justiça restaurativa: desafios políticos e o papel dos juízes

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    Justia Restaurativa: desafios polticos e opapel dos juzes

    PEDRO SCURO NETO*

    EPOIS DE ASSISTIR A UM VDEO numa reunio do ncleo de justia restaurativa da

    Escola da Magistratura (Porto Alegre), um promotor se levantou e pediu a palavra. O filme

    havia mostrado o depoimento de um homem, vtima de assalto cometido por duas pessoas

    que, mo armada, lhe roubaram a nica coisa de valor que possua, um carro velho. A Justia tratou

    dos infratores, um adulto e o outro adolescente, de modos bem diferentes. O menor, acompanhado da

    me e da namorada, aceitou participar de um procedimento restaurativo, junto com a vtima e uma desuas filhas. A vtima agradou-se do resultado do encontro, no s pela chance de explicar ao

    adolescente os danos que seu ato acarretara1, mas tambm pelo fato de o infrator ter se comprometido

    a pagar metade do prejuzo. Nada parecido com o que ocorreu no caso do infrator adulto. Na outra

    audincia, contou a vtima, deram-me cinco minutos para prestar depoimento, e o bandido saiu da

    sala me gozando, convencido que ia pegar no mximo uns meses de cadeia.

    1. JUSTIA DURA E BRANDA

    Todos parecem estar muito felizes com a justia restaurativa e os benefcios que ela reserva

    para as vtimas, disse o promotor logo aps a apresentao do vdeo. Contudo, deixamos de prestar

    ateno ao fato de sermos funcionrios da Justia que no tm outro jeito de se comunicar com as

    pessoas a no ser pelas aes e os smbolos daJustia quetodo mundo entende. Em outras palavras,

    referia-se ao modo como a justia aplicada na prtica, comunicando mensagens ora duras ora

    brandas a vtimas, infratores e sociedade em geral [TABELA 1].

    Mensagens duras e brandas, profundamente incorporadas a quase todos os sistemas de

    justia, so expressas em termos ticos e culturais exclusivistas, como se a concepo de justia emum determinado pas fosse melhor que a dos outros. Desse modo, no Brasil, onde a filosofia a

    "reabilitao", os cdigos so redigidos como se penalidade no fosse castigo, mas condio para

    devoluo de liberdade a ser conquistada progressivamente, pelo mrito e orientada presumida

    *Ph.D. (Leeds), diretor do Centro Talcott de Direito e Justia (So Paulo), introdutor da justia restaurativa e coordenadordos primeiros projetos de implantao de procedimentos restaurativos no Brasil e na Amrica Latina. Este artigo foipublicado naRevista da AJURIS(Associao dos Juzes do Rio Grande do Sul), n 103, setembro de 2006, pp. 231-254, e uma verso contextualizada e bastante ampliada de outro, publicado em JOHNSTONE & VAN NESS, 2006.1Perseguidos por uma viatura policial os ladres acabaram derrapando e batendo num poste. O carro da polcia vinha logoatrs e se chocou em cheio com o veculo roubado, que ficou completamente inutilizado.

    D

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    adaptabilidade social do infrator (SCURO, 2004: 274, n. 56). S que, impregnado de relativismo esse

    raciocnio s serve, na prtica, para camuflar os srios problemas de uma Justia que no funciona

    bem. No porque aos operadores falte qualificao, bem ao contrrio, mas por conta de cdigos e

    procedimentos labirnticos, e da excessiva confiana nas sentenas dos magistrados, nas autoridades eno poder de Estado de perseguir, processar e encarcerar. As conseqncias desses mitos so

    assustadoras, e simples de verificar por meio de comparao entre os indicadores de homicdio nas

    diferentes regies do mundo [TABELA 2].

    TABELA 1.JUSTIA RETRIBUTIVA:MENSAGENS

    DURAS BRANDAS

    SANOATOR

    Pena Tratamento compulsrio

    Infrator Voc uma pessoa ruim e ser castigadona proporo do mal que causou.

    Voc doente e irresponsvel. Vamoscuidar de voc para o seu prprio bem.

    Vtima Quando o malfeitor punido voc beneficiado.

    Suas necessidades no so toimportantes quanto s da Justia e doinfrator.

    Comunidade Intimidao a melhor maneira decontrolar condutas e fazer o malfeitorentender que seu comportamento inaceitvel.

    Reabilitao trabalho exclusivo deespecialistas.

    TABELA 2.TAXAS DE HOMICDIO POR REGIO,DCADA DE 1990.2

    REGIO HOMICDIOS POR 100,000 N DE PASES

    Estados rabes 1,7 12

    Europa ocidental e setentrional 1,9 18

    sia setentrional 2,2 7

    Extremo Oriente 5,5 4

    Sudeste asitico 5,6 9

    Amrica do Norte 6,1 2

    Leste europeu 8,6 16

    frica subsaariana 13,0 17

    Amrica Latina e Caribe 19,8 20

    2Fontes: levantamentos da ONU sobre regulamentao de armas de fogo, tendncias da criminalidade, e operaes da justiacriminal; dados do Centro para Controle de Enfermidades dos EUA; estatsticas criminais internacionais.

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    2. CRIME, CASTIGO, E POLTICA INTERNACIONAL

    Os especialistas olham esses dados e deduzem que na frica e Amrica Latina criminalidade e

    segurana pblica so problemas multidimensionais, excessivamente complexos, associados

    natureza humana em sociedades que induzem ao crime e nas quais o efeito intimidao

    questionvel, causado por massas de infratores famlicos que se transformam em criminosos

    destemidos por conta da misria crnica e da indiferena (KAHN, 2001: 38, 42; AZEVEDO, 2005).

    Quer dizer, so problemas que nenhum sistema de justia pode resolver ou controlar de modo

    satisfatrio porque sua capacidade de absoro muitssimo inferior ao nmero de criminosos em

    potencial que sociedades to perversas criam todos os dias. Sociedades to perversas, alis, quanto

    seus prprios sistemas de justia, que funcionam exclusivamente do modo que os recursos

    permitem, muito inferiores ao que o Errio pode oferecer,

    3

    denegrindo a imagem da JustiaCriminal como um todo, at mesmo porque os juzes no podem inventar condenaes ou

    penalidades (AJUFE, 2001).

    A complexidade desse quadro fica maior quando se percebe que, mais que em qualquer outra

    regio do mundo, na Amrica Latina as taxas de homicdio parecem depender do modo como as

    diferenas pessoais so encaradas, ou seja, como assuntos de vida ou de morte. 4Um levantamento da

    Polcia Militar de So Paulo recentemente mostrou que em 80% dos casos de homicdio os envolvidos

    se conheciam e at se amavam. Paradoxalmente, os ndices esto caindo nas maiores cidades latino-

    americanas, na razo de quatro a seis por cento ao anofenmeno que os especialistas esclarecem tem

    pouco a ver com causas sociais ou econmicas (por exemplo, melhoria de vida ou reduo nos fluxos

    migratrios), do que com polticas de segurana pblica: de um lado, mano dura, ou seja, medidas

    severas contra a criminalidade, refletidas no aumento das taxas de encarceramento, e, acima de tudo,

    mano superdura, atitudes extremas especialmente contra traficantes de drogas e infratores

    perigosos.

    Tais estratgias esto perfeitamente de acordo com a noo do Departamento de Estado dos

    EUA acerca de "criar um mundo mais seguro, democrtico e prspero em benefcio do povoamericano e da comunidade internacional" (FARRAR, 2005). Nesse particular, o papel de

    protagonista desempenhado pela repartio governamental norte-americana incumbida de assuntos

    internacionais relacionados com narcticos e segurana pblica, a INL, cujo discurso manter

    3Em verdade, a segurana pblica est entre os setores mais favorecidos pelos governos latino-americanos. No oramento domais importante dos estados brasileiros, por exemplo, a polcia e a construo de penitencirias recebem muito mais recursosque educao e sade, respectivamente. O Brasil, alis, um dos pases do mundo com maior nmero de policiais por 100mil habitantes (278), atrs s da China, ndia, EUA e Rssia [fontes: ONU e Crime Trends, 1997].4Quatro vezes mais que os americanos, os brasileiros parecem ter uma estranha propenso a dar tiros uns nos outros. LarryRohter, The New York Times,20 out. 2005.

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    segurana, democracia e interesses empresariais em equilbrio no seio de uma doutrina centrada

    no combate corrupo e firme compromisso hemisfrico contra o narcotrfico. Para isso vai ser

    preciso criar sistemas de justia criminal no apenas estveis,5 mas tambm competentes para

    identificar, investigar e processar infratores e organizaes criminosas. Razo pela qual um dos pontosfundamentais da doutrina do governo norte-americano desmantelar o trfico internacional e a

    produo de drogas ilcitas fora dos Estados Unidos, na base de ntima colaborao com os governos

    da Amrica Latina, grupos intergovernamentais (como o Grupo de Lion, do G8 6) e organizaes

    internacionais (ONU e OEA).

    At ento a poltica externa americana vinha se concentrando somente na guerra s drogas

    (SCURO 2002: 295), de modo to intenso que a poltica fracassou completamente, por conta do

    desinteresse de seus agentes com os problemas institucionais profundos que impedem as polcias das

    naes parceiras de combater efetivamente a criminalidade nas suas formas mais variadas, incluindo o

    trfico de drogas (FARRAR, 2005). Recentemente, porm, os objetivos polticos foram ampliados,

    de modo a incluir na guerra s drogas crimes contra o sistema financeiro e financiamento do

    terrorismo, trfico de armas, imigrao ilegal e trfico de pessoas, crimes de informtica, roubo de

    propriedade intelectual etc. Com a ampliao do foco a estratgia externa dos EUA passou a

    considerar, de um lado, a construo na Amrica Latina de instituies complementares para

    operaes programticas urgentes, e, de outro, o engajamento da populao no esforo de melhorar

    os resultados da segurana pblica, o combate contra a corrupo, e o Estado de Direito [visto] como

    fundamento da democracia e elemento de preveno contra o terrorismo (FARRAR, 2005).

    O objetivo agora , portanto, no combater as drogas to-somente e de modo isolado, mas

    equilibrar apoio operacional imediato com o soft side do problema, isto , os aspectos brandos da

    violncia, educao cvica e preveno de criminalidade. Em outras palavras, a misso da INL, na

    Amrica Latina e em outras partes do mundo, promover reformas de cima para baixo, sem no

    entanto descuidar de estimular iniciativas em prol de uma cultura de legalidade. Isso inclui usar

    justia restaurativa, por exemplo, para tratar feridas causadas pela guerra civil na Colmbia, conforme

    um programa trienal ao custo de quase dois milhes de dlares (EMBAIXADA DOS ESTADOS

    UNIDOS, 2004).

    5Estabilidade institucional (aliada a interesses corporativos) precisamente o fator que faz os sistemas de justia na AmricaLatina serem to resistentes a mudanas. Jonathan Wheatley, Financial Times, 15 nov. 2005.6 http://www.g8.utoronto.ca/crime/index.html

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    3. JUSTIA RESTAURATIVA: DA VONTADE DE QUEM MANDA

    RESPONSABILIDADE COMPARTIDA

    Justamente por conta desses objetivos geopolticos, a justia restaurativa na Amrica Latina

    ainda est longe de ser entendida como um novo modo de justia com mensagens radicalmente

    diferentes para vtimas, infratores, comunidades, e o conjunto da sociedade [TABELA 3]. Em vez

    disso, confundida com o lado brando,soft sideda justia retributiva, simplesmente como um meio

    alternativo de resoluo de conflitos em estados fracos e internamente vulnerveis a redes terroristas

    e cartis do narcotrfico (FARRAR, 2005). Desse modo, foi includa no arsenal de uma ofensiva

    generalizada contra as 'assimetrias' entre os sistemas de justia dos EUA e dos pases da Amrica

    Latina. Enquanto isso, os funcionrios dos governos latino-americanos e das organizaes

    internacionais satisfazem-se em apresentar a justia restaurativa como uma esperana no s para osproblemas de criminalidade e violncia, mas tambm para a ineficcia dos nossos sistemas de justia

    (SLAKMON, DE VITTO & GOMES PINTO, 2005: 13).

    TABELA 3.JUSTIA RESTAURATIVA:MENSAGENS

    ATOR COMPROMISSO

    MalfeitorO que voc fez tem conseqncias. Voc responsvel e capaz de ajudar a colocar ascoisas nos seus devidos lugares.

    Vtima Voc tem o direito a ter seus prejuzos compensados e sua vida restaurada.

    Comunidade Os membros da comunidade devem ajudar vtimas e malfeitores a assumirresponsabilidades e cumprir seus compromissos.

    Dadas essas condies, seria possvel imaginar a justia restaurativa como algo diferente do

    que os mandatrios, domsticos e estrangeiros, dizem que ela significa? Se a resposta afirmativa,

    pode a justia restaurativa se tornar uma ferramenta para resolver questes focalizadas no somente

    em conflitos pessoais e responsabilidade individual, mas tambm em obrigaes coletivas, e contribuirna construo de uma sociedade coesiva, coerente, baseada em valores como respeito, participao,

    incluso, autorizao (empoderamento), processos decisrios consensuais, reparao de danos, e

    reintegrao da sociedade como um todo? (TOWARD A RESTORATIVE SOCIETY, 2005) No

    entanto, qualquer que for a resposta, os problemas devem ser vistos como algo condicionado no

    apenas pelo cinismo de quem manda, mas tambm pela dificuldade em selecionar as prticas

    restaurativas mais adequadas a intervenes que visam no apenas o contexto imediato, mas tambm a

    o grau de restauratividade e relevncia social e poltica dos projetos.

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    4. ENXERTIA E TRANSFORMAO

    Se uso uma palavra, disse Humpty Dumpty com certo desdm, ela quer dizer apenas o que eu

    quero... nem mais nem menos. Depende se uma palavra significa coisas diferentes, emendou Alice.

    Depende de quem manda, retrucou Humpty Dumpty pontificando. Isso tudo. 7

    Mudanas no sistema de Justia, com efeito, no so uma 'questo de qualidade', eficincia ou

    'humanidade', mas de 'fora' (AGOSTINI, p. 330). Ou seja, na hora de 'reduzir assimetrias' ou seja ,

    tornar os sistemas de Justia dos pases subalternos 8mais parecidos com os das naes dominantes

    tudo depende de quem manda. Mas isso no tudo, pois possvel desejar um efetivo aumento de

    qualidade se, conforme argumentamos a seguir, for permitida a interveno simultnea de

    experincias jurdicas diversas ou diferentes modos de Justia e at mesmo mobilizar os cidados

    para a ao, de vez que um dos aspectos de desenvolvimento social local que a comunidade, vista

    de uma determinada problemtica, pode criar instncias formais (organizaes no-governamentais,

    por exemplo) e, sentindo-se autorizada, prescindir da ao da Justia. 9

    Antes, no entanto, preciso corrigir a perspectiva convencional, ou seja, a opinio dos

    analistas sobre modernizao de sistemas jurdicos, notadamente quando esto envolvidos pases

    subalternos, alvo constante de tentativas de reduo de 'assimetrias', pelas quais determinados

    princpios e prticas so descartados em favor de outros, mais adequados aos padres das naes

    dominantes. Com efeito, h pelo menos uma dcada os sistemas de justia latino-americanos esto

    sendo harmonizados para ficarem cada vez mais parecidos ao dos Estados Unidos no Chile, porexemplo, o processo de harmonizao foi inteiramente completado em 2005. Assim mesmo, olhando

    do contexto histrico e de uma perspectiva comparativa, o que se verifica que alguns pases (Brasil,

    Panam, Uruguai e outros) ainda resistem enxertia, at mesmo porque a reduo de assimetrias no

    pretende resolver os problemas dos sistemas de justia latino-americanos, mas to-somente contemplar

    interesses norte-americanos lesados por crimes relacionados com financiamento de terrorismo, trfico

    de armas, imigrao ilegal, crimes de informtica e roubo de propriedade intelectual (FARRAR,

    2005).

    Doutra banda, o que se constata que mesmo ramos bem enxertados acabam no vingando.

    o caso do Japo, que apesar de submetido, desde 1868, a trs grandes implantes de ordenamentos

    7Lewis Carroll,Alice Atravs do Espelho e o que Ela Viu Ali[Captulo VI, 1872].8Pases cuja histria (ou seja, o sentido dela) foi alterada a partir 'de fora' pela superioridade militar e tecnolgica das naesmais poderosas do Ocidente (TANIZAKI, 1977).9No mesmo sentido, juzes podem mobilizar a comunidade para que esta venha ao encontro da Justia. Eduardo Rezende deMelo (juiz coordenador do projeto de justia restaurativa em So Caetano do Sul, SP), em 'Comunidade e Justia em parceriapara a promoo de respeito e civilidade nas relaes familiares e de vizinhana: um experimento de justia restaurativa ecomunitria'. No mesmo diapaso, BAZEMORE & SCHIFF, 2005; KORTE, 2005, e mesmo a chamada "JustiaComunitria", imaginada para ser arremedo ou coadjuvante dos Juizados Especiais brasileiros, disponvel emwww.tj.mt.gov.br/JusticaComum/SobreOProjeto.aspx - 40k -.

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    jurdicos ocidentais (francs, alemo e, por fim, norte-americano), isso em nada alterou a concepo

    do povo japons quanto ao Direito aliengena ser algo seno perigoso, pelo menos intil

    (PAPACHRISTOS, 1975: 115).

    "O fato que a enxertia ocidental no pegou na sociedade japonesa. Assim, por exemplo, malgrado a

    formalizao do casamento imposta pelo artigo 739 do Cdigo Civil, a unio de fato celebrada segundo

    ritos ancestrais continua a ser praticada e produzir efeitos jurdicos de modo que a nova regra de

    igualdade entre herdeiros geralmente contornada para dar lugar aos princpios tradicionais de

    primogenitura e de masculinidade" (AGOSTINI, p. 328).

    Para os analistas, o Direito japons funciona, ao mesmo tempo, da maneira 'ocidental',

    formalista, e a base de valores (confisso, arrependimento e absolvio) imbricados em todas as

    fases do processo judicial, contando com a participao no apenas das autoridades, mas tambm de

    vtimas e infratores. Assim, desde o interrogatrio policial sentena do magistrado, a vasta maioria

    dos acusados confessa, demonstra arrependimento, negocia o perdo das vtimas e se submete

    clemncia das autoridades, recebendo em troca tratamento extremamente leniente, e podendo ser at

    ser contemplada com suspenso do processo formal ou com a remisso da pena (HALEY, 1989: 195).

    Isso ocorre porque o Direito no Japo sempre observou o Giri, ou seja, obrigaes naturais que apesar

    de no serem consagradas na lei tm qualquer coisa de jurdico. 10As regras desses compromissos se

    assentam em preceitos de contedo indeterminado, que obrigam o ator a desempenhar seus deveres

    calculando o alcance e a extenso [dos mesmos] de maneira a conformar-se presumvel vontade do

    adversrio. Da a relevncia do encontro, como valor restaurativo, de vez que um ator no deve

    esperar uma ao espontnea do outro sem estar obrigado a lhe perguntar expressamente. Em

    seguida, uma vez cumprido o dever a vez do ator reagir do modo necessrio, exatamente da mesma

    maneira (KITAMURA, 1987: 791-824).

    Contudo, deve-se verificar que mais que se render tradio o ordenamento jurdico japons

    evolui em uma nica via de bitola dupla (SCURO, 2005: 193-208), com dois modos diferentes de

    Justia operando lado a lado. Com isso dois modos diferentes de Justia, retributiva e restaurativa,

    complementam-se mutuamente [GRFICO], freqentemente cooperando por fora da prticadeterminada pelo entrelaamento de relaes coletivas e individuais, por meio de procedimentos em

    que poder e autoridade se conjugam com conscincia de deveres e obrigao de cortesia, condies

    necessrias realizao da cooperao harmoniosa caracterstica de uma cultura de paz.

    Na opinio dos analistas isso somente cortesia legal determinada pela necessidade de se

    preservar harmonia numa sociedade em que prevalecem as normas ticas, aparentemente tornando o

    recurso aos mecanismos jurdicos formais algo intil ou at mesmo prejudicial. A bem da verdade,

    10J. Ghestini & G. Goubeaux, mencionados por AGOSTINI, p. 329.

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    porm, o elemento fundamental no somente uma cultura de paz enraizada durante sculos, mas a

    complementaridadede diferentes experincias jurdicas ou modos de Justia, que assegura a ordem

    social, estabilizando relaes interpessoais de tal modo que o Japo hoje em dia um dos exemplos

    mais admirveis de sistema de Justia e de segurana pblica eficiente e sustentvel.11

    Algopraticamente invivel nos contextos nacionais como esto sendo construdos na Amrica Latina, em

    que as assimetrias so abominadas e a jusdiversidade12se torna cada vez menor, a cultura de paz

    encarada de modo leviano, e ajustia restaurativa definida como mtodo alternativo de resoluo de

    conflitos, mero recurso para transformar o sistema convencional mais eficiente e no para

    transform-lo.

    MODELOS DE JUSTIA RESTAURATIVA13

    Complementar(bitola dupla)

    Na verdade, a justia restaurativa corresponde a uma atitude transformadora que,

    quando fiel aos valores restaurativos, tambm no campo das estratgias polticas haver de optar pelo

    no-conflitual, por dialogar com o prprio sistema para acolh-lo em sua imperfeio e respeitar a sua

    diversidade. A partir da, inocula-se nas fissuras do sistema, em suas frestas, como um vrus, ou

    melhor, como um anticorpo violncia institucional, como um grmen silencioso da mudana. Nisso,

    a pertinncia do sentido de complementaridade: pela disponibilidade de convvio com o prprio

    sistema, dentro do prprio sistema (embora indo alm dele), pela oportunidade de enriquec-lo (no

    11O nvel criminalidade no Japo, apesar ter crescido na dcada de 1990, muito baixo (em mdia 0,58 homicdios, 1,48estupros, 15,40 agresses com leses graves por 100 mil) comparado, por exemplo, aos Estados Unidos (6,32; 34,20; 37,94).Fonte:Japan Statistical Yearbook, Justice and Police, 1999 (ano-base: 1998). Disponvel emhttp://www.stat.go.jp/english/data/nenkan/zuhyou/b2301000.xls12Noo que implica preservao do patrimnio jurdico da humanidade, dilapidado quando se presume erroneamente que ossistemas das naes mais poderosas so mais eficientes que os demais ( SCURO, 2006).

    13Os outros modelos so completares, suplementares, e hbridos VAN NESS & STRONG (2002: 225).

    O sistema convencional (retributivo) e a justiarestaurativa operam lado a lado, seus processosse complementam e, por conta de necessidadesde ordem prtica, freqentemente cooperam eobtm os mesmos resultados.

    http://www.stat.go.jp/english/data/nenkan/zuhyou/b2301000.xlshttp://www.stat.go.jp/english/data/nenkan/zuhyou/b2301000.xls
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    sentido de atribuir-lhe algo que no momento lhe falta), e transform-lo (ou seja, a partir do pontual,

    reconstru-lo para que institucionalmente incorpore a superao dessas faltas). 14

    5. STATUS DA JUSTIA RESTAURATIVA

    Como pode a justia restaurativa enriquecer e transformar a Justia 15 que todo mundo

    entende? Para responder, relativa ateno tem sido dedicada condiojurdicados acordos obtidos

    por meio de processos restaurativos malgrado os esforos de aplic-los e aferi-los em diferentes

    espaos ou contextos de valores e regras mais amplos que os limites constitucionalmente

    estabelecidos (BRAITHWAITE, 2002; FROESTAD & SHEARING, 2005). Nesse particular, o

    desafio inicial essencialmente tcnico, pertinente aos usos e resultados dos procedimentos

    restaurativos em comparao com a Justia convencional. Desafios que os defensores da justia

    restaurativa procuram contornar deixando que tudo se resolva na prtica, ou seja, das diferentes

    formas pelas quais acordos obtidos por meio de cmaras restaurativas16so considerados nas decises

    dos juzes (STRANG, 2002: 203).

    Os problemas, no entanto, comeam desde cedo, a partir da prpria noo de crime, ao ou

    fato voluntrio ou temerrio que causa leses a pessoas ou danos a coisa protegida por lei. Sendo

    assim, no importa que o sistema seja 'adversarial' (como nos Estados Unidos e Inglaterra) ou

    'inquisitorial' (como na Europa ou na Amrica Latina), 17crime sempre o ilcito pblico punvel pelo

    Estado18, via procedimento criminal. Pblico, nesse sentido, denota a irresistvel considerao do

    Direito com a conduta social, mais precisamente com o comportamento justo ou razovel em

    relao aos outros. Crimes prototpicos (furto, homicdio, violao da integridade fsica ou moral das

    pessoas) so, conseqentemente, infraes contra direitos humanos fundamentais; razo pela qual toda

    iniciativa da parte prejudicada de promover uma ao de danos, por exemplo, no contempla a

    dimenso pblica do malfeito s a Justia Criminal pode fazer isso, mesmo dispensando muito

    pouco s vtimas em termos de solues, em particular quando os tribunais esto congestionados, a

    segurana pblica mal gerenciada e o sistema por inteiro transformou em um gigantesco aparato

    14Leoberto Brancher, juiz coordenador do projeto-piloto de justia restaurativa (Porto Alegre), comunicao pessoal, 19 mar.2006.15Queremos que o Direito positivo incorpore os valores da justia restaurativa e com eles, adequadamente normatizados,atue de modo vlido e eficaz. Carlos Eduardo de Vasconcelos, gerente de preveno e mediao de conflitos, Secretaria deJustia e Direitos Humanos, Pernambuco. Comunicao pessoal, 19 mar. 2006.16Ver ANEXO.17A diferena bsica entre os principais sistemas jurdicos do mundo ocidental que no contexto inquisitorial o juizparticipa ativamente na determinao dos fatos, ao passo que no sistema adversarial o magistrado atua na maior parte dasvezes como se fosse um rbitro imparcial ou consultor ad hocem matria legal.18Os maiores expoentes da justia restaurativa ainda no sabem decidir sobre isso sem recorrer a frmulas equvocas. Veja,por exemplo, a Proposio I (11) da Declarao de Leuven (1997) sobre a abordagem restaurativa do crime em casos deinfratores adolescentesdisponvel em www.restorativejustice.org

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    submetido a mesma perda de legitimidade da maioria das instituies contemporneas. Por outro lado,

    a nossa percepo dos direitos fundamentais cada vez mais impe restries adicionais ao processo

    penal, tornando irreal a busca pela certeza jurdica notadamente quando provas cruciais para a se

    estabelecer a verdade dos fatos no so aceitas pelos tribunais por conta das maneiras pelas quais asevidncias foram obtidas (MUOZ CONDE, 2000).

    Quais seriam as chances de o pensamento jurdico restaurativo ocupar essa terra de ningum

    processual e conceitual? Difcil dizer, pois os esforos para constitu-lo em jurisprudncia ou teoria

    jurdica robusta tem sido escassos, 19 delimitados principalmente pela nfase em resultados 20 e, a

    partir desta, pela determinao de impedir que definies restaurativas venham a ser refns de leis e

    normas escritas, em vez de resultar de juzos consensuais da comunidade afetada pela transgresso

    (KORTE, 2005). No que os mltiplos levantamentos sobre a aplicao de procedimentos

    restaurativos no possam dar substncia a novas definies de crime particularmente quando

    revelam a satisfao das vtimas com programas restaurativos, ou mostram o grande nmero de

    acordos para restituir realizados sem superviso estatal, ou provam que a aplicao de justia

    restaurativa promove menos reincidncia.

    Contudo, como os procedimentos restaurativos mais elaborados raramente so aplicados

    (levam muito tempo ou do muito trabalho) ficamos sem saber ao certo a verdadeira

    potencialidade do novo modo de Justia. Com efeito, dentre centenas de programas restaurativos

    nos Estados Unidos, por exemplo, na vasta maioria preferiu-se usar mediao e dilogo vtima/malfeitor (50 por cento) ou conselhos de vizinhana (30 por cento) em vez de cmaras

    restaurativas (s 12 por cento), justamente o procedimento que melhor contempla a responde

    trplice perspectiva de Van Ness e Strong: dano reparado, envolvimento dos interessados, e

    transformao da relao comunidade/ governo (BAZEMORE & SCHIFF, 2005). 21

    Em conseqncia, recorre-se a argumentos escapistas: no importa o procedimento

    restaurativo empregado, o que decide sua fora e seu sentido a disposio dos atores de se reunirem

    no apenas para resolver conflitos, mas tambm para promover aes preventivas, resgatar a

    influncia comunitria, reverter a escalada na demanda por mais policiamento e controles formais, e

    contribuir para mudar a perspectiva convencional sobre crime. Ou seja, todo procedimento

    restaurativo bom e adequado quando conscientiza os participantes que transparncia e prestao de

    19Uma exceo, na Amrica Latina, Introduccin al Derecho Restaurativo, de Gustavo Korte.20A dinmica dos sistemas de justia no se manifesta apenas por meio resultados, mas acima de tudo por processos queenvolvem decises regulares, sucessivasque pode ser medida por nmero, sem dvida, mas tambm pela energia e asinclinaes dos integrantes do sistema (SCURO, 2004: 203).21Segundo os autores do levantamento em cada programa analisado havia exemplos de pssimos encontros, encontros emque houve plena restaurao plena, e freqentemente encontros mais restaurativos que ocorriam fora de qualquer

    programa (Gordon Bazemore, comunicao pessoal, 7 out. 2005).

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    contas so virtudescomunais e que todos e cada um podem se envolver um pouco mais nos assuntos

    que dizem respeito justia social (BAZEMORE & SCHIFF, 2005: 294), aumentando as chances de

    sucesso dos procedimentos e magnificando a capacidade individual e coletiva de construir sociedades

    coesivas e reintegradasalgo que a justia criminal que todo mundo entende no consegue.

    Oportunidades existem em toda parte, o argumento conclui, principalmente nos projetos e

    programas de interveno restaurativa na Amrica Latina, que mal comearam e j esto sugerindo aos

    pensadores que os atuais procedimentos, ineficientes, podem ser substitudos por redes de cmaras

    restaurativas capazes de decidir mesmo contra o senso comum e os objetivos socialmente

    reconhecidos (KORTE, 2005). Se for assim, e as prticas restaurativas forem operadas com rigor e

    segundo os princpios de uma Justia dirigida por valores (incluso, reparao, encontro, e

    reintegrao), governos e comunidades podero atender no apenas as necessidades das pessoas

    afetadas pelo crime, mas tambm transformar positivamente a sociedade por inteiro, estimulando

    grandes mudanas no somente no acesso Justia, mas tambm no combate violncia e

    corrupo generalizada (PARKER, 2005).

    Temas de discusso fascinantes e linhas de pesquisa desafiadoras, porm aparentemente

    prematuros diante de uma realidade que mantm a justia restaurativa distante do ideal de uma nova

    viso de Justia, com entendimento totalmente original do crime e respostas para todos os tipos de

    transgresso (ZEHR, 1990: 180). Na prtica, e principalmente no discurso das autoridades, a justia

    restaurativa continua a ser encarada de modo leviano, reduzida a componente do soft sideda punio,'mediao penal' ou mecanismo para 'desjudicializar' tipos menores de conflito. No plano poltico, por

    outro lado, o proverbial desencanto latino-americano com as estruturas judiciais vigentes talvez

    pudesse estimular a busca por novas e concretas aplicaes da justia restaurativa. Mas o quadro

    institucional desfavorvel, inclusive por conta do processo g lobalizante que privilegia a

    americanizaodos sistemas de justia criminal, na Europa continental e (principalmente) na Amrica

    Latina (NADELMANN, 1997: 126; SCURO, 2002), cujo resultado mais provvel pode ser uma

    Common-Lawnizao do Direito inquisitorial. 22

    6. MUDANDO A ROTINA DO SISTEMA

    Malgrado todas as dificuldades, j existe um plano para reformar sistemas de justia de um

    ponto de vista restaurativo (BAZEMORE & WALGRAVE, 1999: 65-66), concebido a partir de uma

    agenda particularmente audaciosa. Para comear, os estrategistas propem mudanas no foco do

    sistema, que em vez de se concentrar unicamente em respostas a infraes, deve se empenhar na

    construo de solues comunitrias. Isso feito, preciso mudar as mensagensdo sistema, assim

    22Daniel Van Ness, comunicao pessoal, 17 nov. 2005.

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    como as metas convencionais estabelecidas para desempenhos individuais e coletivos, e, ao mesmo

    tempo, os mtodos disposio do sistema para determinar suas finalidades. Finalmente, novas

    estruturas participativas devem ser desenvolvidas, de baixo para cima, para que o sistema se distancie

    de seus padres convencionais, tipicamente burocrticos, tutelares e autoritrios. Para realizar essastarefas os militantes da justia restaurativa precisam implementar programas no seio do sistema, e

    assumir os mesmos desafios que seus integrantes enfrentam todos os dias e cada vez mais.

    Construir um sistema de justia restaurativo envolve, portanto, assumir por inteiro nus como

    o congestionamento dos processos judiciais ou a imagem de sistema perverso e ineficaz. misso

    particularmente relevante, e muito arriscada, na Amrica Latina. Na Colmbia, por exemplo, durante a

    dcada de 1990 o tempo mdio necessrio para concluir um processo em varas cveis de primeira

    instncia era 3,2 anos e nas criminais 3,9 anos. Na poca, os especialistas estimavam que para

    desafogar completamente o fluxo de trabalho os cartrios dos tribunais teriam de fechar para novas

    aes pelo menos durante nove anos (MERCADO, 2005). Premidos, os congressistas colombianos

    aprovaram reformas de implementao de mtodos alternativos de resoluo de disputas (Lei n

    23/1991), provisoriamente permitindo que cidados administrassem justia sem precisar de ordem ou

    sentena judicial. Subseqentemente, ainda no objetivo de aliviar o congestionamento nos tribunais,

    reduzir custos, fazer os processos flurem mais rpido, e promover o envolvimento da sociedade na

    resoluo de conflitos, a nova Constituio reconheceu o papel de rbitros e facilitadores privados no

    desempenho de funes judiciais.

    Contudo, apesar de toda sustentao legislativa o uso de conciliao (e arbitragem) na

    Colmbia permaneceu modesto e inconsistente (apenas 10,1% no judicirio, 27, 3% em delegacias de

    polcia, defensorias e promotorias de famlia, e 20% em escritrios de advocacia, cmaras de

    comrcio, ONGs e faculdades de Direito23). A razo aparente foi os mtodos alternativos terem sido

    encarados apenas comoferramentas de desjudicializaopara (1) conceder competncia jurisdicional

    a rgos administrativos (como as Casas de Justicia, criadas com apoio da USAID e agncias

    internacionais para colocar sob o mesmo teto diversas reparties direta ou indiretamente ligadas

    segurana pblica e relativamente capazes de administrar justia extrajudicialmente); (2) persuadir a

    populao a no usar o gigantesco sistema de justia; (3) reduzir congestionamentos mediante

    bonificaes aos funcionrios e terceirizao de servios jurdicos gratuitos; e (4) resgatar modos

    tradicionais ou promover solues comunitrias para tratar de disputas menores.

    Conseqentemente, malgrado a riqueza e potencialidade do modelo colombiano, no seu

    contexto original a conciliao segue sendo informal, um artifcio quase permanente para situaes

    23As mais altas taxas de acordo foram alcanadas em conflitos trabalhistas (75%), o que reduziu enormemente o volume deaes na Justia, alm de aes cveis envolvendo crianas e adolescentes (47%).

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    no muito complicadas. O mesmo poderia ser dito acerca da informalidade judicial aplicada em toda

    Amrica Latina, caracterizada hoje em dia por (1) programas pouco institucionalizados, operados por

    iniciados ou entidades no geral despreparados para fazer o servio, (2) investimento virtualmente nulo

    em treinamento e pesquisa (acarretando ruptura entre prticas, resultados e mudanas no bem-estar dosclientes e sua percepo acerca do sistema de justia)24, (3) programas implementados

    prioritariamente como poltica compensatria dirigida a setores desprivilegiados, (4) servios muitas

    vezes realizados em bases voluntrias por indivduos e grupos desprovidos de metodologia consistente

    (SINHORETTO, 2005).

    A soluo seria implementar inovao na prpria rotina da Justia. Na Argentina, por

    exemplo, a lei 24.573/1995 tornou a mediao e a conciliao25aspectos quase integrais do sistema,

    operadas por advogados26 registrados e certificados pelo Ministrio da Justia, mediante quarenta

    horas de treinamento e vinte horas de atividade supervisionada. Os honorrios variam de 150, 300 a

    600 dlares dependendo do valor do acordo, e so pagos por um fundo administrado pelo governo.

    Diferentemente do caso colombiano, na Argentina mediao e conciliao so instrumentos

    diversrios empregados, por exemplo, em aes cveis e comerciais: o queixoso preenche um

    formulrio, paga uma taxa mdica de quinze dlares e fica sabendo no ato os nomes do mediador, juiz

    e promotor do seu caso. As audincias, sempre confidenciais, tm lugar em escritrios de mediao e

    conciliao, com prazo de sessenta dias para terminar, a menos que as partes concordem com uma

    prorrogao (ALVAREZ, 2005). Um estudo promovido pelo governo, cinco anos aps a promulgao

    da lei, revelou que mediao e conciliao ainda no eram utilizadas em casos de crime, em aes

    envolvendo o Estado, em aes de despejo e certas modalidades de disputas de famlia. Concluiu, no

    entanto, que os procedimentos aplicados obtiveram bons resultados e que 27 por cento das aes cveis

    e 31 por cento das comerciais foram tratadas por meio de mediao e conciliao e deixaram de

    sobrecarregar a Justia. Menos alvissareira, contudo, foi a constatao que mediadores e conciliadores

    mais qualificados, especialmente os formados para lidar com questes trabalhistas, logo abandonavam

    o esquema (infelizmente, o estudo parece no ter se preocupado em investigar as razes para tanto).

    7. JUZES QUE PODEM MAIS

    Dentre as vrias alternativas de Justia aplicadas at aqui, com efetivo ganho na administrao

    e resoluo de conflitos, as melhores perspectivas para a construo de um modelo restaurativo,

    integralizado, eficaz, gratuito e a todos disponvel parecem residir no Brasil e nos Estados Unidos.

    24Esta tambm uma caracterstica das prticas restaurativas nos Estados Unidos e alhures (BAZEMORE & ELLIS, 2006).25Mediao e conciliao visam resultados relativamente restaurativos por meio de encontro para resolver problema em queum pensa que a causa o outro. Mediador e conciliadores devem se manter imparciais e procurar ajudar as partes a encontrarum denominador comum para problema que requer soluo compartilhada.

    26Posteriormente, legislao complementar autorizou tambm mediao interdisciplinar.

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    Ambas experincias esto centradas no papel do juiz como protagonista da construo de uma nova

    cultura judiciria, embora ainda no exista plena conscincia acerca da importncia de misso to

    arriscada, nem roteiro explcito e inequvoco para o desempenho de to relevante tarefa. O primeiro

    caso so os juizados especiais brasileiros, criados em 1982, no Rio Grande do Sul, e agoraimplantados nacionalmente, coordenados por juzes de Direito e operados por conciliadores

    geralmente voluntrios, apesar de em contextos mais avanados haver conciliadores remunerados.

    Nos juizados especiais cveis podem ingressar aes de pessoas fsicas e microempresas;

    pessoas jurdicas (empresas e estabelecimentos comerciais) s podem ser rus, apesar de ultimamente

    comparecerem microempresas tambm como autoras [art. 38, da Lei 9.841/99] o que estaria

    contribudo, na opinio de quem submete os juizados ao vis paternalistado ordenamento brasileiro

    (SCURO, 2004: 212-215), para transform-los em balces de cobrana, em instrumentos de

    presso de empresrios e firmas, algumas de razovel expresso (...), para o recebimento de seus

    crditos ou acerto de negcios, muitas vezes acionando quem deveria ser o destinatrio dessa justia

    (...): pequenos comerciantes, modestos prestadores de servios, carentes jurisdicionados, titulares de

    direitos patrimoniais de inexpressivo valor.27

    Nesses juizados os procedimentos so simples, conformes aos princpios de simplicidade,

    informalidade e expedincia na busca de acordos sempre que possvel via conciliao.

    Conseqentemente, em quinze dias deve ser marcada uma audincia de conciliao, ocasio em que

    as partes se encontram para fechar um acordo sob orientao de um conciliador (preferentementebacharel em Direito). Se houver consenso o juiz d a sentena e o caso resolvido da forma mais

    rpida e amigvel possvel. Caso o contrrio o conciliador explica as conseqncias do

    prosseguimento da ao e marca uma nova audincia, para da a 15 dias. Essa audincia de instruo

    e julgamento presidida por um juiz leigo(auxiliar da Justia recrutado, em tese, dentre advogados

    com mais de cinco anos de experincia, impedido de exercer a advocacia nos Juizados Especiais

    enquanto estiver no desempenho de suas funes). O juiz leigo ouve cada uma das partes e

    testemunhas, analisa as provas apresentadas, d a sentena ou marca uma data para proferir deciso. A

    partir da so dez dias para apelar s turmas recursais, fase em que h despesas, devido

    obrigatoriedade de representao por advogadoquem perde paga as custas processuais.

    Nos juizados especiais criminais, por sua vez, so julgadas infraes de menor potencial

    ofensivo, delitos e contravenes penais como agredir ou provocar ferimentos leves, submeter a maus

    tratos, determinados crimes de trnsito, evaso de local de acidente sem prestar socorro, ameaa com a

    27Rmolo Letteriello, O perigo da ampliao da competncia dos Juizados Especiais Cveis. Disponvel emhttp://www.tj.ms.gov.br/juizados/doutrina/doutrina.html. Jan. 2005 (redao modificada). Ademais, existem projetos de leique, se aprovados, admitiro como autoras firmas mercantis individuais (projeto de lei n 4.537/98, de Augusto Nardas),pequenas empresas (projeto de lei, de Germano Rigotto), associaes sem fins lucrativos, e cooperativas (projeto de lei n6.468/02, de Osrio Adriano).

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    inteno de amedrontar, praticar de atos obscenos, perturbar a tranqilidade de algum, prtica de

    charlatanismo, anunciando curas ou resultados impossveis, violao ou destruio de correspondncia

    alheia etc. A vtima registra a ocorrncia numa delegacia de polcia, e pode constituir advogado para

    ajudar na conciliao ou solicitar a designao de um defensor pblico. O ru intimado a comparecera uma audincia preliminar, acompanhado de advogado ou, na falta deste, a Justia designa um

    defensor pblico. Na ocasio tentado um acordo, efetuado por um juiz de Direito, que procura

    estabelecer os prejuzos para estipular o pagamento de indenizao. O juiz conversa com os

    envolvidos e prope um acordo; se no houver, um promotor de Justia pode propor uma transao

    penal (pagamento de multa ou cumprimento de medida como doao de cestas bsicas ou prestao

    de servio a instituies pblicas ou privadas, permanncia em albergues aos finais de semana ou

    freqncia obrigatria a algum curso).

    Se a transao aceita o processo no tem incio e no h registro de antecedentes criminais.

    Caso contrrio, o juiz marca uma audincia de instruo e julgamento em que nova tentativa de acordo

    ou transao penal realizada. Se persistir o impasse o promotor pode propor suspenso do processo

    por dois a quatro anos, desde que o acusado aceite as condies impostas pelo juiz. Durante esse

    prazo, no havendo reincidncia e cumprimento das obrigaes impostas ao ru o processo extinto.

    Se, no entanto, o ru rejeitar a suspenso do processo, o juiz houve a vtima, as testemunhas e o

    acusado, d a sentena ou marca uma data para faz-lo. Objetivo da penalizao nesse contexto

    promover a reparao reclamada e aplicar medidas no restritivas de liberdade, nas quais o ru, se

    condenado, cumprir medidas educativas em liberdade. Se algum dos envolvidos no se conformar

    com a sentena pode haver recurso julgados por turmas recursais. Pessoas carentes tm direito a

    advogado pago pelo Estado e a iseno das custas para recurso.

    O segredo do sucesso dos juizados especiais brasileiros que hoje em dia absorvem quase a

    metade da demanda cveldo judicirioso precisamente ospoderesde seus juzes, bem maiores que

    na Justia Comum. Isso demonstra, por outro lado, que o legislador concebeu o sistema preocupado

    com quemtomaria as decises e em saber comoos juizados funcionariam. Reflexo desse descuido tem

    sido a queda constante e acerada da taxa de acordos [TABELA 4], que os executivos do sistema

    tentam explicar invocando causas exgenas: a crescente litigiosidade que grassa na sociedade, a

    suposta preferncia dos advogados pelo litgio e, acima de tudo, uma presumida contaminao das

    prticas dos juizados pelos modos caractersticos da Justia Comummais exatamente, a negligncia

    dos novos atores da Justia (conciliadores e juzes leigos) em relao aos princpios da Justia

    informal, flexvel, negociada, rendendo-se aos modos burocrticos da Justia Comum.

    Em verdade, qualquer que seja a causa o problema real por demais evidente tal como

    ilustrado na tabela e no grfico abaixo, que mostram o nmero de juizados, conciliadores e juzes

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    leigos, e a porcentagem de acordos atingidos no Rio Grande do Sul, primeiro estado brasileiro a

    construir um sistema de juizados especiais: os equipamentos eram apenas dois em 1986 e atualmente

    so 169; o nmero de conciliadores e juzes leigos remunerados subiu de vinte em 1986 para quase

    dois mil em 2004, ao passo que o desempenho do sistema, medido pela porcentagem de acordosdesabou de 58 por cento (1986) para 28 % (2004).

    TABELA 4 E GRFICO 1. CADA VEZ MENOS ACORDOS 28

    ANO JUIZADOS JUZES LEIGOS CONCILIADORES ACORDOS (%)

    1986 2 - 20 58

    1987 5 21 61 41

    1988 7 37 56 48

    1989 23 59 204 60

    1990 32 68 278 55

    1991 48 63 427 51

    1992 67 170 570 55

    1993 67 177 568 49

    1994 129 246 551 38

    1995 160 354 854 43

    1996 160 347 874 40

    1997 161 400 855 36

    1998 167 479 831 34

    1999 167 491 730 35

    2000 167 759 758 33

    2001 167 823 826 32

    2002 168 875 799 33

    2003 169 939 885 30

    2004 169 928 825 28

    Uma pesquisa da Escola Superior da Magistraturarelatada em Os Juizados Especiais Cveis

    do Rio Grande do Sul: os novos atores da Justia e a cultura da instituio concluiu que, de fato, um

    sinistro movimento de involuo est distanciando cada vez mais os juizados especiais do ideal de

    Justia negociada, informal e flexvel. Os problemas tm a ver, verdade, com a necessidade de

    uma nova cultura jurdica, embora fatores externos no sejam exatamente os culpados pelas

    28Dados da Coordenadoria dos JEC, Rio Grande do Sul.

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    dificuldades do sistema (SCURO, 2005b). O que preciso, o relatrio argumenta, uma mudana

    organizacional viabilizada por meio de compromisso com a qualidade ativado a partir do topo da

    pirmide, ou seja, pelos prprios juzes que coordenam os juizados e administram o sistema como um

    todo. O elemento decisivo nesse empreendimento substituir fragmentrias rotinas informais eflexveis atualmente em uso para recrutar conciliadores e juzes leigos, por gerenciamento

    estratgico baseado em planejamento de recursos humanos, anlise de cargos e funes e avaliao de

    desempenhos, alm de maior sintonia entre os objetivos do sistema, sua estrutura organizacional e seus

    resultados tangveis (feedbacks).

    A estratgia recomendada preserva os princpios que nortearam a criao dos juizados

    especiais29 e fizeram deles uma instituio original, criativa e exemplo de servio pblico bem

    prestado. No entanto, daqui para frente o objetivo deve ser conduzir os juizados a um novo patamar,

    confirmando sua condio como elemento indispensvel e decisivo do sistema de Justia. Para isso, a

    estratgia se fundamenta em uma nova abordagem da Justia, incorporando a noo de organizao

    social orientada resoluo de problemas(KRALSTEIN, 2005) e propugnando:

    Compatibilidade entre os aspectos formais do processo e resultados tangveispara as partes e a

    sociedade, utilizando-os de modo competente e flexvel para evitar repetio de condutas lesivas,

    reduzir a necessidade de punir, multar ou deter, e encarando o Direito e a Justia como instrumentos de

    soluo de conflitos e convivncia social saudvel;

    Autoridade jurisdicional ativa, efetivada para alterar o comportamento dos litigantespor exemplo, emvez de simplesmente transferir a soluo de um caso, a Justia continua envolvida, monitorando atravs

    de procedimentos de colaborao o cumprimento do acordo entre as partes;

    Informatizao do processo, orientada rpida e efetiva soluo de problemas e para garantir o

    cumprimento dos acordos (ou protocolos de intenes);

    Parceria entre juizados, rede de atendimento e organizaes da sociedade, visando efetivo

    acompanhamento e monitoramento dos acordos;

    Promotores e magistrados desempenhando papis no-convencionais, aplicando sanes de carter

    restaurativo e usando sua autoridade e prestgio para coordenar parcerias, familiarizar-se e envolver-se

    na condio de facilitadores e patrocinadores de processos no-judiciais de soluo de conflito;

    Acima de tudo, nfase na capacidade do Judicirio de promover mudanas sistmicas, internas e

    externas, de modo contnuo, considerando que o aperfeioamento de instituies como os Juizados

    Especiais no pode ser detido e que sempre possvel mudar para melhorar.30

    29Oralidade, informalidade, preferncia pela soluo conciliatria, e, julgamento por eqidade.30Como tem ocorrido com grandes organizaes, como a NASA, por exemplo, desde 1967 (data do acidente da Apollo 1) e,de modo ainda mais acentuado, aps o acidente do nibus especial Challenger, em 1986.

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    Portanto, o que se percebena base da experincia do Autor como coordenador dos primeiros projetos

    de justia restaurativa na Amrica Latina, bem como da pesquisa sobre os juizados especiais gachos a

    viabilidade de convergncia entre a slida experincia brasileira e o processo de construo, nos Estados Unidos,

    de juizados especializados (drogas, violncia domstica, infncia e juventude, etc.) que funcionam na

    perspectiva de problemas que subjazem diversas modalidades de conflito envolvendo vtimas, infratores e

    comunidades. Criado em 1989, o sistema norte-americano conhecido por vrios termos (community courts,

    collaborative justice courts,problem-solving courts, drug courts, mental health courts,family treatment courts,

    juvenile drug courtsetc.) usados para descrever processos e prticas baseadas (1) na filosofia das organizaes

    orientadas soluo de problemas, em (2) decises elaboradas em equipe, (3) integrao de servios atuando em

    rede, (4) superviso judicial dos processos de atendimento, (5) incluso da comunidade, (6) interao direta entre

    as partes e os magistrados, (7) desempenho proativo do juiz dentro e fora do tribunal (FAROLE et al., 2005).

    9. JUZES QUE DISSEMINAM INOVAOO nmero de juizados especializados nos Estados Unidos bem modesto, se comparado s

    centenas de juizados especiais atualmente em funcionamento no Brasil. As duas modalidades so

    partes integrantes da Justia em seus pases, se bem que o desgnio dos defensores do modelo norte-

    americano no simplesmente criar indefinidamente rplicas da prpria instituio como parece ser

    o objetivo de seus colegas brasileiros mas disseminar novas prticas e princpios nos demais

    tribunais dos Estados Unidos, suscitando dessa maneira trs pontos de interrogao:

    1. Que princpios e prticas inovadoras so mais facilmente assimilveis pela JustiaComum?

    2. Quais obstculos os magistrados encontram quando querem aplicar essas inovaes aosprocessos convencionais, e como as barreiras podem ser superadas?

    3. De que maneiras as inovaes podem ser transferidas aos juzes e demais operadores doDireito de todo o sistema de Justia?

    Em contexto inquisitorial, como o brasileiro, a disseminao e a adoo de novos princpios e

    prticas judiciais deveriam ser, pelo menos em tese, menos complicadas que nos Estados Unidos.

    Entre ns, os juzes so os incontestveis protagonistas do processo judicial, bem diferente do

    desempenho essencialmente neutro de seus colegas na Common Law, que, desarmados de autos, atuamcomo meros garantidores do devido processo legal, intervindo somente em caso de discordncia entre

    os representantes das partes. Por outro lado, como ficou evidente nos trs projetos piloto de justia

    restaurativa desenvolvidos em tribunais brasileiros a partir de 2005, disseminao e adoo de

    inovao judicial no carecem necessariamente de juzes com poderes magnificados, como ocorre nos

    juizados especiais. Ou seja, conforme ficou demonstrado pelo clima eminentemente positivo que

    circundou os projetos de Braslia, Porto Alegre e So Caetano do Sul, alm do carisma do magistrado

    predisposto a enfrentar riscos e inovar, investido de um tipo de poder bem distante da autoridade

    tradicional, legalista, dos juzes burocratas (WEBER, 1964: 328-329), a modalidade de Justia

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    assumida, diversa daquela que todo mundo entende, tambm faz diferena dependendo, claro,

    quo freqente e efetiva a aplicao das prticas e princpios restaurativos.

    Nesse sentido, tal como sustentado no decorrer deste ensaio, a Justia Restaurativa adquire

    substncia apenas quando inserida na rotina do sistema. Ou seja, mais que uma carinha bonita,

    ideologia atraente e conceitos agradveis, seus procedimentos se afirmam e se reproduzem por meio

    de mecanismos que acentuam (1) o papel proativo do magistrado que participa, investiga e busca

    solues criativas; (2) a interao das partes visando, alm de elucidao das necessidades, efetiva

    modificao de comportamentos; (3) superviso judicial permanente; (4) atendimento em rede; e (5)

    abordagem coletiva, no-adversativa, envolvendo os operadores do Direito e facilitando cada vez mais

    a incluso da Justia Restaurativa nas agendas dos juizados se bem que de maneira seletiva,

    mediante triagem abrangendo casos mais apropriados (geralmente na Justia da Infncia e Juventude,

    varas de famlia, casos envolvendo questes que requerem enfoque especializado, etc.).

    A essas prioridades devem ser includas principalmente no tocante implementao de

    procedimentos restaurativos, cuja reprodutibilidade depende de padres semelhantes e at superiores

    aos aplicados no processo convencional [TABELA 5]garantias de preciso e rigor cientfico, algo

    que, por falta de recursos, temor de avaliao independente, excesso de zelo ou de vaidade, as

    lideranas do sistema nem sempre esto preparadas para aceitar (PARKER, 2005b: 258-261). Tais

    obstculos costumam ser maiores do que imaginam os iniciados to grandes que muitos cientistas e

    pesquisadores de justia restaurativa nos pases mais avanados praticamente j desistiram decontinuar tentando implement-la em tribunais.31

    TABELA 5. PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS: CONDIES DE REPRODUTIBILIDADE.32

    A reprodutibilidade dos procedimentos restaurativos nos diferentes subsistemas da sociedade (Justia,Educao, Trabalho etc.) deve demonstrar quealm de tornar os subsistemas menos perversos e maissensveis e responsivos em relao s necessidades de vtimas, infratores e comunidadesa suaimplementao...

    Complementa/ substitui procedimentos convencionais Estimula cooperao entre os integrantes, internamente e entre os subsistemas envolvidos

    Simplifica processos internamente e nos subsistemas envolvidos Reduz a durao dos processos e torna seus resultados mais seguros Reduz custos e o trabalho dos integrantes dos subsistemas envolvidos Facilita a todos o acesso justia Contribui para a harmonizao das atividades dos subsistemas Contribui para alterar a estrutura dos sistemas de acordo com novas regras e procedimentos de

    31Obstculos que incluem, entre outras coisas, convencer os juzes a aplicar procedimentos restaurativos com maisfreqnciaem um projeto conduzido na Blgica, por exemplo, em trs anos foram realizadas to-somente cerca de 60cmaras (VANFRAECHEM & WALGRAVE, 2000-2003).32Making contact work: a consultation paper from the Children Act Sub-Committee of the Lord Chancellors AdvisoryBoard on Family Law, 2001. Inglaterra. Disponvel em http://www.dca.gov.uk/family/abfla/mcwrep.pdf; Centro Talcott.Justia Restaurativa no Contexto Jurdico Brasileiro. Experimento na justia da Infncia e juventude de Santos, SP, 2006.

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    carter restaurativo.

    No sistema de justia, em particular no Brasil, a reprodutibilidade depende de os procedimentos restaurativoscomprovarem que...

    Podem ser aplicados no contexto judicial brasileiro

    Respeitam os direitos das partes envolvidas As partes ficaram satisfeitas com a aplicao Tm impacto positivo no comportamento e contribuem para diminuir reincidncia Sua adio ao processo acarreta menos trabalho aos operadores do Direito e menos despesas para o

    Judicirio

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    ANEXO

    PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS

    1. Escuta restaurativa

    Ponto de partida de todo processo restaurativo. Requer ouvir de modo ativo e sem pretenso de julgar.Usado para ajudar a refletir acerca de uma situao e para que os envolvidos encontrem alternativas porsi mesmos. Ouvir de modo ativo e sem julgar virtude bsica de todo coordenador de processosrestaurativos. Por isso absolutamente fundamental que o coordenador no procure dominar adiscusso e dar prioridade a sua prpria agenda, usando o encontro para assuntar, fazer investigao,extrair confisso ou desculpa, comportando-se como se fosse o centro das atenes ou quisesse que os

    presentes o reconhecessem como tal e se recolhessem condio de observadores passivos. O ouvir

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    restaurativo permite que todos expressem seus pontos de vista e viabiliza o debate entre os envolvidosem um incidente.

    Recomendaes:33

    1. Oua com ateno e receptividade. Antes de expressar seu prprio ponto de vista, escute e mostre que

    entendeu o que foi dito, mesmo se no concorda ou sabe que no verdade;2. Convide e explique os objetivos da conversa. Explique que tipo de conversa pretende ter, ajudando ointerlocutor a cooperar com voc e a evitar desentendimentos;

    3. Procure se expressar com clareza e de forma integral. Fale devagar e d ao outro toda informaoacerca do que est sentindo ou pensando;

    4. Traduza suas crticas e reclamaes (e a dos outros) em termos de reivindicaes e procure explic-las;

    5. Faa perguntas de modo aberto e criativo. Tente articular suas atividades com as dos outros;

    6. Expresse considerao, gratido, prazer, positivismo e encorajamento;

    7. Concentre-se no aprendizado contnuo, incorporando as recomendaes anteriores ao seu cotidiano.

    2. Debate restaurativo

    Encontro promovido para resolver situaes difceis, freqentemente opondo pessoas com poderdiferenciado. Requer capacidade de expressar e ouvir procurando sentimentos e necessidades, edisposio para entender por que o outro agiu do modo como agiu.

    3. Mediao restaurativa

    Encontro para ocasies em que um pensa que o outro a causa do problema. O mediador deve semanter imparcial e procurar ajudar as partes a encontrar um denominador comum para problema querequer soluo compartilhada.

    4. Mediao vtima-transgressor

    Encontro restaurativo em que um reconhece que fez mal a outro, e em que ambos concordam que ascoisas podem ser ajeitadas com a ajuda de um mediador imparcial.

    5. Crculos restaurativos

    Reunio provida para agregar, juntar as pessoas para resolver um problema por meio de respeito mtuo,confiana e reconhecimento. Usada se o coordenador acha que agregar os envolvidos e afetados por umincidente seria recomendvel para resolver um problema,

    6. Cmaras restaurativas (em ingls, 'conferencing")

    Encontro entre quem reconhece que fez mal e a vtima. Ambos procuram entender a perspectiva dooponente e chegar a um acordo acerca dos meios de reparar o malfeito. Ao encontro comparecemtambm os apoiadores das partes, todos os diretamente envolvidos no incidente, bem como quem tiveralgo a dizer sobre a situao criada pelo incidente e pode contribuir para o sucesso do acordo entre as

    partes. Usada se, mais que entendimento entre as partes for preciso resolver um problema, garantirreparao, reintegrar etc.

    7. Cmaras de famlia

    Reunio provida para agregar, juntar as pessoas para resolver um problema por meio de respeito mtuo,confiana e reconhecimento. Usada se o coordenador acha que agregar necessrio para resolver umproblema.

    33Transformao de Conflitos, G. Knudsen Hoffman, C. Monroe & L. Green. Disponvel em www.NewConversations.net.