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1 WALBER DE MOURA AGRA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Diretrizes para o Incremento de sua Legitimidade Realização da tese de doutorado sob a orientação do Professor Dr. João Maurício Leitão Adeodato e co- orientação do Professor Dr. Danilo Zolo. RECIFE/ FIRENZE, 2003.

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1

WALBER DE MOURA AGRA

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Diretrizes para o Incremento de sua Legitimidade

Realização da tese de doutorado sob a orientação do Professor Dr. João Maurício Leitão Adeodato e co-orientação do Professor Dr. Danilo Zolo.

RECIFE/ FIRENZE, 2003.

2

Banca Examinadora:

Francisco Ivo Dantas Cavalcanti

José Luiz Bolsan de Morais

Paulo Lopo Saraiva

Gustavo Ferreira Santos

Raymundo Juliano Rego Feitosa

3

Abstract:

The aim of the present thesis has, as central mark, to analyze the legitimation of the

Brazilian constitutional adjudication exercised by Federal Supreme court. Before the

increase of the social demands generated by the Social Democratic State of Right there is an

increment consequently in the space of incidence of the decisions of the constitutional

adjudication to guarantee the materialization mainly of the fundamental rights. That increase

in the performance of the prerogatives of the organ that exercises the constitutional

adjudication many times extrapolates the defined limits for the beginning of the separation

of the powers, what evidences the need of a reinforce of the legitimacy of the constitutional

adjudication. This raise is accomplished by the following factors: increase of the normative

force of the Constitution; transformation of Federal Supreme Court in a constitutional

tribunal; democratization of the choice of their ministers; guarantee of the materialization of

the fundamental rights, reaffirming the normative character even of the programmatics

norms; opening of the decisions of STF for them can be discussed by the society, supplying

larger subsidies for the decision. For better analysis of the main object the constitutional

adjudication and the judicial review will also be analyzed systematized with the purpose to

potentiate the effectiveness of the fundamental rights.

4

Resumo:

A presente tese tem como escopo central analisar a legitimação da jurisdição

constitucional brasileira exercida pelo Supremo Tribunal Federal. Diante do aumento das

demandas sociais geradas pelo Estado Democrático Social de Direito há conseqüentemente

um incremento no espaço de incidência das decisões da jurisdição constitucional para

garantir a concretização principalmente dos direitos fundamentais. Esse aumento na atuação

das prerrogativas do órgão que exerce a jurisdição constitucional muitas vezes extrapola os

limites definidos pelo princípio da separação dos poderes, o que evidencia a necessidade de

uma densificação da legitimidade da jurisdição constitucional. Essa densificação é realizada

pelos seguintes fatores: aumento da força normativa da Constituição; transformação do

Supremo Tribunal Federal em um tribunal Constitucional; democratização da escolha de

seus ministros; garantia da concretização dos direitos fundamentais, reafirmando o caráter

normativo até mesmo das normas programáticas; abertura das decisões do STF para elas

possam ser discutidas pela sociedade, fornecendo maiores subsídios para a decisão. Para

melhor análise do objeto principal também serão analisados a jurisdição constitucional e o

controle de constitucionalidade sistematizados com o propósito de potencializar a eficácia

dos direitos fundamentais.

5

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

Delimitação do Objeto

PARTE I: Jurisdição Constitucional

1.) Constituição

1.1) A Supremacia da Constituição como a Principal de suas Características

2.) Jurisdição Constitucional

2.1) Conceito de Jurisdição 2.2) Definição de Jurisdição Constitucional 2.2.1) Diferença entre Jurisdição Constitucional e Controle de Constitucionalidade 2.3) Natureza da Jurisdição Constitucional 2.4) Fundamento da Jurisdição Constitucional 2.5) Função da Jurisdição Constitucional 2.6) A Independência como Condição Inexorável para a Concretização da Jurisdição Constitucional

6

2.7) A Jurisdição Constitucional do Sistema Norte-Americano e do Sistema Europeu 2.8) O Exercício da Jurisdição Constitucional pelo Sistema Difuso e pelo Sistema Concentrado no Brasil

2.9) O Supremo Tribunal Federal como Órgão Jurídico de Exercício da Jurisdição Constitucional

3.) Tribunais Constitucionais

3.1) Diferenciação entre a Jurisdição do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Constitucionais

PARTE II: Aspectos Gerais do Controle de Constitucionalidade Brasileiro

4.) Aspectos Históricos e Taxionomia

4.1) Fundamentação do Controle de Constitucionalidade

4.2) O Defensor da Constituição 5.) Teoria da Inconstitucionalidade

5.1) Natureza da Norma Declarada Inconstitucional

5.2) Momentos de Incidência do Controle de Constitucionalidade

7

5.3) Controle das Normas Constitucionais no Tempo

5.4) Tipos de Inconstitucionalidades 5.4.1) Tipos de Inconstitucionalidades Formais

5.5) Extensão da Inconstitucionalidade

6.) Controle Difuso

6.1) Controle Difuso ou por Via de Exceção 6.2) Reserva de Plenário ou Cláusula Full Bench 6.3) Controle de Constitucionalidade em Nível Estadual e Municipal

7.) Controle Concentrado

7.1) Ação Direta Interventiva

7.2) Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.2.1) Legitimidade para a Propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.2.2) A Atuação do Advogado-Geral da União

7.3) Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão

7.4) Ação Declaratória de Constitucionalidade

7.4.1) Do Efeito Vinculante da Ação Declaratória de Constitucionalidade 7.4.2) Discussão Acerca da Incongruência da Ação Declaratória de Constitucionalidade para a Densificação da Legitimidade da Jurisdição Constitucional

7.5) Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

8

7.5.1) Legitimidade e Competência 7.5.2) Procedimento 7.5.3) Princípio da Subsidiariedade 7.5.4) Inovações 7.5.5) A Inconstitucionalidade do Incidente de Constitucionalidade

8.) Procedimento do Sistema Concentrado de Controle de Constitucionalidade. Lei n.º 9.868/99 (Ação Direta de Constitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade)

8.1) Petição Inicial 8.2) Procedimento 8.3) Amicus Curiae 8.4) Medida Cautelar 8.5) Efeito Dúplice 8.6) Extensão dos Efeitos das Decisões do STF 8.7) Efeito vinculante

9.) Técnicas de Decisão do Controle de Constitucionalidade

9.1) Interpretação conforme a Constituição e Inconstitucionalidade Parcial sem Redução de Texto

9.2) Declaração de Inconstitucionalidade por Omissão Parcial

9.3) Bloco de Constitucionalidade

9

PARTE III: A Legitimidade das Decisões Judiciais da Jurisdição Constitucional

10.) A Crise do Direito Legislado

10.1) A Crise do Estado Democrático Social de Direito

10.2) Crise Constitucional

10.3) A Crise de Legitimação da Jurisdição Constitucional 10.3.1) O Aumento da Atuação da Jurisdição Constitucional e do Poder Judiciário 10.3.2) O Papel do Judiciário na Concepção Tradicional dos Três Poderes

11.) Legitimidade da Jurisdição Constitucional

11.1) Conceito de Legitimidade

11.2) A Legitimação pela Soberania Popular

11.3) A Legitimação da Jurisdição Constitucional com Base no Texto da Constituição

12.) Influências sobre a Legitimação da Jurisdição Constitucional

12.1) A Influência da Suprema Corte Norte-Americana sobre a Jurisdição Constitucional

12.2) A Influência do Tribunal Constitucional Alemão sobre a Jurisdição Constitucional

10

13.) Legitimação pelo Procedimento da Jurisdição Constitucional

13.1) A Questão da Legitimidade em Jürgen Habermas 13.1.1) A Concepção de Direito em Habermas 13.1.2) A Legitimação da Jurisdição Constitucional em Habermas

13.2.) A Questão da Legitimidade em Luhmann

13.2.1) O Procedimento como SubSistema Social 13.2.2) A Autonomia do Procedimento Judicial

13.3) A Legitimação pelos Procedimentos Assecuratórios do Regime Democrático

13.3.1) A Igualdade de Participação Política dos Cidadãos 13.3.2) A Democracia Política

13.4) Críticas as Teses Procedimentais de Legitimação da Jurisdição Constitucional

14.) Legitimação Substancialista da Jurisdição Constitucional

14.1) A Legitimação da Jurisdição Constitucional pelos Direitos Fundamentais

14.2) A Legitimação da Jurisdição Constitucional com Base no Dualismo Constitucional

14.3) Argumentação Principiológica

14.4) Elementos Constitucionais Essenciais

15.) Jurisdição Constitucional versus Regime Democrático

15.1) A Tensão entre o Político e o Jurídico

11

15.2) A Apropriação da Moral pelos Tribunais Constitucionais como Forma de Imunização de suas Decisões 15.3) A Jurisprudencialização da Jurisdição Constitucional – A Jurisprudência das Cortes Constitucionais como Auto-Referencia de suas Decisões 15.4) A Teoria da Neutralidade das decisões da Jurisdição Constitucional 15.5) Mitigação da Atuação do Poder Legislativo 15.6) Especificação da Atuação Legislativa da Jurisdição Constitucional 15.7) Limites à Atuação da Jurisdição Constitucional

16.) Novo Esboço da Jurisdição Constitucional Brasileira

16.1) A Constituição como Fonte de Legitimidade da Jurisdição Constitucional 16.2) A Transformação do Supremo Tribunal Federal em Tribunal Constitucional como Fator Determinante da Legitimação da Jurisdição Constitucional

16.3) Uma Nova Composição do Supremo Tribunal Federal como Forma de Legitimação da Jurisdição Constitucional

16.4) A Decisão da Jurisdição Constitucional Baseada no Entrenchment dos Valores Constitucionais

16.5) Densificação da Legitimação da Jurisdição Constitucional Brasileira

12

Delimitação do Objeto

Este trabalho tem por objetivo fazer uma análise da jurisdição constitucional

brasileira, procurando diretrizes para densificar a sua legitimidade. Esse fortalecimento da

legitimidade da jurisdição constitucional permitirá que o Supremo Tribunal Federal tenha

uma maior atuação, assegurando de forma mais eficaz a concretização dos direitos

fundamentais.

A Constituição de 1988 foi considerada à época de sua promulgação um dos textos

constitucionais mais avançados e modernos. Além da sua prodigalidade em direitos

fundamentais, disciplinou vários conteúdos que não tinham até então proteção da Lei Maior.

Mesmo trazendo importantes institutos de natureza processual constitucional, a principal

mácula que paira sobre o Texto de 1988 é a falta de eficácia de parte substancial de suas

normas.

A jurisdição constitucional, entendida no seu sentido amplo, que não se resume

apenas ao controle de constitucionalidade, é composta por mecanismos aptos a propiciarem

eficácia às normas da Carta Magna, além de protegerem de lesão ou ameaça de lesão os

direitos constitucionais. Aumentar a concretude normativa da jurisdição constitucional

implica de forma direta em tentar arrefecer a falta de eficácia de grande parte dos

mandamentos constitucionais.

A tese está dividida em três partes: a primeira parte enfocará a teoria geral da

jurisdição constitucional, a segunda desenvolverá a temática do controle de

constitucionalidade e a terceira à legitimação das decisões jurisdicionais, que é a tese

propriamente dita.

O estudo da jurisdição constitucional se revela imprescindível, mormente para

aqueles países que não têm uma prática de autonomia dos seus ordenamentos jurídicos, ou

seja, àqueles em que composições sócio-político-econômicas transitórias servem para

13

mutilar as disposições normativas, principalmente as contidas na Constituição Federal,

entendida como a norma normarum da sociedade. Considerando a Constituição como a

norma jurídica fundamental do ordenamento, a jurisdição constitucional é o instrumento

indissociável para a sua concretização.

Dentro desse diapasão buscar-se-á, quando a simetria entre os institutos permitir,

uma análise da jurisdição constitucional sob a ótica da doutrina alienígena, no sentido de

forjar uma contribuição para o seu aprimoramento. Ressalta-se, contudo, que a tese não é um

estudo de direito comparado, uma vez que o objeto de pesquisa é a doutrina brasileira, sem

olvidar da contribuição da literatura estrangeira.

A problematização deste trabalho é analisar os fatores que possam densificar a

legitimação da jurisdição constitucional brasileira, com o intento de compreender como se

constrói o processo legitimante das decisões do Supremo Tribunal Federal. A sua

importância é tentar contribuir para uma melhor análise da jurisdição constitucional

brasileira, dissecando os mecanismos de legitimação das decisões do Supremo Tribunal

Federal para que os seus julgamentos possam cumprir as funções do Estado Democrático

Social de Direito e que a Carta Magna de 1988 deixe de ser uma Constituição semântica e

torne-se um texto normativo efetivo.1

A hipótese adotada posiciona-se no sentido de que uma maior justificação da

jurisdição constitucional pode ser obtida pelos seguintes fatores: a transformação do

Supremo Tribunal Federal em um tribunal constitucional, com um mandato fixo para os seus

magistrados; a fragmentação da indicação dos membros do órgão que exerce a jurisdição

constitucional, com a participação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; uma

firme atuação para garantir os direitos fundamentais, mormente o conteúdo estipulado nas

normas programáticas; a determinação de uma “ densidade suficiente” ou “conteúdo

mínimo” dos direito fundamentais que devem ser defendidos pelo entrenchment dessas

prerrogativas; que as regras procedimentais que regulamentam as decisões judiciais

1 LOEWESNSTEIN, Karl. Teoria de la Constitucion. Trad. Alfredo Ballego Anabitarte. Barcelona: Ariel, 1970. p. 217.

14

proferidas pelo Supremo Tribunal Federal ensejem uma abertura da discussão jurídica,

incorporando vários setores da sociedade no debate, para que os magistrados possam auferir

todos os subsídios necessários para a sentença e que as decisões ostentem um maior nível de

legitimidade pela ampla participação do operadores jurídicos.

Na primeira parte da tese será analisada a doutrina geral sobre a jurisdição

constitucional. Nessa parte, serão analisadas a doutrina nacional e a estrangeira a respeito da

matéria. O seu objetivo é o estudo minucioso, possibilitando os conhecimentos necessários

para a compreensão da problematização e das hipóteses adotadas. Nessa parte inicial serão

observados os seguintes tópicos: a Constituição; o conceito de jurisdição constitucional; a

sua função; os tribunais constitucionais.

A segunda parte incidirá sobre o sistema de controle de constitucionalidade

brasileiro. Tanto os mecanismos do sistema difuso quanto os do sistema concentrado serão

estudados. A importância de se analisar uma temática aparentemente já tantas vezes

abordada deve-se ao fato de tentar moldá-la sob um novo prisma: a defesa dos direitos

fundamentais. O controle de constitucionalidade deixará de ser analisado apenas na

perspectiva de tutela negativa dos mandamentos da Lei Maior para ser igualmente analisado

sob uma perspectiva ativa, em que a concretização dos direitos fundamentais é o escopo

primordial. O início do trabalho incidirá sobre questões propedêuticas, tais como a

fundamentação do controle de constitucionalidade, o caso Marbury versus Madison etc.;

depois, o enfoque consistirá em cada um dos mecanismos do controle difuso e nas cinco

ações do controle direto, bem como na Lei 9.868/99, que regulamentou o procedimento da

ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade.

O sistema constitucional brasileiro adota tanto o controle difuso, criado com a

Constituição de 1891, como o controle concentrado, que apareceu de forma tímida pela

primeira vez em 1934, com a ação interventiva e desenvolveu-se com maior impulso depois

da implementação da ação direta de inconstitucionalidade, pela emenda 16/65. Nos últimos

anos, o controle constitucional brasileiro tem apresentado algumas inovações; a Lei Maior

de 1988 criou alguns novos institutos e mais recentemente as Leis 9.868/99 e 9.882/99

promoveram importantes alterações no sistema, o que exige um estudo mais acurado.

15

A terceira parte se deterá no núcleo essencial da tese: a legitimação das decisões da

jurisdição constitucional. Como essa finalidade, serão estudados os seguintes tópicos: a crise

do direito legislado; a jurisdição constitucional x o regime democrático; a legitimidade da

jurisdição constitucional; a legitimidade pelo procedimento; a legitimação substancialista; as

influências sobre a legitimação da jurisdição constitucional ; novo esboço da jurisdição

constitucional brasileira.

Com esse desiderato serão estudados alguns autores que contribuem com a doutrina a

cerca da matéria, como: Dworkin, Habermas, Ackerman, Ely, Rawls, Sunstein, Woldron,

Tribe, Luhmann, Scalia etc. Nesses autores, pela finalidade do trabalho, apenas serão

estudados as suas concepções sobre a jurisdição constitucional ou temas conexos. De forma

alguma, e é preciso deixar bem claro, configura-se como objetivo dissecar a doutrina desses

estudiosos em sua integralidade.

A discussão acerca da legitimidade das decisões do Supremo Tribunal Federal não

pode ser obnubilada porque muitas de suas decisões resvalam em nítidos conteúdos

políticos, que influenciam o exercício dos demais poderes. A teoria da soberania popular não

pode legitimar as decisões do STF, que muitas vezes ultrapassam o campo normativo dos

mandamentos constitucionais. Contudo, dentro do corte epistemológico implementado, não

será vislumbrado o processo de hermenêutica constitucional, mesmo que entendido como

espaço de elaboração normativa do Poder Judiciário. Nessa parte da tese, o objeto enfocado

se restringirá ao processo de legitimação das decisões judiciais.

Também não será objeto de análise da tese a legitimação de qualquer decisão judicial

do Supremo Tribunal Federal, mas apenas aquelas pertinentes à jurisdição constitucional

serão objeto de análise. O motivo para essa restrição é porque a jurisdição ordinária exercida

pelo STF não traz grandes influências para o ordenamento jurídico de forma sistêmica. Além

disso, as decisões da jurisdição constitucional põem em relevo de forma crucial a

diferenciação entre a legitimação do Poder Judiciário, baseada no procedimento, e a

legitimação dos Poderes Executivo e Legislativo, baseada no sufrágio universal.

16

O objetivo geral reside na análise do sistema de jurisdição constitucional vigente no

Brasil e no fornecimento de uma visão geral sobre o desenvolvimento de suas atividades,

sempre com o referencial na justificação da jurisdição constitucional.

Os objetivos específicos analisados são os seguintes: a) o conceito, funções e

natureza da jurisdição constitucional; b) a importância da jurisdição constitucional como

instrumento de concretização dos direitos fundamentais; c) o funcionamento dos tribunais

constitucionais; d) a legitimidade da jurisdição constitucional; f) a legitimação

substancialista como núcleo de justificação da jurisdição constitucional; g) a legitimação das

decisões judiciais; h) reestruturação do controle de constitucionalidade brasileiro para

justificar uma maior atuação do Supremo Tribunal Federal.

A metodologia utilizada será preponderantemente a pesquisa bibliográfica, haurindo

recursos doutrinários que possibilitem analisar o objeto proposto.2 Como será estudado uma

temática que tem importância primordial em todos os países ocidentais, optou-se por uma

pesquisa realizada em mares outros, especificamente na Itália, na Faculta Degli Studi di

Firenze, sob a orientação do Professor João Maurício Adeodato, que juntamente com o

Professor Danilo Zolo, foram essenciais para o término do presente trabalho.

Todas as traduções contidas no texto são de inteira responsabilidade do autor, sendo

por ele próprio livremente realizadas. A jurisprudência, pátria e estrangeira, terá grande

valor durante a pesquisa porque permitirá alicerçar as premissas do trabalho e impedir a

dicotomia entre a teoria e a prática. Também será dada atenção especial à legislação

nacional e estrangeira, o que permitirá mostrar o funcionamento dos sistemas de

constitucionalidade e vislumbrar o seu aperfeiçoamento.

2 ADEODATO, João Maurício. “Bases para uma Metodologia da Pesquisa em Direito”. In: Revista do Instituto dos Advogados de Pernambuco. V. 1, n. 2. P. 13-39.

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PARTE I: Jurisdição Constitucional.

1.) Constituição

A Constituição, com a conceituação que concebemos atualmente, provém do

racionalismo do século XVIII. Textos anteriores, como a Magna Charta Libertatum e os

pactos medievais, que muitos autores afirmam terem sido formas rudimentares de leis

fundamentais, não podem ser considerados como Constituições.3 Já no século XVII

aparecem textos, como o Mayflower Pact (1639) e o Agreement of People (1647), que se

aproximam do conceito atual de Constituição.4 Todavia, esses textos não tinham a intenção

de estruturar de forma ampla a vida política do Estado, faltando-lhes uma visão de conjunto,

uma vez que eram mais produtos de força para regulamentar interesses específicos.

Esclarece Gustavo Zagrebelsky: “ Os ordenamentos jurídicos pré-revolucionários

não conheciam, dotadas de valor proeminente o sentido de Constituição no conceito

3 Esclarece o Professor Nelson Saldanha: “Das discussões inglesas dos séculos XVI e XVII resultaram temas tornados essenciais para o debate político, tais como a competência do Parlamento e do Judiciário, a validade das leis e da autoridade obtida através do consentimento do povo, a constituição como um sistema de poderes em equilíbrio. Das discussões francesas, basicamente as do século XVIII, tomaram corpo outros temas, como sejam, a Constituição como um sistema de poderes divididos, o poder Constituinte como atributo do povo, a soberania nacional como alicerce de todos os poderes. Certamente todas estas questões estavam alimentadas por idéias fundamentais, uma delas a do contrato social”. SALDANHA, Nelson. Formação da Teoria Constitucional. 2º ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2000. P. 115. 4 “A primeira efectiva aproximação do Constitucionalismo moderno é representada por quatro textos, bem diferentes entre si quanto à forma de elaboração, valor jurídico e conteúdo, mas que parece comungarem da mais antiga radicação do movimento: a faceta religiosa. São eles, com efeito, o Mayflower Pact (1620), as Fundamental Orders of connecticut (1636), o Agreement of People (1647) e o Instrument of Government (1653). Não sendo nenhum deles uma autêntica constituição liberal, aí se deverá procurar a mais antiga das suas genuínas raízes, que só desabrochariam efectivamente no século seguinte, na América do Norte, com a Declaration of Rights de Vírginia (1776), a partir da qual mais de mil flores floriram. E isto porque, além da não suficiente mas necessária forma escrita, se trata de textos eivados do desejo da re-fundação, da aspiração a uma nova ordem, sob o impacto simultâneo da idéia do retorno à pureza dos princípios (corrompidos entretanto) do cristianismo (tal como cada qual os entendia) e do já crescente mito da ordem e da racionalidade como varinha mágica da organização social”. FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Mito e Constitucionalismo. Perspectiva Conceitual e Histórica.Porto: Gráfica de Coimbra, 1990. P. 135.

18

moderno. Não eram fruto de um corpo sistemático e completo de normas intencionalmente

produzidas e prescritas de forma escrita em uma Carta Constitucional”.5

O constitucionalismo, no seu nascedouro, é uma decorrência direta do liberalismo,

servindo como um instrumento para a incipiente burguesia garantir o seu predomínio sócio-

político-econômico. Enquanto os reis tinham o seu poder legitimado por argumentos

teocráticos, a argumentação do poder da burguesia se baseou na Constituição, alicerçada

filosoficamente no racionalismo, e politicamente na teoria da soberania da nação, seguida da

soberania popular.6

Antes desse movimento, o poder ainda não tinha sido unificado nas mãos do Estado,

por isso não se pode falar em Estado de Direito, estruturado através de leis vigentes para

toda a população. O surgimento da Constituição marcou o apogeu do domínio da burguesia

e o declínio da nobreza, a supremacia da vontade da lei, em detrimento da vontade dos

homens, o racionalismo predominando sobre os preceitos da teocracia.

O movimento constitucionalista nasce depois do surgimento do Estado Moderno,

quando toda a soberania é concentrada nas mãos do aparelho estatal. Macllwain afirma que

esse movimento tem uma qualidade essencial: configura-se como uma limitação legal ao

governo e significa uma antítese ao governo arbitrário; o oposto a um Estado regido por uma

Constituição é o governo despótico, em que prepondera a vontade do soberano em

detrimento da lei.7 A principal característica jurídica do Estado Moderno foi à centralização

da produção normativa nas mãos de um governante.8 Ele nasce como Estado Absoluto, que

partindo de uma concepção hobbesmasiana, considera o soberano como sustentáculo da

ordem e os súditos com a obrigação de obediência para garantir a tranqüilidade social,

através do pactum subiectionis.9

5 ZAGREBELSKY, Gustavo. La Giustizia Costituzionale. Bologna: Il Mulino, 1988. P. 14. 6 ANCARANI, Giovanni. Dal Costituzionalismo alle Costituzioni. Milano: Università Cattolica Del Sacro Cuore, 1979. P.168. 7 MCLLWAIN, Charles H. Costituzionalismo antico e moderno. Bologna: Mulino, 1990. P. 44. 8 CAENEGEM, Raoul C. Van. Il Diritto Costituzionale Occidentale. Un’Introduzione Storica. Trad. Federico Qualia. Roma: Carocci, 2003. P. 93-94. 9 CATANIA, Alfonso. Lo Stato Moderno. Sovranità e Giuridicità. Torino: Giappichelli, 1996. P.19.

19

O constitucionalismo significa que as condutas sociais devem ser determinadas por

normas e o ápice da escala normativa reside nos dispositivos constitucionais. A lei

fundamental foi tomada como dogma, o que levou alguns governantes, como Napoleão

Bonaparte, a ver nela um texto imutável, sacralizado, que deveria ser distribuído

gratuitamente para que toda a população conhecesse os seus direitos e deveres e pudesse

fiscalizar o cumprimento das suas prerrogativas.

As primeiras Constituições foram consideradas liberais, abrangendo direitos civis e

políticos, devido a sua concretização ser apenas formal, sem oferecer nenhum mecanismo

para a real efetivação dos preceitos constitucionais. Eram Constituições burguesas porque os

direitos ofertados apenas poderiam ser usufruídos pela burguesia, que tinham os meios

materiais para realizá-los. As demais classes sociais não tinha acesso a tais prerrogativas

porque o Estado não garantia a sua eficácia. Como explicar a um camponês que trabalhava

dezoito horas por dia e vivia em condições de miséria absoluta que ele tinha direito a

dignidade da pessoa humana? Dignidade tinha o burguês, que podia comprar tudo que

pudesse propiciar o seu bem-estar e conforto.

Historicamente, a Lex Mater funcionou como a ferramenta para sepultar o

absolutismo reinante na Idade Média. Foi o instrumento jurídico para a construção de uma

nova ordem, ordem esta que tinha na burguesia sua principal classe social. Ela estabeleceu a

separação das funções estatais que impediria definitivamente a concentração de poder em

um único órgão, além de colocar freio ao arbítrio estatal, com a proteção jurídica aos direitos

fundamentais.

Nesse sentido é bem claro o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão, quando afirma que a Carta Magna que não dividisse o poder, nem outorgasse

direitos não poderia ser concebida como tal.

Hodiernamente, as Constituições são concebidas por sua propriedade finalistíca:

concretizar os direitos fundamentais e servir de instrumento para a realização do Welfare

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State. Esses podem ser considerados os objetivos indeclináveis de qualquer Carta Magna,

produzida para regulamentar qualquer sociedade, constituindo-se na sua essência fucral.10

Entretanto, o vocábulo Constituição (do latim constituere, constitutio), em seu

significado de ordenamento político do Estado, existiu desde os primórdios. Aristóteles, no

seu livro Athenaton Politéia, distinguiu as leis ordinárias do Estado – nómos – daquelas que

estabeleciam os seus alicerces e fundamentos – psefísma.11 Cícero e Maquiavel também

faziam a distinção entre normas fundamentais, aquelas que estruturam o núcleo de poder, e

as demais normas, concebidas hierarquicamente como forma inferior.

Para Marcel Prélot, foi o Abade Sièyes o formulador da moderna conceituação de

Constituição que conhecemos.12 A importância de Sieyès se deve ao deslocamento do eixo

de legitimidade do poder político, que antes era calcado em fundamentos teocráticos,

sustentados pela revelação divina, para um substrato de legitimidade alicerçado na soberania

da nação, ou seja, a justificativa de poder que fora imputada a fatos transcendentais, à

vontade de Deus, a partir de Sieyès passou a se basear na vontade humana, personificada na

soberania da nação.

Para Rudolf Smend, a Lei Maior seria um objeto unitário, conectando sua parte

formal e material através da integração pessoal, funcional e material. Doutrina Smend: “Para

a doutrina dominante a Constituição é antes de tudo um ordenamento da formação da

vontade de um grupo social e da situação jurídica de seus membros”.13 O jurista

pernambucano, Pinto Ferreira, prefere enfocá-la como um edifício de quatro andares, no

qual cada um é ocupado, respectivamente, pela economia, sociologia, filosofia e direito,

mostrando como é complexo o universo constitucional.

10 “O Direito Constitucional atual não seria mais do que os direitos fundamentais. As normas que delineiam o estatuto dos direitos fundamentais, junto àquelas que consagram a forma de Estado e àquelas que estabelecem o sistema econômico, são as normas decisivas para definir o modelo constitucional da sociedade”. Perez Luño, Antonio E. Los Derechos Fundamentales. 7 ed., Madrid: Tecnos, 1998. P. 19. 11 ARISTÓTELES. A Constituição de Atenas. Trad. Francisco Murari Pires. São Paulo: Hucitec, 1995. P. 25. 12 “ Sièyes s’est donné pour l’inventeur de l’idée de constitution, dans son discours de l’una III sur le projet de constitution et sur la jurie constitutionnaire”. PRÉLOT, Marcel e LESCUYER, Georges. Histoires des Idées politiques. 12ª ed., Paris: Dalloz, 1990. p. 522. 13 SMEND, Rudolf. Constitucion y Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985. P. 129.

21

A Constituição também pode ser analisada como uma ideologia constitucional,

exprimindo uma carga axiológica que fora aceita pelos representantes constituintes na sua

realização. Toda Carta Magna expressa valores e é com base nessa dimensão valorativa que

as estruturas normativas serão delineadas. A percepção de mundo adotada pela Constituição

não pode ser considerada como monolítica. Na verdade, ela agasalha um amplo leque de

concepções que são organizadas pelo caráter sistêmico da Lei Maior.14

Outra concepção da Constituição que não pode ser descurada é a sua finalidade de

regulamentação das relações políticas existentes na sociedade, o que leva a afirmar que ela

representa a juridicização do fenômeno político. Os setores sociais que detiverem

proeminência na feitura da Constituição, inexoravelmente, obterão maior parcela de poder

na sociedade.15

Por esse motivo, o seu conteúdo semântico se revela tão cheio de significados, a

despeito de que se configura como requisito imperioso na construção de uma ciência ter uma

metodologia peculiar e um objeto próprio. García-Pelayo explica a aparente contradição:

“por se referir a substância da existência política de um povo está particularmente próximo a

converte-se em um dos conceitos simbólicos e combativos, que tem sua razão não na

voluntariedade do conhecimento, ou em sua adequação instrumental para a controvérsia com

o adversário. Sem dúvidas que o conhecimento contrapõe a sua adequação instrumental para

a controvérsia com o adversário”.16

14 Müller explica o conceito sistêmico de Constituição: “Esse princípio ordena interpretar normas constitucionais de modo a evitar contradições com outras normas constitucionais e especialmente com decisões sobre princípios de direito constitucional. A unidade da Constituição, enquanto visão orientadora da metódica do direito constitucional, deve antepor aos olhos do intérprete, enquanto ponto de partida, bem como, sobretudo, enquanto representação do objetivo, a totalidade da Constituição como um arcabouço de normas”. MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 84. 15 Disserta acerca do conceito de sociedade Hermann Heller: “A sociedade, enquanto conceito histórico do Estado, é um fenômeno muito recente na história da Europa. Sua aparição está intrinsecamente conectada com o desenvolvimento da forma econômica capitalista, com a definitiva liquidação da ordem estamental e com o nascimento da sociedade civil. Quem tratar de esclarecer o significado cabal da palavra sociedade, com tantas equívocas acepções, terá que ter em conta essas realidades históricas”. HELLER, Hermann. Teoria Del Estado. 2 ed., Trad. Luis Tobio. México: Fondo de Cultura Económica, 1998. P. 146 16 PELAYO, Manuel García. Derecho Constitucional Comparado. 3ª ed., Madrid: Alianza Universidad, 1991. P. 33.

22

À medida que as demandas sociais aumentam, há uma paulatina incorporação dos

direitos humanos pelos textos constitucionais com o objetivo de reforçar a sua

normatividade. Essa racionalização dos direitos fundamentais assinala um fortalecimento

nos mecanismos que asseguram a sua concretização, fazendo com que eles sejam

considerados a parte mais relevante da constituição. A modificação de parâmetros, em que a

estruturação dos órgãos públicos perde primazia para as prerrogativas dos cidadãos,

reformula o critério para se classificar o que se define como uma boa Constituição, que

passa a ser classificada de acordo com a extensão e a eficácia dos direitos fundamentais

esculpidos pelas suas normas.

A Constituição brasileira de 1988 representa o paradigma inconteste da jurisdição

constitucional, ao amenizar as incertezas provocadas pela modernidade, estabelecendo

parâmetros de atuação da tutela constitucional. Como a Constituição Cidadã foi pródiga em

direitos fundamentais, ela ainda facilita a fundamentação da jurisdição constitucional,

estimulando o entrenchment da “densidade suficiente” dessas prerrogativas.

1.1) A Supremacia da Constituição como a Principal de suas Características

A Constituição apresenta diversas concepções, como as teorias elaboradas por

Kelsen, Lassalle, Schmitt etc, e em cada um desses prismas podem ser apontadas

características inerentes a cada um deles. Não obstante essa pluralidade de características,

que variam de acordo com a concepção empregada, pode-se resumi-las a três que

condensam as demais, devido a sua preponderância para a análise do Texto Constitucional:

supremacia, supralegalidade e imutabilidade relativa. Dessas características, a supremacia

ocupa função preponderante, fazendo com que as normas constitucionais se tornem Lei

Fundamental, alicerce do ordenamento jurídico. O interesse maior pela análise da

supremacia reside no fato de ela ser a essência para o entendimento do papel ocupado pela

Constituição. Outrossim, as outras características advêm dessa prerrogativa.

23

A Constituição é considerada a norma suprema porque traduz a soberania estatal,

justificada pelo Poder Constituinte que consegue condensar-lhe o maior grau de legitimidade

dentro do ordenamento jurídico. Sob uma perspectiva kelseniana ela é a norma primeira,

decorrente do grundnorm, sendo a supremacia uma conseqüência dessa gênese cronológica.

Ela funciona como “norma-origem”, a primeira cronologicamente instituída.17 Hauriou a

considera suprema, porque goza da soberania estatal.18

Várias são as teses que explicam a teoria da supremacia constitucional como norma

ápice do ponto de vista hierárquico do ordenamento jurídico, do qual duas são

imprescindíveis porque foram agasalhadas para defender a supremacia da Constituição norte

americana, famosa dentre outros motivos porque foi o texto constitucional que primeiro

instituiu o judicial review: Locke, com a sua concepção de pacto social para assegurar a

liberdade, e a idéia de um higher law, um direito proeminente, calcado nas raízes do Direito

Natural, capaz de prevalecer sobre as normas infraconstitucionais, tornando-se o pressuposto

de sua própria validade.19

A doutrina do higher law surge da preponderância exercida pelo direito

consuetudinário no commow law. A idéia da Constituição como uma higher law remonta ao

famoso Bonham’s case, em que o Lord Coke advogou a tese da supremacia da Lei Maior

com base nos costumes sedimentados nos comportamentos sociais.20

17 Cronologicamente não foi a Constituição a norma primeira, antes existiam normas morais, religiosas e ate jurídicas. Este pressuposto tem a finalidade de fornecer uma estrutura lógica concatenada para a estruturação normativa. 18 HAURIOU, Maurice. Principes de Droit Public. 12ª ed., Paris: Librairie Recueil Sirey, 1916. p. 678. 19 ENTERRÍA, Eduardo García de. Justicia y Seguridad Jurídica en un Mundo de Leyes Desbocadas. Madrid: Cuadernos Civitas, 1999. P. 41. 20 Esclarece o proeminente papel do Juiz Coke Wilson Accioli: “ Não seria possível versar-se o tema do controle jurisdicional da constitucionalidade das leis omitindo-se a figura exponencial de Lord Coke (Jurista inglês. Presidente do King′s Bench). Realmente, o erudito e brilhante autor das Institutes of the Laws of England opunha séria resistência ao poder ilimitado do Parlamento, entendendo nulas as suas deliberações frontalmente antagônicas à common law (direito costumeiro). Segundo Coke, o Estado britânico era composto principalmente por tribunais (sendo o parlamento um deles) devendo seus atos submeter-se ao exame da common law. Como decorrência desse pensamento, estabeleceu-se que o rei não poderia julgar senão por intermédio dos juízes, “de acordo com o direito e o costume da Inglaterra” (Case of Prohibitions, 1607) e de que lhe carecia poder para modificar o direito do país, e, especialmente, criar novos delitos (Case of Proclamations)”. ACCIOLI, Wilson. Instituições de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1978. P. 50.

24

A função da supremacia constitucional é tão imprescindível para a afirmação da

Constituição como base do ordenamento jurídico que foi agasalhado no texto norte-

americano, no seu art. 6, seção 2°: “Esta Constituição, as leis dos Estados Unidos ditadas em

virtude dela e todos os tratados celebrados ou que se celebrarem sob a autoridade dos

Estados Unidos constituirão a lei suprema do país; e os juízes em cada Estado estarão

sujeitos a ela, ficando sem efeito qualquer disposição em contrário na Constituição e nas leis

de qualquer dos Estados”.

Segundo a Escola de Viena, a supremacia constitucional, dentro da sua concepção de

ordenamento jurídico unitário, composta por um conjunto hierarquizado de leis, ocupa o

ápice da pirâmide normativa, configurando-se como a norma de auto-referência, que dentro

do formalismo jurídico desempenha o papel de fundar o sistema jurídico e legitimar as

demais normas. Devido à Carta Magna constituir-se como a norma primária por excelência,

referenciando as normas secundárias, Schmitt a denomina de “último princípio

sistematizador da unidade política e do conjunto do ordenamento”.21

A supremacia da Constituição, sob uma ótica formalista, advém da referência

normativa que ela desempenha no ordenamento jurídico, pois como se situa no apogeu da

escala normativa, tem a incumbência de validar as normas situadas em escala inferior,

classificando-as, assim, em normas primárias e secundárias, de acordo com o seu

posicionamento na escala hierárquica. Primárias seriam aquelas que ocupariam os maiores

degraus do sistema jurídico e secundárias aquelas ocupantes dos níveis inferiores. Por isto, o

processo Constituinte se encontra em posição superior em relação ao processo legislativo.22

Analisando a supremacia constitucional por outro prisma, sob o ponto de vista das

teorias sociológicas e daquelas que transcendem o direito positivo, a Lei Maior exerce a

função de validar as demais normas do ordenamento, não porque se situe no apogeu de um

escalonamento normativo, mas porque possui um maior substrato de legitimidade ou por

21 SCHMITT, Karl. Teoría de la Constitución. 2ª ed., Madrid: Alianza, 1992. p. 63. 22 Heras definia dessa forma a diferenciação: “Esta teoria gradual do direito oferece a base para distinguir as normas primárias ou fundamentais, das normas secundárias ou derivadas. As primeiras são aquelas que ocupam o lugar mais alto na pirâmide jurídica; as secundárias são as que ocupam os postos inferiores e derivam das primeiras sua validade e conteúdo. HERAS, Jorge Xifra. Curso de Derecho Constitucional. Tomo I. Barcelona: Bosch, 1957. P. 58.

25

causa de sua função de refletir as diretrizes de natureza superior aos dispositivos jurídicos.

É, por outro lado, a norma que goza de maior referência no imaginário popular; suas

disposições atuam como invariáveis axiológicas, alçadas ao patamar de dogmas, que

validam as restantes por uma filtragem ideológica.23 Por outro lado, pelo seu caráter de alta

densidade de abstração e de generalidade, possibilita a conexão e sincronia com preceitos

metajurídicos dos matizes os mais variados.

O Texto Constitucional condiciona, na sua função de norma primeira, a produção das

estruturas normativas restantes, constituindo-se na norma normarum, preceituando a forma

para a feitura das normas secundárias. Nesta sua tarefa, a Constituição, devido à supremacia,

goza de auto-garantia, que na realidade é uma supralegalidade material. Declarada a

inconstitucionalidade das normas que infligirem o preceituado por ela, deve-se expurgá-las

do ordenamento.24

A soberania atribui à Constituição a distribuição de poder entre os órgãos estatais, já

que apenas um órgão superior pode dimensioná-los e estabelecer a sua repartição de

competência.25 Para Recasens Siches, o Poder Constituinte pode distribuir a competência

entre os poderes instituídos porque é um poder superior e originário da soberania, prévio aos

atos normativos ordinários, delegando para eles competência.

O desenvolvimento da atuação da jurisdição constitucional apenas foi possível

devido à densificação do princípio da supremacia das normas constitucionais, significando a

submissão de todos os poderes estatais ao conteúdo estipulado pela Carta Magna. A

Constituição deixa de ser concebida como apenas um texto de conteúdo retórico, que

legitima a atuação das classes dominantes, para se constituir em um texto de eficácia

concretiva plena, contando, para tal desiderato, com o empenho de todos os poderes

estabelecidos.

A supralegalidade é a característica da Norma Normarum que se configura como a

essência do controle de constitucionalidade, evitando que normas infraconstitucionais

23 SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional. Construindo uma Nova Dogmática Jurídica. Porto Alegre: saFE, 1999. P. 104. 24 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Constituição e constitucionalidade. Belo Horizonte: Jurídicos Lê, 1991. p. 53. 25 No texto constitucional brasileiro de 1988, a repartição de competência se encontra nos arts. 21 usque 32.

26

possam infringir o conteúdo dos dispositivos constitucionais. Caso haja essa afronta, as

normas infraconstitucionais devem ser expulsas do ordenamento com a declaração da sua

invalidade. Ela pode ser dividida em supralegalidade material e formal. A primeira é

originária do judicial review norte-americano, estabelecido no leading case Marbury versus

Madison.26 A segunda é definida como o processo legislativo, a normogénese das normas

infraconstitucionais, que atua na produção da legislação ordinária do ordenamento jurídico.

Essa característica é uma sanção para as normas infraconstitucionais que afrontam a

Carta Magna, tornando-as inconstitucionais e declarando-as nulas. A supralegalidade

significa um importante instrumento para a manutenção da supremacia constitucional,

garantindo a obediência dos seus postulados.

Ainda em decorrência do princípio da supremacia, a Constituição não pode ser

modificada pelos mesmos procedimentos necessários para a alteração das normas

infraconstitucionais. Caso isto ocorresse haveria um ferimento de morte na supremacia das

normas constitucionais. Portanto, a maioria das Constituições ocidentais possui a

característica de imutabilidade relativa, o que significa que os mandamentos da Lex Mater

apenas podem ser modificados por um procedimento mais agravado do que aquele

necessário para a realização de normas infraconstitucionais. Enquanto que o quórum

utilizado para alterar uma lei ordinária é de maioria simples, para modificar a Constituição o

quórum exigido é de 3/5 de votos, em duas sessões, em cada uma das casas. Essa maior

dificuldade para se reformar a Lex Excelsa tem a finalidade de evitar a banalização

constitucional, com a conseqüente perda de sua concretude normativa.

Como qualquer espécie normativa, a Constituição também pode ser modificada.

Apenas o que se exige é um maior quórum para a sua realização. Se a Lei Maior pudesse ser

modificada pelos mesmos procedimentos exigidos para a modificação das leis

infraconstitucionais, a supremacia constitucional estaria estremecida. Com um procedimento

mais dificultoso para a sua realização, necessita-se de um consenso mais substancial para

26 AGRA, Walber de Moura. Fraudes à Constituição: um Atentado ao Poder Reformador. Fabris: Porto Alegre, 2000. P. 54.

27

alterar as normas constitucionais, o que dificulta as modificações esporádicas da

Constituição.

A classificação de uma Constituição como rígida, de acordo com uma perspectiva de

natureza jurídica, tem amparo nos procedimentos mais complexos para a sua modificação.

Em uma perspectiva de natureza sociológica, uma Constituição apenas pode ser considerada

como rígida se o impedimento para a sua modificação provier de elementos sócio-político-

econômicos. Nesse diapasão, a Constituição brasileira de 1988, apesar de ser classificada

juridicamente como um texto rígido, sociologicamente é classificada como um texto flexível

porque poucas Cartas Magnas, em sua época, sofreram tamanhas mudanças substanciais na

sua estrutura. O que não significa que ela tenha deixado de ser classificada juridicamente

como uma Constituição rígida. Ela foi modificada de forma tão intensa porque o seu texto

original não mais atendeu aos “fatores reais de poder”, que passaram a ter primazia na

sociedade.

O princípio da soberania popular é a pedra angular do regime democrático e um dos

seus sub-princípios mais importantes configurando-se no princípio majoritário que respalda

a vontade da maioria. Assim, a supremacia da Constituição não pode ser concebida como

uma contradição ao princípio majoritário, essencial ao funcionamento de um regime

democrático. Não obstante a Carta Magna representar uma limitação ao mencionado

princípio no sentido de que as leis têm que se adequar aos mandamentos constitucionais,

quanto maior for a extensão dos seus dispositivos maiores serão essas limitações. O vínculo

entre os dois princípios é pavimentado pela teoria da soberania popular, que em diferentes

proporções embasa tanto o conteúdo da supremacia constitucional, quanto o conteúdo do

princípio majoritário.27

27 “A relação do princípio da maioria com o princípio da constitucionalidade é essencialmente ambivalente. Por um lado, o princípio da inconstitucionalidade é, obviamente, um limite do princípio da maioria, isto é da maioria legiferante ordinária; por outro lado, porém, o princípio da constitucionalidade também é ele mesmo expressão do princípio da maioria, ou seja, da maioria fundante e constituinte da comunidade política. Daí que a função da jurisdição constitucional de fazer prevalecer a Constituição contra a maioria legiferante arranca essencialmente da consideração de que a justiça constitucional visa adjudicar o conflito entre duas legitimidades, de um lado, a legitimidade prioritária da lei fundamental e, do outro lado, a legitimidade derivada do legislador ordinário”. VITAL MOREIRA. “Princípio da Maioria e Princípio da Constitucionalidade: Legitimidade e Limites da Justiça Constitucional”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 192-193.

28

Tocqueville concorda que o princípio majoritário deve ser a origem dos poderes

estabelecidos, que depois passam a ser regulamentados por normas previamente

estabelecidas, sob pena de se criar uma tirania da maioria. Contudo, ele se encontra limitado

pelos preceitos de justiça, estando esses dispositivos inseridos nas normas constitucionais.28

Stuart Mill, por sua vez, defende que a maioria não pode anular as possibilidades de

diferença, já que são essas diferenças que proporcionam o progresso. Para ele, a falta de uma

proteção às minorias é um dos fatores que provocam a decadência de um Estado.29

Ao lado de um crescente fortalecimento do princípio da supremacia constitucional,

há uma relativização do princípio majoritário. Alguns fatores podem ser apontados como

causadores desse arrefecimento, como: a) a concepção de lei como originária de uma

vontade geral é substituída pela concepção de que ela pertence à vontade de uma minoria

parlamentar transitória ou de algum segmento social organizado; b) a reformulação da teoria

da separação dos poderes, em que o limite de atuação de cada um deles é cada vez mais

tênue; c) a descentralização da produção normativa, abrangendo os entes estatais

componentes do Estado e alguns órgãos de natureza privada como as agências reguladoras.

A supremacia das normas constitucionais é a característica mais importante da

Constituição, permitindo que esta seja o alicerce para a expansão da jurisdição

constitucional. Em virtude desse fato, o grau de concretização de suas normas é mais

intenso, facilitando a realização do seu conteúdo. A supremacia das normas constitucionais

igualmente proporciona uma relação mais próxima com o regime democrático, à medida que

suas normas possuem um maior consenso na sociedade.

28 “Eu considero vazia e detestável esta máxima: que em matéria de governo a maioria de um povo há o direito de fazer tudo; todavia considero a vontade da maioria da população como a origem de todos os poderes. Estou talvez com contradição a mim mesmo? Existe uma lei geral que foi feita, ou pelo menos adotada, não apenas pela maioria deste ou daquele povo, mas pela maioria de todos os homens. Esta lei é a justiça. A justiça é logo o limite do direito de cada povo”. TOCQUEVILLE, Alexis. La democracia in America. Trad. [ s.t], Milano: Rizzoli, 1999. P. 257. 29 “Mas, se a maioria consegue o seu propósito, cada possibilidade de diferença cancela os pressupostos de progresso e inaugura a decadência. [...] O progresso apenas se verifica quando há espaço para o conflito entre uma força e outra de oposta tendência, entre uma autoridade espiritual e outra temporal, entre o poder militar-territorial e o poder industrial, entre o rei e o povo, entre a ortodoxia religiosa e a reformista. Existe sempre a estagnação e o declínio quando a luta é conclusa com o sucesso completo de um dos lados e não surge nenhuma outra contenda para ocupar a cena [...] A falta de proteção às minorias determina na sociedade antiga e na sociedade moderna um estado de desregramento ou de inércia, marcado por um processo lento de decadência”. MILL, Stuart. Considerazione Sul Governo Rappresentativo. La Crisi Del Vecchio Regime e la nascita della Democrazia Moderna. Trad. Michele Prospero. Roma: Riuniti, 1997. P. 118.

29

2.) Jurisdição Constitucional

A jurisdição constitucional é um instrumento indelével para a realização das

finalidades do Estado Democrático Social de Direito. Em todos os continentes, em maior ou

menor grau, há um elastecimento das decisões judiciais para atender às demandas sociais.

Não se pode mais pensar na divisão de poder nos moldes clássicos, pois para atender às

cominações da Carta Magna, a jurisdição constitucional tem que ter um posicionamento

mais atuante, muitas vezes entrando em searas que secularmente eram de competência de

outros poderes. Daí a necessidade imperiosa do seu estudo.

O objetivo deste capítulo é esquadrinhar a jurisdição, dentro de uma perspectiva

integral, e não de forma restrita englobando apenas a jurisdição constitucional. O que não

elide o objetivo fundamental delineado no seu frontispício. Todos os assuntos aqui

abordados têm uma forte analogia com a jurisdição constitucional e servem para explicar de

melhor forma o seu conceito.

2.1) Conceito de Jurisdição

O conceito de jurisdição provém da soberania estatal, traduzindo-se na prerrogativa

de concretizar o direito substantivo.30 A função da jurisdição é densificar o princípio da

soberania, que indiscutivelmente se configura como um apanágio inerente ao Estado. A

soberania representa a mais alta autoridade, o poder supremo dos entes estatais que é

30 Ensina Pontes de Miranda: “Anteriormente, nos comentários ao início do Código de Processo Civil, ao tratarmos do princípio da pretensão processual dirigida ao Estado, frisamos que a expressão “jurisdição”, no sentido de todo o poder público, seja legislativa, seja judiciária, seja executiva, revela conteúdo medieval. O sentido exato é o de poder dizer o direito ( dicere jus),razão por que se há de exigir o pressuposto conceptual de julgamento, de “dizer” (dictio) qual a regra jurídica, o ius, que incidiu”. MIRANDA, Pontes de . Comentários ao Código de Processo Civil.. 5º ed., Tomo I, Atualização legislativa de Sergio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 1997. P. 78.

30

personificado nos dispositivos legais, constituindo-se na “verdade específica” do Estado.31

Explica o Professor Pinto Ferreira que a soberania é a propriedade de ser de uma ordem

suprema e, em razão dessa supremacia, se configura como independente nas suas relações

com as pessoas de existência exterior.32 Ao ser incumbido de garantir a efetividade de um

ordenamento jurídico através da jurisdição, o Estado está manifestando a soberania que lhe é

inerente.33

Ao dirimir os litígios de acordo com os paradigmas legais pré-estabelecidos, além de

reafirmar a coercitividade do ordenamento jurídico, a jurisdição exerce a atividade de

pacificar as relações sociais, fornecendo as condições imprescindíveis para o

desenvolvimento social. Desde que o Estado suprimiu a possibilidade de composição dos

litígios por intermédio da autotutela, os órgãos estatais têm o dever de solucionar as questões

consonante o modelo legal estabelecido. Tal prerrogativa não pode ser considerada apenas

como um poder, já que o Estado tem a obrigação de compor os conflitos, situação

comprometedora da paz social, configurando-se como uma função imprescindível, ligada à

própria razão de sua existência.

Giuseppe Chiovenda define a jurisdição como uma função decorrente da soberania

estatal: “Pode definir-se a jurisdição como a função do Estado que tem por escopo a atuação

da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da

atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade

da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva”.34

Calamandrei sustenta que não se pode dar uma definição de jurisdição absoluta e

válida para todos os tempos e para todos os povos porque as contingências fáticas

influenciam sobremaneira a sua estruturação. As formas externas, através das quais se

desenvolvem a administração da justiça, bem como os métodos lógicos de julgar, têm um

31 PAUPERIO, Machado A. Teoria Geral do Direito do Estado. Rio de Janeiro: Forense, 1979. P. 136. 32 FERREIRA, Pinto. Novos Rumos do Direito Público. 2 ed., Recife: Sopece, 1998. P.122. 33 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P. 75. 34 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituição de Direito Processual Civil. Trad. Paolo Capitanio. V. II. Campinas: Bookseller, 1998. P. 8.

31

valor contingente, que não pode ser determinado senão em relação a um certo momento

histórico, o que ele denomina de “relatividade histórica do conceito de jurisdição”.35

Eduardo Couture assevera que o conceito de jurisdição, ao menos nos países latino-

americanos, ainda não foi definido de forma precisa porque se apresenta com distintos

significados. Ele elenca ao menos quatro definições para a sua conceituação: a) como âmbito

territorial, que traz a idéia de vinculação da jurisdição atrelada a um determinado âmbito

territorial, sem adentrar na essência de sua conceituação; b) como competência, confundindo

o seu conceito com o de jurisdição. Esse é um equívoco porque a competência é uma

demarcação da jurisdição e a sua delimitação de atuação, uma relação da parte com o todo;

c) como poder para sinalizar a prerrogativa de autoridade que é conferida ao Judiciário.

Entretanto, a jurisdição não é apenas um poder, configurando-se como um poder-dever,

inclusive considerado como um direito outorgado à cidadania; d) como função, concepção

defendida por Couture, porque é uma obrigação prestada por um órgão designado pelo

Estado para solucionar uma demanda trazida em juízo 36.

Para o mencionado professor a definição de jurisdição como poder não é suficiente,

devendo ser concebida como uma função. Ele distingue a função jurisdicional das demais

funções, notadamente pela irrevogabilidade de suas decisões através da coisa julgada. Assim

ele a define: “Função pública realizada por órgãos competentes do Estado, de acordo com as

formas requeridas por lei, em virtude da qual, por ato judicial, se determina o direito das

partes, com o objetivo de dirimir seus conflitos e as suas controvérsias de relevância

jurídica, mediante decisões com autoridade de coisa julgada, eventualmente factível de

execução”37.

O Direito não se resume apenas à elaboração de leis, pois mais premente do que essa

tarefa é a missão de torná-las efetivas, fazendo com que elas virem realidade. A defesa do

ordenamento jurídico não é incumbência dos cidadãos, tal encargo foi deferido de forma

proeminente ao Poder Judiciário. Aos cidadãos, de forma individual, restaram pouquíssimos

35 CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. V. I, Trad. Luiz Abezia e Sandra Drina Fernandez Barbery. Campinas: Bookseller, 1999. P. 96. 36 COUTURE, Eduardo J. Fundamentos Del Derecho Procesal Civil. Buenos Aires: Depalma, 1958. P.27-31. 37 COUTURE, Eduardo J. Fundamentos Del Derecho Procesal Civil. Buenos Aires: Depalma, 1958. P. 40.

32

casos de atuação para assegurar a aplicação dos seus direitos, como nos casos de legítima

defesa, desforço in continenti na defesa da posse, casos de auto-composição etc.

Dentro da tripartição de poderes, coube ao Judiciário, como regra geral, a

incumbência de exercer a jurisdição, o que representou um avanço na formação do Estado

de Direito, em que os cidadãos podem recorrer a um órgão especializado para a defesa de

seus interesses. Na Idade Média e no Estado Absolutista, quando o parâmetro de conduta

não eram os dispositivos legais, vários órgãos tinham a prerrogativa de exercer a jurisdição,

como a Igreja, as corporações, os senhores feudais, os reis etc. A unificação da jurisdição, na

maioria dos casos, no Judiciário representou uma garantia para a concretização dos

mandamentos legais.

A universalidade de jurisdição conferida ao Poder Judiciário, afora as exceções

previstas na Constituição Federal, foi determinada como forma de melhor estruturar o

Estado Democrático Social de Direito, garantindo que os comportamentos sociais sejam

regidos por lei e não por arbítrios voluntários. Se não existissem parâmetros racionais para

direcionar a conduta humana, preponderaria o axioma do mais forte, degenerando o tecido

social.

Toda sociedade necessita de um certo grau de previsibilidade, que é garantido pela

regulamentação normativa. Nicolas Luhmann afirma que a vida social deve ser regida por

estruturas seletivas de expectativas, com o objetivo de reduzir a complexidade e a

contingência da vida social.38

Uma das primeiras características da jurisdição é o fato de ela depender de uma

estrutura normativa, que de forma implícita ou explícita, é uma complementação desta. Não

se pode falar em jurisdição se inexiste uma estrutura normativa que necessite ser

concretizada, uma vez que ela nasce com o fator teleológico de realizar a subsunção

normativa, zelando pela eficácia do sistema jurídico. A menos que se entenda que a

jurisdição, mormente a constitucional, também tem a função de concretizar princípios

metajurídicos, que transcendem a estrutura normativa positivada.

38 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. P. 66.

33

Como segunda característica, pode ser apresentado o fato de que ela subsume a

norma abstrata a um fato concreto, individualizando a lei na aplicação em um caso

específico. A jurisdição tem a função de fazer a ligação entre a esfera abstrata e a seara

factual, adequando a norma abstrata ao fato concreto.

A terceira característica ressalvada é que as decisões proferidas pela jurisdição são

imodificáveis quando adquirem a auctoritas de coisa julgada, possuindo assim

coercitividade. Uma vez proferida, esgotados todos os recursos ou passado o prazo sem a

sua impetração, a decisão não pode se mais modificada, a não ser, dentro do prazo devido,

por uma ação rescisória.

Outra característica é a inércia da jurisdição, exteriorizada pelo brocardo latino nemo

iudex sine actore. Para a realização de sua atuação, é imprescindível a provocação da parte.

Apenas em questões em que o interesse público se revela premente é que o princípio da

inércia da jurisdição pode ser flexibilizado. Nesses casos não há necessidade de se esperar

que haja uma provocação para a atuação dos órgãos jurisdicionais, pois diante da relevância

do interesse público, o princípio da inércia da jurisdição pode ser flexibilizado.

Como quinto apanágio pode-se aludir o seu caráter substitutivo, em que a decisão

judicial substitui a vontade das partes e tem a prerrogativa de auto-execução, de forma

coercitiva, caso haja resistência de algum dos envolvidos. Como os cidadãos não podem

exercer a justiça por sua própria vontade, pois todos têm que obedecer às leis vigorantes, os

órgão estatais que assumem a jurisdição é que passam a exercê-la. Esse apanágio é uma

decorrência do Estado de Direito.

Dentre esses atributos se sobressaem a coercitividade de suas decisões e a coisa

julgada. O primeiro é a característica que tem a jurisdição de impor o cumprimento de suas

decisões, o jus imperium, fazendo com que elas, caso sejam descumpridas, possam ser

executáveis, substituindo a vontade das partes. O segundo é a impossibilidade de

modificação da decisão judicial, seja no próprio processo, seja por intermédio de outras

ações. A sua importância é tamanha que, inclusive se considera como uma cláusula pétrea,

constituindo-se uma prerrogativa específica apenas do Poder Judiciário, não existindo esse

atributo em nenhum outro órgão estatal.

34

Precisa o conceito de coisa julgada Giuseppe Chiovenda: “O bem da vida que o autor

deduziu em juízo (res in iudicium deducta) com a afirmação de que uma vontade concreta

de lei o garante a seu favor ou nega ao réu, depois que o juiz o reconheceu ou desconheceu

com a sentença de recebimento ou de rejeição da demanda, converte-se em coisa julgada [...]

Para os romanos, como para nós, salvo as raras exceções em que uma norma expressa de lei

dispõe diversamente”.39

Os elementos principais da jurisdição são a forma, o conteúdo e a função. Como

estes dois últimos denotam a sua essência, enquanto que aquele se configura como o seu

invólucro, o conteúdo e a função serão estudados de forma conjunta mais detalhadamente,

no tópico referente à função da jurisdição constitucional.

A forma da jurisdição é aquela designada pelos dispositivos normativos específicos,

compreendendo os seus atos exteriores. Esses elementos externos são as partes, o órgão

judicial e o procedimento estabelecido para o seu encaminhamento. É de valia frisar que a

formalidade da jurisdição não pode tolher o seu caráter substancial, prevalecendo a máxima

francesa de pas di nullite, sans grief. A forma adotada pela jurisdição significa o modo como

ela se desenvolve para atingir os seus objetivos.

2.2) Definição de Jurisdição Constitucional

O conceito de jurisdição constitucional, na acepção brasileira, ou giustizia

costituzionale como preferem os italianos, ou constitution adjudication como a denominam

os norte-americanos, ou jurisdiccion de la constitución como denominam os espanhóis, ou

verfassungsgerichtsbarkeit, como denominam os alemães, configura-se de difícil definição,

haja vista que já na sua formação abriga dois conteúdos semânticos de difícil precisão:

jurisdição e Constituição. No seu sentido objetivo a dificuldade é estabelecer o que é uma

39 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Tradução: Paolo Capitanio. V. I, São Paulo: Bookseller, 1998. P. 446-447.

35

matéria constitucional, pois essa é ampliada por uma Lei Mater de extensão analítica como a

brasileira, por motivo de se tentar garantir uma determinada estabilidade jurídica. Do ponto

de vista subjetivo, a dificuldade consiste em delimitar a extensão de quem pode exercê-la,

com a finalidade de evitar choques entre as instâncias diversas, em virtude de que o

ordenamento brasileiro permite o seu exercício, tanto através do Supremo Tribunal Federal,

quanto das instâncias judiciárias inferiores.

Biscaretti di Ruffia, que foi professor na Universidade de Milão, afirma que em

senso objetivo a jurisdição constitucional abrange as funções constitucionais que têm a

finalidade tutelar os direitos e interesses pertinentes à matéria constitucional; em senso

subjetivo, está a indicar um órgão diverso da magistratura ordinária, para exercer essa

função, geralmente com um procedimento diferente do utilizado pela jurisdição comum

(afirmação válida apenas para os países que instituíram um tribunal constitucional).40

Segundo Pedro Cruz Villalón, a jurisdição constitucional passou por um processo de

desenvolvimento para assumir a sua atual feição. A derivação mais antiga da jurisdição

constitucional é aquela política, denominada de jurisdição política, encontrada nos países

europeus, que tem um nascimento anterior à jurisdição jurídica. Ela tinha a finalidade de

pacificar as relações entre os sujeitos políticos, representantes de uma estruturação de poder,

através do arbitramento das suas litigâncias por uma câmara ou uma assembléia. Em um

segundo momento, ela se encontra preocupada em sedimentar a sua supralegalidade,

estabelecendo que as leis infraconstitucionais devem se subordinar aos parâmetros da

Constituição, firmando o controle de constitucionalidade. E em um terceiro momento, ela é

associada à jurisdição dos direitos fundamentais, configurando-se como um instrumento

para a sua concretização, realizando o reforço da tutela de determinados direitos.41

O conceito de jurisdição constitucional, algumas vezes, é estabelecido com a mesma

definição de garantias constitucionais, refletindo que o seu escopo maior é assegurar os

direitos fundamentais. Nessa perspectiva, a extensão do conceito de jurisdição constitucional

40 RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Diritto Costituzionale. 7 ed., Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1965. P. 556. 41 VILLALÓN, Pedro Curz. La Curiosidad Del Jurista Persa, y otros estudios sobre la Constitución. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1999. P. 489-491.

36

se resume a garantias constitucionais, para simbolizar a importância que os direitos

fundamentais assumem no ordenamento jurídico. Essa perspectiva, ao restringir a amplitude

do conceito de jurisdição constitucional, descura importantes esferas de sua atuação, o que

não contribui para a sua integral percepção.42

A jurisdição constitucional é a função estatal que tem a missão de concretizar os

mandamentos contidos na Constituição, fazendo com que as estruturas normativas abstratas

possam normatizar a realidade fática. Esta exprime a intenção de estabilizar as relações

sociais, de acordo com os parâmetros da Carta Magna, evitando o risco do arrefecimento de

sua força normativa.

Esse conceito, como a terminologia já esclarece, tem como finalidade a

concretização das normas contidas na Constituição Federal, impossibilitando a sua atuação

na concretização de normas infraconstitucionais. Esta última função pode ser implementada

pelas instâncias ordinárias do Poder Judiciário.

Destarte, seu alcance abrange toda a prestação jurídica compreendida nos

dispositivos constitucionais, garantindo o princípio da universalidade de jurisdição e,

conseqüentemente, resguardando o Estado Democrático Social de Direito. Se a jurisdição

constitucional não for realizada segundo os parâmetros do regime democrático e dos direitos

fundamentais ela deixa de ser um esteio do Estado Democrático Social de Direito e passa a

ser uma chancela da arbitrariedade.

Com o advento do Estado Social o conceito de jurisdição constitucional tem sofrido

substanciais modificações, apartando-se de sua definição tradicional de jurisdictio, fundada

no direito positivo, formatada dentro da distinção entre produção normativa e aplicação

judicial. A jurisdição constitucional ganha novo relevo com as demandas sociais de um

Estado cada vez mais complexo, que exige um direito principiológico, decretando a falência

42 A classificação da jurisdição adotada no decorrer do trabalho é a realizada pelo Prof. Alfredo Baracho, que a divide em: jurisdição ordinária – realizada pelos juízes de direito; jurisdição especial – realizada por outros órgãos como o Senado Federal ou o Tribunal de Contas; jurisdição administrativa – que não é realizada no Brasil, mas que abrange o contencioso administrativo, adotado, por exemplo, na França e na Itália; e por fim, a jurisdição constitucional – com o escopo de concretizar os mandamentos da Lei Maior.

37

da exclusividade do Direito legislado, levando em conta princípios que mantêm a sincronia

do ordenamento com a sociedade. Há um maior espaço de elaboração para as decisões

judiciais, sendo os juízes levados muitas vezes a colmatar uma lacuna jurídica, para manter a

eficácia da Constituição e a completude do ordenamento jurídico.

Apesar de a jurisdição constitucional ganhar mais força nos países que instituíram

um Tribunal Constitucional específico, na sistemática adotada pelo Brasil, em que o

Supremo Tribunal Federal tanto exerce a jurisdição constitucional, quanto funciona como

última instância da jurisdição ordinária, ela também exerce uma importante função, no

sentido de assegurar proteção para os dispositivos constitucionais, velando pela sua

concretização.

A jurisdição constitucional compreende, além do controle de constitucionalidade, a

regulamentação do processo de impeachment; os conflitos de atribuições; as garantias

processuais contidas na Constituição; a tutela dos direitos fundamentais; a estruturação do

Poder Judiciário; o delineamento do sistema federativo de Estado; a criação de partidos

políticos; as normas do regime político etc. Dentre todas essas atividades, uma das mais

relevante, de forma clara, é o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, com

a finalidade de garantir a supralegalidade das normas constitucionais.

De forma esquemática, podemos dizer que a jurisdição constitucional compreende as

seguintes atividades: a) proteção e garantia de concretização dos direitos fundamentais; b)

controle de constitucionalidade das normas e atos normativos; c) controle e fiscalização do

sistema eleitoral, englobando os institutos da democracia participativa, como o plebiscito e o

referendo, com o escopo de velar pela lisura das eleições; d) funcionamento como instância

judiciária, para assegurar o equilíbrio federativo, solucionando os litígios entre os entes

componentes do Estado; e) demarcação dos limites de incidência das competências dos entes

federativos; f) controle dos poderes públicos para que eles possam atuar com eficiência e

atender ao bem comum da sociedade.

A implantação de um órgão incumbido de exercer a jurisdição constitucional, seja

por intermédio de um tribunal constitucional, seja por meio de uma Suprema Corte, apenas

foi possível com o preenchimento de algumas condições consideradas imprescindíveis. A

38

mais importante condição preenchida foi o desenvolvimento dos regimes democráticos,

onde há o predomínio da vontade popular na feitura normativa. A jurisdição constitucional

não pode forcejar em meio a um regime ditatorial, em que não há o respeito pelas normas

constitucionais.

Outro fator importante foi a reformulação da teoria da separação dos poderes, em que

a autonomia das atividades de cada um dos poderes estabelecidos serve, não apenas para

incrementar a eficiência dos órgãos estatais ou para impedir a formação de regimes

autoritários, atuando, de forma imprescindível, mas para concretizar as prerrogativas

contidas no Texto Constitucional, evitando que os dispositivos constitucionais tenham um

valor meramente simbólico.A jurisdição constitucional deixa de ocupar um papel passivo na

defesa da Constituição e passa a atuar de forma ativa, assegurando-lhe concretude

normativa, principalmente para as normas constitucionais programáticas.

O mais importante dos requisitos foi a afirmação absoluta dos direitos fundamentais,

que se configura como um dos escopos da jurisdição constitucional; se eles não fossem

alçados como parte mais importante do ordenamento jurídico, o desenvolvimento da

jurisdição constitucional irremediavelmente estaria comprometido.

Pela importância que assume a jurisdição constitucional nas sociedades atuais, em

que o tribunal constitucional ou a suprema corte exercem a função de intérpretes últimos da

Constituição, há a necessidade de se conferir ao Supremo Tribunal Federal um maior teor de

legitimidade, fazendo com que seus julgados possam ser amplamente aceitos pela sociedade,

aumentando a intensidade normativa da Constituição.

2.2.1) Diferença entre Jurisdição Constitucional e Controle de

Constitucionalidade

39

A concepção de jurisdição constitucional não pode ser confundida com a

conceituação do controle de constitucionalidade. Esta é uma espécie daquela, uma das várias

possibilidades de atuação da força normativa da Constituição.43 O controle de

constitucionalidade, ou judicial review, terminologia adotada na doutrina norte-americana,

tem a função de assegurar a supremacia dos mandamentos constitucionais, adequando as

normas infraconstitucionais aos mandamentos contidos na Constituição. A doutrina da

supremacia constitucional é a essência do judicial review.44

Alguns autores confundem a jurisdição constitucional com o controle de

constitucionalidade, afirmando que ambos representam um mesmo processo, apenas com

diferenciação na sua terminologia. O controle de constitucionalidade não abrange todos os

aspectos importantes da jurisdição constitucional, que é muito mais abrangente do que

aquele.45 Entretanto, não pode ser negado que o controle de constitucionalidade foi uma das

primeiras prerrogativas da jurisdição constitucional, originado do caso Marbury versus

Madison, em 1803, na Suprema Corte norte-americana.

Podem ser aventadas diferenças entre a jurisdição constitucional e o controle de

constitucionalidade. A primeira diferença é a funcional, em que a jurisdição constitucional

tem a função de levar a jurisdição prevista nas normas constitucionais para a sociedade, ou

seja, garantir que os dispositivos constitucionais tenham eficácia concretiva e possam

normatizar a seara fática, enquanto o controle de constitucionalidade tem a finalidade

exclusiva de adequar os mandamentos infraconstitucionais ao que fora estabelecido pela

43 Explica Hesse o sentido semântico da expressão “força normativa da Constituição”: “A Constituição é a ordem fundamental jurídica da coletividade. Ela determina os princípios diretivos, segundo os quais deve formar-se unidade política e tarefas estatais a serem exercidas. Ela regula procedimentos de vencimentos de conflitos no interior da coletividade. Ela ordena a organização e o procedimento da formação da unidade política e da atividade estatal” HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Fabris, 1998. P. 37. 44 Mas da doutrina de Coke permaneceram todavia os frutos, pelo menos na América; e pretendo obviamente aludir àqueles frutos que se chamam hoje de judicial review e supremacia do Poder Judiciário, supremacy of the judiciary”. CAPPELLETTI, Mauro. Il Controllo Giudiziario di Costituzionalità delle Leggi nel Diritto Comparato. Milano: Giuffrè, 1972. P. 45. 45 Cappelletti defende a diferenciação entre jurisdição constitucional e controle de constitucionalidade. CAPPELLETTI, Mauro. Il Controllo Giudiziario Di Costituzionalitá Delle Leggi Nel Diritto Comparato. Milano: Giuffrè, 1972. P. 3. Em igual sentido: “[...]Atualmente, têm-se entendido que a jurisdição constitucional não se circunscreve apenas ao denominado controle da Constitucionalidade das leis e atos normativos controle da constitucionalidade das leis e atos normativos de um Estado, muito menos por um único órgão”. TAVARES, André Ramos. Tribunal e Jurisdição Constitucional . São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998. P. 106.

40

Constituição Federal. As demais espécies da jurisdição constitucional não buscam retirar

normas inconstitucionais do ordenamento jurídico, mas estabelecer o modelo de prestação

constitucional, previsto na Constituição, de acordo com os moldes determinados pelo

legislador constituinte, enquanto que o controle de constitucionalidade tem o objetivo de

oferecer diretrizes que devem guiar o trabalho dos legisladores infraconstitucionais.

A segunda diferença é estrutural. As normas componentes do controle de

constitucionalidade são procedimentais, com uma finalidade acessória de concretizar os

demais dispositivos constitucionais, sem terem uma existência “bastante em si”, mas sendo

justificadas como garantia dos mandamentos constitucionais. Elas apenas atuam quando

outras normas do texto constitucional são infringidas, ressaltando-se, dessa forma, o seu

caráter de acessoriedade. Como as normas pertencentes ao controle de constitucionalidade

têm uma finalidade peculiar, conseqüentemente a sua estrutura também devem se adequar

para o cumprimento dessa finalidade.

Portanto, as normas que compõem o controle de constitucionalidade têm uma

estrutura diferente, de matriz procedimental, pois constituem instrumento indelével para

garantir a supremacia da Lei Maior. Sua finalidade é retirar do ordenamento jurídico as

normas que infrinjam os dispositivos constitucionais, tornando-os sem eficácia, suprir

omissões ou garantir o cumprimento dos preceitos fundamentais. Para o cumprimento dessa

função há uma nítida fiscalização a um outro Poder, o Legislativo, caracterizando-se como

sistema de freios e contrapesos, check and balances, em que um Poder fiscaliza o outro para

evitar exacerbações nos limites postos pelo Estado de Direito.

O controle de constitucionalidade mitiga os excessos cometidos principalmente pelo

Poder Legislativo, que também podem ocorrer em atos do Poder Executivo, quando os

legisladores infraconstitucionais não se atêm aos limites estipulados e tentam suplantar a

supralegalidade dos mandamentos constitucionais. Destarte, para efetuar esse trabalho, deve

haver um maior grau de legitimidade do que o existente nas demais espécies da jurisdição

constitucional, que, na maioria das vezes, oferece diretrizes para os legisladores

infraconstitucionais. A estrutura do controle de constitucionalidade é muito mais complexa

41

que outras estruturas delineadas pela Constituição, exigindo uma inter-relação mais intensa

com áreas metadogmáticas, como a política e a legitimidade social.

Assevera Cappelletti que a complexidade da estrutura do controle de

constitucionalidade ocorre porque há o encontro entre dois poderes e duas funções: o

encontro entre a lei e a sentença, entre a norma e a jurisdição, entre o legislador e o juiz.46

2.3) Natureza da Jurisdição Constitucional

A jurisdição constitucional tem uma taxionomia jurídica, cuja estruturação e

funcionamento foram estabelecidos pela Constituição, tornando-se parte da seara do direito

público.47 Como órgão cujo delineamento é regido pela Ciência do Direito, tem a função de

garantir a supralegalidade da Constituição, guiando-se por dispositivos previamente fixados

para evitar acintes contra o Estado Democrático Social de Direito. Ela tem natureza jurídica,

apesar da grande repercussão política de suas medidas, porque o seu vetor balizante são as

normas constitucionais, o que não obscurece a discricionariedade das decisões proferidas,

desde que elas se insiram nos dispositivos da Lei Maior.

Apesar de o Poder Constituinte, criador da Constituição, ter uma natureza política, já

que as circunstâncias político-econômico-sociais que circundam o momento histórico da sua

formação são o que ditam o conteúdo das normas constitucionais, a Carta Magna tem uma

natureza essencialmente jurídica. Não obstante ter nascido de uma decisão política, todo o

46 CAPPELLETTI, Mauro. Il Controllo Giudiziario Di Costituzionalitá Delle Leggi Nel Diritto Comparato. Milano: Giuffrè, 1972. P. 5. 47 “Para uns, a maioria dos autores, estamos, designadamente no caso do Tribunal Constitucional, perante actuação jurídica, porque ocupada prevalecentemente com a determinação do Direito mediante critérios de racionalidade jurídica, vinculada na sua essência; sem caráter genericamente oficioso; arrancando da independência e imparcialidade orgânica e dos titulares; recorrendo a procedimento também ele juridificado” REBELO DE SOUZA, Marcelo. “Legitimidade da Justiça Constitucional e Composição dos Tribunais Constitucionais”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 214.

42

seu funcionamento se insere em uma perspectiva jurídica, assim devendo ser analisada

(obviamente que dentro de um caráter dialógico).

O Poder Constituinte nasce fruto de injunções políticas, mas o seu produto, a

Constituição, é a “pedra angular” do ordenamento jurídico, relegando a absoluta

discricionariedade das decisões políticas pela segurança do que fora preceituado nos seus

dispositivos. Na verdade, a Carta Magna se configura como o demarcador entre o mundo

normativo e o mundo fático, com o escopo de normatizar as escolhas políticas realizadas

pelos legisladores constituintes. Como a Constituição é a norma que regulamenta as decisões

sociais mais importantes, claro que é em torno da sua concretização há fortes pressões

extradogmáticas, o que de modo algum retira a sua taxionomia jurídica.

Como a jurisdição constitucional é delineada pela Constituição, sua natureza

inexoravelmente configura-se como jurídica, cujo espaço de atuação fica condicionado ao

conteúdo dos mandamentos contidos no seu texto, livre de amarras impostas por leis

infraconstitucionais. Sua taxionomia está condicionada a vetores legais, postos pela Lei

Maior, que é a norma jurídica basilar do ordenamento. Portanto, como ela é uma decorrência

da Constituição, a sua natureza não poderia ser diferente.

Biscaretti di Ruffia defende que a natureza do Tribunal Constitucional italiano é um

órgão de natureza jurídico-política.48 Francisco Tomás y Valiente igualmente defende que o

Tribunal Constitucional espanhol exerce suas competências por métodos jurisdicionais.49

A jurisdição constitucional é uma função jurídica, mas como tem o escopo de

garantir a supralegalidade da Constituição, ela atua com uma discricionariedade maior que

os demais órgãos jurídicos.

Os autores que defendem que a jurisdição constitucional tem uma natureza política

partem do princípio de que a sua atuação, apesar dos limites impostos pelo texto

48 RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Diritto Costituzionale. 7 ed., Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1965. P. 564. 49 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Escritos Sobre y Desde El Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. P. 1993. P. 37.

43

constitucional, é guiada por interesses políticos, que são sempre os alicerces das decisões

judiciais, bem como político é o critério de indicação dos seus juízes.

Foi bastante feliz Zaffaroni ao afirmar que a natureza da jurisdição constitucional

dependerá do conteúdo da conceituação do que venha a ser uma decisão política e também

das injunções sócio-político-econômicas, que modulam a estruturação da jurisdição

constitucional em diversos países.50

2.4) Fundamentação da Jurisdição Constitucional

A jurisdição constitucional tem a sua fundamentação calcada na supremacia haurida

da Carta Magna, juntamente com os congêneres da relevância hierárquica das normas

constitucionais que são a supralegalidade e a imutabilidade relativa. Ela somente é

concebida porque a Constituição é considerada a lei preponderante do ordenamento jurídico,

aquela que possui o maior grau de legitimidade social, sob um ponto de vista sociológico; ou

aquela que funciona como o ápice de validade do ordenamento jurídico, segundo o

postulado kelseniano.

A idéia da supremacia da Constituição se apresenta em oposição à idéia da

supremacia do parlamento, mas ambas as doutrinas possuem um ponto em comum: são

concepções modernas com relação à idéia de poder prevalente no Estado Absolutista, de

verniz teocrático, e ambas são calcadas, embora em níveis diferentes, na soberania popular.

A supremacia da Carta Magna faz com que os dispositivos constitucionais sejam as

normas mais relevantes do ordenamento jurídico. Se são as normas mais relevantes do

ordenamento jurídico, para que eles possam realizar a segurança jurídica da sociedade,

funcionando de forma condizente com as expectativas sociais, as normas constitucionais

50 Na verdade Zaffaroni refere-se a taxionomia dos tribunais constitucionais, que pela sua conexão pode ser aplicado à natureza da jurisdição constitucional. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciario. Crise, Acertos e Desacertos. Trad. Juárez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1995. P. 73.

44

devem possuir o maior coeficiente de concretude normativa do arcabouço jurídico. A

ineficácia da Constituição gera uma dissociação entre os princípios constitucionais e os fatos

sociais, entre a Constituição formal e a Constituição material, no que contribui para a perda

da sua supremacia.51 Destarte, a jurisdição constitucional tem como fundamento a força que

exala a Constituição no ordenamento jurídico porque ela busca a concretização de seus

dispositivos.

Relevante elemento para a fundamentação da jurisdição constitucional é o intenso

teor de legitimidade que embasa as normas constitucionais. Criação do Poder Constituinte, a

Constituição é a norma do ordenamento jurídico que apresenta maior grau de legitimidade,

necessitando de complexas condições sócio-político-econômicas para o seu surgimento. Pelo

seu alto teor de legitimidade, nenhuma norma constitucional pode ficar destituída de

eficácia, nem pode haver óbices constitucionais ao seu conteúdo. Assim, a jurisdição

constitucional é uma garantia para a efetivação da Constituição.

A necessidade de um intenso grau de legitimidade na jurisdição constitucional

assenta no fato de que a Constituição funciona como o alicerce normativo que preserva as

regras sociais de convivência, limitando os poderes estatais, check and balances, e impondo

a realização dos direitos e garantias fundamentais. A jurisdição constitucional funciona

como um elo entre o povo e os legisladores, tornando a jurisdição constitucional um

instrumento para adequar a vontade do povo e dos legisladores aos ditames da Lei Maior.52

Em decorrência da legitimidade da jurisdição constitucional, ela pode atuar como

legislador negativo, declarando inconstitucional uma lei advinda do Poder Legislativo que

afronte os mandamentos constitucionais. Este poder adquire também sua legitimidade da

Constituição, podendo-se pensar que a jurisdição constitucional é mais imperiosa do que a

produção normativa, pois é amparada na representação popular. Na realidade, a assertiva 51 PARK, John James. Los Dogmas de la Constitución. Trad. Ignacio Fernández Sarasola. Madrid: Istmo, 1999. P.31. 52 Sintetiza Muller o conceito de povo: “O povo como ícone, erigido em sistema, induz a práticas extremadas. A iconização consiste em abandonar o povo a si mesmo; em “desrealizar” a população, em mitificá-la (naturalmente já não se trata há muito tempo dessa população), em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral e em instituí-la assim como padroeira tutelar abstrata, tornada inofensiva para o poder-violência – notre bon peuple”. MÜLLER, Friedrich. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo. A questão fundamental da democracia. São Paulo: Max Limonad, 1998. P. 67.

45

anterior não é correta porque a jurisdição constitucional atuou na proteção da Lei Maior,

fazendo com que seus preceitos fossem respeitados. O Poder Legislativo agiu exorbitando

suas prerrogativas e será tolhido só na extensão do seu excesso. Dentro da atuação das suas

prerrogativas constitucionais, não poderá haver qualquer tipo de admoestação nas suas

funções, assegurado que estar pela independência da separação dos poderes.

Outro fundamento da jurisdição constitucional é a tutela de interesses e de direitos

dos cidadãos, evitando-se a ameaça de lesão ou a própria lesão. Para o seu ensejo não é

necessária à ocorrência ou iminência de ocorrência de um ilícito a um cidadão de forma

direta, ela pode ser exercitada quando um dispositivo constitucional for deixado sem

eficácia. De uma forma concisa, pode-se dizer que seu escopo é densificar a concretização

dos direitos fundamentais, o núcleo ontológico mais importante da Carta Magna.

Essa forma de fundamentação encontra respaldo tanto na esfera dogmática, cuja

fundamentação reside na maioria das Constituições, como na esfera metadogmática, calcada

em direitos imemoriais dos homens, que pertencem aos cidadãos, mesmo que os

ordenamentos jurídicos não os prevejam e até mesmo contrariem o seu conteúdo. Sua

concretização ocorre mediante embates sociais que galvanizam o apoio de amplas parcelas

da população, solidificando a formação de um consenso na sociedade.

2.5) Função da Jurisdição Constitucional

A função imperiosa da jurisdição constitucional é servir como instrumento de defesa

da Constituição, garantindo que todas as suas normas possam ter eficácia concretiva e que

não haja ameaça de lesão ou lesão a direitos fundamentais, assegurando os valores

agasalhados pelos dispositivos constitucionais.53 Além disso, tem a missão de garantir o

respeito da Lei Maior pelos entes estatais, pelo legislador e pela sociedade. Em última

53 JAYME, Fernando G. Tribunal Constitucional: Exigência Democrática.. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, P. 93.

46

instância, a finalidade da jurisdição constitucional é aumentar a densidade normativa das

normas contidas na Constituição, realizando o que Calamandrei intitula de velar pela

obediência prática do direito objetivo.54

Na sua formulação inicial, tanto nos Estados Unidos como na Constituição austríaca

de 1920, a função da jurisdição constitucional apresentava três características essenciais: a

defesa dos direitos e garantias fundamentais; a separação de poderes, zelando pelo

funcionamento do check and balances e a definição da atuação entre os órgãos federais e os

Estados-membros das unidades federativas. Com o decorrer do tempo, essas funções foram

sendo aprimoradas e desenvolvidas.

Essa função de defesa não se resume apenas aos mandamentos constitucionais,

tomados sob o prisma da literalidade do seu texto. Ela envolve uma ampla gama de

princípios implícitos que foram pactuados pela sociedade no momento da elaboração da

Constituição e até mesmo outros princípios que não guardam uma relação direta com a seara

normativa. Portanto, a defesa dos mandamentos constitucionais ultrapassa a literalidade de

seu texto, alcançando a defesa também de princípios que estão ausentes da Constituição,

mas que têm a função de densificar os princípios explícitos e de princípios outros que

apresentam forte legitimidade na sociedade.

O princípio que norteia a função da jurisdição constitucional é o da subsidiariedade, no

sentido de que ela não pode ser considerada como uma finalidade em si porque o seu escopo

reside em assegurar o conteúdo das normas constitucionais e garantir a concretização de

seus dispositivos. A Constituição além de ser a referência que especifica a sua atuação,

configura-se como uma limitação para o exercício da jurisdição constitucional.

Cronologicamente falando, umas das primeiras funções da jurisdição constitucional,

e nem por isto de somenos importância, é garantir a integralidade dos mandamentos insertos

na Constituição. Se o paradigma de respeito aos parâmetros legais tem significativa

importância na seara infraconstitucional, maior deve ser o seu relevo na seara constitucional,

em virtude de que as normas mencionadas possuem um conteúdo mais densificado de

54 CALAMANDREI, Pietro. Opere Giuridiche. Tomo I, Napoli: Morano, 1965. P. 72.

47

legitimidade. Se houvesse um escalonamento do grau de acinte ao Direito, o acinte aos

mandamentos constitucionais seria muito mais danoso que o perpetrado pelo acinte aos

mandamentos infraconstitucionais, embora essas duas infrações ao ordenamento jurídico

devam ter sua validade tolhida.

Portanto, uma das mais importantes tarefas da jurisdição constitucional,

indubitavelmente, é o controle de constitucionalidade. Fiscalizar se as normas

infraconstitucionais se adequam aos parâmetros ofertados pela Carta Magna, evitando a

concretização dos vários tipos de inconstitucionalidade, solidifica a sua supremacia e

potencializa a eficácia do sistema jurídico.

Sem o alcance dessa missão não teria sentido a concretização dos mandamentos

constitucionais uma vez que eles não mais existiriam. A supralegalidade da Constituição,

uma decorrência da densidade de legitimidade que goza o Poder Constituinte, pode ser

considerada com a função mediata da jurisdição constitucional, sendo sua função imediata a

concretização dos preceitos contidos na Carta Magna.

Entretanto, a jurisdição constitucional não se esgota no controle de

constitucionalidade, havendo ainda outras funções de igual relevância. Ela exerce a

imprescindível função de garantir a unidade política da federação, impedindo que entes

políticos entrem em litígio, gerando instabilidades entre as esferas de poder. Na defesa da

Constituição, avulta a função de órgão responsável pela cooperação entre as entidades

políticas, solucionando os eventuais litígios ocasionados.

Outro dos seus predicados é garantir a independência dos poderes. Esta função não

apresenta um gravame contra o sistema de freios e contra-pesos – check and balances – pois

muito pelo contrário, busca definir a área de atuação de cada um dos poderes componentes

do Estado, para que os seus atritos e conflitos de atribuições não prejudiquem a eficiência

dos serviços públicos. O conflito de atribuições entre os poderes do Estado ou entre os seus

órgãos componentes é uma função da jurisdição constitucional devido à importância que

apresenta para a própria existência do Estado Social Democrático de Direito.

48

A proteção dos direitos e garantias fundamentais também é uma das funções da

jurisdição constitucional. Eles são o núcleo substancial que serve como norteador da atuação

da jurisdição constitucional, assegurando uma atuação garantista. De igual forma, a proteção

dos direitos fundamentais se configura em um dos alicerces de legitimidade para a jurisdição

constitucional. Essa é a sua principal função e em virtude da sua relevância, as decisões

nesse sentido devem ter força vinculante para todos os órgãos estatais.

Defender as bases do regime democrático, propiciando o seu desenvolvimento e

garantindo a construção de uma democracia participativa no seu sentido material, é

igualmente uma das tarefas da jurisdição constitucional. A democracia participativa é um

avanço em relação ao conceito empregado por Montesquieu, de natureza formal, quando ela

se caracterizava pelo fato de que a soberania popular residia nos representantes populares,

por permitir uma participação efetiva da população em vários âmbitos de decisões

públicas.55

Ela representa uma democratização do sistema político, desde que essa seja feita

seguindo os parâmetros do regime democrático e dos direitos fundamentais. Se a jurisdição

constitucional for implementada sob um regime autoritário ela não visará à defesa dos

direitos da cidadania, mas sim manter o status quo do sistema, legitimando o arbítrio e a

prepotência. Já a defesa dos direitos fundamentais significa assegurar prerrogativas

inalienáveis e imprescritíveis aos cidadãos, que não podem ser descuradas sob forma

alguma.

A jurisdição constitucional exerce um importante papel na defesa dos direitos das

minorias. A essência do regime democrático é a vontade da maioria, o que não quer dizer

que essa vontade seja valorada de forma absoluta, evitando que as decisões políticas sejam

decididas pela força avassaladora de uma maioria arrogante e interesseira, conforme

definição de James Madison.56 O princípio majoritário, majoritarian principle, de forma

55 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat de. Lo Spirito delle Leggi. Trad. Beatrice Boffito Serra. 5 ed., V. I. Milano: Universale Rizzoli. 1999. P.155. 56 “Ouvem-se em toda parte queixas apresentadas por nossos mais dignos e virtuosos cidadãos, igualmente defensores da fé pública e privada e da liberdade pessoal e coletiva, julgando nossos governos por demais instáveis, o bem público ignorado nos conflitos entre partidos rivais e as providências muitas vezes decididas, não de acordo com as normas da justiça e os direitos do partido minoritário, mas pela força avassaladora de

49

alguma pode tolher direitos fundamentais das minorias que foram instituídos pela Carta

Magna. As minorias devem acatar as decisões políticas tomadas pela maioria, desde que elas

não atinjam aqueles direitos considerados essenciais pela Constituição.

Dispondo de direitos e garantias fundamentais, no caso brasileiro protegido como

cláusulas pétreas, a jurisdição constitucional impede a tirania da maioria, fazendo com que

minorias sociais tenham os seus direitos preservados. Obviamente, o padrão democrático

planteia que o governo pertença à maioria, contudo, esta maioria não pode suprimir direitos

e garantias fundamentais das minorias.57 A legitimidade haurida pela Constituição é muito

mais significativa do que a legitimidade estabelecida por uma maioria que é episódica e

transitória.

Quando a jurisdição constitucional declara a inconstitucionalidade de uma norma, ela

não está cometendo um acinte ao princípio democrático porque a sua função é resguardar a

supralegalidade da Constituição, oriunda do Poder Constituinte que apresenta um teor de

legitimidade muito mais denso do que o princípio majoritário, que arrima a atuação do Pode

Legislativo. Não há nenhum contra-senso ao regime democrático, ao contrário, há o

resguardo de suas prerrogativas.

Em razão do desenvolvimento das dimensões dos direitos fundamentais, a jurisdição

constitucional sentiu a necessidade de começar a atuar protegendo a heterogeneidade sócio-

cultural e o pluralismo. Um dos princípios basilares do pluralismo, ligado umbilicalmente

ao regime democrático, é a tolerância, em que os vários interesses sociais devem coexistir

sob parâmetros mínimos que são ofertados pelos dispositivos constitucionais. Quando a

vontade da maioria suprimir os direitos mínimos das minorias, a jurisdição constitucional

atuará como instrumento de garantia dessas prerrogativas, suprimindo os abusos de uma

maioria parlamentar.

uma maioria arrogante e interesseira. Por mais ansiosamente que possamos desejar que tais queixas seja infundadas, a evidência de fatos conhecidos não nos permitirá negar que elas são em grande parte procedentes”. HAMÍLTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Campinas: Russel, 2003. P. 77. 57 Francesch, Juan Luis Perez. El Gobierno. 2 ed., Madrid: Tecnos, 1996. P. 73.

50

A jurisdição constitucional é considerada a intérprete máxima da Constituição, sendo

essa uma importante função. Cabe ao órgão que a exerce tomar a última ou única decisão

acerca do tema proposto, dependendo do modelo adotado. Ao determinar o sentido e o

alcance das normas constitucionais, a jurisdição constitucional está esclarecendo o conteúdo

da Constituição, o que contribui para a eficácia de suas normas. Portanto, exerce a função de

chisura do ordenamento.

Os juízes singulares também podem interpretar a Carta Magna, sem conferir, a priori,

a essa atividade um caráter de imutabilidade. Nos países que adotam o modelo concentrado

de jurisdição constitucional vigora o princípio da exclusividade de sua interpretação, em que

apenas os tribunais constitucionais podem decidir acerca da lide que verse sobre a

Constituição.O Poder Legislativo interpreta constantemente, da mesma forma, a Carta

Magna, quando realiza as leis que cumprem os desígnios estabelecidos pelos legisladores

constituintes. Não obstante, nenhum deles dispõe das prerrogativas inerentes à jurisdição

constitucional, que é a última ou a única instância de apreciação jurídica, conferindo as suas

decisões efeitos vinculantes.

Como é o conteúdo da jurisdição o que caracteriza a sua função, é de melhor alvitre o

seu estudo de forma conjunta. Ele não pode ser entendido na acepção clássica de jurisdição,

ou seja, na perspectiva de um conflito com relevância jurídica, entre duas partes antagônicas,

que deve ser solucionado mediante procedimento previamente estabelecido, adquirindo

depois autoridade de coisa julgada, tendo como requisito a necessidade da existência de uma

controvérsia jurídica, conceituada como uma pretensão insatisfeita ou resistida. Na ação

declaratória de constitucionalidade, configura-se ponto pacífico na jurisprudência que

inexiste partes antagônicas. O seu conteúdo são as normas constitucionais, com o objetivo

de concretizá-las, sem a necessidade de adequação a modelos processuais que padecem da

ausência de supralegalidade.

Ao defender o conteúdo e a efetividade dos dispositivos constitucionais, a jurisdição

constitucional está preservando as estipulações do Poder Constituinte. Ele é um órgão

normalmente criado por esse poder para, em última instância, defender as suas estipulações,

zelando pela vontade constituinte. Como a formação do Poder Constituinte nos regimes

51

democráticos é o momento de maior efervescência da vontade popular, a proeminência da

função da jurisdição constitucional está em assegurar que as normas advindas da vontade

popular restem imaculadas.

A definição do conteúdo da jurisdição constitucional apenas pode ser especificada

diante da realidade de cada país, pois é uma determinação do Poder Constituinte, atendo-se

às condições sócio-política-econômicas de um dado contexto histórico. O conteúdo varia de

acordo com as necessidades sociais, evitando-se a errônea afirmação de que exista um

conteúdo padrão, ou que uma Constituição não possa ter essa ou aquela matéria fazendo

parte da sua função.

2.6) A Independência como Condição Inexorável para a Concretização da

Jurisdição Constitucional

A independência não pode ser vista como uma qualidade intrínseca à jurisdição

constitucional, antes se configura como um requisito inexorável para a sua concretização.

Ausente essa premissa, a jurisdição constitucional não pode funcionar a contento,

representando muito mais um argumento retórico para legitimar o status quo, do que um

meio eficiente para resguardar a eficácia da Constituição. Ela se bifurca em independência

externa, relativa ao modo como é estruturada, permitindo que a jurisdição constitucional

possa ser exercida de forma livre, sem sofrer restrições por parte de outros poderes, e em

independência interna que permite aos seus magistrados poder tomarem decisões sem

padecer de injunções que contrariem a sua livre convicção.

A prerrogativa de independência da jurisdição constitucional é imprescindível não

apenas à jurisdição constitucional, mas a todos os poderes componentes do Estado, servindo

também como condição para a consolidação do regime democrático. Se um poder pudesse

intervir na competência de outro, o sistema de freios e contrapesos restaria arrefecido,

52

incentivando a produção de arbitrariedades. A democracia se fortalece na medida em que os

poderes são independentes e harmônicos, mormente a jurisdição constitucional que tem a

finalidade de proteger a eficácia da Constituição.

O requisito imprescindível para a realização da independência externa, por parte da

jurisdição constitucional, é o autogoverno do órgão que a exerce, traduzindo-se na

autonomia administrativa e na autonomia financeira.

A autonomia administrativa é a prerrogativa que se concede a um determinado órgão

para que ele tenha as condições necessárias de exercer o autogoverno, dotando-o das

competências devidas para gerir os seus próprios interesses. O órgão que exerce a jurisdição

constitucional deve ter autonomia administrativa para que possa desenvolver as atividades

inerentes à jurisdição constitucional, cumprindo satisfatoriamente suas funções.

A autonomia financeira permite que a instituição organize e administre o seu quadro

de pessoal ativo e inativo, confeccione sua folha de pagamentos, adquira bens e serviços,

estipule a fixação e o reajuste dos vencimentos de seus membros etc. O instrumento para a

concretização da autonomia financeira é o duodécimo que, de acordo com o limite máximo

estipulado em lei, repassa um doze avos do montante devido, mensalmente, que no caso do

Brasil é direcionado ao Poder Judiciário.

Quando se menciona a independência da jurisdição constitucional, imediatamente se

vislumbra a externa, configurando-se na relação com os outros poderes. Com relação à

independência interna, pelas peculiaridades da mencionada jurisdição, tanto no controle

difuso como no controle concentrado, ela é um apanágio de sua própria estrutura, pois

inexiste um órgão que possa retratar ou avocar suas decisões. Ela atua como última instância

jurídica de apreciação. Ensina Pizzorusso que os membros da magistratura em geral, o que

inclui aqueles que exercitam a jurisdição constitucional, não se subordinam à relação do tipo

hierárquico que caracteriza a estrutura da administração pública, já que cada um dos seus

membros é ao mesmo tempo independente e igualmente sujeito aos dispositivos legais.58

58 PIZZORUSSO, Alessandro. “La Magistratura come parte dei Conflitti di Attribuizione” In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Italia. Bologna: Il Mulino, 1982. P. 202.

53

A independência da jurisdição constitucional é, inexoravelmente, a independência

dos seus juízes, com relevância ao seu sentido externo, sendo uma decorrência direta da

separação dos poderes e constituindo-se em sua própria garantia.59 O princípio da

independência da magistratura encontra inspiração na concepção iluminista e garantista da

separação dos poderes no Estado Liberal oitocentista.60 Francisco Tomás y Valiente, que foi

juiz do Tribunal Constitucional espanhol desde a sua fundação, em 1980, até 1992, sustenta

que a independência judicial antes de tudo é um imperativo moral, que possibilita aos juízes

julgar independente de todos as outras influências que não sejam o império da lei, aplicando

e interpretando o Direito tomando como referência o primado da sua consciência e sempre

justificando suas decisões de modo explícito e racional.61

Para Peter Häberle a garantia de independência dos juízes somente é tolerável porque

as outras funções estatais e as entidades pluralistas da sociedade civil contribuem na

estruturação e no funcionamento do Poder judiciário. A independência dos juízes não os

torna órgãos enclausurados porque as influências, as expectativas e as obrigações sociais a

que estão submetidos influem de forma direta na tomada de suas decisões.62

Nos países que adotaram o modelo de controle de constitucionalidade concentrado, a

independência dos tribunais constitucionais é muito mais nítida, pois são organizados

hierarquicamente com as mesmas prerrogativas que os três poderes e que têm a escolha de

seus membros feita por todos os poderes instituídos. Nesses países, o Tribunal

Constitucional pode ser comparado a um “quarto poder”. No Brasil, a jurisdição

constitucional é exercida pelo órgão de cúpula do Poder Judiciário: o Supremo Tribunal

Federal, sendo impossível concebê-lo como um quarto poder. A forma de indicação de seus

membros é realizada por indicação do Presidente da República, depois da homologação pelo

Senado Federal, fato que pode levar a uma fragilização da independência de seus membros.

59 “É necessário que os juízes sejam independentes porque isto é uma garantia própria da separação dos poderes”. ALDER, John. Constitutional and Administrative Law. 3 ed., Hampshire: Macmillan, 1999. P. 61. 60 O maior defensor do princípio da separação dos poderes durante os trabalhos constituintes da atual constituição italiana foi Piero Calamandrei. MADONA, Guido Neppi. Cultura Costituzionale. Principi, Regole, Equilibri. Le ragioni della storia, i compiti di oggi. Milano: Il Saggiatore. 1998. P. 379. 61 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. A Orillas del Estado. Madrid: Taurus, 1996. P. 121. 62 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendas. Porto Alegre: FABRIS, 1997. P. 31-32.

54

Não obstante as diferenças na estruturação dos diversos modelos, em todos eles a jurisdição

constitucional deve ser estruturada com absoluta independência e igualmente os seus

membros devem ser livres para decidir de acordo com a Constituição.63

No mesmo sentido, André Ramos Tavares assevera a respeito da imprescindibilidade

da independência da jurisdição constitucional: “É essencialmente a independência que, aqui,

cumprirá aquele papel legitimador que faltava. Para que essa independência seja real, e não

uma mera ficção jurídica, ao lado de outras tantas, parece que se faz necessário, ao menos,

afastar a possibilidade de que a designação seja pessoal, por exemplo, do Presidente da

República, ou do Presidente do Parlamento, ou de ambos conjuntamente. É que essa forma

de escolha pode gerar vínculos afetivos, quer dizer, pode acarretar, na prática, uma

verdadeira dependência do designado à pessoa que o designou. Nesse sentido, a aprovação

de um nome por um parlamento, mediante votação na qual se exija alguma sorte de maioria,

cumpre papel de afastar uma tal dependência”.64

Contudo, para que o exercício da jurisdição constitucional possa ser exercido de

forma independente, os juízes que o exercem devem ter algumas garantias específicas, afora

a independência, para que possam atuar sem sofrer pressões de caráter metajurídico. O

princípio da independência da jurisdição constitucional não pode ser apenas abstrato, tem

que se materializar em algumas salvaguardas. As principais garantias outorgadas aos

magistrados componentes do Supremo Tribunal Federal são a vitaliciedade e a

irredutibilidade salarial (que também são extensíveis a todos os magistrados brasileiros).

A vitaliciedade pode ser definida como a prerrogativa de que gozam os magistrados,

de uma forma geral, de poderem permanecer no exercício de suas funções até setenta anos

(idade da aposentadoria compulsória). Depois de sua aquisição, os magistrados apenas

podem perder os seus cargos por sentença judicial transitada em julgado.

Ela é uma das salva-guardas que tem o escopo de garantir a independência dos

juízes. A vitaliciedade assegura a liberdade necessária para que os magistrados possam

63 HAMILTON, Alexandre. Il Federalismo. Trad. Biancamaria Tedeschini Lalli. Milano: Edizioni Olivares, 1980. P. 220. 64 TAVARES, André Ramos. Tribunal e Jurisdição Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1988. P. 37.

55

prolatar as suas decisões judiciais sem medo de perderem os seus cargos, em conseqüência

de uma sanção, por terem contrariado poderosos interesses em suas sentenças.

Apesar de os membros do Supremo Tribunal Federal gozarem de vitaliciedade, ela

não se mostra benéfica como prerrogativa para os membros do órgão que exercem a

jurisdição constitucional, sendo imprescindível também para os magistrados das demais

instâncias judiciais. De melhor alvitre seria o estabelecimento de um mandato previamente

determinado que além de proporcionar todos os benefícios da vitaliciedade, ainda

possibilitasse uma renovação periódica dos seus membros, o que ajudaria a densificar a

legitimidade da jurisdição constitucional.

A vitaliciedade dos membros que compõem a jurisdição constitucional dificulta o

aprimoramento da jurisprudência, o que pode ensejar gaps com a realidade social e diminuir

o grau de sua legitimidade. Como as decisões da jurisdição constitucional têm uma grande

repercussão política, a legitimidade de seus membros deve ser constantemente densificada

pelas forças sociais, o que ocorre quando a escolha dos seus juízes é realizada pelos poderes

estabelecidos, e de forma periódica.

A irredutibilidade salarial assegura que os vencimentos dos membros que compõem

o órgão que exerce a jurisdição constitucional não poderão sofrer redução.65 Desta forma

impede-se que os seus vencimentos possam servir de chantagem para o direcionamento das

decisões. A única diminuição permitida é aquela que ocorre por intermédio de aumento na

carga tributária.

A doutrina costuma exigir outros pré-requisitos para a concretização da

independência dos membros que exercem a jurisdição constitucional, que são os princípios

da idoneidade e o da imparcialidade.66 O princípio da idoneidade realmente se revela

65 Explica Eduardo Couture a definição de independência econômica dos juízes: “Mas todas essas garantias seriam ilusórias se uma vida privada excessivamente humilde colocasse o juiz em uma condição social inferior a de seus concidadãos, se o bem-estar moral e a placidez de espírito não estivessem equilibrados por um certo bem estar de caráter material, que permitam que as garantias inerentes à magistratura sejam concomitantes com a satisfação de um mínimo de aspirações de ordem material, que todo homem coloca na mesma base da sua vida privada e familiar”. COUTURE, Eduardo J. Estúdios de Derecho Procesal Civil.La Constitución y el Proceso Civil. Tomo I. Buenos Aires: EDIAR, 1948. P. 151. 66 ONIDA, Valério. “Giurisdizione e Giudici nella Giurisprudenza della Corte Costituzionale” In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Italia. Bologna: Il Mulino, 1982. P.189.

56

imprescindível, tanto no seu aspecto moral, quanto no seu aspecto técnico. Na Constituição

brasileira de 1988, esse requisito foi positivado quando se exigiu dos membros indicados

para o STF notável saber jurídico e idoneidade moral. Com relação ao princípio da

imparcialidade, ele se refere à distância que o magistrado deve tomar das partes

componentes do litígio. Tomada como cânone do positivismo jurídico, como corte

axiológico, tal princípio se mostra de difícil concretização. Se a sua realização na jurisdição

ordinária já enfrenta críticas contundentes, na jurisdição constitucional ele se mostra

irrealizável, em virtude dos interesses que são postos sob sua apreciação, que, em sua

maioria, são matérias de grande repercussão para toda a sociedade. Todavia, as decisões

judiciais devem seguir os parâmetros traçados pelos dispositivos constitucionais não

podendo ser tomadas de forma arbitrárias, sem apresentar lastro, mesmo que de forma

mediata na Constituição.

A independência da jurisdição constitucional é traduzida tanto na sua independência

externa, na sua estrutura, como na independência dos seus membros. Quanto a estes, a

finalidade é permitir que os juízes que exercem essa função possam tomar suas decisões de

forma livre e soberana, tendo como pontos referenciais apenas o Texto Constitucional e as

suas consciências.

2.7) A Jurisdição Constitucional do Sistema Norte-Americano e do Sistema

Europeu

Os dois modelos que têm exercido uma maior influência na jurisdição constitucional

em todo o mundo são o modelo norte-americano, de natureza difusa, e o modelo europeu, de

natureza concentrada, que centraliza as suas decisões em um tribunal constitucional.

O modelo europeu, inspirado no Tribunal Constitucional austríaco de 1920, começa a

apresentar uma maior influência sobre outros países, principalmente após a Segunda Guerra

Mundial, intensificando-se no final do Século XX.

57

A influência do sistema norte-americano reside no fato de que ele foi o primeiro a

estabelecer a prerrogativa de anular os dispositivos infraconstitucionais que violassem os

mandamentos constitucionais (null and avoid), construindo a partir dessa decisão um

arcabouço jurisprudencial que reafirma o papel da Suprema Corte como guardiã da

Constituição. Mesmo em países que implantaram a jurisdição constitucional, por intermédio

dos Tribunais Constitucionais, a sua influência é sentida de forma paralela, quando há a

permissão para que os juízes de primeira instância possam, argüido a existência de uma

inconstitucionalidade, remeter a matéria para decisão do Tribunal Constitucional. O maior

exemplo desse fato ocorre em alguns países da América.67

Nos Estados Unidos, o controle de constitucionalidade foi o resultado normal e

espontâneo da ação do Poder Judiciário. Antes da famosa decisão do caso Marbury v.

Madison, prolatada em 1803 por Marshall, não faltam na história norte-americana

posicionamentos favoráveis à supremacia constitucional. Na Europa, por motivos históricos,

a idéia de se criar um órgão que concentrasse o exercício da jurisdição constitucional, antes

da Segunda Guerra, não prosperou. Afora o Tribunal Constitucional austríaco, criado por

Kelsen, e que não logrou maior desenvolvimento, o surgimento dos tribunais constitucionais

veio a ocorrer depois da Segunda Grande Guerra, com o surgimento do Tribunal

Constitucional Alemão, em 1951.

Como causas principais para não se criar mais cedo tribunais constitucionais na

Europa, podem ser mencionadas a teoria da supremacia do parlamento e a tendência à

flexibilização da Constituição. A primeira causa, que impedia a sua criação, era a idéia de

supremacia do parlamento, considerado como a expressão da sociedade civil, em que a

imposição de um limite a sua autoridade do parlamento seria considerada como uma ofensa

à soberania popular. Pode ser mencionado ainda, o fato de que historicamente o poder

judiciário foi ligado à nobreza, consistindo em um longa manus do poder real. O segundo

fator é que, como inexistia a generalização do sufrágio democrático, apenas pequena parcela

da população votava e, conseqüentemente, participava da vida política, por iss não ser

conveniente a formação de um órgão que reduzisse a margem de manobra dos autores 67 SEGADO, Francisco Fernández. La Jurisdicción Constitucional en América Latina. Evolución y Problematica desde la Independencia Hasta 1979. In: Revista do Curso de Direito. Recife: SOPECE, 2002. P. 36.

58

políticos, já que eram esses os agentes que criavam a Constituição e, portanto, podiam

modificá-la ao seu alvedrio. As normas constitucionais eram vistas de forma flexível,

elaboradas para atender aos interesses da classe dominante. Nessa época, o Estado de

Direito ainda não era Estado Democrático Social de Direito.

Em comum, os dois sistemas concordam com a finalidade da existência da jurisdição

constitucional, que representa um instrumento para o desenvolvimento do regime

democrático, aprimorando o check and balances e aperfeiçoando a defesa dos direitos

fundamentais.

Os tribunais constitucionais, peculiaridade do sistema concentrado, não pertencem ao

Poder Judiciário, nem muito menos ao Poder Executivo, é um órgão que foge da

conceituação típica dos três poderes. Seus magistrados não fazem parte do Poder Judiciário,

nem sua regulamentação constitucional é realizada conjuntamente com esse poder. 68 O que

não quer dizer que os seus membros não possuam todas as prerrogativas que detêm os outros

poderes e que os seus juízes não tenham o mesmo status, imunidade e privilégios dos

membros do parlamento.69

Defende o professor Alessandro Pizzorusso que nas últimas décadas a diferença entre

o sistema norte-americano e o europeu tem se reduzido bastante porque os dois sistemas

estão apresentando características semelhantes. No sistema europeu, principalmente na

Alemanha, Espanha e Itália, há uma proximidade com o sistema difuso, através do juízo de

prejudicialidade, em que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, assume, em via

reflexa, o caráter de nulidade de um ato normativo ou decisão judicial. Outro ponto de

similitude é que nos recursos do sistema concentrado, como o recurso de amparo e o

verfassungsbeschwerde, somente se pode recorrer ao tribunal constitucional depois da

68 “A Corte Constitucional não é formada pela magistratura considerada como ordinária e seu funcionamento não se refere ao conteúdo da Constituição que regulamentar o Poder Judiciário”. PALLIERI, G. Ballaadore. Diritto Costituzionale. 4 ed., Milano: Giuffrè, 1955. P. 290. 69 “Pode-se dizer que o Tribunal Constitucional Italiano tem as prerrogativas de garantia de outros poderes e seus juízes têm o status, a imunidade e os privilégios dos membros do parlamento”. BARILE, Paolo. Scritti di Diritto Costituzionale. Padova: Antonio Milani, 1964. P. 139.

59

impetração de recurso na última instância, procedimento necessário e igual para que um

recurso possa ser decidido pela Suprema Corte norte-americana.70

Apesar de a Espanha e de a Alemanha adotarem o sistema concentrado de controle

de constitucionalidade, através de tribunais constitucionais, o recurso de amparo e o

verfassungsbeschwerde apresentam similitude com o controle difuso, na medida em que a

legitimidade para a sua interposição pode ser feita por qualquer cidadão que tenha os seus

direitos cerceados, devido à importância apresentada pelos direitos fundamentais. O

requisito exigido é que se esgotem todas as instâncias da jurisdição ordinária.

Para Pizzorusso, em virtude dessa evolução, a diferenciação não seria mais entre o

sistema europeu e o sistema norte-americano, mas entre um sistema concreto e outro

abstrato de controle de constitucionalidade das normas.71

No mesmo sentido, afirmando que a diferenciação entre os dois sistemas tende a

desaparecer, é a afirmação de Alessandro Pace: “[...]em concreto a diferença entre os dois

sistemas tende a desaparecer de maneira clara, quando se tem presente, de um lado, que a

Suprema Corte dos Estados Unidos adota, na sua própria atividade jurisdicional, critérios de

oportunidade considerados políticos, certamente não inferiores aos quais adotam a nossa

Corte – Tribunal Constitucional italiano – e, de outra forma, a sensibilidade que os valores

constitucionais estão impregnados nos vários níveis da nossa magistratura, os quais, na

solução das controvérsias, sempre fazem referências às normas constitucionais com a

finalidade de dar uma interpretação adequada às leis ordinárias”72.

O vetor preponderante do sistema europeu são os direitos fundamentais, mormente

os que caracterizam o Welfare State, resumidos no princípio do human dignity. Mesmo as

diferenças existentes entre o sistema italiano, português, espanhol e alemão, por exemplo,

não são suficientes para obnubilar a proteção aos direitos fundamentais, como o substrato de

conexão e característica fundante desses sistemas. O sistema norte-americano tem como

vetor primordial os direitos fundamentais que asseguram o funcionamento do regime

70 PIZZORUSSO, Alessandro. Sistemi Giuridici Comparati. 2 ed. Milano: Giuffrè, 1998. P. 248-249. 71 PIZZORUSSO, Alessandro. Sistemi Giuridici Comparati. 2 ed. Milano: Giuffrè, 1998. P. 249. 72 PACE, Alessandro. “Corte Costituzionale e Altri Giudici: Un Diverso Garantismo”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 240.

60

democrático, podendo ser simbolizados pelo direito do free speech, sem a extensa lista

protegida pelo sistema europeu. Uma segunda diferenciação é a relevância que apresentam

os direitos sociais para o sistema concentrado e a pouca importância que ostentam no

sistema difuso. Afora a época do “Warren Court” a jurisdição constitucional dos EUA não

se caracteriza pelo primado da defesa dos direitos sociais, como entendem os europeus,

preferindo privilegiar os direitos da privacy. Uma outra distinção defendida, por Jörg Luther,

é que a jurisdição constitucional dos EUA é unilateralista, baseada nas tradições históricas

do constitucionalismo norte-americano, enquanto que a européia é multilateralista, pois sofre

a influência de várias realidades históricas, sendo por esse motivo mais aberta e, portanto,

passível de modificações.73

Assim, de uma forma simplista, e por isto mesmo superficial, pode-se dizer que o

sistema europeu tem como objetivo fundamental a proteção do princípio da igualdade

enquanto que o sistema norte-americano tem como escopo a proteção do princípio da

liberdade, havendo, nos dois modelos, uma constante tensão entre esses dois princípios. Não

que eles sejam excludentes, podem ser colmatados para densificar os direitos fundamentais.

O primeiro modelo tem a incumbência de proteger os valores democrático-sociais, enquanto

que o segundo tem a incumbência de defender os valores liberais. Valores esses que são a

alma desses dois sistemas respectivamente.

A raiz dessas diferenças mencionadas reside em fatos históricos, sedimentados ao

longo da história constitucional dos dois modelos, não podendo ser encontrada apenas em

uma opção teórica. Os contornos atuais desses dois sistemas provêem de desafios

verificados ao longo de acontecimentos empíricos, adquirindo grande importância para o

sistema europeu na formação de regimes autoritários, que contavam com o respaldo popular

e ensejaram todas as hecatombes da Segunda Guerra Mundial; para o sistema norte-

americano os direitos ligados ao liberalismo político, solidificados ao longo do processo de

independência, formam a essência da cultura dos Estados Unidos.

73 LUTHER, Jörg. Costituzionalismo europeo e costituzionalismo americano:scontro o incontro. In: www.germanlawjournal.com/current_issue.php. Capturado em 24/06/2003.

61

2.8) O Exercício da Jurisdição Constitucional pelo Sistema Concentrado e

pelo Sistema Difuso no Brasil

No Brasil, a primeira estruturação da jurisdição constitucional foi feita por

intermédio da forma difusa, com uma longa tradição na defesa dos direitos fundamentais,

apresentando, por esse fato, significativa importância para o ordenamento jurídico pátrio.

Mesmo nos países que adotam o sistema concentrado de jurisdição constitucional, os juízes

ordinários têm a prerrogativa de não aplicar as leis que julguem inconstitucionais, remetendo

a decisão para o tribunal constitucional.74

A tutela jurídica oferecida pelo controle difuso, incidindo em uma situação jurídica

subjetiva, tem como principal finalidade salvaguardar os direitos fundamentais expostos no

texto constitucional. Essa finalidade ganha uma maior evidência na prerrogativa do cidadão

possuir legitimidade para diretamente impetrar uma ação cabível para a defesa dos seus

direitos, ao passo que no controle concentrado essa legitimidade é conferida apenas aos

órgãos elencados na Constituição. Outro motivo para a sua relevância é que ele pode ser

exercido por qualquer juiz de direito, que esteja presente nos mais distantes rincões,

propiciando um contato mais próximo entre o cidadão e a tutela de seus direitos.

Já o sistema concentrado de jurisdição constitucional tutela de forma mais adequada

a integridade sistêmica do ordenamento, no que permite uma uniformização de suas

decisões, inclusive com efeito vinculante. Como sua apreciação é feita de forma exclusiva

pelo Supremo Tribunal Federal, o tempo de decisão tende a ser mais rápido, sem a

necessidade de passar por outras instâncias, fato que ameniza a insegurança jurídica,

provocada pela demora na prolatação da sentença.

74 Explica Luis Lopez Guerra: “O juiz ordinário atua como colaborador da jurisdição constitucional mediante o posicionamento da questão de inconstitucionalidade. O juiz tem que realizar (explicita ou implicitamente) um juízo prévio de inconstitucionalidade a respeito das normas legais implantadas ao caso concreto, e adotar a decisão conseqüente de aplicar a lei que considere ajustada a Constituição ou levar a questão de inconstitucionalidade ao tribunal Constitucional”. LOPEZ GUERRA, Luis. “Jurisdicción Ordinaria y Jurisdicción Constitucional”. In: La Aplicación Jurisdiccional de la Constitución. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997. P. 30.

62

Como similitude entre o exercício da jurisdição constitucional no Brasil pelo sistema

concentrado ou pelo sistema difuso pode ser apontado o fato de que ambos têm a finalidade

de garantir a aplicação e a defesa da Constituição, compartilhando a mesma função. As

diferenciações, na estruturação do controle concentrado e do controle difuso, não

obstaculam essa finalidade, antes se completam para assegurar uma maior concretude

normativa da jurisdição constitucional.

A crítica que se faz ao controle difuso de jurisdição constitucional de que ela

prejudica o caráter sistêmico da Constituição, é segundo Francisco Fernández Segado

destituída de veracidade. Muito pelo contrário, a unidade do sistema norte-americano, por

exemplo, encontra-se na teoria de que qualquer juiz tem o poder e o dever de aplicar as

normas constitucionais por cima de qualquer outra regra, com a obrigação de considerar nula

e sem nenhum valor qualquer norma jurídica contrária à Constituição.75

Por outro lado, a principal crítica que se faz, com relação ao controle concentrado

da jurisdição constitucional, é que ele veda a postulação por parte dos cidadãos na defesa

dos seus direitos. Ao concentrar a legitimidade de postulação apenas a poucos órgãos

descritos na Constituição, ele retira da sociedade um grande instrumento de proteção. Como

vantagem pode ser mencionado o fato que ele retira a norma eivada de inconstitucionalidade

do ordenamento jurídico, com eficácia erga omnes.

A existência dos dois sistemas de jurisdição constitucional, atuando

concomitantemente no Brasil, não pode ser vista como uma fragilidade, muito pelo

contrário, configura-se como uma vantagem, desde que o funcionamento desses dois

sistemas possa ser realizado de forma sincrônica, em que um não cerceie a atuação do outro.

Atuando os sistemas de forma conexa e cooperativa, pode haver uma potencialização no

resguardo dos direitos fundamentais que são considerados como o núcleo ontológico da

Carta Magna.

75 SEGADO, Francisco Fernández. La Jurisdicción Constitucional en América Latina. Evolución y Problematica desde la Independencia Hasta 1979. In: Revista do Curso de Direito. Recife: SOPECE, 2002. P. 33-100.

63

2.9) O Supremo Tribunal Federal como Órgão Jurídico de Exercício da

Jurisdição Constitucional

A doutrina considera que a taxionomia do Supremo Tribunal Federal e as suas

decisões têm natureza jurídica, não havendo discordâncias relevantes acerca desse fato. Ele,

ao contrário dos tribunais constitucionais europeus, não pode ser considerado como um

poder distinto dos demais, pois faz parte do Poder Judiciário, configurando-se como o seu

órgão de cúpula. Fazendo parte desse poder, em que seus órgãos têm uma natureza

nitidamente jurídica, sua taxionomia não poderia ser diferente, apesar da maior

discricionariedade de suas decisões e da forma peculiar de sua composição.

Mesmo que as indicações para a composição do Supremo Tribunal Federal sejam

realizadas pelo Presidente da República, não há obscurecimento da sua natureza jurídica.

Esse fato representa uma menor densidade de legitimação na composição dos membros do

Tribunal. Mas, o fato de que os magistrados escolhidos gozem de vitaliciedade, podendo

permanecer nos seus cargos até os setenta anos, diminui a possibilidade de partidarização de

seus membros o que, por outro lado, traz como conseqüência uma lenta renovação dos seus

membros e uma dificuldade de sincronia de suas decisões com as necessidades sociais,

configurando-se de melhor alvitre a instituição de um mandato fixo.

As injunções sócio-políco-econômicas que cercam as decisões da Egrégia Corte

brasileira não retiram a essência de sua natureza jurídica, porque suas decisões são

construídas a partir de uma racionalidade peculiar à Ciência do Direito. As influências que

circundam o sistema jurídico, para serem por este absolvidas, são transformadas em

linguagem própria do sistema, funcionando de acordo com as estruturas que regem o

Direito.

O que não pode ser negado é que os ministros do Supremo Tribunal Federal atuam

em normas jurídicas que apresentam um alto teor de sentido político, que são os

mandamentos constitucionais. Um dos fatores teleológicos da Lei Mater configura-se em

64

juridicizar as principais decisões políticas da sociedade, como a forma de Estado, a forma de

governo etc. Portanto, os ministros atuam em normas jurídicas que apresentam maior

abstração, o que lhes possibilita amplo espaço para aplicá-las na realidade social. O seu

campo de atuação, no mais das vezes, envolve matérias políticas o que não desnatura a

natureza jurídica de suas decisões, haja vista elas serem emanadas dentro dos parâmetros do

Direito.

A motivação das decisões do Supremo Tribunal Federal envolve, mesmo que de

forma extrínseca, apenas argumentos jurídicos, que são recolhidos ao longo do processo. A

motivação das decisões judiciais é a mais segura garantia de que elas serão proferidas nos

moldes jurídicos, mesmo que diante de matérias que tragam notórias conseqüências

jurídicas e dentro de um amplo campo de discricionariedade. Outrossim, ao expor os

argumentos que amparam as decisões proferidas, devido ao princípio da publicidade, há a

possibilidade de que esses argumentos possam ser conhecidos pela sociedade, podendo

sofrer censura da coletividade.76

É indiscutível que alguns de seus julgados se projetam atrás de escolhas efetuadas

pelo legislador, que têm caráter próprio de decisão política, ultrapassando o normal dos

julgados dos demais tribunais. Não obstante a margem de discricionariedade que gozam os

ministros, eles devem se ater aos ditames da Constituição, dentro da fundamentação lógico-

jurídica, própria da Ciência Jurídica. O que não se pode negar é que algumas decisões do

Supremo Tribunal Federal têm efeitos políticos.77

O procedimento seguido pela Máxima Corte na jurisdição constitucional não destoa

daqueles das demais instâncias e tribunais, que se guiam por vetores jurídicos, tendo como

parâmetro os dispositivos normativos. Todos os argumentos encontram guarida no direito

objetivo, seguindo um devido processo legal, previamente estabelecido na lei. No que diz

respeito ao funcionamento e à estruturação do Supremo, ele segue o mesmo modelo

estabelecido para os demais tribunais, não dispondo, a não ser nas peculiaridades que lhe são

inerentes, de diferenciações com relação às outras instâncias judiciais. Um exemplo de

76 ANDRIOLI, Virgilio. Studi Sulla Giustizia Costituzionale. Milano: Giuffrè , 1992. P.30 77 Pode-se afirmar que uma norma jurídica tem efeitos político quando ela afeta diretamente a estruturação da ordem social estabelecida.

65

diferenciação entre o STF e os demais tribunais é que as competências desses podem ser

estabelecidas por meio de leis infraconstitucionais, enquanto que as competências daquele

apenas podem ser estabelecidas por meio de normas constitucionais.

3.) Tribunais Constitucionais

Antes de qualquer desenvolvimento da temática proposta, mostra-se imperioso

precisar bem o conteúdo semântico da expressão tribunal constitucional. Ele significa o

órgão incumbido, nos sistemas constitucionais de jurisdição concentrada, de realizar a

jurisdição constitucional, sem que se possa, de sólito, exercê-la nas instâncias da jurisdição

ordinária. É o sistema de jurisdição constitucional o que foi adotado pela maioria dos países

europeus.

A implantação dos tribunais constitucionais ocorreu de forma preponderante após a

Segunda Guerra Mundial, naqueles países que haviam estado debaixo de regimes ditatoriais,

com o escopo de que o órgão que exercesse a jurisdição constitucional fosse dotado de

grande autonomia, para que assim pudesse impedir que as decisões políticas ultrapassassem

os limites estabelecidos na Constituição. Foi uma tentativa de regulamentar a esfera política

para que ela jamais pudesse voltar a cometer as atrocidades vivenciadas pelos regimes

fascistas e nazistas. Houve uma revitalização do direito natural, que estava esquecido,

firmando-se a crença na existência de alguns direitos que são inerentes ao gênero humano,

tendo como núcleo substancial o princípio da dignidade da pessoa humana.

Segundo Javier Perez Royo, na maior parte dos países com maior tradição

democrática da Europa, como Inglaterra, Suíça e países nórdicos em geral, não existe um

sistema de controle da constitucionalidade. A razão é que esses países, com uma longa

tradição histórica de desenvolvimento do regime democrático, confiam em deixar ao Poder

Legislativo a função de interpretar a Constituição. Enquanto que os países, onde o

parlamento, em menor ou maior extensão, legitimou a formação de regimes ditatoriais,

66

resolveram outorgar a prerrogativa de interpretar a Constituição, de forma suprema, a um

órgão diferente dos demais poderes constituídos, surgindo assim os tribunais

constitucionais.78

Os tribunais constitucionais surgem com a finalidade maior de impedir que maiorias

políticas, formadas por um deficiente sistema de representação popular, possam tolher

direitos fundamentais das minorias ou até mesmo abolir o Estado Democrático Social de

Direito, em nome do princípio majoritário. Constitui-se no instrumento de fiscalização da

vontade da maioria da população, para que ela se enquadre dentro do lineamento disposto

pelas normas constitucionais.

Os tribunais constitucionais têm uma função de equilíbrio na dinâmica institucional

dos três poderes. Como são estruturados com as mesmas prerrogativas do Legislativo,

Executivo e Judiciário, sem todavia fazer parte de nenhum deles, podem definir o limite de

atuação de cada um desses poderes, da forma que melhor possa resultar na eficácia da

concretização constitucional.79 Eles são estruturados como órgão constitucional,

independente dos demais poderes estabelecidos.80

A independência é a sua principal característica, manifestando-se na separação dos

demais poderes estabelecidos, até mesmo dos órgãos do Judiciário, o que lhes garante

liberdade de exercício, sem se ater a qualquer tipo de pressão ou de subordinação.81 Em

decorrência dessa prerrogativa, de que goza o tribunal constitucional, advém a sua

neutralidade, apanágio intrínseco de sua taxionomia, que além de ser um dos seus substratos

78 ROYO, Javier Perez. Tribunal Constitucional y División de Poderes. Madrid: Tecnos, 1988. P. 23. 79 FAVOREAU, Louis at Alli. Droit Constitutionnel. Paris: Dalloz, 1998. P. 264. 80 O predicativo de independência dos tribunais está contido no art. 1.1 tanto do Tribunal Constitucional espanhol como o alemão. Art. 1. LOTC: 1. “O Tribunal Constitucional, como intérprete supremo da Constituição, é independente dos demais órgãos constitucionais e está somente submetido à Constituição e a presente Lei Orgânica. 2. É o único órgão deste gênero e estende sua jurisdição a todo o território nacional” (Tribunal Constitucional espanhol). Art.1. LOTC: 1. “O Tribunal Constitucional Federal é um órgão da federação, autônomo e independente com relação a todos os demais órgãos constitucionais” (Tribunal Constitucional alemão). 81 BANDRÉS, José Manuel. “Poder Judicial y Constitución”. In: La Aplicación Jurisdiccional de la Constitución. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997. P. 11.

67

de legitimidade, permite que ele possa atuar dirimindo conflitos entre os órgãos estatais, já

que não pertencem a nenhum dos poderes estabelecidos.

Os tribunais constitucionais não fazem parte do Poder Judiciário, o que evidencia a

dicotomia entre a jurisdição ordinária e a jurisdição constitucional. Tanto o tribunal

constitucional quanto o Poder Judiciário são regulamentados na Constituição em partes

distintas, o que reforça essa diferenciação. A forma de seleção dos juízes, que exercem a

jurisdição constitucional, em um mandato previamente determinado, é feita por indicação

dos poderes estabelecidos, desde que sejam preenchidas algumas condições fixadas pela

Constituição. Enquanto que a escolha dos juízes ordinários é feita por concurso de provas e

títulos, sendo a inamovibilidade uma das suas principais garantias.

A forma de composição dos juízes que atuam na jurisdição constitucional é diferente

da forma de composição dos magistrados, que exercem a jurisdição ordinária pelas

peculiaridades que são inerentes à função de concretizar os mandamentos da Carta Magna.

A forma de escolha dos membros do tribunal constitucional é um dos elementos

densificadores da sua legitimidade, devendo preencher os requisitos de representatividade e

de pluralidade.

O requisito da representatividade se configura como o requisito de que os indicados

para o tribunal constitucional devem ser aprovados por uma maioria qualificada do Poder

Legislativo, como forma de aumentar a legitimidade de seus membros e permitir que as

minorias possam atuar de forma mais incisiva, impedindo que o alto quorum exigido possa

ser concretizado, tornando-se um veto da minoria àquela escolha que não conte com o seu

respaldo. No Tribunal Constitucional alemão e no português há necessidade das indicações

serem aprovadas por dois terços dos membros do parlamento, no Tribunal Constitucional

italiano o quorum é de três quintos.82

82 “Existindo designação parlamentar, ela supõe maiorias qualificadas, por exemplo, de 2/3 na RFA, em Portugal e na Bélgica e de 2/3 e depois de 3/5 na Itália, como em Espanha, travando abusos de maiorias absolutas e impondo acordos interpartidários com escolhas em nível extra-parlamentar, de decisão nacional dos partidos intervenientes, como acontece com o acordo bipartidário austríaco, sucedeu com a convenção pluripartidária italiana estabilizada desde de 1952 (não poucas vezes acidentada na sua concretização – que o digam Basso, Elia e Mancini); e ainda o acordo tripartido alemão e o acordo de blocos português”. REBELO

68

A pluralidade significa que o órgão que exerce a jurisdição constitucional deve ser

composto por representantes dos mais diversos segmentos da sociedade, com a finalidade de

legitimar suas decisões judiciais, e a sua escolha deve contar com a participação de todos os

poderes instituídos. Ela também se manifesta na exigência de que os seus membros

pertençam a diferentes profissões jurídicas, como advogados, juízes, promotores etc,

enriquecendo o debate jurídico e também impedindo a formação de sentimentos

corporativos.

Característica dos tribunais constitucionais é a fixação de um mandato para o

exercício das funções por parte dos seus membros, o que permite uma regularidade na

renovação de sua composição, mantendo-se dessa forma uma sincronia mais estreita com os

anseios sociais. Como a escolha dos seus membros é realizada de forma plural, pelos órgãos

componentes do Estado, acrescenta-se mais um fator para a sua legitimidade. Nos Tribunais

Constitucionais da Itália, Portugal e Espanha o tempo de duração dos mandatos é de nove

anos, no Tribunal Constitucional alemão é de doze anos.83

Outra importante característica dos tribunais constitucionais é o impedimento à

reeleição dos seus membros, vedação esta existente, dentre outros, nos tribunais da

Alemanha, Itália, Portugal e Espanha. Esse impedimento permite que os juízes não tenham

que se sujeitar a vontades políticas para terem os seus mandatos renovados, podendo atuar

livremente no exercício de suas funções, sem pairar nenhuma ameaça às suas atividades. A

única possibilidade jurídica de interrupção de seu mandato antes do prazo determinado é se

DE SOUZA, Marcelo. “Legitimidade da Justiça Constitucional e Composição dos Tribunais Constitucionais”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 218. 83 O Tribunal Constitucional espanhol é formado por 12 membros, com mandatos de 9 anos, assim indicados: 4 pelo Congresso, 4 pelo Senado, 2 pelo governo e 2 pelo conselho geral do Poder Judiciário. O Tribunal Constitucional português é composto por 13 juízes, divididos em duas seções, presididas pelo Presidente do Tribunal que é eleito pelos respectivos juízes. Seis dentre os juízes designados pela Assembléia da República são obrigatoriamente escolhidos dentre juízes dos tribunais de jurisdição ordinária. O mandato para a Corte Jurisdicional portuguesa é de nove anos. Dez dos seus membros são escolhidos pela Assembléia da República e três pelo próprio Tribunal. O Tribunal Constitucional italiano é composto por quinze juízes, indicados para cumprir um mandato de novo anos. Um terço é indicado pelo Presidente da República, um terço é eleito pelo Parlamento, em sessão conjunta, e um terço pela Suprema Magistratura Ordinária e Administrativa. O Tribunal Constitucional alemão é formado por dezesseis juízes, com mandato de 12 anos, eleitos metade pelo Conselho Federal e metade pelo Parlamento Federal. Dos dezesseis juízes, seis devem pertencer aos tribunais superiores; os demais podem ser livremente escolhidos, desde que atendam aos requisitos legais.

69

eles incorrerem em crime de responsabilidade. A atuação dos membros dos tribunais

constitucionais é realizada sob o princípio da independência funcional.

Em razão de os tribunais constitucionais desempenharem um relevante papel

institucional, constituindo-se em intérpretes máximo da Constituição, a independência

funcional que caracteriza a sua atuação não pode ser considerada absoluta. Uma das formas

de se impedir a formação de uma casta que se torne alheia aos problemas sociais é

democratizar a escolha dos seus membros, de forma que os poderes estabelecidos possam

participar da escolha, o que legitima a sua composição. Portanto, a independência referida é

funcional, já que na formação de sua composição vigora o princípio da coordenação, em que

os outros órgãos escolhem os membros do tribunal constitucional, inter-relacionando esse

órgão com os demais componentes da seara estatal. Ele é dependente no momento de sua

composição, mas independente no momento de sua atuação, podendo anular as normas que

afrontem a Carta Magna.84

A competência da jurisdição constitucional é estabelecida por dispositivos

constitucionais, representando uma diferença já que a competência da jurisdição ordinária é

delineada por meio de dispositivos infraconstitucionais. Outro traço distintivo entre as duas

jurisdições é que os juizes ordinários não podem declarar a inconstitucionalidade de leis ou

atos normativos inconstitucionais (o ordenamento jurídico espanhol permite que as normas

pré-constitucionais possam ser retiradas do ordenamento sem a necessidade de decisão do

tribunal constitucional), nem controlar a constitucionalidade que é exercida pelos juizes do

tribunal constitucional.85

Requisito insuprimível para a criação de um tribunal constitucional, que exerça suas

prerrogativas, é a existência de um Estado Democrático Social de Direito, de natureza

substancial. Inexistindo um Estado dessa matriz, o tribunal constitucional não poderá

exercer as suas prerrogativas de forma efetiva, representando tão somente um instrumento

retórico para legitimar o exercício do poder. Em virtude desse indelével requisito é que não

84 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Escritos Sobre y Desde El Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. P. 1993. P. 38. 85 LOPEZ GUERRA, Luis. “Jurisdicción Ordinaria y Jurisdicción Constitucional”. In: La Aplicación Jurisdiccional de la Constitución. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997. P. 32-33.

70

existe nenhum tribunal constitucional que desenvolva a plenitude de suas funções nos países

periféricos.

Mesmo com várias características em comum – todos nascem do modelo austríaco –

os tribunais constitucionais europeus apresentam peculiaridades em diversos aspectos que os

diferenciam, tanto na sua forma de composição e atuação, quanto na relevância que ocupam

no ordenamento jurídico. Essa diversidade de estruturação e atuação permitiu que Marcelo

Rebelo de Souza os classificasse em jurisdições ativas, médias e fracas de acordo com a

extensão de sua atuação. Assim, jurisdição ativa é a realizada pelo Tribunal Constitucional

alemão, jurisdição média a exercida pelos Tribunais italiano, português e espanhol e

jurisdição fraca a praticada pelo Conselho Constitucional francês.86

Indubitavelmente, pelas características que lhe são inerentes, os tribunais

constitucionais representam o mais aperfeiçoado modelo de jurisdição constitucional. Como

é um órgão que não está inserido na estrutura dos poderes estabelecidos, o tribunal

constitucional goza de todos os requisitos que lhe permite o exercício de suas atividades de

forma autônoma, podendo realizar a proteção dos mandamentos constitucionais da melhor

forma possível. Não obstante, como sua composição ocorre pela participação dos poderes

estabelecidos e o mandato de seus membros é predeterminado, não existe o problema de ele

se configurar como um superpoder, cerceando a autonomia dos outros órgãos estatais.

86 REBELO DE SOUZA, Marcelo. “Legitimidade da Justiça Constitucional e Composição dos Tribunais Constitucionais”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 218.

71

3.1) A Diferenciação entre a Jurisdição do Supremo Tribunal Federal e a

dos Tribunais Constitucionais

A estruturação do Supremo Tribunal Federal segue o modelo da Suprema Corte

norte-americana, de controle difuso, enquanto os tribunais constitucionais são típicos de

países europeus, de controle concentrado. O Supremo Tribunal Federal, de uma forma

precisa, não se configura como um tribunal constitucional porque faz parte do Poder

Judiciário, representando o seu órgão de cúpula, com a prerrogativa de exercer

concomitantemente a jurisdição constitucional concentrada e difusa.

A Suprema Corte norte-americana começou a ter um papel mais atuante em 1803, a

partir do caso Marbury versus Madison, em que ficou estabelecido a sua competência para

realizar o judicial review. Os Tribunais Constitucionais, como órgãos que exercem a

jurisdição constitucional, surgem a partir de 1920, quando Kelsen cria o Tribunal

Constitucional da Áustria.

A jurisdição exercida pelo Supremo Tribunal Federal e a exercida pelos tribunais

constitucionais apresentam algumas diferenças significativas. A raiz dessas diferenças reside

na forma como foram estruturadas, já que a finalidade que direciona suas atividades é a

mesma. Todavia, deve-se ressaltar que o STF funciona tanto como uma corte constitucional

quanto como última instância para os demais tribunais, com a existência de encargos da

jurisdição constitucional compartilhados entre os juízes ordinários e os que atuam na

jurisdição constitucional. Por outro lado, a jurisdição constitucional exercida pelos tribunais

constitucionais é concentrada, cabendo a eles, de forma exclusiva, decidir acerca da

jurisdição constitucional. Esse é o motivo motriz que produzirá as diferenciações entre esses

dois modelos de exercício da jurisdição constitucional.

O Prof. José Afonso da Silva aponta as diferenças entre o STF e as cortes

constitucionais: “ A outra novidade está em ter reduzido a competência do Supremo

Tribunal Federal à matéria constitucional. Isso não o converte em Corte Constitucional.

72

Primeiro porque não é o único órgão jurisdicional competente para o exercício da jurisdição

constitucional, já que o sistema perdura fundado no critério difuso, que autoriza qualquer

tribunal e juiz a conhecer da prejudicial de inconstitucionalidade, por via de exceção.

Segundo, porque a forma de recrutamento de seus membros denuncia que continuará a ser

um tribunal que examinará a questão constitucional com critério puramente técnico-jurídico,

mormente porque, como tribunal, que ainda será, do recurso extraordinário, o modo de levar

a seu conhecimento e julgamento as questões constitucionais nos casos concretos, sua

preocupação, como é regra no sistema difuso, será dar primazia à solução do caso e, se

possível, sem declarar a inconstitucionalidade”.87

Importante diferença é que as cortes constitucionais não fazem parte do Poder

Judiciário, sendo um órgão que foge do enquadramento a qualquer um dos três poderes

convencionais, detendo, contudo, as mesmas garantias e independência para o normal

exercício de suas funções, o que o professor Biscaretti di Ruffia denomina de função

judiciária materialmente constitucional, exercida por órgão diverso da que exerce a

jurisdição comum.88 Na Europa, os tribunais constitucionais são estruturados como “um

quarto poder”, gozando de total independência para a concretização de sua função.

No sistema brasileiro adotado, o Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do

Judiciário, exercendo uma jurisdição especial, a constitucional, ao mesmo tempo em que

exerce uma jurisdição ordinária, servindo como última instância judicial. Com esse acúmulo

de funções, o Supremo Tribunal Federal é impossibilitado de exercer bem qualquer um dos

seus encargos. A especialização de suas funções serviria até para um melhor aprimoramento

técnico, em decorrência da redução da temática posta sob sua apreciação. Outro problema

gerado por essa acumulação de funções é que interesses corporativos, pelo fato de está

inserido como órgão do Poder Judiciário, podem interferir na sua atuação.

Como os tribunais constitucionais não estão vinculados a nenhum dos poderes

estabelecidos, gozando de uma densa autonomia e legitimidade, em decorrência das

87 AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16 ed., São Paulo: Malheiros, 1999. P. 556. 88 RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Diritto Costituzionale. 7 ed., Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1965. P.559.

73

prerrogativas que lhe são inerentes, sua atuação tem um amplo campo de incidência,

garantindo a eficácia dos direitos fundamentais, mediante a imposição do cumprimento das

normas constitucionais programáticas. Nesse contexto, a atuação da jurisdição constitucional

se mostra muito mais eficaz, densificando a força normativa da Constituição para impedir

que ela seja transformada em mero texto retórico. Pela forma de composição do Supremo

Tribunal Federal, em que a representatividade de seus membros apresenta um pequeno grau

de legitimidade, e pela sua própria estrutura, o grau de sua atuação não é intenso, deixando

muitos dispositivos constitucionais sem eficácia, o que não aumenta o grau de eficácia da

Carta Magna.

A abrangência de suas competências também é diferente. Os tribunais constitucionais

exercem uma jurisdição especializada, específica no uso exclusivo da jurisdição

constitucional. Elas não exercem a função de instância recursal de casos concretos,

concentrando suas atividades nas matérias constitucionais. O Supremo Tribunal Federal

exerce uma jurisdição generalista, que não é pertinente apenas à jurisdição constitucional,

mas atua igualmente como uma última instância, para apreciar várias outras questões fora do

parâmetro constitucional.

Como exemplo, pode ser citado o Tribunal Constitucional italiano, criado em 1956,

que, dentre as atribuições que lhes são conferidas pela Constituição italiana de 1947, não há

nenhuma competência que seja da jurisdição ordinária. São estas as atribuições do Tribunal

italiano: competência de julgar a adequação das leis e atos com força de lei com a

Constituição; dirimir os conflitos de atribuição entre os Poderes do Estado, entre o Estado e

as Regiões ou entre as Regiões; julgar os crimes de responsabilidade que acarretem

atentados contra a Constituição, o que a doutrina italiana denomina de justiça política,

entendendo-se como as acusações formuladas pelas duas Casas reunidas contra o Presidente

da República e os seus ministros.89

Um defeito do sistema de cortes constitucionais, com relação aos tribunais

constitucionais, é que o mandato de seus membros é vitalício, o que não contribui para a

modernização do seu pensamento. A exclusividade de escolha de seus membros, no Brasil e

89 Art. 134 da Constituição italiana de 1947.

74

nos Estados Unidos, por parte do Chefe do Executivo, impede a democratização de sua

composição, dificultando o incremento de sua legitimidade. A relevância da atuação da

Suprema Corte dos Estados Unidos verifica-se em virtude de o sistema jurídico do common

law e de um contexto histórico específico, que não pode ser deslocado para outros países.

Por outro lado, o desempenho da atuação do Supremo Tribunal Federal fica muito aquém do

esperado, especialmente levando em conta que a sua missão proeminente deveria ser a

consubstancialização dos direitos fundamentais.

75

PARTE II: Aspectos Gerais do Controle de

Constitucionalidade.

4.) Aspectos Históricos e Taxionomia

A necessidade de se estudar os aspectos gerais do controle de constitucionalidade é

uma decorrência da releitura da jurisdição constitucional e do seu fundamento de

legitimidade. O novo prisma da supralegalidade das normas constitucionais suplanta os

padrões tradicionais, que restringem sua função à retirada da norma declarada

inconstitucional do ordenamento jurídico, para agasalhar como escopo principal a

concretização da Constituição, de forma premente os direitos fundamentais. Dentro desse

diapasão, o controle de constitucionalidade se transforma em um instrumento de

enquadramento das normas infraconstitucionais e, o que é mais importante, em um elemento

imperioso para a concretude dos mandamentos constitucionais, preservando e tornando

efetivo o conteúdo previsto na Constituição.

4.1) Fundamentação do Controle de Constitucionalidade

O controle de constitucionalidade se alicerça, de modo determinante, na supremacia

de que goza a Constituição e em decorrência da sua supralegalidade.90 Acarretou grande

impulso para a sua fundamentação a teoria da separação dos poderes, o check and balances

90 COLAUTTI, Carlos E. Derecho Constitucional. Buenos Aires: Editorial Universidad, 1998. P. 54.

76

da doutrina norte-americana, em que o Poder Judiciário deve fiscalizar se o Poder

Legislativo está obedecendo aos limites impostos pela Carta Magna.91 Para Schmitt, a lei

fundamental é uma norma absolutamente inviolável e suas regulamentações não podem ser

desobedecidas pelo legislador infraconstitucional.92

Tal controle tem como escopo precípuo a defesa da constituição, e como

conseqüência a estabilização das normas que indicam uma determinada estrutura da

sociedade, uma visão ideológica consentânea com as forças políticas que obtiveram

legitimidade para elaborar o Texto Maior. É uma tentativa de estabilizar as relações sociais

sob padrões normativos que apresentem um certa constância, essencial para o

aprimoramento da força normativa dos mandamentos constitucionais.

Dentro da releitura que se propõe neste trabalho, colocando o controle de

constitucionalidade a serviço da concretização dos direitos fundamentais e tornando ambos

os sistemas um locus para a concretização do caráter dialógico, o eficaz funcionamento do

controle de constitucionalidade afigura-se imprescindível. Jorge Miranda ensina que a

jurisdição constitucional é também uma norma que expressa uma função constitucional, a

função de garantia. A defesa dos direitos fundamentais abrange a proteção contra

inconstitucionalidades por ação, material ou formal, por omissão e por descumprimento de

preceito fundamental.93

Com o crescente aumento da demanda da sociedade, também cresce a necessidade de

aprimoramento do controle de constitucionalidade para enfrentar os novos desafios

impostos. A estrutura implantada quando do caso Marbury versus Madison se mostra

anacrônica e obsoleta, havendo a necessidade de implantação de novos institutos para

melhor garantir a força concretiva da Constituição.

Há uma evolução na abrangência do controle de constitucionalidade. Nos primórdios

ela apenas atingia as leis ou atos normativos que afrontavam a Constituição, seja do ponto de

vista material seja do ponto de vista formal. Hodiernamente, o controle se alargou para

91 MUSSO, Spagna Enrico. Diritto Costituzionale. 4 ed., Padova: Cedam, 1992. P.61. 92 SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. Madrid: Alianza, 1992. P. 63. 93 MIRANDA, Jorge. Contributo Para uma Teoria da Inconstitucionalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. P. 225.

77

garantir eficácia aos mandamentos constitucionais que não foram regulamentados pelo

legislador infraconstitucional (inconstitucionalidade por omissão), e com a argüição de

descumprimento de preceito fundamental foi reassegurado o cumprimento de importante

núcleo da Lei Maior, impondo aos entes estatais a obrigatoriedade de realizar determinadas

ações para concretizar o preceito fundamental disposto no texto constitucional.

Para Zagrebelsky, o controle de constitucionalidade possui duas características: uma

de natureza jurídico-formal, ressaltando a Constituição como norma jurídica, dentro de um

sistema estruturado de forma lógica; e outra de natureza política, enfatizando o pluralismo

político como força social, em que há uma interseção entre o mundo jurídico e mundo fático.

A primeira é a condição teórica da justiça constitucional e a segunda, a condição prática.94

Isto indica que a estrutura do controle de constitucionalidade deve ser formalizada através de

moldes jurídicos, atendendo aos requisitos da ciência jurídica, além do que, como condição

para potencializar a sua efetividade, há necessidade de que o controle seja consentâneo com

as forças sociais imperantes na sociedade.

Sob uma percepção sociológica, como a idealizada por Lassalle, que coloca o

fenômeno constitucional como um ancilla da seara fática, o fundamento de validade da

Constituição são fatores extradogmáticos, originados da legitimidade haurida na sociedade.

Sob uma percepção normativista, o fundamento de validade da Constituição é haurida do

escalonamento vertical, em que a norma superior valida a norma inferior do ordenamento

jurídico, dentro do corte epistemológico realizado por Kelsen.95

O controle da constitucionalidade toma maior vulto nas Constituições rígidas, em

que há uma diferenciação jurídica entre normas constitucionais e normas

infraconstitucionais.96 Nas Constituições flexíveis, em que a norma infraconstitucional

revoga a constitucional, se com ela entrar em contradição, não existe possibilidade de se 94 ZAGREBELSKY, Gustavo. La Giustizia Costituzionale. Bologna: Il Mulino, 1996. P. 14 95 Sobre o assunto expõe Kelsen “ Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum” KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4.ed., Trad. Dr. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1976. P. 269. 96 “O problema da jurisdição constitucional surgem prevalentemente nas Constituições rígidas, para garantir a rigidez dessas Constituições”. CUOCOLO, Fausto. Principi di DirittoCostituzionale. 2 ed., Milano: Giuffrè, 1999. P. 773.

78

falar em controle material de constitucionalidade. Contudo, a Constituição ainda é a norma

de referência do ordenamento, mesmo sendo flexível. A sua supremacia refoge do âmbito

jurídico para encontrar guarida no campo social, em que diversas vezes ganha um status de

imutabilidade maior que a de certos textos denominados rígidos.

Naquelas Cartas Magnas classificadas quanto à estabilidade como flexíveis, mesmo

que não haja uma supremacia haurida de fatores sociais, pode-se falar em controle de

constitucionalidade, mas apenas do tipo formal, objetivo ou subjetivo, incidindo em

qualquer uma etapa do processo normogenético. Normalmente pode ocorrer uma

inconstitucionalidade por omissão ou argüição de descumprimento de preceito fundamental.

Quanto ao controle material, ele apenas pode existir quando versar sobre a

inconstitucionalidade de um ato normativo.

Nos casos mencionados, em que pode haver o controle de constitucionalidade nas

Constituições flexíveis, a supremacia da Constituição flexível ganha densidade, devendo a

jurisdição constitucional ser exercida. Se não fosse assim, não teria sentido falar-se em

Constituição, voltando-se aos ordenamentos jurídicos Pré-Modernos. Não há supremacia nos

Textos Constitucionais flexíveis em relação às normas infraconstitucionais, desde que

obedecido o procedimento de criação legislativa e não abandonado ao ostracismo um

comando constitucional ou um direito fundamental.

O controle de constitucionalidade pode ocorrer na lei ou no ato normativo,

modificando sua estrutura legal, ou na interpretação da lei ou ato normativo, mantendo-se a

literalidade do texto, mas operando uma redução na sua incidência. No primeiro caso, há a

necessidade de modificações na estrutura do comando normativo que afronta a Constituição,

retirando a inconstitucionalidade do mundo jurídico. No segundo caso, não há necessidade

de modificações na estrutura do comando normativo, pois o acinte à Carta Magna pode ser

elidido por meio de restrições ao alcance da norma.

A fiscalização de constitucionalidade das normas abrange as leis em sentido formal,

os atos normativos e os atos jurídicos privados. Lei em sentido formal são aquelas que são

oriundas do Poder Legislativo, a exemplo das emendas constitucionais, leis complementares,

leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. Atos

79

normativos são as espécies produzidas na esfera administrativa e que, por contrariarem as

disposições constitucionais, podem ser passíveis de controle de constitucionalidade. Planteia

Michel Temer sobre o assunto: “Por ato normativo entende-se: a) decretos do Poder

Executivo; b) normas regimentais dos tribunais federais e estaduais e suas resoluções”.97

Entretanto, apenas os atos normativos autônomos, que não regulamentam leis, podem

ser passíveis de controle de constitucionalidade. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal

não conheceu da ação direta de inconstitucionalidade que impugnava alguns artigos de uma

portaria do Ministério da Educação e Desporto porque eles não eram considerados atos

normativos autônomos, mas sim atos normativos infralegais, que regulamentam dispositivos

de lei.98

Ato jurídico privado é aquele firmado pelas partes contratantes, mas que produz

efeitos jurídicos. Qualquer ato particular que afronte a Constituição Federal pode ser

passível de controle de constitucionalidade. Todavia, por não ter caráter geral, operando

efeito apenas inter partes, só é cabível o controle por via do sistema difuso.

Em resumo, pode-se afirma que a declaração de inconstitucionalidade pode ser com

ou sem redução de texto. Essas duas abrangências de controle de constitucionalidade pode

ocorrer tanto no sistema concentrado, quanto no sistema difuso.

Pelo princípio da presunção de constitucionalidade das normas jurídicas, as leis e os

atos genéricos são considerados como constitucionais até que sejam declarados

inconstitucionais, levando estabilidade e segurança às relações por eles regidas.99 O

mencionado princípio tem o escopo de assegurar imperatividade às normas jurídicas,

garantindo ao Poder Público sua auto-executoriedade.

97 TEMER, Michel. Os Elementos de Direito Constitucional. 11ª ed., São Paulo: Malheiros, 1994. P. 48. 98 ADIn 1670-DF, rel. Min. Ellen Grecie. 99 MIRANDA, Jorge. Contributo Para uma Teoria da Inconstitucionalidade. 1. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. P. 232.

80

4.2) O Defensor da Constituição

Muitas discussões foram travadas para saber qual seria o órgão que teria a

incumbência de zelar pela Constituição. Schmitt e Kelsen tiveram acirrado debates a

respeito do tema. O órgão defensor da Constituição tem a função de fortalecer a supremacia

dos mandamentos constitucionais, possibilitando sua maior concretização.

Para Schmitt, autor da teoria da ordem concreta, quem tem legitimidade para a

jurisdição constitucional é o Chefe de Estado, já que como as normas constitucionais são

fruto de uma vontade política, quem deve exercer o controle é um órgão político.100 Caso

contrário, haveria um veto do Poder Judiciário. Ele sustenta que o Chefe de Estado, por ser

eleito diretamente pelo povo, não estaria sujeito à ingerência dos partidos políticos na sua

atuação de guardião constitucional, por isto poderia agir com independência, configurando-

se como uma instância suprema e neutra.101

Para Schmitt se a fiscalização constitucional fosse incumbida a um Tribunal

Constitucional, de natureza jurídica, poderia haver a “jurisdicização da política” e a

“politização da justiça”. Ele não acredita na natureza jurídica do fenômeno da subsunção,

quando a norma genérica e abstrata se adequa ao caso concreto porque como o ordenamento

jurídico não é um sistema completo, a atividade do juiz não pode ser apenas judicial.

Quando há a determinação do conteúdo de uma lei constitucional que seja dúbia, o que se

está realizando é legislação constitucional e não jurisdição constitucional.

Esclarece Schmitt: “Agora é portanto jurisdição e normatização se alguém diz que

um cavalo é um burro. Também em uma decisão de dúvida e de divergência de opinião

sobre a existência de uma contradição entre duas normas, não vem prefixado a aplicação de

100 Critica François Rigaux a tese de Schmitt: “A identificação carismática da vontade do povo e da do Führer furta-se a qualquer análise jurídica séria[...].Para que fazer leis, qual é a função dos tribunais se a vontade de um único homem pode fazer a lei, isentar dela, supri-la? O problema é que não se poderia governar uma grande nação, que conservou instituições complexas, em virtude apenas das palavras saídas da boca do ditador”. REGAUX, François. A Lei dos Juízes. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 113. 101 SCHMITT, Carl. La defensa de la Constitución. Prólogo de Pedro Veja. Madrid: Tecnos, 1998. P. 20.

81

uma norma a outra –porque as dúvidas e as divergências de opinião necessitam somente do

conteúdo da lei constitucional – na verdade é posto fora de dúvida e declarado autêntico o

conteúdo de uma norma. Isto é em efeito uma remoção de uma obscuridade do conteúdo da

lei, assim, um ato de legislação, absolutamente “legislação constitucional” , e não

jurisdição”.102

Foi alicerçado na construção doutrinária schmittiana que Hitler defendeu com

sucesso a tese de que o Chefe do Reich alemão é quem tinha competência de realizar a

fiscalização das normas constitucionais. Por intermédio desse fundamento ele pode alterar

toda a Constituição de Weimar sem necessitar criar uma nova Carta Magna.

Chegou-se a conclusão do imperioso papel exercido pelo Chefe do Executivo através

de uma interpretação praeter legem do art. 48 da Constituição de Weimar, no seguinte

diapasão: “Quando um território não cumpre com os deveres que lhe impõem a Constituição

ou as leis do Reich, o Presidente pode obrigar-lhe ao cumprimento com a ajuda das Forças

Armadas. Quando no Reich alemão a ordem e a segurança pública estiverem

consideravelmente alteradas ou ameaçadas, o Presidente do Reich pode adotar as medidas

necessárias para o restabelecimento da segurança e da ordem pública, inclusive com a ajuda

das Forças Armadas quando for necessário. Em conseqüência desse fato, pode suspender

temporariamente, no todo ou em parte, os direitos fundamentais consignados nos artigos

114, 115, 117, 118, 123, 124 y 153”.

Realizando uma análise literal do dispositivo, o que ele permite é o enquadramento

daquelas partes da federação alemã que estão descumprindo os mandamentos

constitucionais, inclusive com o emprego das forças armadas. E depois permite a suspensão

de algumas garantias constitucionais quando a normalidade pública estiver ameaçada. Em

momento algum, há a permissão para que o chefe de governo exerça a função de tutela das

normas constitucionais.

A teoria de Schmitt deve ser analisada com uma acuidade sociológica. Devido às

agitações sociais da Alemanha weimariana, que culminou com a ascensão de Hitler ao poder

102 SCHMITT, Carl. Il Custode della Costituzione. Milano: Giuffrè, 1981. P. 73 – 74.

82

em 1933, o mencionado autor considerava que um tribunal constitucional somente iria

aumentar a fragmentação de poder, que segundo ele era um dos elementos que estava

levando a Alemanha ao caos.103 A finalidade da entrega da custódia da Constituição ao

Chefe de Governo era aumentar o respaldo da população a suas decisões, amparando a

legitimidade da jurisdição constitucional a legitimidade hauferida pelo Chanceler, haja vista

ele ser o representante da maioria da população.

Para Kelsen o controle deve ser jurídico, pois o fenômeno do “dever ser”,

essencialmente normativo, tem que ser analisado sob o prisma jurídico. Por isto, defendia a

criação de uma corte constitucional, com a finalidade de manter o ordenamento livre de

injunções políticas, assegurando o caráter neutro das normas jurídicas. A teoria kelseniana

concebe o controle de constitucionalidade como um contrarius actus, ou seja, sem

desenvolver uma função criativa de direito, apenas retirando o ato eivado de

inconstitucionalidade do ordenamento jurídico.

Como criador do Tribunal austríaco Kelsen defende que a jurisdição constitucional

deve ser exercida por um órgão diverso do Poder Judiciário, do Executivo e do Legislativo.

Se o mesmo órgão que exercesse a jurisdição ordinária tivesse a prerrogativa de exercer a

jurisdição constitucional haveria uma transgressão evidente do princípio da separação de

poderes.104

O controle realizado por intermédio de um tribunal constitucional faz uma

interpretação jurídica, guiados por standards fixados previamente, no que contribui para a

estabilidade do sistema. Além do que o tribunal constitucional não é parte envolvida nem na

criação da lei, nem na sua aplicação, tendo, dessa forma, imparcialidade para solucionar a

controvérsia acerca da constitucionalidade das leis.

Kelsen discordava de forma frontal da tese de Schmitt. Para ele a teoria de concentrar

o poder nas mãos do Chefe do Reich tinha grande semelhança coma a técnica ultrapassada

103 PEUKERT, Detlev J. K. La Repubblica di Weimar. Trad. Enzo Grillo. Torino: Bollati Boringhieri, 1996. P. 47. 104 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998. P. 385.

83

adotada pelas monarquias que delegava ao monarca a competência de fiscalizar a jurisdição

constitucional. Dessa forma fundamenta o seu pensamento: “Que o chefe de Estado, no

âmbito de uma Constituição do tipo da de Weimar, não seja exatamente o órgão mais

indicado para a função de controle constitucional; que particularmente quanto à

independência e neutralidade, ele não possua qualquer vantagem diante de um tribunal

constitucional, é antes confirmado do que desmentido pelo escrito de Schmitt”.105

5) Teoria da Inconstitucionalidade

A presença de leis ou atos normativos inconstitucionais é uma constante em todas as

estruturas jurídicas e isso se configura como um fato bastante grave para a eficácia das

normas e para a integridade sistêmica do ordenamento. Para Jorge Miranda, a

inconstitucionalidade da norma ou do ato inconstitucional traz reflexos para toda a extensão

normativa e, portanto, deve ser destruída, porque se comporta como um elemento estranho à

ordem jurídica. O problema da inconstitucionalidade deve ser solucionado da forma mais

eficaz possível, seja através da expulsão do vício, seja através do cumprimento do

mandamento constitucional que estava negligenciado.106

Neste capítulo, o objetivo é o estudo da inconstitucionalidade da lei ou do ato

normativo nos seus aspectos mais importantes, como a sua natureza, tipos, extensão etc. A

formulação de uma teoria geral da inconstitucionalidade, por intermédio da formulação de

tipos abstratos e gerais, permite uma percepção plural do objeto e, por esta razão, configura-

se imprescindível para este trabalho, que tem como cerne principal a análise das

inconstitucionalidades que tolhem o cumprimento dos direitos fundamentais.

105 KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. Trad. Alexandre Krug. São Paulo: Martins Fontes, 2003. P. 286. 106 MIRANDA, Jorge. Contributo Para uma Teoria da Inconstitucionalidade. Coimbra: Coimbra Editora,

1996. P. 237.

84

5.1) Natureza do Norma Declarada Inconstitucional

A natureza da norma declarada inconstitucional influenciará na natureza da decisão

judicial que determina a sua inconstitucionalidade, que por sua vez decorre do grau de

mácula do ato que infringiu a Constituição, que pode ser considerado nulo, anulável ou

inexistente. Ou seja, para se saber a natureza da decisão judicial, é necessário empreender

um estudo acerca da natureza da norma que foi declarada como inconstitucional.

O Supremo Tribunal Federal, sorvendo os ensinamentos de Rui Barbosa, que se

inspirou na doutrina dos constitucionalistas norte-americanos, mantém o posicionamento de

que a norma declarada inconstitucional é nula, sendo sua sentença declaratória, tendo em

vista que nenhum novo aspecto é acrescentado à norma ou ato normativo, decidindo que ele

destoa dos parâmetros de constitucionalidade. Parte-se do paradigma de que lei

inconstitucional não é lei.

Para Francisco Campos, o ato inconstitucional é inexistente.107 Ele considera que a

lei inconstitucional nunca existiu, não podendo criar direitos, obrigações ou modificar

relações jurídicas, apesar de produzir efeitos na seara fática, existência de fato, ela não teria

uma existência de direito. Rui Barbosa e Alfredo Buzaid se posicionam pela sua nulidade.108

Em ambos os casos, a decisão não acrescenta nada à essência da norma ou ato, apenas

afirma sua inconstitucionalidade

107 “Da inconstitucionalidade da lei por omissão de formalidades prescritas na Constituição Federal ao seu processo legislativo, segue-se, inevitavelmente, a de outorgada aos tribunais de lhe recusarem aplicação aos casos ocorrentes”. CAMPOS, Francisco. Direito Constitucional.. Vol. I, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956.P. 399. 108 Doutrina Rui Barbosa acerca da nulidade dos atos declarados como inconstitucionais: “Essa conseqüência resulta evidentemente da própria essência do sistema. Onde se estabelece uma Constituição, com delimitação da autoridade para cada um dos grandes poderes do Estado, claro é que estes não podem ultrapassar essa autoridade, sem incorrer em incompetência, o que em direito equivale a cair em nulidade. Nullus est major defectus quam defectus potestatis” E depois arremata: “Toda medida, legislativa, ou executiva, que desrespeitar preceitos constitucionais, é, de sua essência, nula. Atos nulos da legislatura não podem conferir poderes válidos ao Executivo”. BARBOSA, Rui. Atos Inconstitucionais. Campinas: Russell, 2003. P. 40-43.

85

A diferença entre essas duas teses é de que se o ato inconstitucional for considerado

inexistente, ele nem mesmo entra no ordenamento jurídico, não preenchendo as condições

para adquirir validade. Se o ato for considerado nulo, ele entra no ordenamento jurídico

porque houve o preenchimento dos requisitos formais do processo legislativo, mas os efeitos

produzidos serão extintos desde o seu nascedouro.

Por isso, os autores que defendem que a norma inconstitucional é nula ou inexistente

afirmam que a decisão sempre será declaratória, não podendo ser de forma alguma

constitutiva, em razão de que não subsiste nenhum efeito da norma eivada do vício de

inconstitucionalidade. Para que a decisão fosse constitutiva seria necessário que a

manutenção de alguns dos efeitos produzidos pela norma, acarretando modificação na

relação jurídica.

Hans Kelsen entende que a norma inconstitucional é anulável. Ela entrou no

ordenamento jurídico, adquirindo validade, tem vigência e eficácia, produzindo efeitos nas

relações jurídicas. Entretanto, por afrontar os dispositivos constitucionais, quando assim for

declarado, deixará de ter eficácia, mantendo-se todos os efeitos produzidos até então.

De acordo com a natureza da lei ou ato normativo e a conseqüente tipificação da

decisão judicial que atestou a sua inconstitucionalidade, haverá a determinação da extensão

dos efeitos produzidos. Se a lei for considerada nula ou inexistente, a decisão judicial será

declaratória e a abrangência dos efeitos ex tunc, retrooperantes, cerceando os efeitos

produzidos pela norma desde a sua origem. Se o ato for considerado anulável, a decisão

judicial será constitutivo-negativa e a abrangência dos efeitos ex nunc, cerceando os efeitos

produzidos apenas da declaração de sua inconstitucionalidade em diante.

Como foi mencionado, a natureza da lei ou do ato normativo declarado

inconstitucional liga-se, umbilicalmente, à natureza da decisão judicial, podendo ser

considerado inexistente, nulo ou anulável. Se a lei ou ato normativo for considerado

anulável, a decisão judicial inexoravelmente será constitutivo-negativa, produzindo efeitos

até a decretação de sua nulidade. É constitutiva porque os efeitos produzidos são mantidos e

negativa em razão de suprimir os efeitos posteriores à decisão de inconstitucionalidade.

86

Se o ato for considerado nulo, a decisão judicial terá natureza declaratória, em que

todos os efeitos produzidos pela lei ou ato normativo serão cerceados do ordenamento

jurídico. Nulo é o ato que traz vício substancial que o impede de produzir efeitos; inexistente

é aquele que padece de vício inexorável, impedindo-o de, ao menos, entrar no ordenamento

jurídico.

A ação de inconstitucionalidade interventiva, pelas peculiaridades de sua própria

taxionomia, não apresenta uma natureza declaratória, pois os seus efeitos são constitutivos,

representando uma das excepcionalidades da autonomia federativa. Sintetiza o assunto José

Afonso da Silva: “Visa não apenas obter a declaração de inconstitucionalidade, mas também

restabelecer a ordem constitucional no Estado, ou município, mediante a intervenção. A

sentença já não será meramente declaratória, pois, então, já não cabe ao Senado a suspensão

da execução do ato inconstitucional. No caso, a Constituição declara que o decreto (do

Presidente da República ou do Governador do Estado, conforme o caso) se limitará a

suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da

normalidade. Daí se vê que a decisão, além de decretar a inconstitucionalidade do ato, tem

um efeito condenatório, que fundamenta o decreto de intervenção”.109

Destarte, a natureza da norma ou ato declarado inconstitucional influenciará

cogentemente a natureza da decisão judicial: se for nulo, a decisão será declaratória e os

efeitos ex tunc; se for anulável, a decisão será constitutivo-negativa e os efeitos ex nunc.

José Afonso da Silva, seguindo linha adotada por Themistócles Cavalcanti, defende

que no sistema brasileiro não é possível uma analogia com a distinção norte-americana de

ato inexistente, nulo ou anulável, de matriz eminentemente privatística. No sistema

brasileiro não podemos traçar uma distinção tão nítida entre esses atos, como no controle

difuso, onde o ato declarado inconstitucional deixa de produzir efeitos para as partes, mas

continua a produzir efeitos para os demais casos.110

Para Ignacio de Otto, diante da complexidade das sociedades contemporâneas, para

garantir atendimento às demandas sociais, o Poder Judiciário deve dispor de uma maior

109 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª ed., São Paulo: Malheiros. 1999. P. 57. 110 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ªed., São Pa ulo: Malheiros, 1999. P. 55.

87

variedade de procedimentos. A clássica repartição de funções entre os três poderes está

superada, começando a haver o rompimento da barreira que impedia os juízes de

participarem da função de criação normativa. Quando as normas se converteram em objetos

passíveis de apreciação judicial, devido ao princípio da universalidade de jurisdição, foi

outorgado ao Poder Judiciário a prerrogativa de atuar como legislador negativo, podendo

determinar a extensão da declaração de inconstitucionalidade da norma para garantir a

supremacia dos mandamentos constitucionais.111

Essa maior amplitude para que o Supremo Tribunal Federal possa determinar de

forma discricionária a natureza da norma declarada inconstitucional e, conseqüentemente, a

sua extensão parte do pressuposto de um novo arranjo na estruturação das funções dos três

poderes. A restrição da atuação do Poder Judiciário apenas à esfera de julgar os litígios

apegados ferreamente a letra da lei foi ultrapassada, com a finalidade de garantir a segurança

jurídica e incrementar a legitimidade da jurisdição constitucional, pode o STF considerar o

ato nulo ou anulável de acordo com as conveniências fáticas.

Todavia, a despeito do Supremo Tribunal Federal entender que a lei ou ato

normativo declarado inconstitucional é nulo, ele vem flexibilizando esse posicionamento,

não mais considerando-o de forma absoluta, podendo a norma ser considerada anulável de

acordo com circunstâncias fáticas, por intermédio de uma sentença constitutivo-negativa,

dimensionando o STF como um órgão legislativo negativo.

Mesmo em sede de controle direito, os efeitos da decisão poderão ser ex nunc, de

acordo com a Lei n.º 9.868/99, que permite ao Supremo, se houver um quórum de 2/3 dos

seus membros, e mediante razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social,

modificar os efeitos de ex tunc para ex nunc, ou até mesmo, impor que a decisão somente

produza efeitos a partir de uma determinada data. 111 “[...].A crescente complexidade do Estado e de suas relações com a sociedade requerem uma maior diferenciação interna de procedimentos, e, portanto, uma separação nítida das funções no mesmo sentido do que fora elaborado pela doutrina revolucionária. Essa mesma diferenciação internas tem levado que em um dos pontos concretos se rompa a barreira firme que a teoria revolucionária impedia que os juízes participassem da função de criação normativa. Em primeiro lugar a prerrogativa de que as normas mesmas se convertam em objeto passível de jurisdição – as leis pela jurisdição constitucional, os regulamentos pela jurisdição ordinária – convertem os juízes em legisladores negativos, entendido o termo legislador como alusivo a lei e a regulamento, por permiti-lhes eliminar do ordenamento a lei inconstitucional e o regulamento ilegal[...]”. OTTO, Ignacio de. Derecho Constitucional. Sistema de Fuentes. Barcelona: Ariel, 1998. P. 285.

88

5.2) Momentos de Incidência do Controle de Constitucionalidade

A lei ou ato normativo inconstitucional pela sua conseqüência de enfraquecer a

concretude normativa, deve ser o mais rapidamente expurgado do ordenamento jurídico. A

elaboração de um sistema de jurisdição constitucional mais eficiente para a concretização

dos direitos fundamentais não pode ser complacente com os atos inconstitucionais, quanto

maior tempo permanecer a inconstitucionalidade em vigor no ordenamento jurídico, maior

será o acinte a supremacia dos dispositivos constitucionais.

Não há uma prescrição temporal para se argüir uma inconstitucionalidade, podendo

ela ocorrer a qualquer momento. Entretanto, para efeitos didáticos, de forma genérica,

divide-se em duas etapas o momento de incidência do controle de constitucionalidade,

tomando-se como parâmetro a data da promulgação, que marca a entrada da norma no

ordenamento. De acordo com essa classificação, a incidência do controle de

constitucionalidade pode ocorrer antes da promulgação, de forma preventiva – controle

preventivo – ou depois da promulgação, de forma repressiva – controle repressivo.112

A atuação do controle preventivo incide em um projeto de lei, não se podendo falar

que o controle de constitucionalidade foi realizado em um norma porque ela ainda não foi

incorporada ao ordenamento jurídico. Nesse tipo de controle, ainda não existe propriamente

uma norma, mas um projeto em trâmite no Congresso Nacional. O controle preventivo pode

ser realizado pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. É exercido pelo Executivo

quando houver um veto a um projeto de lei sob o fundamento de sua inconstitucionalidade.

Atua o Poder Legislativo quando a Comissão de Constituição e Justiça declara a

inconstitucionalidade de um projeto normativo. Exerce o Poder Judiciário quando obsta a

tramitação de projeto de lei cujo conteúdo tem a finalidade de abolir cláusula pétrea.

O veto, prerrogativa exclusiva do chefe do Poder Executivo, pode ser realizado sob a

alegação de inconstitucionalidade ou contrariedade a interesse público. É considerado uma

112 MORAES, Germana de Oliveira. O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade do Processo Legislativo. São Paulo: Dialética, 1998. P. 39.

89

modalidade de controle preventivo apenas o veto sob a alegação de inconstitucionalidade,

fundamentando que o projeto de lei destoa dos parâmetros constitucionais. Quando ele é

realizado sob a alegação de que o projeto de lei é contrário ao interesse público não existe

um controle de constitucionalidade porque essa decisão representa uma simples decisão

política, baseada no poder de discricionariedade e na prerrogativa de defesa da ordem

pública.

Esse tipo de controle preventivo realizado pelo Chefe do Executivo é considerado de

natureza política porque o parâmetro que pauta a sua atuação embasa-se na

discricionariedade. O seu juízo de adequação das normas infraconstitucionais aos

dispositivos constitucionais será tomado de acordo com valorações ideológicas, sem que os

comandos constitucionais exerçam um papel determinante. Nesse caso, não se pode exigir

do Presidente da República subsídios doutrinários que possam alicerçar sua decisão sob

perfil estritamente jurídico – seus interesses de conveniência e oportunidade preponderam

em relação aos seus fundamentos jurídicos. A característica que mais diferencia o controle

político do controle jurídico é que este tem como referência inexorável os dispositivos

constitucionais, enquanto aquele tem como referência às injunções extradogmáticas.113

Dentro do rito do processo legislativo brasileiro, até a promulgação da norma, só

cabe o controle preventivo; depois, repressivo. De forma preventiva atua o Poder Legislativo

na Comissão de Constituição e Justiça, comissão permanente existente tanto no Senado

quanto na Câmara dos Deputados, formada pela composição das forças partidárias existentes

no Congresso Nacional, com a finalidade de analisar os projetos normativos e impedir o

trâmite daqueles que são considerados inconstitucionais. A apreciação pela Comissão de

Constituição e Justiça, tanto na Câmara como no Senado, é uma etapa obrigatória dentro do

processo de normogénese, configurando-se em uma oportunidade para que os parlamentares

possam também funcionar como garante da supralegalidade. A sua avaliação não é jurídica,

decidindo o controle de constitucionalidade dos projetos legislativos de acordo com

preceitos políticos, atuando com primazia o critério de conveniência e oportunidade.

113 Carl Schmitt afirma que o grande mal do controle jurídico é que ele coloca o juiz com uma certa superioridade em relação à lei e ao legislador. SCHMITT, Carl. Il Custode della Costituzione. Milano: Giuffré, 1981. P. 38.

90

Por ter adotado o ordenamento jurídico brasileiro o princípio da universalidade da

jurisdição, o Poder Judiciário, em regra, não pode exercer o controle preventivo. Ele atua de

forma preponderante no controle repressivo, de forma a preservar o check and balances. No

controle preventivo atuam de forma mais intensa o Executivo e o Legislativo. Os projetos

legislativos são discutidos nas duas Casas do Congresso, não podendo o Supremo Tribunal

Federal imiscuir-se em assuntos internos de competência do Legislativo, a não ser que haja

afronta à Constituição ou a direitos fundamentais. Preservou-se assim a incolumidade dos

atos interna corporis, requisito importante para a independência dos três poderes.

A hipótese de atuação do Poder Judiciário no controle preventivo, a única aliás de

taxionomia jurídica, ocorre quando há o trâmite de um projeto de emenda constitucional

(PEC) que flagrantemente tente abolir as cláusulas pétreas (art. 60, caput da CF), ou seja,

quando haja uma afronta ao segmento constitucional que mais legitimidade detém no

ordenamento jurídico. O motivo dessa exceção é garantir o “núcleo inalterável da

Constituição”, as cláusulas pétreas. O projeto de emenda que afronte o art. 60 § 4º da Carta

Magna não pode sequer ser recebido pelo Congresso Nacional, devendo ser imediatamente

indeferido.

Quem detém legitimidade ad causa para impugnar esse acinte ao texto constitucional

são os parlamentares, os Deputados e Senadores que têm o poder-dever de assegurar o

cumprimento do devido processo legal no Poder Legislativo. O remédio processual

adequado é o mandado de segurança, haja vista a configuração de direito líquido e certo

respaldado pelo mandamento constitucional. O Supremo Tribunal Federal reconhece como

direito subjetivo público dos Parlamentares o direito à ação para garantir a observação das

cominações constitucionais.114

Sendo protocolada uma proposta de emenda constitucional com esse conteúdo, em

que funcione a Câmara dos Deputados como casa inicial, o Presidente da Câmara dos

Deputados deve impedir o prosseguimento de projeto de emenda que seja evidentemente

inconstitucional (art. 137, II, b do Regimento Interno da Câmara dos Deputados). Se assim

114 MS 24.041-DF, rel. Min. Nelson Jobim.

91

não o fizer, o órgão competente do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal, após

devidamente demandado, poderá exercer o controle preventivo.

Destarte, é permitida a impetração de mandado de segurança por parlamentares com

a finalidade de assegurar o devido processo legal na formação das leis, constituindo-se em

direito subjetivo público a correta formação dos mandamentos normativos. Os

parlamentares, tanto do Senado como da Câmara dos Deputados, tem legitimidade ativa para

ajuizar no Poder Judiciário as medidas cabíveis para que as espécies normativas sigam o

procedimento delineado nos arts. 59 a 69 da Constituição Federal.115

A força normativa da constituição deve se preservada com grande acuidade no

concernente ao processo legislativo, por representar a sua estrutura normogenética, o

disciplinamento do processo de criação normativa. O desvirtuamento desse processo deve

ensejar o controle de constitucionalidade formal. O processo legislativo é de suma

importância para o funcionamento sistêmico do ordenamento jurídico, impedindo

antinomias e velando pela eficácia de seus dispositivos, reforçando a supremacia

constitucional através da supralegalidade formal.

Entretanto, caso essa espécie normativa se converta em lei, há o cerceamento da

legitimidade ativa, com a prejudicialidade da ação impetrada, em decorrência de fato

superveniente que impede o prosseguimento da ação judicial. Uma vez convertida em lei à

proposta normativa, entende o Pretório Excelso que a norma apenas pode ser retirada do

ordenamento jurídico pelo controle direto de constitucionalidade. Os instrumentos do

controle difuso não podem se transformar em sucedâneos do controle direto.

Pela natureza dos sistemas de controle de constitucionalidade utilizados no Brasil,

apenas o controle difuso, incidental, pode ser utilizado, e apenas pelos parlamentares, para

defender um direito público subjetivo que lhes assiste, qual seja, o de ver o devido processo

115 “O processo de formação das leis ou de elaboração de emendas à Constituição revela-se suscetível de controle incidental ou difuso pelo Poder Judiciário, sempre que, havendo possibilidade de lesão à ordem jurídico-constitucional, a impugnação vier a ser suscitada por membro do próprio Congresso Nacional, pois, nesse domínio, somente ao parlamentar – que dispõe do direito público subjetivo à correta observância das cláusulas que compõem o devido processo legislativo – assiste legitimidade ativa ad causam para provocar a fiscalização constitucional”. MS 22487, rel. Min. Celso de Mello.

92

legal legislativo e o conteúdo das cláusulas pétreas respeitados. O controle direto, com efeito

erga omnes, retirando normas da seara jurídica, apenas pode ser impetrado pelas pessoas

descritas no art. 103 da Constituição Federal. Quando a norma entra no ordenamento

jurídico através da promulgação, apenas se torna cabível o controle concentrado de

constitucionalidade.

Resumindo, pode-se afirmar que o controle preventivo por parte do Poder Judiciário

tanto pode ser realizado em decorrência de proposta normativa que intente abolir as

cláusulas pétreas, como de qualquer propositura normativa que não obedeça ao que fora

regulamentado na Carta Magna. Uma vez convertida em lei a propositura, há uma perda

superveniente da legitimidade ativa por parte dos parlamentares, sendo possível apenas à

instalação do controle direto de constitucionalidade.

Cidadãos que não são membros do Congresso Nacional, não têm legitimidade ativa

para impetrar medida judicial a fim de resguardar o procedimento constitucional de criação

normativa, mesmo com a alegação de que eles seriam os destinatários do comando

normativo, porque admitida essa possibilidade estar-se-ia instaurando o controle preventivo

abstrato de inconstitucionalidade.

Como já foi mencionado anteriormente, o controle repressivo de constitucionalidade

é realizado de forma preponderante pelo Poder Judiciário. Pelas peculiaridades que

estruturam esse poder, ele é o mais eficiente para garantir os direitos fundamentais de forma

inter partes e proporcionar uma oxigenação das decisões da jurisdição constitucional,

possibilitando a construção de um processo dialógico por parte do órgão que exerce a tutela

da Constituição. Contudo, para uma maior eficiência do controle de constitucionalidade,

outros órgãos podem realizar o controle repressivo, com o escopo de acolmatar uma

determinada lacuna que não pode ficar ao relento.

O Supremo Tribunal Federal, na Súmula 347, permite que o controle de

constitucionalidade seja realizado pelo Tribunal de Contas da União e pelos seus congêneres

estaduais, desde que para assuntos afeitos a sua área de competência. Nesta hipótese, o

Tribunal de Contas da União não pode retirar a norma do ordenamento, ou declarar sua

93

inconstitucionalidade com efeitos vinculantes, pois estas são funções exclusivas do Poder

Judiciário. Ele apenas deixa de aplicar a norma em decorrência da sua inconstitucionalidade.

O Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento no sentido de que o Poder

Executivo tem a prerrogativa de não cumprir uma determinada norma ou ato normativo sob

a alegação de sua inconstitucionalidade. O fundamento jurídico que respalda essa faculdade,

segundo o Egrégio Tribunal, é o art. 23, inc. I da Constituição Federal, dispondo que

compete à União, aos Estados-Membros, ao Distrito Federal e aos Municípios a competência

de zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o

patrimônio público. Não obstante as discussões doutrinárias a respeito do assunto, o STF

entende que o Poder Executivo, em qualquer uma das suas três esferas governamentais, pode

não cumprir um preceito normativo alegando a sua inconstitucionalidade.

Essa prerrogativa por parte do Executivo encontra limites e essa restrição é no

momento da prolatação de uma decisão judicial. Uma vez prolatada uma decisão judicial

afirmando a constitucionalidade da norma, não pode mais o Poder Executivo se furtar a sua

execução, principalmente se a decisão for em sede de controle direto cujo efeito é vinculante

e erga omnes, o que impede que o Chefe do Executivo venha a se posicionar em sentido

contrário.

Apesar das posições predominantes serem em sentido contrário, defendemos a tese

de que o Poder Executivo não pode deixar de aplicar a norma por considerá-la

inconstitucional.116 Primeiro, por causa da presunção de legitimidade: uma norma é

constitucional até decisão judicial em contrário; segundo porque a unicidade de jurisdição,

afora algumas exceções, impede que outros órgãos possam exercer o controle de

constitucionalidade repressivo, e, por último, para garantir a segurança do ordenamento. Em

um país onde existem mais de cinco mil municípios, permitir ao Poder Executivo aferir a

constitucionalidade ou não das normas, seria admitir interferências políticas na jurisdição

constitucional e gerar insegurança.

116 Em sentido contrário ver: MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 3ª ed ., São Paulo: Atlas, 1998. P. 488.

94

Portanto, em decorrência da jurisprudência dominante, o Poder Executivo pode

deixar de cumprir uma lei alegando sua inconstitucionalidade até que haja decisão do Poder

Judiciário no sentido de cumprimento do comando normativo. Em sede de controle de

constitucionalidade difuso, a obrigatoriedade ocorre na circunscrição de competência do

órgão que prolatou a decisão, e de forma erga omnes se a decisão for em sede de controle

direto, que, por seus efeitos específicos, abrange todos os entes federativos.

O controle repressivo também pode ser exercido pelo Poder Legislativo quando nega

conversão de uma medida provisória em lei sob a alegação de sua inconstitucionalidade, que

pode ser tanto porque houve descumprimento dos requisitos de relevância e urgência, como

por causa de um acinte a um determinado conteúdo constitucional. A não conversão de uma

medida provisória pode ocorrer por motivos políticos ou por inconstitucionalidade. A

jurisdição constitucional apenas será exercida quando houver a imputação de

inconstitucionalidade, haja vista que o critério político se vincula à conveniência e

oportunidade.

A oportunidade do Poder Legislativo declarar a inconstitucionalidade de uma medida

provisória pode ocorrer na Comissão Mista, que é formada com o objetivo de apreciar a

medida enviada pelo Chefe do Executivo, ou em plenário, com a participação de todos os

parlamentares.

A medida provisória para ser convertida em lei necessita se adequar a todos os

parâmetros estabelecidos pela Constituição, como a obediência ao critério de relevância e

urgência e a proibição de regulamentar determinadas matérias. Se o Congresso Nacional

entende que um dos requisitos exigidos não foi cumprido, deve se negar a converte a medida

provisória em lei, sob a alegação de sua inconstitucionalidade, exercendo assim um controle

repressivo.

Em realidade, quando o Congresso Nacional não converte uma medida provisória em

lei, alegando sua inconstitucionalidade, não está exercendo uma função típica do

Legislativo, mas executando uma forma repressiva de controle. Em idêntico

posicionamento, Clève Clemerson: “Lamentavelmente, porém, o Congresso Nacional tem

relegado a segundo plano o exercício do controle jurídico das providências normativas de

95

urgência. Conseqüências: medidas provisórias flagrantemente inconstitucionais têm sido, às

dezenas, convertidas em lei. Na prática, o controle duplo vem sendo simplificado até sua

redução àquele de natureza exclusivamente política”.117

Será considerada prejudicada a ação direta de inconstitucionalidade impetrada contra

medida provisória em decorrência de sua conversão em lei com modificações que

desnaturem a causa petendi da referida ação. Perdendo eficácia a medida provisória por não

ter sido convertida no prazo legal, de sessenta dias – podendo ser automaticamente reeditada

por mais sessenta dias – a ação direta intentada contra ela será prejudicada por perda do

objeto.

Quando o Poder Legislativo susta os atos normativos do Poder Executivo porque eles

excedem o seu poder de regulamentar (adequação ao princípio da legalidade), não se trata de

hipótese de controle de constitucionalidade, mas de controle de legalidade, embora alguns

doutrinadores afirmem que o caso mencionado se trata de controle repressivo de

constitucionalidade. O Poder Legislativo editará um decreto legislativo para que o

dispositivo legal venha a ser respeitado.

O mesmo raciocínio se aplica quando o Legislativo transfere ao Presidente da

República competência para promulgar uma lei delegada e este extrapola os limites

definidos pela resolução que foi elaborada pelo Congresso Nacional. Nesse caso não há a

tipificação de um controle de constitucionalidade e sim de um controle de legalidade, porque

a afronta direta não foi à Constituição, e sim ao conteúdo da resolução, que é uma norma

infraconstitucional, fixando os limites para a atuação do Chefe do Executivo na elaboração

da lei delegada.

5.3) Controle das Normas Constitucionais no Tempo

117 CLÈVE, Clemerson Merlin. Medidas Provisórias.2º ed., São Paulo: Max Limonad, 1999. P. 118.

96

O brocardo tempus regit actum (o tempo rege o ato) tem significativa importância na

análise do controle das normas constitucionais no tempo.118 As normas contidas na

Constituição hodierna servem de parâmetro para a apreciação das normas jurídicas vigentes,

não servindo para aferir a constitucionalidade de leis anteriores que já foram revogadas.119

As normas jurídicas vigentes ao tempo da entrada em vigor da Constituição permanecerão

com esta qualidade se não afrontarem o conteúdo da nova Carta Magna.

De igual forma acontece com a inconstitucionalidade formal de leis que entraram em

vigor sob os moldes do ordenamento jurídico pretérito: a nova Constituição não pode servir

de parâmetro para a aferição da constitucionalidade formal de leis anteriores.120 O que leva a

conclusão de que não se pode argüir uma inconstitucionalidade formal com base no processo

legislativo da nova Carta Magna.

São denominadas de pré-constitucionais as normas infraconstitucionais que

auferiram validade por intermédio da Constituição pretérita. Essas normas são uma

decorrência da superveniência das normas constitucionais.121 De acordo com a teoria da

recepção, se elas forem compatíveis com o novo ordenamento, serão recepcionadas, com a

118 Ensina Vital Moreira e Canotilho: “A inconstitucionalidade superveniente só pode dizer respeito à inconstitucionalidade material, pois a inconstitucionalidade orgânica ou formal – que necessariamente diz respeito à formação do acto – só pode ser aferida pelas normas constitucionais vigentes à data dessa formação. Por outro lado, pela sua própria natureza, ela só pode afectar a legitimidade da norma a partir do momento em que a norma se tornou inconstitucional”. CANOTILHO, José Joaquim e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991. P. 268. 119 “O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada leis ordinárias”. QO-ADIn 512-MT, rel. Min. Paulo Brossard. 120 “Julgado o mérito de ação direta ajuizada pelo Partido Social Trabalhista – PST contra a Emenda 11/98 à Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que limita a remuneração de prefeitos e vereadores e determina a adequação imediata aos limites máximos nela impostos. O tribunal julgou prejudicada a ação na parte alusiva ao subsídio dos vereadores porquanto já em vigor a Emenda à Constituição Federal n.° 25/2000, que modificou a norma constitucional que serviria de parâmetro para a aferição da alegada inconstitucionalidade”. ADIn 2.112-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence. 121 “Os fenómenos jurídicos decorrentes da superveniência de normas constitucionais podem sintetizar-se do seguinte modo: - Acção da Constituição nova sobre a Constituição anterior – revogação global e, em certos, caducidade; - Acção de normas constitucionais novas (provenientes de modificação constitucional) sobre normas constitucionais anteriores – revogação; - Acção de Constituição nova sobre normas ordinárias anteriores não desconformes com ela – novação; Acção de normas constitucionais novas (provenientes de Constituição nova ou de modificação constitucional) sobre normas ordinárias anteriores desconforme – caducidade por inconstitucionalidade superveniente”. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo: II, 4 ed., Coimbra: Coimbra editores, 2000. P. 275

97

translação de sua vigência para a Lei Maior vigorante. Sendo incompatíveis com a nova

ordem constitucional, serão revogadas automaticamente, ou com melhor precisão técnica,

não-recepcionadas, faltando-lhes um fundamento de validade para continuar no

ordenamento jurídico.122 Não se pode dizer que foram revogadas porque uma norma apenas

pode ser revogada por outra, o que não foi o caso, porque elas perderam o seu substrato de

validade.

Com relação às normas pré-constitucionais, não há necessidade de declaração por

parte do Poder Judiciário para que estas sejam expulsas do ordenamento. Entrando em

vigência a nova Constituição, imediatamente, as normas do ordenamento jurídico anterior,

que forem incompatíveis com o atual perderão sua eficácia, não sendo recepcionadas.

Entretanto, essa indefinição contribui para uma certa insegurança jurídica que vai sendo

debelada à medida que o Poder Judiciário reafirma a sua inconstitucionalidade.

Haverá a concretização de uma convalidação normativa se uma norma era

inconstitucional sob o ordenamento jurídico anterior, mas ainda não tinha sido declarada

pelo Poder Judiciário, e, com a nova Constituição, adequou-se aos parâmetros do

ordenamento vigente, no que produzirá efeitos ex tunc, convalidando os atos produzidos

desde o início. Exemplo: determinada lei “x” era inconstitucional sob o ordenamento

jurídico da Constituição de 1967/69 e passou a ser considerada constitucional sob a vigência

da Constituição de 1988. Se ela não foi declarada inconstitucional na vigência da

Constituição de 1967/69, ela será convalidada pelo novo ordenamento, permanecendo os

efeitos produzidos desde a Constituição anterior até a atual.

As ações do controle direto de constitucionalidade só podem ser impetradas contras

as normas que continuam em vigor no ordenamento, porque foram recepcionadas pela nova

ordem jurídica. A única exceção é a ação de argüição de descumprimento de preceito

fundamental, que pode ser impetrada contra normas que já foram revogadas ou que

exauriram seus efeitos. Em regra, as normas pré-constitucionais que não forem compatíveis

com o novo ordenamento jurídico não podem sofrer controle direto de constitucionalidade.

122 Paulo Barile defende a tese que cada sistema de controle de constitucionalidade tenham mecanismos de impugnar as normas pré-constitucionais. BARILE, Paolo. Scritti di Diritto Costituzionale. Padova: Antonio Milani, 1964. P. 40.

98

O controle propício é o controle incidental, em que cada cidadão detém legitimidade para

garantir os seus direitos.

A maioria da doutrina se posiciona nesse sentido devido à forte influência

kelseniana, ao conceber a Constituição como a norma hipotética fundamental, a grundnorm,

o núcleo irradiador de validade para as demais normas jurídicas. Se uma Constituição é

modificada, todo o alicerce jurídico do sistema também o será, não podendo uma norma que

não possui mais validade ser mantida no ordenamento. O controle de constitucionalidade

apenas pode ser aferido no momento de formação da norma, de acordo com a Constituição

vigente. Ao perder seu núcleo de validade, imediatamente a norma deixa de existir, salvo se

houver sua convalidação pelo novo ordenamento. Então, se uma norma não mais existe,

como é que ela pode ser passível de controle de constitucionalidade?

Com relação às normas pré-constitucionais o que pode ser discutido é se elas

acarretaram prejuízos durante o tempo de sua vigência. Exemplo: uma lei inconstitucional,

pelos parâmetros da Constituição de 1967/69, aboliu determinadas gratificações dos

funcionários públicos federais. Com o Texto de 1988, dita lei não é recepcionada,

reinstaurando-se as gratificações perdidas. Na vigência da Constituição cidadã, os lesados

pela perda das gratificações à época da Constituição de 1967/69, querendo reavê-las, terão

que acionar o controle difuso, ajuizando as ações competentes, baseando-se nos argumentos

jurídicos da Carta autoritária.

Assim, para recuperar os danos advindos de uma lei considerada inconstitucional

pelo ordenamento anterior, o único mecanismo que pode ser usado é o controle difuso de

constitucionalidade. Os meios de controle de constitucionalidade concentrado não podem ser

aplicados em relação às normas pré-constitucionais, com exceção da argüição de

descumprimento de preceito fundamental pela relevância do objeto protegido.

Os mecanismos do sistema concentrado não podem ser utilizados com relação às

normas pré-constitucionais porque elas não mais têm sua vigência asseguradas e a finalidade

deste controle é manter a coerência do ordenamento jurídico. Os mecanismos do sistema

99

difuso podem ser utilizados devido ao mandamento constitucional que dispõe que nenhuma

lesão ou ameaça a direito pode ser excluído da apreciação do Poder Judiciário.

Foi pacificado pelo Supremo Tribunal Federal que cabe controle de

constitucionalidade com relação às emendas constitucionais. Quanto à possibilidade de

existência de inconstitucionalidade de normas provenientes do Poder Constituinte, a tese

esposada por Otto Bachof da existência das normas constitucionais inconstitucionais, não se

mostra factível, sendo repelida tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência nacional e

comparada.123 O mencionado autor postula que existe normas oriundas do Poder

Constituinte, que foram positivadas originalmente na Carta Magna, e que mesmo assim são

inconstitucionais porque afrontam os princípios fundamentais da Constituição.124

5.4) Tipos de Inconstitucionalidade

As demandas inerentes a um Estado Democrático Social de Direito exigem uma

maior atuação da jurisdição constitucional e essa maior área de incidência tem o escopo de

incrementar a eficácia das normas constitucionais. Esse aumento das demandas sociais,

infelizmente, estimula o aparecimento de tipos de inconstitucionalidade que necessitam ser

expurgados do ordenamento. Perante a Constituição de 1988, pode-se mencionar três tipos

de inconstitucionalidades: por ação, por omissão e em razão de descumprimento de preceito

fundamental.

123 “Com efeito, a doutrina de Bachof sobre normas constitucionais inconstitucionais, em que se estribam os promotores da ação, não vingou no direito constitucional, muito menos na jurisprudência dos tribunais, e aparece primeiro num aresto obscuro e solitário da Corte estadual da Baviera, de 10.6.49, e, a seguir, de maneira tíbia e vacilante, com alcance sobremodo limitado, em raros acórdãos do Tribunal de Karlsruhe na Alemanha. Com base na monografia de Bachof e em decisões frágeis de duas Cortes alemãs, que jamais firmaram jurisprudência, desenvolvem os autores da ação argumentos diante da evidência de objeções assentadas sobre a verdade da jurisdição, da doutrina e das leis”. BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta. Temas Políticos e Constitucionais da Atualidade, com ênfase no Federalismo das Regiões. 2 ed., São Paulo: Malheiros, 1996. P. 215. 124 BACHOF, Otto. Normas Constitucionais inconstitucionais? Almedina: Coimbra, 1994. P. 68.

100

As inconstitucionalidades podem ser perpetradas por normas ou atos normativos. Os

dispositivos legais podem ser qualquer um dos contidos no art. 59 da Constituição,

constituindo-se em leis formais. Os atos normativos são espécies administrativas passíveis

de controle, desde que tenham caráter normativo e que sejam genéricos, abstratos e

impessoais.

A inconstitucionalidade por ação ocorre com a produção de uma lei ou ato

normativo, exigindo como pressuposto o aparecimento de um dispositivo normativo que

colida com os comandos constitucionais. Ela pode ser de dois tipos: material ou formal. A

primeira ocorre quando a norma infraconstitucional contraria o caráter deontológico de um

dispositivo constitucional, ou seja, o teor expresso de sua determinação.

A doutrina igualmente denomina a inconstitucionalidade material de intrínseca e a

formal de extrínseca. Intrínseca, porque o vício está no conteúdo da norma, no seu

disciplinamento normativo. Extrínseca, porque o vício está no processo de produção

legislativo, em um processo exterior ao seu conteúdo.

A segunda incide apenas nas normas procedimentais que estruturam o processo de

normogénese, enquanto que a inconstitucionalidade material engloba as demais hipóteses. A

inconstitucionalidade material não versa sobre a forma, não analisando se o procedimento

para a criação normativa foi obedecido; ela infringe a matéria disposta na norma

constitucional, ou seja, o seu conteúdo. Toda inconstitucionalidade produz sérias

conseqüências para o ordenamento jurídico, entretanto, se houvesse possibilidade de se

estabelecer uma gradação entre elas, a inconstitucionalidade material seria mais gravosa do

que a formal, porque afronta a supremacia da Lei Maior, debilitando o texto constitucional e,

de forma indireta, a força normativa de suas normas.

A inconstitucionalidade formal tem uma abrangência bem menor do que a

inconstitucionalidade material, o que não quer dizer que esse tipo de inconstitucionalidade

apresente um menor significado. Ela ocorre quando as normas ou atos normativos

infraconstitucionais não obedecem o procedimento estabelecido na Lei Maior para a criação

normativa, ou seja, o processo legislativo previsto nos arts. 59 a 69 da Constituição. Há

nítida afronta ao devido processo legal procedimental, ferindo de forma implícita o princípio

101

da soberania popular, cuja personificação primordial são os mandamentos contidos na

Constituição.

A inconstitucionalidade formal pode ser dividida em duas espécies, que não

apresentam relevante diferença de natureza entre si. A inconstitucionalidade formal

subjetiva configura-se quando o órgão que propõe a norma não tem legitimidade para fazê-

lo. Ela surge quando há um vício na propositura da norma, por ter sido encaminhada por um

órgão que invadiu a competência de outro. Seria o caso, por exemplo, de um projeto de lei

que, tendo sido proposto por um parlamentar, versasse sobre aumento de salário dos

servidores públicos, pois a Constituição estabelece a legitimidade privativa do Presidente da

República para a iniciativa de projeto de lei sobre esta matéria.125 A inconstitucionalidade

formal objetiva, por sua vez, engloba os demais casos, isto é, todos aqueles que não versem

sobre vício de iniciativa, residindo a mácula em outro ponto do procedimento legislativo. É

o caso, por exemplo, de uma lei ordinária que não foi aprovada pelo Senado Federal. A

inconstitucionalidade formal subjetiva126

A inconstitucionalidade material permite a sua convalidação, isto é, o seu

saneamento, com o expurgo do vício que a maculava. Como esse tipo de

inconstitucionalidade afeta apenas a parte da norma que colide com a Carta Magna, as

demais partes, se forem autônomas e se a sua finalidade for mantida incólume, são

preservadas pelo controle de constitucionalidade.

Já a inconstitucionalidade formal, atinge a integralidade da norma ou ato normativo,

pois ocorre no seu processo de formação, não admitindo nenhum tipo de convalidação. A

mácula reside no processo legislativo e, portanto, espraia-se por todo o teor do dispositivo

normativo.

A única possibilidade de convalidação da inconstitucionalidade formal admitida pelo

ordenamento jurídico estava prevista na Súmula n.º 5 do Supremo Tribunal Federal que 125 Exemplo de inconstitucionalidade formal subjetiva se configura quando um projeto de lei, proposto por um Parlamentar, se refere sobre a remuneração de servidores públicos, ferindo o mandamento constitucional que planteia a exclusividade de iniciativa de leis que versem sobre a remuneração de servidores públicos. 126 Exemplo de inconstitucionalidade formal subjetiva se configura quando um projeto de lei, proposto por um Parlamentar, se refere sobre a remuneração de servidores públicos, ferindo o mandamento constitucional que planteia a exclusividade de iniciativa de leis que versem sobre a remuneração de servidores públicos.

102

entendia que a sanção expressa do Presidente da República supriria o vício formal da falta

de iniciativa do Poder Executivo. Contudo, a mencionada súmula foi revogada,

prevalecendo o entendimento de que a sanção, seja expressa ou tácita, não convalida a

inconstitucionalidade formal.127 Atualmente, pelos motivos expostos, não há nenhuma

possibilidade de convalidação de inconstitucionalidade formal.

Uma das grandes inovações da Constituição de 1988 foi a criação da

inconstitucionalidade por omissão, ultrapassando o exclusivo conceito de

inconstitucionalidade por ação. Sua origem liga-se à falta de eficácia dos mandamentos

constitucionais, mormente aqueles ligados à concretização de direitos fundamentais. Ela

ocorre quando o legislador infraconstitucional, os poderes estabelecidos ou o Poder

Executivo deixa sem efetividade um comando normativo. A omissão desses órgãos impede

que a norma constitucional adquira completa eficácia, descumprindo a finalidade teleológica

que fora prevista pelo legislador constituinte, e fragilizando a concretude normativa da Carta

Magna.

Assim, em virtude do desenvolvimento das demandas sociais, configura-se uma

inconstitucionalidade quando se faz o que o dispositivo constitucional proíbe ou quando se

deixa de fazer o que ela determina.128

A inconstitucionalidade por omissão nasce da obrigação do Estado Democrático

Social de Direito assegurar condições mínimas de bem-estar a sociedade, através de

prestações materiais de direitos de segunda, terceira e quarta dimensões dos direitos

fundamentais. Planteia Canotilho: “A força dirigente e determinante dos direitos a

prestações (econômicos, sociais e culturais) inverte, desde logo, o objeto clássico da

pretensão de omissão dos poderes públicos (direito a exigir que o Estado se abstenha de

interferir nos direitos, liberdades e garantias) transita-se para uma proibição de omissão

127 Conforme decisões inseridas em: Rp 890-GB; ADInMC 1.070-MS; ADInMC 1.963-PR, etc. 128 ROBERTO BARROSO, Luís. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas normas. 4 ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2000. P. 157.

103

(direito a exigir que o Estado intervenha ativamente no sentido de assegurar prestações aos

cidadãos)”.129

A Constituição Cidadã de 1988 previu, de forma inovadora, a inconstitucionalidade

por descumprimento de preceito fundamental, no seu art. 102, § 1º, que apenas foi

regulamentado em 1999, pela Lei 9.868/99. Esse tipo de inconstitucionalidade apresenta a

peculiaridade de incidir sobre o descumprimento de preceito fundamental, cuja definição

ainda está ao talante do Supremo Tribunal Federal. Ela pode ocorrer tanto de forma

comissiva, como de forma omissiva, sendo essa peculiaridade um surplus para a defesa dos

preceitos fundamentais. Seu nascimento dar-se sob o signo da defesa dos direitos

fundamentais mais imperiosos, fornecendo à jurisdição constitucional um maior manancial

de instrumentos aptos a tornar eficazes os dispositivos contidos na Carta Magna.

5.4.1) Tipos de Inconstitucionalidades Materiais

As inconstitucionalidades materiais são aquelas que aparecem com maior freqüência

no ordenamento jurídico. Sua origem reside de forma mais premente na seara

jurisprudencial e por essa razão estão em constante evolução. Diante da multiplicidade de

casos e do seu constante desenvolvimento é que serão estudadas de forma separada.

Inconstitucionalidade valorativa é aquela que incide em princípios constitucionais.

Por estes ostentarem uma intensa gama axiológica, podendo a sua extensão ser elastecida ou

restringida por mecanismos interpretativos, a aferição da inconstitucionalidade encontra-se

na dimensão do valor que está imbuído na norma. Dessa forma, uma interpretação extensiva

do princípio da gratuidade do ensino público impediria a cobrança de qualquer tipo de taxa

para o ingresso no sistema educacional. Nesse tipo de inconstitucionalidade a variação do

129 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. Coimbra: Coimbra, 1994. P. 365.

104

conteúdo interpretativo da norma constitucional definirá o padrão de aferição do controle de

constitucionalidade.

Inconstitucionalidade superveniente significa que a norma deixou de ser

constitucional pelo surgimento de uma emenda que modificou a Carta Magna. Até a atuação

do Poder Reformador, a norma se adequava totalmente aos dispositivos da Carta Magna; a

inconstitucionalidade ocorreu em virtude da alteração constitucional. Os efeitos produzidos

ate a alteração são considerados atos jurídicos perfeitos, não podendo ser atingidos pela

decisão declaratória da inconstitucionalidade.

Nesse caso, ao contrário do que acontece com as normas pré-constitucionais, a

norma infraconstitucional que passou a ser contrária à Constituição por causa de uma

emenda, para ser expurgada do ordenamento, deve ser declarada inconstitucional. Como não

há o surgimento de um novo ordenamento, vigora na sua plenitude o princípio da presunção

de constitucionalidade das normas. As normas infraconstitucionais que forem contrárias à

modificação efetuada na Constituição não são revogadas imediatamente; precisam ser

declaradas inconstitucionais pelo Poder Judiciário para serem expulsas do ordenamento

jurídico. O efeito dessa declaração é retrooperante, cerceando todos os efeitos produzidos

após a data da vigência da emenda. Sendo declarado a inconstitucionalidade da lei ou do ato

normativo, os efeitos por ele produzido serão ceifados com efeito ex tunc, tomando-se como

marco temporal à data de promulgação da emenda.

Leciona Pedro Cruz Villalon que a formação da doutrina sistemática do controle de

constitucionalidade deve começar por quais normas devem ser passíveis do controle de

constitucionalidade, no que se denomina de parâmetro de constitucionalidade.130 Para a

doutrina constitucional brasileira o parâmetro de constitucionalidade formal resume-se às

normas da Constituição em vigor.

Denomina-se de parâmetro constitucional alterado quando, após o ajuizamento da

ação direta ou do controle difuso, há alteração do parâmetro constitucional que compunha

130 VILLALÓN, Pedro Cruz. La Formacion Del Sistema Europeo de Control de Constitucionalidad (1918-1939). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. 1987. P.39.

105

necessariamente o padrão de aferição da inconstitucionalidade.131 Nesse caso, não se admite

o controle de constitucionalidade, pois houve a revogação da norma que estava sendo

argüida como inconstitucional. A norma posterior revogou o padrão de

constitucionalidade.132

Denomina-se de parâmetro constitucional derrogado, quando após o ajuizamento da

ação, há modificações parciais do parâmetro constitucional, que compunha necessariamente

o padrão de aferição da inconstitucionalidade.133 Não se admite, igualmente, nesse caso o

controle de constitucionalidade. A norma posterior derrogou parte do padrão

constitucional.134

De forma consistente tem reiterado o Supremo Tribunal Federal a não aceitação da

inconstitucionalidade reflexa ou oblíqua porque não seria o caso de controle de

constitucionalidade, mas de controle de legalidade. Ela acontece quando uma norma que

deveria regulamentar outra ultrapassa dos seus limites e termina, ao invés de regulamentá-la,

por acrescer-lhe um novo conteúdo. Com isso a norma regulamentadora ultrapassa o limite

definido pela norma regulamentada, gerando um controle de legalidade, e não de

constitucionalidade, mesmo que o excesso possa contrariar indiretamente a Constituição.

Como exemplo, pode ser mencionado a ADIn que não foi conhecida pelo STF porque teria o

escopo de expurgar do ordenamento jurídico portarias do Ministro da Previdência e

Assistência Social. Entendeu o Supremo Tribunal Federal que não é cabível, em sede de

controle direto, a tutela de atos normativos de hierarquia inferior destinados à

131 “Julgado o mérito de ação direta ajuizada pelo Partido Social Trabalhista – PST contra a Emenda 11/98 à Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que limita a remuneração de prefeitos e vereadores e determina a adequação imediata aos limites máximos nela impostos. O tribunal julgou prejudicada a ação na parte alusiva ao subsídio dos vereadores porquanto já em vigor a Emenda à Constituição Federal n.° 25/2000, que modificou a norma constitucional que serviria de parâmetro para a aferição da alegada inconstitucionalidade”. ADIn 2.112-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence. 132 Não se admite o controle concentrado de constitucionalidade de norma quando, após sua edição, há alteração do parâmetro constitucional invocado ou não pelo requerente, que compunha necessariamente o parâmetro de aferição da inconstitucionalidade. Não pode ser ajuizada ação direta de inconstitucionalidade pela circunstância de ter sido proposta em face de outros dispositivos constitucionais, os quais foram alterados posteriormente. ADIn 2475-BA, rel. Min. Maurício Correa.. 133 Reconheceu-se a impossibilidade jurídica do pedido porquanto a norma constitucional invocada como padrão de aferição da alegada inconstitucionalidade, inovações da Emenda 19/1998, é posterior aos dispositivos atacados, de maneira que, em tais casos, a alegada inconstitucionalidade superveniente se traduz em revogação. ADIMC 2.501-MG, rel. Min. Moreira Alves. 134 ADIMC 2.501-MG, rel. Min. Moreira Alves.

106

regulamentação de lei, cujos eventuais excessos não revelam inconstitucionalidade, mas sim

eventual ilegalidade frente à lei ordinária regulamentada, sendo indireta, ou reflexa, a

alegada ofensa à Constituição Federal.135

A jurisprudência predominante no Supremo Tribunal Federal manifestou-se pelo não

conhecimento da ação direta de inconstitucionalidade quando é necessário o prévio

confronto entre a norma infraconstitucional e o ato administrativo impugnado, de modo a

evidenciar sua inconstitucionalidade, verificando-se o caráter reflexo de violação da

Constituição.136 Portanto, não cabe ação direta contra norma que, ao regulamentar a lei,

ultrapassa os limites por ela definidos, haja vista que se está diante de questão de

ilegalidade, e não de inconstitucionalidade.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhece a inconstitucionalidade

conseqüente, que ocorre quando a norma que sofre regulamentação é declarada

inconstitucional e, dessa forma, aquelas normas ou atos normativos que exerciam a sua

regulamentação também serão atingidos por essa declaração de inconstitucionalidade. Ela

acontece em um segundo momento, sendo derivada de uma inconstitucionalidade anterior.

Exemplo: quando uma norma for declarada inconstitucional, também o será a outra que a

regulamentava.

Lei ainda constitucional ou situação constitucional imperfeita representa um estágio

intermediário entre a inconstitucionalidade e a constitucionalidade. Verifica-se quando o

legislador ordinário é omisso na regulamentação de determinadas disposições

constitucionais, então, transitoriamente, o STF concorda com a manutenção de norma

infraconstitucional, mesmo que colidindo com o mandamento constitucional, para que a

situação possa ser normalizada, como é o caso da lei que concedia prazo em dobro para a

Defensoria Pública, que deveria ser considerada constitucional enquanto esse órgão não

estivesse devidamente habilitado ou estruturado.137 Portanto, dá-se um tempo razoável ao

135 ADIn n.º 2.024-DF. 136 Os atos administrativos tem como características a sua auto-executoriedade e a sua presunção de legitimidade. O primeiro significa que o ato administrativo tem execução imediata, sem depender da atividade de nenhum outro poder. O segundo pode ser traduzido como a sua legalidade; o ato administrativo é considerado válido ate que se prove o contrário. 137 HC n. 70.514.

107

Poder Público, contado da edição de lei definidora do dever de integral obediência ao que

fora preceituado na Constituição, sob pena de progressiva inconstitucionalidade do ato

estatal, que, embora existente, revela-se insuficiente e incompleto.138

Se depois de um prazo razoável, não houver a adequação integral ao preceito

constitucional, o dispositivo infraconstitucional deve ser retirado do ordenamento jurídico,

com a sua declaração de inconstitucionalidade.

Exemplo desse tipo de decisão pode ser encontrada no recurso extraordinário

proferido pelo Min. Sepúlveda Pertence: “Ministério Público: legitimação para promoção,

no juízo cível, do ressarcimento do dano resultante de crime, pobre o titular do direito à

reparação: art. 68 do CPP, norma ainda constitucional: processo de inconstitucionalização

das leis. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa, entre a

constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade da lei com fulminante

eficácia ex tunc, faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem

constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de

realização da norma da Constituição – ainda quando teoricamente não se cuide de preceito

de eficácia limitada – subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fática que a

viabilizem. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao

Ministério Público pelo art. 68 do CPP – constituindo modalidade de assistência judiciária –

deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porem para esse fim, só se pode

considerar existente onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134

da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada. Até que – na União ou em

cada Estado considerado – se implemente essa condição de viabilização da cogitada

transferência constitucional de atribuições, o art. 68 do CPP será considerado ainda vigente:

é o caso do Estado de São Paulo, como decidiu o Plenário no RE n. 135.328”. 139

138 RTJ 136/439-440, rel. Min. Celso de Mello. 139 RE 147.776-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence.

108

5.5) Extensão da Inconstitucionalidade

No controle de Constitucionalidade, admite-se o princípio da divisibilidade da lei.

Sendo a norma composta de partes autônomas, ela pode ser dividida, desde que a sua

essência não fique prejudicada, isto é, desde que ela possa atender à finalidade para a qual

foi criada. Portanto, havendo uma inconstitucionalidade, apenas a parte eivada de vício será

retirada; as demais partes da lei permanecem no ordenamento, a não ser que percam sua

autonomia, não podendo mais subsistir de forma isolada.140

Haverá uma maior extensão da inconstitucionalidade quando houver uma

dependência entre as partes da lei, de modo que um fragmento legal não possa subsistir de

forma autônoma, porque o núcleo principal da norma foi considerado inconstitucional. Os

fragmentos legais subsidiários não subsistem quando for declarado a inconstitucionalidade

do núcleo principal. Não existindo interdependência, as partes normativas não afetadas pela

inconstitucionalidade permanecem em vigor.

Assim, será concretizada uma inconstitucionalidade total quando houver um vício de

ordem formal, quando não houver possibilidade de divisibilidade da lei ou quando a

declaração de inconstitucionalidade implicar em uma desfiguração do conteúdo da norma. O

vício de ordem formal não admite convalidação. Uma vez constatado o não cumprimento do

dispositivo do processo legislativo, a lei como um todo deve ser declarada inconstitucional,

não podendo ser mantido a validade de nenhuma de suas partes.

A indivisibilidade pode decorrer do fato que a parte da lei considerada

inconstitucional é imprescindível para a sua aplicação, não podendo haver a manutenção da

validade da norma com a exclusão da mencionada parte. Há uma dependência da totalidade

da lei com relação a sua parte imprescindível.

140 O Min. Sepúlveda Pertence, relator, proferiu voto no sentido de não conhecer da ação por entender ser inviável a pleiteada declaração parcial de inconstitucionalidade do ato atacado – em face do dogma de que a impugnação parcial de norma só é admissível no controle abstrato quando se pode presumir que o restante do dispositivo, que não foi impugnado, teria sido editado independentemente da parte supostamente inconstitucional. Informativo do STF n.º 273. ADIn 2645, rel. Min. Sepúlveda Pertence.

109

A nulidade parcial ocorre quando os vários dispositivos da norma mantêm uma certa

divisibilidade, não prejudicando sua validade nem muito menos a sua finalidade teológica o

fato de uma dessas partes ser considerada inconstitucional.

A desfiguração da norma ocorre quando o seu dispositivo é declarado

inconstitucional e, em conseqüência, o seu conteúdo sofre uma modificação substancial que

destoa da mens legis para a qual foi criada, havendo uma alteração na vontade do legislador.

6.) Controle Difuso

Com a realização da proposição de se transformar o Supremo Tribunal Federal em

um tribunal constitucional, haverá profundas modificações no controle difuso de

constitucionalidade. O sistema preponderante de controle de constitucionalidade será

indubitavelmente o controle concentrado. Todavia, as peculiaridades do controle difuso,

principalmente na defesa dos direitos fundamentais, não devem ser negligenciadas. O corte

metodológico realizado nesta análise impede maiores deambulações acerca de como

funcionará o controle difuso, limitando-se, por esse motivo, aos contornos atuais do

mencionado sistema. Portanto, a característica do controle difuso de dispor à cidadania de

uma garantia constitucional imediata para a defesa dos direitos fundamentais não pode ser

relegada; o necessário é aprimorar os instrumentos que atuam nesse tipo de controle para

torná-los mais eficientes.

110

6.1) Controle Difuso ou por Via de Exceção

O controle difuso foi instituído no Brasil pelo texto constitucional de 1891 devido à

influência direta da Constituição norte-americana. Ele foi regulamentado na Carta Cidadã de

forma implícita quando o art. 5º, XXXV afirma que lei não poderá excluir da apreciação do

Poder Judiciário ameaça ou lesão a direito e no art. 102, III que planteia que caberá ao

Supremo Tribunal Federal julgar as causas decididas em única ou última instância quando a

decisão proferida contrariar dispositivo constitucional.

No Brasil, ele é um controle que pode ser utilizado contra as três esferas

normogenéticas – União, Estados e Municípios – e pode se opor a qualquer tipo de lei

infraconstitucional ou ato normativo que afronte a Constituição.

O controle difuso igualmente pode ser chamado de via de exceção, via incidental ou

de controle de norma de efeito concreto.141 Todas essas terminologias designam o mesmo

objeto analisado sob prismas diversos. Difuso porque toda instância judiciária pode decidir

acerca da constitucionalidade; controle de norma de efeito concreto porque somente pode ser

suscitado por aqueles cidadãos atingidos diretamente pela norma inconstitucional; e controle

por exceção ou por via incidental porque surge no decorrer de uma lide que versa sobre

matéria infraconstitucional. Canotilho explica que a terminologia via de exceção se deve ao

fato de que a inconstitucionalidade não se deduz como alvo da ação, mas como subsídio para

a justificação de um direito, cuja reivindicação se discute.142

Os atos em tese apenas podem ser passíveis de controle de constitucionalidade por

via de controle concentrado, enquanto os atos de efeito concreto podem ser passíveis de

141 Zagrebelsky doutrina acerca do controle difuso: “Dado que, nos juízos comuns se trata de uma questão pertinente ao direito das partes, a não aplicação da norma declarada inconstitucional assume o significado da defesa de um direito individual; o procedimento assume as características de um juízo subjetivo; a constituição é chamada a assumir uma eficácia direta, com força normativa de lei, nas relações (horizontais) entre o sujeito e o direito. A lei inconstitucional será declarada nula e em seu lugar o juiz fará a aplicação direta da Constituição”. ZAGREBELSKY, Gustavo. La Giustizia Costituzionale. Bologna: Il Mulino, 1996. P. 167. 142 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998. P. 792.

111

controle pelo sistema difuso. Atos em tese são aqueles dotados de generalidade,

impessoalidade e teor abstrato, em que situações específicas, concretas, não foram a priori

previstas. O seu grau de teor abstrato é tão intenso que os casos a serem regulamentados são

definidos de modo bastante abrangente, sem especificações que possam determiná-los a

priori, o que não acarreta prejuízo a órgão ou agente de forma específica. Atos de efeitos

concretos são aqueles dotados de caráter pessoal, grau de precisão e definição que

possibilitam seu enquadramento em situações pré-determinadas, incidindo contra

determinado cidadão, munindo-o de legitimidade ad causam para proteger-se contra a lesão

ou ameaça de lesão.

A importância do controle difuso não decorre de reminiscências históricas. Ele se

constitui na garantia constitucional de acesso mais fácil à cidadania e no meio mais eficaz de

concretização dos direitos fundamentais. De forma alguma se pode pensar em suprimi-lo,

mas remodelá-lo para se adequar às novas exigências da jurisdição constitucional.

Pela maior participação das partes no controle difuso, a sua legitimidade

procedimental sofre um forte incremento, acrescido do fato de que como qualquer instância

pode decidir a respeito, o seu caráter dialógico é muito maior. Por outro lado, como todo

cidadão que sofre uma lesão tem competência para impetrar esse tipo de controle, ele se

configura como um instrumento imprescindível para a concretização dos direitos

fundamentais, estimulando igualmente a legitimidade substancialista.

A legitimidade passiva para julgar os institutos jurídicos inerentes ao controle difuso

pertence a qualquer instância do Poder Judiciário, podendo chegar ao Supremo Tribunal

Federal por meio da sua competência originária, recurso ordinário e recurso extraordinário.

A legitimidade passiva pertence a qualquer cidadão que tenha um direito seu ameaçado ou

violado por afronta à Carta Magna. Em regra, os seus efeitos subjetivos são inter partes,

atingindo somente as partes componentes da lide, e os efeitos temporais são ex tunc,

retroagindo até a data em que foi perpetrada a inconstitucionalidade.

Em um incidente de constitucionalidade, o controle difuso se configura como uma

prejudicial ao mérito, tomando forma por intermédio de muitas maneiras, como por meio de

medida cautelar ou por meio de uma preliminar em qualquer ação principal. O sistema de

112

controle difuso ainda pode ser concretizado através de recurso extraordinário e recurso

ordinário.

Em instância monocrática, a decisão do controle difuso pode ser tomada por juiz

singular. Em instância colegiada deve ser obedecido o princípio constitucional da reserva de

plenário ou full bench, em que a decisão que declarar a inconstitucionalidade apenas pode

ser tomada pela maioria absoluta dos membros pertencente ao plenário ou órgão especial do

tribunal.

Na decisão do controle de constitucionalidade, o Poder Judiciário deve se ater ao

thema decidendum, ou seja, ele não poderá julgar citra, extra ou ultra petita, atendo-se ao

que fora estipulado no pedido. Vigora o princípio da correspondência entre o pedido e o

julgado, com a obrigação do órgão do Judiciário decidir de acordo com a causa petendi e o

objeto devido formalizados no processo. Nenhuma instância judiciária pode ampliar o

âmbito do pedido formalizado no controle difuso além dos limites que foram propostos, não

podendo de forma alguma alargar o thema decidendum.

A legitimidade passiva para julgar o controle difuso pertence a toda instância do

Poder Judiciário, como planteado anteriormente. O Supremo Tribunal Federal tem

competência para atuar nos casos de recurso ordinário, extraordinário ou quando for o caso

de uma ação originária, excepcionando, obviamente, o controle abstrato. Ou seja,

normalmente o STF tem competência para atuar no controle difuso de forma recursal.

Exercendo a Egrégia Corte a sua competência recursal, quando a lei ou ato

normativo for declarado inconstitucional, será dado ciência ao Senado Federal para que

discricionariamente ele possa manifestar-se no sentido de suspender ou não a sua eficácia.

Assim, a lei incidentalmente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal

poderá ser suspensa do ordenamento pelo Senado, cuja decisão terá efeitos ex nunc e erga

omnes, atingindo, a partir de então, todos que se encontrem na mesma situação, a despeito

de não terem entrado com as ações específicas perante o Judiciário.

113

A comunicação da declaração de inconstitucionalidade ao Senado será feita pelo

Supremo Tribunal Federal. Na Constituição de 1934, a comunicação era feita pelo

Procurador-Geral da República.143

A atuação do Senado no controle difuso de constitucionalidade começou com a

Constituição de 1934, com a finalidade de propiciar a esse controle um mecanismo de

homogeneização de suas decisões. Com a implantação do controle incidental pela

Constituição de 1891, não foi criado nenhum mecanismo que pudesse unificar as decisões

do Supremo Tribunal Federal, como existe no modelo norte-americano, que é o stare

decisis, o que contribuía para criar um clima de insegurança jurídica diante da diversidade

de sentenças judiciais acerca de uma mesma matéria.144

Outra fundamentação para a atuação do Senado Federal no controle de

constitucionalidade difuso, retirando as normas do ordenamento jurídico com eficácia erga

omnes, é que essa função não acarretaria um desequilíbrio na separação dos poderes, nem

superdimencionaria o Poder Judiciário, cabendo tal função ao órgão coordenador dos

poderes, denominação da Constituição de 1934, o Senado Federal.145

Explica a professora Regina Maria Macedo Nery Ferrari : “Assim, o Senado só pode

manifestar-se suspendendo a execução de uma lei ou decreto em decorrência de sua

invalidade, havendo decisão do Supremo neste sentido, observando os limites impostos por

ela, não podendo alterá-la, restringi-la ou ampliá-la. Contudo, não há tempo determinado

para tal pronunciamento. Este é o fato capital que leva à grande polêmica, de difícil solução,

porque imaginar que o Senado pode desprestigiar a decisão do Supremo seria absurdo,

acontecendo o mesmo se transformássemos o Senado em simples cartório de registros de

143 Art. 96 da Constituição de 1934: “Quando a Corte Suprema declarar inconstitucional qualquer dispositivo de lei ou ato governamental, o Procurador-Geral da República comunicará a decisão ao Senado Federal para fins do art. 91, n. IV, e bem assim à autoridade legislativa ou executiva de quem tenha emanado a lei ou ato”. 144 O Black’s Law Dictionary explica da seguinte forma o instituto do stare decisis: “ Significa a doutrina do precedente judicial, em que as demais instâncias judiciais são obrigadas a seguir a recente decisão quando houver as mesmas circunstâncias que foram apreciadas do processo originário”. GARNER, Bryan A. Black’s Law Dictionary. 70. ed. St. Paul: West Group, 2000. P. 1137. 145 “Não era, ademais, a Corte Suprema do Poder Judiciário quem suspendia a execução da lei, mas o Órgão de Coordenação dos Poderes, garantida, portanto, a tese da independência e harmonia dos Poderes da União, sem falar no especial efeito político de suspender a execução de uma lei regularmente aprovada pelo Poder Legislativo”. MOREIRA REIS, Palhares. Estudos de Direito Constitucional e de Direito Administrativo. V. IV, Recife: Editora Universitária – UFPE, 2003. P. 170.

114

acórdãos da Suprema Corte, o que poderia ser resolvido por tratamento legislativo. Na

verdade, após a suspensão da execução pelo Senado, a lei perde sua eficácia em relação a

todos os cidadãos, isto é, erga omnes, não podendo ser mais aplicada”.146

Remetendo essa decisão de unificação do controle difuso a um órgão político como o

Senado Federal, o critério de homogeneização das decisões é feito com base na conveniência

e oportunidade, isto é, mediante fatores políticos, alheio ao dogmatismo jurídico.

Os efeitos da resolução suspensiva da decisão do Senado começam a produzir efeitos

da data da publicação da resolução. Tal prerrogativa fora prevista no art. 52, X, da

Constituição, declarando que o Senado pode suspender, no todo ou em parte, a lei declarada

inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. A extensão da

suspensão por parte do Senado Federal não é arbitrária, mas consonante com a decisão

prolatada pelo Supremo Tribunal Federal. Não se pode falar em atuação do Senado Federal

em sede de controle direto de constitucionalidade.

A decisão do Senado Federal modifica os efeitos do controle difuso, aumentando a

sua abrangência. Seus efeitos deixam de ser inter partes e ex tunc para se tornarem erga

omnes e ex nunc. Portanto, mesmo aqueles cidadãos que não pleitearam seus direitos pelo

controle difuso, serão atingidos pela decisão do Senado, com efeitos erga omnes e ex nunc.

Em decorrência da transmutação dos efeitos produzidos pela resolução do Senado,

modificando-os de ex tunc para ex nunc, os cidadãos que não participaram da lide e

quiserem obter o efeito retroativo, garantindo a integralidade do seu direito, terão que

recorrer ao controle difuso.

Em princípio é o Supremo Tribunal Federal que deve avisar ao Senado sobre a

declaração incidental de inconstitucionalidade, através de um ofício endereçado à Mesa

Diretora do Senado Federal. Esta comunicação também poderá ser feita pelo Procurador-

Geral da República e pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania do Senado

146 NERRY FERREIRA, Regina Maria. Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade. 3 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. P..115-116.

115

Federal, através de um projeto de resolução suspensiva. Não existe prazo para o

posicionamento do Senado.

A atuação do Senado Federal, elastecendo os efeitos do controle difuso, apenas tem

sentido se o objeto impugnado tiver caráter genérico porque, se o objeto tiver um caráter

singular, descabe atuação do Senado, dada a inexistência de casos similares.

O efeito da decisão do Senado Federal, por meio de uma resolução suspensiva, é

suspender a eficácia da lei, permanecendo ela no ordenamento jurídico, mas sem eficácia.

Ele não pode revogar a lei, retirando-a do ordenamento, porque quem revoga uma lei é o

Poder Legislativo, composto por suas duas casas. A atuação do Senado, de forma pacífica na

doutrina e na jurisprudência, faz-se necessária apenas no controle difuso, descabendo sua

atuação no controle concentrado.

Se o Supremo Tribunal Federal receber ao mesmo tempo um recurso extraordinário e

uma ação direta de inconstitucionalidade como o mesmo objeto e a mesma fundamentação, a

primazia da decisão cabe a ação direta pela extensão de seus efeitos.147

A ação civil pública pode ser um dos instrumentos processuais do controle difuso,

produzindo efeitos na extensão da proteção do objeto litigado.148 Ela é utilizada em um

incidente de constitucionalidade como uma questão prejudicial.

O Ministro Celso de Mello diferencia a ação civil pública da ação direta de

inconstitucionalidade: “Ação direta de inconstitucionalidade é instrumento do controle

concentrado da constitucionalidade; por outro lado, a ação civil pública, como todas as ações

individuais ou coletivas, mesmo sendo um instrumento de processo objetivo para a defesa de

interesse público, é instrumento de controle difuso da constitucionalidade. Observe-se,

ainda, que, na ação civil pública, a eficácia erga omnes da coisa julgada material alcança a

questão prejudicial da inconstitucionalidade, é de âmbito nacional, regional ou local,

conforme a extensão e a indivisibilidade do dano ou ameaça de dano. Na ação direta, a

147 QO-AgRg 2.066-SP. rel. Min. Carlos Velloso. 148 “O controle difuso de constitucionalidade das leis pode ser exercido em sede de ação civil pública, no juízo de primeiro grau, quando for necessário para a decisão da hipótese concreta, sendo legitimado para a propositura da ação o Ministério Público”. RE 227.159-GO, rel. Min. Néri da Silveira.

116

declaração de inconstitucionalidade faz coisa julgada material erga omnes no âmbito de

vigência espacial da lei ou ato normativo impugnado (nacional ou estadual). Ademais, as

ações civis públicas estão sujeitas a toda cadeia recursal prevista nas leis processuais, onde

se inclui o recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, enquanto que as ações

diretas são julgadas em grau único de jurisdição. Portanto, a decisão proferida na ação civil

pública no que se refere ao controle de constitucionalidade, como qualquer ação, se submete,

sempre, ao crivo do egrégio Supremo Tribunal, guardião final da Constituição Federal”.149

Entretanto, uma forma de controle difuso não pode ser sucedâneo de uma forma de

controle abstrato, mormente de uma ação direta de inconstitucionalidade.150 A competência

para impetrar uma ação desse tipo apenas pode ser realizada pelos elencados de forma

explícita no art. 103 da Constituição Federal.

O Min. Carlos Velloso entende que o controle difuso de constitucionalidade de lei

pode ser exercido em sede de ação civil pública, no juízo de primeiro grau, quando for

necessário para a decisão da hipótese concreta, consubstanciando a declaração de

inconstitucionalidade pleiteada como causa de pedir e não como pedido da ação civil

pública.151

São questões prejudiciais aquelas que devem ser decididas antes do mérito, por

influenciarem no seu julgamento, e, se forem acatadas, impendem o julgamento do pedido

da ação. Eis a lição de Calamandrei: “Para poder aplicar a lei na causa pendente, ele, o juiz,

deve saber, acima de tudo, se esta lei é constitucionalmente legítima; a questão de

legitimidade constitucional deve ser resolvida, então, com precedência, como etapa

necessária no iter lógico ao qual o juiz deve recorrer para chegar à conclusão”.152

149 RCL 1.733-SP (medida liminar), rel. Min. Celso de Mello: “O Supremo Tribunal Federal tem reconhecida a legitimidade da utilização da ação civil pública como instrumento idôneo de fiscalização incidental de constitucionalidade, pela via difusa, de quaisquer leis ou atos do Poder Público, mesmo quando contestados em face da Constituição da República, desde que, nesse processo coletivo, a controvérsia constitucional, longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifique-se como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal”. 150 Ag 1089.601-GO, rel. Min. Carlos Velloso. 151 RCL 1.503-DF, rel. Min. Carlos Velloso. 152 CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. V. 3, Campinas: Bookseller, 1999. P. 59.

117

O mandado de segurança é também um instrumento de controle difuso de

constitucionalidade, desde que seja para situações específicas e concretas, não podendo ser

utilizado como instrumento do controle concentrado, abrangendo casos gerais, impessoais e

abstratos, segundo a Súmula 266 do Supremo Tribunal Federal.153 Dispõe a mencionada

súmula do Supremo: “O mandado de segurança não se qualifica como sucedâneo da ação

direta de inconstitucionalidade, não podendo ser utilizado, em conseqüência, como

instrumento de controle abstrato de validade constitucional das leis e dos atos normativos

em geral, ainda que se cuide de hipótese alegadamente configuradora de

inconstitucionalidade, por omissão parcial, resultante de ofensa ao princípio da isonomia,

provocada por exclusão discriminatória de benefício”.

Os instrumentos do controle difuso não se mostram eficazes para garantir a

concretização do princípio da isonomia, quando determinado comando normativo institui

benefício com a exclusão de alguns membros da categoria, como é o caso de uma lei que

estabelece uma gratificação para os servidores públicos ativos e se omite com relação aos

servidores públicos inativos. Em casos desse tipo, tem declarado o Supremo Tribunal

Federal que o Poder Judiciário não pode atuar como se fora legislador, quebrando o

princípio da separação dos poderes.154

Quando houver uma afronta ao princípio constitucional da isonomia, constituindo-se

uma inconstitucionalidade por omissão parcial, o ordenamento jurídico brasileiro permite

três saídas jurídicas: a) extensão dos benefícios ou vantagens às categorias ou grupos

excluídos; b) a supressão dos benefícios ou vantagens que foram concedidas; c)

reconhecimento de uma situação ainda constitucional, situação constitucional imperfeita, em

que um prazo é dado ao Poder Público para que possa regulamentar a situação para garantir

a todos que preencham os requisitos dos direitos ofertados.

Eis a lição do Ministro Celso de Mello: “O mandado de segurança não se qualifica

como instrumento processualmente adequado à argüição de inconstitucionalidade de lei, por

153 O Mandado de Segurança não pode ser sucedâneo de ADIn, RTJ 132/1136, rel. Min. Celso de Mello. 154 “O que não se revela impossível, contudo, em face de nosso sistema de direito positivo, é admitir-se, em sede mandamental, por omissão parcial, de ato normativo, para, a partir do reconhecimento do caráter eventualmente discriminatório da norma estatal, postular-se a extensão, por via jurisdicional, do benefício pecuniário não outorgado à parte impetrante”. MS 21.400-SP, rel. Min. Octavio Galotti.

118

omissão parcial, quando, resultando esta da exclusão discriminatória de benefício de

natureza pecuniária, vem o ato normativo estatal a ofender o princípio da isonomia. A

extensão jurisdicional, em favor dos servidores preteridos, do benefício pecuniário que lhes

foi indevidamente negado pelo legislador encontra obstáculo no princípio da separação dos

poderes. A disciplina jurídica da remuneração devida aos agentes públicos em geral está

sujeita ao princípio da reserva legal absoluta. Esse postulado constitucional submete ao

domínio normativo da lei formal a veiculação das regras pertinentes ao instituto do

estipêndio funcional. O princípio da divisão funcional do poder impede que, estando em

plena vigência o ato legislativo, venham os Tribunais a ampliar-lhe o conteúdo normativo e

a estender a sua eficácia jurídica a situações subjetivas nele não previstas, ainda que a

pretexto de tornar efetiva a cláusula isonômica inscrita na Constituição”.155

6.2) Reserva de Plenário ou Cláusula Full Bench

Quando a apreciação do controle difuso couber a um juízo colegiado, a não ser que o

mérito já tenha sido decidido pelo STF, a matéria à qual se argüiu a inconstitucionalidade

não poderá ser julgada pelas câmaras ou turmas do tribunal, devendo ser remetida ao Pleno

ou ao órgão especial com competência para o seu julgamento, em respeito ao princípio da

reserva de plenário (art. 97 da CF). Nos juízos monocráticos não há possibilidade de

vigência do mencionado princípio, podendo a matéria ser decidida pelo juiz monocrático.

O disciplinamento da reserva de plenário ou cláusula do full bench foi regulamentada

no art. 97 da Constituição, com o seguinte teor: “Somente pelo voto da maioria absoluta de

seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a

inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público”.

Gilmar Ferreira Mendes a denomina de cisão funcional de competência, permitindo

que no julgamento da inconstitucionalidade de norma perante tribunais, o plenário ou o

155 RMS 21.662-DF, rel. Min. Celso de Mello.

119

órgão especial julgue a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade da norma. Dessa

forma, o órgão fracionário fica vinculado a julgar a questão de acordo como o que foi

firmado no julgamento da questão constitucional.156

A natureza da reserva de plenário tem a taxionomia de requisito objetivo para a

eficácia da decisão judicial. Sem o preenchimento desse requisito, a decisão proferida não

pode produzir efeitos, configurando-se como uma inconstitucionalidade formal que não

pode ser convalidada.157

A iniciativa de suscitar o incidente de inconstitucionalidade dentro do poder difuso

cabe a qualquer das partes participantes da lide, ao Ministério Público ou aos componentes

do colegiado julgador. Como o Ministério Público é o órgão que tem a função de defesa da

ordem jurídica, se requerer, poderá manifestar-se no incidente de inconstitucionalidade. Da

mesma forma, as pessoas jurídicas de direito público, responsáveis pela edição dos atos

questionados, se manifestarem interesse, poderão se pronunciar no incidente de

inconstitucionalidade. Em ambos os casos deverão ser observados os prazos e condições

fixados no regime interno do tribunal.

Os órgãos ou autoridade legitimados para impetrar ação direta de controle de

constitucionalidade, de acordo com o art. 103 da Constituição Federal, havendo interesse,

poderão se manifestar, por escrito, sobre a questão constitucional objeto de apreciação pelo

órgão especial ou pelo Pleno do Tribunal, no prazo fixado em regimento, sendo-lhes

assegurado o direito de representar memoriais ou de pedir juntada de documentos.

Em analogia com o firmado pela Lei n. 9.868/99, o relator poderá, em caso de

relevância da matéria, e considerando ainda a representatividade dos postulantes, admitir,

por despacho irrecorrível, a manifestação de outros órgãos ou entidades. Entidades como a

156 MENDES, Gilmar Ferreira. Mudanças no Controle de Constitucionalidade. http: // www. neofito. com. br/ artigos/ art 01/ const 42. Htm Capturado em 25/11/2002. 157 “não tem outro efeito senão o de condicionar a eficácia jurídica da decisão declaratória da inconstitucionalidade ao voto – nem mesmo à presença, mas ao voto, pronunciado pela forma que a lei ordinária estabelecer – da maioria dos membros do tribunal. O referido preceito não é, em si mesmo, nem uma regra de funcionamento, nem uma norma de competência: estabelece apenas uma condição de eficácia”. BITTENCOURT, Lúcio. O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis. Rio de Janeiro: Forense, 1968. P. 45-46.

120

OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), MST (Movimento dos Sem Terras), FIESP

(Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) etc, podem intervir no processo como

amicus curiae fornecendo ao processo subsídios e possibilitando uma maior legitimidade

das decisões judiciais.

A amplitude da análise pelo plenário ou órgão especial não engloba a inteireza da

lide debatida no processo; restringe-se à imputação de inconstitucionalidade, não sendo a

esfera adequada para a apreciação de questões fáticas ou outras questões de direito. Como

peculiar espécie recursal apresenta dois efeitos que lhe é inerente: os efeitos devolutivo e o

suspensivo. Suspensivo porque a decisão meritória apenas pode ser proferida quando houver

a decisão relativa à questão de inconstitucionalidade, sobrestando o feito até a mencionada

decisão. Devolutivo porque não é o órgão fracionário o competente para julgar, mas o

plenário ou órgão especial, limitando a sua apreciação à questão impugnada como

inconstitucional.

Todas as vezes que uma instância judiciária de segundo grau receber um processo

sob o qual paire a alegação de inconstitucionalidade, terá duas atitudes a realizar: declarar a

constitucionalidade do ato, rejeitando a alegação de inconstitucionalidade, no que passa a

decidir a questão meritória; ou concordar com a imputação de que a lei ou ato normativo

pode ser inconstitucional, sobrestar o andamento do processo e remetê-lo à apreciação do

plenário ou órgão especial. Se a solução encontrada for essa segunda alternativa, a câmara

ou turma lavrará o respectivo acórdão.158

Tendo havido decisão anterior do Pleno do Supremo Tribunal Federal ou do plenário

ou órgão especial do respectivo tribunal, com relação ao mesmo objeto e a mesma causa

petendi, as turmas dos Tribunais podem julgar as questões sem a necessidade de remeter a

matéria para o Pleno ou órgão competente. Todavia, havendo variação na causa petendi, a

decisão, inexoravelmente, não poderá ser decidida pelas turmas, obedecendo ao que foi

estabelecido pelo o art. 97 da Constituição, de acordo com o princípio da reserva de

plenário.

158 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Incidente de Argüição de Inconstitucionalidade. Comentários ao art. 97 da Constituição e aos arts. 480 a 482 do Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. P. 57.

121

Depois de decidida a questão pelo plenário ou órgão especial, a matéria volta para a

apreciação do órgão fracionário, claro, se não houver prejudicial ao mérito, que irá proferir a

decisão meritória, atendo-se ao que fora decidido no incidente de constitucionalidade.

Há de ressaltar-se que no controle difuso de constitucionalidade, o pedido se

restringe apenas à declaração, por parte do órgão do Poder Judiciário, da

inconstitucionalidade da lei ou ato normativo para o caso concreto. Não há o que se falar em

efeito erga ommes, nem muito menos a norma é retirada do ordenamento jurídico. Ela

apenas deixa de ser aplicada ao caso posto sob apreciação judicial, continuando a ter eficácia

nos demais casos.

6.3) Controle de Constitucionalidade em Nível Estadual e Municipal

O Brasil é um estado federativo formado por diversos entes que possuem autonomia,

capacidade de autogoverno, que foi outorgada pela Carta Magna. Dotados de capacidade

para gerir os seus interesses dentro dos vetores dos mandamentos constitucionais, os entes

federativos possuem autonomia legislativa e essa prerrogativa tem que se adequar aos

mandamentos da lei orgânica, constituição estadual e Constituição Federal.159

Em uma forma de estado federativa, a jurisdição constitucional tem o dever de ser

mais eficiente para se contrapor à multiplicidade de ordenamentos jurídicos que pode

propiciar um maior número de inconstitucionalidades. O parâmetro de supralegalidade passa

a ser estabelecido pelas normas constitucionais federais, pelas normas constitucionais

estaduais e pelas normas da lei orgânica, cujo texto não é considerado como uma

Constituição, mas detém supralegalidade.

159 NAVARRO COÊLHO, Sacha Calmon. O Controle de Constitucionalidade das Leis e do Poder de Tributar na Constituição de 1988. 3 ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1999. P. 199.

122

A Constituição Federal de 1988 somente previu competência para o Supremo

Tribunal Federal decidir acerca da inconstitucionalidade de leis ou atos normativos federais

e estaduais, tomando como parâmetro a Constituição Federal. As normas municipais

imputadas como inconstitucionais foram impedidas de ser apreciadas pelo STF em sede de

controle abstrato, à exceção da argüição de descumprimento de preceito fundamental, para

prevenir uma enxurrada de processos ao Egrégio Tribunal.160

Então, é incabível ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato normativo

municipal perante o Supremo Tribunal Federal. Admite-se, porém, a ação direta de

inconstitucionalidade proposta perante o Tribunal de Justiça, contra lei municipal,

utilizando-se como parâmetro normativo a Constituição Estadual.161 A supremacia da

Constituição Estadual tem que ser preservada tanto das inconstitucionalidades municipais

quanto das estaduais, devendo o poder decorrente estruturar a forma como ocorrerá o

controle de constitucionalidade.

Não há restrição alguma para a atuação do controle difuso em qualquer uma das

esferas de produção normativa. Os instrumentos jurídicos inerentes a esse sistema de

controle podem ser utilizados contra inconstitucionalidades perpetradas contra a

Constituição Federal ou Estadual e até mesmo contra ilegalidades contra a lei orgânica.

Explica o Ministro Paulo Brossard: “O nosso sistema constitucional não admite o

controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal em face da

Constituição Federal; nem mesmo perante o Supremo Tribunal Federal que tem, como

competência precípua, a sua guarda, art. 102. O único controle de constitucionalidade de lei

e de ato normativo municipal em face da Constituição Federal que se admite é o difuso,

160 “No entanto, tratando-se de violação da Constituição do Estado-membro por lei ou ato normativo municipal, as decisões proferidas por órgãos judiciais inferiores serão revistas tão-somente pelo Tribunal de Justiça, não cabendo o apelo extremo, à míngua de previsão constitucional [...]” XIMENES ROCHA, Fernando Luiz. Controle de Constitucionalidade das Leis Municipais. São Paulo: Atlas, 2002. P. 95. 161 Eis o teor do informativo n.º 193 do STF, no RE 176.484-SP, rel. Min. Marcos Aurélio: “Admite-se o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante tribunal de justiça estadual contra lei municipal frente a dispositivos da Constituição local, ainda que estes dispositivos sejam de reprodução obrigatória de normas da Constituição Federal”.

123

exercido “incidenter tantu”, por todos os órgãos do Poder Judiciário, quando do julgamento

de cada caso concreto”.162

A Constituição Federal outorgou competência aos Tribunais de Justiça dos Estados

para exercer a tutela constitucional das leis ou atos normativos estaduais e municipais, tendo

como parâmetro normativo a Constituição Estadual. Por previsão constitucional, os Estados-

membros poderão instituir representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos

estaduais ou municipais, em face da Constituição Estadual, desde que não seja conferida a

um único órgão a legitimação para impetrar as ações, como por exemplo ao governador do

Estado ou ao procurador-geral de justiça ou ao procurador-geral do Estado.

De forma cristalina disserta sobre o controle de constitucionalidade estadual Regina

Maria Macedo Nery Ferrari: “O controle da constitucionalidade das leis estaduais e

municipais frente à Constituição Estadual representa o modo mais característico de

asseguramento da autonomia estadual. Sendo a criação de uma Constituição forma de

exercício dessa autonomia, o mecanismo de controle do respeito à sua Lei Fundamental é,

também, afirmação desta”.163

Como já mencionado, a competência passiva pertence ao Tribunal de Justiça, e a

competência ativa pertence àqueles órgãos expressamente elencados na Lei Maior

Estadual.164

Via de regra, por força da simetria ou do princípio estabelecido, os textos

constitucionais estaduais repetem muitas das disposições dos mandamentos constitucionais,

engendrando uma sintonia normativa que aglutina os elementos da forma federativa de

Estado. Por esse motivo é bastante freqüente que uma norma ou ato normativo afronte ao

mesmo tempo a Constituição Federal e a Estadual, com o mesmo objeto e pedido. Quando

162 RJT 164/832, rel. Min. Paulo Brossard. 163 NERRY FERREIRA, Regina Maria Macedo. Controle da Constitucionalidade das Leis Municipais. 3 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. P..96. 164 O art. 60 da Constituição Estadual de Pernambuco outorga legitimação aos seguintes órgãos: Governador do Estado; Mesa da Assembléia Legislativa; Procurador-Geral de Justiça; os Prefeitos e as Mesas das Câmaras de Vereadores, ou entidades de classe de âmbito municipal, quando se tratar de leio ou ato normativo do respectivo município; os Conselhos Regionais das profissões reconhecidas, sediadas em Pernambuco; Partido Político com representação nas Câmaras Municipais, na Assembléia Legislativa ou no Congresso Nacional e Federação Sindical, sindicato ou entidade de classe de âmbito estadual.

124

esse tipo de inconstitucionalidade ocorrer, e sendo propostas duas ações diretas, uma para o

STF e outra para o Tribunal de Justiça, deve-se suspender a ação proposta perante a justiça

estadual até a decisão final do Supremo.165

Esse procedimento será utilizado se o objeto e o fundamento do pedido forem

idênticos. Se o objeto ou o fundamento do pedido for diverso, as ações serão julgadas pelo

Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal de Justiça.

No controle abstrato de constitucionalidade, seja em que nível for, a eficácia

temporal dos efeitos é ex nunc e a eficácia subjetiva erga omnes, com a conseqüente retirada

da norma do ordenamento jurídico. A abrangência dos efeitos prolatados pelo Tribunal de

Justiça situa-se dentro da sua esfera de competência. Haverá uma redução na extensão

subjetiva dos efeitos erga omnes se o objeto e o fundamento jurídico forem diversos. 166

Ocorrendo a afronta de uma lei municipal à Lei Orgânica Municipal (LOM), ter-se-á

uma ilegalidade, e não uma “inconstitucionalidade municipal”, apesar da LOM gozar de

supremacia em relação às demais normas do ordenamento jurídico municipal.

A Lei Orgânica se configura como a lei mais importante do ordenamento jurídico

municipal, a norma que ostenta maior grau de legitimidade dentre as normas locais. Ela é

elaborada mediante um procedimento mais difícil, que lhe garante supremacia,

imutabilidade relativa e supralegalidade. Para sua concretização, são necessários dois turnos

de votação, num prazo entre uma votação e outra de dez dias, com o quórum de dois terços

de seus membros, devendo ser promulgada pela Câmara Municipal. Destarte, pela forma

como ela foi elaborada, exigindo um procedimento mais difícil, a Lei Orgânica possui uma

maior legitimidade que as demais normas municipais.

165 Preliminarmente, o tribunal rejeitou o alegado prejuízo da ADIn pelo ajuizamento concomitante de representação de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará – contra a mesma norma em face do preceito da Constituição Estadual que reproduziu dispositivo da Constituição Federal, - e determinou a suspensão da representação perante o Tribunal de Justiça ate o julgamento da ADIn pelo STF. ADInMC 2. 361-CE, rel. Min. Maurício Corrêa. 166 PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade. Conceitos, Sistemas e Efeitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. P. 184.

125

Apenas no sentido figurado podemos afirmar que a Lei Orgânica representa uma

“Constituição Municipal”. Esta não foi a denominação escolhida pelo legislador constituinte

porque sua esfera de abrangência já foi bastante cerceada pela Constituição Federal e

Estadual. Depois da obediência dos princípios simétricos ou centrais e da preponderância do

interesse local, sobra muito pouco para a estipulação normativa dos Municípios. Ocorrendo

uma afronta aos seus dispositivos, é mais apropriado se falar em ilegalidade e não em

inconstitucionalidade.167

Qualquer afronta contra a Lei Orgânica, por parte de lei ou ato normativo municipal,

é um controle de legalidade, descabendo a terminologia de inconstitucionalidade, podendo

ser impugnado nas esferas judiciais devidas. O que se modifica é a terminologia, mas o

sentido de preservar a jurisdição da LOM é o mesmo; a norma municipal, que afrontar a Lei

Orgânica, deve ser declarada pelos órgãos judiciários como ilegal. Inclusive, se a afronta

atingir também a Constituição Federal, o litígio poderá chegar ao STF, através de recurso

extraordinário.

Portanto, não existe controle de constitucionalidade da LOM perante o Tribunal de

Justiça, devendo a norma ser retirada do ordenamento pelos meios ordinários existentes. O

prefeito municipal tem legitimidade para impetrar ação direta de inconstitucionalidade

perante o Tribunal de Justiça somente contra normas municipais que violem a Constituição

Estadual, e não contra normas municipais que violem a Lei Orgânica.168 Quando houver a

violação da LOM, podem ser ajuizados, de forma exemplificativa, um mandado de

segurança ou uma ação anulatória.

167 Preceitua o professor Roque Carrazza: “Parece-nos evidente que a Lei Orgânica do Município é dotada de maior positividade que as simples leis ordinárias municipais. Estas só serão válidas se e enquanto se adequarem àquela. Em termos mais precisos, as leis ordinárias municipais haurem a validade e a legitimidade na Lei Orgânica do respectivo Município. Estão em patamar inferior da chamada “pirâmide jurídica”. Havendo, pois, um descompasso entre elas, prevalecerá a de maior hierarquia jurídica: a Lei Orgânica municipal”. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 5ª ed., São Paulo: Malheiros, 1993. P. 103. 168 Considerando que o controle abstrato de lei ou ato normativo municipal somente é admitido em face da Constituição estadual, perante o tribunal de justiça, a turma manteve acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que julgara prefeito carecedor da ação direta de inconstitucionalidade interposta contra lei municipal em face da lei orgânica do mesmo município. RE 175.087-SP, rel. Min. Néri da Silveira.

126

7.) Controle Concentrado

O sistema concentrado de controle de constitucionalidade no Brasil, nos últimos

anos, vem evoluindo de forma bastante intensa.Sua função principal é velar pela integridade

sistêmica do ordenamento jurídico, expurgando antinomias que poderiam diminuir a força

concretiva dos mandamentos constitucionais. Apesar de o s cidadãos não terem legitimidade

ativa para exercer esse tipo de controle, sua relevância para a salvaguarda dos direitos

fundamentais e o aperfeiçoamento da jurisdição constitucional se configuram como

primordiais.

A restrição para a sua impetração não diminui a sua magnitude como instrumento da

sociedade civil para o aprimoramento da tutela dos direitos fundamentais. As demandas

sociais podem ser impetradas pelos elencados na tipificação restritiva do art. 103 da

Constituição Federal devido à pressão da sociedade. Órgão mais vulnerável ao sentimento

popular como os partidos políticos , confederação sindical, entidade de classe, Procurador-

Geral da República freqüentemente encampam as reivindicações e oferecem a respectiva

ação cabível.

Em uma releitura do sistema concentrado de controle de constitucionalidade, o

elemento essencial é a democratização do processo de decisões proferidas pelo Supremo

Tribunal Federal, permitindo uma maior intervenção dos setores organizados da sociedade,

dentro da perspectiva de um relacionamento dialógico, que é um dos fatores densificadores

da legitimação da jurisdição constitucional.

127

7.1) Ação Direta Interventiva

A ação direta interventiva, surgida no Brasil pela Constituição de 1934, até a Emenda

Constitucional 16/65 que instituiu a representação de inconstitucionalidade, foi o instituto

jurídico mais próximo do controle abstrato que conhecemos atualmente. Ela se configura

como um tertium genus, uma ação híbrida que não pode ser classificada como controle

abstrato ou como controle incidental.169

Suas características destoam das ações pertinentes ao controle abstrato porque se

aplica a um caso concreto específico. Seu objetivo não é apenas retirar uma norma do

ordenamento jurídico, mas incidir em uma realidade concreta e reparar a afronta contra

princípio sensível. A decisão de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo configura-se

como pressuposto para a decretação da intervenção. Diferentemente de um processo abstrato

em que inexistem partes, a ação direta interventiva tem duas partes nítidas: o Procurador-

Geral da República, que representa os interesses da União, e o ente político, que descumpriu

os princípios sensíveis. Igualmente difere dos remédios pertinentes ao controle incidental

porque a sua titularidade é restrita ao Procurador-Geral da República, os seus efeitos são

erga omnes e suspende a norma do ordenamento jurídico.

A ação direta interventiva tem o escopo de decretar a intervenção no ente federativo

que descumpriu os chamados princípios sensíveis.170 A intervenção é o remédio peculiar das

formas de estado federativas que permite a coexistência da pluralidade de ordenamentos

jurídicos, constituindo-se na principal sanção política existente no ordenamento para os

entes políticos que descumpriram os mandamentos constitucionais essenciais para o

169 “A Constituição de 1934 institui uma ação direta que, conquanto não inaugure um mecanismo abstrato de fiscalização de constitucionalidade (julgamento da ação constitui pressuposto da decretação da intervenção federal), não se reconduz à configuração da fiscalização incidental. Cuida-se de procedimento fincado a meio caminho entre a fiscalização da lei in thesi e aquela realizada in casu. Trata-se, pois, de uma variante da fiscalização concreta realizada por meio de ação direta”. CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. P. 125. 170 SARAIVA, Paulo Lopo. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Acadêmica, 1995. P. 1995.

128

equilíbrio federativo.171 A ação interventiva é um instrumento jurídico que busca retirar do

ordenamento determinadas estruturas normativas que atentem contra princípios considerados

essenciais para o Estado Democrático Social de Direito, os princípios sensíveis. Por

intermédio desse instituto, a União pode intervir nos Estados-Membros, e estes podem

intervir nos Municípios, quando houver infringência a preceitos considerados

imprescindíveis à Carta Magna.

A ação direta interventiva não pode ser enquadrada perfeitamente como uma ação do

controle abstrato porque sua finalidade não é apenas jurídica, existindo ainda contornos

políticos. Sua finalidade é jurídica no sentido que ela contribui para assegurar a supremacia

das normas constitucionais, expurgando do ordenamento as normas declaradas

inconstitucionais. Sua finalidade igualmente é política porque ela visa resguardar a forma de

estado federativa, realizando a intervenção no ente que descumpriu os princípios sensíveis.

A legitimidade para impetrar uma ação direta interventiva não é conferida a todos os

legitimados do art. 103 da Constituição. Por ter como finalidade precípua a guarda do

modelo federativo, a legitimidade para propor a ação interventiva é do Procurador-Geral da

República, em âmbito federal, e do Procurador-Geral de Justiça, em âmbito estadual. O

Procurador-Geral da República não atua representando interesses da União de forma

específica, exerce as suas funções resguardando os princípios sensíveis que são do interesse

de todos os entes políticos e da própria cidadania. Não há atuação do Advogado-Geral da

União.

Por causa de um crasso erro terminológico, os constituintes de 1988 denominaram de

representação a peça processual elaborada pelo Procurador-Geral da República. Não se trata

de representação porque inexiste a formulação de um consulta; trata-se de uma verdadeira

ação, uma ação interventiva dirigida ao Supremo Tribunal Federal.

171 Leciona Sampaio Doria: “A autonomia dos Estados, embora não extensa, entre nós, como a dos Estados na União Americana, ainda assim consiste no exercício de poderes imperativos de grande importância. Podem ser classificados em quatro categorias: 1º) atribuições políticas; 2º) legislação privativa ou cooperativa com a da União; 3º) decretação de tributos; e 4º) organização de serviços sociais” DORIA, A. de Sampaio. Direito constitucional. Teoria geral do estado. 5. ed. São Paulo: Max Limonad, s/d. v. 1. P. 518.

129

Quando chegar ao Pretório Excelso será nomeado um relator que ouvirá no prazo de

trinta dias (art. 352 do RISTF) o órgão que haja elaborado o ato que está sendo impugnado.

Apresentada, as informações, serão abertas vistas para que o Procurador-Geral da República

possa elaborar o seu parecer. Após, é marcada a sessão de julgamento em que o Procurador-

Geral da República e o representante do órgão impugnado poderão usar da palavra. A

decisão apenas poderá ser proferida pela maioria absoluta dos ministros do STF, presentes

dois terços deles.

Se o Supremo Tribunal Federal entender pelo deferimento da ação direta

interventiva, será lavrado um provimento que é enviado ao Presidente da República. Inexiste

caráter discricionário para a apreciação por parte do Chefe do Executivo. Ele,

obrigatoriamente, terá que decretar a intervenção, sob pena de imputação em crime de

responsabilidade. O decreto que estabelecer a intervenção estipulará as medidas a serem

tomadas, o prazo de sua duração e a sua amplitude.

Realizada a intervenção, o princípio sensível que fora afrontado será preservado. O

efeito da ação interventiva é fazer com que o ente que descumpriu o preceito sensível corrija

seu gravame. Na maioria dos casos, a exclusão da norma infratora do ordenamento jurídico

restabelece a normalidade constitucional. Caso seja necessário, pode-se nomear um

interventor para o exercício de funções administrativas. A autoridade que sofreu a

intervenção poderá voltar ao seu cargo, após o cumprimento das medidas, se não houver

concorrido para a perda da autonomia.

O procedimento da ação direta interventiva configura-se como um ato complexo, em

que atuam órgãos diversos para a feitura da sua concretização. O Procurador-Geral da

República dispõem de liberdade para aferir se há condições jurídicas para se impetrar a

mencionada ação direta; o Supremo Tribunal Federal tem a prerrogativa de verificar o

mérito do pedido; o Presidente da República fica vinculado ao provimento, mas a

intervenção somente se concretiza com a feitura do decreto presidencial.

Justamente por ser um ato complexo, o pedido de ação direta interventiva não

comporta medida cautelar. A decisão do Supremo Tribunal Federal por si só não acarreta a

intervenção, somente com o decreto presidencial é que ela se perfaz. Então, impossível

130

conjecturar que uma antecipação da decisão meritória pudesse adiantar algo que nem a

decisão final tem condições jurídicas de realizar. Outrossim, a intervenção federal, por

representar uma exceção ao princípio federativo, inclusive protegido como cláusula pétrea,

não pode ser realizado por uma medida cautelar que tem a transitoriedade como uma de suas

características.

A ação direta interventiva, como fora mencionado anteriormente, tem a finalidade de

assegurar a observância dos princípios sensíveis, tidos como imprescindíveis ao

ordenamento jurídico. O § 3º do art. 36 da Constituição Federal menciona que o acinte aos

princípios sensíveis é provocado por um “ato impugnado”, considerando-o como qualquer

ação ou omissão, praticada por ente público ou privado, seja lei ou ato normativo, que atente

contra os princípios sensíveis.

São princípios sensíveis:

a) a forma republicana, o sistema representativo e o regime democrático. Por preservar a

república, o Professor Pinto Ferreira afirma que essa forma de governo é cláusula pétrea, não

obstante o plebiscito que foi previsto no art. 2º do ADCT.172 Revela a importância do

princípio republicano Geraldo Ataliba: “Como princípio fundamental e básico, informador

de todo o nosso sistema jurídico, a idéia de república domina não só a legislação, como o

próprio Texto Magno, inteiramente, de modo inexorável, penetrando todos os seus institutos

e esparramando seus efeitos sobre seus mais modestos escaninhos ou recônditos

meandros”173

b) direitos da pessoa humana, que são todas as prerrogativas referentes ao cidadão contidas

na Constituição, especialmente as relacionadas nos arts. 5º ao 17;

172 Art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (Parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no país”.

173 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1988. p. 32.

131

c) autonomia municipal. Os Municípios, que a partir da Constituição de 1988 fazem parte da

Federação, têm assegurado as suas prerrogativas de autogoverno, traduzidas na garantia de

autonomia; 174

d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta;

e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos, compreendida a

proveniente de transferências na manutenção e desenvolvimento do ensino, e nas ações e

serviços públicos de saúde. O mínimo exigido na manutenção e desenvolvimento do ensino

é de vinte e cinco por cento da receita proveniente de impostos para os Municípios e para os

Estados-Membros.

Para o aprimoramento da jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal

Federal, no sentido de aumentar a legitimação de sua atuação e densificar a concretude dos

direitos fundamentais, a ação direta interventiva configura-se como um instrumento

imprescindível. Ela será de suma importância para garantir o entrenchement dos direitos

fundamentais, principalmente nos Estados e Municípios, o que permite que a trincheira dos

direitos possa evoluir consonante as demandas sociais.

A sua atuação ultrapassa o aspecto positivo para abranger os acintes por omissão aos

direitos fundamentais. Os entes federativos que não cumprirem os seus deveres, assegurados

pela determinação do seu conteúdo mínimo, devem ser compelidos a sua execução, sob pena

de ser decretada a intervenção, mormente se houver descumprimento de normas

programáticas que delineiam o Estado Democrático Social de Direito brasileiro. De nada

valem as leis se elas não são implementadas na realidade fática. De melhor forma sintetiza

Pontes de Miranda: “que mesmo existindo Constituição ou lei perfeitamente acorde com os

princípios enumerados como sensíveis, se não esteja a realizar, como fora de mister, a vida

174 Com base na jurisprudência do STF, o Tribunal declarou incidentalmente a inconstitucionalidade da Lei 6.570/88, do Município de Goiânia, que estabelecia o reajuste automático de servidores municipais pela variação do IPC, por ofensa ao princípio da autonomia municipal. RE 247. 387-GO, rel. Min. Néri da Silveira.

132

das instituições estaduais. Um inciso atende à letra; outro, à prática da Constituição estadual

e das leis estaduais”.175

7.2) Ação Direta de Inconstitucionalidade

A ação direta de controle de constitucionalidade originou-se da Emenda n.º 16 à

Constituição de 1946, em 26.11. 65. A mencionada emenda deveu-se aos estudos realizados

por uma comissão composta pelos seguintes juristas: Orozimbo Nonato, Prado Kelly

(relator), Daria de Almeida Magalhães, Frederico Marques e Colombo de Souza.

Como nas ações diretas de controle de constitucionalidade não se pode propriamente

falar em partes porque a legitimidade independe de qualquer interesse específico a ser

protegido, sua finalidade é assegurar integridade ao ordenamento jurídico, expurgando as

leis e atos inconstitucionais. Sua natureza é de uma verdadeira ação, descabendo a

terminologia de representação de inconstitucionalidade como era tratada pela Constituição

de 1967/69.

Uma vez impetrada qualquer tipo de ação de controle direto de constitucionalidade

não cabe desistência do pedido, em virtude do objeto litigado ser um bem de ordem pública.

Essa vedação é decorrente do princípio da indisponibilidade dos interesses públicos que

garante a tutela do ordenamento jurídico, em que descabe decisão volitiva com relação ao

seu prosseguimento. 176 Não cabe desistência porque não há interesse subjetivo a ser

tutelado; existe um interesse difuso, com o objetivo de manter a rigidez do sistema

constitucional.

Não há prazo decadencial para a propositura de ações diretas que visem a resguardar

a supremacia da Constituição porque não se trata de processo subjetivo, em que o lapso 175 PONTES DE MIRANDA, Francisco de Paula. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969. Tomo II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. P. 219. 176 Decisão do STF na ADIn 2.188-RJ, rel. Min. Néry da Silveira.

133

temporal pode acarretar a decadência de direitos. Enquanto a norma permanecer com

vigência no ordenamento jurídico, podem ser impetradas ações diretas para a sua expulsão.

A suspeição revela-se incabível nas ações abstratas porque qualquer interesse

subjetivo manifesta-se incabível com o desiderato da ação. Contudo, ela é compatível com o

impedimento que pode ocorrer quando o Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral

da República que antes atuaram em uma determinada ação devem atuar no seu julgamento

na qualidade de ministro do STF.

O sistema direto atinge a lei em tese, que é abstrata, genérica e impessoal.177 A

norma declarada inconstitucional por via direta é imediatamente expulsa do ordenamento

jurídico. Os seus efeitos são erga omnes e ex tunc, ceifando todos os resultados produzidos

pela norma jurídica, com efeitos retrooperantes.178 Uma exceção aos efeitos ex tunc foi

implementada pela Lei 9.868/99 que abre a possibilidade desses efeitos serem ex tunc ou pro

futuro, desde que se atinja o quórum de dois terços dos ministros do STF e que seja

motivado por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

Na sua extensão temporal, a norma ou ato normativo declarado inconstitucional é ex

tunc, sendo, portanto, nulo, com a sua retirada do ordenamento jurídico, sem a necessidade

de atuação de nenhum outro órgão ou poder. Na sua extensão subjetiva, ela é erga omnes,

atingindo a todos que se encontrem na mesma situação. A abrangência dos efeitos da

decisão do Supremo Tribunal Federal são retrooperantes, isto é, retroagem até o nascimento

da lei ou ato que afronte a Constituição.

A declaração de inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo opera efeitos de

forma imediata, sem necessitar de apreciação pelo Senado Federal como a que pode ocorrer

no caso do controle difuso, quando o Supremo Tribunal Federal declarar a lei

inconstitucional e o Senado, por ato discricionário, estender os seus efeitos, tornando-os

erga omnes.179 Caso haja qualquer aplicação de lei inconstitucional, após a sua declaração

177 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996. P. 154. 178 Já houve pacificação na doutrina de que a norma declarada inconstitucional por via direta é imediatamente retirada do ordenamento jurídico, sem necessitar de uma resolução do Senado. 179 “Na hipótese de controle por via de ação direta, por serem erga omnes os efeitos do julgamento, desnecessária será a intervenção do Poder Legislativo (leia-se Senado), como, aliás, observava o Min.

134

pelo STF, o ato resultante será tido como juridicamente inexistente, não necessitando de

decisão do Poder Judiciário para a sua não obediência.180

Como toda sentença, as decisões das ações diretas de inconstitucionalidade são

formadas por três partes: relatório, fundamentação e dispositivo. O efeito erga omnes reside

apenas na parte dispositiva da sentença judicial, sem a abrangência desses efeitos para o

relatório e a fundamentação.

A decisão da ação direta de inconstitucionalidade, que é proferida de forma colegiada

pelo Supremo Tribunal Federal, pelas relevantes conseqüências que provoca no meio

jurídico apenas pode ser prolatada depois de ser alcançado um determinado quórum que se

denomina de reserva de plenário. Este quórum é formado pela maioria absoluta dos

membros do órgão competente para a decisão, estando presentes no mínimo dois terços dos

seus membros. No controle difuso, que se realiza em juízos monocráticos, a decisão do juiz

singular é suficiente para declarar a sua inconstitucionalidade.

Frise-se que no controle concentrado de constitucionalidade, o pedido se direciona

no sentido de declarar, por parte do órgão do Poder Judiciário, a inconstitucionalidade da lei

ou ato normativo em abstrato, retirando-a do ordenamento jurídico, sem a indagação de sua

incidência em fatos concretos ou de efeitos em qualquer eventual relação jurídica. Assim,

não há necessidade de instrução probatória ou cotejamento dos fatos, não influenciando a

seara fática no teor da decisão da ação proposta.

Thompson Flores (18.4.77), à época Presidente do STF e, mais recentemente, o Min. Carlos Mário da Silva Velloso na conferência O Controle da Constitucionalidade das Leis na Constituição Brasileira de 1988”. DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição. Do Controle de Constitucionalidade como Garantia da Supralegalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. P. 117. 180 Em sentido contrário há no direito europeu alguns autores que se posicionam no sentido de que a jurisdição constitucional não pode retirar uma norma do ordenamento jurídico: “A pronúncia de inconstitucionalidade de uma lei ou de um ato administrativo por parte da Corte Suprema não pode, devido ao princípio da separação dos poderes, ter eficácia imediata de caráter geral; tal decisão, em fato, conduz a solução do caso concreto, mas não provoca de forma imediata a nulidade da lei ou sua ineficácia. A lei ou ato continua plenamente em vigor. Mas a decisão da Corte praticamente anula a lei inquinada de inconstitucionalidade, pela eventualidade da mesma declaração nas sucessivas controvérsias a esse respeito”. NEGRI, Guglielmo. Il Sistema Político degli Stati Uniti d’America. Le Istituzioni Costituzionali. 3 ed., Pisa: Nistri-Lischi, 1969. P. 265.

135

Embora a matéria das ações do controle direto de constitucionalidade seja

eminentemente de direito, há alguns casos em que a seara fática assume relevância, quando,

por exemplo, houver a imputação de inconstitucionalidade formal por ausência do devido

processo legal legislativo, apresentando-se a necessidade de se provar a existência do vício.

É considerado pacífico, tanto na doutrina como na jurisprudência, que não cabe ação

direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato de efeito concreto, ainda que seja uma lei

que fora promulgada com objetivo determinado e sujeitos específicos, porque não regula

situações abstratas, faltando-lhes densidade normativa.

Em princípio, não pode haver cumulação objetiva em sede de ação direta de

inconstitucionalidade, isto é, como regra, configura-se inadmissível impetrar uma mesma

ação direta de inconstitucionalidade para que seja declarada a inconstitucionalidade de uma

lei federal e de outra estadual.181 Todavia, ela é necessária para argüir a

inconstitucionalidade de leis ou atos normativos de entes diversos da federação quando entre

os dois dispositivos legais há um liame inexorável. Ela deve ocorrer nos seguintes casos: a)

quando existir uma relação substancial entre a norma federal e a estadual, em decorrência de

que a cumulação objetiva é requisito para garantir viabilizar a eficácia do provimento

judicial; b) quando houver uma relação material entre dois dispositivos legais, de diversos

órgãos federativos, que a inconstitucionalidade de um possa tornar-se questão prejudicial do

outro.

Exemplo do primeiro caso ocorre na área de competência concorrente da União e dos

Estados quando a lei federal de normas gerais e a lei estadual específica contiverem

conteúdos normativos idênticos ou similares, necessitando, assim, da cumulação objetiva

para assegurar a eficácia do provimento judicial. O segundo caso pode ser exemplificado

quando a declaração de inconstitucionalidade de um dispositivo normativo federal acarretar

a prejudicialidade de uma norma estadual.

181 Em princípio, não é de se admitir, no mesmo processo de ação direta, a cumulação de argüições de inconstitucionalidade de atos normativos emanados de diferentes entes da Federação, ainda quando lhes seja comum o fundamento jurídico invocado. ADI (QO) N. 2.844-PR.

136

A ação direta de inconstitucionalidade, pela previsibilidade do seu procedimento e

pelo seu caráter dialógico, representa uma forma de legitimação procedimental que acrescida

às demais formas de legitimações preconizadas neste trabalho, alicerçará a expansão da

atuação do Supremo Tribunal Federal.

7.2.1) Legitimidade para a Propositura da Ação Direta de

Inconstitucionalidade

Como a ação direta de inconstitucionalidade é um processo objetivo, com a

finalidade de expulsar a norma do ordenamento jurídico, não se pode falar na existência de

partes em conflito, de lide, ou de disputa pela posse de um objeto jurídico. Embora não haja

partes formais, a existência de pólos processuais ativo e passivos resta evidente. Por isso,

configura-se possível falar em legitimidade ativa e passiva. A legitimidade ativa pertence a

um dos órgãos elencados na Lei Maior. A legitimidade passiva pertence à autoridade ou

órgão legislativo responsável pela promulgação do ato impugnado.

A Constituição Federal, de forma exaustiva, catalogou no art. 103 da Carta Magna os

órgãos que podem exercer a ação direta de inconstitucionalidade, que são os mesmos

legitimados para propor a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e a ação

declaratória de constitucionalidade. São eles: o Presidente da República; a Mesa do Senado

Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados; a Mesa de Assembléia Legislativa; o

Governador de Estado e do Distrito Federal; o Procurador-Geral da República; o Conselho

Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no

Congresso Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.182

182 Foi negado competência para a Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente propor ação direta de inconstitucionalidade, alegando o STF falta de legitimidade por não se caracterizar como uma entidade de classe de âmbito nacional para efeitos do art. 103 da Constituição Federal.

137

É o que a doutrina denomina de legitimatio ad causa, ou seja, legitimidade para

propor as ações diretas do controle concentrado em juízo, que é restrita aos entes delineados

supra. Ela se configura como um dado neutro, que não se constitui como objeto de interesse

nem público, nem privado, atuando como limite para a proteção dos dois.183 Funciona como

um pré-requisito para a atuação da jurisdição constitucional, que somente pode atuar quando

houver o impulsionamento por parte desses órgãos.

A legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade pode ser classificada

em legitimidade universal, sem qualquer impedimento quanto ao objeto, ou legitimidade

especial, restrita quanto ao objeto apreciado, configurando-se como um requisito objetivo.

A competência especial ocorre quando há necessidade de se demonstrar a pertinência

temática, ou seja, tem que ficar claro que o impetrante tem interesse direto na lei que está

sendo objeto de impugnação. Possuem competência especial a Mesa da Assembléia

Legislativa, o Governador de Estado ou do Distrito Federal e a confederação sindical ou

entidade de classe de âmbito nacional que, para impetrar ADIn, devem provar a existência

da pertinência temática.

Nelson Nery Jr. considera como incongruência do STF a necessidade de se exigir

pertinência temática para a associação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Explica: “Incoerência porque de um lado afirma, de forma correta e precisa, que se trata de

processo objetivo, no qual não há lugar para dedução de interesse ou direito subjetivo de

quem quer que seja. De outro lado, exige que o co-legitimado da CF 103 IX e LADIn 2º, IX

demonstre seu interesse em ajuizar a ação direta. O STF fala na ilegitimidade de parte, mas

na essência não se trata de discutir a legitimidade para propor a ação direta, que essas

entidades, preenchido o requisito constitucional (CF 103 IX), efetivamente têm. Trata-se,

isto sim, de discutir a razão pela qual aquela entidade quer ver o controle abstrato da norma

183 LUCA CONTI, Gian. L’Interesse al Processo Nella Giustizia Costituzionale. Torino: Giappichelli, 2000. P.104.

138

efetivado pelo STF. A questão é, portanto, de interesse processual e não da legitimidade da

parte.184

Os demais legitimados têm a denominada legitimidade universal, podendo propor

ação de inconstitucionalidade acerca de qualquer tema, havendo ou não pertinência temática.

Têm competência universal: o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa

da Câmara dos Deputados, o Procurador-Geral da República, Conselho Federal da Ordem

dos Advogados do Brasil e o partido político com representação no Congresso Nacional.185

Se o Presidente da República participa do processo legislativo e deve aplicar as

normas formuladas, nada mais justo do que ele participe da fiscalização abstrata do

ordenamento jurídico. Ele tem competência para impetrar uma ADIn, mesmo que tenha

sancionado a norma anteriormente.186 O fato do Chefe do Executivo poder exercer o veto,

nos termos do art. 66 da CF, não retira a sua legitimidade para ajuizar uma ação direta de

controle de constitucionalidade. Por circunstâncias diversas, pode ocorrer que a evidência da

inconstitucionalidade apenas se verifique na aplicação da norma ou do ato normativo, o que

respalda tal prerrogativa do Presidente da República.

Uma vez realizada a sanção, o Presidente não pode voltar, o que denota o seu caráter

de irretratabilidade. Contudo, uma vez realizada a sanção, não há impedimento para o

ajuizamento de uma ação direta por parte do Chefe do Executivo, pois a eiva de

inconstitucionalidade pode não ter sido percebida nesse momento ou restar clarividente a

posteriori. Sancionado a lei por equívoco, não pode o Presidente da República ser obrigado

a persistir no erro, sob pena de se incentivar anacronismos à Constituição.

184 NERY, Nelson Jr. Recursos na ação Direta de Inconstitucionalidade e na Ação Declaratória de Constitucionalidade – Apontamentos sobre os recursos na LADIn (L 9.868/99). In: Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. P. 499. 185 Outro exemplo de falta de pertinência temática pode ser encontrado quando o STF não reconheceu ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada pela Mesa da Assembléia Legislativa do Estado do Paraná, contra o art. 93, VI, que traça os parâmetros para aposentadoria dos magistrados, por carecer a Mesa citada de interesse para tratar do assunto. (ADIn, 2.242-PR) 186 O Min. Celso de Mello firmou jurisprudência no sentido de que, no âmbito das ações diretas, pela qual os co-legitimados têm capacidade postulatória especial, não há necessidade de as petições serem assinadas por advogados. ADIn 127-2/AL, 04/12/92.

139

A legitimidade para impetrar ações diretas de controle de constitucionalidade por

parte da Mesa do Senado Federal, da Mesa da Câmara dos Deputados e da Mesa das

Assembléias Legislativas confere uma importante prerrogativa ao Poder Legislativo, tanto

em nível federal como em nível estadual, possibilitando que esse Poder possa exercer uma

vigilância da constitucionalidade das leis e atos normativos. É de ressaltar que como a

composição das respectivas Mesas é realizada proporcionalmente de acordo com as forças

partidárias existentes no parlamento, apenas as maiores forças compõem o órgão de direção

legislativo, relegando às minorias partidárias o direito de ajuizar ações diretas. Por esse

motivo, a missão de proteger a representação das minorias foi outorgado aos partidos

políticos que tenham ao menos um representante no Congresso Nacional.

Os partidos políticos passaram a ter legitimidade para impetrar ações diretas de

controle de constitucionalidade para assegurar as minorias parlamentares o direito de zelar

pela supremacia constitucional e para incentivar o desenvolvimento da cidadania ativa na

coletividade. Devido à multiplicidade de partidos políticos existentes no Brasil, muitos dos

quais sem nenhum tipo de representação social, exige-se que o partido político disponha ao

menos de um representante no Congresso Nacional, seja na Câmara dos Deputados, seja no

Senado Federal.

Como requisito para que os partidos políticos possam impetrar ações do controle

abstrato de constitucionalidade, é necessário que não somente no momento da impetração

mas também durante a tramitação processual da ação eles mantenham a sua representação

no Congresso Nacional, seja no Senado Federal, seja na Câmara dos Deputados.187

Se houver a perda superveniente da bancada parlamentar no Congresso Nacional, o

partido político fica desqualificado na sua legitimidade ativa para prosseguir na ação direta

187 Preliminarmente, quanto à legitimidade para propositura da ação direta de inconstitucionalidade, tem-se que o constituinte de 1988 ao conceder aos partidos políticos a legitimação ativa universal, exigiu que os mesmos tivessem representação no Congresso Nacional. Todavia, observa-se, no presente caso, que a ação foi proposta em junho de 2000, sendo que, após as eleições de 2002, o Partido Social Liberal – PSL, conforme certidão em anexo, não mais possui representação no Senado Federal nem tampouco na Câmara dos Deputados. Assim sendo, a perda superveniente da bancada parlamentar no Congresso Nacional desqualifica a legitimidade ativa do partido político para prosseguir no processo de controle abstrato, devendo a presente ação ser extinta sem julgamento do mérito ADI 2.070-DF, rel. Min. Maurício Corrêa.

140

de inconstitucionalidade.188 A legitimidade das partes é uma condição de ação e como tal

deve estar presente durante todo o trâmite do processo. Se por acaso esta condição deixar de

existir, caracterizando uma carência superveniente, o processo deve ser extinto sem

julgamento do mérito.

O órgão do partido político que pode decidir acerca da feitura da referida ação é

exclusivamente o diretório nacional ou um órgão que tenha as suas funções, não podendo

essa decisão ser tomada por órgãos regionais.

Outra importante inovação da Constituição de 1988 foi o de outorgar legitimidade às

confederações sindicais e às entidades de classe de âmbito nacional. Ao possibilitar que as

referidas entidades sindicais e classistas possam exercer o controle de constitucionalidade,

democratiza-se a fiscalização da Lei Maior, mormente porque possibilita-se a órgãos

representantes da classe trabalhadora a fiscalização constitucional.

Esclareça-se que a Carta Magna apenas permitiu a legitimidade ativa por parte das

confederações sindicais e não por parte das federações sindicais. As confederações e as

federações são entidades sindicais de grau superior.Confederação sindical é a organização de

uma mesma categoria econômica ou profissional, com âmbito e representação nacional. As

federações são constituídas nos Estados, reunindo no mínimo cinco sindicatos de uma

mesma categoria profissional ou econômica. A regra é que apenas existam federações

estaduais, podendo, como exceção, existir federações interestaduais.

O conceito de entidade de classe pode ser definido como uma associação de pessoas

que em essência representa o interesse comum de uma determinada categoria, não podendo

ser formada por associados pertencentes a categorias diversas. Para fazer jus a legitimidade

conferida pelo art. 103 da Constituição Federal, deve ser estruturada em âmbito nacional.

Igualmente deve ser constituída atendendo a todos os requisitos legais e não pode ser

formada de forma casuística.189

188 ADIn 2.060-RJ, rel. Min. Celso de Mello. 189 ADIn n.º 1599-DF, cujo relator foi Maurício Corrêa, em que foi negado legitimidade ad causam para a Associação Nacional de Professores Universitários e para a Federação Nacional dos Professores Universitários.

141

O Supremo sedimentou entendimento no sentido de que as “associações de

associações”, como por exemplo, a Associação Regional dos Juízes Classistas do Trabalho,

carece de competência para impetrar ADIn porque não é uma entidade de classe de âmbito

nacional. Neste caso, as ações não são conhecidas por ilegitimidade ativa ad causam do

requerente.190

A única entidade autárquica de representação profissional que tem competência para

impetrar ação direta de inconstitucionalidade é a Ordem dos Advogados do Brasil, OAB,

tendo já o Supremo Tribunal Federal pacificado a matéria.191 Essa prerrogativa deferida à

OAB deveu-se ao múnus público que os advogados têm na defesa da legalidade e do Estado

Democrático Social de Direito, devendo ser vista como um encargo e nunca como um

privilégio.

Como o Distrito Federal tem as mesmas competências dos Estados-Membros e dos

Municípios, até porque o princípio isonômico é uma constância na estrutura federal

brasileira, mesmo com a omissão no art. 103 da Constituição, a doutrina e a jurisprudência

consideram que o Governador do Distrito Federal tem competência para impetrar ação direta

de inconstitucionalidade. Essa omissão foi suprida pela Lei n.º 9.868/99, que asseverou que

o Governador do Distrito Federal tem competência para impetrar ação direta de

inconstitucionalidade, dirimindo qualquer dúvida a respeito de sua legitimidade.

Uma das mais importantes inovações no controle de constitucionalidade brasileiro

foi o aumento no número de legitimados que podem propor as ações do controle abstrato,

com exceção da ação direta interventiva, por causa de suas peculiaridades próprias, e da

ação declaratória de constitucionalidade, por uma teratologia jurídica. Anteriormente, a

competência era restrita ao Procurador-Geral da República, tradição histórica que começou

com a ação direta interventiva, no Texto de 1934, e continuou sendo seguida, inclusive na

Constituição de 1967/69. O Procurador-Geral da República além de ser o chefe do

190 O Min. Neri da Silveira decidiu que a ABIA, Associação Brasileira de Indústrias de Alimentação, não tem legitimidade ativa para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade por não se caracterizar como uma entidade de classe de âmbito nacional, mas sim como uma “associação de associações” que representa pessoas jurídicas e não pessoas físicas, para efeito do art. 103. Com esse entendimento, o Tribunal negou provimento a agravo regimental em ação direta de inconstitucionalidade. 191 ADIn 1463-RS, rel. Min. Ilmar Galvão.

142

Ministério Público, cumulava ainda as funções de assessoria e representação do Poder

Executivo, função que foi extinta com a Constituição de 1988 que instituiu a Advocacia-

Geral da União.

A exclusividade de ação por parte do Procurador-Geral da República era um traço

autoritário das Constituições anteriores. Como o Presidente da República o indica e pode

destituí-lo, mesmo necessitando da autorização por parte do Senado Federal, a sua

independência na aferição do controle de constitucionalidade fica bastante comprometida.

Diante desse vínculo inexorável do Procurador-Geral da República como o Chefe do

Executivo, concentrar a legitimidade das ações diretas em suas mãos fragilizava a jurisdição

constitucional e deixava de sedimentar a sua legitimidade.

Seguindo o disposto no art. 103, § 1º da Constituição Federal, o Procurador-Geral da

República tem que se manifestar em todos os feitos de competência do Supremo Tribunal

Federal, o que abrange as ações do controle abstrato de constitucionalidade. Todavia,

quando o Procurador-Geral da República impetrar uma ação direta de inconstitucionalidade,

ele não pode ser ouvido posteriormente como custos legis, fiscal da lei, haja vista ter perdido

a imparcialidade por pugnar pela declaração de inconstitucionalidade da norma.

O grande erro do legislador constituinte de 1988 foi o de não ter criado uma actio

popularis para a defesa da supremacia constitucional e que ao mesmo tempo pudesse ajudar

a sedimentar a legitimidade da jurisdição popular. Essa actio popularis poderia ter o mesmo

formato que uma iniciativa popular, exigindo uma determinada representação popular para

ser impetrada. Por outro lado, ela ajudaria a formar, mediante os debates públicos, um certo

consenso que juntamente com o caráter dialógico da legitimação procedimental

aumentariam a justificativa das decisões do Supremo Tribunal Federal.

143

7.2.2.) A Atuação do Advogado-Geral da União

A figura do Advogado-Geral da União foi criada na Constituição de 1988 com o

propósito de exercer a representação e consultoria do Poder Executivo que até então era

realizada pelo Procurador-Geral da República. Sua atuação foi regulamentada no art. 103 §

3º da Carta Magna que dispõe que, quando o STF apreciar a inconstitucionalidade de uma

lei em tese, previamente, citará o Advogado-Geral da União que defenderá o texto

impugnado.

O fator teleológico que levou a sua atuação no controle abstrato de

constitucionalidade foi o de intensificar o contraditório na ação direta de

inconstitucionalidade. Ele funciona como um amicus curiae, assumindo a posição de

curador da norma impugnada, com o dever de pugnar pela sua constitucionalidade. Mesmo

que o órgão ou autoridade responsável pela norma deixe de se pronunciar na defesa do ato

impugnado, sempre cabe ao Advogado-Geral da União garantir a sua defesa. A função de

curador da constitucionalidade das normas foi originariamente criada por Kelsen, na

Constituição austríaca de 1920.

O Advogado-Geral da União deve ser ouvido em todas as ações diretas de

inconstitucionalidade, dentro do prazo de quinze dias. Na ação direta de constitucionalidade

não tem sentido a sua manifestação porque o pedido já é para a declaração de

constitucionalidade da lei ou ato normativo. Na ação de descumprimento de preceito

fundamental, ele pode ser ouvido como amicus curiae.

Em regra, a atuação do Advogado-Geral da União será sempre pautado pela defesa

da inconstitucionalidade do ato impugnado. Todavia, em consonância com a finalidade de

sua criação, representação e consulta do Chefe do Executivo, ele poderá omitir-se,eximindo-

se de atuar quando o ato impugnado contrariar aos interesses do Poder Executivo. Portanto,

o Advogado-Geral da União não poderá impugnar o ato tachado de inconstitucional, mas

poderá se manter silente. Pensar de outra forma não faz sentido porque o agente que tem a

144

prerrogativa de defender os interesses jurídicos do Executivo não pode defender uma norma

impugnada como inconstitucional quando é o próprio presidente quem está impugnando esta

norma.

Exemplifica, sobre o tema, Oswaldo Palu: “ Na ação direta de inconstitucionalidade

nada impede que o Advogado-Geral da União deixe de responder, defendendo o ato

impugnado. Basta imaginar lei tributária estadual que extravase a competência local e

invada a competência tributária da União, diminuindo-lhe receitas e ferindo preceitos da

Constituição da República. Proposta a ação direta, há que se supor não deva o Advogado-

Geral da União defender o ato estadual acoimado de inconstitucionalidade e prejudicial à

própria União”.192

O Advogado-Geral da União não tem legitimidade para propor embargos

declaratórios a acórdão prolatado em ação direta de inconstitucionalidade, por se tratar de

processo objetivo de controle de constitucionalidade, em que não há partes litigando na lide

e não pode haver intervenção de terceiros. Em conseqüência, a União não pode ser

considerada como parte e não pode ser admitido embargos declaratórios.193

7.3) Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão

O texto originário da Constituição Cidadã de 1988 poderia ser classificado como o de

uma Constituição dirigente, em que o Estado intervém em vários setores da sociedade para

garantir condições mínimas aos hipossuficientes. O maior problema que atinge esse tipo de

texto constitucional é a baixa eficácia dos seus dispositivos normativos, o que acarreta um

descrédito com relação a sua força normativa e, conseqüentemente, enfraquece o sistema

constitucional. Grande parte dos mandamentos constitucionais da Carta de 1988 encontra-se,

192 PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade. Conceitos, Sistemas e Efeitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. P. 85. 193 ADI 2323, rel. Min. Ilmar Galvão.

145

ainda hoje, destituída de eficácia, servindo apenas como valor retórico para garantir o poder

do status quo.

Na tentativa de aumentar a força normativa da Constituição, o legislador constituinte

criou a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, inerente ao controle concentrado, e

o mandado de injunção, inerente ao controle difuso. Esses institutos, que representaram uma

grande inovação na tutela constitucional brasileira, foram inspirados na ação de

inconstitucionalidade por omissão do direito português e no mandado de injunção do direito

iugoslavo.194 Criados respectivamente pela Constituição de 1976 e a Constituição de

1979.195 O seu fator teleológico é garantir concretude normativa a todos os dispositivos

constitucionais, impedindo que determinados artigos fiquem relegados porque não são do

interesse das classes políticas dominantes.

A ação direta de inconstitucionalidade por omissão surgiu no direito português para

tentar assegurar eficácia aos mandamentos constitucionais. 196 Tanto é assim que a

Constituição portuguesa de 1979, expõe no art. 283: “ O Tribunal Constitucional aprecia e

verifica o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas

necessárias para tornar exeqüíveis as normas constitucionais”.

A ação direta de inconstitucionalidade por omissão não incide contra uma

inconstitucionalidade material, em que a sua expulsão do ordenamento representa a solução

do problema. A sua finalidade é regulamentar determinada situação jurídica para que os

cidadãos possam exercer os direitos contidos na Constituição. A norma não é expulsa do

194 “Estabelecido no direito anglo-americano o conceito de injunção como ordem que emana de uma corte de equidade determinando a alguém fazer ou deixar de fazer algo que possa prejudicar outrem pela violação de direitos pessoais ou de propriedade, resta distinguir as seguintes modalidades desse remédio processual: a injunção mandatória e a injunção preventiva; a injunção preliminar ou interlocutória e a injunção permanente”. BONAVIDES, Paulo & ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3 ed., São Paulo: Paz e Terra, 1991. P.503. 195 CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Direito Processual Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998. P. 43. 196 “[...] já que o efeito da verificação da omissão é apenas o de reconhecimento da necessidade de legislação, não tendo sequer hoje o valor jurídico de uma recomendação concreta – o que revela a incapacidade do próprio Tribunal Constitucional para remediar a inconstitucionalidade (substituindo-se o legislador na emissão da norma ou dirigindo-lhe injunções nesse sentido) e, desse modo, reconhece-se e fortalece ate a autonomia do legislativo”. VIEIRA DE ANDRADE, J. C. “Legitimidade da Justiça Constitucional e Princípio da Maioria”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 78.

146

ordenamento; muito pelo contrário, há a exigência de uma regulamentação do comando

normativo.

Esse novel instituto tem a feição de um instrumento típico do Estado Democrático

Social de Direito, em que os órgãos públicos cada vez mais recebem um maior número de

incumbências para oferecer a coletividade. A inércia que caracterizava o Estado Liberal dá

lugar a uma atuação decidida em favor dos hipossuficientes, em que a população cada vez

mais é chamada para participar ativamente das decisões políticas. A importância da ação

direta de inconstitucionalidade por omissão refere-se principalmente com relação às normas

programáticas que ganham um aliado para a sua concretização.

A ação de inconstitucionalidade por omissão serve para dar concretude a

mandamentos constitucionais que estejam destituídos de eficácia por falta de normas que as

complementem. Ela incide principalmente nas denominadas normas de eficácia limitada,

que apenas possuem eficácia positiva quando são regulamentadas, caso típico das normas

programáticas.

Como a ação de inconstitucionalidade por omissão é uma forma de controle

concentrado, os seus efeitos temporais são ex tunc, retroagindo até a data de nascimento da

inconstitucionalidade, e os efeitos subjetivos são erga omnes, servindo para regulamentar o

dispositivo constitucional para que ele possa ter eficácia para todos os cidadãos.

A evolução apresentada por esse novo tipo de mácula à Carta Magna foi que o

ordenamento jurídico não mais consideraria inconstitucional apenas uma norma que

afrontasse a constituição de forma comissiva, formal ou material, mas também aquelas que

resultassem de uma inércia do legislador ordinário em sua tarefa de regulamentar os

dispositivos constitucionais. O simples expurgo da norma do ordenamento não mais serviria

para restabelecer a integridade do sistema jurídico. Seria necessárias medidas no sentido de

acolmatar a omissão produzida pelo legislador, no sentido de complementar os

mandamentos constitucionais.

Todas as vezes que fosse constatado que um direito constitucional não pudesse ser

exercido por causa da ausência de uma regulamentação por parte do legislador

147

infraconstitucional, o Supremo Tribunal Federal, em sede de ação de inconstitucionalidade

por omissão, tem a obrigação de garantir a regulamentação do comando constitucional para

possibilitar o gozo do direito.

A inércia que o legislador constituinte teve o objetivo de repelir do ordenamento

jurídico é a omissão em relação a uma norma que impõe a obrigação de agir, e não em

virtude de motivos naturalísticos. A omissão não nasce da seara fática, mas em virtude de

motivos normativos: o descumprimento de um preceito disposto pela norma constitucional.

Dessa forma se posiciona Canotilho: “A omissão legislativa inconstitucional

significa que o legislador não faz algo que positivamente lhe era imposto pela Constituição.

Não se trata, pois, apenas de um simples negativo “não fazer”; trata-se, sim, de não fazer

aquilo a que, de forma concreta e explícita, estava constitucionalmente obrigado. Já por esta

definição restritiva de omissão se pode verificar que a inconstitucionalidade por omissão, no

seu estrito e rigoroso sentido, deve conexionar-se com uma exigência concreta

constitucional de ação. O simples dever geral de emanação de leis não fundamenta uma

omissão constitucional”.197

A omissão que enseja a propositura de uma ação de inconstitucionalidade por

omissão serve apenas para indicar a inércia dos poderes públicos para regulamentar

dispositivos constitucionais através de leis, no sentido formal, ou atos normativos. Ela não é

o instrumento cabível para suprir a ausência de celeridade do ato judicial, cuja solução se

encontra no ordenamento infraconstitucional, ou omissões de cunho político.

A ausência de regulamentação que pode ensejar a ação de inconstitucionalidade por

omissão não se resume à ausência da produção legislativa necessária. Também pode ser

motivo para a sua impetração a regulamentação do dispositivo constitucional de forma

imperfeita, não atendendo as condições estabelecidas para garantir eficácia normativa ao

dispositivo. Destarte, a omissão pode ser total ou parcial. Total quando não houver a

elaboração do instrumento legislativo adequado e parcial quando houve a sua elaboração,

197 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. P.332.

148

porém, ocorreu de forma inconclusa, sem a completa regulamentação do seu espaço de

incidência.

Não é apenas o Poder Legislativo que pode realizar uma inconstitucionalidade por

omissão, o Poder Executivo também pode realizá-la quando deixa de regulamentar

determinados comandos normativo que complementam a Lei Maior por meio de decreto. Se

um mandamento constitucional foi completado por lei ordinária, e esta lei depende para ter

eficácia de um decreto regulamentador, é cabível uma ação de inconstitucionalidade por

omissão contra o Poder Executivo. Mas, na maioria dos casos, a ação de

inconstitucionalidade por omissão é proposta contra o Poder Legislativo.

Para que seja configurada a inércia, é necessário conceder um tempo razoável para

que os poderes públicos respectivos possam regulamentar o dispositivo constitucional. Sabe-

se que os procedimentos do Congresso Nacional, em parte por causa de sua composição

bicameral, demora um determinado tempo para a sua concretização, devendo dar-se um

determinado lapso temporal para a regulamentação dos mandamentos constitucionais.

Anna Cândida da Cunha Ferraz afirma que os principais tipos de

inconstitucionalidades por omissão são os seguintes: a) omissão legislativa por parte do

órgão que tem como função realizar a complementação dos dispositivos normativos; b)

omissão por parte dos poderes estabelecidos; c) omissão por parte do Poder Executivo

quando ele tem a obrigação de realizar a regulamentação de leis.198

Todavia, uma das mais importantes inovações do legislador constituinte de 1988 teve

seus efeitos esvaídos, transformado em uma “folha de papel”. O Supremo Tribunal Federal

estiolou a eficácia da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, curvando-se às

pressões do Executivo Federal. Partindo de uma concepção não-concretista, decidiu a

Egrégia Corte que a mencionada ação não tem força mandamental, possuindo apenas

eficácia declaratória. O resultado concreto da concessão da ação é o aviso ao Poder

Legislativo de que ele está inerte diante da obrigação constitucional.

198 CUNHA FERRAZ, Anna Cândida. “Inconstitucionalidade por Omissão: uma proposta para a Constituinte”. In: Revista de Informação Legislativa. N. 89, 1986. P. 54.

149

A força mandamental da ação, teoria concretista, é verificada quando o dever de

regulamentação for de competência de órgão administrativo, que então terá trinta dias para

executá-lo, sob pena de descumprimento de ordem judicial. 199 Outra eventualidade de efeito

concreto para a omissão constitucional é a imputação de responsabilidade do ente

governamental por perdas e danos, devido à ocorrência de prejuízo em virtude da ausência

de regulamentação da norma constitucional.

A fundamentação da decisão do Supremo Tribunal Federal foi com base em uma

visão ultrapassa do princípio da separação de poderes, que argumenta que as decisões do

Poder Judiciário não podem interferir nas atividades do Poder Legislativo. Essa visão

retrógrada choca-se com as exigências da pós-modernidade e não dá ensejo a um excesso

porque houve o descumprimento de uma obrigação constitucional e a atuação da jurisdição

constitucional tem o escopo de cumprir a Carta Magna. Esse posicionamento deixa os

direitos fundamentais sem um importante instrumento de proteção e não contribui para o

reforço da legitimação das decisões do STF.

Com essa interpretação, praticamente se exaurem as diferenças entre a ação direta de

inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção. Fazendo com que dois

institutos jurídicos fiquem sem utilidade alguma, chocando com os ensinamentos

ministrados por Pontes de Miranda, para quem na Constituição não haveria disposições

inócuas.

Enquanto o mandado de injunção destina-se à proteção de direitos subjetivos dos

cidadãos, pressupondo um interesse jurídico de seu autor, a ação direta de

inconstitucionalidade por omissão, por não ter como pressuposto a necessidade de garantir

um direito subjetivo, configurando-se como controle abstrato, prescinde da existência de um

interesse jurídico específico. 199 O STF foi influenciado pelo Tribunal Constitucional Português que igualmente concede os mesmos efeitos para a inconstitucionalidade por omissão em Portugal. Eis as palavras de Canotilho e Vital Moreira: “Todavia, o mecanismo constitucional de controlo da inconstitucionalidade por omissão (art. 283) está longe de ser eficaz, por limitações constitucionais e por outras decorrentes da própria natureza peculiar da inconstitucionalidade por omissão. O TC só pode ser chamado a verificar a omissão de medidas legislativas e não de outras, e não pode fazer mais do que verificar e declarar que a omissão existe, não podendo nem pronunciar-se sobre o modo de suprir a deficiência nem muito menos substituir-se aos órgãos legislativos componentes”. CANOTILHO, José Joaquim e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991. P. 263.

150

Para se efetivar um sistema de jurisdição constitucional mais condizente com a

necessidade de densificar a legitimidade da jurisdição constitucional, a ação direta de

inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção precisam de que os seus efeitos

assumam natureza mandamental, consonante com a sua própria finalidade. Seria estipulado

um determinado lapso temporal para que o poder ou órgão omisso regulamentasse a

situação. Findo esse prazo, provisoriamente, deveria o Supremo Tribunal Federal

regulamentar a situação para permitir o exercício do direito contido na Constituição.

Para se precisar um conteúdo mínimo aos direitos fundamentais, fazendo com que a

sua evolução ocorresse por meio do entrechment, a ação direta de inconstitucionalidade por

omissão, na esfera normativa, e a argüição de descumprimento de preceito fundamental, na

esfera fática, exercem fundamental importância para a consolidação da legitimação

substancialista da jurisdição constitucional.

7.4) Ação Declaratória de Constitucionalidade

A ação declaratória de constitucionalidade não fez parte do texto originário da

Constituição cidadã de 1988. Ela foi incorporada através da Emenda Constitucional n. 3 de

17/03/1993. Apesar de ser uma espécie de controle abstrato de constitucionalidade, por suas

peculiaridades específicas, ela destoa do procedimento das demais ações diretas.

A instituição da ação declaratória de constitucionalidade fortaleceu as competências

do Supremo Tribunal Federal e o seu papel no exercício da jurisdição constitucional, pois

este órgão tem a prerrogativa de evitar a proliferação de relevantes divergências

jurisdicionais, uniformizando a jurisprudência.

No seu fator teleológico, ela difere da ADIn porque não visa retirar a norma do

ordenamento jurídico declarando a sua inconstitucionalidade. Muito pelo contrário, a ADC

151

decide se a lei ou ato normativo é constitucional ou não, impedindo que discussões sobre

esse objeto possam proliferar em outras instâncias do Poder Judiciário.

A grande inovação da ADC, em 1993, foi a instituição, por mandamento

constitucional, do efeito vinculante, o que gerou grande celeuma.200 Por causa desse efeito, o

único em sede constitucional, todos os órgãos ou agentes judiciais ou administrativos, seja

de que instância ou esfera federativa for, têm que se adequar ao conteúdo da decisão

proferida pelo STF. Uma vez proferida a decisão meritória, pacificando a questão, há o

impedimento da propositura de ação direta de inconstitucionalidade e, pela forte extensão

dos seus efeitos, as ações que estiverem tramitando no controle difuso, com o mesmo objeto

e igual fundamentação jurídica, devem ser extintas.

O efeito vinculante obriga o legislador ao cumprimento restrito da interpretação

realizada pelo STF. Contudo, não impede a repetição do mesmo conteúdo em outro diploma

legal. Explica Gilmar Ferreira Mendes: “Ao contrário do estabelecido na proposta original,

que se referia à vinculação dos órgãos e agentes públicos, o efeito vinculante consagrado na

Emenda n.º 3, de 1993, ficou reduzido, no plano subjetivo, aos órgãos do Poder Judiciário e

do Poder Executivo”.201

Clara é a definição do Min. Moreira Alves “a eficácia contra todos ou erga omnes já

significa que todos os juízes e tribunais, inclusive o Supremo Tribunal Federal, devem

obedecer às decisões do controle concentrado. A inovação residiria apenas em que a EC n.º

3, de 1993, ao dar nova redação ao parágrafo 2º do art. 102 da Constituição, além de atribuir

eficácia contra todos, aludiu também o efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do

Poder Judiciário e ao Poder Executivo”.202

A legitimidade ativa para impetrar a ADC não é tão abrangente quanto a legitimidade

da ADIn, o que se configura como um retrocesso porque não existe motivo dogmático que

possa amparar essa restrição. Os quatro legitimados a impetrar a ADC possuem ligação

200 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 18ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997. P. 410. 201 MARTINS, Ives Gandra da Silva & MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2001. P. 343. 202 Apud Dantas, Ivo. O valor da Constituição. Do controle de constitucionalidade como garantia da supralegalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. P. 144.

152

direta com o Chefe do Executivo, o que restringe a sua amplitude, mormente porque as

confederações sindicais e as entidades de classe de âmbito nacional foram excluídas dessa

prerrogativa. São os seguintes os órgãos que podem impetrar a ação declaratória de

constitucionalidade: o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da

Câmara dos Deputados e o Procurador-Geral da República.

A legitimidade para impetrar a ADC por parte dos órgãos ou autoridades

mencionadas anteriormente é universal, sem a necessidade da concretização do requisito

objetivo existente na competência particular: a pertinência temática. A competência, como

não poderia ser diferente, pela própria taxionomia do controle abstrato, pertence ao Supremo

Tribunal Federal.

Não é inconstitucional a legitimidade atribuída ao Presidente da República pelo art.

103 da Constituição Federal, porque já no art. 84, XXVII, disciplinando as funções do Chefe

do Executivo Federal, há a previsão de que ele pode exercer outras atribuições designadas

pela Lei Maior. Dessa forma foi previsto que outras atribuições poderiam ser estabelecidas

para o Presidente desde que haja disposição constitucional.

Na ação declaratória de constitucionalidade há um requisito indispensável à

propositura da ação que não pode ser transposto para a ação direta de inconstitucionalidade.

O preenchimento desse requisito configura-se como uma decorrência da própria finalidade

da ADC, que exige a comprovação, que deve estar configurada na petição inicial, da

existência de controvérsia judicial relevante sobre o objeto impugnado da lei ou ato

normativo, cujos reflexos prejudiquem o funcionamento harmonioso do ordenamento

jurídico.

O preenchimento desse requisito apresenta um liame com a finalidade do instituto,

que assegura o caráter sistêmico das normas constitucionais, impedindo que uma relevante

divergência jurisprudencial possa proporcionar insegurança jurídica e diminuir a eficácia

concretiva da Constituição. Ao suprimir aparentes lacunas e sopesar princípios

constitucionais, o ordenamento jurídico ganha maior coerência e potencializa a eficácia de

suas normas.

153

A existência de controvérsia judicial relevante não deve se limitar a controvérsias

doutrinárias que não têm a prerrogativa de acarretar suficiente estado de incerteza para

legitimar a propositura da ação. É necessária a existência de pronunciamentos contraditórios

de órgãos jurisdicionais diversos. Se a discussão se resumir apenas à controvérsia

doutrinária, sem ensejar posicionamentos judiciais, não pode ser aventada a propositura da

ação declaratória de constitucionalidade.

Uma peculiaridade da ação declaratória de constitucionalidade é a restrição de sua

incidência, vez que apenas pode ser impetrada quando a relevante controvérsia judicial

versar sobre a aplicação de lei ou ato normativo federal, não cabendo esse tipo de ação

quando a controvérsia for de lei estadual ou municipal.

A decisão em ação declaratória de constitucionalidade poderá ser tomada pelo voto

de maioria absoluta de ministros do Supremo Tribunal Federal, presentes dois terços dos

seus membros. Os efeitos subjetivos são erga omnes e os efeitos temporais são ex tunc. Em

regra, o termo a quo para a produção de seus efeitos não é o da data da decisão proferida,

mas da data do nascimento da norma ou ato normativo.

As normas paralelas, isto é, aquelas normas estaduais ou municipais que tenham o

mesmo conteúdo das normas federais que foram impugnadas pela ação declaratória de

constitucionalidade, com a procedência dessa ação, também são declaradas constitucionais,

produzindo os mesmos efeitos do controle abstrato. Portanto, declarada a

constitucionalidade de determinada lei ou ato normativo federal, as leis estaduais ou

municipais que tenham o mesmo conteúdo também serão consideradas constitucionais.

7.4.1) Do Efeito Vinculante da Ação Declaratória de Constitucionalidade

O conceito de efeito vinculante foi introduzido no Brasil a partir da Emenda

Constitucional n.º 3, que criou a ação declaratória de constitucionalidade. Ele tem o escopo

154

de aumentar a intensidade normativa das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal

Federal, obrigando que órgãos e agentes públicos acatem o que fora decidido pelo tribunal.

O efeito vinculante abrange os Poderes Executivo e Judiciário. O Supremo Tribunal

Federal não está adstrito ao efeito vinculante, podendo modificar os seus julgados desde que

haja uma modificação na composição de membros do Tribunal ou que surjam fatos novos

que sinalizem a necessidade de um novo julgamento - modificação qualitativa.

O efeito vinculante da ação declaratória de constitucionalidade não torna imutáveis

as decisões do STF. A Egrégia Corte pode rever as suas próprias decisões. Pensar de forma

contrária seria engessar tais decisões, impedindo a evolução da jurisprudência e acarretando,

de forma descabida, uma petrificação constitucional. Obviamente, que as decisões

transitadas em julgado nas demais instâncias judiciais não podem ser atingidas pela mudança

de posicionamento do Supremo Tribunal, devendo ser respeitadas.

Todavia, para que o STF possa reapreciar a questão decidida, tem de haver uma

modificação na composição dos membros do Tribunal ou uma mudança qualitativa na

situação jurídica, apresentando novos componentes. A mudança qualitativa tem que

apresentar novos fatos, que possam suscitar uma questão não analisada anteriormente.

O Poder Legislativo pode, a qualquer momento, revogar ou modificar a norma

declarada constitucional. Do mesmo modo, nada impede que o Legislativo elabore uma nova

norma, com idêntico teor daquela que fora anteriormente declarada inconstitucional. O

Supremo Tribunal Federal tem entendimento de que o Legislativo pode promulgar

novamente uma lei com o mesmo conteúdo daquela que anteriormente fora considerada

como inconstitucional.203

Diante do efeito vinculante, não pode o Poder Executivo descumprir a decisão do

STF alegando o permissivo do art. 23, I da Constituição Federal, recusando o cumprimento

de uma lei ou ato normativo em razão da sua inconstitucionalidade. Quando a norma for

declarada constitucional pelo Supremo, no controle abstrato de constitucionalidade, não cabe

203 ADIn n.º 907, rel. Min. Ilmar Galvão e ADIn n.º 864, rel. Min. Moreira Alves.

155

mais discussão por parte do Executivo, restando-lhe somente a alternativa do seu inteiro

cumprimento.

Questão bastante importante é diferenciar o efeito vinculante do efeito erga omnes. O

primeiro refere-se à intensidade dos efeitos produzidos; o segundo, refere-se à extensão

subjetiva.

A principal diferença é a intensidade dos efeitos, porque o erga omnes não vincula

todos os órgãos da administração pública, prevalecendo apenas para os órgãos judiciais,

enquanto o efeito vinculante gera obrigação não apenas para o Judiciário. O efeito

vinculante é um plus em relação ao efeito erga omnes, pois este atinge todos os órgãos do

Poder Judiciário e aquele, todos os órgãos do Poder Judiciário e do Executivo, com efeito

vinculante, obrigatório.

Com relação à extensão do efeito vinculante, tem-se que esta não abrange apenas a

parte dispositiva da decisão, mas alcança ainda a sua fundamentação204, o que o difere do

efeito erga omnes, cuja extensão abrange somente a parte dispositiva do acórdão.

A conseqüência de que o efeito vinculante abrange a fundamentação e o dispositivo

da decisão proferida no caso concreto não é exclusivamente impossibilitar a sua afronta, mas

obrigar todos os órgãos e agentes públicos a adequar sua conduta à orientação promanada da

decisão, para os casos futuros. A fundamentação da decisão erga omnes não obriga os

órgãos e agentes públicos nas suas condutas futuras.

204 Se posiciona Gilmar Ferreira Mendes: “Segundo esse entendimento, a eficácia da decisão do Tribunal transcende o caso singular, de modo que os princípios dimanados da parte dispositiva e dos fundamentos determinantes sobre a interpretação da Constituição devem ser observados por todos os tribunais e autoridades nos casos futuros”. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, Habeas Data, Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Atualizado por Arnold Wald e Gilmar Ferreira Mendes. 24ª ed., São Paulo: Malheiros, 2002.

156

7.4.2) Discussão Acerca da Incongruência da Ação Declaratória de

Constitucionalidade para a Densificação da Legitimidade da Jurisdição

Constitucional

O objetivo do presente item, por força das reiteradas decisões do Supremo Tribunal

Federal que consideraram a ação declaratória de constitucionalidade compatível com os

mandamentos constitucionais, não é mais averiguar a sua inconstitucionalidade. A finalidade

reside em mostrar como a ADC se mostra incongruente com os principais fundamentos para

o fortalecimento da jurisdição constitucional.

Para entender a gênese da ação declaratória de constitucionalidade e toda a discussão

acerca da sua constitucionalidade, faz-se necessária uma percuciente análise dos fatores

sócio-político-econômicos que cercaram o seu surgimento. A ADC surge na década de

noventa como uma tentativa do establishment de mitigar o controle difuso de

constitucionalidade, que restringia o alcance das medidas neoliberais que estavam sendo

implementadas. A sua finalidade inicial não foi o aperfeiçoamento da jurisdição

constitucional, mas cercear a defesa dos direitos fundamentais pela via difusa.

Para alcançar essa finalidade, houve uma restrição do seu caráter dialógico, que

depois foi corroborado pela Lei n. 9.868/99, o que provoca um esvaziamento da sua

legitimidade, do ponto de vista procedimental e do ponto de vista substantivo.

A discussão acerca da constitucionalidade da ação declaratória de

constitucionalidade começa pela sua origem e finalidade insólitas. Os principais argumentos

utilizados à época para asseverar a sua inconstitucionalidade eram os seguintes: que ela

enfraquece o princípio do contraditório e da ampla defesa porque não há participação

obrigatória do Advogado-Geral da União, nem do órgão ou autoridade da qual emanou o

ato; que restringe o princípio da universalidade de jurisdição, porque veda o acesso ao

judiciário no que tange ao objeto das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal;

que o seu efeito vinculante incide contra a independência e harmonia dos três poderes; que

157

fragiliza a autonomia dos juízes e gera uma hierarquia entre as instâncias judiciárias,

obrigando as instâncias inferiores a respeitar as superiores; obsta o controle de

constitucionalidade pela via difusa, superdimensionando o controle concentrado; deixa ao

relento a garantia dos direitos fundamentais, e em muitos casos, ela própria representa um

dos instrumentos de mitigação desses direitos.205

Para posicionamentos mais extremados, como o de Edvaldo Brito, a ADC não pode

ser considerada nem mesmo como uma ação. Assim discorre: “Diante do exposto, a

chamada ação declaratória de constitucionalidade não participa da natureza jurídica de ação,

porque a formulação da legitimidade ativa ad causam, no § 4º que foi introduzido na

Constituição, ao seu art. 103, não enseja qual é a parte contrária. Logo não pode haver ação

sem partes, a inovação não pode prevalecer, sob pena de infirmar toda a pragmática da

comunicação normativa processual”.206

Depois de uma certa discussão, o Supremo Tribunal Federal considerou que a ação

declaratória de constitucionalidade era plenamente constitucional, abortando todos os

argumentos em sentido contrário.

No julgamento da primeira ação declaratória de constitucionalidade, o relator,

Ministro Moreira Alves, repeliu as alegações de inconstitucionalidade baseadas na afronta à

separação dos poderes e na quebra dos direitos individuais referentes ao acesso ao judiciário,

ao devido processo legal, ao princípio do contraditório e à ampla defesa, explicitando o

seguinte: “em um processo objetivo de controle de constitucionalidade não se aplicam os

preceitos constitucionais que dizem respeito exclusivamente a processos subjetivos

(processos inter partes) para a defesa concreta de interesses de alguém juridicamente

protegido [...] se o acesso ao Judiciário sofresse qualquer arranhão, esse arranhão decorria da

205 Foi no julgamento do ADC n.º 01-1/DF, que teve como rel. o Min. Moreira Alves, ficou livre a ação declaratória de constitucionalidade da imputação de inconstitucionalidade. Ficaram afastadas as alegações de quebra da separação dos poderes, do acesso ao Judiciário, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. 206 BRITO, Edvaldo. “Aspectos Inconstitucionais da Ação Declaratória de Constitucionalidade de Lei ou de Ato Normativo Federal”. In: Ação Declaratória de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 1996. P. 48.

158

adoção do próprio controle concentrado, o qual se fez pelo Poder Constituinte, e não

exclusivamente da instituição de um de seus instrumentos [...]”207

A discussão hodierna é a incompatibilidade da ação declaratória de

constitucionalidade para incrementar a legitimidade da jurisdição constitucional porque,

além de não garantir uma proteção eficaz contra os acintes aos direitos fundamentais -

legitimidade substantiva, ela não reforça o caráter dialógico da sua decisão - legitimidade

procedimental.

A restrição ao caráter dialógico por parte da ação declaratória de constitucionalidade

afigura-se a sua principal insuficiência, restringindo de forma brutal qualquer tipo de debate

sobre o fundamento da ação. Ao permitir-se apenas a manifestação do Procurador-Geral da

República, impede-se que o maior influxo de debates possa tornar a decisão judicial mais

consonante com os direitos fundamentais e que os Ministros do STF possam dispor de

maiores subsídios para amparar as suas decisões.208 Devido à limitação dos órgãos ou

autoridades competentes para impetrar a ação, houve um retrocesso na democratização da

sua legitimidade, com a conseqüente concentração da aferição do momento devido para a

sua impetração, seguindo os passos anacrônicos da disposição em vigor na Constituição de

1967/69. 209

Outra grave insuficiência foi a fragilização do controle difuso de constitucionalidade,

que restou bastante mitigado, obrigando todos os juízes pertencentes às mais variadas

instâncias judiciárias a obedecerem ao que fora preceituado na decisão da ADC pelo

Supremo Tribunal Federal. Até mesmo as decisões cautelares têm o condão de sobrestar

qualquer tipo de decisão do controle difuso, excetuando, obviamente as decisões transitadas

em julgado. Com o entrave ao controle difuso, os direitos fundamentais perdem um

importante sistema de garantia, até mesmo pela maior proximidade do cidadão comum com

a instância judiciária mais próxima, diminuindo-se a densidade da jurisdição constitucional.

207 ADC n.º 01-1/DF, rel. Min. Moreira Alves. 208 CRUZ E TUCCI, José Rogério. “Aspectos Processuais da Denominada Ação Declaratória de Constitucionalidade. In: Ação Declaratória de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 1996. P. 150. 209 FIGUEIREDO, Marcelo. “Ação Declaratória de Constitucionalidade – Inovação Infeliz e Inconstitucional”. In: Ação Declaratória de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 1996. P. 180.

159

Portanto, ultrapassada a discussão sobre a constitucionalidade da ação declaratória de

constitucionalidade, resta evidenciada a sua incongruência com os princípios norteadores da

democratização das decisões da jurisdição constitucional, com a defesa dos direitos

fundamentais e com a construção de um novo modelo de legitimação para o Supremo

Tribunal Federal.

A solução seria a remodelação da ADC, para permitir que ela também possa

fundamentar a maior incidência da jurisdição constitucional, devendo sua reestruturação

obedecer aos seguintes vetores: os órgãos ou autoridades legitimadas deveriam ser os

mesmos do art. 103 da Constituição Federal; o procedimento deveria ser o utilizado para as

ações diretas de inconstitucionalidade, com a obrigatoriedade de manifestação do

Advogado-Geral da União e da autoridade ou órgão que prolatou a norma impugnada;

possibilidade de manifestação do amicus curiae, quando houvesse relevante fundamento

jurídico e representatividade dos postulantes; quando ela versasse sobre direito fundamental,

a sua decisão apenas poderia ser tomada pelo quórum de dois terços de seus membros, como

forma de densificá-los e não de servir de instrumento para o seu esvaziamento.

7.5 ) Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

O nascimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental assinala um

novo marco do constitucionalismo brasileiro na defesa dos direitos fundamentais, de forma

mais intensa nos direitos que têm uma natureza prestacional, em que o poder público deve

concretizar de forma material esses direitos para os hipossuficientes sociais.

Por uma série de motivos que fogem aos limites do trabalho desenvolvido, a

regulamentação da argüição de descumprimento de preceito fundamental tardou mais de

onze anos. Durante esse lapso temporal, todas as ações ajuizadas perante o Supremo

Tribunal Federal foram rejeitadas pela ausência de regulamentação. A mens legis do

160

legislador constituinte foi criar um instrumento jurídico que pudesse reforçar a eficácia

concretiva dos preceitos fundamentais.

Preceito, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, significa

“determinação, ordem, prescrição”.210 Portanto, preceito significa ordem, comando,

prescrição, o que abrange o conceito de norma como gênero do qual defluem duas espécies:

as regras e os princípios constitucionais.211 O segundo designativo indica a

fundamentalidade do preceito, a sua imprescindibilidade para o conjunto de normas que

formam a Carta Magna. Não são todas as normas que são passíveis de proteção por parte da

ADPF, resguardando-se apenas as consideradas fundamentais para a estrutura das normas

constitucionais.

O real conceito de preceito fundamental não está claro nem na doutrina, nem na

jurisprudência. Todavia, ele não deve ficar restrito a uma concepção de direitos

fundamentais de primeira dimensão ou sob um corte topográfico dos dispositivos

constitucionais, abrangendo os artigos 5º ao 17 da Constituição. Qualquer direito

fundamental defendido pela Constituição, esteja contido na Ordem Econômica ou na

Organização dos Poderes, deve ser definido como preceito fundamental e resguardado por

intermédio da ADPF.

Das posições doutrinárias expostas, assume importância basilar, pela sua

clarividência, a adotada por José Afonso da Silva, que se posiciona no sentido de que

preceito fundamental não é a mesma coisa que princípio fundamental, obtendo um alcance

mais amplo para abranger todas as prescrições que dão o sentido básico do regime

constitucional, sintetizando as estruturas principais da Constituição e os alicerces

precursores dos direitos fundamentais.212

210 HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. P. 2280. 211 “Nos quadrantes do Direito, portanto, a noção de preceito ancora-se na idéia de “ordem”, “comando”, identificando-se, uma vez mais, com o sentido que se encontra tanto em regras quanto em princípios. Parece, pois, que “preceito” engloba tanto as regras quanto os princípios. Assim, torna-se sinônimo de “norma”, no sentido empregado acima, insista-se, designativo das regras e princípios jurídicos”. TAVARES, André Ramos. Tratado de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. São Paulo: Saraiva, 2001. P. 117. 212 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16º ed., São Paulo: Malheiros. P. 559.

161

Não havendo lei definidora do conceito de preceito fundamental, nem mesmo o

posicionamento de uma firme doutrina nesse sentido, a sua conceituação deve ser precisada

por intermédio da jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal.213 Dependendo da

extensão dada ao mencionado instituto jurídico, ele pode se tornar um relevante instrumento

para a garantia dos direitos fundamentais da sociedade, mormente quando não há nenhum

sentido para uma interpretação restritiva do seu alcance, que abrangeria apenas os princípios

fundamentais.

Mesmo diante da indefinição quanto à extensão do conceito, parece não pairar

dúvidas de que cabe argüição de descumprimento de preceito fundamental contra afrontas

aos direitos e garantias fundamentais (arts. 5º ao 17 da CF) e outros direitos contidos nas

demais partes da Constituição, contra as cláusulas pétreas (art. 60, I ao IV da CF) e contra os

princípios sensíveis (art. 34 I a VII da CF).

Deve-se ter o cuidado para não transformar a ADPF em um instrumento para garantir

a concretização de todos os dispositivos constitucionais, de forma irrestrita, pois este não é

entendimento mais consentâneo com a essência do instituto, que deve ser utilizado apenas

quando não houver uma solução jurídica mais adequada para garantir preceito fundamental.

O teor literal do § 1º do art. 103 limita o alcance da ADPF, ao asseverar que ela é

decorrente dos preceitos contidos na Constituição. Nesse diapasão devem ser entendidos não

apenas os explícitos, mas também os implícitos, que aumentam a eficácia daqueles previstos

na Constituição. Se não fosse assim, a tutela dos direitos fundamentais restaria incompleta e

a jurisdição constitucional deixaria de auferir um importante elemento de legitimidade. Os

213 Thomas Bustamante traça um panorama de diversos autores acerca da definição do que seja preceito fundamental: “Vicente Grego Filho, por exemplo, chegou a equiparar a argüição de descumprimento de preceito fundamental à ação direta de inconstitucionalidade por omissão e ao mandado de injunção. Paulo Napoleão Nogueira da Silva, diferentemente, procurou conceituar como “preceitos fundamentais” os constantes do Título I da Carta Política (à exceção do princípio Republicano, que não seria imutável); as cláusulas pétreas (artigo 60, § 4º); e, finalmente, o caput do artigo 60, ressaltando que seria necessária a edição de lei definindo a legitimação, o rito, e os efeitos da decisão. José Afonso da Silva, por sua vez, entendeu como preceitos fundamentais os “princípios fundamentais” (título I), além de todas prescrições que dão o sentido básico do regime constitucional, como são , por exemplo, as que apontam para a autonomia dos Estados, do Distrito Federal e especialmente as designativas de direitos e garantias fundamentais. Sustenta ainda este autor que o instituto teria, na verdade, natureza semelhante ao recurso constitucional alemão ( Verfassungsbeschverde )”. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. “A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e sua Regulamentação pela Lei n.º 9882, de 3 de Dezembro de 1999. Incidente de Inconstitucionalidade?” In: Inforjus, Janeiro de 2000.

162

preceitos dispostos através de normas infraconstitucionais não possibilitam a impetração da

ADPF e tal conclusão deve-se à própria origem do instituto jurídico, que tem o afã de

reforçar a supremacia das normas constitucionais e aprimorar o controle de

constitucionalidade brasileiro.

Seguindo a amplitude da tutela judicial, disposta pelo princípio da universalidade da

jurisdição, a argüição de descumprimento de preceito fundamental pode ser preventiva ou

repressiva, tomando como marco temporal a realização do gravame. Será preventiva quando

a lesão ainda não se concretizou, mas há elementos idôneos que permitem acreditar que ela

pode efetivamente se realizar. A modalidade repressiva ocorre depois da perpetração da

lesão, visando à sua expulsão do ordenamento ou à concretização de direito fundamental.

Uma outra classificação dada pela Lei n. 9.882/99 diz respeito à argüição de

descumprimento de preceito fundamental própria e a por equiparação, também denominada

pela doutrina de incidente de inconstitucionalidade, que, como será demonstrado mais

adiante, é um instituto jurídico crassamente inconstitucional.

Pelas peculiaridades da ADPF, ela não pode ser confundida com nenhuma forma de

controle difuso ou concentrado. Com a ação de inconstitucionalidade por omissão, ela

guarda a semelhança de tutelar as omissões dos mandamentos constitucionais. A ação de

inconstitucionalidade por omissão tem o escopo de regulamentar qualquer norma

constitucional que ainda não tenha eficácia por causa de uma omissão legislativa, sendo a

sua concretização assegurada com a simples regulamentação do dispositivo normativo,

enquanto a ADPF visa a concretizar os preceitos fundamentais, que não são usufruídos pelos

cidadãos, seja porque sofreram uma inconstitucionalidade material ou uma

inconstitucionalidade omissiva. Esta representa um plus em relação àquela porque incide em

um caso concreto e se resolve não apenas na seara normativa, mas também na seara fática.

A grande inovação da argüição de descumprimento de preceito fundamental é

extrapolar a seara normativa e garantir a concretização fática de um preceito fundamental, de

forma mais intensa naqueles que exigem uma prestação continuada. A ADPF se efetiva com

atividades administrativas para garantir a realização do direito ou para retirar impedimento

163

normativo que restringia o seu gozo, no que necessita de medidas fáticas no sentido de

tornar concreto para a população a fruição de determinadas prerrogativas.

A ADPF pode ser empregada em qualquer modalidade de descumprimento de

preceito fundamental; oriunda de uma omissão normativa que impeça a realização dos

preceitos fundamentais, ou de uma omissão fática que impossibilita o usufruto do preceito

fundamental por parte dos cidadãos.

A extensão das decisões da jurisdição constitucional necessita de uma maior

fundamentação de sua legitimidade, e a argüição de descumprimento de preceito

fundamental representa um dos alicerces de justificação da tutela da Constituição por

intermédio da realização dos preceitos fundamentais.

7.5.1) Legitimidade e Competência

Competência é a possibilidade de realizar determinado ato ou de se omitir de realizá-

lo, por determinação legal. Legitimidade é a possibilidade de postular em juízo em nome

próprio ou de outra pessoa, tanto no pólo ativo quanto no pólo passivo. Como uma espécie

de ação direta, a argüição de descumprimento de preceito fundamental segue as mesmas

linhas gerais desse sistema de controle de constitucionalidade.

O Supremo Tribunal Federal, dentro da sua competência originária, por força de

norma constitucional, dispõe de competência privativa para julgar as ações de argüição de

descumprimento de preceito fundamental. Devido ao funcionamento do sistema

concentrado, outro não poderia ser o órgão competente para a apreciação da ADPF, porque

apenas um tribunal que receba autorização da Constituição Federal e que goze de uma densa

legitimidade pode realizar a função de exercer o controle concentrado de constitucionalidade

que traz sérias implicações para o ordenamento jurídico.

164

Os mesmos legitimados para impetrar a ação direta de inconstitucionalidade são

legitimados para impetrar a ADPF, com o preenchimento dos mesmos requisitos. Os

legitimados se dividem em dois grupos: aqueles que têm legitimidade universal e aqueles

que têm legitimidade especial, que apresenta o requisito objetivo inexorável da pertinência

temática. Do primeiro grupo fazem parte os seguintes órgãos ou autoridades: o Presidente da

República; a Mesa do Senado Federal; a Mesa da Câmara dos Deputados; o Procurador-

Geral da República; o Conselho Federal dos Advogados do Brasil; partido político com

representação no Congresso Nacional. Do segundo grupo fazem parte os seguintes órgãos ou

autoridades: a Mesa da Assembléia Legislativa; o Governador do Estado e as confederações

sindicais com representação de classe de âmbito nacional.214

Na lei que foi aprovada pelo Congresso Nacional houve um veto do Presidente da

República que não foi derrubado posteriormente. O veto, que se fundamentou na

contrariedade ao interesse público, ocorreu no artigo 2 º, inciso II da Lei n. 9.882/99, que

permitia o ajuizamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental por

qualquer pessoa lesada ou ameaçada de lesão por ato do Poder Público, denominada pelo

brocardo latino de quisquis populo.

O motivo que levou ao veto presidencial, tipificando a contrariedade ao interesse

público, foi que a extensão da legitimidade a qualquer cidadão provocaria um grande

aumento na demanda de processos para o Supremo Tribunal Federal, o que prejudicaria

ainda mais a celeridade das decisões.215 Com a atual estruturação do STF, servindo

214 Em sentido contrário pensa André Ramos Tavares: “Se se fosse pretender aplicar, também para a argüição incidental, a legitimidade destinada àquela de natureza autônoma, o certo é que se teria o completo desmantelamento desta modalidade. Isso porque certamente seria hipótese bastante remota que aqueles legitimados a propor a argüição autônoma optassem, surpreendentemente, pela argüição incidental. Se a via principal lhes está franqueada, não se utilizariam da secundária (para a qual teriam de aguardar a abertura de um processo judicial outro) [...] Trata-se de ou admitir que o próprio magistrado e Tribunal da causa apresente a argüição, quando entenda tratar-se do caso de descumprimento de preceito constitucional fundamental relevante, ou, então, admitir que a própria parte poderá fazê-lo, ou, mesmo, que ambas as hipóteses possam ocorrer. Em qualquer dos casos, será necessário verificar como o incidente deve ser encaminhado, processualmente falando”. TAVARES, André Ramos. Tratado de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. São Paulo: Saraiva, 2001. P. 400-401 215 Veto presidencial ao art. 2, II, Mensagem n. 1.807, de 3.12.99: “ A disposição insere um mecanismo de acesso direto, irrestrito e individual ao Supremo Tribunal Federal sob a alegação de descumprimento de preceito fundamental por “qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato de Poder Público”. A admissão de um acesso individual e irrestrito é incompatível com o controle concentrado de legitimidade dos atos estatais –modalidade em que se insere o instituto regulado pelo projeto de lei sob exame. A inexistência de qualquer

165

concomitantemente como tribunal constitucional e última instância judiciária, seria inviável

a atribuição do quisquis populo aos cidadãos. Com a transformação do STF em tribunal

constitucional, nos moldes europeus, com a diminuição inequívoca do número de processos

analisados a cada ano, pode-se pensar em novas formas de democratização da legitimatio ad

causam da tutela da Constituição. O conteúdo do citado inciso que sofreu o veto presidencial

não alcançaria o seu desiderato porque, além da atual estrutura do STF, existe o princípio da

subsidiariedade, que impede uma maior extensão da incidência da ADPF.

Existe uma necessidade premente de se democratizar a tutela da jurisdição

constitucional, o que reforça a sua legitimidade e amplifica o seu caráter dialógico. Não há

dados seguros de que a outorga de legitimidade aos cidadãos, de forma individual, reforce a

supremacia das normas constitucionais, de modo que, consoante as novas linhas de evolução

processual. Seria de melhor alvitre outorgar legitimidade às entidades associativas, entidades

de classe, federações sindicais etc. Enfim, aos órgãos que defendessem interesses coletivos.

E não haveria uma maior demanda de processos porque o juízo de admissibilidade poderia

ser exercido de forma mais rígida.

Foi mantida na lei a previsão de que qualquer cidadão poderá apresentar ao

Procurador-Geral da República, devidamente alicerçado em provas, fundamentação jurídica

para que ele possa impetrar a argüição de descumprimento de preceito fundamental. O

Procurador-Geral da República não está vinculado às informações recebidas, podendo

decidir, de forma livre, se há razões para a impetração da ação. Pela experiência do

requisito específico a ser ostentado pelo proponente da argüição e a generalidade do objeto da impugnação fazem presumir a elevação excessiva do número de feitos a reclamar apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, sem a correlata exigência de relevância social e consistência jurídica das argüições propostas. Dúvida não há de que a viabilidade funcional do Supremo Tribunal Federal consubstancia um objetivo ou princípio implícito da ordem constitucional, para cuja máxima eficácia devem zelar os demais Poderes e as normas infraconstitucionais. De resto, o amplo rol de entes legitimados para a promoção do controle abstrato de normas inscrito no art. 103 da Constituição Federal assegura a veiculação e a seleção qualificada das questões constitucionais de maior relevância e consistência, atuando como verdadeiros agentes de representação social e de assistência à cidadania. Cabe igualmente ao Procurador-Geral da República, em sua função precípua de Advogado da Constituição, a formalização das questões constitucionais carentes de decisão e socialmente relevantes. Afigura-se correto supor, portanto, que a existência de uma pluralidade de entes social e juridicamente legitimados para a promoção de controle de constitucionalidade – sem prejuízo do acesso individual ao controle difuso – torna desnecessário e pouco eficiente admitir-se o excesso de feitos a processar e julgar certamente decorrentes de um acesso irrestrito e individual ao Supremo Tribunal Federal. Na medida em que se multiplicam os feitos a examinar sem que se assegure sua relevância e transcendência social, o comprometimento adicional da capacidade funcional do Supremo Tribunal Federal constitui inequívoca ofensa ao interesse público. Impõe-se, portanto, suja vetada a disposição em comento”.

166

ordenamento jurídico anterior, esta prerrogativa tem se revelado inócua, tornando-se, na

maioria absoluta das vezes, despicienda, diante da omissão do parquet.

Para conseguir reforçar os preceitos fundamentais, incrementando a legitimidade da

jurisdição constitucional, a argüição de descumprimento de preceito fundamental pode ser

impetrada contra entidades públicas ou entidades privadas que de alguma forma impeçam a

realização de preceito fundamental. Os entes privados, da mesma forma que os entes

públicos, não podem estorvar a aplicação dos comandos normativos da Constituição, e a

supremacia da Constituição vale para todos, independentemente da natureza de sua

personalidade.

7.5.2) Procedimento

Existe uma simetria entre o procedimento da ação direta de inconstitucionalidade e o

procedimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Pertencendo ambos

ao controle abstrato, as diferenças surgem em razão da peculiaridade singular de cada um

dos institutos.

A petição inicial deverá conter os seguintes requisitos: a) a indicação do preceito

fundamental que se considera violado; b) a indicação do ato questionado; c) a prova da

violação do preceito fundamental; d) o pedido com suas especificações. Com relação ao

incidente de constitucionalidade, além de todos esses requisitos mencionados acrescenta-se a

comprovação da relevante controvérsia judicial.

A indicação do preceito fundamental que se considera violado deve ser feita com

bastante acuidade, já que a ADPF destina-se exclusivamente a amparar ameaças ou afrontas

a preceito fundamental. Portanto, a petição inicial deverá conter, de forma clara e precisa, o

parâmetro de controle judicial, demonstrando o liame entre a ameaça ou lesão e o preceito

fundamental, de forma fundamentada.

167

Por ser uma ação abstrata, em que não há partes, objeto litigioso ou instância

probatória, todos os documentos necessários devem acompanhar a petição inicial, que será

protocolada em duas vias, com as cópias do ato litigado e os documentos necessários para

comprovar a impugnação.

Via de regra, não é necessário juntar instrumento procuratório; pois a outorga da

legitimação pela Carta Magna já supre esse requisito. Ele somente se configura necessário

quando a ação for de iniciativa de partido político com representação no Congresso

Nacional, de confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Protocolada a petição inicial no Supremo Tribunal Federal, será designado um relator

que se incumbirá da apreciação da impugnação. Se os requisitos mencionados não estiverem

contidos na petição inicial, ela será indeferida pelo relator por ser considerada inepta. Se o

relator verificar que o vício pode ser saneado, deverá intimar o autor para que emende a

petição inicial em dez dias, sob pena de seu indeferimento. Do indeferimento, caberá agravo

para o plenário no prazo de cinco dias.

Não há menção expressa na Lei n.º 9.882/99 no sentido de que não poderá haver

intervenção de terceiros na ADPF, mas como se trata de regulamentação de um processo

objetivo, sem interesses subjetivos, esse tipo de intervenção não deve se realizar. De igual

modo, uma vez impetrada a ação, esta se torna indisponível, o que impede que o seu

impetrante venha a desistir do seu prosseguimento.

Em analogia com a Lei n. 9.868/99 é possível, e até desejável, que haja a intervenção

do amicus curiae, a fim de reforçar o caráter dialógico, que é a essência da legitimidade

procedimental, proporcionando uma democratização das decisões da jurisdição

constitucional. Para incrementar as informações colhidas, em caso de necessidade de

esclarecimento de matéria ou circunstância de fato, ou de notória insuficiência de

informações existentes nos autos, o relator poderá requisitar informações adicionais das

partes demandantes, requisitar informações de peritos ou comissões de peritos, para que

emitam um parecer sobre a questão, ou ainda marcar data para audiência pública de pessoas

com experiência e autoridade na matéria.

168

Infelizmente, também não foi previsto pelo procedimento da ADPF, como amicus

curiae, a participação de entidades da sociedade civil, quando houvesse relevância jurídica

do pedido e representatividade dos postulantes.

Inovação incorporada ao procedimento foi a possibilidade, de acordo com a decisão

do relator, de sustentação oral ou juntada de memoriais, a requerimento dos interessados no

processo.

Como não há na ADPF nenhum óbice à concessão de medida liminar, essa

possibilidade foi expressamente prevista em lei, apresentando como requisitos à presença do

periculum in mora e fumus bonis júris. O quórum para a concessão de medida cautelar é o

de maioria absoluta dos votos dos ministros integrantes do Supremo Tribunal Federal.

Em casos de extrema urgência ou de perigo de grave lesão, ou ainda durante o

recesso dos trabalhos forenses, poderá o relator conceder liminar em decisão monocrática,

que deverá ser referendada posteriormente pelo pleno do tribunal. Para melhor legitimar a

sua decisão liminar, o relator poderá, por ato discricionário, ouvir as autoridades

responsáveis pelo ato questionado, o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da

República, em um prazo comum de cinco dias, devido à urgência.

A extensão temporal dos efeitos da concessão da medida liminar, em regra, é ex

nunc, sendo a extensão subjetiva erga omnes.O seu conteúdo é no sentido de que os juízes e

tribunais deverão suspender o andamento de processos ou os efeitos de decisões

interlocutórias ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da

argüição. Somente restarão inalteradas as decisões que já estiverem com o trânsito em

julgado.

Apreciado o pedido liminar, o relator solicitará informações às autoridades

responsáveis pela prática do ato questionado, em um prazo de dez dias. Passado o prazo para

a apresentação das informações, o relator lançará o relatório, com cópia a todos os

Ministros, e pedirá pauta para marcar o dia do julgamento.

169

O Ministério Público, nas argüições em que não for parte demandante, terá vista dos

autos, pelo prazo de cinco dias, para se manifestar. Essa imposição da lei é despicienda,

porque o § 1º do art. 103 da Constituição Federal já obriga a oitiva do Procurador-Geral da

República em todas as ações de inconstitucionalidade e em todos os processos de

competência do Supremo.

No procedimento da ADPF, não é o caso de atuação obrigatória por parte do

Advogado-Geral da União, que poderá ser ouvido de forma discricionária para a obtenção de

maiores subsídios para a solução da ação. Nessa hipótese, descabe falar de sua atuação como

defensor do vínculo, pois muitas vezes a prestação jurisdicional almejada é a concretização

do preceito fundamental e não a declaração de inconstitucionalidade.

Em todas as decisões de mérito do processo abstrato, inclusive na argüição de

descumprimento de preceito fundamental, o acórdão meritório apenas poderá ser tomado

pelo voto de maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal, decidindo pela

procedência ou improcedência do pedido. Deferido o objeto da ação, a autoridade da qual

o ato for emanado será comunicada para o cumprimento imediato da decisão, de acordo com

as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental.

A decisão de mérito produz efeitos temporais ex tunc e subjetivos erga omnes, sendo

vinculante para todos os órgãos do Poder Público. Caso não venha a ser cumprida, cabe

reclamação para o Supremo Tribunal Federal.216

Havendo a incidência da ADPF em ato administrativo singular ou medida judicial, a

extensão do efeito erga omnes será bastante restrita porque não se pode gerar uma

cominação geral e abstrata diante de um fato concreto.

Importante inovação da Lei n. 9.868/99, que também foi incorporada à lei

regulamentadora da argüição de descumprimento de preceito fundamental, foi a

216 Foi deferido pedido de medida liminar em ação de reclamação, ajuizada pela União, para garantir a autoridade da decisão proferida pelo STF na ADC 4-DF, que suspendeu liminarmente, com eficácia ex nunc e com efeito vinculante, até final julgamento da ação a prolação de qualquer decisão sobre pedido de inconstitucionalidade do art. 1 da Lei 9.494/97- por entender que a tutela antecipada fora concedida com desrespeito à referida decisão.

170

possibilidade de decidir com maior discricionariedade os efeitos da decisão meritória.

Havendo necessidade de garantir a segurança jurídica ou o excepcional interesse social, o

Supremo Tribunal Federal, por ato discricionário e desde que haja posicionamento favorável

de dois terços dos seus ministros, pode restringir os efeitos da sua decisão ou estabelecer que

a mesma só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado, ou de outro momento que

venha a ser fixado.217

Com o preenchimento dos requisitos elencados, que são elementos fáticos -

segurança jurídica e excepcional interesse público, e normativos - quórum de dois terços de

votos, a extensão subjetiva dos efeitos pode ser restrita, ou seja, as decisões não mais se

tornam erga omnes, podendo ter a esfera de sua atuação reduzida.218 Por outro lado, a

fixação dos efeitos temporais deixa de ser obrigatoriamente ex tunc, podendo assumir a

forma de ex nunc ou pro futuro, sem que haja uma maior legitimidade das decisões da

jurisdição constitucional brasileira.

A fixação dos efeitos da ADPF ex nunc ou pro futuro representa uma decisão

política, proferida por um órgão jurídico que é o Supremo Tribunal Federal, com o intuito de

adequar o alcance dos seus acórdãos às situações fáticas, deliberando qual seria o momento

mais conveniente para a produção dos seus efeitos, para preservar a concretude do

ordenamento jurídico.

Após a decisão transitada em julgado, no prazo impreterível de dez dias, deve ser

publicada a parte dispositiva da sentença de argüição de descumprimento de preceito

fundamental, na seção especial do Diário Oficial da União. Da formalização da sentença,

através da sua publicação, começa a correr o prazo para a impetração de embargos

217 “Embora o Supremo Tribunal Federal nunca tenha determinado a aplicação do efeito ex nunc de suas decisões de mérito no controle concentrado de constitucionalidade, muitas vezes, Ministros de nossa Corte Constitucional têm admitido essa possibilidade, mesmo antes de previsão legal nesse sentido, nos casos, por exemplo, de ocorrência de uma forte e antiga presunção de constitucionalidade de lei, por fim, julgada inconstitucional, tendo em vista a segurança jurídica, a boa fé do Poder Público e as conseqüências econômicas avassaladoras para o País que a declaração de inconstitucionalidade com efeito ex tunc poderia trazer”. SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes. “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental”. In: www. Planalto. Gov. br. 218 O Min. Néri da Silveira afirma que cuidando-se de processo de natureza objetiva, não há norma constitucional que impeça o legislador ordinário autorizar o STF a restringir, em casos excepcionais, por razões de segurança jurídica, os efeitos de suas decisões. ADIMC 2.231-DF, rel. Min. Néri da Silveira.

171

declaratórios. Da argüição de descumprimento de preceito fundamental, não há possibilidade

de rescisória.

Sendo uma lei infraconstitucional, a Lei n.º 9.882/99 poderia atribuir a uma decisão

judicial efeitos erga omnes para todos os três poderes? Se é bastante discutível o efeito

vinculante, estabelecido por emenda constitucional, que dirá através de uma norma

hierarquicamente inferior? Uma lei ordinária não tem força para mitigar a esfera de atuação

do Poder Legislativo ou do Poder Judiciário.219 As formas de controle de constitucionalidade

apenas podem ser estabelecidas pelo Poder Constituinte ou através do Poder Reformador,

mas nunca pelo legislador ordinário.

A Lei n.º 9.868/99, que regulamenta o procedimento para as ações diretas de

inconstitucionalidade e ações declaratórias de constitucionalidade, suprirá as lacunas

existentes para o processamento das argüições de descumprimento de preceito fundamental,

orientando a ação com os ritos nela previstos. Não existe prazo específico para se impetrar a

argüição de descumprimento de preceito fundamental.

7.5.3) Princípio da Subsidiariedade

O controle de constitucionalidade brasileiro é bastante complexo porque combina, de

forma simultânea, o sistema difuso e o concentrado. Nesse contexto, surge a dificuldade

adicional de se estabelecer limites determinados à atuação de cada um dos instrumentos

processuais, evitando a sobreposição de um sobre outro, o que contribuiria para a

ineficiência da tutela constitucional. A adoção do princípio da subsidiariedade tenta evitar a

sobreposição da ação de descumprimento de preceito fundamental em relação a outros

instrumentos processuais inerentes tanto ao sistema incidental quanto ao abstrato.

219 Contudo, o Min. Néri da Silveira entende que o efeito vinculante não precisa necessariamente ser regulamentado em nível constitucional, podendo o legislador ordinário disciplinar a eficácia das decisões judiciais, especialmente porque a Constituição Federal remete expressamente à lei a disciplina da ADPF. ADI-2231, rel. Min. Néri da Silveira.

172

Ao aceitar expressamente o princípio da subsidiariedade como postulado inerente à

ADPF, o legislador infraconstitucional dispõe que a mesma não será intentada quando for

cabível outra ação direta de controle de constitucionalidade, ou quando for possível ajuizar

outra medida judicial, por intermédio do controle difuso. A Lei n.º 9.882/99 comina

expressamente que a argüição de descumprimento de preceito fundamental somente será

admitida se não houver outro meio eficaz de sanar a lesividade. (art. 4º, § 1º)

A introdução da argüição de descumprimento de preceito fundamental na seara

jurídica brasileira representou um novo marco na defesa e concretização dos direitos

fundamentais, assegurando o cumprimento do seu conteúdo mínimo, entrenchment. Pelas

suas peculiaridades, por apresentar uma seara específica de atuação, a ADPF não pode ser

sucedâneo das clássicas garantias constitucionais brasileiras, como o mandado de segurança,

o habeas corpus etc, ou de outras ações de controle direto de constitucionalidade, ou até

mesmo das demais ações judiciais. A ADPF somente poderá ser manejada quando não

houver nenhum outro mecanismo adequado para a garantia dos preceitos fundamentais, ou

quando esses mecanismos não produzirem os efeitos desejados.220

Não é possível relegar o princípio da subsidiariedade, pois haveria a subversão do

trâmite processual, criando obstáculos, pelo excesso de trabalho, à celeridade da prestação

jurisdicional do Supremo Tribunal Federal, sobrepondo ações com idêntico desiderato. Não

teria sentido criar um novo instituto jurídico para realizar uma função que já é própria de

outro instrumento processual.221 A criação desmedida de leis, apanágio intrínseco das

sociedades pós-modernas, provoca o fenômeno que García de Enterría denominou de

“inflação legislativa”, que contribui para aumentar a insegurança e diminuir a concretude

normativa do ordenamento jurídico. 222

220 “A mera possibilidade de utilização de outros meios processuais, no entanto, não basta, só por si, para justificar a inovação do princípio em questão, pois, para que esse postulado possa legitimamente incidir, revelar-se-á essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se aptos a sanar de modo eficaz e real, a situação de lesividade que se busca neutralizar com o ajuizamento da ação constitucional de argüição de descumprimento de preceito fundamental”. ADPf 17-AP, rel. Min. Celso de Mello. 221 No ADPF n.º 3-CE, em 18/05/2000, o rel. Min. Sydney Sanches, afirmou ser incabível ADPF quando ainda existe medida eficaz para sanar lesividade. Com esse entendimento, o Tribunal não conheceu o denominado remédio, ajuizada pelo Governador do Estado do Ceará, contra ato do Tribunal de Justiça. 222 ENTERRÍA, Eduardo García de. Justicia y Seguridad Jurídica en un Mundo de Leyes Desbocadas. Madrid: Cuadernos Civitas, 1999. P. 47.

173

Quando inexistir ação do controle abstrato específica ou mesmo remédio jurídico

próprio, não há necessidade de exaurimento das instâncias processuais. Os casos relativos ao

controle de legitimidade do direito pré-constitucional, do direito municipal em face da

Constituição Federal e das controvérsias sobre o direito pós-constitucional já revogado ou

cujos direitos já se exauriram são inovações da argüição de descumprimento de preceito

fundamental, permitindo maior extensão para o controle abstrato de constitucionalidade.

Para evitar a sobreposição de instrumentos processuais pertinentes aos dois sistemas

de controle de constitucionalidade, escopo do princípio da subsidiariedade, não será

admitida ADPF quando houver uma omissão por parte do Poder Legislativo para

regulamentar a matéria, pois neste caso é cabível o mandado de injunção ou a ação de

inconstitucionalidade por omissão. Todavia, como o Supremo Tribunal Federal entende que

a decisão da ação de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção têm efeitos

simplesmente declaratórios, sem nenhum tipo de eficácia concretiva, pode-se impetrar a

argüição de descumprimento de preceito fundamental para, faticamente, realizar os

comandos normativos contidos na Constituição.

A respeito da matéria se posiciona o Min. Celso de Mello: “O ajuizamento da ação

constitucional de argüição de descumprimento de preceito fundamental rege-se pelo

princípio da subsidiariedade, de tal modo que não será ela admitida, sempre que houver

qualquer outro meio juridicamente idôneo, apto a sanar, com efetividade real, o estado de

lesividade emergente do ato impugnado. A mera possibilidade de utilização de outros meios

processuais, no entanto, não basta, só por si, para justificar a inovação do princípio em

questão, pois, para que esse postulado possa legitimamente incidir, revelar-se-á essencial

que os instrumentos disponíveis mostrem-se aptos a sanar, de modo eficaz e real, a situação

de lesividade que se busca neutralizar com o ajuizamento da ação constitucional de argüição

de descumprimento de preceito fundamental”.223

Ao contrário do que pensa o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, não se pode conceber

uma interpretação mais elástica à ADPF, contrariando o princípio da subsidiariedade e

permitindo que o instituto seja utilizado, de forma concomitante, com outros institutos do

223 ADPF 17-AP, rel. Min. Celso de Mello. DJU de 28.9.2001.

174

controle direto de constitucionalidade, com fundamento em uma interpretação conforme a

“ordem constitucional global”, com o enfoque de proteção da ordem constitucional

objetiva.224 Ou seja, advoga o Ministro que, diante da proeminente missão de resguardar os

preceitos fundamentais, dever-se-ia atribuir uma interpretação extensiva à restrição do

princípio da subsidiariedade, o que na prática serviria para anular o este princípio.

Não serve como parâmetro o argumento segundo o qual o recurso constitucional

alemão e o amparo espanhol, embora guiados pelo princípio da subsidiariedade, permitem,

em casos de grave lesão ou interesse público, a sua implementação sem a necessidade de

exaurimento recursal. A regra geral para o recurso constitucional alemão e o amparo

espanhol é o princípio da subsidiariedade, sendo a sua exceção admitida em pouquíssimos

casos. Em igual sentido se posiciona a doutrina estrangeira de que o recurso de amparo

espanhol e recurso constitucional alemão adotam o princípio da subsidiariedade.225 Segundo

Pizzorusso, o sistema europeu exige o exaurimento das instâncias ordinárias para se impetrar

o amparo ou o verfassungsbeschwerde.226 Na mesma trilha segue Luis Lopes Guerra.227

O recurso constitucional alemão, Verfassungsbeschwerde, apenas pode ser impetrado

após o exaurimento das instâncias ordinárias. Mas de acordo com a Lei Orgânica do

Tribunal, § 90,II, a Corte alemã pode dispensar a exigência do exaurimento recursal,

verificando se tratar de casos de interesse geral ou de controvérsias baseadas no iminente

perigo de grave lesão.

O recurso de amparo, previsto no art. 161, b, da Constituição espanhola, prevê que o

Tribunal Constitucional tem jurisdição em todo o território espanhol e é competente para

224 Expõe Gilmar Ferreira Mendes: “À primeira vista, poderia parecer que somente na hipótese de absoluta inexistência de qualquer meio eficaz a eventual lesão poder-se-ia manejar, de forma útil, a argüição de descumprimento de preceito fundamental. É fácil ver que uma leitura excessivamente literal dessa disposição, que tenta introduzir entre nós o princípio da subsidiariedade vigente no direito alemão e no direito espanhol para, respectivamente, o recurso constitucional e o recurso de amparo, acabaria por retirar desse instituto qualquer significado prático”. MENDES, Gilmar Ferreira. “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Demonstração de Inexistência de Outro Meio Eficaz”. In: Revista Jurídica Virtual. 225 “Na Alemanha qualquer um tem o seu próprio direito fundamental garantido[...] mas só após haver exaurido todos os outros remédios legais[...].é imposto, também no Direito espanhol o princípio da subsidiariedade”. LILLO, Pasquale. “Corte Costituzionale ed Esperienza Giuridica”. In: Diritto e Società. N. 4. Ottobre-Dicembre. Padova: CEDAM, 2001. P. 479-481. 226 PIZZORUSSO, Alessandro. Sistemi Giuridici Comparati. 2 ed. Milano: Giuffrè, 1998. P.249. 227 LOPEZ GUERRA, Luis. “Jurisdicción Ordinaria y Jurisdicción Constitucional”. In: La Aplicación Jurisdiccional de la Constitución. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997. P. 37.

175

conhecer do recurso de amparo nos casos e formas que a lei estabelecer, sendo este o recurso

cabível quando houver uma ameaça ou lesão a um direito ou garantia constitucional. A Lei

Orgânica do Tribunal Constitucional, no seu art. 44, I, explicita que cabe o recurso de

amparo contra ato judicial desde que sejam esgotados todos os recursos possíveis de

utilização na via recursal. Em idêntico sentido se posiciona Francisco Tomás y Valiente, que

foi Presidente do Tribunal Constitucional espanhol, ao afirmar que o recurso de amparo

apenas é devido quando é esgotada a via judicial previamente estabelecida em cada caso.228

Com relação ao amparo espanhol, a possibilidade de exceção ao exaurimento

recursal é admita pela doutrina e jurisprudência, desde que haja relevante motivo para

justificá-lo, como um interesse geral ou eminente perigo de lesão.

A tese da flexibilização do princípio da subsidiariedade com base em institutos

processuais estrangeiros não pode ser transposta literalmente para a realidade brasileira, em

razão das peculiaridades nacionais. Todas as vezes que essa transposição de institutos

estrangeiros foi realizada, descurando da realidade social pátria, houve o aumento da

ineficácia do ordenamento jurídico, no que reforça o seu caráter retórico, para manter o

status quo dominante e estiolar ainda mais a coercitividade dos dispositivos constitucionais.

Como a tentativa de utilizar analogicamente o amparo espanhol e o recurso

constitucional alemão se afigura estapafúrdia, buscam-se outros meios para fragilizar o

princípio da subsidiariedade. Uma dessas formas é a afirmação de que o referido princípio

apenas tem incidência obrigatória na argüição de descumprimento de preceito fundamental,

não se aplicando à argüição incidental de constitucionalidade. Essa argumentação mais uma

vez se configura destituída de validade. O princípio da subsidiariedade foi previsto para todo

o instituto da argüição. Se assim não o fosse, seria regulamentado especificamente, de forma

clara, para uma das suas modalidades. Ademais, se é bastante claro, hodiernamente, que o

228 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Escritos Sobre y Desde El Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. P. 1993. P. 43.

176

incidente de inconstitucionalidade é inconstitucional, torna-se despicienda a presente

discussão.229

O princípio da subsidiariedade é um dos vetores indissociáveis da argüição de

descumprimento de preceito fundamental. Sua aplicação deve ser feita em consonância com

a mens legis do texto legal, sobre o qual não paira nenhuma névoa de dúvida, vez que

planteia, de forma límpida, que a argüição somente será utilizada quando não houver outro

meio idôneo para solucionar o acinte a preceito fundamental.230 No mesmo sentido se

posiciona Alexandre de Moraes: “Observe-se, porém, que o cabimento da argüição de

descumprimento de preceito fundamental não exige a inexistência de outro mecanismo

jurídico, mas seu prévio esgotamento sem real efetividade, ou seja, sem que tenha havido

cessão a lesividade a preceito fundamental, pois a lei não previu exclusividade de hipóteses

para a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental, mas sua

subsidiariedade”.231

Lênio Streck explicita o campo de ação da ADPF: “Assim, em face desse processo

hermenêutico, torna-se razoável afirmar que a ação de descumprimento de preceito

fundamental passa a ser remédio supletivo para os casos em que não caiba ação direta de

inconstitucionalidade. Nesse sentido, poderão agora ser questionados atos normativos

(regulamentos, resoluções, por exemplo) que anteriormente não eram passíveis de

enquadramento na via da ação direta de inconstitucionalidade”.232

229 Defende tal argúcia: BERNARDES, Juliano Taveira. “Lei 9882/99: Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental”. In: Revista Virtual Jus Navigandi. 230 No mesmo sentido, Thomas Bustamante: “Não se pode negar que, cabendo qualquer recurso para a decisão judicial atacada, há um meio eficaz para se “sanar a lesividade”, o próprio recurso cabível! Qualquer que seja o sentido atribuído pelo legislador à expressão “eficácia” é razoável se presumir que o recurso para um outro órgão julgador, ou mesmo para o Supremo Tribunal Federal, nos casos contemplados pela Carta Magna, é um mecanismo eficiente para a proteção da norma constitucional supostamente violada. A conclusão contrária importaria numa contradição insuperável no sistema jurídico: a inexistência de eficácia da decisão de um Tribunal ao reformar a decisão recorrida”. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. “A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e sua Regulamentação pela Lei n.º 9882, de 3 de Dezembro de 1999. Incidente de Inconstitucionalidade?” In: Inforjus, Janeiro de 2000. 231 MORAES, Alexandre de. Comentários à Lei n.º 9882/99 – Argüição de Descumprimento de Preceito Constitucional. In: Argüição de Descumprimento de Preceito fundamental: Análises à Luz da Lei n.º 9.882/99. São Paulo: Atlas, 2001. P. 27. 232 STRECK, Lenio Luiz. “Os Meios de Acesso do Cidadão à Jurisdição Constitucional, a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e a Crise de Efetividade da Constituição”. In: Revista da Esmape. V. 6, n. 13- Janeiro/junho- 2001. P. 275.

177

Como a regulamentação da argüição de descumprimento de preceito fundamental

constituiu uma grande evolução na proteção dos direitos fundamentais contidos na

Constituição, assegurando-lhes eficácia normativa, dentro de um conteúdo minimamente

estabelecido, principalmente aos direitos sociais, sua aplicação não pode ser ampliada de

modo desmesurado, sob pena de perda de sua eficácia concretiva.

7.5.4) Inovações

A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, por si só uma inovação no

controle concentrado de constitucionalidade, trouxe algumas mudanças que destoam das

características peculiares a esse sistema. A nota peculiar dessas inovações é uma ampliação

na esfera da jurisdição constitucional brasileira, que se não for acompanhada da

transformação do Supremo Tribunal Federal em um tribunal constitucional, com a supressão

da sua competência recursal, afora a garantia dos direitos fundamentais, servirá apenas para

assoberbar ainda mais o Pretório Excelso..

A primeira das inovações é a possibilidade de argüição de descumprimento de

preceito fundamental contra ato ou lei municipal que de forma direta afrontar a Constituição

Federal, instituindo-se, assim, o controle direto, por parte do STF, com relação às

inconstitucionalidades praticadas pelos municípios. Antes, era permitido apenas ao

constituinte estadual instituir o controle concentrado das normas do direito municipal, ainda

assim em face da Constituição estadual. O controle das normas municipais que afrontassem

a Carta Magna federal somente poderia ser feito pela via difusa.

A possibilidade de apreciação de inconstitucionalidades municipais por parte do

Supremo Tribunal Federal, no que abriu uma exceção no controle concentrado, fundamenta-

se na necessidade de proteger os preceitos fundamentais, assegurando-lhes um entrenchment

para que eles possam aumentar a sua capacidade concretiva e densificar a legitimação da

178

jurisdição constitucional. Anteriormente não era previsto controle direto para as

inconstitucionalidades municipais, a fim de se evitar uma grande demanda para o Supremo.

Hodiernamente, havendo qualquer ameaça ou lesão de preceito fundamental por lei

ou ato normativo, sem nenhuma distinção entre os entes federativos, tem o Supremo

Tribunal Federal o poder-dever de velar pela integridade do ordenamento jurídico e declarar

a inconstitucionalidade, reafirmando a concretude das normas constitucionais.O objetivo

dessa inovação foi impedir que os vários Tribunais de Justiça tivessem um posicionamento

discrepante em relação a uma mesma matéria.

A segunda inovação diz respeito ao controle de constitucionalidade de normas

anteriores à Constituição, pré-constitucionais, ou pós-constitucionais que já foram revogadas

ou que exauriram seus efeitos por intermédio do controle concentrado. Antes da ADPF, o

Supremo Tribunal Federal não reconhecia, em sede de controle direto, a possibilidade de

apreciação desses casos mencionados.

Os dispositivos jurídicos que vigoravam antes da Constituição atual e que não

contrariam os mandamentos constitucionais são recepcionados pela nova ordem jurídica,

como fora explicitamente afirmado pelas Cartas Magnas de 1891, 1934 e 1937, através das

cláusulas de recepção. As normas do ordenamento anterior que se chocaram com o novo

Texto Magno foram imediatamente, sem necessidade de pronunciamento judicial, retiradas

do ordenamento jurídico, não-recepcionadas, baseando-se no princípio lex posterior derogat

priori.

O Supremo não aceita as ações diretas de inconstitucionalidade de leis anteriores à

Constituição, pré-constitucionais, e pós-constitucionais, que são aquelas que não mais

integram o ordenamento jurídico, ou porque foram revogadas ou porque seus efeitos já se

extinguiram. Nesses dois casos mencionados, a única forma de reaver os direitos lesionados

era por intermédio do controle difuso de constitucionalidade, de acesso direto por parte de

qualquer cidadão. Com a regulamentação da ADPF, o controle normativo das normas pré-

constitucionais e pós-constitucionais pode ser realizado por via direta, com ação para o

Supremo Tribunal Federal, desde que incidam contra preceitos fundamentais.

179

Nas duas inovações mencionadas supra, é necessário que haja um relevante

fundamento que ampare controvérsias judiciais, de acordo com o inciso I, do parágrafo

único do art. 1º da Lei n. 9.992/99. Consoante o permissivo legal, as impugnações contra lei

ou ato municipal, incluindo os anteriores à Constituição, exigem que haja, antecipadamente,

uma controvérsia judicial, em qualquer das instâncias do Poder Judiciário, para que possa

justificar a impetração da ADPF.

O aumento da competência do Supremo Tribunal Federal pertinente ao controle de

constitucionalidade das normas municipais e das normas pré-constitucionais não padece de

inconstitucionalidade como sustentam algumas posições doutrinárias.233 A alegação de que

as ações do controle concentrado somente poderiam ser impetradas contra lei ou ato

normativo federal ou estadual, de acordo com o art. 102, inciso I, alínea “a”, não é factível

porque esse dispositivo constitucional limitou-se a disciplinar a ação direta de

inconstitucionalidade, não tendo abrangência para os demais tipos de ações diretas. A ADPF

foi disciplinada na Constituição no § 1º do art. 102, cominando que lei infraconstitucional

iria regulamentar o mencionado instituto. Portanto, a Lei 9.882/99 que o regulamentou

manteve-se dentro dos vetores da Lei Maior sem incorrer em nenhuma

inconstitucionalidade.

A terceira inovação, e essa muito mais profunda porque subverte a estrutura do

controle direto, criando um tertium genus entre o controle direto e o controle difuso, consiste

na possibilidade de se analisar, em sede de controle direto, a constitucionalidade de um caso

concreto. O controle de constitucionalidade concentrado até então existente somente era

utilizado diante da lei em tese, sem necessidade de se especificar um caso concreto (outra

exceção que pode ser mencionada é o caso da ação interventiva, mas de alcance bem mais

restrito por causa da sua finalidade).

233 Nesse sentido é o entendimento de Palhares Moreira Reis: “Daí, o entendimento de que a argüição de descumprimento de preceito fundamental, igualmente ação de inconstitucionalidade, deve se limitar, no âmbito da competência do Supremo Tribunal Federal a discutir leis e atos normativos federais e estaduais, jamais em relação a normas municipais. Quando a questão se relacionar com normas municipais, o controle de constitucionalidade concentrado somente é possível em face da Constituição dos Estados, em exame pelos Tribunais de Justiça correspondentes”. MOREIRA REIS, Palhares. Estudos de Direito Constitucional e de Direito Administrativo. V. IV, Recife: Editora Universitária – UFPE, 2003. P. 237.

180

Preenchidos os requisitos processuais, o controle abstrato, por meio de ADPF, pode

incidir em casos concretos, desde que haja afronta a direito fundamental. Pelas

peculiaridades do caso concreto, os efeitos produzidos, que são os mesmos das ações diretas,

sofrem uma mitigação, o que obriga a uma interpretação mais genérica das decisões da

argüição de descumprimento de preceito fundamental, para que possam ser usadas em outros

casos.

Através dessa inovação, a cidadania ganhou um instrumento jurídico que pode

possibilitar a concretização de vários direitos fundamentais que são delineados em normas

de eficácia programática e que, atualmente, são relegadas de implementação devido a

conveniências políticas.234

7.5.5) A Inconstitucionalidade do Incidente de Constitucionalidade

A argüição de descumprimento de preceito fundamental por equiparação ou

incidente de constitucionalidade igualmente foi regulamentado pela Lei n. º 9.882/99,

especificamente no seu art. 1º, inciso I. Ocorre que o fator teleológico da lei, com base no

mandamento esculpido na Constituição Federal, não foi criar um instituto jurídico

inteiramente diverso da argüição de descumprimento de preceito fundamental e, ao contrário

desta, crassamente eivada pelo vício de inconstitucionalidade.

O controle de constitucionalidade, em decorrência da supremacia de que gozam as

normas constitucionais, somente pode ser previsto por normas oriundas do Poder

234 “O Poder Público – quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de legislar, imposto em cláusula constitucional, de caráter mandatório – infringe, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos”. ADIn – 1484, rel. Min. Celso de Mello.

181

Constituinte ou, no mínimo, por normas do Poder Reformador. Jamais por normas

infraconstitucionais. A Lei n. º 9.882/99 não criou a ADPF, ela foi prevista na Carta Magna,

sua regulamentação é que ocorreu por normas infraconstitucionais e dentro do escopo

delineado pela norma constitucional. Ao exceder a finalidade do mandamento

constitucional, o legislador infraconstitucional cometeu uma inconstitucionalidade porque

uma norma que possui o mesmo nível hierárquico das demais não pode prescrever nenhuma

forma de controle de constitucionalidade.

Ao regulamentar o incidente de constitucionalidade como se fosse argüição de

descumprimento de preceito fundamental, o legislador infraconstitucional ultrapassou os

limites expressos na Constituição, produzindo uma inconstitucionalidade material que não é

passível de convalidação. Além do que os institutos são frontalmente diversos, com

características próprias, não havendo base constitucional que ampare a criação do incidente

de constitucionalidade.

A argüição de descumprimento de preceito fundamental por equiparação ou

incidente de constitucionalidade, como a própria terminologia deixa bem claro, ocorre no

curso de um processo. Esse instrumento jurídico pode ser utilizado quando há um relevante

fundamento de controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou

municipal, inclusive os anteriores à Constituição (Art. 1º, inc. I da lei n.º 9.882/99).

O primeiro requisito é a existência de um relevante fundamento, que em uma fase

posterior gerará uma controvérsia judicial. A relevância configura-se como a magnitude da

questão judicial posta sob apreciação, considerada como imprescindível para a segurança do

ordenamento jurídico e a supremacia das normas constitucionais.

O segundo requisito é a existência de uma divergência judicial que pode ser

localizada em qualquer instância do Poder Judiciário, com relação à lei ou ato normativo,

inclusive anterior à Constituição, seja qual for o ente federativo que o realizou. O grau e a

extensão dessa divergência judicial deve ser de uma certa monta, de sorte a respaldar a

propositura da argüição. A existência de uma controvérsia infraconstitucional não é idônea

para alicerçar a impetração da mencionada ação.

182

Há a permissão para o deferimento de medida cautelar, desde que presentes o fumus

bonis juris e o periculum in mora. Ela poderá determinar que os juízes e tribunais

suspendam o andamento de processos ou os efeitos de decisões judiciais ou de qualquer

outra medida que apresente relação com a matéria impugnada, com exceção da coisa

julgada.

O incidente de constitucionalidade seguiu o parâmetro dos modelos de controle

concentrado de constitucionalidade, em que a questão argüida como inconstitucional é

submetida diretamente à Corte Constitucional, toda vez que a norma for relevante para o

julgamento do caso concreto e o juiz ou tribunal considerá-la inconstitucional (Constituição

austríaca, art. 140 (1); Lei Fundamental de Bonn, art. 100, I ). Esclarece Gilmar Ferreira

Mendes: “Ao contrário do que ocorre nos modelos concentrados de controle de

constitucionalidade, nos quais a corte constitucional detém o monopólio da decisão sobre a

constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei, o incidente de inconstitucionalidade

não altera, em seus fundamentos, o sistema difuso de controle de constitucionalidade,

introduzindo entre nós pela Constituição de 1891. Juízes e tribunais continuam a decidir

também a questão constitucional, tal como faziam anteriormente, cumprindo ao Supremo

Tribunal Federal, enquanto guardião da Constituição, a uniformização da interpretação do

texto magno, mediante o julgamento de recursos extraordinários contra decisões de única ou

última instância”.235

O incidente de constitucionalidade é inconstitucional. Se fosse implantado por meio

de emenda constitucional ainda o seria, o que dirá da sua implantação por meio de norma

infraconstitucional. Ele representa um acinte contra os princípios constitucionais pelas

seguintes razões: a) somente através de emenda constitucional pode-se criar uma nova forma

de controle de constitucionalidade, do contrário estar-se-ia perpetrando uma fraude à

constituição porque faltaria supralegalidade às normas que exercem o controle de

constitucionalidade; b) estiola os princípios do juízo natural, do acesso à jurisdição e da

liberdade jurisdicional dos juízes; c) fere flagrantemente o controle difuso e a sua função

profícua que é a de defesa dos direitos dos cidadãos, o que não ajuda a cimentar um

235 MENDES, Gilmar Ferreira. Mudanças no Controle de Constitucionalidade. http: // www. neofito. com. br/ artigos/ art 01/ const 42. Htm Capturado em 25/11/2002.

183

fortalecimento na legitimidade da jurisdição constitucional, d) acrescenta uma nova

competência ao STF sem a utilização do devido instrumento legal, o que agride a

Constituição, que tem competência exclusiva para ampliar o elenco das competências do

Supremo Tribunal Federal. Com a transformação do STF em tribunal constitucional,

robustecendo a sua importância no ordenamento jurídico, suas prerrogativas devem estar

amparadas na Constituição, como requisito de sua validade.236

O aumento das competências do Supremo Tribunal Federal, e ainda mais sem

amparo na Constituição, confronta-se com a proposição de mitigar a sua esfera de

incidência, restringindo-o ao papel de tutela das normas constitucionais, sem se comportar

como uma instância recursal. Elastecer a competência do Supremo, que já convive com uma

demanda insustentável de processos, constitui verdadeiro entrave à celeridade processual e

ao fortalecimento dos direitos fundamentais. Entretanto, a regulamentação da ADPF, nos

moldes previstos na Carta Magna, não representa um elastecimento na competência do STF

porque já fora previsto originalmente, e ainda mais porque o princípio da subsidiariedade

inibe o seu uso de forma extensiva.

O incidente de constitucionalidade não pode ser compatibilizado com o controle

difuso de constitucionalidade, mesmo se levando em conta que a ADPF se configura como

uma ponte entre o controle difuso e o concentrado. Ele representa um sério risco ao pleno

funcionamento do controle difuso, deixando na orfandade a defesa das prerrogativas

constitucionais, pelo acesso mais eficaz à coletividade: o juízo de primeira instância, que

está ao alcance de todo cidadão.

O que se pretendeu foi ressuscitar o instituto da avocatória, típico da ditadura da

cúpula do judiciário e dos regimes autoritários.237 Para se coibir a propalada insegurança

236 No mesmo sentido Alexandre de Moraes: “O legislador ordinário utilizou-se de manobra para ampliar, irregularmente, as competências constitucionais do Supremo Tribunal Federal, que conforme jurisprudência e doutrina pacíficas, somente podem ser fixadas pelo texto magno. Manobra essa eivada de flagrante inconstitucionalidade, pois deveria ser precedida de emenda à Constituição. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Atlas, 2000. P. 615. 237 Define o instituto o professor Sacha Calmon: “A avocatória foi proposta pelo Presidente Collor numa de suas emendas à Constituição de 1988. O simples fato de a proposta ter partido do Executivo já demostra o incômodo que lhe causa um judiciário de 1ª instância decidido e capaz, como é o caso da Justiça Federal. Isto de lado, a avocatória é um mecanismo que permite ao Supremo Tribunal Federal chamar a si a competência para julgar causas que estiverem tramitando nos juízos e tribunais inferiores. Poderá avocar a pedido do

184

jurídica decorrente da divergência jurisprudencial, deve-se propor uma ADIn, a fim de se

obter uma decisão sobre a inconstitucionalidade da norma.

A evolução da discussão acerca da constitucionalidade por equiparação forcejou nos

meios jurídicos a firme convicção da sua inconstitucionalidade. Houve uma grande

repercussão negativa na sua implementação, o que levou os seus próprios idealizadores a

procurar outra alternativa para a sua incorporação ao universo jurídico. Ela afronta diversos

mandamentos constitucionais, não se compadecendo com a normalidade jurídica reinante

em um Estado Democrático Social de Direito, que tenta aumentar a tutela dos direitos

fundamentais e não enfraquecer o acesso da população a sua defesa.

Assim, nos últimos anos do governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso,

tentou-se a sua implementação por intermédio de emenda constitucional, o que foi

decididamente arquivado pelo governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva. No relatório

sobre a Reforma do Judiciário, foi apresentado pelo deputado Aloysio Nunes Ferreira um

substitutivo à PEC n. 96-A/92 instituindo o incidente de inconstitucionalidade, nos termos

seguintes: “Art.103[...]. Parágrafo 5º - O Supremo Tribunal Federal, a pedido das pessoas e

entidades mencionadas no art. 103, de qualquer tribunal, de procurador-geral de justiça, de

procurador-geral ou advogado-geral do Estado, quando for relevante o fundamento de

controvérsia judicial sobre constitucionalidade de lei, ato normativo federal ou de outra

questão constitucional, federal, estadual ou municipal, poderá, acolhendo incidente de

inconstitucionalidade, determinar a suspensão, salvo para medidas urgentes, de processos

em curso perante qualquer juízo ou tribunal, para proferir decisão exclusivamente sobre

matéria constitucional suscitada, ouvido o Procurador-geral da República”.

A referida proposta, apesar de ter sido mantida no Projeto de Reforma do Judiciário

(substitutivo Zulaiê Cobra), em tramitação no Senado Federal, foi rejeitada pelo Plenário da

Câmara dos Deputados.

Presidente da República ou do Procurador-Geral de Justiça ou do Ministro da Justiça, conforme venha a ser a fórmula legislativa idealizada para a iniciativa”. COELHO, Sacha Calmon Navarro. “ Avocatória”. In: Revista Trimestral de Direito Público. 2/1993, São Paulo: Malheiros. P. 191.

185

O Supremo Tribunal Federal ainda não tem uma definição acerca da

inconstitucionalidade do incidente de constitucionalidade ou ADPF por equiparação.

Entretanto, pelo firme posicionamento da doutrina e de alguns de seus ministros, esta

decisão seguramente será pela inconstitucionalidade do referido instituto jurídico.

Alguns dos ministros da Suprema Corte já se manifestaram a respeito da

controvérsia. O Min. Néri da Silveira posicionou-se no sentido de que, em face da

generalidade da formulação do parágrafo único do art. 1º da Lei n.º 9.882/99, a argüição

incidental em processos em curso não poderia ser criada por legislação infraconstitucional,

mas apenas por emenda constitucional, devendo ser realizada uma interpretação conforme a

Constituição com a finalidade de excluir o incidente de constitucionalidade.238

8.) Procedimento do Sistema Concentrado de Controle de

Constitucionalidade. Lei n.º 9.868/99 (Ação Direta de

Constitucionalidade e Ação Declaratória de

Constitucionalidade).

Com o procedimento dado a ação direta de inconstitucionalidade pela Lei n.

9.868/99, houve a garantia do caráter dialógico do procedimento das decisões do Supremo

Tribunal Federal. A possibilidade de órgãos representativos da sociedade civil manifestar a

sua opinião em sede de ação direta de constitucionalidade contribuiu para incrementar a

legitimidade das decisões do Pretório Excelso. Quanto maior for o número de órgãos ou

agentes que possam intervir nas decisões do STF, seja como amicus curiae, curador do

vínculo, custos legis etc, maior será o grau de penetração dos seus julgados na sociedade e,

conseqüentemente, menor o seu grau de rejeição.

238 ADIMC 2.231-DF, rel. Min. Néri da Silveira.

186

8.1) Petição Inicial

Petição inicial é a peça formal, escrita, que inicia um processo judicial, no que deve

atender a uma série de requisitos para não ser declarada inepta. A diferença dessa peça

processual no controle abstrato para os demais procedimentos relaciona-se com as

peculiaridades da tutela da supremacia constitucional.

A petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade (ADIn) precisa indicar: o

dispositivo da lei ou do ato normativo questionado; os fundamentos jurídicos do pedido em

relação a cada uma das impugnações e o pedido com suas especificações.

Já na ação declaratória de constitucionalidade, a petição inicial deve conter: o

dispositivo da lei ou do ato normativo questionado; o pedido com suas fundamentações e

indicar a existência de controvérsia judicial relevante sobre o objeto impugnado.

O autor deve dar a causa petendi os fundamentos fáticos e jurídicos do pedido. A

causa de pedir pode ser próxima ou remota. A primeira são os fundamentos de fato, isto é, os

fundamentos que levaram o autor a imediatamente ajuizar a ação perante o Supremo

Tribunal Federal. A segunda são os fundamentos jurídicos. Quando o objetivo da ação direta

de constitucionalidade for obter uma decisão que declare uma interpretação conforme a

Constituição, deve o impetrante definir qual o sentido que pretende ver a norma interpretada.

Em ambas as ações diretas, se a petição inicial for genérica e abstrata, sem

especificar de forma fundamentada, o pedido de inconstitucionalidade ou o pedido de

declaração de constitucionalidade, será considerada inepta e deve ser liminarmente

indeferida pelo relator.

José da Silva Pacheco aponta os requisitos para a identificação de uma petição

inepta: “a) a que falta o pedido; b) a que falta a indicação do fundamento jurídico do pedido;

c) a que falta a indicação da lei ou do ato jurídico impugnado; d) a que falta a justaposição

de cópias da lei ou ato impugnado; e) a que faltam os documentos necessários à

187

comprovação da impugnação; f) a que não for apresentada em duas vias com os elementos

exigidos pelo art. 3º e respectivo parágrafo único da Lei 9. 868/99”.239

Exemplo de indeferimento da petição inicial, por impossibilidade jurídica do pedido,

ocorre quando o pedido tem o ensejo de concretizar o controle abstrato de lei municipal

contestada com relação à Constituição Federal. O controle abstrato de normas municipais

somente é permitido em face da Constituição estadual, a exceção de descumprimento de

preceito fundamental.

Antes do indeferimento da petição inicial deve o relator verificar se é exeqüível

sanear o vício. Caso seja possível, deve-se intimar o autor para emendar a petição em dez

dias, sob pena de indeferimento.240 O escopo da possibilidade de emendar a petição inicial é

agilizar a prestação jurisdicional, evitando postergações desnecessárias.

O recurso cabível para o indeferimento da petição inicial deve ser o agravo interno.

Não é agravo de instrumento porque não necessita formar o instrumento, haja vista todas as

informações necessárias estarem contidas na ação. Não pode ser retido porque a decisão tem

que ser imediata, sem a possibilidade de verificar seu cabimento na apreciação de um

recurso futuro.241

O órgão competente para o julgamento do agravo é o pleno do Supremo Tribunal

Federal. Como não há especificação do prazo para a sua propositura, conclui-se que o prazo

seja de dez dias, por analogia com o art. 522 do Código de Processo Civil.

A petição inicial tem que ser apresentada em duas vias. Há necessidade de que ela

seja subscrita por advogado, sendo acompanhada de instrumento procuratório, quando a

ação for impetrada por partido político, confederação sindical ou entidade de classe de

239 PACHECO, José da Silva. O Mandado de Segurança e outras Ações Constitucionais Típicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. P. 457. 240 O pedido de aditamento da petição inicial para estender o pedido de declaração de inconstitucionalidade nos autos de ação direta deve ser requerido formalmente, não se admitindo que o mesmo seja feito oralmente pelo advogado, durante a sustentação oral que antecede o julgamento do feito. ADIMC 2159-DF, rel. Min. Néri da Silveira. 241 NERY, Nelson Jr. Recursos na ação Direta de Inconstitucionalidade e na Ação Declaratória de Constitucionalidade – Apontamentos sobre os recursos na LADIn (L 9.868/99). In: Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. P. 503.

188

âmbito nacional. Nos demais casos, conforme jurisprudência uníssona no STF, não há

obrigatoriedade do patrocínio de um advogado.

Na ação direta de inconstitucionalidade precisam ser anexados ao pedido as cópias

da lei ou do ato normativo impugnado e dos documentos necessários para comprovar a

impugnação.242 Na ação declaratória de constitucionalidade são imprescindíveis as cópias do

ato normativo questionado e dos documentos necessários para a comprovação da

procedência do pedido, atestando a existência de controvérsia judicial.

8.2) Procedimento

Chegando a ação ao Supremo Tribunal Federal, designa-se um relator dentre os seus

membros que se incumbe de estudar minuciosamente o processo e elaborar parecer que será

posto em votação. Na ação direta de inconstitucionalidade, o relator solicitará informações

ao órgão ou autoridade que realizou a lei ou o ato normativo impugnado, devendo as

mesmas serem prestadas no prazo de trinta dias contados do recebimento do pedido.243 Nada

impede, apesar de não ser provável, que o órgão ou autoridade da qual emanou o ato se

manifeste pela inconstitucionalidade do ato ou que silencie quanto ao pedido. Inexiste

amparo normativo para fundamentar a exigência de manifestação e que ele seja direcionada

para a constitucionalidade da lei ou do ato normativo.

Decorrido o mencionado prazo de trinta dias, serão ouvidos, sucessivamente, o

Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República, que deverão se manifestar,

cada qual, no prazo de quinze dias. Depois da manifestação desses órgãos, respeitados os

242 Não se conhece de ação direta de inconstitucionalidade se a inicial deixa de proceder ao exame analítico dos dispositivos do ato impugnado, bem como das leis nele referidas, tendo em vista os preceitos constitucionais invocados ou violados. ADIn 2.190-CE, rel. Min. Maurício Corrêa. 243 Pela ausência de interesse subjetivo, não se aplica, no controle abstrato de constitucionalidade instaurado perante tribunal de justiça, o art. 4º da Lei n.º 8.437/92 (“compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público[...]) AgRg 1.543-SP, rel. Min. Marco Aurélio.

189

prazos legais, o relator formulará o seu relatório e pedirá pauta para o julgamento, enviando-

o a todos os ministros para que possa ser apreciado.

O Procurador-Geral da República sempre funcionará como custos legis da ação.

Quando ele impetrar a ação do controle direto, não precisará ser previamente ouvido pois já

externou anteriormente a sua opinião. Defender a atuação do Procurador-Geral novamente

ou é despicienda porque ele iria repetir o seu posicionamento anterior ou seria uma

teratologia se ele contradissesse a sua primeira manifestação.

O advogado-Geral da União, por força de dispositivo constitucional, na sua função

de curador ao vinculo tem que defender a constitucionalidade da lei ou ato normativo

impugnado, como será exposto mais adiante. Não será necessária sua atuação na ação

interventiva, na ação de inconstitucionalidade por omissão, na argüição de descumprimento

de preceito fundamental e na ação declaratória de constitucionalidade porque nessas

espécies de controle direto não há necessidade de se defender a constitucionalidade das

normas federais.

Pelo insólito procedimento da ação declaratória de constitucionalidade, que restringe

a participação dos operadores jurídicos, não contribuindo para a democratização do

exercício da jurisdição constitucional, há uma redução nos órgãos que se manifestam em

suas decisões. Recebida à ação, o relator abre vistas para o Procurador-Geral da República

que tem o prazo de quinze dias para se pronunciar. Depois do mencionado prazo o relator

formulará o seu relatório e pedirá pauta para o julgamento, enviando-o a todos os ministros

para que possa ser apreciado.

Na ação declaratória não tem sentido a atuação do Advogado-Geral da União como

defensor do vínculo porque esse é o mesmo pedido formulado pelo impetrante ao Supremo

Tribunal Federal. Inusitado é a sua manifestação porque ela se configura como uma mera

repetição do pedido e, portanto, não seria razoável que dois entes efetuassem o mesmo

pedido. Nesse tipo de ação, o Advogado-Geral da União, a pedido do relator, poderá se

manifestar como custos legis.

190

Dentro das premissas do caráter dialógico que passa a nortear o procedimento do

controle de constitucionalidade brasileiro, fundamentando as suas decisões, na audiência de

julgamento é facultada a sustentação oral pelos representantes judiciais. Essa foi uma

inovação da Lei n.º 9.868/99, o que permitiu que os advogados possam fazer sustentação

oral pelo prazo de quinze minutos, de acordo com o Regimento Interno do Supremo

Tribunal Federal.

O requisito para todas as decisões do Supremo Tribunal Federal acerca do controle

de constitucionalidade é a mesma para todas as ações diretas de controle de

constitucionalidade, o que sofre modificação são os efeitos produzidos por cada uma dessas

ações. A decisão meritória somente poderá ser tomada na presença de, no mínimo, oito

ministros. Destes, pelo menos seis terão que se posicionar declarando a medida

inconstitucional. Caso não haja ministros suficientes, o julgamento será suspenso até que se

atinja o número necessário. Julgada a ação, far-se-á a comunicação à autoridade ou ao órgão

responsável pela expedição do ato.

Em face de que na jurisdição constitucional vigora o princípio da inércia, nemo judex

sine actore, o Supremo Tribunal Federal somente pode se manifestar quando for inquirido

por um dos legitimados do art. 103 da Constituição Federal. Nas suas decisões ele se

encontra condicionado ao pedido, mas não a causa de pedir.

Devido à conseqüência de ser um processo objetivo, a sentença meritória proferida,

em todas as ações do controle abstrato, é irrecorrível, até mesmo porque o Supremo Tribunal

Federal se configura como a última instância jurídica existente no ordenamento jurídico

brasileiro. O que impossibilita até mesmo a impetração de ação rescisória.244 O único

recurso possível são os embargos de declaração.

Com a finalidade de garantir a imutabilidade das decisões do Supremo Tribunal, que

funciona como instância última da jurisdição constitucional, restringem-se os instrumentos

recursais de suas decisões para apenas permitir a impetração de embargos declaratórios.

244 Descabe ação rescisória das decisões em sede de controle concentrado. AR 1365-BA, rel. Min. Moreira Alves.

191

Assim, existindo erros formais, materiais ou de fatos, eles podem ser sanados através dos

embargos declaratórios.

Para começar o julgamento é necessária a presença de oito ministros no plenário.

Para a formalização da coisa julgada necessita-se do voto de seis membros deferindo a

pedido pleiteado na ação. Se não houver o número mínimo para a instalação da sessão ou

para a formalização da coisa julgada, deve-se suspender a audiência, recomeçando quando

obtiver o quórum exigido.

Como exemplo podemos mencionar o caso de uma sessão em que o quórum para o

deferimento de uma ação declaratória de constitucionalidade ficou em 5 x 3 (cinco votos a

favor da declaração de inconstitucionalidade e três votos contrários). Então, deve-se

suspender o julgamento, para que possa haver o posicionamento de mais ministros para a

concretização dos efeitos da coisa julgada material. (A coisa julgada apenas ocorrerá se seis

ministros se pronunciarem pela inconstitucionalidade da matéria).

As diferenças do procedimento das ações do controle abstrato de constitucionalidade

decorrem da sua taxionomia de processo objetivo, com todas as conseqüências daí advindas,

como fora mencionado anteriormente.

Não se admite intervenção de terceiros no processo, nem desistência em nenhum dos

dois casos. A vedação a intervenção de terceiros não é absoluta, o impedimento é a sua

atuação nos moldes convencionais que foi estabelecido no Código de Processo Civil. Com o

advento da Lei n. º 9.868/99 houve a permissão de participação do amicus curiae, no intuito

de fornecer maiores subsídios para a decisão por parte do órgão que exerce a jurisdição

constitucional.

Não cabe intervenção de terceiros no controle abstrato porque ele é um processo

objetivo, em que não há partes litigantes nem dedução de pretensões próprias, inexistindo

direito ou interesse subjetivo a ser tutela pela decisão do Supremo Tribunal Federal. Não

existe um interesse subjetivo, mas um interesse difuso de toda a sociedade, manifestado pela

integridade sistêmica da Constituição. Todavia, não há impedimento para a intervenção

192

assistencial ou litisconsórcio ativo entre os legitimados pela Constituição para o exercício da

legitimidade ad causam.

Segundo decisão do STF, em ação direta de inconstitucionalidade, é inaplicável o

prazo em dobro para os representantes da Fazenda Pública, por se tratar de processo objetivo

em que não há o envolvimento de interesse subjetivo do Estado.245 Durante o recesso e as

férias do Supremo Tribunal Federal fica suspenso o prazo para a prestação de

informações.246

8.3) Amicus Curiae

A função do Amicus Curiae, figura que nasceu no direito anglo-saxônico, é colaborar

com o órgão que exerce a jurisdição, fornecendo-lhe o maior número possível de

informações para que a decisão possa se dar de forma consciente. A sua atuação é uma

prática difundida nos Estados Unidos configurando-se na oportunidade que uma pessoa que

não está envolvida no processo nem como parte ou como terceiro interveniente tem para

fornecer subsídios com o intento de dirimir eventuais dúvidas que surjam durante o

julgamento.

A atuação do amicus curiae no processo objetivo de controle de constitucionalidade

não institui o contraditório, característica peculiar dos processos subjetivos em que existe

uma lide, oposição de interesses, entre duas partes que buscam a tutela do seu direito. O

controle abstrato é um processo unilateral, não-contraditório, no qual não existem partes;

existe um requerente, mas nenhum requerido – o objetivo é garantir a supremacia

constitucional. A participação do amicus curiae assegura o caráter dialógico do processo, em

que a manifestação de operadores jurídicos e órgãos da sociedade civil servem para

245 ADIn 1797-PE, rel. Min. Ilmar Galvão. 246 RTJ 131/966.

193

democratizar as decisões do Supremo Tribunal Federal e, assim, fundamentar a legitimidade

das decisões da jurisdição constitucional.

A lei 9.868/99 inovou no procedimento da ação direta de inconstitucionalidade ao

instituir a figura do amicus curiae, com o objetivo de garantir um caráter dialógico à

jurisdição constitucional, o que representa uma democratização do controle de

constitucionalidade, seguindo as idéias do constitucionalista alemão Peter Haberle.247

Segundo o citado autor, quanto maior for o número de pessoas que puderem se pronunciar

acerca de uma matéria, maiores serão as possibilidades de se democratizar a sua

interpretação, impedindo manuseios casuístas.O elastecimento dos operadores jurídicos

capacitados para participar das decisões da jurisdição constitucional contribui para

incrementar a legitimidade da tutela dos dispositivos constitucionais, configurando-se como

uma justificação do tipo procedimentalista.

A institucionalização do amicus curiae pela lei n. 9.868/99 incide no procedimento

da ação direta de inconstitucionalidade, mas não foi estabelecido de forma ampla no

procedimento da ação declaratória de constitucionalidade. O que foi um grave equívoco.

Desde a sua regulamentação pela Emenda Constitucional n. 3, o procedimento desse tipo

específico de ação direta não permite que se abra um intenso debate que possa arejar as suas

decisões, concretizando o caráter dialógico da jurisdição constitucional, que é um dos

elementos de intensificação de sua legitimidade.

O essencial é o aprimoramento da participação dos operadores jurídicos nos debates

das decisões da jurisdição constitucional e não a mitigação de sua participação. A

regulamentação do amicus curiae deveria ser o mesmo para todas as ações do controle

concentrado, resguardando apenas as peculiaridade que impedissem a sua incidência, o que

não é o caso da ação declaratória de constitucionalidade.

A participação do amicus curiae foi prevista de duas formas na jurisdição

constitucional: através da manifestação de órgãos ou entidades da sociedade civil desde que

247 HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: saFE, 1997. P. 22.

194

se comprove a relevância da matéria e se ateste a representatividade dos postulantes; por

intermédio de requisição de informações, perícias e pareceres, havendo a necessidade de

esclarecimento da matéria analisada ou notória insuficiência de informações. O primeiro

caso somente incide nas ações diretas de inconstitucionalidade, e o segundo caso incide

também nas ações declaratórias de constitucionalidade.

A decisão para a manifestação do amicus curiae pertence ao relator do processo, em

um ato processual que não admite a possibilidade de recurso. Porém, nada impede que

durante o curso da instrução processual o pedido seja reiterado pelo autor ou que ex officio o

relator reveja sua posição. Pela própria finalidade do mencionado instituto, o deferimento da

presença do amicus curiae somente pode ocorrer durante a instrução processual,

impossibilitando o seu deferimento quando em curso o julgamento.248

A primeira hipótese de democratização das decisões da jurisdição constitucional

acontece quando o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos

postulantes, pode ouvir, por despacho irrecorrível, no prazo de 30 dias, a manifestação de

outros órgãos ou entidades, na qualidade de Amicus Curiae, como a OAB (Ordem dos

Advogados do Brasil), o IAB (Instituto dos Advogados do Brasil), a CNBB (Confederação

Nacional dos Bispos do Brasil), a FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo)

etc.249

O objetivo não é apenas democratizar as decisões do Pretório Excelso, ao permitir a

participação de entidades sociais no controle concentrado. Ele tem igualmente a finalidade

de fornecer um maior número de informações para que as decisões do Supremo Tribunal

Federal possam ser mais precisas e condizentes com a prova carreada aos autos.

248 “Por maioria, o Tribunal, preliminarmente, deixou de referendar a admissibilidade, no processo, da Associação Paulista dos Magistrados na qualidade de amicus curiae, uma vez que a mesma formulara pedido de admissão no feito depois de já iniciado o julgamento da medida liminar. Considerou-se que a manifestação do amicus curiae é para a instrução, não sendo possível admiti-la quando em curso o julgamento. Vencidos os Ministros Ilmar Galvão, Carlos Velloso e Sepúlveda pertence.ADIMC 2238-DF, rel. Min. Ilmar Galvão. 249 Por maioria, o Tribunal, preliminarmente, deixou de referendar a admissibilidade, no processo, da Associação Paulista dos Magistrados na qualidade de amicus curiae, uma vez que a mesma formulara pedido de admissão no feito depois de já iniciado o julgamento da medida liminar. Considerou-se que a manifestação do amicus curiae é para a instrução, não sendo possível admiti-la quando em curso o julgamento. Vencidos os Ministros Ilmar Galvão, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence. ADIMC 2238-DF, rel. Min. Ilmar Galvão.

195

A segunda hipótese tem ensejo com a finalidade de melhor instrução da dilação

probatória. Havendo uma maior necessidade de esclarecimento da matéria, por qualquer tipo

de motivo, ou havendo notória insuficiência das informações existentes, pode o relator, por

ato discricionário seu desde que seja fundamentado, determinar a elaboração de informações

adicionais. Essa extensão da dilação probatória pode consistir na designação de perito ou

comissão de peritos para apreciação do quaestio júris, no convite a jurisconsultos para

prestar esclarecimento sobre a temática envolvida no litígio, ou na requisição de

informações adicionais.

Para que a realização desses atos probatórios não paralisem em demasia a celeridade

processual nem transformem o Supremo Tribunal Federal em um órgão de instrução, o que

não é o caso mesmo com a teratológica amplitude de competências que lhe foi atribuída, a

lei determinou o prazo de trinta dias para a realização da requisição das informações,

perícias e audiências. A necessidade de maiores informações justifica a possibilidade de

solicitar maiores subsídios aos Tribunais Superiores, aos Tribunais Federais e aos Tribunais

Estaduais acerca da norma impugnada no âmbito de sua jurisdição.

8.4) Medida Cautelar

A medida cautelar tem o escopo de garantir o desiderato almejado pelo controle

direto de constitucionalidade, impedido que o interstício temporal necessário para a

prolatação da sentença possa cercear sua tutela. Ela, de forma imediata, antecipa

provisoriamente a decisão definitiva.

A medida cautelar pode ser proferida na ação direta de inconstitucionalidade, na ação

declaratória de constitucionalidade e na argüição de descumprimento de preceito

fundamental.250 Por motivos que são inerentes ao procedimento das ações, não pode ser

250 A possibilidade de cautelar em sede de controle concentrado somente foi concretizada com a Emenda Constitucional n.º 7 de 1977, que acrescentou a alínea P ao art. 119 da Constituição pretérita, conferindo ao

196

proferida ação cautelar na ação direta interventiva e na ação de inconstitucionalidade por

omissão. A primeira porque é uma exceção restrita à autonomia dos entes federativos, não

sendo passível de ser executada sem uma decisão definitiva, protegida pela segurança da

coisa julgada. No segundo caso, em decorrência da concepção exacerbada do princípio da

separação dos poderes, que concebe a decisão da ação direta de inconstitucionalidade por

omissão como declaratória, sem apresentar possibilidade de concretude normativa. Vários

julgados do Supremo Tribunal Federal firmaram o entendimento de que não se pode

pretender que um simples provimento cautelar possa antecipar efeitos positivos

inalcançáveis pela própria decisão final emanada pelo Pretório Excelso.251

Para que a medida cautelar seja deferida na ação direta de inconstitucionalidade, faz-

se necessário um quórum de maioria absoluta dos votos dos membros do STF, presentes no

mínimo dois terços dos seus membros. 252 Durante o período de recesso, o relator poderá

deferi-la sem a presença dos demais membros, o que é possível diante do caráter de urgência

da medida, adequando-se ao próprio escopo de uma decisão cautelar. A decisão monocrática

do Ministro plantonista está sujeita à confirmação do Tribunal, nas primeiras sessões após o

recesso.

Na ação direta de inconstitucionalidade haverá o pronunciamento dos órgãos ou

autoridades do qual a lei ou o ato normativo tiver emanado, no prazo de cinco dias, antes da

decisão sobre o deferimento da medida cautelar, funcionando esse procedimento de forma

sólita. O Tribunal poderá deferir a medida cautelar sem a audiência dos mencionados órgãos

ou autoridades apenas em caso de excepcional urgência.

Supremo Tribunal Federal competência para decidir o pedido de medida cautelar nas representações oferecidas pelo Procurador-Geral da República. 251 RTJ 133/569, rel. Min. Marco Aurelio, ADIn 267-DF, rel. Min. Celso de Mello. 252 “Esse problema gerou, no Tribunal, há pouco tempo, uma discussão que terminou com uma conclusão unânime: toda vez que a Corte suspende a eficácia de uma norma, (através de medida cautelar) na realidade, o efeito dessa suspensão é um efeito muito mais grave do que à primeira vista parece ser. Ou seja, toda vez em que há suspensão da eficácia de uma norma, todos os processos em que há necessidade da aplicação daquela norma ou, pelo menos, do exame de sua aplicação para saber se a ela se subsume o caso concreto ou não, devem ser suspensos. E devem ser suspensos por uma razão singelíssima: é que esta norma tem a sua eficácia suspensa apenas provisoriamente. Conseqüentemente, é possível que, no julgamento final da ação direta de inconstitucionalidade, a decisão seja contrária à adotada quando da concessão dessa liminar. E, conseqüentemente, aquela norma que fora suspensa, volta a ter sua eficácia plena”. Conferência inaugural do XXIII Simpósio Nacional de Direito Tributário proferida pelo Min. Moreira Alves na Capital Paulista em outubro de 1998.

197

Ao apreciar o pedido cautelar da ADIn, o relator, julgando indispensável, ouvirá o

Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República, no prazo de três dias. É uma

faculdade discricionária do relator, que serve para muni-lo de maior quantidade de

informações.

Na ação direta de inconstitucionalidade, havendo pedido de medida cautelar, o

relator, considerando a relevância da matéria e sua importância para a ordem social e a

segurança jurídica, poderá, após a prestação das informações, no prazo de dez dias, do órgão

do qual emanou a lei ou ato impugnado, e informações do Advogado-Geral da União e do

Procurador-Geral da República, sucessivamente, no prazo de cinco dias, submeter o

processo diretamente ao Tribunal, que terá a faculdade de julgar definitivamente a ação.

Dessa forma, pode o relator conceder a tramitação da ação direta de inconstitucionalidade

um procedimento mais rápido, devido a premências da conjuntura fática que exijam uma

decisão meritória mais célere.

É um prerrogativa discricionária do relator, necessitando ser fundamentada, adotar o

procedimento mais célere. Todavia, também é uma prerrogativa do Egrégio Tribunal acerca

da data do julgamento. Esse procedimento mais rápido se justifica diante da necessidade de

uma rápida decisão de mérito, garantindo a segurança do ordenamento, haja vista que o

deferimento da decisão cautelar é provisório, sendo possível a sua modificação na decisão de

mérito. Pode até mesmo a cautelar ser indeferida e o relator, diante da magnitude da matéria,

adotar o procedimento mais célere para a decisão de mérito.

Concedida à medida cautelar, o STF tem o prazo máximo de dez dias para publicar a

decisão, parte dispositiva, no Diário Oficial. A comunicação da decisão também pode ser

feita através de telegrama, ao órgão do qual emanou a norma ou ato normativo, sendo a

publicação feita posteriormente.

A medida cautelar tem eficácia erga omnes e produz efeitos ex nunc, salvo se o

Supremo Tribunal Federal expressamente estipular o contrário, ou seja, conceder-lhe efeitos

ex tunc. Até a edição dessa lei, o efeito da concessão da medida cautelar somente podia ser

198

ex nunc, já que prevaleceu a tese defendida pelo Min. Moreira Alves.253 Atualmente, com a

nova regulamentação, pode o STF decidir de acordo com a conjuntura fática se os efeitos da

concessão da medida cautelar serão ex nunc ou ex tunc, o que aumenta o seu grau de

discricionariedade. Os efeitos ex nunc não são a regra, muito pelo contrário, configuram-se

como exceção, só devendo ser concedidos quando houver fundados motivos, que devem ser

fundamentalmente justificados.

O deferimento da liminar torna aplicável a legislação anteriormente vigente, exceto

se houver disposição em contrário. Não se pode falar neste caso de repristinação porque a lei

que revogou a norma anterior foi declarada inconstitucional e, portanto, expulsa do

ordenamento jurídico. Essa disposição vigente no art. 11, § 2°, da Lei 9. 868/99, traz como

conseqüência que o deferimento de uma liminar, com a transitoriedade do seu provimento

que é uma das suas características, tem o efeito de retirar a vigência de uma norma jurídica.

Assim, uma decisão do Supremo Tribunal Federal, em caso de recesso tomada de forma

monocrática, pode retirar uma lei do ordenamento, o que mostra a força dessa Egrégia Corte

e a necessidade de se aumentar a sua legitimação.

A conclusão desse dispositivo legal é que o deferimento da medida cautelar tem um

efeito não apenas na eficácia da norma, mas na sua própria validade, aumentando a

incidência da jurisdição constitucional. Devido a essa prerrogativa, a medida cautelar na

jurisdição constitucional tem uma maior intensidade do que quando ela é utilizada nos

procedimentos ordinários.

Repristinação é o fenômeno no qual uma lei volta novamente a vigorar quando a lei

que a revogou perde também sua validade; ou seja, se A é revogado por B e sendo B

suprimido por C, o efeito repristinatório seria o ressurgimento de A. O ordenamento jurídico

brasileiro não admite o fenômeno da repristinação.

253 “Quando suspendemos liminarmente a vigência de uma lei, na realidade, não estamos declarando sua inconstitucionalidade, mas estamos apenas evitando que ela, a partir da concessão da liminar, produza efeitos negativos para o tesouro, tendo em vista o interesse público. Se não fosse assim, com a concessão de liminar, teríamos que obrigar retroativamente à devolução todos os que já tivessem recebido. Por isso, sempre me pareceu que a eficácia da liminar é apenas ex nunc, ou seja, a partir do momento em que o Supremo Tribunal Federal a defere. Não se trata de suspensão equivalente à do Senado, que é suspensão em decorrência de declaração de inconstitucionalidade, e, portanto, definitiva, razão por que a expressão mais apropriada seria a de retirada de vigência”. Rp n. 1.391/ CE. rel. Min. Moreira Alves.

199

No caso do controle de constitucionalidade não podemos falar desse instituto

jurídico, em decorrência que a norma declarada inconstitucional com efeitos ex tunc, é

considerada como nula, não produzindo efeitos na seara jurídica. Portanto, a norma anterior

é considerada como válida, sem que nunca fosse considerada revogada.

Entretanto, em alguns casos, com a declaração da norma posterior como

inconstitucional, considerando-a nula, por razão de segurança jurídica e de proteção a boa-fé

dos cidadãos, há necessidade de também haver a declaração da anterior como

inconstitucional. Para isso, é necessária a especificação no pedido para que seja declarada a

inconstitucionalidade da norma anterior e da norma posterior.

Na ação declaratória de constitucionalidade, para que a medida cautelar seja tomada,

faz-se necessário uma decisão com o quórum de maioria absoluta de votos dos membros do

STF, presentes na sessão pelo menos oito Ministros. O efeito da cautelar não é retirar a

norma do ordenamento, mas determinar que todos os juízes e tribunais suspendam os

processos que envolvam a aplicação da lei ou ato normativo objeto da ação até o seu

julgamento em definitivo. A decisão na liminar não extingue o processo, apenas paralisa o

seu procedimento, a fim de que se aguarde a decisão final de mérito.

Cabe agravo da decisão do relator que indeferir o pedido de medida cautelar. Além

do recurso mencionado, cabe embargos de declaração, para tentar corrigir omissões,

contradições ou obscuridades. Das demais decisões do relator não cabe nenhum tipo de

recurso.

Não há nenhum impedimento para que o relator reveja a sua decisão, seja de ofício

ou por intermédio de requerimento do autor. As questões resolvidas pelo relator não

precluem e podem ser requeridas novamente pelo autor. O relator também tem outras

funções relevantes, como deferir provas, designar perícias e requisitar informações. De igual

forma, é de sua competência decidir acerca do cabimento ou não da petição inicial.

O deferimento da ação declaratória de constitucionalidade produz efeitos diversos

dos efeitos produzidos pela ação direta de inconstitucionalidade em razão da finalidade dos

dois institutos. No primeiro tipo de ação do controle concentrado há como efeito da cautelar

200

a suspensão de qualquer processo que verse sobre a matéria suscitada, esperando decisão

final do mérito, claro que ressalvadas as decisões transitadas em julgado. No segundo tipo de

ação do controle concentrado suspende-se apenas à eficácia da lei ou ato, não afetando

demais processos judiciais que tentem nas instâncias inferiores invalidar os efeitos já

produzidos pela lei impugnada. A ilação que se pode chegar das duas espécies diversas de

provimentos cautelares é que na ação declaratória de constitucionalidade existe um efeito

vinculante que afeta todos os processos que tenham trâmite nas demais instâncias

judiciárias, mas que perfilem o mesmo objeto impugnado na referida ação.

Na ação declaratória a eficácia da medida cautelar é erga omnes e o efeito em regra é

ex nunc. Neste tipo de ação, como apenas o Procurador-Geral da República se pronuncia,

não cabe procedimento mais célere para o julgamento do mérito.

A parte dispositiva da decisão da ação declaratória deve ser publicada no Diário

Oficial no prazo máximo de dez dias. Uma vez concedida a cautelar, o Supremo Tribunal

Federal tem o prazo de cento e oitenta dias para proferir a decisão de mérito, sob pena de

perda da eficácia do provimento cautelar. Passados os cento e oitenta dias sem que o mérito

da ação tenha sido julgado, a medida liminar não mais persistirá, independente de qualquer

posicionamento do Supremo.

8.5) Efeito Dúplice

Efeito dúplice ou ambivalente ou efeito de sinal trocado sinaliza que a decisão da

ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade podem,

ambas, produzir dois efeitos: se a primeira não for admitida, os efeitos decorrentes da

decisão serão no sentido de declarar a constitucionalidade da lei ou do ato normativo; se a

segunda não for admitida, os efeitos decorrentes da decisão serão no sentido de declarar a

inconstitucionalidade da lei ou ato normativo.

201

Esse efeito advém da concepção de que a ação direta de inconstitucionalidade tem a

mesma taxionomia da ação declaratória de constitucionalidade com sinal trocado. A

conseqüência da decisão seria a mesma, apenas com desiderato inverso.

Portanto, ao julgar que uma determinada lei ou ato normativo não é inconstitucional,

imediatamente o STF declara a sua constitucionalidade e ao julgar que uma determinada lei

não é constitucional, imediatamente ele declara a sua inconstitucionalidade. Em ambos os

casos os efeitos são vinculantes.

8.6) Extensão dos Efeitos das Decisões do STF

A maior parte da doutrina e da jurisprudência brasileira firmou posição de que a lei

ou ato normativo declarado inconstitucional é nulo, sendo a sentença que a proferiu

classificada como declaratória, e, portanto, a extensão dos seus efeitos tipificados com ex

tunc. Com isso, como regra geral, a extensão temporal dos efeitos das ações diretas é ex

tunc.

A mencionada regra geral começou a sofrer exceções com a edição da Lei n.º

9.868/99 que possibilitou ao Supremo Tribunal Federal, declarando a inconstitucionalidade

da lei ou ato normativo, mediante o quórum qualificado de 2/3 dos seus componentes, e

levando em conta razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, modificar

os efeitos ex tunc, tidos como regra geral, para ex nunc ou pro futuro ou restringir ainda os

efeitos daquela declaração.254

254 A ADIn n.º 2.154, impetrada pela Confederação Nacional dos Profissionais Liberais e a ADIn

2.258, impetrada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, impugna algumas disposições implementadas pela Lei n.º 9.688/99. A primeira - ADIn 2154 , da Confederação Nacional dos Profissionais Liberais -, além de imputar ao diploma ilegítima omissão parcial atinente às garantias do contraditório e da ampla defesa no processo da ADC , argüi a inconstitucionalidade dos arts. 026 , in fine - no que veda a ação rescisória das decisões definitivas dos processos de controle direto que disciplina - e do art. 027 - que autoriza ao STF a manipulação da eficácia temporal da declaração de inconstitucionalidade . A segunda - ADIn 2258 , da Ordem dos Advogados do Brasil -, impugna a validade desse mesmo art. 027 e mais a do art. 011 , § 002 º ,

202

Assim, há um maior espaço para decisões discricionárias por parte do Supremo

Tribunal Federal no controle de constitucionalidade. De acordo com a conveniência do caso

concreto, com a finalidade de atender a segurança jurídica e ao interesse social, a extensão

dos efeitos das decisões pode ser ex tunc, ex nunc ou pro futuro. Ou seja, o citado

dispositivo normativo aumentou a esfera de discricionariedade de atuação do STF, sem,

concomitantemente, incrementar a legitimidade das suas decisões judiciais, o que serviu

para enfraquecer o grau de intensidade da jurisdição constitucional.

Para a modificação dos efeitos para ex nunc ou pro futuro, mesmo com a obtenção

do quórum de dois terços, deve-se observar se os critérios de segurança jurídica ou de

interesse social relevante amparam a decisão. Para isto, uma análise atenta dos fatos mostra-

se imprescindível, verificando se há adequação para a sua aplicação. A declaração de efeitos

ex tunc apenas pode ser modificada se diante do caso concreto forem evidenciadas a situação

de atentado a segurança jurídica ou ao interesse social.

Além da necessidade do preenchimento dos requisitos fáticos, há necessidade do

preenchimento do requisito procedimental que é o quórum de dois terços dos ministros do

Supremo Tribunal Federal, garantindo a decisão um maior consenso dentro do tribunal.

Pelas exigências fáticas e procedimentais a maior discricionariedade do Supremo Tribunal

Federal, conclui-se que a regra do controle direto continua a ser a declaração de nulidade da

norma ou ato normativo eivado como inconstitucional, atribuindo-lhe efeitos ex nunc.

O efeito pro futuro da norma significa que ela pode ser declarada inconstitucional e

ainda assim continuar a produzir efeitos até determinada data no futuro, em razão da

segurança jurídica que deve permear o sistema jurídico.

O Supremo Tribunal Federal poderá ainda declarar a inconstitucionalidade sem a

pronúncia de nulidade, como no caso de lesão ao princípio da isonomia, estipulando um

prazo razoável para que o legislador possa sanear a norma ou ato normativo. Nesses casos é

in fine - que admite possa o Tribunal , ao deferir medida cautelar - a do art. 021 - que admite consista a medida cautelar na ADC na " determinação de que os juízes e os Tribunais suspendam o julgamento dos processo que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação ate seu julgamento definitivo ". Em ambas , há pedido cautelar. As mencionadas ações aguardam julgamentos.

203

de melhor alvitre o STF deixar a norma válida e eficaz no ordenamento jurídico, sob pena de

suprimir uma vantagem ou gerar prejuízos indesejáveis a determinadas categorias.

A argumentação para a introdução de maior discricionariedade nos efeitos da

declaração de inconstitucionalidade foi o de possibilitar ao Supremo Tribunal Federal fazer

frente a determinadas situações que não se adequavam à regra de efeitos ex tunc, fazendo

com que, em alguns casos, o Egrégio Tribunal preferisse declarar a constitucionalidade de

leis flagrantemente inconstitucionais em virtude da segurança jurídica ao invés de declará-

las inconstitucionais e correr o risco de gerar um caos social.

Na seara do direito comparado, a Suprema Corte dos Estados Unidos vem

reiteradamente decidindo que as decisões acerca do controle de constitucionalidade não

podem se ater a padrões rígidos, que não se acomodam com a realidade dos fatos. As

decisões da Suprema Corte podem ser sem eficácia retroativa (propective overruling),

principalmente nos casos que introduzem modificações nas decisões; retroativa, mas

aplicando-se apenas aos casos pendentes (limited prospectivity); e em outros sem a

possibilidade de decretação de eficácia retroativa de forma absoluta (pure proipectivity).255

A Constituição portuguesa de 1976, após a Lei Constitucional de n.º 1/82, de 30 de

setembro, seguiu a mesma direção ao definir no seu art. 282º - 4 : “Quando a segurança

jurídica, razões de eqüidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser

fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da

inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restritivo do que o previsto nos n.º

1 e 2”.

Em sentido contrário à inovação de flexibilização da extensão das decisões do

Supremo Tribunal Federal se posiciona Ives Gandra: “Em face desse raciocínio, não entendo

viável em nosso ordenamento – não é a opinião de Gilmar Ferreira Mendes – a adoção de

instituto semelhante ao do direito alemão, de se dar eficácia ex nunc às decisões definitivas,

se oito dos Ministros da Suprema Corte assim decidirem. Tal entendimento pode gerar,

principalmente no campo do direito tributário, a irresponsabilidade impositiva, com a

255 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 24 ed., Atualizada por Arnold Wald e Gilmar Ferreira Mendes. Malheiros: São Paulo, 2002. P. 362.

204

possibilidade de exações inconstitucionais, mesmo após a decisão definitiva da Suprema

Corte, terem seus inconstitucionais efeitos perpetuados, entendendo-se o Estado – que

violentou a Constituição – autorizado a permanecer com o produto de arrecadação ilegítima,

pela eficácia ofertada à decisão definitiva”.256

A extensão subjetiva da eficácia das decisões do controle abstrato de

constitucionalidade, em regra geral, é erga omnes, inclusive na ação de descumprimento de

preceito fundamental, na interpretação conforme a Constituição e na declaração parcial de

inconstitucionalidade sem redução de texto.

8.7) Efeito Vinculante

Efeito vinculante, como a própria terminologia esclarece, é a vinculação dos poderes

estabelecidos as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de jurisdição

constitucional. Ele foi uma inovação bastante discutida da Lei n.º 9.868/99, ao instituir o

efeito vinculante também para as ações diretas de inconstitucionalidade, o que antes era

restrito à ação declaratória pela Emenda Constitucional n.º 3.257 O efeito vinculante incide

em relação aos órgãos do Poder Judiciário e aos órgãos da administração pública, em seus

três níveis.

Expressa o parágrafo único do art. 28 da mencionada lei: “A declaração de

inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração

parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito

vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública Federal,

estadual e municipal”.

256 MARTINS, Ives Gandra da Silva & MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2001. P. 206. 257 O STF entendeu caracterizado desrespeito ao efeito vinculante pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, proferido na medida cautelar da ADIn 2049-RJ, que suspendeu a cobrança de contribuição previdenciária sobre servidores estaduais aposentados, pensionistas e beneficiários. Assim, deferiu liminar em ação de reclamação. Rcl (QO) 1507-RJ, rel. Min. Néri da Silveira.

205

A argumentação para defender o efeito vinculante na ação direta de

inconstitucionalidade parte do pressuposto de que esta mencionada ação é uma ação

declaratória de constitucionalidade com sinais trocados, possuindo ambas caráter duplo ou

ambivalentes.258 Se houve explicitamente a concessão do efeito vinculante para a ação

declaratória e se elas têm a mesma natureza, então, inexoravelmente, seguindo esse

raciocínio, terão as mesmas prerrogativas.

Ives Gandra e Gilmar Ferreira Mendes admitem o efeito vinculante das ações diretas:

“A Lei n.º 9.868/99, por sua vez, em seu art. 28, parágrafo único, trouxe afinal um

tratamento uniforme e coerente à matéria, prevendo que as declarações de

constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a

Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm

eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder judiciário e

da Administração Pública federal, estadual e municipal”.259

Apesar de o s argumentos narrados anteriormente, o efeito vinculante introduzido

pela Lei n. 9.868/99 é nulo, no que fere os dispositivos contidos na Constituição,

principalmente devido ao princípio da independência dos poderes. Ainda que se admita que

o efeito vinculante é constitucional, ele somente poderia ser implantado através de emenda à

Constituição e nunca através de uma lei ordinária, ou seja, apenas o Poder Reformador teria

a competência de implementar o efeito vinculante.

Os principais óbices para a concretização do efeito vinculante seriam o acinte ao

princípio da separação dos poderes, ao princípio do acesso à justiça e a independência dos

juízes. Dotando as decisões do controle direto de efeitos vinculantes há uma preponderância

do Supremo Tribunal Federal em detrimento dos demais poderes, principalmente porque há

uma enorme carência de legitimidade de suas decisões. Essa maior amplitude de atuação da

jurisdição constitucional impede ainda o acesso à justiça e estiola a independência dos juízes

porque as instâncias judiciárias inferiores teriam que obedecer ao teor do que fora firmado

258 Rcl (AgR-QO) 1.880-SP, rel. Min. Maurício Corrêa. 259 MARTINS, Ives Gandra da Silva & MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2001. P. 338.

206

pelas decisões do STF, limitando a apreciação dos casos postos à sua apreciação e mitigando

o princípio da liberdade racional motivada.

Todavia, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar uma questão de ordem na

Reclamação n.º 1.880, ajuizada pelo município de Turmalina, decidiu, por maioria dos

votos, declarar a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 28 da Lei n.º 9896/99,

admitindo, assim, que todas as ações diretas, bem como a interpretação conforme a

Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm efeito

vinculante.260

A decisão foi tomada pelo voto de oito ministros, posicionando-se em sentido

contrário o ministro Ilmar Galvão, seguido pelos ministros Moreira Alves e Marco Aurélio.

O ministro Sepúlveda Pertence defendeu a possibilidade de efeito vinculante: “Quando

cabível em tese a ação declaratória de constitucionalidade, a mesma força vinculante haverá

de ser atribuída á decisão definitiva da ação direta de inconstitucionalidade”.261 No mesmo

sentido o ministro Gilmar Galvão: “O efeito vinculante decorre do particular papel político-

institucional desempenhado pela Corte, que deve zelar pela observância estrita da

Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas

controvérsias constitucionais”262

Afirmou o ministro Moreira Alves em sentido contrário ao efeito vinculante: “A lei

nesse ponto é inconstitucional, como é inconstitucional o artigo 27 (refere-se a atos

normativos do TST), que vai contra a aquilo que é imanente ao nosso sistema, ou seja, que o

260 Notícias do STF, 06/11/2002: “Na reclamação, o município de Turmalina afirmou que o presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 15º Região desrespeitou a decisão do STF na ADIn 1662. No julgamento da ADIn, os ministros declararam inconstitucional atos normativos do TST que previam o seqüestro de recursos financeiros municipais, para pagamento de precatórios oriundos de condenações trabalhistas impostas à Fazenda Municipal. No entanto, o relator do processo, ministro Maurício Corrêa, não conheceu da Reclamação. De acordo com o ministro, o município não tinha legitimidade para ajuizar a ação. O município, inconformado com a decisão, recorreu. Iniciado o julgamento de uma questão no agravo regimental, em 23 de maio deste ano, o ministro Maurício Corrêa propôs que todos as pessoas que forem atingidas por decisões contrárias à decisão final do STF em ação direta de inconstitucionalidade sejam consideradas como parte legítima para propor reclamação, conforme dispõe o parágrafo único do artigo 28 da Lei 9868/99. O ministro Moreira Alves havia sugerido que se ouvisse o Procurador-Geral da República que posteriormente deu parecer pela constitucionalidade do dispositivo. Hoje a maioria dos ministros seguiu o relator, abrindo divergência o ministro Ilmar Galvão, seguido pelos ministros Moreira Alves e Marco Aurélio. 261 RCL-1880. 262 RCL-1880.

207

efeito dessas declarações é desconstitutivo, tendo em vista a circunstância de que nós temos

ao lado do controle concentrado, o controle difuso, e não é possível haver um controle com

uma eficácia e outro com outra diferente quando eles visam, em última análise, ao mesmo

objetivo”.263 No mesmo sentido, negando efeito vinculante a todas as ações do controle

direto de constitucionalidade, asseverou o ministro Marco Aurélio: “As decisões do

Supremo Tribunal Federal se impõem, não pelo papel, pelo fato de um dispositivo de lei

ordinária dizer que essas decisões são obrigatórias, mas pela respeitabilidade, pelo conteúdo

dessas mesmas decisões. Devemos fugir de tudo que leve à generalização. A tendência do

homem é se acomodar e a evitar o maior esforço”.264

9.) Técnicas de Decisão do Controle de Constitucionalidade

A sociedade, hodiernamente, desenvolve-se em uma velocidade abissal, o

incremento dos meios de comunicação provocou uma fantástica possibilidade de

conhecimento; as inovações tecnológicas aumentam a cada dia. Todo esse progresso

geométrico provoca da mesma forma infindáveis problemas, que até bem pouco tempo atrás

não eram imagináveis.

Na tentativa de exercer uma prestação jurisdicional que corresponda ao avolumar dos

litígios, o Supremo Tribunal Federal deve igualmente inovar nas suas técnicas de decisões

judiciais. A doutrina que nasceu do caso Marbury versus Madison envelheceu diante das

inovações sociais. O STF não pode mais ficar adstrito a reconhecer a constitucionalidade ou

inconstitucionalidade das matérias postas à sua apreciação.

O regime democrático brasileiro exige um posicionamento mais enérgico por parte

do Egrégio Tribunal para contribuir no processo de realização dos direitos e garantias

fundamentais. A sua postura não pode ser mais a da inércia, cômoda para a manutenção dos

263 RCL-1880. 264 RCL-1880.

208

privilégios das elites econômicas, o posicionamento exigido é um posicionamento pró-ativo,

no sentido de aprimoramento da jurisdição constitucional.

Por outro lado, há uma necessidade premente de aumento na legitimidade das

decisões da jurisdição constitucional, como forma de incrementar também a força normativa

da Constituição. Essa inovação nas técnicas de decisão judicial visa torna a tutela

constitucional mais eficiente e ao mesmo tempo densificar a sua legitimidade por meio de

uma justificação procedimental que irá se somar com a justificação substancialista.

Dentro desse diapasão, serão analisadas as técnicas de decisões judiciais para fazer

frente à diversidade de problemas apresentados.

9.1) Interpretação Conforme a Constituição e Inconstitucionalidade Parcial

sem Redução de Texto.

A interpretação conforme a Constituição, além de fazer parte de um processo

hermenêutico, é um tipo de controle de constitucionalidade no qual, sem alteração na

literalidade do texto legal, determina-se a sua interpretação para adequação aos dispositivos

da Lei Maior.265 A norma permanece no ordenamento jurídico, realizando-se uma

especificação no seu significado, devendo os operadores jurídicos se ater a essa estipulação.

O seu nascimento pode ser creditado aos Estados Unidos, baseada na tese esculpida

pelo juiz Marshall de que todas as leis devem ser interpretadas em harmonia com a

Constituição, in harmony with the Constitution, sendo esse princípio agasalhado pela

Suprema Corte norte-americana. Posteriormente, o princípio se espraiou para vários outros

países.

265 MORBIDELLI, G., PEGORARO, L., REPOSO, A. & VOLPI, M. Diritto Costituzionale Italiano e Comparato. 2. ed., Bologna: Monduzzi, 1997. P. 940.

209

O princípio da interpretação conforme a Constituição não se deriva apenas do

princípio da presunção de constitucionalidade das normas, em que as leis devem ser

consideradas constitucionais até posicionamento em contrário do Poder Judiciário. Justifica-

se principalmente na obediência do princípio do aproveitamento máximo dos atos jurídicos,

devendo ser declarados inconstitucionais tão-somente quando não houver possibilidade de

adequação a Lei Maior.

Sobre o assunto, esclarece Gilmar Ferreira Mendes: “Também entre nós utilizam-se

doutrina e jurisprudência de uma fundamentação diferenciada para justificar o uso da

interpretação conforme a Constituição. Ressalta-se, por um lado, que a supremacia da

Constituição impõe que todas as normas jurídicas ordinárias sejam interpretadas em

consonância com seu texto. Em favor da admissibilidade da interpretação conforme a

Constituição milita também a presunção da constitucionalidade da lei, fundada na idéia de

que o legislador não poderia ter pretendido votar lei inconstitucional”.266

Como condição para a interpretação conforme a Constituição, deve existir mais de

uma interpretação cabível para a norma de acordo com os métodos hermenêuticos, devendo

a opção escolhida ser aquela que permita uma maior compatibilidade com o caráter

sistêmico da Lei Maior.267 Outras interpretações que não se adeqüem a Constituição devem

ser relegadas, pois fragilizariam a sua força normativa. Se houver mais de uma interpretação

possível condizente com a Lei Maior, a opção escolhida deve ser aquela que fortaleça mais o

seu caráter sistêmico, em decorrência do princípio da unidade da Carta Magna, em que os

diversos princípios devem ser interpretados de forma coesa e harmônica, com a finalidade de

densificar a sua força normativa.

A sua finalidade é por intermédio de processos hermenêuticos evitar o surgimento de

inconstitucionalidades contra a Constituição Federal, sejam afrontas normativas, sejam

266 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. O Controle Abstrato de Normas no Brasil e na Alemanha. São Paulo: Saraiva, 1996. P. 270. 267 “Se uma interpretação, que não contradiz os princípios da Constituição, é possível segundo os demais critérios de interpretação, há de preferir-se a qualquer outra em que a disposição viesse a ser inconstitucional. A disposição é então, nesta interpretação, válida. Disto decorre, então, que dentre várias interpretações possíveis segundo os demais critérios sempre obtém preferência aquela que melhor concorde com os princípios da Constituição. Conformidade à Constituição, é portanto, um critério de interpretação”. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste GulbenKian, 1997, P. 480.

210

afrontas axiológicas. A inconstitucionalidade pode não ocorrer pura e simplesmente na

norma, mas na carga axiológica com a qual ela é interpretada, então, evitam-se

interpretações que podem ir de encontro ao espírito da Lei Maior. A interpretação conforme

a Constituição exige do intérprete uma análise dialógica, entre o ser e o dever ser, entre a

normatividade e a faticidade, operando com os valores que circundam a Lei Maior, de forma

que não haja espaço para o aparecimento de gaps ou hiatos normativos, mantendo a sua

atualidade e eficácia.268

O seu resultado sempre será um juízo de afirmação da constitucionalidade da norma

que está sendo impugnada como inconstitucional, precisando o sentido de sua interpretação.

O limite para esse tipo de controle de constitucionalidade é que a literalidade do

texto da norma não pode ser alterada (na interpretação conforme a Constituição com redução

de texto parte da norma é retirada), impedindo, assim, que o judiciário funcione como se

fosse um órgão legislativo, realizando produções normativas. Portanto, a interpretação

conforme a Constituição deve se limitar a processos hermenêuticos, com a manutenção da

estrutura normativa produzida pelo Poder Legislativo. Se a literalidade do texto

impossibilitar a harmonização com a Lei Maior, não existirá outra solução, inexoravelmente

deverá ser declarado a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo.

A interpretação conforme a Constituição é distinta da interpretação constitucional; a

segunda é o gênero do qual a primeira se configura a espécie. Aquela é um dos mecanismos

da jurisdição constitucional, zelando pela supremacia dos mandamentos da Carta Magna;

enquanto esta é uma operação lógica que precede o atuar de qualquer operador jurídico.

Explica a diferença o Prof. Paulo Bonavides: “Interpretar a Constituição e interpretar

conforme a Constituição são, todavia, operações distintas, que o aplicador nem sempre

percebe ou toma em consideração. Sendo ambas indispensáveis ao exame de

constitucionalidade das leis, a segunda tem uma latitude que pode fazê-la inadmissível se

houver abuso em sua aplicação, suspeita de criar direito novo, transgressão de limites, ou

268 DANTAS, Ivo. Constituição Federal. Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. P.18.

211

erro de concretização da norma além de linhas materiais de razoabilidade que o método

concede ao intérprete”.269

Como não há a elaboração de juízo de desvalor contra qualquer incidência da norma,

esse tipo de decisão judicial pode ser utilizado por qualquer órgão jurisdicional, seja juízo

monocrático ou colegiado, sem a necessidade de cumprir a reserva de plenário no controle

difuso de constitucionalidade.

A interpretação conforme a Constituição pode ser sem redução de texto ou com

redução de texto, suprimindo a parte da lei considerada inconstitucional. Ela poderá ser sem

redução de texto e conferir a norma uma interpretação adequada a Carta Magna. E pode ser

também sem redução de texto, mas excluindo da norma determinada interpretação que a

afrontava (nesse último caso específico será uma declaração parcial de inconstitucionalidade

sem redução de texto).

Na interpretação conforme a Constituição como redução de texto, o Supremo

Tribunal Federal além de realizar uma interpretação constitucional, atua suprimindo parte do

texto que não se adequava aos mandamentos constitucionais. Como exemplo: O STF, por

maioria, conheceu em parte medida liminar em ADIn para excluir do texto do dispositivo

legal, (Lei n.º 2.531/99, art. 22: A remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos,

empregos e funções públicas da Administração Direta e Indireta do Poder Executivo [...],

incluídas as vantagens pessoais ou outra de qualquer natureza, não poderão exceder a R$

8.000,00) a expressão “vantagens pessoais”, realizando uma interpretação conforme a

Constituição, com redução de texto, para dela subtrair as vantagens relativas à natureza ou

local de trabalho, conforme consta do § 1º, do art. 39, da Constituição na sua redação

primitiva (§ 1º do art. 39: A lei assegurará, aos servidores da administração direta, isonomia

de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Poder ou entre

269BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. Por um Direito Constitucional de luta e resistência. Por uma nova Hermenêutica. Por uma nova repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001. P. 256.

212

servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de

caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho).270

Pode-se apontar como exemplo de interpretação conforme a Constituição sem

redução de texto, excluindo da norma determinada interpretação que a afrontava (declaração

parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto), o seguinte caso: “Deferida em parte

medida cautelar em ação direta proposta pelo Governador do Estado de Minas Gerais contra

alínea “d” do inciso XXIII do art. 62 da Constituição estadual, com a redação dada pela EC

26/97 (Art. 62 – Compete privativamente à Assembléia Legislativa[...].XXIII – Aprova,

previamente, por voto secreto, após argüição pública, a escolha: [...] d) dos Presidentes das

entidades da administração pública indireta, dos Presidentes e Diretores do Sistema

Financeiro Estadual;) para, conferindo à norma impugnada interpretação conforme a

Constituição Federal, restringir o citado dispositivo às autarquias e fundações públicas. As

demais possibilidades de incidência do preceito – isto é, aquelas relativas aos empregados

das sociedades de economia mista e das empresas públicas – ofenderiam, à primeira vista, o

art. 52, III, f, da Constituição. (“Compete privativamente ao Senado Federal: [...] III –

aprovar previamente, por voto secreto, após argüição pública, a escolha de: [...] f) titulares

de outros cargos que a lei determinar”.), uma vez que não estão inseridas no conceito de

cargo público.271

A inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, igualmente chamada de

declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, é uma forma de controle de

constitucionalidade em que a literalidade do texto da norma não sofre alteração porque a

inconstitucionalidade é restrita, há apenas redução na sua hipótese de incidência. Denomina-

se de inconstitucionalidade parcial porque resta preservado o texto da norma, sendo

declarado inconstitucional os preceitos implícitos do seu texto que se desassociam dos

parâmetros constitucionais. Normalmente ocorrem em comandos normativos que

apresentam amplo campo de atuação, implícitos na literalidade dos seus textos. A declaração

de inconstitucionalidade localiza-se apenas nas disposições implícitas dos comandos

normativos que afrontam a Constituição.

270 Informativo 178 do Supremo Tribunal Federal. ADI 2116-Am, rel. Min. Marco Aurélio. 271 Informativo 136 do Supremo Tribunal Federal. ADInMC 1.642-MG, rel. Min. Nelson Jobim.

213

A principal característica da declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução

de texto é que a decisão que a declara produz um juízo de desvalor, estabelecendo que

determinados campos de incidências da norma não podem ser aplicados sob pena de

inconstitucionalidade. Peremptoriamente, a decisão judicial, seja em controle direto seja em

controle difuso, indica determinadas atuações da norma que não podem ser concretizadas

sob pena de serem declaradas como inconstitucionais.

Não obstante, esse tipo de inconstitucionalidade pode servir como um mecanismo

para concretizar a interpretação conforme a Constituição.

Essa forma de inconstitucionalidade tem importância na jurisdição constitucional

brasileira porque é uma forma de evitar lacunas jurídicas em razão da declaração de

inconstitucionalidade, que pode propiciar uma anomia no ordenamento que o fragilizaria

mais que a própria inconstitucionalidade.272

Guarda semelhança com a interpretação conforme a Constituição porque não

apresenta expurgo do texto declarado inconstitucional (interpretação conforme a

Constituição sem redução de texto), ambos atuam na solução da inconstitucionalidade

através da interpretação da norma, mantendo-se intocada a lei produzida pelo legislador. O

limite para a inconstitucionalidade parcial sem pronúncia de nulidade é a literalidade do

texto normativo, que de maneira alguma pode ser modificado, impedindo o Poder Judiciário

de atuar como se legislador fosse.

Esse tipo de controle de constitucionalidade pode ser temporal, quando determinada

extensão de tempo não foi respeitada, ou subjetiva, quando todas as pessoas que se

encontravam na mesma situação não foram contempladas pela norma.

Na inconstitucionalidade parcial sem redução de texto temporal, se o lapso de

eficácia da norma for diferido para o futuro através de decisão judicial, a

inconstitucionalidade desaparece, sem necessitar de alterações no texto legal. Portanto, ela

272 MENDES, Gilmar Ferreira. “Declaração de Inconstitucionalidade sem Pronúncia da Nulidade da Lei, na Jurisprudência da Corte Constitucional Alemã”. In: Revista Trimestal de Direito Público. 9/1995, São Paulo: Malheiros, P.68.

214

implica em uma redução do alcance da norma, declarando que ela é nula na medida que se

aplica a determinado lapso temporal.

Exemplo desse tipo de controle é a cobrança de tributos sem o cumprimento do

princípio da anterioridade, pois o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento que é

inconstitucional a cobrança de tributo que houver sido criado ou aumentado no mesmo

exercício financeiro, Súmula 67. Portanto, a criação de tributos, sem a observância desse

princípio, importará na declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, impondo

que a vigência do tributo somente possa produzir efeitos no exercício financeiro posterior.

A inconstitucionalidade parcial sem redução de texto subjetiva acontece quando não

se atende a todas as situações fáticas exigidas pela norma constitucional ou quando um

comando complexo da Constituição resta descumprido. Um exemplo de descumprimento de

todas as situações fáticas exigidas pela norma pode ser verificado quando há um reajuste

salarial para os funcionários públicos ativos e os inativos deixam de recebê-lo. Dá-se o

descumprimento do art. 40, § 8º da Lei Excelsa, que impõe que sempre que houver reajuste

para os servidores públicos em atividade este deve ser estendido aos inativos. Dessa forma,

baseando-se em um juízo de eqüidade, poderá o Supremo Tribunal Federal congelar a

situação jurídica existente, até decisão do legislador no sentido de superar a

inconstitucionalidade.

De acordo com a Súmula 339 do Supremo Tribunal Federal, não pode a mencionada

Corte agir como legislador positivo, determinando a extensão da lei para assegurar o

princípio da separação dos poderes. Dispõe a mencionada Súmula: “A inconstitucionalidade

da lei por quebra do princípio da isonomia, não enseja que o judiciário haja como legislador

positivo”.

As normas constitucionais, para terem efetividade, podem exigir um comando

simples ou um comando complexo. Haverá um comando simples quando a Constituição

exige que a norma infraconstitucional realize algo, como normatizar o direito de greve.

Haverá um comando complexo quando a Constituição exigir que a norma

infraconstitucional realize algo de uma determinada forma, como instituir um Estado de

215

bem-estar social que cumpra as funções descritas no art. 3°, construindo uma sociedade

livre, justa e igualitária.

Quando a norma constitucional exigir um comando complexo e a norma

infraconstitucional não o realizar de forma integral, a inconstitucionalidade será parcial sem

redução de texto. Exemplo é a implementação de um salário mínimo que não propicie

moradia, lazer, educação, saúde etc. O salário mínimo é um comando complexo porque não

basta estabelecer o seu valor, pois este tem que ser apropriado para cumprir as funções

elencadas acima.

A interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de

inconstitucionalidade sem redução de texto têm eficácia contra todos e efeito vinculante em

relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e

municipal.

A diferença entre a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de

inconstitucionalidade sem redução de texto é que esta pode ser uma espécie daquela. Ambas

são modalidades de decisão judicial, mas a interpretação conforme a Constituição é

igualmente técnica hermenêutica de controle de constitucionalidade. A primeira tem a

finalidade de precisar o sentido e alcance da norma, expurgando a insegurança resultante de

uma multiplicidade de possibilidades interpretativas; a segunda tem o escopo de evitar

determinadas incidências do texto normativo que afrontem a Constituição.

Outra diferença que não deve ser relegada é que a interpretação, conforme a

Constituição, reafirma a constitucionalidade da lei ou ato normativo, indicando o sentido que

deve ser extraído do seu texto. Enquanto a declaração parcial de inconstitucionalidade sem

redução de texto atesta a existência de uma inconstitucionalidade, tolhendo do texto da

norma incidências que afrontem a Constituição.

Assim, o primeiro tipo de decisão judicial emite uma valoração de que a norma se

coaduna com a Constituição, enquanto o segundo tipo de decisão emite um juízo de

desvalor, ou seja, de que algumas incidências do texto valorativo não podem ser utilizadas

porque representam um acinte aos paradigmas constitucionais. Em suma, na interpretação

216

conforme a Constituição a decisão é no sentido de negar a existência da

inconstitucionalidade, direcionando o sentido de interpretação da norma; na declaração

parcial sem redução de texto a decisão afirma a existência da inconstitucionalidade,

implicando na censura de uma das hipóteses de incidência do texto impugnado.

Uma terceira diferença é que a interpretação conforme a Constituição, por assevera a

constitucionalidade da norma, não necessita cumprir a regra da reserva de plenário em sede

de controle difuso (art. 97 da CF), não sendo necessário o per saltum, ou seja, submeter à

questão incidental de inconstitucionalidade ao tribunal pleno ou a órgão especial. Com

relação à declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, por necessitar da

declaração de inconstitucionalidade da norma ou ato normativo, necessita do preenchimento

do quórum de maioria absoluta exigido, não podendo ser tomada por juízo monocrático, mas

sim pelo tribunal pleno ou por órgão especial.

Gilmar Ferreira Mendes igualmente não confunde os dois institutos: “ A equiparação

pura e simples da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto à interpretação

conforme a Constituição prepara dificuldades significativas. A primeira delas diz respeito à

conversão de uma modalidade de interpretação sistemática, utilizada por todos os tribunais e

juízes, em técnica de declaração de inconstitucionalidade. Isso já exigiria uma especial

qualificação da interpretação conforme a Constituição, para afirmar que somente teria a

característica de uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto aquela

interpretação conforme a Constituição desenvolvida pela Corte Constitucional, ou no nosso

caso, pelo Supremo Tribunal Federal. Até porque, do contrário, também as questões que

envolvessem interpretação conforme a Constituição teriam de ser submetidas ao Pleno dos

Tribunais ou ao seu órgão especial (CF, art. 97)”.273

Todavia, vários julgados do Supremo Tribunal Federal não vislumbram a

diferenciação entre a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de

inconstitucionalidade sem redução de texto, confundindo ambas as técnicas decisórias em

sede de controle de constitucionalidade. Essa é a orientação firmada principalmente pelo

273 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996, P. 275.

217

Ministro Moreira Alves que entende que a interpretação conforme a Constituição realizada

no juízo abstrato de normas corresponde a uma pronúncia de nulidade.

Um exemplo em que não houve diferenciação entre os dois institutos foi a decisão

unânime do Supremo Tribunal Federal que deferiu, em parte, o pedido de medida cautelar

para, sem redução de texto e dando interpretação conforme a Constituição, excluir com

eficácia ex tunc da norma constante no art. 90 da Lei n.º 9099/95, o sentido que impeça a

aplicação de normas de direito penal, com conteúdo mais favorável ao réu, aos processos

penais com instrução já iniciada à época da vigência desse diploma legislativo.274

Outro exemplo ocorreu quando o Supremo Tribunal Federal, por votação majoritária,

deferiu, parcialmente, sem redução de texto, o pedido de medida cautelar, para, em

interpretação conforme a Constituição e até final julgamento da ação direta, afastar qualquer

exegese que divorciando-se dos fundamentos jurídicos do voto do Relator e desconsiderando

o caráter meramente programático das normas da Convenção n.º 158 da OIT, venha a tê-las

como auto-aplicáveis, desrespeitando, desse modo, as regras constitucionais e

infraconstitucionais que especialmente disciplinam, no vigente sistema normativo brasileiro,

a despedida arbitrária ou sem justa causa dos trabalhadores.275

Importante ressalvar que o legislador pátrio já dirimiu a controvérsia, no art. 18,

parágrafo único da Lei n.º 9.868/99, ao diferenciar claramente os institutos da declaração

parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto da interpretação conforme a

Constituição.

274 ADIn 1719-9, rel. Min. Moreira Alves. 275 “Ação direta de inconstitucionalidade – convenção n.º 158/OIT - proteção do trabalhador contra a despedida arbitrária ou sem justa causa – argüição de ilegitimidade constitucional dos atos que incorporaram essa convenção internacional ao direito positivo interno do Brasil (decreto legislativo n.º 68/92 e decreto n.º 1.855/96) – possibilidade de controle abstrato de constitucionalidade de tratados ou convenções internacionais em face da Constituição da República – alegada transgressão ao art. 7º, I da Constituição da República e ao art. 10, I, do ADCT/88 – regulamentação normativa da proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, posta sob reserva constitucional de Lei Complementar – conseqüente impossibilidade jurídica de tratado ou convenção internacional atuar como sucedâneo da lei complementar exigida pela Constituição (CF, art. 7º, I) – consagração constitucional da garantia de indenização compensatória como expressão da reação estatal à demissão arbitrária do trabalhador (CF, art. 7º, I, C/C o art. 10, I do ADCT/88) – conteúdo programático da convenção n. º 158/OIT, cuja aplicabilidade depende da ação normativa do legislador interno da cada país – possibilidade de adequação das diretrizes constantes da convenção n. º 158/OIT às exigências formais e materiais do Estatuto Constitucional Brasileiro – pedido de medida cautelar deferido, em parte, mediante interpretação conforme a Constituição. ADIn 1480-3, rel. Min. Celso de Mello.

218

9.2) Declaração de Inconstitucionalidade por Omissão Parcial

A declaração de inconstitucionalidade por omissão parcial pode ser definida como

uma norma constitucional imperfeita ou como uma norma ainda constitucional,

configurando-se quando um mandamento infraconstitucional afronta uma obrigação imposta

pela Constituição, como o princípio constitucional da isonomia, ou seja, ela é elaborada

discriminando determinadas categorias ou grupos sociais que deveriam ser abrangidos pela

norma.

Há uma omissão na totalidade de casos que deveriam ser atingidos pela norma. O

que ocorre quando uma norma concede vantagens a uma parcela do grupo social e deixa o

restante sem o benefício, apesar de preencher os requisitos que garantiriam a sua aquisição.

Esse tipo de inconstitucionalidade ocorre quando há um caso de omissão legislativa,

havendo um desrespeito a uma obrigação imposta pela Carta Magna. Canotilho sintetiza o

conceito de omissão legislativa: “A omissão legislativa inconstitucional significa que o

legislador não faz algo que positivamente lhe era imposto pela Constituição. Não se trata,

pois, apenas de um simples negativo não fazer; trata-se, sim de não fazer aquilo a que, de

forma concreta e explícita, estava constitucionalmente obrigado”.276

Declaração de inconstitucionalidade por omissão parcial ocorre, por exemplo,

quando há afronta ao § 1º do artigo 39 da Constituição Federal, que visa a resguardar o

princípio da isonomia.277 Como o Poder Judiciário não pode atuar como legislador, e a

declaração de inconstitucionalidade da norma nos moldes tradicionais traria prejuízos para

aquela parte da categoria ou grupo que recebeu o benefício, é mais consentâneo declarar a

276 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. P. 331. 277 Na sua redação original, antes da Emenda Constitucional n. º 20, que tinha o seguinte texto: “ A lei assegurará, aos servidores da administração direta, isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Poder ou entre servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho.

219

norma ou ato normativo como situação ainda constitucional, norma constitucional

imperfeita, estabelecendo um prazo para a elaboração normativa por parte do Judiciário.

No caso trazido à baila, o Supremo Tribunal Federal, como mencionado

anteriormente, pode estender o benefício às categorias inconstitucionalmente excluídas; ou

suspender os benefícios que foram indevidamente concedidos a terceiros; ou reconhecer a

existência de uma situação ainda constitucional, norma constitucional imperfeita.

A solução mais plausível é reconhecer a existência de uma norma constitucional

imperfeita estabelecendo ao Poder Público, em tempo razoável, a edição de lei que

restabeleça o dever do cumprimento integral do princípio da isonomia, sob pena de

progressiva inconstitucionalidade do ato estatal, que embora concretizado, revela-se

insuficiente e incompleto.

Reiteradas vezes já se posicionou o Supremo Tribunal Federal que o princípio

isonômico é dirigido ao legislador, a quem compete concretizá-lo, considerando os casos de

atribuições iguais ou assemelhadas, não cabendo ao Poder Judiciário substituir-se ao

legislador. Fundamentou-se o STF no estrito sentido do princípio da separação dos poderes,

em que o Judiciário não pode atuar como se fosse legislador, e no princípio da reserva

absoluta de lei, que regulamenta a remuneração devida aos agentes públicos em geral.

Segundo jurisprudência do Pretório Excelso contra lei que viola o princípio da

isonomia apenas é cabível ação direta de inconstitucionalidade por omissão, na esfera do

controle concentrado, que, sendo deferido o pedido, dar-se-á ciência ao Poder Legislativo

para que aplique, por lei, o citado princípio constitucional.278 Na seara do controle difuso,

esse tipo de inconstitucionalidade pode conduzir à declaração de inconstitucionalidade da

norma que infringiu esse princípio, o que, eliminando o benefício dado a um cargo quando

deveria abranger também outros com atribuições iguais ou assemelhadas, impedindo sua

extensão a estes.

É necessário ressaltar que devido a Súmula 339 do Supremo Tribunal Federal, o

Poder Judiciário não pode agir como legislador positivo, em decorrência do princípio da 278 AG 273.561-SP, rel. Min. Celso de Mello; AG 319.264-SP, rel. Min. Nelson Jobim.

220

separação dos poderes. Assim, não pode o órgão judicial estender a vantagem ou benefício

àqueles que não foram agraciados por ela. Dispõe a mencionada Súmula: “Não cabe ao

Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores

públicos, sob fundamento de isonomia”.

Para não prejudicar os beneficiados, o STF declara a inconstitucionalidade por

omissão parcial, ressaltando a necessidade de regulamentação, através de instrumento legal,

para cobrir toda a extensão do beneficiados.

Nesse mesmo sentido expõe o Ministro Celso de Mello: “ O Poder Judiciário – que

não dispõe de função legislativa – não pode conceder, a servidores públicos, sob fundamento

de isonomia, mesmo que se trate de hipótese de exclusão de benefício, a extensão, por via

jurisdicional, de vantagens pecuniárias que foram outorgadas, por lei, a determinada

categoria de agentes estatais. A Súmula 339 do Supremo Tribunal Federal – que consagra

específica projeção do princípio da separação dos poderes – foi recebida pela Carta Política

de 1988, revestindo-se, em conseqüência, de plena eficácia e de integral aplicabilidade sob a

vigente ordem constitucional”.279

A ação para a declaração de inconstitucionalidade por omissão parcial é considerada

prejudicada quando há a superveniência da lei reclamada, ou seja, quando posteriormente o

legislador emite um comando normativo suprindo a omissão parcial anteriormente existente.

A inconstitucionalidade por omissão parcial, devido à declaração de existência de

uma situação ainda constitucional ou de uma norma constitucional imperfeita, representa um

plus com relação à inconstitucionalidade parcial sem redução de texto subjetiva. Ambas têm

o mesmo significado, apenas que a inconstitucionalidade por omissão parcial, ao menos

teoricamente, tem a prerrogativa de forçar o Poder Legislativo a exercer uma determinada

conduta, sob pena de expurgar a norma do ordenamento jurídico. Essa maior coercitividade

da inconstitucionalidade por omissão parcial foi o que nos levou a colocá-la em um tópico

específico.

279 AG 313373, rel. Min. Celso de Mello.

221

9.3) Bloco de Constitucionalidade

Bloco de constitucionalidade são princípios, contidos ou não na Carta Magna, que

compartilham a mesma idéia de Constituição material. Os franceses o denominam de bloc de

constitucionnalité, os espanhóis de bloque de la constitucionalidad e os americanos de block

of constitutionality. A concepção de bloco de constitucionalidade foi registrado pela

primeira vez em 16 de junho de 1971, por uma decisão do Conselho Constitucional da

França, que firmou o valor jurídico do Preâmbulo da Constituição de 1958.

Sobre a decisão mencionada, assim se posiciona Miguel Josino Neto: “A decisão

revela a existência não apenas da Constituição de 1958 em si, mas sim, de um “bloco” de

normas e princípios materialmente constitucionais. A partir de 1971, o Conselho

Constitucional, usando do seu poder de interpretação, passou a recriar, incessantemente, a

Constituição. Recriar a Constituição significa ampliar os seus domínios, espargir seus

horizontes, encarando-a como um sistema aberto de regras e princípios permeável a valores

jurídicos suprapositivos, onde a idéia de justiça e de plena concretização dos direitos

fundamentais tem um papel de significativa relevância. A compreensão do que seja o bloco

de constitucionalidade permite um reencontro entre o direito e a ética, a partir da perspectiva

de que a releitura de princípios, e a incorporação de outros dão à Constituição uma nova

dimensão, valorizando a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a paz, a justiça e a

igualdade”.280

A concepção de bloco de constitucionalidade parte do pressuposto de que existem

princípios que mesmo que não estejam contidos na Constituição são materialmente

constitucionais porque ostentam valores profundamente arraigados na sociedade. O que traz

como ilação que ele perpassa as normas contidas na Carta Magna, acarretando uma extensão

dos seus dispositivos. Fazem parte do seu núcleo princípios que densificam as normas

contidas na Constituição, mantendo com ela um forte vínculo, resguardando o seu caráter

280 NETO, Miguel Josino. “O bloco de Constitucionalidade como fator determinante para a expansão dos direitos fundamentais da pessoa humana”. In: http: // www1. Jus.com.br/ doutrina / texto.asp?id = 3619, extraído em 02/01/03.

222

sistêmico. Como exemplos podem ser mencionados o duplo grau de jurisdição, o direito de

resistência, etc.

O bloco de constitucionalidade assume importância capital no fortalecimento de

direitos e garantidas fundamentais, que mesmo não disciplinados na Constituição assumem

papel relevante no ordenamento jurídico. Ele funciona no sentido de expandir os direitos e

garantias constitucionais, ultrapassando o sentido da constituição formal, para garantir

valores sedimentados na sociedade.

Decorrente dessa concepção, a Lei Maior é tomada como um texto aberto e

incompleto, uma norma dialógica, permitindo o contato da seara fática com a seara

normativa. Como a maior parte das normas constitucionais são abstratas, permitindo

calibrações na sua esfera de incidência, a Constituição sofre uma maior influência de

injunções extradogmáticas, o que resulta na necessidade de se manter fina sincronia com o

desenvolvimento das forças sociais.

Para Lei Maior ter um caráter dialógico, há princípios que, mesmo não estando

contidos no seu texto, apresentam natureza constitucional no seu aspecto material, ou seja,

detêm supremacia, supralegalidade e imutabilidade relativa, não do ponto de vista formal,

mas porque foram absolvidos pela sociedade com um grau deveras intenso de legitimidade.

Qualquer mandamento infraconstitucional que lhes afronte o sentido deve ser retirado do

ordenamento jurídico haja vista serem dotados de supremacia que assegura a

supralegalidade. Portanto, o bloco de constitucionalidade é formado pelos princípios e pelas

regras de valor constitucional.281

Pelo fato da interpretação dos princípios componentes do bloco de

constitucionalidade exigir constante elaboração, a função do Supremo Tribunal Federal

assume maior relevo. A ele cabe definir quais são os princípios que o compõem, bem como

o seu alcance. Por isso, o STF funciona como uma instância de mediação entre os valores

sedimentados na Constituição e o sentido das normas constitucionais, ganhando maior

281 FAVOREAU, Louis. & Llorente, Francisco Rubio. El Bloque de la Constitucionalidad. Madrid: Civitas, 1991. P.19.

223

relevância as suas decisões quando houver maior sincronia entre a norma e os fatos sociais.

O que sinaliza mais uma motivação para o fortalecimento da sua legitimidade.

O alicerce jurídico que ampara o bloco de constitucionalidade na Constituição

brasileira de 1988 é o art. 5º, § 2, que assevera que os direitos e garantias expressos no seu

texto não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos

tratados internacionais em que o Brasil for signatário. Quaisquer direitos ou garantias

fundamentais que guardem ligação com o caráter sistêmico da Constituição, por essa

cláusula da exemplificação dos preceitos constitucionais devem ser considerados como parte

da Constituição material.

224

PARTE III: A Legitimidade das Decisões

Judiciais da Jurisdição Constitucional.

10.) A Crise do Direito Legislado

A concepção moderna do Direito, de cunho predominantemente formal,

juspositivista, não preenche mais as expectativas da sociedade, impondo-se pelas novas

necessidades da pós-modernidade uma concepção funcional do Direito, em que as

interpretações jurídicas devem ser feitas com o escopo de assegurar eficácia concretiva aos

comandos normativos. A concepção funcional do Direito marca o superamento da teoria

kelseniana baseada no binômio norma/sanção, sendo substituída pelo binômio

norma/suporte administrativo, em que assume relevância a eficácia normativa.

A pós-modernidade tem como característica a dúvida.282 Heisenberg fala que as

partículas elementares não formam um mundo de coisas e fenômenos, mas um mundo de

tendências ou possibilidades.283Ela começa com a dúvida sobre a possibilidade da exatidão

282 Acerca dos efeitos da Pós-Modernidade expõe David Lyon: “a possibilidade mesma de adquirir conhecimento ou de fazer uma descrição do mundo é posta em dúvida. Enquanto antes se podia ver como a estrutura do conhecimento refletia a estrutura da sociedade que o produzia – pense nos estudos de Weber sobre a racionalidade burocrática na Alemanha em sua fase de modernização - o pós-moderno nega tal estrutura tanto no conhecimento como na sociedade. Adeus ao conhecimento elaborado no passado; em vez disso, boas-vindas aos discursos flexíveis. LYON, David. Pós-Modernidade. São Paulo: Paulus, 1998. P. 23. 283 Michael Hardt e Antonio Negri, autores do famoso livro Impire, defendem a tese de que o mundo contemporâneo é um mundo pós-moderno, nascido com o exaurimento do Estado Moderno e com a perda definitiva de qualquer tipo de ontologia. Eles afirmam que uma das conseqüências da pós-modernidade é de forma peremptória a privatização do espaço público.A paisagem característica da modernidade com o seu apego pelas praças e pelos locais públicos é suplantada pelas áreas privadas, em que poucos têm acesso. A arquitetura e a estrutura de grandes metrópoles são planejadas para impedir a movimentação e a interação entre grupos sociais diferentes. HARDT, Michael & NEGRI, Antonio. Impere. Trad: Alessandro Pandolfi. Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 2003. P.178-179.

225

da ciência. Não significa a substituição da razão, mas a antevisão da probabilidade em lugar

da certeza.284

Ela representa a destruição dos postulados que delineavam a ordem social, com a

instalação do “caos” ontológico, isto é, a ausência de postulados valorativos para toda a

sociedade, aumentando a incredulidade com relação às metanarrativas.285 A ordem que

imperava na modernidade é substituída pela ausência de ordem da pós-modernidade.286 Para

Garcia Pelayo, o conceito de ordem é definido como um conjunto constituído por uma

pluralidade de componentes, que cumprem determinadas funções e ocupam certas posições

com base em um sistema de relações relativamente estabelecidas ou pautadas.287 A pós-

modernidade pode ser definida como uma situação fática em que a ordem social vigorante

na modernidade não mais existe.288

Uma das conseqüências negativas da sociedade pós-moderna é que em virtude da

desubstancialização, da quebra dos paradigmas ontológicos, e da fragmentação do seu tecido

social provocada pela diversificação econômica, há uma forte tendência para o afloramento

284 A pós-modernidade é a conseqüência direta do desenvolvimento da infra-estrutura econômica dos países capitalistas desenvolvidos, fruto da revolução tecno-informática. Esse ritmo geométrico de modificações na sociedade, em consonância com as modificações tecnológicas, agravam ainda mais a possibilidade de encontrar princípios que possam ser compartilhados por toda a sociedade, que por sua vez está bastante fragmentada pela diversificação de lugares na cadeia produtiva. 285 A pós-modernidade aponta para um processos de desubstancialização porque a valoração científica passa a ser feita com referência ao cidadão, acumulando ao mesmo tempo as funções de sujeito e de objeto, autor da produção científica e da apropriação do conhecimento. Tomar o homem como referência significa que, como os seus interesses são cambiantes de acordo com as suas relações sócio-político-econômicas, a produção de uma ontologia que contemple todos os interesses se mostra de difícil elaboração. Finda-se a possibilidade de se mensurar uma teoria através de um único parâmetro, que passa a ser avaliada e mensurada sob os mais diversos prismas. O que não deixa de se caracterizar como um retorno a filosofia sofista que defendia que o homem era a medida de todas as coisas. 286 Como conceito de Pós-Modernidade é interessante o delineado pelo professor argentino Carlos Alberto: “ A pós-modernidade é a contradição entre o conhecimento formal dos direitos individuais dos homens e a negação dos direitos fundamentais do ser humano”. GHERSI, Carlos Alberto. “ Posmodernidad Juridica. El análisis Contextual del Derecho como contracorriente a la abstracción jurídica” In: Revista da Faculdade de Direito da UFRGS. V. 15. Porto Alegre: Síntese, 1998. P. 21. 287 GARCIA-PELAYO, Manuel. Idea de la Política y Otros Escritos. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983. P. 45-46. 288 Assinala o professor João Maurício Adeodato que os seguintes pressupostos marcam a modernização do direito: a) pretensão de monopólio na produção das normas jurídicas por parte do Estado; b) importância das fontes estatais em detrimento das fontes não estatais; c) relativa emancipação da ordem jurídica com relação as demais searas sociais. ADEODATO, João Maurício Leitão. Ética e Retórica. Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2003. P. 207-209.

226

dos conflitos sociais nessas sociedades.289 O incremento na potencialidade dos conflitos

sociais ocorre porque não há parâmetros substantivos que possam, ao mesmo tempo,

normatizar as relações sociais e atender às expectativas de toda a variada composição do

tecido social.290 Adicione-se a isto o enfraquecimento dos órgãos estatais, provocado pelo

liberalismo econômico, o que leva a maioria desses conflitos a se resolverem fora do alcance

dos órgãos estatais, contribuindo ainda mais para o seu agravamento.

Como influência positiva da sociedade pós-moderna, tem-se a importância que o

conhecimento passou a exercer no processo produtivo, tornando-se insumo imprescindível

para o desenvolvimento econômico devido às constantes modificações tecnológicas e à

necessidade crescente de aperfeiçoamento da mão-de-obra.291 A imperiosidade de um maior

cabedal de conhecimentos, tanto tecnológico como humano em geral, tende a produzir um

ambiente favorável para o desenvolvimento de um cultura de tolerância, em que o outro

deixa de ser visto como estranho para ser considerado como um membro da sociedade e,

portanto, como um sujeito detentor das mesmas obrigações e dos mesmos direitos.292

As conseqüências acarretadas pela pós-modernidade atingiram todas as esferas da

sociedade, com abrangência no campo social, familiar, econômico, cultural, deontológico

etc. O Direito, definido como a ciência que tem a finalidade de regulamentar as relações

sociais, sofre de forma mais intensa essas conseqüências. Como as relações sociais são cada

vez mais complexas, em decorrência da pluralidade do tecido social e da velocidade em que

289No momento em que a possibilidade da construção de dogmas é considerada irrealizável, conseqüentemente, as teorias que se alicerçam em uma verdade universal para os homens entram em declínio. As teorias substancialistas perdem relevo para as teorias procedimentais que não se amparam em verdades absolutas, sendo que estas se estruturam com a regulamentação do seu procedimento.

290 “Esta segunda aporia – a obsessão pelo que não pode ser decidido – é confirmada por uma desconstrução de cada presunção na certeza determinante de uma justiça presente, ela atua a partir de uma idéia de justiça infinita, infinita porque é irredutível, irredutível porque necessita de relação de alteridade – relação de alteridade diante de cada contrato, porque é uma decorrência, uma decorrência da alteridade como singularidade sempre de outro”. DERRIDA, Jacques. “Diritto alla Giustizia”. In: Diritto, Giustizia e Interpretazione. Roma: Laterza, 1998. P. 31. 291 Bruno Romano aponta duas direções para o desenvolvimento da pós-modernidade: a primeira direção é um processo de desubstancialização, e a segunda direção é o descrédito de todas as teorias que tentam construir uma verdade universal para os homens. ROMANO, Bruno. Soggettività Diritto e Postmoderno. Uma interpretazione com Heidegger e Lacan. Roma: Bulzone, 1988. P. 62. 292 ARCHETTI, Marcello. Lo Spazio Ritrovato. Antropologia della Cotemporaneità. Roma: Meltemi, 2002. P.40.

227

as relações sociais são modificadas, a concepção do Direito formal, baseado na sua

positivação e no formalismo exacerbado, entrou em crise, afetando seriamente a eficácia de

suas normas.

A crise da concepção formalista do Direito atinge de forma mais drástica a jurisdição

constitucional que, pela relevância de suas decisões judiciais, muitas vezes oferece limites às

decisões políticas, necessitando, por isto, de um maior grau de legitimidade. O difícil de se

buscar essa legitimidade é que os seus padrões também estão padecendo da mesma crise,

como a concepção de Estado Democrático Social de Direito, o conceito de Constituição, de

separação de poderes, dos limites da atuação do Poder Judiciário etc.

Para densificar a legitimidade da jurisdição constitucional com o objetivo de que ela

possa atender às exigências sociais hodiernas, deve-se realizar uma reavaliação dos seus

paradigmas, fazendo com que os vetores que direcionam sua atuação possam contribuir com

a missão de garantir eficácia para os mandamentos contidos na Constituição, principalmente

os direitos fundamentais.

10.1) Crise do Estado Democrático Social de Direito

A concepção de Estado defendida nesta análise é a de um Estado Democrático Social

de Direito, em sincronia com a recente evolução das dimensões dos direitos fundamentais.

A importância da utilização de uma terminologia adequada, que possa englobar todo o

conteúdo do conceito mencionado, tem o sentido de se evitar imprecisões que dificultem a

realização dos objetivos primordiais do Estado. Segundo Canotilho, o Estado de Direito só

pode ser Estado de Direito se for também um Estado democrático e um Estado social.293

O Estado Social Democrático de Direito é um Estado de Direito porque é regido por

normas pré-fixadas; Democrático porque suas normas devem contar com a participação

293 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999. P. 56.

228

ativa da população, concebendo o regime democrático como uma efetiva democracia

participativa, atendendo aos direitos de quarta dimensão; Social porque a sua finalidade é

construir uma forma de organização política que proporcione bem-estar a sua população,

welfare-state, atendendo principalmente as necessidades dos hipossuficientes sociais.

Essa foi à terminologia adotada pela Lei Fundamental alemã de 1949. No Capítulo

II, denominado da Federação e dos Estados regionais, no seu art. 20, secção 1, afirma que a

República Federal Alemã é um Estado Federal (Bundesstaat), democrático e social. No art.

28, secção 1, do mesmo capítulo, assevera que a ordem constitucional dos Estado Regionais

deve obedecer aos princípios do Estado de Direito (Rechtsstaat) republicano, democrático e

social no sentido da Lei Fundamental de 1949. Portanto, atendendo às finalidades

primordiais da organização política, a Constituição alemã preferiu utilizar a denominação de

Estado Democrático Social de Direito.294

Essa também é a terminologia utilizada pela Constituição espanhola, de 1978,

constituindo-se nas primeiras palavras do parágrafo primeiro do artigo 1, que declara que a

Espanha se constitui em um Estado Social e Democrático de Direito. Para Enrico Álvares

Conde, a expressão Estado Democrático Social de Direito assinala três momentos lógicos,

susceptíveis de análise, independentes dentro de uma estrutura sistêmica, mas fortemente

integrados em uma unidade de todos os seus elementos componentes.295

Em contraste com esse tipo de organização política, encontra-se o Estado liberal,

cuja Constituição vislumbra uma intervenção mínima dos órgãos estatais na sociedade,

294 Esclarece Javier Pérez Royo acerca de sua raiz histórica: “A origem dessa terminologia é bastante precisa. Vem do constitucionalismo da Alemanha Ocidental posterior a Segunda Guerra Mundial, sendo utilizada pela primeira vez nas Constituições de alguns Länder (Baden – Württemberg – 23.1 – Baviera – 3.1 –, Bremen – 65 – Hamburgo – 3.1 – ) e foi consolidado com sua incorporação na Lei Fundamental de Bonn, que a emprega em dos momentos singularmente importantes, no artigo 20.1, ao definir a República Federal da Alemanha como um Estado Federal, democrático e social, delimitando assim o que a doutrina daquele país define como princípios estruturais do sistema constitucional, e no artigo 28, que ao precisar um dos princípios básicos do Estado Federal, tipificado na necessária correspondência entre a ordem constitucional e os Estados membros e a Federação, afirma que a ordem constitucional dos Länder deverá corresponder aos princípios do Estado de Direito republicano, democrático e social”. ROYO, Javier Pérez. Curso de Derecho Constitucional. 6 ed., Madrid: Marcial Pons, 1999. P. 190. 295 CONDE, Enrique Alvarez. Curso de Derecho Constitucional. V. I. 3 ed., Madrid: Tecnos, 1999. P. 114.

229

fixando de forma bem nítida a atuação do Estado e da sociedade.296 Os direitos

fundamentais, de primeira dimensão, são apenas para evitar a intervenção do Estado na

autonomia individual, direitos de natureza omissiva, concretizando-se com a omissão do

Estado. Consonante esse prisma, as normas estatais destinam-se ao bem comum, na medida

em que estão subordinadas aos cânones do direito individual.

A jurisdição constitucional no Estado liberal, pela própria esfera de atuação da

Constituição, é bem mais restrita que a do Estado Democrático Social de Direito, podendo se

adequar aos limites da concepção tradicional da separação dos poderes. A feitura do Estado

liberal apenas foi possível graças aos influxos da teoria constitucionalista do século XVIII,

representando um avanço com relação à organização política, representada pelo Estado

Absolutista. A função de uma Carta Magna dentro dos padrões liberais é estabelecer os

modos de ponderação dos poderes, combatendo os excessos freqüentes dos órgãos estatais.

Tomando como paradigma o modelo implementado pelo Estado Liberal, a estrutura

jurídica do Estado Democrático Social de Direito parece uma distorção, levando à

degeneração da arquitetura constitucional clássica.297 A jurisdição constitucional deste tipo

de Estado, devido às suas amplas necessidades de intervenção na sociedade, não se reduz a

declarar uma decisão ao caso concreto, sendo levada a decidir praeter legem, garantindo a

eficácia das normas programáticas e, muitas vezes, tendo que realizar uma elaboração

normativa diante da omissão do Poder Legislativo.

O motivo jurídico que mais contribuiu para a derrocada do Estado Liberal foi ele não

permitir o amplo afloramento dos direitos fundamentais, pois é uma forma de organização

social em que o princípio da autonomia da livre iniciativa prepondera sem entraves à sua

atuação. Advogam os liberais que, quando houver a colisão de um direito fundamental com

a autonomia da livre iniciativa, deve prevalecer esta última. A forma de estado que mais se 296 “O liberalismo trata de limitar o poder político, não de reparti-lo entre todos, ou muito menos em quantidade igual. Para limitar o papel do Estado é adequado reduzir as suas competências e ampliar de modo simultâneo a amplitude de esfera da sociedade. A preocupação dominante no protoliberalismo consiste em afirmar a liberdade política da nação, mas justificando com ênfase o direito de que nem todos os indivíduos podem participar dessa vontade porque nem todos têm os mesmos direitos políticos, e, de outra parte, exaltando uma liberdade natural ou social, no sentido de que a sociedade é um inter privatos”. TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Códigos y Constituciones. 1808- 1978. Madrid: Alianza Universidad, 1989. P.154. 297 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva del Diritto e della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizioni Ângelo Guerini e Associati, 1996. P. 286.

230

adequa e permite o desenvolvimento dos direitos fundamentais é o Estado Democrático

Social de Direito, garantindo através de prestações fornecidas por entes estatais a

concretização das demandas essenciais da população.

Apesar de ser uma forma de organização política superior ao Estado Liberal, a crise

pós-moderna também atingiu o Estado Democrático Social. Essa crise é um fenômeno

bastante complexo, porque atinge diversos setores da vida social, fazendo com que suas

conseqüências possam ser sentidas na economia, no direito, no campo ético-moral, na

política, na produção literária etc.298 Pode ser traduzida, em amplo senso, pela

desestruturação de uma estrutura política, regida por normas que contaram com a

participação da maioria da população, com a finalidade de assegurar direitos mínimos para

os hipossuficientes sociais, ou seja, configura-se como uma crise que afeta a essência do

Estado Democrático Social.

Segundo o professor Danilo Zolo, as motivações da crise do Estado Democrático

Social de Direito podem ser creditadas a duas causas distintas: o fenômeno da complexidade

social nas sociedades de economia avançada e o processo de integração em escala global, a

globalização. Em decorrência do primeiro, assume relevo a crise no caráter normativo do

ordenamento jurídico, ou seja, nos obstáculos que impedem a sua concretização,

especialmente os estorvos na proteção dos direitos subjetivos. No segundo, o tema central é

a erosão da soberania dos Estados nacionais, com a prevalência do poder dos sujeitos

transnacionais. Acredita Zolo que todas as crises que assaltam a organização política atual

podem ser resumidas em uma crise do Estado de Direito, atingindo de modo frontal a sua

estrutura de garantia de direitos fundamentais.299

O primeiro fenômeno ocorre primordialmente nas economias capitalistas

desenvolvidas, implementadas pela revolução tecnológico-informática, que devido ao 298 “Falar de crise(s) tornou-se referência ao longo das últimas décadas do Século XX, supostamente frente à desconstrução dos paradigmas que orientaram a construção dos saberes e das instituições da modernidade. De lá para cá, tudo o que havia de sólido – real ou aparentemente – foi-se esboroando ou sendo desconstituído, seja por envelhecimento – precoce muita vezes, induzido outras tantas – , seja por incompatibilidade com as estratégias hegemônicas atuais, seja, ainda, por outros motivos, mais ou menos nobres, os quais não referiremos nominalmente”. BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espacial dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2002. P. 23. 299 ZOLO, Danilo. Teoria e Crítica Dello Stato di Diritto. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 58-59.

231

desenvolvimento econômico criam várias cadeias econômicas e, como conseqüência,

possibilitam a existência de uma grande complexidade social, o que obriga o Estado a dispor

de políticas sociais específicas para cada segmento, o que nem sempre é possível, no sentido

de propiciar a satisfação das expectativas sociais.

O segundo fenômeno é o processo de globalização que, principalmente para os países

periféricos, produz um acintoso enfraquecimento do aparato estatal, impedindo a

implementação de políticas públicas para atender aos interesses da população. A esfera

decisória passa a se concentrar nas mãos de organismos internacionais, que não dispõem de

mecanismos de ligação com os interesses locais.

O atual processo de globalização não significa o desaparecimento do Estado, como

entidade de organização social, contudo, ele passa a funcionar em função da lex mercatoria,

em que as necessidades econômicas afetam de forma bastante considerável o quadro

institucional de poder, fazendo com que as relações políticas sejam ditadas em sintonia com

a necessidade dos mercados, relegando os anseios populares a um papel secundário. Quando

se atrela o Direito às exigências econômicas globais, retiram-lhe as suas características

essenciais, a sua segurança e certeza, porque diante da ausência de regulamentação dos

fluxos globais de capital prepondera o risco e a incerteza.300

A deficiência na capacidade regulativa do Estado contribuiu para o agravamento da

crise. Ela se manifesta em dois sentidos: ou na ausência de eficácia das estruturas

normativas ou no impedimento de regulamentação normativa de determinada seara fática.

No primeiro sentido, há um enfraquecimento dos órgãos estatais que deixam de realizar as

suas funções, no segundo, os órgãos estatais deixam de regulamentar determinadas searas

por causa de uma proibição legal, sentido este elaborado a partir de uma concepção de que a

ausência de regulamentação, ou a sua regulamentação por órgãos privados, é mais

conveniente para a sociedade.

A inflação legislativa é outro produto da crise do Estado Democrático Social de

Direito. Para adequar-se à constante evolução social, produzida pelo desenvolvimento da

300 FERRARESE, Maria Rosaria. Le Istituzione della Globalizzazione. Diritto e Diritti nella Società Transnazionale. Bologna: Mulino, 2000. P. 14-15.

232

infra-estrutura econômica, o ordenamento jurídico da mesma forma tem que modificar seus

dispositivos para que estes possam acompanhar os fatos sociais sem entrar em contradição

com eles. Essa constante modificação das normas redunda em insegurança, antinomias,

inconstitucionalidades etc.301 Gilissen assevera que o número de leis stricto sensu mais do

que decuplicou em um século porque o Estado se imiscuiu cada vez mais nos diversos

domínios da vida econômica e social.302

Outro elemento que agrava a situação é a crise no regime democrático,

especificamente na concepção da representação política tradicional. Como os assuntos da

pauta política são cada vez mais complexos, discutidos com uma linguagem hermética, a

população fica impossibilitada de compreender a discussão e de demonstrar o seu

posicionamento. A sua única fonte de informação cognoscível são os meios de comunicação,

mas por estarem nas mãos de poderosos grupos econômicos, contribuem mais para alienar a

cidadania do que para informá-la.

Sem a participação dos cidadãos, o jogo político fica restrito à concorrência das elites

políticas que brigam entre si para conseguirem poder, sendo a população um mero

expectador. Nesse quadro, os partidos políticos perdem a sua importância, a estrutura e a

militância partidária ficam relegadas pelo papel desempenhado pela mídia.303 Usando o

301 “O processo de diferenciação dos subsistemas sociais estimula o ordenamento jurídico a seguir a evolução com uma crescente produção de normas, de conteúdo cada vez mais especializado e particular. Mas o Direito é um instrumento rígido e lento com relação à rapidez evolutiva dos outros subsistemas sociais, em particular aqueles tecno-científicos e os econômicos, que são dotados de uma elevada capacidade de auto-programação e auto-correção. Destarte, deriva-se a crise inflacionária do Direito, acarretando sua depreciação, redundância e instabilidade normativa, e, no fim, impotência de realização. Ao multiplicar-se a quantidade de atos legislativos, soma-se a isso o crescente vazio expressivo e a extensão dos textos, sempre mais repletos de referências tecnológicas; a necessidades de utilização de outras normas para sua aplicação; a tendência a programação ao invés de disciplinação, com o agravamento da tendência dessa regulamentação estatal perder o seu requisito de generalidade e abstração, assemelhando-se sempre mais, na sua substância, aos atos administrativos”. ZOLO, Danilo. Teoria e Crítica Dello Stato di Diritto. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 59-60. 302 GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 2 ed., Trad. A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986. P. 465. 303“Os novos sujeitos políticos não são mais, propriamente, os partidos políticos: são as elites de empreendedores eleitorais, que dentro de uma concorrência publicitária, derecionam-se diretamente a massa dos cidadãos-consumidores, oferecendo-lhes através dos meios de comunicação e segundo precisas estratégias de marketing, os próprios produtos publicitários. Pode-se dizer que a legitimação da decisão política fundada sobre a estrutura da representação popular é agora substituída por uma legitimação tele-prebiscitária e “sondocrática”, ou seja, substancialmente pós-representativa”. ZOLO, Danilo. “A Proposito dell’ Espansione Globale del Potere dei Giudici”. In: Iride. Bologna: Il Mulino. n.. 11. 1998. P. 448.

233

neologismo empregado por Giovanni Santori o Homo sapiens se transforma em Homo

videns transformando a democracia em uma videodemocracia.304

A crise do regime democrático é caracterizada tanto por uma ausência de legitimação

popular, como por uma impossibilidade de resposta as demandas da sociedade. Ela é

entendida como uma falência funcional do regime democrático em atender as mais variadas

demandas sociais, haja vista que, em uma sociedade estruturada por uma composição

multipolar e fragmentada, configura-se como impossível realizar uma estrutura normativa

que possa atender a todos os segmentos. A crise do regime democrático significa ainda a

alienação de grande parte da população das decisões políticas, ensejando que as decisões

tomadas pelo governo sejam para atender aos interesses de determinados setores sociais, em

detrimento da maioria dos cidadãos.

Pode-se ainda perceber uma certa “falência do welfare state”, em que os gastos com

o financiamento social são cada vez maiores, sem uma contrapartida imediata de aumento na

produtividade. Há uma multiplicação exponencial das demandas sociais, o que não é

acompanhado por um acelerado ritmo de crescimento nem pela melhora na eficiência dos

entes estatais.305 A “solução” encontrada pelas elites políticas para os problemas que afligem

o welfare state foi a aplicação de um receituário neoliberal de medidas, que fragilizou os

órgãos estatais e agravou mais ainda a crise.

Pela influência desses vetores se pode concordar com duas tendências: de um lado,

um processo de intensa privatização das estruturas normativas, em que o espaço livre para as

decisões particulares é cada vez maior, impedindo que instrumentos públicos possam

regulamentar setores imprescindíveis da sociedade; do outro lado, um aumento na tensão

entre a esfera pública e a esfera privada, provocada pela tendência anterior, em que o espaço

304 “O Homo sapiens é, ou se tornou, um animal que lê, capaz de abstrair, cuja compreensão (inteligência, do latim intelligere) ultrapassa de muito o que ele enxerga, e na verdade não se relaciona com o que ele vê. Mas o Homo sapiens está sendo deslocado e substituído pelo Homo Videns simplesmente vê (videre, em latim, significa “ver”); seu horizonte é limitado pelas imagens que lhe são fornecidas. Assim, enquanto o Homo sapiens tem o direito de dizer, com toda inocência, que ele compreende o que vê, o Homo videns vê sem compreender, porque boa parte do que lhe é mostrado significa pouco e o que é significativo, na melhor das hipóteses das hipóteses, é mal explicado”. SARTORI, Giovanni. Engenharia Constitucional. Como Mudam as Constituições. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Universidade de Brasília, 1996. P. 162. 305 GIUSTINIANI, Antonio Zorzi. Stato Costituzionale ed Espansione Della Democracia. Milano: CEDAM, 1999. P.88.

234

público tende a ser arrefecido pelos interesses privados, o que estimula as crises cíclicas do

sistema capitalista, com a ausência de mecanismos adequados para a sua superação.306

O cumprimento das diretrizes traçadas pelo Estado Democrático Social de Direito,

que foi agasalhado pelos mandamentos constitucionais, é o maior escopo da jurisdição

constitucional.

10.2) Crise Constitucional

A crise do Estado Democrático Social de Direito, como não poderia deixar de ser,

acarreta também um forte impacto sobre o Direito e, principalmente, sobre o papel

desempenhado pelas Constituições, lex mater do ordenamento, com as suas tradicionais

características: supremacia constitucional, supralegalidade e imutabilidade relativa.307 A

discussão centra-se na interrogação para saber se as Constituições nacionais ainda são

imprescindíveis para a construção de um Estado, ou se elas ainda possuem condições de

garantir a sua eficácia, pois nenhuma serventia tem uma Carta Magna destituída de

concretude normativa.

A discussão acerca das dificuldades do direito público, particularmente do direito

constitucional, não se configura como uma discussão nova, pois já no início do século XX,

George Jellinek afirmava que se estava em um momento de crise mundial e seus reflexos

306 FERRARESE, Maria Rosaria. Le Istituzione della Globalizzazione. Diritto e Diritti nella Società Transnazionale. Bologna: Mulino, 2000. P. 61-62. 307 Significativas as palavras de Paulo Ferreira da Cunha: “Hoje ao Direito Constitucional se pede muito o que não pode dar. Ainda se vai falando em “crise da Constituição”, em “morte da Constituição”, em Constituição como sobrevivência, mas, para canto do cisne, não há dúvida que se trata de uma sinfonia, talvez desconcertante, mas animada. Por toda a parte – que em toda a parte a Constituição, pelo menos como flautus vocis, se encontra firmada e com balcões abertos – não apenas os teóricos, como mesmo o homem comum, iniciados e leigos dão as mãos numa vozearia confusa”. FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Mito e Constitucionalismo. Perspectiva Conceitual e Histórica.Porto: Gráfica de Coimbra, 1990. P. 88.

235

atingiam inelutavelmente o ordenamento jurídico, e era impossível a construção sistemática

de um novo direito político em que não se advertisse sobre a “crise radical das idéias”.308

A crise do Direito se iniciou nos anos cinqüenta do século passado, quando

personagens como Carnelutti, Biondi, G. Tarello, G. Capograssi se reuniram para discutir a

ambigüidade do Direito.309 Dentre as suas várias características, podemos considerar como

sua essência a necessidade constante de renovação das estruturas jurídicas porque estas não

mais atendem às exigências das demandas sociais.310

Essa crise do Direito não tem uma natureza ontológica, restando imaculado o papel

das estruturas normativas na sociedade, o que está posto em crise é a sua concepção

simplificada e restrita, oriunda do Estado Moderno, que estabelece os dispositivos

normativos em rígidos códigos.311 Esse modelo entra em descrédito em virtude da

complexidade do universo jurídico, da sua irredutibilidade a parâmetros simples, impedindo

que as normas jurídicas contidas nos códigos possam regulamentar as elaborações sociais.312

Os textos constitucionais não servem mais como leis fundamentais estruturantes de

uma realidade social; em sua grande maioria são o que Karl Loewenstein denomina de

Constituição semântica, ou seja, aquelas que têm a finalidade de servir como instrumento

para a perpetuação das classes dominantes no poder.313 Exercendo o papel que o professor

Pinto Ferreira denomina de ilusão Constitucional.314

308 JELLINEK, Georg. Teoría General Del Estado. Trad. Fernando de los Rios. México: Fondo de Cultura Económica. 2000. P. 48. 309 NARVÁEZ HERNÁNDEZ, José Ramón. “La Crisis de la Codificación Y la Historia Del Derecho”. In: Anuario Mexicano de Historia del Derecho. XV, México:UNAM, 2003. P. 208. 310 GALIZIA, Mario. Scienza Giuridica e Diritto Costituzionale. Milano: Giuffrè, 1954. P.9. 311 “Parece inevitável que, como consectário das crises anteriormente referidas, tenhamos a fragilização dos instrumentos que, na modernidade, serviu como locus privilegiado para a instalação dos conteúdos políticos definidos pela sociedade, desde um projeto que se consolida como uma fórmula para a organização do poder político e asseguramento da(s) liberdade(s) e se constitui como estratégia de racionalização do poder e das relações entre Estado e Sociedade Civil, tomando por ora a dicotomia celebrizada pelo pensamento liberal em sua versão clássica”. BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espacial dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2002. P. 46-47. 312 GROSSI, Paolo. Scienza Giuridica Italiana. Un Profilo Storico 1860-1950. Milano: Giuffrè, 2000. P.276. 313 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitucion. Trad.: Alfredo Ballego Anabitarte. Barcelona: Ariel, s.d.. P. 217. 314 FERREIRA, Pinto. Democracia, Globalização e Nacionalismo. Recife: Edição da Sociedade Pernambucana de Cultura e Ensino LTDA, 1999. P..3.

236

A crise constitucional se origina da convulsão que grassa na sociedade, onde a

Constituição deixa de ser parâmetro normativo, resvalando na falta de perspectiva ética,

política, econômica e social. Diante de profundas instabilidades no tecido da sociedade,

produzindo constantes e profundas mudanças, a Constituição perde eficácia e já não pode

mais produzir aquilo que Konrad Hesse denominou de força normativa.315

A conseqüência imediata da crise constitucional é a desordem nas relações sociais.

Sugere o professor Agostino Carrino que para conhecer a desordem propiciada pela crise

constitucional deve-se saber qual o conceito de ordem e esta definição é dada pelos

conceitos de Constituição e soberania nacional.316 Como esses dois conceitos estão em

processo de reestruturação, atualmente, aumenta a intensidade da crise e, conseqüentemente,

o grau de desordem das relações sociais. Santi Romano, em 1950, já alertava que a causa

maior da crise que assola as instituições estatais é tentar conciliar os interesses particulares

dos vários grupos que condicionam as relações sociais, com o interesse geral.317

Um fator que contribui para o arrefecimento da normatividade constitucional é a falta

de legitimação das reformas constitucionais. Devido a vários fatores, uma série de limitações

ao acesso do povo às decisões políticas faz com que o regime democrático sofra um

processo de esvaziamento da participação popular, e, sem a fiscalização da sociedade, as

reformas atendem muito mais aos interesses dos conglomerados internacionais do que aos

interesses dos hipossuficientes sociais. A reforma constitucional, ao invés de ser usada para

a modernização do seu texto, serve para implementar inconstitucionalidades, fragmentando a

concepção de Poder Constituinte e sua supremacia no ordenamento jurídico.318

A crise constitucional se mescla com a crise do Estado Democrático Social de

Direito em suas múltiplas facetas. O Estado de bem-estar social é posto em xeque diante da

ausência de recursos estatais para custear condições mínimas de sobrevivência para a sua 315 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991. P. 19. 316 CARRINO, Agostino. Sovranità e Costituzione nella Crisi Dello Stato Moderno. Torino: Giappichelli, 1998. P. 25. 317 SANTI ROMANO. Lo Stato Moderno e la sua Crisi. Milano: Giuffrè, 1969. P. 24. 318 Nesse sentido ensina Carré de Malberg: “es necesario que las revisiones no sean imposibles ni tampouco demasiado difíciles de emprender, importa igualmente que no lleguen a ser demasiado frecuentes y esto, especialmente, a causa de que una revisión facilmente llega a ser de agitación política para el país” MALBERG, R. Carre de. Teoria General del Estado. México: Fondo de Cultura Economica, [ s.d.]. P. 1237.

237

população. O regime democrático é distorcido pelo poder econômico, o povo não tem como

expressar seus interesses e participar ativamente das decisões políticas. A proeminência do

Congresso Nacional em legislar está ameaçada pela avidez com que o Presidente da

República edita medidas provisórias, mesmo diante das modificações produzidas pela

Emenda Constitucional n.º 32.

Paulo Bonavides faz uma distinção entre crise constituinte e crise constitucional. A

primeira seria pertinente ao regime, suas estruturas políticas, ao sistema de governo, cujo

problema residiria enfim na existência da Constituição. A segunda seria incidente em artigos

do texto supremo e se resolveria por uma reforma constitucional, nos moldes por ela

ditados.319 Hodiernamente, na grande maioria dos países, a crise tanto é constituinte como

constitucional, atingindo tanto os alicerces de legitimação da Lei Maior como partes

específicas do seu texto.

A crise constitucional se desenvolve de forma mais aguda nas normas de natureza

programática. Elas não conseguem nem concretizar o objetivo para o qual foram criadas,

nem realizar o conteúdo previsto no texto constitucional através da obrigatoriedade de

execução, por parte dos poderes constituídos, porque ocupam o ápice do ordenamento

jurídico apenas de forma retórica; a legitimidade que ampararia a sua eficácia é esvaída da

sociedade. O modelo constitucional não serve mais para traçar o desenho político da

sociedade, seu papel restringe-se à garantia dos direitos de primeira dimensão, deixando as

demais dimensões ao relento.

A crise constitucional apresenta importância na análise porque produz conseqüências

que atingem a jurisdição constitucional. A dimensão dos conflitos que são postos sob

apreciação da jurisdição constitucional exige que o órgão que a exerce, no caso brasileiro o

Supremo Tribunal Federal, tenha uma maior legitimidade para que as suas decisões possam

conter um maior respaldo na sociedade.

319 Explica Paulo Bonavides: “ uma, de todo superficial, não arranha as instituições, não perturba os mecanismos funcionais do sistema, não excede os limites de conservação da ordem jurídica estabelecida, não faz necessário substituir o regime; cinge-se tão-somente a impetrar-lhe a reforma [...] A outra, ao contrário, mais profunda, corrompe, fere e abala as instituições. De tal sorte que, ao intensificar-se, as destrói ou tende a destruí-las nos seus elementos vitais”. BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial. A derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado Institucional. São Paulo: Malheiros, 1999. P. 45.

238

Portanto, a essência da crise constitucional reside na ausência de eficácia dos

dispositivos da Constituição. Esse desfalecimento de eficácia da Lei Maior é uma

decorrência do próprio enfraquecimento do papel do Estado como responsável pela

implementação de políticas públicas, que passam a ser realizadas cada vez mais por órgãos

privados. A supremacia dos mandamentos constitucionais resta maculado devido à

pluralidade de instituições com poderes normativos, com esferas de incidência que não são

reguladas pelo poder público, mas a partir de decisões individuais. O processo de

globalização também aprofunda a crise constitucional, em que importantes decisões são

tomadas por órgãos estranhos à soberania estatal, devendo a Constituição se adequar a essas

normas e não essas normas se adequarem ao texto constitucional.320

10.3) A Crise de Legitimação da Jurisdição Constitucional

A teoria tradicional da legitimação da jurisdição constitucional parte do princípio de

que o seu substrato se encontra no ordenamento jurídico. A legitimidade da jurisdição

constitucional depende da legitimidade do Direito vigente, obtida pelo apoio popular às

medidas implementadas pelo parlamento. Por sua vez, as normas jurídicas dependem para

alcançar sua vigência de preencher todos os procedimentos dispostos na Constituição e nos

regimentos internos do Congresso Nacional. O Poder Judiciário, na concepção clássica da

separação dos poderes, deve se restringir a apenas declarar a lei ao caso concreto, utilizando

dispositivos normativos já previamente existentes no ordenamento jurídico.

A crise de legitimação da jurisdição constitucional surge como um reflexo da crise

do direito legislado, quando o programa previamente estabelecido pelas normas jurídicas,

que é cada vez mais cambiante, não mais atende aos anseios dos cidadãos. A multiplicidade

do tecido social e o crescimento geométrico das demandas sociais impedem tal antevisão

normativa. Faz-se necessário uma construção interpretativa das decisões judiciais, haja vista

320 FERRARESE, Maria Rosaria. Il Diritto al Presente. Globalizzazione e Tempo delle Istituzioni. Bologna: Mulino, 2002. P.109.

239

que o Direito deve ser estruturado em princípios, com o intento de evitar antinomias entre a

normatividade e a normalidade,321 em que o Judiciário estabelece uma ligação com a seara

fática e com o caráter sistêmico do ordenamento, realizando a concretização dos objetivos

políticos traçados pela Carta Magna, consonante a densidade dos princípios jurídicos.

Como a legitimação da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário, de um modo

geral, sempre foi amparada em precisos parâmetros legais, baseando-se no primado da lei

formal elaborada pelo Poder Legislativo e da completude do ordenamento jurídico, o debate

acerca da legitimidade da jurisdição constitucional não apresentava relevância. Quando a

primazia da lei formal, oriunda do Legislativo, entra em declínio, propiciando as condições

para o desenvolvimento da atuação judiciária, as contestações com relação a essa expansão

se avolumam porque a sua atividade não estaria mais restrita ao padrão clássico da

subsunção da norma geral ao caso particular, aumentando o arbítrio dos juízes que

compõem o órgão, exercendo a jurisdição constitucional para concretizar os dispositivos

contidos na Constituição.

Essa crise ganha contornos mais agudos quando as decisões da jurisdição

constitucional tomam uma densidade política mais ampla, não apenas declarando a

inconstitucionalidade das normas, mas ao mesmo tempo exigindo determinadas posturas dos

outros poderes. O judiciário passa a trabalhar com uma margem de liberdade maior, atuando

não apenas como um legislador negativo, mas freqüentemente como legislador positivo para

cumprir o conteúdo das normas contidas na Carta Magna, ou até mesmo, criando estruturas

normativas não existentes no ordenamento jurídico.

A questão essencial tem como fundamentação o princípio da soberania popular, base

do regime democrático. Como que uma norma emanada do Poder Legislativo, estabelecida

pelo voto dos cidadãos, pode ser revogada pela jurisdição constitucional que não fora

estabelecida pelo voto universal, mas através de um procedimento legal. Como uma norma

estabelecida por um poder que conta com a representação popular pode ser revogada por um

poder que não dispõe dessa representação. Até que ponto a atuação da jurisdição

321 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Trad. Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1968. p. 296.

240

constitucional, no sistema do civil law, não se configuraria uma apropriação das atribuições

do Poder Legislativo quando uma decisão sua trouxesse inovações para o ordenamento

jurídico? 322

A crise de legitimação da jurisdição constitucional se evidencia, no caso brasileiro,

quando o Supremo Tribunal Federal toma decisões que extrapolam os limites normativos da

norma, exercendo não apenas um papel de declarar a inconstitucionalidade da lei, mas

igualmente criando estruturas normativas para possibilitar a concretização de prerrogativas

contidas na Constituição, que são relegadas pelo Legislativo e Executivo ou criando

cominações normativas que não existiam na Constituição. Qual a sua legitimidade para atuar

nessas hipóteses e naquelas em que há uma maior discricionariedade para definir os efeitos

da declaração de inconstitucionalidade?

O advento do Estado Democrático Social de Direito não pode ser tomado como

marco para um maior alargamento das funções da jurisdição constitucional e do Poder

Judiciário. De modo geral, esse processo começou muito antes, só que de forma restrita e

pouco perceptível. Quando o Estado de Direito se transforma em Estado Social de Direito já

há uma maior necessidade de atuação do Judiciário para garantir determinados direitos

materiais para a parte da sociedade mais desfavorecida. Apenas quando os entes estatais têm

que atuar de forma incisiva na sociedade, para realizar as prestações esculpidas na

Constituição e desenvolver os direitos da democracia participativa, é que a Jurisdição

constitucional se torna imprescindível para a criação de um Estado Democrático Social de

Direito.

A transformação do Estado de Direito em Estado Social de Direito assinala a

simbiose entre três elementos imprescindíveis à sociedade moderna: regulamentação da

sociedade pelo Direito, democracia e concretização dos direitos fundamentais. Mirkine-

Guetzévitch assevera que a democracia é expressada em língua jurídica através do Estado de

322 Sintetiza a questão José de Sousa e Brito: “A questão pressupõe, portanto, habitualmente, que o poder legislativo do povo através dos seus representantes eleitos é a dimensão essencial da democracia e que a jurisdição constitucional é uma restrição à democracia na medida em que retira, pelo menos em parte, à lei e sua força. Por que razão deveriam os juízes, que não são legisladores eleitos pelo povo, poder afectar (sic) a força duma lei democrática? Não é isto governo dos juízes em vez de governo do povo?” SOUSA E BRITO, José de. “Jurisdição Constitucional e Princípio Democrático”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 39.

241

Direito.323 É importante assinalar que a regulamentação da sociedade pelo Direito e a

democracia são os dois elementos que garantem a fecundidade do terreno para o

desenvolvimento dos direitos fundamentais.

A jurisdição constitucional não mais se limita a resguardar a tutela individual dos

cidadãos, preocupando-se, de forma redobrada, com a concretização do welfare state e a

criação de uma rede de proteção para os cidadãos, desequilibrando ainda mais a simetria

entre o Poder Legislativo e o órgão que exerce a jurisdição constitucional. Em um Estado de

bem-estar social, as normas programáticas desempenham relevante função, intervindo em

vários setores da sociedade para garantir direitos mínimos aos hipossuficientes.

Essa reestruturação da arquitetura constitucional dentro dos parâmetros do Estado

Democrático Social de Direito, tem de uma forma imediata duas conclusões. Por um lado ela

oferece uma resposta às demandas da população, que, como foi exposto, em uma sociedade

altamente diferenciada como a pós-moderna, exige amplos serviços por parte dos órgãos

estatais. Dentro desse prisma a re-estruturação pode ser considerada como benéfica,

significando a evolução da arquitetura constitucional para cumprir a sua função social. Por

outro lado, inexoravelmente, ela exigirá uma remodelação da teoria de legitimação das

decisões da jurisdição constitucional, que não mais se sustenta com a legitimidade advinda

da separação clássica dos poderes, em que a atividade do Poder Judiciário se resumia à

aplicação da lei ao caso concreto.

A maior incidência das decisões da jurisdição constitucional não é um fato episódico,

mas uma realidade duradoura, atrelando-se de forma umbilical às novas necessidades

sociais. Um retorno ao patamar das decisões anteriores apenas se configura possível com um

retorno ao Estado Liberal, no qual os cidadãos não tenham mais resguardados os seus

direitos fundamentais. Atrás de toda essa discussão, acerca da crise de legitimidade da

jurisdição constitucional, está o medo da transformação de um “governo da lei” em um

323 “A democracia expressa em linguagem jurídica é o Estado de Direito, é a racionalização jurídica da vida, porque o pensamento jurídico conseqüente conduz a democracia, como única forma do Estado de Direito. A democracia pode realizar a supremacia do Direito; eis porque o Direito Constitucional geral é o conjunto das formas jurídicas da Democracia, do Estado de Direito”. MIRKINE-GUETZÉVITCH, Boris. As Novas Tendências do Direito Constitucional. Trad. Candido Motta Filho. Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1933. P. 45.

242

“governo da magistratura”, porque o Poder Legislativo cria as normas, mas é o Poder

Judiciário quem decide acerca de sua constitucionalidade, dando a palavra final.

O aumento da atividade da jurisdição constitucional tem o escopo indelével de

garantir a concretização dos direitos fundamentais. Quanto maior o desenvolvimento das

dimensões dos direitos fundamentais (hoje se pode falar na quinta geração dos direitos

fundamentais) maior será a necessidade de atuação da jurisdição constitucional para

assegurá-los. Portanto, o desenvolvimento da jurisdição constitucional liga-se de forma

umbilical ao incremento dos direitos fundamentais.

E, conseqüentemente, quanto maior for a extensão da atuação da jurisdição

constitucional para preservar os direitos fundamentais e os preceitos da Lei Maior, avultar-

se-á a crise de sua legitimidade e maior será a necessidade de amparar essas atividades

através de procedimentos democráticos, que possam densificar a legitimidade do órgão que

as exerce. Diante das necessidades hodiernas, cada vez mais as decisões judiciais, para

atender às demandas constitucionais, são obrigadas a realizar interpretações construtivistas,

ultrapassando os limites impostos pela tradicional teoria da repartição dos poderes,

assumindo a jurisdição constitucional um função ativa na concretização dos mandamentos

constitucionais.

Para cumprir as demandas de um Estado Democrático Social de Direito, a jurisdição

constitucional é levada a exercer um alargamento nas suas decisões, quer seja de modo

implícito, quer explícito, e a sustentar essa atuação exclusivamente com base no

cumprimento dos postulados legais, o que sobrecarregaria demasiadamente o princípio da

legalidade indiretamente legitimado pela soberania popular.

Mas, por que as críticas são direcionadas, quase que exclusivamente, com relação às

decisões da jurisdição constitucional se, em cada uma das interpretações realizadas pelo

Poder Judiciário, existe um determinado teor de construção judicial ? Porque as decisões da

jurisdição constitucional são as que mais afetam a estruturação do poder na sociedade,

definindo os limites da atuação de cada um dos poderes instituídos.

243

As maiores críticas com relação à legitimidade da atuação da jurisdição

constitucional não ocorre nem no controle difuso de constitucionalidade, onde a análise se

reduz a um caso concreto, nem no controle abstrato clássico, em que o Judiciário retira do

ordenamento jurídico normas que foram feitas pelo Poder Legislativo, em contradição com

as determinações da Constituição. Ocorrem, de forma preponderante, quando a decisão

judicial incide tanto no controle concentrado como no controle difuso, colmatando as

omissões do Legislativo e do Executivo em realizar as prestações garantidas pela Lei Maior,

dentro de uma função que não lhe é típica, segundo os traços da teoria clássica da repartição

dos poderes.

Por trás dessa questão há uma modificação de paradigmas. Primeiro, a maior parte

das decisões judiciais hodiernas se refere a uma relação jurídica que no mais das vezes

abrange uma pluralidade de sujeitos, afastando-se do vetor liberal em que as contendas, em

regra, tinham duas partes; segundo, as decisões da jurisdição constitucional para realizar as

prerrogativas constitucionais devem ter eficácia concretiva, devendo até mesmo vincular os

outros poderes, no que relega à concepção clássica de jurisdição constitucional, em que

muitas de suas decisões têm efeitos meramente declaratórios.

Um dos pontos de discussão é se essa maior atuação da jurisdição constitucional não

pode resultar em sua auto-regulamentação, em que há uma perda dos referenciais de contato

com a sociedade e suas necessidades, exercendo o Supremo Tribunal Federal as suas

funções, sem nenhum substrato de legitimidade que possa fomentar um canal com as

demandas sociais. O mérito dessa ampliação, na atuação do Judiciário, configura-se

indiscutível, a problemática se direciona para criar formas de controle social que assegurem

a legitimidade de suas decisões.

Esse contexto de crise da jurisdição constitucional não é um caso circunscrito apenas

à realidade brasileira, refletindo-se igualmente em outros países, até mesmo na comunidade

européia.324

324 “A “questão judiciária” se deriva principalmente do fato de que as organizações judiciárias italianas – ou ao menos boa parte destas – não são atualmente preparadas para fazer frente ao que se denomina de “demanda de justiça”, isto é, de pronunciar-se, em tempo razoável e em modo eficiente e juridicamente correto, sobre as

244

10.3.1) O Aumento da Atuação da Jurisdição Constitucional e do Poder

Judiciário

No presente tópico, será estudado o incremento nas funções da jurisdição

constitucional e do Poder Judiciário de forma conjunta porque são temas conexos, seja no

Brasil, onde o Supremo Tribunal Federal, órgão que exerce a jurisdição constitucional,

representa o ápice da estrutura judiciária, seja nos países europeus que adotam o modelo de

tribunal constitucional, que são órgãos independentes da composição do Judiciário.

A jurisdição constitucional representa um dos pilares básicos para o estabelecimento

do Estado Democrático Social de Direito adquirindo um papel imprescindível para a

concretização dos dispositivos constitucionais, ultrapassando, por causa desse motivo, os

modestos limites de sua atuação atribuída por Montesquieu.325 Devido ao relevante papel

que ocupa no ordenamento jurídico, o aumento das prerrogativas da jurisdição constitucional

representará o incremento nas funções da jurisdição ordinária.

Atualmente, assiste-se a um aumento no exercício das funções judiciárias e da

jurisdição constitucional em quase todos os países ocidentais. Afora os países que seguem o

sistema do common law, pelas peculiaridades que lhes são inerente, essa preponderância de

atuação não encontra um respaldo histórico de longa data, sendo forcejado mais por

contingências fáticas, fruto do desenvolvimento do sistema econômico. A afirmação feita

por Alexandre Hamilton, de que o Judiciário é o mais frágil dos três poderes, pois não

dispõe nem da espada, nem da bolsa para garantir auto-executoriedade de suas decisões, por

isso encontra-se ultrapassado pela evolução da sociedade.326 Tocqueville também não

demandas e os recursos que são apresentados nas instâncias civil, penal, administrativa, tributária e contábil”. PIZZORUSSO, Alessandro. La Costituzione. I Valori da Conservare, Lê Regole da Cambiare. Torino: Einaudi, 1996. P. 149. 325 BANDRÉS, José Manuel. “Poder Judicial y Constitución”. In: La Aplicación Jurisdiccional de la Constitución. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997. P. 10. 326 “Qualquer um que analisar atentamente os poderes que formam um Estado poderá perceber que em uma Constituição em que eles sejam rigorosamente separados, o poder que apresenta um menor perigo para os direitos políticos sancionados pela Carta Magna será sempre o Judiciário, pela própria natureza das funções que ele desenvolve, haja vista que ele terá sempre as menores prerrogativas para obstacular ou afrontar os outros poderes. O Executivo, de fato, além de gozar dos predicados inerentes a um poder, dispõe também da

245

considera que o Poder Judiciário possa ser visto como um superpoder pois lhe faltam as

condições necessárias para sobrepujar os demais poderes, uma vez que deve pautar as suas

decisões pelos mandamentos legais.327

Como a denominação desse tópico é muito abrangente convém especificar o que vem

a ser o aumento da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário. Ele significa que a

atuação desses órgãos passa a incidir em esferas que até então estavam livres do seu

controle, como é o caso da esfera política. Por causa da expansão das decisões de natureza

jurisdicional, os Poderes Legislativo e Executivo têm atrelado as suas atividades em

sincronia com os parâmetros adotados pela jurisdição constitucional e pelo Poder

Judiciário.328

Para Neal Tate e Torbjörn são vários os fatores que contribuem para expandir a

atuação da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário. Em âmbito internacional, os

citados autores elencam os seguintes fatores: a falência do socialismo totalitário do leste

europeu e o desaparecimento da União Soviética, deixando os Estados Unidos como a única

superpotência, e como eles são o centro do judicial activism, a influência desse modelo foi

avassaladora; o processo de democratização da América Latina, Ásia e África que

possibilitou um maior desenvolvimento da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário,

alicerçando-se no princípio da legalidade; a influência da jurisprudência e da ciência política

americana, que assumem grande importância por causa do sistema do common law; o

espada. O Legislativo, de fato, além de gozar dos predicados inerentes a um poder, dispõe também da espada. Ele não apenas tem a bolsa, mas, absolutamente, estabelece as normas que delineiam os direitos e os deveres de cada um dos cidadãos. O Judiciário, ao contrário, não pode influenciar nem com a espada nem com a bolsa, não pode administrar nem a força nem a riqueza da sociedade e não pode proferir alguma decisão que seja verdadeiramente auto-executável”. HAMILTON, Alexandre. Il Federalismo. Trad. Biancamaria Tedeschini Lalli. Milano: Edizioni Olivares, 1980. P. 218-219. 327 “Os americanos entregaram aos seus tribunais um imenso poder político; todavia, obrigou-os a atacar a lei apenas com meios jurídicos, dessa forma diminuíram em muito o perigo deste poder. Se os juízes pudessem se pronunciar contra uma lei de maneira teórica e geral; se pudessem tomar a iniciativa de censurar os legisladores, tornando-se partidário do interesse de algum partido, poderiam excitar todas as paixões que dividem o país e poderiam fazer parte dessa luta”. TOCQUEVILLE, Alexis. La democracia in America. Trad. [ s.t], Milano: Rizzoli, 1999. P. 104. 328 After the manner of a judge; with judicial knowledge and skill

246

significativo papel desempenhado pelas cortes internacionais, como a Corte de Direitos

Humanos de Strasburgo.329

O fator que mais força exerce para o alargamento da atuação da jurisdição

constitucional é o fortalecimento dos direitos fundamentais, que ocorre de forma global,

principalmente nas democracias ocidentais. Quanto maior for o recrudescimento dos direitos

fundamentais, maior deverá ser a atuação da jurisdição constitucional para garantir a sua

concretização. Ao mesmo tempo em que esta é uma de suas funções é uma forma de

legitimar a expansão de sua atuação, além de garantir um direcionamento para a sua atuação.

Um maior aumento do âmbito de atuação da jurisdição constitucional também

dependerá do grau de preparo e do teor de reputação que gozam os seus membros. Quanto

mais bem fundamentadas forem suas decisões e maior notoriedade de conhecimentos

tiverem os seus componentes, maior serão a sua aceitabilidade no meio jurídico. De igual

modo, no tocante à honorabilidade dos juízes, esta deve ser impecável, tanto na sua conduta

pessoal como profissional.

As influências internacionais de forma clara se estendem a todos os países, não de

forma homogênea, variando muito a sua intensidade de acordo com as suas realidades sócio-

político-econômicas. Em âmbito nacional, essas causas são muito peculiares a cada um dos

países, podendo-se apontar como elemento unificador dos casos a atuação cada vez mais

presente da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário, em todas as esferas da atuação

estatal.

Nos países periféricos, que não têm uma longa tradição de respeito às leis, a

jurisdição constitucional nunca desempenhou o seu papel de forma autônoma. Na maioria

dos países, ela sempre foi atrelada à elite política e econômica, servindo como um órgão que

tem a missão de chancelar as decisões políticas. Todavia, mesmo com essa limitação, em

virtude dos fenômenos anteriormente mencionados, tanto nacionais como internacionais,

assiste-se nos países periféricos, de forma paulatina, ao fortalecimento da jurisdição

329 TATE, C. Neal & VALLINDER, Torbjörn. “The Global Expansion of Judicial Power: The Judicialization of Politics”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 2-4.

247

constitucional como forma de propiciar uma maior proteção às disposições jurídicas,

principalmente às normas constitucionais.

As formas de expansão da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário ocorrem

em escala global, embora não sejam uniformes, variando de acordo com o peso das

influências internacionais e nacionais. Indubitavelmente, a forma mais genérica que ela

ocorre é com o controle de constitucionalidade das normas, que incide tanto em atos do

Poder Legislativo, quanto do Poder Executivo.

A forma de expansão da jurisdição constitucional que mais suscita oposição, tanto do

Poder Executivo como do Poder Legislativo e dos partidos políticos, é quando ela mitiga as

decisões políticas, chegando ao ponto, em alguns casos mais extremos, de as substituir. Esse

tipo de decisões é mais freqüente nos Estados Unidos, mas de igual modo ocorre na Europa

e até mesmo no Brasil, como foi o caso da obrigação de verticalização das coligações na

eleição de 2002.

Ela ocorre quando a jurisdição constitucional, sem o amparo em normas

constitucionais, substitui os atores sociais tradicionais da esfera política e passa a proferir

decisões políticas. Um dos motivos para esse fato acontecer é porque os atores políticos

envolvidos não conseguem chegar a uma solução adequada devido ao grande antagonismo

existente na sociedade. Como nenhum dos lados quer arcar com os custos políticos de uma

decisão controversa, transfere-se a decisão ao órgão que exerce a jurisdição constitucional,

que teoricamente teria um “aspecto técnico e imparcial”.

Essa delegação de função não é feita de forma explícita, pois haveria o risco de

desmoralização do Poder Executivo e do Legislativo. Assim, ela ocorre de forma reflexa, em

que a decisão chega à jurisdição constitucional pelos meios jurídicos convencionais. O

imobilismo que graça nesses poderes é uma das conseqüências do seu distanciamento das

demandas populares, consagrando a ineficiência dos órgãos representativos. O

enfraquecimento dos Poderes Legislativo e Executivo abre caminho para uma maior atuação

da Jurisdição constitucional. Um exemplo do fato mencionado ocorreu nos Estados Unidos,

onde o Poder Legislativo preferiu silenciar a respeito da proibição ou não do aborto, levando

248

a questão a ser resolvida por uma decisão da Suprema Corte norte-americana, no caso Roe

versus Wade.

Grande expansão na sua atuação se registra, de forma substancial nos Estados

Unidos e na Inglaterra, nos mais diversos órgãos administrativos e agências reguladoras,

onde que a jurisdição constitucional e o Poder Judiciário, com preponderante atuação desse

último, ditam a forma que os atos devem conter, e em alguns casos extremos, até mesmo o

seu conteúdo.330 De forma freqüente, vem ocorrendo a intervenção judicial nos atos

administrativos, no sentido não apenas da proteção aos princípios constitucionais, mas com

a finalidade de que esses atos sigam os mesmos procedimentos exigidos para a feitura dos

atos judiciais.

A expansão da atuação do Judiciário não ocorre apenas com relação ao controle de

constitucionalidade, em suas diversas modalidades, em que a jurisdição constitucional,

amparada no escopo de garantir a supraconstitucionalidade da Constituição, exerce suas

atividades de forma ampla. Ela também se desenvolve nos países do common law, onde o

Parlamento tem as suas funções restritas pelas decisões judiciais.

De acordo com Neal Tate, o processo de judicialização abrange também os espaços

não judiciais e aqueles em que são permitidas decisões através da livre negociação das

partes, fazendo com que o processo realizado nessas instâncias tenha uma natureza quase-

judicial, limitando a auto-composição dos litígios. Dessa forma, o princípio da autonomia da

vontade, que é bastante utilizado na esfera privada, estaria sendo mitigado pelo processo de

judicialização. O principal argumento para essa abrangência é a defesa dos direitos

fundamentais, que legitima a incidência em atividades que estavam sob a proteção do pacta

330 “Aqui um exemplo pode ser encontrado nas atividades realizadas pelos tribunais administrativos da Grã-Bretanha. Em parte, seguindo as recomendações do Frank’s Committee de 1957, provocando em grande medida a judicialização dos atos administrativos, através do estímulo realizado pelo Conselho dos Tribunais[...].O que significa mais decisões judiciais e menos espaço para as decisões administrativas. Um exemplo similar pode ser fornecido através da American Administrative Procedure Act, de 1946, e no fato de que as agências administrativas norte-americanas disponham de “juízes administrativos”, que podem ser ouvidos em muitas decisões, freqüentemente em assuntos que não têm natureza judicial”. VALLINDER, Torbjörn. “When the Courts Go Marching In”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 16.

249

sunt servanda.331 Exceção a esse elastecimento da incidência da jurisdição constitucional

pode ser verificada nos países periféricos, onde, em virtude do processo de

desregulamentação da economia, o espaço de decisão, mormente dos marcos regulatórios, se

encontra nas mãos de órgãos de natureza privada.

A jurisdição constitucional e o Poder Judiciário vêm expandindo as suas funções de

modo concomitante, com o avanço da crise que permeia o paradigma do direito positivo

tradicional, que tem como sua fonte preponderante o Poder Legislativo. Como os fatos

sociais são cada vez mais dinâmicos para se adequarem a lex mercatoria, as estruturas

normativas não podem mais ser feitas com a pretensão de vigência indefinida. Elas devem

ser cada vez mais flexíveis para se adaptarem às mutações da sociedade. Cabe à jurisdição

constitucional e ao Poder Judiciário redefinirem as leis para aplicar aos casos concretos,

garantindo a completude sistêmica diante de fatos que não podem ser enquadrados em

normas previamente definidas.

Eles mantêm a atualidade do ordenamento jurídico em uma sociedade

constantemente em mutação, multipolar e fluida. A exclusividade da produção normativa

nas mãos do Poder Legislativo sofre um processo de forte arrefecimento, em que o processo

legislativo não pode mais se adequar ao cambiamento das necessidades. O Poder Judiciário

passa também a exercer uma função normogenética, através da jurisprudencialização de suas

decisões, em que o fundamento legal deixa de ter por base a estrutura normativa e passa a se

alicerçar nas próprias decisões do Judiciário. Da mesma forma, é cada vez maior o seu

espaço de atuação, com base na competência suplementar, em que o próprio legislador deixa

um amplo campo normativo para a atuação dos magistrados diante do caso concreto, com a

escusa de garantir a completude do ordenamento jurídico.

É de bom alvitre salientar, que o princípio da exclusividade da produção normativa

nas mãos do Legislativo não foi considerado absoluto nem mesmo nos países que adotaram

o civil law, no auge do positivismo jurídico. A concorrência na produção normativa,

enfrentada pelo Poder Legislativo diante da expansão da jurisdição constitucional, é um fato

331 TATE, C. Neal. “Why The Expansion of Judicial Power”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 28.

250

relativamente recente. Contudo, o dogma da exclusividade da sua produção nunca foi

absoluto. Historicamente, a principal objeção a essa exclusividade por parte do Legislativo

sempre foi oposta pelo jusnaturalismo, que acreditava na existência de leis que seriam

imanentes à natureza humana e, portanto, não precisariam ser criadas por esse poder.

De igual forma, contribui para essa expansão a heterogeneidade de que é formado o

tecido social, em que a diversificação da infra-estrutura econômica origina numerosos postos

na cadeia produtiva, com interesses os mais variados. Além do que, a produção normativa

deixa de ser feita exclusivamente pelo Poder Legislativo e passa a se realizar por uma

multiplicidade de órgãos, propiciando um estado de incerteza e de insegurança normativa.

Esses dois efeitos impedem a criação de uma norma geral, que contemple os mais variados

interesses sociais e que conte com o respaldo das diversas fontes normativas.A jurisdição

constitucional e o Poder Judiciário, então, são os órgãos estatais que têm a missão de fixar o

sentido jurídico das normas e solucionar os litígios sociais.

Diante da multiplicidade e heterogeneidade das fontes normativas, que muitas vezes

produzem antinomias legais, e da heterogeneidade do tecido social, a jurisdição

constitucional e o Judiciário se transformam em uma fonte jurídica preponderante, pois

cabe-lhes sistematizar o ordenamento jurídico e firmar a lei que deve ser aplicada em cada

caso concreto. Eles, devido à prerrogativa de aplicar o jurisdictio, são os órgãos estatais que

podem tanto intermediar os conflitos ocasionados pela heterogeneidade do tecido social e

pela pluralidade normativa, como resolvê-los a contento, tomando como parâmetro os

mandamentos contidos na Constituição.332

A expansão da atuação dos tribunais constitucionais não é apenas um fenômeno

restrito à jurisdição constitucional, ocorrendo com o Poder Judiciário também em sua esfera

ordinária. E não se limita apenas a um país, observando-se em todos os continentes. Nos 332 “Rarefação e onipresença são as duas fases da mesma medalha: o Direito realizado pelo Poder Judiciário é mais leve do que o Direito produzido pelo Poder Legislativo, capaz de se auto-modificar, de assumir uma forma diversa, de seguir a trajetória das necessidades fluídas que se desenvolvem em uma sociedade largamente guiada pelos mecanismos de mercado; inerente ao modelo utilizado pelo mercado para incrementar suas relações, confiando a muitos sujeitos e em situações em perene evolução. O Direito produzido pelo Poder Legislativo se caracteriza com o Direito do presente por excelência, porque, não obstante adequar a norma ao fato passado, é igualmente lugar de reinvenção jurídica, sobretudo, mas não apenas, em matéria de Direito”. FERRARESE, Maria Rosaria. Il Diritto al Presente. Globalizzazione e Tempo della Istituzione. Bologna: Mulino, 2002. P. 201-202.

251

Estados Unidos, a Suprema Corte e a magistratura sempre desempenharam um papel ativo

na sociedade, inclusive construindo a doutrina do judicial activism; na Alemanha, há vários

posicionamentos do Tribunal Constitucional assegurando a concretização dos direitos

fundamentais; na Espanha, além das firmes decisões do seu Tribunal Constitucional, pode

ser mencionado o caso do pedido de extradição de Pinochet; na Itália, a campanha

promovida nos anos noventa contra a corrupção política e a máfia; na França, o combate aos

desmandos políticos etc.

Na esfera penal a atuação da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário tem se

mostrado bastante desenvolvida, principalmente nos países europeus. Nessa função há uma

recuperação de vetores éticos da política, como o princípio da moralidade, do interesse

público etc. A jurisdição constitucional e o Poder Judiciário nesses casos são chamados a

intervir para assegurar a substancialização da seara política, mediante princípios ético-

morais, ao mesmo tempo em que contribuem para suprir o déficit de legalidade que existe no

gerenciamento da coisa pública.

Essa extensão na atuação da jurisdição constitucional e do próprio Poder Judiciário

tem gerado atrito com os demais poderes, o que motiva o Poder Legislativo a formular

vários projetos legislativos com o desiderato de podar as prerrogativas dos tribunais

constitucionais e da magistratura, em sentido geral. Mas, mesmo que os projetos de lei

sejam concretizados, a amplitude da atuação das Cortes Constitucionais e dos Tribunais não

será arrefecida, em primeiro lugar, porque há uma crise no arcabouço normativo, fruto da

sociedade pós-moderna, que cada vez exige leis mais flexíveis. E em segundo lugar, porque

diante da caótica e abundante produção legislativa faz-se necessário, cada vez mais, uma

interpretação técnica para saber qual a disposição normativa que vai ser aplicada ao caso

concreto. Essa produção caótica esquece de uma parêmia clássica do processo legislativo: de

que as leis devem ser simples e claras, construídas de maneira a mais precisa possível, a fim

de evitar problemas na sua interpretação.333

333 CARBASSE, Jean-Marie. Introduction Historique au Droit. 2 ed., Paris: Presses Universitaires de France, 1998. P.293.

252

Como a tendência das disposições normativas é a de ser mais genérica e abstrata para

atender às necessidades da coletividade, o alcance da extensão das decisões da jurisdição

constitucional e do Poder Judiciário, de uma forma geral, não tenderá a diminuir, o que se

leva a buscar uma limitação legal para essa atuação e uma fundamentação de legitimidade,

que possa colocar essas importantes decisões sob o controle da população.

Em alguns países, como a Itália por exemplo, tenta-se uma legitimação não apenas

para a jurisdição constitucional, mas para todo o Poder Judiciário através da mídia, onde os

membros da magistratura aparecem como os defensores dos valores morais, da sociedade,

dos hipossuficientes etc, e esse mecanismo permite uma crescente participação da

magistratura na vida pública de toda a Europa.334 O que leva o professor Danilo Zolo a

chamar esse tipo de democracia de “espertocracia giudiziaria”.335

As decisões dos órgãos incumbidos de exercer a jurisdição constitucional produzem

um grande impacto nas políticas públicas, fazendo com que eles não se comportem apenas

como um legislador negativo, garantindo o caráter sistêmico da Constituição, mas atuem

como um verdadeiro “judicial law-maker”.336 Muitas de suas decisões possuem um grande

impacto nas políticas governamentais, pois são tomadas sob grande influência política, e em

alguns casos sob motivação política. A jurisdição constitucional é acusada de se preocupar

mais com as garantias dos direitos, do que com as garantias do princípio democrático.337

O aumento da atuação do Poder Judiciário, como um todo nas sociedades ocidentais,

tem levado muitos autores a sustentar que está ocorrendo uma involução no Estado

Democrático Social de Direito, transformando-se em um Estado Jurisdicional, em

decorrência de que o Judiciário e os tribunais constitucionais não adquirem sua legitimidade

diretamente do sufrágio universal.

334 O governo italiano de Sílvio Berlusconi acusa setores da magistratura italiana de giacobinismo, devido à autonomia exacerbada de que goza o Poder Judiciário, transformando a sua atuação em instrumento de terror e não na garantia da liberdade. GAMBINO, Sílvio. Magistratura e Potere Político.Extraído do site: http: //www. associazionedeicostituzionalisti.it/ dibattiti/magistratura/gambino.html. Capturado em 20/01/2003. P.9. 335 ZOLO, Danilo. “A Proposito dell’ Espansione Globale del Potere dei Giudici”. In: Iride. Bologna: Il Mulino. n. 11. 1998. P. 449. 336 SPIROVSKI, Igor. The Role of Constitutional Court in the Building of the Constitutional Democracy. Capturado do site http: //www.eur.nl/frg/iacl/papers/spirovski.html. Capturado em 24/02/2003. P. 1 337 PORTINARO, Pier Paolo. “Oltre lo Stato di Diritto. Tirannia dei Giudici o anarchia degli avvocati?”. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 17-88. P. 391 e 396.

253

Outra conseqüência dessa tendência é uma maior regulamentação da esfera política,

ou seja, uma jurisdicização da política, com o objetivo de atrelá-la ao bem comum e permitir

uma licitude dos pleitos.338 Porém, quando os tribunais constitucionais começam a se

imiscuir em assuntos políticos, ocorre de igual forma uma politização desses órgãos. Em

muitas de suas decisões resta evidenciada uma nítida opção ideológica, em que a matriz

política resta clarividente. O risco é que a criação de uma justiça política, passe a decidir de

acordo com as suas conveniências ideológicas, em detrimento da Constituição.

Toda essa desenvoltura no desenvolvimento das atividades da jurisdição

constitucional tem como amparo o papel privilegiado que ela desempenha, como instância

última de interpretação das normas jurídicas. Das decisões em última instância da jurisdição

constitucional não cabe nenhum tipo de apelação, sendo inclusive a coisa julgada

considerada em muitos ordenamentos como direito fundamental, como o objetivo de

consolidar as sentenças judiciais. Como os tribunais constitucionais são a última esfera de

decisão, eles detêm um grande poder que, se não se atrelar aos ditames da Constituição,

pode redundar em decisões que careçam de legitimidade e ocasionem lesões aos interesses

populares.

O incremento na atuação do Poder Judiciário e, principalmente, da jurisdição

constitucional não significa, por si só, em uma vantagem ou desvantagem. Se ele se

transformar em um instrumento de produção normativa, sem o estabelecimento de

parâmetros com a sociedade, através de uma legitimação auto-referencial, baseada em

procedimentos judiciais, será uma atuação danosa, que afetará o regime democrático e os

direitos fundamentais. Entretanto, se essa atuação servir para o desenvolvimento do sistema

de freios e contrapesos, com o escopo de garantir os direitos fundamentais e o

aperfeiçoamento do regime democrático, será uma atividade benéfica e ensejará a real

concretização de um Estado Democrático Social de Direito.

338 “A transformação da política em direito vem, digamos de forma paulatina, sendo criada não pelo legislador antecipadamente, mas pelos magistrados diante do caso singular, como lex specialis. É um tipo de produção normativa que se denomina de criação jurídica do Direito”. CALAMANDREI, Piero. Opere Giuridiche. Tomo I, Napoli: Morano, 1965. P.642.

254

10.3.2) O Papel do Judiciário na Concepção Tradicional dos Três Poderes

A inspiração para a moderna separação dos poderes provém da Grécia antiga e de

Roma, desenvolvida pela teoria denominada de governo composto (mixed government). Esta

teoria está baseada no reconhecimento dos grupamentos sociais que fazem parte da

sociedade, em que cada um deles participa das decisões estatais. Essa divisão de poder é

realizada com base em departamentos separados, com a finalidade precípua de impedir a

formação de governos ditatoriais, sem o objetivo de buscar uma maior eficiência dos

serviços prestados.

As duas principais diferenças entre a teoria da separação dos poderes e a do governo

composto é que nesta não existe uma divisão de funções, como por exemplo entre cada um

dos três poderes, como a existente na separação de poderes, desempenhando os órgãos do

governo todas as funções existentes no Estado e a segunda é que no governo composto não

existia a estruturação de um Poder Judiciário como o que foi idealizado na teoria da

separação dos poderes.339

John Locke, no seu livro “O Segundo Tratado sobre o Governo”, delineia o Estado

composto por três poderes, fundamentado no estado de natureza: Executivo, Legislativo e

Federativo. Segundo o mencionado autor, a função do Poder Executivo é a execução das leis

civis da sociedade, especificamente dentro do seu espaço territorial. O Poder Legislativo tem

a missão de prescrever a forma como a força do Estado deve ser usada para proteger a

sociedade. Em decorrência da força atribuída por Locke a esse poder, não era necessário que

ele exercesse as suas atividades de forma contínua, evitando que o Legislativo se exonerar-

se do cumprimento das leis, por ele mesmo produzidas. O Poder Federativo tem a função de

zelar pela segurança e pelos interesses da sociedade no estrangeiro, cabendo-lhe as

prerrogativas de decretar a guerra ou celebrar a paz, de realizar tratados e fazer todas as

339 REDISH, Martin H. The Constitution as Political Structure. New York: Oxford University Press, 1994. P.103.

255

negociações internacionais. Na estruturação do Estado de Locke ele não havia previsto o

Poder Judiciário.340

A separação dos poderes, nos moldes que concebemos atualmente, foi formulada por

Montesquieu, na sua Esprit des Lois (1748), com uma finalidade essencialmente política,

para contrapor-se à monarquia absolutista francesa, tomando como parâmetro o modelo

político inglês. A essência da sua tese era que cada um dos poderes do Estado exerce uma

determinada função precípua, de forma autônoma e distinta das demais, de forma que cada

um deles pudesse mitigar o outro, quando houvesse uma extrapolação de poder. Para ele, o

maior objetivo da separação dos poderes era evitar o absolutismo, por intermédio da

fragmentação do poder que estabelece um equilíbrio na sua atuação.

Para Montesquieu, a liberdade política somente pode ser encontrada em governos

moderados, considerados como tais aqueles em que não há abuso de poder. Em decorrência

da experiência haurida da história, verificou-se que o homem que detém um determinado

poder tende a extrapolá-lo, perpetrando abusos, necessitando, para que se evite essa situação

que um poder seja limitado por outro. Destarte, Montesquieu formulou a teoria de separação

dos poderes, em que os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário exercem uma

determinada função específica.

Quando há uma concentração de poder, o governo deixa de ser moderado e abre

caminho para um governo despótico. Explica Montesquieu: “Quando em uma mesma pessoa

ou em um mesmo corpo de magistratura o Poder Legislativo é unido ao Poder Executivo,

não pode haver liberdade porque se pode temer que o mesmo rei, ou o mesmo senado, faça

leis arbitrárias para segui-las de forma arbitrária. Também não existe liberdade se o Poder

Judiciário não é separado do Poder Legislativo e do Poder Executivo. Se fosse concentrado

com o Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: de

fato os juízes tornar-se-iam legisladores. Se fosse concentrado como o Poder Executivo, os

juízes teriam força de um opressor. Tudo estaria perdido se o homem ou o mesmo corpo de

340 LOCKE, John. Trattato Sul Governo . Trad. Lia Formigari. Roma: Riuniti, 1974. P. 106-107.

256

magistratura, ou de nobres, ou o povo, exercitassem esses três poderes: o de fazer leis, o de

executar as decisões públicas e o de julgar os delitos e as controvérsias privadas”.341

A primeira aplicação da teoria da separação dos poderes ocorreu em 1776, com a

realização da Constituição da confederação norte-americana, que agasalhou a teoria dos

freios e contrapesos, check and balances, em que um poder fiscaliza se o outro está atuando

dentro dos limites fixados. Depois a separação dos poderes foi adotada pela Constituição

francesa, de 1791 (balance des pouvoirs). Na Inglaterra, o desenvolvimento da teoria do

supreme law of the land prevaleceu à concepção tradicional da divisão dos poderes, com a

finalidade de garantir aos cidadãos prerrogativas mínimas imprescindíveis – os chamados

direitos fundamentais.

O conteúdo semântico da expressão separação dos poderes não é precisa, afinal o

poder não se pode separar. Factualmente, o que há é uma divisão no exercício das funções

estatais, com o fator teleológico de impedir a concentração de poder e também buscar, com a

divisão, uma maior eficiência na realização da função deferida. Ela traz um sentido bilateral,

pois ao mesmo tempo que um poder tem o seu âmbito de atuação limitado, ele também atua

fiscalizando os outros poderes e, portanto, cerceando a atuação dos demais.

Concomitantemente, a teoria da separação dos poderes, ao mesmo tempo que limita as

prerrogativas de um poder, oferece instrumentos para que aquele que fora limitado na sua

atuação possa atuar na fiscalização dos demais, coibindo eventuais acintes ao ordenamento

jurídico.

O fator teleológico preponderante para a criação da separação dos poderes é a

mitigação dos poderes dos órgãos estatais, resguardando os direitos dos cidadãos e

estruturando a atuação dos entes estatais através dos princípios imanentes ao Estado de

Direito. Esse escopo é reforçado por outro tipo de limitação, que se realiza pela separação ou

341 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat de. Lo Spirito delle Leggi. Trad. Beatrice Boffito Serra. 5 ed., V. I. Milano: Universale Rizzoli. 1999. P. 310.

257

divisão dos entes públicos em diversos órgãos, com funções previamente estabelecidas e

exercendo suas atividade de modo harmônico e independente.342

A vinculação de todos os poderes, inclusive o Legislativo, às produções normativas

encontra respaldo no princípio da legalidade, com a presunção de que as leis, que são feitas

por representantes do povo, contam com o consentimento da população. Toma-se uma

concepção de que o Poder Legislativo funciona de acordo com o clamor público e, portanto,

suas decisões estão legitimadas pelo sufrágio universal.

Dentro da perspectiva tradicional, pode ser realizada uma divisão de competência

temporal. As decisões judiciais são concebidas com uma visão de passado, orientando-se

pelo direito positivo, realizado pelo órgão Legislativo. O Poder Executivo elabora suas

decisões com base nas premências do presente. E o Poder Legislativo toma suas decisões

com uma perspectiva futura, vinculado às condutas posteriores.343

A concepção tradicional da divisão dos poderes é utilizada como argumento

contrário à legitimação do aumento da atuação da jurisdição constitucional, basicamente

devido a dois de seus postulados: que todas as decisões judiciais devem ser proferidas dentro

dos parâmetros legais e que a análise de questões, que envolvam elevado grau de

discricionariedade são questões essencialmente políticas e, portanto, estão fora do alcance da

apreciação pela jurisdição constitucional. Essa concepção se encontra um pouco arrefecida

diante da crescente importância da supralegalidade constitucional, em que todos os poderes

estabelecidos atuam para concretizar os dispositivos da Carta Magna, ultrapassando os

limites delineados pela concepção tradicional da divisão dos poderes.

O enquadramento das funções dentro do esquema da rígida tripartição de poder não

corresponde mais às necessidades de uma sociedade pós-moderna, que devido a sua alta

complexidade permite o afloramento das mais diversas necessidades. Em decorrência da

alucinante velocidade como os fatos sociais ocorrem, exigindo respostas imediatas dos

342 AFTALIÓN, R. Enrique et alli. Introducción al Derecho. Conocimiento y conocimiento Científico. Historia de las Ideas Jurídicas. Teoría General del Derecho. Teoría General Aplicada. 3 ed., Buenos Aires: Abeledo-Perrot. 1999. P. 852-853. 343 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva del Diritto e della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizioni Ângelo Guerini e Associati, 1996. P. 293.

258

órgãos públicos, o Poder Legislativo, que para realizar uma lei tem que cumprir um

minucioso e longo procedimento, não pode atender de forma eficiente a essas demandas. A

concepção do Poder Legislativo como órgão único de produção normativa torna-se

insustentável, o Poder Executivo, por intermédio das medidas provisórias, e o Poder

Judiciário, pela extensão das suas decisões, passam a legislar de forma concorrente.

A crise provocada pela extensão da jurisdição constitucional, no princípio da

separação dos poderes, não significa a sua revogação, a sua finalidade prolegômena de

impedir a formação de governos absolutos e forcejar um sistema de freios e contrapesos

ainda é necessário para os regimes políticos. O que entrou em declínio irremediável foi a

rígida separação de funções exercidas por cada um dos três poderes, que não mais

correspondem às demandas da sociedade. A determinação de cada uma das funções a ser

exercidas pelos três poderes foi idealizada no século XVIII, para um modelo de sociedade

que estava entrando na modernidade. As sociedades hodiernas, pós-modernas, são

incompatíveis com essa determinação de funções, devendo buscar novos modelos para

atender as suas necessidades.344

A necessidade de uma reformulação da concepção clássica de divisão de poder pelos

três poderes acontece em razão do célere processo de cambiamento das demandas sociais,

alterando as relações entre a sociedade e o Estado, a tradicional divisão de funções não mais

pode atender às exigências hodiernas, necessitando de uma reformulação profunda para

realizar a sua modernização.

344 No mesmo sentido é o posicionamento de Kelsen: “o conceito de “separação de poderes” designa um princípio de organização política. Ele pressupõe que os chamados três poderes podem ser determinados como três funções distintas e coordenadas do Estado, e que é possível definir fronteiras separando cada uma dessas três funções. No entanto, essa pressuposição não é sustentada pelos fatos. Como vimos, não há três, mas duas funções básicas do Estado: a criação e a aplicação do Direito, e essas funções são infra e supra-ordenadas. Além disso, não é possível definir fronteiras separando essas funções entre si, já que a distinção entre a aplicação de Direito – subjacente ao dualismo de poder legislativo e executivo (no sentido mais amplo) – tem apenas um caráter relativo, a maioria dos atos do Estado sendo, ao mesmo tempo, atos criadores e aplicadores de Direito. É impossível atribuir a criação de Direito a um órgão e a sua aplicação (execução) a outro, de modo tão exclusivo que nenhum órgão venha a cumprir simultaneamente ambas as funções. É dificilmente possível e, de qualquer modo, indesejável, ate mesmo que se reserve a legislação – que é apenas um determinado tipo de criação de Direito – a um “corpo separado de funcionários públicos” e se excluam todos os outros órgãos dessa função”. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998. P. 385-386.

259

Não se intenciona aqui fazer apologia à tese de que a jurisdição constitucional pode

exercer um papel normogenético sem o amparo de normas constitucionais, nem tão pouco

aplicar padrões estruturais do século XVIII no século XXI, sem nenhuma adequação. A

jurisdição constitucional é um dos esteios de legitimação do regime democrático e a sua

função deve se adequar às demandas atuais da sociedade.

A separação do exercício das funções estatais, com a sua concepção de atuação da

jurisdição constitucional e do Poder Judiciário, não pode ser concebida nem como um fator

para restringir ou para expandir sua esfera de incidência. Da mesma forma que não se pode

outorgar à jurisdição constitucional a absoluta interpretação jurídica, chegando a ponto de

prescindir do alicerce normativo, também não se pode vincular seu desenvolvimento a

modelos ultrapassados que não mais atendem ao interesse da sociedade. Assim, a separação

do exercício das funções estatais é uma moldura, configurando-se como a verdadeira

essência para uma maior ou menor atuação da jurisdição constitucional às prerrogativas que

lhe são investidas para garantir o conteúdo da Constituição.

11.) Legitimidade da Jurisdição Constitucional

A questão mais sensível com relação à jurisdição constitucional é saber qual o

substrato de legitimidade que a ampara para velar pela concretização da eficácia

constitucional. A razão maior da controvérsia é que as normas ou os atos normativos são

textos legais que são formulados por representantes eleitos diretamente pela população, ou

seja, fruto do princípio da soberania popular. Já os membros do órgão que exerce a

jurisdição constitucional não são providos aos seus cargos por intermédio da vontade

popular, têm seu provimento realizado por indicação do Presidente da República,

necessitando depois da homologação pelo Senado Federal.

260

Então a grande discussão gira em torno de se saber qual a legitimidade que ampara a

jurisdição constitucional para declarar a inconstitucionalidade de normas que são feitas pelo

Legislativo ou pelo Executivo.345 Com qual substrato de legitimidade o órgão que exerce a

jurisdição constitucional retira normas do ordenamento jurídico que foram feitas por

representantes eleitos pelo povo?

A questão não é tão simples com a priori pode parecer. Em verdade, a legitimidade

da jurisdição constitucional não é extraída da vontade direta da população. Hodiernamente,

esse dogma enfrenta contundentes críticas no sentido de que a democracia moderna não

permite a aferição da vontade popular, predominando o interesse dos grupos de pressão, dos

lobbies, da mídia e dos grandes conglomerados econômicos. Em suma: não existe uma

vinculação entre a vontade dos eleitores e dos seus representantes.346

Os poderes Executivo e Legislativo têm sua legitimidade haurida diretamente no

sufrágio universal, apresentando assim um teor de legitimidade que não pode ser

desprezado; o Presidente da República e o Congresso Nacional são eleitos diretamente pelos

cidadãos, ostentando, assim, apoio da população para tomar as decisões políticas

necessárias. Enquanto a legitimidade da jurisdição constitucional, nos moldes tradicionais,

alicerça-se nos dispositivos da Constituição Federal. O Poder Judiciário, que exerce a

jurisdição constitucional, no caso brasileiro, no sistema difuso, igualmente não tem sua

legitimidade haurida diretamente no sufrágio universal. Os juízes são escolhidos através de

concurso público, de provas e títulos, e o exercício de sua jurisdição tem que obedecer a

345 Esclarece Clèmerson Merlin Clève acerca da atividade legislativo do Poder Executivo: “O Executivo chama para si tarefas que, na doutrina liberal, não cabiam no espaço funcional reservado ao Estado, além de outras antes perfeitamente realizáveis pelos particulares. Esse poder, igualmente, invade o território funcional tradicionalmente reservado ao legislador. O fato não constitui novidade. O processo de descentralização da atividade normativa não poderia deixar de contemplar o Executivo que, nas sociedades contemporâneas, participa ativamente do processo legislativo. CLÈVE, Merlin Clèmerson. Atividade Legislativa do Poder Executivo. 2 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. P. 99. 346 “A lei enquanto obra do legislador e expressão da vontade soberana do povo, que consiste em tradição do século XIX, tornou-se mera ficção, pois seja em virtude da flagrante crise da democracia representativa, seja pelo fortalecimento do poder político dos grupos de pressão, a lei não necessariamente representa o povo, por muitas vezes, desrespeita princípios e direitos fundamentais básicos, com a finalidade de favorecimento de alguns poucos, mais poderosos grupos de pressão”. MORAES, Alexandre de. “Legitimidade da Justiça Constitucional”. In: As Vertentes do Direito Constitucional Contemporâneo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. P. 559.

261

alguns princípios constitucionais, como o devido processo legal, formal e material, o

contraditório, a ampla defesa etc.

A teoria da soberania popular é descipienda porque a legitimação da escolha dos

membros do órgão, que realizam a jurisdição constitucional e dos membros do Judiciário é

realizada por meio de um processo seletivo de escolha, de taxionomia burocrática que

realiza a aferição da capacidade dos candidatos, sem a necessidade de um processo eleitoral,

amparado no sufrágio universal.347

Apenas de forma indireta pode-se dizer que os Ministros do Supremo Tribunal

Federal estão legitimados pela vontade da população, não obstante o Presidente da

República ser eleito pela população e os senadores também serem eleitos majoritariamente

por cada um dos seus Estados. Conjugando a legitimação do Chefe do Executivo e a dos

senadores, os ministros do STF detêm alguma parcela de legitimação popular, obviamente,

que não pode ser comparada com a legitimidade dos mandatários populares que são eleitos

mediante voto secreto.

Pode-se argumentar que a representatividade estaria na forma de sua escolha, que nos

tribunais constitucionais permite que os poderes estabelecidos participem da composição.

Ou que a sua legitimidade estaria em concretizar os mandamentos da Constituição, que é a

lei que maior aceitação detém no ordenamento. Sua legitimidade pode até mesmo ser

alicerçada com base no procedimento judicial. Todavia, nenhuma dessas teorias pode

amparar devidamente uma maior extensão nas atividades da jurisdição constitucional.

A legitimidade da jurisdição constitucional, estabelecida pelos direcionamentos

ofertados pelos mandamentos legais que, indiretamente representariam a soberania popular e

a legitimidade do procedimento criador do órgão que exerce essa jurisdição, não é suficiente

para respaldar um maior alcance das decisões judiciais. O fato de que foi a Carta Magna que

conferiu esse poder, por si só não é suficiente para embasar uma teoria que cumpra esse

desiderato.

347 BANDRÉS, José Manuel. “Poder Judicial y Constitución”. In: La Aplicación Jurisdiccional de la Constitución. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997. P. 11.

262

Legitimar a atuação da jurisdição constitucional apenas no dogma da legalidade, pois

haveria o cumprimento de dispositivos constitucionais, não se mostra factível para amparar

todas as suas atuações, mormente porque essas decisões estão envoltas em grande dose de

discricionariedade e acarretam intensas conseqüências políticas. Necessita-se, portanto,

construir uma teoria que alicerce a legitimação dessa atuação e que, ao mesmo tempo, possa

preservar a sociedade de decisões arbitrárias. A legitimação da jurisdição constitucional

deve se enquadrar nos limites do Estado Democrático Social de Direito porque toda a sua

atuação é pautada dentro dos contornos legais, principalmente os ofertados pela Constituição

Federal.

A legitimidade da jurisdição constitucional haurida apenas na validade do

ordenamento jurídico, pelo parâmetro da legalidade, é insuficiente para respaldar as decisões

do Supremo Tribunal Federal porque é imperioso estabelecer links com a sociedade civil,

fazendo com que a racionalidade jurídica das decisões entre em sintonia com o sentimento

dos espaços públicos. Neste sentido, são as palavras de Cláudio Pereira: “Para a efetividade

social das direitos é importante não somente sua dimensão de validade (que se define como

referência ao direito produzido pelas autoridades estatais), e o aspecto da coerção, que a

acompanha. É necessário também que o direito seja legítimo, que as decisões possam ser

aceitas pela comunidade de jurisdicionados. Por isso, a racionalidade do ordenamento

jurídico é fundamental para legitimá-lo, provocando o assentimento espontâneo do grupo

social atingido”.348

Assim, pode-se afirmar que a legitimidade do controle de constitucionalidade

advinda do Estado de Direito, que tem seus parâmetros delineados pela Constituição

Federal, não é suficiente para justificar o aumento na atuação da jurisdição constitucional,

mesmo que o espaço de discricionariedade dos juízes seja limitado pelo conteúdo das

normas infraconstitucionais, fazendo com que eles não possam agir com livre arbítrio.

A legitimidade da jurisdição constitucional deve ocorrer tanto na origem da

composição de seus membros, como no exercício de sua função, arrimando-se nas

348 SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. P. 272.

263

cominações constitucionais, principalmente nos direitos fundamentais. O seu procedimento

de escolha deve ser aquele que permita a participação do maior número possível de forças

políticas, refletindo o pluralismo político existente na sociedade, o que propicia auferir uma

maior legitimidade social. De outra forma, também devem suas decisões ser embebidas por

parâmetros jurídicos, que permitam situar-se no universo jurídico, garantindo-lhes

autonomia e independência.

Inicialmente, a legitimidade da jurisdição constitucional nos Estados Unidos baseou-

se em um unwritten law, reflexo da existência de um higher law, que ainda representa uma

forte tradição no direito constitucional norte-americano. Posteriormente, com o

desenvolvimento do conceito de consent of the governed, influenciado pelo princípio da

soberania popular, a legitimidade da jurisdição constitucional passa a encontrar guarida no

written law, consonante o conteúdo dos dispositivos constitucionais.349

A fundamentação da legitimidade da jurisdição constitucional, segundo José de

Sousa e Brito, conselheiro do Tribunal Constitucional português, está radicada no princípio

da separação dos poderes, que na sua divisão clássica de atribuições concede à função

jurisdicional a prerrogativa de defender a supremacia do ordenamento jurídico,

principalmente a Constituição, de qualquer ato que macule o seu conteúdo, seja esse ato

implementado pelo Legislativo seja pelo Executivo.350 Todavia, a divisão tradicional de

atribuição dos três poderes não atende mais aos interesses hodiernos da sociedade,

notadamente quando a jurisdição constitucional tem que forçar os demais poderes a

implementar as diretrizes contidas na Constituição.

O princípio da divisão dos poderes, por si só, não apresenta densidade suficiente para

amparar a legitimidade das atividades da jurisdição constitucional. Ele é um princípio muito

abstrato, que depende de injunções sócio-político-econômicas para configurar os seus

contornos. A defesa da supralegalidade dos mandamentos constitucionais pela jurisdição

constitucional, seja em uma dimensão negativa ou positiva de concretização dos direitos

349 GOLDSTEIN, Leslie Friedman. In Defense of the Text. Democracy and Constitutional. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, 1991. P. 67-68. 350 SOUZA E BRITO, José. “Jurisdição Constitucional e Princípio Democrático”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 39.

264

fundamentais, em muitos países assume a conotação de um ornamento retórico, apesar da

existência do princípio da separação dos poderes.

Pedro Cruz Villalón, presidente do Tribunal Constitucional espanhol, refere-se a três

tipos de legitimidade constitucional: objetiva, de origem e de exercício.351 A legitimidade

objetiva pode ser obtida: através de uma legitimação proveniente da Constituição, já que

esta é a sua fonte primeira; por intermédio da proteção das minorias, quando os seus direitos

fundamentais são ameaçados pela maioria, já que os direitos fundamentais devem ser

garantidos para todos os segmentos sociais; e por último, ela é obtida pela característica da

neutralidade da jurisdição constitucional, arbitrando o conflito entre os demais poderes. O

principal elemento para a legitimidade objetiva da jurisdição constitucional é o seu papel de

defesa dos direitos fundamentais e de garantia dos requisitos do regime democrático, no que

se denomina de fundamentação substancialista da jurisdição constitucional.

A legitimidade de origem vincula-se à forma como é composto o órgão que exerce a

jurisdição constitucional. Quanto mais plural for a forma de escolha de seus membros,

maior será a densidade desse tipo de legitimidade. O principal elemento auferido pelo

prisma da legitimidade de origem é o caráter de permanência de seus membros, por um

determinado lapso temporal, um mandato previamente determinado, que está fora do

alcance das maiorias políticas que são transitórias, configurando-se como uma garantia para

que o exercício da jurisdição constitucional não sofra injunções políticas.

Quanto à legitimidade de exercício, ela reside no fato de que as decisões da

jurisdição constitucional devem ser tomadas de acordo com os procedimentos jurídicos, com

base no padrão normativo do texto constitucional. Por esse parâmetro, a fundamentação da

jurisdição constitucional é obtida através de uma argumentação jurídica, de forma racional.

E são esses requisitos que a distinguem de um ato político, que é discricionário, sem precisar

amparar-se em uma técnica de fundamentação jurídica. A dimensão da legitimidade do

exercício da jurisdição constitucional se configura no fato de que as decisões da jurisdição

351 VILLALÓN, Pedro Cruz. La Curiosidad Del Jurista Persa, y otros estudios sobre la Constitución. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1999. P. 535-539.

265

constitucional têm a função de interpretar a Constituição, como última instância, assumindo,

portanto, uma posição de poder.

Um dos substratos mais proeminentes de legitimidade da jurisdição constitucional

são os direitos fundamentais, servindo como instrumento para a sua concretização. Estas

prerrogativas são as normas que maior consenso ostentam na sociedade, configurando-se sua

defesa a tarefa mais preponderante do controle de constitucionalidade. Essa fundamentação

alicerça principalmente em uma atuação ativa do Supremo Tribunal Federal, cujo maior

desiderato é concretizar efetivamente os direitos fundamentais, obrigando os demais poderes

a concretizá-los.

À medida que o Poder Judiciário assegura o cumprimento dos dispositivos constantes

na Carta Magna, principalmente dos direitos fundamentais, sedimenta-se no inconsciente

dos cidadãos, principalmente nos mais humildes, a simbologia de sua eficácia, aumentando

o seu consenso na sociedade. É uma legitimidade popular que não foi aferida pelos

mecanismos tradicionais da democracia participativa, mas que nem por isso detém menos

relevância, haja vista o seu caráter teleológico de garantir as expectativas da população.

O princípio do sufrágio universal não pode ser considerado como a única forma de

legitimação da jurisdição constitucional, haja vista que suas decisões judiciais podem ser

democráticas, mesmo sem esse princípio. Ele é uma espécie da soberania popular que pode

se manifestar de vários modos, sem a necessidade desse instrumento específico,

principalmente em uma democracia participativa.352 O que as decisões judiciais necessitam é

de moldar-se ao conteúdo da Constituição, dentro dos parâmetros estabelecidos pelo regime

democrático.

352 Ensina Paulo Bonavides: “Tal modelo de democracia participativa direta conserva ainda a aparência de uma forma mista, típica das chamadas democracias semi-representativas ou semidiretas, bastante conhecidas da nomenclatura política pós-Weimar, mas com esta diferença capital: seu centro de gravidade, sua mola chave, em todas as ocasiões decisivas, é a vontade popular, é o povo soberano. A parte direta da democracia é máxima, ao passo que a parte representativa será mínima; uma primária ou de primeira grau, a outra secundária ou de segundo grau. Poder-se-ia, ate, dizer, em termos matemáticos, num cálculo de aproximação, que a democracia participativa direta é noventa por cento mais direta que representativa”. BONAVIDES, Paulo. Teoria da Constitucional da Democracia Participativa. Por um Direito Constitucional de Luta e Resistência. Por uma Nova Hermenêutica. Por uma Repolitização da Legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001. P. 60.

266

Da valia ressaltar, que a densificação da legitimação da jurisdição constitucional de

forma alguma pode servir como instrumento para deslegitimar disposições normativas.353 O

seu escopo é assegurar que as suas atividades possam se desenvolver consonante parâmetros

pré-estabelecidos, com arrimo na Carta Magna, sem cercear o exercício dos demais poderes.

As disposições normativas apenas podem ser consideradas inconstitucionais quando houver

uma afronta ao texto legal, não cabendo à jurisdição constitucional decidir sobre esse

critério de forma discricionária.

Quanto maior for o grau de eficácia do órgão que exerce a jurisdição constitucional,

mais eficiente é o seu desempenho em tutelar as normas constitucionais e mais intenso será

o nível de concretude normativa da Carta Magna. Cumprindo realmente a jurisdição

constitucional a função para a qual foi criada, haverá uma potencialização dos direitos

fundamentais, que estarão resguardados e com sua eficácia assegurada. A sedimentação da

legitimidade da jurisdição constitucional contribui para o aprimoramento do Estado

Democrático Social de Direito.

11.1) Conceito de Legitimidade

A busca pela legitimidade significa aprimorar a obediência dos postulados

normativos, com a obtenção do consenso da sociedade. O grau de eficácia da dominação

legal propiciada pelo Direito vai depender da solidez do seu conceito de legitimidade. Por

sua vez, o conceito de legitimidade apresenta uma relação direta e inegável com o poder;

pode-se dizer que ela é uma justificativa para a utilização do poder. Para David Beethan o

poder, de uma forma geral, indica a prerrogativa que um cidadão dispõe para produzir os

efeitos por ele desejado no meio que o cerca e no lugar previsto para a sua realização.354

353 VILLALÓN, Pedro Cruz. “Legitimidade da Justiça Constitucional e Princípio da Maioria”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 89. 354 BEETHAN, David. The Legitimation of the Power. .Hampshire: Macmillan. 1991. P. 43.

267

A premência de se aprofundar a análise acerca do conceito de legitimidade reside na

institucionalização da dominação legal que é propiciada pelo Direito. Claro que a

dominação, objeto de apreciação, é a dominação legal, característica do Estado Democrático

Social de Direito, sem possibilidade de análise da dominação arbitrária, que não obedece a

nenhum pressuposto legal.

A hodierna fase que caracteriza o Direito, fase pós-moderna, caracteriza-se por

amiúde regulamentação em vários setores da vida social. Cada vez mais há a necessidade de

intervenção normativa para arbitrar sobre os mais variados conflitos de interesses que

nascem na sociedade. Muitas relações sociais, que eram regidas pela tradição ou que eram

deixadas sob o manto do arbítrio privado, passaram a ser reguladas por instrumentos legais

(apesar de que em alguns países que adotaram políticas neoliberais a regulamentação for

feita por órgãos que não pertencem ao Estado). Com o maior alcance da atuação normativa,

igualmente surgem o aumento da resistência e a crítica aos preceitos legais, o que conduz ao

problema da legitimação das proposições jurídicas para a obtenção do seu cumprimento.

Quanto mais modernas forem as sociedades maior é o seu grau de complexidade, e

como todas as sociedades pós-modernas tendem a ser complexas, com o tecido social

dividido em várias classes sociais, com anseios e perspectivas diferentes, conseqüentemente

mais difícil será a elaboração de uma teoria de legitimidade que contemple todas as classes

sociais. Nessa pluralidade de agrupamentos sociais, o processo de legitimação de todos os

órgãos estatais sofre um forte arrefecimento, principalmente no que diz respeito à

legitimação das decisões judiciais da jurisdição constitucional, que diante do seu amplo

campo de atuação não mais obtém completa legitimação, nem do princípio da legalidade

constitucional nem do princípio da soberania popular.

A legitimidade inerente à pós-modernidade se baseia na linguagem. Esta passa a

exercer um papel imprescindível na teoria da legitimação, na medida em que ela é

indiferente a qualquer tipo de teoria universal de verdade, estruturando-se de acordo com as

circunstancias sócio-político-econômicas que lhes são inerentes, em um jogo pós-subjetivo.

O conteúdo da linguagem não apresenta nenhuma importância, assumindo uma coloração de

acordo com as variantes da sociedade. Quem produz um enunciado lingüístico deve ter

268

autoridade para proferi-lo, com condições para legitimá-lo. A legitimação pós-moderna é

pós-subjetiva, decorrendo, de forma topológica, do deslocamento de símbolos lingüísticos,

que são aceitos por um grupo de pessoas.355

As normas jurídicas não obtêm legitimidade pelo seu conteúdo, apartadas de

circunstâncias sócio-político-econômicas. O conteúdo das normas jurídicas deve manter uma

sincronia com os anseios coletivos, como forma de facilitar-lhes a solidificação da

legalidade democrática. O sentido deontológico dos mandamentos constitucionais abriga

determinados valores que refletem uma dada concepção ideológica, estruturando as relações

sociais nesse diapasão.356

Vários foram os substratos de legitimidade que existiram ao longo da história. Firmá-

los com base em primados teocráticos se mostra de difícil concretização, mormente em uma

sociedade secular como é a nossa.357 A legitimidade com sustentáculo exclusivo no princípio

da legalidade não se mostra de bom alvitre, haja vista a ausência de um referencial

ontológico que possa balizar as suas cominações.358 O recurso ao uso da força bruta não

oferece resultados satisfatórios a longo prazo, ao menor sinal de debilidade do seu uso, a

eficácia do sistema jurídico entra em decréscimo, tendendo ao ocaso.

Afirma José Eduardo Faria que até a Revolução Industrial, o poder era considerado

legítimo à medida que estivesse em conformidade com a tradição ou com o jusnaturalismo

racionalista. Após a Revolução Industrial, a legitimação do poder passa a depender de

355 ROMANO, Bruno. Soggettività Diritto e Postmoderno. Uma interpretazione com Heidegger e Lacan. Roma: Bulzone, 1988. P. 62-64. 356 Os valores imputados às normas constitucionais dependem da ideologia do operador jurídico. Themístocles Cavalcanti define da seguinte o conceito de ideologia: “ É o conjunto de idéias a respeito da sociedade, da vida, do governo e que se transforma, pela sua importância, pelo seu sentido dogmático, em credo de um grupo social, de um partido, de uma nacionalidade”. CAVALCANTI, Themístocles. “Reflexões sobre o Problema Ideológico”. In: Revista de Direito Público e Ciência Política.. Vol. VIII, set/dez, n.º 3, Rio de Janeiro: [ s.e.]. P. 84. 357 “O processo de secularização corresponde a uma gradual transformação ocorrida em determinadas sociedades, transitando de um padrão predominantemente religioso para formas preferentemente “leigas” (ou racionais) de vida”. SALDANHA, Nelson. Da Teologia à Metodologia. Secularização e Crise no Pensamento Jurídico. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. P. 57. 358 “Se o conceito de legitimidade é um conceito jurídico-formal, ou seja, considera-se o que determinado está na Lei, a legitimidade, pelo contrário, é um conceito sociológico-político, interessando-lhe valores e ideais do grupos, ou seja, legítimo é aquele poder que, mesmo à margem da Lei, se exerce atendendo aos interesses da sociedade para a qual se destina”. DANTAS, Ivo. Teoria do Estado. Direito Constitucional I.Belo Horizonte: Del Rey. 1989. P. 115.

269

critérios externos aos legisladores e aos governantes, necessitando de uma explícita

aprovação popular, obtida por procedimentos formais, convertendo-se em um processo de

interação entre o governante e os governados.359

Para o positivismo jurídico, o conceito de legitimação está calcado nas normas

componentes do ordenamento jurídico, preponderantemente nas normas constitucionais. A

sua justificação não pode ser procurada em fatores metadogmáticos, pois iria acarretar uma

perda na autonomia da Ciência Jurídica. A fundamentação da legitimidade é realizada com

base no escalonamento normativo, cuja norma superior garante a validade da norma inferior

e assim sucessivamente. A desvantagem dessa teoria é que a falta de contato com os fatores

sociais pode contribuir para o surgimento de uma auto-legitimação, ausente de conteúdos

substanciais que se amparem em argumentos retóricos para favorecer o status quo

dominante.360 Sustenta Sabino Cassese que o ordenamento jurídico global não tem sua

legitimação fundada através no consenso haurido da população, mas através do direito.361

A solução vislumbrada por Weber, Luhmann e Habermas, apesar da diferença de

suas teorias, tem como liame comum a fundamentação da dominação legal propiciada pelo

Direito, com base em procedimentos racionais, previamente estabelecidos. Esse tipo de

legitimação é baseada em procedimentos judiciais, que prescindem de qualquer conteúdo. O

procedimento regulamenta a forma em que se dará a tramitação do processo, sem a

359 “Após a Revolução Industrial, o problema da legitimação passa a ser visto como uma questão de reconhecimento de pautas: para tornar-se legítimo, o poder depende então de um critério externo aos legisladores e aos governantes, ou seja, de uma explícita aprovação popular obtida por procedimentos formais. A legitimação se converte dessa maneira em um processo de interação entre os detentores do poder (os legitimados) e os Cidadãos (as legitimantes), resultando de um acordo em torno de valores delineados como modelo de vida de uma comunidade. Como em todo sistema de dominação sempre existe em maior ou menor grau um componente de receio e de medo por parte dos governados, temerosos do arbítrio dos governantes, a legitimidade se converte numa ponte capaz de propiciar a superação dessa incerteza entre o poder e os grupos sociais, tornando a vida pública mais segura”. FARIA, José Eduardo. A Crise Constitucional e a Restauração da Legitimidade. Porto Alegre: Fabris, 1985. P. 13-14. 360 Explica de forma límpida o Professor João Maurício Adeodato: “Com o monopólio da produção de normas jurídicas, a ascensão da lei e a positivação do direito, a legitimidade faz-se legitimação, o que significa transferir a questão de fundamento para uma ação legitimadora por parte do Estado e do ordenamento em geral; a legitimidade deixa de reportar-se a conteúdos externos e o poder jurídico-político, embora de forma mais ou menos velada por uma retórica tradicional e aparentemente conteudista, pode ter pretensões a uma auto-legitimação. Esse esvaziamento de conteúdo oferece o perigo de propiciar a constituição da estrutura-cebola, na analogia de Hannah Arendt, a estrutura característica do totalitarismo”. ADEODATO, João Maurício. O Problema da Legitimidade. No Rastro do Pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. P. 55. 361 CASSESE, Sabino. Lo Spazio Giuridico Globale. Roma: Laterza. 2003. P.13.

270

formulação de diretrizes que condicionem o seu resultado. Ela é um tipo de legitimação

auto-referente, em que o consentimento é obtido pelo cumprimento das etapas previstas

pelas normas jurídicas. Assim, Luhmann precisa o seu conceito de legitimidade: “Pode

definir-se a legitimidade como uma disposição generalizada para aceitar decisões de

conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância”.362

Exemplo de legitimação auto-referente é a obtida por intermédio da justificação

racional, centrada em estruturas argumentativas, em que cada decisão judicial deve ser

motivada em argumentos contidos nos mandamentos normativos e essa referência aos

comandos legais é o que garante a legitimação das referidas decisões. A argumentação

jurídica não necessita estar baseada em fatos empíricos, devendo-se ater a uma seqüência

lógica, com base no texto da lei.363

Noberto Bobbio, um dos autores do Dicionário de Política, define o conceito de

Legitimidade: “Num primeiro enfoque aproximado, podemos definir legitimidade como

sendo um atributo do Estado, que consiste na presença, em uma parcela significativa da

população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de

recorrer ao uso da força, a não ser em casos esporádicos”.364

Ronald Dworkin defende que o substrato de legitimidade que melhor garante o

cumprimento das disposições contidas no ordenamento jurídico se baseia na “comunidade

moral de princípios”, que transcendem ao conteúdo das normas jurídicas para encontrar

362LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 30. 363 “No mundo do Direito, e em geral da prática jurídica, uma decisão pode revelar-se útil ou satisfatória e ser assim aceita ou justificada, em qualquer senso destas palavras, para prescindir da verdade de sua justificativa e também prescindir de ser qualificada como verdadeira ou falsa. Conseqüentemente, os critérios de coerência e de aceitabilidade justificada, direcionam-se não apenas ao critério da verdade – mas antes prevalentemente – sob outros valores. É o caso de todas as atividades de governo – administrativa, econômica e política – cujos paradigmas de justificação racional e de legitimação política são indubitavelmente constituídos do simples critério da aceitabilidade justificada em relação ao sucesso prático da satisfação do interesse público ou no sentido do consenso majoritário, restando de forma secundária, ou absolutamente não pertinente, o requisito dos pressupostos da decisão”. FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Razione. Teoria Del Garantismo Penale. 7 ed., Laterza, 2002. P. 42-43. 364 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 11. ed. V. II, Brasília: Universidade de Brasília, 1998. P. 675.

271

amparo na seara moral. A justificação da coerção dos órgãos estatais é feita com base nas

obrigações morais que foram tomadas pelos próprios cidadãos.365

O conceito da soberania popular expõe que a legitimidade do poder provém do povo.

Todavia, as formas como o povo pode expor a sua vontade e o seu próprio conceito não se

acham pacificados de forma unívoca. Häberle afirma que o conceito de povo não é apenas

um critério quantitativo, que no caso brasileiro se manifesta de dois em dois anos, com a

finalidade de referendar o regime democrático. Povo da mesma forma é um elemento

pluralista, podendo ser tomado como partido político, opinião científica, grupo de interesse,

cidadão etc. Termina seu pensamento afirmando que “a democracia do cidadão é mais

realista do que a democracia popular”.366

Canotilho afirma que apenas através do princípio da soberania popular, em que todo

o poder vem do povo, garantindo igual participação na formação da vontade popular, é

possível formular uma resposta plausível à pergunta de onde vem o poder, no que assegura

“a legitimidade de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder

político”.367

Zippelius considera que o conceito de legitimidade não coincide simplesmente com a

vontade da maioria. Há necessidade de se instituir mecanismos institucionais e processuais

para construir um resultado, o mais condizente possível com a formação de um forte

consenso popular, em um processo dialógico com a opinião pública.368

Muller se posiciona contra a tese defendida por alguns juristas de que a legitimidade

representa sempre uma correção do Direito, oriunda de vetores suprapositivos, sofrendo as

injunções de uma idéia de Direito, ocasionando uma diferenciação com relação ao princípio

da legalidade – adstrito a parâmetros estritamente jurídicos. O jurista alemão formula uma

365 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. P. 231-232. 366 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendas. Porto Alegre: FABRIS, 1997. P. 37-38. 367 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6 ed., Coimbra: Almedina, 2002. P. 100. 368 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3 ed., Trad. Karin Praefke-Aires Coutinho. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997. P. 153.

272

teoria em que o conceito de legitimidade não se aparta do conceito de legalidade, unindo-se

em uma simbiose perfeita: “Na definição mais avançada, “legitimidade” significa o seguinte:

a ação formalmente legal de modo adicional (a) é compatível com as regulamentações

centrais do direito positivo (os textos das normas) da Constituição (forma de Estado,

objetivos do Estado, garantias dos direitos fundamentais, sistema de Estado de Direito); e (b)

pode-se continuar discutindo abertamente e sem restrições por parte do Estado sobre a

questão de sua legitimidade ou ilegitimidade, mesmo se a decisão formal (ato

administrativo, texto legal, sentença judicial – no caso em epígrafe: alteração da

Constituição) já tiver sido tomada”.369

Marcello Caetano distingue a legitimidade quanto ao título e quanto ao exercício. A

primeira se configura quando o detentor do poder político é investido no cargo de acordo

com as normas anteriormente estabelecidas, para disciplinar o provimento na função, sem

rupturas com o ordenamento jurídico. A segunda se concretiza quando o governante

desenvolve suas atividades consonante com os fins para o qual a função pública foi

instituída. Essas duas formas de legitimidade são distintas, podendo em muitos casos não

coincidir.370

A importância acerca do conceito de jurisdição, configura-se em construir um

referencial para densificar a legitimidade da jurisdição constitucional. Em uma sociedade em

que as decisões judiciais assumem cada vez maior relevância, a justificação da tutela dos

mandamentos constitucionais é um requisito imprescindível para a garantia da força

normativa da Constituição e para a construção de uma democracia realmente participativa.

369 MÚLLER, Friedrich. “Legitimidade como Conflito Concreto do Direito Positivo. Uma Comparação Atual Entre as Constituições Alemã e Brasileira”. In: Revista da PGE – Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. V. 25, n. 56, Porto Alegre: PGE, 2002. P. 13. 370 CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional. Tomo I. Coimbra: Almedina, 1996. P. 253.

273

11.2) A Legitimação pela Soberania Popular

Soberania é a característica intrínseca dos Estados que lhes permite tomarem suas

próprias decisões políticas, escolhendo livremente os seus destinos. È uma conseqüência

inexorável da autodeterminação dos povos. A soberania alicerça a estruturação do governo

que pode tomar as suas decisões para resguardar os interesses coletivos.371

Segundo Hermann Heller, sempre que se fala em soberania do Estado, vincula-se a este

conceito, de alguma forma, a idéia de soberania popular.372 Esta assertiva é válida para os

regimes democráticos, mas não pode ser transladada para todas as instituições políticas. Ao

longo da história muitas foram as bases de fundamentação para a soberania do Estado, a

exemplo da fundamentação teocrática, da violência, da razão etc.

O consenso em torno da soberania popular advém do fortalecimento do regime

democrático, que se constitue na forma de organização política mais avançada que os homens

conhecem. Além de permitir uma maior estabilidade dos órgãos governamentais. Difícil é o

processo de sua concretização, mas uma vez realizado, sua estabilidade é mais sólida que as

demais porque foram os próprios destinatários que criaram as normas que irão reger o

funcionamento da sociedade.

A soberania popular serviu de base para a criação do conceito de soberania parlamentar,

sustentado na soberania da lei. Entende o professor Michele Carducci que essa concepção é

uma doutrina oitocentista, que serve para fortalecer a independência do Poder Legislativo e

corroborá-lo, como órgão exclusivo de produção legislativa.373 Ressalte-se, todavia, que a

teoria da soberania parlamentar configura-se como uma defluência da teoria popular,

dependendo desta como fonte de validade.

371 STRECK, Luiz Lenio & BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2000. P.143-145. 372 HELLER, Hermann. La Soberanía. Contribución a la Teoría del Derecho Estatal y del Derecho Internacional. 2 ed., Trad. Mario de la Cueva. México: Fondo de Cultura Económica, 1995. P. 164. 373 CARDUCCI, Michele. Controllo Parlamentare e Teorie Costituzionali. Padova: Cedam, 1996, P . 14-15.

274

A idéia de soberania popular, defendida pelo liberalismo, é centrada nos cidadãos de

uma forma particular, somente podendo ser atingida quando eles tiverem autodeterminação.

Portanto, o liberalismo sustenta que a soberania popular não pode ser tomada em uma

dimensão coletiva, mas formada por direitos morais individuais, que decidirão sobre suas

condutas políticas. Sob essa concepção, a democracia consiste na possibilidade de obtenção

do consenso individual com base em obrigações políticas.374

De acordo com David Beethan, a concepção de soberania popular tem duas implicações

para a legitimação das Constituições modernas: primeiro, que os textos constitucionais

devem estruturar o processo de representação popular, mesmo que seja em monarquias

hereditárias, teocráticas ou baseadas em doutrinas seculares; segundo, que os textos

constitucionais tenham sido de alguma forma aprovados, seja através de um plebiscito, do

Poder Constituinte, mobilização de massas etc.375

Peter Häberle também é um defensor da soberania popular, mas assevera que a

legitimidade da jurisdição constitucional é haurida de modo específico, realizando-se

mediante um processo público de mediação, através da realização dos direitos fundamentais.

Nesse processo, exerce função importante a pressão da opinião pública, que realiza a

integração da realidade no processo de integração, possibilitando um espaço público e

pluralista de debates.

Eis o seu posicionamento: “No Estado constitucional-democrático coloca-se, uma

vez mais, a questão da legitimação sob uma perspectiva democrática (da Teoria da

Democracia). A Ciência do Direito Constitucional, as Ciências da realidade, os cidadãos e os

grupos em geral não dispõem de uma legitimação democrática para a interpretação da

Constituição em sentido estrito. Todavia, a democracia não se desenvolve apenas no

contexto de delegação de responsabilidade formal do Povo para os órgãos estatais

(legitimação mediante eleições), até o último intérprete formalmente competente, a Corte

Constitucional. Numa sociedade aberta, ela se desenvolve também por meio de formas

refinadas de mediação do processo público e pluralista da política e da práxis cotidiana,

374 BERAN, Harry. The Consent Theory of Political Obligation. New York: Library of Congress, 1987. P. 38. 375BEETHAN, David. The Legitimation of the Power. .Hampshire: Macmillan. 1991.P. 132.

275

especialmente mediante à realização dos Direitos Fundamentais

(Grundrechtsverwirklichung), tema muitas vezes referido sob a epígrafe do “aspecto

democrático” dos Direitos Fundamentais. Democracia desenvolve-se mediante a

controvérsia sobre alternativas, sobre possibilidades e sobre necessidades da realidade e

também o “concerto” científico sobre questões constitucionais, nas quais não pode haver

interrupção e nas quais não existe e nem deve existir dirigente”.376

O conceito pós-moderno de soberania popular é uma decorrência da quinta dimensão

dos direitos fundamentais, com a concepção de participação ativa dos cidadãos nas decisões

políticas, mediante institutos como o orçamento participativo, recall, assembléias populares,

plebiscitos etc. Ela não se resume ao voto, sendo este apenas um dos resultados da maior

atuação da população nos negócios políticos da sociedade. Por sua vez, necessita de vários

requisitos para a sua concretização, como condições mínimas de bem-estar social, saúde,

educação, cultura, democratização dos meios de comunicação etc.

Contudo, a crise do Estado Democrático Social de Direito também afetou o regime

democrático, lançando sérias dúvidas quanto a sua eficácia. Atualmente, uma das principais

causas que serve para explicar o descrédito por que passa a teoria da soberania popular, pode

ser creditada ao multiculturalismo social que tende a aumentar nas sociedades

contemporâneas, principalmente nas sociedades dos países desenvolvidos. Com o avanço

geométrico da infra-estrutura econômica, a sociedade civil divide-se em vários segmentos

sociais, com interesses próprios, valores específicos e necessidades peculiares. O que faz

com que o Estado, da mesma forma tenha que atender a uma imensa gama de necessidades e

interesses, muitos dos quais completamente diferentes.

Por causa dessa segmentação social fica muito difícil legitimar as políticas públicas

exclusivamente através do dogma da soberania popular, já que conseguir uma grande adesão

popular para determinada política pública se mostra muito difícil.

376 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendas. Porto Alegre: FABRIS, 1997, P. 36-37.

276

Assim, diante da crise que grassa na teoria da soberania popular e da crescente

complexidade das decisões da jurisdição constitucional, a construção de uma teoria que

legitime as decisões da tutela da Carta Magna não pode se alicerçar apenas na vontade

popular, não obstante ter sua significativa participação, no processo de legitimação quando

democratiza a escolha dos membros que compõem o tribunal constitucional, por parte de

órgãos eleitos diretamente pelo povo. A essência da legitimação da jurisdição constitucional

passa a ser feita com base na substância dos direitos fundamentais.

A legitimação da jurisdição constitucional com arrimo na soberania popular é

importante, contudo, não pode ser o sustentáculo único de justificação da tutela das normas

constitucionais. Foi a soberania popular, ainda que de forma distorcida, que fundamentou os

crimes do regime nazista e fascista. A magnitude da legitimação da jurisdição constitucional

alicerça-se nos direitos fundamentais, que juntamente com os demais elementos propostos,

justificarão uma maior atuação da jurisdição constitucional.

11.3) A Legitimação da Jurisdição Constitucional com Base no Texto da Constituição

A legitimação da jurisdição constitucional, com base na interpretação literal da

Constituição, foi predominante na “Rehnquist Court”. Ela é realizada por intermédio de uma

interpretação textual da Carta Magna. Como o objetivo deste trabalho não é enfocar métodos

hermenêuticos, a análise se restringirá à sua função de legitimação. Como adeptos da

fundamentação literal da Constituição, podemos citar Marshall, Hugo Black, Rehnquist,

Scalia, dentre outros.377

A fundamentação textualista do Texto Constitucional não é uma teoria uniforme,

mas um gênero a partir do qual se bifurcam várias espécies. Existem desde aquelas mais

extremadas que se fiam exclusivamente na análise literal da letra da Constituição como

377 Quanto ao posicionamento do Chief of Justice Marshall vários autores sustentam que ele é um “intentionalism” ou ate mesmo um “extratextualism”.

277

aquelas mais moderadas que advogam que os juízes não devem esperar que todos os

princípios constitucionais estejam contidos na Carta Magna, letra por letra. Então, de forma

superficial os textualistas podem ser divididos em dois principais ramos: os primeiros,

admitem que apenas as normas contidas no texto da Constituição é que podem servir de

fundamento para a legitimação da jurisdição constitucional, sem a utilização de nenhum

subsídio que esteja fora dos “four corners”; e os segundos, que admitem como insuficiente

apenas o texto da constituição pois falta-lhe apresentar densidade suficiente para legitimar as

normas constitucionais, sendo necessária à busca de elementos conexos com o seu texto,

mas que guardem pertinência com o “four corners”, do texto constitucional.

O textualismo ou interpretação literal (strict constructionism) postula que a base de

legitimação da jurisdição constitucional é o texto da Constituição, afirmando que os juízes

devem realizar a concretização normativa apenas das normas que se encontrem contidas na

Constituição de forma explícita ou, no mínimo, que possam defluir do seu texto, de forma

implícita. Como a Carta Magna é a norma constitucional que detém maior legitimidade no

ordenamento jurídico, a legitimidade da jurisdição constitucional reside no texto das normas

constitucionais, não podendo dela se afastar.378

John Hart Ely planteia que a legitimidade da jurisdição constitucional, baseada no

sentido literal da Constituição, tem a finalidade de conciliar o judicial review com a teoria

democrática de governo. Todavia, para o mencionado professor, o órgão que exerce a

jurisdição constitucional age todo o tempo como se fosse um lawmaking, sem a legitimidade

auferida pela soberania popular e a legitimidade auferida pelo sentido literal da Constituição

não soluciona o problema. Ely assevera que essa teoria serve para mascarar a atuação do

378 “Perante este quadro, os partidários de um método de “interpretação estrita” (strict constructionism) afirmam que os juízes só devem aplicar as normas que se encontrem fixadas ou claramente implícitas no texto escrito. Os juízes que oferecem uma interpretação que não pode ser descoberta nos “quatro cantos do documento” são considerados como “activistas” ou “não interpretatitivistas”. O respeito pelo texto e pela intenção dos constituintes funcionaria assim como “substituto” de uma responsabilidade política inexistente, fixando o “limite adequado” entre o “poder da maioria” e os “direitos da minoria”. Enquanto respeitarem esse limite os juízes “estariam a agir de forma legitimada”. QUEIROZ, Cristina. Interpretação Constitucional e Poder Judicial. Sobre a Epistemologia da Construção Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. P. 203-204.

278

órgão que exerce a jurisdição constitucional, alegando que suas decisões seguem o texto da

constituição quando, na verdade, obedece apenas à vontade de seus membros.379

A legitimação da jurisdição constitucional com base no texto constitucional significa

que os juízes têm a função de meramente aplicar as normas que foram formadas pela

vontade popular, em virtude de que os cidadãos são o elemento imprescindível da soberania

popular. Como os juizes não detêm o seu cargo em virtude do consentimento popular e a

soberania popular é o elemento primordial da democracia, a única forma de se evitar um

atrito contra a essência do sistema político é que as decisões da jurisdição constitucional

sejam de acordo com a Constituição.

Dentre aqueles autores que se destacam na defesa da fundamentação da jurisdição

constitucional, com base no texto da constituição, destaca-se a figura de Antonin Scalia, juiz

republicano da Suprema Corte norte-americana, indicado por Ronald Reagan, em 1986. Para

ele, um dos grandes riscos presentes na interpretação extensiva da jurisdição constitucional é

que os juízes comecem a interpretar a Constituição tomando como parâmetro critérios

externos ao seu texto, como por exemplo à vontade dos legisladores, para justificar o seu

poder discricionário. Com esse estratagema pode-se transformar o rule of law em rule of

men.

Scalia sustenta que o Poder Judiciário não pode usar a jurisdição constitucional com

uma finalidade legislativa. A interpretação da jurisdição constitucional deve ser objetiva,

com alicerce no texto da lei e não em elementos subjetivos. Buscar a intenção dos

legisladores na realização da norma é assumir um papel ilegítimo de co-legislador, tendo em

vista o poder discricionário, que é facultado aos juízes. Propõe que o Poder Judiciário

abandone o seu papel de lawmaker e comece a interpretar a Carta Magna com base no

Constitution’s original meaning. O judiciário não deveria cair na tentação do judicial

constructionism, mas deveria aplicar a Constituição às novas circunstâncias.

379 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. P. 4.

279

A sua teoria é denominada de textualismo porque é calcada no sentido original da lei,

com uma forte relevância no seu texto objetivo, cujos dispositivos normativos “expressam

aquilo que está no conteúdo legal e não o que os intérpretes julgam que seja o seu

conteúdo”.380 O alcance das normas é limitado pelo seu sentido objetivo e não pode a

jurisdição constitucional tentar ampliar este alcance, sem o amparo no dispositivo legal.

Afirma que a interpretação textual da Constituição é factível, a despeito do seu caráter

normativo genérico, sem arrefecer a sua eficácia concretiva. Parte do princípio de que os

juízes, e de forma especial a jurisdição constitucional, não possuem autoridade, pois falta-

lhes legitimidade popular para realizarem uma reelaboração legislativa ou para produzirem

uma interpretação praeter legem.

Alerta Antonin Scalia que o textualismo que ele defende não deve ser confundido

com estreito “constructionist”, que é uma forma degradada de textualismo e contribui para

o seu descrédito. As decisões judiciais não devem ser construídas considerando as estruturas

normativas de forma estreita, nem muito menos construídas de forma leniente, mas

prolatadas de forma racional, em sincronia com o sentido da lei. Um bom hermeneuta

textualista não é um literalista, nem tão pouco um niilista, seu trabalho deve ser feito

tomando o texto escrito da lei como limite para o alcance da interpretação, não podendo

nenhuma valoração normativa ser feita além do seu sentido literal.381

Como exemplo de interpretações além do alcance legal, ele recorre à quinta e à

décima quarta emendas à Constituição norte-americana que tratam do due process of law,

em que os juízes, ao invés de aterem-se ao mandamento literal da lei, que é o de assegurar o

devido processo legal, terminam por amparar direitos de cunho material que não foram

previstos expressamente pela Lei Maior.

Nesse diapasão a legitimação da jurisdição constitucional não pode ser realizada por

intermédio de critérios externos aos contidos no texto da lei. Posiciona-se contrário à

qualquer injunção de princípios ético-morais na concretização normativa, mesmo se o seu

380 De forma pejorativa os seus detratores denominam a interpretação textual de : wooden, unimaginative, pedestrian. 381 SCALIA, Antonin Scalia. A Matter of Interpretation.Federal Courts and The Law. New Jersey: Princeton University Press, 1997. P. 23-24.

280

objetivo for densificar a legitimidade do órgão que exerce a jurisdição constitucional.

Responde às acusações de que o seu posicionamento é uma postura formalista, afirmando

que as estruturas legais são formalistas e que são esses procedimentos que garantem um

governo de leis e não de homens.

Ele discorda particularmente de duas teorias de legitimação da jurisdição

constitucional: arrimada em uma interpretação subjetiva, em que se busca o sentido e

alcance da lei segundo a intenção dos seus criadores e o living constitution ou involving

constitution, que tem o objetivo de modernizar os dispositivos constitucionais consoante a

evolução dos fatos sociais.

A legitimação da jurisdição constitucional realizada através de uma interpretação das

normas constitucionais, de acordo com a intenção do legislador, não passa de uma ficção,

sendo de melhor alvitre fixar atenção ao texto da lei. Esse método de interpretação jurídica é

um simulacro, pois na realidade o que se propõe é impor a vontade dos juízes, colocando o

conteúdo legal de lado, no que é secundado por Oppenheim, para quem as interpretações

judiciais não passam de uma máscara para que os juízes possam exercer uma função de

elaboração jurídica.382 A legitimação da jurisdição constitucional, com base no textualismo,

se diferencia da legitimação com base no originalismo, que possibilita um plus ao teor

literal da Constituição, no sentido de se buscar a vontade dos legisladores constituintes.

A legitimação, procurando esclarecer a mens legislatoris,é uma escusa para

possibilitar a construção de decisões consonantes os interesses dos seus intérpretes. Esse tipo

de análise hermenêutica é incompatível com as normas do regime democrático porque deixa

ao arbítrio do lawgiver determinar o conteúdo das normas, função para qual não foi

revestido de legitimidade popular para exercer. Ela não significa uma racionalização das

normas constitucionais, mas o abandono do parâmetro legal. A legitimação da jurisdição

constitucional, de acordo com a interpretação subjetiva do legislador, trata na realidade de

uma usurpação jurídica por parte do Poder Judiciário.

382 OPPENHEIM, Felix E. “The Judge as Legislator”. In: Cognition and Interpretation of Law. Torino: Giappichelli, 1995. P.292.

281

Antonin Scalia considera o living constitution ou involving constitution um retorno

aos padrões vigentes no common law, ocasionando, como conseqüência, um arrefecimento

dos regimes democráticos, cujo alicerce é a soberania popular.383 Essa técnica consiste em

afirmar que a Constituição deve ser legitimada de acordo com a evolução e as modificações

ocorridas na sociedade, adequando-se com a evolução dos interesses sociais. A

argumentação empregada para a utilização do living constitution configura-se no seu

objetivo de propiciar flexibilidade ao texto constitucional, evitando o seu perecimento e

ensejando o seu desenvolvimento pari passu com a sociedade. Nesse contexto, a finalidade

da jurisdição constitucional é adequar a Carta Magna ao living constitution.

Essa concepção, que exige uma adaptação do sentido textual da Constituição para

adaptá-la às premências da sociedade, é uma influência do sistema do common law, que

assevera que um texto constitucional escrito não pode resistir ao desenvolvimento social.

Todavia, expõe Scalia, a densidade de legitimação obtida pela Lei Maior impõe às gerações

futuras o respeito pelos princípios estabelecidos. Ele afirma que o common law, atualmente,

não é um direito consuetudinário ou um direito desenvolvido mediante as tradições do povo,

mas um Direito desenvolvido pelas decisões judiciais.384

A argumentação de que a teoria textualista de fundamentação da jurisdição

constitucional também, em muitos casos, não tem uma única resposta para muitas questões é

verdadeira, no que se parece com a indeterminação do living constitution. A diferença reside

no fato de que os textualistas sabem o seu ponto de partida – o texto da Constituição – e esta

deve ser a linha mestra da sua análise. As dificuldades advindas da interpretação do texto da

Constituição são infinitamente menores que as dificuldades ocasionadas em se tentar

identificar o living constitution.

383 SCALIA, Antonin Scalia. A Matter of Interpretation.Federal Courts and The Law. New Jersey: Princeton University Press, 1997. P. 39.

384 Para Scalia o common law não é verdadeiramente um sistema jurídico baseado nos costumes, mas naquilo que os juízes entendem como tal; deixando de ser um Direito sustentado no costume da sociedade para ser alicerçado nas decisões dos juízes. O Common Law poderia ser um sistema baseado no direito consuetudinário na sua origem, deixando de apresentar essa característica há muito tempo, a não ser no sentido de que a doutrina do stare decisis considera as decisões judiciais anteriores como “custom”. Afirma que os tribunais no sistema do Common Law têm duas funções: a primeira de aplicar o direito aos fatos concretos, no sistema que se chama subsunção, a segunda, mais importante, de realizar a produção normativa.

282

A crítica que é endereçada à teoria do textualismo é que ela realiza o processo de

interpretação jurídica mediante rígidos cânones e que muitos desses standards não passam

de fraudes porque para cada um deles pode ser encontrado outro cânone no seu sentido

oposto. No que Scalia contra-argumenta afirmando que a maioria desses cânones é

proveniente da literatura latina, exprimindo uma racionalidade que é decorrente da

literalidade do texto legal. Os cânones não podem ser considerados de forma absoluta, pois

incidem em uma determinada realidade específica; não obstante, não nega a existência de

cânones que possam ser usados de forma dupla, no que defende que esses não sejam

utilizados para a construção de uma decisão da jurisdição constitucional. Os standards de per

si não podem ser considerados como fraudes, a menos que quem executa a sentença tenha

esse desiderato.385

Defende que as decisões da jurisdição constitucional não têm o poder de adaptar a

vontade dos legisladores constituintes à realidade presente do texto constitucional porque

isto transformaria a Lei Maior em um texto flexível, passível de modificações. As decisões

judiciais, com arrimo na vontade dos legisladores constituinte, são uma operação para

encobrir o poder discricionário na aplicação da jurisdição constitucional. A transformação da

Constituição em um living constitution contribui para aumentar a indeterminação do texto

legal, cujos membros dos Tribunais constitucionais, que não foram eleitos e, portanto

carecem de legitimação popular para tomarem decisões políticas, decidiriam livremente

sobre o sentido atual da Lei Maior, em detrimento dos legisladores democráticos que foram

eleitos para exercerem tal função.

A legitimação da jurisdição constitucional, sustentada no literalismo do texto

constitucional, de forma, alguma pode ser considerada como uma concepção que torna a

Constituição um texto imutável; ela pode ser modificada, desde que haja uma

potencialização da soberania popular que a legitime. O fenômeno da

transconstitucionalização pode ser exercido sempre que a sociedade queira desenhar uma

nova estrutura jurídica. Não havendo possibilidades sócio-político-econômica para

385 SCALIA, Antonin Scalia. A Matter of Interpretation.Federal Courts and The Law. New Jersey: Princeton University Press, 1997. P. 25-27.

283

estabelecer um Poder Constituinte, os postulados estabelecidos na Carta Magna devem ser

obedecidos.

A interpretação textualista da Constituição provoca uma sacralização da Carta

Magna, que passa a ser o fundamento de legitimidade da jurisdição constitucional, como se a

aplicação da subsunção normativa fosse uma operação exata, o que não ajuda a resolver o

“countermajoritarian problem”, principalmente diante da extensão hodierna das atividades

da jurisdição constitucional.

12.) Influências Sobre a Legitimação da Jurisdição

Constitucional

O objetivo do presente tópico destoa da finalidade de tecer um estudo de direito

comparado, analisando as várias matrizes de influências que incidem sobre a jurisdição

constitucional. O estudo se resumirá apenas à influência da Suprema Corte norte-americana

e do Tribunal Constitucional alemão devido as suas importantes contribuições para a

jurisdição constitucional e do grau de legitimidade que cercam as suas decisões.

Não resta a menor dúvida de que são exemplos de influência distintos, pois o

primeiro pertence ao Common Law e o segundo ao Civil Law, o que redunda em

características diversas no seu funcionamento. Todavia são os dois exemplos mais relevantes

no exercício da jurisdição constitucional devido à extensão de suas decisões e à importância

que cada um ocupa no ordenamento jurídico de seu respectivo país.

São os dois casos que melhor retratam uma sólida legitimação da jurisdição

constitucional. Eles foram escolhidos porque contribuíram de forma direta com os elementos

que estruturarão a densificação da legitimidade da tutela constitucional brasileira. Em

comum têm como características o respeito pelo regime democrático, a primazia na

284

concretização dos direitos fundamentais e a importância das decisões da jurisdição

constitucional na vida institucional dos seus países.

12.1) A Influência da Suprema Corte norte-americana sobre a Jurisdição

Constitucional

Os Estados Unidos, por ter sido o país em que o controle jurídico de

constitucionalidade surgiu no começo do século XIX, de forma inovadora, apresenta uma

longa tradição de respeito e prestigio à Suprema Corte Constitucional.386 A sua atuação é

amplíssima, muitos dos direitos fundamentais existentes na sociedade norte-americana

foram construídos por decisões da Suprema Corte, como o aborto, o fim da discriminação

racial, a regulamentação de importantes setores da economia, etc.387 O que levou o Chief

Justice Hughes a afirmar que os juízes da suprema corte exerciam a função de “weavers of

the fabric of constitucional law”.

Já na elaboração doutrinária, contida no livro “The Federalists”, um dos textos que

mais marcou as discussões políticas que antecederam a Convenção que elaborou a

Constituição de 1787, a Suprema Corte foi delineada como o principal instrumento de

386 “Não é a estrutura da Suprema Corte norte-americana que a faz notável, mas a sua atuação. Cortes costumam ser conservadoras, com uma determinada concepção de direitos alicerçada nos seus precedentes e, assim, resistem às inovações de forma firme. Nos Estados Unidos da América do Norte, acontece o contrário, a Suprema Corte é a maior incentivadora da adequação dos órgãos públicos aos interesses da população”. CALLEO, David P. The American Political Sistem. London: The bodley Head, 1968. P. 94. 387 “A Corte norte-americana opera não apenas como última instância do Poder Judiciário que exerce em todas as suas instâncias o judicial review of legislation – funcionando, assim, em um regime de jurisdição constitucional difuso – mas sobretudo (e isto é um pouco esquecido), o judicial review nasce em um sistema jurídico do Common Law, um sistema em que todo o poder e que toda a relevância da interpretação e atuação criativa se encontra no judge-made law. As experiências mais recentes (naturalmente a experiência mais referida é aquela da Corte de Warren) demonstram plenamente uma ampla e incisiva capacidade de intervenção, fundada na vinculação com os outros órgãos da jurisdição federal e diretamente como os órgãos da organização estatal. Este pode é derivado da tradição do Common Law, que permitiu que a Corte de Warren desenvolvesse, através de decisões judiciais, um papel de profundas reformas sociais”. ELIA, Leopoldo. “La Corte Nel Quadro Dei Potere Constituzionale”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 518-19.

285

garantia da supremacia das normas constitucionais. A maioria das decisões do período

intitulado de Marshall Court foram nesse sentido. No exercício desse papel, o órgão de

cúpula do Judiciário norte-americano tornou-se referência para muitas das controvérsias

políticas ocorridas, principalmente, com a finalidade de demarcar os limites de atuação do

governo federal e dos estados componentes.

Segundo Martin Shapiro, a forma como é feita a seleção dos juízes norte-americanos

é um dos motivos para a relevância de atuação da Suprema Corte, ocorrendo esse fato não

em virtude da natureza das leis que estruturam essa instituição, mas em razão dos critérios

de escolha dos seus juízes. Eles são selecionados entre advogados de meia-idade, que

possuem uma larga visão política, com uma longa atuação na prática da advocacia privada, o

que lhes permitem prolatar decisões judiciais com um grau de profundidade maior que

aqueles ostentados pelos juízes europeus, pois possuem um alto grau de conhecimento e

uma inclinação para atuar em negócios públicos. Os escolhidos são advogados de sucesso,

destacando-se entre os seus pares, estando diretamente envolvidos em atividades privadas e

que, portanto, possuem as condições para atuar em assuntos governamentais.388

Assim, os membros da Suprema Corte gozam de grande status social e alguns deles,

como Marshall e Earl Warren, chegaram a ter os seus nomes esculpidos na galeria dos

grandes estadistas norte-americanos. Em conseqüência desse prestígio, surgiu uma vasta

bibliografia a respeito dos seus juízes, o que ilustra bem a sua relevância.

A discussão atual sobre a questão da legitimação das decisões da Suprema Corte

norte-americana se desenvolve mais sobre uma seara política do que propriamente sobre

uma seara jurídica, o que de forma alguma retira a importância do seu estudo. Nesse

contexto, ocupa grande relevo a idéia do sufrágio universal como fonte de legitimação,

gerando a partir daí uma doutrina procedimental da justificação da jurisdição constitucional,

com o objetivo de proteger a formação da vontade democrática da sociedade.

388 SHAPIRO, Martin. “ The United States. ” In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 44-45.

286

A principal influência para a elaboração da Constituição dos Estados Unidos de 1787

foi o republicanism. O republicanismo é uma teoria política que se alicerça na autonomia da

vontade dos cidadãos, fazendo parte de uma tradição liberal, devendo ser a proteção desse

direito o objetivo premente dos entes estatais. Não se pode considerar que o republicanism

possua apenas uma única vertente, ao longo da história política dos EUA várias foram as

derivações dessa corrente política que entraram em conflito.

A concepção republicana vigorante no período da fundação dos Estados Unidos não

considerava como essência do Direito o seu papel de previsibilidade, “rule of law”, para

essa concepção, a sua principal finalidade era garantir a autodeterminação dos cidadãos.

Obviamente que o governo deveria ser regido por lei, mas sem mitigar a autodeterminação.

A justificativa para a consolidação dessa essência tem raízes históricas, como a forma que

ocorreu a colonização, o longo histórico de opressão da Coroa inglesa aos colonos norte-

americanos e a posterior guerra da independência.

Partindo do pressuposto de que a autodeterminação é o alicerce do ordenamento

jurídico, as disposições normativas devem propiciar o maior espaço possível de liberdade

aos cidadãos, que pautam suas relações sociais pelos princípios decorrentes do Direito

Consuetudinário, com a supervisão do Poder Judiciário. A influência do common law é

preponderante no ordenamento jurídico norte-americano e, dentro desse prisma, a produção

de leis por parte do Poder Legislativo era considerada como um cerceamento na

autodeterminação dos cidadãos. Nessa perspectiva, a Constituição tinha como função a

garantia de direitos e a limitação do poder político.

Os “foundations fathers” construíram a sua teoria de Constituição com base no

princípio da soberania popular. A concepção republicana apresenta duas concepções

diversas de soberania popular. A primeira concepção, chamada de populista, considera a

participação política do povo fundamental, devendo se manifestar constantemente para

legitimar os seus representantes. Parte da premissa que sempre a população, considerada de

uma forma homogênea, sabe escolher os melhores caminhos para o seu destino. Nutre uma

certa aversão a qualquer forma de hierarquia ou burocracia. A segunda concepção, chamada

de clássica, considera como elemento essencial a confiança que existe entre o povo e os seus

287

representantes, e dessa forma, a população não deve ser convocada sempre para tomar todas

as decisões políticas, podendo a maior parte delas serem tomadas pelos representantes

populares eleitos. Parte da premissa que o povo nem sempre sabe escolher os seus destinos,

inspirado na teoria platônica, podendo ser passível de corrupção e que nem sempre ele sabe

escolher o melhor caminho para a coletividade. O processo político representa um meio de

filtragem dos melhores quadros para exercerem a atividade política.389

A concepção republicana populista, adotada dentre outros por Thomas Jefferson,

defende que o povo, como detentor da soberania popular, deve periodicamente se manifestar

sobre as principais decisões políticas, diferenciando a autonomia inerente à sociedade civil

daquela inerente aos entes estatais, para impedir a concentração de poder. Nesse contexto,

Jefferson argumenta que a Bill of Rights deve assegurar a autonomia dos estados federados e

firmar que a Corte Suprema deve funcionar no limite da aplicação do texto da lei. Explica a

concepção republicana populista que planteia uma atuação restrita da jurisdição

constitucional a professora Brunella Casalini: “Se o Poder Judiciário não puder ser reduzido

a uma mera máquina, como um órgão técnico com a função de aplicar o texto da lei, o poder

dos juízes, poderá, de fato, segundo Jefferson, desviar-se da lógica democrática, tornando-se

um poder impróprio dentro de um governo republicano”.390

A concepção republicana clássica, defendida por John Adams, James Madison dentre

outros, assevera que o povo pode ser conduzido pela paixão irracional, como aquela que

legitimou o governo de Hitler ou Mussolini, guiado por uma classe política demagógica.

Nessa concepção, a atuação da jurisdição constitucional pode divergir da vontade da maioria

da população com a missão de realizar os valores estabelecidos nos dispositivos

constitucionais, desenvolvendo suas atividades de modo mais intenso para cumprir o

conteúdo constitucional.391 Explica a professora Brunella: “A república é sim o governo do

389 CASALINI, Brunella. . Sovranità Populare, Governo della Legge e Governo dei Giudice negli Stati Uniti d’America. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 229. 390 CASALINI, Brunella. . Sovranità Populare, Governo della Legge e Governo dei Giudice negli Stati Uniti d’America. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 230. 391 Explica Frederico Mioni a concepção de Madison acerca do republicanismo: “Um garantismo para o indivíduo, mas também para a sociedade, a confiança no autogoverno e em uma concepção harmônica de convivência, a tolerância e a autonomia recíproca como única análise entre o indivíduo e a comunidade. A base deste modelo, que representa também um tratamento diferencial e negativo (como a escravidão), era uma gentry iluminada, que via nas funções públicas um meio para o reconhecimento social, mas também para um

288

povo, mas o povo não tem existência se não em virtude de sua conformidade com a lei

fundamental e com os princípios de justiça – povo e não mera “moltitudine” – existe

exclusivamente quando vontade e razão convergem.. Apenas nesse sentido rule of the people

pode coincidir com rule of law e contrapor-se a rule of men. Para manter a vontade dos

governantes fiel aos princípios do governo da lei, Adams propõe um sistema de check and

balances que é imaginado como um verdadeiro instrumento de controle da paixão, que

deveria encarnar uma direção socialmente não danosa”.392

A teoria republicana populista abriga o princípio do rule of people enquanto que a

teoria republicana clássica adota o princípio do rule of law. Esta ao advogar uma suspeição,

mesmo que implícita, à autodeterminação popular abre caminho para a construção da teoria

que fundamenta o papel desempenhado pela Suprema Corte norte-americana. Ela deve

conter os excessos da soberania popular, ratificando os preceitos contidos na Constituição.

Existe ainda uma concepção estrita do rule of law que parte de uma visão formalista

do Direito, em que a Suprema Corte, agindo de forma imparcial e neutra, deve proteger as

normas constitucionais, sendo o seu intérprete máximo, descurando de todos os fatores

metajurídicos que pululam na sociedade. Nesse prisma, há um corte epistemológico

reduzindo o objeto analisado às normas jurídicas, o que pode levar a prolatação de decisões

que destoam das necessidades sociais do próprio living of constitution. Hodiernamente, essa

concepção estrita do rule of law tem tido cada vez mais dificuldade na aplicação das normas

constitucionais, haja vista a modificação mais intensa da realidade social e os contraditórios

interesses que pululam na sociedade.

A concepção republicana clássica planteia que o papel da suprema corte se configura

na custódia da democracia participativa.393 Quando o Poder Legislativo formular uma

disposição normativa que esteja fora dos interesses coletivos, com a finalidade de atender

serviço ao bem comum”. MIONI, Frederico. James Madison. Tra Federalismo e Repubblicanesimo. In: Il Político. N. 160, Ottobre-Dicembre, 1991. P. 680. 392 CASALINI, Brunella. . Sovranità Populare, Governo della Legge e Governo dei Giudice negli Stati Uniti d’America. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 230. 393 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva Del Diritto e Della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizione Guerini e Associati, 1996. P. 304.

289

determinados interesses específicos, deve a Corte Constitucional declarar a

inconstitucionalidade da norma para preservar a democracia participativa.

O republicanismo, na sua acepção clássica da Suprema Corte norte-americana, com a

sua concepção de democracia participativa, é uma das fontes do ativismo judicial, em que se

tenta compensar o desnível existente entre a idéia republicana e a realidade constitucional. A

sua intenção não é substituir o Poder Legislativo, mas garantir os pressupostos necessários

para a realização de uma democracia participativa e que esse poder possa seguir os seus

direcionamentos.

Na concepção republicana, que prevalece na Suprema Corte norte-americana, a

esfera de decisões políticas e a sociedade civil tornam-se um importante instrumento de

fortalecimento da cidadania. O desenvolvimento das relações sociais se orienta sobre o mais

arraigado princípio de igualdade, permitindo que toda a coletividade possa participar de

forma ativa das decisões políticas.

É uma concepção que ultrapassa a idéia de liberdade negativa, centrada em direitos

que podem ser opostos às arbitrariedades estatais (conceito da primeira dimensão dos

direitos fundamentais); mas um conceito de liberdade positiva, em que os cidadãos devem

participar das decisões políticas de modo ativo (quarta dimensão dos direitos

fundamentais).394 A prática dessa liberdade positiva é o que possibilita aos cidadãos formar

uma comunidade política autônoma, onde todos tenham o mesmo peso nas decisões

judiciais.

A concepção de liberdade negativa foi ultrapassada pelo desenvolvimento das

estruturas sociais. Esta fundamentava-se em um esquema do século XVIII, que colocava a

liberdade privada contra a autoridade pública, como se fossem duas coisas antagônicas. Por

sua vez, o conceito de autoridade que vigorava nessa concepção de liberdade indicava um

poder específico do Estado de tomar decisões juridicamente vinculantes, determinando o que 394 Define o conceito de liberdade negativa Tim Gray: “A concepção de liberdade em termos de inexistência de impedimentos (ou interferências, restrições ou constrangimentos, etc) foi popularizada especialmente por Hobbes, transmitindo a imagem de liberdade sem restrição de movimento ou obstrução de espaço. Dentro dessa perspectiva uma pessoa torna-se sem liberdade para fazer alguma coisa se algum obstáculo estiver no seu caminho[...] assim ela descreve um conceito residual de liberdade”. GRAY, Tim. Issues in Political Theory. Hampshire: Macmillan, 1990. P. 19-20.

290

seja lícito e o que seja ilícito, legitimando dessa forma os atos coercivos, sem a participação

ativa dos cidadãos.395

A finalidade principal da jurisdição constitucional é garantir a realização das

condições procedimentais de participação política que legitimam a formação institucional da

opinião publica, baseada na autonomia dos cidadãos. As Cortes Constitucionais haurem sua

legitimidade quando asseguram que a produção do Direito possa ser realizada consonante os

parâmetros estabelecidos pela política, com a participação ativa, liberdade positiva, de todos

os cidadãos.

A partir da decisão do caso Marbury v. Madison, em 1803, foi firmado pela

Suprema Corte que a Constituição não deveria ser interpretada consonante as interferências

políticas, apoiada em maiorias transitórias, que poderiam desviar os mandamentos

constitucionais. O Poder Judiciário passa a exercer a função de guardião dos preceitos

estipulados pelo Poder Constituinte, apogeu da soberania popular, não podendo ser

maculado por leis infraconstitucionais. A Suprema Corte se tornou depois da mencionada

decisão intérprete e guardiã do Poder Constituinte.

O Poder Legislativo, ao contrário da doutrina estabelecida na França e na Inglaterra,

não era considerado como a emanação da soberania popular, e nem mesmo poderia exercer

o papel de intérprete último da Constituição; foi considerado como um dos Poderes

Constituídos e como tal deveria se ater aos limites impostos. O poder da Suprema Corte de

revogar a legislação produzida pelo Poder Legislativo significa a defesa da Constituição, por

ter esse poder descurado no cumprimento dos mandamentos constitucionais.

A Suprema Corte, que antes do New Deal declarava como inconstitucionais as

medidas de regulamentação da economia, em virtude das demandas ocasionadas pelo Crash

da Bolsa de Nova York (quando o Estado teve que intervir na economia para regulamentar

os ciclos econômicos, com base na teoria de Lord Keynes, e atender as necessidades do

desenvolvimento da sociedade capitalista), passou também a admitir a regulamentação de

setores considerados essenciais para o desenvolvimento econômico. A modificação no

395 HOFMANN, Hasso. Legittimità Contro Legalità. Trad. Roberto Miccù. Napoli: Scientifiche Italiane, 1999. P. 106.

291

posicionamento da Suprema Corte norte-americana, a partir de 1937, aceitando as

regulamentações do New Deal, é denominada de Constitucional Revolution, trilhando

novamente a concepção de Marshall de “poder federal”, cristalizadas em decisões como

National Labor Relations Act, The Fair Labor Standardardas Act etc.396

Mas essa modificação de rumo das decisões da Suprema Corte foi realizada a custa

de grandes embates.397 No início, a Egrégia instância do Poder Judiciário foi um sério

obstáculo à implementação das medidas necessárias do New Deal. O presidente Roosevelt,

que gozava de amplo apoio popular, teve duros embates com a Suprema Corte, inclusive

sugeriu o aumento no número de seus componentes como forma de garantir a efetivação das

medidas econômicas necessárias.

O ativismo judicial praticado pela Suprema Corte norte-americana e pelos juízes

ordinários, entendido como uma série de direitos assegurados por decisões judiciais sem

expressa previsão legal, que beneficia direitos individuais e direitos das minorias, data do

século XX, com o escopo de legitimar a ascensão dos Estados Unidos na seara internacional.

Ele tem origem na interpretação extensiva da emenda XIV à Constituição norte-americana,

estendendo a toda sociedade a cláusula do equal protection of the laws. Esses direitos foram

consolidados principalmente durante a presidência de Warren, no período de 1953-1969,

quando se consagraram as decisões contra a segregação racial e a favor de direitos civis,

destacando-se o direito ao privacy, o fim da segregação racial e o direito ao aborto.398

O ativismo judicial foi o resultado das demandas sociais, que exigiam a criação de

uma sociedade mais justa e democrática, com a extensão da igualdade política para a

igualdade social, principalmente com relação às normas que apresentavam uma

396 DEAN, Howard E. Judicial Review and Democracy. New York: Random House, 1966. P. 82. 397 A concepção moderna da Constituição dos Estados Unidos da América foi criada durante a administração de Roosevelt e não foi por um processo condizente com o estipulado no seu artigo quinto. ACKERMAN, Bruce. We the People. Transformations. . Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1998. P. 383. 398 Precioso é o depoimento sobre Earl Warren prestado por William J. Brennan Jr., que foi juiz da Suprema Corte norte-americana na mesma época: “Ele era um homem íntegro e justo, e nenhum outro juiz contribuiu mais para firmar na Suprema Corte um conteúdo humano e pleno de sabedoria. Suas grandes decisões, como no caso Brown v. Board of Education to Miranda v. Arizona, mostrou seu maior presente para a nossa jurisprudência: ele acreditava na dignidade humana e, talvez, esse seja o valor primário agasalhado pela Constituição”. BRENNAN JR., William J. “A Personal Remembrance”. In: The Warren Court. A Retrospective. New York: Oxford, 1996. P. 10.

292

discriminação racial. Depois da Segunda Guerra Mundial, essas exigências começaram a

ganhar respaldo na Suprema Corte norte-americana, pois um país que propagandeava ser o

baluarte da democracia, não podia ter no seu ordenamento jurídico normas que asseguravam

a desigualdade.

Grande parte dos direitos norte-americanos não foi assegurada por previsão

normativa, mas devido à atuação da Suprem Corte. As decisões da jurisdição constitucional

começam a criar direitos que até então não haviam no ordenamento e a exercer uma função

de policy-maker ou law-making.

Para contrariar os resultados produzidos pelo judicial activism é que foi criada a

doutrina do self-restraint, com a finalidade de mitigar a atuação da jurisdição constitucional

e tornar-se o contra-ponto ao alargamento dos direitos civis que caracterizou a atuação da

Suprema Corte, na época de Warren. A mais séria e persistente crítica contra o ativismo

judicial é que ele se configura incompatível com os preceitos do regime democrático.

Deve-se ressaltar que o ativismo judicial, apesar de ganhar maior desenvolvimento

na jurisprudência da Suprema Corte norte-americana, entre outros motivos pela adoção do

sistema do common law, pode ser encontrado na jurisprudência da jurisdição constitucional

de diversos outros países, como na Itália, Alemanha etc.399

12.2) A Influência da Tribunal Constitucional Alemão sobre a Jurisdição

Constitucional

O Tribunal Constitucional Alemão de Karlsruhe, criado em 1951, apresenta um

grande alcance nas suas decisões, configurando-se como um dos tribunais europeus que

399 Como exemplo de ativismo judicial na Corte Constitucional italiana podemos mencionar as sentenças de números 353 de 1996, 306, 307 e 308 de 1997, 232, 347 de 1998 etc. RODOTÀ, Carla. Storia Della Corte Costituzionale. Roma: Laterza, 1999. P. 130-136.

293

mais exercem influência na sociedade, ocupando o posto mais proeminente da estrutura

judiciária alemã.400 Essa ampla atuação da jurisdição constitucional por parte do tribunal

alemão foi possível também devido a motivos históricos, que remontam ao relevante papel

desempenhado pelos tribunais imperiais.

Diante dos horrores perpetrados pelo nacional-socialismo, durante a Segunda Guerra

Mundial, solidificou-se a idéia de construir um tribunal constitucional para preservar os

direitos fundamentais e obrigar as maiorias parlamentares a respeitarem os mandamentos

constitucionais. Nenhum outro povo com igual desenvolvimento cultural, econômico e

social como o que goza o povo alemão, praticou ou apoiou a prática de tamanhas atrocidades

como as que foram executadas pelo nazismo. Em virtude desses elementos fáticos e devido

ao desenvolvimento da ciência jurídica produzida na Alemanha, o seu Tribunal

Constitucional dispõe de extenso rol de prerrogativas que lhe permite cumprir as funções

para as quais foi criado.

Ao Tribunal Constitucional alemão atribui-se uma função legislativa concorrente,

proporcionando um alargamento das funções da magistratura. Dentre os instrumentos

normativos que amparam essa função legislativa estão as sentenças aditivas e as sentenças

de dupla pronúncia. Outro exemplo, de uma maior atuação das decisões judiciais relativas a

jurisdição constitucional, ocorre quando há uma declaração de inconstitucionalidade e, em

decorrência das necessidades do caso concreto, tem o tribunal a prerrogativa de

regulamentar as situações transitórias.

O Tribunal alemão igualmente exerce uma atividade mais extensiva quando atua na

competência suplementar, considerando que essa competência não é criada por nenhuma

norma jurídica, mas advém de uma competência ex facto, e que a omissão por parte do órgão

competente de realizar uma atividade prevista pela Constituição, preenche o requisito para a

sua atuação. Essa concepção serve como um dos alicerces para a extensão de incidência de

suas decisões.

400 Art. 92 da Lei Fundamental Alemã.

294

O elemento fático que motiva essa extensão no alcance de suas decisões configura-

se na transformação do Estado de Direito, em Estado Social de Direito, exigindo dos entes

estatais intervenções em vários setores da sociedade para garantir direitos mínimos à

sociedade. As normas programáticas passam a ter atuação corrente e eficácia obrigatória.

Suas decisões, portanto, são vinculantes para os outros juízes e todos os operadores do

direito devem respeitar as motivações de suas sentenças.

A maior extensão das decisões judiciais da jurisdição constitucional é realizada com

base em princípios jurídicos, realizando um processo de “criação do Direito” que permite

um maior contato com a realidade social e melhor atendimento às demandas sociais. As

decisões judiciais baseadas nos princípios constitucionais, ou em princípios implícitos,

operando uma interpretação construtiva do Direito, têm a função de manter a Lei Mater

sempre atualizada, sem propiciar fossos normativos.

O Tribunal Constitucional concebe a Lei fundamental nem tanto como um sistema de

normas baseado em princípios, mas principalmente como uma estrutura normativa que

possui ligação com elementos éticos e axiológicos, estabelecendo em decorrência uma

ordem concreta de valores, realizando uma interpretação construtiva com base nos

dispositivos constitucionais.

Bastante significativa é a decisão do Tribunal Constitucional Alemão, referindo-se ao

artigo 20, parágrafo 3, do Grundgesetz ( Lei Fundamental), no qual declara de forma clara:

“o Direito não se restringe apenas aos dispositivos legais.401 Com relação às cominações

normativas que estatuem o poder legal, pode existir, em determinadas circunstâncias, um

plus de Direito que tem a sua fonte implícita no ordenamento, surgindo de sua concepção

sistêmica, não podendo ser elidida pela lei escrita. A obrigação da jurisdição é individualizar

este plus e realizá-lo nas suas decisões”.402

Por causa desses posicionamentos são contundentes as críticas contra o Tribunal

Constitucional, com a alegação de que a jurisprudência de valores provoca uma

401 O Poder Legislativo estará vinculado à ordem constitucional e o Poder Executivo e o Poder Judicial estarão sujeitos ao Direito. 402 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva Del Diritto e Della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizione Guerini e Associati, 1996. P. 291.

295

indeterminação no conteúdo das decisões judiciais. Essa é uma crítica principalmente de

cunho metodológico porque acredita que a mencionada jurisprudência operaria uma

confusão na definição conceitual de princípios e de valores. Contudo, a jurisprudência de

valores não significa que os critérios axiológicos devam ser utilizados de forma arbitrária,

mas de acordo com a determinação do valor dos mandamentos constitucionais diante dos

casos concretos apresentados.

Segundo Habermas, a alegação de inconsistência metodológica não pode prosperar

porque várias são as diferenças apontadas entre princípios e valores. Os princípios têm um

sentido deontológico enquanto que os valores têm um sentido teleológico. Os primeiros,

como são normas válidas, obrigam todos os seus destinatários de forma geral e abstrata ao

contrário dos valores que atuam como uma influência intersubjetiva, sem dispor de sanção

institucionalizada por órgãos estatais. Os princípios jurídicos são moldados de acordo com

uma pretensão binária, ou são válidos ou inválidos; os segundos não oferecem essa opção

disjuntiva porque indicam uma relação de preferência, podendo alguns valores serem mais

atraentes do que outros de acordo com o interesse do cidadão, sem uma relação de exclusão,

de forma gradual. Os princípios jurídicos, devido à sua taxionomia deontológica, possuem

uma pretensão de aceitação absoluta, devendo ser coerentes entre si para formar um sistema;

os valores possuem um senso relativo na valoração dos bens, de acordo com a classe social,

momento histórico, sociedade determinada etc. Estes últimos não são coerentes entre si,

lutando diversos valores para a prevalência em uma determinada situação.403

Mesmo diante dessa crítica metodológica não pode negar a plausibilidade de se

construir uma teoria racional para as decisões judiciais da jurisdição constitucional. Segundo

Habermas, o problema da construção das decisões judiciais é evitar o vazio de racionalidade,

sendo esta realizada pelo procedimento fornecido pelas regras jurídicas e pelos vetores

morais estabelecidos normativamente no ordenamento jurídico.

O vetor que balisa as decisões do Pretório Excelso alemão é o princípio da

proporcionalidade, com o objetivo de realizar um equilíbrio dos bens postos à apreciação,

403 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva Del Diritto e Della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizione Guerini e Associati, 1996. P. 304.

296

com o pressuposto de que nenhum valor pode ser tomado no seu sentido absoluto. O

princípio do equilíbrio dos bens estabelece que os valores jurídicos devem ser aplicados da

melhor forma, satisfazendo a imperativos de optimização da concretização normativa. Essa

ponderação garante à interpretação hermenêutica uma “realização de valor”para o caso

concreto.

No desenvolvimento da sua jurisprudência têm considerado alguns “conceitos-chave”

para entender a Constituição, e um dos mais importantes é o conceito da proporcionalidade,

que permite uma abertura sistêmica entre a Constituição e a seara fática. Aliás, a maioria das

leis européias adotam o princípio da proporcionalidade, que requer para a sua aplicação uma

relação razoável entre a decisão, seus objetivos e as circunstâncias do caso concreto.404

Portinaro afirma que as decisões do Tribunal Constitucional alemão abrigando a

teoria do “ordenamento objetivo de valores”, baseado em princípios constitucionais, provoca

uma dúplice tendência: de um lado, provoca a “politização das decisões constitucionais”, em

que o Tribunal tem que intervir com mais freqüência na sociedade para garantir as normas

programáticas da Constituição; do outro lado, concomitantemente, provoca uma

“giurisdicização da política”, em que as decisões políticas e as iniciativas legislativas são

condicionadas ao posicionamento do Tribunal Constitucional.405

Com relação aos direitos fundamentais, o Tribunal Constitucional alemão dispõe que

eles representam princípios globais do ordenamento, cujo conteúdo normativo vem

estruturado no complexo de dispositivos constitucionais. Afirma que os direitos

fundamentais apenas são invioláveis no seu conteúdo essencial, servindo ainda como limite

implícito para as normas constitucionais.

Coerente com a concepção de que a Constituição representa uma ordem objetiva de

valores, o Tribunal Constitucional alemão advoga que não existe um numerus clausus de

dimensões de tutela dos direitos fundamentais, admitindo uma “proteção dinâmica dos

direitos fundamentais” consonante o contexto histórico-social.

404 GORDON, Richard Q. C. Judicial Review. Law & Procedure. 2 ed., London: Sweet & Maxwell, 1996. P. 44. 405 PORTINARO, Pier Paolo. “Oltre lo Stato di Diritto. Tirannia dei Giudici o anarchia degli avvocati?”. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 17-88. P. 395.

297

13.) Legitimação pelo Procedimento da Jurisdição Constitucional

A importância de racionalizar a fundamentação das decisões do Poder Judiciário tem

como objetivo legitimar o papel desempenhado principalmente pela jurisdição

constitucional, cujo órgão essencial é o Supremo Tribunal Federal, gerando assentimento da

sociedade com relação às suas decisões.

Trata-se de criar um novo tipo de legitimidade para o Poder Judiciário, que alicerce

suas decisões fora do standard de qualquer conteúdo ontológico. A legitimação pelo

procedimento caracteriza-se como uma forma “pós-moderna de legitimação”, sendo

concretizada quando o conceito de legitimação estiver apartado da religião, dos costumes e

de conceitos abstratos como nação e povo, com os seus procedimentos disciplinados

racionalmente por parâmetros previamente estipulados pelo ordenamento jurídico.

Os procedimentalistas, em maior ou menor grau, advogam que a legitimidade do

direito é haurida da legalidade, cujo conteúdo normativo deve estar adstrito aos mecanismos

que orientam a realização das decisões judiciais. A justificação da jurisdição constitucional é

obtida mediante os procedimentos que regulamentam as decisões, relegando a importância

de direitos substanciais na concretude normativa.

Essas teorias criticam a utilização de um conteúdo substancial na tutela dos

dispositivos constitucionais porque esses princípios não são aceitos de modo inconteste por

toda a população. A obtenção de princípios universalizantes, diante do pluralismo social,

apenas pode ser formulado com base em procedimentos que assegurem a previsibilidade na

tomada das decisões. A aceitação é obtida não da decisão, mas das premissas das decisões.

O conteúdo final perde a sua importância diante da relevância do preenchimento das

expectativas esperadas para a tomada das decisões. A pretensão universalizante de

Habermas é realizada por intermédio de procedimentos que possam propiciar racionalidade

ao discurso.

298

Afirmam que os direitos fundamentais não podem servir como substrato

universalizantes de legitimidade, pois, diante do multiculturalismo, eles não podem ter um

conteúdo generalizante, assumindo, dessa forma, um caráter procedimental.

A legitimação pelo procedimento se configura como um fundamento de legitimidade,

com a função de racionalizar as expectativas comportamentais, deslocando a legitimidade do

sujeito para o procedimento empregado.

As teses procedimentais de Habermas, Ely e Sunstein, afora a defendida por

Luhmann que se baseia na teoria sistêmica, admitem a existência de conteúdo substantivo

apenas quando ele for oriundo de decisões formuladas pela maioria política, ou seja, quando

o conteúdo substancial for decorrente do processo democrático. Entretanto, essa substância

normativa não assume uma natureza absoluta, podendo ser modificada por uma maioria

política formada dentro do processo democrático.406

Esses quatro autores foram escolhidos porque representam as vertentes mais

importantes da teoria procedimental: Luhmann por atribuir relevo ao procedimento judicial,

tornando-o um subsistema social; Habermas pela sua concepção de espaço público, o que

possibilita uma democratização das decisões da jurisdição constitucional; Ely e Sunstein,

pertencentes à escola de legitimação norte-americana, por privilegiar o regime democrático e

a participação dos cidadãos.

13.1) A Questão da Legitimidade em Jürgen Habermas

Para Habermas, a jurisdição constitucional, que se baseia no ordenamento jurídico, tem

como orientação princípios de natureza ética e moral. Sua intenção é impedir o

406 “A autoridade deles deriva da justiça e da franqueza dos seus procedimentos, embora no caso mencionado, as decisões do Poder Legislativo e das cortes poderão trazer instabilidades, a menos que os resultados substantivos estejam em consonância com os parâmetros da opinião da maioria política”. ALDER, John. Constitutional and Administrative Law. 3 ed., Hampshire: Macmillan, 1999. P. 61.

299

estabelecimento de ordenamentos jurídicos como o nazista e o fascista que praticamente

aboliram os direitos fundamentais, Habermas propõe uma re-moralização do Direito, cujas

normas jurídicas teriam como vetores parâmetros éticos que sinalizariam o contorno geral do

seu conteúdo. Os argumentos morais seriam inseridos dentro do ordenamento por intermédio

dos princípios jurídicos.407

A legitimação da jurisdição constitucional através da teoria discursiva do direito,

representa uma alternativa tanto à concepção liberal do Estado, como a defendida por Ely,

Sunstein etc, quanto à sua concepção comunitarista, defendida por Dworkin. Para a teoria

habermasiana o objetivo mais importante é a formação de procedimentos éticos de

deliberação, que possibilitem a formação de consensos, ao invés da busca de valores éticos à

priori.

Elemento imperioso para a construção da teoria habermasiana de legitimação da

jurisdição constitucional é o seu conceito de espaço público, configurando-se como uma

conseqüência direta da razão comunicativa. O conceito de democracia passa a ser

estruturado juntamente com o conceito de espaço público, partindo do pressuposto de que

em sociedades altamente complexas como são as sociedades pós-modernas, há a necessidade

de se estabelecer um locus onde as discussões devem ser travadas.

Em contraposição à democracia liberal, Habermas elabora a democracia discursiva,

em que para as decisões serem tomadas, não necessita de uma assembléia de cidadãos, mas é

imprescindível que todos tenham acesso ao espaço público e possam participar do debate

acerca das decisões. A democracia deixa de ser visualizada exclusivamente como

democracia representativa, necessitando que as pretensões normativas passem por intensos

debates públicos.

O telos do espaço público é institucionalizar a legitimação do direito, a partir da

construção de um acordo, ou consenso, que ampare as proposituras normativas.408 Pelo

407 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva Del Diritto e Della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizione Guerini e Associati, 1996. P. 313. 408 O espaço público deve ser o grande legitimador das decisões judiciais. Assim, quanto maior for a simetria entre o espaço público e o Poder Judiciário, maior será o consenso extraído de suas decisões. Ele dever ser a ligação entre a vontade produzida pelos atores sociais e as instâncias estruturadoras das decisões judiciais.

300

caráter pós-moderno da razão comunicativa, o acordo estará amparado no argumento que

obtiver o maior consenso no espaço público, devendo obrigatoriamente estar imbuído de

fundamentos ético-racionais, que obedeçam ao procedimento previamente determinado. Para

se saber se o acordo obtido é racional ou não, deve-se verificar o procedimento adotado, pois

é esse o que vai validar a estrutura normativa.409

Como pressuposto do espaço público, podemos mencionar o princípio da igualdade

comunicativa, em que cada cidadão tenha a mesma oportunidade de participar do processo

discursivo, possibilitando que o argumento que obtenha o maior grau de consenso possa ser

utilizado.

13.1.1) A Concepção de Direito em Habermas

A base da concepção do Direito em Habermas é a razão comunicativa, ela pode ser

situada como representante da filosofia pós-positivista, na sua tentativa de superação da

filosofia analítica kelseniana, fundamentada na razão no âmbito do discurso prático. A

filosofia analítica kelseniana pode ser definida como a filosofia cujo método fundamental é a

análise, com o escopo de resolver qualquer raciocínio mediante silogismos, que constituem

suas premissas evidentes, buscando as provas necessárias no próprio silogismo.410 Por sua

409 O espaço público deve possibilitar aos cidadãos iguais chances de influenciar na tomada das decisões. E essa participação democrática inclusive é um limite às próprias decisões da maioria, que terão que respeitar a participação de todos no processo de tomada de escolha, ou seja, o limite para as deliberações é a manutenção do procedimento democrático. 410 Nicola Abbagnano assim define Filosofia Analítica: “Em geral, uma disciplina ou uma parte de disciplina cujo método fundamental é a análise. Aristóteles chamou de análise a parte da lógica que visa resolver qualquer raciocínio na figuras fundamentais dos silogismos (Primeiros analíticos) e qualquer prova nos próprios silogismos e nos primeiros princípios, que constituem suas premissas evidentes (Segundos analíticos)”. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução: Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 54

301

vez, os silogismos são pressupostos que através de raciocínio dedutivo desencadeiam outros

pressupostos de forma inexorável.411

A essência desse conceito é o deslocamento da racionalidade e da legitimidade do

sujeito para o procedimento da produção normativa, garantindo a previsibilidade do

processo comunicativo.412 Enquanto, no positivismo jurídico a racionalidade está centrada

no juiz, na razão comunicativa a racionalidade está centrada no processo argumentativo, por

meio do debate entre os argumentos que alicerçam as estruturas normativas.

Os argumentos estabelecem racionalidade às decisões judiciais, assegurando a

previsibilidade do procedimento, eliminando a surpresa da escolha de um argumento que

não fora por ele previsto. A argumentação forma uma ilusória justificação para as decisões

judiciais, com se fosse o seu principal esteio, esquecendo que muitas vezes são as decisões

que justificam a argumentação escolhida.

O discurso utilizado no processo de comunicação não pode ser aleatório, mas um

discurso racional, pautado por parâmetros pré-fixados. Explica Habermas: “E “discurso

racional” é toda a tentativa de entendimento sobre pretensões de validade problemáticas, na

medida em que ele se realiza sob condições da comunicação que permitem o movimento

livre de temas e contribuições, informações e argumentos no interior de um espaço público

constituído através de obrigações ilocucionárias. Indiretamente a expressão refere-se

411 Nicola Abbagnano também define silogismo: “Essa palavra que na origem significava cálculo e era empregada por Platão para o raciocínio em geral, foi adotada por Aristóteles para indicar o tipo perfeito do raciocínio dedutivo, definido como um discurso em que, postas algumas coisas, outras se seguem necessariamente”. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução: Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 896. 412 O Direito é considerado como uma instituição de segunda ordem porque é externo à seara fática, desenvolvendo-se não por uma seqüência natural de fatos, mas por meio de disposições normativas implementadas pelo homem. Assevera Luiz Moreira: “Mas por que o Direito é uma instituição de segunda ordem? Porque as diversas vivências sociais originárias brotam de um eticidade tradicional, de um universo de compreensão que, como tal, é compartilhado, de um horizonte de sentido comum, e não a partir dos termos de uma manifestação social juridicizante. Pois, nesse sentido, o Direito é uma instituição artificial que ocupa uma posição externa em relação à vida e ao modo como esta se reproduz em termos societários”. MOREIRA, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. 2º ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. P. 50.

302

também a negociações, na medida em que estas são reguladas através de procedimentos

fundamentados discursivamente”.413

O filósofo alemão busca a superação da concepção de Direito clássico, que tem como

característica a legalidade, a positividade e o formalismo. Legalista na medida em que o

padrão normativo determinante é a lei, por sua vez representante da soberania popular.

Positividade no sentido de que as normas devem ser escritas para possibilitarem um maior

grau de segurança jurídica. E formalismo que se fortalece com a sistematização do

ordenamento jurídico, em que a criação e aplicação das leis estão vinculadas a

procedimentos de conteúdo eminentemente formal.

O Direito clássico nasce com o Estado secular, sepultando o Estado Absolutista,

onde as leis teocráticas, baseadas na vontade divina, cedem lugar às leis baseadas na vontade

humana.414 A normatividade de suas leis é amparada na possibilidade de implementação de

uma sanção, defluindo como uma de suas características principais a objetividade, atingindo

a todos os cidadãos que estejam na mesma situação jurídica.

Para Max Weber, que foi uma dos formuladores da concepção clássica do Direito, as

características fundamentais do ordenamento jurídico ocidental moderno de administração

da justiça são: a criação normativa de forma racional e a natureza sistêmica do Direito, o que

garante ao fenômeno jurídico um crescente particularismo.415

A racionalização formal para Weber ocorre de três modos.416 O primeiro por

intermédio do escalonamento normativo kelseniano, cuja norma inferior é validada pela

norma superior, ocupando a Constituição a posição estruturante de todo o ordenamento

jurídico, que garante o seu caráter sistêmico. O segundo, se dá devido à característica das

413 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre Facticidade e Validade. Volume I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. P.142. 414 Doutrina o culto professor Nelson Saldanha: “ O processo de secularização corresponde a uma gradual transformação ocorrida em determinadas sociedades, transitando de um padrão predominantemente religioso para formas preferentemente “leigas” (ou racionais) de vida. Tal processo ocorreu exemplarmente na Grécia do século V A. C. e no ocidente do século XVIII, com antecipações que radicam no Humanismo renascentista”. SALDANHA, Nelson. Da Teologia à Metodologia. Secularização e Crise no Pensamento Jurídico. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. P. 57. 415 WEBER, Max. Economia e Società. Sociologia Del Diritto. III. Trad: Giorgio Giordano. Milano: Edizione di Comunita, 1995. P. 186. 416 HABERMAS, Jurgen. Direito e Moral. Trad. Sandra Lippert. Lisboa: Instituto Piaget, 1992. P. 18-19.

303

leis que são genéricas e abstratas, garantindo uniformidade jurídica para a solução dos casos

apresentados, sem serem formuladas para casos específicos ou especiais. E terceiro, é que a

atuação dos órgãos administrativos e judiciais ocorre de forma vinculada ao que fora

determinado por prescrições normativas, de acordo com o princípio da legalidade, com a

finalidade de assegurar uma aplicação metódica e calculável que se concretiza mediante

leis.417

A superação dessa concepção de Direito clássico baseia-se no estabelecimento de

procedimentos racionais que norteiam o medium comunicativo para a obtenção do consenso,

que será efetuado com a participação efetiva da sociedade. A função dos parâmetros

jurídico-morais é indicar um consenso todas as vezes que ele não puder ser realizado pelo

âmbito comunicativo.

O Direito moderno, para Habermas, se caracteriza pelas exigências concomitantes de

positivação e de fundamentação argumentativas, baseadas em parâmetros éticos morais. No

que se difere dos positivistas tradicionais que sustentam poder ser a legitimidade obtida

apenas pelo procedimento, destituída de qualquer tipo de conteúdo material.

A institucionalização das decisões judiciais é realizada de uma dupla forma:

obedecendo ao procedimento que fora previamente estipulado, quando cada ato acarretará

uma conseqüência prevista no ordenamento, e que a decisão proferida seja sustentada pelo

critério fornecido pelo melhor argumento, com a abertura de um canal para os preceitos

morais.

A legitimação do Direito é obtida por meio de procedimentos, que se desenrolam

através de uma seqüência de atos jurídicos, cuja decisão será tomada com base no

417 Para Weber, o Direito é formalmente irracional quando no processo legislativo e na jurisdição são empregados tanto elementos que não podem ser controlados de forma racional e materialmente irracional, como quando as decisões têm por base valorações concretas do caso particular, seja de natureza ética, afetiva ou política. De forma contrária, o Direito é formalmente racional quando, sob o plano jurídico e processual, considera exclusivamente as características gerais unívocas dos casos concretos. Para conceituar o Direito materialmente racional, ele parte dos principais pressupostos: a) que cada decisão jurídica concreta é a aplicação de um princípio abstrato a um caso concreto; b) que para cada caso concreto deva ser possível, através da lógica jurídica, utilizar um dos princípios abstratos em vigor; c) que o direito objetivo possa formar um sistema dos princípios jurídicos.WEBER, Max. Economia e Società. Sociologia Del Diritto. III. Trad: Giorgio Giordano. Milano: Edizione di Comunita, 1995. P. 16-17.

304

argumento mais robusto, imbuída de preceitos morais. A legitimação procedimental do

Direito fundamenta-se em princípios morais. A única coerção admitida durante o

procedimento judicial é a força exercida pelo melhor argumento, em uma relação de

complementaridade entre o Direito e a moral.

Nesse processo há uma interseção de três fatores que atuam simultaneamente: o

jurídico, o político e o moral. O jurídico que influencia o procedimento do processo de

decisão; o político que estrutura o espaço público e o moral que oferece um alicerce de

fundamentação para as estruturas normativas.

A influência de vetores ético-morais na seara do Direito é também defendida por

Dworkin.418 Segundo o qual o direito e a moral são os alicerces para as decisões da jurisdição

constitucional. Ele assevera que os princípios morais são elementos intrínsecos às normas

jurídicas, mesmo que não tenham sido por eles acolhidas, devendo ser concebidas de modo

implícito, configurando-se como condição imprescindível para as decisões judiciais.

O espaço público é o elo de ligação entre a política e o Direito, onde os cidadãos

respaldariam o melhor argumento para que este pudesse alicerçar a decisão. A ligação entre

os princípios morais e a política originá-se no fato de que esta recebe daquela os argumentos

que permitiriam estabelecer determinados consensos na sociedade. Segundo Stanley

Kleinberg, os argumentos morais são uma importante saída para se tentar resolver

controvérsias políticas de forma racional.419

Na concepção moderna de Direito de Habermas assume relevante significado o

conceito de direito subjetivo. Eles são espaços privativos de atuação dos cidadãos, onde eles

podem exercer livremente sua vontade, sendo constituídos para garantir igual liberdade à

comunidade de sujeitos de direito. Na circunscrição desse espaço não cabe atuação dos entes

estatais no sentido de cercear os direitos subjetivos, mas apenas no sentido de limitar a sua

atuação.

418 DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luiís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 7. 419 KLEINBERG, Stanley S. The Necessity and Limitations of Rational Argument. Massachusetts: Blackwell, 1991. P. 35.

305

Os direitos subjetivos, para serem concretizados de forma plena, necessitam ser

definidos através de uma idéia de reciprocidade, na qual cada cidadão é co-responsável pelo

exercício do direito de outrem, de forma que exista uma responsabilidade difusa por todo o

ordenamento jurídico. Apenas em uma sociedade livre, onde os cidadãos possam discutir os

seus interesses no espaço público, por meio de argumentos racionais, é que os direitos

subjetivos podem ser realizados, devido à co-responsabilidade que existirá dentro das

relações.

Diante da liberdade de ação que permeia os direitos subjetivos, dentro do espaço de

atuação previamente estipulado pelas disposições normativas, os cidadãos se comportam

como responsáveis pela elaboração do ordenamento jurídico, em uma co-autoria

concretizada pela livre atuação na elaboração argumentativa no espaço público. Portanto,

para Habermas, os direitos subjetivos são responsáveis pela reciprocidade de direitos e

deveres dos cidadãos e pela co-autoria do ordenamento jurídico.

Uma concepção que assume especial relevo para a teoria habermasiana, diz respeito

ao caráter instrumental do Direito, decorrente dos direitos subjetivos dos cidadãos, em que

há uma atuação pautada no interesse singular. O particularismo na ação de cada cidadão é

arrimado na seara do espaço subjetivo ofertado, permitindo um amplo espaço para a

estruturação da teoria discursiva do Direito.

Para Habermas, os direitos subjetivos remetem a uma ordem jurídica objetiva, que

obedece à lógica do processo comunicativo, assim, as normas jurídicas são formuladas por

atores políticos que agem dentro de uma reflexão do nexo ético vital. Dessa reflexão, ele

traça uma relação entre os direitos fundamentais e a autonomia dos cidadãos, já que a livre

participação dos cidadãos no processo comunicativo permite a formulação de dispositivos

jurídicos que assegurem a concretização dos direitos subjetivos.

A tensão entre os direitos fundamentais e o princípio da soberania popular,

apresentada no pensamento de Sunstein ou de Frank Michelman para a legitimação da

jurisdição constitucional, é para Habermas ultrapassada quando a legitimidade do

ordenamento jurídico corresponde ao consenso dos cidadãos como participantes do processo

306

comunicativo, criando uma conexão com o sistema de direito, que garante a autonomia

privada e, ao mesmo tempo, com a supremacia dos mandamentos constitucionais.

A teoria habermasiana somente pode ser construída em um Estado Democrático

Social de Direito. Democrático, no sentido de que as decisões devem ser tomadas de forma

coletiva, assegurando uma ampla participação popular; Direito, porque o parâmetro legal

deve ser o alicerce da sociedade, pairando acima das vontades individuais e de grupos

econômicos; Social para atender as necessidades dos hipossuficientes sociais.

Outra condição para o florescimento da teoria discursiva é a existência de uma

cultura em que os cidadãos se sintam obrigados a participar das decisões políticas, sendo

responsáveis individualmente pela gerência da coisa pública. Estas duas condições devem

ser pautadas em fundamentos éticos que ajudem a previsibilidade dos fundamentos

racionais, orientadores da teoria discursiva.

Elemento imprescindível para o desenvolvimento da teoria discursiva são os direitos

fundamentais, funcionando como pressupostos para o debate no espaço público. Não são

concebidos apenas do ponto de vista liberal burguês, mas entendidos como condições,

procedimentos, para o processo democrático de escolha das decisões judiciais. Princípios

como a liberdade de consciência, liberdade de expressão, vedação à censura e à licença,

entre outros, são pressupostos substancias para a participação dos cidadãos no espaço

público. A teoria do espaço público também é defendida por outros autores, como Cass

Sunstein.420

Os direitos fundamentais, dentro da ótica do agir comunicativo, passam a ser vistos

como requisitos procedimentais para a interação comunicativa, sem a contingência de

apresentar uma validade metafísica, apesar da lição de Norberto Bobbio de que não há mais

necessidade de se buscar fundamentação metafísica para os direitos fundamentais.421

420 SUNSTEIN, Cass. R. Republic. Com. New Jersey: Princeton University, 2002. P. 27. 421 “Mas, quando digo que o problema mais urgente que temos de enfrentar não é o problema do fundamento, mas o das garantias, quero dizer que consideramos o problema do fundamento não como inexistente, mas como – em certo sentido – resolvido, ou seja, como um problema cuja solução já não devemos nos preocupar. Com efeito, pode-se dizer que o problema do fundamento dos direitos humanos teve sua solução atual na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro

307

Os direitos fundamentais também funcionam como limites ao regime democrático,

que não podem ser tolhidos, mesmo que legitimados pela vontade popular. Desempenham,

dessa forma, uma dupla função, sendo ao mesmo temo requisito e limite para a democracia.

Habermas não pode ser entendido como um adepto da escola liberal clássica, para ele

os direitos fundamentais, relacionados à autonomia privada, devem ser entendidos como

supedâneos da autonomia política dos cidadãos, com o escopo de aprimoramento do regime

democrático. Os direitos políticos dos cidadãos somente podem ser desenvolvidos se forem

amparados nos direitos fundamentais da autonomia privada, que asseguram a liberdade

imprescindível para a participação no processo democrático, ainda mais na atualidade

quando os mecanismos da democracia semiparticipativa sofrem um processo de intenso

incremento.

13.1.2) A Legitimidade da Jurisdição Constitucional em Habermas

A principal crítica que é imputada à legitimidade da jurisdição constitucional diz

respeito ao fato de ela sempre ultrapassa os limites estipulados na separação dos poderes,

estabelecendo um conflito entre o Poder Legislativo, que teoricamente tem a incumbência de

realizar a produção normativa, e o Poder Judiciário, que tem a função de aplicar a lei em

relação ao caso concreto. Atuando esses dois poderes em função concorrente quando o

Judiciário acolmata o ordenamento jurídico diante de uma omissão do Legislativo.

As assertivas mais virulentas contra a extensão da atuação do Poder Judiciário na

jurisdição constitucional consistem no medo da criação de um “governo de juízes”,

destituído de legitimidade popular. Entretanto, dos três poderes, o Judiciário é o mais frágil

deles, porque não dispõe de nenhum meio coercitivo para garantir a eficácia de suas

decisões, além de auferir a sua legitimidade de forma diferente dos outros dois.

de 1948”. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 16º Tiragem. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992. P.26.

308

Para Habermas, o objetivo principal da jurisdição constitucional é proteger os

direitos fundamentais através de decisões que obriguem os demais poderes, principalmente o

Executivo, de forma vinculante, e que garanta a existência de disposição normativa quando a

sua ausência for motivo impediente para o exercício de um direito.

A idéia de Habermas é estabelecer uma jurisdição constitucional com base em uma

democracia participativa, que propicie a participação intensa dos cidadãos, o que seria um

antídoto contra a ameaça de que os tribunais constitucionais se fechem em um ciclo

autônomo de decisões. A jurisdição constitucional deve se basear em argumentos racionais,

permitindo sempre a inclusão de participantes no debate público, com ligações intrínsecas

com a sociedade.

Ele constrói a legitimidade da jurisdição constitucional, fundada no agir

comunicativo, que busca formar uma teoria de justificação cujas decisões judiciais sofrem

injunções diretas do espaço público que, por sua vez, deve garantir a mais completa

participação isonômica dos cidadãos e da sociedade civil organizada, formando um canal

entre a sociedade civil e os entes estatais. Assim define a sua teoria o próprio autor: “A

teoria discursiva do Direito concebe o Estado Democrático Social de Direito como uma

instituição de procedimento e de pressupostos comunicativos – socorrendo-se sobre o

binário do direito legítimo e garantindo a autonomia privada – tornando possível uma

formação discursiva da opinião e da vontade. Por sua vez, esta última, transmite o exercício

da autonomia política e torna possível a legitimação da estrutura jurídica”.422

A sua teoria configura-se como procedimental porque assegura que os pressupostos

racionais dos procedimentos judiciais possam direcionar a decisão tomada pelo magistrado.

Esses pressupostos são construídos pelas normas jurídicas e por vetores jurídicos, no ensejo

de propiciar a maior participação possível dos cidadãos no espaço público. A sua concepção

procedimental não significa que a forma deva preponderar em detrimento do conteúdo, mas

sinaliza que os procedimentos jurídicos são a garantia para a realização dos pressupostos

necessários para o funcionamento do espaço público.

422 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva Del Diritto e Della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizione Guerini e Associati, 1996. P. 518.

309

A teoria comunicativa habermasiana se serve da política, tomada como um dos

sistemas de ação existente, para tentar reduzir a complexidade da integração social, através

da interação proporcionada pelo espaço público, com base em argumentos racionais. O agir

comunicativo servindo-se da autonomia das vontades (um dos princípios basilares da

economia capitalista) e do regime democrático constitui-se na força propulsora do espaço

público.

Os princípios ético-morais, mesmo com o inconveniente de provocar uma incerteza

quanto à sua definição, são considerados essenciais para a legitimação da jurisdiçã

constitucional porque representam uma tentativa de garantir conteúdo ao regime

democrático, uma esperança de equalizar o fático e o normativo dentro de uma perspectiva

de consolidação dos direitos fundamentais. Eles garantem a densidade ontológica do

procedimento judicial, sem que estes possam servir de obstáculo para o desenvolvimento do

espaço público.

Os parâmetros que delineiam o procedimento judicial das decisões não podem ser

cambiantes, pois segundo a especificidade dos casos, eles devem ser constantes para

solidificar a segurança jurídica, tão importante ao ordenamento. As diretrizes do

procedimento devem ser estipuladas pelas normas jurídicas e pelos vetores ético-morais

imperantes na sociedade.

Os tribunais constitucionais não devem substituir o Poder Legislativo, mas os

dispositivos constitucionais devem ser cumpridos e essa se revela a sua função mais

sublime. Elas devem se tornar o esteio para a concretização dos direitos fundamentais. A sua

atuação como legislador negativo somente deve ser verificado quando o Legislativo

descumprir as cominações procedimentais que legitimam a produção jurídica. Como

legislador positivo, o Poder Judiciário somente pode atuar para garantir a realização dos

comandos normativos da Constituição e na extensão do programa normativo expresso.

A solução para a crise de legitimidade por que passa a jurisdição constitucional, ao

cumprir suas extensas funções, condizentes com um Estado Social que ampara os direitos

dos cidadãos, é segundo Habermas densificar a taxionomia democrática de suas decisões,

por intermédio de uma concepção procedimental da Constituição, que tente buscar uma

310

maior legitimidade das decisões da jurisdição constitucional por argumentos racionais

construídos no espaço público.

O Poder Judiciário deve zelar pela integridade de aplicação da Constituição,

verificando se os procedimentos necessários e os parâmetros ético-morais foram seguidos e

se a decisão tomada se legitimou nas discussões travadas no espaço público.

Para Habermas, a racionalidade constitucional deve ser amparada por princípios

ético-jurídicos, traduzida em argumentos que obtém legitimidade no espaço público,

garantindo assim às decisões da jurisdição constitucional uma certa previsibilidade. Ensina o

mencionado autor: “A racionalidade legitimante da Corte Constitucional (proveniente da

Constituição) vem especificada na perspectiva da aplicação jurídica, não na perspectiva de

um legislador que interpreta e desenvolve o sistema dos direitos perseguidos no sentido da

“policy”. A Corte utiliza-se de uma estrutura racional já confeccionada pelo legislador e

legitimada na sua elaboração e a aplica em um caso singular de maneira coerente e

sintonizada com os princípios jurídicos vigentes. Mas desta racionalidade, a Corte não pode

dispor de forma livre para interpretar e desenvolver, em sede jurídica, o sistema dos direitos

(que estalaria um espécie de legislação implícita).”423

Pode-se traçar algumas simetrias entre Habermas e Häberle no sentido de que ambos

têm o escopo de democratizar de forma mais incisiva as decisões da jurisdição

constitucional, sendo estas expostas ao debate público, principalmente no concernente à

ampliação dos intérpretes da Lex Mater. A diferença está em que a base da teoria

habermasiana reside na racionalidade dos procedimentos que antecedem a decisão judicial,

assumindo o processo judicial um caráter procedimental.

O alicerce de fundamentação da jurisdição constitucional reside no consenso obtido

pelos cidadãos, como participantes da produção de um discurso racional, possibilitado pelo

agir comunicativo; enquanto que o ordenamento jurídico garante a plenitude da autonomia

privada que é um pré-requisito para a livre participação na formação do discurso racional,

sem que haja a submissão de uma dessas esferas à outra. A jurisdição constitucional tem a

423 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva Del Diritto e Della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizione Guerini e Associati, 1996. P. 311-312.

311

missão de assegurar que o ordenamento jurídico cumpra essa função: velar pela autonomia

privada. O modelo habermasiano de legitimação constitucional tem como essência

procedimentos que têm o objetivo de resguardar o desenvolvimento do regime democrático

de forma que possibilite a participação mais ampla possível dos cidadãos.

Ele planteia a teoria de legitimação da jurisdição constitucional, através de um

procedimento calcado no agir comunicativo. Critica as teorias substancialistas de

legitimação porque elas teriam um traço autoritário, na medida em que impõem à realização

de valores materiais contidos na Constituição, desestimulando a participação dos cidadãos

nos espaços públicos porque alça a jurisdição constitucional como última referência.

Habermas desaprova o que denomina de “colonização do mundo da vida”, processo

provocado pela expansão da jurisdição constitucional que tolhe a autonomia privada dos

cidadãos, diminuindo a sua margem de atuação.

O argumento mais importante utilizado por Habermas para explicar a sua rejeição às

teses substancialistas é porque na aplicação dessa essência, contida no texto constitucional, é

descurado o pluralismo sócio-político-econômico, existente nas sociedades atuais, onde há

uma ampla fragmentação de classes sociais, que impede o estabelecimento de substâncias

que contemplem os interesses de todos os segmentos sociais.

Segundo Lenio Streck, Habermas propõe que o tribunal constitucional deva ficar

limitado à tarefa de compreensão procedimental da Constituição, restringindo-se a preservar

os procedimentos de criação democrática do Direito.424

A importância de Habermas para a legitimação da jurisdição constitucional está na

sua conexão com a vontade popular, emanada do espaço público, com base no agir

comunicativo. A sua teoria procedimental não é pura como a defendida por Luhmann, pois

entende que os paradigmas ético-morais orientam as decisões judiciais. Mas, a

concretização da legitimação realiza-se pelos procedimentos que propiciam o consenso no

espaço público, e essa é a essência de sua teoria.

424 STRECK, Luiz Lenio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2002. P. 138.

312

13.2) A Questão da Legitimidade em Luhmann

A concepção de Luhmann para a fundamentação da jurisdição constitucional passa

ao largo de uma conexão com o regime democrático ou com valores axiológicos. Ele a

alicerça em procedimentos judiciais, que são autônomos em relação aos outros subsistemas,

e busca a aceitação dos cidadãos de forma autopoética. Como teoria procedimental da

jurisdição constitucional, ele defende que o procedimento inerente às decisões judiciais, por

si só, é condição suficiente para legitimar a jurisdição constitucional, mesmo que seus

posicionamentos tragam grande repercussão social.

O seu conceito de legitimidade não permite uma ligação direta com os interesses dos

atores sociais, fazendo com que as decisões judiciais obtenham consenso porque houve

participação dos jurisdicionados, no seu processo de elaboração. Para o mencionado autor,

não há necessidade de construção de um espaço público para a participação dos

jurisdicionados como planteado por Habermas.425 Para ele, as normas são legítimas na

medida em que são capazes de realizar uma aceitação do seu processo de decisão. O que

garante legitimidade às decisões judiciais é o seu procedimento jurídico, que tem seu ponto

inicial no primeiro ato jurídico e a sua conclusão com a decisão final.

O fator teleológico dos procedimentos judiciais é possibilitar a aceitação, por parte

dos jurisdicionados, da decisão final. Antes dos interessados ao pronunciamento judicial

recorrerem ao Poder Judiciário, há o conhecimento da existência de procedimentos judiciais,

previamente estabelecidos, que definem a amplitude de suas atuações comportamentais,

garantindo a aceitação da decisão antes da sua concretização. Teoricamente, os

425 De uma forma sintética podemos apontar as principais diferenças entre a teoria procedimental de Habermas e Luhmann: desnecessidade de construção de um espaço público para este; A influência de preceitos morais resulta na des-diferenciação entre o direito e a moral. De igual forma veda a influência de questões de natureza política; A legitimidade pelo procedimento de Habermas não ocorre apenas intra ordenamento jurídico, ela necessita para se consolidar também de elementos extra-sistêmicos, como o espaço público e vetores ético-morais; com Luhmann a legitimidade necessita apenas de elementos intra-sistêmicos, hauridos do próprio procedimento judicial.

313

procedimentos são “neutros”, de forma que mantenham um posicionamento eqüidistantes

das partes, advindo no subconsciente coletivo uma idéia de imparcialidade.

O procedimento judicial não tem a função de produzir um consenso entre as partes

litigantes, seja qual for a matéria presente na lide, sua missão é tornar as decisões aceitáveis,

evitando resistências que inviabilizassem a concretude do sistema. Seu principal escopo

configura-se em imunizar as decisões judiciais por intermédio de um procedimento “neutro”

que garanta “iguais direitos para as partes”. O significado da expressão “imunização das

decisões judiciais” sé torná-las aceitáveis pelos participantes da relação processual, como se

houvesse um pacto implícito entre as partes para a aceitação do veredictum proferido pelo

Poder Judiciário.

Preleciona Tércio Ferraz Sampaio Jr: “Para Luhmann, sendo a função de uma

decisão absorver e reduzir insegurança basta que se contorne a incerteza de qual a decisão

ocorrerá pela certeza de que uma decisão ocorrerá, para legitimá-la. Em certo sentido

Luhmann concebe a legitimidade como uma ilusão funcionalmente necessária”.426

Os procedimentos judiciais estabelecidos pelo ordenamento, absorvem as decepções

das partes envolvidas no conflito. Por um lado, eles norteiam de forma direta a solução da

lide, entretanto, por outro, destituem todos os seus elementos empíricos, isolando e

despolitizando o cidadão, com a utilização de um código de conduta próprio que é

hermeticamente fechado a vetores axiológicos da seara fática. Os procedimentos jurídicos

não visam conseguir a formação de consenso, mas formar uma imagem exterior de

aceitação.

Habermas assevera que a legitimidade pelo procedimento, sem uma sincronia com o

espaço público, é uma auto-ilusão, com a finalidade de estabilizar o sistema, onde todas as

controvérsias são esgotadas no próprio ordenamento normativo, solucionadas pelo código

jurídico.427

426 SAMPAIO JR, Tércio Ferraz. Apresentação. In: LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 6. 427 HABERMAS, Jurgen. Direito e Moral. Trad. Sandra Lippert. Lisboa: Instituto Piaget, 1992. P. 73.

314

Portanto, diante desse pórtico an passant do pensamento de Luhmann a respeito da

legitimação pelo procedimento, pode-se depreender que a legitimidade da jurisdição

constitucional para ele reside no próprio procedimento, apoiando-se no poder persuasivo dos

dispositivos normativos e nos vetores oferecidos pelas normas jurídicas. Os dados empíricos

advindos do meio ambiente somente seriam passíveis de avaliação depois de serem

codificados para a linguagem sistêmica, por intermédio de estruturas seletivas, “membranas

de calibração”, tornando-se parte do procedimento.

Para Luhmann, os códigos binários têm uma função essencial, ao mesmo tempo em

que permitem a autonomia do sistema jurídico, possibilitam a base de sua interação com o

meio ambiente, mesmo que para isto tenham que utilizar uma linguagem específica, que

dificulte a percepção dos cidadãos comuns.428 Para ele, a finalidade da jurisdição

constitucional não é garantir a unidade sistêmica do Direito, de acordo com uma estrutura

em que a norma inferior deveria estar dentro dos parâmetros de validade ofertada pela norma

superior, como planteado por Kelsen. Seu escopo é servir como um instrumento auto-

referencial do ordenamento jurídico, assegurando que nenhuma interferência antípoda ao

Texto Constitucional possa interferir no funcionamento sistêmico.

Segundo o mencionado autor, os procedimentos organizados pelo ordenamento

jurídico constituem-se nos atributos mais extraordinários do sistema político das sociedades

modernas, ou ao menos representam a fachada desses sistemas.429 O grande problema, ainda

segundo o mencionado autor, é que não há um parâmetro previamente definido do conteúdo

das decisões, passível de ser determinado por critérios objetivos. E é por esse motivo que

existe uma dificuldade de se formar uma teoria homogênea sobre os procedimentos

judiciais.

A saída, segundo ele, não estaria na teoria pura do direito, que não trata de

procedimento e sim de direito processual, nem na sociologia pura que busca elementos

428 BARALDI, Cláudio; CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena. Semântica e Comunicazione. L’evoluzione delle idee nella prospettiva sociológica di Niklas Luhmann. Bologna: Clueb, 1987. P.49. 429 LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 17.

315

fáticos para o enquadramento dentro de uma regra geral, mas na construção de um sistema

sociológico de procedimento judicial, com base em dados empíricos.

Os procedimentos jurídicos entendidos como processos de decisão não têm a

finalidade de concretizar parâmetros de justiça.430 As fundamentações do direito natural

foram decompostas através da positivação do direito, alicerçando-se em torno de processos

de decisão. A necessidade inexorável de sempre os procedimentos realizarem uma decisão

correta não assegura que essa decisão será a mais justa. Para Luhmann um sistema que tem a

missão de sempre implementar uma decisão para as questões suscitadas não pode, de forma

simultânea, garantir a justiça da decisão; a realização de uma função exclui a outra de forma

obrigatória.431

O processo de legitimação pelo procedimento pressupõe a aceitação das premissas da

decisão e, inelutavelmente, da própria decisão. O critério de aceitação da decisão não pode

ser subjetivo, dependendo de fatores internos e externos que circundam os litigantes; ele

deve ser objetivo, estruturado formalmente no procedimento, impondo que os litigantes

obedeçam sempre às decisões, mesmo que elas firam seus interesses.

430 A legitimação pelo procedimento substitui os fundamentos da escola jusnaturalista e as diversas teorias de obtenção da legitimidade por intermédio do consenso. O procedimento garante legitimidade às decisões judiciais, gozando de autonomia, sem depender de parâmetros de justiça para a sua conclusão. 431 “Nenhum procedimento pode prescindir de verdades nesta função específica; de outra forma perder-se-ia num poço sem fundo de possibilidades sempre diferentes. Determinadas observações e determinadas conclusões têm de ser garantidas como obrigatórias. Há sempre um sentido que não pode ser negado sem tirar aquela relevância, e um dos resultados essenciais do método comunicativo em muitos procedimentos consiste em agrupar de tal forma o sentido confirmado que se torna diminuto o espaço de manobra da decisão. Está igualmente fora de dúvida que tanto hoje como anteriormente, verdades com este sentido específico não são suficientes todos os problemas com uma absoluta certeza intersubjetiva. Por isso, uma teoria do procedimento necessita dum ponto de vista mais abstrato de relação funcional, que inclua o mecanismo da verdade, mas que não se esgote nele. É natural que para isso se apóie na função da verdade e, partindo dela, se procurem outros mecanismos de transmissão funcionalmente equivalentes, de complexidade mais reduzida. Aí deparamos com o mecanismo do poder e o problema de sua legitimidade.” LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 26.

316

13.2.1) O Procedimento como Subsistema Social

Uma das essências do pensamento luhmanniano é a concepção de procedimento

judicial como subsistema social. O seu objetivo é diminuir a complexidade que o circunda,

entendida esta como uma ampla gama de possibilidades que influenciam as decisões da vida

real, seja exterior, complexidade extra-sistêmica, seja interior, complexidade intra-sistêmica.

O procedimento judicial assume grande proeminência, tornando-se a base de

validade das decisões processuais. A validade, inserção da norma no ordenamento jurídico,

para Luhmann relega a sua influencia kelseniana, cuja norma superior valida a norma

inferior, e a mesma a influência sociológica, calcada no apoio social, e passa a residir no

procedimento, consubstanciando-se paulatinamente de acordo com o desenvolvimento

social.

Há uma tendência crescente de complexidade das sociedades ocidentais do capitalismo

avançado devido à amplitude de sua infra-estrutura econômica. À medida que a economia

capitalista diversifica a cadeia produtiva, diferentes serão as relações de produção e

necessariamente diversas serão as necessidades almejadas pelos cidadãos, o que exige do

Estado uma capacidade enorme para implementar políticas que possam atender a todas essas

demandas

O ambiente exterior tende a ser mais complexo que o interior, já que dentro do

sistema existem princípios que funcionam como “membranas de calibração”, filtrando as

informações que entram, convertendo-as em elementos assimiláveis pelo código imperante

no seu interior.

A redução da complexidade é uma função realizada pelas estruturas sistêmicas, na

medida em que generalizam as expectativas de comportamento de forma ampla.432 Elas

432 “A complexidade própria dum sistema de procedimento depende, essencialmente, da complexidade da tarefa de decisão. Esta, por sua vez, depende da medida em que as premissas de decisão devam ser pressupostas ou procuradas”.. LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 46.

317

reduzem a complexidade do sistema porque ostentam uma seletividade dupla, uma do

próprio processo de sua escolha, e outra da filtragem dos elementos do meio ambiente de

acordo com seus parâmetros. As estruturas do sistema social do procedimento jurídico

reduzem o grande número de possibilidades de comportamento possível de acordo com

dispositivos normativos previamente determinados.433 Elas são formadas por normas gerais,

válidas para os mais diversos procedimentos judiciais, com o objetivo de estabelecer as

regras de funcionamento do sistema.

As estruturas, além de operar uma redução na complexidade do sistema, têm a não

menos importante função de garantir sua autonomia, já que através delas os elementos do

meio ambiente são calibrados em uma linguagem que possa ser perceptível para os seus

elementos internos. Elas transformam os dados provenientes do meio ambiente em códigos

que são utilizados internamente, fazendo com que o funcionamento sistêmico ocorra por

intermédio de expectativas próprias e não devido a interferências externas.

Quanto maior for a diferenciação entre o funcionamento do sistema de procedimento

jurídico e o meio ambiente, maior será o seu grau de autonomia. Assim, a autonomia e a

conseqüente diferenciação com o meio ambiente reduzem a complexidade da seara fática e

garantem a concretização da legitimação pelo procedimento.

A auto-referência do sistema jurídico é uma decorrência da formação de um código

binário interno, que a partir de tal distinção garante a sua unidade. Este código se configura

como um grupo de símbolos que permite uma comunicação entre as pessoas. Para

Luhmann, o código apresenta duas características principais: generalização simbólica e

estrutura binária.A primeira consiste em que os símbolos devam representar a pluralidade de

elementos como uma unidade, tornado-os passíveis de comunicação, ao possibilitar maior

quantidade de elementos inteligíveis. A segunda regulamenta o código por intermédio de 433 “Como todo sistema, o procedimento reduz a complexidade do mundo circundante selecionando determinadas alternativas de conduta em detrimento de outras que não são interiorizadas e que não podem ser argüidas, não importando em que medida tenham a ver com a realidade dos fatos. De nada adianta argumentar que determinada prova dos autos foi forjada se não se puder faze-lo através das regras pré-fixadas na estrutura do próprio procedimento, tais como a apresentação de provas em contrário, dentro da forma prescrita em tempo hábil etc. Se isso não for possível, a parte prejudicada vê-se constrangida a aceitar a decisão como legítima, embora permaneça convencida de que foi ludibriada”. ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica. Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2003. P. 64.

318

uma estrutura binária, sempre com duas alternativas de possibilidades para cada, sendo,

portanto, uma com valor positivo e outra com valor negativo, de modo que cada formulação

se depare com sua negação para realizar a seleção.434

Cada subsistema social tem um código binário próprio que realiza uma

especialização-diferenciação de seu processo comunicativo, permitindo o fluxo contínuo de

inputs e outputs de forma circular, sem que as características que orientam o sistema possam

ser comprometidas.

Na verdade, o procedimento inerente às decisões judiciais da jurisdição

constitucional não formam um subsistema social, nem ao menos em interação com os outros

subsistemas. Ele é importante para a fundamentação da jurisdição constitucional, mas

constitui apenas um dos seus elementos. A fundamentação da jurisdição constitucional de

forma autopoética impede a sua densificação porque cerceia a interferência da sociedade. As

“membranas de calibração” se configura em um ardil para justificar as decisões judiciais da

tutela constitucional em elementos exclusivamente de natureza técnica.

13.2.2) A Autonomia do Procedimento Judicial

A condição sine qua non para a existência do sistema de procedimento judicial é a

sua autonomia, concretizada na diferenciação estrutural frente às suas próprias estruturas e

àquelas específicas ao meio ambiente.435 Essa diferenciação não significa o isolamento do

sistema procedimental, as informações do meio ambiente devem ser agasalhadas, porém

mediante um código próprio que permita que o sistema estabeleça relações exteriores e

434 BARALDI, Cláudio; CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena. Semântica e Comunicazione. L’evoluzione delle idee nella prospettiva sociológica di Niklas Luhmann. Bologna: Clueb, 1987. P. 47-48. 435 “Presente nos ideais cientificistas que caracterizam, em parte, o pensamento iluminista, a razão centrada no sujeito levou a tecnificação e a autonomização sistêmica das esferas do estado e do mercado. Com tal processo de autonomização, esses subsistemas passaram a exercer uma coordenação automática da vida do homem concreto, que está no mundo vivido, dispensando-se da necessidade de justificar discursivamente suas ações”. SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. P. 291.

319

possa ser continuamente realimentado (inputs), sem prejuízo para a sua autonomia.436

Quanto maior for a diferenciação do sistema do procedimento judicial com o meio ambiente,

menor será as possibilidades de que elementos fáticos, de forma isolada, possam servir de

parâmetros para a decisão judicial.

A característica dessa autonomia é que o procedimento judicial se desenvolve

mediante critérios internos, formulados por sua própria estrutura, não sendo o seu

funcionamento direcionado por critérios externos. A autonomia do sistema de procedimento

será maior na medida em que maior for a diferenciação do referido sistema com as relações

predominantes na sociedade, todavia esse requisito, por si só, não se configura como

condição essencial para assegurar a autonomia.

De acordo com os mandamentos normativos, o procedimento judicial tem uma ampla

seara de atuação para o desenvolvimento das atuações comportamentais dos participantes do

processo, e esse espaço extenso de atuação somente pode ser estabelecido porque o seu

escopo não é a busca de uma verdade, no sentido ontológico, predominando a incerteza

sobre a concretização da decisão final. Essa incerteza quando a decisão final é que garante

uma margem de manobra comportamental aos participantes.

O desempenho dos “papéis” pode afetar a decisão do procedimento judicial e de

acordo com a sua relevância pode ser-lhe atribuído maior ou menor credibilidade. Até

mesmo os juízes podem ser influenciados pela relevância de alguns “papéis” na hora de

prolatar as suas decisões.

Não obstante, essa influência deve ficar restrita às disposições normativas,

mormente às de caráter extra-sistêmico. O juiz ao prolatar a sua decisão não pode realizá-la

sob o influxo de argumentos extra-jurídicos, a isenção a estas interferências é uma condição

436 A teoria dos sistemas de Luhmann parte do pressuposto de que as estruturas internas reduzem a diferença entre o sistema e o meio ambiente, operando uma seletividade nas informações provenientes do exterior. Essas estruturas são essenciais para a auto-referência do sistema, mesmo que comprometa os canais de ligação com a sociedade. Para a teoria luhmanniana, a complexidade apenas provoca uma evolução sócio-cultural quando provoca uma modificação na estrutura da sociedade, no que compromete a auto-referência. BARALDI, Cláudio; CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena. Semântica e Comunicazione. L’evoluzione delle idee nella prospettiva sociológica di Niklas Luhmann. Bologna: Clueb, 1987. P.41.

320

institucionalizada para a autonomia do sistema, uma obrigação para a construção de uma

decisão objetiva e imparcial, que garante a concretização do princípio isonômico.

Assinala Luhmann: “A canalização e controle das influências sociais através da

legislação, portanto a positivação do direito, constitui uma condição prévia essencial da

autonomia social da evolução leal da decisão. O juiz retira o seu parecer do direito escrito,

onde se definem quais são os fatos e qual o sentido em que são relevantes para a decisão e

não já diretamente a idéia do verdadeiro e do justo que lhe foram impostas numa

organização visualizada da vida social.”437

O procedimento jurídico sempre terá como seu ponto culminante uma decisão, o que

é uma conseqüência inexorável. E como garantia de sua aceitação, ela deve se manter incerta

até o momento da sua prolatação final. A principal condição que faz com que os

participantes venham a aceitar essa decisão, independente do seu conteúdo, configura-se na

incerteza quanto ao seu posicionamento, podendo ela atender aos anseios de qualquer um

dos dois postulantes, aos anseios dos dois ou a de nenhum.

Esse é o incentivo que garante que os participantes contribuirão para o

desenvolvimento do procedimento e mantém vivas suas esperanças no sucesso. Essa

esperança na obtenção das expectativas acalentadas garante que os participantes processuais

aceitem a representação de um determinado “papel”. Em suma, a incerteza quanto ao teor da

decisão é o que garante que os postulantes desempenhem os seus “papéis” processuais.

Uma sociedade, que não tenha mecanismos mínimos para a resolução de conflitos,

corre o risco de que esses degenerem o tecido social. Em sociedades complexas como as

pós-modernas, as litigâncias que surgem devem ser resolvidas por procedimentos judiciais, a

utilização da justiça privada tornou-se um instrumento passível de utilização para

pouquíssimos casos.

Uma das características mais importantes do procedimento judicial é que ele permite

uma relação contraditória entre duas partes, institucionalizando por meio de mandamentos

437 LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 56.

321

normativos o conflito, com o desiderato de operacionalizar uma decisão que ponha fim à

litigância. A centralização da resolução dos conflitos por meio de dispositivos jurídicos é

uma das principais finalidades do ordenamento jurídico.

O primeiro requisito para a institucionalização do conflito por meios jurídicos é

despersonalizar a querela, desfigurando os seus traços pessoais, evitando a generalização do

conflito para além do objeto posto, sob apreciação judicial. Para isto, deve ser retirado da

esfera dos litigantes as “armas” disponíveis na seara fática e verbalizar seus interesses por

meio de argumentos jurídicos. O procedimento judicial deve especificar o objeto em litígio

para, de forma mais fácil, decidir a seu respeito e absolver paulatinamente o

descontentamento dos participantes.

Despersonalizando a lide, retirado qualquer oportunidade de resolução do conflito

por meios não-jurídicos e transformando os interesses em argumentos jurídicos, o campo

conflitivo retira-se da esfera fática e passa a ser regulamentado pela esfera jurídica. Pois, há

uma transmutação do conflito de interesse, que não mais ocorre por questões fáticas, mas

exclusivamente por questões jurídicas. Esclarece de melhor forma Luhmann: “Uma das

fontes de tensão reside no grau de diferenciação de personalização da declaração de ambos

os lados. A pessoa do decisor tem de ser desligada da declaração, pois a decisão deve

aparecer como uma conseqüência de normas e fatos. Por outro lado, a pessoa que recebe a

decisão deve constituir para ele uma premissa de comportamento e deve alcançar o seu

objetivo pela aceitação como premissa de decisão.”438

O segundo requisito para a instituição do conflito por parâmetros legais é que o

aparelho de decisão judicial deve tratar os participantes de forma igual, garantido a plenitude

do preceito isonômico.A igualdade das partes é um dos procedimentos essenciais para o

procedimento judicial porque densifica a incerteza quanto ao direcionamento da sentença,

fazendo com que os participantes cumpram o seu papel e se sintam co-responsáveis pela

decisão.

438 LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 92.

322

Um terceiro requisito que pode ser mencionado é a necessidade imperiosa de

imparcialidade do juiz, o que de pronto afasta o judex inhabilis e o judex suspectus. É a

imparcialidade do membro do Poder Judiciário que assegura a incerteza quanto à conclusão

do processo, configurando-se em uma das precondições mais indeléveis para o engajamento

dos participantes no procedimento judicial, velando pela imaculabilidade da decisão. Para

Luhmann, os juízes são representantes da burocracia pública. E por serem imparciais e

neutros, adequando suas decisões ao formato legal, não respondem pelas conseqüências

práticas de suas decisões. O exercício das funções do Poder Judiciário não tem outra

finalidade a não ser a aplicação imparcial da lei.

Se para o Poder Judiciário os participantes processuais são iguais, se há uma

despersonalização do conflito e se o antagonismo de interesses passa a ser jurídico, então,

abre-se a possibilidade para uma moderação da contenda processual, propiciando que o

procedimento processual seja o locus privilegiado para a resolução institucionalizada dos

conflitos.

A conseqüência da autonomia da estrutura sistêmica é que o procedimento judicial

permite uma certa esfera de decisão por parte dos participantes do processo, obviamente que

de acordo com as estruturas normativas. Ele não pode ser entendido como uma seqüência de

atos predeterminados para o exercício de uma ação. O procedimento deve resultar em uma

decisão, mas, de acordo com a postura que as partes vão adotando ao longo do processo, e

não, como um ritual em que apenas uma única ação deva se considerada como certa e que a

realização de uma devesse desencadear obrigatoriamente outra, excluindo a possibilidade de

escolha.

O procedimento não tem o seu desenvolvimento estabelecido por um mecanismo

próprio, determinado a priori, mas através de decisões seletivas de seus participantes, que

vão de acordo com suas expectativas eliminando as alternativas apresentadas por meio de

suas decisões, no que, paulatinamente, reduzem a indeterminação do sistema. Os

participantes do sistema não são obrigados a tomar determinadas decisões, pois elas vão

sendo estabelecidas por suas próprias vontades e em conseqüência daquelas que foram

323

tomadas pela parte contrária. Essa liberdade do sistema jurídico permite que os participantes

possam formular críticas e alternativas e mantê-las em suspenso por algum tempo.439

Não que a possibilidade de escolha de modelos comportamentais possa estorvar a

cominação, que deriva das normas jurídicas. Estas são predeterminadas e permanecem

constantes, ao alvedrio do legislador; mas ao lado dos dispositivos normativos igualmente

existe uma margem para a construção de expectativas comportamentais que orientarão as

decisões do procedimento. A escolha dos modelos comportamentais, dentro do espaço

delineado pelas normas jurídicas, constitui também um processo de seleção, realizando uma

restrição em relação às informações provenientes do meio ambiente.

Dessa forma, alicerçando-se na autonomia dos sistemas e na estrutura

comportamental que admitem a possibilidade de escolha de modelos comportamentais,

pode-se dizer que o procedimento judicial permite aos participantes a representação de

diferentes “papéis” que terão que desempenhar, vinculando sua própria personalidade e

ocasionando relações com outros “papéis” assumidos no procedimento.440 Dentro de um

processo judicial, há vários “papéis” que podem ser assumidos, tais como: juiz, acusador,

testemunha, escriturário, réu, postulante etc., e dentro dessas representações, inúmeros

interesses que podem direcionar o seu comportamento.441

439 O comportamento dos participantes assume relevante papel no desenvolvimento do procedimento. Na maioria dos casos, eles têm momentos determinados para tomar as decisões, sob pena de preclusão, devendo, por isso, arcar com o ônus daquelas decisões que foram tomadas e daquelas que não o foram. “Os participantes cooperam na determinação da história do processo jurídico”. LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 42. 440 “Diferenciar os papéis significa delimitar as alternativas de comportamento atribuídas a cada um deles: o juiz, por exemplo, não deve assumir o tom irônico do promotor público ao interrogar uma testemunha; o escrivão não deve manifestar-se. Caso o façam, os transgressores vêem-se constrangidos a justificar sua atitude, uma vez que abandonaram a conduta (postura, atos, linguagem etc.) que seus papéis faziam esperar deles. Adaptando-se ao papel, por outro lado, a pessoa vê-se garantida pelo sistema e tem suas atitudes previamente “justificadas”, ou seja, legitimadas. Em nível externo, por sua vez, o funcionamento adequado dos papéis assegura a auto-legitimação do sistema contra eventuais contingências advindas de possibilidades não previstas (complexidade)”. ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica. Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2003. P. 65. 441 A adoção de “papéis” foi no seu início uma teoria essencialmente sociológica, desenvolvida por George Herbert Mead. Ela parte do pressuposto de que o cidadão se espelha em condutas de outros como perspectivas próprias e individuais.O cidadão, tomando como referência a conduta de outro, pode alicerçar-se nessa conduta como analogia para construir a sua própria. Adotando uma representação alheia, como simetria, ele pode construir a sua. Em suma, poder-se-ia dizer que a adoção de “papéis” representa um mecanismos de auto-identificação, em que o cidadão sedimenta a sua identidade com a ajuda de “papéis” desempenhados por outros.

324

De qualquer forma, pode-se dizer que a representação mediante a adoção de “papéis”

também funciona como uma válvula de escape para as contrariedades, críticas e objeções

com relação ao conteúdo da decisão. Através da participação no processo, os litigantes se

tornam partícipes da decisão, vislumbrando a hipótese de direcioná-la para seus interesses. A

participação no processo contribui para a formação de um sentimento de co-

responsabilidade pela decisão judicial, afinal os postulantes igualmente foram artífices da

sua construção. Portanto, a atuação dentro das perspectivas comportamentais e a adoção de

“papéis” formam um mecanismo de imunização da sentença.442

A decisão judicial, como conseqüência da autonomia sistêmica, faz uma

diferenciação entre elementos de direito e elementos de fato, evitando que o procedimento

judicial possa se tornar um prolongamento do meio ambiente. A diferenciação do

procedimento judicial obriga que a decisão não possa ser exclusivamente amparada em

elementos fáticos, que não foram codificados para a linguagem interna do sistema.. Os

participantes têm que escolher as normas de acordo com os fatos, mas devem da mesma

forma escolher os fatos de acordo com a norma.443

De forma alguma se configura objetivo da decisão judicial buscar um consenso entre

as partes litigantes, o seu escopo premente é encerrar o processo com uma sentença, que fará

coisa julgada material e formal. A busca de consenso dentro do procedimento judicial

envolveria questões psíquicas que são de difícil solução por moldes normativos, fazendo

com que o sistema perdesse a sua consistência sistêmica.444

442 Destarte, o procedimento judicial deve exercer um controle sobre essa representação. As normas jurídicas sancionam de várias formas a inconsistência dos participantes processuais, como no caso daquele que falta com a verdade no processo, sendo punido com a tipificação do crime de falso testemunho, ou daquele que pleiteia em juízo com má fé, punido com uma sanção pecuniária. Mas não são apenas os dispositivos normativos que garantem a consistência da representação, a formalidade do ambiente jurídico também contribui para inculcar a fidelidade ao cumprimento das obrigações procedimentais. A manutenção da consistência no desempenho dos “papéis”igualmente é mantida pelas decisões tomadas pelos participantes, impedindo que eles possam voltar ao que foram decidido, ou seja, uma vez tomada uma decisão, na maioria dos casos, ela não mais pode ser desfeita pelos participantes. 443 LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 63. 444 Formar um consenso converter-se-ia em interiorizar instituições, ao mesmo tempo em que exigiria a obtenção da convicção de pessoas e envolveria instáveis elementos psíquicos que fogem ao objeto de análise das normas jurídicas. Ao construir uma teoria independente da busca de consensos passa-se a não depender da variedade de personalidades individuais, que contribuiriam para a instabilidade do sistema jurídico. O objetivo

325

Por um lado, tenta-se vincular os participantes ao procedimento judicial com a sua

atuação nas expectativas comportamentais e no desempenho dos “papéis”, como alguém que

teve vários momentos processais para produzir provas no seu interesse, fazendo com que ele

valide a decisão proferida e aceite a imparcialidade com que ela foi realizada. Por outro

lado, esse processo de vinculação do participante ao procedimento judicial provoca o seu

auto-isolamento, fazendo com que a sua revolta não tenha mais sentido porque foi ele

próprio que, ao mesmo tempo em que vincula os participantes ao processo, isola-o caso ele

não se contente com o teor da decisão.

A concepção de autonomia do processo judicial para Luhmann impede o uso de sua

teoria para fundamentar a jurisdição constitucional brasileira, constituindo-se em um acinte

ao regime democrático. Entretanto, é importante estudá-lo para evidenciar a relevância que o

procedimento do controle de constitucionalidade assume para a sedimentação da

legitimidade da jurisdição constitucional, principalmente para o desenvolvimento do seu

caráter dialógico.

13.3) A Legitimação pelos Procedimentos Assecuratórios do Regime

Democrático

As teses procedimentalistas de legitimação da jurisdição constitucional baseadas no

processo assecuratório do regime democrático, no qual se sobressaem às obras de John Hart

Ely e Cass Sunstein, representam uma reação conservadora à intensa atuação da Corte

Constitucional norte-americana, sob a presidência de Earl Warren e em menor intensidade

sobe a presidência de Burger Warren. Esse movimento tem início nos anos oitenta e ganha

um maior impulso sob a presidência de William Rehnquist, que passa a exercer a

presidência da Suprema Corte, por indicação do Ronald Reagan.

central do procedimento judicial é decidir o processo e que todos cumpram o que for decidido por ela, imunizando-se a sentença de veleidades pessoais subjetivas.

326

As teorias de Ely e de Sunstein têm em comum a negação de uma legitimação

substancialista da jurisdição constitucional, advogando que ela deve ter como arrimo apenas

os procedimentos inexoráveis ao desenvolvimento do regime democrático. Também

condenam a atuação construtivista da Suprema Corte, advogando que ela deve se inserir

dentro dos marcos do self-restraint.

13.3.1) A Igualdade de Participação Política dos Cidadãos

Uma das mais importantes teses procedimentalista de legitimação da jurisdição

constitucional é a que procura fundamentar o seu alicerce com base na igualdade de

participação dos cidadãos nas decisões políticas, que tem em John Hart Ely o seu principal

expoente. Esse importante professor norte-americano afirma que a base da legitimação da

jurisdição constitucional não está presente em conteúdos constitucionais, mesmo que sejam

os direitos fundamentais, mas nos procedimentos assecuratórios do regime democrático.

Consonante o seu posicionamento, a função maior da jurisdição constitucional é corrigir os

desvios do processo de representação popular, e não verificar se substratos materiais

(substantive merits) contidos na Constituição estão sendo observados pelas normas

infraconstitucionais.

O seu objetivo é elaborar uma teoria de fundamentação da jurisdição constitucional

que não entre em contradição com os elementos essenciais do regime democrático e que fuja

da falsa polarização realizada pelas duas principais teorias de fundamentação da jurisdição

constitucional: a que postula que o arrimo da jurisdição constitucional é buscar o sentido

original das normas constitucionais, de acordo com a vontade dos “foundations fathers”

(pensamento de quem escreveu a Constituição), ou a que assevera que o órgão que exerce a

jurisdição constitucional tem a incumbência de declarar os valores constitucionais contidos

327

no texto da Carta Magna. Como Ely discorda das duas teorias propõem a criação de uma

nova concepção, baseada na igualdade de participação política dos cidadãos.445

Essas duas teorias são construídas a partir das normas constitucionais para evitar que

sejam tipificadas de incompatíveis com o regime democrático. Todavia, segundo Ely mesmo

partindo de mandamentos constitucionais elas não se coadunam com os procedimentos

democráticos. Buscar a vontade dos “foundations fathers”, teoria que se denomina de

originalismo, não apresenta uma diretriz nítida de fundamentação haja vista a redação

abstrata e abrangente dos dispositivos constitucionais que podem gerar até mesmo um

“paradoxo democrático”, na feliz expressão utilizada por Canotilho, em que as gerações

futuras serão obrigadas a seguir o que fora estipulado por uma geração antecedente.446 A

segunda teoria pode levar ao que Schmitt denominou de tirania dos valores, que consiste em

deixar a incumbência do órgão que exerce a jurisdição constitucional a prerrogativa de

decidir quais são os valores esculpidos na Constituição. Devido ao caráter dialógico dos

mandamentos constitucionais, realizado por normas de textura aberta, os juízes podem

firmar qualquer conteúdo valorativo, mesmo que não haja amparo de estruturas normativas,

tornando os membros do órgão que exerce a jurisdição constitucional guardiões do conteúdo

axiológico da sociedade.

Ely em seu livro mais importante, Democracy and Distrust, argumenta na defesa da

proposição de que a jurisdição constitucional não deve atuar como se fosse um órgão de

elite, impedindo os excessos praticados pelos poderes politicamente responsáveis contra os

valores substanciais agasalhados pela Constituição. Mas, ao contrário, sua concepção é que

ela tem a função primordial de assegurar o processo democrático. Dessa forma, a escolha

dos valores substanciais, que devem ser defendidos pela jurisdição constitucional, não é

445 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. P. vii. 446 “Como pode um poder estabelecer limites às gerações futuras? Como pode uma Constituição colocar-nos perante um dilema contra maioritário ao dificultar a vontade das descendências futuras na mudança de suas leis?” CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998. p. 68.

328

prerrogativa de um tribunal constitucional e sim dos representantes do povo, escolhidos de

acordo com os mecanismos do regime democrático.447

O impulso preponderante para a criação de um sistema de jurisdição constitucional

que tenha uma atuação mais efetiva, o holocausto proporcionado pelos regimes nazi-

fascistas, que possibilitou a formação dos tribunais constitucionais europeus com o objetivo

principal de proteção aos direitos fundamentais, não pode servir de paradigma para a

realidade norte-americana. Os princípios constitucionais que asseguram o funcionamento do

regime democrático foram suficientes para evitar a formação nos EUA de regimes

totalitários e, em razão desses fatos, é que para Ely, o escopo da jurisdição constitucional

deve ser a participação dos cidadãos nas decisões políticas que é um caminho muito mais

eficiente de se evitar que maiorias momentâneas possam cercear direitos da minoria,

discordando da função de concretizar substratos materiais da Constituição.448

Tomando como parâmetro a Constituição norte-americana, afirma que ela é

composta principalmente por normas processuais em detrimento de dispositivos

substantivos. Por exemplo, planteia que o princípio do equal protection of the law tem a

taxionomia processual, na medida em que proporciona a todos condições de participação

igualitária no processo democrático, não podendo esse princípio apresentar natureza

substancial porque as diferenças sociais existentes entre os cidadãos são de ordem natural e

“a vida sem essas diferenças seria impossível”. Da mesma forma, sobre o due process

clause, que muitos autores admitem o seu conteúdo substancial, Ely afirma a sua natureza

essencialmente processual, descabendo a sua utilização para rever a substância contida nos

mandamentos normativos, realizados pelos legisladores.449 Muitos outros juristas norte-

447 ELY, John Hart. “The Apparent Inevitability of Mixed Government”. In: Constitutional Commentary. Número: 2 V. 16, Summer, Minnesota: University of Minnesota, 1999. P. 290. 448 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. P. 181-182. 449 O devido processo legal nos Estados Unidos foi elaborado conjuntamente pelas emendas 5° e 14°. A fundamentação de que o devido processo legal tem natureza substancial advém da 14° emenda que assevera que nenhum Estado poderá negar a qualquer cidadão sob a sua jurisdição a igualdade de proteção perante a lei. Muitas decisões proferidas principalmente durante a presidência de Warren para garantir direitos civis foram baseadas na igualdade de proteção perante a lei.

329

americanos, como Robert Bork, se posicionam do mesmo modo, afirmando que substantive

due process é uma contradição, uma fraude.450

A teoria de John Hart Ely pode ser classificada como uma tese procedimental de

legitimação da jurisdição constitucional porque o seu objetivo é garantir o funcionamento do

regime democrático, sem a intenção de assegurar a concretização de conteúdos mínimos

contidos na Carta Magna. A sua preocupação como os direitos fundamentais restringir-se-ia

apenas quando esses direitos dissessem respeito ao funcionamento dos direitos

fundamentais.

O trabalho desenvolvido por Ely é classificado como procedimental porque a

relevância da atuação da jurisdição constitucional reside nos mecanismos que proporcionam

a todos os cidadãos igualdade de participação política, sendo os direitos fundamentais uma

conseqüência desse procedimento, sem que sejam concebidos como um dado a priori,

porque não existem direitos absolutos e que gozem de consenso em toda a sociedade.

Sintetiza o mencionado assunto Oscar Vilhena Vieira: “A Constituição americana é

para Ely um documento preponderantemente procedimental, voltado a viabilizar o

autogoverno de cada geração. A função dos tribunais é fortalecer a democracia, defendendo

a realização do processo democrático, com a inclusão do maior número e da forma mais

igualitária (politicamente) possível. Sendo os tribunais treinados para assegurar o devido

processo legal – questão de procedimento – e postados fora do campo da política, estariam

mais habilitados que qualquer outro órgão para realizar a fiscalização procedimental do

regime político”.451

Portanto, as decisões proferidas pela Warren Court nos casos Brown v. Board of

Education e no caso loving v. Virgínia não significaram apenas o desmonte da discriminação

450 W. ELY, James Jr. “The Oximoron Reconsidered: Myth and Reality in The origins of Substantive Due Process”. In: Constitutional Commentary. Número: 2 V. 16, Summer, Minnesota: University of Minnesota, 1999. P. 315. 451 VILHENA VIEIRA, Oscar. A Constituição e sua Reserva de Justiça. Um Ensaio sobre os Limites Materiais ao Poder de Reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. P. 215-216.

330

racial contra os negros, mas primordialmente a concretização formal da igualdade que é

essencial para uma ativa participação no processo democrático.452

Ely é adepto da limitação à atuação da jurisdição constitucional, self-restraint,

evitando a sua atuação excessiva que acarreta acintes ao princípio majoritário da soberania

popular. O exercício da jurisdição constitucional deve ser pautado pelo resguardo aos

procedimentos essenciais ao desenvolvimento do regime democrático. A função dos juízes

componentes do órgão que exercem a jurisdição constitucional, sob a perspectiva do self-

restraint da teoria da igualdade de participação política dos cidadãos, pode ser resumida da

seguinte forma: verificar se as normas infraconstitucionais contrariam os mandamentos

constitucionais, sem a utilização de elementos alheios ao “four corners” da constituição;

observar se os representantes populares foram eleitos de acordo como os preceitos

imperantes no regime democrático; cuidar para que as normas infraconstitucionais não

cerceiam a participação da minoria no processo democrático.

Pelo exposto, pode-se depreender que a jurisdição constitucional assume uma função

negativa, garantindo os preceitos contidos na Constituição. Todavia, ela assume uma função

positiva, com atuação mais abrangente, quando o seu escopo for proteger a livre participação

dos cidadãos nas decisões políticas e assegurar os direitos das minorias. Nesses dois últimos

casos a atuação da jurisdição constitucional se mostra mais incisiva, deixando de lado a

política do self-restraint e adotando a política do judicial activism.

Discorda da legitimação substancialista por parte da jurisdição constitucional,

mesmo que seja para garantir a concretização de direitos fundamentais, porque com isto

seria transferido um grande poder aos juízes que exercem tais prerrogativas sem terem sido

alçados em suas funções por meio do voto popular, e nem mesmo terem responsabilidade

política por suas atividades. Com a escusa de concretizar o conteúdo das normas

constitucionais, suas decisões podem impor a concepção prevalecente dos poucos juízes que

atuam no exercício da jurisdição constitucional, descurando dos direitos fundamentais. O

452 ELY, John Hart. “ If at First you don’t Succeed, Ignore the Question Next Time? Group Harm in Brown v. Board of Education and Loving v. Virginia”. In: Constitutional Commentary. V. 15, N.° 2 , Minnesota Law: University of Minnesota Law School, 1998. P. 217.

331

conteúdo das normas realizadas pelo Poder Legislativo pode revestir qualquer substância,

desde que os procedimentos inerentes ao processo democrático sejam respeitados.

A preponderância forcejada em torno do princípio da democracia acarreta o direito

de se autogovernar e esse direito se projeta acima, até mesmo, dos direitos fundamentais.

Destarte, o escopo da teoria de legitimidade do judicial review, no prisma hora analisado, é

garantir o desenvolvimento dos preceitos inerentes ao regime democrático, propiciando a

igualdade de participação política dos cidadãos, concretizando uma verdadeira democracia

participativa. Os direitos fundamentais vigentes, em uma determinada sociedade, são

determinados dentro dos parâmetros delineados pelo regime democrático e não por

intermédio de direitos fundamentais absolutos.

Advoga Ely que a jurisdição constitucional apenas pode incidir sobre aqueles direitos

fundamentais, considerados imprescindíveis para o funcionamento do regime democrático,

que têm por base o princípio majoritário, como os direitos de participação política, o direito

à não-discriminação, liberdade de expressão, de associação, e todos os direitos que sejam

instrumentais a estes, porque derivam do princípio democrático e asseguram sua eficácia.

Assim, como conseqüência da sua teoria não são todos os direitos fundamentais que

deveriam ser protegidos pela jurisdição constitucional, ficando de fora os direitos que não

versam sobre o regime democrático, como o direito à vida, à dignidade da pessoa humana, à

vedação à pena de morte, garantias processuais etc.

Durante o século XIX, a principal característica da teoria constitucional foi o

fortalecimento do controle do governo pela maioria da população e a vontade da maioria se

configura como o núcleo substancial da teoria política norte-americana. Em virtude dessa

característica, a teoria exposta no livro “Democracy and Distrust”superdimensiona o

princípio majoritário, tornando-o o centro gravitacional do regime democrático, mesmo se as

deliberações forem no sentido de tolher direitos das minorias, com exceção dos direitos

inerentes à participação política dos cidadãos. Dentro desse prima, os procedimentos do

regime democrático são mais importantes do que os direitos fundamentais.

Ely defende que mais importante do que a jurisdição constitucional proteger

determinados conteúdos contidos na Constituição é ela ensejar condições para que as

332

minorias possam participar do processo democrático, sustentando suas posições e

verificando se os procedimentos do regime democrático, para formação da opinião pública e

da vontade política, são respeitados.

A jurisdição constitucional tem a função de proteger as minorias apenas quando

houver perigo de que elas sejam excluídas ou prejudicadas do processo de participação

política. Não protegendo nenhum conteúdo da Constituição, afora os inerentes ao regime

democrático, podendo a maioria decidir livremente acerca do conteúdo desses direitos,

mesmo que eles prejudiquem os interesses da minoria, devendo o órgão que exerce a

jurisdição constitucional respeitar a decisão da maioria.

Quando os interesses das minorias fossem desrespeitados, a elas somente restaria o

recurso de se mudar para outro estado ou país, sendo um direito já reconhecido pela

Suprema Corte norte-americana, right to travel from state to state, consubstanciando o

direito ao deslocamento dos cidadãos norte-americanos dentro do seu país. Dessa forma

expõe Ely o seu pensamento: “O direito em discussão nos casos modernos não pode ser

considerado como um simples direito de viajar ou de cruzar os estados, mas,

preferivelmente, o direito de locomoção – o direito, caso exista interesse, de

deslocamento”.453

Consonante a sua concepção, o grande perigo para as sociedades hodiernas não é a

fragilidade da concretização dos direitos fundamentais, mas o risco de que o funcionamento

do regime democrático seja estorvado, impedindo uma real participação efetiva dos

cidadãos, principalmente das minorias que têm maior dificuldade de se inserir nos debates

políticos. O processo democrático deve funcionar de acordo com a igualdade política de

participação dos cidadãos, com estímulo à alternância de poder e com o aprimoramento dos

mecanismos de participação popular. O mau funcionamento ocorre quando o regime

453 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. P. 178.

333

democrático, de forma geral, não estimula a confiança nos procedimentos da igualdade de

participação política dos cidadãos.454

Para John Hart Ely, os representantes eleitos pelo povo não têm condições de reparar

os desvios do regime democrático porque estão inseridos dentro de uma conjuntura política

e, portanto, não têm imparcialidade para permitir que os órgãos estatais possam ser

ocupados pelas mais diversas matizes políticas. Diferente é a situação quando o órgão

incumbido da jurisdição constitucional é um tribunal constitucional, porque os seus

membros não estão inseridos dentro de uma disputa política nem dependem do resultado

eleitoral para a sua sobrevivência. Como estão fora do jogo político, podem velar pela

manutenção das regras que possibilitam o funcionamento e o aprimoramento das regras da

democracia.

Ely discorda de Dworkin, que planteia ter a jurisdição constitucional a função de

proteger os princípios morais estabelecidos pela sociedade. Para ele, os princípios morais

estabelecidos pela sociedade devem ser assegurados por representantes eleitos pelo povo,

dentro dos embates proporcionados pelo regime democrático. Quem deve resguardar esses

princípios são os representantes populares e não juízes que não têm ligação direta com a

vontade popular e, portanto, podem decidir livremente de acordo com suas convicções

pessoais e, até mesmo, em detrimento dos interesses da população.

Ele não acredita na existência de princípios morais que sejam consensuais e neutros,

compartilhados por todas as classes sociais. Devido à fragmentação da sociedade em vários

segmentos, cada qual com os interesses mais variados, a formação de uma moral que

obtenha consenso em toda sociedade se mostra impossível e a atuação da jurisdição

constitucional nesse sentido desfalece de legitimidade por não contar com o apoio popular.

Como inexiste uma única moral social, a atuação da jurisdição constitucional sempre

privilegiará determinados setores sociais e os seus juízes não dispõem de legitimidade para

tal tarefa. Os princípios morais vigentes em uma sociedade devem ser estabelecidos pelos

representantes eleitos pelo povo, que gozam de legitimidade para efetuar tais decisões.

454 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. P. 103.

334

Ponto deficiente na teoria de Ely é a precisão dos procedimentos democráticos que

devem ser assegurados pela jurisdição constitucional, inexistindo uma clara determinação de

como será essa atuação, o que pode ensejar que os juízes apliquem suas próprias convicções

para o desenvolvimento da democracia, sem respaldo dos representantes políticos eleitos

para exercer tal função.455 Deficiência teórica conexa com a descrita supra guarda relação

com a crise que se abate sobre o sistema representativo de um modo geral, em que a

democracia se torna cada vez mais produto de forças elitistas, como a mídia, as forças

econômicas, os conglomerados internacionais, enquanto o povo desempenha cada vez

menos um papel relevante nas decisões políticas. Se a democracia não representa mais o

desaguar da vontade popular e a jurisdição constitucional tem como função preponderante

assegurar a igualdade de participação política dos cidadãos, a crise do regime democrático

igualmente representa a crise da jurisdição constitucional.

A teoria de Ely se configura como um reforço à teoria da representação dos

mandatários populares, não sob o enfoque de valores substanciais que embasam o regime

democrático, mas sob o prisma numérico-estatístico, constituindo esse ponto uma outra

debilidade de sua teoria porque o processo eleitoral pode se tornar um processo eleitoral

elitista, com a exclusão da grande maioria da população. Essa prevalência da quantidade em

detrimento da qualidade, esquecendo a definição dos procedimentos inerentes ao

desenvolvimento do procedimento democrático, sem nenhum valor que possa garantir um

conteúdo mínimo, pode ensejar que o processo de escolha dos mandatários populares se

constitua em um argumento retórico para garantir o status quo dos detentores do poder,

impedindo o autogoverno por parte dos cidadãos.

455 Assim se posiciona Dworkin: “Ely insiste em que o papel adequado do Supremo Tribunal é policiar o processo da democracia, não rever as decisões substantivas tomadas por meio desses processos. Isso poderia ser persuasivo se a democracia fosse um conceito político preciso, de modo que não pudesse haver lugar para discordância quanto a ser ou não democrático um processo. Ou se a expectativa norte-americana definisse unicamente alguma concepção particular de democracia, ou se o povo norte-americano concordasse agora com uma única concepção. Mas nada disso é verdade, como Ely reconhece”. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luiís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 82.

335

Apesar das deficiências da teoria formulada por John Hart Ely sua importância reside

na tentativa de conciliar o controle de constitucionalidade com o princípio majoritário que

ocupa um papel imprescindível no regime democrático.456

13.3.2) A Democracia Política

A análise da legitimação da jurisdição constitucional, com base na democracia

política, tem uma forte tradição na teoria constitucional norte-americana. Um dos seus

principais autores é Cass R. Sunstein, reputado como um dos principais constitucionalistas

dos Estados Unidos na atualidade.

Ele pode ser considerado como um liberal republicano, cuja preocupação é evitar que

a “tirania da maioria” possa obnubilar os requisitos que garantem o funcionamento do

regime democrático, configurando-se como um dos objetivos mais conspícuos da jurisdição

constitucional.457 O princípio majoritário, apesar da sua grande influência na sociedade

norte-americana, não pode ser confundido com o princípio da soberania popular, sendo este

o gênero do qual aquele é a espécie.

Um dos escopos primordiais da teoria de Sunstein é tentar estabelecer ligações entre

a jurisdição constitucional e a democracia política. A jurisdição constitucional deve ser

pautada pelo rule of law, mas ela deve, de igual modo, atender a outros princípios. A

legitimidade do judicial review se concretiza quando ele tem o objetivo de assegurar o

processo democrático, sem obnubilar o sistema do check and balance e o caráter

democrático das decisões.

456 O’BRIEN, David M. “The Framers’ Muse on Republicanism, The Supreme Court, and Pragmatic Constitutional Interpretivism”. In: Constitutional Commentary. V. 8, Number 1, Winter, Minnesota: University of Minnesota, 1991. P. 121. 457 Ressalte-se, como já fora mencionado, que o republicanism é uma concepção política muito ampla, abrangendo diversas matrizes doutrinárias.

336

Para Sunstein o objetivo da jurisdição constitucional é garantir a formação e o

desenvolvimento de uma democracia participativa, com um alto grau de responsabilidade e

participação popular. Este pode ser considerado como o escopo preponderante da jurisdição

constitucional norte-americana.458 Os direitos inerentes à participação democrática são

considerados tão essenciais e imprescindíveis que se configuram como uma qualidade

inexorável da cidadania, evitando a formação de uma sociedade formada por consumidores

regidos por leis de mercado feitas sem a participação popular.459

Sunstein propõe uma reelaboração do pensamento de Madison, sedimentado em uma

“política virtuosa” na qual os cidadãos participariam da política não por motivos egoísticos,

mas por causa de uma vontade de afirmar a sua própria opinião. A Constituição, segundo

ele, é um instrumento contra os governos arbitrários, delimitando o espaço dos entes

públicos para que sua atuação possa contemplar os mais diversos interesses, por meio da

formação de um consenso geral.

Sunstein não faz uma redução da participação política a sua característica de

pluralismo democrático, em que os segmentos sociais lutam para conseguir maiores

alocações de recursos, tenta uma reelaboração do pensamento republicano para adaptá-lo à

construção de uma “grande república”, de acordo com os ensinamentos dos the federalist.

A sua teoria recoloca o papel da jurisdição constitucional nos moldes concebidos

pelo princípio da separação dos poderes, vedando as suas atuações extensivas, exceto em

dois casos específicos: quando se trata de um direito que desempenha um papel crucial no

processo democrático, ou quando determinados grupos minoritários não recebam um

tratamento isonômico no processo político.460 Então, afora esses dois casos específicos, a

jurisdição constitucional deve se ater ao exercício de suas funções delineadas pela separação

dos poderes, contendo o seu ativismo judicial para a concretização de outros direitos.

458 SUNSTEIN, Cass R. “Free Speech Now”. In: The Bill of Rights in the Modern State. Chicago: The University of Chicago Press, 1992. P. 313. 459 SUNSTEIN, Cass. R. Republic. Com. New Jersey: Princeton University, 2002. P. 195. 460 Nesse ponto, como em vários outros, há uma similaridade muito forte entre a teoria formulada por Ely e a formulada por Sunstein.

337

Advoga que o melhor instrumento para a defesa das minorias é o bom funcionamento

do regime democrático, que permite que elas participem das decisões políticas e assim

possam influenciá-las no sentido da adequação aos seus interesses. Os direitos fundamentais

que protegem as minorias são resguardados de forma mais eficaz não pela construção de

uma jurisdição constitucional atuante, mas pelo desenvolvimento de um regime democrático

participativo.

Os direitos fundamentais, de uma forma geral, não são o alicerce primordial para

legitimar a atuação da jurisdição constitucional. Apenas podem exercer essa função os

direitos humanos que garantem a livre participação dos cidadãos no regime democrático,

pois são considerados dados pré-políticos e configuram-se como um limite à soberania

popular. A sua maior preocupação é evitar a “tirania da maioria”. Diversa é a concepção

quanto à gênese dos direitos fundamentais defendida pelos republicanos, para eles, esses

direitos constituem um elemento da tradição histórica e são reconhecidos aos membros

individuais da sociedade como parte de seu próprio projeto de vida e não como segmento de

um dado pré-político, de conotação jusnaturalista.

A maioria dos direitos fundamentais não têm uma gênese em elementos pré-

políticos, sua fonte e a garantia de sua efetivação é a participação política ativa dos cidadãos.

Parte do pressuposto de que os direitos são criados pelos cidadãos no processo democrático

ao mesmo tempo que cria o processo normogenético que regulará a criação das normas

infraconstitucionais. Portanto, ele defende a existência de direitos substanciais na

Constituição, minimalism’s substance, que foram concretizados divido à formação de um

amplo consenso por parte dos cidadãos nas instâncias políticas da sociedade, mas que não

são direitos absolutos e sim relativos, entrelaçados à participação política dos cidadãos.461

Os direitos fundamentais mais preponderantes do ordenamento jurídico, dentro do

seu raciocínio, são os direitos políticos, basic rights of political participation, pois permitem

a plena realização do princípio da autonomia de vontade dos cidadãos. Sua importância é

tamanha que são considerados como auto-referentes, isto é, são direitos primários que a

461 SUNSTEIN, Cass R. One Case at a Time. Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 1999. P. 62.

338

partir deles permitem a realização de novos direitos e a sua posterior tutela jurídica.

Exemplo de um direito apanágio intrínseco do regime democrático é a liberdade de

expressão, freedom of speech, um dos direitos considerados essenciais para a participação

dos cidadãos nas decisões políticas, devendo por isto ser protegido pela jurisdição

constitucional.462

A auto-referencialidade dos direitos políticos decorre do fato de que eles são a

estrutura que permite o desenvolvimento do processo democrático, dotados de taxionomia

procedimental, com a finalidade de garantir que a população tome as suas próprias decisões

políticas. São auto-referenciais porque possibilitam, dentro do regime democrático, a criação

de novos direitos, elaborados a partir desses e se configuram como a base para a legitimação

da jurisdição constitucional.

A maior parte dos direitos fundamentais é caracterizada como produtos inexoráveis

do processo deliberativo e para a sua proteção é mais relevante a defesa do funcionamento

do regime democrático, segundo os parâmetros de liberdade e participação ativa dos

cidadãos, do que a proteção dos direitos fundamentais, por si só, através da jurisdição

constitucional. Destarte, os direitos fundamentais, ao mesmo tempo, em que constituem uma

precondição para o exercício da cidadania, proporcionado a participação de todos os

cidadãos, independente de qualquer condição, são também conseqüências inerentes ao seu

desenvolvimento, criando outros direitos fundamentais a partir do basic rights of political

participation.

Sunstein discorda da atuação da jurisdição constitucional para garantir direitos

fundamentais que não estão inseridos no processo democrático ou que não tenham a

finalidade de propiciar um tratamento isonômico a grupos marginalizados. Conteúdos

materiais da Constituição, mesmo que sejam os direitos fundamentais, apenas podem servir

para invalidar dispositivos infraconstitucionais, com uma atuação mais extensiva da

jurisdição constitucional, quando houver uma falha no sistema político de deliberação dos

cidadãos.

462 SUNSTEIN, Cass. R. Republic. Com. New Jersey: Princeton University, 2002. P. 141.

339

A defesa de uma atuação minimalista por parte das decisões judiciais, restringindo-se

à proteção dos direitos à participação política dos cidadãos e aos direitos das minorias,

apresenta um sólido liame entre democracia e jurisdição constitucional, em que os limites do

exercício das atividades desta é delineado pelo conceito aferido àquela.

Quando republicanos como Sunstein e Frank Milcheman criticaram a decisão da

Suprema Corte ao declarar que a constitucionalidade da lei promulgada pelo Estado da

Geórgia, que proibia a sodomia, no caso Bowers versus Hardwick, o fizeram para proteger

um basic right of political participation e não porque discordavam do mérito da decisão.

Eles consideraram que houve uma infração à tutela da liberdade sexual, ferindo uma

prerrogativa do direito de personalidade, decorrente da proibição de um cidadão adotar a

opção homossexual. Nesse caso, o direito à privacy foi considerado como um direito

político, no sentido de liberdade pessoal dos cidadãos.463 Caracterizado como um direito

inerente à participação política deve ser protegido pela jurisdição constitucional, advindo daí

a crítica dos mencionados professores.

Sunstein vislumbra o papel dos Tribunais constitucionais de modo minimalista, em

que eles somente deveriam intervir em casos restritos, baseando-se no incompletely

theorized agreements, fazendo com que, em cada caso específico, pudesse se chegar a um

acordo, sem a necessidade de fundamentação com os princípios fundamentais, com respeito

ao pluralismo das sociedades contemporâneas, mantendo uma relação com os demais

poderes componentes do Estado.

Ao contrário de Dworkin, Sunstein não defende que a solução para os hard cases

seja através de princípios constitucionais que guardem uma estreita relação com os

princípios morais. Para ele, os princípios constitucionais podem até mesmo dificultar na

solução dos casos concretos, pois como são genéricos e abstratos tendem a gerar muitas

polêmicas em torno do seu conteúdo. As discussões sobre o conteúdo dos princípios

463 “ Nessa perspectiva a privacy vem valorizada como direito político: tal desenvolvimento de relação da noção constitucional-legal da autonomia – no diapasão da primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos – representa exatamente a propensão republicana no sentido de coligar a esfera pessoal e a esfera política. Nessa perspectiva a privacy não é vista somente como um fim (mesmo que controverso) de deliberação da parte do direito, mas também como princípio constante e regenerativo – jusgenerativo – de tal deliberação. O argumento fornece a conexão entre o privacy e a cidadania”. BACCELLI, Luca. Il Particolarismo dei Diritti. Poteri Degli Individui e Paradossi dell’Universalismo. Roma: Carocci, 1999. P. 167.

340

constitucionais provocam uma partidarização no seio da opinião pública que deve ser

resolvida nas devidas instâncias do regime democrático e não nos tribunais.

Sunstein discorda das teorias comunitaristas, dentre outros, defendidas por Dworkin,

cuja concepção delineia a sociedade como uma “comunidade de princípio”. Em contraponto,

advoga que o principal elemento da cidadania é a liberdade pessoal, consonante uma

concepção republicana da política, na qual o objetivo social preponderante é o de oferecer a

cada cidadão as prerrogativas essenciais para a realização do auto-governo.

Nessas situações, postula a aplicação do incompletely theorized agreements que é

feito através de regras e de analogias, sobre as quais os cidadãos, mesmo discordando do

princípio constitucional, diante do caso concreto, que não envolve abstrações nem conceitos

herméticos, podem aceitar a sua aplicação porque seus efeitos resolvem a demanda judicial e

podem ser facilmente inteligíveis, particularizando os seus efeitos. A teoria dos acordos

parciais deve ser concebida no sentido de que os cidadãos concordem com o resultado da

decisão judicial , sem necessariamente concordarem com os princípios constitucionais que

alicerçam a aplicação das normas. Como as regras e o procedimento analógico não possuem

um conteúdo denso, carregado de intensidade axiológica, podem possibilitar mais facilmente

um consenso, evitando a discordância quanto à extensão do conteúdo que é uma

característica inerente aos princípios constitucionais.464

Considera que quando a decisão é sobre uma questão polêmica, retirada da seara

política a resolução da questão, se por um lado pacifica a controvérsia, por outro retira do

espaço público de discussão a possibilidade de sua solução, mitigando o processo

democrático. E, como segunda razão para restringir o ativismo da jurisdição constitucional

aos dois casos citados anteriormente, ele planteia que, em um regime democrático, o local

mais apropriado para o debate de temas polêmicos é a seara política e não uma corte

constitucional ou órgão similar. Explica o autor: “No governo americano e nas democracias

constitucionais que funcionam a contento, o real fórum para a deliberação sobre os mais

464 SUNSTEIN, Cass R. Legal Reasoning and Political Conflict. New York: Oxford University, 1996. P. 4-5.

341

importantes princípios políticos não é o judiciário – a maioria dos princípios fundamentais

são desenvolvidos democraticamente, não em courtrooms”.465

Como exemplo, Sunstein cita a decisão da Suprema Corte norte-americana que

legalizou o aborto, em 1973, Roe versus Wade. Com essa decisão a Suprema Corte subtraiu

uma importante discussão da seara política, ativando mais ainda a divisão da sociedade entre

grupos a favor e contra o aborto. Segundo ele, se essa divergência tivesse encontrado um

consenso político, poder-se-ia pacificá-la de modo definitivo. Outro caso mencionado é com

relação ao suicídio assistido no qual advoga uma atuação minimalista da Suprema Corte,

onde não se deve proferir uma decisão nem no sentido de admitir nem no sentido de proibir

tal conduta, deixando que a população, por intermédio dos meios democráticos cabíveis,

possa chegar a uma decisão.466

A defesa do rule of law não é a característica principal da jurisdição constitucional,

mas a sua função preponderante se configura em fornecer os requisitos para o

funcionamento do processo democrático, propiciando o diálogo entre os poderes

estabelecidos para incentivar o debate político. Diante de um caso posto à apreciação da

Suprema Corte cuja decisão acarrete profundas controvérsias na sociedade, é de melhor

alvitre deixar que os segmentos sociais organizados tomem a decisão, deslocando a

discussão acerca do caso para as esferas democráticas que dispõem de melhores condições

para colmatar a questão do que as esferas judiciais.

O pluralismo que impera nas sociedades contemporâneas se configura como a

melhor solução para a resolução de questões controversas, onde o consenso pode ser obtido

por meio do debate político por toda a sociedade, sem estarem adstritas essas decisões

importantes a um grupo seleto de juízes, que na maioria das vezes bloqueia ao invés de

estimular a participação no processo democrático. A heterogeneidade social não é um

impedimento para as decisões judiciais, em que dever-se-ia recorrer a princípios morais para

se buscar uma solução apropriada, ela se configura como uma “productive force”,

465 SUNSTEIN, Cass R. Legal Reasoning and Political Conflict. New York: Oxford University, 1996. P. 7. 466 SUNSTEIN, Cass R. One Case at a Time. Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 1999. P. 115.

342

incentivando o debate nas esferas políticas pertinentes para que os cidadãos possam chegar a

um acordo que balizará as decisões judiciais nesse sentido.

O constitucionalista norte-americano defende a legitimação procedimental da

jurisdição constitucional, sendo ela concretizada quando os elementos apanágios de uma

democracia participativa estiverem consolidados. Para ele, não é função da jurisdição

constitucional defender direitos substancias agasalhados pela Constituição, a não ser que

sejam direitos essenciais ao desenvolvimento do regime democrático. A sua principal

preocupação é adequar o rule of law à soberania popular, evitando que esses princípios

entrem em choque. A função da jurisdição constitucional é garantir a adequação do rule of

law e da soberania popular.

Para evitar as mesmas críticas que são direcionadas à tese procedimentalista,

esposada por Ely, por causa da ausência de conteúdo mínimo ao regime democrático,

Sunstein planteia que o órgão que exerce a jurisdição constitucional deva se manter distante

de qualquer decisão com o propósito de definir um standard para o conceito de democracia.

Ao invés de se tentar encontrar um standard para o conceito de democracia de melhor

alvitre é direcionar a atuação da jurisdição constitucional por um critério funcional: o de

possibilitar a formação de consensos através da participação política dos cidadãos que,

conseqüentemente, oferecem um seguro vetor para as decisões judiciais.467

Dependendo do conceito que seja adotado para o conceito de democracia pode-se

possibilitar uma atuação extensiva da jurisdição constitucional para a concretização de tais

conceitos, como por exemplo, os direitos contidos na quarta dimensão de direitos

fundamentais que têm a construção de uma verdadeira democracia política como objetivo

que exige para sua real concretização direitos como lazer, educação, trabalho digno,

pluralidade da mídia etc. 468

Não obstante, incorre no mesmo erro atribuído a Ely, que superdimensiona as

virtudes do regime democrático, descurando-se da grave crise por que passa a participação

467 Nesse ponto específico há uma similitude com a teoria do espaço público formulada por Habermas. 468 SUNSTEIN, Cass R. One Case at a Time. Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 1999. P. 25-26.

343

política nas sociedades pós-modernas. Nas sociedades periféricas como a brasileira, onde a

participação efetiva nas decisões do regime democrático é prerrogativa de uma elite, ficando

a maior parte da população excluída de qualquer decisão política mais importante, atrelar a

atividade da jurisdição constitucional à defesa dos procedimentos democráticos significa

deixar os direitos fundamentais, principalmente os de segunda dimensão, sem uma

concretização mais efetiva.

Em uma sociedade como a brasileira, em que o grande problema social é a alta

desigualdade social entre os seus cidadãos, tanto a teoria defendida por Ely quanto a

defendida por Sunstein tendem a perpetuar o status quo dominante em detrimento dos reais

interesses da população.

13.4 Críticas às Teorias Procedimentais de Legitimação da Jurisdição

Constitucional

Sustenta a professora Ferrarese que o impulso na legitimação do Direito por modelos

procedimentais é uma decorrência do processo de globalização que torna a lex mercatoria

suprema, em detrimento dos outros poderes institucionalizados. Os modelos procedimentais

de legitimação permitem que elementos diversos e de conteúdos variáveis, produzidos pela

privatização do Direito, possam se desenvolver, no que não eliminam o risco e a incerteza

provocados pela ausência de regulamentação econômica.469

Dessa forma, sem a necessidade de seguir um padrão fixo de conteúdo, os modelos

procedimentais podem se adaptar de forma fácil às constantes necessidades produzidas pela

sociedade, não precisando reestruturar-se a cada novo cambiamento social, constituindo-se

469 FERRARESE, Maria Rosaria. Le Istituzione della Globalizzazione. Diritto e Diritti nella Società Transnazionale. Bologna: Mulino, 2000. P. 62-63.

344

essa característica como a principal responsável pela sua difusão em um mundo em

constante modificação.

A principal crítica concernente à legitimação procedimental da jurisdição

constitucional é ao seu distanciamento quanto ao conteúdo agasalhado pela Constituição.

Para as doutrinas procedimentais não existe um teor material a ser perseguido, com uma

supervalorização ou da seqüência de atos que formam um processo, ou de um processo

comunicativo que encontre o seu apogeu no espaço público, ou na participação efetiva dos

cidadãos no regime democrático. As normas constitucionais deixam de significar um vetor

preponderante para a atuação da jurisdição constitucional, perdendo a legitimidade baseada

na densidade da soberania popular, contida no Poder Constituinte, um forte instrumento para

a sua concretização. O conteúdo perde importância para a primazia da forma, podendo o

procedimento ser preenchido por qualquer substância; com isto há um esvaziamento da força

normativa da Constituição porque a matéria que preenche a forma das normas

constitucionais passa a não ter mais relevância.

Dessa forma, há um empobrecimento da supremacia constitucional e

conseqüentemente do papel desempenhado pelas Constituições, que deixam de apresentar

um referencial para as condutas sociais e para a estruturação dos entes políticos. Sem

apresentar um conteúdo que influencie as decisões da jurisdição constitucional, a

proeminência das normas constitucionais no ordenamento jurídico é mitigada, já que as

normas procedimentais não possibilitam uma adequada fiscalização do teor material das

normas infraconstitucionais aos ditames da Lei Maior. Corre-se o risco, com as teses

procedimentalistas, de transformar a Constituição em uma norma simbólica, em um signo

que sirva apenas para legitimar a dominação da população por uma elite que não tem em

consideração os seus anseios.

O processo de esvaziamento da substância do Direito, produzido pelas teorias

procedimentais, representa um grave perigo para os direitos fundamentais dos cidadãos.

Com a ausência de um parâmetro de natureza substancial de atuação, as normas jurídicas

podem apresentar os mais variados conteúdos, legitimando-se desde que cumpram o

procedimento devido. Com isto os direitos fundamentais ficam completamente relegados,

345

podendo até mesmo serem afrontados ou mitigados desde que as normas sigam o

procedimento previamente estabelecido. As prerrogativas dos cidadãos deixam de ser um

referencial para a atuação normativa.

A ineficiência das teorias procedimentais para sustentar a legitimação da expansão

das atividades da jurisdição constitucional também se mostra evidente, na medida em que,

principalmente em sociedades que não têm um lastro histórico de participação popular como

a sociedade brasileira, não consegue sedimentar uma densidade de consenso que ampare as

suas decisões. Enquanto que as teses substancialistas podem fazer uma vinculação entre a

vontade constituinte e a população porque os direitos fundamentais gozam de ampla

aceitação na sociedade, alcançando facilmente o consenso dos cidadãos.

Outra alegação, contra as teses procedimentais, é que pelo fato de inexistir um

conteúdo que sirva como parâmetro, elas não fomentam a segurança jurídica. Se por um lado

elas propiciam uma maior adequação às modificações de uma sociedade cambiante, por

outro lado, a inexistência de vetores jurídicos substanciais aprofunda a insegurança jurídica,

já que respeitado o procedimento previsto pode-se chegar a qualquer conteúdo.

De acordo com essas teorias, há uma redução na esfera de atuação da jurisdição

constitucional, o que não contribui para a formação de uma tese que legitime a ampliação da

sua atuação que é um dado empírico que ocorre principalmente nos países europeus. Dessa

forma, a jurisdição constitucional não é considerada importante para fortalecer a força

normativa dos dispositivos constitucionais, perdendo os direitos fundamentais um

instrumento imprescindível para a sua concretização.

Salutar é a crítica feita pelo professor Lenio Streck às teses procedimentais de

legitimação da jurisdição constitucional: “Em face dessas concepções, há fortes indicadores

que o modelo de interpretação procedimentalista, proposto por autores como Habermas,

muito embora calcado na teoria do discurso, incorre, a meu sentir, no esquecimento da

diferença ontológica, ao desvincular os valores do texto constitucional de sua

ação/concretização (naquilo que a Constituição tem de substantividade), terminando por

separar o ser do texto constitucional do (respectivo) ente, como se o ser pudesse subsistir

sem o ente, e este pudesse ser “apreendido”como ente. Portanto, o procedimentalismo, em

346

certa medida, ao esquecer a diferença ontológica, objetifica o texto da Constituição,

impedindo o questionar originário da pergunta pelo sentido do seu texto. Assim, a teoria

procedimentalista atua como um método ou como uma ferramenta que está “à disposição”

dos agentes sociais/jurídico/ políticos, com os quais se afastam do paradigma

hermenêutico”.470

A teoria formulada por Luhmann apresenta algumas deficiências que impedem a sua

aplicação em uma sociedade considerada como pós-moderna. Orientar as decisões inerentes

à jurisdição constitucional apenas por procedimentos judiciais, sem uma forte inter-relação

entre a normatividade e a faticidade, significa aumentar o gap jurídico e contribuir com o

decréscimo da força normativa da Constituição. Outrossim, pela falta de canais eficientes

com a realidade social, tende o ordenamento jurídico a se tornar auto-referencial, cerceando

as tentativas de construção de uma sólida teoria de legitimidade de uma atuação extensiva da

jurisdição constitucional.

A respeito da teoria procedimentalista de Habermas, a crítica mais forte realizada é

que a sua idéia de espaço público, como alicerce para as decisões da jurisdição

constitucional, é impossível de ser concretizada em um país como o Brasil onde grande parte

da população não dispõe ainda dos direitos de segunda dimensão, configurando-se

impossível pensar como que uma população pode exercer plenamente a sua cidadania, sem

que ao menos as menores condições de sobrevivência lhe sejam asseguradas. O espaço

público não pode ser o locus para as discussões que possibilitem a participação de toda a

população porque ela, na sua grande maioria, está excluída do debate político. Sem a

garantia das cinco dimensões dos direitos fundamentais (que será acrescido de mais algumas

com o decorrer do desenvolvimento das sociedades humanas), a teoria habermasiana não

pode ser aplicada, fato que dificulta a sua aplicação a países subdesenvolvidos.

Na teoria habermasiana, o conceito de espaço público é supervalorado, acarretando

que uma estrutura de taxionomia sócio-comunicativa, sem nenhuma especificação mais

concreta que impeça a sua manipulação, se sobreponha à Constituição e fragilize a

470 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2002. P. 149.

347

normatividade das normas constitucionais, esvaziando a força de garantias jurídicas que

protegem o desenvolvimento das sociedades humanas.

Quanto às teorias de Ely e de Sunstein, que podem ser analisadas de forma conjunta

em virtude de suas similitudes, elas são específicas para a aplicação na sociedade norte-

americana, ou ao menos em países que apresentem bastante semelhanças com os fatos

políticos que ensejaram e orientam o funcionamento da sua organização política. Tentar

aplicar essas teorias em um país periférico como o Brasil revela-se uma insensatez, haja

vista o rarefeito desenvolvimento do seu regime democrático. Nesse tipo de país a

concretização dos direitos fundamentais não pode ficar ao talante das decisões políticas,

necessitando que a jurisdição constitucional densifique a sua concretização.

Por causa do contexto histórico brasileiro, com a sua longa história de exclusão

social, a necessidade de concretização dos direitos fundamentais contidos na Constituição

assume uma necessidade imperiosa. Sem a realização desses direitos, qualquer teoria

procedimental tornar-se-á inócua porque não haverá uma consciente participação política

dos cidadãos nas decisões sociais mais importantes, nem a Constituição poderá garantir os

direitos que lhe foram agasalhados pela soberania popular em seu apogeu que é o processo

constituinte.

14.) Legitimação Substancialista da Jurisdição Constitucional

Em antípoda com as teorias de legitimação da jurisdição constitucional pelo

procedimento estão as teorias substancialistas, defendidas por Laurence Tribe, John Rawls,

Dworkin, Paulo Bonavides, etc. Apresentam como ponto comum o postulado de que a

legitimação da jurisdição constitucional é concretizada quando o órgão incumbido de a

realizar assim o faz para assegurar valores substanciais, mormente aqueles que foram

agasalhados pelo Texto Constitucional. Ao contrário das teses procedimentais, que

defendem ser a legitimação construída ao longo da jurisdição constitucional, com o

348

preenchimento de alguns requisitos, as teses substancialistas defendem que a jurisdição

constitucional tem um sentido teleológico: garantir a concretização de valores substanciais,

principalmente dos direitos fundamentais.

As teorias substancialistas surgem com o fator teleológico de legitimar as decisões

judiciais proferidas pela jurisdição constitucional, na tentativa de se contrapor à constante

crítica de que essas decisões são destituídas de legitimidade. Baseando-se em elementos

substancialistas, principalmente contidos na Lei Maior, asseveram que suas decisões não são

destituídas de legitimidade, muito pelo contrário, detêm uma densidade de consenso muito

maior do que o propiciado pelo princípio da soberania popular.

Com a legitimação das decisões judiciais por parte de valores materiais, que na

maioria dos casos foram estabelecidos pela Constituição, há a superação da tradicional

legitimidade auferida pela soberania popular, já que decisões judiciais podem revogar

normas realizadas pelo Poder Legislativo, evidenciando a grave crise que se abate sobre o

regime democrático em virtude de muitos fatores, como: a influência do poder econômico, o

poder da mídia, a falta de participação política dos cidadãos, conseqüência do

multiculturalismo das sociedades modernas etc.

As teorias substancialistas partem do pressuposto da existência de um conteúdo

material, contido principalmente na Constituição, na acepção que ele representa aqueles

valores que formam as invariáveis axiológicas, gozando, portanto, de alta carga de

legitimidade nos mais variados extratos sociais. Configurando-se como a essência da

jurisdição constitucional, nada mais lógico do que a sua função primordial ser a sua

realização. Essa forma de legitimação permite que se estabeleça um referencial com o

princípio da soberania popular, haja vista ser a Constituição a norma jurídica que maior

consenso obtém na sociedade (obviamente quando é promulgada e o processo constituinte

permite a participação efetiva de todos os setores sociais), haurindo a jurisdição

constitucional significativa legitimação para o desempenho de suas funções.

A definição do conteúdo substancial que deve ser concretizado pela jurisdição

constitucional é realizada pelo texto da Constituição, abrangendo principalmente os

princípios constitucionais, tanto os explícitos como os implícitos, que têm a função de

349

densificar os explícitos. A própria Carta Magna serve como referência para a atuação da

Corte Constitucional ou Tribunal que faça as suas vezes, evitando uma exacerbação do seu

poder e, de igual maneira, a mitigação do Poder Legislativo. O que não impede que alguns

autores substancialistas, como Ronald Dworkin, defendam que conteúdo substancial

também reside na “comunidade moral de princípios”, de taxionomia moral, que não está

integralmente contida na Constituição.

Todavia, a grande essência para a construção de uma teoria substancialista de

legitimação da jurisdição constitucional são os direitos fundamentais, em qualquer uma de

suas cinco dimensões (que com o decorrer do tempo serão adicionadas novas dimensões).

São eles, o substrato de dignidade da pessoa humana, o arrimo do ordenamento jurídico e,

portanto, deve ser o eixo para a formação de uma teoria de legitimação que faça com que a

Corte ou Tribunal Constitucional possa ficar mais conexo com as demandas sociais e não se

isolar por intermédio de procedimentos que se auto-referenciam, consubstanciando-se um

sistema que se auto-reproduz sem sentir as demandas da sociedade.

As teorias substancialistas de legitimação da jurisdição constitucional são um contra-

ponto às teses procedimentais, que não entendem os valores contidos na Constituição como

alicerce para justificar a sua atuação, baseando-se em valores adjetivos ou procedimentais

com o objetivo de assegurar a participação dos cidadãos nas decisões políticas.

Essas teorias partem do pressuposto de que a jurisdição constitucional tem que

desenvolver um papel ativo, activism judicial, no sentido de assegurar a defesa dos direitos

fundamentais. Em países periféricos como o Brasil, a garantia desses direitos, em alguns

casos, infelizmente, de primeira dimensão como a vedação à tortura, mostra-se como a

diretriz mais importante que deve nortear as decisões do Supremo Tribunal Federal.

Por causa desse pressuposto, é difícil conceber a defesa dos direitos fundamentais

pela atividade da jurisdição constitucional em um Estado liberal, regido pelas forças do

mercado, onde os entes estatais devem intervir da menor forma possível e que as decisões

judiciais devem ser pautadas pela self-restraint. Maior estímulo para o desenvolvimento da

defesa dos direitos fundamentais pela jurisdição constitucional é encontrado em um Estado

350

Democrático Social de Direito, em que as organizações estatais intervêm em vários setores

da vida social para proteger direitos considerados essenciais para os cidadãos.

14.1) A Legitimação da Jurisdição Constitucional pelos Direitos

Fundamentais

Os direitos fundamentais se configuram como os mais importantes elementos para a

legitimação da jurisdição constitucional. Quando o processo de expansão da atuação da

jurisdição constitucional se ampara sobre seus fundamentos, até mesmo as decisões que

incidem em controversas searas políticas encontram respaldo na sociedade, desempenhando

o órgão que exerce a jurisdição constitucional um papel de guardião dos direitos agasalhados

pela Constituição. No atendimento das demandas sociais pós-modernas, a jurisdição

constitucional é chamada a incidir cada vez de forma mais constante na seara política,

chegando, inclusive, a desempenhar uma função normogenética, quando um direito

fundamental não puder se exercido por falta de regulamentação do legislador

infraconstitucional.

A importância dos direitos fundamentais é uma unanimidade em todos os

ordenamentos constitucionais, configurando-se como a principal característica das Cartas

Magnas hodiernamente. A “Era dos Direitos” assinala o ocaso da concepção hobbesiana de

que os direitos fundamentais são prerrogativas inerentes ao Estado e somente poderiam

existir enquanto fossem apanágio das atividades estatais.471

Neste diapasão está a exposição de Mirkine Guetzévitch: “As liberdades individuais e

sociais ocupam um lugar de honra nas novas Constituições européias. Mesmo as dos países

onde a prática governamental ou administrativa não é absolutamente democrática consagram

capítulos eloqüentes à afirmação dessas liberdades. Pode-se dizer que o reconhecimento dos

471 HOBBES, Thomas. El Estado. México: Fondo de Cultura Económica. 1998. P. 43.

351

Direitos do Homem penetrou na opinião mundial com uma unanimidade quase

desconcertante, pois, embora unânime, esse reconhecimento não é para tanto um penhor de

eficácia”.472

A primazia ocupada pelos direitos fundamentais no ordenamento jurídico configura-se

de tamanha magnitude que eles são elementos essenciais para que o processo de globalização

seja deslocado de um enfoque mercantilista, em que prepondera a lex mercatoris, para um

enfoque social, em que prepondere o homem e os seus interesses.

A utilização dos direitos fundamentais como arrimo à jurisdição constitucional advém

de uma tradição jusnaturalista, que concebe os direitos dos cidadãos como direitos

intrínsecos ao homem, existindo não em razão das leis ou do Estado, que são anteriores

inclusive a qualquer organização política, mas considerados como direitos inalienáveis, que

não podem ser maculados por qualquer órgão estatal.

Todavia, Norberto Bobbio considera que a controvérsia na busca dos alicerces dos

direitos fundamentais, decorrente de múltiplos fatores, como o caráter histórico dos direitos

dos cidadãos, da indefinição quanto aos seus limites, do choque entre direitos, da ausência

de pressupostos de demonstrabilidade etc, é despicienda. Para o ilustre filósofo italiano o

problema mais iminente não é encontrar um fundamento último para os direitos

fundamentais, mas o de garanti-los, porque o problema do fundamento foi solucionado com

a Declaração Universal dos Direitos do Homem que assegurou a validade jurídica para a

eficácia desses direitos.473

Exprime Luigi Ferrajoli que uma definição formal ou estrutural do conceito de

direito fundamental pode ser obtido através da sua característica de universalidade, no senso

de que eles podem ser atribuídos a todos os povos, tornando-se um apanágio da qualidade de

cidadão.474 Por sua vez, o professor Paolo Barile assevera que os direitos fundamentais são

invioláveis não porque é vedado ao Poder Legislativo realizar uma norma que infrinja esses

472 MIRKINE-GUETZÉVITCH, Boris. Evolução Constitucional Européia. Trad. Marina de Godoy Bezerra. Rio Janeiro: José Konfino Editor, 1957. P. 157. 473 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. P.26. 474 FERRAJOLI, Luigi. Il Fondamento Dei Diritti Umani. Pisa: Servizio Editoriale Universitário, 2000. P. 8.

352

preceitos ou em razão de que há impedimento até para a sua supressão por parte do Poder

Reformador – de uma forma geral não se pode produzir normas que contrariem a

Constituição ou que destruam as suas cláusulas pétreas – o motivo situa-se na importância

valorativa dos princípios constitucionais, porque são consideradas as normas mais

importantes do ordenamento jurídico, apenas podendo ser retirados do ordenamento jurídico

pelo Poder Constituinte.475

Definição interessante é a exposta por Gregório Peces-Barba Martínes que pela

extensão dos seus elementos possibilita uma visão mais abrangente do objeto enfocado: “Os

direitos fundamentais são o conjunto de normas de um ordenamento jurídico que formam um

subsistema deste, fundados na liberdade, na igualdade, na seguridade, na solidariedade,

expressões da dignidade do homem, que formam parte da norma básica material de

identificação do ordenamento jurídico, e constituem um setor da moralidade procedimental

positivada, que legitima o Estado Social de Direito”.476

A dificuldade é a densificação da eficácia concretiva dos direitos fundamentais que é

um dos fatores teleológicos da jurisdição constitucional. A importância da jurisdição

constitucional é garantir que os direitos fundamentais não fiquem restritos à sua seara

formal, reduzidos a uma função retórica, possibilitando-lhes uma concretização efetiva na

sociedade. Por outro lado, os direitos fundamentais constituem o principal elemento de

legitimação da jurisdição constitucional na medida em que eles são considerados como

invariáveis axiológicas, gozando de aceitação nos mais variados extratos sociais.

Para o definitivo estabelecimento da teoria dos direitos humanos, foi imprescindível o

papel desempenhado por declarações que externavam determinadas prerrogativas à

sociedade, tendo como um dos seus expoentes a Declaração de Direitos do Homem e do

Cidadão, do século XVIII, adotando uma concepção moderna, cujas prerrogativas dos

cidadãos eram anteriores ao Estado e à Constituição, e, portanto, os órgãos estatais não

poderiam cerceá-los. Entre os mais importantes textos que asseguram direitos humanos

475 BARILE, Paolo. Diritto Dell’Uomo e Libertà Fondamentali. Bologna: Mulino, 1984. P.53. 476 MARTÍNES, Gregorio Peces-Barba. Curso de Derechos Fundamentales. Teoria General. Madrid: Universidad Carlos III, 1999. P. 469.

353

podemos citar: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, e a Declaração de

Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de 1917.477

Problema bastante relevante para a doutrina dos direitos fundamentais é a definição de

sua extensão, elencando quais são os direitos que devem ser classificados como

fundamentais. Essa definição liga-se umbilicalmente à concepção ideológica acerca do papel

do Estado e de suas funções, que por suas intensas conseqüências na sociedade adquire uma

magnitude contraditória explosiva. É difícil conceber os direitos fundamentais como algo

fixo e invariável em uma perspectiva temporal e espacial, o que não diminui a importância do

estabelecimento de critérios para que eles possam ser definidos e garantidos a

potencialização de sua eficácia.

Francisco Tomás y Valiente diferencia a expressão direitos fundamentais da expressão

direitos humanos.478 Este significa uma concepção ética-filosófica, portando uma concepção

semântica muito abrangente; aquela apresenta uma conceituação mais restrita, referindo-se ao

ordenamento jurídico-constitucional.479 Uma concepção sistêmica da Constituição não pode

vislumbrar as normas constitucionais apenas sob um ponto de vista normativo, de melhor

alvitre para a concretização dos direitos fundamentais é a concepção ético-filosófica, que

abrange tanto as normas abrigadas pela Carta Magna, quanto aquelas que fortalecem os

dispositivos constitucionais, normas implícitas.

Devido ao teor abstrato das normas constitucionais e do antagonismo ideológico que a

aplicação de suas normas acarretam, defende Robert Alexy que as teorias materiais dos

direitos fundamentais não podem ser alicerçadas exclusivamente na referência do texto da

Constituição, na vontade do legislador constitucional e nos precedentes do tribunal

constitucional. Para ele, uma teoria geral dos direitos fundamentais apenas é possível sob a

forma de uma teoria dos princípios, cujo pressuposto é uma teoria axiológica ou uma teoria

477 ARNAUD, André-Jean. Por une Pensée Juridique Européenne. Paris: Presses Universitaires de France, 1991. P.133. 478 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. “Jurisprudencia del Tribunal Constitucional Español en Matéria de Derechos Fundamentales”. In: Enunciazione e Giustiziabilità dei Diritti Fondamentali nelle Carte Costituzionali Europee.Profili Storici e Comparatistici. Millano: Giuffrè, 1994. P. 124. 479 GALINDO, Bruno. Direitos Fundamentais. Análise de sua Concretização Constitucional. Curitiba: Juruá, 2003. P. 48-49.

354

teleológica, em que o maior número possível de cidadãos possa fazer uso de suas

prerrogativas.480

Os princípios permitem uma abertura dialógica entre o texto normativo da Constituição

e a realidade fática, possibilitando uma sintonia fina com as demandas do Estado

Democrático Social de Direito. Essa teoria dos direitos fundamentais, baseada nos princípios,

é concebida de forma sistêmica, em que o paradigma da proporcionalidade ou da

razoabilidade assume relevância impar para dirimir eventuais antinomias e garantir maior

eficácia do ordenamento jurídico.

A necessidade de comunicação com as aspirações sociais acontece porque como a

teoria material dos direitos fundamentais não é apoiada pelo dogma da autoridade, ela tem

que ser estruturada por uma teoria baseada no Estado e na Sociedade, o que realça o seu

caráter dialógico e circular como forma de legitimar os direitos fundamentais.481 A abertura

do sistema jurídico provocada pelo sentido principiológico dos direitos fundamentais

configura-se como a forma encontrada para se contrapor à insegurança de resultado

produzida pela teoria da argumentação jurídica.

Sustenta Alexy que o critério de escolha para a utilização dos direitos fundamentais,

determinando a intensidade do seu conteúdo, realizar-se-á por intermédio da teoria da

argumentação jurídica. A função da teoria material dos direitos fundamentais é construir um

discurso argumentativo que consiga obter o maior grau possível de consenso da sociedade

através de diretrizes racionais. Ela se configura como uma justificação externa, verificando a

correção das premissas lógicas, utilizadas no discurso argumentativo.482

Na Constituição brasileira de 1988, os direitos fundamentais foram regulamentados

nos arts. 1° ao 17 e nas demais partes da Lei Maior que assim for declarada pelo Supremo

Tribunal Federal, como por exemplo, o princípio da anterioridade.

480 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales. P. 2002. P.543-544. 481 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales. P. 2002. P.547. 482 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Trad. Zilda Hatchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. P. 218.

355

A vantagem de se deixar aberta a elencação dos direitos fundamentais, desde que

seja assegurado um “conteúdo mínimo” a sua densidade, é que dessa forma pode haver uma

adequação mais eficaz entre a realidade fática e a realidade normativa, permitindo uma

evolução dos direitos fundamentais para atender às demandas cada vez mais complexas do

Estado Democrático Social de Direito. No que seguiu a diretriz estabelecida pela nona

emenda à Constituição norte-americana de 1787, cuja declaração afirma que a numeração de

certos direitos na Constituição não poderá ser interpretada como negando ou minimizando

outros direitos inerentes ao povo.

O órgão que exerce a jurisdição constitucional e o Poder Judiciário são, quando há

distinção entre esses órgãos, dentre os organismos estatais, aqueles que por sua própria

natureza possuem as melhores condições de garantir os direitos fundamentais. Eles são os

que apresentam a menor condição de afrontar, do ponto de vista positivo, os direitos

fundamentais. Não detêm nem mesmo estrutura para executar as suas decisões, não

dispondo de recursos nem de força para impor os seus postulados.

Do ponto de vista negativo, eles apenas deixam de representar uma garantia para os

direitos fundamentais quando se tornam omissos diante de atentados contra a jurisdição das

liberdades; ou seja, quando o dano é ocasionado e os direitos fundamentais são relegados,

sem que o Poder Judiciário adote uma postura firme para suprimir essas

inconstitucionalidades.483 Dessa forma, pode-se dizer que eles atuam como intermediários

entre o Executivo e o Legislativo, com a função de fiscalizar se esses poderes estão

cumprindo os dispositivos constitucionais, mormente os direitos fundamentais.

O desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais marca a superação do seu

conceito subjetivo, de um direito que era oponível apenas a órgãos estatais para preservar a

liberdade dos cidadãos, concepção essa que era o apanágio de um Estado Liberal, que deveria

483 Para se entender a densidade semântica da conceituação de jurisdição constitucional das liberdades, é interessante demonstrar a sua definição para Roosevelt, que introduziu uma nova concepção de atuação dos órgãos estatais nos Estados Unidos da América. “Em 6 de janeiro de 1941 o Presidente Roosevelt introduz o que é definido como as quatro liberdades: de opinião, religiosa, da miséria e do medo. Estas liberdades foram reconhecidas por parte de todas as outras nações. Essa exigência se avolumou depois da segunda guerra mundial, quando a exigência de reafirmamento desses princípios ganhou uma maior amplitude”. MONTANARI, Laura. I Diritti dell’uomo nell’area europea tra Fonti Internazionali e fonti interne. Torino: Giappichelli Editore, 2000. P.8

356

intervir o menos possível na sociedade. Atualmente, os direitos fundamentais devem ser

concebidos tanto de forma subjetiva, mas, principalmente, na sua forma objetiva, no sentido

de uma cominação vinculante para todos os poderes. A identificação dos direitos

fundamentais de forma objetiva e subjetiva contribui para a construção de um Estado social,

que condiciona teleologicamente a jurisdição constitucional ao atendimento dessas

prerrogativas dos cidadãos.

Devido à proeminência dos direitos fundamentais, até mesmos países que adotam o

sistema concentrado de controle de constitucionalidade, como a Alemanha e a Espanha,

admitem recursos constitucionais individuais, como o verfassungsbeschwerde e o recurso de

amparo, para defender direitos fundamentais. Exemplo de país, com sistema concentrado de

constitucionalidade, que não prevê nenhum remédio individual é a Itália.484

É indubitável que em um regime democrático onde os direitos humanos tendem a ser

mais respeitados, considerando os valores que amparam esse regime político. Nesse sentido

defende Müller: “Não somente as liberdades civis, mas também os direitos humanos

enquanto realizados são imprescindíveis para uma democracia legítima”.485 Contudo,

existem os casos em que os direitos humanos foram desrespeitados, em países com tradição

democrática, como a Áustria e a Suíça.486 Pode-se concluir que a democracia não é o único

requisito para o respeito dos direitos humanos, configurando-se como uma das suas

condições, devendo, obviamente, existir outros requisitos.

Os direitos fundamentais, especialmente os que têm um caráter programático,

apresentam o mesmo conteúdo normativo que as demais normas, sendo, portanto, dotados de

coercitividade. Pela magnitude de sua função no ordenamento jurídico deve ter uma

concretude normativa mais intensa que as demais normas, inclusive porque assim está

preceituado no § 2º do art. 5º da Constituição Federal brasileira. Konrad Hesse defende que

os direitos fundamentais vinculam também o legislador, contendo princípios que abrangem

484 LILLO, Pasquale. “Corte Costituzionale ed Esperienza Giuridica”. In: Diritto e Società. N. 4. Ottobre-Dicembre. Padova: CEDAM, 2001. P. 479. 485 MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo. A Questão Fundamental da Democracia. São Paulo: Max Limonad, 1998. P. 76. 486 SCAGLIONE, Daniele. “Democrazia e Diritti Umani: Um Impegno per Tutti i Cittadini”. In: I Diritti Umani nel Processo di Consolidamento delle Democrazie Occidentali. Brescia: Promodis, 1999. P. 89-91.

357

toda a ordem jurídica em sua totalidade e aplicação do direito. Segundo o professor alemão,

quanto mais extensa for a esfera de aplicação dos direitos fundamentais, maior deve ser a

esfera de proteção das disposições constitucionais vinculantes.487

Os direitos fundamentais são o principal elemento para a legitimação da atuação da

jurisdição constitucional, tornando-a apta a enfrentar as demandas da sociedade. Sem o

amparo proporcionado pela concretização dos direitos fundamentais, a maior atuação do

Supremo Tribunal Federal encontrará sérias resistências nos poderes estabelecidos e,

igualmente, não obterá amparo na sociedade.

14.2) A Legitimação da Jurisdição Constitucional com base no Dualismo

Constitucional

Bruce Ackerman alicerça sua teoria com base na vontade popular, “we the people”.

Para ele cada geração que discordar dos postulados postos pela Carta Magna pode dar ensejo

a um novo processo constituinte, desde que consiga sedimentar a legitimidade necessária

para reescrever os princípios jurídicos fundamentais do ordenamento. A Constituição

vincula apenas o legislador ordinário, deixando aberto o caminho, a qualquer momento, para

o fenômeno da transconstitucionalização.

A finalidade da jurisdição constitucional, consentânea com os pressupostos da sua

teoria, configura-se por garantir a livre manifestação da população na formação de um novo

Poder Constituinte e fortalecer a sua supremacia com relação aos dispositivos

infraconstitucionais.

Ackerman cria a dualist democracy que possibilita ao cidadão uma conduta

específica em cada uma das espécies, com a valorização da soberania popular. Ele concebe a

487 BENDA, MAIHOFER, VOGEL, HESSE & HEYDE. Manual de Derecho Constitucional. 2 ed., Trad. Antonio López Pina. Madrid: Marcial Pons, 2001. P. 114.

358

autodeterminação dos cidadãos em uma democracia de uma forma dualista: um higher

lawmaking track, específico de uma “política constitucional” e um lower lawmaking track,

específico de uma “política ordinária”. Esta ocorre em tempos de normalidade

constitucional, quando a participação política dos cidadãos está adstrita às suas obrigações

corriqueiras da cidadania, deixando ao governo e aos representantes eleitos a gerência da

coisa pública. Aquele ocorre em momentos de crise institucional, em que a participação

política exigida dos cidadãos é mais intensa, necessitando de forte colaboração popular para

atingir o grau de legitimidade esperado para a formação do processo constituinte.

A “política constitucional” se diferencia da “política ordinária” porque somente

ocorre em momentos extraordinários da vida nacional, quando as condições sócio-político-

econômicas propiciam a sedimentação da legitimidade necessária para o início do processo

constituinte, fazendo com que os cidadãos, imbuídos de virtude pública, pensem mais no

interesse coletivo do que nos seus interesses particulares.488 Se os legisladores legitimados à

atuação na “política ordinária”, que ocorre no cotidiano, pudessem legislar acerca da

“política constitucional” estariam perpetrando uma fraude à constituição, esbulhando uma

função que caberia aos legisladores constituintes que são eleitos para o exercício de tal

preponderante função.489 Essa supremacia da “política constitucional” deve-se a particulares

requisitos necessários para o surgimento do Poder Constituinte, que exigem um processo de

deliberação tanto em termos quantitativo como em termos qualitativo, bem mais rígidos do

que aqueles exigidos para a formação da “política ordinária”.490

A concepção de dupla democracia representa uma solução para quando a Carta

Magna não mais puder regulamentar a organização social de acordo com o interesse da

população. Ela evita a petrificação da Constituição, permitindo a sua renovação quando

488 BONGIOVANNI, Giorgio & GOZZI, Gustavo. “Democrazia” In: Le Basi Filosofiche Del Costituzionalismo. 4 ed., Roma: Laterza, 2000. P. 222. 489 Acerca do conceito de Fraude à Constituição ver: AGRA, Walber de Moura. Fraudes à Constituição. Um Atentado ao Poder Reformador. Porto Alegre: Fabris, 2000. P. 185. 490 ACKERMAN, Bruce. We the people. Foundations. Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1991. P. 285-290.

359

houver as condições sócio-político-econômicas adequadas. Quem também adota um critério

dualista de democracia é John Rawls.491

Existem para Ackerman, portanto, duas democracias: uma é feita pelo povo (by the

people) e a outra é feita pelo governo (by their government). A primeira ocorre raramente e

sob especialíssimas condições. Para a atuação da primeira, sob forma de um Poder

Constituinte ele impõe os seguintes requisitos: a) convencer a predominante maioria dos

cidadãos a redesenhar o pacto político, haja vista a inadequação das estruturas políticas

atuais; b) permitir que todos os setores da sociedade possam participar do processo

constituinte; c) convencer a predominante maioria dos cidadãos a participar do processo de

deliberação e aceitar as suas decisões para a criação da “Higher lawmaking”. A atuação da

segunda, denominada de “normal lawmaking”, ocorre diariamente, mas deve preencher

algumas condições especiais: a) que os representantes populares tenham sido eleitos pelo

povo; b) que tenham como propósito garantir o interesse público, sem sofrer a influência de

grupos de interesses privados.492

O seu conceito de povo não se confunde com o conceito de governo. Para a teoria

dualista da democracia, a população somente atua de forma efetiva na formação de uma

nova Constituição. Claro que há a participação popular nas duas formas de democracia,

afinal o governo é feito por representantes eleitos pelo povo e a constituinte da mesma forma

por representantes eleitos em votação direta. O que diferencia estas duas formas de

democracia é o grau de participação popular e a intensidade da legitimidade depositada em

cada um deles, que se apresenta muito mais forte na formação de uma nova Constituição, do

que na criação das normas infraconstitucionais ou no gerenciamento do dia-a-dia do

governo.

A finalidade da teoria da democracia dual é impedir a concretização da “tirania da

maioria”, que de forma alguma pode ultrapassar os limites impostos pela Lei Maior,

cerceando os excessos cometidos pelos poderes estabelecidos. As decisões tomadas pela

491 “A democracia parlamentar também é dualista. Distingue o Poder Constituinte do poder ordinário e a lei suprema das leis ordinárias”. RAWLS, John. Liberalismo Político. Trad. Gianni Rigamonti. Milano: Edizioni di Comunità, 1994. P. 199. 492 ACKERMAN, Bruce. We the people. Foundations. Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1991. P.6.

360

maioria parlamentar, formada no parlamento (by their government), não podem contrariar a

vontade do povo (by the people), haja vista a superioridade desta em relação àquela. A teoria

do dualismo constitucional arrefece o princípio da maioria, importante dogma do regime

democrático, protegendo as decisões tomadas no processo constituinte porque elas são

concebidas como um momento crucial na vida da sociedade, configurando-se como um

contrato social que não pode ser revogado pelos legisladores ordinários.

A idéia monista de democracia parte do pressuposto de que o regime democrático se

consubstancia na soberania do parlamento. Como o Poder Legislativo foi eleito pelo povo,

ele pode exercer o plenary lawmaking authority, com a presunção de que agindo dentro dos

limites oferecidos pelo check and balances as suas leis são consoantes com a vontade

popular. Diante dessa concepção, as decisões da jurisdição constitucional que revogam as

leis feitas pelo Poder Legislativo exercem uma countermajoritarian difficulty.

A teoria monista da democracia não atribui aos direitos fundamentais o papel de

alicerce do ordenamento jurídico, nem ao menos considera-os como cláusulas pétreas do

ordenamento e por isto podem ser revogados pelo legislador ordinário. Bruce Ackerman

chama de rights foundationalists todos aqueles que defendem que a essência da Constituição

é a defesa dos direitos fundamentais.493

A crítica feita por Ackerman contra a concepção monista de democracia é que ela

investe o vencedor das eleições com plena autoridade, igual àquela que ostenta o We the

people. O que, segundo ele, não acontece com a concepção dualista de democracia. O ponto

em comum das duas teorias é que elas acreditam que o fundamento último do regime

democrático é o povo.A divergência reside em saber quando os legisladores podem agir de

forma plenipotenciária, ou seja, constituindo um Poder Constituinte.

A teoria da supremacia do parlamento, bastante difundida a partir das peculiaridades

da tradição inglesa, hodiernamente, perdeu a sua primazia para a teoria da supremacia da

Constituição, advinda da elaboração de um Poder Constituinte que é originário, autônomo e

493 ACKERMAN, Bruce. We the people. Foundations. Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1991. P.11.

361

ilimitado. O Poder Legislativo não representa essa supremacia porque é um poder

constituído, sendo derivado, subordinado e limitado, devendo se ater aos parâmetros

estabelecidos pelos mandamentos constitucionais. O grau de legitimidade que aufere o Poder

Constituinte é muito mais intenso do que o grau de legitimidade que ampara a supremacia

do parlamento, o que leva a essa série de restrições impostas à atuação do Legislativo.

O papel desempenhado pelos Tribunais constitucionais depende para Ackerman de

qual a espécie de democracia preponderante. No período de normalidade democrática a sua

função é a de tutor dos valores agasalhados pela Constituição, devendo as decisões da

jurisdição constitucional se ater aos princípios fixados pelo Poder Constituinte. No período

de crise institucional, a sua função passa ao largo da função de guardião do ordenamento

jurídico, assumindo a incumbência de garantir que os cidadãos expressem a sua vontade no

processo constituinte.

De acordo com a concepção dualista, a jurisdição constitucional tem uma função

bipartida: atuando como higher lawmaking track, seu escopo é assegurar a formação do

Poder Constituinte, verificando a existência dos seus requisitos necessários; atuando como

lower lawmaking track seu escopo é garantir a adequação dos mandamentos

infraconstitucional ao preceituado na Constituição.

A jurisdição constitucional atua preponderantemente para proteger os princípios que

foram democraticamente escolhidos pelo Poder Constituinte para fazer parte da

Constituição, impedindo que eles sejam afrontados por aqueles que ocupam transitoriamente

o poder, contribuindo ainda para diferenciar as regulamentações elaboradas pelo we the

people das implementadas pelo We the politicians.

Diante da concepção bilateral de democracia, Ackerman nega a existência de uma

tensão entre o parlamento e o poder da jurisdição constitucional de invalidar as suas

decisões, negando a existência de uma tensão com o princípio majoritário, counter

majoritarian difficulty. Essa idéia advém da falsa concepção de que o Poder Legislativo

representa a soberania popular e que o regime democrático é sinônimo de soberania do

parlamento. Para ele, a soberania popular apenas se manifesta nos momentos de crise,

exigindo a participação dos cidadãos na formação do Poder Constituinte. Destarte, quando a

362

decisão da jurisdição constitucional considera nula uma lei proveniente do Poder Legislativo

não está fazendo uma afronta ao princípio majoritário, mas sim assegurando uma função

democrática de defesa da vontade do povo no processo constituinte.

A Constituição norte-americana contém duas estruturas que acomodam a tensão

entre o poder e a legitimidade. A primeira delas é o calendário eleitoral, que proporciona

uma rotatividade dos representantes populares, com regras pré-determinadas que antecipam

o desenvolvimento das eleições. A segunda é a separação dos poderes, entre a Câmara dos

Deputados, o Senado, a Presidência da República e a Suprema Corte. Por causa dessa real

separação de poder, é muito difícil que o resultado das eleições possa dar o controle a um

único partido de todos esses órgãos. Assim, as reformas pretendidas para a Constituição

devem ser estabelecidas com base em um amplo debate popular que possa acarretar um forte

consenso para que elas se realizem. O caso específico são as reformas implementadas no

New Deal, em que devido a um amplo debate popular, as suas medidas terminaram por ser

concretizadas. A separação de poder impõe como requisito para a realização das

modificações a formação de uma maioria perene, com respaldo na sociedade, para que com

base no convencimento de suas propostas, possa ser efetivadas.494

Essas duas estruturas que acomodam a tensão entre o poder e a legitimidade são os

propulsores do regime democrático porque possibilitam que os participantes do jogo

democrático continuem jogando com a finalidade de ocupar o poder e assim formar uma

estável maioria que garanta os seus objetivos.

Bruce Ackerman é um ferrenho crítico do modelo de reforma constitucional norte-

americano, que exige dois terços dos votos nas duas casas do Poder Legislativo e três

quartos dos Estados norte-americanos apoiando a proposta de emenda constitucional, com a

fiscalização da Suprema Corte, no exercício de sua jurisdição constitucional para verificar se

os requisitos foram atendidos. Dessa forma, ele acha que a soberania popular é fragilizada

porque alguns estados podem estorvar o processo de reforma, com base em seus interesses

particulares, em detrimento dos interesses nacionais. Planteia que o artigo quinto da

494 ACKERMAN, Bruce. We the People. Transformations. . Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1998. P. 384-386.

363

Constituição dos Estados Unidos falhou em acomodar as características nacionais na

identidade constitucional. As dificuldades para a concretização do higher law-making

servem apenas para aprofundar as crises constitucionais e aumentar as instabilidades sociais.

Para contornar esse estorvo à vontade dos cidadãos, ele propõe a criação da iniciativa

popular soberana. Proposta pelo Presidente, ela deveria ser aprovada pelo voto de dois

terços dos membros das duas casas legislativas. E depois, a iniciativa deveria ser posta em

votação em duas eleições presidenciais consecutivas. Aprovada em todas essas fases,

deveria ser apreciada pela Suprema Corte para verificar sua adequação aos parâmetros

constitucionais.495

Ackerman nota uma certa contradição nas decisões da Suprema Corte norte-

americana, nos anos noventa, no exercício da jurisdição constitucional, porque ao mesmo

tempo em que adota uma política de respeito aos direitos humanos dos cidadãos, permite

que o ativismo estatal assalte os direitos fundamentais da Constituição, afastando-se da

estreita avaliação judicial.496 Ou seja, não obstante a Suprema Corte garantir os direitos

fundamentais dos cidadãos, permite que muitos desses direitos sejam obnubilados pela

atuação dos órgãos estatais na sociedade, cerceando muitas vezes o exercício desses direitos,

o que ele chama de ativismo estatal. Para ele, essa maior atuação estatal apenas poderia

ocorrer se tivesse sido prevista pelo We the People.

O grande problema da teoria de Ackerman é que continuam sendo os tribunais

constitucionais que decidem se os requisitos estão presentes para a transmutação de uma

política ordinária para uma política constitucional. Como esses órgãos têm a última decisão,

podem deixar de exercer o papel de condutor do Poder Constituinte e ao invés impedir a sua

concretização.

Acerca da proteção dos direitos fundamentais a teoria da dualist democracy deixa a

desejar. O escopo principal da jurisdição constitucional é assegurar a vontade do we the

495 ACKERMAN, Bruce. We the People. Transformations. . Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1998. P. 415. 496 ACKERMAN, Bruce. “Liberating Abstraction”. In: The Bill of Rights in the Modern State. Chicago: The University of Chicago Press, 1992. P. 318.

364

people, firmada no processo de criação da Constituição; os direitos fundamentais são

protegidos de forma reflexa como parte integrante da Carta Magna. Assim, há um retrocesso

porque as prerrogativas inerentes aos cidadãos não são mais consideradas como vetor para a

atuação da jurisdição constitucional. Os direitos fundamentais perdem seu lugar de alicerce

de legitimação do Texto Constitucional, ocupando a sua função à vontade do we the people

que ampara todas as normas contidas na Constituição, sem fazer menção à relevância

desempenhada por esses direitos.

Para a teoria dualista de democracia, os direitos fundamentais devem ser defendidos

pela jurisdição constitucional no lower lawmaking. Contudo, durante o processo de atividade

do Poder Constituinte, a jurisdição constitucional deixa de ter a função de proteger os

direitos fundamentais, incubindo-se de verificar se as condições para o surgimento de uma

nova Constituição foram satisfeitas. No processo de transconstitucionalização nada impede

que o Poder Constituinte possa reestruturar os direitos fundamentais e até mesmo suprimir

alguns deles. Para o professor da Universidade de Yale, os direitos fundamentais nem são

dados pré-políticos nem são derivados de uma deliberação política. Na verdade, são

definidos pela Constituição e podem ser modificados pelo Poder Constituinte.

A outra crítica que se faz à sua obra é que ela despreza o papel desempenhado pela

jurisdição constitucional em tempos de “política ordinária”, esquecendo a sua função de

defesa dos mandamentos constitucionais e alicerce da segurança jurídica, garantindo a

concretização dos direitos fundamentais e contribuindo para a resolução dos conflitos sociais

dentro dos parâmetros da legalidade. É na política ordinária que a jurisdição constitucional

pode aprimorar as suas decisões no sentido de garantir uma maior eficácia dos postulados

constitucionais, construindo canais de diálogo com a sociedade, oportunidade não

apresentada na “política constitucional” cuja função reside em permitir a fruição da vontade

popular soberana.

Formalmente, é difícil classificar Bruce Ackerman como um substantancialista ou

um procedimentalista com relação à legitimação da jurisdição constitucional. A priori, ele

destoa dos parâmetros da teoria substancialista porque, primeiro, não defende que a missão

profícua da jurisdição constitucional é a concretização de determinados conteúdos da

365

Constituição; segundo, nem pode ser classificado como procedimentalista, pois não defende

que a jurisdição constitucional tem a função de garantir as deliberações do regime

democrático ou os procedimentos do processo judicial.

Ele foi classificado como substancialista porque o fator teleológico da sua teoria é

garantir a vontade do we the people, cristalizada no texto constitucional. Então, o conteúdo

expresso pelas normas constitucionais tem preponderância em relação às normas

infraconstitucionais, realizadas pela “política ordinária”, velando a jurisdição constitucional

para a sua concretização normativa. O seu objetivo direto não é garantir determinado

conteúdo agasalhado pela Constituição, mas assegurar a efetivação da vontade do we the

people, protegendo, de forma indireta, o conteúdo estabelecido pela vontade popular na

construção da Lei Maior.

A essência do pensamento de Ackerman é asseverar a importância da supremacia

constitucional e sublinhar a preponderância da vontade do we the people sobre a vontade do

their the government. Essa conclusão não representa uma inovação para a teoria

constitucional brasileira que, mesmo que seja em sentido formal, reconhece a supremacia,

supralegalidade e imutabilidade relativa dos textos constitucionais. A relevância da sua

teoria consiste no fornecimento de novos elementos teóricos para a compreensão da

magnitude inerente às normas constitucionais, com uma maior densificação de sua

legitimidade auferida pelo Poder Constituinte, estabelecendo limites à atuação da maioria

parlamentar, representante da vontade do their the government, evitando a “tirania da

maioria”.

14.3) Argumentação Principiológica

Ronald Dworkin atualmente se configura como um dos mais prestigiosos

constitucionalistas norte-americano. A importância de sua obra é tão relevante que alguns

366

autores chegam a denominá-la de Dworkinism.497 Na sua obra, ele elabora uma teoria para a

fundamentação da decisão judicial que foge dos parâmetros impostos pela discricionariedade

dos juízes ou do formalismo Kelseniano, marcando a reaproximação do Direito com a

ética.498 Quando uma decisão judicial tiver que enfrentar um hard case os juízes não podem

decidi-la conforme seu livre arbítrio ou utilizar os cânones do formalismo jurídico. A

solução proposta é a utilização dos princípios que deixam um espaço aberto para a atuação

dos magistrados sem que essa extensão seja ilimitada.

A sua teoria possibilita a aplicação da jurisdição constitucional fundamentada em

princípios, garantindo a formação de um rule of law em detrimento de um rule of men. Os

elementos morais que direcionam a aplicação dos princípios constitucionais é que devem

estruturar uma concepção substancialista de jurisdição constitucional, relegando a sua

concepção meramente formalista. Sua teoria é considerada construtivista porque defende

que a interpretação deve ser guiada pelos princípios, em que a construção das decisões

judiciais, bem como toda a legislação infraconstitucional, deve ser compatível com esses

princípios.

Dworkin formulou uma teoria que procura legitimar a jurisdição constitucional de

forma racional, mostrando sua adequação com a concepção do rule of law. Tomando como

premissa que a jurisdição constitucional é estabelecida com base em um foro de princípios

constitucionais, os tribunais constitucionais têm a obrigação de atuar para garantir a

concretização de direitos fundamentais que foram adotados pelas normas principiológicas,

sem arrefecer o princípio da separação dos poderes. Ele não concebe a Lei Maior como um

sistema de regras, mas como um sistema de princípios, propondo um critério de jurisdição

constitucional com base nos elementos substanciais ofertados por esses princípios. 497 GOLDSTEIN, Leslie Friedman. In Defense of the Text. Democracy and Constitutional. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, 1991. P. 3. 498 Assim expõe Gustavo Binenbojm: “A obra de Dworkin se insere, na verdade, em um movimento de retorno e revalorização do pensamento de Kant verificado nas últimas décadas do século XX, não apenas na filosofia do Direito como na filosofia política. A partir do que se convencionou chamar virada kantiana, dá-se uma reaproximação entre ética e Direito, com a fundamentação moral dos direitos humanos e o ressurgimento do debate sobre a teoria da justiça fundado no imperativo categórico, que “deixa de ser simplesmente ético para se apresentar também como imperativo categórico jurídico”. A idéia de dignidade da pessoa humana, traduzida no postulado kantiano de que cada homem é um fim em si mesmo, eleva-se à condição de princípio jurídico, valor-fonte do qual decorrem direitos fundamentais do homem que não podem ser relativizados em prol de qualquer projeto coletivo de bem comum”. BINENBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira. Legitimidade Democrática e Instrumento de Realização. São Paulo: Renovar, 2001. P. 75-76.

367

Os casos mais difíceis que devem ser solucionados pelos juízes são os hard cases,

onde o seu espaço de deliberação se torna mais latente, o que não se configura uma

discricionariedade porque as decisões devem se ater ao conteúdo principiológico. Esses

casos são assim denominados porque são de difícil solução, já que as regras jurídicas não

podem ser aplicadas porque não se enquadram inteiramente ao fato concreto ou são, até

mesmo, contraditórias. Nessas situações, o poder de discricionariedade dos juízes ganha uma

maior dimensão, atuando os princípios jurídicos como diretrizes no encaminhamento de uma

decisão justa para solucionar a questão.499 Essas questões, que muitas vezes envolvem

litígios políticos, apenas podem ser resolvidas através de princípios, estruturados com base

na justiça e na eqüidade.

Para Ronald Dworkin, o ordenamento jurídico é formado por princípios, regras e por

diretrizes políticas. Os princípios apresentam um maior relevo do que as regras porque

fazem a conexão entre a esfera jurídica e a esfera moral e política e direcionam os juízes

para a solução dos casos mais difíceis.500 As regras têm taxionomia jurídica e uma

499 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. 16 ed., Cambridge: Havard University Press, 1997. P. 327 e 328. 500 As regras são tópicas, ou seja, têm um campo delimitado de competência. Por isso, seu teor de abstração se torna reduzido e possuem uma maior determinabilidade. Elas não têm possibilidade de flexibilização, sua extensão assume uma proporção fixa e o seu conteúdo tem uma transparência jurídica nítida.

Os princípios têm uma textura ideológica mais forte, a conotação jurídica sofre uma influência sócio-política marcante. Fazem a translação entre a esfera social para a jurídica, advindo daí um caráter híbrido. Eles possuem considerável capacidade de elasticidade, seus limites podem ser ampliados ou reduzidos de acordo com a conjuntura social. Pelo seu grau de abstração (o que propicia um caráter polissêmico maior) e menor condição de determinabilidade, o conteúdo também sofre variações consonantes as conjunções sistêmicas do ordenamento e das vertentes sociológicas. Além disso, os princípios constitucionais têm função normogenética, servindo para a criação das regras.

Os princípios, pela característica de poder sopesar sua extensão, fornecem ao Texto Constitucional uma estrutura dialógica, capacitando as normas a solverem o desenvolvimento da sociedade e possibilitar sua sincronia com ela. Eles desempenham fundamental importância na eficácia da Lei Maior porque evitam a decrepitude das normas constitucionais.

A estrutura dialógica da Constituição propicia uma abertura horizontal e vertical. A abertura horizontal afronta o axioma da completude do sistema, ensejando o seu constante incremento. Este tipo de abertura expele os princípios da inclusão – do non liquet, e da exclusão, o que não está proibido está permitido – que são os alicerces da completude do ordenamento jurídico, defendido por Kelsen (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito.4º ed., Trad. Dr. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1976. P. 338).

Assim, pela variabilidade da sua extensão, os princípios se harmonizam, enquanto as regras podem se excluir. Uma maior ou menor extensão dos princípios deriva da legitimidade haurida na sociedade, possibilitando um balanceamento dos valores e interesses. Aqueles que se conectam com as denominadas invariáveis axiológicas têm uma eficácia constitucional mais sólida.

Outra ilação a que se pode chegar é que os princípios são compatíveis com vários graus de concretização de acordo com os condicionamentos fáticos e jurídicos. Quanto mais íntima for a relação dos

368

incidência tópica porque apresentam um reduzido grau de abstração. As diretrizes políticas

são oriundas das decisões das estruturas políticas da sociedade, traçando os objetivos que

devem ser alcançados pelos órgãos estatais.

Dessa forma se posiciona Dworkin diferenciado os princípios das diretrizes políticas:

“Eu chamo de diretrizes políticas esse tipo de standard que traça um objetivo para ser

alcançado, normalmente uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da

comunidade (também podem ser concebidas como negativas no sentido de que determinadas

características apresentadas na sociedade devem ser protegidas de mudanças adversas). Eu

chamo de princípios um standard que deve ser observado não porque represente um avanço

ou uma segurança considerados desejáveis nos aspectos econômico, político e social, mas

porque é um requisito de justiça ou equidade ou outra dimensão de moralidade”.501

A aplicação dos princípios constitucionais utilizados na jurisdição constitucional é

realizada de acordo com preceitos morais, abrangendo questões de justiça e de eqüidade.

Assim, os juízes ao prolatarem uma decisão judicial devem buscar na seara moral o

fundamento jurídico que guarde uma maior proximidade com o princípio que será utilizado

no caso concreto. Se por um lado, os princípios, igualmente como as regras, são obrigatórios

tanto para os juízes como para os advogados, apresentando igual coercitividade, por outro

lado, ostentam uma área de incidência diversa, não havendo possibilidade de se tratar de

forma igualitária sua abrangência porque os princípios têm um maior alcance do que as

regras.

Dworkin não nega que a jurisdição constitucional sofre injunções políticas, mas

tomando como prisma um conteúdo principiológico, pode-se chegar a uma “right answer”,

ou seja, a uma melhor resposta possível. Ele admite o vínculo entre o Direito, a moral e a

política; e com esses três elementos constrói sua teoria de legitimação das decisões

constitucionais. Dessa forma, os juízes não têm um poder absoluto, eles obrigatoriamente

devem realizar uma interpretação da jurisdição constitucional de acordo com o “fórum de

princípios com os valores predominantes na sociedade, maior o grau de concretização e conseqüentemente da realização constitucional. 501 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. 16 ed., Cambridge: Havard University Press, 1997. P. 22.

369

princípios”. Uma outra limitação para o poder de aplicação da jurisdição constitucional são

os parâmetros vigorantes na moral política que direciona a sua atuação.

Ao mesmo tempo em que a seara jurídica não pode ser separada da seara política,

não se pode separar esses dois segmentos em compartimentos sem conexões recíprocas.

Contudo, necessita-se ressalvar que as decisões judiciais são questões de natureza

principiológica antes de serem questões políticas. Já a injunção de elementos morais deriva-

se da certeza de que os cidadãos têm direitos e deveres morais entre si e direitos políticos

perante os órgãos estatais.

Ele diferencia dois tipos de matérias: uma que é sensível à escolha, denominada de

choice-sensitive, preference-sensitive e outra que não é sensível à escolha, denominada de

choice-insensitive, preference-insensitive. As primeiras podem ser modificadas de acordo

com a vontade popular, enquanto que as segundas não podem ser modificadas pelas

preferências populares. Seguindo o seu raciocínio afirma que o parlamento e o governo são

mais preparados para decidir as questões referentes a choice-sensitive, e os juízes que

compõem a jurisdição constitucional, pela forma de seleção e pela exigência de um

substancioso cabedal de conhecimento, são mais bem preparados para decidir acerca de

choice-insensitive.

Ao diferenciar as matérias inerentes ao choise-sensitive e aquelas inerentes ao

choise-insensitive ele realiza uma diferenciação entre a linha de atuação da jurisdição

constitucional e a linha de atuação do Poder Legislativo. A este incumbe a função de atuar

com relação às normas, que têm uma fundamentação política, onde os agentes sociais atuam

de forma discricionária, sem a possibilidade de sofrer restrições por parte de decisões

judiciais, respeitando, obviamente, os mandamentos constitucionais. A seara de atuação da

jurisdição constitucional é aquela pertinente às normas que têm uma fundamentação

principiológica, em que as decisões judiciais têm a missão de assegurar que o Poder

Legislativo não irá macular o seu conteúdo.

A fundamentação do judicial review, segundo o mencionado professor, é proteger o

conteúdo principiológico, defendendo a proeminência dos arguments of principle em

detrimento do policies, dando prioridade aos direitos individuais com relação aos interesses

370

dos entes estatais. A jurisdição constitucional personifica o “fórum de princípios”, com a

missão de resolver os hard cases consonante uma sincronia com a “comunidade morais de

princípios”, inclusive este é o fundamento da sua legitimidade, cujas decisões judiciais

obrigatoriamente devem seguir o conteúdo principiológico firmado no âmbito moral.502 O

princípio escolhido deve ser aquele que, do ponto de vista moral, melhor se adeque à

estrutura das instituições e as decisões realizadas pela comunidade.

Divergindo de procedimentalistas como Habermas, Sunstein ou Ely, a legitimação da

jurisdição constituição não reside nos procedimentos do regime democrático, nem na

literalidade das normas jurídicas como plantearia os formalistas como Kelsen. O pilar de

legitimidade é estruturado com base em uma “comunidade moral de princípios”, de caráter

transcendental às normas jurídicas, cujas decisões da jurisdição constitucionais devem

buscar o arrimo de sua legitimidade.

Cabe aos juízes a função de identificar os princípios contidos na Constituição e a

cada geração, os novos juízes devem desenvolver esses princípios, alicerçados no judges’

personal philosophy. De acordo com a sua concepção, os juízes apresentam melhores

condições para refletir os valores morais contidos nos princípios constitucionais do que os

mandatários populares, em contraposição a John Hart Ely, que sustenta tese diametralmente

oposta. Os membros que compõem a jurisdição constitucional dispõem de melhores

condições para solucionar os litígios advindos da aplicação dos mandamentos

constitucionais porque são imparciais, sem uma participação ativa nos confrontos políticos,

e detêm de uma melhor qualificação técnica para tal incumbência.

Os elementos substanciais, utilizados por Dworkin, são formados durante a

assembléia constituinte, cristalizando uma “comunidade moral de princípios” que foram

escolhidos pela população mediante um processo político em que os cidadãos arduamente

discutem para chegar a um consenso comum sobre os princípios morais coletivos. Os

502 “O melhor que fazermos é trabalhar, abertamente, e com boa vontade, para que o argumento nacional de princípio oferecido pela revisão judicial seja o melhor argumento de nossa parte. Temos uma instituição que leva algumas questões do campo de batalha da política de poder para o fórum do princípio. Ela oferece a promessa de que os conflitos mais profundos, mais fundamentais entre o indivíduo e a sociedade irão, algum dia, em algum lugar, tornar-se finalmente questões de justiça. Não chamo isso de religião nem de profecia. Chamo isso de Direito”. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 103.

371

cidadãos são considerados como agentes morais que estabelecem um consenso sob quais são

os princípios morais que devem nortear o funcionamento político da sociedade. Portanto, o

elemento aglutinador da sociedade são os princípios morais e não as condições sócio-

político-econômicas.

Ele personifica a “comunidade moral de princípios”, transformando-a em um pessoa

moral, fazendo com que ela possa agir de forma distinta dos cidadãos que a compõem e

permitindo que possa escolher qual o princípio que predomina em determinados casos. Ele

ainda defende que a Constituição pode ser considerada como formada por um único autor,

através de um condensamento dos princípios constitucionais mais imperiosos.

Essa “comunidade moral de princípios” é concebida dentro da integridade do Direito

(integrity).503 Dessa forma, todas as decisões da jurisdição devem ser tomadas com base em

um sistema coerente, influenciado pela doutrina e pela jurisprudência. A coerência do

sistema jurídico tem a finalidade de densificar a sua eficiência ao impedir o surgimento de

antinomias. A integridade do Direito é considerada como uma virtude política, decorrente de

uma comunhão principiológica decidida pelos cidadãos, densificando a legitimidade

auferida pelo sistema jurídico, principalmente pela jurisdição constitucional. Igualmente, a

integridade se mostra imprescindível para uma interpretação construtivista das práticas

jurídicas, pois oferece melhor condição de dirimir os hard cases.504

A teoria de Dworkin é denominada de comunitária, pois o alicerce da ação coletiva

não é a ação individual, mas aquela atribuída à comunidade que tem autonomia frente aos

indivíduos, embasada sobre uma ética da responsabilidade com relação às decisões coletivas

em que os cidadãos têm que arcar com o ganho ou a perda decorrente da sua escolha. Parte

do princípio, desenvolvido por Rousseau, da vontade geral para firmar uma comunidade

503 “Será útil dividir as exigências da integridade em dois outros princípios mais práticos. O primeiro é o princípio da integridade na legislação, que pede aos que criam o direito por legislação que o mantenham coerente quanto aos princípios. O segundo é o princípio de integridade no julgamento: pede aos responsáveis por decidir o que é a lei, que a vejam e façam os responsáveis por decidir o que é a lei, que a vejam e façam cumprir como sendo coerente nesse sentido”. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. P. 203. 504 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. P. 260-261.

372

ética, formada pelos juízos valorativos dos indivíduos que obtêm maior consenso na

sociedade.505

A democracia somente pode ser concretizada quando houver respeito aos princípios

de participação de cada cidadão, dentro de um processo coletivo de decisão em que cada

interesse particular seja considerado. Sua concepção de democracia é comunitária

integrativa, sustentando que essa forma de regime político é essencial para concretizar os

direitos fundamentais dos cidadãos. Assim, a participação política dos cidadãos é um

requisito imprescindível para a concretização de uma verdadeira democracia.

Os direitos fundamentais, uma das finalidades precípuas da jurisdição constitucional,

não são alicerçados por regras jurídicas, mas através de princípios morais que são

estabelecidos pela “comunidade moral de princípios”. Assim, os direitos fundamentais

configuram-se como transcendentes porque seu fulcro está nos princípios morais,

asseverando sua taxionomia de direitos morais antes de direitos jurídicos. Normalmente, os

direitos morais escolhidos pela comunidade de princípios são traduzidos por normas

jurídicas, o que não impede que alguns deles não encontrem amparo no ordenamento

jurídico, adquirindo um caráter transcendente. Pela sua importância, os direitos

fundamentais não são passíveis de escolha pela maioria da população através do princípio

majoritário, caracterizando-se pelos direitos choice insensitive or preference insensitive.

O ideal abstrato de democracia e o princípio majoritário não têm a importância que

lhes é dada por John Hart Ely, por exemplo, ao transformar a democracia em um cálculo

numérico.506 Esses princípios não são absolutos, assumindo primazia os direitos

fundamentais que se configuram em uma matéria regulamentada pelo conteúdo

principiológico. Dworkin não os relega, considera-os como princípios importantes do Estado

de Direito, mas sem poder determinar o conteúdo dos direitos fundamentais. Sempre que o

505 ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. 5 ed., Trad. Antônio de P. Machado. São Paulo: Brasil Editora, 1958. P. 119. 506 “Nesta sessão sustento que o ideal abstrato de democracia, em si mesmo, não oferece nenhuma sustentação maior para uma doutrina da revisão constitucional baseada no processo que para uma baseada nos resultados”. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luiís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 82.

373

posicionamento da vontade da maioria se chocar com os princípios exigidos pela moralidade

política estes devem prevalecer em detrimento daqueles.

As críticas à teoria de Dworkin sustentam que, com base nos princípios contidos na

Carta Magna, o órgão que exerce a jurisdição constitucional adquire um grande poder para

realizar livremente suas decisões judiciais, limitando as funções do Poder Legislativo. O

papel que é delegado por Dworkin aos juízes, superdimensionando suas prerrogativas, ao

qual cabe, confiando nas suas habilidades pessoais, garantir que os preceitos morais contidos

nos princípios jurídicos tenham concretização, também sofre bastante oposição. Com isto,

delega-se aos juízes um poder discricionário muito vasto, sem que haja limites para a sua

extensão. Cass Sunstein se configura como um dos opositores à magnitude de funções que é

atribuída aos juízes, por Dworkin. Para o defensor do basic rights of political participation,

os juízes não são cidadãos comuns mas também não podem ser considerados como

filósofos, não podendo a jurisdição constitucional substituir as esferas públicas de debate nas

soluções de casos judiciais que produzam antagonismos sociais.507

Em segundo lugar, há uma lógica de perversão do processo democrático, haja vista

que um órgão sem legitimidade popular irá tomar decisões políticas de grande influência.

Em nenhum momento da sua teoria, ele menciona instrumentos de democracia participativa

que pudessem controlar as decisões dos Tribunais constitucionais. Obedecendo às decisões

da jurisdição constitucional, através de uma lógica interna, sem o estabelecimento de contato

com a realidade social, os seus posicionamentos tendem a ser vistos como atos arbitrários,

pois inexistem mecanismos de legitimação social. O núcleo principiológico fundamental da

Constituição é subtraído do processo democrático, cabendo aos órgãos da jurisdição

constitucional decidir a seu respeito.

Autores como Frank Michelman não aceitam a concepção do Direito como integrity,

segundo o qual a integridade de um ordenamento jurídico pode ser apresentada como obra

de um único legislador, devido aos princípios que formam a sua estrutura. Argumentam que

esse é um trabalho impossível de ser realizado, haja vista que a Constituição é o produto de

uma ação coletiva, formada por vários autores sociais, com os mais variados interesses.

507 SUNSTEIN, Cass R. Legal Reasoning and Political Conflict. New York: Oxford University, 1996. P. 4.

374

Discute-se qual o critério para diferenciar as matérias sensíveis à escolha, e quais

aquelas que são insensíveis porque a Constituição não traria esse tipo de distinção. O temor

é que essa distinção seja feita pelo órgão que exerce a jurisdição constitucional e,

obviamente, teria uma interpretação extensiva, concentrando muito poder nas suas mãos.

Poderiam ser estabelecidos critérios com base no conteúdo das normas constitucionais ou na

sua estrutura?

Em decorrência dos seus posicionamentos, Ronald Dworkin pode ser denominado

como um liberal-democrático, ressaltando a sua defesa em prol dos direitos individuais e das

minorias. Nesse ponto específico, a crítica realizada, principalmente tomando como

parâmetro a realidade brasileira cuja sociedade apresenta grande desigualdade social, é no

sentido que ele privilegia os direitos individuais, em detrimento das políticas públicas que

podem amparar os hipossuficientes. Como para a sua teoria os dois principais direitos que

devem ser protegidos pela jurisdição constitucional são a liberdade e a democracia, passíveis

de serem concretizadas por atuações negativas dos órgãos estatais, a defesa de uma postura

mais ativa para a concretização dos direitos fundamentais de segunda dimensão, por parte de

decisões judiciais, não faz parte do seu escopo, o que significa uma deficiência para as

necessidades pátrias.508

14.4) Elementos Constitucionais Essenciais

Apesar de a teoria da justiça de John Rawls ser uma teoria procedimental, buscando

a superação das teses baseadas no jusnaturalismo e naquelas que advogam a ausência de

preceitos ontológicos, ele recorre aos constitucional essentials para que, através de

elementos substantivos, apesar de apresentarem taxionomia relativa e não absoluta, corrija

os desvios de uma teoria procedimental sem referenciais mínimos. Essa aparente contradição

deve ser analisada dentro da evolução da obra de Rawls já que o livro “Uma Teoria de

508 DWORKIN, Ronald. Sovereign Virtue. The Theory and Practice of Equality. Cambridge: Harvard University Press, 2000. P. 211.

375

Justiça”, no qual exprime a sua teoria procedimental de justiça, data de 1971, enquanto

“Liberalismo Político”, em que concebe a teoria dos elementos constitucionais essenciais,

data de 1993. O próprio Rawls admitiu na introdução da edição espanhola do “Liberalismo

Político” que as modificações efetuadas são uma resposta às modificações efetuadas no

panorama global.509

Ele percebeu que mesmo uma teoria procedimental de justiça necessita de alguns

limites substanciais para que possa funcionar à contento, com a realização de alguns

objetivos considerados como imprescindíveis.Os elementos constitucionais essenciais têm a

finalidade de evitar que um modelo procedimental possa colidir contra preceitos

considerados essenciais e imprescindíveis para a construção de um conceito de justiça.510 Os

constitucional essentials se configuram em elementos substantivos que garantem um

conteúdo mínimo à sua teoria procedimental de justiça.

A idéia do liberalismo político de Rawls é que a jurisdição constitucional deve ser

exercida com a finalidade de realizar a razão pública e essa razão deve ser construída pelo

órgão que prolata as suas decisões judiciais.511 Para ele, a Suprema Corte é o órgão que deve

servir de paradigma para concretizar a razão pública, sendo plenamente compatível com o

seu papel de intérprete da Constituição. Toda a atuação da Suprema Corte ou corte

constitucional que exerce a jurisdição constitucional deve ser baseada na razão pública e,

portanto, as suas decisões devem ser explicadas e justificadas com alicerce na Constituição.

509 “Certamente poderia aparecer que o objetivo e o conteúdo dessas conferências representam uma modificação importante na teoria formulada no meu livro “Teoria da Justiça”. E, na verdade, como eu já indiquei há relevantes diferenças. Mas para entender a índole e o alcance destas devemos considerar que surgem no intento de resolver um sério problema inerente a justiça como imparcialidade; a saber, surge do fato de que a explicação para a estabilidade contido na terceira parte do livro “Teoria da Justiça” não é mais congruente com o panorama global. Penso que todas essas diferenças neste aspecto são conseqüência de se tentar dissipar tal incongruência”. RAWLS, John. Liberalismo Político. Trad. Sérgio René Madero Báez. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. P. 11. 510 “O consenso sobreposto, por sua vez, deve ter seus princípios fundados numa concepção política de justiça, indo além dos princípios políticos que estabelecem o procedimento democrático, incluindo princípios que cubram a estrutura básica da sociedade como um todo, através do estabelecimento de direitos substantivos como a liberdade de consciência e liberdade de pensamento, igualdade de oportunidade e princípios cobrindo certas necessidades essenciais”. VILHENA VIEIRA, Oscar. A Constituição e sua Reserva de Justiça. Um Ensaio sobre os Limites Materiais ao Poder de Reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. P. 209. 511 A etimologia da expressão razão pública deixa entrever que existem outras razões que não pertencem ao espaço público, sendo razões de natureza privada, como aquelas que são pertinentes às associações civis.

376

O liberalismo político tem como requisito para a sua construção teórica, que a Lei

Maior seja fruto de uma criação democrática, em que todos os setores da sociedade tenham

oportunidade de participar da sua elaboração. Teoricamente, cada cidadão deve ter igual

poder político. Como conseqüência, o poder político deve ser exercido de acordo com os

princípios constitucionais, privilegiando o debate público no qual as decisões mais

importantes devem ser tomadas. A legitimidade do poder político também é importante para

a teoria analisada, consistindo em um dever moral dos cidadãos explicar de forma racional,

aos demais, as questões primordiais da vida política. As escolhas políticas devem ser

tomadas com arrimo nos valores políticos que foram adotados pela Constituição.

A razão pública se configura como apanágio dos regimes democráticos, cujas

decisões políticas são tomadas pelo povo, no sentido de alcançar o bem comum. Ela é assim

considerada porque se constitui em um bem público, pertencente à coletividade, formada

pelos cidadãos; seu conteúdo de igual forma é público porque é constituído de princípios

decorrentes da concepção que a sociedade tem de justiça política, sedimentados na sua base.

Como as sociedades hodiernas são plurais, refletindo uma divisão econômica, social,

cultural, religiosa etc, a formação de consensos sociais que orientarão a razão pública

necessita do desenvolvimento de espaços públicos de discussão, que somente podem

florescer em um regime democrático.

Um dos apanágios relevantes da razão pública é a sua imparcialidade, que representa

um importante fator para a sua legitimidade. Se o órgão que exerce a jurisdição

constitucional não pautar suas ações pelo dogma da imparcialidade, a aquiescência as suas

decisões na sociedade sofrerá um decréscimo, o que conseqüentemente diminuirá a eficácia

dos mandamentos constitucionais e principalmente dos elementos constitucionais essenciais.

A dificuldade de se atrelar à jurisdição constitucional a realização de um objetivo é

definir o seu conceito, impondo limites à interpretação para garantir estabilidade ao

ordenamento jurídico. O conteúdo da razão pública para Rawls é definido através de uma

concepção política de justiça, centrada no seu aspecto de equidade. A concepção política de

justiça é alicerçada nos seguintes aspectos: liberdades e oportunidades básicas para todos os

cidadãos, independente de classe social, convicção ideológica ou credo religioso; que essas

377

liberdades e oportunidades básicas sejam construídas sob o fundamento de propiciar o bem

geral para todos os cidadãos; que existam instrumentos assecuratórios de que essas

liberdades e oportunidades básicas serão concretizadas.

Para se entender essa concepção, de cunho ideológico liberal, é necessária a

construção de diretrizes que especifiquem a forma de concretização da razão pública. Essas

diretrizes constam de duas partes: de princípios substantivos de justiça, que incidem na

estrutura básica da sociedade – mesmo não apresentando uma taxionomia absoluta porque

são relativos, é inquestionável seu teor substancial; e as diretrizes de indagação que

delineiam a forma como os cidadãos devem decidir e aplicar de maneira adequada os

princípios substantivos – apresentando natureza procedimental para possibilitar que as

discussões realizadas nos espaços públicos possam chegar a um consenso.

Destarte, a concepção política de justiça é formada de duas partes, que possuem

idêntico valor, sendo partes concomitantes de um acordo único. A primeira compõem-se de

princípios de justiça substancial, formados pelas estruturas de base – que englobam todas as

principais instituições políticas, sociais, econômicas, cujas funções mantêm áreas de

interseção nas suas atuações, dentro da sociedade de forma difusa. A segunda compõem-se

de regras procedimentais, princípios e regras racionais, chamados de regras de orientação,

cuja função é esclarecer aos cidadãos o modo de aplicação dos princípios substanciais para

escolher as leis e as políticas que melhor lhes satisfaçam.512

A finalidade de conectar a concepção política de justiça aos princípios fundamentais

e às regras procedimentais de orientação é densificar a legitimidade popular ao conteúdo da

razão pública. A teoria de Rawls é substancialista, na medida em que procura legitimar a

jurisdição constitucional com base em uma determinada substância, ou seja, o conteúdo da

justiça substancial, concretizado nos elementos constitucionais essenciais. As regras de

orientação, que apresentam uma nítida taxionomia procedimental, não obnubilam o caráter

substancial da teoria de Rawls porque servem para garantir o debate da razão pública, sem

interferir na concretização dos elementos substanciais, muito pelo contrário, são requisitos

para a sua realização.

512 RAWLS, John. Liberalismo Político. Trad. Gianni Rigamonti. Milano: Edizioni di Comunità, 1994. P. 192.

378

Os princípios substanciais de justiça, como já mencionamos, não são absolutos, são

preenchidos de acordo com as decisões tomadas pelo Poder Constituinte. Esses princípios

substancias de justiça ao serem concretizados na Carta Magna formam os elementos

constitucionais essenciais que constituem o vetor da atuação da jurisdição constitucional

porque apresentam uma ampla legitimidade no seio da sociedade.

O núcleo ontológico da razão pública são os elementos constitucionais essenciais,

que são os princípios substanciais de justiça, normatizados no texto da Constituição. Esses

vetores não podem ser descurados, sob hipótese alguma, na atuação da jurisdição

constitucional porque têm a função de preservar a sua racionalidade. O conteúdo dos

elementos constitucionais essenciais deve ser oriundo de um amplo consenso social que é

realizado na feitura da Constituição, propiciado pelas especialíssimas condições ensejadas

na formação do Poder Constituinte.

Os elementos constitucionais essenciais para o liberalismo político de Rawls são de

dois tipos: “a) princípios fundamentais que especificam a estrutura geral do governo e do

processo político, definindo os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, a estipulação de

limites ao governo formado pelo princípio da maioria; b) igualdade de direito e liberdade

fundamental de cidadania, que a maioria parlamentar deve respeitar: direito de voto e de

participação ativa na política, liberdade de consciência, de pensamento e de associação,

proteção do princípio da legalidade, assim como as garantias estipuladas pelo Estado de

Direito”.513

Pode-se facilmente depreender, que o principal elemento para a definição da razão

pública são os elementos constitucionais essenciais e a função basilar da jurisdição

constitucional é a garantias desses elementos, sendo eles o guia para a sua atuação e o seu

principal fundamento de legitimação.

Segundo Rawls, os limites da razão pública não se encontram claramente definidos

no conteúdo de uma estrutura normativa, em uma visão estreitamente normativa, havendo da

mesma forma limites históricos e sociais que restringem a atuação da razão pública. São

513 RAWLS, John. Liberalismo Político. Trad. Gianni Rigamonti. Milano: Edizioni di Comunità, 1994. P. 195.

379

elementos constitucionais, que servem ao mesmo tempo de limite e de orientação para a

razão pública, comportando-se como invariáveis axiológicas que são aceitas pelos mais

diversos extratos sociais, inerentes principalmente ao regime democrático. A função

primordial da razão pública é garantir a concretização dos direitos constitucionais essenciais,

embasados por princípios de justiça.514

O órgão que deve zelar pela implementação da razão pública, na teoria de Rawls, é a

corte constitucional, que exerce o papel de mais alta esfera de interpretação das normas

constitucionais, porém não é o intérprete exclusivo da Constituição. Ele fundamenta seu

posicionamento em cinco pontos principais: na distinção entre poder constituinte, que tem a

função de estabelecer as linhas fundamentais de um novo regime e o poder ordinário,

exercido na política quotidiana; na distinção entre leis constitucionais e leis

infraconstitucionais, em que estas têm que se adequar àquelas devido a sua supralegalidade;

que uma Constituição democrática expressa a idéia política de um povo, cabendo à razão

pública articular este ideal; no fato de que as Constituições modernas trazem uma declaração

de direitos que estabelece elementos constitucionais essenciais, configurando-se como uma

garantia para os cidadãos; que em um Estado Democrático Social de Direito o poder não é

exercido apenas por uma corte suprema, ou pelo Poder Legislativo, mas pelos três poderes

que têm que prestar contas de sua atuação ao povo.

Munindo-se da teoria da dupla democracia de Bruce Ackerman, Rawls defende que a

função da jurisdição constitucional é a proteção do conteúdo estabelecido no processo

constituinte e alcomatado na Carta Magna, e essa atuação deve ser direcionada de acordo

com a razão pública, impedindo que as leis constitucionais possam ser desrespeitadas pelo

legislador ordinário, que não dispõe de legitimidade suficiente para tal, pois se ampara em

uma maioria transitória. Ele discorda das assertivas de que a jurisdição constitucional exerce

uma atividade antidemocrática quando anula leis infraconstitucionais por estarem em

desacordo com a Constituição. Afirma que antidemocráticas são as leis infraconstitucionais,

514 “A primeira afirmação dos dois princípios é a seguinte: primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos”. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. P. 64.

380

que não ostentam o grau de legitimidade da Lei Maior, e, em alguns casos, têm conteúdo

conflitante com os seus postulados.

A interpretação realizada pelo tribunal constitucional deve ser feita de acordo com os

princípios da razão pública, baseando-se em argumentos racionais e com base nos elementos

constitucionais essenciais, com o objetivo de defender a Constituição, exercendo uma

função instrumental. Entretanto, Rawls defende um papel mais atuante do órgão que exerce

a jurisdição constitucional, no sentido de que ele deve, não apenas defender os mandamentos

constitucionais, mas atuar como paradigma institucional determinando o conteúdo da razão

pública em cada um dos casos concretos. A razão pública somente pode ser definida pelo

órgão que exerce a jurisdição constitucional, sem nenhuma intervenção dos outros poderes

estabelecidos.515

Nesse sentido, a teoria de Rawls apresenta um avanço porque não restringe a atuação

da jurisdição constitucional apenas ao seu sentido negativo ou positivo – mesmo que em

relação a fazer valer a razão pública – abrangendo ainda uma função pedagógica,

estimulando as discussões que se realizam nos espaços públicos da sociedade, mediante os

quais são formados os consensos sociais.516

Os direitos fundamentais para o liberalismo político de Rawls não abrange as suas

cinco dimensões, principalmente aqueles direitos sociais que exigem uma intervenção mais

nítida dos órgãos estatais para a sua realização. Claro que ele fala em assegurar aos cidadãos

condições mínimas para que eles possam participar de forma “livre”das decisões políticas,

que denomina de “mínimo social”, mas de forma muito genérica.

Os direitos fundamentais que ocupam um lugar proeminente na sua teoria são

aqueles de primeira dimensão, pertinentes aos direitos civis e de participação política. Para

515 “Dizer que a Corte Constitucional é o paradigma da razão pública significa também que os juízes, usando a consciência daqueles que escreveram a Constituição e os procedentes constitucionais, devem procurar desenvolver e exprimir nas suas decisões racionais a melhor interpretação possível, em que a melhor interpretação possível é aquela que melhor se adapta aos corpus material da Constituição pertinente e a justifica nos termos da concepção pública de justiça”. RAWLS, John. Liberalismo Político. Trad. Gianni Rigamonti. Milano: Edizioni di Comunità, 1994. P. 201. 516 RAWLS, John. Liberalismo Político. Trad. Sérgio René Madero Báez. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. P. 224.

381

ele, os princípios da isonomia e das liberdades fundamentais e aqueles que exprimem a

desigualdade social e econômica desempenham papéis coordenados: os primeiros garantem

iguais direitos de liberdade e iguais direitos fundamentais para que os cidadãos possam

participar do processo político de forma justa; os segundos atuam em uma sociedade onde os

seus membros são livres e iguais em direitos, para garantir a aplicação da justiça distributiva,

com relação ao mérito de cada um dos cidadãos.

Dentre as teorias substancialistas de legitimação da jurisdição constitucional a teoria

esposada por Rawls, fundada nos elementos constitucionais essenciais, é aquela que oferece

uma menor eficiência na garantia dos direitos fundamentais. Primeiro, porque pairam

dúvidas sobre a exata definição do que venham a ser os elementos constitucionais essenciais,

havendo uma forte analogia com o conceito de constituição material. E segundo, porque os

direitos fundamentais, que exigem uma prestação mais ativa por parte do Estado, como os

direitos sociais, não foram tipificados como elementos constitucionais essenciais o que, para

a realidade brasileira, mostra-se como uma grassa deficiência.

Não obstante, a convicção da necessidade de existência de elementos constitucionais

essenciais para a garantia de concretização de um conteúdo mínimo da Constituição, como é

defendido por Rawls na construção de sua teoria de justiça, mostra-se, indubitavelmente,

como um avanço, no sentido de assinalar que mesmo em uma teoria procedimental deve

existir um conteúdo substancial mínimo para garantir a concretização de determinados

direitos fundamentais. A teoria dos elementos constitucionais essenciais de Rawls é uma

tentativa de entrelaçar a legitimação da jurisdição constitucional, baseada nos direitos

fundamentais, com a teoria de legitimação procedimental, cujo alicerce reside nos

procedimentos do regime democrático.

382

15.) Jurisdição Constitucional versus Regime Democrático

O aumento na esfera da atuação estatal, considerada como uma tendência irreversível

do Estado Democrático Social de Direito, provoca em várias searas um choque entre a

atividade da jurisdição constitucional e o regime democrático, o que engloba as estruturas

que representam a democracia representativa. O objetivo desse capítulo é explicitar que a

maior incidência da atuação da jurisdição constitucional, para garantir a concretização dos

direitos fundamentais, não arrefece o regime democrático, muito pelo contrário, aprimora o

seu funcionamento. Assim, será delineado os pontos de conflito entre a esfera política e a

esfera jurídica, especificando as zonas de aparente atrito, onde o princípio majoritário se

confronta com a jurisdição constitucional para que a eficácia dos comandos constitucionais

não reste prejudicada.

O princípio majoritário é um dos componentes da legitimação da jurisdição

constitucional, mas não é o único. Um assentimento mais denso da tutela constitucional

pode ser aferido pelos direitos fundamentais que formam invariáveis axiológicas mais

consolidados do que o princípio majoritário que é muito cambiante. Não obstante, o

princípio majoritário se configura em um elemento essencial para o funcionamento do

regime democrático e não pode ser relegado.

A função da jurisdição constitucional como instrumento de garantia dos dispositivos

constitucionais é uma realidade que paira acima de qualquer crítica, mormente em países

cujas Constituições são rígidas, separando de forma nítida as normas constitucionais das

normas infraconstitucionais. Indubitável o seu papel para o desenvolvimento de um Estado

Social Democrático de Direito, fazendo com que a Lei Maior possa ser aplicada

integralmente. Todavia, a Corte Constitucional não pode ser um órgão preponderante em

relação aos outros poderes e até mesmo acima das leis constitucionais. A sua seara de

atuação está circunscrita a um fator teleológico: a aplicação dos mandamentos

constitucionais, densificando a concretude dos direitos fundamentais.

383

A maior incidência de atuação da jurisdição constitucional não é um mal em si, mal é

a ausência de legitimidade de suas decisões, a afronta de postulados constitucionais ou o

cerceamento dos direitos fundamentais. As decisões judiciais têm que ser tomadas a partir de

um processo que promova amplas discussões na sociedade para que ela possa realizar a

formação política de um consenso, tomando como parâmetro as normas jurídicas.

Importante problema que pode ser suscitado pelo maior desenvolvimento das

decisões da jurisdição constitucional é que esse processo pode reduzir o espaço das decisões

políticas, com uma intromissão indevida, sem amparo nem dos mandamentos legais, nem

nas atividades dos agentes políticos. Com uma maior ou menor representatividade, os

membros do Poder Legislativo e do Executivo foram eleitos pelo povo, submetendo-se à

vontade popular quanto têm que disputar uma eleição, enquanto os membros que compõem

a jurisdição constitucional não são eleitos e não têm que cumprir a vontade da população. A

essência da questão é delimitar até que ponto as decisões da jurisdição constitucional podem

limitar as atividades realizadas pelos agentes políticos.

As cortes e os tribunais constitucionais não são o oráculo da vontade popular, nem

muito menos o censor do regime democrático. Eles desempenham um importante papel no

sistema político, mas não podem substituir o espaço público onde as discussões devem ser

travadas, impedindo a cidadania de chegar a um consenso. É através do confronto político

que a sociedade pode chegar a determinados acordos e realmente realizar uma pacificação

social. Quando há uma decisão da jurisdição constitucional que não respeita o caráter

dialógico do procedimento judicial, impondo uma decisão que extrapola as normas

constitucionais, pode essa decisão produzir ainda mais conflitos sociais.

É importante ressaltar que, de modo algum, afirmar-se que as decisões da jurisdição

constitucional devem se atrelar ao sentimento da opinião pública. Os preceitos normativos

contidos na Constituição não podem ser obnubilados. Todavia, as decisões não podem

substituir o debate democrático das questões como forma de se chegar a um consenso, que

se configura como um dos apanágios da democracia.

Para resumir tudo o que foi dito até agora, bastantes expressivas são as palavras de

Zagrebelsky: “Existe hoje realmente uma grande responsabilidade dos juízes na vida do

384

Direito, não conhecida nos ordenamentos do Estado de Direito legislado. Mas os juízes não

são os patrões do direito no mesmo sentido de que os legisladores não o eram no século

passado. Eles são, propriamente, as garantias da complexidade estrutural do Direito no

Estado Constitucional, ou seja, são necessários para a coexistência harmônica entre lei,

Direito e Justiça. Podemos, assim, dizer de forma conclusiva que entre o Estado

Constitucional e qualquer tipo de “patrão do Direito” há uma radical incompatibilidade. O

Direito não é objeto de propriedade de um, mas deve ser objeto de tantos quantos queiram

dele cuidar”.517

Como conclusão pode-se afirmar que a jurisdição constitucional não é

intrinsecamente contrária ao regime democrático, seu funcionamento, tomando como

parâmetro a Constituição, ajuda a fortalecer a participação popular nas decisões políticas e

incentiva a consolidação da democracia. Considerando que os direitos inerentes à cidadania,

de quinta dimensão, fazem parte dos direitos fundamentais e sendo esses direitos uma das

bases da legitimação da jurisdição constitucional, não pode haver anacronismos entre a

tutela da Constituição e a participação política dos cidadãos, já que um constitui pressuposto

do outro.

15.1) A Tensão entre o Político e o Jurídico

O exercício da jurisdição constitucional pelos tribunais constitucionais pode

ocasionar uma tensão entre a esfera política e a esfera jurídica, pondo em evidência

diferentes níveis de legitimação e suscitando algumas perguntas: as razões jurídicas devem

preponderar em detrimento das motivações políticas ou as motivações políticas devem

preponderar em detrimento das razões jurídicas? Quais os limites para o exercício de

decisões judiciais que contrariam o posicionamento dos agentes políticos? Como um órgão

que não recebe legitimidade direta do sufrágio universal pode controlar um outro órgão que

517 ZAGREBELSKY, Gustavo. Il Diritto Mite. 2 ed., Torino: Einaudi. 1992. P. 213.

385

é estabelecido diretamente pelo povo ? A resposta a estas perguntas pode começar a ser

delineada na análise das diferentes funções e dos diversos princípios que orientam essas

duas searas.

O conflito entre a seara política e a seara jurídica esconde na verdade um conflito

entre duas funções – a função fiscalizadora do órgão que exerce a jurisdição constitucional e

a função de legislar por parte dos membros do legislativo518 – e dois princípios que, apesar

de estarem em várias oportunidades em lados opostos por conjunturas fáticas – o princípio

majoritário e o princípio da supralegalidade constitucional –, têm em comum a sua

construção a partir do princípio da soberania popular, sendo que o segundo ostenta um valor

mais densificado por ser oriundo do Poder Constituinte.

A dicotomia entre a esfera política e a jurídica não tem uma taxionomia antípoda na

relação entre eles, variando muito de acordo com as condicionantes sócio-político-

econômicas. Essa tensão existe porque a jurisdição constitucional exerce a função de

adequar as decisões políticas as diretrizes estabelecidas pela Constituição. Todavia, algumas

decisões judiciais ao invés de cercear as decisões política, maculando-as de

inconstitucionais, pode solidificá-las, ao afirmar, por exemplo, a constitucionalidade de

determinadas medidas imputadas como inconstitucionais por outros órgãos judiciais.

Os dois princípios são compatíveis e sincrônicos quando há um respeito pelas

normas constitucionais, prevalecendo o princípio da supralegalidade constitucional todas as

vezes que o princípio majoritário afronta a Constituição e não obtém legitimidade suficiente

para o processo de transconstitucionalização.519

É inegável que o Poder Legislativo e o Supremo Tribunal Federal possuem

estruturação, composição e princípios diversos, o que não significa que não possam trabalhar

518 “Em primeiro lugar, parto do princípio de que existe a possibilidade de um verdadeiro conflito entre a função fiscalizadora do Tribunal Constitucional e a função do legislador: essa possibilidade existe, desde logo, porque o Tribunal Constitucional tem poderes para controlar efectivamente o respeito pelo princípio da constitucionalidade, mas existe sobretudo na medida em que se entenda que o legislador não é um mero executor da Constituição”. VIEIRA DE ANDRADE, J. C. “Legitimidade da Justiça Constitucional e Princípio da Maioria”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 76. 519 SALDANHA, Nelson. O Poder Constituinte. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. p. 78

386

de forma harmônica, com seus campos de atuação delimitados. O primeiro, como é

legitimado diretamente pelo princípio da soberania popular, tem a função de representar os

interesses da maioria; o segundo, que não pode ser legitimado diretamente pela soberania

popular, tem o escopo de concretizar os mandamentos constitucionais, protegendo os

interesses da minoria que encontra respaldo na Constituição. Ambos devem exercer as suas

atividades em sincronia para que tanto a maioria quanto a minoria tenham seus direitos

preservados.

Tanto o Poder Legislativo como o Supremo Tribunal Federal são órgãos

importantíssimos para o aperfeiçoamento da democracia brasileira, ajudando a encontrar

soluções que possam resolver o grave problema de exclusão social que aflige a sociedade

brasileira. A grande conexão entre esses dois órgãos deve ser estabelecida no sentido da

defesa dos direitos fundamentais, que é o requisito essencial para a construção da sociedade

desejada por todos os brasileiros.

O problema consiste em como delimitar o espaço de atuação da jurisdição

constitucional e do Poder Judiciário para que o espaço político não seja arrefecido, porque

de acordo com o posicionamento defendido por Oppenheim toda interpretação judicial é

uma forma de criação normativa.520 Quando há uma decisão judicial, segundo o mencionado

autor, há uma produção jurídica, que adentra na competência do Poder Legislativo, e,

portanto, causa um arrefecimento da seara política, o que ocasiona um conflito entre essas

duas dimensões.521

A função da jurisdição constitucional não é a de criar normas constitucionais,

cabendo-lhe interpretá-las, se bem que é difícil distinguir quando há a realização de uma

produção jurídica ou uma interpretação judicial, por isto, que a composição do órgão que

exerce a jurisdição constitucional deve ser a mais democrática possível. 520 OPPENHEIM, Felix E. “The Judge as Legislator”. In: Cognition and Interpretation of Law. Torino: Giappichelli, 1995. P.293. 521 Também defende a mesma premissa Eugenio Bulygin: “A cognição legal é limitada pela determinação do conteúdo estipulado pelo princípio geral aplicado ao caso concreto, mas como existem várias possibilidades de aplicação, nas quais o juiz pode escolher uma para incidir no caso proposto, então, diversas normas podem ser criadas do mesmo princípio geral [...] desde que todas elas estejam se desenvolvendo dentro dos parâmetros da norma geral, o ato de escolher uma dentre essas possibilidades não é um ato de cognição, mas um ato de criação: é uma decisão política”. BULYGIN, Eugenio. “Cognitio and Interpretation of Law”. In: Cognitio and Interpretation of Law. Giappichelli: Torino, 1995. P. 14.

387

Embora seja oportuno frisar novamente que analisar a natureza da interpretação

judicial foge dos limites estipulados para o tema proposto, o que não quer dizer que toda

interpretação judicial possa ser considerada como uma criação normativa, nem que o risco

de se adentrar na esfera política esteja afastado. A função da jurisdição constitucional é

aplicar os dispositivos normativos contidos na Constituição, o que, em decorrência da

própria natureza da sua atividade, implica em um grande teor de discricionariedade, devido

às várias possibilidades de aplicação da norma.

A relação entre o Direito e a Política configura-se como uma das relações mais

tensas existentes no Estado Democrático Social de Direito. A política simboliza as decisões

tomadas pela sociedade com a finalidade de alcançar os objetivos escolhidos pela sua

população, tendo como uma de suas principais característica a discricionariedade de sua

escolha. O Direito tem como uma de suas principais característica, de modo inverso, a

previsibilidade de sua normatização. Assim, devido ao caráter diverso de suas principais

características, o Direito e a Política podem gerar atritos. 522

Essa possibilidade de tensão entre a seara política e a seara jurídica tem gerado uma

oposição contra uma maior atuação da jurisdição constitucional. Devido à experiência do

New Deal, em que a Suprema Corte norte-americana declarou inconstitucionais várias de

suas medidas, setores políticos ligados mais ao espectro da esquerda, que defendem uma

intervenção do Estado na economia para garantir o desenvolvimento econômico e assegurar

direitos sociais, vêem com uma certa desconfiança o aumento da atuação da jurisdição

constitucional, pelo fato de que esse órgão não conta com a legitimação direta da soberania

522 “ O problema política-direito no marco do Estado como forma política é insolúvel teoricamente. Não admite mais soluções do tipo prático. Pois, por uma parte, é inegável que o Estado é o ente criador do Direito e não é, portanto, possível a submissão do criador a criatura de forma integral. Por outro lado, tão pouco cabe dúvidas de que a sociedade civil sobre a qual se eleva o Estado é uma sociedade que tende a se configurar como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas e tende , assim, inequivocamente à substituição do poder arbitrário e imprevisível por um poder regrado e controlável. Nenhum destes dois elementos podem ser suprimidos. Ambos coexistem mais ou menos de forma harmoniosa ou contraditória, mas sempre em tensão. Nesse contexto é que se instalam as relações entre a política e o direito. Sim, é possível submeter por completo o Estado ao Direito, também é possível estruturar inteiramente um Estado à margem do respeito às normas jurídicas. Todavia, o que interessa é ressaltar os seguintes extremos: 1) que as sociedades estatais têm oferecido ao longo da história da humanidade exemplos tanto de melhor controle do poder político pelo Direito, conhecido hasta la fencha (democracias ocidentais), como a subtração mais bruta do poder do Estado do controle das normas jurídicas (ditaduras fascistas); 2) que a justiça constitucional é o instrumento histórico mais desenvolvido que se tem conhecimento ate hoje para a justificação da política”. ROYO, Javier Perez. Tribunal Constitucional y División de Poderes. Madrid: Tecnos, 1988. P. 14-15.

388

popular, podendo se constituir em um órgão autônomo e passar a decidir independente dos

anseios sociais. Na Grã-Bretanha, Suíça e nos países Escandinavos os partidos socialistas e

trabalhistas apenas recentemente vêm admitindo uma maior atuação da jurisdição

constitucional.523

Essa oposição não é um apanágio exclusivo das posições ideológicas mais ligas à

esquerda. Na Itália, forças políticas ligadas à direita, encabeçadas pelo Primeiro Ministro

Sílvio Berlusconi, travam uma luta feroz com o Poder Judiciário, sob a alegação de que os

seus membros estão extrapolando o exercício das suas competências.

A política, em uma concepção habermasiana, deve ser entendida como um locus

onde se desenvolvem as relações vitais do senso ético, uma forma de reflexão sobre os nexos

deontológicos da sociedade, impondo aos cidadãos a consciência de sua dependência

recíproca. O espaço público deve se regulamentado no sentido de propiciar uma maior

densidade dos princípios éticos. A regulamentação da esfera política, assim, deve ser

implementada pelos agentes políticos que foram votados pelo povo e não pelos membros

que compõem o órgão que exerce a jurisdição constitucional.

Vários autores consideram que a delimitação entre a política e o direito pode ser

facilitada pelo legislador constituinte. Se o texto constitucional for escrito de forma precisa,

sem o recurso de termos vagos ou ambíguos, a atuação da jurisdição constitucional poderá

ser melhor definida, impedindo a prática de decisões políticas porque a estrutura do seu

texto permite antever um direcionamento das decisões. Se, ao contrário, o texto

constitucional não for escrito de forma precisa, agasalhado muitas normas programáticas,

haverá a ausência de uma definição para a atuação da jurisdição constitucional, o que

ensejará a prática de decisões judiciais de cunho político.524

Esse tipo de afirmação, de que a demarcação entre a política e o direito pode ser

realizada pela construção de mandamentos constitucionais de forma precisa, padece de

elementos fáticos para a sua fundamentação. Primeiro, porque qualquer texto normativo

523 VALLINDER, Torbjörn. “When the Courts Go Marching In”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 20-21. 524 A exemplo de Danilo Zolo, Javier Perez Royo etc.

389

pode ser objeto de análise, podendo-se modificar o seu conteúdo normativo, mediante o

método hermenêutico utilizado. A norma jurídica mais precisa pode ser modificada por

recursos hermenêuticos. Depois, é praticamente impossível a elaboração de uma

Constituição sem a utilização de princípios, que pela sua própria natureza, apresentam uma

densidade semântica aberta. Por fim, a utilização de normas programáticas configura-se de

suma importância, principalmente em países periféricos, onde esse instrumento jurídico se

mostra eficaz para a concretização dos objetivos estabelecidos pelos legisladores

constituintes, representando as mais legitimas aspirações da sociedade.

De forma precisa, Torbjörn Vallinder define o processo de judicialização da política:

“A expansão da atuação dos tribunais e dos juízes acarreta a conseqüente redução de atuação

das esferas política e administrativa, isto é, a transferência da produção normativa do Poder

Legislativo, do Executivo e das agências administrativas para os tribunais; significa da

mesma forma a expansão do método de produção normativa da jurisdição constitucional e

do Poder Judiciário para fora de sua seara de atuação específica. Portanto, pode-se dizer que

o processo de judicialização da política essencialmente consiste em modificar o

procedimento de alguma coisa para a forma de um procedimento judicial”.525

Torbjörn Vallinder elaborou um interessante quadro comparativo mostrando as

diferenças de resolução dos conflitos pela Suprema Corte norte-americana e pelo Poder

Legislativo. Com relação aos participantes, no primeiro atuam duas partes e um terceiro que

é o juiz, no segundo, atuam diversas partes. Referente ao método de trabalho, a Suprema

Corte realiza um processo ouvindo os argumentos das partes para depois valorá-los; no

Poder Legislativo o método é o da negociação, através de compromissos pactuados,

geralmente efetuados fora do alcance da opinião pública. Quanto ao processo de produção

normativa, o primeiro o realiza sob a decisão imparcial de um juiz, e o segundo através do

princípio majoritário. Com relação ao modo de concretização de suas decisões, a Suprema

Corte os realiza por intermédio da apreciação de um caso particular, prestando atenção aos

precedentes judiciais, principalmente aos relacionados ao judicial review, já o Poder

Legislativo concretiza suas decisões através de normas genéricas e abstratas. Inerente às

525 VALLINDER, Torbjörn. “When the Courts Go Marching In”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 13.

390

implicações das decisões tomadas, o primeiro as estabelece diante dos casos concretos e dos

dispositivos normativos inerentes à matéria, enquanto o segundo as estabelece de acordo

com os valores preponderantes na sociedade.526

Os componentes da jurisdição constitucional são sempre escolhidos entre pessoas

que apresentam uma formação técnica específica, exigindo-se determinadas qualidades

técnicas para o exercício de seu mister, sendo selecionados, no Brasil, pela escolha do

Presidente da República, depois da aprovação pelo Senado Federal. Os componentes do

Poder Legislativo, afora os requisitos dispostos na Constituição, não precisam apresentar

conhecimentos técnicos específicos, sendo escolhidos pelo povo. Os casos decididos pela

jurisdição constitucional servem para sinalizar o seu posicionamento em casos futuros, a não

ser que haja uma modificação no seu entendimento. A respeito das decisões políticas não se

pode traçar uma regra para modelar as suas decisões, variando consonantes as variantes

políticas. Outra diferença que pode ser apontada é que a solução dos litígios jurídicos é

sempre realizada por um procedimento previamente definido, enquanto que os litígios

políticos permitem um maior campo de discricionariedade, desde que respeitados os

dispositivos constitucionais.

Como o regime democrático foi transformado em um dogma em grande parte dos

países e a expansão da atuação da jurisdição constitucional não é sustentada de forma direta

pelo princípio da soberania popular, a maior crítica que se faz contra o processo de

judicialização é que ele afronta a democracia. Muitos doutrinadores, a exemplo de Ingeborg

Maus, consideram o processo de extensão da jurisdição constitucional uma ameaça contra o

regime democrático, o princípio majoritário e o princípio da responsabilidade popular, no

sentido de que o povo pode escolher os seus representantes.

Acontece que em um Estado Democrático Social de Direito as decisões políticas,

para serem aplicadas, devem contar com a legitimação da população, por intermédio de

instrumentos, principalmente da democracia participativa. Já as decisões da jurisdição

constitucional e do Poder Judiciário não se amparam de forma direta no sufrágio universal,

526 VALLINDER, Torbjörn. “When the Courts Go Marching In”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 14.

391

mas de forma objetiva têm a missão de concretizar os dispositivos da Constituição Federal.

O ponto em comum entre a seara jurídica e a política é o respeito pelos mandamentos

constitucionais e pelas normas do ordenamento jurídico, de uma forma geral. Portanto, a

relação entre a política e o direito não será sempre conflitiva porque as duas searas devem

subordinar as suas atuações aos mandamentos constitucionais.

Quanto maior forem a falta de sintonia dos representantes políticos com os anseios

da sociedade, a presença de corrupção para a tomada de decisões e o imobilismo causado

pelo antagonismo social, menor será a legitimação da classe política. Por outro lado, quanto

maior for a reputação dos membros do órgão que exerce a jurisdição constitucional e maior

o grau técnico de suas decisões, maior será o seu grau de credibilidade e maior serão as

possibilidades de legitimação de sua atuação. Como conclusão, depreende-se que a

debilidade dos agentes incumbidos de proferir as decisões políticas pode favorecer uma

maior atuação da jurisdição constitucional nesta seara.

Para que haja o desenvolvimento do Estado Democrático Social de Direito de forma

harmônica, sem o conflito dos poderes estabelecidos, as decisões políticas têm que se ater

aos parâmetros legais e as decisões jurídicas não podem extrapolar os seus limites e

desempenhar o papel reservado aos atores políticos, principalmente, a jurisdição

constitucional que exerce um grande poder pelo seu papel de intérprete máximo da Carta

Magna. A jurisdição constitucional tem a importante missão, dentro de uma sociedade

pluralista, de demarcar os limites de incidência das decisões políticas, para que os princípios

almejados pelos legisladores constituintes sejam preservados. O que não quer dizer que ela

não deva direcionar o desenvolvimento de suas atividades pelos dispositivos contidos na

Constituição.

Uma das causas que mais influenciam a expansão da jurisdição constitucional no

campo das decisões políticas é a paulatina perda de legitimidade do processo político. A

complexidade do debate político, o poder econômico, a falta de locais para o debate público,

bem como a concentração dos meios de informação são algumas das razões para a perda de

legitimidade dos representantes populares. Como a classe política se apresenta distante da

392

população, a atuação da jurisdição constitucional é vista como um avanço, principalmente se

o seu objetivo for concretizar um direito fundamental.

Com o processo de judicialização, ou seja, com a extensão da atuação da jurisdição

constitucional, preponderantemente com relação às normas programáticas, juízes que

teoricamente deveriam exercer uma função “não-política”, têm que se envolver em

atividades de natureza eminentemente política, o que agrava ainda mais a tensão entre a

política e o direito. Ressalve-se que essa atuação não é feita por critérios absolutamente

discricionários, mas de acordo com os parâmetros expostos no texto da Constituição.

Já que é quase impossível encontrar limites precisos à separação entre a seara

política e a seara jurídica, de melhor alvitre seria solidificar a consciência de respeito aos

dispositivos constitucionais, especialmente às normas relativas aos direitos fundamentais e

que tanto o Poder Legislativo quanto o órgão que desempenha o exercício da função,

pudessem fiscalizar a atuação dos órgãos estatais para saber se eles se adequam ou não aos

ditames da Constituição.527

A essência da crítica exposta contra a jurisdição constitucional é a falta de

legitimidade popular para amparar as suas decisões. O erro desse argumento é que a

jurisdição constitucional não é ontologicamente contraditória ao regime democrático, muito

pelo contrário, pode se constituir em um importante instrumento para o seu aperfeiçoamento.

O órgão que exerce a máxima função judicante pode ser formado com a participação dos

poderes estabelecidos, o que evita que ele perca o laço com os interesses da sociedade.

Como sustenta Neal Tate, o princípio democrático se configura como um dos requisitos para

527 “E o que será no futuro? As perspectivas são claramente diferentes de país para país, dependendo da tradição constitucional e da situação política. Portanto, não se pode definir se o desenvolvimento do processo de judicialização será revertido ou mesmo paralisado. Apresenta, no momento, alguma expansão, como no leste europeu. A Hungria, por exemplo, promulgou uma declaração de direitos e instituiu um tribunal Constitucional. Em contra partida, regimes ditatoriais têm sido estabelecido fora do mundo ocidental. No final, em muitos países, um novo equilíbrio pode ser obtido entre os direitos dos cidadãos e os direitos e obrigações da maioria”. VALLINDER, Torbjörn. “When the Courts Go Marching In”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 24.

393

o processo de judicialização, existindo uma relação bilateral entre o princípio democrático e

a jurisdição constitucional.528

A tensão entre o universo político e a jurisdição constitucional, em decorrência da

taxionomia de cada uma dessas searas e da densidade de poder que representam, jamais

pode ser prefixada de forma rígida; entretanto, essa indeterminação pode ser arrefecida pela

revalorização da supremacia das normas constitucionais, pela especificação do “conteúdo

mínimo” dos direitos fundamentais e pela sua consolidação por intermédio do entrenchment.

Atrelando essa maior atuação da jurisdição constitucional a missão de efetivar os direitos

fundamentais, os confrontos entre a seara política e a jurídica serão muito menor.

15.2) A Apropriação da Moral pelos Tribunais Constitucionais como Forma

de Imunização de suas Decisões

A aplicação de princípios ético-morais no ordenamento jurídico, defendido entre

outros por Habermas e Dworkin, e combatido por Luhmann, teria, segundo os primeiros

autores, a finalidade de resguardar os direitos fundamentais, assegurando um certo conteúdo

ontológico às normas jurídicas, e não de servir como base para imunizar as decisões

judiciais, tornando-as infensas às criticas da sociedade, permitindo uma auto-programação

da jurisdição constitucional sem Links com a sociedade.

Antes de qualquer coisa urge necessário definir o conceito de moral, tarefa bastante

complexa, mas que se configura necessária para a precisão do termo analisado. A definição

empregada é a adotada por Abbagnano. Para ele, a moral tem dois sentidos, no primeiro,

analisada como substantivo, ela significa o mesmo que ética, com a finalidade de conduta

dirigida ou disciplinada por normas. No segundo sentido, analisada como adjetivo, ela é

528 TATE, C. Neal. “Why The Expansion of Judicial Power”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 29.

394

atinente à conduta e, portanto, susceptível de avaliação, seja em um sentido positivo, seja em

um sentido negativo.529

Quanto ao conceito de ética, utilizaremos o sentido empregado pelo Professor João

Maurício Adeodato, que começa a sua conceituação pela etimologia da palavra ao afirmar

que ela é composta das palavras gregas pathos, ethos e logos, designando uma das

dimensões ontológicas fundamentais da vida humana, constituindo-se na doutrina do bom e

do correto, com o objetivo de mostrar os caminhos de se alcançar esse desiderato.530

A utilização de preceitos ético-morais para direcionar a aplicação do Direito, com a

manutenção do contato entre a normatividade e a normalidade, não acarreta autonomia ao

ordenamento jurídico, impedindo que as ““membranas de calibração”” entrem em contato

com a realidade. O problema advém quando os preceitos ético-morais são utilizados como

instrumento de imunização das normas jurídicas, isolando-as em um sistema de auto-

reprodução, sem conexão com a realidade empírica. A objeção aqui apresentada configura-

se quando os parâmetros morais são utilizados para justificar a auto-reprodução do sistema

jurídico sem amparo nos elementos fornecidos pela sociedade.

Uma das maiores críticas à imunização das decisões judiciais através da apropriação

dos preceitos morais pelo Direito é feita pela professora da Universidade de Frankfurt,

Ingeborg Maus. Segundo a professora, sob o argumento capcioso de que nenhum outro

grupo social possui maior capacidade moral do que os juízes – argumento defendido entre

outros por Dworkin –, eles podem estabelecer o conteúdo moral da sociedade e tomar suas

decisões segundo esses preceitos, mesmo que não estejam contidos em lei. Esclarece Maus o

seu ponto de vista: “Quando a justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância

moral da sociedade passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social; controle ao

qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de

organização democrática. No domínio de uma Justiça superior que contrapõe um direito

“superior”, dotado de atributos morais, ao simples direito dos outros poderes do Estado e à

529 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 682. 530 ADEODATO, João Maurício Leitão. Ética e Retórica. Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2003. P. 185.

395

sociedade é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração

social”.531

Ingeborg Maus toma como objeto de suas análises a realidade fática da Alemanha,

onde as decisões da Corte Constitucionais têm relevante papel na sociedade e na vida

política alemã. O seu receio é que os princípios ético-morais, que devem orientar as decisões

judiciais, tornem-se produto de uma interpretação judicial, com o objetivo de imunizá-las às

críticas sociais. Os parâmetros morais prevalecentes na realidade fática não iriam garantir

um “mínimo ontológico” ao Direito, mas seriam utilizados para legitimar as decisões

judiciais, mesmo que não fossem aplicadas em seu contexto ou que seu escopo fosse

desviado.

Quando o órgão que exerce a jurisdição constitucional assenhora-se da administração

da moral pública, ela impede que os princípios ético-morais imperantes na sociedade possam

servir de parâmetro para as críticas de suas decisões, obstaculizando que a moral

convencional possa ser utilizada como instância autônoma de controle normativo. De igual

forma, o tribunal constitucional pode utilizar a sua função de administração da moral para se

opor aos dispositivos legais, com o argumento de que os princípios ético-morais são

superiores aos mandamentos normativos.532

A apropriação da moral pelos tribunais constitucionais esconde o fato de que não há

uma moral uniforme contida na Carta Magna. O processo democrático constituinte é

realizado por meio de embate entre os vários posicionamentos ideológicos, cujas forças

sociais tentam incorporar à Constituição os seus interesses, que nem sempre são os

interesses da maioria. Portanto, não se pode falar em uma moral da Carta Magna em sentido

531 MAUS, Ingeborg. “O Judiciário como superego da sociedade – Sobre o Papel da Atividade Jurisprudencial na Sociedade Órfã”. In: Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito. N. 11 Recife: UFPE, 2000. P. 129. 532 “A mencionada introdução de pontos de vista morais e de “valores” na jurisprudência não só a arma com maior grau de legitimação, imunizando assim suas decisões contra qualquer crítica, mas também conduz a uma liberação da Justiça de qualquer vinculação legal que pudesse garantir sua sintonização com a vontade popular. Toda menção a um dos princípios “superiores” ao direito escrito leva – quando a Justiça os invoca – à suspensão das disposições normativas individuais e a decidir o caso concreto de forma inusitada”. MAUS, Ingeborg. “O Judiciário como superego da sociedade – Sobre o Papel da Atividade Jurisprudencial na Sociedade Órfã”. In: Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito. N. 11 Recife: UFPE, 2000. P. 134.

396

homogêneo, mas sim em princípios que foram oriundos dos mais diversos segmentos sociais

e que devido à sua sustentação pelos atores sociais vão adquirindo uma maior eficácia.

Uma visão contrária à apropriação da moral pelos tribunais constitucionais é adotada

principalmente pela teoria do rule of law que concebe a Constituição como uma ordem

moral objetiva e inteligível, alheia à influência cambiante dos anseios sociais. O órgão que

exerce a jurisdição constitucional, por ser imparcial e, portanto, imune às injunções políticas,

é quem têm a obrigação de aplicar a moral objetiva, trazida pela Carta Magna.

O movimento Critical Legal Studies, de conotação realista e contrário ao formalismo

jurídico, se opõe tanto ao rule of law como à apropriação dos padrões morais pelos tribunais

constitucionais. Para esse movimento, a incoerência e a indeterminação são as principais

características do ordenamento jurídico. Inexiste um único vetor moral que direcione o

sentido dos dispositivos constitucionais, pois há vários vetores morais, que são construídos

no texto da Lei Maior, frutos do embate das classes sociais. Segundo a mencionada corrente

teórica, qualquer interpretação constitucional com a finalidade de especificar um dos seus

conteúdos esconde, de forma implícita, uma operação ideológica. Como as normas jurídicas

são construídas de forma genérica e abstrata, os juízes têm um vasto campo discricionário

para atuarem de forma a fazer prevalecer o seu posicionamento ideológico.

Para os autores pertencentes ao Critical Legal Studies, a apropriação moral pelas

cortes e pelos tribunais constitucionais representa uma justificativa para esses órgãos

imporem, com maior liberdade, as suas convicções morais à sociedade. Significa uma forma

de imunizar suas decisões, alegando que são órgãos neutros e imparciais e estão apenas

zelando pelos preceitos morais contidos na Constituição.

A essência da questão é que os tribunais e as cortes constitucionais têm que legitimar

suas decisões em consonância com a Lei Maior, propiciando espaço para que a sociedade

possa participar ativamente do debate político, impedindo a formação de um sistema isolado,

de auto-reprodução de suas decisões, onde eles se tornem “Legibus Solutus”, o oráculo

exclusivo do “Templo de Delphos” da Constituição. Eles não podem construir um processo

circular de legitimação, realizado de forma auto-referencial, criando valores que não

encontram respaldo na sociedade, fechando linhas de conexão com a realidade.

397

Quando há a imunização das decisões da jurisdição constitucional pelos parâmetros

morais, a esfera das decisões políticas sofre uma mitigação, sem amparo em elementos que

legitimem essa maior extensão de atividade. Restringindo o debate público destinado a

estimular o procedimento dialógico da decisão judicial, o órgão que exerce a jurisdição

constitucional contribui para o seu isolamento e colabora para intensificar a crise de

legitimidade por que passa a jurisdição constitucional.

Como na sociedade brasileira inexiste uma trajetória de autonomia das decisões do

Supremo Tribunal Federal, ocorrendo, infelizmente, o contrário, em que as suas decisões são

proferidas de acordo com interesses políticos que muitas vezes fragilizam a eficácia da

Constituição, a imunização das decisões da jurisdição constitucional pelos princípios ético-

morais não encontra firme amparo na jurisprudência pátria.

A apropriação da moral pela jurisdição constitucional, mesmo que seja um exemplo

distante da realidade brasileira, é perniciosa porque ocasiona decisões judiciais auto-

referentes, sem contato com a realidade social, o que impede o caráter dialógico do

procedimento, a mudança nos critérios de escolha dos Ministros do Supremo Tribunal

Federal e, conseqüentemente, a sua transformação em tribunal constitucional.

15.3) A Jurisprudencialização da Jurisdição Constitucional – A

Jurisprudência das Cortes Constitucionais como Auto-Referencia de suas

Decisões

O aumento da complexidade nas sociedades contemporâneas faz com que o

ordenamento jurídico não possa continuar sendo sistematizado de modo a gerar inflação

legislativa, pois a cada nova demanda social se produz uma lei para regulamentá-la. Como

as necessidades são cada vez maiores e sofrem constantes modificações, a regulamentação

não surte o efeito esperado. Essa proliferação exacerbada de normas acarreta insegurança

398

sobre o conteúdo da norma que está em vigor e incentiva antinomias normativas diante da

constante produção legislativa.

O termo jurisprudência significa prudentia júris, ou em uma terminologia muito

corrente nos autores franceses “La mise em oeuvre du droit par les juges”, entendida como a

mistura de conhecimentos teóricos, o conveniente know-how e a faculdade de utilização das

doutrinas jurídicas que faz um verdadeiro jurista.533

Como as estruturas normativas não podem mais tecer minudências que rapidamente

serão revogadas, as leis têm que ser produzidas cada vez mais em sentido genérico e abstrato,

de forma a poderem se adaptar mais facilmente à cambiante realidade social. Sendo as leis

amplas, dispõem os tribunais constitucionais de um maior espaço de atuação. Esse fenômeno

é chamado de jurisprudencialização da jurisdição constitucional e significa que a

jurisprudência passa a ser uma nova fonte do Direito.

De acordo com o professor Danilo Zolo, o declínio da função legislativa por parte do

Poder Legislativo tem contribuído para um fortalecimento do poder normativo dos juízes e

esta é uma das modalidades mais primitivas e sem diferenciação com as outras espécies

normativas já produzidas pelo Direito.534 Se esse espaço de atuação da jurisdição

constitucional não for precisado de modo mais rígido, de acordo com a substância

encontrada nos dispositivos da Lei Maior, a jurisdição constitucional pode provocar

insegurança jurídica, enfraquecendo o princípio da legalidade.

Uma prática por parte dos Tribunais constitucionais, no sentido de formar uma

legitimidade auto-referencial, é quando eles passam a se basear apenas em suas decisões

judiciais, atuando mais como um guardião de sua própria jurisprudência do que como um

“guardião da Constituição”. A jurisprudência se torna um referencial para as decisões

judiciais, não precisando mais elas serem legitimadas, a não ser com uma simples referência

a uma decisão anteriormente elaborada.

533 GRIDEL, Jean-Pierre. Introduction au Droit et au Droit Français. 2 ed., Paris: Dalloz, 1994. P. 289. 534 ZOLO, Danilo. Teoria e Crítica Dello Stato di Diritto. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 17-88.

399

Sem querer fugir ao tema proposto, é imperioso tecer algumas considerações acerca do

papel da jurisprudência no sistema do Civil Law e do Common Law, para mostrar que o

imprescindível papel ocupado pela jurisprudência, nesse sistema não pode substituir o

primado da normatização jurídica por normas produzidas pelo Poder Legislativo daquele. No

sistema do Civil Law, de tradição euro-continental, o precedente judiciário não tem força

normativa, haja vista a importância do direito legislado como instrumento de realização do

princípio da legalidade. O sistema do Common Law, de tradição anglo-saxônica, onde

prepondera o stare decisis (et quieta nom movere), o precedente judiciário é fonte de direito,

isto é, detêm valor normativo.535

A expressão precedente judiciário no sistema do Common Law não significa qualquer

tipo de decisão do Poder Judiciário, mas aquela que preenche dois elementos de forma

conjunta: a) que a decisão possa ser aplicada “pattern upon which future conduct may be

based”, ou seja, tomada como ponto de referência para um tipo determinado de conduta que

se adequa aos padrões de condicionamento por ela estabelecido; b) que o mérito da questão

decidida seja compilada em um repertório jurisprudencial – circunstância formal.536 Com a

apresentação desses requisitos a decisão judicial se configura como um precedente, a menos

que tenha sido baseada em erro ou que seja contrária ao direito e à razão.537

Os precedentes judiciais, mesmo no sistema do Civil Law no qual o Brasil se insere,

apesar de não ter força normativa, exerce um significativo valor nas decisões judiciais, o que

leva a doutrina italiana a chamá-lo de “Diritto Vivente”.538 O precedente judicial,

consolidado pelo seu uso reiterado pela jurisprudência, exerce uma autoridade de fato, o que

não elimina a hipótese de que eles possam exercer coercitividade normativa através de uma

535 Dessa forma, a presunção em favor da presunção em favor do precedente possui uma dupla função: de um lado olha para o passado, do outro para o futuro. De um lado deve tomar em consideração os precedentes que se encontram no passado, do outro deve considerar que a sua decisão será utilizada no futuro como precedente, sobretudo quando decide pela primeira vez uma “nova” questão constitucional. Mais do que a necessidade de certeza e segurança jurídica, o precedente apela à predicabilidade, a um desejo de antecipar o futuro. QUEIROZ, Cristina. Interpretação Constitucional e Poder Judicial. Sobre a Epistemologia da Construção Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. P. 215. 536 CRISCUOLI, Giovanni. Introduzione allo Studio Del Diritto Inglese: Le Fonti. Milano: Giuffrè. 1994. P. 61. 537 No sistema do Common Law, a primeira etapa se configura por individualizar o precedente, depois especificar a ratio decidendi e, com base nesses procedimentos, aplicá-los aos casos posteriores. 538 CAVINO, Massimo. “Il Precedente tra Certeza del Diritto e Liberta del Giudice: La Sintesi nel Diritto Vivent”. In: Diritto e Società. n. 1 Gennaio-Marzo. Padova: CEDAM, 2001. P. 162

400

súmula vinculante. A sua importância reside no fato de que dentro da pluralidade de

significações que uma estrutura legal pode revestir, ele atribui um determinado parâmetro

que serve como orientação.

Os tribunais constitucionais, bem como o Supremo Tribunal Federal, não se encontram

vinculados aos seus próprios precedentes, podendo modificá-los seja de forma parcial, seja

de forma total. As decisões anteriores não exercem qualquer efeito vinculante, podendo ser

modificadas desde que os procedimentos exigidos para a prolatação de decisões judiciais

sejam seguidos.

A auto-referência das decisões do Supremo Tribunal Federal acarreta os mesmos

problemas mencionados no tópico anterior, sobre a apropriação judicial dos conteúdos

morais. Em ambos os casos há um estiolamento de elementos imprescindíveis para a

densificação da legitimidade da jurisdição constitucional brasileira.

15.4) A Teoria da Neutralidade das decisões da Jurisdição Constitucional

A teoria da neutralidade das decisões da jurisdição constitucional e do Poder

Judiciário, de um modo geral, têm seu marco inicial com a teoria da separação dos poderes,

em que as prerrogativas estatais são exercidas por três poderes distintos, independentes e

harmônicos, realizando cada um uma função específica. Os órgãos incumbidos de

prolatarem as decisões judiciais têm suas atividades adstritas aos dispositivos normativos,

com a missão de submeter à seara fática a seara jurídica. Os juízes devem aplicar a lei de

forma imparcial e com independência política, vinculando-se apenas à lei, sem a intromissão

de nenhuma influência ideológica. As interferências políticas e ideológicas ficam restritas à

formação da lei, no processo normogenético realizado pelo Poder Legislativo, cabendo aos

401

órgãos que exercem o jurisdictio a função de aplicar a lei, sob pena de ultrapassarem os

limites de sua atuação.539

A neutralização política da jurisdição constitucional é realizada através do princípio

da legalidade, principalmente por intermédio dos comandos constitucionais. As leis são

consideradas como as fontes normativas indeléveis do ordenamento jurídico, obrigando que

as decisões judiciais subordinem-se ao seu conteúdo. Assim, impõe-se aos juízes um

distanciamento político que supostamente os impede de agasalhar uma ideologia, modelando

a sua atuação pela indiferença aos mais relevantes embates políticos, direcionando a sua

atenção para a aplicação dos dispositivos legais, independente do seu conteúdo.

Dos poderes estabelecidos, o Poder Judiciário e o tribunal constitucional nos

sistemas de controle concentrado, são os órgãos estatais cujas decisões apresentam maior

conteúdo técnico, haja vista a argumentação lógica de sua fundamentação e a forma de

provimento de seus membros, constituindo-se como um dos elementos que formam a sua

legitimação. O que não quer dizer que os seus membros sejam elementos sociais apolíticos;

há um forte teor de substância política nas suas sentenças.540 Todo operador jurídico, de

forma consciente ou inconsciente, carrega um conteúdo político nas suas decisões. A

neutralidade política advinda do positivismo é uma doutrina em franca decadência, não

servindo para explicar as necessidades atuais. Contudo, os argumentos lógicos que

respaldam as decisões judiciais são encontrados na seara jurídica.

A teoria da neutralidade do Poder Judiciário tem a finalidade de legitimar a

jurisdição constitucional sem fugir aos parâmetros estabelecidos pelo princípio do “rule of

539 “A teoria clássica da divisão dos poderes, construída com um claro acento anti-hierarquizante e com a finalidade de implodir a concepção mono-hierárquica do sistema político, iria garantir, de certa forma, uma progressiva separação entre política e direito, regulando a legitimidade da influência política no governo, que se torna totalmente aceitável no Legislativo, parcialmente no Executivo e fortemente neutralizada no Judiciário, dentro dos quadros ideológicos do Estado de Direito”. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. “O Judiciário Frente à Divisão dos Poderes: Um Princípio em Decadência ? In. Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito. N. 11, Recife: UPFE, 2000. P. 347. 540 “Justiça e política são palavras que amam andar juntas no mundo. Há muito tempo se sabe que se a justiça se ocupa da política, não é plenamente justiça; e se os políticos se ocupam demasiadamente da justiça, é porque vêem os juízes como seus impassíveis e frios inimigos nas suas aspirações de serem os condutores do povo. Todavia, em um sentido mais profundo, também justiça é política, porque sem ela nenhum ideal político de reconstrução, de encaminhamento e de ação realizadora pode considerar-se consumado”. COUTURE, Eduardo J. Estúdios de Derecho Procesal Civil. La Constitución y el Proceso Civil. Tomo I. Buenos Aires: EDIAR, 1948. P. 169.

402

law”, concebendo as decisões dos tribunais constitucionais como imparciais, justificando

sua atuação no processo político, na medida em que realizam a função de velar pela eficácia

dos mandamentos constitucionais.

A repolitização da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário, de forma

preponderante naqueles países que exercem o controle difuso, começou a ocorrer com a

transformação do Estado de Direito, em Estado Social de Direito, em que os direitos sociais

para serem concretizados necessitam também de decisões judiciais que efetivem sua

realização. Diante dessa situação, os juízes não poderiam mais ficar adstritos exclusivamente

aos comandos normativos de forma absoluta, passando a analisar qual a extensão que as

normas constitucionais podem ser implementadas.

O maior campo de atuação das decisões da jurisdição constitucional, fruto de

demandas sociais, desnuda por completo a teoria da neutralidade política, por parte do Poder

Judiciário. Em várias de suas decisões as cortes ou os tribunais constitucionais são levados

a se posicionarem sobre questões de natureza política, em que o direcionamento das decisões

dependerá da convicção de seus juízes. Inclusive são decisões que acarretam conseqüências

diretas para os outros poderes e para todos os cidadãos. Essas decisões patenteiam a

discricionariedade de que gozam as cortes constitucionais e os tribunais para efetuarem os

seus julgamentos. O que levou Luís Nunes de Almeida, vice-presidente do Tribunal

Constitucional português, a afirmar que o juiz deve sempre ter presente que a sua

consciência humana e a sua opinião política se projetam, de forma inexorável, nas suas

decisões, sendo essa parêmia válida para todos os juízes.541

Como teoricamente a magistratura é um órgão neutro e imparcial, ela não poderia

nutrir expectativas a respeito de políticas de governo, judiciária, de segurança etc.

Consonante a separação clássica dos três poderes caberia ao Poder Judiciário, inspirado no 541 “Em tudo isto, ou para julgar todos estes casos, não entra o juiz com critérios próprios de uma escala de valores que lhe é própria, que tem que ver com a sua mundividência, com a sua formação cultural, com as suas opiniões políticas e filosóficas? A isto, respondo seguramente que sim. E é grave que se possa pensar que não, porque, quando tal acontecer de boa fé, é porque não se tem consciência da realidade e, por isso, se perde aquilo que é mais importante na actividade do juiz: perde-se a independência interior, a independência perante si próprio, ainda que se mantenha uma independência externa, isto é, uma independência relativamente a terceiros. NUNES DE ALMEIDA, Luís. “Da Politização à Independência (Algumas Reflexões Sobre a Composição do Tribunal Constitucional”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 244.

403

modelo liberal-democrático, como órgão burocrático do Estado, a estreita subordinação ao

princípio da legalidade, impedindo-lhe, a qualquer título, o exercício de função política, em

decorrência da falta de legitimação representativa, inerente aos Poderes Legislativo e

Executivo.542

A impossibilidade de neutralidade das decisões da jurisdição constitucional, que se

mostra evidente com relação aos posicionamentos do órgão que exerce a jurisdição

constitucional, devido ao maior alcance de suas decisões, igualmente se estende para as

decisões tomadas em sede de controle difuso, o que leva Alessandro Pace a afirmar que o

fator político desempenha um papel importantíssimo nas decisões do controle difuso.543

São de uma clarividência sublime as palavras de Ingeborg Maus: “A Justiça aparece

então como uma instituição que, sob a perspectiva de um terceiro neutro, auxilia as partes

envolvidas em conflitos de interesses e situações concretas, por meio de uma decisão

objetiva, imparcial e, por isso, justa. O infantilismo da crença na Justiça aparece de forma

mais clara quando se espera da parte do Tribunal Federal Constitucional uma retificação de

sua própria postura frente às questões que envolvem a cidadania” .544

A função do direito não é neutral porque não é apenas aplicativa, mas interpretativa,

com o objetivo de concretizar os dispositivos normativos.545 O processo de decisão da

jurisdição constitucional não é mecânico, cabendo apenas aos juízes a aplicação da lei ao

caso concreto. O processo de subsunção exige que o juiz intérprete a norma genérica e

abstrata para a sua aplicação ao caso concreto, devendo adequá-la diante de uma perspectiva

sistêmica do fenômeno jurídico. Portanto, não cabe ao Poder Judiciário a prerrogativa de

simplesmente aplicar as normas aos casos concretos, devendo interpretá-las e valorá-las

dentro de uma determinada situação específica.

542 ZOLO, Danilo. “A Proposito dell’ Espansione Globale del Potere dei Giudici”. In: Iride. Bologna: Il Mulino. n..11. 1998. P. 447. 543 PACE, Alessandro. “Corte Costituzionale e Altri Giudici: Un Diverso Garantismo”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 237. 544 MAUS, Ingeborg. “O Judiciário como superego da sociedade – Sobre o Papel da Atividade Jurisprudencial na Sociedade Órfã”. In: Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito. N. 11 Recife: UFPE, 2000. P. 135. 545 CHELI, Enzo. Costituzione e Sviluppo delle Istituzioni in Itália. Bologna: Mulino, 1978. P.143.

404

De acordo com Pizzorusso não existe um sistema de jurisdição constitucional

plenamente político ou jurídico. Para o professor da Universidade de Pisa, o controle pode

ser prevalentemente jurídico ou político, o que faz com que a escolha de um critério não

implique totalmente na eliminação do outro.546

O órgão que exerce a jurisdição constitucional não pode ser considerado como

apolítico pelas razões já expostas. Todavia, um dos grandes perigos que lhe ameaça é a sua

partidarização, passando a decidir de acordo com conveniências políticas, sem respaldo nos

mandamentos constitucionais. Pelo indelével papel que representa nas sociedades

democráticas, setores organizados da sociedade podem vê-lo como um caminho mais fácil

para conseguir os seus desideratos políticos do que o processo eleitoral, espaço no qual

pairam as mais diversas condicionantes. As decisões da jurisdição constitucional também

devem ser passíveis de debate público, mas ela não pode substituir os atores políticos. A sua

incidência na seara pública tem que estar atrelada aos dispositivos constitucionais, sendo

impossível a sua atuação sem o amparo legal.

O grande perigo é que a jurisdição constitucional seja transformada em um órgão de

luta política, em que os seus componentes tenham como finalidade alcançar objetivos

políticos, sem amparo legal, ou realizar oposição ao governo estabelecido. Como solução

aponta-se para impedir esse desvio, encontram-se as seguintes medidas: a democratização

dos seus componentes, em que os poderes estabelecidos pelo regime democrático participam

do processo de escolha; o mandato por tempo definido; a criação de uma corte

constitucional; requisitos mais rigorosos para a seleção dos seus membros; a valorização dos

mandamentos constitucionais.

Por ter uma natureza política, a jurisdição constitucional tem uma forte influência no

governo estabelecido. A relação entre o governo e a jurisdição constitucional se apresenta em

dois prismas que são aparentemente contraditórios: se por um lado a vontade política do

governo também se manifesta na estruturação da jurisdição constitucional e no exercício de

sua função, por outro lado, o governo está sujeito ao controle de constitucionalidade, segundo

os ditames da Constituição, tanto da jurisdição constitucional quanto da jurisdição

546 PIZZORUSSO, Alessandro. Sistemi Giuridici Comparati. 2 ed. Milano: Giuffrè, 1998. P. 252.

405

ordinária.547 Destarte, na sua origem, a jurisdição constitucional tem uma taxionomia política

e, por outro lado, tem a função de exercer a fiscalização dos atos governamentais por

critérios jurídicos, contidos na Lei Maior, ostentando uma natureza jurídica.

O fato de que nas decisões da jurisdição constitucional os juízes não atuem de forma

neutra, não pode ser entendido como uma contradição com relação ao princípio da autonomia

do ordenamento jurídico e da própria Ciência Jurídica. As suas convicções ideológicas atuam

na decisão judicial, desde que seja obedecido o parâmetro legal e desde que estejam de

acordo com a Constituição.

A teoria da neutralidade das decisões da jurisdição constitucional é importante como

forma de legitimação, pois ampara as suas decisões, exclusivamente, nos dispositivos

contidos na Lei Maior. Ocorre que na atualidade ela é muito combatida, estimulando a

necessidade de se construir um novo substrato de legitimação da jurisdição constitucional.

A neutralidade das decisões judiciais funciona como uma máscara para esconder

posicionamentos que são eminentemente políticos, o que não ajuda a fortalecer a concretude

normativa dos direitos fundamentais e a maior representatividade dos Ministros do Supremo

Tribunal Federal.

15.5) Mitigação da Atuação do Poder Legislativo

O processo de mitigação do Poder Legislativo não é um fato recente, apenas as

críticas se tornaram mais assíduas atualmente. Há muito tempo que se avolumam assertivas

referentes à lentidão de suas atividades, principalmente quando ele é composto de forma

bicameral. A falta de representatividade e de sintonia do Legislativo junto ao segmento

547 Lopez Guerra, Luis. “La Regulación Constitucional Del Gobierno y las Funciones Gubernamentales”. In: MOREAL, Antoni (ed.). Barcelona: Institut de Ciències Politiquees i Socials. 2000. P. 20.

406

organizado da sociedade também contribui para arrefecer a sua legitimidade, avolumando-se

em um país em que ele não apresenta uma tradição histórica, ficando à deriva das

imposições do Poder Executivo. A falência dos mecanismos tradicionais da democracia

liberal reforça ainda o processo referido. Em suma, são vários os motivos que contribuem

para a mitigação do Poder Legislativo e o seu surgimento remonta a um longo tempo.

Ilustrativa a esse respeito é a afirmação de John Hart Ely de que o Poder Legislativo

consome a maior parte do seu tempo em atividades outras que não o processo de produção

normativa.548

Os fatores que mais contribuem para o arrefecimento da atuação do Poder

Legislativo são: a pluralidade de fontes jurídicas, a imperiosa necessidade de adequação

legal aos ditames de uma sociedade pós-moderna e o processo de globalização. Em

decorrência desses fatores, o Direito substancialmente apresentado pelos códigos não

preenche mais as expectativas da sociedade porque ele é inerte às demandas que se

avolumam; em seu lugar, diversas fontes normativas preenchem essa lacuna e,

conseqüentemente, obnubilam a produção normativa realizada pelo Poder Legislativo. O

Direito deixa de ser preponderantemente legislado para se alicerçar em uma pluralidade de

fontes.

A produção normativa, atualmente, é cada vez mais influenciada pelos interesses dos

grandes conglomerados econômico-financeiros, que passam a atuar como verdadeiras

esferas de produção normativa. Órgãos como as empresas multinacionais, os bancos

privados, as organizações não governamentais, as cortes internacionais, os tratados e

convenções internacionais, decisões da jurisdição constitucionais etc, passam a atuar como

instâncias produtoras de normas, elidindo a função essencial do Legislativo. A maioria

dessas instâncias atua mais com o objetivo de satisfazer a interesses específicos do que

realizar os interesses coletivos, condicionados pela lex mercatoria, onde a satisfação das

demandas econômicas é requisito para a sua própria sobrevivência.

548 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. P. 131.

407

Assim, o instrumento jurídico mais relevante desse ordenamento é o contrato, o

pacta sunt servanda, que assume importância absoluta, preponderando o direito privado em

relação ao direito público. Assiste-se a uma paulatina privatização do ordenamento jurídico,

quando muitas das esferas de decisões judiciais estão nas mãos de entidades não-estatais.

Como conseqüência, a legitimidade das estruturas normativas esvazia-se de forma abissal.

O Poder Legislativo tem que enfrentar uma concorrência desigual de outras fontes

normativas que podem se adaptar, de forma mais veloz, ao cambiamento dos fatos sociais.

Por outro lado, enfrenta um processo de esvaziamento por parte do fenômeno da

globalização e da crise de legitimidade da representação calcado nos modelos tradicionais do

regime democrático. Portanto, não há condições para que o Legislativo possa manter o seu

papel de exclusivo núcleo de produção normativa que vigorava anteriormente.

Em uma sociedade pós-moderna, as estruturas normativas passam por constantes

transformações. Como as necessidades são cada vez mais cambiantes, elas passam a

direcionar a produção normativa; a característica de previsibilidade das normas jurídicas é

cerceada, passando a ser organizada de forma a que possa se adequar aos requisitos

mercadológicos, que são transitórios. A concepção de uma estrutura normativa produzida

para permanecer em vigor por um lapso temporal indefinido, foi soterrada, e em seu lugar

prevalece o paradigma das normas em constante mutação, de caráter fluido e rarefeito.

As leis devem ser cada vez mais abstratas e genéricas, para que não necessitem ser

modificadas constantemente e permitam o desenvolvimento das relações econômicas. Elas

têm que atender as constantes modificações que acontecem na infra-estrutura econômica e

como decorrência em toda a superestrutura social. A produção normativa passa a ser mais

calcada na jurisprudência, do que baseada nas estruturas normativas positivas, fenômeno que

se denomina de jurisprudencialização do Direito, mormente na jurisdição constitucional.

Como as estruturas normativas devem ser elaboradas de forma cada vez mais

genérica e abstrata, adaptando-se às modificações requeridas pelo processo produtivo, sem a

necessidade de esperar o processo de normogénese pelo Poder Legislativo, que requer um

determinado lapso temporal que não é compatível com a evolução dos fatos, adquire

importância a atuação legislativa da jurisdição constitucional, com o escopo de adequar as

408

leis abstratas ao caso concreto sem a necessidade de se recorrer à produção de uma norma

jurídica. O florescimento da atuação normativa da jurisdição constitucional é concomitante

ao processo de mitigação da atuação do Legislativo enquanto instância preponderante na

produção jurídica.

O processo de globalização é o terceiro fator que determina a mitigação da atuação

do Poder Legislativo, ocasionando não apenas o arrefecimento desse poder, mas de todas as

estruturas de poder organizadas. Apesar de a globalização ser um fato preponderantemente

econômico, essa característica não serve para contemplar toda a densidade do conceito, em

virtude de sua ampla atuação, produzindo inclusive conseqüências jurídicas.549 Ela apresenta

diversos prismas que não podem ser descartados, como o deslocamento dos centros de

decisões, a intensificações das relações comerciais entre os países, as cortes internacionais, a

interdependência entre os mais diversos países etc.

O processo de globalização representa uma reformulação na estrutura dos

dispositivos normativos de natureza espacial e temporal. Espacial, como referência às leis

que deixam de incidir apenas em um determinado território, de acordo com a demarcação

territorial dos Estados, passando a ser aplicada em várias organizações políticas, o que torna

os limites delineadores da soberania normativa simples ficção.550 E temporal, com base nas

estruturas normativas que não podem mais ser fixas, pois têm que atender às necessidades

cada vez mais cambiantes da sociedade. A jurisdição constitucional e o Poder judiciário são

549 O professor Paolo Grossi considera que a globalização influencia o ordenamento jurídico da seguinte fórmula: “No planeta jurídico “globalização” significa que os protagonistas da vida econômica (uma vida econômica sempre majoritariamente de dimensão global), insatisfeitos por muitas razões com a normatização realizada pelo Estado nacional, começam a dar vida a um direito mais adaptado e mais eficaz, transforma-se em produtores do Direito, com o resultado conspícuo que, do lado do Direito oficial – aquele dos Estados nacionais o de uma comunidade supranacional – constrói-se um Direito absolutamente privado porque é criado por entes privados para tutelar os seus próprios interesses, que correm efetivamente, de forma tácita, em um canal paralelo e que não necessita de encontrar a sua justificação diante de órgãos estatais ou supra-estatais. Assim são regulamentados pelo arbítrio individual ou através do interesse de grupos econômicos, já que contam formalmente com a adesão dos homines oeconomici e não necessitam, por essa razão, da chancela estatal”. GROSSI, Paolo. “Il Diritto Tra Norma e Applicazione. Il Ruolo Del Giurista Nell’Attuale Societa’Italiana”. In: Inaugurazione Dei Corsi D’Insegnamento Dell’anno Accademico. 2001-2002. Firenze: Università Degli Studi, 2002. P. 27. 550 Os territórios desempenham um importante papel por dois motivos: o primeiro por razões histórico-constitucionais, pois é o espaço onde se desenvolvem historicamente as tradições de um povo, e o segundo motivo por questões de direito internacional, demarcando os limites de incidência da soberania nacional. KRIELE, Martin. Introducción a la teoría del estado. Fundamentos históricos de la legitimidad del estado constitucional democrático.Buenos Aires: Depalma, 1980. p. 123.

409

os órgãos que melhor podem enfrentar esses desafios porque podem atuar mediante cortes

constitucionais, abrangendo vários países e podem responder de forma imediata às

demandas sociais. 551

A influência da globalização, na mitigação da atuação do Poder Legislativo, ocorre

precipuamente porque a sua produção normativa perde relevo para as normas elaboradas por

órgãos supranacionais, modificando as normas do ordenamento jurídico interno e fazendo

com que estas tenham que se subordinar às normas provenientes de tratados e acordos

internacionais. Inclusive com a instituição de cortes internacionais que podem revogar

dispositivos normativos internos.

O enfraquecimento do Poder Legislativo pode ser sentido principalmente nas

democracias européias, pelo motivo que ele, por razões históricas, sempre representou a

soberania popular, tendo uma importância mais destacada que os demais poderes. Devido à

sua antiga preponderância, ele fornecia as linhas de atuação da jurisdição constitucional,

que deveria seguir a diretriz política que era estabelecida. A extensão da atuação da

jurisdição constitucional, nesses países, provoca um maior número de conflitos e tende a

produzir uma certa insegurança no ordenamento jurídico.

Configura-se impossível o retorno à época histórica em que o Poder Legislativo

exercia a preponderância da produção legislativa.552 Tal predomínio foi o resultado de

injunções históricas, principalmente nos países europeus, onde o Legislativo foi o poder que

liderou a instalação do Estado de Direito. No Brasil, esse poder nunca exerceu a função

normogenética de forma exclusiva, pois ou ele atrelou-se à vontade do Executivo (1891-

1934), ou teve que repartir essa função com o chefe do governo, com a criação do decreto-

lei e depois a sua conversão em medida-provisória. Atualmente, os motivos históricos que

propiciaram a mencionada predominância não mais existem e as demandas sociais exigem

551 FERRARESE, Maria Rosaria. Il Diritto al Presente. Globalizzazione e Tempo della Istituzione. Bologna: Mulino, 2002. P. 195. 552 “A lei como expressão do Estado não pode tolerar um controle jurisdicional, sob pena de ver comprometido o primado da soberania popular e o enfraquecimento de sua posição”. CUOCOLO, Fausto. Principi di Diritto Costituzionale. 2 ed., Milano: Giuffrè, 1999. P. 773.

410

uma resposta imediata que possa se moldar à velocidade exponencial dos acontecimentos

históricos.

O que não significa um esvaziamento desse poder, que continua a ser imprescindível

para a sociedade. Ele continua a ser o principal órgão de produção normativa, com a

obrigação de compatibilizar-se com os mandamentos constitucionais. Desempenhando ainda

relevante função na fiscalização da coisa pública. Seu destino, com o aprimoramento do

regime democrático, é voltar a ser o grande elo de ressonância dos debates da sociedade,

atuando de forma concomitante com o espaço público, para legitimar as estruturas

normativas.

Juridicamente, o Poder Legislativo exerce uma função essencial tanto ao servir como

uma conexão entre a política e o Direito, quanto ao transformar as opções realizadas pela

sociedade em normas jurídicas que devem se ater aos limites estipulados pela Constituição.

É o liame entre a vontade popular e os dispositivos normativos. Por tal motivo, é o poder

que mais sofre com a expansão na atuação da jurisdição constitucional.

Bastante perigoso para a atuação do Poder Legislativo, como órgão autônomo e

independente, é a teoria, defendida pelo professor Javier Perez Royo, segundo a qual as

decisões da jurisdição constitucional ocupam um lugar superior com relação às leis

confeccionadas pelo Legislativo no sistema de fontes normativas, sendo somente inferiores a

Constituição e as emendas constitucionais. Alicerça sua teoria no princípio de que o

Tribunal Constitucional é o intérprete supremo da Carta Magna e que sobre suas decisões

não cabe nenhum tipo de recurso.553

Outra acusação despudorada, que é lançada contra o Poder Legislativo, é que ele

seria pela sua própria natureza um locus onde preponderaria a irracionalidade, ao passo que

a jurisdição constitucional seria o locus da racionalidade em essência. A característica mais

evidente que as decisões do Poder Legislativo seriam irracionais é que elas são motivadas

por questões políticas e suas decisões não necessitam ser motivadas por razões técnicas, não

sendo requisito para se tornar um parlamentar ser detentor de qualquer capacidade

553 ROYO, Javier Perez. Tribunal Constitucional y División de Poderes. Madrid: Tecnos, 1988. P. 65.

411

intelectual específica. Enquanto isso, as decisões da jurisdição constitucional seriam

eminentemente técnicas porque os seus membros são escolhidos devido à capacidade que

ostentam, suas decisões são jurídicas e a motivação de suas decisões é realizada de acordo

com critérios técnicos. Todavia, essa afirmativa não encontra respaldo na seara fática porque

as decisões irracionais podem provir tanto de um quanto do outro.

As prerrogativas inerentes ao Poder Legislativo e ao órgão que exerce a jurisdição

constitucional não são suficientes para dizer se a decisão é racional ou irracional. Ao longo

da história, tanto universal quanto brasileira, o Legislativo diversas vezes produziu decisões

muito mais sensatas que as produzidas pela jurisdição constitucional. A grande questão é

como estruturar esses dois órgãos de forma que possam desempenhar suas funções da

melhor forma, condizente com as normas constitucionais e com os anseios da sociedade.

Os elementos aqui propostos para reforçar a legitimidade da jurisdição constitucional

de forma alguma ocasionam um arrefecimento na atuação do Poder Legislativo, muito pelo

contrário, pois permitem a sua participação na composição dos membros do Supremo

Tribunal Federal. Servindo os direitos fundamentais como sinalizadores das obrigações do

Estado Social Democrático de Direito, abre-se espaço para uma convergência entre a seara

política e a seara jurídica.

15.6) Especificação da Atuação Legislativa da Jurisdição Constitucional

A intenção do presente tópico é tentar definir a atuação legislativa da jurisdição

constitucional. Para tanto serão tomadas como parâmetro de análise as decisões pertinentes

às matérias nas jurisprudências nacional e estrangeira. A atuação das cortes e tribunais

constitucionais estrangeiros, principalmente da Europa e dos Estados Unidos, é mais vasta

do que o exercício dessa função desempenhada pelo Supremo Tribunal Federal, por questões

complexas, que fogem aos limites epistemológicos do presente trabalho; mas que de forma

alguma inviabiliza o estabelecimentos de algumas analogias.

412

A especificação da produção legislativa, the making of the law, por parte da

jurisdição constitucional não se configura uma tarefa fácil porque tem como pressuposto a

definição do conceito de lei, que é uma temática bastante controversa na ciência jurídica.

Defende Pizzorusso que o conceito de lei não se refere apenas àquelas contidas em códigos,

estatutos e outros documentos legais, mas abrange também as leis que os juízes aplicam

diante do caso concreto, e as utilizadas pelas instâncias administrativas para a solução de

seus problemas etc.554 Dessa forma, o conceito de lei utilizado nessa análise é bastante

abrangente, compreendendo-a tanto no seu sentido material como formal, bem como os atos

normativos provenientes das instâncias administrativas.

A produção legislativa pode ser dividida em produção legislativa propriamente dita,

aquela que estipula direitos e obrigações para as autoridades e para os cidadãos (law-

making) e aquela que não se destina de forma imediata aos cidadãos e aos órgãos

governamentais porque tem o escopo mediato de regulamentar a aplicação de outras normas.

(law-applying) . Como a jurisdição constitucional pode exercer suas atividades nos dois

tipos de processo normogenético não há motivo de se estabelecer uma distinção.

Antes de se adentrar na temática proposta, urge refletir acerca do posicionamento de

Crisafulli, que afirma inexistir produção legislativa por parte da jurisdição constitucional

porque sua obrigação é tornar eficaz a Carta Magna, e o que se concebe como inovação da

decisão, na verdade, é um dispositivo constitucional que estava sendo violado e que a corte

ou tribunal somente asseguraram a sua implementação. O posicionamento de Crisafulli

basea-se no caráter sistêmico da Constituição, ao afirmar que todas as decisões da jurisdição

constitucionais têm como ratio último um predicativo constitucional que a ampara. Para ele,

não haveria criação de direito, mas reafirmação das disposições constitucionais. Contudo,

muitas decisões da jurisdição constitucional, muitas das quais seguindo a orientação do

activism doctrine, criam direitos ou obrigações que de forma nenhuma pode-se dizer que já

estavam no ordenamento constitucional.555

554 PIZZORUSSO, Alessandro. “The Law-Making Process as a Judicial And Political Activity”. In: Law in the Making. A comparative Survey. Strasbourg: European Science Foundation, 1988. P. 3. 555 CRISAFULLI, Vezio. “La Corte Costituzionale Tra Norma Giuridica e Realtà Sociale”. In: Bilancio di Venti’anni di Attività. Bologna: Mulino, 1978. P. 85.

413

Consonante o posicionamento defendido por Alessandro Pizzorusso, o “germe”da

possibilidade de produção normativa por parte da jurisdição constitucional não estava

presente na teoria inicial da confecção do sistema norte-americano e do sistema europeu. Em

nenhum deles, na sua concepção geral, havia a intenção de se instituir um órgão que fosse

apto para a produção normativa. No sistema norte-americano, em decorrência do stare

decisis, os precedentes judiciais dispõem de eficácia persuasiva, podendo assumir a feição

de uma fonte normativa, já que este é um dos apanágios de todos os órgãos judiciários do

common law e não especificamente da jurisdição constitucional; o que não quer dizer que

essa produção normativa possa incidir no espaço de competência do Legislativo ou do

Executivo. No sistema europeu, na formulação originária criada por Hans Kelsen, as

decisões produzidas pela jurisdição constitucional tinham o efeito de apenas anular a norma

produzida pelo Legislativo, com eficácia ex tunc. Atualmente, desde que estejam presentes

alguns requisitos, as decisões podem ser ex tunc, ex nunc ou pro futuro, de acordo com uma

decisão discricionária do órgão competente, o que não fora previsto na formulação

originária.556

Como atuação legislativa da jurisdição constitucional, o critério utilizado é o adotado

por Gustavo Zagrebelsky que a classifica em função legislativa e função co-legislativa.557 A

função legislativa ocorre quando, por meio de uma decisão judicial, cria-se uma obrigação

ou um direito, com eficácia plena que não existia no ordenamento, ao menos que não tinha

eficácia, seja pela sua re-interpretação, regulamentação, colmatação de lacuna etc. É o que a

doutrina denomina de sentença criativa.

A função co-legislativa decorre da influência exercida pela jurisdição constitucional

na produção normativa do Legislativo. Toda produção normativa está inserida dentro de

determinadas circunstâncias que impõem seu conteúdo, sendo uma dessas circunstâncias as

decisões da jurisdição constitucional. Ela não cria um novo direito ou obrigação, nem

mesmo garante a eficácia de um dispositivo, mas obriga a atuação do legislativo e orienta a

sua produção normativa. Inexiste efeito normativo para o caso concreto, ele é indireto

556 PIZZORUSSO, Alessandro. Sistemi Giuridici Comparati. 2 ed. Milano: Giuffrè, 1998. P. 244-245. 557 ZAGREBELSKY, Gustavo. “La Corte Costituzionale e Il Legislatore”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 103.

414

porque produz implicações para a produção do Legislativo. A doutrina italiana a denomina

de sentenze-indirizzo.

Ela é uma forma de participação legislativa da jurisdição constitucional com

influência direta na atuação do Legislativo, sendo também chamada pela denominação de

doutrina de sentença substitutiva. Esse caso pode ocorrer quando há a anulação de uma

norma, e em decorrência existe a exigência de sua regulamentação. É um modo de colocar

para o Poder Legislativo um tema que tem urgência de sua regulamentação, haja vista a

anomia existente diante da declaração de inconstitucionalidade. A decisão do órgão que

exerce a jurisdição constitucional obriga a atuação do Legislativo do modo que foi

estipulado na motivação da sentença, exercendo um monitoramento do Legislativo. Como

exemplo pode ser mencionada a sentença do Tribunal Constitucional italiano de n. 64, que

dispõe sobre prisão preventiva, ou a de n.225, sobre serviços de comunicação.

A sentenze-indirizzo também acontece quando a decisão mantém a norma no

ordenamento, mas exige a regulamentação de determinadas condições. A primeira decisão

do tribunal constitucional é pela rejeição da alegação de inconstitucionalidade, podendo

seguir posteriormente uma decisão de inconstitucionalidade se as regulamentações previstas

não foram feitas a contento. Como exemplo, pode ser mencionada a sentença de n. 103, que

trata do monopólio televisivo.

A verificação para saber se uma sentença é legislativa, em qualquer uma de suas

modalidades, deve ser feita descurando de sua composição formal e do tipo específico de

sentença, atendo-se apenas ao fato se houve a produção de efeito normativo no ordenamento

jurídico.

Pode desempenhar uma função legislativa o órgão que exerce a jurisdição

constitucional, quando houver a prolatação de uma sentença interpretativa que acrescente

novos elementos que não estavam contidos na norma. Esse tipo de decisão ocorre quando o

órgão que exerce a jurisdição constitucional, para evitar a declaração de

inconstitucionalidade de uma norma, realiza uma interpretação conforme a Constituição. No

Tribunal Constitucional alemão, as sentenças interpretativas possuem eficácia jurídica

vinculante erga omnes. Essas decisões são consideradas como uma função legislativa porque

415

a decisão judicial acrescenta elementos que não estão inseridos na estrutura normativa para

impedir a declaração de sua inconstitucionalidade.

A atuação da jurisdição constitucional na função legislativa pode ser simplificada à

seguinte indagação: se o conteúdo da sentença puder ser deduzido do contexto do

ordenamento, a decisão não estará operando um processo de criação normativo, agindo a

jurisdição constitucional dentro dos seus limites. Agora, se o conteúdo da sentença não

puder ser deduzido do ordenamento jurídico em vigor, seja de forma explícita, seja de forma

implícita, pode o órgão que desempenha a jurisdição constitucional exercer a produção

legislativa ? Zagrebelsky afirma que se a jurisdição constitucional atuar sem o respaldo

implícito ou explícito de dispositivo normativo estará invadindo a competência típica do

Poder Legislativo.558

Zagrebelsky discorda da atuação legislativa da jurisdição constitucional, seja para

suprir uma omissão, seja para corrigir um defeito normativo do Poder Legislativo, porque

estar-se-ia premiando a disfunção do poder normativo e a inércia do legislador, com um

paliativo que não solucionaria a questão. Defende o professor italiano o papel delineado pela

Constituição, com o abandono progressivo desse tipo anômalo e precário de produção

normativa.559

Não obstante, o limite exposto supra não logra grande valia porque, como as normas

jurídicas são, cada vez mais, realizadas de forma genérica e abstrata adequando-se ao

constante processo de modificação das sociedades hodiernas, mediante interpretações

extensivas e sistêmicas, pode-se afirmar que quase toda a decisão judicial tem uma

fundamentação em um dispositivo constitucional, expresso ou implícito. Além disso, o

critério para se indagar se a norma tem como fonte o ordenamento jurídico é subjetivo

porque de alguma forma todo o processo de normogénese tem como ponto de referência um

dispositivo jurídico.

558 ZAGREBELSKY, Gustavo. “La Corte Costituzionale e Il Legislatore”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 109. 559 ZAGREBELSKY, Gustavo. “La Corte Costituzionale e Il Legislatore”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 121.

416

A origem da questão reside na taxionomia da Carta Magna: se a sua concepção se

baseia no contratualismo ou no organicismo. O contratualismo, ou voluntarismo, assevera

que não há uma lei intrínseca à natureza humana que direciona as sociedades para

determinadas estruturas agregativas, podendo os cidadãos criarem aquelas que melhor lhes

convier.O organicismo, ou antivoluntarismo, planteia que existe uma lei intrínseca, que

determina as estruturas da sociedade, cabendo ao Poder Legislativo apenas revelar essas leis

internas.560

A discussão sobre a jurisdição constitucional ter uma atuação legislativa apenas pode

ser posta sob uma concepção contratualista, quando tal função é exercida e o conteúdo da

decisão judicial não está inserido no contrato social, que originou a sociedade. Na concepção

organicista, a jurisdição constitucional não exerce nenhuma função legislativa no sentido de

criar um novo conteúdo normativo, ela apenas tem a função de revelar aqueles mandamentos

que já fazem, de forma intrínseca, parte da sociedade.

Uma forma de atuação legislativa da jurisdição constitucional é quando ela age de

forma supletiva, isto é, utilizando-se de uma competência supletiva para preencher a lacuna

deixada por um ente estatal. Para que essa competência possa ser realizada são necessários

dois requisitos: que o exercício da função seja para garantir a realização de um dispositivo

constitucional e que haja a omissão do ente estatal que tem a competência para realizá-lo.

Sua criação foge da seara normativa para residir na seara factual. Ela é uma competência

transitória, deixando a sua regulamentação de existir quando houver a normatização de

acordo com as regras estipuladas pela Constituição.

Como atuação legislativa da jurisdição constitucional podemos mencionar alguns

julgados do Tribunal Constitucional italiano que permitem sentenças criativas para

resguardar o princípio da isonomia, em que a declaração de inconstitucionalidade vem

acompanhada de regulamentação aditiva, para possibilitar a igualdade de tratamento que

fora violada. A decisão prolatada, para concretizar a igualdade de todos perante a lei, com

fundamento no art. 3° da Constituição italiana, exige que a jurisdição constitucional

560 ZAGREBELSKY, Gustavo. “La Corte Costituzionale e Il Legislatore”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 112.

417

regulamente a questão para que um direito fundamental possa ser exercido de forma

isonômica. Depois de firmada a inconstitucionalidade, faz-se necessário uma construção

normativa para que todos aqueles que estejam amparados pelo princípio sejam alcançados

pela norma. Nesse caso específico, a simples eliminação de norma impugnada como

inconstitucional pode ser um ato muito mais nocivo, exigindo-se uma sentença criativa.

A defesa do princípio da igualdade é apenas um dos casos em que algumas decisões

judiciais permitem uma atuação legislativa por parte da jurisdição constitucional do Tribunal

italiano, exigindo-se essa função em virtude da Constituição necessitar de uma

regulamentação sucessiva visto que a eventual eliminação dessa norma imperfeita resultaria

em um regresso, em uma inconstitucionalidade mais grave ainda.

Ressalve-se que o posicionamento descrito supra não abrange todas as hipóteses de

atuação do Tribunal Constitucional italiano. Em alguns casos, como nas sentenças de n. 42 e

de n. 73, por exigência do estrito cumprimento do princípio da legalidade, apenas lei, no

sentido formal, poderá estender a atuação normativa, garantindo a concretização do preceito

constitucional. Em casos que versem sobre a tipificação penal e penas, ou a tipificação

tributária, em virtude do princípio da reserva legal, art. 25 da Constituição italiana, somente

o Poder Legislativo poderá exercer a função de regulamentação normativa, segundo os

preceitos da Carta Magna.

Vários outros casos, com outros méritos, afora o princípio da igualdade, podem

servir como exemplo de atuação legislativa da jurisdição constitucional, no Direito italiano.

É o caso da sentença de n. 190 que estabeleceu o direito dos defensores tomarem parte no

interrogatório do acusado. Ou a sentença n. 219, em que houve a declaração de

inconstitucionalidade de uma norma porque o Tribunal Constitucional italiano assim o

decidiu para confeccionar uma nova norma em seu lugar.

Nos dois casos mencionados anteriormente, o princípio da isonomia e o da

competência suplementar, a decisão da jurisdição constitucional guia-se pelos imperativos

dos dispositivos constitucionais, impedindo um exercício discricionário, por parte da

sentença judicial.

418

Em qualquer dos casos de atuação legislativa da jurisdição constitucional, as suas

decisões não podem criar uma esfera de impedimento ao Poder Legislativo. Ele pode atuar

em todas as searas normativas onde inexistam um impedimento constitucional, podendo,

inclusive, revogar as disposições implementadas pelas decisões da jurisdição constitucional,

desde que respeitado o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada que são

direitos fundamentais dos cidadãos.

Quanto à discussão existente de que, ao se declarar à existência de uma

inconstitucionalidade por omissão, deve o órgão que exerce a jurisdição constitucional

regulamentar a situação para que o direito fundamental possa ser efetivado de forma

imediata, grassa na doutrina um dissídio doutrinário porque parte da doutrina entende que há

a tipificação de uma atividade legislativa por parte da jurisdição constitucional.

15.7) Limites à atuação da Jurisdição Constitucional

Nas primeiras décadas do século XX, planteiava Carré de Malberg que as limitações

à potestade de atuação da jurisdição constitucional derivavam todas elas do princípio

fundamental de que não podem os juízes, de nenhum modo, imiscuir-se no exercício da

função legislativa, não podendo invadir as atribuições reservadas ao órgão responsável da

produção legislativa.561 Portanto, a questão do estabelecimento de limites à jurisdição

constitucional é um ponto central na discussão de seu papel, mas também se configura de

difícil delimitação, haja vista o seu vasto campo de atuação. Sem o estabelecimento de

precisos limites à atuação da jurisdição constitucional, ela pode ilidir o espaço inerente às

decisões políticas, estorvando a atuação dos Poderes Executivo e Legislativo, sem que para

isto tenha obtido uma legitimidade conferida diretamente pela soberania popular.

561 CARRÉ DE MALBERG, R. Teoría General del Estado. Trad. José Lión Depetre. 2 ed., México: Fondo de Cultura Económica, 2000. P. 672.

419

Por essa razão, são estabelecidos alguns limites que impedem que a jurisdição

constitucional possa ocorrer de modo discricionário, sem o respeito pelo exercício da

atividade dos outros poderes. Esses limites estão contidos, tanto na doutrina, como são

impostos pela Constituição. Em nível constitucional podemos mencionar o princípio da

inércia, em que a jurisdição constitucional apenas pode ser exercitada quando houver uma

provocação; a numeração constitucional de suas competências, sendo essa especificação

realizada em numerus clausus; a elaboração, pelo Poder Legislativo, de procedimentos que

devem ser seguidos pelo órgão que exerce a jurisdição constitucional para a confecção de

suas decisões, como a lei 9882/99, que regulamenta a argüição de descumprimento de

preceito fundamental; o procedimento de composição dos seus membros e o tempo de

duração dos seus mandatos, dentre outras.

Como o limite à jurisdição constitucional, contido na Carta Magna de 1934, pode-se

mencionar o seu art. 68, que impedia o Poder Judiciário de conhecer questões

exclusivamente políticas.

O limite mais poderoso e claro para a jurisdição constitucional são os próprios

dispositivos da Lei Maior, que não poderão ser desrespeitados, principalmente por um órgão

que tem a função de defendê-los e velar por sua eficácia. A Carta Magna não pode declarar a

inconstitucionalidade das normas produzidas pelo Poder Constituinte, nem pode deixar sem

eficácia nenhum de seus mandamentos.

De acordo com a realidade fática do Tribunal Constitucional espanhol, Javier Perez

Royo destaca as seguintes limitações: a análise do tribunal constitucional deve se limitar aos

textos legais e às fórmulas legislativas; realizar uma interpretação, conforme a Constituição

da lei impugnada sempre que possível; seguir a interpretação do legislador ao realizar uma

estrutura normativa, que não tem que ser a mais lógica, a mais coerente possível com a

vontade do constituinte, bastando que não seja uma interpretação contrária à Carta Magna.562

Tomás y Valiente assevera que a autocrítica interna do órgão que exerce a jurisdição

constitucional é um poderoso instrumento de controle, evidenciando-se nos votos

562 ROYO, Javier Perez. Tribunal Constitucional y División de Poderes. Madrid: Tecnos, 1988. P. 80-84.

420

dissonantes proferidos nas decisões majoritárias.563 O voto dissonante prima facie não tem o

poder de modificar a decisão prolatada, sua importância, dependendo do número de votos

contrários, consiste em determinar os efeitos da sentença e ressaltar o dissídio existente no

órgão, para propiciar um amplo debate nas instâncias jurídicas, com o escopo de pacificar a

questão.

O political questions, terminologia norte-americana, também denominado de atos

políticos ou atos de governo, é um dos limites à atuação da jurisdição constitucional.564 Foi

desenvolvido pela doutrina norte-americana, como uma das modalidades do self-restraint,

com o objetivo de impedir a “politização” das decisões judiciais. Como political questions,

podem ser classificados os atos de governo, a incidência das relações internacionais etc.

A inércia da jurisdição constitucional, ao impedir que sua atuação possa ser realizada

sem o impulso de um órgão devidamente competente, configura-se como um limite a

extensão de sua atuação.565

A teoria do self-restraint é um dos limites à atuação da jurisdição constitucional,

configurando-se como uma das fortes tendências do sistema constitucional norte-americano,

o que levou Bernard Schwartz a expressar que talvez a característica mais notável da Corte

Suprema seja a moderação com que ela exerce o seu poder de controle judicial ao tratar de

leis do Congresso.566 Ela busca conter o judicial activism, defendendo uma ética de

autocontrole dos órgãos que têm a prerrogativa de exercer a jurisdição constitucional, para

563 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Escritos Sobre y Desde El Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. P. 1993. P. 60. 564 “Acerca de questões políticas, os tribunais nenhuma competência têm e devem aceitar como terminantes as decisões proferidas pelos departamentos políticos do governo. Tais são as questões sobre a existência da guerra, o restabelecimento da paz, sobre o governo de outro país, quer seja o de fato, quer seja o legal, a autoridade dos embaixadores estrangeiros de outros países, a admissão de um Estado à União, o restabelecimento das relações constitucionais de um Estado que se tenha rebelado, a existência jurisdicional de uma nacionalidade estrangeira, a jurisdição dos Estados Unidos sobre uma ilha do alto-mar, o direito dos índios de serem reconhecidos livres e assim por diante”. COOLEY, Thomas M. Princípios Gerais de Direito Constitucional nos Estados Unidos da América. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russel, 2002. P. 146-147. 565 Explica Tomás Y Valiente: “[...]um órgão jurisdicional é um poder passivo ou negativo, que somente atua através de um impulso do exterior, que apenas fala se for perguntado e sobre aquilo que for perguntado, e sempre somente se a pergunta (demanda, recurso, questão) está corretamente formulada em termos jurídicos por quem tem legitimação para fazer”. TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Escritos Sobre y Desde El Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. P. 1993. P. 38. 566 SCHWARTZ, Bernard. Direito Constitucional Americano. Rio de Janeiro: Forense, 1965. P. 262.

421

que eles não se transformem em tutores dos demais poderes e órgãos hermeticamente

fechados as influências da sociedade, com arrimo no brocardo latino de que “jus dicere e

non jus dare”. Normalmente ela vem associada ao original intent, partindo de uma filosofia

liberal-individualista.

A concepção do self-restraint foi formulada por James Bradley Thayer’s, em um artigo

intitulado “The Origin and Scope of the American Doctrine of Constitucional Law”, na

Havard Law Review, e pode ser sintetizada pela seguinte fórmula: “Uma norma produzida

pelo Poder Legislativo não pode ser declarada inconstitucional a não ser que a violação seja

tão manifesta que não haja uma dúvida razoável”.567

Dessa forma há uma mitigação no exercício da jurisdição constitucional, devendo ela

apenas ocorrer quando houver uma inconstitucionalidade evidente. A política do self-

restraint significa que o órgão que exerce a jurisdição constitucional deve se autolimitar ao

interpretar a Constituição para não transformar a prerrogativa de interpretar as normas

constitucionais, em última instância, em um monopólio de dizer o direito de acordo com as

suas conveniências, sem respaldo na Lei Maior, ferindo a atuação dos poderes estabelecidos.

Essa vertente teórica é típica da doutrina constitucional dos Estados Unidos, não

podendo ser literalmente transposta para países periféricos, principalmente o Brasil, onde os

casos de desrespeito à Constituição são freqüentes. Crítica bastante percuciente é formulada

por Vital Moreira asseverando que o conceito de autolimitação é contraditório porque ou o

legislador não infringiu nenhum parâmetro constitucional restritivo da sua discricionariedade

legislativa, ou efetivamente o legislador cometeu uma modalidade de inconstitucionalidade e

não tem o que se falar em autolimitação.568

567 DEAN, Howard E. Judicial Review and Democracy. New York: Random House, 1966. P. 112-113. 568 “Seguramente que, por definição, o juiz constitucional só pode censurar o legislador ordinário se e na medida em que este esteja vinculado pela Constituição, independentemente do mérito ou demérito das soluções legislativas em causa. Mas, uma vez verificado que o legislador estava constitucionalmente vinculado e violou a Constituição, não resta ao juiz constitucional senão tirar a conseqüência da inconstitucionalidade, independentemente da natureza, política ou não, das questões envolvidas. O conceito de autolimitação da justiça constitucional é intrinsecamente contraditório e insusceptível de fundamentação razoável. Pois de duas, uma: - ou, afinal, no caso concreto o legislador não infringiu nenhum parâmetro constitucional restritivo da sua discricionariedade legislativa, e então não há que falar em autolimitação do juiz constitucional, visto que nenhuma inconstitucionalidade existe; - ou efectivamente o legislador actuou numa área constitucionalmente

422

Uma outra teoria que busca restringir a extensão da atividade da jurisdição

constitucional, cujo principal doutrinador é Dworkin, baseia-se nos arguments of principle,

com a finalidade de construir primados éticos que guiem as decisões da jurisdição

constitucional, principalmente no sentido de garantir os bens comuns da sociedade e os

valores do regime democrático. Os dois principais sustentáculos dessa teoria seriam os

pressupostos do regime democrático e a moralidade pública.

16.) Novo Esboço da Jurisdição Constitucional Brasileira

Bruce Ackerman fala da na necessidade de se criar uma teoria constitucional

propriamente americana para se tentar fugir das nefastas conseqüências da europeização da

teoria constitucional.569 Essas mesmas palavras devem ser tomadas para o caso brasileiro,

cujas doutrinas estrangeiras são copiadas na sua integralidade e implantadas no Brasil.

Como se fosse possível implantar o mesmo instituto jurídico em realidades diferentes. O

debate internacional se configura importante para balizar a discussão brasileira, oferecendo

os horizontes onde devem ser trilhados os caminhos adequados para a realidade nacional,

atendo-se às peculiaridades locais.

A concepção da jurisdição constitucional brasileira deve ser pensada como uma

função que possa responder às necessidades sociais crescentes, mormente em um Estado

pós-moderno que aprofunda a crise no padrão normativo convencional, contribuindo com o

aumento no grau de certeza do ordenamento e impedindo o desenvolvimento de incertezas

indisponível ou em termos constitucionalmente ilícitos, e então a autolimitação do juiz constitucional na declaração de inconstitucionalidade da norma traduz-se necessariamente numa renúncia à função que lhe está constitucionalmente cometida, que é a de verificar a constitucionalidade das leis e sancionar as inconstitucionalidades”. VITAL MOREIRA. “Princípio da Maioria e Princípio da Constitucionalidade: Legitimidade e Limites da Justiça Constitucional”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 194-195. 569 ACKERMAN, Bruce. We the people. Foundations. Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1991. P.4.

423

jurídicas.570 A principal missão do Supremo Tribunal Constitucional deve ser a de garantir a

estabilidade do ordenamento jurídico, densificando o conteúdo substancial da Constituição,

em que os órgãos estatais possam satisfazer os direitos fundamentais que foram outorgados

aos cidadãos.

A jurisdição constitucional não é um simples ato de cognição, pois há um espaço

para a atuação discricionária dos operadores jurídicos, mormente dos membros do Supremo

Tribunal Federal. Como a maior parte das normas constitucionais é de caráter

principiológico, os intérpretes da Lei Maior dispõem de um maior poder de

discricionariedade para realizar o fenômeno da subsunção. Por outro lado, ela não pode ser

concebida como um mero ato volitivo porque há uma razoável esfera para sua atuação,

principalmente para assegurar a concretização dos direitos fundamentais; entretanto, essa

esfera de desenvolvimento de suas atividades não é arbitrária, devendo se ater aos vetores

ofertados pela Constituição. O parâmetro ofertado pelo programa normativo não pode ser

desprezado, impondo suas disposições com força obrigatória.

Destarte, como a jurisdição constitucional é um ato cognitivo-volitivo, utilizando um

conhecimento técnico em um espaço de razoável discricionariedade, há uma necessidade

inexorável de legitimação de suas decisões.

Também contribui para a necessidade de incorporar uma maior densidade de

legitimidade às decisões do Supremo Tribunal Federal o fato de que a Constituição perdeu a

sua característica de texto estático, devido ao seu caráter dialógico e à rápida evolução das

necessidades sociais, em que suas normatizações têm que evoluir para se adequar às

exigências fáticas. A atualização da Lei Maior deve ser feita primordialmente pela jurisdição

constitucional, criando uma sincronia entre a seara fática e a seara normativa.

Considerando a Constituição Federal como um conjunto de normas que têm um

caráter dialógico, aberto, em constante interação com a seara fática e em razão disso

570 “ O nível de previsibilidade da conseqüência jurídica de uma conduta ou de um fato, sempre representa um critério para valorar a capacidade de um ordenamento na sua finalidade de assegurar a certeza do Direito”. CAVINO, Massimo. “Il Precedente tra Certeza del Diritto e Liberta del Giudice: La Sintesi nel Diritto Vivent”. In: Diritto e Società. n. 1 Gennaio-Marzo. Padova: CEDAM, 2001. P. 168.

424

sofrendo direta influência da conjuntura social, o caráter da jurisdição constitucional não

pode se ater a modelos rígidos de formalismo jurídico. A sua aplicação não se reduz ao

clássico modelo da subsunção normativa, em que a norma abstrata incide no caso concreto.

Todavia, é bom deixar bem claro, que de modo algum se está tentando que o

Tribunal Constitucional, detentor da jurisdição constitucional, venha a substituir o papel

imprescindível do legislador. Todavia, a concepção de que o Poder Legislativo é o detentor

exclusivo da produção normativa encontra-se superada. A legitimidade das decisões do

Supremo Tribunal Federal deve ser construída com base em um elemento catalisador: os

mandamentos da constituição, permitindo uma maior incidência de sua atuação apenas

quando os direitos fundamentais forem deixados sem concretude normativa.

O novo esboço da jurisdição constitucional brasileira seria feito através dos seguintes

fatores: a transformação do Supremo Tribunal Federal em um tribunal constitucional, com

um mandato fixo para os seus magistrados; a fragmentação da indicação dos membros do

órgão que exerce a jurisdição constitucional, com a participação dos poderes Executivo,

Legislativo e Judiciário; uma firme atuação para garantir os direitos fundamentais,

mormente o conteúdo estipulado nas normas programáticas; a determinação de uma “

densidade suficiente” ou “conteúdo mínimo” dos direito fundamentais que devem ser

defendidos pelo entrenchment dessas prerrogativas; que as regras procedimentais que

regulamentam as decisões judiciais proferidas pelo Supremo Tribunal Federal ensejem uma

abertura da discussão jurídica, incorporando vários setores da sociedade no debate, para que

os magistrados possam auferir todos os subsídios necessários para a sentença e que as

decisões ostentem um maior nível de legitimidade pela ampla participação do operadores

jurídicos.

425

16.1) A Constituição como Fonte de Legitimidade da Jurisdição

Constitucional

Diante desse latente estado de crise que grassa em todas as esferas sociais,

multiplicando os conflitos e alimentando a incerteza e a insegurança, o primeiro requisito

para um novo esboço da jurisdição constitucional brasileira configura-se na revalorização da

força normativa da Constituição, solidificando o seu papel na sociedade. Essa densificação

das normas constitucionais é imprescindível para a legitimação da jurisdição constitucional,

que por sua vez, configura-se como condição inexorável para a concretização dos direitos

fundamentais.

A missão maior da jurisdição constitucional reside em preservar a eficácia dos

dispositivos constitucionais, vinculando suas decisões aos dispositivos da Lei Maior. Tanto

as teorias procedimentalistas quanto as substancialistas estão de acordo que a jurisdição

constitucional exerce um papel imprescindível nas sociedades contemporâneas para atender

as crescentes demandas da população. Tornando-se uma ferramenta imprescindível para que

o típico padrão do rule of law não possa cercear os avanços propiciados pelo Estado

Democrático Social Direito, e, de forma preponderante, para a defesa dos direitos

fundamentais agasalhados pela Carta Magna.

A função da jurisdição constitucional não pode ser concebida como uma fonte

normativa, com o poder de criar diretrizes jurídicas sem o amparo normativo na Carta

Magna. A sua atuação restringe-se aos mandamentos constitucionais e à concretização dos

direitos fundamentais, mediante um processo jurídico de caráter preponderantemente

substancialista, que possa ser legitimado duplamente: pelos procedimentos judiciais,

previamente estabelecidos, que permitem uma maior participação da sociedade no debate

jurídico; pela concretização dos direitos humanos esculpidos na Constituição.

Concomitante com o processo de aumento na atuação da jurisdição constitucional

pode-se falar em um processo de reconstitucionalização que é inerente a esse processo e à

426

base de sua fundamentação. Sem esse processo, a extensão da atuação da jurisdição

constitucional e do Poder Judiciário não poderia ser legitimada e desenvolvida de forma a

desempenhar uma legitimação substancial no Estado Democrático Social de Direito.

O processo de reconstitucionalização configura-se como uma reafirmação do valor

da Carta Magna, na sociedade e no ordenamento jurídico, como fonte de princípios e regras

de caráter superior e que devem ser cumpridos de forma obrigatória por todos os órgãos

estatais. Significa a supremacia das normas constitucionais, em detrimento da lex

mercatoria, das fontes privadas do direito, da globalização, das transnacionais e do poder do

mercado financeiro. A auto-afirmação da soberania popular no sentido da construção de uma

democracia participativa, cujos instrumentos da democracia direta possam ser cada vez mais

utilizados no processo político. É a reafirmação dos direitos humanos e dos princípios

inerentes ao regime democrático, asseverando que as normas constitucionais têm caráter

imperativo, obrigando a todos os poderes a realizar o conteúdo de suas cominações.

O fortalecimento da jurisdição constitucional assinala igualmente um incremento do

padrão normativo imperante na sociedade, assumindo um maior relevo o alicerce desse

ordenamento jurídico, que é a Constituição. A extensão das decisões políticas fica

demarcada dentro dos paradigmas das normas constitucionais, no que ultrapassa o estágio,

muito freqüente nos países periféricos, em que são as decisões políticas que demarcam o

alcance dos dispositivos constitucionais.

A indelével magnitude da Carta Magna para o ordenamento jurídico reside no fato de

que ela é o instrumento normativo que delineia a vontade da soberania popular no seu

momento mais expressivo: durante o processo constituinte em que todos os setores da

sociedade são convocados a discutir as leis fundamentais do país. Pela relevância desse

papel, servindo como vínculo entre o ordenamento jurídico e a sedimentação da vontade da

sociedade, o cumprimento de suas normas representa um dos requisitos para a configuração

de um regime democrático, já que a soberania popular exposta em suas normas, não

representa uma vontade transitória ou inerente a uma maioria cambiante, mas é produto de

um amplo debate popular, cujos princípios foram sedimentados no imaginário coletivo da

427

sociedade, gozando de grande grau de aceitabilidade. Em uma Constituição promulgada,

essa missão assume uma preponderância muito maior.

Como requisito para o fortalecimento da força normativa da Constituição, aponta-se

o incremento do regime democrático, condição sine qua non para densificar a legitimidade

da jurisdição constitucional. A transformação do regime democrático em uma democracia

participativa e atuante potencializa, não apenas a legitimidade das normas constitucionais,

ou das normas procedimentais que estabelecem a forma de produção das decisões judiciais,

mas igualmente possibilita a participação da sociedade nas decisões da jurisdição

constitucional que ajuda na densificação de sua legitimidade.

Uma atuação mais incisiva da sociedade, não apenas de acordo com os

procedimentos estabelecidos para as decisões judiciais, mas também no debate público, faz

com que toda a população, inclusive os cidadãos mais humildes, se interesse por essas

questões. Essa maior atuação provocará uma desmistificação do Poder Judiciário, concebido

como um órgão distante e inacessível, influindo esses debates inclusive na indicação dos

ministros componentes do Supremo Tribunal Federal, a exemplo do debate público ocorrido

nos Estados Unidos quando da indicação, por Ronald Reagan, de Robert Bork. Essa

indicação provocou uma grande mobilização na opinião pública contra Bork, culminando

com a rejeição do seu nome pelo Senado Federal.571

Os dispositivos constitucionais são o locus preponderante para o desenvolvimento do

regime democrático, e isto se deve a três fatores: suas normas são aquelas que maior

legitimidade ostentam no ordenamento jurídico, porque o processo constituinte permite a

composição dos mais variados interesses; a força coercitiva da Constituição possibilita que o

seu conteúdo possa ter uma maior concretude normativa; além de regulamentar os principais

institutos da democracia participativa. Como o regime democrático tem o status de

unanimidade e a Constituição é o locus de sua regulamentação, o desempenho desse papel

aumenta a sua carga valorativa no ordenamento jurídico.

571 BELTRÁN, Miguel. Originalismo e Interpretación. Dworkin vs. Bork: Uma polémica Constitucional. Madrid: Editorial Civitas, 1989. P. 40-44.

428

A constituição é a referência para o resgate de um dos princípios mais importante do

ordenamento jurídico: a dignidade da pessoa humana.572 Em uma sociedade pós-moderna,

onde há uma ausência de vetores ontológicos, o mencionado princípio serve como um

elemento catalisador para o desenvolvimento do regime democrático e facilita a formação de

consensos em torno das decisões políticas. Concebendo a dignidade da pessoa humana como

uma diretriz de concretização dos mandamentos constitucionais e fazendo parte esse

princípio dos direitos fundamentais, há uma revalorização do papel desempenhado pela

Carta Magna na sociedade, ao mesmo tempo que legitima uma maior atuação da jurisdição

constitucional.

Em decorrência de suas peculiaridades, a Carta Magna é o único instrumento jurídico

que assegura a realização da finalidade do Estado Democrático Social de Direito. O

conteúdo dessa forma de estado, englobando prestações materiais e democracia

participativa, dentro da previsibilidade das normas jurídicas, somente pode ser concretizada

se houver a sua incorporação às normas inconstitucionais.573 Portanto, ao atender as

necessidades hodiernas da sociedade, há um fortalecimento da legitimidade hauferida pela

Lei Maior.

Ela também é importante porque representa uma idéia compromissária entre as várias

gerações dos cidadãos, em que o entrenchment da “densidade suficiente” dos direitos

572 “Para tanto, é necessário que se fixe desde logo a opção que fazemos pela tomada referencial, ainda hoje, da idéia de Constituição como uma referência fundamental para o resgate da dignidade da pessoa humana como único valor apto a se constituir como referência universal, sem que isso signifique a absolutização das fórmulas e lugares onde e como tal resgate se deva promover”. BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espacial dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2002. P. 59. 573 “Assim, o legado do constitucionalismo do Estado Democrático (e social) de Direito (aqui entendido como o plus normativo representado por essa terceira fase do constitucionalismo fundamentado no binômio democracia e respeito aos direitos fundamentais) trouxe a lume a idéia de força normativa da Constituição, o constitucionalismo dirigente, a superação da idéia de Constituição (meramente) programática, da importância dos princípios e da materialidade da Constituição, além de um novo paradigma de interpretação dos textos das constituições (verfassungskonforme Auslegung e Teilnichtigerklärung ohne Normtexreduzierung, as decisões manipulativas, aditivas e redutivas, p. ex.), questões essas que implica(ra)m uma espécie de ativismo judicial ou intervencionismo dos tribunais constitucionais, enfim, aquilo que muitos vão denominar de judicialização da política (desde logo, ressalve-se que falar em judicialização da política é simplificar a discussão, uma vez que a questão deve ser problematizada a partir do debate entre substancialismo e procedimentalismo)”. STRECK, Luiz Lenio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2002. P. 106-107.

429

fundamentais pode ser aprimorado pelas gerações futuras.574 Servindo como um diritto

vivente que acompanha a evolução da sociedade, a Constituição é simbolizada como a

norma jurídica por excelência, constituindo-se no ponto de referência da regulamentação

normativa da sociedade.575

Um dos principais problemas para a construção de uma teoria sobre a legitimação da

jurisdição constitucional é realizá-la sob parâmetros de racionalidade, de modo que possa

satisfazer critérios de certeza jurídica e adequação a vetores pré-estabelecidos, e colocá-la

em sintonia com os anseios da coletividade, garantindo que ela seja proferida dentro de

moldes jurídicos adequados.576 O objetivo da racionalização das decisões da jurisdição

constitucional é satisfazer às exigências de segurança do ordenamento. A sua realização é

feita com base em princípios explícitos e implícitos da Constituição, que norteiam as

discussões sobre a temática da decisão.

Esse problema apontado pode ser resolvido pela densificação da força normativa da

Constituição, colocando-a como fator crucial de justificação da jurisdição constitucional.

O parâmetro de racionalidade jurídica das decisões da jurisdição constitucional é

realizado pela adequação aos mandamentos constitucionais. Todas as decisões do Supremo

Tribunal Federal, além de serem tomadas de acordo com a Constituição, permitindo

construção jurídica apenas para assegurar direitos fundamentais de auferir a legitimidade

dentro do espaço público, devem ser tomadas consonante padrões racionais, que justifiquem

o sentido de tal posicionamento. A necessidade de fundamentação das decisões judiciais,

exigência do art. 91, X da Constituição brasileira, configura-se como uma forma de

legitimação racional dos posicionamentos judiciais, pois expressa os motivos que levaram a

tal posicionamento.

Constatada a necessidade de revalorização da Constituição, e considerando os

direitos fundamentais como alicerces para a justificação da jurisdição constitucional,

necessário se torna incluí-los como parte efetiva da Carta Magna. A importância da

574 ZAGREBELSKY, Gustavo. La Giustizia Costituzionale. Bologna: Il Mulino, 1988. P. 25. 575 MORBIDELLI, G., PEGORARO, L., REPOSO, A. & VOLPI, M. Diritto Costituzionale Italiano e Comparato. 2. ed., Bologna: Monduzzi, 1997. P. 940. 576 ORTEGA, Manuel Segura. La Racionalidad Jurídica. Madrid: Tecnos, 1998. P. 28-29.

430

constitucionalização dos direitos fundamentais reside na essencialidade do texto

constitucional para o ordenamento jurídico, configurando-se na “dimensão essencial da

comunidade política”. A constitucionalização dos direitos fundamentais densifica o

conteúdo jurídico dessas normas, atribuindo-lhes uma dimensão de fundamentalidade para a

vida comunitária, no que obriga a sua concretude normativa por parte dos operadores

jurídicos e dos agentes estatais.577

À medida que há uma recuperação na força normativa da Constituição, há uma

recuperação na efetivação dos direitos fundamentais e, conseqüentemente, no incremento da

legitimação da jurisdição constitucional. A revalorização da Carta Magna configura-se na

alternativa mais factível de atendimento às demandas sociais e fundamentação de uma maior

atuação da jurisdição constitucional.

16.2) A Transformação do Supremo Tribunal Federal em Tribunal

Constitucional como Fator Determinante da Legitimação da Jurisdição

Constitucional

A relevância das decisões da jurisdição constitucional por parte dos tribunais

constitucionais ou de cortes constitucionais adquire maior interesse porque cabe a eles

decidir em última palavra, sobre o controle difuso, ou em única palavra, controle

concentrado, acerca de questões imperiosas para a concretização da Lei Maior. Eles

concentram as decisões do controle de constitucionalidade de forma irrecorrível e essa

exclusividade em um único pólo de controle, ou instância última para os países que adotam

o controle difuso, configura-se imprescindível para manter a integridade sistêmica do

ordenamento jurídico.

577 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999. P. 56.

431

A concentração da decisão em um único órgão não tem qualquer intuito autoritário,

mas proteger um escopo finalístico: a unidade sistêmica do ordenamento através de um

órgão que possa decidir de forma plena a respeito da jurisdição constitucional. Destarte,

dessa imperiosidade de concentração das decisões da jurisdição constitucional é que a

densidade de legitimação do Supremo Tribunal Federal tem que ser melhor estruturada

como forma de incrementar a justificação de suas decisões.

O Poder Legislativo não dispõe de condições para verificar a constitucionalidade de

uma lei que ele próprio fez, se a considerasse inconstitucional deveria não tê-la

concretizado.O Poder Executivo também não ostenta condições de verificar a

constitucionalidade de uma norma porque tem interesse na sua aplicação e, portanto, falta-

lhe isenção para decidir. E, por último, o Poder Judiciário, com o Supremo Tribunal Federal

exercendo concomitantemente as funções de última instância judiciária e órgão detentor da

jurisdição constitucional, que não goza de legitimidade suficiente e nem dispõe de condições

estruturais para desempenhar a contento as suas prerrogativas.

Um dos elementos para aumentar a legitimação das decisões da jurisdição

constitucional, amparando a sua maior atuação na sociedade, é a transformação do Supremo

Tribunal Federal em um tribunal constitucional, retirando-lhe as incumbências inerentes a

jurisdição ordinária. As propostas que serão apresentadas não são soluções perfeitas e

acabadas, nem mesmo são minudentes. Representam a base para o início do debate que deve

ser aprofundado em trabalhos específicos sobre a matéria.

Não é objetivo aqui esposado tolher o controle difuso de constitucionalidade e adotar

de forma exclusiva o sistema concentrado. A riqueza do controle de constitucionalidade

brasileiro é a existência concomitante de ambos os sistemas. A proposta é tornar o Supremo

Tribunal Federal um tribunal constitucional, com as atribuições da jurisdição ordinária

entregues ao Superior Tribunal de Justiça.

O controle difuso teria o mesmo funcionamento atual, inclusive com a declaração

incidental de inconstitucionalidade; a diferença crucial é que não haveria recurso das

decisões do Superior Tribunal de Justiça. Este Tribunal não iria ter competência concorrente

para analisar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, restringindo-se à aplicação das

432

decisões prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal. Apenas quando não houvesse uma

decisão judicial do STF sobre determinada matéria é que o STJ sobrestaria o processo e

remeteria a decisão, restrita à discussão da inconstitucionalidade, ao STF, que decidiria de

forma vinculante para as demais instâncias.

A competência originária do Supremo Tribunal Federal seria mantida intacta, a

modificação incidiria na competência recursal. A competência recursal extraordinária ficaria

ao encargo do Superior Tribunal de Justiça, enquanto que a competência recursal ordinária

restringir-se-ia a tutelar a “jurisdição constitucional das liberdades”, julgando o habeas

corpus, o mandado de segurança, e o habeas data decididos pelos Tribunais Superiores.578

A última instância da jurisdição ordinária seria o Superior Tribunal de Justiça,

extinguindo-se o recurso extraordinário e o agravo de instrumento nos moldes que

conhecemos atualmente. Dessa forma, a demanda de processos apreciados pelo Supremo

Tribunal Federal cairia de maneira substanciosa, permitindo que o Egrégio Tribunal pudesse

se dedicar de forma mais conscienciosa às questões pertinentes à tutela da Constituição.579 O

Supremo Tribunal Federal seria a instância exclusiva de proteção do caráter sistêmico dos

mandamentos constitucionais, enquanto o Superior Tribunal de Justiça seria a instância

última de garantia ao caráter sistêmico das normas infraconstitucionais.

Sem a competência para exercer a jurisdição ordinária e com a conseqüente redução

no número de processos postos à sua apreciação, o Supremo Tribunal Federal poderia se

dedicar com mais afinco à apreciação das questões relativas à supremacia constitucional.

Assim, o controle abstrato de constitucionalidade poderá assumir cada vez mais um caráter

578 CORRÊA, Oscar Dias. A Crise da Constituição, a Constituinte, e o Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. P. 116. 579 “O primeiro sinal dessa crise pode ser detectado pelo incrível crescimento de processos recebidos pelo Supremo Tribunal Federal. No ano de 2000 foram 105.307 feitos, contra 18.564 em 1990, 9.555 em 1980, 6.367 em 1970, 6.504 em 1960, 3.091 em 1950 e 2.419 em 1940. A grande maioria desses casos encontra-se dentro da competência recursal do Supremo Tribunal Federal. De 1991 para cá, os recursos extraordinários e agravos de instrumento têm constituído mais de 90 % dos processos recebidos pelo tribunal. No ano de 2001, 98,2% dos processos encontram-se nessa categoria. O que mais surpreende, no entanto, é que neste mesmo ano de 2001, os agravos de instrumento constituem, sozinhos, 70% das causas apreciadas pelo Supremo, ou seja, em 70% dos processos o que se discute é se deve ou não o Tribunal analisar as questões a ele submetidas”. VILHENA VIEIRA, Oscar. Supremo Tribunal Federal. Jurisprudência Política. 2 ed., São Paulo: Malheiros, 2002. P. 220-221.

433

dialógico, o que garante um incremento na sua legitimidade procedimental e incentiva os

operadores do Direito a participarem do debate jurídico, o que democratiza as suas decisões.

Essa reestruturação significaria uma valorização do controle concentrado, e o que é

mais importante, sem o cerceamento do controle difuso, que continuaria a ser uma

prerrogativa das instâncias ordinárias. Poder-se-ia pensar, inclusive, na ampliação dos

legitimados a propor as ações diretas.

Adotado os elementos defendidos no decorrer deste trabalho, as decisões do

Supremo Tribunal Federal experimentaria uma considerável densificação de sua

legitimidade, o que possibilitaria uma maior amplitude de eficácia de suas decisões,

inclusive com a adoção do efeito vinculante, que se limitaria a questões constitucionais.

Por causa dessas transformações, com o fortalecimento do Supremo Tribunal

Federal, seria conveniente que ele não mais fosse considerado como o órgão de cúpula do

Poder Judiciário, sob pena de desequilíbrio da isonomia de prerrogativas entre os três

poderes.580 Sua taxionomia seria de um órgão estranho aos poderes estabelecidos, um

tertium genus, ao mesmo tempo em que sua composição seria formada por indicação de

todos os poderes estabelecidos, o que configura um limite a sua atuação. Essa reestruturação

do STF, tornando-o um órgão distinto dos demais poderes, permitiria que ele atuasse como

um “poder moderador” não no sentido clássico empregado pela Constituição de 1824, mas

arbitrando os litígios entre os poderes estabelecidos e zelando pela eficácia das normas

constitucionais.581

580 “Até o constitucionalismo do segundo pós-guerra, os países de tradição romano-germânica não haviam conseguido construir um sistema de controle de constitucionalidade para garantir, efetivamente, a supremacia da Constituição. A grande polêmica Kelsen-Schmitt do final dos anos 1920 desvendou a razão: insuficiência institucional. A defesa da Constituição, nessa tradição, requer uma instância independente e superior à da administração (as quais dependem do Parlamento para a fixação do endereço político de suas decisões), bem como à instância da própria jurisdição ordinária (que se expressa, basicamente, pela aplicação da legislação formal). Os europeus recusaram-se a atribuir a defesa jurisdicional da Constituição ao Chefe do Estado, ao parlamento, ao governo, à administração e à jurisdição ordinária, por razões já aqui expostas. Providenciaram um poder independente de todos: o Tribunal Constitucional”. SOUZA JÚNIOR, Cezar Saldanha. O Tribunal Constitucional como Poder. Uma Nova Teoria da Divisão dos Poderes. São Paulo: Memória Jurídica, 2002. P. 138. 581 CORRÊA, Oscar Dias. O Supremo Tribunal Federal, Corte Constitucional do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. P.43.

434

A reestruturação do Supremo Tribunal Federal permitiria uma extensão das suas

prerrogativas, deixando que ele atue apenas como um contra-poder, dentro de uma

concepção ultrapassada de defesa das normas constitucionais no sentido negativo. O Egrégio

Tribunal passará a ter uma atuação pró-ativa, com uma atividade mais destacada no sentido

de assegurar a concretude normativa dos direitos fundamentais, sendo esta a finalidade

primordial da sua existência.

16.3) Uma Nova Composição do Supremo Tribunal Federal como Forma de

Democratização de Suas Decisões.

O incremento da legitimidade das decisões do Supremo Tribunal Federal não será

construído partindo-se apenas de um único fundamento, a realização desse objetivo apenas

tornar-se-á exeqüível se for amparada em diversos alicerces. Um desses fundamentos é a

reestruturação da composição dos ministros que formam a Egrégia Corte brasileira como

forma de democratizar as suas decisões, sendo uma das conseqüências imediatas da sua

transformação em um tribunal constitucional.

A forma de composição do órgão que exerce a jurisdição constitucional apresenta

conseqüências importantes para a análise da legitimação da jurisdição constitucional. Ela é

uma justificação pela origem dos membros do órgão que exercem a jurisdição

constitucional, que juntamente com a justificação objetiva e a pelo exercício configuram-se

como instrumentos de fortalecimento do consenso em torno de suas decisões.

Quanto maior for o respaldo que os seus membros gozarem na sociedade, maior será

a autoridade de suas decisões. A composição dos membros do Supremo Tribunal Federal

deve ser plural porque permitirá a participação das forças políticas imperantes na sociedade

e conseqüentemente menores serão as resistências a suas decisões. E os seus membros

igualmente devem ter representatividade, ou seja, é necessário que eles sejam eleitos através

435

de um acordo das forças políticas, que lhes garanta um amplo consenso indispensável para

garantir a sua nomeação.

Redesenhar as regras para uma nova composição do Supremo Tribunal Federal não

significa que os seus membros passarão a ser escolhidos com base no voto popular,

possibilidade impensável devido aos requisitos específicos que eles devem portar, mas

estabelecer uma composição do STF de acordo com o equilíbrio das forças sociais. Quando

se descentraliza a escolha dos membros da jurisdição constitucional consonante os

imperativos políticos acaba-se com o gap existente entre as suas decisões e os demais

poderes componentes do Estado, porque todas as forças políticas concorreram para a escolha

dos membros da Egrégia Corte. As suas decisões deixam de apresentar a aparência de um

corpo estranho que se imiscue na esfera pública sem nenhum tipo de respaldo da esfera

política que a propulciona.

A participação de órgãos constitucionalmente estabelecidos também tem a finalidade

de combater a assertiva de que se tornando o Supremo Tribunal Federal um tribunal

constitucional haveria um desequilíbrio na separação dos poderes, com um

superdimensionamento do Colendo Tribunal, que preponderaria com relação aos demais

poderes estabelecidos. Firmando-se a pluralidade e a representatividade como requisitos

para a composição do STF, há a formação de uma simbiose intrínseca entre o órgão que

exerce a jurisdição constitucional e os demais órgãos estabelecidos, impedindo que as

decisões de tutela da Constituição sejam tomadas através de um formalismo auto-referencial,

alienadas das demandas sociais.

Como afirma Leopoldo Lia, a legitimidade constitucional do órgão incumbido de

exercer a jurisdição constitucional não pode ser contestada pela falta de um vínculo com as

aspirações sociais, daí advindo a importância de uma escolha plural dos membros que a

compõem.582 Estabelecer conexões das decisões do Superior Tribunal Federal com o

sentimento imperante na sociedade pode ser obtido pela escolha plural e representativa dos

seus membros, conquistando o apoio de importantes órgãos representativos da sociedade

582 ELIA, Leopoldo. “La Corte Nel Quadro Dei Potere Constituzionale”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 518-19.

436

civil, o que propicia um largo debate público, onde se permite o afloramento das mais

diversas opiniões, como forma de se sedimentar a legitimidade do processo de escolha.

A democratização da escolha dos ministros, componentes do Supremo Tribunal

Federal, não significa uma partidarização das decisões da jurisdição constitucional. Os

choques comumentes ocorridos na seara política não podem ser transpostos para as decisões

do STF, que têm uma natureza jurídica, apesar de elevado grau de discricionariedade que

apresentam. As decisões políticas apresentam diversas características que são incompatíveis

com as decisões judiciais, o que impede que elas possam ser confundidas, sob pena de

ocorrer uma perda da concretude normativa dos pronunciamentos judiciais que se

caracteriza justamente como uma finalidade contrária daquela que se quer alcançar.

Inexiste um critério determinado para a fixação dos membros dos tribunais

constitucionais, sendo as razões de conteúdo sócio-político o que dita o número dos seus

membros, variando muito de acordo com as peculiaridades de cada país. O número de

componentes do Tribunal Constitucional alemão é de dezesseis, do espanhol de doze, do

italiano de quinze e do português de treze. Condizente com as dimensões territoriais do

Brasil, a sugestão é que o número de ministros componentes do Supremo Tribunal Federal,

seja aumentado para quinze membros, retornando a composição estabelecida

originariamente pela Constituição de 1891.

De acordo com o princípio da pluralidade, que se configura como um dos

norteadores da potencialização da legitimidade das decisões da jurisdição constitucional, a

escolha dos membros do Supremo Tribunal Federal não pode ficar adstrita aos imperativos

da vontade do Presidente da República, mesmo que depois tenha a indicação de ser aprovada

pelo Senado Federal, que no Brasil, infelizmente, não passa de mero formalismo jurídico,

pois até hoje nenhuma indicação foi rejeitada. A escolha necessita ser democratizada,

permitindo a participação dos poderes constitucionalmente estabelecidos, no que reforça o

grau de legitimação dos membros do Egrégio Tribunal e forçosamente de suas decisões.

Na Itália, um terço dos membros do tribunal é indicado pelo Presidente da República,

com contra-firma do Presidente do Conselho, um terço é eleito pelo Parlamento, em sessão

conjunta, e um terço pela Suprema Magistratura Ordinária e Administrativa; a Corte de

437

Cassação indica três, o Conselho de Estado indica um e a Corte de Contas indica outro.583

Na Alemanha, metade dos membros do tribunal é eleita pelo Conselho Federal e a outra

metade pelo Parlamento Federal. Dos dezesseis juízes, seis devem pertencer aos tribunais

superiores, os demais podem ser livremente escolhidos, desde que atendam aos requisitos

legais.584 Em Portugal, dez dos membros do tribunal são escolhidos pela Assembléia da

República e três pelo próprio Tribunal; seis dentre os juízes designados pela Assembléia da

República são obrigatoriamente escolhidos dentre os juízes dos tribunais de jurisdição

ordinária.585 Na Espanha, quatro membros são escolhidos pelo Congresso, quatro pelo

Senado, dois pelo governo e dois pelo Conselho Geral do Poder Judiciário.586

No Brasil, um terço dos membros do Supremo Tribunal Federal deveria ser escolhido

pelo Congresso Nacional, um terço pelo Presidente da República, com a confirmação do

Senado Federal, e o outro um terço pelos juízes componentes do Poder Judiciário. Dessa

forma, haveria uma democratização na escolha dos componentes da jurisdição

constitucional, com a consecução lapidar do princípio da pluralidade.

A definição de um mandato prefixado para os membros do Supremo Tribunal

Federal, igualmente serve para densificar a legitimidade de origem de suas decisões. Quando

a duração dos mandatos é vitalícia, as modificações na conjuntura política não são

acompanhadas por uma modificação na sua composição, o que gera uma disparidade entre o

sentimento da sociedade e o teor das decisões proferidas. Ao contrário, quando os mandatos

são por períodos determinados, impedindo-se reeleição ou reeleições sucessivas, existe a

possibilidade de sua composição acompanhar a dinâmica das forças sociais, havendo uma

sincronia entre a sociedade e a composição do órgão, que exerce a fiscalização

constitucional.

Instituindo-se os mandatos por tempo determinado, para os membros da jurisdição

constitucional, não haverá o perigo de petrificação de suas decisões judiciais porque o

583 MARTINES, Temistocle. Diritto Costituzionale. 10 ed., Milano: Giuffrè, 2000. P. 450-451. 584 RITTERSPACH, Theo. Legge sul Tribunale Costituzionale della Repubblica Federale di Germania. Firenze; Centro Editoriale Europeo, 1982. P. 7-9. 585 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6 ed., Coimbra: Almedina, 2002. P. 678-679. 586 CONDE, Enrique Álvares. Curso de Derecho Constituconal. Vol. II. 2 ed., Madrid: Tecnos, 1997. P. 294-296.

438

mandato de seus membros será fixado por tempo determinado, passando a acompanhar de

forma mais sincrônica a evolução das demandas sociais. Dessa forma, a legitimidade do

órgão que exerce a jurisdição constitucional passa a ser haurida também dos poderes

estabelecidos, estabelecendo-se duas ligações com o princípio da soberania popular: a do

Poder Constituinte e a dos poderes estabelecidos, cabendo a estes renovar a legitimidade

sucessivamente dentro de um determinado período. Portanto, instituindo-se o mandato por

tempo determinado para os membros do órgão que exercem a jurisdição constitucional, a

aparente dicotomia entre esse órgão e o princípio majoritário é arrefecida, sinalizando o

importante papel desempenhado pelos poderes estabelecidos e pela sociedade civil.

A duração para os mandatos mais comum nos tribunais constitucionais é de nove

anos, sendo este lapso temporal adotado pelos tribunais da Itália, Espanha, Portugal. O

Tribunal Constitucional alemão adota o prazo de doze anos como duração para o exercício

dos seus membros. A atual vitaliciedade dos ministros do Supremo Tribunal no Brasil foi

estabelecida na Constituição de 1891, no seu art. 57, transposta do modelo adotado pela

Suprema Corte norte-americana.

Consonante com a maioria dos tribunais constitucionais europeus a sugestão é que o

mandato dos ministros do Supremo Tribunal Federal seja fixado em nove anos. Este lapso

temporal possibilita, por um lado, que os ministros tenham estabilidade por um tempo

razoável nos seus cargos e por outro lado, não é demasiadamente longo para que o indicado

possa se desvencilhar das circunstâncias fáticas que propiciaram o seu provimento.

Requisito cogente para a efetivação de todas essas nomeações, seguindo a linha

ofertada pelo princípio da representatividade, é que essas indicações consigam o apoio

substancial do órgão que o está respaldando, geralmente exigindo altos quóruns, como por

exemplo o de dois terços. Devido ao alto quórum exigido, a indicação deve contar com um

amplo consenso, o que permite que a minoria presente nos órgãos competentes para a

nomeação possa vetar o nome escolhido pela maioria que não tenha aglutinado grande

consenso em torno de si. O quórum de dois terços configura-se como um ótimo vetor para

garantir representatividade aos indicados para compor o Supremo Tribunal Federal.

439

A reeleição dos membros componentes dos mencionados tribunais não foi abrigada

pelos referidos tribunais constitucionais europeus porque a possibilidade de manutenção dos

juízes em seus cargos poderia turvar o seu livre convencimento, prolatando decisões com a

finalidade de atender aos interesses daqueles grupos políticos que pudessem garantir a sua

manutenção no cargo.587 Por causa desse motivo a instalação de um tribunal constitucional

no Brasil não pode permitir a reeleição dos seus ministros.

Além de ter um mandato fixo de nove anos, sem possibilidade de reeleição, a

transformação do Supremo Tribunal Federal em tribunal constitucional deve ter uma

renovação parcial dos seus componentes. A idéia é que a renovação seja realizada a cada três

anos, abrangendo em cada uma dessas um terço dos seus componentes. Essa constante

modificação dos componentes do STF abre espaço para uma maior adequação entre as

decisões proferidas e os anseios sociais que exercem influência na indicação dos juízes, o

que reforça a legitimidade da jurisdição constitucional.

Uma maior exigência da capacitação profissional dos escolhidos para ocupar o

Egrégio Tribunal brasileiro também representa um fator relevante para a sua legitimação,

devendo se configurar como requisito imperioso para a escolha de seus membros. A

Constituição de 1988 exige dos indicados para compor o STF: ser brasileiro nato maior de

trinta e cinco anos; reputação ilibada e notório saber jurídico; mais de dez anos de exercício

da advocacia. Esses critérios, por sua ampla generalidade, permitem a escolha de ministros

que não ostentam grande legitimidade no seu meio profissional.

Os critérios poderiam ser mais precisos, exigindo-se, como nos Tribunais

Constitucionais europeus, que parte dos seus ministros sejam escolhida entre os advogados

mais renomados do país, parte dentre os professores universitários catedráticos e parte entre

os membros da magistratura e do ministério público que se destacassem pelo exercício de

suas funções. Como foi declarado em um estudo realizado pela biblioteca do Tribunal

Constitucional espanhol, ressalvado, em alguns casos, a obrigatoriedade da presença de

587 MORBIDELLI, G., PEGORARO, L., REPOSO, A. & VOLPI, M. Diritto Costituzionale Italiano e Comparato. 2. ed., Bologna: Monduzzi, 1997. P. 840.

440

juízes da jurisdição ordinária, boa parte dos magistrados constitucionais são professores

universitários de grande estatura nos seus países.588

Esses critérios mencionados não deixam de ser igualmente genéricos, mas podem

servir para construir uma exigência que os membros indicados para o Supremo Tribunal

Federal realmente possuam uma notória capacitação profissional que possa cimentar a sua

legitimidade.

Requisitos mais rígidos também deveriam fazer parte do processo de seleção dos

membros do Poder Judiciário que, com a transformação do STF em tribunal constitucional,

iriam verificar se há afronta ao texto constitucional e remeter as decisões ao Colendo

Tribunal para julgamento. Os critérios para acesso ao cargo de magistrado deveriam ser mais

rígidos, cobrando dos candidatos não apenas uma cultura jurídica, fruto de alguns anos

isolados, decorando códigos que garante a sua aprovação – decoram os códigos das leis, mas

se esquecem do código da vida. Uma formação cultural mais sólida deveria ser um dos

requisitos necessários, compreendendo um cabedal de conhecimentos zetéticos que incluísse

principalmente a ética. Igualmente importante é exigir um tempo mínimo no exercício da

advocacia ou funções afins, como forma de evitar que pessoas muito jovens, no mais das

vezes inexperientes, possam chegar muito cedo à magistratura.

Danilo Zolo concorda com a exigência de critérios mais rígidos nos processos de

seleção dos membros da magistratura, incluindo a jurisdição constitucional, levando-se em

conta requisitos morais, aliados à necessidade de uma melhor formação cultural, como

forma de auferir uma maior densidade de legitimidade às decisões judiciais.

As sugestões apresentadas não têm a pretensão de servir como parâmetro para a

transformação do Supremo Tribunal Federal em um tribunal constitucional, sua finalidade é

apenas iniciar as discussões para que o debate promovido pelos mais amplos setores da

sociedade possa encontrar as diretrizes mais adequadas à realidade social brasileira.

588 Servicio de Estudios, Biblioteca y Documentación Del Tribunal Constitucional. “Modelos de Renovación Personal de Tribunales Constitucionales”. In: Revista Española de Derecho Constitucional. Ano 21. Número 62, Mayo/agosto. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001. P. 218.

441

Pelos motivos já fartamente expostos configura-se tarefa premente a reestruturação

do Supremo Tribunal Federal para que haja o aumento da legitimidade de suas decisões,

tornando-o capaz de assegurar as demandas oriundas de um Estado Democrático Social de

Direito. Esse processo pode ser realizado pelo Poder Constituinte, mas nada o impede que

seja realizado pelo Poder Reformador e esta é a forma mais factível diante da nossa

realidade hodierna. Claro que surgirá muita oposição contra essa reestruturação do STF,

principalmente por parte daqueles que terão interesses contrariados, o que não será um óbice

intransponível, desde que os dispositivos legais que os prescrevem tenham sido

obedecidos.589

16.4) A Decisão da Jurisdição Constitucional Baseada no Entrenchement

dos Valores Constitucionais

O papel da Constituição não é apenas servir como um limite formal para a atuação do

Poder Legislativo, mas, ao contrário, atuar como uma norma substancial que exprime a

tensão entre a concretização de uma determinada idéia de sociedade com a realidade fática

vigente. A jurisdição constitucional tem a obrigação de velar pela concretização dos valores

da Constituição, desenvolvendo uma atividade mais ampla do que a de simplesmente

declarar a nulidade das normas inconstitucionais, no sentido meramente negativo, mas

igualmente orientar e fornecer as condições necessárias para a realização dos valores

contidos no seu texto.590

A concepção de uma Constituição como uma ordem concreta de valores, arrimado

em princípios da Lei Maior, não desnatura o seu caráter jurídico. A Carta Magna sofre uma

intensa influência da seara fática, indubitavelmente, mas essas interferências são moldadas

sob prismas jurídicos, de acordo com o programa estabelecido pelo conteúdo normativo. A

589 RAWLS, John. Liberalismo Político. Trad. Gianni Rigamonti. Milano: Edizioni di Comunità, 1994. P. 202 590 GIOVANNELLI, Adriano. Dottrina Pura e Teoria Della Costituzione in Kelsen. 2 ed., Milano: Giuffrè, 1983. P.282-283.

442

segurança do ordenamento jurídico se mantém inalterada, uma vez que os valores adotados

pela Constituição são incorporados em dispositivos normativos constituindo-se em

parâmetro para a decisão dos operadores do Direito.

Os valores agasalhados pelos princípios jurídicos não oferecem aos tribunais

constitucionais o poder de decidir sem o alicerce dos instrumentos normativos. A maior

discricionariedade oferecida pelos princípios não permite ao Poder Judiciário o exercício da

função de criação normativa como fora prevista na separação dos poderes ao Legislativo. A

sua legitimidade é haurida pelos mandamentos constitucionais, com a finalidade de

concretizar os direitos fundamentais, amparado na reestruturação do Supremo Tribunal

Federal e no caráter dialógico do seu procedimento.

Não se pode imputar o atrelamento das decisões da jurisdição constitucional aos

valores concretos abrigados pela Constituição de 1988 um motivo de insegurança para o

ordenamento jurídico. A intenção é garantir a efetividade dos direitos fundamentais,

principalmente daqueles classificados como normas programáticas, em que pairam uma

maior discricionariedade na intensidade de sua concretização por parte do legislador

infraconstitucional.

O problema de se adotar uma concepção da Constituição como um complexo de

valores é determinar a extensão desses valores que estão contidos nos dispositivos

constitucionais em estruturas principiológicas. A solução encontrada é através do princípio

da “densidade suficiente” ou do “mínimo possível”.

Ao defender que a Constituição é uma “ordem objetiva de valores” e que a

concretização dos direitos fundamentais deve garantir um conteúdo mínimo ou densidade

suficiente dos seus preceitos está se tentando assegurar sua efetiva realização, mormente dos

direitos que têm uma natureza programática.591 Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal

assume uma relevante importância no sentido de efetivar o conteúdo mínimo ou a densidade

suficiente dos direitos fundamentais abrigados pela Constituição de 1988, tornando-se o

“guardião dos valores”, o instrumento de tutela e efetivação das prerrogativas dos cidadãos.

591 QUEIROZ, Cristina. Interpretação Constitucional e Poder Judicial. Sobre a Epistemologia da Construção Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. P. 258.

443

A definição de um “conteúdo mínimo” ou “densidade suficiente” dos direitos

fundamentais se mostra bastante relevante para os direitos sociais e para todos aqueles que

necessitam da intervenção estatal para a sua concretização, ou seja, para todos aqueles que

necessitam efetivar não apenas prestações normativas, mas igualmente prestações fáticas.

Com relação aos direitos de primeira dimensão, atinentes às prerrogativas civis e políticas, a

simples abstenção da atuação dos entes estatais já é suficiente para a sua inteira

concretização.

Portanto, a maior relevância ao se precisar um “conteúdo mínimo”, ocorre naqueles

direitos fundamentais que necessitam de prestações efetivas dos entes estatais, haja vista

serem os direitos negativos incompatíveis com uma densificação do seu conteúdo, o que

impossibilita dividir esses direitos em um “núcleo duro” e uma “zona periférica”. Os direitos

de primeira dimensão não apresentam um substrato econômico significante, atingindo, esse

vetor, forte magnitude com relação às demais dimensões.592

A teoria da “densidade suficiente” ou do “conteúdo mínimo”deve ser concebida

como um entrincheiramento dos direitos fundamentais, entrenchment, no sentido de que as

prerrogativas dos cidadãos são fixadas em uma determinada intensidade e que essa

intensidade seja protegida para que a sua eficácia não se torne cambiante de acordo com as

variáveis sociais. Dessa forma, há uma proteção a precisão dos valores constitucionais, o

que impede a sua variação para atender a particularidades e aumenta a segurança jurídica do

conteúdo das normas constitucionais.593

A concepção de entrincheiramento assegura uma proteção ao conteúdo dos direitos

fundamentais, o que impede a sua ineficácia e a sua inconstância de acordo com os vetores

sociais. Contudo, o entrenchment não impede a evolução dos direitos, depois de garantir

592 “Justamente pelo fato de os direitos sociais prestacionais terem por objeto prestações do Estado diretamente vinculadas à destinação, distribuição (e redistribuição), bem como à criação de bens materiais, aponta-se, com propriedade, para sua dimensão economicamente relevante. Tal constatação pode ser tida como essencialmente correta e não costuma ser questionada. Já os direitos de defesa – precipualmente dirigidos a uma conduta omissiva – podem, em princípio, ser considerados destituídos desta dimensão econômica, na medida em que o objeto de sua proteção (vida, intimidade, liberdades, etc) pode ser assegurado juridicamente, independentemente das circunstâncias econômicas”. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2 ed., Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2001. P. 263. 593 SCHAUER, Frederick. Playing by the Rules. A Philosofical Examinations of Rule-Based Decision-Making in Law and in Life. New York: Oxford University Press, 1998. P. 42-43.

444

uma intensidade mínima reforçando sua unanimidade na sociedade, a sua finalidade

configura-se em expandir o entrincheiramento dos direitos fundamentais mais adiante,

propiciando maiores prerrogativas à sociedade.

O entrenchment do “conteúdo mínimo” dos direitos fundamentais funciona como

uma garantia à efetivação desses direitos, impedindo um retrocesso na sua concretização. O

entrincheiramento, como o étimo da palavra já clarifica, significa o encastelamento do

“conteúdo mínimo” dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico, expandindo esse

consentimento para o tecido social. Seu escopo é fortalecer a densidade normativa desses

direitos, realizando o que Canotilho chamou de solidificação da legalidade democrática.594

Partindo do consenso firmado pelo entrincheiramento dos direitos fundamentais, a

negociação para o seu desenvolvimento se torna mais fácil, já que o ponto de referência,

entrincheiramento, goza de grande grau de normatividade e legitimação social.

A teoria do entrincheiramento dos direitos fundamentais realiza uma reafirmação da

legitimação da jurisdição constitucional através de uma substantive justification, cujo

reflexo direto é a densificação dos direitos fundamentais. Os valores agasalhados pela Lex

Mater estabelecem parâmetros de racionalidade jurídica que fundamentam a aplicação das

normas constitucionais, justificando a sua própria eficácia, sem necessitar de procedimentos

destituídos de substrato material.595

Para que o Supremo Tribunal Federal possa densificar a legitimação da jurisdição

constitucional através do entrenchment do “conteúdo mínimo” dos direitos fundamentais, as

suas decisões têm que ter uma eficácia erga omnes e efeito vinculante, inclusive como a

prerrogativa de regulamentar dispositivos constitucionais quando estes não o forem

regulamentados pelo legislador infraconstitucional e, como conseqüência, impossibilitar o

exercício de direitos fundamentais. Dessa forma, muitos mandamentos da Constituição que

têm mera função retórica devem ter um conteúdo mínimo assegurado pelo STF, o que já

594 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998. p. 946. 595 SCHAUER, Frederick. Playing by the Rules. A Philosofical Examinations of Rule-Based Decision-Making in Law and in Life. New York: Oxford University Press, 1998. P. 94.

445

aconteceu em algumas de suas decisões com o intuito de obrigar que os poderes competentes

assegurem direitos sociais mínimos aos hipossuficientes, como o direito à saúde, à educação

etc.

Exemplo não de um “conteúdo mínimo” ou “densidade suficiente” de um direito

fundamental, mas de um percentual orçamentário mínimo que deve ser aplicado na saúde

pelo Estado brasileiro, que de qualquer maneira garante um maior aporte de verbas para esse

direito fundamental imprescindível, tentando instituir um “conteúdo mínimo”, foi instituído

pela Emenda Constitucional n. 29, que determinou um percentual limite que deve ser

aplicado pela União, Estados, Município e pelo Distrito Federal, e em cada ano esse

percentual deve ser acrescido pela variação do PIB (Produto Interno Bruto). Essa emenda

permitiu que o Supremo Tribunal Federal pudesse efetivamente exercer a tutela para que os

recursos destinados à saúde não sejam alocados para outros setores.

Na determinação do “conteúdo mínimo”, ou da “densidade suficiente” dos direitos

fundamentais, o Supremo Tribunal Federal não pode agir de forma arbitrária, já que os

fatores sócio-político-econômicos direcionam suas decisões, pois são esses fatores que

estruturam a composição política e são as forças políticas que indicam os componentes do

Egrégio Tribunal.596 Então, o Supremo Tribunal Federal, de acordo com a conjuntura fática,

determinaria uma “densidade suficiente” para os direitos fundamentais e zelaria para a sua

efetivação. Poderia, inclusive, traçar determinadas metas que deveriam ser alcançadas pelos

órgãos públicos dentro de um prazo prefixado, sob pena de se incorrer em crime de

responsabilidade.

Um direito fundamental é composto de duas partes: o seu “núcleo duro” e a sua

“zona periférica”. O “núcleo duro” ou “conteúdo essencial” configura-se como um limite

que deve ser respeitado pelo Supremo Tribunal Federal ao determinar a densidade de um

direito, que, de maneira nenhuma, pode ser desrespeitado pelas decisões judiciais,

proibindo-se o seu esvaziamento ou que ele se transforme em uma exceção. Esse “núcleo

duro” é definido como a própria essência do direito, que deve ser concretizada independente

596 O que obviamente exige a transformação do Supremo Tribunal Federal em um tribunal constitucional, com a democratização da escolha e mandado fixo para os seus membros.

446

de conjecturas fáticas. A outra parte que compõe o direito fundamental é a “zona periférica”,

que será concretizada consonante a conjuntura fática, mas que o STF deve estipular um

desenvolvimento para que a densidade do direito possa ser aumentada.

O “conteúdo mínimo” ou “densidade suficiente” refere-se ao “núcleo duro” que, de

forma alguma, pode ser desprezado pelos órgãos estatais. A “zona periférica” refere-se à

extensão que os direitos fundamentais devem paulatinamente evoluir, atendendo às

diretrizes estipuladas pelo Supremo Tribunal Federal, sempre em sintonia com os fatores

sócio-político-econômicos. Entretanto, jamais haverá uma conclusão na concretização dos

direitos fundamentais, que sempre estarão em constante evolução pari passu com a evolução

da sociedade. A conclusão que se pode chegar é que sempre haverá uma “zona periférica” na

definição dos direitos fundamentais, que caberá ao STF velar pelo seu desenvolvimento

sintonizado com as demandas sociais.

A finalidade da definição de um “núcleo duro”dos direitos fundamentais não é

limitar sua concretização, muito pelo contrário, configura-se como uma forma de maximizar

a sua eficácia. Por isto, a teoria da “reserva do possível”, que advoga que os direitos

fundamentais, tem uma concretização de acordo com as variáveis sócio-político-

econômicas, não podendo restringir a efetividade das normas constitucionais, cerceando a

extensão do “núcleo duro”. A sua aplicação na realidade brasileira deve ter o escopo de

garantir um constante incremento nas prerrogativas dos cidadãos e não se transformar em

um óbice, sob a alegação de que a seara fática não oferece condições mínimas para a

concretização dos direitos fundamentais.

O princípio da “densidade suficiente”, ou do “conteúdo mínimo”, consiste em se

garantir aos direitos que exigem uma concretização jurídica-política uma precisão do seu

conteúdo, que ao mesmo tempo em que protege o substrato material contido na

Constituição, não cerceia a discricionariedade de escolha inerente ao Poder Executivo e

Legislativo, que é própria do regime democrático. A importância do entrenchment da

“densidade suficiente” dos direitos fundamentais, atuando concomitantemente no “núcleo

duro” e na “zona periférica” é a solidificação desses direitos no ordenamento, o que assegura

a sua eficácia.

447

A discussão acerca do princípio da “densidade suficiente”, ou “conteúdo mínimo”,

reside em se precisar o seu conteúdo, que não pode ser encontrado na seara jurídica, em

razão do caráter aberto dos princípios, o que leva inexoravelmente a uma decisão política.

Ou seja, o idêntico problema para se adotar uma concepção principiológica da Constituição.

A Constituição portuguesa prevê uma distinção básica entre direitos, liberdades e

garantias, que têm uma concretização jurídico-interpretativa, e direitos econômicos, sociais e

culturais, que tem uma concretização jurídico-política da Lei Maior. Com isto, a mencionada

Constituição agasalhou a tese de um “núcleo duro” dos direitos fundamentais e de um “zona

periférica”. Os direitos, liberdades e garantias foram regulamentados no título II, da parte I,

e os direitos econômicos, sociais e culturais no título III, da mesma parte I, evidenciando a

concepção da Constituição, como uma “ordem objetiva de valores”, que assume maior

significado para os direitos que exigem intervenção estatal para a sua concretização.

Os direitos, liberdades e garantias, estruturados tipicamente em regras, são

diretamente aplicáveis e por isto são passíveis de uma concretização jurídico-interpretativa.

Já os direitos econômicos, sociais e culturais, que são estruturados tipicamente em

princípios, dependem para a determinação do seu conteúdo de opções políticas, próprias dos

órgãos políticos que compõem o aparelho estatal. Por isto, são passíveis de uma

concretização jurídico-política, porque se referem a questões que nitidamente envolvem uma

decisão política que tem que ser tomada com um alto substrato de legitimidade.

Esse é um exemplo claro de que a maior importância para o estabelecimento de um

“conteúdo mínimo” aos direitos fundamentais refere-se primordialmente aos que são

concretizados de forma continuada no tempo, e não aos direitos que são concretizados de

forma instantânea, como os de primeira dimensão, que exigem apenas uma omissão por

parte do Estado. Destarte, o conteúdo dos direitos econômicos, sociais e culturais é

constituído de forte carga valorativa, cujas conjecturas sócio-político-econômicas

direcionam o conteúdo axiológico das normas constitucionais. Enquanto que os direitos,

liberdade e garantia têm uma natureza nitidamente jurídica porque sua concretização

necessita de reduzida carga valorativa.

448

Condizente com a “zona periférica” dos direitos fundamentais, o Tribunal

Constitucional português decidiu que não se pode exigir do legislador uma regulamentação

uniforme para todos os preceitos que exijam uma concretização jurídica-política, aceitando-

se uma abertura razoável para as opções legislativas desde que elas não impliquem no

cerceamento da essência do dispositivo constitucional. O instrumento para garantir a

autonomia legislativa e a defesa da cominação, contida na Constituição, foi realizado através

da construção da teoria da “densidade suficiente” ou do “conteúdo mínimo”.597

O Tribunal Constitucional Federal alemão foi o pioneiro na concepção da

Constituição como uma “ordem de valores”, ou um “sistema de valores”. Para assegurar

concretude normativa aos direitos fundamentais, ele defende a realização de um conteúdo

mínimo, principalmente daqueles que necessitam da intervenção do Estado para a sua

realização.

A Lei Fundamental da Alemanha, de 1949, não menciona expressamente que há um

direito fundamental, inerente a uma assistência adequada por parte dos órgãos estatais, que

garanta os cidadãos contra as provações econômicas. Apesar dessa omissão, o Tribunal

Constitucional Federal alemão se posicionou acerca da existência de um mínimo vital que os

órgãos estatais devem garantir a todos os cidadãos. Assim se manifestou o mencionado

tribunal em uma importante decisão, em 1975: “Certamente, a assistência social aos

necessitados é um dos deveres óbvios do Estado Social. Necessariamente, isto inclui a

assistência social aos cidadãos que, em virtude de vicissitudes físicas ou mentais, estão

impedidos de desenvolver-se pessoal e socialmente e não podem assumir por si mesmo a sua

própria subsistência. Em todo caso, a comunidade estatal tem que assegurar as condições

mínimas para uma existência humana digna”.598

Como pode-se perceber, pela atuação do Tribunal Constitucional Federal alemão, o

efetivo desenvolvimento da jurisdição constitucional configura-se de suma importância para

a defesa e a concretização dos direitos fundamentais. Para o alcance desse objetivo, é

597 VIEIRA DE ANDRADE, J. C. “Legitimidade da Justiça Constitucional e Princípio da Maioria”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 83. 598 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales. P. 2002. P.422.

449

imprescindível a atuação do Supremo Tribunal Federal como guardião do “conteúdo

mínimo” ou da “densidade suficiente” dos direitos fundamentais, utilizando-se da teoria do

entrenchment.

Mostra Konrad Hesse a importância da atuação do Tribunal Constitucional alemão

para a efetividade dos direitos fundamentais alemães: “Na atualidade, é decisiva, para uma

ampliação da garantia e efetividade dos direitos fundamentais, a proteção por parte dos

tribunais. Na época da Constituição do Reich de 1919 havia apenas reduzidas oportunidades

para que os direitos fundamentais pudessem se tornar efetivos por parte dos tribunais.

Continuou sendo escassa, portanto, a importância prática desses direitos. Sob a Lei

Fundamental, essa efetividade resulta plena e sem fissuras. Tal efetividade conseguiu que os

direitos impregnem não apenas a vida pública, mas toda a vida jurídica – ocasionalmente

inclusa até esta relação circunstanciada”.599

16.5) Densificação da Legitimação da Jurisdição Constitucional Brasileira

Apesar de a jurisdição constitucional ter ganhado uma maior relevância na defesa da

democracia e dos direitos fundamentais, com a criação dos tribunais constitucionais na

Europa e com a extensão dos direitos civis nos Estados Unidos, de longa data, ela é

considerada como um dos alicerces para a construção de um pleno regime democrático,

tanto que no século XIX Alexis de Tocqueville considerou o Poder Judiciário,

principalmente pelas atividades desempenhadas pela Suprema Corte norte-americana, como

um dos elementos mais relevantes para a conservação da república democrática nos Estados

Unidos.600

O aumento na atuação da jurisdição constitucional é imprescindível para atender às

atividades inerentes a um Estado Democrático Social de Direito. Ela representa o

599 BENDA, MAIHOFER, VOGEL, HESSE & HEYDE. Manual de Derecho Constitucional. 2 ed., Trad. Antonio López Pina. Madrid: Marcial Pons, 2001. P. 112. 600 TOCQUEVILLE, Alexis. La democracia in America. Trad. [ s.t], Milano: Rizzoli, 1999. P. 290.

450

instrumento adequado para garantir a concretização dos mandamentos constitucionais, que

são as normas que foram pactuadas pela sociedade para estruturar a organização política e

explicitar os direitos fundamentais. Contudo, a jurisdição constitucional não se configura

como uma panacéia para a solução dos males que atinge a humanidade no terceiro milênio.

A construção de um Estado de bem-estar depende de vários fatores, de circunstâncias sócio-

político-econômicas que perpassam os limites estreitos da seara jurídica.

Para que haja uma conjuntura propícia ao desenvolvimento das atividades da

jurisdição constitucional no sentido de tutelar os dispositivos constitucionais contidos na

Constituição de 1988, a legitimidade das decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal

deve ser repensada. A justificativa de que suas decisões encontram amparo na Carta Magna,

na forma de sua composição ou no seu procedimento judicial mostra-se insuficiente para

fundamentar a multiplicidade de searas de sua incidência. É necessário encontrar novos

elementos que possam amparar a legitimidade da jurisdição constitucional.

A densificação da legitimidade da jurisdição constitucional brasileira não é uma

tarefa fácil de ser realizada, porque envolve difíceis obstáculos que devem ser superados. A

sua justificação passa a ser reconstruída, com base em diversos alicerces que contribuem

para uma forte aceitação de suas decisões judiciais. O vetor comum dessa densificação é a

tentativa de cumprir as funções inerentes ao Estado Democrático Social de Direito, fazendo

com que a estruturação e o funcionamento do Supremo Tribunal Federal possa estar adstrito

aos parâmetros delineados pelo regime democrático.

Além da premência de se encontrar elementos externos de justificação, a própria

jurisdição constitucional e o Poder Judiciário também exercem uma função legitimante, não

apenas de suas decisões judiciais, mas também dos demais poderes estabelecidos. Eles, com

a remodelação da estrutura de poder, não estão mais à reboque das decisões proferidas pelos

poderes Executivo ou Legislativo, aumentando cada vez mais sua seara de atuação.

Baseando suas decisões nos dispositivos constitucionais, preponderantemente nos direitos

451

fundamentais, acrescentam um plus ao sistema de freios e contrapesos, ao mesmo tempo em

que obtém uma legitimidade substancial para a sua atuação.601

Essa legitimação intrínseca da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário

acontece na medida em que os cidadãos, principalmente os menos instruídos, passam a vê-

los como esteios para os seus clamores. Em virtude da reestruturação das relações jurídicas,

que deixam de ser bilaterais e passam a ser plurisubjetivas, e dos avanços da teoria

processual, a possibilidade do ingresso dos cidadãos em juízo se tornou mais fácil e ágil,

podendo solucionar problemas que até então eram de alçada eminentemente privada. O que

contribui para aumentar a confiança nas decisões judiciais.

O cidadão comum demonstra muita confiança nas decisões judiciais de um modo

geral, em muitos casos se configura na única possibilidade de aquisição de direitos que lhes

foram outorgados pela Carta Política. As decisões judiciais passam a exercer uma espécie de

competência suplementar, garantindo determinados direitos que deveriam ser ofertados por

outros poderes ou órgãos públicos. Não resta a menor dúvida, de que muitas dessas decisões

adentram no exercício da competência de outros poderes, mas tal atuação ocorre diante da

omissão desses mesmos poderes de cumprir uma obrigação que lhes foi imposta pela

Constituição.

O primeiro elemento externo de legitimação consiste na revalorização da força

normativa da Constituição. O ponto em comum de todas as concepções sobre a Lei Maior é

a sua supremacia e a relevância que ocupa no ordenamento jurídico, sem esquecer o seu

valor fundante para o regime democrático. Por isso, configura-se a Carta Magna como o

601 “Assim, enquanto se estabelece um estreito circuito de caráter operativo entre o judiciário e a corte constitucional, desenvolve-se não apenas uma capacidade de intervenção assaz incisiva da corte no processo de legitimação, mas ainda, de modo geral, uma inversão daquela situação descrita anteriormente em que havia um forte substrato político a legitimar a esfera jurídica reduzida a sua projeção. Através do processo de constitucionalização, agora será o judiciário a legitimar a esfera política em crise de auto-suficiência[...].O processo de constitucionalização, em outro modo, cria uma situação dinâmica em que a instância jurisdicional acumula um poder sempre maior de intervenção, mas também um poder sempre maior de concorrer, de maneira direta ou indireta, com a legitimação ou deslegitimação da política, por intermédio de standards constitucionais. Na incapacidade dos mecanismos representativos de assegurar suficiente legitimação das decisões sobre assuntos internos dos Estados, abrem-se novos espaços para a atuação da jurisdição”. FERRARESE, Maria Rosaria. Il Diritto al Presente. Globalizzazione e Tempo della Istituzione. Bologna: Mulino, 2002. P. 212-213.

452

vetor proeminente de atuação da jurisdição constitucional, e sob este parâmetro deve estar

adstrita para se contrapor às incertezas sociais. Como é a norma que detém maior

legitimidade, essa aceitação é transposta para as decisões judiciais que nela se amparam.

O grau de intensidade mais proeminente de legitimação da jurisdição constitucional,

indubitavelmente, é auferido pela concretização dos direitos fundamentais. Estes são as

normas que possuem maior aceitação no universo jurídico, constituindo-se em invariáveis

axiológicas que vão paulatinamente se sedimentando no inconsciente popular. Com a

finalidade de concretizar os direitos fundamentais, permite-se uma maior atuação das

decisões do Supremo Tribunal Federal, exorbitando a clássica e retrógrada barreira

construída pela separação dos três poderes.

A problemática de se definir o conteúdo dos direitos fundamentais é solucionada

com a determinação da sua “densidade suficiente” por parte do Supremo Tribunal Federal,

tomada por uma decisão judicial em sintonia com os anseios abrigados na sociedade e dentro

das condições materiais de determinada época histórica. A proteção dessa densidade

suficiente é realizada por meio do entrenchment dos direitos fundamentais, consolidando a

determinação da “densidade suficiente” por todos os meios jurídicos disponíveis, haja vista

o intenso teor de sua coercitividade, inclusive por intermédio de atividades legislativas.

O procedimento judicial, que regulamenta as decisões da jurisdição constitucional,

da mesma forma desempenha uma importante função no processo de legitimação, mas não

de forma autônoma, auto-referencial; ele é um instrumento imprescindível na medida em

que contribui para a concretização dos valores substanciais da Constituição. Como o

controle abstrato de constitucionalidade é objetivo, sem partes ou contenda, há necessidade

de se firmar no procedimento um caráter dialógico, o que possibilita que determinados

operadores jurídicos possam intervir no processo e forcejar um amplo debate público para o

incremento da legitimação das decisões judiciais.

Outros dois elementos de reforço da legitimação da jurisdição constitucional é a

transformação do Supremo Tribunal Federal em um tribunal constitucional, com todas as

suas prerrogativas, e a modificação na forma de nomeação dos seus ministros. A

transformação do STF em um tribunal constitucional colocá-lo-ia como um órgão

453

independente dos poderes estabelecidos, o que lhe daria uma maior imparcialidade e

diminuiria o número de processos posto à sua apreciação, já que deixaria de ser uma esfera

recursal em sentido amplo. A modificação na nomeação de seus ministros se daria sob o

primado da pluralidade, em que a escolha pertence aos poderes estabelecidos, da

representatividade, o que exige a formação de um amplo consenso em torno do indicado, e

de temporalidade de seus mandatos, com lapsos temporais fixados sem a possibilidade de

reeleição.

Bastante interessante é o contra-ponto, realizado por Maria Rosaria Ferrarese, à

assertiva de Tocqueville exposta no início do capítulo. O advento de uma sociedade

democrática surgida das ruínas de uma sociedade aristocrática, em virtude do processo de

globalização ensejado pela pós-modernidade, passou a ser assegurado por uma elite de

caráter “aristocrático”, a jurisdição constitucional.602 Ou seja, o órgão que exerce a

jurisdição constitucional, no caso brasileiro o Supremo Tribunal Federal, é formado por

membros que não foram escolhidos pelo povo, e em diversas ocasiões, tem que tomar

decisões contrárias à maioria da população para assegurar os mandamentos constitucionais,

principalmente para defender os direitos fundamentais, e os seus ministros são chamados a

exercer a sublime missão de garantir o regime democrático e o primado da Constituição.

Esse é o signo que marca os contornos da construção de uma nova estrutura política, que

tem à frente o grande desafio de criar um efetivo Estado Democrático Social de Direito.

602 FERRARESE, Maria Rosaria. Il Diritto al Presente. Globalizzazione e Tempo della Istituzione. Bologna: Mulino, 2002. P. 192.

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