreher (1994, p. 41-46) afirma que a penitência surge como formulação dogmática na

Idade Média. Em seu trabalho de ‘reconstrução’ desta teologia e prática, a divide em quatro

momentos36:

a) a prática da Igreja Antiga: nas comunidades da Igreja Antiga o processo de

reconciliação era comunitário: ao cair em pecado grave a pessoa era excluída da comunidade

e, após confissão pública, novamente acolhida de forma plena. Ao lado da confissão pública

havia, para quem quisesse e espontaneamente, a confissão particular que fora, mais tarde,

desenvolvida por Clemente de Alexandria;

b) a primeira variação nesta dinâmica encontra-se com Cassiano (faleceu em 430). Este

recomendava fossem confessados os pecados e os pensamentos que pudessem levar ao

pecado. Considerava-os a raiz das más ações que também precisam ser combatidos. Esta

dinâmica ganhou força nos conventos. Gula, fornicação, avareza, tristeza, ira, indiferença,

vanglória e soberba eram considerados os vícios principais. A tentação a estes vícios é

vencida pela confissão. O pressuposto teológico é o da obediência que retém a graça do

batismo. Porém, a vida dos leigos é diferente da vida dos monges. Os leigos eram chamados à

confissão somente quando eram cometidos pecados graves. Não satisfeitos com essa vida de

piedade, começam a seguir o exemplo da vida monástica com o objetivo de conter as más

inclinações e obter a salvação. É o princípio da institucionalização da confissão. A penitência

que fazia parte da vida dos monges vale agora para todos. Especialmente na Igreja irlando-

escocesa que, por missionários, traz a prática para as comunidades da Europa. O objetivo é

fazer com que a perfeição cristã seja propriedade de toda a comunidade;

c) neste processo de institucionalização da penitência surgem os livros penitenciais.

Estes têm como objetivo estabelecer procedimentos para que a perfeição pudesse ser atingida.

Os livros penitenciais estabelecem que à confissão deve seguir uma penitência. Os vícios

capitais são reduzidos para sete: a soberba é considerada a raiz de todo mal e a ela seguem-se

três vícios espirituais (inveja, ira, indiferença) e três corporais (avareza, gula, luxúria). No rito

penitencial a Igreja franca assume como ordem três etapas a serem seguidas: 1. verdadeiro

arrependimento do coração; 2. confissão oral diante do confessor; 3. realização da penitência

imposta – “que confirmava a seriedade daquele que confessava seus pecados e representava

uma realização a mais de boas obras.” (DREHER, 1994, p. 42). Somente então era anunciada

a reconciliação. Este passo litúrgico está centrado na figura do sacerdote. Atente-se para uma

inversão fundamental: na igreja antiga reconciliação era compreendida na perspectiva da

36 Veja também BRENDLER, 1983, p. 108-109.

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31 comunidade e subentendida com Deus; agora a absolvição é vista como readmissão à salvação

eterna (estamos por volta do ano 1000, sob Carlos Magno). No século XIII a frase “eu te

absolvo” passou a ter primazia. Ela estabelece um novo momento no processo de

institucionalização: a centralidade do sacerdote que deixa de ser o intercessor junto a Deus

para ser aquele que tem o poder de absolver. A penitência, neste momento, passa a ser

sacramento. Seu grande defensor e formulador foi Tomás de Aquino. O caráter sacramental é

definido pelo Decretum pro Armeniis (1439) em três atos: a) contrição do coração; b)

confissão oral; c) satisfação pelos pecados segundo arbítrio do sacerdote;

d) há, porém, uma questão não resolvida neste processo: os castigos penitenciais não

foram regulamentados e ficaram a critério da definição do sacerdote. Some-se a isso um

aspecto da tradição germânica: o penitente pode substituir a pena imposta por outra

equivalente. Aqui nasce o conceito indulgência. Dreher (1994, p. 45) escreve: No contexto da transferência do pleno poder de perdão ao administrador do sacramento da confissão, surgiu no século XI a concepção de que os detentores do poder das chaves, os bispos e o papa, não só podiam modificar e diminuir a satisfação pelos pecados, mas também eliminá-la de maneira plenária.

A crença de que Deus concedera as chaves do céu à Igreja fez nascer esta nova prática

que logo passou a incluir dinheiro e, a partir do papa Urbano II (por volta de 1095), a

concessão de indulgência plena para quem fosse participar das cruzadas defendendo a Igreja.

O perdão foi completamente canalizado para a indulgência. Ela é o que elimina a pena, a

culpa e o pecado. Com a possibilidade de a pena imposta ser modificada, não demorou para

que fosse comprada/substituída por um valor em dinheiro. Esta compreensão foi

fundamentada pelos teólogos da escolástica com a doutrina do thesaurus ecclesiae (tesouro da

Igreja), os méritos excedentes dos santos e do sangue de Cristo que estão à disposição dos

pecadores. A Igreja tem acesso e administra este tesouro.

Esta compreensão tem duas consequências diretas para a vida de fé: a

institucionalização do céu e o fortalecimento da Igreja na figura do papa por ser ele quem

concede a indulgência. O povo, por sua vez, logo começa a pedir por indulgências não

somente para si, mas também para os mortos, especialmente a partir do século XIII: em 1547,

escreve Dreher (1994, p. 46), “o papa Calisto III ofereceu indulgência pelos mortos por

ocasião de uma cruzada contra os mouros” e em 1476 o papa Sixto IV afirmou ser possível

“conceder indulgência às pobres almas no purgatório por meio da intercessão”. João Tetzel,

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32 vendedor de indulgências nos dias de Lutero, não fazia nada do que não fosse permitido pela

Igreja da época37, conclui Dreher.

Percebe-se que esta é uma prática de espiritualidade que prima pelo mérito que, por sua

vez, é canalizado em favor dos interesses de poder e econômicos da Igreja. Contra esta

prática, diferente da prática da Igreja Antiga, Lutero se manifestou nas 95 teses.

A esta prática da penitência precisa ser acrescida a doutrina do purgatório38 praticada na

Idade Média e a forma como ela ocupa o imaginário das pessoas. Morrer sem ter confessado

um único pecado ou não ter recebido a absolvição por ele é encontrar as portas do paraíso

fechadas e as do inferno abertas. A fim de evitar a imediata condenação da alma cria-se uma

instância intermediária chamada purgatório. É o lugar para onde vai a alma da pessoa que

morreu com algum pecado não confessado. Esta alma precisa passar por uma purificação. No

imaginário popular este é um lugar inevitável para todas as almas. A razão para tanto está na

compreensão de pecado da época: há os mortais e os cotidianos. Os pecados mortais são

resumidos nos sete pecados capitais acima mencionados. Quem neles vive está afastado da

graça de Deus. Inferno para estas pessoas é quase uma certeza. Mas os pecados que mais

aterrorizavam as consciências eram os pecados banais, os pecados do cotidiano. Os pequenos

pecados (errar no peso do trigo, tomar um copo de cerveja a mais etc) que passam

despercebidos na hora de confessar-se. Também eles, embora não pudessem afastar

completamente a graça de Deus, impediam o acesso ao paraíso. A percepção é agravada

porque ninguém sabe o dia e a hora da morte. Logo, purgatório é algo certo para todas as

pessoas.

A resposta pastoral, felizmente, está com a Igreja. Especialmente para quem crê. Ela

pode livrar a pessoa do purgatório. Brendler (1983, p. 109) aponta para o papel intermediador

da Igreja na salvação das almas. Ela é a instituição que tem como objetivo central a salvação

das pessoas e administra um tesouro da graça deixado por Cristo, os mártires e os santos do

qual ela pode fazer uso. Este tesouro é um meio da graça que age por si só, não sendo

dependente da fé da pessoa e é infalível somente pelo fato da Igreja o distribuir. Se o temor

pela morte eterna é grande por um lado, por outro também há uma proposta tranquilizadora

para a consciência cativa.

37 Febvre (2012, p. 102-105) também afirma que Tetzel agia em conformidade com a pregação da igreja da época. Que, além do dinheiro, fazia parte da pregação dele o pedido por seguir o rito de penitência firmado pela igreja da época. Afirma ainda que Lutero não foi original na rejeição teológica à famosa frase de Tetzel: “assim que o dinheiro na caixa tilintar, a alma do purgatório irá escapar”. A Sorbonne, de Paris, já havia censurado esta ideia em 1482. (D’ARGENTRÉ, Du Pessis. Collectio Judiciorum de Novis Erroribus, v I, p. 306ss) 38 Baseamo-nos em BRENDLER, 1983, p. 108-113.

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33

Nesta perspectiva, Brendler conclui que a doutrina do purgatório cumpre um triplo

papel social: a) vincular o crente à igreja, pois somente ela pode interceder por sua alma no

purgatório (em torno dessa ideia a igreja cria uma classe de sacerdotes especialista em

intercessões pós-morte); b) a Igreja representa o crente no pós-morte – ele não precisa se

apresentar sozinho diante de Deus; c) as obras da penitência podem ser delegadas e

executadas por outro alguém (a pessoa pode ter quem a representa na execução da pena).

Novamente está aberta a porta para que o dinheiro exerça um importante papel na relação

salvífica: o perdão é produto que a Igreja detém e comercializa e a salvação é por ela

intermediada. Em pouco tempo o dinheiro se tornou o meio principal da relação.

3) Prática de obras meritórias: a compreensão da Igreja como intermediadora entre

Deus e as pessoas fez nascer a prática “de um sistema de penitências mediante o qual

assegurava-se uma maneira apropriada de estar perante Deus.”39 (GEORGE, 1993, p. 28).

George continua afirmando que as estratégias para aliviar a culpa incluíam o autoflagelo, os

sacramentos e os auxílios parassacramentais autorizados pela Igreja: “indulgências,

peregrinações, relíquias, veneração dos santos, o rosário, dias de festa, adoração da hóstia

consagrada, a repetida reza do ‘pai-nosso’”40. Mas é a prática de mandar rezar missas que

marca o cotidiano das pessoas. Esta, em particular, quer ainda nossa atenção.

Como vimos, o purgatório é uma certeza no imaginário religioso popular. Também

certa é a ajuda que a Igreja pode oferecer. Logo, o povo se agarra como pode nas práticas que

a Igreja propõe. Ao lado da veneração de relíquias, mais comum era a prática de mandar rezar

missas como forma de interceder pela alma que está no purgatório. Esta prática se tornou tão

comum que “em 1517, foram celebradas mais de 9 mil missas na Igreja de Todos os Santos

do Castelo de Wittenberg, ...”. (BRECHT, Martim. Martin Luther: v I: his Road to

reformation. Minneapolis : Fortress, 1985, p. 118, apud LINDBERG, 2001, p. 79)41

39 Lutero (ObSel 11.62 [1537/1538]) descreve sua vida monástica como forma de alcançar a Deus: “eu mesmo fui monge durante vinte anos, e me mortifiquei através de orações, jejuns, vigílias, expondo-me ao frio, de forma que cheguei a preferir a morte a este frio, e me flagelei tanto como jamais quero flagelar-me [de novo], ainda que o pudesse. Que procurei alcançar com tudo isso senão Deus, que deveria ver como eu cumpria minhas regras monásticas e levava uma vida austera?”. 40 Lutero também concebe que o papel da pessoa cristã é aplacar a ira de Deus. No caso da guerra com os turcos sugere que “os pastores e pregadores devem, com o maior afinco, exortar a cada um dentre seu povo à penitência e à oração” para tirar a vara (turcos) da mão de Deus. (ObSel, 6.418 [1529]). 41 Acerca das relíquias Hillebrand afirma: “ossos de santos e outras relíquias eram avidamente coletados e venerados com a convicção de que isso era eficaz para reduzir as sentenças no purgatório. (...) A coleção de relíquias de Frederico incluía um pedaço da sarça ardente, fuligem da fornalha de fogo, leite de Maria e um pedaço da manjedoura de Jesus.” (HILLEBRAND, Hans J. [ed.]. The Reformation: a narrative history related by contemporary observers and participants. New York : Harper & Row, 1964, p. 47-49, apud LINDBERG, 2001, p. 79). Veja também FEBVRE, 2012, p. 102-103.

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Esta prática também está no contexto das pestes e marca uma importante mudança na

forma do ser humano se relacionar com a morte: por medo de contrair a peste os familiares e

amigos não se aproximavam do leito da morte. Ritos são interrompidos e o significado

simbólico da continuidade da humanidade é rompido. A salvação coletiva não é mais

enfatizada. A morte é individualizada.42 O eu morre. Neste novo contexto do eu que morre

nascem os novos ritos e também são elaborados testamentos que têm como objetivo garantir

os recursos necessários para que um grande número de missas fosse rezado no pós-morte. É o

que Lindberg (2001, p. 44-45) chama de “preço da passagem” deste mundo para o outro. Uma

espécie de “matemática da salvação” (CHIFFOLEAU, 1980, apud LINDBERG, 2001, p. 45)

que “exaltava a multiplicação de intercessões litúrgicas com o fim de facilitar a passagem dos

falecidos ao céu.” Conclui dizendo: “o catolicismo do final da Idade Média era em grande

parte um culto dos vivos a serviço dos mortos.” (GALPERN, 1974, p. 149, apud LINDBERG,

2001, p. 45).

O aspecto econômico está novamente colocado. Na prática da Igreja medieval há um

claro deslocamento de ênfase na percepção da Igreja que passa da caridade – obras de

misericórdia – para a missa em favor dos mortos. Nisto ela foi muito hábil. A Igreja soube

logo adaptar-se à nova situação e acolher a dinâmica do mercado para a sua estratégia

pastoral. Escreve Lindberg (2001, p. 45): A missa tornou-se a preparação essencial para a jornada que conduzia, através da morte, até o céu, estabelecendo, ritualmente, elos poderosos entre este mundo e o próximo – elos estes que seriam explorados pelas doutrinas do purgatório e das indulgências.43

A missa é ainda a forma pela qual o povo mais de perto experimenta a religiosidade.

Mas ao lado dela havia ainda todo um aparato de religiosidade popular. Na tentativa de

superar o medo da morte, o purgatório e também a morte eterna as estratégias foram muitas.

Jerkovic’ (1967, p. 16-17) afirma que o período de 1350 a 1450 foi de grande efervescência

religiosa e de uma fé viva. Esta fé se manifestava, no âmbito popular, na forma de

superstições, quase magia.44 Por causa do distanciamento dos bispos do povo e do seu

42 Há uma mudança sensível na pregação da Igreja: até o século XIII a ênfase cristã era a salvação coletiva, agora é individualizada. 43 Também Brendler (1983, p. 109-113) e Lohse (1983, p. 21) assinalam esta correlação entre mandar rezar missa e dinheiro. Wachholz (2010, p. 18) escreve: “a passagem das tradicionais obras caritativas para a missa em favor dos mortos indica que (1) a igreja teve grande capacidade de adaptar-se a uma nova situação e (2) que se deixou influenciar pela crescente mentalidade de mercado. Missa era preparação para a jornada que conduzia através da morte até o céu. Nesse contexto deve-se compreender as doutrinas do purgatório e das indulgências.” 44 Delumeau (1989, p. 67-68) afirma que o povo tinha dificuldades em participar da missa por ser celebrada em latim. A participação em ritos dirigidos aos santos através de procissões, em ritos flagelantes, em rosários, ... vem a ser uma característica da religiosidade medieval.

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35 interesse financeiro, “o aspecto exterior da vida cristã eram peregrinações, busca de milagres,

astrologia, feitiçarias, exagerações no culto de Nossa Senhora.”45

Uma dessas exagerações pode ser percebida na adoção de alguns padrões religiosos

bizarros, como conclui George (1993, p. 33): A sede de Deus às vezes era refletida em padrões bizarros de espiritualidade: zurrar na missa em homenagem ao jumento que Maria montou, tatuar o nome de Jesus no peito, sobre o coração, venerar hóstias sangrentas. Mais frequentemente, seguia os conhecidos caminhos da espiritualidade comum. Em cada caso, porém, era considerada por muitos uma espiritualidade profundamente insatisfatória. O moralismo nervoso e as tentativas incessantes de aplacar um Deus sublime e irado serviram para agravar as ansiedades fundamentais de morte, culpa e perda de sentido. A maior realização da Reforma foi ter sido capaz de redefinir essas ansiedades sob o aspecto de novas certezas, ou melhor, velhas certezas redescobertas. O mal-estar espiritual da baixa Idade Média não foi a causa da Reforma, mas certamente constituiu seu pré-requisito.

Lindberg (2001, p. 81) reage a esta concepção. Afirma que “a vida cotidiana às vésperas

da Reforma incluía elementos atualmente considerados supersticiosos: a crença na existência

de bruxas, a magia e a astrologia.” Mas os rejeita como motivadores e motor da Reforma46

por existirem fartamente entre nós ainda hoje: horóscopo temos todos os dias nos grandes

jornais e o evangelho que promete “cura e riqueza”, por meios de comunicação de massa,

“apelam para os mesmos medos e desejos que motivaram a pessoa da Idade Média a procurar

curandeiros sobrenaturais e adivinhos do futuro.” A motivação deve, antes, ser procurada na

“incerteza da salvação na mensagem da Igreja”, de quem Lutero também foi vítima.

Mas a percepção de um mundo estranho e oculto está no imaginário das pessoas às

vésperas da Reforma. Para George (1993, p. 31-33) esta percepção tem sua origem na

cosmovisão da época que não se sustenta mais. Ele afirma que o universo ordenado pelas

hierarquias celestiais e refletido na sociedade terrestre é cada vez menos sustentável, pois as

fronteiras são transgredidas: As viagens de Colombo, Vespúcio e Magalhães despedaçaram a antiga geografia e ampliaram imensamente a influência européia. O mote medieval para Gibraltar – ne plus ultra – tornou-se simplesmente plus ultra – mais além. Ao mesmo tempo, os cálculos de Copérnico, mais tarde confirmados pelas observações de Galileu e Kepler, estenderam amplamente as fronteiras do universo removendo a terra – e a humanidade – do centro da realidade. As fronteiras políticas entre as nações estavam literalmente prontas para ser capturadas, como indicam a Guerra dos Cem Anos, entre Inglaterra e França, e a incursão de Carlos VIII à Itália (1494). Do outro lado da escala social, os camponeses lutavam por livrar-se das correntes do feudalismo mediante protestos e súplicas, quando possível, e mediante revoltas sanguinárias, quando necessário.

45 Lienhard (1998, p. 25) fala em “coisificação” da religião: “a graça se ligava a objetos como as relíquias. As indulgências (...) contabilizavam a graça e a faziam passar para o nível do comércio.” 46 Para Delumeau (1989, p. 59-60) também é insuficiente falar só dos abusos como desencadeadores da Reforma. Sempre houve abusos e sempre foram denunciados. Por outro lado, afirma, precisamos olhar mais para os outros temas que estão elencados na Confissão de Augsburgo como comungar com os dois elementos da Santa Ceia, a compreensão da missa como sacrifício, o celibato eclesiástico etc. Há neles potencial reformador, conclui.

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Eis a causa da percepção da existência de um mundo estranho e oculto. Não era sabida a

origem desta reviravolta, mas atemorizava. As respostas pastorais não eram capazes de

tranquilizar vidas e almas. Se tomamos novamente a angústia de Lutero como referência para

a sociedade47, podemos expressar o sentimento geral assim: E, em uma cristandade surda aos apelos do coração, em uma cristandade que entregava seus templos aos maus mercadores, seus rebanhos aos maus pastores, seus discípulos aos maus mestres, nada, afora os lamentos de seus colegas de miséria, nada era capaz de responder aos soluços do crente ávido de fé viva, cuja fome era enganada com vãs ilusões. (FEBVRE, 2012, p. 31).

Além do pecado da humanidade, a culpa por estes temores sem origem e também das

calamidades como tempestades, seca, morte de animais da fazenda, ... caiu por sobre a

bruxaria e a feitiçaria. Em 1484 o papa Inocêncio VIII autoriza o extermínio sistemático da

bruxaria e da feitiçaria levando à tortura e extermínio de milhares de mulheres pobres, idosas

e desprotegidas (porque solteiras). Estima-se em 30 mil o número de execuções por feitiçaria

até o final do século XVI. (PARAMO, Louis de. Origin and Progress of the Inquisition, 1957,

apud GEORGE, 1993, p. 32).

1.2.3 O princípio teológico facere quod in se est e a imitatio Christi

Além dos aspectos da religiosidade já citados, havia também um princípio teológico

motivador na Idade Média: facere quod in se est – “fazer o que está dentro de si”48, faz o que

está ao teu alcance; faz o melhor que puderes: A expressão significava que o empenho de amar a Deus da melhor maneira possível – por mais fraco que ele pudesse ser – levaria Deus a recompensar os esforços da pessoa em questão com a graça de agir e fazer ainda melhor. Cada vez mais se percebia a vida de peregrinação do cristão rumo à cidade celestial como uma economia da salvação, e isso de maneira literal, não simplesmente teológica. (LINDBERG, 2001, p. 78)

Lindberg, (2001, p. 78-87) percebe que, com esta forma de conceber a dinâmica da

salvação, a Igreja assume em grande medida as premissas da sociedade urbana e econômica

em gestação e, por extensão, os causadores da ansiedade e insegurança humanas. A economia

do novo cidadão burguês era baseada no princípio quid pro quo (isto por aquilo; toma lá, dá

47 Hinkelammert (2012, p. 62) afirma que esta é a característica de toda a humanidade: “no microcosmo se esconde o macrocosmo. Portanto, fala-se do macrocosmo a partir do microcosmo.” Veja Também BRENDLER, 1983, p. 8. 48 Gassmann e Hendrix (2002, p. 196) afirmam ser esta a tradução literal e descrevia o esforço humano que mereceria a graça de Deus. Altmann (1994, 80ss e 283ss) traduz a expressão latina como “a quem faz o que está dentro de si, Deus dá a graça”.

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37 cá). É a ideia do capitalismo primitivo do trabalho feito que merece uma recompensa que

adentra a dinâmica da Igreja. Cada indivíduo era responsável por sua própria vida, pela

sociedade e pelo mundo. Lindberg (2001, p. 78) afirma que “o objetivo da prática pastoral era

o de oferecer um caminho para a segurança através da participação humana no processo da

salvação.” Teologia que só fez aumentar a crise porque fazia as pessoas depender de suas

próprias forças. A dúvida sobre como saber se tinha feito o suficiente aqui se instala.49 Nesta

perspectiva é que devem ser compreendidas as indulgências, as relíquias e o mandar rezar

missa: como uma ajuda na busca pela salvação.50 Um caminho que a Igreja indica e que

anima a pessoa a fazer o seu melhor. Faze o melhor e serás recompensado. Este pressuposto

nos faz compreender bem a obediência rigorosa às regras nos mosteiros, as romarias, os jejuns

etc. Martim Lutero, na ânsia de mortificar a carne e tornar-se aceitável a Deus declara, anos

mais tarde: “eu me torturava com orações, jejuns, vigílias e congelamento; só a geada podia

ter me matado.” E ainda: “jejuei quase até a morte, pois muitas vezes passava três dias sem

tomar uma gota de água ou aceitar um bocado de comida. Eu levava o jejum muito a sério.”

(LW 24, p. 24 e LW 54, p. 339-340, respectivamente, apud LINDBERG, p. 83).

Tomás de Aquino, na correlação entre fazer o melhor que posso e a salvação, afirma

que a graça não suprime a natureza, mas a completa. Que “a salvação é um processo que

acontece dentro de nós à medida que nos aperfeiçoamos. (...) Nós nos tornamos justos diante

de Deus à medida que realizamos atos justos, que fazemos boas obras.” (LINDBERG, 2001,

p. 81). Diante da pergunta “como saber se fiz o melhor que pude?” os vigários das paróquias

respondiam assim: “tente fazer ainda melhor”. Essa busca pelo “fazer ainda melhor” faz

surgir os catecismos que têm a tarefa de ajudar a pessoa na sua avaliação e confissão. O mais

conhecido é O espelho cristão, de Dieterico Kolde51.

Conforme Lindberg (2001, p. 88-91), esta teologia se baseia em duas premissas do

ensino de Aristóteles. Este afirmava: a) que “o semelhante é conhecido pelo semelhante”.

Aplicado à teologia temos que “a comunhão com Deus somente pode ocorrer quando o

pecador é elevado à semelhança com Deus. O pecador precisa tornar-se santo porque Deus é

49 Altmann (1994, p. 80-81) assinala que não se trata aqui de autossalvação. “Ao contrário, estava claro: a graça provinha de Deus. Contudo, a pessoa deveria esforçar-se por corresponder e merecer, ainda que ‘apenas’ no que lhe fosse possível.” A pergunta que ficava era: como saber que fiz todo o possível? 50 Embora a Igreja afirmasse ser necessário o arrependimento, no imaginário popular estava que era possível “comprar” a salvação pela indulgência e que tal comércio era lícito. (DELUMEUAU, 1989, p. 65). 51 Editado em 1470, foi o catecismo mais popular do período sendo reeditado 19 vezes antes da Reforma. Destaque-se a falta de certeza acerca da salvação resumida por Kolde assim: “há três coisas que sei serem verdadeiras e que freqüentemente me pesam no coração. A primeira aflige meu espírito, porque eu terei de morrer. A segunda aflige mais meu coração, porque não sei quando. A terceira me aflige mais que tudo: não sei para onde irei.” (JANZ, 1982, p. 182, apud LINDBERG, 2001, p. 82).

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38 santo e não se associa com os que carecem de santidade.” A imagem que ilustra essa ideia é a

da escada que chega ao céu. O ser humano vai subindo os degraus da virtude e, a seu lado,

demônios tentam derrubá-lo e anjos salvá-lo; b) esta prática do melhoramento de si é possível

por causa do conceito de habitus em Aristóteles: é possível a pessoa mudar através da

repetição, pela prática. O exemplo é o do violonista que, ao ensaiar rotineiramente, melhora a

música praticada no violão. Isto é aplicado a todas as áreas da vida, inclusive à fé. Pelo hábito

a ética torna-se uma segunda natureza. Para a teologia medieval era a resposta para a pergunta

sobre como alcançar a justiça de Deus: “através dos sacramentos Deus infunde em nós um

‘hábito’ sobrenatural.” Nós somos responsáveis por torná-la efetiva e, na medida em que

aperfeiçoamos os dons que Deus nos deu merecemos mais graça. Logo, “faz o que está ao teu

alcance” significa ir aprimorando o processo interno de salvação na medida em que nos

tornamos mais perfeitos.

Para fazer justiça às formas pastorais fomentadas pela Igreja da época52 é preciso

lembrar da Via Antiqua, da Via Moderna e do Humanismo53 como formas amplamente

difundidas entre as pessoas, fomentadas pelo clero e pela teologia escolástica. Não vamos

aqui analisar cada uma delas. Mas nos ater à imitatio Christi, de Tomás Kempis, considerada

parte da Via Moderna.

A Via Moderna é precedida por outro movimento chamado Mística Alemã54, cujo

representante maior foi o dominicano Mestre Eckhard (nascido por volta de 1260) em

Hochheim, na Turíngia. Na virada do século XIII para XIV conventos dominicanos femininos

experimentaram uma onda de entusiasmo místico pautado pela experiência com Deus.

Eckhard fizera uma experiência mística e lhe deu forma teológica, assumida por estes

conventos. Afirmava que na “alma humana havia um lugar que não participou do afastamento

da criatura do Criador”. É uma espécie de “faisquinha” divina que permanece praticamente

encoberta no ser humano porque este ama a outras criaturas, não a Deus. Mas está lá. E Deus

está à procura desta faisquinha. Basta o ser humano deixar as outras criaturas de lado e

52 São de fato muitas correntes teológicas e práticas pastorais da época. “O tempo dos grandes sistemas teológicos – mais ainda, de uma teologia dominante – estava findo. Os especialistas sublinham hoje a diversidade das correntes e as incertezas no plano teológico” (LIENHARD, 1998, p. 25). Por isso apresentamos brevemente só as principais. Febvre (2012, p. 58ss), por outro lado, afirma que estes movimentos não fizeram grande diferença no pensamento de Lutero. Seu perfil era de ler “apenas um pensamento, o seu. Nada aprende que já não traga dentro de si. Uma palavra, uma frase, um raciocínio o impressionam. Apossa-se dele”. 53 O humanismo (ou Renascença) tinha como mote o retorno às fontes da antiguidade, fossem pagãs (romanas ou gregas) ou cristãs. Por um lado exerceram forte crítica contra as instituições eclesiais e a teologia tradicional (a escolástica); por outro colocaram a criatura humana como centro do universo, fazendo sobressair o seu valor. Seu maior representante foi Erasmo de Roterdã. Confira GEORGE, 1993, p. 48-51 e 323; WACHHOLZ, 2010, 32-35; GASSMANN e HENDRIX, 2002, p. 15; LIENHARD, 1998, p. 26-27; FISCHER, 2006, p. 14-15. 54 Baseamo-nos em DREHER, 1994, p. 117-119, inclusive as citações.

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39 entregar-se completamente a Deus. “Se conseguir isso (afastar-se das outras criaturas), Deus

se une a ele.” A esta união chamou de “nascimento do Filho de Deus na alma”. Assim, afirma,

“desaparece a distância histórica que separa o homem piedoso de todos os tempos de Jesus.”

A Igreja, como intermediadora, não é mais necessária. As respostas para todas as perguntas

estão na mística. Esta teologia que, com base na experiência, desqualifica a intermediação da

igreja, foi considerada herética em algumas de suas sentenças e temerária em outras. Deixou,

todavia, sua herança no cristianismo. A semente estava lançada.

A Mística Alemã, sobretudo através de Tomás de Kempis, foi de grande repercussão

ante as angústias e inseguranças vividas no século XV e XVI, causadas pelas rupturas na

sociedade feudal: o feudalismo declinava, a economia se monetarizava, as cidades autônomas

ganhavam força, diminuía a importância da nobreza e crescia em importância a burguesia,

soma-se ainda a peste, a crise na agricultura, o surgimento das cidades etc. Foi uma oferta de

certeza e segurança em meio às incertezas. Enquanto a Mística Alemã se desenvolvia nos

conventos como resposta de fé a estas rupturas, entre o povo ainda se clamava por uma

resposta.

A Via Moderna também foi uma tentativa de resposta para as angústias das pessoas.55

Ela nasce em distinção à Via Antiga (Tomás de Aquino e seu esforço de traduzir a filosofia

para dentro da teologia) e tinha como objetivo buscar “o temor a Deus e a santificação da vida

do leigo no dia-a-dia.” Foi iniciada pelos Irmãos da Vida Comum56 que estavam interessados

em ética prática. Renunciavam a toda propriedade e viviam através da cópia de livros –

trabalho fundamental para o humanismo que viria depois. O nome mais conhecido entre eles é

o de Tomás a Kempis (1380-1417) que escreveu De Imitatio Christi. Lienhard (1998, p. 24)

descreve a atuação deles: Os irmãos enalteciam a imitação de Jesus Cristo e a humildade, o exame de consciência e a censura fraterna, a leitura da Bíblia e a oração, sem negligenciar, de outra parte, a transmissão de conhecimentos, estimulada por certos contatos com os meios humanísticos.

Martim Lutero teve contato com esta forma de piedade mística na escola que

frequentava quando de sua estada em Magdeburg. Esta percepção é importante e vamos voltar

a ela, pois Martim Lutero vai valorizar a fides Christi e estabelecer limites para a forma da

escolástica compreender a imitatio Christi.

55 Baseamo-nos em DREHER, 1994, p. 118-119, inclusive as citações. 56 Os Irmãos da Vida Comum eram adeptos da “devotio moderna” (Via moderna). Esta fomentou, por um lado, a Reforma nos conventos. Por outro fomentou, nos conventos e entre os leigos, uma espiritualidade introspectiva muito aceita na Igreja Medieval. Os Irmãos da Vida Comum tinham como ideal de vida seguir os passos de Jesus. Por suas escolas tornaram-se influentes na sociedade da época. Também foram impulsionadores do movimento da Reforma. Veja LOHSE, 1983, p. 21.

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40

1.3 MARTIM LUTERO NESTE CONTEXTO

Neste subitem não é objetivo descrever uma biografia de Martim Lutero nem detalhar

sua teologia. Há belíssimos trabalhos neste sentido.57 Objetivamos mostrar que Lutero estava

envolto nesta forma de vida religiosa como todas as pessoas. Nela experimentou angústias e

anseios pelo novo.

Martim Lutero nasce em Eisleben no ano de 1483. A família Luder vive esta transição

entre o contexto rural feudal para o urbano com características de uma nova economia como

já assinalamos. O avô de Martim Lutero era agricultor, dono de terras. Ser dono de terras

acrescentava em liberdade e direitos na sociedade feudal – o que não acontecia com muitos

outros agricultores e que estavam mais próximos do regime de servidão. Nem por isso a vida

era tão melhor: a condição social só seria mantida se as terras não fossem divididas. Por

direito de herança as terras ficavam com o filho mais novo. Por contrapartida cabia ao filho

mais novo cuidar dos pais. Os mais velhos deveriam trabalhar para ele ou seguir seu caminho.

Desta forma muitos vão parar nas cidades e ali são mão de obra para as minas de minério e

cobre. Por conta desse direito de herança é que Hans Luder (pai de Martim Lutero) sai de

Möhra para Eisleben-Mansfeld (ele era o filho mais velho de 4 irmãos) em 1483. É mais um

trabalhador das minas submetido às leis comerciais vigentes impostas pelas sociedades

comerciais. Estas emprestavam dinheiro para o minerador fazer seu trabalho. A forma de

pagamento era por produto “in natura”. Se o trabalhador obtivesse êxito em seu trabalho

conseguia honrar suas dívidas. O risco era só dele. Aqui estabelecem-se dois tipos principais

de trabalhadores: os que obtêm êxito e os que sucumbem em dívidas. Hans Luder está entre os

que obtiveram êxito por que seguiram uma receita de austeridade do mercado: trabalhar muito

e gastar pouco. Hans Luder vem a ser dono de mina e integrante do conselho da cidade.

(BRENDLER, 1983, p. 9-13). A família Luder experimenta a ansiedade e insegurança

econômica do seu tempo e também a transição do mundo econômico feudal-rural para o

57 Sobre sua biografia veja, por exemplo: LOHSE, 1983, p. 31-52; BRENDLER, 1983, p. 9-47 (referente aos anos de 1483 a 1512); LIENHARD, 1998, p. 31ss e 389s; ALTMANN, 1994, p. 352; DREHER, 1996, p. 23-40, BECK, Nestor. Introdução. In: Pelo Evangelho de Cristo, 1984, p. 9-20; Breve Retrospectiva histórica sobre a Reforma Luterana. In: Bíblia Sagrada com reflexões de Lutero (Sociedade Bíblica do Brasil), 2012, xi. Sobre sua teologia a bibliografia desta pesquisa contempla várias obras; FEBVRE, 2012; GARCÍA e DOMÍNGUEZ, 2008, p. 195-198.

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41 mundo econômico capitalista emergente. Martim Lutero cresce em meio a esta mudança e os

desafios que ela representa.58

Martim Lutero é o filho mais velho de sete irmãos. Pelo direito de herança, precisa

seguir seu caminho. O pai, então, o coloca para estudar desde os quatro anos de idade. O

grande sonho do pai era a formatura em direito. A escola era o lugar do aprendizado e da

disciplina (muitos pais tinham dificuldade em fazê-lo por motivos de trabalho ou muitos

filhos). Aprendeu latim. Latim era a língua oficial da Igreja e do Império. Promessa de

ascensão social por oportunizar trabalhos internacionais ao lado de príncipes, ou nas

universidades, ou mesmo na Igreja. Lutero o dominou com maestria. (BRENDLER, 1983, p.

13-19).

Mas uma tempestade o surpreendeu em Stotternheim e muda este “destino”59. Ao

clamar pelo cuidado de Santa Ana decide ser monge. Brendler (1983, p. 25) afirma que uma

promessa (ou era um grito de socorro?) feita nestas circunstâncias não precisava ser cumprida

conforme orientação do direito canônico da época. Mesmo assim Martim Lutero decide entrar

no convento dos agostinianos em 1505, apesar da contrariedade de seu pai. Brendler vê neste

gesto de Martim Lutero insatisfação com o caminho de vida para ele escolhido pelo pai e

conclui que sua vontade era servir à sociedade pelo caminho religioso, não pelo do direito.

Também Lienhard (1998, p. 34-35) adota esta percepção. O episódio do raio pode, no

máximo, ter promovido o desfecho para algo que já se evidenciava: a busca pelo Deus

misericordioso, como o próprio Lutero o afirma no ano de 1534: Em nenhum momento consegui achar consolo em meu batismo; ao contrário, pensava continuamente: Ó, quando finalmente poderás tornar-te piedoso e fazer o suficiente, para teres um Deus misericordioso? Através de pensamentos como esse fui incitado em direção à ‘mongeria’ (Möncherei). (WAIMARISCHE AUSGABE, 37, 661, 20; publicado por Cruciger, apud LIENHARD, 1998, p. 35).

Se por um lado Martim Lutero cresce enfronhado nesta nova dinâmica social, por outro

também cresce dentro da religiosidade da época. Lohse (1983, p. 33) afirma que a família de

Lutero pode ser considerada normal para o padrão da época. Claro que, em comparação com a

educação hodierna, mais rigorosa. Assim também na educação cristã. A família era piedosa e

estava enfronhada na religiosidade e piedade supersticiosa do seu tempo. E conclui: nada de

extraordinário dentro das circunstâncias da época que pudesse evidenciar algo de diferente no

porvir. 58 Lienhard (1998, p. 20-21) afirma que o pai de Martim Lutero experimentou o endividamento junto às casas comerciais antes do relativo bem estar econômico. O classifica como sendo um pequeno empreendedor em busca de ascensão social que, ao lado dos artesãos, formam a camada média das cidades. 59 Febvre (2012, p. 29) afirma que esta decisão se deu em consequência da “sombra de uma juventude melancólica” e que projetava “um destino que permanecia medíocre.” O autor pressupõe em Lutero a busca por expressão social para a qual não tinha capacidade no mundo das artes.

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Como tantas outras pessoas do seu tempo ingressa no mosteiro e ali se submete às leis

estabelecidas com o objetivo de merecer a graça de Deus60. Conforme Lohse (1983, p. 35-37)

o real motivo para seu ingresso no convento deve ser procurado nas suas Anfechtungen

(tentações). Estas são em parte razões teológicas, em parte pessoais. A pergunta motivadora

era acerca da dignidade do ser humano diante de Deus: como consigo um Deus gracioso? O

pano de fundo da pergunta está na concepção da teologia da Idade Média tardia que afirmava

ser o ser humano dotado de capacidades e forças para realizar obras da justiça que agradam a

Deus. Em outras palavras: o ser humano é dotado de uma capacidade para cumprir o primeiro

mandamento. Mas esta ‘verdade teológica’ é relativizada porque a confissão e a oração não

conseguem tranquilizar a alma. Como saber se estou justificado diante de Deus? A única coisa

que consegue perceber na sua angústia é a ira de Deus pronto a lançá-lo no inferno. Como

vimos, Lutero está dentro do pensamento teológico que leva às indulgências como forma de

conquistar paz às almas. Para Lohse este é o cerne em Lutero, pois experimenta em vida as

penas do purgatório.61 Os demais temas elencados são, em verdade, temas paralelos.

Interessante observar que estas dúvidas não cessam com a redescoberta reformatória, mas

ganharam outros contornos. Lutero se questiona, em 1527: tenho razão contra um mundo de

inimigos? Porque tive que começar a Reforma? Somente eu tenho esta clareza teológica e os

outros viveram séculos de escuridão?

George (1993, p. 62-63) define bem o que são as Anfechtungen: pavor, desespero,

sensação de perdição, agressão, ansiedade. Afirma que é isso que Lutero sentia quando na

busca pelo Deus misericordioso. Igualmente afirma que as Anfechtungen não cessaram após a

redescoberta reformatória, mas se tornaram um princípio recorrente que moldou seu pensar

teológico, uma espécie de processo vitalício de lutas, conflitos e tentações que moldam o

pensar teológico. Lutero afirma que não aprendi minha teologia toda de uma vez, mas tive de buscá-la mais a fundo, onde minhas tentações [Anfechtungen] me levavam. [...] Não a compreensão, a leitura ou a especulação, mas o viver, ou melhor, o morrer e o ser condenado fazem um teólogo. (WAIMARISCHE AUSGABE, TR I, p. 146 e 5, p. 163, apud GEORGE, 1993, p. 62).

Lutero dá primazia no fazer teológico à experiência, à prática, pois é para lá que a

teologia da cruz e as tentações levam a pessoa, ficando a razão em segundo plano. Em 1542

ele diz (WAIMARISCHE AUSGABE, 49, 257, 39s, 258,17-19 (1542), apud EBELING, 60 Lohse (1983, p. 34-35) também afirma que o ingresso no mosteiro é fruto de amadurecimento interior da fé e busca. Ingressar no convento era espécie de ‘garantia de salvação’. A escolha pelo mosteiro dos agostinianos eremitas em Erfurt se deu no sentido de dar continuidade aos estudos da linha filosófico-teológica, possíveis naquela casa. 61 Tillich (1992, 212-221) fala que esta é a situação-limite em Lutero. Esta condição humana, à luz da Justificação pela Fé, é a sua ponta de atualização da temática como veremos no terceiro capítulo.

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43 1986, p. 182): “Pela letra e pela história essas palavras são (...) de fácil compreensão (...) mas

elas provocam tonturas quando for para experimentar, degustar e trazê-las para a vida ou

experiência; aí a compreensão é muito elevada e se torna difícil”. Por detrás disso está a ideia

de que a experiência faz o teólogo e que toda teologia é vivencial.

Lutero, é verdade, experimenta angústias e tentações (Anfechtungen). Mas também é

conhecedor dos movimentos pré-reformatórios. Conhece pessoas e ideias que buscam por

uma nova teologia e uma nova espiritualidade. A busca pelo Deus misericordioso não cessara.

No próximo capítulo queremos analisar estes movimentos pré-reformadores, a redescoberta

teológica de Martim Lutero e os escritos sobre as boas obras e a liberdade cristã. Vamos

perguntar acerca da materialização da Justificação pela Fé redescoberta.

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2 A BUSCA POR NOVAS REFERÊNCIAS PASTORAIS E TEOLÓGICAS

No primeiro capítulo, destacamos alguns aspectos da cultura, política e economia que

marcaram a transição da Idade Média para o mundo moderno europeu e que são importantes

para entender o contexto no qual as pessoas se movimentavam naquele tempo, entre elas

Martim Lutero. Pudemos perceber uma sociedade estruturada como corpus christianum que,

ao final da Idade Média, enfrenta duras crises. Estas crises se mostram tanto na vida social

como religiosa das pessoas. A Igreja, como maior fiadora desta sociedade, não consegue

oferecer respostas pastorais plausíveis para acalmar almas e vidas. Os bispos são acusados de

estar mais preocupados em fazer dinheiro e conquistar poder do que ser guias pastorais. Há

um clamor por consolo, uma busca pelo Deus da misericórdia, simbolizada em nosso texto

nas Anfechtungen vivenciadas por Lutero.

Há, por isso, um clamor por reformas tanto na sociedade (a nova economia cria novos

pobres em grande número) quanto na Igreja (que não consegue oferecer paz às almas e vidas

das pessoas). Mas, conforme Lohse (1983, p. 20-21), a Igreja não reúne as forças necessárias

para uma reforma, apesar dos inúmeros abusos cometidos em nome da fé. As razões para

tanto estão no esforço que os papas fizeram para recuperar a suprema autoridade sobre o

concílio e a constante necessidade de dinheiro, motivo pelo qual o sistema de indulgências

nem é questionado. A prova dessa incapacidade, segundo Lohse, é encontrada no 5. Concílio

de Latrão (1512 – 1517) às vésperas da Reforma: estavam previstas reformas contra abusos

cometidos pela cúria e nas províncias, o que não foi acolhido. Pelo contrário, na nona sessão

do concílio foi concedido a Albrecht von Mainz o direito de acumular bispados mediante o

pagamento de 10 mil ducados. Lutero se refere a este fato nas 95 teses.62

Se a Igreja é incapaz de conduzir as reformas, este intento é levado a cabo por diferentes

movimentos e/ou pessoas. Martim Lutero é um destes e está enfronhado nestes movimentos.63

62 Febvre (2012, p. 35) também aponta para este fato como sendo de grande repulsa por toda a Alemanha e que Lutero deu voz a uma indignação há muito reprimida. Indignação que é, para Febvre (2012, p. 119-141) própria do contexto alemão: rico, mas dividido política e moralmente. Febvre elenca problemas de unidade: os príncipes com seus territórios e as cidades independentes assim queriam permanecer – o imperador não tinha força para vencer estas resistências; as inquietações sociais eram muitas e estavam em todas as partes da Alemanha; a classe burguesa emergente questiona a velha mentalidade artesã do ponto de vista moral; há ainda uma outra Alemanha, rude, de muitas classes sociais etc. Alemanhas contraditórias, conclui Febvre. E arremata em tom crítico: somente um homem também contraditório como Lutero conseguiria uma unidade mínima para uma Reforma. Um intelectual prudente como Erasmo de Roterdã não o conseguiria. Por isso o chama de profeta. 63 Brendler (1993, p. 440ss) afirma que a Reforma foi um movimento iniciado na esfera religiosa que se estendeu para dentro de toda a sociedade alemã. Observa que no século XVI a sociedade alemã está “fermentando”. As

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45 Porém, não é o primeiro. Antes dele houve manifestações e movimentos por reforma pautados

pela busca de consolo e misericórdia divinos em clara discordância com a prática da Igreja da

época. Todavia, estes movimentos também não tiveram força suficiente para concluir a

reforma. Seu valor, entretanto, está na gestação de ideias e resistências à prática pastoral

vigente, criando caminhos para a consumação da Reforma. Neste capítulo vamos analisar dois

movimentos pré-reformadores64 e o posicionamento de Martim Lutero65 ante a prática

teológica e pastoral do seu tempo, fazendo culminar o movimento da Reforma.

2.1 MOVIMENTOS PRÉ-REFORMADORES

2.1.1 A Via Moderna

O movimento conhecido como Via Moderna (ou Devotio Moderna) talvez tenha sido

um dos mais influentes da Idade Média. Conforme Lohse (1983, p. 21), o movimento nasceu

nos países baixos no século XIV e foi responsável, como vimos, por uma reforma nos teses de 1517 logo alcançam grupos populares. Assim a Reforma se amplia, acolhe problemas de grupos sociais e alça-lhes esperanças. Passa a ser um movimento da igreja e da sociedade. Isto representa a entrada de outros atores no processo, especialmente quando Lutero decidiu não avançar em determinado tema – é o caso de Thomas Müntzer e os camponeses. Mas a mesma coisa acontece com o processo de institucionalização, quando a Reforma já é mais ‘controlada’ pelos príncipes. Eventos se dão à revelia dos reformadores. Contudo, fica a marca da teologia que mostra potencial libertador. Mas aqui também está, conforme Brendler, a grande crítica que pode ser feita a Lutero: ficar restrito ao âmbito religioso, não avançando no potencial revolucionário e ideológico. A consequência desta decisão é que a Reforma (religiosa e social ansiada) não se concluiu do ponto de vista ideológico. E conclui: há mérito em Lutero quando oferece uma grande contribuição à história ao desencadear um movimento na igreja que atinge também o sistema social-feudal; seu maior limite é ficar no aspecto religioso, inibindo uma revolução necessária. 64 O objetivo não é analisar todos os movimentos pré-reformadores. Primeiro queremos constatar que eles existiram e que Martim Lutero navega nesta corrente reformatória. Segundo queremos nos ater a dois movimentos que são importantes na formação de Martim Lutero e que tem, por isso, influenciado sua teologia. Reconhecemos que os movimentos pré-reformadores foram vários e que aconteceram em diferentes lugares da Europa. Todos, a seu modo, contribuíram para a formatação de um novo pensar religioso. Basta citar movimentos como o humanismo e seu propósito de voltar às fontes da Antiguidade clássica (Cf. LINDBERG, 1998, p. 26-27); o conciliarismo – superar a crise do cisma papal (Cf. WACHHOLZ, 2010, p. 26-28); os franciscanos espirituais – com o ideal de pobreza oferecem resistência à Igreja institucionalizada e o movimento dos valdenses com a busca pela simplicidade da ecclesia primitiva (Cf. GEORGE, 1993, p. 40-42). Cite-se também acontecimentos: a descoberta das novas terras e da imprensa contribuíram no sentido de romper com a homogeneidade do tempo construído ao longo de mil anos. (Cf. DREHER, 1994, p. 119-122). Reiteramos, todavia, o critério de apontar para os movimentos que contribuíram na formação do pensar teológico de Martim Lutero mais diretamente. 65 Também não é objetivo deste texto analisar toda a reação de Martim Lutero à teologia e práticas pastorais da Igreja do seu tempo. Vamos nos ater aos textos Da Liberdade Cristã e Das Boas Obras (1520). Os demais só pontualmente serão mencionados. Reiteramos que a escolha destas obras se dá por serem obras primárias e apresentarem a reflexão teológica para dentro de uma vivência, uma prática cotidiana.

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46 conventos e fomentou uma piedade introspectiva. Seu ideal era seguir os passos de Cristo. Os

maiores representantes deste movimento foram Duns Scotus (1265-1308), Wilhelm Occam

(Guilherme de Occam) (1285-1349) e Gabriel Biehl (1410-1495). (BRENDLER, 1983, p. 95).

Na alta Idade Média, dada a ênfase do estudo da filosofia na teologia e as questões

existenciais ali colocadas, os pensadores tiveram que novamente se ocupar com a tensão entre

teologia e filosofia, razão e revelação, o que já fora a pergunta dos pais da igreja. Para

Brendler (1983, p. 33-35), Tomás de Aquino (cerca de 1224-1274) cumpre aqui um

importante papel para a teologia escolástica no sentido de aproximar a teologia da filosofia

aristotélica. Em sua “Suma Teológica” definiu Deus como suprema ideia (oberste Idee) em

correspondência ao conceito de Ser Absoluto de Aristóteles – este é o último estágio do

processo de abstração.66 Se a filosofia aristotélica tem como ponto de partida um elemento

concreto para, pelo processo de abstração, chegar ao Ser Absoluto, a teologia faz justamente o

caminho contrário: ela parte da ideia suprema para chegar ao concreto, ao real. Este processo

é chamado de Emanation. Aquino afirma ser isto o que a Bíblia chama de criação do mundo

pelo Espírito de Deus como revelação. Desta forma a teologia escolástica aproximou razão e

teologia, filosofia e dogma eclesiástico, reservando a Tomás de Aquino um lugar junto aos

pais da igreja. Registre-se, todavia, que a própria teologia escolástica mantinha reservas

quando reafirmava que revelação e razão não são a mesma coisa e que a fé precede o

conhecimento e a revelação precede à razão. Porém, mantinha os dois muito próximos um do

outro.

Ebeling (1986, p. 66-67) explica esta aproximação pelo conceito de ciência da

escolástica, pautada pela autoridade e a razão, válida para todos os ramos do saber. Esta

pressupõe que a autoridade é decorrente das obras da Antiguidade que vieram até nós e que

têm validade normativa. Unidas à tradição da revelação, fazem da Igreja a grande fiadora das

universidades da Idade Média. O papel da razão consiste em conciliar tradições, rebater

objeções e desdobrar consequências com base nos recursos da dialética. Eis o interesse da

teologia em se manter próximo da razão (EBELING, 1986, p. 77): “relacionar

harmonicamente fé e razão e conceber os horizontes do natural e do sobrenatural num todo

sistemático de abrangência global.” Tomás de Aquino, como dito, é o mentor desta

aproximação. O faz, por exemplo, ao afirmar (AQUINO, T. Suma Theológica I q. a. 8 ad 2,

66 Abstração é um processo pelo qual um objeto ou algo concreto vai sendo abstraído, como em camadas: na medida em que as camadas são abstraídas o material vai acabando e a dinâmica adentrando o campo da ideia. No momento em que abstrações não são mais possíveis, chega-se ao “Ser”, ao ponto em que somente a sua existência pode ser declarada. Aristóteles defende a tese de que este processo pode ser levado a termo com o mundo como um todo, chegando-se ao “Ser” do mundo, o Ser Absoluto. (BRENDLER, 1983, p. 33-34)

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47 apud EBELING, 1986, p. 67): “Pois, como a graça não tolhe, mas aperfeiçoa a natureza,

importa que a razão humana preste serviços à fé, assim como a inclinação natural da vontade

está às ordens da caridade.” A razão tem primazia em relação à fé.

Os primeiros a oferecer resistência à ideia de que conhecimento racional do mundo e

doutrina eclesiástica da fé se encaixam como que perfeitamente foram os franciscanos de

herança agostiniana (EBELING, 1986, p. 67). Porém, a maior resistência ocorreu com o

nominalismo, corrente liderada por Guilherme de Occam (cerca de 1285-1349): o raciocínio concentrava-se, ao contrário de Tomás, em evidenciar o ponto de ruptura entre razão e fé, apoiado na diferenciação válida em relação a Deus que, na sua potentia absoluta, poderia ter disposto tudo de modo bem diferente, cuja ação, portanto, não está sujeita a critérios e necessidades superiores a ele, ainda que, em sua potentia ordinata, se tenha comprometido com as contradições de fato existentes, que ele mesmo estabeleceu uma vez. (EBELING, 1986, p. 68)

O tomismo é realista (as palavras trazem a essência das coisas; as coisas estão realmente

presentes em essência nas palavras); o occamismo nominalista (defende a ideia de que o nome

não dá a exata dimensão das coisas. Carece da apreciação subjetiva)67. Gasmann e Hendrix

(2002, p. 199) definem nominalismo assim: “Advogava a primazia da revelação divina e a

liberdade de Deus de estabelecer a ordem da salvação como uma aliança entre Deus e os seres

humanos.” O nominalismo traz, como prerrogativas, então, os aspectos da ruptura da relação

razão x fé e a primazia da fé na revelação divina ante a razão, relativizando a prerrogativa da

filosofia na interpretação teológica (EBELING, 1986, p. 68); a busca pela compreensão do

que está “oculto” na palavra/conceito (encontrar o conteúdo por detrás da palavra); e aponta

para a subjetividade na compreensão do mundo (BRENDLER, 1983, p. 37). O que o

movimento da Via Moderna significa para a teologia de Lutero?

Na prática, a constituição de uma nova hermenêutica bíblica68: se a compreensão da

Escritura na teologia escolástica se dava através da terminologia filosófica aristotélica, Lutero

busca abrir para a teologia a genuína compreensão das Escrituras e “captar a peculiaridade da

forma de falar e pensar da Bíblia.” (EBELING, 1986, p. 69). Ebeling (1986, p. 69-73)

exemplifica: intellectus para a filosofia é uma faculdade humana; para a Bíblia o conceito é 67 Veja também BRENDLER, 1983, p. 35-37. Brendler faz uso de comparações para definir ambos: o realismo é como o caldo da sopa – o caldo é decorrente do osso/carne colocado na sopa – ao objeto/conceito segue um raciocínio lógico decorrente do próprio objeto/conceito; o nominalismo é como a etiqueta pregada na peça de roupa e conclui com Albert Einstein: os conceitos não se relacionam com os objetos assim como o caldo com o osso. 68 Temos ciência de que o movimento da Via Moderna muito representou para a Idade Média em diferentes áreas e grupos. Restringimo-nos a enfatizar, aqui, um aspecto relevante para o desenvolver teológico de Martim Lutero. Febvre (2012, 71-78), por outro lado, é bastante crítico neste tema. Afirma que Lutero não fez nova descoberta. Como o caminho das obras meritórias no convento não se mostrou salvífico, gestou sua paz interior interpretando o conceito da justiça passiva de Deus a seu bel prazer e passa da atividade meritória total para a passividade total. Criou um pensamento para apaziguar um sentimento. Esta descoberta pessoal é absolutizada e aplicada a tudo.

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48 compreendido a partir do seu objeto, qual seja, a cruz. Intellectus é, então, a sabedoria da

cruz. Ou seja, intellectus não é uma faculdade humana, mas a capacidade de pensar a partir do

centro teológico que é a cruz. Para Lutero a pergunta chave é: com qual pano de fundo o texto

bíblico é lido? Qual é o critério para a leitura e interpretação da Escritura? Lutero abdica da

leitura filosófica da Bíblia e afirma que a teologia tem a sua própria linguagem para ler a

Bíblia.69

Também no conceito de Deus Lutero se afasta do escolasticismo. Passa do conceito de

Deus que, em sua vontade suprema, tem o papel de ser o Criador e Juiz impiedoso do mundo;

que aceita a justiça humana nas questões da salvação; e que faz da graça um adendo salvador

para uma concepção de Deus misericordioso e justo. Justiça não no sentido de mérito

adquirido, mas no sentido de que Deus atribui justiça ao ser humano pecador pela fé em

Cristo, ou seja, o ser humano é agraciado por uma justiça alheia e não produzida por ele

próprio. Esta percepção é importante porque as práticas pastorais aprendidas no convento,

baseadas em obras meritórias para agradar a Deus, não foram capazes de diminuir a percepção

da ira julgadora de Deus. (BRENDLER, 1983, p. 49-51).70

Da nova exegese e do novo conceito de Deus decorre o ponto nevrálgico para Lutero no

debate entre Via Antiqua e Via Moderna: o tema da graça. Conforme Ebeling (1986, p. 72)

para a teologia escolástica, amparada no conceito de habitus de Aristóteles, a graça é um

“habitus que aperfeiçoa o ser humano em suas capacidades anímicas, como suma das virtudes

teológicas fé, amor e esperança”71; Lutero, no Debate sobre a Teologia Escolástica (ObSel,

1.17 [1517]) afirma que “não nos tornamos justos por realizarmos coisas justas; é tendo sido

feitos justos que realizamos coisas justas.” A ação justificadora é única e exclusiva de Deus.

O problema não é, para Lutero, a repetição do hábito em si pela pessoa, mas sua intromissão

69 Faço a observação, com Ebeling (1986, p. 69), que Lutero não briga diretamente com Aristóteles, mas sobre o uso que se faz de Aristóteles na teologia. “Sua luta contra Aristóteles é luta a favor do raciocínio teológico correto. Por isso, o verdadeiro acesso às suas idéias não se dá através de invectivas antiaristotélicas de caráter geral, e sim pela compreensão dos contextos teológicos concretos em que o uso de formas aristotélicas de pensamento se torna fatal.” Brendler (1983, p. 50-53, 67, 72-73) afirma que Lutero na disputa com a escolástica propõe uma nova exegese. Esta tem características cristocêntricas, estabelece a diferenciação entre lei e evangelho e recusa a filosofia como método para leitura do texto bíblico. Por esta nova exegese redefine conceitos teológicos e leva em consideração as suas experiências de vida (Anfechtungen), como supervisor da ordem dos agostinianos (eleito em 1515), como professor na universidade de Wittenberg, como pároco e como cura d’almas. A exegese escolástica, ao contrário, era determinada por 4 passos (BRENDLER, 1983, p. 54-56): a) compreensão literal do texto bíblico; b) sentido alegórico; c) sentido tropológico ou moral; d) sentido anagógico. O objetivo da exegese escolástica é perguntar o que o texto significa para a igreja, o indivíduo e sobre o seu futuro. 70 Mais adiante retomamos esta temática. 71 Exemplo clássico: é “tocando cítara que a pessoa se torna tocador de cítara” (EBELING, 1986, p. 72). Brendler (1983, p. 50) afirma que a escolástica crê que o ser humano não é totalmente guiado pela graça divina, sendo portador de um livre arbítrio que lhe possibilita escolha (ou ao menos exercer influencia) entre a salvação e perdição eternas.

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49 no tema da graça.72 O perigo está na proximidade do conceito da graça com o conceito

aristotélico de virtude e consiste em conceber que pelo hábito seja possível criar uma virtude

que pode gerar o mérito da graça. Some-se a isto, conforme Lutero, uma incapacidade da

teologia e das pessoas de estabelecer diferenciação clara entre o aspecto moral e o aspecto

teológico (EBELING, 1986, p. 72). Por isso uma nova exegese, cristocêntrica, que se afasta

da filosofia escolástica, que pauta a redefinição de conceitos como Deus, justiça, graça, ser

humano, ... é decisiva para a teologia de Lutero.

Embora seja necessário reconhecer que a Via Moderna tenha influenciado o pensar

teológico de Lutero,73 também é necessário registrar que ele foi criando independência em

relação ao pensar teológico escolástico. Na questão da graça, especificamente, apoia-se em

Agostinho e, sobretudo, em Paulo. Afirma a radicalidade da ação graciosa de Deus, nada

podendo o livre arbítrio humano em relação a Deus (BRENDLER, 1983, p. 95-100). Esta

dinâmica, aliás, é comum: Lutero bebe de diferentes fontes e correntes teológicas mas se

mantém livre em relação a elas na sua reflexão.74

2.1.2 João Wyclif e João Hus75

De forma mais sucinta queremos analisar o movimento desencadeado por dois nomes:

João Wyclif (morto em 1384) e João Hus (morto em 1415). A importância destes está no fato

de que apresentam uma resistência à igreja institucional e sua prática com temas que serão

retomados por Martim Lutero. Mas não são acolhidos integralmente porque não se

aproximam da sua compreensão de Justificação pela Fé. Todavia, contribuíram na elaboração

de seu pensar teológico.

Wyclif e Hus são frequentemente apresentados como pré-reformadores. Assim os

entendemos. Mantemos a unidade dos nomes por considerarmos que Hus dá continuidade à

obra iniciada por Wyclif. 72 Lutero considera a repetição um exercício bom para as coisas do cotidiano, inclusive para a moral. Seu limite está no tocante ao aspecto da graça. A própria teologia escolástica fazia aqui uma distinção falando de habitus acquisitus – um hábito adquirido – e habitus infusus – um hábito infuso. É este último que trata do tema graça. (EBELING, 1986, p. 72). 73 Não é objetivo desta dissertação pesquisar as vertentes do pensamento de Lutero. Sobre o tema veja GARCÍA e DOMÍNGUEZ, 2008, p. 27-47; BRENDLER, 1983, p. 36-37. 74 Febvre (2012, p. 58ss), como vimos, é radical: para Lutero interessa somente o seu próprio pensamento. O que é uma crítica exagerada. 75 Especialmente em relação a Hus e os hussitas veja também BRENDLER, 1983, p. 189ss. Lutero reconhece estar seguindo passos de Hus. Sabe que sua reivindicação não foi aceita. Por isso se vê como em espelho, pois a situação em relação ao poder da Igreja pouco ou nada mudara.

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Wyclif atacou a cristandade de seus dias denunciando os sacerdotes de ‘ladrões [...] raposas malignas [...] glutões [...] demônios [...] macacos’ e os curas de ‘rebentos estranhos, não arraigados à vinha da igreja’. O papa era o ‘vigário principal do demônio’, e os mosteiros, ‘antros de ladrões, ninhos de serpentes, lares de demônios vivos.’ (RUPP, E. Gordon. Christian Doctrine from 1350 to the Reformation. In: CUNLIFFE-JONES, Hubert (ed) A history of Christian Doctrine, 1978, p. 292; WYCLIF, John. English Works. F. D. Matthew (ed), 1880, p. 96-104 e 477, apud GEORGE, 1993, p. 38).

A chave da questão está no conceito de Igreja de Wyclif. Esta é o corpo predestinado de

eleitos e não a igreja universal com seus fiéis espalhados por toda a terra como sustentavam

os conciliaristas. Wyclif afirmava que a igreja visível não podia ser identificada com a

verdadeira igreja por contar entre seus membros os réprobos e os redimidos. João Hus a

define assim: A unidade da Igreja Católica reside no vínculo da predestinação, visto que cada um de seus membros está unido ao outro pela predestinação, e na meta da bênção, visto que todos os seus filhos estão, no fundo, unidos em bênção. (HUS, John. “On the Church”, In: OBERMAN, forerunners, p. 218, apud GEORGE, 1993, p. 38).

Para Wyclif (De Ecclesia. LOSETH, Johann [ed], 1886, p. 8, apud GEORGE, 1993, p.

39) a igreja está dividida em três partes: a igreja triunfante no céu, a igreja militante na terra e

a igreja adormecida no purgatório. Como joio e trigo se misturam na igreja, ninguém sabe

quem é quem nesta vida e nada (nem cargo eclesiástico) pode oferecer garantias. Quem está

na igreja também pode ser réprobo. “Portanto, era possível estar na Igreja sem ser da Igreja.”

Isto valia inclusive para o papa que, em caso de conduta réproba, não precisava ser obedecido.

Ou seja, a predestinação desmoraliza a eclesiologia por completo.

Wachholz (2010, p. 29) também atribui a Wyclif resistência quanto à doutrina da

transubstanciação na Santa Ceia aprovada no Quarto Concílio de Latrão (1215) em favor da

presença real de Deus na Santa Ceia. Na doutrina da transubstanciação “pão e vinho

desaparecem quando da celebração da Ceia, transformando-se esses em corpo e sangue,

respectivamente”. Para Wyclif “o corpo de Cristo se une ao pão, sem que esse deixe de ser o

que era antes. O corpo e o sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes, de maneira

‘sacramental’ e ‘misteriosa’, mas o pão e o vinho igualmente estão presentes.”76

Este pensar de Wyclif na Inglaterra impulsionou Hus na Boêmia. Este, até certo ponto

independente de Wyclif, enfatizava “a pregação, o estudo das Escrituras e a eliminação dos

abusos clericais” (GEORGE, 1993, p. 39). Enquanto Wyclif ensinava que os sacramentos

oficiados por um sacerdote pecaminoso não tinham eficácia, Hus ensinava que os sacerdotes e

76 Wachholz (2010, p. 29) apresenta o pensamento teológico de Wyclif em três pontos: a) a questão do senhorio, em que consiste? Combatia como ilegítimas as autoridades eclesiásticas que se interessavam mais por cobrar imposto do que servir. Entre elas o papa; b) valorização da Escritura em detrimento da tradição; c) compreensão da real presença de Deus na Santa Ceia em detrimento da compreensão da transubstanciação.

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51 papas perversos não precisavam ser obedecidos. A autoridade do papa só é válida se ele não

se afasta da lei do Senhor Jesus Cristo (THOMSON, Harrison [ed]. Magistri Johannis Hus

Tractatus de ecclesia, 1956, p. 169, apud GEORGE, 1993, p. 39). Vale para todos o princípio:

“pelos frutos os conhecereis” (Mateus 7.20), pois também o papa está submetido à autoridade

da Escritura.

Hus não quis abolir a igreja institucional, mas quis a reforma da Igreja com base no

exemplo de Cristo e na simplicidade apostólica. Tanto Wycliffe quanto Hus foram reformadores essencialmente morais, tendo usado o conceito da predestinação para minar as reivindicações eclesiásticas de uma hierarquia corrupta. O apelo deles à igreja invisível, como também sua avaliação das Escrituras como norma superior de doutrina, proporcionaram uma alternativa crítica para o curialismo e para o conciliarismo. (GEORGE, 1993, p. 39).

Wyclif, considerado herege após sua morte pelo Concílio de Constança, foi

desenterrado e seus ossos queimados. João Hus foi condenado à fogueira como herege.

São fartos os temas assinalados por esses dois pré-reformadores e que, em Lutero,

retornam à pauta de debates. Entre estes temas destacamos: a autoridade da Escritura ante a

autoridade do papa e da tradição77; a doutrina da real presença na Santa Ceia e a relativização

do poder da Igreja, bem como de práticas pastorais.

2.2 MARTIM LUTERO E O SEU CENTRO TEOLÓGICO: A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ

A Reforma tinha que acontecer no século XVI. Naquele momento histórico houve uma

conjugação de fatores políticos, econômicos, sociais e culturais que criaram ambiente propício

para a Reforma78. Em Lutero temos questões de interesse teológico que se somam a questões

de interesse ideológico dos príncipes, da nobreza e do povo – entre elas um desejo de

77 Veja também LIENHARD, 1998, p. 280ss. 78 Veja a respeito em BRENDLER, 1983, p. 101ss. Brendler apresenta conflitos sociais de diferentes setores da sociedade resultantes da crescente diferenciação entre ricos e pobres impulsionada pelo capitalismo emergente. Estes conflitos revelam ser esta uma sociedade doente, na qual algo não está bem e/ou são resultado de uma mudança de mentalidade à medida que as pessoas criam uma nova imagem de si, do mundo ao redor de si e do seu lugar no mundo. A segunda hipótese impulsiona o indivíduo: na relativização de costumes morais, de uma religiosidade mais introspectiva e, por consequência, as pessoas buscam em si a culpa pela situação vivida. Lutero tem participação na constituição deste segundo modelo. Brendler conclui: o movimento da Reforma em Lutero obteve êxito por conta da conjuntura de crise da sociedade no início do século XVI, o que não aconteceu com os outros movimentos pré-reformadores.

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52 independência em relação a Roma.79 Embora Lutero permaneça fiel aos princípios teológico-

cristãos, é inegável que sua teologia funciona como fermento nos interesses ideológicos da

burguesia, catalisando-os em movimentos de resistência a Roma.80 O povo, por sua vez,

experimenta a vulnerabilidade social que se mostra na forma de angústia diante de temas

como a morte.

Por outro lado a sociedade está em movimento na medida em que busca respostas

pastorais capazes de tranquilizar consciências, almas e vidas.81 Neste contexto é que surgem

práticas pastorais as mais diversas, cujo objetivo era aplacar a ira de Deus. Também Lutero

formula esta preocupação na busca do Deus misericordioso. Em princípio é a mesma

preocupação. Mas a resposta para a pergunta é diferente. Enquanto a Igreja e a prática

religiosa da época visavam aplacar a ira de Deus por obras meritórias, Lutero enfatiza que a

confiança não pode ser colocada na obra do ser humano, mas na obra penitencial de Deus.

Dreher, (1996, p. 42) escreve assim: Lutero descobriu que o preparo criterioso a que se submetia para realizar a satisfação e a boa obra após haver recebido o sacramento da penitência – prática a que se submetia semanalmente – era problemático, pois levava-o a colocar toda a sua confiança na consecução da salvação nele próprio e não em Deus. Para diminuir a ira de Deus por causa do pecado, o ser humano procura reconciliar-se com Deus através de sua obra penitencial. Ao proceder assim, Lutero descobriu que não conseguia se aproximar de Deus. Apesar da absolvição, sabia-se cada vez mais distante de Deus e mais enredado no pecado.

Pode parecer pitoresco, mas esta angústia se revela na vida de Lutero durante os

acontecimentos em Stotternheim82 quando, surpreendido por um temporal, pede pela ajuda de

Santa Ana e, em troca, se tornaria monge. O temor da morte estava presente. Mas também a fé

no Deus cuidador e salvador. “Martim Luder passou pela experiência da total dependência de 79 A cada vez que houvesse troca de bispado, enormes quantias de dinheiro e ouro tinham que ser pagas à corte de Roma. (FEBVRE, 2012, p. 99). Huten (de onde provém o nome Hutenitas – um grupo nacionalista resistente à Roma), no contexto da perseguição de Roma a Lutero, afirma: “se o perseguiam, era por ser Lutero um alemão que, erguendo-se, perigosamente, à porta da Alemanha, pretendia proibir sua frutífera exploração aos italianos.” (apud FEBVRE, 2012, p. 169-170). 80 Brendler (1983, p. 205–209) afirma que a aproximação entre a teologia de Lutero e a ideologia se dá em 2 níveis principais: a) Lutero mantém a hierarquização político-social do feudalismo tardio e o faz com o objetivo de conclamar as autoridades (reis e príncipes) e instituições da época a fazer frente ao poder do papado. Devem assumir a função que lhes compete de ordenar a sociedade; b) no relacionamento do indivíduo com a sociedade – a Justificação pela Fé somente aproxima o ser humano da palavra de Deus, a Bíblia, e o distancia dos mecanismos de controle da sociedade, fazendo com que assuma diante deles uma postura mais crítica. Os problemas que dizem respeito a todas as pessoas precisam ser resolvidos pela classe dirigente da sociedade. Esta é sua função. Brendler afirma que o melhor exemplo desta aproximação é o texto À Nobreza da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão – 1520. (texto disponível em ObSel, 2.277 – 340 [1520]). 81 Não é objetivo deste texto investigar os motivos pelos quais os movimentos pré-reformadores não conseguiram levar a cabo uma reforma na sociedade e igreja antes do século XVI ou, em contrário, avaliar os motivos que fizeram em Lutero haver certo êxito reformatório – embora não total. Veja DREHER, 1996, p. 7 – 13 e BRENDLER, 1983, p. 186 – 216. 82 Lutero havia ingressado no curso de direito. No retorno de uma viagem a Mansfeld foi surpreendido por um temporal em Stotternheim e um raio cai bem perto dele. É quando invoca o nome de Santa Ana, a padroeira dos mineiros e necessitados, e clama por ajuda. Veja DREHER, 1996, p. 24-25; BRENDLER, 1983, p. 25.

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53 Deus, sem que tivesse os meios para alcançar sua graça e misericórdia.” (DREHER, 1996, p.

25). Ou seja, Lutero experimentou o cuidado de Deus sem ser por obra meritória. Registre-se,

todavia, que isto é especulação tardia. De fato Lutero ingressou no convento agostiniano de

Erfurt em 1505. O convento era o lugar para onde iam os que perseguiam a salvação,

estratégia adotada por muitos à época. Em 1509 Lutero assume aulas de Bíblia, interpretando

os salmos entre agosto de 1513 e outubro de 1515. É no contexto acadêmico que são

publicadas as 95 teses83 de 1517 que tem como pano de fundo uma questão que o envolvia

como cura d’almas: os abusos da igreja (particularmente as indulgências) inibem o verdadeiro

arrependimento e penitência dos fiéis. Lutero faleceu a 18 de fevereiro de 1546, em Eisleben e

foi sepultado em Wittenberg.

O centro da vida religiosa do século XVI é a teologia e prática da penitência. Esta, como

vimos, tem seu centro na prática de obras meritórias. Igualmente a pergunta angustiante se

colocava: como saber se fiz o suficiente para aplacar a ira de Deus? Dreher (1996, p. 42)

afirma que a busca pelo Deus misericordioso é a motivação maior de Lutero em toda a sua

construção teológica. Esta pergunta não era uma pergunta só de Lutero, mas de toda a Igreja.

O diferencial está em que a busca pelo Deus misericordioso encontrou em Lutero caminho

diferente. Na tese 62 Lutero afirma (ObSel, 2.27 [1520]): “o verdadeiro tesouro da Igreja é o

santíssimo Evangelho da glória e graça de Deus”. Temos aqui uma inversão da perspectiva

confiante em Deus: se para conseguir aplacar a ira de Deus, conforme dinâmica penitencial

medieval, a pessoa pratica obras meritórias, agora é convidada a confiar na graça de Deus, por

fé.84 (DREHER, 1996, p. 42).

Tal concepção é possível por que Lutero, por nova exegese, chegou a novas conclusões

em relação aos temas religiosos candentes (Deus, fé, justiça, ...). Exemplo temos na

compreensão do termo justiça: justiça é entendida pela filosofia e teologia escolásticas como

uma qualidade da pessoa, sendo dela e produzida por ela (ALTHAUS, 2008, p. 244). Em

Lutero justiça é um ato de Deus que imputa e reconhece o pecador como justo. Deus o faz por

amor a Cristo. É, portanto, uma justiça dada a nós, alheia, “extra nos”. Ele afirma (WA

39/1,83; 1,87 e 40/2.35, apud ALTHAUS, p. 244, notas 16, 17 e 18, respectivamente):

83 Febvre (2012, p. 112-116) afirma que antes de Lutero outros já haviam gritado contra as indulgências no sentido de que o perdão não poderia ser comprado. Nisto não teria sido original. Nem a bula papal pode ter impulsionado seu intento. Febvre atribui a rápida multiplicação das teses ao “homem alemão”, ou seja, uma nação que está angustiada e em busca de paz. As teses vêm ao encontro da angústia vivida por uma sociedade. 84 Na interpretação à Epístola aos Romanos (1516/1517) Lutero afirma: “a justiça de Deus é, pois, a causa da salvação. E aqui, mais uma vez, não se deve entender por ‘justiça de Deus’ aquela através da qual a pessoa é justa em si mesma, mas, sim, aquela através da qual somos justificados a partir do próprio Deus, o que, por sua vez, acontece mediante a fé no Evangelho.” (ObSel, 8.259 [1515/1516]).

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- Agora não há nenhum pecado (...) imputado a nós, como se não houvesse mais pecado (estão) removidos pela remissão; - Nós somos considerados justos por causa de Cristo; - Tu és justo por misericórdia e piedade. Isso não é minha própria condição ou uma qualidade do meu coração, mas algo fora de mim mesmo, isto é, misericórdia divina.

Esta justiça é passiva porque nós somente a recebemos (WA 39/1,447 e 40/1,41, apud

ALTHAUS, 2008, p. 245): “Assim eu sou justificado como se eu fosse uma peça de material

e eu sofro; eu não faço nada”;85 ou ainda: “A justiça que vem de nós não é justiça cristã. A

justiça cristã é oposta: ela é passiva e nós a recebemos.” Dreher (1996, p. 42s) conclui: Justiça de Deus passou a ser a justiça com a qual Deus se compadece do ser humano pecador e o presenteia com sua justiça. Os pecadores se apropriam dessa justiça pela fé. Não por intermédio de boas obras, tais como indulgências e satisfação, pois Deus não se compadece de justos, mas de injustos, de pecadores que creem.

E (WA, 2,14[1518], apud DREHER, 1996, p. 42-43): Nenhum preparo te torna apropriado, nenhuma obra te torna digno para a recepção, mas somente a fé, pois somente a fé na palavra de Cristo justifica, vivifica, dignifica e torna apto, e sem ele qualquer outro esforço é tão-somente sinal de presunção ou de desespero. Pois o justo não vive por causa de seu preparo, mas por causa da fé. Por isso de modo algum deves duvidar de tua indignidade, pois é justamente por causa disso que te diriges ao sacramento, porque és indigno, para seres declarado digno e justo por aquele que busca tornar bem-aventurados os pecadores e não os justos. Se, porém, creres nas palavras de Cristo, honrá-lo-ás e, com isso, és justo e digno da vida eterna.

Registre-se com clareza que em Lutero é o ato de Deus fora de nós que justifica o ser

humano e que esta justiça é recebida pela pessoa que crê somente pela fé. Em momento algum

Lutero se volta contra a ação humana. Interessa-lhe, antes, duas outras coisas: a primeira é

deixar claro que a obra do ser humano não tem capacidade justificadora do ser humano diante

de Deus (veremos mais adiante que esta é importante na perspectiva de fruto da fé) e a

segunda a qualidade da obra definida pela fé: Sem a fé, a obra dá chance a que o ser humano se vanglorie diante de Deus. Ele se coloca no lugar de Deus. Na fé, porém, reconhece que Deus é Deus e, inclinando-se perante ele, realiza boas obras de gratidão. A fé produz ‘amor, paz, alegria e esperança’. (WA, 6,206 [1518], apud DREHER, 1996, p. 43).

De forma concisa a Confissão de Augsburgo (CA)86 define a Justificação pela Fé em

seus primeiros sete artigos. Os artigos de 1 a 4 assinalam que o ser humano é afastado de

85 Esta concepção, embora amplamente aceita na teologia e confessionalidade luterana, não fica sem consequências. Ela gera a acusação de passividade à Justificação pela Fé e ao luteranismo. Queremos aqui manter a pergunta aberta: será realmente esta a compreensão de Lutero? Esta perspectiva “coram Deo” define a questão da justiça na Justificação pela Fé? Lutero realmente o entendeu assim, como sendo o crente um objeto passivo da graça de Deus? Na sequência do texto retornaremos ao tema. 86 A Confissão de Augsburgo (CA) é uma síntese da “nova fé” que vinha sendo confessada, resistente a Roma. Ela foi elaborada quando o imperador Carlos V convocou uma dieta imperial em 1530 na cidade de Augsburgo com o objetivo de manter o império unido diante da ameaça de invasão dos turcos. Para manter a unidade do império era preciso resolver o conflito religioso. Foi assim que o príncipe Frederico, o Sábio, solicitou uma síntese das mudanças na confissão da fé que estavam em andamento. Teólogos (Filipe Melanchton [1497-1560] à frente) prepararam este texto que ficou conhecido como Artigos de Torgau. Depois de lido, o texto foi rejeitado e os envolvidos acusados de heresia pela Igreja de Roma. Melanchton então redigiu uma defesa dos artigos com

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55 Deus pelo pecado original e que tem inclinação má. À condição humana Deus responde de

forma salvadora em Jesus Cristo, levando-o à justificação (LC 30.1ss – CA, 1530): Ensina-se também que não podemos alcançar remissão do pecado e justiça diante de Deus por mérito, obra e satisfação nossos, porém que recebemos remissão do pecado e nos tornamos justos diante de Deus pela graça, por causa de Cristo, mediante a fé quando cremos que Cristo padeceu por nós e que por sua causa os pecados nos são perdoados e nos são dadas justiça e vida eterna. Pois Deus quer considerar e atribuir essa fé como justiça diante de si, conforme diz São Paulo em Romanos 3 e 4.

O 5º artigo afirma que a justificação é comunicada aos crentes pelo Espírito Santo, por

meio dos sacramentos (LC 30.1ss – CA, 1530): Para conseguirmos essa fé, instituiu Deus o ofício da pregação, dando-nos o evangelho e os sacramentos, pelos quais, como por meios, dá o Espírito Santo, que opera a fé, onde e quando lhe apraz, naqueles que ouvem o evangelho, o qual ensina que temos, pelos méritos de Cristo, não pelos nossos, um Deus gracioso, se o cremos.

Nos 6º e 7º artigos são assinalados os resultados da graça no ser humano e na Igreja – a

graça cria no ser humano disposição em realizar boas obras (com o limite de que estas obras

não têm força salvífica, mas são resposta da fé). A respeito da obra que segue à fé se enfatiza

(LC 38.27-39 – CA, 1530): Ensina-se, ademais, que boas obras devem e têm de ser feitas, não para que nelas se confie a fim de merecer graça, mas por amor de Deus e em seu louvor. (...) Por isso não se deve fazer a essa doutrina concernente à fé a censura de que proíbe boas obras; antes deve ser louvada por ensinar que se façam boas obras e oferecer auxílio quanto a como se possa chegar a praticá-las. Pois que sem a fé e sem Cristo a natureza e capacidade humanas são por demais frágeis para praticar boas obras, invocar Deus, ter paciência no sofrimento, amar o próximo, exercer com diligência ofícios ordenados, ser obediente, evitar maus desejos etc. Tais obras elevadas não podem ser feitas sem o auxílio de Cristo, conforme ele mesmo diz em Jo15: ‘Sem mim nada podeis fazer.’

Encontramos um primeiro indicativo de resposta para a questão da passividade acima

elencada. O ser humano é justificado por Deus e, como postura inerente à justificação, pratica

boas obras em favor do seu/sua irmão/ã. Esta percepção de Lutero difere de uma prática

teológica muito popular da Igreja da Idade Média: A imitatio Christi. À imitatio Christi

Lutero responde com a fides Christi. Ocupemo-nos com a justa diferenciação.

base em documentos editados anteriormente, como os Artigos de Schwabach (1529) que eram, em verdade, um apêndice ao escrito de Lutero acerca Da Santa Ceia de Cristo. Combinados estes dois textos formam um novo, mais abrangente que se constitui em confissão de fé, não mais simplesmente uma defesa da fé. (Confira GASSMANN ; HENDRIX, 2002, p. 21-22, 42-44, 79-85; LINDBERG, 2001, p. 273ss). Os textos (a CA e a apologia) se encontram em LC, 1993, p. 17-304.

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2.3 “IMITATIO CHRISTI” E “FIDES CHRISTI”: RESPOSTAS PASTORAIS DIFERENTES PARA UMA MESMA ANGÚSTIA DE VIDA E FÉ

2.3.1 “imitatio Christi”

A obra literária “A Imitação de Cristo”87 é de autoria controversa, mas atribuída a

Tomás de Kempis (1380-1471). A obra é representativa da corrente teológico-pastoral

conhecida como Via Moderna.88 Vista em seu contexto de Idade Média, é resposta pastoral

para um tempo de angústia e medo vividos à época (como vimos no capítulo 1). O tema morte

e inferno, bem como a impotência humana diante deles, dominam a expressão religiosa do

período. Interpelada, a Igreja medieval busca respostas e orientações pastorais. A obra “A

Imitação de Cristo” é com certeza uma resposta de grande apelo popular.

Kempis estrutura sua obra em 4 livros: 1. Avisos úteis para a vida espiritual;

2.Exortações à vida interior; 3. Da consolação interior e 4. Do sacramento do altar89. Cada

livro está subdividido em capítulos e parágrafos que descrevem um caminho para uma prática

religiosa: a “imitatio Christi”.

Segundo Vannini (VANNINI, Marco. Il volto Del Dio nascosto. Milano : Mondadori,

1999, 219-220, apud TEIXEIRA, 2010), a vivência da espiritualidade de aproximação da

alma a Jesus Cristo é definida por três passos na Idade Média: a via purgativa, a via

iluminativa e a via unitiva. Esta estrutura é facilmente perceptível no texto. Cada livro trata de

uma das vias. Apresentamos a seguir destaques da obra que iluminam esta proposta de

espiritualidade90:

a) a via purgativa. Ela pressupõe um esforço da pessoa cristã para seguir a Cristo. Este

esforço baseia-se, principalmente, em realizar as virtudes de Cristo e afastar-se das tentações

do mundo. Kempis analisa temas como tornar-se igual a Cristo; valorização da espiritualidade

introspectiva; autoanulação; obediência a Deus, às Escrituras e aos mais velhos; retirar-se do 87 Obra escrita por Tomás de Kempis e originalmente publicada em latim de forma anônima no ano de 1418. Alcançou grande popularidade na Idade Média e ainda hoje é influente na espiritualidade católica. A íntegra da obra está disponível online no endereço http://www.culturabrasil.org/zip/imitacao.pdf, acesso em 10.01.2013. Lembramos que este movimento é parte da Via Moderna. 88 TEIXEIRA, Faustino. Apresentação do livro: Tomás de Kempis. A imitação de Cristo. Petrópolis: Vozes, 2009. Em 13.04.2010. disponível em http://fteixeira-dialogos.blogspot.com.br/2010/04/imitacao-de-cristo.html. Acesso em 06.10.2013. 89 O quarto livro trata do sacramento do altar e da dignidade do estado clerical. Nesta dissertação nos atemos aos três primeiros livros. 90 A indicação bibliográfica se dará na formula 1.1,1 (livro 1. capítulo 1, parágrafo numerado 1).

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57 mundo para viver uma vida virtuosa; perfeição para fugir da ira de Deus; preparar-se para o

juízo final; ... Nas palavras de Kempis: * Quem me segue não anda nas trevas, diz o Senhor (Jo 8,12). São estas as palavras de Cristo, pelas quais somos advertidos que imitemos sua vida e seus costumes, se verdadeiramente queremos ser iluminados e livres de toda cegueira de coração. Seja, pois, o nosso principal empenho meditar sobre a vida de Jesus Cristo. (1.1,1); * Quem quiser compreender e saborear plenamente as palavras de Cristo é-lhe preciso que procure conformar à dele toda a sua vida. (1.1,2); * A suprema sabedoria é esta: pelo desprezo do mundo tender ao reino dos céus. (1.1,3); * Quanto mais recolhido for cada um e mais simples de coração, tanto mais sublimes coisas entenderá sem esforço, porque do alto recebe a luz da inteligência. (1.3,3); * Não há melhor e mais útil estudo que se conhecer perfeitamente e desprezar-se a si mesmo. Ter-se por nada e pensar sempre bem e favoravelmente dos outros, prova é de grande sabedoria e perfeição. (1.2,3); * É verdadeiramente sábio aquele que faz a vontade de Deus e renuncia a própria vontade. (1.3,6); * Lembra-te sempre do fim, e que o tempo perdido não volta. Sem empenho e diligência, jamais alcançarás as virtudes. (1.25,9)

b) a via iluminativa: Cristo é o centro da fé da pessoa cristã. Esta vive para segui-lo nas

virtudes como humildade e sacrifício. Nas palavras de Kempis: * Dá, pois, lugar a Jesus e a tudo mais fecha a porta. (2.1,2) * Se houvera coisa melhor e mais proveitosa para a salvação dos homens do que o padecer, Cristo, de certo, o teria ensinado com palavras e exemplo. Pois claramente exorta seus discípulos e quantos o desejam seguir a que levem a cruz, dizendo: Quem quiser vir após mim renuncie a si mesmo, tome sua cruz, e siga-me (Lc 9,23). (2.12,4); * Converte-te a Deus de todo o coração, deixa este mundo miserável, e tua alma achará descanso. Aprende a desprezar as coisas exteriores e entrega-te às interiores, e verás chegar a ti o reino de Deus. (...) Virá a ti Cristo para consolar-te, se lhe preparares no teu interior digna moradia. (2.1,1) * Não tens aqui morada permanente (Hbr 13,14), e onde quer que estejas, és estranho e peregrino; nem terás nunca descanso, se não estiveres intimamente unido a Jesus. (2.1,3) * Quando Jesus está presente, tudo é suave e nada parece dificultoso; mas, quando Jesus está ausente, tudo se torna penoso. Quando Jesus não fala ao coração, nenhuma consolação tem valor; mas se Jesus fala uma só palavra, sentimos grande alívio. (2.8,1) * Grande arte é saber conversar com Jesus, e grande prudência conservá-lo consigo. Sê humilde e pacífico, e contigo estará Jesus; sê devoto e sossegado, e Jesus permanecerá contigo. Depressa podes afugentar a Jesus e perder a sua graça, se te inclinares às coisas exteriores; e se o afastas e o perdes, aonde irás e a quem buscarás por amigo? (2.8,3)

c) a via unitiva. Enfatiza a união da alma com Cristo. Isto é possível quando a pessoa

alcança uma “maturidade” de fé tal que é capaz de renunciar plenamente às coisas do mundo

e acolher plenamente as virtudes de Cristo. São abordados temas como obediência irrestrita;

autonegação; entrega a Cristo; vida em santidade; ... Nas palavras de Kempis: * Filho, quem procura subtrair-te à obediência aparta-se também da graça; e quem procura favores particulares perde os comuns. Aquele que não se sujeita pronta e de boa mente a seu superior, mostra que sua carne não lhe obedece ainda prontamente, mas muitas vezes se revolta e resmunga. Aprende, pois, a sujeitar-te prontamente a teu superior, se queres subjugar a própria carne, porque facilmente se vence o

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inimigo exterior quando o homem interior não está assolado. Pior inimigo e mais perigoso não tem a alma, que tu mesmo, quando não obedeces ao espírito. Se queres vencer a carne e o sangue, deves compenetrar-te do sincero e absoluto desprezo de ti mesmo. Mas porque ainda te amas desordenadamente, por isso te repugna sujeitar-te de todo à vontade dos outros. (3.13,1); * Renuncia, pois, a tudo, entrega-te dócil e fiel a teu Criador, para que possas alcançar a verdadeira felicidade. (3.1,2); * [Deus se une à alma da pessoa e ela entra em júbilo:] Falai, Senhor, que o vosso servo escuta: Vosso servo sou eu, dai-me inteligência para que conheça os vossos ensinamentos. Inclinai meu coração às palavras de vossa boca; (3.2,1). E é grande maravilha que tão sabiamente me levantais e tão benigno me abraçais, a mim, que pelo próprio peso pendo sempre para a terra. (3.8,1) [E continua:] Isto é obra do vosso amor, que me previne gratuitamente, socorrendo-me em mil necessidades, guardando-me de males, para bem dizer, infindos. (3.8,2). Não há, pois, santidade, Senhor, se retirais vossa mão. (3.14,1)

A obra conclama ao seguimento a Cristo propondo um caminho de piedade individual,

introspectiva, cristocêntrica, que incita à busca das virtudes (não a graça incondicional) e

abandona o mundo para a obtenção da paz à alma. Para que a alma possa se unir a Cristo é

preciso que a pessoa siga o caminho proposto pela espiritualidade da época: a via purgativa, a

via iluminativa e a via unitiva. Ou seja, numa relação de causa e efeito a pessoa alcança a paz

se for disciplinada no desprezo a toda inclinação ao mal e assumir fielmente todas as virtudes

de Cristo, imitando-as. O princípio escolástico facere quod in se est (faz o melhor que podes)

é o que rege esta espiritualidade.

2.3.2 “fides Christi”

Como dissemos, a imitatio Christi (imitação de Cristo), como movimento religioso,

havia conquistado grande enraizamento social no século XVI e se mantém vivo até hoje. Este

movimento foi uma das formas que a escolástica encontrou para tornar palpável e relevante

no cotidiano das pessoas a reflexão teológica como resposta para uma época de crise

existencial. Lutero não acolhe a ideia da Imitação de Cristo na forma como era difundida pela

escolástica. Lutero acolhe muito mais o caminho da fides Christi91.

91 A expressão latina é, em muitos textos, traduzida como “fé em Cristo”. Cremos que a tradução do genitivo latino “Cristi” é melhor expresso com a formulação “fé de Cristo”, ou “fé do Cristo”. Há que se reconhecer que, etimologicamente, há uma diferença significativa de conteúdo ao se declarar “vivo minha fé em Cristo” ou “vivo a fé do Cristo”. Veremos, ao longo do texto, que Lutero advoga a tese do “Cristo vive em mim” (Gl 2.20). Ao traduzir a expressão “fides Christi” como “fé do Cristo” defendemos a tese de que a intenção do texto de Paulo é enfatizar que “a fé do Cristo é viva em mim” e não simplesmente que “tenho fé em Cristo”.

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Lutero trabalha este tema na interpretação do texto de Gálatas92. Pano de fundo do texto

é a disputa teológica com o movimento da escolástica que advoga ter o ser humano

capacidade para contribuir, por seu querer e força, no que diz respeito à justificação perante

Deus, através da realização de obras meritórias. Lutero, por sua vez, advoga a tese de que a

justificação do ser humano é ação exclusiva de Deus, “extra nos”, fora de nós e que nós

somos tornados participantes desta Justificação pela Fé. A acusação de Lutero à teologia

escolástica é a de que esta insere pensamento humano no divino. Isto é, insere pensar próprio

na ação justificadora de Cristo. A imitatio Christi, com sua proposta de fé introspectiva e de

busca pelas virtudes de Cristo é um exemplo deste pensar. Ou pior ainda: a teologia

escolástica não reconhece Cristo (1 Coríntios 2.8) por propor a difusão da lei, afirmando que a

lei precisa ser cumprida para gerar mérito salvífico. O cumprimento da lei é, pois, a obra a ser

realizada.93 Obra amorosa que, se feita em favor do próximo, é obra boa que gera/produz

justificação. Assim a Igreja não reconhece Cristo e assume a dinâmica de Caim e Abel: Caim

continua matando Abel por seu sacrifício não ser aceito por Deus (Gênesis 4). Este jeito da

igreja é definido como sendo obra e tradição humana. (ObSel, 10.29 [1535]). A imitatio

Christi, com a proposta da fé introspectiva e busca das virtudes, é exemplo deste pensar e

agir.

Lutero (ObSel, 10.29-33 [1535]) inicia a reflexão analisando o tema da justiça e da lei.94

Combate a ideia de que o cumprimento da lei pode gerar mérito justificador perante Deus, ou

seja, o cumprimento da lei como forma de produzir justiça. Afirma que há diferentes justiças e

que são conhecidas das pessoas. Existe a justiça política (imperador, príncipes, ... lidam com

ela), a justiça cerimonial (ensinada através de tradições humanas – papa, pais, professores, ...

para a disciplina dos costumes e observações morais, não para a obtenção da graça de Deus),

a justiça da lei ou do decálogo (Moisés). Afirma que todas estas justiças são ativas e têm sua

origem nas pessoas. Em contraposição a estas justiças define a “justiça da fé”: esta tem sua

origem em Deus e é acolhida de forma passiva pelo ser humano, pois este somente deixa Deus

operar nele. Nós não temos esta justiça, ela é operada em nós pelo Espírito Santo e por Cristo.

92 ObSel 10.15-558 [1535]. Lutero fez preleções sobre Gálatas entre 3 julho e 12 de dezembro de 1531 na Universidade de Wittenberg. O texto ao qual nos referimos são anotações destas preleções transcritas por Jorge Rörer (1492-1557), Caspar Cruciger (1504-1548) e Veit Dietrich (1506-1549). Lutero reconheceu que as ideias do texto são suas e escreveu uma introdução para a publicação. 93 Paulo afirma (Romanos 3.20): “ninguém será justificado diante de Deus por obras da lei.” Ao que Lutero (ObSel 8.131 [1546]) diz: “daí podes ver agora que os disputadores acadêmicos e sofistas (escolásticos da Idade Média) não passam de sedutores, ao ensinarem o preparo para a graça através de obras.” 94 Não vamos aqui detalhar o pensamento de Lutero acerca da relação Lei x Evangelho. Veja EBELING, 1986, p. 87-96.

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60 É, pois, uma dádiva divina95. Quanto à lei, ela é importante para dar ciência do pecado, mas

não agrega em graça. Há que se distinguir uma lei da outra e não confundir justiça ativa e passiva, a fim de que não sejam confundidas conduta e fé, obras e graça, política e religião. Ambas as justiças são necessárias, mas cada uma deve conter-se dentro de seus limites. A justiça cristã pertence ao novo homem, mas a justiça da lei, ao velho, que nasceu de carne e sangue. (ObSel, 10. 32 [1535])

Ao se colocar entre aqueles que ensinam a justiça da fé, Lutero se distancia de

Kempis96. Kempis está na categoria da justiça da lei. Conclui-se que ambos têm princípios de

caminhada distintos: um na justiça ativa, outro na justiça passiva. Logo, são levados a

destinos distintos: um à busca desesperada pela paz e graça de Deus por esforço meritório de

vida e fé interior, outro à acolhida passiva da graça de Deus pela fé.

Lutero (ObSel, 10.49 [1535]) reconhece que não é tarefa fácil compreender a justiça da

fé,97 esta que traz a verdadeira paz e tranquilidade às consciências no momento limítrofe da

vida e que é dádiva de Deus para nós. Sabe que é mais fácil apelar ao livre arbítrio e esforço

próprio para conquistar paz e tranquilidade às consciências. Do esforço de muitos surgiram

inclusive ordens religiosas que, segundo Lutero, são em vão por se fundamentarem em

pensamento humano, não divino. É o desespero por encontrar graça e paz num mundo de

angústia por mérito e esforço humano98. Kempis está neste grupo. Lutero rejeita

veementemente qualquer forma de obter a graça que não seja dádiva de Cristo. Ao comentar

Gálatas 1.15-17, especificamente a frase “Chamou-me pela sua graça” diz (ObSel, 10.89

[1535]): Olha bem com que cuidado fala o apóstolo (Paulo): ‘Ele me chamou’. Como? Seria por causa de meu farisaísmo, de minha vida irrepreensível e santa ou por causa das minhas orações, dos meus jejuns e das minhas obras? Não! Muito menos, por causa das minhas blasfêmias, perseguições e violências. De que modo, então, [ele me chamou]? Somente por graça.

95 Lutero exemplifica o que diz com a metáfora da seca e da chuva: a pessoa é como a terra árida e seca que, por si só, não pode produzir frutos. Ela necessita ser irrigada pelas benesses dos céus, a chuva, para produzir frutos. São dois mundos, o celeste e o terreno: a justiça da lei trata do mundo terreno e nesta lei anima a boas obras que, sozinhas, sem influência do mundo celeste, não conseguem produzir justificação. Pois no novo mundo está a ausência do pecado, morte, ... e a presença da paz, alegria perfeita, justiça, graça, vida e salvação. Virtudes do Reino que são inerentes à presença de Cristo. (ObSel, 10.31-33 [1535]). 96 Lutero afirma que a justiça ativa é ensinada por todos os que não conseguem perceber a justiça passiva de Deus, entre eles, os papistas, sectários, turcos, judeus, ... e (incluímos) Kempis. 97 Febvre é um destes autores que pensa o tema de forma diferenciada. Para ele Lutero precisa encontrar resposta para suas angústias. Como não o consegue nas práticas pastorais propostas pela igreja e teologia da época, cria seu próprio caminho. Este é fruto das angústias pessoas que vive. Por isso afirma que a Reforma já era, em Lutero particularmente, uma verdade no ano de 1511. (FEBVRE, 2012, p. 33). 98 Paz é, no mundo, “a paz dos bens materiais e do corpo, para que vivamos alegres e tranquilos na carne. A graça do mundo nos permite desfrutar de nossa propriedade e não nos priva de nossas posses. Na aflição e na hora da morte, porém, a graça e a paz do mundo em nada nos podem ajudar e não podem libertar-nos da aflição, do desespero ou da morte. Mas, quando a graça e a paz de Deus estão presentes, o homem é forte para carregar tanto a cruz quanto a paz, tanto a alegria quanto a tristeza.” (ObSel, 10.49 [1535])

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A função da lei (dar ciência do pecado) e limite (não produz justificação) estão

claramente colocados. Mas o debate ainda avança e, ao avançar, estabelece ainda mais uma

clara diferenciação entre imitatio e fides Christi. E esta está na compreensão de que o ser

humano morre com Cristo para a lei e ressuscita com ele para Deus.

Ao comentar Gálatas 2.19 (ObSel, 10.169 [1535]) Lutero acolhe a concepção paulina de

que o ser humano morre com Cristo para a lei e ressuscita com ele para Deus. Não

literalmente, mas espiritualmente – por graça e fé. Assim, participante da cruz e ressurreição

de Cristo, a pessoa é tornada participante da morte e da vitória de Cristo. Vamos nos ater a

estes dois pontos mais atentamente.

Por graça e fé somos tornados participantes da cruz de Cristo e, assim como a morte, o

diabo e o mal perderam a força e poder sobre Cristo, também o perderam sobre a pessoa.

Escreve Lutero (ObSel, 10.169 [1535]): Por isso, como o próprio Cristo foi crucificado para a lei, o pecado, a morte, o diabo, de modo que estes não têm mais direito algum sobre ele, assim, também eu, tendo sido crucificado com Cristo em espírito, sou crucificado e morro para a lei, o pecado etc, de maneira que esses inimigos não têm mais direito algum sobre mim, mas são crucificados e mortos para mim.

A intenção teológica do enunciado está clara: somos tornados herdeiros da cruz de

Cristo e da sua vitória sobre o mal. O fato pitoresco do não morrer literalmente estabelece

clara distinção entre as compreensões de Kempis e Lutero quanto à imitatio Christi. Diz

Lutero (ObSel, 10.169 [1535]): Mas Paulo não fala, aqui, no sentido de ser crucificado com Cristo pela imitação ou exemplo, porque imitar o exemplo de Cristo é, também, ser crucificado com ele. (...) No entanto, Paulo fala, aqui, daquela sublime crucifixão pela qual o pecado, o diabo e a morte são crucificados em Cristo, não em mim. Aqui, Cristo faz tudo sozinho, mas como crente sou crucificado com Cristo pela fé, de maneira que todos esses inimigos são mortos e crucificados também para mim.

Ou seja, a proposta da imitatio, se levada à radicalidade, não pode ser cumprida pela

pessoa. Entra em caminho que nega a fé e é declaradamente suicida. A fé, por sua vez, faz

reconhecer que Cristo age em favor da pessoa vencendo a morte e o mal.99

Por outro lado, por graça e fé somos tornados participantes da vitória de Cristo e por ela

Cristo vive em nós. Esta é a justiça cristã: o Cristo vivo em nós. O pressuposto é que nós, por

nós mesmos, nada podemos diante de Deus. Logo, Cristo e minha consciência devem ser um

só corpo (ObSel, 10.170 [1535]). Lutero prega a morte do “eu”, este “eu” voltado para a lei,

que é impelido a praticar obras meritórias e que está separado de Cristo. Na ausência deste

“eu”, Cristo vive em mim (Gl 2.20) (ObSel, 10.171 [1535]): 99 Remetemos de novo à obra de Ebeling (1986, p. 87-96), quando Lutero aprofunda a relação lei x evangelho. Aqui nos é o suficiente apontar a distinção feita: com Cristo morremos para a lei, ela nada pode sobre nós, e ressuscitamos para Deus, conforme ObSel, 10.169 [1535].

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Cristo é minha forma que orna a minha fé, assim como a cor e a luz ornam a parede. (...) O próprio Cristo, na verdade, é a vida que agora vivo. E assim, Cristo e eu, neste sentido, agora, somos um.100

Esta união com Cristo traz mais uma consideração imediata: a realização da boa obra

como fruto da fé (não como forma de obter vantagem meritória como na escolástica). Lutero

trata este tema da união com Cristo na perspectiva da justificação, da pessoa interior, pois

sabe que exteriormente permanece a velha pessoa e que a lei exerce influência sobre ela101.

Mas esta perspectiva do homem interior unido a Cristo se mostra/espelha para dentro da

situação de vida exterior (da lei) (ObSel, 10.171-173 [1535]): sendo um com Cristo, recebo

dele as benesses da paz, graça, justiça, a vida, ... que se mostram no cotidiano da vida, em

forma de obras que são fruto da justiça (não para produzir justiça), pois somos um com Cristo

e Cristo vive em nós (Gl 2.20).102

A tese da união com Cristo nos conduz a mais uma distinção entre a imitatio e fides

Christi e que contribui na ressignificação da imitatio Christi a partir da ótica de Lutero: o

lugar do amor. Para a escolástica em geral e para o movimento da imitatio Christi em

particular, o amor tem capacidade para justificar. Baseiam-se na passagem de Gálatas 6.5.

Sobre este tema Duns Scoto103 (ObSel, 10.137 [1535]) teria afirmado: Se o homem pode amar uma criatura, o jovem, uma jovem, o avarento, o dinheiro, que são bens menores, pode, também, amar a Deus, que é um bem maior. Se ele, pelas suas forças naturais, tem amor à criatura, tem muito mais amor ao Criador.

Transformado num “esquema” de pensamento a teologia escolástica acerca do amor fica

assim: a fé é a casca, a cor, o corpo e o amor é a vida, a noz, a forma. A fé envolve/envelopa

100 No mesmo texto (ObSel, 10.369 [1535]), ao comentar Gl 4.7, Lutero acolhe a metáfora usada por Paulo do filho como herdeiro. O filho, ao nascer, se torna herdeiro do pai e recebe dele todos os bens. Inclusive os eternos. E isto é um processo passivo, não ativo. Esta definição teológica do Cristo vivo em mim como dádiva graciosa é o pressuposto básico na redefinição do conceito de imitatio Christi em Lutero, numa clara distinção da compreensão da escolástica e de Kempis que tratam ser a imitação de Cristo possível a partir do esforço humano. A tese da união com Cristo, por sua vez, abre uma perspectiva de debate acerca da mística em Lutero. Aqui manifestamos tão somente ciência do tema. Veja LOHSE, 1983, p. 21 e LUTERO, Martinho. Um Sermao sobre a Contemplação do Santo Sofrimento de Cristo [1519]. In: ObSel, v 1. p. 249-256. 101 Vamos voltar a esse tema da pessoa interior e exterior. 102 Muitos lançaram dúvida sobre esta compreensão de Lutero e o acusaram de engodo, como quem quer enganar o outro. Defende-se a partir de Paulo. Fala de uma espécie de dupla vida: a vida cotidiana e a vida em Cristo. A vida física não muda em nada estando ela sob a lei ou o Evangelho (a voz é a mesma, o corpo o mesmo etc), mas muda a motivação, a intenção com a qual a obra é feita. O exemplo é a conversão de Paulo: convertido, por um lado, continua o mesmo (voz e aparência física são os mesmos), mas é radicalmente diferente na fala e atitude que procede de outra fonte, de outro saber, de Cristo (não mais da lei). (OS, 10.174-175). No terceiro capítulo vamos voltar ao assunto. 103 Scoto era monge franciscano e filósofo inglês. Sua filosofia é denominada de escotismo e opôs-se com veemência a Tomás de Aquino. Seu discípulo é Guilherme de Occam (1285-1349), filósofo e teólogo inglês, também franciscano. Ambos são considerados pré-reformadores por combater a Igreja da época e o posicionamento de Tomás de Aquino. Em muito ajudaram a formar o pensamento de Lutero. Mas este rompe com o pensamento deles por considerarem ser o ser humano capaz de produzir o amor com o qual ama a Deus. Somente mais tarde acolheram a ideia de que, além do amor próprio, natural, também é preciso o amor dado por Deus (ObSel, 10.137 [1535]).

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63 um cerne que é o amor. Para Lutero o “esquema” de pensamento é diferente: o cerne é a fé,

esta apreende Cristo e este dá forma, dá contorno, molda o núcleo central. Logo, a fé, se viva,

é expressão do próprio Cristo, pois ele está presente nela. A fé, por se apossar do Cristo

presente, justifica. É ele quem “forma e impregna a fé, ou que ele é a forma da fé.” (ObSel,

10.138-139 [1535]). Cristo é a justiça de Deus em nós. O pensamento escolástico é, para

Lutero, pensamento humano inserido no pensamento divino (ObSel, 10.453-456 [1535]).

Lutero, ao comentar Gálatas 6.5 afirma o lugar das obras como insignificantes perante

Deus, mas essenciais perante as pessoas. Fé e obras, conjuntamente, definem vida cristã

(ObSel, 10.455 [1535]): (...) a fé perante Deus é interna e o amor e as obras perante o próximo é externo, de modo que, assim, um homem é totalmente cristão, internamente, pela fé, perante Deus, que não necessita de nossas obras e, externamente, perante os homens, aos quais a nossa fé de nada aproveita, mas, sim, as nossas obras ou o amor.

Logo, a vida cristã consiste em fé e amor. A fé se torna palpável e visível na vida do próximo

pelo amor.

O tema do amor continua – e ganha ênfase – no comentário de Gálatas 6.2. Nele Lutero

afirma que a lei de Cristo é a lei do amor e que esta é a lei que rege a igreja, o corpo de Cristo

constituído (ObSel, 10.529 [1535]): No entanto, amar não é querer bem ao outro, como afirmam os sofistas104 frivolamente, mas carregar as cargas do outro, isto é, carregar aquilo que te é penoso e que não carregas com prazer. É necessário, portanto, que os cristãos tenham ombros fortes e ossos robustos de maneira que possam carregar a carne, isto é, a fraqueza dos irmãos, pois Paulo diz que eles têm cargas e pesares. Ora, o amor é doce, benigno, paciente etc, não em receber, mas em dar, pois é obrigado a fechar os olhos a muitas coisas e a carregá-las.

O beneficiário do amor como fruto da fé é sempre o outro, o próximo. A referência

bíblica é “amar o próximo como a si mesmo”105 (Marcos 12.31). Assim como não nos

condenamos por cometer pecados ou faltas, não devemos culpar ou deixar de carregar os

outros por causa das faltas que cometem. A recomendação é seguir o exemplo106 de Cristo.

Diz Lutero (ObSel, 10.530 [1535]):

104 Sofistas, do grego Sophia (sabedoria), ou seja, os filósofos do século V a. C. que a ensinavam em Atenas. “Por transferência o termo designa alguém que usa argumentos aparentemente válidos que, na realidade, não são conclusivos.” Lutero, de forma depreciativa, se refere com ele ao conjunto de teólogos escolásticos (ObSel, 10.43, nota de rodapé n° 35). 105 Ainda vamos voltar ao tema. 106 Lutero acolhe a ideia da imitação de Cristo na medida em que ressignifica o conceito a partir de Cristo, estabelecendo clara diferenciação com a forma da escolástica compreende-lo. Assim escreve na tese 27 do Debate de Heidelberg (ObSel 1.53 [1518]): “Pois na medida em que Cristo habita em nós pela fé, ele nos move às obras por aquela fé viva em suas obras. As obras que ele mesmo faz são cumprimento dos mandamentos de Deus, a nós concedidas pela fé. Ao contemplá-las, somos levados à sua imitação. Por isso o apóstolo diz: ‘Sede imitadores de Deus, como filhos caríssimos’ (Efésios 5.1)”. Ou seja, não é meu mérito, mas o Cristo vivo em mim o “espírito que me move.” A imitação, neste caso, pressupõe a liberdade conquistada em favor do ser humano por Cristo, não a obra meritória humana.

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Aqui não somos impiedosos e severos, mas, segundo o exemplo de Cristo, que tolera e carrega tais pessoas, toleremos e carreguemos também nós a elas. Se Cristo não as castiga, ainda que pudesse fazê-lo com justiça, muito menos, o façamos nós.107

A justiça da fé, a que molda o ser cristão, precisa ser, evidentemente, praticada.

Praticada de forma a ser sacramento, pois a vida do outro é sagrada. Uma das características

da vida sacramental é a ação misericordiosa. Se não for praticada ficará escondida nas justiças

que têm princípio ativo e não haverá paz e tranquilidade às consciências.108

Esta prática, registre-se para efeitos de clareza, não é a imitação de Cristo (como

Kempis propunha) nem a realização de ritos sacrificiais. O que temos na fides Christi é a

superação de todo sacrifício, não importando a forma como este se apresenta. Nenhum

sacrifício realizado por pessoas tem potencial salvífico. Ritos, liturgias e obras com caráter

sacrificial caem no vazio.109 Nenhuma transcendência lhes é inerente, pelo contrário. Ao viver

e agir no crente (fides Christi), Cristo libera a pessoa para a prática do amor incondicional

como expressão da liberdade.110 Altmann (1994, p. 88)111 afirma que a liberdade do ser

humano diante de Deus (ou seja, a não necessidade da realização de obras meritórias ou

sacrificiais) “permite que o compromisso ético seja centrado exclusivamente na necessidade

do próximo, em vez de ser um disfarce para o benefício próprio.” Reiteramos, por fim, que a

fides Christi é pressuposto importante no sentido de compreender a ação da pessoa como

fundamento da salvação, não como meta ou objetivo. Cristo vive e age na pessoa e, ao fazê-

lo, orna a vida. O Cristo vivo em mim é o espírito que me move.

107 Lutero retoma aqui uma distinção agostiniana: Cristo é sacramentum et exemplum. “O sofrimento e a elevação de Cristo são o sinal e a causa eficaz da nova vida para os crentes. ‘É necessário que aquele que deseje imitar a Cristo como um exemplo creia, desde o início, com uma fé firme que Cristo sofreu e que morreu por ele, sendo assim sacramento’.” (WA 57, III, 114,15, apud LIENHARD, 1998, p. 50). 108 Lutero insiste muito na ação vivificante da palavra de Deus. Abraão é apresentado como um exemplo: “lá está a glória da fé: não saber para onde se vai, nem aquilo que se fará e se sofrerá [...], e obedecer simplesmente à voz de Deus, deixar-se conduzir antes de agir por si mesmo”. (WA 57, III, 236, 4ss, apud LIENHARD, 1998, p. 52). 109 Veja ObSel 7.173ss [1526]; LIENHARD, 1998, p. 155; GEORGE, 1993, p. 61-62. George enfatiza que o “âmago da teologia de Lutero era que, em Jesus Cristo, Deus deu-se a si mesmo, absolutamente e sem reservas, para nós.” Sobre os diferentes modelos e motivos acerca da morte de Cristo na cruz (sacrificial, expiatória, resgate etc) veja WESTHELLE, 1990, p. 224-243 e BRAKEMEIER, 1990, p. 206-223. 110 Ainda vamos ver que no texto Da Liberdade Cristã (1520) Lutero afirma que a verdadeira liberdade do ser humano é a de ser livre para servir. Westhelle (2008, p. 59-60) afirma que a Via Antiqua, representada pela teologia de Tomás de Aquino e alicerçada na teoria da expiação de Anselmo, concebia Cristo como aquele que pode vicariamente oferecer o pagamento justo que satisfaz as exigências da justiça (da lei). 111 O comentário de Altmann está no contexto da apologia da Justificação pela Fé ante acusações de ser subjetiva tão somente. O afirma ao comentar o texto Da Liberdade Cristã de Lutero (1520).

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65 2.3.3 Comentários acerca da diferenciação entre imitatio e fides Christi e sua ressignificação em Lutero

Kempis – representante da teologia escolástica – e Lutero objetivam, em última análise,

a correta vivência cristã. Isto lhes é comum: ambos querem servir a Deus. Entretanto, há

diferenças na compreensão do que é esta vivência da fé e como é possível torná-la concreta.

Em alguns pontos de reflexão queremos ajudar o/a leitor/a a se situar nesta disputa e perceber

a ressignificação que acontece na compreensão da imitatio Christi, motivada pela fides

Christi.

a) Kempis incentiva à vivência de uma espiritualidade introspectiva de imitação a

Cristo. Esta espiritualidade é fruto e consequência de grande esforço próprio, especialmente

no sentido de afastar-se das coisas do mundo e acolher as coisas divinas. Lutero, por sua vez,

afirma que toda força de salvação é graça de Deus e emana dele. É ação “extra nos”. Embora

Kempis se distancie da teologia escolástica no tema da razão, ainda está preso a ela no seu

princípio motivador: o ser humano age no sentido de contribuir com sua salvação. Aqui

Lutero se distancia de todos os teólogos da escolástica, mesmo os pré-reformadores;

b) registramos diferenciação no pensamento de Kempis e Lutero acerca da relação com

o próximo. Kempis adverte seu leitor no sentido de buscar sentido em Deus a partir do seu

interior. A obra feita por caridade gera um bem comum. Mas a finalidade última desta obra

caridosa é o próprio autor da obra que, por ela, mostra ser pessoa boa. A intenção, em

verdade, é a própria salvação e o benefício ao próximo algo secundário que acontece pela

natural multiplicação do gesto amoroso. Lutero, em contrapartida, afirma que o gesto que

segue à fé é destinado em favor do próximo no sentido de carregar-lhe as cargas, sendo o

amor a lei de Cristo que rege a Igreja e a vida cristã. A justificação pela fé liberta a pessoa

cristã para agir em liberdade em favor do próximo, pela fé. O próximo interpela o/a cristão/ã.

Exemplo das diferenças no pensamento temos nas seguintes citações: Kempis (1.15,2):

“muito faz aquele que muito ama.” Kempis anima a pessoa cristã a agir segundo o amor. Por

ser amoroso, age. Amor pode motivar a mais amor. Kempis está dentro do conceito que

Fischer (FISCHER, Introdução ao texto Das Boas Obras, In: ObSel 2.98) apresenta para boa

obra na tradição teológica da Idade Média: é “aquele agir humano pelo qual o cristão merece

receber a graça de Deus.” O produto final da ação em relação ao próximo pode ser o bem de

igual forma, mas a motivação é o amor compreendido na forma de habitus da escolástica. A

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66 ação movida por este amor é perigosa e egoísta. Em situação limítrofe faz olhar primeiro para

si, depois para o outro.112 Também em Kempis temos isto expresso no tema da morte (1.23.8): Quem se lembrará de ti depois da morte? E quem rogará por ti? Faze já, irmão caríssimo, quanto puderes; pois não sabes, quando morrerás nem o que te sucederá depois da morte. Enquanto tens tempo, ajunta riquezas imortais. Só cuida em tua salvação, ocupa-te só nas coisas de Deus. Granjeia agora amigos, venerando os santos de Deus e imitando suas obras, para que, ao saíres desta vida, te recebam nas eternas moradas (Lucas 16.9).

“Só cuida em tua salvação, ocupa-te só nas coisas de Deus.” Claro está o pressuposto da

salvação como mérito, não como fundamento. Lutero, no texto Das Boas Obras (ObSel, 2.126

[1520]), por sua vez, afirma que todas as obras feitas “não são boas a não ser que sucedam na

fé e na confiança nas boas graças de Deus.” Por conseguinte, devemos aprender a distinguir as boas obras a partir dos mandamentos de Deus, e não baseados na aparência, na magnitude ou na quantidade das obras em si mesmas, tampouco na opinião das pessoas ou em leis ou costumes humanos, como vemos que tem acontecido e continua acontecendo por causa da nossa cegueira, com grande desconsideração dos mandamentos de Deus. (ObSel 2.102 [1520]).

Kempis, pela prática proposta, é alvo da crítica de Lutero: propõe obras fora da fé, ou

seja, obras que não emanam da fé em Cristo e por isso não são “obras da fé realmente boas”,

mas um ativismo. (ObSel 2.102-3 [1520])

c) registramos uma terceira diferenciação: enquanto Kempis prega a retirada da pessoa

do mundo, Lutero propõe assumi-lo como o lugar onde a graça de Deus se manifesta. Diz

Kempis (1.1,2,3): “quem quiser compreender e saborear plenamente as palavras de Cristo é-

lhe preciso que procure conformar à dele toda a sua vida.” e “a suprema sabedoria é esta: pelo

desprezo do mundo tender ao reino dos céus”. Lutero, ao contrário, afirma que a fé em Deus e

o amor que se manifesta em favor do próximo são os critérios para definir o que é vida cristã.

Com o próximo vive e interage neste mundo: (ObSel, 2.451-452 [1520]): Pois a pessoa não vive somente para si mesma neste corpo mortal, para operar nele, mas também para todas as pessoas na terra, sim, ela vive somente para os outros, e não para si. (...) Por isso não pode acontecer que ela seja ociosa nesta vida e sem obra a favor de seus próximos. (...) Esta é a verdadeira vida cristã, aqui de fato a fé atua pelo amor.

d) Kempis é representante da teologia escolástica e, como tal, adepto da concepção de

que o ser humano, por obras, cumpre a lei de Deus. Trata, assim, a lei de Deus como a lei

humana. A lei humana é cumprida pelo que faço ou deixo de fazer (semáforo vermelho, por

exemplo, me proíbe de avançar sob aplicação de pena). Logo, faço o que a lei me pede

112 Exemplo do que quero dizer temos em Francesco Schettino, capitão do navio Costa Concórdia, que, em 2012, foi um dos primeiros a deixar o navio no momento em que afundava na costa italiana quando, por força da função – e da ação amorosa – deveria organizar a saída das pessoas do navio e ajudar no resgate das vítimas. http://veja.abril.com.br/noticia/internacional/volte-a-bordo-disse-guarda-costeira-a-capitao-de-navio/imprimir, (17.01.2012), acesso em 11.01.2014.

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67 mesmo que, em meu interior, esteja querendo fazer o contrário. A motivação está no medo da

punição. Esta é, para Lutero, a obra da lei. A obra da lei é diferente de cumprir a lei. Na

Introdução da carta aos Romanos (In: Pelo Evangelho de Cristo, 1984, p. 182) diz que

“cumprir a lei significa: realizar sua obra com vontade e amor, levar uma vida reta e conforme

a vontade de Deus livremente, sem a coação da lei, como se não houvesse lei ou punição.”

Esta disposição para o livre servir vem do Espírito Santo, acolhido pela fé, não pela imposição

da lei. Fica claro e evidente que o princípio motivador para a obra é muito diferente em

Kempis e Lutero.113 Na fides Christi Cristo age através da pessoa, pelo Espírito Santo; na

imitatio Christi a pessoa age por sua própria força, motivada pelo objetivo que tem. No caso

da fé este consiste na salvação, mas pode ser outro também como bem o vemos no tempo

moderno: riqueza, fama, poder etc.

No próximo passo queremos avaliar o que a Justificação pela Fé, o Cristo vivo em nós,

significou para a vida de fé das pessoas. Fazemos esta leitura a partir dos escritos de Martim

Lutero Da Liberdade Cristã e Das Boas Obras.

2.4 OS ESCRITOS DE MARTIM LUTERO: DA LIBERDADE CRISTÃ (1520) E DAS BOAS OBRAS (1520)

2.4.1 O escrito Da Liberdade Cristã, 1520114

A espiritualidade da Idade Média é marcada pela busca de paz para a alma, por uma

consciência tranquila, bem como por salvação. O caminho comumente adotado é o da prática

de obras meritórias conforme o princípio escolástico facere quod in se est (faz o melhor que

podes) e a imitatio Christi (imitação de Cristo, de Tomas Kempis). Mas não houve êxito

pastoral. As Anfechtungen (tentações) de Lutero são representativas para as angústias

experimentadas em seu tempo e a ineficiência destas propostas pastorais. A busca pelo Deus

misericordioso continua. Novidades são encontradas na reflexão de Lutero a partir da justiça

da fé. A fé acolhe Cristo e, ao acolhê-lo, vive em mim. Cristo e minha consciência são um só.

Mas, qual o efeito prático desta afirmação teológica? Se o caminho das obras meritórias exige

113 Vamos voltar a esta temática do princípio que me move, a fé, no terceiro capítulo. 114 LUTERO, Martinho. Tratado de Martinho Lutero sobre a Liberdade Cristã (1520). In: ObSel, 2. 435-460.

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68 sempre mais obra penitencial da pessoa pecadora e estas não conseguem tranquilizar almas e

vidas, a novidade está em que Cristo é o autor da libertação. Cristo liberta o pecador das

tentações. Dreher, ao escrever a introdução do referido texto (p. 435), afirma que o pano de

fundo da obra é “a experiência feita pela fé que se sabe livre das tentações.” Lutero intentou

libertar as pessoas da falsa segurança de que as obras salvam, mantendo-as, porém, como

imprescindíveis para a vida de fé (ObSel, 2.457 [1520]).

Lutero estrutura seu pensamento no paradoxo da liberdade e da servidão do espírito: “O

cristão é um senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito. O cristão é um servo

oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito”115 (ObSel, 2.437 [1520]). Esta aparente contradição

está alicerçada na dupla natureza do ser humano: (...) a pessoa humana é constituída de natureza dupla, a espiritual e a corporal. De acordo com a natureza espiritual, que denominam a alma, ela é chamada de pessoa espiritual, interior, nova. De acordo com a natureza corporal, que denominam a carne, ela é chamada pessoa carnal, exterior, velha, (...) (ObSel, 2.437 [1520]).

Esta primeira distinção é importante para Lutero. A pessoa interior não é dependente e

nem pode ser influenciada por obras exteriores. Nenhum movimento externo, penitência ou

obra meritória pode condicioná-la para o bem ou para a servidão: “É evidente que em

absoluto nenhuma coisa externa, qualquer que seja o nome que se lhe dê, tem qualquer

significado para a aquisição da justiça ou da liberdade cristã, como também não o tem para a

aquisição da injustiça ou da servidão,” (ObSel, 2.437 [1520]). Roupas, vestes, jejuns etc, não

podem influenciar a alma, pois “uma só coisa é preciso para a vida, a justiça e a liberdade

cristã, e somente esta: é o sacrossanto Verbo de Deus, o Evangelho de Cristo”. (ObSel, 2.438

[1520]). Ou seja, a alma precisa somente da Palavra de Deus: Por isso claro está que assim como a alma necessita tão-somente da Palavra para a vida e a justiça, do mesmo modo ela é justificada somente pela fé, e por nenhuma obra. Pois se pudesse ser justificada por qualquer outra coisa, ela não necessitaria da Palavra e, conseqüentemente, também não da fé. (ObSel, 2.437-438 [1520]).

A razão para esta concepção está na compreensão antropológica de Lutero: o ser

humano é portador de coisas culpáveis, pecaminosas e condenáveis. Esta afirmação está

baseada em Romanos 3.23 e 3.10ss: “pois todos pecaram e carecem da glória de Deus” e “não

há justo, nem um sequer (...) todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça

o bem, não há nem um sequer.” Sendo portador de características tão negativas, necessita de

115 BRENDLER, 1983, p. 214-216 afirma que este paradoxo é uma paráfrase do princípio da justificação somente pela fé: o ser humano interior não é condicionado pelos incentivos externos (obras meritórias) para alcançar a salvação. É, portanto, livre destas premissas pela fé em Cristo. A liberdade não é uma condição prévia para a fé, mas uma consequência da fé. O ser humano exterior, por sua vez, é servo de todos por amor. Se for coagido a realizar obras meritórias, que as faça. Estas não têm capacidade para contaminar o ser humano interior. Na perseguição e coação a estratégia contempla firmeza e flexibilidade simultaneamente. Paulo a usou no contexto de perseguição aos primeiros cristãos e Lutero também após a excomunhão.

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69 Cristo. Logo, a fé em Cristo o torna outra pessoa, pois recebe dele o perdão e a justificação.

Ou seja, por méritos alheios (os méritos de Cristo) o ser humano é justificado. (ObSel, 2.439

[1520])

Lienhard (1998, p. 91) afirma que a real oposição aqui colocada não é a oposição entre

corpo e alma, mas entre ser humano interior e exterior: o ser humano interior é criado na alma

pela palavra de Deus; o ser humano exterior insiste em alcançar a justificação pela via das

obras meritórias. Ambos, alma e corpo, são valorizados em Lutero: a alma ganha eminência

somente quando tocada pela Palavra de Deus; já o corpo é importante porque Deus se dirige

ao ser humano por sinais exteriores, que passam pelo corpo, e, sobretudo, na expressão do

amor ao próximo que, inevitavelmente, passa pelo corpo.116

O ser humano está condenado a viver sempre com esta alma pecadora? Lutero afirma

que não. Lutero concebe a palavra de Deus santa, verdadeira, justa, pacífica, plena de toda

bondade e que esta se une à alma. Logo, a alma que se atém à palavra de Deus com fé firme será unida a elas (às qualidades da Palavra) de tal modo, ou por elas totalmente absorvida, que não apenas participará mas será saturada e inebriada de toda a força delas. (...) Por esta maneira, portanto, a alma é justificada somente pela fé, sem as obras, a partir da palavra de Deus (...) A partir daí é fácil compreender por que a fé é capaz de tão grandes coisas e por que nem todas as obras juntas podem igualar-se a ela; pois nenhuma obra pode prender-se à palavra de Deus e estar na alma, mas nela reinam somente a fé e a Palavra. Assim como é a Palavra, tal se torna a alma por meio dela, da mesma forma como o ferro candente fica incandescente como o fogo por causa de sua união com o fogo. (ObSel, 2.440-441 [1520]).117

Unida a Cristo a pessoa cristã passa a ser definida por Cristo. Nenhuma obra externa ou

meritória a condiciona. Somente a fé é o suficiente para a salvação: o ser humano é livre, a

nada e a ninguém sujeito.

Mas o fato de ser unido a Cristo não torna somente o ser humano livre, mas igualmente

o torna sacerdote em eternidade: escreve Lutero (ObSel, 2.445 [1520]): ... por meio do sacerdócio somos dignos de comparecer perante Deus, orar por outros e ensinar-nos mutuamente sobre as coisas de Deus. (...) Assim Cristo no-lo conseguiu, se nele cremos, para que, como co-irmãos, co-herdeiros e co-reis, também sejamos seus co-sacerdotes, (...) orar um pelo outro e fazer tudo o que vemos o ofício visível e corporal dos sacerdotes fazer e figurar.

116 Lutero se vale também da distinção entre preceitos (lei) e promessas na Escritura. É fato que esta contém muitos preceitos. Mas a função destes é fazer com que o ser humano se reconheça limitado e impotente diante de Deus. Só assim poderá reconhecer a importância de Cristo e dele receber as promessas pela fé somente. (ObSel, 2.440 [1520]; LIENHARD, 1998, p. 91). 117 Outra figura de linguagem da qual Lutero se vale é a da alma como noiva que se une a Cristo, o noivo: Cristo e alma são feitos uma só carne. O noivo aceita o que é da noiva e compartilha com ela o que tem de melhor. Ou seja: o pecado, a morte e a condenação da alma se tornam de Cristo e a graça, vida e salvação de Cristo passam a ser da alma. (ObSel, 2.442 [1520]).

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Na segunda parte do texto Lutero fala do ser humano exterior. Quer apontar para as

boas obras como atitude inerente à fé, visto que fora acusado118 serem desnecessárias diante

da primazia da fé. A 2ª parte da tese – “o cristão é um servo oficiosíssimo de tudo, a todos

sujeito” tem este objetivo.

Parte do pressuposto de que o ser humano vive aqui em meio às circunstâncias e

condicionantes da vida até o dia derradeiro. Vive, justificado por Cristo, multiplicando sinais

do amor que moveu Cristo entre as pessoas. O ser humano justificado, por força do Espírito

Santo que atua nele, faz obras boas: “e visto que pela fé é dado o Espírito Santo, o coração

também se torna apto para praticar boas obras.” (LC 38.28s – CA, 1530). Ou ainda: “as boas

obras não fazem o homem bom, mas o homem bom faz boas obras”; “as más obras não fazem

o homem mau, mas o homem mau faz obras más.” (ObSel, 2.449 [1520]). Assim é a obra do

ser humano: o princípio o rege. (ObSel, 2.450 [1520]).

Lutero enfatiza reiteradas vezes que a obra desenvolvida pela pessoa não tem finalidade

justificadora diante de Deus, mas é imprescindível como fruto da fé, expressão de amor ao

próximo (ObSel, 2.451-452 [1520]): Pois a pessoa não vive somente para si mesma neste corpo mortal, para operar nele, mas também para todas as pessoas na terra, sim, ela vive somente para os outros, e não para si. (...) Por isso não pode acontecer que ela seja ociosa nesta vida e sem obra a favor de seus próximos. (...) Por isso a pessoa deve, em todas as suas obras, estar orientada por esta ideia e visar somente isto: servir a outros e ser-lhes útil em tudo que faz, nada tendo em vista senão a necessidade e a vantagem do próximo. (...) Esta é a verdadeira vida cristã, aqui de fato a fé atua pelo amor. Isto é, entrega-se com alegria e amor à obra da servidão libérrima, com a qual serve ao outro gratuita e espontaneamente, enquanto ela própria está abundantemente satisfeita com a plenitude e opulência de sua fé.119

E reitera (ObSel, 2.453 [1520]): Eis que em Cristo meu Deus deu a mim, homúnculo indigno e condenado, sem nenhum mérito, por mera e gratuita misericórdia, todas as riquezas da justiça e da salvação, de sorte que além disso não necessito absolutamente de mais nada a não ser da fé que crê que as coisas são de fato assim. Portanto, como não faria a este Pai, que me cobriu com suas inestimáveis riquezas, livre e alegremente, de todo o coração e com dedicação espontânea, tudo que sei ser agradável e grato perante ele? Assim me porei à disposição de meu próximo como um Cristo, do mesmo modo como Cristo se ofereceu a mim, nada me propondo a fazer nesta vida a não ser o que vejo ser necessário, vantajoso e salutar a meu próximo, visto que, pela fé, tenho abundância de todos os bens em Cristo.

118 Na Confissão de Augsburgo Melanchthon escreve: “os nossos são acusados falsamente de proibirem as boas obras.” (LC 37.1 – CA, 1530). No panfleto contrário a Lutero intitulado “Uma conversação que se passou não longe de Trento, na rota para Roma, entre um cortesão apostólico e o diabo ao encontro do piedoso papa Adriano” (1522) Lutero tem reconhecida como cristã características de sua doutrina, “mas ele trabalha para o diabo porque lhe faltam a humildade cristã e o amor ao próximo”. (LIENHARD, 1998, p. 107). 119 Lutero tem como base o texto bíblico de Romanos 14.7s; Filipenses 2.7 e Gálatas 5.6. O objetivo é deixar claro que o cristão se esforça pelo bem do outro, carrega o fardo um do outro.

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Esta é a verdadeira liberdade do cristão: a de servir ao próximo de forma livre, por

gratidão, em alegria, de modo a não calcular lucros ou dividendos como resultado do servir.

Do mesmo modo como nós precisamos de Deus, o nosso próximo precisa de nós: tal qual o Pai celeste nos auxiliou gratuitamente pelo corpo e suas obras, e cada qual tornar-se para o outro como que um Cristo, para que sejamos Cristos um para o outro, e o próprio Cristo esteja em todos, isso é, para que sejamos verdadeiros cristãos. (ObSel, 2.454 [1520])

Encerra o texto alertando os que transformam a “liberdade da fé” em libertinismo, como

se fosse algo no sentido de “agora tudo lhes é permitido”. (ObSel, 2.457 [1520])

Destaque-se do texto de Lutero que a pessoa interior, para alcançar a liberdade, justiça e

vida cristã, não é presa a coisas exteriores e nem condicionada por elas. Não são, portanto,

ritos, jejuns, obras meritórias, roupas, status social ou religioso, ... que definem a liberdade,

justiça e vida cristãs, mas somente o Evangelho de Cristo. A mensagem de Cristo (vida, morte

e ressurreição) só pode ser recebida pela fé, logo, a pessoa é justificada por acolher uma fé

alheia, qual seja, de Cristo. A pessoa interior é, portanto, livre de todos os preceitos sociais e

religiosos que tentam condicioná-la. Diante de uma prática religiosa pautada pelo mérito, a

proposição de Lutero soa libertadora. Libertadora do ponto de vista da fé em obras meritórias,

mas também do ponto de vista econômico: as receitas da igreja, resultantes da venda de

indulgências, estavam questionadas. Mais do que isso: se a Igreja assumiu um modelo

econômico que teve como consequência outro destino da oferta de caridade (as pessoas

pararam de ajudar o pobre e o necessitado para comprar indulgências e mandar rezar missas, o

que gera receita financeira para a Igreja), Lutero prega claramente a superação deste modelo

econômico (mesmo sem fazer referência a ele) quando afirma ser prerrogativa da pessoa

justificada voltar seu olhar para o próximo e lhe ser como um Cristo.

Outro aspecto a ser considerado encontramos na ressignificação da função e papel da

Igreja. Vimos que a Igreja Medieval, no contexto da doutrina da penitência e da teologia do

purgatório, se apresenta como mediadora e fiadora entre as pessoas e Deus. A Igreja

Medieval, pela prática da indulgência e de rezar missas, se crê com poder de intervenção junto

a Deus. Lutero supera este modelo eclesiológico ao afirmar que onde a Palavra de Deus é

crida, Cristo se une à pessoa interior e os dois formam “uma só carne”. Ou seja, o fiador e

fundamento da Igreja cristã, da liberdade e da justificação é Cristo acolhido pela fé e não a

Igreja como estrutura social ou a indulgência praticada. O papel da Igreja neste novo conceito

é pregar retamente o Evangelho de Cristo. Esta concepção supera também a estratificação

eclesiológica baseada no princípio de que a pessoa religiosa, cumpridora de todas as leis e

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72 deveres divinos, está mais próxima de Deus120. Cristo é o mesmo em e para todas as pessoas e

a justificação da pessoa não é decorrente do cumprimento de obras meritórias, mas da fé em

Cristo. Dreher, na introdução ao texto de Lutero (ObSel, 2.435 [1520]), fala da superação da

“tirania eclesiástica” e da destruição do “cativeiro eclesiástico”.

Mas no papel da Igreja há que se considerar ainda o seu papel social. Os bispos eram

detentores de terra e poderes políticos, fazendo parte da nobreza. Logo, sua atuação era

concebida para a manutenção do status quo. Isto fazia a Igreja institucional assumir o papel de

exploradora da sociedade. Ela mantinha os colonos no regime feudal rígido: os bispos

detentores de terra e poder eclesiástico, os pastores dependentes de seus superiores. Esta

dinâmica de manutenção do status quo e de dependência inviabiliza uma reforma social, a não

ser que haja forte colisão contra a Igreja. (BRENDLER, 1983, 106). Lutero contribui nesta

reflexão ao falar do papel social da Igreja. Seu olhar partiu da sociedade e seus problemas

(não da nobreza religiosa) em direção ao texto bíblico. O olhar bíblico ofereceu retorno para a

sociedade e as pessoas, independentemente de poder contar com a nobreza religiosa ou não. E

confirma que o papel da Igreja é pregar acerca dos reais motivos pelos quais foi necessário

Cristo vir ao mundo; a salvação para as pessoas; oferecer consolo; e oferecer rumo para as

questões do cotidiano (é o Evangelho no cotidiano). (BRENDLER, 1983, p. 105-106).

Destacamos da segunda parte da tese de Lutero – o servir do/a cristão/ã – a absoluta

inversão da perspectiva salvífica: se para a teologia escolástica, o pensar teológico medieval e

a Igreja institucional a justificação era o objetivo final do ser humano, para Lutero a

justificação é a base de sustentação, o ponto de partida da vida cristã, da justiça, da liberdade

e da atuação da Igreja.121 Isto se mostra no controle do libertinismo e na ação amorosa em

favor do próximo como consequência da justificação. O ser humano pratica boas obras como

expressão de sua natureza justificada e não com o objetivo de obter mérito e justificação.

Dreher, na referida introdução ao texto de Lutero (OS 2.436 [1520]), diz: Ao se avaliar o “tratado sobre a liberdade cristã”, deve-se ter em mente que ele fala da liberdade resultante da justificação. Sua argumentação está dirigida contra um legalismo eclesiástico. Aqui está seu significado emancipatório, pois se volta contra uma Igreja repressora. Contra essa Igreja repressora, o tratado pergunta pela força que possibilita liberdade. A liberdade cristã é proveniente de Deus, é presente dele, e não é conseguida através de ativismo que busca auto-realização religiosa. (...) Uma

120 Houve quem chamasse de herética a superação desta estratificação eclesiológica, especialmente no contexto do sacerdócio universal. “Ensina-se a ler a cada camponês, embora tenha sido feito para o arado e não para o altar” (Emser, Contra o livro anticristão de Lutero) e Cochlaeus (153 artigos tirados de um sermão do Dr. Martim Lutero sobre a missa e o Novo Testamento, 1523): “Lutero, tu és verdadeiramente um deus grosseiro, visto que fazes os sacerdotes tão grosseiros, a saber, tratadores de porcos e vaqueiros nos campos. [...] Onde está escrito isso?” (apud LINDBERG, 1998, p. 108). 121 Esta perspectiva sempre esteve presente nas aulas do Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth.

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de suas conseqüências é um engajamento muito humano em prol de salvação plena para o próximo.

2.4.2 O escrito Das Boas Obras, 1520122

O discurso de Lutero acerca da primazia da fé fez surgir dúvidas tanto nos adversários

como nos amigos acerca do lugar e função das boas obras na perspectiva da fé. São ainda

necessárias? A pergunta ganha ainda mais força por que a prática religiosa da época estava

alicerçada na obra meritória. Peregrinações, jejuns, esmolas, ... ainda são necessários?

Chamado a se posicionar, Lutero faz do texto uma espécie de “síntese da vida cristã”

(BOEHMER, Heinrich, Der Junge Luther, 1951, p. 254. In: ObSel, 2.98, apud FISCHER, J.

Introdução) e lança as bases da ética cristã a partir da interpretação dos 10 mandamentos.

Fischer (ObSel, 2.98 [1520]) continua situando o texto de Lutero: “na tradição teológica

entendeu-se por “boa obra” aquele agir humano pelo qual o cristão merece receber a graça de

Deus. (...) (Para Lutero) “boa obra” é, em primeiro lugar, o que Deus fez e faz em Cristo por

nós e em nós.”

Lutero inicia seu texto fundamentando a Justificação pela Fé como alicerce do crer em

Deus (isto é uma constante). A mensagem da Justificação pela Fé define o ponto de partida da

vida cristã. Toda a vida e todos os momentos da vida (comer, beber, trabalhar, passear, ...) são

vividos a partir da fé: “pois nesta obra é que todas as obras precisam realizar-se, dela

recebendo a influência de sua bondade como um feudo.” (ObSel, 2.102-103 [1520]). Lutero

condena as obras feitas que não têm como pressuposto ou ponto de partida a fé. Registramos

que a fé123 é aqui compreendida como a

122 LUTERO, Martinho. Das Boas Obras (1520). In: ObSel, 2.100-170 [1520]. 123 Lienhard (1998, p. 76) afirma que, assim como os místicos da Idade Média, também Lutero estabelece degraus na fé: “a que se traduz em boas obras é um degrau inferior da própria fé. Depois da fé que produz boas obras, há aquela que se mantém nos sofrimentos e nas tribulações. Por fim, a fé maior é aquela que persiste mesmo em face das ameaças do inferno e da morte.” Nas palavras de Lutero, respectivamente: “nas obras, a fé ainda é pequena e débil”; “nisto é que reside a arte: ter boa confiança no Deus que se apresenta irado segundo todo o nosso entendimento e raciocínio, dele esperando algo melhor do que se sente” e “acima de tudo isso, o grau supremo de fé não é quando Deus castiga com sofrimento temporal, mas quando castiga a consciência com morte, inferno e pecado, como que negando graça e misericórdia, como se quisesse condenar e irar-se eternamente.” (ObSel, 2.105-106 [1520]). Lutero não se desprendeu do conceito místico da época, mas penso ser prudente aplicar aqui o mesmo princípio de superação das diferenciações feita entre as obras, como ele próprio afirma, citando Paulo (ObSel 2.108 [1520]): “Justus ex fide sua vivit, é da fé que a pessoa justa tem sua vida, e é por causa da fé que ela é considerada justa perante Deus (Rm 1.17; 3.18). Se a justiça consiste na fé, fica claro que somente esta cumpre todos os mandamentos e torna justas todas as suas obras, ... ”. Em verdade proponho considerarmos que se trata de diferentes aplicações da fé em diferentes situações.

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atitude do ser humano que se sente confiante em Deus. O crente se sabe aceito como filho de Deus. A obra do cristão já não terá mais o sentido de se afirmar diante de Deus para obter suas boas graças. Ela se situará sob o signo do reconhecimento e da liberdade jubilosa dos filhos de Deus testemunhando o amor de Deus. O ser humano é assim libertado para obedecer ao mandamento concreto de Deus e para colocar-se a serviço do próximo. (LIENHARD, 1998, p. 75).

A ética cristã é definida a partir da fé. Base de compreensão desta ética são os dez

mandamentos. Entre eles recebe maior atenção o primeiro124, pois este não pode ser cumprido

se não por fé confiante125. Obras não podem cumpri-lo. Ou seja, não é possível confiar em

Deus por obras, mas somente com e através da fé. Com este princípio está colocado o

fundamento de que a fé rege toda a vida, como assinalado: “... a fé precisa ser mestre de obras

e capitão em todas as obras, ou então elas nada serão” (ObSel, 2.110 [1520]). E ainda (WA

12,282, nota 99, apud ALTHAUS, 2008, p. 263): Precisamos, por isso, com toda a certeza, manter que onde não há fé, ali também não há boas obras e, conseqüentemente, que também não há fé onde não há boas obras. Por isso, fé e obras estão tão intimamente unidas que a essência da inteira vida de um cristão consiste em ambas.

Considerar a fé como pressuposto primeiro de todas as obras tem importantes

consequências. A primeira delas é o fato de que a vida cristã é uma unidade e não pode ser

dividida em facções. A fé rege esta unidade e indica o caminho a ser seguido pela pessoa que

crê. Wolf escreve: Somente uma conduta que procede da fé é uma conduta cristã e, por conseguinte, boa. (...) A fé nos capacita e impele a praticarmos boas obras. (...) Toda a vida cristã, pois, é práxis da fé. Desta maneira, a doutrina da Justificação pela Fé evidencia-se como “centro e limite” também da ética evangélica, bem como de toda a teologia da Reforma. (WOLF, Ernst. Die Rechtfertigung als Mitte und Grenze reformatorischer Theologie. In: Peregrinatio; Studien zur reformatorischen Theologie, zum Kirchenrecht und zur Sozialetik. 1965, vol 2, p. 11ss. In: ObSel 2.99 [1520], apud FISCHER, J. Introdução).

Ou seja, a fé sai do convento e da Igreja para ganhar a vida das pessoas. Todo o

cotidiano e toda a vida são perpassados pela fé e pelo querer de Cristo.126 É a percepção de

que a conduta e o agir cristão são fruto da fé que se empenha pelo próximo.

124 “Eu sou o Senhor, seu Deus. Não tenha outros deuses além de mim.” (LUTERO, Martim. Catecismo Menor [versão popular], 2009, p. 5). 125 Pressuposto está que a fé é gerada pela ação do Espírito Santo que se mostra numa atitude humana. Isto se dá quando a pessoa reconhece toda sua limitação diante de Deus e se confia plenamente a Deus. “Assim a fé é o real cumprimento do Primeiro Mandamento; é o único caminho pelo qual a pessoa reconhece que Deus é Deus e o honra apropriadamente como o único Criador da vida e salvação.” ( WA, 2,514, 563, apud ALTHAUS, 2008, p. 250). 126 O conceito de vocação deixa isto claro em Lutero. À época tinha-se a compreensão de que o serviço santo era o serviço realizado no convento. Para Lutero serviço santo é a obra realizada em favor do próximo. Para a sociedade o trabalho do lixeiro é tão importante quanto o do médico. Não há diferenciação ou estratificação social, há serviço feito em favor do próximo. Altmann (1994, p. 288) analisa o termo alemão Beruf e conclui: profissão é vocação.

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Decorre desta a segunda consequência: a igualdade de todas as obras feitas. A igreja da

época estabelecia distinção entre as obras de pessoas comuns e clérigos, por exemplo. Se

todas têm seu ponto de partida na fé, todas as obras se tornam iguais, e uma é como a outra, caindo fora toda distinção entre obras, sejam elas grandes, pequenas, breves, longas, muitas ou poucas. Porque as obras são agradáveis não por si mesmas, mas por causa da fé. (ObSel, 2.104 [1520]).

A terceira consequência da boa obra feita a partir da fé é a superação dos interesses

próprios. Superar o interesse próprio faz assumir uma postura de boa obra relevante para o

meio temporal e social da vida vivida em coletividade. A boa obra, quando supera o interesse

próprio, melhora todo o entorno da vida. É atitude cristã aquela que quer ver a justiça

acontecer, sem perguntar a quem. Lutero critica os interesses escusos e nem sempre revelados

nas ajudas prontamente oferecidas aos ricos e que não se mostram tão efetivas quando se trata

de pessoas pobres. É atitude cristã aquela que se opõe “em primeiro lugar a toda injustiça,

onde a verdade ou a justiça estão sofrendo violência e passando por dificuldade.” (ObSel,

2.123 [1520]).

A quarta consequência é a pró atividade da pessoa cristã em favor do próximo. A pessoa

cristã é chamada a “impedir também a outros de mentir, jurar, enganar, amaldiçoar, praticar a

feitiçaria e pecar de outros modos com o nome de Deus. Nisto são dadas muitas razões para

praticar o bem e impedir o mal.” (ObSel, 2.122 [1520]). Ou seja, da pessoa cristã se espera

que tenha uma postura pró ativa. Esta postura Lutero a apresenta em diferentes momentos nos

mandamentos de quatro a dez. Como exemplo citamos o quarto mandamento127 e o cuidado

aos/às filhos/as como expressão de boa obra: Pois que são aqui os famintos, sedentos, desnudos, presos, doentes e estranhos senão as almas dos teus próprios filhos? Com eles Deus faz da tua casa um hospital e faz de ti o enfermeiro-chefe deles, para que cuides deles, lhes dês de comer e de beber com boas palavras e obras, ... (ObSel, 2.148 [1520]).

127 “Honre o seu pai e a sua mãe para que você viva muito tempo na terra” (LUTERO, M. Catecismo Menor. [versão popular] 2009, p. 6). Este é para Lutero um mandamento central. Liga a teologia e a vida. Na interpretação ao 4º mandamento Lutero defende a submissão à autoridade: o filho deve obediência aos pais com o limite de que estes se mantenham fiéis ao Evangelho. Em caso de desobediência ao Evangelho, também a autoridade constituída, os pais no caso, não precisam ser respeitados. Este princípio é aplicado também à autoridade do papado e da igreja: se estes não se mantêm fiéis ao Evangelho precisam ser desobedecidos, sob pena de não herdar a promessa de Deus. Neste tocante, tanto papado como Igreja estão mais preocupados com luxo, poder e honra. Lutero invoca a autoridade do poder secular também instituído por Deus para zelar pelos filhos/as (assim como o pai/mãe) quando o poder espiritual não cumpre com seu dever de zelar por eles. O escrito À Nobreza Cristã da Nação Alemã tem este objetivo. Lutero, claramente, toma partido de um grupo social e o interpela a agir contra Roma. (BRENDLER, 1983, p. 197-200).

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Ou o quinto mandamento128 que recomenda mansidão aos amigos – uma forma mais

fácil – e também aos adversários e inimigos, conforme Mateus 5.44 e Romanos 12.14: Ela (a mansidão) não os prejudica nem se vinga, não amaldiçoa, não blasfema, não fala mal, não tenciona o mal contra eles, ainda que tenham tirado bens, honra, corpo, amigos e tudo o mais. Sim, sempre que puder, ela lhes retribui o mal com o bem, fala bem deles, tem-nos em boa lembrança e ora por eles. (...) Onde, porém, há mansidão sincera, o coração lamenta todo mal que se sucede ao inimigo. (ObSel, 2.160-161 [1520])

Ou o sétimo mandamento129 que anima a boas obras a partir da fé, cuidado ao próximo

e refreia vícios da avareza (ObSel, 2.164-165 [1520]): Trata-se de uma obra em que cada qual está disposto a ajudar e a servir com seus bens. Ela luta não só contra o furto e o roubo, mas contra todo esbulho que alguém possa praticar contra outro no que tange aos bens temporais: avareza, agiotagem, cobrar caro demais, passar para trás, fazer uso de mercadorias, medidas e pesos falsos. (...) cada qual procura a sua vantagem em detrimento do próximo.

O sétimo mandamento afirma que é fácil ajudar o amigo. Mais difícil é ajudar o inimigo

(ObSel, 2.166 [1520]): Por isso a pessoa cristã precisa ir mais longe [do que ajudar os amigos], fazendo com que sua caridade sirva também aos não-merecedores, aos malfeitores, inimigos e ingratos, e, como seu Pai celeste, fazendo seu sol nascer sobre bons e maus e fazendo chover sobre gratos e ingratos.

Ou o oitavo mandamento que anima a dizer a verdade e contradizer a mentira onde for

necessário130. Clássica é a situação do tribunal: nele pessoas movidas por interesses os mais

diversos são tentadas a transformar falsas causas em verdadeiras causas, provocando ao

próximo enorme prejuízo. Roubam a quem, motivados pela fé, devem ajudar (ObSel, 2.167ss

[1520]).

Todas estas consequências ajudam a perceber e definir o objeto da fé: a pessoa que se

sabe justificada por Deus pela fé age de forma fraternal para com o próximo. Se na teologia

escolástica o objetivo da fé e das obras é a busca da salvação junto a Deus, na teologia de

Lutero a pessoa justificada se volta totalmente em favor do outro, do próximo. O faz por

amor, de forma desinteressada, motivado unicamente pela fé: Se, porém, não o fazes (importar-te com o próximo), que te adiantaria se realizasses todos os prodígios de todos os santos e estrangulasses a todos os turcos, mas fosses considerado culpado de não ter te importado com a necessidade do teu próximo e, assim, de ter pecado contra o amor? (...) os mandamentos de Deus, entretanto, nos urgem em direção ao nosso próximo, para que, dessa maneira, sejamos de proveito apenas para a salvação dos outros. (ObSel, 2.137-138 [1520])

128 “Não mate” (LUTERO, M. Catecismo Menor. [versão popular] 2009, p. 6). Lutero fala de duas mansidões: a que se refere aos amigos e aqueles que fazem nossa vontade. Esta é fácil, afirma. Mas a boa obra decorrente do mandamento é a que se refere ao adversário e ao momento da contrariedade. (ObSel, 2.160-161 [1520]). 129 “Não roube” (LUTERO, M. Catecismo Menor. [versão popular] 2009, p. 7). 130 “Não fale mentiras a respeito do próximo” (LUTERO, M. Catecismo Menor. [versão popular] 2009, p. 7). Pressuposto do mandamento é a compreensão que da fé provém a força necessária para fazer frente aos interesses escusos que escondem a verdade e fazem a pessoa silenciar.

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A razão ética e da vivência da fé está, portanto, no outro. Não que o ser humano por

suas próprias forças o faça, mas Cristo nele. Pois da natureza humana decorrem desígnios que

não são divinos. Se o terceiro mandamento proclama um dia de descanso, claro está que

devemos silenciar no sentido de deixar Deus atuar em nós e nada de próprio obremos com todas as nossas forças. (...) todos esses vícios e maldades [da pessoa] precisam ser estrangulados e extirpados, (...) [para que] Cristo viva, atue e fale em nós. (ObSel, 2.139 [1520]).

Quando Lutero fala em calar o ser humano, o objetivo não é reprimir ou mortificar por

jejum, por exemplo, a vida ou obra natural do corpo, mas mortificar sua petulância, o velho

Adão. Pressuposto está que nós devemos calar para Deus poder falar através de nós.131 Lutero

(WA 2,502 e 2,564, apud ALTHAUS, 2008, p. 251, nota 53, respectivamente) acentua: * Assim a pessoa justa não vive por si, por sua justiça, mas Cristo vive nela, porque através da fé, Cristo habita nela e derrama nela sua graça, através da qual a pessoa não seja mais governada por seu próprio espírito, mas pelo espírito de Cristo. * Aquele que crê em Cristo, esvazia-se a si mesmo e não se ocupa mais com suas próprias obras, para que Cristo possa viver e atuar nele.

Chama atenção nos textos de Lutero a radicalidade da fé como ponto de partida que

gesta e molda a boa obra. Embora o tema fé não fosse novo, considerá-lo o ponto de partida

de fato o é para o pensar teológico e agir religioso da época. As Anfechtungen (tentações)

provocavam grande sofrimento. Ele procurou superá-las na prática religiosa do seu tempo.

Uma prática da fé que o levou ao convento e à obediência de ordens religiosas prescritas,

baseadas no mérito. Mas as Anfechtungen perseveraram. A prática religiosa meritória não é

capaz de tranquilizar a alma e a consciência. Só a fé confiante na obra de Cristo o pode. Logo,

não é esta a finalidade da boa obra feita a partir da fé. Sua finalidade está na vida do próximo

ao encontrá-lo em seu sofrimento, fardo, angústia e dor da vida (não no aplacar as próprias

angústias). A boa obra resultante da fé se opõe às causas da injustiça e da dor. E isto não é

fruto de mérito humano, mas ação de Cristo que vive na pessoa justificada. A boa obra é, pois,

o fruto visível da fé alicerçada em Cristo e a base da vida do ser humano.

Esta percepção fica evidente nos efeitos decorrentes da Justificação pela Fé em Cristo

no ser humano: por um lado o ser humano recebe o perdão e a justiça divinas, por outro (esta

é o objeto principal de nosso estudo) estabelece nele um novo ser. Este novo ser age em favor

do próximo, seu semelhante, de forma desinteressada. Lutero o expressa na dimensão do

pecado (WA/1,241, apud ALTHAUS, 2008, p. 253):

131 Esta é uma espiritualidade muito difundida na hinologia da Igreja Luterana (IECLB) até hoje. Joaquim Neander (1680) compôs o hino “Deus está presente” (124,1) que diz: “Deus está presente, todos o adoremos, com respeito nos prostremos! Deus está conosco, tudo em nós se cale, Deus a nossas almas fale! Quem o ouvir ou sentir, baixe os olhos, crente! Vinde ao Pai clemente!” In: Hinos do Povo de Deus, 1989.

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O crente não descansa na segurança do seu perdão dos pecados, como se o pecado não tivesse mais qualquer consequência, mas ele está completamente envolvido em luta para, por Cristo, obter diariamente a vitória sobre o pecado.132

A pessoa que crê está completamente envolvida em luta diária para obter a vitória sobre

o pecado. Mas também sobre a injustiça, a estratificação social, um capitalismo vorás, ... O

próximo capítulo quer apontar para este princípio do Cristo vivo em mim, que interpela o/a

cristão/ã em direção ao próximo e nele torna concreta a fé professada. No terceiro capítulo

perguntamos sobre esta fé vivida no século XXI.

132 A compreensão é a de que o ser humano já experimenta a justiça total, mas não a vive em plenitude. Por isso precisa se envolver cotidianamente no combate ao pecado. É a concepção do Reino de Deus na perspectiva do “já e ainda não”: já são experimentadas as primícias do Reino inauguradas por Cristo, mas ainda não em sua totalidade, pois o pecado ainda permanece no ser humano. A perspectiva real e escatológica estão presentes. Mas, com certeza, há uma irrupção do Reino de Deus para dentro de nossa história. Veja ALTHAUS, 2008, 251 – 262.

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3 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ: UMA PROPOSTA DE ATUALIZAÇÃO

3.1 CUIDADOS NECESSÁRIOS

No terceiro capítulo temos como objetivo principal analisar a relevância da temática da

Justificação pela Fé para o contexto do século XXI133. Nosso esforço de atualização da

temática se dará no sentido de não simplesmente “pegar uma ideia” ou tema da forma como

foi abordado no século XVI e transportá-la para o século XXI134. Há que se reconhecer a

distância temporal e também a contextual. Século XVI e XXI trazem sim semelhanças, mas

também grandes diferenças.135 Nosso intento é bem apresentado por Westhelle e por

Altmann. Westhelle (2011)136 fala da necessidade de “transfigurar” Lutero para nossos dias.

Ter ciência de que lidamos com temas do século XVI (Lutero lidava com temas de Paulo e

Agostinho) em contexto do século XXI. Westhelle constata que a pesquisa em Lutero avança

mais na Europa e nos Estados Unidos da América do que na África, Ásia ou América Latina. 133 A questão da atualização no contexto religioso é sempre controversa e complexa. Acolhemos aqui a ideia de que é tarefa da hermenêutica, por um lado, lidar com o texto transmitido e historicamente dado e, por outro, com a palavra e a fé. Logo, não é suficiente a compreensão histórica do texto. Será tarefa da hermenêutica “manter e estender o contexto de compreensão até a atual situação do entender e até aquilo pelo qual se deve responder na atualidade.” (EBELING, 1986, p. 75). Barth (2007, p. 125) fala do aproveitamento global da teologia de Lutero e sugere quatro passos necessários: “1) a teologia de Lutero deve ser libertada dos trilhos das questões tradicionais e levada para o campo aberto da discussão religiosa e social atual; 2) ela deve ser exposta com uma postura crítica diante de seus evidentes erros de conexão; 3) ela deve ser des-provincializada; e 4) ela deve receber uma formulação capaz de conectar-se globalmente.” Reconhecemos, também, que é um “salto” temporal significativo do século XVI para o XXI. Abrimos mão do detalhamento histórico e da análise detalhada dos conceitos teológicos ao longo dos séculos para, nesta pesquisa, priorizar a perspectiva de atualização. 134 Altmann (1994, p. 93) afirma que a doutrina da Justificação pela Fé, assim como formulada por Lutero, não é igual em relevância para todas as épocas e situações. Simplesmente “não existe tal teologia perene.” Brakemeier (2002, p. 79-81) afirma que as teologias têm o seu kairós e que um hiato abismal separa o mundo da Reforma e o do século XXI (ênfases do autor). Este abismo não foi transposto pela Assembleia Geral da Federação Luterana Mundial em Helsinken, 1963, que não conseguiu formular um consenso acerca da compreensão e relevância atual da mensagem da Justificação pela Fé. Uma das questões está na ênfase da transcendência (Lutero no século XVI) e a imanência que interessa ao ser humano moderno, emancipado e secularizado. Outra está na concepção de pecado: ele não gera a mesma intranquilidade. O mundo global tem outras perguntas. Tillich (1992, p. 218) também afirma que a igreja protestante está diante do desafio de se atualizar. As meras repetições de verdades religiosas tiradas da Bíblia e da tradição não alcançam mais as pessoas. Pelo contrário, hoje duvidam delas. Até mesmo as doutrinas mais centrais são questionadas por lhes parecerem alheias. A Igreja como instituição é questionada. Logo, há um trabalho de atualização a ser feito. Para Tillich este passa por derrubar as falsas seguranças da pessoa moderna e acolher a sua situação-limite. É, portanto, vivencial. 135 Não é intenção desta pesquisa aprofundar esta análise. Veja a respeito: DREHER, 2007, p. 14-17; ALTMANN, 1994, P. 137, nota 29; CAMPOS, 2009, p. 93-129. 136 WESTHELLE, Vitor. Porque Lutero é importante para a América Latina: uma Perspectiva Sistemática e Contextual. Palestra proferida para fundamentar o apoio da Igreja Luterana da Alemanha à criação da Cátedra em Lutero nas Faculdades EST de São Leopoldo, 2011.

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80 Mas constata também que o luteranismo cresce mais na parte sul do hemisfério. Logo, a

vivência Será algo híbrido transitando entre o rico resultado da pesquisa em Lutero que se faz na Europa e nos EUA e sua transfiguração a novos contextos sem medo de ousar vestir o manto de Lutero, mas na nossa própria pele. Um filósofo alemão do início do século XIX que se declarava Luterano de boa cepa, com o nome de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, em um de seus axiomas disse: “quando o absoluto cai na água, vira peixe.” (Wenn das Absolute ausgleitetund aus dem Bodem, wo es herumspaziert, ins Wasserfällt, so wird es ein Fish, ein Organisches, Lebendiges. (HW 2: 543) Parafraseando: quando Lutero cai no Brasil, vira brasileiro. E assim se dirá para toda América Latina, África e Ásia. (sic)

Altmann, ao empreender esforço de atualização da teologia de Lutero para o contexto da

América Latina, fala em preservar o “espírito” teológico. Ele assinala (1994, p. 20-21): o contraste entre o então e o agora pode revelar em si mesmo uma boa dose da relevância de Lutero para o presente. Muitas vezes, contudo, temos que admitir e reconhecer mudanças radicais. O evangelho único não é preservado pela mera repetição de formulações específicas, mas sim pelo processo de trazer à luz em novo contexto o evento libertário original, mesmo que isso requeira significativas alterações na terminologia, nos conceitos adotados e no modo de argumentar. Não raro, as decisões práticas podem até mesmo ser antagônicas, a fim de preservar o mesmo espírito.

O próprio Lutero definiu “somente a Escritura” um tema central da Reforma. Ebeling

(1986, p. 77-79) afirma que Lutero faz uma diferenciação entre “letra” e “Espírito” acerca do

como entendê-la: a Escritura não pode permanecer como letra, isto é, como “algo estranho,

distanciado e externo”, mas Espírito, ou seja, “que (as palavras) se tornassem vivas no

coração e tomassem conta do ser humano. (...) O que a voz expressa vocaliter (vocalmente)

deve ser compreendido vitaliter (vitalmente, vivencialmente) no coração através do Espírito

Santo.” Por detrás desta afirmação está a compreensão de que a letra entrega a pessoa ao

passado e o Espírito é atualizante, vivificante. Isto faz da “compreensão uma tarefa contínua e

infindável, que acompanha a progressão da existência.” E mais: para Lutero a “teologia como

objeto de pesquisa e como ponto de envolvimento pessoal constituía uma unidade

inseparável.” (Ebeling, 1986, p. 76).137 Ou seja, é luz para dentro da condição existencial.

Com base nesta exposição a temática da Justificação pela Fé precisa ser constantemente

refletida e atualizada sob pena de se tornar novamente letra que remete somente ao passado. A

tarefa da reflexão e da atualização é, portanto, a tarefa do deixar o Espírito falar.

Desta forma perguntamos sobre a relevância e o lugar da Justificação pela Fé no

contexto de Brasil e da América Latina do século XXI, ainda marcado pela exclusão.

Perguntamos sobre o conteúdo e forma que a Justificação pela Fé pode ganhar nesta

137 Lembramos que a reflexão hermenêutica em Lutero tem mais um ponto chave na compreensão do texto bíblico: Cristo como “sentido e palavra básica da Bíblia”. (EBELING, 1986, p. 82)

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81 atualização necessária, sobretudo em temas relevantes para nosso tempo. Em outras palavras,

é a pergunta pelo lugar da misericórdia de Deus em espaço de exclusão.138

3.2 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ: ALGO MAIS QUE PASSIVIDADE

Lutero e a Justificação pela Fé têm sido alvo de críticas. Uma é dirigida por Febvre

(2012) especificamente contra Lutero: ele é desinteressado das questões temporais. Estas não

seriam parte do ser cristão. Escreve Febvre (2012, p. 255-256): Lutero era um arauto da Palavra. Ensinar essa Palavra, tal como o Senhor lhe dava a conhecer e o obrigava a manifestar: eis sua missão neste mundo, sua única e exclusiva missão. Ora, pensava ele, a Palavra não se aplica aos problemas do século. O Evangelho não trata de assuntos temporais, nem de saber se a justiça reina neste mundo ou do que fazer para que reine. Sofrer, padecer, suportar a injustiça, carregar sua cruz, isso, ao contrário, ele ensina ao cristão: é esse seu destino humano, que ele deve aceitar de coração dócil; ou não será um cristão.

A Justificação pela Fé, por sua vez, tem sido criticada pela Teologia da Libertação139 de

ser fiel só parcialmente ao pensamento de Paulo, além de ser individualizante e

espiritualizante. Conforme Altmann (1994, p. 87), a crítica consiste na passividade que a

justificação sugere na vida da pessoa cristã. Ela levaria a um desinteresse ou paralisia ética,

carecendo de um princípio de ação concreto, palpável. Para ser acolhida como libertadora

deveria ser complementada pelo apelo à ação ética ou à cooperação com Deus. Senão,

abandonada.

A crítica da apatia ético-social não é exclusiva da Teologia da Libertação. Se no século

XVI a Justificação pela Fé foi um enunciado libertador140, com potencial para impulsionar um

novo modo de viver cristão, marcado pela empatia com a situação de sofrimento do outro

(ser-lhe como um cristo), como vimos, no imaginário cristão-protestante do século XXI

138 Tamez tem como locus de reflexão a realidade de exclusão na América Latina. O sistema econômico não é universal e exclui muitas pessoas do seu meio. Afirma que o ser humano latino americano não é sequer reconhecido, sendo relegado a uma condição de não-ser, um não-indivíduo, uma não pessoa (DUSSEl, Enrique. Filosofia de La liberación. México : Edicol, 1977, apud TAMEZ, 1995, p. 56). Há que se considerar que o contexto do luteranismo no Brasil, especificamente da IECLB, também constitui locus vivencial. 139 “Se se olha bem, entretanto, (o princípio luterano de salvação pela fé e não pelas obras) só é fiel a uma parte do pensamento de Paulo, ao que poderíamos chamar seu aspecto de liberdade de (seguindo a distinção que faz Fromm entre liberdade from – de – e liberdade to – para -). (SEGUNDO, 1978, p. 167) 140 Brakemeier (2002, p. 79) afirma que a pregação da Justificação pela Fé, no século XVI, “era sentida como libertadora” pelas pessoas: “... respondia a profundos anseios da época. Trazia o evangelho, a misericórdia de Deus, a salvação para perto das pessoas, dispensando ou, ao menos, minimizando a mediação da Igreja. A graça de Deus é gratuita.” Altmann (1994, p. 88) afirma que a Justificação pela Fé representou “libertação histórica”, pois “Lutero não encontrou resposta apenas para seu próprio problema pessoal, mas sim a resposta libertadora pela qual ansiava toda uma geração.” Veja também FISCHER, 2006, p. 26.

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82 predomina o “coram Deo”, a dimensão reconciliadora com Deus. A dimensão da vida, da

reconciliação com o próximo fica em segundo plano, quando não esquecida. Esta percepção

se evidencia no tratamento que é dado à Justificação pela Fé: uma doutrina, um saber, um

dogma. No imaginário da fé cristã-protestante falar em doutrina ou dogma significa direcionar

os pensamentos a Deus, não ao próximo. É a exaltação do “coram Deo”. Podemos, a partir

desta percepção, falar da dogmatização da Justificação pela Fé141. Transformada em doutrina

esvazia-se seu potencial libertador. Deixa de ser encarnada. Torna-se objeto de saber em

detrimento de uma prática, de um modo de vida.

Ocupemo-nos com as respostas às críticas. Quanto à Febvre o segundo capítulo da

pesquisa já mostrou a inconsistência da crítica. Os textos de Lutero Das Boas Obras e Da

Liberdade Cristã são enfáticos, claros e contradizem absolutamente o pensamento de Febvre.

Um bom resumo temos na expressão: ser como um cristo para o outro. Já no tocante à

Palavra, é verdade que Lutero se preocupava com a correta compreensão do texto bíblico.

Procura resposta para as perguntas existenciais do ser humano. Com o olhar bíblico-cristão

escreve sobre temas da vida como morte, matrimônio, liberdade, usura, educação etc.

(EBELING, 1986, p. 36-46). Bayer (1997, p. 42-44) oferece uma compreensão interessante

acerca de Palavra como a inter-relação de coração, boca e mão, ou seja, a “inter-relação entre

pensamento, palavra e ação.” Logo, a Palavra determina o ser. Quando a Igreja Luterana se

autocompreende como a Igreja da Palavra, é neste sentido que o faz.

Quanto à crítica da teologia da libertação, Altmann (1994, p. 88-90) a chama de injusta.

Injusta por desconsiderar que Lutero passa da avaliação subjetiva para a objetiva da

justificação142. Lutero, ao apontar para o Cristo encarnado por nós, “insere o justificado no

contexto maior da história salvífica de Deus em Cristo” (ALTMANN, 1994, p. 88). A crítica é

também considerada injusta porque desconsidera que a passividade ocorre somente em

relação a Deus, jamais em relação ao próximo e suas necessidades. No texto Da Liberdade 141 Acerca do tema veja Lienhard (1998, p. 311 – 318) que assinala continuidades e descontinuidades da teologia na tradição luterana. Afirma que seu centro é o culto – pregação e sacramentos – mas que também sofre de quietismo, uma letargia diante da mudança social, bem como de uma submissão às autoridades. Tamez (1995, p. 20ss), embora fale do protestantismo de forma mais ampla, também assinala que este é o sentido “corrente e irreflexo que se lhe atribui”. E conclui: o fato de muitos autores defenderem de forma recorrente a dimensão da superação do individualismo, a passividade, ... é denúncia da prática em relação ao tema. Hinkelammert (2012, p. 42-48) afirma que a fé cristã se institucionaliza desde cedo. Cita como exemplo a comunidade de Corinto na medida em que assume o mundo e nele proclama o batismo e não mais a Boa-Nova. Afirma que isto se dá na medida em que a fé cristã é imperializada e se amolda ao império romano e não tem mais forças para retomar a caminhada originária. 142 Altmann (1994, p. 84) reconhece que a experiência subjetiva de Lutero é determinante para sua teologia. Mas afirma, igualmente, que em nenhum momento Lutero aponta para si. Sua teologia e atitude apontam sempre para Cristo e sua obra. Exemplifica com o quadro de Lucas Cranach, o velho, no altar da igreja de Wittenberg, no qual Cristo está ao centro. Lutero deseja que a comunidade se volte para a cruz de Cristo, pois nela há justificação. Com esta cruz cada qual faz sua experiência subjetiva, como Lutero a fez.

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83 Cristã pudemos ver que Lutero conclama para o cuidado ao próximo sendo-lhe como um

cristo (ObSel, 2.453 [1520]). São estas, para Altmann (1994, p. 88), as “duas faces da

experiência cristã: a maravilhosa liberdade em relação a Deus, na fé, e o compromisso radical

com o próximo, no amor.” No texto Das Boas Obras – como vimos – Lutero deixa claro que a

obra realizada na fé em favor do próximo não tem objetivo próprio de justificação como a

escolástica propagava, mas é fruto da fé.143 Por fim, Altmann rechaça a acusação lembrando

que, em consequência das queixas de espoliação econômica da nação alemã ante Roma,

houve também um movimento político e econômico que redefiniu a relação entre principados,

o Império e Roma144. Portanto, a Justificação pela Fé não é resposta para uma angústia

pessoal tão somente, mas potencial libertador sócio-religioso-político-econômico.

Este potencial libertador sócio-religioso-político-econômico é perceptível quando

Lutero incentiva pessoas cristãs a assumir a política, que príncipes construam escolas e na

economia quando propõe cuidar dos pobres.145 Escreve Lutero no texto “À Nobreza Cristã da

Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão” (ObSel, vol 2, p. 321 [1520]): Uma das necessidades mais urgentes é acabar com toda a mendicância na cristandade inteira. Ninguém mais deveria mendigar entre cristãos. Também seria fácil estabelecer uma ordem a esse respeito se o encarássemos com a devida coragem e seriedade. Ou seja: Cada cidade deveria prover os seus pobres, não admitindo nenhum mendigo estranho, seja qual for a sua denominação, quer peregrinos, quer ordens mendicantes. Cada cidade poderia alimentar os seus, e caso for muito pequena, dever-se-ia admoestar o povo nos povoados vizinhos a contribuir com sua parte, uma vez que de qualquer forma teriam que alimentar muitos vagabundos e sujeitos mal intencionados a pretexto de mendicância. Dessa forma também se poderia saber quais são realmente pobres ou não.

Lutero, ao falar da fides Christi, efetivamente não faz diferenciação entre fé e prática.

Pelo contrário, a fé verdadeira é expressa de forma equivalente entre verbo/louvor e prática.

Este é o modo de vida decorrente da Justificação pela Fé: a pessoa justificada confessa e

pratica sua fé. A pergunta que cabe é: por que a religião deixa de ser caminho de vida prático

e concreto, vivencial e encarnado, para se transformar em doutrina que tem como efeito a

passividade do ser humano?146 Hendrix (GASSMANN ; HENDRIX, 2002, p. 18-37) dá um

143 Altmann (1994, p. 88) escreve: “... precisamente a liberdade diante de Deus permite que o compromisso ético seja centrado exclusivamente na necessidade do próximo, em vez de ser um disfarce para o benefício próprio.” 144 Esta questão será aqui apenas lembrada. Ela se deu em termos religiosos e econômicos. Em 1526, na 1ª Dieta de Espira, foi concedida liberdade para a constituição de estados evangélicos, decisão que a 2ª dieta, em 1529, tentou revogar. Diante deste intento, os príncipes adeptos da Reforma protestaram “alegando a liberdade de consciência como fundamento para a decisão de fé”. (ALTMANN, 1994, p. 277s). Veja também LIENHARD, 1998, p. 157, 219s; FISCHER, 2006, p. 36. O próprio Lutero muitas vezes reclamou da espoliação econômica que a Alemanha sofria. (ObSel, 5.367-428 [1524]). 145 Referências acerca destes temas são encontradas em ObSel, 2.277-340 [1520]; LINDBERG, 2001, p. 137ss; AHLERT, set. 2006, p. 101-114; ALTMANN, 1994, p. 197-228. 146 Segundo (1978, p. 47ss) também faz esta reflexão a partir da prática da eucaristia na Igreja Católica Apostólica Romana. Acusa-a de a-histórica, pois em nada muda após uma tragédia existencial. Uma clara preferência às questões intemporais. Tillich (1992, p. 218), como vimos, também critica a mera reprodução de

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84 indicativo de resposta: nos debates teológicos em torno dos temas da reforma a precisão da

definição e formulação dogmática se impôs ao aspecto prático e vivencial da fé. Foi mais

importante definir corretamente o pressuposto teológico e dogmático do que animar à

vivência da fé.147 Este pressuposto abre o caminho para a ortodoxia na Igreja148 e relega a

prática, a vivência a um segundo plano.

Outro caminho de reflexão está na própria teologia de Lutero e o contexto que a

circunda. Olhemos primeiro para o contexto: é a época da formação das igrejas territoriais na

Alemanha sob o princípio “cuius régio, eius religio” (o princípio consistia em que os súditos

tinham que aderir à forma religiosa de seu governante) e a consequente influência política dos

príncipes nos rumos religiosos dos seus territórios.149 Altmann (1994, p. 132) afirma que o

ambiente, marcado por disputas e guerras territoriais não era propício ao desenvolvimento de

uma fé autônoma em todo o território: Ao contrário, com o desenvolvimento do absolutismo político, as igrejas foram mais e mais domesticadas e integradas em sistemas políticos estatais. Sem dúvida, esse desenvolvimento histórico contribuiu em muito para o fato de que as igrejas luteranas tenham com freqüência se tornado marcadamente conservadoras. Ou seja – e isso é importante realçar: seu conservadorismo deveu-se a desenvolvimentos históricos políticos, não a opções teológicas fundamentais.150

Olhemos agora para a teologia de Lutero: ao afirmar que a ação prática não tem efeito

salvífico, pois esta é passiva no ser humano, naturalmente lança para um segundo plano a

verdades tiradas da Bíblia e da tradição: não são mais acolhidas pela pessoa moderna, pelo contrário, são questionadas. 147 Gassmann e Hendrix (2002, p. 18-37) descrevem este processo de institucionalização da fé luterana que significou a definição de uma forma evangélica de cristianismo, uma identidade. As disputas foram muitas. Basta lembrar a disputa entre Lutero e Karlstadt acerca dos sacramentos como mediadores da salvação e do ritmo de mudanças na igreja emergente. De maior significado, porém, foi a disputa entre Lutero e Zwínglio: em outubro de 1529 o príncipe Filipe de Hesse (1504-1567), interessado na unidade da fé emergente, promoveu o Colóquio de Marburgo, ou seja, um encontro entre Lutero e Zwínglio. Em pauta estavam 14 divergências teológicas. Em 13 houve acordo, porém não acerca da definição do Sacramento do Altar. Mesmo sem se darem conta, o desacordo significou o nascimento de duas confissões: a reformada e a luterana. Veja também: WACHHOLZ, 2010; DREHER, 1996, p. 79-94; LIENHARD, 1998, p. 249ss. Gassmann e Hendrix (2002, p. 51-57) apontam para a relevância que os documentos normativos firmados na Reforma têm ainda hoje. São documentos confessionais que visam garantir a doutrina e prática da Igreja, sobretudo no aspecto da salvação em Cristo somente e não por práticas humanamente definidas. Afirmam que documentos confessionais são também forma de transmitir o evangelho e que as pessoas incumbidas pela Igreja de anunciá-lo publicamente devem subscrever estes documentos normativos. Ou seja, acolhem-nos em seu trabalho ministerial como orientadores subordinados unicamente à escritura, a norma normans. Veja Também FISCHER, 2006, p. 32ss. 148 Não é objetivo da pesquisa analisar o caminho que leva à constituição da ortodoxia como doutrina teológica. Apenas manifestamos ciência de que o debate acerca da correta definição teológica já está presente na Reforma de forma bem acentuada. 149 García e Domínguez (2008, p. 33) afirmam que a Reforma foi possível, em grande parte, por conta da criação destes Estados Territoriais e do advento da nova economia. Um sinal evidente seria a criação da Universidade de Wittenberg (1502), grande impulsionadora do movimento da Reforma. 150 Fischer (2006, p. 50-51) ao analisar os limites da Reforma, inclui este tema entre eles. Afirma ter sido um erro dos reformadores delegar a administração da Igreja ao Estado. Na Alemanha isto foi custoso particularmente durante o período da 2ª guerra mundial. Esta aliança entre governo e igreja não é correspondente no luteranismo brasileiro. Mas a postura apolítica se faz perceber, apesar das disposições oficiais em contrário.

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85 percepção da fé como uma prática. Passa a não ser valorizada como prática. A pergunta que

fica é: esta percepção não gera um efeito prático que é a desqualificação da obra, do concreto,

da prática vivencial como expressão da fé? Sim, pois para Lutero a ação política não é o

Reino de Deus: a ação política é sempre provisória. Nós não podemos construir o Reino de

Deus. Este será sempre de Deus: Trata-se de reconhecermos que nos encontramos em situações provisórias, ainda a caminho da consumação. Essa ideia, contudo, deve ser complementada por aquela outra que sustenta a necessidade de concretizações parciais do reino de Deus em nossa realidade – se bem que provisórias, porém de fato concretas. (ALTMANN, 1994, p. 90.)

Podemos e devemos reconhecer que estas são ações civis, não salvíficas diante de Deus.

Por outro lado, diante da vida que clama e geme,151 são ações que expressam sinais do Reino

de Deus, mesmo que parciais. São sinais que expressam a salvação como fundamento: sou

salvo e ajo de forma a salvar. São pequenas ações que salvam a vida do outro da fome, por

exemplo. São ações que não têm poder salvífico transcendente, mas de importância absoluta

para a vida do outro na imanência. Assim pode ser definida a liberdade da pessoa cristã que

tem a salvação como fundamento da vida: tem liberdade para servir. A crítica, entretanto,

precisa ficar aberta, pois cremos que a prática do protestantismo em geral e do luteranismo em

particular, sobretudo no Brasil, ainda dão margem para ela.

A confissão verbal, individual, é mais aceita e propagada. Interessa-nos, nesta pesquisa,

acentuar a perspectiva da Justificação pela Fé como modo de vida, um modo de vida que não

se esgota em uma espiritualidade individual, pelo contrário, encontra sentido no outro e

mostra potencial para colocar sinais de um outro mundo possível, marcado pela prática

comunitária. Assim acolhemos a Justificação pela Fé: como fundamento, como princípio de

vida (não alvo ou objetivo) para o século XXI.

3.3 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ: PERSPECTIVA DE ATUALIZAÇÃO DE DIFERENTES AUTORES

A pergunta pela atualização da Justificação pela Fé é de fato relevante. Apesar de sua

relevância, ainda não há um caminho definido.152 É consenso, como já assinalamos no início

151 Altmann (1994, p. 90) afirma: “a vida sob a graça será sempre uma vida ameaçada, porque não estará realizada totalmente. Encontrar-se-á em uma tensão permanente, entre a cruz e a ressurreição.” 152 A atualização da Justificação pela Fé é caminho ainda a ser trilhado dentro do próprio luteranismo. Esta dificuldade ficou evidente no debate da IV Assembleia Geral da Federação Luterana Mundial em Helsinque, no

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86 deste capítulo, de que se trata de uma teologia “não perene”, que precisa continuamente

vencer a condição de “letra” e vir a ser “espírito”. Como Lutero, precisa cair no Brasil e “virar

brasileira”, mantendo seu “espírito” teológico originário.

No intuito de apontar para a relevância da Justificação pela Fé hoje, Tillich (1992) a vê

relevante na situação-limite da vida, ou seja, quando não há mais certezas e seguranças, a

Justificação pela Fé é a certeza e a segurança.

Tillich (1992, 212-221) argumenta que a Justificação pela Fé, assim como

compreendida por Lutero no século XVI, não fala mais às pessoas de nosso tempo153. Mas

reconhece que a questão de fundo é a mesma dos nossos dias, ou seja, situações que dizem

respeito aos limites da vida. Conclui afirmando que este limite o protestantismo precisa

proclamar de forma radical assim como foi proclamado no século XVI.

A situação-limite da vida encontra-se ali onde as possibilidades humanas alcançaram o

seu limite máximo e a vida se vê confrontada pela maior ameaça. A morte pode indicar esta

situação limite, mas não necessariamente o faz, pois a angústia ultrapassa a morte. “Qualquer

um sabe que a ameaça oculta nas raízes do próprio ser não é aliviada com a idéia da morte”

(TILLICH, 1992, p. 213), que pressupõe a transcendência, independentemente do que

pensamos dela. É justamente aqui que a liberdade, com a qual tomamos as decisões, é

inoperante. Eis a razão da profunda inquietação da existência. Essa inquietação exige

respostas. Pede seguranças. Por vezes estas seguranças são depositadas em verdades já

admitidas ou por exigências já realizadas. Outros continuam a busca, pois sabem que essas

“certezas” são frágeis, especialmente no protestantismo que confere maior liberdade diante da

igreja, do culto, da liturgia, dos sacramentos, ... do que no catolicismo que, por sua vez, de

forma autoritário-institucional, determina as verdades. Justamente aqui está, para Tillich, a

questão chave: o protestantismo (existe e) tem a ver com a questão de que a “substância

religiosa com toda a sua riqueza e sabedoria tradicionais não consegue oferecer verdadeira

segurança perante a ameaça suprema.” (TILLICH, 1992, p. 215). Ora, ou se assume a

situação-limite da vida ou se assume a tentativa de ver na igreja e nos sacramentos proteções

seguras para a ameaça incondicional. Tillich aponta que a igreja que assume a situação-limite

será muito diferente da igreja que proclama sacramentos e atos sacramentais de caráter ano de 1963, como vimos. (BRAKEMEIER, 2002, p. 79-80). O que há são tentativas de atualização de diversos autores. Alguns deles serão aqui contemplados. Esta pesquisa se coloca igualmente neste caminho de busca sem a pretensão de apresentar conclusões definitivas. 153 Uma vez por questões de terminologia (1992, p. 217) e de ruptura da tradição (1992, p. 213). Mas a questão central da crítica de Tillich está no vazio do discurso da Igreja que deixou de ser vertical (reserva religiosa) para assumir em demasia a horizontalidade (a historicidade). Tillich não anula uma ou outra, apenas afirma haver um exagero de ênfase na historicidade. Devemos sempre nos lembrar que “o ser humano não se situa apenas na história, mas também acima dela.” (1992, p 206).

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87 mágico para afastar as ameaças. E conclui: a igreja protestante não pode aqui abrir mão do seu

poder maior: a cruz154. Nela está o significado maior de sua existência.

Tillich vê aqui a relevância da temática da Justificação pela Fé hoje. Se os termos do

século XVI não são mais reconhecidos no século XXI, devemos ficar com a ideia. Logo,

afirma que Lutero experimentou a situação-limite da vida e rejeitou todas as seguranças e

garantias oferecidas pela piedade e igreja da época. Lutero Permaneceu nessa situação e aprendeu nela que é aí, e somente aí, que a existência humana pode escutar o ‘sim’ divino; essa resposta afirmativa de Deus não se funda em nenhuma conquista humana: é o julgamento soberano livre e incondicional de Deus acima de todas as possibilidades humanas. (TILLICH, 1992, p. 217)

A situação-limite existe e está aí; o ‘sim’ também. Logo, a mensagem protestante para o

século XXI não pode ser a proclamação de um dogma, mas o reconhecimento da presença de

Deus num momento em que todas as formulações tradicionais a respeito de Deus são

esvaziadas e perdem poder. E será tríplice:

a) assumirá a experiência radical da situação-limite humana e rejeitará as falsas

seguranças que as pessoas modernas têm e criam para evitar assumi-las. Estas falsas

seguranças decorrem de visões de mundo fragmentadas, ideologias, sistemas filosóficos,

psicológicos, sociais, políticos, trabalho, competição econômica, movimentos neo-religiosos,

estéticos etc, que outra coisa não fazem do que esconder a situação-limite;

b) assumir e pronunciar o “sim” que vem da situação-limite e assumi-lo com seriedade.

É preciso proclamar segurança quando estamos despojados de segurança; a integridade em

meio à desintegração; que revela o sentido da vida ali onde ela não tem mais sentido; ... E não

o transformará em novo dogma ou regra a ser aplicado. Ele é vivência;

c) dar testemunho do “novo ser” manifesto em Jesus, o Cristo. É isso que faz o

protestantismo ser cristianismo. Da situação-limite emerge um “novo ser” a partir de Cristo.

O detalhe que o próprio Tillich elenca é: estas situações-limite estão mais fora da igreja

do que dentro dela.155 Logo, o ser religioso experimenta e vivencia a Justificação pela Fé mais

fora da igreja do que dentro dela. “Se nessas situações proclamam-se e vive-se melhor e com

mais autoridade o princípio protestante do que nas igrejas oficiais, então é aí e não nas igrejas

que o protestantismo se torna vivo no mundo atual.” (TILLICH, 1992, p. 221)

154 Tillich (1992) afirma que a igreja protestante se esquece de sua real missão de olhar para a cruz como prerrogativa da situação-limite e insiste em possuir a “verdadeira doutrina”. É a crítica à dogmatização da fé em detrimento da vivência da fé. 155 Wegner (1990) apresenta estudo definindo a ecologia como meu próximo. Assim como Tillich, constata que os maiores defensores da causa ecológica estão fora da igreja. (p. 66-67).

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Ou seja, a Justificação pela Fé é um modo de vida, uma vivência que ultrapassa a

expressão dogmática e ganha a realidade dramática da vida. É ali, no cotidiano, na situação-

limite, que gera vida e impulsiona para o “Novo Ser”. Isto é vivência.

Altmann acredita que o termo “libertação” pode hoje ser acolhido, especialmente na

América Latina, como equivalente ao que o termo Justificação pela Fé expressava no contexto

do século XVI.156 Em contexto de dominação e dependência Ele é perfeitamente adequado para expressar a integralidade da salvação e sua característica de processo. É ao mesmo tempo relevante em sua dimensão pessoal e histórica. Por fim, expressa adequadamente a dialética bíblica de ser liberto de (uma escravidão) e liberto para (um serviço), atando o compromisso ético à ação gratuita de Deus. (ALTMANN, 1994, p. 93).

Altmann (1994, p. 94) crê que esta pode ser uma forma de se redescobrir a doutrina da

justificação na “materialidade da vida, especificamente nas relações de antagonismo de

classes.” Além disso, Altmann (1994, p. 283-285) propõe também que a relevância da

Justificação pela Fé hoje está: a) na relativização e rejeição dos valores imperantes na

sociedade moderna (capitalista e socialista). Na sociedade moderna o ser da pessoa é

determinado por valores de produção, posse, cultura, poder, fracionamento social, potencial

de consumo, ... Na Justificação pela Fé a pessoa é aceita de forma incondicional. Altmann vê

aqui uma importante raiz para a defesa da bandeira dos direitos humanos pelo luteranismo que

não deveria ser desprezada; b) em que a Igreja assuma seu papel de Igreja, ou seja, de ouvir a

palavra profética e anunciadora do amor de Deus. Quando assim age ela não se amolda às

estruturas vigentes na sociedade, não toma decisões de acordo com a moralidade social, não

assume para si como sistema interno de valores os valores do sistema de produção econômica

e nem entra em pacto com o poder político dominante.

Brakemeier (2002, p. 9-14), por sua vez, avalia que o ser humano vive uma crise de

sentido. A ciência o desalojou de suas referências cosmológica, biológica, psicanalítica e

genética. Foi lançado à margem onde se torna refém das ideologias. É guiado especialmente

pelo econômico, onde o princípio da produção define a identidade do ser. Este princípio o

156 Altmann percebe relativo consenso quando se olha retroativamente para Martim Lutero no tema da Justificação pela Fé. Mas percebe dificuldades quando se busca por sua relevância para hoje. Algumas dificuldades são elencadas por Altmann e se referem à terminologia jurídica (justiça ativa e passiva) que hoje não seria mais adequada; as questões da subjetividade de Lutero não são necessariamente as questões da subjetividade das pessoas hoje. Ainda outros temas podem ser acrescentados: acerca do lugar da religião no século XVI e na sociedade de hoje; acerca do lugar de Deus; etc. A falta de consenso também se mostra no consenso: mesmo tendo assinado e publicado a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação pela Fé da Igreja Católica Romana e da Federação Luterana Mundial (1999) (disponível em SCHÄFER, Hans. 1999, p. 50ss), tanto católicos quanto luteranos têm ressalvas com o texto. (BRAKEMEIER, 2002, p. 94ss).

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89 desumaniza, deteriora, tira o rosto, a identidade própria. O ser humano passa a ser pelo que

produz157, não pelo que é em si. A fé cristã não pode se conformar com isto que está dado.

Brakemeier (2002, p. 79-82) avalia que este é o novo contexto e pano de fundo da

reflexão do tema da Justificação pela Fé. No século XVI o pano de fundo do debate era o

aspecto escatológico. Hoje, para ser teologia relevante, a Justificação pela Fé precisa ser

confrontada com a práxis e o cotidiano158.

Onde estaria, então, a relevância da Justificação pela Fé hoje? O ser humano, para ser

reconhecido na sociedade atual, precisa constantemente justificar sua existência e o direito de

existir. A simples condição de criatura não é o suficiente para tanto. É preciso lutar para ter

lugar na sociedade. Em sociedade regida pela economia de livre mercado, de caráter

excludente, a pessoa é definida pelo poder aquisitivo, pelo grupo social ao qual pertence e por

sua capacidade produtiva. Estes fatores geram reconhecimento e identidade. (BRAKEMEIER,

2002, p. 82-88).159 É tarefa da Justificação pela Fé relativizar este critério absolutizado de

mercado.160 A perspectiva que se abre é a da Justificação pela Fé como um fenômeno humano

onde sua tarefa é superar o critério da utilidade. Para dentro desta sociedade Deus continua

sendo escândalo, pois “questiona toda pretensa onipotência humana e revela-se justamente

assim como libertador das pessoas que sofrem discriminação e condenação.”

(BRAKEMEIER, 2002, p. 88). Conclui que Deus acolhe a pessoa por misericórdia, não por

critério de utilidade, o que se mostra em Jesus quando une doutrina e vida: Jesus justifica, chamando pecadores para a sua comunhão, perdoando-lhes a culpa e tornando-os seus discípulos. Ele justifica, acolhendo os pobres, mitigando-lhes a fome e declarando-os bem aventurados. Ele justifica, curando doentes, tocando nos impuros, libertando os possessos. Justificar significa salvar vida, devolver a dignidade, apagar a culpa. Jesus não se interessa por méritos, ... (ênfases do autor). (BRAKEMEIER, 2002, p. 89)

157 Hoje já devemos incluir aqui o princípio do consumo, não somente da produção como afirma Brakemeier. Com a discordância de Brakemeier, temos a impressão de que na atual sociedade é e existe quem consome. 158 Brakemeier (2002, p. 79-82) dá razão às vozes que afirmam ser necessário traduzir o tema da Justificação pela Fé para a linguagem e temas do século XXI. Este ponto de partida pode facilitar o consenso ecumênico que ainda falta na temática, mesmo considerados os avanços significativos obtidos com a Declaração conjunta entre a Igreja Católica e a Federação Luterana Mundial. Brakemeier avalia que as ameaças de fogo infernal e a cosmovisão teísta do século XVI são premissas consideradas obsoletas no debate teológico do século XXI. O dogma, firmado em fórmulas abstratas, precisa se aproximar da práxis e do cotidiano. 159 Novamente acrescentamos à lista de definições o “potencial de consumo”. Brakemeier apoia sua reflexão em NÜREMBERG, Klaus. Wider die Verengung der Rechtfertigungslehre. Jahrbuch Mission 1993. Hamburg, 1993, p. 144; FORDE, Gerhard, locus 11: vida cristã. In: BRAATEN, Carl E., JENSON, Robert W. (Eds). Dogmática Cristã. São Leopoldo : Sinodal, 1990, vol 1, p. 418; BAYER, Oswald. Viver pela Fé: justificação e santificação. São Leopoldo : Sinodal, 1997, p. 9-10 e SUNG, Jung Mo. Desejo, mercado e religião. Petrópolis : Vozes, 1998. 160 Para Lutero o mercado seria aqui chamado de “falsa segurança”, como a indulgência o foi. Faz uma promessa que não pode cumprir. É um fetiche. Ao final ficam somente vítimas. O Reino de Deus/a Justificação pela Fé tem a tarefa de mostrar a limitação do mercado. Tem a tarefa de ser contraponto ao mercado. Descortinar o mercado falho e denunciar sua pretensão absolutista e totalitária.

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Hinkelammert (2012) apresenta mais um aspecto que julgamos importante considerar: a

necessidade da existência de um sistema que gerencia a organização social e humana.161

Este sistema é hoje dominado pela lei de mercado. Gera uma espiritualidade

hegemônica que é consumista, excludente e sacrificial. Hayek (HAYEK, Friedrich Von.

Entrevista Mercúrio 19.04.1981, apud HINKELAMMERT, 2012, p. 118) a define assim: Uma sociedade livre requer de certas morais (sic) que, em última instância, se reduzam à manutenção de vidas: não à manutenção de todas as vidas, porque poderia ser necessário sacrificar vidas individuais para preservar um número maior de outras vidas. Portanto, as únicas regras morais são as que levam ao “cálculo de vidas”: a propriedade e o contrato.

Hinkelammert (2012, p. 118-120) conclui, ao comentar a declaração de Hayek, que na

espiritualidade hegemônica o que realmente importa é o cumprimento da lei do mercado. Este

não tem limites e mata. O mercado age respaldado pelo sistema legal: “... as vítimas não

importam e são irrelevantes”. Contrapõe a esta forma de pensar e agir do sistema (chamado de

o pecado) a fé como uma maneira de viver, “que liberta a verdade da prisão da injustiça.” É o

que chama de “fé de Jesus” (grifo do autor). “Essa fé está em todas as partes sempre e quando

o ser humano se humaniza.” É, portanto, uma fé secular, que age para dentro do cotidiano que

aqui podemos chamar de contraespiritualidade. A Justificação pela Fé é o fundamento

motivador desta contraespiritualidade.162

Míguez (2010, p. 89) afirma o papel profético da graça nesta realidade econômica que

conta vidas: La introducción de La gracia como forma de justicia en la esfera de lo económico desafía la Idea de la centralidad y exclusividad del mercado y obliga a pensar en cómo será la economía de los que se han quedado “sin parte”, para no ser reducidas a mera vida biológica, o directamente al descarte y la muerte.

Leonardo Boff, em artigo publicado na Revista Carta Maior, intitulado “O funesto

império mundial das corporações”163, afirma que vigora no mundo corporativo e econômico a

lei de Darwin, cujo teor é: o mais forte se apropria do mais fraco. Denuncia a grande

161 Hinkelammert (2012, p. 75, 61-89) afirma que estamos inseridos em micro e macrocosmos que se inter-relacionam. Um revela o outro. Paulo leu o macrocosmo a partir do microcosmo que vivia e experimentava. Ou seja, sistemas que regem a vida sempre existiram e continuarão a existir. Este não é o problema. O problema é a absolutização de um sistema que faz aparecer o satânico, o luciférico. Sistema que, para o bem estar de alguns, exige o sacrifício de outros. E mais: quando este sistema é mantido e sustentado por leis criadas para tal fim. Então justiça não significa cumprir a lei que sustenta o sistema; antes, justiça é descumprir a lei que sustenta o sistema satânico, que gera morte. Brakemeier (2002, p. 85) também afirma ser necessário o princípio da produtividade. Problemático é absolutizá-lo e vincular o direito humano à produtividade. 162 Até aqui vimos que a Justificação pela Fé é a resistência a esta espiritualidade hegemônica por excelência por, entre outros motivos, acolher o ser humano incondicionalmente; não valorizar sua capacidade de produção e consumo, mas seu ser; por ter como critério e referência incondicional a vida, não o consumo; etc. 163Disponível em http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/O-funesto-imperio-mundial-das-corporacoes/29872, 2013, acesso 04.01.2014.

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91 concentração de corporações através de fusões164 que têm por objetivo ganhar mais dinheiro,

exercer influência política e determinar os rumos da economia. Richard Wilkinson (entrevista

ao jornal Die Zeit, da Alemanha, apud BOFF, 2013) pergunta: “a questão fundamental é esta:

queremos ou não verdadeiramente (sic) viver segundo o princípio que o mais forte se apropria

de quase tudo e o mais fraco é deixado para trás?”. E conclui: “creio que todos temos

necessidade de uma maior cooperação e reciprocidade, pois as pessoas desejam uma maior

igualdade social”. Ou seja, Wilkinson também não elimina o sistema econômico que rege a

sociedade. Dá a entender que ele é necessário e dentro dele precisamos nos organizar e

estruturar. Mas questiona as referências do atual modelo dominante ao apontar para uma nova

forma de viver, se organizar e relacionar dentro deste sistema necessário para a sobrevida da

humanidade. Relativiza a referência hegemônica centralizadora e consumista e aponta para

uma nova, mais humana, mais solidária, mais igual socialmente.

3.4 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DE UM MODO DE VIDA

Esta nova forma165 queremos aqui chamar de um modo de vida que é resistência a este

movimento desumanizador, ou seja, um movimento que prioriza o mercado e o absolutiza,

que concebe o ser humano como objeto, que conta vidas e que se mantém por um sistema

legalmente constituído que mata. A Justificação pela Fé gesta um modo de vida que tem como

pressuposto um movimento de defesa da vida, de cuidado com o outro e de amor ao próximo.

Um modo de vida que está na materialidade da vida (Altmann), que está inserido na práxis da

vida e no cotidiano (Brakemeier), que anuncia a “Boa-Nova” (Hinkelammert) e que dá voz ao

desejo de mais igualdade social (Wilkinson). Compreender a Justificação pela Fé como um

modo de vida é concebê-la para além do rito religioso, do dogma ou doutrina; é acolhê-la

como uma vivência.166 Uma vivência orientada pela fé que se materializa no cuidado para

com o próximo. É a vivência ativa que decorre do recebimento passivo da graça de Deus

(BRAKEMEIER, 2002, p. 91).

164 Em verdade é uma empresa engolindo a outra. Quando restam só as grandes, fazem acordo entre si que interessa aos acionistas e a elas próprias, não à sociedade, diz Boff. 165 Em verdade não é um novo jeito, é uma “nova velha” definição. Já em Paulo as comunidades que ouviam da Justificação pela Fé “intentavam viver nova vida.” (TAMEZ, 1995, p. 198). 166 No próximo se materializa a dimensão “Coram Deo” da Justificação pela Fé.

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É um modo de vida marcado por uma nova natureza: a natureza da pessoa justificada

pela fé.167 Uma natureza que me move. Um princípio que define a pessoa. Um princípio que

impulsiona. Um princípio que torna palpável o que confesso e professo na fé. Um princípio

que torna a palavra dita e professada em vivência. Um princípio fides Christi: o Cristo em

mim que me move.168 Um princípio que não busca o mérito (pregado pela sociedade

econômica), mas age em favor do próximo por ser esta sua natureza. Natureza que é

expressão de gratidão, unicamente.169

Há metáforas que expressam bem o que queremos dizer: uma delas é a do sol170. Ele

brilha. Não tem como não brilhar. Raio e brilho solar são inseparáveis. Sua natureza é emitir

raios solares que brilham. Outra metáfora é a da laranjeira171: o pé de laranja produz laranjas.

Não tem como não produzi-las. No seu tempo o fará. Pé de laranja e fruto laranja formam

uma unidade. Outra metáfora é conhecida como sendo a do monge e do escorpião172: um

mestre do Oriente viu quando um escorpião estava se afogando e decidiu tirá-lo da água. Mas

quando o fez, o escorpião o picou. Por causa da reação de dor, o mestre o soltou e o escorpião

caiu de novo na água. O mestre então o tira novamente da água e também a picada se repete.

Quando da terceira tentativa de tirar o animal da água alguém que estava observando tudo se

aproximou e disse-lhe: “desculpe-me, mas você é teimoso! Não entende que todas às vezes

que tentar tirá-lo da água ele irá picá-lo?” Ao que o mestre respondeu: “a natureza do

escorpião é picar, e isto não vai mudar a minha, que é ajudar”. Então, com a ajuda de uma

167 Afirma Lutero (1546) acerca da fé: “fé (...) é uma obra divina em nós que nos modifica e nos faz renascer de Deus, João 1, (...), mata o velho Adão, transforma-nos em pessoas bem diferentes de coração, sentimento, mentalidade e todas as forças, e traz consigo o Espírito Santo. Ah, há algo muito vivo, atuante, efetivo e poderoso na fé, a ponto de não ser possível que ela cesse de praticar o bem.” (ObSel, 8.133 [1546]). 168 Lutero, no Debate sobre a Teologia Escolástica, afirma, na tese 34, que “a natureza não tem nem ditame correto nem vontade boa”. (ObSel 1.17 [1517-1519]). Também não é o que afirmamos aqui. Por isso compreender uma nova natureza em correlação com fides Christi (a fé de Cristo em mim) é essencial: Cristo em mim molda esta nova natureza. 169 Lohfink (1986, p. 187ss), ao comentar o “ide” de Mateus 28.18-20 sustenta que o texto grego é mal traduzido, conduzindo a erro de compreensão em português. O que muitas versões trazem como sendo “ensinar” todos os povos em verdade é “fazei que todas as nações se tornem discípulos”. A intenção de Mateus não é ensinar dogmas, mas o discipulado, o “modo de viver que Jesus ofereceu ao verdadeiro Israel como práxis do Reino de Deus.” (p. 188). O objetivo de Mateus é, então, que comunidades cristãs, fiéis aos ensinamentos e práxis de Jesus, se espalhem pelo mundo numa vivência continuada da práxis do Reino de Deus. (p. 189). Não significa querer transformar o mundo num “grande convento” (DREHER, 1994, p. 53-55), mas enchê-lo da práxis do Reino. Não significa obrigar as pessoas a confessar o que eu confesso: vivo um espírito que me move, mas o rosto que ele assume é aberto. Ou seja: um espírito me move e ele cabe dentro das mais variadas confessionalidades religiosas. 170 É atribuída a Lutero. 171 Atribuída a Milton Schwantes. 172 Disponível em http://filosofiaimortal.blogspot.com.br/2013/05/o-monge-e-o-escorpiao.html, acesso em 07.01.2013.

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93 folha, o tirou da água e o salvou. Logo, vivo o que sou; vivo o que está em mim; vivo o que

sou por princípio.173 Este é o fundamento, o princípio que me move.

Tillich (1957, p. 5-7) contribui na definição deste princípio quando analisa o termo “fé”

e suas implicações como “estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente.”174 Este

“estar possuído incondicionalmente” refere-se à pessoa como um todo. “Ele se realiza no

centro da vida pessoal e todos os elementos desta dele participam. (...) Todas as funções do

homem estão conjugadas no ato de fé.” (TILLICH, 1957, p. 7-8). Participam deste movimento

o consciente e o inconsciente da pessoa: Fé como manifestação da pessoa integral não pode ser imaginada sem a atuação concomitante dos elementos inconscientes na estrutura da pessoa. Eles sempre estão presentes e determinam em alto grau o conteúdo da fé. (TILLICH, 1957, p. 8).175

Logo, a fé é o centro que orienta e coloca em movimento o todo da pessoa. A fé movimenta a

integralidade do ser. Lutero (ObSel, vol 2, p. 110 [1520]) afirmava que a fé é o “mestre de

obras e capitão em todas as obras”, ou seja, “o motivo, sim, mais ainda: o movens como razão

para agir, como energia e poder para abrir-se, para passar adiante o recebido”. (BAYER,

2007, p. 206. Destaque do autor). A Justificação pela Fé é, portanto, o que me move: ela

coloca em movimento um modo de ser e de viver.

Com Lutero isto pode ser assim exemplificado176: se uma pessoa entra na padaria e

rouba um pão porque está com fome, mas não tem dinheiro para pagá-lo, não é roubo. É dar

voz à exigência mais básica de manutenção da vida: alimentar-se. Podemos discutir todas as

nuances e implicações sócio-mercantilistas do fato, mas a vida é aqui apresentada como

prerrogativa absoluta e inegociável. Por outro lado, se uma pessoa entra na padaria e rouba

um pão, mas não está com fome, independentemente se tem dinheiro para pagá-lo ou não, é

173 Lohfink (1986, p. 105-202) reflete a perspectiva das primeiras comunidades cristãs e da Igreja como seguidoras fiéis da mensagem escatológica anunciada por Jesus. Esta mensagem é uma vivência que espelha a práxis do Reino de Deus. Entre as principais características destacamos: a abolição das barreiras sociais, a práxis da reciprocidade, a vivência do amor fraterno, o servir em vez de dominar etc. E conclui: a práxis dos valores do Reino de Deus contrastam com os valores hegemônicos da sociedade de mercado. Não é que se vislumbre uma Igreja ideal, perfeita, sem culpa, “mas uma Igreja na qual da culpa perdoada cresce esperança infinita.” (p. 202). O que Lohfink apresenta para a coletividade ganha, na Justificação pela Fé, também a dimensão da individualidade. 174 Este estar possuído incondicionalmente pode se referir a Deus (especialmente na concepção de Deus do Antigo Testamento) ou ao mercado econômico, por exemplo. No Antigo Testamento Deus traz a exigência de submissão da pessoa a Ele (Dt 6.5). Cumprida, há promessa de realização pessoal e nacional para Israel. Descumprida, sua ruína é a ameaça. O mercado faz a mesma promessa e ameaça: em caso de fidelidade promete status social, ascensão econômica, sucesso etc; em caso de infidelidade a ruína. 175 Bultmann (Sermon Matheus 25.31-46, apud ALTMANN 1994, p. 303-304) afirma que no gesto inconsciente se revela nosso ser. Ele pode revelar tanto o amor como a falta dele, revelando nosso real valor. Faz ver (ou não) o Cristo no próximo pequenino/necessitado. 176 “Se alguém que não está padecendo fome toma pão da estante do padeiro, ele é ladrão; se, porém, o faz quando está padecendo fome, age corretamente, pois é dever dar-lhe pão e outros bens dessa natureza”. (ObSel 5.468 [1540]).

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94 roubo. É dar voz à cobiça, ao querer ter algo pelo simples prazer de ter. A diferença entre um

e outro está justamente na intenção que moveu ao ato.

Sabemos que as decisões tomadas a cada dia são marcadas pela complexidade. Porém, o

princípio da intenção que me move quer delinear a ação cotidiana, seja em grandes ou

pequenos projetos. Ele quer animar a pessoa a fazer tudo “como se não houvesse Deus.”

(LUTERO, Martin. Vorrede auf den Prediger Salomon [1524]: WADB 10/II,106,6-15, apud

BAYER, 1997, p. 36)177. As obras da pessoa justificada não estão isentas de ambiguidade,

nem são arbitrárias. Mesmo que não tenhamos condições de desvendar o complexo entrelaçamento das motivações do nosso agir nem de prever todas as conseqüências das nossas obras e muito menos predeterminá-las, o cuidado para com o próximo e todas as outras criaturas, bem como suas necessidades elementares, nos mostram de maneira suficientemente clara o que deve ser feito. “Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças!” A pessoa que Deus justifica se dá por “satisfeita com o que está aí à mão” e não tem necessidade de “dominar e controlar” as coisas “em vista do futuro”. (LUTERO, Martim. Vorrede auf den Prediger Salomon [1524]: WADB 10/II,106,9, apud BAYER, 1997, p. 37).

O fato de não ser necessário controlar as coisas em vista do futuro aponta para o fato de que a

pessoa justificada não está condenada ao sucesso (BAYER, 1997, p. 37), como o mercado o

exige. Mas o fato de fazer “tudo quanto te vier à mão” revela que o mundo pode ser

melhorado.178 Mesmo o sucesso não sendo exigência, a pessoa se empenha: Não devemos, então, fazer nenhum tipo de provisão, deixar portas e janelas abertas e nem nos defender, mas deixar que nos golpeiem como se fôssemos corpos mortos (...)? De modo algum! Acabaste de ouvir: as autoridades devem vigiar, ser diligentes e fazer tudo que compete ao seu ofício: fechar os portões, guardar portas e muros, usar armadura, armazenar provisões, portar-se como se não houvesse nenhum Deus e eles tivessem que salvar-se a si próprios e governar eles mesmos, assim como um chefe de família deve trabalhar como se com seu trabalho ele próprio quisesse sustentar-se. Disso, porém, ele deve se guardar: que o seu coração alguma vez confie neste seu agir. (LUTERO, Martim. Vorrede auf den Prediger Salomon [1524]: WADB 15,372,22-373,17, apud BAYER, 1997, p. 36).

Bayer, então, conclui que a pessoa justificada pela fé renasce para dentro deste mundo: Ser levado de volta ao paraíso, nascer de novo, ser criado de novo não acontece fora do mundo, mas de forma mundana, como entrada em uma nova mundalidade (sic). “Nova criação” não é afastamento do mundo, mas uma volta a ele, conversão ao mundo. Nova criação é a conversão ao mundo como conversão ao Criador no ouvir a voz com que ele se faz ouvir através das criaturas, a voz com a qual, por meio das criaturas, ele se dirige a nós e nos interpela. (...) Deus quer ser Criador de tal forma que ele não nos interpela de nenhuma outra maneira a não ser através das suas

177 A formulação está no contexto da interpretação do Salmo 127. Ali Lutero reflete acerca da relação entre a obra de Deus e a obra do ser humano. (BAYER, 1997, p. 36). 178 Lutero concebe que o mal provoca o caos. A pregação da Palavra é, pois, a organização do caos. Por isso concebe que o ser humano tem sim um papel importante no sentido de fazer com que este mundo permaneça boa criação de Deus. A melhoria do estamento cristão é isso: ação humana que ajuda o mundo melhorar. Nisto a pessoa é colaboradora de Deus. Veja DREHER, 2006, p. 51-53; LIENHARD, 1998, p. 197-198. Uma canção da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil define bem esta ação que não tem caráter meritório: “libertação se alcança no trabalho, mas há dois modos de se trabalhar: há quem trabalha escravo do dinheiro e há quem procura o mundo melhorar.” (hino Nossa Alegria. In: Povo Canta, 2007, hino 81).

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criaturas. (LUTERO, Martim. Pregação sobre Marcos 7.31-37 [1538], WA 46, 493-495, apud BAYER, 1997, p. 29)

Lutero não deseja a retirada do mundo. Nem a passividade. Pelo contrário, as criaturas

de Deus é que interpelam aqui a pessoa justificada. O cidadão da padaria, com fome e sem

dinheiro, interpela. Provoca uma (re)ação, pede um cuidado, exige resposta de vida. A pessoa

justificada pela fé não tem como não se importar. É movida por princípio.

Na continuidade deste trabalho queremos ainda fundamentar este princípio da

Justificação pela Fé como um modo de vida com literatura e também com a prática da vida.

3.5 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DAS RELAÇÕES ECONÔMICAS

Definir a Justificação pela Fé como um modo de vida é dar sinais de como vive a pessoa

justificada pela fé. Ou seja, dar indicativos da postura ético-social da pessoa que se percebe

justificada. Em Lutero ela se mostra válida ainda em outros temas. Aqui o fazemos no tema

da economia.

Ao olhar para o tema da economia em Lutero, devemos lembrar aspectos da conjuntura

sócio-econômica da Idade Média, como vimos no primeiro capítulo. Em particular o proceder

da Igreja em relação às indulgências e os sinais do gestar de um novo modelo econômico que

hoje chamamos de capitalismo. Lutero não fez uma análise econômica da sociedade ou do

evangelho propriamente dito. O que fez foi observar práticas econômicas179 em situação de

comércio necessário, sobretudo no contexto urbano, e analisá-las à luz do Evangelho, à luz da

Justificação pela Fé. As principais referências encontramos nos textos “Comércio e Usura”180

(1524) e “Aos Pastores para que preguem contra a usura”181 (1540).

Observemos o comentário de Lutero em relação ao comércio exterior (importação e

exportação) que alimenta a sede dos ricos ao luxo: O comércio exterior, entretanto, aquele que traz mercadorias de Calcutá e da Índia e outros lugares estrangeiros [importação], como preciosa seda, ouriversaria e especiarias, que somente servem de ostentação e não têm utilidade, sugando o dinheiro do país e das pessoas, não deveria ser permitido, (...). Calcule quanto dinheiro é levado para fora da Alemanha [exportação] durante uma feira de

179 As modernas teorias de economia não eram conhecidas na Idade Média. Logo, não são elas a referência para Martim Lutero. Antes, é-lhe referência o Evangelho, a prática cotidiana e a necessidade do próximo. 180 Disponível em ObSel 5.367-428 [1524]. As citações que seguem são deste texto. 181 Disponível em ObSel 5.446-493 [1540].

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Frankfurt, sem qualquer necessidade. É de se admirar que ainda reste um centavo na Alemanha. Frankfurt é o ralo da prata e do ouro, pelo qual se escoa da Alemanha tudo que entre nós brota e cresce, se cunha e se forja. Se o ralo fosse fechado, não se haveria de ouvir agora as queixas de que só há dívidas e falta de dinheiro por toda a parte, de que todas as regiões e cidades estão sobrecarregadas pelos juros e pela usura. (ObSel, 5.377s [1524])

A crítica que pode ser feita a Lutero consiste em negar o sistema econômico emergente.

Lutero não teria se dado conta de que estava em meio à gestação de um novo sistema

econômico e teria ficado preso ao sistema econômico feudal, agrário.182 Mas o mais provável

é que a crítica de Lutero tenha sido feita com o olhar teológico: nesta prática de comércio

exterior o princípio cristão do amor ao próximo, do cuidar da necessidade do próximo, dá

lugar ao prazer (luxúria) pessoal. Não podemos esquecer que esta já era uma crítica de Lutero

ao proceder da Igreja na questão das indulgências: a caridade, o cuidado, a esmola ao

necessitado havia sido retirada e repassada para a Igreja na forma de indulgência. Lutero

afirmara que antes do supérfluo vem a necessidade do próximo.

Uma segunda questão a ser observada em Lutero é a crítica acerca da comercialização

da necessidade das pessoas. Diz Lutero (ObSel, 5.378s [1524]): Em primeiro lugar, os comerciantes têm uma regra comum entre si, que é seu lema principal e fundamento de todo o negócio; eles dizem: “posso vender minha mercadoria tão caro quanto puder”. Acham que este é um direito deles. Aí se dá espaço à ganância e se abrem todas as portas e janelas para o inferno. Que é isso senão dizer: Eu não me preocupo com o próximo? Se tenho meu lucro e satisfaço minha ganância, que importa que prejudique o próximo dez vezes de uma só feita? Aí você vê como esse lema afronta direta e desavergonhadamente não só o (sic) amor cristão, mas a própria lei natural. Mas que então haveria de bom no comércio? Como ficar sem pecado, se tal iniquidade é a principal diretriz e regra de todo o comércio? Desta maneira o comércio não pode ser outra coisa senão pilhar e furtar as posses dos outros.183

Lutero entende a relação comercial como um serviço ao próximo. Aqui denuncia a

prática de aumentar o preço em conformidade com a necessidade do próximo. É a supressão

do valor evangélico e a valorização do valor comercial. A isto chama de “procedimento

acristão e desumano”, de “vender ao pobre sua própria carência”, ou seja, ele é “forçado a

comprar sua necessidade”. (ObSel, 5.379 [1524]). Lutero defende um preço justo que é

definido a partir de uma tríade: a mercadoria (considerar o tempo e trabalho investido para

consegui-la), o comprador (a necessidade dele especificamente) e o vendedor (tem o direito

ao lucro para viver, mas pratica um serviço cristão ao próximo). O ideal é que o valor dos

produtos seja definido pelo livre mercado, mas para evitar abusos pode haver tabelamento 182 Veja, por exemplo, Lienhard (1998) e Brendler (1983). 183 Quando escrevo este texto acontece uma enchente no Estado do Espírito Santo. http://agazeta.redegazeta.com.br/_conteudo/2013/12/noticias/cidades/1473447-itaguacu-registra-o-maior-numero-de-mortes-da-chuva-no-estado.html, acesso em 27.12.2013. A situação denunciada se repete nas cidades atingidas. Mensagens em redes sociais dão conta desta exploração de ocasião, no caso o arroz e o gás de cozinha. Veja https://www.facebook.com/marialucia.rossmannramlow/posts/-483454075109321. Acesso em 27.12.2013.

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97 máximo de preços por parte do Estado. Riqueza, neste contexto, é denúncia da exploração

comercial e sinal evidente da prática gananciosa, contrária aos mandamentos. (ObSel, 5.380-

382 [1524]).

Lutero também condena o que chama de “espertezas e fraudes”, ou seja, o monopólio, a

ganância dos comerciantes, a prática de dumping, a prática de vender um produto que o

comerciante não dispõe ou ainda não existe, a prática de induzir um produto a preço menor

para provocar a falência do comerciante concorrente, a formação de cartel, a agiotagem, o

fraudar o peso de determinado produto, a injustiça praticada pelas companhias comerciais184 e

pelos príncipes. O que mais impressiona é que são temas que persistem nas práticas

comerciais até nossos dias.185

Observamos ainda a prática do empréstimo financeiro. Aqui Lutero admite a

necessidade de haver fiador.186 O ideal do empréstimo financeiro, entretanto, é suprir a

necessidade do próximo. Esta é a razão da sua existência. O risco do calote precisa ser

assumido integralmente por quem empresta o dinheiro. Conforme Unger (2010, p. 111)

Lutero traz o tema da ética jurisdicional para a área da ética cristã e estrutura seu pensamento

de empréstimo cristão em quatro pontos principais: a) o cristão é alguém despojado e assume

Mateus 5.40: “se alguém te tira a túnica, deixa-lhe também a capa”; b) o cristão assume

Mateus 5.42: “dá a quem te pede ...” – pressuposto é o imperativo de confiar que, a cada dia, o

Senhor dá o necessário para a vida; c) Lutero entende ser permitido o empréstimo, mas quem

empresta não deve esperar devolução do valor emprestado. Precisa abrir mão desta

perspectiva. Assim, a fronteira entre dar e emprestar se dilui. Se houver devolução do valor,

que seja algo espontâneo da parte de quem tomou o empréstimo. Para evitar abusos, reitera o

aspecto fraternal ao afirmar (ObSel 5.387s [1524]): O empréstimo então seria algo muito bom entre cristãos; cada qual devolveria espontaneamente o que tivesse tomado emprestado, e aquele que tivesse cedido o empréstimo o dispensaria de bom grado, caso o outro não conseguisse devolver. Pois cristãos são irmãos, e um não abandona o outro; mas também nenhum é tão preguiçoso e descarado a ponto de não trabalhar e fiar-se nos recursos e no trabalho do outro, querendo viver no ócio às custas dos bens de outrem.

184 Obtiveram vantagem em determinados países da Europa decorrente de monopólio do comércio de minério e financiaram expedições para as Índias e Américas com margem de lucro na casa dos mil por cento. 185 A edição de economia do Jornal Correio Popular, de Campinas, SP, do dia 26 de dezembro de 2013, na página A13, traz matéria afirmando que o megainvestidor americano Warren Buffett liderou o grupo de bilionários que mais ganhou dinheiro em 2013: sua fortuna aumentou em 12,7 bilhões de dólares (R$ cerca de 29 bilhões de reais) entre janeiro/2013 e 11 de dezembro/2013, cerca de 37 milhões de dólares por dia. Sua fortuna total está estimada em 59,1 bilhões de dólares. A Consultoria Wealth X e o banco UBS divulgaram os dados. O homem mais rico do mundo é Bill Gates com 76,2 bilhões de dólares em ativos. 186 Registramos que esta necessidade de fiador não é constatada para defender, simplesmente, o capital emprestado, mas porque Lutero reconhece que há oportunistas.

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98 d) a compra e venda de produtos deve ser feita somente à vista. Lutero quer evitar que pessoas

passem a confiar no crédito a receber em futuro próximo ou distante em detrimento da

confiança em Deus. E conclui (ObSel 5.389 [1524]): Se não houvesse a fiança no mundo e fosse costumeiro emprestar evangelicamente, usando-se nos negócios apenas moeda corrente ou mercadoria disponível, então os maiores e mais perniciosos riscos, falhas e problemas do comércio estariam eliminados. Então seria simples lidar com todos os comerciantes, (...); é por isso [por causa dessas práticas] que todo mundo quer tornar-se comerciante e enriquecer.

Evidente está que Lutero, pela redescoberta da Justificação pela Fé, concebe a fé e o

crer como algo que se torna palpável no cotidiano das pessoas e da sociedade. Na economia

ganha o aspecto de “serviço”: esta serve ao próximo e à sua necessidade. Não é, portanto,

absoluta ou um fim em si só. Também nas relações econômicas a fé confessada quer moldar a

forma da sociedade se organizar.

A perspectiva econômica apresentada por Martim Lutero é, sem dúvida, factível se

considerada à luz da Justificação pela Fé como modo de vida. Ela apresenta a vida e o serviço

como prioritários e não considera a economia e as relações econômicas como um fim em si.

Quando muito, são importantes como meio apenas. Como tal servem à vida e ao próximo.

Mas em sociedade do século XXI, marcada pelo viés econômico, com ganho de capital,

obtenção de lucros sem produção por meio de especulação, valorização cambial, cobrança de

juros, fraudes e corrupções, ... parece utópica. A impressão que se tem é a de que está

deslocada. Fora de contexto. Palavras loucas. É, parece ser mesmo a loucura de Deus na

sabedoria do mundo (Paulo e Hinkelammert). Por isso é de grande valor. Inestimável até. É o

modo de vida econômico de ser que denuncia a prática vigente. A Justificação pela Fé

apresenta de fato outro parâmetro para as relações de fim econômico: a necessidade do

próximo. Ousamos dizer que a Reforma, pela premissa da Justificação pela Fé e pelas

propostas de Lutero, foi um lampejo de serenidade econômica em um mundo marcado pela

ganância. Nisto ela nada perdeu em lugar e importância. Foi um modo de ser na economia do

século XVI e ainda o é nas relações econômicas do século XXI.

Lutero pensou a economia como um serviço, um meio que serve a um fim: a vida.

Autores contemporâneos, protestantes ou não, percebem na economia do século XXI o que

Lutero percebera nas relações econômicas do século XVI: ela não serve à vida. É possível que

esta relação esteja hoje ainda mais acentuada. Queremos ouvir estes autores.187 Antes, porém

é preciso perguntar: onde e quando houve uma “reviravolta” no sentido de que as

considerações teológicas deixaram de ser referência e orientação para a vida?

187 A intenção não é esgotar o tema, apenas percebê-lo à luz da Justificação pela Fé.

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Segundo (1978, p. 48) levanta a suspeita de que “em algum ponto da tradição teológica

deve se ter introduzido um elemento estranho” ao Evangelho, “que em dado momento, se

deixou de ouvir a voz de Cristo e se começou a ouvir a voz das classes dominantes e de seus

interesses.” Sua suspeita decorre do que chama de a-historização dos ritos da comunidade

católica, especificamente no tocante à prática eucarística: a missa, salvo raros momentos, não

muda mesmo após uma grande tragédia. E conclui (1978, p. 47): Que significa isto? Para a maioria dos cristãos, isto significa, sem dúvida nenhuma, que a Deus interessam mais essas coisas intemporais do que a solução dos problemas históricos que estão ocorrendo.

Segundo (1978, p. 47-54) crê estar diante do que chama de presença da ideologia no

dogma cristão. Afirma que esta ideologização e a-historicidade do dogma está a serviço do

status quo e que é necessário a pessoa cristã despertar deste sono ideológico. Este equívoco

teológico, chamado por ele de propagação de um falso Deus, tem sua origem na influência da

filosofia grega no pensamento hebreu-cristão. Isto é perceptível na imagem de Deus: no

Antigo Testamento esta é de um Deus presente, que ama até o fim e assume a condição

histórica dos homens. Há um segundo argumento que solidifica a propagação do falso Deus: o

ser humano cristaliza em torno de Deus seus próprios desejos de pessoa humana.188

Hinkelammert (2012, p. 37-39) também percebe a multiplicação desta falsa teologia.

Para ele esta reviravolta teológica no pensamento da Igreja se deu nos séculos III e IV d.C.,

quando a igreja passa a ocupar lugar no império romano e é imperializada. Ele afirma:

“quando se cristianiza o império, o império imperializa o cristianismo”, fazendo surgir a

questão de que não é mais possível afirmar que os crucificadores de Jesus são os chefes deste

mundo, entre eles o imperador. “Era preciso buscar outros crucificadores.” Estes novos

culpados passam a ser os judeus. “Os judeus são considerados agora os crucificadores sem

razões.” Agem por maldade. Eis a razão que dá início ao antijudaísmo cristão. Paulo, por

denunciar as autoridades deste mundo como crucificadores do Messias, é relegado a um

segundo plano. A ortodoxia opta por moldar o cristianismo ainda hoje sem esta percepção de

Paulo: é uma ortodoxia formada a partir da sabedoria do mundo.189

188 A teologia da prosperidade tem aqui um de seus alicerces. Rieth escreve: “os cristãos possuem o poder de trazer à existência o que declaram, determinam ou confessam em voz alta. Palavras proferidas com fé têm o poder de criar realidades. As principais bênçãos obtidas dessa forma são felicidade, bem-estar material, saúde perfeita, compreendidos como direitos do cristão verdadeiro e garantidos pela Bíblia. Em nome de Jesus, quem crê toma posse das bênçãos a que tem direito. Miséria, sofrimento e enfermidade são sempre responsabilidade da pessoa por sua falta de fé, do diabo e seus demônios.” (RIETH, 2013, p. 16-17). Esta pesquisa não quer analisar esta questão especificamente. Mas faz constar, em nível de horizonte de aplicação, que a teologia da prosperidade não é caminho viável à luz da Justificação pela Fé. 189 Hinkelammert (2012, p. 30ss) afirma que Paulo trava com os filósofos (epicuristas e estoicos) no Areópago, em Atenas, o que chama de jogo da loucura, registrado na primeira carta aos Coríntios. A ressurreição dos mortos é o ponto chave do debate: “... à luz da sabedoria do mundo, a sabedoria de Deus é uma loucura e, à luz

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Mas, ainda conforme Hinkelammert (2012, p. 30ss), há outro aspecto no texto de Paulo

aos Coríntios que deve ser abordado e que para nossa pesquisa é importante: trata-se da

institucionalização da Igreja e do ato do batismo. Em 1 Coríntios 1.17a Paulo escreve:

“porque não me enviou Cristo para batizar, mas para pregar o Evangelho”, ou seja, a “Boa-

Nova”.190 Eis o projeto de libertação que Paulo anuncia. Paulo se entende a serviço não da

igreja, mas desse projeto messiânico da Boa-Nova: Embora ativo para a Igreja, ele não se entende a serviço da Igreja, mas do projeto messiânico da Boa-Nova. Segundo ele, a própria Igreja está a serviço desse projeto e não o contrário. (HINKELAMMERT, 2012, p. 31)

Este projeto de Deus para o mundo é a sabedoria de Deus. É construído a partir do que

não é e traz em si justiça, santificação e redenção (HINKELAMMERT, 2012, p. 36). Na

espiritualidade este projeto revela a sabedoria de Deus neste mundo, ou seja, torna presente o

que não é; traz aquilo que não é para dentro do que é. “O espírito torna presente a ausência da

sabedoria de Deus.” (HINKELAMMERT, 2012, p. 40) É o espírito que faz o sujeito ver o que

não é. E ver a partir do que não é, é a sabedoria de Deus.191

Para Hinkelammert (2012, p. 42-48), este projeto já não é mais assumido pela

comunidade de Corinto. Ela já assumiu a sabedoria do mundo. Institucionalizou a fé pelo

batismo e não mais prega a Boa-Nova. A comunidade em Corinto teria assumido o mundo

(vive o que é, a sabedoria deste mundo, a riqueza, o poder, ...) e por isso é admoestada por

Paulo. Hinkelammert (2012, p. 43) diz: “o batismo aponta para a instituição Igreja como

poder, enquanto a Boa-Nova aponta para o projeto do Reino de Deus e da sabedoria de

Deus.”192

da sabedoria de Deus, a sabedoria do mundo é uma loucura.” (p. 32). Ou seja: concebida como impossível pela sabedoria do mundo, revela toda a sabedoria de Deus. Enquanto os sábios desse mundo calculam tudo pela via da utilidade, a sabedoria de Deus revela que a força está na fraqueza, que os eleitos de Deus são os plebeus e os desprezíveis e o que não é revela o que é. (p. 34-35, destaques do autor). 190 A versão Bíblica referência para esta pesquisa, como assinalado, traz o vocábulo “Evangelho”. ‘Hinkelammert opta por traduzir “Evangelho” por “Boa-Nova”. Reconhecemos que, neste contexto, é uma tradução feliz e que representa bem o contraste entre a pregação que batiza, como ritual, e a pregação que anuncia a “Boa-Nova”. 191 No dia 05.01.2013 almocei com um amigo marceneiro autônomo. Contou-me que certo dia optou por não ir almoçar em casa. Com a roupa que estava (já suja e suada por conta do trabalho) foi almoçar em um restaurante próximo. Optou por sentar “meio num canto”. Ao seu lado sentou-se um casal de idosos que, para sua surpresa, não gostou de vê-lo ali. Este casal chamou o garçom e exigiu que o trabalhador fosse retirado do restaurante, fazendo uso da frase: “lugar de mendigo é do lado de fora” do restaurante. O metre, ao saber do ocorrido, indignado, propôs ao meu amigo marceneiro: “desejas que chamemos a polícia para registro de ocorrência?” Não vou contar o desfecho da história, mas assinalar: o casal de idosos viu a situação com a sabedoria do mundo; o metre com a sabedoria de Deus. 192 Hinkelammert (2012, p. 50-53) afirma que ainda há pessoas que não assumem a sabedoria do mundo e conseguem analisar a realidade a partir do que não é. Cita Dom Romero (assassinado durante uma missa em El Salvador) e o grupo de jesuítas morto pelo governo salvadorenho em 1989 – conforme a igreja, consequência do seu envolvimento com a política; Dietrich Bonhoeffer, Rosa Luxemburgo, Gandhi, Martin Luther King, Che

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A consequência da escolha da Igreja é bem sintetizada por Walter Benjamin no

fragmento “Capitalismo como religião” (apud HINKELAMMERT, 2012, 47-48), sendo o

capitalismo uma transformação do cristianismo no mundo secular, com a consequência de que ... a mensagem cristã não é mais uma mensagem cristã, mas humana. Ela acarreta a transformação do próprio mundo em mundo secular. O cristianismo – também assim é possível dizê-lo – é a famosa escada de que se precisava para subir, mas que, depois de subida, não passa de parte do desenvolvimento dessa modernidade. Sua mensagem agora é uma mensagem secular a partir do mundo secular. Ela o é ainda que, como cristianismo, continue a estar presente. É agora parte do processo, não seu centro.

Brakemeier (2002, p. 82ss) ao perguntar “que é o ser humano?” e o “que lhe justifica a

vida e a posição social?” neste mundo do mercado aponta três respostas: a) o valor da pessoa

é definido por seu poder aquisitivo; b) pela categoria de grupo ao qual pertence; c) pela

capacidade produtiva. E conclui (2002, p. 85): “..., o princípio proeminente da justificação na

sociedade humana é o da produção. O Novo Testamento o chama de ‘lei das obras’.”

Há diferentes formas de se conseguir este reconhecimento, seja por uso da força, seja

por compra, por aliciamento ou intimidação. Mas normalmente a “lei das obras” se vale da

dinâmica de justificar direitos e legitimar reivindicações (BRAKEMEIER, 2002, p. 85): Privilégios querem aparecer como merecidos. Para tanto, necessitam do reconhecimento por terceiros. O fenômeno é o mesmo no pequeno círculo ou no grande público. Dependemos do juízo de outras pessoas, do atestado e do apoio que dão e que outorgam o direito à existência, ao trabalho, à renda, a funções, à dignidade e à liberdade. A imagem, a boa reputação, o diploma são essenciais para o êxito pessoal e profissional e para a qualidade de vida. A fim de alcançar tudo isso, necessário se faz mostrar produção. Conseqüentemente, é grande o medo do fracasso.

O humano, constata Brakemeier (2002, p. 86-7), não pode abrir mão do sistema de

produção. O problema está quando vincula o direito humano à produtividade e na sua

absolutização: “a idolatria do lucro e o princípio da absoluta competitividade são sintomas de

um aviltamento do processo da ‘justificação’ no mundo capitalista.” É justamente aqui que a

mensagem da Justificação pela Fé ganha sua relevância: na superação do critério da utilidade.

Quem define este critério? Quem ou o quê é a instância competente para conferir o direito à

vida? Eu mesmo? Um grupo? A sociedade? Ou Deus? Se é Deus quem justifica, o ser humano

está livre das pressões e juízos da sociedade, embora continuem existindo, mas sem caráter

último ou absoluto;193 a Justificação pela Fé relativiza os critérios de justificação social, pois

Deus acolhe por misericórdia, não por méritos ou dignidade; está embasada no falar e agir de Guevara, Camilo Torres. “Nenhum deles se sacrificou: são testemunhas de sua loucura divina, através da qual fala a sabedoria de Deus.” (p. 52). Aqui incluímos o metre do restaurante, conforme nota anterior. 193 Para Brakemeier (2002, p. 88) Deus aqui se torna um “escândalo social”, pois tira do ser humano a prerrogativa de julgar e dispor de seu semelhante. Deus questiona a onipotência humana e apresenta-se como libertador. Deus se torna escândalo social justamente por que ganha expressão social. (cf também TAMEZ, 1995 e BAYER, 1997, p. 36ss).

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102 Jesus Cristo que formam uma unidade.194 E conclui (BRAKEMEIER, 2002, p. 89): Justificar

significa salvar vida, devolver a dignidade, apagar a culpa. Jesus não se interessa por

méritos, provocando assim a indignação dos ‘justos’. ...” (destaques do autor).195

Justificação pela Fé é um modo de vida que tem o seu ponto de partida na unidade entre

o falar e agir de Jesus. Um agir salvador; um agir que tem o olhar voltado para a necessidade

humana; um agir que é sinal visível do Reino de Deus; um agir que acontece na vida. Logo,

salvação é o fundamento que rege a ação da pessoa justificada, não o seu fim ou objetivo

último. A justificação rege, de forma prática, a vida da pessoa em direção ao outro. Isto é uma

vivência, um movimento, uma ação de cuidado.

Para uma sociedade regida por valores econômicos isto é loucura. Não cabe. Ela quer

impor o econômico como referência absoluta, inclusive ao humano. Para ela o humano na

sociedade de humanos não tem vez. É objeto. E o mais grave: serve-se da lei para se proteger

e concebe o cumprimento desta lei como sinal de justiça. Para Hinkelammert, uma lei que

mata. A Justificação pela Fé é seu contraponto. Ela não só propõe como é um novo modo de

viver e se relacionar inclusive com o econômico. Propõe uma nova forma de se relacionar

com os bens e o dinheiro. A Justificação pela Fé alcança também o econômico e nele quer se

tornar palpável pela vida. Mas este resiste e não quer ser regido. No econômico a Justificação

pela Fé também quer revelar seu potencial libertador: o faminto da padaria comeu e

experimentou dignidade, mas não teve por isso sua situação de vida modificada para além do

momentâneo. O econômico o mantém na situação de excluído. A Justificação pela Fé é um

modo de vida que insiste em transformar a economia em meio que serve a um fim: a própria

vida. Mas a sociedade econômica resiste a isto. Esta é uma tensão continuada. Logo, a pessoa

justificada pela fé se posiciona de tal modo a não fechar os olhos e ouvidos diante da enormidade da injustiça no mundo e diante da arrogância cínica de muitos frente a Deus e às suas criaturas, (...) Realmente, quem enfrenta a nossa realidade assim como ela é; quem procura cumprir o encargo de Cristo no Espírito de Cristo e não desespera na incompatibilidade entre realidade e tarefa [cristã]; quem, diante da tarefa e da realidade, não perde a vontade; quem, nessa situação, não se torna cínico ou cético, nem desesperado ou fanático, mas mesmo assim se entrega de corpo e alma à luta contra a injustiça (...) esse só pode ser louco! (BRANDT, 2006, p. 85).

194 Em Jesus a justificação se ampara na vida, morte e ressurreição. Ou seja, Jesus é a justificação em pessoa. Nele se revela a misericórdia de Deus em sinais e palavras. (KÄSEMANN, Ernst. Justificação e história da salvação na Epístola aos Romanos. In:___, Perpectivas Paulinas, São Paulo : Paulinas, 1980, p. 86ss e KRAUSE, Christian. Vida é mais: a respeito da justiça de Deus entre os seres humanos. In: Estudos Teológicos, São Leopoldo, 1998, v. 38, n. 2, p. 131, apud BRAKEMEIER, 2002, p. 89). 195 Brakemeier (2002, p. 89ss) extrai desta afirmação consequências práticas para a vida da pessoa justificada: acolher Deus como fundamento de vida (não o mercado); a pessoa quer aceitar-se como é (felicidade não está no consumo); o que recebi de Deus dou para o outro e a criação; justificação definitiva somente no futuro; justificação não anula o juízo final – a misericórdia de Deus não significa um direito adquirido.

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Westhelle (2008, p. 127), ao apontar para a teologia da cruz também se refere a esta

tensão dizendo que a teologia da cruz se “defronta com a cruz, mas responde a ela com a

confiança de que a cruz não esteja fora da providência de Deus, por mais promissora ou

terrível que possa ser.” E aponta o exemplo de Maria, a humilde serva: o fato de ser chamada

por Deus para gerar Jesus não a tira da condição de oprimida. Mas, empoderada, acompanha

Jesus aos pés da cruz e, no domingo cedo, vai ao túmulo. Ou seja: cruz e vida caminham lado

a lado em constante tensão.196 A pessoa justificada pela fé se dá conta dessa tensão e nela se

movimenta testemunhando a vida.

3.6 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DE UM MODO DE VIDA: O PRÓXIMO COMO CRITÉRIO

Hinkelammert e Brakemeier assinalam que se faz necessário um sistema para reger o

convívio entre as pessoas. O sistema econômico dominante é consumista, excludente e

sacrificial. Wilkinson, por sua vez, apontou para um caminho da solidariedade e igualdade.

Aqui queremos afirmar: a Justificação pela Fé está neste caminho e aponta para o próximo

como critério.

Acolher a Justificação pela Fé como fundamento de vida implica em também acolher o

próximo como critério de vida e multiplicar na sociedade valores que têm o próximo como

critério e referência. Temos muitos indicativos neste sentido. Como exemplo podemos citar a

parábola “o bom samaritano”,197 na qual a relação de proximidade é estabelecida entre quem

precisa de cuidados e quem pode oferecê-los.198 A parábola contada por Cristo é enfática na

resposta dada pelo intérprete da lei à pergunta de Jesus (Lucas 10.36-37): “qual destes três te

196 Lutero, na interpretação ao Magnificat (1521), afirma que a exaltação dos oprimidos (Lucas 1.52) se dá para o terror dos tiranos: “tudo isso foi dito para consolo dos sofredores e terror dos tiranos”. (ObSel 6.66). No mesmo texto, ao comentar acerca dos ricos que são despedidos vazios (Lucas 1.53) afirma que a riqueza em si não é empecilho. A questão é não se apegar a elas de coração. (ObSel 6.66-67). 197 Este é o título dado pela Sociedade Bíblica do Brasil à parábola contada por Jesus em Lucas 10.25-37. Jesus é questionado por um intérprete da lei acerca de como herdar a vida eterna. Ao que respondeu: “o que está escrito na lei?” Na resposta o intérprete diz: amar a Deus e ao próximo. Ao que Jesus responde: “faze isto e viverás”. Mas “quem é o meu próximo?”, questiona o intérprete da lei. E Jesus conta a parábola: uma pessoa foi assaltada e, ferida, ficou jogada à beira do caminho. Passam por ela um sacerdote e um levita que não ajudam, mas um samaritano o socorre. Quem foi o próximo? O samaritano, conclui. É o próximo aquele que ofereceu ajuda ao necessitado, o que traduziu em prática e vivência a fé professada e não mediu esforços para tal. (Bíblia Sagrada com reflexões de Lutero. Sociedade Bíblica do Brasil, tradução de João Ferreira de Almeida, Revista e atualizada, 2ª ed, 1993, Lucas 10.25-37). 198 Wegner (1990, p. 59ss) abre o conceito de próximo para toda a criação de Deus. A natureza hoje clama, geme e é assaltada de forma continuada.

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104 parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe o

intérprete da lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe disse [Jesus]: Vai e

procede tu de igual modo.”

Enfatizamos que “proceder de igual modo”, ou seja, usar de misericórdia para com o

outro caído à beira da estrada e transformar em prática/vivência a fé professada é a

prerrogativa primeira do amor ao próximo. Ou seja, não é o econômico que decide o

relacionamento da pessoa justificada com o próximo. Pelo contrário, além de não gerar

dividendos econômicos exige abnegação financeira.

Em Martim Lutero encontramos este critério também, como já frisamos199. Embora

reconheça que a obra desenvolvida pela pessoa não tenha finalidade justificadora diante de

Deus, ela é absolutamente imprescindível para a vida do outro. No texto Da Liberdade Cristã

diz (ObSel, 2.451-452 [1520]): Pois a pessoa não vive somente para si mesma neste corpo mortal, para operar nele, mas também para todas as pessoas na terra, sim, ela vive somente para os outros, e não para si. (...) Por isso não pode acontecer que ela seja ociosa nesta vida e sem obra a favor de seus próximos. (...) Por isso a pessoa deve, em todas as suas obras, estar orientada por esta ideia e visar somente isto: servir a outros e ser-lhes útil em tudo que faz, nada tendo em vista senão a necessidade e a vantagem do próximo. (...) Esta é a verdadeira vida cristã, aqui de fato a fé atua pelo amor. Isto é, entrega-se com alegria e amor à obra da servidão libérrima, com a qual serve ao outro gratuita e espontaneamente, enquanto ela própria está abundantemente satisfeita com a plenitude e opulência de sua fé.200

E reitera (ObSel, 2.453 [1520]): Eis que em Cristo meu Deus deu a mim, homúnculo indigno e condenado, sem nenhum mérito, por mera e gratuita misericórdia, todas as riquezas da justiça e da salvação, de sorte que além disso não necessito absolutamente de mais nada a não ser da fé que crê que as coisas são de fato assim. Portanto, como não faria a este Pai, que me cobriu com suas inestimáveis riquezas, livre e alegremente, de todo o coração e com dedicação espontânea, tudo que sei ser agradável e grato perante ele? Assim me porei à disposição de meu próximo como um Cristo, do mesmo modo como Cristo se ofereceu a mim, nada me propondo a fazer nesta vida a não ser o que vejo ser necessário, vantajoso e salutar a meu próximo, visto que, pela fé, tenho abundância de todos os bens em Cristo.

Esta é a verdadeira liberdade da pessoa cristã: a de servir ao próximo de forma livre, por

gratidão, em alegria, de modo a não calcular lucros ou dividendos como resultado do servir.

Do mesmo modo como nós precisamos de Deus, o nosso próximo precisa de nós (ObSel,

2.454 [1520]): tal qual o Pai celeste nos auxiliou gratuitamente em Cristo, devemos também nós auxiliar a nosso próximo gratuitamente pelo corpo e suas obras, e cada qual tornar-se para o outro como que um Cristo, para que sejamos Cristos um para o outro, e o próprio Cristo esteja em todos, isso é, para que sejamos verdadeiros cristãos.

199 O capítulo dois apresentou este recorte nos textos Da Liberdade Cristã e Das Boas Obras. Retomamos aqui somente a ideia central do cuidado para com o próximo, fruto da expressão de fé da pessoa justificada. 200 Lutero tem como base o texto bíblico de Romanos 14.7s; Filipenses 2.7 e Gálatas 5.6. O objetivo é deixar claro que o cristão se esforça pelo bem do outro, carrega o fardo um do outro.

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Lutero incentiva à solidariedade pois percebe que a ganância de determinados setores da

sociedade não têm limite e que a vida humana paga o preço. Se as casas comerciais, por

exemplo, por um lado são impulso para o novo modelo econômico, por outro são

responsáveis por exploração e falência daqueles que não conseguem renda suficiente para

honrar seus compromissos. Geram ricos e pobres. Algo semelhante pode ser dito dos

comerciantes que, não raro, exploram comercialmente a necessidade do outro. Conforme

Lutero, o Evangelho não só denuncia estas práticas de exploração e acúmulo como propõe um

modo de se organizar mais solidário, mais cuidadoso com a vida do próximo. Com este

intuito nasce a proposta da Caixa Comum,201 regida por regulamento comunitário, instituída

em Wittenberg (1522) e em Leisnig (1523).202

Conforme a percepção de Altmann (1994, p. 222), a Caixa Comum visava oferecer ajuda comum para pastores, professores, pessoas idosas, doentes, viúvas, desempregados e todas as pessoas por alguma razão desamparadas. Também se deveria sustentar economicamente a nova Igreja e ajudar na criação de escolas. Ou seja: tratava-se de uma proposta bastante ambiciosa, que praticamente implicava um amplo sistema de seguridade social, algo inusitado, surpreendente e indubitavelmente revolucionário para aquela época.

A Caixa Comum é reconhecida como um projeto pioneiro e audacioso para a sociedade

da época por propor cuidado para com todas as pessoas desamparadas e para com atores

sociais como os professores e a igreja, por exemplo. Este pensamento é decorrente da ênfase

teológica da Reforma que não mais separava vida cotidiana de vida espiritual. O culto, o

Evangelho e Deus agem para dentro da vida social e do cotidiano das pessoas.203

Sua ousadia também está na forma de arrecadar os recursos para honrar seus

compromissos. Estes eram provenientes dos orçamentos das instituições religiosas, de

propriedades pertencentes à Igreja (confiscadas para fins comunitários) e de impostos. Ahlert

(2006, p. 95) conclui: Não há dúvida que por detrás dessa organização estava uma dimensão política de cidadania democrática bem significativa e, de certa forma, deslocada no seu tempo. Tal democracia participativa estava adiantada em vários séculos. Em meio ao regime feudal, as cidades inspiradas nestes princípios buscavam, por meio da participação popular, a sua organização política, econômica e social.

201 Temos por base a reflexão feita por Altmann (1994, p. 211ss) e Ahlert (2006). Embora a proposta envolva questões econômicas como meio, queremos enfocar o aspecto da solidariedade mútua, do cuidado mútuo, o que é realmente o fim ao qual foi instituída. 202 Conforme Pauly (PAULY, Evaldo Luis. Ética, educação e cidadania: questões de fundamentação teológica e filosófica da ética na educação. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002, p. 149, apud AHLERT, 2006, p. 94) as práticas de eclesiologia e política democráticas de Lutero limitam-se ao que hoje chamamos de município. 203 O maior exemplo está na Ceia do Senhor que “deve provocar uma nova ética social, pois, como sinal de uma comunhão radical em Cristo, compromete o ser humano a viver concretamente esta comunhão com a comunidade e com a cidade. A comunidade e a cidade tornam-se um só corpo e seus cidadãos pertencem uns aos outros.” (LINDBERG, 2001, p. 142, apud AHLERT, 2006, p. 94).

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A Igreja era mais uma instituição que partilhava desta dinâmica: contribuía e se

beneficiava. Ou seja, estava realmente inserida no meio social de vida do seu povo. Ali, voz

da palavra de Deus, dava a dimensão ética do cuidado cristão. Em Wittenberg esse sistema

funcionou bem por um período (o maior problema foi ter que criar uma cláusula para impedir

que outras cidades enviassem para lá os seus necessitados) e em Leisnig não durou muito

tempo porque as autoridades municipais (representantes da burguesia) não apoiaram

financeiramente o projeto204. Registre-se, todavia, a dimensão vivencial do cuidado baseado

na orientação do evangelho e na postura profética ante a volúpia de um mercado emergente.

A Justificação pela Fé molda um novo sistema de vida e cuidado para com o próximo

também a partir da educação205. Nos textos de Martim Lutero de 1524206 e 1530207 isto fica

evidente. Os textos enfatizam que Lutero pensa a educação como uma obra do amor cristão. A

razão para tanto está em que a educação prepara pessoas para liderar a Igreja (através de

pastores e mestres) e o Estado (através de líderes e conselheiros). A educação é, pois, obra

que atende às necessidades individuais e coletivas. A dimensão individual está quando são

formados indivíduos tementes a Deus; a coletiva quando estes indivíduos tementes a Deus

assumem sua responsabilidade ética e vivencial, ou seja, sua liberdade de forma responsável.

A educação das crianças é importante também para sua socialização e vida na cidade. O

problema que se coloca é a incapacidade dos pais (por também não terem qualificação, por

falta de tempo ou dinheiro para pagar um professor particular) em educar seus filhos. A saída

encontrada é a comunitariedade: Portanto a necessidade obriga a mantermos educadores comunitários para as crianças, a não ser que cada qualquer queira manter um em particular. Isso, porém, seria oneroso demais para um simples cidadão, e uma vez mais muitos excelentes meninos seriam prejudicados por serem pobres. (ObSel, 5.308 [1524])

204 De forma geral, conforme Brendler (1983, p. 196), um dos problemas enfrentados foi com os representantes da burguesia: eles acolheram o conceito da Justificação pela Fé, mas o traduziram para dentro de seus próprios interesses, especialmente para se livrar de pesos incômodos. A reação de Lutero foi pregar incessantemente acerca da validade dos mandamentos. Por outro lado, Lutero também não era um idealista no sentido de imaginar que o Evangelho fosse facilmente aceito como orientação de vida das pessoas. Também não defendia uma teocracia. Defendia, isso sim, a validade da lei como também forma de organizar o cotidiano: “pois já ensinei muitas vezes que não se deve nem se pode governar o mundo segundo o Evangelho e o amor cristão, e, sim, segundo leis rigorosas, com espada e força, porque o mundo é mau e não aceita nem Evangelho nem amor, antes age e vive segundo sua petulância, caso não seja obrigado a força. Caso contrário, em se praticando puro amor, todo o mundo quereria comer, beber e viver bem das posses dos outros, e ninguém trabalharia; cada qual tiraria o que é do outro, instalando-se um estado de coisas tal que tornaria impossível o convívio.” (ObSel 5.391-392 [1524]). 205 Também não queremos esgotar o assunto. Apenas elencar que a educação é mais um serviço que se presta em favor do próximo, ou seja, uma obra do amor cristão. 206 Em 1524 Martim Lutero escreve “Aos Conselhos de Todas as Cidades da Alemanha para que criem e mantenham escolas cristãs”. O texto está disponível em ObSel 5.302ss. 207 Em 1530 Martim Lutero escreve “Uma Prédica Para que se Mandem os Filhos à Escola”. O texto está disponível em ObSel 5.326ss.

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Registre-se que a educação, na percepção de Lutero, contribui na socialização das

crianças, transformando-as em cidadãos plenos de seus direitos e deveres. Além disso, a

proposta da comunitariedade supera as dificuldades financeiras, de conhecimento e

capacitação e acolhe todas as crianças indistintamente. As crianças pobres não são

excluídas.208

Lutero crê que a educação é uma maneira de melhorar a vida das pessoas e da cidade.

Ao se referir à educação das crianças, antevê adultos educados com potencial de contribuir

para a paz social urbana. Por isso o interesse primeiro pela educação precisa ser dos conselhos

das cidades: A eles, como curadores, foram confiados os bens, a honra, corpo e vida de toda a cidade. Portanto, não agiriam responsavelmente perante Deus e o mundo se não buscassem, com todos os meios, dia e noite, o progresso e o melhoramento da cidade. Agora, o progresso de uma cidade não depende apenas do acúmulo de grandes tesouros, da construção de muros de fortificação, de casas bonitas, de muitos canhões e da fabricação de muitas armaduras. Inclusive, onde existem muitas coisas dessa espécie e aparecem alguns tolos enlouquecidos, o prejuízo é tanto maior e pior para a referida cidade. Muito antes, o melhor e mais rico progresso para uma cidade é quando possui muitos homens bem instruídos, muitos cidadãos ajuizados, honestos e bem educados. Estes então podem acumular, preservar e usar corretamente riquezas e todo tipo de bens. (ObSel, 5.309 [1520])

Sobre os investimentos em educação, Lutero sugere: o dinheiro que era gasto pelas

famílias em indulgências e missas quer agora ser revertido às escolas. E mais: Não obstante, se alguém der um ducado para a guerra contra os turcos (ainda que nos assediassem), seria justo que se doassem cem ducados [para a educação], embora com eles se pudesse educar apenas um garoto de modo a tornar-se um varão verdadeiramente cristão. (ObSel, 5.305 [1520])

Evidencia-se, claramente, que a educação cristã (ou não) faz parte do modo de ser e

viver pela fé. O econômico, no máximo, é motivo para que as pessoas se unam no sentido de

viabilizar a educação dos filhos e das filhas.

Tamez209 (1995, p 187-189) afirma que em Paulo temos a disputa de dois sistemas: o da

injustiça praticada pelos seres humanos que deram origem “a uma lógica pervertida ou às

avessas, a tal ponto que chamavam a mentira de verdade e a verdade, de mentira.” – chamado

em Paulo de Pecado (pecado estrutural, portanto); e a lógica de Deus, baseada na

“solidariedade máxima de Deus com os seres humanos, aceitando ele mesmo esta sua

humanidade e, mais do que tudo, a humanidade dos pobres da sua época, principais vítimas 208 Temos aqui uma raiz da prática histórica da Igreja Luterana que concebia uma escola ao lado de cada templo religioso. Veja WACHS, 2001, p. 80-89; BOCK, 2001, p. 90-95. No protestantismo em geral veja MENDONÇA, 1995, p. 95-116. 209 Tamez apresenta a reflexão da Justificação pela Fé a partir do apóstolo Paulo como afirmação da vida. Com base em Romanos 1-3 enfatiza o pecado como pecado estrutural que, por leis injustas, sustenta e dá legitimidade a um sistema que gera morte, ganhando aparência de legalidade. Logo, uma lei que mata; que aprisiona a justiça na injustiça. Tamez propõe que a Justificação pela Fé é a superação deste sistema (i)lógico e a inclusão do excluído no projeto de Deus. Paulo, na carta aos Romanos, quer fortalecer esta fé (Romanos 8).

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108 do pecado.” Deus assume em Cristo a história e o faz pelo prisma da justiça, da vida e da paz.

Esta é a lógica de Deus e dos que assumem a lógica de Deus, dos que vivem conforme seu

“Espírito” – Paulo os chama de “os que estão em Cristo Jesus” (cf Romanos 8.1).

Para Tamez a América Latina vive uma estrutura e lógica de morte semelhante à

estrutura e lógica enfrentados por Paulo. Sistemas (políticos, ideológicos e sociais) que são

sustentados por leis que geram morte, mas que têm a função de dar legalidade para as

atrocidades cometidas.210 Sistema semelhante de leis matou Jesus e continua matando

especialmente os pobres. A Justificação pela Fé é a intervenção solidária de Deus neste tempo

a fim revelar uma nova ordem, uma nova lógica, baseada em sua justiça.

Tamez se propõe a reinterpretar este propósito original, por Paulo chamado de

Justificação pela Fé, para nós hoje na América Latina.211 Elenca, a partir de Paulo, quatro

características principais desta nova ordem (TAMEZ, 1995, p. 198-204):

a) a salvação é pela fé, não pelas obras da lei como os judaizantes defendiam. Ao

defenderem-na excluíam todos os que criam na ressurreição de Cristo e que não eram de

descendência judaica. A lei judaica exclui, a Justificação pela Fé inclui a todos. A proposta é

“incluir o excluído no projeto divino de salvação” (p. 199), algo impensável no princípio da

lei judaica;

b) é necessário conscientizar-se da ausência da justiça verdadeira na proposta do

império romano. Ele se apresenta como um poder estrutural econômico, político e militar que

não pode ser enfrentado pelas pessoas. Por isso ganha o status de pecado que leva à morte. É

um sistema que se apresenta como protetor e pacificador das províncias, mas que oculta a

prática da injustiça. Para Paulo é preciso dar-se conta de que esta não é a justiça verdadeira.

Ela mata. Chama-a de idolatria, pois “querem praticar justiça ditados pela lei, e seu resultado

é a injustiça (Romanos 2.21-23).” (p. 201). Esta justiça (seja a da lei do império, seja a da lei

judaica) não tem o selo da verdade;

210 Hinkelammert (2012, p. 11-12, 71-120) também faz esta reflexão em Paulo, embora tenha como pano de fundo o contexto econômico. Ele assinala dois cernes na reflexão de Paulo: a) a “distinção entre o pecado e os pecados. Os pecados violam a lei. Não obstante, o pecado é cometido no cumprimento da lei.” (p. 11) Marx retoma este conceito e o amplia “para uma crítica da lei do valor como lei dos mercados. Sua crítica é a denúncia da opressão e da exploração, que aparecem quando a lei é cumprida.” (p. 11) Pior, são protegidos pelos aparelhos de justiça e de polícia; b) “Paulo denuncia a lei na medida em que se considera o cumprimento da lei como a justiça.” (p. 11). O resultado do cumprimento da lei não é necessariamente justo. Normalmente se transforma em seu contrário: “o crime cometido aparece agora como resultado da própria justiça.” (p. 12) Marx o chama de fetiche na medida em que se considera o cumprimento da lei do valor como ato de justiça. Os crimes cometidos no cumprimento desta lei são entendidos como sacrifícios necessários. 211 Tamez (1995, p. 197) considera que há diferenças sensíveis no contexto de Paulo e América Latina que precisam ser consideradas: a) não temos a tensão teológica entre judaizantes ou judeu-cristãos e gentios convertidos, ou ainda entre gnósticos e Paulo; b) a realidade socioeconômica e política da América Latina é diferente; c) um histórico de leitura cristã já feito desta doutrina ao longo dos séculos e assimilada pelos fiéis.

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c) as primeiras comunidades cristãs são pequenas e frágeis diante da força do império e

vivem em meio hostil. Precisam de segurança. Esta não vem da justiça do império romano,

mas da justiça de Deus que “capacita os seres humanos para que sejam praticantes de justiça

verdadeira.” (p. 202). Jesus foi o primeiro e fortalece a todos na sua existência cotidiana (Cf 1

Coríntios 15.31s). As pessoas podem praticar a justiça graças à intervenção de Deus no

mundo e à fé em Jesus Cristo;

d) na fragilidade das comunidades Paulo apela a uma força superior no ser humano que

tem fé para enfrentar o mundo injusto e dar-lhes segurança. Deus está com eles; ninguém

pode contra eles (Romanos 8.31). Paulo os lembra que foram agraciados com a revelação da

justiça de Deus, tornados herdeiros de Cristo e que são convidados a ser testemunhas desta

justiça: “que se cumpra nos que seguem uma conduta segundo o espírito” (Romanos 8.4).

Tamez aponta para a força do divino no humano. É o assumir a lógica de Deus – ser

considerado filho/a dele.

Tamez percebe na Justificação pela Fé em Paulo a dimensão da inclusão do excluído,

pela fé, ao projeto de Deus;212 ao mesmo tempo a pessoa não pode ficar na passividade: ela

precisa se dar conta de que neste mundo não encontra a justiça verdadeira. Precisa perceber a

justiça de Deus e a ela acudir (pontos a e b). Na perspectiva de Paulo percebemos também a

dimensão da fides Christi de Lutero: Deus está com o povo e caminha com ele, o fortalece, o

capacita para a prática da justiça, o convida para vivência da justiça que vem de Deus (pontos

c e d). Em suma, descrevem uma justiça que vem de Deus que envolve o ser humano e, ao

envolvê-lo, faz com que testemunhe tal justiça. A justiça de Deus se materializa na vivência

cotidiana do amor ao próximo.

O próximo como critério está presente também em Hinkelammert (2012, p. 75-80)

quando afirma que toda sociedade precisa de uma lei para se reger. Afirma que em Paulo o

cerne da lei é o 10° mandamento, “não cobiçarás”. Este é o mandamento que o mercado adota

por que ele subverte a própria lei e a põe a seu serviço.213 “Cobiça” aqui não tem nada a ver

com inveja. Mas uma ação racional ‘de acordo com a cobiça’ e que se torna ameaçadora precisamente por cumprir a lei e realizar-se no cumprimento da lei. Isso ocorre paradigmaticamente no

212 As críticas são inevitáveis quando se analisa o tema da mulher. Parece ficar evidente que a superação das barreiras sociais não se deu. Embora não seja objeto desta pesquisa, acolhemos a tese de Lohfink (1986, p. 121-137): Lohfink faz uma diferenciação entre grupo dos doze (somente homens fazem parte dado o simbolismo das 12 tribos em sociedade patriarcal) e grupo de discípulos/as (aqueles/as que servem) a Jesus e ao Reino de Deus. Neste grupo a mulher é absolutamente imprescindível. Também para Paulo. 213 Já na tradição grega Aristóteles diferencia entre economia – para o sustento – e crematística – uma economia para ganhar dinheiro, por meio da qual se ganha mais dinheiro. “Surge uma cobiça infinita que não conhece fronteiras e que subverte a economia de sustento. Essa cobiça é destrutiva, embora não viole lei nenhuma.” (HINKELAMMERT, 2012, p. 77)

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mercado e constitui o princípio de vida do capitalismo atual. No mercado, e através do dinheiro, adquire sua forma calculável. (HINKELAMMERT, 2012, p. 79)

A lei submetida à dinâmica da cobiça entra em conflito com o amor ao próximo

(HINKELAMMERT, 2012, p. 79-80): “ele transforma o próximo no objeto da exploração em

função da maximização da própria cobiça. O outro deixa de ser sujeito e, por esse motivo,

deixa de ser o próximo.”

Este é o pecado em Paulo, ou seja, “o resultado da justiça a partir do cumprimento da

lei”. (HINKELAMMERT, 2012, P. 81)214. Esta é contraposta à justiça da fé. No Pai Nosso

Jesus declara: “e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós também perdoamos aos

nossos devedores”.215 Ou seja, “as dívidas impagáveis216 cujo resultado é a ruína do devedor

perdem sua legitimidade”, mesmo que o prestamista as possa cobrar legalmente: O cumprimento da lei não se justifica; transforma-se sempre, de fato, em injustiça e quando o outro – isto é, o próximo – é arruinado pelo cumprimento da lei. O reconhecimento do outro como sujeito corporal antecede qualquer justiça pelo cumprimento da lei. O sujeito é soberano diante da lei. (HINKELAMMERT, 2012, p. 84)

Assim fica claro e evidente que o próximo não é o critério de controle do mercado.

Controle que o mercado precisa, mas que ele próprio não conhece por ser regido pela cobiça

(HINKELAMMERT, 2012, p. 11-18). Sem uma intervenção ele se transforma em “arma de

destruição em massa”, pois a lei do mercado é “sou se derroto você”, enquanto o critério do

amor ao próximo estipula: “sou se você é”, ou seja, a reafirmação do outro

(HINKELAMMERT, 2012, p. 66). Paulo pode então concluir: “pois quem ama o próximo

cumpriu a lei. (...) Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” (Romanos 13.8-10). Mas eis que

a tradução e compreensão dominantes soam um tanto romantizadas no sentido de “tratar-se

um ao outro com um bom estado de espírito” (HINKELAMMERT, 2012, p. 113).

Hinkelammert acolhe aqui a tradução feita por Rosenzweig e Buber que traduzem o “como a

ti mesmo” assim: “ama a teu próximo, ele é como tu”. Lévinas continua a tradução: “ama o 214 Visto na sua forma econômica em Jesus, esta relação é a do prestamista e do devedor. O prestamista cobra uma dívida que o devedor não pode pagar, relegando-o à escravidão. Mas a lei está do lado do prestamista. Ou ainda entre países, na crise dos anos 1980: os países prestamistas, que tinham a polícia, a lei e a justiça do seu lado, faziam uma pilhagem dos países devedores e os relegavam à miséria. Apesar do pagamento exorbitante a dívida ainda continuava aumentando. Isto sem violar nenhuma lei, simplesmente cumprindo a lei. O resultado do cumprimento da lei é, portanto, um crime. (HINKELAMMERT, 2012, p. 82). 215 LUTERO, Martim. Catecismo Menor. (versão popular), 2009, p. 14. Hinkelammert (2012, p. 84) critica a ortodoxia por ter transformado esta petição em seu contrário, ou seja, ao falar de “ofensas” refere-se à violação da lei assim como posta. Desaparece o pecado; “a lei é justificada e seu cumprimento agora se justifica.” Registramos que a versão do luteranismo se manteve fiel ao texto original, mas a prática coincide com a descrita por Hinkelammert. Lutero, na explicação da petição no Catecismo Menor, faz referência a pecado e perdão, não ao perdão de dívidas sócio-econômicas. 216 Hinkelammert (2012, p. 89) afirma, com base em João, que a dívida impagável é tirada do mundo: “cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (João 1.29). Sé é dívida impagável, precisa ser tirada do mundo. Cristo a tira. Cristo tira o pecado. Ele é tirado por que não pode ser perdoado. “Ele é tirado pela experiência da metanoia, (...) um voltar a ver, uma mudança do ponto de vista do qual se vê o mundo e se age nele.”

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111 teu próximo; esta obra é como tu mesmo”; “ama a teu próximo; tu mesmo és ele”; “este amor

ao próximo é o que tu mesmo és”. (LÉVINAS, Emmanuel. De Dieu qui vient a l’idée. Paris,

1986, p. 144, apud HINKELAMMERT, 2012, p. 113). Dick Boer (Erlösung aus der

Sklaverei. Versuch einer biblischen Theologie im Dienst der Befreiung. Edition ITP-

Kompass, Münster, 2008, p. 108, apud HINKELAMMERT, 2012, p. 113-114) assume a

tradução de Buber-Rosenzweig e conclui: E com ‘amar’ neste contexto não há referência ao amor entre amantes – e que no Cântico dos Cânticos é cantado em sua jubilosa glória. Esse amor não pode ser objeto de um mandamento. O amor ao próximo quer dizer: ser solidário, estar ao lado do outro, que não pode se salvar sem você, tal como você não pode se salvar sem ele.

O amor ao próximo como critério estabelece algo importante: o outro é sujeito, não

objeto. Quando o mercado o torna objeto a Justificação pela Fé o torna sujeito. Enquanto o

mercado zela pela propriedade e conta vidas, submete e instrumentaliza em seu favor a lei e a

ética, a Justificação pela Fé zela pela fé de Jesus. É a fé que gera um movimento

humanizador. Embora dita em palavras cristãs, é profundamente secular.

(HINKELAMMERT, 2012, p. 119-120). Esta fé não assume (HINKELAMMERT, 2012, p.

119) qualquer ensinamento como verdadeiro, sendo na verdade uma maneira de viver. Viver essa fé é precisamente o amor ao próximo e o que é equivalente: os escolhidos de Deus são os plebeus e os desprezíveis. Trata-se da fé que liberta a verdade da prisão da injustiça. O resultado é: tudo o que não é feito nesse quadro da fé, mas o contradiz, é o pecado, embora não viole nenhuma lei.

Fica evidente que falamos de uma fé que é mais do que dogma, conhecimento ou rito

religioso institucionalizado. É um movimento humanizador, dignificador e gerador de vida. É

um modo de ser e viver. Concluímos este ponto com o pensamento de Lutero acerca da

melhoria do estamento cristão cujo mandamento central é o amor, por mais importante que

sejam os estamentos em si (ObSel 4.371 [1528]): Acima dessas três instituições (Igreja, Oeconomia e Estado) ou ordens está somente a instituição universal do amor cristão, na qual não se serve apenas àquelas três ordens, mas também, de uma forma geral, a qualquer necessitado com todo tipo de benefícios, tais como: alimentar famintos, dar de beber aos sedentos, perdoar os inimigos, rogar por todos os homens na terra, suportar todo tipo de mal na terra etc.

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3.7 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DE UM MODO DE VIDA: MOVIMENTO EM DIREÇÃO À PRÁTICA

Já apontamos neste texto para a tradução de fides Christi como sendo fé de Cristo e não

fé em Cristo. A diferenciação principal pode ser assim definida: fé em Cristo faz de Cristo o

objeto a ser crido. Declaro-me crente em Cristo, ou seja, tenho em quem crer217 e isto me

basta; fé de Cristo implica em movimento, em uma ação, num colocar-se a caminho assim

como Cristo o fez. Bayer (2007, p. 166-171) afirma que a doutrina das duas naturezas de

Cristo218 em Lutero não é mera especulação ou duas “naturezas” fixas e duráveis em si

mesmas. Nem uma relação de sujeito predicado: Não, o seu ser é antes a sua obra; e a sua obra, o seu ser. Diferentemente de nós, ele é idêntico ao que faz. (...) A obra salvífica de Jesus Cristo, que nos é comunicada e oferecida na ‘troca feliz’, não pode ser separada de sua ‘pessoa’. Teologicamente, ela leva ao erro quando se fala apenas de modo especulativo da ‘pessoa’ de Cristo ou de sua obra salvífica apenas em termos da influência histórica que teve. Cristologia e soteriologia, a ‘pessoa’ e o acontecimento salvífico, não podem ser entendidas uma sem a outra. (BAYER, 2007, 167-168).

Fé de Cristo implica, pois, num movimento de ser acolhido por Cristo, acolhê-lo e acolher o

próximo; ser salvo e salvar; ser ajudado e ajudar; ser de Cristo e ser como Cristo; ter Cristo

em mim e ser como Cristo para o outro. Lutero (ObSel, 2.456 [1520]) escreve: ... os bens que temos de Deus devem fluir de um para o outro e tornar-se comuns, de sorte que cada qual assuma seu próximo e proceda com ele como se estivesse no lugar dele. Eles fluíram de Cristo e fluem para dentro de nós, (...) De nós eles fluem para dentro daqueles que deles necessitam, a tal ponto que inclusive minha fé e justiça têm que colocar-se perante Deus, para cobrir e interceder pelos pecados do próximo que devo tomar sobre mim, e neles labutar e servir como se fossem meus próprios, pois foi isso que Cristo fez a nós. Este é, portanto, o verdadeiro amor e a regra sincera da vida cristã. (...) Concluímos, portanto, que a pessoa cristã não vive em si mesma mas em Cristo e em seu próximo, ou então não é cristã. Vive em Cristo pela fé, no próximo, pelo amor.

Também Hinkelammert expressa esse movimento com o conceito de “verdade” em

Paulo como um algo mais do que uma frase verdadeira: Mas, para Paulo, verdade é algo diferente do que costumamos entender em nossa linguagem corrente. Não se trata de declarar alguma frase sobre o mundo como verdadeira. Trata-se de um ‘ser na verdade’. Isso, por exemplo, no sentido de uma frase de Jesus segundo o Evangelho de João, em que ele diz: ‘Eu sou o caminho, a

217 Neste caso crer em Cristo é algo como crer no mercado financeiro, numa ideologia, num candidato presidenciável que solucionará os problemas que afligem a nação, crer no herói etc. É a declaração de uma preferência que é volátil. Não implica em comprometimento. 218 Cristo como verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano. Não queremos aqui esgotar o assunto. A intenção é apontar para a unidade de pessoa e obra em Jesus. Na FC (In: LC 524.5 [1576/1577]) um conjunto de teólogos encontra o seguinte consenso: “que a natureza divina e a humana em Cristo estão unidas de maneira tal, que não há dois cristos, um o Filho de Deus, o outro o Filho do homem, porém um único é Filho de Deus e do homem. Lc 1; Rm 9”. A seguir exemplificam a união e a comunhão com o ferro incandescente: cada qual, porém, mantém sua essência.

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verdade e a vida.’ Estar na verdade é uma maneira de agir e de viver: viver na verdade. Isto é a fé segundo Paulo: quem vive na verdade tem fé. Isso em nada se relaciona com a crença em alguns dogmas ou representações e com a ideia de que são certas ou não. Se não se entende a fé em Paulo nesse sentido, não se pode entendê-lo. (HINKELAMMERT, 2012, p. 73)

Essa verdade é realizada pela justiça. A justiça a realiza. Por isso o que tem fé é justo na

fé. (HINKELAMMERT, 2012, p. 74). A verdade é, portanto, uma vivência.

Chegamos assim à pergunta decisiva na vida de fé: o que faz a pessoa cristã dizer e

fazer o que diz e faz? Qual é o princípio que a move? No mercado financeiro este impulso é a

cobiça; mas e na pessoa cristã? Vimos que em Lutero este impulso primeiro é uma ação de

Deus que acolhemos pela fé. Esta, inclusive, é obra criadora de Deus. Mas isto não significa,

em minha opinião, estabelecer um escalonamento de ações, separando o que não pode ser

separado. Há que se considerar o conjunto: quando chove a terra é irrigada (não posso dizer

chove primeiro e irriga a terra depois, mesmo que haja um lapso de tempo entre uma coisa e

outra); quando o raio solar brilha, há luz; etc. Assim também fé e obra219. Por esta junção a

misericórdia de Deus ganha espaço num mundo marcado por mazelas.

Em Westhelle (2008, p. 127-132) encontramos este agir no que o autor chama de

“ressurreição da prática”220. Em seu esforço de não separar cruz e ressurreição, mas de ouvir o

grito que vem da cruz, apresenta Maria e as outras mulheres como exemplo desta prática. Na

crucificação elas estavam lá, ao pé da cruz, e foram ver onde o corpo havia sido sepultado.

219 Declaramos ciência que em Lutero há um escalonamento: a fé precede a obra, ou seja, a fé é a obra das obras. Lutero o compreende desta forma por considerar Deus o sujeito de toda obra que é feita através de nós. Concordamos com esta premissa do ponto de vista teológico. Acolhemos também sua relevância metodológica no século XVI quando a boa obra era crida e aceita como caminho de salvação, resultando na questão das indulgências. Entretanto o que deve ser evitado é este escalonamento entre fé e obra no século XXI. Quando afirmamos que a fé vem primeiro e a obra depois, relegamos a obra de misericórdia em favor do próximo para um segundo plano. Na prática do luteranismo brasileiro este é um dos grandes problemas: a ação é secundária, pois a justificação se dá pela fé. É a separação do que não pode ser separado. Em consequência, muitos param na declaração verbal da fé, ou seja, no culto. Há, entre nós, uma carência pela vivência da misericórdia de Deus. E esta só é concretizada no ato, no gesto, na vida. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil se preocupa com este aspecto e, como um dos encaminhamentos decorrentes desta preocupação, criou o Ministério Diaconal assim definido pelo Estatuto do Ministério com Ordenação no seu artigo 15: “o exercício do ministério diaconal consistirá no testemunho prático da fé cristã e se expressará através do serviço à pessoa, visando a sua cura e o bem-estar integral, cabendo-lhe especial responsabilidade: (I) - no incentivo à prática do amor e no serviço à pessoa necessitada; (II) - no despertamento e na promoção de uma espiritualidade diaconal entre os membros; (III) - na criação de grupos de solidariedade ou de serviço na comunidade; (IV) - em atividades diaconais desenvolvidas em instituições diaconais, a exemplo de hospitais, ancionatos, creches; (V) - nos movimentos ecumênicos em proteção à dignidade humana ou em favor de causas justas, apoiadas pela comunidade; (VI) - em iniciativas da comunidade que visem prevenção e cura do sofrimento humano e a eliminação de suas causas; (VII) - na implementação de projetos de apoio social.” A iniciativa a considero boa, com o cuidado de não haver a “profissionalização” do cuidado e do amor ao próximo ou a sua terceirização – delegar o gesto do cuidado ao ministério diaconal. Seu específico não significa exclusividade. É a expressão natural de toda pessoa que crê. 220 Em sua obra “O Deus escandaloso: uso e abuso da cruz” (2008), Westhelle destaca o labor teológico feito a partir da cruz. A concebe como lugar da revelação de Deus. Desmistifica a romantização da cruz e afirma ser necessário ouvir o grito de dor que vem dela. Igualmente critica as teologias que a ignoram, passando diretamente para a ressurreição. A conexão entre cruz e ressurreição faz com que a “ressurreição seja abordada como uma prática (...) É uma prática de trabalho, de luto e de amor, ...” (p. 171)

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114 Então foram para casa e prepararam óleos. É o primeiro sinal de que a história não acabara na

cruz. Após os preparativos e o respeito ao sábado, voltam para o túmulo a fim de “ungir um

corpo morto putrescente” (p. 128). E são surpreendidas com a ressurreição: a surpresa está aí quando realizam um trabalho de luto e amor. Em meio à sua dor, em face do cadáver do Amado, essas mulheres praticaram o ato improvável de amor sem esperar que ele alguma vez fosse retribuído. Uma teologia da cruz é sempre o outro lado de uma prática da ressurreição, e uma prática da ressurreição é o outro lado de uma teologia da cruz. (WESTHELLE, 2008, p. 128)

O gesto, além de conectar a ressurreição e a cruz, é símbolo de pessoas que esperam

contra toda esperança e mantém aberta a memória empática: “essa é a tarefa dos seguidores e

das seguidoras de Cristo: não permitir que a história termine em calamidade, não permitir que

o passado seja fechado, contra toda evidência, contra toda esperança.” (WESTHELLE, 2008,

p. 129). A isto chama de abrir um passado mediante memória empática. Por mais dolorosa

que seja, não deixá-la se apagar.

O que as mulheres fazem é um gesto do mais genuíno e desinteressado amor: [s]e se quiser ter certeza de que o amor é completamente desinteressado, elimina-se toda possibilidade de retribuição. Mas exatamente isso é eliminado na relação com alguém que está morto. Se o amor, todavia, permanece, ele é verdadeiramente desinteressado. [...] A obra de amor em lembrar alguém que está morto é uma obra do MAIS DESINTERESSADO amor. (KIERKEGARD, Soren. Works of Love. New York : Harper & Row, 1962, p. 320, apud WESTHELLE, 2008, p. 132. Ênfase do autor).

Westhelle percebe um amor que age de forma desinteressada, que é prenúncio de

esperança e memória empática. Um amor que é vivência e fomenta um modo de vida.

Tamez (1995) igualmente contribuiu com a construção deste modo de vida pautado pela

fé de Jesus. Percebemos este movimento quando aponta para a Justificação pela Fé como

afirmação da vida.221 É o aspecto da solidariedade como raiz da Justificação pela Fé

(TAMEZ, 1995, p. 217ss).

Pela solidariedade de Deus com Jesus Cristo e o ser humano a dignidade e a justiça

ganham forma. Deus solidariza-se com o humano e Jesus Cristo, protótipo do excluído. Ao fazê-lo, convoca todos os homens e mulheres da terra à prática da fraternidade baseada em sua justiça. É graças à solidariedade de Deus, manifestada no primeiro de muitos, que o ser humano redescobre sua imagem divina, como um ser justificado por Deus, e é por meio da justiça da prática dela que a justificação se torna tangível. (TAMEZ, 1995, p. 217).

221 Este é o terceiro capítulo de sua obra. Nele a autora se propõe um ensaio de reconstrução teológica da Justificação pela Fé. Este passo é necessário pois ela conclui, nos capítulos anteriores, haver um descompasso entre o que Paulo entende ser a Justificação pela Fé e a prática da Igreja. Nesta pesquisa destacamos o elemento da solidariedade como expressão da Justificação pela Fé. É uma forma de dar continuidade ao tema já iniciado sob a perspectiva da comunitariedade como forma de viver na lógica de Deus.

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Dentro da concepção de justificação como humanização (TAMEZ, 1995, p. 206), o

pobre e excluído percebe que sua história e a história de Jesus são semelhantes. Quando o

excluído se dá conta disso, tem em Jesus o grande protótipo e referência. Ele se dá conta de

que Deus caminha com ele. Desta percepção vem a força que vence a morte e a cruz; que

resiste à realidade dura e a transforma. Este é o olhar do justificado, daquele que assume a

lógica de Deus. (TAMEZ, 1995, 212-217). “A solidariedade aqui é outro sinal de vida, de

imagem de Deus, é a resposta ao grito do excluído, primeiro sinal de vida.” (TAMEZ, 1995,

p. 221).

Destacamos que a solidariedade opõe-se ao projeto do mérito. A solidariedade é a ação

desenvolvida sem interesse, por graça, sem segundas intenções. Pikaza afirma: o que antes parecia duplo movimento (por um lado, repartir os bens com os pobres e, por outro lado, seguir a Jesus), acaba ficando unido: é no serviço universal de ajuda aos necessitados que se descobre Jesus. (PIKAZA, Xabier. Hermanos de Jesús y servidores de lós más pequeños. Mt 25.31-46. Salamanca : Sígueme, 1984, p. 308, apud TAMEZ, 1995, p. 223).

Neste ponto percebemos que o amor é de fato algo desinteressado, fruto da graça: se

amamos o próximo por amor a Deus, de forma interessada, aplicamos a mesma lógica das

obras da lei e não da graça. Ou seja, desenvolvemos uma ação que é o amor ao próximo com

o objetivo de alcançar mérito diante de Deus; se, porém, amamos o próximo sem segundas

intenções, atuamos com a mesma graça com que Deus nos acolheu. (GUTIÉRREZ, Gustavo.

Beber em su proprio pozo. Lima : CEP, 1983, p. 169, apud TAMEZ, 1995, p. 223). Westhelle

(2008, p. 128), como vimos, o chama de “prática da ressurreição”.

Essa comunitariedade como vivência da Justificação pela Fé ganha significado no

cuidado mútuo. Lutero (ObSel, 1.429 [1520]) a expressa no contexto da Ceia do Senhor: se

todas as pessoas participam do benefício de Cristo, “... todos os sofrimentos e pecados

também passam a ser comuns, de modo que o amor é aceso por amor, levando à união.” A

Igreja aqui ganha mais e mais o sentido e jeito de um hospital (LUTERO, Martim. WA 56,

275, 26ss, apud ALTMANN, 1994, p. 128). Sua tarefa é de, na precariedade da vida, ser sinal

do amor.

As comunidades luteranas são chamadas a ser sinal do amor na precariedade da vida e

se esforçam para tanto.222 Acolher a Justificação pela Fé como modo de vida requer alcançar

a vida do outro na forma como ela se apresenta. A vida do outro interpela e, por grandes ou

222 O Pastor Presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), Nestor Paulo Friedrich (2013, p. 13), ao definir a IECLB como Igreja Protestante, cita Paul Tillich e diz: “ela [IECLB] afirma a justiça, a paz e a dignidade da criação e está sempre na defesa da pessoa humana, amada e dignificada por Deus.” Neste sentido é protestante.

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116 pequenos sinais, exige resposta. A Comunidade Luterana em Campinas (IECLB) se coloca a

caminho e vivencia este modo. O faz de muitas e diferentes formas, entre as quais citamos:

a) visitas realizadas pelo Grupo de Diaconia no Natal de 2013 à Instituição Renascer

(Instituição Pública, mantida pela Prefeitura de Campinas, que abriga doentes mentais, em sua

maioria ex moradores de rua). O apoio público não diminui a carência e necessidade humanas

constatadas. A mensagem da Justificação pela Fé se materializa na interação de vidas;

b) visitas às famílias de idosos que vivem sozinhos e famílias desestruturadas pela

doença, idade, separações etc, que não conseguem mais participar da vida comunitária. Trata-

se de um projeto de visitação e cuidado pastoral;

c) acompanhamento continuado a moradores de rua no centro da cidade de Campinas

em parceria com a Cáritas Brasileira. Conforme registro do mês de maio de 2012 da

Secretaria de Assistência Social da Prefeitura de Campinas, há no município 890 moradores

de rua cadastrados.223 É-lhes oferecido um espaço para higiene, descanso e um café da manhã

com a ajuda de pessoas voluntárias e doações;

d) apoio de pessoas voluntárias à instituição ABBA (Associação Beneficente Boa

Amizade) que oferece alimentação, oficinas de capacitação e reforço escolar a crianças em

situação de vulnerabilidade social no bairro Jardim Aurélia em Campinas;

e) apoio institucional e voluntariado no CRAMI (Centro Regional de Atenção aos Maus

Tratos na Infância). O voluntariado se dá através de pessoas que dedicam tempo à causa e o

apoio institucional na forma de infraestrutura: a comunidade oferece a infraestrutura

necessária para os trabalhos de atendimento de uma dupla psicossocial (psicóloga e assistente

social) às crianças e familiares na região central da cidade;

f) doação de cestas básicas, remédios e pagamento de previdência social (INSS) para

desempregados através dos recursos do fundo diaconal, mantido com doações em dinheiro

feitas pelos membros da comunidade;

g) chá da OASE organizado pelas Senhoras da Ordem Auxiliadora de Senhoras

Evangélicas (OASE). É um chá da tarde mensal que reúne senhoras de todas as idades e gera

dois benefícios imediatos: o primeiro para as próprias participantes, idosas em sua maioria,

que “quebram a rotina” e se encontram com as amigas para uma tarde agradável; o segundo é

de assistência social: os alimentos são doados e o ingresso ao chá é vendido. Parte do dinheiro

arrecadado é doado ao final de cada ano à entidades assistenciais de Campinas e região. No

223 Conforme reportagem publicada pelo portal G1, em 23/08/2012, disponível em http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2012/08/numero-de-moradores-de-rua-em-campinas-aumenta-49-em-2-meses.html, acesso em 14.01.2014.

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117 ano de 2013 oito entidades puderam ser beneficiadas com setecentos reais, ou seja, mais de

um salário mínimo brasileiro na ocasião para cada uma delas.

São sinais de amor em meio à precariedade da vida. São suficientes? Pequenos?

Grandes? Não sabemos.224 Sabemos que são sinais que evidenciam a lógica de Deus e geram

dignidade característica do Reino de Deus: vida, dignidade e cuidado. São sinais da condição

de pessoas libertas da lógica do mérito e que se sentem comprometidas com a edificação de

uma sociedade onde a vida tenha espaço.

Este compromisso da comunitariedade também se dá na individualidade225. Muitas são

as pessoas luteranas que, voluntariamente, se engajam em atividades sociais de voluntariado

através de Organizações Não-Governamentais com os mais variados fins. O zelo ético é

premissa que cada qual deve assumir226. Por consequência, muitas são as manifestações de

repúdio à corrupção, por exemplo, e raramente ouvimos que um luterano nela está envolvido.

É claro que existem, não nos enganemos.227 Mas, em geral, estamos diante de pessoas muito

éticas e que assumem os princípios da fé e os transformam em vivência. Fazem o que está à

mão. Materializam a fé de Cristo.

Registramos que esta ética é também a ética de todas as pessoas justificadas pela fé,

independentemente da confissão religiosa. O Papa Francisco o expressa de forma bonita ao

falar do “ecumenismo de sangue”228: onde há pessoas sendo mortas por serem cristãs não se

pergunta a denominação ou local de batismo. Mortas, o sangue se mistura. É uma realidade

que não pode ser desprezada. Precisa ser acolhida e enfrentada de forma conjunta, pois gera

dor e morte de irmãos e irmãs. A ideia do cuidado pode ser ampliada: onde pessoas passam 224 Se os sinais são “pequenos” ou “grandes” é difícil de mensurar. O que é um gesto pequeno para quem o realiza, pode ser acolhido como algo grandioso por quem o recebe. Ou vice versa. Altmann (1994, p. 90) acentua que vida na graça desenrola-se em misericórdia. 225 Tanto na comunitariedade como na individualidade o luterano é animado a viver a “palavra” na perspectiva da determinação do ser, como vimos. Ou seja, na “inter-relação entre pensamento, palavra e ação.” (BAYER, 1997, p. 42-44). Wegner (1990, p. 68) também conclui que a “defesa do meio ambiente tem que ser feita exatamente nestes dois níveis: no pessoal e no coletivo.” 226 Altmann (1994, p. 80-95) afirma que a Justificação pela Fé é transformação pessoal e social. Hinkelammert (2012, p. 41-42) afirma que a pessoa tornada sujeito age em conformidade com o espírito de Deus, age em conformidade com a sabedoria de Deus (que é loucura para este mundo). Tamez (1995, p. 187-189, 245) afirma que a justificação insere a pessoa na lógica de Deus e, ao assumir esta lógica, “a luta pela defesa da vida concreta dá consistência à fé”. 227 Toda generalização é ineficaz e ineficiente. Toda regra tem sua exceção, diz o ditado popular. Mas precisamos apostar neste caminho. Apesar de suas imperfeições e possíveis contradições no dia de amanhã. A incerteza do porvir não pode fazer desistir da caminhada hoje. Nem podemos deixar de valorizar os pequenos sinais apesar dos grandes desafios. A questão chave não é, por hora, a grandiosidade do movimento, mas o assumir a lógica de Deus que é a vivência da Justificação pela Fé. Bornkamm (1992, p. 179) afirma que Paulo expressa esta percepção na tríade fé, esperança e amor (1 Coríntios 13.13). 228 Jornal La Stampa (Itália) entrevistou o Papa Francisco e publicou matéria intitulada ''Nunca tenham medo da ternura''. TORNIELLI, Andrea (repórter). 15-12-2013. Tradução: Moisés Sbardelotto. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/526693-nunca-tenham-medo-da-ternura-entrevista-do-papa-francisco-ao-jornal-la-stampa, acesso em 07.01.2014.

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118 fome, onde estão desempregadas, onde em guerra, onde doentes e sozinhas, ... precisam de

ajuda. Não é necessário pedir a certidão de batismo para verificar a confissão religiosa, é

necessário ajudar. Este é o modo de vida decorrente da Justificação pela Fé que supera

exclusivismos e intolerâncias de qualquer sorte.

O enfoque final de nosso texto é afirmar que todos estes gestos e iniciativas são

importantes. O próximo precisa deles. São-lhe imprescindíveis. O limite, todavia, está em que

não é possível construir aqui o Reino de Deus (Altmann). Todo esforço será sempre paliativo.

Se assim não fosse, teríamos criado, ao menos na teoria, um novo sistema que, instituído,

requereria absolutização como todo sistema.229 Por isso somos sempre de novo lembrados da

cruz.230 Cruz que é mais do que um acontecimento histórico: ela nos revela estar o ser

humano sempre à mercê de Deus, despido de todas as suas forças e dignidade (IWAND,

1981, p. 39). “Diante da cruz o ser humano reencontra a sua verdade, torna-se o homem que é

diante de Deus”. (LUTERO, Martim. WA 5.128,36, apud IWAND, 1981, p. 40). Ou seja, ao

pé da cruz descobre-se ser humano. Este é marcado pela luta contra o pecado (Lutero), da

constante luta contra a cobiça (Hinkelammert) e está inserido numa dinâmica social que

necessita de uma estrutura gerencial (Hinkelammert e Brakemeier), mas que mata. Westhelle

(2008, p. 111) afirma que bem e mal estão aí: ora temos um, ora outro no campo de visão. E

conclui: Deus não deveria ser louvado por causa da grandeza da criação apesar do mal; Deus deveria ser louvado em meio ao mal em que a criação contínua de Deus opera a partir da força aniquiladora do mal. Por causa dessa força, da niilidade do mal, a criatividade de Deus se manifesta. É essa criatividade, então, e não o mal em si, que torna possível o conhecimento de Deus.231

A cruz é parte integrante da caminhada da vida.232 Expõe a dor das pessoas e da

natureza. É o lugar da revelação criativa de Deus. Logo, seu lugar de revelação por excelência

é a periferia, o lugar da caveira, o lugar inimaginável.233 Ali a cruz ganha significado e sua

229 Febvre (2012, p. 181-189) afirma que Lutero, em meio ao movimento da Reforma, se declara livre da igreja constituída. Como seguir? A partir de qual base reconstruir? Vai criar um novo papa de papel (Bíblia)? Não, a nova referência é a fé. E a fé está alicerçada na palavra. Não a palavra morta, mas a palavra viva, atuante, imaterial, uma voz que preenche o universo. 230 Loewenich (1988, p. 11-12) defende a tese de que a teologia da cruz molda todo o labor teológico de Lutero. 231 Ele fala do conhecimento sub especie crucis: conhecimento de Deus oculto na cruz. 232 Altmann (1994, p. 90) afirma: “a vida sob a graça será sempre uma vida ameaçada, porque não estará realizada totalmente. Encontrar-se-á em uma tensão permanente, entre a cruz e a ressurreição.” 233 Brakemeier (2002, p. 43) assinala que a páscoa não anula a cruz. Por ser lugar de revelação de Deus, este “quer ser procurado ‘embaixo’, junto a quem sofre.” Logo a dialética precisa ser mantida: “a imagem de Deus que é Jesus Cristo traz, em união indissolúvel, as marcas do sofrimento solidário e as insígnias do triunfo sobre as causas do mesmo.”

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119 mensagem restauradora se evidencia. (WESTHELLE, 2008, p. 37-38).234 A mensagem da

Justificação pela Fé sob a égide da cruz (cf\Altmann e Westhelle, apud GARCÍA e

DOMÍNGUEZ, 2008, p. 191) leva a sério o contexto histórico-cultural de sua inserção: critica

os ídolos (religiosos, de mercado etc) e aponta para salvação integral, um gesto de amor ao

próximo.

Na confessionalidade Luterana esta tensão necessária que tento descrever se manifesta

no “já e ainda não”: já experimentamos a salvação de Deus entre nós; ainda não em plenitude.

Em meio ao ainda não a pessoa justificada pela fé testemunha o já como um modo de vida.

234 Altmann (1994,p. 287) escreve: “a perspectiva do crente (...) não se volta para os sãos, mas procura os doentes; não almeja pactuar com os fortes, mas solidarizar-se com os fracos; não se olha pela ótica dos poderosos, mas mira-se pela perspectiva dos oprimidos.”

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CONCLUSÃO

A pesquisa analisou o conceito da Justificação pela Fé no contexto do século XVI e a

maneira como redefiniu as relações interpessoais, o relacionamento das pessoas com Deus e a

igreja, criando um novo modo de viver a partir da fé. Objetivou recuperar um estilo de vida

para além de uma formulação dogmática e perguntar por sua relevância no contexto atual.

Iniciou sua trajetória com a análise do contexto do século XVI: marcado pelo medo, tem

na ameaça do inferno uma das principais motivações religiosas. A Igreja da época se

apresenta como intermediadora da pessoa com o céu através de práticas pastorais meritórias,

especialmente indulgências e missas. Mas estas mostraram seus limites: como saber se fiz o

suficiente para herdar a vida eterna? Esgotada esta prática, a vida que clama busca por

resposta. Um caminho central e estruturante da Reforma foi desenhado por Lutero com o

conceito da Justificação pela Fé: é Deus quem age de forma salvífica em Jesus Cristo e as

pessoas acolhem esta salvação pela fé. As obras realizadas podem agora ganhar novo sentido

e significado: não mais meritórias, mas de gratidão, como fruto da fé para edificação da vida.

Se a obra é prescindível como mérito salvífico, é absolutamente imprescindível para a vida do

próximo. O cuidado amoroso para com o próximo, desinteressado, que não espera retorno –

como o das mulheres que vão ao túmulo de Jesus no domingo de manhã, pois do corpo

desfalecido não pode vir retorno – é um sinal visível da pessoa justificada pela fé. Evidencia-

se, assim, o embasamento para a compreensão da Justificação pela Fé como fundamento de

um modo de vida na Reforma do século XVI.

No passo seguinte a pesquisa tentou captar alguns impactos deste enfoque no contexto

do século XVI na medida em que são úteis para atualizar a temática para o contexto do século

XXI. Pelo conceito de fides Cristi pudemos perceber que Cristo vive em nós e orna nossa

vida. Lutero o exemplificou com a paráfrase da tinta e da luz na parede: assim como a tinta e

a luz ornam a parede, Cristo orna a vida da pessoa. “Cristo em mim” só permite a vivência de

uma lei: a lei do amor que rege a vida da pessoa, da Igreja, instituições etc. Isto define a

Justificação pela Fé como fundamento de um modo de vida que é orientada por um princípio:

o princípio do amor ao próximo é o que me move. A pesquisa busca, então, detalhar este

princípio nos textos de Martim Lutero (Das Boas Obras e Da Liberdade Cristã, ambos de

1520). Concluímos que a pessoa cristã é livre para agir em favor do próximo, ser-lhe como

um Cristo. O princípio que move a pessoa justificada pela fé é o do amor ao próximo. O

próximo é o critério do agir de Deus e de quem vive justificado pela fé. A isto chamamos de

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121 Fé de Cristo (não simplesmente fé em Cristo): a fé que move a pessoa justificada é a fé de

Cristo. Esta molda o modo de vida orientado por um princípio.

Viver a fé de Cristo traz consequências para o cotidiano das pessoas. No terceiro

capítulo propusemos analisar este modo de vida como uma proposta de atualização da

Justificação pela Fé para o século XXI. Percebemos que a Justificação pela Fé sofre a crítica

da passividade: o luteranismo em particular e o protestantismo em geral estão mais voltados

para a face coram Deo da justificação do que para a vivência em relação ao próximo. A

consequência desta ênfase é que, com o passar dos anos, a Justificação pela Fé foi

transformada em um dogma, uma doutrina, um saber, em detrimento da vivência que

julgamos ter sido em seu princípio. Propor uma perspectiva de atualização implica, então, em

valorizar este segundo aspecto. Foi a opção desta pesquisa. E ela se dá na perspectiva de um

ser humano moderno, inserido em sociedade moderna, marcada pelo econômico, que sofre a

necessidade de se justificar em seu direito de existir a cada novo dia – especialmente pela via

da produção e consumo: quem produz e consome é; quem não, não é.

Nesta sociedade a Justificação pela Fé é novamente fundamento libertador. É escândalo

por relativizar as premissas da produção e consumo. Ocupa-se com os excluídos deste

sistema. Estes que não conseguem ser porque não produzem ou não consomem. E são muitos:

crianças, idosos, doentes, pobres, analfabetos, ... Viver a Justificação pela Fé neste contexto é

ser movido incondicionalmente por um espírito como o de Cristo: acolhedor, dignificador,

restaurador etc. É lançar bases para um outro mundo, onde o econômico é tratado como meio

(não um fim em si só), a educação e economia concebidos como serviços à vida e o esforço

das pessoas destinado a construir um mundo melhor (não necessariamente ganhar dinheiro).

Ser o que anuncia o evangelho na definição de Hinkelammert: ser Boa-Nova para as pessoas.

É assumir a compreensão do homem que entra na padaria e não tem dinheiro, mas está com

fome. Se rouba um pão, isto não é considerado roubo. É levar a sério o direito inerente da

pessoa humana de satisfazer a necessidade mais elementar da vida: a fome. Por outro lado, se

entra na padaria, com ou sem dinheiro, e rouba o pão pelo simples fato de querer tê-lo, é

roubo. A intenção que realiza este ato segue a lógica acumulativa do mercado, não a lógica da

partilha de Deus. Hinkelammert chama esta lógica do mercado de o pecado. A Justificação

pela Fé lhe é o contraponto.

Viver a Justificação pela Fé como fundamento de um modo de vida é assumir a pessoa

na situação-limite da vida. Lutero o experimentou nas Anfechtungen (tentações): as

seguranças oferecidas não funcionam mais. As obras meritórias não conseguem paz às almas.

Assim na modernidade. A situação-limite (a morte é uma delas) da vida não é resolvida com

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122 as seguranças que o mundo moderno oferece. O acúmulo de capital, medicamentos modernos,

prognósticos financeiros etc, não trazem paz e segurança à alma. A necessidade permanece.

Os fetiches do mercado não tranquilizam. A Justificação pela Fé encontra aqui sua relevância

no mundo moderno. É a segurança na insegurança; a tranquilidade na angústia; a vida em

meio ao caos.

O enunciado libertador da Justificação pela Fé no século XVI ganha assim expressão no

século XXI. Sua principal marca é a empatia com a situação de sofrimento do outro. Desta

forma a Justificação pela Fé ultrapassa a fronteira do dogma, da doutrina, de um saber para

ganhar a dimensão da vida e dela ser o fundamento. Fundamento de vida que não se esgota na

dimensão individual e individualizante, mas que, liberto das obras meritórias, permite ao ser

humano dedicar-se ao seu semelhante. A Justificação pela Fé tem, portanto, potencial para

colocar sinais de um outro mundo possível.

Concluímos a dissertação apontando para este potencial libertador da Justificação pela

Fé na perspectiva pessoal e comunitária em contexto latino-americano. A perspectiva pessoal

gera na pessoa um compromisso ético inapelável: ser justo, correto e íntegro em tudo que faz.

E faz tudo o que está à mão, diante de si. Não apontamos para as questões necessariamente

extraordinárias da vida, mas para o cotidiano, este que se coloca diante de cada pessoa. É uma

prática cotidiana da ressurreição. A perspectiva comunitária tem a tarefa de ser sal da terra e

luz do mundo ao apontar para a lógica de Deus. Ou seja, participar da dor do outro e ser-lhe

solidário assim como Deus participou de nossa dor e foi-nos solidário. Apresentamos

testemunhos de como esta comunitariedade se dá na Comunidade Luterana em Campinas e na

perspectiva ecumênica. Pudemos perceber que pequenos gestos são limitados por não

solucionarem grandes questões sociais e muitas vezes são paliativos por não modificarem a

questão de base que gera a consequência da dor e exclusão. Mas, por menor que seja a ação,

aponta uma direção, indica uma motivação, expressa uma lógica, a lógica de Deus. A

solidariedade é, portanto, expressão da Justificação pela Fé. Uma materialização da fides

Christi, um fundamento da vida justificada.

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