juliana santana de almeidarepositorio.uft.edu.br/bitstream/11612/519/1/juliana...3.b.1) desejos 54...
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Juliana Santana de Almeida
A RACIONALIDADE DAS EMOCcedilOtildeES EM
ARISTOacuteTELES
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia do Centro de
Filosofia e Ciecircncias Humanas da
Universidade Federal de Santa
Catarina como requisito parcial para
obtenccedilatildeo do tiacutetulo de doutora em
filosofia
Aacuterea de concentraccedilatildeo Eacutetica e Poliacutetica
Orientadora Profa Dra Maria de
Lourdes Alves Borges
Coorientadora Profa Dra Marina dos
Santos
FLORIANOacutePOLIS
2017
Agradecimentos
Agradeccedilo agraves professoras Maria de Lourdes Borges e Marina dos Santos
pelas orientaccedilotildees Agradeccedilo aos professores Maacuterio Nogueira e Maria
Aparecida de Oliveira pelo apoio
Agradeccedilo aos amigos Clarissa Ayres Mendes Giuliano Orsi Catherinne
Melo Alves Suecircnia Mendes e Ruacutebia Oliveira que tiveram papel
indispensaacutevel nessa etapa de vida e pesquisa Agradeccedilo Marisa e Cauatilde
famiacutelia
Agradeccedilo ao Alex pela companhia paciecircncia e compreensatildeo
Resumo
A tese trataraacute a possibilidade de educaccedilatildeo das emoccedilotildees existente graccedilas
agrave racionalidade apresentada em sua natureza e nas emoccedilotildees educadas
moralmente O estudo seraacute feito a partir das propostas da Eacutetica
Nicomaqueia recorrendo quando necessaacuterio ao De anima agrave Retoacuterica e
agrave Poeacutetica textos que dedicaram atenccedilatildeo especial ao assunto Para
defender essas propostas a investigaccedilatildeo busca compreender aquilo que
Aristoacuteteles entende por emoccedilatildeo partindo do Livro I da EN que indicaraacute
a possibilidade da capacidade desiderativa ouvir a razatildeo Com isso
percebemos que Aristoacuteteles natildeo pretende excluir os elementos natildeo
racionais da vida moral estando mais preocupado em encontrar formas
capazes de conciliar as capacidades aniacutemicas e de sentir emoccedilotildees com
as coisas certas nos momentos convenientes em direccedilatildeo a quecirc e a quem
eacute adequado Essa interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel porque o filoacutesofo compreende
a alma como algo composto por capacidades natildeo seccionadas pondo as
emoccedilotildees que satildeo da alccedilada do desiderativo desde seu iniacutecio em
contato com a capacidade racional da alma Esta uacuteltima capacidade
indica os motivos para se emocionar mas igualmente propotildee ao homem
educado moralmente uma forma moderada de emoccedilatildeo que lhe permitiraacute
levar uma vida proacutepria ao homem Tal vida agrave qual eacute imprescindiacutevel a
eupraxiacutea soacute eacute alcanccedilada com o apoio das virtudes Por isso eacute necessaacuterio
entender o que Aristoacuteteles propotildee como virtude e por que a relaciona
com a emoccedilatildeo a partir do Livro II da EN Tal estudo permite dar
continuidade agrave investigaccedilatildeo acerca das capacidades da alma humana
sugeridas por EN I 13 texto que apresenta a divisatildeo das virtudes
conforme capacidades da alma em morais e intelectuais As virtudes
configuram-se como melhor estado possiacutevel para cada capacidade da
alma sendo assunto imprescindiacutevel agrave pesquisa proposta No final da
exposiccedilatildeo da EN a alternativa de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma
forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica parece
destoar das propostas de nosso estudo Natildeo obstante o proacuteprio Livro X
traz argumentos que permitem manter a leitura da melhor forma de vida
possiacutevel ao homem ou seja de sua funccedilatildeo proacutepria como uma vida na
poacutelis que conjuga o bom exerciacutecio de todas as suas capacidades
Interpretaccedilatildeo viaacutevel pela apresentaccedilatildeo de faculdades racionais
encadeadas que podem tocar a emoccedilatildeo desde seu despertar ateacute quando
forem moderadas com o auxiacutelio da razatildeo praacutetica Contato que seraacute
facilitado pelos instrumentos aos quais os cidadatildeos podem recorrer para
garantir a chance de bem se emocionar a fim de serem virtuosos e
felizes vivendo em comunidade
Palavras-chave Emoccedilatildeo Razatildeo Virtude Felicidade
Abstract
The thesis will deal with the possibility to educate the emotions because
the rationality presented in its nature and in the morally educated
emotions The study will be based on the proposals of Nicomachean
Ethics using when necessary the De anima the Rhetoric and the
Poetics texts that have given special attention to the subject To defend
these proposals the research seeks to understand what Aristotle
understands by emotion starting from Book I of NE which will indicate
the possibility of the desiderative capacity to hear reason Because of
this we realize that Aristotle does not intend to exclude the non-rational
elements of the moral life being more concerned to find ways that
reconcile the psychic capacities and to feel emotions with the right
things in the convenient moments towards what and to whom it is
appropriate This interpretation is possible because the philosopher
understands the soul as something composed of connected capacities
putting the emotions which are from the domain of the desiderative
from its beginning in contact with the rational capacity of the soul This
last ability indicates the reasons for the corret emotion but also
proposes to the man morally educated a moderate form of emotion that
will allow him to lead anapproprieted life Such a life identified with
eupraxiacutea is only achieved with the support of the virtues Therefore it
is necessary to understand what Aristotle proposes as virtue and why it
relates it to emotion from Book II of NE This study allows us to
continue the investigation of the human soul capacities suggested by
ENI 13 a text that presents the division of the virtues according to the
souls capacities into moral and intellectual virtues The virtues are the
best possible state for each capacity of the soul being essential subject
to the proposed research At the end of the NE exposition the alternative
of interpreting eudaimōniacutea as a life totally dedicated to theoretical
contemplation seems to beadequate to the proposals of our study
Nevertheless Book X itself contains arguments that allow us to keep
understanding the best way of life possible for man that is his own
function as a life in the poacutelis which combines the good exercise of all
his capacities Interpretation viable by the presentation of rational
chained faculties that can touch the emotion from its awakening to
when they are moderated with the aid of practical reason Contact that
will be facilitated by the instruments that the citizens can use to
guarantee the chance of feel appropriatly in order to be virtuous and
happy living in community
Key-words Emotion Reason Virtue Happiness
Abreviaccedilotildees
Obras de Aristoacuteteles
Poet - Poeacutetica
Top ndash Toacutepicos
DA ndash De Anima
MA ndash Motu Animalium
Met ndash Metafiacutesica
EN ndash Eacutetica a Nicocircmaco
EE ndash Eacutetica a Eudemo
Pol ndash Poliacutetica
Ret ndash Retoacuterica
Obra de Platatildeo
Rep - Repuacuteblica
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo
17
Capiacutetulo I - A emoccedilatildeo e suas
implicaccedilotildees na vida feliz
25
1 Primeiros apontamentos
25
2 Funccedilatildeo proacutepria ao homem
27
3 EN I 13 a alma humana e a
emoccedilatildeo
39
3a) Capacidades da alma
43
3b) A capacidade desiderativa da
alma as accedilotildees e as emoccedilotildees na
vida feliz
50
3b1) Desejos
54
3b2) Os desejos menos racionais
56
3b3 O desejo mais racional
63
3b4) Desejo e accedilatildeo rumo agrave accedilatildeo
boa moralmente
66
4 Em busca da definiccedilatildeo
de emoccedilatildeo em Aristoacuteteles
72
4a) Alma corpo e emoccedilotildees
interpretadas a partir de EN I com
o auxiacutelio do DA da Rhet e da
Poet
78
5 A emoccedilatildeo
90
Capiacutetulo II - Virtude como
possibilidade de acordo entre
razatildeo e emoccedilatildeo
93
1 Virtude completa virtudes
virtude moral
93
2 A virtude moral
99
2a) Caraacuteter tautoloacutegico ou trivial
da doutrina da virtude moral como
mediania
102
2b) Exemplo da viabilidade da
virtude moral como mediania nas
emoccedilotildees a virtude particular da
coragem e o medo
111
2c) A forccedila do haacutebito para o
correto se emocionar
117
2d) Virtude voluntaacuteria diante das
circunstacircncias e responsabilidade
121
3 Metriopaacutethēia o ideal de
emoccedilatildeo para a vida virtuosa
125
4 Virtudes intelectuais satildeo
necessaacuterias agraves virtudes morais e
para a ldquoboa formardquo das
emoccedilotildees
133
4a) A prudecircncia
135
4b) Deliberaccedilatildeo
138
4c) Escolha deliberada
140
4d) Prudecircncia deliberaccedilatildeo
escolha deliberada e sua relaccedilatildeo
com o particular e o universal
142
5 Virtude natural e virtude em
sentido estrito
148
Capiacutetulo III -
A racionalidade das emoccedilotildees
153
1 Eudaiacutemōniacutea vida dedicada agrave
atividade racional (EN X)
153
2 A racionalidade das emoccedilotildees
interpretaccedilotildees desde EN I agraves
luzes do De Anima
157
2 a) Um quecirc ou o quecirc de
racionalidade nas emoccedilotildees
161
2 b) Percepccedilatildeo
162
2 c) Imaginaccedilatildeo
170
2 d) Pensamentos
173
2 e) Intelecto praacutetico 177
2 f) Opiniatildeo
183
3 O acordo entre a razatildeo e as
emoccedilotildees a educaccedilatildeo moral e os
instrumentos de modificaccedilatildeo da
emoccedilatildeo
187
3 a) Educaccedilatildeo haacutebito e lei para a virtude
187
3 b) A retoacuterica como instrumento
de mudanccedila nas emoccedilotildees
193
3 c) A poesia como facilitadora
da educaccedilatildeo moral
201
Conclusatildeo
213
Referecircncias
221
17
Introduccedilatildeo
Na histoacuteria da filosofia o entendimento acerca do que sejam as
emoccedilotildees (paacutethē) varia Aristoacuteteles1 se viu em meio a posturas diversas
sobre o assunto antes e depois de suas teorias apareceram fortes
oposiccedilotildees agrave intervenccedilatildeo das emoccedilotildees na vida moral2 Provavelmente
esse tipo de apreciaccedilatildeo seja o motivo para as inuacutemeras consideraccedilotildees
cautelosas que o filoacutesofo faz sobre o paacutethos em sua proposta eacutetica
entretanto Aristoacuteteles natildeo se mostra um pensador desfavoraacutevel agrave
participaccedilatildeo do emocional na vida humana feliz mas mesmo nas teorias
do filoacutesofo grego o tema das emoccedilotildees pode causar embaraccedilos Para
exemplificar o termo paacutethē que ora traduzimos por ldquoemoccedilotildeesrdquo pode
admitir sentidos mais amplos que aquele atribuiacutedo hoje em dia agrave palavra
emoccedilatildeo razatildeo pela qual tambeacutem se utilizam para traduzi-lo palavras
como ldquopaixotildeesrdquo ou ldquoafecccedilotildeesrdquo dentre outras Como observa Konstan
(2006 p IX et seq) em relaccedilatildeo agrave Liacutengua Inglesa atual haacute uma
diferenccedila consideraacutevel entre aquilo que os gregos dos tempos do
1 Observa Zingano que segundo Aristoacuteteles o paacutethos natildeo precisa ser extirpado
mas deve receber uma justa medida e isso indica a necessidade de ldquoexaminaacute-lo
mediante uma deliberaccedilatildeo pois a virtude eacute uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha
deliberadardquo (ZINGANO 2007 p 165) Tal tese que confirmaremos mais
adiante considera central a teoria das emoccedilotildees proposta por Aristoacuteteles 2 Tal pensamento afirma Sorabji (2000 p 181 traduccedilatildeo nossa cf tambeacutem p 7
et seq) eacute defendido por Crisipo embora natildeo por todos os estoacuteicos ldquoMas o que
eu quero considerar neste capiacutetulo eacute a tese muito mais radical de Crisipo de que
quase todas elas devem ser erradicadas Que razotildees poderia haver para tantordquo
Contudo as opiniotildees sobre a aceitaccedilatildeo estoacuteica da erradicaccedilatildeo da emoccedilatildeo
parecem divergir Enquanto os manuais de Histoacuteria da Filosofia como aqueles
que foram escritos por Kenny (2011 p 328) e Reale (2003 p 292) parecem
afirmar que todos os estoacuteicos concordavam com a necessidade de erradicaccedilatildeo
das emoccedilotildees haacute estudos mais minuciosos sobre o assunto que parecem
discordar dessa proposta e que trazem motivos significativos para tal
discordacircncia Esse eacute o caso da tese de doutorado defendida por Santos na
UNICAMP em 2008 Com relaccedilatildeo a esse tema vale tambeacutem conferir a
proposta do proacuteprio Sorabji que nos apresenta entendimentos variados para o
termo apaacutethēia trazidos pelos estoicos (ANTISSERI D REALE G Histoacuteria
da filosofia Vol 1 Satildeo Paulo Paulus 2003 KENNY A Uma nova histoacuteria
da filosofia Vol 1 Satildeo Paulo Loyola 2011 SANTOS R A Sobre a doutrina
das paixotildees no estoicismo 2008 100f Tese (Doutorado em Filosofia) ndash
UNICAMP Campinas 2008 Disponiacutevel em
lthttpwwwbibliotecadigitalunicampbrdocumentcode=vtls000439214ampfd=
ygt Acesso em 22 de jun de 2015)
18
Estagirita consideravam ldquoemoccedilatildeordquo (paacutethos traduzido pelo estudioso por
emotion) e o que consideramos emoccedilatildeo hoje O proacuteprio Aristoacuteteles nos
leva a admitir isso com o que apresenta em Metafiacutesica ao trazer quatro
possibilidades de entendimento do termo em questatildeo
(1) Afecccedilotildees significam em um primeiro
sentido uma qualidade segundo a qual algo pode
se alterar por exemplo o branco e o preto o doce
e o amargo o peso e a leveza e todas as
qualidades deste tipo
(2) Noutro sentido afecccedilatildeo significa a atuaccedilatildeo
dessas alteraccedilotildees isto eacute as alteraccedilotildees que estatildeo
em ato
(3) Ademais dizem-se afecccedilotildees especialmente
as alteraccedilotildees e mudanccedilas danosas e sobretudo os
danos que produzem dor
(4) Enfim chamam-se afecccedilotildees as grandes
calamidades e as grandes dores (Met Δ 1022b15-
21)3
Zingano (2007 p 147-148) traz consideraccedilotildees interessantes
sobre este trecho e suas possibilidades de interpretaccedilatildeo em seus Estudos
de Eacutetica Antiga O estudioso parece optar por entender paacutethos no
sentido de emoccedilatildeo em termos eacuteticos como um ser afetado ou uma
alteraccedilatildeo que diz respeito agrave natureza praacutetica do agente uma afecccedilatildeo
que eacute fonte de accedilatildeo devido a algo provocado por outrem Algumas
dessas possibilidades interpretativas (que levam a diferentes escolhas de
traduccedilatildeo) satildeo empregadas nos textos que aqui estudaremos
Para citar um exemplo em nota agrave traduccedilatildeo do De Anima feita por
Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis a tradutora afirma haver trecircs significados
nesse tratado para a expressatildeo tagrave paacutethē que traduz por ldquoas afecccedilotildeesrdquo
(REIS 2006 p 150) O significado do termo varia do sentido geral de
atributos e predicados a ldquoformas de passividade e de oposiccedilatildeo agraves
atividadesrdquo e a ldquoemoccedilotildeesrdquo contudo enfocaremos aqui as acepccedilotildees que
3 Traduccedilatildeo de Marcelo Perini (2010) no original Πάθος λέγεται ἕνα μὲν
τρόπον ποιότης καθ ἣν ἀλλοιοῦσθαι ἐνδέχεται οἷον τὸ λευκὸν καὶ τὸ μέλαν
καὶ γλυκὺ καὶ πικρόν καὶ βαρύτης καὶ κουφότης καὶ ὅσα ἄλλα τοιαῦτα ἕνα δὲ
αἱ τούτων ἐνέργειαι καὶ ἀλλοιώσεις ἤδη ἔτι τούτων μᾶλλον αἱ βλαβεραὶ
ἀλλοιώσεις καὶ κινήσεις καὶ μάλιστα αἱ λυπηραὶ βλάβαι ἔτι τὰ μεγέθη τῶν
συμφορῶν καὶ λυπηρῶν πάθη λέγεται
19
tocam nosso objeto de estudo a saber aquelas paacutethē da relaccedilatildeo que
aparece especialmente na Eacutetica Nicomaqueia (II 3 1105b19-22) mas
que igualmente se repete nas listas apresentadas na Retoacuterica (II 2
1378a19-22) e no De Anima (I 1 403a16-18) aleacutem de contemplarem as
duas ldquoemoccedilotildeesrdquo descritas na Poeacutetica raiva arrojo inveja medo
alegria amizade oacutedio anelo emulaccedilatildeo piedade calma inimizade
desvergonha amabilidade indignaccedilatildeo e maacutegoa Esses uacuteltimos textos
viratildeo em nosso auxiacutelio quando se apresentarem instrumentos eficazes agrave
compreensatildeo de algumas questotildees suscitadas pela EN a respeito da
nossa investigaccedilatildeo que versaraacute sobre a possibilidade de mudanccedila ou
educaccedilatildeo das emoccedilotildees graccedilas agrave racionalidade apresentada em sua
natureza e que tecircm lugar ou influecircncia nas emoccedilotildees educadas
moralmente entendimento possiacutevel a partir da concepccedilatildeo de uma alma
una com capacidades variadas mas conectadas entre si
A partir das propostas da Eacutetica Nicomaqueia e dos textos que
seratildeo auxiliares interpretativos de suas teorias salientamos a opccedilatildeo pelo
direcionamento do estudo do termo no sentido em que ele pode ser
traduzido por ldquoemoccedilatildeordquo Natildeo usaremos a palavra paixatildeo porque hoje
em dia como ressaltam Sorabji (2002 p 7) e Zingano (2007 p 148)
pode restringir o entendimento do leitor e levaacute-lo a pensar que se tratem
apenas de emoccedilotildees mais fortes Por conseguinte justificamos nossa
opccedilatildeo por comeccedilar o estudo ora apresentado em busca de uma
compreensatildeo melhor e maior daquilo que Aristoacuteteles propotildee ser a
emoccedilatildeo partindo do Livro I da EN de onde retiramos o pensamento que
permearaacute toda a nossa pesquisa as emoccedilotildees satildeo sofridas
concomitantemente por corpo e alma e satildeo educaacuteveis por serem de
certo modo racionais caracteriacutestica devida agrave unicidade da alma
humana
Esse tipo de entendimento das emoccedilotildees tem por base o projeto
filosoacutefico de Aristoacuteteles que embora apresente diversos tratados
dedicados a diversos objetos de pesquisa com abordagem conforme o
objeto em anaacutelise faz com que as obras se sustentem entre si Tal
entendimento permitiraacute tambeacutem respondermos agrave questatildeo norteadora
desta tese como mudar as emoccedilotildees educando-as conforme as
solicitaccedilotildees da razatildeo praacutetica A percepccedilatildeo de que a pesquisa
empreendida por Aristoacuteteles eacute uma obra com coerecircncia interna permite
leituras de filoacutesofos contemporacircneos como Martha Nussbaum que por
vezes recorre a mais de um tratado aristoteacutelico para defender suas
interpretaccedilotildees Esse olhar para o conjunto da obra de Aristoacuteteles
igualmente nos conduz a leituras como aquelas feitas por Zingano e
Sorabji ao perceberem que Aristoacuteteles natildeo exclui conteuacutedos
20
emocionais mas que estaacute mais preocupado em encontrar formas capazes
de conciliar as capacidades aniacutemicas e com isso sentir emoccedilotildees com as
coisas certas nos momentos convenientes em direccedilatildeo a quecirc e a quem eacute
adequado A essas propostas eacute imprescindiacutevel acrescentar aquelas que
compreendem a alma descrita pelo filoacutesofo como algo composto por
partes natildeo seccionadas para que possamos defender emoccedilotildees que desde
seu iniacutecio tecircm contato com a capacidade racional da alma que indica os
motivos para se emocionar Essa capacidade racional igualmente propotildee
ao homem educado moralmente uma forma moderada de emoccedilatildeo que
lhe permitiraacute levar uma vida em conformidade com a virtude com a
razatildeo como um todo e por isso feliz
Para podermos sustentar essas propostas iniciaremos nossa tese
com um estudo sobre a natureza das emoccedilotildees buscando entender qual a
natureza da emoccedilatildeo Qual seu papel na teoria da felicidade de
Aristoacuteteles Para responder a essas perguntas procuraremos
compreender o argumento da funccedilatildeo humana e sua relaccedilatildeo com o fim
proposto agrave vida do homem Tal caminho nos indicaraacute a necessidade de
definir o lugar das emoccedilotildees na vida feliz e nos encaminharaacute agrave discussatildeo
da relaccedilatildeo imprescindiacutevel entre emoccedilotildees e a virtude considerada
completa a virtude intelectual a virtude moral e suas formas
particulares Essa pesquisa encaminharaacute nossa discussatildeo agrave anaacutelise dos
tipos de vida que se candidatam ao cargo de felicidade e ao
questionamento de tal vida ser definida por Aristoacuteteles como a
existecircncia dedicada agrave contemplaccedilatildeo intelectual filosoacutefica (discussatildeo que
somente encontraraacute seu desfecho com o nosso terceiro capiacutetulo) O
primeiro capiacutetulo prosseguiraacute com a discussatildeo apresentada em EN I 13 a
respeito da alma humana e de suas capacidades Esse estudo seraacute
necessaacuterio pois eacute a partir da proposta da existecircncia de capacidades
diversas na alma que poderemos inquirir acerca dos diferentes tipos de
vida e que provavelmente possamos indicar um deles como a vida mais
propriamente humana
Nesse ponto da EN Aristoacuteteles nos apresenta uma alma bipartida
que comporta as emoccedilotildees em sua capacidade natildeo racional capacidade
esta que no entanto apresenta-se como apta a ouvir e obedecer agrave razatildeo
primeiro sinal da possibilidade de defesa da racionalidade e
educabilidade das emoccedilotildees Por esse motivo julgamos pertinente
desenvolver na medida em que contemple nossos interesses um
pequeno estudo a respeito da alma humana buscando para essa teoria o
auxiacutelio do tratado sobre a alma a fim de obter maior clareza quanto agrave
questatildeo O estudo do De Anima permitiraacute reforccedilar uma teoria da alma
como um todo composto por partes que mantecircm certo contato bem
21
como a teoria hilemoacutefica a respeito do homem que comeccedila a demonstrar
seus contornos ainda com o assunto da funccedilatildeo proacutepria ao homem na EN
A defesa de uma psychḗ composta por capacidades imprescindivelmente
correlacionadas e que tem suas funccedilotildees manifestas mesmo que
imperceptivelmente no corpo nos permitiraacute tratar as emoccedilotildees como
afecccedilotildees do conjunto corpoalma Tudo isso soacute seraacute possiacutevel se
conseguirmos sustentar aleacutem de uma teoria da unidade da alma uma
teoria que proponha a capacidade da alma responsaacutevel pelas emoccedilotildees a
desiderativa como um todo coeso embora composta por diferentes
tipos de desejos conforme seus objetos e suas relaccedilotildees com a razatildeo
Portanto deveremos apreciar brevemente as propostas de Aristoacuteteles
acerca da capacidade desiderativa desde que o desejo e seus tipos
igualmente satildeo considerados paacutethē Defender uma capacidade
desiderativa unificada nos permitiraacute defender tambeacutem uma alma
unificada e emoccedilotildees capazes de concordar com as solicitaccedilotildees da
capacidade racional ao menos em sua vertente praacutetica Poderemos
entender que haacute desejos mais ou menos aptos a obedecer agrave razatildeo assim
como seratildeo igualmente as emoccedilotildees diretamente a eles relacionadas Por
conseguinte a possibilidade de educaccedilatildeo que veremos se abrir agrave
capacidade desiderativa como um todo indicaraacute a possibilidade de
propor emoccedilotildees capazes de serem educadas conforme a razatildeo teoria
que defenderemos mais detalhadamente no terceiro capiacutetulo Para tal
seraacute necessaacuterio indicarmos como essa abertura dos desejos agrave razatildeo
permitiraacute ao homem agir bem diferenciando accedilotildees e atividades de
simples movimentos fiacutesicos sendo as primeiras intimamente
relacionadas ao desejo pelos fins e por isso agrave possibilidade de apreciaccedilatildeo
eacutetica
Com isso identificaremos a eupraxiacutea como elemente
imprescindiacutevel agrave vida feliz justificando todo o percurso argumentativo
do primeiro capiacutetulo desde a proposta de anaacutelise da funccedilatildeo humana que
leva agrave consideraccedilatildeo de diferentes tipos de vida existentes em
conformidade com as diferentes capacidades aniacutemicas que em boa
associaccedilatildeo permitiratildeo a real felicidade Esta seraacute compreendida como
um tipo excelente de desempenho das accedilotildees e atividades adequadas ao
homem e somente ao homem mas que dependem igualmente da boa
condiccedilatildeo emocional Por isso seraacute necessaacuterio para desfecho do
primeiro momento de nossa pesquisa buscar compreender o que
Aristoacuteteles descreve como emoccedilatildeo e esboccedilar um conceito de emoccedilatildeo
com apoio das sugestotildees dos quatro tratados abordados nesse estudo
Essa proposta permitiraacute que reforcemos as teorias hilemoacuterficas que
descreveratildeo o paacutethos aristoteacutelico como possiacutevel ouvinte da
22
racionalidade desde o momento em que eacute despertado Permitiraacute ainda
que atentemos agrave obrigatoriedade de tratar as virtudes jaacute que se
mostraratildeo dependentes de emoccedilotildees educadas e que natildeo contrastem com
a execuccedilatildeo excelente das atividades humanas que se coadunam em
felicidade
A fim de obtermos sucesso na defesa da educabilidade das
emoccedilotildees devida agrave sua racionalidade - tendo em vista o que nos foi
proposto pelo argumento da funccedilatildeo humana pela proposta de uma
capacidade natildeo racional da alma que se apresenta como capaz de ouvir a
capacidade racional e das relaccedilotildees das emoccedilotildees com as virtudes
mencionadas em meio a esses assuntos - julgamos necessaacuterio dedicar o
segundo capiacutetulo de nossa tese ao estudo da relaccedilatildeo das emoccedilotildees com as
virtudes Iniciamos esse momento da pesquisa agrave procura de
compreender melhor e apenas na medida das necessidades de nossa
pesquisa o que Aristoacuteteles propotildee como virtude e por que a relaciona
com a emoccedilatildeo a partir do Livro II da EN O estudo nos conduziraacute a
diferentes tratamentos da virtude apreciaremos a virtude entendida de
um modo geral ou em sua completude como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave
felicidade estudaremos os componentes de tal virtude completa
entendidos como a virtude moral as formas particulares da virtude
moral e a virtude intelectual Tal estudo nos permitiraacute dar continuidade
agrave investigaccedilatildeo acerca das capacidades da alma humana sugeridas por EN
I 13 texto que apresenta a divisatildeo das virtudes conforme ldquopartesrdquo da
alma em virtudes morais e intelectuais Para reforccedilar o que
constataremos com o estudo da virtude moral chamaremos em auxiacutelio o
exemplo da coragem prosseguindo pelo percurso argumentativo da
discussatildeo feita por Aristoacuteteles na medida do possiacutevel dos Livros III a V
da EN que proporaacute as virtudes morais particulares como concretizaccedilatildeo
do melhor estado possiacutevel para cada funccedilatildeo da capacidade desiderativa
do homem Esse caminho nos permitiraacute sair de possiacuteveis embaraccedilos que
cercam a interpretaccedilatildeo da virtude moral como boa medida nas emoccedilotildees
Esse estudo nos apresentaraacute a ideia de virtude como boa medida
nas emoccedilotildees alcanccedilada por meio da habituaccedilatildeo agrave praacutetica de accedilotildees
moralmente corretas A visita a essa forma de interpretaccedilatildeo eacute
imprescindiacutevel a fim de compreender a possibilidade de se educar ou
mudar as emoccedilotildees favoravelmente ao bem humano A discussatildeo da
virtude moral nos apresentaraacute seu caraacuteter voluntaacuterio bem como
apresentaraacute o homem virtuoso como responsaacutevel por suas accedilotildees
especialmente das accedilotildees que desempenha adequadamente cumprindo
aquilo que se entende por sua funccedilatildeo Com isso alcanccedilaremos a
proposta da metriopaacutethēia ideal de emoccedilatildeo concorde com a capacidade
23
racional em sua face praacutetica (e talvez tambeacutem com sua face teoacuterica)
mas nos depararemos com a impossibilidade de todas as emoccedilotildees serem
moderadas Embora natildeo seja uma proposta de Aristoacuteteles a ideia da
metriopaacutethēia se nos apresentaraacute como melhor forma de compreender as
emoccedilotildees adequadas agrave boa medida As emoccedilotildees moderadas possibilitam
as virtudes morais mas nos indicaratildeo igualmente a necessidade ao
menos da virtude intelectual da prudecircncia para que tais virtudes venham
a efetivar-se
O estudo da prudecircncia e de seus componentes - deliberaccedilatildeo
escolha deliberada e accedilatildeo moralmente adequada - nos permitiraacute entender
melhor a relaccedilatildeo entre as capacidades da alma Se as virtudes morais
podem ser entendidas como melhor desempenho de certas capacidades
humanas que somente se concretizam diante de emoccedilotildees que cedem aos
conselhos da razatildeo ratificaremos nossa interpretaccedilatildeo acerca de uma
alma composta por faculdades em acordo Sendo a prudecircncia uma
virtude intelectual indispensaacutevel agrave vida feliz identificaremos a
necessidade de tratar de seus objetos Por isso necessitaremos discutir
sua relaccedilatildeo com coisas particulares e mutaacuteveis proacuteprias ao acircmbito da
prāxis mas tambeacutem de seu direcionamento para os assuntos
considerados universais dentre os quais encontramos a proposta
aristoteacutelica da felicidade o bem norteador de toda accedilatildeo que possa ser
considerada moralmente correta
A discussatildeo da relaccedilatildeo entre a prudecircncia particulares e universais
indica a unidade da alma identificada a partir dos objetos
compartilhados pela capacidade uacutenica do intelecto em seus aspectos
praacutetico e teoacuterico Esses assuntos iniciados por nossa anaacutelise dos
primeiros Livros da EN nos levaratildeo pelas questotildees sugeridas pelo Livro
VI que nos manteratildeo em contato direto com as discussotildees sobre a alma
Por isso a finalizaccedilatildeo dessa parte de nosso estudo seraacute feita com a
relaccedilatildeo apresentada ao final do Livro mencionado entre virtude natural
e virtude em sentido estrito Julgamos que tal questatildeo seraacute de grande
valia para o entendimento daquilo que Aristoacuteteles propocircs como virtude
completa relacionada como se mostraraacute com a funccedilatildeo proacutepria ao
homem e agrave praacutetica de boas accedilotildees propostas por um desejo adequado agrave
razatildeo bem como por emoccedilotildees doacuteceis agrave razatildeo Essa possiacutevel docilidade
demandaraacute pesquisar a racionalidade implicada nas emoccedilotildees
Para garantir essas interpretaccedilotildees prosseguiremos com nossa
anaacutelise ateacute o final da exposiccedilatildeo da EN momento que boa parte das
interpretaccedilotildees corriqueiras do livro X parecem se distanciar de todas as
propostas que defenderemos ao longo de nossa tese Em EN X nos
depararemos como a alternativa de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma
24
forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica proposta que
a muitos soa como desfecho ideal das discussotildees iniciadas com o tratado
em questatildeo Natildeo obstante o proacuteprio Livro X nos encorajaraacute a manter a
leitura da melhor forma de vida possiacutevel ao homem ou seja de sua
funccedilatildeo proacutepria como uma vida na poacutelis que conjugue o bom exerciacutecio
de todas as suas capacidades aniacutemicas Essa interpretaccedilatildeo seraacute
viabilizada e reforccedilada pela apresentaccedilatildeo de faculdades racionais
encadeadas que podem tocar a emoccedilatildeo desde seu despertar ateacute quando
forem moderadas com o auxiacutelio da razatildeo praacutetica Essa leitura ganharaacute
apoio nos demais tratados estudados e em suas propostas sobre as
emoccedilotildees que nos indicaratildeo um amplo vocabulaacuterio relacionado tanto agraves
emoccedilotildees quanto agraves capacidades racionais da alma humana colocando
em cena novamente a ligaccedilatildeo das capacidades racional e natildeo racional da
alma
A apreciaccedilatildeo do mencionado vocabulaacuterio nos indicaraacute
(sub)capacidades da alma que atuam na emoccedilatildeo e nos encaminharaacute para
o desfecho de nossa pesquisa Estudaremos brevemente a percepccedilatildeo
sensiacutevel a imaginaccedilatildeo o intelecto e certos tipos de pensamento dentre
os quais poderemos localizar a opiniatildeo responsaacuteveis pelo despertar de
boa parte das emoccedilotildees ou que se envolveratildeo com a educaccedilatildeo moral
emocional Novamente as consultas ao De Anima agrave Retoacuterica e agrave Poeacutetica
se mostraratildeo fonte indispensaacutevel agrave defesa de nossa tese acerca da
educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua implicaccedilatildeo com a razatildeo e com
elementos de razatildeo devido agrave proacutepria natureza aniacutemica do homem Estes
tratados igualmente nos permitiratildeo investigar oportunidades para
direcionar as emoccedilotildees de modo que consigam ouvir as propostas das
diversas formas de razatildeo existentes Por fim apresentaremos os
instrumentos aos quais os cidadatildeos podem recorrer para garantir a
chance de bem se emocionar a fim de se tornarem virtuosos e felizes
naquele que identificaremos como meio mais propiacutecio ao florescimento
humano a poacutelis
25
Capiacutetulo I
A emoccedilatildeo e suas implicaccedilotildees na vida feliz
1 Primeiros apontamentos
A leitura da EN nos traz uma seacuterie de indagaccedilotildees quanto agrave
natureza das emoccedilotildees A lista de tais questotildees pode comeccedilar pela
afirmaccedilatildeo que agraves vezes aparece nesse texto segundo a qual as emoccedilotildees
satildeo natildeo racionais Por esse motivo talvez tenhamos a impressatildeo
frequente de que o filoacutesofo em alguma medida natildeo seja favoraacutevel agrave
intervenccedilatildeo das emoccedilotildees nas accedilotildees consideradas boas moralmente De
acordo com a proposta de uma alma que ldquotem uma parte racional e uma
irracionalrdquo (EN I 13 1102a27-28)4 as emoccedilotildees tecircm por sede a
capacidade natildeo racional da alma a desiderativa de onde viriam
igualmente as suas relaccedilotildees com certos prazeres e dores Tais
associaccedilotildees com outros elementos que tambeacutem natildeo costumavam receber
apreciaccedilatildeo favoraacutevel em questotildees morais parecem agravar a situaccedilatildeo das
emoccedilotildees e provavelmente por isso sejam feitas afirmaccedilotildees que parecem
colocar a emoccedilatildeo como algo arredio aos ditames da razatildeo sendo mesmo
capaz de sobrepor-se a estes (EN IX 8 1168b29-35 1169a1-8)5 Vaacuterias
assertivas que apresentam um tom de advertecircncia quanto aos perigos de
se entregar agraves emoccedilotildees aparecem ao longo do texto
A primeira menccedilatildeo que o tratado faz ao assunto pode confirmar
isso no Livro I da EN Aristoacuteteles explica o motivo pelo qual os jovens
natildeo tiram bom proveito das liccedilotildees sobre poliacutetica primeiro natildeo tecircm
experiecircncia dos fatos da vida em torno dos quais giram as discussotildees
dessa natureza segundo os jovens tendem a seguir suas paixotildees (EN I 1
1095a5) Por isso o estudo da ciecircncia poliacutetica lhes seraacute vatildeo jaacute que o fim
que se almeja com essa mateacuteria eacute a accedilatildeo e natildeo o conhecimento (EN I 1
1095a6) Essas falhas abrangem tanto aqueles que satildeo jovens em anos
quanto os que satildeo jovens em caraacuteter pois o defeito natildeo depende da
idade mas do modo de viver e seguir cada objetivo proposto pela
emoccedilatildeo (EN I 1 1095a9) ldquoA tais pessoas como aos incontinentes a
ciecircncia natildeo traz proveito algum mas aos que desejam e agem de acordo
4 Todas as traduccedilotildees da EN seratildeo feitas a partir da traduccedilatildeo francesa de J Tricot
(2012) com exceccedilatildeo dos trechos I 13 a III 8 que tecircm traduccedilatildeo de Zingano
(2008) no original οἷον τὸ μὲν ἄλογον αὐτῆς εἶναι τὸ δὲ λόγον ἔχον 5 O filoacutesofo parece expressar postura semelhante tambeacutem em EN 1106b35
1107a1-9 1097b35 1098a1-17 1168b34-35 1169a18 1177a12-18 1178a6-7
etc
26
com um princiacutepio racional o conhecimento desses assuntos faraacute grande
vantagemrdquo (EN I 1 1095a11-15)6 na distinccedilatildeo do que seja o bem
Por conseguinte em nada nos admiraria a proposta da melhor
vida possiacutevel como aquela guiada pela reta razatildeo A felicidade fim
(teacutelos) da vida humana seria descrita como uma atividade mas uma
atividade (eneacutergeia) realizada conforme o que manda a razatildeo Tal
atividade deve ser de acordo com o que eacute descrito como o que haacute de
melhor no homem e que o diferencia dos outros animais e das plantas
(EN I 6 1097b35 1098a1-5) Esse tipo de vida natildeo seria possiacutevel sem as
virtudes especialmente sem a virtude moral pois aleacutem de ser conforme
o que haacute de mais proacuteprio ao homem se isso fosse a razatildeo a vida boa
moralmente e feliz seria aquela que permitiria desempenhar da melhor
forma a funccedilatildeo humana e segundo Aristoacuteteles desempenhar bem sua
funccedilatildeo eacute ser virtuoso
Caso seja possiacutevel entender essa proposta como indicativo de que
o homem deva ouvir sua razatildeo a fim de possuir a mais excelente virtude
e a melhor vida precisamos ressaltar que Aristoacuteteles nos chama atenccedilatildeo
para que a razatildeo deva ser o guia ou deva ao menos estar presente em
todos os homens Natildeo conveacutem esquecer que no Livro X o filoacutesofo
afirmaraacute que tal possibilidade natildeo eacute a mais recorrente - embora devesse
ser - agrave vida humana comum Os homens em sua grande maioria natildeo
obedecem espontaneamente agrave razatildeo mesmo sendo capazes de fazecirc-lo
Por isso natildeo tendem a uma vida de pura contemplaccedilatildeo que na verdade
extrapolaria as possibilidades humanas Na maior parte das vezes os
elementos da capacidade natildeo racional da alma conduzem as accedilotildees
sendo necessaacuterio portanto buscar moderaacute-los para que haja excelecircncia
dessa capacidade e que se viva a vida propriamente humana7 Diante
dessa impossibilidade de a capacidade racional reger de modo exclusivo
a vida humana o que levaria o homem a desempenhar uma funccedilatildeo
6 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original τοῖς γὰρ τοιούτοις ἀνόνητος ἡ γνῶσις γίνεται καθάπερ τοῖς
ἀκρατέσιν τοῖς δὲ κατὰ λόγον τὰς ὀρέξεις ποιουμένοις καὶ πράττουσι
πολυωφελὲς ἂν εἴη τὸ περὶ τούτων εἰδέναι 7 Essa proposta eacute encontrada tambeacutem em Poliacutetica 1253a25-28 ldquoQue nessas
condiccedilotildees a cidade seja tambeacutem anterior naturalmente ao indiviacuteduo isso eacute
evidente se com efeito o indiviacuteduo tomado isoladamente eacute incapaz de bastar a
si mesmo seraacute por relaccedilatildeo agrave cidade como nos nossos outros exemplos as
partes satildeo em relaccedilatildeo ao todo Mas o homem que estaacute na incapacidade de ser
membro de uma comunidade ou que disso natildeo experimenta nada a necessidade
porque ele se basta a si mesmo natildeo faz em nada parte de uma cidade e por
consequecircncia eacute ou um bruto ou um deusrdquo
27
totalmente racional ou conforme a razatildeo como sua marca distintiva
cabe-nos questionar qual seria a funccedilatildeo proacutepria ao homem de acordo
com a EN
2 Funccedilatildeo proacutepria ao homem
Aristoacuteteles inaugura as discussotildees da EN afirmando que toda arte
bem como toda atividade tende a um fim ou bem Os bens podem ser
diferentes ou idecircnticos agraves suas fontes originadoras e por isso existem
tantos fins quanto haacute artes e atividades das quais satildeo provenientes
Ademais quando os bens satildeo identificados agraves atividades que os geram
estas satildeo consideradas mais excelentes que aquelas que natildeo se
identificam ao fim gerado ocasionando uma hierarquia que organiza
atividades e bens
Essas propostas abrem a discussatildeo sobre os fins e os meios para
alcanccedilaacute-los e nesse ponto logo no iniacutecio da EN o filoacutesofo nos informa
que haacute um fim maior desejado por si mesmo e em vista do qual todas as
demais coisas e bens satildeo buscados Essa delimitaccedilatildeo de um bem maior
ou supremo impede que a lista de bens existentes obedeccedila a uma
progressatildeo infinita Diante disso o filoacutesofo propotildee que o conhecimento
da natureza do bem supremo poderia colaborar com seu alcance jaacute que
uma procura eacute facilitada quando se conhece o que estaacute sendo procurado
Por isso a investigaccedilatildeo da EN a partir do Livro I 2 se direciona agrave
delimitaccedilatildeo do bem supremo e daquela ciecircncia que se dedicaria ao seu
estudo a poliacutetica teoria determinadora de tudo quanto seria preciso
saber para o bom andamento das questotildees de uma poacutelis A ciecircncia
poliacutetica determinaria aquilo que os cidadatildeos deveriam fazer e por isso
abrangeria todas as demais ciecircncias sendo arquitetocircnica responsaacutevel
pelo bem humano e mais importante pelo bem da poacutelis
Tendo em vista as constataccedilotildees feitas ateacute os Livros I 3-4
Aristoacuteteles pensa que deve estabelecer ao menos em linhas gerais a
verdade sobre o que eacute a felicidade pois todos sem exceccedilatildeo
identificam-na com um bem ou um fim inerente ao ser humano O passo
destaca a poliacutetica como a ciecircncia responsaacutevel por determinar tais
assuntos e por isso seria de grande auxiacutelio agraves pessoas que vivem agem e
desejam conforme a razatildeo ao mesmo tempo em que delimita o campo
de interesse da pesquisa em curso Seria tarefa de a poliacutetica definir
felicidade pois a despeito do consenso quanto ao que seria o melhor
fim e resultado da melhor accedilatildeo possiacutevel haveria vaacuterias formas de
conceber a felicidade e de entender quais seriam os modos de obtecirc-la
Os homens comuns pensariam que a felicidade seria o prazer ou a
28
riqueza ou as honras percepccedilatildeo diferenciada daquela tida pelos saacutebios
Chegariam mesmo a mudar de entendimento acerca da eudaiacutemōniacutea
conforme o tipo de vida que levassem
Quanto ao tipo de vida levada o Livro I 5 aponta trecircs formas
principais a serem analisadas a vida preocupada com a (1) obtenccedilatildeo de
prazer a vida (2) poliacutetica e a vida dada agrave (3) contemplaccedilatildeo filosoacutefica O
filoacutesofo explica que a maioria das pessoas identifica a felicidade com o
prazer e pouco mais adiante compara a vida escolhida pela multidatildeo
agravequela vida dos escravos e agrave qual chama bestial Em contrapartida a
opiniatildeo dos homens de gosto mais refinado bem como das pessoas que
satildeo mais ativas seria que a felicidade se resume agrave honra que
normalmente eacute entendida como fim da vida poliacutetica No entanto
Aristoacuteteles pensa que a honra natildeo poderia ser o fim buscado pelo
homem jaacute que dependeria mais de quem a conferiria que daqueles que a
mereceriam as honrarias poderiam ser retiradas de algueacutem ao contraacuterio
da felicidade Aleacutem disso o filoacutesofo nos conta que as honras seriam
procuradas em vista da virtude sendo que talvez a virtude e natildeo a
honra fosse o fim procurado pela vida poliacutetica Contudo entende que a
virtude igualmente natildeo eacute a felicidade pois um homem pode ser
considerado virtuoso por exemplo quando dorme e quando eacute
desafortunado mas natildeo eacute possiacutevel ser feliz no infortuacutenio Na sequecircncia
da exposiccedilatildeo Aristoacuteteles afirma que examinaraacute a vida contemplativa em
outro momento (Livro X) e acrescenta agrave sua anaacutelise o tratamento da vida
dedicada ao ganho percebendo que a riqueza tambeacutem natildeo contemplaria
suas intenccedilotildees quanto agravequilo que seria a eudaiacutemōniacutea A riqueza seria uacutetil
a uma vida considerada feliz poreacutem natildeo poderia resumir tal vida porque
natildeo seria buscada por si mesma Com isso o filoacutesofo nos apresenta uma
das suas exigecircncias para definirmos a felicidade ser um fim ou bem
buscado por si mesmo
No Livro I 6 da EN o bem eacute tratado em dois sentidos haveria
bens em si mesmos considerados realmente bons e bens relativos a
estes uacuteteis agrave obtenccedilatildeo dos bens em si mesmos Estes seriam como jaacute se
propusera acerca da felicidade procurados sem pensar em algo mais que
se pudesse conseguir a partir deles mas haveria vaacuterias coisas que se
encaixariam nesse tipo de descriccedilatildeo como a riqueza o prazer etc o
que forccedila o filoacutesofo a delimitar o bem que procura a algo que possa ser
alcanccedilado pelo homem apresentando nova exigecircncia agrave definiccedilatildeo da
felicidade
29
Diante de tantas distinccedilotildees o Livro I 7 afunila mais a proposta de
bem buscado descrevendo-o novamente como ldquoaquilo em cujo interesse
se fazem todas as coisasrdquo (EN I 5 1097a21-22)8 O bem seria a
finalidade das accedilotildees e os homens fariam tudo em vista dele Aristoacuteteles
ratifica a existecircncia de vaacuterios fins mas propotildee que apenas o bem
supremo ou absoluto seria escolhido por si mesmo o que implica que
nem todos os fins satildeo absolutos O sumo bem no entanto seria
absoluto o uacutenico fim absoluto ou o mais absoluto no caso de haver mais
de um fim desse tipo caracteriacutestica daquilo que eacute procurado e desejado
por si mesmo A esses aspectos Aristoacuteteles acrescenta outro ndash que
voltaraacute a ser analisada no Livro X a autossuficiecircncia A princiacutepio este
conceito eacute explicado em I 7 como aquilo que basta para um homem e
todos agrave sua volta porque o homem segundo esse capiacutetulo (EN I 7
1097b12) existe para ser cidadatildeo A autossuficiecircncia tornaria a vida
desejaacutevel e sem necessidade de nada sendo que somente a felicidade
cumpriria tais requisitos aleacutem de ser a coisa mais desejaacutevel de todas
natildeo sendo um bem entre outros A felicidade eacute redefinida portanto
como a finalidade uacuteltima de toda accedilatildeo (EN I 7 1097b14-21)9
Diante de todo esse debate e da tentativa de delimitaccedilatildeo da
felicidade Aristoacuteteles natildeo se daacute por satisfeito com o possiacutevel conceito
determinado ateacute o ponto Evoca entatildeo a questatildeo da funccedilatildeo (eacutergon) do
homem pois pensa que talvez esclareccedila o caso O filoacutesofo questiona
haveria uma funccedilatildeo especificamente humana Verificar qual seria a
funccedilatildeo humana facilitaria entender o que eacute a felicidade (EN I 7
1097b24) mas por quecirc Aristoacuteteles pensa que para todas as coisas que
apresentam uma funccedilatildeo e uma atividade o bem estaacute na funccedilatildeo (EN I 7
1097b26-27)
Korsgaard afirma que o argumento da funccedilatildeo da forma como eacute
elaborado por Aristoacuteteles parece depender da ligaccedilatildeo existente entre ser
uma boa pessoa ter uma vida boa ou feliz aleacutem de objetivar ligar essas
propostas em torno da racionalidade Haacute igualmente a intenccedilatildeo de
mostrar que devido a alguns argumentos sobre razatildeo e virtude o
argumento da funccedilatildeo eacute um bom caminho para abordar a questatildeo de
como viver bem Se tudo tem uma funccedilatildeo por que o homem natildeo teria
nenhuma (EN I 7 1097b22-23) Isso significaria que o homem segue um
8 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original τούτου γὰρ ἕνεκα τὰ λοιπὰ πράττουσι πάντες 9Esse trecho abriria a questatildeo para as interpretaccedilotildees da eudaiacutemōniacutea como bem
inclusivo ou dominante Neste estudo apenas mencionaremos quando
pertinente o problema pois natildeo pretendemos esgotaacute-lo
30
propoacutesito ou um destino Korsgaard propotildee duas maneiras de ler a
passagem em questatildeo A primeira com assombro e jaacute proposta acima
soaria mais ou menos assim se todas as coisas que existem tecircm uma
funccedilatildeo por que o homem natildeo teria nenhuma O passo poderia ser lido
ainda como um argumento e soaria mais ou menos assim ldquopartes do
corpo tecircm funccedilotildees mas o que fazem soacute faz sentido se houver uma
funccedilatildeo do todo relativo ao qual as partes tecircm uma funccedilatildeo as vaacuterias artes
e profissotildees tecircm funccedilotildees mas que soacute fazem sentido se haacute uma funccedilatildeo
geral da vida humana agrave qual contribuemrdquo (KORSGAARD 2008 p 130-
131)
Assim a funccedilatildeo do todo respaldaria e explicaria aquelas das
partes De modo semelhante Reeve (2014 p 279) entende que qualquer
que seja a funccedilatildeo humana ela deve justificar as funccedilotildees das partes do
corpo bem como deve justificar o homem como praticante de uma arte
especiacutefica que segue princiacutepios e normas racionais Isso porque apoacutes
analisar as funccedilotildees atreladas agraves capacidades da alma que o homem
compartilha com os animais o texto de EN I 7 (1097b33-1098a7) acaba
por identificar uma funccedilatildeo que chama ldquovida praacutetica do que possui
razatildeordquo que eacute capaz tanto de obedecer agrave razatildeo quanto de possuiacute-la
exercitando o intelecto (noucircs) De um modo ou de outro o argumento
parece depender de uma concepccedilatildeo teleoloacutegica de mundo Essa
concepccedilatildeo no primeiro caso indica simplesmente um propoacutesito para
tudo quanto haacute No segundo caso indica um tipo de raciociacutenio que vai
de um propoacutesito relativo a um propoacutesito absoluto Mas caberia entender
o argumento da funccedilatildeo como a defesa de um propoacutesito para o homem
Mesmo que se assuma o argumento em questatildeo eacute preciso esclarecer por
que o bem humano estaacute atrelado ao bom desempenho de uma funccedilatildeo
Haacute entre funccedilatildeo e virtude uma ligaccedilatildeo conceitual da qual natildeo
podemos prescindir pois como Reeve salienta o argumento prepara o
campo para a teoria da virtude Segundo tal teoria o exerciacutecio de uma
funccedilatildeo poderia ser compreendido como melhor estado das capacidades
que se agrupam em um todo que pode ser entendido como a melhor
forma de vida humana Entendemos tambeacutem com Reeve (2013 p 38)
que essa vida eacute proposta sagazmente por Aristoacuteteles como agrupamento
dos aspectos que considerava os melhores dentre todas as opiniotildees
correntes agrave eacutepoca sobre o tipo de vida tido como felicidade Diante
disso explica Korsgaard a virtude eacute uma qualidade que faz o homem
bom ao desempenhar sua funccedilatildeo composta por qualidades que o tornam
31
bom quanto agrave atividade racional10 Contudo fazemos questatildeo de frisar
que a virtude igualmente deve ser entendida como desempenho
excelente de todas as atividades cuja execuccedilatildeo pelo homem eacute possiacutevel
Korsgaard esclarece ldquoEntatildeo Aristoacuteteles precisa da conclusatildeo do
argumento da funccedilatildeo natildeo somente para dar suporte agrave sua visatildeo sobre
que tipo de vida eacute o melhor assim como a fim de nos dar uma base
teoacuterica agrave afirmaccedilatildeo que certas qualidades satildeo virtudesrdquo (KORSGAARD
2008 p 133-134 traduccedilatildeo nossa) O argumento nos permite
compreender melhor as virtudes e com isso a proposta sobre o bem ou
fim humano entendido por Aristoacuteteles como atividade em conformidade
com a virtude
O mau entendimento do argumento em questatildeo pode vir do fato
de interpretaacute-lo teleologicamente pensando eacutergon como propoacutesito
Haveria alternativas de interpretaccedilatildeo como um significado mais amplo
de trabalho funcionamento produtos ou atividades caracteriacutesticas
indicando igualmente a ligaccedilatildeo entre funccedilatildeo e atividade que levaria o
homem ao bem que procura Natildeo reconstruiremos totalmente a proposta
de Korsgaard sobre esse assunto que passaria por complexas noccedilotildees
metafiacutesicas agraves quais natildeo podemos nos dedicar nesse momento11 mas a
melhor alternativa agrave compreensatildeo da funccedilatildeo proposta em EN I seria
indicada pela autora como a de atividade caracteriacutestica que faz de uma
coisa aquilo que ela eacute Assim uma concepccedilatildeo de homem tambeacutem estaacute
em questatildeo como reforccedilaremos no nosso terceiro Capiacutetulo porque
quem sabe o que a coisa faz a conhece melhor O que parece coadunar
outra possibilidade de entendimento proposta pela autora a de como
uma coisa funciona ou seja como uma coisa faz o que ela faz natildeo
impedindo que tenha vaacuterios propoacutesitos Entatildeo propoacutesito seria diferente
de funccedilatildeo mesmo que os dois sentidos estivessem intimamente
relacionados pois saber ldquoo que uma coisa fazrdquo estaacute totalmente ligado ao
saber ldquocomo uma coisa faz o que ela fazrdquo
Desse modo natildeo bastaria saber o propoacutesito da coisa para
conhececirc-la explica a autora ldquoMas algueacutem que sabe para que o coraccedilatildeo
10 De acordo com Boyle haacute uma proposta do homem como animal racional que
tem sua tradiccedilatildeo iniciada com Aristoacuteteles Conforme a interpretaccedilatildeo do autor
para essa proposta que pensamos ser condizente com nossas proacuteprias
interpretaccedilotildees sobre o assunto ldquoUma implicaccedilatildeo crucial da Visatildeo Claacutessica eu
argumentarei eacute que a racionalidade natildeo eacute uma potecircncia particular de animais
racionais que satildeo equipados com ela mas seu modo distintivo de ter potecircnciasrdquo
(BOYLE 2012 p 6 traduccedilatildeo nossa) 11 Mateacuteria e forma substacircncia causa
32
serve seus arranjos estruturais e como aqueles arranjos capacitam o
coraccedilatildeo a fazer o que ele faz pode dizer verdadeiramente entendecirc-lordquo
(KORSGAARD 2008 p 139 traduccedilatildeo nossa) Por isso a autora pensa
que o melhor candidato agrave interpretaccedilatildeo de funccedilatildeo eacute ldquocomo a coisa faz o
que ela fazrdquo indo do conhecimento da estrutura ao conhecimento do
propoacutesito atrelado ao objeto estudado Com isso poderemos pensar que
compreender a alma humana e suas capacidades em relaccedilatildeo seria
extremamente beneacutefico entre outras coisas para nossa compreensatildeo
daquilo que o homem eacute capaz de fazer pois nos encaminharia para o
conhecimento do proacuteprio homem e de como ele faz o que faz O que a
nosso ver natildeo descartaria uma proposta teleoloacutegica acerca da felicidade
humana mas a reelaboraria nos termos propostos acima com o apoio de
Korsgaard Natildeo importa se o homem tem um propoacutesito o que importa eacute
que o homem desempenha suas atividades de um modo que lhe eacute
especiacutefico e que pode ser entendido e explicado Assim quem entende
isso poderaacute dizer o que eacute a funccedilatildeo humana aleacutem do mais seraacute possiacutevel
conhecer melhor o proacuteprio homem
Por conseguinte quando Aristoacuteteles afirma que a funccedilatildeo humana
eacute a atividade da parte racional da alma natildeo quer dizer simplesmente que
o raciociacutenio eacute o propoacutesito do ser humano Igualmente estaacute a dizer que a
atividade racional eacute a atividade caracteriacutestica do homem caso se
entenda que isso significa uma atividade que somente a espeacutecie humana
escolhe Aleacutem disso Korsgaard entende que Aristoacuteteles quer dizer que a
ldquoatividade racional eacute como noacutes seres humanos fazemos o que fazemos e
em particular como conduzimos nossa forma especiacutefica de vidardquo
(KORSGAARD 2008 p 141 traduccedilatildeo nossa) O que nos leva de volta
agrave lista dos tipos de vida No DA II 2 Aristoacuteteles elenca trecircs formas de
viver conforme as capacidades da alma humana vegetativa (das plantas
e de todos os animais) de percepccedilatildeo e accedilatildeo (de todos os animais) e de
razatildeo ou da escolha racional (apenas dos animais humanos) O homem
apresenta todas as trecircs formas de vida duas em comum com os demais
viventes mas uma que lhe eacute especiacutefica o que faz com que gerencie de
um jeito especial as outras formas que compotildeem a vida humana Assim
para Aristoacuteteles ldquoser racional transforma a natureza de ser um animal e
assim constitui um jeito novo de ser uma coisa vivardquo (BOYLE 2012 p
16 traduccedilatildeo nossa)
Com as observaccedilotildees feitas a respeito desse assunto Aristoacuteteles
parece entender a vida regida pela razatildeo como mais apropriada aos
homens contudo o filoacutesofo pondera neste tipo de vida e no que a rege
haacute algo que eacute obediente agrave razatildeo mas haacute ainda algo que possui e exerce o
pensamento A vida da capacidade racional portanto igualmente
33
poderia ter dois significados mas nesse ponto especiacutefico estar-se-ia a
falar da vida como atividade racional O que provavelmente poderia
nos levar a interpretar essa proposta como natildeo tratando de algo
puramente racional pois eacute nesse ponto da argumentaccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
do homem que Aristoacuteteles parece ceder lugar a uma racionalidade
relacionada e dedicada inteiramente ao cuidado da capacidade natildeo
racional e de suas (sub)capacidades fazendo valer a proposta da
atividade humana como aquela feita com razatildeo ou natildeo sem razatildeo
Nussbaum entende que nesse momento Aristoacuteteles comeccedila a abrir matildeo
de algo totalmente divino como funccedilatildeo especiacutefica do homem propondo
como tiacutepico agrave alma humana uma sabedoria diferenciada daquela
compartilhada pela divindade a sabedoria praacutetica Diante dessas
possibilidades de interpretaccedilatildeo precisamos analisar as propostas em
jogo para entender qual seria realmente a funccedilatildeo e portanto a melhor
forma de viver ou o fim humano pois Aristoacuteteles escreve
Ora se haacute uma funccedilatildeo do homem consistindo em
uma atividade da alma conforme agrave razatildeo ou que
natildeo existe sem a razatildeo e se noacutes dizemos que essa
funccedilatildeo eacute genericamente a mesma em um
indiviacuteduo qualquer e em um indiviacuteduo de meacuterito
(assim em um citarista e em um bom citarista e
isso eacute verdade de uma maneira absoluta em todos
os casos) a excelecircncia devida ao meacuterito se
acrescentando agrave funccedilatildeo (pois a funccedilatildeo do citarista
eacute tocar a ciacutetara e aquela do bom citarista eacute tocaacute-la
bem) se eacute assim se noacutes colocamos que a funccedilatildeo
do homem consiste em um certo gecircnero de vida
quer dizer em uma atividade da alma e nas accedilotildees
acompanhadas de razatildeo se a funccedilatildeo de um
homem virtuoso eacute cumprir essa tarefa e cumpri-la
bem e com sucesso cada coisa aleacutem estando bem
completa quando eacute segundo a excelecircncia que lhe eacute
proacutepria - nessas condiccedilotildees eacute portanto que o bem
para o homem consiste em uma atividade da alma
em acordo com a virtude e no caso de
pluralidade de virtudes em acordo com a mais
excelente e perfeita entre elas (EN I 6 1098a7-
18)12
12 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original εἰ δ ἐστὶν ἔργον ἀνθρώπου ψυχῆς ἐνέργεια κατὰ λόγον ἢ
μὴ ἄνευ λόγου τὸ δ αὐτό φαμεν ἔργον εἶναι τῷ γένει τοῦδε καὶ τοῦδε
34
A anaacutelise do passo em questatildeo gerou celeuma em relaccedilatildeo agrave
questatildeo da eudaiacutemōniacutea provocando discussotildees propostas em ceacutelebres
artigos publicados desde 1964 (ou mesmo antes) por estudiosos como
Hardie Ackrill e Kenny A menccedilatildeo aos trecircs comentadores e respectivos
estudos eacute vaacutelida na medida em que haacute propostas sobre a eudaiacutemōniacutea
como aquela elaborada por Kenny que concebeu a felicidade como um
bem dominante e entendia que o passo em questatildeo se opotildee agraves teorias
como aquelas dos demais estudiosos mencionados e agraves suas concepccedilotildees
de eudaiacutemōniacutea Segundo Kenny o passo liga as teorias da felicidade
apresentadas pelos Livros I e X da EN tomando as teorias de Aristoacuteteles
sobre os variados tipos de vida no Livro I como ponto de partida para a
interpretaccedilatildeo da eudaiacutemōniacutea como vida totalmente dedicada agrave
contemplaccedilatildeo Embora concordemos com a possibilidade de existecircncia
de um elo entre as teorias apresentadas nos dois tratados sobre a
felicidade elo do qual trataremos mais detidamente em nosso terceiro
Capiacutetulo os demais comentadores citados parecem-nos mais coerentes
com as reais intenccedilotildees de Aristoacuteteles para sua teoria da felicidade
Pensamos assim especialmente por natildeo tomarem como proposta (ou
intenccedilatildeo de proposta do filoacutesofo segundo a leitura de Hardie (2009 p
35)) a felicidade como fim dominante encaminhando-se agrave defesa de
uma vida plena como aquela dedicada ao puro contemplar Todavia se
um tipo de vida eacute indicado como o melhor e se esse tipo for
compreendido como um conjunto de atividades operadas de modo
racional e natildeo exatamente como uma vida inteiramente direcionada agraves
atividades especificamente contemplativas qual seria esse tipo de vida
Aristoacuteteles o determinaria
As questotildees nos levaram a repensar as propostas do filoacutesofo
acerca dos meios e dos fins variados que se nos apresentam ao longo de
toda uma vida e que conduzem agraves muitas opiniotildees e aos muitos modos
de entender o que seja a melhor vida possiacutevel e os bens que satildeo
necessaacuterios a ela (se satildeo necessaacuterios) As opiniotildees quanto agrave funccedilatildeo e agrave
atividade apropriada ao homem descritos no Livro I 8 variam e por isso
σπουδαίου ὥσπερ κιθαριστοῦ καὶ σπουδαίου κιθαριστοῦ καὶ ἁπλῶς δὴ τοῦτ
ἐπὶ πάντων προστιθεμένης τῆς κατὰ τὴν ἀρετὴν ὑπεροχῆς πρὸς τὸ ἔργον
κιθαριστοῦ μὲν γὰρ κιθαρίζειν σπουδαίου δὲ τὸ εὖ εἰ δ οὕτως [ἀνθρώπου δὲ
τίθεμεν ἔργον ζωήν τινα ταύτην δὲ ψυχῆς ἐνέργειαν καὶ πράξεις μετὰ λόγου
σπουδαίου δ ἀνδρὸς εὖ ταῦτα καὶ καλῶς ἕκαστον δ εὖ κατὰ τὴν οἰκείαν
ἀρετὴν ἀποτελεῖται εἰ δ οὕτω] τὸ ἀνθρώπινον ἀγαθὸν ψυχῆς ἐνέργεια γίνεται
κατ ἀρετήν εἰ δὲ πλείους αἱ ἀρεταί κατὰ τὴν ἀρίστην καὶ τελειοτάτην
35
Aristoacuteteles parece entender que essa variedade de opccedilotildees eacute devida ao
prazer que se sente com as atividades que se desempenha com mais
frequecircncia As atividades virtuosas satildeo deste tipo e satildeo destacas pelo
filoacutesofo como sendo boas e nobres Os homens bons igualmente as tecircm
em alta consideraccedilatildeo datildeo-lhes o valor devido sendo que tais homens
satildeo bons juiacutezes daquilo que conhecem bem como a virtude ldquoA
felicidade eacute pois a melhor a mais nobre e a mais apraziacutevel coisa do
mundo e esses atributos natildeo se acham separados []rdquo (EN I 9 1099a24-
25)13 O conceito de felicidade esboccedilado no Livro I eacute portanto
preenchido pelos atributos das atividades mais excelentes
Reforccedilando essas ideias o Livro I 9 nos informa que a felicidade
eacute tomada como algo de melhor e mais divino existente na vida humana
portanto eacute de acordo com a excelecircncia nas accedilotildees e atividades que o
homem eacute capaz de realizar Diante dessas constataccedilotildees Aristoacuteteles
declara que os objetivos da ciecircncia poliacutetica entre as demais vidas
observadas satildeo o melhor fim que pode haver (EN 1099b30) o que
pareceraacute contradizer as propostas do Livro X e a proposta de Kenny
supramencionada Essas explicaccedilotildees ainda que lacunares nos levam agrave
nossa crenccedila que a funccedilatildeo especiacutefica ao homem seja uma atividade que
somente se constituiria com uma vida em comunidade associando todas
as capacidades aniacutemicas acima mencionadas sendo por isso conforme
a razatildeo que se configura como elemento diferencial da psychḗ humana
Todavia ainda precisaremos confrontar essas propostas com aquelas do
Livro X acerca da vida contemplativa como melhor das vidas possiacuteveis
para garantir o que se afirma aqui
O Livro mencionado nos apresenta vaacuterios argumentos que
indicam um Aristoacuteteles aparentemente ldquoracionalistardquo propondo que o
homem se dedique agravequilo que de mais divino haacute em si a razatildeo No
entanto recorrendo ao curso de toda a EN inclusive ao proacuteprio Livro X
encontramos indicaccedilotildees de que natildeo haacute possibilidade do homem dedicar-
se inteiramente agraves atividades da contemplaccedilatildeo filosoacutefica ao exerciacutecio
mais alto e puro da razatildeo teoacuterica Mesmo um filoacutesofo explica
Aristoacuteteles necessita de comida bebida dinheiro conviacutevio e todos
esses bens sejam eles necessaacuterios ao estabelecimento de uma vida feliz
sejam eles instrumentos para tal estabelecimento soacute satildeo encontrados
como propusemos ainda haacute pouco na poacutelis Devemos reforccedilar que a EN
nos apresenta o homem como animal poliacutetico de vida essencialmente
13 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ἄριστον ἄρα καὶ κάλλιστον καὶ ἥδιστον ἡ εὐδαιμονία καὶ
οὐ διώρισται ταῦτα []
36
comunitaacuteria Por conseguinte todas as suas escolhas seratildeo tomadas
tendo em vista essa sua natureza poliacutetica explicando que a funccedilatildeo
proacutepria ao homem seria o bom desempenho de suas capacidades
aniacutemicas que o permitissem viver bem na poacutelis entre seus iguais ou
semelhantes de forma excelente mas em conformidade a leitura de
Korsgaard e Boyle (2012 p 6 et seq) de um jeito racional Quanto ao
assunto Nussbaum escreveu
O argumento do ergon natildeo pode estar nos dizendo
que devemos nos preocupar somente com a razatildeo
Nem parece dizer isso Mas a ecircnfase em tal
atividade caracteriacutestica pode ser vista como
motivada (1) pelo desafio do hedonismo e (2) pela
funccedilatildeo arquitetocircnica da razatildeo praacutetica esta e soacute
esta pode arranjar para que ambas razatildeo e as
funccedilotildees compartilhadas com os animais
obtenham seu devido lugar em uma vida humana
complexa Aristoacuteteles recomenda agrave sua audiecircncia
reflexiva uma vida que (1) envolva o exerciacutecio de
todas as nossas capacidades humanas e seja assim
uma verdadeira vida humana antes que uma
[vida] que possa justamente ser levada por uma
planta ou uma vaca e que (2) seja governada e
planejada de um tal modo a dar a ambas
capacidades compartilhadas e natildeo compartilhadas
seu papel apropriado ndash e isso significa governada
e planejada pela razatildeo praacutetica Se pensarmos
reflexivamente sobre o que eacute um ser humano ele
sugere teremos razatildeo em preferir uma vida sob a
direccedilatildeo da razatildeo praacutetica agrave vida escrava ou como a
da vaca de prazer e tambeacutem agrave alguma vida que eacute
levada sem ordem ou direccedilatildeo Queremos uma vida
que use todas as nossas capacidades Uma tal vida
inclui tanto o exerciacutecio da razatildeo quanto requer a
direccedilatildeo racional (NUSSBAUM 1985 p 106
traduccedilatildeo nossa)
Embora concordemos em grande medida com as propostas da
estudiosa que entende a opccedilatildeo pelo argumento do eacutergon humano em
um tratado eacutetico justificada por ser necessaacuterio considerar o que eacute o
homem a fim de melhor entender e acatar um tipo de vida a se buscar
pensamos que a filoacutesofa natildeo esteja de acordo com as propostas de
Aristoacuteteles em um certo ponto Este diria respeito agrave tocircnica dada agrave
37
proposta de uma vida boa ser governada pela razatildeo ou melhor pela
razatildeo praacutetica Nossa ressalva ou discordacircncia vem do fato de pensarmos
que essa alternativa seja vaacutelida agrave maioria dos homens para os homens
que satildeo capazes de agir corretamente embora possam natildeo o fazer mas
natildeo dos homens realmente virtuosos que vivem ldquocom razatildeordquo ou de um
jeito racional Pensamos diferente das propostas da autora porque
cremos que o bom exerciacutecio de todas as capacidades humanas que ela
menciona compartilhadas ou natildeo com outros viventes resulta em uma
vida virtuosa e que o homem verdadeiramente virtuoso tenha em
consonacircncia as capacidades aniacutemicas como defenderemos ao longo de
todo esse trabalho A nosso ver uma vida conforme o melhor estado
dessas capacidades desempenhadas racionalmente eacute o que
verdadeiramente se configura como a funccedilatildeo humana exclusivamente
humana dentre todas as funccedilotildees que o homem se mostra capaz de
desempenhar14
A pacificaccedilatildeo das capacidades aniacutemicas que permite uma vida de
plena realizaccedilatildeo das tarefas necessaacuterias para o conviacutevio em comunidade
eacute o que mais se mostra como exclusividade do homem natildeo dos deuses
nem dos animais em geral A possibilidade de conciliar a capacidade
natildeo racional por esta ser capaz de ouvir obedecer e participar da razatildeo
por intermeacutedio do desiderativo com a capacidade racional da alma
representada pela racionalidade praacutetica que harmoniza e participa da
capacidade natildeo racional mas que ao mesmo tempo sabe daquilo que eacute
necessaacuterio para garantir o exerciacutecio da racionalidade teoacuterica garante a
funccedilatildeo apropriada ao homem e a vida feliz O melhor estado e as
melhores atividades de ambas as capacidades da alma quando em
harmonia permitem que o homem seja o que eacute que se perceba como
aquilo que eacute animal poliacutetico razatildeo e emoccedilatildeo em consonacircncia
Devemos no entanto trabalhar mais em defesa desse entendimento
porque nos permitiraacute defender a educabilidade das emoccedilotildees
14Temos ciecircncia de que a vida pode variar de que a virtude pode se ver
ameaccedilada pelas circunstacircncias O homem virtuoso natildeo estaacute imune agraves forccedilas
do acaso mas resiste-lhes mais fortemente como na proposta da feita no
Livro I graccedilas ao seu caraacuteter ldquofirme e imutaacutevelrdquo Concordamos no entanto
com Frede que explica que mesmo o virtuoso carece de muita deliberaccedilatildeo
para agir bem pois mesmo sua boa habituaccedilatildeo que lhe confere certa (e
maior que o normal) estabilidade frente agraves vicissitudes natildeo lhe tornem
totalmente indiferente ao que o mundo apresenta como proporemos mais
adiante
38
Nossa proposta eacute coerente com as interpretaccedilotildees de estuidiosos
como Korsgaard (2008 p 143) e Boyle (2012 p 6) acerca da funccedilatildeo
humana que entende a vida feliz como atividade racional no sentido que
o poder da escolha racional facultado ao homem muda o modo que os
humanos conduzem as atividades que compartilham com os outros
animais como a construccedilatildeo a procriaccedilatildeo alimentaccedilatildeo etc A autora
defende que os seres humanos abordam essas atividades criativamente e
desenvolvem vaacuterios modos de desempenhaacute-las entre os quais noacutes entatildeo
escolhemos Igualmente fazem coisas que os outros animais natildeo fazem
de jeito nenhum como contar piadas pintar e se engajar na pesquisa
cientiacutefica e filosoacutefica Entatildeo a escolha racional introduz um sentido de
vida todo novo no qual uma pessoa pode dizer ldquoter uma vidardquo A vida eacute
entendida nesse sentido quando se diz que algueacutem vive bem ou mal ndash se
eacute eudaiacutemōn ou natildeo Entatildeo a autora afirma que esse eacute o sentido de
ldquovidardquo relevante para o argumento da funccedilatildeo A razatildeo eacute a funccedilatildeo do ser
humano desde que entendida como uma forma especificamente humana
de conduzir a vida e pensamos que tal tipo de conduccedilatildeo soacute pode ser
exercido em comunidade Assim atividade racional deveria ser
entendida natildeo no sentido de gastar toda a vida em contemplaccedilatildeo mas
como um modo de conduzir a vida o que provavelmente seja mais
condizente com nossa proposta embora entendamos que nos virtuosos
isso signifique a harmonia das capacidades da alma e natildeo a prevalecircncia
da capacidade racional15
Discutiremos as virtudes no capiacutetulo seguinte Por enquanto
destacamos outro motivo para entendermos que a funccedilatildeo totalmente
humana somente pode ser atualizada na poacutelis nas atividades e nas accedilotildees
moralmente avaliaacuteveis que se apresentam na poacutelis Parece impossiacutevel ao
homem atualizar as potecircncias de suas capacidades aniacutemicas em
consonacircncia que levam a emoccedilotildees bem educadas se natildeo por meio
daquilo que o corpo eacute capaz de fazer Todas as atividades e accedilotildees
completadas pelo composto corpoalma chamado por Aristoacuteteles em
parte da Metafiacutesica tograve syacutenolon (conjunto) de mateacuteria e forma
(hyacutelēmorphḗ) levam agrave produccedilatildeo de algo uacutetil ao homem agrave praacutetica de
boas accedilotildees e igualmente ao exerciacutecio da razatildeo teoacuterica e estatildeo de acordo
com Lawrence (2009 p 46) e com nossa interpretaccedilatildeo a serviccedilo dessa
vida boa em comunidade Por isso deveremos nos concentrar agora em
abordar as questotildees da alma humana como levantadas ao final do Livro
I da EN capiacutetulo 13 chamando em nosso auxiacutelio quando necessaacuterias
15 Quanto agrave classificaccedilatildeo do homem como animal racional especificar a
essecircncia humana ver Boyle (2012)
39
as consideraccedilotildees do De Anima sobre o assunto especialmente quando
este tratado puder nos auxiliar a confirmar nossa interpretaccedilatildeo
hilemoacuterfica que nos permitiraacute defender nossa teoria da funccedilatildeo proacutepria ao
homem como necessaacuteria ao entendimento do papel das emoccedilotildees na vida
moral
3 EN I 13 a alma humana e a emoccedilatildeo
A felicidade foi proposta em EN I 13 como atividade da alma
conforme a virtude mais completa16 Por isso para compreender melhor
o que seja a felicidade Aristoacuteteles julga necessaacuterio estudar a natureza da
virtude O filoacutesofo explica que a virtude a ser estudada eacute humana como
satildeo humanos o bem e a felicidade que procura esclarecer Por
conseguinte escreve ldquoPor virtude humana entendemos natildeo a do corpo
mas da alma e igualmente agrave felicidade chamamos uma atividade da
alma Mas assim sendo eacute oacutebvio que o poliacutetico deve saber de algum
modo o que diz respeito agrave almardquo (EN I 13 1102a16-19)17 O estudo da
alma que um legislador buscaria empreender no entanto teria por
finalidade tornar os cidadatildeos bons e entender como isso eacute possiacutevel o
que bastaria para o tipo de investigaccedilatildeo ora feito contudo pensamos
que a consulta do tratado da alma quando necessaacuteria pode ser mais
esclarecedora dos problemas que levantamos Natildeo obstante
comeccedilaremos a discussatildeo com as propostas da EN a respeito do assunto
em questatildeo nesse momento
Quando o tema eacute a alma humana a EN aponta a existecircncia de
opiniotildees consideraacuteveis mesmo que natildeo venham de Aristoacuteteles ou de
seus companheiros de estudo Uma dessas opiniotildees considerada vaacutelida eacute
a mencionada teoria que a alma apresenta uma capacidade racional e
outra natildeo racional (EN I 13 1102a29) Costuma-se aceitar igualmente
uma subdivisatildeo das capacidades aniacutemicas natildeo racionais propondo agrave
capacidade natildeo racional primeiro uma (sub)capacidade vegetativa
responsaacutevel pela nutriccedilatildeo e pelo crescimento Esta eacute presente em todos
16 Embora nos trechos em questatildeo nesse ponto do estudo utilizemos a traduccedilatildeo
de Zingano preferimos usar ldquovirtude completardquo a ldquovirtude perfeitardquo devido agrave
compreensatildeo que temos de tal virtude e que seraacute esclarecida brevemente mais
adiante 17 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original καὶ γὰρ τἀγαθὸν ἀνθρώπινον
ἐζητοῦμεν καὶ τὴν εὐδαιμονίαν ἀνθρωπίνην ἀρετὴν δὲ λέγομεν ἀνθρωπίνην οὐ
τὴν τοῦ σώματος ἀλλὰ τὴν τῆς ψυχῆς καὶ τὴν εὐδαιμονίαν δὲ ψυχῆς ἐνέργειαν
λέγομεν
40
os animais vivos adultos embriotildees lactantes etc A excelecircncia de tal
capacidade por esse aspecto comum aos viventes eacute pertencente a todos
e natildeo eacute especificamente humana18 Aleacutem disso a capacidade nutritiva
ou vegetativa trabalha especialmente durante o sono quando a maldade
ou a bondade de caraacuteter natildeo se manifestam Assim tal faculdade pode
ser posta de lado por ora em nossas investigaccedilotildees jaacute que na EN eacute tida
como natildeo participante da excelecircncia especificamente humana19 No
entanto Aristoacuteteles segue com o exame da capacidade natildeo racional da
alma e escreve
Parece haver na alma ainda outro elemento
irracional mas que em certo sentido participa da
razatildeo Com efeito louvamos o princiacutepio racional
do homem continente e do incontinente assim
como a parte de sua alma que possui tal princiacutepio
porquanto ela os impele na direccedilatildeo certa e para os
melhores objetivos mas ao mesmo tempo
encontra-se neles um outro elemento naturalmente
oposto ao princiacutepio racional lutando contra este e
resistindo-lhe (EN I 13 1102b13-21)20
Esse princiacutepio opositor agrave racionalidade aparece nitidamente no
caso dos incontinentes e dos continentes pessoas nas quais a capacidade
racional e a natildeo racional esta uacuteltima na figura dos desejos entram em
conflito quanto aos objetos a serem perseguidos21 Aristoacuteteles assim nos
18 A respeito da forma como a posse de uma alma racional que muda a
organizaccedilatildeo das demais capcidades da alma em um ser classificado como
ldquoracionalrdquo ver Boyle (2012 p 15 et seq) Essa explicaccedilatildeo revalida a teoria
proposta acima a respeito do viver humano natildeo ser puramente racional mas
organizado de um jeito racional 19 De acordo com Boyle (2012 p 2) a tendecircncia crescente eacute entender que a
diferenccedila entre a mente humana e a dos animais chamados tradicionalmente
ldquonatildeo racionaisrdquo pousa mais no grau em que tais mentes diferem e natildeo nas suas
diferenccedilas por tipo ou espeacutecie O autor faz tal observaccedilatildeo ao falar das disvisotildees
propostas para a alma desde Aristoacuteteles 20 Idem no original ἔοικε δὲ καὶ ἄλλη τις φύσις τῆς ψυχῆς ἄλογος εἶναι
μετέχουσα μέντοι πῃ λόγου τοῦ γὰρ ἐγκρατοῦς καὶ ἀκρατοῦς τὸν λόγον καὶ τῆς
ψυχῆς τὸ λόγον ἔχον ἐπαινοῦμεν ὀρθῶς γὰρ καὶ ἐπὶ τὰ βέλτιστα παρακαλεῖ
φαίνεται δ ἐν αὐτοῖς καὶ ἄλλο τι παρὰ τὸν λόγον πεφυκός ὃ μάχεται καὶ
ἀντιτείνει τῷ λόγῳ 21 A questatildeo da acrasia eacute muito mais complexa do que esse arremedo de resumo
aqui apresentado mas no momento natildeo nos caberia discuti-la em detalhes bem
41
adverte que na alma haacute algo que eacute contraacuterio agrave capacidade racional
resistindo-lhe e fazendo-lhe frente Isso parece nem participar da
capacidade racional embora no continente obedeccedila-a no temperante e
no bravo obedece ainda mais ldquopois em tais homens ele fala a respeito
de todas as coisas com a mesma voz que o princiacutepio racionalrdquo (EN I 13
1102b28)22 Mesmo que esta capacidade pareccedila natildeo participar da
racional os exemplos de virtudes e virtuosos dados no passo nos
mostram que essa faculdade ou (sub)capacidade da capacidade natildeo
racional constituiacuteda por querer (bouacutelēsis) apetite (epithymiacutea) e impulso
(thymoacutes) satildeo desejos aptos a ouvir a racionalidade obedececirc-la e ateacute
participar dela embora pareccedilam sempre fazer o contraacuterio Explicaremos
melhor essa proposta a seguir quando tratarmos especificamente a
capacidade desiderativa
Ateacute o momento a interpretaccedilatildeo feita nos permite afirmar que a
capacidade natildeo racional eacute ou parece ser dupla Isso porque a vegetativa
natildeo participa da capacidade racional mas a desiderativa em geral
participa ao menos de certo modo (EN I 13 1102b32) porque no
miacutenimo eacute capaz de escutar e obedecer agrave razatildeo como um filho ouve e
obedece a um pai Conselhos censuras e exortaccedilotildees comprovam
portanto que o natildeo racional eacute de certo modo persuadido pela razatildeo O
argumentoexemplo do filho e do pai daacute azo ao nosso argumento
porque o filho pode ainda natildeo possuir plenamente a razatildeo em ato mas eacute
considerado na Poliacutetica como parte da famiacutelia cujo elemento racional eacute
figurado pelo pai sendo este representante da razatildeo praacutetica na analogia
apresentada na EN Essa participaccedilatildeo enquanto natildeo se atualiza a
potecircncia de razatildeo do filho eacute siacutembolo da participaccedilatildeo do que na alma haacute
de menos racional mas capaz de ouvir agrave razatildeo praacutetica Por isso a
virtude recebe distinccedilatildeo semelhante nesse tratado indicando a existecircncia
de uma virtude moral e de uma virtude intelectual cada destas uma
componente indispensaacutevel de uma alma humana una que soacute pode ver
atualizadas suas muacuteltiplas capacidades pelo composto corpoalma
Quando se fala do caraacuteter humano no entanto estaacute-se a falar da virtude
moral entendida por Aristoacuteteles como disposiccedilatildeo digna de louvor
quando o agente se comporta bem diante dos arroubos de suas emoccedilotildees
Mas em grau secundaacuterio a vida de acordo com a
outra espeacutecie de virtude eacute feliz porque as
atividades que concordam com esta condizem
como nos faltaria recursos para encampar a tarefa no presente estudo 22 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original πάντα γὰρ ὁμοφωνεῖ τῷ λόγῳ
42
com a nossa condiccedilatildeo humana Os atos corajosos
e justos bem como outros atos virtuosos noacutes os
praticamos em relaccedilatildeo uns aos outros observando
nossos respectivos deveres no tocante a contratos
serviccedilos e toda sorte de accedilotildees bem assim como agraves
paixotildees e todas essas coisas parecem ser
tipicamente humanas Dir-se-ia ateacute que algumas
delas provecircm do proacuteprio corpo e que o caraacuteter
virtuoso se prende por muitos laccedilos agraves paixotildees
(EN X 8 1178a8-15)23
A vida voltada aos assuntos da poacutelis eacute portanto feliz mas
cercada pelas inevitaacuteveis emoccedilotildees e pelos desejos Esta eacute a vida que
procuramos examinar estando no exerciacutecio de sua funccedilatildeo proacutepria
Ressaltamos anteriormente e reforccedilamos aqui que uma existecircncia
totalmente em contemplaccedilatildeo filosoacutefica natildeo parece possiacutevel devido agrave
presenccedila dos elementos natildeo racionais acima mencionados na vida de
todos e da necessidade humana de viver em comunidade A despeito das
associaccedilotildees da eudamōniacutea com a contemplaccedilatildeo de Aristoacuteteles definir o
filoacutesofo como capaz de tal vida por exercer o cultivo da sua razatildeo
teoacuterica (ou do uso teoacuterico de sua razatildeo) de propor o filoacutesofo como
capaz de desfrutar a melhor disposiccedilatildeo de espiacuterito e ser caro aos deuses
devemos dar atenccedilatildeo agrave ressalva seguinte feita por Sorabji
Aristoacuteteles [] aborda a questatildeo seraacute que eacute
errado uma vez que somos humanos aspirar a
vida mais divina de contemplaccedilatildeo intelectual Ele
responde (embora eu natildeo ache que esta seja sua
uacuteltima palavra) que pelo contraacuterio o nosso
intelecto eacute o nosso verdadeiro eu [] Aristoacuteteles
viu as emoccedilotildees natildeo apenas como uacuteteis mas como
essenciais agrave melhor vida que os homens podem
alcanccedilar na praacutetica Embora dividido ele
reconhece que uma vida de nada mais que
contemplaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel para noacutes Ateacute mesmo
23 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Δευτέρως δ ὁ κατὰ τὴν ἄλλην ἀρετήν αἱ γὰρ κατὰ ταύτην
ἐνέργειαι ἀνθρωπικαί δίκαια γὰρ καὶ ἀνδρεῖα καὶ τὰ ἄλλα τὰ κατὰ τὰς ἀρετὰς
πρὸς ἀλλήλους πράττομεν ἐν συναλλάγμασι καὶ χρείαις καὶ πράξεσι παντοίαις
ἔν τε τοῖς πάθεσι διατηροῦντες τὸ πρέπον ἑκάστῳ ταῦτα δ εἶναι φαίνεται
πάντα ἀνθρωπικά ἔνια δὲ καὶ συμβαίνειν ἀπὸ τοῦ σώματος δοκεῖ καὶ πολλὰ
συνῳκειῶσθαι τοῖς πάθεσιν ἡ τοῦ ἤθους ἀρετή
43
os filoacutesofos devem comer e viver em sociedade e
a vida mais feliz envolveraacute tambeacutem o exerciacutecio
das virtudes em sociedade As virtudes por sua
vez envolvem acertar o ponto meacutedio na emoccedilatildeo
bem como na accedilatildeo (SORABJI 2000 p 190-191
traduccedilatildeo nossa)
Assim percebemos que Aristoacuteteles natildeo deixa os homens comuns
fora de suas consideraccedilotildees sobre a vida feliz dos cidadatildeos e admite
inclusive que esses homens sejam a maioria Aristoacuteteles igualmente natildeo
retira os filoacutesofos do conviacutevio na poacutelis pois natildeo eacute o fato de serem
filoacutesofos que faraacute com que deixem de ser humanos e de apresentar
funccedilatildeo e necessidades especiacuteficas agrave humanidade Aleacutem do mais entende
que mesmo os homens mais excelentes carecem de conviacutevio para deixar
claras as suas aptidotildees e beneficiar seus amigos com sua companhia (EN
Livro IX) No conviacutevio desses homens em comunidade eacute que aparecem
as emoccedilotildees e por isso o papel de destaque que o paacutethos tem na eacutetica
aristoteacutelica e na sua proposta da vida feliz motivo suficiente para nos
encorajar a continuar a pesquisar sobre o papel das emoccedilotildees na boa vida
descrita pelo filoacutesofo Para ressaltar essa interpretaccedilatildeo devemos
continuar a examinar as propostas de EN I 13 acerca das diferentes
capacidades aniacutemicas e buscar compreender como essas tais
capacidades podem estar associadas agrave emoccedilatildeo e ao seu papel junto agrave
eudaiacutemōniacutea aleacutem de deixar clara sua possibilidade de participaccedilatildeo na
razatildeo (praacutetica)
3a) Capacidades da alma
Diante das propostas de I 13 o que podemos depreender a
respeito da alma e suas capacidades O passo provavelmente
interessado em introduzir a discussatildeo das virtudes mais especificamente
da virtude moral frente agrave felicidade humana acaba por natildeo trazer
grandes informaccedilotildees sobre a psychḗ Eacute possiacutevel poreacutem apreender um
pouco mais que a famosa e provavelmente popular biparticcedilatildeo da alma
se contarmos na medida do possiacutevel com explanaccedilotildees esclarecedoras
apresentadas pelo DA Para comeccedilar podemos questionar a ideia de
uma alma partiacutevel Em decorrecircncia disso parece viaacutevel o questionamento acerca da capacidade racional e da natildeo racional e de
suas (sub)capacidades assunto que ganharaacute ainda mais esclarecimento
ao tratarmos as propostas do Livro VI sobre as virtudes intelectuais no
capiacutetulo que se seguiraacute
44
A discussatildeo sobre as emoccedilotildees nos conduziu agrave reflexatildeo acerca das
chamadas ldquopartesrdquo da alma agraves quais nos referiremos aqui pela palavra
ldquocapacidadesrdquo24 ideia que parece mais adequada agravequilo que
interpretamos como real teoria da alma em Aristoacuteteles pois o termo
grego em questatildeo eacute dyacutenamis Com EN I 13 propusemos uma capacidade
racional da alma e uma capacidade natildeo racional sendo que nesta uacuteltima
eacute demasiado importante agrave presente investigaccedilatildeo sua possibilidade de
ouvir a razatildeo Eacute duacutevida frequente entre os estudiosos da psychḗ25 e do
assunto especialmente no DA se Aristoacuteteles realmente haveria dividido
a alma como observa Bastit ao se perguntar ldquoO que eacute uma parte da
alma para Aristoacuteteles26rdquo A questatildeo eacute importante para o nosso estudo
porque nos levaraacute a entender melhor as possibilidades de mudanccedilas
nasdas emoccedilotildees a fim de que concordem com a razatildeo praacutetica Essas
variaccedilotildees satildeo necessaacuterias agrave vida feliz aleacutem de nos ajudar a entender
melhor a postura de Aristoacuteteles acerca da relaccedilatildeo corpoalma colocando
nossa investigaccedilatildeo no centro de debates ativos e atuais a respeito das
propostas do nosso filoacutesofo
Ao tratar uma possiacutevel divisatildeo da alma em partes Aristoacuteteles
ressalta que existem aqueles pensadores que a dividem e julgam que em
uma destas secccedilotildees estaria o pensar em outra o apetite Se assim fosse
questiona o que manteria a alma unida Afirma que natildeo seria o corpo e
pondera ldquoAo contraacuterio parece mais que eacute a alma que manteacutem junto o
corpo pois quando ela o abandona ele se dissipa e corromperdquo (DA I 5
411b7-8)27 Se algo diferente do corpo manteacutem a alma una seria a
proacutepria psychḗ e seria necessaacuterio investigar novamente se eacute uma unidade
ou se se divide em muitas partes O tal unificador sendo uno seria
igualmente correto afirmar que a alma eacute una Se fosse divisiacutevel seria
preciso novamente buscar o que manteacutem esse unificador coeso mas isso
24 Escolhemos traduzir dyacutenamis por ldquocapacidaderdquo tambeacutem pelo fato de termos
traduzido eacutergon por ldquofunccedilatildeordquo Traduzir ambos os termos por ldquofunccedilatildeordquo poderia
comprometer o entendimento de nossas propostas 25Novamente a conversa pode ser travada com Platatildeo que por exemplo no
Timeu (69c et seq) trata da particcedilatildeo da alma em racional e natildeo-racional
mortal e imortal base para a triparticcedilatildeo da alma em racional impulsiva e
apetitiva proposta pelo filoacutesofo ateniense 26 A frase que convenientemente nos serve como indagaccedilatildeo eacute o tiacutetulo do artigo
redigido pelo estudioso em questatildeo e que nos ajudaraacute a defender algumas das
ideias que aqui apresentaremos 27 Todas as citaccedilotildees feitas do DA tecircm traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos
Reis (2006) e seratildeo indicadas em rodapeacute no original δοκεῖ γὰρ τοὐναντίον
μᾶλλον ἡ ψυχὴ τὸ σῶμα συνέχειν ἐξελθούσης γοῦν διαπνεῖται καὶ σήπεται
45
levaria a uma progressatildeo ao infinito e seria ininteligiacutevel o que natildeo eacute
aceitaacutevel para Aristoacuteteles
Quanto agraves partes ou capacidades da alma igualmente haacute um
problema ldquoque potecircncia cada uma possui no corpordquo (DA I 5 411b15)28
Se a alma inteira eacute responsaacutevel por manter o corpo unido seria
conveniente que cada uma das suas partes mantivesse unida uma parte
do corpo Para Aristoacuteteles isso parece impossiacutevel pois seria difiacutecil
imaginar qual parte do corpo o intelecto manteria unida jaacute que parece
natildeo haver um oacutergatildeo especiacutefico correspondente agrave funccedilatildeo intelectiva o
que dificultaria igualmente saber o modo como o faria Ademais eacute
sabido que algumas espeacutecies de plantas e animais quando seccionados
continuam a viver como se tivessem a mesma alma embora natildeo
numericamente jaacute que cada uma das partes tem sensaccedilatildeo e se move
localmente ainda por um tempo Caso natildeo sobrevivam natildeo seria um
absurdo pois natildeo manteriam oacutergatildeos que lhes permitiriam continuar a
viver Assim em cada uma das partes do corpo estatildeo todas as partes ou
capacidades da alma como nos explica Bastit no passo abaixo
Assim eacute preservada uma certa determinaccedilatildeo local
dos atos de certos sentidos ndash a vista eacute o fato do
olho ndash que natildeo implica a separaccedilatildeo nem das partes
da alma nem das funccedilotildees dos sentidos e que por
consequecircncia natildeo causa subordinaccedilatildeo das partes
da alma agraves partes do corpo mas bem ao contraacuterio
uma subordinaccedilatildeo dos oacutergatildeos ao ato da parte da
alma da qual satildeo o instrumento o olho agrave visatildeo
por exemplo Por analogia a faculdade eacute
subordinada agrave alma inteira e natildeo eacute separada
Por conseguinte o ato da alma inteira deve poder
efetivamente se manifestar em todas as partes do
vivente Tratando-se de um ato este deve ser
constataacutevel Eacute justamente por isso que Aristoacuteteles
recorre ainda para repelir simultaneamente a
separaccedilatildeo real das partes da alma e sua
localizaccedilatildeo a uma observaccedilatildeo no quadro do qual
o ato do vivente inteiramente presente atualiza as
faculdades da alma do observador Ele nota na
verdade que ldquoeacute evidente que as plantas divididas
vivemrdquo Cada buquecirc de flores nos mostra isso []
Isso significa que a alma inteira princiacutepio de vida
estaacute presente em cada segmento vivente O que o
28 No original τίν ἔχει δύναμιν ἕκαστον ἐν τῷ σώματι
46
indica eacute sua capacidade de se mover e de sentir
(BASTIT 1996 p 23-24 traduccedilatildeo nossa)
Tais informaccedilotildees conduzem o estudioso da alma em Aristoacuteteles a
pensar qual a natureza do objeto em questatildeo Ao longo do DA existem
algumas tentativas de definir o que seria a alma e estas parecem levar a
entender que a melhor forma de defini-la seria a partir das capacidades
que faculta ao corpo desempenhar Para informar melhor ao interessado
nas coisas aniacutemicas o que seja a psychḗ e sua funccedilatildeo proacutepria Aristoacuteteles
escreve ldquodigamos entatildeo que o animado se distingue do inanimado pelo
viver E de muitos modos se diz o viver pois dizemos que algo vive se
nele subsiste pelo menos um destes ndash intelecto percepccedilatildeo sensiacutevel
movimento local e repouso e ainda o movimento segundo a nutriccedilatildeo o
decaimento e o crescimentordquo (DA II 2 413a20-25)29 Mesmo que as
capacidades natildeo estejam presentes em todos os viventes parece que a
melhor forma de entender a alma desde as plantas ateacute animais mais
complexos como o homem eacute como princiacutepio animador que confere
capacidades A psychḗ conferiria vida ao todo orgacircnico constituinte do
corpo sendo este conjunto de mateacuteria e forma como jaacute propusemos30
Tais capacidades permitem ao homem desde o mais simples tato ateacute a
percepccedilatildeo sensiacutevel mais sutil que conduziria agrave phantasiacutea como podemos
ler no passo que segue
O viver subsiste nos seres vivos por conta deste
princiacutepio e o animal constitui-se primordialmente
pela percepccedilatildeo sensiacutevel Pois dizemos que satildeo
animais ndash e natildeo apenas que vivem ndash tambeacutem os
que natildeo se movem nem mudam de lugar mas
possuem percepccedilatildeo E da percepccedilatildeo eacute o tato que
em todos subsiste primeiro E assim como a
capacidade nutritiva pode estar separada do tato e
de toda e qualquer percepccedilatildeo sensiacutevel tambeacutem o
29 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis no original λέγομεν οὖν ἀρχὴν
λαβόντες τῆς σκέψεως διωρίσθαι τὸ ἔμψυχον τοῦ ἀψύχου τῷ ζῆν πλεοναχῶς
δὲ τοῦ ζῆν λεγομένου κἂν ἕν τι τούτων ἐνυπάρχῃ μόνον ζῆν αὐτό φαμεν οἷον
νοῦς αἴσθησις κίνησις καὶ στάσις ἡ κατὰ τόπον ἔτι κίνησις ἡ κατὰ τροφὴν καὶ
φθίσις τε καὶ αὔξησις 30 Sobre a questatildeo da alma como conjunto de mateacuteria e forma questatildeo que
renderia ao menos um capiacutetulo agrave parte eacute possiacutevel ler mais nos dois capiacutetulos
escritos por Robinson e dedicados agrave questatildeo da alma em Aristoacuteteles em seu As
origens da alma
47
tato pode estar separado dos demais sentidos
Denominamos nutritiva tal parte da alma da qual
participam tambeacutem as plantas Todos os animais
por outro lado revelam possuir o sentido do tato ndash
e diremos posteriormente por meio de que causa
cada uma dessas coisas Por ora eacute suficiente dizer
apenas isto que a alma eacute princiacutepio das
capacidades mencionadas ndash nutritiva perceptiva
raciocinativa e de movimento ndash e que por elas eacute
definida (DA II 2 413b1-13)31
Conferindo unidade agrave sua psychḗ Aristoacuteteles abre para noacutes uma
possibilidade maior de entender a participaccedilatildeo do sensiacutevel no inteligiacutevel
bem como do racional no natildeo racional da alma descrita na EN Sendo
capacidades de algo uno natildeo seriam totalmente desconectadas
relacionando-se de algum modo como explica o Zingano ldquoA alma eacute
uma uacutenica forma com diferentes funccedilotildeesrdquo (Zingano 1998 p 37)
Retornando agraves capacidades que vivificam o corpo podemos
entender que alguns seres tecircm capacidade perceptiva e igualmente
desiderativa porque o desejo eacute querer (bouacutelēsis) impulso (thymoacutes) e
apetite (epithymiacutea DA II 3 414b2) Capacidades que estatildeo ao menos a
princiacutepio associadas agraves formas da percepccedilatildeo sensiacutevel e aos sentidos que
lhes correspondem que na descriccedilatildeo de Aristoacuteteles satildeo os mesmos que
ainda conhecemos tato olfato paladar visatildeo e audiccedilatildeo
Para que os viventes sejam classificados como animais todos
devem possuir ao menos um desses sentidos o tato Os animais que
apresentam percepccedilatildeo sensiacutevel igualmente tecircm prazer e dor Ao serem
capazes de perceber o prazeroso e o doloroso tambeacutem apresentam
apetite que eacute desejo pelo prazeroso (DA II 3 414b5-6) fogem ou
buscam o que lhes aparece como prazeroso Tais animais apresentam
obviamente percepccedilatildeo do alimento pelo tato sentido por meio do
31 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original τὸ μὲν οὖν ζῆν διὰ τὴν
ἀρχὴν ταύτην ὑπάρχει τοῖς ζῶσι τὸ δὲ ζῷον διὰ τὴν αἴσθησιν πρώτως καὶ γὰρ
τὰ μὴ κινούμενα μηδ ἀλλάττοντα τόπον ἔχοντα δ αἴσθησιν ζῷα λέγομεν καὶ
οὐ ζῆν μόνον αἰσθήσεως δὲ πρῶτον ὑπάρχει πᾶσιν ἁφή ὥσπερ δὲ τὸ θρεπτικὸν
δύναται χωρίζεσθαι τῆς ἁφῆς καὶ πάσης αἰσθήσεως οὕτως ἡ ἁφὴ τῶν ἄλλων
αἰσθήσεων (θρεπτικὸν δὲ λέγομεν τὸ τοιοῦτον μόριον τῆς ψυχῆς οὗ καὶ τὰ
φυόμενα μετέχει) τὰ δὲ ζῷα πάντα φαίνεται τὴν ἁπτικὴν αἴσθησιν ἔχοντα δι
ἣν δ αἰτίαν ἑκάτερον τούτων συμβέβηκεν ὕστερον ἐροῦμεν νῦν δ ἐπὶ
τοσοῦτον εἰρήσθω μόνον ὅτι ἐστὶν ἡ ψυχὴ τῶν εἰρημένων τούτων ἀρχὴ καὶ
τούτοις ὥρισται θρεπτικῷ αἰσθητικῷ διανοητικῷ κινήσει
48
paladar Todos os seres vivos se alimentam de coisas secas e uacutemidas
quentes e frias percebidas pelo tocar mas os seres vivos que possuem
tato igualmente possuem desejo Aristoacuteteles parece mesmo admitir a
existecircncia de imaginaccedilatildeo nesses animais embora afirme que esse
assunto natildeo estaacute esclarecido e que a phantasiacutea seraacute analisada
posteriormente anaacutelise que tambeacutem efetuaremos posteriormente Com
as descriccedilotildees e afirmaccedilatildeo feitas ateacute agora percebemos uma espeacutecie de
hierarquia entre as capacidades Mas qual a razatildeo de serem dispostas
em sucessatildeo A resposta do filoacutesofo eacute que
[] sem a nutritiva natildeo existe a capacidade
perceptiva embora nas plantas a nutritiva exista
separada da perceptiva E novamente sem o tato
nenhum dos outros sentidos subsiste embora o
tato subsista sem os outros pois diversos animais
natildeo tecircm a capacidade perceptiva uns tecircm a
locomotiva e outros natildeo Por fim pouquiacutessimos
tecircm caacutelculo e raciociacutenio Pois entre os seres
pereciacuteveis naqueles em que subsiste caacutelculo
tambeacutem subsiste cada uma das outras nem todos
tecircm caacutelculo (e alguns nem sequer imaginaccedilatildeo ao
passo que outros vivem unicamente por meio
dela) O intelecto capaz de inquirir requer uma
outra discussatildeo Eacute claro entatildeo que o enunciado
de cada uma destas capacidades eacute tambeacutem o mais
apropriado a respeito da alma (DA II 3 415a1-
13)32
A relaccedilatildeo entre as capacidades em sucessatildeo indica como
buscamos defender a unidade da alma que permite falar de emoccedilotildees
educaacuteveis graccedilas aos seus contatos com a capacidade racional e aos
elementos de racionalidade presentes em sua constituiccedilatildeo sendo por
32 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original ἄνευ μὲν γὰρ τοῦ
θρεπτικοῦ τὸ αἰσθητικὸν οὐκ ἔστιν τοῦ δ αἰσθητικοῦ χωρίζεται τὸ θρεπτικὸν
ἐν τοῖς φυτοῖς πάλιν δ ἄνευ μὲν τοῦ ἁπτικοῦ τῶν ἄλλων αἰσθήσεων οὐδεμία
ὑπάρχει ἁφὴ δ ἄνευ τῶν ἄλλων ὑπάρχει πολλὰ γὰρ τῶν ζῴων οὔτ ὄψιν οὔτ
ἀκοὴν ἔχουσιν οὔτ ὀσμῆς αἴσθησιν καὶ τῶν αἰσθητικῶν δὲ τὰ μὲν ἔχει τὸ κατὰ
τόπον κινητικόν τὰ δ οὐκ ἔχει τελευταῖον δὲ καὶ ἐλάχιστα λογισμὸν καὶ
διάνοιαν οἷς μὲν γὰρ ὑπάρχει λογισμὸς τῶν φθαρτῶν τούτοις καὶ τὰ λοιπὰ
πάντα οἷς δ ἐκείνων ἕκαστον οὐ πᾶσι λογισμός ἀλλὰ τοῖς μὲν οὐδὲ φαντασία
τὰ δὲ ταύτῃ μόνῃ ζῶσιν περὶ δὲ τοῦ θεωρητικοῦ νοῦ ἕτερος λόγος ὅτι μὲν οὖν
ὁ περὶ τούτων ἑκάστου λόγος οὗτος οἰκειότατος καὶ περὶ ψυχῆς δῆλον
49
isso assunto relevante agrave nossa pesquisa Fazemos tal afirmaccedilatildeo porque a
capacidade perceptiva mencionada no passo manteacutem contato com a
desiderativa e portanto aparece como relacionada agraves afecccedilotildees do corpo
e da alma dentre as quais estatildeo aquilo que buscamos entender como
emoccedilotildees Estando tal capacidade atrelada igualmente agraves formas que
facultam ao homem conhecer o mundo ao seu redor voltaremos ao
assunto da percepccedilatildeo sensiacutevel mais tarde Por ora nos damos por
satisfeitos em compreender e esclarecer certas questotildees levantadas pelo
comeccedilo da EN acerca da alma e de suas capacidades a) Aristoacuteteles
assim como pensadores precedentes realmente propocircs uma divisatildeo da
alma Entendemos que na EN e em Aristoacuteteles de um modo geral natildeo
haacute cisatildeo na alma e nem entre corpo e alma b) Entatildeo por que falar em
parte (moacuterion) da alma A discussatildeo sobre as partes da alma aparece
mais detalhadamente no DA em uma franca discussatildeo com os filoacutesofos
que se dedicaram anteriormente agrave questatildeo Em Aristoacuteteles mesmo na
EN aquilo que costuma ser chamado ldquoparterdquo da alma parece ser
capacidade daquilo que o filoacutesofo entende por psychḗ sendo esta
definida pelo que faculta ao corpo com o qual forma um todo
substancialmente uno desempenhar o exerciacutecio de suas capacidades -
das mais baacutesicas agraves mais complexas Acrescentamos ainda apoacutes o
estudo dos dois tratados em questatildeo nesse momento que a alma move
sem ser movida quando se trata do movimento local e de certas partes
do corpo Por esses motivos compreendemos tambeacutem que as afecccedilotildees da
alma dentre as quais estatildeo as emoccedilotildees aqui estudadas causam
mudanccedilas fiacutesicas embora natildeo necessariamente causem movimentos de
deslocamento mas podem influenciar nos movimentos dos animais
dotados de percepccedilatildeo sensiacutevel ldquoPois o perceber eacute ser afetado por algo
de maneira que o agente torna como si mesmo em atividade aquele que
eacute tal em potecircnciardquo (DA II 11 423b30-424a1)33
O estudo da alma e de suas capacidades nos levou agrave discussatildeo da
existecircncia de ldquopartesrdquo distintas e componentes de uma alma teoria que
com ajuda de Aristoacuteteles e de alguns comentadores como Zingano e
Bastit acabamos por rejeitar Mas por que deveriacuteamos nos deter em
uma pesquisa sobre uma alma partiacutevel ou unitaacuteria em um trabalho que
se pretende de cunho eacutetico A questatildeo comeccedila a ser respondida ainda
por EN I 13 passo no qual Aristoacuteteles menciona uma alma bipartida a
fim de defender a existecircncia de diferentes virtudes que comporiam a
33 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original τὸ δὲ αἰσθητήριον αὐτῶν
τὸ ἁπτικόν καὶ ἐν ᾧ ἡ καλουμένη ἁφὴ ὑπάρχει αἴσθησις πρώτῳ τὸ δυνάμει
τοιοῦτόν ἐστι μόριον
50
vida feliz Entender essa proposta somente agraves luzes da EN natildeo nos
pareceu suficiente e por isso optamos por recorrer ao DA obra
dedicada quase exclusivamente ao assunto Nesse tratado bem como ao
longo da exposiccedilatildeo da EN percebemos que a interpretaccedilatildeo de uma alma
natildeo divisiacutevel apesar de contrariar boa parte dos filoacutesofos precedentes
que dedicaram tempo agrave questatildeo contemplaria nossa interpretaccedilatildeo das
emoccedilotildees jaacute que o filoacutesofo estudado as propotildee como ldquopertencentesrdquo agrave
capacidade desiderativa da alma capaz de participar da razatildeo
Cremos que a uacutenica forma de acatar essa proposta seria
compreender a alma como algo uno sem partes totalmente isoladas
umas das outras Defendemos essa interpretaccedilatildeo a fim de que as
capacidades aniacutemicas pudessem se comunicar de que o desiderativo
participasse da razatildeo a despeito da proposta da capacidade nutritiva
acima apresentada Esta capacidade igualmente participa da vida
humana mais completa pois natildeo eacute possiacutevel a homem nenhum nem
mesmo aos filoacutesofos deixar de se alimentar por exemplo Tendo em
vista nosso interesse nas relaccedilotildees das emoccedilotildees com a razatildeo e sendo a
capacidade desiderativa o caminho possibilitador de tal relaccedilatildeo em uma
alma una que reflete um desejo capaz de se associar agrave razatildeo cabe-nos
agora estudar ao menos em grandes linhas a capacidade desiderativa da
alma humana Voltaremos agrave questatildeo da unidade da alma no capiacutetulo III
a fim de concluir nossos estudos sobre as emoccedilotildees na alma humana e
sua possiacutevel racionalidade
3b) A capacidade desiderativa da alma as accedilotildees e as emoccedilotildees na vida
feliz
Para dar prosseguimento agrave nossa busca por esclarecer os pontos
suscitados por EN I 13 trataremos agora a capacidade desiderativa da
alma humana As consideraccedilotildees supramencionadas nos levam a pensar
um desejo que apresenta trecircs formas quanto agrave sua capacidade de ouvir e
obedecer agrave razatildeo34 (DA II 12 414b2) Essas possibilidades por sua vez
perfazem uma capacidade desiderativa global e una (haplṓs orektikoacuten)
a oacuterexis Vejamos melhor qual a influecircncia desta capacidade aniacutemica no
se emocionar e no agir mas comecemos seguindo o conselho de
Aristoacuteteles e buscando entender o desejo O desiderativo estaacute entre aquelas capacidades que permitem ao
34 Ver EN II - III 1111a23-35 1111b1-3 sobre as emoccedilotildees natildeo racionais
conformes aos desejos natildeo racionais tambeacutem Sorabji (2002 p 323) e AGGIO
(2017 no prelo)
51
corpo executar as atividades indispensaacuteveis agrave sua existecircncia a nutriccedilatildeo
a percepccedilatildeo e o raciociacutenio A funccedilatildeo desiderativa seria comum a todos
os animais embora somente o homem possuiacutesse todas as dynaacutemeis (capacidades) mencionadas sendo o desejo natural ao homem Como
isso pode ser importante se nesse ponto do estudo temos em vista a
definiccedilatildeo de emoccedilatildeo frente a uma vida feliz A resposta eacute Aristoacuteteles
considera que na alma haacute trecircs fatores determinantes da accedilatildeo e da
verdade sensaccedilatildeo intelecto e desejo (aiacutesthēsis noucircs oacuterexis) mas a
sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepio da accedilatildeo moral pois mesmo as bestas a
possuem Ocasionaria o movimento comum a todos os viventes mas a
accedilatildeo eacute composta por movimentos fiacutesicos todavia tendo em vista um
fim especiacutefico e bom quando da associaccedilatildeo entre desejo e intelecto seria
propriamente humana assunto que abordaremos em maiores detalhes
adiante
A afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo satildeo da ordem do pensamento o buscar e
o fugir satildeo da ordem do desiderativo (EN VI 2 1139a20-22) As
aparecircncias que excitam o desejo levam agrave emoccedilatildeo e podem levar a
formulaccedilatildeo de tipos de juiacutezos (DA III 9 MA II) Ainda que o orthograves
loacutegos (reta razatildeo) segundo Tricot (2012 p 298) seja a maacutexima geral da
conduta e que deste modo o pensamento deva determinar aquilo a ser
alcanccedilado o intelecto por si mesmo natildeo move pois ldquoda parte do
intelecto praacutetico seu bom estado consiste na verdade correspondente ao
desejo ao desejo corretordquo (EN 1139a29-31)35 Sem a oacuterexis que define
o fim a se buscar natildeo haacute accedilatildeo Assim o desejaacutevel eacute a causa final da
accedilatildeo e o desejo pode ser sua causa eficiente quando conjugado ao
intelecto praacutetico fazendo mover na direccedilatildeo do que eacute correto Este
intelecto depois que a oacuterexis determina o objeto a se buscar potildee-se a
procurar os meios necessaacuterios para que se alcance aquilo que eacute desejado
Apoacutes determinados os meios a tarefa de tal intelecto estaacute completa e
vem a accedilatildeo quem move portanto eacute um intelecto que tem em vista um
fim e que eacute de ordem praacutetica ou seja associado ao desejo que precede a
atividade no tempo (EN X 5 1175b30-33)36 Quanto a isso o DA
explica
Aleacutem disso mesmo que o intelecto ordene e o
raciociacutenio diga que se evite ou busque algo o
35 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original τοῦ δὲ πρακτικοῦ καὶ διανοητικοῦ ἀλήθεια ὁμολόγως
ἔχουσα τῇ ὀρέξει τῇ ὀρθῇ 36 Mas o prazer lhe eacute simultacircneo
52
indiviacuteduo natildeo se move mas age de acordo com o
apetite como no caso dos incontinentes []
Tampouco o desejo eacute responsaacutevel por esse
movimento pois os que satildeo continentes mesmo
desejando e tendo apetite natildeo fazem essas coisas
pelas quais tecircm desejo mas seguem o intelecto
Mostra-se entatildeo que haacute dois fatores que fazem
mover o desejo ou o intelecto contanto que se
considere a imaginaccedilatildeo um certo pensamento
Pois muitos seguem sua imaginaccedilatildeo em vez da
ciecircncia mas nos outros animais natildeo haacute nem
pensamento nem raciociacutenio e sim imaginaccedilatildeo
Logo satildeo estes os dois capazes de fazer mover
segundo o lugar o intelecto que raciocina em
vista de algo e que eacute praacutetico o qual difere do
intelecto contemplativo quanto ao fim E todo
desejo por sua vez eacute em vista de algo pois aquilo
de que haacute desejo eacute o princiacutepio do intelecto praacutetico
ao passo que o uacuteltimo item pensado eacute o princiacutepio
da accedilatildeo (DA III 9-10 433a1-17)37
Assim confirma-se que satildeo o desejo e o intelecto praacutetico que
fazem mover porque o objeto desejado leva ao movimento e o intelecto
determina como buscaacute-lo Em uacuteltima anaacutelise existe ldquoalgo uacutenico de fato
que faz mover o desejaacutevelrdquo (tograve orektoacuten DA 433a18-20 cf Besnier
2008 p 58)38 Isso acontece porque o desejo eacute princiacutepio indispensaacutevel
da accedilatildeo e quando a imaginaccedilatildeo move igualmente natildeo o faz sem desejo
Se intelecto e desejo movessem quanto ao lugar moveriam segundo
uma forma comum Isso implica que quando o desejo concorda desde o
iniacutecio e sem grandes resistecircncias com o intelecto eacute sua forma querer
37 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original ἔτι καὶ ἐπιτάττοντος τοῦ
νοῦ καὶ λεγούσης τῆς διανοίας φεύγειν τι ἢ διώκειν οὐ κινεῖται ἀλλὰ κατὰ τὴν
ἐπιθυμίαν πράττει οἷον ὁ ἀκρατής [] ἀλλὰ μὴν οὐδ ἡ ὄρεξις ταύτης κυρία
τῆς κινήσεως οἱ γὰρ ἐγκρατεῖς ὀρεγόμενοι καὶ ἐπιθυμοῦντες οὐ πράττουσιν ὧν
ἔχουσι τὴν ὄρεξιν ἀλλ ἀκολουθοῦσι τῷ νῷ Φαίνεται δέ γε δύο ταῦτα
κινοῦντα ἢ ὄρεξις ἢ νοῦς εἴ τις τὴν φαντασίαν τιθείη ὡς νόησίν τινα πολλοὶ
γὰρ παρὰ τὴν ἐπιστήμην ἀκολουθοῦσι ταῖς φαντασίαις καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις ζῴοις
οὐ νόησις οὐδὲ λογισμὸς ἔστιν ἀλλὰ φαντασία ἄμφω ἄρα ταῦτα κινητικὰ κατὰ
τόπον νοῦς καὶ ὄρεξις νοῦς δὲ ὁ ἕνεκά του λογιζόμενος καὶ ὁ πρακτικός
διαφέρει δὲ τοῦ θεωρητικοῦ τῷ τέλει καὶ ἡ ὄρεξις ltδgt ἕνεκά του πᾶσα οὗ γὰρ
ἡ ὄρεξις αὕτη ἀρχὴ τοῦ πρακτικοῦ νοῦ τὸ δ ἔσχατον ἀρχὴ τῆς πράξεως ὥστε
εὐλόγως δύο ταῦτα φαίνεται τὰ κινοῦντα ὄρεξις καὶ διάνοια πρακτική 38 Idem no original ἓν δή τι τὸ κινοῦν τὸ ὀρεκτικόν
53
(bouacutelēsis) que move O desejo contudo eacute capaz de mover sem o
raciociacutenio jaacute que o apetite (epithymiacutea) pode ser um tipo de desejo natildeo
conformado ou minimamente conformado ao intelecto ldquoIntelecto
entatildeo eacute sempre correto ao passo que o desejo e a imaginaccedilatildeo ora
corretos ora natildeo corretos Por isso eacute sempre o desejaacutevel que move
embora este seja tanto o bem como o bem aparente mas natildeo todo o
bem e sim o bem praacutetico apenas E o praticaacutevel eacute o que admite ser de
outro modordquo (DA III 10 433a26-30)39 Fica claro entatildeo que eacute uma
capacidade da alma do tipo desiderativo que move (DA III 10 433a31-
32) embora o proacuteprio desejaacutevel se mantenha estaacutetico ldquoEm suma eacute isto
o que foi dito na medida em que o animal eacute capaz de desejar por isso
mesmo ele eacute capaz de se moverrdquo (DA III 10 433b27-28)40 portanto sem
desejo natildeo haacute accedilatildeo Deste modo Aristoacuteteles apresenta a equaccedilatildeo cujos
termos resultam na accedilatildeo
[] primeiro o que faz mover segundo aquilo
por meio de que move e terceiro aquele que eacute
movido E de dois tipos o que faz mover ndash um eacute o
imoacutevel outro eacute o que faz mover sendo movido -
o bem praticaacutevel por sua vez eacute imoacutevel o que faz
mover sendo movida eacute a capacidade de desejar
(pois aquele que deseja move-se enquanto deseja
e o desejo eacute um certo movimento quando eacute desejo
em ato) e aquele que eacute movido por fim eacute o
animal O oacutergatildeo por meio do qual o desejo move
eacute de sua parte algo corporal ndash e por isso eacute nas
funccedilotildees comuns ao corpo e agrave alma que se deve
inquirir sobre ele (DA III 10 433b13-21)41
39 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original νοῦς μὲν οὖν πᾶς ὀρθός
ἐστιν ὄρεξις δὲ καὶ φαντασία καὶ ὀρθὴ καὶ οὐκ ὀρθή διὸ ἀεὶ κινεῖ μὲν τὸ
ὀρεκτόν ἀλλὰ τοῦτ ἐστὶν ἢ τὸ ἀγαθὸν ἢ τὸ φαινόμενον ἀγαθόν οὐ πᾶν δέ
ἀλλὰ τὸ πρακτὸν ἀγαθόν πρακτὸν δ ἐστὶ τὸ ἐνδεχόμενον καὶ ἄλλως ἔχειν 40 Idem no original ὅλως μὲν οὖν ὥσπερ εἴρηται ᾗ ὀρεκτικὸν τὸ ζῷον ταύτῃ
αὑτοῦ κινητικόν 41 Idem no original ἐπεὶ δ ἔστι τρία ἓν μὲν τὸ κινοῦν δεύτερον δ ᾧ κινεῖ ἔτι
τρίτον τὸ κινούμενον τὸ δὲ κινοῦν διττόν τὸ μὲν ἀκίνητον τὸ δὲ κινοῦν καὶ
κινούμενον ἔστι δὴ τὸ μὲν ἀκίνητον τὸ πρακτὸν ἀγαθόν τὸ δὲ κινοῦν καὶ
κινούμενον τὸ ὀρεκτικόν (κινεῖται γὰρ τὸ κινούμενον ᾗ ὀρέγεται καὶ ἡ ὄρεξις
κίνησίς τίς ἐστιν ἡ ἐνεργείᾳ) τὸ δὲ κινούμενον τὸ ζῷον ᾧ δὲ κινεῖ ὀργάνῳ ἡ
ὄρεξις ἤδη τοῦτο σωματικόν ἐστιν ndash διὸ ἐν τοῖς κοινοῖς σώματος καὶ ψυχῆς
ἔργοις θεωρητέον περὶ αὐτοῦ
54
O passo do DA esclarece que o desejo eacute entendido como uma
capacidade da alma que move a accedilatildeo por isso dizendo respeito aos fins
Eacute todavia especificamente EN I 13 que primeiro indica o desejo como
devendo se harmonizar com as sugestotildees de accedilatildeo do intelecto praacutetico
para que este mova de certo modo (ou do modo certo) Estes podem se
harmonizar pois o desejo pelo que foi exposto nas obras estudadas
apesar de natildeo racional eacute capaz ouvir e seguir a razatildeo mais ou menos
quando educado e bem-educado ouve-a mais O mesmo parece ser
vaacutelido quanto agraves emoccedilotildees devido agrave sua natureza desiderativa podem
ouvir e obedecer ou seja ser educadas conforme o orthograves loacutegos como
proposto na exposiccedilatildeo de Aggio
Pois bem ao contraacuterio da moral estoacuteica
Aristoacuteteles pressupotildee uma possiacutevel e necessaacuteria
harmonia das nossas afecccedilotildees da parte natildeo
racional tais como os desejos e as emoccedilotildees com
a nossa racionalidade praacutetica Para ele desejo e
razatildeo satildeo inseparaacuteveis como o corpo e a alma a
cera e o selo impresso o maacutermore e a estaacutetua
Inseparaacuteveis todavia distintos Por isso mesmo
desprovido ele proacuteprio de razatildeo o desejo pode
participar dela e por outro lado mesmo a razatildeo
desprovida de desejo ela pode participar dele
(AGGIO 2017 no prelo)
Sendo assim o desejo eacute o que nos move e sendo o movimento
um tipo de alteraccedilatildeo imprescindiacutevel agrave prāxis sofrida ao mesmo tempo
pelo corpo e pela alma entendemos por que o apetite estaacute na lista das
paacutethē na EN Tal presenccedila confirma nossa proposta da existecircncia de um
significado mais amplo para o termo que o nosso entendimento hodierno
de emoccedilatildeo ou paixatildeo mas como vimos Aristoacuteteles expotildee mais de uma
forma de desejo e relaciona tais formas a diferentes emoccedilotildees Portanto
seraacute preciso discutir o assunto que ainda nos eacute um tanto obscuro e
problemaacutetico para que possamos compreender melhor nosso objeto de
estudo atrelado como estaacute desde a alma ao desejo
3b1) Desejos
Apoacutes definir brevemente a forma geral do desejo e abordar a
capacidade aniacutemica que eacute responsaacutevel por ela resta tratar suas formas
especiacuteficas Como expusemos pouco acima Aristoacuteteles distingue trecircs
formas de sentir dentro da faculdade desiderativa querer impulso e
55
apetite Estas satildeo importantes agrave medida que se associam agraves diferentes
emoccedilotildees bem como influenciam accedilotildees variadas e que estatildeo em poder
dos agentes Ao falar de trecircs tipos de desejo contudo deveriacuteamos inferir
que a capacidade desiderativa eacute passiacutevel de divisatildeo Aristoacuteteles estaria a
concordar com Platatildeo e a propor um desejo dividido em trecircs Trechos
como Retoacuterica 1369a1-7 nos apresentam diferentes desejos racionais e
irracionais todavia isso natildeo implica que o desejo em Aristoacuteteles seja
seccionado Pensamos jaacute ter esclarecido que Aristoacuteteles fala de uma
cisatildeo da alma para se posicionar frente aos pensadores de sua eacutepoca e
provavelmente para abordar a existecircncia de virtudes morais e
intelectuais Existem contudo posturas como as de Cooper (1999 p
256 et seq) que defende a existecircncia de desejo racional e desejos natildeo
racionais Se todavia classificamos o desiderativo como capacidade da
alma e entendemos que esta natildeo pode ser fracionada respondemos
negativamente agrave possibilidade de fracionamento do desejo Temos uma
capacidade que pode ouvir mais ou menos agrave razatildeo conforme seus
objetos sendo por isso una e complexa como nos explica Aggio
Primeiramente se jaacute eacute um erro dividir a alma em
partes seria com mais razatildeo absurdo dividir a
faculdade desiderativa colocando o querer na
parte racional mas o apetite e o impulso na parte
natildeo racional ou mesmo distribuindo o desejo em
trecircs partes se reconhececircssemos trecircs partes da
alma como fez Platatildeo em Repuacuteblica livro IV
Ao contraacuterio o desejo natildeo se divide em partes
mas se diz de trecircs modos conforme a razatildeo o
prazer e a dor visto que o desejo (oacuterexis) eacute tanto o
querer (bouacutelēsis) o apetite (epithymiacutea) e impulso
(thymoacutes) (AGGIO 2017 no prelo)
Haacute diferentes desejos sob a capacidade desiderativa da
alma que satildeo capazes de participar da razatildeo de modos diferentes
negando a possibilidade de perceber em Aristoacuteteles uma triparticcedilatildeo do
desejo de tipo platocircnica Por tal motivo trataremos sucintamente de
cada forma do desejo e buscaremos ressaltar suas qualidades pateacuteticas
bem como suas relaccedilotildees com as emoccedilotildees Cremos que isso ao fim de nossa pesquisa nos permitiraacute responder agraves questotildees que propomos
devido agrave possibilidade de educaccedilatildeo e de habituaccedilatildeo dos desejos agraves boas
accedilotildees conformes agrave razatildeo Portanto observaremos agora e brevemente
as formas particulares do desejo
56
3b2) Os desejos menos racionais
Aristoacuteteles nos apresenta dois tipos de desejo natildeo racionais
embora capazes de ouvir a razatildeo42 Tal proposta sugerida em EN I 13
tem sua comprovaccedilatildeo em Rhet I com sua descriccedilatildeo do apetite O passo
aparenta propor este desejo como irracional poreacutem acaba por desfazer
tal embaraccedilo se lhe prestamos a devida atenccedilatildeo O apetite eacute descrito pelo
filoacutesofo como desejo pelo que eacute prazeroso embora afirme tambeacutem que
todo desejo estaacute relacionado ao prazeroso Por conseguinte
Faz-se pelo desejo tudo o que parece agradaacutevel
Tambeacutem o familiar e o habitual se contam entre as
coisas agradaacuteveis pois muitas coisas que natildeo satildeo
naturalmente agradaacuteveis se fazem com prazer
quando se tornam habituais Assim em resumo
todos os atos que os homens praticam por si
mesmos satildeo realmente bons ou parecem secirc-lo satildeo
realmente agradaacuteveis ou parecem secirc-lo Ora como
os homens fazem voluntariamente o que fazem
por si mesmos segue-se que tudo o que fazem
voluntariamente seraacute bom ou aparentemente bom
seraacute agradaacutevel ou aparentemente agradaacutevel []
Agradaacutevel eacute tambeacutem tudo aquilo que temos em
noacutes o desejo pois o desejo eacute apetite do agradaacutevel
Dos desejos uns satildeo irracionais e outros
racionais Chamo irracionais aos que natildeo
procedem de um ato preacutevio da compreensatildeo e satildeo
desse tipo todos os que se dizem ser naturais
como os que procedem do corpo [] Satildeo
racionais os desejos que procedem da persuasatildeo
pois haacute muitas coisas que desejamos ver e adquirir
porque ouvimos falar delas e fomos persuadidos
de que satildeo agradaacuteveis (Rhet I 10 1369b15-23 I
11 1370a16-21 e 25-27)43
42Novamente a conversa pode ser travada com Platatildeo que por exemplo no
Fedro fala da alma como um carro conduzido por dois cavalos que simbolizam
as forccedilas irracionais da psychḗ que conflitam entre si uma seguindo agrave esquerda
enquanto outra puxa para a direita 43 Todas as citaccedilotildees da Rhet tecircm traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena
(2012) com o original em grego anotado no rodapeacute tal como a seguinte
anotaccedilatildeo δι ἐπιθυμίαν δὲ πράττεται ὅσα φαίνεται ἡδέα ἔστιν δὲ καὶ τὸ σύνηθες
καὶ τὸ ἐθιστὸν ἐν τοῖς ἡδέσιν πολλὰ γὰρ καὶ τῶν φύσει μὴ ἡδέων ὅταν
57
Este passo da Retoacuterica nos diz muito sobre o apetite busca o
agradaacutevel eacute ldquoirracionalrdquo quando natildeo ldquoproceder de um ato preacutevio da
compreensatildeordquo ressaltando sua possibilidade de ouvir a razatildeo quando
proceder da compreensatildeo e eacute natural jaacute que natildeo eacute engendrado no
homem por haacutebitos ou ensinamentos existindo por toda a vida humana
eacute responsaacutevel por aqueles prazeres como os que vecircm do corpo O
proacuteprio Aristoacuteteles admite a dificuldade em se fugir desse tipo de prazer
(EN II 2 1105a7-8) e com isso entendemos igualmente a dificuldade
em controlar ou mesmo evitar o desejo relacionado ao prazer corporal
pois o filoacutesofo o associa agraves afecccedilotildees ligadas aos prazeres corporais Em
certo passo da EN (III 3 1111a30-31) curiosamente Aristoacuteteles afirma
que os apetites e por sua vez os prazeres do corpo natildeo ouvem agrave razatildeo
ao contraacuterio do impulso ldquoAssim o apetite enquanto um desejo natildeo
racional (aacutelogos) toma o que eacute prazeroso como aquilo que simples e
naturalmente aparece ao agente como prazeroso E o que nos parece ser
prazeroso eacute o que nos parece ser bom mesmo que natildeo o sejardquo (AGGIO
2017 no prelo) A interpretaccedilatildeo do passo natildeo eacute simples jaacute que na Eacutetica
Nicomaqueia podemos ler tambeacutem uma afirmaccedilatildeo que diz natildeo ser
correto considerar accedilotildees praticadas por apetite e impulso como
involuntaacuterias
Sendo involuntaacuteria a accedilatildeo realizada por forccedila e
por ignoracircncia o voluntaacuterio parece ser aquilo cujo
princiacutepio reside no agente que conhece as
circunstacircncias particulares nas quais ocorre a
accedilatildeo Natildeo eacute presumivelmente correto dizer pois
que as accedilotildees praticadas por impulso ou por apetite
satildeo involuntaacuterias pois neste caso em primeiro
lugar nenhum outro animal poderaacute agir
voluntariamente tampouco poderatildeo as crianccedilas
Depois quer isto dizer que natildeo fazemos nada
voluntariamente por apetite ou por impulso ou
συνεθισθῶσιν ἡδέως ποιοῦσιν ὥστε συλλαβόντι εἰπεῖν ὅσα δι αὑτοὺς
πράττουσιν ἅπαντ ἐστὶν ἢ ἀγαθὰ ἢ φαινόμενα ἀγαθά ἢ ἡδέα ἢ φαινόμενα ἡδέα
ἐπεὶ δ ὅσα δι αὑτοὺς ἑκόντες πράττουσιν οὐχ ἑκόντες δὲ ὅσα μὴ δι αὑτούς
πάντ ἂν εἴη ὅσα ἑκόντες πράττουσιν ἢ ἀγαθὰ ἢ φαινόμενα ἀγαθά ἢ ἡδέα ἢ
φαινόμενα ἡδέα[] τῶν δὲ ἐπιθυμιῶν αἱ μὲν ἄλογοί εἰσιν αἱ δὲ μετὰ λόγου
λέγω δὲ ἀλόγους ὅσας μὴ ἐκ τοῦ ὑπο-λαμβάνειν ἐπιθυμοῦσιν (εἰσὶν δὲ τοιαῦται
ὅσαι εἶναι λέγονται φύσει ὥσπερ αἱ διὰ τοῦ σώματος ὑπάρχουσαι [] μετὰ
λόγου δὲ ὅσας ἐκ τοῦ εισθῆναι ἐπιθυμοῦσιν πολλὰ γὰρ καὶ θεάσασθαι καὶ
κτήσασθαι ἐπιθυμοῦσιν ἀκούσαντες καὶ πεισθέντες
58
que fazemos as coisas belas voluntariamente e
involuntariamente as ignoacutebeis Natildeo eacute isto risiacutevel
havendo uma uacutenica causa Eacute igualmente absurdo
dizer que satildeo involuntaacuterias as coisas que eacute preciso
desejar eacute preciso encolerizar-se a respeito de
algumas e ter apetite por outras (por exemplo
pela sauacutede e pela instruccedilatildeo) E as accedilotildees
involuntaacuterias parecem ser penosas as por apetite
agradaacuteveis Aleacutem disso qual eacute a diferenccedila quanto
ao ser involuntaacuterio dos erros cometidos por
caacutelculo ou por impulso Por um lado ambos satildeo a
evitar por outro parecem natildeo ser menos humanas
as emoccedilotildees natildeo-racionais de sorte que tambeacutem as
accedilotildees por impulso e por apetite pertencem ao
homem Postular que satildeo involuntaacuterias eacute assim
um absurdo (EN III 3 1111a22-35 1111b1-3)44
A nosso ver o passo desfaz a duacutevida quanto agrave participaccedilatildeo do
apetite na razatildeo concordando com o que expusemos anteriormente Tal
desejo difere dos demais por ser mais resistente agrave razatildeo natildeo por ser-lhe
totalmente surdo portanto quando em acordo com o loacutegos leva a
prazeres convenientes e a accedilotildees adequadas bem como a emoccedilotildees
moderadas
Os trechos supracitados ao falarem do impulso e do apetite
indicam que haacute mais coisas comuns aos desejos em questatildeo que seu
caraacuteter natildeo racional e os impasses quanto a isso por exemplo ambos
existem nos animais O Livro VII da EN entretanto aumenta nossos
conhecimentos e duacutevidas acerca dos apetites ao passo que esclarece
algumas coisas sobre os impulsos Faz isso ao tratar da incontinecircncia
44 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Ὄντος δ ἀκουσίου τοῦ βίᾳ καὶ δι ἄγνοιαν τὸ ἑκούσιον
δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξις ἴσως
γὰρ οὐ καλῶς λέγεται ἀκούσια εἶναι τὰ διὰ θυμὸν ἢ ἐπιθυμίαν πρῶτον μὲν γὰρ
οὐδὲν ἔτι τῶν ἄλλων ζῴων ἑκουσίως πράξει οὐδ οἱ παῖδες εἶτα πότερον οὐδὲν
ἑκουσίως πράττομεν τῶν δι ἐπιθυμίαν καὶ θυμόν ἢ τὰ καλὰ μὲν ἑκουσίως τὰ δ
αἰσχρὰ ἀκουσίως ἢ γελοῖον ἑνός γε αἰτίου ὄντος ἄτοπον δὲ ἴσως ἀκούσια
φάναι ὧν δεῖ ὀρέγεσθαι δεῖ δὲ καὶ ὀργίζεσθαι ἐπί τισι καὶ ἐπιθυμεῖν τινῶν οἷον
ὑγιείας καὶ μαθήσεως δοκεῖ δὲ καὶ τὰ μὲν ἀκούσια λυπηρὰ εἶναι τὰ δὲ κατ
ἐπιθυμίαν ἡδέα ἔτι δὲ τί διαφέρει τῷ ἀκούσια εἶναι τὰ κατὰ λογισμὸν ἢ θυμὸν
ἁμαρτηθέντα φευκτὰ μὲν γὰρ ἄμφω δοκεῖ δὲ οὐχ ἧττον ἀνθρωπικὰ εἶναι τὰ
ἄλογα πάθη ὥστε καὶ αἱ πράξεις τοῦ ἀνθρώπου αἱ ἀπὸ θυμοῦ καὶ ἐπιθυμίας
ἄτοπον δὴ τὸ τιθέναι ἀκούσια ταῦτα
59
(mais que da continecircncia) separando-a em incontinecircncia por epithymiacutea
(prazer) e incontinecircncia por thymoacutes (raiva) O incontinente em sentido
estrito ou seja por epithymiacutea natildeo age por escolha deliberada mas age
por apetite O continente escolhe deliberadamente mas natildeo age de
acordo com a epithymiacutea A escolha deliberada se opotildee a este uacuteltimo
desejo e natildeo eacute o apetite que se opotildee a um outro apetite (EN III 4
1111b14-17) Este estaacute relacionado ao agradaacutevel e ao penoso enquanto
a escolha deliberada natildeo estaacute relacionada a nenhum dos dois
Eis aiacute uma segunda semelhanccedila o impulso tambeacutem natildeo leva a
agir por escolha deliberada (EN III 4 1111b19) mas parece estar
relacionado principalmente agrave dor o que eacute percebido quando a Retoacuterica
(I 10 1369a4) o liga agrave raiva e a EN (III 3 1111a30-31) ao enraivecer-se
A natureza impetuosa eacute combativa guerreira Pede por justiccedila e
vinganccedila manifestando-se por meio da injuacuteria do ultraje e do desprezo
O apetite eacute naturalmente sedutor manipulador dado a tramas tem o
prazer por objeto mesmo que se valha do ultraje do engano e da ilusatildeo
para consegui-lo e sua manifestaccedilatildeo pode surgir com o prazer
proporcionado por estes tipos de atos As accedilotildees do impulso causam dor
ao agente mas as do apetite causam prazer (EN VII 7 1149b20-21) O
impulso reage a algo doloroso aparentemente desmerecido e injusto
como um ultraje sofrido Por isso a accedilatildeo impulsiva parece mais
dolorosa e involuntaacuteria que a accedilatildeo por apetite sendo uma accedilatildeo
voluntaacuteria prazerosa mais grave moralmente do que uma accedilatildeo voluntaacuteria
dolorosa Sobre esse assunto Aristoacuteteles escreveu
A primeira forma de incontinecircncia eacute a
impetuosidade e a outra fraqueza Alguns
homens na verdade depois que deliberaram natildeo
persistem no resultado de sua deliberaccedilatildeo e estatildeo
sob o efeito da paixatildeo para outros ao contraacuterio eacute
graccedilas agrave sua falta de deliberaccedilatildeo que satildeo levados
pela paixatildeo alguns em verdade (semelhantes
nisso agravequeles que tendo sido tomados por coacutecegas
natildeo satildeo eles mesmos os que fazem coacutecegas) se
eles sentiram e viram antecipadamente que vai
lhes acontecer e se eles puderam antes dar o
despertar agrave eles mesmos e agrave faculdade de
raciocinar natildeo sucumbem entatildeo pelo efeito da
paixatildeo quer este seja um prazer ou uma dor Satildeo
acima de tudo homens de humor vivo e os homens
de temperamento excitaacutevel que estatildeo sujeitos agrave
incontinecircncia sob a forma de impetuosidade os
60
primeiros por sua precipitaccedilatildeo e os segundos por
sua violecircncia natildeo tecircm a paciecircncia de ouvir a
razatildeo inclinados que estatildeo a seguir a sua
imaginaccedilatildeo (EN VII 8 1150b19-28)45
Nesse passo a incontinecircncia pela raiva (akrasiacutea toucirc thymoucirc) eacute
considerada menos desonrosa que aquela por apetite Aristoacuteteles
enumera alguns motivos para tanto e noacutes o seguiremos 1) como
dissemos devemos pensar que a raiva (thymoacutes) ateacute certo ponto parece
ouvir a razatildeo mas daquele modo como os servos que mal escutam a
ordem do senhor e saem correndo para fazer o que eacute ordenado sendo
sua accedilatildeo resultado de um impulso natildeo educado Assim a raiva devido
ao seu calor e precipitaccedilatildeo naturais natildeo ouve direito a ordem do
racional (natildeo entende mas pensa ter entendido) e se lanccedila agrave vinganccedila
portanto pode ser excitada por razatildeo ou imaginaccedilatildeo enquanto o apetite
pode ser despertado por razatildeo ou sensaccedilatildeo (EN VII 7 1149a30-36)
Essas afirmaccedilotildees satildeo confirmadas pelo passo abaixo
A razatildeo ou a imaginaccedilatildeo na verdade apresentam
a nossos olhos um insulto ou uma marca de
desdeacutem sentido e a coacutelera depois de ter
concluiacutedo por um tipo de raciociacutenio eacute engajar as
hostilidades contra um tal insultador explode
entatildeo bruscamente o apetite ao contraacuterio uma
vez que a razatildeo ou a sensaccedilatildeo apenas disse que
uma coisa eacute agradaacutevel se lanccedila por gozaacute-la Em
consequecircncia a coacutelera obedece agrave razatildeo em um
sentido enquanto o apetite natildeo obedece Portanto
a vergonha eacute maior nesse uacuteltimo caso jaacute que o
homem intemperante na coacutelera eacute em um sentido
vencido pela razatildeo enquanto o outro eacute pelo
apetite e natildeo pela razatildeo (EN VII 7 1149a31-35
45Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ἀκρασίας δὲ τὸ μὲν προπέτεια τὸ δ ἀσθένεια οἳ μὲν γὰρ
βουλευσάμενοι οὐκ ἐμμένουσιν οἷς ἐβουλεύσαντο διὰ τὸ πάθος οἳ δὲ διὰ τὸ μὴ
βουλεύσασθαι ἄγονται ὑπὸ τοῦ πάθους ἔνιοι γάρ ὥσπερ προγαργαλίσαντες οὐ
γαργαλίζονται οὕτω καὶ προαισθόμενοι καὶ προϊδόντες καὶ προεγείραντες
ἑαυτοὺς καὶ τὸν λογισμὸν οὐχ ἡττῶνται ὑπὸ τοῦ πάθους οὔτ ἂν ἡδὺ ᾖ οὔτ ἂν
λυπηρόν μάλιστα δ οἱ ὀξεῖς καὶ μελαγχολικοὶ τὴν προπετῆ ἀκρασίαν εἰσὶν
ἀκρατεῖς οἳ μὲν γὰρ διὰ τὴν ταχυτῆτα οἳ δὲ διὰ τὴν σφοδρότητα οὐκ
ἀναμένουσι τὸν λόγον διὰ τὸ ἀκολουθητικοὶ εἶναι τῇ φαντασίᾳ
61
1149b1-3)46
2) Outra coisa a se pensar eacute que perdoamos com maior facilidade
aqueles que satildeo levados por desejos naturais mesmo no caso dos
apetites quando cedem aos desejos comuns a todos e na medida em que
satildeo comuns A raiva e o mau humor satildeo mais naturais que os apetites
pelos prazeres excessivos e desnecessaacuterios 3) Ainda uma coisa a se
considerar eacute que se eacute tanto mais injusto quanto mais se vale de manobras
peacuterfidas O raivoso natildeo tem perfiacutedia mas o apetite eacute ardiloso se a
incontinecircncia por apetite eacute mais injusta eacute igualmente mais vergonhosa e
eacute um viacutecio em certo sentido (em um certo sentido porque lhe falta a
escolha deliberada) 4) Uma uacuteltima consideraccedilatildeo feita por Aristoacuteteles
acerca do assunto eacute que se ningueacutem faz sofrer um ultraje com um
sentimento de afliccedilatildeo (ao contraacuterio) um homem que age por raiva age
sentindo dor ao passo que quem ultraja sente prazer Se os atos contra
os quais uma viacutetima se enraivece mais justamente satildeo mais injustos que
outros a incontinecircncia por apetite eacute igualmente mais injusta que a por
raiva pois na raiva natildeo haacute ultraje
Diante disso entendemos que natildeo eacute o fato de amar e desejar
coisas como o prazer que faz de um homem culpaacutevel mas o modo como
se ama o objeto amado e o fato de desejar tais coisas excessivamente
Assim fazem os que burlam a regra como o incontinente sendo que a
incontinecircncia deve ser evitada pois eacute maacute e culpaacutevel Haacute contudo
incontinecircncia por analogia naqueles casos mencionados em que
chamamos ldquoacrasia porrdquo caso da incontinecircncia por raiva Com essas
consideraccedilotildees fica claro que incontinecircncia e continecircncia verdadeiras soacute
se aplicam ao caso em que os objetos buscados satildeo os mesmos buscados
pelos temperantes e pelos intemperantes sendo os demais mesmo no
caso da raiva incontinecircncia por similitude Eacute claro tambeacutem que haacute tipos
46Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ἀκρασία ἡ τοῦ θυμοῦ ἢ ἡ τῶν ἐπιθυμιῶν θεωρήσωμεν
ἔοικε γὰρ ὁ θυμὸς ἀκούειν μέν τι τοῦ λόγου παρακούειν δέ καθάπερ οἱ ταχεῖς
τῶν διακόνων οἳ πρὶν ἀκοῦσαι πᾶν τὸ λεγόμενον ἐκθέουσιν εἶτα ἁμαρτάνουσι
τῆς προστάξεως καὶ οἱ κύνες πρὶν σκέψασθαι εἰ φίλος ἂν μόνον ψοφήσῃ
ὑλακτοῦσιν οὕτως ὁ θυμὸς διὰ θερμότητα καὶ ταχυτῆτα τῆς φύσεως ἀκούσας
μέν οὐκ ἐπίταγμα δ ἀκούσας ὁρμᾷ πρὸς τὴν τιμωρίαν ὁ μὲν γὰρ λόγος ἢ ἡ
φαντασία ὅτι ὕβρις ἢ ὀλιγωρία ἐδήλωσεν ὃ δ ὥσπερ συλλογισάμενος ὅτι δεῖ
τῷ τοιούτῳ πολεμεῖν χαλεπαίνει δὴ εὐθύς ἡ δ ἐπιθυμία ἐὰν μόνον εἴπῃ ὅτι ἡδὺ
ὁ λόγος ἢ ἡ αἴσθησις ὁρμᾷ πρὸς τὴν ἀπόλαυσιν ὥσθ ὁ μὲν θυμὸς ἀκολουθεῖ
τῷ λόγῳ πως ἡ δ ἐπιθυμία οὔ αἰσχίων οὖν ὁ μὲν γὰρ τοῦ θυμοῦ ἀκρατὴς τοῦ
λόγου πως ἡττᾶται ὃ δὲ τῆς ἐπιθυμίας καὶ οὐ τοῦ λόγου
62
de incontinecircncia sendo que Aristoacuteteles considera aquela por apetite
mais desonrosa que aquela por raiva como ademais eacute claro que
incontinecircncia e continecircncia em sentido absoluto se relacionam com
apetites e prazeres do corpo
A descriccedilatildeo dos apetites como o que natildeo ouve a razatildeo47 parece
acontecer nos trechos mencionados e nos quais o filoacutesofo enfatiza
somente a incontinecircncia Nesse caso natildeo estaacute a estudar o continente
que claramente percebemos eacute um homem que sofre com maus apetites
mas que por meio de seu raciociacutenio consegue se desviar dos maus fins
que o atraem Se observada a continecircncia teremos nela a possibilidade
como ressalta Nussbaum do apetite poder ser posto se natildeo em acordo
ao menos sob o comando da razatildeo praacutetica O homem que cai em
descontrole devido aos mesmos objetos com os quais se relacionam os
intemperantes e os temperantes eacute chamado simplesmente lsquoincontinentersquo
Enfim mesmo que haja diferenccedilas entre o apetite e o impulso que um
seja apontado por certos trechos da EN como incapaz de ouvir agrave razatildeo
praacutetica a verdade que a leitura e a interpretaccedilatildeo dos passos analisados
nos levam a alcanccedilar eacute que todas as formas do desejo satildeo capazes de
participar da razatildeo praacutetica conforme os haacutebitos introjetados pelo agente
como podemos ler na citaccedilatildeo abaixo
Mesmo que o apetite seja menos permeaacutevel agrave
razatildeo mais entranhado em nossa vida e
forccedilosamente determinante na escolha das accedilotildees
Aristoacuteteles atribuiu voluntarismo agrave accedilatildeo causada
por ambos os desejos embora a accedilatildeo por apetite
possa ser eventualmente mais voluntaacuteria do que
por impulso [] Ambos os desejos satildeo emoccedilotildees
ou afecccedilotildees natildeo racionais (aacuteloga pathḗ) que
tambeacutem pertencem agrave natureza humana ldquode sorte
47Aggio propotildee a seguinte saiacuteda para a questatildeo ldquoPortanto natildeo haacute contradiccedilatildeo
em dizer que um logos constitui o objeto do apetite e que o apetite natildeo ouve de
modo algum o logos se nesse caso entendermos que este uacuteltimo se refere ao
orthograves loacutegos agrave reta razatildeo agravequela que apreende verdadeiramente o que deve ser
feito e o primeiro se refere ao sentido corrente de logos ie de um pensamento
que concebe algo como prazerosordquo (2011 p 161-162) A autora ainda observa
que o apetite que natildeo ouve de jeito nenhum a reta razatildeo eacute aquele do
descontrolado e do intemperante No virtuoso eacute diferente seu apetite jaacute estaacute
educado e por isso natildeo segue qualquer prazer aleacutem do gozo apropriado agraves accedilotildees
virtuosas Mas quando os desejos menos racionais natildeo estatildeo educados o apetite
eacute mais vergonhoso que o impulso e por isso tambeacutem eacute menos perdoaacutevel
63
que tambeacutem accedilotildees por impulso e por apetite
pertencem ao homemrdquo (EN III 1 1111b2-3) Tais
accedilotildees satildeo proacuteprias ao homem no sentido do seu
princiacutepio residir nele (heacute archḗ en autōi) ou seja
o agente sempre poderia ter agido de outro modo
Desse modo o homem que age por impulso ou
apetite natildeo poderia ser considerado uma
marionete viacutetima de seus desejos [] Dizer
portanto que ambos os tipos de accedilotildees satildeo
voluntaacuterias implica dizer que estaacute em nosso poder
e sob nossa responsabilidade agir por apetite ou
por impulso E isso parece ser plausiacutevel mesmo
que se assuma que um desses desejos ndash o apetite ndash
seja mais avesso agrave razatildeo (AGGIO 2017 no
prelo)
A anaacutelise precedente parece demonstrar que eacute possiacutevel
responsabilizar quem age sob impulso e apetite por seus atos Parece
apontar igualmente a possibilidade de adequaccedilatildeo destes desejos como
esclarece Aggio (2017 no prelo) pela habituaccedilatildeo e por sua capacidade
de ouvir agrave razatildeo Esta eacute se natildeo toda ao menos parte crucial da educaccedilatildeo
moral do desejo Quando o comando da razatildeo eacute obedecido os desejos
natildeo racionais ou menos racionais participam da razatildeo e facilitam o
acesso agrave virtude e agrave vida feliz devido a possibilitarem a procura pelo
bom fim e a accedilatildeo correta na direccedilatildeo de tal fim Quando todavia o
desejo eacute sempre mais facilmente concorde com a razatildeo sem necessidade
de grandes esforccedilos educacionais estamos diante da terceira forma de
desejar o querer que trataremos agora
3b3 O desejo mais racional
Resta-nos tratar o desejo considerado racional ou o mais racional
(DA III 10 433a24-25) o querer (bouacutelēsis) Apesar desse seu aspecto o
querer pode se direcionar a objetos impossiacuteveis mas estaacute relacionado
com accedilotildees que satildeo escolhidas por si mesmas ou seja relaciona-se com
coisas que igualmente podem ser escolhidas deliberadamente e que satildeo
entendidas por Aristoacuteteles como variaacuteveis aleacutem de ser relativo aos fins
ou bens Mas que tipo de bem eacute o fim buscado pelo querer O objeto
deste desejo natildeo existe por natureza mas eacute aquilo que parece bom a
cada um e sendo as pessoas diferentes coisas diferentes lhes parecem
boas Assim natildeo seria melhor delimitar o fim deste tipo de desejo como
o bem buscado pelo virtuoso embora o que se apresenta a cada um seja
64
um bem aparente
A resposta pode comeccedilar a ser dada com a explicaccedilatildeo de que o
querer eacute um tipo de desejo naturalmente mais apto a concordar com as
coisas que satildeo sugeridas pela reta razatildeo Concilia-se com o que haacute de
racionalmente necessaacuterio para que haja boas accedilotildees e um bom caraacuteter
sendo de sua natureza estar de acordo com a razatildeo praacutetica Por
conseguinte o querer eacute o elemento natildeo racional mais capaz de acatar as
sugestotildees (ou ordens) do orthograves loacutegos Por isso concordamos com Aggio
quando escreve
[] se for preciso dizer que esta parte a natildeo
racional tem razatildeo entatildeo a parte desiderativa
deve ser compreendida como tendo razatildeo por
participaccedilatildeo e natildeo por essecircncia como se ela
pudesse ser sob o aspecto do querer
essencialmente racional Esta eacute uma interpretaccedilatildeo
possiacutevel e que me parece mais adequada pois
nega a suposiccedilatildeo de que a parte desiderativa teria
um aspecto absolutamente racional a saber a
bouacutelēsis (AGGIO 2017 no prelo)
O querer eacute o desejo ldquocultivadordquo especialmente sentido pelo
homem bom e virtuoso que se habituou a desejar conforme agrave razatildeo
praacutetica e que sente prazer com as coisas realmente boas e virtuosas Tal
tipo de desejo - veremos em detalhes maiores no segundo momento de
nosso estudo - coloca-se ao lado da escolha deliberada do caacutelculo
deliberativo e do julgamento correto sendo consoante com a virtude
intelectual e eacute necessaacuterio agrave virtude moral graccedilas agrave educaccedilatildeo que
recebe48 Eacute igualmente um desejo relacionado ao sentimento de prazer
48 Fazemos tal afirmaccedilatildeo com base nas propostas de Aggio que entende que
para a virtude eacute necessaacuteria a educaccedilatildeo moral do desejo implicando tambeacutem
como veremos mais adiante a forma correta de se emocionar (AGGIO 2017
no prelo) A eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma eacutetica da accedilatildeo jaacute que o querer natildeo eacute
suficiente para uma mudanccedila real (EN 1114a13-15) Eacute preciso agir ou seja
educar o desejo para o meio termo Por isso a accedilatildeo eacute o principal meio para que
a razatildeo aceda ao desejo Entatildeo haacute um momento em que o desejo ainda natildeo foi
educado e um no qual ouve e obedece a razatildeo Porque natildeo nascemos virtuosos
mas pelo haacutebito podemos secirc-lo Educar o desejo eacute se tornar moralmente
virtuoso Se o desejo busca o prazer e foge da dor educado buscaraacute e fugiraacute
destes dois de modo conveniente quando conveniente Educado desejo eacute
desejo pelo fim levando agrave boa accedilatildeo que eacute apreendida pela razatildeo persuasiva ou
pela capacidade de persuadir da razatildeo (EN 1139b4-5)
65
porque a Rhet explica que os ldquodesejos satildeo na sua maioria
acompanhados de um certo prazer pois as pessoas gozam de algum
prazer quer lembrando-se de como o alcanccedilaram quer esperando o que
alcanccedilaratildeordquo (Rhet I 11 1370b15-19)49 Por isso mesmo as accedilotildees
virtuosas que satildeo direcionadas por essa terceira forma de desejo satildeo
prazerosas a quem as faz desejando bem Vale reforccedilar que qualquer
tipo de desejo associado agrave reta razatildeo pode ser considerado participante
dela sendo bom e direcionado ao bem verdadeiro como explica Aggio
Isso porque o querer tendo como objeto o que
julgamos ser um bem natildeo eacute capaz de vencer o
desejo pelo prazeroso (epithymiacutea) ou o impulso de
aversatildeo ao doloroso (thymoacutes) Eacute preciso incutir o
haacutebito de se desejar bem incluindo aiacute os trecircs tipos
de desejo mas sobretudo aqueles que satildeo mais
avessos agrave razatildeo o impulso e ainda mais o
apetite Natildeo basta portanto querer apenas o que eacute
bom Eacute preciso que isto apareccedila como prazeroso
i e como objeto do apetite Menos ainda basta
saber o que eacute bom para desejaacute-lo como queria
Soacutecrates Eacute preciso que o bem natildeo seja apenas um
objeto cognitivo mas que se torne objeto de nosso
desejo e parte de nossa segunda natureza
(AGGIO 2017 no prelo)
O bom desejo sempre eacute conforme a reta razatildeo Para a
estudiosa isso leva a entender que eacute preciso desejar antes o bem que
aquilo que eacute prazeroso ou impulsivo Assim o prazeroso e o impulsivo
devem ser desejados tendo em vista o bem entatildeo os desejos natildeo
racionais tambeacutem de algum modo podem estar em harmonia com o
querer agir retamente Aristoacuteteles explica ldquoquando se eacute movido com o
raciociacutenio tambeacutem se eacute movido de acordo com a vontaderdquo (DA III 10
433a24-25)50 Isso acontece porque somente os desejos ordenados pela
reta razatildeo (bons desejos) constituem bons fins
Com os estudos empreendidos sobre o desejo entendemos
49 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original καὶ ἐν ταῖς
πλείσταις ἐπιθυμίαις ἀκολουθεῖ τις ἡδονή ἢ γὰρ μεμνημένοι ὡς ἔτυχον ἢ
ἐλπίζοντες ὡς τεύξονται χαίρουσίν τινα ἡδονήν οἷον οἵ τ ἐν τοῖς πυρετοῖς
ἐχόμενοι ταῖς δίψαις καὶ μεμνημένοι ὡς ἔπιον καὶ ἐλπίζοντες πιεῖσθαι χαίρουσιν
[] 50 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ὅταν δὲ κατὰ
τὸν λογισμὸν κινῆται καὶ κατὰ βούλησιν κινεῖται
66
que para Aristoacuteteles haacute trecircs formas de desejar o bem pela razatildeo pelo
prazer ou pelo impulso Aggio (2017 no prelo) explica que cada tipo de
desejo natildeo inclui nem exclui o outro o que significa que eacute possiacutevel e
mesmo necessaacuterio que o objeto daquele desejo conforme o prazer
tambeacutem seja conforme a razatildeo (EN III 14 1119a12-21) devido agrave
unicidade da alma que defendemos acima e consequentemente da
unicidade do desejo Por exemplo o homem virtuoso age com um
apetite governado pela razatildeo tem o apetite em harmonia com seu
querer sendo-lhe possiacutevel igualmente desejar alguns objetos
inadequados de prazer mas escolher natildeo os realizar pois o desejo pode
ou natildeo ser realizado Ter prazer portanto difere de desejar ter prazer ou
seja de realizar a atividade prazerosa O estudo do desejo mostrou-nos
igualmente que a capacidade desiderativa eacute aquela que propotildee o fim a
ser buscado ou evitado e com isso pede accedilatildeo Por isso estudaremos
agora na medida que contemplar nossas intenccedilotildees a relaccedilatildeo dos desejos
com a accedilatildeo humana que pode ser moralmente avaliada jaacute que o objeto
do desejo foi identificado com o que move as accedilotildees desse tipo e
igualmente aquela que entenderemos como boa accedilatildeo
3b4) Desejo e accedilatildeo rumo agrave accedilatildeo boa moralmente
Como vimos o desejo eacute associado agraves emoccedilotildees aos prazeres agraves
accedilotildees e portanto agrave virtude que vem com a praacutetica de boas accedilotildees
solicitadas pelos desejos por fins adequados e agrave vida feliz considerada
atividade (eneacutergeia) segundo a virtude mais completa Por conseguinte
a teoria da accedilatildeo eacute central na eacutetica de Aristoacuteteles porque tanto na EE
quanto na EN a definiccedilatildeo de felicidade eacute baseada na noccedilatildeo de atividade
(EN I 6 1098a16-17 EE II 1 1219a38-39) que aparece atrelada agravequela
de accedilatildeo Algumas passagens destes tratados apresentam o conceito de
eneacutergeia natildeo o de prāxis associado agrave eudaiacutemōniacutea mas qual a
diferenccedila entre os dois conceitos em Aristoacuteteles E quais satildeo seus papeacuteis
junto a uma teoria do desejo e por conseguinte da emoccedilatildeo
Natali (1996 p 101) afirma que Aristoacuteteles entende que a
eneacutergeia humana eacute feita de praacutexeis o que pode ser confirmado por EN
1098a12-14 onde se lecirc ldquoa funccedilatildeo do homem consiste em um certo
gecircnero de vida isto eacute em uma atividade da alma e das accedilotildees acompanhada de razatildeordquo (EN 1098b15-16) o que nos lembra de que
ainda estamos a discutir as questotildees sugeridas por EN I Tendo em vista
o passo citado Natali explica que o homem feliz eacute aquele que realiza
kalaigrave praacutexeis (belas ou boas accedilotildees) ou praacutexeis katacutearetḗn (accedilotildees
segundo a virtude) Isso leva a embasar a definiccedilatildeo de felicidade e a de
67
bem humano no conceito de accedilatildeo a pensar e determinar que a felicidade
requeira que se conheccedila o que eacute uma prāxis portanto aleacutem de ser
assunto associado ao tema do desejo e das emoccedilotildees a questatildeo nos
interessa porque pode nos dizer mais sobre a relaccedilatildeo destes com a
felicidade tema do nosso primeiro Capiacutetulo
Apoacutes ter exposto brevemente a ligaccedilatildeo da funccedilatildeo humana como
associada agrave accedilatildeo em EN I 13 Aristoacuteteles comeccedila suas discussotildees no
Livro II da EN com a lembranccedila de que anteriormente havia sido
discutido um problema importante a questatildeo das accedilotildees determinarem a
qualidade do caraacuteter (EN II 2 1103b30-31) Afirmaccedilatildeo associada agravequela
de que as virtudes aparecem com a praacutetica de accedilotildees virtuosas (EN II 2
1103a31-33) porque a ldquoaccedilatildeo eacute princiacutepio da virtude em sentido causalrdquo
(NATALI 1996 p 103) sendo a boa accedilatildeo que leva agrave virtude Como
vimos para que haja accedilatildeo realmente verdadeira eacute preciso que intelecto
praacutetico e desejo estejam agindo juntos porque eacute preciso raciociacutenio
verdadeiro e desejo reto para que haja accedilotildees dignas daquilo que eacute
proacuteprio ao homem prosseguindo no esclarecimento do que foi proposto
com EN I 13 A relaccedilatildeo do desejo do intelecto praacutetico e da boa accedilatildeo
reafirma que aquilo que Aristoacuteteles chama accedilatildeo seja relevante ao nosso
estudo
Para compreender melhor a questatildeo pode-se contar com o auxiacutelio
especial do Livro VI que parece entender a accedilatildeo e sua relaccedilatildeo com o
que se pretende moralmente dela passando pela comparaccedilatildeo e distinccedilatildeo
entre prāxis e poiacuteēsis O iniacutecio da EN apresenta tal distinccedilatildeo ao
diferenciar dois tipos de fins uns satildeo identificados com as proacuteprias
atividades outros diferem das atividades que levam ateacute os fins (EN I 1
1094a3-5) A separaccedilatildeo essencial entre prāxis e poiacuteēsis portanto que
tambeacutem aparece em EN VI 4 propotildee-nas como objetos de duas formas
diferentes de saber a phroacutenēsis e a teacutechnē que lidam com dois tipos
diferentes de ser Este uacuteltimo Livro mencionado explora suas relaccedilotildees
(EN VI 2 1139a35-b4) quando Aristoacuteteles afirma que o pensamento
sozinho nada move sendo que apenas o pensamento praacutetico eacute capaz de
mover a accedilatildeo quando associado ao desejo e de mover a produccedilatildeo
quando se tenciona algum produto Este eacute feito tendo algo aleacutem de si em
vista natildeo eacute um fim absoluto mas o fim da accedilatildeo poderia ser absoluto
quando o desejo levasse a agir bem51
Dessas reflexotildees apresentadas pela EN Natali (1996 p 110)
ressalta que poderiacuteamos entender que 1) o pensamento praacutetico (diaacutenoia
51Haveria segundo o Livro VI dois tipos de deliberaccedilatildeo e de phroacutenēsis um
relacionado agrave prāxis outro agrave poiacuteēsis
68
praktikḗ) domina (archḗ) a prāxis e tambeacutem a poietikḗ 2) o que eacute
produzido natildeo eacute um fim absoluto apenas um fim em vista de algo mais
3) a accedilatildeo realizada (praktoacuten) eacute o proacuteprio fim ou o fim absoluto 4) haacute
uma hierarquia de fins que organiza tambeacutem os saberes a eles
direcionados sendo a phroacutenēsis superior agrave teacutechnē 5) e a phroacutenēsis teria
a eupraxiacutea por fim como explicitaremos no capiacutetulo seguinte
Essas observaccedilotildees levariam a entender que o agir humano
segundo Aristoacuteteles se dividiria em duas partes com caracteriacutesticas
diferentes e opostas Para dar conta dessa teoria da accedilatildeo Natali pensa
ser preciso primeiro saber se todos os movimentos intencionais feitos
pelo homem satildeo objeto da teoria da accedilatildeo ou se tal teoria teria interesse
apenas nas accedilotildees em acepccedilatildeo proacutepria
Aristoacuteteles diferentemente dos modernos e contemporacircneos natildeo
estaria interessado em distinguir accedilatildeo e movimento fiacutesico (distinccedilatildeo
oacutebvia para o filoacutesofo) Accedilotildees segundo o filoacutesofo e a interpretaccedilatildeo feita
por Natali (1996 p 111) satildeo comportamentos complexos dentre os
quais eacute possiacutevel diferenciar prāxis e poiacuteēsis Simples movimentos
fiacutesicos natildeo permitiriam tal distinccedilatildeo podendo ser tanto parte da prāxis
quanto da poiacuteēsis ainda mais se natildeo se levasse o fim em conta Assim
segundo o estudioso ldquoPara Aristoacuteteles o significado da accedilatildeo eacute dado
pelo teacutelos pelo fim Em exemplos como ldquolevantar um braccedilordquo aquilo
que estaacute oculto eacute propriamente o teacutelos []rdquo (NATALI 1996 p 112)
Para Aristoacuteteles nessa observaccedilatildeo do fim os movimentos fiacutesicos natildeo
podem ser compreendidos como accedilotildees mas essas informaccedilotildees natildeo
completam a teoria da accedilatildeo eacute preciso ir aleacutem como o comentador faz
Para distinguir prāxis e poiacuteēsis nas eacuteticas Aristoacuteteles recorre a
uma diferenciaccedilatildeo de tipo metafiacutesico entre kiacutenēsis e eneacutergeia Em Met Θ 6 1048b18-23 fala-se que natildeo satildeo accedilotildees ou que natildeo satildeo accedilotildees
perfeitas aquelas cujo fim natildeo se encontra nelas mesmas O passo no
entanto eacute visto por Natali (1996 p 113) como duvidoso por muitos
motivos que natildeo elencaremos aqui por ultrapassarem as nossas
intenccedilotildees com essa explicaccedilatildeo A passagem mesmo assim condiz com
as propostas que depreendemos rapidamente de EN I importando aquilo
que a Met nos apresenta como relaccedilotildees e dissociaccedilotildees entre kiacutenēsis e
eneacutergeia bem como suas relaccedilotildees com prāxis e poiacuteēsis Para explicar
melhor a questatildeo podemos citar as palavras de Natali sobre o assunto
Consideradas do ponto de vista do fim eneacutergeia e
kiacutenēsis satildeo de todo distintas ao menos
aparentemente
- agrave primeira no campo da accedilatildeo humana
69
corresponde a prāxis e eacute um agir com um fim em
si mesmo O exemplo corrente que hoje eacute dado de
uma prāxis estaacute ausente em Aristoacuteteles mas jaacute
aparece em Alexandre de Afrodiacutesias o danccedilar
- a segunda sempre no campo do agir humano
corresponde a poiacuteēsis para dar um exemplo
Aristoacuteteles frequentemente refere-se agrave construccedilatildeo
de uma casa Os dois casos satildeo distintos pela
relaccedilatildeo ao fim enquanto na poiacuteēsis afirma
Aristoacuteteles a obtenccedilatildeo do fim potildee termo ao
processo na prāxis isto natildeo acontece aliaacutes a
obtenccedilatildeo do fim estaacute presente em cada instante do
processo []
De fato em uma kiacutenēsis a obtenccedilatildeo do fim tem
valor em si mas tem valor apenas como modo de
atingir o proacuteprio fim (NATALI 1996 p 113-
114)
Conforme essa explicaccedilatildeo que aparece em Met Θ 6 1048b23-28
a prāxis natildeo teria seu fim apenas ao termo de um processo enquanto a
poiacuteēsis seria composta por momentos de um processo que levaria a um
fim almejado Na prāxis todo instante contemplaria agravequilo que eacute seu
objetivo estando o fim da accedilatildeo em cada momento do processo que a
constituiria Dito de outro modo a poiacuteēsis seria um processo que soacute
resultaria em seu fim quando completado mas a prāxis seria um
processo completo em cada um de seus instantes Mas toda poiacuteēsis seria
kiacutenēsis O movimento fiacutesico implicado na poiacuteēsis poderia ser esmiuccedilado
em uma seacuterie de movimentos menores estruturantes do todo da
produccedilatildeo e que natildeo poderiam ser tomados em separado O exemplo eacute a
construccedilatildeo de casas que aparece em EN 1174a21-29 cada movimento
do processo de construir pode ser percebido separadamente mas soacute tem
sentido com o fim que lhe excede a casa construiacuteda Entatildeo a poiacuteēsis eacute
composta por ldquopoiacuteeseis parciais incompletasrdquo (NATALI 1996 p 116)
que resultaratildeo em um produto homogecircneo ontologicamente
Agora resta saber se toda prāxis eacute uma eneacutergeia Met IX 6 daacute
exemplos de eneacutergeiai que natildeo parecem precisar de movimentos fiacutesicos
Estariam portanto fora da alccedilada da fiacutesica pois excluiriam a kiacutenēsis
Aristoacuteteles no entanto nos apresenta a vida como exemplo de eneacutergeia e a vida comporta movimentos Caberia portanto
questionar a prāxis eacute ou natildeo eacute kiacutenēsis52
52 Vale ressaltar tambeacutem com Natali (NATALI 1996 p 117) que haveria
70
Ao analisarmos os exemplos de praacutexeis virtuosas veremos que
satildeo compostas por uma seacuterie de atos parciais com a estrutura da kiacutenēsis
Um desses exemplos poderia ser o mover a espada para golpear um
inimigo Segundo Natali
[] estes movimentos satildeo dirigidos agrave obtenccedilatildeo de
um fim e natildeo satildeo fins em si mesmos como se
fossem passos de danccedila De fato contra o que se
disse na Metafiacutesica na qual havia se afirmado que
nenhuma prāxis eacute uma kiacutenēsis Aristoacuteteles afirma
na Ethica Eudemia que toda prāxis eacute uma
kiacutenēsisrdquo (EE 1220b26-27 1222b28-29) Assim
segundo tal Eacutetica toda prāxis seria uma kiacutenēsis
mas qual seria a verdade sobre a questatildeo toda
prāxis eacute uma kiacutenēsis ou nenhuma prāxis eacute uma
kiacutenēsis como propotildee a Metafiacutesica (NATALI
1996 p 117)
Natali responde com o auxiacutelio de outro passo da Met (Β 2
996a27) no qual eacute possiacutevel ler que todas as accedilotildees implicam movimento
Nesse trecho aparece a preposiccedilatildeo meta traduzida pelo estudioso como
ldquoimplicardquo o que diferenciaria a prāxis da poiacuteeisis por ser composta
implicando movimentos enquanto a poiacuteēsis aconteceria por meio de
movimentos usando a preposiccedilatildeo diaacute como diferencial dando agrave prāxis
uma heterogeneidade ontoloacutegica
Ainda segundo a Met IX 6 (1048b6-9) e segundo a interpretaccedilatildeo
do passo feita por Natali (1996 p 119) vaacuterios movimentos singulares
compotildeem uma prāxis sendo os movimentos como que a mateacuteria e a
accedilatildeo a forma Assim o estudioso chega agrave seguinte formulaccedilatildeo ldquoToda
prāxis eacute do ponto de vista formal uma eneacutergeia e do ponto de vista
material eacute composta de kiacutenesisrdquo (NATALI 1996 p 119) O que faz a
diferenccedila entre prāxis e poiacuteēsis eacute que na explicaccedilatildeo do estudioso
Ambas satildeo eventos humanos que se datildeo no
mundo sublunar satildeo compostas de movimentos
mas enquanto a poiacuteēsis tem uma estrutura
ontoloacutegica de movimento in totoacute a prāxis tem
uma estrutura ontoloacutegica apenas em parte similar
agravequela das eneacutergeiai mais puras como a auto-
poiacuteēseis feitas com fim moral como poderemos ver ao propor elementos
favoraacuteveis a uma educaccedilatildeo emocional moral no Capiacutetulo III
71
contemplaccedilatildeo divina porque mesmo sendo fim
em si mesma na sua atuaccedilatildeo eacute composta de
movimentos O todo da accedilatildeo tem seu fim em si
mas as partes das quais se compotildee tecircm cada uma
o seu fim particular (NATALI 1996 p 119)
Haveria segundo essa proposta accedilotildees componentes particulares
que perseguiriam outros objetivos como o levantar uma espada para
golpear um inimigo em batalha mas que tenderia agrave vitoacuteria Haveria
assim o todo da accedilatildeo com objetivos em si como as accedilotildees virtuosas que
natildeo tenderiam a um resultado praacutetico fora delas mesmas Ou as accedilotildees
virtuosas igualmente deveriam ser eficazes como o golpe de espada
Desse tipo de interrogaccedilatildeo surge a questatildeo da eupraxiacutea que Natali
pensa responder ao problema em curso e que voltaraacute ao nosso estudo no
capiacutetulo seguinte mas que por ora pode ser entendido do modo
descrito abaixo
A prāxis humana propriamente dita natildeo eacute totalmente eneacutergeia
como seria a contemplaccedilatildeo divina Eacute composta por kiacuteneseis que buscam
um resultado e no caso da accedilatildeo moralmente avaliaacutevel esse resultado
seria um conjunto de sucesso na accedilatildeo e valor moral Essa proposta
condiz com a descriccedilatildeo que Aristoacuteteles faz do homem ser o
intermediaacuterio entre divino e animal que discutimos desde o argumento
da funccedilatildeo humana porque a eupraxiacutea aos olhos de Natali natildeo seria
apenas a accedilatildeo boa moralmente mas a accedilatildeo completa bem-sucedida
senatildeo Aristoacuteteles natildeo daria tanta importacircncia agrave deliberaccedilatildeo em suas
reflexotildees eacuteticas Caso o fim da accedilatildeo fosse sempre ela mesma ou
somente ela mesma a deliberaccedilatildeo seria inuacutetil porque um ato corajoso
por exemplo seria um fim em si mesmo natildeo buscando nada mais
Entatildeo natildeo seria preciso investigar (zḗtein) o modo mais eficaz ou nas
palavras de Natali (1996 p 122) ldquomais raacutepido e eleganterdquo para alcanccedilar
um fim Por isso a prāxis humana natildeo pode ser pura eneacutergeia mas deve
ser tambeacutem composta de kiacuteneseis justificando que as accedilotildees humanas
satildeo tributaacuterias de deliberaccedilatildeo de escolha deliberada e da phroacutenēsis
Estas satildeo essenciais agrave boa accedilatildeo humana pois dizem respeito tanto agrave
determinaccedilatildeo dos fins a serem buscados como dos meios que permitam
alcanccedilaacute-los e que satildeo solicitados pelos desejos e mudados pelas
emoccedilotildees No entanto antes de saber como as paacutethē se encaixam nesse
processo que conduz agrave eupraxiacutea e como podem influenciaacute-la eacute preciso
buscar delimitar a partir das indagaccedilotildees surgidas com a EN e do que foi
inferido ateacute o momento o que vem a ser ldquoemoccedilatildeordquo Fazer essa
72
delimitaccedilatildeo seraacute necessaacuterio para que possamos responder agraves questotildees
que foram postas ateacute o momento mas tambeacutem para podermos
compreender como pode ser possiacutevel mudaacute-las para que se liguem agraves
sugestotildees da razatildeo permitindo-nos tratar a educabilidade e a
racionalidade das emoccedilotildees A discussatildeo acima apresentada sobre a
relaccedilatildeo da eupraxiacutea com o paacutethos eacute crucial para que isso seja feito pois
insere definitivamente a emoccedilatildeo entre as coisas relacionadas agrave
eudaiacutemōniacutea pois como buscaremos apontar no proacuteximo Capiacutetulo
eupraxiacutea e eudaiacutemōniacutea satildeo indissociaacuteveis
4 Em busca da definiccedilatildeo de emoccedilatildeo em Aristoacuteteles
Na Eacutetica Nicomaqueia (Livro I capiacutetulo 7) Aristoacuteteles propotildee
que uma investigaccedilatildeo deva comeccedilar com o estabelecimento ao menos
em linhas gerais daquilo que eacute o objeto investigado Contudo pelo
menos nesse tratado o filoacutesofo natildeo parece dar contornos bem definidos
a uma noccedilatildeo geral daquilo que entende por emoccedilatildeo nem em sentido
moderno53 nem ao menos em seus proacuteprios termos Uma definiccedilatildeo
segundo Aristoacuteteles deveria apresentar o geacutenos (gecircnero) e a diferenccedila
especiacutefica daquilo que eacute definido mostrando o que o objeto estudado
realmente eacute (Top I 5 101b38 et seq)54 A EN todavia a princiacutepio
apresenta apenas o gecircnero da emoccedilatildeo paacutethos e uma lista de coisas agraves
quais chama emoccedilatildeo como podemos conferir na passagem abaixo
Dado pois que os estados que se geram na alma
satildeo trecircs55 emoccedilotildees capacidades disposiccedilotildees a
53 Uma definiccedilatildeo em lsquosentido modernorsquo buscaria explicar o que eacute uma emoccedilatildeo
Carlo Natali explica desse modo a deficiecircncia na definiccedilatildeo que EN II fornece da
accedilatildeo (1996 p 102) pois agrave eacutetica natildeo caberia tal tipo de explicaccedilatildeo proacutepria agrave
metafiacutesica Podemos tambeacutem pensar em uma proposta feita por Barnes que
justificaria tal insuficiecircncia bem como a insuficiecircncia de definiccedilatildeo de outros
termos chave na teoria eacutetica aristoteacutelica o autor ao escrever para si natildeo
elaboraria tais propostas ou talvez natildeo o fizesse por tratar de assunto que
julgava suficientemente conhecido daqueles a quem discursava 54Traduccedilatildeo Valandro e Bornheim (1978) no original ἔστι δ ὅρος μὲν λόγος ὁ
τὸ τί ἦν εἶναι σημαίνων [] 55Note-se que no Grego aparece a palavra ldquognoacutemenardquo lsquotraduzidarsquo por Zingano
(2008) como ldquoestadordquo Juliaacuten Marias (2009) bem como Bornhein e Vallandro
(1979) optaram por ldquocoisasrdquo Ross (1995) opta por ldquosentimentosrdquo e Tricot
(2002) por ldquofenocircmenosrdquo para a traduccedilatildeo do termo Contudo eacute difiacutecil escolher
uma das propostas para interpretar o que eacute pouco explicado por Aristoacuteteles Os
73
virtude seraacute um deles Entendo por emoccedilotildees
apetite coacutelera medo arrojo inveja alegria
amizade oacutedio anelo emulaccedilatildeo piedade em geral
tudo a que se segue prazer ou dor por
capacidades os estados em funccedilatildeo dos quais
dizemos que somos afetados pelas emoccedilotildees por
exemplo aqueles em funccedilatildeo dos quais somos
capazes de encolerizar-nos afligir-nos ou apiedar-
nos por disposiccedilotildees aqueles em funccedilatildeo dos quais
nos portamos bem ou mal com relaccedilatildeo agraves
emoccedilotildees por exemplo com relaccedilatildeo ao
encolerizar-se se nos encolerizamos forte ou
fracamente portamo-nos mal se moderadamente
bem e de modo semelhante com relaccedilatildeo agraves outras
emoccedilotildees (EN II 4 1105b19-29)56
O passo do Livro II 3 da Eacutetica Nicomaqueia nos apresenta
algumas dificuldades mas igualmente algumas ideias de por onde
possamos caminhar a fim de entender o que Aristoacuteteles propotildee como
emoccedilatildeo A primeira inquietaccedilatildeo que nos traz eacute justamente a
supramencionada definiccedilatildeo insatisfatoacuteria o que todavia pode sofrer a
seguinte objeccedilatildeo o texto apresenta-nos igualmente a especificaccedilatildeo de
que tais coisas satildeo acompanhadas de prazer ou dor Essa afirmaccedilatildeo natildeo
satisfaz a nossa curiosidade porque entendemos que uma lista com
substantivos no acusativo natildeo serve como definiccedilatildeo (sequer em termos
aristoteacutelicos) Natildeo nos satisfaz tambeacutem porque haacute outras coisas
mencionadas nos tratados aristoteacutelicos que satildeo descritas como
acompanhadas de prazer ou dor como as accedilotildees afirmaccedilatildeo que pode ser
lida nos Livros VII e X por exemplo natildeo levando esse traccedilo a
constituir-se realmente como uma diferenccedila especiacutefica
O prazer e a dor todavia satildeo indicados na definiccedilatildeo das emoccedilotildees
feita pela EN como seu traccedilo distintivo traccedilo que eacute repetido em quase
tradutores parecem utilizar o que lhes parece calhar melhor agrave sua proacutepria
interpretaccedilatildeo 56 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ἐπεὶ οὖν τὰ ἐν τῇ ψυχῇ γινόμενα τρία ἐστί πάθη δυνάμεις
ἕξεις τούτων ἄν τι εἴη ἡ ἀρετή λέγω δὲ πάθη μὲν ἐπιθυμίαν ὀργὴν φόβον
θάρσος φθόνον χαρὰν φιλίαν μῖσος πόθον ζῆλον ἔλεον ὅλως οἷς ἕπεται ἡδονὴ
ἢ λύπη δυνάμεις δὲ καθ ἃς παθητικοὶ τούτων λεγόμεθα οἷον καθ ἃς δυνατοὶ
ὀργισθῆναι ἢ λυπηθῆναι ἢ ἐλεῆσαι ἕξεις δὲ καθ ἃς πρὸς τὰ πάθη ἔχομεν εὖ ἢ
κακῶς οἷον πρὸς τὸ ὀργισθῆναι εἰ μὲν σφοδρῶς ἢ ἀνειμένως κακῶς ἔχομεν εἰ
δὲ μέσως εὖ ὁμοίως δὲ καὶ πρὸς τἆλλα
74
todas as outras definiccedilotildees apresentadas nos demais tratados que
chamaremos em nosso auxiacutelio o que natildeo nos permite ignorar essa
caracteriacutestica Aristoacuteteles explica que comumente se admite o prazer
como o que toca mais de perto a natureza humana ideia relevante para
nossa investigaccedilatildeo porque haacute prazeres ligados ao natildeo racional e
prazeres do intelecto como aqueles associados agrave vida contemplativa
que satildeo descritos pelo filoacutesofo como maiores e melhores dentre os
prazeres Por isso na educaccedilatildeo dos jovens satildeo usados prazer e dor para
direcionaacute-los pois se pensa que para formar a excelecircncia do caraacuteter eacute
preciso se comprazer com as coisas certas e detestar as que devem ser
detestadas (EN X 1 1172a19-24) Percebemos contudo o filoacutesofo a
abordar os prazeres natildeo racionais com a cautela costumeira dispensada
aos elementos natildeo racionais pois parece pensar ser necessaacuterio educaacute-las
conforme a reta razatildeo Assim Aristoacuteteles natildeo nega que prazer e dor nos
acompanham por toda vida que tenham grande importacircncia e forccedila para
a virtude e para a vida feliz porque escolhemos o que eacute agradaacutevel e
fugimos do que eacute doloroso sendo que o prazer eacute naturalmente buscado
pelo desejo e a dor evitada Portanto prazer e dor estatildeo ligados
igualmente agrave accedilatildeo que conduziraacute ao alcance dos fins desejados
Aleacutem do passo do Livro II no qual Aristoacuteteles relaciona prazer e
dor agraves emoccedilotildees o pensador aborda-os especialmente em trecircs momentos
de sua EN Primeiro trata esses assuntos quando estuda as propostas
correntes sobre a melhor forma de vida humana Nesse ponto vimos que
ainda no Livro I percebe que boa parte dos homens busca uma vida
voltada totalmente para o prazer considerado indiscriminada ou
vulgarmente um bem ou o bem supremo A consideraccedilatildeo eacute feita e
descartada pelo filoacutesofo que concorda que o prazer seja um bem mas
que seja impossiacutevel consideraacute-lo o bem supremo ainda que se configure
como um bem final
O segundo momento em que a temaacutetica eacute discutida eacute o Livro VII
que apresenta um diaacutelogo com Platatildeo e sua proposta do prazer como um
processo ideia descartada pela Eacutetica em questatildeo O terceiro ponto do
tratado no qual o prazer aparece eacute a primeira ldquometaderdquo do Livro X da
EN quando o filoacutesofo parece retomar as propostas sobre os prazeres da
vida vulgar abordados no Livro I reforccedilando sua ideia de que o prazer
natildeo pode ser o bem supremo mas que ainda assim pode ser um bem
porque apesar de poder ser escolhido por si mesmo natildeo apresentaria a
autossuficiecircncia e completude da felicidade deixando espaccedilo em uma
vida voltada agrave busca de prazer ainda para a necessidade de outras coisas
Nesse trecho o filoacutesofo apresentaria sua real concepccedilatildeo do prazer e
chegaria a relacionaacute-lo com a moralidade Como propotildee Frede (2009 p
75
241) Aristoacuteteles daacute lugar agraves inclinaccedilotildees em sua moral embora as accedilotildees
corretas moralmente natildeo dependam apenas das inclinaccedilotildees dependem
igualmente da racionalidade praacutetica exercida na figura da deliberaccedilatildeo
ldquoAinda que sentimentos gostos e desgostos desempenhem um
importante papel para estabelecer o fim uacuteltimo da accedilatildeo eles natildeo
determinam a deliberaccedilatildeo racional acerca do caraacuteter apropriado de uma
accedilatildeordquo (FREDE 2009 p 241) Entatildeo os prazeres podem e devem ser
bem-educados moralmente o que possibilitaraacute realizar a recomendaccedilatildeo
de EN II de que eacute preciso ser educado a fim de sentir prazer com o que
eacute devido e para desprezar o que eacute devido
A estudiosa observa que na EN contudo Aristoacuteteles natildeo discute
o tipo de prazer e dor envolvido nas emoccedilotildees Por isso e por sugestatildeo
de Frede eacute preciso recorrer agrave Retoacuterica para saber de tal assunto Neste
livro Aristoacuteteles usa a tese que havia rejeitado na EN aquela que propotildee
o prazer como um processo (Rhet I 10 1369b33-35) De acordo com
Frede (2009 p 249)
Natildeo eacute difiacutecil ver por que Aristoacuteteles recorre agrave
definiccedilatildeo das dores e dos prazeres como
ldquoprocessos de interrupccedilatildeo e restauraccedilatildeordquo as
emoccedilotildees satildeo baseadas em necessidades quereres
desejos ou em suas aversotildees correspondentes
Todos esses fenocircmenos pressupotildeem algum tipo de
carecircncia uma necessidade que deve ser satisfeita
Os oradores tratam das necessidades humanas de
diferentes modos [] os prazeres e as dores
relevantes estatildeo ligados agraves necessidades e aos
quereres das pessoas
A autora entende que a Retoacuterica conteacutem um tipo de anaacutelise que
Aristoacuteteles deve ter pressuposto na EN e isso natildeo requer que se
assumam tratamentos diferentes para o prazer e para a dor em diferentes
fases do pensamento de Aristoacuteteles Ambos os conceitos sobre o prazer
devem ter existido na eacutepoca do filoacutesofo que os apresenta em textos
diferentes (Top I 2 121a35-36) Aristoacuteteles pode ter escrito a Retoacuterica
consideravelmente cedo mas continuou a usaacute-la e reformulaacute-la o que eacute
apontado por marcas posteriores de revisatildeo Nem assim sentiu
necessidade de alterar sua explicaccedilatildeo sobre prazer e dor quando tratou
das emoccedilotildees neste livro Frede pensa que o filoacutesofo deve ter
considerado a familiaridade dos leitores com as paacutethē (da Retoacuterica)
76
quando natildeo fez descriccedilatildeo minuciosa do tema na EN57 ldquoAristoacuteteles
parece assim ter reconhecido diferentes tipos de prazer e dor em sua
eacutetica sem chamar a atenccedilatildeo do leitor para esse fatordquo (FREDE 2009 p
249) o que justificaria a postura da Retoacuterica
Agraves observaccedilotildees de Frede acrescentamos que o prazer associado
agraves emoccedilotildees como no caso das propostas da Rhet da Poet e tambeacutem da
EN tem um quecirc de racionalidade Nos tratados de ciecircncia produtiva eacute
faacutecil perceber o que afirmamos porque as emoccedilotildees traacutegicas bem como
aquelas despertadas pelo discurso retoacuterico acontecem por um tipo de
lsquoidentificaccedilatildeorsquo entre o puacuteblico e as imagens criadas pelo enredo ou pelo
proferimento do orador Essas imagens provocam certo tipo de
pensamento (ao menos imaginaccedilatildeo) em quem tem contato com elas Eacute o
caso do reconhecimento de que ldquoesse eacute aquelerdquo mencionado em Poet
IV e provocado pela trageacutedia que causa prazer proacuteprio a este tipo de
literatura ou encenaccedilatildeo Tal prazer natildeo eacute advindo somente da aparecircncia
da arte em questatildeo mas das formulaccedilotildees racionais que leva o puacuteblico a
elaborar
Pensamos que o mesmo seja vaacutelido para a EN porque o prazer e a
dor causados pelas emoccedilotildees descritas neste tratado tecircm a ver com certas
elaboraccedilotildees que se encadeiam a partir do contato com algumas
aparecircncias e resultam em determinados tipos de operaccedilotildees psiacutequicas
como as opiniotildees O prazer vem com o sentir certa emoccedilatildeo e
igualmente com a lembranccedila ou a imaginaccedilatildeo pois estas causam ao
menos certas alteraccedilotildees no corpo pondo-o em movimento por isso satildeo
tambeacutem classificados como paacutethos (EN II 2 1105a2) pois afetam o
homem embora como observa Konstan (2006 p 42) os prazeres natildeo
sejam exatamente emoccedilatildeo pois satildeo sensaccedilotildees (aisthḗseis) resultantes da
percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo O jovem ao ser educado deve adquirir o
haacutebito de sentir prazer e dor com o que eacute adequado seu caraacuteter deve se
familiarizar previamente com a virtude gostando do que eacute belo e
desprezando o vil58 indicando a forma correta de sentir
57 Talvez por isso tambeacutem natildeo faccedila grandes explicaccedilotildees sobre as emoccedilotildees 58 Segundo Frede das consideraccedilotildees acerca das emoccedilotildees e do prazer feitas por
Aristoacuteteles o que fica para pensarmos atualmente eacute a proposta da necessidade
de uma educaccedilatildeo moral apropriada das emoccedilotildees do sentir prazer e dor com
atividades e atitudes corretas Um segundo benefiacutecio seria o enfoque na
qualidade de vida na qual se preze o desenvolvimento das qualidades que
apresentamos naturalmente para termos uma vida satisfatoacuteria e pensamos em
harmonia dentro de nossas comunidades Aristoacuteteles entendeu que a moralidade
eacute compatiacutevel com inclinaccedilotildees pessoais e pressupocircs tais inclinaccedilotildees Isso eacute o
77
Aleacutem da menccedilatildeo ao prazer e agrave dor e das listas apresentadas no
passo que provavelmente deveria explicar o que Aristoacuteteles entende
por emoccedilatildeo devemos considerar em que medida a ldquodefiniccedilatildeordquo
apresentada pode ser uacutetil em nossa busca por maior especificidade sobre
o assunto Para comeccedilar podemos observar um pouco mais EN II 4
1105b19-29 e com isso notar a relaccedilatildeo do paacutethos com as capacidades
(dynaacutemeis) e as disposiccedilotildees (heacutexeis) A passagem busca esclarecer o que
satildeo as virtudes e por isso as diferencia das emoccedilotildees estas natildeo seriam
nem disposiccedilotildees ou seja aquilo que nos faz ter bom ou mau
comportamento frente agraves emoccedilotildees nem dynaacutemeis que satildeo as
capacidades que se tem de sentir as emoccedilotildees O passo todavia diz
muito da importacircncia eacutetica do paacutethos pois se a virtude eacute disposiccedilatildeo e eacute
fundamental agrave felicidade - e sendo a felicidade o fim humano - se estaacute
ligada desde a alma agrave emoccedilatildeo - por ser disposiccedilatildeo de se posicionar bem
diante das emoccedilotildees - percebemos que o papel desses elementos
desprezados ou postos em segundo plano por outros filoacutesofos eacute
realmente grande em Aristoacuteteles como bem observa Zingano (2007 p
145 EN II 1 1103b25) As emoccedilotildees interferem no ser e no agir
virtuosamente (EN II 2 1104b4-13) pois haacute modos diferentes de se
sentir e lidar com a emoccedilatildeo conforme o estado e a heacutexis nos quais nos
encontramos Entatildeo ser virtuoso implica se comportar bem em relaccedilatildeo agrave
emoccedilatildeo e senti-la de modo (ou na quantia) adequado
A partir das observaccedilotildees feitas podemos afirmar que o passo em
questatildeo deixa claro que as virtudes natildeo satildeo emoccedilotildees embora se
relacionem com estas pois virtudes e viacutecios (kakiacuteai) levam a considerar
um agente como bom ou mau a ser louvado ou censurado e envolvem
escolha deliberada Um homem que apresenta uma virtude eacute dito
disposto de certo modo mas ningueacutem eacute considerado bom ou mau
ningueacutem eacute louvado ou censurado nem considerado disposto de certo
modo por sentir uma emoccedilatildeo ou por ser capaz de sentir uma emoccedilatildeo
A relaccedilatildeo da emoccedilatildeo com a virtude moral em EN II confirma as
propostas de EN I 13 a respeito da alma humana bipartida cuja
capacidade desiderativa ldquocomportariardquo as emoccedilotildees Tal capacidade eacute
forccediloso lembrar seria natildeo racional mas capaz de ouvir as sugestotildees da
razatildeo praacutetica portanto deveriacuteamos supor que aquilo que fosse de sua
alccedilada refletisse tal capacidade de ouvir a razatildeo A possibilidade de as
emoccedilotildees seguirem a reta razatildeo todavia se configura como um
meacuterito da teoria em questatildeo e a proposta de que a accedilatildeo deve ser feita com
inclinaccedilatildeo e natildeo por inclinaccedilatildeo pouparia muita discussatildeo se tivesse sido levada
a seacuterio pelos filoacutesofos posteriores
78
problema pois ainda no Livro II Aristoacuteteles nos fala de emoccedilotildees que
satildeo moralmente maacutes e que natildeo admitem mudanccedila59
Dado que os trechos da Eacutetica Nicomaqueia em anaacutelise por ora
nos trouxeram mais duacutevidas que respostas - ao mostrar-nos o ldquolugarrdquo
das emoccedilotildees na alma e com este sua capacidade de participar do
racional - consideramos que para entendermos esses assuntos
igualmente seja relevante consultar tratados que se dedicaram mais
especificamente ao tema e consultar o texto no qual particularmente se
analisa as questotildees relativas agrave alma Essa consulta nos permitiraacute trazer
soluccedilotildees agraves questotildees suscitadas desde EN I 13 a respeito da
possibilidade de participaccedilatildeo do natildeo racional na razatildeo humana dado
que ambos satildeo capacidades de uma alma una que se manifestam no
corpo Por isso julgamos que o tratado sobre a alma assim como os
demais textos que seratildeo nossos auxiliares nos permitiratildeo ter maior
clareza sobre as relaccedilotildees das emoccedilotildees com corpo e alma e com a razatildeo
humana
4a) Alma corpo e emoccedilotildees interpretadas a partir de EN I com o auxiacutelio
do DA da Rhet e da Poet
No De Anima o estudo da psychḗ estaacute entre aqueles dedicados agraves
coisas da natureza por ser um tipo de investigaccedilatildeo que pretende
conhecer a natureza a substacircncia e os atributos da alma dentre os quais
estatildeo as afecccedilotildees (paacutethē) que lhes satildeo proacuteprias Essas afirmaccedilotildees
conduzem agrave questatildeo complexa da separaccedilatildeo ou unidade entre corpo e
alma Devemos retomar o problema ainda que brevemente jaacute que
Aristoacuteteles faz com que alma e corpo compartilhem as emoccedilotildees
afirmaccedilatildeo feita anteriormente Frente a esse assunto cabe a questatildeo da
inseparabilidade entre corpo e alma Quanto agrave questatildeo Aristoacuteteles
parece pocircr-se em franca oposiccedilatildeo agraves teorias dualistas de Platatildeo como
aquelas apresentadas no Feacutedon quando escreve
Haacute ainda uma dificuldade de saber se as afecccedilotildees
59 Eacute o que confirma Sorabji quando fala da proposta de Aristoacuteteles sobre o meio
termo nas emoccedilotildees ldquoPois ele diz que o que conta muito ou pouco depende de
quem noacutes somos da ocasiatildeo do para quecirc e para quem a nossa emoccedilatildeo eacute
dirigida do resultado provaacutevel e do modo de reagir Aleacutem disso ele aponta que
algumas emoccedilotildees como Schadenfreude (sentir prazer com o insucesso alheio) e
inveja tecircm a ideia de maldade construiacuteda nelas de modo que natildeo haacute espaccedilo para
a ideia de moderaccedilatildeo em exercecirc-lasrdquo (SORABJI 2000 p 195 traduccedilatildeo nossa)
79
da alma satildeo todas comuns agravequilo que possui alma
ou se haacute tambeacutem alguma afecccedilatildeo proacutepria agrave alma
tatildeo somente E embora natildeo seja faacutecil eacute necessaacuterio
compreender isto Revela-se que na maioria dos
casos a alma nada sofre ou faz sem o corpo
como por exemplo irritar-se persistir ter
vontade e perceber em geral por outro lado
parece ser proacuteprio a ela particularmente o pensar
Natildeo obstante se o pensar tambeacutem eacute um tipo de
imaginaccedilatildeo ou se ele natildeo pode ocorrer sem a
imaginaccedilatildeo entatildeo nem mesmo o pensar poderia
existir sem o corpo Enfim se alguma das funccedilotildees
ou afecccedilotildees eacute proacutepria agrave alma ela poderia existir
separada mas se nada lhe eacute proacuteprio a alma natildeo
seria separaacutevel [] Parece tambeacutem que todas as
afecccedilotildees da alma ocorrem com um corpo acircnimo
mansidatildeo medo comiseraccedilatildeo ousadia bem
como a alegria o amar e o odiar ndash pois o corpo eacute
afetado de algum modo simultaneamente a elas
(DA 403a3-19)60
O passo apresenta simultaneidade nas afecccedilotildees do corpo e da
alma inviabilizando a separaccedilatildeo destas duas instacircncias61 pois como
observa Everson (2012 p 238) ldquose o corpo deve ter oacutergatildeos que satildeo
capazes de realizar suas funccedilotildees constitutivas estes igualmente
precisam ter particulares constituiccedilotildees materiaisrdquo Reforccedilamos portanto
que para Aristoacuteteles natildeo haacute separaccedilatildeo entre corpo e alma o que nos
mostra sua teoria das emoccedilotildees pois nesta teoria o filoacutesofo explicita que
60 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ἀπορίαν δ
ἔχει καὶ τὰ πάθη τῆς ψυχῆς πότερόν ἐστι πάντα κοινὰ καὶ τοῦ ἔχοντος ἢ ἔστι τι
καὶ τῆς ψυχῆς ἴδιον αὐτῆς τοῦτο γὰρ λαβεῖν μὲν ἀναγκαῖον οὐ ῥᾴδιον δέ
φαίνεται δὲ τῶν μὲν πλείστων οὐθὲν ἄνευ τοῦ σώματος πάσχειν οὐδὲ ποιεῖν
οἷον ὀργίζεσθαι θαρρεῖν ἐπιθυμεῖν ὅλως αἰσθάνεσθαι μάλιστα δ ἔοικεν ἰδίῳ
τὸ νοεῖν εἰ δ ἐστὶ καὶ τοῦτο φαντασία τις ἢ μὴ ἄνευ φαντασίας οὐκ ἐνδέχοιτ
ἂν οὐδὲ τοῦτ ἄνευ σώματος εἶναι εἰ μὲν οὖν ἔστι τι τῶν τῆς ψυχῆς ἔργων ἢ
παθημάτων ἴδιον ἐνδέχοιτ ἂν αὐτὴν χωρίζεσθαι εἰ δὲ μηθέν ἐστιν ἴδιον αὐτῆς
οὐκ ἂν εἴη χωριστή [] ἔοικε δὲ καὶ τὰ τῆς ψυχῆς πάθη πάντα εἶναι μετὰ
σώματος θυμός πραότης φόβος ἔλεος θάρσος ἔτι χαρὰ καὶ τὸ φιλεῖν τε καὶ
μισεῖν ἅμα γὰρ τούτοις πάσχει τι τὸ σῶμα 61 A questatildeo eacute bem mais complexa poreacutem natildeo poderiacuteamos estudaacute-la em
detalhes nesse momento Sobre o assunto sugerimos a leitura de textos como os
de Robinson e Everson indicados nas referecircncias Estes lidam com a questatildeo
com muito mais cuidado do que noacutes podemos lhe dispensar no presente
80
quem se emociona natildeo eacute o corpo mas o composto corpoalma
apresentando claramente sua perspectiva hilemoacuterfica A prova que
Aristoacuteteles daacute para tanto eacute que agraves vezes as emoccedilotildees fortes e violentas
(hiskyrograven kaigrave enargograven pathḗmaton) natildeo produzem excitaccedilatildeo ou medo
mas agraves vezes emoccedilotildees pequenas e imperceptiacuteveis (mikroacuten kaigrave
amauroacuten) nos movem (kineicircsthai) Isso se torna ainda mais evidente
por exemplo quando natildeo acontece nada de temiacutevel mas se sente medo
(DA I 1 403a20-24) tendo o corpo a tremer como eacute o caso em um
teatro Por isso o filoacutesofo considera evidente que as afecccedilotildees satildeo
determinaccedilotildees na mateacuteria - ou seja implicam ou envolvem mateacuteria mas
natildeo somente (DA I 1 403a24-25 loacutegoi eacutenyloi eisiacuten62) Por isso tambeacutem
as definiccedilotildees que daacute para as emoccedilotildees satildeo do tipo o encolerizar-se eacute um
movimento no corpo do sangue na regiatildeo que estaacute em volta do
coraccedilatildeo ocasionado por certo desejo63 Tais potecircncias satildeo despertadas
por percepccedilotildees imagens e imaginaccedilotildees fatores que estatildeo atrelados ao
exterior e agrave percepccedilatildeo sensiacutevel e estatildeo associadas ao desejo e ao
pensamento daquele que se emociona
Dessas consideraccedilotildees do tratado sobre a alma acerca das
emoccedilotildees aleacutem da velha lista das paacutethē eacute possiacutevel entender que afetam
simultaneamente alma e corpo e que neste provocam alteraccedilotildees e
mesmo movimentos Teorias que parecem ser de grande ajuda agrave nossa
pesquisa embora no DA Aristoacuteteles possa natildeo estar preocupado em
especificar o valor moral das emoccedilotildees dado o caraacuteter bioloacutegico (ou
psicoloacutegico) do texto Pelas propostas observadas entendemos ldquoque as
afecccedilotildees da alma satildeo assim inseparaacuteveis da mateacuteria natural dos animais
na medida em que de fato subsistem neles coisas tais como acircnimo e
62Everson traduz a expressatildeo por ldquoexplicaccedilotildees materiadasrdquo e Tricot por ldquodes
formes engageacutees dans la matiegravererdquo (as formas determinadas da mateacuteria) Este
uacuteltimo explica o raciociacutenio de Aristoacuteteles no passo da seguinte forma ldquoas
emoccedilotildees variam segundo os diferentes indiviacuteduos elas tanto se produzem e
elas tanto natildeo se produzem Ora essa diferenccedila natildeo eacute devida ao πάθημα que eacute o
mesmo para todos eacute devida agrave diferenccedila dos temperamentos da constituiccedilatildeo
fiacutesica Portanto uma emoccedilatildeo eacute sempre acompanhada mesmo no caso em que o
fato natildeo eacute aparente de um concomitante fiacutesicordquo (2010 nota 2 p 29 traduccedilatildeo
nossa) 63Embora nos interesse em demasia a questatildeo de como as afecccedilotildees da alma se
manifestam no corpo eacute mais bem discutida por Aristoacuteteles em seus tratados
bioloacutegicos mas natildeo apareceraacute aqui por questotildees de exequibilidade de nosso
estudo
81
temor e natildeo satildeo como a linha e a superfiacutecierdquo (DA I 1 403b17-19)64
Constataccedilatildeo possiacutevel porque o estudioso da natureza trataria as afecccedilotildees
de modo diferente do que o faria um dialeacutetico como Everson escreve
Noacutes jaacute vimos que ao definir as afecccedilotildees da
psyche Aristoacuteteles daacute prioridade agrave identificaccedilatildeo
das causas das mudanccedilas relevantes e aqui ele
insiste que tambeacutem ter (sic) de ser feita referecircncia
ao corpo Que aqui ldquoeste tipo de corpordquo natildeo
represente uma referecircncia agrave forma eacute confirmado
pelo que se segue Ele contrasta as definiccedilotildees de
ira que seriam oferecidas pelo dialeacutetico e pelo
fiacutesico o primeiro definiria a ira como ldquolsquoo desejo
de retribuir a dorrsquo ou algo parecidordquo enquanto o
uacuteltimo a definiria como a agitaccedilatildeo do sangue ao
redor do coraccedilatildeo (EVERSON 2010 p 241)
Essa diferenccedila nas descriccedilotildees das afecccedilotildees acontece porque ldquoUm
discorre sobre a mateacuteria e o outro sobre a forma e a determinaccedilatildeordquo (DA I
1 403b1-2)65 A determinaccedilatildeo eacute a forma da coisa e precisa existir em
uma mateacuteria que possua tal qualidade O estudioso da natureza eacute
portanto aquele que aborda as afecccedilotildees correspondentes a um corpo
especiacutefico e a uma mateacuteria especiacutefica natildeo tratando das afecccedilotildees que natildeo
satildeo deste tipo assunto que cabe a estudos como os da arte retoacuterica dos
quais falaremos na sequecircncia
Por ora seguiremos com a investigaccedilatildeo do DA que continua
questionando afirmaccedilotildees sobre a acomodaccedilatildeo da alma no corpo e
afirmando que tal consideraccedilatildeo eacute necessaacuteria pois eacute devido agrave comunhatildeo
corpoalma que um faz e outro sofre um move e outro eacute movido sendo
que nada disso acontece casualmente a um ou ao outro Aristoacuteteles
observa em contrapartida parece que cada corpo apresenta
configuraccedilatildeo proacutepria Nesse ponto provavelmente tenhamos a
importacircncia de chamar as consideraccedilotildees de um tratado bioloacutegico para
uma discussatildeo eacutetica se o primeiro tipo de investigaccedilatildeo tem por
preocupaccedilatildeo o mover poderaacute auxiliar na resoluccedilatildeo de questotildees morais
pois natildeo haacute accedilatildeo (prāxis) ou atividade (eneacutergeia) moralmente
consideraacutevel sem movimento (kiacutenēsis) tampouco sem o movimento
64 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ὅτι τὰ πάθη
τῆς ψυχῆς οὕτως ἀχώριστα τῆς φυσικῆς ὕλης τῶν ζῴων ᾗ γε τοιαῦθ ὑπάρχει
ltοἷαgt θυμὸς καὶ φόβος καὶ οὐχ ὥσπερ γραμμὴ καὶ ἐπίπεδον 65 Idem no original ὁ μὲν τὴν ὕλην ἀποδίδωσιν ὁ δὲ τὸ εἶδος καὶ τὸν λόγον
82
daquilo que pede as accedilotildees ou as atividades como vimos pouco acima
Diante da questatildeo do mover e do que faz mover podemos
explicitar a proposta precedentemente mencionada que a alma eacute o que
move sem ser movido tratando-se do movimento local ldquoeacute possiacutevel
como dissemos que a alma se mova por acidente e que mova a si
mesma ndash eacute possiacutevel por exemplo que aquilo em que ela estaacute seja
movido e seja movido justamente pela alma - mas natildeo eacute possiacutevel de
nenhuma outra maneira que a alma se mova quanto ao lugarrdquo (DA I 4
408a30-34)66 A partir dessa afirmaccedilatildeo Tricot (2010 nota 2 p 65)
esclarece que a alma se move no corpo em que estaacute por acidente pois
move-o e que o movimento quanto ao lugar bem como as alteraccedilotildees
fisioloacutegicas provocadas pelas paacutethē podem nos preocupar justamente
pela relaccedilatildeo da kiacutenēsis com as accedilotildees e as atividades morais que
mencionamos Aristoacuteteles pensa que o deslocamento da alma poderia
ser inferido mais verossimilmente das suas capacidades consideradas
pela opiniatildeo comum como movimento Esta eacute a interpretaccedilatildeo dada por
Tricot (2010 nota 4 p 65) para o passo que segue
E seria mais razoaacutevel algueacutem ter certa dificuldade
em relaccedilatildeo agrave alma como movida tendo em vista o
que se segue dizemos que a alma se magoa se
alegra ousa teme e ainda que se irrita percebe e
raciocina e haacute a opiniatildeo de que todas estas coisas
satildeo movimentos donde algueacutem poderia pensar
que a alma se move Isso contudo natildeo eacute
necessaacuterio Pois mesmo que o magoar-se o
alegrar-se ou o raciocinar sejam especialmente
movimentos e que cada um deles o seja pela alma
ndash por exemplo que o irritar-se ou o temer seja um
tipo de movimento do coraccedilatildeo e que o raciocinar
seja um tipo de movimento desse oacutergatildeo ou talvez
de outro diverso e que dentre estes casos uns
ocorram segundo a locomoccedilatildeo de certas partes
movidas outros segundo a alteraccedilatildeo das mesmas
(quais e como eacute outra questatildeo) ndash dizer que a alma
se irrita eacute como dizer que a alma tece ou edifica
Talvez seja melhor dizer natildeo que a alma se apieda
ou apreende ou raciocina mas que o homem o faz
66 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original κατὰ
συμβεβηκὸς δὲ κινεῖσθαι καθάπερ εἴπομεν ἔστι καὶ κινεῖν ἑαυτήν οἷον
κινεῖσθαι μὲν ἐν ᾧ ἐστι τοῦτο δὲ κινεῖσθαι ὑπὸ τῆς ψυχῆς ἄλλως δ οὐχ οἷόν τε
κινεῖσθαι κατὰ τόπον αὐτήν
83
com a alma E isso natildeo porque o movimento
existe nela mas porque o movimento ora chega
ateacute ela ora parte dela na percepccedilatildeo sensiacutevel por
exemplo ele parte de fora e na reminiscecircncia
parte dela ateacute chegar aos movimentos e agraves
estabilizaccedilotildees nos oacutergatildeos da percepccedilatildeo (DA I 4
408a34-35 408b1-17)67
Assim dando por fim nossa breve discussatildeo sobre a questatildeo do
movimento provocado pelas paacutethē da alma no corpo confirmamos que a
alma natildeo eacute o que faz mover e o que eacute movido Ela eacute somente o que faz
mover (DA 409a18 allagrave tograve kinoucircn moacutenon) e natildeo eacute preciso que se mova
para que conceda movimento aos corpos embora por esses argumentos
natildeo fosse possiacutevel explicar as funccedilotildees (tagrave eacuterga) e as afecccedilotildees (tagrave paacutethē)
da alma68 Essas propostas do DA portanto natildeo potildeem fim agraves nossas
duacutevidas acerca da definiccedilatildeo de emoccedilatildeo
Frente agraves indefiniccedilotildees apresentadas pela EN e pelo DA a
Retoacuterica ressalta algo novo e importante Esse tratado propotildee que as
emoccedilotildees satildeo ldquoas causas que fazem alterar os seres humanos e
introduzem mudanccedilas nos seus juiacutezos na medida em que elas
comportam dor e prazer tais satildeo a ira a compaixatildeo o medo e outras
67 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original ἄλλως δ οὐχ οἷόν τε
κινεῖσθαι κατὰ τόπον αὐτήν εὐλογώτερον δ ἀπορήσειεν ἄν τις περὶ αὐτῆς ὡς
κινουμένης εἰς τὰ τοιαῦτα ἀποβλέψας φαμὲν γὰρ τὴν ψυχὴν λυπεῖσθαι χαίρειν
θαρρεῖν φοβεῖσθαι ἔτι δὲ ὀργίζεσθαί τε καὶ αἰσθάνεσθαι καὶ διανοεῖσθαι ταῦτα
δὲ πάντα κινήσεις εἶναι δοκοῦσιν ὅθεν οἰηθείη τις ἂν αὐτὴν κινεῖσθαι τὸ δ οὐκ
ἔστιν ἀναγκαῖον εἰ γὰρ καὶ ὅτι μάλιστα τὸ λυπεῖσθαι ἢ χαίρειν ἢ διανοεῖσθαι
κινήσεις εἰσί καὶ ἕκαστον κινεῖσθαί τι τούτων τὸ δὲ κινεῖσθαί ἐστιν ὑπὸ τῆς
ψυχῆς οἷον τὸ ὀργίζεσθαι ἢ φοβεῖσθαι τὸ τὴν καρδίαν ὡδὶ κινεῖσθαι τὸ δὲ
διανοεῖσθαι ἤ τι τοιοῦτον ἴσως ἢ ἕτερόν τι τούτων δὲ συμβαίνει τὰ μὲν κατὰ
φοράν τινων κινουμένων τὰ δὲ κατ ἀλλοίωσιν (ποῖα δὲ καὶ πῶς ἕτερός ἐστι
λόγος) τὸ δὴ λέγειν ὀργίζεσθαι τὴν ψυχὴν ὅμοιον κἂν εἴ τις λέγοι τὴν ψυχὴν
ὑφαίνειν ἢ οἰκοδομεῖν βέλτιον γὰρ ἴσως μὴ λέγειν τὴν ψυχὴν ἐλεεῖν ἢ
μανθάνειν ἢ διανοεῖσθαι ἀλλὰ τὸν ἄνθρωπον τῇ ψυχῇ τοῦτο δὲ μὴ ὡς ἐν
ἐκείνῃ τῆς κινήσεως οὔσης ἀλλ ὁτὲ μὲν μέχρι ἐκείνης ὁτὲ δ ἀπ ἐκείνης οἷον
ἡ μὲν αἴσθησις ἀπὸ τωνδί ἡ δ ἀνάμνησις ἀπ ἐκείνης ἐπὶ τὰς ἐν τοῖς
αἰσθητηρίοις κινήσεις ἢ μονάς 68 Raciociacutenios (logismouacutes) percepccedilotildees (aisthḗsis) prazeres (hēdonaacutes) dores
(lyacutepas) etc
84
semelhantes assim como as suas contraacuteriasrdquo (Rhet II 1 1378a19-22)69
Mais adiante no texto lemos outro passo que parece proceder a uma
exemplificaccedilatildeo ou lista de emoccedilotildees ldquoPor paixotildees entendo a ira o desejo
e outras emoccedilotildees da mesma natureza de que falamos anteriormenterdquo
(Rhet II 12 1388b32-33)70 O que pode chamar nossa atenccedilatildeo nesses
trechos eacute resumido por Konstan (2006 p 33 traduccedilatildeo nossa) do
seguinte modo ldquoA definiccedilatildeo de emoccedilatildeo ou paacutethos entretanto que
Aristoacuteteles oferece na Retoacuterica ndash o mais perto que ele chega de dar uma
tal definiccedilatildeo do que em nenhum outro de seus escritos [] ndash natildeo
relaciona emoccedilatildeo com sua causa externa ou estiacutemulo mas insiste antes
em seu efeito sobre o julgamentordquo Observaccedilatildeo extremamente vaacutelida
embora entendamos que as definiccedilotildees das emoccedilotildees particulares trazidas
pelo Livro II da Rhet apresentem as referecircncias aos mencionados
estiacutemulos ou causas externas como mostraremos pouco adiante
Deixemos isso por ora concentremo-nos na tentativa de definiccedilatildeo dada
pelo texto e nos juiacutezos que se diz serem alterados
Comecemos com uma interrogaccedilatildeo como o destaque na
capacidade de ldquomudanccedilas nos juiacutezosrdquo poderia ser importante para nossa
pesquisa se as coisas que dizem respeito agrave retoacuterica diferem daquelas
especiacuteficas agrave eacutetica Sendo a retoacuterica considerada uma arte e se a arte
trata do universal como poderia nos ajudar a esclarecer questotildees eacuteticas
se vemos Aristoacuteteles sempre a ressaltar o caraacuteter particular das accedilotildees
morais Antes de responder agraves questotildees vale frisar que a eacutetica tambeacutem
aborda universalmente suas questotildees graccedilas ao seu caraacuteter filosoacutefico jaacute
indicando certa proximidade entre as investigaccedilotildees dos dois tratados
Diante disso podemos ir agraves respotas o filoacutesofo nos informa que a arte
retoacuterica natildeo teoriza sobre o provaacutevel para o indiviacuteduo mas sobre o que
parece verdadeiro para pessoas de certa condiccedilatildeo formando silogismos
a partir daquilo sobre o que estamos habituados a deliberar Esse
envolvimento do haacutebito e da deliberaccedilatildeo mesmo que natildeo implique
necessariamente uma accedilatildeo particular ainda eacute de grande importacircncia
para nossos estudos porque a funccedilatildeo da retoacuterica ldquoconsiste em tratar das
questotildees sobre as quais deliberamos e para as quais natildeo dispomos de
artes especiacuteficas e isto perante um auditoacuterio incapaz de ver muitas
coisas ao mesmo tempo ou de seguir uma longa cadeia de raciociacuteniosrdquo
69 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original ἔστι δὲ τὰ
πάθη δι ὅσα μεταβάλλοντες διαφέρουσι πρὸς τὰς κρίσεις οἷς ἕπεται λύπη καὶ
ἡδονή οἷον ὀργὴ ἔλεος φόβος καὶ ὅσα ἄλλα τοιαῦτα καὶ τὰ τούτοις ἐναντία 70 Idem no original λέγω δὲ πάθη μὲν ὀργὴν ἐπιθυμίαν καὶ τὰ τοιαῦτα περὶ ὧν
εἰρήκαμεν πρότερον
85
(Rhet I 2 1357a1-4)71
A arte retoacuterica tem o poder de incitar a deliberaccedilatildeo e tal poder eacute
empregado em julgamentos e em outras instacircncias importantes agraves
decisotildees da poacutelis Por isso Konstan (2006 p 34) observa que os
momentos nos quais as emoccedilotildees eram excitadas por artifiacutecios retoacutericos
satildeo representantes de como as paacutethē estatildeo presentes no cotidiano
poliacutetico ateniense e mesmo moral Assim nosso empenho em estudar as
emoccedilotildees propostas no tratado eacute vaacutelido mesmo que estudiosos como
Fortenbaugh (2008 p 114) entendam que os intentos da Retoacuterica satildeo
distintos daqueles da Eacutetica Nicomaqueia Esta proposta pode sofrer
abalo se confrontada com a interpretaccedilatildeo de Nussbaum (1996 p 306 et
seq) que vecirc elemento cognitivo na constituiccedilatildeo das emoccedilotildees (e natildeo soacute
nas emoccedilotildees propostas pela Poeacutetica e pela Retoacuterica) aproximando suas
teorias sobre a emoccedilatildeo da tese de Konstan acerca dos ajuizamentos
influentes no cotidiano da poacutelis
Tendo em vista a objeccedilatildeo de se relacionar as propostas da EN e
da Rhet acerca das emoccedilotildees reforccedilamos a importacircncia mesmo na vida
de um filoacutesofo do conviacutevio poliacutetico na realizaccedilatildeo da vida humana feliz
Se a retoacuterica traz as emoccedilotildees para as praacuteticas comuns da poacutelis
consideramos o exerciacutecio de conjugaccedilatildeo das ideias dos dois tratados
como vaacutelido porque a Rhet aleacutem de trazer algo mais proacuteximo de uma
definiccedilatildeo de emoccedilatildeo fala mais detalhadamente do nosso objeto de
pesquisa e da possibilidade de mudanccedila nasde emoccedilotildees operadas pelo
discurso As paacutethē sendo coisas que fazem alterar os homens e que
mudam seu juiacutezo e sendo acompanhadas por prazer ou dor (ou
ambos)72 na arte retoacuterica estatildeo relacionadas agraves disposiccedilotildees do puacuteblico e
ao caraacuteter apresentado pelo orador assegurando ao tratado um lugar em
nossa investigaccedilatildeo
Para que o discurso tenha o poder da persuasatildeo e da mudanccedila nos
juiacutezos Aristoacuteteles pensa ser conveniente distinguir trecircs aspectos em
cada uma das emoccedilotildees que possa suscitar 1) em que estado de espiacuterito
71 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original ἔστιν δὲ τὸ
ἔργον αὐτῆς περί τε τοιούτων περὶ ὧν βουλευόμεθα καὶ τέχνας μὴ ἔχομεν καὶ
ἐν τοῖς τοιούτοις ἀκροαταῖς οἳ οὐ δύνανται διὰ πολλῶν συνορᾶν οὐδὲ
λογίζεσθαι πόρρωθεν 72 Sobre o misto de sentimentos que acompanha as emoccedilotildees da Retoacuterica ver
FREDE D ldquoMixed feelings in Aristotleacutes Rhetoricrdquo In Essays on Aristotleacutes
Rhetoric Berkeley Los Angeles London 1996 p 258-285 Ver tambeacutem
Konstan (2006 p 41 et seq) que admite por exemplo o misto de prazer e dor
com a raiva
86
se encontra quem se emociona 2) com o quecirc costuma se emocionar e
3) em que circunstacircncias se emociona Com base nesses criteacuterios o
filoacutesofo elabora descriccedilotildees das emoccedilotildees particulares implicadas com a
arte de persuadir se uma pessoa concentra um ou dois destes aspectos e
natildeo todos natildeo inspira a emoccedilatildeo Aristoacuteteles faz uma distinccedilatildeo das
paacutethē conforme esse meacutetodo que seraacute de grande ajuda aos nossos
propoacutesitos de definir o que satildeo as emoccedilotildees e sua natureza e embora natildeo
apresentemos aqui uma reproduccedilatildeo da definiccedilatildeo dada para cada paacutethos
mais adiante no entanto recorreremos ao medo (phoacutebos) como exemplo
do que expomos73 As descriccedilotildees contudo nos levam a perceber as
emoccedilotildees a serem despertadas com o discurso que tem por base
caracteres jaacute estabelecidos sejam estes aparentes ou reais Estes
caracteres podem ser apresentados pelos espectadores dos discursos
pelos envolvidos nas situaccedilotildees apresentadas em uma exposiccedilatildeo ou
pelos oradores que proferem uma fala Nesse ponto provavelmente
existe uma pequena diferenccedila entre as propostas da Retoacuterica e aquelas
da Eacutetica Nicomaqueia texto no qual as emoccedilotildees ainda tecircm a ver com
um caraacuteter em formaccedilatildeo74 embora as consideraccedilotildees apresentadas no
Livro X mostrem tal tratado preocupado igualmente com a conservaccedilatildeo
de um caraacuteter bem formado
As diferenccedilas entre os dois escritos cessam quando lidam com
pessoas e com o mundo que cerca quem se emociona como explica
Nussbaum (2008 p 46-47) A partir desses estudos entendemos que
estes fatores despertam e sofrem influecircncia das emoccedilotildees trazendo
sempre o olho do outro para nosso mais iacutentimo75 embora no acircmbito
73Tal escolha se justifica porque o medo parece ser uma das emoccedilotildees que
comporta todas as caracteriacutesticas que consideramos importantes para essa classe
(subclasse) de coisa seja entendida 74 Hutchinson observa que os estudantes que acompanhavam Aristoacuteteles
deveriam ser jovens das melhores classes sociais de Atenas 75 Isso porque segundo Konstan (2006 p 27-28 traduccedilatildeo nossa) ldquodado que o
julgamento e a crenccedila satildeo centrais para a dinacircmica das emoccedilotildees como
Aristoacuteteles as concebe eacute natural que um entendimento das pathḗ deve fazer
parte da arte da persuasatildeo Aristoacuteteles caracteriza as emoccedilotildees como consistindo
de dois elementos baacutesicos primeiro todo paacutethos eacute acompanhado por dor e
prazer segundo as pathḗ satildeo nas palavras de Aristoacuteteles aquelas coisas lsquoem
consideraccedilatildeo das quais as pessoas mudam e diferem em observaccedilatildeo aos seus
julgamentosrsquo [] noacutes podemos observar que algueacutem deve estar alerta agrave
possibilidade que um foco no papel da emoccedilatildeo no argumento condicionou o
tipo de sentimentos que Aristoacuteteles e outros estudantes de retoacuterica selecionaram
para anaacutelise Mas pode ser tambeacutem que ambientes forenses e deliberativos
87
poliacutetico sendo as paixotildees entendidas tambeacutem como respostas a
interaccedilotildees na poacutelis O que implica que haacute uma relaccedilatildeo de identidade ou
dessemelhanccedila entre as pessoas envolvidas com determinada emoccedilatildeo
Por isso parece que todas as paacutethē da Retoacuterica envolvem um tipo de
pensamento - ou ao menos opiniatildeo - ou imaginaccedilatildeo devidos a
determinadas situaccedilotildees e posturas dos outros com relaccedilatildeo agravequeles que se
emocionam Essas emoccedilotildees parecem ser despertadas por pessoas ou
relatos aos quais se daacute importacircncia envolvendo tipos de crenccedilas76
(piacutestis) eou opiniotildees (doacutexai) e juiacutezos do puacuteblico permitindo-o se
emocionar por exemplo com o que eacute exposto em um julgamento Com
isso a plateia pode deliberar e tomar certa decisatildeo os ouvintes dos
discursos tratados na Retoacuterica agem ou ao menos reagem de formas
semelhantes em conformidade com aquilo que o orador deixa
transparecer e do modo como busca afetaacute-los Informaccedilotildees de grande
relevacircncia aos nossos propoacutesitos por implicar ldquoaccedilotildeesrdquo particulares (EN
VI 12 1143a28 et seq)
Esse tipo de postura pode ser confirmado ainda por outra arte de
emocionar a poesia traacutegica Quando Aristoacuteteles faz sugestotildees para a boa
composiccedilatildeo de enredos e personagens traacutegicos deixa ainda mais
aparentes as propostas sobre as emoccedilotildees que destacamos como aquelas
fossem vistos como exibindo cenaacuterios intensificados do modo como as emoccedilotildees
operavam geralmente na vida grega onde elas estavam proximamente ligadas a
interaccedilotildees puacuteblicas e [eram] manifestadas principalmente em uma negociaccedilatildeo
de papeis socais contiacutenua e puacuteblica Emoccedilotildees vistas deste modo natildeo satildeo
expressotildees estaacuteticas resultantes de estiacutemulos impessoais como com os pacientes
sujeitos a choque eleacutetrico nas fotografias publicadas por Darwin mas [satildeo]
antes elementos em conjuntos complexos de trocas interpessoais nas quais os
indiviacuteduos estatildeo conscientes dos motivos dos outros e prontos a responder na
mesma moeda Natildeo eacute que Aristoacuteteles esteja certo quanto agraves emoccedilotildees e Darwin
errado mas antes que a abordagem de Aristoacuteteles pode descrever melhor o que
as emoccedilotildees significam na vida social da cidade-estado claacutessica enquanto [a
abordagem] de Darwin pode ser mais adequada ao modo que as emoccedilotildees satildeo
percebidas no universo moderno poacutes-Cartesiano A visatildeo de Aristoacuteteles das
emoccedilotildees depende implicitamente de um contexto narrativordquo 76 Quanto agrave presenccedila da crenccedila nas emoccedilotildees Nussbaum (2008 p 34 traduccedilatildeo
nossa) escreveu ldquoAristoacuteteles Crisipo Secircneca Spinoza Smith e mesmo
Descartes e Hume [] ndash todas essas figuras definem emoccedilotildees em termos de
crenccedilardquo Sugere-se conferir tambeacutem da mesma autora The fragility of
goodness Konstan em seu The emotions of the ancient greecks (2006 p 261)
ressalta a presenccedila da crenccedila na constituiccedilatildeo das emoccedilotildees aristoteacutelicas Sobre a
opiniatildeo na base da emoccedilatildeo ver Zingano (2007 p 152)
88
pretendidas pelo futuro orador na Retoacuterica contudo lanccedilando matildeo de
um instrumento emocional diferente com intenccedilotildees diferentes Vejamos
em que medida caracteres emoccedilotildees e accedilotildees - bem como as virtudes e os
viacutecios que deixam transparecer - podem estar ligados agraves emoccedilotildees
mesmo quando se trata das emoccedilotildees traacutegicas
Assim como a retoacuterica a poesia pode ser encarada como uma arte
de emocionar porque a Poeacutetica composta por Aristoacuteteles apresenta-se
ateacute certo ponto como um manual do fazer poeacutetico Sendo a funccedilatildeo da
poesia traacutegica descrita como provocar medo piedade e a kaacutetharsis
(catarse purificaccedilatildeo purgaccedilatildeo) dessas emoccedilotildees entendemos que
tambeacutem ensina ao menos em linhas gerais o que satildeo as tais emoccedilotildees
embora a Poacutetica natildeo apresente uma definiccedilatildeo de emoccedilatildeo Esse texto
todavia nos ajuda a compreender o que eacute o paacutethos para Aristoacuteteles
aleacutem de dar excelentes dicas a respeito do papel eacutetico das paacutethē
ressaltando duas emoccedilotildees em especial o medo (phoacutebos) e a piedade
(eleeinoacutes) Uma hipoacutetese demasiado interessante defendida por
Nussbaum quanto a estas eacute a de que de acordo com Aristoacuteteles as
emoccedilotildees natildeo satildeo particulares apenas por derivarem da percepccedilatildeo
sensiacutevel assim como por serem individualizadas por crenccedilas e
julgamentos que satildeo internalizados por cada pessoa ldquoUma tiacutepica
emoccedilatildeo aristoteacutelica eacute definida como um composto de um sentimento ou
prazer ou dor e de um tipo de crenccedila particular sobre o mundo [] O
sentimento e a crenccedila natildeo estatildeo somente incidentalmente ligados a
crenccedila eacute a base do sentimentordquo (NUSSBAUM 2001 p 383) Por
conseguinte se as emoccedilotildees traacutegicas tecircm um quecirc moral e implicam
crenccedila como aquelas emoccedilotildees que estudamos com a Retoacuterica eacute
possiacutevel entendecirc-las como constituiacutedas de ao menos um elemento de
racionalidade Composiccedilatildeo que pode ser comprovada pelas exigecircncias
aristoteacutelicas da racionalidade atrelada ao tipo de prazer sentido com a
poesia traacutegica Assim acontece conforme Ricoeur (2012 p 72) porque
ldquoAprender concluir reconhecer a forma eacute esse o esqueleto inteligiacutevel
do prazer da imitaccedilatildeo (ou da representaccedilatildeo)rdquo presente nas emoccedilotildees
traacutegicas sendo um tipo de prazer intelectual
A reaccedilatildeo que cada espectador tem diante de um espetaacuteculo pode
ser mesmo sinal de suas disposiccedilotildees de caraacuteter Desse modo podemos
entender que para Aristoacuteteles as paixotildees que satildeo despertadas atraveacutes da
ficccedilatildeo expressa na poesia traacutegica dizem muito a respeito do caraacuteter e da
virtude humana Sua manifestaccedilatildeo atraveacutes de gestos ou de simples e
quase imperceptiacuteveis sinais do corpo podem revelar as disposiccedilotildees
morais de um cidadatildeo podem mesmo ser uacuteteis agrave consolidaccedilatildeo de um
caraacuteter virtuoso ou agrave correccedilatildeo de um caraacuteter vicioso As reaccedilotildees
89
apresentadas pelo homem quando acometido por emoccedilotildees ou mesmo
quando inspirado poeticamente a sentimentos como os provocados pelas
emoccedilotildees podem deste modo deixar transparecer o caraacuteter
desenvolvido pelo cidadatildeo e preparaacute-lo para reagir ao mundo77 O
agente seraacute instigado a agir de modo a demonstrar por meio da beleza
de suas accedilotildees que seratildeo dignas de louvor a boa forma de suas
disposiccedilotildees e sua retidatildeo moral78 ao ser tocado por uma emoccedilatildeo
verdadeira ou simulada por meio de miacutemesis
Apesar do caraacuteter ficcional da trageacutedia que pode afetar o teor das
emoccedilotildees que tem por funccedilatildeo despertar boa parte do que foi proposto agraves
emoccedilotildees suscitadas pela retoacuterica parece valer tambeacutem agravequelas
provocadas pela trageacutedia Percebemos a presenccedila do prazer e da dor
embora o prazer das emoccedilotildees traacutegicas pareccedila um tanto paradoxal e mais
complexo devido agrave sua racionalidade de tipo especiacutefico agrave trageacutedia e ao
fato de vir da dor que cada um sente com o estiacutemulo do ficcional
Assim a trageacutedia eacute exemplo de como eacute possiacutevel juntar os dois lados da
alma humana pois suas emoccedilotildees dependem da racionalidade
apresentada pela forma como o enredo eacute composto e pela racionalidade
do puacuteblico que consegue compreender o encadeamento loacutegico
apresentado pelo texto ao ponto de se emocionar com as sugestotildees feitas
pela composiccedilatildeo traacutegica Sempre percebemos a necessidade de se imitar
homens a agir de modo que a unidade do enredo e da accedilatildeo apareccedila
necessaacuteria e verossimilmente a partir de sua estrutura Esse tipo de
elaboraccedilatildeo textual leva a reaccedilotildees por parte do puacuteblico e este eacute
conduzido ao que parece a pensar e ateacute mesmo a julgar devido agrave
racionalidade do enredo a respeito do caraacuteter dos personagens o que
tambeacutem emociona Assim a Poeacutetica faz mais que nos propor como
despertar emoccedilotildees conta-nos sobre a constituiccedilatildeo das emoccedilotildees que
pretende provocar
Essa afirmaccedilatildeo pode ser confirmada pela proposta que ter
simpatia pelos personagens - emoccedilatildeo que natildeo consta das listas de
Aristoacuteteles mas que eacute mencionada na Poeacutetica - faz com que
percebamos a forte necessidade da relaccedilatildeo com o outro tambeacutem nesse
77Aleacutem de apresentarem o caraacuteter do poeta ligando novamente a poesia traacutegica
agrave concretude do mundo mas dessa vez a um mundo preacutevio agrave composiccedilatildeo
traacutegica (a miacutemesis I descrita por Ricoeur em Tempo e Narrativa) 78Provavelmente nesse ponto seja validada a proposta de Ricoeur que percebe
na Poeacutetica de Aristoacuteteles os primeiros passos de uma esteacutetica da recepccedilatildeo jaacute
que a poesia teria ecos em um depois da composiccedilatildeo a chamada miacutemesis III
(RICOEUR 2010 p 86 et seq)
90
tipo de exposiccedilatildeo sendo que leva a plateia a imaginar de certo modo as
situaccedilotildees apresentadas A trageacutedia pode mesmo fazer pensar sobre as
possibilidades de acontecimentos obviamente natildeo idecircnticos aos
expostos mas de teor minimamente semelhante Eacute isso que toca o
espectador e o leva a temer e a se apiedar mas isso tambeacutem nos conta o
que satildeo medo e piedade A presenccedila de um forte elemento de
racionalidade implicado no despertar das emoccedilotildees que o espectador das
trageacutedias sente indica-nos os componentes da emoccedilatildeo traacutegica e geral Eacute
possiacutevel que haja mesmo crenccedilas opiniotildees e certos tipos de
pensamentos aleacutem da inegaacutevel imaginaccedilatildeo envolvida nas emoccedilotildees
mesmo que estas sejam emoccedilotildees traacutegicas
Apoacutes esses apontamentos parece que estamos prontos para tentar
uma delimitaccedilatildeo com contornos um pouco mais bem determinados
daquilo que entendemos juntamente com Aristoacuteteles acerca do que seja
a emoccedilatildeo
5 A emoccedilatildeo
Diante de tudo o que estudamos entendemos que quanto ao
gecircnero a emoccedilatildeo classifica-se como paacutethos sendo uma afecccedilatildeo sofrida
conjuntamente por corpo e alma seja ela visiacutevel ou natildeo em uma
manifestaccedilatildeo fiacutesica Pode ser traduzida biologicamente em termos de
processos desencadeados no organismo que podem incorrer em
movimento local embora por vezes somente ponha certos oacutergatildeos e
partes do corpo afetado em movimento Pertence agrave capacidade da alma
desiderativa sendo por isso hiacutebrida como tal capacidade Por
conseguinte Nussbaum (1996 p 306) chega mesmo a interpretaacute-la
como subclasse do desejo Igualmente por isso a maioria das emoccedilotildees
tem a possibilidade de ouvir e ateacute de obedecer agrave razatildeo todavia a
emoccedilatildeo natildeo pode ser escolhida deliberadamente natildeo se escolhe se
emocionar ou natildeo bem como natildeo se escolhe desejar ou natildeo e o que se
deseja (EN 1106a3-4) Por isso as emoccedilotildees natildeo se confundem com as
virtudes morais fruto de escolha deliberada que eacute digna de elogio mas
tecircm um papel crucial junto agrave constituiccedilatildeo e possibilidade destas virtudes
Um homem portanto pode ser responsabilizado pelo modo como
escolhe agir mas natildeo por suas emoccedilotildees entretanto parece poder ser
responsabilizado desde que minimamente educado moralmente pela
forma como se emociona e pela intensidade com que sente emoccedilatildeo bem
como pode controlar em direccedilatildeo a quecirc e a quem leva suas paacutethē
As emoccedilotildees satildeo indubitavelmente acompanhadas pelos
sentimentos de prazer de dor ou ambos contudo caracterizam-se ainda
91
por fazerem alterar mais que o corpo alteram os juiacutezos dos homens
Juntamente com sua natureza desiderativa tal possibilidade aponta para
um elemento racional em certa medida constituinte ou decorrente da
emoccedilatildeo Para que algueacutem se emocione eacute preciso que apresente certas
opiniotildees e mesmo juiacutezos sobre determinadas coisas ou pessoas no
mundo ou eacute preciso ao menos que se imagine em certas situaccedilotildees mas
as emoccedilotildees tambeacutem podem influenciar a formulaccedilatildeo de juiacutezos opiniotildees
e pensamentos sobre certas questotildees Por isso como explica Tricot
(2010 nota 3 p 107 traduccedilatildeo nossa) ldquoπάθος que quer dizer afecccedilatildeo
emoccedilatildeo sentimento em geral eacute um movimento da alma provocado por
um objeto exteriorrdquo O dito elemento racional eacute tambeacutem constitutivo
porque a forma como algueacutem toma uma circunstacircncia sob certo aspecto
o perceber um estiacutemulo externo que interage consigo leva o agente a ser
afetado ou seja a se emocionar ou ao menos a responder
emocionalmente de uma ou outra forma
Tal afetaccedilatildeo faz jus ao caraacuteter pateacutetico da emoccedilatildeo aristoteacutelica
bem como abre a possibilidade para que entendamos o paacutethos proposto
pelo filoacutesofo como muitas vezes resultante da interaccedilatildeo entre os
cidadatildeos na poacutelis e influente em tal relaccedilatildeo Igualmente parece nos
permitir acatar a ideia de que a emoccedilatildeo faz com que o agente perceba a
si mesmo como impotente e vulneraacutevel agraves coisas importantes do mundo
que podem lhe atingir No entanto a emoccedilatildeo natildeo pode em hipoacutetese
alguma ser tomada somente como uma passividade e nem todas essas
emoccedilotildees podem ser postas em acordo com a reta razatildeo Assim sendo
quanto agrave sua diferenccedila especiacutefica o paacutethos descrito por Aristoacuteteles natildeo eacute
apenas algo que atinge o homem porque existe a partir de um
movimento iniciado por certas formas de racionalidade como a
percepccedilatildeo sensiacutevel e que pode despertar certas formas da racionalidade
humana pondo mais do que o corpo em accedilatildeo Deste modo a emoccedilatildeo
movimenta o homem ou potildee-no em um certo tipo de movimento seja
quando julga e decide sobre questotildees poliacuteticas ou juriacutedicas quando
impele um espectador agrave kaacutetharsis mas tambeacutem quando pode levar o
agente moral a agir Por esses motivos concordamos com a seguinte
proposta sobre a constituiccedilatildeo da emoccedilatildeo
[] sensaccedilotildees de prazer e dor alteraccedilotildees e
processos fisioloacutegicos crenccedilas e opiniotildees e
atitudes ou impulsos Nenhum desses sentimentos
isolado explica por si mesmo qualquer emoccedilatildeo
Sensaccedilotildees alteraccedilotildees fisioloacutegicas crenccedilas e
atitudes constituem os quatro componentes
92
estruturais da emoccedilatildeo (TRUEBA p 53 traduccedilatildeo
nossa)
Acrescentamos a esses componentes a importacircncia do papel do
outro e do mundo que cercam cada agente na formulaccedilatildeo e no
desencadeamento de um tipo de pensamento ou de raciociacutenio que pode
ser diferente mas natildeo exatamente dissociado das opiniotildees e das
crenccedilas como a imaginaccedilatildeo e as conjeturas presentes na constituiccedilatildeo da
emoccedilatildeo ou na boa forma que ela venha adquirir graccedilas ao seu possiacutevel
contato com a razatildeo praacutetica Quando internalizadas por exemplo na
memoacuteria nas imaginaccedilotildees ou nos pensamentos as emoccedilotildees podem
tambeacutem partir da alma Satildeo portanto afecccedilotildees do conjunto corpoalma
passiacuteveis de serem educadas recebendo a boa medida concebida como
virtude moral e que eacute necessaacuteria agrave vida feliz Pensamos que a boa
medida no entanto soacute eacute possiacutevel devido a um quecirc de racionalidade que
pode acompanhar as emoccedilotildees desde sua constituiccedilatildeo como procuramos
e procuraremos provar ao longo desse estudo
Em suma podemos esboccedilar a seguinte definiccedilatildeo de emoccedilatildeo
conforme os tratados estudados a emoccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo ocasionada
por uma consideraccedilatildeo acerca de determinada situaccedilatildeo Tal consideraccedilatildeo
eacute acompanhada de alteraccedilotildees fisioloacutegicas mas nem sempre de
movimentos sendo que a emoccedilatildeo eacute igualmente capaz de alterar o
julgamento de quem acredita que determinada situaccedilatildeo tem influecircncia
relevante em sua vida tendo por isso inegaacutevel papel na vida humana
descrita pelo filoacutesofo
A presenccedila da emoccedilatildeo hiacutebrida como o desejo eacute indispensaacutevel agraves
propostas eacuteticas de Aristoacuteteles seja como ocasionadora
(biologicamente) de alteraccedilatildeo seja como causadora de mudanccedila no
ajuizamento e mesmo de reflexatildeo ou seja como (eticamente) elemento
do desiderativo que concorre para a accedilatildeo boa ou maacute moralmente Todos
esses aspectos se completam em um entendimento de algo que
realmente tem seu lugar na accedilatildeo humana e que pode influenciaacute-la ao
ponto de ser valorado moralmente Ainda precisamos saber contudo
como e por que meios eacute possiacutevel que as paacutethē ouccedilam e obedeccedilam agrave
razatildeo praacutetica para que dela realmente participem Por isso julgamos
interessante e mesmo necessaacuterio pensar a exigecircncia de sua moderaccedilatildeo a
fim da virtude moral como isso interferiraacute na caminhada rumo agrave vida
feliz na poacutelis
93
Capiacutetulo II
Virtude como possibilidade de acordo entre razatildeo e emoccedilatildeo
1 Virtude completa79 virtudes virtude moral
A discussatildeo sobre a virtude aparece no primeiro Livro da EN em
meio agrave primeira discussatildeo sobre a eudaiacutemōniacutea ou naquele que pode ser
chamado de primeiro tratado sobre a felicidade Nesse ponto do texto a
identificaccedilatildeo do bem supremo com a felicidade parece uma coisa
acertada para Aristoacuteteles mas o filoacutesofo considera preciso esclarecer
qual a natureza da felicidade Admite que um caminho possiacutevel a tal
esclarecimento seja a determinaccedilatildeo da funccedilatildeo do homem Por isso
defendemos no Capiacutetulo anterior desta tese que a funccedilatildeo proacutepria ao
homem e com esta a vida feliz deve ser atividade sempre pautada pela
razatildeo mas defendemos igualmente que nos parece impossiacutevel uma vida
totalmente voltada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica Eacute por isso que nesse
momento nos dedicaremos ao estudo daquela vida ativa segundo a
razatildeo excelente quanto agraves coisas propriamente humanas e portanto
virtuosa nesse sentido Entendemos que tal vida cumpriraacute as exigecircncias
de Aristoacuteteles para a felicidade o que pode ser confirmado pela nossa
interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo que eacute proacutepria ao homem executar bem
atividades e accedilotildees em comunidade de acordo com o mais racional em
cada circunstacircncia
Para que isso seja possiacutevel seraacute preciso se emocionar de modo
adequado associando ldquoelegantementerdquo (LEBRUN 2009 p 16)
emoccedilatildeo e razatildeo associaccedilatildeo que mostraremos resultar em virtude moral
e na virtude que entenderemos como a mais completa Para apresentar
essa possibilidade comeccedilaremos nossa pesquisa com o estudo do ideal
de eudaiacutemōniacutea pensado pelo filoacutesofo no primeiro Livro da EN
Escolhemos essa via para dar prosseguimento agraves discussotildees iniciadas
no Capiacutetulo I e porque justificaraacute a necessidade de se tratar as virtudes
79 Existe uma polecircmica quanto agrave forma correta de se traduzir o termo que define
a caracteriacutestica que Aristoacuteteles atribui para atividade conforme a alma que
chama de felicidade no Livro I 7 ldquoteleicircanrdquo Natildeo discutiremos a questatildeo nesse
momento por isso deixaremos a termo traduzido conforme a ediccedilatildeo brasileira
mais conhecida a da coleccedilatildeo Os Pensadores de 1973 texto que apresenta
1098a14-15 da seguinte forma ldquoo bem do homem nos aparece como uma
atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de uma virtude
com a melhor e mais completardquo No original σπουδαίου δ ἀνδρὸς εὖ ταῦτα καὶ
καλῶς ἕκαστον δ εὖ κατὰ τὴν οἰκείαν ἀρετὴν ἀποτελεῖται
94
bem como ressaltaraacute seu aspecto de representante da funccedilatildeo
propriamente humana e de bem se emocionar A escolha nos parece
apropriada porque graccedilas agrave natureza natildeo racional capaz de concordar
com a razatildeo que identificamos na base das emoccedilotildees eacute possiacutevel pensar a
proposta de Aristoacuteteles acerca da melhor vida possiacutevel como resultante
do bom desempenho da funccedilatildeo humana sendo que este somente pode
acontecer com a harmonizaccedilatildeo das emoccedilotildees com o que a razatildeo
demanda sendo como veremos virtuoso
No primeiro tratado sobre a felicidade o filoacutesofo analisa o que
muitos dizem acerca da eudaiacutemōniacutea que eacute uma atividade de tipo
especiacutefico que alguns dos outros bens (externos) satildeo necessaacuterios e parte
integrante da felicidade mas outros satildeo auxiliares e uacuteteis como
instrumentos naturais A questatildeo eacute destacada como assunto tocante agrave
poliacutetica pois a principal preocupaccedilatildeo dessa ciecircncia eacute fazer com que os
cidadatildeos sejam seres de certa qualidade ou seja fazer com sejam
pessoas honestas e capazes de agir nobremente (EN I 10 1099b31) Por
isso os animais natildeo humanos natildeo satildeo chamados felizes jaacute que natildeo
podem participar desse tipo de atividade Igualmente por isso a crianccedila
natildeo pode ser feliz por ainda natildeo ser capaz desse tipo de accedilatildeo e porque a
felicidade requer uma virtude completa mas para tal completude seria
necessaacuteria a observaccedilatildeo do termo da vida Isso porque as vicissitudes
que ocorrem ao longo da existecircncia podem fazer com que um homem
proacutespero sofra males enormes em sua velhice como no caso de
Priacuteamo80 Um fim de vida desastroso impede uma pessoa de ser
considerada feliz pois ldquoA causa verdadeiramente determinante da
felicidade reside na atividade conforme agrave virtude a atividade em sentido
contraacuterio sendo a causa do estado opostordquo (EN I 10 1100b9-11)81 ou
seja natildeo eacute o acaso ou a fortuna a causa da felicidade mas a virtude que
cabe ao homem
A virtude recebe tamanha importacircncia porque em nenhuma das
outras atividades humanas haacute maior fixidez Entre as atividades
virtuosas as mais altas satildeo as mais estaacuteveis82 porque eacute no seu exerciacutecio
80 HOMERO Iliacuteada V 81 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original κύριαι δ εἰσὶν αἱ κατ ἀρετὴν ἐνέργειαι τῆς εὐδαιμονίας αἱ
δ ἐναντίαι τοῦ ἐναντίου 82As atividades da sophiacutea segundo Tricot (2010 p 78 nota 3) mas seraacute que
natildeo poderiacuteamos estender tal fixidez agraves atividades do prudente (que certamente
apresentaraacute a sophiacutea) e tambeacutem daquele que dispotildee da virtude moral Seriam
essas virtudes separaacuteveis
95
que o homem feliz gasta boa parte de sua vida e com maior
continuidade Deste modo a estabilidade procurada eacute aquela do homem
feliz ao longo de toda sua vida e por esse motivo o homem feliz se
engaja em accedilotildees e contemplaccedilotildees que satildeo conformes agrave virtude
suportando os golpes da fortuna com maior dignidade e perfeiccedilatildeo
honesto e acima de censura Frente a estas afirmaccedilotildees a definiccedilatildeo de
felicidade que parece ser a mais completa apresentada no Livro I eacute posta
em forma de questatildeo
[] que nos impede de chamar feliz o homem cuja
atividade eacute conforme a uma virtude perfeita83 e
suficientemente provida dos bens exteriores e
isso natildeo por uma duraccedilatildeo qualquer mas durante
uma vida completa Natildeo devemos acrescentar
ainda cuja vida se prosseguiraacute nas mesmas
condiccedilotildees e cujo fim estaraacute em relaccedilatildeo com o
resto da existecircncia jaacute que o futuro nos eacute oculto e
que noacutes colocamos a felicidade como um fim
como alguma coisa de absolutamente perfeita
(EN I 11 1101a14-17)84
Essa proposta leva o filoacutesofo a refletir se eacute assim qualificaremos
como venturoso (makaacuterios) o homem que entre os vivos possui e iraacute
possuir os bens necessaacuterios a esse tipo de vida mas venturoso do modo
como o homem pode secirc-lo ou seja conforme as virtudes que satildeo
proacuteprias ao homem O destaque dado a essas virtudes indica o grande
papel que tecircm na vida humana feliz e por isso doravante trataacute-las-emos
Faremos tal apreciaccedilatildeo devido ao fato de as virtudes e em especial as
morais - como poderemos ver ao longo de nossa investigaccedilatildeo e como jaacute
ressaltamos em alguns dos momentos precedentes - serem
estreitamente relacionadas agraves emoccedilotildees e necessaacuterias ao bom
83 Para Zingano (2008 p 77) a virtude perfeita proacutepria eacute aquela que faz o que
deve fazer seguindo boas razotildees (metagrave phronḗseos EE 1234 a29-30) Portanto
eacute a composiccedilatildeo entre razatildeo e virtude moral virtude dianoeacutetica e eacutetica 84Coisa semelhante a respeito da eudaiacutemōniacutea eacute proposta pela Retoacuterica como
veremos logo em seguida Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da
traduccedilatildeo francesa de Tricot (2012) no original τί οὖν κωλύει λέγειν εὐδαίμονα
τὸν κατ ἀρετὴν τελείαν ἐνεργοῦντα καὶ τοῖς ἐκτὸς ἀγαθοῖς ἱκανῶς
κεχορηγημένον μὴ τὸν τυχόντα χρόνον ἀλλὰ τέλειον βίον ἢ προσθετέον καὶ
βιωσόμενον οὕτω καὶ τελευτήσοντα κατὰ λόγον ἐπειδὴ τὸ μέλλον ἀφανὲς ἡμῖν
ἐστίν τὴν εὐδαιμονίαν δὲ τέλος καὶ τέλειον τίθεμεν πάντῃ πάντως
96
desempenho de todas as funccedilotildees aniacutemicas que compotildeem aquilo que se
entende como funccedilatildeo propriamente humana condiccedilatildeo para a
eudaiacutemōniacutea Prova do que afirmamos eacute o passo da Retoacuterica que indica a
necessidade da virtude para a vida feliz como destacaremos a seguir
Fazemos tal proposta pois como vimos e veremos consideramos
virtudes os melhores estados das faculdades da alma
Seja pois a felicidade o viver bem combinado
com a virtude ou a autossuficiecircncia na vida ou a
vida mais agradaacutevel com seguranccedila ou a pujanccedila
de bens materiais e dos corpos juntamente com a
faculdade de os conservar e usar pois
praticamente todos concordam que a felicidade eacute
uma ou vaacuterias destas coisas
Ora se tal eacute a natureza da felicidade eacute necessaacuterio
que as suas partes sejam a nobreza muitos
amigos bons amigos a riqueza bons filhos
muitos filhos uma boa velhice tambeacutem as
virtudes do corpo como a sauacutede a beleza o vigor
a estatura a forccedila para a luta a reputaccedilatildeo a
honra a boa sorte e a virtude [ou tambeacutem as suas
partes a prudecircncia a coragem a justiccedila e a
temperanccedila] Com efeito uma pessoa seria
inteiramente autossuficiente se possuiacutesse os bens
internos e externos pois fora destes natildeo haacute outros
Os bens internos satildeo os da alma e os do corpo os
externos satildeo a nobreza os amigos o dinheiro e a
honra Cremos contudo que a estes se devem
acrescentar certas capacidades e boa sorte pois
assim a vida seraacute muito mais segura (Rhet I 3
1360b14-29)85
85 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original ἔστω δὴ
εὐδαιμονία εὐπραξία μετ ἀρετῆς ἢ αὐτάρκεια ζωῆς ἢ ὁ βίος ὁ μετὰ ἀσφαλείας
ἥδιστος ἢ εὐθενία κτημάτων καὶ σωμάτων μετὰ δυνάμεως φυλακτικῆς τε καὶ
πρακτικῆς τούτων σχεδὸν γὰρ τούτων ἓν ἢ πλείω τὴν εὐδαιμονίαν
ὁμολογοῦσιν εἶναι ἅπαντες εἰ δή ἐστιν ἡ εὐδαιμονία τοιοῦτον ἀνάγκη αὐτῆς
εἶναι μέρη εὐγένειαν πολυφιλίαν χρηστοφιλίαν πλοῦτον εὐτεκνίαν
πολυτεκνίαν εὐγηρίαν ἔτι τὰς τοῦ σώματος ἀρετάς (οἷον ὑγίειαν κάλλος
ἰσχύν μέγεθος δύναμιν ἀγωνιστικήν) δόξαν τιμήν εὐτυχίαν ἀρετήν [ἢ καὶ τὰ
μέρη αὐτῆς φρόνησιν ἀνδρείαν δικαιοσύνην σωφροσύνην] οὕτω γὰρ ἂν
αὐταρκέστατός τις εἴη εἰ ὑπάρχοι αὐτῷ τά τ ἐν αὐτῷ καὶ τὰ ἐκτὸς ἀγαθά οὐ
γὰρ ἔστιν ἄλλα παρὰ ταῦτα ἔστι δ ἐν αὐτῷ μὲν τὰ περὶ ψυχὴν καὶ τὰ ἐν
97
O passo nos mostra Aristoacuteteles a discutir tanto a virtude (he
aretḗ) no singular quanto as virtudes (haigrave aretaiacute) particulares no
plural tornando-as coisas que soacute podem ser alcanccediladas por corpo e alma
em conjunto quando estatildeo na poacutelis Isso acontece porque para satisfazer
agraves exigecircncias da boa vida ou da melhor vida possiacutevel haacute ainda a
exigecircncia da capacidade racional associada e tentando conferir boa
forma agrave capacidade natildeo racional da alma responsaacutevel pelas virtudes
morais Por isso eacute indispensaacutevel agrave nossa investigaccedilatildeo tratar tambeacutem as
virtudes intelectuais e suas relaccedilotildees com a moralidade pois a funccedilatildeo
proacutepria ao homem eacute uma atividade da alma em conformidade com a
razatildeo (metagrave toucirc orthoucirc loacutegou) ou natildeo sem a razatildeo (katagrave tograven orthograven
loacutegon) Como vimos somente esse tipo de atividade ou esse conjunto
de atividades permitiria que o homem desempenhasse bem sua funccedilatildeo
do modo como o homem faz especificamente garantindo com esse bom
desempenho a felicidade devido ao bom cumprimento daquilo que
somente os humanos satildeo capazes de fazer e que entendemos como
resultado da virtude completa As virtudes todavia natildeo satildeo tomadas
somente no sentido comum de qualidades que um homem possa
apresentar mas como excelecircncia de suas capacidades Assim a
discussatildeo da virtude e das virtudes se faz necessaacuteria a quem reflete
sobre a eudaiacutemōniacutea mas obedecendo os contornos proacuteprios agrave
terminologia aristoteacutelica pois
[] felicidade eacute a boa ou bem-sucedida atividade
ou a atualizaccedilatildeo da faculdade que eacute peculiar agrave
alma humana e o vocaacutebulo grego para lsquovirtudersquo
aretḗ vem para indicar natildeo que cada mas
somente a boa atividade da alma deve ser
associada agrave felicidade portanto eacute claro que o que
importa na definiccedilatildeo de felicidade eacute a intenccedilatildeo da
palavra aretḗ a saber que significa um estado
excelente algo que exerce bem sua funccedilatildeo e
atinge os padrotildees mais elevados Este eacute um
sentido possiacutevel e comum da palavra grega aretḗ
mas o emprego no singular referindo o melhor
estado possiacutevel em qualquer campo particular eacute
ainda com efeito mais distante do emprego da
palavra no plural por meio do qual referimos as
σώματι ἔξω δὲ εὐγένεια καὶ φίλοι καὶ χρήματα καὶ τιμή ἔτι δὲ προσήκειν
οἰόμεθα δυνάμεις ὑπάρχειν καὶ τύχην οὕτω γὰρ ἀσφαλέστατος ὁ βίος
98
virtudes lsquocorriqueirasrsquo como justiccedila coragem
moderaccedilatildeo (RAPP 2010 p 408)
Se as propostas de Rapp estiverem corretas podemos pensar que
a felicidade existe graccedilas ao melhor estado possiacutevel agrave alma mas que
requer igualmente as virtudes particulares Por isso Aristoacuteteles entende
que os pensadores que identificaram a felicidade com a virtude ou com
a phroacutenēsis ou com a sophiacutea (saber teoacuterico) com uma delas algumas
delas ou todas elas acompanhadas ou natildeo de prazer e prosperidade
exterior parecem ter razatildeo ao menos em um ponto se natildeo em todos (EN
I 8 1098b20-29) O filoacutesofo igualmente pensa que acerta quem identifica
a eudaiacutemōniacutea com a virtude em geral ou com alguma virtude particular
porque a atividade virtuosa pertence agrave virtude embora seja diferente
entender o bem supremo como posse ou como uso em uma disposiccedilatildeo
ou em uma atividade A diferenccedila pousa no fato da disposiccedilatildeo poder
existir sem provocar um bom resultado quando se dorme por exemplo
mas a atividade virtuosa deve agir e agir bem pois as coisas nobres e
boas da vida soacute vecircm a quem age bem (EN 1099a1-7) Se as propostas
apresentam como virtude o que permite agir bem e o melhor estado de
uma ou de todas as capacidades da alma humana mantemos nossos
estudos no campo das questotildees aniacutemicas e por isso devemos recordar
que anteriormente entendemos que a aretḗ assim como a alma se
ldquodividerdquo umas satildeo intelectuais outras morais86 mas quanto ao caraacuteter
as virtudes satildeo morais e satildeo entendidas como disposiccedilotildees de caraacuteter
Assim eacute preciso que sejam examinadas algumas questotildees a respeito da
86 Rapp (2010 p 409) explica a relaccedilatildeo dos diferentes sentidos de virtude e
virtudes ldquoDeve estar mais evidente agora que a relaccedilatildeo entre lsquovirtudersquo
significando o excelente estado da alma e lsquovirtudesrsquo referindo os louvaacuteveis
traccedilos de personalidade admitidos correntemente e socialmente eacute um ponto
crucial em toda filosofia moral de inspiraccedilatildeo platocircnica e que eacute exatamente a esta
relaccedilatildeo que Aristoacuteteles devota sua atenccedilatildeo estrita Uma vez que eacute o primeiro
sentido de lsquovirtudersquo que estaacute em jogo no primeiro livro da EN (ie na definiccedilatildeo
de felicidade) e o uacuteltimo sentido que se torna proeminentemente no terceiro e
quarto livros estamos agora justificados em esperar que a definiccedilatildeo geral de
virtude ndash que eacute desenvolvida entre o primeiro e o terceiro livros e do qual a
doutrina do meio termo eacute um tema indispensaacutevel ndash ajudaraacute o leitor a
compreender a ligaccedilatildeo entre a excelecircncia da alma humana e as virtudes
corriqueiras tais como as conheciacuteamos antes de lidar com a filosofia moralrdquo
Diante dessas dissociaccedilotildees e associaccedilotildees podemos tomar o sentido geral de
virtude e questionar o sentido da virtude moral como meio termo que apresenta
enorme importacircncia para a tese que buscamos defender
99
virtude moral
2 A virtude moral
Pode parecer dispecircndio desnecessaacuterio de energia e tempo devido
a ser um longo e antigo debate mas neste momento entendemos ser
conveniente agrave nossa inquiriccedilatildeo questionar a natureza da virtude moral
ainda que Aristoacuteteles a defina a seu modo Lidaremos com a discussatildeo
na medida em que eacute importante auxiliar no esclarecimento quanto agraves
questotildees que propomos acerca das emoccedilotildees bem como de sua relaccedilatildeo
com a racionalidade A questatildeo se impotildee porque haacute comentaacuterios
recentes sobre a eacutetica de Aristoacuteteles que consideram improacutepria a
proposta da virtude como mediania87 nas emoccedilotildees e nas accedilotildees pois
entre outras falhas da doutrina seria relativa a cada agente e
circunstacircncia sendo inuacutetil como paracircmetro moral Seria tambeacutem
considerada questatildeo paradoxal pois o filoacutesofo recomenda que a medida
seja ldquorelativa a noacutesrdquo ao mesmo tempo em que exemplifica tal medida
com quantidades contaacuteveis Apesar de natildeo concordarmos com essas
interpretaccedilotildees decidimos tratar o assunto porque remete diretamente agrave
proposta das virtudes morais como medida na emoccedilatildeo pelo fato de o
filoacutesofo natildeo admitir a eudaiacutemōniacutea sem virtude moral e por algumas
questotildees intrigantes que surgem ao longo do passo da EN chamado por
Zingano Tratado da virtude moral (EN I 13-III 8) Com isso
buscaremos reavaliar a definiccedilatildeo de virtude moral como boa medida nas
accedilotildees e nas emoccedilotildees tentando evitar o aspecto relativista que tantas
vezes foi conferido agrave doutrina
A partir do que jaacute foi exposto percebemos que aleacutem da doutrina
da boa medida temos Aristoacuteteles a definir o tipo de virtude ora estudado
como uma espeacutecie de excelecircncia moral mas define-a tambeacutem como
uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha deliberada em II 6 e como virtude na
qual eacute possiacutevel que a razatildeo opere Aristoacuteteles resume a aretḗ ethikḗ do
seguinte modo ldquoDiscutimos em geral e em grandes linhas a respeito das
virtudes o gecircnero que satildeo mediedades que satildeo disposiccedilotildees por si
87Hurtshouse em seu A doutrina central da mediania em Aristoacuteteles afirma-se
ceacutetica quanto agrave utilidade da teoria em questatildeo Sorabji (2002 p 7-194-195)
embora aponte os estoicos alguns preacute-socraacuteticos e acadecircmicos como
propositores de uma perspectiva negativa quanto agrave teoria da mediedade afirma
que tal doutrina em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees natildeo eacute banal tendo grande papel social
Assim podemos perceber que as criacuteticas agrave doutrina natildeo satildeo recentes Mesmo
Kant jaacute havia dado sua opiniatildeo negativa quanto agrave proposta
100
mesmas de praticar aqueles atos pelos quais se engendram que estatildeo em
nosso poder e satildeo voluntaacuterias e que satildeo como a reta razatildeo ordenardquo (EN
III 8 1114b28-30) O estudo da phroacutenēsis no Livro VI da EN seria um
complemento agraves possibilidades de virtude e da vida boa moralmente
que soacute seriam completas juntamente com a virtude intelectual da
prudecircncia Adiantando o assunto deste uacuteltimo Livro mencionado e
dando coesatildeo agrave obra em EN II o filoacutesofo obteve a seguinte definiccedilatildeo de
virtude moral
A virtude eacute portanto uma disposiccedilatildeo de escolher
por deliberaccedilatildeo consistindo em uma mediedade
relativa a noacutes disposiccedilatildeo delimitada pela razatildeo
isto eacute como a delimitaria o prudente Eacute uma
mediedade entre dois males o mal por excesso e o
mal por falta Ainda pelo fato de as disposiccedilotildees
faltarem umas outras excederem no que se deve
tanto nas emoccedilotildees como nas accedilotildees a virtude
descobre e toma o meio termo Por isso por
essecircncia e pela foacutermula que exprime a quumlidade a
virtude eacute uma mediedade mas segundo o melhor
eacute o bem eacute um aacutepice (EN II 5 1106b35 II 6
1107a1-8)88
Essa investigaccedilatildeo acerca da natureza da virtude moral que
comeccedila em EN I eacute o foco de nossa investigaccedilatildeo nesse ponto Por isso
nosso estudo nesse momento se dedicaraacute a entender melhor a virtude
considerada desde II 4 como capacidade de se portar bem frente agraves
emoccedilotildees Buscaremos tambeacutem elaborar um breve estudo sobre a virtude
intelectual sem a qual natildeo eacute possiacutevel agir bem quanto agraves mesmas
emoccedilotildees O bom comportamento frente agraves emoccedilotildees eacute imprescindiacutevel agraves
virtudes morais particulares mas pensamos tambeacutem agravequela concepccedilatildeo
do que seja a virtude mais completa O passo da EN citado haacute pouco e
que daacute destaque agrave virtude moral nos leva a entendecirc-la como melhor
estado possiacutevel agrave capacidade natildeo racional da alma humana reforccedilando a
88 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original Ἔστιν ἄρα ἡ ἀρετὴ ἕξις
προαιρετική ἐν μεσότητι οὖσα τῇ πρὸς ἡμᾶς ὡρισμένῃ λόγῳ καὶ ᾧ ἂν ὁ
φρόνιμος ὁρίσειεν μεσότης δὲ δύο κακιῶν τῆς μὲν καθ ὑπερβολὴν τῆς δὲ κατ
ἔλλειψιν καὶ ἔτι τῷ τὰς μὲν ἐλλείπειν τὰς δ ὑπερβάλλειν τοῦ δέοντος ἔν τε τοῖς
πάθεσι καὶ ἐν ταῖς πράξεσι τὴν δ ἀρετὴν τὸ μέσον καὶ εὑρίσκειν καὶ αἱρεῖσθαι
διὸ κατὰ μὲν τὴν οὐσίαν καὶ τὸν λόγον τὸν τὸ τί ἦν εἶναι λέγοντα μεσότης ἐστὶν
ἡ ἀρετή κατὰ δὲ τὸ ἄριστον καὶ τὸ εὖ ἀκρότης
101
proposta da funccedilatildeo proacutepria ao homem como resultado da associaccedilatildeo das
melhores condiccedilotildees das duas capacidades da alma condiccedilatildeo excelente
que consideramos possibilitadora da eudaiacutemōniacutea A questatildeo no entanto
eacute entender como isso eacute possiacutevel Rapp bem observa (2010 p 410) que eacute
preciso esclarecer de que modo as virtudes podem ser entendidas como
melhor estado de cada capacidade da alma humana
No caso das virtudes intelectuais o autor pensa que o
entendimento seja faacutecil jaacute que manifestam o melhor estado da
capacidade racional sendo que tal funccedilatildeo estaacute em bom estado quando se
tem certas capacidades racionais ou intelectuais e se realiza bem as
funccedilotildees que lhes cabem Natildeo eacute claro contudo o modo como eacute possiacutevel
definir o bom estado da capacidade natildeo racional embora tal definiccedilatildeo
seja crucial para nossa pesquisa Tendo em mira esta duacutevida podemos
entatildeo questionar qual eacute o criteacuterio para o bom funcionamento da
capacidade natildeo racional desiderativa Sendo esta capacidade apta a
ouvir e obedecer agrave razatildeo seu bom estado eacute perceptiacutevel se ela realmente
concorda com as propostas racionais ou se reage como a razatildeo pede
mas
lsquoObedecer ao que a razatildeo demandarsquo pode
significar duas coisas bem diferentes que a
pessoa controlada (enkrates) faz o que a razatildeo
demanda enquanto existem impulsos opostos
incitando-a a agir de outra maneira ou a pessoa
virtuosa faz o que pede a razatildeo poreacutem sem ter
impulsos contraacuterios ou concorrentes Estes satildeo
dois niacuteveis de obediecircncia visto que Aristoacuteteles diz
que no uacuteltimo caso a parte natildeo-racional da alma
eacute muito mais facilmente obediente
(euekoacutemeteron) e tudo em uma tal pessoa eacute
consoante agrave razatildeo (homophoacutenei tocirci loacutegoi) (RAPP
2010 p 410-41)89
A partir dessa explicaccedilatildeo surge nova questatildeo Quando a
capacidade natildeo racional concorda com a racional Pensamos que nossa
questatildeo tambeacutem caiba aqui o que pode facilitar a concordacircncia entre
racional e natildeo racional para que as emoccedilotildees sejam educadas e para que a vida feliz seja possiacutevel A resposta para essas questotildees nos permitiraacute
entender por que as virtudes eacuteticas manifestam o bom estado da
capacidade natildeo racional embora o Livro I da EN natildeo solucione a
89 Igualmente em EN I 13 1102b27
102
indagaccedilatildeo A resposta buscada eacute deixada a cargo do Livro II que em seu
fim com a exposiccedilatildeo de uma espeacutecie de resumo dessa discussatildeo
apresenta um elemento definidor para a consonacircncia da capacidade natildeo
racional com a reta razatildeo Entatildeo esse Livro deve explicar como as
virtudes eacuteticas podem ser o bom estado da capacidade natildeo racional Mas
seraacute que tal resposta viraacute com a doutrina do meio termo Rapp entende
que esta doutrina ao menos contribuiraacute para a soluccedilatildeo do problema e noacutes
concordamos com esse entendimento Por isso julgamos ser
interessante discutir a validade e a aplicabilidade da teoria da boa
medida jaacute que Aristoacuteteles considera virtude moral como boa medida nas
emoccedilotildees Apesar das possiacuteveis falhas e das objeccedilotildees que tecircm sido
apresentadas ao longo dos tempos agrave doutrina buscaremos uma
abordagem sucinta e natildeo exaustiva do assunto mas na medida em que
reforce a importacircncia de tal teoria no que diz respeito agrave relaccedilatildeo da
virtude moral com a boa medida nas emoccedilotildees
2a) Caraacuteter tautoloacutegico ou trivial da doutrina da virtude moral como
mediania
A doutrina da boa medida como eacute chamada por estudiosos como
Rapp (2010 p 405 et seq) e Urmson (1984 p 157 et seq) eacute tomada
por alguns como trivial ou mesmo tautoloacutegica Um dos motivos para
esse tipo de acusaccedilatildeo agrave teoria eacute o fato de ela propor que a medida seja
lsquorelativa a noacutesrsquo afirmaccedilatildeo que daria agrave proposta do meio termo um tom
relativista ou subjetivo gerando duacutevidas sobre sua utilidade e
aplicabilidade como padratildeo para as accedilotildees moralmente boas A criacutetica
tambeacutem eacute feita porque parece pretender quantificar o que Aristoacuteteles
defende ser em muitos passos ldquorelativo a noacutesrdquo e que tem como
paracircmetro o homem bom suas accedilotildees o bem e as circunstacircncias90
90 Kant por exemplo se posiciona contrariamente agrave doutrina da boa medida
porque entendeu o princiacutepio como falso Pensava que natildeo se pode buscar
diferenccedilas entre virtude e viacutecio no grau segundo o qual algumas maacuteximas satildeo
observadas As diferenccedilas deveriam ser buscadas na qualidade especiacutefica de tais
maacuteximas Seria falso portanto propor a virtude como meio termo entre dois
viacutecios pois cada um deles teria sua proacutepria maacutexima e por isso um contradiria o
outro impedindo a doutrina de ser tomada como proposta universal que guiasse
a accedilatildeo humana A postura eacutetica kantiana contraacuteria as propostas aristoteacutelicas
sobre a virtude moral como boa medida eacute posta agrave prova de modo interessante e
favoraacutevel a Aristoacuteteles por Anscombe em seu Modern moral philosophy Por
isso quem deseja reforccedilar a validade das teorias de Aristoacuteteles em detrimento a
propostas como as de Kant como eacute o nosso caso deve ao menos mencionar o
103
Pensamentos como estes acusariam a mencionada doutrina de um
desacordo interno e como propusemos levaram filoacutesofos e
comentadores a um longo debate sobre o passo em que a virtude moral
aparece descrita como mediania entre excesso e falta o Livro II 6 da
EN
Aleacutem disso as objeccedilotildees atingem diretamente as propostas do
filoacutesofo a respeito do comportamento que o virtuoso - ou o homem de
um modo geral - deve apresentar diante das emoccedilotildees Portanto
julgamos ser conveniente discutir um pouco a questatildeo para tentar
desfazer esses embaraccedilos e na medida em que nos auxilie a por emoccedilatildeo
e razatildeo em acordo Para tanto defenderemos que a doutrina apresenta
conjuntamente e sem complicaccedilotildees aspectos quantitativos qualitativos
e avaliativos Buscaremos fazer isso pois pensamos ser a melhor forma
de entender a virtude moral e sua exigecircncia de boa medida raciocinada
quanto agraves inevitaacuteveis emoccedilotildees Entendemos que o aspecto avaliativo da
doutrina natildeo eacute invalidado pela proposta conceitual atribuiacuteda agrave mesma
porque a capacidade de avaliaccedilatildeo do entorno permite ao virtuoso ser
bom juiz91
artigo da filoacutesofa que abre espaccedilo na contemporaneidade para uma eacutetica das
virtudes com base em Aristoacuteteles 91 Rapp explica que haacute duas possibilidades interpretativas para a doutrina da boa
medida e que podemos apresentar aqui com os trechos citados Por conseguinte
a doutrina tem aspecto conceitual que pode ser expresso do seguinte modo ser
muito ou muito pouco levam a esquecer a quantia correta Para o autor esse eacute
um sentido analiacutetico da doutrina que eacute importante quando em EN 2 VI e EE 2
III define-se a virtude contudo esse caraacuteter conceitual se torna pouco claro com
a exposiccedilatildeo na EN de uma opccedilatildeo empiacuterica da doutrina em questatildeo Em 2 II eacute
afirmado que aquilo que se discute pode ser destruiacutedo por excesso ou falta mas
preservado pelo meio termo e Aristoacuteteles daacute o exemplo da forccedila fiacutesica
conservada ou destruiacuteda por treinamento (EN 1104a11-13) Nesse ponto
excesso deficiecircncia e meio termo satildeo entendidos como o que gera preserva ou
destroacutei o que ultrapassa segundo o comentador a questatildeo conceitual pois o
filoacutesofo descreve tal fato como observaacutevel (horocircmen)
As duas possibilidades da doutrina analiacutetica e empiacuterica dadas pelo livro II
induzem em erro pensa Rapp e pensa tambeacutem que por isso haacute comentaacuterios
que entendem que tal doutrina oscile entre um modelo analiacutetico e alguma outra
coisa ldquoEntretanto haacute algumas evidecircncias de que a versatildeo empiacuterica natildeo se
equipara agrave versatildeo analiacutetica (i) a versatildeo empiacuterica em EN 22 natildeo desenvolve a
doutrina de modo completo que deveria pelo menos incluir o conceito de lsquomeio
termo para noacutesrsquo etc (ii) EE e EN concordam amplamente na definiccedilatildeo de
virtude eacutetica e na doutrina do meio termo que eacute um elemento da discussatildeo mas
a EE oferece apenas a versatildeo conceitual e natildeo inclui um equivalente da variaccedilatildeo
104
A desavenccedila quanto agrave teoria da boa medida pode ter como iniacutecio
afirmaccedilotildees feitas por Aristoacuteteles propondo que os discursos sobre
questotildees praacuteticas satildeo em linhas gerais e natildeo exatas Isso significaria que
quando se trata das accedilotildees particulares natildeo haacute fixidez Se natildeo haacute fixidez
nos discursos sobre as coisas gerais desse tipo muito menos haveraacute
quando se tratar das coisas particulares92 O filoacutesofo entende que por
isso os agentes devem apreciar o momento da accedilatildeo (EN II 2 1104a1-9)
embora pense que mesmo assim natildeo devamos nos furtar a discutir tais
assuntos pois em eacutetica ou seja para o filoacutesofo moral interessam
sobremaneira as accedilotildees particulares Por conseguinte Aristoacuteteles comeccedila
o tratamento da virtude como boa medida afirmando que as coisas ora
estudadas satildeo naturalmente corrompidas por excesso e falta mas que a
mediania eacute aliada das virtudes Ao exemplificar seu pensamento
contudo parece se referir a quantidades (EN 1104a13-17) como no caso
que segue
Foi dito satisfatoriamente que a virtude moral eacute
empiacutericardquo (RAPP 2010 p 414-415) A partir disso o autor conclui que natildeo eacute
preciso recorrer agraves referecircncias empiacutericas para defender a doutrina da boa
medida 92 Zingano faz consideraccedilotildees muito interessantes a respeito desse trecho e do
que ele realmente pretende dizer Apoia-se para tanto na proposta de Burnet
que sugere voltar aos manuscritos para a leitura e interpretaccedilatildeo correta do passo
(onde se poderia ler pacircs ho perigrave tocircn prakteacuteon loacutegos diferentemente do que se lecirc
nas ediccedilotildees modernas como a de Bekker pacircs ho perigrave tocircn praktocircn loacutegos) Com
isso entende o seguinte sobre o passo ldquoSegundo a versatildeo dos manuscritos todo
discurso de questotildees praacuteticas isto eacute sobre o que devemos fazer em tal situaccedilatildeo
deve ser dado em grandes linhas na versatildeo dos editores modernos eacute antes a
imprecisatildeo do discurso sobre questotildees praacuteticas que eacute posta em realce isto eacute do
discurso que porta sobre o que satildeo as accedilotildees e questotildees similares Aristoacuteteles
poreacutem como observa Burnet natildeo estaacute falando de como fornecer regras sobre o
que fazer Como Aristoacuteteles diraacute a seguir os agentes devem sempre buscar a
soluccedilatildeo segundo as circunstacircncias isto eacute uma consideraccedilatildeo que faz o filoacutesofo
moral e tal consideraccedilatildeo estaacute expressa no registro do que sempre ocorre No
campo praacutetico o que deve ser feito por ser sempre circunstancial varia
enormemente o que ocasiona a referida perda de exatidatildeo [] Poreacutem o ponto
da inexatidatildeo e expressatildeo unicamente em linhas gerais vale para as decisotildees
praacuteticas aquelas que toma o prudente o que o filoacutesofo faz a teoria moral natildeo
estaacute aqui sob anaacutelise (quando Aristoacuteteles define o que eacute a felicidade ele natildeo
pensa estar fornecendo uma proposiccedilatildeo que eacute vaacutelida somente nas mais das
vezes)rdquo (ZINGANO 2008 p 104-105) Assim o discurso moral seria
impreciso natildeo por falha cognitiva nossa mas por seu objeto impreciso a accedilatildeo
105
um meio termo como o eacute que eacute um meio termo
nas emoccedilotildees e nas accedilotildees Por isso eacute aacuterduo ser
bom pois eacute aacuterduo determinar o meio termo em
cada situaccedilatildeo ndash por exemplo determinar o meio
de um ciacuterculo natildeo eacute para qualquer um mas para
quem sabe assim tambeacutem eacute para qualquer um e eacute
faacutecil encolerizar-se dar ou gastar dinheiro mas
natildeo eacute para qualquer um nem eacute faacutecil o determinar a
quem quanto quando em vista do que e como
fazer Por esta razatildeo o bem agir eacute raro louvaacutevel e
belo Por isso quem mira no meio termo deve
primeiramente se apartar do que eacute mais contraacuterio
[] Entendo por meio termo da coisa o que dista
igualmente de cada um dos extremos que
justamente eacute uacutenico e mesmo para todos os casos
por meio termo relativo a noacutes o que natildeo excede
nem falta mas isso natildeo eacute uacutenico nem o mesmo
para todos os casos (EN II 9 1109a20-30)93
Uma argumentaccedilatildeo e uma exemplificaccedilatildeo desse tipo abririam
espaccedilo agraves duacutevidas acima mencionadas e tambeacutem agraves duacutevidas a respeito
das reais intenccedilotildees de Aristoacuteteles ao propor a teoria da mediania
Questatildeo que aparece com a afirmaccedilatildeo de que em tudo que eacute contiacutenuo e
divisiacutevel se pode tomar mais menos e igual quantidade relativamente a
noacutes ou agrave coisa (EN II 5 1106a24-27) O igual eacute considerado meio termo
entre excesso e falta94 podendo apresentar um conflito com a ideia de
que a boa medida nas emoccedilotildees deva ser relativa a noacutes
Para destacar o problema podemos tomar a afirmaccedilatildeo que a
virtude moral estaacute relacionada com accedilotildees e emoccedilotildees (praacutexeis kaigrave paacutethē)
93 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original Ὅτι μὲν οὖν ἐστὶν ἡ ἀρετὴ ἡ ἠθικὴ
μεσότης καὶ πῶς καὶ ὅτι μεσότης δύο κακιῶν τῆς ὲν καθ ὑπερβολὴν τῆς δὲ
κατ ἔλλειψιν καὶ ὅτι τοιαύτη ἐστὶ διὰ τὸ στοχαστικὴ τοῦ μέσου εἶναι τοῦ ἐν
τοῖς πάθεσι καὶ ἐν ταῖς πράξεσιν ἱκανῶς εἴρηται διὸ καὶ ἔργον ἐστὶ σπουδαῖον
εἶναι ἐν ἑκάστῳ γὰρ τὸ μέσον λαβεῖν ἔργον οἷον κύκλου τὸ μέσον οὐ παντὸς
ἀλλὰ τοῦ εἰδότος οὕτω δὲ καὶ τὸ μὲν ὀργισθῆναι παντὸς καὶ ῥᾴδιον καὶ τὸ
οῦναι ἀργύριον καὶ δαπανῆσαι τὸ δ ᾧ καὶ ὅσον καὶ ὅτε καὶ οὗ ἕνεκα καὶ ὥς
οὐκέτι παντὸς οὐδὲ ῥᾴδιον διόπερ τὸ εὖ καὶ σπάνιον καὶ ἐπαινετὸν καὶ καλόν
διὸ δεῖ τὸν στοχαζόμενον τοῦ μέσου πρῶτον μὲν ἀποχωρεῖν τοῦ μᾶλλον
ἐναντίου [] τὸ μὲν ἄρα τοσοῦτο δηλοῖ ὅτι ἡ μέση ἕξις ἐν πᾶσιν ἐπαινετή
ἀποκλίνειν δὲ δεῖ ὁτὲ μὲν ἐπὶ τὴν ὑπερβολὴν ὁτὲ δ ἐπὶ τὴν ἔλλειψινοὕτω γὰρ
ῥᾷστα τοῦ μέσου καὶ τοῦ εὖ τευξόμεθα 93 Idem τὸ δ ἴσον καὶ ταῦτα ἢ κατ αὐτὸ τὸ πρᾶγμα ἢ πρὸς ἡμᾶς
106
pois estas podem admitir excesso ou falta ou meio termo sendo
possiacutevel por exemplo temer muito ou pouco ou como conveacutem Essa
proposta parece ser referente agrave quantidade de emoccedilatildeo a ser sentida mas
que natildeo eacute a uacutenica delimitaccedilatildeo da boa medida Aristoacuteteles parece
estabelecer aleacutem disso certos paracircmetros para se emocionar
adequadamente pois para que haja a virtude eacute preciso sentir emoccedilotildees
quando com o quecirc e com quem se deve etc o mesmo sendo vaacutelido
para as accedilotildees impedindo uma interpretaccedilatildeo meramente quantitativa da
boa medida As questotildees que se impotildeem frente a tal proposiccedilatildeo satildeo as
seguintes (1) Como interpretar a doutrina da boa medida quantitativa
ou qualitativamente (2) Como aplicar a proposta da quantia certa agraves
accedilotildees (3) A doutrina eacute tautoloacutegica e trivial Temos portanto trecircs
questotildees em matildeos e a resolver antes de aceitar que para a vida feliz seja
preciso que se decirc boa medida agraves emoccedilotildees
A primeira questatildeo que devemos responder nos apresenta a boa
medida como quantidade certa de emoccedilatildeo sentida e accedilatildeo praticada
Devemos entender como conciliar a ideia de boa medida que estaacute entre
dois extremos com a proposta de que a virtude natildeo eacute meacutedia aritmeacutetica
Questatildeo a ser discutida pois o proacuteprio filoacutesofo admite que em certas
disposiccedilotildees a virtude moral se aproxima mais de um dos viacutecios que de
outros como percebemos a partir dos exemplos quantificadores Com
isso agraves vezes os extremos estatildeo mais distantes uns dos outros que do
meio este uacuteltimo podendo apresentar mais semelhanccedila com um dos
contraacuterios por exemplo a covardia eacute mais oposta agrave coragem que a
temeridade Outro exemplo eacute que por tendermos mais aos prazeres que
agrave moderaccedilatildeo somos mais propensos agrave intemperanccedila que agrave temperanccedila e
por isso os extremos aos quais tendemos mais satildeo mais contraacuterios de
seus contraacuterios sendo a intemperanccedila mais contraacuteria agrave temperanccedila (EN
II 6 1107a20 et seq) Todas essas afirmaccedilotildees natildeo desfazem o incocircmodo
que se sente ao somar esse tipo de distinccedilatildeo do que seja a virtude aos
exemplos aritmeacuteticos que lhes seguem A observaccedilatildeo que nas accedilotildees e
emoccedilotildees excessos e faltas satildeo censurados enquanto o meio termo eacute
digno de louvor sendo que para o filoacutesofo as marcas da virtude satildeo o
acerto e digno de louvor intensifica a duacutevida
Quem teme e foge de tudo e nada suporta torna-se
covarde quem em geral nada teme mas tudo
enfrenta torna-se temeraacuterio [] a temperanccedila e a
coragem entatildeo satildeo destruiacutedas pelo excesso e pela
falta mas preservadas pela mediedade [] Assim
tambeacutem acontece com as virtudes do abster-se
107
dos prazeres tornamo-nos temperantes tornados
temperantes somos os mais capazes de abster-nos
deles Igualmente com a coragem habituados a
desprezar tornamo-nos corajosos tornados
corajosos seremos os mais capazes de suportar
coisas temiacuteveis (EN II 2 1104a20-35 1104b1-3)95
A virtude eacute entendida como o que visa o meio termo mas acertar
esse meio soacute acontece de um modo embora errar seja possiacutevel de vaacuterias
formas Diante dessas consideraccedilotildees destacam-se tambeacutem as marcas do
viacutecio o erro o excesso e a falta todas aparentemente relacionadas agraves
quantidades de accedilotildees e emoccedilotildees praticadas e sentidas
Assim da primeira questatildeo viria ainda o segundo problema
enquadrar a teoria do mais do menos e do mesmo tanto agrave forma de agir
Seria relativamente faacutecil entender como eacute possiacutevel exigir medidas
quantitativas em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees poreacutem determinar quantidades
aplicaacuteveis aos modos de agir eticamente natildeo seria tatildeo simples
Aristoacuteteles fala de qualificadores determinantes das accedilotildees conforme agraves
circunstacircncias mas seus exemplos praacuteticos natildeo se aplicam exatamente
agraves questotildees eacuteticas reforccedilando o tom problemaacutetico das propostas nesse
sentido
Temos que encarar ainda outra questatildeo inquietante a terceira
que diz respeito agrave trivialidade da doutrina devido agrave inexatidatildeo e
particularidade do assunto Caso expresso tambeacutem ao se afirmar que um
dos extremos induz mais ao erro que o outro Por isso como eacute difiacutecil
acertar o meio seria preferiacutevel tomar entre os extremos aquele que eacute o
mal menor cabendo ao agente decidir o que fazer em cada situaccedilatildeo
Deste modo eacute preciso prestar atenccedilatildeo aos erros aos quais se tem
propensatildeo sendo isto perceptiacutevel pelo prazer e pela dor que o agente
sente com o que faz (EN I 1 1109b4) O filoacutesofo sugere que o agente se
encaminhe para o lado oposto ao mais apraziacutevel para se afastar o
maacuteximo do erro pois natildeo eacute bom juiz quanto ao agradaacutevel e ao prazer
Ao se afastar do prazer corre menos riscos de errar e eacute mais propenso a
95 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ὅ τε γὰρ πάντα φεύγων καὶ
φοβούμενος καὶ μηδὲν ὑπομένων δειλὸς γίνεται ὅ τε μηδὲν ὅλως φοβούμενος
[] φθείρεται δὴ σωφροσύνη καὶ ἡ ἀνδρεία ὑπὸ τῆς ὑπερβολῆς καὶ τῆς ἐλλείψεως ὑπὸ δὲ τῆς μεσότητος σῴζεται [] οὕτω δ ἔχει καὶ ἐπὶ τῶν
ἀρετῶν ἔκ τε γὰρ τοῦ ἀπέχεσθαι τῶν ἡδονῶν γινόμεθα σώφρονες καὶ
γενόμενοι μάλιστα δυνάμεθα ἀπέχεσθαι αὐτῶν ὁμοίως δὲ καὶ ἐπὶ τῆς
ἀνδρείας ἐθιζόμενοι γὰρ καταφρονεῖν τῶν φοβερῶν καὶ ὑπομένειν αὐτὰ
γινόμεθα ἀνδρεῖοι καὶ γενόμενοι μάλιστα δυνησόμεθα ὑπομένειν τὰ φοβερά
108
atingir o meio termo Tarefa que natildeo eacute faacutecil de ser cumprida pois se
trata de casos particulares e das sensaccedilotildees mateacuteria da discriminaccedilatildeo
(EN II 9 1109b23) Em todos os casos a postura meacutedia eacute louvaacutevel mas
certas vezes se deve tender para um dos extremos a fim de atingir mais
facilmente o meio termo ou o bem explicaccedilatildeo que novamente natildeo alivia
nossas duacutevidas Essas propostas de Aristoacuteteles que afastam a accedilatildeo
correta moralmente do meio termo como meacutedia aritmeacutetica igualmente
levam a duvidar da possibilidade de entender como se pode afirmar que
as accedilotildees soacute seriam viaacuteveis eticamente se seguissem a doutrina da
mediania
A soluccedilatildeo que parece interessante agraves questotildees (1) e (3) vem com
as consideraccedilotildees de Rapp (2010 p 414 et seq) O autor entende e
justifica a viabilidade da doutrina do meio termo caso interpretada
conceitualmente ou seja como delimitadora da bondade ou retidatildeo das
disposiccedilotildees que concordam com as sugestotildees da capacidade racional
Segundo tal proposta natildeo confiariacuteamos totalmente a validaccedilatildeo da teoria
da boa medida a exemplos empiacutericos como aqueles que destacamos
acima e que satildeo causadores da confusatildeo que ora apresentamos Ao
compreender deste modo seria possiacutevel salvar a credibilidade da
doutrina por pensar que natildeo interpretariacuteamos o meio termo apenas
quantitativamente O que fariacuteamos seria tomar como possibilidade
entender a proposta de Aristoacuteteles como simultaneamente quantitativa
e qualitativa sem anular uma ou outra postura Temos ainda a questatildeo
(2) que nos leva a pensar a teoria da boa medida como uacutetil agrave vida moral
por ser aplicaacutevel agraves accedilotildees concretas Podemos comeccedilar a refletir sobre o
assunto e a buscar soluccedilatildeo para ele a partir da definiccedilatildeo da virtude moral
como mediania que tem iniacutecio juntamente com aquela lsquodefiniccedilatildeorsquo de
emoccedilatildeo entendendo as virtudes como
[] disposiccedilotildees [] em funccedilatildeo das quais nos
portamos bem ou mal com relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees
por exemplo com relaccedilatildeo ao encolerizar-se se
nos encolerizamos forte ou fracamente portamo-
nos mal se moderadamente bem e de modo
semelhante com relaccedilatildeo agraves outras emoccedilotildees (EN II
4 1105b25-28)96
A forma como um agente se comporta em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees
96 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἕξεις [] καθ ἃς πρὸς τὰ πάθη
ἔχομεν εὖ ἢ κακῶς οἷον πρὸς τὸ ὀργισθῆναι εἰ μὲν σφοδρῶς ἢ ἀνειμένως
κακῶς ἔχομεν εἰ δὲ μέσως εὖ ὁμοίως δὲ καὶ πρὸς τἆλλα
109
que sente embora possa sugerir accedilatildeo particular determina politicamente
a vida pois tais accedilotildees satildeo cometidas na poacutelis e para Aristoacuteteles as
virtudes morais eram percebidas por elogios dispensados a um cidadatildeo
Uma pessoa era considerada virtuosa ou viciosa quando elogiada ou
censurada pela forma como - ou pela intensidade com que - sentia as
emoccedilotildees embora natildeo se teccedila elogios ou censuras em razatildeo das
emoccedilotildees As pessoas natildeo recebem aprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo da
comunidade por sentirem medo excessivo ou fora de hora por exemplo
pois podem natildeo demonstrar tal medo por meio de gestos accedilotildees e
palavras Sentir temor em excesso natildeo eacute motivo de louvor ou censura
mas a forma como cada cidadatildeo apresenta tais emoccedilotildees agrave sua
comunidade eacute motivo para tanto Por isso Aristoacuteteles afirma que natildeo se
elogia ou censura quem teme mas quem teme de certo modo (EN II 4
1106a1) porque a pessoa sente medo sem escolher deliberadamente
mas as virtudes satildeo escolhas deliberadas ou natildeo acontecem sem escolha
desse tipo Emocionar-se e escolher deliberadamente contudo devem
ser fruto do haacutebito e da aprendizagem
Por isso as virtudes morais foram tratadas como disposiccedilotildees que
levam a agir sem excesso ou falta relativamente agraves emoccedilotildees e agraves accedilotildees e
que podem ser habituadas Justamente por essa relaccedilatildeo de proximidade
entre emoccedilotildees e accedilotildees na eacutetica eacute que se pode tambeacutem buscar uma
resposta para questatildeo (2) a saber como estender a boa medida agraves accedilotildees
para que estas sejam boas As accedilotildees podem ser tratadas desse modo
como explica Zingano por sua intimidade com as emoccedilotildees Ao se
regular as emoccedilotildees regular-se-ia tambeacutem as atividades e accedilotildees a estas
associadas ldquoAs accedilotildees sujeitam-se assim agrave anaacutelise do excesso falta ou
justo meio relativos agraves emoccedilotildees que exprimem encolerizar-se em
demasia ou em relaccedilatildeo a quem natildeo se deve eacute um excesso emotivo que
coloca a accedilatildeo fora do compasso da virtuderdquo (ZINGANO 2008 p 127)
Interpretaccedilatildeo que favorece a doutrina do meio termo
Tal proposta nos faz pensar que satildeo postos paracircmetros para a boa
accedilatildeo relacionada agraves emoccedilotildees Seria preciso se emocionar como jaacute
repetimos algumas vezes em relaccedilatildeo a quem eacute devido adequadamente e
no momento apropriado Isso contudo natildeo favoreceria somente uma
interpretaccedilatildeo qualitativa da doutrina da boa medida Parece que natildeo se
admitirmos com Rapp a ideia de que em relaccedilatildeo a cada virtude haacute
escalas contiacutenuas que vatildeo do agir lsquomais em excessorsquo ao lsquoagir mais
deficientementersquo mas sem que por isso seja necessaacuterio colocar a boa
medida absolutamente no centro de cada escala Com isso estaria salva
a possibilidade quantificadora da doutrina embora natildeo seja uma
determinaccedilatildeo de uma medida exata natural ou absoluta A proposta
110
qualificadora igualmente se conservaria jaacute que a observaccedilatildeo do
momento da accedilatildeo e dos demais paracircmetros mencionados (ou natildeo) nos
levaria a compreender como eacute possiacutevel tomar o meio sem
necessariamente exigir uma meacutedia aritmeacutetica para tanto bem como sem
incorrer em relativismo
Assim apoacutes as propostas sobre as questotildees levantadas podemos
entender que a doutrina pode ser tomada como conceitual ou natildeo
empiacuterica natildeo sendo necessaacuterio que entendamos os exemplos
matemaacuteticos e a explicaccedilatildeo do lsquomeio termo relativo a noacutesrsquo como
contraditoacuterios mesmo porque satildeo propostas que aparecem no mesmo
passo da EN (EN II 9 1109a19-30) Deste modo eacute possiacutevel entender que
o filoacutesofo descreve toda virtude como o bom estado que leva ao
desempenho da funccedilatildeo proacutepria agravequilo de que ela eacute virtude O exemplo
dado por Aristoacuteteles eacute que haacute tocadores de ciacutetara mas os tocadores
virtuosos satildeo os bons tocadores de ciacutetara entendimento que igualmente
se aplica ao bom agente (EN II 5 1106b20-35 II 6 1107a1-6) O homem
virtuoso eacute aquele que busca o bem que lhe eacute natural a eudaiacutemōniacutea e
busca cientemente e de acordo com os paracircmetros e quantidades
adequados na emoccedilatildeo e na accedilatildeo Portanto esse homem e o bem que ele
procura satildeo os padrotildees da bondade e da virtude a serem seguidos
impedindo que a doutrina da boa medida soe como totalmente relativa
aos agentes ou agraves circunstacircncias
Em suma ao longo das discussotildees acima propostas vimos a
virtude moral ser descrita como disposiccedilatildeo de caraacuteter em acordo com a
deliberaccedilatildeo com a escolha deliberada e com a prudecircncia ou seja
conforme o que a razatildeo praacutetica propotildee A virtude moral em essecircncia eacute
boa medida quanto agrave forma como se age e ao modo como se emociona
(EN II 9 1109a20-24) A teoria eacute viaacutevel porque podemos tomar o
esquema do excessofaltaboa medida em termos conceituais natildeo
descartando mas pondo lado a lado seus melhores aspectos
quantitativos e qualitativos aplicando a boa medida tambeacutem agraves accedilotildees
Esses aspectos igualmente se aplicam agraves accedilotildees porque haacute uma relaccedilatildeo
indispensaacutevel entre accedilatildeo e emoccedilatildeo sendo tal relaccedilatildeo o motivo de
podermos propor a teoria da boa medida como qualitativa e ao mesmo
tempo quantitativa sem o risco de incoerecircncias Assim a doutrina
igualmente pode ser estendida agraves accedilotildees mas pensamos que para tanto
devem ser observados ainda seus aspectos avaliativos jaacute que os
paracircmetros podem sugerir que o homem virtuoso avalie as
circunstacircncias agrave sua volta e depois se posicione com o modo adequado
de agir
Embora comentadores como Rapp apresentem algumas dessas
111
caracteriacutesticas em separado pensamos que a proposta apaziguadora que
trazemos confere validade e utilidade agrave teoria da boa medida e resposta
agraves questotildees que foram discutidas (1) A teoria da boa medida eacute
qualitativa ou quantitativa (2) A doutrina da boa medida pode ser
tomada como diretriz praacutetica para a accedilatildeo e (3) A doutrina eacute trivial e
tautoloacutegica Ratificando nossa resposta agrave primeira questatildeo eacute que a
doutrina pode apresentar ambos os aspectos qualitativos e quantitativos
atribuindo-os tanto agraves emoccedilotildees quanto agraves accedilotildees A resposta agrave segunda
questatildeo eacute que a doutrina natildeo pode ser entendida como diretriz praacutetica
no sentido de um procedimento de decisatildeo sendo um delimitador da
bondade ou da retidatildeo das disposiccedilotildees de caraacuteter que entram em acordo
com a razatildeo Entendemos contudo divergindo de Rapp que se eacute
doutrina conceitual formulada por um filoacutesofo que pensa em agentes
possiacuteveis como os prudentes pode preparar tais agentes racionalmente
e permitir que estejam mais aptos a decisotildees natildeo retirando certa
praticidade que possa ser ligada ainda que indiretamente agrave doutrina
Ainda quanto agrave segunda questatildeo concordamos com Zingano (2008 p
127) que entende as emoccedilotildees como intrinsecamente ligadas agraves accedilotildees
Esse elo torna impossiacutevel pensar que se as accedilotildees satildeo respostas dadas agraves
emoccedilotildees haveria como separaacute-las conferindo medida a umas e natildeo a
outras A resposta de Rapp agrave terceira questatildeo eacute que a doutrina fornece
um esquema geral que serve como guia para a exploraccedilatildeo das vaacuterias
virtudes e concordamos com essa postura Pensamos que nossas
perspectivas estando ou natildeo associadas agraves dos comentadores
supracitados se tornaratildeo mais claras com a anaacutelise que se seguiraacute da
virtude particular da coragem que apresentaraacute nitidamente a relaccedilatildeo da
virtude moral como boa medida com a emoccedilatildeo do medo
2b) Exemplo da viabilidade da virtude moral como mediania nas
emoccedilotildees a virtude particular da coragem e o medo
Para verificar e comprovar tudo que propusemos anteriormente
podemos tomar a emoccedilatildeo do medo como exemplo Isso nos ajudaraacute a
confirmar que o fato da doutrina natildeo prescrever modos de accedilatildeo natildeo
significa que natildeo possa ser empregada97 ou ligada agraves accedilotildees
97 A questatildeo da natildeo empregabilidade da doutrina se deve como propusemos
anteriormente ao aspecto filosoacutefico e natildeo praacutetico que Aristoacuteteles confere agrave sua
investigaccedilatildeo eacutetica Mesmo que proponha que o interesse do estudo eacute agir e natildeo
conhecer o filoacutesofo ressalta a importacircncia de anaacutelise filosoacutefica das questotildees
relativas a accedilotildees e casos particulares de accedilatildeo Por isso quando esquadrinha sua
112
As definiccedilotildees da virtude moral oferecidas na EE e na EN satildeo
seguidas por discussotildees sobre virtudes particulares que tecircm em sua
definiccedilatildeo o elemento lsquomeio termorsquo quanto a accedilotildees e emoccedilotildees Ao
propor mesmo que com variaccedilotildees que as virtudes particulares satildeo meio
termos tem-se um certo tipo de aplicaccedilatildeo agrave doutrina explica Rapp Tal
teoria a princiacutepio pode natildeo ser aplicada a decisotildees ou accedilotildees
particulares mas agravequilo que o autor chama de ldquoexploraccedilatildeo filosoacutefica das
vaacuterias virtudes eacuteticasrdquo (RAPP 2010 p 420) Isso acontece porque a
eacutetica de Aristoacuteteles admite niacuteveis variados de particularidade e
generalidade e a proposta da virtude como meio termo estaacute em um niacutevel
mais alto de generalidade Por isso as verdades eacuteticas satildeo um tanto
vagas ou como escreve o proacuteprio Aristoacuteteles satildeo em grandes linhas
(tyacutepoi) e imprecisas (EN II 2 1104a1-2) A discussatildeo sobre as virtudes
particulares comparada a isso eacute bem mais concreta mas ainda natildeo tem
a concretude de uma deliberaccedilatildeo para agir em uma situaccedilatildeo particular
ldquoHaacute portanto uma aplicaccedilatildeo da doutrina mas natildeo como um
procedimento de decisatildeordquo explica Rapp (2010 p 421) No entanto
propusemos acima e reforccedilamos aqui que pensamos um pouco diferente
desse comentador porque acreditamos que essa anaacutelise das virtudes
particulares mesmo tomando a teoria da boa medida como conceitual
leva a um ganho real na eacutetica de Aristoacuteteles
A proposta de excessofaltaboa medida nas emoccedilotildees e nas accedilotildees
que levam aos viacutecios ou agrave virtude pode natildeo ser aplicada ao processo de
decisatildeo mas faz com que o agente conheccedila melhor suas reaccedilotildees
emocionais e que esteja mais bem preparado para tomar decisotildees e
agir98 Aleacutem disso se seguirmos a proposta aristoteacutelica de que o
exemplo e a conduccedilatildeo exterior satildeo o que a princiacutepio ajuda na
habituaccedilatildeo moral do futuro cidadatildeo que tal exemplo vem do homem
virtuoso moralmente e prudente provavelmente encontraremos nisso
um passo aleacutem da reflexatildeo puramente filosoacutefica mencionada pela EN
Ao sugerir que se deva buscar agir como agiria um homem corajoso
provavelmente a doutrina ultrapasse o campo da teoria moral
traduccedilatildeo do ldquoquadrordquo das virtudes morais apresentado na EN Zingano propotildee
que nesse ponto da discussatildeo aparece o que seria o uacutenico momento em que
Aristoacuteteles se posiciona como o prudente e natildeo como o filoacutesofo pois aconselha
quanto a modos de atingir o meio termo e natildeo teoriza sobre a questatildeo O passo
no qual isso acontece eacute aquele que mencionamos como apresentando a ldquocurardquo
pelo contraacuterio 1109b1 quando a EN admite o tom de cartilha moral 98 Nussbaum propotildee esse tipo de interpretaccedilatildeo mas a respeito das emoccedilotildees
despertadas pela trageacutedia em seu The Fragility of Goodness
113
encaminhando-se para uma possiacutevel embora natildeo insistente proposta de
accedilatildeo
Tratando das virtudes morais especiacuteficas a abordagem procederaacute
nesse ponto a partir da perspectiva da virtude moral relativa ao medo a
coragem Eacute interessante lembrar que essa virtude estaacute relacionada com
um desejo menos racional denominado impulso (thymoacutes) que estaacute
relacionado a emoccedilotildees natildeo racionais (tagrave aacuteloga paacutethē) ou menos
racionais como propusemos no Capiacutetulo anterior Vimos tambeacutem que
estas emoccedilotildees natildeo parecem menos humanas ao filoacutesofo entatildeo ele pensa
ser absurdo considerar as accedilotildees feitas por impulso como involuntaacuterias
(EN III 3 1111a34-35 1111b1-3) A coragem natildeo eacute conforme esse
desejo sendo uma virtude parece-nos estar entre aqueles estados nos
quais o agente jaacute educou seus impulsos fazendo-os concordes com a
deliberaccedilatildeo a escolha deliberada e com o que solicita a reta razatildeo Deste
modo trata-se de uma disposiccedilatildeo moral consolidada por bons haacutebitos
que escapou agrave forccedila dos extremos chamados do desejo em uma de suas
versotildees menos racionais99 interpretaccedilatildeo que favorece o entendimento da
99 Mas se considerarmos a doutrina uma verdade conceitual no que ela
favorece a discussatildeo das virtudes individuais ldquoO miacutenimo que podemos dizer eacute
que a doutrina do meio termo estrutura e sistematiza a anaacutelise das vaacuterias
virtudes Antes de tudo a descriccedilatildeo de cada virtude em termos da doutrina
requer a identificaccedilatildeo de uma escala contiacutenua de emoccedilotildees com respeito agrave qual a
virtude especiacutefica eacute o ponto meacutedio Esse natildeo eacute um passo trivial porquanto
pressupotildee o projeto de Aristoacuteteles (tal como descrito acima nas seccedilotildees 11 e
12) de descrever as virtudes eacuteticas enquanto o bom estado da parte natildeo-racional
da alma de modo que toda virtude deve estar ligada a um tipo de impulso ou
desejo natildeo-racional Depois a doutrina exige que as vaacuterias maneiras de errar a
virtude ou a accedilatildeo correta sejam encontradas identificadas e organizadas de
acordo com as duas direccedilotildees de deficiecircncia e excesso Esse procedimento
tambeacutem ajuda com as falhas que natildeo satildeo tatildeo frequentes ou natildeo tatildeo oacutebvias como
as falhas opostas o satildeo Ademais a reconstruccedilatildeo das vaacuterias virtudes em termos
da doutrina transforma o cataacutelogo contingente de virtudes comumente aceitas
em um sistema organizado de virtudes no qual toda virtude corresponde a uma
certa porccedilatildeo da nossa vida natildeo-racional e todo tipo de falha pode ser localizada
nas proximidades da virtude respectiva Essa sistematizaccedilatildeo leva ateacute mesmo agrave
identificaccedilatildeo de pontos meacutedios que natildeo haviam sido reconhecidos como
virtudes ateacute entatildeo E acima de tudo ao analisar e explicar cada virtude de
acordo com o esquema de excesso deficiecircncia e meio termo aprendemos como
entender que cada virtude contribui para o bom estado da parte natildeo-racional da
nossa alma E isto mais uma vez eacute essencial para a funccedilatildeo que atribuiacutemos ao
segundo livro da EN na seccedilatildeo 11 qual seja que a discussatildeo das virtudes deve
revelar como as vaacuterias virtudes normalmente admitidas se relacionam com a
114
boa medida como concordacircncia entre a capacidade natildeo racional e a
capacidade racional a fim de que a primeira alcance seu melhor estado
A coragem descrita por Aristoacuteteles em EN III 9 1115a8 eacute um
meio termo que corresponde a duas emoccedilotildees diferentes o medo e o
arrojo ou confianccedila Mas seguindo nossa proposta inicial observaremos
apenas sua relaccedilatildeo com o medo Neste Livro Aristoacuteteles descreve
pessoas que excedem em medo como covardes enquanto pessoas que
sentem tal emoccedilatildeo insuficientemente satildeo temeraacuterias Ser corajoso no
sentido de natildeo temer como natildeo conveacutem exige admitir que as coisas que
satildeo temiacuteveis parecem ter grande poder de destruiccedilatildeo ou de causar danos
que produzam grandes tristezas e ainda assim natildeo fugir e se acovardar
diante delas Isso natildeo significa que ter coragem eacute medir uma quantia
exata de medo a se sentir pondo de lado o medo excessivo ou
deficiente Ter coragem eacute saber o quanto temer poreacutem contando e
avaliando as condiccedilotildees que nos indicam tambeacutem como quando em
relaccedilatildeo a quecirc e em que circunstacircncias se deve temer e o bem a ser
alcanccedilado com a accedilatildeo corajosa
A disposiccedilatildeo em que se encontra quem teme eacute descrita pela
Retoacuterica coerentemente aos relatos eacuteticos como seguiraacute abaixo
Conforme tal descriccedilatildeo podemos tentar com o auxiacutelio da doutrina da
boa medida e dos paracircmetros para que seja aplicaacutevel propor que as
posturas de um homem corajoso atendem agrave exigecircncia de equiliacutebrio
quanto a essa disposiccedilatildeo apresentando-se como disposiccedilatildeo mais forte e
segura para a vida marca da virtude
Se o medo eacute acompanhado pelo pressentimento de
que vamos sofrer algum mal que nos aniquila eacute
oacutebvio que aqueles que acham que nunca lhes vai
acontecer nada de mal natildeo tecircm medo nem
receiam as coisas as pessoas e os momentos que
na sua maneira de pensar natildeo podem provocar
medo Assim pois necessariamente sentem
medo os que pensam que podem vir a sofrer
algum mal e os que pensam que podem ser
afetados por pessoas coisas e momentos
Creem que nenhum mal pode lhes acontecer as
pessoas que estatildeo ou pensam estar em grande
prosperidade [] as que pensam jaacute ter sofrido toda
espeacutecie de desgraccedilas e permanecem frias perante
o futuro agrave semelhanccedila dos que alguma vez jaacute
ideia de um bom estado ou excelecircncia da almardquo (RAPP 2010 p 421-422)
115
levaram uma surra de paulada Para que sintamos
receio eacute preciso que haja alguma esperanccedila de
salvaccedilatildeo pela qual valha a pena lutar E aqui vai
um sinal disso o medo leva as pessoas a deliberar
ao passo que ningueacutem delibera sobre casos
desesperados (Rhet II 5 1382b29-34 1383a1-
8)100
Em associaccedilatildeo agrave proposta sobre o medo supramencionada
podemos pensar que a disposiccedilatildeo corajosa eacute apresentada pelas pessoas
que se mantecircm de certo modo entre as posiccedilotildees de quem teme mas
esse lsquoentrersquo natildeo significa necessariamente algo fixo dentro de uma
escala quantificaacutevel O corajoso eacute descrito na EN como aquele que
encara as coisas temiacuteveis convenientemente e como manda a razatildeo
confirmando que a doutrina da boa medida leva agrave harmonia da
capacidade natildeo racional com a racional conferindo agrave primeira seu
melhor estado Igualmente apresenta a lsquoaplicabilidadersquo de tal doutrina
conceitual sendo mesmo possiacutevel que um homem percebendo seu bom
estado aniacutemico ou auxiliado por um bom estado aniacutemico que venha de
fora natildeo se furte jamais agraves boas accedilotildees jaacute que busca o que eacute nobre
Aquele portanto que espera de peacute firme e teme as
coisas que eacute preciso por um fim direito do modo
que conveacutem e no momento oportuno ou que se
mostra confiante sob as mesmas condiccedilotildees este eacute
um homem corajoso (pois o homem corajoso
padece e age por um objeto que vale a pena e do
modo que exige a razatildeo E o fim de toda atividade
eacute aquele que eacute conforme as disposiccedilotildees do caraacuteter
do qual ela procede e estaacute aiacute uma verdade para o
homem corajoso igualmente sua coragem eacute uma
coisa nobre por conseguinte seu fim tambeacutem eacute
100 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original εἰ δή
ἐστιν ὁ φόβος μετὰ προσδοκίας τινὸς τοῦ πείσεσθαί τι φθαρτικὸν πάθος
φανερὸν ὅτι οὐδεὶς φοβεῖται τῶν οἰομένων μηδὲν ἂν παθεῖν οὐδὲ ταῦτα ἃ μὴ
οἴονται ἂν παθεῖν οὐδὲ τούτους ὑφ ὧν μὴ οἴονται οὐδὲ τότε ὅτε μὴ οἴονται
ἀνάγκη τοίνυν φοβεῖσθαι τοὺς οἰομένους τι παθεῖν ἄν καὶ τοὺς ὑπὸ τούτων καὶ
ταῦτα καὶ τότε οὐκ οἴονται δὲ παθεῖν ἂν οὔτε οἱ ἐν εὐτυχίαις μεγάλαις ὄντες
καὶ δοκοῦντες [] οὔτε οἱ ἤδη πεπονθέναι πάντα νομίζοντες τὰ δεινὰ καὶ
ἀπεψυγμένοι πρὸς τὸ μέλλον ὥσπερ οἱ ἀποτυμπανιζόμενοι ἤδη ἀλλὰ δεῖ τινα
ἐλπίδα ὑπεῖναι σωτηρίας περὶ οὗ ἀγωνιῶσιν σημεῖον δέ ὁ γὰρ φόβος
βουλευτικοὺς ποιεῖ καίτοι οὐδεὶς βουλεύεται περὶ τῶν ἀνελπίστων
116
nobre jaacute que uma coisa se define sempre por seu
fim e por consequecircncia eacute em vista de um fim
nobre que o homem corajoso faz frente aos
perigos e completa as accedilotildees que lhe dita sua
coragem (EN III 10 1115b17-24)101
Assim a coragem eacute a mediania em relaccedilatildeo agraves coisas que inspiram
medo nas circunstacircncias mencionadas O corajoso escolhe ou encara tais
coisas por ser nobre agir desse modo ou por ser vergonhoso agir
diferentemente mas o filoacutesofo lista lsquotiposrsquo de coragem (EN III 11
1116a28 et seq) dentre as quais destaca o desejo de evitar a vergonha e
o medo da desonra como o que mais se aproxima da coragem
propriamente dita Haveria mesmo como vimos uma coragem por
impulso (thymoacutes) considerada plena de emoccedilatildeo no sentido que
movimenta corpo e alma mas que quando acompanhada de impulso
bem-educado acrescida de escolha deliberada e de um bom fim
tenderia mais de perto agrave virtude moral da coragem (EN III 11 1117a4)
Haveria ainda uma coragem incitada por discursos retoacutericos e por
apresentaccedilotildees artiacutesticas e estas provavelmente fossem os tipos que
menos colocassem os homens em accedilotildees corajosas Entendemos no
entanto que mesmo estas uacuteltimas poderiam ser capazes de preparar
ouvintes e espectadores para decisotildees e accedilotildees reais jaacute que expotildeem
modelos de coragem o que prepararia os cidadatildeos para momentos em
que realmente necessitassem de decisotildees influenciadas pela virtude em
questatildeo
O distintivo de um homem verdadeiramente corajoso contudo eacute
suportar aquilo que realmente eacute temiacutevel ou que lhe parece como tal (EN III 11 1117a16-17) Aleacutem disso Aristoacuteteles ressalta que normalmente se
pensa que um homem mostra maior coragem ao natildeo temer e natildeo se
abalar frente a perigos bruscos e natildeo previsiacuteveis jaacute que a associaccedilatildeo
entre sua phroacutenēsis e virtude moral o deixam em boas condiccedilotildees para
agir em quaisquer situaccedilotildees Assim a coragem eacute fruto de uma
disposiccedilatildeo de caraacuteter e requer menos preparaccedilatildeo para a accedilatildeo Os perigos
previsiacuteveis podem ser alvo de caacutelculo (logismoucirc) e de raciociacutenio
101 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ὁ μὲν οὖν ἃ δεῖ καὶ οὗ ἕνεκα ὑπομένων καὶ φοβούμενος καὶ
ὡς δεῖ καὶ ὅτε ὁμοίως δὲ καὶ θαρρῶν ἀνδρεῖος κατ ἀξίαν γάρ καὶ ὡς ἂν ὁ
λόγος πάσχει καὶ πράττει ὁ ἀνδρεῖος τέλος δὲ πάσης ἐνεργείας ἐστὶ τὸ κατὰ
τὴν ἕξιν daggerκαὶ τῷ ἀνδρείῳ δὲ ἡ ἀνδρεία καλόνdagger τοιοῦτον δὴ καὶ τὸ τέλος
ὁρίζεται γὰρ ἕκαστον τῷ τέλει καλοῦ δὴ ἕνεκα ὁ ἀνδρεῖος ὑπομένει καὶ πράττει
τὰ κατὰ τὴν ἀνδρείαν
117
(loacutegou) implicando essas operaccedilotildees racionais com a forma adequada de
temer mas os perigos suacutebitos pedem uma disposiccedilatildeo de caraacuteter estaacutevel
(EN III 11 1117a17-22) e esta parece ser a verdadeira virtude Ademais
o filoacutesofo apresenta como mais corajoso quem permanece imperturbaacutevel
diante de perigos e age como aquele que tem esse tipo de
comportamento quando estaacute seguro A coragem em si mesma portanto
eacute descrita como algo doloroso por sua ligaccedilatildeo com o thymoacutes mas eacute
digna de elogios porque eacute mais difiacutecil encarar dores que se abster de
prazeres
Diante do exemplo de virtude moral particular exposto podemos
compreender a despeito das teorias contraacuterias agrave postura da teoria do
meio termo e da variabilidade das coisas particulares que tocam agrave moral
que realmente eacute devido tratar filosoficamente tais assuntos validando o
fato de Aristoacuteteles comeccedilar sua discussatildeo sobre a mateacuteria afirmando que
as coisas ora estudadas satildeo naturalmente corrompidas por excesso e
falta A ideia de que a mediania eacute aliada das virtudes igualmente eacute
vaacutelida natildeo conflitando com os exemplos que parecem lidar sempre com
quantias contaacuteveis (EN II 2 1104a13-17) e que extrapolam o acircmbito das
puras reflexotildees filosoacuteficas
2c) A forccedila do haacutebito para o correto se emocionar
Ao admitir dois tipos diferentes de virtude conforme a lsquodivisatildeorsquo
da alma Aristoacuteteles nos fala da existecircncia da virtude moral que ldquoresulta
do haacutebito de onde tirou tambeacutem o nome divergindo ligeiramente de
eacutethos102rdquo (EN II 1 1103a17-18)103 O exemplo dado para esclarecer tal
proposta eacute o da pedra que se lanccedilada seguidamente para cima natildeo se
habituaria agraves alturas uma vez que eacute de sua natureza o estar embaixo
explicando que nenhuma virtude moral eacute dada a noacutes por natureza porque
as coisas da natureza natildeo podem ser alteradas pelo haacutebito104 Por isso o
102 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἡ δ ἠθικὴ ἐξ ἔθους περιγίνεται
ὅθεν καὶ τοὔνομα ἔσχηκε μικρὸν παρεκκλῖνον ἀπὸ τοῦ ἔθους 103 Dessas propostas que diferenciam virtude moral e virtude intelectual surge
uma questatildeo intrigante e que provavelmente consigamos responder no Capiacutetulo
seguinte Ela eacute proposta Por Zingano (2008 p 93) do seguinte modo ldquoPode-se
no entanto perguntar por que Aristoacuteteles introduziu aqui esta observaccedilatildeo jaacute
que por contraste esperar-se-ia que as virtudes morais natildeo tivessem a mesma
exigecircncia quando parece ser o contraacuterio visto surgirem do haacutebito e o haacutebito
certamente requer tempo e experiecircnciardquo 104Com essa postura Aristoacuteteles parece buscar responder agrave questatildeo jaacute
apresentada pelo Mecircnon a respeito da possibilidade de se ensinar a virtude O
118
filoacutesofo explica que ldquoas virtudes natildeo se engendram nem naturalmente
nem contra a natureza mas porque somos naturalmente aptos a recebecirc-
las aperfeiccediloamo-nos pelo haacutebitordquo (EN II 1 1103a23-26)105
As virtudes morais satildeo adquiridas pelo exerciacutecio que lhes
precede implicando que um homem se torna justo praticando atos justos
(EN II 2 1103b31) Por exemplo os cidadatildeos satildeo tornados bons porque
as famiacutelias o legislador e a poacutelis como um todo lhes incute bons haacutebitos
direcionados pela lei Por isso os mestres satildeo necessaacuterios jaacute que natildeo
nascemos sabendo fazer as coisas Isso confirma que em um primeiro
momento da formaccedilatildeo moral a virtude vem de fora O que reforccedila essa
ideia eacute o fato que das coisas naturais primeiro temos a potecircncia e depois
as exercitamos em atividades Por exemplo o haacutebito nos apetites e na
raiva tem destino distinto pois uns se tornam temperantes e tolerantes
outros intemperantes e irasciacuteveis devido agrave sua insistecircncia em agir do
mesmo modo em situaccedilotildees semelhantes Esse tipo de explicaccedilatildeo nos
permite defender a possibilidade de habituar apetites e raiva ou seja de
alterar as emoccedilotildees com o auxiacutelio dos haacutebitos do bom conselho e de
outros instrumentos que favoreccedilam a virtude Portanto habituar-se de
um modo ou de outro desde jovem natildeo eacute de somenos mas de muita ou
melhor de toda importacircnciardquo (EN II 1 1103b23-25)106 porque um
homem mal habituado em suas emoccedilotildees torna-se vicioso
Habituar-se de um modo ou de outro estaacute relacionado ao prazer
que se sente com determinadas atividades como vimos no Capiacutetulo
anterior Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer
ou dor implicando que para Aristoacuteteles a virtude tem por natureza
praticar o melhor quanto a estes (EN II 2 1104b9-24) pois eacute proacuteprio agrave
virtude moral o prazer tido com as accedilotildees corretas A capacidade de
retidatildeo nas accedilotildees nas emoccedilotildees nos desejos e nos prazeres viraacute com a
praacutetica habitual de boas accedilotildees proposta que aparece em EN III e na qual
Hutchinson (2009 p 276-277) percebe um paradoxo se as virtudes
estagirita afirma que virtudes morais vecircm com haacutebito e natildeo com ensino Platatildeo
poderia ter chegado a conclusatildeo semelhante (Leis 792e2 Rep 518e1-2 apud
ZINGANO 2008 p 93) contudo ao que parece faz uma concessatildeo aos que
natildeo satildeo saacutebios e que poderiam alcanccedilar a virtude moral por meio da praacutetica Jaacute
Aristoacuteteles entende que todos independentemente de suas tendecircncias naturais
alcanccedilam a virtude por meio do haacutebito 105 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original οὔτ ἄρα φύσει οὔτε παρὰ φύσιν
ἐγγίνονται αἱ ἀρεταί ἀλλὰ πεφυκόσι μὲν ἡμῖν δέξασθαι αὐτάς τελειουμένοις δὲ
διὰ τοῦ ἔθους 106 Idem no original οὐ μικρὸν οὖν διαφέρει τὸ οὕτως ἢ οὕτως εὐθὺς ἐκ νέων
ἐθίζεσθαι ἀλλὰ πάμπολυ μᾶλλον δὲ τὸ πᾶν
119
morais se consolidam pelo treino que leva a se comportar
adequadamente como eacute possiacutevel desenvolvecirc-las Sendo preciso repetir
accedilotildees corajosas para nos tornarmos corajosos natildeo seria preciso ser
previamente corajoso para agir de tal modo O estudioso aponta duas
soluccedilotildees dadas pelo proacuteprio Aristoacuteteles para desfazer o inconveniente
A primeira afirma que haacute coisas que fazemos sob a orientaccedilatildeo do outro
o que nos capacita fazer o que eacute indicado sem ainda sermos haacutebeis para
tanto Isso acontece igualmente com as virtudes morais pois a princiacutepio
devemos agir conforme a sugestatildeo de um educador tornando o conselho
e o exemplo cruciais como observa Aggio (2017 no prelo) Nesse
ponto da formaccedilatildeo natildeo importa que a virtude natildeo esteja no agente ou
que esteja naquele que o aconselha a agir bem pois ainda natildeo foi
internalizada pelo agente embora esse possa seguir um bom conselho
que auxiliaraacute sua habituaccedilatildeo moral para a virtude
A segunda soluccedilatildeo nos diz que as virtudes morais satildeo diferentes
da habilidade porque seu desempenho eacute expressatildeo do caraacuteter uma accedilatildeo
realmente corajosa eacute feita por um homem que sabe o que faz e que tem
um caraacuteter firme e permanentemente corajoso agindo deste modo pela
coragem mesma coisa correta a se fazer Por conseguinte o treinamento
do jovem para a coragem natildeo exige que este seja previamente corajoso
pois a virtude viraacute com o exerciacutecio A praacutetica e a aquisiccedilatildeo de
entendimento tornaratildeo o jovem senhor de suas accedilotildees a partir do que
deixaraacute de seguir propostas alheias sobre como agir corretamente seraacute
realmente virtuoso moralmente pois agiraacute por si mesmo e por amor ao
que eacute correto e bom Mas o filoacutesofo observa ldquoCom efeito eacute possiacutevel
fazer algo de cunho gramaacutetico tanto por acaso como instruiacutedo por outra
pessoardquo (EN II 3 1105a23-26)107 A esse problema Aristoacuteteles respondeu
resumidamente da seguinte maneira para agir com virtude eacute preciso
estar em um certo estado ou o agente sabe o que faz e em seguida
escolhe por deliberaccedilatildeo as coisas elas mesmas agindo por fim de
forma firme e inalteraacutevel (EN II 3 1105a31-1105b1) ou eacute guiado por
algueacutem que sabe o que faz ao menos ateacute atingir a capacidade de guiar
por si mesmo suas accedilotildees Deste modo ratifica-se que as virtudes satildeo
adquiridas por serem exercitadas (EN II 1 1103a31) ou seja satildeo
aprendidas fazendo tornamo-nos corajosos com a praacutetica frequente de
accedilotildees de coragem sendo o haacutebito incutido que leva agrave virtude moral O
contraacuterio contudo pode ocorrer caso se pratique frequentemente maacutes
accedilotildees eacute possiacutevel incorrer em viacutecio como explica o passo abaixo
107 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἐνδέχεται γὰρ γραμματικόν τι
ποιῆσαι καὶ ἀπὸ τύχης καὶ ἄλλου ὑποθεμένου
120
Assim tambeacutem acontece com as virtudes agindo
nas transaccedilotildees entre homens tornam-se uns
justos outros injustos agindo nas situaccedilotildees de
perigo e habituando-se a temer ou a ter confianccedila
tornam-se uns corajosos outros covardes O
mesmo ocorre no caso dos apetites assim como
no das iras pois se tornam uns temperantes e
tolerantes outros intemperantes e irasciacuteveis uns
por persistirem a agir de um jeito nas mesmas
situaccedilotildees outros por persistirem de outro jeito
Por esta razatildeo eacute preciso que as atividades
exprimam certas qualidades pois as disposiccedilotildees
seguem as diferenccedilas das atividades (EN II 1
1103b13-22)108
O passo confirma a possibilidade de alteraccedilatildeo dasnas emoccedilotildees
por via da habituaccedilatildeo Por isso um educador deve se valer da dor e do
prazer com as accedilotildees como indiacutecios das disposiccedilotildees do agente (EN II 2
1104b4-5) e como guia para os haacutebitos que deve incutir ou afastar de
seus disciacutepulos
Apesar de as discussotildees travadas acima tornarem o assunto
satisfatoriamente claro precisaremos ainda mais agrave frente apreciar a
questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre ensino e habituaccedilatildeo auxiliados pelo
prazer com certas accedilotildees e atividades Por ora o passo supracitado chama
nossa atenccedilatildeo para a questatildeo mas pensamos que as puniccedilotildees tambeacutem
sirvam como indicadores de disposiccedilotildees morais pois se costuma operar
ldquocurardquo pelo contraacuterio Segundo essa proposta os homens se tornam bons
ou maus pelos prazeres e dores evitando-os ou buscando-os como
quando e com o que se deve ou natildeo se deve e eacute isso que se observaraacute na
educaccedilatildeo e para as puniccedilotildees Isso indica que a virtude tem por natureza
a praacutetica do que eacute melhor frente a prazeres e dores mas o viacutecio leva ao
contraacuterio (EN II 2 1104b26-28) e por isso eacute preciso ter disciplina quanto
a essas afecccedilotildees
108 Idem οὕτω δὴ καὶ ἐπὶ τῶν ἀρετῶν ἔχει πράττοντες γὰρ τὰ ἐν τοῖς
συναλλάγμασι τοῖς πρὸς τοὺς ἀνθρώπους γινόμεθα οἳ μὲν δίκαιοι οἳ δὲ ἄδικοι
πράττοντες δὲ τὰ ἐν τοῖς δεινοῖς καὶ ἐθιζόμενοι φοβεῖσθαι ἢ θαρρεῖν οἳ μὲν
ἀνδρεῖοι οἳ δὲ δειλοί ὁμοίως δὲ καὶ τὰ περὶ τὰς ἐπιθυμίας ἔχει καὶ τὰ περὶ τὰς
ὀργάς οἳ μὲν γὰρ σώφρονες καὶ πρᾶοι γίνονται οἳ δ ἀκόλαστοι καὶ ὀργίλοι οἳ
μὲν ἐκ τοῦ οὑτωσὶ ἐν αὐτοῖς ἀναστρέφεσθαι οἳ δὲ ἐκ τοῦ οὑτωσί καὶ ἑνὶ δὴ
λόγῳ ἐκ τῶν ὁμοίων ἐνεργειῶν αἱ ἕξεις γίνονται διὸ δεῖ τὰς ἐνεργείας ποιὰς
ἀποδιδόναι κατὰ γὰρ τὰς τούτων διαφορὰς ἀκολουθοῦσιν αἱ ἕξεις
121
A partir do que foi proposto entendemos que a virtude estaacute
relacionada a prazeres e dores que cresce e se corrompe pelas mesmas
coisas (EN II 3 1105a13-16) mas para se tornar virtuoso eacute preciso
praticar frequentemente atos por exemplo corajosos mesmo que estes
sejam dolorosos Os atos satildeo considerados corajosos quando forem
feitos como faria a pessoa considerada dotada de tal virtude embora natildeo
seja corajoso quem realiza atos de coragem mas quem os faz como faria
o homem corajoso Esta virtude moral vem da praacutetica de accedilotildees desse
tipo e natildeo haacute problema como demonstramos haacute pouco com esse tipo
de proposta Ademais Aristoacuteteles frisa que em eacutetica natildeo basta discursar
sobre a conduta virtuosa eacute preciso agir a fim da verdadeira virtude
tendo esses haacutebitos em conformidade agrave virtude intelectual Mas se o
haacutebito eacute bastante para consolidar a virtude moral para que necessitamos
da razatildeo praacutetica A resposta pode ser indicada pela questatildeo da
responsabilidade pelas accedilotildees que tecircm princiacutepio em cada agente que sabe
o que faz como veremos a seguir
2d) Virtude voluntaacuteria diante das circunstacircncias e responsabilidade
A proposta da boa medida tomada como melhor estado da
capacidade natildeo racional da alma humana e como melhor forma de se
emocionar exige que pensemos o agente bom moralmente como
personificaccedilatildeo do equiliacutebrio entre racional e natildeo racional na figura do
prudente Ou seja esse cidadatildeo deve ser pensado como atualizaccedilatildeo
plena daquilo que Aristoacuteteles considera o proacuteprio homem temos um
agente que coordena bem as capacidades de sua alma que eacute princiacutepio de
suas accedilotildees e por conseguinte estas accedilotildees satildeo consideradas voluntaacuterias
(hekouacutesioi) Caso contraacuterio as accedilotildees cometidas satildeo consideradas
involuntaacuterias (akouacutesioi) embora haja tambeacutem atos desse tipo que satildeo
perdoados e ateacute dignos de piedade Mas por que distinguir
voluntariedade e involuntariedade em uma pesquisa sobre as emoccedilotildees
jaacute que tais caracteriacutesticas podem ser atribuiacutedas agraves accedilotildees e natildeo agraves
emoccedilotildees
Quando se estuda a virtude tal distinccedilatildeo eacute necessaacuteria pois as
virtudes satildeo configuradas por accedilotildees voluntaacuterias ligadas agraves emoccedilotildees e ao
que eacute desejado Ademais procuramos encontrar instrumentos que nos
levem a entender a possibilidade de um homem que tenha seu lado natildeo
racional no melhor estado possiacutevel e isso diz respeito a bem agir e bem
se emocionar o que parece ser condizente com a figura de quem age de
acordo com o que julga por si mesmo correto e natildeo por aquele que
meramente toma o conselho de outrem de que algo eacute o correto a se
122
desejar e fazer Este homem atua de certo modo voluntariamente jaacute
que as accedilotildees involuntaacuterias parecem ser aquelas ldquoaccedilotildees praticadas por
forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccedilado o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao
agente princiacutepio para o qual o agente ou o paciente em nada contribuirdquo
(EN III 1 1109b35 1110a1)109
As accedilotildees tambeacutem podem ser mistas quando praticadas conforme
a ocasiatildeo e natildeo como se agiria normalmente Por isso o caraacuteter
voluntaacuterio ou involuntaacuterio da accedilatildeo deve ser atribuiacutedo tendo em vista o
momento em que foi praticada as accedilotildees voluntaacuterias satildeo aquelas cujo
poder de fazer ou natildeo fazer determinada coisa em certa situaccedilatildeo estaacute no
proacuteprio agente ldquoRigorosamente entatildeo agir voluntariamente eacute ldquoagir
com razoaacutevel conhecimento das circunstacircncias a natildeo ser que fosse
literalmente impossiacutevel fazer outra coisardquordquo (HUTCHINSON 2009 p
272) Em contrapartida as accedilotildees que podem ser consideradas forccediladas
satildeo penosas Aristoacuteteles explica que o ldquoato forccedilado portanto mostra-se
aquele cujo princiacutepio eacute exterior a pessoa forccedilada em nada contribuindo
ao princiacutepio da accedilatildeordquo (EN III 1 1110b15-17)110 O fato das
circunstacircncias serem definidoras do que se decide fazer inviabiliza
certas objeccedilotildees agrave proposta da mediania como virtude moral pois como
vimos coloca paracircmetros externos para a accedilatildeo natildeo permitindo que seja
totalmente relativa ao que o agente deseja
Tambeacutem como vimos o fim bem amparado pela razatildeo praacutetica eacute
objeto do desejo reto das emoccedilotildees adequadas e causa da accedilatildeo embora
no homem virtuoso as coisas que levam ao fim sejam objetos da
deliberaccedilatildeo e da escolha deliberada Por conseguinte accedilotildees que lhes
dizem respeito satildeo feitas por escolha deliberada e voluntariamente
sendo estas as accedilotildees corretas moralmente111 Assim
Sobre as virtudes em geral temos dito pois
esquematicamente quanto a seu gecircnero que satildeo
meios termos e haacutebitos que por si mesmas
tendem a praticar as accedilotildees que as produzem que
dependem de noacutes e satildeo voluntaacuterias e atuam de
acordo com as normas da reta razatildeo Mas as accedilotildees
109 Traduccedilatildeo Zingano (2008) no original ἀκούσια εἶναι τὰ βίᾳ ἢ δι ἄγνοιαν
γινόμενα βίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ
πράττων ἢ ὁ πάσχων 110 Idem τὸ βίαιον εἶναι οὗ ἔξωθεν ἡ ἀρχή μηδὲν συμβαλλομένου τοῦ
βιασθέντος 111 No entanto vale observar com Korsgaard que o homem virtuoso natildeo passa
a vida toda deliberando mas delibera apenas frente a determinadas situaccedilotildees
123
natildeo satildeo voluntaacuterias do mesmo modo que os
haacutebitos de nossas accedilotildees somos donos desde o
princiacutepio ateacute o fim se conhecemos as
circunstacircncias particulares dos nossos haacutebitos no
princiacutepio mas seu incremento natildeo eacute perceptiacutevel
como ocorre com as doenccedilas Natildeo obstante como
estava em nossa matildeo comportar-nos de tal ou tal
maneira satildeo por isso voluntaacuterios (EN III 8
1114b26-35 III 9 1115a1-3)112
O passo nos permite reforccedilar que a virtude moral eacute uma
disposiccedilatildeo louvaacutevel sendo a capacidade de se comportar bem em
relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees comportar-se com medida relativa a noacutes e que de
certo modo somos responsaacuteveis por esse comportamento De acordo
com Hutchinson (2009 p 267) satildeo ldquoas disposiccedilotildees de nossas emoccedilotildees
que nos ajudam a dar as respostas corretas agraves situaccedilotildees praacuteticasrdquo Por
isso eacute preciso estabelecer um certo tipo de educaccedilatildeo favoraacutevel agrave virtude
moral malgrado a inexatidatildeo dos assuntos que tocam a esse tipo de
virtude Nessa educaccedilatildeo cabem os haacutebitos que satildeo o modo pelo qual se
pode consolidar a virtude poreacutem devem ser haacutebitos conscientes e
escolhidos deliberadamente113 As virtudes morais vecircm de atos
voluntaacuterios que tecircm sua fonte no proacuteprio agente embora sejam
pautadas nas circunstacircncias e na procura pelo bem Assim o homem
virtuoso eacute responsaacutevel por tais virtudes - e igualmente pelos viacutecios -
como eacute responsaacutevel por seus atos114 na medida em que escolhe e decide
112 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Κοινῇ μὲν οὖν περὶ τῶν ἀρετῶν εἴρηται ἡμῖν τό τε γένος
τύπῳ ὅτι μεσότητές εἰσιν καὶ ὅτι ἕξεις ὑφ ὧν τε γίνονται ὅτι τούτων
πρακτικαὶ ltκαὶgt καθ αὑτάς καὶ ὅτι ἐφ ἡμῖν καὶ ἑκούσιοι καὶ οὕτως ὡς ἂν ὁ
ὀρθὸς λόγος προστάξῃ οὐχ ὁμοίως δὲ αἱ πράξεις ἑκούσιοί εἰσι καὶ αἱ ἕξεις τῶν
μὲν γὰρ πράξεων ἀπ ἀρχῆς μέχρι τοῦ τέλους κύριοί ἐσμεν εἰδότες τὰ καθ
ἕκαστα τῶν ἕξεων δὲ τῆς ἀρχῆς καθ ἕκαστα δὲ ἡ πρόσθεσις οὐ γνώριμος
ὥσπερ ἐπὶ τῶν ἀρρωστιῶν ἀλλ ὅτι ἐφ ἡμῖν ἦν οὕτως ἢ μὴ οὕτω χρήσασθαι
διὰ τοῦτο ἑκούσιοι 113 Mesmo que a princiacutepio sejam conscientes e deliberadamente escolhidos por
outrem 114 Haacute um problema quanto a ligar atos voluntaacuterios e responsabilidade pelos
atos Natildeo vamos entrar nos meacuteritos da questatildeo nesse momento pois
extrapolaria nossas forccedilas Podemos contudo indicar que quanto a isso
Zingano difere de Irwin pois pensa que para que um agente seja responsaacutevel
por suas accedilotildees precisa agir voluntariamente mas para que um ato seja
considerado voluntaacuterio natildeo eacute necessaacuterio responsabilizar o agente Assim
124
por si mesmo o que deve fazer podendo ser elogiado ou censurado
A virtude moral quando bem exercitada eacute disposiccedilatildeo segundo a
regra justa que eacute estabelecida pela prudecircncia e por isso pode ordenar
por-se o fim Se o fim tem relaccedilatildeo com o desejo este precisa ser
educado ateacute que se conforme a reta razatildeo que implica aprender a
desejar assim como a se emocionar para agir bem bela e nobremente
em comunidade A aplicaccedilatildeo da teoria da boa medida bem como a
aplicaccedilatildeo de seus paracircmetros eacute necessaacuteria para que tal educaccedilatildeo se
concretize Por isso e pela maleabilidade da capacidade natildeo racional
frente agraves sugestotildees da razatildeo eacute possiacutevel a Aristoacuteteles propor a boa
medida nas emoccedilotildees
O virtuoso em sentido moral e completo julga bem (kriacutenei
orthocircs) as coisas e a verdade se manifesta a ele (talēthegraves autograve phaiacutenetai)
sendo o homem que se distingue por sua capacidade de ver o verdadeiro
(talēthegraves hōraacuten) em cada coisa padratildeo e medida para todas as coisas
(EN III 6 1113a30-35) eliminando novamente a relatividade da
doutrina O virtuoso eacute o homem cujas atividades envolvem deliberaccedilatildeo e
escolha deliberada pois natildeo haacute virtude sem estes traccedilos de razatildeo ou ao
menos natildeo haacute virtude completa (aretegraven teleiacutean) entendida aqui como
aquela junccedilatildeo entre a virtude moral e a virtude intelectual que a
aperfeiccediloa Por isso tanto a virtude quanto o viacutecio estaacute em nosso poder
(ephacutehēmicircn) pois podemos agir quando eacute belo bem como deixar de agir
quando isso eacute desonroso e portanto estaacute em nosso poder sermos bons
ou maus contrariando Soacutecrates
Como vimos as coisas consideradas em nosso poder e
voluntaacuterias satildeo as coisas das quais o princiacutepio estaacute em noacutes e por isso a
distribuiccedilatildeo dos castigos e das honrarias feita pelos legisladores eacute
pautada na boa administraccedilatildeo que cada agente tem de si e de sua
capacidade natildeo racional o que soacute eacute possiacutevel se entendermos as
propostas de Aristoacuteteles sobre a alma como tendendo agrave unicidade que
permite a comunicaccedilatildeo entre as capacidades da alma Sendo as virtudes
voluntaacuterias noacutes somos de certo modo causas coadjuvantes de nossas
disposiccedilotildees jaacute que temos o poder de controlaacute-las a princiacutepio embora
escapem ao nosso controle apoacutes certo tempo e exerciacutecio Isso nos
confere deliberadamente o princiacutepio das qualidades que carregaremos
Zingano entende o voluntaacuterio como condiccedilatildeo necessaacuteria embora natildeo suficiente
para uma accedilatildeo da responsabilidade do agente Isso porque soacute pode ser
responsabilizado aquele que eacute princiacutepio da accedilatildeo e cuja accedilatildeo levar a elogio ou
censura que aperfeiccediloem o agente Mais sobre essas questotildees consultar Zingano
(2008 p 146-147)
125
vida afora115 e por nossa qualidade pomos o fim correspondente agraves
nossas accedilotildees (EN III 7 1114b21-24) eis o motivo de Aristoacuteteles ter
afirmado que agindo bem nos tornamos bons e que as maacutes accedilotildees nos
levam ao viacutecio
Apoacutes atingirmos essas conclusotildees deveremos tratar as questotildees
acerca da proposta da mediania nas emoccedilotildees pois como observa
Besnier (2008 p 78) ldquoSendo a paixatildeo um movimento reativo passivo e
indeliberado resta saber de que modo podemos constituir uma atitude
como virtuosa a seu respeito tal como podemos fazer para a accedilatildeordquo A
questatildeo eacute entatildeo como moderamos nossas emoccedilotildees
3 Metriopaacutethēia o ideal de emoccedilatildeo para a vida virtuosa
Com o que vimos ateacute agora ficou evidente que Aristoacuteteles propotildee
a virtude moral e a virtude mais completa como dependentes da boa
medida em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees possiacutevel graccedilas ao equiliacutebrio entre as
capacidades que datildeo ao homem o que lhe eacute peculiar116 Tal teoria a
partir do periacuteodo heleniacutestico ficou conhecida como metriopaacutethēia e
embora o termo natildeo seja de Aristoacuteteles Zingano (2007 p 143)
considera que seja a definiccedilatildeo ldquosucinta e felizrdquo das teorias do filoacutesofo
acerca de como devemos nos portar frente agraves emoccedilotildees O estudioso
explica que ldquonatildeo se trata de extirpar as emoccedilotildees mas de lhes dar uma
justa medida vivecirc-las metriocircs e a virtude moral consiste justamente em
encontrar sua medida em funccedilatildeo e no meio das circunstacircncias em que se
produzem as accedilotildeesrdquo (ZINGANO 2007 p 144) Entende que isso
significa ldquoexaminaacute-lo [o paacutethos] mediante uma deliberaccedilatildeo pois a
virtude eacute uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha deliberadardquo (2007 p 165) A
virtude moral tem em vista o meio termo quanto agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees
porque nestas pode haver excesso falta e boa medida Dessa
possibilidade de variaccedilatildeo surgiu nossa necessidade de questionar a
doutrina na medida em que tal questionamento nos auxiliasse a resolver
as questotildees propostas por nossa pesquisa
Pelos estudos acima apresentados pudemos entender a mediania
relativamente a noacutes abarcando tanto especificaccedilotildees quantitativas como
115Essa questatildeo que parece segundo anaacutelise de Zingano (2008 p 92)
questionar a tese central do capiacutetulo II (ldquoa disposiccedilatildeo acompanha e em um
sentido relevante eacute dependente das accedilotildeesrdquo) seraacute respondida no item que trataraacute
dos haacutebitos 116EN I 1098a7-12 IX 1172a4-6 X I 1177b26-30 Pol 1253a25-28
126
qualitativas tendo em vista a circunstacircncia na qual a accedilatildeo precisa ser
cometida e que lhe fornece paracircmetros e possibilidades de ajuizamento
Deste modo determinar a mediania relativa a noacutes implica determinar
aquilo que as circunstacircncias relevantes em seu conjunto apontam tendo
em conta o fim buscado pelo agente Para que isso seja cumprido dever-
se-aacute fazer o que for preciso na hora certa na ocasiatildeo certa e do modo
certo (EN II 5 1106b21-22) Tal ideia eacute chamada por Hursthouse (2009
p 104) de ldquodoutrina centralrdquo da mediania e pode ser exemplificada do
seguinte modo conforme o proacuteprio Aristoacuteteles
[] eacute possiacutevel temer ter arrojo ter apetite
encolerizar-se ter piedade e em geral aprazer-se
e afligir-se muito e muito pouco e ambos de
modo natildeo adequado o quando deve a respeito de
quais relativamente a quem com que fim e como
deve eacute o meio termo e o melhor o que justamente
eacute a marca da virtude Similarmente haacute excesso
falta e meio termo no tocante agraves accedilotildees A virtude
diz respeito a emoccedilotildees e accedilatildeo nas quais o excesso
erra e a falta eacute censurada ao passo que o meio
termo acerta e eacute louvado acertar e ser louvado
pertencem agrave virtude (EN II 5 1106b18-26)117
No capiacutetulo anterior todavia foi mencionado que nem toda accedilatildeo
e nem toda emoccedilatildeo admite mediania No Livro IV da EN Aristoacuteteles
questiona se podemos realmente considerar a vergonha ou pudor (aidṓs)
como uma virtude118 jaacute que natildeo eacute possiacutevel ter boa medida quanto a ela
117 Isso eacute vaacutelido caso a interpretaccedilatildeo de Rapp (2010 p 424) esteja correta e se
quando Aristoacuteteles afirma que o meio termo eacute o padratildeo bom e correto quanto ao
contiacutenuo e o divisiacutevel estaacute a tratar das escalas contiacutenuas das emoccedilotildees e accedilotildees e
natildeo das virtudes e dos viacutecios Por isso natildeo haacute como encontrar escalas realmente
quantitativas entre virtudes e viacutecios mas podem ser encontradas entre emoccedilotildees
e accedilotildees
O passo supracitado tem traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original οἷον καὶ
φοβηθῆναι καὶ θαρρῆσαι καὶ ἐπιθυμῆσαι καὶ ὀργισθῆναι καὶ ἐλεῆσαι καὶ ὅλως
ἡσθῆναι καὶ λυπηθῆναι ἔστι καὶ μᾶλλον καὶ ἧττον καὶ ἀμφότερα οὐκ εὖ τὸ δ
ὅτε δεῖ καὶ ἐφ οἷς καὶ πρὸς οὓς καὶ οὗ ἕνεκα καὶ ὡς δεῖ μέσον τε καὶ ἄριστον
ὅπερ ἐστὶ τῆς ἀρετῆς ὁμοίως δὲ καὶ περὶ τὰς πράξεις ἔστιν ὑπερβολὴ καὶ
ἔλλειψις καὶ τὸ μέσον ἡ δ ἀρετὴ περὶ πάθη καὶ πράξεις ἐστίν ἐν οἷς ἡ μὲν
ὑπερβολὴ ἁμαρτάνεται καὶ ἡ ἔλλειψις [ψέγεται] τὸ δὲ μέσον ἐπαινεῖται καὶ
κατορθοῦται 118 Zingano levanta esse problema em seus Estudos de Eacutetica Antiga (2007 p
127
A questatildeo se impotildee porque o filoacutesofo considera as caracteriacutesticas
atreladas ao pudor mais proacuteximas daquelas que normalmente se daria a
uma afecccedilatildeo que igualmente atinge o corpo A vergonha cuja emoccedilatildeo
que lhe seria proacutepria levaria o mesmo nome seria distinta das demais
afecccedilotildees devido a ser identificada com aquilo que traria para o agente
medo da desonra ou um embaraccedilo diante das maacutes accedilotildees que este
comete Por isso o filoacutesofo considera que provavelmente seja
inadequado classificaacute-la como virtude moral jaacute que este tipo de
disposiccedilatildeo proacutepria ao homem bom natildeo comportaria maacutes accedilotildees A
despeito dessas questotildees o texto eacute sobremaneira interessante ao
concordar com as propostas dos tratados bioloacutegicos em especial com
aquelas do DA Vimos que esse escrito descreve um dos aspectos do
paacutethos como uma mudanccedila fiacutesica entre outras caracteriacutesticas e ressalta
tambeacutem que haveria emoccedilotildees moralmente neutras aleacutem daquelas que
seriam capazes de se adequar ao que eacute correto moralmente Diante
dessas dificuldades Sorabji explica que Aristoacuteteles
[] diz que o que conta muito ou pouco depende
de quem noacutes somos da ocasiatildeo do para quecirc e
para quem a nossa emoccedilatildeo eacute dirigida do resultado
provaacutevel e do modo de reagir Aleacutem disso ele
aponta que algumas emoccedilotildees como
Schadenfreude e inveja tecircm a ideia de maldade
construiacuteda nelas de modo que natildeo haacute espaccedilo para
a ideia de moderaccedilatildeo em exercecirc-las (SORABJI
2000 p 195 traduccedilatildeo nossa)
Algumas destas emoccedilotildees satildeo denominadas precisamente por sua
vileza caso da inveja Esse tipo de paacutethos eacute censurado devido ao fato de
ser vil e natildeo por ser excessivo ou em falta ou provavelmente seja
censurado por excesso ou falta devido ao fato de romper com os
paracircmetros propostos pela racionalidade praacutetica para natildeo exceder nem
faltar Tal rompimento caracterizaria uma extrapolaccedilatildeo dos padrotildees para
a boa medida e sinalizaria errar tambeacutem no direcionamento da emoccedilatildeo
aos objetos que lhe correspondem naquilo que as circunstacircncias que
envolvem as emoccedilotildees exigem ser apreciado e natildeo somente nas
lsquoquantidadesrsquo ou na lsquointensidadersquo de emoccedilatildeo sentida Estatildeo em jogo
como propusemos anteriormente as falhas quantitativas mas tambeacutem as
falhas qualitativas e de avaliaccedilatildeo que o agente que delibera pode
165) embora natildeo lhe traga soluccedilatildeo
128
cometer ao se emocionar Por exemplo somos censurados por nos
enfurecer muito ou muito pouco e por isso levar a uma accedilatildeo errada bem
como somos censurados por nos enfurecer contra muitas pessoas ou
contra a pessoa errada Rapp (2010 p 430) no entanto observa que a
doutrina parece se adequar melhor ao primeiro caso que eacute quantitativo
embora pense que com uma anaacutelise proacutexima a questatildeo quantitativa
pareccedila duvidosa Segundo este estudioso
[] haacute dois tipos de problemas com os casos
quantitativos os quais podem ser resolvidos
somente se os equipararmos ao qualitativo O
primeiro problema eacute que a quantidade de uma
accedilatildeo ou emoccedilatildeo pode se manifestar de muitos
modos distintos pode ser questatildeo de sentir
intensamente de forccedila motivacional de duraccedilatildeo
ou frequecircncia enquanto a frequecircncia por sua vez
pode ser medida pelas ocorrecircncias pelo nuacutemero
de pessoas envolvidas pelo nuacutemero de ocasiotildees
pelo nuacutemero de lugares etc excesso nestes
vaacuterios aspectos corresponde a diferentes tipos de
falhas Neste sentido as descriccedilotildees quantitativas
em separado de que algueacutem estaacute lsquoenfurecido
demaisrsquo ou lsquoage enfurecidamente demaisrsquo satildeo
eliacutepticas Quando reprovamos algueacutem por sua
raiva excessiva ou por agir muito raivosamente
deveriacuteamos em princiacutepio poder explicar o
sentido ou o conjunto de sentidos em que as
reaccedilotildees raivosas dele satildeo excessivas O segundo
problema traz agrave tona uma outra razatildeo de por que
descriccedilotildees quantitativas em separado satildeo
incompletas quando algueacutem se enraivece em
muitas ocasiotildees e com muitas pessoas podemos
reprovaacute-lo por raiva excessiva Mas quantas
ocasiotildees e pessoas satildeo o bastante e quando isto
comeccedila a ser excessivo Quando realmente
ultrapassamos o nuacutemero moderado de ocasiotildees ou
pessoas Talvez a nossa pessoa enraivecida encare
mais ofensas e insultos que uma pessoa comum
ela natildeo estaria portanto justificada em enfurecer-
se mais frequentemente Eacute oacutebvio que estaacute A fatal
poreacutem inevitaacutevel conclusatildeo eacute que o nuacutemero
absoluto ou a quantidade absoluta natildeo pode nos
informar quando as coisas se tornam deficientes
ou excessivas Sempre que precisamos julgar o
129
grau de raiva de uma pessoa devemos saber se ela
estaacute enraivecida somente com as pessoas que
merecem isto ou se com mais pessoas se ela se
enfurece somente por razotildees respeitaacuteveis ou se
suas reaccedilotildees satildeo apropriadas ou exageradas se ela
se acalma depois de um periacuteodo razoaacutevel de
tempo ou se natildeo tem como dar a volta por cima
etc Podemos concluir entatildeo que a imputaccedilatildeo de
deficiecircncia ou excesso quantitativo em casos
como este depende em uacuteltima instacircncia do caacutelculo
de falhas especificadas qualitativamente (RAPP
2010 p 430-431)
Esse tipo de interpretaccedilatildeo parece razoaacutevel e reforccedila a proposta da
teoria da boa medida como relativa a noacutes amparada na situaccedilatildeo na
bondade do agente e do fim por este procurado garantida por sua
capacidade de boa deliberaccedilatildeo ou prudecircncia visando natildeo um nuacutemero
especiacutefico que aponte como agir corretamente mas paracircmetros e
avaliaccedilotildees que indiquem o agir deste ou daquele modo Aristoacuteteles
contudo insiste que em relaccedilatildeo agraves paacutethē que trazem a maldade desde o
nome natildeo haacute como acertar sendo que quem as sente sempre erra
Entendemos que tais emoccedilotildees satildeo decorrentes dos desejos que natildeo
ouvem ou que ouvem pouco a razatildeo quando natildeo satildeo educados para a
virtude e que acabam por falhar em seu caacutelculo para a boa accedilatildeo Assim
eacute possiacutevel ao filoacutesofo elaborar uma lista dos meios termos ou seja das
virtudes quanto a certas emoccedilotildees fazendo o mesmo em relaccedilatildeo agraves
accedilotildees que devem ser moderadas Estas satildeo descritas no resumo das
virtudes morais apresentado pelo Livro II 7 da EN assim como nos
livros que seguem (EN III-V) quando descrevem em maiores detalhes
aquelas que se costuma chamar virtudes morais
As virtudes morais particulares dizem respeito ao comportamento
relativo agraves emoccedilotildees particulares como bem observa Hutchinson mas
sem esquecer que isso diz respeito agrave forma de conduzir tais emoccedilotildees
diante das situaccedilotildees que se apresentam Por exemplo em tal suma lemos
que a boa medida quanto ao medo e ao arrojo eacute a coragem enquanto em
relaccedilatildeo agrave raiva seria o que geralmente eacute chamado de calma O que
importa nas listas que descrevem as virtudes poreacutem eacute notarmos que a relaccedilatildeo do homem com as emoccedilotildees que sente confirma a proposta
acerca da relevacircncia da presenccedila de emoccedilotildees moderadas quantitativa e
qualitativamente na boa vida moral e da relevacircncia que o entorno e sua
avaliaccedilatildeo tecircm nessas emoccedilotildees ldquoA quantidade correta depende de
paracircmetros que nos concernem ou que concernem a todos que se
130
encontram na mesma situaccedilatildeo que nos encontramosrdquo explica Rapp
(2010 p 431-432) Os paracircmetros salvam tambeacutem o aspecto mais
concreto da doutrina da boa medida como virtude moral havendo
compatibilidade nas duas propostas A aplicaccedilatildeo destes padrotildees agraves
emoccedilotildees permite o ldquocaacutelculordquo da medida nas emoccedilotildees conciliando
novamente os aspectos quantitativos e qualitativos da doutrina dentro da
proposta da metriopaacutethēia bem como permite que a teoria seja aplicada
agraves accedilotildees
A uacutenica quantidade que interessa eacute a quantidade
de reaccedilotildees inapropriadas natildeo a quantidade
absoluta digamos de prazeres que fruiacutemos
somente quando confundimos estes tipos de
escalas quantitativas podemos pensar que falhas
do tipo quantitativo tais como comer doces
demasiadamente beber ouzo demasiadamente
dormir com muitas mulhereshomens etc satildeo
paradigmas para a caracterizaccedilatildeo aristoteacutelica da
virtude e do viacutecio Mas em verdade natildeo faz uma
grande diferenccedila para a doutrina se por exemplo
a nossa fruiccedilatildeo excessiva de prazeres do corpo
tem por base a fruiccedilatildeo de coisas erradas ou de
coisas demais cada uma destas uacuteltimas podendo
ser boa ou beneacutefica em separado (RAPP 2010 p
437)
Soacute se pode dizer que se sente muito ou muito pouco se as
emoccedilotildees satildeo corretas ao se analisar os paracircmetros e as circunstacircncias
por intermeacutedio do caacutelculo deliberativo que leva agrave escolha deliberada do
modo de accedilatildeo A questatildeo da medida nas emoccedilotildees eacute portanto mais a
questatildeo da natildeo violaccedilatildeo dos paracircmetros para a accedilatildeo que da quantidade
exata entre excessos e faltas Para esclarecer o que propomos podemos
dar um exemplo o do homem virtuoso e que encontra a boa medida em
suas emoccedilotildees A descriccedilatildeo estaacute na Retoacuterica e nos apresenta o perfil dos
cidadatildeos que estatildeo no auge da vida Estes homens natildeo satildeo muito
confiantes (temeraacuterios) nem muito temerosos tecircm a justa medida nestas
emoccedilotildees natildeo confiam ou desconfiam de tudo emitem juiacutezos conforme
a verdade natildeo vivem somente para o belo ou para o uacutetil mas para
ambos natildeo vivem apenas para a frugalidade nem para a prodigalidade
mas para o justo meio
O mesmo acontece em relaccedilatildeo ao seu impulso e ao seu apetite
adultos tecircm sua temperanccedila acompanhada de coragem e vice-versa
131
Diferem dos jovens que satildeo valentes e licenciosos e dos idosos que satildeo
moderados e covardes Portanto o homem no auge da vida eacute modelo da
virtude moral que eacute o bem agir diante das emoccedilotildees sentidas nas
circunstacircncias vividas Tal homem eacute a expressatildeo do bom estado da alma
natildeo racional que pensamos ser impossiacutevel sem o acordo com a
capacidade racional representada pela prudecircncia sendo modelo
igualmente da influecircncia das circunstacircncias que natildeo satildeo as mesmas para
quem se encontra no ponto alto de sua existecircncia na melhor forma de
suas capacidades e para aqueles que ainda satildeo demasiado jovens ou que
jaacute satildeo demasiado velhos
O auge da vida exige uma razatildeo reta capaz de discriminar
(kriacutenein) corretamente situaccedilotildees particulares encontrar o meio termo
desejado e buscado com a accedilatildeo Aggio propotildee que isso soacute acontece agrave
pessoa que tenha preparaccedilatildeo afetiva preacutevia sendo afetivamente capaz de
ver o que eacute melhor A autora entende que usar bem a razatildeo depende de
um bem-estar afetivo ou do bom estado da capacidade natildeo racional
como Rapp e a sua leitura da boa medida igualmente nos propotildeem
ldquoMas o que eacute o modo certo e as vezes certas e quem eacute a pessoa certa
depende do tipo de situaccedilatildeo e contexto em que agimosrdquo (AGGIO 2017
no prelo) Isso nos leva a entender que o conceito de meio termo relativo
a noacutes foi elaborado para abarcar a ideia do conteuacutedo dos mencionados
paracircmetros e por isso pode variar conforme as circunstacircncias para a boa
accedilatildeo - mas natildeo sem ter o bem supremo em vista
Uma quantificaccedilatildeo do que eacute bom ou mau natildeo eacute usada para
determinar paracircmetros individuais na doutrina esta apresenta as
condiccedilotildees nas quais as solicitaccedilotildees da capacidade natildeo racional da alma e
as accedilotildees que lhes correspondem sejam tomadas como boas ou corretas
Valendo-nos ainda do exemplo do homem no auge da vida eacute possiacutevel
dizer que estaacute afetivamente apto tanto para ter juiacutezos corretos frente agraves
situaccedilotildees quanto para por em acordo suas afecccedilotildees e sua razatildeo Para que
tal acordo aconteccedila eacute preciso estar disposto para tal coisa ou seja ver o
que eacute bom a ser feito depende de querer ver tal coisa Esse tipo de visatildeo
implica virtude completa pois somente uma pessoa virtuosa consegue
distinguir por si mesma o que eacute melhor Por isso uma pessoa virtuosa
age bem e como consegue ver o que deve fazer como explica a citaccedilatildeo
que segue
Por exemplo trata-se de ser coleacuterico o suficiente
para saber bem se vingar ou se defender de uma
ofensa de ser moderado o suficiente i e na justa
medida para desfrutar no momento oportuno de
132
prazeres saudaacuteveis de ser bem disposto a
enfrentar a dor de modo a ver o que eacute corajoso a
ser feito trata-se de perceber que uma dada
situaccedilatildeo exige uma accedilatildeo generosa e de desejar
realizaacute-la mas tal sensibilidade moral depende de
jaacute haver uma disposiccedilatildeo generosa para tanto e
assim por diante com relaccedilatildeo agraves outras virtudes
particulares e suas respectivas emoccedilotildees e desejo
As coisas assim nos aparecem conforme a
disposiccedilatildeo que temos em percebecirc-las e o estado
afetivo em que nos encontramos (AGGIO 2017
no prelo)
Acrescentamos a esta proposta de acordo com os intuitos de
nosso estudo que desejar bem e retamente faculta se emocionar bem e
retamente mas ainda precisamos investigar certas questotildees para
continuar a admitir com seguranccedila que satildeo a razatildeo e afetos que
determinam em conjunto o agir Embora pareccedila plausiacutevel existem ainda
as tantas apostas de Aristoacuteteles na razatildeo para nos fazer pensar mais um
pouco sobre a questatildeo Contudo Aggio pensa que mais que conhecer o
que eacute certo para agir moralmente bem eacute preciso que os afetos
determinem o que importa moralmente A accedilatildeo correta depende do
engajamento afetivo porque a razatildeo natildeo conduz direta ou indiretamente
os afetos ela vecirc o que eacute certo porque se tem uma tendecircncia afetiva para
tanto Quando as afecccedilotildees se tornam disposiccedilotildees eacute possiacutevel agirem
como padrotildees ou regularidades sendo modos de raciocinar e perceber
Quando o momento exige tomar uma atitude quem dita o melhor a ser
feito satildeo o desejo reto e a reta razatildeo E com isso uma accedilatildeo natildeo seria
movida por princiacutepios do intelecto caso natildeo fosse afetivamente
engajada
Assim as afecccedilotildees seriam determinantes para a atribuiccedilatildeo do
valor moral agrave accedilatildeo porque na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees resultam das
afecccedilotildees que estatildeo em sua origem Estes tecircm a ver com prazer e dor
com o desejo por buscar ou evitar alguma coisa e Aristoacuteteles frisa o
desejo como princiacutepio da accedilatildeo Nossa cautela nesse momento ainda nos
leva a pensar na questatildeo da necessidade da boa associaccedilatildeo entre razatildeo e
afecccedilotildees para a boa accedilatildeo mas foi por percebermos a possibilidade desse destaque da afecccedilatildeo na vida moral que decidimos tratar a questatildeo
poreacutem com relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees entendidas como emoccedilotildees No entanto
devemos finalizar nossa discussatildeo das relaccedilotildees das virtudes com as
paacutethē ateacute mesmo para podermos nos posicionar melhor quanto ao
assunto Por isso abordaremos a mencionada disposiccedilatildeo em perceber o
133
que eacute correto e conveniente e sua ligaccedilatildeo com as emoccedilotildees
4 Virtudes intelectuais satildeo necessaacuterias agraves virtudes morais e para a
ldquoboa formardquo das emoccedilotildees
Tendo em vista que a virtude eacute necessaacuteria agrave eudaiacutemōniacutea que a
vida excelente plenamente parece ser considerada por Aristoacuteteles a vida
conforme a razatildeo e que a virtude moral natildeo pode existir sem a razatildeo119
trataremos agora do modo como a razatildeo praacutetica pode comandar ou
segundo nossa proposta andar junto com as emoccedilotildees conferindo-lhes a
boa medida proacutepria agrave virtude moral e agrave virtude completa ldquoE jaacute que de
fato noacutes dissemos mais acima que devemos escolher o meio termo e
natildeo o excesso ou a falta e que o meio termo eacute conforme o que enuncia a
reta razatildeo analisemos agora esse uacuteltimo pontordquo (EN VI 1 1138b18-
20)120 O que seria a reta razatildeo (orthograves loacutegos)
Em todas as disposiccedilotildees morais discutidas haacute certa finalidade que
fixa sua regra fazendo com que o homem que estaacute em posse da reta
razatildeo intensifique ou relaxe seus esforccedilos Por conseguinte existe um
princiacutepio que determina as medianias permitindo que estejam em
acordo com a mencionada regra mas Aristoacuteteles bem como noacutes pensa
que o assunto ainda carece de atenccedilatildeo Embora seja verdade afirmar que
se deva empregar a justa medida nos esforccedilos saber disso nada
acrescenta ao conhecimento eacute preciso determinar a reta razatildeo
Aristoacuteteles nos fala de virtudes morais e intelectuais As
primeiras foram tratadas mas falta falar das virtudes intelectuais e de
sua importacircncia na vida moralmente boa jaacute que destacamos a
imprescindibilidade da capacidade natildeo racional em tal vida Em EN VI
119 Como observa Zingano (2008 p 24) e como vimos no capiacutetulo anterior eacute
preciso moderaccedilatildeo nas emoccedilotildees ou seja uma boa habituaccedilatildeo para que a razatildeo
tenha ao menos a possibilidade de atuar Isso sinaliza a postura contraacuteria ao
racionalismo socraacutetico defendida por Aristoacuteteles pensa o estudioso O mesmo
estudioso no mesmo estudo (2008 p 75) explica que a virtude moral depende
da razatildeo para poder operar sendo que a razatildeo aperfeiccediloa a virtude moral Por
isso acatamos a proposta de Zingano um estudo da phroacutenēsis ainda que breve
como o propomos completa o estudo da virtude moral jaacute que eacute esta virtude
intelectual que faz a aretḗ eacutetica completa 120 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Ἐπεὶ δὲ τυγχάνομεν πρότερον εἰρηκότες ὅτι δεῖ τὸ μέσον
αἱρεῖσθαι μὴ τὴν ὑπερβολὴν μηδὲ τὴν ἔλλειψιν τὸ δὲ μέσον ἐστὶν ὡς ὁ λόγος ὁ
ὀρθὸς λέγει τοῦτο διέλωμεν
134
1 o filoacutesofo estabelece uma divisatildeo como aquela das capacidades alma
para o racional comeccedilando com a admissatildeo de que satildeo duas as lsquopartesrsquo
da alma racional Uma delas eacute responsaacutevel pela contemplaccedilatildeo dos seres
que natildeo podem ser de outro modo a outra eacute responsaacutevel pelo
conhecimento das coisas contingentes (EN VI 2 1139a5-8) sendo que
isso eacute possiacutevel caso seja verdade que haacute certo tipo de semelhanccedila e de
afinidade entre o sujeito e o objeto que se daacute ao conhecimento como
proposto tambeacutem no DA
Uma dessas capacidades (ou (sub)capacidades como propusemos
para as virtudes morais) eacute chamada cientiacutefica outra calculativa na
medida em que deliberar e calcular satildeo o mesmo e cada uma apresenta
virtude proacutepria Jaacute vimos no Capiacutetulo anterior a relaccedilatildeo das coisas que
segundo EN VI 2 controlam a accedilatildeo e a verdade quais sejam percepccedilatildeo
intelecto e desejo e que Aristoacuteteles a princiacutepio exclui a percepccedilatildeo
sensiacutevel como responsaacutevel por aquelas accedilotildees consideradas moralmente
por ser compartilhada por todos os animais Precisamos agora
estabelecer o modo como as outras duas coisas intelecto e desejo
podem se relacionar bem concedendo a forma adequada ao desejo que
conduziraacute agrave procura pelo fim correto e pela boa accedilatildeo e para tanto
deveremos ver a importacircncia das virtudes intelectuais na moralidade
Precisamos analisar essa possibilidade jaacute que Aristoacuteteles mais
adiante nas discussotildees do Livro VI 10 apresenta a possibilidade de
objeccedilatildeo agrave necessidade das virtudes intelectuais junto a uma vida feliz
Isso inviabilizaria as propostas que temos feito a partir de EN I 13
trecho que indica uma alma una na qual a capacidade desiderativa seria
apta a ouvir a razatildeo portanto devemos buscar sair desse embaraccedilo
Podemos comeccedilar nossa empreitada observando que Aristoacuteteles em VI
3 menciona cinco estados ou virtudes intelectuais pelos quais a alma
enuncia o que eacute verdadeiro por afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo arte (teacutechnē)
ciecircncia (episteacuteme) prudecircncia (phroacutenēsis) sabedoria (sophiacutea) e intelecto
(noucircs) Mesmo que o filoacutesofo pareccedila admitir a sabedoria121 como maior
e mais excelente das virtudes humanas a virtude intelectual que estaacute
relacionada diretamente agrave boa accedilatildeo (eupraxiacutea) e consequentemente agraves
emoccedilotildees moderadas eacute agrave prudecircncia Neste estudo natildeo analisaremos
121 De acordo com a interpretaccedilatildeo feita por Tricot a virtude mais perfeita eacute a
sophiacutea virtude mais alta da parte intelectual humana Reeve parece
compartilhar dessa opiniatildeo de certo modo pois natildeo a entende como virtude
mais completa (REEVE 2013 p 27) Embora Zingano (2007 p 160) observe
que eacute possiacutevel que a mais alta virtude mencionada pelo filoacutesofo possa ser uma
junccedilatildeo de sophiacutea e phroacutenēsis o que nos parece mais plausiacutevel
135
especificamente a sabedoria porque segundo o filoacutesofo natildeo se dedica a
nenhum dos meios que permitem ao homem ser feliz dados os seus
objetos Eacute de se presumir no entanto que o detentor de tal virtude
intelectual tenha as demais virtudes inclusive aquelas relativas agraves
emoccedilotildees moderadas devido ao caraacuteter uno da psychḗ humana Parece
ser isso que podemos ler no passo escrito por Reeve acerca das virtudes
da capacidade racional da alma humana proposta pela EN trecho que
subscrevemos
Juntas essas duas partes compotildeem a parte da alma
que tem razatildeo (logos) porque esta pode dar
razotildees que justificam e explicam
A funccedilatildeo de cada subparte racional eacute conhecer a
verdade confiaacutevel (239b12-13) No caso da parte
cientiacutefica (ou da contemplativa ou do pensamento
teoacuterico que ela capacita) a verdade em questatildeo eacute a
verdade totalmente familiar naquele da parte
calculativa (ou pensamento praacutetico) eacute a verdade
praacutetica ou determinante-da-accedilatildeo que eacute ldquoverdade
em conformidade como desejo corretordquo (239a17-
35) Desde que uma virtude eacute apenas algo que
capacita seu detentor a cumprir ou completar bem
sua funccedilatildeo satildeo essas funccedilotildees que tecircm as chaves
para as virtudes do pensamento (139a16-17) e
entatildeo para o tipo de razatildeo eticamente correta
procurada (REEVE 2013 p 4 traduccedilatildeo nossa)
Embora como observa Reeve (2013 p 1) seja difiacutecil determinar
o papel da razatildeo teoacuterica na moralidade suspeitamos que tal relaccedilatildeo
exista necessariamente Todavia por motivo das propostas que
defendemos nesse estudo nesse momento trataremos a phroacutenēsis devido
agrave sua atuaccedilatildeo evidente junto agrave vida feliz e doravante apontaremos
quando possiacutevel e necessaacuterio indiacutecios de que a sabedoria teoacuterica
participa da virtude completa que viabiliza a boa vida
4a) A prudecircncia
Dissemos muitas vezes que natildeo haacute virtude moral sem prudecircncia
Mas qual a utilidade desta para a vida moral se a maioria dos homens
parece estar sob o domiacutenio das capacidades natildeo racionais da alma e se
Aristoacuteteles cede agrave virtude moral a indicaccedilatildeo do fim a ser buscado pelo
agente Aristoacuteteles responde a partir de VI 7 (mas a proposta aparece
136
tambeacutem em III 4 5 e 7) que a prudecircncia eacute uacutetil agrave vida moral por analisar
os meios que permitem ser feliz tendo por objeto as coisas justas belas
e boas para o homem Sendo assim quando Aristoacuteteles escreve que a
razatildeo sozinha nada move escreve tambeacutem que a razatildeo praacutetica associada
ao desejo move
A associaccedilatildeo das capacidades desiderativa e racional da alma
esta representada ao menos pela razatildeo praacutetica que retifica os desejos
pelos fins ajusta o caacutelculo dos meios e a escolha do meio mais eficiente
de agir para alcanccedilar o bom fim proposto pelo desejo retificado graccedilas agrave
sua docilidade agrave razatildeo praacutetica como veremos e defenderemos Esse tipo
de interpretaccedilatildeo nos forccedila a ver as possibilidades de entendimento da
virtude da razatildeo praacutetica chamada prudecircncia de seus objetos e de sua
funccedilatildeo junto a uma vida boa moralmente
Um modo de compreender melhor o papel moral da prudecircncia e o
que ela eacute passa pela consideraccedilatildeo de quem satildeo os prudentes A opiniatildeo
geral - com a qual Aristoacuteteles parece concordar - eacute que o prudente tem a
capacidade de bem deliberar quando estaacute em jogo o que eacute vantajoso e
bom para o homem A prudecircncia eacute ldquouma disposiccedilatildeo acompanhada da
regra justa capaz de agir na esfera do que eacute bom ou mau para um ser
humanordquo (EN VI 5 1140b4-5)122 O cidadatildeo que apresenta essa virtude
intelectual eacute dotado de reta razatildeo e por isso eacute capaz de deliberar sobre
as coisas que levam agrave boa accedilatildeo e agrave vida feliz Sendo assim de um modo
geral eacute possiacutevel classificar o prudente como o homem capaz de
deliberaccedilatildeo A prudecircncia estaacute ligada igualmente ao agir eacutetico e por isso
Wolf (2010 p 152) entende que viver exercendo a virtude moral eacute uma
forma de eudaiacutemōniacutea pois para a realizaccedilatildeo plena desse tipo de vida
natildeo basta ter a virtude da capacidade desiderativa Para que haja a boa
accedilatildeo eacute preciso haver aquilo que a autora chama de ldquoboa compleiccedilatildeo
constitutivardquo da capacidade desiderativa e tambeacutem a virtude intelectual
definidora do exerciacutecio da virtude moral que eacute a prudecircncia Por isso
Aristoacuteteles escreve A phroacutenēsis eacute uacutetil agrave vida moral por indicar os
meios de se alcanccedilar um fim desejado pois o fim
eacute da alccedilada da virtude moral a obra proacutepria do
homem natildeo eacute totalmente acabada senatildeo em
conformidade com a prudecircncia e com a virtude a
virtude moral eacute com efeito garantia da retidatildeo do
122 Traduccedilatildeo para o portuguecircs nossa feita a partir da traduccedilatildeo francesa feita por
Tricot (2012) No original ἕξιν ἀληθῆ μετὰ λόγου πρακτικὴν περὶ τὰ ἀνθρώπῳ
ἀγαθὰ καὶ κακά
137
fim que buscamos e a prudecircncia aquela dos meios
para alcanccedilar esse fim (EN VI 13 1144a6-9)123
Segundo Hutchinson (2009 p 270) mais que propor meios a
prudecircncia torna a virtude moral sensata jaacute que os princiacutepios de nossas
accedilotildees satildeo os fins aos quais tendem nossos atos e estes princiacutepios
necessitam de tal sensatez Ela eacute a virtude da capacidade da alma apta a
calcular (tograve logistikoacuten) os meios implicada tanto na accedilatildeo quanto na
produccedilatildeo porque o caacutelculo ou deliberaccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o que pode
ser de outro modo sendo que a accedilatildeo moral e a produccedilatildeo satildeo do acircmbito
do que eacute variaacutevel A prudecircncia natildeo pode ser esquecida e eacute caracterizada
como a virtude intelectual que tem por objeto os universais mas que
deve tambeacutem ter o conhecimento dos fatos particulares pois sendo da
ordem da accedilatildeo estaacute relacionada com as coisas particulares (EN VI 8
1141b9-16) Por conseguinte a prudecircncia precisa do conhecimento do
universal e dos particulares mas o prudente deve saber
preferencialmente daquilo que estaacute relacionado ao particular imediato
ou uacuteltimo que eacute objeto de um tipo de percepccedilatildeo (aiacutesthēsis) do particular
mas um tipo de percepccedilatildeo tida como na percepccedilatildeo um ente matemaacutetico
diferenciando-se da percepccedilatildeo dos sensiacuteveis proacuteprios como explica o
DA III 10 433a16-17
Assim na prudecircncia ou melhor na deliberaccedilatildeo da qual eacute em
parte constituiacuteda haacute percepccedilatildeo daquilo que eacute uacuteltimo mas primeiro na
accedilatildeo124 Tal percepccedilatildeo explica Reeve (2013 p 3 2014 p 211) capta
algo uacutenico ou universal entre uma multidatildeo de coisas particulares com
o auxiacutelio da capacidade perceptiva da alma como veremos no proacuteximo
Capiacutetulo De acordo com essas descriccedilotildees eacute possiacutevel entender a
prudecircncia portanto como
[] a virtude intelectual chamada sabedoria
praacutetica cuja funccedilatildeo eacute permitir-nos saber a maneira
correta de nos comportar Embora a sabedoria
praacutetica natildeo seja ela proacutepria uma virtude moral
estaacute intimamente associada com as virtudes
morais [] Como resultado de tudo isso a
sabedoria praacutetica eacute uma apreciaccedilatildeo do que eacute bom
e mau para noacutes no niacutevel mais alto acrescida de
123 Idem ἔτι τὸ ἔργον ἀποτελεῖται κατὰ τὴν φρόνησιν καὶ τὴν ἠθικὴν ἀρετήν ἡ
μὲν γὰρ ἀρετὴ τὸν σκοπὸν ποιεῖ ὀρθόν ἡ δὲ φρόνησις τὰ πρὸς τοῦτον 124 Para uma discussatildeo mais detalhada das diferenccedilas e similaridades entre
percepccedilatildeo comum e percepccedilatildeo deliberativa ver Reeve (2014 p 213)
138
uma correta assimilaccedilatildeo dos fatos da experiecircncia e
da habilidade de fazer de maneira raacutepida e
confiaacutevel as inferecircncias corretas sobre como
aplicar nosso conhecimento moral geral a nossa
situaccedilatildeo particular Ela eacute usada em nossos
proacuteprios casos quando somos obrigados a manter
certo modo de accedilatildeo Obviamente ela eacute um recurso
muito importante se a tiveacutessemos noacutes sempre
agiriacuteamos de maneira correta e nossas vidas
seriam proacutesperas e felizes (HUTCHINSON 2009
p 267-269)
Apoacutes expor brevemente a relaccedilatildeo de necessidade entre a virtude
intelectual da prudecircncia e a virtude moral devemos prosseguir em nossa
investigaccedilatildeo Vale avisar que explicaremos melhor a relaccedilatildeo da
prudecircncia com o particular e o universal mas no momento a exposiccedilatildeo
que fazemos da virtude intelectual em questatildeo solicita que a
explicitemos o modo como capacita o homem a agir bem graccedilas a ter a
boa deliberaccedilatildeo (eubouliacutea) por peculiaridade Com seu caacutelculo bem
executado a prudecircncia associada agrave virtude moral possibilita que as
accedilotildees sejam perfeitas permitindo mesmo a completude da virtude
humana pois leva a agir seguindo boas razotildees Assim sendo a
deliberaccedilatildeo necessaacuteria agrave determinaccedilatildeo racional que faraacute dos atos
corretos eacute preciso analisaacute-la ainda que brevemente
4b) Deliberaccedilatildeo
As propostas indicam que a funccedilatildeo a ser exercida pelo prudente eacute
a deliberaccedilatildeo ou melhor a boa deliberaccedilatildeo sendo esta uma espeacutecie de
pesquisa ou caacutelculo que apontaraacute ao agente suas possibilidades de accedilatildeo
para que sua procura por um fim resulte bem-sucedida Quem delibera
busca os meios convenientes para as accedilotildees e nesse caso o conveniente eacute
o bom mas o que eacute objeto de deliberaccedilatildeo (bouacuteleusis) ldquoDeliberar
entatildeo diz respeito agraves coisas que ocorrem nas mais das vezes mas nas
quais eacute obscuro como resultaratildeo e agravequelas nas quais eacute indefinido como
resultaratildeordquo (EN III 5 1112b8-9)125 Por isso se nas accedilotildees cabe variaccedilatildeo
para agir bem quanto aos assuntos incertos eacute preciso deliberar bem agrave
eacutetica de Aristoacuteteles eacute imprescindiacutevel apontar bons meios que seratildeo
escolhidos e que poratildeo por fim o cidadatildeo a agir Vimos que nesta eacutetica
125 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original τὸ βουλεύεσθαι δὲ ἐν τοῖς ὡς ἐπὶ
τὸ πολύ ἀδήλοις δὲ πῶς ἀποβήσεται
139
a capacidade mesma de adotar os meios corretos de agir que iniciam
com a deliberaccedilatildeo consiste na ideia de responsabilidade Quando o
agente prefere certos meios por deliberaccedilatildeo pode vir a se tornar senhor
de suas accedilotildees como explicitaremos melhor adiante
Mas qual a natureza da boa deliberaccedilatildeo Quem delibera bem o
faz corretamente e por isso a boa deliberaccedilatildeo eacute um tipo de retidatildeo na
procura e indicaccedilatildeo dos meios para alcanccedilar determinados fins O bem
deliberar eacute um tipo de retidatildeo de pensamento mas natildeo eacute ainda uma
asserccedilatildeo pois o homem que delibera bem calcula e investiga alguma
coisa Se a eubouliacutea eacute correccedilatildeo no deliberar a bouacuteleusis propriamente
dita eacute a forma correta de analisar racionalmente os meios uacuteteis para a
realizaccedilatildeo de um fim Esse tipo de caacutelculo parte do objetivo uacuteltimo da
accedilatildeo concebendo modos de alcanccedilaacute-lo ateacute se entender o que realmente
eacute possiacutevel fazer Quem delibera analisa e ao fim de tal anaacutelise chega ao
que eacute primeiro na execuccedilatildeo da accedilatildeo a escolha deliberada do meio que
conduziraacute ao fim mas quando o deliberador se depara com algo
impossiacutevel a investigaccedilatildeo eacute suspensa Em contrapartida caso se depare
com algo possiacutevel a accedilatildeo eacute posta em curso Por conseguinte os objetos
da bouacuteleusis satildeo os instrumentos de accedilatildeo sua utilizaccedilatildeo e o meio pelo
qual a accedilatildeo ocorreraacute buscando ser bem-sucedida Deliberando portanto
o homem pode ser considerado princiacutepio das accedilotildees que comete porque
a deliberaccedilatildeo estaacute relacionada a coisas que podem ser feitas pelos
proacuteprios esforccedilos (EN III 6 1113a3-12)
Com as observaccedilotildees feitas acima expressamos em linhas gerais a
deliberaccedilatildeo quais satildeo seus objetos e determinamos que estatildeo
relacionados agraves coisas que conduzem aos fins Como explicita VI 8 a
deliberaccedilatildeo eacute a capacidade do prudente que apresenta uma consideraccedilatildeo
(hypoacutelēpsis) verdadeira e por isso entendemos o deliberar como segundo
passo rumo ao alcance de um fim pois o desejo eacute o iniacutecio e ocorre antes
da anaacutelise dos meios A deliberaccedilatildeo eacute expressa sob a forma loacutegica do
silogismo praacutetico que eacute concluiacutedo com a accedilatildeo (EN VII 5 1147a25-31)
sendo este silogismo considerado por Reeve (2014 p 202 210) um
plano para a accedilatildeo126 Em tal plano a premissa universal eacute apresentada ao
agente como um bem (ou como o bem supremo) pois segundo o autor e
como explicita o DA III 10 433b21-27 eacute preciso que haja um ponto fixo
126 Reeve descreve tal silogismo do seguinte modo ldquoPremissa maior definiccedilatildeo
de felicidade
Premissa menor decreto
Conclusatildeo accedilatildeordquo (REEVE 2013 p 9)
140
ou uma espeacutecie de motor imoacutevel que ponha a accedilatildeo em movimento127
Neste caso tal ponto fixo seria o desejo pela felicidade (ou pelo fim que
percebemos como nosso condutor agrave felicidade DA III 11 434a16-20
EN VI 3 1139b17-18) Haveria ainda sob esta foacutermula loacutegica da accedilatildeo
gerada pela deliberaccedilatildeo opiniotildees ou juiacutezos que poderiam ser verdadeiros
ou falsos como nos informa VI 11 constituintes da premissa menor
sendo uma questatildeo de percepccedilatildeo praacutetica assunto do qual trataremos um
pouco mais detidamente no Capiacutetulo III A premissa menor eacute proposta
por Reeve como um decreto (2014 p 210) que antecede a escolha que
resultaraacute na accedilatildeo Por isso na sequecircncia desse processo deve haver a
escolha deliberada do meio para conseguir o fim desejado Por
conseguinte a escolha deliberada eacute o ldquoato de pesar razotildees rivaisrdquo
(ZINGANO 2007 p 158) quanto aos meios para alcanccedilar aquilo que eacute
desejado e por isso a analisaremos brevemente
4c) Escolha deliberada
A escolha deliberada (proaiacuteresis) eacute exclusividade dos animais
humanos nos quais a razatildeo exerce adequadamente seu papel Aristoacuteteles
a define em VI 2 por relaccedilatildeo ao desejo classificando-a como desejo
deliberado (oacuterexis dianoetikeacute) ou intelecto desejante (orektikograves noucircs)
por ser um tipo de desejo formado apoacutes o processo de deliberaccedilatildeo apoacutes
o agente considerar o modo mais adequado de agir para alcanccedilar seu
objetivo Por isso segundo Besnier (2008 p 90) a escolha deliberada eacute
o momento em que eacute possiacutevel que a capacidade natildeo racional da alma
escute a razatildeo praacutetica deixando-se levar por ela Ou ainda melhor eacute o
momento no qual tal capacidade pode se unir agrave razatildeo praacutetica e se
determinar pelas razotildees por ela propostas levando agrave accedilatildeo virtuosa Por
exemplo o continente escolhe deliberadamente e por isso natildeo age por
apetite imoderado (EN III 4 1111b14-17) ldquoEm suma pois a escolha
deliberada parece dizer respeito agravequelas coisas que estatildeo em nosso
poderrdquo (EN III 4 1111b29-30)128
Por tal motivo atribui-se certa qualidade a um homem pelas
escolhas que faz jaacute que prefere obter ou evitar certo tipo de coisa com o
auxiacutelio da reflexatildeo e do pensamento (logoucirc kaigrave diaacutenoias) implicando
que a escolha deliberada acontece apoacutes a deliberaccedilatildeo que indica meios
127 A respeito da premissa maior como um desejo tambeacutem Nussbaum (1985 p
201 et seq) 128 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ὅλως γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ
τὰ ἐφ ἡμῖν εἶναι
141
calculados para se conseguir o fim determinado racionalmente Isso
significa que ldquoa escolha deliberada introduz no centro da virtude por
conseguinte no seio mesmo das emoccedilotildees o ato de pesar razotildees para
aquilo que se faz ou se deixa de fazerrdquo (ZINGANO 2007 p 158)
Escolher eacute essencial para a virtude moral pois eacute a partir da escolha
deliberada que se consolida a preferecircncia por esta e natildeo por aquela accedilatildeo
apontada na deliberaccedilatildeo manifestando aquilo que Zingano chama
ldquofaculdade de contraacuteriosrdquo (2008 p 27129) ou razatildeo Esta pode aceitar ou
deixar de aceitar uma ou outra das propostas da deliberaccedilatildeo - donde os
mencionados contraacuterios - e nisso consiste a escolha deliberada
Deste modo o processo que leva agrave accedilatildeo virtuosa pode ser descrito
do modo como fez Aggio no passo seguinte
Comeccedilamos desejando algo em seguida
passamos a investigar os meios para realizaacute-lo
por fim escolhemos realizaacute-lo ou natildeo Devemos
portanto conceber a escolha como sendo
necessariamente o resultado de uma investigaccedilatildeo
129 Zingano (p 186-187) quanto agrave variedade de fins a serem escolhidos e ao
mesmo tempo quanto ao natildeo relativismo da eacutetica de Aristoacuteteles graccedilas a
existecircncia de um fim maior O que confere agrave deliberaccedilatildeo a tarefa de
avaliaccedilatildeomoral das accedilotildees embora a escolha dos fins seja da alccedilada dos desejos
e das virtudes morais Assim a proaiacuteresis seria parte disso tudo em sua funccedilatildeo
de preferecircncia moral que escolhe entre as alternativas propostas pela
deliberaccedilatildeo A escolha deliberada aleacutem ser por objeto de deliberaccedilatildeo concluiacuteda
apresenta assentimento com tal objeto de deliberaccedilatildeo e isso leva a agir (EN
1147a28) Haacute contudo deliberaccedilatildeo sobre o futuro por isso nem toda
deliberaccedilatildeo eacute seguida de accedilatildeo
De acordo com Nussbaum haacute na escolha deliberada tambeacutem um outro aspecto
de preferecircncia associado ao valor do objeto buscado ldquoPara Aristoacuteteles a busca
por valor eacute a busca pelo que eacute bom para o ser humanordquo (NUSSBAUM 2008 p
49 traduccedilatildeo nossa) Frequentemente a verdade eacute que tal busca eacute parte da vida
emocional Coisas muito queridas geralmente satildeo avaliadas como parte
importante da vida Tais objetos das emoccedilotildees satildeo vistos como valiosos e bons
E se o objeto eacute escolhido livremente eacute provaacutevel que seu valor seja ainda mais
elevado Por exemplo ldquoEu escolho algo porque penso que este algo conteacutem
valor agraves vezes somente para mim mas frequentemente vejo isso como valioso
para as pessoas de um modo geralrdquo A autora contudo discorda um pouco da
proposta eudaimocircnica grega porque pensa que nem tudo que uma pessoa
entende como valioso pode ser recomendado aos outros Nesse caso haacute uma
falta de limite entre particular e geral mas natildeo analisaremos essa proposta nesse
momento (para esse assunto consultar NUSSBAUM 2008 p 50 et seq)
142
deliberativa e o iniacutecio da accedilatildeo pois escolhemos
agir ao escolhermos o meio que realiza certo fim
(AGGIO 2017 no prelo)
Sendo no momento da escolha deliberada que nossos desejos e
emoccedilotildees capazes de ouvir a razatildeo praacutetica podem vir a mudar a
concordar ou discordar com o que foi racionalmente proposto
entendemos que eacute durante esse caminho apresentado pela prudecircncia - da
deliberaccedilatildeo agrave escolha da accedilatildeo - que uma emoccedilatildeo pode se tornar
adequada ou seja pode receber a mediania A escolha deliberada eacute a
forma pela qual a razatildeo praacutetica age no interior de todos os desejos por
tornaacute-los mais proacuteximos ao que a razatildeo sugere e eacute por isso que
podemos continuar a afirmar como fizemos no primeiro Capiacutetulo que
haacute um modo correto de ter apetite e de se encolerizar O que implica
tambeacutem sentir tais desejos e emoccedilotildees pelos objetos adequados Nisso se
resume o encontrar o ldquoponto certordquo da emoccedilatildeo segundo as palavras de
Zingano (2008 p 167) sendo tal ponto determinado pela razatildeo
associada agrave virtude moral permitindo deste modo se emocionar
conforme a justa medida
No entanto entendemos que as emoccedilotildees assim como os desejos
satildeo despertadas em noacutes a princiacutepio por certas percepccedilotildees praacuteticas que
temos acerca do mundo que anteriormente determinamos estarem
relacionadas com um sem nuacutemero de particulares que nos afetam e
dentre os quais eacute preciso pela accedilatildeo da prudecircncia abstrair algo universal
que norteia as boas accedilotildees Esse tipo de afecccedilatildeo que se origina com o
exterior deve passar pelo crivo da razatildeo praacutetica e seus processos a fim
de conferir adequaccedilatildeo aos desejos que provoca e agraves emoccedilotildees que
desperta levando-os a adquirir uma modelagem mais adequada agraves
propostas racionais em geral Por isso na sequecircncia deveremos nos
dedicar a trabalhar a relaccedilatildeo do processo da prudecircncia com o particular
(heacutekastos) e o universal (kathoacutelou)
4d) Prudecircncia deliberaccedilatildeo escolha deliberada e sua relaccedilatildeo com o
particular e o universal
Com as discussotildees postas acima pudemos observar momentos
nos quais Aristoacuteteles afirma a relaccedilatildeo entre a prudecircncia suas operaccedilotildees
e as coisas particulares bem como com o universal Esse tipo de
proposta nos leva a indagar novamente o real papel dessa virtude
intelectual pois traz duacutevida quanto ao que seria o tal universal O
particular pudemos deduzir satildeo as circunstacircncias nas quais acontece o
143
mencionado processo e que levam cada agente a por em praacutetica seu
plano de accedilatildeo para realizaccedilatildeo de um fim que veremos ser apontado no
silogismo praacutetico como premissa menor ou um tipo de opiniatildeo Mas se
tudo que eacute feito pelo homem leva a um fim que tende ao fim supremo
seria este uacuteltimo o dito universal Pelo que estudamos ateacute o momento a
resposta parece ser positiva e por conseguinte seraacute favoraacutevel agrave nossa
interpretaccedilatildeo a partir da EN e do DA de uma unidade da alma pois nos
mostraria a prudecircncia apontando para algo mais que as situaccedilotildees
peculiares e contingentes
Essa leitura leva a virtude intelectual da prudecircncia a se conectar
ao menos com um certo tipo de objeto invariaacutevel mesmo que no campo
do que eacute procurado pelas accedilotildees humanas Por isso potildee-na em contato
com o restante das capacidades da alma racional e seus melhores
estados que apresentam por objeto coisas imutaacuteveis Ratificamos que
natildeo traremos especificamente dessas uacuteltimas virtudes intelectuais pois
no momento basta-nos confirmar que a prudecircncia se direciona ao
universal configurado como a eudaiacutemōniacutea e lida com os modos
particulares de alcanccedilaacute-la como explica Reeve (2014 p 211)
Quando a felicidade eacute apreendida por um agente
a tarefa deliberativa deste eacute encontrar a (espeacutecie
de) accedilatildeo particular que a constitui nas
circunstacircncias presentes Uma vez encontrada
esta desempenha dois papeacuteis em seu pensamento
praacutetico serve [1] como a premissa menor do
silogismo praacutetico que incorpora a deliberaccedilatildeo do
agente e [2] como uma especificaccedilatildeo concreta do
fim do agente Em [1] a accedilatildeo conclui o caminho
que desce de um fim universal para suas
ocorrecircncias particulares e assim o entendimento
incorporado na percepccedilatildeo deliberativa que a
apreende concerne agrave aplicaccedilatildeo de um universal
(felicidade agir bem) a particulares (esta accedilatildeo)
Em [2] a accedilatildeo eacute o ponto inicial de uma induccedilatildeo
que avanccedila para um universal a partir da
percepccedilatildeo envolvendo entendimento de
particulares Eacute das ldquoaccedilotildees na vidardquo somos
lembrados que as discussotildees em eacutetica e poliacutetica
ldquose ocupam e derivamrdquo (EN I 3 1095a3-4) e eacute a
habituaccedilatildeo adequada que assegura que
alcancemos as conclusotildees corretas nos causando
prazer e dor Em um aspecto portanto a
felicidade eacute um ponto inicial jaacute que eacute o fim
144
uacuteltimo de toda accedilatildeo Em outro as accedilotildees
particulares que a instanciam satildeo pontos iniciais
uma vez que eacute a partir delas que eacute preenchido um
entendimento da felicidade (universal)130
Aristoacuteteles explica a proposta com uma analogia entre silogismo
discursivo e silogismo praacutetico comparando mesmo (e ateacute chamando) a
prudecircncia que apreende o que eacute uacuteltimo ou particular com o intelecto
(noucircs) que capta o universal (EN VI 9 1142a25) Haveria assim uma
espeacutecie de percepccedilatildeo especificamente eacutetica que levaria agrave apreensatildeo dos
juiacutezos e que vimos natildeo ser a percepccedilatildeo dos sensiacuteveis proacuteprios Eacute uma
questatildeo de referir-se a um processo analiacutetico que no caso de um
triacircngulo por exemplo decomporia a figura ateacute levar agrave apreensatildeo do
triacircngulo reconstruindo-o A imagem deste modo apreendida jaacute permite
que seja explicitado de modo discursivo sendo um particular alguma
coisa uacuteltima Assim quando o filoacutesofo trata nesse ponto do texto (EN
VI 9 1142a27) o ver implica que esse ldquover geralrdquo eacute a apreensatildeo do
triacircngulo como o uacuteltimo ponto da anaacutelise efetuada (WOLF 2010 p
155-156)
Quando na anaacutelise da figura geomeacutetrica foi apreendido o
triacircngulo uacuteltimo elemento constitutivo que pode sofrer anaacutelise tecircm-se
dele em mente uma ldquopercepccedilatildeo geralrdquo e sabe-se que pode ser percebido
em um contexto de fundamentaccedilatildeo Por isso eacute visto como o uacuteltimo
elemento em uma cadeia de argumentaccedilatildeo de fundamentaccedilatildeo Jaacute natildeo
pode mais ser expresso em premissas mas eacute agora objeto do
130 Quanto ao particular e o universal segundo Wolf (2010 p 155) eacute que
ldquoAristoacuteteles acentua que a correta deliberaccedilatildeo se refere ao que a quem quando
e como etc na situaccedilatildeo concreta (assim novamente em 1142b28) Que o
kathacuteheacutekaston eacute pensado aqui no sentido da situaccedilatildeo concreta vem atestado pela
indicaccedilatildeo de que o julgar consiste aqui em uma espeacutecie de aiacutesthēsis (percepccedilatildeo
sentir sensorial ndash 1142a27) tanto quanto pela comparaccedilatildeo da phroacutenēsis com o
noucircs No acircmbito teoacuterico essa eacute a faculdade responsaacutevel pela aquisiccedilatildeo de
conceitos uacuteltimos que jaacute natildeo podem ser explicitados por outros conceitos mas
que soacute podem ainda ser apreendidos Agraves vezes Aristoacuteteles chama a proacutepria
phroacutenēsis de uma espeacutecie de noucircs (1142a25) Isso pode ser esclarecido pelo fato
de ambos referirem-se a algo uacuteltimo (heacutekhaston) o noucircs apreende os conceitos
mais elevados mais abstratos a phroacutenēsis ndash pelo menos onde deve ser
compreendida como aiacutesthēsis ndash apreende o mais concreto A questatildeo decisiva
portanto eacute saber o que tem em mente Aristoacuteteles ao designar a phroacutenēsis como
uma espeacutecie de aiacutesthēsisrdquo
145
pensamento A partir desse ponto eacute possiacutevel questionar se a figura que
se busca eacute um triacircngulo ou um ciacuterculo
Aplicando isso para a deliberaccedilatildeo eacutetica eacute possiacutevel questionar o
quanto a prudecircncia eacute composta por uma percepccedilatildeo geral
questionamento que lemos no passo abaixo
Desde o princiacutepio a analogia deixa claro que a
phroacutenēsis percebe o ldquoconcreto derradeirordquo o que
eacute concreto na situaccedilatildeo individual mas natildeo no
modo de um conhecimento eacutetico intuitivo Ao
contraacuterio deveria apreendecirc-lo em um contexto a
saber como o passo derradeiro em um processo
deliberativo Assim como a anaacutelise geomeacutetrica
reconduz a figura complexa a uma mais simples
de modo que jaacute natildeo possa ser reduzida a
deliberaccedilatildeo eacutetica analisa o conceito de eupraxiacutea
ou de ser-justo ateacute encontrar uma accedilatildeo que jaacute natildeo
remete a outra que podemos antes levar a efeito
imediatamente E como podemos discutir na
anaacutelise geomeacutetrica se eacute o triacircngulo ou outra figura
complexa que se constitui no ponto derradeiro
correto tambeacutem na deliberaccedilatildeo praacutetica podemos
sopesar qual das alternativas de accedilatildeo concretas
possibilitadas pela situaccedilatildeo eacute a correta ou a
melhor tornando-se o conteuacutedo da proaiacuteresis
Desse modo tambeacutem aqui temos a ver com uma
aiacutesthesis ldquogeralrdquo postada em um contexto
racional A proaiacuteresis ou accedilatildeo que deve ser
executada concretamente eacute apreendida como
correta no contexto da deliberaccedilatildeo praacutetica
(WOLF 2010 p 156)
Permanece contudo um problema a boa accedilatildeo natildeo pode ser
analisada como um fim teacutecnico por um processo claro como um ente
geomeacutetrico Se seguirmos o exemplo do triacircngulo transpondo-o para a
accedilatildeo eacutetica natildeo deveriacuteamos pensar que podemos mencionar os passos
para que uma accedilatildeo seja uma boa accedilatildeo O que deveria ser analisado eacute a
circunstacircncia para que ocorra a boa accedilatildeo e diante de tal circunstacircncia
qual eacute a boa accedilatildeo Nesse caso a deliberaccedilatildeo que precede a percepccedilatildeo poderia ser proposta em passos Primeiro o agente deveria esclarecer
qual o fim ou bem constitui o conteuacutedo da virtude moral e que deve ser
alcanccedilado pela accedilatildeo Depois disso deveria explicitar como alcanccedilar tal
bem propondo a circunstacircncia concreta O juiacutezo por sua vez deveria
146
indicar que a accedilatildeo eacute adequada por vaacuterios motivos e aspectos (o que
quem como quando etc) e que se insere na vida do agente em seu
rumo para a eudaiacutemōniacutea por conseguinte a boa accedilatildeo
A percepccedilatildeo relativa agrave prudecircncia e sua concretude poderia ser
entendida por tudo que foi explicado como uma percepccedilatildeo que ldquovecircrdquo a
accedilatildeo que leva um agente a uma boa vida Isso eacute parte do processo de
deliberaccedilatildeo racional articulador das ldquovisotildeesrdquo que se apoiam na empiria
apresenta e analisa as possibilidades de accedilatildeo ateacute o ponto de propor um
projeto de accedilatildeo que com componentes deliberativos vai atingir a forma
que pretende para a boa accedilatildeo Natildeo se trata de um processo que possa ser
decomposto em passos claros como no caso da technḗ mas o que temos
eacute uma busca incerta por um fim sem conteuacutedo preacute-definido
Essas explicaccedilotildees apontam porque a prudecircncia natildeo se direciona
somente para o bem do indiviacuteduo mas para o bem comum Segundo os
Livros II-VI o bem eacute a accedilatildeo bem-sucedida resultante da virtude moral
associada agrave racionalidade praacutetica e quiccedilaacute agrave razatildeo teoacuterica Conforme os
Livros III-VI esse bem deveria ser posto previamente pelo desejo por
uma disposiccedilatildeo que se direcionasse ao bem ou premissa maior da
deliberaccedilatildeo praacutetica Estatildeo envolvidos portanto com o particular e com
o universal como explica Wolf
Ora a faculdade desiderativa estaacute referida agrave razatildeo
as aspiraccedilotildees podem exprimir-se de tal modo que
sejam apreendidas em conceitos podem portanto
adotar a forma de desejos articulados na
linguagem Por si soacute a faculdade desiderativa natildeo
consegue formular um desejo como o desejo de
ser corajoso ou de ser justo Como vimos a
concretizaccedilatildeo daquilo que se deve fazer na
situaccedilatildeo natildeo apenas exige deliberaccedilatildeo Tambeacutem
essa deliberaccedilatildeo soacute poderaacute ser feita se a pessoa jaacute
dispotildee de uma representaccedilatildeo reflexiva da
eupraxiacutea no acircmbito relevante quando a phroacutenēsis
portanto se refere tambeacutem ao fim pois do
contraacuterio a pessoa agente nada teria em que
pudesse se orientar na reflexatildeo sobre o que seria o
melhor modo de realizar a aretḗ na situaccedilatildeo
presente
Aleacutem do mais a representaccedilatildeo impliacutecita do bem
viver contida na aretḗ deve ser implantada por
algueacutem no caraacuteter o qual tem ele proacuteprio uma
representaccedilatildeo reflexiva do direcionamento a ser
seguido na educaccedilatildeo Essa dupla tarefa da aretḗ eacute
147
confirmada pela ponderaccedilatildeo que Aristoacuteteles faz
em relaccedilatildeo agrave poliacutetica E uma vez que tambeacutem a
tarefa da poliacutetica igualmente deve ser
considerada uma forma de bom conselho ou uma
phroacutenēsis (1141b23-1142a10) Nesse contexto
ele acentua que a phroacutenēsis na poliacutetica possui
duas partes a parte legislativa (nomothesiacutea) e a
executiva (politikḗ em sentido estrito) A primeira
eacute a parte diretriz ou ordenadora a segunda a parte
ativa concreta agrave qual estaacute referida a deliberaccedilatildeo
O educador individual igualmente deve ser
considerado como orientador no sentido dessa
dupla particcedilatildeo de tal modo que ele tem uma
representaccedilatildeo de regras em que se explicita a
eupraxiacutea (WOLF 2010 p 158)
Essas consideraccedilotildees indicam que os processos da prudecircncia se
encaminham por meio de accedilotildees dadas em circunstacircncias particulares a
um universal que eacute o bem supremo comum a todos
Os apontamentos acerca da virtude moral da prudecircncia nos levam
a entender que o agente igualmente se torna responsaacutevel pela forma
como suas emoccedilotildees se datildeo ao mundo porque apoacutes formado
moralmente sua capacidade de por-se os fins acaba por tornaacute-lo mais
que senhor de suas accedilotildees eacute agora senhor de seus desejos e da forma
como age e se emociona Embora natildeo escolha a emoccedilatildeo que sente o ato
de pesar razotildees e de por-se o fim acaba no processo de deliberaccedilatildeo por
apresentar a possibilidade de mudar ou de ao menos moderar as
emoccedilotildees conforme o desejo eacute mudado ao longo desse processo Com
isso eacute possiacutevel que um impulso natural venha a se acalmar ao ponderar e
decidir unindo desejo e razatildeo praacutetica mudando raiva em calma ou
diminuindo a intensidade da raiva ou adequando a raiva sentida agrave
circunstacircncia por exemplo Pensamos que isso seja possiacutevel porque a
nosso ver se a alma eacute una como viemos propondo o prudente tem
contato com a uma verdade mais universal que se configura como
eudaiacutemōniacutea como propotildeem os comentadores apresentados tendo uma
visatildeo do que eacute mais geral graccedilas provavelmente agrave sua capacidade de
raciocinar bem que vai aleacutem do acircmbito da accedilatildeo que pode ser
considerada moralmente e da prāxis humana Provavelmente com isso
seja possiacutevel dizer que de certo modo a prudecircncia vecirc o fim a ser
alcanccedilado o melhor fim possiacutevel em uma espeacutecie de percepccedilatildeo que lhe
eacute proacutepria e que aponta para algo mais universal de modo similar agrave accedilatildeo
da razatildeo teoacuterica No homem virtuoso bem formado moralmente eacute
148
preciso saber o que seja esse bom fim eacute preciso desejar corretamente o
fim e se emocionar corretamente para que haja accedilotildees adequadas que
levaratildeo a tal fim Por conseguinte pensamos que ao menos no virtuoso a
prudecircncia que lhe eacute posse real e natildeo um conselho vindo de fora
implique de certo modo em conseguir distinguir o bom fim para
encadear o processo deliberativo Esse tipo de capacidade eacute conseguida
com a boa conjunccedilatildeo da razatildeo praacutetica com o lado natildeo racional da alma
humana formando a virtude em sentido estrito que na melhor das
hipoacuteteses capacita o homem bem educado agrave emoccedilatildeo adequada como
veremos no ponto seguinte
5 Virtude natural e virtude em sentido estrito
No final Livro VI capiacutetulo 13 da EN Aristoacuteteles procede a novo
exame da natureza da virtude Nessa parte do texto o filoacutesofo estabelece
diferenccedilas entre virtude moral em sentido estrito e virtude natural (aretḕ
physikeacute ndash aretḕ ethikḗ) embora ambas se relacionem Comeccedila a
discussatildeo observando o fato de todos admitirem que aqueles que
apresentam certo caraacuteter o tecircm de certo modo por natureza Pensa no
entanto que uma investigaccedilatildeo eacutetica procura a virtude moral em sentido
estrito e que seja possuiacuteda de um certo modo Aristoacuteteles considera que
se tais disposiccedilotildees naturais natildeo forem acompanhadas pela razatildeo se
tornaratildeo nocivas embora ldquoao contraacuterio uma vez que a razatildeo veio
entatildeo no domiacutenio da accedilatildeo moral eacute uma mudanccedila radical e a disposiccedilatildeo
que natildeo tinha ateacute aqui senatildeo uma semelhanccedila com a virtude seraacute agora
virtude em sentido estritordquo (EN VI 13 1144b12-14)131 Assim como na
capacidade opinante da alma haacute dois tipos de qualidade a habilidade e a
prudecircncia na funccedilatildeo moral (tograve ethikoacuten pelo qual leia-se tograve orektikoacuten)
existem dois tipos de virtude natural e em sentido estrito
A virtude propriamente dita contudo natildeo se produz sem
prudecircncia porque virtude em sentido estrito eacute conforme a regra justa e
a regra justa eacute a prudecircncia ou a disposiccedilatildeo segundo a prudecircncia Mais
ainda natildeo eacute apenas disposiccedilatildeo conforme a regra justa mas intimamente
131 Na nota 1 (2012 p 334) Tricot afirma que nesse caso no lugar de noucircs
pode ser lido phroacutenēsis e que por parte opinante entenda-se tograve logistikoacuten No
original ἐὰν δὲ λάβῃ νοῦν ἐν τῷ πράττειν διαφέρει ἡ δ ἕξις ὁμοία οὖσα τότ
ἔσται κυρίως ἀρετή
Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs a partir da traduccedilatildeo francesa feita por Tricot
No Original ἐὰν δὲ λάβῃ νοῦν ἐν τῷ πράττειν διαφέρει ἡ δ ἕξις ὁμοία οὖσα
τότ ἔσται κυρίως ἀρετή
149
ligada agrave regra justa (EN VI 13 1144b26-27)132 portanto eacute impossiacutevel
ser um homem de bem em sentido proacuteprio sem a phroacutenēsis e com ela
todas as virtudes satildeo dadas Essa concepccedilatildeo da virtude moral eacute proposta
porque natildeo haacute escolha deliberada sem a prudecircncia e provavelmente
natildeo haacute prudecircncia sem as demais virtudes das demais capacidades
racionais A virtude moral ordena o fim e a prudecircncia leva a completar
as accedilotildees que conduzem a este (EN VI 13 1145a4-6)133
Consideramos que as virtudes do intelecto satildeo portanto
imprescindiacuteveis a uma vida feliz porque sem as atividades que facultam
o homem natildeo poderia ser pensado como desempenhando sua funccedilatildeo
proacutepria Embora valha relembrar que ldquoum tipo secundaacuterio que eacute a vida
segundo o outro tipo de virtude eacute feliz pois as atividades que satildeo
conformes a ela satildeo puramente humanasrdquo (EN X 8 1178a9-11)134 Este
outro tipo de excelecircncia como vimos acima eacute a virtude moral que
busca segundo interpretaccedilatildeo de Tricot uma felicidade relacionada agrave
vida dos homens na poacutelis (2012 nota 3 p 551-552) Por isso os atos de
virtude moral satildeo tomados nas relaccedilotildees com os outros e em relaccedilatildeo agraves
emoccedilotildees sendo ligados igualmente agrave prudecircncia A proximidade dessas
virtudes com as emoccedilotildees aconteceraacute no composto corpoalma fazendo
delas excelecircncias especialmente humanas como Tricot observa
[] as virtudes morais satildeo ligadas agrave prudecircncia e a
prudecircncia agraves virtudes morais e por um outro lado
elas satildeo ligadas agraves paixotildees pois prudecircncia e
virtudes morais se aplicam igualmente a modificaacute-
las Por consequecircncia todas essas virtudes
incluindo a prudecircncia satildeo realmente as virtudes
do composto humano (TRICOT 2012 nota 4 p
552-553 traduccedilatildeo nossa)
132Assim explica Tricot (2012 nota 3 p 335) a virtude eacute com razatildeo e segundo
a razatildeo 133 Reeve (2013 p 15) explica que uma vez que o entendimento faz
compreender o alvo ele natildeo eacute indiferente ao fim da vida humana ele vecirc o que
tal alvo eacute e assim nossa virtude natural ou habituada eacute transformada em virtude
total e o agente se torna completamente bom (EN VI 13 1144b1-32) Ao mesmo
tempo as virtudes naturais que podem ser possuiacutedas em separado se conectam
em um soacute estado pois todas satildeo requeridas pela sabedoria praacutetica e a sabedoria
praacutetica eacute requerida por ela (EN VI 13 1144b30-1145a2) 134 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Δευτέρως δ ὁ κατὰ τὴν ἄλλην ἀρετήν αἱ γὰρ κατὰ ταύτην
ἐνέργειαι ἀνθρωπικαί
150
Com a virtude natural ou seja com a disposiccedilatildeo natildeo
consolidada135 pelo o auxiacutelio da virtude intelectual da prudecircncia o
agente eacute capaz de fazer o que deve ser feito mas sem dispor das razotildees
para tanto Natildeo eacute capaz de cumprir plenamente a funccedilatildeo proacutepria do
homem pois natildeo tem por si e em si mesmo suas capacidades aniacutemicas
bem ajustadas favorecendo as accedilotildees que seriam moralmente corretas e a
eudaiacutemōniacutea Mas quando o agente desenvolve a virtude proacutepria ou em
sentido estrito tem sua virtude moral acompanhada pela prudecircncia e
muito provavelmente pela razatildeo como um todo e por isso faz o que
deve ser feito segundo boas razotildees136 O ato de escolher e agir segundo
suas proacuteprias boas razotildees eacute aquilo que podemos entender como virtude
completa e indispensaacutevel agrave vida feliz mas a virtude moral embora
possa ser favorecida por certo traccedilo natural soacute vem ao homem pelo
haacutebito
Por conseguinte pudemos perceber quatildeo proacuteximas estatildeo as
virtudes morais e as intelectuais bem como entendemos a necessidade
de colaboraccedilatildeo entre estas a fim de que se viva bem Eacute esse acordo que
permite a Aristoacuteteles propor uma virtude completa no singular e que a
nosso ver permitiraacute que as exigecircncias do filoacutesofo para a educaccedilatildeo ou
habituaccedilatildeo moral das emoccedilotildees sejam efetivadas
Diante disto resta pesquisarmos as possibilidades e os meios de
se executar essa formaccedilatildeo emocional Isso designado ainda nos caberaacute
ressaltar os instrumentos que podem facilitar o acordo entre ambas as
capacidades da alma Eacute preciso entender melhor o papel da razatildeo na
vida emocional moral jaacute que Aristoacuteteles confere ao racional uma
importacircncia semelhante ou ainda maior que agraves instacircncias natildeo racionais
da alma humana Como estivemos a salientar a retidatildeo necessaacuteria aos
desejos e agraves emoccedilotildees falta apresentar ao menos uma possibilidade para
tal retidatildeo Por isso na sequecircncia deveremos apreciar as formas
disponiacuteveis de educaccedilatildeo moral das emoccedilotildees seguindo em parte o
135Possivelmente estaacute em jogo a diferenccedila entre heacutexis disposiccedilatildeo que se tornou
fixa e diaacutethesis estado ou disposiccedilatildeo ainda maleaacutevel (ZINGANO 2008 p
122) Na EE se fala mesmo da melhor disposiccedilatildeo (II 1 1218b38 1219a1
1219a3 1219a32) 136Conferir Poliacutetica 1260a15-19 a respeito do modo de operar as virtudes O
passo apresenta tais modos em relaccedilatildeo aos escravos agraves mulheres e agraves crianccedilas
sendo que em nenhuma dessas condiccedilotildees se apresentaria a virtude perfeita
Sobre o ato de escolher conforme agraves boas razotildees tambeacutem se pode conferir
Magna Moralia 1200a3-4
151
modelo de educaccedilatildeo que poder ser aplicado aos desejos e que eacute
explicado por Aggio (2017 no prelo) Essa educaccedilatildeo seraacute possibilitada
pelos haacutebitos e formaraacute juntamente com a virtude intelectual aquilo
que no Livro VI da EN Aristoacuteteles chama de ldquovirtude em sentido
estritordquo
152
153
Capiacutetulo III
A racionalidade das emoccedilotildees
1 Eudaiacutemōniacutea vida dedicada agrave atividade racional (EN X)
Ao longo da EN Aristoacuteteles parece dar destaque especial agrave
participaccedilatildeo da razatildeo na vida que considera a melhor mas mesmo na
vida cabiacutevel agrave maioria dos homens o regime do loacutegos natildeo eacute posto de
lado Por conseguinte a vida feliz proposta como ativa e em acordo com
o princiacutepio racional seria dedicada agrave contemplaccedilatildeo conforme certas
propostas do Livro X Nesse ponto da tese fazemos um apanhado
geneacuterico sobre a eudaiacutemōniacutea nesse Livro com as devidas remissotildees ao
Livro I para ressaltar a aparente divergecircncia entre natildeo racional e
racional contudo temos ciecircncia de que a questatildeo eacute mais densa e por
isso natildeo eacute nossa pretensatildeo resolver os problemas relativos agrave felicidade
tampouco defini-la Temos ciecircncia igualmente da querela
contemporacircnea entre as leituras dominantes e inclusivistas sobre o bem
supremo como indicamos no Capiacutetulo I mas a despeito disso nos
parece que o papel da razatildeo na vida feliz sempre eacute preservado por
Aristoacuteteles embora este natildeo minore outros aspectos componentes do
humano Observaremos o tema portanto na medida em que pode nos
auxiliar a resolver nossa questatildeo e comeccedilaremos considerando a
proposta de que a eudaiacutemōniacutea se confunde com a vida contemplativa
embora tenhamos ressaltado anteriormente que tal ideia natildeo apresenta o
real pensamento de Aristoacuteteles sobre o assunto mesmo que o filoacutesofo
escreva linhas como as que seguem abaixo
Mas se a felicidade eacute uma atividade conforme agrave
virtude eacute racional que seja atividade conforme a
mais alta virtude e esta seraacute a virtude da parte a
mais nobre de noacutes Que seja portanto o intelecto
ou qualquer outra faculdade que seja observada
como possuindo por natureza o comando e a
direccedilatildeo e como tendo o conhecimento das
realidades belas e divinas que aleacutem disso esse
elemento seja ele mesmo divino ou somente a
parte mais divina de noacutes eacute o ato desta parte
segundo a virtude que lhe eacute proacutepria que seraacute a
felicidade perfeita Ora que essa atividade seja
teoreacutetica eacute o que temos dito (EN X 7 1177a12-
154
18)137
Aristoacuteteles pensa que essas afirmaccedilotildees parecem estar em acordo
com a verdade Por isso elenca oito motivos para concordar com as
propostas que definem a melhor vida como aquela em contemplaccedilatildeo
Primeiro a atividade mencionada eacute a mais alta porque o intelecto eacute a
melhor parte que temos e os objetos do intelecto teoacuterico satildeo os mais
altos dos objetos conheciacuteveis Segundo seria a eneacutergeia mais contiacutenua
pois podemos nos deixar agrave contemplaccedilatildeo de uma forma menos
interrompida do que a qualquer outra atividade Terceiro pensa-se que o
prazer intelectual deve ser componente da felicidade jaacute que a atividade
segundo a sabedoria eacute reconhecidamente a mais agradaacutevel das
atividades conformes agrave virtude A filosofia conteacutem prazeres
maravilhosos no que toca agrave pureza e agrave estabilidade por isso seria
normal se a alegria de conhecer fosse uma tarefa mais agradaacutevel que a
procura pelo conhecimento Quarto aquilo que eacute chamado lsquoplena
suficiecircnciarsquo pertenceria ao maacuteximo agrave atividade contemplativa Se eacute
verdade que o saacutebio o justo e todo homem detentor de virtude(s)
precisariam das coisas necessaacuterias agrave vida uma vez que estivessem
suficientemente providos de tais bens viveriam bem dedicando-se agrave
contemplaccedilatildeo teoacuterica O saacutebio ao contraacuterio dos outros virtuosos se
fosse deixado a si mesmo teria a capacidade de contemplar e seria
mesmo mais saacutebio se contemplasse nesse estado de vantagem Eacute claro
contudo que mesmo ao saacutebio eacute preferiacutevel viver na companhia de seus
semelhantes embora este seja o homem que mais baste a si mesmo
Quinto esse tipo de atividade descrito pareceria o uacutenico desejado por si
mesmo Por isso natildeo produziria nada aleacutem do ato de contemplar ao
contraacuterio das atividades praacuteticas Sexto a felicidade parece consistir em
lazer pois o homem soacute se satisfaz com uma vida ativa que busca o lazer
e natildeo vai agrave guerra com outra intenccedilatildeo que natildeo a paz Ateacute mesmo as
atividades poliacuteticas tecircm outro fim em vista e natildeo somente o lazer
buscam satisfazer os interesses gerais e a sauacutede da cidade natildeo sendo
desejaacuteveis por si mesmas enquanto a atividade do intelecto ou
137 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Εἰ δ ἐστὶν ἡ εὐδαιμονία κατ ἀρετὴν ἐνέργεια εὔλογον
κατὰ τὴν κρατίστην αὕτη δ ἂν εἴη τοῦ ἀρίστου εἴτε δὴ νοῦς τοῦτο εἴτε ἄλλο τι
ὃ δὴ κατὰ φύσιν δοκεῖ ἄρχειν καὶ ἡγεῖσθαι καὶ ἔννοιαν ἔχειν περὶ καλῶν καὶ
θείων εἴτε θεῖον ὂν καὶ αὐτὸ εἴτε τῶν ἐν ἡμῖν τὸ θειότατον ἡ τούτου ἐνέργεια
κατὰ τὴν οἰκείαν ἀρετὴν εἴη ἂν ἡ τελεία εὐδαιμονία ὅτι δ ἐστὶ θεωρητική
εἴρηται
155
contemplativa eacute prazerosa e completa ou perfeita (EN X 7 1177b19-26)
Seacutetimo uma vida desse tipo contudo seria demais para a condiccedilatildeo
humana pois natildeo se viveria como um homem mas segundo um
elemento divino que estivesse presente em noacutes Tanto quanto esse
elemento fosse superior ao composto humano sua atividade seria
superior agravequela do outro tipo de virtude (EN X 7 1177b28) ldquoSe
portanto o intelecto eacute algo de divino por comparaccedilatildeo com o homem a
vida segundo o intelecto eacute igualmente divina comparada com a vida
humanardquo (EN X 7 1177b30-31)138 por isso natildeo se deveria escutar
conselhos daqueles que os datildeo pois satildeo conselhos vindos de homens
sobre as coisas humanas O homem deveria se imortalizar na medida do
possiacutevel e fazer de tudo para viver segundo sua parte mais nobre
porque ldquomesmo que essa parte seja pequena em sua massa por sua
potecircncia e seu valor ela passa em muito todo o restordquo (EN X 7 1178a1-
2)139 Em oitavo lugar cada homem se identificaria com essa parte por
ser fundamental em seu ser e por ser a melhor sendo estranho que natildeo
concordasse com a vida que lhe eacute proacutepria mas com qualquer outra
porque o que eacute proacuteprio a cada coisa eacute o que lhe haacute de mais excelente e
agradaacutevel ldquoE para o homem esta seraacute a vida segundo o intelecto se eacute
verdade que o intelecto eacute no mais alto grau o proacuteprio homem Essa vida
eacute portanto igualmente a mais felizrdquo (EN X 7 11786a6-8140)
Nosso estudo precisa questionar todavia a imponecircncia desse tipo
de postura Embora natildeo seja interesse da tese apresentada definir qual
dos usos da razatildeo eacute melhor que o outro o praacutetico ou o teoacuterico
estivemos a defender a existecircncia de uma excelecircncia para cada uma das
(sub)capacidades racionais destacadas por Aristoacuteteles Todavia
pensamos ser indiscutiacutevel que um homem feliz natildeo possa prescindir do
uso praacutetico de sua razatildeo justamente pelo fato de ser um homem e natildeo
outro tipo de ser sendo que tal uso eacute tambeacutem indiscutivelmente
envolvido com as emoccedilotildees Em contrapartida ao lidarmos com eacutetica e
com as accedilotildees boas moralmente estivemos o tempo todo a tratar daquilo
que no homem se apresenta como natildeo racional mas observamos ao
138 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original εἰ δὴ θεῖον ὁ νοῦς πρὸς τὸν ἄνθρωπον καὶ ὁ κατὰ τοῦτον
βίος θεῖοςπρὸςτὸνἀνθρώπινονβίον 139 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original εἰ γὰρ καὶ τῷ ὄγκῳ μικρόν ἐστι δυνάμει καὶ τιμιότητι πολὺ
μᾶλλον πάντων ὑπερέχει 140 Idem καὶ τῷ ἀνθρώπῳ δὴ ὁ κατὰ τὸν νοῦν βίος εἴπερ τοῦτο μάλιστα
ἄνθρωπος οὗτος ἄρα καὶ εὐδαιμονέστατος
156
longo do estudo anteriormente apresentado a respeito da boa medida nas
emoccedilotildees que haacute sempre a presenccedila da racionalidade mesmo quando
tratamos da excelecircncia do natildeo racional que pede accedilatildeo
Por exemplo a junccedilatildeo da virtude moral com a virtude intelectual
da prudecircncia mostrou-se imprescindiacutevel sendo mesmo condiccedilatildeo sine
qua non para a boa forma das emoccedilotildees na vida moral e se apresentou
como aquilo que realmente caracteriza o homem na eacutetica de Aristoacuteteles
e seu modo de tocar a vida que lhe eacute peculiar141 O filoacutesofo retira de suas
divindades mas tambeacutem das bestas a possibilidade de ver apaziguados
em si esses elementos aparentemente diacutespares Tal possibilidade de
conciliaccedilatildeo entre a capacidade racional e capacidade natildeo racional na
alma humana permitiu ateacute o momento que conjugaacutessemos vaacuterios
campos de conhecimento descritos pelo filoacutesofo como destinados ao
tratamento de questotildees especiacuteficas Por isso dedicamos esse terceiro
Capiacutetulo de nosso estudo agrave observaccedilatildeo das possibilidades das relaccedilotildees
da capacidade racional com a capacidade natildeo racional jaacute que Aristoacuteteles
frisa demasiadamente que a melhor vida eacute atrelada agrave razatildeo
Tal anaacutelise seraacute necessaacuteria porque sejam quais forem os motivos
adotados pelo filoacutesofo o fato eacute que o Livro X da EN nos apresenta a
proposta de que a felicidade perfeita eacute uma certa atividade
contemplativa Todavia entendemos que ainda que estabelececircssemos a
vida contemplativa como melhor forma de vida natildeo poderiacuteamos abrir
matildeo de especificar o papel das emoccedilotildees nem neste nem naquele que
muitos consideram um segundo melhor tipo de vida a vida poliacutetica No
entanto ressaltamos que essa natildeo eacute nossa postura jaacute que nossas leituras
de Aristoacuteteles nos levam a pensar que uma vida contemplativa natildeo
aconteceria em total isolamento ou sem os bens elementares agrave
manutenccedilatildeo de uma existecircncia bem vivida entre os quais Aristoacuteteles
parece incluir nos livros VIII IX e mesmo no Livro X da EN as
relaccedilotildees de amizade Mesmo tendo exposto nossa duacutevida quanto agrave
validade do pensamento que defende a pura contemplaccedilatildeo teoacuterica como
representante legiacutetimo das intenccedilotildees do filoacutesofo devemos consideraacute-lo
141 Sobre o assutno Reeve escreveu ldquoA vida que consiste em atividade poliacutetica
sem oacutecio em acordo com a sabedoria praacutetica e com as virtudes de caraacuteter eacute uma
vida completamente mais feliz quando ndash porque ela eacute levada em uma cidade
com a melhor constituiccedilatildeo idealmente situada e provida com bens externos ndash
acontece alcanccedilando o melhor tipo de felicidade para quem a possui Essa vida
complexa ndash parte praacutetica parte contemplativa ndash eacute a melhor vida humana que a
sabedoria praacutetica que eacute o melhor tipo de conhecimento praacutetico pode organizarrdquo
(REEVE 2013 p 18)
157
e buscar perceber em que medida natildeo destoa das propostas
anteriormente levantadas Natildeo esqueccedilamos a ressalva do proacuteprio
Aristoacuteteles em questotildees de eacutetica eacute a experiecircncia que tem a palavra final
Por isso eacute preciso cotejar as conclusotildees que forem racionalmente tiradas
com as coisas que a vida apresenta pois tais coisas estando em acordo
com as conclusotildees tornam-se aceitaacuteveis
Com isso confirmamos a proposta de Aristoacuteteles porque afirma
que a maioria dos homens natildeo preza o racional142 embora ao descrever
a razatildeo como o que haacute de melhor no homem faccedila-nos entender que eacute
preciso tratar do papel do loacutegos na vida moral Como vimos natildeo haacute
virtude moral sem a participaccedilatildeo do intelecto mesmo que essa virtude
seja consolidada pelos haacutebitos e que este intelecto seja praacutetico e natildeo haacute
virtude moral nem boa vida sem uma educaccedilatildeo para as emoccedilotildees Tal
vida como jaacute propusemos somente seraacute possiacutevel na medida em que
pudermos ter nossas emoccedilotildees e nossa razatildeo em acordo o que eacute
viabilizado pela proposta de impossibilidade de uma vida puramente
dada ao racional teoacuterico impossibilidade exposta entre os motivos do
filoacutesofo para que a vida puramente contemplativa seja feliz (EN X 7
1177b26-30) Ainda precisamos confirmar como se datildeo as
possibilidades da racionalidade das emoccedilotildees aristoteacutelicas e os
instrumentos que interferem no sentir emoccedilatildeo e que permitem que esta
seja ao menos mudada favorecendo a virtude moral e a virtude como
um todo Sendo nosso objetivo explicitar o que permite e facilita a
participaccedilatildeo do natildeo racional na razatildeo praacutetica eacute forccediloso que doravante
estudemos mais detidamente a relaccedilatildeo desta razatildeo com as emoccedilotildees ou
seja o se emocionar racionalmente
2 A racionalidade das emoccedilotildees interpretaccedilotildees desde EN I agraves luzes
do De Anima
Os argumentos acima apresentam uma postura bastante favoraacutevel
agrave vida contemplativa como sendo a vida feliz poreacutem ao longo de nosso
estudo apresentamos vaacuterias possibilidades dentro do proacuteprio texto da
EN para suspeitar disso Mesmo o Livro X como acabamos de ressaltar
potildee em duacutevida a possibilidade de um homem ainda que fosse filoacutesofo
totalmente deixado agrave pura contemplaccedilatildeo teoacuterica Cremos que este tipo
de afirmaccedilatildeo (ou de questionamento) estabelece mais que a proposta de
142 Ou como propotildee Boyle (2012 p 31) muitos dos homens natildeo chegam a
alcanccedilar essa capacidade (ou capacidades) ao menos natildeo em sua melhor forma
pensamos
158
Kenny apresentada demasiado sucintamente no Capiacutetulo I o elo entre os
dois tratados sobre a felicidade Igualmente reforccedila a possibilidade de
defendermos nossa tese o homem eacute um composto de corpo e alma que
soacute realiza sua funccedilatildeo proacutepria na poacutelis mas para tanto precisa
harmonizar suas emoccedilotildees com a totalidade de sua razatildeo gerando
emoccedilotildees educadas O Livro X trecho X 7 1177b26-30 que parece por
em xeque todas as afirmaccedilotildees que tendem agrave elevaccedilatildeo da vida
contemplativa ao status de eudaiacutemōniacutea permitiraacute como pretendemos
demonstrar reforccedilar a defesa de nossa tese graccedilas agrave ligaccedilatildeo que
estabelece tanto com o argumento da funccedilatildeo apresentado em EN I
quanto com a proposta especificada em EN I 13 a respeito da capacidade
do desiderativo ouvir e participar da razatildeo desejando e se emocionando
de um jeito racional Para confirmar tais interpretaccedilotildees evocaremos o
DA quando necessaacuterio jaacute que esse tratado igualmente apresenta uma
proposta de homem como composto por corpo e alma sendo somente
tal composto capaz de sofrer afecccedilotildees do tipo das emoccedilotildees (DA I 4
408b18 et seq) e da forma como as sofre143 Por isso tambeacutem quando
necessaacuterio retomaremos algumas das propostas escritas a partir dos dois
tratados e que foram mencionadas nos demais capiacutetulos
Segundo nosso entendimento o Livro I da EN acompanhado de
outros trechos supramencionados da mesma obra nos apresenta uma
perspectiva acerca do que seja o homem No Capiacutetulo I estudamos uma
concepccedilatildeo de homem forjada a partir das distinccedilotildees que representaram o
ser humano como diferente dos demais animais graccedilas agrave natureza
proacutepria agrave sua alma dotada de razatildeo e igualmente da capacidade que tal
alma apresenta de conjugar em si capacidades que muitos pensaram ser
totalmente inconciliaacuteveis Isso eacute o que podemos entender ao lermos em
EN I 13 que a alma tem uma ldquoparterdquo racional e que igualmente apresenta
algo contraacuterio agrave razatildeo que lhe resiste e faz frente mas na sequecircncia do
texto o tom da discussatildeo desse assunto eacute suavizado dizendo que nos
homens com certos tipos de disposiccedilotildees de caraacuteter essa tal capacidade
ambiacutegua ldquofala a respeito de todas as coisas com a mesma voz que o
princiacutepio racionalrdquo (EN I 13 1102b28144) Vimos essas assertivas serem
introduzidas no tratado a fim de permitir a discussatildeo da virtude moral
143 Boyle (2012 p 21 traduccedilatildeo nossa) explica que um animal como o homem
racional ldquoeacute capaz natildeo somente de ser ter e fazer mais que uma criatura natildeo
racional mas de ser o sujeito de atribuiccedilotildees do ser ter e fazer num sentido
distintivordquo 144Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original πάντα γὰρ ὁμοφωνεῖ τῷ λόγῳ
φαίνεται δὴ καὶ τὸ ἄλογον διττόν
159
em cada um de seus tipos que existe apenas devido agraves duas capacidades
elementares na alma humana diferenciando novamente o homem dos
demais animais que nem sempre apresentam uma capacidade aniacutemica
racional
Com essas consideraccedilotildees percebemos em Aristoacuteteles e
confirmamos com apoio em alguns comentaacuterios como os de Nussbaum
Korsgaard Reeve Boyle e Sorabji o desenho de uma figura humana
dotada de uma funccedilatildeo proacutepria (como tudo mais que existe) sendo esta
funccedilatildeo adequada agrave alma caracteriacutestica agrave espeacutecie Agora vale reforccedilar tal
interpretaccedilatildeo com uma visita ao DA pois seu texto confirmaraacute nossas
intenccedilotildees acerca do caraacuteter antropoloacutegico esboccedilado pela EN O homem
descrito pelo tratado da alma confirmaraacute os traccedilos indicados pelo texto
eacutetico em momentos como o citado abaixo
O seguinte absurdo acontece tanto nesta como na
maioria das discussotildees sobre a alma elas
acomodam a alma no corpo nada definindo em
acreacutescimo sobre a causa e o modo como o corpo
se manteacutem Todavia isso parece necessaacuterio pois
devido a esta comunhatildeo um faz e o outro sofre
um eacute movido e o outro move e nada disso ocorre
casualmente a um e a outro (DA I 3 407b13-19145)
Esse posicionamento vale lembrar traz reforccedilo agrave importacircncia da
discussatildeo das emoccedilotildees consideradas entre as afecccedilotildees aniacutemicas
expressas pelo corpo seja por meio de movimentos de certas partes
suas seja com accedilotildees cometidas deliberadamente ou indeliberadamente
trazendo a responsabilidade ou isenccedilatildeo moral bem como a
voluntariedade agraves accedilotildees solicitadas pelas afecccedilotildees que satildeo as emoccedilotildees e
os desejos Esse tipo de interpretaccedilatildeo pode ser adotado a partir dos dois
tratados ora estudados a comeccedilar pela proposta da alma que em EN I 13
resultou na distinccedilatildeo das virtudes em intelectuais e morais discussatildeo
estendida ateacute o Livro VI da EN bem como apresentada em trechos do
DA como o passo I 4 408a34-b8 no qual lemos que as emoccedilotildees satildeo
vindas de fora que movimentam o corpo (por locomoccedilatildeo ou alteraccedilatildeo) e
145 Traduccedilatildeo de Maria Cecilia Gomes dos Reis (2006) no original ἐκεῖνο δὲ
ἄτοπον συμβαίνει καὶ τούτῳ τῷ λόγῳ καὶ τοῖς πλείστοις τῶν περὶ ψυχῆς
συνάπτουσι γὰρ καὶ τιθέασιν εἰς σῶμα τὴν ψυχήν οὐθὲν προσδιορίσαντες διὰ
τίν αἰτίαν καὶ πῶς ἔχοντος τοῦ σώματος καίτοι δόξειεν ἂν τοῦτ ἀναγκαῖον
εἶναι διὰ γὰρ τὴν κοινωνίαν τὸ μὲν ποιεῖ τὸ δὲ πάσχει καὶ τὸ μὲν κινεῖται τὸ δὲ
κινεῖ τούτων δ οὐθὲν ὑπάρχει πρὸς ἄλληλα τοῖς τυχοῦσιν
160
que o homem o faz ldquocom a almardquo A indissociabilidade entre corpoalma
leva ao fato jaacute mencionado de que um faz e o outro sofre um move e
outro eacute movido
O homem sendo entatildeo composto de corpo e alma somente se
emociona devido a esse seu aspecto (DA I 1 403a16 et seq) ldquoE por isso
supotildeem corretamente aqueles que tecircm a opiniatildeo de natildeo existir alma sem
corpo e tampouco ser a alma um certo corpo pois ela natildeo eacute corpo mas eacute
algo do corpo e por isso subsiste no corpo e em um corpo de tal tipordquo
(DA II 3 414a19-22146) Essas ideias servem como reforccedilo agrave EN quando
este texto apresenta o homem como animal poliacutetico dotado de funccedilatildeo
proacutepria a eudaiacutemōniacutea A alma una que defendemos se torna condiccedilatildeo
para que tal funccedilatildeo se realize de modo pleno Por isso repetimos
somente em uma poacutelis o homem pode desenvolver todas as suas
potencialidades de alma ou a maior parte delas pois somente a poacutelis
fornece o indispensaacutevel ao bom funcionamento da alma A
indissociabilidade do corpo e da alma humana (DA I 1 403a3-15) e de
suas capacidades dentro de uma soacute e mesma alma (DA I 4 408b18 et
seq) nos levou a pensar e afirmar a unidade da alma e igualmente do
desejo a fim de que o homem completasse sua funccedilatildeo que entendemos
ser realizaacutevel apenas mediante agrave boa relaccedilatildeo das capacidades aniacutemicas
elementares Aleacutem disso vimos que a poacutelis eacute o ambiente que daacute
condiccedilotildees para desenvolver e coordenar as virtudes necessaacuterias para a
vida considerada feliz
Voltemos ainda um instante agrave EN I 13 e agrave proposta de uma
capacidade racional da alma e uma capacidade natildeo racional sendo que
nesta uacuteltima eacute demasiado importante agrave presente investigaccedilatildeo sua
possibilidade de ouvir a razatildeo o que nos levou a entender melhor as
possibilidades de mudanccedilas nasdas emoccedilotildees Essas variaccedilotildees satildeo
necessaacuterias agrave vida feliz aleacutem de nos ajudar a entender melhor a postura
de Aristoacuteteles acerca da relaccedilatildeo corpoalma Ao definir a alma a partir
das capacidades que faculta ao corpo desempenhar (DA II 2 413a20-25)
Aristoacuteteles permite entender o homem como se enquadrando naquela
descriccedilatildeo de todo orgacircnico vivificado por uma alma e dotado de um
certo nuacutemero de capacidades que iriam como vimos desde a percepccedilatildeo
sensiacutevel ateacute a elaboraccedilatildeo mais fina e sofisticada de raciociacutenios a respeito
das coisas imutaacuteveis (DA II 2 413b1-12)
146 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original καὶ διὰ
τοῦτο καλῶς ὑπολαμβάνουσιν οἷς δοκεῖ μήτ ἄνευ σώματος εἶναι μήτε σῶμά τι
ἡ ψυχή σῶμα μὲν γὰρ οὐκ ἔστι σώματος δέ τι καὶ διὰ τοῦτο ἐν σώματι
ὑπάρχει καὶ ἐν σώματι τοιούτῳ
161
A alma propusemos no Capiacutetulo I seria algo uno com o
exerciacutecio de vaacuterias capacidades que a constituiriam Por conseguinte
para as capacidades serem adequadamente exercidas a alma precisa da
harmonia indicada em EN I 13 no DA I e ao longo destes tratados que
indicam o caraacuteter indissociaacutevel das capacidades natildeo haacute desejo e emoccedilatildeo
sem percepccedilatildeo sensiacutevel e natildeo haacute imaginaccedilatildeo e pensamento sem os
outros dois O que vem do mundo emociona e faz pensar e agir mas
como vimos em Capiacutetulo anterior eacute preciso pensar e agir bem a fim de
viver uma vida feliz Natildeo haacute possibilidade de felicidade nos termos de
Aristoacuteteles sem aquela chamada virtude completa que entendemos ser
a comunhatildeo perfeita da virtude intelectual e da moral e portanto das
duas capacidades elementares exercitadas em seu melhor O acordo eacute
possibilitador da eudaiacutemōniacutea porque a eudaiacutemōniacutea na vida que
defendemos eacute impossiacutevel sem eupraxiacutea Por esses motivos devemos dar
continuidade agraves discussotildees que aparecem no iniacutecio dos dois tratados e
observar outros pontos que permitem confirmar nossas teorias
2 a) Um quecirc ou o quecirc de racionalidade nas emoccedilotildees
A ideia do homem como composto de corpo e alma que faz e
sofre accedilotildees solicitadas pelas paacutethē ouvintes ou natildeo das sugestotildees da
razatildeo praacutetica deve ser defendida em nossa pesquisa porque busca
caracterizar as emoccedilotildees como elementos eacuteticos cruciais agrave vida feliz O
que reforccedila essa proposta eacute a identificaccedilatildeo de um certo nuacutemero de
termos aplicados geralmente a operaccedilotildees concernentes agraves capacidades
racionais ou que levam ao exerciacutecio de tais capacidades mas indicando
a constituiccedilatildeo das emoccedilotildees ou implicadas com as emoccedilotildees educadas
Esses termos aparecem quando (ou especialmente quando) se trata das
virtudes morais particulares ou concretas bem como da definiccedilatildeo de
diversas emoccedilotildees (Rhet II) Entendemos que assim seja graccedilas agrave ligaccedilatildeo
de interdependecircncia entre as capacidades aniacutemicas mencionada
explicitamente em DA (II 4 414b33 et seq) conferindo unidade agrave alma
humana Essa ligaccedilatildeo possibilita a participaccedilatildeo do desiderativo na razatildeo
praacutetica e a boa accedilatildeo proposta confirmada pela afirmaccedilatildeo de Boyle
(2012 p 23-31) que pensa a racionalidade como um conjunto de capacidades que permitem ao homem fazer ou no caso se emocionar
da forma como se emociona
Por isso julgamos conveniente apreciar sucintamente em nosso
estudo algumas capacidades intelectuais que possam constituir a forma
como nos emocionamos ou mesmo que possam influenciar a mudanccedila
162
nas emoccedilotildees e a mudanccedila de uma emoccedilatildeo em outra Comeccedilaremos com
a percepccedilatildeo sensiacutevel iniacutecio que se justifica porque em Aristoacuteteles eacute com
ela que se inicia a possibilidade de conhecimento sobre o mundo147 e eacute
com ela que as emoccedilotildees parecem ter iniacutecio Seguiremos com breve
estudo da imaginaccedilatildeo considerada um elemento do pensamento
inexistente sem o corpo mas que sempre aparece associada agraves
descriccedilotildees diversas das emoccedilotildees que analisamos ateacute agora Apoacutes
mencionaremos tipos de pensamento e intelecto de certo modo
relacionados com a percepccedilatildeo e com a emoccedilatildeo Estudaremos ainda a
opiniatildeo ligada agraves emoccedilotildees abordada apenas de modo que nos ajude a
reforccedilar a defesa das propostas de nosso estudo A escolha das
capacidades mencionadas eacute devida ao fato de serem discutidas tanto na
EN quanto no DA assim como por aparecerem nos outros dois tratados
que servem de apoio agrave nossa inquiriccedilatildeo Todavia o estudo natildeo se
pretende exaustivo nem de caraacuteter conclusivo acerca da questatildeo mas
seraacute apresentado agrave medida que confirme nossas propostas a respeito da
racionalidade da emoccedilatildeo Comeccedilaremos portanto com a percepccedilatildeo
pois sem esta natildeo haacute imaginaccedilatildeo e sem estas duas provavelmente natildeo
haja pensamentos que igualmente podem estar de implicados na
emoccedilatildeo
2 b) Percepccedilatildeo
Nosso intento com essa pequena parte da pesquisa eacute entender o
papel da percepccedilatildeo na emoccedilatildeo com o apoio da EN eacute do DA A
interpretaccedilatildeo tradicional deste uacuteltimo tratado propotildee a percepccedilatildeo atraveacutes
dos oacutergatildeos da sensibilidade como iniacutecio do conhecimento sendo isto um
tipo de afecccedilatildeo (paacutethos) ou movimento que igualmente nos levaraacute a
imaginar e a nos emocionar
A EN natildeo nos propotildee explicitamente a percepccedilatildeo sensiacutevel como
ligada agrave maioria das emoccedilotildees mas ao lermos as descriccedilotildees das virtudes
morais particulares percebemos sua presenccedila pois se emocionar parece
depender ao menos inicialmente de um contato com o mundo do
agente e este contato acontece por via dos sentidos da percepccedilatildeo Aleacutem
disso quando na EN Aristoacuteteles diferencia a capacidade raciocinativa da
percepccedilatildeo sensiacutevel por aquela ser generalizante ao passo que esta outra
eacute particularizante (EN II 9 1109b21) aponta a discriminaccedilatildeo como
mateacuteria da percepccedilatildeo (EN III 5 1126b4-6) tida com as coisas que nos
147 Segundo Zingano (1996 p 17) essa eacute a interpretaccedilatildeo tradicional para as
teorias sobre a relaccedilatildeo entre sensaccedilatildeo e pensamento expostas no De anima
163
aparecem Quanto a esse assunto o tratado tambeacutem nos informa que
para um homem ser prudente eacute preciso saber dos casos particulares O
texto explica que por isso um jovem nunca seraacute prudente por natildeo ter
experiecircncias suficientes dos casos desse tipo pois a experiecircncia nesses
assuntos vem com o tempo
A prudecircncia por sua vez diz respeito ao que haacute de mais
particular jaacute que a accedilatildeo a ser efetuada eacute ela mesma particular (EN VI 9
1142a24-25) embora diga respeito tambeacutem aos universais captados a
partir de um sem nuacutemero de particularidades como vimos no Capiacutetulo
anterior Deste modo a prudecircncia eacute o conhecimento do que haacute de mais
individual remetendo-se reforccedilamos a algo de universal diferindo
assim da percepccedilatildeo sensiacutevel (EN VI 8 1141b14 et seq VI 9 1142a27)
eacute percepccedilatildeo praacutetica como propotildee Reeve (2013 p 13 e 23) Esse
particular natildeo eacute objeto da ciecircncia mas da percepccedilatildeo trazendo-a -
mesmo aquela percepccedilatildeo descrita no DA III - para o campo eacutetico
Aristoacuteteles entretanto adverte a percepccedilatildeo participante das coisas
eacuteticas natildeo lida com os sensiacuteveis proacuteprios mas com os sensiacuteveis de outro
tipo como aqueles que distinguem formas geomeacutetricas (EN VI 9
1142a26-30) Mesmo que haja um tipo especiacutefico de percepccedilatildeo
associado agrave prudecircncia pensamos que seja impossiacutevel a essa virtude
intelectual dispensar o contato com o particular que eacute objeto da
percepccedilatildeo sensiacutevel Por isso cabe-nos estudar essa capacidade
Se pensarmos que a percepccedilatildeo sensiacutevel natildeo estaacute totalmente isenta
do contato com a emoccedilatildeo ligada como estaacute a aparecircncias externas
devemos descrevecirc-la como algo que consiste em ser movido e afetado
pois parece haver opiniotildees que a afirmam como certa alteraccedilatildeo embora
certo tipo de percepccedilatildeo possa natildeo ter ligaccedilatildeo direta com a accedilatildeo de teor
moral A percepccedilatildeo sensiacutevel eacute explicada pelo De Anima de modo
condizente a esta proposta como um movimento partindo de fora da
alma (DA I 4 408a34-35 408b1-17) que todavia natildeo eacute capacidade
exclusiva do homem148 eacute proacutepria aos animais em geral Por
conseguinte Aristoacuteteles segue sua exposiccedilatildeo sobre o assunto com a
proposiccedilatildeo de que o diferencial entre um animal e os outros seres natildeo eacute
o movimento ou a mudanccedila de lugar mas a percepccedilatildeo sensiacutevel (DA II 2
148 Nos An Post Aristoacuteteles descreveu a despeito das diferenccedilas de propoacutesitos
das investigaccedilotildees nesse tratado a percepccedilatildeo como ldquoOra assim eacute a sensaccedilatildeo
uma faculdade discriminativa (portanto de conhecimento)natural a todos os
animaisrdquo (99b36)Traduccedilatildeo de Vallandro e Bornheim (1978) no
originalἐνούσης δ αἰσθήσεως τοῖς μὲν τῶν ζῴων ἐγγίγνεται μονὴ τοῦ
αἰσθήματος τοῖςδ οὐκἐγγίγνεται
164
413b1-9) Por exemplo vimos que em certos animais e plantas
fragmentados cada parte conserva sensaccedilatildeo e movimento local O
filoacutesofo entretanto explica que se assim acontece com a sensaccedilatildeo
igualmente aconteceraacute com a imaginaccedilatildeo e com o desejo porque onde
haacute sensaccedilatildeo haacute prazer e dor e onde estes existem tambeacutem existe
necessariamente o desejo (DA II 2 413b21-23) Com os sentidos
acontece algo parecido alguns animais os tecircm todos outros apenas
alguns outros soacute precisam dee tecircm o tato como propusemos no
Capiacutetulo I As capacidades da alma satildeo propostas entretanto em
sucessatildeo porque sem a alma nutritiva natildeo existe a capacidade
perceptiva portanto e de acordo com Kenny
As almas dos seres vivos podem ser ordenadas
hierarquicamente Plantas possuem uma alma
vegetativa ou nutritiva a qual consiste nos
poderes de crescimento nutriccedilatildeo e reproduccedilatildeo (2
4 415a22-26) Aleacutem disso os animais possuem os
poderes de percepccedilatildeo e locomoccedilatildeo eles possuem
uma alma sensiacutevel e todo animal tem pelo menos
uma capacidade sensitiva das quais o tato eacute a
mais universal O que quer que possa sentir
afinal pode sentir prazer e os animais portanto
que possuem sentidos tambeacutem tecircm desejos Os
humanos aleacutem disso tecircm o poder da razatildeo e do
pensamento (logiacutesmos kaigrave diaacutenoia) que podemos
chamar de alma racional (KENNY 2008 p 284)
Nos animais que possuem tato haacute igualmente a percepccedilatildeo do
alimento e todos os seres vivos se alimentam de coisas secas e uacutemidas
quentes e frias A percepccedilatildeo desses tipos de coisas acontece atraveacutes do
tato que soacute percebe acidentalmente outras qualidades sensiacuteveis
implicando que o sabor eacute seu objeto embora o cheiro e ruiacutedo natildeo
acrescentem nada ao alimento Assim para cada sentido haacute um plano
sensiacutevel que eacute seu objeto proacuteprio e nenhum dos outros sentidos subsiste
sem o tato sendo que este subsiste sem os demais jaacute que haacute animais
sem visatildeo audiccedilatildeo ou percepccedilatildeo do odor
Quanto a essa relaccedilatildeo entre as capacidades o filoacutesofo explica que entre os animais que possuem a capacidade perceptiva uns tecircm a
locomoccedilatildeo outros natildeo mas poucos satildeo os que tecircm caacutelculo e raciociacutenio
Naqueles em que subsiste o caacutelculo igualmente haacute as demais
capacidades mas dos que tecircm cada uma das outras capacidades nem
todos tecircm o caacutelculo Haacute animais que natildeo tecircm sequer a imaginaccedilatildeo e
165
igualmente aqueles que vivem exclusivamente por ela Tendo em vista
estas propostas vale lembrar que desde o primeiro momento de nosso
estudo aceitamos a possibilidade de natildeo haver muacuteltiplas e distintas
almas mas de a alma se constituir das capacidades que faculta ao corpo
animado Com isso a capacidade perceptiva nos seres humanos de
certo modo se liga agraves emoccedilotildees por sua dependecircncia do desiderativo
comprovando mais uma vez a unicidade da alma e as propostas iniciadas
em EN I 13
A essa ideia eacute preciso acrescentar que Aristoacuteteles entende o
perceber de dois modos haacute percepccedilatildeo em ato e em potecircncia e o objeto
de percepccedilatildeo sensiacutevel tambeacutem seraacute em potecircncia ou em atividade
Igualmente eacute preciso fazer distinccedilotildees quanto agrave potecircncia e agrave atualidade
porque como proposto a sensaccedilatildeo eacute a faculdade discriminadora e
dessas discriminaccedilotildees viratildeo os motivos para as emoccedilotildees que deveratildeo
passar pelo crivo da razatildeo praacutetica e de sua forma especiacutefica de
percepccedilatildeo a fim de que adquiram aspecto conveniente Conforme
Aristoacuteteles o ser que nasce jaacute tem o perceber como um discriminar e a
atividade de perceber eacute dita de modo similar agrave de inquirir A diferenccedila
entre as duas funccedilotildees eacute que as coisas que tecircm o poder eficiente da
atividade satildeo externas - satildeo visiacuteveis audiacuteveis e demais objetos da
percepccedilatildeo sensiacutevel - porque a atividade da percepccedilatildeo diz respeito agraves
particularidades enquanto o conhecimento diz respeito aos universais -
que de algum modo estatildeo na alma Assim a capacidade perceptiva eacute
potencialmente ldquotal como seu objeto o eacute jaacute em atualidade Portanto ela eacute
afetada enquanto natildeo semelhante mas uma vez que tenha sido afetada
ela se assemelha e torna-se tal como elerdquo (DA II 5 418a4-6)149 levando
esses dados da percepccedilatildeo para a apreciaccedilatildeo da razatildeo em suas diferentes
formas mas sob a forma praacutetica quando se tratar das accedilotildees
Por conseguinte podemos ressaltar o assunto dos objetos da
percepccedilatildeo sensiacutevel e da discriminaccedilatildeo O filoacutesofo observa
primeiramente que os sensiacuteveis devem ser tratados segundo cada um
dos sentidos ldquoO sensiacutevel se diz de trecircs modos dos quais dois afirmamos
que satildeo percebidos por si mesmos e um por acidente E dos dois um eacute
proacuteprio a cada sentido outro comum a todosrdquo (DA II 6 418a8-11)150
Sensiacutevel proacuteprio eacute aquilo que natildeo pode ser percebido por um outro
149 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original πάσχει μὲν
οὖν οὐχ ὅμοιον ὄν πεπονθὸς δ ὡμοίωται καὶ ἔστιν οἷον ἐκεῖνο 150Idem λέγεται δὲ τὸ αἰσθητὸν τριχῶς ὧν δύο μὲν καθ αὑτά φαμεν
αἰσθάνεσθαι τὸ δὲ ἓν κατὰ συμβεβηκός τῶν δὲ δυοῖν τὸ μὲν ἴδιόν ἐστιν
ἑκάστης αἰσθήσεως τὸ δὲ κοινὸν πασῶν
166
sentido que natildeo lhe corresponda - caso da visatildeo da cor da gustaccedilatildeo etc
Cada sentido destes eacute diferente e natildeo haacute engano sobre se eacute cor ou som
mas sobre o que eacute e onde estaacute o colorido ou o sonante Sensiacuteveis comuns
satildeo o movimento o repouso o nuacutemero a figura e a magnitude (DA II 6
418a17-20) porque satildeo percebidos por mais de um sentido ou por todos
os sentidos Por exemplo um certo movimento eacute percebido tanto pelo
tato quanto pela visatildeo Haacute ainda o sensiacutevel por acidente explicado pelo
famoso exemplo do branco que eacute filho de Diares (DA II 6 418a21-25)
Mas em relaccedilatildeo a toda percepccedilatildeo sensiacutevel eacute preciso compreender que o
sentido recebe as formas sensiacuteveis sem a mateacuteria e do mesmo modo o
sentido eacute afetado pela accedilatildeo do que tem cor sabor ou som O oacutergatildeo
sensorial primeiro eacute aquele em que subsiste essa potecircncia mas dos
sensiacuteveis comuns temos uma percepccedilatildeo comum sem um sentido ou um
oacutergatildeo proacuteprio diante do que Robinson explica
Mas Aristoacuteteles estaacute ciente de que muito mais estaacute
sendo dito quando afirmamos que percebemos as
coisas em particular afirmamos que natildeo vemos
apenas cores mas objetos coloridos que estatildeo em
movimento ou em repouso que tecircm determinado
tamanho e que satildeo unos ou muacuteltiplos em nuacutemero
Estes satildeo chamados ldquosensiacuteveis comunsrdquo
Aristoacuteteles afirma satildeo percebidos per accidens
pelos cinco sentidos que temos e portanto
podemos nos referir a eles como o ldquosentido
comumrdquo ou ldquoos sentidos tomados em comumrdquo
(ROBINSON 2010 p 239)
A percepccedilatildeo sensiacutevel deste modo eacute tida como a capacidade
discriminativa entre as coisas sensiacuteveis que nos aparecem podendo
mesmo levar a ajuizamento Informaccedilatildeo crucial a uma pesquisa eacutetica
sobre as emoccedilotildees pois mais adiante veremos a proposiccedilatildeo da relaccedilatildeo
entre o sentir emoccedilatildeo e o ajuizar quanto aos particulares que nos tocam
Vimos que a percepccedilatildeo sensiacutevel que nos forneceraacute os dados dos
julgamentos por sua vez eacute ou uma potecircncia (como a visatildeo) ou uma
atividade (como o ato de ver) e estaacute sempre presente
Aleacutem disso as percepccedilotildees sensiacuteveis satildeo sempre verdadeiras se haacute boas condiccedilotildees do oacutergatildeo perceptivo e de seu objeto Por exemplo
quando estamos em plena atividade da percepccedilatildeo natildeo dizemos que um
objeto perceptiacutevel aparenta ser um homem dizemos isso quando natildeo
percebemos claramente Nesse caso a percepccedilatildeo seria verdadeira ou
falsa porque (1) haacute percepccedilatildeo sensiacutevel dos objetos sensiacuteveis proacuteprios
167
sendo esta verdadeira ou contendo minimamente o falso (2) porque natildeo
haacute percepccedilatildeo tambeacutem do incidir essas coisas que satildeo acidentais nos
objetos perceptiacuteveis e nesse caso admite-se errar e (3) haacute igualmente a
percepccedilatildeo dos sensiacuteveis comuns que acompanham os incidentais onde
subsistem os sensiacuteveis proacuteprios Essas trecircs percepccedilotildees sensiacuteveis daratildeo as
diferenccedilas do movimento que ocorre pela atividade da percepccedilatildeo se ela
estaacute presente (1) eacute verdadeiro Os outros podem ser falsos estando ela
presente ou natildeo principalmente quando estiver longe do objeto
perceptiacutevel que eacute totalmente particular
Assim agraves afirmaccedilotildees do DA se coadunam as propostas da EN
sobre a percepccedilatildeo quando esta uacuteltima obra nos informa que cada sentido
vem a ato pela relaccedilatildeo com o objeto sensiacutevel que lhe eacute correspondente
Tal operaccedilatildeo se torna perfeita quando o sentido - em uma disposiccedilatildeo satilde -
tem sua relaccedilatildeo com o melhor objeto que lhe corresponde como
proposto haacute pouco Nessas condiccedilotildees o ato eacute o mais perfeito e o mais
agradaacutevel porque para cada um dos sentidos haacute um prazer
correspondente sendo que nesse caso o prazer eacute o acabamento do ato de
perceber e discriminar Se o sentido e os sensiacuteveis estiverem nas
condiccedilotildees propostas sempre haveraacute prazer e verdade porque seratildeo
postos diante do princiacutepio eficiente e do princiacutepio passivo aiacutesthēsis e
aisthetoacuten Estes quando juntos contemplam as exigecircncias de perfeiccedilatildeo
da capacidade perceptiva permitindo o ato perceptivo perfeito em mais
alto grau
Mas esse tipo de percepccedilatildeo eacute o mesmo mencionado em EN VI
como associado agrave prudecircncia O Livro sobre as virtudes intelectuais nos
informa que a prudecircncia (EN VI 9 1142a26-30) eacute mais percepccedilatildeo
deliberativa ou praacutetica que qualquer outra coisa no entanto vimos que o
tipo de percepccedilatildeo associado agrave phroacutenēsis eacute diferente do outro (EN VI 9
1142a28) A percepccedilatildeo deliberativa envolve um universal que soacute pode
ser atingido por deliberaccedilatildeo praacutetica Nessas condiccedilotildees conta a posse de
desejos e emoccedilotildees moderados jaacute que podem ser em excesso ou falta e
por isso apresentam viacutecios que distorcem a visatildeo tornando-a falsa
quanto ao iniacutecio das accedilotildees (EN VI 13 1144a34-36) Por isso a percepccedilatildeo
relacionada agrave prudecircncia eacute de certa forma diferente da percepccedilatildeo dos
sensiacuteveis proacuteprios mencionados em DA III
No caso da prudecircncia opera-se uma percepccedilatildeo como aquela das
figuras que eacute chamada por Reeve (2014 p 211 et seq) percepccedilatildeo
deliberativa Estaacute relacionada ao silogismo praacutetico sendo percepccedilatildeo do
que eacute uacuteltimo na demonstraccedilatildeo praacutetica donde seu caraacuteter particular A
EN III 5 1112b11-24 e a EE II 10 1226a37 nos informam que o
deliberador age como quem analisa um diagrama Um matemaacutetico
168
analisa materiais e formas para serem desenhadas compondo uma
figura Esta eacute a uacuteltima coisa alcanccedilada na anaacutelise mas a primeira na
construccedilatildeo do objeto analisado (DA III 10 433a16-17) Com isso cessa a
investigaccedilatildeo (EN VI 9 1142a29) mais ou menos do mesmo modo que
ocorre na deliberaccedilatildeo praacutetica do prudente quando a anaacutelise chega ao
que deve ser feito ou seja age
Assim a percepccedilatildeo deliberativa resulta de deliberaccedilatildeo e eacute um
tipo de percepccedilatildeo porque o universal que ela discerne eacute captado a partir
de ocorrecircncias particulares perceptiacuteveis como explica Reeve (2013 p
23 p 32) ligando-se assim agrave percepccedilatildeo geral Mesmo que a percepccedilatildeo
de tipo deliberativo soacute ocorra em animais dotados de capacidade
calculativa ela eacute um ato perceptivo porque discerne um particular
perceptiacutevel pela capacidade perceptiva conforme o que explicamos
acima e o que Reeve ressalta
Se o particular em questatildeo eacute um perceptiacutevel
proacuteprio (como poderia ser por exemplo se
estiveacutessemos deliberando sobre que cor de roupa
nos protege melhor do sol) esse ato eacute mais
estritamente o de um sentido proacuteprio (visatildeo) Se eacute
um perceptiacutevel comum (como o formato
triangular) eacute um ato de senso comum (REEVE
2014 p 213)
Ao contraacuterio da percepccedilatildeo do sensiacutevel proacuteprio que eacute sempre
correta ou tem pouca chance de errar a percepccedilatildeo deliberativa pode
cometer erro por exemplo se a deliberaccedilatildeo ligada a ela natildeo for
verdadeira ou for invaacutelida Por isso a prudecircncia eacute ao mesmo tempo
percepccedilatildeo e deliberativa (EN VI 8 1141b9-10) porque perceber
corretamente sensiacuteveis comuns depende frequentemente de caacutelculo
sendo similar agrave percepccedilatildeo deliberativa Especificamente quanto agrave accedilatildeo a
deliberaccedilatildeo praacutetica que a determina tem por alvo a melhor coisa para o
homem e que pode ser realizada por ele (EN VI 8 1141b13-14) Esse
tipo de deliberaccedilatildeo eacute precursora da imaginaccedilatildeo deliberativa e envolve
desejos e emoccedilotildees que possuem boa medida O que faz da percepccedilatildeo
deliberativa praacutetica eacute o fato de seu objeto envolver prazer e dor como
no caso do desejo pela felicidade
Deste modo reforccedilamos que a percepccedilatildeo sensiacutevel pode ser
entendida mesmo em diferentes tratados como iniacutecio do conhecimento
e como afecccedilatildeo tocada por objetos particulares externos que satildeo
proacuteprios ou comuns Conduz a prazeres variados e pode mesmo ter
169
relaccedilatildeo com a emoccedilatildeo ocasionada pelo agente externo particular ao qual
discrimina Difere contudo dos pensamentos para os quais encaminha
suas distinccedilotildees e que em sua forma praacutetica ocasionaraacute a percepccedilatildeo de
tipo deliberativa Por isso questionamos assim como fez Zingano que
tipo de alteraccedilatildeo eacute a percepccedilatildeo sensiacutevel se natildeo eacute qualquer alteraccedilatildeo
Aristoacuteteles natildeo apresenta resposta exata agrave questatildeo mas com apoio no
que foi estudado podemos aceitar a proposta de Zingano (1996 p 16)
Este estudioso entende que a percepccedilatildeo seria ldquouma certa afecccedilatildeo aquela
que a faculdade sensitiva sofre quando passa agrave atualidade e identifica-se
formalmente agrave coisa que do exterior causa sua atualizaccedilatildeo
constituindo-se nesta relaccedilatildeo um objeto de conhecimento (mais
precisamente um objeto sensiacutevel)rdquo o que ratifica a proposta de EN X 7
1177b26-30 e as propostas de nossa pesquisa
Ao homem natildeo eacute possiacutevel uma vida afastada do mundo e de seus
objetos pois mesmo para boa parte de suas reflexotildees seria necessaacuterio o
contato com aquilo que o cerca e sobre o que deve deliberar em casos
embaraccedilosos e por isso haacute a percepccedilatildeo deliberativa que distingue a
partir do que eacute proposto em um silogismo praacutetico levando agrave boa accedilatildeo A
percepccedilatildeo natildeo se identifica com o pensar sendo atividade de outra
natureza que pode operar com a percepccedilatildeo sensiacutevel para produzir o
conhecimento151 Assim como a percepccedilatildeo deliberativa natildeo se identifica
151Para Zingano (1996 p 17) contudo essa natildeo eacute a interpretaccedilatildeo tradicional
Esta propotildee da forma como explica o estudioso uma iacutentima afinidade da
atividade dos sentidos com aquela do intelecto Isso eacute correto pensa o autor
porque todo conhecimento humano por conceitos necessita da ligaccedilatildeo entre as
operaccedilotildees da razatildeo e da sensaccedilatildeo O problema existente com a proposta
tradicional pensa estaacute no modo como tal afinidade eacute concebida Para
Aristoacuteteles essas duas operaccedilotildees satildeo distintas porque o pensamento apreende
os universais enquanto a sensaccedilatildeo apreende os particulares A proposta
tradicional no entanto atribui agraves operaccedilotildees algo mais que a tarefa
discriminativa (e de conhecer) os objetos teriam um modo de operaccedilatildeo
semelhante Por isso entender como funciona uma implicaria entender o
funcionamento da outra Nesse caso tanto com intelecto quanto com a sensaccedilatildeo
o conhecimento viria da passagem da potencialidade agrave atualidade sendo que o
objeto proacuteprio a cada operaccedilatildeo lhe cederia certa determinaccedilatildeo Nessa
passividade as operaccedilotildees estariam intimamente ligadas Entatildeo tanto uma
quanto outra seria uma potecircncia que dependeria do seu objeto para ser
atualizada
Isso afastaria Aristoacuteteles da proposta das Ideias de Platatildeo (como na Rep)
porque natildeo precisaria duplicar o objeto do conhecimento ldquoAristoacuteteles duplica
as operaccedilotildees da alma mas natildeo a proacutepria coisa partindo da apreensatildeo das
170
com a deliberaccedilatildeo mas eacute parte constituinte desta Todavia entre os
tipos de percepccedilatildeo mencionados e os tipos de pensamento e razatildeo com
os quais tecircm contato temos outro elemento presente a imaginaccedilatildeo
portanto cabe-nos agora dissertar brevemente sobre a imaginaccedilatildeo e as
emoccedilotildees
2 c) Imaginaccedilatildeo
Na EN VII 7 1149a32 a imaginaccedilatildeo aparece ligada agrave raiva
(thymoacutes) contrapondo-se agraves propostas do filoacutesofo quanto ao apetite No
passo em questatildeo satildeo feitas observaccedilotildees quanto agrave capacidade desses
dois desejos ouvirem agrave razatildeo e agrave forma como as emoccedilotildees relacionadas a
eles se comportam devido a essa participaccedilatildeo no racional Estas paacutethē
estatildeo associadas agrave percepccedilatildeo e agraves aparecircncias explicando que a razatildeo ou
a imaginaccedilatildeo estaacute presente nas apreciaccedilotildees dos insultos que enraivecem
relacionando o homem que deve se emocionar com o mundo (Pol I 2
1253a25-28 EN X 7 1177b26-30) Assim a imaginaccedilatildeo eacute atrelada ao
impulso e agrave raiva que pode acompanhaacute-lo
O DA parece nos trazer informaccedilotildees adicionais sobre a questatildeo
pois Aristoacuteteles nos fala da imaginaccedilatildeo ao comparaacute-la e associaacute-la com
a percepccedilatildeo sensiacutevel e com tipos de pensamento ldquoPois a imaginaccedilatildeo eacute
algo diverso tanto da percepccedilatildeo sensiacutevel como do raciociacutenio mas a
imaginaccedilatildeo natildeo ocorre sem percepccedilatildeo sensiacutevel e tampouco sem a
imaginaccedilatildeo ocorrem suposiccedilotildeesrdquo (DA III 2 427b14-16)152 Tratamos da
imaginaccedilatildeo ao abordarmos as capacidades da razatildeo que podem estar
implicadas com as emoccedilotildees porque haacute vaacuterias menccedilotildees a ela quando o
assunto eacute o paacutethos especialmente em Rhet II sendo a proacutepria um
paacutethos ao mesmo tempo em que eacute considerada como ponto
intermediaacuterio entre o perceber e o pensar Teoria que justifica o estudo
qualidades sensiacuteveis o homem chega aos inteligiacuteveis natildeo tendo uma relaccedilatildeo
com outra coisa mas retrabalhando esta mesma apreensatildeo sensiacutevel sob a forma
agora de reproduccedilatildeo imaginativa no interior da qual a razatildeo apreende os
inteligiacuteveis Haacute dois objetos de conhecimento o sensiacutevel e o inteligiacutevel aos
quais correspondem (sic) uma soacute coisa na realidade um particular que eacute
composto de mateacuteria e formardquo (ZINGANO 1997 p 18) Isso culminaraacute na tese
do intelecto agente e passivo Com essas propostas Aristoacuteteles elimina as Ideias
e resta-lhe a imanecircncia segundo a qual os inteligiacuteveis somente satildeo separados na
alma 152 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original φαντασία γὰρ ἕτερον
καὶ αἰσθήσεως καὶ διανοίας αὕτη τε οὐ γίγνεται ἄνευ αἰσθήσεως καὶ ἄνευ
ταύτης οὐκ ἔστιν ὑπόληψις
171
das trecircs capacidades racionais em um trabalho acerca das emoccedilotildees por
serem diferentes e exercerem tarefas diferentes junto agrave emoccedilatildeo e agrave
possibilidade de bem viver a imaginaccedilatildeo natildeo eacute nem pensamento nem
suposiccedilatildeo mas eacute uma afecccedilatildeo que depende de noacutes e do nosso querer
Aristoacuteteles explica que quando temos imaginaccedilatildeo de coisas terriacuteveis ou
pavorosas por exemplo podemos permanecer como que a contemplar
uma pintura (DA III 3 427b16-24153) pois a imaginaccedilatildeo natildeo nos leva
imediatamente a compartilhar a emoccedilatildeo Assim
Se a imaginaccedilatildeo eacute aquilo segundo o que dizemos
que nos ocorre uma imagem ndash e natildeo no sentido
em que o dizemos por metaacutefora - seria ela entatildeo
alguma daquelas potecircncias ou disposiccedilotildees
segundo as quais discernimos ou expressamos o
verdadeiro ou o falso Deste tipo satildeo a percepccedilatildeo
sensiacutevel a opiniatildeo a ciecircncia e o intelecto (DA III
3 428a1-4)154
A imaginaccedilatildeo natildeo eacute percepccedilatildeo sensiacutevel porque como vimos
pouco acima a percepccedilatildeo eacute ou uma potecircncia como a visatildeo ou um ato
como o de ver mas algo pode aparecer (phaiacutenetai) para noacutes quando natildeo
subsiste (em sonho por exemplo) e a percepccedilatildeo sensiacutevel eacute sempre
presente mas a imaginaccedilatildeo natildeo As imagens nos aparecem mesmo com
os olhos fechados enquanto a percepccedilatildeo depende destes abertos para
que contate seus objetos Aleacutem disso diferem porque se a imaginaccedilatildeo
fosse o mesmo que a percepccedilatildeo em atividade subsistiria em todos os
153 Ver tambeacutem Nussbaum (2008 p 65 et seq) embora a filoacutesofa natildeo esteja
propriamente a explicar Aristoacuteteles trata da compaixatildeo para exemplificar sua
teoria e exemplifica o papel da imaginaccedilatildeo na emoccedilatildeo ldquoNa compaixatildeo nossa
habilidade para pintar vividamente o dilema de uma pessoa ajuda na formaccedilatildeo
das emoccedilotildees [] podemos sentir menos emoccedilatildeo por outros casos que natildeo
podemos similarmente imaginar com vivacidade embora eles possam ter uma
estrutura similar Aqui o que a imaginaccedilatildeo parece fazer eacute nos ajudar trazendo
um indiviacuteduo distante para a esfera de nossos objetivos e projetos humanizando
a pessoa e criando apossibilidade de ligaccedilatildeo A compaixatildeo ainda seraacute definida
pelo seu conteuacutedo de pensamento incluindo seu conteuacutedo eudaiacutemōniacutestico []
mas a imaginaccedilatildeo eacute uma ponte que permite ao outro se tornar um objeto de
nossa compaixatildeordquo (NUSSBAUM 2008 p 66 traduccedilatildeo nossa) 154 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis (2006) no original εἰ δή ἐστιν ἡ
φαντασία καθ ἣν λέγομεν φάντασμά τι ἡμῖν γίγνεσθαι καὶ μὴ εἴ τι κατὰ
μεταφορὰν λέγομεν ἆρα μία τις ἔστι τούτων δύναμις ἢ ἕξις καθ ἃς κρίνομεν
καὶ ἀληθεύομεν ἢ ψευδόμεθα τοιαῦται δ εἰσὶν αἴσθησις δόξα ἐπιστήμη νοῦς
172
animais mas ela natildeo parece existir por exemplo nas formigas Outra
diferenccedila eacute que as percepccedilotildees satildeo sempre verdadeiras mas a maioria das
imaginaccedilotildees eacute falsa pois existe imaginaccedilatildeo falsa e os animais natildeo
possuem convicccedilatildeo (piacutestis) mas muitos tecircm imaginaccedilatildeo aleacutem do mais
alguns animais a possuem mas natildeo possuem razatildeo
A imaginaccedilatildeo eacute descrita portanto como movimento decorrente
da atividade da percepccedilatildeo sensiacutevel (DA III 3 429a1-2) sendo a uacutenica a
apresentar os atributos mencionados Zingano (2008 p 203) explica a
imaginaccedilatildeo como ldquoa faculdade da alma que preserva o que eacute dado pela
sensaccedilatildeo sob a forma de imagens sobre as quais o intelecto vai operar
funcionando como uma ponte entre razatildeo e sensaccedilatildeordquo Estando
relacionada agrave percepccedilatildeo sensiacutevel que tem sua principal expressatildeo na
visatildeo forma de percepccedilatildeo sensiacutevel por excelecircncia o nome imaginaccedilatildeo
deriva de luz (tograve phocircs) pois sem luz natildeo eacute possiacutevel ver e sem ver natildeo eacute
possiacutevel imaginar sendo tal capacidade uma espeacutecie de criadora de
coisas que satildeo ldquovistasrdquo pelo pensamento Assim as imaginaccedilotildees
perduram e se assemelham agraves percepccedilotildees sensiacuteveis sendo que os
animais fazem muitas coisas de acordo com essas uns por natildeo terem
intelecto outros como os homens por terem o intelecto agraves vezes
obscurecido pelo sono ou pela doenccedila
O DA tambeacutem nos faz entender que haacute diferentes tipos de
imaginaccedilatildeo ldquoA imaginaccedilatildeo perceptiva como foi dito subsiste
igualmente nos outros animais mas a deliberativa apenas nos seres
capazes de calcular pois decidir por fazer isto ou aquilo de fato jaacute eacute
uma funccedilatildeo do caacutelculordquo (DA III 9 434a5-7)155 Essas propostas ligam-se
agravequelas de EN VI texto no qual estudamos a imaginaccedilatildeo deliberativa
como Reeve (2014 p 212) esclarece ldquoA percepccedilatildeo deliberativa eacute um
parente proacuteximo ndash no sentido de que eacute o precursor essencial ndash da
imaginaccedilatildeo calculativa ou deliberativardquo Como nos explica o DA
compartilhamos a imaginaccedilatildeo perceptiva com todos os animais mas a
imaginaccedilatildeo deliberativa eacute exclusiva dos seres dotados de caacutelculo porque
ela eacute questatildeo de deliberaccedilatildeo em prol do bem supremo Por isso esse tipo
de imaginaccedilatildeo capacita ou vem da capacidade de discernir uma entre
muitas aparecircncias a partir do silogismo praacutetico no caso da accedilatildeo
colaborando com o tipo de visatildeo proacuteprio agrave prudecircncia
Por conseguinte se a imaginaccedilatildeo perceptiva eacute um tipo de
movimento que soacute acontece nos seres que tecircm percepccedilatildeo sensiacutevel a
155 Idem ἡ μὲν οὖν αἰσθητικὴ φαντασία ὥσπερ εἴρηται καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις
ζῴοις ὑπάρχει ἡ δὲ βουλευτικὴ ἐν τοῖς λογιστικοῖς (πότερον γὰρ πράξει τόδε ἢ
τόδε λογισμοῦ ἤδη ἐστὶν ἔργον[])
173
respeito das coisas das quais se tem tal percepccedilatildeo sendo possiacutevel que
aconteccedila pela atividade da aiacutesthēsis eacute preciso que o movimento seja
semelhante a esta O ser que possui esse movimento poderaacute fazer e
sofrer muitas coisas em conformidade a ele confirmando que a
percepccedilatildeo sensiacutevel se relaciona com a emoccedilatildeo pois esta uacuteltima move
de certo modo Se natildeo haacute imaginaccedilatildeo sem percepccedilatildeo sensiacutevel tais
operaccedilotildees se encadeiam no esquema daquilo que de mais proacuteximo ao
racional pode tocar agrave emoccedilatildeo mas haacute ainda a imaginaccedilatildeo deliberativa
que se associa agraves emoccedilotildees moderadas agrave deliberaccedilatildeo praacutetica e agrave escolha
deliberada dando ao prudente um tipo de visatildeo das coisas
possivelmente corretas a fazer com isso favorecendo a boa medida Na
sequecircncia da cadeia de operaccedilotildees tratada encontramos certos tipos de
pensamento e igualmente de intelecto sendo preciso estudaacute-los A
imaginaccedilatildeo contudo viraacute a ser mencionada novamente no estudo acerca
da opiniatildeo momento oportuno pois o filoacutesofo potildee-nas em comparaccedilatildeo
tanto na EN quanto no DA
2 d) Pensamentos
As anaacutelises feitas a partir dos textos estudados nos permitiram
constatar que haacute tipos de pensamento associados agrave emoccedilatildeo desejos e
prazeres Um destes tipos de pensamento (diaacutenoia) quanto agraves coisas
relativas agrave moralidade parece estar presente especialmente nas virtudes
intelectuais agraves quais se chama desde EN I 13 dianoeacuteticas entendidas
como as melhores condiccedilotildees da capacidade racional designada por
Aristoacuteteles como diaacutenoia Em EN I 6 todavia a vida bem-sucedida eacute
associada agrave posse da razatildeo e ao exerciacutecio desse tipo de pensamento (EN I 7 1098a5) ligaccedilatildeo comprovada pelo caso da boa deliberaccedilatildeo sempre
relacionada ao raciociacutenio ou caacutelculo A boa deliberaccedilatildeo eacute a uma
investigaccedilatildeo sobre algo especiacutefico agraves coisas morais permite calcular
corretamente sendo um tipo de retidatildeo de pensamento Deste modo natildeo
haacute boa deliberaccedilatildeo sem caacutelculo consciente mesmo que ela ainda natildeo
seja uma asserccedilatildeo O homem que delibera bem calcula e investiga
alguma coisa levando o desejo reto a emoccedilatildeo adequada e a escolha
deliberada a buscarem um objeto determinado quando devido (EN VI 2
1139a21 et seq) A associaccedilatildeo desse tipo de pensamento com o bem se
emocionar foi evidenciada mais acima quando tratamos da necessidade
da virtude dianoeacutetica ou intelectual da prudecircncia para que haja virtude
moral e para a formaccedilatildeo da virtude completa
O De Anima tambeacutem associa esse tipo de terminologia ao paacutethos quando nos confirma por exemplo que determinados objetos como o
174
que eacute doce movem a percepccedilatildeo sensiacutevel ou o pensar (ou entender tegraven
noacuteesin III 2 426b31-427a1) mas o texto que mais aproxima o pensar e
as emoccedilotildees eacute DA III 7 Em tal Livro podemos ler o seguinte
A ciecircncia em atividade eacute idecircntica ao seu objeto
[] Sentir entatildeo eacute semelhante ao mero proferir e
pensar156 e quando eacute agradaacutevel ou doloroso como
o afirmado ou negado isso eacute perseguido ou
evitado e sentir prazer ou dor consiste em estar
em atividade com a meacutedia da capacidade
sensitiva em face do bem ou do mal como tais A
aversatildeo e o desejo satildeo o mesmo em atividade e a
capacidade de desejar e de evitar natildeo satildeo
diferentes nem entre si nem da capacidade de
sentir embora o ser seja diverso Para a alma
capaz de pensar as imagens subsistem como
sensaccedilotildees percebidas E quando se afirma algo
bom ou nega-se algo ruim evita-o ou persegue-o
Por isso a alma jamais pensa sem imagem (DA III
7 431a1-16)157
156 Robinson (2010 p 245) explica que traduzir noucircs em certos trechos do DA
como aquele que identifica pensar e perceber seria mais convenientemente
entendido se se traduzisse o termo por lsquoentendimentorsquo Isso porque o estudioso
concebe o noucircs nesses pontos como parte do processo de pensamento mas que
natildeo eacute todo o processo Assim aiacutesthēsis e noucircs seriam anaacutelogos por serem
ambos eventos tipos de impressotildees mas cada um a seu modo (Robinson 2010
p 244) Pensamento em nosso sentido seria diaacutenoiesthai que tambeacutem se
ligaria agrave aiacutesthēsis e ao julgamento 157 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis (2006) no original Τὸ δ αὐτό ἐστιν ἡ
κατ ἐνέργειαν ἐπιστήμη τῷ πρά-
γματι ἡ δὲ κατὰ δύναμιν χρόνῳ προτέρα ἐν τῷ ἑνί ὅλως δὲ οὐδὲ χρόνῳ ἔστι
γὰρ ἐξ ἐντελεχείᾳ ὄντος πάντα τὰ γιγνόμενα ndash φαίνεται δὲ τὸ μὲν αἰσθητὸν ἐκ
δυνάμει ὄντος τοῦ αἰσθητικοῦ ἐνεργείᾳ ποιοῦν οὐ γὰρ πάσχει οὐδ ἀλλοιοῦται
διὸ ἄλλο εἶδος τοῦτο κινήσεως ἡ γὰρ κίνησις τοῦ ἀτελοῦς ἐνέργεια ἡ δ ἁπλῶς
ἐνέργεια ἑτέρα ἡ τοῦ τετελεσμένου ndash τὸ μὲν οὖν αἰσθάνεσθαι ὅμοιον τῷ
φάναι μόνον καὶ νοεῖνὅταν δὲ ἡδὺ ἢ λυπηρόν οἷον καταφᾶσα ἢ ἀποφᾶσα
διώκει ἢ φεύγει καὶ ἔστι τὸ ἥδεσθαι καὶ λυπεῖσθαι τὸ ἐνεργεῖν τῇ αἰσθητικῇ
μεσότητι πρὸς τὸ ἀγαθὸν ἢ κακόν ᾗ τοιαῦτα καὶ ἡ φυγὴ δὲ καὶ ἡ ὄρεξις ταὐτό
ἡ κατ ἐνέργειαν καὶ οὐχ ἕτερον τὸ ὀρεκτικὸν καὶ τὸ φευκτικόν οὔτ ἀλλήλων
οὔτε τοῦ αἰσθητικοῦ ἀλλὰ τὸ εἶναι ἄλλο τῇ δὲ διανοητικῇ ψυχῇ τὰ
φαντάσματα οἷον αἰσθήματα ὑπάρχει ὅταν δὲ ἀγαθὸν ἢ κακὸν φήσῃ ἢ
ἀποφήσῃ φεύγει ἢ διώκει διὸ οὐδέποτε νοεῖ ἄνευ φαντάσματος ἡ ψυχή
175
Por conseguinte o que eacute capaz de pensar pensa formas em
imagens Nestas se define para quem pensa o que deve ser perseguido e
evitado e por isso mesmo que se ponha a percepccedilatildeo sensiacutevel agrave parte o
que pensa se move quando diante de imagens Em outro momento
quando as imagens (phantasiacuteai) e os pensamentos estatildeo na alma o
homem raciocina como se visse tais imagens Delibera sobre as coisas
que poderatildeo acontecer (ou ser) a partir das que estatildeo presentes nesse
tipo de imagens do pensamento ldquovendordquo nestas o agradaacutevel ou o penoso
evita-o ou persegue-o relacionando-se com o desejo Mesmo o
verdadeiro e o falso que satildeo desprovidos de accedilatildeo estatildeo no mesmo
gecircnero que o bom e o mau embora difiram pois um eacute em absoluto e
outro eacute relativo a algueacutem
Haacute ainda outro tipo de pensamento com significado variado
relacionado agraves emoccedilotildees a serem despertadas e se apresenta nas
sugestotildees do filoacutesofo para que o orador consiga emocionar seu puacuteblico
Se o medo eacute acompanhado de algum
pressentimento de que vamos sofrer algum mal
que nos aniquila eacute oacutebvio que aqueles que acham
que nunca lhes vai acontecer algo de mal natildeo tecircm
medo nem receiam as coisas as pessoas e os
momentos que na sua maneira de pensar natildeo
podem provocar medo Assim pois
necessariamente sentem medo os que pensam que
podem vir a sofrer algum mal e os que pensam
que podem ser afetados por pessoas coisas e
momentos (Rhet II 5 1382b29-34)158
A Eacutetica Nicomaqueia tambeacutem apresenta o verbo oicircomai nesse
sentido de um pensar incerto ou de um tipo de crenccedila associado agraves
posturas intemperantes e incontinentes (EN VII 11 1152a6) As pessoas
que estatildeo ou pensam estar em grande prosperidade acreditam que natildeo haacute
mal que possa lhes acontecer satildeo insolentes desdenhosas e atrevidas
por disporem de riquezas muitas amizades forccedila e poder As pessoas
que acreditam jaacute ter sofrido todo o tipo de desgraccedilas tambeacutem pensam
assim sendo frias quanto ao futuro ldquoPara que sintamos receio eacute preciso
158 Traduccedilatildeo de Alves Alberto Pena (2012) no original εἰ δή ἐστιν ὁ φόβος
μετὰ προσδοκίας τινὸς τοῦ πείσεσθαί τι φθαρτικὸν πάθος φανερὸν ὅτι οὐδεὶς
φοβεῖται τῶν οἰομένων μηδὲν ἂν παθεῖν οὐδὲ ταῦτα ἃ μὴ οἴονται ἂν παθεῖν
οὐδὲ τούτους ὑφ ὧν μὴ οἴονται οὐδὲ τότε ὅτε μὴ οἴονται ἀνάγκη τοίνυν
φοβεῖσθαι τοὺς οἰομένους τι παθεῖν ἄν καὶ τοὺς ὑπὸ τούτων καὶ ταῦτα καὶ τότε
176
que haja alguma esperanccedila de salvaccedilatildeo pela qual valha a pena lutar
Sinal disso eacute que o medo leva as pessoas a deliberar ao passo que
ningueacutem delibera sobre casos desesperadosrdquo (Rhet II 5 1383a5-8)159
Essa apresentaccedilatildeo natildeo acontece nas trageacutedias embora os poemas faccedilam
com que o espectador imagine tal situaccedilatildeo a acontecer com algueacutem que
conhece Esse tipo de imaginaccedilatildeo basta para que o organismo de algueacutem
na plateia se prepare para sentir o medo proposta confirmada pela Eacutetica
Nicomaqueia IV 6 estudo acerca da disposiccedilatildeo corajosa oposta ao
medo emoccedilatildeo que encara ameaccedilas externas como males Por isso
alguns definem o medo como expectaccedilatildeo do mal ocasionado
geralmente pela relaccedilatildeo entre pessoas na poacutelis
O vocaacutebulo em questatildeo eacute empregado para designar algo
semelhante ao pensar ou ao imaginar e opinar Conforme Chantraine
(1977 p 785) aparece no sentido de ldquoopinonrdquo (opiniatildeo) fazendo
oposiccedilatildeo a saphṑs eideacutenai ver claramente ter certeza De acordo com
Aldo Dinucci e Alfredo Julien (2014 p 36) em sua traduccedilatildeo do
Encheiriacutedion de Epicteto o verbo na voz passiva oicircomai quer dizer
ldquolsquopensarrsquo no sentido de lsquopresumirrsquo referindo-se a coisas incertas ndash daiacute
lsquopressentir crer estimarrsquordquo Esses empregos assim como os da Retoacuterica parecem conservar a ideia de que haacute um quecirc de racionalidade se natildeo de
pensamento exatamente no sentido que hoje usamos a palavra que deve
estar presente nas emoccedilotildees despertadas na plateia de um juacuteri por
exemplo abrindo espaccedilo para a atuaccedilatildeo da razatildeo praacutetica na forma de
deliberaccedilatildeo Por isso a Rhet nos apresenta tambeacutem um termo
conhecidamente eacutetico o verbo bouleuacuteō (deliberar) sugerindo que
quando um orador mexe com as emoccedilotildees do puacuteblico este eacute levado agrave
deliberaccedilatildeo sobre os assuntos em questatildeo reforccedilando nossa teoria
Os estados de espiacuterito em que se sente piedade por exemplo
parecem estar diretamente ligados agrave lembranccedila que pode despertar a
imaginaccedilatildeo mas que igualmente parecem estar relacionados no caso do
medo com certo pensamento mesmo que este seja um tipo de
imaginaccedilatildeo que sugira deliberaccedilatildeo Assim haacute certos tipos de
pensamento especialmente envolvidos com a emoccedilatildeo que seraacute
despertada lembrando que estas associam o homem de modo especial
a uma vida que ultrapassa a total contemplaccedilatildeo intelectual embora natildeo
inviabilizando esse tipo de atividade racional No entanto as emoccedilotildees
igualmente satildeo acompanhadas por outras capacidades (ou
159 Idem ἀλλὰ δεῖ τινα ἐλπίδα ὑπεῖναι σωτηρίας περὶ οὗ ἀγωνιῶσιν σημεῖον
δέ ὁ γὰρ φόβος βουλευτικοὺς ποιεῖ καίτοι οὐδεὶς βουλεύεται περὶ τῶν
ἀνελπίστων
177
(sub)capacidades) racionais quando estatildeo acompanhadas dos processos
da prudecircncia Uma destas capacidades eacute o intelecto em sua funccedilatildeo
praacutetica como poderemos entender com o breve estudo a seguir
2 e) Intelecto praacutetico160
Existe uma capacidade na alma humana o intelecto (noucircs) que
se desdobra em intelecto praacutetico e intelecto teoacuterico Em sua funccedilatildeo ou
uso praacutetico age apreendendo o que por uacuteltimo eacute apresentado na
deliberaccedilatildeo a premissa menor Depois dessa deliberaccedilatildeo eacute possiacutevel
escolher deliberadamente tendo em vista um termo meacutedio e quando isso
acontece se atinge o ponto inicial para a accedilatildeo e deixa-se de investigar
Assim o intelecto tem papel tanto nas demonstraccedilotildees em geral quanto
nas demonstraccedilotildees praacuteticas embora seja uma soacute capacidade Por isso
Reeve (2014 p 209) escreve que ldquoo entendimento teoacuterico envolvido em
demonstraccedilotildees teoacutericas eacute o mesmo estado que o entendimento praacutetico
envolvido nas demonstraccedilotildees praacuteticasrdquo o que confere mais uma vez
credibilidade a nossa proposta de interpretaccedilatildeo da alma O intelecto
praacutetico (noucircs praktikoacutes) quando associado ao desejo pede accedilatildeo (DA III 5 433a1-17) Deste modo tem relaccedilatildeo com a prudecircncia que tambeacutem se
relaciona com o desejo buscando para este seu melhor estado
Em razatildeo das propostas acima resumidas o Livro VI da EN (VI 2
1139a18 et seq) nos fala do noucircs como um dos candidatos a
determinante da accedilatildeo e da verdade praacuteticos relacionados agrave prāxis e ao
desejo correto pelo que eacute bom A passagem aponta a escolha deliberada
como origem da accedilatildeo moralmente boa e afirma que natildeo haacute escolha
deliberada sem intelecto ou pensamento (noucirc kaigrave diaacutenoias EN VI 2
1139a33-34) ligando-os aos bons desejos e accedilotildees Por isso
anteriormente entendemos e provamos que igualmente se ligam agraves
emoccedilotildees adequadas No Livro IX por sua vez o intelecto eacute tido como
natildeo dominante naqueles que satildeo intemperantes mas dominante nos
160 As observaccedilotildees sobre o noucircs que aqui apresentamos satildeo baseadas
exclusivamente nos tratamentos que os Livros VI e IX da EN e III do DA
dispensam ao assunto mas pensando em uma forma que possam colaborar com
a tese defendida Usaremos ldquointelectordquo para traduzir noucircs e ldquointelecto praacuteticordquo
para traduzir noucircs praktikoacutes poreacutem quando formos usar traduccedilotildees feitas por
outros autores ou citar cometaacuterios feitos por outros autores a respeito desses
dois termosconceitos optaremos por manter a escolha de traduccedilatildeo de cada
autor Portanto podem aparecer palavras como ldquoentendimentordquo e ldquorazatildeo
intuitivardquo referindo-se ao noucircs
178
temperantes propondo-o como o proacuteprio homem embora novamente
relacionando-o agrave emoccedilatildeo moderada (EN IX 8 1168b35) Nesse passo
afirma-se que pode haver o impeacuterio da emoccedilatildeo quando o homem natildeo eacute
bem conduzido ou seja quando razatildeo praacutetica e emoccedilatildeo estatildeo
dissociadas Neste ponto eacute descrita a capacidade racional anteriormente
mencionada que se relaciona ao intelecto praacutetico e provavelmente agrave
accedilatildeo moral Para que haja tal tipo de intelecto satildeo imprescindiacuteveis
percepccedilotildees sensiacuteveis e imaginaccedilatildeo buscar e evitar que tambeacutem teratildeo a
ver com desejos e emoccedilotildees mesmo que estejam relacionados agrave forma
mais fina de se emocionar jaacute passada pela educaccedilatildeo moral adequada e
da qual falaremos a seguir Nisso consiste a possibilidade mesmo de
ouvir e obedecer agrave razatildeo como um todo de abrir-se agrave prudecircncia e agrave
mediania nas emoccedilotildees
O DA (III 10 433a15-30) parece concordar com essas propostas
ao explicar que o desejo eacute a origem (archḗ) do intelecto praacutetico
(praktikoucirc noucirc) e que a uacuteltima coisa nesse caso eacute o ponto inicial da
accedilatildeo Para que isso aconteccedila eacute preciso conceber a felicidade ou uma
ideia de felicidade como toacutepico maacuteximo da deliberaccedilatildeo praacutetica Aqui se
entende por felicidade a atividade racional em conformidade com a
virtude mais completa Por isso um deliberador procura saber diante
das circunstacircncias nas quais se encontra o que eacute ou o que constitui a
felicidade A resposta viraacute quando tiver detectado um ponto meacutedio que
apresente a melhor accedilatildeo dentro daquelas circunstacircncias que o agente
tenha ciecircncia de tal accedilatildeo com base na percepccedilatildeo e que possa efetuar tal
accedilatildeo Esse silogismo eacute o foco do deliberar para alcanccedilar a tal felicidade
Por isso deve mostrar o termo meacutedio que a indique sendo o silogismo o
plano de accedilatildeo do deliberador que resultaraacute em accedilatildeo complexa
constituindo agir bem e felicidade Mas para que haja a tal accedilatildeo proposta
pelo silogismo eacute preciso acreditar praticamente ou seja afirmar com a
parte calculativa e exercitar a conclusatildeo proposta pelo silogismo (EN VI
8 1141b13-14 VI 2 1139a21-31)
Segundo Reeve (2014 p 203) satildeo a natureza e a nossa funccedilatildeo
que determinam a felicidade Esta eacute a premissa maior da demonstraccedilatildeo
praacutetica e eacute fixa e imutaacutevel por isso natildeo se delibera a seu respeito Esse
ponto fixo eacute essencial para que haja movimento (DA III 10 433b21-27)
e no silogismo praacutetico eacute a premissa maior universal que proporciona o
movimento por ser fixa ou uma verdade imutaacutevel (DA III 11 434a16-
21) Ao contraacuterio as opiniotildees ou suposiccedilotildees indicam como lidar com as
coisas que natildeo satildeo fixas tratando do que pode variar e ser verdadeiro ou
falso por isso devem ser adequadas agrave variabilidade das circunstacircncias
(EN VI 3 1139b17-18) O desejo correto nesse caso eacute o ponto fixo que
179
leva agrave accedilatildeo demandada pela premissa menor No caso de um desejo natildeo
educado como o apetite no incontinente age-se contra a natureza ou
seja contra a premissa maior que eacute apreendida pelo intelecto praacutetico
Contudo pode haver dois tipos de silogismo praacutetico um proposto pela
prudecircncia outro pela inteligecircncia (syacutenesis) Esta uacuteltima eacute discriminadora
e natildeo prescritiva como a primeira (EN VI 13 1143a8-10) e por isso o
silogismo da inteligecircncia natildeo termina em accedilatildeo diferentemente daquele
relacionado agrave prudecircncia
Ao tratar das virtudes intelectuais no Livro VI da EN Aristoacuteteles
apresenta-nos a inteligecircncia e a perspicaacutecia (hē syacutenesis kaigrave hē eusynesiacutea)
como diferentes de ciecircncia e opiniatildeo A inteligecircncia natildeo trata das coisas
eternas nem do que deve ser mas das coisas sobre as quais pode haver
duacutevida e nas quais cabe deliberar sendo relativa agraves coisas de ordem
praacutetica161 Trata portanto dos mesmos objetos que a prudecircncia embora
natildeo sejam idecircnticas A prudecircncia eacute diretiva - tem por fim determinar o
que devemos ou natildeo devemos fazer - e a inteligecircncia eacute apenas
judicativa Deste modo inteligecircncia e julgamento tecircm lugar em nossa
pesquisa por serem associados agrave capacidade da alma que rege o
conhecimento do contingente A inteligecircncia natildeo consiste nem em
possuir nem em adquirir a prudecircncia mas se aplica agrave faculdade da
opiniatildeo
[] quando se trata de emitir um julgamento sobre
o que uma outra pessoa enuncia nas mateacuterias que
vecircm da prudecircncia e por julgamento entendo um
julgamento fundado (reto belo) pois bem eacute o
mesmo que fundado (reto belo) E o emprego do
termo inteligecircncia para designar a qualidade das
pessoas perspicazes veio da inteligecircncia no
sentido de aprender pois tomamos
frequentemente aprender no sentido de
compreender (EN VI 11 1143a13-18)162
Entendemos que nossa proposta de interpretaccedilatildeo da capacidade
161 Reeve entende a syacutenesis como um aspecto da phroacutenēsis e natildeo exatamente
como uma virtude autocircnoma (REEVE 2013 p 3) 162 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original οὕτως ἐν τῷ χρῆσθαι τῇ δόξῃ ἐπὶ τὸ κρίνειν περὶ τούτων
περὶ ὧν ἡ φρόνησίς ἐστιν ἄλλου λέγοντος καὶ κρίνειν καλῶς τὸ γὰρ εὖ τῷ
καλῶς τὸ αὐτό καὶ ἐντεῦθεν ἐλήλυθε τοὔνομα ἡ σύνεσις καθ ἣν εὐσύνετοι ἐκ
τῆς ἐν τῷ μανθάνειν λέγομεν γὰρ τὸ μανθάνειν συνιέναι πολλάκις
180
de julgamento na EN eacute ratificada pelo esboccedilo de definiccedilatildeo da emoccedilatildeo
proposto pela Retoacuterica relacionando-a com sua capacidade de alterar os
juiacutezos ou discriminaccedilotildees (tagrave kriacuteseis) e a EN chama julgamento
(gnomḗ)163 a qualidade segundo a qual se considera que as pessoas tecircm
correta discriminaccedilatildeo daquilo que eacute equitaacutevel (syngnomonikoacuten) Prova
disto eacute o fato de normalmente se dizer que um homem equitaacutevel eacute
disposto favoravelmente ao outro Tricot (2012 nota 3 p 325) explica
que o equitaacutevel eacute uma qualidade que leva o homem a compreender as
razotildees de agir de uma outra pessoa sendo uma espeacutecie de ldquolargueza de
espiacuteritordquo levando mesmo agrave indulgecircncia e ao perdatildeo Eacute o pensar com [o
outro]164 fundamental como explica Nussbaum para que certas
emoccedilotildees como a piedade sejam sentidas pois para a autora esta emoccedilatildeo
ou sua falta dependem dos julgamentos sobre o florescimento que
seratildeo tatildeo confiaacuteveis quanto a moral geral do observador
Para sentir piedade a pessoa deve considerar o sofrimento do
outro como parte importante de seu proacuteprio esquema de objetivos e fins
deve pensar que a falta daquela pessoa afeta seu florescimento e deve
ver-se como tatildeo vulneraacutevel quanto o outro165 Nessa possibilidade de
colocar-se no lugar do outro parece haver um tipo de julgamento
envolvido ou um tipo de imaginaccedilatildeo chamada por Nussbaum (2008 p
319) de ldquojulgamento da possibilidade similarrdquo Para que isso aconteccedila
natildeo eacute estritamente necessaacuterio que a pessoa focalize a relaccedilatildeo da outra
consigo mesma mas imaginar-se em uma posiccedilatildeo de possibilidade
similar ajuda na medida da imaginaccedilatildeo eudaimoniacutestica da proacutepria
pessoa porque seres humanos tecircm dificuldade de relacionar os outros
consigo mesmos a natildeo ser por pensamentos com os quais jaacute estejam
preocupados Por conseguinte eacute possiacutevel entender melhor o que
Aristoacuteteles poderia ter pretendido chamar de julgamento ou
discriminaccedilatildeo e porque resolveu associaacute-lo com um traccedilo eacutetico cedido
agraves emoccedilotildees que descreveu e pensou como ligadas agraves relaccedilotildees humanas
teoria comprovada pelo o passo subsequente
[] atribuiacutemos julgamento inteligecircncia
prudecircncia e razatildeo intuitiva indiferentemente aos
mesmos indiviacuteduos quando dizemos que eles
163 Robinson (2010 p 245) observa que Aristoacuteteles usa os verbos kriacutenein e
gnoriacutezein para designar a discriminaccedilatildeo 164 LIDDELL amp SCOTT 1996 sv 165 Sobre a discussatildeo desse assunto feita por Nussbaum ver tambeacutem seu livro
Sem fins lucrativos
181
alcanccedilaram a idade do julgamento e da razatildeo e
que eles satildeo prudentes e inteligentes Pois todas
essas faculdades satildeo sobre as coisas uacuteltimas e
particulares e eacute sendo capaz de julgar as coisas
retornando ao domiacutenio do homem prudente que
somos inteligentes benevolentes e
favoravelmente dispostos [em relaccedilatildeo] aos outros
as accedilotildees equitaacuteveis sendo comuns a todas as
pessoas de bem em suas relaccedilotildees com os outros
Ora todas as accedilotildees que devemos completar
retornam agraves coisas particulares e uacuteltimas pois o
homem prudente deve conhecer os fatos
particulares e por seu lado a inteligecircncia e o
julgamento giram em torno das accedilotildees a completar
que satildeo as coisas uacuteltimas A razatildeo intuitiva se
aplica tambeacutem agraves coisas particulares em ambos os
sentidos jaacute que os termos primeiros bem como os
uacuteltimos satildeo do domiacutenio da razatildeo intuitiva e natildeo
da discursividade nas demonstraccedilotildees a razatildeo
intuitiva apreende os termos imutaacuteveis e
primeiros e nos raciociacutenios de ordem praacutetica ela
apreende o fato uacuteltimo e contingente quer dizer a
premissa menor jaacute que esses fatos satildeo do fim a
alcanccedilar os casos particulares servindo de ponto
de partida para alcanccedilar os universais Devemos
portanto ter uma percepccedilatildeo dos casos
particulares e essa percepccedilatildeo eacute a razatildeo intuitiva
(EN VI 12 1143a25-35 1143b1-5)166
166 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Εἰσὶ δὲ πᾶσαι αἱ ἕξεις εὐλόγως εἰς ταὐτὸ τείνουσαι λέγομεν
γὰρ γνώμην καὶ σύνεσιν καὶ φρόνησιν καὶ νοῦν ἐπὶ τοὺς αὐτοὺς ἐπιφέροντες
γνώμην ἔχειν καὶ νοῦν ἤδη καὶ φρονίμους καὶ συνετούς πᾶσαι γὰρ αἱ δυνάμεις
αὗται τῶν ἐσχάτων εἰσὶ καὶ τῶν καθ ἕκαστον καὶ ἐν μὲν τῷ κριτικὸς εἶναι περὶ
ὧν ὁ φρόνιμος συνετὸς καὶ εὐγνώμων ἢ συγγνώμων τὰ γὰρ ἐπιεικῆ κοινὰ τῶν
ἀγαθῶν ἁπάντων ἐστὶν ἐν τῷ πρὸς ἄλλον ἔστι δὲ τῶν καθ ἕκαστα καὶ τῶν
ἐσχάτων ἅπαντα τὰ πρακτά καὶ γὰρ τὸν φρόνιμον δεῖ γινώσκειν αὐτά καὶ ἡ
σύνεσις καὶ ἡ γνώμη περὶ τὰ πρακτά ταῦτα δ ἔσχατα καὶ ὁ νοῦς τῶν ἐσχάτων
ἐπ ἀμφότερα καὶ γὰρ τῶν πρώτων ὅρων καὶ τῶν ἐσχάτων νοῦς ἐστὶ καὶ οὐ
λόγος καὶ ὁ μὲν κατὰ τὰς ἀποδείξεις τῶν ἀκινήτων ὅρων καὶ πρώτων ὁ δ ἐν
ταῖς πρακτικαῖς τοῦ ἐσχάτου καὶ ἐνδεχομένου καὶ τῆς ἑτέρας προτάσεωςἀρχαὶ
γὰρ τοῦ οὗ ἕνεκα αὗται ἐκ τῶν καθ ἕκαστα γὰρ τὰ καθόλου τούτων οὖν ἔχειν
δεῖ αἴσθησιν αὕτη δ ἐστὶ νοῦς
182
A prudecircncia eacute um tipo de boa administraccedilatildeo como vemos no
caso da temperanccedila cujo nome sophrosyacutene indica a conservaccedilatildeo da
prudecircncia sendo que esta conserva o julgamento ou discriminaccedilatildeo jaacute
que o prazer e a dor satildeo capazes de destruir juiacutezos acerca da accedilatildeo porque
os princiacutepios de nossas accedilotildees satildeo os fins aos quais tendem nossos atos
Eacute a faculdade discriminativa do julgamento contudo que parece estar
desde a origem mais proacutexima agraves emoccedilotildees jaacute que estas estatildeo
irremediavelmente relacionadas agrave sensibilidade que por sua vez nos
fornece as imagenspercepccedilotildees dentre as quais devemos efetuar a
discriminaccedilatildeo Com nossa pesquisa entendemos que a faculdade
judicativa ou discriminativa da razatildeo portanto tem grande importacircncia
no bem emocionar-se podendo mesmo favorecer que a prudecircncia se
achegue ao natildeo racional desiderativo e agraves emoccedilotildees
Diante disso o papel do julgamento e da inteligecircncia na
demonstraccedilatildeo praacutetica eacute restrito agraves coisas uacuteltimas e particulares porque
natildeo satildeo direcionadas ao que eacute imoacutevel ou imutaacutevel (EN VI 12 1143a4-5)
Isso acontece porque tecircm seu foco na accedilatildeo particular dentro de uma
circunstacircncia mas a premissa maior nessas demonstraccedilotildees tem que ser
imutaacutevel e imoacutevel como o soquete na articulaccedilatildeo bola-e-soquete
descrita no DA Contudo propusemos anteriormente que a prudecircncia de
certo modo tambeacutem se relaciona com o universal (a felicidade ou o
desejo por felicidade) que nesse caso eacute a premissa maior do silogismo
praacutetico diferenciando os silogismos por prudecircncia e por inteligecircncia
Vimos que os diferentes papeacuteis do intelecto nas demonstraccedilotildees
aparecerem descritos em EN VI 12 1143a35-b11 O intelecto tem por
ocupaccedilatildeo tanto os termos primaacuterios quanto as coisas que satildeo uacuteltimas
Nas demonstraccedilotildees cientiacuteficas o intelecto apreende um dos termos
primeiros e que natildeo muda Nas demonstraccedilotildees praacuteticas relaciona-se
com as coisas uacuteltimas e com as que podem ser de outro jeito bem como
com a premissa menor O intelecto praacutetico lida com tais coisas porque
elas satildeo o ponto de partida do que se tem em vista porque os universais
vecircm dos particulares Dos universais precisamos ter percepccedilatildeo (sendo
esta neste caso intelecto noucircs citado no fim do passo acima) Por isso o
intelecto eacute tanto princiacutepio quanto fim (archḗ e teacutelos) pois as
demonstraccedilotildees vecircm do intelecto e satildeo sobre o intelecto
O segundo papel do intelecto em uma demonstraccedilatildeo praacutetica eacute
apreender a premissa menor Como vimos acima esta eacute a uacuteltima coisa
alcanccedilada em uma deliberaccedilatildeo Pode ser de outra maneira porque
prescreve um tipo de accedilatildeo particular que pode variar conforme a
circunstacircncia e ao que cabe ao agente fazer ou natildeo O termo crucial
dessa premissa eacute o termo meacutedio que designa um tipo de accedilatildeo particular
183
que eacute apreendido pela percepccedilatildeo (EN VII 5 1147a25-26) e a percepccedilatildeo
envolve apreensatildeo ldquoconcomitante de universaisrdquo (REEVE 2014 p
210) A apreensatildeo do termo meacutedio por sua vez acontece devido agrave
apreensatildeo pelo intelecto de um misto das premissas maior e menor
quando se entende as duas premissas se entende a conclusatildeo Assim
Como a percepccedilatildeo do termo meacutedio (ou a accedilatildeo que
ele designa) deve ser mediada dessa maneira para
ser do tipo deliberativo ou determinador da accedilatildeo
relevante ela eacute um exerciacutecio tanto da percepccedilatildeo
como do entendimento Como a escolha
deliberativa portanto que eacute ldquoentendimento
envolvendo desejo ou desejo envolvendo
pensamentordquo (EN VI 2 1139b4-5) a percepccedilatildeo
deliberativa eacute entendimento envolvendo
pensamento (REEVE 2014 p 211)
Em retomada agrave questatildeo da relaccedilatildeo do silogismo empreendido
pelo prudente com particular e universal proposta no Capiacutetulo II e aqui
detalhada na medida em que contemplasse nossas discussotildees foi
possiacutevel compreender que por um lado a felicidade eacute o ponto inicial
por ser fim de toda accedilatildeo sendo universal Por outro lado o ponto inicial
satildeo as accedilotildees particulares que se direcionam ao alcance da felicidade
Portanto mesmo o intelecto em sua funccedilatildeo praacutetica necessita da
conjugaccedilatildeo entre corpo e alma para que atue de modo excelente pois os
particulares mesmo na deliberaccedilatildeo praacutetica se originam da percepccedilatildeo
sensiacutevel mais elementar que afeta o corpo e potildee a capacidade racional a
trabalhar em prol do que haacute de melhor para o homem Tal percepeccedilatildeo
tambeacutem pode estar pautada em um tipo de opiniatildeo relacionada agraves
premissas da deliberaccedilatildeo que natildeo se veem de todo desvencilhadas da
opiniatildeo geral ocasionada pelo contato com dados da sensibilidade como
veremos a seguir
2 f) Opiniatildeo
As premissas que devem ser captadas pelo intelecto satildeo
constituiacutedas por opiniotildees acerca do que eacute buscado e do que se deve fazer
ou deixar de fazer para alcanccedilar um objetivo Assim a opiniatildeo em EN
VI 10 1142b11-15 eacute apontada como um tipo de afirmaccedilatildeo baseada em
deliberaccedilatildeo Difere da prudecircncia que eacute virtude e fixa por ser um estado
e por poder ser esquecida Mas com auxiacutelio da virtude moral adquirida
por boa habituaccedilatildeo algueacutem pode ser ensinado a ter a opiniatildeo correta
184
sobre algo que levaraacute a uma deliberaccedilatildeo e possivelmente a uma accedilatildeo
(EN VII 9 1151a18-19) A correccedilatildeo daquilo que eacute afirmado pela
capacidade opinativa eacute importante assim como a retidatildeo do desejo mas
eacute preciso tambeacutem haver correccedilatildeo da deliberaccedilatildeo que apoia a opiniatildeo
Em EN VI ao comparar escolha deliberada e opiniatildeo Aristoacuteteles
nos daacute importantes traccedilos de ambas em especial da segunda A opiniatildeo
parece ter por alvo qualquer coisa inclusive o que eacute impossiacutevel e o que
natildeo estaacute em nosso poder Pode ser falsa ou verdadeira e natildeo eacute boa ou
maacute como eacute classificada a escolha deliberada Um homem tem tal ou tal
qualidade atribuiacuteda a si pelas escolhas que faz e natildeo por defender
determinada opiniatildeo embora escolha obter ou evitar mas natildeo opine
sobre esse tipo de coisa Algueacutem escolhe deliberadamente as coisas que
sabe serem boas mas a opiniatildeo eacute emitida igualmente acerca daquilo que
natildeo se sabe se eacute bom ou mau e natildeo parecem ser as mesmas pessoas
aquelas que deliberam bem e as que opinam bem porque mesmo quem
opina melhor pode escolher coisas que levam ao viacutecio A escolha
deliberada eacute diferente da opiniatildeo portanto por ser proposta como
capacidade do prudente que estaacute diretamente ligada agrave accedilatildeo avaliaacutevel
moralmente A prudecircncia eacute virtude da parte da alma capaz de opinar
porque a opiniatildeo tem relaccedilatildeo com o que pode ser de outro modo
todavia natildeo eacute simplesmente uma opiniatildeo acompanhada de regra Por
isso nos procedimentos de decisatildeo cabiacuteveis ao prudente a opiniatildeo tem
lugar antes da escolha deliberada (EE II 10 1226b9) Zingano (2008 p
171) esclarece isso do seguinte modo ldquoNo acircmbito do aristotelismo a
accedilatildeo necessariamente estaacute envolvida com as opiniotildees que o agente tem
se suspendecircssemos todas as nossas opiniotildees natildeo poderiacuteamos agirrdquo167
A opiniatildeo eacute mais bem explicada pelo De anima quando
comparada agrave imaginaccedilatildeo ldquoPois essa afecccedilatildeo depende de noacutes e somente
de noacutes e do nosso querer [] e ter opiniatildeo natildeo depende somente de noacutes
167Provavelmente por este motivo Aristoacuteteles quando trata da causa da
incontinecircncia tambeacutem emite sua opiniatildeo A premissa universal do silogismo
praacutetico empenhado pelo acraacutetico eacute uma opiniatildeo a outra premissa se relaciona
com os fatos particulares no campo dos quais a percepccedilatildeo manda Haacute pessoas
poreacutem que se mantecircm em sua opiniatildeo e que natildeo satildeo facilmente convencidas a
alterar a estas chamamos obstinadas (teimosas) Na contramatildeo haacute pessoas que
natildeo persistem em suas opiniotildees devido a uma causa estranha agrave incontinecircncia o
que implica que quem age por prazer nem sempre eacute intemperante incontinente
ou perverso Por conseguinte a opiniatildeo pode estar ligada a toda a cadeia de
relaccedilatildeo racional anteriormente mencionada e que se potildee em contato com o
desiderativo sendo forccediloso que admitamos seus contatos com a emoccedilatildeo
mesmo porque o termo aparece associado agrave emoccedilatildeo
185
pois haacute necessidade de que ela seja falsa ou verdadeirardquo (DA III 3
427b17-21)168 A opiniatildeo de que algo eacute terriacutevel pavoroso ou
encorajador leva imediatamente a certas emoccedilotildees diferentemente da
imaginaccedilatildeo (DA III 3 427b16-23) Isso implicaria que a opiniatildeo tem
papel mais efetivo que a imaginaccedilatildeo no provocar emoccedilotildees
Ao que tudo indica a resposta eacute positiva pois a opiniatildeo eacute
acompanhada de crenccedila a crenccedila eacute acompanhada do estar persuadido e
a persuasatildeo eacute acompanhada da razatildeo (DA III 3 428a18-24) Por
conseguinte e sendo que haacute accedilatildeo da opiniatildeo na emoccedilatildeo haacute certo
elemento racional no se emocionar ou haacute ao menos a comprovaccedilatildeo de
nossa proposta sobre a possibilidade de participaccedilatildeo do natildeo racional no
racional e vice-versa jaacute que ainda no DA (III 3 427b10) Aristoacuteteles
chega a definir a opiniatildeo como um tipo de pensar (noeicircn) que pode ser
correto ou incorreto de acordo com seu contato com a realidade
Propostas que satildeo reforccediladas tambeacutem como no caso da percepccedilatildeo
sensiacutevel por EN X 7 1177b26-30 trecho no qual o filoacutesofo destaca a
impossibilidade ou inviabilidade do homem viver totalmente para a
razatildeo porque esse tipo de existecircncia o livraria por completo de sua
humanidade Assim soacute existe opiniatildeo daquilo que haacute percepccedilatildeo
sensiacutevel mas haacute igualmente um tipo de opiniatildeo relacionada agrave percepccedilatildeo
deliberativa quando aparece em um silogismo praacutetico
Vimos que as deliberaccedilotildees praacuteticas satildeo expressas sob a forma de
silogismos praacuteticos que satildeo concluiacutedos com accedilotildees (EN VII 5 1147a25-
31) Nesse tipo de silogismo uma opiniatildeo eacute universal outra eacute particular
da parte da percepccedilatildeo Quando dessas duas premissas se gera uma
proposiccedilatildeo eacute preciso que a alma afirme a conclusatildeo obtida com o
silogismo Apoacutes age-se desde que natildeo haja impedimentos Deste modo
seja a opiniatildeo corriqueira ou aquela associada ao silogismo praacutetico ela
se configura sempre como um traccedilo de razatildeo que interfere na emoccedilatildeo
desde seu surgimento frente ao mundo ateacute seu aprimoramento pelos
processos da prudecircncia e da razatildeo praacutetica
Diante do que foi exposto podemos agora acatar a seguinte
proposta de Zingano a emoccedilatildeo natildeo eacute um bloco impermeaacutevel A maioria
das emoccedilotildees eacute um todo poroso permeaacutevel por certas formas da
racionalidade Seus poros podem dar lugar agraves sugestotildees da razatildeo que
estatildeo presentes realmente desde o iniacutecio com grande parte das paacutethē
Assim essa permeabilidade natildeo eacute exclusividade das emoccedilotildees traacutegicas
168 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original τοῦτο μὲν γὰρ τὸ
πάθος ἐφ ἡμῖν ἐστιν ὅταν βουλώμεθα [] δοξάζειν δ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἀνάγκη γὰρ
ἢ ψεύδεσθαι ἢ ἀληθεύειν
186
ou daquelas despertadas pelo discurso persuasivo embora
provavelmente seja nas descriccedilotildees destas que a relaccedilatildeo do emocional
com a razatildeo se faccedila mais visiacutevel Por isso na anaacutelise das virtudes
particulares e das emoccedilotildees a estas relacionadas sempre nos deparamos
com termos como ldquopensardquo ldquoimaginardquo ldquocrecircrdquo ldquotem opiniatildeordquo As
aparecircncias que tocam o agente e levam agraves crenccedilas que podem dar em
uma ou outra emoccedilatildeo precisam dos phainoacutemena (aparecircncias) e estes soacute
encontram o homem por meio das percepccedilotildees sensiacuteveis que estatildeo
relacionadas agrave opiniatildeo e agrave capacidade opinativa da razatildeo porque a
opiniatildeo eacute atrelada ao que pode ser diferente Portanto entendemos que
estas capacidades racionais ao menos em certa medida recobrem todas
as emoccedilotildees especialmente as que podem ser moderadas ou mudadas de
algum modo
Eacute certo contudo que a educaccedilatildeo moral proposta pelo filoacutesofo
cede mais importacircncia ao haacutebito que agrave forccedila da razatildeo mas natildeo se pode
esquecer que para ser realmente virtuoso para ser capaz de agir por si
mesmo de perceber por conta proacutepria o que eacute bom se munir de bons
desejos boas emoccedilotildees e desencadear a accedilatildeo correta a racionalidade
precisa estar presente ao menos sob a forma da phroacutenēsis que
desencadeia a bouacuteleusis e a proaiacuteresis A educaccedilatildeo que permitiraacute mudar
as emoccedilotildees ou mudar de emoccedilotildees natildeo pode se contentar portanto com
uma vida boa poreacutem conduzida por uma razatildeo que venha de fora
porque mesmo que tal vida seja boa natildeo eacute totalmente feliz O agente
precisa ter todas as virtudes intelectuais e morais agrave sua disposiccedilatildeo Eacute
preciso portanto que tenha a capacidade racional e a capacidade natildeo
racional em cooperaccedilatildeo em sua alma reforccedilando a proposta de EN I 13
para que manifeste aquilo que eacute propriamente humano e isso eacute possiacutevel
devido agraves caracteriacutesticas das capacidades que acabamos de descrever
Essa leitura favorece nossa interpretaccedilatildeo que ressalta o papel das
emoccedilotildees na vida moral colocando emoccedilotildees e razatildeo praacutetica juntas em
uma vida considerada feliz e natildeo subjugando as emoccedilotildees agrave forccedila da
razatildeo Todavia apresenta o problema da conciliaccedilatildeo entre razatildeo e
emoccedilatildeo Essa conciliaccedilatildeo se faz possiacutevel a partir de quando se
reconhece a impossibilidade de que mesmo os melhores dos homens
vivam isolados a contemplar ou que extirpem suas emoccedilotildees com o
auxiacutelio de algum tipo de razatildeo pois as emoccedilotildees satildeo presentes na
constituiccedilatildeo do sujeito moral Neste tecircm papel significativo tanto para o
caraacuteter quanto para o iniacutecio das accedilotildees jaacute a razatildeo praacutetica atua no interior
do sujeito moral Pode conduzi-lo melhor ao seu objetivo mas tambeacutem
frear ou redirecionar seus movimentos tornando-o um agente moderado
em suas emoccedilotildees Isso soacute acontece porque tal agente graccedilas agrave natureza
187
de sua alma tem a racionalidade na base de suas emoccedilotildees bem como
porque entendemos que um cidadatildeo eacute racional em suas accedilotildees e vida
quando apazigua suas capacidades aniacutemicas racionais e natildeo racionais
completando a funccedilatildeo propriamente humana e conferindo a
possibilidade educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua racionalidade
Mas como levar a cabo essa educaccedilatildeo Eacute nesse ponto que cabe nossa
exposiccedilatildeo acerca dos instrumentos que permitem as mudanccedilas nasdas
emoccedilotildees
3 O acordo entre a razatildeo e as emoccedilotildees a educaccedilatildeo moral e os
instrumentos de modificaccedilatildeo da emoccedilatildeo169
3 a) Educaccedilatildeo haacutebito e lei para a virtude
Depois de todo o proposto percebemos que a razatildeo praacutetica (e a
razatildeo como um todo jaacute que se trata de uma mesma capacidade) deve
entrar em acordo com o natildeo racional para que haja virtude ou seja para
que haja moderaccedilatildeo nas emoccedilotildees e felicidade170 Somente assim o
homem seraacute capaz de manifestar o que entendemos nesse estudo como
verdadeiramente humano a plenitude de sua alma em harmonia
Provavelmente uma soluccedilatildeo apontada pela Eacutetica Nicomaqueia para
nossa indagaccedilatildeo a respeito de como por emoccedilotildees e razatildeo praacutetica em
acordo esteja a ser indicada pelo passo II 2 1104b9-24 (cf ainda EN X
1 1172a19-24) que fala de um tipo especiacutefico de educaccedilatildeo com base
em proposta feita por Platatildeo171 e que provavelmente deva ser
empregado a fim da virtude O passo propotildee que as virtudes morais
estatildeo relacionadas com o prazer e o desejo Sendo possiacutevel educar-se ou
habituar-se a fim de se comprazer e desejar devidamente igualmente
deve ser possiacutevel educar e habituar as emoccedilotildees Do mesmo modo
podemos usar a explicaccedilatildeo de Aggio a respeito do modo como conciliar
razatildeo praacutetica e desejo como exemplo para entender o que propomos
ldquoAo que tudo indica a educaccedilatildeo moral parece ser condiccedilatildeo preacutevia
necessaacuteria para que razatildeo e desejo se harmonizem e para que a razatildeo
possa ser efetivamente causa coadjuvante (synaitiacutea) na constituiccedilatildeo do
169Lebrun entende que a possibilidade de regular as emoccedilotildees eacute a garantia de
poderem ser julgadas eticamente (2009 p 14-15) 170 Sorabji (2002 p 7) nos explica que para Aristoacuteteles as emoccedilotildees satildeo uacuteteis agrave
poacutelis desde que moderadas por permitirem catarse Por conseguinte Platatildeo
estava errado ao expulsar os poetas da sua cidade ideal 171Rep 410e-402a Leis 653a
188
fim da accedilatildeordquo (AGGIO 2017 no prelo) Pensamos que apoacutes a
explanaccedilatildeo subsequente poderemos defender algo semelhante para a
boa conduccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees
Pelo que a EN aponta vimos que o desejo por um fim deve
concordar com o escolher e o deliberar bem sobre os meios adequados
ao alcance do fim buscado e com isso pedir a accedilatildeo para que tal fim seja
alcanccedilado resultando na accedilatildeo virtuosa A interpretaccedilatildeo mais
comumente aceita propotildee que para Aristoacuteteles a parte desiderativa da
alma ainda que chamada irracional compartilharia da razatildeo e poderia
mesmo ter razatildeo (loacutegos eacutekhein) praacutetica pois a ouve mesmo natildeo
raciocinando as coisas fora de si (EN I 13 1102b29 1103a3) Por
exemplo ldquoO efeito geral eacute fazer a bouacutelēsis distinta da razatildeo embora
ainda relacionada a elardquo (SORABJI 2002 p 322 traduccedilatildeo nossa)
Relaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel para o homem prudente A obra de um
homem soacute eacute perfeita (teacuteleios) quando estaacute em acordo com a totalidade
da razatildeo mas especialmente quando em acordo com a prudecircncia e com
a virtude moral pois a prudecircncia torna o propoacutesito humano reto e
culmina na boa conduta e no desejo reto Conforme a explicaccedilatildeo de
Aggio
Para que o desejo se torne reto i e para que ele
seja conforme a razatildeo Aristoacuteteles nos diz
sucintamente que ele deve ser educado a ldquoouvi-lardquo
e a ldquoobedececirc-lardquo Dizer isso significa pressupor
que o desejo natildeo nasce reto e que o fim natildeo eacute
naturalmente um bom fim mas que ao contraacuterio
deve ser constituiacutedo dessa forma Se fosse
naturalmente bom natildeo haveria por que educaacute-lo
ou seja natildeo haveria motivo eacutetico para tanto nem
uma razatildeo que fosse capaz de persuadir a parte
desiderativa Tampouco poderia haver educaccedilatildeo
do desejo se a parte desiderativa natildeo fosse
naturalmente educaacutevel i e constituiacuteda por
natureza para obedecer agrave razatildeo (AGGIO 2017
no prelo)
Essa possibilidade de educar o desejo eacute igualmente a
possibilidade de educar a emoccedilatildeo pois a emoccedilatildeo eacute da alccedilada do
desiderativo assim como os trecircs tipos de desejo que lhe correspondem e
como as virtudes morais que potildeem o fim e que satildeo possiacuteveis devido agrave
habituaccedilatildeo ao que eacute correto Ao habituar corretamente os desejos
igualmente seratildeo corretamente habituadas as emoccedilotildees que lhes
189
acompanham Tal educaccedilatildeo eacute demasiado importante o que percebemos
por interpretaccedilotildees como as de Zingano (2008 p 24) que escreve ldquoas
emoccedilotildees tecircm que estar previamente educadas moralmente para que a
razatildeo possa acompanhaacute-las e lhes dar a reta direccedilatildeordquo Poreacutem ainda
devemos fornecer melhor explicaccedilatildeo para a possibilidade de moderar e
alterar as emoccedilotildees a forma e a possibilidade de alterar o modo como
sentimos e o que sentimos mudanccedilas operadas pela educaccedilatildeo Essa
explicaccedilatildeo eacute necessaacuteria bem observa o mesmo estudioso como vimos
anteriormente porque mesmo que a razatildeo praacutetica interfira nas emoccedilotildees
nada garante que consiga modificaacute-las Eacute preciso conseguir uma
precedecircncia e prevalecircncia da accedilatildeo (bem conduzida pelo haacutebito) em
relaccedilatildeo agrave disposiccedilatildeo moral que se fixaraacute em virtude Mas o que eacute
preciso fazer para que tal educaccedilatildeo aconteccedila
Aristoacuteteles no Livro X da EN comeccedila a responder tais perguntas
observando que a maioria natildeo faz o que deve por ser nobre mas por
medo da puniccedilatildeo Isso acontece porque ldquovivendo sob o impeacuterio da
paixatildeo os homens perseguem suas proacuteprias satisfaccedilotildees e os meios de
realizaacute-las e evitam as dores que a isso se opotildeem e eles natildeo tecircm
nenhuma ideia do que eacute nobre e verdadeiramente agradaacutevel por natildeo o
terem jamais experimentadordquo (EN X 10 1179b13-16)172 Assim sendo
haveria algum argumento capaz de persuadir essas pessoas Aristoacuteteles
observa que se natildeo eacute impossiacutevel eacute ao menos difiacutecil extirpar por meio do
raciociacutenio os haacutebitos inveterados no caraacuteter Pensa ainda que devemos
nos considerar felizes se dispomos de todos os meios para nos tornarmos
honestos e com isso conseguirmos participar de algum modo da virtude
Mas como isso seria possiacutevel Por natureza por haacutebito ou pelo ensino
Natildeo seria por natureza jaacute que os dons naturais natildeo dependem de noacutes
como explica o passo seguinte
O raciociacutenio e o ensino por sua vez natildeo satildeo
temo igualmente poderosos em todos os homens
mas eacute preciso cultivar antes ao menos os haacutebitos
a alma do ouvinte em vista de lhe fazer estimar
ou abominar o que deve secirc-lo como por uma terra
chamada a fazer frutificar a semente Pois o
homem que vive sob o impeacuterio da paixatildeo natildeo
saberaacute escutar um raciociacutenio que busca desviaacute-lo
172 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original πάθει γὰρ ζῶντες τὰς οἰκείας ἡδονὰς διώκουσι καὶ δι ὧν
αὗται ἔσονται φεύγουσι δὲ τὰς ἀντικειμένας λύπας τοῦ δὲ καλοῦ καὶ ὡς
ἀληθῶς ἡδέος οὐδ ἔννοιαν ἔχουσιν ἄγευστοι ὄντες
190
de seu viacutecio e nem mesmo o compreenderaacute Mas
o homem que estaacute nesse estado como eacute possiacutevel
fazecirc-lo alterar de sentimento (EN X 10 1179b23-
28)173
De um modo geral parece que o raciociacutenio que cede agrave paixatildeo natildeo
o faz por constrangimento assim para que um homem seja bom deve
haver previamente uma disposiccedilatildeo do caraacuteter que seja apropriada agrave
virtude que estime o que eacute nobre e que despreze o que eacute vergonhoso
Mesmo que tais disposiccedilotildees recebam uma educaccedilatildeo de acordo com a
retidatildeo desde a juventude a tarefa se torna ainda mais difiacutecil se natildeo se
for educado sob leis justas porque viver corajosamente natildeo eacute agradaacutevel
para a maioria das pessoas especialmente para os jovens Por isso eacute
conveniente estipular pelas leis o modo de educar e o modo de viver
que deixaraacute de ser doloroso com o haacutebito Natildeo basta todavia uma
educaccedilatildeo e cuidados desde a juventude eacute preciso que os cidadatildeos ainda
quando adultos sejam capazes de praticar as coisas aprendidas e faccedilam
delas haacutebitos A habituaccedilatildeo eacute necessaacuteria desde a infacircncia desde os
ensinamentos apresentados no acircmbito domeacutestico mas as leis seratildeo
necessaacuterias na idade adulta e por toda a vida porque a maioria obedece
mais agrave necessidade que agrave razatildeo e mais agrave puniccedilatildeo que ao sentido do bem
Do mesmo modo caso se pretenda que um homem seja bom este
deve receber uma boa educaccedilatildeo e os haacutebitos do homem de bem aleacutem de
se ocupar com coisas honestas natildeo fazendo o que eacute vil nem voluntaacuteria
nem involuntariamente Se aqueles que natildeo alcanccedilam a plena virtude soacute
podem agir bem em uma vida submissa agrave regra inteligente e perfeita
conseguida agrave forccedila Aristoacuteteles entende que ao menos no iniacutecio da
educaccedilatildeo a autoridade eacute necessaacuteria A autoridade paterna contudo natildeo
seraacute suficiente por natildeo possuir nem a forccedila nem o poder corretivo por
isso a lei que tem poder de obrigar eacute uma regra que emana de certa
prudecircncia e a inteligecircncia deve poder fazecirc-lo Se o homem detesta
aquilo que faz oposiccedilatildeo aos seus impulsos a lei natildeo deve estar a cargo
da pessoa mas prescrever o que eacute honesto dispensando o agente de se
tornar quando natildeo for possiacutevel prudente ldquoA melhor soluccedilatildeo eacute
portanto se entregar agrave justa solicitude da autoridade puacuteblica e ser capaz
173 Idem ὁ δὲ λόγος καὶ ἡ διδαχὴ μή ποτ οὐκ ἐν ἅπασιν ἰσχύει ἀλλὰ δεῖ
προδιειργάσθαι τοῖς ἔθεσι τὴν τοῦ ἀκροατοῦ ψυχὴν πρὸς τὸ καλῶς χαίρειν καὶ
μισεῖν ὥσπερ γῆν τὴν θρέψουσαν τὸ σπέρμα οὐ γὰρ ἂν ἀκούσειε λόγου
ἀποτρέποντος οὐδ αὖ συνείη ὁ κατὰ πάθος ζῶν τὸν δ οὕτως ἔχοντα πῶς οἷόν
τε μεταπεῖσαι
191
de fazecirc-lordquo (EN X 10 1180a29-31)174 Caso natildeo haja o interesse da
autoridade puacuteblica nesses assuntos pensa-se que o melhor eacute que cada
indiviacuteduo deva propor a seus filhos e amigos uma vida virtuosa ou ao
menos tentar fazer com que tenham vontade viver virtuosamente
Com isso Aristoacuteteles parece pensar que um patriarca conseguiraacute
cumprir sua tarefa educadora se tiver um espiacuterito legislador Se a
educaccedilatildeo puacuteblica eacute exercida em meio agraves leis e se somente boas leis
produzem uma boa educaccedilatildeo igualmente em casa deve haver boas
regras Se tais leis satildeo escritas ou natildeo natildeo importa O que importa eacute que
sejam capazes de fornecer a educaccedilatildeo a uma soacute pessoa ou a um grupo
Na cidade satildeo as disposiccedilotildees legais e os costumes que tecircm a forccedila para
sancionar mas nas famiacutelias o pai e os usos privados devem ter tal poder
sendo que o poder coercitivo deve ser mais forte nesse acircmbito porque
haacute laccedilos afetivos que unem pai e filho Isso deve ser aproveitado pois
nas crianccedilas existe uma afecccedilatildeo e uma docilidade naturais Nesse ponto
a educaccedilatildeo individual eacute superior agrave puacuteblica pois sabe o que eacute melhor
para o indiviacuteduo a ser educado ldquoJulgaremos entatildeo que eacute tida uma conta
mais exata dos particulares individuais quando se lida com a educaccedilatildeo
privada cada sujeito encontrando entatildeo mais facilmente o que
corresponde agraves suas necessidadesrdquo (EN X 10 1180b11-12) Os cuidados
dispensados ao indiviacuteduo seratildeo no entanto mais bem dados por algueacutem
que conheccedila do universal que saiba de um modo geral o que conveacutem
aos que se encontram em formaccedilatildeo A esse respeito Aristoacuteteles escreve
Eacute provaacutevel portanto que aquele que deseja por
meio da disciplina educativa tornar os homens
melhores quer eles sejam em grande nuacutemero
quer em pequeno nuacutemero deve se esforccedilar para
tornar-se a si mesmo capaz de legislar se eacute pelas
leis que noacutes podemos nos tornar bons colocar de
fato a um indiviacuteduo qualquer que seja aquilo que
propomos a vosso cuidado na disposiccedilatildeo moral
conveniente natildeo estaacute ao alcance de qualquer um
mas se essa tarefa vem a algueacutem eacute seguramente
ao homem que possui o conhecimento cientiacutefico
como eacute aplicaacutevel para a medicina e para as outras
artes que fazem apelo a alguma solicitude e agrave
174 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original κράτιστον μὲν οὖν τὸ γίνεσθαι κοινὴν ἐπιμέλειαν καὶ ὀρθὴν
καὶ δρᾶν αὐτὸ δύνασθαι
192
prudecircncia (EN X 10 1180b23-28)175
A analogia meacutedica nos faz entender melhor por que a educaccedilatildeo
proposta eacute adequada agrave emoccedilatildeo a medicina grega de linha hipocraacutetica
bem conhecida por Aristoacuteteles era questatildeo de equiliacutebrio Por esses
motivos pensamos que o mesmo valha para a emoccedilatildeo sendo
acompanhada de prazer e dor e tendo a ver com os desejos deveraacute
igualmente poder receber certa educaccedilatildeo para equilibrar-se com a razatildeo
praacutetica Tal educaccedilatildeo emocional por sua vez viraacute com o auxiacutelio da
melhor forma da capacidade calculativa da alma a prudecircncia e de seus
recursos a saber a boa deliberaccedilatildeo e a escolha deliberada que
concorreratildeo agrave boa accedilatildeo e agrave melhor forma que a vida humana possa
alcanccedilar Por isso Besnier propocircs (2008 p 91) que a formaccedilatildeo eacutetica
poderia ser entendida como uma ldquoarte da paixatildeordquo - embora lsquoartersquo natildeo
pareccedila ser termo empregado pelo comentador no mesmo sentido que
teacutechnē eacute usado por Aristoacuteteles - sendo oposta ao viver segundo a
emoccedilatildeo traccedilo dos jovens e dos incompletamente educados Sobre isso
Besnier escreveu
Para Aristoacuteteles quem vive segundo as paixotildees
(no niacutevel das paixotildees) vive certamente sem arte
(sem a arte da felicidade) para a qual lhe falta a
disposiccedilatildeo) o vicioso e o virtuoso tecircm essa
capacidade o segundo como arte verdadeira o
primeiro conforme uma contra-arte [] que natildeo o
tornaraacute feliz mas ao menos teraacute a vantagem de lhe
proporcionar um percurso de vida coerente Um
torna sua vida coerente pela busca da mediania o
outro pela de um extremo (em excesso ou
deficiecircncia) (BESNIER 2008 p 92)
O haacutebito agrave virtude moral proporcionado pelas regras corretas - da
razatildeo da casa da poacutelis - favorece a forma adequada da emoccedilatildeo E para
responder a pergunta que haviacuteamos levantado em um capiacutetulo anterior
acerca da diferenccedila entre haacutebito e ensino jaacute que ao longo deste toacutepico
175 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original τάχα δὲ καὶ τῷ βουλομένῳ δι ἐπιμελείας βελτίους ποιεῖν
εἴτε πολλοὺς εἴτ ὀλίγους νομοθετικῷ πειρατέον γενέσθαι εἰ διὰ νόμων ἀγαθοὶ
γενοίμεθ ἄν ὅντινα γὰρ οὖν καὶ τὸν προτεθέντα διαθεῖναι καλῶς οὐκ ἔστι τοῦ
τυχόντος ἀλλ εἴπερ τινός τοῦ εἰδότος ὥσπερ ἐπ ἰατρικῆς καὶ τῶν λοιπῶν ὧν
ἔστιν ἐπιμέλειά τις καὶ φρόνησις
193
falamos dos dois podemos acatar a proposta de Irwin (1978 p 568) O
estudioso entende ensino como aquele tipo de educaccedilatildeo apto a
desenvolver as virtudes intelectuais tatildeo necessaacuterias agrave virtude moral O
ensino natildeo determina os fins buscados por um homem que devem ser
determinados pela virtude moral que eacute adquirida por meio de treino ou
seja do haacutebito Ambos como observa Zingano exigem tempo e
experiecircncia constituindo aquilo que parece ser a educaccedilatildeo ideal para a
vida moralmente boa A habituaccedilatildeo moral sozinha seria como na
proposta de Irwin (1975 p 576-577) uma educaccedilatildeo incompleta porque
natildeo produziria virtude de caraacuteter Por conseguinte embora Irwin
entenda que Aristoacuteteles natildeo o diga pensamos ter deixado claro ao longo
de nosso estudo que o filoacutesofo entende que a virtude moral requer o
envolvimento de ambas as capacidades da alma em diversas de suas
(sub)capacidades para fazer do homem pleno Quando o filoacutesofo exige
que a virtude completa requeira sabedoria exige ao mesmo tempo que
haja cooperaccedilatildeo entre as duas capacidades da alma ao menos sob a
forma de um alinhamento entre percepccedilotildees imaginaccedilotildees pensamento
intelecto opiniotildees juiacutezos desejos prazeres e emoccedilotildees Por conseguinte
algo mais que uma accedilatildeo virtuosa irrefletida (palavras de Irwin) eacute
necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um bom caraacuteter
O tipo de educaccedilatildeo proposto ao fim e ao longo da EN permitiraacute
ao cidadatildeo mais que deliberar corretamente e escolher deliberadamente
por auxiacutelio de uma virtude que lhe eacute alheia Permitiraacute fazer tais caacutelculos
e ter tais preferecircncias por si mesmo graccedilas agrave sua proacutepria prudecircncia que
o levaraacute aos melhores desejos e a por-se os bons fins Isso tudo garantiraacute
a emoccedilatildeo moderada e ajustada na escolha que levaraacute agrave boa accedilatildeo e agrave vida
feliz peculiares ao homem ldquoNo homem bem-educado o paacutethos natildeo eacute
uma forccedila que colocaraacute permanentes obstaacuteculos agrave alma razoaacutevel ele estaacute
a serviccedilo do loacutegos e em consonacircncia com elerdquo (LEBRUN 2009 p 16)
Para tanto poacutelis e poliacutetēs (cidadatildeo) contam com auxiliares na mudanccedila
e adequaccedilatildeo emocional as artes (teacutechnai) que facilitam o trabalho de
habituaccedilatildeo conforme a razatildeo Vejamos portanto de que modo a arte
poeacutetica e arte retoacuterica podem colaborar com a educaccedilatildeo proposta para
mudanccedila dasnas emoccedilotildees para que harmonizem com a solicitaccedilatildeo
racional e como tal mudanccedila pode ser apreciada eticamente
3 b) A retoacuterica como instrumento de mudanccedila nas emoccedilotildees
194
Na Retoacuterica tambeacutem podemos ler sobre os perigos que
determinadas emoccedilotildees (ou emoccedilotildees desmesuradas) representam agrave vida
poliacutetica Aristoacuteteles afirma que o ldquoataque verbal a compaixatildeo a ira e
outras paixotildees da alma semelhantes a estas natildeo afetam o assunto mas
sim o juizrdquo (Rhet 1354a16-18)176 Afirma tambeacutem que determinadas
emoccedilotildees natildeo devem ser suscitadas em certos lugares caso da ira do
oacutedio e da piedade que natildeo devem estar presentes no areoacutepago porque
pervertem o juiz (Rhet I 1 1354a24-25) ldquoNa sua apreciaccedilatildeo dos fatos
intervecircm muitas vezes a amizade a hostilidade e o interesse pessoal
com a consequecircncia de natildeo mais conseguirem discernir a verdade com
exatidatildeo e de seu juiacutezo ser obscurecido por um sentimento egoiacutesta de
prazer ou de dorrdquo (Rhet I 1 1354b8-11)177 No acircmbito do discurso
persuasivo as emoccedilotildees apresentam esse aspecto especiacutefico sua
capacidade de alterar de afetar os juiacutezos
Tal aspecto da Retoacuterica eacute interessante porque aborda a arte que
tem ldquocapacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim
de persuadirrdquo (Rhet I 2 1355b25-26)178 A arte retoacuterica revela a
capacidade de descobrir os meios de persuasatildeo sobre qualquer questatildeo
o que a torna peculiar Conveacutem notar quais propostas do tratado em
questatildeo possam valer para uma investigaccedilatildeo de cunho eacutetico acerca das
emoccedilotildees em sua relaccedilatildeo com a plenitude daquilo que eacute propriamente
humano e que favoreccedila as relaccedilotildees das capacidades racionais e natildeo
racionais Pretendemos entender especialmente como o orador
consegue suscitar ou mudar emoccedilotildees com estas mudar o juiacutezo do
puacuteblico e como essa habilidade pode auxiliar uma educaccedilatildeo moral que
modere as emoccedilotildees
Podemos comeccedilar nossa pesquisa do assunto pela observaccedilatildeo das
provas de persuasatildeo proacuteprias agrave retoacuterica ldquoAs provas de persuasatildeo
fornecidas pelo discurso satildeo de trecircs espeacutecies umas residem no caraacuteter
moral do orador outras no modo como se dispotildee o ouvinte e outras no
proacuteprio discurso pelo que este demonstra ou parece demonstrarrdquo (Rhet
176 Traduccedilatildeo de Alves Alberto e Pena (2012) no original διαβολὴ γὰρ καὶ
ἔλεος καὶ ὀργὴ καὶ τὰ τοιαῦτα πάθη τῆς ψυχῆς οὐ περὶ τοῦ πράγματός ἐστιν
ἀλλὰ πρὸς τὸν δικαστήν 177Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original πρὸς οὓς
καὶ τὸ φιλεῖν ἤδη καὶ τὸ μισεῖν καὶ τὸ ἴδιον συμφέρον συνήρτηται πολλάκις
ὥστε μηκέτι δύνασθαι θεωρεῖν ἱκανῶς τὸ ἀληθές ἀλλ ἐπισκοτεῖν τῇ κρίσει τὸ
ἴδιον ἡδὺ ἢ λυπηρόν 178 Idem δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν
195
I 2 1356a1-4)179 A persuasatildeo pelo caraacuteter ocorre quando o discurso eacute
proferido de modo a deixar a impressatildeo de que o orador eacute digno de feacute
Essa confianccedila deve resultar do discurso e natildeo de uma opiniatildeo preacutevia
quanto ao caraacuteter do orador pois a probidade de quem fala eacute importante
agrave persuasatildeo sendo o caraacuteter ldquoquaserdquo o principal meio de persuasatildeo
Quando acarretada pela disposiccedilatildeo dos ouvintes a persuasatildeo ocorre ao
serem levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso Isso acontece
porque os juiacutezos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou
alegria amor ou oacutedio (Rhet I 2 1356a15-16) Entatildeo a persuasatildeo eacute
especialmente tratada quando se fala das emoccedilotildees e parece que na
retoacuterica os juiacutezos podem decorrer ou vir junto das emoccedilotildees por
intermeacutedio das aparecircncias e opiniotildees que devem ser apresentadas pelo
discurso tornando essas emoccedilotildees afecccedilotildees do corpo e da alma
Se as provas por persuasatildeo satildeo obtidas por estes meios quem
pode se servir delas eacute aquele que eacute capaz de formar silogismos que
pode teorizar sobre os caracteres sobre as virtudes e sobre as emoccedilotildees
Aristoacuteteles entende a retoacuterica como filha da dialeacutetica e da poliacutetica e noacutes
arriscamos ainda a dizer tal arte pode ter influecircncia na moralidade por
interferir em um certo tipo de deliberaccedilatildeo e por depender de
conhecimentos sobre caracteres e virtudes aleacutem de manipular as
aparecircncias dos caracteres proporcionando razatildeo para os argumentos
Konstan explica ldquoas emoccedilotildees satildeo obtidas por nossa interpretaccedilatildeo das
palavras atos e intenccedilotildees dos outros cada uma de seu modo
caracteriacutesticordquo (KONSTAN 2006 p XII traduccedilatildeo nossa) Para o autor
uma consequecircncia dessa abordagem eacute a possiacutevel mudanccedila das emoccedilotildees
ao modificar seu modo de interpretar o evento que desencadeia a
emoccedilatildeo em questatildeo mas afirma que isso natildeo eacute o mesmo que convencer
algueacutem por argumentos racionais Propotildee que diferentemente dos
apetites e dos impulsos as emoccedilotildees satildeo dependentes da capacidade de
simbolizar donde a importacircncia da persuasatildeo para mudar os
julgamentos que as compotildeem pois tal apreciaccedilatildeo eacute capaz de tocar a
ldquomola dos afetosrdquo (LEBRUN 2009 p 14)
Provavelmente essa interpretaccedilatildeo seja conveniente agrave teoria
proposta por Nussbaum acerca da percepccedilatildeo do objeto de emoccedilatildeo poder
modificaacute-la A autora avalia a possibilidade pautada em uma esperanccedila
179 Estas provas podem mesmo alterar uma emoccedilatildeo em outra afirma Sorabji
(2002 p 23) Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no
original τῶν δὲ διὰ τοῦ λόγου ποριζομένων πίστεων τρία εἴδη ἔστιν αἱ μὲν γάρ
εἰσιν ἐν τῷ ἤθει τοῦ λέγοντος αἱ δὲ ἐν τῷ τὸν ἀκροατὴν διαθεῖναί πως αἱ δὲ ἐν
αὐτῷ τῷ λόγῳ διὰ τοῦ δεικνύναι ἢ φαίνεσθαι δεικνύναι
196
de que uma mudanccedila no pensamento possa levar a uma mudanccedila no
comportamento e igualmente na emoccedilatildeo pois esta eacute um modo de ver
ldquocarregado-de-valorrdquo (NUSSBAUM 2008 p 232) como propusemos
acima Essa teoria tem importante implicaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo moral
pois a autora entende que Aristoacuteteles fornece ao futuro orador instruccedilotildees
para provocar coacutelera apresentando os seus objetos por um novo acircngulo
Sendo possiacutevel provocar as emoccedilotildees eacute possiacutevel direcionar o agente a
senti-las de uma maneira ou de outra e com isso haacute a possibilidade de
mudanccedila nasdas emoccedilotildees por um tipo de instruccedilatildeo com certo fundo
racional o discurso persuasivo e emocional como leremos a seguir
Se ele diz entendemos que os Persas realmente
natildeo erraram conosco deixaremos de estar
encolerizados com eles Mas claro a vida nem
sempre eacute assim Algumas coacuteleras podem na
verdade alterar diretamente com uma nova
consideraccedilatildeo dos fatos muitas natildeo Novamente
algum oacutedio e repulsa por grupos pode prevenir seu
surgimento por uma boa educaccedilatildeo moral e ainda
a despeito de nossos melhores esforccedilos eacute como se
isso tivesse alguma raiz profunda na
personalidade (NUSSBAUM 2008 p 233
traduccedilatildeo nossa)
Eacute provaacutevel que as propostas dos dois estudiosos natildeo destoem jaacute
que ao se falar de educaccedilatildeo moral estaacute-se a falar tambeacutem de habituaccedilatildeo
e embora esta natildeo dispense a racionalidade e portanto eacute provaacutevel que
natildeo dispense a formulaccedilatildeo de certo tipo de silogismos por parte do
puacuteblico eacute possiacutevel entender que estes caacutelculos natildeo estejam realmente
implicados no acircmbito emocional retoacuterico nem mesmo em sua
capacidade de auxiliar e consolidador de uma educaccedilatildeo moral para a
cidadania pois a racionalidade estaacute no discurso proferido e talvez natildeo
exatamente na percepccedilatildeo que o puacuteblico tem de tal discurso
Uma possiacutevel prova disso eacute que para que o jovem retor alcance
seus intentos eacute preciso ter o que dizer e dizecirc-lo de forma conveniente
Por isso a retoacuterica trata da ordem dos elementos persuasivos no
enunciado e tambeacutem da pronunciaccedilatildeo Esta assenta na voz ou seja na forma como eacute necessaacuterio empregaacute-la de acordo com cada emoccedilatildeo
lindando com aparecircncias com corpo e alma como Aristoacuteteles explica
A expressatildeo possuiraacute a forma conveniente se
exprimir emoccedilotildees e caracteres e se conservar a
197
ldquoanalogiardquo com os assuntos estabelecidos Haacute
analogia se natildeo se falar grosseiramente acerca de
assuntos importantes nem solenemente de
assuntos de pouca monta nem se se colocarem
ornamentos em uma palavra vulgar [] O
discurso seraacute ldquoemocionalrdquo se relativamente a uma
ofensa o estilo for o de um indiviacuteduo
encolerizado se relativo a assuntos iacutempios e
vergonhosos for o de um homem indignado e
reverente se sobre algo que deve ser louvado o
for de tal forma que suscite admiraccedilatildeo com
humildade se sobre coisas que suscitam
compaixatildeo (RhetIII 7 1408a10-14 e 16-19)180
O estilo apropriado torna o discurso convincente porque o
ouvinte eacute levado a pensar (oiacuteountai) que quem fala diz a verdade A
persuasatildeo pelo discurso acontece quando se mostra a verdade ou o que
parece verdadeiro a partir daquilo que eacute persuasivo em cada caso
particular Nestas circunstacircncias os ouvintes estatildeo em tal estado
emocional que pensam que as coisas satildeo como o orador expotildee mesmo
que natildeo sejam O ouvinte compartilha as emoccedilotildees do orador embora
este possa natildeo as dizer
Um discurso que pretenda emocionar deveraacute usar de recursos
como o dizer nomes apropriados agrave maneira de ser que expressa
caracteres condizentes ao puacuteblico sendo que o tipo de palavras
empregado pode facilitar a persuasatildeo e as emoccedilotildees O discurso deve ser
solene e capaz de emocionar e para tanto deve usar o ritmo certo
portanto em debates satildeo adequadas as teacutecnicas de representaccedilatildeo teatral
gerando uma aparecircncia convincente e favorecendo a emoccedilatildeo ldquoEacute por
isso que quando a componente de representaccedilatildeo eacute retirada o discurso
natildeo perfaz o seu trabalho e parece fracordquo (Rhet III 12 1413b) Haacute
portanto uma seacuterie de peculiaridades atreladas a esse tipo de discurso
Os elementos que se relacionam com o auditoacuterio consistem em
obter a sua benevolecircncia suscitar a sua coacutelera e por vezes atrair a sua
180 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original Τὸ δὲ
πρέπον ἕξει ἡ λέξις ἐὰν ᾖ παθητική τε καὶ ἠθικὴ καὶ τοῖς ὑποκειμένοις
πράγμασιν ἀνάλογον τὸ δ ἀνάλογόν ἐστιν ἐὰν μήτε περὶ εὐόγκων
αὐτοκαβδάλως λέγηται μήτε περὶ εὐτελῶν σεμνῶς μηδ ἐπὶ τῷ εὐτελεῖ ὀνόματι
ἐπῇ κόσμος[] παθητικὴ δέ ἐὰν μὲν ᾖ ὕβρις ὀργιζομένου λέξις ἐὰν δὲ ἀσεβῆ
καὶ αἰσχρά δυσχεραίνοντος καὶ εὐλαβουμένου καὶ λέγειν ἐὰν δὲ ἐπαινετά
ἀγαμένως ἐὰν δὲ ἐλεεινά ταπεινῶς καὶ ἐπὶ τῶν ἄλλων δὲ ὁμοίως
198
atenccedilatildeo ou dispersaacute-la porque nem sempre eacute conveniente por o
auditoacuterio atento razatildeo pela qual muitos dos oradores tentam levaacute-lo a
rir Todos estes recursos caso se queira levam a uma boa compreensatildeo
e a apresentar o orador como um homem respeitaacutevel pois a este tipo de
homem os ouvintes prestam mais atenccedilatildeo Satildeo igualmente mais atentos
a temas importantes a coisas que lhes digam respeito agraves que encham de
espanto e agraves que sejam agradaacuteveis Por isso eacute necessaacuterio introduzir a
ideia de que o discurso trata de coisas deste gecircnero O que implica
novamente a presenccedila das aparecircncias que provocam a imaginaccedilatildeo e
portanto da percepccedilatildeo (ao menos sensiacutevel) no discurso persuasivo
poreacutem se a intenccedilatildeo eacute que o puacuteblico natildeo esteja atento dever-se-aacute dizer
que o assunto natildeo eacute importante que natildeo lhe diz respeito que eacute penoso
O orador deve igualmente usar o epiacutelogo parte do discurso
composta por quatro elementos tornar o ouvinte favoraacutevel agrave causa do
orador e desfavoraacutevel agrave do adversaacuterio amplificar ou minimizar aquilo
que eacute exposto dispor o ouvinte a um comportamento emocional
recapitular Apoacutes ter mostrado que se diz a verdade e o adversaacuterio diz
falsidades eacute preciso fazer um elogio ou uma censura e finalmente
ratificar o assunto Eacute necessaacuterio visar uma de duas coisas ou revelar-se
como homem de bem quer diante dos ouvintes quer em termos gerais
ou apresentar o adversaacuterio como perverso quer diante dos ouvintes
quer em termos gerais Portanto o discurso do retor eacute capaz de mostraacute-
lo e de mostrar os outros como virtuosos ou viciosos mas precisa
tambeacutem provocar nos ouvintes comportamentos emocionais como
propotildee o passo subsequente
Assim a ciecircncia das emoccedilotildees181 eacute semelhante
agravequela da arquitetura como a arquitetura (ou a
construccedilatildeo de casa na frase de Aristoacuteteles) nos
informa como construir a estrutura que nos
protegeraacute dos elementos entatildeo o conhecimento
das emoccedilotildees nos diz como excitar ou causar
emoccedilotildees que disporatildeo os outros de um modo que
eacute para nossa proacutepria vantagem A teacutecnica de
causar emoccedilotildees requer um entendimento dos
comportamentos que as excitam mas isso tem em
mira suplementar os outros meios de persuasatildeo
que Aristoacuteteles analisa na Retoacuterica explorando
em particular os tipos de crenccedila que satildeo assistidos
pela dor e pelo prazer (KONSTAN 2006 p 37
181Termos de Konstan
199
traduccedilatildeo nossa)
Desta feita entendemos que o discurso persuasivo eacute um dos
modos de mudar as emoccedilotildees ou ao menos de emocionar conforme o
desejo e o intelecto do orador Confirmando nossa proposta Besnier
pensa que a praacutetica do discurso persuasivo em conjunto com o
conhecimento das predisposiccedilotildees que satildeo favoraacuteveis ou que obstam o
desencadeamento de uma emoccedilatildeo poderia ser exercida a fim de formar
uma disposiccedilatildeo virtuosa acerca de cada emoccedilatildeo Igualmente poderia ser
usada para extenuar ou fazer desaparecer uma reaccedilatildeo passional que
fosse julgada pouco fundada ou se o juiacutezo axioloacutegico (palavras de
Besnier) que muda o estado do desejo for mal justificado ou
desproporcional pois para Aristoacuteteles as disposiccedilotildees concernem agraves
emoccedilotildees Para que sejam formadas podem requerer capacidade oratoacuteria
ou dialeacutetica e um conhecimento da alma assunto cabiacutevel agrave funccedilatildeo
educativa da arte poliacutetica
O que significaria que o caraacuteter comporta disposiccedilotildees que satildeo
fixadas por meio de treinamento ou adestramento a partir de
disposiccedilotildees deficientes ou de uma habituaccedilatildeo sem interferecircncia da
inteligecircncia e da deliberaccedilatildeo Com isso o Livro II da Retoacuterica pode
integrar a deliberaccedilatildeo aos componentes psiacutequicos que satildeo disponiacuteveis ao
ouvinte e nos quais o orador pode intervir mas tal intervenccedilatildeo natildeo seria
educaccedilatildeo Essa distinccedilatildeo potildee as disposiccedilotildees virtuosas e viciosas ao lado
da idade e das circunstacircncias sendo potecircncias que podem ser exploradas
pelo orador que pode transformaacute-las em emoccedilotildees ou em juiacutezos sobre o
que fazer (Rhet II 12 1388b31 1389a2) dando conforme Besnier
(2008 p 107) um elemento de deliberaccedilatildeo agrave emoccedilatildeo
O mesmo autor afirma compreender que isso acontece desde que
a mudanccedila nos juiacutezos possa ser provocada pelo orador atraveacutes dos
recursos da arte A mudanccedila em questatildeo acontece nos juiacutezos e se daacute por
persuasatildeo mas mesmo assim o movimento que leva a ela pode ser
considerado afecccedilatildeo porque quem a produz natildeo eacute o ouvinte e sim o
orador Este eacute agente externo e o que pretende ou seja alterar a crenccedila
do ouvinte acontece por meios que satildeo proacuteximos agrave deliberaccedilatildeo Nesse
caso contudo o que afeta o ouvinte natildeo eacute um discurso que o educa e
que faz com que mude de juiacutezo portanto ldquoo juiacutezo obtido por persuasatildeo
se distingue do adquirido por exerciacutecio repetido da deliberaccedilatildeordquo
(BESNIER 2008 p 107) o que diferencia a accedilatildeo da retoacuterica daquela da
educaccedilatildeo moral das emoccedilotildees
Pensamos que as consideraccedilotildees supramencionadas poreacutem natildeo
invalidam nossas observaccedilotildees acerca da forma como a persuasatildeo
200
retoacuterica pode atingir o campo eacutetico-poliacutetico jaacute que Aristoacuteteles deixa
bem claro que tal arte age nos juiacutezos dos cidadatildeos em momento
propriamente ligados agrave vida poliacutetica quando haacute exerciacutecio da democracia
em sua forma mais ativa Natildeo desmerecem nossa consideraccedilatildeo da
retoacuterica como elemento poliacutetico propiacutecio agrave educaccedilatildeo moral das
emoccedilotildees pois saber como conduzi-las ou perceber que satildeo manipuladas
pode ser favoraacutevel agraves instacircncias poliacuteticas de decisatildeo bem como aos
educadores que pretendem moderaacute-las Sendo nessas instacircncias que se
propotildeem os rumos da vida na poacutelis haveraacute intervenccedilatildeo da arte retoacuterica
nos modos como os cidadatildeos deveratildeo proceder em certas situaccedilotildees
Aleacutem do mais entendemos que de nada vale a simples habituaccedilatildeo
dirigida pela razatildeo na formaccedilatildeo da virtude se natildeo haacute ocasiatildeo de praticar
aquilo ao que se eacute habituado a fim de consolidar o que tal educaccedilatildeo
faculta Portanto defendemos que o conhecimento e a arte solicitados
pelo discurso satildeo igualmente uacuteteis agrave moralidade
Defenderemos proposta semelhante quanto agrave arte poeacutetica pois na
Poeacutetica ou a partir de tal tratado pode-se observar que para produzir a
catarse do medo e da piedade eacute preciso ldquoexcitaacute-los na audiecircnciardquo
(SORABJI 2002 p 24 traduccedilatildeo nossa) Por isso o poeta quando
escreve deve saber que tipo de poema de enredo excitaraacute tais emoccedilotildees
Diante dessa semelhanccedila a questatildeo eacute a consideraccedilatildeo do medo e da
piedade na Retoacuterica eacute coordenada com a observaccedilatildeo dessas emoccedilotildees
feita na Poeacutetica A resposta dada por Sorabji eacute em grande medida O
estudioso pensa que a pequena diferenccedila eacute que na Poeacutetica o medo eacute
sentido pela audiecircncia a princiacutepio depois pelos personagens da peccedila
As semelhanccedilas contudo satildeo mais visiacuteveis e satildeo ateacute usadas por
Aristoacuteteles em suas observaccedilotildees sobre o enredo com as quais o filoacutesofo
esquiva-se agrave objeccedilatildeo moral feita pela Repuacuteblica X aos poetas Platatildeo
compreendia que estes artistas mostravam a injusticcedila como bem-
sucedida e a justiccedila como malsucedida Aristoacuteteles pensava tal
proposta como incompatiacutevel com a necessidade da trageacutedia de imitar
acontecimentos temiacuteveis e dignos de piedade entendia que o enredo natildeo
deveria mostrar o homem bom passando da fortuna ao infortuacutenio nem o
homem mal passando do infortuacutenio agrave fortuna porque tais eventos natildeo
seriam dignos de temor ou piedade Tambeacutem por isso natildeo deveriam
apresentar um heroacutei excelente em virtude e justiccedila jaacute que a piedade vem
com um infortuacutenio natildeo merecido e o medo com o infortuacutenio de algueacutem
que percebemos ser como noacutes (hoacutemoios) Essas proposiccedilotildees potildeem a
Poeacutetica em contato com a Retoacuterica porque esta uacuteltima afirma que o
medo e a piedade satildeo excitados ao mostrar um sofrimento que aconteceu
com algueacutem como noacutes (Poet 13 1452b34 1453a1 Rhet II 5 1383a10
201
II 8 1386a25) Por isso Aristoacuteteles pode afirmar que o medo sentido no
teatro eacute genuiacuteno
Sorabji no entanto percebe que haacute ainda pequenas discrepacircncias
entre as duas obras em questatildeo Por exemplo quando a Poeacutetica
despreza a trageacutedia na qual o homem bom passa da boa agrave maacute fortuna o
texto parece contradizer a Retoacuterica que reserva a piedade agraves viacutetimas
boas (RhetII 8 1385b34) Na Poeacutetica eacute proposto o oposto pois tal
situaccedilatildeo pode ser antes uma profanaccedilatildeo de algo digno de temor e
piedade parecendo muito diferente da Retoacuterica Sobre esse assunto o
autor escreve
Mas o ponto importante para o presente propoacutesito
eacute que as consideraccedilotildees da emoccedilatildeo na Poeacutetica satildeo
tatildeo cognitivas como aquelas na Retoacuterica e isso
natildeo eacute deslocado de jeito nenhum pela analogia da
catharsis mesmo que aquela [] seja uma
analogia com coisas tais como os natildeo-cognitivos
laxativos e emotivos (SORABJI 2002 p 25
traduccedilatildeo nossa)
Por motivos como estes que datildeo margens agrave comparaccedilatildeo das duas
artes de emocionar em termos de cognitividade implicada nas emoccedilotildees
que despertam e por entendermos ambas as artes como colaboradoras
agravequela educaccedilatildeo moral que eacute proposta na EN por trabalharem e fazerem
aflorar no cidadatildeo aquilo que haacute de mais propriamente humano trataremos agora da forma como a Poeacutetica propotildee possibilidades de
mudanccedilas nasdas emoccedilotildees Buscaremos entender quais elementos de
racionalidade estatildeo implicados em tais mudanccedilas bem como o modo
pelo qual a poesia opera como forte aliada da educaccedilatildeo emocional
moral
3 c) A poesia como facilitadora da educaccedilatildeo moral
Nesse ponto da pesquisa estudaremos a poesia traacutegica porque
tambeacutem pode ser entendida como um tipo de arte de emocionar e como
um meio de alterar ou despertar emoccedilatildeo A confirmaccedilatildeo desta afirmaccedilatildeo
aparece com a definiccedilatildeo que Aristoacuteteles oferece da trageacutedia e que
destaca a funccedilatildeo especiacutefica de tal arte provocar medo e piedade bem
como a kaacutetharsis (catarse) dessas emoccedilotildees O filoacutesofo destaca os
acontecimentos e o enredo como o fim da trageacutedia sendo o fim o mais
importante de tudo Natildeo poderia haver trageacutedia sem accedilatildeo mas poderia
haver sem caracteres pois se um poeta juntar palavras bem elaboradas
202
quanto agrave elocuccedilatildeo e ao pensamento exprimindo caraacuteter natildeo realizaraacute a
funccedilatildeo traacutegica Uma trageacutedia ainda que seja inferior nesses aspectos
conseguiraacute muito mais por ter enredo e estruturaccedilatildeo de accedilotildees bem
elaboradas (Poet 6 1450a30-33) pois ldquoA trageacutedia eacute a imitaccedilatildeo de uma
accedilatildeo elevada e completa dotada de extensatildeo em uma linguagem
embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes que se
serve da acccedilatildeo e natildeo da narraccedilatildeo e que por meio da compaixatildeo e do
temor provoca a purificaccedilatildeo de tais paixotildeesrdquo (Poet 6 1449b24-28)182
As partes do enredo (myacutethos) satildeo os elementos da trageacutedia que
exercem maior atraccedilatildeo e emoccedilatildeo e essas partes satildeo a peripeacutecia
(peripeacuteteia) e os reconhecimentos (anagnōriacuteseis Poet 6 1450a34-35)
Sendo peripeacutecia a mudanccedila dos acontecimentos em seu contraacuterio
acontecendo de modo verossiacutemil e necessaacuterio agrave construccedilatildeo do texto e
reconhecimento a passagem da ignoracircncia ao conhecimento para
amizade ou oacutedio entre os que estatildeo destinados a serem infelizes ou
felizes Aristoacuteteles considera o reconhecimento que se daacute entre pessoas
mais belo se acompanhado da peripeacutecia e embora estes elementos natildeo
apareccedilam sempre juntos o tipo mais proacuteprio de reconhecimento eacute o que
vem acompanhado da peripeacutecia pois deste modo suscitam piedade ou
medo com maior facilidade As emoccedilotildees traacutegicas acontecem porque as
duas partes do enredo supramencionadas estatildeo extremamente ligadas ao
ser feliz ou infeliz contudo haacute um terceiro elemento do enredo o
sofrimento (paacutethos) que eacute um ato destruidor ou doloroso como as
mortes que aparecem em cena que igualmente pode causar medo e
piedade Com estes componentes percebemos a accedilatildeo das aparecircncias que
afetam a percepccedilatildeo provocando o puacuteblico pois mostram o sofrimento
alheio de forma surpreendente e emocionante podendo mesmo fazer
com que de certo modo o puacuteblico se ponha no lugar da personagem
sofredora ao associar certo tipo de pensamento ao desencadeamento das
emoccedilotildees traacutegicas
Esse tipo de proposta emocional eacute sugerido pela forma como o
filoacutesofo dispotildee as partes componentes da trageacutedia em grau de
importacircncia agrave composiccedilatildeo de um bom poema Primeiro o enredo parte
mais importante e essencial agrave trageacutedia segundo o caraacuteter (eacutethos) que eacute
uma espeacutecie de bela imagem A trageacutedia eacute entatildeo imitaccedilatildeo de accedilotildees em
uma trama (ou enredo myacutethos) e imitando accedilotildees imita os homens que
182 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original στιν οὖν τραγῳδία
μίμησις πράξεως σπουδαίας καὶ τελείας μέγεθος ἐχούσης ἡδυσμένῳ λόγῳ
χωρὶς ἑκάστῳ τῶν εἰδῶν ἐν τοῖς μορίοις δρώντων καὶ οὐ δι ἀπαγγελίας δι
ἐλέου καὶ φόβου περαίνουσα τὴν τῶν τοιούτων παθημάτων κάθαρσιν
203
agem demonstrando seu caraacuteter Em terceiro lugar vem o pensamento
(diaacutenoia) o ser capaz de exprimir o que eacute possiacutevel e o que eacute apropriado
O caraacuteter revela igualmente as decisotildees e o pensamento aparece nos
enunciados Quarto a elocuccedilatildeo (leacutexis) que tem relaccedilatildeo com as palavras
comunicadoras do pensamento Em quinto lugar aparece a muacutesica
(melopoiiacutea) mais agradaacutevel dentre os componentes elencados e o
espetaacuteculo (oacutepsis) sexto componente que atrai os espiacuteritos embora seja
a parte mais desprovida de arte e mais alheia agrave poeacutetica na opiniatildeo do
filoacutesofo porque a potecircncia da trageacutedia existe mesmo sem concursos e
atores aleacutem do que a montagem dos espetaacuteculos e a arte de quem
executa os acessoacuterios valem mais que do que a arte dos poetas em uma
encenaccedilatildeo (Poet 26 1461b26-36 et seq)
A duraccedilatildeo dos os enredos eacute igualmente importante deveratildeo ter
extensatildeo que facilite a recordaccedilatildeo pois como afirmamos se emocionar
com a trageacutedia requer certo tipo de pensamento O filoacutesofo entende
contudo que o limite mais amplo desde que perfeitamente claro seja
sempre o mais belo Para exemplificar a extensatildeo deve ter um tamanho
que reuacutena conforme os princiacutepios da verossimilhanccedila e da necessidade
a sequecircncia dos acontecimentos apresentados pelo enredo de modo que
mudem da felicidade agrave infelicidade e vice-versa (Poet 8 1451a12-15 9
1551b27-32) favorecendo a inteligibilidade e credibilidade do poema
Uma vez que a imitaccedilatildeo representa natildeo soacute uma
acccedilatildeo completa mas tambeacutem factos que inspiram
temor e compaixatildeo estes sentimentos satildeo muito
[mais] facilmente suscitados quando os factos se
processam contra a nossa expectativa por uma
relaccedilatildeo de causalidade entre si Desta forma a
imitaccedilatildeo seraacute mais surpreendente do que se
surgisse do acaso e da sorte pois os factos
acidentais causam mais admiraccedilatildeo quando parece
que acontecem de propoacutesito (Poet 10 1452a1-
6)183
Os fatos que natildeo parecem acontecer por acaso agitam os sentidos
183 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original ἐπεὶ δὲ οὐ μόνον
τελείας ἐστὶ πράξεως ἡ μίμησις ἀλλὰ καὶ φοβερῶν καὶ ἐλεεινῶν ταῦτα δὲ
γίνεται καὶ μάλιστα καὶ μᾶλλον ὅταν γένηται παρὰ τὴν δόξαν δι ἄλληλα τὸ γὰρ
θαυμαστὸν οὕτως ἕξει μᾶλλον ἢ εἰ ἀπὸ τοῦ αὐτομάτου καὶ τῆς τύχης ἐπεὶ καὶ
τῶν ἀπὸ τύχης ταῦτα θαυμασιώτατα δοκεῖ ὅσα ὥσπερ ἐπίτηδες φαίνεται
γεγονέναι
204
e a imaginaccedilatildeo do puacuteblico tornando os enredos mais belos Tais fatos
fazem tambeacutem o efeito proacuteprio agraves trageacutedias mais forte sendo este efeito
provocar emoccedilotildees e kaacutetharsis no puacuteblico graccedilas a uma agitaccedilatildeo de
certos elementos da razatildeo a partir da percepccedilatildeo sensiacutevel que eacute
provocada pela trama da trageacutedia e pela inteligibilidade interna agrave
composiccedilatildeo dessa trama Do mesmo modo ldquotemor e a compaixatildeo
podem realmente ser despertados pelo espetaacuteculo e tambeacutem pela
proacutepria estruturaccedilatildeo dos acontecimentos o que eacute preferiacutevel e proacuteprio de
um poeta superiorrdquo (Poet11 1453b1-3)184 A estrutura da trageacutedia
representa boas pessoas que sentem pesar mas natildeo devido a uma falta
que tenham cometido Esse aspecto correto conferido ao caraacuteter do heroacutei
traacutegico eacute causador da crenccedila que eacute parte do conteuacutedo da piedade
Partindo da proposta aristoteacutelica da emoccedilatildeo em questatildeo Nussbaum
(2008 p 239) entende que os julgamentos seratildeo suficientes para
despertaacute-la quando estiverem em conjunto com aquilo que chama de
julgamento eudaiacutemoniacutestico Tal julgamento concebe a pessoa ou o que
acontece a ela como partes do que eacute importante para o bem-estar de
quem avalia e os dramas despertam aquele tipo de preocupaccedilatildeo com o
foco na possibilidade de evento similar vir a acontecer como
propusemos pouco acima
Quanto ao medo ele eacute sentido segundo a interpretaccedilatildeo de
Nussbaum tanto pelo personagem que percebe coisas maacutes e iminentes
como por quem assistelecircouve como algum reflexo de possibilidades
que mostram da vida humana em geral Os personagens igualmente
podem ter e expressar vaacuterias emoccedilotildees enquanto os espectadores por
uma parte do texto se identificam com um ou outro personagem e por
isso tambeacutem experimentaratildeo aquelas emoccedilotildees ldquocompartilhando a raiva
e a desolaccedilatildeo de Filoctetes ou a devastaccedilatildeo de Eacutedipo quando ele
descobre o que fezrdquo (NUSSBAUM 2008 p 240 traduccedilatildeo nossa) Para
tanto eacute preciso que o enredo seja estruturado de tal forma necessaacuteria e
verossimilmente de modo que mesmo o simples ouvir a sequecircncia dos
acontecimentos embora natildeo a vendo faccedila temer e sentir piedade pelo
que aconteceu ao personagem com o qual se estabeleceu um certo
ldquoelordquo O viacutenculo eacute causado por certa semelhanccedila existente entre
personagem e puacuteblico graccedilas ao caraacuteter natildeo perfeito do heroacutei traacutegico
como explica Ricoeur
184 Idem Ἔστιν μὲν οὖν τὸ φοβερὸν καὶ ἐλεεινὸν ἐκ τῆς ὄψεως γίγνεσθαι ἔστιν
δὲ καὶ ἐξ αὐτῆς τῆς συστάσεως τῶν πραγμάτων ὅπερ ἐστὶ πρότερον καὶ
ποιητοῦ ἀμείνονος
205
[] satildeo tambeacutem as emoccedilotildees traacutegicas que exigem
que o heroacutei natildeo alcance a excelecircncia na virtude e
justiccedila devido a alguma ldquofaltardquo mas sem chegar
ao viacutecio ou maldade que o leve a desgraccedila eacute
intermediaacuterio [] Assim mesmo o discernimento
da falta traacutegica eacute excetuado pela qualidade
emocional da piedade do temor e do senso do
humano185 (RICOEUR 2010 p 82)
Se o poeta deve suscitar o prazer inerente ao medo e agrave piedade
por meio da imitaccedilatildeo isso deve ser feito a partir do encadeamento
racional dos acontecimentos na trama (Poet 14 1453b15-34 1454a1-9)
Por isso entendemos que a forma exigida por Aristoacuteteles agrave composiccedilatildeo
traacutegica potildee em associaccedilatildeo as duas instacircncias que completam um ser
verdadeiramente humano a racionalidade e as emoccedilotildees provocadas e
trabalhadas pela kaacutetharsis contemplando no acircmbito poeacutetico as
propostas que destacamos a partir de EN I13 e do passo EN X 7
1177b26-30
Igualmente haacute exigecircncias quanto aos caracteres dos personagens
com seu papel no emocionar e tambeacutem no efeito da trageacutedia eacute preciso
primeiro que sejam bons e que apareccedilam porque as accedilotildees do
personagem mostram-no empenhado em um propoacutesito sendo o caraacuteter
bom quando tal propoacutesito for bom Segundo os caracteres devem ser
apropriados Terceiro eacute preciso que sejam semelhantes aos nossos
caracteres confirmando a proposta da possibilidade similar Quarto e
uacuteltimo eacute exigido que sejam coerentes O que igualmente aproxima a
proposta da Poeacutetica das coisas eacuteticas bem como o faz a exigecircncia de
que seja representada uma accedilatildeo verossiacutemil e necessaacuteria mexendo ao
menos com as imaginaccedilotildees e as opiniotildees de quem com ela interage Por
conseguinte Nussbaum (2008 p 166) entende que reaccedilotildees a obras
como filmes se devem agrave grande identificaccedilatildeo com os eventos
apresentados pela ficccedilatildeo que satildeo nas palavras de Aristoacuteteles
parafraseadas pela autora ldquoo tipo de coisa que pode acontecerrdquo
Interpretaccedilatildeo que nos parece aplicaacutevel ao caso da trageacutedia e de seu
185Contudo o filoacutesofo observa que haacute tambeacutem contraponto entre eacutetica e poeacutetica
ldquoO myacutethos traacutegico ao girar em torno das reviravoltas da fortuna e
exclusivamente da felicidade para a infelicidade eacute uma exploraccedilatildeo das vias
pelas quais a accedilatildeo lanccedila contra todas as expectativas os homens de valor na
infelicidade Serve de contraponto agrave eacutetica que ensina como a accedilatildeo pelo
exerciacutecio das virtudes conduz agrave felicidade Ao mesmo tempo soacute adota do preacute-
saber da accedilatildeo seus aspectos eacuteticosrdquo (RICOEUR 2012 p 83)
206
espetaacuteculo
Por esses motivos o necessaacuterio e o verossiacutemil devem sempre ser
buscados tanto nos caracteres quanto nos acontecimentos de modo que
uma personagem diga ou faccedila o que eacute necessaacuterio ou verossiacutemil e que
uma coisa aconteccedila por causa da outra conferindo conforme tais
princiacutepios racionalidade ao enredo Aristoacuteteles sugere ainda que o
desenlace das tramas deve resultar do proacuteprio myacutethos e natildeo de uma
intervenccedilatildeo ex-machina Esse artifiacutecio no entanto pode ser usado em
coisas que se passam fora da accedilatildeo da peccedila ou em coisas que
aconteceram antes dela e que um mortal natildeo conheccedila ou em coisas
futuras que devem ser preditas e anunciadas Do mesmo modo natildeo deve
haver nada de irracional nas trageacutedias mas se houver que natildeo seja
apresentado em cena186
Os enredos devem ser estruturados e completados com a
elocuccedilatildeo dando aos acontecimentos o ar mais criacutevel possiacutevel Ao vecirc-los
como se estivesse diante dos proacuteprios fatos o poeta poderaacute descobrir o
que eacute apropriado e natildeo incorrer em contradiccedilatildeo ressaltando o primeiro
momento da miacutemesis identificado por Ricoeur baseado na relaccedilatildeo do
poeta com o mundo O poeta igualmente deve completar o enredo com
gestos o quanto for possiacutevel Do mesmo modo dos poetas com o
186Sobre a composiccedilatildeo do enredo ver Ricoeur (2010 p 59-60) mas haacute normas
tambeacutem para a composiccedilatildeo do heroacutei traacutegico Ricoeur considera essencial o
entendimento da importacircncia da composiccedilatildeo do enredo para entendermos entre
outras coisas mesmo o significado de miacutemesis na Poeacutetica Por isso trata
juntamente o par crucial de conceitos aristoteacutelicos miacutemesis-myacutethos
(representaccedilatildeo de accedilatildeocomposiccedilatildeo da intriga) que ratifica o propoacutesito
aristoteacutelico da ecircnfase na accedilatildeo representada pela trageacutedia e que nos ajuda a
defender nosso propoacutesito em estudar um texto poeacutetico em um estudo eacutetico ldquoO
que conservarei para a sequecircncia de meu trabalho eacute a quase identificaccedilatildeo entre
duas expressotildees imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo de accedilatildeo e agenciamento dos fatos A
segunda expressatildeo eacute como jaacute dissemos o definidor que Aristoacuteteles potildee no lugar
do definido myacutethos intriga Essa quase identificaccedilatildeo estaacute garantida por uma
primeira hierarquizaccedilatildeo entre as seis partes que daacute prioridade ao ldquoo quecircrdquo
(objeto) da representaccedilatildeo ndash intriga caracteres pensamento ndash sobre o ldquopor quecircrdquo
(meio) ndash a expressatildeo e o canto ndash e sobre o ldquocomordquo (modo) ndash o espetaacuteculo
depois por uma segunda hierarquizaccedilatildeo no interior do ldquoo quecircrdquo que potildee a accedilatildeo
acima dos caracteres e do pensamento (ldquoporque se trata sobretudo de uma
representaccedilatildeo de accedilatildeo (miacutemesis praacutexeos) e atraveacutes dela de homens que agemrdquo
50b3) No final dessa dupla hierarquizaccedilatildeo a accedilatildeo aparece como a ldquoparte
principalrdquo o ldquoobjetivo visadordquo o ldquoprinciacutepiordquo e por assim dizer a ldquoalmardquo da
trageacutedia Essa quase identificaccedilatildeo estaacute garantida pela foacutermula ldquoEacute a intriga que eacute
a representaccedilatildeo da accedilatildeordquo (50a1)rdquo (RICOEUR 2012 p 61)
207
mesmo talento satildeo mais convincentes aqueles que sentem as emoccedilotildees
porque quem sente fuacuteria transmite fuacuteria quem estaacute irritado mostra
irritaccedilatildeo de modo mais convincente ldquoPor isso a arte da poesia eacute proacutepria
dos gecircnios ou dos loucos jaacute que os gecircnios satildeo versaacuteteis os loucos
deliramrdquo (Poet17 1455a32-34)187 Igualmente por isso podemos fazer
um paralelo entre a ficccedilatildeo traacutegica e a moral real salvaguardadas as
devidas proporccedilotildees Aleacutem do que sendo o poeta imitador como
qualquer outro criador de imagens sempre imita necessariamente trecircs
coisas possiacuteveis (1) as coisas como eram ou satildeo em realidade (2) como
dizem ou parecem (3) como deviam ser188 Isso eacute expresso por meio da
elocuccedilatildeo que apresenta palavras raras metaacuteforas e muitas modificaccedilotildees
da linguagem o que somente eacute permitido ao poeta Ainda precisamos
abordar melhor a elocuccedilatildeo para desfecho da listagem de como os
elementos da poesia emocionam Aristoacuteteles a define como palavra que
expressa o pensamento a fim de demonstrar refutar despertar emoccedilotildees
engrandecer ou minimizar algo ou algueacutem Elemento poderoso embora
187 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original διὸ εὐφυοῦς ἡ ποιητική
ἐστιν ἢ μανικοῦ ούτων γὰρ οἱ μὲν εὔπλαστοι οἱ δὲ ἐκστατικοί εἰσιν 188 Donde a famosa teoria das trecircs miacutemeseis proposta por Paul Ricoeur em seu
Tempo e narrativa ldquoMiacutemese I designa a preacute-compreensatildeo na vida quotidiana
daquilo que se denominou justamente a qualidade narrativa da experiecircncia ndash
entendendo por tal o facto da vida e ainda mais a acccedilatildeo como Hanna Arendt
exprime brilhantemente exigirem ser contados Miacutemese II designa a auto-
estruturaccedilatildeo da narrativa sobre a base dos coacutedigos narrativos internos ao
discurso A este niacutevel Miacutemese II e myacutethos ou seja a intriga ndash ou melhor o
dispor em intriga ndash coincidem Finalmente Miacutemese III designa o equivalente
narrativo da refiguraccedilatildeo do real pela metaacuteforardquo (ABEL POREgraveE 2010 p 77) A
relaccedilatildeo com o antes da poesia eacute evidenciada em Aristoacuteteles segundo Ricoeur
devido agrave sua referecircncia aos caracteres escolhidos para as personagens da
trageacutedia e da comeacutedia que se classificam somente em ldquonobres ou baixosrdquo isso
porque todo mundo (paacutentes) na realidade eacute de um ou outro jeito As
qualificaccedilotildees eacuteticas vecircm do real e o que depende da imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo eacute
a exigecircncia loacutegica da coerecircncia O filoacutesofo francecircs afirma ainda que eacute dito que
trageacutedia e comeacutedia diferem por representar personagens piores ou melhores que
os homens reais (tograven vucircn 1448a16-18) o que eacute a segunda marca da miacutemesis I
Entatildeo o poeta pressupotildee que os caracteres possam ser melhorados ou
corrompidos pela accedilatildeo (RICOEUR 2012 p 84) ldquoOs caracteres satildeo o que
permite qualificar os personagens em accedilatildeordquo (Poet 1450a6) Haacute ainda o fato dos
poetas trabalharem com os mitos tradicionais inseridos como estatildeo na tradiccedilatildeo
grega da eacutepoca (Idem p 85) embora o pensador francecircs ligue essa continuaccedilatildeo
em Aristoacuteteles somente agraves propostas sobre o prazer proacuteprio agrave trageacutedia e ao
alcance da kaacutetharsis
208
natildeo seja um dos primeiros da lista em importacircncia a elocuccedilatildeo ajuda a
provocar as emoccedilotildees traacutegicas e a conferir verossimilhanccedila ao enredo
(Poet 18 1456a36-38 19 1456b1-8) podendo servir igualmente como
recurso retoacuterico como vimos acima
A muacutesica o espetaacuteculo e o enredo entretanto satildeo os elementos
considerados como os mais emocionantes da trageacutedia O enredo eacute nas
palavras do proacuteprio filoacutesofo ldquoa alma da trageacutediardquo aquilo que quando
bem elaborado permite imaginar e despertar emoccedilatildeo Tendo isso em
vista Nussbaum (2008 p 240 traduccedilatildeo nossa) observa ldquoo digno de
piedade e o temiacutevel natildeo satildeo simplesmente locais eles satildeo encaixados na
estrutura global da forma pelo tipo particular de identificaccedilatildeo e simpatia
com o heroacutei que a proacutepria forma cultivardquo Nussbaum admite contudo
que frequentemente a perspectiva na trageacutedia eacute modelada pelas reaccedilotildees
do coro traacutegico que encoraja uma certa variaccedilatildeo de reaccedilotildees pelo
desenrolar do enredo O sentido que corre por esses trabalhos eacute o de
algueacutem que olha os reveses e sofrimentos da pessoa razoavelmente boa
tanto com medo quanto com piedade Esse tipo de percepccedilatildeo ou de
pensamento pode mesmo alterar uma emoccedilatildeo em outra pois a pessoa
que chega indiferente ao teatro pode deixar aflorar sua piedade
transbordando ou ajustando o seu excesso dessa emoccedilatildeo e nesse caso
modificando a emoccedilatildeo Tais mudanccedilas favorecem as emoccedilotildees reais
como se expotildee na explicaccedilatildeo de Nussbaum que citamos abaixo
Compaixatildeo seraacute um motivo social valioso
somente se estaacute equipada com uma teoria
adequada do valor dos bens baacutesicos somente se
estaacute equipada com um entendimento adequado da
accedilatildeo e da culpa e somente se estaacute equipada com
uma consideraccedilatildeo adequadamente vasta da pessoa
que deve ser o objeto da preocupaccedilatildeo de um
agente tanto distante como proacuteximo Esses
julgamentos devem ser engendrados por um bom
processo de desenvolvimento Por outro lado a
compaixatildeo fornece uma vida essencial e
conexidade com a moralidade sem que esteja
perigosamente vazia e desarraigada Em casos
centrais bem representados na trageacutedia grega a
compaixatildeo incorpora avaliaccedilotildees corretas e
direciona nossa preocupaccedilatildeo para todos que
compartilham conosco uma humanidade comum
Aprendidas nas relaccedilotildees da infacircncia essas
conexotildees satildeo importantes para fazer a moralidade
209
perspicaz antes que obscura Assim a compaixatildeo
eacute um complemento necessaacuterio ao respeito []
(NUSSBAUM 2008 p 399 traduccedilatildeo nossa)189
Do mesmo modo a trageacutedia que provoca ou muda as emoccedilotildees
do puacuteblico na direccedilatildeo do outro tem enorme papel moral na poacutelis de
Aristoacuteteles como a autora tambeacutem explicaraacute ldquoPor outro lado conveacutem
lembrar ainda o dito por Aristoacuteteles sobre uma accedilatildeo que eacute moralmente
virtuosa somente quando eacute feita pelos motivos corretosrdquo (NUSSBAUM
2008 p 400 traduccedilatildeo nossa) Ajudar os outros sem amor agrave humanidade
e sem preocupaccedilatildeo compassiva por sua situaccedilatildeo natildeo tem valor moral A
interpretaccedilatildeo da autora se volta para Soacutefocles pois eacute nesse momento
que se pode evocar a posiccedilatildeo grega antiga sobre o papel do drama
traacutegico na educaccedilatildeo embora entendamos ainda que essa postura
colabore com a proposta de EN X apresentada anteriormente acerca da
necessidade de extensatildeo da ldquoeducaccedilatildeordquo moral por toda a vida do
cidadatildeo Defendemos assim que a trageacutedia eacute forte aliada na formaccedilatildeo
do caraacuteter e na manutenccedilatildeo da felicidade por toda vida mas que tem seu
papel como educadora da juventude como ressalta Nussbaum
A trageacutedia natildeo eacute para os muito jovens e natildeo eacute
exatamente para os jovens As pessoas maduras
sempre precisam expandir suas experiecircncias e
reforccedilar sua posse das verdades eacuteticas centrais
Mas para o jovem futuro cidadatildeo a trageacutedia tem
um significado especial Porque esse espectador
estaacute em processo de aprender a compaixatildeo As
trageacutedias familiarizam-nos com as coisas ruins
que podem acontecer na vida humana muito antes
da proacutepria vida fazer isso assim ativam a
preocupaccedilatildeo com os outros que estatildeo sofrendo o
que a pessoa natildeo sofreu E fazem isso de um jeito
que faz a profundidade e significacircncia do
sofrimento e as perdas que o inspiram
inequivocamente claras ndash os recursos poeacutetico
visual e musical do drama assim tecircm peso moral
Convidando o espectador a se tornar intensamente
preocupado com o destino do heroacutei traacutegico e ao
mesmo tempo retratando o heroacutei como uma
pessoa de valor o drama estabelece a compaixatildeo
189 Sobre a questatildeo da compaixatildeo como necessaacuteria agrave vida em comunidade ver
tambeacutem Sem fins lucrativos Capiacutetulo III p 36 et seq
210
um espectador atento teraacute apreendendo isso
aquela emoccedilatildeo Os gregos cultivavam a emoccedilatildeo
principalmente pelo drama uma crianccedila
contemporacircnea pode aprender essas mesmas
histoacuterias miacuteticas ou seu equivalente moderno
(NUSSBAUM 2008 p 428-429 traduccedilatildeo nossa)
Para tanto devem ser buscados trabalhos que familiarizem o
jovem leitor mas pensamos que tambeacutem o leitor adulto com uma vasta
variedade de possiacuteveis sofrimentos e de coisas agraves quais eacute vulneraacutevel
mas agraves quais possa reagir Tais obras levam ao reconhecimento e agrave
preocupaccedilatildeo mas especialmente agrave percepccedilatildeo de uma humanidade em
comum e de seus traccedilos especiacuteficos confirmando o ldquohoucirctos ekeicircnosrdquo de
Poet IV Enquanto Nussbaum se concentra no papel moral da
compaixatildeo afirmamos que o mesmo vale para o medo traacutegico emoccedilatildeo
que a proacutepria autora associa agrave piedade em seu The fragility of goodness
Afirmamos que a combinaccedilatildeo desses elementos da trageacutedia
favorece seus objetivos e mostra que a arte em questatildeo igualmente pode
ser entendida como um meio de emocionar ou direcionar as emoccedilotildees do
puacuteblico que satildeo despertadas por algo que afeta conjuntamente corpo e
alma Em certo momento da histoacuteria de Atenas todos compartilhavam
os momentos no teatro sendo este aleacutem de um meio de diversatildeo para a
populaccedilatildeo um potente aliado agraves formas convencionais de educaccedilatildeo para
a cidadania vida afora Os exemplos e contraexemplos expostos nos
espetaacuteculos cecircnicos podiam transmitir liccedilotildees sobre as formas mais ou
menos adequadas de comportamento em comunidade apesar de seu
caraacuteter ficcional Podiam transmitir um ideal de homem ou levar a
refletir sobre a proacutepria existecircncia preparando para a accedilatildeo real aleacutem de
despertar reflexatildeo sobre a condiccedilatildeo alheia Com isso as emoccedilotildees
traacutegicas e seu convite agrave reflexatildeo sobre a vida podem enquadrar-se em
nossas perspectivas de emoccedilotildees modificadas ou despertadas por certo
instrumento racional qual seja a trageacutedia que trabalharia como auxiliar
daquela educaccedilatildeo emocional proposta na EN Com suas sugestotildees a
trageacutedia seria mesmo capaz de conduzir as emoccedilotildees da plateia ao ponto
de purificaacute-las ou esclarececirc-las e aclarando o mundo eacute provaacutevel que
fossem capazes de extenuaacute-las expurgaacute-las ou controlaacute-las pela
kaacutetharsis190 mesmo que primeiro devessem ser excitadas pela poesia O
190 Sobre a kaacutetharsis ver Sorabji (2002 p 288 et seq) Natildeo nos debruccedilaremos
sobre esse problema em nosso estudo pois demandaria mais forccedila do que ora
apresentamos
211
que poderia contribuir para a formaccedilatildeo dos caracteres jovens sendo a
trageacutedia e sua catarse encaradas mesmo como um tipo de terapia191 das
emoccedilotildees mas tambeacutem como colaboradoras para o aperfeiccediloamento do
caraacuteter nos adultos auxiliando-os nas mudanccedilas ou efetivaccedilatildeo de seus
haacutebitos graccedilas ao conhecimento que adquirem de suas proacuteprias
emoccedilotildees
Do mesmo modo como Aristoacuteteles frisou a poesia eacute mais
filosoacutefica que a histoacuteria porque esta nos conta o que houve sendo que o
passado natildeo nos mostra algo interessante sobre as nossas possibilidades
por indicar um evento narrado idiossincraacutetico Por sua vez os trabalhos
literaacuterios nos mostram o geral plausiacutevel como padrotildees de accedilatildeo
Mostram-nos ldquocoisas como as que podem acontecerrdquo na vida do homem
levando ao prazer intelectual (e talvez esteacutetico) proacuteprio agrave trageacutedia bem
como na proposta da miacutemesis III de Ricoeur que eacute levada com o
espectador agrave vida fora da poesia pelo prazer que a trageacutedia provoca Ao
compreender tais padrotildees de importacircncia na poesia compreendemos
tambeacutem as nossas proacuteprias possibilidades Mesmo a procura pelas
emoccedilotildees dolorosas das peccedilas e textos satildeo aberturas a esse ldquoespaccedilo
potencialrdquo da poesia pois ajuda-nos a lidar com nossa falibilidade
vulnerabilidade e impotecircncia preparando-nos para a vida Isso soacute
acontece graccedilas ao movimento duplo que nos permite perceber os
acontecimentos traacutegicos como ficcionais que natildeo nos levam a agir e que
natildeo implicam escolha deliberada mas com os quais nos identificamos
sentindo emoccedilotildees reais ao reagir ao sofrimento alheio
A verossimilhanccedila e a necessidade do enredo garantem como
propusemos que entendamos os acontecimentos traacutegicos como coisas
possiacuteveis de acontecer Garante a realidade das emoccedilotildees suscitadas pela
trageacutedia com todo seu conteuacutedo cognitivo ao menos pelas crenccedilas e
opiniotildees vindas das aparecircncias e pelo julgamento de possibilidades
similares que levam os homens a se perceberem tais como satildeo
humanos nada mais nada
191 O termo terapia natildeo aparece em Aristoacuteteles mas haacute estudiosos que defendem
essa possibilidade de interpretaccedilatildeo das kaacutetharsis como Sorabji (2002 p 288 et
seq)
212
213
Conclusatildeo
Nossa tese procurou responder agrave questatildeo como operar mudanccedilas
nas emoccedilotildees a fim de que se tornassem condizentes com a proposta de
vida feliz feita por Aristoacuteteles Para responder a pergunta norteadora de
nosso trabalho buscamos dar embasamento agrave hipoacutetese levantada a partir
de EN I de que haacute uma funccedilatildeo especificamente humana que se
confunde com a felicidade entendida como melhor desempenho das
capacidades aniacutemicas em conjunto com o corpo e que tais capacidades
devido agrave natureza da alma natildeo podem ser isoladas Esse contato das
capacidades aniacutemicas percebido a partir da discussatildeo sobre a funccedilatildeo
humana levou-nos a entender que a possibilidade de se educar as
emoccedilotildees existe pelo contato entre as capacidades racional e natildeo racional
que eacute tipicamente humano e que confere uma espeacutecie de racionalidade
agraves emoccedilotildees
Para podermos sustentar essas propostas iniciamos com um
estudo sobre a natureza das emoccedilotildees A princiacutepio buscamos responder agrave
questatildeo acerca da funccedilatildeo humana e sua importacircncia na eacutetica de
Aristoacuteteles O argumento da funccedilatildeo situado em meio agraves discussotildees
sobre a melhor forma de vida possiacutevel nos indicou sua relaccedilatildeo com o
fim proposto para o homem e nos permitiu identificar a felicidade como
um tipo de vida especificamente humano no qual as capacidades da
alma seriam desempenhadas de modo excelente Compreendemos assim
a proposta de que a vida feliz eacute um tipo de atividade conforme a virtude
indicando-nos igualmente a necessidade de entender o que seja a
virtude apontando as direccedilotildees a serem tomadas em um segundo
momento de nossa pesquisa Nessas circunstacircncias apareceu-nos o tema
das emoccedilotildees vez que Aristoacuteteles aponta a virtude ao menos em sua
face moral como boa medida nas emoccedilotildees e nas accedilotildees A pesquisa
pelos tipos de vida que se candidatam ao cargo de felicidade e a
tentativa de resposta ao questionamento acerca da existecircncia de um soacute
tipo de vida como especificamente humano conduziu nossa discussatildeo
em direccedilatildeo a EN I 13 que propotildee a biparticcedilatildeo da alma e que nos
apresenta as ldquopartesrdquo racional e natildeo racional da alma bem como a
possibilidade de entrarem em acordo
A partir da proposta da existecircncia de ldquopartesrdquo na alma pudemos questionar a validade dessa afirmaccedilatildeo e chegamos agrave conclusatildeo de que
Aristoacuteteles natildeo propotildee uma alma realmente dividida mas composta por
diferentes capacidades operadas majoritariamente pelo corpo Tais
entendimentos permitiram que respondecircssemos agrave indagaccedilatildeo pela forma
de vida que constituiria o fim ou felicidade humana como realizaccedilatildeo do
214
bom desempenho de uma funccedilatildeo defendendo com o auxiacutelio de
Korsgaard Nussbaum e Reeve a impossibilidade de acatar a
interpretaccedilatildeo da eudaimoniacutea como uma vida plenamente contemplativa
Com a ajuda de estudiosos como Sorabji e Zingano percebemos que haacute
que se duvidar de propostas de leitura que tendam a esboccedilar Aristoacuteteles
como um filoacutesofo que apresenta um apreccedilo exacerbado das capacidades
racionais Pareceu-nos mais verdadeiro defender que suas teorias
apontam para uma vida mais intensa que aquela disposta agrave simples
contemplaccedilatildeo teoacuterica Propusemos uma vida que se completa na poacutelis
com o exerciacutecio de capacidades aniacutemicas desempenhadas de um modo
racional ou seja especialmente humano como propotildeem Korsgaard e
Boyle Tal defesa foi possiacutevel justamente devido ao conjunto das
capacidades indicadas pelo DA como tiacutepico agrave psychḗ do homem a saber
nutritiva perceptiva (e com esta a desiderativa) e raciocinativa Por esse
motivo julgamos pertinente desenvolvermos mas apenas de modo a
sanar nossas duacutevidas acerca das emoccedilotildees e seu papel na felicidade um
pequeno estudo a respeito da alma humana
O estudo tambeacutem contou com o apoio do De Anima texto que
confirmou nossas suspeitas e nos capacitou a defender uma teoria da
alma como um todo composto por capacidades que faculta ao corpo
realizar ou seja uma teoria hilemoacuterfica a respeito do homem que
comeccedilou a ser esboccedilada ainda com as nossas constataccedilotildees a respeito da
funccedilatildeo humana A defesa de uma psychḗ composta por capacidades
imprescindivelmente correlacionadas e que tecircm suas funccedilotildees
manifestas mesmo que imperceptivelmente no corpo teve apoio em
estudos como os de Bastit e Zingano e nos permitiu tratar as emoccedilotildees
como afecccedilotildees do conjunto corpoalma Tudo isso soacute foi possiacutevel porque
pensamos ter conseguido sustentar aleacutem de uma teoria da unidade da
alma uma teoria que entendeu a capacidade desiderativa como um todo
coeso Embora o desejo apresente diferentes tipos de manifestaccedilatildeo
relacionados aos seus objetos e agraves relaccedilotildees dos tipos de desejo com a
razatildeo proposta devedora aos estudos de Aggio dedicados agrave questatildeo do
desejo e do prazer na EN os desejos igualmente considerados paacutethē por
Aristoacuteteles nos mostraram diferentes emoccedilotildees que satildeo por eles
acompanhadas Tais emoccedilotildees como os desejos aos quais se relacionam
podem sofrer algum tipo de educaccedilatildeo validando desde o iniacutecio de
nossa pesquisa a teoria sobre a possibilidade de mudar as emoccedilotildees
favoravelmente agrave vida moral conforme a razatildeo praacutetica
Compreendemos contudo que nem todas as emoccedilotildees podem ser
mudadas ou moderadas Defender uma capacidade desiderativa
unificada reforccedilou a defesa de uma alma una e de emoccedilotildees capazes de
215
se harmonizar com as solicitaccedilotildees da capacidade racional A abertura
dos desejos e das emoccedilotildees para ao menos um tipo de razatildeo garantiu ao
homem a possibilidade de agir bem e com isso validamos a proposta
feita por Reeve Natali e Korsgaard da vida feliz entendida como
indispensavelmente atrelada agrave eupraxiacutea Neste tipo de vida o homem
apresenta por si mesmo ou por auxiacutelio de algueacutem ou das leis a virtude
moral como boa medida nas emoccedilotildees Por isso para desfecho Capiacutetulo
I buscamos compreender o que Aristoacuteteles entendia por emoccedilatildeo jaacute que
no momento da EN que parecia o mais propiacutecio a tal descriccedilatildeo o Livro
II 4 o filoacutesofo procedeu a uma listagem das coisas que chama emoccedilatildeo
Esse tipo de exposiccedilatildeo deu origem agrave boa parte dos questionamentos que
apontamos ao longo desse Capiacutetulo Recorrendo novamente ao DA mas
agora tambeacutem agrave Poet agrave Rhet e a alguns dos comentadores acima
relacionados que de certo modo abordaram o assunto esboccedilamos um
conceito de emoccedilatildeo que pode ser resumido do modo que segue
Emoccedilatildeo eacute um paacutethos que ocasiona certo tipo de movimento ou
alteraccedilatildeo no corpo de modo perceptiacutevel ou imperceptivelmente por
algo que atinge o homem a partir de fora (ou que vem de dentro da
alma quando age a memoacuteria de coisas que atingem o homem a partir de
fora) Acontece especialmente pelas consideraccedilotildees que se tem das
cirscunstacircncias nas quais ocorrem as relaccedilotildees com os outros e com o
mundo e aciona ou eacute acionada por algumas das capacidades aniacutemicas
humanas possivelmente consideradas racionais tais como a opiniatildeo o
julgamento a imaginaccedilatildeo e mesmo certos tipos de pensamento Por isso
as emoccedilotildees podem ser postas em conformidade com a reta razatildeo a fim
da virtude pois apresentam um quecirc de razatildeo desde sua constituiccedilatildeo A
emoccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles natildeo eacute mera passividade porque sugere
accedilatildeo ou reaccedilatildeo por parte de quem a sente Assim as emoccedilotildees satildeo
respostas agraves propostas que vecircm do mundo agrave sua volta diferem da
simples afecccedilatildeo e tecircm relevacircncia moral por interferirem nas accedilotildees e nas
interaccedilotildees com o mundo sendo esta sua diferenccedila em vista das demais
paacutethē
O primeiro momento de nossa tese encorajou o estudo acerca da
racionalidade que pensamos cercar as emoccedilotildees desde suas origens e
apontou-nos a necessidade de dedicar parte da pesquisa ao tratamento
das virtudes que se mostraram associadas agrave existecircncia de emoccedilotildees
educadas e natildeo contrastantes com a execuccedilatildeo excelente das atividades
humanas que se coadunam em felicidade Assim para dar
prosseguimento ao estudo o segundo Capiacutetulo teve iniacutecio com uma
breve tentativa de compreender melhor o conceito de virtude A partir
da afirmaccedilatildeo da existecircncia de dois tipos de virtude moral e intelectual
216
pudemos entender igualmente a existecircncia da virtude completa Essas
constataccedilotildees apontaram a necessidade de discutirmos as virtudes morais
compreendidas como meios termos nas accedilotildees e nas emoccedilotildees que satildeo
condiccedilatildeo necessaacuteria agrave felicidade A proposta contudo sofreu e sofre
objeccedilotildees por parte de filoacutesofos e pesquisadores que se dedicaram ao
estudo da virtude moral O problema foi tratado somente de modo a
contemplar nossas intenccedilotildees e desse tratamento pudemos concluir que a
doutrina da virtude moral proposta por Aristoacuteteles embora apresente
empecilhos agrave sua interpretaccedilatildeo pode ser tomada como uma teoria que
apresenta aspectos variados para a virtude moral
Distinguimos aspectos quantitativos quando nos fala de
intensidades ou quantidades com que sentimos emoccedilotildees aspectos
qualitativos ao indicar padrotildees para que as emoccedilotildees sejam
adequadamente sentidas e ainda aspectos conceituais quando nos
mostra que a doutrina da virtude se direciona ao entendimento dessas
qualidades da alma desiderativa em suas manifestaccedilotildees particulares
Tais manifestaccedilotildees igualmente validam certa aplicabilidade agrave teoria da
boa medida por abordarem a proposta quando se trata de accedilotildees
particulares que podem ser concretizadas sob a influecircncia das emoccedilotildees
Nossa interpretaccedilatildeo sobre o assunto e nossa posiccedilatildeo quanto agrave celeuma
sobre a validade da doutrina da boa medida eacute que todos esses traccedilos
devem ser tomados como distintivos das virtudes em questatildeo porque
natildeo excluem uns aos outros e podem tambeacutem ser aplicaacuteveis agraves accedilotildees
Estas satildeo atreladas agraves emoccedilotildees sendo que como na proposta de
Zingano aquilo que eacute plausiacutevel quanto agraves emoccedilotildees de certo modo
tambeacutem seraacute aplicaacutevel agraves accedilotildees que sugerem
A fim de levar adiante o entendimento da doutrina da boa
medida procuramos estudar as possibilidades de conferir o meio termo
agraves emoccedilotildees Deparamo-nos com as propostas da habituaccedilatildeo agrave praacutetica de
accedilotildees moralmente corretas indicando o caminho que deveriacuteamos
percorrer ateacute o teacutermino de nosso estudo para compreensatildeo da
possibilidade de se educar ou mudar as emoccedilotildees para o bem humano
Essa habituaccedilatildeo na melhor das hipoacuteteses torna o agente capaz de
escolher por si mesmo as accedilotildees que iratildeo conduzi-lo aos bens que deseja
alcanccedilar Isso daacute um caraacuteter voluntaacuterio agrave accedilatildeo e agrave virtude moral bem
como um aspecto responsaacutevel ao homem virtuoso que busca o melhor
modo de agir em direccedilatildeo ao bem supremo cumprindo aquilo que se
entende por sua funccedilatildeo Para tanto as emoccedilotildees devem ser moderadas
conforme as sugestotildees da capacidade de razatildeo como um todo o que
indicou a necessidade ao menos da virtude intelectual da prudecircncia
efetivando as virtudes morais
217
Entendemos por virtude completa a junccedilatildeo das virtudes das duas
as capacidades da alma manifestada atraveacutes de uma vivecircncia poliacutetica
favoraacutevel ao bom desempenho do raciociacutenio e de consequentes boas
accedilotildees Com isso pareceu-nos apropriado dedicar certo tempo embora
curto ao estudo das virtudes intelectuais em especial ao estudo da
prudecircncia e de seu processo ndash da deliberaccedilatildeo agrave escolha deliberada e agrave
accedilatildeo moralmente boa Esse estudo nos levou a perceber a prudecircncia
como um tipo de percepccedilatildeo praacutetica ou deliberativa diferente da
percepccedilatildeo sensiacutevel comum mas natildeo desvencilhado desta sugerindo
ainda a accedilatildeo de outras capacidades racionais entendidas do modo
proposto pelo De Anima bem como pela EN Isso indicou uma inegaacutevel
associaccedilatildeo da capacidade racional do intelecto com a percepccedilatildeo
confirmando novamente nossas propostas sobre a unidade da alma A
prudecircncia pede deliberaccedilatildeo praacutetica em casos excepcionais apresentados
pela vida Tal deliberaccedilatildeo se relaciona com um tipo especial de
imaginaccedilatildeo embora natildeo totalmente diacutespar e distante daquela
imaginaccedilatildeo entendida como (sub)capacidade da alma que eacute
intermediaacuteria entre percepccedilatildeo sensiacutevel e pensamento
A imaginaccedilatildeo deliberativa bem como a percepccedilatildeo
especificamente associada agrave prudecircncia como um tipo de visatildeo permite
um caacutelculo apresentado sob a forma do silogismo praacutetico Este iraacute
conduzir o agente desde a percepccedilatildeo daquilo que entende como um bom
fim e que eacute desejado passando pela proposiccedilatildeo de meios para que tal
fim possa ser alcanccedilado e chegando agrave indicaccedilatildeo pela escolha deliberada
da melhor forma de accedilatildeo para atingir tal fim Nesse percurso o agente
tem contato com um sem-nuacutemero de aparecircncias particulares que acabam
por indicar-lhe de certo modo o universal ao menos sob a forma do
bem supremo a ser procurado O contato com esse tipo de bem relaciona
a prudecircncia natildeo somente com particulares mas tambeacutem com algo de
universal A prudecircncia eacute asociada igualmente agrave indicaccedilatildeo dos meios
para a consecuccedilatildeo da proacutepria felicidade entendida como fim de toda
vida humana
De certo modo essas propostas relacionam todas as capacidades
da alma pois conferem agrave virtude intelectual certa semelhanccedila com a
atividade e os objetos especiacuteficos agraves virtudes intelectuais teoacutericas Por
conseguinte reforccedilamos nossa interpretaccedilatildeo de uma alma una composta
por capacidades interligadas Com isso pudemos indicar ainda que natildeo
conclusivamente a possibilidade ou mesmo a necessidade de
comunicaccedilatildeo da capacidade natildeo racional da alma com a capacidade
racional em sua vertente teoacuterica jaacute que tratamos de uma alma soacute isenta
de secccedilotildees Ao final dessa parte apresentamos a relaccedilatildeo proposta no fim
218
do Livro VI da EN da virtude natural e da virtude em sentido estrito
pois entendemos que tal questatildeo reforccedila nossa proposta da virtude
completa como junccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais que concorrem
para o exerciacutecio da funccedilatildeo humana Nesse ponto da pesquisa ainda
julgamos necessaacuterio ratificar a racionalidade das emoccedilotildees e propor
condiccedilotildees ou instrumentos para que isso aconteccedila coisa que buscamos
fazer com o terceiro e uacuteltimo momento desta tese
A tiacutetulo de desfecho da pesquisa o Capiacutetulo III buscou
fundamentar suas anaacutelises especialmente na parte final EN parte do
tratado que a princiacutepio pareceu se distanciar de todas as propostas que
defendemos ao longo do estudo apresentado anteriormente O Livro X
nos apresentou a possibilidade de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma
forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica proposta que
para estudiosos como Kenny se mostra o desfecho perfeito agraves discussotildees
sobre a felicidade iniciadas em EN I No entanto o proacuteprio Livro X nos
encorajou a seguir em frente com nossa leitura da funccedilatildeo humana como
desempenho excelente e de um modo racional do conjunto de atividades
que compotildeem a melhor forma de vida possiacutevel ao homem Em EN X 7
1176b19-26 Aristoacuteteles apresenta o questionamento ressaltado por
Sorabji entre outros que potildee em jogo a possibilidade da contemplaccedilatildeo
teoacuterica como fim da vida humana Tendo em vista que nosso tema
solicita uma defesa da capacidade natildeo racional da alma humana em
harmonia com a capacidade racional acatamos as sugestotildees dos
comentadores mas recorremos agraves questotildees sobre a alma para defesa de
nossa proposta pautada em postura contraacuteria ao entendimento da vida
feliz como vida puramente contemplativa
Para reforccedilarmos essa ideia lanccedilamos matildeo de um vocabulaacuterio
associado tanto agraves capacidades racionais humanas quanto agraves descriccedilotildees
das emoccedilotildees que encontramos ao longo de todo o estudo e das leituras
dos textos de Aristoacuteteles As propostas sobre a psychḗ indicaram que o
vocabulaacuterio em questatildeo apresentava mais que termos atrelados agrave
racionalidade Os termos designavam (sub)capacidades da alma que
permitiram explicar o despertar das emoccedilotildees pelo contato do homem
com mundo atraveacutes da percepccedilatildeo sensiacutevel Propunham a imaginaccedilatildeo
com suas elaboraccedilotildees a respeito das relaccedilotildees com os outros e poderiam
despertar tipos de pensamento ou ao menos opiniotildees e crenccedilas que
instigassem as emoccedilotildees Com o apoio do estudo sobre as virtudes
intelectuais pudemos mesmo sugerir uma ligaccedilatildeo entre essas
(sub)capacidades mencionadas com outras similares As emoccedilotildees
manteriam contatos com essas uacuteltimas (sub)capacidades tambeacutem quando
passassem pelo filtro da deliberaccedilatildeo praacutetica e da escolha deliberada
219
Esta seria uma das formas possiacuteveis de lhes conceder a forma adequada
e ao mesmo tempo um modo de alcanccedilar o melhor estado das
capacidades aniacutemicas como um todo Com isso as chamadas ldquopartesrdquo
da alma estavam relacionadas pois constatamos que mesmo quando se
propotildee o intelecto relacionado ao paacutethos a capacidade intelectual
humana constitui-se assim como toda a alma como uma soacute A relaccedilatildeo
da razatildeo teoacuterica com as emoccedilotildees natildeo foi mais bem explorada por
questotildees de exequibilidade da pesquisa mas salientamos que o assunto
nos instiga apresentando-se como tema para pesquisa futura
Apoacutes essas inferecircncias novamente consultamos o De anima a
Retoacuterica e a Poeacutetica que se mostraram fonte indispensaacutevel agrave defesa de
nossa tese Estes tratados nos permitiram finalizar nosso trabalho
estudando instrumentos diferentes da habituaccedilatildeo e do ensino defendidos
pela EN mas que se associam em uma proposta educacional que
percorre toda a vida do cidadatildeo Nas poacuteleis haacute dispositivos disponiacuteveis
para que se possa consolidar e manter a educaccedilatildeo moral emocional
Uma educaccedilatildeo que comeccedila com atenccedilatildeo a cada pessoa em famiacutelia e
que possa se estender para os ambientes de conviacutevio na cidade eacute a
proposta de Aristoacuteteles para educar os cidadatildeos e suas emoccedilotildees
Entendemos que a poacutelis apresenta entre outros recursos o teatro
e os ambientes nos quais satildeo proferidos os discursos retoacutericos como
auxiliares da formaccedilatildeo moral Esses ambientes satildeo fontes riquiacutessimas
para que a percepccedilatildeo que se inicia com o intermeacutedio dos sentidos possa
solicitar as construccedilotildees das formas de imaginaccedilatildeo e provavelmente
direcionar convenientemente os cidadatildeos a certos tipos de opiniotildees
crenccedilas e mesmo elaboraccedilotildees racionais mais sofisticadas A partir de um
estudo eacutetico apoiado na proposta aristoteacutelica sobre a alma bem como
em demais obras de Aristoacuteteles e por todos os motivos acima elencados
entendemos que a defesa da educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua
racionalidade se faz possiacutevel Tal defesa foi necessaacuteria pois eacute somente o
contato da racionalidade com as emoccedilotildees seja em sua constituiccedilatildeo seja
atraveacutes das propostas dos elementos de racionalidade que podem tocaacute-
la que percebemos a possibilidade de educar ou mudar as emoccedilotildees
220
221
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Agradecimentos
Agradeccedilo agraves professoras Maria de Lourdes Borges e Marina dos Santos
pelas orientaccedilotildees Agradeccedilo aos professores Maacuterio Nogueira e Maria
Aparecida de Oliveira pelo apoio
Agradeccedilo aos amigos Clarissa Ayres Mendes Giuliano Orsi Catherinne
Melo Alves Suecircnia Mendes e Ruacutebia Oliveira que tiveram papel
indispensaacutevel nessa etapa de vida e pesquisa Agradeccedilo Marisa e Cauatilde
famiacutelia
Agradeccedilo ao Alex pela companhia paciecircncia e compreensatildeo
Resumo
A tese trataraacute a possibilidade de educaccedilatildeo das emoccedilotildees existente graccedilas
agrave racionalidade apresentada em sua natureza e nas emoccedilotildees educadas
moralmente O estudo seraacute feito a partir das propostas da Eacutetica
Nicomaqueia recorrendo quando necessaacuterio ao De anima agrave Retoacuterica e
agrave Poeacutetica textos que dedicaram atenccedilatildeo especial ao assunto Para
defender essas propostas a investigaccedilatildeo busca compreender aquilo que
Aristoacuteteles entende por emoccedilatildeo partindo do Livro I da EN que indicaraacute
a possibilidade da capacidade desiderativa ouvir a razatildeo Com isso
percebemos que Aristoacuteteles natildeo pretende excluir os elementos natildeo
racionais da vida moral estando mais preocupado em encontrar formas
capazes de conciliar as capacidades aniacutemicas e de sentir emoccedilotildees com
as coisas certas nos momentos convenientes em direccedilatildeo a quecirc e a quem
eacute adequado Essa interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel porque o filoacutesofo compreende
a alma como algo composto por capacidades natildeo seccionadas pondo as
emoccedilotildees que satildeo da alccedilada do desiderativo desde seu iniacutecio em
contato com a capacidade racional da alma Esta uacuteltima capacidade
indica os motivos para se emocionar mas igualmente propotildee ao homem
educado moralmente uma forma moderada de emoccedilatildeo que lhe permitiraacute
levar uma vida proacutepria ao homem Tal vida agrave qual eacute imprescindiacutevel a
eupraxiacutea soacute eacute alcanccedilada com o apoio das virtudes Por isso eacute necessaacuterio
entender o que Aristoacuteteles propotildee como virtude e por que a relaciona
com a emoccedilatildeo a partir do Livro II da EN Tal estudo permite dar
continuidade agrave investigaccedilatildeo acerca das capacidades da alma humana
sugeridas por EN I 13 texto que apresenta a divisatildeo das virtudes
conforme capacidades da alma em morais e intelectuais As virtudes
configuram-se como melhor estado possiacutevel para cada capacidade da
alma sendo assunto imprescindiacutevel agrave pesquisa proposta No final da
exposiccedilatildeo da EN a alternativa de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma
forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica parece
destoar das propostas de nosso estudo Natildeo obstante o proacuteprio Livro X
traz argumentos que permitem manter a leitura da melhor forma de vida
possiacutevel ao homem ou seja de sua funccedilatildeo proacutepria como uma vida na
poacutelis que conjuga o bom exerciacutecio de todas as suas capacidades
Interpretaccedilatildeo viaacutevel pela apresentaccedilatildeo de faculdades racionais
encadeadas que podem tocar a emoccedilatildeo desde seu despertar ateacute quando
forem moderadas com o auxiacutelio da razatildeo praacutetica Contato que seraacute
facilitado pelos instrumentos aos quais os cidadatildeos podem recorrer para
garantir a chance de bem se emocionar a fim de serem virtuosos e
felizes vivendo em comunidade
Palavras-chave Emoccedilatildeo Razatildeo Virtude Felicidade
Abstract
The thesis will deal with the possibility to educate the emotions because
the rationality presented in its nature and in the morally educated
emotions The study will be based on the proposals of Nicomachean
Ethics using when necessary the De anima the Rhetoric and the
Poetics texts that have given special attention to the subject To defend
these proposals the research seeks to understand what Aristotle
understands by emotion starting from Book I of NE which will indicate
the possibility of the desiderative capacity to hear reason Because of
this we realize that Aristotle does not intend to exclude the non-rational
elements of the moral life being more concerned to find ways that
reconcile the psychic capacities and to feel emotions with the right
things in the convenient moments towards what and to whom it is
appropriate This interpretation is possible because the philosopher
understands the soul as something composed of connected capacities
putting the emotions which are from the domain of the desiderative
from its beginning in contact with the rational capacity of the soul This
last ability indicates the reasons for the corret emotion but also
proposes to the man morally educated a moderate form of emotion that
will allow him to lead anapproprieted life Such a life identified with
eupraxiacutea is only achieved with the support of the virtues Therefore it
is necessary to understand what Aristotle proposes as virtue and why it
relates it to emotion from Book II of NE This study allows us to
continue the investigation of the human soul capacities suggested by
ENI 13 a text that presents the division of the virtues according to the
souls capacities into moral and intellectual virtues The virtues are the
best possible state for each capacity of the soul being essential subject
to the proposed research At the end of the NE exposition the alternative
of interpreting eudaimōniacutea as a life totally dedicated to theoretical
contemplation seems to beadequate to the proposals of our study
Nevertheless Book X itself contains arguments that allow us to keep
understanding the best way of life possible for man that is his own
function as a life in the poacutelis which combines the good exercise of all
his capacities Interpretation viable by the presentation of rational
chained faculties that can touch the emotion from its awakening to
when they are moderated with the aid of practical reason Contact that
will be facilitated by the instruments that the citizens can use to
guarantee the chance of feel appropriatly in order to be virtuous and
happy living in community
Key-words Emotion Reason Virtue Happiness
Abreviaccedilotildees
Obras de Aristoacuteteles
Poet - Poeacutetica
Top ndash Toacutepicos
DA ndash De Anima
MA ndash Motu Animalium
Met ndash Metafiacutesica
EN ndash Eacutetica a Nicocircmaco
EE ndash Eacutetica a Eudemo
Pol ndash Poliacutetica
Ret ndash Retoacuterica
Obra de Platatildeo
Rep - Repuacuteblica
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo
17
Capiacutetulo I - A emoccedilatildeo e suas
implicaccedilotildees na vida feliz
25
1 Primeiros apontamentos
25
2 Funccedilatildeo proacutepria ao homem
27
3 EN I 13 a alma humana e a
emoccedilatildeo
39
3a) Capacidades da alma
43
3b) A capacidade desiderativa da
alma as accedilotildees e as emoccedilotildees na
vida feliz
50
3b1) Desejos
54
3b2) Os desejos menos racionais
56
3b3 O desejo mais racional
63
3b4) Desejo e accedilatildeo rumo agrave accedilatildeo
boa moralmente
66
4 Em busca da definiccedilatildeo
de emoccedilatildeo em Aristoacuteteles
72
4a) Alma corpo e emoccedilotildees
interpretadas a partir de EN I com
o auxiacutelio do DA da Rhet e da
Poet
78
5 A emoccedilatildeo
90
Capiacutetulo II - Virtude como
possibilidade de acordo entre
razatildeo e emoccedilatildeo
93
1 Virtude completa virtudes
virtude moral
93
2 A virtude moral
99
2a) Caraacuteter tautoloacutegico ou trivial
da doutrina da virtude moral como
mediania
102
2b) Exemplo da viabilidade da
virtude moral como mediania nas
emoccedilotildees a virtude particular da
coragem e o medo
111
2c) A forccedila do haacutebito para o
correto se emocionar
117
2d) Virtude voluntaacuteria diante das
circunstacircncias e responsabilidade
121
3 Metriopaacutethēia o ideal de
emoccedilatildeo para a vida virtuosa
125
4 Virtudes intelectuais satildeo
necessaacuterias agraves virtudes morais e
para a ldquoboa formardquo das
emoccedilotildees
133
4a) A prudecircncia
135
4b) Deliberaccedilatildeo
138
4c) Escolha deliberada
140
4d) Prudecircncia deliberaccedilatildeo
escolha deliberada e sua relaccedilatildeo
com o particular e o universal
142
5 Virtude natural e virtude em
sentido estrito
148
Capiacutetulo III -
A racionalidade das emoccedilotildees
153
1 Eudaiacutemōniacutea vida dedicada agrave
atividade racional (EN X)
153
2 A racionalidade das emoccedilotildees
interpretaccedilotildees desde EN I agraves
luzes do De Anima
157
2 a) Um quecirc ou o quecirc de
racionalidade nas emoccedilotildees
161
2 b) Percepccedilatildeo
162
2 c) Imaginaccedilatildeo
170
2 d) Pensamentos
173
2 e) Intelecto praacutetico 177
2 f) Opiniatildeo
183
3 O acordo entre a razatildeo e as
emoccedilotildees a educaccedilatildeo moral e os
instrumentos de modificaccedilatildeo da
emoccedilatildeo
187
3 a) Educaccedilatildeo haacutebito e lei para a virtude
187
3 b) A retoacuterica como instrumento
de mudanccedila nas emoccedilotildees
193
3 c) A poesia como facilitadora
da educaccedilatildeo moral
201
Conclusatildeo
213
Referecircncias
221
17
Introduccedilatildeo
Na histoacuteria da filosofia o entendimento acerca do que sejam as
emoccedilotildees (paacutethē) varia Aristoacuteteles1 se viu em meio a posturas diversas
sobre o assunto antes e depois de suas teorias apareceram fortes
oposiccedilotildees agrave intervenccedilatildeo das emoccedilotildees na vida moral2 Provavelmente
esse tipo de apreciaccedilatildeo seja o motivo para as inuacutemeras consideraccedilotildees
cautelosas que o filoacutesofo faz sobre o paacutethos em sua proposta eacutetica
entretanto Aristoacuteteles natildeo se mostra um pensador desfavoraacutevel agrave
participaccedilatildeo do emocional na vida humana feliz mas mesmo nas teorias
do filoacutesofo grego o tema das emoccedilotildees pode causar embaraccedilos Para
exemplificar o termo paacutethē que ora traduzimos por ldquoemoccedilotildeesrdquo pode
admitir sentidos mais amplos que aquele atribuiacutedo hoje em dia agrave palavra
emoccedilatildeo razatildeo pela qual tambeacutem se utilizam para traduzi-lo palavras
como ldquopaixotildeesrdquo ou ldquoafecccedilotildeesrdquo dentre outras Como observa Konstan
(2006 p IX et seq) em relaccedilatildeo agrave Liacutengua Inglesa atual haacute uma
diferenccedila consideraacutevel entre aquilo que os gregos dos tempos do
1 Observa Zingano que segundo Aristoacuteteles o paacutethos natildeo precisa ser extirpado
mas deve receber uma justa medida e isso indica a necessidade de ldquoexaminaacute-lo
mediante uma deliberaccedilatildeo pois a virtude eacute uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha
deliberadardquo (ZINGANO 2007 p 165) Tal tese que confirmaremos mais
adiante considera central a teoria das emoccedilotildees proposta por Aristoacuteteles 2 Tal pensamento afirma Sorabji (2000 p 181 traduccedilatildeo nossa cf tambeacutem p 7
et seq) eacute defendido por Crisipo embora natildeo por todos os estoacuteicos ldquoMas o que
eu quero considerar neste capiacutetulo eacute a tese muito mais radical de Crisipo de que
quase todas elas devem ser erradicadas Que razotildees poderia haver para tantordquo
Contudo as opiniotildees sobre a aceitaccedilatildeo estoacuteica da erradicaccedilatildeo da emoccedilatildeo
parecem divergir Enquanto os manuais de Histoacuteria da Filosofia como aqueles
que foram escritos por Kenny (2011 p 328) e Reale (2003 p 292) parecem
afirmar que todos os estoacuteicos concordavam com a necessidade de erradicaccedilatildeo
das emoccedilotildees haacute estudos mais minuciosos sobre o assunto que parecem
discordar dessa proposta e que trazem motivos significativos para tal
discordacircncia Esse eacute o caso da tese de doutorado defendida por Santos na
UNICAMP em 2008 Com relaccedilatildeo a esse tema vale tambeacutem conferir a
proposta do proacuteprio Sorabji que nos apresenta entendimentos variados para o
termo apaacutethēia trazidos pelos estoicos (ANTISSERI D REALE G Histoacuteria
da filosofia Vol 1 Satildeo Paulo Paulus 2003 KENNY A Uma nova histoacuteria
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18
Estagirita consideravam ldquoemoccedilatildeordquo (paacutethos traduzido pelo estudioso por
emotion) e o que consideramos emoccedilatildeo hoje O proacuteprio Aristoacuteteles nos
leva a admitir isso com o que apresenta em Metafiacutesica ao trazer quatro
possibilidades de entendimento do termo em questatildeo
(1) Afecccedilotildees significam em um primeiro
sentido uma qualidade segundo a qual algo pode
se alterar por exemplo o branco e o preto o doce
e o amargo o peso e a leveza e todas as
qualidades deste tipo
(2) Noutro sentido afecccedilatildeo significa a atuaccedilatildeo
dessas alteraccedilotildees isto eacute as alteraccedilotildees que estatildeo
em ato
(3) Ademais dizem-se afecccedilotildees especialmente
as alteraccedilotildees e mudanccedilas danosas e sobretudo os
danos que produzem dor
(4) Enfim chamam-se afecccedilotildees as grandes
calamidades e as grandes dores (Met Δ 1022b15-
21)3
Zingano (2007 p 147-148) traz consideraccedilotildees interessantes
sobre este trecho e suas possibilidades de interpretaccedilatildeo em seus Estudos
de Eacutetica Antiga O estudioso parece optar por entender paacutethos no
sentido de emoccedilatildeo em termos eacuteticos como um ser afetado ou uma
alteraccedilatildeo que diz respeito agrave natureza praacutetica do agente uma afecccedilatildeo
que eacute fonte de accedilatildeo devido a algo provocado por outrem Algumas
dessas possibilidades interpretativas (que levam a diferentes escolhas de
traduccedilatildeo) satildeo empregadas nos textos que aqui estudaremos
Para citar um exemplo em nota agrave traduccedilatildeo do De Anima feita por
Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis a tradutora afirma haver trecircs significados
nesse tratado para a expressatildeo tagrave paacutethē que traduz por ldquoas afecccedilotildeesrdquo
(REIS 2006 p 150) O significado do termo varia do sentido geral de
atributos e predicados a ldquoformas de passividade e de oposiccedilatildeo agraves
atividadesrdquo e a ldquoemoccedilotildeesrdquo contudo enfocaremos aqui as acepccedilotildees que
3 Traduccedilatildeo de Marcelo Perini (2010) no original Πάθος λέγεται ἕνα μὲν
τρόπον ποιότης καθ ἣν ἀλλοιοῦσθαι ἐνδέχεται οἷον τὸ λευκὸν καὶ τὸ μέλαν
καὶ γλυκὺ καὶ πικρόν καὶ βαρύτης καὶ κουφότης καὶ ὅσα ἄλλα τοιαῦτα ἕνα δὲ
αἱ τούτων ἐνέργειαι καὶ ἀλλοιώσεις ἤδη ἔτι τούτων μᾶλλον αἱ βλαβεραὶ
ἀλλοιώσεις καὶ κινήσεις καὶ μάλιστα αἱ λυπηραὶ βλάβαι ἔτι τὰ μεγέθη τῶν
συμφορῶν καὶ λυπηρῶν πάθη λέγεται
19
tocam nosso objeto de estudo a saber aquelas paacutethē da relaccedilatildeo que
aparece especialmente na Eacutetica Nicomaqueia (II 3 1105b19-22) mas
que igualmente se repete nas listas apresentadas na Retoacuterica (II 2
1378a19-22) e no De Anima (I 1 403a16-18) aleacutem de contemplarem as
duas ldquoemoccedilotildeesrdquo descritas na Poeacutetica raiva arrojo inveja medo
alegria amizade oacutedio anelo emulaccedilatildeo piedade calma inimizade
desvergonha amabilidade indignaccedilatildeo e maacutegoa Esses uacuteltimos textos
viratildeo em nosso auxiacutelio quando se apresentarem instrumentos eficazes agrave
compreensatildeo de algumas questotildees suscitadas pela EN a respeito da
nossa investigaccedilatildeo que versaraacute sobre a possibilidade de mudanccedila ou
educaccedilatildeo das emoccedilotildees graccedilas agrave racionalidade apresentada em sua
natureza e que tecircm lugar ou influecircncia nas emoccedilotildees educadas
moralmente entendimento possiacutevel a partir da concepccedilatildeo de uma alma
una com capacidades variadas mas conectadas entre si
A partir das propostas da Eacutetica Nicomaqueia e dos textos que
seratildeo auxiliares interpretativos de suas teorias salientamos a opccedilatildeo pelo
direcionamento do estudo do termo no sentido em que ele pode ser
traduzido por ldquoemoccedilatildeordquo Natildeo usaremos a palavra paixatildeo porque hoje
em dia como ressaltam Sorabji (2002 p 7) e Zingano (2007 p 148)
pode restringir o entendimento do leitor e levaacute-lo a pensar que se tratem
apenas de emoccedilotildees mais fortes Por conseguinte justificamos nossa
opccedilatildeo por comeccedilar o estudo ora apresentado em busca de uma
compreensatildeo melhor e maior daquilo que Aristoacuteteles propotildee ser a
emoccedilatildeo partindo do Livro I da EN de onde retiramos o pensamento que
permearaacute toda a nossa pesquisa as emoccedilotildees satildeo sofridas
concomitantemente por corpo e alma e satildeo educaacuteveis por serem de
certo modo racionais caracteriacutestica devida agrave unicidade da alma
humana
Esse tipo de entendimento das emoccedilotildees tem por base o projeto
filosoacutefico de Aristoacuteteles que embora apresente diversos tratados
dedicados a diversos objetos de pesquisa com abordagem conforme o
objeto em anaacutelise faz com que as obras se sustentem entre si Tal
entendimento permitiraacute tambeacutem respondermos agrave questatildeo norteadora
desta tese como mudar as emoccedilotildees educando-as conforme as
solicitaccedilotildees da razatildeo praacutetica A percepccedilatildeo de que a pesquisa
empreendida por Aristoacuteteles eacute uma obra com coerecircncia interna permite
leituras de filoacutesofos contemporacircneos como Martha Nussbaum que por
vezes recorre a mais de um tratado aristoteacutelico para defender suas
interpretaccedilotildees Esse olhar para o conjunto da obra de Aristoacuteteles
igualmente nos conduz a leituras como aquelas feitas por Zingano e
Sorabji ao perceberem que Aristoacuteteles natildeo exclui conteuacutedos
20
emocionais mas que estaacute mais preocupado em encontrar formas capazes
de conciliar as capacidades aniacutemicas e com isso sentir emoccedilotildees com as
coisas certas nos momentos convenientes em direccedilatildeo a quecirc e a quem eacute
adequado A essas propostas eacute imprescindiacutevel acrescentar aquelas que
compreendem a alma descrita pelo filoacutesofo como algo composto por
partes natildeo seccionadas para que possamos defender emoccedilotildees que desde
seu iniacutecio tecircm contato com a capacidade racional da alma que indica os
motivos para se emocionar Essa capacidade racional igualmente propotildee
ao homem educado moralmente uma forma moderada de emoccedilatildeo que
lhe permitiraacute levar uma vida em conformidade com a virtude com a
razatildeo como um todo e por isso feliz
Para podermos sustentar essas propostas iniciaremos nossa tese
com um estudo sobre a natureza das emoccedilotildees buscando entender qual a
natureza da emoccedilatildeo Qual seu papel na teoria da felicidade de
Aristoacuteteles Para responder a essas perguntas procuraremos
compreender o argumento da funccedilatildeo humana e sua relaccedilatildeo com o fim
proposto agrave vida do homem Tal caminho nos indicaraacute a necessidade de
definir o lugar das emoccedilotildees na vida feliz e nos encaminharaacute agrave discussatildeo
da relaccedilatildeo imprescindiacutevel entre emoccedilotildees e a virtude considerada
completa a virtude intelectual a virtude moral e suas formas
particulares Essa pesquisa encaminharaacute nossa discussatildeo agrave anaacutelise dos
tipos de vida que se candidatam ao cargo de felicidade e ao
questionamento de tal vida ser definida por Aristoacuteteles como a
existecircncia dedicada agrave contemplaccedilatildeo intelectual filosoacutefica (discussatildeo que
somente encontraraacute seu desfecho com o nosso terceiro capiacutetulo) O
primeiro capiacutetulo prosseguiraacute com a discussatildeo apresentada em EN I 13 a
respeito da alma humana e de suas capacidades Esse estudo seraacute
necessaacuterio pois eacute a partir da proposta da existecircncia de capacidades
diversas na alma que poderemos inquirir acerca dos diferentes tipos de
vida e que provavelmente possamos indicar um deles como a vida mais
propriamente humana
Nesse ponto da EN Aristoacuteteles nos apresenta uma alma bipartida
que comporta as emoccedilotildees em sua capacidade natildeo racional capacidade
esta que no entanto apresenta-se como apta a ouvir e obedecer agrave razatildeo
primeiro sinal da possibilidade de defesa da racionalidade e
educabilidade das emoccedilotildees Por esse motivo julgamos pertinente
desenvolver na medida em que contemple nossos interesses um
pequeno estudo a respeito da alma humana buscando para essa teoria o
auxiacutelio do tratado sobre a alma a fim de obter maior clareza quanto agrave
questatildeo O estudo do De Anima permitiraacute reforccedilar uma teoria da alma
como um todo composto por partes que mantecircm certo contato bem
21
como a teoria hilemoacutefica a respeito do homem que comeccedila a demonstrar
seus contornos ainda com o assunto da funccedilatildeo proacutepria ao homem na EN
A defesa de uma psychḗ composta por capacidades imprescindivelmente
correlacionadas e que tem suas funccedilotildees manifestas mesmo que
imperceptivelmente no corpo nos permitiraacute tratar as emoccedilotildees como
afecccedilotildees do conjunto corpoalma Tudo isso soacute seraacute possiacutevel se
conseguirmos sustentar aleacutem de uma teoria da unidade da alma uma
teoria que proponha a capacidade da alma responsaacutevel pelas emoccedilotildees a
desiderativa como um todo coeso embora composta por diferentes
tipos de desejos conforme seus objetos e suas relaccedilotildees com a razatildeo
Portanto deveremos apreciar brevemente as propostas de Aristoacuteteles
acerca da capacidade desiderativa desde que o desejo e seus tipos
igualmente satildeo considerados paacutethē Defender uma capacidade
desiderativa unificada nos permitiraacute defender tambeacutem uma alma
unificada e emoccedilotildees capazes de concordar com as solicitaccedilotildees da
capacidade racional ao menos em sua vertente praacutetica Poderemos
entender que haacute desejos mais ou menos aptos a obedecer agrave razatildeo assim
como seratildeo igualmente as emoccedilotildees diretamente a eles relacionadas Por
conseguinte a possibilidade de educaccedilatildeo que veremos se abrir agrave
capacidade desiderativa como um todo indicaraacute a possibilidade de
propor emoccedilotildees capazes de serem educadas conforme a razatildeo teoria
que defenderemos mais detalhadamente no terceiro capiacutetulo Para tal
seraacute necessaacuterio indicarmos como essa abertura dos desejos agrave razatildeo
permitiraacute ao homem agir bem diferenciando accedilotildees e atividades de
simples movimentos fiacutesicos sendo as primeiras intimamente
relacionadas ao desejo pelos fins e por isso agrave possibilidade de apreciaccedilatildeo
eacutetica
Com isso identificaremos a eupraxiacutea como elemente
imprescindiacutevel agrave vida feliz justificando todo o percurso argumentativo
do primeiro capiacutetulo desde a proposta de anaacutelise da funccedilatildeo humana que
leva agrave consideraccedilatildeo de diferentes tipos de vida existentes em
conformidade com as diferentes capacidades aniacutemicas que em boa
associaccedilatildeo permitiratildeo a real felicidade Esta seraacute compreendida como
um tipo excelente de desempenho das accedilotildees e atividades adequadas ao
homem e somente ao homem mas que dependem igualmente da boa
condiccedilatildeo emocional Por isso seraacute necessaacuterio para desfecho do
primeiro momento de nossa pesquisa buscar compreender o que
Aristoacuteteles descreve como emoccedilatildeo e esboccedilar um conceito de emoccedilatildeo
com apoio das sugestotildees dos quatro tratados abordados nesse estudo
Essa proposta permitiraacute que reforcemos as teorias hilemoacuterficas que
descreveratildeo o paacutethos aristoteacutelico como possiacutevel ouvinte da
22
racionalidade desde o momento em que eacute despertado Permitiraacute ainda
que atentemos agrave obrigatoriedade de tratar as virtudes jaacute que se
mostraratildeo dependentes de emoccedilotildees educadas e que natildeo contrastem com
a execuccedilatildeo excelente das atividades humanas que se coadunam em
felicidade
A fim de obtermos sucesso na defesa da educabilidade das
emoccedilotildees devida agrave sua racionalidade - tendo em vista o que nos foi
proposto pelo argumento da funccedilatildeo humana pela proposta de uma
capacidade natildeo racional da alma que se apresenta como capaz de ouvir a
capacidade racional e das relaccedilotildees das emoccedilotildees com as virtudes
mencionadas em meio a esses assuntos - julgamos necessaacuterio dedicar o
segundo capiacutetulo de nossa tese ao estudo da relaccedilatildeo das emoccedilotildees com as
virtudes Iniciamos esse momento da pesquisa agrave procura de
compreender melhor e apenas na medida das necessidades de nossa
pesquisa o que Aristoacuteteles propotildee como virtude e por que a relaciona
com a emoccedilatildeo a partir do Livro II da EN O estudo nos conduziraacute a
diferentes tratamentos da virtude apreciaremos a virtude entendida de
um modo geral ou em sua completude como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave
felicidade estudaremos os componentes de tal virtude completa
entendidos como a virtude moral as formas particulares da virtude
moral e a virtude intelectual Tal estudo nos permitiraacute dar continuidade
agrave investigaccedilatildeo acerca das capacidades da alma humana sugeridas por EN
I 13 texto que apresenta a divisatildeo das virtudes conforme ldquopartesrdquo da
alma em virtudes morais e intelectuais Para reforccedilar o que
constataremos com o estudo da virtude moral chamaremos em auxiacutelio o
exemplo da coragem prosseguindo pelo percurso argumentativo da
discussatildeo feita por Aristoacuteteles na medida do possiacutevel dos Livros III a V
da EN que proporaacute as virtudes morais particulares como concretizaccedilatildeo
do melhor estado possiacutevel para cada funccedilatildeo da capacidade desiderativa
do homem Esse caminho nos permitiraacute sair de possiacuteveis embaraccedilos que
cercam a interpretaccedilatildeo da virtude moral como boa medida nas emoccedilotildees
Esse estudo nos apresentaraacute a ideia de virtude como boa medida
nas emoccedilotildees alcanccedilada por meio da habituaccedilatildeo agrave praacutetica de accedilotildees
moralmente corretas A visita a essa forma de interpretaccedilatildeo eacute
imprescindiacutevel a fim de compreender a possibilidade de se educar ou
mudar as emoccedilotildees favoravelmente ao bem humano A discussatildeo da
virtude moral nos apresentaraacute seu caraacuteter voluntaacuterio bem como
apresentaraacute o homem virtuoso como responsaacutevel por suas accedilotildees
especialmente das accedilotildees que desempenha adequadamente cumprindo
aquilo que se entende por sua funccedilatildeo Com isso alcanccedilaremos a
proposta da metriopaacutethēia ideal de emoccedilatildeo concorde com a capacidade
23
racional em sua face praacutetica (e talvez tambeacutem com sua face teoacuterica)
mas nos depararemos com a impossibilidade de todas as emoccedilotildees serem
moderadas Embora natildeo seja uma proposta de Aristoacuteteles a ideia da
metriopaacutethēia se nos apresentaraacute como melhor forma de compreender as
emoccedilotildees adequadas agrave boa medida As emoccedilotildees moderadas possibilitam
as virtudes morais mas nos indicaratildeo igualmente a necessidade ao
menos da virtude intelectual da prudecircncia para que tais virtudes venham
a efetivar-se
O estudo da prudecircncia e de seus componentes - deliberaccedilatildeo
escolha deliberada e accedilatildeo moralmente adequada - nos permitiraacute entender
melhor a relaccedilatildeo entre as capacidades da alma Se as virtudes morais
podem ser entendidas como melhor desempenho de certas capacidades
humanas que somente se concretizam diante de emoccedilotildees que cedem aos
conselhos da razatildeo ratificaremos nossa interpretaccedilatildeo acerca de uma
alma composta por faculdades em acordo Sendo a prudecircncia uma
virtude intelectual indispensaacutevel agrave vida feliz identificaremos a
necessidade de tratar de seus objetos Por isso necessitaremos discutir
sua relaccedilatildeo com coisas particulares e mutaacuteveis proacuteprias ao acircmbito da
prāxis mas tambeacutem de seu direcionamento para os assuntos
considerados universais dentre os quais encontramos a proposta
aristoteacutelica da felicidade o bem norteador de toda accedilatildeo que possa ser
considerada moralmente correta
A discussatildeo da relaccedilatildeo entre a prudecircncia particulares e universais
indica a unidade da alma identificada a partir dos objetos
compartilhados pela capacidade uacutenica do intelecto em seus aspectos
praacutetico e teoacuterico Esses assuntos iniciados por nossa anaacutelise dos
primeiros Livros da EN nos levaratildeo pelas questotildees sugeridas pelo Livro
VI que nos manteratildeo em contato direto com as discussotildees sobre a alma
Por isso a finalizaccedilatildeo dessa parte de nosso estudo seraacute feita com a
relaccedilatildeo apresentada ao final do Livro mencionado entre virtude natural
e virtude em sentido estrito Julgamos que tal questatildeo seraacute de grande
valia para o entendimento daquilo que Aristoacuteteles propocircs como virtude
completa relacionada como se mostraraacute com a funccedilatildeo proacutepria ao
homem e agrave praacutetica de boas accedilotildees propostas por um desejo adequado agrave
razatildeo bem como por emoccedilotildees doacuteceis agrave razatildeo Essa possiacutevel docilidade
demandaraacute pesquisar a racionalidade implicada nas emoccedilotildees
Para garantir essas interpretaccedilotildees prosseguiremos com nossa
anaacutelise ateacute o final da exposiccedilatildeo da EN momento que boa parte das
interpretaccedilotildees corriqueiras do livro X parecem se distanciar de todas as
propostas que defenderemos ao longo de nossa tese Em EN X nos
depararemos como a alternativa de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma
24
forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica proposta que
a muitos soa como desfecho ideal das discussotildees iniciadas com o tratado
em questatildeo Natildeo obstante o proacuteprio Livro X nos encorajaraacute a manter a
leitura da melhor forma de vida possiacutevel ao homem ou seja de sua
funccedilatildeo proacutepria como uma vida na poacutelis que conjugue o bom exerciacutecio
de todas as suas capacidades aniacutemicas Essa interpretaccedilatildeo seraacute
viabilizada e reforccedilada pela apresentaccedilatildeo de faculdades racionais
encadeadas que podem tocar a emoccedilatildeo desde seu despertar ateacute quando
forem moderadas com o auxiacutelio da razatildeo praacutetica Essa leitura ganharaacute
apoio nos demais tratados estudados e em suas propostas sobre as
emoccedilotildees que nos indicaratildeo um amplo vocabulaacuterio relacionado tanto agraves
emoccedilotildees quanto agraves capacidades racionais da alma humana colocando
em cena novamente a ligaccedilatildeo das capacidades racional e natildeo racional da
alma
A apreciaccedilatildeo do mencionado vocabulaacuterio nos indicaraacute
(sub)capacidades da alma que atuam na emoccedilatildeo e nos encaminharaacute para
o desfecho de nossa pesquisa Estudaremos brevemente a percepccedilatildeo
sensiacutevel a imaginaccedilatildeo o intelecto e certos tipos de pensamento dentre
os quais poderemos localizar a opiniatildeo responsaacuteveis pelo despertar de
boa parte das emoccedilotildees ou que se envolveratildeo com a educaccedilatildeo moral
emocional Novamente as consultas ao De Anima agrave Retoacuterica e agrave Poeacutetica
se mostraratildeo fonte indispensaacutevel agrave defesa de nossa tese acerca da
educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua implicaccedilatildeo com a razatildeo e com
elementos de razatildeo devido agrave proacutepria natureza aniacutemica do homem Estes
tratados igualmente nos permitiratildeo investigar oportunidades para
direcionar as emoccedilotildees de modo que consigam ouvir as propostas das
diversas formas de razatildeo existentes Por fim apresentaremos os
instrumentos aos quais os cidadatildeos podem recorrer para garantir a
chance de bem se emocionar a fim de se tornarem virtuosos e felizes
naquele que identificaremos como meio mais propiacutecio ao florescimento
humano a poacutelis
25
Capiacutetulo I
A emoccedilatildeo e suas implicaccedilotildees na vida feliz
1 Primeiros apontamentos
A leitura da EN nos traz uma seacuterie de indagaccedilotildees quanto agrave
natureza das emoccedilotildees A lista de tais questotildees pode comeccedilar pela
afirmaccedilatildeo que agraves vezes aparece nesse texto segundo a qual as emoccedilotildees
satildeo natildeo racionais Por esse motivo talvez tenhamos a impressatildeo
frequente de que o filoacutesofo em alguma medida natildeo seja favoraacutevel agrave
intervenccedilatildeo das emoccedilotildees nas accedilotildees consideradas boas moralmente De
acordo com a proposta de uma alma que ldquotem uma parte racional e uma
irracionalrdquo (EN I 13 1102a27-28)4 as emoccedilotildees tecircm por sede a
capacidade natildeo racional da alma a desiderativa de onde viriam
igualmente as suas relaccedilotildees com certos prazeres e dores Tais
associaccedilotildees com outros elementos que tambeacutem natildeo costumavam receber
apreciaccedilatildeo favoraacutevel em questotildees morais parecem agravar a situaccedilatildeo das
emoccedilotildees e provavelmente por isso sejam feitas afirmaccedilotildees que parecem
colocar a emoccedilatildeo como algo arredio aos ditames da razatildeo sendo mesmo
capaz de sobrepor-se a estes (EN IX 8 1168b29-35 1169a1-8)5 Vaacuterias
assertivas que apresentam um tom de advertecircncia quanto aos perigos de
se entregar agraves emoccedilotildees aparecem ao longo do texto
A primeira menccedilatildeo que o tratado faz ao assunto pode confirmar
isso no Livro I da EN Aristoacuteteles explica o motivo pelo qual os jovens
natildeo tiram bom proveito das liccedilotildees sobre poliacutetica primeiro natildeo tecircm
experiecircncia dos fatos da vida em torno dos quais giram as discussotildees
dessa natureza segundo os jovens tendem a seguir suas paixotildees (EN I 1
1095a5) Por isso o estudo da ciecircncia poliacutetica lhes seraacute vatildeo jaacute que o fim
que se almeja com essa mateacuteria eacute a accedilatildeo e natildeo o conhecimento (EN I 1
1095a6) Essas falhas abrangem tanto aqueles que satildeo jovens em anos
quanto os que satildeo jovens em caraacuteter pois o defeito natildeo depende da
idade mas do modo de viver e seguir cada objetivo proposto pela
emoccedilatildeo (EN I 1 1095a9) ldquoA tais pessoas como aos incontinentes a
ciecircncia natildeo traz proveito algum mas aos que desejam e agem de acordo
4 Todas as traduccedilotildees da EN seratildeo feitas a partir da traduccedilatildeo francesa de J Tricot
(2012) com exceccedilatildeo dos trechos I 13 a III 8 que tecircm traduccedilatildeo de Zingano
(2008) no original οἷον τὸ μὲν ἄλογον αὐτῆς εἶναι τὸ δὲ λόγον ἔχον 5 O filoacutesofo parece expressar postura semelhante tambeacutem em EN 1106b35
1107a1-9 1097b35 1098a1-17 1168b34-35 1169a18 1177a12-18 1178a6-7
etc
26
com um princiacutepio racional o conhecimento desses assuntos faraacute grande
vantagemrdquo (EN I 1 1095a11-15)6 na distinccedilatildeo do que seja o bem
Por conseguinte em nada nos admiraria a proposta da melhor
vida possiacutevel como aquela guiada pela reta razatildeo A felicidade fim
(teacutelos) da vida humana seria descrita como uma atividade mas uma
atividade (eneacutergeia) realizada conforme o que manda a razatildeo Tal
atividade deve ser de acordo com o que eacute descrito como o que haacute de
melhor no homem e que o diferencia dos outros animais e das plantas
(EN I 6 1097b35 1098a1-5) Esse tipo de vida natildeo seria possiacutevel sem as
virtudes especialmente sem a virtude moral pois aleacutem de ser conforme
o que haacute de mais proacuteprio ao homem se isso fosse a razatildeo a vida boa
moralmente e feliz seria aquela que permitiria desempenhar da melhor
forma a funccedilatildeo humana e segundo Aristoacuteteles desempenhar bem sua
funccedilatildeo eacute ser virtuoso
Caso seja possiacutevel entender essa proposta como indicativo de que
o homem deva ouvir sua razatildeo a fim de possuir a mais excelente virtude
e a melhor vida precisamos ressaltar que Aristoacuteteles nos chama atenccedilatildeo
para que a razatildeo deva ser o guia ou deva ao menos estar presente em
todos os homens Natildeo conveacutem esquecer que no Livro X o filoacutesofo
afirmaraacute que tal possibilidade natildeo eacute a mais recorrente - embora devesse
ser - agrave vida humana comum Os homens em sua grande maioria natildeo
obedecem espontaneamente agrave razatildeo mesmo sendo capazes de fazecirc-lo
Por isso natildeo tendem a uma vida de pura contemplaccedilatildeo que na verdade
extrapolaria as possibilidades humanas Na maior parte das vezes os
elementos da capacidade natildeo racional da alma conduzem as accedilotildees
sendo necessaacuterio portanto buscar moderaacute-los para que haja excelecircncia
dessa capacidade e que se viva a vida propriamente humana7 Diante
dessa impossibilidade de a capacidade racional reger de modo exclusivo
a vida humana o que levaria o homem a desempenhar uma funccedilatildeo
6 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original τοῖς γὰρ τοιούτοις ἀνόνητος ἡ γνῶσις γίνεται καθάπερ τοῖς
ἀκρατέσιν τοῖς δὲ κατὰ λόγον τὰς ὀρέξεις ποιουμένοις καὶ πράττουσι
πολυωφελὲς ἂν εἴη τὸ περὶ τούτων εἰδέναι 7 Essa proposta eacute encontrada tambeacutem em Poliacutetica 1253a25-28 ldquoQue nessas
condiccedilotildees a cidade seja tambeacutem anterior naturalmente ao indiviacuteduo isso eacute
evidente se com efeito o indiviacuteduo tomado isoladamente eacute incapaz de bastar a
si mesmo seraacute por relaccedilatildeo agrave cidade como nos nossos outros exemplos as
partes satildeo em relaccedilatildeo ao todo Mas o homem que estaacute na incapacidade de ser
membro de uma comunidade ou que disso natildeo experimenta nada a necessidade
porque ele se basta a si mesmo natildeo faz em nada parte de uma cidade e por
consequecircncia eacute ou um bruto ou um deusrdquo
27
totalmente racional ou conforme a razatildeo como sua marca distintiva
cabe-nos questionar qual seria a funccedilatildeo proacutepria ao homem de acordo
com a EN
2 Funccedilatildeo proacutepria ao homem
Aristoacuteteles inaugura as discussotildees da EN afirmando que toda arte
bem como toda atividade tende a um fim ou bem Os bens podem ser
diferentes ou idecircnticos agraves suas fontes originadoras e por isso existem
tantos fins quanto haacute artes e atividades das quais satildeo provenientes
Ademais quando os bens satildeo identificados agraves atividades que os geram
estas satildeo consideradas mais excelentes que aquelas que natildeo se
identificam ao fim gerado ocasionando uma hierarquia que organiza
atividades e bens
Essas propostas abrem a discussatildeo sobre os fins e os meios para
alcanccedilaacute-los e nesse ponto logo no iniacutecio da EN o filoacutesofo nos informa
que haacute um fim maior desejado por si mesmo e em vista do qual todas as
demais coisas e bens satildeo buscados Essa delimitaccedilatildeo de um bem maior
ou supremo impede que a lista de bens existentes obedeccedila a uma
progressatildeo infinita Diante disso o filoacutesofo propotildee que o conhecimento
da natureza do bem supremo poderia colaborar com seu alcance jaacute que
uma procura eacute facilitada quando se conhece o que estaacute sendo procurado
Por isso a investigaccedilatildeo da EN a partir do Livro I 2 se direciona agrave
delimitaccedilatildeo do bem supremo e daquela ciecircncia que se dedicaria ao seu
estudo a poliacutetica teoria determinadora de tudo quanto seria preciso
saber para o bom andamento das questotildees de uma poacutelis A ciecircncia
poliacutetica determinaria aquilo que os cidadatildeos deveriam fazer e por isso
abrangeria todas as demais ciecircncias sendo arquitetocircnica responsaacutevel
pelo bem humano e mais importante pelo bem da poacutelis
Tendo em vista as constataccedilotildees feitas ateacute os Livros I 3-4
Aristoacuteteles pensa que deve estabelecer ao menos em linhas gerais a
verdade sobre o que eacute a felicidade pois todos sem exceccedilatildeo
identificam-na com um bem ou um fim inerente ao ser humano O passo
destaca a poliacutetica como a ciecircncia responsaacutevel por determinar tais
assuntos e por isso seria de grande auxiacutelio agraves pessoas que vivem agem e
desejam conforme a razatildeo ao mesmo tempo em que delimita o campo
de interesse da pesquisa em curso Seria tarefa de a poliacutetica definir
felicidade pois a despeito do consenso quanto ao que seria o melhor
fim e resultado da melhor accedilatildeo possiacutevel haveria vaacuterias formas de
conceber a felicidade e de entender quais seriam os modos de obtecirc-la
Os homens comuns pensariam que a felicidade seria o prazer ou a
28
riqueza ou as honras percepccedilatildeo diferenciada daquela tida pelos saacutebios
Chegariam mesmo a mudar de entendimento acerca da eudaiacutemōniacutea
conforme o tipo de vida que levassem
Quanto ao tipo de vida levada o Livro I 5 aponta trecircs formas
principais a serem analisadas a vida preocupada com a (1) obtenccedilatildeo de
prazer a vida (2) poliacutetica e a vida dada agrave (3) contemplaccedilatildeo filosoacutefica O
filoacutesofo explica que a maioria das pessoas identifica a felicidade com o
prazer e pouco mais adiante compara a vida escolhida pela multidatildeo
agravequela vida dos escravos e agrave qual chama bestial Em contrapartida a
opiniatildeo dos homens de gosto mais refinado bem como das pessoas que
satildeo mais ativas seria que a felicidade se resume agrave honra que
normalmente eacute entendida como fim da vida poliacutetica No entanto
Aristoacuteteles pensa que a honra natildeo poderia ser o fim buscado pelo
homem jaacute que dependeria mais de quem a conferiria que daqueles que a
mereceriam as honrarias poderiam ser retiradas de algueacutem ao contraacuterio
da felicidade Aleacutem disso o filoacutesofo nos conta que as honras seriam
procuradas em vista da virtude sendo que talvez a virtude e natildeo a
honra fosse o fim procurado pela vida poliacutetica Contudo entende que a
virtude igualmente natildeo eacute a felicidade pois um homem pode ser
considerado virtuoso por exemplo quando dorme e quando eacute
desafortunado mas natildeo eacute possiacutevel ser feliz no infortuacutenio Na sequecircncia
da exposiccedilatildeo Aristoacuteteles afirma que examinaraacute a vida contemplativa em
outro momento (Livro X) e acrescenta agrave sua anaacutelise o tratamento da vida
dedicada ao ganho percebendo que a riqueza tambeacutem natildeo contemplaria
suas intenccedilotildees quanto agravequilo que seria a eudaiacutemōniacutea A riqueza seria uacutetil
a uma vida considerada feliz poreacutem natildeo poderia resumir tal vida porque
natildeo seria buscada por si mesma Com isso o filoacutesofo nos apresenta uma
das suas exigecircncias para definirmos a felicidade ser um fim ou bem
buscado por si mesmo
No Livro I 6 da EN o bem eacute tratado em dois sentidos haveria
bens em si mesmos considerados realmente bons e bens relativos a
estes uacuteteis agrave obtenccedilatildeo dos bens em si mesmos Estes seriam como jaacute se
propusera acerca da felicidade procurados sem pensar em algo mais que
se pudesse conseguir a partir deles mas haveria vaacuterias coisas que se
encaixariam nesse tipo de descriccedilatildeo como a riqueza o prazer etc o
que forccedila o filoacutesofo a delimitar o bem que procura a algo que possa ser
alcanccedilado pelo homem apresentando nova exigecircncia agrave definiccedilatildeo da
felicidade
29
Diante de tantas distinccedilotildees o Livro I 7 afunila mais a proposta de
bem buscado descrevendo-o novamente como ldquoaquilo em cujo interesse
se fazem todas as coisasrdquo (EN I 5 1097a21-22)8 O bem seria a
finalidade das accedilotildees e os homens fariam tudo em vista dele Aristoacuteteles
ratifica a existecircncia de vaacuterios fins mas propotildee que apenas o bem
supremo ou absoluto seria escolhido por si mesmo o que implica que
nem todos os fins satildeo absolutos O sumo bem no entanto seria
absoluto o uacutenico fim absoluto ou o mais absoluto no caso de haver mais
de um fim desse tipo caracteriacutestica daquilo que eacute procurado e desejado
por si mesmo A esses aspectos Aristoacuteteles acrescenta outro ndash que
voltaraacute a ser analisada no Livro X a autossuficiecircncia A princiacutepio este
conceito eacute explicado em I 7 como aquilo que basta para um homem e
todos agrave sua volta porque o homem segundo esse capiacutetulo (EN I 7
1097b12) existe para ser cidadatildeo A autossuficiecircncia tornaria a vida
desejaacutevel e sem necessidade de nada sendo que somente a felicidade
cumpriria tais requisitos aleacutem de ser a coisa mais desejaacutevel de todas
natildeo sendo um bem entre outros A felicidade eacute redefinida portanto
como a finalidade uacuteltima de toda accedilatildeo (EN I 7 1097b14-21)9
Diante de todo esse debate e da tentativa de delimitaccedilatildeo da
felicidade Aristoacuteteles natildeo se daacute por satisfeito com o possiacutevel conceito
determinado ateacute o ponto Evoca entatildeo a questatildeo da funccedilatildeo (eacutergon) do
homem pois pensa que talvez esclareccedila o caso O filoacutesofo questiona
haveria uma funccedilatildeo especificamente humana Verificar qual seria a
funccedilatildeo humana facilitaria entender o que eacute a felicidade (EN I 7
1097b24) mas por quecirc Aristoacuteteles pensa que para todas as coisas que
apresentam uma funccedilatildeo e uma atividade o bem estaacute na funccedilatildeo (EN I 7
1097b26-27)
Korsgaard afirma que o argumento da funccedilatildeo da forma como eacute
elaborado por Aristoacuteteles parece depender da ligaccedilatildeo existente entre ser
uma boa pessoa ter uma vida boa ou feliz aleacutem de objetivar ligar essas
propostas em torno da racionalidade Haacute igualmente a intenccedilatildeo de
mostrar que devido a alguns argumentos sobre razatildeo e virtude o
argumento da funccedilatildeo eacute um bom caminho para abordar a questatildeo de
como viver bem Se tudo tem uma funccedilatildeo por que o homem natildeo teria
nenhuma (EN I 7 1097b22-23) Isso significaria que o homem segue um
8 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original τούτου γὰρ ἕνεκα τὰ λοιπὰ πράττουσι πάντες 9Esse trecho abriria a questatildeo para as interpretaccedilotildees da eudaiacutemōniacutea como bem
inclusivo ou dominante Neste estudo apenas mencionaremos quando
pertinente o problema pois natildeo pretendemos esgotaacute-lo
30
propoacutesito ou um destino Korsgaard propotildee duas maneiras de ler a
passagem em questatildeo A primeira com assombro e jaacute proposta acima
soaria mais ou menos assim se todas as coisas que existem tecircm uma
funccedilatildeo por que o homem natildeo teria nenhuma O passo poderia ser lido
ainda como um argumento e soaria mais ou menos assim ldquopartes do
corpo tecircm funccedilotildees mas o que fazem soacute faz sentido se houver uma
funccedilatildeo do todo relativo ao qual as partes tecircm uma funccedilatildeo as vaacuterias artes
e profissotildees tecircm funccedilotildees mas que soacute fazem sentido se haacute uma funccedilatildeo
geral da vida humana agrave qual contribuemrdquo (KORSGAARD 2008 p 130-
131)
Assim a funccedilatildeo do todo respaldaria e explicaria aquelas das
partes De modo semelhante Reeve (2014 p 279) entende que qualquer
que seja a funccedilatildeo humana ela deve justificar as funccedilotildees das partes do
corpo bem como deve justificar o homem como praticante de uma arte
especiacutefica que segue princiacutepios e normas racionais Isso porque apoacutes
analisar as funccedilotildees atreladas agraves capacidades da alma que o homem
compartilha com os animais o texto de EN I 7 (1097b33-1098a7) acaba
por identificar uma funccedilatildeo que chama ldquovida praacutetica do que possui
razatildeordquo que eacute capaz tanto de obedecer agrave razatildeo quanto de possuiacute-la
exercitando o intelecto (noucircs) De um modo ou de outro o argumento
parece depender de uma concepccedilatildeo teleoloacutegica de mundo Essa
concepccedilatildeo no primeiro caso indica simplesmente um propoacutesito para
tudo quanto haacute No segundo caso indica um tipo de raciociacutenio que vai
de um propoacutesito relativo a um propoacutesito absoluto Mas caberia entender
o argumento da funccedilatildeo como a defesa de um propoacutesito para o homem
Mesmo que se assuma o argumento em questatildeo eacute preciso esclarecer por
que o bem humano estaacute atrelado ao bom desempenho de uma funccedilatildeo
Haacute entre funccedilatildeo e virtude uma ligaccedilatildeo conceitual da qual natildeo
podemos prescindir pois como Reeve salienta o argumento prepara o
campo para a teoria da virtude Segundo tal teoria o exerciacutecio de uma
funccedilatildeo poderia ser compreendido como melhor estado das capacidades
que se agrupam em um todo que pode ser entendido como a melhor
forma de vida humana Entendemos tambeacutem com Reeve (2013 p 38)
que essa vida eacute proposta sagazmente por Aristoacuteteles como agrupamento
dos aspectos que considerava os melhores dentre todas as opiniotildees
correntes agrave eacutepoca sobre o tipo de vida tido como felicidade Diante
disso explica Korsgaard a virtude eacute uma qualidade que faz o homem
bom ao desempenhar sua funccedilatildeo composta por qualidades que o tornam
31
bom quanto agrave atividade racional10 Contudo fazemos questatildeo de frisar
que a virtude igualmente deve ser entendida como desempenho
excelente de todas as atividades cuja execuccedilatildeo pelo homem eacute possiacutevel
Korsgaard esclarece ldquoEntatildeo Aristoacuteteles precisa da conclusatildeo do
argumento da funccedilatildeo natildeo somente para dar suporte agrave sua visatildeo sobre
que tipo de vida eacute o melhor assim como a fim de nos dar uma base
teoacuterica agrave afirmaccedilatildeo que certas qualidades satildeo virtudesrdquo (KORSGAARD
2008 p 133-134 traduccedilatildeo nossa) O argumento nos permite
compreender melhor as virtudes e com isso a proposta sobre o bem ou
fim humano entendido por Aristoacuteteles como atividade em conformidade
com a virtude
O mau entendimento do argumento em questatildeo pode vir do fato
de interpretaacute-lo teleologicamente pensando eacutergon como propoacutesito
Haveria alternativas de interpretaccedilatildeo como um significado mais amplo
de trabalho funcionamento produtos ou atividades caracteriacutesticas
indicando igualmente a ligaccedilatildeo entre funccedilatildeo e atividade que levaria o
homem ao bem que procura Natildeo reconstruiremos totalmente a proposta
de Korsgaard sobre esse assunto que passaria por complexas noccedilotildees
metafiacutesicas agraves quais natildeo podemos nos dedicar nesse momento11 mas a
melhor alternativa agrave compreensatildeo da funccedilatildeo proposta em EN I seria
indicada pela autora como a de atividade caracteriacutestica que faz de uma
coisa aquilo que ela eacute Assim uma concepccedilatildeo de homem tambeacutem estaacute
em questatildeo como reforccedilaremos no nosso terceiro Capiacutetulo porque
quem sabe o que a coisa faz a conhece melhor O que parece coadunar
outra possibilidade de entendimento proposta pela autora a de como
uma coisa funciona ou seja como uma coisa faz o que ela faz natildeo
impedindo que tenha vaacuterios propoacutesitos Entatildeo propoacutesito seria diferente
de funccedilatildeo mesmo que os dois sentidos estivessem intimamente
relacionados pois saber ldquoo que uma coisa fazrdquo estaacute totalmente ligado ao
saber ldquocomo uma coisa faz o que ela fazrdquo
Desse modo natildeo bastaria saber o propoacutesito da coisa para
conhececirc-la explica a autora ldquoMas algueacutem que sabe para que o coraccedilatildeo
10 De acordo com Boyle haacute uma proposta do homem como animal racional que
tem sua tradiccedilatildeo iniciada com Aristoacuteteles Conforme a interpretaccedilatildeo do autor
para essa proposta que pensamos ser condizente com nossas proacuteprias
interpretaccedilotildees sobre o assunto ldquoUma implicaccedilatildeo crucial da Visatildeo Claacutessica eu
argumentarei eacute que a racionalidade natildeo eacute uma potecircncia particular de animais
racionais que satildeo equipados com ela mas seu modo distintivo de ter potecircnciasrdquo
(BOYLE 2012 p 6 traduccedilatildeo nossa) 11 Mateacuteria e forma substacircncia causa
32
serve seus arranjos estruturais e como aqueles arranjos capacitam o
coraccedilatildeo a fazer o que ele faz pode dizer verdadeiramente entendecirc-lordquo
(KORSGAARD 2008 p 139 traduccedilatildeo nossa) Por isso a autora pensa
que o melhor candidato agrave interpretaccedilatildeo de funccedilatildeo eacute ldquocomo a coisa faz o
que ela fazrdquo indo do conhecimento da estrutura ao conhecimento do
propoacutesito atrelado ao objeto estudado Com isso poderemos pensar que
compreender a alma humana e suas capacidades em relaccedilatildeo seria
extremamente beneacutefico entre outras coisas para nossa compreensatildeo
daquilo que o homem eacute capaz de fazer pois nos encaminharia para o
conhecimento do proacuteprio homem e de como ele faz o que faz O que a
nosso ver natildeo descartaria uma proposta teleoloacutegica acerca da felicidade
humana mas a reelaboraria nos termos propostos acima com o apoio de
Korsgaard Natildeo importa se o homem tem um propoacutesito o que importa eacute
que o homem desempenha suas atividades de um modo que lhe eacute
especiacutefico e que pode ser entendido e explicado Assim quem entende
isso poderaacute dizer o que eacute a funccedilatildeo humana aleacutem do mais seraacute possiacutevel
conhecer melhor o proacuteprio homem
Por conseguinte quando Aristoacuteteles afirma que a funccedilatildeo humana
eacute a atividade da parte racional da alma natildeo quer dizer simplesmente que
o raciociacutenio eacute o propoacutesito do ser humano Igualmente estaacute a dizer que a
atividade racional eacute a atividade caracteriacutestica do homem caso se
entenda que isso significa uma atividade que somente a espeacutecie humana
escolhe Aleacutem disso Korsgaard entende que Aristoacuteteles quer dizer que a
ldquoatividade racional eacute como noacutes seres humanos fazemos o que fazemos e
em particular como conduzimos nossa forma especiacutefica de vidardquo
(KORSGAARD 2008 p 141 traduccedilatildeo nossa) O que nos leva de volta
agrave lista dos tipos de vida No DA II 2 Aristoacuteteles elenca trecircs formas de
viver conforme as capacidades da alma humana vegetativa (das plantas
e de todos os animais) de percepccedilatildeo e accedilatildeo (de todos os animais) e de
razatildeo ou da escolha racional (apenas dos animais humanos) O homem
apresenta todas as trecircs formas de vida duas em comum com os demais
viventes mas uma que lhe eacute especiacutefica o que faz com que gerencie de
um jeito especial as outras formas que compotildeem a vida humana Assim
para Aristoacuteteles ldquoser racional transforma a natureza de ser um animal e
assim constitui um jeito novo de ser uma coisa vivardquo (BOYLE 2012 p
16 traduccedilatildeo nossa)
Com as observaccedilotildees feitas a respeito desse assunto Aristoacuteteles
parece entender a vida regida pela razatildeo como mais apropriada aos
homens contudo o filoacutesofo pondera neste tipo de vida e no que a rege
haacute algo que eacute obediente agrave razatildeo mas haacute ainda algo que possui e exerce o
pensamento A vida da capacidade racional portanto igualmente
33
poderia ter dois significados mas nesse ponto especiacutefico estar-se-ia a
falar da vida como atividade racional O que provavelmente poderia
nos levar a interpretar essa proposta como natildeo tratando de algo
puramente racional pois eacute nesse ponto da argumentaccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
do homem que Aristoacuteteles parece ceder lugar a uma racionalidade
relacionada e dedicada inteiramente ao cuidado da capacidade natildeo
racional e de suas (sub)capacidades fazendo valer a proposta da
atividade humana como aquela feita com razatildeo ou natildeo sem razatildeo
Nussbaum entende que nesse momento Aristoacuteteles comeccedila a abrir matildeo
de algo totalmente divino como funccedilatildeo especiacutefica do homem propondo
como tiacutepico agrave alma humana uma sabedoria diferenciada daquela
compartilhada pela divindade a sabedoria praacutetica Diante dessas
possibilidades de interpretaccedilatildeo precisamos analisar as propostas em
jogo para entender qual seria realmente a funccedilatildeo e portanto a melhor
forma de viver ou o fim humano pois Aristoacuteteles escreve
Ora se haacute uma funccedilatildeo do homem consistindo em
uma atividade da alma conforme agrave razatildeo ou que
natildeo existe sem a razatildeo e se noacutes dizemos que essa
funccedilatildeo eacute genericamente a mesma em um
indiviacuteduo qualquer e em um indiviacuteduo de meacuterito
(assim em um citarista e em um bom citarista e
isso eacute verdade de uma maneira absoluta em todos
os casos) a excelecircncia devida ao meacuterito se
acrescentando agrave funccedilatildeo (pois a funccedilatildeo do citarista
eacute tocar a ciacutetara e aquela do bom citarista eacute tocaacute-la
bem) se eacute assim se noacutes colocamos que a funccedilatildeo
do homem consiste em um certo gecircnero de vida
quer dizer em uma atividade da alma e nas accedilotildees
acompanhadas de razatildeo se a funccedilatildeo de um
homem virtuoso eacute cumprir essa tarefa e cumpri-la
bem e com sucesso cada coisa aleacutem estando bem
completa quando eacute segundo a excelecircncia que lhe eacute
proacutepria - nessas condiccedilotildees eacute portanto que o bem
para o homem consiste em uma atividade da alma
em acordo com a virtude e no caso de
pluralidade de virtudes em acordo com a mais
excelente e perfeita entre elas (EN I 6 1098a7-
18)12
12 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original εἰ δ ἐστὶν ἔργον ἀνθρώπου ψυχῆς ἐνέργεια κατὰ λόγον ἢ
μὴ ἄνευ λόγου τὸ δ αὐτό φαμεν ἔργον εἶναι τῷ γένει τοῦδε καὶ τοῦδε
34
A anaacutelise do passo em questatildeo gerou celeuma em relaccedilatildeo agrave
questatildeo da eudaiacutemōniacutea provocando discussotildees propostas em ceacutelebres
artigos publicados desde 1964 (ou mesmo antes) por estudiosos como
Hardie Ackrill e Kenny A menccedilatildeo aos trecircs comentadores e respectivos
estudos eacute vaacutelida na medida em que haacute propostas sobre a eudaiacutemōniacutea
como aquela elaborada por Kenny que concebeu a felicidade como um
bem dominante e entendia que o passo em questatildeo se opotildee agraves teorias
como aquelas dos demais estudiosos mencionados e agraves suas concepccedilotildees
de eudaiacutemōniacutea Segundo Kenny o passo liga as teorias da felicidade
apresentadas pelos Livros I e X da EN tomando as teorias de Aristoacuteteles
sobre os variados tipos de vida no Livro I como ponto de partida para a
interpretaccedilatildeo da eudaiacutemōniacutea como vida totalmente dedicada agrave
contemplaccedilatildeo Embora concordemos com a possibilidade de existecircncia
de um elo entre as teorias apresentadas nos dois tratados sobre a
felicidade elo do qual trataremos mais detidamente em nosso terceiro
Capiacutetulo os demais comentadores citados parecem-nos mais coerentes
com as reais intenccedilotildees de Aristoacuteteles para sua teoria da felicidade
Pensamos assim especialmente por natildeo tomarem como proposta (ou
intenccedilatildeo de proposta do filoacutesofo segundo a leitura de Hardie (2009 p
35)) a felicidade como fim dominante encaminhando-se agrave defesa de
uma vida plena como aquela dedicada ao puro contemplar Todavia se
um tipo de vida eacute indicado como o melhor e se esse tipo for
compreendido como um conjunto de atividades operadas de modo
racional e natildeo exatamente como uma vida inteiramente direcionada agraves
atividades especificamente contemplativas qual seria esse tipo de vida
Aristoacuteteles o determinaria
As questotildees nos levaram a repensar as propostas do filoacutesofo
acerca dos meios e dos fins variados que se nos apresentam ao longo de
toda uma vida e que conduzem agraves muitas opiniotildees e aos muitos modos
de entender o que seja a melhor vida possiacutevel e os bens que satildeo
necessaacuterios a ela (se satildeo necessaacuterios) As opiniotildees quanto agrave funccedilatildeo e agrave
atividade apropriada ao homem descritos no Livro I 8 variam e por isso
σπουδαίου ὥσπερ κιθαριστοῦ καὶ σπουδαίου κιθαριστοῦ καὶ ἁπλῶς δὴ τοῦτ
ἐπὶ πάντων προστιθεμένης τῆς κατὰ τὴν ἀρετὴν ὑπεροχῆς πρὸς τὸ ἔργον
κιθαριστοῦ μὲν γὰρ κιθαρίζειν σπουδαίου δὲ τὸ εὖ εἰ δ οὕτως [ἀνθρώπου δὲ
τίθεμεν ἔργον ζωήν τινα ταύτην δὲ ψυχῆς ἐνέργειαν καὶ πράξεις μετὰ λόγου
σπουδαίου δ ἀνδρὸς εὖ ταῦτα καὶ καλῶς ἕκαστον δ εὖ κατὰ τὴν οἰκείαν
ἀρετὴν ἀποτελεῖται εἰ δ οὕτω] τὸ ἀνθρώπινον ἀγαθὸν ψυχῆς ἐνέργεια γίνεται
κατ ἀρετήν εἰ δὲ πλείους αἱ ἀρεταί κατὰ τὴν ἀρίστην καὶ τελειοτάτην
35
Aristoacuteteles parece entender que essa variedade de opccedilotildees eacute devida ao
prazer que se sente com as atividades que se desempenha com mais
frequecircncia As atividades virtuosas satildeo deste tipo e satildeo destacas pelo
filoacutesofo como sendo boas e nobres Os homens bons igualmente as tecircm
em alta consideraccedilatildeo datildeo-lhes o valor devido sendo que tais homens
satildeo bons juiacutezes daquilo que conhecem bem como a virtude ldquoA
felicidade eacute pois a melhor a mais nobre e a mais apraziacutevel coisa do
mundo e esses atributos natildeo se acham separados []rdquo (EN I 9 1099a24-
25)13 O conceito de felicidade esboccedilado no Livro I eacute portanto
preenchido pelos atributos das atividades mais excelentes
Reforccedilando essas ideias o Livro I 9 nos informa que a felicidade
eacute tomada como algo de melhor e mais divino existente na vida humana
portanto eacute de acordo com a excelecircncia nas accedilotildees e atividades que o
homem eacute capaz de realizar Diante dessas constataccedilotildees Aristoacuteteles
declara que os objetivos da ciecircncia poliacutetica entre as demais vidas
observadas satildeo o melhor fim que pode haver (EN 1099b30) o que
pareceraacute contradizer as propostas do Livro X e a proposta de Kenny
supramencionada Essas explicaccedilotildees ainda que lacunares nos levam agrave
nossa crenccedila que a funccedilatildeo especiacutefica ao homem seja uma atividade que
somente se constituiria com uma vida em comunidade associando todas
as capacidades aniacutemicas acima mencionadas sendo por isso conforme
a razatildeo que se configura como elemento diferencial da psychḗ humana
Todavia ainda precisaremos confrontar essas propostas com aquelas do
Livro X acerca da vida contemplativa como melhor das vidas possiacuteveis
para garantir o que se afirma aqui
O Livro mencionado nos apresenta vaacuterios argumentos que
indicam um Aristoacuteteles aparentemente ldquoracionalistardquo propondo que o
homem se dedique agravequilo que de mais divino haacute em si a razatildeo No
entanto recorrendo ao curso de toda a EN inclusive ao proacuteprio Livro X
encontramos indicaccedilotildees de que natildeo haacute possibilidade do homem dedicar-
se inteiramente agraves atividades da contemplaccedilatildeo filosoacutefica ao exerciacutecio
mais alto e puro da razatildeo teoacuterica Mesmo um filoacutesofo explica
Aristoacuteteles necessita de comida bebida dinheiro conviacutevio e todos
esses bens sejam eles necessaacuterios ao estabelecimento de uma vida feliz
sejam eles instrumentos para tal estabelecimento soacute satildeo encontrados
como propusemos ainda haacute pouco na poacutelis Devemos reforccedilar que a EN
nos apresenta o homem como animal poliacutetico de vida essencialmente
13 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ἄριστον ἄρα καὶ κάλλιστον καὶ ἥδιστον ἡ εὐδαιμονία καὶ
οὐ διώρισται ταῦτα []
36
comunitaacuteria Por conseguinte todas as suas escolhas seratildeo tomadas
tendo em vista essa sua natureza poliacutetica explicando que a funccedilatildeo
proacutepria ao homem seria o bom desempenho de suas capacidades
aniacutemicas que o permitissem viver bem na poacutelis entre seus iguais ou
semelhantes de forma excelente mas em conformidade a leitura de
Korsgaard e Boyle (2012 p 6 et seq) de um jeito racional Quanto ao
assunto Nussbaum escreveu
O argumento do ergon natildeo pode estar nos dizendo
que devemos nos preocupar somente com a razatildeo
Nem parece dizer isso Mas a ecircnfase em tal
atividade caracteriacutestica pode ser vista como
motivada (1) pelo desafio do hedonismo e (2) pela
funccedilatildeo arquitetocircnica da razatildeo praacutetica esta e soacute
esta pode arranjar para que ambas razatildeo e as
funccedilotildees compartilhadas com os animais
obtenham seu devido lugar em uma vida humana
complexa Aristoacuteteles recomenda agrave sua audiecircncia
reflexiva uma vida que (1) envolva o exerciacutecio de
todas as nossas capacidades humanas e seja assim
uma verdadeira vida humana antes que uma
[vida] que possa justamente ser levada por uma
planta ou uma vaca e que (2) seja governada e
planejada de um tal modo a dar a ambas
capacidades compartilhadas e natildeo compartilhadas
seu papel apropriado ndash e isso significa governada
e planejada pela razatildeo praacutetica Se pensarmos
reflexivamente sobre o que eacute um ser humano ele
sugere teremos razatildeo em preferir uma vida sob a
direccedilatildeo da razatildeo praacutetica agrave vida escrava ou como a
da vaca de prazer e tambeacutem agrave alguma vida que eacute
levada sem ordem ou direccedilatildeo Queremos uma vida
que use todas as nossas capacidades Uma tal vida
inclui tanto o exerciacutecio da razatildeo quanto requer a
direccedilatildeo racional (NUSSBAUM 1985 p 106
traduccedilatildeo nossa)
Embora concordemos em grande medida com as propostas da
estudiosa que entende a opccedilatildeo pelo argumento do eacutergon humano em
um tratado eacutetico justificada por ser necessaacuterio considerar o que eacute o
homem a fim de melhor entender e acatar um tipo de vida a se buscar
pensamos que a filoacutesofa natildeo esteja de acordo com as propostas de
Aristoacuteteles em um certo ponto Este diria respeito agrave tocircnica dada agrave
37
proposta de uma vida boa ser governada pela razatildeo ou melhor pela
razatildeo praacutetica Nossa ressalva ou discordacircncia vem do fato de pensarmos
que essa alternativa seja vaacutelida agrave maioria dos homens para os homens
que satildeo capazes de agir corretamente embora possam natildeo o fazer mas
natildeo dos homens realmente virtuosos que vivem ldquocom razatildeordquo ou de um
jeito racional Pensamos diferente das propostas da autora porque
cremos que o bom exerciacutecio de todas as capacidades humanas que ela
menciona compartilhadas ou natildeo com outros viventes resulta em uma
vida virtuosa e que o homem verdadeiramente virtuoso tenha em
consonacircncia as capacidades aniacutemicas como defenderemos ao longo de
todo esse trabalho A nosso ver uma vida conforme o melhor estado
dessas capacidades desempenhadas racionalmente eacute o que
verdadeiramente se configura como a funccedilatildeo humana exclusivamente
humana dentre todas as funccedilotildees que o homem se mostra capaz de
desempenhar14
A pacificaccedilatildeo das capacidades aniacutemicas que permite uma vida de
plena realizaccedilatildeo das tarefas necessaacuterias para o conviacutevio em comunidade
eacute o que mais se mostra como exclusividade do homem natildeo dos deuses
nem dos animais em geral A possibilidade de conciliar a capacidade
natildeo racional por esta ser capaz de ouvir obedecer e participar da razatildeo
por intermeacutedio do desiderativo com a capacidade racional da alma
representada pela racionalidade praacutetica que harmoniza e participa da
capacidade natildeo racional mas que ao mesmo tempo sabe daquilo que eacute
necessaacuterio para garantir o exerciacutecio da racionalidade teoacuterica garante a
funccedilatildeo apropriada ao homem e a vida feliz O melhor estado e as
melhores atividades de ambas as capacidades da alma quando em
harmonia permitem que o homem seja o que eacute que se perceba como
aquilo que eacute animal poliacutetico razatildeo e emoccedilatildeo em consonacircncia
Devemos no entanto trabalhar mais em defesa desse entendimento
porque nos permitiraacute defender a educabilidade das emoccedilotildees
14Temos ciecircncia de que a vida pode variar de que a virtude pode se ver
ameaccedilada pelas circunstacircncias O homem virtuoso natildeo estaacute imune agraves forccedilas
do acaso mas resiste-lhes mais fortemente como na proposta da feita no
Livro I graccedilas ao seu caraacuteter ldquofirme e imutaacutevelrdquo Concordamos no entanto
com Frede que explica que mesmo o virtuoso carece de muita deliberaccedilatildeo
para agir bem pois mesmo sua boa habituaccedilatildeo que lhe confere certa (e
maior que o normal) estabilidade frente agraves vicissitudes natildeo lhe tornem
totalmente indiferente ao que o mundo apresenta como proporemos mais
adiante
38
Nossa proposta eacute coerente com as interpretaccedilotildees de estuidiosos
como Korsgaard (2008 p 143) e Boyle (2012 p 6) acerca da funccedilatildeo
humana que entende a vida feliz como atividade racional no sentido que
o poder da escolha racional facultado ao homem muda o modo que os
humanos conduzem as atividades que compartilham com os outros
animais como a construccedilatildeo a procriaccedilatildeo alimentaccedilatildeo etc A autora
defende que os seres humanos abordam essas atividades criativamente e
desenvolvem vaacuterios modos de desempenhaacute-las entre os quais noacutes entatildeo
escolhemos Igualmente fazem coisas que os outros animais natildeo fazem
de jeito nenhum como contar piadas pintar e se engajar na pesquisa
cientiacutefica e filosoacutefica Entatildeo a escolha racional introduz um sentido de
vida todo novo no qual uma pessoa pode dizer ldquoter uma vidardquo A vida eacute
entendida nesse sentido quando se diz que algueacutem vive bem ou mal ndash se
eacute eudaiacutemōn ou natildeo Entatildeo a autora afirma que esse eacute o sentido de
ldquovidardquo relevante para o argumento da funccedilatildeo A razatildeo eacute a funccedilatildeo do ser
humano desde que entendida como uma forma especificamente humana
de conduzir a vida e pensamos que tal tipo de conduccedilatildeo soacute pode ser
exercido em comunidade Assim atividade racional deveria ser
entendida natildeo no sentido de gastar toda a vida em contemplaccedilatildeo mas
como um modo de conduzir a vida o que provavelmente seja mais
condizente com nossa proposta embora entendamos que nos virtuosos
isso signifique a harmonia das capacidades da alma e natildeo a prevalecircncia
da capacidade racional15
Discutiremos as virtudes no capiacutetulo seguinte Por enquanto
destacamos outro motivo para entendermos que a funccedilatildeo totalmente
humana somente pode ser atualizada na poacutelis nas atividades e nas accedilotildees
moralmente avaliaacuteveis que se apresentam na poacutelis Parece impossiacutevel ao
homem atualizar as potecircncias de suas capacidades aniacutemicas em
consonacircncia que levam a emoccedilotildees bem educadas se natildeo por meio
daquilo que o corpo eacute capaz de fazer Todas as atividades e accedilotildees
completadas pelo composto corpoalma chamado por Aristoacuteteles em
parte da Metafiacutesica tograve syacutenolon (conjunto) de mateacuteria e forma
(hyacutelēmorphḗ) levam agrave produccedilatildeo de algo uacutetil ao homem agrave praacutetica de
boas accedilotildees e igualmente ao exerciacutecio da razatildeo teoacuterica e estatildeo de acordo
com Lawrence (2009 p 46) e com nossa interpretaccedilatildeo a serviccedilo dessa
vida boa em comunidade Por isso deveremos nos concentrar agora em
abordar as questotildees da alma humana como levantadas ao final do Livro
I da EN capiacutetulo 13 chamando em nosso auxiacutelio quando necessaacuterias
15 Quanto agrave classificaccedilatildeo do homem como animal racional especificar a
essecircncia humana ver Boyle (2012)
39
as consideraccedilotildees do De Anima sobre o assunto especialmente quando
este tratado puder nos auxiliar a confirmar nossa interpretaccedilatildeo
hilemoacuterfica que nos permitiraacute defender nossa teoria da funccedilatildeo proacutepria ao
homem como necessaacuteria ao entendimento do papel das emoccedilotildees na vida
moral
3 EN I 13 a alma humana e a emoccedilatildeo
A felicidade foi proposta em EN I 13 como atividade da alma
conforme a virtude mais completa16 Por isso para compreender melhor
o que seja a felicidade Aristoacuteteles julga necessaacuterio estudar a natureza da
virtude O filoacutesofo explica que a virtude a ser estudada eacute humana como
satildeo humanos o bem e a felicidade que procura esclarecer Por
conseguinte escreve ldquoPor virtude humana entendemos natildeo a do corpo
mas da alma e igualmente agrave felicidade chamamos uma atividade da
alma Mas assim sendo eacute oacutebvio que o poliacutetico deve saber de algum
modo o que diz respeito agrave almardquo (EN I 13 1102a16-19)17 O estudo da
alma que um legislador buscaria empreender no entanto teria por
finalidade tornar os cidadatildeos bons e entender como isso eacute possiacutevel o
que bastaria para o tipo de investigaccedilatildeo ora feito contudo pensamos
que a consulta do tratado da alma quando necessaacuteria pode ser mais
esclarecedora dos problemas que levantamos Natildeo obstante
comeccedilaremos a discussatildeo com as propostas da EN a respeito do assunto
em questatildeo nesse momento
Quando o tema eacute a alma humana a EN aponta a existecircncia de
opiniotildees consideraacuteveis mesmo que natildeo venham de Aristoacuteteles ou de
seus companheiros de estudo Uma dessas opiniotildees considerada vaacutelida eacute
a mencionada teoria que a alma apresenta uma capacidade racional e
outra natildeo racional (EN I 13 1102a29) Costuma-se aceitar igualmente
uma subdivisatildeo das capacidades aniacutemicas natildeo racionais propondo agrave
capacidade natildeo racional primeiro uma (sub)capacidade vegetativa
responsaacutevel pela nutriccedilatildeo e pelo crescimento Esta eacute presente em todos
16 Embora nos trechos em questatildeo nesse ponto do estudo utilizemos a traduccedilatildeo
de Zingano preferimos usar ldquovirtude completardquo a ldquovirtude perfeitardquo devido agrave
compreensatildeo que temos de tal virtude e que seraacute esclarecida brevemente mais
adiante 17 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original καὶ γὰρ τἀγαθὸν ἀνθρώπινον
ἐζητοῦμεν καὶ τὴν εὐδαιμονίαν ἀνθρωπίνην ἀρετὴν δὲ λέγομεν ἀνθρωπίνην οὐ
τὴν τοῦ σώματος ἀλλὰ τὴν τῆς ψυχῆς καὶ τὴν εὐδαιμονίαν δὲ ψυχῆς ἐνέργειαν
λέγομεν
40
os animais vivos adultos embriotildees lactantes etc A excelecircncia de tal
capacidade por esse aspecto comum aos viventes eacute pertencente a todos
e natildeo eacute especificamente humana18 Aleacutem disso a capacidade nutritiva
ou vegetativa trabalha especialmente durante o sono quando a maldade
ou a bondade de caraacuteter natildeo se manifestam Assim tal faculdade pode
ser posta de lado por ora em nossas investigaccedilotildees jaacute que na EN eacute tida
como natildeo participante da excelecircncia especificamente humana19 No
entanto Aristoacuteteles segue com o exame da capacidade natildeo racional da
alma e escreve
Parece haver na alma ainda outro elemento
irracional mas que em certo sentido participa da
razatildeo Com efeito louvamos o princiacutepio racional
do homem continente e do incontinente assim
como a parte de sua alma que possui tal princiacutepio
porquanto ela os impele na direccedilatildeo certa e para os
melhores objetivos mas ao mesmo tempo
encontra-se neles um outro elemento naturalmente
oposto ao princiacutepio racional lutando contra este e
resistindo-lhe (EN I 13 1102b13-21)20
Esse princiacutepio opositor agrave racionalidade aparece nitidamente no
caso dos incontinentes e dos continentes pessoas nas quais a capacidade
racional e a natildeo racional esta uacuteltima na figura dos desejos entram em
conflito quanto aos objetos a serem perseguidos21 Aristoacuteteles assim nos
18 A respeito da forma como a posse de uma alma racional que muda a
organizaccedilatildeo das demais capcidades da alma em um ser classificado como
ldquoracionalrdquo ver Boyle (2012 p 15 et seq) Essa explicaccedilatildeo revalida a teoria
proposta acima a respeito do viver humano natildeo ser puramente racional mas
organizado de um jeito racional 19 De acordo com Boyle (2012 p 2) a tendecircncia crescente eacute entender que a
diferenccedila entre a mente humana e a dos animais chamados tradicionalmente
ldquonatildeo racionaisrdquo pousa mais no grau em que tais mentes diferem e natildeo nas suas
diferenccedilas por tipo ou espeacutecie O autor faz tal observaccedilatildeo ao falar das disvisotildees
propostas para a alma desde Aristoacuteteles 20 Idem no original ἔοικε δὲ καὶ ἄλλη τις φύσις τῆς ψυχῆς ἄλογος εἶναι
μετέχουσα μέντοι πῃ λόγου τοῦ γὰρ ἐγκρατοῦς καὶ ἀκρατοῦς τὸν λόγον καὶ τῆς
ψυχῆς τὸ λόγον ἔχον ἐπαινοῦμεν ὀρθῶς γὰρ καὶ ἐπὶ τὰ βέλτιστα παρακαλεῖ
φαίνεται δ ἐν αὐτοῖς καὶ ἄλλο τι παρὰ τὸν λόγον πεφυκός ὃ μάχεται καὶ
ἀντιτείνει τῷ λόγῳ 21 A questatildeo da acrasia eacute muito mais complexa do que esse arremedo de resumo
aqui apresentado mas no momento natildeo nos caberia discuti-la em detalhes bem
41
adverte que na alma haacute algo que eacute contraacuterio agrave capacidade racional
resistindo-lhe e fazendo-lhe frente Isso parece nem participar da
capacidade racional embora no continente obedeccedila-a no temperante e
no bravo obedece ainda mais ldquopois em tais homens ele fala a respeito
de todas as coisas com a mesma voz que o princiacutepio racionalrdquo (EN I 13
1102b28)22 Mesmo que esta capacidade pareccedila natildeo participar da
racional os exemplos de virtudes e virtuosos dados no passo nos
mostram que essa faculdade ou (sub)capacidade da capacidade natildeo
racional constituiacuteda por querer (bouacutelēsis) apetite (epithymiacutea) e impulso
(thymoacutes) satildeo desejos aptos a ouvir a racionalidade obedececirc-la e ateacute
participar dela embora pareccedilam sempre fazer o contraacuterio Explicaremos
melhor essa proposta a seguir quando tratarmos especificamente a
capacidade desiderativa
Ateacute o momento a interpretaccedilatildeo feita nos permite afirmar que a
capacidade natildeo racional eacute ou parece ser dupla Isso porque a vegetativa
natildeo participa da capacidade racional mas a desiderativa em geral
participa ao menos de certo modo (EN I 13 1102b32) porque no
miacutenimo eacute capaz de escutar e obedecer agrave razatildeo como um filho ouve e
obedece a um pai Conselhos censuras e exortaccedilotildees comprovam
portanto que o natildeo racional eacute de certo modo persuadido pela razatildeo O
argumentoexemplo do filho e do pai daacute azo ao nosso argumento
porque o filho pode ainda natildeo possuir plenamente a razatildeo em ato mas eacute
considerado na Poliacutetica como parte da famiacutelia cujo elemento racional eacute
figurado pelo pai sendo este representante da razatildeo praacutetica na analogia
apresentada na EN Essa participaccedilatildeo enquanto natildeo se atualiza a
potecircncia de razatildeo do filho eacute siacutembolo da participaccedilatildeo do que na alma haacute
de menos racional mas capaz de ouvir agrave razatildeo praacutetica Por isso a
virtude recebe distinccedilatildeo semelhante nesse tratado indicando a existecircncia
de uma virtude moral e de uma virtude intelectual cada destas uma
componente indispensaacutevel de uma alma humana una que soacute pode ver
atualizadas suas muacuteltiplas capacidades pelo composto corpoalma
Quando se fala do caraacuteter humano no entanto estaacute-se a falar da virtude
moral entendida por Aristoacuteteles como disposiccedilatildeo digna de louvor
quando o agente se comporta bem diante dos arroubos de suas emoccedilotildees
Mas em grau secundaacuterio a vida de acordo com a
outra espeacutecie de virtude eacute feliz porque as
atividades que concordam com esta condizem
como nos faltaria recursos para encampar a tarefa no presente estudo 22 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original πάντα γὰρ ὁμοφωνεῖ τῷ λόγῳ
42
com a nossa condiccedilatildeo humana Os atos corajosos
e justos bem como outros atos virtuosos noacutes os
praticamos em relaccedilatildeo uns aos outros observando
nossos respectivos deveres no tocante a contratos
serviccedilos e toda sorte de accedilotildees bem assim como agraves
paixotildees e todas essas coisas parecem ser
tipicamente humanas Dir-se-ia ateacute que algumas
delas provecircm do proacuteprio corpo e que o caraacuteter
virtuoso se prende por muitos laccedilos agraves paixotildees
(EN X 8 1178a8-15)23
A vida voltada aos assuntos da poacutelis eacute portanto feliz mas
cercada pelas inevitaacuteveis emoccedilotildees e pelos desejos Esta eacute a vida que
procuramos examinar estando no exerciacutecio de sua funccedilatildeo proacutepria
Ressaltamos anteriormente e reforccedilamos aqui que uma existecircncia
totalmente em contemplaccedilatildeo filosoacutefica natildeo parece possiacutevel devido agrave
presenccedila dos elementos natildeo racionais acima mencionados na vida de
todos e da necessidade humana de viver em comunidade A despeito das
associaccedilotildees da eudamōniacutea com a contemplaccedilatildeo de Aristoacuteteles definir o
filoacutesofo como capaz de tal vida por exercer o cultivo da sua razatildeo
teoacuterica (ou do uso teoacuterico de sua razatildeo) de propor o filoacutesofo como
capaz de desfrutar a melhor disposiccedilatildeo de espiacuterito e ser caro aos deuses
devemos dar atenccedilatildeo agrave ressalva seguinte feita por Sorabji
Aristoacuteteles [] aborda a questatildeo seraacute que eacute
errado uma vez que somos humanos aspirar a
vida mais divina de contemplaccedilatildeo intelectual Ele
responde (embora eu natildeo ache que esta seja sua
uacuteltima palavra) que pelo contraacuterio o nosso
intelecto eacute o nosso verdadeiro eu [] Aristoacuteteles
viu as emoccedilotildees natildeo apenas como uacuteteis mas como
essenciais agrave melhor vida que os homens podem
alcanccedilar na praacutetica Embora dividido ele
reconhece que uma vida de nada mais que
contemplaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel para noacutes Ateacute mesmo
23 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Δευτέρως δ ὁ κατὰ τὴν ἄλλην ἀρετήν αἱ γὰρ κατὰ ταύτην
ἐνέργειαι ἀνθρωπικαί δίκαια γὰρ καὶ ἀνδρεῖα καὶ τὰ ἄλλα τὰ κατὰ τὰς ἀρετὰς
πρὸς ἀλλήλους πράττομεν ἐν συναλλάγμασι καὶ χρείαις καὶ πράξεσι παντοίαις
ἔν τε τοῖς πάθεσι διατηροῦντες τὸ πρέπον ἑκάστῳ ταῦτα δ εἶναι φαίνεται
πάντα ἀνθρωπικά ἔνια δὲ καὶ συμβαίνειν ἀπὸ τοῦ σώματος δοκεῖ καὶ πολλὰ
συνῳκειῶσθαι τοῖς πάθεσιν ἡ τοῦ ἤθους ἀρετή
43
os filoacutesofos devem comer e viver em sociedade e
a vida mais feliz envolveraacute tambeacutem o exerciacutecio
das virtudes em sociedade As virtudes por sua
vez envolvem acertar o ponto meacutedio na emoccedilatildeo
bem como na accedilatildeo (SORABJI 2000 p 190-191
traduccedilatildeo nossa)
Assim percebemos que Aristoacuteteles natildeo deixa os homens comuns
fora de suas consideraccedilotildees sobre a vida feliz dos cidadatildeos e admite
inclusive que esses homens sejam a maioria Aristoacuteteles igualmente natildeo
retira os filoacutesofos do conviacutevio na poacutelis pois natildeo eacute o fato de serem
filoacutesofos que faraacute com que deixem de ser humanos e de apresentar
funccedilatildeo e necessidades especiacuteficas agrave humanidade Aleacutem do mais entende
que mesmo os homens mais excelentes carecem de conviacutevio para deixar
claras as suas aptidotildees e beneficiar seus amigos com sua companhia (EN
Livro IX) No conviacutevio desses homens em comunidade eacute que aparecem
as emoccedilotildees e por isso o papel de destaque que o paacutethos tem na eacutetica
aristoteacutelica e na sua proposta da vida feliz motivo suficiente para nos
encorajar a continuar a pesquisar sobre o papel das emoccedilotildees na boa vida
descrita pelo filoacutesofo Para ressaltar essa interpretaccedilatildeo devemos
continuar a examinar as propostas de EN I 13 acerca das diferentes
capacidades aniacutemicas e buscar compreender como essas tais
capacidades podem estar associadas agrave emoccedilatildeo e ao seu papel junto agrave
eudaiacutemōniacutea aleacutem de deixar clara sua possibilidade de participaccedilatildeo na
razatildeo (praacutetica)
3a) Capacidades da alma
Diante das propostas de I 13 o que podemos depreender a
respeito da alma e suas capacidades O passo provavelmente
interessado em introduzir a discussatildeo das virtudes mais especificamente
da virtude moral frente agrave felicidade humana acaba por natildeo trazer
grandes informaccedilotildees sobre a psychḗ Eacute possiacutevel poreacutem apreender um
pouco mais que a famosa e provavelmente popular biparticcedilatildeo da alma
se contarmos na medida do possiacutevel com explanaccedilotildees esclarecedoras
apresentadas pelo DA Para comeccedilar podemos questionar a ideia de
uma alma partiacutevel Em decorrecircncia disso parece viaacutevel o questionamento acerca da capacidade racional e da natildeo racional e de
suas (sub)capacidades assunto que ganharaacute ainda mais esclarecimento
ao tratarmos as propostas do Livro VI sobre as virtudes intelectuais no
capiacutetulo que se seguiraacute
44
A discussatildeo sobre as emoccedilotildees nos conduziu agrave reflexatildeo acerca das
chamadas ldquopartesrdquo da alma agraves quais nos referiremos aqui pela palavra
ldquocapacidadesrdquo24 ideia que parece mais adequada agravequilo que
interpretamos como real teoria da alma em Aristoacuteteles pois o termo
grego em questatildeo eacute dyacutenamis Com EN I 13 propusemos uma capacidade
racional da alma e uma capacidade natildeo racional sendo que nesta uacuteltima
eacute demasiado importante agrave presente investigaccedilatildeo sua possibilidade de
ouvir a razatildeo Eacute duacutevida frequente entre os estudiosos da psychḗ25 e do
assunto especialmente no DA se Aristoacuteteles realmente haveria dividido
a alma como observa Bastit ao se perguntar ldquoO que eacute uma parte da
alma para Aristoacuteteles26rdquo A questatildeo eacute importante para o nosso estudo
porque nos levaraacute a entender melhor as possibilidades de mudanccedilas
nasdas emoccedilotildees a fim de que concordem com a razatildeo praacutetica Essas
variaccedilotildees satildeo necessaacuterias agrave vida feliz aleacutem de nos ajudar a entender
melhor a postura de Aristoacuteteles acerca da relaccedilatildeo corpoalma colocando
nossa investigaccedilatildeo no centro de debates ativos e atuais a respeito das
propostas do nosso filoacutesofo
Ao tratar uma possiacutevel divisatildeo da alma em partes Aristoacuteteles
ressalta que existem aqueles pensadores que a dividem e julgam que em
uma destas secccedilotildees estaria o pensar em outra o apetite Se assim fosse
questiona o que manteria a alma unida Afirma que natildeo seria o corpo e
pondera ldquoAo contraacuterio parece mais que eacute a alma que manteacutem junto o
corpo pois quando ela o abandona ele se dissipa e corromperdquo (DA I 5
411b7-8)27 Se algo diferente do corpo manteacutem a alma una seria a
proacutepria psychḗ e seria necessaacuterio investigar novamente se eacute uma unidade
ou se se divide em muitas partes O tal unificador sendo uno seria
igualmente correto afirmar que a alma eacute una Se fosse divisiacutevel seria
preciso novamente buscar o que manteacutem esse unificador coeso mas isso
24 Escolhemos traduzir dyacutenamis por ldquocapacidaderdquo tambeacutem pelo fato de termos
traduzido eacutergon por ldquofunccedilatildeordquo Traduzir ambos os termos por ldquofunccedilatildeordquo poderia
comprometer o entendimento de nossas propostas 25Novamente a conversa pode ser travada com Platatildeo que por exemplo no
Timeu (69c et seq) trata da particcedilatildeo da alma em racional e natildeo-racional
mortal e imortal base para a triparticcedilatildeo da alma em racional impulsiva e
apetitiva proposta pelo filoacutesofo ateniense 26 A frase que convenientemente nos serve como indagaccedilatildeo eacute o tiacutetulo do artigo
redigido pelo estudioso em questatildeo e que nos ajudaraacute a defender algumas das
ideias que aqui apresentaremos 27 Todas as citaccedilotildees feitas do DA tecircm traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos
Reis (2006) e seratildeo indicadas em rodapeacute no original δοκεῖ γὰρ τοὐναντίον
μᾶλλον ἡ ψυχὴ τὸ σῶμα συνέχειν ἐξελθούσης γοῦν διαπνεῖται καὶ σήπεται
45
levaria a uma progressatildeo ao infinito e seria ininteligiacutevel o que natildeo eacute
aceitaacutevel para Aristoacuteteles
Quanto agraves partes ou capacidades da alma igualmente haacute um
problema ldquoque potecircncia cada uma possui no corpordquo (DA I 5 411b15)28
Se a alma inteira eacute responsaacutevel por manter o corpo unido seria
conveniente que cada uma das suas partes mantivesse unida uma parte
do corpo Para Aristoacuteteles isso parece impossiacutevel pois seria difiacutecil
imaginar qual parte do corpo o intelecto manteria unida jaacute que parece
natildeo haver um oacutergatildeo especiacutefico correspondente agrave funccedilatildeo intelectiva o
que dificultaria igualmente saber o modo como o faria Ademais eacute
sabido que algumas espeacutecies de plantas e animais quando seccionados
continuam a viver como se tivessem a mesma alma embora natildeo
numericamente jaacute que cada uma das partes tem sensaccedilatildeo e se move
localmente ainda por um tempo Caso natildeo sobrevivam natildeo seria um
absurdo pois natildeo manteriam oacutergatildeos que lhes permitiriam continuar a
viver Assim em cada uma das partes do corpo estatildeo todas as partes ou
capacidades da alma como nos explica Bastit no passo abaixo
Assim eacute preservada uma certa determinaccedilatildeo local
dos atos de certos sentidos ndash a vista eacute o fato do
olho ndash que natildeo implica a separaccedilatildeo nem das partes
da alma nem das funccedilotildees dos sentidos e que por
consequecircncia natildeo causa subordinaccedilatildeo das partes
da alma agraves partes do corpo mas bem ao contraacuterio
uma subordinaccedilatildeo dos oacutergatildeos ao ato da parte da
alma da qual satildeo o instrumento o olho agrave visatildeo
por exemplo Por analogia a faculdade eacute
subordinada agrave alma inteira e natildeo eacute separada
Por conseguinte o ato da alma inteira deve poder
efetivamente se manifestar em todas as partes do
vivente Tratando-se de um ato este deve ser
constataacutevel Eacute justamente por isso que Aristoacuteteles
recorre ainda para repelir simultaneamente a
separaccedilatildeo real das partes da alma e sua
localizaccedilatildeo a uma observaccedilatildeo no quadro do qual
o ato do vivente inteiramente presente atualiza as
faculdades da alma do observador Ele nota na
verdade que ldquoeacute evidente que as plantas divididas
vivemrdquo Cada buquecirc de flores nos mostra isso []
Isso significa que a alma inteira princiacutepio de vida
estaacute presente em cada segmento vivente O que o
28 No original τίν ἔχει δύναμιν ἕκαστον ἐν τῷ σώματι
46
indica eacute sua capacidade de se mover e de sentir
(BASTIT 1996 p 23-24 traduccedilatildeo nossa)
Tais informaccedilotildees conduzem o estudioso da alma em Aristoacuteteles a
pensar qual a natureza do objeto em questatildeo Ao longo do DA existem
algumas tentativas de definir o que seria a alma e estas parecem levar a
entender que a melhor forma de defini-la seria a partir das capacidades
que faculta ao corpo desempenhar Para informar melhor ao interessado
nas coisas aniacutemicas o que seja a psychḗ e sua funccedilatildeo proacutepria Aristoacuteteles
escreve ldquodigamos entatildeo que o animado se distingue do inanimado pelo
viver E de muitos modos se diz o viver pois dizemos que algo vive se
nele subsiste pelo menos um destes ndash intelecto percepccedilatildeo sensiacutevel
movimento local e repouso e ainda o movimento segundo a nutriccedilatildeo o
decaimento e o crescimentordquo (DA II 2 413a20-25)29 Mesmo que as
capacidades natildeo estejam presentes em todos os viventes parece que a
melhor forma de entender a alma desde as plantas ateacute animais mais
complexos como o homem eacute como princiacutepio animador que confere
capacidades A psychḗ conferiria vida ao todo orgacircnico constituinte do
corpo sendo este conjunto de mateacuteria e forma como jaacute propusemos30
Tais capacidades permitem ao homem desde o mais simples tato ateacute a
percepccedilatildeo sensiacutevel mais sutil que conduziria agrave phantasiacutea como podemos
ler no passo que segue
O viver subsiste nos seres vivos por conta deste
princiacutepio e o animal constitui-se primordialmente
pela percepccedilatildeo sensiacutevel Pois dizemos que satildeo
animais ndash e natildeo apenas que vivem ndash tambeacutem os
que natildeo se movem nem mudam de lugar mas
possuem percepccedilatildeo E da percepccedilatildeo eacute o tato que
em todos subsiste primeiro E assim como a
capacidade nutritiva pode estar separada do tato e
de toda e qualquer percepccedilatildeo sensiacutevel tambeacutem o
29 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis no original λέγομεν οὖν ἀρχὴν
λαβόντες τῆς σκέψεως διωρίσθαι τὸ ἔμψυχον τοῦ ἀψύχου τῷ ζῆν πλεοναχῶς
δὲ τοῦ ζῆν λεγομένου κἂν ἕν τι τούτων ἐνυπάρχῃ μόνον ζῆν αὐτό φαμεν οἷον
νοῦς αἴσθησις κίνησις καὶ στάσις ἡ κατὰ τόπον ἔτι κίνησις ἡ κατὰ τροφὴν καὶ
φθίσις τε καὶ αὔξησις 30 Sobre a questatildeo da alma como conjunto de mateacuteria e forma questatildeo que
renderia ao menos um capiacutetulo agrave parte eacute possiacutevel ler mais nos dois capiacutetulos
escritos por Robinson e dedicados agrave questatildeo da alma em Aristoacuteteles em seu As
origens da alma
47
tato pode estar separado dos demais sentidos
Denominamos nutritiva tal parte da alma da qual
participam tambeacutem as plantas Todos os animais
por outro lado revelam possuir o sentido do tato ndash
e diremos posteriormente por meio de que causa
cada uma dessas coisas Por ora eacute suficiente dizer
apenas isto que a alma eacute princiacutepio das
capacidades mencionadas ndash nutritiva perceptiva
raciocinativa e de movimento ndash e que por elas eacute
definida (DA II 2 413b1-13)31
Conferindo unidade agrave sua psychḗ Aristoacuteteles abre para noacutes uma
possibilidade maior de entender a participaccedilatildeo do sensiacutevel no inteligiacutevel
bem como do racional no natildeo racional da alma descrita na EN Sendo
capacidades de algo uno natildeo seriam totalmente desconectadas
relacionando-se de algum modo como explica o Zingano ldquoA alma eacute
uma uacutenica forma com diferentes funccedilotildeesrdquo (Zingano 1998 p 37)
Retornando agraves capacidades que vivificam o corpo podemos
entender que alguns seres tecircm capacidade perceptiva e igualmente
desiderativa porque o desejo eacute querer (bouacutelēsis) impulso (thymoacutes) e
apetite (epithymiacutea DA II 3 414b2) Capacidades que estatildeo ao menos a
princiacutepio associadas agraves formas da percepccedilatildeo sensiacutevel e aos sentidos que
lhes correspondem que na descriccedilatildeo de Aristoacuteteles satildeo os mesmos que
ainda conhecemos tato olfato paladar visatildeo e audiccedilatildeo
Para que os viventes sejam classificados como animais todos
devem possuir ao menos um desses sentidos o tato Os animais que
apresentam percepccedilatildeo sensiacutevel igualmente tecircm prazer e dor Ao serem
capazes de perceber o prazeroso e o doloroso tambeacutem apresentam
apetite que eacute desejo pelo prazeroso (DA II 3 414b5-6) fogem ou
buscam o que lhes aparece como prazeroso Tais animais apresentam
obviamente percepccedilatildeo do alimento pelo tato sentido por meio do
31 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original τὸ μὲν οὖν ζῆν διὰ τὴν
ἀρχὴν ταύτην ὑπάρχει τοῖς ζῶσι τὸ δὲ ζῷον διὰ τὴν αἴσθησιν πρώτως καὶ γὰρ
τὰ μὴ κινούμενα μηδ ἀλλάττοντα τόπον ἔχοντα δ αἴσθησιν ζῷα λέγομεν καὶ
οὐ ζῆν μόνον αἰσθήσεως δὲ πρῶτον ὑπάρχει πᾶσιν ἁφή ὥσπερ δὲ τὸ θρεπτικὸν
δύναται χωρίζεσθαι τῆς ἁφῆς καὶ πάσης αἰσθήσεως οὕτως ἡ ἁφὴ τῶν ἄλλων
αἰσθήσεων (θρεπτικὸν δὲ λέγομεν τὸ τοιοῦτον μόριον τῆς ψυχῆς οὗ καὶ τὰ
φυόμενα μετέχει) τὰ δὲ ζῷα πάντα φαίνεται τὴν ἁπτικὴν αἴσθησιν ἔχοντα δι
ἣν δ αἰτίαν ἑκάτερον τούτων συμβέβηκεν ὕστερον ἐροῦμεν νῦν δ ἐπὶ
τοσοῦτον εἰρήσθω μόνον ὅτι ἐστὶν ἡ ψυχὴ τῶν εἰρημένων τούτων ἀρχὴ καὶ
τούτοις ὥρισται θρεπτικῷ αἰσθητικῷ διανοητικῷ κινήσει
48
paladar Todos os seres vivos se alimentam de coisas secas e uacutemidas
quentes e frias percebidas pelo tocar mas os seres vivos que possuem
tato igualmente possuem desejo Aristoacuteteles parece mesmo admitir a
existecircncia de imaginaccedilatildeo nesses animais embora afirme que esse
assunto natildeo estaacute esclarecido e que a phantasiacutea seraacute analisada
posteriormente anaacutelise que tambeacutem efetuaremos posteriormente Com
as descriccedilotildees e afirmaccedilatildeo feitas ateacute agora percebemos uma espeacutecie de
hierarquia entre as capacidades Mas qual a razatildeo de serem dispostas
em sucessatildeo A resposta do filoacutesofo eacute que
[] sem a nutritiva natildeo existe a capacidade
perceptiva embora nas plantas a nutritiva exista
separada da perceptiva E novamente sem o tato
nenhum dos outros sentidos subsiste embora o
tato subsista sem os outros pois diversos animais
natildeo tecircm a capacidade perceptiva uns tecircm a
locomotiva e outros natildeo Por fim pouquiacutessimos
tecircm caacutelculo e raciociacutenio Pois entre os seres
pereciacuteveis naqueles em que subsiste caacutelculo
tambeacutem subsiste cada uma das outras nem todos
tecircm caacutelculo (e alguns nem sequer imaginaccedilatildeo ao
passo que outros vivem unicamente por meio
dela) O intelecto capaz de inquirir requer uma
outra discussatildeo Eacute claro entatildeo que o enunciado
de cada uma destas capacidades eacute tambeacutem o mais
apropriado a respeito da alma (DA II 3 415a1-
13)32
A relaccedilatildeo entre as capacidades em sucessatildeo indica como
buscamos defender a unidade da alma que permite falar de emoccedilotildees
educaacuteveis graccedilas aos seus contatos com a capacidade racional e aos
elementos de racionalidade presentes em sua constituiccedilatildeo sendo por
32 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original ἄνευ μὲν γὰρ τοῦ
θρεπτικοῦ τὸ αἰσθητικὸν οὐκ ἔστιν τοῦ δ αἰσθητικοῦ χωρίζεται τὸ θρεπτικὸν
ἐν τοῖς φυτοῖς πάλιν δ ἄνευ μὲν τοῦ ἁπτικοῦ τῶν ἄλλων αἰσθήσεων οὐδεμία
ὑπάρχει ἁφὴ δ ἄνευ τῶν ἄλλων ὑπάρχει πολλὰ γὰρ τῶν ζῴων οὔτ ὄψιν οὔτ
ἀκοὴν ἔχουσιν οὔτ ὀσμῆς αἴσθησιν καὶ τῶν αἰσθητικῶν δὲ τὰ μὲν ἔχει τὸ κατὰ
τόπον κινητικόν τὰ δ οὐκ ἔχει τελευταῖον δὲ καὶ ἐλάχιστα λογισμὸν καὶ
διάνοιαν οἷς μὲν γὰρ ὑπάρχει λογισμὸς τῶν φθαρτῶν τούτοις καὶ τὰ λοιπὰ
πάντα οἷς δ ἐκείνων ἕκαστον οὐ πᾶσι λογισμός ἀλλὰ τοῖς μὲν οὐδὲ φαντασία
τὰ δὲ ταύτῃ μόνῃ ζῶσιν περὶ δὲ τοῦ θεωρητικοῦ νοῦ ἕτερος λόγος ὅτι μὲν οὖν
ὁ περὶ τούτων ἑκάστου λόγος οὗτος οἰκειότατος καὶ περὶ ψυχῆς δῆλον
49
isso assunto relevante agrave nossa pesquisa Fazemos tal afirmaccedilatildeo porque a
capacidade perceptiva mencionada no passo manteacutem contato com a
desiderativa e portanto aparece como relacionada agraves afecccedilotildees do corpo
e da alma dentre as quais estatildeo aquilo que buscamos entender como
emoccedilotildees Estando tal capacidade atrelada igualmente agraves formas que
facultam ao homem conhecer o mundo ao seu redor voltaremos ao
assunto da percepccedilatildeo sensiacutevel mais tarde Por ora nos damos por
satisfeitos em compreender e esclarecer certas questotildees levantadas pelo
comeccedilo da EN acerca da alma e de suas capacidades a) Aristoacuteteles
assim como pensadores precedentes realmente propocircs uma divisatildeo da
alma Entendemos que na EN e em Aristoacuteteles de um modo geral natildeo
haacute cisatildeo na alma e nem entre corpo e alma b) Entatildeo por que falar em
parte (moacuterion) da alma A discussatildeo sobre as partes da alma aparece
mais detalhadamente no DA em uma franca discussatildeo com os filoacutesofos
que se dedicaram anteriormente agrave questatildeo Em Aristoacuteteles mesmo na
EN aquilo que costuma ser chamado ldquoparterdquo da alma parece ser
capacidade daquilo que o filoacutesofo entende por psychḗ sendo esta
definida pelo que faculta ao corpo com o qual forma um todo
substancialmente uno desempenhar o exerciacutecio de suas capacidades -
das mais baacutesicas agraves mais complexas Acrescentamos ainda apoacutes o
estudo dos dois tratados em questatildeo nesse momento que a alma move
sem ser movida quando se trata do movimento local e de certas partes
do corpo Por esses motivos compreendemos tambeacutem que as afecccedilotildees da
alma dentre as quais estatildeo as emoccedilotildees aqui estudadas causam
mudanccedilas fiacutesicas embora natildeo necessariamente causem movimentos de
deslocamento mas podem influenciar nos movimentos dos animais
dotados de percepccedilatildeo sensiacutevel ldquoPois o perceber eacute ser afetado por algo
de maneira que o agente torna como si mesmo em atividade aquele que
eacute tal em potecircnciardquo (DA II 11 423b30-424a1)33
O estudo da alma e de suas capacidades nos levou agrave discussatildeo da
existecircncia de ldquopartesrdquo distintas e componentes de uma alma teoria que
com ajuda de Aristoacuteteles e de alguns comentadores como Zingano e
Bastit acabamos por rejeitar Mas por que deveriacuteamos nos deter em
uma pesquisa sobre uma alma partiacutevel ou unitaacuteria em um trabalho que
se pretende de cunho eacutetico A questatildeo comeccedila a ser respondida ainda
por EN I 13 passo no qual Aristoacuteteles menciona uma alma bipartida a
fim de defender a existecircncia de diferentes virtudes que comporiam a
33 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original τὸ δὲ αἰσθητήριον αὐτῶν
τὸ ἁπτικόν καὶ ἐν ᾧ ἡ καλουμένη ἁφὴ ὑπάρχει αἴσθησις πρώτῳ τὸ δυνάμει
τοιοῦτόν ἐστι μόριον
50
vida feliz Entender essa proposta somente agraves luzes da EN natildeo nos
pareceu suficiente e por isso optamos por recorrer ao DA obra
dedicada quase exclusivamente ao assunto Nesse tratado bem como ao
longo da exposiccedilatildeo da EN percebemos que a interpretaccedilatildeo de uma alma
natildeo divisiacutevel apesar de contrariar boa parte dos filoacutesofos precedentes
que dedicaram tempo agrave questatildeo contemplaria nossa interpretaccedilatildeo das
emoccedilotildees jaacute que o filoacutesofo estudado as propotildee como ldquopertencentesrdquo agrave
capacidade desiderativa da alma capaz de participar da razatildeo
Cremos que a uacutenica forma de acatar essa proposta seria
compreender a alma como algo uno sem partes totalmente isoladas
umas das outras Defendemos essa interpretaccedilatildeo a fim de que as
capacidades aniacutemicas pudessem se comunicar de que o desiderativo
participasse da razatildeo a despeito da proposta da capacidade nutritiva
acima apresentada Esta capacidade igualmente participa da vida
humana mais completa pois natildeo eacute possiacutevel a homem nenhum nem
mesmo aos filoacutesofos deixar de se alimentar por exemplo Tendo em
vista nosso interesse nas relaccedilotildees das emoccedilotildees com a razatildeo e sendo a
capacidade desiderativa o caminho possibilitador de tal relaccedilatildeo em uma
alma una que reflete um desejo capaz de se associar agrave razatildeo cabe-nos
agora estudar ao menos em grandes linhas a capacidade desiderativa da
alma humana Voltaremos agrave questatildeo da unidade da alma no capiacutetulo III
a fim de concluir nossos estudos sobre as emoccedilotildees na alma humana e
sua possiacutevel racionalidade
3b) A capacidade desiderativa da alma as accedilotildees e as emoccedilotildees na vida
feliz
Para dar prosseguimento agrave nossa busca por esclarecer os pontos
suscitados por EN I 13 trataremos agora a capacidade desiderativa da
alma humana As consideraccedilotildees supramencionadas nos levam a pensar
um desejo que apresenta trecircs formas quanto agrave sua capacidade de ouvir e
obedecer agrave razatildeo34 (DA II 12 414b2) Essas possibilidades por sua vez
perfazem uma capacidade desiderativa global e una (haplṓs orektikoacuten)
a oacuterexis Vejamos melhor qual a influecircncia desta capacidade aniacutemica no
se emocionar e no agir mas comecemos seguindo o conselho de
Aristoacuteteles e buscando entender o desejo O desiderativo estaacute entre aquelas capacidades que permitem ao
34 Ver EN II - III 1111a23-35 1111b1-3 sobre as emoccedilotildees natildeo racionais
conformes aos desejos natildeo racionais tambeacutem Sorabji (2002 p 323) e AGGIO
(2017 no prelo)
51
corpo executar as atividades indispensaacuteveis agrave sua existecircncia a nutriccedilatildeo
a percepccedilatildeo e o raciociacutenio A funccedilatildeo desiderativa seria comum a todos
os animais embora somente o homem possuiacutesse todas as dynaacutemeis (capacidades) mencionadas sendo o desejo natural ao homem Como
isso pode ser importante se nesse ponto do estudo temos em vista a
definiccedilatildeo de emoccedilatildeo frente a uma vida feliz A resposta eacute Aristoacuteteles
considera que na alma haacute trecircs fatores determinantes da accedilatildeo e da
verdade sensaccedilatildeo intelecto e desejo (aiacutesthēsis noucircs oacuterexis) mas a
sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepio da accedilatildeo moral pois mesmo as bestas a
possuem Ocasionaria o movimento comum a todos os viventes mas a
accedilatildeo eacute composta por movimentos fiacutesicos todavia tendo em vista um
fim especiacutefico e bom quando da associaccedilatildeo entre desejo e intelecto seria
propriamente humana assunto que abordaremos em maiores detalhes
adiante
A afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo satildeo da ordem do pensamento o buscar e
o fugir satildeo da ordem do desiderativo (EN VI 2 1139a20-22) As
aparecircncias que excitam o desejo levam agrave emoccedilatildeo e podem levar a
formulaccedilatildeo de tipos de juiacutezos (DA III 9 MA II) Ainda que o orthograves
loacutegos (reta razatildeo) segundo Tricot (2012 p 298) seja a maacutexima geral da
conduta e que deste modo o pensamento deva determinar aquilo a ser
alcanccedilado o intelecto por si mesmo natildeo move pois ldquoda parte do
intelecto praacutetico seu bom estado consiste na verdade correspondente ao
desejo ao desejo corretordquo (EN 1139a29-31)35 Sem a oacuterexis que define
o fim a se buscar natildeo haacute accedilatildeo Assim o desejaacutevel eacute a causa final da
accedilatildeo e o desejo pode ser sua causa eficiente quando conjugado ao
intelecto praacutetico fazendo mover na direccedilatildeo do que eacute correto Este
intelecto depois que a oacuterexis determina o objeto a se buscar potildee-se a
procurar os meios necessaacuterios para que se alcance aquilo que eacute desejado
Apoacutes determinados os meios a tarefa de tal intelecto estaacute completa e
vem a accedilatildeo quem move portanto eacute um intelecto que tem em vista um
fim e que eacute de ordem praacutetica ou seja associado ao desejo que precede a
atividade no tempo (EN X 5 1175b30-33)36 Quanto a isso o DA
explica
Aleacutem disso mesmo que o intelecto ordene e o
raciociacutenio diga que se evite ou busque algo o
35 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original τοῦ δὲ πρακτικοῦ καὶ διανοητικοῦ ἀλήθεια ὁμολόγως
ἔχουσα τῇ ὀρέξει τῇ ὀρθῇ 36 Mas o prazer lhe eacute simultacircneo
52
indiviacuteduo natildeo se move mas age de acordo com o
apetite como no caso dos incontinentes []
Tampouco o desejo eacute responsaacutevel por esse
movimento pois os que satildeo continentes mesmo
desejando e tendo apetite natildeo fazem essas coisas
pelas quais tecircm desejo mas seguem o intelecto
Mostra-se entatildeo que haacute dois fatores que fazem
mover o desejo ou o intelecto contanto que se
considere a imaginaccedilatildeo um certo pensamento
Pois muitos seguem sua imaginaccedilatildeo em vez da
ciecircncia mas nos outros animais natildeo haacute nem
pensamento nem raciociacutenio e sim imaginaccedilatildeo
Logo satildeo estes os dois capazes de fazer mover
segundo o lugar o intelecto que raciocina em
vista de algo e que eacute praacutetico o qual difere do
intelecto contemplativo quanto ao fim E todo
desejo por sua vez eacute em vista de algo pois aquilo
de que haacute desejo eacute o princiacutepio do intelecto praacutetico
ao passo que o uacuteltimo item pensado eacute o princiacutepio
da accedilatildeo (DA III 9-10 433a1-17)37
Assim confirma-se que satildeo o desejo e o intelecto praacutetico que
fazem mover porque o objeto desejado leva ao movimento e o intelecto
determina como buscaacute-lo Em uacuteltima anaacutelise existe ldquoalgo uacutenico de fato
que faz mover o desejaacutevelrdquo (tograve orektoacuten DA 433a18-20 cf Besnier
2008 p 58)38 Isso acontece porque o desejo eacute princiacutepio indispensaacutevel
da accedilatildeo e quando a imaginaccedilatildeo move igualmente natildeo o faz sem desejo
Se intelecto e desejo movessem quanto ao lugar moveriam segundo
uma forma comum Isso implica que quando o desejo concorda desde o
iniacutecio e sem grandes resistecircncias com o intelecto eacute sua forma querer
37 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original ἔτι καὶ ἐπιτάττοντος τοῦ
νοῦ καὶ λεγούσης τῆς διανοίας φεύγειν τι ἢ διώκειν οὐ κινεῖται ἀλλὰ κατὰ τὴν
ἐπιθυμίαν πράττει οἷον ὁ ἀκρατής [] ἀλλὰ μὴν οὐδ ἡ ὄρεξις ταύτης κυρία
τῆς κινήσεως οἱ γὰρ ἐγκρατεῖς ὀρεγόμενοι καὶ ἐπιθυμοῦντες οὐ πράττουσιν ὧν
ἔχουσι τὴν ὄρεξιν ἀλλ ἀκολουθοῦσι τῷ νῷ Φαίνεται δέ γε δύο ταῦτα
κινοῦντα ἢ ὄρεξις ἢ νοῦς εἴ τις τὴν φαντασίαν τιθείη ὡς νόησίν τινα πολλοὶ
γὰρ παρὰ τὴν ἐπιστήμην ἀκολουθοῦσι ταῖς φαντασίαις καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις ζῴοις
οὐ νόησις οὐδὲ λογισμὸς ἔστιν ἀλλὰ φαντασία ἄμφω ἄρα ταῦτα κινητικὰ κατὰ
τόπον νοῦς καὶ ὄρεξις νοῦς δὲ ὁ ἕνεκά του λογιζόμενος καὶ ὁ πρακτικός
διαφέρει δὲ τοῦ θεωρητικοῦ τῷ τέλει καὶ ἡ ὄρεξις ltδgt ἕνεκά του πᾶσα οὗ γὰρ
ἡ ὄρεξις αὕτη ἀρχὴ τοῦ πρακτικοῦ νοῦ τὸ δ ἔσχατον ἀρχὴ τῆς πράξεως ὥστε
εὐλόγως δύο ταῦτα φαίνεται τὰ κινοῦντα ὄρεξις καὶ διάνοια πρακτική 38 Idem no original ἓν δή τι τὸ κινοῦν τὸ ὀρεκτικόν
53
(bouacutelēsis) que move O desejo contudo eacute capaz de mover sem o
raciociacutenio jaacute que o apetite (epithymiacutea) pode ser um tipo de desejo natildeo
conformado ou minimamente conformado ao intelecto ldquoIntelecto
entatildeo eacute sempre correto ao passo que o desejo e a imaginaccedilatildeo ora
corretos ora natildeo corretos Por isso eacute sempre o desejaacutevel que move
embora este seja tanto o bem como o bem aparente mas natildeo todo o
bem e sim o bem praacutetico apenas E o praticaacutevel eacute o que admite ser de
outro modordquo (DA III 10 433a26-30)39 Fica claro entatildeo que eacute uma
capacidade da alma do tipo desiderativo que move (DA III 10 433a31-
32) embora o proacuteprio desejaacutevel se mantenha estaacutetico ldquoEm suma eacute isto
o que foi dito na medida em que o animal eacute capaz de desejar por isso
mesmo ele eacute capaz de se moverrdquo (DA III 10 433b27-28)40 portanto sem
desejo natildeo haacute accedilatildeo Deste modo Aristoacuteteles apresenta a equaccedilatildeo cujos
termos resultam na accedilatildeo
[] primeiro o que faz mover segundo aquilo
por meio de que move e terceiro aquele que eacute
movido E de dois tipos o que faz mover ndash um eacute o
imoacutevel outro eacute o que faz mover sendo movido -
o bem praticaacutevel por sua vez eacute imoacutevel o que faz
mover sendo movida eacute a capacidade de desejar
(pois aquele que deseja move-se enquanto deseja
e o desejo eacute um certo movimento quando eacute desejo
em ato) e aquele que eacute movido por fim eacute o
animal O oacutergatildeo por meio do qual o desejo move
eacute de sua parte algo corporal ndash e por isso eacute nas
funccedilotildees comuns ao corpo e agrave alma que se deve
inquirir sobre ele (DA III 10 433b13-21)41
39 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original νοῦς μὲν οὖν πᾶς ὀρθός
ἐστιν ὄρεξις δὲ καὶ φαντασία καὶ ὀρθὴ καὶ οὐκ ὀρθή διὸ ἀεὶ κινεῖ μὲν τὸ
ὀρεκτόν ἀλλὰ τοῦτ ἐστὶν ἢ τὸ ἀγαθὸν ἢ τὸ φαινόμενον ἀγαθόν οὐ πᾶν δέ
ἀλλὰ τὸ πρακτὸν ἀγαθόν πρακτὸν δ ἐστὶ τὸ ἐνδεχόμενον καὶ ἄλλως ἔχειν 40 Idem no original ὅλως μὲν οὖν ὥσπερ εἴρηται ᾗ ὀρεκτικὸν τὸ ζῷον ταύτῃ
αὑτοῦ κινητικόν 41 Idem no original ἐπεὶ δ ἔστι τρία ἓν μὲν τὸ κινοῦν δεύτερον δ ᾧ κινεῖ ἔτι
τρίτον τὸ κινούμενον τὸ δὲ κινοῦν διττόν τὸ μὲν ἀκίνητον τὸ δὲ κινοῦν καὶ
κινούμενον ἔστι δὴ τὸ μὲν ἀκίνητον τὸ πρακτὸν ἀγαθόν τὸ δὲ κινοῦν καὶ
κινούμενον τὸ ὀρεκτικόν (κινεῖται γὰρ τὸ κινούμενον ᾗ ὀρέγεται καὶ ἡ ὄρεξις
κίνησίς τίς ἐστιν ἡ ἐνεργείᾳ) τὸ δὲ κινούμενον τὸ ζῷον ᾧ δὲ κινεῖ ὀργάνῳ ἡ
ὄρεξις ἤδη τοῦτο σωματικόν ἐστιν ndash διὸ ἐν τοῖς κοινοῖς σώματος καὶ ψυχῆς
ἔργοις θεωρητέον περὶ αὐτοῦ
54
O passo do DA esclarece que o desejo eacute entendido como uma
capacidade da alma que move a accedilatildeo por isso dizendo respeito aos fins
Eacute todavia especificamente EN I 13 que primeiro indica o desejo como
devendo se harmonizar com as sugestotildees de accedilatildeo do intelecto praacutetico
para que este mova de certo modo (ou do modo certo) Estes podem se
harmonizar pois o desejo pelo que foi exposto nas obras estudadas
apesar de natildeo racional eacute capaz ouvir e seguir a razatildeo mais ou menos
quando educado e bem-educado ouve-a mais O mesmo parece ser
vaacutelido quanto agraves emoccedilotildees devido agrave sua natureza desiderativa podem
ouvir e obedecer ou seja ser educadas conforme o orthograves loacutegos como
proposto na exposiccedilatildeo de Aggio
Pois bem ao contraacuterio da moral estoacuteica
Aristoacuteteles pressupotildee uma possiacutevel e necessaacuteria
harmonia das nossas afecccedilotildees da parte natildeo
racional tais como os desejos e as emoccedilotildees com
a nossa racionalidade praacutetica Para ele desejo e
razatildeo satildeo inseparaacuteveis como o corpo e a alma a
cera e o selo impresso o maacutermore e a estaacutetua
Inseparaacuteveis todavia distintos Por isso mesmo
desprovido ele proacuteprio de razatildeo o desejo pode
participar dela e por outro lado mesmo a razatildeo
desprovida de desejo ela pode participar dele
(AGGIO 2017 no prelo)
Sendo assim o desejo eacute o que nos move e sendo o movimento
um tipo de alteraccedilatildeo imprescindiacutevel agrave prāxis sofrida ao mesmo tempo
pelo corpo e pela alma entendemos por que o apetite estaacute na lista das
paacutethē na EN Tal presenccedila confirma nossa proposta da existecircncia de um
significado mais amplo para o termo que o nosso entendimento hodierno
de emoccedilatildeo ou paixatildeo mas como vimos Aristoacuteteles expotildee mais de uma
forma de desejo e relaciona tais formas a diferentes emoccedilotildees Portanto
seraacute preciso discutir o assunto que ainda nos eacute um tanto obscuro e
problemaacutetico para que possamos compreender melhor nosso objeto de
estudo atrelado como estaacute desde a alma ao desejo
3b1) Desejos
Apoacutes definir brevemente a forma geral do desejo e abordar a
capacidade aniacutemica que eacute responsaacutevel por ela resta tratar suas formas
especiacuteficas Como expusemos pouco acima Aristoacuteteles distingue trecircs
formas de sentir dentro da faculdade desiderativa querer impulso e
55
apetite Estas satildeo importantes agrave medida que se associam agraves diferentes
emoccedilotildees bem como influenciam accedilotildees variadas e que estatildeo em poder
dos agentes Ao falar de trecircs tipos de desejo contudo deveriacuteamos inferir
que a capacidade desiderativa eacute passiacutevel de divisatildeo Aristoacuteteles estaria a
concordar com Platatildeo e a propor um desejo dividido em trecircs Trechos
como Retoacuterica 1369a1-7 nos apresentam diferentes desejos racionais e
irracionais todavia isso natildeo implica que o desejo em Aristoacuteteles seja
seccionado Pensamos jaacute ter esclarecido que Aristoacuteteles fala de uma
cisatildeo da alma para se posicionar frente aos pensadores de sua eacutepoca e
provavelmente para abordar a existecircncia de virtudes morais e
intelectuais Existem contudo posturas como as de Cooper (1999 p
256 et seq) que defende a existecircncia de desejo racional e desejos natildeo
racionais Se todavia classificamos o desiderativo como capacidade da
alma e entendemos que esta natildeo pode ser fracionada respondemos
negativamente agrave possibilidade de fracionamento do desejo Temos uma
capacidade que pode ouvir mais ou menos agrave razatildeo conforme seus
objetos sendo por isso una e complexa como nos explica Aggio
Primeiramente se jaacute eacute um erro dividir a alma em
partes seria com mais razatildeo absurdo dividir a
faculdade desiderativa colocando o querer na
parte racional mas o apetite e o impulso na parte
natildeo racional ou mesmo distribuindo o desejo em
trecircs partes se reconhececircssemos trecircs partes da
alma como fez Platatildeo em Repuacuteblica livro IV
Ao contraacuterio o desejo natildeo se divide em partes
mas se diz de trecircs modos conforme a razatildeo o
prazer e a dor visto que o desejo (oacuterexis) eacute tanto o
querer (bouacutelēsis) o apetite (epithymiacutea) e impulso
(thymoacutes) (AGGIO 2017 no prelo)
Haacute diferentes desejos sob a capacidade desiderativa da
alma que satildeo capazes de participar da razatildeo de modos diferentes
negando a possibilidade de perceber em Aristoacuteteles uma triparticcedilatildeo do
desejo de tipo platocircnica Por tal motivo trataremos sucintamente de
cada forma do desejo e buscaremos ressaltar suas qualidades pateacuteticas
bem como suas relaccedilotildees com as emoccedilotildees Cremos que isso ao fim de nossa pesquisa nos permitiraacute responder agraves questotildees que propomos
devido agrave possibilidade de educaccedilatildeo e de habituaccedilatildeo dos desejos agraves boas
accedilotildees conformes agrave razatildeo Portanto observaremos agora e brevemente
as formas particulares do desejo
56
3b2) Os desejos menos racionais
Aristoacuteteles nos apresenta dois tipos de desejo natildeo racionais
embora capazes de ouvir a razatildeo42 Tal proposta sugerida em EN I 13
tem sua comprovaccedilatildeo em Rhet I com sua descriccedilatildeo do apetite O passo
aparenta propor este desejo como irracional poreacutem acaba por desfazer
tal embaraccedilo se lhe prestamos a devida atenccedilatildeo O apetite eacute descrito pelo
filoacutesofo como desejo pelo que eacute prazeroso embora afirme tambeacutem que
todo desejo estaacute relacionado ao prazeroso Por conseguinte
Faz-se pelo desejo tudo o que parece agradaacutevel
Tambeacutem o familiar e o habitual se contam entre as
coisas agradaacuteveis pois muitas coisas que natildeo satildeo
naturalmente agradaacuteveis se fazem com prazer
quando se tornam habituais Assim em resumo
todos os atos que os homens praticam por si
mesmos satildeo realmente bons ou parecem secirc-lo satildeo
realmente agradaacuteveis ou parecem secirc-lo Ora como
os homens fazem voluntariamente o que fazem
por si mesmos segue-se que tudo o que fazem
voluntariamente seraacute bom ou aparentemente bom
seraacute agradaacutevel ou aparentemente agradaacutevel []
Agradaacutevel eacute tambeacutem tudo aquilo que temos em
noacutes o desejo pois o desejo eacute apetite do agradaacutevel
Dos desejos uns satildeo irracionais e outros
racionais Chamo irracionais aos que natildeo
procedem de um ato preacutevio da compreensatildeo e satildeo
desse tipo todos os que se dizem ser naturais
como os que procedem do corpo [] Satildeo
racionais os desejos que procedem da persuasatildeo
pois haacute muitas coisas que desejamos ver e adquirir
porque ouvimos falar delas e fomos persuadidos
de que satildeo agradaacuteveis (Rhet I 10 1369b15-23 I
11 1370a16-21 e 25-27)43
42Novamente a conversa pode ser travada com Platatildeo que por exemplo no
Fedro fala da alma como um carro conduzido por dois cavalos que simbolizam
as forccedilas irracionais da psychḗ que conflitam entre si uma seguindo agrave esquerda
enquanto outra puxa para a direita 43 Todas as citaccedilotildees da Rhet tecircm traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena
(2012) com o original em grego anotado no rodapeacute tal como a seguinte
anotaccedilatildeo δι ἐπιθυμίαν δὲ πράττεται ὅσα φαίνεται ἡδέα ἔστιν δὲ καὶ τὸ σύνηθες
καὶ τὸ ἐθιστὸν ἐν τοῖς ἡδέσιν πολλὰ γὰρ καὶ τῶν φύσει μὴ ἡδέων ὅταν
57
Este passo da Retoacuterica nos diz muito sobre o apetite busca o
agradaacutevel eacute ldquoirracionalrdquo quando natildeo ldquoproceder de um ato preacutevio da
compreensatildeordquo ressaltando sua possibilidade de ouvir a razatildeo quando
proceder da compreensatildeo e eacute natural jaacute que natildeo eacute engendrado no
homem por haacutebitos ou ensinamentos existindo por toda a vida humana
eacute responsaacutevel por aqueles prazeres como os que vecircm do corpo O
proacuteprio Aristoacuteteles admite a dificuldade em se fugir desse tipo de prazer
(EN II 2 1105a7-8) e com isso entendemos igualmente a dificuldade
em controlar ou mesmo evitar o desejo relacionado ao prazer corporal
pois o filoacutesofo o associa agraves afecccedilotildees ligadas aos prazeres corporais Em
certo passo da EN (III 3 1111a30-31) curiosamente Aristoacuteteles afirma
que os apetites e por sua vez os prazeres do corpo natildeo ouvem agrave razatildeo
ao contraacuterio do impulso ldquoAssim o apetite enquanto um desejo natildeo
racional (aacutelogos) toma o que eacute prazeroso como aquilo que simples e
naturalmente aparece ao agente como prazeroso E o que nos parece ser
prazeroso eacute o que nos parece ser bom mesmo que natildeo o sejardquo (AGGIO
2017 no prelo) A interpretaccedilatildeo do passo natildeo eacute simples jaacute que na Eacutetica
Nicomaqueia podemos ler tambeacutem uma afirmaccedilatildeo que diz natildeo ser
correto considerar accedilotildees praticadas por apetite e impulso como
involuntaacuterias
Sendo involuntaacuteria a accedilatildeo realizada por forccedila e
por ignoracircncia o voluntaacuterio parece ser aquilo cujo
princiacutepio reside no agente que conhece as
circunstacircncias particulares nas quais ocorre a
accedilatildeo Natildeo eacute presumivelmente correto dizer pois
que as accedilotildees praticadas por impulso ou por apetite
satildeo involuntaacuterias pois neste caso em primeiro
lugar nenhum outro animal poderaacute agir
voluntariamente tampouco poderatildeo as crianccedilas
Depois quer isto dizer que natildeo fazemos nada
voluntariamente por apetite ou por impulso ou
συνεθισθῶσιν ἡδέως ποιοῦσιν ὥστε συλλαβόντι εἰπεῖν ὅσα δι αὑτοὺς
πράττουσιν ἅπαντ ἐστὶν ἢ ἀγαθὰ ἢ φαινόμενα ἀγαθά ἢ ἡδέα ἢ φαινόμενα ἡδέα
ἐπεὶ δ ὅσα δι αὑτοὺς ἑκόντες πράττουσιν οὐχ ἑκόντες δὲ ὅσα μὴ δι αὑτούς
πάντ ἂν εἴη ὅσα ἑκόντες πράττουσιν ἢ ἀγαθὰ ἢ φαινόμενα ἀγαθά ἢ ἡδέα ἢ
φαινόμενα ἡδέα[] τῶν δὲ ἐπιθυμιῶν αἱ μὲν ἄλογοί εἰσιν αἱ δὲ μετὰ λόγου
λέγω δὲ ἀλόγους ὅσας μὴ ἐκ τοῦ ὑπο-λαμβάνειν ἐπιθυμοῦσιν (εἰσὶν δὲ τοιαῦται
ὅσαι εἶναι λέγονται φύσει ὥσπερ αἱ διὰ τοῦ σώματος ὑπάρχουσαι [] μετὰ
λόγου δὲ ὅσας ἐκ τοῦ εισθῆναι ἐπιθυμοῦσιν πολλὰ γὰρ καὶ θεάσασθαι καὶ
κτήσασθαι ἐπιθυμοῦσιν ἀκούσαντες καὶ πεισθέντες
58
que fazemos as coisas belas voluntariamente e
involuntariamente as ignoacutebeis Natildeo eacute isto risiacutevel
havendo uma uacutenica causa Eacute igualmente absurdo
dizer que satildeo involuntaacuterias as coisas que eacute preciso
desejar eacute preciso encolerizar-se a respeito de
algumas e ter apetite por outras (por exemplo
pela sauacutede e pela instruccedilatildeo) E as accedilotildees
involuntaacuterias parecem ser penosas as por apetite
agradaacuteveis Aleacutem disso qual eacute a diferenccedila quanto
ao ser involuntaacuterio dos erros cometidos por
caacutelculo ou por impulso Por um lado ambos satildeo a
evitar por outro parecem natildeo ser menos humanas
as emoccedilotildees natildeo-racionais de sorte que tambeacutem as
accedilotildees por impulso e por apetite pertencem ao
homem Postular que satildeo involuntaacuterias eacute assim
um absurdo (EN III 3 1111a22-35 1111b1-3)44
A nosso ver o passo desfaz a duacutevida quanto agrave participaccedilatildeo do
apetite na razatildeo concordando com o que expusemos anteriormente Tal
desejo difere dos demais por ser mais resistente agrave razatildeo natildeo por ser-lhe
totalmente surdo portanto quando em acordo com o loacutegos leva a
prazeres convenientes e a accedilotildees adequadas bem como a emoccedilotildees
moderadas
Os trechos supracitados ao falarem do impulso e do apetite
indicam que haacute mais coisas comuns aos desejos em questatildeo que seu
caraacuteter natildeo racional e os impasses quanto a isso por exemplo ambos
existem nos animais O Livro VII da EN entretanto aumenta nossos
conhecimentos e duacutevidas acerca dos apetites ao passo que esclarece
algumas coisas sobre os impulsos Faz isso ao tratar da incontinecircncia
44 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Ὄντος δ ἀκουσίου τοῦ βίᾳ καὶ δι ἄγνοιαν τὸ ἑκούσιον
δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξις ἴσως
γὰρ οὐ καλῶς λέγεται ἀκούσια εἶναι τὰ διὰ θυμὸν ἢ ἐπιθυμίαν πρῶτον μὲν γὰρ
οὐδὲν ἔτι τῶν ἄλλων ζῴων ἑκουσίως πράξει οὐδ οἱ παῖδες εἶτα πότερον οὐδὲν
ἑκουσίως πράττομεν τῶν δι ἐπιθυμίαν καὶ θυμόν ἢ τὰ καλὰ μὲν ἑκουσίως τὰ δ
αἰσχρὰ ἀκουσίως ἢ γελοῖον ἑνός γε αἰτίου ὄντος ἄτοπον δὲ ἴσως ἀκούσια
φάναι ὧν δεῖ ὀρέγεσθαι δεῖ δὲ καὶ ὀργίζεσθαι ἐπί τισι καὶ ἐπιθυμεῖν τινῶν οἷον
ὑγιείας καὶ μαθήσεως δοκεῖ δὲ καὶ τὰ μὲν ἀκούσια λυπηρὰ εἶναι τὰ δὲ κατ
ἐπιθυμίαν ἡδέα ἔτι δὲ τί διαφέρει τῷ ἀκούσια εἶναι τὰ κατὰ λογισμὸν ἢ θυμὸν
ἁμαρτηθέντα φευκτὰ μὲν γὰρ ἄμφω δοκεῖ δὲ οὐχ ἧττον ἀνθρωπικὰ εἶναι τὰ
ἄλογα πάθη ὥστε καὶ αἱ πράξεις τοῦ ἀνθρώπου αἱ ἀπὸ θυμοῦ καὶ ἐπιθυμίας
ἄτοπον δὴ τὸ τιθέναι ἀκούσια ταῦτα
59
(mais que da continecircncia) separando-a em incontinecircncia por epithymiacutea
(prazer) e incontinecircncia por thymoacutes (raiva) O incontinente em sentido
estrito ou seja por epithymiacutea natildeo age por escolha deliberada mas age
por apetite O continente escolhe deliberadamente mas natildeo age de
acordo com a epithymiacutea A escolha deliberada se opotildee a este uacuteltimo
desejo e natildeo eacute o apetite que se opotildee a um outro apetite (EN III 4
1111b14-17) Este estaacute relacionado ao agradaacutevel e ao penoso enquanto
a escolha deliberada natildeo estaacute relacionada a nenhum dos dois
Eis aiacute uma segunda semelhanccedila o impulso tambeacutem natildeo leva a
agir por escolha deliberada (EN III 4 1111b19) mas parece estar
relacionado principalmente agrave dor o que eacute percebido quando a Retoacuterica
(I 10 1369a4) o liga agrave raiva e a EN (III 3 1111a30-31) ao enraivecer-se
A natureza impetuosa eacute combativa guerreira Pede por justiccedila e
vinganccedila manifestando-se por meio da injuacuteria do ultraje e do desprezo
O apetite eacute naturalmente sedutor manipulador dado a tramas tem o
prazer por objeto mesmo que se valha do ultraje do engano e da ilusatildeo
para consegui-lo e sua manifestaccedilatildeo pode surgir com o prazer
proporcionado por estes tipos de atos As accedilotildees do impulso causam dor
ao agente mas as do apetite causam prazer (EN VII 7 1149b20-21) O
impulso reage a algo doloroso aparentemente desmerecido e injusto
como um ultraje sofrido Por isso a accedilatildeo impulsiva parece mais
dolorosa e involuntaacuteria que a accedilatildeo por apetite sendo uma accedilatildeo
voluntaacuteria prazerosa mais grave moralmente do que uma accedilatildeo voluntaacuteria
dolorosa Sobre esse assunto Aristoacuteteles escreveu
A primeira forma de incontinecircncia eacute a
impetuosidade e a outra fraqueza Alguns
homens na verdade depois que deliberaram natildeo
persistem no resultado de sua deliberaccedilatildeo e estatildeo
sob o efeito da paixatildeo para outros ao contraacuterio eacute
graccedilas agrave sua falta de deliberaccedilatildeo que satildeo levados
pela paixatildeo alguns em verdade (semelhantes
nisso agravequeles que tendo sido tomados por coacutecegas
natildeo satildeo eles mesmos os que fazem coacutecegas) se
eles sentiram e viram antecipadamente que vai
lhes acontecer e se eles puderam antes dar o
despertar agrave eles mesmos e agrave faculdade de
raciocinar natildeo sucumbem entatildeo pelo efeito da
paixatildeo quer este seja um prazer ou uma dor Satildeo
acima de tudo homens de humor vivo e os homens
de temperamento excitaacutevel que estatildeo sujeitos agrave
incontinecircncia sob a forma de impetuosidade os
60
primeiros por sua precipitaccedilatildeo e os segundos por
sua violecircncia natildeo tecircm a paciecircncia de ouvir a
razatildeo inclinados que estatildeo a seguir a sua
imaginaccedilatildeo (EN VII 8 1150b19-28)45
Nesse passo a incontinecircncia pela raiva (akrasiacutea toucirc thymoucirc) eacute
considerada menos desonrosa que aquela por apetite Aristoacuteteles
enumera alguns motivos para tanto e noacutes o seguiremos 1) como
dissemos devemos pensar que a raiva (thymoacutes) ateacute certo ponto parece
ouvir a razatildeo mas daquele modo como os servos que mal escutam a
ordem do senhor e saem correndo para fazer o que eacute ordenado sendo
sua accedilatildeo resultado de um impulso natildeo educado Assim a raiva devido
ao seu calor e precipitaccedilatildeo naturais natildeo ouve direito a ordem do
racional (natildeo entende mas pensa ter entendido) e se lanccedila agrave vinganccedila
portanto pode ser excitada por razatildeo ou imaginaccedilatildeo enquanto o apetite
pode ser despertado por razatildeo ou sensaccedilatildeo (EN VII 7 1149a30-36)
Essas afirmaccedilotildees satildeo confirmadas pelo passo abaixo
A razatildeo ou a imaginaccedilatildeo na verdade apresentam
a nossos olhos um insulto ou uma marca de
desdeacutem sentido e a coacutelera depois de ter
concluiacutedo por um tipo de raciociacutenio eacute engajar as
hostilidades contra um tal insultador explode
entatildeo bruscamente o apetite ao contraacuterio uma
vez que a razatildeo ou a sensaccedilatildeo apenas disse que
uma coisa eacute agradaacutevel se lanccedila por gozaacute-la Em
consequecircncia a coacutelera obedece agrave razatildeo em um
sentido enquanto o apetite natildeo obedece Portanto
a vergonha eacute maior nesse uacuteltimo caso jaacute que o
homem intemperante na coacutelera eacute em um sentido
vencido pela razatildeo enquanto o outro eacute pelo
apetite e natildeo pela razatildeo (EN VII 7 1149a31-35
45Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ἀκρασίας δὲ τὸ μὲν προπέτεια τὸ δ ἀσθένεια οἳ μὲν γὰρ
βουλευσάμενοι οὐκ ἐμμένουσιν οἷς ἐβουλεύσαντο διὰ τὸ πάθος οἳ δὲ διὰ τὸ μὴ
βουλεύσασθαι ἄγονται ὑπὸ τοῦ πάθους ἔνιοι γάρ ὥσπερ προγαργαλίσαντες οὐ
γαργαλίζονται οὕτω καὶ προαισθόμενοι καὶ προϊδόντες καὶ προεγείραντες
ἑαυτοὺς καὶ τὸν λογισμὸν οὐχ ἡττῶνται ὑπὸ τοῦ πάθους οὔτ ἂν ἡδὺ ᾖ οὔτ ἂν
λυπηρόν μάλιστα δ οἱ ὀξεῖς καὶ μελαγχολικοὶ τὴν προπετῆ ἀκρασίαν εἰσὶν
ἀκρατεῖς οἳ μὲν γὰρ διὰ τὴν ταχυτῆτα οἳ δὲ διὰ τὴν σφοδρότητα οὐκ
ἀναμένουσι τὸν λόγον διὰ τὸ ἀκολουθητικοὶ εἶναι τῇ φαντασίᾳ
61
1149b1-3)46
2) Outra coisa a se pensar eacute que perdoamos com maior facilidade
aqueles que satildeo levados por desejos naturais mesmo no caso dos
apetites quando cedem aos desejos comuns a todos e na medida em que
satildeo comuns A raiva e o mau humor satildeo mais naturais que os apetites
pelos prazeres excessivos e desnecessaacuterios 3) Ainda uma coisa a se
considerar eacute que se eacute tanto mais injusto quanto mais se vale de manobras
peacuterfidas O raivoso natildeo tem perfiacutedia mas o apetite eacute ardiloso se a
incontinecircncia por apetite eacute mais injusta eacute igualmente mais vergonhosa e
eacute um viacutecio em certo sentido (em um certo sentido porque lhe falta a
escolha deliberada) 4) Uma uacuteltima consideraccedilatildeo feita por Aristoacuteteles
acerca do assunto eacute que se ningueacutem faz sofrer um ultraje com um
sentimento de afliccedilatildeo (ao contraacuterio) um homem que age por raiva age
sentindo dor ao passo que quem ultraja sente prazer Se os atos contra
os quais uma viacutetima se enraivece mais justamente satildeo mais injustos que
outros a incontinecircncia por apetite eacute igualmente mais injusta que a por
raiva pois na raiva natildeo haacute ultraje
Diante disso entendemos que natildeo eacute o fato de amar e desejar
coisas como o prazer que faz de um homem culpaacutevel mas o modo como
se ama o objeto amado e o fato de desejar tais coisas excessivamente
Assim fazem os que burlam a regra como o incontinente sendo que a
incontinecircncia deve ser evitada pois eacute maacute e culpaacutevel Haacute contudo
incontinecircncia por analogia naqueles casos mencionados em que
chamamos ldquoacrasia porrdquo caso da incontinecircncia por raiva Com essas
consideraccedilotildees fica claro que incontinecircncia e continecircncia verdadeiras soacute
se aplicam ao caso em que os objetos buscados satildeo os mesmos buscados
pelos temperantes e pelos intemperantes sendo os demais mesmo no
caso da raiva incontinecircncia por similitude Eacute claro tambeacutem que haacute tipos
46Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ἀκρασία ἡ τοῦ θυμοῦ ἢ ἡ τῶν ἐπιθυμιῶν θεωρήσωμεν
ἔοικε γὰρ ὁ θυμὸς ἀκούειν μέν τι τοῦ λόγου παρακούειν δέ καθάπερ οἱ ταχεῖς
τῶν διακόνων οἳ πρὶν ἀκοῦσαι πᾶν τὸ λεγόμενον ἐκθέουσιν εἶτα ἁμαρτάνουσι
τῆς προστάξεως καὶ οἱ κύνες πρὶν σκέψασθαι εἰ φίλος ἂν μόνον ψοφήσῃ
ὑλακτοῦσιν οὕτως ὁ θυμὸς διὰ θερμότητα καὶ ταχυτῆτα τῆς φύσεως ἀκούσας
μέν οὐκ ἐπίταγμα δ ἀκούσας ὁρμᾷ πρὸς τὴν τιμωρίαν ὁ μὲν γὰρ λόγος ἢ ἡ
φαντασία ὅτι ὕβρις ἢ ὀλιγωρία ἐδήλωσεν ὃ δ ὥσπερ συλλογισάμενος ὅτι δεῖ
τῷ τοιούτῳ πολεμεῖν χαλεπαίνει δὴ εὐθύς ἡ δ ἐπιθυμία ἐὰν μόνον εἴπῃ ὅτι ἡδὺ
ὁ λόγος ἢ ἡ αἴσθησις ὁρμᾷ πρὸς τὴν ἀπόλαυσιν ὥσθ ὁ μὲν θυμὸς ἀκολουθεῖ
τῷ λόγῳ πως ἡ δ ἐπιθυμία οὔ αἰσχίων οὖν ὁ μὲν γὰρ τοῦ θυμοῦ ἀκρατὴς τοῦ
λόγου πως ἡττᾶται ὃ δὲ τῆς ἐπιθυμίας καὶ οὐ τοῦ λόγου
62
de incontinecircncia sendo que Aristoacuteteles considera aquela por apetite
mais desonrosa que aquela por raiva como ademais eacute claro que
incontinecircncia e continecircncia em sentido absoluto se relacionam com
apetites e prazeres do corpo
A descriccedilatildeo dos apetites como o que natildeo ouve a razatildeo47 parece
acontecer nos trechos mencionados e nos quais o filoacutesofo enfatiza
somente a incontinecircncia Nesse caso natildeo estaacute a estudar o continente
que claramente percebemos eacute um homem que sofre com maus apetites
mas que por meio de seu raciociacutenio consegue se desviar dos maus fins
que o atraem Se observada a continecircncia teremos nela a possibilidade
como ressalta Nussbaum do apetite poder ser posto se natildeo em acordo
ao menos sob o comando da razatildeo praacutetica O homem que cai em
descontrole devido aos mesmos objetos com os quais se relacionam os
intemperantes e os temperantes eacute chamado simplesmente lsquoincontinentersquo
Enfim mesmo que haja diferenccedilas entre o apetite e o impulso que um
seja apontado por certos trechos da EN como incapaz de ouvir agrave razatildeo
praacutetica a verdade que a leitura e a interpretaccedilatildeo dos passos analisados
nos levam a alcanccedilar eacute que todas as formas do desejo satildeo capazes de
participar da razatildeo praacutetica conforme os haacutebitos introjetados pelo agente
como podemos ler na citaccedilatildeo abaixo
Mesmo que o apetite seja menos permeaacutevel agrave
razatildeo mais entranhado em nossa vida e
forccedilosamente determinante na escolha das accedilotildees
Aristoacuteteles atribuiu voluntarismo agrave accedilatildeo causada
por ambos os desejos embora a accedilatildeo por apetite
possa ser eventualmente mais voluntaacuteria do que
por impulso [] Ambos os desejos satildeo emoccedilotildees
ou afecccedilotildees natildeo racionais (aacuteloga pathḗ) que
tambeacutem pertencem agrave natureza humana ldquode sorte
47Aggio propotildee a seguinte saiacuteda para a questatildeo ldquoPortanto natildeo haacute contradiccedilatildeo
em dizer que um logos constitui o objeto do apetite e que o apetite natildeo ouve de
modo algum o logos se nesse caso entendermos que este uacuteltimo se refere ao
orthograves loacutegos agrave reta razatildeo agravequela que apreende verdadeiramente o que deve ser
feito e o primeiro se refere ao sentido corrente de logos ie de um pensamento
que concebe algo como prazerosordquo (2011 p 161-162) A autora ainda observa
que o apetite que natildeo ouve de jeito nenhum a reta razatildeo eacute aquele do
descontrolado e do intemperante No virtuoso eacute diferente seu apetite jaacute estaacute
educado e por isso natildeo segue qualquer prazer aleacutem do gozo apropriado agraves accedilotildees
virtuosas Mas quando os desejos menos racionais natildeo estatildeo educados o apetite
eacute mais vergonhoso que o impulso e por isso tambeacutem eacute menos perdoaacutevel
63
que tambeacutem accedilotildees por impulso e por apetite
pertencem ao homemrdquo (EN III 1 1111b2-3) Tais
accedilotildees satildeo proacuteprias ao homem no sentido do seu
princiacutepio residir nele (heacute archḗ en autōi) ou seja
o agente sempre poderia ter agido de outro modo
Desse modo o homem que age por impulso ou
apetite natildeo poderia ser considerado uma
marionete viacutetima de seus desejos [] Dizer
portanto que ambos os tipos de accedilotildees satildeo
voluntaacuterias implica dizer que estaacute em nosso poder
e sob nossa responsabilidade agir por apetite ou
por impulso E isso parece ser plausiacutevel mesmo
que se assuma que um desses desejos ndash o apetite ndash
seja mais avesso agrave razatildeo (AGGIO 2017 no
prelo)
A anaacutelise precedente parece demonstrar que eacute possiacutevel
responsabilizar quem age sob impulso e apetite por seus atos Parece
apontar igualmente a possibilidade de adequaccedilatildeo destes desejos como
esclarece Aggio (2017 no prelo) pela habituaccedilatildeo e por sua capacidade
de ouvir agrave razatildeo Esta eacute se natildeo toda ao menos parte crucial da educaccedilatildeo
moral do desejo Quando o comando da razatildeo eacute obedecido os desejos
natildeo racionais ou menos racionais participam da razatildeo e facilitam o
acesso agrave virtude e agrave vida feliz devido a possibilitarem a procura pelo
bom fim e a accedilatildeo correta na direccedilatildeo de tal fim Quando todavia o
desejo eacute sempre mais facilmente concorde com a razatildeo sem necessidade
de grandes esforccedilos educacionais estamos diante da terceira forma de
desejar o querer que trataremos agora
3b3 O desejo mais racional
Resta-nos tratar o desejo considerado racional ou o mais racional
(DA III 10 433a24-25) o querer (bouacutelēsis) Apesar desse seu aspecto o
querer pode se direcionar a objetos impossiacuteveis mas estaacute relacionado
com accedilotildees que satildeo escolhidas por si mesmas ou seja relaciona-se com
coisas que igualmente podem ser escolhidas deliberadamente e que satildeo
entendidas por Aristoacuteteles como variaacuteveis aleacutem de ser relativo aos fins
ou bens Mas que tipo de bem eacute o fim buscado pelo querer O objeto
deste desejo natildeo existe por natureza mas eacute aquilo que parece bom a
cada um e sendo as pessoas diferentes coisas diferentes lhes parecem
boas Assim natildeo seria melhor delimitar o fim deste tipo de desejo como
o bem buscado pelo virtuoso embora o que se apresenta a cada um seja
64
um bem aparente
A resposta pode comeccedilar a ser dada com a explicaccedilatildeo de que o
querer eacute um tipo de desejo naturalmente mais apto a concordar com as
coisas que satildeo sugeridas pela reta razatildeo Concilia-se com o que haacute de
racionalmente necessaacuterio para que haja boas accedilotildees e um bom caraacuteter
sendo de sua natureza estar de acordo com a razatildeo praacutetica Por
conseguinte o querer eacute o elemento natildeo racional mais capaz de acatar as
sugestotildees (ou ordens) do orthograves loacutegos Por isso concordamos com Aggio
quando escreve
[] se for preciso dizer que esta parte a natildeo
racional tem razatildeo entatildeo a parte desiderativa
deve ser compreendida como tendo razatildeo por
participaccedilatildeo e natildeo por essecircncia como se ela
pudesse ser sob o aspecto do querer
essencialmente racional Esta eacute uma interpretaccedilatildeo
possiacutevel e que me parece mais adequada pois
nega a suposiccedilatildeo de que a parte desiderativa teria
um aspecto absolutamente racional a saber a
bouacutelēsis (AGGIO 2017 no prelo)
O querer eacute o desejo ldquocultivadordquo especialmente sentido pelo
homem bom e virtuoso que se habituou a desejar conforme agrave razatildeo
praacutetica e que sente prazer com as coisas realmente boas e virtuosas Tal
tipo de desejo - veremos em detalhes maiores no segundo momento de
nosso estudo - coloca-se ao lado da escolha deliberada do caacutelculo
deliberativo e do julgamento correto sendo consoante com a virtude
intelectual e eacute necessaacuterio agrave virtude moral graccedilas agrave educaccedilatildeo que
recebe48 Eacute igualmente um desejo relacionado ao sentimento de prazer
48 Fazemos tal afirmaccedilatildeo com base nas propostas de Aggio que entende que
para a virtude eacute necessaacuteria a educaccedilatildeo moral do desejo implicando tambeacutem
como veremos mais adiante a forma correta de se emocionar (AGGIO 2017
no prelo) A eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma eacutetica da accedilatildeo jaacute que o querer natildeo eacute
suficiente para uma mudanccedila real (EN 1114a13-15) Eacute preciso agir ou seja
educar o desejo para o meio termo Por isso a accedilatildeo eacute o principal meio para que
a razatildeo aceda ao desejo Entatildeo haacute um momento em que o desejo ainda natildeo foi
educado e um no qual ouve e obedece a razatildeo Porque natildeo nascemos virtuosos
mas pelo haacutebito podemos secirc-lo Educar o desejo eacute se tornar moralmente
virtuoso Se o desejo busca o prazer e foge da dor educado buscaraacute e fugiraacute
destes dois de modo conveniente quando conveniente Educado desejo eacute
desejo pelo fim levando agrave boa accedilatildeo que eacute apreendida pela razatildeo persuasiva ou
pela capacidade de persuadir da razatildeo (EN 1139b4-5)
65
porque a Rhet explica que os ldquodesejos satildeo na sua maioria
acompanhados de um certo prazer pois as pessoas gozam de algum
prazer quer lembrando-se de como o alcanccedilaram quer esperando o que
alcanccedilaratildeordquo (Rhet I 11 1370b15-19)49 Por isso mesmo as accedilotildees
virtuosas que satildeo direcionadas por essa terceira forma de desejo satildeo
prazerosas a quem as faz desejando bem Vale reforccedilar que qualquer
tipo de desejo associado agrave reta razatildeo pode ser considerado participante
dela sendo bom e direcionado ao bem verdadeiro como explica Aggio
Isso porque o querer tendo como objeto o que
julgamos ser um bem natildeo eacute capaz de vencer o
desejo pelo prazeroso (epithymiacutea) ou o impulso de
aversatildeo ao doloroso (thymoacutes) Eacute preciso incutir o
haacutebito de se desejar bem incluindo aiacute os trecircs tipos
de desejo mas sobretudo aqueles que satildeo mais
avessos agrave razatildeo o impulso e ainda mais o
apetite Natildeo basta portanto querer apenas o que eacute
bom Eacute preciso que isto apareccedila como prazeroso
i e como objeto do apetite Menos ainda basta
saber o que eacute bom para desejaacute-lo como queria
Soacutecrates Eacute preciso que o bem natildeo seja apenas um
objeto cognitivo mas que se torne objeto de nosso
desejo e parte de nossa segunda natureza
(AGGIO 2017 no prelo)
O bom desejo sempre eacute conforme a reta razatildeo Para a
estudiosa isso leva a entender que eacute preciso desejar antes o bem que
aquilo que eacute prazeroso ou impulsivo Assim o prazeroso e o impulsivo
devem ser desejados tendo em vista o bem entatildeo os desejos natildeo
racionais tambeacutem de algum modo podem estar em harmonia com o
querer agir retamente Aristoacuteteles explica ldquoquando se eacute movido com o
raciociacutenio tambeacutem se eacute movido de acordo com a vontaderdquo (DA III 10
433a24-25)50 Isso acontece porque somente os desejos ordenados pela
reta razatildeo (bons desejos) constituem bons fins
Com os estudos empreendidos sobre o desejo entendemos
49 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original καὶ ἐν ταῖς
πλείσταις ἐπιθυμίαις ἀκολουθεῖ τις ἡδονή ἢ γὰρ μεμνημένοι ὡς ἔτυχον ἢ
ἐλπίζοντες ὡς τεύξονται χαίρουσίν τινα ἡδονήν οἷον οἵ τ ἐν τοῖς πυρετοῖς
ἐχόμενοι ταῖς δίψαις καὶ μεμνημένοι ὡς ἔπιον καὶ ἐλπίζοντες πιεῖσθαι χαίρουσιν
[] 50 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ὅταν δὲ κατὰ
τὸν λογισμὸν κινῆται καὶ κατὰ βούλησιν κινεῖται
66
que para Aristoacuteteles haacute trecircs formas de desejar o bem pela razatildeo pelo
prazer ou pelo impulso Aggio (2017 no prelo) explica que cada tipo de
desejo natildeo inclui nem exclui o outro o que significa que eacute possiacutevel e
mesmo necessaacuterio que o objeto daquele desejo conforme o prazer
tambeacutem seja conforme a razatildeo (EN III 14 1119a12-21) devido agrave
unicidade da alma que defendemos acima e consequentemente da
unicidade do desejo Por exemplo o homem virtuoso age com um
apetite governado pela razatildeo tem o apetite em harmonia com seu
querer sendo-lhe possiacutevel igualmente desejar alguns objetos
inadequados de prazer mas escolher natildeo os realizar pois o desejo pode
ou natildeo ser realizado Ter prazer portanto difere de desejar ter prazer ou
seja de realizar a atividade prazerosa O estudo do desejo mostrou-nos
igualmente que a capacidade desiderativa eacute aquela que propotildee o fim a
ser buscado ou evitado e com isso pede accedilatildeo Por isso estudaremos
agora na medida que contemplar nossas intenccedilotildees a relaccedilatildeo dos desejos
com a accedilatildeo humana que pode ser moralmente avaliada jaacute que o objeto
do desejo foi identificado com o que move as accedilotildees desse tipo e
igualmente aquela que entenderemos como boa accedilatildeo
3b4) Desejo e accedilatildeo rumo agrave accedilatildeo boa moralmente
Como vimos o desejo eacute associado agraves emoccedilotildees aos prazeres agraves
accedilotildees e portanto agrave virtude que vem com a praacutetica de boas accedilotildees
solicitadas pelos desejos por fins adequados e agrave vida feliz considerada
atividade (eneacutergeia) segundo a virtude mais completa Por conseguinte
a teoria da accedilatildeo eacute central na eacutetica de Aristoacuteteles porque tanto na EE
quanto na EN a definiccedilatildeo de felicidade eacute baseada na noccedilatildeo de atividade
(EN I 6 1098a16-17 EE II 1 1219a38-39) que aparece atrelada agravequela
de accedilatildeo Algumas passagens destes tratados apresentam o conceito de
eneacutergeia natildeo o de prāxis associado agrave eudaiacutemōniacutea mas qual a
diferenccedila entre os dois conceitos em Aristoacuteteles E quais satildeo seus papeacuteis
junto a uma teoria do desejo e por conseguinte da emoccedilatildeo
Natali (1996 p 101) afirma que Aristoacuteteles entende que a
eneacutergeia humana eacute feita de praacutexeis o que pode ser confirmado por EN
1098a12-14 onde se lecirc ldquoa funccedilatildeo do homem consiste em um certo
gecircnero de vida isto eacute em uma atividade da alma e das accedilotildees acompanhada de razatildeordquo (EN 1098b15-16) o que nos lembra de que
ainda estamos a discutir as questotildees sugeridas por EN I Tendo em vista
o passo citado Natali explica que o homem feliz eacute aquele que realiza
kalaigrave praacutexeis (belas ou boas accedilotildees) ou praacutexeis katacutearetḗn (accedilotildees
segundo a virtude) Isso leva a embasar a definiccedilatildeo de felicidade e a de
67
bem humano no conceito de accedilatildeo a pensar e determinar que a felicidade
requeira que se conheccedila o que eacute uma prāxis portanto aleacutem de ser
assunto associado ao tema do desejo e das emoccedilotildees a questatildeo nos
interessa porque pode nos dizer mais sobre a relaccedilatildeo destes com a
felicidade tema do nosso primeiro Capiacutetulo
Apoacutes ter exposto brevemente a ligaccedilatildeo da funccedilatildeo humana como
associada agrave accedilatildeo em EN I 13 Aristoacuteteles comeccedila suas discussotildees no
Livro II da EN com a lembranccedila de que anteriormente havia sido
discutido um problema importante a questatildeo das accedilotildees determinarem a
qualidade do caraacuteter (EN II 2 1103b30-31) Afirmaccedilatildeo associada agravequela
de que as virtudes aparecem com a praacutetica de accedilotildees virtuosas (EN II 2
1103a31-33) porque a ldquoaccedilatildeo eacute princiacutepio da virtude em sentido causalrdquo
(NATALI 1996 p 103) sendo a boa accedilatildeo que leva agrave virtude Como
vimos para que haja accedilatildeo realmente verdadeira eacute preciso que intelecto
praacutetico e desejo estejam agindo juntos porque eacute preciso raciociacutenio
verdadeiro e desejo reto para que haja accedilotildees dignas daquilo que eacute
proacuteprio ao homem prosseguindo no esclarecimento do que foi proposto
com EN I 13 A relaccedilatildeo do desejo do intelecto praacutetico e da boa accedilatildeo
reafirma que aquilo que Aristoacuteteles chama accedilatildeo seja relevante ao nosso
estudo
Para compreender melhor a questatildeo pode-se contar com o auxiacutelio
especial do Livro VI que parece entender a accedilatildeo e sua relaccedilatildeo com o
que se pretende moralmente dela passando pela comparaccedilatildeo e distinccedilatildeo
entre prāxis e poiacuteēsis O iniacutecio da EN apresenta tal distinccedilatildeo ao
diferenciar dois tipos de fins uns satildeo identificados com as proacuteprias
atividades outros diferem das atividades que levam ateacute os fins (EN I 1
1094a3-5) A separaccedilatildeo essencial entre prāxis e poiacuteēsis portanto que
tambeacutem aparece em EN VI 4 propotildee-nas como objetos de duas formas
diferentes de saber a phroacutenēsis e a teacutechnē que lidam com dois tipos
diferentes de ser Este uacuteltimo Livro mencionado explora suas relaccedilotildees
(EN VI 2 1139a35-b4) quando Aristoacuteteles afirma que o pensamento
sozinho nada move sendo que apenas o pensamento praacutetico eacute capaz de
mover a accedilatildeo quando associado ao desejo e de mover a produccedilatildeo
quando se tenciona algum produto Este eacute feito tendo algo aleacutem de si em
vista natildeo eacute um fim absoluto mas o fim da accedilatildeo poderia ser absoluto
quando o desejo levasse a agir bem51
Dessas reflexotildees apresentadas pela EN Natali (1996 p 110)
ressalta que poderiacuteamos entender que 1) o pensamento praacutetico (diaacutenoia
51Haveria segundo o Livro VI dois tipos de deliberaccedilatildeo e de phroacutenēsis um
relacionado agrave prāxis outro agrave poiacuteēsis
68
praktikḗ) domina (archḗ) a prāxis e tambeacutem a poietikḗ 2) o que eacute
produzido natildeo eacute um fim absoluto apenas um fim em vista de algo mais
3) a accedilatildeo realizada (praktoacuten) eacute o proacuteprio fim ou o fim absoluto 4) haacute
uma hierarquia de fins que organiza tambeacutem os saberes a eles
direcionados sendo a phroacutenēsis superior agrave teacutechnē 5) e a phroacutenēsis teria
a eupraxiacutea por fim como explicitaremos no capiacutetulo seguinte
Essas observaccedilotildees levariam a entender que o agir humano
segundo Aristoacuteteles se dividiria em duas partes com caracteriacutesticas
diferentes e opostas Para dar conta dessa teoria da accedilatildeo Natali pensa
ser preciso primeiro saber se todos os movimentos intencionais feitos
pelo homem satildeo objeto da teoria da accedilatildeo ou se tal teoria teria interesse
apenas nas accedilotildees em acepccedilatildeo proacutepria
Aristoacuteteles diferentemente dos modernos e contemporacircneos natildeo
estaria interessado em distinguir accedilatildeo e movimento fiacutesico (distinccedilatildeo
oacutebvia para o filoacutesofo) Accedilotildees segundo o filoacutesofo e a interpretaccedilatildeo feita
por Natali (1996 p 111) satildeo comportamentos complexos dentre os
quais eacute possiacutevel diferenciar prāxis e poiacuteēsis Simples movimentos
fiacutesicos natildeo permitiriam tal distinccedilatildeo podendo ser tanto parte da prāxis
quanto da poiacuteēsis ainda mais se natildeo se levasse o fim em conta Assim
segundo o estudioso ldquoPara Aristoacuteteles o significado da accedilatildeo eacute dado
pelo teacutelos pelo fim Em exemplos como ldquolevantar um braccedilordquo aquilo
que estaacute oculto eacute propriamente o teacutelos []rdquo (NATALI 1996 p 112)
Para Aristoacuteteles nessa observaccedilatildeo do fim os movimentos fiacutesicos natildeo
podem ser compreendidos como accedilotildees mas essas informaccedilotildees natildeo
completam a teoria da accedilatildeo eacute preciso ir aleacutem como o comentador faz
Para distinguir prāxis e poiacuteēsis nas eacuteticas Aristoacuteteles recorre a
uma diferenciaccedilatildeo de tipo metafiacutesico entre kiacutenēsis e eneacutergeia Em Met Θ 6 1048b18-23 fala-se que natildeo satildeo accedilotildees ou que natildeo satildeo accedilotildees
perfeitas aquelas cujo fim natildeo se encontra nelas mesmas O passo no
entanto eacute visto por Natali (1996 p 113) como duvidoso por muitos
motivos que natildeo elencaremos aqui por ultrapassarem as nossas
intenccedilotildees com essa explicaccedilatildeo A passagem mesmo assim condiz com
as propostas que depreendemos rapidamente de EN I importando aquilo
que a Met nos apresenta como relaccedilotildees e dissociaccedilotildees entre kiacutenēsis e
eneacutergeia bem como suas relaccedilotildees com prāxis e poiacuteēsis Para explicar
melhor a questatildeo podemos citar as palavras de Natali sobre o assunto
Consideradas do ponto de vista do fim eneacutergeia e
kiacutenēsis satildeo de todo distintas ao menos
aparentemente
- agrave primeira no campo da accedilatildeo humana
69
corresponde a prāxis e eacute um agir com um fim em
si mesmo O exemplo corrente que hoje eacute dado de
uma prāxis estaacute ausente em Aristoacuteteles mas jaacute
aparece em Alexandre de Afrodiacutesias o danccedilar
- a segunda sempre no campo do agir humano
corresponde a poiacuteēsis para dar um exemplo
Aristoacuteteles frequentemente refere-se agrave construccedilatildeo
de uma casa Os dois casos satildeo distintos pela
relaccedilatildeo ao fim enquanto na poiacuteēsis afirma
Aristoacuteteles a obtenccedilatildeo do fim potildee termo ao
processo na prāxis isto natildeo acontece aliaacutes a
obtenccedilatildeo do fim estaacute presente em cada instante do
processo []
De fato em uma kiacutenēsis a obtenccedilatildeo do fim tem
valor em si mas tem valor apenas como modo de
atingir o proacuteprio fim (NATALI 1996 p 113-
114)
Conforme essa explicaccedilatildeo que aparece em Met Θ 6 1048b23-28
a prāxis natildeo teria seu fim apenas ao termo de um processo enquanto a
poiacuteēsis seria composta por momentos de um processo que levaria a um
fim almejado Na prāxis todo instante contemplaria agravequilo que eacute seu
objetivo estando o fim da accedilatildeo em cada momento do processo que a
constituiria Dito de outro modo a poiacuteēsis seria um processo que soacute
resultaria em seu fim quando completado mas a prāxis seria um
processo completo em cada um de seus instantes Mas toda poiacuteēsis seria
kiacutenēsis O movimento fiacutesico implicado na poiacuteēsis poderia ser esmiuccedilado
em uma seacuterie de movimentos menores estruturantes do todo da
produccedilatildeo e que natildeo poderiam ser tomados em separado O exemplo eacute a
construccedilatildeo de casas que aparece em EN 1174a21-29 cada movimento
do processo de construir pode ser percebido separadamente mas soacute tem
sentido com o fim que lhe excede a casa construiacuteda Entatildeo a poiacuteēsis eacute
composta por ldquopoiacuteeseis parciais incompletasrdquo (NATALI 1996 p 116)
que resultaratildeo em um produto homogecircneo ontologicamente
Agora resta saber se toda prāxis eacute uma eneacutergeia Met IX 6 daacute
exemplos de eneacutergeiai que natildeo parecem precisar de movimentos fiacutesicos
Estariam portanto fora da alccedilada da fiacutesica pois excluiriam a kiacutenēsis
Aristoacuteteles no entanto nos apresenta a vida como exemplo de eneacutergeia e a vida comporta movimentos Caberia portanto
questionar a prāxis eacute ou natildeo eacute kiacutenēsis52
52 Vale ressaltar tambeacutem com Natali (NATALI 1996 p 117) que haveria
70
Ao analisarmos os exemplos de praacutexeis virtuosas veremos que
satildeo compostas por uma seacuterie de atos parciais com a estrutura da kiacutenēsis
Um desses exemplos poderia ser o mover a espada para golpear um
inimigo Segundo Natali
[] estes movimentos satildeo dirigidos agrave obtenccedilatildeo de
um fim e natildeo satildeo fins em si mesmos como se
fossem passos de danccedila De fato contra o que se
disse na Metafiacutesica na qual havia se afirmado que
nenhuma prāxis eacute uma kiacutenēsis Aristoacuteteles afirma
na Ethica Eudemia que toda prāxis eacute uma
kiacutenēsisrdquo (EE 1220b26-27 1222b28-29) Assim
segundo tal Eacutetica toda prāxis seria uma kiacutenēsis
mas qual seria a verdade sobre a questatildeo toda
prāxis eacute uma kiacutenēsis ou nenhuma prāxis eacute uma
kiacutenēsis como propotildee a Metafiacutesica (NATALI
1996 p 117)
Natali responde com o auxiacutelio de outro passo da Met (Β 2
996a27) no qual eacute possiacutevel ler que todas as accedilotildees implicam movimento
Nesse trecho aparece a preposiccedilatildeo meta traduzida pelo estudioso como
ldquoimplicardquo o que diferenciaria a prāxis da poiacuteeisis por ser composta
implicando movimentos enquanto a poiacuteēsis aconteceria por meio de
movimentos usando a preposiccedilatildeo diaacute como diferencial dando agrave prāxis
uma heterogeneidade ontoloacutegica
Ainda segundo a Met IX 6 (1048b6-9) e segundo a interpretaccedilatildeo
do passo feita por Natali (1996 p 119) vaacuterios movimentos singulares
compotildeem uma prāxis sendo os movimentos como que a mateacuteria e a
accedilatildeo a forma Assim o estudioso chega agrave seguinte formulaccedilatildeo ldquoToda
prāxis eacute do ponto de vista formal uma eneacutergeia e do ponto de vista
material eacute composta de kiacutenesisrdquo (NATALI 1996 p 119) O que faz a
diferenccedila entre prāxis e poiacuteēsis eacute que na explicaccedilatildeo do estudioso
Ambas satildeo eventos humanos que se datildeo no
mundo sublunar satildeo compostas de movimentos
mas enquanto a poiacuteēsis tem uma estrutura
ontoloacutegica de movimento in totoacute a prāxis tem
uma estrutura ontoloacutegica apenas em parte similar
agravequela das eneacutergeiai mais puras como a auto-
poiacuteēseis feitas com fim moral como poderemos ver ao propor elementos
favoraacuteveis a uma educaccedilatildeo emocional moral no Capiacutetulo III
71
contemplaccedilatildeo divina porque mesmo sendo fim
em si mesma na sua atuaccedilatildeo eacute composta de
movimentos O todo da accedilatildeo tem seu fim em si
mas as partes das quais se compotildee tecircm cada uma
o seu fim particular (NATALI 1996 p 119)
Haveria segundo essa proposta accedilotildees componentes particulares
que perseguiriam outros objetivos como o levantar uma espada para
golpear um inimigo em batalha mas que tenderia agrave vitoacuteria Haveria
assim o todo da accedilatildeo com objetivos em si como as accedilotildees virtuosas que
natildeo tenderiam a um resultado praacutetico fora delas mesmas Ou as accedilotildees
virtuosas igualmente deveriam ser eficazes como o golpe de espada
Desse tipo de interrogaccedilatildeo surge a questatildeo da eupraxiacutea que Natali
pensa responder ao problema em curso e que voltaraacute ao nosso estudo no
capiacutetulo seguinte mas que por ora pode ser entendido do modo
descrito abaixo
A prāxis humana propriamente dita natildeo eacute totalmente eneacutergeia
como seria a contemplaccedilatildeo divina Eacute composta por kiacuteneseis que buscam
um resultado e no caso da accedilatildeo moralmente avaliaacutevel esse resultado
seria um conjunto de sucesso na accedilatildeo e valor moral Essa proposta
condiz com a descriccedilatildeo que Aristoacuteteles faz do homem ser o
intermediaacuterio entre divino e animal que discutimos desde o argumento
da funccedilatildeo humana porque a eupraxiacutea aos olhos de Natali natildeo seria
apenas a accedilatildeo boa moralmente mas a accedilatildeo completa bem-sucedida
senatildeo Aristoacuteteles natildeo daria tanta importacircncia agrave deliberaccedilatildeo em suas
reflexotildees eacuteticas Caso o fim da accedilatildeo fosse sempre ela mesma ou
somente ela mesma a deliberaccedilatildeo seria inuacutetil porque um ato corajoso
por exemplo seria um fim em si mesmo natildeo buscando nada mais
Entatildeo natildeo seria preciso investigar (zḗtein) o modo mais eficaz ou nas
palavras de Natali (1996 p 122) ldquomais raacutepido e eleganterdquo para alcanccedilar
um fim Por isso a prāxis humana natildeo pode ser pura eneacutergeia mas deve
ser tambeacutem composta de kiacuteneseis justificando que as accedilotildees humanas
satildeo tributaacuterias de deliberaccedilatildeo de escolha deliberada e da phroacutenēsis
Estas satildeo essenciais agrave boa accedilatildeo humana pois dizem respeito tanto agrave
determinaccedilatildeo dos fins a serem buscados como dos meios que permitam
alcanccedilaacute-los e que satildeo solicitados pelos desejos e mudados pelas
emoccedilotildees No entanto antes de saber como as paacutethē se encaixam nesse
processo que conduz agrave eupraxiacutea e como podem influenciaacute-la eacute preciso
buscar delimitar a partir das indagaccedilotildees surgidas com a EN e do que foi
inferido ateacute o momento o que vem a ser ldquoemoccedilatildeordquo Fazer essa
72
delimitaccedilatildeo seraacute necessaacuterio para que possamos responder agraves questotildees
que foram postas ateacute o momento mas tambeacutem para podermos
compreender como pode ser possiacutevel mudaacute-las para que se liguem agraves
sugestotildees da razatildeo permitindo-nos tratar a educabilidade e a
racionalidade das emoccedilotildees A discussatildeo acima apresentada sobre a
relaccedilatildeo da eupraxiacutea com o paacutethos eacute crucial para que isso seja feito pois
insere definitivamente a emoccedilatildeo entre as coisas relacionadas agrave
eudaiacutemōniacutea pois como buscaremos apontar no proacuteximo Capiacutetulo
eupraxiacutea e eudaiacutemōniacutea satildeo indissociaacuteveis
4 Em busca da definiccedilatildeo de emoccedilatildeo em Aristoacuteteles
Na Eacutetica Nicomaqueia (Livro I capiacutetulo 7) Aristoacuteteles propotildee
que uma investigaccedilatildeo deva comeccedilar com o estabelecimento ao menos
em linhas gerais daquilo que eacute o objeto investigado Contudo pelo
menos nesse tratado o filoacutesofo natildeo parece dar contornos bem definidos
a uma noccedilatildeo geral daquilo que entende por emoccedilatildeo nem em sentido
moderno53 nem ao menos em seus proacuteprios termos Uma definiccedilatildeo
segundo Aristoacuteteles deveria apresentar o geacutenos (gecircnero) e a diferenccedila
especiacutefica daquilo que eacute definido mostrando o que o objeto estudado
realmente eacute (Top I 5 101b38 et seq)54 A EN todavia a princiacutepio
apresenta apenas o gecircnero da emoccedilatildeo paacutethos e uma lista de coisas agraves
quais chama emoccedilatildeo como podemos conferir na passagem abaixo
Dado pois que os estados que se geram na alma
satildeo trecircs55 emoccedilotildees capacidades disposiccedilotildees a
53 Uma definiccedilatildeo em lsquosentido modernorsquo buscaria explicar o que eacute uma emoccedilatildeo
Carlo Natali explica desse modo a deficiecircncia na definiccedilatildeo que EN II fornece da
accedilatildeo (1996 p 102) pois agrave eacutetica natildeo caberia tal tipo de explicaccedilatildeo proacutepria agrave
metafiacutesica Podemos tambeacutem pensar em uma proposta feita por Barnes que
justificaria tal insuficiecircncia bem como a insuficiecircncia de definiccedilatildeo de outros
termos chave na teoria eacutetica aristoteacutelica o autor ao escrever para si natildeo
elaboraria tais propostas ou talvez natildeo o fizesse por tratar de assunto que
julgava suficientemente conhecido daqueles a quem discursava 54Traduccedilatildeo Valandro e Bornheim (1978) no original ἔστι δ ὅρος μὲν λόγος ὁ
τὸ τί ἦν εἶναι σημαίνων [] 55Note-se que no Grego aparece a palavra ldquognoacutemenardquo lsquotraduzidarsquo por Zingano
(2008) como ldquoestadordquo Juliaacuten Marias (2009) bem como Bornhein e Vallandro
(1979) optaram por ldquocoisasrdquo Ross (1995) opta por ldquosentimentosrdquo e Tricot
(2002) por ldquofenocircmenosrdquo para a traduccedilatildeo do termo Contudo eacute difiacutecil escolher
uma das propostas para interpretar o que eacute pouco explicado por Aristoacuteteles Os
73
virtude seraacute um deles Entendo por emoccedilotildees
apetite coacutelera medo arrojo inveja alegria
amizade oacutedio anelo emulaccedilatildeo piedade em geral
tudo a que se segue prazer ou dor por
capacidades os estados em funccedilatildeo dos quais
dizemos que somos afetados pelas emoccedilotildees por
exemplo aqueles em funccedilatildeo dos quais somos
capazes de encolerizar-nos afligir-nos ou apiedar-
nos por disposiccedilotildees aqueles em funccedilatildeo dos quais
nos portamos bem ou mal com relaccedilatildeo agraves
emoccedilotildees por exemplo com relaccedilatildeo ao
encolerizar-se se nos encolerizamos forte ou
fracamente portamo-nos mal se moderadamente
bem e de modo semelhante com relaccedilatildeo agraves outras
emoccedilotildees (EN II 4 1105b19-29)56
O passo do Livro II 3 da Eacutetica Nicomaqueia nos apresenta
algumas dificuldades mas igualmente algumas ideias de por onde
possamos caminhar a fim de entender o que Aristoacuteteles propotildee como
emoccedilatildeo A primeira inquietaccedilatildeo que nos traz eacute justamente a
supramencionada definiccedilatildeo insatisfatoacuteria o que todavia pode sofrer a
seguinte objeccedilatildeo o texto apresenta-nos igualmente a especificaccedilatildeo de
que tais coisas satildeo acompanhadas de prazer ou dor Essa afirmaccedilatildeo natildeo
satisfaz a nossa curiosidade porque entendemos que uma lista com
substantivos no acusativo natildeo serve como definiccedilatildeo (sequer em termos
aristoteacutelicos) Natildeo nos satisfaz tambeacutem porque haacute outras coisas
mencionadas nos tratados aristoteacutelicos que satildeo descritas como
acompanhadas de prazer ou dor como as accedilotildees afirmaccedilatildeo que pode ser
lida nos Livros VII e X por exemplo natildeo levando esse traccedilo a
constituir-se realmente como uma diferenccedila especiacutefica
O prazer e a dor todavia satildeo indicados na definiccedilatildeo das emoccedilotildees
feita pela EN como seu traccedilo distintivo traccedilo que eacute repetido em quase
tradutores parecem utilizar o que lhes parece calhar melhor agrave sua proacutepria
interpretaccedilatildeo 56 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ἐπεὶ οὖν τὰ ἐν τῇ ψυχῇ γινόμενα τρία ἐστί πάθη δυνάμεις
ἕξεις τούτων ἄν τι εἴη ἡ ἀρετή λέγω δὲ πάθη μὲν ἐπιθυμίαν ὀργὴν φόβον
θάρσος φθόνον χαρὰν φιλίαν μῖσος πόθον ζῆλον ἔλεον ὅλως οἷς ἕπεται ἡδονὴ
ἢ λύπη δυνάμεις δὲ καθ ἃς παθητικοὶ τούτων λεγόμεθα οἷον καθ ἃς δυνατοὶ
ὀργισθῆναι ἢ λυπηθῆναι ἢ ἐλεῆσαι ἕξεις δὲ καθ ἃς πρὸς τὰ πάθη ἔχομεν εὖ ἢ
κακῶς οἷον πρὸς τὸ ὀργισθῆναι εἰ μὲν σφοδρῶς ἢ ἀνειμένως κακῶς ἔχομεν εἰ
δὲ μέσως εὖ ὁμοίως δὲ καὶ πρὸς τἆλλα
74
todas as outras definiccedilotildees apresentadas nos demais tratados que
chamaremos em nosso auxiacutelio o que natildeo nos permite ignorar essa
caracteriacutestica Aristoacuteteles explica que comumente se admite o prazer
como o que toca mais de perto a natureza humana ideia relevante para
nossa investigaccedilatildeo porque haacute prazeres ligados ao natildeo racional e
prazeres do intelecto como aqueles associados agrave vida contemplativa
que satildeo descritos pelo filoacutesofo como maiores e melhores dentre os
prazeres Por isso na educaccedilatildeo dos jovens satildeo usados prazer e dor para
direcionaacute-los pois se pensa que para formar a excelecircncia do caraacuteter eacute
preciso se comprazer com as coisas certas e detestar as que devem ser
detestadas (EN X 1 1172a19-24) Percebemos contudo o filoacutesofo a
abordar os prazeres natildeo racionais com a cautela costumeira dispensada
aos elementos natildeo racionais pois parece pensar ser necessaacuterio educaacute-las
conforme a reta razatildeo Assim Aristoacuteteles natildeo nega que prazer e dor nos
acompanham por toda vida que tenham grande importacircncia e forccedila para
a virtude e para a vida feliz porque escolhemos o que eacute agradaacutevel e
fugimos do que eacute doloroso sendo que o prazer eacute naturalmente buscado
pelo desejo e a dor evitada Portanto prazer e dor estatildeo ligados
igualmente agrave accedilatildeo que conduziraacute ao alcance dos fins desejados
Aleacutem do passo do Livro II no qual Aristoacuteteles relaciona prazer e
dor agraves emoccedilotildees o pensador aborda-os especialmente em trecircs momentos
de sua EN Primeiro trata esses assuntos quando estuda as propostas
correntes sobre a melhor forma de vida humana Nesse ponto vimos que
ainda no Livro I percebe que boa parte dos homens busca uma vida
voltada totalmente para o prazer considerado indiscriminada ou
vulgarmente um bem ou o bem supremo A consideraccedilatildeo eacute feita e
descartada pelo filoacutesofo que concorda que o prazer seja um bem mas
que seja impossiacutevel consideraacute-lo o bem supremo ainda que se configure
como um bem final
O segundo momento em que a temaacutetica eacute discutida eacute o Livro VII
que apresenta um diaacutelogo com Platatildeo e sua proposta do prazer como um
processo ideia descartada pela Eacutetica em questatildeo O terceiro ponto do
tratado no qual o prazer aparece eacute a primeira ldquometaderdquo do Livro X da
EN quando o filoacutesofo parece retomar as propostas sobre os prazeres da
vida vulgar abordados no Livro I reforccedilando sua ideia de que o prazer
natildeo pode ser o bem supremo mas que ainda assim pode ser um bem
porque apesar de poder ser escolhido por si mesmo natildeo apresentaria a
autossuficiecircncia e completude da felicidade deixando espaccedilo em uma
vida voltada agrave busca de prazer ainda para a necessidade de outras coisas
Nesse trecho o filoacutesofo apresentaria sua real concepccedilatildeo do prazer e
chegaria a relacionaacute-lo com a moralidade Como propotildee Frede (2009 p
75
241) Aristoacuteteles daacute lugar agraves inclinaccedilotildees em sua moral embora as accedilotildees
corretas moralmente natildeo dependam apenas das inclinaccedilotildees dependem
igualmente da racionalidade praacutetica exercida na figura da deliberaccedilatildeo
ldquoAinda que sentimentos gostos e desgostos desempenhem um
importante papel para estabelecer o fim uacuteltimo da accedilatildeo eles natildeo
determinam a deliberaccedilatildeo racional acerca do caraacuteter apropriado de uma
accedilatildeordquo (FREDE 2009 p 241) Entatildeo os prazeres podem e devem ser
bem-educados moralmente o que possibilitaraacute realizar a recomendaccedilatildeo
de EN II de que eacute preciso ser educado a fim de sentir prazer com o que
eacute devido e para desprezar o que eacute devido
A estudiosa observa que na EN contudo Aristoacuteteles natildeo discute
o tipo de prazer e dor envolvido nas emoccedilotildees Por isso e por sugestatildeo
de Frede eacute preciso recorrer agrave Retoacuterica para saber de tal assunto Neste
livro Aristoacuteteles usa a tese que havia rejeitado na EN aquela que propotildee
o prazer como um processo (Rhet I 10 1369b33-35) De acordo com
Frede (2009 p 249)
Natildeo eacute difiacutecil ver por que Aristoacuteteles recorre agrave
definiccedilatildeo das dores e dos prazeres como
ldquoprocessos de interrupccedilatildeo e restauraccedilatildeordquo as
emoccedilotildees satildeo baseadas em necessidades quereres
desejos ou em suas aversotildees correspondentes
Todos esses fenocircmenos pressupotildeem algum tipo de
carecircncia uma necessidade que deve ser satisfeita
Os oradores tratam das necessidades humanas de
diferentes modos [] os prazeres e as dores
relevantes estatildeo ligados agraves necessidades e aos
quereres das pessoas
A autora entende que a Retoacuterica conteacutem um tipo de anaacutelise que
Aristoacuteteles deve ter pressuposto na EN e isso natildeo requer que se
assumam tratamentos diferentes para o prazer e para a dor em diferentes
fases do pensamento de Aristoacuteteles Ambos os conceitos sobre o prazer
devem ter existido na eacutepoca do filoacutesofo que os apresenta em textos
diferentes (Top I 2 121a35-36) Aristoacuteteles pode ter escrito a Retoacuterica
consideravelmente cedo mas continuou a usaacute-la e reformulaacute-la o que eacute
apontado por marcas posteriores de revisatildeo Nem assim sentiu
necessidade de alterar sua explicaccedilatildeo sobre prazer e dor quando tratou
das emoccedilotildees neste livro Frede pensa que o filoacutesofo deve ter
considerado a familiaridade dos leitores com as paacutethē (da Retoacuterica)
76
quando natildeo fez descriccedilatildeo minuciosa do tema na EN57 ldquoAristoacuteteles
parece assim ter reconhecido diferentes tipos de prazer e dor em sua
eacutetica sem chamar a atenccedilatildeo do leitor para esse fatordquo (FREDE 2009 p
249) o que justificaria a postura da Retoacuterica
Agraves observaccedilotildees de Frede acrescentamos que o prazer associado
agraves emoccedilotildees como no caso das propostas da Rhet da Poet e tambeacutem da
EN tem um quecirc de racionalidade Nos tratados de ciecircncia produtiva eacute
faacutecil perceber o que afirmamos porque as emoccedilotildees traacutegicas bem como
aquelas despertadas pelo discurso retoacuterico acontecem por um tipo de
lsquoidentificaccedilatildeorsquo entre o puacuteblico e as imagens criadas pelo enredo ou pelo
proferimento do orador Essas imagens provocam certo tipo de
pensamento (ao menos imaginaccedilatildeo) em quem tem contato com elas Eacute o
caso do reconhecimento de que ldquoesse eacute aquelerdquo mencionado em Poet
IV e provocado pela trageacutedia que causa prazer proacuteprio a este tipo de
literatura ou encenaccedilatildeo Tal prazer natildeo eacute advindo somente da aparecircncia
da arte em questatildeo mas das formulaccedilotildees racionais que leva o puacuteblico a
elaborar
Pensamos que o mesmo seja vaacutelido para a EN porque o prazer e a
dor causados pelas emoccedilotildees descritas neste tratado tecircm a ver com certas
elaboraccedilotildees que se encadeiam a partir do contato com algumas
aparecircncias e resultam em determinados tipos de operaccedilotildees psiacutequicas
como as opiniotildees O prazer vem com o sentir certa emoccedilatildeo e
igualmente com a lembranccedila ou a imaginaccedilatildeo pois estas causam ao
menos certas alteraccedilotildees no corpo pondo-o em movimento por isso satildeo
tambeacutem classificados como paacutethos (EN II 2 1105a2) pois afetam o
homem embora como observa Konstan (2006 p 42) os prazeres natildeo
sejam exatamente emoccedilatildeo pois satildeo sensaccedilotildees (aisthḗseis) resultantes da
percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo O jovem ao ser educado deve adquirir o
haacutebito de sentir prazer e dor com o que eacute adequado seu caraacuteter deve se
familiarizar previamente com a virtude gostando do que eacute belo e
desprezando o vil58 indicando a forma correta de sentir
57 Talvez por isso tambeacutem natildeo faccedila grandes explicaccedilotildees sobre as emoccedilotildees 58 Segundo Frede das consideraccedilotildees acerca das emoccedilotildees e do prazer feitas por
Aristoacuteteles o que fica para pensarmos atualmente eacute a proposta da necessidade
de uma educaccedilatildeo moral apropriada das emoccedilotildees do sentir prazer e dor com
atividades e atitudes corretas Um segundo benefiacutecio seria o enfoque na
qualidade de vida na qual se preze o desenvolvimento das qualidades que
apresentamos naturalmente para termos uma vida satisfatoacuteria e pensamos em
harmonia dentro de nossas comunidades Aristoacuteteles entendeu que a moralidade
eacute compatiacutevel com inclinaccedilotildees pessoais e pressupocircs tais inclinaccedilotildees Isso eacute o
77
Aleacutem da menccedilatildeo ao prazer e agrave dor e das listas apresentadas no
passo que provavelmente deveria explicar o que Aristoacuteteles entende
por emoccedilatildeo devemos considerar em que medida a ldquodefiniccedilatildeordquo
apresentada pode ser uacutetil em nossa busca por maior especificidade sobre
o assunto Para comeccedilar podemos observar um pouco mais EN II 4
1105b19-29 e com isso notar a relaccedilatildeo do paacutethos com as capacidades
(dynaacutemeis) e as disposiccedilotildees (heacutexeis) A passagem busca esclarecer o que
satildeo as virtudes e por isso as diferencia das emoccedilotildees estas natildeo seriam
nem disposiccedilotildees ou seja aquilo que nos faz ter bom ou mau
comportamento frente agraves emoccedilotildees nem dynaacutemeis que satildeo as
capacidades que se tem de sentir as emoccedilotildees O passo todavia diz
muito da importacircncia eacutetica do paacutethos pois se a virtude eacute disposiccedilatildeo e eacute
fundamental agrave felicidade - e sendo a felicidade o fim humano - se estaacute
ligada desde a alma agrave emoccedilatildeo - por ser disposiccedilatildeo de se posicionar bem
diante das emoccedilotildees - percebemos que o papel desses elementos
desprezados ou postos em segundo plano por outros filoacutesofos eacute
realmente grande em Aristoacuteteles como bem observa Zingano (2007 p
145 EN II 1 1103b25) As emoccedilotildees interferem no ser e no agir
virtuosamente (EN II 2 1104b4-13) pois haacute modos diferentes de se
sentir e lidar com a emoccedilatildeo conforme o estado e a heacutexis nos quais nos
encontramos Entatildeo ser virtuoso implica se comportar bem em relaccedilatildeo agrave
emoccedilatildeo e senti-la de modo (ou na quantia) adequado
A partir das observaccedilotildees feitas podemos afirmar que o passo em
questatildeo deixa claro que as virtudes natildeo satildeo emoccedilotildees embora se
relacionem com estas pois virtudes e viacutecios (kakiacuteai) levam a considerar
um agente como bom ou mau a ser louvado ou censurado e envolvem
escolha deliberada Um homem que apresenta uma virtude eacute dito
disposto de certo modo mas ningueacutem eacute considerado bom ou mau
ningueacutem eacute louvado ou censurado nem considerado disposto de certo
modo por sentir uma emoccedilatildeo ou por ser capaz de sentir uma emoccedilatildeo
A relaccedilatildeo da emoccedilatildeo com a virtude moral em EN II confirma as
propostas de EN I 13 a respeito da alma humana bipartida cuja
capacidade desiderativa ldquocomportariardquo as emoccedilotildees Tal capacidade eacute
forccediloso lembrar seria natildeo racional mas capaz de ouvir as sugestotildees da
razatildeo praacutetica portanto deveriacuteamos supor que aquilo que fosse de sua
alccedilada refletisse tal capacidade de ouvir a razatildeo A possibilidade de as
emoccedilotildees seguirem a reta razatildeo todavia se configura como um
meacuterito da teoria em questatildeo e a proposta de que a accedilatildeo deve ser feita com
inclinaccedilatildeo e natildeo por inclinaccedilatildeo pouparia muita discussatildeo se tivesse sido levada
a seacuterio pelos filoacutesofos posteriores
78
problema pois ainda no Livro II Aristoacuteteles nos fala de emoccedilotildees que
satildeo moralmente maacutes e que natildeo admitem mudanccedila59
Dado que os trechos da Eacutetica Nicomaqueia em anaacutelise por ora
nos trouxeram mais duacutevidas que respostas - ao mostrar-nos o ldquolugarrdquo
das emoccedilotildees na alma e com este sua capacidade de participar do
racional - consideramos que para entendermos esses assuntos
igualmente seja relevante consultar tratados que se dedicaram mais
especificamente ao tema e consultar o texto no qual particularmente se
analisa as questotildees relativas agrave alma Essa consulta nos permitiraacute trazer
soluccedilotildees agraves questotildees suscitadas desde EN I 13 a respeito da
possibilidade de participaccedilatildeo do natildeo racional na razatildeo humana dado
que ambos satildeo capacidades de uma alma una que se manifestam no
corpo Por isso julgamos que o tratado sobre a alma assim como os
demais textos que seratildeo nossos auxiliares nos permitiratildeo ter maior
clareza sobre as relaccedilotildees das emoccedilotildees com corpo e alma e com a razatildeo
humana
4a) Alma corpo e emoccedilotildees interpretadas a partir de EN I com o auxiacutelio
do DA da Rhet e da Poet
No De Anima o estudo da psychḗ estaacute entre aqueles dedicados agraves
coisas da natureza por ser um tipo de investigaccedilatildeo que pretende
conhecer a natureza a substacircncia e os atributos da alma dentre os quais
estatildeo as afecccedilotildees (paacutethē) que lhes satildeo proacuteprias Essas afirmaccedilotildees
conduzem agrave questatildeo complexa da separaccedilatildeo ou unidade entre corpo e
alma Devemos retomar o problema ainda que brevemente jaacute que
Aristoacuteteles faz com que alma e corpo compartilhem as emoccedilotildees
afirmaccedilatildeo feita anteriormente Frente a esse assunto cabe a questatildeo da
inseparabilidade entre corpo e alma Quanto agrave questatildeo Aristoacuteteles
parece pocircr-se em franca oposiccedilatildeo agraves teorias dualistas de Platatildeo como
aquelas apresentadas no Feacutedon quando escreve
Haacute ainda uma dificuldade de saber se as afecccedilotildees
59 Eacute o que confirma Sorabji quando fala da proposta de Aristoacuteteles sobre o meio
termo nas emoccedilotildees ldquoPois ele diz que o que conta muito ou pouco depende de
quem noacutes somos da ocasiatildeo do para quecirc e para quem a nossa emoccedilatildeo eacute
dirigida do resultado provaacutevel e do modo de reagir Aleacutem disso ele aponta que
algumas emoccedilotildees como Schadenfreude (sentir prazer com o insucesso alheio) e
inveja tecircm a ideia de maldade construiacuteda nelas de modo que natildeo haacute espaccedilo para
a ideia de moderaccedilatildeo em exercecirc-lasrdquo (SORABJI 2000 p 195 traduccedilatildeo nossa)
79
da alma satildeo todas comuns agravequilo que possui alma
ou se haacute tambeacutem alguma afecccedilatildeo proacutepria agrave alma
tatildeo somente E embora natildeo seja faacutecil eacute necessaacuterio
compreender isto Revela-se que na maioria dos
casos a alma nada sofre ou faz sem o corpo
como por exemplo irritar-se persistir ter
vontade e perceber em geral por outro lado
parece ser proacuteprio a ela particularmente o pensar
Natildeo obstante se o pensar tambeacutem eacute um tipo de
imaginaccedilatildeo ou se ele natildeo pode ocorrer sem a
imaginaccedilatildeo entatildeo nem mesmo o pensar poderia
existir sem o corpo Enfim se alguma das funccedilotildees
ou afecccedilotildees eacute proacutepria agrave alma ela poderia existir
separada mas se nada lhe eacute proacuteprio a alma natildeo
seria separaacutevel [] Parece tambeacutem que todas as
afecccedilotildees da alma ocorrem com um corpo acircnimo
mansidatildeo medo comiseraccedilatildeo ousadia bem
como a alegria o amar e o odiar ndash pois o corpo eacute
afetado de algum modo simultaneamente a elas
(DA 403a3-19)60
O passo apresenta simultaneidade nas afecccedilotildees do corpo e da
alma inviabilizando a separaccedilatildeo destas duas instacircncias61 pois como
observa Everson (2012 p 238) ldquose o corpo deve ter oacutergatildeos que satildeo
capazes de realizar suas funccedilotildees constitutivas estes igualmente
precisam ter particulares constituiccedilotildees materiaisrdquo Reforccedilamos portanto
que para Aristoacuteteles natildeo haacute separaccedilatildeo entre corpo e alma o que nos
mostra sua teoria das emoccedilotildees pois nesta teoria o filoacutesofo explicita que
60 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ἀπορίαν δ
ἔχει καὶ τὰ πάθη τῆς ψυχῆς πότερόν ἐστι πάντα κοινὰ καὶ τοῦ ἔχοντος ἢ ἔστι τι
καὶ τῆς ψυχῆς ἴδιον αὐτῆς τοῦτο γὰρ λαβεῖν μὲν ἀναγκαῖον οὐ ῥᾴδιον δέ
φαίνεται δὲ τῶν μὲν πλείστων οὐθὲν ἄνευ τοῦ σώματος πάσχειν οὐδὲ ποιεῖν
οἷον ὀργίζεσθαι θαρρεῖν ἐπιθυμεῖν ὅλως αἰσθάνεσθαι μάλιστα δ ἔοικεν ἰδίῳ
τὸ νοεῖν εἰ δ ἐστὶ καὶ τοῦτο φαντασία τις ἢ μὴ ἄνευ φαντασίας οὐκ ἐνδέχοιτ
ἂν οὐδὲ τοῦτ ἄνευ σώματος εἶναι εἰ μὲν οὖν ἔστι τι τῶν τῆς ψυχῆς ἔργων ἢ
παθημάτων ἴδιον ἐνδέχοιτ ἂν αὐτὴν χωρίζεσθαι εἰ δὲ μηθέν ἐστιν ἴδιον αὐτῆς
οὐκ ἂν εἴη χωριστή [] ἔοικε δὲ καὶ τὰ τῆς ψυχῆς πάθη πάντα εἶναι μετὰ
σώματος θυμός πραότης φόβος ἔλεος θάρσος ἔτι χαρὰ καὶ τὸ φιλεῖν τε καὶ
μισεῖν ἅμα γὰρ τούτοις πάσχει τι τὸ σῶμα 61 A questatildeo eacute bem mais complexa poreacutem natildeo poderiacuteamos estudaacute-la em
detalhes nesse momento Sobre o assunto sugerimos a leitura de textos como os
de Robinson e Everson indicados nas referecircncias Estes lidam com a questatildeo
com muito mais cuidado do que noacutes podemos lhe dispensar no presente
80
quem se emociona natildeo eacute o corpo mas o composto corpoalma
apresentando claramente sua perspectiva hilemoacuterfica A prova que
Aristoacuteteles daacute para tanto eacute que agraves vezes as emoccedilotildees fortes e violentas
(hiskyrograven kaigrave enargograven pathḗmaton) natildeo produzem excitaccedilatildeo ou medo
mas agraves vezes emoccedilotildees pequenas e imperceptiacuteveis (mikroacuten kaigrave
amauroacuten) nos movem (kineicircsthai) Isso se torna ainda mais evidente
por exemplo quando natildeo acontece nada de temiacutevel mas se sente medo
(DA I 1 403a20-24) tendo o corpo a tremer como eacute o caso em um
teatro Por isso o filoacutesofo considera evidente que as afecccedilotildees satildeo
determinaccedilotildees na mateacuteria - ou seja implicam ou envolvem mateacuteria mas
natildeo somente (DA I 1 403a24-25 loacutegoi eacutenyloi eisiacuten62) Por isso tambeacutem
as definiccedilotildees que daacute para as emoccedilotildees satildeo do tipo o encolerizar-se eacute um
movimento no corpo do sangue na regiatildeo que estaacute em volta do
coraccedilatildeo ocasionado por certo desejo63 Tais potecircncias satildeo despertadas
por percepccedilotildees imagens e imaginaccedilotildees fatores que estatildeo atrelados ao
exterior e agrave percepccedilatildeo sensiacutevel e estatildeo associadas ao desejo e ao
pensamento daquele que se emociona
Dessas consideraccedilotildees do tratado sobre a alma acerca das
emoccedilotildees aleacutem da velha lista das paacutethē eacute possiacutevel entender que afetam
simultaneamente alma e corpo e que neste provocam alteraccedilotildees e
mesmo movimentos Teorias que parecem ser de grande ajuda agrave nossa
pesquisa embora no DA Aristoacuteteles possa natildeo estar preocupado em
especificar o valor moral das emoccedilotildees dado o caraacuteter bioloacutegico (ou
psicoloacutegico) do texto Pelas propostas observadas entendemos ldquoque as
afecccedilotildees da alma satildeo assim inseparaacuteveis da mateacuteria natural dos animais
na medida em que de fato subsistem neles coisas tais como acircnimo e
62Everson traduz a expressatildeo por ldquoexplicaccedilotildees materiadasrdquo e Tricot por ldquodes
formes engageacutees dans la matiegravererdquo (as formas determinadas da mateacuteria) Este
uacuteltimo explica o raciociacutenio de Aristoacuteteles no passo da seguinte forma ldquoas
emoccedilotildees variam segundo os diferentes indiviacuteduos elas tanto se produzem e
elas tanto natildeo se produzem Ora essa diferenccedila natildeo eacute devida ao πάθημα que eacute o
mesmo para todos eacute devida agrave diferenccedila dos temperamentos da constituiccedilatildeo
fiacutesica Portanto uma emoccedilatildeo eacute sempre acompanhada mesmo no caso em que o
fato natildeo eacute aparente de um concomitante fiacutesicordquo (2010 nota 2 p 29 traduccedilatildeo
nossa) 63Embora nos interesse em demasia a questatildeo de como as afecccedilotildees da alma se
manifestam no corpo eacute mais bem discutida por Aristoacuteteles em seus tratados
bioloacutegicos mas natildeo apareceraacute aqui por questotildees de exequibilidade de nosso
estudo
81
temor e natildeo satildeo como a linha e a superfiacutecierdquo (DA I 1 403b17-19)64
Constataccedilatildeo possiacutevel porque o estudioso da natureza trataria as afecccedilotildees
de modo diferente do que o faria um dialeacutetico como Everson escreve
Noacutes jaacute vimos que ao definir as afecccedilotildees da
psyche Aristoacuteteles daacute prioridade agrave identificaccedilatildeo
das causas das mudanccedilas relevantes e aqui ele
insiste que tambeacutem ter (sic) de ser feita referecircncia
ao corpo Que aqui ldquoeste tipo de corpordquo natildeo
represente uma referecircncia agrave forma eacute confirmado
pelo que se segue Ele contrasta as definiccedilotildees de
ira que seriam oferecidas pelo dialeacutetico e pelo
fiacutesico o primeiro definiria a ira como ldquolsquoo desejo
de retribuir a dorrsquo ou algo parecidordquo enquanto o
uacuteltimo a definiria como a agitaccedilatildeo do sangue ao
redor do coraccedilatildeo (EVERSON 2010 p 241)
Essa diferenccedila nas descriccedilotildees das afecccedilotildees acontece porque ldquoUm
discorre sobre a mateacuteria e o outro sobre a forma e a determinaccedilatildeordquo (DA I
1 403b1-2)65 A determinaccedilatildeo eacute a forma da coisa e precisa existir em
uma mateacuteria que possua tal qualidade O estudioso da natureza eacute
portanto aquele que aborda as afecccedilotildees correspondentes a um corpo
especiacutefico e a uma mateacuteria especiacutefica natildeo tratando das afecccedilotildees que natildeo
satildeo deste tipo assunto que cabe a estudos como os da arte retoacuterica dos
quais falaremos na sequecircncia
Por ora seguiremos com a investigaccedilatildeo do DA que continua
questionando afirmaccedilotildees sobre a acomodaccedilatildeo da alma no corpo e
afirmando que tal consideraccedilatildeo eacute necessaacuteria pois eacute devido agrave comunhatildeo
corpoalma que um faz e outro sofre um move e outro eacute movido sendo
que nada disso acontece casualmente a um ou ao outro Aristoacuteteles
observa em contrapartida parece que cada corpo apresenta
configuraccedilatildeo proacutepria Nesse ponto provavelmente tenhamos a
importacircncia de chamar as consideraccedilotildees de um tratado bioloacutegico para
uma discussatildeo eacutetica se o primeiro tipo de investigaccedilatildeo tem por
preocupaccedilatildeo o mover poderaacute auxiliar na resoluccedilatildeo de questotildees morais
pois natildeo haacute accedilatildeo (prāxis) ou atividade (eneacutergeia) moralmente
consideraacutevel sem movimento (kiacutenēsis) tampouco sem o movimento
64 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ὅτι τὰ πάθη
τῆς ψυχῆς οὕτως ἀχώριστα τῆς φυσικῆς ὕλης τῶν ζῴων ᾗ γε τοιαῦθ ὑπάρχει
ltοἷαgt θυμὸς καὶ φόβος καὶ οὐχ ὥσπερ γραμμὴ καὶ ἐπίπεδον 65 Idem no original ὁ μὲν τὴν ὕλην ἀποδίδωσιν ὁ δὲ τὸ εἶδος καὶ τὸν λόγον
82
daquilo que pede as accedilotildees ou as atividades como vimos pouco acima
Diante da questatildeo do mover e do que faz mover podemos
explicitar a proposta precedentemente mencionada que a alma eacute o que
move sem ser movido tratando-se do movimento local ldquoeacute possiacutevel
como dissemos que a alma se mova por acidente e que mova a si
mesma ndash eacute possiacutevel por exemplo que aquilo em que ela estaacute seja
movido e seja movido justamente pela alma - mas natildeo eacute possiacutevel de
nenhuma outra maneira que a alma se mova quanto ao lugarrdquo (DA I 4
408a30-34)66 A partir dessa afirmaccedilatildeo Tricot (2010 nota 2 p 65)
esclarece que a alma se move no corpo em que estaacute por acidente pois
move-o e que o movimento quanto ao lugar bem como as alteraccedilotildees
fisioloacutegicas provocadas pelas paacutethē podem nos preocupar justamente
pela relaccedilatildeo da kiacutenēsis com as accedilotildees e as atividades morais que
mencionamos Aristoacuteteles pensa que o deslocamento da alma poderia
ser inferido mais verossimilmente das suas capacidades consideradas
pela opiniatildeo comum como movimento Esta eacute a interpretaccedilatildeo dada por
Tricot (2010 nota 4 p 65) para o passo que segue
E seria mais razoaacutevel algueacutem ter certa dificuldade
em relaccedilatildeo agrave alma como movida tendo em vista o
que se segue dizemos que a alma se magoa se
alegra ousa teme e ainda que se irrita percebe e
raciocina e haacute a opiniatildeo de que todas estas coisas
satildeo movimentos donde algueacutem poderia pensar
que a alma se move Isso contudo natildeo eacute
necessaacuterio Pois mesmo que o magoar-se o
alegrar-se ou o raciocinar sejam especialmente
movimentos e que cada um deles o seja pela alma
ndash por exemplo que o irritar-se ou o temer seja um
tipo de movimento do coraccedilatildeo e que o raciocinar
seja um tipo de movimento desse oacutergatildeo ou talvez
de outro diverso e que dentre estes casos uns
ocorram segundo a locomoccedilatildeo de certas partes
movidas outros segundo a alteraccedilatildeo das mesmas
(quais e como eacute outra questatildeo) ndash dizer que a alma
se irrita eacute como dizer que a alma tece ou edifica
Talvez seja melhor dizer natildeo que a alma se apieda
ou apreende ou raciocina mas que o homem o faz
66 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original κατὰ
συμβεβηκὸς δὲ κινεῖσθαι καθάπερ εἴπομεν ἔστι καὶ κινεῖν ἑαυτήν οἷον
κινεῖσθαι μὲν ἐν ᾧ ἐστι τοῦτο δὲ κινεῖσθαι ὑπὸ τῆς ψυχῆς ἄλλως δ οὐχ οἷόν τε
κινεῖσθαι κατὰ τόπον αὐτήν
83
com a alma E isso natildeo porque o movimento
existe nela mas porque o movimento ora chega
ateacute ela ora parte dela na percepccedilatildeo sensiacutevel por
exemplo ele parte de fora e na reminiscecircncia
parte dela ateacute chegar aos movimentos e agraves
estabilizaccedilotildees nos oacutergatildeos da percepccedilatildeo (DA I 4
408a34-35 408b1-17)67
Assim dando por fim nossa breve discussatildeo sobre a questatildeo do
movimento provocado pelas paacutethē da alma no corpo confirmamos que a
alma natildeo eacute o que faz mover e o que eacute movido Ela eacute somente o que faz
mover (DA 409a18 allagrave tograve kinoucircn moacutenon) e natildeo eacute preciso que se mova
para que conceda movimento aos corpos embora por esses argumentos
natildeo fosse possiacutevel explicar as funccedilotildees (tagrave eacuterga) e as afecccedilotildees (tagrave paacutethē)
da alma68 Essas propostas do DA portanto natildeo potildeem fim agraves nossas
duacutevidas acerca da definiccedilatildeo de emoccedilatildeo
Frente agraves indefiniccedilotildees apresentadas pela EN e pelo DA a
Retoacuterica ressalta algo novo e importante Esse tratado propotildee que as
emoccedilotildees satildeo ldquoas causas que fazem alterar os seres humanos e
introduzem mudanccedilas nos seus juiacutezos na medida em que elas
comportam dor e prazer tais satildeo a ira a compaixatildeo o medo e outras
67 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original ἄλλως δ οὐχ οἷόν τε
κινεῖσθαι κατὰ τόπον αὐτήν εὐλογώτερον δ ἀπορήσειεν ἄν τις περὶ αὐτῆς ὡς
κινουμένης εἰς τὰ τοιαῦτα ἀποβλέψας φαμὲν γὰρ τὴν ψυχὴν λυπεῖσθαι χαίρειν
θαρρεῖν φοβεῖσθαι ἔτι δὲ ὀργίζεσθαί τε καὶ αἰσθάνεσθαι καὶ διανοεῖσθαι ταῦτα
δὲ πάντα κινήσεις εἶναι δοκοῦσιν ὅθεν οἰηθείη τις ἂν αὐτὴν κινεῖσθαι τὸ δ οὐκ
ἔστιν ἀναγκαῖον εἰ γὰρ καὶ ὅτι μάλιστα τὸ λυπεῖσθαι ἢ χαίρειν ἢ διανοεῖσθαι
κινήσεις εἰσί καὶ ἕκαστον κινεῖσθαί τι τούτων τὸ δὲ κινεῖσθαί ἐστιν ὑπὸ τῆς
ψυχῆς οἷον τὸ ὀργίζεσθαι ἢ φοβεῖσθαι τὸ τὴν καρδίαν ὡδὶ κινεῖσθαι τὸ δὲ
διανοεῖσθαι ἤ τι τοιοῦτον ἴσως ἢ ἕτερόν τι τούτων δὲ συμβαίνει τὰ μὲν κατὰ
φοράν τινων κινουμένων τὰ δὲ κατ ἀλλοίωσιν (ποῖα δὲ καὶ πῶς ἕτερός ἐστι
λόγος) τὸ δὴ λέγειν ὀργίζεσθαι τὴν ψυχὴν ὅμοιον κἂν εἴ τις λέγοι τὴν ψυχὴν
ὑφαίνειν ἢ οἰκοδομεῖν βέλτιον γὰρ ἴσως μὴ λέγειν τὴν ψυχὴν ἐλεεῖν ἢ
μανθάνειν ἢ διανοεῖσθαι ἀλλὰ τὸν ἄνθρωπον τῇ ψυχῇ τοῦτο δὲ μὴ ὡς ἐν
ἐκείνῃ τῆς κινήσεως οὔσης ἀλλ ὁτὲ μὲν μέχρι ἐκείνης ὁτὲ δ ἀπ ἐκείνης οἷον
ἡ μὲν αἴσθησις ἀπὸ τωνδί ἡ δ ἀνάμνησις ἀπ ἐκείνης ἐπὶ τὰς ἐν τοῖς
αἰσθητηρίοις κινήσεις ἢ μονάς 68 Raciociacutenios (logismouacutes) percepccedilotildees (aisthḗsis) prazeres (hēdonaacutes) dores
(lyacutepas) etc
84
semelhantes assim como as suas contraacuteriasrdquo (Rhet II 1 1378a19-22)69
Mais adiante no texto lemos outro passo que parece proceder a uma
exemplificaccedilatildeo ou lista de emoccedilotildees ldquoPor paixotildees entendo a ira o desejo
e outras emoccedilotildees da mesma natureza de que falamos anteriormenterdquo
(Rhet II 12 1388b32-33)70 O que pode chamar nossa atenccedilatildeo nesses
trechos eacute resumido por Konstan (2006 p 33 traduccedilatildeo nossa) do
seguinte modo ldquoA definiccedilatildeo de emoccedilatildeo ou paacutethos entretanto que
Aristoacuteteles oferece na Retoacuterica ndash o mais perto que ele chega de dar uma
tal definiccedilatildeo do que em nenhum outro de seus escritos [] ndash natildeo
relaciona emoccedilatildeo com sua causa externa ou estiacutemulo mas insiste antes
em seu efeito sobre o julgamentordquo Observaccedilatildeo extremamente vaacutelida
embora entendamos que as definiccedilotildees das emoccedilotildees particulares trazidas
pelo Livro II da Rhet apresentem as referecircncias aos mencionados
estiacutemulos ou causas externas como mostraremos pouco adiante
Deixemos isso por ora concentremo-nos na tentativa de definiccedilatildeo dada
pelo texto e nos juiacutezos que se diz serem alterados
Comecemos com uma interrogaccedilatildeo como o destaque na
capacidade de ldquomudanccedilas nos juiacutezosrdquo poderia ser importante para nossa
pesquisa se as coisas que dizem respeito agrave retoacuterica diferem daquelas
especiacuteficas agrave eacutetica Sendo a retoacuterica considerada uma arte e se a arte
trata do universal como poderia nos ajudar a esclarecer questotildees eacuteticas
se vemos Aristoacuteteles sempre a ressaltar o caraacuteter particular das accedilotildees
morais Antes de responder agraves questotildees vale frisar que a eacutetica tambeacutem
aborda universalmente suas questotildees graccedilas ao seu caraacuteter filosoacutefico jaacute
indicando certa proximidade entre as investigaccedilotildees dos dois tratados
Diante disso podemos ir agraves respotas o filoacutesofo nos informa que a arte
retoacuterica natildeo teoriza sobre o provaacutevel para o indiviacuteduo mas sobre o que
parece verdadeiro para pessoas de certa condiccedilatildeo formando silogismos
a partir daquilo sobre o que estamos habituados a deliberar Esse
envolvimento do haacutebito e da deliberaccedilatildeo mesmo que natildeo implique
necessariamente uma accedilatildeo particular ainda eacute de grande importacircncia
para nossos estudos porque a funccedilatildeo da retoacuterica ldquoconsiste em tratar das
questotildees sobre as quais deliberamos e para as quais natildeo dispomos de
artes especiacuteficas e isto perante um auditoacuterio incapaz de ver muitas
coisas ao mesmo tempo ou de seguir uma longa cadeia de raciociacuteniosrdquo
69 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original ἔστι δὲ τὰ
πάθη δι ὅσα μεταβάλλοντες διαφέρουσι πρὸς τὰς κρίσεις οἷς ἕπεται λύπη καὶ
ἡδονή οἷον ὀργὴ ἔλεος φόβος καὶ ὅσα ἄλλα τοιαῦτα καὶ τὰ τούτοις ἐναντία 70 Idem no original λέγω δὲ πάθη μὲν ὀργὴν ἐπιθυμίαν καὶ τὰ τοιαῦτα περὶ ὧν
εἰρήκαμεν πρότερον
85
(Rhet I 2 1357a1-4)71
A arte retoacuterica tem o poder de incitar a deliberaccedilatildeo e tal poder eacute
empregado em julgamentos e em outras instacircncias importantes agraves
decisotildees da poacutelis Por isso Konstan (2006 p 34) observa que os
momentos nos quais as emoccedilotildees eram excitadas por artifiacutecios retoacutericos
satildeo representantes de como as paacutethē estatildeo presentes no cotidiano
poliacutetico ateniense e mesmo moral Assim nosso empenho em estudar as
emoccedilotildees propostas no tratado eacute vaacutelido mesmo que estudiosos como
Fortenbaugh (2008 p 114) entendam que os intentos da Retoacuterica satildeo
distintos daqueles da Eacutetica Nicomaqueia Esta proposta pode sofrer
abalo se confrontada com a interpretaccedilatildeo de Nussbaum (1996 p 306 et
seq) que vecirc elemento cognitivo na constituiccedilatildeo das emoccedilotildees (e natildeo soacute
nas emoccedilotildees propostas pela Poeacutetica e pela Retoacuterica) aproximando suas
teorias sobre a emoccedilatildeo da tese de Konstan acerca dos ajuizamentos
influentes no cotidiano da poacutelis
Tendo em vista a objeccedilatildeo de se relacionar as propostas da EN e
da Rhet acerca das emoccedilotildees reforccedilamos a importacircncia mesmo na vida
de um filoacutesofo do conviacutevio poliacutetico na realizaccedilatildeo da vida humana feliz
Se a retoacuterica traz as emoccedilotildees para as praacuteticas comuns da poacutelis
consideramos o exerciacutecio de conjugaccedilatildeo das ideias dos dois tratados
como vaacutelido porque a Rhet aleacutem de trazer algo mais proacuteximo de uma
definiccedilatildeo de emoccedilatildeo fala mais detalhadamente do nosso objeto de
pesquisa e da possibilidade de mudanccedila nasde emoccedilotildees operadas pelo
discurso As paacutethē sendo coisas que fazem alterar os homens e que
mudam seu juiacutezo e sendo acompanhadas por prazer ou dor (ou
ambos)72 na arte retoacuterica estatildeo relacionadas agraves disposiccedilotildees do puacuteblico e
ao caraacuteter apresentado pelo orador assegurando ao tratado um lugar em
nossa investigaccedilatildeo
Para que o discurso tenha o poder da persuasatildeo e da mudanccedila nos
juiacutezos Aristoacuteteles pensa ser conveniente distinguir trecircs aspectos em
cada uma das emoccedilotildees que possa suscitar 1) em que estado de espiacuterito
71 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original ἔστιν δὲ τὸ
ἔργον αὐτῆς περί τε τοιούτων περὶ ὧν βουλευόμεθα καὶ τέχνας μὴ ἔχομεν καὶ
ἐν τοῖς τοιούτοις ἀκροαταῖς οἳ οὐ δύνανται διὰ πολλῶν συνορᾶν οὐδὲ
λογίζεσθαι πόρρωθεν 72 Sobre o misto de sentimentos que acompanha as emoccedilotildees da Retoacuterica ver
FREDE D ldquoMixed feelings in Aristotleacutes Rhetoricrdquo In Essays on Aristotleacutes
Rhetoric Berkeley Los Angeles London 1996 p 258-285 Ver tambeacutem
Konstan (2006 p 41 et seq) que admite por exemplo o misto de prazer e dor
com a raiva
86
se encontra quem se emociona 2) com o quecirc costuma se emocionar e
3) em que circunstacircncias se emociona Com base nesses criteacuterios o
filoacutesofo elabora descriccedilotildees das emoccedilotildees particulares implicadas com a
arte de persuadir se uma pessoa concentra um ou dois destes aspectos e
natildeo todos natildeo inspira a emoccedilatildeo Aristoacuteteles faz uma distinccedilatildeo das
paacutethē conforme esse meacutetodo que seraacute de grande ajuda aos nossos
propoacutesitos de definir o que satildeo as emoccedilotildees e sua natureza e embora natildeo
apresentemos aqui uma reproduccedilatildeo da definiccedilatildeo dada para cada paacutethos
mais adiante no entanto recorreremos ao medo (phoacutebos) como exemplo
do que expomos73 As descriccedilotildees contudo nos levam a perceber as
emoccedilotildees a serem despertadas com o discurso que tem por base
caracteres jaacute estabelecidos sejam estes aparentes ou reais Estes
caracteres podem ser apresentados pelos espectadores dos discursos
pelos envolvidos nas situaccedilotildees apresentadas em uma exposiccedilatildeo ou
pelos oradores que proferem uma fala Nesse ponto provavelmente
existe uma pequena diferenccedila entre as propostas da Retoacuterica e aquelas
da Eacutetica Nicomaqueia texto no qual as emoccedilotildees ainda tecircm a ver com
um caraacuteter em formaccedilatildeo74 embora as consideraccedilotildees apresentadas no
Livro X mostrem tal tratado preocupado igualmente com a conservaccedilatildeo
de um caraacuteter bem formado
As diferenccedilas entre os dois escritos cessam quando lidam com
pessoas e com o mundo que cerca quem se emociona como explica
Nussbaum (2008 p 46-47) A partir desses estudos entendemos que
estes fatores despertam e sofrem influecircncia das emoccedilotildees trazendo
sempre o olho do outro para nosso mais iacutentimo75 embora no acircmbito
73Tal escolha se justifica porque o medo parece ser uma das emoccedilotildees que
comporta todas as caracteriacutesticas que consideramos importantes para essa classe
(subclasse) de coisa seja entendida 74 Hutchinson observa que os estudantes que acompanhavam Aristoacuteteles
deveriam ser jovens das melhores classes sociais de Atenas 75 Isso porque segundo Konstan (2006 p 27-28 traduccedilatildeo nossa) ldquodado que o
julgamento e a crenccedila satildeo centrais para a dinacircmica das emoccedilotildees como
Aristoacuteteles as concebe eacute natural que um entendimento das pathḗ deve fazer
parte da arte da persuasatildeo Aristoacuteteles caracteriza as emoccedilotildees como consistindo
de dois elementos baacutesicos primeiro todo paacutethos eacute acompanhado por dor e
prazer segundo as pathḗ satildeo nas palavras de Aristoacuteteles aquelas coisas lsquoem
consideraccedilatildeo das quais as pessoas mudam e diferem em observaccedilatildeo aos seus
julgamentosrsquo [] noacutes podemos observar que algueacutem deve estar alerta agrave
possibilidade que um foco no papel da emoccedilatildeo no argumento condicionou o
tipo de sentimentos que Aristoacuteteles e outros estudantes de retoacuterica selecionaram
para anaacutelise Mas pode ser tambeacutem que ambientes forenses e deliberativos
87
poliacutetico sendo as paixotildees entendidas tambeacutem como respostas a
interaccedilotildees na poacutelis O que implica que haacute uma relaccedilatildeo de identidade ou
dessemelhanccedila entre as pessoas envolvidas com determinada emoccedilatildeo
Por isso parece que todas as paacutethē da Retoacuterica envolvem um tipo de
pensamento - ou ao menos opiniatildeo - ou imaginaccedilatildeo devidos a
determinadas situaccedilotildees e posturas dos outros com relaccedilatildeo agravequeles que se
emocionam Essas emoccedilotildees parecem ser despertadas por pessoas ou
relatos aos quais se daacute importacircncia envolvendo tipos de crenccedilas76
(piacutestis) eou opiniotildees (doacutexai) e juiacutezos do puacuteblico permitindo-o se
emocionar por exemplo com o que eacute exposto em um julgamento Com
isso a plateia pode deliberar e tomar certa decisatildeo os ouvintes dos
discursos tratados na Retoacuterica agem ou ao menos reagem de formas
semelhantes em conformidade com aquilo que o orador deixa
transparecer e do modo como busca afetaacute-los Informaccedilotildees de grande
relevacircncia aos nossos propoacutesitos por implicar ldquoaccedilotildeesrdquo particulares (EN
VI 12 1143a28 et seq)
Esse tipo de postura pode ser confirmado ainda por outra arte de
emocionar a poesia traacutegica Quando Aristoacuteteles faz sugestotildees para a boa
composiccedilatildeo de enredos e personagens traacutegicos deixa ainda mais
aparentes as propostas sobre as emoccedilotildees que destacamos como aquelas
fossem vistos como exibindo cenaacuterios intensificados do modo como as emoccedilotildees
operavam geralmente na vida grega onde elas estavam proximamente ligadas a
interaccedilotildees puacuteblicas e [eram] manifestadas principalmente em uma negociaccedilatildeo
de papeis socais contiacutenua e puacuteblica Emoccedilotildees vistas deste modo natildeo satildeo
expressotildees estaacuteticas resultantes de estiacutemulos impessoais como com os pacientes
sujeitos a choque eleacutetrico nas fotografias publicadas por Darwin mas [satildeo]
antes elementos em conjuntos complexos de trocas interpessoais nas quais os
indiviacuteduos estatildeo conscientes dos motivos dos outros e prontos a responder na
mesma moeda Natildeo eacute que Aristoacuteteles esteja certo quanto agraves emoccedilotildees e Darwin
errado mas antes que a abordagem de Aristoacuteteles pode descrever melhor o que
as emoccedilotildees significam na vida social da cidade-estado claacutessica enquanto [a
abordagem] de Darwin pode ser mais adequada ao modo que as emoccedilotildees satildeo
percebidas no universo moderno poacutes-Cartesiano A visatildeo de Aristoacuteteles das
emoccedilotildees depende implicitamente de um contexto narrativordquo 76 Quanto agrave presenccedila da crenccedila nas emoccedilotildees Nussbaum (2008 p 34 traduccedilatildeo
nossa) escreveu ldquoAristoacuteteles Crisipo Secircneca Spinoza Smith e mesmo
Descartes e Hume [] ndash todas essas figuras definem emoccedilotildees em termos de
crenccedilardquo Sugere-se conferir tambeacutem da mesma autora The fragility of
goodness Konstan em seu The emotions of the ancient greecks (2006 p 261)
ressalta a presenccedila da crenccedila na constituiccedilatildeo das emoccedilotildees aristoteacutelicas Sobre a
opiniatildeo na base da emoccedilatildeo ver Zingano (2007 p 152)
88
pretendidas pelo futuro orador na Retoacuterica contudo lanccedilando matildeo de
um instrumento emocional diferente com intenccedilotildees diferentes Vejamos
em que medida caracteres emoccedilotildees e accedilotildees - bem como as virtudes e os
viacutecios que deixam transparecer - podem estar ligados agraves emoccedilotildees
mesmo quando se trata das emoccedilotildees traacutegicas
Assim como a retoacuterica a poesia pode ser encarada como uma arte
de emocionar porque a Poeacutetica composta por Aristoacuteteles apresenta-se
ateacute certo ponto como um manual do fazer poeacutetico Sendo a funccedilatildeo da
poesia traacutegica descrita como provocar medo piedade e a kaacutetharsis
(catarse purificaccedilatildeo purgaccedilatildeo) dessas emoccedilotildees entendemos que
tambeacutem ensina ao menos em linhas gerais o que satildeo as tais emoccedilotildees
embora a Poacutetica natildeo apresente uma definiccedilatildeo de emoccedilatildeo Esse texto
todavia nos ajuda a compreender o que eacute o paacutethos para Aristoacuteteles
aleacutem de dar excelentes dicas a respeito do papel eacutetico das paacutethē
ressaltando duas emoccedilotildees em especial o medo (phoacutebos) e a piedade
(eleeinoacutes) Uma hipoacutetese demasiado interessante defendida por
Nussbaum quanto a estas eacute a de que de acordo com Aristoacuteteles as
emoccedilotildees natildeo satildeo particulares apenas por derivarem da percepccedilatildeo
sensiacutevel assim como por serem individualizadas por crenccedilas e
julgamentos que satildeo internalizados por cada pessoa ldquoUma tiacutepica
emoccedilatildeo aristoteacutelica eacute definida como um composto de um sentimento ou
prazer ou dor e de um tipo de crenccedila particular sobre o mundo [] O
sentimento e a crenccedila natildeo estatildeo somente incidentalmente ligados a
crenccedila eacute a base do sentimentordquo (NUSSBAUM 2001 p 383) Por
conseguinte se as emoccedilotildees traacutegicas tecircm um quecirc moral e implicam
crenccedila como aquelas emoccedilotildees que estudamos com a Retoacuterica eacute
possiacutevel entendecirc-las como constituiacutedas de ao menos um elemento de
racionalidade Composiccedilatildeo que pode ser comprovada pelas exigecircncias
aristoteacutelicas da racionalidade atrelada ao tipo de prazer sentido com a
poesia traacutegica Assim acontece conforme Ricoeur (2012 p 72) porque
ldquoAprender concluir reconhecer a forma eacute esse o esqueleto inteligiacutevel
do prazer da imitaccedilatildeo (ou da representaccedilatildeo)rdquo presente nas emoccedilotildees
traacutegicas sendo um tipo de prazer intelectual
A reaccedilatildeo que cada espectador tem diante de um espetaacuteculo pode
ser mesmo sinal de suas disposiccedilotildees de caraacuteter Desse modo podemos
entender que para Aristoacuteteles as paixotildees que satildeo despertadas atraveacutes da
ficccedilatildeo expressa na poesia traacutegica dizem muito a respeito do caraacuteter e da
virtude humana Sua manifestaccedilatildeo atraveacutes de gestos ou de simples e
quase imperceptiacuteveis sinais do corpo podem revelar as disposiccedilotildees
morais de um cidadatildeo podem mesmo ser uacuteteis agrave consolidaccedilatildeo de um
caraacuteter virtuoso ou agrave correccedilatildeo de um caraacuteter vicioso As reaccedilotildees
89
apresentadas pelo homem quando acometido por emoccedilotildees ou mesmo
quando inspirado poeticamente a sentimentos como os provocados pelas
emoccedilotildees podem deste modo deixar transparecer o caraacuteter
desenvolvido pelo cidadatildeo e preparaacute-lo para reagir ao mundo77 O
agente seraacute instigado a agir de modo a demonstrar por meio da beleza
de suas accedilotildees que seratildeo dignas de louvor a boa forma de suas
disposiccedilotildees e sua retidatildeo moral78 ao ser tocado por uma emoccedilatildeo
verdadeira ou simulada por meio de miacutemesis
Apesar do caraacuteter ficcional da trageacutedia que pode afetar o teor das
emoccedilotildees que tem por funccedilatildeo despertar boa parte do que foi proposto agraves
emoccedilotildees suscitadas pela retoacuterica parece valer tambeacutem agravequelas
provocadas pela trageacutedia Percebemos a presenccedila do prazer e da dor
embora o prazer das emoccedilotildees traacutegicas pareccedila um tanto paradoxal e mais
complexo devido agrave sua racionalidade de tipo especiacutefico agrave trageacutedia e ao
fato de vir da dor que cada um sente com o estiacutemulo do ficcional
Assim a trageacutedia eacute exemplo de como eacute possiacutevel juntar os dois lados da
alma humana pois suas emoccedilotildees dependem da racionalidade
apresentada pela forma como o enredo eacute composto e pela racionalidade
do puacuteblico que consegue compreender o encadeamento loacutegico
apresentado pelo texto ao ponto de se emocionar com as sugestotildees feitas
pela composiccedilatildeo traacutegica Sempre percebemos a necessidade de se imitar
homens a agir de modo que a unidade do enredo e da accedilatildeo apareccedila
necessaacuteria e verossimilmente a partir de sua estrutura Esse tipo de
elaboraccedilatildeo textual leva a reaccedilotildees por parte do puacuteblico e este eacute
conduzido ao que parece a pensar e ateacute mesmo a julgar devido agrave
racionalidade do enredo a respeito do caraacuteter dos personagens o que
tambeacutem emociona Assim a Poeacutetica faz mais que nos propor como
despertar emoccedilotildees conta-nos sobre a constituiccedilatildeo das emoccedilotildees que
pretende provocar
Essa afirmaccedilatildeo pode ser confirmada pela proposta que ter
simpatia pelos personagens - emoccedilatildeo que natildeo consta das listas de
Aristoacuteteles mas que eacute mencionada na Poeacutetica - faz com que
percebamos a forte necessidade da relaccedilatildeo com o outro tambeacutem nesse
77Aleacutem de apresentarem o caraacuteter do poeta ligando novamente a poesia traacutegica
agrave concretude do mundo mas dessa vez a um mundo preacutevio agrave composiccedilatildeo
traacutegica (a miacutemesis I descrita por Ricoeur em Tempo e Narrativa) 78Provavelmente nesse ponto seja validada a proposta de Ricoeur que percebe
na Poeacutetica de Aristoacuteteles os primeiros passos de uma esteacutetica da recepccedilatildeo jaacute
que a poesia teria ecos em um depois da composiccedilatildeo a chamada miacutemesis III
(RICOEUR 2010 p 86 et seq)
90
tipo de exposiccedilatildeo sendo que leva a plateia a imaginar de certo modo as
situaccedilotildees apresentadas A trageacutedia pode mesmo fazer pensar sobre as
possibilidades de acontecimentos obviamente natildeo idecircnticos aos
expostos mas de teor minimamente semelhante Eacute isso que toca o
espectador e o leva a temer e a se apiedar mas isso tambeacutem nos conta o
que satildeo medo e piedade A presenccedila de um forte elemento de
racionalidade implicado no despertar das emoccedilotildees que o espectador das
trageacutedias sente indica-nos os componentes da emoccedilatildeo traacutegica e geral Eacute
possiacutevel que haja mesmo crenccedilas opiniotildees e certos tipos de
pensamentos aleacutem da inegaacutevel imaginaccedilatildeo envolvida nas emoccedilotildees
mesmo que estas sejam emoccedilotildees traacutegicas
Apoacutes esses apontamentos parece que estamos prontos para tentar
uma delimitaccedilatildeo com contornos um pouco mais bem determinados
daquilo que entendemos juntamente com Aristoacuteteles acerca do que seja
a emoccedilatildeo
5 A emoccedilatildeo
Diante de tudo o que estudamos entendemos que quanto ao
gecircnero a emoccedilatildeo classifica-se como paacutethos sendo uma afecccedilatildeo sofrida
conjuntamente por corpo e alma seja ela visiacutevel ou natildeo em uma
manifestaccedilatildeo fiacutesica Pode ser traduzida biologicamente em termos de
processos desencadeados no organismo que podem incorrer em
movimento local embora por vezes somente ponha certos oacutergatildeos e
partes do corpo afetado em movimento Pertence agrave capacidade da alma
desiderativa sendo por isso hiacutebrida como tal capacidade Por
conseguinte Nussbaum (1996 p 306) chega mesmo a interpretaacute-la
como subclasse do desejo Igualmente por isso a maioria das emoccedilotildees
tem a possibilidade de ouvir e ateacute de obedecer agrave razatildeo todavia a
emoccedilatildeo natildeo pode ser escolhida deliberadamente natildeo se escolhe se
emocionar ou natildeo bem como natildeo se escolhe desejar ou natildeo e o que se
deseja (EN 1106a3-4) Por isso as emoccedilotildees natildeo se confundem com as
virtudes morais fruto de escolha deliberada que eacute digna de elogio mas
tecircm um papel crucial junto agrave constituiccedilatildeo e possibilidade destas virtudes
Um homem portanto pode ser responsabilizado pelo modo como
escolhe agir mas natildeo por suas emoccedilotildees entretanto parece poder ser
responsabilizado desde que minimamente educado moralmente pela
forma como se emociona e pela intensidade com que sente emoccedilatildeo bem
como pode controlar em direccedilatildeo a quecirc e a quem leva suas paacutethē
As emoccedilotildees satildeo indubitavelmente acompanhadas pelos
sentimentos de prazer de dor ou ambos contudo caracterizam-se ainda
91
por fazerem alterar mais que o corpo alteram os juiacutezos dos homens
Juntamente com sua natureza desiderativa tal possibilidade aponta para
um elemento racional em certa medida constituinte ou decorrente da
emoccedilatildeo Para que algueacutem se emocione eacute preciso que apresente certas
opiniotildees e mesmo juiacutezos sobre determinadas coisas ou pessoas no
mundo ou eacute preciso ao menos que se imagine em certas situaccedilotildees mas
as emoccedilotildees tambeacutem podem influenciar a formulaccedilatildeo de juiacutezos opiniotildees
e pensamentos sobre certas questotildees Por isso como explica Tricot
(2010 nota 3 p 107 traduccedilatildeo nossa) ldquoπάθος que quer dizer afecccedilatildeo
emoccedilatildeo sentimento em geral eacute um movimento da alma provocado por
um objeto exteriorrdquo O dito elemento racional eacute tambeacutem constitutivo
porque a forma como algueacutem toma uma circunstacircncia sob certo aspecto
o perceber um estiacutemulo externo que interage consigo leva o agente a ser
afetado ou seja a se emocionar ou ao menos a responder
emocionalmente de uma ou outra forma
Tal afetaccedilatildeo faz jus ao caraacuteter pateacutetico da emoccedilatildeo aristoteacutelica
bem como abre a possibilidade para que entendamos o paacutethos proposto
pelo filoacutesofo como muitas vezes resultante da interaccedilatildeo entre os
cidadatildeos na poacutelis e influente em tal relaccedilatildeo Igualmente parece nos
permitir acatar a ideia de que a emoccedilatildeo faz com que o agente perceba a
si mesmo como impotente e vulneraacutevel agraves coisas importantes do mundo
que podem lhe atingir No entanto a emoccedilatildeo natildeo pode em hipoacutetese
alguma ser tomada somente como uma passividade e nem todas essas
emoccedilotildees podem ser postas em acordo com a reta razatildeo Assim sendo
quanto agrave sua diferenccedila especiacutefica o paacutethos descrito por Aristoacuteteles natildeo eacute
apenas algo que atinge o homem porque existe a partir de um
movimento iniciado por certas formas de racionalidade como a
percepccedilatildeo sensiacutevel e que pode despertar certas formas da racionalidade
humana pondo mais do que o corpo em accedilatildeo Deste modo a emoccedilatildeo
movimenta o homem ou potildee-no em um certo tipo de movimento seja
quando julga e decide sobre questotildees poliacuteticas ou juriacutedicas quando
impele um espectador agrave kaacutetharsis mas tambeacutem quando pode levar o
agente moral a agir Por esses motivos concordamos com a seguinte
proposta sobre a constituiccedilatildeo da emoccedilatildeo
[] sensaccedilotildees de prazer e dor alteraccedilotildees e
processos fisioloacutegicos crenccedilas e opiniotildees e
atitudes ou impulsos Nenhum desses sentimentos
isolado explica por si mesmo qualquer emoccedilatildeo
Sensaccedilotildees alteraccedilotildees fisioloacutegicas crenccedilas e
atitudes constituem os quatro componentes
92
estruturais da emoccedilatildeo (TRUEBA p 53 traduccedilatildeo
nossa)
Acrescentamos a esses componentes a importacircncia do papel do
outro e do mundo que cercam cada agente na formulaccedilatildeo e no
desencadeamento de um tipo de pensamento ou de raciociacutenio que pode
ser diferente mas natildeo exatamente dissociado das opiniotildees e das
crenccedilas como a imaginaccedilatildeo e as conjeturas presentes na constituiccedilatildeo da
emoccedilatildeo ou na boa forma que ela venha adquirir graccedilas ao seu possiacutevel
contato com a razatildeo praacutetica Quando internalizadas por exemplo na
memoacuteria nas imaginaccedilotildees ou nos pensamentos as emoccedilotildees podem
tambeacutem partir da alma Satildeo portanto afecccedilotildees do conjunto corpoalma
passiacuteveis de serem educadas recebendo a boa medida concebida como
virtude moral e que eacute necessaacuteria agrave vida feliz Pensamos que a boa
medida no entanto soacute eacute possiacutevel devido a um quecirc de racionalidade que
pode acompanhar as emoccedilotildees desde sua constituiccedilatildeo como procuramos
e procuraremos provar ao longo desse estudo
Em suma podemos esboccedilar a seguinte definiccedilatildeo de emoccedilatildeo
conforme os tratados estudados a emoccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo ocasionada
por uma consideraccedilatildeo acerca de determinada situaccedilatildeo Tal consideraccedilatildeo
eacute acompanhada de alteraccedilotildees fisioloacutegicas mas nem sempre de
movimentos sendo que a emoccedilatildeo eacute igualmente capaz de alterar o
julgamento de quem acredita que determinada situaccedilatildeo tem influecircncia
relevante em sua vida tendo por isso inegaacutevel papel na vida humana
descrita pelo filoacutesofo
A presenccedila da emoccedilatildeo hiacutebrida como o desejo eacute indispensaacutevel agraves
propostas eacuteticas de Aristoacuteteles seja como ocasionadora
(biologicamente) de alteraccedilatildeo seja como causadora de mudanccedila no
ajuizamento e mesmo de reflexatildeo ou seja como (eticamente) elemento
do desiderativo que concorre para a accedilatildeo boa ou maacute moralmente Todos
esses aspectos se completam em um entendimento de algo que
realmente tem seu lugar na accedilatildeo humana e que pode influenciaacute-la ao
ponto de ser valorado moralmente Ainda precisamos saber contudo
como e por que meios eacute possiacutevel que as paacutethē ouccedilam e obedeccedilam agrave
razatildeo praacutetica para que dela realmente participem Por isso julgamos
interessante e mesmo necessaacuterio pensar a exigecircncia de sua moderaccedilatildeo a
fim da virtude moral como isso interferiraacute na caminhada rumo agrave vida
feliz na poacutelis
93
Capiacutetulo II
Virtude como possibilidade de acordo entre razatildeo e emoccedilatildeo
1 Virtude completa79 virtudes virtude moral
A discussatildeo sobre a virtude aparece no primeiro Livro da EN em
meio agrave primeira discussatildeo sobre a eudaiacutemōniacutea ou naquele que pode ser
chamado de primeiro tratado sobre a felicidade Nesse ponto do texto a
identificaccedilatildeo do bem supremo com a felicidade parece uma coisa
acertada para Aristoacuteteles mas o filoacutesofo considera preciso esclarecer
qual a natureza da felicidade Admite que um caminho possiacutevel a tal
esclarecimento seja a determinaccedilatildeo da funccedilatildeo do homem Por isso
defendemos no Capiacutetulo anterior desta tese que a funccedilatildeo proacutepria ao
homem e com esta a vida feliz deve ser atividade sempre pautada pela
razatildeo mas defendemos igualmente que nos parece impossiacutevel uma vida
totalmente voltada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica Eacute por isso que nesse
momento nos dedicaremos ao estudo daquela vida ativa segundo a
razatildeo excelente quanto agraves coisas propriamente humanas e portanto
virtuosa nesse sentido Entendemos que tal vida cumpriraacute as exigecircncias
de Aristoacuteteles para a felicidade o que pode ser confirmado pela nossa
interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo que eacute proacutepria ao homem executar bem
atividades e accedilotildees em comunidade de acordo com o mais racional em
cada circunstacircncia
Para que isso seja possiacutevel seraacute preciso se emocionar de modo
adequado associando ldquoelegantementerdquo (LEBRUN 2009 p 16)
emoccedilatildeo e razatildeo associaccedilatildeo que mostraremos resultar em virtude moral
e na virtude que entenderemos como a mais completa Para apresentar
essa possibilidade comeccedilaremos nossa pesquisa com o estudo do ideal
de eudaiacutemōniacutea pensado pelo filoacutesofo no primeiro Livro da EN
Escolhemos essa via para dar prosseguimento agraves discussotildees iniciadas
no Capiacutetulo I e porque justificaraacute a necessidade de se tratar as virtudes
79 Existe uma polecircmica quanto agrave forma correta de se traduzir o termo que define
a caracteriacutestica que Aristoacuteteles atribui para atividade conforme a alma que
chama de felicidade no Livro I 7 ldquoteleicircanrdquo Natildeo discutiremos a questatildeo nesse
momento por isso deixaremos a termo traduzido conforme a ediccedilatildeo brasileira
mais conhecida a da coleccedilatildeo Os Pensadores de 1973 texto que apresenta
1098a14-15 da seguinte forma ldquoo bem do homem nos aparece como uma
atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de uma virtude
com a melhor e mais completardquo No original σπουδαίου δ ἀνδρὸς εὖ ταῦτα καὶ
καλῶς ἕκαστον δ εὖ κατὰ τὴν οἰκείαν ἀρετὴν ἀποτελεῖται
94
bem como ressaltaraacute seu aspecto de representante da funccedilatildeo
propriamente humana e de bem se emocionar A escolha nos parece
apropriada porque graccedilas agrave natureza natildeo racional capaz de concordar
com a razatildeo que identificamos na base das emoccedilotildees eacute possiacutevel pensar a
proposta de Aristoacuteteles acerca da melhor vida possiacutevel como resultante
do bom desempenho da funccedilatildeo humana sendo que este somente pode
acontecer com a harmonizaccedilatildeo das emoccedilotildees com o que a razatildeo
demanda sendo como veremos virtuoso
No primeiro tratado sobre a felicidade o filoacutesofo analisa o que
muitos dizem acerca da eudaiacutemōniacutea que eacute uma atividade de tipo
especiacutefico que alguns dos outros bens (externos) satildeo necessaacuterios e parte
integrante da felicidade mas outros satildeo auxiliares e uacuteteis como
instrumentos naturais A questatildeo eacute destacada como assunto tocante agrave
poliacutetica pois a principal preocupaccedilatildeo dessa ciecircncia eacute fazer com que os
cidadatildeos sejam seres de certa qualidade ou seja fazer com sejam
pessoas honestas e capazes de agir nobremente (EN I 10 1099b31) Por
isso os animais natildeo humanos natildeo satildeo chamados felizes jaacute que natildeo
podem participar desse tipo de atividade Igualmente por isso a crianccedila
natildeo pode ser feliz por ainda natildeo ser capaz desse tipo de accedilatildeo e porque a
felicidade requer uma virtude completa mas para tal completude seria
necessaacuteria a observaccedilatildeo do termo da vida Isso porque as vicissitudes
que ocorrem ao longo da existecircncia podem fazer com que um homem
proacutespero sofra males enormes em sua velhice como no caso de
Priacuteamo80 Um fim de vida desastroso impede uma pessoa de ser
considerada feliz pois ldquoA causa verdadeiramente determinante da
felicidade reside na atividade conforme agrave virtude a atividade em sentido
contraacuterio sendo a causa do estado opostordquo (EN I 10 1100b9-11)81 ou
seja natildeo eacute o acaso ou a fortuna a causa da felicidade mas a virtude que
cabe ao homem
A virtude recebe tamanha importacircncia porque em nenhuma das
outras atividades humanas haacute maior fixidez Entre as atividades
virtuosas as mais altas satildeo as mais estaacuteveis82 porque eacute no seu exerciacutecio
80 HOMERO Iliacuteada V 81 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original κύριαι δ εἰσὶν αἱ κατ ἀρετὴν ἐνέργειαι τῆς εὐδαιμονίας αἱ
δ ἐναντίαι τοῦ ἐναντίου 82As atividades da sophiacutea segundo Tricot (2010 p 78 nota 3) mas seraacute que
natildeo poderiacuteamos estender tal fixidez agraves atividades do prudente (que certamente
apresentaraacute a sophiacutea) e tambeacutem daquele que dispotildee da virtude moral Seriam
essas virtudes separaacuteveis
95
que o homem feliz gasta boa parte de sua vida e com maior
continuidade Deste modo a estabilidade procurada eacute aquela do homem
feliz ao longo de toda sua vida e por esse motivo o homem feliz se
engaja em accedilotildees e contemplaccedilotildees que satildeo conformes agrave virtude
suportando os golpes da fortuna com maior dignidade e perfeiccedilatildeo
honesto e acima de censura Frente a estas afirmaccedilotildees a definiccedilatildeo de
felicidade que parece ser a mais completa apresentada no Livro I eacute posta
em forma de questatildeo
[] que nos impede de chamar feliz o homem cuja
atividade eacute conforme a uma virtude perfeita83 e
suficientemente provida dos bens exteriores e
isso natildeo por uma duraccedilatildeo qualquer mas durante
uma vida completa Natildeo devemos acrescentar
ainda cuja vida se prosseguiraacute nas mesmas
condiccedilotildees e cujo fim estaraacute em relaccedilatildeo com o
resto da existecircncia jaacute que o futuro nos eacute oculto e
que noacutes colocamos a felicidade como um fim
como alguma coisa de absolutamente perfeita
(EN I 11 1101a14-17)84
Essa proposta leva o filoacutesofo a refletir se eacute assim qualificaremos
como venturoso (makaacuterios) o homem que entre os vivos possui e iraacute
possuir os bens necessaacuterios a esse tipo de vida mas venturoso do modo
como o homem pode secirc-lo ou seja conforme as virtudes que satildeo
proacuteprias ao homem O destaque dado a essas virtudes indica o grande
papel que tecircm na vida humana feliz e por isso doravante trataacute-las-emos
Faremos tal apreciaccedilatildeo devido ao fato de as virtudes e em especial as
morais - como poderemos ver ao longo de nossa investigaccedilatildeo e como jaacute
ressaltamos em alguns dos momentos precedentes - serem
estreitamente relacionadas agraves emoccedilotildees e necessaacuterias ao bom
83 Para Zingano (2008 p 77) a virtude perfeita proacutepria eacute aquela que faz o que
deve fazer seguindo boas razotildees (metagrave phronḗseos EE 1234 a29-30) Portanto
eacute a composiccedilatildeo entre razatildeo e virtude moral virtude dianoeacutetica e eacutetica 84Coisa semelhante a respeito da eudaiacutemōniacutea eacute proposta pela Retoacuterica como
veremos logo em seguida Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da
traduccedilatildeo francesa de Tricot (2012) no original τί οὖν κωλύει λέγειν εὐδαίμονα
τὸν κατ ἀρετὴν τελείαν ἐνεργοῦντα καὶ τοῖς ἐκτὸς ἀγαθοῖς ἱκανῶς
κεχορηγημένον μὴ τὸν τυχόντα χρόνον ἀλλὰ τέλειον βίον ἢ προσθετέον καὶ
βιωσόμενον οὕτω καὶ τελευτήσοντα κατὰ λόγον ἐπειδὴ τὸ μέλλον ἀφανὲς ἡμῖν
ἐστίν τὴν εὐδαιμονίαν δὲ τέλος καὶ τέλειον τίθεμεν πάντῃ πάντως
96
desempenho de todas as funccedilotildees aniacutemicas que compotildeem aquilo que se
entende como funccedilatildeo propriamente humana condiccedilatildeo para a
eudaiacutemōniacutea Prova do que afirmamos eacute o passo da Retoacuterica que indica a
necessidade da virtude para a vida feliz como destacaremos a seguir
Fazemos tal proposta pois como vimos e veremos consideramos
virtudes os melhores estados das faculdades da alma
Seja pois a felicidade o viver bem combinado
com a virtude ou a autossuficiecircncia na vida ou a
vida mais agradaacutevel com seguranccedila ou a pujanccedila
de bens materiais e dos corpos juntamente com a
faculdade de os conservar e usar pois
praticamente todos concordam que a felicidade eacute
uma ou vaacuterias destas coisas
Ora se tal eacute a natureza da felicidade eacute necessaacuterio
que as suas partes sejam a nobreza muitos
amigos bons amigos a riqueza bons filhos
muitos filhos uma boa velhice tambeacutem as
virtudes do corpo como a sauacutede a beleza o vigor
a estatura a forccedila para a luta a reputaccedilatildeo a
honra a boa sorte e a virtude [ou tambeacutem as suas
partes a prudecircncia a coragem a justiccedila e a
temperanccedila] Com efeito uma pessoa seria
inteiramente autossuficiente se possuiacutesse os bens
internos e externos pois fora destes natildeo haacute outros
Os bens internos satildeo os da alma e os do corpo os
externos satildeo a nobreza os amigos o dinheiro e a
honra Cremos contudo que a estes se devem
acrescentar certas capacidades e boa sorte pois
assim a vida seraacute muito mais segura (Rhet I 3
1360b14-29)85
85 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original ἔστω δὴ
εὐδαιμονία εὐπραξία μετ ἀρετῆς ἢ αὐτάρκεια ζωῆς ἢ ὁ βίος ὁ μετὰ ἀσφαλείας
ἥδιστος ἢ εὐθενία κτημάτων καὶ σωμάτων μετὰ δυνάμεως φυλακτικῆς τε καὶ
πρακτικῆς τούτων σχεδὸν γὰρ τούτων ἓν ἢ πλείω τὴν εὐδαιμονίαν
ὁμολογοῦσιν εἶναι ἅπαντες εἰ δή ἐστιν ἡ εὐδαιμονία τοιοῦτον ἀνάγκη αὐτῆς
εἶναι μέρη εὐγένειαν πολυφιλίαν χρηστοφιλίαν πλοῦτον εὐτεκνίαν
πολυτεκνίαν εὐγηρίαν ἔτι τὰς τοῦ σώματος ἀρετάς (οἷον ὑγίειαν κάλλος
ἰσχύν μέγεθος δύναμιν ἀγωνιστικήν) δόξαν τιμήν εὐτυχίαν ἀρετήν [ἢ καὶ τὰ
μέρη αὐτῆς φρόνησιν ἀνδρείαν δικαιοσύνην σωφροσύνην] οὕτω γὰρ ἂν
αὐταρκέστατός τις εἴη εἰ ὑπάρχοι αὐτῷ τά τ ἐν αὐτῷ καὶ τὰ ἐκτὸς ἀγαθά οὐ
γὰρ ἔστιν ἄλλα παρὰ ταῦτα ἔστι δ ἐν αὐτῷ μὲν τὰ περὶ ψυχὴν καὶ τὰ ἐν
97
O passo nos mostra Aristoacuteteles a discutir tanto a virtude (he
aretḗ) no singular quanto as virtudes (haigrave aretaiacute) particulares no
plural tornando-as coisas que soacute podem ser alcanccediladas por corpo e alma
em conjunto quando estatildeo na poacutelis Isso acontece porque para satisfazer
agraves exigecircncias da boa vida ou da melhor vida possiacutevel haacute ainda a
exigecircncia da capacidade racional associada e tentando conferir boa
forma agrave capacidade natildeo racional da alma responsaacutevel pelas virtudes
morais Por isso eacute indispensaacutevel agrave nossa investigaccedilatildeo tratar tambeacutem as
virtudes intelectuais e suas relaccedilotildees com a moralidade pois a funccedilatildeo
proacutepria ao homem eacute uma atividade da alma em conformidade com a
razatildeo (metagrave toucirc orthoucirc loacutegou) ou natildeo sem a razatildeo (katagrave tograven orthograven
loacutegon) Como vimos somente esse tipo de atividade ou esse conjunto
de atividades permitiria que o homem desempenhasse bem sua funccedilatildeo
do modo como o homem faz especificamente garantindo com esse bom
desempenho a felicidade devido ao bom cumprimento daquilo que
somente os humanos satildeo capazes de fazer e que entendemos como
resultado da virtude completa As virtudes todavia natildeo satildeo tomadas
somente no sentido comum de qualidades que um homem possa
apresentar mas como excelecircncia de suas capacidades Assim a
discussatildeo da virtude e das virtudes se faz necessaacuteria a quem reflete
sobre a eudaiacutemōniacutea mas obedecendo os contornos proacuteprios agrave
terminologia aristoteacutelica pois
[] felicidade eacute a boa ou bem-sucedida atividade
ou a atualizaccedilatildeo da faculdade que eacute peculiar agrave
alma humana e o vocaacutebulo grego para lsquovirtudersquo
aretḗ vem para indicar natildeo que cada mas
somente a boa atividade da alma deve ser
associada agrave felicidade portanto eacute claro que o que
importa na definiccedilatildeo de felicidade eacute a intenccedilatildeo da
palavra aretḗ a saber que significa um estado
excelente algo que exerce bem sua funccedilatildeo e
atinge os padrotildees mais elevados Este eacute um
sentido possiacutevel e comum da palavra grega aretḗ
mas o emprego no singular referindo o melhor
estado possiacutevel em qualquer campo particular eacute
ainda com efeito mais distante do emprego da
palavra no plural por meio do qual referimos as
σώματι ἔξω δὲ εὐγένεια καὶ φίλοι καὶ χρήματα καὶ τιμή ἔτι δὲ προσήκειν
οἰόμεθα δυνάμεις ὑπάρχειν καὶ τύχην οὕτω γὰρ ἀσφαλέστατος ὁ βίος
98
virtudes lsquocorriqueirasrsquo como justiccedila coragem
moderaccedilatildeo (RAPP 2010 p 408)
Se as propostas de Rapp estiverem corretas podemos pensar que
a felicidade existe graccedilas ao melhor estado possiacutevel agrave alma mas que
requer igualmente as virtudes particulares Por isso Aristoacuteteles entende
que os pensadores que identificaram a felicidade com a virtude ou com
a phroacutenēsis ou com a sophiacutea (saber teoacuterico) com uma delas algumas
delas ou todas elas acompanhadas ou natildeo de prazer e prosperidade
exterior parecem ter razatildeo ao menos em um ponto se natildeo em todos (EN
I 8 1098b20-29) O filoacutesofo igualmente pensa que acerta quem identifica
a eudaiacutemōniacutea com a virtude em geral ou com alguma virtude particular
porque a atividade virtuosa pertence agrave virtude embora seja diferente
entender o bem supremo como posse ou como uso em uma disposiccedilatildeo
ou em uma atividade A diferenccedila pousa no fato da disposiccedilatildeo poder
existir sem provocar um bom resultado quando se dorme por exemplo
mas a atividade virtuosa deve agir e agir bem pois as coisas nobres e
boas da vida soacute vecircm a quem age bem (EN 1099a1-7) Se as propostas
apresentam como virtude o que permite agir bem e o melhor estado de
uma ou de todas as capacidades da alma humana mantemos nossos
estudos no campo das questotildees aniacutemicas e por isso devemos recordar
que anteriormente entendemos que a aretḗ assim como a alma se
ldquodividerdquo umas satildeo intelectuais outras morais86 mas quanto ao caraacuteter
as virtudes satildeo morais e satildeo entendidas como disposiccedilotildees de caraacuteter
Assim eacute preciso que sejam examinadas algumas questotildees a respeito da
86 Rapp (2010 p 409) explica a relaccedilatildeo dos diferentes sentidos de virtude e
virtudes ldquoDeve estar mais evidente agora que a relaccedilatildeo entre lsquovirtudersquo
significando o excelente estado da alma e lsquovirtudesrsquo referindo os louvaacuteveis
traccedilos de personalidade admitidos correntemente e socialmente eacute um ponto
crucial em toda filosofia moral de inspiraccedilatildeo platocircnica e que eacute exatamente a esta
relaccedilatildeo que Aristoacuteteles devota sua atenccedilatildeo estrita Uma vez que eacute o primeiro
sentido de lsquovirtudersquo que estaacute em jogo no primeiro livro da EN (ie na definiccedilatildeo
de felicidade) e o uacuteltimo sentido que se torna proeminentemente no terceiro e
quarto livros estamos agora justificados em esperar que a definiccedilatildeo geral de
virtude ndash que eacute desenvolvida entre o primeiro e o terceiro livros e do qual a
doutrina do meio termo eacute um tema indispensaacutevel ndash ajudaraacute o leitor a
compreender a ligaccedilatildeo entre a excelecircncia da alma humana e as virtudes
corriqueiras tais como as conheciacuteamos antes de lidar com a filosofia moralrdquo
Diante dessas dissociaccedilotildees e associaccedilotildees podemos tomar o sentido geral de
virtude e questionar o sentido da virtude moral como meio termo que apresenta
enorme importacircncia para a tese que buscamos defender
99
virtude moral
2 A virtude moral
Pode parecer dispecircndio desnecessaacuterio de energia e tempo devido
a ser um longo e antigo debate mas neste momento entendemos ser
conveniente agrave nossa inquiriccedilatildeo questionar a natureza da virtude moral
ainda que Aristoacuteteles a defina a seu modo Lidaremos com a discussatildeo
na medida em que eacute importante auxiliar no esclarecimento quanto agraves
questotildees que propomos acerca das emoccedilotildees bem como de sua relaccedilatildeo
com a racionalidade A questatildeo se impotildee porque haacute comentaacuterios
recentes sobre a eacutetica de Aristoacuteteles que consideram improacutepria a
proposta da virtude como mediania87 nas emoccedilotildees e nas accedilotildees pois
entre outras falhas da doutrina seria relativa a cada agente e
circunstacircncia sendo inuacutetil como paracircmetro moral Seria tambeacutem
considerada questatildeo paradoxal pois o filoacutesofo recomenda que a medida
seja ldquorelativa a noacutesrdquo ao mesmo tempo em que exemplifica tal medida
com quantidades contaacuteveis Apesar de natildeo concordarmos com essas
interpretaccedilotildees decidimos tratar o assunto porque remete diretamente agrave
proposta das virtudes morais como medida na emoccedilatildeo pelo fato de o
filoacutesofo natildeo admitir a eudaiacutemōniacutea sem virtude moral e por algumas
questotildees intrigantes que surgem ao longo do passo da EN chamado por
Zingano Tratado da virtude moral (EN I 13-III 8) Com isso
buscaremos reavaliar a definiccedilatildeo de virtude moral como boa medida nas
accedilotildees e nas emoccedilotildees tentando evitar o aspecto relativista que tantas
vezes foi conferido agrave doutrina
A partir do que jaacute foi exposto percebemos que aleacutem da doutrina
da boa medida temos Aristoacuteteles a definir o tipo de virtude ora estudado
como uma espeacutecie de excelecircncia moral mas define-a tambeacutem como
uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha deliberada em II 6 e como virtude na
qual eacute possiacutevel que a razatildeo opere Aristoacuteteles resume a aretḗ ethikḗ do
seguinte modo ldquoDiscutimos em geral e em grandes linhas a respeito das
virtudes o gecircnero que satildeo mediedades que satildeo disposiccedilotildees por si
87Hurtshouse em seu A doutrina central da mediania em Aristoacuteteles afirma-se
ceacutetica quanto agrave utilidade da teoria em questatildeo Sorabji (2002 p 7-194-195)
embora aponte os estoicos alguns preacute-socraacuteticos e acadecircmicos como
propositores de uma perspectiva negativa quanto agrave teoria da mediedade afirma
que tal doutrina em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees natildeo eacute banal tendo grande papel social
Assim podemos perceber que as criacuteticas agrave doutrina natildeo satildeo recentes Mesmo
Kant jaacute havia dado sua opiniatildeo negativa quanto agrave proposta
100
mesmas de praticar aqueles atos pelos quais se engendram que estatildeo em
nosso poder e satildeo voluntaacuterias e que satildeo como a reta razatildeo ordenardquo (EN
III 8 1114b28-30) O estudo da phroacutenēsis no Livro VI da EN seria um
complemento agraves possibilidades de virtude e da vida boa moralmente
que soacute seriam completas juntamente com a virtude intelectual da
prudecircncia Adiantando o assunto deste uacuteltimo Livro mencionado e
dando coesatildeo agrave obra em EN II o filoacutesofo obteve a seguinte definiccedilatildeo de
virtude moral
A virtude eacute portanto uma disposiccedilatildeo de escolher
por deliberaccedilatildeo consistindo em uma mediedade
relativa a noacutes disposiccedilatildeo delimitada pela razatildeo
isto eacute como a delimitaria o prudente Eacute uma
mediedade entre dois males o mal por excesso e o
mal por falta Ainda pelo fato de as disposiccedilotildees
faltarem umas outras excederem no que se deve
tanto nas emoccedilotildees como nas accedilotildees a virtude
descobre e toma o meio termo Por isso por
essecircncia e pela foacutermula que exprime a quumlidade a
virtude eacute uma mediedade mas segundo o melhor
eacute o bem eacute um aacutepice (EN II 5 1106b35 II 6
1107a1-8)88
Essa investigaccedilatildeo acerca da natureza da virtude moral que
comeccedila em EN I eacute o foco de nossa investigaccedilatildeo nesse ponto Por isso
nosso estudo nesse momento se dedicaraacute a entender melhor a virtude
considerada desde II 4 como capacidade de se portar bem frente agraves
emoccedilotildees Buscaremos tambeacutem elaborar um breve estudo sobre a virtude
intelectual sem a qual natildeo eacute possiacutevel agir bem quanto agraves mesmas
emoccedilotildees O bom comportamento frente agraves emoccedilotildees eacute imprescindiacutevel agraves
virtudes morais particulares mas pensamos tambeacutem agravequela concepccedilatildeo
do que seja a virtude mais completa O passo da EN citado haacute pouco e
que daacute destaque agrave virtude moral nos leva a entendecirc-la como melhor
estado possiacutevel agrave capacidade natildeo racional da alma humana reforccedilando a
88 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original Ἔστιν ἄρα ἡ ἀρετὴ ἕξις
προαιρετική ἐν μεσότητι οὖσα τῇ πρὸς ἡμᾶς ὡρισμένῃ λόγῳ καὶ ᾧ ἂν ὁ
φρόνιμος ὁρίσειεν μεσότης δὲ δύο κακιῶν τῆς μὲν καθ ὑπερβολὴν τῆς δὲ κατ
ἔλλειψιν καὶ ἔτι τῷ τὰς μὲν ἐλλείπειν τὰς δ ὑπερβάλλειν τοῦ δέοντος ἔν τε τοῖς
πάθεσι καὶ ἐν ταῖς πράξεσι τὴν δ ἀρετὴν τὸ μέσον καὶ εὑρίσκειν καὶ αἱρεῖσθαι
διὸ κατὰ μὲν τὴν οὐσίαν καὶ τὸν λόγον τὸν τὸ τί ἦν εἶναι λέγοντα μεσότης ἐστὶν
ἡ ἀρετή κατὰ δὲ τὸ ἄριστον καὶ τὸ εὖ ἀκρότης
101
proposta da funccedilatildeo proacutepria ao homem como resultado da associaccedilatildeo das
melhores condiccedilotildees das duas capacidades da alma condiccedilatildeo excelente
que consideramos possibilitadora da eudaiacutemōniacutea A questatildeo no entanto
eacute entender como isso eacute possiacutevel Rapp bem observa (2010 p 410) que eacute
preciso esclarecer de que modo as virtudes podem ser entendidas como
melhor estado de cada capacidade da alma humana
No caso das virtudes intelectuais o autor pensa que o
entendimento seja faacutecil jaacute que manifestam o melhor estado da
capacidade racional sendo que tal funccedilatildeo estaacute em bom estado quando se
tem certas capacidades racionais ou intelectuais e se realiza bem as
funccedilotildees que lhes cabem Natildeo eacute claro contudo o modo como eacute possiacutevel
definir o bom estado da capacidade natildeo racional embora tal definiccedilatildeo
seja crucial para nossa pesquisa Tendo em mira esta duacutevida podemos
entatildeo questionar qual eacute o criteacuterio para o bom funcionamento da
capacidade natildeo racional desiderativa Sendo esta capacidade apta a
ouvir e obedecer agrave razatildeo seu bom estado eacute perceptiacutevel se ela realmente
concorda com as propostas racionais ou se reage como a razatildeo pede
mas
lsquoObedecer ao que a razatildeo demandarsquo pode
significar duas coisas bem diferentes que a
pessoa controlada (enkrates) faz o que a razatildeo
demanda enquanto existem impulsos opostos
incitando-a a agir de outra maneira ou a pessoa
virtuosa faz o que pede a razatildeo poreacutem sem ter
impulsos contraacuterios ou concorrentes Estes satildeo
dois niacuteveis de obediecircncia visto que Aristoacuteteles diz
que no uacuteltimo caso a parte natildeo-racional da alma
eacute muito mais facilmente obediente
(euekoacutemeteron) e tudo em uma tal pessoa eacute
consoante agrave razatildeo (homophoacutenei tocirci loacutegoi) (RAPP
2010 p 410-41)89
A partir dessa explicaccedilatildeo surge nova questatildeo Quando a
capacidade natildeo racional concorda com a racional Pensamos que nossa
questatildeo tambeacutem caiba aqui o que pode facilitar a concordacircncia entre
racional e natildeo racional para que as emoccedilotildees sejam educadas e para que a vida feliz seja possiacutevel A resposta para essas questotildees nos permitiraacute
entender por que as virtudes eacuteticas manifestam o bom estado da
capacidade natildeo racional embora o Livro I da EN natildeo solucione a
89 Igualmente em EN I 13 1102b27
102
indagaccedilatildeo A resposta buscada eacute deixada a cargo do Livro II que em seu
fim com a exposiccedilatildeo de uma espeacutecie de resumo dessa discussatildeo
apresenta um elemento definidor para a consonacircncia da capacidade natildeo
racional com a reta razatildeo Entatildeo esse Livro deve explicar como as
virtudes eacuteticas podem ser o bom estado da capacidade natildeo racional Mas
seraacute que tal resposta viraacute com a doutrina do meio termo Rapp entende
que esta doutrina ao menos contribuiraacute para a soluccedilatildeo do problema e noacutes
concordamos com esse entendimento Por isso julgamos ser
interessante discutir a validade e a aplicabilidade da teoria da boa
medida jaacute que Aristoacuteteles considera virtude moral como boa medida nas
emoccedilotildees Apesar das possiacuteveis falhas e das objeccedilotildees que tecircm sido
apresentadas ao longo dos tempos agrave doutrina buscaremos uma
abordagem sucinta e natildeo exaustiva do assunto mas na medida em que
reforce a importacircncia de tal teoria no que diz respeito agrave relaccedilatildeo da
virtude moral com a boa medida nas emoccedilotildees
2a) Caraacuteter tautoloacutegico ou trivial da doutrina da virtude moral como
mediania
A doutrina da boa medida como eacute chamada por estudiosos como
Rapp (2010 p 405 et seq) e Urmson (1984 p 157 et seq) eacute tomada
por alguns como trivial ou mesmo tautoloacutegica Um dos motivos para
esse tipo de acusaccedilatildeo agrave teoria eacute o fato de ela propor que a medida seja
lsquorelativa a noacutesrsquo afirmaccedilatildeo que daria agrave proposta do meio termo um tom
relativista ou subjetivo gerando duacutevidas sobre sua utilidade e
aplicabilidade como padratildeo para as accedilotildees moralmente boas A criacutetica
tambeacutem eacute feita porque parece pretender quantificar o que Aristoacuteteles
defende ser em muitos passos ldquorelativo a noacutesrdquo e que tem como
paracircmetro o homem bom suas accedilotildees o bem e as circunstacircncias90
90 Kant por exemplo se posiciona contrariamente agrave doutrina da boa medida
porque entendeu o princiacutepio como falso Pensava que natildeo se pode buscar
diferenccedilas entre virtude e viacutecio no grau segundo o qual algumas maacuteximas satildeo
observadas As diferenccedilas deveriam ser buscadas na qualidade especiacutefica de tais
maacuteximas Seria falso portanto propor a virtude como meio termo entre dois
viacutecios pois cada um deles teria sua proacutepria maacutexima e por isso um contradiria o
outro impedindo a doutrina de ser tomada como proposta universal que guiasse
a accedilatildeo humana A postura eacutetica kantiana contraacuteria as propostas aristoteacutelicas
sobre a virtude moral como boa medida eacute posta agrave prova de modo interessante e
favoraacutevel a Aristoacuteteles por Anscombe em seu Modern moral philosophy Por
isso quem deseja reforccedilar a validade das teorias de Aristoacuteteles em detrimento a
propostas como as de Kant como eacute o nosso caso deve ao menos mencionar o
103
Pensamentos como estes acusariam a mencionada doutrina de um
desacordo interno e como propusemos levaram filoacutesofos e
comentadores a um longo debate sobre o passo em que a virtude moral
aparece descrita como mediania entre excesso e falta o Livro II 6 da
EN
Aleacutem disso as objeccedilotildees atingem diretamente as propostas do
filoacutesofo a respeito do comportamento que o virtuoso - ou o homem de
um modo geral - deve apresentar diante das emoccedilotildees Portanto
julgamos ser conveniente discutir um pouco a questatildeo para tentar
desfazer esses embaraccedilos e na medida em que nos auxilie a por emoccedilatildeo
e razatildeo em acordo Para tanto defenderemos que a doutrina apresenta
conjuntamente e sem complicaccedilotildees aspectos quantitativos qualitativos
e avaliativos Buscaremos fazer isso pois pensamos ser a melhor forma
de entender a virtude moral e sua exigecircncia de boa medida raciocinada
quanto agraves inevitaacuteveis emoccedilotildees Entendemos que o aspecto avaliativo da
doutrina natildeo eacute invalidado pela proposta conceitual atribuiacuteda agrave mesma
porque a capacidade de avaliaccedilatildeo do entorno permite ao virtuoso ser
bom juiz91
artigo da filoacutesofa que abre espaccedilo na contemporaneidade para uma eacutetica das
virtudes com base em Aristoacuteteles 91 Rapp explica que haacute duas possibilidades interpretativas para a doutrina da boa
medida e que podemos apresentar aqui com os trechos citados Por conseguinte
a doutrina tem aspecto conceitual que pode ser expresso do seguinte modo ser
muito ou muito pouco levam a esquecer a quantia correta Para o autor esse eacute
um sentido analiacutetico da doutrina que eacute importante quando em EN 2 VI e EE 2
III define-se a virtude contudo esse caraacuteter conceitual se torna pouco claro com
a exposiccedilatildeo na EN de uma opccedilatildeo empiacuterica da doutrina em questatildeo Em 2 II eacute
afirmado que aquilo que se discute pode ser destruiacutedo por excesso ou falta mas
preservado pelo meio termo e Aristoacuteteles daacute o exemplo da forccedila fiacutesica
conservada ou destruiacuteda por treinamento (EN 1104a11-13) Nesse ponto
excesso deficiecircncia e meio termo satildeo entendidos como o que gera preserva ou
destroacutei o que ultrapassa segundo o comentador a questatildeo conceitual pois o
filoacutesofo descreve tal fato como observaacutevel (horocircmen)
As duas possibilidades da doutrina analiacutetica e empiacuterica dadas pelo livro II
induzem em erro pensa Rapp e pensa tambeacutem que por isso haacute comentaacuterios
que entendem que tal doutrina oscile entre um modelo analiacutetico e alguma outra
coisa ldquoEntretanto haacute algumas evidecircncias de que a versatildeo empiacuterica natildeo se
equipara agrave versatildeo analiacutetica (i) a versatildeo empiacuterica em EN 22 natildeo desenvolve a
doutrina de modo completo que deveria pelo menos incluir o conceito de lsquomeio
termo para noacutesrsquo etc (ii) EE e EN concordam amplamente na definiccedilatildeo de
virtude eacutetica e na doutrina do meio termo que eacute um elemento da discussatildeo mas
a EE oferece apenas a versatildeo conceitual e natildeo inclui um equivalente da variaccedilatildeo
104
A desavenccedila quanto agrave teoria da boa medida pode ter como iniacutecio
afirmaccedilotildees feitas por Aristoacuteteles propondo que os discursos sobre
questotildees praacuteticas satildeo em linhas gerais e natildeo exatas Isso significaria que
quando se trata das accedilotildees particulares natildeo haacute fixidez Se natildeo haacute fixidez
nos discursos sobre as coisas gerais desse tipo muito menos haveraacute
quando se tratar das coisas particulares92 O filoacutesofo entende que por
isso os agentes devem apreciar o momento da accedilatildeo (EN II 2 1104a1-9)
embora pense que mesmo assim natildeo devamos nos furtar a discutir tais
assuntos pois em eacutetica ou seja para o filoacutesofo moral interessam
sobremaneira as accedilotildees particulares Por conseguinte Aristoacuteteles comeccedila
o tratamento da virtude como boa medida afirmando que as coisas ora
estudadas satildeo naturalmente corrompidas por excesso e falta mas que a
mediania eacute aliada das virtudes Ao exemplificar seu pensamento
contudo parece se referir a quantidades (EN 1104a13-17) como no caso
que segue
Foi dito satisfatoriamente que a virtude moral eacute
empiacutericardquo (RAPP 2010 p 414-415) A partir disso o autor conclui que natildeo eacute
preciso recorrer agraves referecircncias empiacutericas para defender a doutrina da boa
medida 92 Zingano faz consideraccedilotildees muito interessantes a respeito desse trecho e do
que ele realmente pretende dizer Apoia-se para tanto na proposta de Burnet
que sugere voltar aos manuscritos para a leitura e interpretaccedilatildeo correta do passo
(onde se poderia ler pacircs ho perigrave tocircn prakteacuteon loacutegos diferentemente do que se lecirc
nas ediccedilotildees modernas como a de Bekker pacircs ho perigrave tocircn praktocircn loacutegos) Com
isso entende o seguinte sobre o passo ldquoSegundo a versatildeo dos manuscritos todo
discurso de questotildees praacuteticas isto eacute sobre o que devemos fazer em tal situaccedilatildeo
deve ser dado em grandes linhas na versatildeo dos editores modernos eacute antes a
imprecisatildeo do discurso sobre questotildees praacuteticas que eacute posta em realce isto eacute do
discurso que porta sobre o que satildeo as accedilotildees e questotildees similares Aristoacuteteles
poreacutem como observa Burnet natildeo estaacute falando de como fornecer regras sobre o
que fazer Como Aristoacuteteles diraacute a seguir os agentes devem sempre buscar a
soluccedilatildeo segundo as circunstacircncias isto eacute uma consideraccedilatildeo que faz o filoacutesofo
moral e tal consideraccedilatildeo estaacute expressa no registro do que sempre ocorre No
campo praacutetico o que deve ser feito por ser sempre circunstancial varia
enormemente o que ocasiona a referida perda de exatidatildeo [] Poreacutem o ponto
da inexatidatildeo e expressatildeo unicamente em linhas gerais vale para as decisotildees
praacuteticas aquelas que toma o prudente o que o filoacutesofo faz a teoria moral natildeo
estaacute aqui sob anaacutelise (quando Aristoacuteteles define o que eacute a felicidade ele natildeo
pensa estar fornecendo uma proposiccedilatildeo que eacute vaacutelida somente nas mais das
vezes)rdquo (ZINGANO 2008 p 104-105) Assim o discurso moral seria
impreciso natildeo por falha cognitiva nossa mas por seu objeto impreciso a accedilatildeo
105
um meio termo como o eacute que eacute um meio termo
nas emoccedilotildees e nas accedilotildees Por isso eacute aacuterduo ser
bom pois eacute aacuterduo determinar o meio termo em
cada situaccedilatildeo ndash por exemplo determinar o meio
de um ciacuterculo natildeo eacute para qualquer um mas para
quem sabe assim tambeacutem eacute para qualquer um e eacute
faacutecil encolerizar-se dar ou gastar dinheiro mas
natildeo eacute para qualquer um nem eacute faacutecil o determinar a
quem quanto quando em vista do que e como
fazer Por esta razatildeo o bem agir eacute raro louvaacutevel e
belo Por isso quem mira no meio termo deve
primeiramente se apartar do que eacute mais contraacuterio
[] Entendo por meio termo da coisa o que dista
igualmente de cada um dos extremos que
justamente eacute uacutenico e mesmo para todos os casos
por meio termo relativo a noacutes o que natildeo excede
nem falta mas isso natildeo eacute uacutenico nem o mesmo
para todos os casos (EN II 9 1109a20-30)93
Uma argumentaccedilatildeo e uma exemplificaccedilatildeo desse tipo abririam
espaccedilo agraves duacutevidas acima mencionadas e tambeacutem agraves duacutevidas a respeito
das reais intenccedilotildees de Aristoacuteteles ao propor a teoria da mediania
Questatildeo que aparece com a afirmaccedilatildeo de que em tudo que eacute contiacutenuo e
divisiacutevel se pode tomar mais menos e igual quantidade relativamente a
noacutes ou agrave coisa (EN II 5 1106a24-27) O igual eacute considerado meio termo
entre excesso e falta94 podendo apresentar um conflito com a ideia de
que a boa medida nas emoccedilotildees deva ser relativa a noacutes
Para destacar o problema podemos tomar a afirmaccedilatildeo que a
virtude moral estaacute relacionada com accedilotildees e emoccedilotildees (praacutexeis kaigrave paacutethē)
93 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original Ὅτι μὲν οὖν ἐστὶν ἡ ἀρετὴ ἡ ἠθικὴ
μεσότης καὶ πῶς καὶ ὅτι μεσότης δύο κακιῶν τῆς ὲν καθ ὑπερβολὴν τῆς δὲ
κατ ἔλλειψιν καὶ ὅτι τοιαύτη ἐστὶ διὰ τὸ στοχαστικὴ τοῦ μέσου εἶναι τοῦ ἐν
τοῖς πάθεσι καὶ ἐν ταῖς πράξεσιν ἱκανῶς εἴρηται διὸ καὶ ἔργον ἐστὶ σπουδαῖον
εἶναι ἐν ἑκάστῳ γὰρ τὸ μέσον λαβεῖν ἔργον οἷον κύκλου τὸ μέσον οὐ παντὸς
ἀλλὰ τοῦ εἰδότος οὕτω δὲ καὶ τὸ μὲν ὀργισθῆναι παντὸς καὶ ῥᾴδιον καὶ τὸ
οῦναι ἀργύριον καὶ δαπανῆσαι τὸ δ ᾧ καὶ ὅσον καὶ ὅτε καὶ οὗ ἕνεκα καὶ ὥς
οὐκέτι παντὸς οὐδὲ ῥᾴδιον διόπερ τὸ εὖ καὶ σπάνιον καὶ ἐπαινετὸν καὶ καλόν
διὸ δεῖ τὸν στοχαζόμενον τοῦ μέσου πρῶτον μὲν ἀποχωρεῖν τοῦ μᾶλλον
ἐναντίου [] τὸ μὲν ἄρα τοσοῦτο δηλοῖ ὅτι ἡ μέση ἕξις ἐν πᾶσιν ἐπαινετή
ἀποκλίνειν δὲ δεῖ ὁτὲ μὲν ἐπὶ τὴν ὑπερβολὴν ὁτὲ δ ἐπὶ τὴν ἔλλειψινοὕτω γὰρ
ῥᾷστα τοῦ μέσου καὶ τοῦ εὖ τευξόμεθα 93 Idem τὸ δ ἴσον καὶ ταῦτα ἢ κατ αὐτὸ τὸ πρᾶγμα ἢ πρὸς ἡμᾶς
106
pois estas podem admitir excesso ou falta ou meio termo sendo
possiacutevel por exemplo temer muito ou pouco ou como conveacutem Essa
proposta parece ser referente agrave quantidade de emoccedilatildeo a ser sentida mas
que natildeo eacute a uacutenica delimitaccedilatildeo da boa medida Aristoacuteteles parece
estabelecer aleacutem disso certos paracircmetros para se emocionar
adequadamente pois para que haja a virtude eacute preciso sentir emoccedilotildees
quando com o quecirc e com quem se deve etc o mesmo sendo vaacutelido
para as accedilotildees impedindo uma interpretaccedilatildeo meramente quantitativa da
boa medida As questotildees que se impotildeem frente a tal proposiccedilatildeo satildeo as
seguintes (1) Como interpretar a doutrina da boa medida quantitativa
ou qualitativamente (2) Como aplicar a proposta da quantia certa agraves
accedilotildees (3) A doutrina eacute tautoloacutegica e trivial Temos portanto trecircs
questotildees em matildeos e a resolver antes de aceitar que para a vida feliz seja
preciso que se decirc boa medida agraves emoccedilotildees
A primeira questatildeo que devemos responder nos apresenta a boa
medida como quantidade certa de emoccedilatildeo sentida e accedilatildeo praticada
Devemos entender como conciliar a ideia de boa medida que estaacute entre
dois extremos com a proposta de que a virtude natildeo eacute meacutedia aritmeacutetica
Questatildeo a ser discutida pois o proacuteprio filoacutesofo admite que em certas
disposiccedilotildees a virtude moral se aproxima mais de um dos viacutecios que de
outros como percebemos a partir dos exemplos quantificadores Com
isso agraves vezes os extremos estatildeo mais distantes uns dos outros que do
meio este uacuteltimo podendo apresentar mais semelhanccedila com um dos
contraacuterios por exemplo a covardia eacute mais oposta agrave coragem que a
temeridade Outro exemplo eacute que por tendermos mais aos prazeres que
agrave moderaccedilatildeo somos mais propensos agrave intemperanccedila que agrave temperanccedila e
por isso os extremos aos quais tendemos mais satildeo mais contraacuterios de
seus contraacuterios sendo a intemperanccedila mais contraacuteria agrave temperanccedila (EN
II 6 1107a20 et seq) Todas essas afirmaccedilotildees natildeo desfazem o incocircmodo
que se sente ao somar esse tipo de distinccedilatildeo do que seja a virtude aos
exemplos aritmeacuteticos que lhes seguem A observaccedilatildeo que nas accedilotildees e
emoccedilotildees excessos e faltas satildeo censurados enquanto o meio termo eacute
digno de louvor sendo que para o filoacutesofo as marcas da virtude satildeo o
acerto e digno de louvor intensifica a duacutevida
Quem teme e foge de tudo e nada suporta torna-se
covarde quem em geral nada teme mas tudo
enfrenta torna-se temeraacuterio [] a temperanccedila e a
coragem entatildeo satildeo destruiacutedas pelo excesso e pela
falta mas preservadas pela mediedade [] Assim
tambeacutem acontece com as virtudes do abster-se
107
dos prazeres tornamo-nos temperantes tornados
temperantes somos os mais capazes de abster-nos
deles Igualmente com a coragem habituados a
desprezar tornamo-nos corajosos tornados
corajosos seremos os mais capazes de suportar
coisas temiacuteveis (EN II 2 1104a20-35 1104b1-3)95
A virtude eacute entendida como o que visa o meio termo mas acertar
esse meio soacute acontece de um modo embora errar seja possiacutevel de vaacuterias
formas Diante dessas consideraccedilotildees destacam-se tambeacutem as marcas do
viacutecio o erro o excesso e a falta todas aparentemente relacionadas agraves
quantidades de accedilotildees e emoccedilotildees praticadas e sentidas
Assim da primeira questatildeo viria ainda o segundo problema
enquadrar a teoria do mais do menos e do mesmo tanto agrave forma de agir
Seria relativamente faacutecil entender como eacute possiacutevel exigir medidas
quantitativas em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees poreacutem determinar quantidades
aplicaacuteveis aos modos de agir eticamente natildeo seria tatildeo simples
Aristoacuteteles fala de qualificadores determinantes das accedilotildees conforme agraves
circunstacircncias mas seus exemplos praacuteticos natildeo se aplicam exatamente
agraves questotildees eacuteticas reforccedilando o tom problemaacutetico das propostas nesse
sentido
Temos que encarar ainda outra questatildeo inquietante a terceira
que diz respeito agrave trivialidade da doutrina devido agrave inexatidatildeo e
particularidade do assunto Caso expresso tambeacutem ao se afirmar que um
dos extremos induz mais ao erro que o outro Por isso como eacute difiacutecil
acertar o meio seria preferiacutevel tomar entre os extremos aquele que eacute o
mal menor cabendo ao agente decidir o que fazer em cada situaccedilatildeo
Deste modo eacute preciso prestar atenccedilatildeo aos erros aos quais se tem
propensatildeo sendo isto perceptiacutevel pelo prazer e pela dor que o agente
sente com o que faz (EN I 1 1109b4) O filoacutesofo sugere que o agente se
encaminhe para o lado oposto ao mais apraziacutevel para se afastar o
maacuteximo do erro pois natildeo eacute bom juiz quanto ao agradaacutevel e ao prazer
Ao se afastar do prazer corre menos riscos de errar e eacute mais propenso a
95 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ὅ τε γὰρ πάντα φεύγων καὶ
φοβούμενος καὶ μηδὲν ὑπομένων δειλὸς γίνεται ὅ τε μηδὲν ὅλως φοβούμενος
[] φθείρεται δὴ σωφροσύνη καὶ ἡ ἀνδρεία ὑπὸ τῆς ὑπερβολῆς καὶ τῆς ἐλλείψεως ὑπὸ δὲ τῆς μεσότητος σῴζεται [] οὕτω δ ἔχει καὶ ἐπὶ τῶν
ἀρετῶν ἔκ τε γὰρ τοῦ ἀπέχεσθαι τῶν ἡδονῶν γινόμεθα σώφρονες καὶ
γενόμενοι μάλιστα δυνάμεθα ἀπέχεσθαι αὐτῶν ὁμοίως δὲ καὶ ἐπὶ τῆς
ἀνδρείας ἐθιζόμενοι γὰρ καταφρονεῖν τῶν φοβερῶν καὶ ὑπομένειν αὐτὰ
γινόμεθα ἀνδρεῖοι καὶ γενόμενοι μάλιστα δυνησόμεθα ὑπομένειν τὰ φοβερά
108
atingir o meio termo Tarefa que natildeo eacute faacutecil de ser cumprida pois se
trata de casos particulares e das sensaccedilotildees mateacuteria da discriminaccedilatildeo
(EN II 9 1109b23) Em todos os casos a postura meacutedia eacute louvaacutevel mas
certas vezes se deve tender para um dos extremos a fim de atingir mais
facilmente o meio termo ou o bem explicaccedilatildeo que novamente natildeo alivia
nossas duacutevidas Essas propostas de Aristoacuteteles que afastam a accedilatildeo
correta moralmente do meio termo como meacutedia aritmeacutetica igualmente
levam a duvidar da possibilidade de entender como se pode afirmar que
as accedilotildees soacute seriam viaacuteveis eticamente se seguissem a doutrina da
mediania
A soluccedilatildeo que parece interessante agraves questotildees (1) e (3) vem com
as consideraccedilotildees de Rapp (2010 p 414 et seq) O autor entende e
justifica a viabilidade da doutrina do meio termo caso interpretada
conceitualmente ou seja como delimitadora da bondade ou retidatildeo das
disposiccedilotildees que concordam com as sugestotildees da capacidade racional
Segundo tal proposta natildeo confiariacuteamos totalmente a validaccedilatildeo da teoria
da boa medida a exemplos empiacutericos como aqueles que destacamos
acima e que satildeo causadores da confusatildeo que ora apresentamos Ao
compreender deste modo seria possiacutevel salvar a credibilidade da
doutrina por pensar que natildeo interpretariacuteamos o meio termo apenas
quantitativamente O que fariacuteamos seria tomar como possibilidade
entender a proposta de Aristoacuteteles como simultaneamente quantitativa
e qualitativa sem anular uma ou outra postura Temos ainda a questatildeo
(2) que nos leva a pensar a teoria da boa medida como uacutetil agrave vida moral
por ser aplicaacutevel agraves accedilotildees concretas Podemos comeccedilar a refletir sobre o
assunto e a buscar soluccedilatildeo para ele a partir da definiccedilatildeo da virtude moral
como mediania que tem iniacutecio juntamente com aquela lsquodefiniccedilatildeorsquo de
emoccedilatildeo entendendo as virtudes como
[] disposiccedilotildees [] em funccedilatildeo das quais nos
portamos bem ou mal com relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees
por exemplo com relaccedilatildeo ao encolerizar-se se
nos encolerizamos forte ou fracamente portamo-
nos mal se moderadamente bem e de modo
semelhante com relaccedilatildeo agraves outras emoccedilotildees (EN II
4 1105b25-28)96
A forma como um agente se comporta em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees
96 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἕξεις [] καθ ἃς πρὸς τὰ πάθη
ἔχομεν εὖ ἢ κακῶς οἷον πρὸς τὸ ὀργισθῆναι εἰ μὲν σφοδρῶς ἢ ἀνειμένως
κακῶς ἔχομεν εἰ δὲ μέσως εὖ ὁμοίως δὲ καὶ πρὸς τἆλλα
109
que sente embora possa sugerir accedilatildeo particular determina politicamente
a vida pois tais accedilotildees satildeo cometidas na poacutelis e para Aristoacuteteles as
virtudes morais eram percebidas por elogios dispensados a um cidadatildeo
Uma pessoa era considerada virtuosa ou viciosa quando elogiada ou
censurada pela forma como - ou pela intensidade com que - sentia as
emoccedilotildees embora natildeo se teccedila elogios ou censuras em razatildeo das
emoccedilotildees As pessoas natildeo recebem aprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo da
comunidade por sentirem medo excessivo ou fora de hora por exemplo
pois podem natildeo demonstrar tal medo por meio de gestos accedilotildees e
palavras Sentir temor em excesso natildeo eacute motivo de louvor ou censura
mas a forma como cada cidadatildeo apresenta tais emoccedilotildees agrave sua
comunidade eacute motivo para tanto Por isso Aristoacuteteles afirma que natildeo se
elogia ou censura quem teme mas quem teme de certo modo (EN II 4
1106a1) porque a pessoa sente medo sem escolher deliberadamente
mas as virtudes satildeo escolhas deliberadas ou natildeo acontecem sem escolha
desse tipo Emocionar-se e escolher deliberadamente contudo devem
ser fruto do haacutebito e da aprendizagem
Por isso as virtudes morais foram tratadas como disposiccedilotildees que
levam a agir sem excesso ou falta relativamente agraves emoccedilotildees e agraves accedilotildees e
que podem ser habituadas Justamente por essa relaccedilatildeo de proximidade
entre emoccedilotildees e accedilotildees na eacutetica eacute que se pode tambeacutem buscar uma
resposta para questatildeo (2) a saber como estender a boa medida agraves accedilotildees
para que estas sejam boas As accedilotildees podem ser tratadas desse modo
como explica Zingano por sua intimidade com as emoccedilotildees Ao se
regular as emoccedilotildees regular-se-ia tambeacutem as atividades e accedilotildees a estas
associadas ldquoAs accedilotildees sujeitam-se assim agrave anaacutelise do excesso falta ou
justo meio relativos agraves emoccedilotildees que exprimem encolerizar-se em
demasia ou em relaccedilatildeo a quem natildeo se deve eacute um excesso emotivo que
coloca a accedilatildeo fora do compasso da virtuderdquo (ZINGANO 2008 p 127)
Interpretaccedilatildeo que favorece a doutrina do meio termo
Tal proposta nos faz pensar que satildeo postos paracircmetros para a boa
accedilatildeo relacionada agraves emoccedilotildees Seria preciso se emocionar como jaacute
repetimos algumas vezes em relaccedilatildeo a quem eacute devido adequadamente e
no momento apropriado Isso contudo natildeo favoreceria somente uma
interpretaccedilatildeo qualitativa da doutrina da boa medida Parece que natildeo se
admitirmos com Rapp a ideia de que em relaccedilatildeo a cada virtude haacute
escalas contiacutenuas que vatildeo do agir lsquomais em excessorsquo ao lsquoagir mais
deficientementersquo mas sem que por isso seja necessaacuterio colocar a boa
medida absolutamente no centro de cada escala Com isso estaria salva
a possibilidade quantificadora da doutrina embora natildeo seja uma
determinaccedilatildeo de uma medida exata natural ou absoluta A proposta
110
qualificadora igualmente se conservaria jaacute que a observaccedilatildeo do
momento da accedilatildeo e dos demais paracircmetros mencionados (ou natildeo) nos
levaria a compreender como eacute possiacutevel tomar o meio sem
necessariamente exigir uma meacutedia aritmeacutetica para tanto bem como sem
incorrer em relativismo
Assim apoacutes as propostas sobre as questotildees levantadas podemos
entender que a doutrina pode ser tomada como conceitual ou natildeo
empiacuterica natildeo sendo necessaacuterio que entendamos os exemplos
matemaacuteticos e a explicaccedilatildeo do lsquomeio termo relativo a noacutesrsquo como
contraditoacuterios mesmo porque satildeo propostas que aparecem no mesmo
passo da EN (EN II 9 1109a19-30) Deste modo eacute possiacutevel entender que
o filoacutesofo descreve toda virtude como o bom estado que leva ao
desempenho da funccedilatildeo proacutepria agravequilo de que ela eacute virtude O exemplo
dado por Aristoacuteteles eacute que haacute tocadores de ciacutetara mas os tocadores
virtuosos satildeo os bons tocadores de ciacutetara entendimento que igualmente
se aplica ao bom agente (EN II 5 1106b20-35 II 6 1107a1-6) O homem
virtuoso eacute aquele que busca o bem que lhe eacute natural a eudaiacutemōniacutea e
busca cientemente e de acordo com os paracircmetros e quantidades
adequados na emoccedilatildeo e na accedilatildeo Portanto esse homem e o bem que ele
procura satildeo os padrotildees da bondade e da virtude a serem seguidos
impedindo que a doutrina da boa medida soe como totalmente relativa
aos agentes ou agraves circunstacircncias
Em suma ao longo das discussotildees acima propostas vimos a
virtude moral ser descrita como disposiccedilatildeo de caraacuteter em acordo com a
deliberaccedilatildeo com a escolha deliberada e com a prudecircncia ou seja
conforme o que a razatildeo praacutetica propotildee A virtude moral em essecircncia eacute
boa medida quanto agrave forma como se age e ao modo como se emociona
(EN II 9 1109a20-24) A teoria eacute viaacutevel porque podemos tomar o
esquema do excessofaltaboa medida em termos conceituais natildeo
descartando mas pondo lado a lado seus melhores aspectos
quantitativos e qualitativos aplicando a boa medida tambeacutem agraves accedilotildees
Esses aspectos igualmente se aplicam agraves accedilotildees porque haacute uma relaccedilatildeo
indispensaacutevel entre accedilatildeo e emoccedilatildeo sendo tal relaccedilatildeo o motivo de
podermos propor a teoria da boa medida como qualitativa e ao mesmo
tempo quantitativa sem o risco de incoerecircncias Assim a doutrina
igualmente pode ser estendida agraves accedilotildees mas pensamos que para tanto
devem ser observados ainda seus aspectos avaliativos jaacute que os
paracircmetros podem sugerir que o homem virtuoso avalie as
circunstacircncias agrave sua volta e depois se posicione com o modo adequado
de agir
Embora comentadores como Rapp apresentem algumas dessas
111
caracteriacutesticas em separado pensamos que a proposta apaziguadora que
trazemos confere validade e utilidade agrave teoria da boa medida e resposta
agraves questotildees que foram discutidas (1) A teoria da boa medida eacute
qualitativa ou quantitativa (2) A doutrina da boa medida pode ser
tomada como diretriz praacutetica para a accedilatildeo e (3) A doutrina eacute trivial e
tautoloacutegica Ratificando nossa resposta agrave primeira questatildeo eacute que a
doutrina pode apresentar ambos os aspectos qualitativos e quantitativos
atribuindo-os tanto agraves emoccedilotildees quanto agraves accedilotildees A resposta agrave segunda
questatildeo eacute que a doutrina natildeo pode ser entendida como diretriz praacutetica
no sentido de um procedimento de decisatildeo sendo um delimitador da
bondade ou da retidatildeo das disposiccedilotildees de caraacuteter que entram em acordo
com a razatildeo Entendemos contudo divergindo de Rapp que se eacute
doutrina conceitual formulada por um filoacutesofo que pensa em agentes
possiacuteveis como os prudentes pode preparar tais agentes racionalmente
e permitir que estejam mais aptos a decisotildees natildeo retirando certa
praticidade que possa ser ligada ainda que indiretamente agrave doutrina
Ainda quanto agrave segunda questatildeo concordamos com Zingano (2008 p
127) que entende as emoccedilotildees como intrinsecamente ligadas agraves accedilotildees
Esse elo torna impossiacutevel pensar que se as accedilotildees satildeo respostas dadas agraves
emoccedilotildees haveria como separaacute-las conferindo medida a umas e natildeo a
outras A resposta de Rapp agrave terceira questatildeo eacute que a doutrina fornece
um esquema geral que serve como guia para a exploraccedilatildeo das vaacuterias
virtudes e concordamos com essa postura Pensamos que nossas
perspectivas estando ou natildeo associadas agraves dos comentadores
supracitados se tornaratildeo mais claras com a anaacutelise que se seguiraacute da
virtude particular da coragem que apresentaraacute nitidamente a relaccedilatildeo da
virtude moral como boa medida com a emoccedilatildeo do medo
2b) Exemplo da viabilidade da virtude moral como mediania nas
emoccedilotildees a virtude particular da coragem e o medo
Para verificar e comprovar tudo que propusemos anteriormente
podemos tomar a emoccedilatildeo do medo como exemplo Isso nos ajudaraacute a
confirmar que o fato da doutrina natildeo prescrever modos de accedilatildeo natildeo
significa que natildeo possa ser empregada97 ou ligada agraves accedilotildees
97 A questatildeo da natildeo empregabilidade da doutrina se deve como propusemos
anteriormente ao aspecto filosoacutefico e natildeo praacutetico que Aristoacuteteles confere agrave sua
investigaccedilatildeo eacutetica Mesmo que proponha que o interesse do estudo eacute agir e natildeo
conhecer o filoacutesofo ressalta a importacircncia de anaacutelise filosoacutefica das questotildees
relativas a accedilotildees e casos particulares de accedilatildeo Por isso quando esquadrinha sua
112
As definiccedilotildees da virtude moral oferecidas na EE e na EN satildeo
seguidas por discussotildees sobre virtudes particulares que tecircm em sua
definiccedilatildeo o elemento lsquomeio termorsquo quanto a accedilotildees e emoccedilotildees Ao
propor mesmo que com variaccedilotildees que as virtudes particulares satildeo meio
termos tem-se um certo tipo de aplicaccedilatildeo agrave doutrina explica Rapp Tal
teoria a princiacutepio pode natildeo ser aplicada a decisotildees ou accedilotildees
particulares mas agravequilo que o autor chama de ldquoexploraccedilatildeo filosoacutefica das
vaacuterias virtudes eacuteticasrdquo (RAPP 2010 p 420) Isso acontece porque a
eacutetica de Aristoacuteteles admite niacuteveis variados de particularidade e
generalidade e a proposta da virtude como meio termo estaacute em um niacutevel
mais alto de generalidade Por isso as verdades eacuteticas satildeo um tanto
vagas ou como escreve o proacuteprio Aristoacuteteles satildeo em grandes linhas
(tyacutepoi) e imprecisas (EN II 2 1104a1-2) A discussatildeo sobre as virtudes
particulares comparada a isso eacute bem mais concreta mas ainda natildeo tem
a concretude de uma deliberaccedilatildeo para agir em uma situaccedilatildeo particular
ldquoHaacute portanto uma aplicaccedilatildeo da doutrina mas natildeo como um
procedimento de decisatildeordquo explica Rapp (2010 p 421) No entanto
propusemos acima e reforccedilamos aqui que pensamos um pouco diferente
desse comentador porque acreditamos que essa anaacutelise das virtudes
particulares mesmo tomando a teoria da boa medida como conceitual
leva a um ganho real na eacutetica de Aristoacuteteles
A proposta de excessofaltaboa medida nas emoccedilotildees e nas accedilotildees
que levam aos viacutecios ou agrave virtude pode natildeo ser aplicada ao processo de
decisatildeo mas faz com que o agente conheccedila melhor suas reaccedilotildees
emocionais e que esteja mais bem preparado para tomar decisotildees e
agir98 Aleacutem disso se seguirmos a proposta aristoteacutelica de que o
exemplo e a conduccedilatildeo exterior satildeo o que a princiacutepio ajuda na
habituaccedilatildeo moral do futuro cidadatildeo que tal exemplo vem do homem
virtuoso moralmente e prudente provavelmente encontraremos nisso
um passo aleacutem da reflexatildeo puramente filosoacutefica mencionada pela EN
Ao sugerir que se deva buscar agir como agiria um homem corajoso
provavelmente a doutrina ultrapasse o campo da teoria moral
traduccedilatildeo do ldquoquadrordquo das virtudes morais apresentado na EN Zingano propotildee
que nesse ponto da discussatildeo aparece o que seria o uacutenico momento em que
Aristoacuteteles se posiciona como o prudente e natildeo como o filoacutesofo pois aconselha
quanto a modos de atingir o meio termo e natildeo teoriza sobre a questatildeo O passo
no qual isso acontece eacute aquele que mencionamos como apresentando a ldquocurardquo
pelo contraacuterio 1109b1 quando a EN admite o tom de cartilha moral 98 Nussbaum propotildee esse tipo de interpretaccedilatildeo mas a respeito das emoccedilotildees
despertadas pela trageacutedia em seu The Fragility of Goodness
113
encaminhando-se para uma possiacutevel embora natildeo insistente proposta de
accedilatildeo
Tratando das virtudes morais especiacuteficas a abordagem procederaacute
nesse ponto a partir da perspectiva da virtude moral relativa ao medo a
coragem Eacute interessante lembrar que essa virtude estaacute relacionada com
um desejo menos racional denominado impulso (thymoacutes) que estaacute
relacionado a emoccedilotildees natildeo racionais (tagrave aacuteloga paacutethē) ou menos
racionais como propusemos no Capiacutetulo anterior Vimos tambeacutem que
estas emoccedilotildees natildeo parecem menos humanas ao filoacutesofo entatildeo ele pensa
ser absurdo considerar as accedilotildees feitas por impulso como involuntaacuterias
(EN III 3 1111a34-35 1111b1-3) A coragem natildeo eacute conforme esse
desejo sendo uma virtude parece-nos estar entre aqueles estados nos
quais o agente jaacute educou seus impulsos fazendo-os concordes com a
deliberaccedilatildeo a escolha deliberada e com o que solicita a reta razatildeo Deste
modo trata-se de uma disposiccedilatildeo moral consolidada por bons haacutebitos
que escapou agrave forccedila dos extremos chamados do desejo em uma de suas
versotildees menos racionais99 interpretaccedilatildeo que favorece o entendimento da
99 Mas se considerarmos a doutrina uma verdade conceitual no que ela
favorece a discussatildeo das virtudes individuais ldquoO miacutenimo que podemos dizer eacute
que a doutrina do meio termo estrutura e sistematiza a anaacutelise das vaacuterias
virtudes Antes de tudo a descriccedilatildeo de cada virtude em termos da doutrina
requer a identificaccedilatildeo de uma escala contiacutenua de emoccedilotildees com respeito agrave qual a
virtude especiacutefica eacute o ponto meacutedio Esse natildeo eacute um passo trivial porquanto
pressupotildee o projeto de Aristoacuteteles (tal como descrito acima nas seccedilotildees 11 e
12) de descrever as virtudes eacuteticas enquanto o bom estado da parte natildeo-racional
da alma de modo que toda virtude deve estar ligada a um tipo de impulso ou
desejo natildeo-racional Depois a doutrina exige que as vaacuterias maneiras de errar a
virtude ou a accedilatildeo correta sejam encontradas identificadas e organizadas de
acordo com as duas direccedilotildees de deficiecircncia e excesso Esse procedimento
tambeacutem ajuda com as falhas que natildeo satildeo tatildeo frequentes ou natildeo tatildeo oacutebvias como
as falhas opostas o satildeo Ademais a reconstruccedilatildeo das vaacuterias virtudes em termos
da doutrina transforma o cataacutelogo contingente de virtudes comumente aceitas
em um sistema organizado de virtudes no qual toda virtude corresponde a uma
certa porccedilatildeo da nossa vida natildeo-racional e todo tipo de falha pode ser localizada
nas proximidades da virtude respectiva Essa sistematizaccedilatildeo leva ateacute mesmo agrave
identificaccedilatildeo de pontos meacutedios que natildeo haviam sido reconhecidos como
virtudes ateacute entatildeo E acima de tudo ao analisar e explicar cada virtude de
acordo com o esquema de excesso deficiecircncia e meio termo aprendemos como
entender que cada virtude contribui para o bom estado da parte natildeo-racional da
nossa alma E isto mais uma vez eacute essencial para a funccedilatildeo que atribuiacutemos ao
segundo livro da EN na seccedilatildeo 11 qual seja que a discussatildeo das virtudes deve
revelar como as vaacuterias virtudes normalmente admitidas se relacionam com a
114
boa medida como concordacircncia entre a capacidade natildeo racional e a
capacidade racional a fim de que a primeira alcance seu melhor estado
A coragem descrita por Aristoacuteteles em EN III 9 1115a8 eacute um
meio termo que corresponde a duas emoccedilotildees diferentes o medo e o
arrojo ou confianccedila Mas seguindo nossa proposta inicial observaremos
apenas sua relaccedilatildeo com o medo Neste Livro Aristoacuteteles descreve
pessoas que excedem em medo como covardes enquanto pessoas que
sentem tal emoccedilatildeo insuficientemente satildeo temeraacuterias Ser corajoso no
sentido de natildeo temer como natildeo conveacutem exige admitir que as coisas que
satildeo temiacuteveis parecem ter grande poder de destruiccedilatildeo ou de causar danos
que produzam grandes tristezas e ainda assim natildeo fugir e se acovardar
diante delas Isso natildeo significa que ter coragem eacute medir uma quantia
exata de medo a se sentir pondo de lado o medo excessivo ou
deficiente Ter coragem eacute saber o quanto temer poreacutem contando e
avaliando as condiccedilotildees que nos indicam tambeacutem como quando em
relaccedilatildeo a quecirc e em que circunstacircncias se deve temer e o bem a ser
alcanccedilado com a accedilatildeo corajosa
A disposiccedilatildeo em que se encontra quem teme eacute descrita pela
Retoacuterica coerentemente aos relatos eacuteticos como seguiraacute abaixo
Conforme tal descriccedilatildeo podemos tentar com o auxiacutelio da doutrina da
boa medida e dos paracircmetros para que seja aplicaacutevel propor que as
posturas de um homem corajoso atendem agrave exigecircncia de equiliacutebrio
quanto a essa disposiccedilatildeo apresentando-se como disposiccedilatildeo mais forte e
segura para a vida marca da virtude
Se o medo eacute acompanhado pelo pressentimento de
que vamos sofrer algum mal que nos aniquila eacute
oacutebvio que aqueles que acham que nunca lhes vai
acontecer nada de mal natildeo tecircm medo nem
receiam as coisas as pessoas e os momentos que
na sua maneira de pensar natildeo podem provocar
medo Assim pois necessariamente sentem
medo os que pensam que podem vir a sofrer
algum mal e os que pensam que podem ser
afetados por pessoas coisas e momentos
Creem que nenhum mal pode lhes acontecer as
pessoas que estatildeo ou pensam estar em grande
prosperidade [] as que pensam jaacute ter sofrido toda
espeacutecie de desgraccedilas e permanecem frias perante
o futuro agrave semelhanccedila dos que alguma vez jaacute
ideia de um bom estado ou excelecircncia da almardquo (RAPP 2010 p 421-422)
115
levaram uma surra de paulada Para que sintamos
receio eacute preciso que haja alguma esperanccedila de
salvaccedilatildeo pela qual valha a pena lutar E aqui vai
um sinal disso o medo leva as pessoas a deliberar
ao passo que ningueacutem delibera sobre casos
desesperados (Rhet II 5 1382b29-34 1383a1-
8)100
Em associaccedilatildeo agrave proposta sobre o medo supramencionada
podemos pensar que a disposiccedilatildeo corajosa eacute apresentada pelas pessoas
que se mantecircm de certo modo entre as posiccedilotildees de quem teme mas
esse lsquoentrersquo natildeo significa necessariamente algo fixo dentro de uma
escala quantificaacutevel O corajoso eacute descrito na EN como aquele que
encara as coisas temiacuteveis convenientemente e como manda a razatildeo
confirmando que a doutrina da boa medida leva agrave harmonia da
capacidade natildeo racional com a racional conferindo agrave primeira seu
melhor estado Igualmente apresenta a lsquoaplicabilidadersquo de tal doutrina
conceitual sendo mesmo possiacutevel que um homem percebendo seu bom
estado aniacutemico ou auxiliado por um bom estado aniacutemico que venha de
fora natildeo se furte jamais agraves boas accedilotildees jaacute que busca o que eacute nobre
Aquele portanto que espera de peacute firme e teme as
coisas que eacute preciso por um fim direito do modo
que conveacutem e no momento oportuno ou que se
mostra confiante sob as mesmas condiccedilotildees este eacute
um homem corajoso (pois o homem corajoso
padece e age por um objeto que vale a pena e do
modo que exige a razatildeo E o fim de toda atividade
eacute aquele que eacute conforme as disposiccedilotildees do caraacuteter
do qual ela procede e estaacute aiacute uma verdade para o
homem corajoso igualmente sua coragem eacute uma
coisa nobre por conseguinte seu fim tambeacutem eacute
100 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original εἰ δή
ἐστιν ὁ φόβος μετὰ προσδοκίας τινὸς τοῦ πείσεσθαί τι φθαρτικὸν πάθος
φανερὸν ὅτι οὐδεὶς φοβεῖται τῶν οἰομένων μηδὲν ἂν παθεῖν οὐδὲ ταῦτα ἃ μὴ
οἴονται ἂν παθεῖν οὐδὲ τούτους ὑφ ὧν μὴ οἴονται οὐδὲ τότε ὅτε μὴ οἴονται
ἀνάγκη τοίνυν φοβεῖσθαι τοὺς οἰομένους τι παθεῖν ἄν καὶ τοὺς ὑπὸ τούτων καὶ
ταῦτα καὶ τότε οὐκ οἴονται δὲ παθεῖν ἂν οὔτε οἱ ἐν εὐτυχίαις μεγάλαις ὄντες
καὶ δοκοῦντες [] οὔτε οἱ ἤδη πεπονθέναι πάντα νομίζοντες τὰ δεινὰ καὶ
ἀπεψυγμένοι πρὸς τὸ μέλλον ὥσπερ οἱ ἀποτυμπανιζόμενοι ἤδη ἀλλὰ δεῖ τινα
ἐλπίδα ὑπεῖναι σωτηρίας περὶ οὗ ἀγωνιῶσιν σημεῖον δέ ὁ γὰρ φόβος
βουλευτικοὺς ποιεῖ καίτοι οὐδεὶς βουλεύεται περὶ τῶν ἀνελπίστων
116
nobre jaacute que uma coisa se define sempre por seu
fim e por consequecircncia eacute em vista de um fim
nobre que o homem corajoso faz frente aos
perigos e completa as accedilotildees que lhe dita sua
coragem (EN III 10 1115b17-24)101
Assim a coragem eacute a mediania em relaccedilatildeo agraves coisas que inspiram
medo nas circunstacircncias mencionadas O corajoso escolhe ou encara tais
coisas por ser nobre agir desse modo ou por ser vergonhoso agir
diferentemente mas o filoacutesofo lista lsquotiposrsquo de coragem (EN III 11
1116a28 et seq) dentre as quais destaca o desejo de evitar a vergonha e
o medo da desonra como o que mais se aproxima da coragem
propriamente dita Haveria mesmo como vimos uma coragem por
impulso (thymoacutes) considerada plena de emoccedilatildeo no sentido que
movimenta corpo e alma mas que quando acompanhada de impulso
bem-educado acrescida de escolha deliberada e de um bom fim
tenderia mais de perto agrave virtude moral da coragem (EN III 11 1117a4)
Haveria ainda uma coragem incitada por discursos retoacutericos e por
apresentaccedilotildees artiacutesticas e estas provavelmente fossem os tipos que
menos colocassem os homens em accedilotildees corajosas Entendemos no
entanto que mesmo estas uacuteltimas poderiam ser capazes de preparar
ouvintes e espectadores para decisotildees e accedilotildees reais jaacute que expotildeem
modelos de coragem o que prepararia os cidadatildeos para momentos em
que realmente necessitassem de decisotildees influenciadas pela virtude em
questatildeo
O distintivo de um homem verdadeiramente corajoso contudo eacute
suportar aquilo que realmente eacute temiacutevel ou que lhe parece como tal (EN III 11 1117a16-17) Aleacutem disso Aristoacuteteles ressalta que normalmente se
pensa que um homem mostra maior coragem ao natildeo temer e natildeo se
abalar frente a perigos bruscos e natildeo previsiacuteveis jaacute que a associaccedilatildeo
entre sua phroacutenēsis e virtude moral o deixam em boas condiccedilotildees para
agir em quaisquer situaccedilotildees Assim a coragem eacute fruto de uma
disposiccedilatildeo de caraacuteter e requer menos preparaccedilatildeo para a accedilatildeo Os perigos
previsiacuteveis podem ser alvo de caacutelculo (logismoucirc) e de raciociacutenio
101 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ὁ μὲν οὖν ἃ δεῖ καὶ οὗ ἕνεκα ὑπομένων καὶ φοβούμενος καὶ
ὡς δεῖ καὶ ὅτε ὁμοίως δὲ καὶ θαρρῶν ἀνδρεῖος κατ ἀξίαν γάρ καὶ ὡς ἂν ὁ
λόγος πάσχει καὶ πράττει ὁ ἀνδρεῖος τέλος δὲ πάσης ἐνεργείας ἐστὶ τὸ κατὰ
τὴν ἕξιν daggerκαὶ τῷ ἀνδρείῳ δὲ ἡ ἀνδρεία καλόνdagger τοιοῦτον δὴ καὶ τὸ τέλος
ὁρίζεται γὰρ ἕκαστον τῷ τέλει καλοῦ δὴ ἕνεκα ὁ ἀνδρεῖος ὑπομένει καὶ πράττει
τὰ κατὰ τὴν ἀνδρείαν
117
(loacutegou) implicando essas operaccedilotildees racionais com a forma adequada de
temer mas os perigos suacutebitos pedem uma disposiccedilatildeo de caraacuteter estaacutevel
(EN III 11 1117a17-22) e esta parece ser a verdadeira virtude Ademais
o filoacutesofo apresenta como mais corajoso quem permanece imperturbaacutevel
diante de perigos e age como aquele que tem esse tipo de
comportamento quando estaacute seguro A coragem em si mesma portanto
eacute descrita como algo doloroso por sua ligaccedilatildeo com o thymoacutes mas eacute
digna de elogios porque eacute mais difiacutecil encarar dores que se abster de
prazeres
Diante do exemplo de virtude moral particular exposto podemos
compreender a despeito das teorias contraacuterias agrave postura da teoria do
meio termo e da variabilidade das coisas particulares que tocam agrave moral
que realmente eacute devido tratar filosoficamente tais assuntos validando o
fato de Aristoacuteteles comeccedilar sua discussatildeo sobre a mateacuteria afirmando que
as coisas ora estudadas satildeo naturalmente corrompidas por excesso e
falta A ideia de que a mediania eacute aliada das virtudes igualmente eacute
vaacutelida natildeo conflitando com os exemplos que parecem lidar sempre com
quantias contaacuteveis (EN II 2 1104a13-17) e que extrapolam o acircmbito das
puras reflexotildees filosoacuteficas
2c) A forccedila do haacutebito para o correto se emocionar
Ao admitir dois tipos diferentes de virtude conforme a lsquodivisatildeorsquo
da alma Aristoacuteteles nos fala da existecircncia da virtude moral que ldquoresulta
do haacutebito de onde tirou tambeacutem o nome divergindo ligeiramente de
eacutethos102rdquo (EN II 1 1103a17-18)103 O exemplo dado para esclarecer tal
proposta eacute o da pedra que se lanccedilada seguidamente para cima natildeo se
habituaria agraves alturas uma vez que eacute de sua natureza o estar embaixo
explicando que nenhuma virtude moral eacute dada a noacutes por natureza porque
as coisas da natureza natildeo podem ser alteradas pelo haacutebito104 Por isso o
102 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἡ δ ἠθικὴ ἐξ ἔθους περιγίνεται
ὅθεν καὶ τοὔνομα ἔσχηκε μικρὸν παρεκκλῖνον ἀπὸ τοῦ ἔθους 103 Dessas propostas que diferenciam virtude moral e virtude intelectual surge
uma questatildeo intrigante e que provavelmente consigamos responder no Capiacutetulo
seguinte Ela eacute proposta Por Zingano (2008 p 93) do seguinte modo ldquoPode-se
no entanto perguntar por que Aristoacuteteles introduziu aqui esta observaccedilatildeo jaacute
que por contraste esperar-se-ia que as virtudes morais natildeo tivessem a mesma
exigecircncia quando parece ser o contraacuterio visto surgirem do haacutebito e o haacutebito
certamente requer tempo e experiecircnciardquo 104Com essa postura Aristoacuteteles parece buscar responder agrave questatildeo jaacute
apresentada pelo Mecircnon a respeito da possibilidade de se ensinar a virtude O
118
filoacutesofo explica que ldquoas virtudes natildeo se engendram nem naturalmente
nem contra a natureza mas porque somos naturalmente aptos a recebecirc-
las aperfeiccediloamo-nos pelo haacutebitordquo (EN II 1 1103a23-26)105
As virtudes morais satildeo adquiridas pelo exerciacutecio que lhes
precede implicando que um homem se torna justo praticando atos justos
(EN II 2 1103b31) Por exemplo os cidadatildeos satildeo tornados bons porque
as famiacutelias o legislador e a poacutelis como um todo lhes incute bons haacutebitos
direcionados pela lei Por isso os mestres satildeo necessaacuterios jaacute que natildeo
nascemos sabendo fazer as coisas Isso confirma que em um primeiro
momento da formaccedilatildeo moral a virtude vem de fora O que reforccedila essa
ideia eacute o fato que das coisas naturais primeiro temos a potecircncia e depois
as exercitamos em atividades Por exemplo o haacutebito nos apetites e na
raiva tem destino distinto pois uns se tornam temperantes e tolerantes
outros intemperantes e irasciacuteveis devido agrave sua insistecircncia em agir do
mesmo modo em situaccedilotildees semelhantes Esse tipo de explicaccedilatildeo nos
permite defender a possibilidade de habituar apetites e raiva ou seja de
alterar as emoccedilotildees com o auxiacutelio dos haacutebitos do bom conselho e de
outros instrumentos que favoreccedilam a virtude Portanto habituar-se de
um modo ou de outro desde jovem natildeo eacute de somenos mas de muita ou
melhor de toda importacircnciardquo (EN II 1 1103b23-25)106 porque um
homem mal habituado em suas emoccedilotildees torna-se vicioso
Habituar-se de um modo ou de outro estaacute relacionado ao prazer
que se sente com determinadas atividades como vimos no Capiacutetulo
anterior Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer
ou dor implicando que para Aristoacuteteles a virtude tem por natureza
praticar o melhor quanto a estes (EN II 2 1104b9-24) pois eacute proacuteprio agrave
virtude moral o prazer tido com as accedilotildees corretas A capacidade de
retidatildeo nas accedilotildees nas emoccedilotildees nos desejos e nos prazeres viraacute com a
praacutetica habitual de boas accedilotildees proposta que aparece em EN III e na qual
Hutchinson (2009 p 276-277) percebe um paradoxo se as virtudes
estagirita afirma que virtudes morais vecircm com haacutebito e natildeo com ensino Platatildeo
poderia ter chegado a conclusatildeo semelhante (Leis 792e2 Rep 518e1-2 apud
ZINGANO 2008 p 93) contudo ao que parece faz uma concessatildeo aos que
natildeo satildeo saacutebios e que poderiam alcanccedilar a virtude moral por meio da praacutetica Jaacute
Aristoacuteteles entende que todos independentemente de suas tendecircncias naturais
alcanccedilam a virtude por meio do haacutebito 105 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original οὔτ ἄρα φύσει οὔτε παρὰ φύσιν
ἐγγίνονται αἱ ἀρεταί ἀλλὰ πεφυκόσι μὲν ἡμῖν δέξασθαι αὐτάς τελειουμένοις δὲ
διὰ τοῦ ἔθους 106 Idem no original οὐ μικρὸν οὖν διαφέρει τὸ οὕτως ἢ οὕτως εὐθὺς ἐκ νέων
ἐθίζεσθαι ἀλλὰ πάμπολυ μᾶλλον δὲ τὸ πᾶν
119
morais se consolidam pelo treino que leva a se comportar
adequadamente como eacute possiacutevel desenvolvecirc-las Sendo preciso repetir
accedilotildees corajosas para nos tornarmos corajosos natildeo seria preciso ser
previamente corajoso para agir de tal modo O estudioso aponta duas
soluccedilotildees dadas pelo proacuteprio Aristoacuteteles para desfazer o inconveniente
A primeira afirma que haacute coisas que fazemos sob a orientaccedilatildeo do outro
o que nos capacita fazer o que eacute indicado sem ainda sermos haacutebeis para
tanto Isso acontece igualmente com as virtudes morais pois a princiacutepio
devemos agir conforme a sugestatildeo de um educador tornando o conselho
e o exemplo cruciais como observa Aggio (2017 no prelo) Nesse
ponto da formaccedilatildeo natildeo importa que a virtude natildeo esteja no agente ou
que esteja naquele que o aconselha a agir bem pois ainda natildeo foi
internalizada pelo agente embora esse possa seguir um bom conselho
que auxiliaraacute sua habituaccedilatildeo moral para a virtude
A segunda soluccedilatildeo nos diz que as virtudes morais satildeo diferentes
da habilidade porque seu desempenho eacute expressatildeo do caraacuteter uma accedilatildeo
realmente corajosa eacute feita por um homem que sabe o que faz e que tem
um caraacuteter firme e permanentemente corajoso agindo deste modo pela
coragem mesma coisa correta a se fazer Por conseguinte o treinamento
do jovem para a coragem natildeo exige que este seja previamente corajoso
pois a virtude viraacute com o exerciacutecio A praacutetica e a aquisiccedilatildeo de
entendimento tornaratildeo o jovem senhor de suas accedilotildees a partir do que
deixaraacute de seguir propostas alheias sobre como agir corretamente seraacute
realmente virtuoso moralmente pois agiraacute por si mesmo e por amor ao
que eacute correto e bom Mas o filoacutesofo observa ldquoCom efeito eacute possiacutevel
fazer algo de cunho gramaacutetico tanto por acaso como instruiacutedo por outra
pessoardquo (EN II 3 1105a23-26)107 A esse problema Aristoacuteteles respondeu
resumidamente da seguinte maneira para agir com virtude eacute preciso
estar em um certo estado ou o agente sabe o que faz e em seguida
escolhe por deliberaccedilatildeo as coisas elas mesmas agindo por fim de
forma firme e inalteraacutevel (EN II 3 1105a31-1105b1) ou eacute guiado por
algueacutem que sabe o que faz ao menos ateacute atingir a capacidade de guiar
por si mesmo suas accedilotildees Deste modo ratifica-se que as virtudes satildeo
adquiridas por serem exercitadas (EN II 1 1103a31) ou seja satildeo
aprendidas fazendo tornamo-nos corajosos com a praacutetica frequente de
accedilotildees de coragem sendo o haacutebito incutido que leva agrave virtude moral O
contraacuterio contudo pode ocorrer caso se pratique frequentemente maacutes
accedilotildees eacute possiacutevel incorrer em viacutecio como explica o passo abaixo
107 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἐνδέχεται γὰρ γραμματικόν τι
ποιῆσαι καὶ ἀπὸ τύχης καὶ ἄλλου ὑποθεμένου
120
Assim tambeacutem acontece com as virtudes agindo
nas transaccedilotildees entre homens tornam-se uns
justos outros injustos agindo nas situaccedilotildees de
perigo e habituando-se a temer ou a ter confianccedila
tornam-se uns corajosos outros covardes O
mesmo ocorre no caso dos apetites assim como
no das iras pois se tornam uns temperantes e
tolerantes outros intemperantes e irasciacuteveis uns
por persistirem a agir de um jeito nas mesmas
situaccedilotildees outros por persistirem de outro jeito
Por esta razatildeo eacute preciso que as atividades
exprimam certas qualidades pois as disposiccedilotildees
seguem as diferenccedilas das atividades (EN II 1
1103b13-22)108
O passo confirma a possibilidade de alteraccedilatildeo dasnas emoccedilotildees
por via da habituaccedilatildeo Por isso um educador deve se valer da dor e do
prazer com as accedilotildees como indiacutecios das disposiccedilotildees do agente (EN II 2
1104b4-5) e como guia para os haacutebitos que deve incutir ou afastar de
seus disciacutepulos
Apesar de as discussotildees travadas acima tornarem o assunto
satisfatoriamente claro precisaremos ainda mais agrave frente apreciar a
questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre ensino e habituaccedilatildeo auxiliados pelo
prazer com certas accedilotildees e atividades Por ora o passo supracitado chama
nossa atenccedilatildeo para a questatildeo mas pensamos que as puniccedilotildees tambeacutem
sirvam como indicadores de disposiccedilotildees morais pois se costuma operar
ldquocurardquo pelo contraacuterio Segundo essa proposta os homens se tornam bons
ou maus pelos prazeres e dores evitando-os ou buscando-os como
quando e com o que se deve ou natildeo se deve e eacute isso que se observaraacute na
educaccedilatildeo e para as puniccedilotildees Isso indica que a virtude tem por natureza
a praacutetica do que eacute melhor frente a prazeres e dores mas o viacutecio leva ao
contraacuterio (EN II 2 1104b26-28) e por isso eacute preciso ter disciplina quanto
a essas afecccedilotildees
108 Idem οὕτω δὴ καὶ ἐπὶ τῶν ἀρετῶν ἔχει πράττοντες γὰρ τὰ ἐν τοῖς
συναλλάγμασι τοῖς πρὸς τοὺς ἀνθρώπους γινόμεθα οἳ μὲν δίκαιοι οἳ δὲ ἄδικοι
πράττοντες δὲ τὰ ἐν τοῖς δεινοῖς καὶ ἐθιζόμενοι φοβεῖσθαι ἢ θαρρεῖν οἳ μὲν
ἀνδρεῖοι οἳ δὲ δειλοί ὁμοίως δὲ καὶ τὰ περὶ τὰς ἐπιθυμίας ἔχει καὶ τὰ περὶ τὰς
ὀργάς οἳ μὲν γὰρ σώφρονες καὶ πρᾶοι γίνονται οἳ δ ἀκόλαστοι καὶ ὀργίλοι οἳ
μὲν ἐκ τοῦ οὑτωσὶ ἐν αὐτοῖς ἀναστρέφεσθαι οἳ δὲ ἐκ τοῦ οὑτωσί καὶ ἑνὶ δὴ
λόγῳ ἐκ τῶν ὁμοίων ἐνεργειῶν αἱ ἕξεις γίνονται διὸ δεῖ τὰς ἐνεργείας ποιὰς
ἀποδιδόναι κατὰ γὰρ τὰς τούτων διαφορὰς ἀκολουθοῦσιν αἱ ἕξεις
121
A partir do que foi proposto entendemos que a virtude estaacute
relacionada a prazeres e dores que cresce e se corrompe pelas mesmas
coisas (EN II 3 1105a13-16) mas para se tornar virtuoso eacute preciso
praticar frequentemente atos por exemplo corajosos mesmo que estes
sejam dolorosos Os atos satildeo considerados corajosos quando forem
feitos como faria a pessoa considerada dotada de tal virtude embora natildeo
seja corajoso quem realiza atos de coragem mas quem os faz como faria
o homem corajoso Esta virtude moral vem da praacutetica de accedilotildees desse
tipo e natildeo haacute problema como demonstramos haacute pouco com esse tipo
de proposta Ademais Aristoacuteteles frisa que em eacutetica natildeo basta discursar
sobre a conduta virtuosa eacute preciso agir a fim da verdadeira virtude
tendo esses haacutebitos em conformidade agrave virtude intelectual Mas se o
haacutebito eacute bastante para consolidar a virtude moral para que necessitamos
da razatildeo praacutetica A resposta pode ser indicada pela questatildeo da
responsabilidade pelas accedilotildees que tecircm princiacutepio em cada agente que sabe
o que faz como veremos a seguir
2d) Virtude voluntaacuteria diante das circunstacircncias e responsabilidade
A proposta da boa medida tomada como melhor estado da
capacidade natildeo racional da alma humana e como melhor forma de se
emocionar exige que pensemos o agente bom moralmente como
personificaccedilatildeo do equiliacutebrio entre racional e natildeo racional na figura do
prudente Ou seja esse cidadatildeo deve ser pensado como atualizaccedilatildeo
plena daquilo que Aristoacuteteles considera o proacuteprio homem temos um
agente que coordena bem as capacidades de sua alma que eacute princiacutepio de
suas accedilotildees e por conseguinte estas accedilotildees satildeo consideradas voluntaacuterias
(hekouacutesioi) Caso contraacuterio as accedilotildees cometidas satildeo consideradas
involuntaacuterias (akouacutesioi) embora haja tambeacutem atos desse tipo que satildeo
perdoados e ateacute dignos de piedade Mas por que distinguir
voluntariedade e involuntariedade em uma pesquisa sobre as emoccedilotildees
jaacute que tais caracteriacutesticas podem ser atribuiacutedas agraves accedilotildees e natildeo agraves
emoccedilotildees
Quando se estuda a virtude tal distinccedilatildeo eacute necessaacuteria pois as
virtudes satildeo configuradas por accedilotildees voluntaacuterias ligadas agraves emoccedilotildees e ao
que eacute desejado Ademais procuramos encontrar instrumentos que nos
levem a entender a possibilidade de um homem que tenha seu lado natildeo
racional no melhor estado possiacutevel e isso diz respeito a bem agir e bem
se emocionar o que parece ser condizente com a figura de quem age de
acordo com o que julga por si mesmo correto e natildeo por aquele que
meramente toma o conselho de outrem de que algo eacute o correto a se
122
desejar e fazer Este homem atua de certo modo voluntariamente jaacute
que as accedilotildees involuntaacuterias parecem ser aquelas ldquoaccedilotildees praticadas por
forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccedilado o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao
agente princiacutepio para o qual o agente ou o paciente em nada contribuirdquo
(EN III 1 1109b35 1110a1)109
As accedilotildees tambeacutem podem ser mistas quando praticadas conforme
a ocasiatildeo e natildeo como se agiria normalmente Por isso o caraacuteter
voluntaacuterio ou involuntaacuterio da accedilatildeo deve ser atribuiacutedo tendo em vista o
momento em que foi praticada as accedilotildees voluntaacuterias satildeo aquelas cujo
poder de fazer ou natildeo fazer determinada coisa em certa situaccedilatildeo estaacute no
proacuteprio agente ldquoRigorosamente entatildeo agir voluntariamente eacute ldquoagir
com razoaacutevel conhecimento das circunstacircncias a natildeo ser que fosse
literalmente impossiacutevel fazer outra coisardquordquo (HUTCHINSON 2009 p
272) Em contrapartida as accedilotildees que podem ser consideradas forccediladas
satildeo penosas Aristoacuteteles explica que o ldquoato forccedilado portanto mostra-se
aquele cujo princiacutepio eacute exterior a pessoa forccedilada em nada contribuindo
ao princiacutepio da accedilatildeordquo (EN III 1 1110b15-17)110 O fato das
circunstacircncias serem definidoras do que se decide fazer inviabiliza
certas objeccedilotildees agrave proposta da mediania como virtude moral pois como
vimos coloca paracircmetros externos para a accedilatildeo natildeo permitindo que seja
totalmente relativa ao que o agente deseja
Tambeacutem como vimos o fim bem amparado pela razatildeo praacutetica eacute
objeto do desejo reto das emoccedilotildees adequadas e causa da accedilatildeo embora
no homem virtuoso as coisas que levam ao fim sejam objetos da
deliberaccedilatildeo e da escolha deliberada Por conseguinte accedilotildees que lhes
dizem respeito satildeo feitas por escolha deliberada e voluntariamente
sendo estas as accedilotildees corretas moralmente111 Assim
Sobre as virtudes em geral temos dito pois
esquematicamente quanto a seu gecircnero que satildeo
meios termos e haacutebitos que por si mesmas
tendem a praticar as accedilotildees que as produzem que
dependem de noacutes e satildeo voluntaacuterias e atuam de
acordo com as normas da reta razatildeo Mas as accedilotildees
109 Traduccedilatildeo Zingano (2008) no original ἀκούσια εἶναι τὰ βίᾳ ἢ δι ἄγνοιαν
γινόμενα βίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ
πράττων ἢ ὁ πάσχων 110 Idem τὸ βίαιον εἶναι οὗ ἔξωθεν ἡ ἀρχή μηδὲν συμβαλλομένου τοῦ
βιασθέντος 111 No entanto vale observar com Korsgaard que o homem virtuoso natildeo passa
a vida toda deliberando mas delibera apenas frente a determinadas situaccedilotildees
123
natildeo satildeo voluntaacuterias do mesmo modo que os
haacutebitos de nossas accedilotildees somos donos desde o
princiacutepio ateacute o fim se conhecemos as
circunstacircncias particulares dos nossos haacutebitos no
princiacutepio mas seu incremento natildeo eacute perceptiacutevel
como ocorre com as doenccedilas Natildeo obstante como
estava em nossa matildeo comportar-nos de tal ou tal
maneira satildeo por isso voluntaacuterios (EN III 8
1114b26-35 III 9 1115a1-3)112
O passo nos permite reforccedilar que a virtude moral eacute uma
disposiccedilatildeo louvaacutevel sendo a capacidade de se comportar bem em
relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees comportar-se com medida relativa a noacutes e que de
certo modo somos responsaacuteveis por esse comportamento De acordo
com Hutchinson (2009 p 267) satildeo ldquoas disposiccedilotildees de nossas emoccedilotildees
que nos ajudam a dar as respostas corretas agraves situaccedilotildees praacuteticasrdquo Por
isso eacute preciso estabelecer um certo tipo de educaccedilatildeo favoraacutevel agrave virtude
moral malgrado a inexatidatildeo dos assuntos que tocam a esse tipo de
virtude Nessa educaccedilatildeo cabem os haacutebitos que satildeo o modo pelo qual se
pode consolidar a virtude poreacutem devem ser haacutebitos conscientes e
escolhidos deliberadamente113 As virtudes morais vecircm de atos
voluntaacuterios que tecircm sua fonte no proacuteprio agente embora sejam
pautadas nas circunstacircncias e na procura pelo bem Assim o homem
virtuoso eacute responsaacutevel por tais virtudes - e igualmente pelos viacutecios -
como eacute responsaacutevel por seus atos114 na medida em que escolhe e decide
112 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Κοινῇ μὲν οὖν περὶ τῶν ἀρετῶν εἴρηται ἡμῖν τό τε γένος
τύπῳ ὅτι μεσότητές εἰσιν καὶ ὅτι ἕξεις ὑφ ὧν τε γίνονται ὅτι τούτων
πρακτικαὶ ltκαὶgt καθ αὑτάς καὶ ὅτι ἐφ ἡμῖν καὶ ἑκούσιοι καὶ οὕτως ὡς ἂν ὁ
ὀρθὸς λόγος προστάξῃ οὐχ ὁμοίως δὲ αἱ πράξεις ἑκούσιοί εἰσι καὶ αἱ ἕξεις τῶν
μὲν γὰρ πράξεων ἀπ ἀρχῆς μέχρι τοῦ τέλους κύριοί ἐσμεν εἰδότες τὰ καθ
ἕκαστα τῶν ἕξεων δὲ τῆς ἀρχῆς καθ ἕκαστα δὲ ἡ πρόσθεσις οὐ γνώριμος
ὥσπερ ἐπὶ τῶν ἀρρωστιῶν ἀλλ ὅτι ἐφ ἡμῖν ἦν οὕτως ἢ μὴ οὕτω χρήσασθαι
διὰ τοῦτο ἑκούσιοι 113 Mesmo que a princiacutepio sejam conscientes e deliberadamente escolhidos por
outrem 114 Haacute um problema quanto a ligar atos voluntaacuterios e responsabilidade pelos
atos Natildeo vamos entrar nos meacuteritos da questatildeo nesse momento pois
extrapolaria nossas forccedilas Podemos contudo indicar que quanto a isso
Zingano difere de Irwin pois pensa que para que um agente seja responsaacutevel
por suas accedilotildees precisa agir voluntariamente mas para que um ato seja
considerado voluntaacuterio natildeo eacute necessaacuterio responsabilizar o agente Assim
124
por si mesmo o que deve fazer podendo ser elogiado ou censurado
A virtude moral quando bem exercitada eacute disposiccedilatildeo segundo a
regra justa que eacute estabelecida pela prudecircncia e por isso pode ordenar
por-se o fim Se o fim tem relaccedilatildeo com o desejo este precisa ser
educado ateacute que se conforme a reta razatildeo que implica aprender a
desejar assim como a se emocionar para agir bem bela e nobremente
em comunidade A aplicaccedilatildeo da teoria da boa medida bem como a
aplicaccedilatildeo de seus paracircmetros eacute necessaacuteria para que tal educaccedilatildeo se
concretize Por isso e pela maleabilidade da capacidade natildeo racional
frente agraves sugestotildees da razatildeo eacute possiacutevel a Aristoacuteteles propor a boa
medida nas emoccedilotildees
O virtuoso em sentido moral e completo julga bem (kriacutenei
orthocircs) as coisas e a verdade se manifesta a ele (talēthegraves autograve phaiacutenetai)
sendo o homem que se distingue por sua capacidade de ver o verdadeiro
(talēthegraves hōraacuten) em cada coisa padratildeo e medida para todas as coisas
(EN III 6 1113a30-35) eliminando novamente a relatividade da
doutrina O virtuoso eacute o homem cujas atividades envolvem deliberaccedilatildeo e
escolha deliberada pois natildeo haacute virtude sem estes traccedilos de razatildeo ou ao
menos natildeo haacute virtude completa (aretegraven teleiacutean) entendida aqui como
aquela junccedilatildeo entre a virtude moral e a virtude intelectual que a
aperfeiccediloa Por isso tanto a virtude quanto o viacutecio estaacute em nosso poder
(ephacutehēmicircn) pois podemos agir quando eacute belo bem como deixar de agir
quando isso eacute desonroso e portanto estaacute em nosso poder sermos bons
ou maus contrariando Soacutecrates
Como vimos as coisas consideradas em nosso poder e
voluntaacuterias satildeo as coisas das quais o princiacutepio estaacute em noacutes e por isso a
distribuiccedilatildeo dos castigos e das honrarias feita pelos legisladores eacute
pautada na boa administraccedilatildeo que cada agente tem de si e de sua
capacidade natildeo racional o que soacute eacute possiacutevel se entendermos as
propostas de Aristoacuteteles sobre a alma como tendendo agrave unicidade que
permite a comunicaccedilatildeo entre as capacidades da alma Sendo as virtudes
voluntaacuterias noacutes somos de certo modo causas coadjuvantes de nossas
disposiccedilotildees jaacute que temos o poder de controlaacute-las a princiacutepio embora
escapem ao nosso controle apoacutes certo tempo e exerciacutecio Isso nos
confere deliberadamente o princiacutepio das qualidades que carregaremos
Zingano entende o voluntaacuterio como condiccedilatildeo necessaacuteria embora natildeo suficiente
para uma accedilatildeo da responsabilidade do agente Isso porque soacute pode ser
responsabilizado aquele que eacute princiacutepio da accedilatildeo e cuja accedilatildeo levar a elogio ou
censura que aperfeiccediloem o agente Mais sobre essas questotildees consultar Zingano
(2008 p 146-147)
125
vida afora115 e por nossa qualidade pomos o fim correspondente agraves
nossas accedilotildees (EN III 7 1114b21-24) eis o motivo de Aristoacuteteles ter
afirmado que agindo bem nos tornamos bons e que as maacutes accedilotildees nos
levam ao viacutecio
Apoacutes atingirmos essas conclusotildees deveremos tratar as questotildees
acerca da proposta da mediania nas emoccedilotildees pois como observa
Besnier (2008 p 78) ldquoSendo a paixatildeo um movimento reativo passivo e
indeliberado resta saber de que modo podemos constituir uma atitude
como virtuosa a seu respeito tal como podemos fazer para a accedilatildeordquo A
questatildeo eacute entatildeo como moderamos nossas emoccedilotildees
3 Metriopaacutethēia o ideal de emoccedilatildeo para a vida virtuosa
Com o que vimos ateacute agora ficou evidente que Aristoacuteteles propotildee
a virtude moral e a virtude mais completa como dependentes da boa
medida em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees possiacutevel graccedilas ao equiliacutebrio entre as
capacidades que datildeo ao homem o que lhe eacute peculiar116 Tal teoria a
partir do periacuteodo heleniacutestico ficou conhecida como metriopaacutethēia e
embora o termo natildeo seja de Aristoacuteteles Zingano (2007 p 143)
considera que seja a definiccedilatildeo ldquosucinta e felizrdquo das teorias do filoacutesofo
acerca de como devemos nos portar frente agraves emoccedilotildees O estudioso
explica que ldquonatildeo se trata de extirpar as emoccedilotildees mas de lhes dar uma
justa medida vivecirc-las metriocircs e a virtude moral consiste justamente em
encontrar sua medida em funccedilatildeo e no meio das circunstacircncias em que se
produzem as accedilotildeesrdquo (ZINGANO 2007 p 144) Entende que isso
significa ldquoexaminaacute-lo [o paacutethos] mediante uma deliberaccedilatildeo pois a
virtude eacute uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha deliberadardquo (2007 p 165) A
virtude moral tem em vista o meio termo quanto agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees
porque nestas pode haver excesso falta e boa medida Dessa
possibilidade de variaccedilatildeo surgiu nossa necessidade de questionar a
doutrina na medida em que tal questionamento nos auxiliasse a resolver
as questotildees propostas por nossa pesquisa
Pelos estudos acima apresentados pudemos entender a mediania
relativamente a noacutes abarcando tanto especificaccedilotildees quantitativas como
115Essa questatildeo que parece segundo anaacutelise de Zingano (2008 p 92)
questionar a tese central do capiacutetulo II (ldquoa disposiccedilatildeo acompanha e em um
sentido relevante eacute dependente das accedilotildeesrdquo) seraacute respondida no item que trataraacute
dos haacutebitos 116EN I 1098a7-12 IX 1172a4-6 X I 1177b26-30 Pol 1253a25-28
126
qualitativas tendo em vista a circunstacircncia na qual a accedilatildeo precisa ser
cometida e que lhe fornece paracircmetros e possibilidades de ajuizamento
Deste modo determinar a mediania relativa a noacutes implica determinar
aquilo que as circunstacircncias relevantes em seu conjunto apontam tendo
em conta o fim buscado pelo agente Para que isso seja cumprido dever-
se-aacute fazer o que for preciso na hora certa na ocasiatildeo certa e do modo
certo (EN II 5 1106b21-22) Tal ideia eacute chamada por Hursthouse (2009
p 104) de ldquodoutrina centralrdquo da mediania e pode ser exemplificada do
seguinte modo conforme o proacuteprio Aristoacuteteles
[] eacute possiacutevel temer ter arrojo ter apetite
encolerizar-se ter piedade e em geral aprazer-se
e afligir-se muito e muito pouco e ambos de
modo natildeo adequado o quando deve a respeito de
quais relativamente a quem com que fim e como
deve eacute o meio termo e o melhor o que justamente
eacute a marca da virtude Similarmente haacute excesso
falta e meio termo no tocante agraves accedilotildees A virtude
diz respeito a emoccedilotildees e accedilatildeo nas quais o excesso
erra e a falta eacute censurada ao passo que o meio
termo acerta e eacute louvado acertar e ser louvado
pertencem agrave virtude (EN II 5 1106b18-26)117
No capiacutetulo anterior todavia foi mencionado que nem toda accedilatildeo
e nem toda emoccedilatildeo admite mediania No Livro IV da EN Aristoacuteteles
questiona se podemos realmente considerar a vergonha ou pudor (aidṓs)
como uma virtude118 jaacute que natildeo eacute possiacutevel ter boa medida quanto a ela
117 Isso eacute vaacutelido caso a interpretaccedilatildeo de Rapp (2010 p 424) esteja correta e se
quando Aristoacuteteles afirma que o meio termo eacute o padratildeo bom e correto quanto ao
contiacutenuo e o divisiacutevel estaacute a tratar das escalas contiacutenuas das emoccedilotildees e accedilotildees e
natildeo das virtudes e dos viacutecios Por isso natildeo haacute como encontrar escalas realmente
quantitativas entre virtudes e viacutecios mas podem ser encontradas entre emoccedilotildees
e accedilotildees
O passo supracitado tem traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original οἷον καὶ
φοβηθῆναι καὶ θαρρῆσαι καὶ ἐπιθυμῆσαι καὶ ὀργισθῆναι καὶ ἐλεῆσαι καὶ ὅλως
ἡσθῆναι καὶ λυπηθῆναι ἔστι καὶ μᾶλλον καὶ ἧττον καὶ ἀμφότερα οὐκ εὖ τὸ δ
ὅτε δεῖ καὶ ἐφ οἷς καὶ πρὸς οὓς καὶ οὗ ἕνεκα καὶ ὡς δεῖ μέσον τε καὶ ἄριστον
ὅπερ ἐστὶ τῆς ἀρετῆς ὁμοίως δὲ καὶ περὶ τὰς πράξεις ἔστιν ὑπερβολὴ καὶ
ἔλλειψις καὶ τὸ μέσον ἡ δ ἀρετὴ περὶ πάθη καὶ πράξεις ἐστίν ἐν οἷς ἡ μὲν
ὑπερβολὴ ἁμαρτάνεται καὶ ἡ ἔλλειψις [ψέγεται] τὸ δὲ μέσον ἐπαινεῖται καὶ
κατορθοῦται 118 Zingano levanta esse problema em seus Estudos de Eacutetica Antiga (2007 p
127
A questatildeo se impotildee porque o filoacutesofo considera as caracteriacutesticas
atreladas ao pudor mais proacuteximas daquelas que normalmente se daria a
uma afecccedilatildeo que igualmente atinge o corpo A vergonha cuja emoccedilatildeo
que lhe seria proacutepria levaria o mesmo nome seria distinta das demais
afecccedilotildees devido a ser identificada com aquilo que traria para o agente
medo da desonra ou um embaraccedilo diante das maacutes accedilotildees que este
comete Por isso o filoacutesofo considera que provavelmente seja
inadequado classificaacute-la como virtude moral jaacute que este tipo de
disposiccedilatildeo proacutepria ao homem bom natildeo comportaria maacutes accedilotildees A
despeito dessas questotildees o texto eacute sobremaneira interessante ao
concordar com as propostas dos tratados bioloacutegicos em especial com
aquelas do DA Vimos que esse escrito descreve um dos aspectos do
paacutethos como uma mudanccedila fiacutesica entre outras caracteriacutesticas e ressalta
tambeacutem que haveria emoccedilotildees moralmente neutras aleacutem daquelas que
seriam capazes de se adequar ao que eacute correto moralmente Diante
dessas dificuldades Sorabji explica que Aristoacuteteles
[] diz que o que conta muito ou pouco depende
de quem noacutes somos da ocasiatildeo do para quecirc e
para quem a nossa emoccedilatildeo eacute dirigida do resultado
provaacutevel e do modo de reagir Aleacutem disso ele
aponta que algumas emoccedilotildees como
Schadenfreude e inveja tecircm a ideia de maldade
construiacuteda nelas de modo que natildeo haacute espaccedilo para
a ideia de moderaccedilatildeo em exercecirc-las (SORABJI
2000 p 195 traduccedilatildeo nossa)
Algumas destas emoccedilotildees satildeo denominadas precisamente por sua
vileza caso da inveja Esse tipo de paacutethos eacute censurado devido ao fato de
ser vil e natildeo por ser excessivo ou em falta ou provavelmente seja
censurado por excesso ou falta devido ao fato de romper com os
paracircmetros propostos pela racionalidade praacutetica para natildeo exceder nem
faltar Tal rompimento caracterizaria uma extrapolaccedilatildeo dos padrotildees para
a boa medida e sinalizaria errar tambeacutem no direcionamento da emoccedilatildeo
aos objetos que lhe correspondem naquilo que as circunstacircncias que
envolvem as emoccedilotildees exigem ser apreciado e natildeo somente nas
lsquoquantidadesrsquo ou na lsquointensidadersquo de emoccedilatildeo sentida Estatildeo em jogo
como propusemos anteriormente as falhas quantitativas mas tambeacutem as
falhas qualitativas e de avaliaccedilatildeo que o agente que delibera pode
165) embora natildeo lhe traga soluccedilatildeo
128
cometer ao se emocionar Por exemplo somos censurados por nos
enfurecer muito ou muito pouco e por isso levar a uma accedilatildeo errada bem
como somos censurados por nos enfurecer contra muitas pessoas ou
contra a pessoa errada Rapp (2010 p 430) no entanto observa que a
doutrina parece se adequar melhor ao primeiro caso que eacute quantitativo
embora pense que com uma anaacutelise proacutexima a questatildeo quantitativa
pareccedila duvidosa Segundo este estudioso
[] haacute dois tipos de problemas com os casos
quantitativos os quais podem ser resolvidos
somente se os equipararmos ao qualitativo O
primeiro problema eacute que a quantidade de uma
accedilatildeo ou emoccedilatildeo pode se manifestar de muitos
modos distintos pode ser questatildeo de sentir
intensamente de forccedila motivacional de duraccedilatildeo
ou frequecircncia enquanto a frequecircncia por sua vez
pode ser medida pelas ocorrecircncias pelo nuacutemero
de pessoas envolvidas pelo nuacutemero de ocasiotildees
pelo nuacutemero de lugares etc excesso nestes
vaacuterios aspectos corresponde a diferentes tipos de
falhas Neste sentido as descriccedilotildees quantitativas
em separado de que algueacutem estaacute lsquoenfurecido
demaisrsquo ou lsquoage enfurecidamente demaisrsquo satildeo
eliacutepticas Quando reprovamos algueacutem por sua
raiva excessiva ou por agir muito raivosamente
deveriacuteamos em princiacutepio poder explicar o
sentido ou o conjunto de sentidos em que as
reaccedilotildees raivosas dele satildeo excessivas O segundo
problema traz agrave tona uma outra razatildeo de por que
descriccedilotildees quantitativas em separado satildeo
incompletas quando algueacutem se enraivece em
muitas ocasiotildees e com muitas pessoas podemos
reprovaacute-lo por raiva excessiva Mas quantas
ocasiotildees e pessoas satildeo o bastante e quando isto
comeccedila a ser excessivo Quando realmente
ultrapassamos o nuacutemero moderado de ocasiotildees ou
pessoas Talvez a nossa pessoa enraivecida encare
mais ofensas e insultos que uma pessoa comum
ela natildeo estaria portanto justificada em enfurecer-
se mais frequentemente Eacute oacutebvio que estaacute A fatal
poreacutem inevitaacutevel conclusatildeo eacute que o nuacutemero
absoluto ou a quantidade absoluta natildeo pode nos
informar quando as coisas se tornam deficientes
ou excessivas Sempre que precisamos julgar o
129
grau de raiva de uma pessoa devemos saber se ela
estaacute enraivecida somente com as pessoas que
merecem isto ou se com mais pessoas se ela se
enfurece somente por razotildees respeitaacuteveis ou se
suas reaccedilotildees satildeo apropriadas ou exageradas se ela
se acalma depois de um periacuteodo razoaacutevel de
tempo ou se natildeo tem como dar a volta por cima
etc Podemos concluir entatildeo que a imputaccedilatildeo de
deficiecircncia ou excesso quantitativo em casos
como este depende em uacuteltima instacircncia do caacutelculo
de falhas especificadas qualitativamente (RAPP
2010 p 430-431)
Esse tipo de interpretaccedilatildeo parece razoaacutevel e reforccedila a proposta da
teoria da boa medida como relativa a noacutes amparada na situaccedilatildeo na
bondade do agente e do fim por este procurado garantida por sua
capacidade de boa deliberaccedilatildeo ou prudecircncia visando natildeo um nuacutemero
especiacutefico que aponte como agir corretamente mas paracircmetros e
avaliaccedilotildees que indiquem o agir deste ou daquele modo Aristoacuteteles
contudo insiste que em relaccedilatildeo agraves paacutethē que trazem a maldade desde o
nome natildeo haacute como acertar sendo que quem as sente sempre erra
Entendemos que tais emoccedilotildees satildeo decorrentes dos desejos que natildeo
ouvem ou que ouvem pouco a razatildeo quando natildeo satildeo educados para a
virtude e que acabam por falhar em seu caacutelculo para a boa accedilatildeo Assim
eacute possiacutevel ao filoacutesofo elaborar uma lista dos meios termos ou seja das
virtudes quanto a certas emoccedilotildees fazendo o mesmo em relaccedilatildeo agraves
accedilotildees que devem ser moderadas Estas satildeo descritas no resumo das
virtudes morais apresentado pelo Livro II 7 da EN assim como nos
livros que seguem (EN III-V) quando descrevem em maiores detalhes
aquelas que se costuma chamar virtudes morais
As virtudes morais particulares dizem respeito ao comportamento
relativo agraves emoccedilotildees particulares como bem observa Hutchinson mas
sem esquecer que isso diz respeito agrave forma de conduzir tais emoccedilotildees
diante das situaccedilotildees que se apresentam Por exemplo em tal suma lemos
que a boa medida quanto ao medo e ao arrojo eacute a coragem enquanto em
relaccedilatildeo agrave raiva seria o que geralmente eacute chamado de calma O que
importa nas listas que descrevem as virtudes poreacutem eacute notarmos que a relaccedilatildeo do homem com as emoccedilotildees que sente confirma a proposta
acerca da relevacircncia da presenccedila de emoccedilotildees moderadas quantitativa e
qualitativamente na boa vida moral e da relevacircncia que o entorno e sua
avaliaccedilatildeo tecircm nessas emoccedilotildees ldquoA quantidade correta depende de
paracircmetros que nos concernem ou que concernem a todos que se
130
encontram na mesma situaccedilatildeo que nos encontramosrdquo explica Rapp
(2010 p 431-432) Os paracircmetros salvam tambeacutem o aspecto mais
concreto da doutrina da boa medida como virtude moral havendo
compatibilidade nas duas propostas A aplicaccedilatildeo destes padrotildees agraves
emoccedilotildees permite o ldquocaacutelculordquo da medida nas emoccedilotildees conciliando
novamente os aspectos quantitativos e qualitativos da doutrina dentro da
proposta da metriopaacutethēia bem como permite que a teoria seja aplicada
agraves accedilotildees
A uacutenica quantidade que interessa eacute a quantidade
de reaccedilotildees inapropriadas natildeo a quantidade
absoluta digamos de prazeres que fruiacutemos
somente quando confundimos estes tipos de
escalas quantitativas podemos pensar que falhas
do tipo quantitativo tais como comer doces
demasiadamente beber ouzo demasiadamente
dormir com muitas mulhereshomens etc satildeo
paradigmas para a caracterizaccedilatildeo aristoteacutelica da
virtude e do viacutecio Mas em verdade natildeo faz uma
grande diferenccedila para a doutrina se por exemplo
a nossa fruiccedilatildeo excessiva de prazeres do corpo
tem por base a fruiccedilatildeo de coisas erradas ou de
coisas demais cada uma destas uacuteltimas podendo
ser boa ou beneacutefica em separado (RAPP 2010 p
437)
Soacute se pode dizer que se sente muito ou muito pouco se as
emoccedilotildees satildeo corretas ao se analisar os paracircmetros e as circunstacircncias
por intermeacutedio do caacutelculo deliberativo que leva agrave escolha deliberada do
modo de accedilatildeo A questatildeo da medida nas emoccedilotildees eacute portanto mais a
questatildeo da natildeo violaccedilatildeo dos paracircmetros para a accedilatildeo que da quantidade
exata entre excessos e faltas Para esclarecer o que propomos podemos
dar um exemplo o do homem virtuoso e que encontra a boa medida em
suas emoccedilotildees A descriccedilatildeo estaacute na Retoacuterica e nos apresenta o perfil dos
cidadatildeos que estatildeo no auge da vida Estes homens natildeo satildeo muito
confiantes (temeraacuterios) nem muito temerosos tecircm a justa medida nestas
emoccedilotildees natildeo confiam ou desconfiam de tudo emitem juiacutezos conforme
a verdade natildeo vivem somente para o belo ou para o uacutetil mas para
ambos natildeo vivem apenas para a frugalidade nem para a prodigalidade
mas para o justo meio
O mesmo acontece em relaccedilatildeo ao seu impulso e ao seu apetite
adultos tecircm sua temperanccedila acompanhada de coragem e vice-versa
131
Diferem dos jovens que satildeo valentes e licenciosos e dos idosos que satildeo
moderados e covardes Portanto o homem no auge da vida eacute modelo da
virtude moral que eacute o bem agir diante das emoccedilotildees sentidas nas
circunstacircncias vividas Tal homem eacute a expressatildeo do bom estado da alma
natildeo racional que pensamos ser impossiacutevel sem o acordo com a
capacidade racional representada pela prudecircncia sendo modelo
igualmente da influecircncia das circunstacircncias que natildeo satildeo as mesmas para
quem se encontra no ponto alto de sua existecircncia na melhor forma de
suas capacidades e para aqueles que ainda satildeo demasiado jovens ou que
jaacute satildeo demasiado velhos
O auge da vida exige uma razatildeo reta capaz de discriminar
(kriacutenein) corretamente situaccedilotildees particulares encontrar o meio termo
desejado e buscado com a accedilatildeo Aggio propotildee que isso soacute acontece agrave
pessoa que tenha preparaccedilatildeo afetiva preacutevia sendo afetivamente capaz de
ver o que eacute melhor A autora entende que usar bem a razatildeo depende de
um bem-estar afetivo ou do bom estado da capacidade natildeo racional
como Rapp e a sua leitura da boa medida igualmente nos propotildeem
ldquoMas o que eacute o modo certo e as vezes certas e quem eacute a pessoa certa
depende do tipo de situaccedilatildeo e contexto em que agimosrdquo (AGGIO 2017
no prelo) Isso nos leva a entender que o conceito de meio termo relativo
a noacutes foi elaborado para abarcar a ideia do conteuacutedo dos mencionados
paracircmetros e por isso pode variar conforme as circunstacircncias para a boa
accedilatildeo - mas natildeo sem ter o bem supremo em vista
Uma quantificaccedilatildeo do que eacute bom ou mau natildeo eacute usada para
determinar paracircmetros individuais na doutrina esta apresenta as
condiccedilotildees nas quais as solicitaccedilotildees da capacidade natildeo racional da alma e
as accedilotildees que lhes correspondem sejam tomadas como boas ou corretas
Valendo-nos ainda do exemplo do homem no auge da vida eacute possiacutevel
dizer que estaacute afetivamente apto tanto para ter juiacutezos corretos frente agraves
situaccedilotildees quanto para por em acordo suas afecccedilotildees e sua razatildeo Para que
tal acordo aconteccedila eacute preciso estar disposto para tal coisa ou seja ver o
que eacute bom a ser feito depende de querer ver tal coisa Esse tipo de visatildeo
implica virtude completa pois somente uma pessoa virtuosa consegue
distinguir por si mesma o que eacute melhor Por isso uma pessoa virtuosa
age bem e como consegue ver o que deve fazer como explica a citaccedilatildeo
que segue
Por exemplo trata-se de ser coleacuterico o suficiente
para saber bem se vingar ou se defender de uma
ofensa de ser moderado o suficiente i e na justa
medida para desfrutar no momento oportuno de
132
prazeres saudaacuteveis de ser bem disposto a
enfrentar a dor de modo a ver o que eacute corajoso a
ser feito trata-se de perceber que uma dada
situaccedilatildeo exige uma accedilatildeo generosa e de desejar
realizaacute-la mas tal sensibilidade moral depende de
jaacute haver uma disposiccedilatildeo generosa para tanto e
assim por diante com relaccedilatildeo agraves outras virtudes
particulares e suas respectivas emoccedilotildees e desejo
As coisas assim nos aparecem conforme a
disposiccedilatildeo que temos em percebecirc-las e o estado
afetivo em que nos encontramos (AGGIO 2017
no prelo)
Acrescentamos a esta proposta de acordo com os intuitos de
nosso estudo que desejar bem e retamente faculta se emocionar bem e
retamente mas ainda precisamos investigar certas questotildees para
continuar a admitir com seguranccedila que satildeo a razatildeo e afetos que
determinam em conjunto o agir Embora pareccedila plausiacutevel existem ainda
as tantas apostas de Aristoacuteteles na razatildeo para nos fazer pensar mais um
pouco sobre a questatildeo Contudo Aggio pensa que mais que conhecer o
que eacute certo para agir moralmente bem eacute preciso que os afetos
determinem o que importa moralmente A accedilatildeo correta depende do
engajamento afetivo porque a razatildeo natildeo conduz direta ou indiretamente
os afetos ela vecirc o que eacute certo porque se tem uma tendecircncia afetiva para
tanto Quando as afecccedilotildees se tornam disposiccedilotildees eacute possiacutevel agirem
como padrotildees ou regularidades sendo modos de raciocinar e perceber
Quando o momento exige tomar uma atitude quem dita o melhor a ser
feito satildeo o desejo reto e a reta razatildeo E com isso uma accedilatildeo natildeo seria
movida por princiacutepios do intelecto caso natildeo fosse afetivamente
engajada
Assim as afecccedilotildees seriam determinantes para a atribuiccedilatildeo do
valor moral agrave accedilatildeo porque na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees resultam das
afecccedilotildees que estatildeo em sua origem Estes tecircm a ver com prazer e dor
com o desejo por buscar ou evitar alguma coisa e Aristoacuteteles frisa o
desejo como princiacutepio da accedilatildeo Nossa cautela nesse momento ainda nos
leva a pensar na questatildeo da necessidade da boa associaccedilatildeo entre razatildeo e
afecccedilotildees para a boa accedilatildeo mas foi por percebermos a possibilidade desse destaque da afecccedilatildeo na vida moral que decidimos tratar a questatildeo
poreacutem com relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees entendidas como emoccedilotildees No entanto
devemos finalizar nossa discussatildeo das relaccedilotildees das virtudes com as
paacutethē ateacute mesmo para podermos nos posicionar melhor quanto ao
assunto Por isso abordaremos a mencionada disposiccedilatildeo em perceber o
133
que eacute correto e conveniente e sua ligaccedilatildeo com as emoccedilotildees
4 Virtudes intelectuais satildeo necessaacuterias agraves virtudes morais e para a
ldquoboa formardquo das emoccedilotildees
Tendo em vista que a virtude eacute necessaacuteria agrave eudaiacutemōniacutea que a
vida excelente plenamente parece ser considerada por Aristoacuteteles a vida
conforme a razatildeo e que a virtude moral natildeo pode existir sem a razatildeo119
trataremos agora do modo como a razatildeo praacutetica pode comandar ou
segundo nossa proposta andar junto com as emoccedilotildees conferindo-lhes a
boa medida proacutepria agrave virtude moral e agrave virtude completa ldquoE jaacute que de
fato noacutes dissemos mais acima que devemos escolher o meio termo e
natildeo o excesso ou a falta e que o meio termo eacute conforme o que enuncia a
reta razatildeo analisemos agora esse uacuteltimo pontordquo (EN VI 1 1138b18-
20)120 O que seria a reta razatildeo (orthograves loacutegos)
Em todas as disposiccedilotildees morais discutidas haacute certa finalidade que
fixa sua regra fazendo com que o homem que estaacute em posse da reta
razatildeo intensifique ou relaxe seus esforccedilos Por conseguinte existe um
princiacutepio que determina as medianias permitindo que estejam em
acordo com a mencionada regra mas Aristoacuteteles bem como noacutes pensa
que o assunto ainda carece de atenccedilatildeo Embora seja verdade afirmar que
se deva empregar a justa medida nos esforccedilos saber disso nada
acrescenta ao conhecimento eacute preciso determinar a reta razatildeo
Aristoacuteteles nos fala de virtudes morais e intelectuais As
primeiras foram tratadas mas falta falar das virtudes intelectuais e de
sua importacircncia na vida moralmente boa jaacute que destacamos a
imprescindibilidade da capacidade natildeo racional em tal vida Em EN VI
119 Como observa Zingano (2008 p 24) e como vimos no capiacutetulo anterior eacute
preciso moderaccedilatildeo nas emoccedilotildees ou seja uma boa habituaccedilatildeo para que a razatildeo
tenha ao menos a possibilidade de atuar Isso sinaliza a postura contraacuteria ao
racionalismo socraacutetico defendida por Aristoacuteteles pensa o estudioso O mesmo
estudioso no mesmo estudo (2008 p 75) explica que a virtude moral depende
da razatildeo para poder operar sendo que a razatildeo aperfeiccediloa a virtude moral Por
isso acatamos a proposta de Zingano um estudo da phroacutenēsis ainda que breve
como o propomos completa o estudo da virtude moral jaacute que eacute esta virtude
intelectual que faz a aretḗ eacutetica completa 120 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Ἐπεὶ δὲ τυγχάνομεν πρότερον εἰρηκότες ὅτι δεῖ τὸ μέσον
αἱρεῖσθαι μὴ τὴν ὑπερβολὴν μηδὲ τὴν ἔλλειψιν τὸ δὲ μέσον ἐστὶν ὡς ὁ λόγος ὁ
ὀρθὸς λέγει τοῦτο διέλωμεν
134
1 o filoacutesofo estabelece uma divisatildeo como aquela das capacidades alma
para o racional comeccedilando com a admissatildeo de que satildeo duas as lsquopartesrsquo
da alma racional Uma delas eacute responsaacutevel pela contemplaccedilatildeo dos seres
que natildeo podem ser de outro modo a outra eacute responsaacutevel pelo
conhecimento das coisas contingentes (EN VI 2 1139a5-8) sendo que
isso eacute possiacutevel caso seja verdade que haacute certo tipo de semelhanccedila e de
afinidade entre o sujeito e o objeto que se daacute ao conhecimento como
proposto tambeacutem no DA
Uma dessas capacidades (ou (sub)capacidades como propusemos
para as virtudes morais) eacute chamada cientiacutefica outra calculativa na
medida em que deliberar e calcular satildeo o mesmo e cada uma apresenta
virtude proacutepria Jaacute vimos no Capiacutetulo anterior a relaccedilatildeo das coisas que
segundo EN VI 2 controlam a accedilatildeo e a verdade quais sejam percepccedilatildeo
intelecto e desejo e que Aristoacuteteles a princiacutepio exclui a percepccedilatildeo
sensiacutevel como responsaacutevel por aquelas accedilotildees consideradas moralmente
por ser compartilhada por todos os animais Precisamos agora
estabelecer o modo como as outras duas coisas intelecto e desejo
podem se relacionar bem concedendo a forma adequada ao desejo que
conduziraacute agrave procura pelo fim correto e pela boa accedilatildeo e para tanto
deveremos ver a importacircncia das virtudes intelectuais na moralidade
Precisamos analisar essa possibilidade jaacute que Aristoacuteteles mais
adiante nas discussotildees do Livro VI 10 apresenta a possibilidade de
objeccedilatildeo agrave necessidade das virtudes intelectuais junto a uma vida feliz
Isso inviabilizaria as propostas que temos feito a partir de EN I 13
trecho que indica uma alma una na qual a capacidade desiderativa seria
apta a ouvir a razatildeo portanto devemos buscar sair desse embaraccedilo
Podemos comeccedilar nossa empreitada observando que Aristoacuteteles em VI
3 menciona cinco estados ou virtudes intelectuais pelos quais a alma
enuncia o que eacute verdadeiro por afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo arte (teacutechnē)
ciecircncia (episteacuteme) prudecircncia (phroacutenēsis) sabedoria (sophiacutea) e intelecto
(noucircs) Mesmo que o filoacutesofo pareccedila admitir a sabedoria121 como maior
e mais excelente das virtudes humanas a virtude intelectual que estaacute
relacionada diretamente agrave boa accedilatildeo (eupraxiacutea) e consequentemente agraves
emoccedilotildees moderadas eacute agrave prudecircncia Neste estudo natildeo analisaremos
121 De acordo com a interpretaccedilatildeo feita por Tricot a virtude mais perfeita eacute a
sophiacutea virtude mais alta da parte intelectual humana Reeve parece
compartilhar dessa opiniatildeo de certo modo pois natildeo a entende como virtude
mais completa (REEVE 2013 p 27) Embora Zingano (2007 p 160) observe
que eacute possiacutevel que a mais alta virtude mencionada pelo filoacutesofo possa ser uma
junccedilatildeo de sophiacutea e phroacutenēsis o que nos parece mais plausiacutevel
135
especificamente a sabedoria porque segundo o filoacutesofo natildeo se dedica a
nenhum dos meios que permitem ao homem ser feliz dados os seus
objetos Eacute de se presumir no entanto que o detentor de tal virtude
intelectual tenha as demais virtudes inclusive aquelas relativas agraves
emoccedilotildees moderadas devido ao caraacuteter uno da psychḗ humana Parece
ser isso que podemos ler no passo escrito por Reeve acerca das virtudes
da capacidade racional da alma humana proposta pela EN trecho que
subscrevemos
Juntas essas duas partes compotildeem a parte da alma
que tem razatildeo (logos) porque esta pode dar
razotildees que justificam e explicam
A funccedilatildeo de cada subparte racional eacute conhecer a
verdade confiaacutevel (239b12-13) No caso da parte
cientiacutefica (ou da contemplativa ou do pensamento
teoacuterico que ela capacita) a verdade em questatildeo eacute a
verdade totalmente familiar naquele da parte
calculativa (ou pensamento praacutetico) eacute a verdade
praacutetica ou determinante-da-accedilatildeo que eacute ldquoverdade
em conformidade como desejo corretordquo (239a17-
35) Desde que uma virtude eacute apenas algo que
capacita seu detentor a cumprir ou completar bem
sua funccedilatildeo satildeo essas funccedilotildees que tecircm as chaves
para as virtudes do pensamento (139a16-17) e
entatildeo para o tipo de razatildeo eticamente correta
procurada (REEVE 2013 p 4 traduccedilatildeo nossa)
Embora como observa Reeve (2013 p 1) seja difiacutecil determinar
o papel da razatildeo teoacuterica na moralidade suspeitamos que tal relaccedilatildeo
exista necessariamente Todavia por motivo das propostas que
defendemos nesse estudo nesse momento trataremos a phroacutenēsis devido
agrave sua atuaccedilatildeo evidente junto agrave vida feliz e doravante apontaremos
quando possiacutevel e necessaacuterio indiacutecios de que a sabedoria teoacuterica
participa da virtude completa que viabiliza a boa vida
4a) A prudecircncia
Dissemos muitas vezes que natildeo haacute virtude moral sem prudecircncia
Mas qual a utilidade desta para a vida moral se a maioria dos homens
parece estar sob o domiacutenio das capacidades natildeo racionais da alma e se
Aristoacuteteles cede agrave virtude moral a indicaccedilatildeo do fim a ser buscado pelo
agente Aristoacuteteles responde a partir de VI 7 (mas a proposta aparece
136
tambeacutem em III 4 5 e 7) que a prudecircncia eacute uacutetil agrave vida moral por analisar
os meios que permitem ser feliz tendo por objeto as coisas justas belas
e boas para o homem Sendo assim quando Aristoacuteteles escreve que a
razatildeo sozinha nada move escreve tambeacutem que a razatildeo praacutetica associada
ao desejo move
A associaccedilatildeo das capacidades desiderativa e racional da alma
esta representada ao menos pela razatildeo praacutetica que retifica os desejos
pelos fins ajusta o caacutelculo dos meios e a escolha do meio mais eficiente
de agir para alcanccedilar o bom fim proposto pelo desejo retificado graccedilas agrave
sua docilidade agrave razatildeo praacutetica como veremos e defenderemos Esse tipo
de interpretaccedilatildeo nos forccedila a ver as possibilidades de entendimento da
virtude da razatildeo praacutetica chamada prudecircncia de seus objetos e de sua
funccedilatildeo junto a uma vida boa moralmente
Um modo de compreender melhor o papel moral da prudecircncia e o
que ela eacute passa pela consideraccedilatildeo de quem satildeo os prudentes A opiniatildeo
geral - com a qual Aristoacuteteles parece concordar - eacute que o prudente tem a
capacidade de bem deliberar quando estaacute em jogo o que eacute vantajoso e
bom para o homem A prudecircncia eacute ldquouma disposiccedilatildeo acompanhada da
regra justa capaz de agir na esfera do que eacute bom ou mau para um ser
humanordquo (EN VI 5 1140b4-5)122 O cidadatildeo que apresenta essa virtude
intelectual eacute dotado de reta razatildeo e por isso eacute capaz de deliberar sobre
as coisas que levam agrave boa accedilatildeo e agrave vida feliz Sendo assim de um modo
geral eacute possiacutevel classificar o prudente como o homem capaz de
deliberaccedilatildeo A prudecircncia estaacute ligada igualmente ao agir eacutetico e por isso
Wolf (2010 p 152) entende que viver exercendo a virtude moral eacute uma
forma de eudaiacutemōniacutea pois para a realizaccedilatildeo plena desse tipo de vida
natildeo basta ter a virtude da capacidade desiderativa Para que haja a boa
accedilatildeo eacute preciso haver aquilo que a autora chama de ldquoboa compleiccedilatildeo
constitutivardquo da capacidade desiderativa e tambeacutem a virtude intelectual
definidora do exerciacutecio da virtude moral que eacute a prudecircncia Por isso
Aristoacuteteles escreve A phroacutenēsis eacute uacutetil agrave vida moral por indicar os
meios de se alcanccedilar um fim desejado pois o fim
eacute da alccedilada da virtude moral a obra proacutepria do
homem natildeo eacute totalmente acabada senatildeo em
conformidade com a prudecircncia e com a virtude a
virtude moral eacute com efeito garantia da retidatildeo do
122 Traduccedilatildeo para o portuguecircs nossa feita a partir da traduccedilatildeo francesa feita por
Tricot (2012) No original ἕξιν ἀληθῆ μετὰ λόγου πρακτικὴν περὶ τὰ ἀνθρώπῳ
ἀγαθὰ καὶ κακά
137
fim que buscamos e a prudecircncia aquela dos meios
para alcanccedilar esse fim (EN VI 13 1144a6-9)123
Segundo Hutchinson (2009 p 270) mais que propor meios a
prudecircncia torna a virtude moral sensata jaacute que os princiacutepios de nossas
accedilotildees satildeo os fins aos quais tendem nossos atos e estes princiacutepios
necessitam de tal sensatez Ela eacute a virtude da capacidade da alma apta a
calcular (tograve logistikoacuten) os meios implicada tanto na accedilatildeo quanto na
produccedilatildeo porque o caacutelculo ou deliberaccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o que pode
ser de outro modo sendo que a accedilatildeo moral e a produccedilatildeo satildeo do acircmbito
do que eacute variaacutevel A prudecircncia natildeo pode ser esquecida e eacute caracterizada
como a virtude intelectual que tem por objeto os universais mas que
deve tambeacutem ter o conhecimento dos fatos particulares pois sendo da
ordem da accedilatildeo estaacute relacionada com as coisas particulares (EN VI 8
1141b9-16) Por conseguinte a prudecircncia precisa do conhecimento do
universal e dos particulares mas o prudente deve saber
preferencialmente daquilo que estaacute relacionado ao particular imediato
ou uacuteltimo que eacute objeto de um tipo de percepccedilatildeo (aiacutesthēsis) do particular
mas um tipo de percepccedilatildeo tida como na percepccedilatildeo um ente matemaacutetico
diferenciando-se da percepccedilatildeo dos sensiacuteveis proacuteprios como explica o
DA III 10 433a16-17
Assim na prudecircncia ou melhor na deliberaccedilatildeo da qual eacute em
parte constituiacuteda haacute percepccedilatildeo daquilo que eacute uacuteltimo mas primeiro na
accedilatildeo124 Tal percepccedilatildeo explica Reeve (2013 p 3 2014 p 211) capta
algo uacutenico ou universal entre uma multidatildeo de coisas particulares com
o auxiacutelio da capacidade perceptiva da alma como veremos no proacuteximo
Capiacutetulo De acordo com essas descriccedilotildees eacute possiacutevel entender a
prudecircncia portanto como
[] a virtude intelectual chamada sabedoria
praacutetica cuja funccedilatildeo eacute permitir-nos saber a maneira
correta de nos comportar Embora a sabedoria
praacutetica natildeo seja ela proacutepria uma virtude moral
estaacute intimamente associada com as virtudes
morais [] Como resultado de tudo isso a
sabedoria praacutetica eacute uma apreciaccedilatildeo do que eacute bom
e mau para noacutes no niacutevel mais alto acrescida de
123 Idem ἔτι τὸ ἔργον ἀποτελεῖται κατὰ τὴν φρόνησιν καὶ τὴν ἠθικὴν ἀρετήν ἡ
μὲν γὰρ ἀρετὴ τὸν σκοπὸν ποιεῖ ὀρθόν ἡ δὲ φρόνησις τὰ πρὸς τοῦτον 124 Para uma discussatildeo mais detalhada das diferenccedilas e similaridades entre
percepccedilatildeo comum e percepccedilatildeo deliberativa ver Reeve (2014 p 213)
138
uma correta assimilaccedilatildeo dos fatos da experiecircncia e
da habilidade de fazer de maneira raacutepida e
confiaacutevel as inferecircncias corretas sobre como
aplicar nosso conhecimento moral geral a nossa
situaccedilatildeo particular Ela eacute usada em nossos
proacuteprios casos quando somos obrigados a manter
certo modo de accedilatildeo Obviamente ela eacute um recurso
muito importante se a tiveacutessemos noacutes sempre
agiriacuteamos de maneira correta e nossas vidas
seriam proacutesperas e felizes (HUTCHINSON 2009
p 267-269)
Apoacutes expor brevemente a relaccedilatildeo de necessidade entre a virtude
intelectual da prudecircncia e a virtude moral devemos prosseguir em nossa
investigaccedilatildeo Vale avisar que explicaremos melhor a relaccedilatildeo da
prudecircncia com o particular e o universal mas no momento a exposiccedilatildeo
que fazemos da virtude intelectual em questatildeo solicita que a
explicitemos o modo como capacita o homem a agir bem graccedilas a ter a
boa deliberaccedilatildeo (eubouliacutea) por peculiaridade Com seu caacutelculo bem
executado a prudecircncia associada agrave virtude moral possibilita que as
accedilotildees sejam perfeitas permitindo mesmo a completude da virtude
humana pois leva a agir seguindo boas razotildees Assim sendo a
deliberaccedilatildeo necessaacuteria agrave determinaccedilatildeo racional que faraacute dos atos
corretos eacute preciso analisaacute-la ainda que brevemente
4b) Deliberaccedilatildeo
As propostas indicam que a funccedilatildeo a ser exercida pelo prudente eacute
a deliberaccedilatildeo ou melhor a boa deliberaccedilatildeo sendo esta uma espeacutecie de
pesquisa ou caacutelculo que apontaraacute ao agente suas possibilidades de accedilatildeo
para que sua procura por um fim resulte bem-sucedida Quem delibera
busca os meios convenientes para as accedilotildees e nesse caso o conveniente eacute
o bom mas o que eacute objeto de deliberaccedilatildeo (bouacuteleusis) ldquoDeliberar
entatildeo diz respeito agraves coisas que ocorrem nas mais das vezes mas nas
quais eacute obscuro como resultaratildeo e agravequelas nas quais eacute indefinido como
resultaratildeordquo (EN III 5 1112b8-9)125 Por isso se nas accedilotildees cabe variaccedilatildeo
para agir bem quanto aos assuntos incertos eacute preciso deliberar bem agrave
eacutetica de Aristoacuteteles eacute imprescindiacutevel apontar bons meios que seratildeo
escolhidos e que poratildeo por fim o cidadatildeo a agir Vimos que nesta eacutetica
125 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original τὸ βουλεύεσθαι δὲ ἐν τοῖς ὡς ἐπὶ
τὸ πολύ ἀδήλοις δὲ πῶς ἀποβήσεται
139
a capacidade mesma de adotar os meios corretos de agir que iniciam
com a deliberaccedilatildeo consiste na ideia de responsabilidade Quando o
agente prefere certos meios por deliberaccedilatildeo pode vir a se tornar senhor
de suas accedilotildees como explicitaremos melhor adiante
Mas qual a natureza da boa deliberaccedilatildeo Quem delibera bem o
faz corretamente e por isso a boa deliberaccedilatildeo eacute um tipo de retidatildeo na
procura e indicaccedilatildeo dos meios para alcanccedilar determinados fins O bem
deliberar eacute um tipo de retidatildeo de pensamento mas natildeo eacute ainda uma
asserccedilatildeo pois o homem que delibera bem calcula e investiga alguma
coisa Se a eubouliacutea eacute correccedilatildeo no deliberar a bouacuteleusis propriamente
dita eacute a forma correta de analisar racionalmente os meios uacuteteis para a
realizaccedilatildeo de um fim Esse tipo de caacutelculo parte do objetivo uacuteltimo da
accedilatildeo concebendo modos de alcanccedilaacute-lo ateacute se entender o que realmente
eacute possiacutevel fazer Quem delibera analisa e ao fim de tal anaacutelise chega ao
que eacute primeiro na execuccedilatildeo da accedilatildeo a escolha deliberada do meio que
conduziraacute ao fim mas quando o deliberador se depara com algo
impossiacutevel a investigaccedilatildeo eacute suspensa Em contrapartida caso se depare
com algo possiacutevel a accedilatildeo eacute posta em curso Por conseguinte os objetos
da bouacuteleusis satildeo os instrumentos de accedilatildeo sua utilizaccedilatildeo e o meio pelo
qual a accedilatildeo ocorreraacute buscando ser bem-sucedida Deliberando portanto
o homem pode ser considerado princiacutepio das accedilotildees que comete porque
a deliberaccedilatildeo estaacute relacionada a coisas que podem ser feitas pelos
proacuteprios esforccedilos (EN III 6 1113a3-12)
Com as observaccedilotildees feitas acima expressamos em linhas gerais a
deliberaccedilatildeo quais satildeo seus objetos e determinamos que estatildeo
relacionados agraves coisas que conduzem aos fins Como explicita VI 8 a
deliberaccedilatildeo eacute a capacidade do prudente que apresenta uma consideraccedilatildeo
(hypoacutelēpsis) verdadeira e por isso entendemos o deliberar como segundo
passo rumo ao alcance de um fim pois o desejo eacute o iniacutecio e ocorre antes
da anaacutelise dos meios A deliberaccedilatildeo eacute expressa sob a forma loacutegica do
silogismo praacutetico que eacute concluiacutedo com a accedilatildeo (EN VII 5 1147a25-31)
sendo este silogismo considerado por Reeve (2014 p 202 210) um
plano para a accedilatildeo126 Em tal plano a premissa universal eacute apresentada ao
agente como um bem (ou como o bem supremo) pois segundo o autor e
como explicita o DA III 10 433b21-27 eacute preciso que haja um ponto fixo
126 Reeve descreve tal silogismo do seguinte modo ldquoPremissa maior definiccedilatildeo
de felicidade
Premissa menor decreto
Conclusatildeo accedilatildeordquo (REEVE 2013 p 9)
140
ou uma espeacutecie de motor imoacutevel que ponha a accedilatildeo em movimento127
Neste caso tal ponto fixo seria o desejo pela felicidade (ou pelo fim que
percebemos como nosso condutor agrave felicidade DA III 11 434a16-20
EN VI 3 1139b17-18) Haveria ainda sob esta foacutermula loacutegica da accedilatildeo
gerada pela deliberaccedilatildeo opiniotildees ou juiacutezos que poderiam ser verdadeiros
ou falsos como nos informa VI 11 constituintes da premissa menor
sendo uma questatildeo de percepccedilatildeo praacutetica assunto do qual trataremos um
pouco mais detidamente no Capiacutetulo III A premissa menor eacute proposta
por Reeve como um decreto (2014 p 210) que antecede a escolha que
resultaraacute na accedilatildeo Por isso na sequecircncia desse processo deve haver a
escolha deliberada do meio para conseguir o fim desejado Por
conseguinte a escolha deliberada eacute o ldquoato de pesar razotildees rivaisrdquo
(ZINGANO 2007 p 158) quanto aos meios para alcanccedilar aquilo que eacute
desejado e por isso a analisaremos brevemente
4c) Escolha deliberada
A escolha deliberada (proaiacuteresis) eacute exclusividade dos animais
humanos nos quais a razatildeo exerce adequadamente seu papel Aristoacuteteles
a define em VI 2 por relaccedilatildeo ao desejo classificando-a como desejo
deliberado (oacuterexis dianoetikeacute) ou intelecto desejante (orektikograves noucircs)
por ser um tipo de desejo formado apoacutes o processo de deliberaccedilatildeo apoacutes
o agente considerar o modo mais adequado de agir para alcanccedilar seu
objetivo Por isso segundo Besnier (2008 p 90) a escolha deliberada eacute
o momento em que eacute possiacutevel que a capacidade natildeo racional da alma
escute a razatildeo praacutetica deixando-se levar por ela Ou ainda melhor eacute o
momento no qual tal capacidade pode se unir agrave razatildeo praacutetica e se
determinar pelas razotildees por ela propostas levando agrave accedilatildeo virtuosa Por
exemplo o continente escolhe deliberadamente e por isso natildeo age por
apetite imoderado (EN III 4 1111b14-17) ldquoEm suma pois a escolha
deliberada parece dizer respeito agravequelas coisas que estatildeo em nosso
poderrdquo (EN III 4 1111b29-30)128
Por tal motivo atribui-se certa qualidade a um homem pelas
escolhas que faz jaacute que prefere obter ou evitar certo tipo de coisa com o
auxiacutelio da reflexatildeo e do pensamento (logoucirc kaigrave diaacutenoias) implicando
que a escolha deliberada acontece apoacutes a deliberaccedilatildeo que indica meios
127 A respeito da premissa maior como um desejo tambeacutem Nussbaum (1985 p
201 et seq) 128 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ὅλως γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ
τὰ ἐφ ἡμῖν εἶναι
141
calculados para se conseguir o fim determinado racionalmente Isso
significa que ldquoa escolha deliberada introduz no centro da virtude por
conseguinte no seio mesmo das emoccedilotildees o ato de pesar razotildees para
aquilo que se faz ou se deixa de fazerrdquo (ZINGANO 2007 p 158)
Escolher eacute essencial para a virtude moral pois eacute a partir da escolha
deliberada que se consolida a preferecircncia por esta e natildeo por aquela accedilatildeo
apontada na deliberaccedilatildeo manifestando aquilo que Zingano chama
ldquofaculdade de contraacuteriosrdquo (2008 p 27129) ou razatildeo Esta pode aceitar ou
deixar de aceitar uma ou outra das propostas da deliberaccedilatildeo - donde os
mencionados contraacuterios - e nisso consiste a escolha deliberada
Deste modo o processo que leva agrave accedilatildeo virtuosa pode ser descrito
do modo como fez Aggio no passo seguinte
Comeccedilamos desejando algo em seguida
passamos a investigar os meios para realizaacute-lo
por fim escolhemos realizaacute-lo ou natildeo Devemos
portanto conceber a escolha como sendo
necessariamente o resultado de uma investigaccedilatildeo
129 Zingano (p 186-187) quanto agrave variedade de fins a serem escolhidos e ao
mesmo tempo quanto ao natildeo relativismo da eacutetica de Aristoacuteteles graccedilas a
existecircncia de um fim maior O que confere agrave deliberaccedilatildeo a tarefa de
avaliaccedilatildeomoral das accedilotildees embora a escolha dos fins seja da alccedilada dos desejos
e das virtudes morais Assim a proaiacuteresis seria parte disso tudo em sua funccedilatildeo
de preferecircncia moral que escolhe entre as alternativas propostas pela
deliberaccedilatildeo A escolha deliberada aleacutem ser por objeto de deliberaccedilatildeo concluiacuteda
apresenta assentimento com tal objeto de deliberaccedilatildeo e isso leva a agir (EN
1147a28) Haacute contudo deliberaccedilatildeo sobre o futuro por isso nem toda
deliberaccedilatildeo eacute seguida de accedilatildeo
De acordo com Nussbaum haacute na escolha deliberada tambeacutem um outro aspecto
de preferecircncia associado ao valor do objeto buscado ldquoPara Aristoacuteteles a busca
por valor eacute a busca pelo que eacute bom para o ser humanordquo (NUSSBAUM 2008 p
49 traduccedilatildeo nossa) Frequentemente a verdade eacute que tal busca eacute parte da vida
emocional Coisas muito queridas geralmente satildeo avaliadas como parte
importante da vida Tais objetos das emoccedilotildees satildeo vistos como valiosos e bons
E se o objeto eacute escolhido livremente eacute provaacutevel que seu valor seja ainda mais
elevado Por exemplo ldquoEu escolho algo porque penso que este algo conteacutem
valor agraves vezes somente para mim mas frequentemente vejo isso como valioso
para as pessoas de um modo geralrdquo A autora contudo discorda um pouco da
proposta eudaimocircnica grega porque pensa que nem tudo que uma pessoa
entende como valioso pode ser recomendado aos outros Nesse caso haacute uma
falta de limite entre particular e geral mas natildeo analisaremos essa proposta nesse
momento (para esse assunto consultar NUSSBAUM 2008 p 50 et seq)
142
deliberativa e o iniacutecio da accedilatildeo pois escolhemos
agir ao escolhermos o meio que realiza certo fim
(AGGIO 2017 no prelo)
Sendo no momento da escolha deliberada que nossos desejos e
emoccedilotildees capazes de ouvir a razatildeo praacutetica podem vir a mudar a
concordar ou discordar com o que foi racionalmente proposto
entendemos que eacute durante esse caminho apresentado pela prudecircncia - da
deliberaccedilatildeo agrave escolha da accedilatildeo - que uma emoccedilatildeo pode se tornar
adequada ou seja pode receber a mediania A escolha deliberada eacute a
forma pela qual a razatildeo praacutetica age no interior de todos os desejos por
tornaacute-los mais proacuteximos ao que a razatildeo sugere e eacute por isso que
podemos continuar a afirmar como fizemos no primeiro Capiacutetulo que
haacute um modo correto de ter apetite e de se encolerizar O que implica
tambeacutem sentir tais desejos e emoccedilotildees pelos objetos adequados Nisso se
resume o encontrar o ldquoponto certordquo da emoccedilatildeo segundo as palavras de
Zingano (2008 p 167) sendo tal ponto determinado pela razatildeo
associada agrave virtude moral permitindo deste modo se emocionar
conforme a justa medida
No entanto entendemos que as emoccedilotildees assim como os desejos
satildeo despertadas em noacutes a princiacutepio por certas percepccedilotildees praacuteticas que
temos acerca do mundo que anteriormente determinamos estarem
relacionadas com um sem nuacutemero de particulares que nos afetam e
dentre os quais eacute preciso pela accedilatildeo da prudecircncia abstrair algo universal
que norteia as boas accedilotildees Esse tipo de afecccedilatildeo que se origina com o
exterior deve passar pelo crivo da razatildeo praacutetica e seus processos a fim
de conferir adequaccedilatildeo aos desejos que provoca e agraves emoccedilotildees que
desperta levando-os a adquirir uma modelagem mais adequada agraves
propostas racionais em geral Por isso na sequecircncia deveremos nos
dedicar a trabalhar a relaccedilatildeo do processo da prudecircncia com o particular
(heacutekastos) e o universal (kathoacutelou)
4d) Prudecircncia deliberaccedilatildeo escolha deliberada e sua relaccedilatildeo com o
particular e o universal
Com as discussotildees postas acima pudemos observar momentos
nos quais Aristoacuteteles afirma a relaccedilatildeo entre a prudecircncia suas operaccedilotildees
e as coisas particulares bem como com o universal Esse tipo de
proposta nos leva a indagar novamente o real papel dessa virtude
intelectual pois traz duacutevida quanto ao que seria o tal universal O
particular pudemos deduzir satildeo as circunstacircncias nas quais acontece o
143
mencionado processo e que levam cada agente a por em praacutetica seu
plano de accedilatildeo para realizaccedilatildeo de um fim que veremos ser apontado no
silogismo praacutetico como premissa menor ou um tipo de opiniatildeo Mas se
tudo que eacute feito pelo homem leva a um fim que tende ao fim supremo
seria este uacuteltimo o dito universal Pelo que estudamos ateacute o momento a
resposta parece ser positiva e por conseguinte seraacute favoraacutevel agrave nossa
interpretaccedilatildeo a partir da EN e do DA de uma unidade da alma pois nos
mostraria a prudecircncia apontando para algo mais que as situaccedilotildees
peculiares e contingentes
Essa leitura leva a virtude intelectual da prudecircncia a se conectar
ao menos com um certo tipo de objeto invariaacutevel mesmo que no campo
do que eacute procurado pelas accedilotildees humanas Por isso potildee-na em contato
com o restante das capacidades da alma racional e seus melhores
estados que apresentam por objeto coisas imutaacuteveis Ratificamos que
natildeo traremos especificamente dessas uacuteltimas virtudes intelectuais pois
no momento basta-nos confirmar que a prudecircncia se direciona ao
universal configurado como a eudaiacutemōniacutea e lida com os modos
particulares de alcanccedilaacute-la como explica Reeve (2014 p 211)
Quando a felicidade eacute apreendida por um agente
a tarefa deliberativa deste eacute encontrar a (espeacutecie
de) accedilatildeo particular que a constitui nas
circunstacircncias presentes Uma vez encontrada
esta desempenha dois papeacuteis em seu pensamento
praacutetico serve [1] como a premissa menor do
silogismo praacutetico que incorpora a deliberaccedilatildeo do
agente e [2] como uma especificaccedilatildeo concreta do
fim do agente Em [1] a accedilatildeo conclui o caminho
que desce de um fim universal para suas
ocorrecircncias particulares e assim o entendimento
incorporado na percepccedilatildeo deliberativa que a
apreende concerne agrave aplicaccedilatildeo de um universal
(felicidade agir bem) a particulares (esta accedilatildeo)
Em [2] a accedilatildeo eacute o ponto inicial de uma induccedilatildeo
que avanccedila para um universal a partir da
percepccedilatildeo envolvendo entendimento de
particulares Eacute das ldquoaccedilotildees na vidardquo somos
lembrados que as discussotildees em eacutetica e poliacutetica
ldquose ocupam e derivamrdquo (EN I 3 1095a3-4) e eacute a
habituaccedilatildeo adequada que assegura que
alcancemos as conclusotildees corretas nos causando
prazer e dor Em um aspecto portanto a
felicidade eacute um ponto inicial jaacute que eacute o fim
144
uacuteltimo de toda accedilatildeo Em outro as accedilotildees
particulares que a instanciam satildeo pontos iniciais
uma vez que eacute a partir delas que eacute preenchido um
entendimento da felicidade (universal)130
Aristoacuteteles explica a proposta com uma analogia entre silogismo
discursivo e silogismo praacutetico comparando mesmo (e ateacute chamando) a
prudecircncia que apreende o que eacute uacuteltimo ou particular com o intelecto
(noucircs) que capta o universal (EN VI 9 1142a25) Haveria assim uma
espeacutecie de percepccedilatildeo especificamente eacutetica que levaria agrave apreensatildeo dos
juiacutezos e que vimos natildeo ser a percepccedilatildeo dos sensiacuteveis proacuteprios Eacute uma
questatildeo de referir-se a um processo analiacutetico que no caso de um
triacircngulo por exemplo decomporia a figura ateacute levar agrave apreensatildeo do
triacircngulo reconstruindo-o A imagem deste modo apreendida jaacute permite
que seja explicitado de modo discursivo sendo um particular alguma
coisa uacuteltima Assim quando o filoacutesofo trata nesse ponto do texto (EN
VI 9 1142a27) o ver implica que esse ldquover geralrdquo eacute a apreensatildeo do
triacircngulo como o uacuteltimo ponto da anaacutelise efetuada (WOLF 2010 p
155-156)
Quando na anaacutelise da figura geomeacutetrica foi apreendido o
triacircngulo uacuteltimo elemento constitutivo que pode sofrer anaacutelise tecircm-se
dele em mente uma ldquopercepccedilatildeo geralrdquo e sabe-se que pode ser percebido
em um contexto de fundamentaccedilatildeo Por isso eacute visto como o uacuteltimo
elemento em uma cadeia de argumentaccedilatildeo de fundamentaccedilatildeo Jaacute natildeo
pode mais ser expresso em premissas mas eacute agora objeto do
130 Quanto ao particular e o universal segundo Wolf (2010 p 155) eacute que
ldquoAristoacuteteles acentua que a correta deliberaccedilatildeo se refere ao que a quem quando
e como etc na situaccedilatildeo concreta (assim novamente em 1142b28) Que o
kathacuteheacutekaston eacute pensado aqui no sentido da situaccedilatildeo concreta vem atestado pela
indicaccedilatildeo de que o julgar consiste aqui em uma espeacutecie de aiacutesthēsis (percepccedilatildeo
sentir sensorial ndash 1142a27) tanto quanto pela comparaccedilatildeo da phroacutenēsis com o
noucircs No acircmbito teoacuterico essa eacute a faculdade responsaacutevel pela aquisiccedilatildeo de
conceitos uacuteltimos que jaacute natildeo podem ser explicitados por outros conceitos mas
que soacute podem ainda ser apreendidos Agraves vezes Aristoacuteteles chama a proacutepria
phroacutenēsis de uma espeacutecie de noucircs (1142a25) Isso pode ser esclarecido pelo fato
de ambos referirem-se a algo uacuteltimo (heacutekhaston) o noucircs apreende os conceitos
mais elevados mais abstratos a phroacutenēsis ndash pelo menos onde deve ser
compreendida como aiacutesthēsis ndash apreende o mais concreto A questatildeo decisiva
portanto eacute saber o que tem em mente Aristoacuteteles ao designar a phroacutenēsis como
uma espeacutecie de aiacutesthēsisrdquo
145
pensamento A partir desse ponto eacute possiacutevel questionar se a figura que
se busca eacute um triacircngulo ou um ciacuterculo
Aplicando isso para a deliberaccedilatildeo eacutetica eacute possiacutevel questionar o
quanto a prudecircncia eacute composta por uma percepccedilatildeo geral
questionamento que lemos no passo abaixo
Desde o princiacutepio a analogia deixa claro que a
phroacutenēsis percebe o ldquoconcreto derradeirordquo o que
eacute concreto na situaccedilatildeo individual mas natildeo no
modo de um conhecimento eacutetico intuitivo Ao
contraacuterio deveria apreendecirc-lo em um contexto a
saber como o passo derradeiro em um processo
deliberativo Assim como a anaacutelise geomeacutetrica
reconduz a figura complexa a uma mais simples
de modo que jaacute natildeo possa ser reduzida a
deliberaccedilatildeo eacutetica analisa o conceito de eupraxiacutea
ou de ser-justo ateacute encontrar uma accedilatildeo que jaacute natildeo
remete a outra que podemos antes levar a efeito
imediatamente E como podemos discutir na
anaacutelise geomeacutetrica se eacute o triacircngulo ou outra figura
complexa que se constitui no ponto derradeiro
correto tambeacutem na deliberaccedilatildeo praacutetica podemos
sopesar qual das alternativas de accedilatildeo concretas
possibilitadas pela situaccedilatildeo eacute a correta ou a
melhor tornando-se o conteuacutedo da proaiacuteresis
Desse modo tambeacutem aqui temos a ver com uma
aiacutesthesis ldquogeralrdquo postada em um contexto
racional A proaiacuteresis ou accedilatildeo que deve ser
executada concretamente eacute apreendida como
correta no contexto da deliberaccedilatildeo praacutetica
(WOLF 2010 p 156)
Permanece contudo um problema a boa accedilatildeo natildeo pode ser
analisada como um fim teacutecnico por um processo claro como um ente
geomeacutetrico Se seguirmos o exemplo do triacircngulo transpondo-o para a
accedilatildeo eacutetica natildeo deveriacuteamos pensar que podemos mencionar os passos
para que uma accedilatildeo seja uma boa accedilatildeo O que deveria ser analisado eacute a
circunstacircncia para que ocorra a boa accedilatildeo e diante de tal circunstacircncia
qual eacute a boa accedilatildeo Nesse caso a deliberaccedilatildeo que precede a percepccedilatildeo poderia ser proposta em passos Primeiro o agente deveria esclarecer
qual o fim ou bem constitui o conteuacutedo da virtude moral e que deve ser
alcanccedilado pela accedilatildeo Depois disso deveria explicitar como alcanccedilar tal
bem propondo a circunstacircncia concreta O juiacutezo por sua vez deveria
146
indicar que a accedilatildeo eacute adequada por vaacuterios motivos e aspectos (o que
quem como quando etc) e que se insere na vida do agente em seu
rumo para a eudaiacutemōniacutea por conseguinte a boa accedilatildeo
A percepccedilatildeo relativa agrave prudecircncia e sua concretude poderia ser
entendida por tudo que foi explicado como uma percepccedilatildeo que ldquovecircrdquo a
accedilatildeo que leva um agente a uma boa vida Isso eacute parte do processo de
deliberaccedilatildeo racional articulador das ldquovisotildeesrdquo que se apoiam na empiria
apresenta e analisa as possibilidades de accedilatildeo ateacute o ponto de propor um
projeto de accedilatildeo que com componentes deliberativos vai atingir a forma
que pretende para a boa accedilatildeo Natildeo se trata de um processo que possa ser
decomposto em passos claros como no caso da technḗ mas o que temos
eacute uma busca incerta por um fim sem conteuacutedo preacute-definido
Essas explicaccedilotildees apontam porque a prudecircncia natildeo se direciona
somente para o bem do indiviacuteduo mas para o bem comum Segundo os
Livros II-VI o bem eacute a accedilatildeo bem-sucedida resultante da virtude moral
associada agrave racionalidade praacutetica e quiccedilaacute agrave razatildeo teoacuterica Conforme os
Livros III-VI esse bem deveria ser posto previamente pelo desejo por
uma disposiccedilatildeo que se direcionasse ao bem ou premissa maior da
deliberaccedilatildeo praacutetica Estatildeo envolvidos portanto com o particular e com
o universal como explica Wolf
Ora a faculdade desiderativa estaacute referida agrave razatildeo
as aspiraccedilotildees podem exprimir-se de tal modo que
sejam apreendidas em conceitos podem portanto
adotar a forma de desejos articulados na
linguagem Por si soacute a faculdade desiderativa natildeo
consegue formular um desejo como o desejo de
ser corajoso ou de ser justo Como vimos a
concretizaccedilatildeo daquilo que se deve fazer na
situaccedilatildeo natildeo apenas exige deliberaccedilatildeo Tambeacutem
essa deliberaccedilatildeo soacute poderaacute ser feita se a pessoa jaacute
dispotildee de uma representaccedilatildeo reflexiva da
eupraxiacutea no acircmbito relevante quando a phroacutenēsis
portanto se refere tambeacutem ao fim pois do
contraacuterio a pessoa agente nada teria em que
pudesse se orientar na reflexatildeo sobre o que seria o
melhor modo de realizar a aretḗ na situaccedilatildeo
presente
Aleacutem do mais a representaccedilatildeo impliacutecita do bem
viver contida na aretḗ deve ser implantada por
algueacutem no caraacuteter o qual tem ele proacuteprio uma
representaccedilatildeo reflexiva do direcionamento a ser
seguido na educaccedilatildeo Essa dupla tarefa da aretḗ eacute
147
confirmada pela ponderaccedilatildeo que Aristoacuteteles faz
em relaccedilatildeo agrave poliacutetica E uma vez que tambeacutem a
tarefa da poliacutetica igualmente deve ser
considerada uma forma de bom conselho ou uma
phroacutenēsis (1141b23-1142a10) Nesse contexto
ele acentua que a phroacutenēsis na poliacutetica possui
duas partes a parte legislativa (nomothesiacutea) e a
executiva (politikḗ em sentido estrito) A primeira
eacute a parte diretriz ou ordenadora a segunda a parte
ativa concreta agrave qual estaacute referida a deliberaccedilatildeo
O educador individual igualmente deve ser
considerado como orientador no sentido dessa
dupla particcedilatildeo de tal modo que ele tem uma
representaccedilatildeo de regras em que se explicita a
eupraxiacutea (WOLF 2010 p 158)
Essas consideraccedilotildees indicam que os processos da prudecircncia se
encaminham por meio de accedilotildees dadas em circunstacircncias particulares a
um universal que eacute o bem supremo comum a todos
Os apontamentos acerca da virtude moral da prudecircncia nos levam
a entender que o agente igualmente se torna responsaacutevel pela forma
como suas emoccedilotildees se datildeo ao mundo porque apoacutes formado
moralmente sua capacidade de por-se os fins acaba por tornaacute-lo mais
que senhor de suas accedilotildees eacute agora senhor de seus desejos e da forma
como age e se emociona Embora natildeo escolha a emoccedilatildeo que sente o ato
de pesar razotildees e de por-se o fim acaba no processo de deliberaccedilatildeo por
apresentar a possibilidade de mudar ou de ao menos moderar as
emoccedilotildees conforme o desejo eacute mudado ao longo desse processo Com
isso eacute possiacutevel que um impulso natural venha a se acalmar ao ponderar e
decidir unindo desejo e razatildeo praacutetica mudando raiva em calma ou
diminuindo a intensidade da raiva ou adequando a raiva sentida agrave
circunstacircncia por exemplo Pensamos que isso seja possiacutevel porque a
nosso ver se a alma eacute una como viemos propondo o prudente tem
contato com a uma verdade mais universal que se configura como
eudaiacutemōniacutea como propotildeem os comentadores apresentados tendo uma
visatildeo do que eacute mais geral graccedilas provavelmente agrave sua capacidade de
raciocinar bem que vai aleacutem do acircmbito da accedilatildeo que pode ser
considerada moralmente e da prāxis humana Provavelmente com isso
seja possiacutevel dizer que de certo modo a prudecircncia vecirc o fim a ser
alcanccedilado o melhor fim possiacutevel em uma espeacutecie de percepccedilatildeo que lhe
eacute proacutepria e que aponta para algo mais universal de modo similar agrave accedilatildeo
da razatildeo teoacuterica No homem virtuoso bem formado moralmente eacute
148
preciso saber o que seja esse bom fim eacute preciso desejar corretamente o
fim e se emocionar corretamente para que haja accedilotildees adequadas que
levaratildeo a tal fim Por conseguinte pensamos que ao menos no virtuoso a
prudecircncia que lhe eacute posse real e natildeo um conselho vindo de fora
implique de certo modo em conseguir distinguir o bom fim para
encadear o processo deliberativo Esse tipo de capacidade eacute conseguida
com a boa conjunccedilatildeo da razatildeo praacutetica com o lado natildeo racional da alma
humana formando a virtude em sentido estrito que na melhor das
hipoacuteteses capacita o homem bem educado agrave emoccedilatildeo adequada como
veremos no ponto seguinte
5 Virtude natural e virtude em sentido estrito
No final Livro VI capiacutetulo 13 da EN Aristoacuteteles procede a novo
exame da natureza da virtude Nessa parte do texto o filoacutesofo estabelece
diferenccedilas entre virtude moral em sentido estrito e virtude natural (aretḕ
physikeacute ndash aretḕ ethikḗ) embora ambas se relacionem Comeccedila a
discussatildeo observando o fato de todos admitirem que aqueles que
apresentam certo caraacuteter o tecircm de certo modo por natureza Pensa no
entanto que uma investigaccedilatildeo eacutetica procura a virtude moral em sentido
estrito e que seja possuiacuteda de um certo modo Aristoacuteteles considera que
se tais disposiccedilotildees naturais natildeo forem acompanhadas pela razatildeo se
tornaratildeo nocivas embora ldquoao contraacuterio uma vez que a razatildeo veio
entatildeo no domiacutenio da accedilatildeo moral eacute uma mudanccedila radical e a disposiccedilatildeo
que natildeo tinha ateacute aqui senatildeo uma semelhanccedila com a virtude seraacute agora
virtude em sentido estritordquo (EN VI 13 1144b12-14)131 Assim como na
capacidade opinante da alma haacute dois tipos de qualidade a habilidade e a
prudecircncia na funccedilatildeo moral (tograve ethikoacuten pelo qual leia-se tograve orektikoacuten)
existem dois tipos de virtude natural e em sentido estrito
A virtude propriamente dita contudo natildeo se produz sem
prudecircncia porque virtude em sentido estrito eacute conforme a regra justa e
a regra justa eacute a prudecircncia ou a disposiccedilatildeo segundo a prudecircncia Mais
ainda natildeo eacute apenas disposiccedilatildeo conforme a regra justa mas intimamente
131 Na nota 1 (2012 p 334) Tricot afirma que nesse caso no lugar de noucircs
pode ser lido phroacutenēsis e que por parte opinante entenda-se tograve logistikoacuten No
original ἐὰν δὲ λάβῃ νοῦν ἐν τῷ πράττειν διαφέρει ἡ δ ἕξις ὁμοία οὖσα τότ
ἔσται κυρίως ἀρετή
Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs a partir da traduccedilatildeo francesa feita por Tricot
No Original ἐὰν δὲ λάβῃ νοῦν ἐν τῷ πράττειν διαφέρει ἡ δ ἕξις ὁμοία οὖσα
τότ ἔσται κυρίως ἀρετή
149
ligada agrave regra justa (EN VI 13 1144b26-27)132 portanto eacute impossiacutevel
ser um homem de bem em sentido proacuteprio sem a phroacutenēsis e com ela
todas as virtudes satildeo dadas Essa concepccedilatildeo da virtude moral eacute proposta
porque natildeo haacute escolha deliberada sem a prudecircncia e provavelmente
natildeo haacute prudecircncia sem as demais virtudes das demais capacidades
racionais A virtude moral ordena o fim e a prudecircncia leva a completar
as accedilotildees que conduzem a este (EN VI 13 1145a4-6)133
Consideramos que as virtudes do intelecto satildeo portanto
imprescindiacuteveis a uma vida feliz porque sem as atividades que facultam
o homem natildeo poderia ser pensado como desempenhando sua funccedilatildeo
proacutepria Embora valha relembrar que ldquoum tipo secundaacuterio que eacute a vida
segundo o outro tipo de virtude eacute feliz pois as atividades que satildeo
conformes a ela satildeo puramente humanasrdquo (EN X 8 1178a9-11)134 Este
outro tipo de excelecircncia como vimos acima eacute a virtude moral que
busca segundo interpretaccedilatildeo de Tricot uma felicidade relacionada agrave
vida dos homens na poacutelis (2012 nota 3 p 551-552) Por isso os atos de
virtude moral satildeo tomados nas relaccedilotildees com os outros e em relaccedilatildeo agraves
emoccedilotildees sendo ligados igualmente agrave prudecircncia A proximidade dessas
virtudes com as emoccedilotildees aconteceraacute no composto corpoalma fazendo
delas excelecircncias especialmente humanas como Tricot observa
[] as virtudes morais satildeo ligadas agrave prudecircncia e a
prudecircncia agraves virtudes morais e por um outro lado
elas satildeo ligadas agraves paixotildees pois prudecircncia e
virtudes morais se aplicam igualmente a modificaacute-
las Por consequecircncia todas essas virtudes
incluindo a prudecircncia satildeo realmente as virtudes
do composto humano (TRICOT 2012 nota 4 p
552-553 traduccedilatildeo nossa)
132Assim explica Tricot (2012 nota 3 p 335) a virtude eacute com razatildeo e segundo
a razatildeo 133 Reeve (2013 p 15) explica que uma vez que o entendimento faz
compreender o alvo ele natildeo eacute indiferente ao fim da vida humana ele vecirc o que
tal alvo eacute e assim nossa virtude natural ou habituada eacute transformada em virtude
total e o agente se torna completamente bom (EN VI 13 1144b1-32) Ao mesmo
tempo as virtudes naturais que podem ser possuiacutedas em separado se conectam
em um soacute estado pois todas satildeo requeridas pela sabedoria praacutetica e a sabedoria
praacutetica eacute requerida por ela (EN VI 13 1144b30-1145a2) 134 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Δευτέρως δ ὁ κατὰ τὴν ἄλλην ἀρετήν αἱ γὰρ κατὰ ταύτην
ἐνέργειαι ἀνθρωπικαί
150
Com a virtude natural ou seja com a disposiccedilatildeo natildeo
consolidada135 pelo o auxiacutelio da virtude intelectual da prudecircncia o
agente eacute capaz de fazer o que deve ser feito mas sem dispor das razotildees
para tanto Natildeo eacute capaz de cumprir plenamente a funccedilatildeo proacutepria do
homem pois natildeo tem por si e em si mesmo suas capacidades aniacutemicas
bem ajustadas favorecendo as accedilotildees que seriam moralmente corretas e a
eudaiacutemōniacutea Mas quando o agente desenvolve a virtude proacutepria ou em
sentido estrito tem sua virtude moral acompanhada pela prudecircncia e
muito provavelmente pela razatildeo como um todo e por isso faz o que
deve ser feito segundo boas razotildees136 O ato de escolher e agir segundo
suas proacuteprias boas razotildees eacute aquilo que podemos entender como virtude
completa e indispensaacutevel agrave vida feliz mas a virtude moral embora
possa ser favorecida por certo traccedilo natural soacute vem ao homem pelo
haacutebito
Por conseguinte pudemos perceber quatildeo proacuteximas estatildeo as
virtudes morais e as intelectuais bem como entendemos a necessidade
de colaboraccedilatildeo entre estas a fim de que se viva bem Eacute esse acordo que
permite a Aristoacuteteles propor uma virtude completa no singular e que a
nosso ver permitiraacute que as exigecircncias do filoacutesofo para a educaccedilatildeo ou
habituaccedilatildeo moral das emoccedilotildees sejam efetivadas
Diante disto resta pesquisarmos as possibilidades e os meios de
se executar essa formaccedilatildeo emocional Isso designado ainda nos caberaacute
ressaltar os instrumentos que podem facilitar o acordo entre ambas as
capacidades da alma Eacute preciso entender melhor o papel da razatildeo na
vida emocional moral jaacute que Aristoacuteteles confere ao racional uma
importacircncia semelhante ou ainda maior que agraves instacircncias natildeo racionais
da alma humana Como estivemos a salientar a retidatildeo necessaacuteria aos
desejos e agraves emoccedilotildees falta apresentar ao menos uma possibilidade para
tal retidatildeo Por isso na sequecircncia deveremos apreciar as formas
disponiacuteveis de educaccedilatildeo moral das emoccedilotildees seguindo em parte o
135Possivelmente estaacute em jogo a diferenccedila entre heacutexis disposiccedilatildeo que se tornou
fixa e diaacutethesis estado ou disposiccedilatildeo ainda maleaacutevel (ZINGANO 2008 p
122) Na EE se fala mesmo da melhor disposiccedilatildeo (II 1 1218b38 1219a1
1219a3 1219a32) 136Conferir Poliacutetica 1260a15-19 a respeito do modo de operar as virtudes O
passo apresenta tais modos em relaccedilatildeo aos escravos agraves mulheres e agraves crianccedilas
sendo que em nenhuma dessas condiccedilotildees se apresentaria a virtude perfeita
Sobre o ato de escolher conforme agraves boas razotildees tambeacutem se pode conferir
Magna Moralia 1200a3-4
151
modelo de educaccedilatildeo que poder ser aplicado aos desejos e que eacute
explicado por Aggio (2017 no prelo) Essa educaccedilatildeo seraacute possibilitada
pelos haacutebitos e formaraacute juntamente com a virtude intelectual aquilo
que no Livro VI da EN Aristoacuteteles chama de ldquovirtude em sentido
estritordquo
152
153
Capiacutetulo III
A racionalidade das emoccedilotildees
1 Eudaiacutemōniacutea vida dedicada agrave atividade racional (EN X)
Ao longo da EN Aristoacuteteles parece dar destaque especial agrave
participaccedilatildeo da razatildeo na vida que considera a melhor mas mesmo na
vida cabiacutevel agrave maioria dos homens o regime do loacutegos natildeo eacute posto de
lado Por conseguinte a vida feliz proposta como ativa e em acordo com
o princiacutepio racional seria dedicada agrave contemplaccedilatildeo conforme certas
propostas do Livro X Nesse ponto da tese fazemos um apanhado
geneacuterico sobre a eudaiacutemōniacutea nesse Livro com as devidas remissotildees ao
Livro I para ressaltar a aparente divergecircncia entre natildeo racional e
racional contudo temos ciecircncia de que a questatildeo eacute mais densa e por
isso natildeo eacute nossa pretensatildeo resolver os problemas relativos agrave felicidade
tampouco defini-la Temos ciecircncia igualmente da querela
contemporacircnea entre as leituras dominantes e inclusivistas sobre o bem
supremo como indicamos no Capiacutetulo I mas a despeito disso nos
parece que o papel da razatildeo na vida feliz sempre eacute preservado por
Aristoacuteteles embora este natildeo minore outros aspectos componentes do
humano Observaremos o tema portanto na medida em que pode nos
auxiliar a resolver nossa questatildeo e comeccedilaremos considerando a
proposta de que a eudaiacutemōniacutea se confunde com a vida contemplativa
embora tenhamos ressaltado anteriormente que tal ideia natildeo apresenta o
real pensamento de Aristoacuteteles sobre o assunto mesmo que o filoacutesofo
escreva linhas como as que seguem abaixo
Mas se a felicidade eacute uma atividade conforme agrave
virtude eacute racional que seja atividade conforme a
mais alta virtude e esta seraacute a virtude da parte a
mais nobre de noacutes Que seja portanto o intelecto
ou qualquer outra faculdade que seja observada
como possuindo por natureza o comando e a
direccedilatildeo e como tendo o conhecimento das
realidades belas e divinas que aleacutem disso esse
elemento seja ele mesmo divino ou somente a
parte mais divina de noacutes eacute o ato desta parte
segundo a virtude que lhe eacute proacutepria que seraacute a
felicidade perfeita Ora que essa atividade seja
teoreacutetica eacute o que temos dito (EN X 7 1177a12-
154
18)137
Aristoacuteteles pensa que essas afirmaccedilotildees parecem estar em acordo
com a verdade Por isso elenca oito motivos para concordar com as
propostas que definem a melhor vida como aquela em contemplaccedilatildeo
Primeiro a atividade mencionada eacute a mais alta porque o intelecto eacute a
melhor parte que temos e os objetos do intelecto teoacuterico satildeo os mais
altos dos objetos conheciacuteveis Segundo seria a eneacutergeia mais contiacutenua
pois podemos nos deixar agrave contemplaccedilatildeo de uma forma menos
interrompida do que a qualquer outra atividade Terceiro pensa-se que o
prazer intelectual deve ser componente da felicidade jaacute que a atividade
segundo a sabedoria eacute reconhecidamente a mais agradaacutevel das
atividades conformes agrave virtude A filosofia conteacutem prazeres
maravilhosos no que toca agrave pureza e agrave estabilidade por isso seria
normal se a alegria de conhecer fosse uma tarefa mais agradaacutevel que a
procura pelo conhecimento Quarto aquilo que eacute chamado lsquoplena
suficiecircnciarsquo pertenceria ao maacuteximo agrave atividade contemplativa Se eacute
verdade que o saacutebio o justo e todo homem detentor de virtude(s)
precisariam das coisas necessaacuterias agrave vida uma vez que estivessem
suficientemente providos de tais bens viveriam bem dedicando-se agrave
contemplaccedilatildeo teoacuterica O saacutebio ao contraacuterio dos outros virtuosos se
fosse deixado a si mesmo teria a capacidade de contemplar e seria
mesmo mais saacutebio se contemplasse nesse estado de vantagem Eacute claro
contudo que mesmo ao saacutebio eacute preferiacutevel viver na companhia de seus
semelhantes embora este seja o homem que mais baste a si mesmo
Quinto esse tipo de atividade descrito pareceria o uacutenico desejado por si
mesmo Por isso natildeo produziria nada aleacutem do ato de contemplar ao
contraacuterio das atividades praacuteticas Sexto a felicidade parece consistir em
lazer pois o homem soacute se satisfaz com uma vida ativa que busca o lazer
e natildeo vai agrave guerra com outra intenccedilatildeo que natildeo a paz Ateacute mesmo as
atividades poliacuteticas tecircm outro fim em vista e natildeo somente o lazer
buscam satisfazer os interesses gerais e a sauacutede da cidade natildeo sendo
desejaacuteveis por si mesmas enquanto a atividade do intelecto ou
137 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Εἰ δ ἐστὶν ἡ εὐδαιμονία κατ ἀρετὴν ἐνέργεια εὔλογον
κατὰ τὴν κρατίστην αὕτη δ ἂν εἴη τοῦ ἀρίστου εἴτε δὴ νοῦς τοῦτο εἴτε ἄλλο τι
ὃ δὴ κατὰ φύσιν δοκεῖ ἄρχειν καὶ ἡγεῖσθαι καὶ ἔννοιαν ἔχειν περὶ καλῶν καὶ
θείων εἴτε θεῖον ὂν καὶ αὐτὸ εἴτε τῶν ἐν ἡμῖν τὸ θειότατον ἡ τούτου ἐνέργεια
κατὰ τὴν οἰκείαν ἀρετὴν εἴη ἂν ἡ τελεία εὐδαιμονία ὅτι δ ἐστὶ θεωρητική
εἴρηται
155
contemplativa eacute prazerosa e completa ou perfeita (EN X 7 1177b19-26)
Seacutetimo uma vida desse tipo contudo seria demais para a condiccedilatildeo
humana pois natildeo se viveria como um homem mas segundo um
elemento divino que estivesse presente em noacutes Tanto quanto esse
elemento fosse superior ao composto humano sua atividade seria
superior agravequela do outro tipo de virtude (EN X 7 1177b28) ldquoSe
portanto o intelecto eacute algo de divino por comparaccedilatildeo com o homem a
vida segundo o intelecto eacute igualmente divina comparada com a vida
humanardquo (EN X 7 1177b30-31)138 por isso natildeo se deveria escutar
conselhos daqueles que os datildeo pois satildeo conselhos vindos de homens
sobre as coisas humanas O homem deveria se imortalizar na medida do
possiacutevel e fazer de tudo para viver segundo sua parte mais nobre
porque ldquomesmo que essa parte seja pequena em sua massa por sua
potecircncia e seu valor ela passa em muito todo o restordquo (EN X 7 1178a1-
2)139 Em oitavo lugar cada homem se identificaria com essa parte por
ser fundamental em seu ser e por ser a melhor sendo estranho que natildeo
concordasse com a vida que lhe eacute proacutepria mas com qualquer outra
porque o que eacute proacuteprio a cada coisa eacute o que lhe haacute de mais excelente e
agradaacutevel ldquoE para o homem esta seraacute a vida segundo o intelecto se eacute
verdade que o intelecto eacute no mais alto grau o proacuteprio homem Essa vida
eacute portanto igualmente a mais felizrdquo (EN X 7 11786a6-8140)
Nosso estudo precisa questionar todavia a imponecircncia desse tipo
de postura Embora natildeo seja interesse da tese apresentada definir qual
dos usos da razatildeo eacute melhor que o outro o praacutetico ou o teoacuterico
estivemos a defender a existecircncia de uma excelecircncia para cada uma das
(sub)capacidades racionais destacadas por Aristoacuteteles Todavia
pensamos ser indiscutiacutevel que um homem feliz natildeo possa prescindir do
uso praacutetico de sua razatildeo justamente pelo fato de ser um homem e natildeo
outro tipo de ser sendo que tal uso eacute tambeacutem indiscutivelmente
envolvido com as emoccedilotildees Em contrapartida ao lidarmos com eacutetica e
com as accedilotildees boas moralmente estivemos o tempo todo a tratar daquilo
que no homem se apresenta como natildeo racional mas observamos ao
138 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original εἰ δὴ θεῖον ὁ νοῦς πρὸς τὸν ἄνθρωπον καὶ ὁ κατὰ τοῦτον
βίος θεῖοςπρὸςτὸνἀνθρώπινονβίον 139 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original εἰ γὰρ καὶ τῷ ὄγκῳ μικρόν ἐστι δυνάμει καὶ τιμιότητι πολὺ
μᾶλλον πάντων ὑπερέχει 140 Idem καὶ τῷ ἀνθρώπῳ δὴ ὁ κατὰ τὸν νοῦν βίος εἴπερ τοῦτο μάλιστα
ἄνθρωπος οὗτος ἄρα καὶ εὐδαιμονέστατος
156
longo do estudo anteriormente apresentado a respeito da boa medida nas
emoccedilotildees que haacute sempre a presenccedila da racionalidade mesmo quando
tratamos da excelecircncia do natildeo racional que pede accedilatildeo
Por exemplo a junccedilatildeo da virtude moral com a virtude intelectual
da prudecircncia mostrou-se imprescindiacutevel sendo mesmo condiccedilatildeo sine
qua non para a boa forma das emoccedilotildees na vida moral e se apresentou
como aquilo que realmente caracteriza o homem na eacutetica de Aristoacuteteles
e seu modo de tocar a vida que lhe eacute peculiar141 O filoacutesofo retira de suas
divindades mas tambeacutem das bestas a possibilidade de ver apaziguados
em si esses elementos aparentemente diacutespares Tal possibilidade de
conciliaccedilatildeo entre a capacidade racional e capacidade natildeo racional na
alma humana permitiu ateacute o momento que conjugaacutessemos vaacuterios
campos de conhecimento descritos pelo filoacutesofo como destinados ao
tratamento de questotildees especiacuteficas Por isso dedicamos esse terceiro
Capiacutetulo de nosso estudo agrave observaccedilatildeo das possibilidades das relaccedilotildees
da capacidade racional com a capacidade natildeo racional jaacute que Aristoacuteteles
frisa demasiadamente que a melhor vida eacute atrelada agrave razatildeo
Tal anaacutelise seraacute necessaacuteria porque sejam quais forem os motivos
adotados pelo filoacutesofo o fato eacute que o Livro X da EN nos apresenta a
proposta de que a felicidade perfeita eacute uma certa atividade
contemplativa Todavia entendemos que ainda que estabelececircssemos a
vida contemplativa como melhor forma de vida natildeo poderiacuteamos abrir
matildeo de especificar o papel das emoccedilotildees nem neste nem naquele que
muitos consideram um segundo melhor tipo de vida a vida poliacutetica No
entanto ressaltamos que essa natildeo eacute nossa postura jaacute que nossas leituras
de Aristoacuteteles nos levam a pensar que uma vida contemplativa natildeo
aconteceria em total isolamento ou sem os bens elementares agrave
manutenccedilatildeo de uma existecircncia bem vivida entre os quais Aristoacuteteles
parece incluir nos livros VIII IX e mesmo no Livro X da EN as
relaccedilotildees de amizade Mesmo tendo exposto nossa duacutevida quanto agrave
validade do pensamento que defende a pura contemplaccedilatildeo teoacuterica como
representante legiacutetimo das intenccedilotildees do filoacutesofo devemos consideraacute-lo
141 Sobre o assutno Reeve escreveu ldquoA vida que consiste em atividade poliacutetica
sem oacutecio em acordo com a sabedoria praacutetica e com as virtudes de caraacuteter eacute uma
vida completamente mais feliz quando ndash porque ela eacute levada em uma cidade
com a melhor constituiccedilatildeo idealmente situada e provida com bens externos ndash
acontece alcanccedilando o melhor tipo de felicidade para quem a possui Essa vida
complexa ndash parte praacutetica parte contemplativa ndash eacute a melhor vida humana que a
sabedoria praacutetica que eacute o melhor tipo de conhecimento praacutetico pode organizarrdquo
(REEVE 2013 p 18)
157
e buscar perceber em que medida natildeo destoa das propostas
anteriormente levantadas Natildeo esqueccedilamos a ressalva do proacuteprio
Aristoacuteteles em questotildees de eacutetica eacute a experiecircncia que tem a palavra final
Por isso eacute preciso cotejar as conclusotildees que forem racionalmente tiradas
com as coisas que a vida apresenta pois tais coisas estando em acordo
com as conclusotildees tornam-se aceitaacuteveis
Com isso confirmamos a proposta de Aristoacuteteles porque afirma
que a maioria dos homens natildeo preza o racional142 embora ao descrever
a razatildeo como o que haacute de melhor no homem faccedila-nos entender que eacute
preciso tratar do papel do loacutegos na vida moral Como vimos natildeo haacute
virtude moral sem a participaccedilatildeo do intelecto mesmo que essa virtude
seja consolidada pelos haacutebitos e que este intelecto seja praacutetico e natildeo haacute
virtude moral nem boa vida sem uma educaccedilatildeo para as emoccedilotildees Tal
vida como jaacute propusemos somente seraacute possiacutevel na medida em que
pudermos ter nossas emoccedilotildees e nossa razatildeo em acordo o que eacute
viabilizado pela proposta de impossibilidade de uma vida puramente
dada ao racional teoacuterico impossibilidade exposta entre os motivos do
filoacutesofo para que a vida puramente contemplativa seja feliz (EN X 7
1177b26-30) Ainda precisamos confirmar como se datildeo as
possibilidades da racionalidade das emoccedilotildees aristoteacutelicas e os
instrumentos que interferem no sentir emoccedilatildeo e que permitem que esta
seja ao menos mudada favorecendo a virtude moral e a virtude como
um todo Sendo nosso objetivo explicitar o que permite e facilita a
participaccedilatildeo do natildeo racional na razatildeo praacutetica eacute forccediloso que doravante
estudemos mais detidamente a relaccedilatildeo desta razatildeo com as emoccedilotildees ou
seja o se emocionar racionalmente
2 A racionalidade das emoccedilotildees interpretaccedilotildees desde EN I agraves luzes
do De Anima
Os argumentos acima apresentam uma postura bastante favoraacutevel
agrave vida contemplativa como sendo a vida feliz poreacutem ao longo de nosso
estudo apresentamos vaacuterias possibilidades dentro do proacuteprio texto da
EN para suspeitar disso Mesmo o Livro X como acabamos de ressaltar
potildee em duacutevida a possibilidade de um homem ainda que fosse filoacutesofo
totalmente deixado agrave pura contemplaccedilatildeo teoacuterica Cremos que este tipo
de afirmaccedilatildeo (ou de questionamento) estabelece mais que a proposta de
142 Ou como propotildee Boyle (2012 p 31) muitos dos homens natildeo chegam a
alcanccedilar essa capacidade (ou capacidades) ao menos natildeo em sua melhor forma
pensamos
158
Kenny apresentada demasiado sucintamente no Capiacutetulo I o elo entre os
dois tratados sobre a felicidade Igualmente reforccedila a possibilidade de
defendermos nossa tese o homem eacute um composto de corpo e alma que
soacute realiza sua funccedilatildeo proacutepria na poacutelis mas para tanto precisa
harmonizar suas emoccedilotildees com a totalidade de sua razatildeo gerando
emoccedilotildees educadas O Livro X trecho X 7 1177b26-30 que parece por
em xeque todas as afirmaccedilotildees que tendem agrave elevaccedilatildeo da vida
contemplativa ao status de eudaiacutemōniacutea permitiraacute como pretendemos
demonstrar reforccedilar a defesa de nossa tese graccedilas agrave ligaccedilatildeo que
estabelece tanto com o argumento da funccedilatildeo apresentado em EN I
quanto com a proposta especificada em EN I 13 a respeito da capacidade
do desiderativo ouvir e participar da razatildeo desejando e se emocionando
de um jeito racional Para confirmar tais interpretaccedilotildees evocaremos o
DA quando necessaacuterio jaacute que esse tratado igualmente apresenta uma
proposta de homem como composto por corpo e alma sendo somente
tal composto capaz de sofrer afecccedilotildees do tipo das emoccedilotildees (DA I 4
408b18 et seq) e da forma como as sofre143 Por isso tambeacutem quando
necessaacuterio retomaremos algumas das propostas escritas a partir dos dois
tratados e que foram mencionadas nos demais capiacutetulos
Segundo nosso entendimento o Livro I da EN acompanhado de
outros trechos supramencionados da mesma obra nos apresenta uma
perspectiva acerca do que seja o homem No Capiacutetulo I estudamos uma
concepccedilatildeo de homem forjada a partir das distinccedilotildees que representaram o
ser humano como diferente dos demais animais graccedilas agrave natureza
proacutepria agrave sua alma dotada de razatildeo e igualmente da capacidade que tal
alma apresenta de conjugar em si capacidades que muitos pensaram ser
totalmente inconciliaacuteveis Isso eacute o que podemos entender ao lermos em
EN I 13 que a alma tem uma ldquoparterdquo racional e que igualmente apresenta
algo contraacuterio agrave razatildeo que lhe resiste e faz frente mas na sequecircncia do
texto o tom da discussatildeo desse assunto eacute suavizado dizendo que nos
homens com certos tipos de disposiccedilotildees de caraacuteter essa tal capacidade
ambiacutegua ldquofala a respeito de todas as coisas com a mesma voz que o
princiacutepio racionalrdquo (EN I 13 1102b28144) Vimos essas assertivas serem
introduzidas no tratado a fim de permitir a discussatildeo da virtude moral
143 Boyle (2012 p 21 traduccedilatildeo nossa) explica que um animal como o homem
racional ldquoeacute capaz natildeo somente de ser ter e fazer mais que uma criatura natildeo
racional mas de ser o sujeito de atribuiccedilotildees do ser ter e fazer num sentido
distintivordquo 144Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original πάντα γὰρ ὁμοφωνεῖ τῷ λόγῳ
φαίνεται δὴ καὶ τὸ ἄλογον διττόν
159
em cada um de seus tipos que existe apenas devido agraves duas capacidades
elementares na alma humana diferenciando novamente o homem dos
demais animais que nem sempre apresentam uma capacidade aniacutemica
racional
Com essas consideraccedilotildees percebemos em Aristoacuteteles e
confirmamos com apoio em alguns comentaacuterios como os de Nussbaum
Korsgaard Reeve Boyle e Sorabji o desenho de uma figura humana
dotada de uma funccedilatildeo proacutepria (como tudo mais que existe) sendo esta
funccedilatildeo adequada agrave alma caracteriacutestica agrave espeacutecie Agora vale reforccedilar tal
interpretaccedilatildeo com uma visita ao DA pois seu texto confirmaraacute nossas
intenccedilotildees acerca do caraacuteter antropoloacutegico esboccedilado pela EN O homem
descrito pelo tratado da alma confirmaraacute os traccedilos indicados pelo texto
eacutetico em momentos como o citado abaixo
O seguinte absurdo acontece tanto nesta como na
maioria das discussotildees sobre a alma elas
acomodam a alma no corpo nada definindo em
acreacutescimo sobre a causa e o modo como o corpo
se manteacutem Todavia isso parece necessaacuterio pois
devido a esta comunhatildeo um faz e o outro sofre
um eacute movido e o outro move e nada disso ocorre
casualmente a um e a outro (DA I 3 407b13-19145)
Esse posicionamento vale lembrar traz reforccedilo agrave importacircncia da
discussatildeo das emoccedilotildees consideradas entre as afecccedilotildees aniacutemicas
expressas pelo corpo seja por meio de movimentos de certas partes
suas seja com accedilotildees cometidas deliberadamente ou indeliberadamente
trazendo a responsabilidade ou isenccedilatildeo moral bem como a
voluntariedade agraves accedilotildees solicitadas pelas afecccedilotildees que satildeo as emoccedilotildees e
os desejos Esse tipo de interpretaccedilatildeo pode ser adotado a partir dos dois
tratados ora estudados a comeccedilar pela proposta da alma que em EN I 13
resultou na distinccedilatildeo das virtudes em intelectuais e morais discussatildeo
estendida ateacute o Livro VI da EN bem como apresentada em trechos do
DA como o passo I 4 408a34-b8 no qual lemos que as emoccedilotildees satildeo
vindas de fora que movimentam o corpo (por locomoccedilatildeo ou alteraccedilatildeo) e
145 Traduccedilatildeo de Maria Cecilia Gomes dos Reis (2006) no original ἐκεῖνο δὲ
ἄτοπον συμβαίνει καὶ τούτῳ τῷ λόγῳ καὶ τοῖς πλείστοις τῶν περὶ ψυχῆς
συνάπτουσι γὰρ καὶ τιθέασιν εἰς σῶμα τὴν ψυχήν οὐθὲν προσδιορίσαντες διὰ
τίν αἰτίαν καὶ πῶς ἔχοντος τοῦ σώματος καίτοι δόξειεν ἂν τοῦτ ἀναγκαῖον
εἶναι διὰ γὰρ τὴν κοινωνίαν τὸ μὲν ποιεῖ τὸ δὲ πάσχει καὶ τὸ μὲν κινεῖται τὸ δὲ
κινεῖ τούτων δ οὐθὲν ὑπάρχει πρὸς ἄλληλα τοῖς τυχοῦσιν
160
que o homem o faz ldquocom a almardquo A indissociabilidade entre corpoalma
leva ao fato jaacute mencionado de que um faz e o outro sofre um move e
outro eacute movido
O homem sendo entatildeo composto de corpo e alma somente se
emociona devido a esse seu aspecto (DA I 1 403a16 et seq) ldquoE por isso
supotildeem corretamente aqueles que tecircm a opiniatildeo de natildeo existir alma sem
corpo e tampouco ser a alma um certo corpo pois ela natildeo eacute corpo mas eacute
algo do corpo e por isso subsiste no corpo e em um corpo de tal tipordquo
(DA II 3 414a19-22146) Essas ideias servem como reforccedilo agrave EN quando
este texto apresenta o homem como animal poliacutetico dotado de funccedilatildeo
proacutepria a eudaiacutemōniacutea A alma una que defendemos se torna condiccedilatildeo
para que tal funccedilatildeo se realize de modo pleno Por isso repetimos
somente em uma poacutelis o homem pode desenvolver todas as suas
potencialidades de alma ou a maior parte delas pois somente a poacutelis
fornece o indispensaacutevel ao bom funcionamento da alma A
indissociabilidade do corpo e da alma humana (DA I 1 403a3-15) e de
suas capacidades dentro de uma soacute e mesma alma (DA I 4 408b18 et
seq) nos levou a pensar e afirmar a unidade da alma e igualmente do
desejo a fim de que o homem completasse sua funccedilatildeo que entendemos
ser realizaacutevel apenas mediante agrave boa relaccedilatildeo das capacidades aniacutemicas
elementares Aleacutem disso vimos que a poacutelis eacute o ambiente que daacute
condiccedilotildees para desenvolver e coordenar as virtudes necessaacuterias para a
vida considerada feliz
Voltemos ainda um instante agrave EN I 13 e agrave proposta de uma
capacidade racional da alma e uma capacidade natildeo racional sendo que
nesta uacuteltima eacute demasiado importante agrave presente investigaccedilatildeo sua
possibilidade de ouvir a razatildeo o que nos levou a entender melhor as
possibilidades de mudanccedilas nasdas emoccedilotildees Essas variaccedilotildees satildeo
necessaacuterias agrave vida feliz aleacutem de nos ajudar a entender melhor a postura
de Aristoacuteteles acerca da relaccedilatildeo corpoalma Ao definir a alma a partir
das capacidades que faculta ao corpo desempenhar (DA II 2 413a20-25)
Aristoacuteteles permite entender o homem como se enquadrando naquela
descriccedilatildeo de todo orgacircnico vivificado por uma alma e dotado de um
certo nuacutemero de capacidades que iriam como vimos desde a percepccedilatildeo
sensiacutevel ateacute a elaboraccedilatildeo mais fina e sofisticada de raciociacutenios a respeito
das coisas imutaacuteveis (DA II 2 413b1-12)
146 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original καὶ διὰ
τοῦτο καλῶς ὑπολαμβάνουσιν οἷς δοκεῖ μήτ ἄνευ σώματος εἶναι μήτε σῶμά τι
ἡ ψυχή σῶμα μὲν γὰρ οὐκ ἔστι σώματος δέ τι καὶ διὰ τοῦτο ἐν σώματι
ὑπάρχει καὶ ἐν σώματι τοιούτῳ
161
A alma propusemos no Capiacutetulo I seria algo uno com o
exerciacutecio de vaacuterias capacidades que a constituiriam Por conseguinte
para as capacidades serem adequadamente exercidas a alma precisa da
harmonia indicada em EN I 13 no DA I e ao longo destes tratados que
indicam o caraacuteter indissociaacutevel das capacidades natildeo haacute desejo e emoccedilatildeo
sem percepccedilatildeo sensiacutevel e natildeo haacute imaginaccedilatildeo e pensamento sem os
outros dois O que vem do mundo emociona e faz pensar e agir mas
como vimos em Capiacutetulo anterior eacute preciso pensar e agir bem a fim de
viver uma vida feliz Natildeo haacute possibilidade de felicidade nos termos de
Aristoacuteteles sem aquela chamada virtude completa que entendemos ser
a comunhatildeo perfeita da virtude intelectual e da moral e portanto das
duas capacidades elementares exercitadas em seu melhor O acordo eacute
possibilitador da eudaiacutemōniacutea porque a eudaiacutemōniacutea na vida que
defendemos eacute impossiacutevel sem eupraxiacutea Por esses motivos devemos dar
continuidade agraves discussotildees que aparecem no iniacutecio dos dois tratados e
observar outros pontos que permitem confirmar nossas teorias
2 a) Um quecirc ou o quecirc de racionalidade nas emoccedilotildees
A ideia do homem como composto de corpo e alma que faz e
sofre accedilotildees solicitadas pelas paacutethē ouvintes ou natildeo das sugestotildees da
razatildeo praacutetica deve ser defendida em nossa pesquisa porque busca
caracterizar as emoccedilotildees como elementos eacuteticos cruciais agrave vida feliz O
que reforccedila essa proposta eacute a identificaccedilatildeo de um certo nuacutemero de
termos aplicados geralmente a operaccedilotildees concernentes agraves capacidades
racionais ou que levam ao exerciacutecio de tais capacidades mas indicando
a constituiccedilatildeo das emoccedilotildees ou implicadas com as emoccedilotildees educadas
Esses termos aparecem quando (ou especialmente quando) se trata das
virtudes morais particulares ou concretas bem como da definiccedilatildeo de
diversas emoccedilotildees (Rhet II) Entendemos que assim seja graccedilas agrave ligaccedilatildeo
de interdependecircncia entre as capacidades aniacutemicas mencionada
explicitamente em DA (II 4 414b33 et seq) conferindo unidade agrave alma
humana Essa ligaccedilatildeo possibilita a participaccedilatildeo do desiderativo na razatildeo
praacutetica e a boa accedilatildeo proposta confirmada pela afirmaccedilatildeo de Boyle
(2012 p 23-31) que pensa a racionalidade como um conjunto de capacidades que permitem ao homem fazer ou no caso se emocionar
da forma como se emociona
Por isso julgamos conveniente apreciar sucintamente em nosso
estudo algumas capacidades intelectuais que possam constituir a forma
como nos emocionamos ou mesmo que possam influenciar a mudanccedila
162
nas emoccedilotildees e a mudanccedila de uma emoccedilatildeo em outra Comeccedilaremos com
a percepccedilatildeo sensiacutevel iniacutecio que se justifica porque em Aristoacuteteles eacute com
ela que se inicia a possibilidade de conhecimento sobre o mundo147 e eacute
com ela que as emoccedilotildees parecem ter iniacutecio Seguiremos com breve
estudo da imaginaccedilatildeo considerada um elemento do pensamento
inexistente sem o corpo mas que sempre aparece associada agraves
descriccedilotildees diversas das emoccedilotildees que analisamos ateacute agora Apoacutes
mencionaremos tipos de pensamento e intelecto de certo modo
relacionados com a percepccedilatildeo e com a emoccedilatildeo Estudaremos ainda a
opiniatildeo ligada agraves emoccedilotildees abordada apenas de modo que nos ajude a
reforccedilar a defesa das propostas de nosso estudo A escolha das
capacidades mencionadas eacute devida ao fato de serem discutidas tanto na
EN quanto no DA assim como por aparecerem nos outros dois tratados
que servem de apoio agrave nossa inquiriccedilatildeo Todavia o estudo natildeo se
pretende exaustivo nem de caraacuteter conclusivo acerca da questatildeo mas
seraacute apresentado agrave medida que confirme nossas propostas a respeito da
racionalidade da emoccedilatildeo Comeccedilaremos portanto com a percepccedilatildeo
pois sem esta natildeo haacute imaginaccedilatildeo e sem estas duas provavelmente natildeo
haja pensamentos que igualmente podem estar de implicados na
emoccedilatildeo
2 b) Percepccedilatildeo
Nosso intento com essa pequena parte da pesquisa eacute entender o
papel da percepccedilatildeo na emoccedilatildeo com o apoio da EN eacute do DA A
interpretaccedilatildeo tradicional deste uacuteltimo tratado propotildee a percepccedilatildeo atraveacutes
dos oacutergatildeos da sensibilidade como iniacutecio do conhecimento sendo isto um
tipo de afecccedilatildeo (paacutethos) ou movimento que igualmente nos levaraacute a
imaginar e a nos emocionar
A EN natildeo nos propotildee explicitamente a percepccedilatildeo sensiacutevel como
ligada agrave maioria das emoccedilotildees mas ao lermos as descriccedilotildees das virtudes
morais particulares percebemos sua presenccedila pois se emocionar parece
depender ao menos inicialmente de um contato com o mundo do
agente e este contato acontece por via dos sentidos da percepccedilatildeo Aleacutem
disso quando na EN Aristoacuteteles diferencia a capacidade raciocinativa da
percepccedilatildeo sensiacutevel por aquela ser generalizante ao passo que esta outra
eacute particularizante (EN II 9 1109b21) aponta a discriminaccedilatildeo como
mateacuteria da percepccedilatildeo (EN III 5 1126b4-6) tida com as coisas que nos
147 Segundo Zingano (1996 p 17) essa eacute a interpretaccedilatildeo tradicional para as
teorias sobre a relaccedilatildeo entre sensaccedilatildeo e pensamento expostas no De anima
163
aparecem Quanto a esse assunto o tratado tambeacutem nos informa que
para um homem ser prudente eacute preciso saber dos casos particulares O
texto explica que por isso um jovem nunca seraacute prudente por natildeo ter
experiecircncias suficientes dos casos desse tipo pois a experiecircncia nesses
assuntos vem com o tempo
A prudecircncia por sua vez diz respeito ao que haacute de mais
particular jaacute que a accedilatildeo a ser efetuada eacute ela mesma particular (EN VI 9
1142a24-25) embora diga respeito tambeacutem aos universais captados a
partir de um sem nuacutemero de particularidades como vimos no Capiacutetulo
anterior Deste modo a prudecircncia eacute o conhecimento do que haacute de mais
individual remetendo-se reforccedilamos a algo de universal diferindo
assim da percepccedilatildeo sensiacutevel (EN VI 8 1141b14 et seq VI 9 1142a27)
eacute percepccedilatildeo praacutetica como propotildee Reeve (2013 p 13 e 23) Esse
particular natildeo eacute objeto da ciecircncia mas da percepccedilatildeo trazendo-a -
mesmo aquela percepccedilatildeo descrita no DA III - para o campo eacutetico
Aristoacuteteles entretanto adverte a percepccedilatildeo participante das coisas
eacuteticas natildeo lida com os sensiacuteveis proacuteprios mas com os sensiacuteveis de outro
tipo como aqueles que distinguem formas geomeacutetricas (EN VI 9
1142a26-30) Mesmo que haja um tipo especiacutefico de percepccedilatildeo
associado agrave prudecircncia pensamos que seja impossiacutevel a essa virtude
intelectual dispensar o contato com o particular que eacute objeto da
percepccedilatildeo sensiacutevel Por isso cabe-nos estudar essa capacidade
Se pensarmos que a percepccedilatildeo sensiacutevel natildeo estaacute totalmente isenta
do contato com a emoccedilatildeo ligada como estaacute a aparecircncias externas
devemos descrevecirc-la como algo que consiste em ser movido e afetado
pois parece haver opiniotildees que a afirmam como certa alteraccedilatildeo embora
certo tipo de percepccedilatildeo possa natildeo ter ligaccedilatildeo direta com a accedilatildeo de teor
moral A percepccedilatildeo sensiacutevel eacute explicada pelo De Anima de modo
condizente a esta proposta como um movimento partindo de fora da
alma (DA I 4 408a34-35 408b1-17) que todavia natildeo eacute capacidade
exclusiva do homem148 eacute proacutepria aos animais em geral Por
conseguinte Aristoacuteteles segue sua exposiccedilatildeo sobre o assunto com a
proposiccedilatildeo de que o diferencial entre um animal e os outros seres natildeo eacute
o movimento ou a mudanccedila de lugar mas a percepccedilatildeo sensiacutevel (DA II 2
148 Nos An Post Aristoacuteteles descreveu a despeito das diferenccedilas de propoacutesitos
das investigaccedilotildees nesse tratado a percepccedilatildeo como ldquoOra assim eacute a sensaccedilatildeo
uma faculdade discriminativa (portanto de conhecimento)natural a todos os
animaisrdquo (99b36)Traduccedilatildeo de Vallandro e Bornheim (1978) no
originalἐνούσης δ αἰσθήσεως τοῖς μὲν τῶν ζῴων ἐγγίγνεται μονὴ τοῦ
αἰσθήματος τοῖςδ οὐκἐγγίγνεται
164
413b1-9) Por exemplo vimos que em certos animais e plantas
fragmentados cada parte conserva sensaccedilatildeo e movimento local O
filoacutesofo entretanto explica que se assim acontece com a sensaccedilatildeo
igualmente aconteceraacute com a imaginaccedilatildeo e com o desejo porque onde
haacute sensaccedilatildeo haacute prazer e dor e onde estes existem tambeacutem existe
necessariamente o desejo (DA II 2 413b21-23) Com os sentidos
acontece algo parecido alguns animais os tecircm todos outros apenas
alguns outros soacute precisam dee tecircm o tato como propusemos no
Capiacutetulo I As capacidades da alma satildeo propostas entretanto em
sucessatildeo porque sem a alma nutritiva natildeo existe a capacidade
perceptiva portanto e de acordo com Kenny
As almas dos seres vivos podem ser ordenadas
hierarquicamente Plantas possuem uma alma
vegetativa ou nutritiva a qual consiste nos
poderes de crescimento nutriccedilatildeo e reproduccedilatildeo (2
4 415a22-26) Aleacutem disso os animais possuem os
poderes de percepccedilatildeo e locomoccedilatildeo eles possuem
uma alma sensiacutevel e todo animal tem pelo menos
uma capacidade sensitiva das quais o tato eacute a
mais universal O que quer que possa sentir
afinal pode sentir prazer e os animais portanto
que possuem sentidos tambeacutem tecircm desejos Os
humanos aleacutem disso tecircm o poder da razatildeo e do
pensamento (logiacutesmos kaigrave diaacutenoia) que podemos
chamar de alma racional (KENNY 2008 p 284)
Nos animais que possuem tato haacute igualmente a percepccedilatildeo do
alimento e todos os seres vivos se alimentam de coisas secas e uacutemidas
quentes e frias A percepccedilatildeo desses tipos de coisas acontece atraveacutes do
tato que soacute percebe acidentalmente outras qualidades sensiacuteveis
implicando que o sabor eacute seu objeto embora o cheiro e ruiacutedo natildeo
acrescentem nada ao alimento Assim para cada sentido haacute um plano
sensiacutevel que eacute seu objeto proacuteprio e nenhum dos outros sentidos subsiste
sem o tato sendo que este subsiste sem os demais jaacute que haacute animais
sem visatildeo audiccedilatildeo ou percepccedilatildeo do odor
Quanto a essa relaccedilatildeo entre as capacidades o filoacutesofo explica que entre os animais que possuem a capacidade perceptiva uns tecircm a
locomoccedilatildeo outros natildeo mas poucos satildeo os que tecircm caacutelculo e raciociacutenio
Naqueles em que subsiste o caacutelculo igualmente haacute as demais
capacidades mas dos que tecircm cada uma das outras capacidades nem
todos tecircm o caacutelculo Haacute animais que natildeo tecircm sequer a imaginaccedilatildeo e
165
igualmente aqueles que vivem exclusivamente por ela Tendo em vista
estas propostas vale lembrar que desde o primeiro momento de nosso
estudo aceitamos a possibilidade de natildeo haver muacuteltiplas e distintas
almas mas de a alma se constituir das capacidades que faculta ao corpo
animado Com isso a capacidade perceptiva nos seres humanos de
certo modo se liga agraves emoccedilotildees por sua dependecircncia do desiderativo
comprovando mais uma vez a unicidade da alma e as propostas iniciadas
em EN I 13
A essa ideia eacute preciso acrescentar que Aristoacuteteles entende o
perceber de dois modos haacute percepccedilatildeo em ato e em potecircncia e o objeto
de percepccedilatildeo sensiacutevel tambeacutem seraacute em potecircncia ou em atividade
Igualmente eacute preciso fazer distinccedilotildees quanto agrave potecircncia e agrave atualidade
porque como proposto a sensaccedilatildeo eacute a faculdade discriminadora e
dessas discriminaccedilotildees viratildeo os motivos para as emoccedilotildees que deveratildeo
passar pelo crivo da razatildeo praacutetica e de sua forma especiacutefica de
percepccedilatildeo a fim de que adquiram aspecto conveniente Conforme
Aristoacuteteles o ser que nasce jaacute tem o perceber como um discriminar e a
atividade de perceber eacute dita de modo similar agrave de inquirir A diferenccedila
entre as duas funccedilotildees eacute que as coisas que tecircm o poder eficiente da
atividade satildeo externas - satildeo visiacuteveis audiacuteveis e demais objetos da
percepccedilatildeo sensiacutevel - porque a atividade da percepccedilatildeo diz respeito agraves
particularidades enquanto o conhecimento diz respeito aos universais -
que de algum modo estatildeo na alma Assim a capacidade perceptiva eacute
potencialmente ldquotal como seu objeto o eacute jaacute em atualidade Portanto ela eacute
afetada enquanto natildeo semelhante mas uma vez que tenha sido afetada
ela se assemelha e torna-se tal como elerdquo (DA II 5 418a4-6)149 levando
esses dados da percepccedilatildeo para a apreciaccedilatildeo da razatildeo em suas diferentes
formas mas sob a forma praacutetica quando se tratar das accedilotildees
Por conseguinte podemos ressaltar o assunto dos objetos da
percepccedilatildeo sensiacutevel e da discriminaccedilatildeo O filoacutesofo observa
primeiramente que os sensiacuteveis devem ser tratados segundo cada um
dos sentidos ldquoO sensiacutevel se diz de trecircs modos dos quais dois afirmamos
que satildeo percebidos por si mesmos e um por acidente E dos dois um eacute
proacuteprio a cada sentido outro comum a todosrdquo (DA II 6 418a8-11)150
Sensiacutevel proacuteprio eacute aquilo que natildeo pode ser percebido por um outro
149 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original πάσχει μὲν
οὖν οὐχ ὅμοιον ὄν πεπονθὸς δ ὡμοίωται καὶ ἔστιν οἷον ἐκεῖνο 150Idem λέγεται δὲ τὸ αἰσθητὸν τριχῶς ὧν δύο μὲν καθ αὑτά φαμεν
αἰσθάνεσθαι τὸ δὲ ἓν κατὰ συμβεβηκός τῶν δὲ δυοῖν τὸ μὲν ἴδιόν ἐστιν
ἑκάστης αἰσθήσεως τὸ δὲ κοινὸν πασῶν
166
sentido que natildeo lhe corresponda - caso da visatildeo da cor da gustaccedilatildeo etc
Cada sentido destes eacute diferente e natildeo haacute engano sobre se eacute cor ou som
mas sobre o que eacute e onde estaacute o colorido ou o sonante Sensiacuteveis comuns
satildeo o movimento o repouso o nuacutemero a figura e a magnitude (DA II 6
418a17-20) porque satildeo percebidos por mais de um sentido ou por todos
os sentidos Por exemplo um certo movimento eacute percebido tanto pelo
tato quanto pela visatildeo Haacute ainda o sensiacutevel por acidente explicado pelo
famoso exemplo do branco que eacute filho de Diares (DA II 6 418a21-25)
Mas em relaccedilatildeo a toda percepccedilatildeo sensiacutevel eacute preciso compreender que o
sentido recebe as formas sensiacuteveis sem a mateacuteria e do mesmo modo o
sentido eacute afetado pela accedilatildeo do que tem cor sabor ou som O oacutergatildeo
sensorial primeiro eacute aquele em que subsiste essa potecircncia mas dos
sensiacuteveis comuns temos uma percepccedilatildeo comum sem um sentido ou um
oacutergatildeo proacuteprio diante do que Robinson explica
Mas Aristoacuteteles estaacute ciente de que muito mais estaacute
sendo dito quando afirmamos que percebemos as
coisas em particular afirmamos que natildeo vemos
apenas cores mas objetos coloridos que estatildeo em
movimento ou em repouso que tecircm determinado
tamanho e que satildeo unos ou muacuteltiplos em nuacutemero
Estes satildeo chamados ldquosensiacuteveis comunsrdquo
Aristoacuteteles afirma satildeo percebidos per accidens
pelos cinco sentidos que temos e portanto
podemos nos referir a eles como o ldquosentido
comumrdquo ou ldquoos sentidos tomados em comumrdquo
(ROBINSON 2010 p 239)
A percepccedilatildeo sensiacutevel deste modo eacute tida como a capacidade
discriminativa entre as coisas sensiacuteveis que nos aparecem podendo
mesmo levar a ajuizamento Informaccedilatildeo crucial a uma pesquisa eacutetica
sobre as emoccedilotildees pois mais adiante veremos a proposiccedilatildeo da relaccedilatildeo
entre o sentir emoccedilatildeo e o ajuizar quanto aos particulares que nos tocam
Vimos que a percepccedilatildeo sensiacutevel que nos forneceraacute os dados dos
julgamentos por sua vez eacute ou uma potecircncia (como a visatildeo) ou uma
atividade (como o ato de ver) e estaacute sempre presente
Aleacutem disso as percepccedilotildees sensiacuteveis satildeo sempre verdadeiras se haacute boas condiccedilotildees do oacutergatildeo perceptivo e de seu objeto Por exemplo
quando estamos em plena atividade da percepccedilatildeo natildeo dizemos que um
objeto perceptiacutevel aparenta ser um homem dizemos isso quando natildeo
percebemos claramente Nesse caso a percepccedilatildeo seria verdadeira ou
falsa porque (1) haacute percepccedilatildeo sensiacutevel dos objetos sensiacuteveis proacuteprios
167
sendo esta verdadeira ou contendo minimamente o falso (2) porque natildeo
haacute percepccedilatildeo tambeacutem do incidir essas coisas que satildeo acidentais nos
objetos perceptiacuteveis e nesse caso admite-se errar e (3) haacute igualmente a
percepccedilatildeo dos sensiacuteveis comuns que acompanham os incidentais onde
subsistem os sensiacuteveis proacuteprios Essas trecircs percepccedilotildees sensiacuteveis daratildeo as
diferenccedilas do movimento que ocorre pela atividade da percepccedilatildeo se ela
estaacute presente (1) eacute verdadeiro Os outros podem ser falsos estando ela
presente ou natildeo principalmente quando estiver longe do objeto
perceptiacutevel que eacute totalmente particular
Assim agraves afirmaccedilotildees do DA se coadunam as propostas da EN
sobre a percepccedilatildeo quando esta uacuteltima obra nos informa que cada sentido
vem a ato pela relaccedilatildeo com o objeto sensiacutevel que lhe eacute correspondente
Tal operaccedilatildeo se torna perfeita quando o sentido - em uma disposiccedilatildeo satilde -
tem sua relaccedilatildeo com o melhor objeto que lhe corresponde como
proposto haacute pouco Nessas condiccedilotildees o ato eacute o mais perfeito e o mais
agradaacutevel porque para cada um dos sentidos haacute um prazer
correspondente sendo que nesse caso o prazer eacute o acabamento do ato de
perceber e discriminar Se o sentido e os sensiacuteveis estiverem nas
condiccedilotildees propostas sempre haveraacute prazer e verdade porque seratildeo
postos diante do princiacutepio eficiente e do princiacutepio passivo aiacutesthēsis e
aisthetoacuten Estes quando juntos contemplam as exigecircncias de perfeiccedilatildeo
da capacidade perceptiva permitindo o ato perceptivo perfeito em mais
alto grau
Mas esse tipo de percepccedilatildeo eacute o mesmo mencionado em EN VI
como associado agrave prudecircncia O Livro sobre as virtudes intelectuais nos
informa que a prudecircncia (EN VI 9 1142a26-30) eacute mais percepccedilatildeo
deliberativa ou praacutetica que qualquer outra coisa no entanto vimos que o
tipo de percepccedilatildeo associado agrave phroacutenēsis eacute diferente do outro (EN VI 9
1142a28) A percepccedilatildeo deliberativa envolve um universal que soacute pode
ser atingido por deliberaccedilatildeo praacutetica Nessas condiccedilotildees conta a posse de
desejos e emoccedilotildees moderados jaacute que podem ser em excesso ou falta e
por isso apresentam viacutecios que distorcem a visatildeo tornando-a falsa
quanto ao iniacutecio das accedilotildees (EN VI 13 1144a34-36) Por isso a percepccedilatildeo
relacionada agrave prudecircncia eacute de certa forma diferente da percepccedilatildeo dos
sensiacuteveis proacuteprios mencionados em DA III
No caso da prudecircncia opera-se uma percepccedilatildeo como aquela das
figuras que eacute chamada por Reeve (2014 p 211 et seq) percepccedilatildeo
deliberativa Estaacute relacionada ao silogismo praacutetico sendo percepccedilatildeo do
que eacute uacuteltimo na demonstraccedilatildeo praacutetica donde seu caraacuteter particular A
EN III 5 1112b11-24 e a EE II 10 1226a37 nos informam que o
deliberador age como quem analisa um diagrama Um matemaacutetico
168
analisa materiais e formas para serem desenhadas compondo uma
figura Esta eacute a uacuteltima coisa alcanccedilada na anaacutelise mas a primeira na
construccedilatildeo do objeto analisado (DA III 10 433a16-17) Com isso cessa a
investigaccedilatildeo (EN VI 9 1142a29) mais ou menos do mesmo modo que
ocorre na deliberaccedilatildeo praacutetica do prudente quando a anaacutelise chega ao
que deve ser feito ou seja age
Assim a percepccedilatildeo deliberativa resulta de deliberaccedilatildeo e eacute um
tipo de percepccedilatildeo porque o universal que ela discerne eacute captado a partir
de ocorrecircncias particulares perceptiacuteveis como explica Reeve (2013 p
23 p 32) ligando-se assim agrave percepccedilatildeo geral Mesmo que a percepccedilatildeo
de tipo deliberativo soacute ocorra em animais dotados de capacidade
calculativa ela eacute um ato perceptivo porque discerne um particular
perceptiacutevel pela capacidade perceptiva conforme o que explicamos
acima e o que Reeve ressalta
Se o particular em questatildeo eacute um perceptiacutevel
proacuteprio (como poderia ser por exemplo se
estiveacutessemos deliberando sobre que cor de roupa
nos protege melhor do sol) esse ato eacute mais
estritamente o de um sentido proacuteprio (visatildeo) Se eacute
um perceptiacutevel comum (como o formato
triangular) eacute um ato de senso comum (REEVE
2014 p 213)
Ao contraacuterio da percepccedilatildeo do sensiacutevel proacuteprio que eacute sempre
correta ou tem pouca chance de errar a percepccedilatildeo deliberativa pode
cometer erro por exemplo se a deliberaccedilatildeo ligada a ela natildeo for
verdadeira ou for invaacutelida Por isso a prudecircncia eacute ao mesmo tempo
percepccedilatildeo e deliberativa (EN VI 8 1141b9-10) porque perceber
corretamente sensiacuteveis comuns depende frequentemente de caacutelculo
sendo similar agrave percepccedilatildeo deliberativa Especificamente quanto agrave accedilatildeo a
deliberaccedilatildeo praacutetica que a determina tem por alvo a melhor coisa para o
homem e que pode ser realizada por ele (EN VI 8 1141b13-14) Esse
tipo de deliberaccedilatildeo eacute precursora da imaginaccedilatildeo deliberativa e envolve
desejos e emoccedilotildees que possuem boa medida O que faz da percepccedilatildeo
deliberativa praacutetica eacute o fato de seu objeto envolver prazer e dor como
no caso do desejo pela felicidade
Deste modo reforccedilamos que a percepccedilatildeo sensiacutevel pode ser
entendida mesmo em diferentes tratados como iniacutecio do conhecimento
e como afecccedilatildeo tocada por objetos particulares externos que satildeo
proacuteprios ou comuns Conduz a prazeres variados e pode mesmo ter
169
relaccedilatildeo com a emoccedilatildeo ocasionada pelo agente externo particular ao qual
discrimina Difere contudo dos pensamentos para os quais encaminha
suas distinccedilotildees e que em sua forma praacutetica ocasionaraacute a percepccedilatildeo de
tipo deliberativa Por isso questionamos assim como fez Zingano que
tipo de alteraccedilatildeo eacute a percepccedilatildeo sensiacutevel se natildeo eacute qualquer alteraccedilatildeo
Aristoacuteteles natildeo apresenta resposta exata agrave questatildeo mas com apoio no
que foi estudado podemos aceitar a proposta de Zingano (1996 p 16)
Este estudioso entende que a percepccedilatildeo seria ldquouma certa afecccedilatildeo aquela
que a faculdade sensitiva sofre quando passa agrave atualidade e identifica-se
formalmente agrave coisa que do exterior causa sua atualizaccedilatildeo
constituindo-se nesta relaccedilatildeo um objeto de conhecimento (mais
precisamente um objeto sensiacutevel)rdquo o que ratifica a proposta de EN X 7
1177b26-30 e as propostas de nossa pesquisa
Ao homem natildeo eacute possiacutevel uma vida afastada do mundo e de seus
objetos pois mesmo para boa parte de suas reflexotildees seria necessaacuterio o
contato com aquilo que o cerca e sobre o que deve deliberar em casos
embaraccedilosos e por isso haacute a percepccedilatildeo deliberativa que distingue a
partir do que eacute proposto em um silogismo praacutetico levando agrave boa accedilatildeo A
percepccedilatildeo natildeo se identifica com o pensar sendo atividade de outra
natureza que pode operar com a percepccedilatildeo sensiacutevel para produzir o
conhecimento151 Assim como a percepccedilatildeo deliberativa natildeo se identifica
151Para Zingano (1996 p 17) contudo essa natildeo eacute a interpretaccedilatildeo tradicional
Esta propotildee da forma como explica o estudioso uma iacutentima afinidade da
atividade dos sentidos com aquela do intelecto Isso eacute correto pensa o autor
porque todo conhecimento humano por conceitos necessita da ligaccedilatildeo entre as
operaccedilotildees da razatildeo e da sensaccedilatildeo O problema existente com a proposta
tradicional pensa estaacute no modo como tal afinidade eacute concebida Para
Aristoacuteteles essas duas operaccedilotildees satildeo distintas porque o pensamento apreende
os universais enquanto a sensaccedilatildeo apreende os particulares A proposta
tradicional no entanto atribui agraves operaccedilotildees algo mais que a tarefa
discriminativa (e de conhecer) os objetos teriam um modo de operaccedilatildeo
semelhante Por isso entender como funciona uma implicaria entender o
funcionamento da outra Nesse caso tanto com intelecto quanto com a sensaccedilatildeo
o conhecimento viria da passagem da potencialidade agrave atualidade sendo que o
objeto proacuteprio a cada operaccedilatildeo lhe cederia certa determinaccedilatildeo Nessa
passividade as operaccedilotildees estariam intimamente ligadas Entatildeo tanto uma
quanto outra seria uma potecircncia que dependeria do seu objeto para ser
atualizada
Isso afastaria Aristoacuteteles da proposta das Ideias de Platatildeo (como na Rep)
porque natildeo precisaria duplicar o objeto do conhecimento ldquoAristoacuteteles duplica
as operaccedilotildees da alma mas natildeo a proacutepria coisa partindo da apreensatildeo das
170
com a deliberaccedilatildeo mas eacute parte constituinte desta Todavia entre os
tipos de percepccedilatildeo mencionados e os tipos de pensamento e razatildeo com
os quais tecircm contato temos outro elemento presente a imaginaccedilatildeo
portanto cabe-nos agora dissertar brevemente sobre a imaginaccedilatildeo e as
emoccedilotildees
2 c) Imaginaccedilatildeo
Na EN VII 7 1149a32 a imaginaccedilatildeo aparece ligada agrave raiva
(thymoacutes) contrapondo-se agraves propostas do filoacutesofo quanto ao apetite No
passo em questatildeo satildeo feitas observaccedilotildees quanto agrave capacidade desses
dois desejos ouvirem agrave razatildeo e agrave forma como as emoccedilotildees relacionadas a
eles se comportam devido a essa participaccedilatildeo no racional Estas paacutethē
estatildeo associadas agrave percepccedilatildeo e agraves aparecircncias explicando que a razatildeo ou
a imaginaccedilatildeo estaacute presente nas apreciaccedilotildees dos insultos que enraivecem
relacionando o homem que deve se emocionar com o mundo (Pol I 2
1253a25-28 EN X 7 1177b26-30) Assim a imaginaccedilatildeo eacute atrelada ao
impulso e agrave raiva que pode acompanhaacute-lo
O DA parece nos trazer informaccedilotildees adicionais sobre a questatildeo
pois Aristoacuteteles nos fala da imaginaccedilatildeo ao comparaacute-la e associaacute-la com
a percepccedilatildeo sensiacutevel e com tipos de pensamento ldquoPois a imaginaccedilatildeo eacute
algo diverso tanto da percepccedilatildeo sensiacutevel como do raciociacutenio mas a
imaginaccedilatildeo natildeo ocorre sem percepccedilatildeo sensiacutevel e tampouco sem a
imaginaccedilatildeo ocorrem suposiccedilotildeesrdquo (DA III 2 427b14-16)152 Tratamos da
imaginaccedilatildeo ao abordarmos as capacidades da razatildeo que podem estar
implicadas com as emoccedilotildees porque haacute vaacuterias menccedilotildees a ela quando o
assunto eacute o paacutethos especialmente em Rhet II sendo a proacutepria um
paacutethos ao mesmo tempo em que eacute considerada como ponto
intermediaacuterio entre o perceber e o pensar Teoria que justifica o estudo
qualidades sensiacuteveis o homem chega aos inteligiacuteveis natildeo tendo uma relaccedilatildeo
com outra coisa mas retrabalhando esta mesma apreensatildeo sensiacutevel sob a forma
agora de reproduccedilatildeo imaginativa no interior da qual a razatildeo apreende os
inteligiacuteveis Haacute dois objetos de conhecimento o sensiacutevel e o inteligiacutevel aos
quais correspondem (sic) uma soacute coisa na realidade um particular que eacute
composto de mateacuteria e formardquo (ZINGANO 1997 p 18) Isso culminaraacute na tese
do intelecto agente e passivo Com essas propostas Aristoacuteteles elimina as Ideias
e resta-lhe a imanecircncia segundo a qual os inteligiacuteveis somente satildeo separados na
alma 152 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original φαντασία γὰρ ἕτερον
καὶ αἰσθήσεως καὶ διανοίας αὕτη τε οὐ γίγνεται ἄνευ αἰσθήσεως καὶ ἄνευ
ταύτης οὐκ ἔστιν ὑπόληψις
171
das trecircs capacidades racionais em um trabalho acerca das emoccedilotildees por
serem diferentes e exercerem tarefas diferentes junto agrave emoccedilatildeo e agrave
possibilidade de bem viver a imaginaccedilatildeo natildeo eacute nem pensamento nem
suposiccedilatildeo mas eacute uma afecccedilatildeo que depende de noacutes e do nosso querer
Aristoacuteteles explica que quando temos imaginaccedilatildeo de coisas terriacuteveis ou
pavorosas por exemplo podemos permanecer como que a contemplar
uma pintura (DA III 3 427b16-24153) pois a imaginaccedilatildeo natildeo nos leva
imediatamente a compartilhar a emoccedilatildeo Assim
Se a imaginaccedilatildeo eacute aquilo segundo o que dizemos
que nos ocorre uma imagem ndash e natildeo no sentido
em que o dizemos por metaacutefora - seria ela entatildeo
alguma daquelas potecircncias ou disposiccedilotildees
segundo as quais discernimos ou expressamos o
verdadeiro ou o falso Deste tipo satildeo a percepccedilatildeo
sensiacutevel a opiniatildeo a ciecircncia e o intelecto (DA III
3 428a1-4)154
A imaginaccedilatildeo natildeo eacute percepccedilatildeo sensiacutevel porque como vimos
pouco acima a percepccedilatildeo eacute ou uma potecircncia como a visatildeo ou um ato
como o de ver mas algo pode aparecer (phaiacutenetai) para noacutes quando natildeo
subsiste (em sonho por exemplo) e a percepccedilatildeo sensiacutevel eacute sempre
presente mas a imaginaccedilatildeo natildeo As imagens nos aparecem mesmo com
os olhos fechados enquanto a percepccedilatildeo depende destes abertos para
que contate seus objetos Aleacutem disso diferem porque se a imaginaccedilatildeo
fosse o mesmo que a percepccedilatildeo em atividade subsistiria em todos os
153 Ver tambeacutem Nussbaum (2008 p 65 et seq) embora a filoacutesofa natildeo esteja
propriamente a explicar Aristoacuteteles trata da compaixatildeo para exemplificar sua
teoria e exemplifica o papel da imaginaccedilatildeo na emoccedilatildeo ldquoNa compaixatildeo nossa
habilidade para pintar vividamente o dilema de uma pessoa ajuda na formaccedilatildeo
das emoccedilotildees [] podemos sentir menos emoccedilatildeo por outros casos que natildeo
podemos similarmente imaginar com vivacidade embora eles possam ter uma
estrutura similar Aqui o que a imaginaccedilatildeo parece fazer eacute nos ajudar trazendo
um indiviacuteduo distante para a esfera de nossos objetivos e projetos humanizando
a pessoa e criando apossibilidade de ligaccedilatildeo A compaixatildeo ainda seraacute definida
pelo seu conteuacutedo de pensamento incluindo seu conteuacutedo eudaiacutemōniacutestico []
mas a imaginaccedilatildeo eacute uma ponte que permite ao outro se tornar um objeto de
nossa compaixatildeordquo (NUSSBAUM 2008 p 66 traduccedilatildeo nossa) 154 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis (2006) no original εἰ δή ἐστιν ἡ
φαντασία καθ ἣν λέγομεν φάντασμά τι ἡμῖν γίγνεσθαι καὶ μὴ εἴ τι κατὰ
μεταφορὰν λέγομεν ἆρα μία τις ἔστι τούτων δύναμις ἢ ἕξις καθ ἃς κρίνομεν
καὶ ἀληθεύομεν ἢ ψευδόμεθα τοιαῦται δ εἰσὶν αἴσθησις δόξα ἐπιστήμη νοῦς
172
animais mas ela natildeo parece existir por exemplo nas formigas Outra
diferenccedila eacute que as percepccedilotildees satildeo sempre verdadeiras mas a maioria das
imaginaccedilotildees eacute falsa pois existe imaginaccedilatildeo falsa e os animais natildeo
possuem convicccedilatildeo (piacutestis) mas muitos tecircm imaginaccedilatildeo aleacutem do mais
alguns animais a possuem mas natildeo possuem razatildeo
A imaginaccedilatildeo eacute descrita portanto como movimento decorrente
da atividade da percepccedilatildeo sensiacutevel (DA III 3 429a1-2) sendo a uacutenica a
apresentar os atributos mencionados Zingano (2008 p 203) explica a
imaginaccedilatildeo como ldquoa faculdade da alma que preserva o que eacute dado pela
sensaccedilatildeo sob a forma de imagens sobre as quais o intelecto vai operar
funcionando como uma ponte entre razatildeo e sensaccedilatildeordquo Estando
relacionada agrave percepccedilatildeo sensiacutevel que tem sua principal expressatildeo na
visatildeo forma de percepccedilatildeo sensiacutevel por excelecircncia o nome imaginaccedilatildeo
deriva de luz (tograve phocircs) pois sem luz natildeo eacute possiacutevel ver e sem ver natildeo eacute
possiacutevel imaginar sendo tal capacidade uma espeacutecie de criadora de
coisas que satildeo ldquovistasrdquo pelo pensamento Assim as imaginaccedilotildees
perduram e se assemelham agraves percepccedilotildees sensiacuteveis sendo que os
animais fazem muitas coisas de acordo com essas uns por natildeo terem
intelecto outros como os homens por terem o intelecto agraves vezes
obscurecido pelo sono ou pela doenccedila
O DA tambeacutem nos faz entender que haacute diferentes tipos de
imaginaccedilatildeo ldquoA imaginaccedilatildeo perceptiva como foi dito subsiste
igualmente nos outros animais mas a deliberativa apenas nos seres
capazes de calcular pois decidir por fazer isto ou aquilo de fato jaacute eacute
uma funccedilatildeo do caacutelculordquo (DA III 9 434a5-7)155 Essas propostas ligam-se
agravequelas de EN VI texto no qual estudamos a imaginaccedilatildeo deliberativa
como Reeve (2014 p 212) esclarece ldquoA percepccedilatildeo deliberativa eacute um
parente proacuteximo ndash no sentido de que eacute o precursor essencial ndash da
imaginaccedilatildeo calculativa ou deliberativardquo Como nos explica o DA
compartilhamos a imaginaccedilatildeo perceptiva com todos os animais mas a
imaginaccedilatildeo deliberativa eacute exclusiva dos seres dotados de caacutelculo porque
ela eacute questatildeo de deliberaccedilatildeo em prol do bem supremo Por isso esse tipo
de imaginaccedilatildeo capacita ou vem da capacidade de discernir uma entre
muitas aparecircncias a partir do silogismo praacutetico no caso da accedilatildeo
colaborando com o tipo de visatildeo proacuteprio agrave prudecircncia
Por conseguinte se a imaginaccedilatildeo perceptiva eacute um tipo de
movimento que soacute acontece nos seres que tecircm percepccedilatildeo sensiacutevel a
155 Idem ἡ μὲν οὖν αἰσθητικὴ φαντασία ὥσπερ εἴρηται καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις
ζῴοις ὑπάρχει ἡ δὲ βουλευτικὴ ἐν τοῖς λογιστικοῖς (πότερον γὰρ πράξει τόδε ἢ
τόδε λογισμοῦ ἤδη ἐστὶν ἔργον[])
173
respeito das coisas das quais se tem tal percepccedilatildeo sendo possiacutevel que
aconteccedila pela atividade da aiacutesthēsis eacute preciso que o movimento seja
semelhante a esta O ser que possui esse movimento poderaacute fazer e
sofrer muitas coisas em conformidade a ele confirmando que a
percepccedilatildeo sensiacutevel se relaciona com a emoccedilatildeo pois esta uacuteltima move
de certo modo Se natildeo haacute imaginaccedilatildeo sem percepccedilatildeo sensiacutevel tais
operaccedilotildees se encadeiam no esquema daquilo que de mais proacuteximo ao
racional pode tocar agrave emoccedilatildeo mas haacute ainda a imaginaccedilatildeo deliberativa
que se associa agraves emoccedilotildees moderadas agrave deliberaccedilatildeo praacutetica e agrave escolha
deliberada dando ao prudente um tipo de visatildeo das coisas
possivelmente corretas a fazer com isso favorecendo a boa medida Na
sequecircncia da cadeia de operaccedilotildees tratada encontramos certos tipos de
pensamento e igualmente de intelecto sendo preciso estudaacute-los A
imaginaccedilatildeo contudo viraacute a ser mencionada novamente no estudo acerca
da opiniatildeo momento oportuno pois o filoacutesofo potildee-nas em comparaccedilatildeo
tanto na EN quanto no DA
2 d) Pensamentos
As anaacutelises feitas a partir dos textos estudados nos permitiram
constatar que haacute tipos de pensamento associados agrave emoccedilatildeo desejos e
prazeres Um destes tipos de pensamento (diaacutenoia) quanto agraves coisas
relativas agrave moralidade parece estar presente especialmente nas virtudes
intelectuais agraves quais se chama desde EN I 13 dianoeacuteticas entendidas
como as melhores condiccedilotildees da capacidade racional designada por
Aristoacuteteles como diaacutenoia Em EN I 6 todavia a vida bem-sucedida eacute
associada agrave posse da razatildeo e ao exerciacutecio desse tipo de pensamento (EN I 7 1098a5) ligaccedilatildeo comprovada pelo caso da boa deliberaccedilatildeo sempre
relacionada ao raciociacutenio ou caacutelculo A boa deliberaccedilatildeo eacute a uma
investigaccedilatildeo sobre algo especiacutefico agraves coisas morais permite calcular
corretamente sendo um tipo de retidatildeo de pensamento Deste modo natildeo
haacute boa deliberaccedilatildeo sem caacutelculo consciente mesmo que ela ainda natildeo
seja uma asserccedilatildeo O homem que delibera bem calcula e investiga
alguma coisa levando o desejo reto a emoccedilatildeo adequada e a escolha
deliberada a buscarem um objeto determinado quando devido (EN VI 2
1139a21 et seq) A associaccedilatildeo desse tipo de pensamento com o bem se
emocionar foi evidenciada mais acima quando tratamos da necessidade
da virtude dianoeacutetica ou intelectual da prudecircncia para que haja virtude
moral e para a formaccedilatildeo da virtude completa
O De Anima tambeacutem associa esse tipo de terminologia ao paacutethos quando nos confirma por exemplo que determinados objetos como o
174
que eacute doce movem a percepccedilatildeo sensiacutevel ou o pensar (ou entender tegraven
noacuteesin III 2 426b31-427a1) mas o texto que mais aproxima o pensar e
as emoccedilotildees eacute DA III 7 Em tal Livro podemos ler o seguinte
A ciecircncia em atividade eacute idecircntica ao seu objeto
[] Sentir entatildeo eacute semelhante ao mero proferir e
pensar156 e quando eacute agradaacutevel ou doloroso como
o afirmado ou negado isso eacute perseguido ou
evitado e sentir prazer ou dor consiste em estar
em atividade com a meacutedia da capacidade
sensitiva em face do bem ou do mal como tais A
aversatildeo e o desejo satildeo o mesmo em atividade e a
capacidade de desejar e de evitar natildeo satildeo
diferentes nem entre si nem da capacidade de
sentir embora o ser seja diverso Para a alma
capaz de pensar as imagens subsistem como
sensaccedilotildees percebidas E quando se afirma algo
bom ou nega-se algo ruim evita-o ou persegue-o
Por isso a alma jamais pensa sem imagem (DA III
7 431a1-16)157
156 Robinson (2010 p 245) explica que traduzir noucircs em certos trechos do DA
como aquele que identifica pensar e perceber seria mais convenientemente
entendido se se traduzisse o termo por lsquoentendimentorsquo Isso porque o estudioso
concebe o noucircs nesses pontos como parte do processo de pensamento mas que
natildeo eacute todo o processo Assim aiacutesthēsis e noucircs seriam anaacutelogos por serem
ambos eventos tipos de impressotildees mas cada um a seu modo (Robinson 2010
p 244) Pensamento em nosso sentido seria diaacutenoiesthai que tambeacutem se
ligaria agrave aiacutesthēsis e ao julgamento 157 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis (2006) no original Τὸ δ αὐτό ἐστιν ἡ
κατ ἐνέργειαν ἐπιστήμη τῷ πρά-
γματι ἡ δὲ κατὰ δύναμιν χρόνῳ προτέρα ἐν τῷ ἑνί ὅλως δὲ οὐδὲ χρόνῳ ἔστι
γὰρ ἐξ ἐντελεχείᾳ ὄντος πάντα τὰ γιγνόμενα ndash φαίνεται δὲ τὸ μὲν αἰσθητὸν ἐκ
δυνάμει ὄντος τοῦ αἰσθητικοῦ ἐνεργείᾳ ποιοῦν οὐ γὰρ πάσχει οὐδ ἀλλοιοῦται
διὸ ἄλλο εἶδος τοῦτο κινήσεως ἡ γὰρ κίνησις τοῦ ἀτελοῦς ἐνέργεια ἡ δ ἁπλῶς
ἐνέργεια ἑτέρα ἡ τοῦ τετελεσμένου ndash τὸ μὲν οὖν αἰσθάνεσθαι ὅμοιον τῷ
φάναι μόνον καὶ νοεῖνὅταν δὲ ἡδὺ ἢ λυπηρόν οἷον καταφᾶσα ἢ ἀποφᾶσα
διώκει ἢ φεύγει καὶ ἔστι τὸ ἥδεσθαι καὶ λυπεῖσθαι τὸ ἐνεργεῖν τῇ αἰσθητικῇ
μεσότητι πρὸς τὸ ἀγαθὸν ἢ κακόν ᾗ τοιαῦτα καὶ ἡ φυγὴ δὲ καὶ ἡ ὄρεξις ταὐτό
ἡ κατ ἐνέργειαν καὶ οὐχ ἕτερον τὸ ὀρεκτικὸν καὶ τὸ φευκτικόν οὔτ ἀλλήλων
οὔτε τοῦ αἰσθητικοῦ ἀλλὰ τὸ εἶναι ἄλλο τῇ δὲ διανοητικῇ ψυχῇ τὰ
φαντάσματα οἷον αἰσθήματα ὑπάρχει ὅταν δὲ ἀγαθὸν ἢ κακὸν φήσῃ ἢ
ἀποφήσῃ φεύγει ἢ διώκει διὸ οὐδέποτε νοεῖ ἄνευ φαντάσματος ἡ ψυχή
175
Por conseguinte o que eacute capaz de pensar pensa formas em
imagens Nestas se define para quem pensa o que deve ser perseguido e
evitado e por isso mesmo que se ponha a percepccedilatildeo sensiacutevel agrave parte o
que pensa se move quando diante de imagens Em outro momento
quando as imagens (phantasiacuteai) e os pensamentos estatildeo na alma o
homem raciocina como se visse tais imagens Delibera sobre as coisas
que poderatildeo acontecer (ou ser) a partir das que estatildeo presentes nesse
tipo de imagens do pensamento ldquovendordquo nestas o agradaacutevel ou o penoso
evita-o ou persegue-o relacionando-se com o desejo Mesmo o
verdadeiro e o falso que satildeo desprovidos de accedilatildeo estatildeo no mesmo
gecircnero que o bom e o mau embora difiram pois um eacute em absoluto e
outro eacute relativo a algueacutem
Haacute ainda outro tipo de pensamento com significado variado
relacionado agraves emoccedilotildees a serem despertadas e se apresenta nas
sugestotildees do filoacutesofo para que o orador consiga emocionar seu puacuteblico
Se o medo eacute acompanhado de algum
pressentimento de que vamos sofrer algum mal
que nos aniquila eacute oacutebvio que aqueles que acham
que nunca lhes vai acontecer algo de mal natildeo tecircm
medo nem receiam as coisas as pessoas e os
momentos que na sua maneira de pensar natildeo
podem provocar medo Assim pois
necessariamente sentem medo os que pensam que
podem vir a sofrer algum mal e os que pensam
que podem ser afetados por pessoas coisas e
momentos (Rhet II 5 1382b29-34)158
A Eacutetica Nicomaqueia tambeacutem apresenta o verbo oicircomai nesse
sentido de um pensar incerto ou de um tipo de crenccedila associado agraves
posturas intemperantes e incontinentes (EN VII 11 1152a6) As pessoas
que estatildeo ou pensam estar em grande prosperidade acreditam que natildeo haacute
mal que possa lhes acontecer satildeo insolentes desdenhosas e atrevidas
por disporem de riquezas muitas amizades forccedila e poder As pessoas
que acreditam jaacute ter sofrido todo o tipo de desgraccedilas tambeacutem pensam
assim sendo frias quanto ao futuro ldquoPara que sintamos receio eacute preciso
158 Traduccedilatildeo de Alves Alberto Pena (2012) no original εἰ δή ἐστιν ὁ φόβος
μετὰ προσδοκίας τινὸς τοῦ πείσεσθαί τι φθαρτικὸν πάθος φανερὸν ὅτι οὐδεὶς
φοβεῖται τῶν οἰομένων μηδὲν ἂν παθεῖν οὐδὲ ταῦτα ἃ μὴ οἴονται ἂν παθεῖν
οὐδὲ τούτους ὑφ ὧν μὴ οἴονται οὐδὲ τότε ὅτε μὴ οἴονται ἀνάγκη τοίνυν
φοβεῖσθαι τοὺς οἰομένους τι παθεῖν ἄν καὶ τοὺς ὑπὸ τούτων καὶ ταῦτα καὶ τότε
176
que haja alguma esperanccedila de salvaccedilatildeo pela qual valha a pena lutar
Sinal disso eacute que o medo leva as pessoas a deliberar ao passo que
ningueacutem delibera sobre casos desesperadosrdquo (Rhet II 5 1383a5-8)159
Essa apresentaccedilatildeo natildeo acontece nas trageacutedias embora os poemas faccedilam
com que o espectador imagine tal situaccedilatildeo a acontecer com algueacutem que
conhece Esse tipo de imaginaccedilatildeo basta para que o organismo de algueacutem
na plateia se prepare para sentir o medo proposta confirmada pela Eacutetica
Nicomaqueia IV 6 estudo acerca da disposiccedilatildeo corajosa oposta ao
medo emoccedilatildeo que encara ameaccedilas externas como males Por isso
alguns definem o medo como expectaccedilatildeo do mal ocasionado
geralmente pela relaccedilatildeo entre pessoas na poacutelis
O vocaacutebulo em questatildeo eacute empregado para designar algo
semelhante ao pensar ou ao imaginar e opinar Conforme Chantraine
(1977 p 785) aparece no sentido de ldquoopinonrdquo (opiniatildeo) fazendo
oposiccedilatildeo a saphṑs eideacutenai ver claramente ter certeza De acordo com
Aldo Dinucci e Alfredo Julien (2014 p 36) em sua traduccedilatildeo do
Encheiriacutedion de Epicteto o verbo na voz passiva oicircomai quer dizer
ldquolsquopensarrsquo no sentido de lsquopresumirrsquo referindo-se a coisas incertas ndash daiacute
lsquopressentir crer estimarrsquordquo Esses empregos assim como os da Retoacuterica parecem conservar a ideia de que haacute um quecirc de racionalidade se natildeo de
pensamento exatamente no sentido que hoje usamos a palavra que deve
estar presente nas emoccedilotildees despertadas na plateia de um juacuteri por
exemplo abrindo espaccedilo para a atuaccedilatildeo da razatildeo praacutetica na forma de
deliberaccedilatildeo Por isso a Rhet nos apresenta tambeacutem um termo
conhecidamente eacutetico o verbo bouleuacuteō (deliberar) sugerindo que
quando um orador mexe com as emoccedilotildees do puacuteblico este eacute levado agrave
deliberaccedilatildeo sobre os assuntos em questatildeo reforccedilando nossa teoria
Os estados de espiacuterito em que se sente piedade por exemplo
parecem estar diretamente ligados agrave lembranccedila que pode despertar a
imaginaccedilatildeo mas que igualmente parecem estar relacionados no caso do
medo com certo pensamento mesmo que este seja um tipo de
imaginaccedilatildeo que sugira deliberaccedilatildeo Assim haacute certos tipos de
pensamento especialmente envolvidos com a emoccedilatildeo que seraacute
despertada lembrando que estas associam o homem de modo especial
a uma vida que ultrapassa a total contemplaccedilatildeo intelectual embora natildeo
inviabilizando esse tipo de atividade racional No entanto as emoccedilotildees
igualmente satildeo acompanhadas por outras capacidades (ou
159 Idem ἀλλὰ δεῖ τινα ἐλπίδα ὑπεῖναι σωτηρίας περὶ οὗ ἀγωνιῶσιν σημεῖον
δέ ὁ γὰρ φόβος βουλευτικοὺς ποιεῖ καίτοι οὐδεὶς βουλεύεται περὶ τῶν
ἀνελπίστων
177
(sub)capacidades) racionais quando estatildeo acompanhadas dos processos
da prudecircncia Uma destas capacidades eacute o intelecto em sua funccedilatildeo
praacutetica como poderemos entender com o breve estudo a seguir
2 e) Intelecto praacutetico160
Existe uma capacidade na alma humana o intelecto (noucircs) que
se desdobra em intelecto praacutetico e intelecto teoacuterico Em sua funccedilatildeo ou
uso praacutetico age apreendendo o que por uacuteltimo eacute apresentado na
deliberaccedilatildeo a premissa menor Depois dessa deliberaccedilatildeo eacute possiacutevel
escolher deliberadamente tendo em vista um termo meacutedio e quando isso
acontece se atinge o ponto inicial para a accedilatildeo e deixa-se de investigar
Assim o intelecto tem papel tanto nas demonstraccedilotildees em geral quanto
nas demonstraccedilotildees praacuteticas embora seja uma soacute capacidade Por isso
Reeve (2014 p 209) escreve que ldquoo entendimento teoacuterico envolvido em
demonstraccedilotildees teoacutericas eacute o mesmo estado que o entendimento praacutetico
envolvido nas demonstraccedilotildees praacuteticasrdquo o que confere mais uma vez
credibilidade a nossa proposta de interpretaccedilatildeo da alma O intelecto
praacutetico (noucircs praktikoacutes) quando associado ao desejo pede accedilatildeo (DA III 5 433a1-17) Deste modo tem relaccedilatildeo com a prudecircncia que tambeacutem se
relaciona com o desejo buscando para este seu melhor estado
Em razatildeo das propostas acima resumidas o Livro VI da EN (VI 2
1139a18 et seq) nos fala do noucircs como um dos candidatos a
determinante da accedilatildeo e da verdade praacuteticos relacionados agrave prāxis e ao
desejo correto pelo que eacute bom A passagem aponta a escolha deliberada
como origem da accedilatildeo moralmente boa e afirma que natildeo haacute escolha
deliberada sem intelecto ou pensamento (noucirc kaigrave diaacutenoias EN VI 2
1139a33-34) ligando-os aos bons desejos e accedilotildees Por isso
anteriormente entendemos e provamos que igualmente se ligam agraves
emoccedilotildees adequadas No Livro IX por sua vez o intelecto eacute tido como
natildeo dominante naqueles que satildeo intemperantes mas dominante nos
160 As observaccedilotildees sobre o noucircs que aqui apresentamos satildeo baseadas
exclusivamente nos tratamentos que os Livros VI e IX da EN e III do DA
dispensam ao assunto mas pensando em uma forma que possam colaborar com
a tese defendida Usaremos ldquointelectordquo para traduzir noucircs e ldquointelecto praacuteticordquo
para traduzir noucircs praktikoacutes poreacutem quando formos usar traduccedilotildees feitas por
outros autores ou citar cometaacuterios feitos por outros autores a respeito desses
dois termosconceitos optaremos por manter a escolha de traduccedilatildeo de cada
autor Portanto podem aparecer palavras como ldquoentendimentordquo e ldquorazatildeo
intuitivardquo referindo-se ao noucircs
178
temperantes propondo-o como o proacuteprio homem embora novamente
relacionando-o agrave emoccedilatildeo moderada (EN IX 8 1168b35) Nesse passo
afirma-se que pode haver o impeacuterio da emoccedilatildeo quando o homem natildeo eacute
bem conduzido ou seja quando razatildeo praacutetica e emoccedilatildeo estatildeo
dissociadas Neste ponto eacute descrita a capacidade racional anteriormente
mencionada que se relaciona ao intelecto praacutetico e provavelmente agrave
accedilatildeo moral Para que haja tal tipo de intelecto satildeo imprescindiacuteveis
percepccedilotildees sensiacuteveis e imaginaccedilatildeo buscar e evitar que tambeacutem teratildeo a
ver com desejos e emoccedilotildees mesmo que estejam relacionados agrave forma
mais fina de se emocionar jaacute passada pela educaccedilatildeo moral adequada e
da qual falaremos a seguir Nisso consiste a possibilidade mesmo de
ouvir e obedecer agrave razatildeo como um todo de abrir-se agrave prudecircncia e agrave
mediania nas emoccedilotildees
O DA (III 10 433a15-30) parece concordar com essas propostas
ao explicar que o desejo eacute a origem (archḗ) do intelecto praacutetico
(praktikoucirc noucirc) e que a uacuteltima coisa nesse caso eacute o ponto inicial da
accedilatildeo Para que isso aconteccedila eacute preciso conceber a felicidade ou uma
ideia de felicidade como toacutepico maacuteximo da deliberaccedilatildeo praacutetica Aqui se
entende por felicidade a atividade racional em conformidade com a
virtude mais completa Por isso um deliberador procura saber diante
das circunstacircncias nas quais se encontra o que eacute ou o que constitui a
felicidade A resposta viraacute quando tiver detectado um ponto meacutedio que
apresente a melhor accedilatildeo dentro daquelas circunstacircncias que o agente
tenha ciecircncia de tal accedilatildeo com base na percepccedilatildeo e que possa efetuar tal
accedilatildeo Esse silogismo eacute o foco do deliberar para alcanccedilar a tal felicidade
Por isso deve mostrar o termo meacutedio que a indique sendo o silogismo o
plano de accedilatildeo do deliberador que resultaraacute em accedilatildeo complexa
constituindo agir bem e felicidade Mas para que haja a tal accedilatildeo proposta
pelo silogismo eacute preciso acreditar praticamente ou seja afirmar com a
parte calculativa e exercitar a conclusatildeo proposta pelo silogismo (EN VI
8 1141b13-14 VI 2 1139a21-31)
Segundo Reeve (2014 p 203) satildeo a natureza e a nossa funccedilatildeo
que determinam a felicidade Esta eacute a premissa maior da demonstraccedilatildeo
praacutetica e eacute fixa e imutaacutevel por isso natildeo se delibera a seu respeito Esse
ponto fixo eacute essencial para que haja movimento (DA III 10 433b21-27)
e no silogismo praacutetico eacute a premissa maior universal que proporciona o
movimento por ser fixa ou uma verdade imutaacutevel (DA III 11 434a16-
21) Ao contraacuterio as opiniotildees ou suposiccedilotildees indicam como lidar com as
coisas que natildeo satildeo fixas tratando do que pode variar e ser verdadeiro ou
falso por isso devem ser adequadas agrave variabilidade das circunstacircncias
(EN VI 3 1139b17-18) O desejo correto nesse caso eacute o ponto fixo que
179
leva agrave accedilatildeo demandada pela premissa menor No caso de um desejo natildeo
educado como o apetite no incontinente age-se contra a natureza ou
seja contra a premissa maior que eacute apreendida pelo intelecto praacutetico
Contudo pode haver dois tipos de silogismo praacutetico um proposto pela
prudecircncia outro pela inteligecircncia (syacutenesis) Esta uacuteltima eacute discriminadora
e natildeo prescritiva como a primeira (EN VI 13 1143a8-10) e por isso o
silogismo da inteligecircncia natildeo termina em accedilatildeo diferentemente daquele
relacionado agrave prudecircncia
Ao tratar das virtudes intelectuais no Livro VI da EN Aristoacuteteles
apresenta-nos a inteligecircncia e a perspicaacutecia (hē syacutenesis kaigrave hē eusynesiacutea)
como diferentes de ciecircncia e opiniatildeo A inteligecircncia natildeo trata das coisas
eternas nem do que deve ser mas das coisas sobre as quais pode haver
duacutevida e nas quais cabe deliberar sendo relativa agraves coisas de ordem
praacutetica161 Trata portanto dos mesmos objetos que a prudecircncia embora
natildeo sejam idecircnticas A prudecircncia eacute diretiva - tem por fim determinar o
que devemos ou natildeo devemos fazer - e a inteligecircncia eacute apenas
judicativa Deste modo inteligecircncia e julgamento tecircm lugar em nossa
pesquisa por serem associados agrave capacidade da alma que rege o
conhecimento do contingente A inteligecircncia natildeo consiste nem em
possuir nem em adquirir a prudecircncia mas se aplica agrave faculdade da
opiniatildeo
[] quando se trata de emitir um julgamento sobre
o que uma outra pessoa enuncia nas mateacuterias que
vecircm da prudecircncia e por julgamento entendo um
julgamento fundado (reto belo) pois bem eacute o
mesmo que fundado (reto belo) E o emprego do
termo inteligecircncia para designar a qualidade das
pessoas perspicazes veio da inteligecircncia no
sentido de aprender pois tomamos
frequentemente aprender no sentido de
compreender (EN VI 11 1143a13-18)162
Entendemos que nossa proposta de interpretaccedilatildeo da capacidade
161 Reeve entende a syacutenesis como um aspecto da phroacutenēsis e natildeo exatamente
como uma virtude autocircnoma (REEVE 2013 p 3) 162 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original οὕτως ἐν τῷ χρῆσθαι τῇ δόξῃ ἐπὶ τὸ κρίνειν περὶ τούτων
περὶ ὧν ἡ φρόνησίς ἐστιν ἄλλου λέγοντος καὶ κρίνειν καλῶς τὸ γὰρ εὖ τῷ
καλῶς τὸ αὐτό καὶ ἐντεῦθεν ἐλήλυθε τοὔνομα ἡ σύνεσις καθ ἣν εὐσύνετοι ἐκ
τῆς ἐν τῷ μανθάνειν λέγομεν γὰρ τὸ μανθάνειν συνιέναι πολλάκις
180
de julgamento na EN eacute ratificada pelo esboccedilo de definiccedilatildeo da emoccedilatildeo
proposto pela Retoacuterica relacionando-a com sua capacidade de alterar os
juiacutezos ou discriminaccedilotildees (tagrave kriacuteseis) e a EN chama julgamento
(gnomḗ)163 a qualidade segundo a qual se considera que as pessoas tecircm
correta discriminaccedilatildeo daquilo que eacute equitaacutevel (syngnomonikoacuten) Prova
disto eacute o fato de normalmente se dizer que um homem equitaacutevel eacute
disposto favoravelmente ao outro Tricot (2012 nota 3 p 325) explica
que o equitaacutevel eacute uma qualidade que leva o homem a compreender as
razotildees de agir de uma outra pessoa sendo uma espeacutecie de ldquolargueza de
espiacuteritordquo levando mesmo agrave indulgecircncia e ao perdatildeo Eacute o pensar com [o
outro]164 fundamental como explica Nussbaum para que certas
emoccedilotildees como a piedade sejam sentidas pois para a autora esta emoccedilatildeo
ou sua falta dependem dos julgamentos sobre o florescimento que
seratildeo tatildeo confiaacuteveis quanto a moral geral do observador
Para sentir piedade a pessoa deve considerar o sofrimento do
outro como parte importante de seu proacuteprio esquema de objetivos e fins
deve pensar que a falta daquela pessoa afeta seu florescimento e deve
ver-se como tatildeo vulneraacutevel quanto o outro165 Nessa possibilidade de
colocar-se no lugar do outro parece haver um tipo de julgamento
envolvido ou um tipo de imaginaccedilatildeo chamada por Nussbaum (2008 p
319) de ldquojulgamento da possibilidade similarrdquo Para que isso aconteccedila
natildeo eacute estritamente necessaacuterio que a pessoa focalize a relaccedilatildeo da outra
consigo mesma mas imaginar-se em uma posiccedilatildeo de possibilidade
similar ajuda na medida da imaginaccedilatildeo eudaimoniacutestica da proacutepria
pessoa porque seres humanos tecircm dificuldade de relacionar os outros
consigo mesmos a natildeo ser por pensamentos com os quais jaacute estejam
preocupados Por conseguinte eacute possiacutevel entender melhor o que
Aristoacuteteles poderia ter pretendido chamar de julgamento ou
discriminaccedilatildeo e porque resolveu associaacute-lo com um traccedilo eacutetico cedido
agraves emoccedilotildees que descreveu e pensou como ligadas agraves relaccedilotildees humanas
teoria comprovada pelo o passo subsequente
[] atribuiacutemos julgamento inteligecircncia
prudecircncia e razatildeo intuitiva indiferentemente aos
mesmos indiviacuteduos quando dizemos que eles
163 Robinson (2010 p 245) observa que Aristoacuteteles usa os verbos kriacutenein e
gnoriacutezein para designar a discriminaccedilatildeo 164 LIDDELL amp SCOTT 1996 sv 165 Sobre a discussatildeo desse assunto feita por Nussbaum ver tambeacutem seu livro
Sem fins lucrativos
181
alcanccedilaram a idade do julgamento e da razatildeo e
que eles satildeo prudentes e inteligentes Pois todas
essas faculdades satildeo sobre as coisas uacuteltimas e
particulares e eacute sendo capaz de julgar as coisas
retornando ao domiacutenio do homem prudente que
somos inteligentes benevolentes e
favoravelmente dispostos [em relaccedilatildeo] aos outros
as accedilotildees equitaacuteveis sendo comuns a todas as
pessoas de bem em suas relaccedilotildees com os outros
Ora todas as accedilotildees que devemos completar
retornam agraves coisas particulares e uacuteltimas pois o
homem prudente deve conhecer os fatos
particulares e por seu lado a inteligecircncia e o
julgamento giram em torno das accedilotildees a completar
que satildeo as coisas uacuteltimas A razatildeo intuitiva se
aplica tambeacutem agraves coisas particulares em ambos os
sentidos jaacute que os termos primeiros bem como os
uacuteltimos satildeo do domiacutenio da razatildeo intuitiva e natildeo
da discursividade nas demonstraccedilotildees a razatildeo
intuitiva apreende os termos imutaacuteveis e
primeiros e nos raciociacutenios de ordem praacutetica ela
apreende o fato uacuteltimo e contingente quer dizer a
premissa menor jaacute que esses fatos satildeo do fim a
alcanccedilar os casos particulares servindo de ponto
de partida para alcanccedilar os universais Devemos
portanto ter uma percepccedilatildeo dos casos
particulares e essa percepccedilatildeo eacute a razatildeo intuitiva
(EN VI 12 1143a25-35 1143b1-5)166
166 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Εἰσὶ δὲ πᾶσαι αἱ ἕξεις εὐλόγως εἰς ταὐτὸ τείνουσαι λέγομεν
γὰρ γνώμην καὶ σύνεσιν καὶ φρόνησιν καὶ νοῦν ἐπὶ τοὺς αὐτοὺς ἐπιφέροντες
γνώμην ἔχειν καὶ νοῦν ἤδη καὶ φρονίμους καὶ συνετούς πᾶσαι γὰρ αἱ δυνάμεις
αὗται τῶν ἐσχάτων εἰσὶ καὶ τῶν καθ ἕκαστον καὶ ἐν μὲν τῷ κριτικὸς εἶναι περὶ
ὧν ὁ φρόνιμος συνετὸς καὶ εὐγνώμων ἢ συγγνώμων τὰ γὰρ ἐπιεικῆ κοινὰ τῶν
ἀγαθῶν ἁπάντων ἐστὶν ἐν τῷ πρὸς ἄλλον ἔστι δὲ τῶν καθ ἕκαστα καὶ τῶν
ἐσχάτων ἅπαντα τὰ πρακτά καὶ γὰρ τὸν φρόνιμον δεῖ γινώσκειν αὐτά καὶ ἡ
σύνεσις καὶ ἡ γνώμη περὶ τὰ πρακτά ταῦτα δ ἔσχατα καὶ ὁ νοῦς τῶν ἐσχάτων
ἐπ ἀμφότερα καὶ γὰρ τῶν πρώτων ὅρων καὶ τῶν ἐσχάτων νοῦς ἐστὶ καὶ οὐ
λόγος καὶ ὁ μὲν κατὰ τὰς ἀποδείξεις τῶν ἀκινήτων ὅρων καὶ πρώτων ὁ δ ἐν
ταῖς πρακτικαῖς τοῦ ἐσχάτου καὶ ἐνδεχομένου καὶ τῆς ἑτέρας προτάσεωςἀρχαὶ
γὰρ τοῦ οὗ ἕνεκα αὗται ἐκ τῶν καθ ἕκαστα γὰρ τὰ καθόλου τούτων οὖν ἔχειν
δεῖ αἴσθησιν αὕτη δ ἐστὶ νοῦς
182
A prudecircncia eacute um tipo de boa administraccedilatildeo como vemos no
caso da temperanccedila cujo nome sophrosyacutene indica a conservaccedilatildeo da
prudecircncia sendo que esta conserva o julgamento ou discriminaccedilatildeo jaacute
que o prazer e a dor satildeo capazes de destruir juiacutezos acerca da accedilatildeo porque
os princiacutepios de nossas accedilotildees satildeo os fins aos quais tendem nossos atos
Eacute a faculdade discriminativa do julgamento contudo que parece estar
desde a origem mais proacutexima agraves emoccedilotildees jaacute que estas estatildeo
irremediavelmente relacionadas agrave sensibilidade que por sua vez nos
fornece as imagenspercepccedilotildees dentre as quais devemos efetuar a
discriminaccedilatildeo Com nossa pesquisa entendemos que a faculdade
judicativa ou discriminativa da razatildeo portanto tem grande importacircncia
no bem emocionar-se podendo mesmo favorecer que a prudecircncia se
achegue ao natildeo racional desiderativo e agraves emoccedilotildees
Diante disso o papel do julgamento e da inteligecircncia na
demonstraccedilatildeo praacutetica eacute restrito agraves coisas uacuteltimas e particulares porque
natildeo satildeo direcionadas ao que eacute imoacutevel ou imutaacutevel (EN VI 12 1143a4-5)
Isso acontece porque tecircm seu foco na accedilatildeo particular dentro de uma
circunstacircncia mas a premissa maior nessas demonstraccedilotildees tem que ser
imutaacutevel e imoacutevel como o soquete na articulaccedilatildeo bola-e-soquete
descrita no DA Contudo propusemos anteriormente que a prudecircncia de
certo modo tambeacutem se relaciona com o universal (a felicidade ou o
desejo por felicidade) que nesse caso eacute a premissa maior do silogismo
praacutetico diferenciando os silogismos por prudecircncia e por inteligecircncia
Vimos que os diferentes papeacuteis do intelecto nas demonstraccedilotildees
aparecerem descritos em EN VI 12 1143a35-b11 O intelecto tem por
ocupaccedilatildeo tanto os termos primaacuterios quanto as coisas que satildeo uacuteltimas
Nas demonstraccedilotildees cientiacuteficas o intelecto apreende um dos termos
primeiros e que natildeo muda Nas demonstraccedilotildees praacuteticas relaciona-se
com as coisas uacuteltimas e com as que podem ser de outro jeito bem como
com a premissa menor O intelecto praacutetico lida com tais coisas porque
elas satildeo o ponto de partida do que se tem em vista porque os universais
vecircm dos particulares Dos universais precisamos ter percepccedilatildeo (sendo
esta neste caso intelecto noucircs citado no fim do passo acima) Por isso o
intelecto eacute tanto princiacutepio quanto fim (archḗ e teacutelos) pois as
demonstraccedilotildees vecircm do intelecto e satildeo sobre o intelecto
O segundo papel do intelecto em uma demonstraccedilatildeo praacutetica eacute
apreender a premissa menor Como vimos acima esta eacute a uacuteltima coisa
alcanccedilada em uma deliberaccedilatildeo Pode ser de outra maneira porque
prescreve um tipo de accedilatildeo particular que pode variar conforme a
circunstacircncia e ao que cabe ao agente fazer ou natildeo O termo crucial
dessa premissa eacute o termo meacutedio que designa um tipo de accedilatildeo particular
183
que eacute apreendido pela percepccedilatildeo (EN VII 5 1147a25-26) e a percepccedilatildeo
envolve apreensatildeo ldquoconcomitante de universaisrdquo (REEVE 2014 p
210) A apreensatildeo do termo meacutedio por sua vez acontece devido agrave
apreensatildeo pelo intelecto de um misto das premissas maior e menor
quando se entende as duas premissas se entende a conclusatildeo Assim
Como a percepccedilatildeo do termo meacutedio (ou a accedilatildeo que
ele designa) deve ser mediada dessa maneira para
ser do tipo deliberativo ou determinador da accedilatildeo
relevante ela eacute um exerciacutecio tanto da percepccedilatildeo
como do entendimento Como a escolha
deliberativa portanto que eacute ldquoentendimento
envolvendo desejo ou desejo envolvendo
pensamentordquo (EN VI 2 1139b4-5) a percepccedilatildeo
deliberativa eacute entendimento envolvendo
pensamento (REEVE 2014 p 211)
Em retomada agrave questatildeo da relaccedilatildeo do silogismo empreendido
pelo prudente com particular e universal proposta no Capiacutetulo II e aqui
detalhada na medida em que contemplasse nossas discussotildees foi
possiacutevel compreender que por um lado a felicidade eacute o ponto inicial
por ser fim de toda accedilatildeo sendo universal Por outro lado o ponto inicial
satildeo as accedilotildees particulares que se direcionam ao alcance da felicidade
Portanto mesmo o intelecto em sua funccedilatildeo praacutetica necessita da
conjugaccedilatildeo entre corpo e alma para que atue de modo excelente pois os
particulares mesmo na deliberaccedilatildeo praacutetica se originam da percepccedilatildeo
sensiacutevel mais elementar que afeta o corpo e potildee a capacidade racional a
trabalhar em prol do que haacute de melhor para o homem Tal percepeccedilatildeo
tambeacutem pode estar pautada em um tipo de opiniatildeo relacionada agraves
premissas da deliberaccedilatildeo que natildeo se veem de todo desvencilhadas da
opiniatildeo geral ocasionada pelo contato com dados da sensibilidade como
veremos a seguir
2 f) Opiniatildeo
As premissas que devem ser captadas pelo intelecto satildeo
constituiacutedas por opiniotildees acerca do que eacute buscado e do que se deve fazer
ou deixar de fazer para alcanccedilar um objetivo Assim a opiniatildeo em EN
VI 10 1142b11-15 eacute apontada como um tipo de afirmaccedilatildeo baseada em
deliberaccedilatildeo Difere da prudecircncia que eacute virtude e fixa por ser um estado
e por poder ser esquecida Mas com auxiacutelio da virtude moral adquirida
por boa habituaccedilatildeo algueacutem pode ser ensinado a ter a opiniatildeo correta
184
sobre algo que levaraacute a uma deliberaccedilatildeo e possivelmente a uma accedilatildeo
(EN VII 9 1151a18-19) A correccedilatildeo daquilo que eacute afirmado pela
capacidade opinativa eacute importante assim como a retidatildeo do desejo mas
eacute preciso tambeacutem haver correccedilatildeo da deliberaccedilatildeo que apoia a opiniatildeo
Em EN VI ao comparar escolha deliberada e opiniatildeo Aristoacuteteles
nos daacute importantes traccedilos de ambas em especial da segunda A opiniatildeo
parece ter por alvo qualquer coisa inclusive o que eacute impossiacutevel e o que
natildeo estaacute em nosso poder Pode ser falsa ou verdadeira e natildeo eacute boa ou
maacute como eacute classificada a escolha deliberada Um homem tem tal ou tal
qualidade atribuiacuteda a si pelas escolhas que faz e natildeo por defender
determinada opiniatildeo embora escolha obter ou evitar mas natildeo opine
sobre esse tipo de coisa Algueacutem escolhe deliberadamente as coisas que
sabe serem boas mas a opiniatildeo eacute emitida igualmente acerca daquilo que
natildeo se sabe se eacute bom ou mau e natildeo parecem ser as mesmas pessoas
aquelas que deliberam bem e as que opinam bem porque mesmo quem
opina melhor pode escolher coisas que levam ao viacutecio A escolha
deliberada eacute diferente da opiniatildeo portanto por ser proposta como
capacidade do prudente que estaacute diretamente ligada agrave accedilatildeo avaliaacutevel
moralmente A prudecircncia eacute virtude da parte da alma capaz de opinar
porque a opiniatildeo tem relaccedilatildeo com o que pode ser de outro modo
todavia natildeo eacute simplesmente uma opiniatildeo acompanhada de regra Por
isso nos procedimentos de decisatildeo cabiacuteveis ao prudente a opiniatildeo tem
lugar antes da escolha deliberada (EE II 10 1226b9) Zingano (2008 p
171) esclarece isso do seguinte modo ldquoNo acircmbito do aristotelismo a
accedilatildeo necessariamente estaacute envolvida com as opiniotildees que o agente tem
se suspendecircssemos todas as nossas opiniotildees natildeo poderiacuteamos agirrdquo167
A opiniatildeo eacute mais bem explicada pelo De anima quando
comparada agrave imaginaccedilatildeo ldquoPois essa afecccedilatildeo depende de noacutes e somente
de noacutes e do nosso querer [] e ter opiniatildeo natildeo depende somente de noacutes
167Provavelmente por este motivo Aristoacuteteles quando trata da causa da
incontinecircncia tambeacutem emite sua opiniatildeo A premissa universal do silogismo
praacutetico empenhado pelo acraacutetico eacute uma opiniatildeo a outra premissa se relaciona
com os fatos particulares no campo dos quais a percepccedilatildeo manda Haacute pessoas
poreacutem que se mantecircm em sua opiniatildeo e que natildeo satildeo facilmente convencidas a
alterar a estas chamamos obstinadas (teimosas) Na contramatildeo haacute pessoas que
natildeo persistem em suas opiniotildees devido a uma causa estranha agrave incontinecircncia o
que implica que quem age por prazer nem sempre eacute intemperante incontinente
ou perverso Por conseguinte a opiniatildeo pode estar ligada a toda a cadeia de
relaccedilatildeo racional anteriormente mencionada e que se potildee em contato com o
desiderativo sendo forccediloso que admitamos seus contatos com a emoccedilatildeo
mesmo porque o termo aparece associado agrave emoccedilatildeo
185
pois haacute necessidade de que ela seja falsa ou verdadeirardquo (DA III 3
427b17-21)168 A opiniatildeo de que algo eacute terriacutevel pavoroso ou
encorajador leva imediatamente a certas emoccedilotildees diferentemente da
imaginaccedilatildeo (DA III 3 427b16-23) Isso implicaria que a opiniatildeo tem
papel mais efetivo que a imaginaccedilatildeo no provocar emoccedilotildees
Ao que tudo indica a resposta eacute positiva pois a opiniatildeo eacute
acompanhada de crenccedila a crenccedila eacute acompanhada do estar persuadido e
a persuasatildeo eacute acompanhada da razatildeo (DA III 3 428a18-24) Por
conseguinte e sendo que haacute accedilatildeo da opiniatildeo na emoccedilatildeo haacute certo
elemento racional no se emocionar ou haacute ao menos a comprovaccedilatildeo de
nossa proposta sobre a possibilidade de participaccedilatildeo do natildeo racional no
racional e vice-versa jaacute que ainda no DA (III 3 427b10) Aristoacuteteles
chega a definir a opiniatildeo como um tipo de pensar (noeicircn) que pode ser
correto ou incorreto de acordo com seu contato com a realidade
Propostas que satildeo reforccediladas tambeacutem como no caso da percepccedilatildeo
sensiacutevel por EN X 7 1177b26-30 trecho no qual o filoacutesofo destaca a
impossibilidade ou inviabilidade do homem viver totalmente para a
razatildeo porque esse tipo de existecircncia o livraria por completo de sua
humanidade Assim soacute existe opiniatildeo daquilo que haacute percepccedilatildeo
sensiacutevel mas haacute igualmente um tipo de opiniatildeo relacionada agrave percepccedilatildeo
deliberativa quando aparece em um silogismo praacutetico
Vimos que as deliberaccedilotildees praacuteticas satildeo expressas sob a forma de
silogismos praacuteticos que satildeo concluiacutedos com accedilotildees (EN VII 5 1147a25-
31) Nesse tipo de silogismo uma opiniatildeo eacute universal outra eacute particular
da parte da percepccedilatildeo Quando dessas duas premissas se gera uma
proposiccedilatildeo eacute preciso que a alma afirme a conclusatildeo obtida com o
silogismo Apoacutes age-se desde que natildeo haja impedimentos Deste modo
seja a opiniatildeo corriqueira ou aquela associada ao silogismo praacutetico ela
se configura sempre como um traccedilo de razatildeo que interfere na emoccedilatildeo
desde seu surgimento frente ao mundo ateacute seu aprimoramento pelos
processos da prudecircncia e da razatildeo praacutetica
Diante do que foi exposto podemos agora acatar a seguinte
proposta de Zingano a emoccedilatildeo natildeo eacute um bloco impermeaacutevel A maioria
das emoccedilotildees eacute um todo poroso permeaacutevel por certas formas da
racionalidade Seus poros podem dar lugar agraves sugestotildees da razatildeo que
estatildeo presentes realmente desde o iniacutecio com grande parte das paacutethē
Assim essa permeabilidade natildeo eacute exclusividade das emoccedilotildees traacutegicas
168 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original τοῦτο μὲν γὰρ τὸ
πάθος ἐφ ἡμῖν ἐστιν ὅταν βουλώμεθα [] δοξάζειν δ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἀνάγκη γὰρ
ἢ ψεύδεσθαι ἢ ἀληθεύειν
186
ou daquelas despertadas pelo discurso persuasivo embora
provavelmente seja nas descriccedilotildees destas que a relaccedilatildeo do emocional
com a razatildeo se faccedila mais visiacutevel Por isso na anaacutelise das virtudes
particulares e das emoccedilotildees a estas relacionadas sempre nos deparamos
com termos como ldquopensardquo ldquoimaginardquo ldquocrecircrdquo ldquotem opiniatildeordquo As
aparecircncias que tocam o agente e levam agraves crenccedilas que podem dar em
uma ou outra emoccedilatildeo precisam dos phainoacutemena (aparecircncias) e estes soacute
encontram o homem por meio das percepccedilotildees sensiacuteveis que estatildeo
relacionadas agrave opiniatildeo e agrave capacidade opinativa da razatildeo porque a
opiniatildeo eacute atrelada ao que pode ser diferente Portanto entendemos que
estas capacidades racionais ao menos em certa medida recobrem todas
as emoccedilotildees especialmente as que podem ser moderadas ou mudadas de
algum modo
Eacute certo contudo que a educaccedilatildeo moral proposta pelo filoacutesofo
cede mais importacircncia ao haacutebito que agrave forccedila da razatildeo mas natildeo se pode
esquecer que para ser realmente virtuoso para ser capaz de agir por si
mesmo de perceber por conta proacutepria o que eacute bom se munir de bons
desejos boas emoccedilotildees e desencadear a accedilatildeo correta a racionalidade
precisa estar presente ao menos sob a forma da phroacutenēsis que
desencadeia a bouacuteleusis e a proaiacuteresis A educaccedilatildeo que permitiraacute mudar
as emoccedilotildees ou mudar de emoccedilotildees natildeo pode se contentar portanto com
uma vida boa poreacutem conduzida por uma razatildeo que venha de fora
porque mesmo que tal vida seja boa natildeo eacute totalmente feliz O agente
precisa ter todas as virtudes intelectuais e morais agrave sua disposiccedilatildeo Eacute
preciso portanto que tenha a capacidade racional e a capacidade natildeo
racional em cooperaccedilatildeo em sua alma reforccedilando a proposta de EN I 13
para que manifeste aquilo que eacute propriamente humano e isso eacute possiacutevel
devido agraves caracteriacutesticas das capacidades que acabamos de descrever
Essa leitura favorece nossa interpretaccedilatildeo que ressalta o papel das
emoccedilotildees na vida moral colocando emoccedilotildees e razatildeo praacutetica juntas em
uma vida considerada feliz e natildeo subjugando as emoccedilotildees agrave forccedila da
razatildeo Todavia apresenta o problema da conciliaccedilatildeo entre razatildeo e
emoccedilatildeo Essa conciliaccedilatildeo se faz possiacutevel a partir de quando se
reconhece a impossibilidade de que mesmo os melhores dos homens
vivam isolados a contemplar ou que extirpem suas emoccedilotildees com o
auxiacutelio de algum tipo de razatildeo pois as emoccedilotildees satildeo presentes na
constituiccedilatildeo do sujeito moral Neste tecircm papel significativo tanto para o
caraacuteter quanto para o iniacutecio das accedilotildees jaacute a razatildeo praacutetica atua no interior
do sujeito moral Pode conduzi-lo melhor ao seu objetivo mas tambeacutem
frear ou redirecionar seus movimentos tornando-o um agente moderado
em suas emoccedilotildees Isso soacute acontece porque tal agente graccedilas agrave natureza
187
de sua alma tem a racionalidade na base de suas emoccedilotildees bem como
porque entendemos que um cidadatildeo eacute racional em suas accedilotildees e vida
quando apazigua suas capacidades aniacutemicas racionais e natildeo racionais
completando a funccedilatildeo propriamente humana e conferindo a
possibilidade educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua racionalidade
Mas como levar a cabo essa educaccedilatildeo Eacute nesse ponto que cabe nossa
exposiccedilatildeo acerca dos instrumentos que permitem as mudanccedilas nasdas
emoccedilotildees
3 O acordo entre a razatildeo e as emoccedilotildees a educaccedilatildeo moral e os
instrumentos de modificaccedilatildeo da emoccedilatildeo169
3 a) Educaccedilatildeo haacutebito e lei para a virtude
Depois de todo o proposto percebemos que a razatildeo praacutetica (e a
razatildeo como um todo jaacute que se trata de uma mesma capacidade) deve
entrar em acordo com o natildeo racional para que haja virtude ou seja para
que haja moderaccedilatildeo nas emoccedilotildees e felicidade170 Somente assim o
homem seraacute capaz de manifestar o que entendemos nesse estudo como
verdadeiramente humano a plenitude de sua alma em harmonia
Provavelmente uma soluccedilatildeo apontada pela Eacutetica Nicomaqueia para
nossa indagaccedilatildeo a respeito de como por emoccedilotildees e razatildeo praacutetica em
acordo esteja a ser indicada pelo passo II 2 1104b9-24 (cf ainda EN X
1 1172a19-24) que fala de um tipo especiacutefico de educaccedilatildeo com base
em proposta feita por Platatildeo171 e que provavelmente deva ser
empregado a fim da virtude O passo propotildee que as virtudes morais
estatildeo relacionadas com o prazer e o desejo Sendo possiacutevel educar-se ou
habituar-se a fim de se comprazer e desejar devidamente igualmente
deve ser possiacutevel educar e habituar as emoccedilotildees Do mesmo modo
podemos usar a explicaccedilatildeo de Aggio a respeito do modo como conciliar
razatildeo praacutetica e desejo como exemplo para entender o que propomos
ldquoAo que tudo indica a educaccedilatildeo moral parece ser condiccedilatildeo preacutevia
necessaacuteria para que razatildeo e desejo se harmonizem e para que a razatildeo
possa ser efetivamente causa coadjuvante (synaitiacutea) na constituiccedilatildeo do
169Lebrun entende que a possibilidade de regular as emoccedilotildees eacute a garantia de
poderem ser julgadas eticamente (2009 p 14-15) 170 Sorabji (2002 p 7) nos explica que para Aristoacuteteles as emoccedilotildees satildeo uacuteteis agrave
poacutelis desde que moderadas por permitirem catarse Por conseguinte Platatildeo
estava errado ao expulsar os poetas da sua cidade ideal 171Rep 410e-402a Leis 653a
188
fim da accedilatildeordquo (AGGIO 2017 no prelo) Pensamos que apoacutes a
explanaccedilatildeo subsequente poderemos defender algo semelhante para a
boa conduccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees
Pelo que a EN aponta vimos que o desejo por um fim deve
concordar com o escolher e o deliberar bem sobre os meios adequados
ao alcance do fim buscado e com isso pedir a accedilatildeo para que tal fim seja
alcanccedilado resultando na accedilatildeo virtuosa A interpretaccedilatildeo mais
comumente aceita propotildee que para Aristoacuteteles a parte desiderativa da
alma ainda que chamada irracional compartilharia da razatildeo e poderia
mesmo ter razatildeo (loacutegos eacutekhein) praacutetica pois a ouve mesmo natildeo
raciocinando as coisas fora de si (EN I 13 1102b29 1103a3) Por
exemplo ldquoO efeito geral eacute fazer a bouacutelēsis distinta da razatildeo embora
ainda relacionada a elardquo (SORABJI 2002 p 322 traduccedilatildeo nossa)
Relaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel para o homem prudente A obra de um
homem soacute eacute perfeita (teacuteleios) quando estaacute em acordo com a totalidade
da razatildeo mas especialmente quando em acordo com a prudecircncia e com
a virtude moral pois a prudecircncia torna o propoacutesito humano reto e
culmina na boa conduta e no desejo reto Conforme a explicaccedilatildeo de
Aggio
Para que o desejo se torne reto i e para que ele
seja conforme a razatildeo Aristoacuteteles nos diz
sucintamente que ele deve ser educado a ldquoouvi-lardquo
e a ldquoobedececirc-lardquo Dizer isso significa pressupor
que o desejo natildeo nasce reto e que o fim natildeo eacute
naturalmente um bom fim mas que ao contraacuterio
deve ser constituiacutedo dessa forma Se fosse
naturalmente bom natildeo haveria por que educaacute-lo
ou seja natildeo haveria motivo eacutetico para tanto nem
uma razatildeo que fosse capaz de persuadir a parte
desiderativa Tampouco poderia haver educaccedilatildeo
do desejo se a parte desiderativa natildeo fosse
naturalmente educaacutevel i e constituiacuteda por
natureza para obedecer agrave razatildeo (AGGIO 2017
no prelo)
Essa possibilidade de educar o desejo eacute igualmente a
possibilidade de educar a emoccedilatildeo pois a emoccedilatildeo eacute da alccedilada do
desiderativo assim como os trecircs tipos de desejo que lhe correspondem e
como as virtudes morais que potildeem o fim e que satildeo possiacuteveis devido agrave
habituaccedilatildeo ao que eacute correto Ao habituar corretamente os desejos
igualmente seratildeo corretamente habituadas as emoccedilotildees que lhes
189
acompanham Tal educaccedilatildeo eacute demasiado importante o que percebemos
por interpretaccedilotildees como as de Zingano (2008 p 24) que escreve ldquoas
emoccedilotildees tecircm que estar previamente educadas moralmente para que a
razatildeo possa acompanhaacute-las e lhes dar a reta direccedilatildeordquo Poreacutem ainda
devemos fornecer melhor explicaccedilatildeo para a possibilidade de moderar e
alterar as emoccedilotildees a forma e a possibilidade de alterar o modo como
sentimos e o que sentimos mudanccedilas operadas pela educaccedilatildeo Essa
explicaccedilatildeo eacute necessaacuteria bem observa o mesmo estudioso como vimos
anteriormente porque mesmo que a razatildeo praacutetica interfira nas emoccedilotildees
nada garante que consiga modificaacute-las Eacute preciso conseguir uma
precedecircncia e prevalecircncia da accedilatildeo (bem conduzida pelo haacutebito) em
relaccedilatildeo agrave disposiccedilatildeo moral que se fixaraacute em virtude Mas o que eacute
preciso fazer para que tal educaccedilatildeo aconteccedila
Aristoacuteteles no Livro X da EN comeccedila a responder tais perguntas
observando que a maioria natildeo faz o que deve por ser nobre mas por
medo da puniccedilatildeo Isso acontece porque ldquovivendo sob o impeacuterio da
paixatildeo os homens perseguem suas proacuteprias satisfaccedilotildees e os meios de
realizaacute-las e evitam as dores que a isso se opotildeem e eles natildeo tecircm
nenhuma ideia do que eacute nobre e verdadeiramente agradaacutevel por natildeo o
terem jamais experimentadordquo (EN X 10 1179b13-16)172 Assim sendo
haveria algum argumento capaz de persuadir essas pessoas Aristoacuteteles
observa que se natildeo eacute impossiacutevel eacute ao menos difiacutecil extirpar por meio do
raciociacutenio os haacutebitos inveterados no caraacuteter Pensa ainda que devemos
nos considerar felizes se dispomos de todos os meios para nos tornarmos
honestos e com isso conseguirmos participar de algum modo da virtude
Mas como isso seria possiacutevel Por natureza por haacutebito ou pelo ensino
Natildeo seria por natureza jaacute que os dons naturais natildeo dependem de noacutes
como explica o passo seguinte
O raciociacutenio e o ensino por sua vez natildeo satildeo
temo igualmente poderosos em todos os homens
mas eacute preciso cultivar antes ao menos os haacutebitos
a alma do ouvinte em vista de lhe fazer estimar
ou abominar o que deve secirc-lo como por uma terra
chamada a fazer frutificar a semente Pois o
homem que vive sob o impeacuterio da paixatildeo natildeo
saberaacute escutar um raciociacutenio que busca desviaacute-lo
172 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original πάθει γὰρ ζῶντες τὰς οἰκείας ἡδονὰς διώκουσι καὶ δι ὧν
αὗται ἔσονται φεύγουσι δὲ τὰς ἀντικειμένας λύπας τοῦ δὲ καλοῦ καὶ ὡς
ἀληθῶς ἡδέος οὐδ ἔννοιαν ἔχουσιν ἄγευστοι ὄντες
190
de seu viacutecio e nem mesmo o compreenderaacute Mas
o homem que estaacute nesse estado como eacute possiacutevel
fazecirc-lo alterar de sentimento (EN X 10 1179b23-
28)173
De um modo geral parece que o raciociacutenio que cede agrave paixatildeo natildeo
o faz por constrangimento assim para que um homem seja bom deve
haver previamente uma disposiccedilatildeo do caraacuteter que seja apropriada agrave
virtude que estime o que eacute nobre e que despreze o que eacute vergonhoso
Mesmo que tais disposiccedilotildees recebam uma educaccedilatildeo de acordo com a
retidatildeo desde a juventude a tarefa se torna ainda mais difiacutecil se natildeo se
for educado sob leis justas porque viver corajosamente natildeo eacute agradaacutevel
para a maioria das pessoas especialmente para os jovens Por isso eacute
conveniente estipular pelas leis o modo de educar e o modo de viver
que deixaraacute de ser doloroso com o haacutebito Natildeo basta todavia uma
educaccedilatildeo e cuidados desde a juventude eacute preciso que os cidadatildeos ainda
quando adultos sejam capazes de praticar as coisas aprendidas e faccedilam
delas haacutebitos A habituaccedilatildeo eacute necessaacuteria desde a infacircncia desde os
ensinamentos apresentados no acircmbito domeacutestico mas as leis seratildeo
necessaacuterias na idade adulta e por toda a vida porque a maioria obedece
mais agrave necessidade que agrave razatildeo e mais agrave puniccedilatildeo que ao sentido do bem
Do mesmo modo caso se pretenda que um homem seja bom este
deve receber uma boa educaccedilatildeo e os haacutebitos do homem de bem aleacutem de
se ocupar com coisas honestas natildeo fazendo o que eacute vil nem voluntaacuteria
nem involuntariamente Se aqueles que natildeo alcanccedilam a plena virtude soacute
podem agir bem em uma vida submissa agrave regra inteligente e perfeita
conseguida agrave forccedila Aristoacuteteles entende que ao menos no iniacutecio da
educaccedilatildeo a autoridade eacute necessaacuteria A autoridade paterna contudo natildeo
seraacute suficiente por natildeo possuir nem a forccedila nem o poder corretivo por
isso a lei que tem poder de obrigar eacute uma regra que emana de certa
prudecircncia e a inteligecircncia deve poder fazecirc-lo Se o homem detesta
aquilo que faz oposiccedilatildeo aos seus impulsos a lei natildeo deve estar a cargo
da pessoa mas prescrever o que eacute honesto dispensando o agente de se
tornar quando natildeo for possiacutevel prudente ldquoA melhor soluccedilatildeo eacute
portanto se entregar agrave justa solicitude da autoridade puacuteblica e ser capaz
173 Idem ὁ δὲ λόγος καὶ ἡ διδαχὴ μή ποτ οὐκ ἐν ἅπασιν ἰσχύει ἀλλὰ δεῖ
προδιειργάσθαι τοῖς ἔθεσι τὴν τοῦ ἀκροατοῦ ψυχὴν πρὸς τὸ καλῶς χαίρειν καὶ
μισεῖν ὥσπερ γῆν τὴν θρέψουσαν τὸ σπέρμα οὐ γὰρ ἂν ἀκούσειε λόγου
ἀποτρέποντος οὐδ αὖ συνείη ὁ κατὰ πάθος ζῶν τὸν δ οὕτως ἔχοντα πῶς οἷόν
τε μεταπεῖσαι
191
de fazecirc-lordquo (EN X 10 1180a29-31)174 Caso natildeo haja o interesse da
autoridade puacuteblica nesses assuntos pensa-se que o melhor eacute que cada
indiviacuteduo deva propor a seus filhos e amigos uma vida virtuosa ou ao
menos tentar fazer com que tenham vontade viver virtuosamente
Com isso Aristoacuteteles parece pensar que um patriarca conseguiraacute
cumprir sua tarefa educadora se tiver um espiacuterito legislador Se a
educaccedilatildeo puacuteblica eacute exercida em meio agraves leis e se somente boas leis
produzem uma boa educaccedilatildeo igualmente em casa deve haver boas
regras Se tais leis satildeo escritas ou natildeo natildeo importa O que importa eacute que
sejam capazes de fornecer a educaccedilatildeo a uma soacute pessoa ou a um grupo
Na cidade satildeo as disposiccedilotildees legais e os costumes que tecircm a forccedila para
sancionar mas nas famiacutelias o pai e os usos privados devem ter tal poder
sendo que o poder coercitivo deve ser mais forte nesse acircmbito porque
haacute laccedilos afetivos que unem pai e filho Isso deve ser aproveitado pois
nas crianccedilas existe uma afecccedilatildeo e uma docilidade naturais Nesse ponto
a educaccedilatildeo individual eacute superior agrave puacuteblica pois sabe o que eacute melhor
para o indiviacuteduo a ser educado ldquoJulgaremos entatildeo que eacute tida uma conta
mais exata dos particulares individuais quando se lida com a educaccedilatildeo
privada cada sujeito encontrando entatildeo mais facilmente o que
corresponde agraves suas necessidadesrdquo (EN X 10 1180b11-12) Os cuidados
dispensados ao indiviacuteduo seratildeo no entanto mais bem dados por algueacutem
que conheccedila do universal que saiba de um modo geral o que conveacutem
aos que se encontram em formaccedilatildeo A esse respeito Aristoacuteteles escreve
Eacute provaacutevel portanto que aquele que deseja por
meio da disciplina educativa tornar os homens
melhores quer eles sejam em grande nuacutemero
quer em pequeno nuacutemero deve se esforccedilar para
tornar-se a si mesmo capaz de legislar se eacute pelas
leis que noacutes podemos nos tornar bons colocar de
fato a um indiviacuteduo qualquer que seja aquilo que
propomos a vosso cuidado na disposiccedilatildeo moral
conveniente natildeo estaacute ao alcance de qualquer um
mas se essa tarefa vem a algueacutem eacute seguramente
ao homem que possui o conhecimento cientiacutefico
como eacute aplicaacutevel para a medicina e para as outras
artes que fazem apelo a alguma solicitude e agrave
174 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original κράτιστον μὲν οὖν τὸ γίνεσθαι κοινὴν ἐπιμέλειαν καὶ ὀρθὴν
καὶ δρᾶν αὐτὸ δύνασθαι
192
prudecircncia (EN X 10 1180b23-28)175
A analogia meacutedica nos faz entender melhor por que a educaccedilatildeo
proposta eacute adequada agrave emoccedilatildeo a medicina grega de linha hipocraacutetica
bem conhecida por Aristoacuteteles era questatildeo de equiliacutebrio Por esses
motivos pensamos que o mesmo valha para a emoccedilatildeo sendo
acompanhada de prazer e dor e tendo a ver com os desejos deveraacute
igualmente poder receber certa educaccedilatildeo para equilibrar-se com a razatildeo
praacutetica Tal educaccedilatildeo emocional por sua vez viraacute com o auxiacutelio da
melhor forma da capacidade calculativa da alma a prudecircncia e de seus
recursos a saber a boa deliberaccedilatildeo e a escolha deliberada que
concorreratildeo agrave boa accedilatildeo e agrave melhor forma que a vida humana possa
alcanccedilar Por isso Besnier propocircs (2008 p 91) que a formaccedilatildeo eacutetica
poderia ser entendida como uma ldquoarte da paixatildeordquo - embora lsquoartersquo natildeo
pareccedila ser termo empregado pelo comentador no mesmo sentido que
teacutechnē eacute usado por Aristoacuteteles - sendo oposta ao viver segundo a
emoccedilatildeo traccedilo dos jovens e dos incompletamente educados Sobre isso
Besnier escreveu
Para Aristoacuteteles quem vive segundo as paixotildees
(no niacutevel das paixotildees) vive certamente sem arte
(sem a arte da felicidade) para a qual lhe falta a
disposiccedilatildeo) o vicioso e o virtuoso tecircm essa
capacidade o segundo como arte verdadeira o
primeiro conforme uma contra-arte [] que natildeo o
tornaraacute feliz mas ao menos teraacute a vantagem de lhe
proporcionar um percurso de vida coerente Um
torna sua vida coerente pela busca da mediania o
outro pela de um extremo (em excesso ou
deficiecircncia) (BESNIER 2008 p 92)
O haacutebito agrave virtude moral proporcionado pelas regras corretas - da
razatildeo da casa da poacutelis - favorece a forma adequada da emoccedilatildeo E para
responder a pergunta que haviacuteamos levantado em um capiacutetulo anterior
acerca da diferenccedila entre haacutebito e ensino jaacute que ao longo deste toacutepico
175 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original τάχα δὲ καὶ τῷ βουλομένῳ δι ἐπιμελείας βελτίους ποιεῖν
εἴτε πολλοὺς εἴτ ὀλίγους νομοθετικῷ πειρατέον γενέσθαι εἰ διὰ νόμων ἀγαθοὶ
γενοίμεθ ἄν ὅντινα γὰρ οὖν καὶ τὸν προτεθέντα διαθεῖναι καλῶς οὐκ ἔστι τοῦ
τυχόντος ἀλλ εἴπερ τινός τοῦ εἰδότος ὥσπερ ἐπ ἰατρικῆς καὶ τῶν λοιπῶν ὧν
ἔστιν ἐπιμέλειά τις καὶ φρόνησις
193
falamos dos dois podemos acatar a proposta de Irwin (1978 p 568) O
estudioso entende ensino como aquele tipo de educaccedilatildeo apto a
desenvolver as virtudes intelectuais tatildeo necessaacuterias agrave virtude moral O
ensino natildeo determina os fins buscados por um homem que devem ser
determinados pela virtude moral que eacute adquirida por meio de treino ou
seja do haacutebito Ambos como observa Zingano exigem tempo e
experiecircncia constituindo aquilo que parece ser a educaccedilatildeo ideal para a
vida moralmente boa A habituaccedilatildeo moral sozinha seria como na
proposta de Irwin (1975 p 576-577) uma educaccedilatildeo incompleta porque
natildeo produziria virtude de caraacuteter Por conseguinte embora Irwin
entenda que Aristoacuteteles natildeo o diga pensamos ter deixado claro ao longo
de nosso estudo que o filoacutesofo entende que a virtude moral requer o
envolvimento de ambas as capacidades da alma em diversas de suas
(sub)capacidades para fazer do homem pleno Quando o filoacutesofo exige
que a virtude completa requeira sabedoria exige ao mesmo tempo que
haja cooperaccedilatildeo entre as duas capacidades da alma ao menos sob a
forma de um alinhamento entre percepccedilotildees imaginaccedilotildees pensamento
intelecto opiniotildees juiacutezos desejos prazeres e emoccedilotildees Por conseguinte
algo mais que uma accedilatildeo virtuosa irrefletida (palavras de Irwin) eacute
necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um bom caraacuteter
O tipo de educaccedilatildeo proposto ao fim e ao longo da EN permitiraacute
ao cidadatildeo mais que deliberar corretamente e escolher deliberadamente
por auxiacutelio de uma virtude que lhe eacute alheia Permitiraacute fazer tais caacutelculos
e ter tais preferecircncias por si mesmo graccedilas agrave sua proacutepria prudecircncia que
o levaraacute aos melhores desejos e a por-se os bons fins Isso tudo garantiraacute
a emoccedilatildeo moderada e ajustada na escolha que levaraacute agrave boa accedilatildeo e agrave vida
feliz peculiares ao homem ldquoNo homem bem-educado o paacutethos natildeo eacute
uma forccedila que colocaraacute permanentes obstaacuteculos agrave alma razoaacutevel ele estaacute
a serviccedilo do loacutegos e em consonacircncia com elerdquo (LEBRUN 2009 p 16)
Para tanto poacutelis e poliacutetēs (cidadatildeo) contam com auxiliares na mudanccedila
e adequaccedilatildeo emocional as artes (teacutechnai) que facilitam o trabalho de
habituaccedilatildeo conforme a razatildeo Vejamos portanto de que modo a arte
poeacutetica e arte retoacuterica podem colaborar com a educaccedilatildeo proposta para
mudanccedila dasnas emoccedilotildees para que harmonizem com a solicitaccedilatildeo
racional e como tal mudanccedila pode ser apreciada eticamente
3 b) A retoacuterica como instrumento de mudanccedila nas emoccedilotildees
194
Na Retoacuterica tambeacutem podemos ler sobre os perigos que
determinadas emoccedilotildees (ou emoccedilotildees desmesuradas) representam agrave vida
poliacutetica Aristoacuteteles afirma que o ldquoataque verbal a compaixatildeo a ira e
outras paixotildees da alma semelhantes a estas natildeo afetam o assunto mas
sim o juizrdquo (Rhet 1354a16-18)176 Afirma tambeacutem que determinadas
emoccedilotildees natildeo devem ser suscitadas em certos lugares caso da ira do
oacutedio e da piedade que natildeo devem estar presentes no areoacutepago porque
pervertem o juiz (Rhet I 1 1354a24-25) ldquoNa sua apreciaccedilatildeo dos fatos
intervecircm muitas vezes a amizade a hostilidade e o interesse pessoal
com a consequecircncia de natildeo mais conseguirem discernir a verdade com
exatidatildeo e de seu juiacutezo ser obscurecido por um sentimento egoiacutesta de
prazer ou de dorrdquo (Rhet I 1 1354b8-11)177 No acircmbito do discurso
persuasivo as emoccedilotildees apresentam esse aspecto especiacutefico sua
capacidade de alterar de afetar os juiacutezos
Tal aspecto da Retoacuterica eacute interessante porque aborda a arte que
tem ldquocapacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim
de persuadirrdquo (Rhet I 2 1355b25-26)178 A arte retoacuterica revela a
capacidade de descobrir os meios de persuasatildeo sobre qualquer questatildeo
o que a torna peculiar Conveacutem notar quais propostas do tratado em
questatildeo possam valer para uma investigaccedilatildeo de cunho eacutetico acerca das
emoccedilotildees em sua relaccedilatildeo com a plenitude daquilo que eacute propriamente
humano e que favoreccedila as relaccedilotildees das capacidades racionais e natildeo
racionais Pretendemos entender especialmente como o orador
consegue suscitar ou mudar emoccedilotildees com estas mudar o juiacutezo do
puacuteblico e como essa habilidade pode auxiliar uma educaccedilatildeo moral que
modere as emoccedilotildees
Podemos comeccedilar nossa pesquisa do assunto pela observaccedilatildeo das
provas de persuasatildeo proacuteprias agrave retoacuterica ldquoAs provas de persuasatildeo
fornecidas pelo discurso satildeo de trecircs espeacutecies umas residem no caraacuteter
moral do orador outras no modo como se dispotildee o ouvinte e outras no
proacuteprio discurso pelo que este demonstra ou parece demonstrarrdquo (Rhet
176 Traduccedilatildeo de Alves Alberto e Pena (2012) no original διαβολὴ γὰρ καὶ
ἔλεος καὶ ὀργὴ καὶ τὰ τοιαῦτα πάθη τῆς ψυχῆς οὐ περὶ τοῦ πράγματός ἐστιν
ἀλλὰ πρὸς τὸν δικαστήν 177Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original πρὸς οὓς
καὶ τὸ φιλεῖν ἤδη καὶ τὸ μισεῖν καὶ τὸ ἴδιον συμφέρον συνήρτηται πολλάκις
ὥστε μηκέτι δύνασθαι θεωρεῖν ἱκανῶς τὸ ἀληθές ἀλλ ἐπισκοτεῖν τῇ κρίσει τὸ
ἴδιον ἡδὺ ἢ λυπηρόν 178 Idem δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν
195
I 2 1356a1-4)179 A persuasatildeo pelo caraacuteter ocorre quando o discurso eacute
proferido de modo a deixar a impressatildeo de que o orador eacute digno de feacute
Essa confianccedila deve resultar do discurso e natildeo de uma opiniatildeo preacutevia
quanto ao caraacuteter do orador pois a probidade de quem fala eacute importante
agrave persuasatildeo sendo o caraacuteter ldquoquaserdquo o principal meio de persuasatildeo
Quando acarretada pela disposiccedilatildeo dos ouvintes a persuasatildeo ocorre ao
serem levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso Isso acontece
porque os juiacutezos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou
alegria amor ou oacutedio (Rhet I 2 1356a15-16) Entatildeo a persuasatildeo eacute
especialmente tratada quando se fala das emoccedilotildees e parece que na
retoacuterica os juiacutezos podem decorrer ou vir junto das emoccedilotildees por
intermeacutedio das aparecircncias e opiniotildees que devem ser apresentadas pelo
discurso tornando essas emoccedilotildees afecccedilotildees do corpo e da alma
Se as provas por persuasatildeo satildeo obtidas por estes meios quem
pode se servir delas eacute aquele que eacute capaz de formar silogismos que
pode teorizar sobre os caracteres sobre as virtudes e sobre as emoccedilotildees
Aristoacuteteles entende a retoacuterica como filha da dialeacutetica e da poliacutetica e noacutes
arriscamos ainda a dizer tal arte pode ter influecircncia na moralidade por
interferir em um certo tipo de deliberaccedilatildeo e por depender de
conhecimentos sobre caracteres e virtudes aleacutem de manipular as
aparecircncias dos caracteres proporcionando razatildeo para os argumentos
Konstan explica ldquoas emoccedilotildees satildeo obtidas por nossa interpretaccedilatildeo das
palavras atos e intenccedilotildees dos outros cada uma de seu modo
caracteriacutesticordquo (KONSTAN 2006 p XII traduccedilatildeo nossa) Para o autor
uma consequecircncia dessa abordagem eacute a possiacutevel mudanccedila das emoccedilotildees
ao modificar seu modo de interpretar o evento que desencadeia a
emoccedilatildeo em questatildeo mas afirma que isso natildeo eacute o mesmo que convencer
algueacutem por argumentos racionais Propotildee que diferentemente dos
apetites e dos impulsos as emoccedilotildees satildeo dependentes da capacidade de
simbolizar donde a importacircncia da persuasatildeo para mudar os
julgamentos que as compotildeem pois tal apreciaccedilatildeo eacute capaz de tocar a
ldquomola dos afetosrdquo (LEBRUN 2009 p 14)
Provavelmente essa interpretaccedilatildeo seja conveniente agrave teoria
proposta por Nussbaum acerca da percepccedilatildeo do objeto de emoccedilatildeo poder
modificaacute-la A autora avalia a possibilidade pautada em uma esperanccedila
179 Estas provas podem mesmo alterar uma emoccedilatildeo em outra afirma Sorabji
(2002 p 23) Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no
original τῶν δὲ διὰ τοῦ λόγου ποριζομένων πίστεων τρία εἴδη ἔστιν αἱ μὲν γάρ
εἰσιν ἐν τῷ ἤθει τοῦ λέγοντος αἱ δὲ ἐν τῷ τὸν ἀκροατὴν διαθεῖναί πως αἱ δὲ ἐν
αὐτῷ τῷ λόγῳ διὰ τοῦ δεικνύναι ἢ φαίνεσθαι δεικνύναι
196
de que uma mudanccedila no pensamento possa levar a uma mudanccedila no
comportamento e igualmente na emoccedilatildeo pois esta eacute um modo de ver
ldquocarregado-de-valorrdquo (NUSSBAUM 2008 p 232) como propusemos
acima Essa teoria tem importante implicaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo moral
pois a autora entende que Aristoacuteteles fornece ao futuro orador instruccedilotildees
para provocar coacutelera apresentando os seus objetos por um novo acircngulo
Sendo possiacutevel provocar as emoccedilotildees eacute possiacutevel direcionar o agente a
senti-las de uma maneira ou de outra e com isso haacute a possibilidade de
mudanccedila nasdas emoccedilotildees por um tipo de instruccedilatildeo com certo fundo
racional o discurso persuasivo e emocional como leremos a seguir
Se ele diz entendemos que os Persas realmente
natildeo erraram conosco deixaremos de estar
encolerizados com eles Mas claro a vida nem
sempre eacute assim Algumas coacuteleras podem na
verdade alterar diretamente com uma nova
consideraccedilatildeo dos fatos muitas natildeo Novamente
algum oacutedio e repulsa por grupos pode prevenir seu
surgimento por uma boa educaccedilatildeo moral e ainda
a despeito de nossos melhores esforccedilos eacute como se
isso tivesse alguma raiz profunda na
personalidade (NUSSBAUM 2008 p 233
traduccedilatildeo nossa)
Eacute provaacutevel que as propostas dos dois estudiosos natildeo destoem jaacute
que ao se falar de educaccedilatildeo moral estaacute-se a falar tambeacutem de habituaccedilatildeo
e embora esta natildeo dispense a racionalidade e portanto eacute provaacutevel que
natildeo dispense a formulaccedilatildeo de certo tipo de silogismos por parte do
puacuteblico eacute possiacutevel entender que estes caacutelculos natildeo estejam realmente
implicados no acircmbito emocional retoacuterico nem mesmo em sua
capacidade de auxiliar e consolidador de uma educaccedilatildeo moral para a
cidadania pois a racionalidade estaacute no discurso proferido e talvez natildeo
exatamente na percepccedilatildeo que o puacuteblico tem de tal discurso
Uma possiacutevel prova disso eacute que para que o jovem retor alcance
seus intentos eacute preciso ter o que dizer e dizecirc-lo de forma conveniente
Por isso a retoacuterica trata da ordem dos elementos persuasivos no
enunciado e tambeacutem da pronunciaccedilatildeo Esta assenta na voz ou seja na forma como eacute necessaacuterio empregaacute-la de acordo com cada emoccedilatildeo
lindando com aparecircncias com corpo e alma como Aristoacuteteles explica
A expressatildeo possuiraacute a forma conveniente se
exprimir emoccedilotildees e caracteres e se conservar a
197
ldquoanalogiardquo com os assuntos estabelecidos Haacute
analogia se natildeo se falar grosseiramente acerca de
assuntos importantes nem solenemente de
assuntos de pouca monta nem se se colocarem
ornamentos em uma palavra vulgar [] O
discurso seraacute ldquoemocionalrdquo se relativamente a uma
ofensa o estilo for o de um indiviacuteduo
encolerizado se relativo a assuntos iacutempios e
vergonhosos for o de um homem indignado e
reverente se sobre algo que deve ser louvado o
for de tal forma que suscite admiraccedilatildeo com
humildade se sobre coisas que suscitam
compaixatildeo (RhetIII 7 1408a10-14 e 16-19)180
O estilo apropriado torna o discurso convincente porque o
ouvinte eacute levado a pensar (oiacuteountai) que quem fala diz a verdade A
persuasatildeo pelo discurso acontece quando se mostra a verdade ou o que
parece verdadeiro a partir daquilo que eacute persuasivo em cada caso
particular Nestas circunstacircncias os ouvintes estatildeo em tal estado
emocional que pensam que as coisas satildeo como o orador expotildee mesmo
que natildeo sejam O ouvinte compartilha as emoccedilotildees do orador embora
este possa natildeo as dizer
Um discurso que pretenda emocionar deveraacute usar de recursos
como o dizer nomes apropriados agrave maneira de ser que expressa
caracteres condizentes ao puacuteblico sendo que o tipo de palavras
empregado pode facilitar a persuasatildeo e as emoccedilotildees O discurso deve ser
solene e capaz de emocionar e para tanto deve usar o ritmo certo
portanto em debates satildeo adequadas as teacutecnicas de representaccedilatildeo teatral
gerando uma aparecircncia convincente e favorecendo a emoccedilatildeo ldquoEacute por
isso que quando a componente de representaccedilatildeo eacute retirada o discurso
natildeo perfaz o seu trabalho e parece fracordquo (Rhet III 12 1413b) Haacute
portanto uma seacuterie de peculiaridades atreladas a esse tipo de discurso
Os elementos que se relacionam com o auditoacuterio consistem em
obter a sua benevolecircncia suscitar a sua coacutelera e por vezes atrair a sua
180 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original Τὸ δὲ
πρέπον ἕξει ἡ λέξις ἐὰν ᾖ παθητική τε καὶ ἠθικὴ καὶ τοῖς ὑποκειμένοις
πράγμασιν ἀνάλογον τὸ δ ἀνάλογόν ἐστιν ἐὰν μήτε περὶ εὐόγκων
αὐτοκαβδάλως λέγηται μήτε περὶ εὐτελῶν σεμνῶς μηδ ἐπὶ τῷ εὐτελεῖ ὀνόματι
ἐπῇ κόσμος[] παθητικὴ δέ ἐὰν μὲν ᾖ ὕβρις ὀργιζομένου λέξις ἐὰν δὲ ἀσεβῆ
καὶ αἰσχρά δυσχεραίνοντος καὶ εὐλαβουμένου καὶ λέγειν ἐὰν δὲ ἐπαινετά
ἀγαμένως ἐὰν δὲ ἐλεεινά ταπεινῶς καὶ ἐπὶ τῶν ἄλλων δὲ ὁμοίως
198
atenccedilatildeo ou dispersaacute-la porque nem sempre eacute conveniente por o
auditoacuterio atento razatildeo pela qual muitos dos oradores tentam levaacute-lo a
rir Todos estes recursos caso se queira levam a uma boa compreensatildeo
e a apresentar o orador como um homem respeitaacutevel pois a este tipo de
homem os ouvintes prestam mais atenccedilatildeo Satildeo igualmente mais atentos
a temas importantes a coisas que lhes digam respeito agraves que encham de
espanto e agraves que sejam agradaacuteveis Por isso eacute necessaacuterio introduzir a
ideia de que o discurso trata de coisas deste gecircnero O que implica
novamente a presenccedila das aparecircncias que provocam a imaginaccedilatildeo e
portanto da percepccedilatildeo (ao menos sensiacutevel) no discurso persuasivo
poreacutem se a intenccedilatildeo eacute que o puacuteblico natildeo esteja atento dever-se-aacute dizer
que o assunto natildeo eacute importante que natildeo lhe diz respeito que eacute penoso
O orador deve igualmente usar o epiacutelogo parte do discurso
composta por quatro elementos tornar o ouvinte favoraacutevel agrave causa do
orador e desfavoraacutevel agrave do adversaacuterio amplificar ou minimizar aquilo
que eacute exposto dispor o ouvinte a um comportamento emocional
recapitular Apoacutes ter mostrado que se diz a verdade e o adversaacuterio diz
falsidades eacute preciso fazer um elogio ou uma censura e finalmente
ratificar o assunto Eacute necessaacuterio visar uma de duas coisas ou revelar-se
como homem de bem quer diante dos ouvintes quer em termos gerais
ou apresentar o adversaacuterio como perverso quer diante dos ouvintes
quer em termos gerais Portanto o discurso do retor eacute capaz de mostraacute-
lo e de mostrar os outros como virtuosos ou viciosos mas precisa
tambeacutem provocar nos ouvintes comportamentos emocionais como
propotildee o passo subsequente
Assim a ciecircncia das emoccedilotildees181 eacute semelhante
agravequela da arquitetura como a arquitetura (ou a
construccedilatildeo de casa na frase de Aristoacuteteles) nos
informa como construir a estrutura que nos
protegeraacute dos elementos entatildeo o conhecimento
das emoccedilotildees nos diz como excitar ou causar
emoccedilotildees que disporatildeo os outros de um modo que
eacute para nossa proacutepria vantagem A teacutecnica de
causar emoccedilotildees requer um entendimento dos
comportamentos que as excitam mas isso tem em
mira suplementar os outros meios de persuasatildeo
que Aristoacuteteles analisa na Retoacuterica explorando
em particular os tipos de crenccedila que satildeo assistidos
pela dor e pelo prazer (KONSTAN 2006 p 37
181Termos de Konstan
199
traduccedilatildeo nossa)
Desta feita entendemos que o discurso persuasivo eacute um dos
modos de mudar as emoccedilotildees ou ao menos de emocionar conforme o
desejo e o intelecto do orador Confirmando nossa proposta Besnier
pensa que a praacutetica do discurso persuasivo em conjunto com o
conhecimento das predisposiccedilotildees que satildeo favoraacuteveis ou que obstam o
desencadeamento de uma emoccedilatildeo poderia ser exercida a fim de formar
uma disposiccedilatildeo virtuosa acerca de cada emoccedilatildeo Igualmente poderia ser
usada para extenuar ou fazer desaparecer uma reaccedilatildeo passional que
fosse julgada pouco fundada ou se o juiacutezo axioloacutegico (palavras de
Besnier) que muda o estado do desejo for mal justificado ou
desproporcional pois para Aristoacuteteles as disposiccedilotildees concernem agraves
emoccedilotildees Para que sejam formadas podem requerer capacidade oratoacuteria
ou dialeacutetica e um conhecimento da alma assunto cabiacutevel agrave funccedilatildeo
educativa da arte poliacutetica
O que significaria que o caraacuteter comporta disposiccedilotildees que satildeo
fixadas por meio de treinamento ou adestramento a partir de
disposiccedilotildees deficientes ou de uma habituaccedilatildeo sem interferecircncia da
inteligecircncia e da deliberaccedilatildeo Com isso o Livro II da Retoacuterica pode
integrar a deliberaccedilatildeo aos componentes psiacutequicos que satildeo disponiacuteveis ao
ouvinte e nos quais o orador pode intervir mas tal intervenccedilatildeo natildeo seria
educaccedilatildeo Essa distinccedilatildeo potildee as disposiccedilotildees virtuosas e viciosas ao lado
da idade e das circunstacircncias sendo potecircncias que podem ser exploradas
pelo orador que pode transformaacute-las em emoccedilotildees ou em juiacutezos sobre o
que fazer (Rhet II 12 1388b31 1389a2) dando conforme Besnier
(2008 p 107) um elemento de deliberaccedilatildeo agrave emoccedilatildeo
O mesmo autor afirma compreender que isso acontece desde que
a mudanccedila nos juiacutezos possa ser provocada pelo orador atraveacutes dos
recursos da arte A mudanccedila em questatildeo acontece nos juiacutezos e se daacute por
persuasatildeo mas mesmo assim o movimento que leva a ela pode ser
considerado afecccedilatildeo porque quem a produz natildeo eacute o ouvinte e sim o
orador Este eacute agente externo e o que pretende ou seja alterar a crenccedila
do ouvinte acontece por meios que satildeo proacuteximos agrave deliberaccedilatildeo Nesse
caso contudo o que afeta o ouvinte natildeo eacute um discurso que o educa e
que faz com que mude de juiacutezo portanto ldquoo juiacutezo obtido por persuasatildeo
se distingue do adquirido por exerciacutecio repetido da deliberaccedilatildeordquo
(BESNIER 2008 p 107) o que diferencia a accedilatildeo da retoacuterica daquela da
educaccedilatildeo moral das emoccedilotildees
Pensamos que as consideraccedilotildees supramencionadas poreacutem natildeo
invalidam nossas observaccedilotildees acerca da forma como a persuasatildeo
200
retoacuterica pode atingir o campo eacutetico-poliacutetico jaacute que Aristoacuteteles deixa
bem claro que tal arte age nos juiacutezos dos cidadatildeos em momento
propriamente ligados agrave vida poliacutetica quando haacute exerciacutecio da democracia
em sua forma mais ativa Natildeo desmerecem nossa consideraccedilatildeo da
retoacuterica como elemento poliacutetico propiacutecio agrave educaccedilatildeo moral das
emoccedilotildees pois saber como conduzi-las ou perceber que satildeo manipuladas
pode ser favoraacutevel agraves instacircncias poliacuteticas de decisatildeo bem como aos
educadores que pretendem moderaacute-las Sendo nessas instacircncias que se
propotildeem os rumos da vida na poacutelis haveraacute intervenccedilatildeo da arte retoacuterica
nos modos como os cidadatildeos deveratildeo proceder em certas situaccedilotildees
Aleacutem do mais entendemos que de nada vale a simples habituaccedilatildeo
dirigida pela razatildeo na formaccedilatildeo da virtude se natildeo haacute ocasiatildeo de praticar
aquilo ao que se eacute habituado a fim de consolidar o que tal educaccedilatildeo
faculta Portanto defendemos que o conhecimento e a arte solicitados
pelo discurso satildeo igualmente uacuteteis agrave moralidade
Defenderemos proposta semelhante quanto agrave arte poeacutetica pois na
Poeacutetica ou a partir de tal tratado pode-se observar que para produzir a
catarse do medo e da piedade eacute preciso ldquoexcitaacute-los na audiecircnciardquo
(SORABJI 2002 p 24 traduccedilatildeo nossa) Por isso o poeta quando
escreve deve saber que tipo de poema de enredo excitaraacute tais emoccedilotildees
Diante dessa semelhanccedila a questatildeo eacute a consideraccedilatildeo do medo e da
piedade na Retoacuterica eacute coordenada com a observaccedilatildeo dessas emoccedilotildees
feita na Poeacutetica A resposta dada por Sorabji eacute em grande medida O
estudioso pensa que a pequena diferenccedila eacute que na Poeacutetica o medo eacute
sentido pela audiecircncia a princiacutepio depois pelos personagens da peccedila
As semelhanccedilas contudo satildeo mais visiacuteveis e satildeo ateacute usadas por
Aristoacuteteles em suas observaccedilotildees sobre o enredo com as quais o filoacutesofo
esquiva-se agrave objeccedilatildeo moral feita pela Repuacuteblica X aos poetas Platatildeo
compreendia que estes artistas mostravam a injusticcedila como bem-
sucedida e a justiccedila como malsucedida Aristoacuteteles pensava tal
proposta como incompatiacutevel com a necessidade da trageacutedia de imitar
acontecimentos temiacuteveis e dignos de piedade entendia que o enredo natildeo
deveria mostrar o homem bom passando da fortuna ao infortuacutenio nem o
homem mal passando do infortuacutenio agrave fortuna porque tais eventos natildeo
seriam dignos de temor ou piedade Tambeacutem por isso natildeo deveriam
apresentar um heroacutei excelente em virtude e justiccedila jaacute que a piedade vem
com um infortuacutenio natildeo merecido e o medo com o infortuacutenio de algueacutem
que percebemos ser como noacutes (hoacutemoios) Essas proposiccedilotildees potildeem a
Poeacutetica em contato com a Retoacuterica porque esta uacuteltima afirma que o
medo e a piedade satildeo excitados ao mostrar um sofrimento que aconteceu
com algueacutem como noacutes (Poet 13 1452b34 1453a1 Rhet II 5 1383a10
201
II 8 1386a25) Por isso Aristoacuteteles pode afirmar que o medo sentido no
teatro eacute genuiacuteno
Sorabji no entanto percebe que haacute ainda pequenas discrepacircncias
entre as duas obras em questatildeo Por exemplo quando a Poeacutetica
despreza a trageacutedia na qual o homem bom passa da boa agrave maacute fortuna o
texto parece contradizer a Retoacuterica que reserva a piedade agraves viacutetimas
boas (RhetII 8 1385b34) Na Poeacutetica eacute proposto o oposto pois tal
situaccedilatildeo pode ser antes uma profanaccedilatildeo de algo digno de temor e
piedade parecendo muito diferente da Retoacuterica Sobre esse assunto o
autor escreve
Mas o ponto importante para o presente propoacutesito
eacute que as consideraccedilotildees da emoccedilatildeo na Poeacutetica satildeo
tatildeo cognitivas como aquelas na Retoacuterica e isso
natildeo eacute deslocado de jeito nenhum pela analogia da
catharsis mesmo que aquela [] seja uma
analogia com coisas tais como os natildeo-cognitivos
laxativos e emotivos (SORABJI 2002 p 25
traduccedilatildeo nossa)
Por motivos como estes que datildeo margens agrave comparaccedilatildeo das duas
artes de emocionar em termos de cognitividade implicada nas emoccedilotildees
que despertam e por entendermos ambas as artes como colaboradoras
agravequela educaccedilatildeo moral que eacute proposta na EN por trabalharem e fazerem
aflorar no cidadatildeo aquilo que haacute de mais propriamente humano trataremos agora da forma como a Poeacutetica propotildee possibilidades de
mudanccedilas nasdas emoccedilotildees Buscaremos entender quais elementos de
racionalidade estatildeo implicados em tais mudanccedilas bem como o modo
pelo qual a poesia opera como forte aliada da educaccedilatildeo emocional
moral
3 c) A poesia como facilitadora da educaccedilatildeo moral
Nesse ponto da pesquisa estudaremos a poesia traacutegica porque
tambeacutem pode ser entendida como um tipo de arte de emocionar e como
um meio de alterar ou despertar emoccedilatildeo A confirmaccedilatildeo desta afirmaccedilatildeo
aparece com a definiccedilatildeo que Aristoacuteteles oferece da trageacutedia e que
destaca a funccedilatildeo especiacutefica de tal arte provocar medo e piedade bem
como a kaacutetharsis (catarse) dessas emoccedilotildees O filoacutesofo destaca os
acontecimentos e o enredo como o fim da trageacutedia sendo o fim o mais
importante de tudo Natildeo poderia haver trageacutedia sem accedilatildeo mas poderia
haver sem caracteres pois se um poeta juntar palavras bem elaboradas
202
quanto agrave elocuccedilatildeo e ao pensamento exprimindo caraacuteter natildeo realizaraacute a
funccedilatildeo traacutegica Uma trageacutedia ainda que seja inferior nesses aspectos
conseguiraacute muito mais por ter enredo e estruturaccedilatildeo de accedilotildees bem
elaboradas (Poet 6 1450a30-33) pois ldquoA trageacutedia eacute a imitaccedilatildeo de uma
accedilatildeo elevada e completa dotada de extensatildeo em uma linguagem
embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes que se
serve da acccedilatildeo e natildeo da narraccedilatildeo e que por meio da compaixatildeo e do
temor provoca a purificaccedilatildeo de tais paixotildeesrdquo (Poet 6 1449b24-28)182
As partes do enredo (myacutethos) satildeo os elementos da trageacutedia que
exercem maior atraccedilatildeo e emoccedilatildeo e essas partes satildeo a peripeacutecia
(peripeacuteteia) e os reconhecimentos (anagnōriacuteseis Poet 6 1450a34-35)
Sendo peripeacutecia a mudanccedila dos acontecimentos em seu contraacuterio
acontecendo de modo verossiacutemil e necessaacuterio agrave construccedilatildeo do texto e
reconhecimento a passagem da ignoracircncia ao conhecimento para
amizade ou oacutedio entre os que estatildeo destinados a serem infelizes ou
felizes Aristoacuteteles considera o reconhecimento que se daacute entre pessoas
mais belo se acompanhado da peripeacutecia e embora estes elementos natildeo
apareccedilam sempre juntos o tipo mais proacuteprio de reconhecimento eacute o que
vem acompanhado da peripeacutecia pois deste modo suscitam piedade ou
medo com maior facilidade As emoccedilotildees traacutegicas acontecem porque as
duas partes do enredo supramencionadas estatildeo extremamente ligadas ao
ser feliz ou infeliz contudo haacute um terceiro elemento do enredo o
sofrimento (paacutethos) que eacute um ato destruidor ou doloroso como as
mortes que aparecem em cena que igualmente pode causar medo e
piedade Com estes componentes percebemos a accedilatildeo das aparecircncias que
afetam a percepccedilatildeo provocando o puacuteblico pois mostram o sofrimento
alheio de forma surpreendente e emocionante podendo mesmo fazer
com que de certo modo o puacuteblico se ponha no lugar da personagem
sofredora ao associar certo tipo de pensamento ao desencadeamento das
emoccedilotildees traacutegicas
Esse tipo de proposta emocional eacute sugerido pela forma como o
filoacutesofo dispotildee as partes componentes da trageacutedia em grau de
importacircncia agrave composiccedilatildeo de um bom poema Primeiro o enredo parte
mais importante e essencial agrave trageacutedia segundo o caraacuteter (eacutethos) que eacute
uma espeacutecie de bela imagem A trageacutedia eacute entatildeo imitaccedilatildeo de accedilotildees em
uma trama (ou enredo myacutethos) e imitando accedilotildees imita os homens que
182 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original στιν οὖν τραγῳδία
μίμησις πράξεως σπουδαίας καὶ τελείας μέγεθος ἐχούσης ἡδυσμένῳ λόγῳ
χωρὶς ἑκάστῳ τῶν εἰδῶν ἐν τοῖς μορίοις δρώντων καὶ οὐ δι ἀπαγγελίας δι
ἐλέου καὶ φόβου περαίνουσα τὴν τῶν τοιούτων παθημάτων κάθαρσιν
203
agem demonstrando seu caraacuteter Em terceiro lugar vem o pensamento
(diaacutenoia) o ser capaz de exprimir o que eacute possiacutevel e o que eacute apropriado
O caraacuteter revela igualmente as decisotildees e o pensamento aparece nos
enunciados Quarto a elocuccedilatildeo (leacutexis) que tem relaccedilatildeo com as palavras
comunicadoras do pensamento Em quinto lugar aparece a muacutesica
(melopoiiacutea) mais agradaacutevel dentre os componentes elencados e o
espetaacuteculo (oacutepsis) sexto componente que atrai os espiacuteritos embora seja
a parte mais desprovida de arte e mais alheia agrave poeacutetica na opiniatildeo do
filoacutesofo porque a potecircncia da trageacutedia existe mesmo sem concursos e
atores aleacutem do que a montagem dos espetaacuteculos e a arte de quem
executa os acessoacuterios valem mais que do que a arte dos poetas em uma
encenaccedilatildeo (Poet 26 1461b26-36 et seq)
A duraccedilatildeo dos os enredos eacute igualmente importante deveratildeo ter
extensatildeo que facilite a recordaccedilatildeo pois como afirmamos se emocionar
com a trageacutedia requer certo tipo de pensamento O filoacutesofo entende
contudo que o limite mais amplo desde que perfeitamente claro seja
sempre o mais belo Para exemplificar a extensatildeo deve ter um tamanho
que reuacutena conforme os princiacutepios da verossimilhanccedila e da necessidade
a sequecircncia dos acontecimentos apresentados pelo enredo de modo que
mudem da felicidade agrave infelicidade e vice-versa (Poet 8 1451a12-15 9
1551b27-32) favorecendo a inteligibilidade e credibilidade do poema
Uma vez que a imitaccedilatildeo representa natildeo soacute uma
acccedilatildeo completa mas tambeacutem factos que inspiram
temor e compaixatildeo estes sentimentos satildeo muito
[mais] facilmente suscitados quando os factos se
processam contra a nossa expectativa por uma
relaccedilatildeo de causalidade entre si Desta forma a
imitaccedilatildeo seraacute mais surpreendente do que se
surgisse do acaso e da sorte pois os factos
acidentais causam mais admiraccedilatildeo quando parece
que acontecem de propoacutesito (Poet 10 1452a1-
6)183
Os fatos que natildeo parecem acontecer por acaso agitam os sentidos
183 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original ἐπεὶ δὲ οὐ μόνον
τελείας ἐστὶ πράξεως ἡ μίμησις ἀλλὰ καὶ φοβερῶν καὶ ἐλεεινῶν ταῦτα δὲ
γίνεται καὶ μάλιστα καὶ μᾶλλον ὅταν γένηται παρὰ τὴν δόξαν δι ἄλληλα τὸ γὰρ
θαυμαστὸν οὕτως ἕξει μᾶλλον ἢ εἰ ἀπὸ τοῦ αὐτομάτου καὶ τῆς τύχης ἐπεὶ καὶ
τῶν ἀπὸ τύχης ταῦτα θαυμασιώτατα δοκεῖ ὅσα ὥσπερ ἐπίτηδες φαίνεται
γεγονέναι
204
e a imaginaccedilatildeo do puacuteblico tornando os enredos mais belos Tais fatos
fazem tambeacutem o efeito proacuteprio agraves trageacutedias mais forte sendo este efeito
provocar emoccedilotildees e kaacutetharsis no puacuteblico graccedilas a uma agitaccedilatildeo de
certos elementos da razatildeo a partir da percepccedilatildeo sensiacutevel que eacute
provocada pela trama da trageacutedia e pela inteligibilidade interna agrave
composiccedilatildeo dessa trama Do mesmo modo ldquotemor e a compaixatildeo
podem realmente ser despertados pelo espetaacuteculo e tambeacutem pela
proacutepria estruturaccedilatildeo dos acontecimentos o que eacute preferiacutevel e proacuteprio de
um poeta superiorrdquo (Poet11 1453b1-3)184 A estrutura da trageacutedia
representa boas pessoas que sentem pesar mas natildeo devido a uma falta
que tenham cometido Esse aspecto correto conferido ao caraacuteter do heroacutei
traacutegico eacute causador da crenccedila que eacute parte do conteuacutedo da piedade
Partindo da proposta aristoteacutelica da emoccedilatildeo em questatildeo Nussbaum
(2008 p 239) entende que os julgamentos seratildeo suficientes para
despertaacute-la quando estiverem em conjunto com aquilo que chama de
julgamento eudaiacutemoniacutestico Tal julgamento concebe a pessoa ou o que
acontece a ela como partes do que eacute importante para o bem-estar de
quem avalia e os dramas despertam aquele tipo de preocupaccedilatildeo com o
foco na possibilidade de evento similar vir a acontecer como
propusemos pouco acima
Quanto ao medo ele eacute sentido segundo a interpretaccedilatildeo de
Nussbaum tanto pelo personagem que percebe coisas maacutes e iminentes
como por quem assistelecircouve como algum reflexo de possibilidades
que mostram da vida humana em geral Os personagens igualmente
podem ter e expressar vaacuterias emoccedilotildees enquanto os espectadores por
uma parte do texto se identificam com um ou outro personagem e por
isso tambeacutem experimentaratildeo aquelas emoccedilotildees ldquocompartilhando a raiva
e a desolaccedilatildeo de Filoctetes ou a devastaccedilatildeo de Eacutedipo quando ele
descobre o que fezrdquo (NUSSBAUM 2008 p 240 traduccedilatildeo nossa) Para
tanto eacute preciso que o enredo seja estruturado de tal forma necessaacuteria e
verossimilmente de modo que mesmo o simples ouvir a sequecircncia dos
acontecimentos embora natildeo a vendo faccedila temer e sentir piedade pelo
que aconteceu ao personagem com o qual se estabeleceu um certo
ldquoelordquo O viacutenculo eacute causado por certa semelhanccedila existente entre
personagem e puacuteblico graccedilas ao caraacuteter natildeo perfeito do heroacutei traacutegico
como explica Ricoeur
184 Idem Ἔστιν μὲν οὖν τὸ φοβερὸν καὶ ἐλεεινὸν ἐκ τῆς ὄψεως γίγνεσθαι ἔστιν
δὲ καὶ ἐξ αὐτῆς τῆς συστάσεως τῶν πραγμάτων ὅπερ ἐστὶ πρότερον καὶ
ποιητοῦ ἀμείνονος
205
[] satildeo tambeacutem as emoccedilotildees traacutegicas que exigem
que o heroacutei natildeo alcance a excelecircncia na virtude e
justiccedila devido a alguma ldquofaltardquo mas sem chegar
ao viacutecio ou maldade que o leve a desgraccedila eacute
intermediaacuterio [] Assim mesmo o discernimento
da falta traacutegica eacute excetuado pela qualidade
emocional da piedade do temor e do senso do
humano185 (RICOEUR 2010 p 82)
Se o poeta deve suscitar o prazer inerente ao medo e agrave piedade
por meio da imitaccedilatildeo isso deve ser feito a partir do encadeamento
racional dos acontecimentos na trama (Poet 14 1453b15-34 1454a1-9)
Por isso entendemos que a forma exigida por Aristoacuteteles agrave composiccedilatildeo
traacutegica potildee em associaccedilatildeo as duas instacircncias que completam um ser
verdadeiramente humano a racionalidade e as emoccedilotildees provocadas e
trabalhadas pela kaacutetharsis contemplando no acircmbito poeacutetico as
propostas que destacamos a partir de EN I13 e do passo EN X 7
1177b26-30
Igualmente haacute exigecircncias quanto aos caracteres dos personagens
com seu papel no emocionar e tambeacutem no efeito da trageacutedia eacute preciso
primeiro que sejam bons e que apareccedilam porque as accedilotildees do
personagem mostram-no empenhado em um propoacutesito sendo o caraacuteter
bom quando tal propoacutesito for bom Segundo os caracteres devem ser
apropriados Terceiro eacute preciso que sejam semelhantes aos nossos
caracteres confirmando a proposta da possibilidade similar Quarto e
uacuteltimo eacute exigido que sejam coerentes O que igualmente aproxima a
proposta da Poeacutetica das coisas eacuteticas bem como o faz a exigecircncia de
que seja representada uma accedilatildeo verossiacutemil e necessaacuteria mexendo ao
menos com as imaginaccedilotildees e as opiniotildees de quem com ela interage Por
conseguinte Nussbaum (2008 p 166) entende que reaccedilotildees a obras
como filmes se devem agrave grande identificaccedilatildeo com os eventos
apresentados pela ficccedilatildeo que satildeo nas palavras de Aristoacuteteles
parafraseadas pela autora ldquoo tipo de coisa que pode acontecerrdquo
Interpretaccedilatildeo que nos parece aplicaacutevel ao caso da trageacutedia e de seu
185Contudo o filoacutesofo observa que haacute tambeacutem contraponto entre eacutetica e poeacutetica
ldquoO myacutethos traacutegico ao girar em torno das reviravoltas da fortuna e
exclusivamente da felicidade para a infelicidade eacute uma exploraccedilatildeo das vias
pelas quais a accedilatildeo lanccedila contra todas as expectativas os homens de valor na
infelicidade Serve de contraponto agrave eacutetica que ensina como a accedilatildeo pelo
exerciacutecio das virtudes conduz agrave felicidade Ao mesmo tempo soacute adota do preacute-
saber da accedilatildeo seus aspectos eacuteticosrdquo (RICOEUR 2012 p 83)
206
espetaacuteculo
Por esses motivos o necessaacuterio e o verossiacutemil devem sempre ser
buscados tanto nos caracteres quanto nos acontecimentos de modo que
uma personagem diga ou faccedila o que eacute necessaacuterio ou verossiacutemil e que
uma coisa aconteccedila por causa da outra conferindo conforme tais
princiacutepios racionalidade ao enredo Aristoacuteteles sugere ainda que o
desenlace das tramas deve resultar do proacuteprio myacutethos e natildeo de uma
intervenccedilatildeo ex-machina Esse artifiacutecio no entanto pode ser usado em
coisas que se passam fora da accedilatildeo da peccedila ou em coisas que
aconteceram antes dela e que um mortal natildeo conheccedila ou em coisas
futuras que devem ser preditas e anunciadas Do mesmo modo natildeo deve
haver nada de irracional nas trageacutedias mas se houver que natildeo seja
apresentado em cena186
Os enredos devem ser estruturados e completados com a
elocuccedilatildeo dando aos acontecimentos o ar mais criacutevel possiacutevel Ao vecirc-los
como se estivesse diante dos proacuteprios fatos o poeta poderaacute descobrir o
que eacute apropriado e natildeo incorrer em contradiccedilatildeo ressaltando o primeiro
momento da miacutemesis identificado por Ricoeur baseado na relaccedilatildeo do
poeta com o mundo O poeta igualmente deve completar o enredo com
gestos o quanto for possiacutevel Do mesmo modo dos poetas com o
186Sobre a composiccedilatildeo do enredo ver Ricoeur (2010 p 59-60) mas haacute normas
tambeacutem para a composiccedilatildeo do heroacutei traacutegico Ricoeur considera essencial o
entendimento da importacircncia da composiccedilatildeo do enredo para entendermos entre
outras coisas mesmo o significado de miacutemesis na Poeacutetica Por isso trata
juntamente o par crucial de conceitos aristoteacutelicos miacutemesis-myacutethos
(representaccedilatildeo de accedilatildeocomposiccedilatildeo da intriga) que ratifica o propoacutesito
aristoteacutelico da ecircnfase na accedilatildeo representada pela trageacutedia e que nos ajuda a
defender nosso propoacutesito em estudar um texto poeacutetico em um estudo eacutetico ldquoO
que conservarei para a sequecircncia de meu trabalho eacute a quase identificaccedilatildeo entre
duas expressotildees imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo de accedilatildeo e agenciamento dos fatos A
segunda expressatildeo eacute como jaacute dissemos o definidor que Aristoacuteteles potildee no lugar
do definido myacutethos intriga Essa quase identificaccedilatildeo estaacute garantida por uma
primeira hierarquizaccedilatildeo entre as seis partes que daacute prioridade ao ldquoo quecircrdquo
(objeto) da representaccedilatildeo ndash intriga caracteres pensamento ndash sobre o ldquopor quecircrdquo
(meio) ndash a expressatildeo e o canto ndash e sobre o ldquocomordquo (modo) ndash o espetaacuteculo
depois por uma segunda hierarquizaccedilatildeo no interior do ldquoo quecircrdquo que potildee a accedilatildeo
acima dos caracteres e do pensamento (ldquoporque se trata sobretudo de uma
representaccedilatildeo de accedilatildeo (miacutemesis praacutexeos) e atraveacutes dela de homens que agemrdquo
50b3) No final dessa dupla hierarquizaccedilatildeo a accedilatildeo aparece como a ldquoparte
principalrdquo o ldquoobjetivo visadordquo o ldquoprinciacutepiordquo e por assim dizer a ldquoalmardquo da
trageacutedia Essa quase identificaccedilatildeo estaacute garantida pela foacutermula ldquoEacute a intriga que eacute
a representaccedilatildeo da accedilatildeordquo (50a1)rdquo (RICOEUR 2012 p 61)
207
mesmo talento satildeo mais convincentes aqueles que sentem as emoccedilotildees
porque quem sente fuacuteria transmite fuacuteria quem estaacute irritado mostra
irritaccedilatildeo de modo mais convincente ldquoPor isso a arte da poesia eacute proacutepria
dos gecircnios ou dos loucos jaacute que os gecircnios satildeo versaacuteteis os loucos
deliramrdquo (Poet17 1455a32-34)187 Igualmente por isso podemos fazer
um paralelo entre a ficccedilatildeo traacutegica e a moral real salvaguardadas as
devidas proporccedilotildees Aleacutem do que sendo o poeta imitador como
qualquer outro criador de imagens sempre imita necessariamente trecircs
coisas possiacuteveis (1) as coisas como eram ou satildeo em realidade (2) como
dizem ou parecem (3) como deviam ser188 Isso eacute expresso por meio da
elocuccedilatildeo que apresenta palavras raras metaacuteforas e muitas modificaccedilotildees
da linguagem o que somente eacute permitido ao poeta Ainda precisamos
abordar melhor a elocuccedilatildeo para desfecho da listagem de como os
elementos da poesia emocionam Aristoacuteteles a define como palavra que
expressa o pensamento a fim de demonstrar refutar despertar emoccedilotildees
engrandecer ou minimizar algo ou algueacutem Elemento poderoso embora
187 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original διὸ εὐφυοῦς ἡ ποιητική
ἐστιν ἢ μανικοῦ ούτων γὰρ οἱ μὲν εὔπλαστοι οἱ δὲ ἐκστατικοί εἰσιν 188 Donde a famosa teoria das trecircs miacutemeseis proposta por Paul Ricoeur em seu
Tempo e narrativa ldquoMiacutemese I designa a preacute-compreensatildeo na vida quotidiana
daquilo que se denominou justamente a qualidade narrativa da experiecircncia ndash
entendendo por tal o facto da vida e ainda mais a acccedilatildeo como Hanna Arendt
exprime brilhantemente exigirem ser contados Miacutemese II designa a auto-
estruturaccedilatildeo da narrativa sobre a base dos coacutedigos narrativos internos ao
discurso A este niacutevel Miacutemese II e myacutethos ou seja a intriga ndash ou melhor o
dispor em intriga ndash coincidem Finalmente Miacutemese III designa o equivalente
narrativo da refiguraccedilatildeo do real pela metaacuteforardquo (ABEL POREgraveE 2010 p 77) A
relaccedilatildeo com o antes da poesia eacute evidenciada em Aristoacuteteles segundo Ricoeur
devido agrave sua referecircncia aos caracteres escolhidos para as personagens da
trageacutedia e da comeacutedia que se classificam somente em ldquonobres ou baixosrdquo isso
porque todo mundo (paacutentes) na realidade eacute de um ou outro jeito As
qualificaccedilotildees eacuteticas vecircm do real e o que depende da imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo eacute
a exigecircncia loacutegica da coerecircncia O filoacutesofo francecircs afirma ainda que eacute dito que
trageacutedia e comeacutedia diferem por representar personagens piores ou melhores que
os homens reais (tograven vucircn 1448a16-18) o que eacute a segunda marca da miacutemesis I
Entatildeo o poeta pressupotildee que os caracteres possam ser melhorados ou
corrompidos pela accedilatildeo (RICOEUR 2012 p 84) ldquoOs caracteres satildeo o que
permite qualificar os personagens em accedilatildeordquo (Poet 1450a6) Haacute ainda o fato dos
poetas trabalharem com os mitos tradicionais inseridos como estatildeo na tradiccedilatildeo
grega da eacutepoca (Idem p 85) embora o pensador francecircs ligue essa continuaccedilatildeo
em Aristoacuteteles somente agraves propostas sobre o prazer proacuteprio agrave trageacutedia e ao
alcance da kaacutetharsis
208
natildeo seja um dos primeiros da lista em importacircncia a elocuccedilatildeo ajuda a
provocar as emoccedilotildees traacutegicas e a conferir verossimilhanccedila ao enredo
(Poet 18 1456a36-38 19 1456b1-8) podendo servir igualmente como
recurso retoacuterico como vimos acima
A muacutesica o espetaacuteculo e o enredo entretanto satildeo os elementos
considerados como os mais emocionantes da trageacutedia O enredo eacute nas
palavras do proacuteprio filoacutesofo ldquoa alma da trageacutediardquo aquilo que quando
bem elaborado permite imaginar e despertar emoccedilatildeo Tendo isso em
vista Nussbaum (2008 p 240 traduccedilatildeo nossa) observa ldquoo digno de
piedade e o temiacutevel natildeo satildeo simplesmente locais eles satildeo encaixados na
estrutura global da forma pelo tipo particular de identificaccedilatildeo e simpatia
com o heroacutei que a proacutepria forma cultivardquo Nussbaum admite contudo
que frequentemente a perspectiva na trageacutedia eacute modelada pelas reaccedilotildees
do coro traacutegico que encoraja uma certa variaccedilatildeo de reaccedilotildees pelo
desenrolar do enredo O sentido que corre por esses trabalhos eacute o de
algueacutem que olha os reveses e sofrimentos da pessoa razoavelmente boa
tanto com medo quanto com piedade Esse tipo de percepccedilatildeo ou de
pensamento pode mesmo alterar uma emoccedilatildeo em outra pois a pessoa
que chega indiferente ao teatro pode deixar aflorar sua piedade
transbordando ou ajustando o seu excesso dessa emoccedilatildeo e nesse caso
modificando a emoccedilatildeo Tais mudanccedilas favorecem as emoccedilotildees reais
como se expotildee na explicaccedilatildeo de Nussbaum que citamos abaixo
Compaixatildeo seraacute um motivo social valioso
somente se estaacute equipada com uma teoria
adequada do valor dos bens baacutesicos somente se
estaacute equipada com um entendimento adequado da
accedilatildeo e da culpa e somente se estaacute equipada com
uma consideraccedilatildeo adequadamente vasta da pessoa
que deve ser o objeto da preocupaccedilatildeo de um
agente tanto distante como proacuteximo Esses
julgamentos devem ser engendrados por um bom
processo de desenvolvimento Por outro lado a
compaixatildeo fornece uma vida essencial e
conexidade com a moralidade sem que esteja
perigosamente vazia e desarraigada Em casos
centrais bem representados na trageacutedia grega a
compaixatildeo incorpora avaliaccedilotildees corretas e
direciona nossa preocupaccedilatildeo para todos que
compartilham conosco uma humanidade comum
Aprendidas nas relaccedilotildees da infacircncia essas
conexotildees satildeo importantes para fazer a moralidade
209
perspicaz antes que obscura Assim a compaixatildeo
eacute um complemento necessaacuterio ao respeito []
(NUSSBAUM 2008 p 399 traduccedilatildeo nossa)189
Do mesmo modo a trageacutedia que provoca ou muda as emoccedilotildees
do puacuteblico na direccedilatildeo do outro tem enorme papel moral na poacutelis de
Aristoacuteteles como a autora tambeacutem explicaraacute ldquoPor outro lado conveacutem
lembrar ainda o dito por Aristoacuteteles sobre uma accedilatildeo que eacute moralmente
virtuosa somente quando eacute feita pelos motivos corretosrdquo (NUSSBAUM
2008 p 400 traduccedilatildeo nossa) Ajudar os outros sem amor agrave humanidade
e sem preocupaccedilatildeo compassiva por sua situaccedilatildeo natildeo tem valor moral A
interpretaccedilatildeo da autora se volta para Soacutefocles pois eacute nesse momento
que se pode evocar a posiccedilatildeo grega antiga sobre o papel do drama
traacutegico na educaccedilatildeo embora entendamos ainda que essa postura
colabore com a proposta de EN X apresentada anteriormente acerca da
necessidade de extensatildeo da ldquoeducaccedilatildeordquo moral por toda a vida do
cidadatildeo Defendemos assim que a trageacutedia eacute forte aliada na formaccedilatildeo
do caraacuteter e na manutenccedilatildeo da felicidade por toda vida mas que tem seu
papel como educadora da juventude como ressalta Nussbaum
A trageacutedia natildeo eacute para os muito jovens e natildeo eacute
exatamente para os jovens As pessoas maduras
sempre precisam expandir suas experiecircncias e
reforccedilar sua posse das verdades eacuteticas centrais
Mas para o jovem futuro cidadatildeo a trageacutedia tem
um significado especial Porque esse espectador
estaacute em processo de aprender a compaixatildeo As
trageacutedias familiarizam-nos com as coisas ruins
que podem acontecer na vida humana muito antes
da proacutepria vida fazer isso assim ativam a
preocupaccedilatildeo com os outros que estatildeo sofrendo o
que a pessoa natildeo sofreu E fazem isso de um jeito
que faz a profundidade e significacircncia do
sofrimento e as perdas que o inspiram
inequivocamente claras ndash os recursos poeacutetico
visual e musical do drama assim tecircm peso moral
Convidando o espectador a se tornar intensamente
preocupado com o destino do heroacutei traacutegico e ao
mesmo tempo retratando o heroacutei como uma
pessoa de valor o drama estabelece a compaixatildeo
189 Sobre a questatildeo da compaixatildeo como necessaacuteria agrave vida em comunidade ver
tambeacutem Sem fins lucrativos Capiacutetulo III p 36 et seq
210
um espectador atento teraacute apreendendo isso
aquela emoccedilatildeo Os gregos cultivavam a emoccedilatildeo
principalmente pelo drama uma crianccedila
contemporacircnea pode aprender essas mesmas
histoacuterias miacuteticas ou seu equivalente moderno
(NUSSBAUM 2008 p 428-429 traduccedilatildeo nossa)
Para tanto devem ser buscados trabalhos que familiarizem o
jovem leitor mas pensamos que tambeacutem o leitor adulto com uma vasta
variedade de possiacuteveis sofrimentos e de coisas agraves quais eacute vulneraacutevel
mas agraves quais possa reagir Tais obras levam ao reconhecimento e agrave
preocupaccedilatildeo mas especialmente agrave percepccedilatildeo de uma humanidade em
comum e de seus traccedilos especiacuteficos confirmando o ldquohoucirctos ekeicircnosrdquo de
Poet IV Enquanto Nussbaum se concentra no papel moral da
compaixatildeo afirmamos que o mesmo vale para o medo traacutegico emoccedilatildeo
que a proacutepria autora associa agrave piedade em seu The fragility of goodness
Afirmamos que a combinaccedilatildeo desses elementos da trageacutedia
favorece seus objetivos e mostra que a arte em questatildeo igualmente pode
ser entendida como um meio de emocionar ou direcionar as emoccedilotildees do
puacuteblico que satildeo despertadas por algo que afeta conjuntamente corpo e
alma Em certo momento da histoacuteria de Atenas todos compartilhavam
os momentos no teatro sendo este aleacutem de um meio de diversatildeo para a
populaccedilatildeo um potente aliado agraves formas convencionais de educaccedilatildeo para
a cidadania vida afora Os exemplos e contraexemplos expostos nos
espetaacuteculos cecircnicos podiam transmitir liccedilotildees sobre as formas mais ou
menos adequadas de comportamento em comunidade apesar de seu
caraacuteter ficcional Podiam transmitir um ideal de homem ou levar a
refletir sobre a proacutepria existecircncia preparando para a accedilatildeo real aleacutem de
despertar reflexatildeo sobre a condiccedilatildeo alheia Com isso as emoccedilotildees
traacutegicas e seu convite agrave reflexatildeo sobre a vida podem enquadrar-se em
nossas perspectivas de emoccedilotildees modificadas ou despertadas por certo
instrumento racional qual seja a trageacutedia que trabalharia como auxiliar
daquela educaccedilatildeo emocional proposta na EN Com suas sugestotildees a
trageacutedia seria mesmo capaz de conduzir as emoccedilotildees da plateia ao ponto
de purificaacute-las ou esclarececirc-las e aclarando o mundo eacute provaacutevel que
fossem capazes de extenuaacute-las expurgaacute-las ou controlaacute-las pela
kaacutetharsis190 mesmo que primeiro devessem ser excitadas pela poesia O
190 Sobre a kaacutetharsis ver Sorabji (2002 p 288 et seq) Natildeo nos debruccedilaremos
sobre esse problema em nosso estudo pois demandaria mais forccedila do que ora
apresentamos
211
que poderia contribuir para a formaccedilatildeo dos caracteres jovens sendo a
trageacutedia e sua catarse encaradas mesmo como um tipo de terapia191 das
emoccedilotildees mas tambeacutem como colaboradoras para o aperfeiccediloamento do
caraacuteter nos adultos auxiliando-os nas mudanccedilas ou efetivaccedilatildeo de seus
haacutebitos graccedilas ao conhecimento que adquirem de suas proacuteprias
emoccedilotildees
Do mesmo modo como Aristoacuteteles frisou a poesia eacute mais
filosoacutefica que a histoacuteria porque esta nos conta o que houve sendo que o
passado natildeo nos mostra algo interessante sobre as nossas possibilidades
por indicar um evento narrado idiossincraacutetico Por sua vez os trabalhos
literaacuterios nos mostram o geral plausiacutevel como padrotildees de accedilatildeo
Mostram-nos ldquocoisas como as que podem acontecerrdquo na vida do homem
levando ao prazer intelectual (e talvez esteacutetico) proacuteprio agrave trageacutedia bem
como na proposta da miacutemesis III de Ricoeur que eacute levada com o
espectador agrave vida fora da poesia pelo prazer que a trageacutedia provoca Ao
compreender tais padrotildees de importacircncia na poesia compreendemos
tambeacutem as nossas proacuteprias possibilidades Mesmo a procura pelas
emoccedilotildees dolorosas das peccedilas e textos satildeo aberturas a esse ldquoespaccedilo
potencialrdquo da poesia pois ajuda-nos a lidar com nossa falibilidade
vulnerabilidade e impotecircncia preparando-nos para a vida Isso soacute
acontece graccedilas ao movimento duplo que nos permite perceber os
acontecimentos traacutegicos como ficcionais que natildeo nos levam a agir e que
natildeo implicam escolha deliberada mas com os quais nos identificamos
sentindo emoccedilotildees reais ao reagir ao sofrimento alheio
A verossimilhanccedila e a necessidade do enredo garantem como
propusemos que entendamos os acontecimentos traacutegicos como coisas
possiacuteveis de acontecer Garante a realidade das emoccedilotildees suscitadas pela
trageacutedia com todo seu conteuacutedo cognitivo ao menos pelas crenccedilas e
opiniotildees vindas das aparecircncias e pelo julgamento de possibilidades
similares que levam os homens a se perceberem tais como satildeo
humanos nada mais nada
191 O termo terapia natildeo aparece em Aristoacuteteles mas haacute estudiosos que defendem
essa possibilidade de interpretaccedilatildeo das kaacutetharsis como Sorabji (2002 p 288 et
seq)
212
213
Conclusatildeo
Nossa tese procurou responder agrave questatildeo como operar mudanccedilas
nas emoccedilotildees a fim de que se tornassem condizentes com a proposta de
vida feliz feita por Aristoacuteteles Para responder a pergunta norteadora de
nosso trabalho buscamos dar embasamento agrave hipoacutetese levantada a partir
de EN I de que haacute uma funccedilatildeo especificamente humana que se
confunde com a felicidade entendida como melhor desempenho das
capacidades aniacutemicas em conjunto com o corpo e que tais capacidades
devido agrave natureza da alma natildeo podem ser isoladas Esse contato das
capacidades aniacutemicas percebido a partir da discussatildeo sobre a funccedilatildeo
humana levou-nos a entender que a possibilidade de se educar as
emoccedilotildees existe pelo contato entre as capacidades racional e natildeo racional
que eacute tipicamente humano e que confere uma espeacutecie de racionalidade
agraves emoccedilotildees
Para podermos sustentar essas propostas iniciamos com um
estudo sobre a natureza das emoccedilotildees A princiacutepio buscamos responder agrave
questatildeo acerca da funccedilatildeo humana e sua importacircncia na eacutetica de
Aristoacuteteles O argumento da funccedilatildeo situado em meio agraves discussotildees
sobre a melhor forma de vida possiacutevel nos indicou sua relaccedilatildeo com o
fim proposto para o homem e nos permitiu identificar a felicidade como
um tipo de vida especificamente humano no qual as capacidades da
alma seriam desempenhadas de modo excelente Compreendemos assim
a proposta de que a vida feliz eacute um tipo de atividade conforme a virtude
indicando-nos igualmente a necessidade de entender o que seja a
virtude apontando as direccedilotildees a serem tomadas em um segundo
momento de nossa pesquisa Nessas circunstacircncias apareceu-nos o tema
das emoccedilotildees vez que Aristoacuteteles aponta a virtude ao menos em sua
face moral como boa medida nas emoccedilotildees e nas accedilotildees A pesquisa
pelos tipos de vida que se candidatam ao cargo de felicidade e a
tentativa de resposta ao questionamento acerca da existecircncia de um soacute
tipo de vida como especificamente humano conduziu nossa discussatildeo
em direccedilatildeo a EN I 13 que propotildee a biparticcedilatildeo da alma e que nos
apresenta as ldquopartesrdquo racional e natildeo racional da alma bem como a
possibilidade de entrarem em acordo
A partir da proposta da existecircncia de ldquopartesrdquo na alma pudemos questionar a validade dessa afirmaccedilatildeo e chegamos agrave conclusatildeo de que
Aristoacuteteles natildeo propotildee uma alma realmente dividida mas composta por
diferentes capacidades operadas majoritariamente pelo corpo Tais
entendimentos permitiram que respondecircssemos agrave indagaccedilatildeo pela forma
de vida que constituiria o fim ou felicidade humana como realizaccedilatildeo do
214
bom desempenho de uma funccedilatildeo defendendo com o auxiacutelio de
Korsgaard Nussbaum e Reeve a impossibilidade de acatar a
interpretaccedilatildeo da eudaimoniacutea como uma vida plenamente contemplativa
Com a ajuda de estudiosos como Sorabji e Zingano percebemos que haacute
que se duvidar de propostas de leitura que tendam a esboccedilar Aristoacuteteles
como um filoacutesofo que apresenta um apreccedilo exacerbado das capacidades
racionais Pareceu-nos mais verdadeiro defender que suas teorias
apontam para uma vida mais intensa que aquela disposta agrave simples
contemplaccedilatildeo teoacuterica Propusemos uma vida que se completa na poacutelis
com o exerciacutecio de capacidades aniacutemicas desempenhadas de um modo
racional ou seja especialmente humano como propotildeem Korsgaard e
Boyle Tal defesa foi possiacutevel justamente devido ao conjunto das
capacidades indicadas pelo DA como tiacutepico agrave psychḗ do homem a saber
nutritiva perceptiva (e com esta a desiderativa) e raciocinativa Por esse
motivo julgamos pertinente desenvolvermos mas apenas de modo a
sanar nossas duacutevidas acerca das emoccedilotildees e seu papel na felicidade um
pequeno estudo a respeito da alma humana
O estudo tambeacutem contou com o apoio do De Anima texto que
confirmou nossas suspeitas e nos capacitou a defender uma teoria da
alma como um todo composto por capacidades que faculta ao corpo
realizar ou seja uma teoria hilemoacuterfica a respeito do homem que
comeccedilou a ser esboccedilada ainda com as nossas constataccedilotildees a respeito da
funccedilatildeo humana A defesa de uma psychḗ composta por capacidades
imprescindivelmente correlacionadas e que tecircm suas funccedilotildees
manifestas mesmo que imperceptivelmente no corpo teve apoio em
estudos como os de Bastit e Zingano e nos permitiu tratar as emoccedilotildees
como afecccedilotildees do conjunto corpoalma Tudo isso soacute foi possiacutevel porque
pensamos ter conseguido sustentar aleacutem de uma teoria da unidade da
alma uma teoria que entendeu a capacidade desiderativa como um todo
coeso Embora o desejo apresente diferentes tipos de manifestaccedilatildeo
relacionados aos seus objetos e agraves relaccedilotildees dos tipos de desejo com a
razatildeo proposta devedora aos estudos de Aggio dedicados agrave questatildeo do
desejo e do prazer na EN os desejos igualmente considerados paacutethē por
Aristoacuteteles nos mostraram diferentes emoccedilotildees que satildeo por eles
acompanhadas Tais emoccedilotildees como os desejos aos quais se relacionam
podem sofrer algum tipo de educaccedilatildeo validando desde o iniacutecio de
nossa pesquisa a teoria sobre a possibilidade de mudar as emoccedilotildees
favoravelmente agrave vida moral conforme a razatildeo praacutetica
Compreendemos contudo que nem todas as emoccedilotildees podem ser
mudadas ou moderadas Defender uma capacidade desiderativa
unificada reforccedilou a defesa de uma alma una e de emoccedilotildees capazes de
215
se harmonizar com as solicitaccedilotildees da capacidade racional A abertura
dos desejos e das emoccedilotildees para ao menos um tipo de razatildeo garantiu ao
homem a possibilidade de agir bem e com isso validamos a proposta
feita por Reeve Natali e Korsgaard da vida feliz entendida como
indispensavelmente atrelada agrave eupraxiacutea Neste tipo de vida o homem
apresenta por si mesmo ou por auxiacutelio de algueacutem ou das leis a virtude
moral como boa medida nas emoccedilotildees Por isso para desfecho Capiacutetulo
I buscamos compreender o que Aristoacuteteles entendia por emoccedilatildeo jaacute que
no momento da EN que parecia o mais propiacutecio a tal descriccedilatildeo o Livro
II 4 o filoacutesofo procedeu a uma listagem das coisas que chama emoccedilatildeo
Esse tipo de exposiccedilatildeo deu origem agrave boa parte dos questionamentos que
apontamos ao longo desse Capiacutetulo Recorrendo novamente ao DA mas
agora tambeacutem agrave Poet agrave Rhet e a alguns dos comentadores acima
relacionados que de certo modo abordaram o assunto esboccedilamos um
conceito de emoccedilatildeo que pode ser resumido do modo que segue
Emoccedilatildeo eacute um paacutethos que ocasiona certo tipo de movimento ou
alteraccedilatildeo no corpo de modo perceptiacutevel ou imperceptivelmente por
algo que atinge o homem a partir de fora (ou que vem de dentro da
alma quando age a memoacuteria de coisas que atingem o homem a partir de
fora) Acontece especialmente pelas consideraccedilotildees que se tem das
cirscunstacircncias nas quais ocorrem as relaccedilotildees com os outros e com o
mundo e aciona ou eacute acionada por algumas das capacidades aniacutemicas
humanas possivelmente consideradas racionais tais como a opiniatildeo o
julgamento a imaginaccedilatildeo e mesmo certos tipos de pensamento Por isso
as emoccedilotildees podem ser postas em conformidade com a reta razatildeo a fim
da virtude pois apresentam um quecirc de razatildeo desde sua constituiccedilatildeo A
emoccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles natildeo eacute mera passividade porque sugere
accedilatildeo ou reaccedilatildeo por parte de quem a sente Assim as emoccedilotildees satildeo
respostas agraves propostas que vecircm do mundo agrave sua volta diferem da
simples afecccedilatildeo e tecircm relevacircncia moral por interferirem nas accedilotildees e nas
interaccedilotildees com o mundo sendo esta sua diferenccedila em vista das demais
paacutethē
O primeiro momento de nossa tese encorajou o estudo acerca da
racionalidade que pensamos cercar as emoccedilotildees desde suas origens e
apontou-nos a necessidade de dedicar parte da pesquisa ao tratamento
das virtudes que se mostraram associadas agrave existecircncia de emoccedilotildees
educadas e natildeo contrastantes com a execuccedilatildeo excelente das atividades
humanas que se coadunam em felicidade Assim para dar
prosseguimento ao estudo o segundo Capiacutetulo teve iniacutecio com uma
breve tentativa de compreender melhor o conceito de virtude A partir
da afirmaccedilatildeo da existecircncia de dois tipos de virtude moral e intelectual
216
pudemos entender igualmente a existecircncia da virtude completa Essas
constataccedilotildees apontaram a necessidade de discutirmos as virtudes morais
compreendidas como meios termos nas accedilotildees e nas emoccedilotildees que satildeo
condiccedilatildeo necessaacuteria agrave felicidade A proposta contudo sofreu e sofre
objeccedilotildees por parte de filoacutesofos e pesquisadores que se dedicaram ao
estudo da virtude moral O problema foi tratado somente de modo a
contemplar nossas intenccedilotildees e desse tratamento pudemos concluir que a
doutrina da virtude moral proposta por Aristoacuteteles embora apresente
empecilhos agrave sua interpretaccedilatildeo pode ser tomada como uma teoria que
apresenta aspectos variados para a virtude moral
Distinguimos aspectos quantitativos quando nos fala de
intensidades ou quantidades com que sentimos emoccedilotildees aspectos
qualitativos ao indicar padrotildees para que as emoccedilotildees sejam
adequadamente sentidas e ainda aspectos conceituais quando nos
mostra que a doutrina da virtude se direciona ao entendimento dessas
qualidades da alma desiderativa em suas manifestaccedilotildees particulares
Tais manifestaccedilotildees igualmente validam certa aplicabilidade agrave teoria da
boa medida por abordarem a proposta quando se trata de accedilotildees
particulares que podem ser concretizadas sob a influecircncia das emoccedilotildees
Nossa interpretaccedilatildeo sobre o assunto e nossa posiccedilatildeo quanto agrave celeuma
sobre a validade da doutrina da boa medida eacute que todos esses traccedilos
devem ser tomados como distintivos das virtudes em questatildeo porque
natildeo excluem uns aos outros e podem tambeacutem ser aplicaacuteveis agraves accedilotildees
Estas satildeo atreladas agraves emoccedilotildees sendo que como na proposta de
Zingano aquilo que eacute plausiacutevel quanto agraves emoccedilotildees de certo modo
tambeacutem seraacute aplicaacutevel agraves accedilotildees que sugerem
A fim de levar adiante o entendimento da doutrina da boa
medida procuramos estudar as possibilidades de conferir o meio termo
agraves emoccedilotildees Deparamo-nos com as propostas da habituaccedilatildeo agrave praacutetica de
accedilotildees moralmente corretas indicando o caminho que deveriacuteamos
percorrer ateacute o teacutermino de nosso estudo para compreensatildeo da
possibilidade de se educar ou mudar as emoccedilotildees para o bem humano
Essa habituaccedilatildeo na melhor das hipoacuteteses torna o agente capaz de
escolher por si mesmo as accedilotildees que iratildeo conduzi-lo aos bens que deseja
alcanccedilar Isso daacute um caraacuteter voluntaacuterio agrave accedilatildeo e agrave virtude moral bem
como um aspecto responsaacutevel ao homem virtuoso que busca o melhor
modo de agir em direccedilatildeo ao bem supremo cumprindo aquilo que se
entende por sua funccedilatildeo Para tanto as emoccedilotildees devem ser moderadas
conforme as sugestotildees da capacidade de razatildeo como um todo o que
indicou a necessidade ao menos da virtude intelectual da prudecircncia
efetivando as virtudes morais
217
Entendemos por virtude completa a junccedilatildeo das virtudes das duas
as capacidades da alma manifestada atraveacutes de uma vivecircncia poliacutetica
favoraacutevel ao bom desempenho do raciociacutenio e de consequentes boas
accedilotildees Com isso pareceu-nos apropriado dedicar certo tempo embora
curto ao estudo das virtudes intelectuais em especial ao estudo da
prudecircncia e de seu processo ndash da deliberaccedilatildeo agrave escolha deliberada e agrave
accedilatildeo moralmente boa Esse estudo nos levou a perceber a prudecircncia
como um tipo de percepccedilatildeo praacutetica ou deliberativa diferente da
percepccedilatildeo sensiacutevel comum mas natildeo desvencilhado desta sugerindo
ainda a accedilatildeo de outras capacidades racionais entendidas do modo
proposto pelo De Anima bem como pela EN Isso indicou uma inegaacutevel
associaccedilatildeo da capacidade racional do intelecto com a percepccedilatildeo
confirmando novamente nossas propostas sobre a unidade da alma A
prudecircncia pede deliberaccedilatildeo praacutetica em casos excepcionais apresentados
pela vida Tal deliberaccedilatildeo se relaciona com um tipo especial de
imaginaccedilatildeo embora natildeo totalmente diacutespar e distante daquela
imaginaccedilatildeo entendida como (sub)capacidade da alma que eacute
intermediaacuteria entre percepccedilatildeo sensiacutevel e pensamento
A imaginaccedilatildeo deliberativa bem como a percepccedilatildeo
especificamente associada agrave prudecircncia como um tipo de visatildeo permite
um caacutelculo apresentado sob a forma do silogismo praacutetico Este iraacute
conduzir o agente desde a percepccedilatildeo daquilo que entende como um bom
fim e que eacute desejado passando pela proposiccedilatildeo de meios para que tal
fim possa ser alcanccedilado e chegando agrave indicaccedilatildeo pela escolha deliberada
da melhor forma de accedilatildeo para atingir tal fim Nesse percurso o agente
tem contato com um sem-nuacutemero de aparecircncias particulares que acabam
por indicar-lhe de certo modo o universal ao menos sob a forma do
bem supremo a ser procurado O contato com esse tipo de bem relaciona
a prudecircncia natildeo somente com particulares mas tambeacutem com algo de
universal A prudecircncia eacute asociada igualmente agrave indicaccedilatildeo dos meios
para a consecuccedilatildeo da proacutepria felicidade entendida como fim de toda
vida humana
De certo modo essas propostas relacionam todas as capacidades
da alma pois conferem agrave virtude intelectual certa semelhanccedila com a
atividade e os objetos especiacuteficos agraves virtudes intelectuais teoacutericas Por
conseguinte reforccedilamos nossa interpretaccedilatildeo de uma alma una composta
por capacidades interligadas Com isso pudemos indicar ainda que natildeo
conclusivamente a possibilidade ou mesmo a necessidade de
comunicaccedilatildeo da capacidade natildeo racional da alma com a capacidade
racional em sua vertente teoacuterica jaacute que tratamos de uma alma soacute isenta
de secccedilotildees Ao final dessa parte apresentamos a relaccedilatildeo proposta no fim
218
do Livro VI da EN da virtude natural e da virtude em sentido estrito
pois entendemos que tal questatildeo reforccedila nossa proposta da virtude
completa como junccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais que concorrem
para o exerciacutecio da funccedilatildeo humana Nesse ponto da pesquisa ainda
julgamos necessaacuterio ratificar a racionalidade das emoccedilotildees e propor
condiccedilotildees ou instrumentos para que isso aconteccedila coisa que buscamos
fazer com o terceiro e uacuteltimo momento desta tese
A tiacutetulo de desfecho da pesquisa o Capiacutetulo III buscou
fundamentar suas anaacutelises especialmente na parte final EN parte do
tratado que a princiacutepio pareceu se distanciar de todas as propostas que
defendemos ao longo do estudo apresentado anteriormente O Livro X
nos apresentou a possibilidade de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma
forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica proposta que
para estudiosos como Kenny se mostra o desfecho perfeito agraves discussotildees
sobre a felicidade iniciadas em EN I No entanto o proacuteprio Livro X nos
encorajou a seguir em frente com nossa leitura da funccedilatildeo humana como
desempenho excelente e de um modo racional do conjunto de atividades
que compotildeem a melhor forma de vida possiacutevel ao homem Em EN X 7
1176b19-26 Aristoacuteteles apresenta o questionamento ressaltado por
Sorabji entre outros que potildee em jogo a possibilidade da contemplaccedilatildeo
teoacuterica como fim da vida humana Tendo em vista que nosso tema
solicita uma defesa da capacidade natildeo racional da alma humana em
harmonia com a capacidade racional acatamos as sugestotildees dos
comentadores mas recorremos agraves questotildees sobre a alma para defesa de
nossa proposta pautada em postura contraacuteria ao entendimento da vida
feliz como vida puramente contemplativa
Para reforccedilarmos essa ideia lanccedilamos matildeo de um vocabulaacuterio
associado tanto agraves capacidades racionais humanas quanto agraves descriccedilotildees
das emoccedilotildees que encontramos ao longo de todo o estudo e das leituras
dos textos de Aristoacuteteles As propostas sobre a psychḗ indicaram que o
vocabulaacuterio em questatildeo apresentava mais que termos atrelados agrave
racionalidade Os termos designavam (sub)capacidades da alma que
permitiram explicar o despertar das emoccedilotildees pelo contato do homem
com mundo atraveacutes da percepccedilatildeo sensiacutevel Propunham a imaginaccedilatildeo
com suas elaboraccedilotildees a respeito das relaccedilotildees com os outros e poderiam
despertar tipos de pensamento ou ao menos opiniotildees e crenccedilas que
instigassem as emoccedilotildees Com o apoio do estudo sobre as virtudes
intelectuais pudemos mesmo sugerir uma ligaccedilatildeo entre essas
(sub)capacidades mencionadas com outras similares As emoccedilotildees
manteriam contatos com essas uacuteltimas (sub)capacidades tambeacutem quando
passassem pelo filtro da deliberaccedilatildeo praacutetica e da escolha deliberada
219
Esta seria uma das formas possiacuteveis de lhes conceder a forma adequada
e ao mesmo tempo um modo de alcanccedilar o melhor estado das
capacidades aniacutemicas como um todo Com isso as chamadas ldquopartesrdquo
da alma estavam relacionadas pois constatamos que mesmo quando se
propotildee o intelecto relacionado ao paacutethos a capacidade intelectual
humana constitui-se assim como toda a alma como uma soacute A relaccedilatildeo
da razatildeo teoacuterica com as emoccedilotildees natildeo foi mais bem explorada por
questotildees de exequibilidade da pesquisa mas salientamos que o assunto
nos instiga apresentando-se como tema para pesquisa futura
Apoacutes essas inferecircncias novamente consultamos o De anima a
Retoacuterica e a Poeacutetica que se mostraram fonte indispensaacutevel agrave defesa de
nossa tese Estes tratados nos permitiram finalizar nosso trabalho
estudando instrumentos diferentes da habituaccedilatildeo e do ensino defendidos
pela EN mas que se associam em uma proposta educacional que
percorre toda a vida do cidadatildeo Nas poacuteleis haacute dispositivos disponiacuteveis
para que se possa consolidar e manter a educaccedilatildeo moral emocional
Uma educaccedilatildeo que comeccedila com atenccedilatildeo a cada pessoa em famiacutelia e
que possa se estender para os ambientes de conviacutevio na cidade eacute a
proposta de Aristoacuteteles para educar os cidadatildeos e suas emoccedilotildees
Entendemos que a poacutelis apresenta entre outros recursos o teatro
e os ambientes nos quais satildeo proferidos os discursos retoacutericos como
auxiliares da formaccedilatildeo moral Esses ambientes satildeo fontes riquiacutessimas
para que a percepccedilatildeo que se inicia com o intermeacutedio dos sentidos possa
solicitar as construccedilotildees das formas de imaginaccedilatildeo e provavelmente
direcionar convenientemente os cidadatildeos a certos tipos de opiniotildees
crenccedilas e mesmo elaboraccedilotildees racionais mais sofisticadas A partir de um
estudo eacutetico apoiado na proposta aristoteacutelica sobre a alma bem como
em demais obras de Aristoacuteteles e por todos os motivos acima elencados
entendemos que a defesa da educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua
racionalidade se faz possiacutevel Tal defesa foi necessaacuteria pois eacute somente o
contato da racionalidade com as emoccedilotildees seja em sua constituiccedilatildeo seja
atraveacutes das propostas dos elementos de racionalidade que podem tocaacute-
la que percebemos a possibilidade de educar ou mudar as emoccedilotildees
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Resumo
A tese trataraacute a possibilidade de educaccedilatildeo das emoccedilotildees existente graccedilas
agrave racionalidade apresentada em sua natureza e nas emoccedilotildees educadas
moralmente O estudo seraacute feito a partir das propostas da Eacutetica
Nicomaqueia recorrendo quando necessaacuterio ao De anima agrave Retoacuterica e
agrave Poeacutetica textos que dedicaram atenccedilatildeo especial ao assunto Para
defender essas propostas a investigaccedilatildeo busca compreender aquilo que
Aristoacuteteles entende por emoccedilatildeo partindo do Livro I da EN que indicaraacute
a possibilidade da capacidade desiderativa ouvir a razatildeo Com isso
percebemos que Aristoacuteteles natildeo pretende excluir os elementos natildeo
racionais da vida moral estando mais preocupado em encontrar formas
capazes de conciliar as capacidades aniacutemicas e de sentir emoccedilotildees com
as coisas certas nos momentos convenientes em direccedilatildeo a quecirc e a quem
eacute adequado Essa interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel porque o filoacutesofo compreende
a alma como algo composto por capacidades natildeo seccionadas pondo as
emoccedilotildees que satildeo da alccedilada do desiderativo desde seu iniacutecio em
contato com a capacidade racional da alma Esta uacuteltima capacidade
indica os motivos para se emocionar mas igualmente propotildee ao homem
educado moralmente uma forma moderada de emoccedilatildeo que lhe permitiraacute
levar uma vida proacutepria ao homem Tal vida agrave qual eacute imprescindiacutevel a
eupraxiacutea soacute eacute alcanccedilada com o apoio das virtudes Por isso eacute necessaacuterio
entender o que Aristoacuteteles propotildee como virtude e por que a relaciona
com a emoccedilatildeo a partir do Livro II da EN Tal estudo permite dar
continuidade agrave investigaccedilatildeo acerca das capacidades da alma humana
sugeridas por EN I 13 texto que apresenta a divisatildeo das virtudes
conforme capacidades da alma em morais e intelectuais As virtudes
configuram-se como melhor estado possiacutevel para cada capacidade da
alma sendo assunto imprescindiacutevel agrave pesquisa proposta No final da
exposiccedilatildeo da EN a alternativa de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma
forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica parece
destoar das propostas de nosso estudo Natildeo obstante o proacuteprio Livro X
traz argumentos que permitem manter a leitura da melhor forma de vida
possiacutevel ao homem ou seja de sua funccedilatildeo proacutepria como uma vida na
poacutelis que conjuga o bom exerciacutecio de todas as suas capacidades
Interpretaccedilatildeo viaacutevel pela apresentaccedilatildeo de faculdades racionais
encadeadas que podem tocar a emoccedilatildeo desde seu despertar ateacute quando
forem moderadas com o auxiacutelio da razatildeo praacutetica Contato que seraacute
facilitado pelos instrumentos aos quais os cidadatildeos podem recorrer para
garantir a chance de bem se emocionar a fim de serem virtuosos e
felizes vivendo em comunidade
Palavras-chave Emoccedilatildeo Razatildeo Virtude Felicidade
Abstract
The thesis will deal with the possibility to educate the emotions because
the rationality presented in its nature and in the morally educated
emotions The study will be based on the proposals of Nicomachean
Ethics using when necessary the De anima the Rhetoric and the
Poetics texts that have given special attention to the subject To defend
these proposals the research seeks to understand what Aristotle
understands by emotion starting from Book I of NE which will indicate
the possibility of the desiderative capacity to hear reason Because of
this we realize that Aristotle does not intend to exclude the non-rational
elements of the moral life being more concerned to find ways that
reconcile the psychic capacities and to feel emotions with the right
things in the convenient moments towards what and to whom it is
appropriate This interpretation is possible because the philosopher
understands the soul as something composed of connected capacities
putting the emotions which are from the domain of the desiderative
from its beginning in contact with the rational capacity of the soul This
last ability indicates the reasons for the corret emotion but also
proposes to the man morally educated a moderate form of emotion that
will allow him to lead anapproprieted life Such a life identified with
eupraxiacutea is only achieved with the support of the virtues Therefore it
is necessary to understand what Aristotle proposes as virtue and why it
relates it to emotion from Book II of NE This study allows us to
continue the investigation of the human soul capacities suggested by
ENI 13 a text that presents the division of the virtues according to the
souls capacities into moral and intellectual virtues The virtues are the
best possible state for each capacity of the soul being essential subject
to the proposed research At the end of the NE exposition the alternative
of interpreting eudaimōniacutea as a life totally dedicated to theoretical
contemplation seems to beadequate to the proposals of our study
Nevertheless Book X itself contains arguments that allow us to keep
understanding the best way of life possible for man that is his own
function as a life in the poacutelis which combines the good exercise of all
his capacities Interpretation viable by the presentation of rational
chained faculties that can touch the emotion from its awakening to
when they are moderated with the aid of practical reason Contact that
will be facilitated by the instruments that the citizens can use to
guarantee the chance of feel appropriatly in order to be virtuous and
happy living in community
Key-words Emotion Reason Virtue Happiness
Abreviaccedilotildees
Obras de Aristoacuteteles
Poet - Poeacutetica
Top ndash Toacutepicos
DA ndash De Anima
MA ndash Motu Animalium
Met ndash Metafiacutesica
EN ndash Eacutetica a Nicocircmaco
EE ndash Eacutetica a Eudemo
Pol ndash Poliacutetica
Ret ndash Retoacuterica
Obra de Platatildeo
Rep - Repuacuteblica
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo
17
Capiacutetulo I - A emoccedilatildeo e suas
implicaccedilotildees na vida feliz
25
1 Primeiros apontamentos
25
2 Funccedilatildeo proacutepria ao homem
27
3 EN I 13 a alma humana e a
emoccedilatildeo
39
3a) Capacidades da alma
43
3b) A capacidade desiderativa da
alma as accedilotildees e as emoccedilotildees na
vida feliz
50
3b1) Desejos
54
3b2) Os desejos menos racionais
56
3b3 O desejo mais racional
63
3b4) Desejo e accedilatildeo rumo agrave accedilatildeo
boa moralmente
66
4 Em busca da definiccedilatildeo
de emoccedilatildeo em Aristoacuteteles
72
4a) Alma corpo e emoccedilotildees
interpretadas a partir de EN I com
o auxiacutelio do DA da Rhet e da
Poet
78
5 A emoccedilatildeo
90
Capiacutetulo II - Virtude como
possibilidade de acordo entre
razatildeo e emoccedilatildeo
93
1 Virtude completa virtudes
virtude moral
93
2 A virtude moral
99
2a) Caraacuteter tautoloacutegico ou trivial
da doutrina da virtude moral como
mediania
102
2b) Exemplo da viabilidade da
virtude moral como mediania nas
emoccedilotildees a virtude particular da
coragem e o medo
111
2c) A forccedila do haacutebito para o
correto se emocionar
117
2d) Virtude voluntaacuteria diante das
circunstacircncias e responsabilidade
121
3 Metriopaacutethēia o ideal de
emoccedilatildeo para a vida virtuosa
125
4 Virtudes intelectuais satildeo
necessaacuterias agraves virtudes morais e
para a ldquoboa formardquo das
emoccedilotildees
133
4a) A prudecircncia
135
4b) Deliberaccedilatildeo
138
4c) Escolha deliberada
140
4d) Prudecircncia deliberaccedilatildeo
escolha deliberada e sua relaccedilatildeo
com o particular e o universal
142
5 Virtude natural e virtude em
sentido estrito
148
Capiacutetulo III -
A racionalidade das emoccedilotildees
153
1 Eudaiacutemōniacutea vida dedicada agrave
atividade racional (EN X)
153
2 A racionalidade das emoccedilotildees
interpretaccedilotildees desde EN I agraves
luzes do De Anima
157
2 a) Um quecirc ou o quecirc de
racionalidade nas emoccedilotildees
161
2 b) Percepccedilatildeo
162
2 c) Imaginaccedilatildeo
170
2 d) Pensamentos
173
2 e) Intelecto praacutetico 177
2 f) Opiniatildeo
183
3 O acordo entre a razatildeo e as
emoccedilotildees a educaccedilatildeo moral e os
instrumentos de modificaccedilatildeo da
emoccedilatildeo
187
3 a) Educaccedilatildeo haacutebito e lei para a virtude
187
3 b) A retoacuterica como instrumento
de mudanccedila nas emoccedilotildees
193
3 c) A poesia como facilitadora
da educaccedilatildeo moral
201
Conclusatildeo
213
Referecircncias
221
17
Introduccedilatildeo
Na histoacuteria da filosofia o entendimento acerca do que sejam as
emoccedilotildees (paacutethē) varia Aristoacuteteles1 se viu em meio a posturas diversas
sobre o assunto antes e depois de suas teorias apareceram fortes
oposiccedilotildees agrave intervenccedilatildeo das emoccedilotildees na vida moral2 Provavelmente
esse tipo de apreciaccedilatildeo seja o motivo para as inuacutemeras consideraccedilotildees
cautelosas que o filoacutesofo faz sobre o paacutethos em sua proposta eacutetica
entretanto Aristoacuteteles natildeo se mostra um pensador desfavoraacutevel agrave
participaccedilatildeo do emocional na vida humana feliz mas mesmo nas teorias
do filoacutesofo grego o tema das emoccedilotildees pode causar embaraccedilos Para
exemplificar o termo paacutethē que ora traduzimos por ldquoemoccedilotildeesrdquo pode
admitir sentidos mais amplos que aquele atribuiacutedo hoje em dia agrave palavra
emoccedilatildeo razatildeo pela qual tambeacutem se utilizam para traduzi-lo palavras
como ldquopaixotildeesrdquo ou ldquoafecccedilotildeesrdquo dentre outras Como observa Konstan
(2006 p IX et seq) em relaccedilatildeo agrave Liacutengua Inglesa atual haacute uma
diferenccedila consideraacutevel entre aquilo que os gregos dos tempos do
1 Observa Zingano que segundo Aristoacuteteles o paacutethos natildeo precisa ser extirpado
mas deve receber uma justa medida e isso indica a necessidade de ldquoexaminaacute-lo
mediante uma deliberaccedilatildeo pois a virtude eacute uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha
deliberadardquo (ZINGANO 2007 p 165) Tal tese que confirmaremos mais
adiante considera central a teoria das emoccedilotildees proposta por Aristoacuteteles 2 Tal pensamento afirma Sorabji (2000 p 181 traduccedilatildeo nossa cf tambeacutem p 7
et seq) eacute defendido por Crisipo embora natildeo por todos os estoacuteicos ldquoMas o que
eu quero considerar neste capiacutetulo eacute a tese muito mais radical de Crisipo de que
quase todas elas devem ser erradicadas Que razotildees poderia haver para tantordquo
Contudo as opiniotildees sobre a aceitaccedilatildeo estoacuteica da erradicaccedilatildeo da emoccedilatildeo
parecem divergir Enquanto os manuais de Histoacuteria da Filosofia como aqueles
que foram escritos por Kenny (2011 p 328) e Reale (2003 p 292) parecem
afirmar que todos os estoacuteicos concordavam com a necessidade de erradicaccedilatildeo
das emoccedilotildees haacute estudos mais minuciosos sobre o assunto que parecem
discordar dessa proposta e que trazem motivos significativos para tal
discordacircncia Esse eacute o caso da tese de doutorado defendida por Santos na
UNICAMP em 2008 Com relaccedilatildeo a esse tema vale tambeacutem conferir a
proposta do proacuteprio Sorabji que nos apresenta entendimentos variados para o
termo apaacutethēia trazidos pelos estoicos (ANTISSERI D REALE G Histoacuteria
da filosofia Vol 1 Satildeo Paulo Paulus 2003 KENNY A Uma nova histoacuteria
da filosofia Vol 1 Satildeo Paulo Loyola 2011 SANTOS R A Sobre a doutrina
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18
Estagirita consideravam ldquoemoccedilatildeordquo (paacutethos traduzido pelo estudioso por
emotion) e o que consideramos emoccedilatildeo hoje O proacuteprio Aristoacuteteles nos
leva a admitir isso com o que apresenta em Metafiacutesica ao trazer quatro
possibilidades de entendimento do termo em questatildeo
(1) Afecccedilotildees significam em um primeiro
sentido uma qualidade segundo a qual algo pode
se alterar por exemplo o branco e o preto o doce
e o amargo o peso e a leveza e todas as
qualidades deste tipo
(2) Noutro sentido afecccedilatildeo significa a atuaccedilatildeo
dessas alteraccedilotildees isto eacute as alteraccedilotildees que estatildeo
em ato
(3) Ademais dizem-se afecccedilotildees especialmente
as alteraccedilotildees e mudanccedilas danosas e sobretudo os
danos que produzem dor
(4) Enfim chamam-se afecccedilotildees as grandes
calamidades e as grandes dores (Met Δ 1022b15-
21)3
Zingano (2007 p 147-148) traz consideraccedilotildees interessantes
sobre este trecho e suas possibilidades de interpretaccedilatildeo em seus Estudos
de Eacutetica Antiga O estudioso parece optar por entender paacutethos no
sentido de emoccedilatildeo em termos eacuteticos como um ser afetado ou uma
alteraccedilatildeo que diz respeito agrave natureza praacutetica do agente uma afecccedilatildeo
que eacute fonte de accedilatildeo devido a algo provocado por outrem Algumas
dessas possibilidades interpretativas (que levam a diferentes escolhas de
traduccedilatildeo) satildeo empregadas nos textos que aqui estudaremos
Para citar um exemplo em nota agrave traduccedilatildeo do De Anima feita por
Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis a tradutora afirma haver trecircs significados
nesse tratado para a expressatildeo tagrave paacutethē que traduz por ldquoas afecccedilotildeesrdquo
(REIS 2006 p 150) O significado do termo varia do sentido geral de
atributos e predicados a ldquoformas de passividade e de oposiccedilatildeo agraves
atividadesrdquo e a ldquoemoccedilotildeesrdquo contudo enfocaremos aqui as acepccedilotildees que
3 Traduccedilatildeo de Marcelo Perini (2010) no original Πάθος λέγεται ἕνα μὲν
τρόπον ποιότης καθ ἣν ἀλλοιοῦσθαι ἐνδέχεται οἷον τὸ λευκὸν καὶ τὸ μέλαν
καὶ γλυκὺ καὶ πικρόν καὶ βαρύτης καὶ κουφότης καὶ ὅσα ἄλλα τοιαῦτα ἕνα δὲ
αἱ τούτων ἐνέργειαι καὶ ἀλλοιώσεις ἤδη ἔτι τούτων μᾶλλον αἱ βλαβεραὶ
ἀλλοιώσεις καὶ κινήσεις καὶ μάλιστα αἱ λυπηραὶ βλάβαι ἔτι τὰ μεγέθη τῶν
συμφορῶν καὶ λυπηρῶν πάθη λέγεται
19
tocam nosso objeto de estudo a saber aquelas paacutethē da relaccedilatildeo que
aparece especialmente na Eacutetica Nicomaqueia (II 3 1105b19-22) mas
que igualmente se repete nas listas apresentadas na Retoacuterica (II 2
1378a19-22) e no De Anima (I 1 403a16-18) aleacutem de contemplarem as
duas ldquoemoccedilotildeesrdquo descritas na Poeacutetica raiva arrojo inveja medo
alegria amizade oacutedio anelo emulaccedilatildeo piedade calma inimizade
desvergonha amabilidade indignaccedilatildeo e maacutegoa Esses uacuteltimos textos
viratildeo em nosso auxiacutelio quando se apresentarem instrumentos eficazes agrave
compreensatildeo de algumas questotildees suscitadas pela EN a respeito da
nossa investigaccedilatildeo que versaraacute sobre a possibilidade de mudanccedila ou
educaccedilatildeo das emoccedilotildees graccedilas agrave racionalidade apresentada em sua
natureza e que tecircm lugar ou influecircncia nas emoccedilotildees educadas
moralmente entendimento possiacutevel a partir da concepccedilatildeo de uma alma
una com capacidades variadas mas conectadas entre si
A partir das propostas da Eacutetica Nicomaqueia e dos textos que
seratildeo auxiliares interpretativos de suas teorias salientamos a opccedilatildeo pelo
direcionamento do estudo do termo no sentido em que ele pode ser
traduzido por ldquoemoccedilatildeordquo Natildeo usaremos a palavra paixatildeo porque hoje
em dia como ressaltam Sorabji (2002 p 7) e Zingano (2007 p 148)
pode restringir o entendimento do leitor e levaacute-lo a pensar que se tratem
apenas de emoccedilotildees mais fortes Por conseguinte justificamos nossa
opccedilatildeo por comeccedilar o estudo ora apresentado em busca de uma
compreensatildeo melhor e maior daquilo que Aristoacuteteles propotildee ser a
emoccedilatildeo partindo do Livro I da EN de onde retiramos o pensamento que
permearaacute toda a nossa pesquisa as emoccedilotildees satildeo sofridas
concomitantemente por corpo e alma e satildeo educaacuteveis por serem de
certo modo racionais caracteriacutestica devida agrave unicidade da alma
humana
Esse tipo de entendimento das emoccedilotildees tem por base o projeto
filosoacutefico de Aristoacuteteles que embora apresente diversos tratados
dedicados a diversos objetos de pesquisa com abordagem conforme o
objeto em anaacutelise faz com que as obras se sustentem entre si Tal
entendimento permitiraacute tambeacutem respondermos agrave questatildeo norteadora
desta tese como mudar as emoccedilotildees educando-as conforme as
solicitaccedilotildees da razatildeo praacutetica A percepccedilatildeo de que a pesquisa
empreendida por Aristoacuteteles eacute uma obra com coerecircncia interna permite
leituras de filoacutesofos contemporacircneos como Martha Nussbaum que por
vezes recorre a mais de um tratado aristoteacutelico para defender suas
interpretaccedilotildees Esse olhar para o conjunto da obra de Aristoacuteteles
igualmente nos conduz a leituras como aquelas feitas por Zingano e
Sorabji ao perceberem que Aristoacuteteles natildeo exclui conteuacutedos
20
emocionais mas que estaacute mais preocupado em encontrar formas capazes
de conciliar as capacidades aniacutemicas e com isso sentir emoccedilotildees com as
coisas certas nos momentos convenientes em direccedilatildeo a quecirc e a quem eacute
adequado A essas propostas eacute imprescindiacutevel acrescentar aquelas que
compreendem a alma descrita pelo filoacutesofo como algo composto por
partes natildeo seccionadas para que possamos defender emoccedilotildees que desde
seu iniacutecio tecircm contato com a capacidade racional da alma que indica os
motivos para se emocionar Essa capacidade racional igualmente propotildee
ao homem educado moralmente uma forma moderada de emoccedilatildeo que
lhe permitiraacute levar uma vida em conformidade com a virtude com a
razatildeo como um todo e por isso feliz
Para podermos sustentar essas propostas iniciaremos nossa tese
com um estudo sobre a natureza das emoccedilotildees buscando entender qual a
natureza da emoccedilatildeo Qual seu papel na teoria da felicidade de
Aristoacuteteles Para responder a essas perguntas procuraremos
compreender o argumento da funccedilatildeo humana e sua relaccedilatildeo com o fim
proposto agrave vida do homem Tal caminho nos indicaraacute a necessidade de
definir o lugar das emoccedilotildees na vida feliz e nos encaminharaacute agrave discussatildeo
da relaccedilatildeo imprescindiacutevel entre emoccedilotildees e a virtude considerada
completa a virtude intelectual a virtude moral e suas formas
particulares Essa pesquisa encaminharaacute nossa discussatildeo agrave anaacutelise dos
tipos de vida que se candidatam ao cargo de felicidade e ao
questionamento de tal vida ser definida por Aristoacuteteles como a
existecircncia dedicada agrave contemplaccedilatildeo intelectual filosoacutefica (discussatildeo que
somente encontraraacute seu desfecho com o nosso terceiro capiacutetulo) O
primeiro capiacutetulo prosseguiraacute com a discussatildeo apresentada em EN I 13 a
respeito da alma humana e de suas capacidades Esse estudo seraacute
necessaacuterio pois eacute a partir da proposta da existecircncia de capacidades
diversas na alma que poderemos inquirir acerca dos diferentes tipos de
vida e que provavelmente possamos indicar um deles como a vida mais
propriamente humana
Nesse ponto da EN Aristoacuteteles nos apresenta uma alma bipartida
que comporta as emoccedilotildees em sua capacidade natildeo racional capacidade
esta que no entanto apresenta-se como apta a ouvir e obedecer agrave razatildeo
primeiro sinal da possibilidade de defesa da racionalidade e
educabilidade das emoccedilotildees Por esse motivo julgamos pertinente
desenvolver na medida em que contemple nossos interesses um
pequeno estudo a respeito da alma humana buscando para essa teoria o
auxiacutelio do tratado sobre a alma a fim de obter maior clareza quanto agrave
questatildeo O estudo do De Anima permitiraacute reforccedilar uma teoria da alma
como um todo composto por partes que mantecircm certo contato bem
21
como a teoria hilemoacutefica a respeito do homem que comeccedila a demonstrar
seus contornos ainda com o assunto da funccedilatildeo proacutepria ao homem na EN
A defesa de uma psychḗ composta por capacidades imprescindivelmente
correlacionadas e que tem suas funccedilotildees manifestas mesmo que
imperceptivelmente no corpo nos permitiraacute tratar as emoccedilotildees como
afecccedilotildees do conjunto corpoalma Tudo isso soacute seraacute possiacutevel se
conseguirmos sustentar aleacutem de uma teoria da unidade da alma uma
teoria que proponha a capacidade da alma responsaacutevel pelas emoccedilotildees a
desiderativa como um todo coeso embora composta por diferentes
tipos de desejos conforme seus objetos e suas relaccedilotildees com a razatildeo
Portanto deveremos apreciar brevemente as propostas de Aristoacuteteles
acerca da capacidade desiderativa desde que o desejo e seus tipos
igualmente satildeo considerados paacutethē Defender uma capacidade
desiderativa unificada nos permitiraacute defender tambeacutem uma alma
unificada e emoccedilotildees capazes de concordar com as solicitaccedilotildees da
capacidade racional ao menos em sua vertente praacutetica Poderemos
entender que haacute desejos mais ou menos aptos a obedecer agrave razatildeo assim
como seratildeo igualmente as emoccedilotildees diretamente a eles relacionadas Por
conseguinte a possibilidade de educaccedilatildeo que veremos se abrir agrave
capacidade desiderativa como um todo indicaraacute a possibilidade de
propor emoccedilotildees capazes de serem educadas conforme a razatildeo teoria
que defenderemos mais detalhadamente no terceiro capiacutetulo Para tal
seraacute necessaacuterio indicarmos como essa abertura dos desejos agrave razatildeo
permitiraacute ao homem agir bem diferenciando accedilotildees e atividades de
simples movimentos fiacutesicos sendo as primeiras intimamente
relacionadas ao desejo pelos fins e por isso agrave possibilidade de apreciaccedilatildeo
eacutetica
Com isso identificaremos a eupraxiacutea como elemente
imprescindiacutevel agrave vida feliz justificando todo o percurso argumentativo
do primeiro capiacutetulo desde a proposta de anaacutelise da funccedilatildeo humana que
leva agrave consideraccedilatildeo de diferentes tipos de vida existentes em
conformidade com as diferentes capacidades aniacutemicas que em boa
associaccedilatildeo permitiratildeo a real felicidade Esta seraacute compreendida como
um tipo excelente de desempenho das accedilotildees e atividades adequadas ao
homem e somente ao homem mas que dependem igualmente da boa
condiccedilatildeo emocional Por isso seraacute necessaacuterio para desfecho do
primeiro momento de nossa pesquisa buscar compreender o que
Aristoacuteteles descreve como emoccedilatildeo e esboccedilar um conceito de emoccedilatildeo
com apoio das sugestotildees dos quatro tratados abordados nesse estudo
Essa proposta permitiraacute que reforcemos as teorias hilemoacuterficas que
descreveratildeo o paacutethos aristoteacutelico como possiacutevel ouvinte da
22
racionalidade desde o momento em que eacute despertado Permitiraacute ainda
que atentemos agrave obrigatoriedade de tratar as virtudes jaacute que se
mostraratildeo dependentes de emoccedilotildees educadas e que natildeo contrastem com
a execuccedilatildeo excelente das atividades humanas que se coadunam em
felicidade
A fim de obtermos sucesso na defesa da educabilidade das
emoccedilotildees devida agrave sua racionalidade - tendo em vista o que nos foi
proposto pelo argumento da funccedilatildeo humana pela proposta de uma
capacidade natildeo racional da alma que se apresenta como capaz de ouvir a
capacidade racional e das relaccedilotildees das emoccedilotildees com as virtudes
mencionadas em meio a esses assuntos - julgamos necessaacuterio dedicar o
segundo capiacutetulo de nossa tese ao estudo da relaccedilatildeo das emoccedilotildees com as
virtudes Iniciamos esse momento da pesquisa agrave procura de
compreender melhor e apenas na medida das necessidades de nossa
pesquisa o que Aristoacuteteles propotildee como virtude e por que a relaciona
com a emoccedilatildeo a partir do Livro II da EN O estudo nos conduziraacute a
diferentes tratamentos da virtude apreciaremos a virtude entendida de
um modo geral ou em sua completude como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave
felicidade estudaremos os componentes de tal virtude completa
entendidos como a virtude moral as formas particulares da virtude
moral e a virtude intelectual Tal estudo nos permitiraacute dar continuidade
agrave investigaccedilatildeo acerca das capacidades da alma humana sugeridas por EN
I 13 texto que apresenta a divisatildeo das virtudes conforme ldquopartesrdquo da
alma em virtudes morais e intelectuais Para reforccedilar o que
constataremos com o estudo da virtude moral chamaremos em auxiacutelio o
exemplo da coragem prosseguindo pelo percurso argumentativo da
discussatildeo feita por Aristoacuteteles na medida do possiacutevel dos Livros III a V
da EN que proporaacute as virtudes morais particulares como concretizaccedilatildeo
do melhor estado possiacutevel para cada funccedilatildeo da capacidade desiderativa
do homem Esse caminho nos permitiraacute sair de possiacuteveis embaraccedilos que
cercam a interpretaccedilatildeo da virtude moral como boa medida nas emoccedilotildees
Esse estudo nos apresentaraacute a ideia de virtude como boa medida
nas emoccedilotildees alcanccedilada por meio da habituaccedilatildeo agrave praacutetica de accedilotildees
moralmente corretas A visita a essa forma de interpretaccedilatildeo eacute
imprescindiacutevel a fim de compreender a possibilidade de se educar ou
mudar as emoccedilotildees favoravelmente ao bem humano A discussatildeo da
virtude moral nos apresentaraacute seu caraacuteter voluntaacuterio bem como
apresentaraacute o homem virtuoso como responsaacutevel por suas accedilotildees
especialmente das accedilotildees que desempenha adequadamente cumprindo
aquilo que se entende por sua funccedilatildeo Com isso alcanccedilaremos a
proposta da metriopaacutethēia ideal de emoccedilatildeo concorde com a capacidade
23
racional em sua face praacutetica (e talvez tambeacutem com sua face teoacuterica)
mas nos depararemos com a impossibilidade de todas as emoccedilotildees serem
moderadas Embora natildeo seja uma proposta de Aristoacuteteles a ideia da
metriopaacutethēia se nos apresentaraacute como melhor forma de compreender as
emoccedilotildees adequadas agrave boa medida As emoccedilotildees moderadas possibilitam
as virtudes morais mas nos indicaratildeo igualmente a necessidade ao
menos da virtude intelectual da prudecircncia para que tais virtudes venham
a efetivar-se
O estudo da prudecircncia e de seus componentes - deliberaccedilatildeo
escolha deliberada e accedilatildeo moralmente adequada - nos permitiraacute entender
melhor a relaccedilatildeo entre as capacidades da alma Se as virtudes morais
podem ser entendidas como melhor desempenho de certas capacidades
humanas que somente se concretizam diante de emoccedilotildees que cedem aos
conselhos da razatildeo ratificaremos nossa interpretaccedilatildeo acerca de uma
alma composta por faculdades em acordo Sendo a prudecircncia uma
virtude intelectual indispensaacutevel agrave vida feliz identificaremos a
necessidade de tratar de seus objetos Por isso necessitaremos discutir
sua relaccedilatildeo com coisas particulares e mutaacuteveis proacuteprias ao acircmbito da
prāxis mas tambeacutem de seu direcionamento para os assuntos
considerados universais dentre os quais encontramos a proposta
aristoteacutelica da felicidade o bem norteador de toda accedilatildeo que possa ser
considerada moralmente correta
A discussatildeo da relaccedilatildeo entre a prudecircncia particulares e universais
indica a unidade da alma identificada a partir dos objetos
compartilhados pela capacidade uacutenica do intelecto em seus aspectos
praacutetico e teoacuterico Esses assuntos iniciados por nossa anaacutelise dos
primeiros Livros da EN nos levaratildeo pelas questotildees sugeridas pelo Livro
VI que nos manteratildeo em contato direto com as discussotildees sobre a alma
Por isso a finalizaccedilatildeo dessa parte de nosso estudo seraacute feita com a
relaccedilatildeo apresentada ao final do Livro mencionado entre virtude natural
e virtude em sentido estrito Julgamos que tal questatildeo seraacute de grande
valia para o entendimento daquilo que Aristoacuteteles propocircs como virtude
completa relacionada como se mostraraacute com a funccedilatildeo proacutepria ao
homem e agrave praacutetica de boas accedilotildees propostas por um desejo adequado agrave
razatildeo bem como por emoccedilotildees doacuteceis agrave razatildeo Essa possiacutevel docilidade
demandaraacute pesquisar a racionalidade implicada nas emoccedilotildees
Para garantir essas interpretaccedilotildees prosseguiremos com nossa
anaacutelise ateacute o final da exposiccedilatildeo da EN momento que boa parte das
interpretaccedilotildees corriqueiras do livro X parecem se distanciar de todas as
propostas que defenderemos ao longo de nossa tese Em EN X nos
depararemos como a alternativa de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma
24
forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica proposta que
a muitos soa como desfecho ideal das discussotildees iniciadas com o tratado
em questatildeo Natildeo obstante o proacuteprio Livro X nos encorajaraacute a manter a
leitura da melhor forma de vida possiacutevel ao homem ou seja de sua
funccedilatildeo proacutepria como uma vida na poacutelis que conjugue o bom exerciacutecio
de todas as suas capacidades aniacutemicas Essa interpretaccedilatildeo seraacute
viabilizada e reforccedilada pela apresentaccedilatildeo de faculdades racionais
encadeadas que podem tocar a emoccedilatildeo desde seu despertar ateacute quando
forem moderadas com o auxiacutelio da razatildeo praacutetica Essa leitura ganharaacute
apoio nos demais tratados estudados e em suas propostas sobre as
emoccedilotildees que nos indicaratildeo um amplo vocabulaacuterio relacionado tanto agraves
emoccedilotildees quanto agraves capacidades racionais da alma humana colocando
em cena novamente a ligaccedilatildeo das capacidades racional e natildeo racional da
alma
A apreciaccedilatildeo do mencionado vocabulaacuterio nos indicaraacute
(sub)capacidades da alma que atuam na emoccedilatildeo e nos encaminharaacute para
o desfecho de nossa pesquisa Estudaremos brevemente a percepccedilatildeo
sensiacutevel a imaginaccedilatildeo o intelecto e certos tipos de pensamento dentre
os quais poderemos localizar a opiniatildeo responsaacuteveis pelo despertar de
boa parte das emoccedilotildees ou que se envolveratildeo com a educaccedilatildeo moral
emocional Novamente as consultas ao De Anima agrave Retoacuterica e agrave Poeacutetica
se mostraratildeo fonte indispensaacutevel agrave defesa de nossa tese acerca da
educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua implicaccedilatildeo com a razatildeo e com
elementos de razatildeo devido agrave proacutepria natureza aniacutemica do homem Estes
tratados igualmente nos permitiratildeo investigar oportunidades para
direcionar as emoccedilotildees de modo que consigam ouvir as propostas das
diversas formas de razatildeo existentes Por fim apresentaremos os
instrumentos aos quais os cidadatildeos podem recorrer para garantir a
chance de bem se emocionar a fim de se tornarem virtuosos e felizes
naquele que identificaremos como meio mais propiacutecio ao florescimento
humano a poacutelis
25
Capiacutetulo I
A emoccedilatildeo e suas implicaccedilotildees na vida feliz
1 Primeiros apontamentos
A leitura da EN nos traz uma seacuterie de indagaccedilotildees quanto agrave
natureza das emoccedilotildees A lista de tais questotildees pode comeccedilar pela
afirmaccedilatildeo que agraves vezes aparece nesse texto segundo a qual as emoccedilotildees
satildeo natildeo racionais Por esse motivo talvez tenhamos a impressatildeo
frequente de que o filoacutesofo em alguma medida natildeo seja favoraacutevel agrave
intervenccedilatildeo das emoccedilotildees nas accedilotildees consideradas boas moralmente De
acordo com a proposta de uma alma que ldquotem uma parte racional e uma
irracionalrdquo (EN I 13 1102a27-28)4 as emoccedilotildees tecircm por sede a
capacidade natildeo racional da alma a desiderativa de onde viriam
igualmente as suas relaccedilotildees com certos prazeres e dores Tais
associaccedilotildees com outros elementos que tambeacutem natildeo costumavam receber
apreciaccedilatildeo favoraacutevel em questotildees morais parecem agravar a situaccedilatildeo das
emoccedilotildees e provavelmente por isso sejam feitas afirmaccedilotildees que parecem
colocar a emoccedilatildeo como algo arredio aos ditames da razatildeo sendo mesmo
capaz de sobrepor-se a estes (EN IX 8 1168b29-35 1169a1-8)5 Vaacuterias
assertivas que apresentam um tom de advertecircncia quanto aos perigos de
se entregar agraves emoccedilotildees aparecem ao longo do texto
A primeira menccedilatildeo que o tratado faz ao assunto pode confirmar
isso no Livro I da EN Aristoacuteteles explica o motivo pelo qual os jovens
natildeo tiram bom proveito das liccedilotildees sobre poliacutetica primeiro natildeo tecircm
experiecircncia dos fatos da vida em torno dos quais giram as discussotildees
dessa natureza segundo os jovens tendem a seguir suas paixotildees (EN I 1
1095a5) Por isso o estudo da ciecircncia poliacutetica lhes seraacute vatildeo jaacute que o fim
que se almeja com essa mateacuteria eacute a accedilatildeo e natildeo o conhecimento (EN I 1
1095a6) Essas falhas abrangem tanto aqueles que satildeo jovens em anos
quanto os que satildeo jovens em caraacuteter pois o defeito natildeo depende da
idade mas do modo de viver e seguir cada objetivo proposto pela
emoccedilatildeo (EN I 1 1095a9) ldquoA tais pessoas como aos incontinentes a
ciecircncia natildeo traz proveito algum mas aos que desejam e agem de acordo
4 Todas as traduccedilotildees da EN seratildeo feitas a partir da traduccedilatildeo francesa de J Tricot
(2012) com exceccedilatildeo dos trechos I 13 a III 8 que tecircm traduccedilatildeo de Zingano
(2008) no original οἷον τὸ μὲν ἄλογον αὐτῆς εἶναι τὸ δὲ λόγον ἔχον 5 O filoacutesofo parece expressar postura semelhante tambeacutem em EN 1106b35
1107a1-9 1097b35 1098a1-17 1168b34-35 1169a18 1177a12-18 1178a6-7
etc
26
com um princiacutepio racional o conhecimento desses assuntos faraacute grande
vantagemrdquo (EN I 1 1095a11-15)6 na distinccedilatildeo do que seja o bem
Por conseguinte em nada nos admiraria a proposta da melhor
vida possiacutevel como aquela guiada pela reta razatildeo A felicidade fim
(teacutelos) da vida humana seria descrita como uma atividade mas uma
atividade (eneacutergeia) realizada conforme o que manda a razatildeo Tal
atividade deve ser de acordo com o que eacute descrito como o que haacute de
melhor no homem e que o diferencia dos outros animais e das plantas
(EN I 6 1097b35 1098a1-5) Esse tipo de vida natildeo seria possiacutevel sem as
virtudes especialmente sem a virtude moral pois aleacutem de ser conforme
o que haacute de mais proacuteprio ao homem se isso fosse a razatildeo a vida boa
moralmente e feliz seria aquela que permitiria desempenhar da melhor
forma a funccedilatildeo humana e segundo Aristoacuteteles desempenhar bem sua
funccedilatildeo eacute ser virtuoso
Caso seja possiacutevel entender essa proposta como indicativo de que
o homem deva ouvir sua razatildeo a fim de possuir a mais excelente virtude
e a melhor vida precisamos ressaltar que Aristoacuteteles nos chama atenccedilatildeo
para que a razatildeo deva ser o guia ou deva ao menos estar presente em
todos os homens Natildeo conveacutem esquecer que no Livro X o filoacutesofo
afirmaraacute que tal possibilidade natildeo eacute a mais recorrente - embora devesse
ser - agrave vida humana comum Os homens em sua grande maioria natildeo
obedecem espontaneamente agrave razatildeo mesmo sendo capazes de fazecirc-lo
Por isso natildeo tendem a uma vida de pura contemplaccedilatildeo que na verdade
extrapolaria as possibilidades humanas Na maior parte das vezes os
elementos da capacidade natildeo racional da alma conduzem as accedilotildees
sendo necessaacuterio portanto buscar moderaacute-los para que haja excelecircncia
dessa capacidade e que se viva a vida propriamente humana7 Diante
dessa impossibilidade de a capacidade racional reger de modo exclusivo
a vida humana o que levaria o homem a desempenhar uma funccedilatildeo
6 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original τοῖς γὰρ τοιούτοις ἀνόνητος ἡ γνῶσις γίνεται καθάπερ τοῖς
ἀκρατέσιν τοῖς δὲ κατὰ λόγον τὰς ὀρέξεις ποιουμένοις καὶ πράττουσι
πολυωφελὲς ἂν εἴη τὸ περὶ τούτων εἰδέναι 7 Essa proposta eacute encontrada tambeacutem em Poliacutetica 1253a25-28 ldquoQue nessas
condiccedilotildees a cidade seja tambeacutem anterior naturalmente ao indiviacuteduo isso eacute
evidente se com efeito o indiviacuteduo tomado isoladamente eacute incapaz de bastar a
si mesmo seraacute por relaccedilatildeo agrave cidade como nos nossos outros exemplos as
partes satildeo em relaccedilatildeo ao todo Mas o homem que estaacute na incapacidade de ser
membro de uma comunidade ou que disso natildeo experimenta nada a necessidade
porque ele se basta a si mesmo natildeo faz em nada parte de uma cidade e por
consequecircncia eacute ou um bruto ou um deusrdquo
27
totalmente racional ou conforme a razatildeo como sua marca distintiva
cabe-nos questionar qual seria a funccedilatildeo proacutepria ao homem de acordo
com a EN
2 Funccedilatildeo proacutepria ao homem
Aristoacuteteles inaugura as discussotildees da EN afirmando que toda arte
bem como toda atividade tende a um fim ou bem Os bens podem ser
diferentes ou idecircnticos agraves suas fontes originadoras e por isso existem
tantos fins quanto haacute artes e atividades das quais satildeo provenientes
Ademais quando os bens satildeo identificados agraves atividades que os geram
estas satildeo consideradas mais excelentes que aquelas que natildeo se
identificam ao fim gerado ocasionando uma hierarquia que organiza
atividades e bens
Essas propostas abrem a discussatildeo sobre os fins e os meios para
alcanccedilaacute-los e nesse ponto logo no iniacutecio da EN o filoacutesofo nos informa
que haacute um fim maior desejado por si mesmo e em vista do qual todas as
demais coisas e bens satildeo buscados Essa delimitaccedilatildeo de um bem maior
ou supremo impede que a lista de bens existentes obedeccedila a uma
progressatildeo infinita Diante disso o filoacutesofo propotildee que o conhecimento
da natureza do bem supremo poderia colaborar com seu alcance jaacute que
uma procura eacute facilitada quando se conhece o que estaacute sendo procurado
Por isso a investigaccedilatildeo da EN a partir do Livro I 2 se direciona agrave
delimitaccedilatildeo do bem supremo e daquela ciecircncia que se dedicaria ao seu
estudo a poliacutetica teoria determinadora de tudo quanto seria preciso
saber para o bom andamento das questotildees de uma poacutelis A ciecircncia
poliacutetica determinaria aquilo que os cidadatildeos deveriam fazer e por isso
abrangeria todas as demais ciecircncias sendo arquitetocircnica responsaacutevel
pelo bem humano e mais importante pelo bem da poacutelis
Tendo em vista as constataccedilotildees feitas ateacute os Livros I 3-4
Aristoacuteteles pensa que deve estabelecer ao menos em linhas gerais a
verdade sobre o que eacute a felicidade pois todos sem exceccedilatildeo
identificam-na com um bem ou um fim inerente ao ser humano O passo
destaca a poliacutetica como a ciecircncia responsaacutevel por determinar tais
assuntos e por isso seria de grande auxiacutelio agraves pessoas que vivem agem e
desejam conforme a razatildeo ao mesmo tempo em que delimita o campo
de interesse da pesquisa em curso Seria tarefa de a poliacutetica definir
felicidade pois a despeito do consenso quanto ao que seria o melhor
fim e resultado da melhor accedilatildeo possiacutevel haveria vaacuterias formas de
conceber a felicidade e de entender quais seriam os modos de obtecirc-la
Os homens comuns pensariam que a felicidade seria o prazer ou a
28
riqueza ou as honras percepccedilatildeo diferenciada daquela tida pelos saacutebios
Chegariam mesmo a mudar de entendimento acerca da eudaiacutemōniacutea
conforme o tipo de vida que levassem
Quanto ao tipo de vida levada o Livro I 5 aponta trecircs formas
principais a serem analisadas a vida preocupada com a (1) obtenccedilatildeo de
prazer a vida (2) poliacutetica e a vida dada agrave (3) contemplaccedilatildeo filosoacutefica O
filoacutesofo explica que a maioria das pessoas identifica a felicidade com o
prazer e pouco mais adiante compara a vida escolhida pela multidatildeo
agravequela vida dos escravos e agrave qual chama bestial Em contrapartida a
opiniatildeo dos homens de gosto mais refinado bem como das pessoas que
satildeo mais ativas seria que a felicidade se resume agrave honra que
normalmente eacute entendida como fim da vida poliacutetica No entanto
Aristoacuteteles pensa que a honra natildeo poderia ser o fim buscado pelo
homem jaacute que dependeria mais de quem a conferiria que daqueles que a
mereceriam as honrarias poderiam ser retiradas de algueacutem ao contraacuterio
da felicidade Aleacutem disso o filoacutesofo nos conta que as honras seriam
procuradas em vista da virtude sendo que talvez a virtude e natildeo a
honra fosse o fim procurado pela vida poliacutetica Contudo entende que a
virtude igualmente natildeo eacute a felicidade pois um homem pode ser
considerado virtuoso por exemplo quando dorme e quando eacute
desafortunado mas natildeo eacute possiacutevel ser feliz no infortuacutenio Na sequecircncia
da exposiccedilatildeo Aristoacuteteles afirma que examinaraacute a vida contemplativa em
outro momento (Livro X) e acrescenta agrave sua anaacutelise o tratamento da vida
dedicada ao ganho percebendo que a riqueza tambeacutem natildeo contemplaria
suas intenccedilotildees quanto agravequilo que seria a eudaiacutemōniacutea A riqueza seria uacutetil
a uma vida considerada feliz poreacutem natildeo poderia resumir tal vida porque
natildeo seria buscada por si mesma Com isso o filoacutesofo nos apresenta uma
das suas exigecircncias para definirmos a felicidade ser um fim ou bem
buscado por si mesmo
No Livro I 6 da EN o bem eacute tratado em dois sentidos haveria
bens em si mesmos considerados realmente bons e bens relativos a
estes uacuteteis agrave obtenccedilatildeo dos bens em si mesmos Estes seriam como jaacute se
propusera acerca da felicidade procurados sem pensar em algo mais que
se pudesse conseguir a partir deles mas haveria vaacuterias coisas que se
encaixariam nesse tipo de descriccedilatildeo como a riqueza o prazer etc o
que forccedila o filoacutesofo a delimitar o bem que procura a algo que possa ser
alcanccedilado pelo homem apresentando nova exigecircncia agrave definiccedilatildeo da
felicidade
29
Diante de tantas distinccedilotildees o Livro I 7 afunila mais a proposta de
bem buscado descrevendo-o novamente como ldquoaquilo em cujo interesse
se fazem todas as coisasrdquo (EN I 5 1097a21-22)8 O bem seria a
finalidade das accedilotildees e os homens fariam tudo em vista dele Aristoacuteteles
ratifica a existecircncia de vaacuterios fins mas propotildee que apenas o bem
supremo ou absoluto seria escolhido por si mesmo o que implica que
nem todos os fins satildeo absolutos O sumo bem no entanto seria
absoluto o uacutenico fim absoluto ou o mais absoluto no caso de haver mais
de um fim desse tipo caracteriacutestica daquilo que eacute procurado e desejado
por si mesmo A esses aspectos Aristoacuteteles acrescenta outro ndash que
voltaraacute a ser analisada no Livro X a autossuficiecircncia A princiacutepio este
conceito eacute explicado em I 7 como aquilo que basta para um homem e
todos agrave sua volta porque o homem segundo esse capiacutetulo (EN I 7
1097b12) existe para ser cidadatildeo A autossuficiecircncia tornaria a vida
desejaacutevel e sem necessidade de nada sendo que somente a felicidade
cumpriria tais requisitos aleacutem de ser a coisa mais desejaacutevel de todas
natildeo sendo um bem entre outros A felicidade eacute redefinida portanto
como a finalidade uacuteltima de toda accedilatildeo (EN I 7 1097b14-21)9
Diante de todo esse debate e da tentativa de delimitaccedilatildeo da
felicidade Aristoacuteteles natildeo se daacute por satisfeito com o possiacutevel conceito
determinado ateacute o ponto Evoca entatildeo a questatildeo da funccedilatildeo (eacutergon) do
homem pois pensa que talvez esclareccedila o caso O filoacutesofo questiona
haveria uma funccedilatildeo especificamente humana Verificar qual seria a
funccedilatildeo humana facilitaria entender o que eacute a felicidade (EN I 7
1097b24) mas por quecirc Aristoacuteteles pensa que para todas as coisas que
apresentam uma funccedilatildeo e uma atividade o bem estaacute na funccedilatildeo (EN I 7
1097b26-27)
Korsgaard afirma que o argumento da funccedilatildeo da forma como eacute
elaborado por Aristoacuteteles parece depender da ligaccedilatildeo existente entre ser
uma boa pessoa ter uma vida boa ou feliz aleacutem de objetivar ligar essas
propostas em torno da racionalidade Haacute igualmente a intenccedilatildeo de
mostrar que devido a alguns argumentos sobre razatildeo e virtude o
argumento da funccedilatildeo eacute um bom caminho para abordar a questatildeo de
como viver bem Se tudo tem uma funccedilatildeo por que o homem natildeo teria
nenhuma (EN I 7 1097b22-23) Isso significaria que o homem segue um
8 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original τούτου γὰρ ἕνεκα τὰ λοιπὰ πράττουσι πάντες 9Esse trecho abriria a questatildeo para as interpretaccedilotildees da eudaiacutemōniacutea como bem
inclusivo ou dominante Neste estudo apenas mencionaremos quando
pertinente o problema pois natildeo pretendemos esgotaacute-lo
30
propoacutesito ou um destino Korsgaard propotildee duas maneiras de ler a
passagem em questatildeo A primeira com assombro e jaacute proposta acima
soaria mais ou menos assim se todas as coisas que existem tecircm uma
funccedilatildeo por que o homem natildeo teria nenhuma O passo poderia ser lido
ainda como um argumento e soaria mais ou menos assim ldquopartes do
corpo tecircm funccedilotildees mas o que fazem soacute faz sentido se houver uma
funccedilatildeo do todo relativo ao qual as partes tecircm uma funccedilatildeo as vaacuterias artes
e profissotildees tecircm funccedilotildees mas que soacute fazem sentido se haacute uma funccedilatildeo
geral da vida humana agrave qual contribuemrdquo (KORSGAARD 2008 p 130-
131)
Assim a funccedilatildeo do todo respaldaria e explicaria aquelas das
partes De modo semelhante Reeve (2014 p 279) entende que qualquer
que seja a funccedilatildeo humana ela deve justificar as funccedilotildees das partes do
corpo bem como deve justificar o homem como praticante de uma arte
especiacutefica que segue princiacutepios e normas racionais Isso porque apoacutes
analisar as funccedilotildees atreladas agraves capacidades da alma que o homem
compartilha com os animais o texto de EN I 7 (1097b33-1098a7) acaba
por identificar uma funccedilatildeo que chama ldquovida praacutetica do que possui
razatildeordquo que eacute capaz tanto de obedecer agrave razatildeo quanto de possuiacute-la
exercitando o intelecto (noucircs) De um modo ou de outro o argumento
parece depender de uma concepccedilatildeo teleoloacutegica de mundo Essa
concepccedilatildeo no primeiro caso indica simplesmente um propoacutesito para
tudo quanto haacute No segundo caso indica um tipo de raciociacutenio que vai
de um propoacutesito relativo a um propoacutesito absoluto Mas caberia entender
o argumento da funccedilatildeo como a defesa de um propoacutesito para o homem
Mesmo que se assuma o argumento em questatildeo eacute preciso esclarecer por
que o bem humano estaacute atrelado ao bom desempenho de uma funccedilatildeo
Haacute entre funccedilatildeo e virtude uma ligaccedilatildeo conceitual da qual natildeo
podemos prescindir pois como Reeve salienta o argumento prepara o
campo para a teoria da virtude Segundo tal teoria o exerciacutecio de uma
funccedilatildeo poderia ser compreendido como melhor estado das capacidades
que se agrupam em um todo que pode ser entendido como a melhor
forma de vida humana Entendemos tambeacutem com Reeve (2013 p 38)
que essa vida eacute proposta sagazmente por Aristoacuteteles como agrupamento
dos aspectos que considerava os melhores dentre todas as opiniotildees
correntes agrave eacutepoca sobre o tipo de vida tido como felicidade Diante
disso explica Korsgaard a virtude eacute uma qualidade que faz o homem
bom ao desempenhar sua funccedilatildeo composta por qualidades que o tornam
31
bom quanto agrave atividade racional10 Contudo fazemos questatildeo de frisar
que a virtude igualmente deve ser entendida como desempenho
excelente de todas as atividades cuja execuccedilatildeo pelo homem eacute possiacutevel
Korsgaard esclarece ldquoEntatildeo Aristoacuteteles precisa da conclusatildeo do
argumento da funccedilatildeo natildeo somente para dar suporte agrave sua visatildeo sobre
que tipo de vida eacute o melhor assim como a fim de nos dar uma base
teoacuterica agrave afirmaccedilatildeo que certas qualidades satildeo virtudesrdquo (KORSGAARD
2008 p 133-134 traduccedilatildeo nossa) O argumento nos permite
compreender melhor as virtudes e com isso a proposta sobre o bem ou
fim humano entendido por Aristoacuteteles como atividade em conformidade
com a virtude
O mau entendimento do argumento em questatildeo pode vir do fato
de interpretaacute-lo teleologicamente pensando eacutergon como propoacutesito
Haveria alternativas de interpretaccedilatildeo como um significado mais amplo
de trabalho funcionamento produtos ou atividades caracteriacutesticas
indicando igualmente a ligaccedilatildeo entre funccedilatildeo e atividade que levaria o
homem ao bem que procura Natildeo reconstruiremos totalmente a proposta
de Korsgaard sobre esse assunto que passaria por complexas noccedilotildees
metafiacutesicas agraves quais natildeo podemos nos dedicar nesse momento11 mas a
melhor alternativa agrave compreensatildeo da funccedilatildeo proposta em EN I seria
indicada pela autora como a de atividade caracteriacutestica que faz de uma
coisa aquilo que ela eacute Assim uma concepccedilatildeo de homem tambeacutem estaacute
em questatildeo como reforccedilaremos no nosso terceiro Capiacutetulo porque
quem sabe o que a coisa faz a conhece melhor O que parece coadunar
outra possibilidade de entendimento proposta pela autora a de como
uma coisa funciona ou seja como uma coisa faz o que ela faz natildeo
impedindo que tenha vaacuterios propoacutesitos Entatildeo propoacutesito seria diferente
de funccedilatildeo mesmo que os dois sentidos estivessem intimamente
relacionados pois saber ldquoo que uma coisa fazrdquo estaacute totalmente ligado ao
saber ldquocomo uma coisa faz o que ela fazrdquo
Desse modo natildeo bastaria saber o propoacutesito da coisa para
conhececirc-la explica a autora ldquoMas algueacutem que sabe para que o coraccedilatildeo
10 De acordo com Boyle haacute uma proposta do homem como animal racional que
tem sua tradiccedilatildeo iniciada com Aristoacuteteles Conforme a interpretaccedilatildeo do autor
para essa proposta que pensamos ser condizente com nossas proacuteprias
interpretaccedilotildees sobre o assunto ldquoUma implicaccedilatildeo crucial da Visatildeo Claacutessica eu
argumentarei eacute que a racionalidade natildeo eacute uma potecircncia particular de animais
racionais que satildeo equipados com ela mas seu modo distintivo de ter potecircnciasrdquo
(BOYLE 2012 p 6 traduccedilatildeo nossa) 11 Mateacuteria e forma substacircncia causa
32
serve seus arranjos estruturais e como aqueles arranjos capacitam o
coraccedilatildeo a fazer o que ele faz pode dizer verdadeiramente entendecirc-lordquo
(KORSGAARD 2008 p 139 traduccedilatildeo nossa) Por isso a autora pensa
que o melhor candidato agrave interpretaccedilatildeo de funccedilatildeo eacute ldquocomo a coisa faz o
que ela fazrdquo indo do conhecimento da estrutura ao conhecimento do
propoacutesito atrelado ao objeto estudado Com isso poderemos pensar que
compreender a alma humana e suas capacidades em relaccedilatildeo seria
extremamente beneacutefico entre outras coisas para nossa compreensatildeo
daquilo que o homem eacute capaz de fazer pois nos encaminharia para o
conhecimento do proacuteprio homem e de como ele faz o que faz O que a
nosso ver natildeo descartaria uma proposta teleoloacutegica acerca da felicidade
humana mas a reelaboraria nos termos propostos acima com o apoio de
Korsgaard Natildeo importa se o homem tem um propoacutesito o que importa eacute
que o homem desempenha suas atividades de um modo que lhe eacute
especiacutefico e que pode ser entendido e explicado Assim quem entende
isso poderaacute dizer o que eacute a funccedilatildeo humana aleacutem do mais seraacute possiacutevel
conhecer melhor o proacuteprio homem
Por conseguinte quando Aristoacuteteles afirma que a funccedilatildeo humana
eacute a atividade da parte racional da alma natildeo quer dizer simplesmente que
o raciociacutenio eacute o propoacutesito do ser humano Igualmente estaacute a dizer que a
atividade racional eacute a atividade caracteriacutestica do homem caso se
entenda que isso significa uma atividade que somente a espeacutecie humana
escolhe Aleacutem disso Korsgaard entende que Aristoacuteteles quer dizer que a
ldquoatividade racional eacute como noacutes seres humanos fazemos o que fazemos e
em particular como conduzimos nossa forma especiacutefica de vidardquo
(KORSGAARD 2008 p 141 traduccedilatildeo nossa) O que nos leva de volta
agrave lista dos tipos de vida No DA II 2 Aristoacuteteles elenca trecircs formas de
viver conforme as capacidades da alma humana vegetativa (das plantas
e de todos os animais) de percepccedilatildeo e accedilatildeo (de todos os animais) e de
razatildeo ou da escolha racional (apenas dos animais humanos) O homem
apresenta todas as trecircs formas de vida duas em comum com os demais
viventes mas uma que lhe eacute especiacutefica o que faz com que gerencie de
um jeito especial as outras formas que compotildeem a vida humana Assim
para Aristoacuteteles ldquoser racional transforma a natureza de ser um animal e
assim constitui um jeito novo de ser uma coisa vivardquo (BOYLE 2012 p
16 traduccedilatildeo nossa)
Com as observaccedilotildees feitas a respeito desse assunto Aristoacuteteles
parece entender a vida regida pela razatildeo como mais apropriada aos
homens contudo o filoacutesofo pondera neste tipo de vida e no que a rege
haacute algo que eacute obediente agrave razatildeo mas haacute ainda algo que possui e exerce o
pensamento A vida da capacidade racional portanto igualmente
33
poderia ter dois significados mas nesse ponto especiacutefico estar-se-ia a
falar da vida como atividade racional O que provavelmente poderia
nos levar a interpretar essa proposta como natildeo tratando de algo
puramente racional pois eacute nesse ponto da argumentaccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
do homem que Aristoacuteteles parece ceder lugar a uma racionalidade
relacionada e dedicada inteiramente ao cuidado da capacidade natildeo
racional e de suas (sub)capacidades fazendo valer a proposta da
atividade humana como aquela feita com razatildeo ou natildeo sem razatildeo
Nussbaum entende que nesse momento Aristoacuteteles comeccedila a abrir matildeo
de algo totalmente divino como funccedilatildeo especiacutefica do homem propondo
como tiacutepico agrave alma humana uma sabedoria diferenciada daquela
compartilhada pela divindade a sabedoria praacutetica Diante dessas
possibilidades de interpretaccedilatildeo precisamos analisar as propostas em
jogo para entender qual seria realmente a funccedilatildeo e portanto a melhor
forma de viver ou o fim humano pois Aristoacuteteles escreve
Ora se haacute uma funccedilatildeo do homem consistindo em
uma atividade da alma conforme agrave razatildeo ou que
natildeo existe sem a razatildeo e se noacutes dizemos que essa
funccedilatildeo eacute genericamente a mesma em um
indiviacuteduo qualquer e em um indiviacuteduo de meacuterito
(assim em um citarista e em um bom citarista e
isso eacute verdade de uma maneira absoluta em todos
os casos) a excelecircncia devida ao meacuterito se
acrescentando agrave funccedilatildeo (pois a funccedilatildeo do citarista
eacute tocar a ciacutetara e aquela do bom citarista eacute tocaacute-la
bem) se eacute assim se noacutes colocamos que a funccedilatildeo
do homem consiste em um certo gecircnero de vida
quer dizer em uma atividade da alma e nas accedilotildees
acompanhadas de razatildeo se a funccedilatildeo de um
homem virtuoso eacute cumprir essa tarefa e cumpri-la
bem e com sucesso cada coisa aleacutem estando bem
completa quando eacute segundo a excelecircncia que lhe eacute
proacutepria - nessas condiccedilotildees eacute portanto que o bem
para o homem consiste em uma atividade da alma
em acordo com a virtude e no caso de
pluralidade de virtudes em acordo com a mais
excelente e perfeita entre elas (EN I 6 1098a7-
18)12
12 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original εἰ δ ἐστὶν ἔργον ἀνθρώπου ψυχῆς ἐνέργεια κατὰ λόγον ἢ
μὴ ἄνευ λόγου τὸ δ αὐτό φαμεν ἔργον εἶναι τῷ γένει τοῦδε καὶ τοῦδε
34
A anaacutelise do passo em questatildeo gerou celeuma em relaccedilatildeo agrave
questatildeo da eudaiacutemōniacutea provocando discussotildees propostas em ceacutelebres
artigos publicados desde 1964 (ou mesmo antes) por estudiosos como
Hardie Ackrill e Kenny A menccedilatildeo aos trecircs comentadores e respectivos
estudos eacute vaacutelida na medida em que haacute propostas sobre a eudaiacutemōniacutea
como aquela elaborada por Kenny que concebeu a felicidade como um
bem dominante e entendia que o passo em questatildeo se opotildee agraves teorias
como aquelas dos demais estudiosos mencionados e agraves suas concepccedilotildees
de eudaiacutemōniacutea Segundo Kenny o passo liga as teorias da felicidade
apresentadas pelos Livros I e X da EN tomando as teorias de Aristoacuteteles
sobre os variados tipos de vida no Livro I como ponto de partida para a
interpretaccedilatildeo da eudaiacutemōniacutea como vida totalmente dedicada agrave
contemplaccedilatildeo Embora concordemos com a possibilidade de existecircncia
de um elo entre as teorias apresentadas nos dois tratados sobre a
felicidade elo do qual trataremos mais detidamente em nosso terceiro
Capiacutetulo os demais comentadores citados parecem-nos mais coerentes
com as reais intenccedilotildees de Aristoacuteteles para sua teoria da felicidade
Pensamos assim especialmente por natildeo tomarem como proposta (ou
intenccedilatildeo de proposta do filoacutesofo segundo a leitura de Hardie (2009 p
35)) a felicidade como fim dominante encaminhando-se agrave defesa de
uma vida plena como aquela dedicada ao puro contemplar Todavia se
um tipo de vida eacute indicado como o melhor e se esse tipo for
compreendido como um conjunto de atividades operadas de modo
racional e natildeo exatamente como uma vida inteiramente direcionada agraves
atividades especificamente contemplativas qual seria esse tipo de vida
Aristoacuteteles o determinaria
As questotildees nos levaram a repensar as propostas do filoacutesofo
acerca dos meios e dos fins variados que se nos apresentam ao longo de
toda uma vida e que conduzem agraves muitas opiniotildees e aos muitos modos
de entender o que seja a melhor vida possiacutevel e os bens que satildeo
necessaacuterios a ela (se satildeo necessaacuterios) As opiniotildees quanto agrave funccedilatildeo e agrave
atividade apropriada ao homem descritos no Livro I 8 variam e por isso
σπουδαίου ὥσπερ κιθαριστοῦ καὶ σπουδαίου κιθαριστοῦ καὶ ἁπλῶς δὴ τοῦτ
ἐπὶ πάντων προστιθεμένης τῆς κατὰ τὴν ἀρετὴν ὑπεροχῆς πρὸς τὸ ἔργον
κιθαριστοῦ μὲν γὰρ κιθαρίζειν σπουδαίου δὲ τὸ εὖ εἰ δ οὕτως [ἀνθρώπου δὲ
τίθεμεν ἔργον ζωήν τινα ταύτην δὲ ψυχῆς ἐνέργειαν καὶ πράξεις μετὰ λόγου
σπουδαίου δ ἀνδρὸς εὖ ταῦτα καὶ καλῶς ἕκαστον δ εὖ κατὰ τὴν οἰκείαν
ἀρετὴν ἀποτελεῖται εἰ δ οὕτω] τὸ ἀνθρώπινον ἀγαθὸν ψυχῆς ἐνέργεια γίνεται
κατ ἀρετήν εἰ δὲ πλείους αἱ ἀρεταί κατὰ τὴν ἀρίστην καὶ τελειοτάτην
35
Aristoacuteteles parece entender que essa variedade de opccedilotildees eacute devida ao
prazer que se sente com as atividades que se desempenha com mais
frequecircncia As atividades virtuosas satildeo deste tipo e satildeo destacas pelo
filoacutesofo como sendo boas e nobres Os homens bons igualmente as tecircm
em alta consideraccedilatildeo datildeo-lhes o valor devido sendo que tais homens
satildeo bons juiacutezes daquilo que conhecem bem como a virtude ldquoA
felicidade eacute pois a melhor a mais nobre e a mais apraziacutevel coisa do
mundo e esses atributos natildeo se acham separados []rdquo (EN I 9 1099a24-
25)13 O conceito de felicidade esboccedilado no Livro I eacute portanto
preenchido pelos atributos das atividades mais excelentes
Reforccedilando essas ideias o Livro I 9 nos informa que a felicidade
eacute tomada como algo de melhor e mais divino existente na vida humana
portanto eacute de acordo com a excelecircncia nas accedilotildees e atividades que o
homem eacute capaz de realizar Diante dessas constataccedilotildees Aristoacuteteles
declara que os objetivos da ciecircncia poliacutetica entre as demais vidas
observadas satildeo o melhor fim que pode haver (EN 1099b30) o que
pareceraacute contradizer as propostas do Livro X e a proposta de Kenny
supramencionada Essas explicaccedilotildees ainda que lacunares nos levam agrave
nossa crenccedila que a funccedilatildeo especiacutefica ao homem seja uma atividade que
somente se constituiria com uma vida em comunidade associando todas
as capacidades aniacutemicas acima mencionadas sendo por isso conforme
a razatildeo que se configura como elemento diferencial da psychḗ humana
Todavia ainda precisaremos confrontar essas propostas com aquelas do
Livro X acerca da vida contemplativa como melhor das vidas possiacuteveis
para garantir o que se afirma aqui
O Livro mencionado nos apresenta vaacuterios argumentos que
indicam um Aristoacuteteles aparentemente ldquoracionalistardquo propondo que o
homem se dedique agravequilo que de mais divino haacute em si a razatildeo No
entanto recorrendo ao curso de toda a EN inclusive ao proacuteprio Livro X
encontramos indicaccedilotildees de que natildeo haacute possibilidade do homem dedicar-
se inteiramente agraves atividades da contemplaccedilatildeo filosoacutefica ao exerciacutecio
mais alto e puro da razatildeo teoacuterica Mesmo um filoacutesofo explica
Aristoacuteteles necessita de comida bebida dinheiro conviacutevio e todos
esses bens sejam eles necessaacuterios ao estabelecimento de uma vida feliz
sejam eles instrumentos para tal estabelecimento soacute satildeo encontrados
como propusemos ainda haacute pouco na poacutelis Devemos reforccedilar que a EN
nos apresenta o homem como animal poliacutetico de vida essencialmente
13 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ἄριστον ἄρα καὶ κάλλιστον καὶ ἥδιστον ἡ εὐδαιμονία καὶ
οὐ διώρισται ταῦτα []
36
comunitaacuteria Por conseguinte todas as suas escolhas seratildeo tomadas
tendo em vista essa sua natureza poliacutetica explicando que a funccedilatildeo
proacutepria ao homem seria o bom desempenho de suas capacidades
aniacutemicas que o permitissem viver bem na poacutelis entre seus iguais ou
semelhantes de forma excelente mas em conformidade a leitura de
Korsgaard e Boyle (2012 p 6 et seq) de um jeito racional Quanto ao
assunto Nussbaum escreveu
O argumento do ergon natildeo pode estar nos dizendo
que devemos nos preocupar somente com a razatildeo
Nem parece dizer isso Mas a ecircnfase em tal
atividade caracteriacutestica pode ser vista como
motivada (1) pelo desafio do hedonismo e (2) pela
funccedilatildeo arquitetocircnica da razatildeo praacutetica esta e soacute
esta pode arranjar para que ambas razatildeo e as
funccedilotildees compartilhadas com os animais
obtenham seu devido lugar em uma vida humana
complexa Aristoacuteteles recomenda agrave sua audiecircncia
reflexiva uma vida que (1) envolva o exerciacutecio de
todas as nossas capacidades humanas e seja assim
uma verdadeira vida humana antes que uma
[vida] que possa justamente ser levada por uma
planta ou uma vaca e que (2) seja governada e
planejada de um tal modo a dar a ambas
capacidades compartilhadas e natildeo compartilhadas
seu papel apropriado ndash e isso significa governada
e planejada pela razatildeo praacutetica Se pensarmos
reflexivamente sobre o que eacute um ser humano ele
sugere teremos razatildeo em preferir uma vida sob a
direccedilatildeo da razatildeo praacutetica agrave vida escrava ou como a
da vaca de prazer e tambeacutem agrave alguma vida que eacute
levada sem ordem ou direccedilatildeo Queremos uma vida
que use todas as nossas capacidades Uma tal vida
inclui tanto o exerciacutecio da razatildeo quanto requer a
direccedilatildeo racional (NUSSBAUM 1985 p 106
traduccedilatildeo nossa)
Embora concordemos em grande medida com as propostas da
estudiosa que entende a opccedilatildeo pelo argumento do eacutergon humano em
um tratado eacutetico justificada por ser necessaacuterio considerar o que eacute o
homem a fim de melhor entender e acatar um tipo de vida a se buscar
pensamos que a filoacutesofa natildeo esteja de acordo com as propostas de
Aristoacuteteles em um certo ponto Este diria respeito agrave tocircnica dada agrave
37
proposta de uma vida boa ser governada pela razatildeo ou melhor pela
razatildeo praacutetica Nossa ressalva ou discordacircncia vem do fato de pensarmos
que essa alternativa seja vaacutelida agrave maioria dos homens para os homens
que satildeo capazes de agir corretamente embora possam natildeo o fazer mas
natildeo dos homens realmente virtuosos que vivem ldquocom razatildeordquo ou de um
jeito racional Pensamos diferente das propostas da autora porque
cremos que o bom exerciacutecio de todas as capacidades humanas que ela
menciona compartilhadas ou natildeo com outros viventes resulta em uma
vida virtuosa e que o homem verdadeiramente virtuoso tenha em
consonacircncia as capacidades aniacutemicas como defenderemos ao longo de
todo esse trabalho A nosso ver uma vida conforme o melhor estado
dessas capacidades desempenhadas racionalmente eacute o que
verdadeiramente se configura como a funccedilatildeo humana exclusivamente
humana dentre todas as funccedilotildees que o homem se mostra capaz de
desempenhar14
A pacificaccedilatildeo das capacidades aniacutemicas que permite uma vida de
plena realizaccedilatildeo das tarefas necessaacuterias para o conviacutevio em comunidade
eacute o que mais se mostra como exclusividade do homem natildeo dos deuses
nem dos animais em geral A possibilidade de conciliar a capacidade
natildeo racional por esta ser capaz de ouvir obedecer e participar da razatildeo
por intermeacutedio do desiderativo com a capacidade racional da alma
representada pela racionalidade praacutetica que harmoniza e participa da
capacidade natildeo racional mas que ao mesmo tempo sabe daquilo que eacute
necessaacuterio para garantir o exerciacutecio da racionalidade teoacuterica garante a
funccedilatildeo apropriada ao homem e a vida feliz O melhor estado e as
melhores atividades de ambas as capacidades da alma quando em
harmonia permitem que o homem seja o que eacute que se perceba como
aquilo que eacute animal poliacutetico razatildeo e emoccedilatildeo em consonacircncia
Devemos no entanto trabalhar mais em defesa desse entendimento
porque nos permitiraacute defender a educabilidade das emoccedilotildees
14Temos ciecircncia de que a vida pode variar de que a virtude pode se ver
ameaccedilada pelas circunstacircncias O homem virtuoso natildeo estaacute imune agraves forccedilas
do acaso mas resiste-lhes mais fortemente como na proposta da feita no
Livro I graccedilas ao seu caraacuteter ldquofirme e imutaacutevelrdquo Concordamos no entanto
com Frede que explica que mesmo o virtuoso carece de muita deliberaccedilatildeo
para agir bem pois mesmo sua boa habituaccedilatildeo que lhe confere certa (e
maior que o normal) estabilidade frente agraves vicissitudes natildeo lhe tornem
totalmente indiferente ao que o mundo apresenta como proporemos mais
adiante
38
Nossa proposta eacute coerente com as interpretaccedilotildees de estuidiosos
como Korsgaard (2008 p 143) e Boyle (2012 p 6) acerca da funccedilatildeo
humana que entende a vida feliz como atividade racional no sentido que
o poder da escolha racional facultado ao homem muda o modo que os
humanos conduzem as atividades que compartilham com os outros
animais como a construccedilatildeo a procriaccedilatildeo alimentaccedilatildeo etc A autora
defende que os seres humanos abordam essas atividades criativamente e
desenvolvem vaacuterios modos de desempenhaacute-las entre os quais noacutes entatildeo
escolhemos Igualmente fazem coisas que os outros animais natildeo fazem
de jeito nenhum como contar piadas pintar e se engajar na pesquisa
cientiacutefica e filosoacutefica Entatildeo a escolha racional introduz um sentido de
vida todo novo no qual uma pessoa pode dizer ldquoter uma vidardquo A vida eacute
entendida nesse sentido quando se diz que algueacutem vive bem ou mal ndash se
eacute eudaiacutemōn ou natildeo Entatildeo a autora afirma que esse eacute o sentido de
ldquovidardquo relevante para o argumento da funccedilatildeo A razatildeo eacute a funccedilatildeo do ser
humano desde que entendida como uma forma especificamente humana
de conduzir a vida e pensamos que tal tipo de conduccedilatildeo soacute pode ser
exercido em comunidade Assim atividade racional deveria ser
entendida natildeo no sentido de gastar toda a vida em contemplaccedilatildeo mas
como um modo de conduzir a vida o que provavelmente seja mais
condizente com nossa proposta embora entendamos que nos virtuosos
isso signifique a harmonia das capacidades da alma e natildeo a prevalecircncia
da capacidade racional15
Discutiremos as virtudes no capiacutetulo seguinte Por enquanto
destacamos outro motivo para entendermos que a funccedilatildeo totalmente
humana somente pode ser atualizada na poacutelis nas atividades e nas accedilotildees
moralmente avaliaacuteveis que se apresentam na poacutelis Parece impossiacutevel ao
homem atualizar as potecircncias de suas capacidades aniacutemicas em
consonacircncia que levam a emoccedilotildees bem educadas se natildeo por meio
daquilo que o corpo eacute capaz de fazer Todas as atividades e accedilotildees
completadas pelo composto corpoalma chamado por Aristoacuteteles em
parte da Metafiacutesica tograve syacutenolon (conjunto) de mateacuteria e forma
(hyacutelēmorphḗ) levam agrave produccedilatildeo de algo uacutetil ao homem agrave praacutetica de
boas accedilotildees e igualmente ao exerciacutecio da razatildeo teoacuterica e estatildeo de acordo
com Lawrence (2009 p 46) e com nossa interpretaccedilatildeo a serviccedilo dessa
vida boa em comunidade Por isso deveremos nos concentrar agora em
abordar as questotildees da alma humana como levantadas ao final do Livro
I da EN capiacutetulo 13 chamando em nosso auxiacutelio quando necessaacuterias
15 Quanto agrave classificaccedilatildeo do homem como animal racional especificar a
essecircncia humana ver Boyle (2012)
39
as consideraccedilotildees do De Anima sobre o assunto especialmente quando
este tratado puder nos auxiliar a confirmar nossa interpretaccedilatildeo
hilemoacuterfica que nos permitiraacute defender nossa teoria da funccedilatildeo proacutepria ao
homem como necessaacuteria ao entendimento do papel das emoccedilotildees na vida
moral
3 EN I 13 a alma humana e a emoccedilatildeo
A felicidade foi proposta em EN I 13 como atividade da alma
conforme a virtude mais completa16 Por isso para compreender melhor
o que seja a felicidade Aristoacuteteles julga necessaacuterio estudar a natureza da
virtude O filoacutesofo explica que a virtude a ser estudada eacute humana como
satildeo humanos o bem e a felicidade que procura esclarecer Por
conseguinte escreve ldquoPor virtude humana entendemos natildeo a do corpo
mas da alma e igualmente agrave felicidade chamamos uma atividade da
alma Mas assim sendo eacute oacutebvio que o poliacutetico deve saber de algum
modo o que diz respeito agrave almardquo (EN I 13 1102a16-19)17 O estudo da
alma que um legislador buscaria empreender no entanto teria por
finalidade tornar os cidadatildeos bons e entender como isso eacute possiacutevel o
que bastaria para o tipo de investigaccedilatildeo ora feito contudo pensamos
que a consulta do tratado da alma quando necessaacuteria pode ser mais
esclarecedora dos problemas que levantamos Natildeo obstante
comeccedilaremos a discussatildeo com as propostas da EN a respeito do assunto
em questatildeo nesse momento
Quando o tema eacute a alma humana a EN aponta a existecircncia de
opiniotildees consideraacuteveis mesmo que natildeo venham de Aristoacuteteles ou de
seus companheiros de estudo Uma dessas opiniotildees considerada vaacutelida eacute
a mencionada teoria que a alma apresenta uma capacidade racional e
outra natildeo racional (EN I 13 1102a29) Costuma-se aceitar igualmente
uma subdivisatildeo das capacidades aniacutemicas natildeo racionais propondo agrave
capacidade natildeo racional primeiro uma (sub)capacidade vegetativa
responsaacutevel pela nutriccedilatildeo e pelo crescimento Esta eacute presente em todos
16 Embora nos trechos em questatildeo nesse ponto do estudo utilizemos a traduccedilatildeo
de Zingano preferimos usar ldquovirtude completardquo a ldquovirtude perfeitardquo devido agrave
compreensatildeo que temos de tal virtude e que seraacute esclarecida brevemente mais
adiante 17 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original καὶ γὰρ τἀγαθὸν ἀνθρώπινον
ἐζητοῦμεν καὶ τὴν εὐδαιμονίαν ἀνθρωπίνην ἀρετὴν δὲ λέγομεν ἀνθρωπίνην οὐ
τὴν τοῦ σώματος ἀλλὰ τὴν τῆς ψυχῆς καὶ τὴν εὐδαιμονίαν δὲ ψυχῆς ἐνέργειαν
λέγομεν
40
os animais vivos adultos embriotildees lactantes etc A excelecircncia de tal
capacidade por esse aspecto comum aos viventes eacute pertencente a todos
e natildeo eacute especificamente humana18 Aleacutem disso a capacidade nutritiva
ou vegetativa trabalha especialmente durante o sono quando a maldade
ou a bondade de caraacuteter natildeo se manifestam Assim tal faculdade pode
ser posta de lado por ora em nossas investigaccedilotildees jaacute que na EN eacute tida
como natildeo participante da excelecircncia especificamente humana19 No
entanto Aristoacuteteles segue com o exame da capacidade natildeo racional da
alma e escreve
Parece haver na alma ainda outro elemento
irracional mas que em certo sentido participa da
razatildeo Com efeito louvamos o princiacutepio racional
do homem continente e do incontinente assim
como a parte de sua alma que possui tal princiacutepio
porquanto ela os impele na direccedilatildeo certa e para os
melhores objetivos mas ao mesmo tempo
encontra-se neles um outro elemento naturalmente
oposto ao princiacutepio racional lutando contra este e
resistindo-lhe (EN I 13 1102b13-21)20
Esse princiacutepio opositor agrave racionalidade aparece nitidamente no
caso dos incontinentes e dos continentes pessoas nas quais a capacidade
racional e a natildeo racional esta uacuteltima na figura dos desejos entram em
conflito quanto aos objetos a serem perseguidos21 Aristoacuteteles assim nos
18 A respeito da forma como a posse de uma alma racional que muda a
organizaccedilatildeo das demais capcidades da alma em um ser classificado como
ldquoracionalrdquo ver Boyle (2012 p 15 et seq) Essa explicaccedilatildeo revalida a teoria
proposta acima a respeito do viver humano natildeo ser puramente racional mas
organizado de um jeito racional 19 De acordo com Boyle (2012 p 2) a tendecircncia crescente eacute entender que a
diferenccedila entre a mente humana e a dos animais chamados tradicionalmente
ldquonatildeo racionaisrdquo pousa mais no grau em que tais mentes diferem e natildeo nas suas
diferenccedilas por tipo ou espeacutecie O autor faz tal observaccedilatildeo ao falar das disvisotildees
propostas para a alma desde Aristoacuteteles 20 Idem no original ἔοικε δὲ καὶ ἄλλη τις φύσις τῆς ψυχῆς ἄλογος εἶναι
μετέχουσα μέντοι πῃ λόγου τοῦ γὰρ ἐγκρατοῦς καὶ ἀκρατοῦς τὸν λόγον καὶ τῆς
ψυχῆς τὸ λόγον ἔχον ἐπαινοῦμεν ὀρθῶς γὰρ καὶ ἐπὶ τὰ βέλτιστα παρακαλεῖ
φαίνεται δ ἐν αὐτοῖς καὶ ἄλλο τι παρὰ τὸν λόγον πεφυκός ὃ μάχεται καὶ
ἀντιτείνει τῷ λόγῳ 21 A questatildeo da acrasia eacute muito mais complexa do que esse arremedo de resumo
aqui apresentado mas no momento natildeo nos caberia discuti-la em detalhes bem
41
adverte que na alma haacute algo que eacute contraacuterio agrave capacidade racional
resistindo-lhe e fazendo-lhe frente Isso parece nem participar da
capacidade racional embora no continente obedeccedila-a no temperante e
no bravo obedece ainda mais ldquopois em tais homens ele fala a respeito
de todas as coisas com a mesma voz que o princiacutepio racionalrdquo (EN I 13
1102b28)22 Mesmo que esta capacidade pareccedila natildeo participar da
racional os exemplos de virtudes e virtuosos dados no passo nos
mostram que essa faculdade ou (sub)capacidade da capacidade natildeo
racional constituiacuteda por querer (bouacutelēsis) apetite (epithymiacutea) e impulso
(thymoacutes) satildeo desejos aptos a ouvir a racionalidade obedececirc-la e ateacute
participar dela embora pareccedilam sempre fazer o contraacuterio Explicaremos
melhor essa proposta a seguir quando tratarmos especificamente a
capacidade desiderativa
Ateacute o momento a interpretaccedilatildeo feita nos permite afirmar que a
capacidade natildeo racional eacute ou parece ser dupla Isso porque a vegetativa
natildeo participa da capacidade racional mas a desiderativa em geral
participa ao menos de certo modo (EN I 13 1102b32) porque no
miacutenimo eacute capaz de escutar e obedecer agrave razatildeo como um filho ouve e
obedece a um pai Conselhos censuras e exortaccedilotildees comprovam
portanto que o natildeo racional eacute de certo modo persuadido pela razatildeo O
argumentoexemplo do filho e do pai daacute azo ao nosso argumento
porque o filho pode ainda natildeo possuir plenamente a razatildeo em ato mas eacute
considerado na Poliacutetica como parte da famiacutelia cujo elemento racional eacute
figurado pelo pai sendo este representante da razatildeo praacutetica na analogia
apresentada na EN Essa participaccedilatildeo enquanto natildeo se atualiza a
potecircncia de razatildeo do filho eacute siacutembolo da participaccedilatildeo do que na alma haacute
de menos racional mas capaz de ouvir agrave razatildeo praacutetica Por isso a
virtude recebe distinccedilatildeo semelhante nesse tratado indicando a existecircncia
de uma virtude moral e de uma virtude intelectual cada destas uma
componente indispensaacutevel de uma alma humana una que soacute pode ver
atualizadas suas muacuteltiplas capacidades pelo composto corpoalma
Quando se fala do caraacuteter humano no entanto estaacute-se a falar da virtude
moral entendida por Aristoacuteteles como disposiccedilatildeo digna de louvor
quando o agente se comporta bem diante dos arroubos de suas emoccedilotildees
Mas em grau secundaacuterio a vida de acordo com a
outra espeacutecie de virtude eacute feliz porque as
atividades que concordam com esta condizem
como nos faltaria recursos para encampar a tarefa no presente estudo 22 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original πάντα γὰρ ὁμοφωνεῖ τῷ λόγῳ
42
com a nossa condiccedilatildeo humana Os atos corajosos
e justos bem como outros atos virtuosos noacutes os
praticamos em relaccedilatildeo uns aos outros observando
nossos respectivos deveres no tocante a contratos
serviccedilos e toda sorte de accedilotildees bem assim como agraves
paixotildees e todas essas coisas parecem ser
tipicamente humanas Dir-se-ia ateacute que algumas
delas provecircm do proacuteprio corpo e que o caraacuteter
virtuoso se prende por muitos laccedilos agraves paixotildees
(EN X 8 1178a8-15)23
A vida voltada aos assuntos da poacutelis eacute portanto feliz mas
cercada pelas inevitaacuteveis emoccedilotildees e pelos desejos Esta eacute a vida que
procuramos examinar estando no exerciacutecio de sua funccedilatildeo proacutepria
Ressaltamos anteriormente e reforccedilamos aqui que uma existecircncia
totalmente em contemplaccedilatildeo filosoacutefica natildeo parece possiacutevel devido agrave
presenccedila dos elementos natildeo racionais acima mencionados na vida de
todos e da necessidade humana de viver em comunidade A despeito das
associaccedilotildees da eudamōniacutea com a contemplaccedilatildeo de Aristoacuteteles definir o
filoacutesofo como capaz de tal vida por exercer o cultivo da sua razatildeo
teoacuterica (ou do uso teoacuterico de sua razatildeo) de propor o filoacutesofo como
capaz de desfrutar a melhor disposiccedilatildeo de espiacuterito e ser caro aos deuses
devemos dar atenccedilatildeo agrave ressalva seguinte feita por Sorabji
Aristoacuteteles [] aborda a questatildeo seraacute que eacute
errado uma vez que somos humanos aspirar a
vida mais divina de contemplaccedilatildeo intelectual Ele
responde (embora eu natildeo ache que esta seja sua
uacuteltima palavra) que pelo contraacuterio o nosso
intelecto eacute o nosso verdadeiro eu [] Aristoacuteteles
viu as emoccedilotildees natildeo apenas como uacuteteis mas como
essenciais agrave melhor vida que os homens podem
alcanccedilar na praacutetica Embora dividido ele
reconhece que uma vida de nada mais que
contemplaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel para noacutes Ateacute mesmo
23 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Δευτέρως δ ὁ κατὰ τὴν ἄλλην ἀρετήν αἱ γὰρ κατὰ ταύτην
ἐνέργειαι ἀνθρωπικαί δίκαια γὰρ καὶ ἀνδρεῖα καὶ τὰ ἄλλα τὰ κατὰ τὰς ἀρετὰς
πρὸς ἀλλήλους πράττομεν ἐν συναλλάγμασι καὶ χρείαις καὶ πράξεσι παντοίαις
ἔν τε τοῖς πάθεσι διατηροῦντες τὸ πρέπον ἑκάστῳ ταῦτα δ εἶναι φαίνεται
πάντα ἀνθρωπικά ἔνια δὲ καὶ συμβαίνειν ἀπὸ τοῦ σώματος δοκεῖ καὶ πολλὰ
συνῳκειῶσθαι τοῖς πάθεσιν ἡ τοῦ ἤθους ἀρετή
43
os filoacutesofos devem comer e viver em sociedade e
a vida mais feliz envolveraacute tambeacutem o exerciacutecio
das virtudes em sociedade As virtudes por sua
vez envolvem acertar o ponto meacutedio na emoccedilatildeo
bem como na accedilatildeo (SORABJI 2000 p 190-191
traduccedilatildeo nossa)
Assim percebemos que Aristoacuteteles natildeo deixa os homens comuns
fora de suas consideraccedilotildees sobre a vida feliz dos cidadatildeos e admite
inclusive que esses homens sejam a maioria Aristoacuteteles igualmente natildeo
retira os filoacutesofos do conviacutevio na poacutelis pois natildeo eacute o fato de serem
filoacutesofos que faraacute com que deixem de ser humanos e de apresentar
funccedilatildeo e necessidades especiacuteficas agrave humanidade Aleacutem do mais entende
que mesmo os homens mais excelentes carecem de conviacutevio para deixar
claras as suas aptidotildees e beneficiar seus amigos com sua companhia (EN
Livro IX) No conviacutevio desses homens em comunidade eacute que aparecem
as emoccedilotildees e por isso o papel de destaque que o paacutethos tem na eacutetica
aristoteacutelica e na sua proposta da vida feliz motivo suficiente para nos
encorajar a continuar a pesquisar sobre o papel das emoccedilotildees na boa vida
descrita pelo filoacutesofo Para ressaltar essa interpretaccedilatildeo devemos
continuar a examinar as propostas de EN I 13 acerca das diferentes
capacidades aniacutemicas e buscar compreender como essas tais
capacidades podem estar associadas agrave emoccedilatildeo e ao seu papel junto agrave
eudaiacutemōniacutea aleacutem de deixar clara sua possibilidade de participaccedilatildeo na
razatildeo (praacutetica)
3a) Capacidades da alma
Diante das propostas de I 13 o que podemos depreender a
respeito da alma e suas capacidades O passo provavelmente
interessado em introduzir a discussatildeo das virtudes mais especificamente
da virtude moral frente agrave felicidade humana acaba por natildeo trazer
grandes informaccedilotildees sobre a psychḗ Eacute possiacutevel poreacutem apreender um
pouco mais que a famosa e provavelmente popular biparticcedilatildeo da alma
se contarmos na medida do possiacutevel com explanaccedilotildees esclarecedoras
apresentadas pelo DA Para comeccedilar podemos questionar a ideia de
uma alma partiacutevel Em decorrecircncia disso parece viaacutevel o questionamento acerca da capacidade racional e da natildeo racional e de
suas (sub)capacidades assunto que ganharaacute ainda mais esclarecimento
ao tratarmos as propostas do Livro VI sobre as virtudes intelectuais no
capiacutetulo que se seguiraacute
44
A discussatildeo sobre as emoccedilotildees nos conduziu agrave reflexatildeo acerca das
chamadas ldquopartesrdquo da alma agraves quais nos referiremos aqui pela palavra
ldquocapacidadesrdquo24 ideia que parece mais adequada agravequilo que
interpretamos como real teoria da alma em Aristoacuteteles pois o termo
grego em questatildeo eacute dyacutenamis Com EN I 13 propusemos uma capacidade
racional da alma e uma capacidade natildeo racional sendo que nesta uacuteltima
eacute demasiado importante agrave presente investigaccedilatildeo sua possibilidade de
ouvir a razatildeo Eacute duacutevida frequente entre os estudiosos da psychḗ25 e do
assunto especialmente no DA se Aristoacuteteles realmente haveria dividido
a alma como observa Bastit ao se perguntar ldquoO que eacute uma parte da
alma para Aristoacuteteles26rdquo A questatildeo eacute importante para o nosso estudo
porque nos levaraacute a entender melhor as possibilidades de mudanccedilas
nasdas emoccedilotildees a fim de que concordem com a razatildeo praacutetica Essas
variaccedilotildees satildeo necessaacuterias agrave vida feliz aleacutem de nos ajudar a entender
melhor a postura de Aristoacuteteles acerca da relaccedilatildeo corpoalma colocando
nossa investigaccedilatildeo no centro de debates ativos e atuais a respeito das
propostas do nosso filoacutesofo
Ao tratar uma possiacutevel divisatildeo da alma em partes Aristoacuteteles
ressalta que existem aqueles pensadores que a dividem e julgam que em
uma destas secccedilotildees estaria o pensar em outra o apetite Se assim fosse
questiona o que manteria a alma unida Afirma que natildeo seria o corpo e
pondera ldquoAo contraacuterio parece mais que eacute a alma que manteacutem junto o
corpo pois quando ela o abandona ele se dissipa e corromperdquo (DA I 5
411b7-8)27 Se algo diferente do corpo manteacutem a alma una seria a
proacutepria psychḗ e seria necessaacuterio investigar novamente se eacute uma unidade
ou se se divide em muitas partes O tal unificador sendo uno seria
igualmente correto afirmar que a alma eacute una Se fosse divisiacutevel seria
preciso novamente buscar o que manteacutem esse unificador coeso mas isso
24 Escolhemos traduzir dyacutenamis por ldquocapacidaderdquo tambeacutem pelo fato de termos
traduzido eacutergon por ldquofunccedilatildeordquo Traduzir ambos os termos por ldquofunccedilatildeordquo poderia
comprometer o entendimento de nossas propostas 25Novamente a conversa pode ser travada com Platatildeo que por exemplo no
Timeu (69c et seq) trata da particcedilatildeo da alma em racional e natildeo-racional
mortal e imortal base para a triparticcedilatildeo da alma em racional impulsiva e
apetitiva proposta pelo filoacutesofo ateniense 26 A frase que convenientemente nos serve como indagaccedilatildeo eacute o tiacutetulo do artigo
redigido pelo estudioso em questatildeo e que nos ajudaraacute a defender algumas das
ideias que aqui apresentaremos 27 Todas as citaccedilotildees feitas do DA tecircm traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos
Reis (2006) e seratildeo indicadas em rodapeacute no original δοκεῖ γὰρ τοὐναντίον
μᾶλλον ἡ ψυχὴ τὸ σῶμα συνέχειν ἐξελθούσης γοῦν διαπνεῖται καὶ σήπεται
45
levaria a uma progressatildeo ao infinito e seria ininteligiacutevel o que natildeo eacute
aceitaacutevel para Aristoacuteteles
Quanto agraves partes ou capacidades da alma igualmente haacute um
problema ldquoque potecircncia cada uma possui no corpordquo (DA I 5 411b15)28
Se a alma inteira eacute responsaacutevel por manter o corpo unido seria
conveniente que cada uma das suas partes mantivesse unida uma parte
do corpo Para Aristoacuteteles isso parece impossiacutevel pois seria difiacutecil
imaginar qual parte do corpo o intelecto manteria unida jaacute que parece
natildeo haver um oacutergatildeo especiacutefico correspondente agrave funccedilatildeo intelectiva o
que dificultaria igualmente saber o modo como o faria Ademais eacute
sabido que algumas espeacutecies de plantas e animais quando seccionados
continuam a viver como se tivessem a mesma alma embora natildeo
numericamente jaacute que cada uma das partes tem sensaccedilatildeo e se move
localmente ainda por um tempo Caso natildeo sobrevivam natildeo seria um
absurdo pois natildeo manteriam oacutergatildeos que lhes permitiriam continuar a
viver Assim em cada uma das partes do corpo estatildeo todas as partes ou
capacidades da alma como nos explica Bastit no passo abaixo
Assim eacute preservada uma certa determinaccedilatildeo local
dos atos de certos sentidos ndash a vista eacute o fato do
olho ndash que natildeo implica a separaccedilatildeo nem das partes
da alma nem das funccedilotildees dos sentidos e que por
consequecircncia natildeo causa subordinaccedilatildeo das partes
da alma agraves partes do corpo mas bem ao contraacuterio
uma subordinaccedilatildeo dos oacutergatildeos ao ato da parte da
alma da qual satildeo o instrumento o olho agrave visatildeo
por exemplo Por analogia a faculdade eacute
subordinada agrave alma inteira e natildeo eacute separada
Por conseguinte o ato da alma inteira deve poder
efetivamente se manifestar em todas as partes do
vivente Tratando-se de um ato este deve ser
constataacutevel Eacute justamente por isso que Aristoacuteteles
recorre ainda para repelir simultaneamente a
separaccedilatildeo real das partes da alma e sua
localizaccedilatildeo a uma observaccedilatildeo no quadro do qual
o ato do vivente inteiramente presente atualiza as
faculdades da alma do observador Ele nota na
verdade que ldquoeacute evidente que as plantas divididas
vivemrdquo Cada buquecirc de flores nos mostra isso []
Isso significa que a alma inteira princiacutepio de vida
estaacute presente em cada segmento vivente O que o
28 No original τίν ἔχει δύναμιν ἕκαστον ἐν τῷ σώματι
46
indica eacute sua capacidade de se mover e de sentir
(BASTIT 1996 p 23-24 traduccedilatildeo nossa)
Tais informaccedilotildees conduzem o estudioso da alma em Aristoacuteteles a
pensar qual a natureza do objeto em questatildeo Ao longo do DA existem
algumas tentativas de definir o que seria a alma e estas parecem levar a
entender que a melhor forma de defini-la seria a partir das capacidades
que faculta ao corpo desempenhar Para informar melhor ao interessado
nas coisas aniacutemicas o que seja a psychḗ e sua funccedilatildeo proacutepria Aristoacuteteles
escreve ldquodigamos entatildeo que o animado se distingue do inanimado pelo
viver E de muitos modos se diz o viver pois dizemos que algo vive se
nele subsiste pelo menos um destes ndash intelecto percepccedilatildeo sensiacutevel
movimento local e repouso e ainda o movimento segundo a nutriccedilatildeo o
decaimento e o crescimentordquo (DA II 2 413a20-25)29 Mesmo que as
capacidades natildeo estejam presentes em todos os viventes parece que a
melhor forma de entender a alma desde as plantas ateacute animais mais
complexos como o homem eacute como princiacutepio animador que confere
capacidades A psychḗ conferiria vida ao todo orgacircnico constituinte do
corpo sendo este conjunto de mateacuteria e forma como jaacute propusemos30
Tais capacidades permitem ao homem desde o mais simples tato ateacute a
percepccedilatildeo sensiacutevel mais sutil que conduziria agrave phantasiacutea como podemos
ler no passo que segue
O viver subsiste nos seres vivos por conta deste
princiacutepio e o animal constitui-se primordialmente
pela percepccedilatildeo sensiacutevel Pois dizemos que satildeo
animais ndash e natildeo apenas que vivem ndash tambeacutem os
que natildeo se movem nem mudam de lugar mas
possuem percepccedilatildeo E da percepccedilatildeo eacute o tato que
em todos subsiste primeiro E assim como a
capacidade nutritiva pode estar separada do tato e
de toda e qualquer percepccedilatildeo sensiacutevel tambeacutem o
29 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis no original λέγομεν οὖν ἀρχὴν
λαβόντες τῆς σκέψεως διωρίσθαι τὸ ἔμψυχον τοῦ ἀψύχου τῷ ζῆν πλεοναχῶς
δὲ τοῦ ζῆν λεγομένου κἂν ἕν τι τούτων ἐνυπάρχῃ μόνον ζῆν αὐτό φαμεν οἷον
νοῦς αἴσθησις κίνησις καὶ στάσις ἡ κατὰ τόπον ἔτι κίνησις ἡ κατὰ τροφὴν καὶ
φθίσις τε καὶ αὔξησις 30 Sobre a questatildeo da alma como conjunto de mateacuteria e forma questatildeo que
renderia ao menos um capiacutetulo agrave parte eacute possiacutevel ler mais nos dois capiacutetulos
escritos por Robinson e dedicados agrave questatildeo da alma em Aristoacuteteles em seu As
origens da alma
47
tato pode estar separado dos demais sentidos
Denominamos nutritiva tal parte da alma da qual
participam tambeacutem as plantas Todos os animais
por outro lado revelam possuir o sentido do tato ndash
e diremos posteriormente por meio de que causa
cada uma dessas coisas Por ora eacute suficiente dizer
apenas isto que a alma eacute princiacutepio das
capacidades mencionadas ndash nutritiva perceptiva
raciocinativa e de movimento ndash e que por elas eacute
definida (DA II 2 413b1-13)31
Conferindo unidade agrave sua psychḗ Aristoacuteteles abre para noacutes uma
possibilidade maior de entender a participaccedilatildeo do sensiacutevel no inteligiacutevel
bem como do racional no natildeo racional da alma descrita na EN Sendo
capacidades de algo uno natildeo seriam totalmente desconectadas
relacionando-se de algum modo como explica o Zingano ldquoA alma eacute
uma uacutenica forma com diferentes funccedilotildeesrdquo (Zingano 1998 p 37)
Retornando agraves capacidades que vivificam o corpo podemos
entender que alguns seres tecircm capacidade perceptiva e igualmente
desiderativa porque o desejo eacute querer (bouacutelēsis) impulso (thymoacutes) e
apetite (epithymiacutea DA II 3 414b2) Capacidades que estatildeo ao menos a
princiacutepio associadas agraves formas da percepccedilatildeo sensiacutevel e aos sentidos que
lhes correspondem que na descriccedilatildeo de Aristoacuteteles satildeo os mesmos que
ainda conhecemos tato olfato paladar visatildeo e audiccedilatildeo
Para que os viventes sejam classificados como animais todos
devem possuir ao menos um desses sentidos o tato Os animais que
apresentam percepccedilatildeo sensiacutevel igualmente tecircm prazer e dor Ao serem
capazes de perceber o prazeroso e o doloroso tambeacutem apresentam
apetite que eacute desejo pelo prazeroso (DA II 3 414b5-6) fogem ou
buscam o que lhes aparece como prazeroso Tais animais apresentam
obviamente percepccedilatildeo do alimento pelo tato sentido por meio do
31 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original τὸ μὲν οὖν ζῆν διὰ τὴν
ἀρχὴν ταύτην ὑπάρχει τοῖς ζῶσι τὸ δὲ ζῷον διὰ τὴν αἴσθησιν πρώτως καὶ γὰρ
τὰ μὴ κινούμενα μηδ ἀλλάττοντα τόπον ἔχοντα δ αἴσθησιν ζῷα λέγομεν καὶ
οὐ ζῆν μόνον αἰσθήσεως δὲ πρῶτον ὑπάρχει πᾶσιν ἁφή ὥσπερ δὲ τὸ θρεπτικὸν
δύναται χωρίζεσθαι τῆς ἁφῆς καὶ πάσης αἰσθήσεως οὕτως ἡ ἁφὴ τῶν ἄλλων
αἰσθήσεων (θρεπτικὸν δὲ λέγομεν τὸ τοιοῦτον μόριον τῆς ψυχῆς οὗ καὶ τὰ
φυόμενα μετέχει) τὰ δὲ ζῷα πάντα φαίνεται τὴν ἁπτικὴν αἴσθησιν ἔχοντα δι
ἣν δ αἰτίαν ἑκάτερον τούτων συμβέβηκεν ὕστερον ἐροῦμεν νῦν δ ἐπὶ
τοσοῦτον εἰρήσθω μόνον ὅτι ἐστὶν ἡ ψυχὴ τῶν εἰρημένων τούτων ἀρχὴ καὶ
τούτοις ὥρισται θρεπτικῷ αἰσθητικῷ διανοητικῷ κινήσει
48
paladar Todos os seres vivos se alimentam de coisas secas e uacutemidas
quentes e frias percebidas pelo tocar mas os seres vivos que possuem
tato igualmente possuem desejo Aristoacuteteles parece mesmo admitir a
existecircncia de imaginaccedilatildeo nesses animais embora afirme que esse
assunto natildeo estaacute esclarecido e que a phantasiacutea seraacute analisada
posteriormente anaacutelise que tambeacutem efetuaremos posteriormente Com
as descriccedilotildees e afirmaccedilatildeo feitas ateacute agora percebemos uma espeacutecie de
hierarquia entre as capacidades Mas qual a razatildeo de serem dispostas
em sucessatildeo A resposta do filoacutesofo eacute que
[] sem a nutritiva natildeo existe a capacidade
perceptiva embora nas plantas a nutritiva exista
separada da perceptiva E novamente sem o tato
nenhum dos outros sentidos subsiste embora o
tato subsista sem os outros pois diversos animais
natildeo tecircm a capacidade perceptiva uns tecircm a
locomotiva e outros natildeo Por fim pouquiacutessimos
tecircm caacutelculo e raciociacutenio Pois entre os seres
pereciacuteveis naqueles em que subsiste caacutelculo
tambeacutem subsiste cada uma das outras nem todos
tecircm caacutelculo (e alguns nem sequer imaginaccedilatildeo ao
passo que outros vivem unicamente por meio
dela) O intelecto capaz de inquirir requer uma
outra discussatildeo Eacute claro entatildeo que o enunciado
de cada uma destas capacidades eacute tambeacutem o mais
apropriado a respeito da alma (DA II 3 415a1-
13)32
A relaccedilatildeo entre as capacidades em sucessatildeo indica como
buscamos defender a unidade da alma que permite falar de emoccedilotildees
educaacuteveis graccedilas aos seus contatos com a capacidade racional e aos
elementos de racionalidade presentes em sua constituiccedilatildeo sendo por
32 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original ἄνευ μὲν γὰρ τοῦ
θρεπτικοῦ τὸ αἰσθητικὸν οὐκ ἔστιν τοῦ δ αἰσθητικοῦ χωρίζεται τὸ θρεπτικὸν
ἐν τοῖς φυτοῖς πάλιν δ ἄνευ μὲν τοῦ ἁπτικοῦ τῶν ἄλλων αἰσθήσεων οὐδεμία
ὑπάρχει ἁφὴ δ ἄνευ τῶν ἄλλων ὑπάρχει πολλὰ γὰρ τῶν ζῴων οὔτ ὄψιν οὔτ
ἀκοὴν ἔχουσιν οὔτ ὀσμῆς αἴσθησιν καὶ τῶν αἰσθητικῶν δὲ τὰ μὲν ἔχει τὸ κατὰ
τόπον κινητικόν τὰ δ οὐκ ἔχει τελευταῖον δὲ καὶ ἐλάχιστα λογισμὸν καὶ
διάνοιαν οἷς μὲν γὰρ ὑπάρχει λογισμὸς τῶν φθαρτῶν τούτοις καὶ τὰ λοιπὰ
πάντα οἷς δ ἐκείνων ἕκαστον οὐ πᾶσι λογισμός ἀλλὰ τοῖς μὲν οὐδὲ φαντασία
τὰ δὲ ταύτῃ μόνῃ ζῶσιν περὶ δὲ τοῦ θεωρητικοῦ νοῦ ἕτερος λόγος ὅτι μὲν οὖν
ὁ περὶ τούτων ἑκάστου λόγος οὗτος οἰκειότατος καὶ περὶ ψυχῆς δῆλον
49
isso assunto relevante agrave nossa pesquisa Fazemos tal afirmaccedilatildeo porque a
capacidade perceptiva mencionada no passo manteacutem contato com a
desiderativa e portanto aparece como relacionada agraves afecccedilotildees do corpo
e da alma dentre as quais estatildeo aquilo que buscamos entender como
emoccedilotildees Estando tal capacidade atrelada igualmente agraves formas que
facultam ao homem conhecer o mundo ao seu redor voltaremos ao
assunto da percepccedilatildeo sensiacutevel mais tarde Por ora nos damos por
satisfeitos em compreender e esclarecer certas questotildees levantadas pelo
comeccedilo da EN acerca da alma e de suas capacidades a) Aristoacuteteles
assim como pensadores precedentes realmente propocircs uma divisatildeo da
alma Entendemos que na EN e em Aristoacuteteles de um modo geral natildeo
haacute cisatildeo na alma e nem entre corpo e alma b) Entatildeo por que falar em
parte (moacuterion) da alma A discussatildeo sobre as partes da alma aparece
mais detalhadamente no DA em uma franca discussatildeo com os filoacutesofos
que se dedicaram anteriormente agrave questatildeo Em Aristoacuteteles mesmo na
EN aquilo que costuma ser chamado ldquoparterdquo da alma parece ser
capacidade daquilo que o filoacutesofo entende por psychḗ sendo esta
definida pelo que faculta ao corpo com o qual forma um todo
substancialmente uno desempenhar o exerciacutecio de suas capacidades -
das mais baacutesicas agraves mais complexas Acrescentamos ainda apoacutes o
estudo dos dois tratados em questatildeo nesse momento que a alma move
sem ser movida quando se trata do movimento local e de certas partes
do corpo Por esses motivos compreendemos tambeacutem que as afecccedilotildees da
alma dentre as quais estatildeo as emoccedilotildees aqui estudadas causam
mudanccedilas fiacutesicas embora natildeo necessariamente causem movimentos de
deslocamento mas podem influenciar nos movimentos dos animais
dotados de percepccedilatildeo sensiacutevel ldquoPois o perceber eacute ser afetado por algo
de maneira que o agente torna como si mesmo em atividade aquele que
eacute tal em potecircnciardquo (DA II 11 423b30-424a1)33
O estudo da alma e de suas capacidades nos levou agrave discussatildeo da
existecircncia de ldquopartesrdquo distintas e componentes de uma alma teoria que
com ajuda de Aristoacuteteles e de alguns comentadores como Zingano e
Bastit acabamos por rejeitar Mas por que deveriacuteamos nos deter em
uma pesquisa sobre uma alma partiacutevel ou unitaacuteria em um trabalho que
se pretende de cunho eacutetico A questatildeo comeccedila a ser respondida ainda
por EN I 13 passo no qual Aristoacuteteles menciona uma alma bipartida a
fim de defender a existecircncia de diferentes virtudes que comporiam a
33 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original τὸ δὲ αἰσθητήριον αὐτῶν
τὸ ἁπτικόν καὶ ἐν ᾧ ἡ καλουμένη ἁφὴ ὑπάρχει αἴσθησις πρώτῳ τὸ δυνάμει
τοιοῦτόν ἐστι μόριον
50
vida feliz Entender essa proposta somente agraves luzes da EN natildeo nos
pareceu suficiente e por isso optamos por recorrer ao DA obra
dedicada quase exclusivamente ao assunto Nesse tratado bem como ao
longo da exposiccedilatildeo da EN percebemos que a interpretaccedilatildeo de uma alma
natildeo divisiacutevel apesar de contrariar boa parte dos filoacutesofos precedentes
que dedicaram tempo agrave questatildeo contemplaria nossa interpretaccedilatildeo das
emoccedilotildees jaacute que o filoacutesofo estudado as propotildee como ldquopertencentesrdquo agrave
capacidade desiderativa da alma capaz de participar da razatildeo
Cremos que a uacutenica forma de acatar essa proposta seria
compreender a alma como algo uno sem partes totalmente isoladas
umas das outras Defendemos essa interpretaccedilatildeo a fim de que as
capacidades aniacutemicas pudessem se comunicar de que o desiderativo
participasse da razatildeo a despeito da proposta da capacidade nutritiva
acima apresentada Esta capacidade igualmente participa da vida
humana mais completa pois natildeo eacute possiacutevel a homem nenhum nem
mesmo aos filoacutesofos deixar de se alimentar por exemplo Tendo em
vista nosso interesse nas relaccedilotildees das emoccedilotildees com a razatildeo e sendo a
capacidade desiderativa o caminho possibilitador de tal relaccedilatildeo em uma
alma una que reflete um desejo capaz de se associar agrave razatildeo cabe-nos
agora estudar ao menos em grandes linhas a capacidade desiderativa da
alma humana Voltaremos agrave questatildeo da unidade da alma no capiacutetulo III
a fim de concluir nossos estudos sobre as emoccedilotildees na alma humana e
sua possiacutevel racionalidade
3b) A capacidade desiderativa da alma as accedilotildees e as emoccedilotildees na vida
feliz
Para dar prosseguimento agrave nossa busca por esclarecer os pontos
suscitados por EN I 13 trataremos agora a capacidade desiderativa da
alma humana As consideraccedilotildees supramencionadas nos levam a pensar
um desejo que apresenta trecircs formas quanto agrave sua capacidade de ouvir e
obedecer agrave razatildeo34 (DA II 12 414b2) Essas possibilidades por sua vez
perfazem uma capacidade desiderativa global e una (haplṓs orektikoacuten)
a oacuterexis Vejamos melhor qual a influecircncia desta capacidade aniacutemica no
se emocionar e no agir mas comecemos seguindo o conselho de
Aristoacuteteles e buscando entender o desejo O desiderativo estaacute entre aquelas capacidades que permitem ao
34 Ver EN II - III 1111a23-35 1111b1-3 sobre as emoccedilotildees natildeo racionais
conformes aos desejos natildeo racionais tambeacutem Sorabji (2002 p 323) e AGGIO
(2017 no prelo)
51
corpo executar as atividades indispensaacuteveis agrave sua existecircncia a nutriccedilatildeo
a percepccedilatildeo e o raciociacutenio A funccedilatildeo desiderativa seria comum a todos
os animais embora somente o homem possuiacutesse todas as dynaacutemeis (capacidades) mencionadas sendo o desejo natural ao homem Como
isso pode ser importante se nesse ponto do estudo temos em vista a
definiccedilatildeo de emoccedilatildeo frente a uma vida feliz A resposta eacute Aristoacuteteles
considera que na alma haacute trecircs fatores determinantes da accedilatildeo e da
verdade sensaccedilatildeo intelecto e desejo (aiacutesthēsis noucircs oacuterexis) mas a
sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepio da accedilatildeo moral pois mesmo as bestas a
possuem Ocasionaria o movimento comum a todos os viventes mas a
accedilatildeo eacute composta por movimentos fiacutesicos todavia tendo em vista um
fim especiacutefico e bom quando da associaccedilatildeo entre desejo e intelecto seria
propriamente humana assunto que abordaremos em maiores detalhes
adiante
A afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo satildeo da ordem do pensamento o buscar e
o fugir satildeo da ordem do desiderativo (EN VI 2 1139a20-22) As
aparecircncias que excitam o desejo levam agrave emoccedilatildeo e podem levar a
formulaccedilatildeo de tipos de juiacutezos (DA III 9 MA II) Ainda que o orthograves
loacutegos (reta razatildeo) segundo Tricot (2012 p 298) seja a maacutexima geral da
conduta e que deste modo o pensamento deva determinar aquilo a ser
alcanccedilado o intelecto por si mesmo natildeo move pois ldquoda parte do
intelecto praacutetico seu bom estado consiste na verdade correspondente ao
desejo ao desejo corretordquo (EN 1139a29-31)35 Sem a oacuterexis que define
o fim a se buscar natildeo haacute accedilatildeo Assim o desejaacutevel eacute a causa final da
accedilatildeo e o desejo pode ser sua causa eficiente quando conjugado ao
intelecto praacutetico fazendo mover na direccedilatildeo do que eacute correto Este
intelecto depois que a oacuterexis determina o objeto a se buscar potildee-se a
procurar os meios necessaacuterios para que se alcance aquilo que eacute desejado
Apoacutes determinados os meios a tarefa de tal intelecto estaacute completa e
vem a accedilatildeo quem move portanto eacute um intelecto que tem em vista um
fim e que eacute de ordem praacutetica ou seja associado ao desejo que precede a
atividade no tempo (EN X 5 1175b30-33)36 Quanto a isso o DA
explica
Aleacutem disso mesmo que o intelecto ordene e o
raciociacutenio diga que se evite ou busque algo o
35 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original τοῦ δὲ πρακτικοῦ καὶ διανοητικοῦ ἀλήθεια ὁμολόγως
ἔχουσα τῇ ὀρέξει τῇ ὀρθῇ 36 Mas o prazer lhe eacute simultacircneo
52
indiviacuteduo natildeo se move mas age de acordo com o
apetite como no caso dos incontinentes []
Tampouco o desejo eacute responsaacutevel por esse
movimento pois os que satildeo continentes mesmo
desejando e tendo apetite natildeo fazem essas coisas
pelas quais tecircm desejo mas seguem o intelecto
Mostra-se entatildeo que haacute dois fatores que fazem
mover o desejo ou o intelecto contanto que se
considere a imaginaccedilatildeo um certo pensamento
Pois muitos seguem sua imaginaccedilatildeo em vez da
ciecircncia mas nos outros animais natildeo haacute nem
pensamento nem raciociacutenio e sim imaginaccedilatildeo
Logo satildeo estes os dois capazes de fazer mover
segundo o lugar o intelecto que raciocina em
vista de algo e que eacute praacutetico o qual difere do
intelecto contemplativo quanto ao fim E todo
desejo por sua vez eacute em vista de algo pois aquilo
de que haacute desejo eacute o princiacutepio do intelecto praacutetico
ao passo que o uacuteltimo item pensado eacute o princiacutepio
da accedilatildeo (DA III 9-10 433a1-17)37
Assim confirma-se que satildeo o desejo e o intelecto praacutetico que
fazem mover porque o objeto desejado leva ao movimento e o intelecto
determina como buscaacute-lo Em uacuteltima anaacutelise existe ldquoalgo uacutenico de fato
que faz mover o desejaacutevelrdquo (tograve orektoacuten DA 433a18-20 cf Besnier
2008 p 58)38 Isso acontece porque o desejo eacute princiacutepio indispensaacutevel
da accedilatildeo e quando a imaginaccedilatildeo move igualmente natildeo o faz sem desejo
Se intelecto e desejo movessem quanto ao lugar moveriam segundo
uma forma comum Isso implica que quando o desejo concorda desde o
iniacutecio e sem grandes resistecircncias com o intelecto eacute sua forma querer
37 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original ἔτι καὶ ἐπιτάττοντος τοῦ
νοῦ καὶ λεγούσης τῆς διανοίας φεύγειν τι ἢ διώκειν οὐ κινεῖται ἀλλὰ κατὰ τὴν
ἐπιθυμίαν πράττει οἷον ὁ ἀκρατής [] ἀλλὰ μὴν οὐδ ἡ ὄρεξις ταύτης κυρία
τῆς κινήσεως οἱ γὰρ ἐγκρατεῖς ὀρεγόμενοι καὶ ἐπιθυμοῦντες οὐ πράττουσιν ὧν
ἔχουσι τὴν ὄρεξιν ἀλλ ἀκολουθοῦσι τῷ νῷ Φαίνεται δέ γε δύο ταῦτα
κινοῦντα ἢ ὄρεξις ἢ νοῦς εἴ τις τὴν φαντασίαν τιθείη ὡς νόησίν τινα πολλοὶ
γὰρ παρὰ τὴν ἐπιστήμην ἀκολουθοῦσι ταῖς φαντασίαις καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις ζῴοις
οὐ νόησις οὐδὲ λογισμὸς ἔστιν ἀλλὰ φαντασία ἄμφω ἄρα ταῦτα κινητικὰ κατὰ
τόπον νοῦς καὶ ὄρεξις νοῦς δὲ ὁ ἕνεκά του λογιζόμενος καὶ ὁ πρακτικός
διαφέρει δὲ τοῦ θεωρητικοῦ τῷ τέλει καὶ ἡ ὄρεξις ltδgt ἕνεκά του πᾶσα οὗ γὰρ
ἡ ὄρεξις αὕτη ἀρχὴ τοῦ πρακτικοῦ νοῦ τὸ δ ἔσχατον ἀρχὴ τῆς πράξεως ὥστε
εὐλόγως δύο ταῦτα φαίνεται τὰ κινοῦντα ὄρεξις καὶ διάνοια πρακτική 38 Idem no original ἓν δή τι τὸ κινοῦν τὸ ὀρεκτικόν
53
(bouacutelēsis) que move O desejo contudo eacute capaz de mover sem o
raciociacutenio jaacute que o apetite (epithymiacutea) pode ser um tipo de desejo natildeo
conformado ou minimamente conformado ao intelecto ldquoIntelecto
entatildeo eacute sempre correto ao passo que o desejo e a imaginaccedilatildeo ora
corretos ora natildeo corretos Por isso eacute sempre o desejaacutevel que move
embora este seja tanto o bem como o bem aparente mas natildeo todo o
bem e sim o bem praacutetico apenas E o praticaacutevel eacute o que admite ser de
outro modordquo (DA III 10 433a26-30)39 Fica claro entatildeo que eacute uma
capacidade da alma do tipo desiderativo que move (DA III 10 433a31-
32) embora o proacuteprio desejaacutevel se mantenha estaacutetico ldquoEm suma eacute isto
o que foi dito na medida em que o animal eacute capaz de desejar por isso
mesmo ele eacute capaz de se moverrdquo (DA III 10 433b27-28)40 portanto sem
desejo natildeo haacute accedilatildeo Deste modo Aristoacuteteles apresenta a equaccedilatildeo cujos
termos resultam na accedilatildeo
[] primeiro o que faz mover segundo aquilo
por meio de que move e terceiro aquele que eacute
movido E de dois tipos o que faz mover ndash um eacute o
imoacutevel outro eacute o que faz mover sendo movido -
o bem praticaacutevel por sua vez eacute imoacutevel o que faz
mover sendo movida eacute a capacidade de desejar
(pois aquele que deseja move-se enquanto deseja
e o desejo eacute um certo movimento quando eacute desejo
em ato) e aquele que eacute movido por fim eacute o
animal O oacutergatildeo por meio do qual o desejo move
eacute de sua parte algo corporal ndash e por isso eacute nas
funccedilotildees comuns ao corpo e agrave alma que se deve
inquirir sobre ele (DA III 10 433b13-21)41
39 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original νοῦς μὲν οὖν πᾶς ὀρθός
ἐστιν ὄρεξις δὲ καὶ φαντασία καὶ ὀρθὴ καὶ οὐκ ὀρθή διὸ ἀεὶ κινεῖ μὲν τὸ
ὀρεκτόν ἀλλὰ τοῦτ ἐστὶν ἢ τὸ ἀγαθὸν ἢ τὸ φαινόμενον ἀγαθόν οὐ πᾶν δέ
ἀλλὰ τὸ πρακτὸν ἀγαθόν πρακτὸν δ ἐστὶ τὸ ἐνδεχόμενον καὶ ἄλλως ἔχειν 40 Idem no original ὅλως μὲν οὖν ὥσπερ εἴρηται ᾗ ὀρεκτικὸν τὸ ζῷον ταύτῃ
αὑτοῦ κινητικόν 41 Idem no original ἐπεὶ δ ἔστι τρία ἓν μὲν τὸ κινοῦν δεύτερον δ ᾧ κινεῖ ἔτι
τρίτον τὸ κινούμενον τὸ δὲ κινοῦν διττόν τὸ μὲν ἀκίνητον τὸ δὲ κινοῦν καὶ
κινούμενον ἔστι δὴ τὸ μὲν ἀκίνητον τὸ πρακτὸν ἀγαθόν τὸ δὲ κινοῦν καὶ
κινούμενον τὸ ὀρεκτικόν (κινεῖται γὰρ τὸ κινούμενον ᾗ ὀρέγεται καὶ ἡ ὄρεξις
κίνησίς τίς ἐστιν ἡ ἐνεργείᾳ) τὸ δὲ κινούμενον τὸ ζῷον ᾧ δὲ κινεῖ ὀργάνῳ ἡ
ὄρεξις ἤδη τοῦτο σωματικόν ἐστιν ndash διὸ ἐν τοῖς κοινοῖς σώματος καὶ ψυχῆς
ἔργοις θεωρητέον περὶ αὐτοῦ
54
O passo do DA esclarece que o desejo eacute entendido como uma
capacidade da alma que move a accedilatildeo por isso dizendo respeito aos fins
Eacute todavia especificamente EN I 13 que primeiro indica o desejo como
devendo se harmonizar com as sugestotildees de accedilatildeo do intelecto praacutetico
para que este mova de certo modo (ou do modo certo) Estes podem se
harmonizar pois o desejo pelo que foi exposto nas obras estudadas
apesar de natildeo racional eacute capaz ouvir e seguir a razatildeo mais ou menos
quando educado e bem-educado ouve-a mais O mesmo parece ser
vaacutelido quanto agraves emoccedilotildees devido agrave sua natureza desiderativa podem
ouvir e obedecer ou seja ser educadas conforme o orthograves loacutegos como
proposto na exposiccedilatildeo de Aggio
Pois bem ao contraacuterio da moral estoacuteica
Aristoacuteteles pressupotildee uma possiacutevel e necessaacuteria
harmonia das nossas afecccedilotildees da parte natildeo
racional tais como os desejos e as emoccedilotildees com
a nossa racionalidade praacutetica Para ele desejo e
razatildeo satildeo inseparaacuteveis como o corpo e a alma a
cera e o selo impresso o maacutermore e a estaacutetua
Inseparaacuteveis todavia distintos Por isso mesmo
desprovido ele proacuteprio de razatildeo o desejo pode
participar dela e por outro lado mesmo a razatildeo
desprovida de desejo ela pode participar dele
(AGGIO 2017 no prelo)
Sendo assim o desejo eacute o que nos move e sendo o movimento
um tipo de alteraccedilatildeo imprescindiacutevel agrave prāxis sofrida ao mesmo tempo
pelo corpo e pela alma entendemos por que o apetite estaacute na lista das
paacutethē na EN Tal presenccedila confirma nossa proposta da existecircncia de um
significado mais amplo para o termo que o nosso entendimento hodierno
de emoccedilatildeo ou paixatildeo mas como vimos Aristoacuteteles expotildee mais de uma
forma de desejo e relaciona tais formas a diferentes emoccedilotildees Portanto
seraacute preciso discutir o assunto que ainda nos eacute um tanto obscuro e
problemaacutetico para que possamos compreender melhor nosso objeto de
estudo atrelado como estaacute desde a alma ao desejo
3b1) Desejos
Apoacutes definir brevemente a forma geral do desejo e abordar a
capacidade aniacutemica que eacute responsaacutevel por ela resta tratar suas formas
especiacuteficas Como expusemos pouco acima Aristoacuteteles distingue trecircs
formas de sentir dentro da faculdade desiderativa querer impulso e
55
apetite Estas satildeo importantes agrave medida que se associam agraves diferentes
emoccedilotildees bem como influenciam accedilotildees variadas e que estatildeo em poder
dos agentes Ao falar de trecircs tipos de desejo contudo deveriacuteamos inferir
que a capacidade desiderativa eacute passiacutevel de divisatildeo Aristoacuteteles estaria a
concordar com Platatildeo e a propor um desejo dividido em trecircs Trechos
como Retoacuterica 1369a1-7 nos apresentam diferentes desejos racionais e
irracionais todavia isso natildeo implica que o desejo em Aristoacuteteles seja
seccionado Pensamos jaacute ter esclarecido que Aristoacuteteles fala de uma
cisatildeo da alma para se posicionar frente aos pensadores de sua eacutepoca e
provavelmente para abordar a existecircncia de virtudes morais e
intelectuais Existem contudo posturas como as de Cooper (1999 p
256 et seq) que defende a existecircncia de desejo racional e desejos natildeo
racionais Se todavia classificamos o desiderativo como capacidade da
alma e entendemos que esta natildeo pode ser fracionada respondemos
negativamente agrave possibilidade de fracionamento do desejo Temos uma
capacidade que pode ouvir mais ou menos agrave razatildeo conforme seus
objetos sendo por isso una e complexa como nos explica Aggio
Primeiramente se jaacute eacute um erro dividir a alma em
partes seria com mais razatildeo absurdo dividir a
faculdade desiderativa colocando o querer na
parte racional mas o apetite e o impulso na parte
natildeo racional ou mesmo distribuindo o desejo em
trecircs partes se reconhececircssemos trecircs partes da
alma como fez Platatildeo em Repuacuteblica livro IV
Ao contraacuterio o desejo natildeo se divide em partes
mas se diz de trecircs modos conforme a razatildeo o
prazer e a dor visto que o desejo (oacuterexis) eacute tanto o
querer (bouacutelēsis) o apetite (epithymiacutea) e impulso
(thymoacutes) (AGGIO 2017 no prelo)
Haacute diferentes desejos sob a capacidade desiderativa da
alma que satildeo capazes de participar da razatildeo de modos diferentes
negando a possibilidade de perceber em Aristoacuteteles uma triparticcedilatildeo do
desejo de tipo platocircnica Por tal motivo trataremos sucintamente de
cada forma do desejo e buscaremos ressaltar suas qualidades pateacuteticas
bem como suas relaccedilotildees com as emoccedilotildees Cremos que isso ao fim de nossa pesquisa nos permitiraacute responder agraves questotildees que propomos
devido agrave possibilidade de educaccedilatildeo e de habituaccedilatildeo dos desejos agraves boas
accedilotildees conformes agrave razatildeo Portanto observaremos agora e brevemente
as formas particulares do desejo
56
3b2) Os desejos menos racionais
Aristoacuteteles nos apresenta dois tipos de desejo natildeo racionais
embora capazes de ouvir a razatildeo42 Tal proposta sugerida em EN I 13
tem sua comprovaccedilatildeo em Rhet I com sua descriccedilatildeo do apetite O passo
aparenta propor este desejo como irracional poreacutem acaba por desfazer
tal embaraccedilo se lhe prestamos a devida atenccedilatildeo O apetite eacute descrito pelo
filoacutesofo como desejo pelo que eacute prazeroso embora afirme tambeacutem que
todo desejo estaacute relacionado ao prazeroso Por conseguinte
Faz-se pelo desejo tudo o que parece agradaacutevel
Tambeacutem o familiar e o habitual se contam entre as
coisas agradaacuteveis pois muitas coisas que natildeo satildeo
naturalmente agradaacuteveis se fazem com prazer
quando se tornam habituais Assim em resumo
todos os atos que os homens praticam por si
mesmos satildeo realmente bons ou parecem secirc-lo satildeo
realmente agradaacuteveis ou parecem secirc-lo Ora como
os homens fazem voluntariamente o que fazem
por si mesmos segue-se que tudo o que fazem
voluntariamente seraacute bom ou aparentemente bom
seraacute agradaacutevel ou aparentemente agradaacutevel []
Agradaacutevel eacute tambeacutem tudo aquilo que temos em
noacutes o desejo pois o desejo eacute apetite do agradaacutevel
Dos desejos uns satildeo irracionais e outros
racionais Chamo irracionais aos que natildeo
procedem de um ato preacutevio da compreensatildeo e satildeo
desse tipo todos os que se dizem ser naturais
como os que procedem do corpo [] Satildeo
racionais os desejos que procedem da persuasatildeo
pois haacute muitas coisas que desejamos ver e adquirir
porque ouvimos falar delas e fomos persuadidos
de que satildeo agradaacuteveis (Rhet I 10 1369b15-23 I
11 1370a16-21 e 25-27)43
42Novamente a conversa pode ser travada com Platatildeo que por exemplo no
Fedro fala da alma como um carro conduzido por dois cavalos que simbolizam
as forccedilas irracionais da psychḗ que conflitam entre si uma seguindo agrave esquerda
enquanto outra puxa para a direita 43 Todas as citaccedilotildees da Rhet tecircm traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena
(2012) com o original em grego anotado no rodapeacute tal como a seguinte
anotaccedilatildeo δι ἐπιθυμίαν δὲ πράττεται ὅσα φαίνεται ἡδέα ἔστιν δὲ καὶ τὸ σύνηθες
καὶ τὸ ἐθιστὸν ἐν τοῖς ἡδέσιν πολλὰ γὰρ καὶ τῶν φύσει μὴ ἡδέων ὅταν
57
Este passo da Retoacuterica nos diz muito sobre o apetite busca o
agradaacutevel eacute ldquoirracionalrdquo quando natildeo ldquoproceder de um ato preacutevio da
compreensatildeordquo ressaltando sua possibilidade de ouvir a razatildeo quando
proceder da compreensatildeo e eacute natural jaacute que natildeo eacute engendrado no
homem por haacutebitos ou ensinamentos existindo por toda a vida humana
eacute responsaacutevel por aqueles prazeres como os que vecircm do corpo O
proacuteprio Aristoacuteteles admite a dificuldade em se fugir desse tipo de prazer
(EN II 2 1105a7-8) e com isso entendemos igualmente a dificuldade
em controlar ou mesmo evitar o desejo relacionado ao prazer corporal
pois o filoacutesofo o associa agraves afecccedilotildees ligadas aos prazeres corporais Em
certo passo da EN (III 3 1111a30-31) curiosamente Aristoacuteteles afirma
que os apetites e por sua vez os prazeres do corpo natildeo ouvem agrave razatildeo
ao contraacuterio do impulso ldquoAssim o apetite enquanto um desejo natildeo
racional (aacutelogos) toma o que eacute prazeroso como aquilo que simples e
naturalmente aparece ao agente como prazeroso E o que nos parece ser
prazeroso eacute o que nos parece ser bom mesmo que natildeo o sejardquo (AGGIO
2017 no prelo) A interpretaccedilatildeo do passo natildeo eacute simples jaacute que na Eacutetica
Nicomaqueia podemos ler tambeacutem uma afirmaccedilatildeo que diz natildeo ser
correto considerar accedilotildees praticadas por apetite e impulso como
involuntaacuterias
Sendo involuntaacuteria a accedilatildeo realizada por forccedila e
por ignoracircncia o voluntaacuterio parece ser aquilo cujo
princiacutepio reside no agente que conhece as
circunstacircncias particulares nas quais ocorre a
accedilatildeo Natildeo eacute presumivelmente correto dizer pois
que as accedilotildees praticadas por impulso ou por apetite
satildeo involuntaacuterias pois neste caso em primeiro
lugar nenhum outro animal poderaacute agir
voluntariamente tampouco poderatildeo as crianccedilas
Depois quer isto dizer que natildeo fazemos nada
voluntariamente por apetite ou por impulso ou
συνεθισθῶσιν ἡδέως ποιοῦσιν ὥστε συλλαβόντι εἰπεῖν ὅσα δι αὑτοὺς
πράττουσιν ἅπαντ ἐστὶν ἢ ἀγαθὰ ἢ φαινόμενα ἀγαθά ἢ ἡδέα ἢ φαινόμενα ἡδέα
ἐπεὶ δ ὅσα δι αὑτοὺς ἑκόντες πράττουσιν οὐχ ἑκόντες δὲ ὅσα μὴ δι αὑτούς
πάντ ἂν εἴη ὅσα ἑκόντες πράττουσιν ἢ ἀγαθὰ ἢ φαινόμενα ἀγαθά ἢ ἡδέα ἢ
φαινόμενα ἡδέα[] τῶν δὲ ἐπιθυμιῶν αἱ μὲν ἄλογοί εἰσιν αἱ δὲ μετὰ λόγου
λέγω δὲ ἀλόγους ὅσας μὴ ἐκ τοῦ ὑπο-λαμβάνειν ἐπιθυμοῦσιν (εἰσὶν δὲ τοιαῦται
ὅσαι εἶναι λέγονται φύσει ὥσπερ αἱ διὰ τοῦ σώματος ὑπάρχουσαι [] μετὰ
λόγου δὲ ὅσας ἐκ τοῦ εισθῆναι ἐπιθυμοῦσιν πολλὰ γὰρ καὶ θεάσασθαι καὶ
κτήσασθαι ἐπιθυμοῦσιν ἀκούσαντες καὶ πεισθέντες
58
que fazemos as coisas belas voluntariamente e
involuntariamente as ignoacutebeis Natildeo eacute isto risiacutevel
havendo uma uacutenica causa Eacute igualmente absurdo
dizer que satildeo involuntaacuterias as coisas que eacute preciso
desejar eacute preciso encolerizar-se a respeito de
algumas e ter apetite por outras (por exemplo
pela sauacutede e pela instruccedilatildeo) E as accedilotildees
involuntaacuterias parecem ser penosas as por apetite
agradaacuteveis Aleacutem disso qual eacute a diferenccedila quanto
ao ser involuntaacuterio dos erros cometidos por
caacutelculo ou por impulso Por um lado ambos satildeo a
evitar por outro parecem natildeo ser menos humanas
as emoccedilotildees natildeo-racionais de sorte que tambeacutem as
accedilotildees por impulso e por apetite pertencem ao
homem Postular que satildeo involuntaacuterias eacute assim
um absurdo (EN III 3 1111a22-35 1111b1-3)44
A nosso ver o passo desfaz a duacutevida quanto agrave participaccedilatildeo do
apetite na razatildeo concordando com o que expusemos anteriormente Tal
desejo difere dos demais por ser mais resistente agrave razatildeo natildeo por ser-lhe
totalmente surdo portanto quando em acordo com o loacutegos leva a
prazeres convenientes e a accedilotildees adequadas bem como a emoccedilotildees
moderadas
Os trechos supracitados ao falarem do impulso e do apetite
indicam que haacute mais coisas comuns aos desejos em questatildeo que seu
caraacuteter natildeo racional e os impasses quanto a isso por exemplo ambos
existem nos animais O Livro VII da EN entretanto aumenta nossos
conhecimentos e duacutevidas acerca dos apetites ao passo que esclarece
algumas coisas sobre os impulsos Faz isso ao tratar da incontinecircncia
44 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Ὄντος δ ἀκουσίου τοῦ βίᾳ καὶ δι ἄγνοιαν τὸ ἑκούσιον
δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξις ἴσως
γὰρ οὐ καλῶς λέγεται ἀκούσια εἶναι τὰ διὰ θυμὸν ἢ ἐπιθυμίαν πρῶτον μὲν γὰρ
οὐδὲν ἔτι τῶν ἄλλων ζῴων ἑκουσίως πράξει οὐδ οἱ παῖδες εἶτα πότερον οὐδὲν
ἑκουσίως πράττομεν τῶν δι ἐπιθυμίαν καὶ θυμόν ἢ τὰ καλὰ μὲν ἑκουσίως τὰ δ
αἰσχρὰ ἀκουσίως ἢ γελοῖον ἑνός γε αἰτίου ὄντος ἄτοπον δὲ ἴσως ἀκούσια
φάναι ὧν δεῖ ὀρέγεσθαι δεῖ δὲ καὶ ὀργίζεσθαι ἐπί τισι καὶ ἐπιθυμεῖν τινῶν οἷον
ὑγιείας καὶ μαθήσεως δοκεῖ δὲ καὶ τὰ μὲν ἀκούσια λυπηρὰ εἶναι τὰ δὲ κατ
ἐπιθυμίαν ἡδέα ἔτι δὲ τί διαφέρει τῷ ἀκούσια εἶναι τὰ κατὰ λογισμὸν ἢ θυμὸν
ἁμαρτηθέντα φευκτὰ μὲν γὰρ ἄμφω δοκεῖ δὲ οὐχ ἧττον ἀνθρωπικὰ εἶναι τὰ
ἄλογα πάθη ὥστε καὶ αἱ πράξεις τοῦ ἀνθρώπου αἱ ἀπὸ θυμοῦ καὶ ἐπιθυμίας
ἄτοπον δὴ τὸ τιθέναι ἀκούσια ταῦτα
59
(mais que da continecircncia) separando-a em incontinecircncia por epithymiacutea
(prazer) e incontinecircncia por thymoacutes (raiva) O incontinente em sentido
estrito ou seja por epithymiacutea natildeo age por escolha deliberada mas age
por apetite O continente escolhe deliberadamente mas natildeo age de
acordo com a epithymiacutea A escolha deliberada se opotildee a este uacuteltimo
desejo e natildeo eacute o apetite que se opotildee a um outro apetite (EN III 4
1111b14-17) Este estaacute relacionado ao agradaacutevel e ao penoso enquanto
a escolha deliberada natildeo estaacute relacionada a nenhum dos dois
Eis aiacute uma segunda semelhanccedila o impulso tambeacutem natildeo leva a
agir por escolha deliberada (EN III 4 1111b19) mas parece estar
relacionado principalmente agrave dor o que eacute percebido quando a Retoacuterica
(I 10 1369a4) o liga agrave raiva e a EN (III 3 1111a30-31) ao enraivecer-se
A natureza impetuosa eacute combativa guerreira Pede por justiccedila e
vinganccedila manifestando-se por meio da injuacuteria do ultraje e do desprezo
O apetite eacute naturalmente sedutor manipulador dado a tramas tem o
prazer por objeto mesmo que se valha do ultraje do engano e da ilusatildeo
para consegui-lo e sua manifestaccedilatildeo pode surgir com o prazer
proporcionado por estes tipos de atos As accedilotildees do impulso causam dor
ao agente mas as do apetite causam prazer (EN VII 7 1149b20-21) O
impulso reage a algo doloroso aparentemente desmerecido e injusto
como um ultraje sofrido Por isso a accedilatildeo impulsiva parece mais
dolorosa e involuntaacuteria que a accedilatildeo por apetite sendo uma accedilatildeo
voluntaacuteria prazerosa mais grave moralmente do que uma accedilatildeo voluntaacuteria
dolorosa Sobre esse assunto Aristoacuteteles escreveu
A primeira forma de incontinecircncia eacute a
impetuosidade e a outra fraqueza Alguns
homens na verdade depois que deliberaram natildeo
persistem no resultado de sua deliberaccedilatildeo e estatildeo
sob o efeito da paixatildeo para outros ao contraacuterio eacute
graccedilas agrave sua falta de deliberaccedilatildeo que satildeo levados
pela paixatildeo alguns em verdade (semelhantes
nisso agravequeles que tendo sido tomados por coacutecegas
natildeo satildeo eles mesmos os que fazem coacutecegas) se
eles sentiram e viram antecipadamente que vai
lhes acontecer e se eles puderam antes dar o
despertar agrave eles mesmos e agrave faculdade de
raciocinar natildeo sucumbem entatildeo pelo efeito da
paixatildeo quer este seja um prazer ou uma dor Satildeo
acima de tudo homens de humor vivo e os homens
de temperamento excitaacutevel que estatildeo sujeitos agrave
incontinecircncia sob a forma de impetuosidade os
60
primeiros por sua precipitaccedilatildeo e os segundos por
sua violecircncia natildeo tecircm a paciecircncia de ouvir a
razatildeo inclinados que estatildeo a seguir a sua
imaginaccedilatildeo (EN VII 8 1150b19-28)45
Nesse passo a incontinecircncia pela raiva (akrasiacutea toucirc thymoucirc) eacute
considerada menos desonrosa que aquela por apetite Aristoacuteteles
enumera alguns motivos para tanto e noacutes o seguiremos 1) como
dissemos devemos pensar que a raiva (thymoacutes) ateacute certo ponto parece
ouvir a razatildeo mas daquele modo como os servos que mal escutam a
ordem do senhor e saem correndo para fazer o que eacute ordenado sendo
sua accedilatildeo resultado de um impulso natildeo educado Assim a raiva devido
ao seu calor e precipitaccedilatildeo naturais natildeo ouve direito a ordem do
racional (natildeo entende mas pensa ter entendido) e se lanccedila agrave vinganccedila
portanto pode ser excitada por razatildeo ou imaginaccedilatildeo enquanto o apetite
pode ser despertado por razatildeo ou sensaccedilatildeo (EN VII 7 1149a30-36)
Essas afirmaccedilotildees satildeo confirmadas pelo passo abaixo
A razatildeo ou a imaginaccedilatildeo na verdade apresentam
a nossos olhos um insulto ou uma marca de
desdeacutem sentido e a coacutelera depois de ter
concluiacutedo por um tipo de raciociacutenio eacute engajar as
hostilidades contra um tal insultador explode
entatildeo bruscamente o apetite ao contraacuterio uma
vez que a razatildeo ou a sensaccedilatildeo apenas disse que
uma coisa eacute agradaacutevel se lanccedila por gozaacute-la Em
consequecircncia a coacutelera obedece agrave razatildeo em um
sentido enquanto o apetite natildeo obedece Portanto
a vergonha eacute maior nesse uacuteltimo caso jaacute que o
homem intemperante na coacutelera eacute em um sentido
vencido pela razatildeo enquanto o outro eacute pelo
apetite e natildeo pela razatildeo (EN VII 7 1149a31-35
45Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ἀκρασίας δὲ τὸ μὲν προπέτεια τὸ δ ἀσθένεια οἳ μὲν γὰρ
βουλευσάμενοι οὐκ ἐμμένουσιν οἷς ἐβουλεύσαντο διὰ τὸ πάθος οἳ δὲ διὰ τὸ μὴ
βουλεύσασθαι ἄγονται ὑπὸ τοῦ πάθους ἔνιοι γάρ ὥσπερ προγαργαλίσαντες οὐ
γαργαλίζονται οὕτω καὶ προαισθόμενοι καὶ προϊδόντες καὶ προεγείραντες
ἑαυτοὺς καὶ τὸν λογισμὸν οὐχ ἡττῶνται ὑπὸ τοῦ πάθους οὔτ ἂν ἡδὺ ᾖ οὔτ ἂν
λυπηρόν μάλιστα δ οἱ ὀξεῖς καὶ μελαγχολικοὶ τὴν προπετῆ ἀκρασίαν εἰσὶν
ἀκρατεῖς οἳ μὲν γὰρ διὰ τὴν ταχυτῆτα οἳ δὲ διὰ τὴν σφοδρότητα οὐκ
ἀναμένουσι τὸν λόγον διὰ τὸ ἀκολουθητικοὶ εἶναι τῇ φαντασίᾳ
61
1149b1-3)46
2) Outra coisa a se pensar eacute que perdoamos com maior facilidade
aqueles que satildeo levados por desejos naturais mesmo no caso dos
apetites quando cedem aos desejos comuns a todos e na medida em que
satildeo comuns A raiva e o mau humor satildeo mais naturais que os apetites
pelos prazeres excessivos e desnecessaacuterios 3) Ainda uma coisa a se
considerar eacute que se eacute tanto mais injusto quanto mais se vale de manobras
peacuterfidas O raivoso natildeo tem perfiacutedia mas o apetite eacute ardiloso se a
incontinecircncia por apetite eacute mais injusta eacute igualmente mais vergonhosa e
eacute um viacutecio em certo sentido (em um certo sentido porque lhe falta a
escolha deliberada) 4) Uma uacuteltima consideraccedilatildeo feita por Aristoacuteteles
acerca do assunto eacute que se ningueacutem faz sofrer um ultraje com um
sentimento de afliccedilatildeo (ao contraacuterio) um homem que age por raiva age
sentindo dor ao passo que quem ultraja sente prazer Se os atos contra
os quais uma viacutetima se enraivece mais justamente satildeo mais injustos que
outros a incontinecircncia por apetite eacute igualmente mais injusta que a por
raiva pois na raiva natildeo haacute ultraje
Diante disso entendemos que natildeo eacute o fato de amar e desejar
coisas como o prazer que faz de um homem culpaacutevel mas o modo como
se ama o objeto amado e o fato de desejar tais coisas excessivamente
Assim fazem os que burlam a regra como o incontinente sendo que a
incontinecircncia deve ser evitada pois eacute maacute e culpaacutevel Haacute contudo
incontinecircncia por analogia naqueles casos mencionados em que
chamamos ldquoacrasia porrdquo caso da incontinecircncia por raiva Com essas
consideraccedilotildees fica claro que incontinecircncia e continecircncia verdadeiras soacute
se aplicam ao caso em que os objetos buscados satildeo os mesmos buscados
pelos temperantes e pelos intemperantes sendo os demais mesmo no
caso da raiva incontinecircncia por similitude Eacute claro tambeacutem que haacute tipos
46Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ἀκρασία ἡ τοῦ θυμοῦ ἢ ἡ τῶν ἐπιθυμιῶν θεωρήσωμεν
ἔοικε γὰρ ὁ θυμὸς ἀκούειν μέν τι τοῦ λόγου παρακούειν δέ καθάπερ οἱ ταχεῖς
τῶν διακόνων οἳ πρὶν ἀκοῦσαι πᾶν τὸ λεγόμενον ἐκθέουσιν εἶτα ἁμαρτάνουσι
τῆς προστάξεως καὶ οἱ κύνες πρὶν σκέψασθαι εἰ φίλος ἂν μόνον ψοφήσῃ
ὑλακτοῦσιν οὕτως ὁ θυμὸς διὰ θερμότητα καὶ ταχυτῆτα τῆς φύσεως ἀκούσας
μέν οὐκ ἐπίταγμα δ ἀκούσας ὁρμᾷ πρὸς τὴν τιμωρίαν ὁ μὲν γὰρ λόγος ἢ ἡ
φαντασία ὅτι ὕβρις ἢ ὀλιγωρία ἐδήλωσεν ὃ δ ὥσπερ συλλογισάμενος ὅτι δεῖ
τῷ τοιούτῳ πολεμεῖν χαλεπαίνει δὴ εὐθύς ἡ δ ἐπιθυμία ἐὰν μόνον εἴπῃ ὅτι ἡδὺ
ὁ λόγος ἢ ἡ αἴσθησις ὁρμᾷ πρὸς τὴν ἀπόλαυσιν ὥσθ ὁ μὲν θυμὸς ἀκολουθεῖ
τῷ λόγῳ πως ἡ δ ἐπιθυμία οὔ αἰσχίων οὖν ὁ μὲν γὰρ τοῦ θυμοῦ ἀκρατὴς τοῦ
λόγου πως ἡττᾶται ὃ δὲ τῆς ἐπιθυμίας καὶ οὐ τοῦ λόγου
62
de incontinecircncia sendo que Aristoacuteteles considera aquela por apetite
mais desonrosa que aquela por raiva como ademais eacute claro que
incontinecircncia e continecircncia em sentido absoluto se relacionam com
apetites e prazeres do corpo
A descriccedilatildeo dos apetites como o que natildeo ouve a razatildeo47 parece
acontecer nos trechos mencionados e nos quais o filoacutesofo enfatiza
somente a incontinecircncia Nesse caso natildeo estaacute a estudar o continente
que claramente percebemos eacute um homem que sofre com maus apetites
mas que por meio de seu raciociacutenio consegue se desviar dos maus fins
que o atraem Se observada a continecircncia teremos nela a possibilidade
como ressalta Nussbaum do apetite poder ser posto se natildeo em acordo
ao menos sob o comando da razatildeo praacutetica O homem que cai em
descontrole devido aos mesmos objetos com os quais se relacionam os
intemperantes e os temperantes eacute chamado simplesmente lsquoincontinentersquo
Enfim mesmo que haja diferenccedilas entre o apetite e o impulso que um
seja apontado por certos trechos da EN como incapaz de ouvir agrave razatildeo
praacutetica a verdade que a leitura e a interpretaccedilatildeo dos passos analisados
nos levam a alcanccedilar eacute que todas as formas do desejo satildeo capazes de
participar da razatildeo praacutetica conforme os haacutebitos introjetados pelo agente
como podemos ler na citaccedilatildeo abaixo
Mesmo que o apetite seja menos permeaacutevel agrave
razatildeo mais entranhado em nossa vida e
forccedilosamente determinante na escolha das accedilotildees
Aristoacuteteles atribuiu voluntarismo agrave accedilatildeo causada
por ambos os desejos embora a accedilatildeo por apetite
possa ser eventualmente mais voluntaacuteria do que
por impulso [] Ambos os desejos satildeo emoccedilotildees
ou afecccedilotildees natildeo racionais (aacuteloga pathḗ) que
tambeacutem pertencem agrave natureza humana ldquode sorte
47Aggio propotildee a seguinte saiacuteda para a questatildeo ldquoPortanto natildeo haacute contradiccedilatildeo
em dizer que um logos constitui o objeto do apetite e que o apetite natildeo ouve de
modo algum o logos se nesse caso entendermos que este uacuteltimo se refere ao
orthograves loacutegos agrave reta razatildeo agravequela que apreende verdadeiramente o que deve ser
feito e o primeiro se refere ao sentido corrente de logos ie de um pensamento
que concebe algo como prazerosordquo (2011 p 161-162) A autora ainda observa
que o apetite que natildeo ouve de jeito nenhum a reta razatildeo eacute aquele do
descontrolado e do intemperante No virtuoso eacute diferente seu apetite jaacute estaacute
educado e por isso natildeo segue qualquer prazer aleacutem do gozo apropriado agraves accedilotildees
virtuosas Mas quando os desejos menos racionais natildeo estatildeo educados o apetite
eacute mais vergonhoso que o impulso e por isso tambeacutem eacute menos perdoaacutevel
63
que tambeacutem accedilotildees por impulso e por apetite
pertencem ao homemrdquo (EN III 1 1111b2-3) Tais
accedilotildees satildeo proacuteprias ao homem no sentido do seu
princiacutepio residir nele (heacute archḗ en autōi) ou seja
o agente sempre poderia ter agido de outro modo
Desse modo o homem que age por impulso ou
apetite natildeo poderia ser considerado uma
marionete viacutetima de seus desejos [] Dizer
portanto que ambos os tipos de accedilotildees satildeo
voluntaacuterias implica dizer que estaacute em nosso poder
e sob nossa responsabilidade agir por apetite ou
por impulso E isso parece ser plausiacutevel mesmo
que se assuma que um desses desejos ndash o apetite ndash
seja mais avesso agrave razatildeo (AGGIO 2017 no
prelo)
A anaacutelise precedente parece demonstrar que eacute possiacutevel
responsabilizar quem age sob impulso e apetite por seus atos Parece
apontar igualmente a possibilidade de adequaccedilatildeo destes desejos como
esclarece Aggio (2017 no prelo) pela habituaccedilatildeo e por sua capacidade
de ouvir agrave razatildeo Esta eacute se natildeo toda ao menos parte crucial da educaccedilatildeo
moral do desejo Quando o comando da razatildeo eacute obedecido os desejos
natildeo racionais ou menos racionais participam da razatildeo e facilitam o
acesso agrave virtude e agrave vida feliz devido a possibilitarem a procura pelo
bom fim e a accedilatildeo correta na direccedilatildeo de tal fim Quando todavia o
desejo eacute sempre mais facilmente concorde com a razatildeo sem necessidade
de grandes esforccedilos educacionais estamos diante da terceira forma de
desejar o querer que trataremos agora
3b3 O desejo mais racional
Resta-nos tratar o desejo considerado racional ou o mais racional
(DA III 10 433a24-25) o querer (bouacutelēsis) Apesar desse seu aspecto o
querer pode se direcionar a objetos impossiacuteveis mas estaacute relacionado
com accedilotildees que satildeo escolhidas por si mesmas ou seja relaciona-se com
coisas que igualmente podem ser escolhidas deliberadamente e que satildeo
entendidas por Aristoacuteteles como variaacuteveis aleacutem de ser relativo aos fins
ou bens Mas que tipo de bem eacute o fim buscado pelo querer O objeto
deste desejo natildeo existe por natureza mas eacute aquilo que parece bom a
cada um e sendo as pessoas diferentes coisas diferentes lhes parecem
boas Assim natildeo seria melhor delimitar o fim deste tipo de desejo como
o bem buscado pelo virtuoso embora o que se apresenta a cada um seja
64
um bem aparente
A resposta pode comeccedilar a ser dada com a explicaccedilatildeo de que o
querer eacute um tipo de desejo naturalmente mais apto a concordar com as
coisas que satildeo sugeridas pela reta razatildeo Concilia-se com o que haacute de
racionalmente necessaacuterio para que haja boas accedilotildees e um bom caraacuteter
sendo de sua natureza estar de acordo com a razatildeo praacutetica Por
conseguinte o querer eacute o elemento natildeo racional mais capaz de acatar as
sugestotildees (ou ordens) do orthograves loacutegos Por isso concordamos com Aggio
quando escreve
[] se for preciso dizer que esta parte a natildeo
racional tem razatildeo entatildeo a parte desiderativa
deve ser compreendida como tendo razatildeo por
participaccedilatildeo e natildeo por essecircncia como se ela
pudesse ser sob o aspecto do querer
essencialmente racional Esta eacute uma interpretaccedilatildeo
possiacutevel e que me parece mais adequada pois
nega a suposiccedilatildeo de que a parte desiderativa teria
um aspecto absolutamente racional a saber a
bouacutelēsis (AGGIO 2017 no prelo)
O querer eacute o desejo ldquocultivadordquo especialmente sentido pelo
homem bom e virtuoso que se habituou a desejar conforme agrave razatildeo
praacutetica e que sente prazer com as coisas realmente boas e virtuosas Tal
tipo de desejo - veremos em detalhes maiores no segundo momento de
nosso estudo - coloca-se ao lado da escolha deliberada do caacutelculo
deliberativo e do julgamento correto sendo consoante com a virtude
intelectual e eacute necessaacuterio agrave virtude moral graccedilas agrave educaccedilatildeo que
recebe48 Eacute igualmente um desejo relacionado ao sentimento de prazer
48 Fazemos tal afirmaccedilatildeo com base nas propostas de Aggio que entende que
para a virtude eacute necessaacuteria a educaccedilatildeo moral do desejo implicando tambeacutem
como veremos mais adiante a forma correta de se emocionar (AGGIO 2017
no prelo) A eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma eacutetica da accedilatildeo jaacute que o querer natildeo eacute
suficiente para uma mudanccedila real (EN 1114a13-15) Eacute preciso agir ou seja
educar o desejo para o meio termo Por isso a accedilatildeo eacute o principal meio para que
a razatildeo aceda ao desejo Entatildeo haacute um momento em que o desejo ainda natildeo foi
educado e um no qual ouve e obedece a razatildeo Porque natildeo nascemos virtuosos
mas pelo haacutebito podemos secirc-lo Educar o desejo eacute se tornar moralmente
virtuoso Se o desejo busca o prazer e foge da dor educado buscaraacute e fugiraacute
destes dois de modo conveniente quando conveniente Educado desejo eacute
desejo pelo fim levando agrave boa accedilatildeo que eacute apreendida pela razatildeo persuasiva ou
pela capacidade de persuadir da razatildeo (EN 1139b4-5)
65
porque a Rhet explica que os ldquodesejos satildeo na sua maioria
acompanhados de um certo prazer pois as pessoas gozam de algum
prazer quer lembrando-se de como o alcanccedilaram quer esperando o que
alcanccedilaratildeordquo (Rhet I 11 1370b15-19)49 Por isso mesmo as accedilotildees
virtuosas que satildeo direcionadas por essa terceira forma de desejo satildeo
prazerosas a quem as faz desejando bem Vale reforccedilar que qualquer
tipo de desejo associado agrave reta razatildeo pode ser considerado participante
dela sendo bom e direcionado ao bem verdadeiro como explica Aggio
Isso porque o querer tendo como objeto o que
julgamos ser um bem natildeo eacute capaz de vencer o
desejo pelo prazeroso (epithymiacutea) ou o impulso de
aversatildeo ao doloroso (thymoacutes) Eacute preciso incutir o
haacutebito de se desejar bem incluindo aiacute os trecircs tipos
de desejo mas sobretudo aqueles que satildeo mais
avessos agrave razatildeo o impulso e ainda mais o
apetite Natildeo basta portanto querer apenas o que eacute
bom Eacute preciso que isto apareccedila como prazeroso
i e como objeto do apetite Menos ainda basta
saber o que eacute bom para desejaacute-lo como queria
Soacutecrates Eacute preciso que o bem natildeo seja apenas um
objeto cognitivo mas que se torne objeto de nosso
desejo e parte de nossa segunda natureza
(AGGIO 2017 no prelo)
O bom desejo sempre eacute conforme a reta razatildeo Para a
estudiosa isso leva a entender que eacute preciso desejar antes o bem que
aquilo que eacute prazeroso ou impulsivo Assim o prazeroso e o impulsivo
devem ser desejados tendo em vista o bem entatildeo os desejos natildeo
racionais tambeacutem de algum modo podem estar em harmonia com o
querer agir retamente Aristoacuteteles explica ldquoquando se eacute movido com o
raciociacutenio tambeacutem se eacute movido de acordo com a vontaderdquo (DA III 10
433a24-25)50 Isso acontece porque somente os desejos ordenados pela
reta razatildeo (bons desejos) constituem bons fins
Com os estudos empreendidos sobre o desejo entendemos
49 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original καὶ ἐν ταῖς
πλείσταις ἐπιθυμίαις ἀκολουθεῖ τις ἡδονή ἢ γὰρ μεμνημένοι ὡς ἔτυχον ἢ
ἐλπίζοντες ὡς τεύξονται χαίρουσίν τινα ἡδονήν οἷον οἵ τ ἐν τοῖς πυρετοῖς
ἐχόμενοι ταῖς δίψαις καὶ μεμνημένοι ὡς ἔπιον καὶ ἐλπίζοντες πιεῖσθαι χαίρουσιν
[] 50 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ὅταν δὲ κατὰ
τὸν λογισμὸν κινῆται καὶ κατὰ βούλησιν κινεῖται
66
que para Aristoacuteteles haacute trecircs formas de desejar o bem pela razatildeo pelo
prazer ou pelo impulso Aggio (2017 no prelo) explica que cada tipo de
desejo natildeo inclui nem exclui o outro o que significa que eacute possiacutevel e
mesmo necessaacuterio que o objeto daquele desejo conforme o prazer
tambeacutem seja conforme a razatildeo (EN III 14 1119a12-21) devido agrave
unicidade da alma que defendemos acima e consequentemente da
unicidade do desejo Por exemplo o homem virtuoso age com um
apetite governado pela razatildeo tem o apetite em harmonia com seu
querer sendo-lhe possiacutevel igualmente desejar alguns objetos
inadequados de prazer mas escolher natildeo os realizar pois o desejo pode
ou natildeo ser realizado Ter prazer portanto difere de desejar ter prazer ou
seja de realizar a atividade prazerosa O estudo do desejo mostrou-nos
igualmente que a capacidade desiderativa eacute aquela que propotildee o fim a
ser buscado ou evitado e com isso pede accedilatildeo Por isso estudaremos
agora na medida que contemplar nossas intenccedilotildees a relaccedilatildeo dos desejos
com a accedilatildeo humana que pode ser moralmente avaliada jaacute que o objeto
do desejo foi identificado com o que move as accedilotildees desse tipo e
igualmente aquela que entenderemos como boa accedilatildeo
3b4) Desejo e accedilatildeo rumo agrave accedilatildeo boa moralmente
Como vimos o desejo eacute associado agraves emoccedilotildees aos prazeres agraves
accedilotildees e portanto agrave virtude que vem com a praacutetica de boas accedilotildees
solicitadas pelos desejos por fins adequados e agrave vida feliz considerada
atividade (eneacutergeia) segundo a virtude mais completa Por conseguinte
a teoria da accedilatildeo eacute central na eacutetica de Aristoacuteteles porque tanto na EE
quanto na EN a definiccedilatildeo de felicidade eacute baseada na noccedilatildeo de atividade
(EN I 6 1098a16-17 EE II 1 1219a38-39) que aparece atrelada agravequela
de accedilatildeo Algumas passagens destes tratados apresentam o conceito de
eneacutergeia natildeo o de prāxis associado agrave eudaiacutemōniacutea mas qual a
diferenccedila entre os dois conceitos em Aristoacuteteles E quais satildeo seus papeacuteis
junto a uma teoria do desejo e por conseguinte da emoccedilatildeo
Natali (1996 p 101) afirma que Aristoacuteteles entende que a
eneacutergeia humana eacute feita de praacutexeis o que pode ser confirmado por EN
1098a12-14 onde se lecirc ldquoa funccedilatildeo do homem consiste em um certo
gecircnero de vida isto eacute em uma atividade da alma e das accedilotildees acompanhada de razatildeordquo (EN 1098b15-16) o que nos lembra de que
ainda estamos a discutir as questotildees sugeridas por EN I Tendo em vista
o passo citado Natali explica que o homem feliz eacute aquele que realiza
kalaigrave praacutexeis (belas ou boas accedilotildees) ou praacutexeis katacutearetḗn (accedilotildees
segundo a virtude) Isso leva a embasar a definiccedilatildeo de felicidade e a de
67
bem humano no conceito de accedilatildeo a pensar e determinar que a felicidade
requeira que se conheccedila o que eacute uma prāxis portanto aleacutem de ser
assunto associado ao tema do desejo e das emoccedilotildees a questatildeo nos
interessa porque pode nos dizer mais sobre a relaccedilatildeo destes com a
felicidade tema do nosso primeiro Capiacutetulo
Apoacutes ter exposto brevemente a ligaccedilatildeo da funccedilatildeo humana como
associada agrave accedilatildeo em EN I 13 Aristoacuteteles comeccedila suas discussotildees no
Livro II da EN com a lembranccedila de que anteriormente havia sido
discutido um problema importante a questatildeo das accedilotildees determinarem a
qualidade do caraacuteter (EN II 2 1103b30-31) Afirmaccedilatildeo associada agravequela
de que as virtudes aparecem com a praacutetica de accedilotildees virtuosas (EN II 2
1103a31-33) porque a ldquoaccedilatildeo eacute princiacutepio da virtude em sentido causalrdquo
(NATALI 1996 p 103) sendo a boa accedilatildeo que leva agrave virtude Como
vimos para que haja accedilatildeo realmente verdadeira eacute preciso que intelecto
praacutetico e desejo estejam agindo juntos porque eacute preciso raciociacutenio
verdadeiro e desejo reto para que haja accedilotildees dignas daquilo que eacute
proacuteprio ao homem prosseguindo no esclarecimento do que foi proposto
com EN I 13 A relaccedilatildeo do desejo do intelecto praacutetico e da boa accedilatildeo
reafirma que aquilo que Aristoacuteteles chama accedilatildeo seja relevante ao nosso
estudo
Para compreender melhor a questatildeo pode-se contar com o auxiacutelio
especial do Livro VI que parece entender a accedilatildeo e sua relaccedilatildeo com o
que se pretende moralmente dela passando pela comparaccedilatildeo e distinccedilatildeo
entre prāxis e poiacuteēsis O iniacutecio da EN apresenta tal distinccedilatildeo ao
diferenciar dois tipos de fins uns satildeo identificados com as proacuteprias
atividades outros diferem das atividades que levam ateacute os fins (EN I 1
1094a3-5) A separaccedilatildeo essencial entre prāxis e poiacuteēsis portanto que
tambeacutem aparece em EN VI 4 propotildee-nas como objetos de duas formas
diferentes de saber a phroacutenēsis e a teacutechnē que lidam com dois tipos
diferentes de ser Este uacuteltimo Livro mencionado explora suas relaccedilotildees
(EN VI 2 1139a35-b4) quando Aristoacuteteles afirma que o pensamento
sozinho nada move sendo que apenas o pensamento praacutetico eacute capaz de
mover a accedilatildeo quando associado ao desejo e de mover a produccedilatildeo
quando se tenciona algum produto Este eacute feito tendo algo aleacutem de si em
vista natildeo eacute um fim absoluto mas o fim da accedilatildeo poderia ser absoluto
quando o desejo levasse a agir bem51
Dessas reflexotildees apresentadas pela EN Natali (1996 p 110)
ressalta que poderiacuteamos entender que 1) o pensamento praacutetico (diaacutenoia
51Haveria segundo o Livro VI dois tipos de deliberaccedilatildeo e de phroacutenēsis um
relacionado agrave prāxis outro agrave poiacuteēsis
68
praktikḗ) domina (archḗ) a prāxis e tambeacutem a poietikḗ 2) o que eacute
produzido natildeo eacute um fim absoluto apenas um fim em vista de algo mais
3) a accedilatildeo realizada (praktoacuten) eacute o proacuteprio fim ou o fim absoluto 4) haacute
uma hierarquia de fins que organiza tambeacutem os saberes a eles
direcionados sendo a phroacutenēsis superior agrave teacutechnē 5) e a phroacutenēsis teria
a eupraxiacutea por fim como explicitaremos no capiacutetulo seguinte
Essas observaccedilotildees levariam a entender que o agir humano
segundo Aristoacuteteles se dividiria em duas partes com caracteriacutesticas
diferentes e opostas Para dar conta dessa teoria da accedilatildeo Natali pensa
ser preciso primeiro saber se todos os movimentos intencionais feitos
pelo homem satildeo objeto da teoria da accedilatildeo ou se tal teoria teria interesse
apenas nas accedilotildees em acepccedilatildeo proacutepria
Aristoacuteteles diferentemente dos modernos e contemporacircneos natildeo
estaria interessado em distinguir accedilatildeo e movimento fiacutesico (distinccedilatildeo
oacutebvia para o filoacutesofo) Accedilotildees segundo o filoacutesofo e a interpretaccedilatildeo feita
por Natali (1996 p 111) satildeo comportamentos complexos dentre os
quais eacute possiacutevel diferenciar prāxis e poiacuteēsis Simples movimentos
fiacutesicos natildeo permitiriam tal distinccedilatildeo podendo ser tanto parte da prāxis
quanto da poiacuteēsis ainda mais se natildeo se levasse o fim em conta Assim
segundo o estudioso ldquoPara Aristoacuteteles o significado da accedilatildeo eacute dado
pelo teacutelos pelo fim Em exemplos como ldquolevantar um braccedilordquo aquilo
que estaacute oculto eacute propriamente o teacutelos []rdquo (NATALI 1996 p 112)
Para Aristoacuteteles nessa observaccedilatildeo do fim os movimentos fiacutesicos natildeo
podem ser compreendidos como accedilotildees mas essas informaccedilotildees natildeo
completam a teoria da accedilatildeo eacute preciso ir aleacutem como o comentador faz
Para distinguir prāxis e poiacuteēsis nas eacuteticas Aristoacuteteles recorre a
uma diferenciaccedilatildeo de tipo metafiacutesico entre kiacutenēsis e eneacutergeia Em Met Θ 6 1048b18-23 fala-se que natildeo satildeo accedilotildees ou que natildeo satildeo accedilotildees
perfeitas aquelas cujo fim natildeo se encontra nelas mesmas O passo no
entanto eacute visto por Natali (1996 p 113) como duvidoso por muitos
motivos que natildeo elencaremos aqui por ultrapassarem as nossas
intenccedilotildees com essa explicaccedilatildeo A passagem mesmo assim condiz com
as propostas que depreendemos rapidamente de EN I importando aquilo
que a Met nos apresenta como relaccedilotildees e dissociaccedilotildees entre kiacutenēsis e
eneacutergeia bem como suas relaccedilotildees com prāxis e poiacuteēsis Para explicar
melhor a questatildeo podemos citar as palavras de Natali sobre o assunto
Consideradas do ponto de vista do fim eneacutergeia e
kiacutenēsis satildeo de todo distintas ao menos
aparentemente
- agrave primeira no campo da accedilatildeo humana
69
corresponde a prāxis e eacute um agir com um fim em
si mesmo O exemplo corrente que hoje eacute dado de
uma prāxis estaacute ausente em Aristoacuteteles mas jaacute
aparece em Alexandre de Afrodiacutesias o danccedilar
- a segunda sempre no campo do agir humano
corresponde a poiacuteēsis para dar um exemplo
Aristoacuteteles frequentemente refere-se agrave construccedilatildeo
de uma casa Os dois casos satildeo distintos pela
relaccedilatildeo ao fim enquanto na poiacuteēsis afirma
Aristoacuteteles a obtenccedilatildeo do fim potildee termo ao
processo na prāxis isto natildeo acontece aliaacutes a
obtenccedilatildeo do fim estaacute presente em cada instante do
processo []
De fato em uma kiacutenēsis a obtenccedilatildeo do fim tem
valor em si mas tem valor apenas como modo de
atingir o proacuteprio fim (NATALI 1996 p 113-
114)
Conforme essa explicaccedilatildeo que aparece em Met Θ 6 1048b23-28
a prāxis natildeo teria seu fim apenas ao termo de um processo enquanto a
poiacuteēsis seria composta por momentos de um processo que levaria a um
fim almejado Na prāxis todo instante contemplaria agravequilo que eacute seu
objetivo estando o fim da accedilatildeo em cada momento do processo que a
constituiria Dito de outro modo a poiacuteēsis seria um processo que soacute
resultaria em seu fim quando completado mas a prāxis seria um
processo completo em cada um de seus instantes Mas toda poiacuteēsis seria
kiacutenēsis O movimento fiacutesico implicado na poiacuteēsis poderia ser esmiuccedilado
em uma seacuterie de movimentos menores estruturantes do todo da
produccedilatildeo e que natildeo poderiam ser tomados em separado O exemplo eacute a
construccedilatildeo de casas que aparece em EN 1174a21-29 cada movimento
do processo de construir pode ser percebido separadamente mas soacute tem
sentido com o fim que lhe excede a casa construiacuteda Entatildeo a poiacuteēsis eacute
composta por ldquopoiacuteeseis parciais incompletasrdquo (NATALI 1996 p 116)
que resultaratildeo em um produto homogecircneo ontologicamente
Agora resta saber se toda prāxis eacute uma eneacutergeia Met IX 6 daacute
exemplos de eneacutergeiai que natildeo parecem precisar de movimentos fiacutesicos
Estariam portanto fora da alccedilada da fiacutesica pois excluiriam a kiacutenēsis
Aristoacuteteles no entanto nos apresenta a vida como exemplo de eneacutergeia e a vida comporta movimentos Caberia portanto
questionar a prāxis eacute ou natildeo eacute kiacutenēsis52
52 Vale ressaltar tambeacutem com Natali (NATALI 1996 p 117) que haveria
70
Ao analisarmos os exemplos de praacutexeis virtuosas veremos que
satildeo compostas por uma seacuterie de atos parciais com a estrutura da kiacutenēsis
Um desses exemplos poderia ser o mover a espada para golpear um
inimigo Segundo Natali
[] estes movimentos satildeo dirigidos agrave obtenccedilatildeo de
um fim e natildeo satildeo fins em si mesmos como se
fossem passos de danccedila De fato contra o que se
disse na Metafiacutesica na qual havia se afirmado que
nenhuma prāxis eacute uma kiacutenēsis Aristoacuteteles afirma
na Ethica Eudemia que toda prāxis eacute uma
kiacutenēsisrdquo (EE 1220b26-27 1222b28-29) Assim
segundo tal Eacutetica toda prāxis seria uma kiacutenēsis
mas qual seria a verdade sobre a questatildeo toda
prāxis eacute uma kiacutenēsis ou nenhuma prāxis eacute uma
kiacutenēsis como propotildee a Metafiacutesica (NATALI
1996 p 117)
Natali responde com o auxiacutelio de outro passo da Met (Β 2
996a27) no qual eacute possiacutevel ler que todas as accedilotildees implicam movimento
Nesse trecho aparece a preposiccedilatildeo meta traduzida pelo estudioso como
ldquoimplicardquo o que diferenciaria a prāxis da poiacuteeisis por ser composta
implicando movimentos enquanto a poiacuteēsis aconteceria por meio de
movimentos usando a preposiccedilatildeo diaacute como diferencial dando agrave prāxis
uma heterogeneidade ontoloacutegica
Ainda segundo a Met IX 6 (1048b6-9) e segundo a interpretaccedilatildeo
do passo feita por Natali (1996 p 119) vaacuterios movimentos singulares
compotildeem uma prāxis sendo os movimentos como que a mateacuteria e a
accedilatildeo a forma Assim o estudioso chega agrave seguinte formulaccedilatildeo ldquoToda
prāxis eacute do ponto de vista formal uma eneacutergeia e do ponto de vista
material eacute composta de kiacutenesisrdquo (NATALI 1996 p 119) O que faz a
diferenccedila entre prāxis e poiacuteēsis eacute que na explicaccedilatildeo do estudioso
Ambas satildeo eventos humanos que se datildeo no
mundo sublunar satildeo compostas de movimentos
mas enquanto a poiacuteēsis tem uma estrutura
ontoloacutegica de movimento in totoacute a prāxis tem
uma estrutura ontoloacutegica apenas em parte similar
agravequela das eneacutergeiai mais puras como a auto-
poiacuteēseis feitas com fim moral como poderemos ver ao propor elementos
favoraacuteveis a uma educaccedilatildeo emocional moral no Capiacutetulo III
71
contemplaccedilatildeo divina porque mesmo sendo fim
em si mesma na sua atuaccedilatildeo eacute composta de
movimentos O todo da accedilatildeo tem seu fim em si
mas as partes das quais se compotildee tecircm cada uma
o seu fim particular (NATALI 1996 p 119)
Haveria segundo essa proposta accedilotildees componentes particulares
que perseguiriam outros objetivos como o levantar uma espada para
golpear um inimigo em batalha mas que tenderia agrave vitoacuteria Haveria
assim o todo da accedilatildeo com objetivos em si como as accedilotildees virtuosas que
natildeo tenderiam a um resultado praacutetico fora delas mesmas Ou as accedilotildees
virtuosas igualmente deveriam ser eficazes como o golpe de espada
Desse tipo de interrogaccedilatildeo surge a questatildeo da eupraxiacutea que Natali
pensa responder ao problema em curso e que voltaraacute ao nosso estudo no
capiacutetulo seguinte mas que por ora pode ser entendido do modo
descrito abaixo
A prāxis humana propriamente dita natildeo eacute totalmente eneacutergeia
como seria a contemplaccedilatildeo divina Eacute composta por kiacuteneseis que buscam
um resultado e no caso da accedilatildeo moralmente avaliaacutevel esse resultado
seria um conjunto de sucesso na accedilatildeo e valor moral Essa proposta
condiz com a descriccedilatildeo que Aristoacuteteles faz do homem ser o
intermediaacuterio entre divino e animal que discutimos desde o argumento
da funccedilatildeo humana porque a eupraxiacutea aos olhos de Natali natildeo seria
apenas a accedilatildeo boa moralmente mas a accedilatildeo completa bem-sucedida
senatildeo Aristoacuteteles natildeo daria tanta importacircncia agrave deliberaccedilatildeo em suas
reflexotildees eacuteticas Caso o fim da accedilatildeo fosse sempre ela mesma ou
somente ela mesma a deliberaccedilatildeo seria inuacutetil porque um ato corajoso
por exemplo seria um fim em si mesmo natildeo buscando nada mais
Entatildeo natildeo seria preciso investigar (zḗtein) o modo mais eficaz ou nas
palavras de Natali (1996 p 122) ldquomais raacutepido e eleganterdquo para alcanccedilar
um fim Por isso a prāxis humana natildeo pode ser pura eneacutergeia mas deve
ser tambeacutem composta de kiacuteneseis justificando que as accedilotildees humanas
satildeo tributaacuterias de deliberaccedilatildeo de escolha deliberada e da phroacutenēsis
Estas satildeo essenciais agrave boa accedilatildeo humana pois dizem respeito tanto agrave
determinaccedilatildeo dos fins a serem buscados como dos meios que permitam
alcanccedilaacute-los e que satildeo solicitados pelos desejos e mudados pelas
emoccedilotildees No entanto antes de saber como as paacutethē se encaixam nesse
processo que conduz agrave eupraxiacutea e como podem influenciaacute-la eacute preciso
buscar delimitar a partir das indagaccedilotildees surgidas com a EN e do que foi
inferido ateacute o momento o que vem a ser ldquoemoccedilatildeordquo Fazer essa
72
delimitaccedilatildeo seraacute necessaacuterio para que possamos responder agraves questotildees
que foram postas ateacute o momento mas tambeacutem para podermos
compreender como pode ser possiacutevel mudaacute-las para que se liguem agraves
sugestotildees da razatildeo permitindo-nos tratar a educabilidade e a
racionalidade das emoccedilotildees A discussatildeo acima apresentada sobre a
relaccedilatildeo da eupraxiacutea com o paacutethos eacute crucial para que isso seja feito pois
insere definitivamente a emoccedilatildeo entre as coisas relacionadas agrave
eudaiacutemōniacutea pois como buscaremos apontar no proacuteximo Capiacutetulo
eupraxiacutea e eudaiacutemōniacutea satildeo indissociaacuteveis
4 Em busca da definiccedilatildeo de emoccedilatildeo em Aristoacuteteles
Na Eacutetica Nicomaqueia (Livro I capiacutetulo 7) Aristoacuteteles propotildee
que uma investigaccedilatildeo deva comeccedilar com o estabelecimento ao menos
em linhas gerais daquilo que eacute o objeto investigado Contudo pelo
menos nesse tratado o filoacutesofo natildeo parece dar contornos bem definidos
a uma noccedilatildeo geral daquilo que entende por emoccedilatildeo nem em sentido
moderno53 nem ao menos em seus proacuteprios termos Uma definiccedilatildeo
segundo Aristoacuteteles deveria apresentar o geacutenos (gecircnero) e a diferenccedila
especiacutefica daquilo que eacute definido mostrando o que o objeto estudado
realmente eacute (Top I 5 101b38 et seq)54 A EN todavia a princiacutepio
apresenta apenas o gecircnero da emoccedilatildeo paacutethos e uma lista de coisas agraves
quais chama emoccedilatildeo como podemos conferir na passagem abaixo
Dado pois que os estados que se geram na alma
satildeo trecircs55 emoccedilotildees capacidades disposiccedilotildees a
53 Uma definiccedilatildeo em lsquosentido modernorsquo buscaria explicar o que eacute uma emoccedilatildeo
Carlo Natali explica desse modo a deficiecircncia na definiccedilatildeo que EN II fornece da
accedilatildeo (1996 p 102) pois agrave eacutetica natildeo caberia tal tipo de explicaccedilatildeo proacutepria agrave
metafiacutesica Podemos tambeacutem pensar em uma proposta feita por Barnes que
justificaria tal insuficiecircncia bem como a insuficiecircncia de definiccedilatildeo de outros
termos chave na teoria eacutetica aristoteacutelica o autor ao escrever para si natildeo
elaboraria tais propostas ou talvez natildeo o fizesse por tratar de assunto que
julgava suficientemente conhecido daqueles a quem discursava 54Traduccedilatildeo Valandro e Bornheim (1978) no original ἔστι δ ὅρος μὲν λόγος ὁ
τὸ τί ἦν εἶναι σημαίνων [] 55Note-se que no Grego aparece a palavra ldquognoacutemenardquo lsquotraduzidarsquo por Zingano
(2008) como ldquoestadordquo Juliaacuten Marias (2009) bem como Bornhein e Vallandro
(1979) optaram por ldquocoisasrdquo Ross (1995) opta por ldquosentimentosrdquo e Tricot
(2002) por ldquofenocircmenosrdquo para a traduccedilatildeo do termo Contudo eacute difiacutecil escolher
uma das propostas para interpretar o que eacute pouco explicado por Aristoacuteteles Os
73
virtude seraacute um deles Entendo por emoccedilotildees
apetite coacutelera medo arrojo inveja alegria
amizade oacutedio anelo emulaccedilatildeo piedade em geral
tudo a que se segue prazer ou dor por
capacidades os estados em funccedilatildeo dos quais
dizemos que somos afetados pelas emoccedilotildees por
exemplo aqueles em funccedilatildeo dos quais somos
capazes de encolerizar-nos afligir-nos ou apiedar-
nos por disposiccedilotildees aqueles em funccedilatildeo dos quais
nos portamos bem ou mal com relaccedilatildeo agraves
emoccedilotildees por exemplo com relaccedilatildeo ao
encolerizar-se se nos encolerizamos forte ou
fracamente portamo-nos mal se moderadamente
bem e de modo semelhante com relaccedilatildeo agraves outras
emoccedilotildees (EN II 4 1105b19-29)56
O passo do Livro II 3 da Eacutetica Nicomaqueia nos apresenta
algumas dificuldades mas igualmente algumas ideias de por onde
possamos caminhar a fim de entender o que Aristoacuteteles propotildee como
emoccedilatildeo A primeira inquietaccedilatildeo que nos traz eacute justamente a
supramencionada definiccedilatildeo insatisfatoacuteria o que todavia pode sofrer a
seguinte objeccedilatildeo o texto apresenta-nos igualmente a especificaccedilatildeo de
que tais coisas satildeo acompanhadas de prazer ou dor Essa afirmaccedilatildeo natildeo
satisfaz a nossa curiosidade porque entendemos que uma lista com
substantivos no acusativo natildeo serve como definiccedilatildeo (sequer em termos
aristoteacutelicos) Natildeo nos satisfaz tambeacutem porque haacute outras coisas
mencionadas nos tratados aristoteacutelicos que satildeo descritas como
acompanhadas de prazer ou dor como as accedilotildees afirmaccedilatildeo que pode ser
lida nos Livros VII e X por exemplo natildeo levando esse traccedilo a
constituir-se realmente como uma diferenccedila especiacutefica
O prazer e a dor todavia satildeo indicados na definiccedilatildeo das emoccedilotildees
feita pela EN como seu traccedilo distintivo traccedilo que eacute repetido em quase
tradutores parecem utilizar o que lhes parece calhar melhor agrave sua proacutepria
interpretaccedilatildeo 56 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ἐπεὶ οὖν τὰ ἐν τῇ ψυχῇ γινόμενα τρία ἐστί πάθη δυνάμεις
ἕξεις τούτων ἄν τι εἴη ἡ ἀρετή λέγω δὲ πάθη μὲν ἐπιθυμίαν ὀργὴν φόβον
θάρσος φθόνον χαρὰν φιλίαν μῖσος πόθον ζῆλον ἔλεον ὅλως οἷς ἕπεται ἡδονὴ
ἢ λύπη δυνάμεις δὲ καθ ἃς παθητικοὶ τούτων λεγόμεθα οἷον καθ ἃς δυνατοὶ
ὀργισθῆναι ἢ λυπηθῆναι ἢ ἐλεῆσαι ἕξεις δὲ καθ ἃς πρὸς τὰ πάθη ἔχομεν εὖ ἢ
κακῶς οἷον πρὸς τὸ ὀργισθῆναι εἰ μὲν σφοδρῶς ἢ ἀνειμένως κακῶς ἔχομεν εἰ
δὲ μέσως εὖ ὁμοίως δὲ καὶ πρὸς τἆλλα
74
todas as outras definiccedilotildees apresentadas nos demais tratados que
chamaremos em nosso auxiacutelio o que natildeo nos permite ignorar essa
caracteriacutestica Aristoacuteteles explica que comumente se admite o prazer
como o que toca mais de perto a natureza humana ideia relevante para
nossa investigaccedilatildeo porque haacute prazeres ligados ao natildeo racional e
prazeres do intelecto como aqueles associados agrave vida contemplativa
que satildeo descritos pelo filoacutesofo como maiores e melhores dentre os
prazeres Por isso na educaccedilatildeo dos jovens satildeo usados prazer e dor para
direcionaacute-los pois se pensa que para formar a excelecircncia do caraacuteter eacute
preciso se comprazer com as coisas certas e detestar as que devem ser
detestadas (EN X 1 1172a19-24) Percebemos contudo o filoacutesofo a
abordar os prazeres natildeo racionais com a cautela costumeira dispensada
aos elementos natildeo racionais pois parece pensar ser necessaacuterio educaacute-las
conforme a reta razatildeo Assim Aristoacuteteles natildeo nega que prazer e dor nos
acompanham por toda vida que tenham grande importacircncia e forccedila para
a virtude e para a vida feliz porque escolhemos o que eacute agradaacutevel e
fugimos do que eacute doloroso sendo que o prazer eacute naturalmente buscado
pelo desejo e a dor evitada Portanto prazer e dor estatildeo ligados
igualmente agrave accedilatildeo que conduziraacute ao alcance dos fins desejados
Aleacutem do passo do Livro II no qual Aristoacuteteles relaciona prazer e
dor agraves emoccedilotildees o pensador aborda-os especialmente em trecircs momentos
de sua EN Primeiro trata esses assuntos quando estuda as propostas
correntes sobre a melhor forma de vida humana Nesse ponto vimos que
ainda no Livro I percebe que boa parte dos homens busca uma vida
voltada totalmente para o prazer considerado indiscriminada ou
vulgarmente um bem ou o bem supremo A consideraccedilatildeo eacute feita e
descartada pelo filoacutesofo que concorda que o prazer seja um bem mas
que seja impossiacutevel consideraacute-lo o bem supremo ainda que se configure
como um bem final
O segundo momento em que a temaacutetica eacute discutida eacute o Livro VII
que apresenta um diaacutelogo com Platatildeo e sua proposta do prazer como um
processo ideia descartada pela Eacutetica em questatildeo O terceiro ponto do
tratado no qual o prazer aparece eacute a primeira ldquometaderdquo do Livro X da
EN quando o filoacutesofo parece retomar as propostas sobre os prazeres da
vida vulgar abordados no Livro I reforccedilando sua ideia de que o prazer
natildeo pode ser o bem supremo mas que ainda assim pode ser um bem
porque apesar de poder ser escolhido por si mesmo natildeo apresentaria a
autossuficiecircncia e completude da felicidade deixando espaccedilo em uma
vida voltada agrave busca de prazer ainda para a necessidade de outras coisas
Nesse trecho o filoacutesofo apresentaria sua real concepccedilatildeo do prazer e
chegaria a relacionaacute-lo com a moralidade Como propotildee Frede (2009 p
75
241) Aristoacuteteles daacute lugar agraves inclinaccedilotildees em sua moral embora as accedilotildees
corretas moralmente natildeo dependam apenas das inclinaccedilotildees dependem
igualmente da racionalidade praacutetica exercida na figura da deliberaccedilatildeo
ldquoAinda que sentimentos gostos e desgostos desempenhem um
importante papel para estabelecer o fim uacuteltimo da accedilatildeo eles natildeo
determinam a deliberaccedilatildeo racional acerca do caraacuteter apropriado de uma
accedilatildeordquo (FREDE 2009 p 241) Entatildeo os prazeres podem e devem ser
bem-educados moralmente o que possibilitaraacute realizar a recomendaccedilatildeo
de EN II de que eacute preciso ser educado a fim de sentir prazer com o que
eacute devido e para desprezar o que eacute devido
A estudiosa observa que na EN contudo Aristoacuteteles natildeo discute
o tipo de prazer e dor envolvido nas emoccedilotildees Por isso e por sugestatildeo
de Frede eacute preciso recorrer agrave Retoacuterica para saber de tal assunto Neste
livro Aristoacuteteles usa a tese que havia rejeitado na EN aquela que propotildee
o prazer como um processo (Rhet I 10 1369b33-35) De acordo com
Frede (2009 p 249)
Natildeo eacute difiacutecil ver por que Aristoacuteteles recorre agrave
definiccedilatildeo das dores e dos prazeres como
ldquoprocessos de interrupccedilatildeo e restauraccedilatildeordquo as
emoccedilotildees satildeo baseadas em necessidades quereres
desejos ou em suas aversotildees correspondentes
Todos esses fenocircmenos pressupotildeem algum tipo de
carecircncia uma necessidade que deve ser satisfeita
Os oradores tratam das necessidades humanas de
diferentes modos [] os prazeres e as dores
relevantes estatildeo ligados agraves necessidades e aos
quereres das pessoas
A autora entende que a Retoacuterica conteacutem um tipo de anaacutelise que
Aristoacuteteles deve ter pressuposto na EN e isso natildeo requer que se
assumam tratamentos diferentes para o prazer e para a dor em diferentes
fases do pensamento de Aristoacuteteles Ambos os conceitos sobre o prazer
devem ter existido na eacutepoca do filoacutesofo que os apresenta em textos
diferentes (Top I 2 121a35-36) Aristoacuteteles pode ter escrito a Retoacuterica
consideravelmente cedo mas continuou a usaacute-la e reformulaacute-la o que eacute
apontado por marcas posteriores de revisatildeo Nem assim sentiu
necessidade de alterar sua explicaccedilatildeo sobre prazer e dor quando tratou
das emoccedilotildees neste livro Frede pensa que o filoacutesofo deve ter
considerado a familiaridade dos leitores com as paacutethē (da Retoacuterica)
76
quando natildeo fez descriccedilatildeo minuciosa do tema na EN57 ldquoAristoacuteteles
parece assim ter reconhecido diferentes tipos de prazer e dor em sua
eacutetica sem chamar a atenccedilatildeo do leitor para esse fatordquo (FREDE 2009 p
249) o que justificaria a postura da Retoacuterica
Agraves observaccedilotildees de Frede acrescentamos que o prazer associado
agraves emoccedilotildees como no caso das propostas da Rhet da Poet e tambeacutem da
EN tem um quecirc de racionalidade Nos tratados de ciecircncia produtiva eacute
faacutecil perceber o que afirmamos porque as emoccedilotildees traacutegicas bem como
aquelas despertadas pelo discurso retoacuterico acontecem por um tipo de
lsquoidentificaccedilatildeorsquo entre o puacuteblico e as imagens criadas pelo enredo ou pelo
proferimento do orador Essas imagens provocam certo tipo de
pensamento (ao menos imaginaccedilatildeo) em quem tem contato com elas Eacute o
caso do reconhecimento de que ldquoesse eacute aquelerdquo mencionado em Poet
IV e provocado pela trageacutedia que causa prazer proacuteprio a este tipo de
literatura ou encenaccedilatildeo Tal prazer natildeo eacute advindo somente da aparecircncia
da arte em questatildeo mas das formulaccedilotildees racionais que leva o puacuteblico a
elaborar
Pensamos que o mesmo seja vaacutelido para a EN porque o prazer e a
dor causados pelas emoccedilotildees descritas neste tratado tecircm a ver com certas
elaboraccedilotildees que se encadeiam a partir do contato com algumas
aparecircncias e resultam em determinados tipos de operaccedilotildees psiacutequicas
como as opiniotildees O prazer vem com o sentir certa emoccedilatildeo e
igualmente com a lembranccedila ou a imaginaccedilatildeo pois estas causam ao
menos certas alteraccedilotildees no corpo pondo-o em movimento por isso satildeo
tambeacutem classificados como paacutethos (EN II 2 1105a2) pois afetam o
homem embora como observa Konstan (2006 p 42) os prazeres natildeo
sejam exatamente emoccedilatildeo pois satildeo sensaccedilotildees (aisthḗseis) resultantes da
percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo O jovem ao ser educado deve adquirir o
haacutebito de sentir prazer e dor com o que eacute adequado seu caraacuteter deve se
familiarizar previamente com a virtude gostando do que eacute belo e
desprezando o vil58 indicando a forma correta de sentir
57 Talvez por isso tambeacutem natildeo faccedila grandes explicaccedilotildees sobre as emoccedilotildees 58 Segundo Frede das consideraccedilotildees acerca das emoccedilotildees e do prazer feitas por
Aristoacuteteles o que fica para pensarmos atualmente eacute a proposta da necessidade
de uma educaccedilatildeo moral apropriada das emoccedilotildees do sentir prazer e dor com
atividades e atitudes corretas Um segundo benefiacutecio seria o enfoque na
qualidade de vida na qual se preze o desenvolvimento das qualidades que
apresentamos naturalmente para termos uma vida satisfatoacuteria e pensamos em
harmonia dentro de nossas comunidades Aristoacuteteles entendeu que a moralidade
eacute compatiacutevel com inclinaccedilotildees pessoais e pressupocircs tais inclinaccedilotildees Isso eacute o
77
Aleacutem da menccedilatildeo ao prazer e agrave dor e das listas apresentadas no
passo que provavelmente deveria explicar o que Aristoacuteteles entende
por emoccedilatildeo devemos considerar em que medida a ldquodefiniccedilatildeordquo
apresentada pode ser uacutetil em nossa busca por maior especificidade sobre
o assunto Para comeccedilar podemos observar um pouco mais EN II 4
1105b19-29 e com isso notar a relaccedilatildeo do paacutethos com as capacidades
(dynaacutemeis) e as disposiccedilotildees (heacutexeis) A passagem busca esclarecer o que
satildeo as virtudes e por isso as diferencia das emoccedilotildees estas natildeo seriam
nem disposiccedilotildees ou seja aquilo que nos faz ter bom ou mau
comportamento frente agraves emoccedilotildees nem dynaacutemeis que satildeo as
capacidades que se tem de sentir as emoccedilotildees O passo todavia diz
muito da importacircncia eacutetica do paacutethos pois se a virtude eacute disposiccedilatildeo e eacute
fundamental agrave felicidade - e sendo a felicidade o fim humano - se estaacute
ligada desde a alma agrave emoccedilatildeo - por ser disposiccedilatildeo de se posicionar bem
diante das emoccedilotildees - percebemos que o papel desses elementos
desprezados ou postos em segundo plano por outros filoacutesofos eacute
realmente grande em Aristoacuteteles como bem observa Zingano (2007 p
145 EN II 1 1103b25) As emoccedilotildees interferem no ser e no agir
virtuosamente (EN II 2 1104b4-13) pois haacute modos diferentes de se
sentir e lidar com a emoccedilatildeo conforme o estado e a heacutexis nos quais nos
encontramos Entatildeo ser virtuoso implica se comportar bem em relaccedilatildeo agrave
emoccedilatildeo e senti-la de modo (ou na quantia) adequado
A partir das observaccedilotildees feitas podemos afirmar que o passo em
questatildeo deixa claro que as virtudes natildeo satildeo emoccedilotildees embora se
relacionem com estas pois virtudes e viacutecios (kakiacuteai) levam a considerar
um agente como bom ou mau a ser louvado ou censurado e envolvem
escolha deliberada Um homem que apresenta uma virtude eacute dito
disposto de certo modo mas ningueacutem eacute considerado bom ou mau
ningueacutem eacute louvado ou censurado nem considerado disposto de certo
modo por sentir uma emoccedilatildeo ou por ser capaz de sentir uma emoccedilatildeo
A relaccedilatildeo da emoccedilatildeo com a virtude moral em EN II confirma as
propostas de EN I 13 a respeito da alma humana bipartida cuja
capacidade desiderativa ldquocomportariardquo as emoccedilotildees Tal capacidade eacute
forccediloso lembrar seria natildeo racional mas capaz de ouvir as sugestotildees da
razatildeo praacutetica portanto deveriacuteamos supor que aquilo que fosse de sua
alccedilada refletisse tal capacidade de ouvir a razatildeo A possibilidade de as
emoccedilotildees seguirem a reta razatildeo todavia se configura como um
meacuterito da teoria em questatildeo e a proposta de que a accedilatildeo deve ser feita com
inclinaccedilatildeo e natildeo por inclinaccedilatildeo pouparia muita discussatildeo se tivesse sido levada
a seacuterio pelos filoacutesofos posteriores
78
problema pois ainda no Livro II Aristoacuteteles nos fala de emoccedilotildees que
satildeo moralmente maacutes e que natildeo admitem mudanccedila59
Dado que os trechos da Eacutetica Nicomaqueia em anaacutelise por ora
nos trouxeram mais duacutevidas que respostas - ao mostrar-nos o ldquolugarrdquo
das emoccedilotildees na alma e com este sua capacidade de participar do
racional - consideramos que para entendermos esses assuntos
igualmente seja relevante consultar tratados que se dedicaram mais
especificamente ao tema e consultar o texto no qual particularmente se
analisa as questotildees relativas agrave alma Essa consulta nos permitiraacute trazer
soluccedilotildees agraves questotildees suscitadas desde EN I 13 a respeito da
possibilidade de participaccedilatildeo do natildeo racional na razatildeo humana dado
que ambos satildeo capacidades de uma alma una que se manifestam no
corpo Por isso julgamos que o tratado sobre a alma assim como os
demais textos que seratildeo nossos auxiliares nos permitiratildeo ter maior
clareza sobre as relaccedilotildees das emoccedilotildees com corpo e alma e com a razatildeo
humana
4a) Alma corpo e emoccedilotildees interpretadas a partir de EN I com o auxiacutelio
do DA da Rhet e da Poet
No De Anima o estudo da psychḗ estaacute entre aqueles dedicados agraves
coisas da natureza por ser um tipo de investigaccedilatildeo que pretende
conhecer a natureza a substacircncia e os atributos da alma dentre os quais
estatildeo as afecccedilotildees (paacutethē) que lhes satildeo proacuteprias Essas afirmaccedilotildees
conduzem agrave questatildeo complexa da separaccedilatildeo ou unidade entre corpo e
alma Devemos retomar o problema ainda que brevemente jaacute que
Aristoacuteteles faz com que alma e corpo compartilhem as emoccedilotildees
afirmaccedilatildeo feita anteriormente Frente a esse assunto cabe a questatildeo da
inseparabilidade entre corpo e alma Quanto agrave questatildeo Aristoacuteteles
parece pocircr-se em franca oposiccedilatildeo agraves teorias dualistas de Platatildeo como
aquelas apresentadas no Feacutedon quando escreve
Haacute ainda uma dificuldade de saber se as afecccedilotildees
59 Eacute o que confirma Sorabji quando fala da proposta de Aristoacuteteles sobre o meio
termo nas emoccedilotildees ldquoPois ele diz que o que conta muito ou pouco depende de
quem noacutes somos da ocasiatildeo do para quecirc e para quem a nossa emoccedilatildeo eacute
dirigida do resultado provaacutevel e do modo de reagir Aleacutem disso ele aponta que
algumas emoccedilotildees como Schadenfreude (sentir prazer com o insucesso alheio) e
inveja tecircm a ideia de maldade construiacuteda nelas de modo que natildeo haacute espaccedilo para
a ideia de moderaccedilatildeo em exercecirc-lasrdquo (SORABJI 2000 p 195 traduccedilatildeo nossa)
79
da alma satildeo todas comuns agravequilo que possui alma
ou se haacute tambeacutem alguma afecccedilatildeo proacutepria agrave alma
tatildeo somente E embora natildeo seja faacutecil eacute necessaacuterio
compreender isto Revela-se que na maioria dos
casos a alma nada sofre ou faz sem o corpo
como por exemplo irritar-se persistir ter
vontade e perceber em geral por outro lado
parece ser proacuteprio a ela particularmente o pensar
Natildeo obstante se o pensar tambeacutem eacute um tipo de
imaginaccedilatildeo ou se ele natildeo pode ocorrer sem a
imaginaccedilatildeo entatildeo nem mesmo o pensar poderia
existir sem o corpo Enfim se alguma das funccedilotildees
ou afecccedilotildees eacute proacutepria agrave alma ela poderia existir
separada mas se nada lhe eacute proacuteprio a alma natildeo
seria separaacutevel [] Parece tambeacutem que todas as
afecccedilotildees da alma ocorrem com um corpo acircnimo
mansidatildeo medo comiseraccedilatildeo ousadia bem
como a alegria o amar e o odiar ndash pois o corpo eacute
afetado de algum modo simultaneamente a elas
(DA 403a3-19)60
O passo apresenta simultaneidade nas afecccedilotildees do corpo e da
alma inviabilizando a separaccedilatildeo destas duas instacircncias61 pois como
observa Everson (2012 p 238) ldquose o corpo deve ter oacutergatildeos que satildeo
capazes de realizar suas funccedilotildees constitutivas estes igualmente
precisam ter particulares constituiccedilotildees materiaisrdquo Reforccedilamos portanto
que para Aristoacuteteles natildeo haacute separaccedilatildeo entre corpo e alma o que nos
mostra sua teoria das emoccedilotildees pois nesta teoria o filoacutesofo explicita que
60 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ἀπορίαν δ
ἔχει καὶ τὰ πάθη τῆς ψυχῆς πότερόν ἐστι πάντα κοινὰ καὶ τοῦ ἔχοντος ἢ ἔστι τι
καὶ τῆς ψυχῆς ἴδιον αὐτῆς τοῦτο γὰρ λαβεῖν μὲν ἀναγκαῖον οὐ ῥᾴδιον δέ
φαίνεται δὲ τῶν μὲν πλείστων οὐθὲν ἄνευ τοῦ σώματος πάσχειν οὐδὲ ποιεῖν
οἷον ὀργίζεσθαι θαρρεῖν ἐπιθυμεῖν ὅλως αἰσθάνεσθαι μάλιστα δ ἔοικεν ἰδίῳ
τὸ νοεῖν εἰ δ ἐστὶ καὶ τοῦτο φαντασία τις ἢ μὴ ἄνευ φαντασίας οὐκ ἐνδέχοιτ
ἂν οὐδὲ τοῦτ ἄνευ σώματος εἶναι εἰ μὲν οὖν ἔστι τι τῶν τῆς ψυχῆς ἔργων ἢ
παθημάτων ἴδιον ἐνδέχοιτ ἂν αὐτὴν χωρίζεσθαι εἰ δὲ μηθέν ἐστιν ἴδιον αὐτῆς
οὐκ ἂν εἴη χωριστή [] ἔοικε δὲ καὶ τὰ τῆς ψυχῆς πάθη πάντα εἶναι μετὰ
σώματος θυμός πραότης φόβος ἔλεος θάρσος ἔτι χαρὰ καὶ τὸ φιλεῖν τε καὶ
μισεῖν ἅμα γὰρ τούτοις πάσχει τι τὸ σῶμα 61 A questatildeo eacute bem mais complexa poreacutem natildeo poderiacuteamos estudaacute-la em
detalhes nesse momento Sobre o assunto sugerimos a leitura de textos como os
de Robinson e Everson indicados nas referecircncias Estes lidam com a questatildeo
com muito mais cuidado do que noacutes podemos lhe dispensar no presente
80
quem se emociona natildeo eacute o corpo mas o composto corpoalma
apresentando claramente sua perspectiva hilemoacuterfica A prova que
Aristoacuteteles daacute para tanto eacute que agraves vezes as emoccedilotildees fortes e violentas
(hiskyrograven kaigrave enargograven pathḗmaton) natildeo produzem excitaccedilatildeo ou medo
mas agraves vezes emoccedilotildees pequenas e imperceptiacuteveis (mikroacuten kaigrave
amauroacuten) nos movem (kineicircsthai) Isso se torna ainda mais evidente
por exemplo quando natildeo acontece nada de temiacutevel mas se sente medo
(DA I 1 403a20-24) tendo o corpo a tremer como eacute o caso em um
teatro Por isso o filoacutesofo considera evidente que as afecccedilotildees satildeo
determinaccedilotildees na mateacuteria - ou seja implicam ou envolvem mateacuteria mas
natildeo somente (DA I 1 403a24-25 loacutegoi eacutenyloi eisiacuten62) Por isso tambeacutem
as definiccedilotildees que daacute para as emoccedilotildees satildeo do tipo o encolerizar-se eacute um
movimento no corpo do sangue na regiatildeo que estaacute em volta do
coraccedilatildeo ocasionado por certo desejo63 Tais potecircncias satildeo despertadas
por percepccedilotildees imagens e imaginaccedilotildees fatores que estatildeo atrelados ao
exterior e agrave percepccedilatildeo sensiacutevel e estatildeo associadas ao desejo e ao
pensamento daquele que se emociona
Dessas consideraccedilotildees do tratado sobre a alma acerca das
emoccedilotildees aleacutem da velha lista das paacutethē eacute possiacutevel entender que afetam
simultaneamente alma e corpo e que neste provocam alteraccedilotildees e
mesmo movimentos Teorias que parecem ser de grande ajuda agrave nossa
pesquisa embora no DA Aristoacuteteles possa natildeo estar preocupado em
especificar o valor moral das emoccedilotildees dado o caraacuteter bioloacutegico (ou
psicoloacutegico) do texto Pelas propostas observadas entendemos ldquoque as
afecccedilotildees da alma satildeo assim inseparaacuteveis da mateacuteria natural dos animais
na medida em que de fato subsistem neles coisas tais como acircnimo e
62Everson traduz a expressatildeo por ldquoexplicaccedilotildees materiadasrdquo e Tricot por ldquodes
formes engageacutees dans la matiegravererdquo (as formas determinadas da mateacuteria) Este
uacuteltimo explica o raciociacutenio de Aristoacuteteles no passo da seguinte forma ldquoas
emoccedilotildees variam segundo os diferentes indiviacuteduos elas tanto se produzem e
elas tanto natildeo se produzem Ora essa diferenccedila natildeo eacute devida ao πάθημα que eacute o
mesmo para todos eacute devida agrave diferenccedila dos temperamentos da constituiccedilatildeo
fiacutesica Portanto uma emoccedilatildeo eacute sempre acompanhada mesmo no caso em que o
fato natildeo eacute aparente de um concomitante fiacutesicordquo (2010 nota 2 p 29 traduccedilatildeo
nossa) 63Embora nos interesse em demasia a questatildeo de como as afecccedilotildees da alma se
manifestam no corpo eacute mais bem discutida por Aristoacuteteles em seus tratados
bioloacutegicos mas natildeo apareceraacute aqui por questotildees de exequibilidade de nosso
estudo
81
temor e natildeo satildeo como a linha e a superfiacutecierdquo (DA I 1 403b17-19)64
Constataccedilatildeo possiacutevel porque o estudioso da natureza trataria as afecccedilotildees
de modo diferente do que o faria um dialeacutetico como Everson escreve
Noacutes jaacute vimos que ao definir as afecccedilotildees da
psyche Aristoacuteteles daacute prioridade agrave identificaccedilatildeo
das causas das mudanccedilas relevantes e aqui ele
insiste que tambeacutem ter (sic) de ser feita referecircncia
ao corpo Que aqui ldquoeste tipo de corpordquo natildeo
represente uma referecircncia agrave forma eacute confirmado
pelo que se segue Ele contrasta as definiccedilotildees de
ira que seriam oferecidas pelo dialeacutetico e pelo
fiacutesico o primeiro definiria a ira como ldquolsquoo desejo
de retribuir a dorrsquo ou algo parecidordquo enquanto o
uacuteltimo a definiria como a agitaccedilatildeo do sangue ao
redor do coraccedilatildeo (EVERSON 2010 p 241)
Essa diferenccedila nas descriccedilotildees das afecccedilotildees acontece porque ldquoUm
discorre sobre a mateacuteria e o outro sobre a forma e a determinaccedilatildeordquo (DA I
1 403b1-2)65 A determinaccedilatildeo eacute a forma da coisa e precisa existir em
uma mateacuteria que possua tal qualidade O estudioso da natureza eacute
portanto aquele que aborda as afecccedilotildees correspondentes a um corpo
especiacutefico e a uma mateacuteria especiacutefica natildeo tratando das afecccedilotildees que natildeo
satildeo deste tipo assunto que cabe a estudos como os da arte retoacuterica dos
quais falaremos na sequecircncia
Por ora seguiremos com a investigaccedilatildeo do DA que continua
questionando afirmaccedilotildees sobre a acomodaccedilatildeo da alma no corpo e
afirmando que tal consideraccedilatildeo eacute necessaacuteria pois eacute devido agrave comunhatildeo
corpoalma que um faz e outro sofre um move e outro eacute movido sendo
que nada disso acontece casualmente a um ou ao outro Aristoacuteteles
observa em contrapartida parece que cada corpo apresenta
configuraccedilatildeo proacutepria Nesse ponto provavelmente tenhamos a
importacircncia de chamar as consideraccedilotildees de um tratado bioloacutegico para
uma discussatildeo eacutetica se o primeiro tipo de investigaccedilatildeo tem por
preocupaccedilatildeo o mover poderaacute auxiliar na resoluccedilatildeo de questotildees morais
pois natildeo haacute accedilatildeo (prāxis) ou atividade (eneacutergeia) moralmente
consideraacutevel sem movimento (kiacutenēsis) tampouco sem o movimento
64 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ὅτι τὰ πάθη
τῆς ψυχῆς οὕτως ἀχώριστα τῆς φυσικῆς ὕλης τῶν ζῴων ᾗ γε τοιαῦθ ὑπάρχει
ltοἷαgt θυμὸς καὶ φόβος καὶ οὐχ ὥσπερ γραμμὴ καὶ ἐπίπεδον 65 Idem no original ὁ μὲν τὴν ὕλην ἀποδίδωσιν ὁ δὲ τὸ εἶδος καὶ τὸν λόγον
82
daquilo que pede as accedilotildees ou as atividades como vimos pouco acima
Diante da questatildeo do mover e do que faz mover podemos
explicitar a proposta precedentemente mencionada que a alma eacute o que
move sem ser movido tratando-se do movimento local ldquoeacute possiacutevel
como dissemos que a alma se mova por acidente e que mova a si
mesma ndash eacute possiacutevel por exemplo que aquilo em que ela estaacute seja
movido e seja movido justamente pela alma - mas natildeo eacute possiacutevel de
nenhuma outra maneira que a alma se mova quanto ao lugarrdquo (DA I 4
408a30-34)66 A partir dessa afirmaccedilatildeo Tricot (2010 nota 2 p 65)
esclarece que a alma se move no corpo em que estaacute por acidente pois
move-o e que o movimento quanto ao lugar bem como as alteraccedilotildees
fisioloacutegicas provocadas pelas paacutethē podem nos preocupar justamente
pela relaccedilatildeo da kiacutenēsis com as accedilotildees e as atividades morais que
mencionamos Aristoacuteteles pensa que o deslocamento da alma poderia
ser inferido mais verossimilmente das suas capacidades consideradas
pela opiniatildeo comum como movimento Esta eacute a interpretaccedilatildeo dada por
Tricot (2010 nota 4 p 65) para o passo que segue
E seria mais razoaacutevel algueacutem ter certa dificuldade
em relaccedilatildeo agrave alma como movida tendo em vista o
que se segue dizemos que a alma se magoa se
alegra ousa teme e ainda que se irrita percebe e
raciocina e haacute a opiniatildeo de que todas estas coisas
satildeo movimentos donde algueacutem poderia pensar
que a alma se move Isso contudo natildeo eacute
necessaacuterio Pois mesmo que o magoar-se o
alegrar-se ou o raciocinar sejam especialmente
movimentos e que cada um deles o seja pela alma
ndash por exemplo que o irritar-se ou o temer seja um
tipo de movimento do coraccedilatildeo e que o raciocinar
seja um tipo de movimento desse oacutergatildeo ou talvez
de outro diverso e que dentre estes casos uns
ocorram segundo a locomoccedilatildeo de certas partes
movidas outros segundo a alteraccedilatildeo das mesmas
(quais e como eacute outra questatildeo) ndash dizer que a alma
se irrita eacute como dizer que a alma tece ou edifica
Talvez seja melhor dizer natildeo que a alma se apieda
ou apreende ou raciocina mas que o homem o faz
66 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original κατὰ
συμβεβηκὸς δὲ κινεῖσθαι καθάπερ εἴπομεν ἔστι καὶ κινεῖν ἑαυτήν οἷον
κινεῖσθαι μὲν ἐν ᾧ ἐστι τοῦτο δὲ κινεῖσθαι ὑπὸ τῆς ψυχῆς ἄλλως δ οὐχ οἷόν τε
κινεῖσθαι κατὰ τόπον αὐτήν
83
com a alma E isso natildeo porque o movimento
existe nela mas porque o movimento ora chega
ateacute ela ora parte dela na percepccedilatildeo sensiacutevel por
exemplo ele parte de fora e na reminiscecircncia
parte dela ateacute chegar aos movimentos e agraves
estabilizaccedilotildees nos oacutergatildeos da percepccedilatildeo (DA I 4
408a34-35 408b1-17)67
Assim dando por fim nossa breve discussatildeo sobre a questatildeo do
movimento provocado pelas paacutethē da alma no corpo confirmamos que a
alma natildeo eacute o que faz mover e o que eacute movido Ela eacute somente o que faz
mover (DA 409a18 allagrave tograve kinoucircn moacutenon) e natildeo eacute preciso que se mova
para que conceda movimento aos corpos embora por esses argumentos
natildeo fosse possiacutevel explicar as funccedilotildees (tagrave eacuterga) e as afecccedilotildees (tagrave paacutethē)
da alma68 Essas propostas do DA portanto natildeo potildeem fim agraves nossas
duacutevidas acerca da definiccedilatildeo de emoccedilatildeo
Frente agraves indefiniccedilotildees apresentadas pela EN e pelo DA a
Retoacuterica ressalta algo novo e importante Esse tratado propotildee que as
emoccedilotildees satildeo ldquoas causas que fazem alterar os seres humanos e
introduzem mudanccedilas nos seus juiacutezos na medida em que elas
comportam dor e prazer tais satildeo a ira a compaixatildeo o medo e outras
67 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original ἄλλως δ οὐχ οἷόν τε
κινεῖσθαι κατὰ τόπον αὐτήν εὐλογώτερον δ ἀπορήσειεν ἄν τις περὶ αὐτῆς ὡς
κινουμένης εἰς τὰ τοιαῦτα ἀποβλέψας φαμὲν γὰρ τὴν ψυχὴν λυπεῖσθαι χαίρειν
θαρρεῖν φοβεῖσθαι ἔτι δὲ ὀργίζεσθαί τε καὶ αἰσθάνεσθαι καὶ διανοεῖσθαι ταῦτα
δὲ πάντα κινήσεις εἶναι δοκοῦσιν ὅθεν οἰηθείη τις ἂν αὐτὴν κινεῖσθαι τὸ δ οὐκ
ἔστιν ἀναγκαῖον εἰ γὰρ καὶ ὅτι μάλιστα τὸ λυπεῖσθαι ἢ χαίρειν ἢ διανοεῖσθαι
κινήσεις εἰσί καὶ ἕκαστον κινεῖσθαί τι τούτων τὸ δὲ κινεῖσθαί ἐστιν ὑπὸ τῆς
ψυχῆς οἷον τὸ ὀργίζεσθαι ἢ φοβεῖσθαι τὸ τὴν καρδίαν ὡδὶ κινεῖσθαι τὸ δὲ
διανοεῖσθαι ἤ τι τοιοῦτον ἴσως ἢ ἕτερόν τι τούτων δὲ συμβαίνει τὰ μὲν κατὰ
φοράν τινων κινουμένων τὰ δὲ κατ ἀλλοίωσιν (ποῖα δὲ καὶ πῶς ἕτερός ἐστι
λόγος) τὸ δὴ λέγειν ὀργίζεσθαι τὴν ψυχὴν ὅμοιον κἂν εἴ τις λέγοι τὴν ψυχὴν
ὑφαίνειν ἢ οἰκοδομεῖν βέλτιον γὰρ ἴσως μὴ λέγειν τὴν ψυχὴν ἐλεεῖν ἢ
μανθάνειν ἢ διανοεῖσθαι ἀλλὰ τὸν ἄνθρωπον τῇ ψυχῇ τοῦτο δὲ μὴ ὡς ἐν
ἐκείνῃ τῆς κινήσεως οὔσης ἀλλ ὁτὲ μὲν μέχρι ἐκείνης ὁτὲ δ ἀπ ἐκείνης οἷον
ἡ μὲν αἴσθησις ἀπὸ τωνδί ἡ δ ἀνάμνησις ἀπ ἐκείνης ἐπὶ τὰς ἐν τοῖς
αἰσθητηρίοις κινήσεις ἢ μονάς 68 Raciociacutenios (logismouacutes) percepccedilotildees (aisthḗsis) prazeres (hēdonaacutes) dores
(lyacutepas) etc
84
semelhantes assim como as suas contraacuteriasrdquo (Rhet II 1 1378a19-22)69
Mais adiante no texto lemos outro passo que parece proceder a uma
exemplificaccedilatildeo ou lista de emoccedilotildees ldquoPor paixotildees entendo a ira o desejo
e outras emoccedilotildees da mesma natureza de que falamos anteriormenterdquo
(Rhet II 12 1388b32-33)70 O que pode chamar nossa atenccedilatildeo nesses
trechos eacute resumido por Konstan (2006 p 33 traduccedilatildeo nossa) do
seguinte modo ldquoA definiccedilatildeo de emoccedilatildeo ou paacutethos entretanto que
Aristoacuteteles oferece na Retoacuterica ndash o mais perto que ele chega de dar uma
tal definiccedilatildeo do que em nenhum outro de seus escritos [] ndash natildeo
relaciona emoccedilatildeo com sua causa externa ou estiacutemulo mas insiste antes
em seu efeito sobre o julgamentordquo Observaccedilatildeo extremamente vaacutelida
embora entendamos que as definiccedilotildees das emoccedilotildees particulares trazidas
pelo Livro II da Rhet apresentem as referecircncias aos mencionados
estiacutemulos ou causas externas como mostraremos pouco adiante
Deixemos isso por ora concentremo-nos na tentativa de definiccedilatildeo dada
pelo texto e nos juiacutezos que se diz serem alterados
Comecemos com uma interrogaccedilatildeo como o destaque na
capacidade de ldquomudanccedilas nos juiacutezosrdquo poderia ser importante para nossa
pesquisa se as coisas que dizem respeito agrave retoacuterica diferem daquelas
especiacuteficas agrave eacutetica Sendo a retoacuterica considerada uma arte e se a arte
trata do universal como poderia nos ajudar a esclarecer questotildees eacuteticas
se vemos Aristoacuteteles sempre a ressaltar o caraacuteter particular das accedilotildees
morais Antes de responder agraves questotildees vale frisar que a eacutetica tambeacutem
aborda universalmente suas questotildees graccedilas ao seu caraacuteter filosoacutefico jaacute
indicando certa proximidade entre as investigaccedilotildees dos dois tratados
Diante disso podemos ir agraves respotas o filoacutesofo nos informa que a arte
retoacuterica natildeo teoriza sobre o provaacutevel para o indiviacuteduo mas sobre o que
parece verdadeiro para pessoas de certa condiccedilatildeo formando silogismos
a partir daquilo sobre o que estamos habituados a deliberar Esse
envolvimento do haacutebito e da deliberaccedilatildeo mesmo que natildeo implique
necessariamente uma accedilatildeo particular ainda eacute de grande importacircncia
para nossos estudos porque a funccedilatildeo da retoacuterica ldquoconsiste em tratar das
questotildees sobre as quais deliberamos e para as quais natildeo dispomos de
artes especiacuteficas e isto perante um auditoacuterio incapaz de ver muitas
coisas ao mesmo tempo ou de seguir uma longa cadeia de raciociacuteniosrdquo
69 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original ἔστι δὲ τὰ
πάθη δι ὅσα μεταβάλλοντες διαφέρουσι πρὸς τὰς κρίσεις οἷς ἕπεται λύπη καὶ
ἡδονή οἷον ὀργὴ ἔλεος φόβος καὶ ὅσα ἄλλα τοιαῦτα καὶ τὰ τούτοις ἐναντία 70 Idem no original λέγω δὲ πάθη μὲν ὀργὴν ἐπιθυμίαν καὶ τὰ τοιαῦτα περὶ ὧν
εἰρήκαμεν πρότερον
85
(Rhet I 2 1357a1-4)71
A arte retoacuterica tem o poder de incitar a deliberaccedilatildeo e tal poder eacute
empregado em julgamentos e em outras instacircncias importantes agraves
decisotildees da poacutelis Por isso Konstan (2006 p 34) observa que os
momentos nos quais as emoccedilotildees eram excitadas por artifiacutecios retoacutericos
satildeo representantes de como as paacutethē estatildeo presentes no cotidiano
poliacutetico ateniense e mesmo moral Assim nosso empenho em estudar as
emoccedilotildees propostas no tratado eacute vaacutelido mesmo que estudiosos como
Fortenbaugh (2008 p 114) entendam que os intentos da Retoacuterica satildeo
distintos daqueles da Eacutetica Nicomaqueia Esta proposta pode sofrer
abalo se confrontada com a interpretaccedilatildeo de Nussbaum (1996 p 306 et
seq) que vecirc elemento cognitivo na constituiccedilatildeo das emoccedilotildees (e natildeo soacute
nas emoccedilotildees propostas pela Poeacutetica e pela Retoacuterica) aproximando suas
teorias sobre a emoccedilatildeo da tese de Konstan acerca dos ajuizamentos
influentes no cotidiano da poacutelis
Tendo em vista a objeccedilatildeo de se relacionar as propostas da EN e
da Rhet acerca das emoccedilotildees reforccedilamos a importacircncia mesmo na vida
de um filoacutesofo do conviacutevio poliacutetico na realizaccedilatildeo da vida humana feliz
Se a retoacuterica traz as emoccedilotildees para as praacuteticas comuns da poacutelis
consideramos o exerciacutecio de conjugaccedilatildeo das ideias dos dois tratados
como vaacutelido porque a Rhet aleacutem de trazer algo mais proacuteximo de uma
definiccedilatildeo de emoccedilatildeo fala mais detalhadamente do nosso objeto de
pesquisa e da possibilidade de mudanccedila nasde emoccedilotildees operadas pelo
discurso As paacutethē sendo coisas que fazem alterar os homens e que
mudam seu juiacutezo e sendo acompanhadas por prazer ou dor (ou
ambos)72 na arte retoacuterica estatildeo relacionadas agraves disposiccedilotildees do puacuteblico e
ao caraacuteter apresentado pelo orador assegurando ao tratado um lugar em
nossa investigaccedilatildeo
Para que o discurso tenha o poder da persuasatildeo e da mudanccedila nos
juiacutezos Aristoacuteteles pensa ser conveniente distinguir trecircs aspectos em
cada uma das emoccedilotildees que possa suscitar 1) em que estado de espiacuterito
71 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original ἔστιν δὲ τὸ
ἔργον αὐτῆς περί τε τοιούτων περὶ ὧν βουλευόμεθα καὶ τέχνας μὴ ἔχομεν καὶ
ἐν τοῖς τοιούτοις ἀκροαταῖς οἳ οὐ δύνανται διὰ πολλῶν συνορᾶν οὐδὲ
λογίζεσθαι πόρρωθεν 72 Sobre o misto de sentimentos que acompanha as emoccedilotildees da Retoacuterica ver
FREDE D ldquoMixed feelings in Aristotleacutes Rhetoricrdquo In Essays on Aristotleacutes
Rhetoric Berkeley Los Angeles London 1996 p 258-285 Ver tambeacutem
Konstan (2006 p 41 et seq) que admite por exemplo o misto de prazer e dor
com a raiva
86
se encontra quem se emociona 2) com o quecirc costuma se emocionar e
3) em que circunstacircncias se emociona Com base nesses criteacuterios o
filoacutesofo elabora descriccedilotildees das emoccedilotildees particulares implicadas com a
arte de persuadir se uma pessoa concentra um ou dois destes aspectos e
natildeo todos natildeo inspira a emoccedilatildeo Aristoacuteteles faz uma distinccedilatildeo das
paacutethē conforme esse meacutetodo que seraacute de grande ajuda aos nossos
propoacutesitos de definir o que satildeo as emoccedilotildees e sua natureza e embora natildeo
apresentemos aqui uma reproduccedilatildeo da definiccedilatildeo dada para cada paacutethos
mais adiante no entanto recorreremos ao medo (phoacutebos) como exemplo
do que expomos73 As descriccedilotildees contudo nos levam a perceber as
emoccedilotildees a serem despertadas com o discurso que tem por base
caracteres jaacute estabelecidos sejam estes aparentes ou reais Estes
caracteres podem ser apresentados pelos espectadores dos discursos
pelos envolvidos nas situaccedilotildees apresentadas em uma exposiccedilatildeo ou
pelos oradores que proferem uma fala Nesse ponto provavelmente
existe uma pequena diferenccedila entre as propostas da Retoacuterica e aquelas
da Eacutetica Nicomaqueia texto no qual as emoccedilotildees ainda tecircm a ver com
um caraacuteter em formaccedilatildeo74 embora as consideraccedilotildees apresentadas no
Livro X mostrem tal tratado preocupado igualmente com a conservaccedilatildeo
de um caraacuteter bem formado
As diferenccedilas entre os dois escritos cessam quando lidam com
pessoas e com o mundo que cerca quem se emociona como explica
Nussbaum (2008 p 46-47) A partir desses estudos entendemos que
estes fatores despertam e sofrem influecircncia das emoccedilotildees trazendo
sempre o olho do outro para nosso mais iacutentimo75 embora no acircmbito
73Tal escolha se justifica porque o medo parece ser uma das emoccedilotildees que
comporta todas as caracteriacutesticas que consideramos importantes para essa classe
(subclasse) de coisa seja entendida 74 Hutchinson observa que os estudantes que acompanhavam Aristoacuteteles
deveriam ser jovens das melhores classes sociais de Atenas 75 Isso porque segundo Konstan (2006 p 27-28 traduccedilatildeo nossa) ldquodado que o
julgamento e a crenccedila satildeo centrais para a dinacircmica das emoccedilotildees como
Aristoacuteteles as concebe eacute natural que um entendimento das pathḗ deve fazer
parte da arte da persuasatildeo Aristoacuteteles caracteriza as emoccedilotildees como consistindo
de dois elementos baacutesicos primeiro todo paacutethos eacute acompanhado por dor e
prazer segundo as pathḗ satildeo nas palavras de Aristoacuteteles aquelas coisas lsquoem
consideraccedilatildeo das quais as pessoas mudam e diferem em observaccedilatildeo aos seus
julgamentosrsquo [] noacutes podemos observar que algueacutem deve estar alerta agrave
possibilidade que um foco no papel da emoccedilatildeo no argumento condicionou o
tipo de sentimentos que Aristoacuteteles e outros estudantes de retoacuterica selecionaram
para anaacutelise Mas pode ser tambeacutem que ambientes forenses e deliberativos
87
poliacutetico sendo as paixotildees entendidas tambeacutem como respostas a
interaccedilotildees na poacutelis O que implica que haacute uma relaccedilatildeo de identidade ou
dessemelhanccedila entre as pessoas envolvidas com determinada emoccedilatildeo
Por isso parece que todas as paacutethē da Retoacuterica envolvem um tipo de
pensamento - ou ao menos opiniatildeo - ou imaginaccedilatildeo devidos a
determinadas situaccedilotildees e posturas dos outros com relaccedilatildeo agravequeles que se
emocionam Essas emoccedilotildees parecem ser despertadas por pessoas ou
relatos aos quais se daacute importacircncia envolvendo tipos de crenccedilas76
(piacutestis) eou opiniotildees (doacutexai) e juiacutezos do puacuteblico permitindo-o se
emocionar por exemplo com o que eacute exposto em um julgamento Com
isso a plateia pode deliberar e tomar certa decisatildeo os ouvintes dos
discursos tratados na Retoacuterica agem ou ao menos reagem de formas
semelhantes em conformidade com aquilo que o orador deixa
transparecer e do modo como busca afetaacute-los Informaccedilotildees de grande
relevacircncia aos nossos propoacutesitos por implicar ldquoaccedilotildeesrdquo particulares (EN
VI 12 1143a28 et seq)
Esse tipo de postura pode ser confirmado ainda por outra arte de
emocionar a poesia traacutegica Quando Aristoacuteteles faz sugestotildees para a boa
composiccedilatildeo de enredos e personagens traacutegicos deixa ainda mais
aparentes as propostas sobre as emoccedilotildees que destacamos como aquelas
fossem vistos como exibindo cenaacuterios intensificados do modo como as emoccedilotildees
operavam geralmente na vida grega onde elas estavam proximamente ligadas a
interaccedilotildees puacuteblicas e [eram] manifestadas principalmente em uma negociaccedilatildeo
de papeis socais contiacutenua e puacuteblica Emoccedilotildees vistas deste modo natildeo satildeo
expressotildees estaacuteticas resultantes de estiacutemulos impessoais como com os pacientes
sujeitos a choque eleacutetrico nas fotografias publicadas por Darwin mas [satildeo]
antes elementos em conjuntos complexos de trocas interpessoais nas quais os
indiviacuteduos estatildeo conscientes dos motivos dos outros e prontos a responder na
mesma moeda Natildeo eacute que Aristoacuteteles esteja certo quanto agraves emoccedilotildees e Darwin
errado mas antes que a abordagem de Aristoacuteteles pode descrever melhor o que
as emoccedilotildees significam na vida social da cidade-estado claacutessica enquanto [a
abordagem] de Darwin pode ser mais adequada ao modo que as emoccedilotildees satildeo
percebidas no universo moderno poacutes-Cartesiano A visatildeo de Aristoacuteteles das
emoccedilotildees depende implicitamente de um contexto narrativordquo 76 Quanto agrave presenccedila da crenccedila nas emoccedilotildees Nussbaum (2008 p 34 traduccedilatildeo
nossa) escreveu ldquoAristoacuteteles Crisipo Secircneca Spinoza Smith e mesmo
Descartes e Hume [] ndash todas essas figuras definem emoccedilotildees em termos de
crenccedilardquo Sugere-se conferir tambeacutem da mesma autora The fragility of
goodness Konstan em seu The emotions of the ancient greecks (2006 p 261)
ressalta a presenccedila da crenccedila na constituiccedilatildeo das emoccedilotildees aristoteacutelicas Sobre a
opiniatildeo na base da emoccedilatildeo ver Zingano (2007 p 152)
88
pretendidas pelo futuro orador na Retoacuterica contudo lanccedilando matildeo de
um instrumento emocional diferente com intenccedilotildees diferentes Vejamos
em que medida caracteres emoccedilotildees e accedilotildees - bem como as virtudes e os
viacutecios que deixam transparecer - podem estar ligados agraves emoccedilotildees
mesmo quando se trata das emoccedilotildees traacutegicas
Assim como a retoacuterica a poesia pode ser encarada como uma arte
de emocionar porque a Poeacutetica composta por Aristoacuteteles apresenta-se
ateacute certo ponto como um manual do fazer poeacutetico Sendo a funccedilatildeo da
poesia traacutegica descrita como provocar medo piedade e a kaacutetharsis
(catarse purificaccedilatildeo purgaccedilatildeo) dessas emoccedilotildees entendemos que
tambeacutem ensina ao menos em linhas gerais o que satildeo as tais emoccedilotildees
embora a Poacutetica natildeo apresente uma definiccedilatildeo de emoccedilatildeo Esse texto
todavia nos ajuda a compreender o que eacute o paacutethos para Aristoacuteteles
aleacutem de dar excelentes dicas a respeito do papel eacutetico das paacutethē
ressaltando duas emoccedilotildees em especial o medo (phoacutebos) e a piedade
(eleeinoacutes) Uma hipoacutetese demasiado interessante defendida por
Nussbaum quanto a estas eacute a de que de acordo com Aristoacuteteles as
emoccedilotildees natildeo satildeo particulares apenas por derivarem da percepccedilatildeo
sensiacutevel assim como por serem individualizadas por crenccedilas e
julgamentos que satildeo internalizados por cada pessoa ldquoUma tiacutepica
emoccedilatildeo aristoteacutelica eacute definida como um composto de um sentimento ou
prazer ou dor e de um tipo de crenccedila particular sobre o mundo [] O
sentimento e a crenccedila natildeo estatildeo somente incidentalmente ligados a
crenccedila eacute a base do sentimentordquo (NUSSBAUM 2001 p 383) Por
conseguinte se as emoccedilotildees traacutegicas tecircm um quecirc moral e implicam
crenccedila como aquelas emoccedilotildees que estudamos com a Retoacuterica eacute
possiacutevel entendecirc-las como constituiacutedas de ao menos um elemento de
racionalidade Composiccedilatildeo que pode ser comprovada pelas exigecircncias
aristoteacutelicas da racionalidade atrelada ao tipo de prazer sentido com a
poesia traacutegica Assim acontece conforme Ricoeur (2012 p 72) porque
ldquoAprender concluir reconhecer a forma eacute esse o esqueleto inteligiacutevel
do prazer da imitaccedilatildeo (ou da representaccedilatildeo)rdquo presente nas emoccedilotildees
traacutegicas sendo um tipo de prazer intelectual
A reaccedilatildeo que cada espectador tem diante de um espetaacuteculo pode
ser mesmo sinal de suas disposiccedilotildees de caraacuteter Desse modo podemos
entender que para Aristoacuteteles as paixotildees que satildeo despertadas atraveacutes da
ficccedilatildeo expressa na poesia traacutegica dizem muito a respeito do caraacuteter e da
virtude humana Sua manifestaccedilatildeo atraveacutes de gestos ou de simples e
quase imperceptiacuteveis sinais do corpo podem revelar as disposiccedilotildees
morais de um cidadatildeo podem mesmo ser uacuteteis agrave consolidaccedilatildeo de um
caraacuteter virtuoso ou agrave correccedilatildeo de um caraacuteter vicioso As reaccedilotildees
89
apresentadas pelo homem quando acometido por emoccedilotildees ou mesmo
quando inspirado poeticamente a sentimentos como os provocados pelas
emoccedilotildees podem deste modo deixar transparecer o caraacuteter
desenvolvido pelo cidadatildeo e preparaacute-lo para reagir ao mundo77 O
agente seraacute instigado a agir de modo a demonstrar por meio da beleza
de suas accedilotildees que seratildeo dignas de louvor a boa forma de suas
disposiccedilotildees e sua retidatildeo moral78 ao ser tocado por uma emoccedilatildeo
verdadeira ou simulada por meio de miacutemesis
Apesar do caraacuteter ficcional da trageacutedia que pode afetar o teor das
emoccedilotildees que tem por funccedilatildeo despertar boa parte do que foi proposto agraves
emoccedilotildees suscitadas pela retoacuterica parece valer tambeacutem agravequelas
provocadas pela trageacutedia Percebemos a presenccedila do prazer e da dor
embora o prazer das emoccedilotildees traacutegicas pareccedila um tanto paradoxal e mais
complexo devido agrave sua racionalidade de tipo especiacutefico agrave trageacutedia e ao
fato de vir da dor que cada um sente com o estiacutemulo do ficcional
Assim a trageacutedia eacute exemplo de como eacute possiacutevel juntar os dois lados da
alma humana pois suas emoccedilotildees dependem da racionalidade
apresentada pela forma como o enredo eacute composto e pela racionalidade
do puacuteblico que consegue compreender o encadeamento loacutegico
apresentado pelo texto ao ponto de se emocionar com as sugestotildees feitas
pela composiccedilatildeo traacutegica Sempre percebemos a necessidade de se imitar
homens a agir de modo que a unidade do enredo e da accedilatildeo apareccedila
necessaacuteria e verossimilmente a partir de sua estrutura Esse tipo de
elaboraccedilatildeo textual leva a reaccedilotildees por parte do puacuteblico e este eacute
conduzido ao que parece a pensar e ateacute mesmo a julgar devido agrave
racionalidade do enredo a respeito do caraacuteter dos personagens o que
tambeacutem emociona Assim a Poeacutetica faz mais que nos propor como
despertar emoccedilotildees conta-nos sobre a constituiccedilatildeo das emoccedilotildees que
pretende provocar
Essa afirmaccedilatildeo pode ser confirmada pela proposta que ter
simpatia pelos personagens - emoccedilatildeo que natildeo consta das listas de
Aristoacuteteles mas que eacute mencionada na Poeacutetica - faz com que
percebamos a forte necessidade da relaccedilatildeo com o outro tambeacutem nesse
77Aleacutem de apresentarem o caraacuteter do poeta ligando novamente a poesia traacutegica
agrave concretude do mundo mas dessa vez a um mundo preacutevio agrave composiccedilatildeo
traacutegica (a miacutemesis I descrita por Ricoeur em Tempo e Narrativa) 78Provavelmente nesse ponto seja validada a proposta de Ricoeur que percebe
na Poeacutetica de Aristoacuteteles os primeiros passos de uma esteacutetica da recepccedilatildeo jaacute
que a poesia teria ecos em um depois da composiccedilatildeo a chamada miacutemesis III
(RICOEUR 2010 p 86 et seq)
90
tipo de exposiccedilatildeo sendo que leva a plateia a imaginar de certo modo as
situaccedilotildees apresentadas A trageacutedia pode mesmo fazer pensar sobre as
possibilidades de acontecimentos obviamente natildeo idecircnticos aos
expostos mas de teor minimamente semelhante Eacute isso que toca o
espectador e o leva a temer e a se apiedar mas isso tambeacutem nos conta o
que satildeo medo e piedade A presenccedila de um forte elemento de
racionalidade implicado no despertar das emoccedilotildees que o espectador das
trageacutedias sente indica-nos os componentes da emoccedilatildeo traacutegica e geral Eacute
possiacutevel que haja mesmo crenccedilas opiniotildees e certos tipos de
pensamentos aleacutem da inegaacutevel imaginaccedilatildeo envolvida nas emoccedilotildees
mesmo que estas sejam emoccedilotildees traacutegicas
Apoacutes esses apontamentos parece que estamos prontos para tentar
uma delimitaccedilatildeo com contornos um pouco mais bem determinados
daquilo que entendemos juntamente com Aristoacuteteles acerca do que seja
a emoccedilatildeo
5 A emoccedilatildeo
Diante de tudo o que estudamos entendemos que quanto ao
gecircnero a emoccedilatildeo classifica-se como paacutethos sendo uma afecccedilatildeo sofrida
conjuntamente por corpo e alma seja ela visiacutevel ou natildeo em uma
manifestaccedilatildeo fiacutesica Pode ser traduzida biologicamente em termos de
processos desencadeados no organismo que podem incorrer em
movimento local embora por vezes somente ponha certos oacutergatildeos e
partes do corpo afetado em movimento Pertence agrave capacidade da alma
desiderativa sendo por isso hiacutebrida como tal capacidade Por
conseguinte Nussbaum (1996 p 306) chega mesmo a interpretaacute-la
como subclasse do desejo Igualmente por isso a maioria das emoccedilotildees
tem a possibilidade de ouvir e ateacute de obedecer agrave razatildeo todavia a
emoccedilatildeo natildeo pode ser escolhida deliberadamente natildeo se escolhe se
emocionar ou natildeo bem como natildeo se escolhe desejar ou natildeo e o que se
deseja (EN 1106a3-4) Por isso as emoccedilotildees natildeo se confundem com as
virtudes morais fruto de escolha deliberada que eacute digna de elogio mas
tecircm um papel crucial junto agrave constituiccedilatildeo e possibilidade destas virtudes
Um homem portanto pode ser responsabilizado pelo modo como
escolhe agir mas natildeo por suas emoccedilotildees entretanto parece poder ser
responsabilizado desde que minimamente educado moralmente pela
forma como se emociona e pela intensidade com que sente emoccedilatildeo bem
como pode controlar em direccedilatildeo a quecirc e a quem leva suas paacutethē
As emoccedilotildees satildeo indubitavelmente acompanhadas pelos
sentimentos de prazer de dor ou ambos contudo caracterizam-se ainda
91
por fazerem alterar mais que o corpo alteram os juiacutezos dos homens
Juntamente com sua natureza desiderativa tal possibilidade aponta para
um elemento racional em certa medida constituinte ou decorrente da
emoccedilatildeo Para que algueacutem se emocione eacute preciso que apresente certas
opiniotildees e mesmo juiacutezos sobre determinadas coisas ou pessoas no
mundo ou eacute preciso ao menos que se imagine em certas situaccedilotildees mas
as emoccedilotildees tambeacutem podem influenciar a formulaccedilatildeo de juiacutezos opiniotildees
e pensamentos sobre certas questotildees Por isso como explica Tricot
(2010 nota 3 p 107 traduccedilatildeo nossa) ldquoπάθος que quer dizer afecccedilatildeo
emoccedilatildeo sentimento em geral eacute um movimento da alma provocado por
um objeto exteriorrdquo O dito elemento racional eacute tambeacutem constitutivo
porque a forma como algueacutem toma uma circunstacircncia sob certo aspecto
o perceber um estiacutemulo externo que interage consigo leva o agente a ser
afetado ou seja a se emocionar ou ao menos a responder
emocionalmente de uma ou outra forma
Tal afetaccedilatildeo faz jus ao caraacuteter pateacutetico da emoccedilatildeo aristoteacutelica
bem como abre a possibilidade para que entendamos o paacutethos proposto
pelo filoacutesofo como muitas vezes resultante da interaccedilatildeo entre os
cidadatildeos na poacutelis e influente em tal relaccedilatildeo Igualmente parece nos
permitir acatar a ideia de que a emoccedilatildeo faz com que o agente perceba a
si mesmo como impotente e vulneraacutevel agraves coisas importantes do mundo
que podem lhe atingir No entanto a emoccedilatildeo natildeo pode em hipoacutetese
alguma ser tomada somente como uma passividade e nem todas essas
emoccedilotildees podem ser postas em acordo com a reta razatildeo Assim sendo
quanto agrave sua diferenccedila especiacutefica o paacutethos descrito por Aristoacuteteles natildeo eacute
apenas algo que atinge o homem porque existe a partir de um
movimento iniciado por certas formas de racionalidade como a
percepccedilatildeo sensiacutevel e que pode despertar certas formas da racionalidade
humana pondo mais do que o corpo em accedilatildeo Deste modo a emoccedilatildeo
movimenta o homem ou potildee-no em um certo tipo de movimento seja
quando julga e decide sobre questotildees poliacuteticas ou juriacutedicas quando
impele um espectador agrave kaacutetharsis mas tambeacutem quando pode levar o
agente moral a agir Por esses motivos concordamos com a seguinte
proposta sobre a constituiccedilatildeo da emoccedilatildeo
[] sensaccedilotildees de prazer e dor alteraccedilotildees e
processos fisioloacutegicos crenccedilas e opiniotildees e
atitudes ou impulsos Nenhum desses sentimentos
isolado explica por si mesmo qualquer emoccedilatildeo
Sensaccedilotildees alteraccedilotildees fisioloacutegicas crenccedilas e
atitudes constituem os quatro componentes
92
estruturais da emoccedilatildeo (TRUEBA p 53 traduccedilatildeo
nossa)
Acrescentamos a esses componentes a importacircncia do papel do
outro e do mundo que cercam cada agente na formulaccedilatildeo e no
desencadeamento de um tipo de pensamento ou de raciociacutenio que pode
ser diferente mas natildeo exatamente dissociado das opiniotildees e das
crenccedilas como a imaginaccedilatildeo e as conjeturas presentes na constituiccedilatildeo da
emoccedilatildeo ou na boa forma que ela venha adquirir graccedilas ao seu possiacutevel
contato com a razatildeo praacutetica Quando internalizadas por exemplo na
memoacuteria nas imaginaccedilotildees ou nos pensamentos as emoccedilotildees podem
tambeacutem partir da alma Satildeo portanto afecccedilotildees do conjunto corpoalma
passiacuteveis de serem educadas recebendo a boa medida concebida como
virtude moral e que eacute necessaacuteria agrave vida feliz Pensamos que a boa
medida no entanto soacute eacute possiacutevel devido a um quecirc de racionalidade que
pode acompanhar as emoccedilotildees desde sua constituiccedilatildeo como procuramos
e procuraremos provar ao longo desse estudo
Em suma podemos esboccedilar a seguinte definiccedilatildeo de emoccedilatildeo
conforme os tratados estudados a emoccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo ocasionada
por uma consideraccedilatildeo acerca de determinada situaccedilatildeo Tal consideraccedilatildeo
eacute acompanhada de alteraccedilotildees fisioloacutegicas mas nem sempre de
movimentos sendo que a emoccedilatildeo eacute igualmente capaz de alterar o
julgamento de quem acredita que determinada situaccedilatildeo tem influecircncia
relevante em sua vida tendo por isso inegaacutevel papel na vida humana
descrita pelo filoacutesofo
A presenccedila da emoccedilatildeo hiacutebrida como o desejo eacute indispensaacutevel agraves
propostas eacuteticas de Aristoacuteteles seja como ocasionadora
(biologicamente) de alteraccedilatildeo seja como causadora de mudanccedila no
ajuizamento e mesmo de reflexatildeo ou seja como (eticamente) elemento
do desiderativo que concorre para a accedilatildeo boa ou maacute moralmente Todos
esses aspectos se completam em um entendimento de algo que
realmente tem seu lugar na accedilatildeo humana e que pode influenciaacute-la ao
ponto de ser valorado moralmente Ainda precisamos saber contudo
como e por que meios eacute possiacutevel que as paacutethē ouccedilam e obedeccedilam agrave
razatildeo praacutetica para que dela realmente participem Por isso julgamos
interessante e mesmo necessaacuterio pensar a exigecircncia de sua moderaccedilatildeo a
fim da virtude moral como isso interferiraacute na caminhada rumo agrave vida
feliz na poacutelis
93
Capiacutetulo II
Virtude como possibilidade de acordo entre razatildeo e emoccedilatildeo
1 Virtude completa79 virtudes virtude moral
A discussatildeo sobre a virtude aparece no primeiro Livro da EN em
meio agrave primeira discussatildeo sobre a eudaiacutemōniacutea ou naquele que pode ser
chamado de primeiro tratado sobre a felicidade Nesse ponto do texto a
identificaccedilatildeo do bem supremo com a felicidade parece uma coisa
acertada para Aristoacuteteles mas o filoacutesofo considera preciso esclarecer
qual a natureza da felicidade Admite que um caminho possiacutevel a tal
esclarecimento seja a determinaccedilatildeo da funccedilatildeo do homem Por isso
defendemos no Capiacutetulo anterior desta tese que a funccedilatildeo proacutepria ao
homem e com esta a vida feliz deve ser atividade sempre pautada pela
razatildeo mas defendemos igualmente que nos parece impossiacutevel uma vida
totalmente voltada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica Eacute por isso que nesse
momento nos dedicaremos ao estudo daquela vida ativa segundo a
razatildeo excelente quanto agraves coisas propriamente humanas e portanto
virtuosa nesse sentido Entendemos que tal vida cumpriraacute as exigecircncias
de Aristoacuteteles para a felicidade o que pode ser confirmado pela nossa
interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo que eacute proacutepria ao homem executar bem
atividades e accedilotildees em comunidade de acordo com o mais racional em
cada circunstacircncia
Para que isso seja possiacutevel seraacute preciso se emocionar de modo
adequado associando ldquoelegantementerdquo (LEBRUN 2009 p 16)
emoccedilatildeo e razatildeo associaccedilatildeo que mostraremos resultar em virtude moral
e na virtude que entenderemos como a mais completa Para apresentar
essa possibilidade comeccedilaremos nossa pesquisa com o estudo do ideal
de eudaiacutemōniacutea pensado pelo filoacutesofo no primeiro Livro da EN
Escolhemos essa via para dar prosseguimento agraves discussotildees iniciadas
no Capiacutetulo I e porque justificaraacute a necessidade de se tratar as virtudes
79 Existe uma polecircmica quanto agrave forma correta de se traduzir o termo que define
a caracteriacutestica que Aristoacuteteles atribui para atividade conforme a alma que
chama de felicidade no Livro I 7 ldquoteleicircanrdquo Natildeo discutiremos a questatildeo nesse
momento por isso deixaremos a termo traduzido conforme a ediccedilatildeo brasileira
mais conhecida a da coleccedilatildeo Os Pensadores de 1973 texto que apresenta
1098a14-15 da seguinte forma ldquoo bem do homem nos aparece como uma
atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de uma virtude
com a melhor e mais completardquo No original σπουδαίου δ ἀνδρὸς εὖ ταῦτα καὶ
καλῶς ἕκαστον δ εὖ κατὰ τὴν οἰκείαν ἀρετὴν ἀποτελεῖται
94
bem como ressaltaraacute seu aspecto de representante da funccedilatildeo
propriamente humana e de bem se emocionar A escolha nos parece
apropriada porque graccedilas agrave natureza natildeo racional capaz de concordar
com a razatildeo que identificamos na base das emoccedilotildees eacute possiacutevel pensar a
proposta de Aristoacuteteles acerca da melhor vida possiacutevel como resultante
do bom desempenho da funccedilatildeo humana sendo que este somente pode
acontecer com a harmonizaccedilatildeo das emoccedilotildees com o que a razatildeo
demanda sendo como veremos virtuoso
No primeiro tratado sobre a felicidade o filoacutesofo analisa o que
muitos dizem acerca da eudaiacutemōniacutea que eacute uma atividade de tipo
especiacutefico que alguns dos outros bens (externos) satildeo necessaacuterios e parte
integrante da felicidade mas outros satildeo auxiliares e uacuteteis como
instrumentos naturais A questatildeo eacute destacada como assunto tocante agrave
poliacutetica pois a principal preocupaccedilatildeo dessa ciecircncia eacute fazer com que os
cidadatildeos sejam seres de certa qualidade ou seja fazer com sejam
pessoas honestas e capazes de agir nobremente (EN I 10 1099b31) Por
isso os animais natildeo humanos natildeo satildeo chamados felizes jaacute que natildeo
podem participar desse tipo de atividade Igualmente por isso a crianccedila
natildeo pode ser feliz por ainda natildeo ser capaz desse tipo de accedilatildeo e porque a
felicidade requer uma virtude completa mas para tal completude seria
necessaacuteria a observaccedilatildeo do termo da vida Isso porque as vicissitudes
que ocorrem ao longo da existecircncia podem fazer com que um homem
proacutespero sofra males enormes em sua velhice como no caso de
Priacuteamo80 Um fim de vida desastroso impede uma pessoa de ser
considerada feliz pois ldquoA causa verdadeiramente determinante da
felicidade reside na atividade conforme agrave virtude a atividade em sentido
contraacuterio sendo a causa do estado opostordquo (EN I 10 1100b9-11)81 ou
seja natildeo eacute o acaso ou a fortuna a causa da felicidade mas a virtude que
cabe ao homem
A virtude recebe tamanha importacircncia porque em nenhuma das
outras atividades humanas haacute maior fixidez Entre as atividades
virtuosas as mais altas satildeo as mais estaacuteveis82 porque eacute no seu exerciacutecio
80 HOMERO Iliacuteada V 81 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original κύριαι δ εἰσὶν αἱ κατ ἀρετὴν ἐνέργειαι τῆς εὐδαιμονίας αἱ
δ ἐναντίαι τοῦ ἐναντίου 82As atividades da sophiacutea segundo Tricot (2010 p 78 nota 3) mas seraacute que
natildeo poderiacuteamos estender tal fixidez agraves atividades do prudente (que certamente
apresentaraacute a sophiacutea) e tambeacutem daquele que dispotildee da virtude moral Seriam
essas virtudes separaacuteveis
95
que o homem feliz gasta boa parte de sua vida e com maior
continuidade Deste modo a estabilidade procurada eacute aquela do homem
feliz ao longo de toda sua vida e por esse motivo o homem feliz se
engaja em accedilotildees e contemplaccedilotildees que satildeo conformes agrave virtude
suportando os golpes da fortuna com maior dignidade e perfeiccedilatildeo
honesto e acima de censura Frente a estas afirmaccedilotildees a definiccedilatildeo de
felicidade que parece ser a mais completa apresentada no Livro I eacute posta
em forma de questatildeo
[] que nos impede de chamar feliz o homem cuja
atividade eacute conforme a uma virtude perfeita83 e
suficientemente provida dos bens exteriores e
isso natildeo por uma duraccedilatildeo qualquer mas durante
uma vida completa Natildeo devemos acrescentar
ainda cuja vida se prosseguiraacute nas mesmas
condiccedilotildees e cujo fim estaraacute em relaccedilatildeo com o
resto da existecircncia jaacute que o futuro nos eacute oculto e
que noacutes colocamos a felicidade como um fim
como alguma coisa de absolutamente perfeita
(EN I 11 1101a14-17)84
Essa proposta leva o filoacutesofo a refletir se eacute assim qualificaremos
como venturoso (makaacuterios) o homem que entre os vivos possui e iraacute
possuir os bens necessaacuterios a esse tipo de vida mas venturoso do modo
como o homem pode secirc-lo ou seja conforme as virtudes que satildeo
proacuteprias ao homem O destaque dado a essas virtudes indica o grande
papel que tecircm na vida humana feliz e por isso doravante trataacute-las-emos
Faremos tal apreciaccedilatildeo devido ao fato de as virtudes e em especial as
morais - como poderemos ver ao longo de nossa investigaccedilatildeo e como jaacute
ressaltamos em alguns dos momentos precedentes - serem
estreitamente relacionadas agraves emoccedilotildees e necessaacuterias ao bom
83 Para Zingano (2008 p 77) a virtude perfeita proacutepria eacute aquela que faz o que
deve fazer seguindo boas razotildees (metagrave phronḗseos EE 1234 a29-30) Portanto
eacute a composiccedilatildeo entre razatildeo e virtude moral virtude dianoeacutetica e eacutetica 84Coisa semelhante a respeito da eudaiacutemōniacutea eacute proposta pela Retoacuterica como
veremos logo em seguida Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da
traduccedilatildeo francesa de Tricot (2012) no original τί οὖν κωλύει λέγειν εὐδαίμονα
τὸν κατ ἀρετὴν τελείαν ἐνεργοῦντα καὶ τοῖς ἐκτὸς ἀγαθοῖς ἱκανῶς
κεχορηγημένον μὴ τὸν τυχόντα χρόνον ἀλλὰ τέλειον βίον ἢ προσθετέον καὶ
βιωσόμενον οὕτω καὶ τελευτήσοντα κατὰ λόγον ἐπειδὴ τὸ μέλλον ἀφανὲς ἡμῖν
ἐστίν τὴν εὐδαιμονίαν δὲ τέλος καὶ τέλειον τίθεμεν πάντῃ πάντως
96
desempenho de todas as funccedilotildees aniacutemicas que compotildeem aquilo que se
entende como funccedilatildeo propriamente humana condiccedilatildeo para a
eudaiacutemōniacutea Prova do que afirmamos eacute o passo da Retoacuterica que indica a
necessidade da virtude para a vida feliz como destacaremos a seguir
Fazemos tal proposta pois como vimos e veremos consideramos
virtudes os melhores estados das faculdades da alma
Seja pois a felicidade o viver bem combinado
com a virtude ou a autossuficiecircncia na vida ou a
vida mais agradaacutevel com seguranccedila ou a pujanccedila
de bens materiais e dos corpos juntamente com a
faculdade de os conservar e usar pois
praticamente todos concordam que a felicidade eacute
uma ou vaacuterias destas coisas
Ora se tal eacute a natureza da felicidade eacute necessaacuterio
que as suas partes sejam a nobreza muitos
amigos bons amigos a riqueza bons filhos
muitos filhos uma boa velhice tambeacutem as
virtudes do corpo como a sauacutede a beleza o vigor
a estatura a forccedila para a luta a reputaccedilatildeo a
honra a boa sorte e a virtude [ou tambeacutem as suas
partes a prudecircncia a coragem a justiccedila e a
temperanccedila] Com efeito uma pessoa seria
inteiramente autossuficiente se possuiacutesse os bens
internos e externos pois fora destes natildeo haacute outros
Os bens internos satildeo os da alma e os do corpo os
externos satildeo a nobreza os amigos o dinheiro e a
honra Cremos contudo que a estes se devem
acrescentar certas capacidades e boa sorte pois
assim a vida seraacute muito mais segura (Rhet I 3
1360b14-29)85
85 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original ἔστω δὴ
εὐδαιμονία εὐπραξία μετ ἀρετῆς ἢ αὐτάρκεια ζωῆς ἢ ὁ βίος ὁ μετὰ ἀσφαλείας
ἥδιστος ἢ εὐθενία κτημάτων καὶ σωμάτων μετὰ δυνάμεως φυλακτικῆς τε καὶ
πρακτικῆς τούτων σχεδὸν γὰρ τούτων ἓν ἢ πλείω τὴν εὐδαιμονίαν
ὁμολογοῦσιν εἶναι ἅπαντες εἰ δή ἐστιν ἡ εὐδαιμονία τοιοῦτον ἀνάγκη αὐτῆς
εἶναι μέρη εὐγένειαν πολυφιλίαν χρηστοφιλίαν πλοῦτον εὐτεκνίαν
πολυτεκνίαν εὐγηρίαν ἔτι τὰς τοῦ σώματος ἀρετάς (οἷον ὑγίειαν κάλλος
ἰσχύν μέγεθος δύναμιν ἀγωνιστικήν) δόξαν τιμήν εὐτυχίαν ἀρετήν [ἢ καὶ τὰ
μέρη αὐτῆς φρόνησιν ἀνδρείαν δικαιοσύνην σωφροσύνην] οὕτω γὰρ ἂν
αὐταρκέστατός τις εἴη εἰ ὑπάρχοι αὐτῷ τά τ ἐν αὐτῷ καὶ τὰ ἐκτὸς ἀγαθά οὐ
γὰρ ἔστιν ἄλλα παρὰ ταῦτα ἔστι δ ἐν αὐτῷ μὲν τὰ περὶ ψυχὴν καὶ τὰ ἐν
97
O passo nos mostra Aristoacuteteles a discutir tanto a virtude (he
aretḗ) no singular quanto as virtudes (haigrave aretaiacute) particulares no
plural tornando-as coisas que soacute podem ser alcanccediladas por corpo e alma
em conjunto quando estatildeo na poacutelis Isso acontece porque para satisfazer
agraves exigecircncias da boa vida ou da melhor vida possiacutevel haacute ainda a
exigecircncia da capacidade racional associada e tentando conferir boa
forma agrave capacidade natildeo racional da alma responsaacutevel pelas virtudes
morais Por isso eacute indispensaacutevel agrave nossa investigaccedilatildeo tratar tambeacutem as
virtudes intelectuais e suas relaccedilotildees com a moralidade pois a funccedilatildeo
proacutepria ao homem eacute uma atividade da alma em conformidade com a
razatildeo (metagrave toucirc orthoucirc loacutegou) ou natildeo sem a razatildeo (katagrave tograven orthograven
loacutegon) Como vimos somente esse tipo de atividade ou esse conjunto
de atividades permitiria que o homem desempenhasse bem sua funccedilatildeo
do modo como o homem faz especificamente garantindo com esse bom
desempenho a felicidade devido ao bom cumprimento daquilo que
somente os humanos satildeo capazes de fazer e que entendemos como
resultado da virtude completa As virtudes todavia natildeo satildeo tomadas
somente no sentido comum de qualidades que um homem possa
apresentar mas como excelecircncia de suas capacidades Assim a
discussatildeo da virtude e das virtudes se faz necessaacuteria a quem reflete
sobre a eudaiacutemōniacutea mas obedecendo os contornos proacuteprios agrave
terminologia aristoteacutelica pois
[] felicidade eacute a boa ou bem-sucedida atividade
ou a atualizaccedilatildeo da faculdade que eacute peculiar agrave
alma humana e o vocaacutebulo grego para lsquovirtudersquo
aretḗ vem para indicar natildeo que cada mas
somente a boa atividade da alma deve ser
associada agrave felicidade portanto eacute claro que o que
importa na definiccedilatildeo de felicidade eacute a intenccedilatildeo da
palavra aretḗ a saber que significa um estado
excelente algo que exerce bem sua funccedilatildeo e
atinge os padrotildees mais elevados Este eacute um
sentido possiacutevel e comum da palavra grega aretḗ
mas o emprego no singular referindo o melhor
estado possiacutevel em qualquer campo particular eacute
ainda com efeito mais distante do emprego da
palavra no plural por meio do qual referimos as
σώματι ἔξω δὲ εὐγένεια καὶ φίλοι καὶ χρήματα καὶ τιμή ἔτι δὲ προσήκειν
οἰόμεθα δυνάμεις ὑπάρχειν καὶ τύχην οὕτω γὰρ ἀσφαλέστατος ὁ βίος
98
virtudes lsquocorriqueirasrsquo como justiccedila coragem
moderaccedilatildeo (RAPP 2010 p 408)
Se as propostas de Rapp estiverem corretas podemos pensar que
a felicidade existe graccedilas ao melhor estado possiacutevel agrave alma mas que
requer igualmente as virtudes particulares Por isso Aristoacuteteles entende
que os pensadores que identificaram a felicidade com a virtude ou com
a phroacutenēsis ou com a sophiacutea (saber teoacuterico) com uma delas algumas
delas ou todas elas acompanhadas ou natildeo de prazer e prosperidade
exterior parecem ter razatildeo ao menos em um ponto se natildeo em todos (EN
I 8 1098b20-29) O filoacutesofo igualmente pensa que acerta quem identifica
a eudaiacutemōniacutea com a virtude em geral ou com alguma virtude particular
porque a atividade virtuosa pertence agrave virtude embora seja diferente
entender o bem supremo como posse ou como uso em uma disposiccedilatildeo
ou em uma atividade A diferenccedila pousa no fato da disposiccedilatildeo poder
existir sem provocar um bom resultado quando se dorme por exemplo
mas a atividade virtuosa deve agir e agir bem pois as coisas nobres e
boas da vida soacute vecircm a quem age bem (EN 1099a1-7) Se as propostas
apresentam como virtude o que permite agir bem e o melhor estado de
uma ou de todas as capacidades da alma humana mantemos nossos
estudos no campo das questotildees aniacutemicas e por isso devemos recordar
que anteriormente entendemos que a aretḗ assim como a alma se
ldquodividerdquo umas satildeo intelectuais outras morais86 mas quanto ao caraacuteter
as virtudes satildeo morais e satildeo entendidas como disposiccedilotildees de caraacuteter
Assim eacute preciso que sejam examinadas algumas questotildees a respeito da
86 Rapp (2010 p 409) explica a relaccedilatildeo dos diferentes sentidos de virtude e
virtudes ldquoDeve estar mais evidente agora que a relaccedilatildeo entre lsquovirtudersquo
significando o excelente estado da alma e lsquovirtudesrsquo referindo os louvaacuteveis
traccedilos de personalidade admitidos correntemente e socialmente eacute um ponto
crucial em toda filosofia moral de inspiraccedilatildeo platocircnica e que eacute exatamente a esta
relaccedilatildeo que Aristoacuteteles devota sua atenccedilatildeo estrita Uma vez que eacute o primeiro
sentido de lsquovirtudersquo que estaacute em jogo no primeiro livro da EN (ie na definiccedilatildeo
de felicidade) e o uacuteltimo sentido que se torna proeminentemente no terceiro e
quarto livros estamos agora justificados em esperar que a definiccedilatildeo geral de
virtude ndash que eacute desenvolvida entre o primeiro e o terceiro livros e do qual a
doutrina do meio termo eacute um tema indispensaacutevel ndash ajudaraacute o leitor a
compreender a ligaccedilatildeo entre a excelecircncia da alma humana e as virtudes
corriqueiras tais como as conheciacuteamos antes de lidar com a filosofia moralrdquo
Diante dessas dissociaccedilotildees e associaccedilotildees podemos tomar o sentido geral de
virtude e questionar o sentido da virtude moral como meio termo que apresenta
enorme importacircncia para a tese que buscamos defender
99
virtude moral
2 A virtude moral
Pode parecer dispecircndio desnecessaacuterio de energia e tempo devido
a ser um longo e antigo debate mas neste momento entendemos ser
conveniente agrave nossa inquiriccedilatildeo questionar a natureza da virtude moral
ainda que Aristoacuteteles a defina a seu modo Lidaremos com a discussatildeo
na medida em que eacute importante auxiliar no esclarecimento quanto agraves
questotildees que propomos acerca das emoccedilotildees bem como de sua relaccedilatildeo
com a racionalidade A questatildeo se impotildee porque haacute comentaacuterios
recentes sobre a eacutetica de Aristoacuteteles que consideram improacutepria a
proposta da virtude como mediania87 nas emoccedilotildees e nas accedilotildees pois
entre outras falhas da doutrina seria relativa a cada agente e
circunstacircncia sendo inuacutetil como paracircmetro moral Seria tambeacutem
considerada questatildeo paradoxal pois o filoacutesofo recomenda que a medida
seja ldquorelativa a noacutesrdquo ao mesmo tempo em que exemplifica tal medida
com quantidades contaacuteveis Apesar de natildeo concordarmos com essas
interpretaccedilotildees decidimos tratar o assunto porque remete diretamente agrave
proposta das virtudes morais como medida na emoccedilatildeo pelo fato de o
filoacutesofo natildeo admitir a eudaiacutemōniacutea sem virtude moral e por algumas
questotildees intrigantes que surgem ao longo do passo da EN chamado por
Zingano Tratado da virtude moral (EN I 13-III 8) Com isso
buscaremos reavaliar a definiccedilatildeo de virtude moral como boa medida nas
accedilotildees e nas emoccedilotildees tentando evitar o aspecto relativista que tantas
vezes foi conferido agrave doutrina
A partir do que jaacute foi exposto percebemos que aleacutem da doutrina
da boa medida temos Aristoacuteteles a definir o tipo de virtude ora estudado
como uma espeacutecie de excelecircncia moral mas define-a tambeacutem como
uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha deliberada em II 6 e como virtude na
qual eacute possiacutevel que a razatildeo opere Aristoacuteteles resume a aretḗ ethikḗ do
seguinte modo ldquoDiscutimos em geral e em grandes linhas a respeito das
virtudes o gecircnero que satildeo mediedades que satildeo disposiccedilotildees por si
87Hurtshouse em seu A doutrina central da mediania em Aristoacuteteles afirma-se
ceacutetica quanto agrave utilidade da teoria em questatildeo Sorabji (2002 p 7-194-195)
embora aponte os estoicos alguns preacute-socraacuteticos e acadecircmicos como
propositores de uma perspectiva negativa quanto agrave teoria da mediedade afirma
que tal doutrina em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees natildeo eacute banal tendo grande papel social
Assim podemos perceber que as criacuteticas agrave doutrina natildeo satildeo recentes Mesmo
Kant jaacute havia dado sua opiniatildeo negativa quanto agrave proposta
100
mesmas de praticar aqueles atos pelos quais se engendram que estatildeo em
nosso poder e satildeo voluntaacuterias e que satildeo como a reta razatildeo ordenardquo (EN
III 8 1114b28-30) O estudo da phroacutenēsis no Livro VI da EN seria um
complemento agraves possibilidades de virtude e da vida boa moralmente
que soacute seriam completas juntamente com a virtude intelectual da
prudecircncia Adiantando o assunto deste uacuteltimo Livro mencionado e
dando coesatildeo agrave obra em EN II o filoacutesofo obteve a seguinte definiccedilatildeo de
virtude moral
A virtude eacute portanto uma disposiccedilatildeo de escolher
por deliberaccedilatildeo consistindo em uma mediedade
relativa a noacutes disposiccedilatildeo delimitada pela razatildeo
isto eacute como a delimitaria o prudente Eacute uma
mediedade entre dois males o mal por excesso e o
mal por falta Ainda pelo fato de as disposiccedilotildees
faltarem umas outras excederem no que se deve
tanto nas emoccedilotildees como nas accedilotildees a virtude
descobre e toma o meio termo Por isso por
essecircncia e pela foacutermula que exprime a quumlidade a
virtude eacute uma mediedade mas segundo o melhor
eacute o bem eacute um aacutepice (EN II 5 1106b35 II 6
1107a1-8)88
Essa investigaccedilatildeo acerca da natureza da virtude moral que
comeccedila em EN I eacute o foco de nossa investigaccedilatildeo nesse ponto Por isso
nosso estudo nesse momento se dedicaraacute a entender melhor a virtude
considerada desde II 4 como capacidade de se portar bem frente agraves
emoccedilotildees Buscaremos tambeacutem elaborar um breve estudo sobre a virtude
intelectual sem a qual natildeo eacute possiacutevel agir bem quanto agraves mesmas
emoccedilotildees O bom comportamento frente agraves emoccedilotildees eacute imprescindiacutevel agraves
virtudes morais particulares mas pensamos tambeacutem agravequela concepccedilatildeo
do que seja a virtude mais completa O passo da EN citado haacute pouco e
que daacute destaque agrave virtude moral nos leva a entendecirc-la como melhor
estado possiacutevel agrave capacidade natildeo racional da alma humana reforccedilando a
88 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original Ἔστιν ἄρα ἡ ἀρετὴ ἕξις
προαιρετική ἐν μεσότητι οὖσα τῇ πρὸς ἡμᾶς ὡρισμένῃ λόγῳ καὶ ᾧ ἂν ὁ
φρόνιμος ὁρίσειεν μεσότης δὲ δύο κακιῶν τῆς μὲν καθ ὑπερβολὴν τῆς δὲ κατ
ἔλλειψιν καὶ ἔτι τῷ τὰς μὲν ἐλλείπειν τὰς δ ὑπερβάλλειν τοῦ δέοντος ἔν τε τοῖς
πάθεσι καὶ ἐν ταῖς πράξεσι τὴν δ ἀρετὴν τὸ μέσον καὶ εὑρίσκειν καὶ αἱρεῖσθαι
διὸ κατὰ μὲν τὴν οὐσίαν καὶ τὸν λόγον τὸν τὸ τί ἦν εἶναι λέγοντα μεσότης ἐστὶν
ἡ ἀρετή κατὰ δὲ τὸ ἄριστον καὶ τὸ εὖ ἀκρότης
101
proposta da funccedilatildeo proacutepria ao homem como resultado da associaccedilatildeo das
melhores condiccedilotildees das duas capacidades da alma condiccedilatildeo excelente
que consideramos possibilitadora da eudaiacutemōniacutea A questatildeo no entanto
eacute entender como isso eacute possiacutevel Rapp bem observa (2010 p 410) que eacute
preciso esclarecer de que modo as virtudes podem ser entendidas como
melhor estado de cada capacidade da alma humana
No caso das virtudes intelectuais o autor pensa que o
entendimento seja faacutecil jaacute que manifestam o melhor estado da
capacidade racional sendo que tal funccedilatildeo estaacute em bom estado quando se
tem certas capacidades racionais ou intelectuais e se realiza bem as
funccedilotildees que lhes cabem Natildeo eacute claro contudo o modo como eacute possiacutevel
definir o bom estado da capacidade natildeo racional embora tal definiccedilatildeo
seja crucial para nossa pesquisa Tendo em mira esta duacutevida podemos
entatildeo questionar qual eacute o criteacuterio para o bom funcionamento da
capacidade natildeo racional desiderativa Sendo esta capacidade apta a
ouvir e obedecer agrave razatildeo seu bom estado eacute perceptiacutevel se ela realmente
concorda com as propostas racionais ou se reage como a razatildeo pede
mas
lsquoObedecer ao que a razatildeo demandarsquo pode
significar duas coisas bem diferentes que a
pessoa controlada (enkrates) faz o que a razatildeo
demanda enquanto existem impulsos opostos
incitando-a a agir de outra maneira ou a pessoa
virtuosa faz o que pede a razatildeo poreacutem sem ter
impulsos contraacuterios ou concorrentes Estes satildeo
dois niacuteveis de obediecircncia visto que Aristoacuteteles diz
que no uacuteltimo caso a parte natildeo-racional da alma
eacute muito mais facilmente obediente
(euekoacutemeteron) e tudo em uma tal pessoa eacute
consoante agrave razatildeo (homophoacutenei tocirci loacutegoi) (RAPP
2010 p 410-41)89
A partir dessa explicaccedilatildeo surge nova questatildeo Quando a
capacidade natildeo racional concorda com a racional Pensamos que nossa
questatildeo tambeacutem caiba aqui o que pode facilitar a concordacircncia entre
racional e natildeo racional para que as emoccedilotildees sejam educadas e para que a vida feliz seja possiacutevel A resposta para essas questotildees nos permitiraacute
entender por que as virtudes eacuteticas manifestam o bom estado da
capacidade natildeo racional embora o Livro I da EN natildeo solucione a
89 Igualmente em EN I 13 1102b27
102
indagaccedilatildeo A resposta buscada eacute deixada a cargo do Livro II que em seu
fim com a exposiccedilatildeo de uma espeacutecie de resumo dessa discussatildeo
apresenta um elemento definidor para a consonacircncia da capacidade natildeo
racional com a reta razatildeo Entatildeo esse Livro deve explicar como as
virtudes eacuteticas podem ser o bom estado da capacidade natildeo racional Mas
seraacute que tal resposta viraacute com a doutrina do meio termo Rapp entende
que esta doutrina ao menos contribuiraacute para a soluccedilatildeo do problema e noacutes
concordamos com esse entendimento Por isso julgamos ser
interessante discutir a validade e a aplicabilidade da teoria da boa
medida jaacute que Aristoacuteteles considera virtude moral como boa medida nas
emoccedilotildees Apesar das possiacuteveis falhas e das objeccedilotildees que tecircm sido
apresentadas ao longo dos tempos agrave doutrina buscaremos uma
abordagem sucinta e natildeo exaustiva do assunto mas na medida em que
reforce a importacircncia de tal teoria no que diz respeito agrave relaccedilatildeo da
virtude moral com a boa medida nas emoccedilotildees
2a) Caraacuteter tautoloacutegico ou trivial da doutrina da virtude moral como
mediania
A doutrina da boa medida como eacute chamada por estudiosos como
Rapp (2010 p 405 et seq) e Urmson (1984 p 157 et seq) eacute tomada
por alguns como trivial ou mesmo tautoloacutegica Um dos motivos para
esse tipo de acusaccedilatildeo agrave teoria eacute o fato de ela propor que a medida seja
lsquorelativa a noacutesrsquo afirmaccedilatildeo que daria agrave proposta do meio termo um tom
relativista ou subjetivo gerando duacutevidas sobre sua utilidade e
aplicabilidade como padratildeo para as accedilotildees moralmente boas A criacutetica
tambeacutem eacute feita porque parece pretender quantificar o que Aristoacuteteles
defende ser em muitos passos ldquorelativo a noacutesrdquo e que tem como
paracircmetro o homem bom suas accedilotildees o bem e as circunstacircncias90
90 Kant por exemplo se posiciona contrariamente agrave doutrina da boa medida
porque entendeu o princiacutepio como falso Pensava que natildeo se pode buscar
diferenccedilas entre virtude e viacutecio no grau segundo o qual algumas maacuteximas satildeo
observadas As diferenccedilas deveriam ser buscadas na qualidade especiacutefica de tais
maacuteximas Seria falso portanto propor a virtude como meio termo entre dois
viacutecios pois cada um deles teria sua proacutepria maacutexima e por isso um contradiria o
outro impedindo a doutrina de ser tomada como proposta universal que guiasse
a accedilatildeo humana A postura eacutetica kantiana contraacuteria as propostas aristoteacutelicas
sobre a virtude moral como boa medida eacute posta agrave prova de modo interessante e
favoraacutevel a Aristoacuteteles por Anscombe em seu Modern moral philosophy Por
isso quem deseja reforccedilar a validade das teorias de Aristoacuteteles em detrimento a
propostas como as de Kant como eacute o nosso caso deve ao menos mencionar o
103
Pensamentos como estes acusariam a mencionada doutrina de um
desacordo interno e como propusemos levaram filoacutesofos e
comentadores a um longo debate sobre o passo em que a virtude moral
aparece descrita como mediania entre excesso e falta o Livro II 6 da
EN
Aleacutem disso as objeccedilotildees atingem diretamente as propostas do
filoacutesofo a respeito do comportamento que o virtuoso - ou o homem de
um modo geral - deve apresentar diante das emoccedilotildees Portanto
julgamos ser conveniente discutir um pouco a questatildeo para tentar
desfazer esses embaraccedilos e na medida em que nos auxilie a por emoccedilatildeo
e razatildeo em acordo Para tanto defenderemos que a doutrina apresenta
conjuntamente e sem complicaccedilotildees aspectos quantitativos qualitativos
e avaliativos Buscaremos fazer isso pois pensamos ser a melhor forma
de entender a virtude moral e sua exigecircncia de boa medida raciocinada
quanto agraves inevitaacuteveis emoccedilotildees Entendemos que o aspecto avaliativo da
doutrina natildeo eacute invalidado pela proposta conceitual atribuiacuteda agrave mesma
porque a capacidade de avaliaccedilatildeo do entorno permite ao virtuoso ser
bom juiz91
artigo da filoacutesofa que abre espaccedilo na contemporaneidade para uma eacutetica das
virtudes com base em Aristoacuteteles 91 Rapp explica que haacute duas possibilidades interpretativas para a doutrina da boa
medida e que podemos apresentar aqui com os trechos citados Por conseguinte
a doutrina tem aspecto conceitual que pode ser expresso do seguinte modo ser
muito ou muito pouco levam a esquecer a quantia correta Para o autor esse eacute
um sentido analiacutetico da doutrina que eacute importante quando em EN 2 VI e EE 2
III define-se a virtude contudo esse caraacuteter conceitual se torna pouco claro com
a exposiccedilatildeo na EN de uma opccedilatildeo empiacuterica da doutrina em questatildeo Em 2 II eacute
afirmado que aquilo que se discute pode ser destruiacutedo por excesso ou falta mas
preservado pelo meio termo e Aristoacuteteles daacute o exemplo da forccedila fiacutesica
conservada ou destruiacuteda por treinamento (EN 1104a11-13) Nesse ponto
excesso deficiecircncia e meio termo satildeo entendidos como o que gera preserva ou
destroacutei o que ultrapassa segundo o comentador a questatildeo conceitual pois o
filoacutesofo descreve tal fato como observaacutevel (horocircmen)
As duas possibilidades da doutrina analiacutetica e empiacuterica dadas pelo livro II
induzem em erro pensa Rapp e pensa tambeacutem que por isso haacute comentaacuterios
que entendem que tal doutrina oscile entre um modelo analiacutetico e alguma outra
coisa ldquoEntretanto haacute algumas evidecircncias de que a versatildeo empiacuterica natildeo se
equipara agrave versatildeo analiacutetica (i) a versatildeo empiacuterica em EN 22 natildeo desenvolve a
doutrina de modo completo que deveria pelo menos incluir o conceito de lsquomeio
termo para noacutesrsquo etc (ii) EE e EN concordam amplamente na definiccedilatildeo de
virtude eacutetica e na doutrina do meio termo que eacute um elemento da discussatildeo mas
a EE oferece apenas a versatildeo conceitual e natildeo inclui um equivalente da variaccedilatildeo
104
A desavenccedila quanto agrave teoria da boa medida pode ter como iniacutecio
afirmaccedilotildees feitas por Aristoacuteteles propondo que os discursos sobre
questotildees praacuteticas satildeo em linhas gerais e natildeo exatas Isso significaria que
quando se trata das accedilotildees particulares natildeo haacute fixidez Se natildeo haacute fixidez
nos discursos sobre as coisas gerais desse tipo muito menos haveraacute
quando se tratar das coisas particulares92 O filoacutesofo entende que por
isso os agentes devem apreciar o momento da accedilatildeo (EN II 2 1104a1-9)
embora pense que mesmo assim natildeo devamos nos furtar a discutir tais
assuntos pois em eacutetica ou seja para o filoacutesofo moral interessam
sobremaneira as accedilotildees particulares Por conseguinte Aristoacuteteles comeccedila
o tratamento da virtude como boa medida afirmando que as coisas ora
estudadas satildeo naturalmente corrompidas por excesso e falta mas que a
mediania eacute aliada das virtudes Ao exemplificar seu pensamento
contudo parece se referir a quantidades (EN 1104a13-17) como no caso
que segue
Foi dito satisfatoriamente que a virtude moral eacute
empiacutericardquo (RAPP 2010 p 414-415) A partir disso o autor conclui que natildeo eacute
preciso recorrer agraves referecircncias empiacutericas para defender a doutrina da boa
medida 92 Zingano faz consideraccedilotildees muito interessantes a respeito desse trecho e do
que ele realmente pretende dizer Apoia-se para tanto na proposta de Burnet
que sugere voltar aos manuscritos para a leitura e interpretaccedilatildeo correta do passo
(onde se poderia ler pacircs ho perigrave tocircn prakteacuteon loacutegos diferentemente do que se lecirc
nas ediccedilotildees modernas como a de Bekker pacircs ho perigrave tocircn praktocircn loacutegos) Com
isso entende o seguinte sobre o passo ldquoSegundo a versatildeo dos manuscritos todo
discurso de questotildees praacuteticas isto eacute sobre o que devemos fazer em tal situaccedilatildeo
deve ser dado em grandes linhas na versatildeo dos editores modernos eacute antes a
imprecisatildeo do discurso sobre questotildees praacuteticas que eacute posta em realce isto eacute do
discurso que porta sobre o que satildeo as accedilotildees e questotildees similares Aristoacuteteles
poreacutem como observa Burnet natildeo estaacute falando de como fornecer regras sobre o
que fazer Como Aristoacuteteles diraacute a seguir os agentes devem sempre buscar a
soluccedilatildeo segundo as circunstacircncias isto eacute uma consideraccedilatildeo que faz o filoacutesofo
moral e tal consideraccedilatildeo estaacute expressa no registro do que sempre ocorre No
campo praacutetico o que deve ser feito por ser sempre circunstancial varia
enormemente o que ocasiona a referida perda de exatidatildeo [] Poreacutem o ponto
da inexatidatildeo e expressatildeo unicamente em linhas gerais vale para as decisotildees
praacuteticas aquelas que toma o prudente o que o filoacutesofo faz a teoria moral natildeo
estaacute aqui sob anaacutelise (quando Aristoacuteteles define o que eacute a felicidade ele natildeo
pensa estar fornecendo uma proposiccedilatildeo que eacute vaacutelida somente nas mais das
vezes)rdquo (ZINGANO 2008 p 104-105) Assim o discurso moral seria
impreciso natildeo por falha cognitiva nossa mas por seu objeto impreciso a accedilatildeo
105
um meio termo como o eacute que eacute um meio termo
nas emoccedilotildees e nas accedilotildees Por isso eacute aacuterduo ser
bom pois eacute aacuterduo determinar o meio termo em
cada situaccedilatildeo ndash por exemplo determinar o meio
de um ciacuterculo natildeo eacute para qualquer um mas para
quem sabe assim tambeacutem eacute para qualquer um e eacute
faacutecil encolerizar-se dar ou gastar dinheiro mas
natildeo eacute para qualquer um nem eacute faacutecil o determinar a
quem quanto quando em vista do que e como
fazer Por esta razatildeo o bem agir eacute raro louvaacutevel e
belo Por isso quem mira no meio termo deve
primeiramente se apartar do que eacute mais contraacuterio
[] Entendo por meio termo da coisa o que dista
igualmente de cada um dos extremos que
justamente eacute uacutenico e mesmo para todos os casos
por meio termo relativo a noacutes o que natildeo excede
nem falta mas isso natildeo eacute uacutenico nem o mesmo
para todos os casos (EN II 9 1109a20-30)93
Uma argumentaccedilatildeo e uma exemplificaccedilatildeo desse tipo abririam
espaccedilo agraves duacutevidas acima mencionadas e tambeacutem agraves duacutevidas a respeito
das reais intenccedilotildees de Aristoacuteteles ao propor a teoria da mediania
Questatildeo que aparece com a afirmaccedilatildeo de que em tudo que eacute contiacutenuo e
divisiacutevel se pode tomar mais menos e igual quantidade relativamente a
noacutes ou agrave coisa (EN II 5 1106a24-27) O igual eacute considerado meio termo
entre excesso e falta94 podendo apresentar um conflito com a ideia de
que a boa medida nas emoccedilotildees deva ser relativa a noacutes
Para destacar o problema podemos tomar a afirmaccedilatildeo que a
virtude moral estaacute relacionada com accedilotildees e emoccedilotildees (praacutexeis kaigrave paacutethē)
93 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original Ὅτι μὲν οὖν ἐστὶν ἡ ἀρετὴ ἡ ἠθικὴ
μεσότης καὶ πῶς καὶ ὅτι μεσότης δύο κακιῶν τῆς ὲν καθ ὑπερβολὴν τῆς δὲ
κατ ἔλλειψιν καὶ ὅτι τοιαύτη ἐστὶ διὰ τὸ στοχαστικὴ τοῦ μέσου εἶναι τοῦ ἐν
τοῖς πάθεσι καὶ ἐν ταῖς πράξεσιν ἱκανῶς εἴρηται διὸ καὶ ἔργον ἐστὶ σπουδαῖον
εἶναι ἐν ἑκάστῳ γὰρ τὸ μέσον λαβεῖν ἔργον οἷον κύκλου τὸ μέσον οὐ παντὸς
ἀλλὰ τοῦ εἰδότος οὕτω δὲ καὶ τὸ μὲν ὀργισθῆναι παντὸς καὶ ῥᾴδιον καὶ τὸ
οῦναι ἀργύριον καὶ δαπανῆσαι τὸ δ ᾧ καὶ ὅσον καὶ ὅτε καὶ οὗ ἕνεκα καὶ ὥς
οὐκέτι παντὸς οὐδὲ ῥᾴδιον διόπερ τὸ εὖ καὶ σπάνιον καὶ ἐπαινετὸν καὶ καλόν
διὸ δεῖ τὸν στοχαζόμενον τοῦ μέσου πρῶτον μὲν ἀποχωρεῖν τοῦ μᾶλλον
ἐναντίου [] τὸ μὲν ἄρα τοσοῦτο δηλοῖ ὅτι ἡ μέση ἕξις ἐν πᾶσιν ἐπαινετή
ἀποκλίνειν δὲ δεῖ ὁτὲ μὲν ἐπὶ τὴν ὑπερβολὴν ὁτὲ δ ἐπὶ τὴν ἔλλειψινοὕτω γὰρ
ῥᾷστα τοῦ μέσου καὶ τοῦ εὖ τευξόμεθα 93 Idem τὸ δ ἴσον καὶ ταῦτα ἢ κατ αὐτὸ τὸ πρᾶγμα ἢ πρὸς ἡμᾶς
106
pois estas podem admitir excesso ou falta ou meio termo sendo
possiacutevel por exemplo temer muito ou pouco ou como conveacutem Essa
proposta parece ser referente agrave quantidade de emoccedilatildeo a ser sentida mas
que natildeo eacute a uacutenica delimitaccedilatildeo da boa medida Aristoacuteteles parece
estabelecer aleacutem disso certos paracircmetros para se emocionar
adequadamente pois para que haja a virtude eacute preciso sentir emoccedilotildees
quando com o quecirc e com quem se deve etc o mesmo sendo vaacutelido
para as accedilotildees impedindo uma interpretaccedilatildeo meramente quantitativa da
boa medida As questotildees que se impotildeem frente a tal proposiccedilatildeo satildeo as
seguintes (1) Como interpretar a doutrina da boa medida quantitativa
ou qualitativamente (2) Como aplicar a proposta da quantia certa agraves
accedilotildees (3) A doutrina eacute tautoloacutegica e trivial Temos portanto trecircs
questotildees em matildeos e a resolver antes de aceitar que para a vida feliz seja
preciso que se decirc boa medida agraves emoccedilotildees
A primeira questatildeo que devemos responder nos apresenta a boa
medida como quantidade certa de emoccedilatildeo sentida e accedilatildeo praticada
Devemos entender como conciliar a ideia de boa medida que estaacute entre
dois extremos com a proposta de que a virtude natildeo eacute meacutedia aritmeacutetica
Questatildeo a ser discutida pois o proacuteprio filoacutesofo admite que em certas
disposiccedilotildees a virtude moral se aproxima mais de um dos viacutecios que de
outros como percebemos a partir dos exemplos quantificadores Com
isso agraves vezes os extremos estatildeo mais distantes uns dos outros que do
meio este uacuteltimo podendo apresentar mais semelhanccedila com um dos
contraacuterios por exemplo a covardia eacute mais oposta agrave coragem que a
temeridade Outro exemplo eacute que por tendermos mais aos prazeres que
agrave moderaccedilatildeo somos mais propensos agrave intemperanccedila que agrave temperanccedila e
por isso os extremos aos quais tendemos mais satildeo mais contraacuterios de
seus contraacuterios sendo a intemperanccedila mais contraacuteria agrave temperanccedila (EN
II 6 1107a20 et seq) Todas essas afirmaccedilotildees natildeo desfazem o incocircmodo
que se sente ao somar esse tipo de distinccedilatildeo do que seja a virtude aos
exemplos aritmeacuteticos que lhes seguem A observaccedilatildeo que nas accedilotildees e
emoccedilotildees excessos e faltas satildeo censurados enquanto o meio termo eacute
digno de louvor sendo que para o filoacutesofo as marcas da virtude satildeo o
acerto e digno de louvor intensifica a duacutevida
Quem teme e foge de tudo e nada suporta torna-se
covarde quem em geral nada teme mas tudo
enfrenta torna-se temeraacuterio [] a temperanccedila e a
coragem entatildeo satildeo destruiacutedas pelo excesso e pela
falta mas preservadas pela mediedade [] Assim
tambeacutem acontece com as virtudes do abster-se
107
dos prazeres tornamo-nos temperantes tornados
temperantes somos os mais capazes de abster-nos
deles Igualmente com a coragem habituados a
desprezar tornamo-nos corajosos tornados
corajosos seremos os mais capazes de suportar
coisas temiacuteveis (EN II 2 1104a20-35 1104b1-3)95
A virtude eacute entendida como o que visa o meio termo mas acertar
esse meio soacute acontece de um modo embora errar seja possiacutevel de vaacuterias
formas Diante dessas consideraccedilotildees destacam-se tambeacutem as marcas do
viacutecio o erro o excesso e a falta todas aparentemente relacionadas agraves
quantidades de accedilotildees e emoccedilotildees praticadas e sentidas
Assim da primeira questatildeo viria ainda o segundo problema
enquadrar a teoria do mais do menos e do mesmo tanto agrave forma de agir
Seria relativamente faacutecil entender como eacute possiacutevel exigir medidas
quantitativas em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees poreacutem determinar quantidades
aplicaacuteveis aos modos de agir eticamente natildeo seria tatildeo simples
Aristoacuteteles fala de qualificadores determinantes das accedilotildees conforme agraves
circunstacircncias mas seus exemplos praacuteticos natildeo se aplicam exatamente
agraves questotildees eacuteticas reforccedilando o tom problemaacutetico das propostas nesse
sentido
Temos que encarar ainda outra questatildeo inquietante a terceira
que diz respeito agrave trivialidade da doutrina devido agrave inexatidatildeo e
particularidade do assunto Caso expresso tambeacutem ao se afirmar que um
dos extremos induz mais ao erro que o outro Por isso como eacute difiacutecil
acertar o meio seria preferiacutevel tomar entre os extremos aquele que eacute o
mal menor cabendo ao agente decidir o que fazer em cada situaccedilatildeo
Deste modo eacute preciso prestar atenccedilatildeo aos erros aos quais se tem
propensatildeo sendo isto perceptiacutevel pelo prazer e pela dor que o agente
sente com o que faz (EN I 1 1109b4) O filoacutesofo sugere que o agente se
encaminhe para o lado oposto ao mais apraziacutevel para se afastar o
maacuteximo do erro pois natildeo eacute bom juiz quanto ao agradaacutevel e ao prazer
Ao se afastar do prazer corre menos riscos de errar e eacute mais propenso a
95 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ὅ τε γὰρ πάντα φεύγων καὶ
φοβούμενος καὶ μηδὲν ὑπομένων δειλὸς γίνεται ὅ τε μηδὲν ὅλως φοβούμενος
[] φθείρεται δὴ σωφροσύνη καὶ ἡ ἀνδρεία ὑπὸ τῆς ὑπερβολῆς καὶ τῆς ἐλλείψεως ὑπὸ δὲ τῆς μεσότητος σῴζεται [] οὕτω δ ἔχει καὶ ἐπὶ τῶν
ἀρετῶν ἔκ τε γὰρ τοῦ ἀπέχεσθαι τῶν ἡδονῶν γινόμεθα σώφρονες καὶ
γενόμενοι μάλιστα δυνάμεθα ἀπέχεσθαι αὐτῶν ὁμοίως δὲ καὶ ἐπὶ τῆς
ἀνδρείας ἐθιζόμενοι γὰρ καταφρονεῖν τῶν φοβερῶν καὶ ὑπομένειν αὐτὰ
γινόμεθα ἀνδρεῖοι καὶ γενόμενοι μάλιστα δυνησόμεθα ὑπομένειν τὰ φοβερά
108
atingir o meio termo Tarefa que natildeo eacute faacutecil de ser cumprida pois se
trata de casos particulares e das sensaccedilotildees mateacuteria da discriminaccedilatildeo
(EN II 9 1109b23) Em todos os casos a postura meacutedia eacute louvaacutevel mas
certas vezes se deve tender para um dos extremos a fim de atingir mais
facilmente o meio termo ou o bem explicaccedilatildeo que novamente natildeo alivia
nossas duacutevidas Essas propostas de Aristoacuteteles que afastam a accedilatildeo
correta moralmente do meio termo como meacutedia aritmeacutetica igualmente
levam a duvidar da possibilidade de entender como se pode afirmar que
as accedilotildees soacute seriam viaacuteveis eticamente se seguissem a doutrina da
mediania
A soluccedilatildeo que parece interessante agraves questotildees (1) e (3) vem com
as consideraccedilotildees de Rapp (2010 p 414 et seq) O autor entende e
justifica a viabilidade da doutrina do meio termo caso interpretada
conceitualmente ou seja como delimitadora da bondade ou retidatildeo das
disposiccedilotildees que concordam com as sugestotildees da capacidade racional
Segundo tal proposta natildeo confiariacuteamos totalmente a validaccedilatildeo da teoria
da boa medida a exemplos empiacutericos como aqueles que destacamos
acima e que satildeo causadores da confusatildeo que ora apresentamos Ao
compreender deste modo seria possiacutevel salvar a credibilidade da
doutrina por pensar que natildeo interpretariacuteamos o meio termo apenas
quantitativamente O que fariacuteamos seria tomar como possibilidade
entender a proposta de Aristoacuteteles como simultaneamente quantitativa
e qualitativa sem anular uma ou outra postura Temos ainda a questatildeo
(2) que nos leva a pensar a teoria da boa medida como uacutetil agrave vida moral
por ser aplicaacutevel agraves accedilotildees concretas Podemos comeccedilar a refletir sobre o
assunto e a buscar soluccedilatildeo para ele a partir da definiccedilatildeo da virtude moral
como mediania que tem iniacutecio juntamente com aquela lsquodefiniccedilatildeorsquo de
emoccedilatildeo entendendo as virtudes como
[] disposiccedilotildees [] em funccedilatildeo das quais nos
portamos bem ou mal com relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees
por exemplo com relaccedilatildeo ao encolerizar-se se
nos encolerizamos forte ou fracamente portamo-
nos mal se moderadamente bem e de modo
semelhante com relaccedilatildeo agraves outras emoccedilotildees (EN II
4 1105b25-28)96
A forma como um agente se comporta em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees
96 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἕξεις [] καθ ἃς πρὸς τὰ πάθη
ἔχομεν εὖ ἢ κακῶς οἷον πρὸς τὸ ὀργισθῆναι εἰ μὲν σφοδρῶς ἢ ἀνειμένως
κακῶς ἔχομεν εἰ δὲ μέσως εὖ ὁμοίως δὲ καὶ πρὸς τἆλλα
109
que sente embora possa sugerir accedilatildeo particular determina politicamente
a vida pois tais accedilotildees satildeo cometidas na poacutelis e para Aristoacuteteles as
virtudes morais eram percebidas por elogios dispensados a um cidadatildeo
Uma pessoa era considerada virtuosa ou viciosa quando elogiada ou
censurada pela forma como - ou pela intensidade com que - sentia as
emoccedilotildees embora natildeo se teccedila elogios ou censuras em razatildeo das
emoccedilotildees As pessoas natildeo recebem aprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo da
comunidade por sentirem medo excessivo ou fora de hora por exemplo
pois podem natildeo demonstrar tal medo por meio de gestos accedilotildees e
palavras Sentir temor em excesso natildeo eacute motivo de louvor ou censura
mas a forma como cada cidadatildeo apresenta tais emoccedilotildees agrave sua
comunidade eacute motivo para tanto Por isso Aristoacuteteles afirma que natildeo se
elogia ou censura quem teme mas quem teme de certo modo (EN II 4
1106a1) porque a pessoa sente medo sem escolher deliberadamente
mas as virtudes satildeo escolhas deliberadas ou natildeo acontecem sem escolha
desse tipo Emocionar-se e escolher deliberadamente contudo devem
ser fruto do haacutebito e da aprendizagem
Por isso as virtudes morais foram tratadas como disposiccedilotildees que
levam a agir sem excesso ou falta relativamente agraves emoccedilotildees e agraves accedilotildees e
que podem ser habituadas Justamente por essa relaccedilatildeo de proximidade
entre emoccedilotildees e accedilotildees na eacutetica eacute que se pode tambeacutem buscar uma
resposta para questatildeo (2) a saber como estender a boa medida agraves accedilotildees
para que estas sejam boas As accedilotildees podem ser tratadas desse modo
como explica Zingano por sua intimidade com as emoccedilotildees Ao se
regular as emoccedilotildees regular-se-ia tambeacutem as atividades e accedilotildees a estas
associadas ldquoAs accedilotildees sujeitam-se assim agrave anaacutelise do excesso falta ou
justo meio relativos agraves emoccedilotildees que exprimem encolerizar-se em
demasia ou em relaccedilatildeo a quem natildeo se deve eacute um excesso emotivo que
coloca a accedilatildeo fora do compasso da virtuderdquo (ZINGANO 2008 p 127)
Interpretaccedilatildeo que favorece a doutrina do meio termo
Tal proposta nos faz pensar que satildeo postos paracircmetros para a boa
accedilatildeo relacionada agraves emoccedilotildees Seria preciso se emocionar como jaacute
repetimos algumas vezes em relaccedilatildeo a quem eacute devido adequadamente e
no momento apropriado Isso contudo natildeo favoreceria somente uma
interpretaccedilatildeo qualitativa da doutrina da boa medida Parece que natildeo se
admitirmos com Rapp a ideia de que em relaccedilatildeo a cada virtude haacute
escalas contiacutenuas que vatildeo do agir lsquomais em excessorsquo ao lsquoagir mais
deficientementersquo mas sem que por isso seja necessaacuterio colocar a boa
medida absolutamente no centro de cada escala Com isso estaria salva
a possibilidade quantificadora da doutrina embora natildeo seja uma
determinaccedilatildeo de uma medida exata natural ou absoluta A proposta
110
qualificadora igualmente se conservaria jaacute que a observaccedilatildeo do
momento da accedilatildeo e dos demais paracircmetros mencionados (ou natildeo) nos
levaria a compreender como eacute possiacutevel tomar o meio sem
necessariamente exigir uma meacutedia aritmeacutetica para tanto bem como sem
incorrer em relativismo
Assim apoacutes as propostas sobre as questotildees levantadas podemos
entender que a doutrina pode ser tomada como conceitual ou natildeo
empiacuterica natildeo sendo necessaacuterio que entendamos os exemplos
matemaacuteticos e a explicaccedilatildeo do lsquomeio termo relativo a noacutesrsquo como
contraditoacuterios mesmo porque satildeo propostas que aparecem no mesmo
passo da EN (EN II 9 1109a19-30) Deste modo eacute possiacutevel entender que
o filoacutesofo descreve toda virtude como o bom estado que leva ao
desempenho da funccedilatildeo proacutepria agravequilo de que ela eacute virtude O exemplo
dado por Aristoacuteteles eacute que haacute tocadores de ciacutetara mas os tocadores
virtuosos satildeo os bons tocadores de ciacutetara entendimento que igualmente
se aplica ao bom agente (EN II 5 1106b20-35 II 6 1107a1-6) O homem
virtuoso eacute aquele que busca o bem que lhe eacute natural a eudaiacutemōniacutea e
busca cientemente e de acordo com os paracircmetros e quantidades
adequados na emoccedilatildeo e na accedilatildeo Portanto esse homem e o bem que ele
procura satildeo os padrotildees da bondade e da virtude a serem seguidos
impedindo que a doutrina da boa medida soe como totalmente relativa
aos agentes ou agraves circunstacircncias
Em suma ao longo das discussotildees acima propostas vimos a
virtude moral ser descrita como disposiccedilatildeo de caraacuteter em acordo com a
deliberaccedilatildeo com a escolha deliberada e com a prudecircncia ou seja
conforme o que a razatildeo praacutetica propotildee A virtude moral em essecircncia eacute
boa medida quanto agrave forma como se age e ao modo como se emociona
(EN II 9 1109a20-24) A teoria eacute viaacutevel porque podemos tomar o
esquema do excessofaltaboa medida em termos conceituais natildeo
descartando mas pondo lado a lado seus melhores aspectos
quantitativos e qualitativos aplicando a boa medida tambeacutem agraves accedilotildees
Esses aspectos igualmente se aplicam agraves accedilotildees porque haacute uma relaccedilatildeo
indispensaacutevel entre accedilatildeo e emoccedilatildeo sendo tal relaccedilatildeo o motivo de
podermos propor a teoria da boa medida como qualitativa e ao mesmo
tempo quantitativa sem o risco de incoerecircncias Assim a doutrina
igualmente pode ser estendida agraves accedilotildees mas pensamos que para tanto
devem ser observados ainda seus aspectos avaliativos jaacute que os
paracircmetros podem sugerir que o homem virtuoso avalie as
circunstacircncias agrave sua volta e depois se posicione com o modo adequado
de agir
Embora comentadores como Rapp apresentem algumas dessas
111
caracteriacutesticas em separado pensamos que a proposta apaziguadora que
trazemos confere validade e utilidade agrave teoria da boa medida e resposta
agraves questotildees que foram discutidas (1) A teoria da boa medida eacute
qualitativa ou quantitativa (2) A doutrina da boa medida pode ser
tomada como diretriz praacutetica para a accedilatildeo e (3) A doutrina eacute trivial e
tautoloacutegica Ratificando nossa resposta agrave primeira questatildeo eacute que a
doutrina pode apresentar ambos os aspectos qualitativos e quantitativos
atribuindo-os tanto agraves emoccedilotildees quanto agraves accedilotildees A resposta agrave segunda
questatildeo eacute que a doutrina natildeo pode ser entendida como diretriz praacutetica
no sentido de um procedimento de decisatildeo sendo um delimitador da
bondade ou da retidatildeo das disposiccedilotildees de caraacuteter que entram em acordo
com a razatildeo Entendemos contudo divergindo de Rapp que se eacute
doutrina conceitual formulada por um filoacutesofo que pensa em agentes
possiacuteveis como os prudentes pode preparar tais agentes racionalmente
e permitir que estejam mais aptos a decisotildees natildeo retirando certa
praticidade que possa ser ligada ainda que indiretamente agrave doutrina
Ainda quanto agrave segunda questatildeo concordamos com Zingano (2008 p
127) que entende as emoccedilotildees como intrinsecamente ligadas agraves accedilotildees
Esse elo torna impossiacutevel pensar que se as accedilotildees satildeo respostas dadas agraves
emoccedilotildees haveria como separaacute-las conferindo medida a umas e natildeo a
outras A resposta de Rapp agrave terceira questatildeo eacute que a doutrina fornece
um esquema geral que serve como guia para a exploraccedilatildeo das vaacuterias
virtudes e concordamos com essa postura Pensamos que nossas
perspectivas estando ou natildeo associadas agraves dos comentadores
supracitados se tornaratildeo mais claras com a anaacutelise que se seguiraacute da
virtude particular da coragem que apresentaraacute nitidamente a relaccedilatildeo da
virtude moral como boa medida com a emoccedilatildeo do medo
2b) Exemplo da viabilidade da virtude moral como mediania nas
emoccedilotildees a virtude particular da coragem e o medo
Para verificar e comprovar tudo que propusemos anteriormente
podemos tomar a emoccedilatildeo do medo como exemplo Isso nos ajudaraacute a
confirmar que o fato da doutrina natildeo prescrever modos de accedilatildeo natildeo
significa que natildeo possa ser empregada97 ou ligada agraves accedilotildees
97 A questatildeo da natildeo empregabilidade da doutrina se deve como propusemos
anteriormente ao aspecto filosoacutefico e natildeo praacutetico que Aristoacuteteles confere agrave sua
investigaccedilatildeo eacutetica Mesmo que proponha que o interesse do estudo eacute agir e natildeo
conhecer o filoacutesofo ressalta a importacircncia de anaacutelise filosoacutefica das questotildees
relativas a accedilotildees e casos particulares de accedilatildeo Por isso quando esquadrinha sua
112
As definiccedilotildees da virtude moral oferecidas na EE e na EN satildeo
seguidas por discussotildees sobre virtudes particulares que tecircm em sua
definiccedilatildeo o elemento lsquomeio termorsquo quanto a accedilotildees e emoccedilotildees Ao
propor mesmo que com variaccedilotildees que as virtudes particulares satildeo meio
termos tem-se um certo tipo de aplicaccedilatildeo agrave doutrina explica Rapp Tal
teoria a princiacutepio pode natildeo ser aplicada a decisotildees ou accedilotildees
particulares mas agravequilo que o autor chama de ldquoexploraccedilatildeo filosoacutefica das
vaacuterias virtudes eacuteticasrdquo (RAPP 2010 p 420) Isso acontece porque a
eacutetica de Aristoacuteteles admite niacuteveis variados de particularidade e
generalidade e a proposta da virtude como meio termo estaacute em um niacutevel
mais alto de generalidade Por isso as verdades eacuteticas satildeo um tanto
vagas ou como escreve o proacuteprio Aristoacuteteles satildeo em grandes linhas
(tyacutepoi) e imprecisas (EN II 2 1104a1-2) A discussatildeo sobre as virtudes
particulares comparada a isso eacute bem mais concreta mas ainda natildeo tem
a concretude de uma deliberaccedilatildeo para agir em uma situaccedilatildeo particular
ldquoHaacute portanto uma aplicaccedilatildeo da doutrina mas natildeo como um
procedimento de decisatildeordquo explica Rapp (2010 p 421) No entanto
propusemos acima e reforccedilamos aqui que pensamos um pouco diferente
desse comentador porque acreditamos que essa anaacutelise das virtudes
particulares mesmo tomando a teoria da boa medida como conceitual
leva a um ganho real na eacutetica de Aristoacuteteles
A proposta de excessofaltaboa medida nas emoccedilotildees e nas accedilotildees
que levam aos viacutecios ou agrave virtude pode natildeo ser aplicada ao processo de
decisatildeo mas faz com que o agente conheccedila melhor suas reaccedilotildees
emocionais e que esteja mais bem preparado para tomar decisotildees e
agir98 Aleacutem disso se seguirmos a proposta aristoteacutelica de que o
exemplo e a conduccedilatildeo exterior satildeo o que a princiacutepio ajuda na
habituaccedilatildeo moral do futuro cidadatildeo que tal exemplo vem do homem
virtuoso moralmente e prudente provavelmente encontraremos nisso
um passo aleacutem da reflexatildeo puramente filosoacutefica mencionada pela EN
Ao sugerir que se deva buscar agir como agiria um homem corajoso
provavelmente a doutrina ultrapasse o campo da teoria moral
traduccedilatildeo do ldquoquadrordquo das virtudes morais apresentado na EN Zingano propotildee
que nesse ponto da discussatildeo aparece o que seria o uacutenico momento em que
Aristoacuteteles se posiciona como o prudente e natildeo como o filoacutesofo pois aconselha
quanto a modos de atingir o meio termo e natildeo teoriza sobre a questatildeo O passo
no qual isso acontece eacute aquele que mencionamos como apresentando a ldquocurardquo
pelo contraacuterio 1109b1 quando a EN admite o tom de cartilha moral 98 Nussbaum propotildee esse tipo de interpretaccedilatildeo mas a respeito das emoccedilotildees
despertadas pela trageacutedia em seu The Fragility of Goodness
113
encaminhando-se para uma possiacutevel embora natildeo insistente proposta de
accedilatildeo
Tratando das virtudes morais especiacuteficas a abordagem procederaacute
nesse ponto a partir da perspectiva da virtude moral relativa ao medo a
coragem Eacute interessante lembrar que essa virtude estaacute relacionada com
um desejo menos racional denominado impulso (thymoacutes) que estaacute
relacionado a emoccedilotildees natildeo racionais (tagrave aacuteloga paacutethē) ou menos
racionais como propusemos no Capiacutetulo anterior Vimos tambeacutem que
estas emoccedilotildees natildeo parecem menos humanas ao filoacutesofo entatildeo ele pensa
ser absurdo considerar as accedilotildees feitas por impulso como involuntaacuterias
(EN III 3 1111a34-35 1111b1-3) A coragem natildeo eacute conforme esse
desejo sendo uma virtude parece-nos estar entre aqueles estados nos
quais o agente jaacute educou seus impulsos fazendo-os concordes com a
deliberaccedilatildeo a escolha deliberada e com o que solicita a reta razatildeo Deste
modo trata-se de uma disposiccedilatildeo moral consolidada por bons haacutebitos
que escapou agrave forccedila dos extremos chamados do desejo em uma de suas
versotildees menos racionais99 interpretaccedilatildeo que favorece o entendimento da
99 Mas se considerarmos a doutrina uma verdade conceitual no que ela
favorece a discussatildeo das virtudes individuais ldquoO miacutenimo que podemos dizer eacute
que a doutrina do meio termo estrutura e sistematiza a anaacutelise das vaacuterias
virtudes Antes de tudo a descriccedilatildeo de cada virtude em termos da doutrina
requer a identificaccedilatildeo de uma escala contiacutenua de emoccedilotildees com respeito agrave qual a
virtude especiacutefica eacute o ponto meacutedio Esse natildeo eacute um passo trivial porquanto
pressupotildee o projeto de Aristoacuteteles (tal como descrito acima nas seccedilotildees 11 e
12) de descrever as virtudes eacuteticas enquanto o bom estado da parte natildeo-racional
da alma de modo que toda virtude deve estar ligada a um tipo de impulso ou
desejo natildeo-racional Depois a doutrina exige que as vaacuterias maneiras de errar a
virtude ou a accedilatildeo correta sejam encontradas identificadas e organizadas de
acordo com as duas direccedilotildees de deficiecircncia e excesso Esse procedimento
tambeacutem ajuda com as falhas que natildeo satildeo tatildeo frequentes ou natildeo tatildeo oacutebvias como
as falhas opostas o satildeo Ademais a reconstruccedilatildeo das vaacuterias virtudes em termos
da doutrina transforma o cataacutelogo contingente de virtudes comumente aceitas
em um sistema organizado de virtudes no qual toda virtude corresponde a uma
certa porccedilatildeo da nossa vida natildeo-racional e todo tipo de falha pode ser localizada
nas proximidades da virtude respectiva Essa sistematizaccedilatildeo leva ateacute mesmo agrave
identificaccedilatildeo de pontos meacutedios que natildeo haviam sido reconhecidos como
virtudes ateacute entatildeo E acima de tudo ao analisar e explicar cada virtude de
acordo com o esquema de excesso deficiecircncia e meio termo aprendemos como
entender que cada virtude contribui para o bom estado da parte natildeo-racional da
nossa alma E isto mais uma vez eacute essencial para a funccedilatildeo que atribuiacutemos ao
segundo livro da EN na seccedilatildeo 11 qual seja que a discussatildeo das virtudes deve
revelar como as vaacuterias virtudes normalmente admitidas se relacionam com a
114
boa medida como concordacircncia entre a capacidade natildeo racional e a
capacidade racional a fim de que a primeira alcance seu melhor estado
A coragem descrita por Aristoacuteteles em EN III 9 1115a8 eacute um
meio termo que corresponde a duas emoccedilotildees diferentes o medo e o
arrojo ou confianccedila Mas seguindo nossa proposta inicial observaremos
apenas sua relaccedilatildeo com o medo Neste Livro Aristoacuteteles descreve
pessoas que excedem em medo como covardes enquanto pessoas que
sentem tal emoccedilatildeo insuficientemente satildeo temeraacuterias Ser corajoso no
sentido de natildeo temer como natildeo conveacutem exige admitir que as coisas que
satildeo temiacuteveis parecem ter grande poder de destruiccedilatildeo ou de causar danos
que produzam grandes tristezas e ainda assim natildeo fugir e se acovardar
diante delas Isso natildeo significa que ter coragem eacute medir uma quantia
exata de medo a se sentir pondo de lado o medo excessivo ou
deficiente Ter coragem eacute saber o quanto temer poreacutem contando e
avaliando as condiccedilotildees que nos indicam tambeacutem como quando em
relaccedilatildeo a quecirc e em que circunstacircncias se deve temer e o bem a ser
alcanccedilado com a accedilatildeo corajosa
A disposiccedilatildeo em que se encontra quem teme eacute descrita pela
Retoacuterica coerentemente aos relatos eacuteticos como seguiraacute abaixo
Conforme tal descriccedilatildeo podemos tentar com o auxiacutelio da doutrina da
boa medida e dos paracircmetros para que seja aplicaacutevel propor que as
posturas de um homem corajoso atendem agrave exigecircncia de equiliacutebrio
quanto a essa disposiccedilatildeo apresentando-se como disposiccedilatildeo mais forte e
segura para a vida marca da virtude
Se o medo eacute acompanhado pelo pressentimento de
que vamos sofrer algum mal que nos aniquila eacute
oacutebvio que aqueles que acham que nunca lhes vai
acontecer nada de mal natildeo tecircm medo nem
receiam as coisas as pessoas e os momentos que
na sua maneira de pensar natildeo podem provocar
medo Assim pois necessariamente sentem
medo os que pensam que podem vir a sofrer
algum mal e os que pensam que podem ser
afetados por pessoas coisas e momentos
Creem que nenhum mal pode lhes acontecer as
pessoas que estatildeo ou pensam estar em grande
prosperidade [] as que pensam jaacute ter sofrido toda
espeacutecie de desgraccedilas e permanecem frias perante
o futuro agrave semelhanccedila dos que alguma vez jaacute
ideia de um bom estado ou excelecircncia da almardquo (RAPP 2010 p 421-422)
115
levaram uma surra de paulada Para que sintamos
receio eacute preciso que haja alguma esperanccedila de
salvaccedilatildeo pela qual valha a pena lutar E aqui vai
um sinal disso o medo leva as pessoas a deliberar
ao passo que ningueacutem delibera sobre casos
desesperados (Rhet II 5 1382b29-34 1383a1-
8)100
Em associaccedilatildeo agrave proposta sobre o medo supramencionada
podemos pensar que a disposiccedilatildeo corajosa eacute apresentada pelas pessoas
que se mantecircm de certo modo entre as posiccedilotildees de quem teme mas
esse lsquoentrersquo natildeo significa necessariamente algo fixo dentro de uma
escala quantificaacutevel O corajoso eacute descrito na EN como aquele que
encara as coisas temiacuteveis convenientemente e como manda a razatildeo
confirmando que a doutrina da boa medida leva agrave harmonia da
capacidade natildeo racional com a racional conferindo agrave primeira seu
melhor estado Igualmente apresenta a lsquoaplicabilidadersquo de tal doutrina
conceitual sendo mesmo possiacutevel que um homem percebendo seu bom
estado aniacutemico ou auxiliado por um bom estado aniacutemico que venha de
fora natildeo se furte jamais agraves boas accedilotildees jaacute que busca o que eacute nobre
Aquele portanto que espera de peacute firme e teme as
coisas que eacute preciso por um fim direito do modo
que conveacutem e no momento oportuno ou que se
mostra confiante sob as mesmas condiccedilotildees este eacute
um homem corajoso (pois o homem corajoso
padece e age por um objeto que vale a pena e do
modo que exige a razatildeo E o fim de toda atividade
eacute aquele que eacute conforme as disposiccedilotildees do caraacuteter
do qual ela procede e estaacute aiacute uma verdade para o
homem corajoso igualmente sua coragem eacute uma
coisa nobre por conseguinte seu fim tambeacutem eacute
100 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original εἰ δή
ἐστιν ὁ φόβος μετὰ προσδοκίας τινὸς τοῦ πείσεσθαί τι φθαρτικὸν πάθος
φανερὸν ὅτι οὐδεὶς φοβεῖται τῶν οἰομένων μηδὲν ἂν παθεῖν οὐδὲ ταῦτα ἃ μὴ
οἴονται ἂν παθεῖν οὐδὲ τούτους ὑφ ὧν μὴ οἴονται οὐδὲ τότε ὅτε μὴ οἴονται
ἀνάγκη τοίνυν φοβεῖσθαι τοὺς οἰομένους τι παθεῖν ἄν καὶ τοὺς ὑπὸ τούτων καὶ
ταῦτα καὶ τότε οὐκ οἴονται δὲ παθεῖν ἂν οὔτε οἱ ἐν εὐτυχίαις μεγάλαις ὄντες
καὶ δοκοῦντες [] οὔτε οἱ ἤδη πεπονθέναι πάντα νομίζοντες τὰ δεινὰ καὶ
ἀπεψυγμένοι πρὸς τὸ μέλλον ὥσπερ οἱ ἀποτυμπανιζόμενοι ἤδη ἀλλὰ δεῖ τινα
ἐλπίδα ὑπεῖναι σωτηρίας περὶ οὗ ἀγωνιῶσιν σημεῖον δέ ὁ γὰρ φόβος
βουλευτικοὺς ποιεῖ καίτοι οὐδεὶς βουλεύεται περὶ τῶν ἀνελπίστων
116
nobre jaacute que uma coisa se define sempre por seu
fim e por consequecircncia eacute em vista de um fim
nobre que o homem corajoso faz frente aos
perigos e completa as accedilotildees que lhe dita sua
coragem (EN III 10 1115b17-24)101
Assim a coragem eacute a mediania em relaccedilatildeo agraves coisas que inspiram
medo nas circunstacircncias mencionadas O corajoso escolhe ou encara tais
coisas por ser nobre agir desse modo ou por ser vergonhoso agir
diferentemente mas o filoacutesofo lista lsquotiposrsquo de coragem (EN III 11
1116a28 et seq) dentre as quais destaca o desejo de evitar a vergonha e
o medo da desonra como o que mais se aproxima da coragem
propriamente dita Haveria mesmo como vimos uma coragem por
impulso (thymoacutes) considerada plena de emoccedilatildeo no sentido que
movimenta corpo e alma mas que quando acompanhada de impulso
bem-educado acrescida de escolha deliberada e de um bom fim
tenderia mais de perto agrave virtude moral da coragem (EN III 11 1117a4)
Haveria ainda uma coragem incitada por discursos retoacutericos e por
apresentaccedilotildees artiacutesticas e estas provavelmente fossem os tipos que
menos colocassem os homens em accedilotildees corajosas Entendemos no
entanto que mesmo estas uacuteltimas poderiam ser capazes de preparar
ouvintes e espectadores para decisotildees e accedilotildees reais jaacute que expotildeem
modelos de coragem o que prepararia os cidadatildeos para momentos em
que realmente necessitassem de decisotildees influenciadas pela virtude em
questatildeo
O distintivo de um homem verdadeiramente corajoso contudo eacute
suportar aquilo que realmente eacute temiacutevel ou que lhe parece como tal (EN III 11 1117a16-17) Aleacutem disso Aristoacuteteles ressalta que normalmente se
pensa que um homem mostra maior coragem ao natildeo temer e natildeo se
abalar frente a perigos bruscos e natildeo previsiacuteveis jaacute que a associaccedilatildeo
entre sua phroacutenēsis e virtude moral o deixam em boas condiccedilotildees para
agir em quaisquer situaccedilotildees Assim a coragem eacute fruto de uma
disposiccedilatildeo de caraacuteter e requer menos preparaccedilatildeo para a accedilatildeo Os perigos
previsiacuteveis podem ser alvo de caacutelculo (logismoucirc) e de raciociacutenio
101 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original ὁ μὲν οὖν ἃ δεῖ καὶ οὗ ἕνεκα ὑπομένων καὶ φοβούμενος καὶ
ὡς δεῖ καὶ ὅτε ὁμοίως δὲ καὶ θαρρῶν ἀνδρεῖος κατ ἀξίαν γάρ καὶ ὡς ἂν ὁ
λόγος πάσχει καὶ πράττει ὁ ἀνδρεῖος τέλος δὲ πάσης ἐνεργείας ἐστὶ τὸ κατὰ
τὴν ἕξιν daggerκαὶ τῷ ἀνδρείῳ δὲ ἡ ἀνδρεία καλόνdagger τοιοῦτον δὴ καὶ τὸ τέλος
ὁρίζεται γὰρ ἕκαστον τῷ τέλει καλοῦ δὴ ἕνεκα ὁ ἀνδρεῖος ὑπομένει καὶ πράττει
τὰ κατὰ τὴν ἀνδρείαν
117
(loacutegou) implicando essas operaccedilotildees racionais com a forma adequada de
temer mas os perigos suacutebitos pedem uma disposiccedilatildeo de caraacuteter estaacutevel
(EN III 11 1117a17-22) e esta parece ser a verdadeira virtude Ademais
o filoacutesofo apresenta como mais corajoso quem permanece imperturbaacutevel
diante de perigos e age como aquele que tem esse tipo de
comportamento quando estaacute seguro A coragem em si mesma portanto
eacute descrita como algo doloroso por sua ligaccedilatildeo com o thymoacutes mas eacute
digna de elogios porque eacute mais difiacutecil encarar dores que se abster de
prazeres
Diante do exemplo de virtude moral particular exposto podemos
compreender a despeito das teorias contraacuterias agrave postura da teoria do
meio termo e da variabilidade das coisas particulares que tocam agrave moral
que realmente eacute devido tratar filosoficamente tais assuntos validando o
fato de Aristoacuteteles comeccedilar sua discussatildeo sobre a mateacuteria afirmando que
as coisas ora estudadas satildeo naturalmente corrompidas por excesso e
falta A ideia de que a mediania eacute aliada das virtudes igualmente eacute
vaacutelida natildeo conflitando com os exemplos que parecem lidar sempre com
quantias contaacuteveis (EN II 2 1104a13-17) e que extrapolam o acircmbito das
puras reflexotildees filosoacuteficas
2c) A forccedila do haacutebito para o correto se emocionar
Ao admitir dois tipos diferentes de virtude conforme a lsquodivisatildeorsquo
da alma Aristoacuteteles nos fala da existecircncia da virtude moral que ldquoresulta
do haacutebito de onde tirou tambeacutem o nome divergindo ligeiramente de
eacutethos102rdquo (EN II 1 1103a17-18)103 O exemplo dado para esclarecer tal
proposta eacute o da pedra que se lanccedilada seguidamente para cima natildeo se
habituaria agraves alturas uma vez que eacute de sua natureza o estar embaixo
explicando que nenhuma virtude moral eacute dada a noacutes por natureza porque
as coisas da natureza natildeo podem ser alteradas pelo haacutebito104 Por isso o
102 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἡ δ ἠθικὴ ἐξ ἔθους περιγίνεται
ὅθεν καὶ τοὔνομα ἔσχηκε μικρὸν παρεκκλῖνον ἀπὸ τοῦ ἔθους 103 Dessas propostas que diferenciam virtude moral e virtude intelectual surge
uma questatildeo intrigante e que provavelmente consigamos responder no Capiacutetulo
seguinte Ela eacute proposta Por Zingano (2008 p 93) do seguinte modo ldquoPode-se
no entanto perguntar por que Aristoacuteteles introduziu aqui esta observaccedilatildeo jaacute
que por contraste esperar-se-ia que as virtudes morais natildeo tivessem a mesma
exigecircncia quando parece ser o contraacuterio visto surgirem do haacutebito e o haacutebito
certamente requer tempo e experiecircnciardquo 104Com essa postura Aristoacuteteles parece buscar responder agrave questatildeo jaacute
apresentada pelo Mecircnon a respeito da possibilidade de se ensinar a virtude O
118
filoacutesofo explica que ldquoas virtudes natildeo se engendram nem naturalmente
nem contra a natureza mas porque somos naturalmente aptos a recebecirc-
las aperfeiccediloamo-nos pelo haacutebitordquo (EN II 1 1103a23-26)105
As virtudes morais satildeo adquiridas pelo exerciacutecio que lhes
precede implicando que um homem se torna justo praticando atos justos
(EN II 2 1103b31) Por exemplo os cidadatildeos satildeo tornados bons porque
as famiacutelias o legislador e a poacutelis como um todo lhes incute bons haacutebitos
direcionados pela lei Por isso os mestres satildeo necessaacuterios jaacute que natildeo
nascemos sabendo fazer as coisas Isso confirma que em um primeiro
momento da formaccedilatildeo moral a virtude vem de fora O que reforccedila essa
ideia eacute o fato que das coisas naturais primeiro temos a potecircncia e depois
as exercitamos em atividades Por exemplo o haacutebito nos apetites e na
raiva tem destino distinto pois uns se tornam temperantes e tolerantes
outros intemperantes e irasciacuteveis devido agrave sua insistecircncia em agir do
mesmo modo em situaccedilotildees semelhantes Esse tipo de explicaccedilatildeo nos
permite defender a possibilidade de habituar apetites e raiva ou seja de
alterar as emoccedilotildees com o auxiacutelio dos haacutebitos do bom conselho e de
outros instrumentos que favoreccedilam a virtude Portanto habituar-se de
um modo ou de outro desde jovem natildeo eacute de somenos mas de muita ou
melhor de toda importacircnciardquo (EN II 1 1103b23-25)106 porque um
homem mal habituado em suas emoccedilotildees torna-se vicioso
Habituar-se de um modo ou de outro estaacute relacionado ao prazer
que se sente com determinadas atividades como vimos no Capiacutetulo
anterior Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer
ou dor implicando que para Aristoacuteteles a virtude tem por natureza
praticar o melhor quanto a estes (EN II 2 1104b9-24) pois eacute proacuteprio agrave
virtude moral o prazer tido com as accedilotildees corretas A capacidade de
retidatildeo nas accedilotildees nas emoccedilotildees nos desejos e nos prazeres viraacute com a
praacutetica habitual de boas accedilotildees proposta que aparece em EN III e na qual
Hutchinson (2009 p 276-277) percebe um paradoxo se as virtudes
estagirita afirma que virtudes morais vecircm com haacutebito e natildeo com ensino Platatildeo
poderia ter chegado a conclusatildeo semelhante (Leis 792e2 Rep 518e1-2 apud
ZINGANO 2008 p 93) contudo ao que parece faz uma concessatildeo aos que
natildeo satildeo saacutebios e que poderiam alcanccedilar a virtude moral por meio da praacutetica Jaacute
Aristoacuteteles entende que todos independentemente de suas tendecircncias naturais
alcanccedilam a virtude por meio do haacutebito 105 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original οὔτ ἄρα φύσει οὔτε παρὰ φύσιν
ἐγγίνονται αἱ ἀρεταί ἀλλὰ πεφυκόσι μὲν ἡμῖν δέξασθαι αὐτάς τελειουμένοις δὲ
διὰ τοῦ ἔθους 106 Idem no original οὐ μικρὸν οὖν διαφέρει τὸ οὕτως ἢ οὕτως εὐθὺς ἐκ νέων
ἐθίζεσθαι ἀλλὰ πάμπολυ μᾶλλον δὲ τὸ πᾶν
119
morais se consolidam pelo treino que leva a se comportar
adequadamente como eacute possiacutevel desenvolvecirc-las Sendo preciso repetir
accedilotildees corajosas para nos tornarmos corajosos natildeo seria preciso ser
previamente corajoso para agir de tal modo O estudioso aponta duas
soluccedilotildees dadas pelo proacuteprio Aristoacuteteles para desfazer o inconveniente
A primeira afirma que haacute coisas que fazemos sob a orientaccedilatildeo do outro
o que nos capacita fazer o que eacute indicado sem ainda sermos haacutebeis para
tanto Isso acontece igualmente com as virtudes morais pois a princiacutepio
devemos agir conforme a sugestatildeo de um educador tornando o conselho
e o exemplo cruciais como observa Aggio (2017 no prelo) Nesse
ponto da formaccedilatildeo natildeo importa que a virtude natildeo esteja no agente ou
que esteja naquele que o aconselha a agir bem pois ainda natildeo foi
internalizada pelo agente embora esse possa seguir um bom conselho
que auxiliaraacute sua habituaccedilatildeo moral para a virtude
A segunda soluccedilatildeo nos diz que as virtudes morais satildeo diferentes
da habilidade porque seu desempenho eacute expressatildeo do caraacuteter uma accedilatildeo
realmente corajosa eacute feita por um homem que sabe o que faz e que tem
um caraacuteter firme e permanentemente corajoso agindo deste modo pela
coragem mesma coisa correta a se fazer Por conseguinte o treinamento
do jovem para a coragem natildeo exige que este seja previamente corajoso
pois a virtude viraacute com o exerciacutecio A praacutetica e a aquisiccedilatildeo de
entendimento tornaratildeo o jovem senhor de suas accedilotildees a partir do que
deixaraacute de seguir propostas alheias sobre como agir corretamente seraacute
realmente virtuoso moralmente pois agiraacute por si mesmo e por amor ao
que eacute correto e bom Mas o filoacutesofo observa ldquoCom efeito eacute possiacutevel
fazer algo de cunho gramaacutetico tanto por acaso como instruiacutedo por outra
pessoardquo (EN II 3 1105a23-26)107 A esse problema Aristoacuteteles respondeu
resumidamente da seguinte maneira para agir com virtude eacute preciso
estar em um certo estado ou o agente sabe o que faz e em seguida
escolhe por deliberaccedilatildeo as coisas elas mesmas agindo por fim de
forma firme e inalteraacutevel (EN II 3 1105a31-1105b1) ou eacute guiado por
algueacutem que sabe o que faz ao menos ateacute atingir a capacidade de guiar
por si mesmo suas accedilotildees Deste modo ratifica-se que as virtudes satildeo
adquiridas por serem exercitadas (EN II 1 1103a31) ou seja satildeo
aprendidas fazendo tornamo-nos corajosos com a praacutetica frequente de
accedilotildees de coragem sendo o haacutebito incutido que leva agrave virtude moral O
contraacuterio contudo pode ocorrer caso se pratique frequentemente maacutes
accedilotildees eacute possiacutevel incorrer em viacutecio como explica o passo abaixo
107 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἐνδέχεται γὰρ γραμματικόν τι
ποιῆσαι καὶ ἀπὸ τύχης καὶ ἄλλου ὑποθεμένου
120
Assim tambeacutem acontece com as virtudes agindo
nas transaccedilotildees entre homens tornam-se uns
justos outros injustos agindo nas situaccedilotildees de
perigo e habituando-se a temer ou a ter confianccedila
tornam-se uns corajosos outros covardes O
mesmo ocorre no caso dos apetites assim como
no das iras pois se tornam uns temperantes e
tolerantes outros intemperantes e irasciacuteveis uns
por persistirem a agir de um jeito nas mesmas
situaccedilotildees outros por persistirem de outro jeito
Por esta razatildeo eacute preciso que as atividades
exprimam certas qualidades pois as disposiccedilotildees
seguem as diferenccedilas das atividades (EN II 1
1103b13-22)108
O passo confirma a possibilidade de alteraccedilatildeo dasnas emoccedilotildees
por via da habituaccedilatildeo Por isso um educador deve se valer da dor e do
prazer com as accedilotildees como indiacutecios das disposiccedilotildees do agente (EN II 2
1104b4-5) e como guia para os haacutebitos que deve incutir ou afastar de
seus disciacutepulos
Apesar de as discussotildees travadas acima tornarem o assunto
satisfatoriamente claro precisaremos ainda mais agrave frente apreciar a
questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre ensino e habituaccedilatildeo auxiliados pelo
prazer com certas accedilotildees e atividades Por ora o passo supracitado chama
nossa atenccedilatildeo para a questatildeo mas pensamos que as puniccedilotildees tambeacutem
sirvam como indicadores de disposiccedilotildees morais pois se costuma operar
ldquocurardquo pelo contraacuterio Segundo essa proposta os homens se tornam bons
ou maus pelos prazeres e dores evitando-os ou buscando-os como
quando e com o que se deve ou natildeo se deve e eacute isso que se observaraacute na
educaccedilatildeo e para as puniccedilotildees Isso indica que a virtude tem por natureza
a praacutetica do que eacute melhor frente a prazeres e dores mas o viacutecio leva ao
contraacuterio (EN II 2 1104b26-28) e por isso eacute preciso ter disciplina quanto
a essas afecccedilotildees
108 Idem οὕτω δὴ καὶ ἐπὶ τῶν ἀρετῶν ἔχει πράττοντες γὰρ τὰ ἐν τοῖς
συναλλάγμασι τοῖς πρὸς τοὺς ἀνθρώπους γινόμεθα οἳ μὲν δίκαιοι οἳ δὲ ἄδικοι
πράττοντες δὲ τὰ ἐν τοῖς δεινοῖς καὶ ἐθιζόμενοι φοβεῖσθαι ἢ θαρρεῖν οἳ μὲν
ἀνδρεῖοι οἳ δὲ δειλοί ὁμοίως δὲ καὶ τὰ περὶ τὰς ἐπιθυμίας ἔχει καὶ τὰ περὶ τὰς
ὀργάς οἳ μὲν γὰρ σώφρονες καὶ πρᾶοι γίνονται οἳ δ ἀκόλαστοι καὶ ὀργίλοι οἳ
μὲν ἐκ τοῦ οὑτωσὶ ἐν αὐτοῖς ἀναστρέφεσθαι οἳ δὲ ἐκ τοῦ οὑτωσί καὶ ἑνὶ δὴ
λόγῳ ἐκ τῶν ὁμοίων ἐνεργειῶν αἱ ἕξεις γίνονται διὸ δεῖ τὰς ἐνεργείας ποιὰς
ἀποδιδόναι κατὰ γὰρ τὰς τούτων διαφορὰς ἀκολουθοῦσιν αἱ ἕξεις
121
A partir do que foi proposto entendemos que a virtude estaacute
relacionada a prazeres e dores que cresce e se corrompe pelas mesmas
coisas (EN II 3 1105a13-16) mas para se tornar virtuoso eacute preciso
praticar frequentemente atos por exemplo corajosos mesmo que estes
sejam dolorosos Os atos satildeo considerados corajosos quando forem
feitos como faria a pessoa considerada dotada de tal virtude embora natildeo
seja corajoso quem realiza atos de coragem mas quem os faz como faria
o homem corajoso Esta virtude moral vem da praacutetica de accedilotildees desse
tipo e natildeo haacute problema como demonstramos haacute pouco com esse tipo
de proposta Ademais Aristoacuteteles frisa que em eacutetica natildeo basta discursar
sobre a conduta virtuosa eacute preciso agir a fim da verdadeira virtude
tendo esses haacutebitos em conformidade agrave virtude intelectual Mas se o
haacutebito eacute bastante para consolidar a virtude moral para que necessitamos
da razatildeo praacutetica A resposta pode ser indicada pela questatildeo da
responsabilidade pelas accedilotildees que tecircm princiacutepio em cada agente que sabe
o que faz como veremos a seguir
2d) Virtude voluntaacuteria diante das circunstacircncias e responsabilidade
A proposta da boa medida tomada como melhor estado da
capacidade natildeo racional da alma humana e como melhor forma de se
emocionar exige que pensemos o agente bom moralmente como
personificaccedilatildeo do equiliacutebrio entre racional e natildeo racional na figura do
prudente Ou seja esse cidadatildeo deve ser pensado como atualizaccedilatildeo
plena daquilo que Aristoacuteteles considera o proacuteprio homem temos um
agente que coordena bem as capacidades de sua alma que eacute princiacutepio de
suas accedilotildees e por conseguinte estas accedilotildees satildeo consideradas voluntaacuterias
(hekouacutesioi) Caso contraacuterio as accedilotildees cometidas satildeo consideradas
involuntaacuterias (akouacutesioi) embora haja tambeacutem atos desse tipo que satildeo
perdoados e ateacute dignos de piedade Mas por que distinguir
voluntariedade e involuntariedade em uma pesquisa sobre as emoccedilotildees
jaacute que tais caracteriacutesticas podem ser atribuiacutedas agraves accedilotildees e natildeo agraves
emoccedilotildees
Quando se estuda a virtude tal distinccedilatildeo eacute necessaacuteria pois as
virtudes satildeo configuradas por accedilotildees voluntaacuterias ligadas agraves emoccedilotildees e ao
que eacute desejado Ademais procuramos encontrar instrumentos que nos
levem a entender a possibilidade de um homem que tenha seu lado natildeo
racional no melhor estado possiacutevel e isso diz respeito a bem agir e bem
se emocionar o que parece ser condizente com a figura de quem age de
acordo com o que julga por si mesmo correto e natildeo por aquele que
meramente toma o conselho de outrem de que algo eacute o correto a se
122
desejar e fazer Este homem atua de certo modo voluntariamente jaacute
que as accedilotildees involuntaacuterias parecem ser aquelas ldquoaccedilotildees praticadas por
forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccedilado o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao
agente princiacutepio para o qual o agente ou o paciente em nada contribuirdquo
(EN III 1 1109b35 1110a1)109
As accedilotildees tambeacutem podem ser mistas quando praticadas conforme
a ocasiatildeo e natildeo como se agiria normalmente Por isso o caraacuteter
voluntaacuterio ou involuntaacuterio da accedilatildeo deve ser atribuiacutedo tendo em vista o
momento em que foi praticada as accedilotildees voluntaacuterias satildeo aquelas cujo
poder de fazer ou natildeo fazer determinada coisa em certa situaccedilatildeo estaacute no
proacuteprio agente ldquoRigorosamente entatildeo agir voluntariamente eacute ldquoagir
com razoaacutevel conhecimento das circunstacircncias a natildeo ser que fosse
literalmente impossiacutevel fazer outra coisardquordquo (HUTCHINSON 2009 p
272) Em contrapartida as accedilotildees que podem ser consideradas forccediladas
satildeo penosas Aristoacuteteles explica que o ldquoato forccedilado portanto mostra-se
aquele cujo princiacutepio eacute exterior a pessoa forccedilada em nada contribuindo
ao princiacutepio da accedilatildeordquo (EN III 1 1110b15-17)110 O fato das
circunstacircncias serem definidoras do que se decide fazer inviabiliza
certas objeccedilotildees agrave proposta da mediania como virtude moral pois como
vimos coloca paracircmetros externos para a accedilatildeo natildeo permitindo que seja
totalmente relativa ao que o agente deseja
Tambeacutem como vimos o fim bem amparado pela razatildeo praacutetica eacute
objeto do desejo reto das emoccedilotildees adequadas e causa da accedilatildeo embora
no homem virtuoso as coisas que levam ao fim sejam objetos da
deliberaccedilatildeo e da escolha deliberada Por conseguinte accedilotildees que lhes
dizem respeito satildeo feitas por escolha deliberada e voluntariamente
sendo estas as accedilotildees corretas moralmente111 Assim
Sobre as virtudes em geral temos dito pois
esquematicamente quanto a seu gecircnero que satildeo
meios termos e haacutebitos que por si mesmas
tendem a praticar as accedilotildees que as produzem que
dependem de noacutes e satildeo voluntaacuterias e atuam de
acordo com as normas da reta razatildeo Mas as accedilotildees
109 Traduccedilatildeo Zingano (2008) no original ἀκούσια εἶναι τὰ βίᾳ ἢ δι ἄγνοιαν
γινόμενα βίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ
πράττων ἢ ὁ πάσχων 110 Idem τὸ βίαιον εἶναι οὗ ἔξωθεν ἡ ἀρχή μηδὲν συμβαλλομένου τοῦ
βιασθέντος 111 No entanto vale observar com Korsgaard que o homem virtuoso natildeo passa
a vida toda deliberando mas delibera apenas frente a determinadas situaccedilotildees
123
natildeo satildeo voluntaacuterias do mesmo modo que os
haacutebitos de nossas accedilotildees somos donos desde o
princiacutepio ateacute o fim se conhecemos as
circunstacircncias particulares dos nossos haacutebitos no
princiacutepio mas seu incremento natildeo eacute perceptiacutevel
como ocorre com as doenccedilas Natildeo obstante como
estava em nossa matildeo comportar-nos de tal ou tal
maneira satildeo por isso voluntaacuterios (EN III 8
1114b26-35 III 9 1115a1-3)112
O passo nos permite reforccedilar que a virtude moral eacute uma
disposiccedilatildeo louvaacutevel sendo a capacidade de se comportar bem em
relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees comportar-se com medida relativa a noacutes e que de
certo modo somos responsaacuteveis por esse comportamento De acordo
com Hutchinson (2009 p 267) satildeo ldquoas disposiccedilotildees de nossas emoccedilotildees
que nos ajudam a dar as respostas corretas agraves situaccedilotildees praacuteticasrdquo Por
isso eacute preciso estabelecer um certo tipo de educaccedilatildeo favoraacutevel agrave virtude
moral malgrado a inexatidatildeo dos assuntos que tocam a esse tipo de
virtude Nessa educaccedilatildeo cabem os haacutebitos que satildeo o modo pelo qual se
pode consolidar a virtude poreacutem devem ser haacutebitos conscientes e
escolhidos deliberadamente113 As virtudes morais vecircm de atos
voluntaacuterios que tecircm sua fonte no proacuteprio agente embora sejam
pautadas nas circunstacircncias e na procura pelo bem Assim o homem
virtuoso eacute responsaacutevel por tais virtudes - e igualmente pelos viacutecios -
como eacute responsaacutevel por seus atos114 na medida em que escolhe e decide
112 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Κοινῇ μὲν οὖν περὶ τῶν ἀρετῶν εἴρηται ἡμῖν τό τε γένος
τύπῳ ὅτι μεσότητές εἰσιν καὶ ὅτι ἕξεις ὑφ ὧν τε γίνονται ὅτι τούτων
πρακτικαὶ ltκαὶgt καθ αὑτάς καὶ ὅτι ἐφ ἡμῖν καὶ ἑκούσιοι καὶ οὕτως ὡς ἂν ὁ
ὀρθὸς λόγος προστάξῃ οὐχ ὁμοίως δὲ αἱ πράξεις ἑκούσιοί εἰσι καὶ αἱ ἕξεις τῶν
μὲν γὰρ πράξεων ἀπ ἀρχῆς μέχρι τοῦ τέλους κύριοί ἐσμεν εἰδότες τὰ καθ
ἕκαστα τῶν ἕξεων δὲ τῆς ἀρχῆς καθ ἕκαστα δὲ ἡ πρόσθεσις οὐ γνώριμος
ὥσπερ ἐπὶ τῶν ἀρρωστιῶν ἀλλ ὅτι ἐφ ἡμῖν ἦν οὕτως ἢ μὴ οὕτω χρήσασθαι
διὰ τοῦτο ἑκούσιοι 113 Mesmo que a princiacutepio sejam conscientes e deliberadamente escolhidos por
outrem 114 Haacute um problema quanto a ligar atos voluntaacuterios e responsabilidade pelos
atos Natildeo vamos entrar nos meacuteritos da questatildeo nesse momento pois
extrapolaria nossas forccedilas Podemos contudo indicar que quanto a isso
Zingano difere de Irwin pois pensa que para que um agente seja responsaacutevel
por suas accedilotildees precisa agir voluntariamente mas para que um ato seja
considerado voluntaacuterio natildeo eacute necessaacuterio responsabilizar o agente Assim
124
por si mesmo o que deve fazer podendo ser elogiado ou censurado
A virtude moral quando bem exercitada eacute disposiccedilatildeo segundo a
regra justa que eacute estabelecida pela prudecircncia e por isso pode ordenar
por-se o fim Se o fim tem relaccedilatildeo com o desejo este precisa ser
educado ateacute que se conforme a reta razatildeo que implica aprender a
desejar assim como a se emocionar para agir bem bela e nobremente
em comunidade A aplicaccedilatildeo da teoria da boa medida bem como a
aplicaccedilatildeo de seus paracircmetros eacute necessaacuteria para que tal educaccedilatildeo se
concretize Por isso e pela maleabilidade da capacidade natildeo racional
frente agraves sugestotildees da razatildeo eacute possiacutevel a Aristoacuteteles propor a boa
medida nas emoccedilotildees
O virtuoso em sentido moral e completo julga bem (kriacutenei
orthocircs) as coisas e a verdade se manifesta a ele (talēthegraves autograve phaiacutenetai)
sendo o homem que se distingue por sua capacidade de ver o verdadeiro
(talēthegraves hōraacuten) em cada coisa padratildeo e medida para todas as coisas
(EN III 6 1113a30-35) eliminando novamente a relatividade da
doutrina O virtuoso eacute o homem cujas atividades envolvem deliberaccedilatildeo e
escolha deliberada pois natildeo haacute virtude sem estes traccedilos de razatildeo ou ao
menos natildeo haacute virtude completa (aretegraven teleiacutean) entendida aqui como
aquela junccedilatildeo entre a virtude moral e a virtude intelectual que a
aperfeiccediloa Por isso tanto a virtude quanto o viacutecio estaacute em nosso poder
(ephacutehēmicircn) pois podemos agir quando eacute belo bem como deixar de agir
quando isso eacute desonroso e portanto estaacute em nosso poder sermos bons
ou maus contrariando Soacutecrates
Como vimos as coisas consideradas em nosso poder e
voluntaacuterias satildeo as coisas das quais o princiacutepio estaacute em noacutes e por isso a
distribuiccedilatildeo dos castigos e das honrarias feita pelos legisladores eacute
pautada na boa administraccedilatildeo que cada agente tem de si e de sua
capacidade natildeo racional o que soacute eacute possiacutevel se entendermos as
propostas de Aristoacuteteles sobre a alma como tendendo agrave unicidade que
permite a comunicaccedilatildeo entre as capacidades da alma Sendo as virtudes
voluntaacuterias noacutes somos de certo modo causas coadjuvantes de nossas
disposiccedilotildees jaacute que temos o poder de controlaacute-las a princiacutepio embora
escapem ao nosso controle apoacutes certo tempo e exerciacutecio Isso nos
confere deliberadamente o princiacutepio das qualidades que carregaremos
Zingano entende o voluntaacuterio como condiccedilatildeo necessaacuteria embora natildeo suficiente
para uma accedilatildeo da responsabilidade do agente Isso porque soacute pode ser
responsabilizado aquele que eacute princiacutepio da accedilatildeo e cuja accedilatildeo levar a elogio ou
censura que aperfeiccediloem o agente Mais sobre essas questotildees consultar Zingano
(2008 p 146-147)
125
vida afora115 e por nossa qualidade pomos o fim correspondente agraves
nossas accedilotildees (EN III 7 1114b21-24) eis o motivo de Aristoacuteteles ter
afirmado que agindo bem nos tornamos bons e que as maacutes accedilotildees nos
levam ao viacutecio
Apoacutes atingirmos essas conclusotildees deveremos tratar as questotildees
acerca da proposta da mediania nas emoccedilotildees pois como observa
Besnier (2008 p 78) ldquoSendo a paixatildeo um movimento reativo passivo e
indeliberado resta saber de que modo podemos constituir uma atitude
como virtuosa a seu respeito tal como podemos fazer para a accedilatildeordquo A
questatildeo eacute entatildeo como moderamos nossas emoccedilotildees
3 Metriopaacutethēia o ideal de emoccedilatildeo para a vida virtuosa
Com o que vimos ateacute agora ficou evidente que Aristoacuteteles propotildee
a virtude moral e a virtude mais completa como dependentes da boa
medida em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees possiacutevel graccedilas ao equiliacutebrio entre as
capacidades que datildeo ao homem o que lhe eacute peculiar116 Tal teoria a
partir do periacuteodo heleniacutestico ficou conhecida como metriopaacutethēia e
embora o termo natildeo seja de Aristoacuteteles Zingano (2007 p 143)
considera que seja a definiccedilatildeo ldquosucinta e felizrdquo das teorias do filoacutesofo
acerca de como devemos nos portar frente agraves emoccedilotildees O estudioso
explica que ldquonatildeo se trata de extirpar as emoccedilotildees mas de lhes dar uma
justa medida vivecirc-las metriocircs e a virtude moral consiste justamente em
encontrar sua medida em funccedilatildeo e no meio das circunstacircncias em que se
produzem as accedilotildeesrdquo (ZINGANO 2007 p 144) Entende que isso
significa ldquoexaminaacute-lo [o paacutethos] mediante uma deliberaccedilatildeo pois a
virtude eacute uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha deliberadardquo (2007 p 165) A
virtude moral tem em vista o meio termo quanto agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees
porque nestas pode haver excesso falta e boa medida Dessa
possibilidade de variaccedilatildeo surgiu nossa necessidade de questionar a
doutrina na medida em que tal questionamento nos auxiliasse a resolver
as questotildees propostas por nossa pesquisa
Pelos estudos acima apresentados pudemos entender a mediania
relativamente a noacutes abarcando tanto especificaccedilotildees quantitativas como
115Essa questatildeo que parece segundo anaacutelise de Zingano (2008 p 92)
questionar a tese central do capiacutetulo II (ldquoa disposiccedilatildeo acompanha e em um
sentido relevante eacute dependente das accedilotildeesrdquo) seraacute respondida no item que trataraacute
dos haacutebitos 116EN I 1098a7-12 IX 1172a4-6 X I 1177b26-30 Pol 1253a25-28
126
qualitativas tendo em vista a circunstacircncia na qual a accedilatildeo precisa ser
cometida e que lhe fornece paracircmetros e possibilidades de ajuizamento
Deste modo determinar a mediania relativa a noacutes implica determinar
aquilo que as circunstacircncias relevantes em seu conjunto apontam tendo
em conta o fim buscado pelo agente Para que isso seja cumprido dever-
se-aacute fazer o que for preciso na hora certa na ocasiatildeo certa e do modo
certo (EN II 5 1106b21-22) Tal ideia eacute chamada por Hursthouse (2009
p 104) de ldquodoutrina centralrdquo da mediania e pode ser exemplificada do
seguinte modo conforme o proacuteprio Aristoacuteteles
[] eacute possiacutevel temer ter arrojo ter apetite
encolerizar-se ter piedade e em geral aprazer-se
e afligir-se muito e muito pouco e ambos de
modo natildeo adequado o quando deve a respeito de
quais relativamente a quem com que fim e como
deve eacute o meio termo e o melhor o que justamente
eacute a marca da virtude Similarmente haacute excesso
falta e meio termo no tocante agraves accedilotildees A virtude
diz respeito a emoccedilotildees e accedilatildeo nas quais o excesso
erra e a falta eacute censurada ao passo que o meio
termo acerta e eacute louvado acertar e ser louvado
pertencem agrave virtude (EN II 5 1106b18-26)117
No capiacutetulo anterior todavia foi mencionado que nem toda accedilatildeo
e nem toda emoccedilatildeo admite mediania No Livro IV da EN Aristoacuteteles
questiona se podemos realmente considerar a vergonha ou pudor (aidṓs)
como uma virtude118 jaacute que natildeo eacute possiacutevel ter boa medida quanto a ela
117 Isso eacute vaacutelido caso a interpretaccedilatildeo de Rapp (2010 p 424) esteja correta e se
quando Aristoacuteteles afirma que o meio termo eacute o padratildeo bom e correto quanto ao
contiacutenuo e o divisiacutevel estaacute a tratar das escalas contiacutenuas das emoccedilotildees e accedilotildees e
natildeo das virtudes e dos viacutecios Por isso natildeo haacute como encontrar escalas realmente
quantitativas entre virtudes e viacutecios mas podem ser encontradas entre emoccedilotildees
e accedilotildees
O passo supracitado tem traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original οἷον καὶ
φοβηθῆναι καὶ θαρρῆσαι καὶ ἐπιθυμῆσαι καὶ ὀργισθῆναι καὶ ἐλεῆσαι καὶ ὅλως
ἡσθῆναι καὶ λυπηθῆναι ἔστι καὶ μᾶλλον καὶ ἧττον καὶ ἀμφότερα οὐκ εὖ τὸ δ
ὅτε δεῖ καὶ ἐφ οἷς καὶ πρὸς οὓς καὶ οὗ ἕνεκα καὶ ὡς δεῖ μέσον τε καὶ ἄριστον
ὅπερ ἐστὶ τῆς ἀρετῆς ὁμοίως δὲ καὶ περὶ τὰς πράξεις ἔστιν ὑπερβολὴ καὶ
ἔλλειψις καὶ τὸ μέσον ἡ δ ἀρετὴ περὶ πάθη καὶ πράξεις ἐστίν ἐν οἷς ἡ μὲν
ὑπερβολὴ ἁμαρτάνεται καὶ ἡ ἔλλειψις [ψέγεται] τὸ δὲ μέσον ἐπαινεῖται καὶ
κατορθοῦται 118 Zingano levanta esse problema em seus Estudos de Eacutetica Antiga (2007 p
127
A questatildeo se impotildee porque o filoacutesofo considera as caracteriacutesticas
atreladas ao pudor mais proacuteximas daquelas que normalmente se daria a
uma afecccedilatildeo que igualmente atinge o corpo A vergonha cuja emoccedilatildeo
que lhe seria proacutepria levaria o mesmo nome seria distinta das demais
afecccedilotildees devido a ser identificada com aquilo que traria para o agente
medo da desonra ou um embaraccedilo diante das maacutes accedilotildees que este
comete Por isso o filoacutesofo considera que provavelmente seja
inadequado classificaacute-la como virtude moral jaacute que este tipo de
disposiccedilatildeo proacutepria ao homem bom natildeo comportaria maacutes accedilotildees A
despeito dessas questotildees o texto eacute sobremaneira interessante ao
concordar com as propostas dos tratados bioloacutegicos em especial com
aquelas do DA Vimos que esse escrito descreve um dos aspectos do
paacutethos como uma mudanccedila fiacutesica entre outras caracteriacutesticas e ressalta
tambeacutem que haveria emoccedilotildees moralmente neutras aleacutem daquelas que
seriam capazes de se adequar ao que eacute correto moralmente Diante
dessas dificuldades Sorabji explica que Aristoacuteteles
[] diz que o que conta muito ou pouco depende
de quem noacutes somos da ocasiatildeo do para quecirc e
para quem a nossa emoccedilatildeo eacute dirigida do resultado
provaacutevel e do modo de reagir Aleacutem disso ele
aponta que algumas emoccedilotildees como
Schadenfreude e inveja tecircm a ideia de maldade
construiacuteda nelas de modo que natildeo haacute espaccedilo para
a ideia de moderaccedilatildeo em exercecirc-las (SORABJI
2000 p 195 traduccedilatildeo nossa)
Algumas destas emoccedilotildees satildeo denominadas precisamente por sua
vileza caso da inveja Esse tipo de paacutethos eacute censurado devido ao fato de
ser vil e natildeo por ser excessivo ou em falta ou provavelmente seja
censurado por excesso ou falta devido ao fato de romper com os
paracircmetros propostos pela racionalidade praacutetica para natildeo exceder nem
faltar Tal rompimento caracterizaria uma extrapolaccedilatildeo dos padrotildees para
a boa medida e sinalizaria errar tambeacutem no direcionamento da emoccedilatildeo
aos objetos que lhe correspondem naquilo que as circunstacircncias que
envolvem as emoccedilotildees exigem ser apreciado e natildeo somente nas
lsquoquantidadesrsquo ou na lsquointensidadersquo de emoccedilatildeo sentida Estatildeo em jogo
como propusemos anteriormente as falhas quantitativas mas tambeacutem as
falhas qualitativas e de avaliaccedilatildeo que o agente que delibera pode
165) embora natildeo lhe traga soluccedilatildeo
128
cometer ao se emocionar Por exemplo somos censurados por nos
enfurecer muito ou muito pouco e por isso levar a uma accedilatildeo errada bem
como somos censurados por nos enfurecer contra muitas pessoas ou
contra a pessoa errada Rapp (2010 p 430) no entanto observa que a
doutrina parece se adequar melhor ao primeiro caso que eacute quantitativo
embora pense que com uma anaacutelise proacutexima a questatildeo quantitativa
pareccedila duvidosa Segundo este estudioso
[] haacute dois tipos de problemas com os casos
quantitativos os quais podem ser resolvidos
somente se os equipararmos ao qualitativo O
primeiro problema eacute que a quantidade de uma
accedilatildeo ou emoccedilatildeo pode se manifestar de muitos
modos distintos pode ser questatildeo de sentir
intensamente de forccedila motivacional de duraccedilatildeo
ou frequecircncia enquanto a frequecircncia por sua vez
pode ser medida pelas ocorrecircncias pelo nuacutemero
de pessoas envolvidas pelo nuacutemero de ocasiotildees
pelo nuacutemero de lugares etc excesso nestes
vaacuterios aspectos corresponde a diferentes tipos de
falhas Neste sentido as descriccedilotildees quantitativas
em separado de que algueacutem estaacute lsquoenfurecido
demaisrsquo ou lsquoage enfurecidamente demaisrsquo satildeo
eliacutepticas Quando reprovamos algueacutem por sua
raiva excessiva ou por agir muito raivosamente
deveriacuteamos em princiacutepio poder explicar o
sentido ou o conjunto de sentidos em que as
reaccedilotildees raivosas dele satildeo excessivas O segundo
problema traz agrave tona uma outra razatildeo de por que
descriccedilotildees quantitativas em separado satildeo
incompletas quando algueacutem se enraivece em
muitas ocasiotildees e com muitas pessoas podemos
reprovaacute-lo por raiva excessiva Mas quantas
ocasiotildees e pessoas satildeo o bastante e quando isto
comeccedila a ser excessivo Quando realmente
ultrapassamos o nuacutemero moderado de ocasiotildees ou
pessoas Talvez a nossa pessoa enraivecida encare
mais ofensas e insultos que uma pessoa comum
ela natildeo estaria portanto justificada em enfurecer-
se mais frequentemente Eacute oacutebvio que estaacute A fatal
poreacutem inevitaacutevel conclusatildeo eacute que o nuacutemero
absoluto ou a quantidade absoluta natildeo pode nos
informar quando as coisas se tornam deficientes
ou excessivas Sempre que precisamos julgar o
129
grau de raiva de uma pessoa devemos saber se ela
estaacute enraivecida somente com as pessoas que
merecem isto ou se com mais pessoas se ela se
enfurece somente por razotildees respeitaacuteveis ou se
suas reaccedilotildees satildeo apropriadas ou exageradas se ela
se acalma depois de um periacuteodo razoaacutevel de
tempo ou se natildeo tem como dar a volta por cima
etc Podemos concluir entatildeo que a imputaccedilatildeo de
deficiecircncia ou excesso quantitativo em casos
como este depende em uacuteltima instacircncia do caacutelculo
de falhas especificadas qualitativamente (RAPP
2010 p 430-431)
Esse tipo de interpretaccedilatildeo parece razoaacutevel e reforccedila a proposta da
teoria da boa medida como relativa a noacutes amparada na situaccedilatildeo na
bondade do agente e do fim por este procurado garantida por sua
capacidade de boa deliberaccedilatildeo ou prudecircncia visando natildeo um nuacutemero
especiacutefico que aponte como agir corretamente mas paracircmetros e
avaliaccedilotildees que indiquem o agir deste ou daquele modo Aristoacuteteles
contudo insiste que em relaccedilatildeo agraves paacutethē que trazem a maldade desde o
nome natildeo haacute como acertar sendo que quem as sente sempre erra
Entendemos que tais emoccedilotildees satildeo decorrentes dos desejos que natildeo
ouvem ou que ouvem pouco a razatildeo quando natildeo satildeo educados para a
virtude e que acabam por falhar em seu caacutelculo para a boa accedilatildeo Assim
eacute possiacutevel ao filoacutesofo elaborar uma lista dos meios termos ou seja das
virtudes quanto a certas emoccedilotildees fazendo o mesmo em relaccedilatildeo agraves
accedilotildees que devem ser moderadas Estas satildeo descritas no resumo das
virtudes morais apresentado pelo Livro II 7 da EN assim como nos
livros que seguem (EN III-V) quando descrevem em maiores detalhes
aquelas que se costuma chamar virtudes morais
As virtudes morais particulares dizem respeito ao comportamento
relativo agraves emoccedilotildees particulares como bem observa Hutchinson mas
sem esquecer que isso diz respeito agrave forma de conduzir tais emoccedilotildees
diante das situaccedilotildees que se apresentam Por exemplo em tal suma lemos
que a boa medida quanto ao medo e ao arrojo eacute a coragem enquanto em
relaccedilatildeo agrave raiva seria o que geralmente eacute chamado de calma O que
importa nas listas que descrevem as virtudes poreacutem eacute notarmos que a relaccedilatildeo do homem com as emoccedilotildees que sente confirma a proposta
acerca da relevacircncia da presenccedila de emoccedilotildees moderadas quantitativa e
qualitativamente na boa vida moral e da relevacircncia que o entorno e sua
avaliaccedilatildeo tecircm nessas emoccedilotildees ldquoA quantidade correta depende de
paracircmetros que nos concernem ou que concernem a todos que se
130
encontram na mesma situaccedilatildeo que nos encontramosrdquo explica Rapp
(2010 p 431-432) Os paracircmetros salvam tambeacutem o aspecto mais
concreto da doutrina da boa medida como virtude moral havendo
compatibilidade nas duas propostas A aplicaccedilatildeo destes padrotildees agraves
emoccedilotildees permite o ldquocaacutelculordquo da medida nas emoccedilotildees conciliando
novamente os aspectos quantitativos e qualitativos da doutrina dentro da
proposta da metriopaacutethēia bem como permite que a teoria seja aplicada
agraves accedilotildees
A uacutenica quantidade que interessa eacute a quantidade
de reaccedilotildees inapropriadas natildeo a quantidade
absoluta digamos de prazeres que fruiacutemos
somente quando confundimos estes tipos de
escalas quantitativas podemos pensar que falhas
do tipo quantitativo tais como comer doces
demasiadamente beber ouzo demasiadamente
dormir com muitas mulhereshomens etc satildeo
paradigmas para a caracterizaccedilatildeo aristoteacutelica da
virtude e do viacutecio Mas em verdade natildeo faz uma
grande diferenccedila para a doutrina se por exemplo
a nossa fruiccedilatildeo excessiva de prazeres do corpo
tem por base a fruiccedilatildeo de coisas erradas ou de
coisas demais cada uma destas uacuteltimas podendo
ser boa ou beneacutefica em separado (RAPP 2010 p
437)
Soacute se pode dizer que se sente muito ou muito pouco se as
emoccedilotildees satildeo corretas ao se analisar os paracircmetros e as circunstacircncias
por intermeacutedio do caacutelculo deliberativo que leva agrave escolha deliberada do
modo de accedilatildeo A questatildeo da medida nas emoccedilotildees eacute portanto mais a
questatildeo da natildeo violaccedilatildeo dos paracircmetros para a accedilatildeo que da quantidade
exata entre excessos e faltas Para esclarecer o que propomos podemos
dar um exemplo o do homem virtuoso e que encontra a boa medida em
suas emoccedilotildees A descriccedilatildeo estaacute na Retoacuterica e nos apresenta o perfil dos
cidadatildeos que estatildeo no auge da vida Estes homens natildeo satildeo muito
confiantes (temeraacuterios) nem muito temerosos tecircm a justa medida nestas
emoccedilotildees natildeo confiam ou desconfiam de tudo emitem juiacutezos conforme
a verdade natildeo vivem somente para o belo ou para o uacutetil mas para
ambos natildeo vivem apenas para a frugalidade nem para a prodigalidade
mas para o justo meio
O mesmo acontece em relaccedilatildeo ao seu impulso e ao seu apetite
adultos tecircm sua temperanccedila acompanhada de coragem e vice-versa
131
Diferem dos jovens que satildeo valentes e licenciosos e dos idosos que satildeo
moderados e covardes Portanto o homem no auge da vida eacute modelo da
virtude moral que eacute o bem agir diante das emoccedilotildees sentidas nas
circunstacircncias vividas Tal homem eacute a expressatildeo do bom estado da alma
natildeo racional que pensamos ser impossiacutevel sem o acordo com a
capacidade racional representada pela prudecircncia sendo modelo
igualmente da influecircncia das circunstacircncias que natildeo satildeo as mesmas para
quem se encontra no ponto alto de sua existecircncia na melhor forma de
suas capacidades e para aqueles que ainda satildeo demasiado jovens ou que
jaacute satildeo demasiado velhos
O auge da vida exige uma razatildeo reta capaz de discriminar
(kriacutenein) corretamente situaccedilotildees particulares encontrar o meio termo
desejado e buscado com a accedilatildeo Aggio propotildee que isso soacute acontece agrave
pessoa que tenha preparaccedilatildeo afetiva preacutevia sendo afetivamente capaz de
ver o que eacute melhor A autora entende que usar bem a razatildeo depende de
um bem-estar afetivo ou do bom estado da capacidade natildeo racional
como Rapp e a sua leitura da boa medida igualmente nos propotildeem
ldquoMas o que eacute o modo certo e as vezes certas e quem eacute a pessoa certa
depende do tipo de situaccedilatildeo e contexto em que agimosrdquo (AGGIO 2017
no prelo) Isso nos leva a entender que o conceito de meio termo relativo
a noacutes foi elaborado para abarcar a ideia do conteuacutedo dos mencionados
paracircmetros e por isso pode variar conforme as circunstacircncias para a boa
accedilatildeo - mas natildeo sem ter o bem supremo em vista
Uma quantificaccedilatildeo do que eacute bom ou mau natildeo eacute usada para
determinar paracircmetros individuais na doutrina esta apresenta as
condiccedilotildees nas quais as solicitaccedilotildees da capacidade natildeo racional da alma e
as accedilotildees que lhes correspondem sejam tomadas como boas ou corretas
Valendo-nos ainda do exemplo do homem no auge da vida eacute possiacutevel
dizer que estaacute afetivamente apto tanto para ter juiacutezos corretos frente agraves
situaccedilotildees quanto para por em acordo suas afecccedilotildees e sua razatildeo Para que
tal acordo aconteccedila eacute preciso estar disposto para tal coisa ou seja ver o
que eacute bom a ser feito depende de querer ver tal coisa Esse tipo de visatildeo
implica virtude completa pois somente uma pessoa virtuosa consegue
distinguir por si mesma o que eacute melhor Por isso uma pessoa virtuosa
age bem e como consegue ver o que deve fazer como explica a citaccedilatildeo
que segue
Por exemplo trata-se de ser coleacuterico o suficiente
para saber bem se vingar ou se defender de uma
ofensa de ser moderado o suficiente i e na justa
medida para desfrutar no momento oportuno de
132
prazeres saudaacuteveis de ser bem disposto a
enfrentar a dor de modo a ver o que eacute corajoso a
ser feito trata-se de perceber que uma dada
situaccedilatildeo exige uma accedilatildeo generosa e de desejar
realizaacute-la mas tal sensibilidade moral depende de
jaacute haver uma disposiccedilatildeo generosa para tanto e
assim por diante com relaccedilatildeo agraves outras virtudes
particulares e suas respectivas emoccedilotildees e desejo
As coisas assim nos aparecem conforme a
disposiccedilatildeo que temos em percebecirc-las e o estado
afetivo em que nos encontramos (AGGIO 2017
no prelo)
Acrescentamos a esta proposta de acordo com os intuitos de
nosso estudo que desejar bem e retamente faculta se emocionar bem e
retamente mas ainda precisamos investigar certas questotildees para
continuar a admitir com seguranccedila que satildeo a razatildeo e afetos que
determinam em conjunto o agir Embora pareccedila plausiacutevel existem ainda
as tantas apostas de Aristoacuteteles na razatildeo para nos fazer pensar mais um
pouco sobre a questatildeo Contudo Aggio pensa que mais que conhecer o
que eacute certo para agir moralmente bem eacute preciso que os afetos
determinem o que importa moralmente A accedilatildeo correta depende do
engajamento afetivo porque a razatildeo natildeo conduz direta ou indiretamente
os afetos ela vecirc o que eacute certo porque se tem uma tendecircncia afetiva para
tanto Quando as afecccedilotildees se tornam disposiccedilotildees eacute possiacutevel agirem
como padrotildees ou regularidades sendo modos de raciocinar e perceber
Quando o momento exige tomar uma atitude quem dita o melhor a ser
feito satildeo o desejo reto e a reta razatildeo E com isso uma accedilatildeo natildeo seria
movida por princiacutepios do intelecto caso natildeo fosse afetivamente
engajada
Assim as afecccedilotildees seriam determinantes para a atribuiccedilatildeo do
valor moral agrave accedilatildeo porque na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees resultam das
afecccedilotildees que estatildeo em sua origem Estes tecircm a ver com prazer e dor
com o desejo por buscar ou evitar alguma coisa e Aristoacuteteles frisa o
desejo como princiacutepio da accedilatildeo Nossa cautela nesse momento ainda nos
leva a pensar na questatildeo da necessidade da boa associaccedilatildeo entre razatildeo e
afecccedilotildees para a boa accedilatildeo mas foi por percebermos a possibilidade desse destaque da afecccedilatildeo na vida moral que decidimos tratar a questatildeo
poreacutem com relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees entendidas como emoccedilotildees No entanto
devemos finalizar nossa discussatildeo das relaccedilotildees das virtudes com as
paacutethē ateacute mesmo para podermos nos posicionar melhor quanto ao
assunto Por isso abordaremos a mencionada disposiccedilatildeo em perceber o
133
que eacute correto e conveniente e sua ligaccedilatildeo com as emoccedilotildees
4 Virtudes intelectuais satildeo necessaacuterias agraves virtudes morais e para a
ldquoboa formardquo das emoccedilotildees
Tendo em vista que a virtude eacute necessaacuteria agrave eudaiacutemōniacutea que a
vida excelente plenamente parece ser considerada por Aristoacuteteles a vida
conforme a razatildeo e que a virtude moral natildeo pode existir sem a razatildeo119
trataremos agora do modo como a razatildeo praacutetica pode comandar ou
segundo nossa proposta andar junto com as emoccedilotildees conferindo-lhes a
boa medida proacutepria agrave virtude moral e agrave virtude completa ldquoE jaacute que de
fato noacutes dissemos mais acima que devemos escolher o meio termo e
natildeo o excesso ou a falta e que o meio termo eacute conforme o que enuncia a
reta razatildeo analisemos agora esse uacuteltimo pontordquo (EN VI 1 1138b18-
20)120 O que seria a reta razatildeo (orthograves loacutegos)
Em todas as disposiccedilotildees morais discutidas haacute certa finalidade que
fixa sua regra fazendo com que o homem que estaacute em posse da reta
razatildeo intensifique ou relaxe seus esforccedilos Por conseguinte existe um
princiacutepio que determina as medianias permitindo que estejam em
acordo com a mencionada regra mas Aristoacuteteles bem como noacutes pensa
que o assunto ainda carece de atenccedilatildeo Embora seja verdade afirmar que
se deva empregar a justa medida nos esforccedilos saber disso nada
acrescenta ao conhecimento eacute preciso determinar a reta razatildeo
Aristoacuteteles nos fala de virtudes morais e intelectuais As
primeiras foram tratadas mas falta falar das virtudes intelectuais e de
sua importacircncia na vida moralmente boa jaacute que destacamos a
imprescindibilidade da capacidade natildeo racional em tal vida Em EN VI
119 Como observa Zingano (2008 p 24) e como vimos no capiacutetulo anterior eacute
preciso moderaccedilatildeo nas emoccedilotildees ou seja uma boa habituaccedilatildeo para que a razatildeo
tenha ao menos a possibilidade de atuar Isso sinaliza a postura contraacuteria ao
racionalismo socraacutetico defendida por Aristoacuteteles pensa o estudioso O mesmo
estudioso no mesmo estudo (2008 p 75) explica que a virtude moral depende
da razatildeo para poder operar sendo que a razatildeo aperfeiccediloa a virtude moral Por
isso acatamos a proposta de Zingano um estudo da phroacutenēsis ainda que breve
como o propomos completa o estudo da virtude moral jaacute que eacute esta virtude
intelectual que faz a aretḗ eacutetica completa 120 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Ἐπεὶ δὲ τυγχάνομεν πρότερον εἰρηκότες ὅτι δεῖ τὸ μέσον
αἱρεῖσθαι μὴ τὴν ὑπερβολὴν μηδὲ τὴν ἔλλειψιν τὸ δὲ μέσον ἐστὶν ὡς ὁ λόγος ὁ
ὀρθὸς λέγει τοῦτο διέλωμεν
134
1 o filoacutesofo estabelece uma divisatildeo como aquela das capacidades alma
para o racional comeccedilando com a admissatildeo de que satildeo duas as lsquopartesrsquo
da alma racional Uma delas eacute responsaacutevel pela contemplaccedilatildeo dos seres
que natildeo podem ser de outro modo a outra eacute responsaacutevel pelo
conhecimento das coisas contingentes (EN VI 2 1139a5-8) sendo que
isso eacute possiacutevel caso seja verdade que haacute certo tipo de semelhanccedila e de
afinidade entre o sujeito e o objeto que se daacute ao conhecimento como
proposto tambeacutem no DA
Uma dessas capacidades (ou (sub)capacidades como propusemos
para as virtudes morais) eacute chamada cientiacutefica outra calculativa na
medida em que deliberar e calcular satildeo o mesmo e cada uma apresenta
virtude proacutepria Jaacute vimos no Capiacutetulo anterior a relaccedilatildeo das coisas que
segundo EN VI 2 controlam a accedilatildeo e a verdade quais sejam percepccedilatildeo
intelecto e desejo e que Aristoacuteteles a princiacutepio exclui a percepccedilatildeo
sensiacutevel como responsaacutevel por aquelas accedilotildees consideradas moralmente
por ser compartilhada por todos os animais Precisamos agora
estabelecer o modo como as outras duas coisas intelecto e desejo
podem se relacionar bem concedendo a forma adequada ao desejo que
conduziraacute agrave procura pelo fim correto e pela boa accedilatildeo e para tanto
deveremos ver a importacircncia das virtudes intelectuais na moralidade
Precisamos analisar essa possibilidade jaacute que Aristoacuteteles mais
adiante nas discussotildees do Livro VI 10 apresenta a possibilidade de
objeccedilatildeo agrave necessidade das virtudes intelectuais junto a uma vida feliz
Isso inviabilizaria as propostas que temos feito a partir de EN I 13
trecho que indica uma alma una na qual a capacidade desiderativa seria
apta a ouvir a razatildeo portanto devemos buscar sair desse embaraccedilo
Podemos comeccedilar nossa empreitada observando que Aristoacuteteles em VI
3 menciona cinco estados ou virtudes intelectuais pelos quais a alma
enuncia o que eacute verdadeiro por afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo arte (teacutechnē)
ciecircncia (episteacuteme) prudecircncia (phroacutenēsis) sabedoria (sophiacutea) e intelecto
(noucircs) Mesmo que o filoacutesofo pareccedila admitir a sabedoria121 como maior
e mais excelente das virtudes humanas a virtude intelectual que estaacute
relacionada diretamente agrave boa accedilatildeo (eupraxiacutea) e consequentemente agraves
emoccedilotildees moderadas eacute agrave prudecircncia Neste estudo natildeo analisaremos
121 De acordo com a interpretaccedilatildeo feita por Tricot a virtude mais perfeita eacute a
sophiacutea virtude mais alta da parte intelectual humana Reeve parece
compartilhar dessa opiniatildeo de certo modo pois natildeo a entende como virtude
mais completa (REEVE 2013 p 27) Embora Zingano (2007 p 160) observe
que eacute possiacutevel que a mais alta virtude mencionada pelo filoacutesofo possa ser uma
junccedilatildeo de sophiacutea e phroacutenēsis o que nos parece mais plausiacutevel
135
especificamente a sabedoria porque segundo o filoacutesofo natildeo se dedica a
nenhum dos meios que permitem ao homem ser feliz dados os seus
objetos Eacute de se presumir no entanto que o detentor de tal virtude
intelectual tenha as demais virtudes inclusive aquelas relativas agraves
emoccedilotildees moderadas devido ao caraacuteter uno da psychḗ humana Parece
ser isso que podemos ler no passo escrito por Reeve acerca das virtudes
da capacidade racional da alma humana proposta pela EN trecho que
subscrevemos
Juntas essas duas partes compotildeem a parte da alma
que tem razatildeo (logos) porque esta pode dar
razotildees que justificam e explicam
A funccedilatildeo de cada subparte racional eacute conhecer a
verdade confiaacutevel (239b12-13) No caso da parte
cientiacutefica (ou da contemplativa ou do pensamento
teoacuterico que ela capacita) a verdade em questatildeo eacute a
verdade totalmente familiar naquele da parte
calculativa (ou pensamento praacutetico) eacute a verdade
praacutetica ou determinante-da-accedilatildeo que eacute ldquoverdade
em conformidade como desejo corretordquo (239a17-
35) Desde que uma virtude eacute apenas algo que
capacita seu detentor a cumprir ou completar bem
sua funccedilatildeo satildeo essas funccedilotildees que tecircm as chaves
para as virtudes do pensamento (139a16-17) e
entatildeo para o tipo de razatildeo eticamente correta
procurada (REEVE 2013 p 4 traduccedilatildeo nossa)
Embora como observa Reeve (2013 p 1) seja difiacutecil determinar
o papel da razatildeo teoacuterica na moralidade suspeitamos que tal relaccedilatildeo
exista necessariamente Todavia por motivo das propostas que
defendemos nesse estudo nesse momento trataremos a phroacutenēsis devido
agrave sua atuaccedilatildeo evidente junto agrave vida feliz e doravante apontaremos
quando possiacutevel e necessaacuterio indiacutecios de que a sabedoria teoacuterica
participa da virtude completa que viabiliza a boa vida
4a) A prudecircncia
Dissemos muitas vezes que natildeo haacute virtude moral sem prudecircncia
Mas qual a utilidade desta para a vida moral se a maioria dos homens
parece estar sob o domiacutenio das capacidades natildeo racionais da alma e se
Aristoacuteteles cede agrave virtude moral a indicaccedilatildeo do fim a ser buscado pelo
agente Aristoacuteteles responde a partir de VI 7 (mas a proposta aparece
136
tambeacutem em III 4 5 e 7) que a prudecircncia eacute uacutetil agrave vida moral por analisar
os meios que permitem ser feliz tendo por objeto as coisas justas belas
e boas para o homem Sendo assim quando Aristoacuteteles escreve que a
razatildeo sozinha nada move escreve tambeacutem que a razatildeo praacutetica associada
ao desejo move
A associaccedilatildeo das capacidades desiderativa e racional da alma
esta representada ao menos pela razatildeo praacutetica que retifica os desejos
pelos fins ajusta o caacutelculo dos meios e a escolha do meio mais eficiente
de agir para alcanccedilar o bom fim proposto pelo desejo retificado graccedilas agrave
sua docilidade agrave razatildeo praacutetica como veremos e defenderemos Esse tipo
de interpretaccedilatildeo nos forccedila a ver as possibilidades de entendimento da
virtude da razatildeo praacutetica chamada prudecircncia de seus objetos e de sua
funccedilatildeo junto a uma vida boa moralmente
Um modo de compreender melhor o papel moral da prudecircncia e o
que ela eacute passa pela consideraccedilatildeo de quem satildeo os prudentes A opiniatildeo
geral - com a qual Aristoacuteteles parece concordar - eacute que o prudente tem a
capacidade de bem deliberar quando estaacute em jogo o que eacute vantajoso e
bom para o homem A prudecircncia eacute ldquouma disposiccedilatildeo acompanhada da
regra justa capaz de agir na esfera do que eacute bom ou mau para um ser
humanordquo (EN VI 5 1140b4-5)122 O cidadatildeo que apresenta essa virtude
intelectual eacute dotado de reta razatildeo e por isso eacute capaz de deliberar sobre
as coisas que levam agrave boa accedilatildeo e agrave vida feliz Sendo assim de um modo
geral eacute possiacutevel classificar o prudente como o homem capaz de
deliberaccedilatildeo A prudecircncia estaacute ligada igualmente ao agir eacutetico e por isso
Wolf (2010 p 152) entende que viver exercendo a virtude moral eacute uma
forma de eudaiacutemōniacutea pois para a realizaccedilatildeo plena desse tipo de vida
natildeo basta ter a virtude da capacidade desiderativa Para que haja a boa
accedilatildeo eacute preciso haver aquilo que a autora chama de ldquoboa compleiccedilatildeo
constitutivardquo da capacidade desiderativa e tambeacutem a virtude intelectual
definidora do exerciacutecio da virtude moral que eacute a prudecircncia Por isso
Aristoacuteteles escreve A phroacutenēsis eacute uacutetil agrave vida moral por indicar os
meios de se alcanccedilar um fim desejado pois o fim
eacute da alccedilada da virtude moral a obra proacutepria do
homem natildeo eacute totalmente acabada senatildeo em
conformidade com a prudecircncia e com a virtude a
virtude moral eacute com efeito garantia da retidatildeo do
122 Traduccedilatildeo para o portuguecircs nossa feita a partir da traduccedilatildeo francesa feita por
Tricot (2012) No original ἕξιν ἀληθῆ μετὰ λόγου πρακτικὴν περὶ τὰ ἀνθρώπῳ
ἀγαθὰ καὶ κακά
137
fim que buscamos e a prudecircncia aquela dos meios
para alcanccedilar esse fim (EN VI 13 1144a6-9)123
Segundo Hutchinson (2009 p 270) mais que propor meios a
prudecircncia torna a virtude moral sensata jaacute que os princiacutepios de nossas
accedilotildees satildeo os fins aos quais tendem nossos atos e estes princiacutepios
necessitam de tal sensatez Ela eacute a virtude da capacidade da alma apta a
calcular (tograve logistikoacuten) os meios implicada tanto na accedilatildeo quanto na
produccedilatildeo porque o caacutelculo ou deliberaccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o que pode
ser de outro modo sendo que a accedilatildeo moral e a produccedilatildeo satildeo do acircmbito
do que eacute variaacutevel A prudecircncia natildeo pode ser esquecida e eacute caracterizada
como a virtude intelectual que tem por objeto os universais mas que
deve tambeacutem ter o conhecimento dos fatos particulares pois sendo da
ordem da accedilatildeo estaacute relacionada com as coisas particulares (EN VI 8
1141b9-16) Por conseguinte a prudecircncia precisa do conhecimento do
universal e dos particulares mas o prudente deve saber
preferencialmente daquilo que estaacute relacionado ao particular imediato
ou uacuteltimo que eacute objeto de um tipo de percepccedilatildeo (aiacutesthēsis) do particular
mas um tipo de percepccedilatildeo tida como na percepccedilatildeo um ente matemaacutetico
diferenciando-se da percepccedilatildeo dos sensiacuteveis proacuteprios como explica o
DA III 10 433a16-17
Assim na prudecircncia ou melhor na deliberaccedilatildeo da qual eacute em
parte constituiacuteda haacute percepccedilatildeo daquilo que eacute uacuteltimo mas primeiro na
accedilatildeo124 Tal percepccedilatildeo explica Reeve (2013 p 3 2014 p 211) capta
algo uacutenico ou universal entre uma multidatildeo de coisas particulares com
o auxiacutelio da capacidade perceptiva da alma como veremos no proacuteximo
Capiacutetulo De acordo com essas descriccedilotildees eacute possiacutevel entender a
prudecircncia portanto como
[] a virtude intelectual chamada sabedoria
praacutetica cuja funccedilatildeo eacute permitir-nos saber a maneira
correta de nos comportar Embora a sabedoria
praacutetica natildeo seja ela proacutepria uma virtude moral
estaacute intimamente associada com as virtudes
morais [] Como resultado de tudo isso a
sabedoria praacutetica eacute uma apreciaccedilatildeo do que eacute bom
e mau para noacutes no niacutevel mais alto acrescida de
123 Idem ἔτι τὸ ἔργον ἀποτελεῖται κατὰ τὴν φρόνησιν καὶ τὴν ἠθικὴν ἀρετήν ἡ
μὲν γὰρ ἀρετὴ τὸν σκοπὸν ποιεῖ ὀρθόν ἡ δὲ φρόνησις τὰ πρὸς τοῦτον 124 Para uma discussatildeo mais detalhada das diferenccedilas e similaridades entre
percepccedilatildeo comum e percepccedilatildeo deliberativa ver Reeve (2014 p 213)
138
uma correta assimilaccedilatildeo dos fatos da experiecircncia e
da habilidade de fazer de maneira raacutepida e
confiaacutevel as inferecircncias corretas sobre como
aplicar nosso conhecimento moral geral a nossa
situaccedilatildeo particular Ela eacute usada em nossos
proacuteprios casos quando somos obrigados a manter
certo modo de accedilatildeo Obviamente ela eacute um recurso
muito importante se a tiveacutessemos noacutes sempre
agiriacuteamos de maneira correta e nossas vidas
seriam proacutesperas e felizes (HUTCHINSON 2009
p 267-269)
Apoacutes expor brevemente a relaccedilatildeo de necessidade entre a virtude
intelectual da prudecircncia e a virtude moral devemos prosseguir em nossa
investigaccedilatildeo Vale avisar que explicaremos melhor a relaccedilatildeo da
prudecircncia com o particular e o universal mas no momento a exposiccedilatildeo
que fazemos da virtude intelectual em questatildeo solicita que a
explicitemos o modo como capacita o homem a agir bem graccedilas a ter a
boa deliberaccedilatildeo (eubouliacutea) por peculiaridade Com seu caacutelculo bem
executado a prudecircncia associada agrave virtude moral possibilita que as
accedilotildees sejam perfeitas permitindo mesmo a completude da virtude
humana pois leva a agir seguindo boas razotildees Assim sendo a
deliberaccedilatildeo necessaacuteria agrave determinaccedilatildeo racional que faraacute dos atos
corretos eacute preciso analisaacute-la ainda que brevemente
4b) Deliberaccedilatildeo
As propostas indicam que a funccedilatildeo a ser exercida pelo prudente eacute
a deliberaccedilatildeo ou melhor a boa deliberaccedilatildeo sendo esta uma espeacutecie de
pesquisa ou caacutelculo que apontaraacute ao agente suas possibilidades de accedilatildeo
para que sua procura por um fim resulte bem-sucedida Quem delibera
busca os meios convenientes para as accedilotildees e nesse caso o conveniente eacute
o bom mas o que eacute objeto de deliberaccedilatildeo (bouacuteleusis) ldquoDeliberar
entatildeo diz respeito agraves coisas que ocorrem nas mais das vezes mas nas
quais eacute obscuro como resultaratildeo e agravequelas nas quais eacute indefinido como
resultaratildeordquo (EN III 5 1112b8-9)125 Por isso se nas accedilotildees cabe variaccedilatildeo
para agir bem quanto aos assuntos incertos eacute preciso deliberar bem agrave
eacutetica de Aristoacuteteles eacute imprescindiacutevel apontar bons meios que seratildeo
escolhidos e que poratildeo por fim o cidadatildeo a agir Vimos que nesta eacutetica
125 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original τὸ βουλεύεσθαι δὲ ἐν τοῖς ὡς ἐπὶ
τὸ πολύ ἀδήλοις δὲ πῶς ἀποβήσεται
139
a capacidade mesma de adotar os meios corretos de agir que iniciam
com a deliberaccedilatildeo consiste na ideia de responsabilidade Quando o
agente prefere certos meios por deliberaccedilatildeo pode vir a se tornar senhor
de suas accedilotildees como explicitaremos melhor adiante
Mas qual a natureza da boa deliberaccedilatildeo Quem delibera bem o
faz corretamente e por isso a boa deliberaccedilatildeo eacute um tipo de retidatildeo na
procura e indicaccedilatildeo dos meios para alcanccedilar determinados fins O bem
deliberar eacute um tipo de retidatildeo de pensamento mas natildeo eacute ainda uma
asserccedilatildeo pois o homem que delibera bem calcula e investiga alguma
coisa Se a eubouliacutea eacute correccedilatildeo no deliberar a bouacuteleusis propriamente
dita eacute a forma correta de analisar racionalmente os meios uacuteteis para a
realizaccedilatildeo de um fim Esse tipo de caacutelculo parte do objetivo uacuteltimo da
accedilatildeo concebendo modos de alcanccedilaacute-lo ateacute se entender o que realmente
eacute possiacutevel fazer Quem delibera analisa e ao fim de tal anaacutelise chega ao
que eacute primeiro na execuccedilatildeo da accedilatildeo a escolha deliberada do meio que
conduziraacute ao fim mas quando o deliberador se depara com algo
impossiacutevel a investigaccedilatildeo eacute suspensa Em contrapartida caso se depare
com algo possiacutevel a accedilatildeo eacute posta em curso Por conseguinte os objetos
da bouacuteleusis satildeo os instrumentos de accedilatildeo sua utilizaccedilatildeo e o meio pelo
qual a accedilatildeo ocorreraacute buscando ser bem-sucedida Deliberando portanto
o homem pode ser considerado princiacutepio das accedilotildees que comete porque
a deliberaccedilatildeo estaacute relacionada a coisas que podem ser feitas pelos
proacuteprios esforccedilos (EN III 6 1113a3-12)
Com as observaccedilotildees feitas acima expressamos em linhas gerais a
deliberaccedilatildeo quais satildeo seus objetos e determinamos que estatildeo
relacionados agraves coisas que conduzem aos fins Como explicita VI 8 a
deliberaccedilatildeo eacute a capacidade do prudente que apresenta uma consideraccedilatildeo
(hypoacutelēpsis) verdadeira e por isso entendemos o deliberar como segundo
passo rumo ao alcance de um fim pois o desejo eacute o iniacutecio e ocorre antes
da anaacutelise dos meios A deliberaccedilatildeo eacute expressa sob a forma loacutegica do
silogismo praacutetico que eacute concluiacutedo com a accedilatildeo (EN VII 5 1147a25-31)
sendo este silogismo considerado por Reeve (2014 p 202 210) um
plano para a accedilatildeo126 Em tal plano a premissa universal eacute apresentada ao
agente como um bem (ou como o bem supremo) pois segundo o autor e
como explicita o DA III 10 433b21-27 eacute preciso que haja um ponto fixo
126 Reeve descreve tal silogismo do seguinte modo ldquoPremissa maior definiccedilatildeo
de felicidade
Premissa menor decreto
Conclusatildeo accedilatildeordquo (REEVE 2013 p 9)
140
ou uma espeacutecie de motor imoacutevel que ponha a accedilatildeo em movimento127
Neste caso tal ponto fixo seria o desejo pela felicidade (ou pelo fim que
percebemos como nosso condutor agrave felicidade DA III 11 434a16-20
EN VI 3 1139b17-18) Haveria ainda sob esta foacutermula loacutegica da accedilatildeo
gerada pela deliberaccedilatildeo opiniotildees ou juiacutezos que poderiam ser verdadeiros
ou falsos como nos informa VI 11 constituintes da premissa menor
sendo uma questatildeo de percepccedilatildeo praacutetica assunto do qual trataremos um
pouco mais detidamente no Capiacutetulo III A premissa menor eacute proposta
por Reeve como um decreto (2014 p 210) que antecede a escolha que
resultaraacute na accedilatildeo Por isso na sequecircncia desse processo deve haver a
escolha deliberada do meio para conseguir o fim desejado Por
conseguinte a escolha deliberada eacute o ldquoato de pesar razotildees rivaisrdquo
(ZINGANO 2007 p 158) quanto aos meios para alcanccedilar aquilo que eacute
desejado e por isso a analisaremos brevemente
4c) Escolha deliberada
A escolha deliberada (proaiacuteresis) eacute exclusividade dos animais
humanos nos quais a razatildeo exerce adequadamente seu papel Aristoacuteteles
a define em VI 2 por relaccedilatildeo ao desejo classificando-a como desejo
deliberado (oacuterexis dianoetikeacute) ou intelecto desejante (orektikograves noucircs)
por ser um tipo de desejo formado apoacutes o processo de deliberaccedilatildeo apoacutes
o agente considerar o modo mais adequado de agir para alcanccedilar seu
objetivo Por isso segundo Besnier (2008 p 90) a escolha deliberada eacute
o momento em que eacute possiacutevel que a capacidade natildeo racional da alma
escute a razatildeo praacutetica deixando-se levar por ela Ou ainda melhor eacute o
momento no qual tal capacidade pode se unir agrave razatildeo praacutetica e se
determinar pelas razotildees por ela propostas levando agrave accedilatildeo virtuosa Por
exemplo o continente escolhe deliberadamente e por isso natildeo age por
apetite imoderado (EN III 4 1111b14-17) ldquoEm suma pois a escolha
deliberada parece dizer respeito agravequelas coisas que estatildeo em nosso
poderrdquo (EN III 4 1111b29-30)128
Por tal motivo atribui-se certa qualidade a um homem pelas
escolhas que faz jaacute que prefere obter ou evitar certo tipo de coisa com o
auxiacutelio da reflexatildeo e do pensamento (logoucirc kaigrave diaacutenoias) implicando
que a escolha deliberada acontece apoacutes a deliberaccedilatildeo que indica meios
127 A respeito da premissa maior como um desejo tambeacutem Nussbaum (1985 p
201 et seq) 128 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ὅλως γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ
τὰ ἐφ ἡμῖν εἶναι
141
calculados para se conseguir o fim determinado racionalmente Isso
significa que ldquoa escolha deliberada introduz no centro da virtude por
conseguinte no seio mesmo das emoccedilotildees o ato de pesar razotildees para
aquilo que se faz ou se deixa de fazerrdquo (ZINGANO 2007 p 158)
Escolher eacute essencial para a virtude moral pois eacute a partir da escolha
deliberada que se consolida a preferecircncia por esta e natildeo por aquela accedilatildeo
apontada na deliberaccedilatildeo manifestando aquilo que Zingano chama
ldquofaculdade de contraacuteriosrdquo (2008 p 27129) ou razatildeo Esta pode aceitar ou
deixar de aceitar uma ou outra das propostas da deliberaccedilatildeo - donde os
mencionados contraacuterios - e nisso consiste a escolha deliberada
Deste modo o processo que leva agrave accedilatildeo virtuosa pode ser descrito
do modo como fez Aggio no passo seguinte
Comeccedilamos desejando algo em seguida
passamos a investigar os meios para realizaacute-lo
por fim escolhemos realizaacute-lo ou natildeo Devemos
portanto conceber a escolha como sendo
necessariamente o resultado de uma investigaccedilatildeo
129 Zingano (p 186-187) quanto agrave variedade de fins a serem escolhidos e ao
mesmo tempo quanto ao natildeo relativismo da eacutetica de Aristoacuteteles graccedilas a
existecircncia de um fim maior O que confere agrave deliberaccedilatildeo a tarefa de
avaliaccedilatildeomoral das accedilotildees embora a escolha dos fins seja da alccedilada dos desejos
e das virtudes morais Assim a proaiacuteresis seria parte disso tudo em sua funccedilatildeo
de preferecircncia moral que escolhe entre as alternativas propostas pela
deliberaccedilatildeo A escolha deliberada aleacutem ser por objeto de deliberaccedilatildeo concluiacuteda
apresenta assentimento com tal objeto de deliberaccedilatildeo e isso leva a agir (EN
1147a28) Haacute contudo deliberaccedilatildeo sobre o futuro por isso nem toda
deliberaccedilatildeo eacute seguida de accedilatildeo
De acordo com Nussbaum haacute na escolha deliberada tambeacutem um outro aspecto
de preferecircncia associado ao valor do objeto buscado ldquoPara Aristoacuteteles a busca
por valor eacute a busca pelo que eacute bom para o ser humanordquo (NUSSBAUM 2008 p
49 traduccedilatildeo nossa) Frequentemente a verdade eacute que tal busca eacute parte da vida
emocional Coisas muito queridas geralmente satildeo avaliadas como parte
importante da vida Tais objetos das emoccedilotildees satildeo vistos como valiosos e bons
E se o objeto eacute escolhido livremente eacute provaacutevel que seu valor seja ainda mais
elevado Por exemplo ldquoEu escolho algo porque penso que este algo conteacutem
valor agraves vezes somente para mim mas frequentemente vejo isso como valioso
para as pessoas de um modo geralrdquo A autora contudo discorda um pouco da
proposta eudaimocircnica grega porque pensa que nem tudo que uma pessoa
entende como valioso pode ser recomendado aos outros Nesse caso haacute uma
falta de limite entre particular e geral mas natildeo analisaremos essa proposta nesse
momento (para esse assunto consultar NUSSBAUM 2008 p 50 et seq)
142
deliberativa e o iniacutecio da accedilatildeo pois escolhemos
agir ao escolhermos o meio que realiza certo fim
(AGGIO 2017 no prelo)
Sendo no momento da escolha deliberada que nossos desejos e
emoccedilotildees capazes de ouvir a razatildeo praacutetica podem vir a mudar a
concordar ou discordar com o que foi racionalmente proposto
entendemos que eacute durante esse caminho apresentado pela prudecircncia - da
deliberaccedilatildeo agrave escolha da accedilatildeo - que uma emoccedilatildeo pode se tornar
adequada ou seja pode receber a mediania A escolha deliberada eacute a
forma pela qual a razatildeo praacutetica age no interior de todos os desejos por
tornaacute-los mais proacuteximos ao que a razatildeo sugere e eacute por isso que
podemos continuar a afirmar como fizemos no primeiro Capiacutetulo que
haacute um modo correto de ter apetite e de se encolerizar O que implica
tambeacutem sentir tais desejos e emoccedilotildees pelos objetos adequados Nisso se
resume o encontrar o ldquoponto certordquo da emoccedilatildeo segundo as palavras de
Zingano (2008 p 167) sendo tal ponto determinado pela razatildeo
associada agrave virtude moral permitindo deste modo se emocionar
conforme a justa medida
No entanto entendemos que as emoccedilotildees assim como os desejos
satildeo despertadas em noacutes a princiacutepio por certas percepccedilotildees praacuteticas que
temos acerca do mundo que anteriormente determinamos estarem
relacionadas com um sem nuacutemero de particulares que nos afetam e
dentre os quais eacute preciso pela accedilatildeo da prudecircncia abstrair algo universal
que norteia as boas accedilotildees Esse tipo de afecccedilatildeo que se origina com o
exterior deve passar pelo crivo da razatildeo praacutetica e seus processos a fim
de conferir adequaccedilatildeo aos desejos que provoca e agraves emoccedilotildees que
desperta levando-os a adquirir uma modelagem mais adequada agraves
propostas racionais em geral Por isso na sequecircncia deveremos nos
dedicar a trabalhar a relaccedilatildeo do processo da prudecircncia com o particular
(heacutekastos) e o universal (kathoacutelou)
4d) Prudecircncia deliberaccedilatildeo escolha deliberada e sua relaccedilatildeo com o
particular e o universal
Com as discussotildees postas acima pudemos observar momentos
nos quais Aristoacuteteles afirma a relaccedilatildeo entre a prudecircncia suas operaccedilotildees
e as coisas particulares bem como com o universal Esse tipo de
proposta nos leva a indagar novamente o real papel dessa virtude
intelectual pois traz duacutevida quanto ao que seria o tal universal O
particular pudemos deduzir satildeo as circunstacircncias nas quais acontece o
143
mencionado processo e que levam cada agente a por em praacutetica seu
plano de accedilatildeo para realizaccedilatildeo de um fim que veremos ser apontado no
silogismo praacutetico como premissa menor ou um tipo de opiniatildeo Mas se
tudo que eacute feito pelo homem leva a um fim que tende ao fim supremo
seria este uacuteltimo o dito universal Pelo que estudamos ateacute o momento a
resposta parece ser positiva e por conseguinte seraacute favoraacutevel agrave nossa
interpretaccedilatildeo a partir da EN e do DA de uma unidade da alma pois nos
mostraria a prudecircncia apontando para algo mais que as situaccedilotildees
peculiares e contingentes
Essa leitura leva a virtude intelectual da prudecircncia a se conectar
ao menos com um certo tipo de objeto invariaacutevel mesmo que no campo
do que eacute procurado pelas accedilotildees humanas Por isso potildee-na em contato
com o restante das capacidades da alma racional e seus melhores
estados que apresentam por objeto coisas imutaacuteveis Ratificamos que
natildeo traremos especificamente dessas uacuteltimas virtudes intelectuais pois
no momento basta-nos confirmar que a prudecircncia se direciona ao
universal configurado como a eudaiacutemōniacutea e lida com os modos
particulares de alcanccedilaacute-la como explica Reeve (2014 p 211)
Quando a felicidade eacute apreendida por um agente
a tarefa deliberativa deste eacute encontrar a (espeacutecie
de) accedilatildeo particular que a constitui nas
circunstacircncias presentes Uma vez encontrada
esta desempenha dois papeacuteis em seu pensamento
praacutetico serve [1] como a premissa menor do
silogismo praacutetico que incorpora a deliberaccedilatildeo do
agente e [2] como uma especificaccedilatildeo concreta do
fim do agente Em [1] a accedilatildeo conclui o caminho
que desce de um fim universal para suas
ocorrecircncias particulares e assim o entendimento
incorporado na percepccedilatildeo deliberativa que a
apreende concerne agrave aplicaccedilatildeo de um universal
(felicidade agir bem) a particulares (esta accedilatildeo)
Em [2] a accedilatildeo eacute o ponto inicial de uma induccedilatildeo
que avanccedila para um universal a partir da
percepccedilatildeo envolvendo entendimento de
particulares Eacute das ldquoaccedilotildees na vidardquo somos
lembrados que as discussotildees em eacutetica e poliacutetica
ldquose ocupam e derivamrdquo (EN I 3 1095a3-4) e eacute a
habituaccedilatildeo adequada que assegura que
alcancemos as conclusotildees corretas nos causando
prazer e dor Em um aspecto portanto a
felicidade eacute um ponto inicial jaacute que eacute o fim
144
uacuteltimo de toda accedilatildeo Em outro as accedilotildees
particulares que a instanciam satildeo pontos iniciais
uma vez que eacute a partir delas que eacute preenchido um
entendimento da felicidade (universal)130
Aristoacuteteles explica a proposta com uma analogia entre silogismo
discursivo e silogismo praacutetico comparando mesmo (e ateacute chamando) a
prudecircncia que apreende o que eacute uacuteltimo ou particular com o intelecto
(noucircs) que capta o universal (EN VI 9 1142a25) Haveria assim uma
espeacutecie de percepccedilatildeo especificamente eacutetica que levaria agrave apreensatildeo dos
juiacutezos e que vimos natildeo ser a percepccedilatildeo dos sensiacuteveis proacuteprios Eacute uma
questatildeo de referir-se a um processo analiacutetico que no caso de um
triacircngulo por exemplo decomporia a figura ateacute levar agrave apreensatildeo do
triacircngulo reconstruindo-o A imagem deste modo apreendida jaacute permite
que seja explicitado de modo discursivo sendo um particular alguma
coisa uacuteltima Assim quando o filoacutesofo trata nesse ponto do texto (EN
VI 9 1142a27) o ver implica que esse ldquover geralrdquo eacute a apreensatildeo do
triacircngulo como o uacuteltimo ponto da anaacutelise efetuada (WOLF 2010 p
155-156)
Quando na anaacutelise da figura geomeacutetrica foi apreendido o
triacircngulo uacuteltimo elemento constitutivo que pode sofrer anaacutelise tecircm-se
dele em mente uma ldquopercepccedilatildeo geralrdquo e sabe-se que pode ser percebido
em um contexto de fundamentaccedilatildeo Por isso eacute visto como o uacuteltimo
elemento em uma cadeia de argumentaccedilatildeo de fundamentaccedilatildeo Jaacute natildeo
pode mais ser expresso em premissas mas eacute agora objeto do
130 Quanto ao particular e o universal segundo Wolf (2010 p 155) eacute que
ldquoAristoacuteteles acentua que a correta deliberaccedilatildeo se refere ao que a quem quando
e como etc na situaccedilatildeo concreta (assim novamente em 1142b28) Que o
kathacuteheacutekaston eacute pensado aqui no sentido da situaccedilatildeo concreta vem atestado pela
indicaccedilatildeo de que o julgar consiste aqui em uma espeacutecie de aiacutesthēsis (percepccedilatildeo
sentir sensorial ndash 1142a27) tanto quanto pela comparaccedilatildeo da phroacutenēsis com o
noucircs No acircmbito teoacuterico essa eacute a faculdade responsaacutevel pela aquisiccedilatildeo de
conceitos uacuteltimos que jaacute natildeo podem ser explicitados por outros conceitos mas
que soacute podem ainda ser apreendidos Agraves vezes Aristoacuteteles chama a proacutepria
phroacutenēsis de uma espeacutecie de noucircs (1142a25) Isso pode ser esclarecido pelo fato
de ambos referirem-se a algo uacuteltimo (heacutekhaston) o noucircs apreende os conceitos
mais elevados mais abstratos a phroacutenēsis ndash pelo menos onde deve ser
compreendida como aiacutesthēsis ndash apreende o mais concreto A questatildeo decisiva
portanto eacute saber o que tem em mente Aristoacuteteles ao designar a phroacutenēsis como
uma espeacutecie de aiacutesthēsisrdquo
145
pensamento A partir desse ponto eacute possiacutevel questionar se a figura que
se busca eacute um triacircngulo ou um ciacuterculo
Aplicando isso para a deliberaccedilatildeo eacutetica eacute possiacutevel questionar o
quanto a prudecircncia eacute composta por uma percepccedilatildeo geral
questionamento que lemos no passo abaixo
Desde o princiacutepio a analogia deixa claro que a
phroacutenēsis percebe o ldquoconcreto derradeirordquo o que
eacute concreto na situaccedilatildeo individual mas natildeo no
modo de um conhecimento eacutetico intuitivo Ao
contraacuterio deveria apreendecirc-lo em um contexto a
saber como o passo derradeiro em um processo
deliberativo Assim como a anaacutelise geomeacutetrica
reconduz a figura complexa a uma mais simples
de modo que jaacute natildeo possa ser reduzida a
deliberaccedilatildeo eacutetica analisa o conceito de eupraxiacutea
ou de ser-justo ateacute encontrar uma accedilatildeo que jaacute natildeo
remete a outra que podemos antes levar a efeito
imediatamente E como podemos discutir na
anaacutelise geomeacutetrica se eacute o triacircngulo ou outra figura
complexa que se constitui no ponto derradeiro
correto tambeacutem na deliberaccedilatildeo praacutetica podemos
sopesar qual das alternativas de accedilatildeo concretas
possibilitadas pela situaccedilatildeo eacute a correta ou a
melhor tornando-se o conteuacutedo da proaiacuteresis
Desse modo tambeacutem aqui temos a ver com uma
aiacutesthesis ldquogeralrdquo postada em um contexto
racional A proaiacuteresis ou accedilatildeo que deve ser
executada concretamente eacute apreendida como
correta no contexto da deliberaccedilatildeo praacutetica
(WOLF 2010 p 156)
Permanece contudo um problema a boa accedilatildeo natildeo pode ser
analisada como um fim teacutecnico por um processo claro como um ente
geomeacutetrico Se seguirmos o exemplo do triacircngulo transpondo-o para a
accedilatildeo eacutetica natildeo deveriacuteamos pensar que podemos mencionar os passos
para que uma accedilatildeo seja uma boa accedilatildeo O que deveria ser analisado eacute a
circunstacircncia para que ocorra a boa accedilatildeo e diante de tal circunstacircncia
qual eacute a boa accedilatildeo Nesse caso a deliberaccedilatildeo que precede a percepccedilatildeo poderia ser proposta em passos Primeiro o agente deveria esclarecer
qual o fim ou bem constitui o conteuacutedo da virtude moral e que deve ser
alcanccedilado pela accedilatildeo Depois disso deveria explicitar como alcanccedilar tal
bem propondo a circunstacircncia concreta O juiacutezo por sua vez deveria
146
indicar que a accedilatildeo eacute adequada por vaacuterios motivos e aspectos (o que
quem como quando etc) e que se insere na vida do agente em seu
rumo para a eudaiacutemōniacutea por conseguinte a boa accedilatildeo
A percepccedilatildeo relativa agrave prudecircncia e sua concretude poderia ser
entendida por tudo que foi explicado como uma percepccedilatildeo que ldquovecircrdquo a
accedilatildeo que leva um agente a uma boa vida Isso eacute parte do processo de
deliberaccedilatildeo racional articulador das ldquovisotildeesrdquo que se apoiam na empiria
apresenta e analisa as possibilidades de accedilatildeo ateacute o ponto de propor um
projeto de accedilatildeo que com componentes deliberativos vai atingir a forma
que pretende para a boa accedilatildeo Natildeo se trata de um processo que possa ser
decomposto em passos claros como no caso da technḗ mas o que temos
eacute uma busca incerta por um fim sem conteuacutedo preacute-definido
Essas explicaccedilotildees apontam porque a prudecircncia natildeo se direciona
somente para o bem do indiviacuteduo mas para o bem comum Segundo os
Livros II-VI o bem eacute a accedilatildeo bem-sucedida resultante da virtude moral
associada agrave racionalidade praacutetica e quiccedilaacute agrave razatildeo teoacuterica Conforme os
Livros III-VI esse bem deveria ser posto previamente pelo desejo por
uma disposiccedilatildeo que se direcionasse ao bem ou premissa maior da
deliberaccedilatildeo praacutetica Estatildeo envolvidos portanto com o particular e com
o universal como explica Wolf
Ora a faculdade desiderativa estaacute referida agrave razatildeo
as aspiraccedilotildees podem exprimir-se de tal modo que
sejam apreendidas em conceitos podem portanto
adotar a forma de desejos articulados na
linguagem Por si soacute a faculdade desiderativa natildeo
consegue formular um desejo como o desejo de
ser corajoso ou de ser justo Como vimos a
concretizaccedilatildeo daquilo que se deve fazer na
situaccedilatildeo natildeo apenas exige deliberaccedilatildeo Tambeacutem
essa deliberaccedilatildeo soacute poderaacute ser feita se a pessoa jaacute
dispotildee de uma representaccedilatildeo reflexiva da
eupraxiacutea no acircmbito relevante quando a phroacutenēsis
portanto se refere tambeacutem ao fim pois do
contraacuterio a pessoa agente nada teria em que
pudesse se orientar na reflexatildeo sobre o que seria o
melhor modo de realizar a aretḗ na situaccedilatildeo
presente
Aleacutem do mais a representaccedilatildeo impliacutecita do bem
viver contida na aretḗ deve ser implantada por
algueacutem no caraacuteter o qual tem ele proacuteprio uma
representaccedilatildeo reflexiva do direcionamento a ser
seguido na educaccedilatildeo Essa dupla tarefa da aretḗ eacute
147
confirmada pela ponderaccedilatildeo que Aristoacuteteles faz
em relaccedilatildeo agrave poliacutetica E uma vez que tambeacutem a
tarefa da poliacutetica igualmente deve ser
considerada uma forma de bom conselho ou uma
phroacutenēsis (1141b23-1142a10) Nesse contexto
ele acentua que a phroacutenēsis na poliacutetica possui
duas partes a parte legislativa (nomothesiacutea) e a
executiva (politikḗ em sentido estrito) A primeira
eacute a parte diretriz ou ordenadora a segunda a parte
ativa concreta agrave qual estaacute referida a deliberaccedilatildeo
O educador individual igualmente deve ser
considerado como orientador no sentido dessa
dupla particcedilatildeo de tal modo que ele tem uma
representaccedilatildeo de regras em que se explicita a
eupraxiacutea (WOLF 2010 p 158)
Essas consideraccedilotildees indicam que os processos da prudecircncia se
encaminham por meio de accedilotildees dadas em circunstacircncias particulares a
um universal que eacute o bem supremo comum a todos
Os apontamentos acerca da virtude moral da prudecircncia nos levam
a entender que o agente igualmente se torna responsaacutevel pela forma
como suas emoccedilotildees se datildeo ao mundo porque apoacutes formado
moralmente sua capacidade de por-se os fins acaba por tornaacute-lo mais
que senhor de suas accedilotildees eacute agora senhor de seus desejos e da forma
como age e se emociona Embora natildeo escolha a emoccedilatildeo que sente o ato
de pesar razotildees e de por-se o fim acaba no processo de deliberaccedilatildeo por
apresentar a possibilidade de mudar ou de ao menos moderar as
emoccedilotildees conforme o desejo eacute mudado ao longo desse processo Com
isso eacute possiacutevel que um impulso natural venha a se acalmar ao ponderar e
decidir unindo desejo e razatildeo praacutetica mudando raiva em calma ou
diminuindo a intensidade da raiva ou adequando a raiva sentida agrave
circunstacircncia por exemplo Pensamos que isso seja possiacutevel porque a
nosso ver se a alma eacute una como viemos propondo o prudente tem
contato com a uma verdade mais universal que se configura como
eudaiacutemōniacutea como propotildeem os comentadores apresentados tendo uma
visatildeo do que eacute mais geral graccedilas provavelmente agrave sua capacidade de
raciocinar bem que vai aleacutem do acircmbito da accedilatildeo que pode ser
considerada moralmente e da prāxis humana Provavelmente com isso
seja possiacutevel dizer que de certo modo a prudecircncia vecirc o fim a ser
alcanccedilado o melhor fim possiacutevel em uma espeacutecie de percepccedilatildeo que lhe
eacute proacutepria e que aponta para algo mais universal de modo similar agrave accedilatildeo
da razatildeo teoacuterica No homem virtuoso bem formado moralmente eacute
148
preciso saber o que seja esse bom fim eacute preciso desejar corretamente o
fim e se emocionar corretamente para que haja accedilotildees adequadas que
levaratildeo a tal fim Por conseguinte pensamos que ao menos no virtuoso a
prudecircncia que lhe eacute posse real e natildeo um conselho vindo de fora
implique de certo modo em conseguir distinguir o bom fim para
encadear o processo deliberativo Esse tipo de capacidade eacute conseguida
com a boa conjunccedilatildeo da razatildeo praacutetica com o lado natildeo racional da alma
humana formando a virtude em sentido estrito que na melhor das
hipoacuteteses capacita o homem bem educado agrave emoccedilatildeo adequada como
veremos no ponto seguinte
5 Virtude natural e virtude em sentido estrito
No final Livro VI capiacutetulo 13 da EN Aristoacuteteles procede a novo
exame da natureza da virtude Nessa parte do texto o filoacutesofo estabelece
diferenccedilas entre virtude moral em sentido estrito e virtude natural (aretḕ
physikeacute ndash aretḕ ethikḗ) embora ambas se relacionem Comeccedila a
discussatildeo observando o fato de todos admitirem que aqueles que
apresentam certo caraacuteter o tecircm de certo modo por natureza Pensa no
entanto que uma investigaccedilatildeo eacutetica procura a virtude moral em sentido
estrito e que seja possuiacuteda de um certo modo Aristoacuteteles considera que
se tais disposiccedilotildees naturais natildeo forem acompanhadas pela razatildeo se
tornaratildeo nocivas embora ldquoao contraacuterio uma vez que a razatildeo veio
entatildeo no domiacutenio da accedilatildeo moral eacute uma mudanccedila radical e a disposiccedilatildeo
que natildeo tinha ateacute aqui senatildeo uma semelhanccedila com a virtude seraacute agora
virtude em sentido estritordquo (EN VI 13 1144b12-14)131 Assim como na
capacidade opinante da alma haacute dois tipos de qualidade a habilidade e a
prudecircncia na funccedilatildeo moral (tograve ethikoacuten pelo qual leia-se tograve orektikoacuten)
existem dois tipos de virtude natural e em sentido estrito
A virtude propriamente dita contudo natildeo se produz sem
prudecircncia porque virtude em sentido estrito eacute conforme a regra justa e
a regra justa eacute a prudecircncia ou a disposiccedilatildeo segundo a prudecircncia Mais
ainda natildeo eacute apenas disposiccedilatildeo conforme a regra justa mas intimamente
131 Na nota 1 (2012 p 334) Tricot afirma que nesse caso no lugar de noucircs
pode ser lido phroacutenēsis e que por parte opinante entenda-se tograve logistikoacuten No
original ἐὰν δὲ λάβῃ νοῦν ἐν τῷ πράττειν διαφέρει ἡ δ ἕξις ὁμοία οὖσα τότ
ἔσται κυρίως ἀρετή
Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs a partir da traduccedilatildeo francesa feita por Tricot
No Original ἐὰν δὲ λάβῃ νοῦν ἐν τῷ πράττειν διαφέρει ἡ δ ἕξις ὁμοία οὖσα
τότ ἔσται κυρίως ἀρετή
149
ligada agrave regra justa (EN VI 13 1144b26-27)132 portanto eacute impossiacutevel
ser um homem de bem em sentido proacuteprio sem a phroacutenēsis e com ela
todas as virtudes satildeo dadas Essa concepccedilatildeo da virtude moral eacute proposta
porque natildeo haacute escolha deliberada sem a prudecircncia e provavelmente
natildeo haacute prudecircncia sem as demais virtudes das demais capacidades
racionais A virtude moral ordena o fim e a prudecircncia leva a completar
as accedilotildees que conduzem a este (EN VI 13 1145a4-6)133
Consideramos que as virtudes do intelecto satildeo portanto
imprescindiacuteveis a uma vida feliz porque sem as atividades que facultam
o homem natildeo poderia ser pensado como desempenhando sua funccedilatildeo
proacutepria Embora valha relembrar que ldquoum tipo secundaacuterio que eacute a vida
segundo o outro tipo de virtude eacute feliz pois as atividades que satildeo
conformes a ela satildeo puramente humanasrdquo (EN X 8 1178a9-11)134 Este
outro tipo de excelecircncia como vimos acima eacute a virtude moral que
busca segundo interpretaccedilatildeo de Tricot uma felicidade relacionada agrave
vida dos homens na poacutelis (2012 nota 3 p 551-552) Por isso os atos de
virtude moral satildeo tomados nas relaccedilotildees com os outros e em relaccedilatildeo agraves
emoccedilotildees sendo ligados igualmente agrave prudecircncia A proximidade dessas
virtudes com as emoccedilotildees aconteceraacute no composto corpoalma fazendo
delas excelecircncias especialmente humanas como Tricot observa
[] as virtudes morais satildeo ligadas agrave prudecircncia e a
prudecircncia agraves virtudes morais e por um outro lado
elas satildeo ligadas agraves paixotildees pois prudecircncia e
virtudes morais se aplicam igualmente a modificaacute-
las Por consequecircncia todas essas virtudes
incluindo a prudecircncia satildeo realmente as virtudes
do composto humano (TRICOT 2012 nota 4 p
552-553 traduccedilatildeo nossa)
132Assim explica Tricot (2012 nota 3 p 335) a virtude eacute com razatildeo e segundo
a razatildeo 133 Reeve (2013 p 15) explica que uma vez que o entendimento faz
compreender o alvo ele natildeo eacute indiferente ao fim da vida humana ele vecirc o que
tal alvo eacute e assim nossa virtude natural ou habituada eacute transformada em virtude
total e o agente se torna completamente bom (EN VI 13 1144b1-32) Ao mesmo
tempo as virtudes naturais que podem ser possuiacutedas em separado se conectam
em um soacute estado pois todas satildeo requeridas pela sabedoria praacutetica e a sabedoria
praacutetica eacute requerida por ela (EN VI 13 1144b30-1145a2) 134 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Δευτέρως δ ὁ κατὰ τὴν ἄλλην ἀρετήν αἱ γὰρ κατὰ ταύτην
ἐνέργειαι ἀνθρωπικαί
150
Com a virtude natural ou seja com a disposiccedilatildeo natildeo
consolidada135 pelo o auxiacutelio da virtude intelectual da prudecircncia o
agente eacute capaz de fazer o que deve ser feito mas sem dispor das razotildees
para tanto Natildeo eacute capaz de cumprir plenamente a funccedilatildeo proacutepria do
homem pois natildeo tem por si e em si mesmo suas capacidades aniacutemicas
bem ajustadas favorecendo as accedilotildees que seriam moralmente corretas e a
eudaiacutemōniacutea Mas quando o agente desenvolve a virtude proacutepria ou em
sentido estrito tem sua virtude moral acompanhada pela prudecircncia e
muito provavelmente pela razatildeo como um todo e por isso faz o que
deve ser feito segundo boas razotildees136 O ato de escolher e agir segundo
suas proacuteprias boas razotildees eacute aquilo que podemos entender como virtude
completa e indispensaacutevel agrave vida feliz mas a virtude moral embora
possa ser favorecida por certo traccedilo natural soacute vem ao homem pelo
haacutebito
Por conseguinte pudemos perceber quatildeo proacuteximas estatildeo as
virtudes morais e as intelectuais bem como entendemos a necessidade
de colaboraccedilatildeo entre estas a fim de que se viva bem Eacute esse acordo que
permite a Aristoacuteteles propor uma virtude completa no singular e que a
nosso ver permitiraacute que as exigecircncias do filoacutesofo para a educaccedilatildeo ou
habituaccedilatildeo moral das emoccedilotildees sejam efetivadas
Diante disto resta pesquisarmos as possibilidades e os meios de
se executar essa formaccedilatildeo emocional Isso designado ainda nos caberaacute
ressaltar os instrumentos que podem facilitar o acordo entre ambas as
capacidades da alma Eacute preciso entender melhor o papel da razatildeo na
vida emocional moral jaacute que Aristoacuteteles confere ao racional uma
importacircncia semelhante ou ainda maior que agraves instacircncias natildeo racionais
da alma humana Como estivemos a salientar a retidatildeo necessaacuteria aos
desejos e agraves emoccedilotildees falta apresentar ao menos uma possibilidade para
tal retidatildeo Por isso na sequecircncia deveremos apreciar as formas
disponiacuteveis de educaccedilatildeo moral das emoccedilotildees seguindo em parte o
135Possivelmente estaacute em jogo a diferenccedila entre heacutexis disposiccedilatildeo que se tornou
fixa e diaacutethesis estado ou disposiccedilatildeo ainda maleaacutevel (ZINGANO 2008 p
122) Na EE se fala mesmo da melhor disposiccedilatildeo (II 1 1218b38 1219a1
1219a3 1219a32) 136Conferir Poliacutetica 1260a15-19 a respeito do modo de operar as virtudes O
passo apresenta tais modos em relaccedilatildeo aos escravos agraves mulheres e agraves crianccedilas
sendo que em nenhuma dessas condiccedilotildees se apresentaria a virtude perfeita
Sobre o ato de escolher conforme agraves boas razotildees tambeacutem se pode conferir
Magna Moralia 1200a3-4
151
modelo de educaccedilatildeo que poder ser aplicado aos desejos e que eacute
explicado por Aggio (2017 no prelo) Essa educaccedilatildeo seraacute possibilitada
pelos haacutebitos e formaraacute juntamente com a virtude intelectual aquilo
que no Livro VI da EN Aristoacuteteles chama de ldquovirtude em sentido
estritordquo
152
153
Capiacutetulo III
A racionalidade das emoccedilotildees
1 Eudaiacutemōniacutea vida dedicada agrave atividade racional (EN X)
Ao longo da EN Aristoacuteteles parece dar destaque especial agrave
participaccedilatildeo da razatildeo na vida que considera a melhor mas mesmo na
vida cabiacutevel agrave maioria dos homens o regime do loacutegos natildeo eacute posto de
lado Por conseguinte a vida feliz proposta como ativa e em acordo com
o princiacutepio racional seria dedicada agrave contemplaccedilatildeo conforme certas
propostas do Livro X Nesse ponto da tese fazemos um apanhado
geneacuterico sobre a eudaiacutemōniacutea nesse Livro com as devidas remissotildees ao
Livro I para ressaltar a aparente divergecircncia entre natildeo racional e
racional contudo temos ciecircncia de que a questatildeo eacute mais densa e por
isso natildeo eacute nossa pretensatildeo resolver os problemas relativos agrave felicidade
tampouco defini-la Temos ciecircncia igualmente da querela
contemporacircnea entre as leituras dominantes e inclusivistas sobre o bem
supremo como indicamos no Capiacutetulo I mas a despeito disso nos
parece que o papel da razatildeo na vida feliz sempre eacute preservado por
Aristoacuteteles embora este natildeo minore outros aspectos componentes do
humano Observaremos o tema portanto na medida em que pode nos
auxiliar a resolver nossa questatildeo e comeccedilaremos considerando a
proposta de que a eudaiacutemōniacutea se confunde com a vida contemplativa
embora tenhamos ressaltado anteriormente que tal ideia natildeo apresenta o
real pensamento de Aristoacuteteles sobre o assunto mesmo que o filoacutesofo
escreva linhas como as que seguem abaixo
Mas se a felicidade eacute uma atividade conforme agrave
virtude eacute racional que seja atividade conforme a
mais alta virtude e esta seraacute a virtude da parte a
mais nobre de noacutes Que seja portanto o intelecto
ou qualquer outra faculdade que seja observada
como possuindo por natureza o comando e a
direccedilatildeo e como tendo o conhecimento das
realidades belas e divinas que aleacutem disso esse
elemento seja ele mesmo divino ou somente a
parte mais divina de noacutes eacute o ato desta parte
segundo a virtude que lhe eacute proacutepria que seraacute a
felicidade perfeita Ora que essa atividade seja
teoreacutetica eacute o que temos dito (EN X 7 1177a12-
154
18)137
Aristoacuteteles pensa que essas afirmaccedilotildees parecem estar em acordo
com a verdade Por isso elenca oito motivos para concordar com as
propostas que definem a melhor vida como aquela em contemplaccedilatildeo
Primeiro a atividade mencionada eacute a mais alta porque o intelecto eacute a
melhor parte que temos e os objetos do intelecto teoacuterico satildeo os mais
altos dos objetos conheciacuteveis Segundo seria a eneacutergeia mais contiacutenua
pois podemos nos deixar agrave contemplaccedilatildeo de uma forma menos
interrompida do que a qualquer outra atividade Terceiro pensa-se que o
prazer intelectual deve ser componente da felicidade jaacute que a atividade
segundo a sabedoria eacute reconhecidamente a mais agradaacutevel das
atividades conformes agrave virtude A filosofia conteacutem prazeres
maravilhosos no que toca agrave pureza e agrave estabilidade por isso seria
normal se a alegria de conhecer fosse uma tarefa mais agradaacutevel que a
procura pelo conhecimento Quarto aquilo que eacute chamado lsquoplena
suficiecircnciarsquo pertenceria ao maacuteximo agrave atividade contemplativa Se eacute
verdade que o saacutebio o justo e todo homem detentor de virtude(s)
precisariam das coisas necessaacuterias agrave vida uma vez que estivessem
suficientemente providos de tais bens viveriam bem dedicando-se agrave
contemplaccedilatildeo teoacuterica O saacutebio ao contraacuterio dos outros virtuosos se
fosse deixado a si mesmo teria a capacidade de contemplar e seria
mesmo mais saacutebio se contemplasse nesse estado de vantagem Eacute claro
contudo que mesmo ao saacutebio eacute preferiacutevel viver na companhia de seus
semelhantes embora este seja o homem que mais baste a si mesmo
Quinto esse tipo de atividade descrito pareceria o uacutenico desejado por si
mesmo Por isso natildeo produziria nada aleacutem do ato de contemplar ao
contraacuterio das atividades praacuteticas Sexto a felicidade parece consistir em
lazer pois o homem soacute se satisfaz com uma vida ativa que busca o lazer
e natildeo vai agrave guerra com outra intenccedilatildeo que natildeo a paz Ateacute mesmo as
atividades poliacuteticas tecircm outro fim em vista e natildeo somente o lazer
buscam satisfazer os interesses gerais e a sauacutede da cidade natildeo sendo
desejaacuteveis por si mesmas enquanto a atividade do intelecto ou
137 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Εἰ δ ἐστὶν ἡ εὐδαιμονία κατ ἀρετὴν ἐνέργεια εὔλογον
κατὰ τὴν κρατίστην αὕτη δ ἂν εἴη τοῦ ἀρίστου εἴτε δὴ νοῦς τοῦτο εἴτε ἄλλο τι
ὃ δὴ κατὰ φύσιν δοκεῖ ἄρχειν καὶ ἡγεῖσθαι καὶ ἔννοιαν ἔχειν περὶ καλῶν καὶ
θείων εἴτε θεῖον ὂν καὶ αὐτὸ εἴτε τῶν ἐν ἡμῖν τὸ θειότατον ἡ τούτου ἐνέργεια
κατὰ τὴν οἰκείαν ἀρετὴν εἴη ἂν ἡ τελεία εὐδαιμονία ὅτι δ ἐστὶ θεωρητική
εἴρηται
155
contemplativa eacute prazerosa e completa ou perfeita (EN X 7 1177b19-26)
Seacutetimo uma vida desse tipo contudo seria demais para a condiccedilatildeo
humana pois natildeo se viveria como um homem mas segundo um
elemento divino que estivesse presente em noacutes Tanto quanto esse
elemento fosse superior ao composto humano sua atividade seria
superior agravequela do outro tipo de virtude (EN X 7 1177b28) ldquoSe
portanto o intelecto eacute algo de divino por comparaccedilatildeo com o homem a
vida segundo o intelecto eacute igualmente divina comparada com a vida
humanardquo (EN X 7 1177b30-31)138 por isso natildeo se deveria escutar
conselhos daqueles que os datildeo pois satildeo conselhos vindos de homens
sobre as coisas humanas O homem deveria se imortalizar na medida do
possiacutevel e fazer de tudo para viver segundo sua parte mais nobre
porque ldquomesmo que essa parte seja pequena em sua massa por sua
potecircncia e seu valor ela passa em muito todo o restordquo (EN X 7 1178a1-
2)139 Em oitavo lugar cada homem se identificaria com essa parte por
ser fundamental em seu ser e por ser a melhor sendo estranho que natildeo
concordasse com a vida que lhe eacute proacutepria mas com qualquer outra
porque o que eacute proacuteprio a cada coisa eacute o que lhe haacute de mais excelente e
agradaacutevel ldquoE para o homem esta seraacute a vida segundo o intelecto se eacute
verdade que o intelecto eacute no mais alto grau o proacuteprio homem Essa vida
eacute portanto igualmente a mais felizrdquo (EN X 7 11786a6-8140)
Nosso estudo precisa questionar todavia a imponecircncia desse tipo
de postura Embora natildeo seja interesse da tese apresentada definir qual
dos usos da razatildeo eacute melhor que o outro o praacutetico ou o teoacuterico
estivemos a defender a existecircncia de uma excelecircncia para cada uma das
(sub)capacidades racionais destacadas por Aristoacuteteles Todavia
pensamos ser indiscutiacutevel que um homem feliz natildeo possa prescindir do
uso praacutetico de sua razatildeo justamente pelo fato de ser um homem e natildeo
outro tipo de ser sendo que tal uso eacute tambeacutem indiscutivelmente
envolvido com as emoccedilotildees Em contrapartida ao lidarmos com eacutetica e
com as accedilotildees boas moralmente estivemos o tempo todo a tratar daquilo
que no homem se apresenta como natildeo racional mas observamos ao
138 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original εἰ δὴ θεῖον ὁ νοῦς πρὸς τὸν ἄνθρωπον καὶ ὁ κατὰ τοῦτον
βίος θεῖοςπρὸςτὸνἀνθρώπινονβίον 139 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original εἰ γὰρ καὶ τῷ ὄγκῳ μικρόν ἐστι δυνάμει καὶ τιμιότητι πολὺ
μᾶλλον πάντων ὑπερέχει 140 Idem καὶ τῷ ἀνθρώπῳ δὴ ὁ κατὰ τὸν νοῦν βίος εἴπερ τοῦτο μάλιστα
ἄνθρωπος οὗτος ἄρα καὶ εὐδαιμονέστατος
156
longo do estudo anteriormente apresentado a respeito da boa medida nas
emoccedilotildees que haacute sempre a presenccedila da racionalidade mesmo quando
tratamos da excelecircncia do natildeo racional que pede accedilatildeo
Por exemplo a junccedilatildeo da virtude moral com a virtude intelectual
da prudecircncia mostrou-se imprescindiacutevel sendo mesmo condiccedilatildeo sine
qua non para a boa forma das emoccedilotildees na vida moral e se apresentou
como aquilo que realmente caracteriza o homem na eacutetica de Aristoacuteteles
e seu modo de tocar a vida que lhe eacute peculiar141 O filoacutesofo retira de suas
divindades mas tambeacutem das bestas a possibilidade de ver apaziguados
em si esses elementos aparentemente diacutespares Tal possibilidade de
conciliaccedilatildeo entre a capacidade racional e capacidade natildeo racional na
alma humana permitiu ateacute o momento que conjugaacutessemos vaacuterios
campos de conhecimento descritos pelo filoacutesofo como destinados ao
tratamento de questotildees especiacuteficas Por isso dedicamos esse terceiro
Capiacutetulo de nosso estudo agrave observaccedilatildeo das possibilidades das relaccedilotildees
da capacidade racional com a capacidade natildeo racional jaacute que Aristoacuteteles
frisa demasiadamente que a melhor vida eacute atrelada agrave razatildeo
Tal anaacutelise seraacute necessaacuteria porque sejam quais forem os motivos
adotados pelo filoacutesofo o fato eacute que o Livro X da EN nos apresenta a
proposta de que a felicidade perfeita eacute uma certa atividade
contemplativa Todavia entendemos que ainda que estabelececircssemos a
vida contemplativa como melhor forma de vida natildeo poderiacuteamos abrir
matildeo de especificar o papel das emoccedilotildees nem neste nem naquele que
muitos consideram um segundo melhor tipo de vida a vida poliacutetica No
entanto ressaltamos que essa natildeo eacute nossa postura jaacute que nossas leituras
de Aristoacuteteles nos levam a pensar que uma vida contemplativa natildeo
aconteceria em total isolamento ou sem os bens elementares agrave
manutenccedilatildeo de uma existecircncia bem vivida entre os quais Aristoacuteteles
parece incluir nos livros VIII IX e mesmo no Livro X da EN as
relaccedilotildees de amizade Mesmo tendo exposto nossa duacutevida quanto agrave
validade do pensamento que defende a pura contemplaccedilatildeo teoacuterica como
representante legiacutetimo das intenccedilotildees do filoacutesofo devemos consideraacute-lo
141 Sobre o assutno Reeve escreveu ldquoA vida que consiste em atividade poliacutetica
sem oacutecio em acordo com a sabedoria praacutetica e com as virtudes de caraacuteter eacute uma
vida completamente mais feliz quando ndash porque ela eacute levada em uma cidade
com a melhor constituiccedilatildeo idealmente situada e provida com bens externos ndash
acontece alcanccedilando o melhor tipo de felicidade para quem a possui Essa vida
complexa ndash parte praacutetica parte contemplativa ndash eacute a melhor vida humana que a
sabedoria praacutetica que eacute o melhor tipo de conhecimento praacutetico pode organizarrdquo
(REEVE 2013 p 18)
157
e buscar perceber em que medida natildeo destoa das propostas
anteriormente levantadas Natildeo esqueccedilamos a ressalva do proacuteprio
Aristoacuteteles em questotildees de eacutetica eacute a experiecircncia que tem a palavra final
Por isso eacute preciso cotejar as conclusotildees que forem racionalmente tiradas
com as coisas que a vida apresenta pois tais coisas estando em acordo
com as conclusotildees tornam-se aceitaacuteveis
Com isso confirmamos a proposta de Aristoacuteteles porque afirma
que a maioria dos homens natildeo preza o racional142 embora ao descrever
a razatildeo como o que haacute de melhor no homem faccedila-nos entender que eacute
preciso tratar do papel do loacutegos na vida moral Como vimos natildeo haacute
virtude moral sem a participaccedilatildeo do intelecto mesmo que essa virtude
seja consolidada pelos haacutebitos e que este intelecto seja praacutetico e natildeo haacute
virtude moral nem boa vida sem uma educaccedilatildeo para as emoccedilotildees Tal
vida como jaacute propusemos somente seraacute possiacutevel na medida em que
pudermos ter nossas emoccedilotildees e nossa razatildeo em acordo o que eacute
viabilizado pela proposta de impossibilidade de uma vida puramente
dada ao racional teoacuterico impossibilidade exposta entre os motivos do
filoacutesofo para que a vida puramente contemplativa seja feliz (EN X 7
1177b26-30) Ainda precisamos confirmar como se datildeo as
possibilidades da racionalidade das emoccedilotildees aristoteacutelicas e os
instrumentos que interferem no sentir emoccedilatildeo e que permitem que esta
seja ao menos mudada favorecendo a virtude moral e a virtude como
um todo Sendo nosso objetivo explicitar o que permite e facilita a
participaccedilatildeo do natildeo racional na razatildeo praacutetica eacute forccediloso que doravante
estudemos mais detidamente a relaccedilatildeo desta razatildeo com as emoccedilotildees ou
seja o se emocionar racionalmente
2 A racionalidade das emoccedilotildees interpretaccedilotildees desde EN I agraves luzes
do De Anima
Os argumentos acima apresentam uma postura bastante favoraacutevel
agrave vida contemplativa como sendo a vida feliz poreacutem ao longo de nosso
estudo apresentamos vaacuterias possibilidades dentro do proacuteprio texto da
EN para suspeitar disso Mesmo o Livro X como acabamos de ressaltar
potildee em duacutevida a possibilidade de um homem ainda que fosse filoacutesofo
totalmente deixado agrave pura contemplaccedilatildeo teoacuterica Cremos que este tipo
de afirmaccedilatildeo (ou de questionamento) estabelece mais que a proposta de
142 Ou como propotildee Boyle (2012 p 31) muitos dos homens natildeo chegam a
alcanccedilar essa capacidade (ou capacidades) ao menos natildeo em sua melhor forma
pensamos
158
Kenny apresentada demasiado sucintamente no Capiacutetulo I o elo entre os
dois tratados sobre a felicidade Igualmente reforccedila a possibilidade de
defendermos nossa tese o homem eacute um composto de corpo e alma que
soacute realiza sua funccedilatildeo proacutepria na poacutelis mas para tanto precisa
harmonizar suas emoccedilotildees com a totalidade de sua razatildeo gerando
emoccedilotildees educadas O Livro X trecho X 7 1177b26-30 que parece por
em xeque todas as afirmaccedilotildees que tendem agrave elevaccedilatildeo da vida
contemplativa ao status de eudaiacutemōniacutea permitiraacute como pretendemos
demonstrar reforccedilar a defesa de nossa tese graccedilas agrave ligaccedilatildeo que
estabelece tanto com o argumento da funccedilatildeo apresentado em EN I
quanto com a proposta especificada em EN I 13 a respeito da capacidade
do desiderativo ouvir e participar da razatildeo desejando e se emocionando
de um jeito racional Para confirmar tais interpretaccedilotildees evocaremos o
DA quando necessaacuterio jaacute que esse tratado igualmente apresenta uma
proposta de homem como composto por corpo e alma sendo somente
tal composto capaz de sofrer afecccedilotildees do tipo das emoccedilotildees (DA I 4
408b18 et seq) e da forma como as sofre143 Por isso tambeacutem quando
necessaacuterio retomaremos algumas das propostas escritas a partir dos dois
tratados e que foram mencionadas nos demais capiacutetulos
Segundo nosso entendimento o Livro I da EN acompanhado de
outros trechos supramencionados da mesma obra nos apresenta uma
perspectiva acerca do que seja o homem No Capiacutetulo I estudamos uma
concepccedilatildeo de homem forjada a partir das distinccedilotildees que representaram o
ser humano como diferente dos demais animais graccedilas agrave natureza
proacutepria agrave sua alma dotada de razatildeo e igualmente da capacidade que tal
alma apresenta de conjugar em si capacidades que muitos pensaram ser
totalmente inconciliaacuteveis Isso eacute o que podemos entender ao lermos em
EN I 13 que a alma tem uma ldquoparterdquo racional e que igualmente apresenta
algo contraacuterio agrave razatildeo que lhe resiste e faz frente mas na sequecircncia do
texto o tom da discussatildeo desse assunto eacute suavizado dizendo que nos
homens com certos tipos de disposiccedilotildees de caraacuteter essa tal capacidade
ambiacutegua ldquofala a respeito de todas as coisas com a mesma voz que o
princiacutepio racionalrdquo (EN I 13 1102b28144) Vimos essas assertivas serem
introduzidas no tratado a fim de permitir a discussatildeo da virtude moral
143 Boyle (2012 p 21 traduccedilatildeo nossa) explica que um animal como o homem
racional ldquoeacute capaz natildeo somente de ser ter e fazer mais que uma criatura natildeo
racional mas de ser o sujeito de atribuiccedilotildees do ser ter e fazer num sentido
distintivordquo 144Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original πάντα γὰρ ὁμοφωνεῖ τῷ λόγῳ
φαίνεται δὴ καὶ τὸ ἄλογον διττόν
159
em cada um de seus tipos que existe apenas devido agraves duas capacidades
elementares na alma humana diferenciando novamente o homem dos
demais animais que nem sempre apresentam uma capacidade aniacutemica
racional
Com essas consideraccedilotildees percebemos em Aristoacuteteles e
confirmamos com apoio em alguns comentaacuterios como os de Nussbaum
Korsgaard Reeve Boyle e Sorabji o desenho de uma figura humana
dotada de uma funccedilatildeo proacutepria (como tudo mais que existe) sendo esta
funccedilatildeo adequada agrave alma caracteriacutestica agrave espeacutecie Agora vale reforccedilar tal
interpretaccedilatildeo com uma visita ao DA pois seu texto confirmaraacute nossas
intenccedilotildees acerca do caraacuteter antropoloacutegico esboccedilado pela EN O homem
descrito pelo tratado da alma confirmaraacute os traccedilos indicados pelo texto
eacutetico em momentos como o citado abaixo
O seguinte absurdo acontece tanto nesta como na
maioria das discussotildees sobre a alma elas
acomodam a alma no corpo nada definindo em
acreacutescimo sobre a causa e o modo como o corpo
se manteacutem Todavia isso parece necessaacuterio pois
devido a esta comunhatildeo um faz e o outro sofre
um eacute movido e o outro move e nada disso ocorre
casualmente a um e a outro (DA I 3 407b13-19145)
Esse posicionamento vale lembrar traz reforccedilo agrave importacircncia da
discussatildeo das emoccedilotildees consideradas entre as afecccedilotildees aniacutemicas
expressas pelo corpo seja por meio de movimentos de certas partes
suas seja com accedilotildees cometidas deliberadamente ou indeliberadamente
trazendo a responsabilidade ou isenccedilatildeo moral bem como a
voluntariedade agraves accedilotildees solicitadas pelas afecccedilotildees que satildeo as emoccedilotildees e
os desejos Esse tipo de interpretaccedilatildeo pode ser adotado a partir dos dois
tratados ora estudados a comeccedilar pela proposta da alma que em EN I 13
resultou na distinccedilatildeo das virtudes em intelectuais e morais discussatildeo
estendida ateacute o Livro VI da EN bem como apresentada em trechos do
DA como o passo I 4 408a34-b8 no qual lemos que as emoccedilotildees satildeo
vindas de fora que movimentam o corpo (por locomoccedilatildeo ou alteraccedilatildeo) e
145 Traduccedilatildeo de Maria Cecilia Gomes dos Reis (2006) no original ἐκεῖνο δὲ
ἄτοπον συμβαίνει καὶ τούτῳ τῷ λόγῳ καὶ τοῖς πλείστοις τῶν περὶ ψυχῆς
συνάπτουσι γὰρ καὶ τιθέασιν εἰς σῶμα τὴν ψυχήν οὐθὲν προσδιορίσαντες διὰ
τίν αἰτίαν καὶ πῶς ἔχοντος τοῦ σώματος καίτοι δόξειεν ἂν τοῦτ ἀναγκαῖον
εἶναι διὰ γὰρ τὴν κοινωνίαν τὸ μὲν ποιεῖ τὸ δὲ πάσχει καὶ τὸ μὲν κινεῖται τὸ δὲ
κινεῖ τούτων δ οὐθὲν ὑπάρχει πρὸς ἄλληλα τοῖς τυχοῦσιν
160
que o homem o faz ldquocom a almardquo A indissociabilidade entre corpoalma
leva ao fato jaacute mencionado de que um faz e o outro sofre um move e
outro eacute movido
O homem sendo entatildeo composto de corpo e alma somente se
emociona devido a esse seu aspecto (DA I 1 403a16 et seq) ldquoE por isso
supotildeem corretamente aqueles que tecircm a opiniatildeo de natildeo existir alma sem
corpo e tampouco ser a alma um certo corpo pois ela natildeo eacute corpo mas eacute
algo do corpo e por isso subsiste no corpo e em um corpo de tal tipordquo
(DA II 3 414a19-22146) Essas ideias servem como reforccedilo agrave EN quando
este texto apresenta o homem como animal poliacutetico dotado de funccedilatildeo
proacutepria a eudaiacutemōniacutea A alma una que defendemos se torna condiccedilatildeo
para que tal funccedilatildeo se realize de modo pleno Por isso repetimos
somente em uma poacutelis o homem pode desenvolver todas as suas
potencialidades de alma ou a maior parte delas pois somente a poacutelis
fornece o indispensaacutevel ao bom funcionamento da alma A
indissociabilidade do corpo e da alma humana (DA I 1 403a3-15) e de
suas capacidades dentro de uma soacute e mesma alma (DA I 4 408b18 et
seq) nos levou a pensar e afirmar a unidade da alma e igualmente do
desejo a fim de que o homem completasse sua funccedilatildeo que entendemos
ser realizaacutevel apenas mediante agrave boa relaccedilatildeo das capacidades aniacutemicas
elementares Aleacutem disso vimos que a poacutelis eacute o ambiente que daacute
condiccedilotildees para desenvolver e coordenar as virtudes necessaacuterias para a
vida considerada feliz
Voltemos ainda um instante agrave EN I 13 e agrave proposta de uma
capacidade racional da alma e uma capacidade natildeo racional sendo que
nesta uacuteltima eacute demasiado importante agrave presente investigaccedilatildeo sua
possibilidade de ouvir a razatildeo o que nos levou a entender melhor as
possibilidades de mudanccedilas nasdas emoccedilotildees Essas variaccedilotildees satildeo
necessaacuterias agrave vida feliz aleacutem de nos ajudar a entender melhor a postura
de Aristoacuteteles acerca da relaccedilatildeo corpoalma Ao definir a alma a partir
das capacidades que faculta ao corpo desempenhar (DA II 2 413a20-25)
Aristoacuteteles permite entender o homem como se enquadrando naquela
descriccedilatildeo de todo orgacircnico vivificado por uma alma e dotado de um
certo nuacutemero de capacidades que iriam como vimos desde a percepccedilatildeo
sensiacutevel ateacute a elaboraccedilatildeo mais fina e sofisticada de raciociacutenios a respeito
das coisas imutaacuteveis (DA II 2 413b1-12)
146 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original καὶ διὰ
τοῦτο καλῶς ὑπολαμβάνουσιν οἷς δοκεῖ μήτ ἄνευ σώματος εἶναι μήτε σῶμά τι
ἡ ψυχή σῶμα μὲν γὰρ οὐκ ἔστι σώματος δέ τι καὶ διὰ τοῦτο ἐν σώματι
ὑπάρχει καὶ ἐν σώματι τοιούτῳ
161
A alma propusemos no Capiacutetulo I seria algo uno com o
exerciacutecio de vaacuterias capacidades que a constituiriam Por conseguinte
para as capacidades serem adequadamente exercidas a alma precisa da
harmonia indicada em EN I 13 no DA I e ao longo destes tratados que
indicam o caraacuteter indissociaacutevel das capacidades natildeo haacute desejo e emoccedilatildeo
sem percepccedilatildeo sensiacutevel e natildeo haacute imaginaccedilatildeo e pensamento sem os
outros dois O que vem do mundo emociona e faz pensar e agir mas
como vimos em Capiacutetulo anterior eacute preciso pensar e agir bem a fim de
viver uma vida feliz Natildeo haacute possibilidade de felicidade nos termos de
Aristoacuteteles sem aquela chamada virtude completa que entendemos ser
a comunhatildeo perfeita da virtude intelectual e da moral e portanto das
duas capacidades elementares exercitadas em seu melhor O acordo eacute
possibilitador da eudaiacutemōniacutea porque a eudaiacutemōniacutea na vida que
defendemos eacute impossiacutevel sem eupraxiacutea Por esses motivos devemos dar
continuidade agraves discussotildees que aparecem no iniacutecio dos dois tratados e
observar outros pontos que permitem confirmar nossas teorias
2 a) Um quecirc ou o quecirc de racionalidade nas emoccedilotildees
A ideia do homem como composto de corpo e alma que faz e
sofre accedilotildees solicitadas pelas paacutethē ouvintes ou natildeo das sugestotildees da
razatildeo praacutetica deve ser defendida em nossa pesquisa porque busca
caracterizar as emoccedilotildees como elementos eacuteticos cruciais agrave vida feliz O
que reforccedila essa proposta eacute a identificaccedilatildeo de um certo nuacutemero de
termos aplicados geralmente a operaccedilotildees concernentes agraves capacidades
racionais ou que levam ao exerciacutecio de tais capacidades mas indicando
a constituiccedilatildeo das emoccedilotildees ou implicadas com as emoccedilotildees educadas
Esses termos aparecem quando (ou especialmente quando) se trata das
virtudes morais particulares ou concretas bem como da definiccedilatildeo de
diversas emoccedilotildees (Rhet II) Entendemos que assim seja graccedilas agrave ligaccedilatildeo
de interdependecircncia entre as capacidades aniacutemicas mencionada
explicitamente em DA (II 4 414b33 et seq) conferindo unidade agrave alma
humana Essa ligaccedilatildeo possibilita a participaccedilatildeo do desiderativo na razatildeo
praacutetica e a boa accedilatildeo proposta confirmada pela afirmaccedilatildeo de Boyle
(2012 p 23-31) que pensa a racionalidade como um conjunto de capacidades que permitem ao homem fazer ou no caso se emocionar
da forma como se emociona
Por isso julgamos conveniente apreciar sucintamente em nosso
estudo algumas capacidades intelectuais que possam constituir a forma
como nos emocionamos ou mesmo que possam influenciar a mudanccedila
162
nas emoccedilotildees e a mudanccedila de uma emoccedilatildeo em outra Comeccedilaremos com
a percepccedilatildeo sensiacutevel iniacutecio que se justifica porque em Aristoacuteteles eacute com
ela que se inicia a possibilidade de conhecimento sobre o mundo147 e eacute
com ela que as emoccedilotildees parecem ter iniacutecio Seguiremos com breve
estudo da imaginaccedilatildeo considerada um elemento do pensamento
inexistente sem o corpo mas que sempre aparece associada agraves
descriccedilotildees diversas das emoccedilotildees que analisamos ateacute agora Apoacutes
mencionaremos tipos de pensamento e intelecto de certo modo
relacionados com a percepccedilatildeo e com a emoccedilatildeo Estudaremos ainda a
opiniatildeo ligada agraves emoccedilotildees abordada apenas de modo que nos ajude a
reforccedilar a defesa das propostas de nosso estudo A escolha das
capacidades mencionadas eacute devida ao fato de serem discutidas tanto na
EN quanto no DA assim como por aparecerem nos outros dois tratados
que servem de apoio agrave nossa inquiriccedilatildeo Todavia o estudo natildeo se
pretende exaustivo nem de caraacuteter conclusivo acerca da questatildeo mas
seraacute apresentado agrave medida que confirme nossas propostas a respeito da
racionalidade da emoccedilatildeo Comeccedilaremos portanto com a percepccedilatildeo
pois sem esta natildeo haacute imaginaccedilatildeo e sem estas duas provavelmente natildeo
haja pensamentos que igualmente podem estar de implicados na
emoccedilatildeo
2 b) Percepccedilatildeo
Nosso intento com essa pequena parte da pesquisa eacute entender o
papel da percepccedilatildeo na emoccedilatildeo com o apoio da EN eacute do DA A
interpretaccedilatildeo tradicional deste uacuteltimo tratado propotildee a percepccedilatildeo atraveacutes
dos oacutergatildeos da sensibilidade como iniacutecio do conhecimento sendo isto um
tipo de afecccedilatildeo (paacutethos) ou movimento que igualmente nos levaraacute a
imaginar e a nos emocionar
A EN natildeo nos propotildee explicitamente a percepccedilatildeo sensiacutevel como
ligada agrave maioria das emoccedilotildees mas ao lermos as descriccedilotildees das virtudes
morais particulares percebemos sua presenccedila pois se emocionar parece
depender ao menos inicialmente de um contato com o mundo do
agente e este contato acontece por via dos sentidos da percepccedilatildeo Aleacutem
disso quando na EN Aristoacuteteles diferencia a capacidade raciocinativa da
percepccedilatildeo sensiacutevel por aquela ser generalizante ao passo que esta outra
eacute particularizante (EN II 9 1109b21) aponta a discriminaccedilatildeo como
mateacuteria da percepccedilatildeo (EN III 5 1126b4-6) tida com as coisas que nos
147 Segundo Zingano (1996 p 17) essa eacute a interpretaccedilatildeo tradicional para as
teorias sobre a relaccedilatildeo entre sensaccedilatildeo e pensamento expostas no De anima
163
aparecem Quanto a esse assunto o tratado tambeacutem nos informa que
para um homem ser prudente eacute preciso saber dos casos particulares O
texto explica que por isso um jovem nunca seraacute prudente por natildeo ter
experiecircncias suficientes dos casos desse tipo pois a experiecircncia nesses
assuntos vem com o tempo
A prudecircncia por sua vez diz respeito ao que haacute de mais
particular jaacute que a accedilatildeo a ser efetuada eacute ela mesma particular (EN VI 9
1142a24-25) embora diga respeito tambeacutem aos universais captados a
partir de um sem nuacutemero de particularidades como vimos no Capiacutetulo
anterior Deste modo a prudecircncia eacute o conhecimento do que haacute de mais
individual remetendo-se reforccedilamos a algo de universal diferindo
assim da percepccedilatildeo sensiacutevel (EN VI 8 1141b14 et seq VI 9 1142a27)
eacute percepccedilatildeo praacutetica como propotildee Reeve (2013 p 13 e 23) Esse
particular natildeo eacute objeto da ciecircncia mas da percepccedilatildeo trazendo-a -
mesmo aquela percepccedilatildeo descrita no DA III - para o campo eacutetico
Aristoacuteteles entretanto adverte a percepccedilatildeo participante das coisas
eacuteticas natildeo lida com os sensiacuteveis proacuteprios mas com os sensiacuteveis de outro
tipo como aqueles que distinguem formas geomeacutetricas (EN VI 9
1142a26-30) Mesmo que haja um tipo especiacutefico de percepccedilatildeo
associado agrave prudecircncia pensamos que seja impossiacutevel a essa virtude
intelectual dispensar o contato com o particular que eacute objeto da
percepccedilatildeo sensiacutevel Por isso cabe-nos estudar essa capacidade
Se pensarmos que a percepccedilatildeo sensiacutevel natildeo estaacute totalmente isenta
do contato com a emoccedilatildeo ligada como estaacute a aparecircncias externas
devemos descrevecirc-la como algo que consiste em ser movido e afetado
pois parece haver opiniotildees que a afirmam como certa alteraccedilatildeo embora
certo tipo de percepccedilatildeo possa natildeo ter ligaccedilatildeo direta com a accedilatildeo de teor
moral A percepccedilatildeo sensiacutevel eacute explicada pelo De Anima de modo
condizente a esta proposta como um movimento partindo de fora da
alma (DA I 4 408a34-35 408b1-17) que todavia natildeo eacute capacidade
exclusiva do homem148 eacute proacutepria aos animais em geral Por
conseguinte Aristoacuteteles segue sua exposiccedilatildeo sobre o assunto com a
proposiccedilatildeo de que o diferencial entre um animal e os outros seres natildeo eacute
o movimento ou a mudanccedila de lugar mas a percepccedilatildeo sensiacutevel (DA II 2
148 Nos An Post Aristoacuteteles descreveu a despeito das diferenccedilas de propoacutesitos
das investigaccedilotildees nesse tratado a percepccedilatildeo como ldquoOra assim eacute a sensaccedilatildeo
uma faculdade discriminativa (portanto de conhecimento)natural a todos os
animaisrdquo (99b36)Traduccedilatildeo de Vallandro e Bornheim (1978) no
originalἐνούσης δ αἰσθήσεως τοῖς μὲν τῶν ζῴων ἐγγίγνεται μονὴ τοῦ
αἰσθήματος τοῖςδ οὐκἐγγίγνεται
164
413b1-9) Por exemplo vimos que em certos animais e plantas
fragmentados cada parte conserva sensaccedilatildeo e movimento local O
filoacutesofo entretanto explica que se assim acontece com a sensaccedilatildeo
igualmente aconteceraacute com a imaginaccedilatildeo e com o desejo porque onde
haacute sensaccedilatildeo haacute prazer e dor e onde estes existem tambeacutem existe
necessariamente o desejo (DA II 2 413b21-23) Com os sentidos
acontece algo parecido alguns animais os tecircm todos outros apenas
alguns outros soacute precisam dee tecircm o tato como propusemos no
Capiacutetulo I As capacidades da alma satildeo propostas entretanto em
sucessatildeo porque sem a alma nutritiva natildeo existe a capacidade
perceptiva portanto e de acordo com Kenny
As almas dos seres vivos podem ser ordenadas
hierarquicamente Plantas possuem uma alma
vegetativa ou nutritiva a qual consiste nos
poderes de crescimento nutriccedilatildeo e reproduccedilatildeo (2
4 415a22-26) Aleacutem disso os animais possuem os
poderes de percepccedilatildeo e locomoccedilatildeo eles possuem
uma alma sensiacutevel e todo animal tem pelo menos
uma capacidade sensitiva das quais o tato eacute a
mais universal O que quer que possa sentir
afinal pode sentir prazer e os animais portanto
que possuem sentidos tambeacutem tecircm desejos Os
humanos aleacutem disso tecircm o poder da razatildeo e do
pensamento (logiacutesmos kaigrave diaacutenoia) que podemos
chamar de alma racional (KENNY 2008 p 284)
Nos animais que possuem tato haacute igualmente a percepccedilatildeo do
alimento e todos os seres vivos se alimentam de coisas secas e uacutemidas
quentes e frias A percepccedilatildeo desses tipos de coisas acontece atraveacutes do
tato que soacute percebe acidentalmente outras qualidades sensiacuteveis
implicando que o sabor eacute seu objeto embora o cheiro e ruiacutedo natildeo
acrescentem nada ao alimento Assim para cada sentido haacute um plano
sensiacutevel que eacute seu objeto proacuteprio e nenhum dos outros sentidos subsiste
sem o tato sendo que este subsiste sem os demais jaacute que haacute animais
sem visatildeo audiccedilatildeo ou percepccedilatildeo do odor
Quanto a essa relaccedilatildeo entre as capacidades o filoacutesofo explica que entre os animais que possuem a capacidade perceptiva uns tecircm a
locomoccedilatildeo outros natildeo mas poucos satildeo os que tecircm caacutelculo e raciociacutenio
Naqueles em que subsiste o caacutelculo igualmente haacute as demais
capacidades mas dos que tecircm cada uma das outras capacidades nem
todos tecircm o caacutelculo Haacute animais que natildeo tecircm sequer a imaginaccedilatildeo e
165
igualmente aqueles que vivem exclusivamente por ela Tendo em vista
estas propostas vale lembrar que desde o primeiro momento de nosso
estudo aceitamos a possibilidade de natildeo haver muacuteltiplas e distintas
almas mas de a alma se constituir das capacidades que faculta ao corpo
animado Com isso a capacidade perceptiva nos seres humanos de
certo modo se liga agraves emoccedilotildees por sua dependecircncia do desiderativo
comprovando mais uma vez a unicidade da alma e as propostas iniciadas
em EN I 13
A essa ideia eacute preciso acrescentar que Aristoacuteteles entende o
perceber de dois modos haacute percepccedilatildeo em ato e em potecircncia e o objeto
de percepccedilatildeo sensiacutevel tambeacutem seraacute em potecircncia ou em atividade
Igualmente eacute preciso fazer distinccedilotildees quanto agrave potecircncia e agrave atualidade
porque como proposto a sensaccedilatildeo eacute a faculdade discriminadora e
dessas discriminaccedilotildees viratildeo os motivos para as emoccedilotildees que deveratildeo
passar pelo crivo da razatildeo praacutetica e de sua forma especiacutefica de
percepccedilatildeo a fim de que adquiram aspecto conveniente Conforme
Aristoacuteteles o ser que nasce jaacute tem o perceber como um discriminar e a
atividade de perceber eacute dita de modo similar agrave de inquirir A diferenccedila
entre as duas funccedilotildees eacute que as coisas que tecircm o poder eficiente da
atividade satildeo externas - satildeo visiacuteveis audiacuteveis e demais objetos da
percepccedilatildeo sensiacutevel - porque a atividade da percepccedilatildeo diz respeito agraves
particularidades enquanto o conhecimento diz respeito aos universais -
que de algum modo estatildeo na alma Assim a capacidade perceptiva eacute
potencialmente ldquotal como seu objeto o eacute jaacute em atualidade Portanto ela eacute
afetada enquanto natildeo semelhante mas uma vez que tenha sido afetada
ela se assemelha e torna-se tal como elerdquo (DA II 5 418a4-6)149 levando
esses dados da percepccedilatildeo para a apreciaccedilatildeo da razatildeo em suas diferentes
formas mas sob a forma praacutetica quando se tratar das accedilotildees
Por conseguinte podemos ressaltar o assunto dos objetos da
percepccedilatildeo sensiacutevel e da discriminaccedilatildeo O filoacutesofo observa
primeiramente que os sensiacuteveis devem ser tratados segundo cada um
dos sentidos ldquoO sensiacutevel se diz de trecircs modos dos quais dois afirmamos
que satildeo percebidos por si mesmos e um por acidente E dos dois um eacute
proacuteprio a cada sentido outro comum a todosrdquo (DA II 6 418a8-11)150
Sensiacutevel proacuteprio eacute aquilo que natildeo pode ser percebido por um outro
149 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original πάσχει μὲν
οὖν οὐχ ὅμοιον ὄν πεπονθὸς δ ὡμοίωται καὶ ἔστιν οἷον ἐκεῖνο 150Idem λέγεται δὲ τὸ αἰσθητὸν τριχῶς ὧν δύο μὲν καθ αὑτά φαμεν
αἰσθάνεσθαι τὸ δὲ ἓν κατὰ συμβεβηκός τῶν δὲ δυοῖν τὸ μὲν ἴδιόν ἐστιν
ἑκάστης αἰσθήσεως τὸ δὲ κοινὸν πασῶν
166
sentido que natildeo lhe corresponda - caso da visatildeo da cor da gustaccedilatildeo etc
Cada sentido destes eacute diferente e natildeo haacute engano sobre se eacute cor ou som
mas sobre o que eacute e onde estaacute o colorido ou o sonante Sensiacuteveis comuns
satildeo o movimento o repouso o nuacutemero a figura e a magnitude (DA II 6
418a17-20) porque satildeo percebidos por mais de um sentido ou por todos
os sentidos Por exemplo um certo movimento eacute percebido tanto pelo
tato quanto pela visatildeo Haacute ainda o sensiacutevel por acidente explicado pelo
famoso exemplo do branco que eacute filho de Diares (DA II 6 418a21-25)
Mas em relaccedilatildeo a toda percepccedilatildeo sensiacutevel eacute preciso compreender que o
sentido recebe as formas sensiacuteveis sem a mateacuteria e do mesmo modo o
sentido eacute afetado pela accedilatildeo do que tem cor sabor ou som O oacutergatildeo
sensorial primeiro eacute aquele em que subsiste essa potecircncia mas dos
sensiacuteveis comuns temos uma percepccedilatildeo comum sem um sentido ou um
oacutergatildeo proacuteprio diante do que Robinson explica
Mas Aristoacuteteles estaacute ciente de que muito mais estaacute
sendo dito quando afirmamos que percebemos as
coisas em particular afirmamos que natildeo vemos
apenas cores mas objetos coloridos que estatildeo em
movimento ou em repouso que tecircm determinado
tamanho e que satildeo unos ou muacuteltiplos em nuacutemero
Estes satildeo chamados ldquosensiacuteveis comunsrdquo
Aristoacuteteles afirma satildeo percebidos per accidens
pelos cinco sentidos que temos e portanto
podemos nos referir a eles como o ldquosentido
comumrdquo ou ldquoos sentidos tomados em comumrdquo
(ROBINSON 2010 p 239)
A percepccedilatildeo sensiacutevel deste modo eacute tida como a capacidade
discriminativa entre as coisas sensiacuteveis que nos aparecem podendo
mesmo levar a ajuizamento Informaccedilatildeo crucial a uma pesquisa eacutetica
sobre as emoccedilotildees pois mais adiante veremos a proposiccedilatildeo da relaccedilatildeo
entre o sentir emoccedilatildeo e o ajuizar quanto aos particulares que nos tocam
Vimos que a percepccedilatildeo sensiacutevel que nos forneceraacute os dados dos
julgamentos por sua vez eacute ou uma potecircncia (como a visatildeo) ou uma
atividade (como o ato de ver) e estaacute sempre presente
Aleacutem disso as percepccedilotildees sensiacuteveis satildeo sempre verdadeiras se haacute boas condiccedilotildees do oacutergatildeo perceptivo e de seu objeto Por exemplo
quando estamos em plena atividade da percepccedilatildeo natildeo dizemos que um
objeto perceptiacutevel aparenta ser um homem dizemos isso quando natildeo
percebemos claramente Nesse caso a percepccedilatildeo seria verdadeira ou
falsa porque (1) haacute percepccedilatildeo sensiacutevel dos objetos sensiacuteveis proacuteprios
167
sendo esta verdadeira ou contendo minimamente o falso (2) porque natildeo
haacute percepccedilatildeo tambeacutem do incidir essas coisas que satildeo acidentais nos
objetos perceptiacuteveis e nesse caso admite-se errar e (3) haacute igualmente a
percepccedilatildeo dos sensiacuteveis comuns que acompanham os incidentais onde
subsistem os sensiacuteveis proacuteprios Essas trecircs percepccedilotildees sensiacuteveis daratildeo as
diferenccedilas do movimento que ocorre pela atividade da percepccedilatildeo se ela
estaacute presente (1) eacute verdadeiro Os outros podem ser falsos estando ela
presente ou natildeo principalmente quando estiver longe do objeto
perceptiacutevel que eacute totalmente particular
Assim agraves afirmaccedilotildees do DA se coadunam as propostas da EN
sobre a percepccedilatildeo quando esta uacuteltima obra nos informa que cada sentido
vem a ato pela relaccedilatildeo com o objeto sensiacutevel que lhe eacute correspondente
Tal operaccedilatildeo se torna perfeita quando o sentido - em uma disposiccedilatildeo satilde -
tem sua relaccedilatildeo com o melhor objeto que lhe corresponde como
proposto haacute pouco Nessas condiccedilotildees o ato eacute o mais perfeito e o mais
agradaacutevel porque para cada um dos sentidos haacute um prazer
correspondente sendo que nesse caso o prazer eacute o acabamento do ato de
perceber e discriminar Se o sentido e os sensiacuteveis estiverem nas
condiccedilotildees propostas sempre haveraacute prazer e verdade porque seratildeo
postos diante do princiacutepio eficiente e do princiacutepio passivo aiacutesthēsis e
aisthetoacuten Estes quando juntos contemplam as exigecircncias de perfeiccedilatildeo
da capacidade perceptiva permitindo o ato perceptivo perfeito em mais
alto grau
Mas esse tipo de percepccedilatildeo eacute o mesmo mencionado em EN VI
como associado agrave prudecircncia O Livro sobre as virtudes intelectuais nos
informa que a prudecircncia (EN VI 9 1142a26-30) eacute mais percepccedilatildeo
deliberativa ou praacutetica que qualquer outra coisa no entanto vimos que o
tipo de percepccedilatildeo associado agrave phroacutenēsis eacute diferente do outro (EN VI 9
1142a28) A percepccedilatildeo deliberativa envolve um universal que soacute pode
ser atingido por deliberaccedilatildeo praacutetica Nessas condiccedilotildees conta a posse de
desejos e emoccedilotildees moderados jaacute que podem ser em excesso ou falta e
por isso apresentam viacutecios que distorcem a visatildeo tornando-a falsa
quanto ao iniacutecio das accedilotildees (EN VI 13 1144a34-36) Por isso a percepccedilatildeo
relacionada agrave prudecircncia eacute de certa forma diferente da percepccedilatildeo dos
sensiacuteveis proacuteprios mencionados em DA III
No caso da prudecircncia opera-se uma percepccedilatildeo como aquela das
figuras que eacute chamada por Reeve (2014 p 211 et seq) percepccedilatildeo
deliberativa Estaacute relacionada ao silogismo praacutetico sendo percepccedilatildeo do
que eacute uacuteltimo na demonstraccedilatildeo praacutetica donde seu caraacuteter particular A
EN III 5 1112b11-24 e a EE II 10 1226a37 nos informam que o
deliberador age como quem analisa um diagrama Um matemaacutetico
168
analisa materiais e formas para serem desenhadas compondo uma
figura Esta eacute a uacuteltima coisa alcanccedilada na anaacutelise mas a primeira na
construccedilatildeo do objeto analisado (DA III 10 433a16-17) Com isso cessa a
investigaccedilatildeo (EN VI 9 1142a29) mais ou menos do mesmo modo que
ocorre na deliberaccedilatildeo praacutetica do prudente quando a anaacutelise chega ao
que deve ser feito ou seja age
Assim a percepccedilatildeo deliberativa resulta de deliberaccedilatildeo e eacute um
tipo de percepccedilatildeo porque o universal que ela discerne eacute captado a partir
de ocorrecircncias particulares perceptiacuteveis como explica Reeve (2013 p
23 p 32) ligando-se assim agrave percepccedilatildeo geral Mesmo que a percepccedilatildeo
de tipo deliberativo soacute ocorra em animais dotados de capacidade
calculativa ela eacute um ato perceptivo porque discerne um particular
perceptiacutevel pela capacidade perceptiva conforme o que explicamos
acima e o que Reeve ressalta
Se o particular em questatildeo eacute um perceptiacutevel
proacuteprio (como poderia ser por exemplo se
estiveacutessemos deliberando sobre que cor de roupa
nos protege melhor do sol) esse ato eacute mais
estritamente o de um sentido proacuteprio (visatildeo) Se eacute
um perceptiacutevel comum (como o formato
triangular) eacute um ato de senso comum (REEVE
2014 p 213)
Ao contraacuterio da percepccedilatildeo do sensiacutevel proacuteprio que eacute sempre
correta ou tem pouca chance de errar a percepccedilatildeo deliberativa pode
cometer erro por exemplo se a deliberaccedilatildeo ligada a ela natildeo for
verdadeira ou for invaacutelida Por isso a prudecircncia eacute ao mesmo tempo
percepccedilatildeo e deliberativa (EN VI 8 1141b9-10) porque perceber
corretamente sensiacuteveis comuns depende frequentemente de caacutelculo
sendo similar agrave percepccedilatildeo deliberativa Especificamente quanto agrave accedilatildeo a
deliberaccedilatildeo praacutetica que a determina tem por alvo a melhor coisa para o
homem e que pode ser realizada por ele (EN VI 8 1141b13-14) Esse
tipo de deliberaccedilatildeo eacute precursora da imaginaccedilatildeo deliberativa e envolve
desejos e emoccedilotildees que possuem boa medida O que faz da percepccedilatildeo
deliberativa praacutetica eacute o fato de seu objeto envolver prazer e dor como
no caso do desejo pela felicidade
Deste modo reforccedilamos que a percepccedilatildeo sensiacutevel pode ser
entendida mesmo em diferentes tratados como iniacutecio do conhecimento
e como afecccedilatildeo tocada por objetos particulares externos que satildeo
proacuteprios ou comuns Conduz a prazeres variados e pode mesmo ter
169
relaccedilatildeo com a emoccedilatildeo ocasionada pelo agente externo particular ao qual
discrimina Difere contudo dos pensamentos para os quais encaminha
suas distinccedilotildees e que em sua forma praacutetica ocasionaraacute a percepccedilatildeo de
tipo deliberativa Por isso questionamos assim como fez Zingano que
tipo de alteraccedilatildeo eacute a percepccedilatildeo sensiacutevel se natildeo eacute qualquer alteraccedilatildeo
Aristoacuteteles natildeo apresenta resposta exata agrave questatildeo mas com apoio no
que foi estudado podemos aceitar a proposta de Zingano (1996 p 16)
Este estudioso entende que a percepccedilatildeo seria ldquouma certa afecccedilatildeo aquela
que a faculdade sensitiva sofre quando passa agrave atualidade e identifica-se
formalmente agrave coisa que do exterior causa sua atualizaccedilatildeo
constituindo-se nesta relaccedilatildeo um objeto de conhecimento (mais
precisamente um objeto sensiacutevel)rdquo o que ratifica a proposta de EN X 7
1177b26-30 e as propostas de nossa pesquisa
Ao homem natildeo eacute possiacutevel uma vida afastada do mundo e de seus
objetos pois mesmo para boa parte de suas reflexotildees seria necessaacuterio o
contato com aquilo que o cerca e sobre o que deve deliberar em casos
embaraccedilosos e por isso haacute a percepccedilatildeo deliberativa que distingue a
partir do que eacute proposto em um silogismo praacutetico levando agrave boa accedilatildeo A
percepccedilatildeo natildeo se identifica com o pensar sendo atividade de outra
natureza que pode operar com a percepccedilatildeo sensiacutevel para produzir o
conhecimento151 Assim como a percepccedilatildeo deliberativa natildeo se identifica
151Para Zingano (1996 p 17) contudo essa natildeo eacute a interpretaccedilatildeo tradicional
Esta propotildee da forma como explica o estudioso uma iacutentima afinidade da
atividade dos sentidos com aquela do intelecto Isso eacute correto pensa o autor
porque todo conhecimento humano por conceitos necessita da ligaccedilatildeo entre as
operaccedilotildees da razatildeo e da sensaccedilatildeo O problema existente com a proposta
tradicional pensa estaacute no modo como tal afinidade eacute concebida Para
Aristoacuteteles essas duas operaccedilotildees satildeo distintas porque o pensamento apreende
os universais enquanto a sensaccedilatildeo apreende os particulares A proposta
tradicional no entanto atribui agraves operaccedilotildees algo mais que a tarefa
discriminativa (e de conhecer) os objetos teriam um modo de operaccedilatildeo
semelhante Por isso entender como funciona uma implicaria entender o
funcionamento da outra Nesse caso tanto com intelecto quanto com a sensaccedilatildeo
o conhecimento viria da passagem da potencialidade agrave atualidade sendo que o
objeto proacuteprio a cada operaccedilatildeo lhe cederia certa determinaccedilatildeo Nessa
passividade as operaccedilotildees estariam intimamente ligadas Entatildeo tanto uma
quanto outra seria uma potecircncia que dependeria do seu objeto para ser
atualizada
Isso afastaria Aristoacuteteles da proposta das Ideias de Platatildeo (como na Rep)
porque natildeo precisaria duplicar o objeto do conhecimento ldquoAristoacuteteles duplica
as operaccedilotildees da alma mas natildeo a proacutepria coisa partindo da apreensatildeo das
170
com a deliberaccedilatildeo mas eacute parte constituinte desta Todavia entre os
tipos de percepccedilatildeo mencionados e os tipos de pensamento e razatildeo com
os quais tecircm contato temos outro elemento presente a imaginaccedilatildeo
portanto cabe-nos agora dissertar brevemente sobre a imaginaccedilatildeo e as
emoccedilotildees
2 c) Imaginaccedilatildeo
Na EN VII 7 1149a32 a imaginaccedilatildeo aparece ligada agrave raiva
(thymoacutes) contrapondo-se agraves propostas do filoacutesofo quanto ao apetite No
passo em questatildeo satildeo feitas observaccedilotildees quanto agrave capacidade desses
dois desejos ouvirem agrave razatildeo e agrave forma como as emoccedilotildees relacionadas a
eles se comportam devido a essa participaccedilatildeo no racional Estas paacutethē
estatildeo associadas agrave percepccedilatildeo e agraves aparecircncias explicando que a razatildeo ou
a imaginaccedilatildeo estaacute presente nas apreciaccedilotildees dos insultos que enraivecem
relacionando o homem que deve se emocionar com o mundo (Pol I 2
1253a25-28 EN X 7 1177b26-30) Assim a imaginaccedilatildeo eacute atrelada ao
impulso e agrave raiva que pode acompanhaacute-lo
O DA parece nos trazer informaccedilotildees adicionais sobre a questatildeo
pois Aristoacuteteles nos fala da imaginaccedilatildeo ao comparaacute-la e associaacute-la com
a percepccedilatildeo sensiacutevel e com tipos de pensamento ldquoPois a imaginaccedilatildeo eacute
algo diverso tanto da percepccedilatildeo sensiacutevel como do raciociacutenio mas a
imaginaccedilatildeo natildeo ocorre sem percepccedilatildeo sensiacutevel e tampouco sem a
imaginaccedilatildeo ocorrem suposiccedilotildeesrdquo (DA III 2 427b14-16)152 Tratamos da
imaginaccedilatildeo ao abordarmos as capacidades da razatildeo que podem estar
implicadas com as emoccedilotildees porque haacute vaacuterias menccedilotildees a ela quando o
assunto eacute o paacutethos especialmente em Rhet II sendo a proacutepria um
paacutethos ao mesmo tempo em que eacute considerada como ponto
intermediaacuterio entre o perceber e o pensar Teoria que justifica o estudo
qualidades sensiacuteveis o homem chega aos inteligiacuteveis natildeo tendo uma relaccedilatildeo
com outra coisa mas retrabalhando esta mesma apreensatildeo sensiacutevel sob a forma
agora de reproduccedilatildeo imaginativa no interior da qual a razatildeo apreende os
inteligiacuteveis Haacute dois objetos de conhecimento o sensiacutevel e o inteligiacutevel aos
quais correspondem (sic) uma soacute coisa na realidade um particular que eacute
composto de mateacuteria e formardquo (ZINGANO 1997 p 18) Isso culminaraacute na tese
do intelecto agente e passivo Com essas propostas Aristoacuteteles elimina as Ideias
e resta-lhe a imanecircncia segundo a qual os inteligiacuteveis somente satildeo separados na
alma 152 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original φαντασία γὰρ ἕτερον
καὶ αἰσθήσεως καὶ διανοίας αὕτη τε οὐ γίγνεται ἄνευ αἰσθήσεως καὶ ἄνευ
ταύτης οὐκ ἔστιν ὑπόληψις
171
das trecircs capacidades racionais em um trabalho acerca das emoccedilotildees por
serem diferentes e exercerem tarefas diferentes junto agrave emoccedilatildeo e agrave
possibilidade de bem viver a imaginaccedilatildeo natildeo eacute nem pensamento nem
suposiccedilatildeo mas eacute uma afecccedilatildeo que depende de noacutes e do nosso querer
Aristoacuteteles explica que quando temos imaginaccedilatildeo de coisas terriacuteveis ou
pavorosas por exemplo podemos permanecer como que a contemplar
uma pintura (DA III 3 427b16-24153) pois a imaginaccedilatildeo natildeo nos leva
imediatamente a compartilhar a emoccedilatildeo Assim
Se a imaginaccedilatildeo eacute aquilo segundo o que dizemos
que nos ocorre uma imagem ndash e natildeo no sentido
em que o dizemos por metaacutefora - seria ela entatildeo
alguma daquelas potecircncias ou disposiccedilotildees
segundo as quais discernimos ou expressamos o
verdadeiro ou o falso Deste tipo satildeo a percepccedilatildeo
sensiacutevel a opiniatildeo a ciecircncia e o intelecto (DA III
3 428a1-4)154
A imaginaccedilatildeo natildeo eacute percepccedilatildeo sensiacutevel porque como vimos
pouco acima a percepccedilatildeo eacute ou uma potecircncia como a visatildeo ou um ato
como o de ver mas algo pode aparecer (phaiacutenetai) para noacutes quando natildeo
subsiste (em sonho por exemplo) e a percepccedilatildeo sensiacutevel eacute sempre
presente mas a imaginaccedilatildeo natildeo As imagens nos aparecem mesmo com
os olhos fechados enquanto a percepccedilatildeo depende destes abertos para
que contate seus objetos Aleacutem disso diferem porque se a imaginaccedilatildeo
fosse o mesmo que a percepccedilatildeo em atividade subsistiria em todos os
153 Ver tambeacutem Nussbaum (2008 p 65 et seq) embora a filoacutesofa natildeo esteja
propriamente a explicar Aristoacuteteles trata da compaixatildeo para exemplificar sua
teoria e exemplifica o papel da imaginaccedilatildeo na emoccedilatildeo ldquoNa compaixatildeo nossa
habilidade para pintar vividamente o dilema de uma pessoa ajuda na formaccedilatildeo
das emoccedilotildees [] podemos sentir menos emoccedilatildeo por outros casos que natildeo
podemos similarmente imaginar com vivacidade embora eles possam ter uma
estrutura similar Aqui o que a imaginaccedilatildeo parece fazer eacute nos ajudar trazendo
um indiviacuteduo distante para a esfera de nossos objetivos e projetos humanizando
a pessoa e criando apossibilidade de ligaccedilatildeo A compaixatildeo ainda seraacute definida
pelo seu conteuacutedo de pensamento incluindo seu conteuacutedo eudaiacutemōniacutestico []
mas a imaginaccedilatildeo eacute uma ponte que permite ao outro se tornar um objeto de
nossa compaixatildeordquo (NUSSBAUM 2008 p 66 traduccedilatildeo nossa) 154 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis (2006) no original εἰ δή ἐστιν ἡ
φαντασία καθ ἣν λέγομεν φάντασμά τι ἡμῖν γίγνεσθαι καὶ μὴ εἴ τι κατὰ
μεταφορὰν λέγομεν ἆρα μία τις ἔστι τούτων δύναμις ἢ ἕξις καθ ἃς κρίνομεν
καὶ ἀληθεύομεν ἢ ψευδόμεθα τοιαῦται δ εἰσὶν αἴσθησις δόξα ἐπιστήμη νοῦς
172
animais mas ela natildeo parece existir por exemplo nas formigas Outra
diferenccedila eacute que as percepccedilotildees satildeo sempre verdadeiras mas a maioria das
imaginaccedilotildees eacute falsa pois existe imaginaccedilatildeo falsa e os animais natildeo
possuem convicccedilatildeo (piacutestis) mas muitos tecircm imaginaccedilatildeo aleacutem do mais
alguns animais a possuem mas natildeo possuem razatildeo
A imaginaccedilatildeo eacute descrita portanto como movimento decorrente
da atividade da percepccedilatildeo sensiacutevel (DA III 3 429a1-2) sendo a uacutenica a
apresentar os atributos mencionados Zingano (2008 p 203) explica a
imaginaccedilatildeo como ldquoa faculdade da alma que preserva o que eacute dado pela
sensaccedilatildeo sob a forma de imagens sobre as quais o intelecto vai operar
funcionando como uma ponte entre razatildeo e sensaccedilatildeordquo Estando
relacionada agrave percepccedilatildeo sensiacutevel que tem sua principal expressatildeo na
visatildeo forma de percepccedilatildeo sensiacutevel por excelecircncia o nome imaginaccedilatildeo
deriva de luz (tograve phocircs) pois sem luz natildeo eacute possiacutevel ver e sem ver natildeo eacute
possiacutevel imaginar sendo tal capacidade uma espeacutecie de criadora de
coisas que satildeo ldquovistasrdquo pelo pensamento Assim as imaginaccedilotildees
perduram e se assemelham agraves percepccedilotildees sensiacuteveis sendo que os
animais fazem muitas coisas de acordo com essas uns por natildeo terem
intelecto outros como os homens por terem o intelecto agraves vezes
obscurecido pelo sono ou pela doenccedila
O DA tambeacutem nos faz entender que haacute diferentes tipos de
imaginaccedilatildeo ldquoA imaginaccedilatildeo perceptiva como foi dito subsiste
igualmente nos outros animais mas a deliberativa apenas nos seres
capazes de calcular pois decidir por fazer isto ou aquilo de fato jaacute eacute
uma funccedilatildeo do caacutelculordquo (DA III 9 434a5-7)155 Essas propostas ligam-se
agravequelas de EN VI texto no qual estudamos a imaginaccedilatildeo deliberativa
como Reeve (2014 p 212) esclarece ldquoA percepccedilatildeo deliberativa eacute um
parente proacuteximo ndash no sentido de que eacute o precursor essencial ndash da
imaginaccedilatildeo calculativa ou deliberativardquo Como nos explica o DA
compartilhamos a imaginaccedilatildeo perceptiva com todos os animais mas a
imaginaccedilatildeo deliberativa eacute exclusiva dos seres dotados de caacutelculo porque
ela eacute questatildeo de deliberaccedilatildeo em prol do bem supremo Por isso esse tipo
de imaginaccedilatildeo capacita ou vem da capacidade de discernir uma entre
muitas aparecircncias a partir do silogismo praacutetico no caso da accedilatildeo
colaborando com o tipo de visatildeo proacuteprio agrave prudecircncia
Por conseguinte se a imaginaccedilatildeo perceptiva eacute um tipo de
movimento que soacute acontece nos seres que tecircm percepccedilatildeo sensiacutevel a
155 Idem ἡ μὲν οὖν αἰσθητικὴ φαντασία ὥσπερ εἴρηται καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις
ζῴοις ὑπάρχει ἡ δὲ βουλευτικὴ ἐν τοῖς λογιστικοῖς (πότερον γὰρ πράξει τόδε ἢ
τόδε λογισμοῦ ἤδη ἐστὶν ἔργον[])
173
respeito das coisas das quais se tem tal percepccedilatildeo sendo possiacutevel que
aconteccedila pela atividade da aiacutesthēsis eacute preciso que o movimento seja
semelhante a esta O ser que possui esse movimento poderaacute fazer e
sofrer muitas coisas em conformidade a ele confirmando que a
percepccedilatildeo sensiacutevel se relaciona com a emoccedilatildeo pois esta uacuteltima move
de certo modo Se natildeo haacute imaginaccedilatildeo sem percepccedilatildeo sensiacutevel tais
operaccedilotildees se encadeiam no esquema daquilo que de mais proacuteximo ao
racional pode tocar agrave emoccedilatildeo mas haacute ainda a imaginaccedilatildeo deliberativa
que se associa agraves emoccedilotildees moderadas agrave deliberaccedilatildeo praacutetica e agrave escolha
deliberada dando ao prudente um tipo de visatildeo das coisas
possivelmente corretas a fazer com isso favorecendo a boa medida Na
sequecircncia da cadeia de operaccedilotildees tratada encontramos certos tipos de
pensamento e igualmente de intelecto sendo preciso estudaacute-los A
imaginaccedilatildeo contudo viraacute a ser mencionada novamente no estudo acerca
da opiniatildeo momento oportuno pois o filoacutesofo potildee-nas em comparaccedilatildeo
tanto na EN quanto no DA
2 d) Pensamentos
As anaacutelises feitas a partir dos textos estudados nos permitiram
constatar que haacute tipos de pensamento associados agrave emoccedilatildeo desejos e
prazeres Um destes tipos de pensamento (diaacutenoia) quanto agraves coisas
relativas agrave moralidade parece estar presente especialmente nas virtudes
intelectuais agraves quais se chama desde EN I 13 dianoeacuteticas entendidas
como as melhores condiccedilotildees da capacidade racional designada por
Aristoacuteteles como diaacutenoia Em EN I 6 todavia a vida bem-sucedida eacute
associada agrave posse da razatildeo e ao exerciacutecio desse tipo de pensamento (EN I 7 1098a5) ligaccedilatildeo comprovada pelo caso da boa deliberaccedilatildeo sempre
relacionada ao raciociacutenio ou caacutelculo A boa deliberaccedilatildeo eacute a uma
investigaccedilatildeo sobre algo especiacutefico agraves coisas morais permite calcular
corretamente sendo um tipo de retidatildeo de pensamento Deste modo natildeo
haacute boa deliberaccedilatildeo sem caacutelculo consciente mesmo que ela ainda natildeo
seja uma asserccedilatildeo O homem que delibera bem calcula e investiga
alguma coisa levando o desejo reto a emoccedilatildeo adequada e a escolha
deliberada a buscarem um objeto determinado quando devido (EN VI 2
1139a21 et seq) A associaccedilatildeo desse tipo de pensamento com o bem se
emocionar foi evidenciada mais acima quando tratamos da necessidade
da virtude dianoeacutetica ou intelectual da prudecircncia para que haja virtude
moral e para a formaccedilatildeo da virtude completa
O De Anima tambeacutem associa esse tipo de terminologia ao paacutethos quando nos confirma por exemplo que determinados objetos como o
174
que eacute doce movem a percepccedilatildeo sensiacutevel ou o pensar (ou entender tegraven
noacuteesin III 2 426b31-427a1) mas o texto que mais aproxima o pensar e
as emoccedilotildees eacute DA III 7 Em tal Livro podemos ler o seguinte
A ciecircncia em atividade eacute idecircntica ao seu objeto
[] Sentir entatildeo eacute semelhante ao mero proferir e
pensar156 e quando eacute agradaacutevel ou doloroso como
o afirmado ou negado isso eacute perseguido ou
evitado e sentir prazer ou dor consiste em estar
em atividade com a meacutedia da capacidade
sensitiva em face do bem ou do mal como tais A
aversatildeo e o desejo satildeo o mesmo em atividade e a
capacidade de desejar e de evitar natildeo satildeo
diferentes nem entre si nem da capacidade de
sentir embora o ser seja diverso Para a alma
capaz de pensar as imagens subsistem como
sensaccedilotildees percebidas E quando se afirma algo
bom ou nega-se algo ruim evita-o ou persegue-o
Por isso a alma jamais pensa sem imagem (DA III
7 431a1-16)157
156 Robinson (2010 p 245) explica que traduzir noucircs em certos trechos do DA
como aquele que identifica pensar e perceber seria mais convenientemente
entendido se se traduzisse o termo por lsquoentendimentorsquo Isso porque o estudioso
concebe o noucircs nesses pontos como parte do processo de pensamento mas que
natildeo eacute todo o processo Assim aiacutesthēsis e noucircs seriam anaacutelogos por serem
ambos eventos tipos de impressotildees mas cada um a seu modo (Robinson 2010
p 244) Pensamento em nosso sentido seria diaacutenoiesthai que tambeacutem se
ligaria agrave aiacutesthēsis e ao julgamento 157 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis (2006) no original Τὸ δ αὐτό ἐστιν ἡ
κατ ἐνέργειαν ἐπιστήμη τῷ πρά-
γματι ἡ δὲ κατὰ δύναμιν χρόνῳ προτέρα ἐν τῷ ἑνί ὅλως δὲ οὐδὲ χρόνῳ ἔστι
γὰρ ἐξ ἐντελεχείᾳ ὄντος πάντα τὰ γιγνόμενα ndash φαίνεται δὲ τὸ μὲν αἰσθητὸν ἐκ
δυνάμει ὄντος τοῦ αἰσθητικοῦ ἐνεργείᾳ ποιοῦν οὐ γὰρ πάσχει οὐδ ἀλλοιοῦται
διὸ ἄλλο εἶδος τοῦτο κινήσεως ἡ γὰρ κίνησις τοῦ ἀτελοῦς ἐνέργεια ἡ δ ἁπλῶς
ἐνέργεια ἑτέρα ἡ τοῦ τετελεσμένου ndash τὸ μὲν οὖν αἰσθάνεσθαι ὅμοιον τῷ
φάναι μόνον καὶ νοεῖνὅταν δὲ ἡδὺ ἢ λυπηρόν οἷον καταφᾶσα ἢ ἀποφᾶσα
διώκει ἢ φεύγει καὶ ἔστι τὸ ἥδεσθαι καὶ λυπεῖσθαι τὸ ἐνεργεῖν τῇ αἰσθητικῇ
μεσότητι πρὸς τὸ ἀγαθὸν ἢ κακόν ᾗ τοιαῦτα καὶ ἡ φυγὴ δὲ καὶ ἡ ὄρεξις ταὐτό
ἡ κατ ἐνέργειαν καὶ οὐχ ἕτερον τὸ ὀρεκτικὸν καὶ τὸ φευκτικόν οὔτ ἀλλήλων
οὔτε τοῦ αἰσθητικοῦ ἀλλὰ τὸ εἶναι ἄλλο τῇ δὲ διανοητικῇ ψυχῇ τὰ
φαντάσματα οἷον αἰσθήματα ὑπάρχει ὅταν δὲ ἀγαθὸν ἢ κακὸν φήσῃ ἢ
ἀποφήσῃ φεύγει ἢ διώκει διὸ οὐδέποτε νοεῖ ἄνευ φαντάσματος ἡ ψυχή
175
Por conseguinte o que eacute capaz de pensar pensa formas em
imagens Nestas se define para quem pensa o que deve ser perseguido e
evitado e por isso mesmo que se ponha a percepccedilatildeo sensiacutevel agrave parte o
que pensa se move quando diante de imagens Em outro momento
quando as imagens (phantasiacuteai) e os pensamentos estatildeo na alma o
homem raciocina como se visse tais imagens Delibera sobre as coisas
que poderatildeo acontecer (ou ser) a partir das que estatildeo presentes nesse
tipo de imagens do pensamento ldquovendordquo nestas o agradaacutevel ou o penoso
evita-o ou persegue-o relacionando-se com o desejo Mesmo o
verdadeiro e o falso que satildeo desprovidos de accedilatildeo estatildeo no mesmo
gecircnero que o bom e o mau embora difiram pois um eacute em absoluto e
outro eacute relativo a algueacutem
Haacute ainda outro tipo de pensamento com significado variado
relacionado agraves emoccedilotildees a serem despertadas e se apresenta nas
sugestotildees do filoacutesofo para que o orador consiga emocionar seu puacuteblico
Se o medo eacute acompanhado de algum
pressentimento de que vamos sofrer algum mal
que nos aniquila eacute oacutebvio que aqueles que acham
que nunca lhes vai acontecer algo de mal natildeo tecircm
medo nem receiam as coisas as pessoas e os
momentos que na sua maneira de pensar natildeo
podem provocar medo Assim pois
necessariamente sentem medo os que pensam que
podem vir a sofrer algum mal e os que pensam
que podem ser afetados por pessoas coisas e
momentos (Rhet II 5 1382b29-34)158
A Eacutetica Nicomaqueia tambeacutem apresenta o verbo oicircomai nesse
sentido de um pensar incerto ou de um tipo de crenccedila associado agraves
posturas intemperantes e incontinentes (EN VII 11 1152a6) As pessoas
que estatildeo ou pensam estar em grande prosperidade acreditam que natildeo haacute
mal que possa lhes acontecer satildeo insolentes desdenhosas e atrevidas
por disporem de riquezas muitas amizades forccedila e poder As pessoas
que acreditam jaacute ter sofrido todo o tipo de desgraccedilas tambeacutem pensam
assim sendo frias quanto ao futuro ldquoPara que sintamos receio eacute preciso
158 Traduccedilatildeo de Alves Alberto Pena (2012) no original εἰ δή ἐστιν ὁ φόβος
μετὰ προσδοκίας τινὸς τοῦ πείσεσθαί τι φθαρτικὸν πάθος φανερὸν ὅτι οὐδεὶς
φοβεῖται τῶν οἰομένων μηδὲν ἂν παθεῖν οὐδὲ ταῦτα ἃ μὴ οἴονται ἂν παθεῖν
οὐδὲ τούτους ὑφ ὧν μὴ οἴονται οὐδὲ τότε ὅτε μὴ οἴονται ἀνάγκη τοίνυν
φοβεῖσθαι τοὺς οἰομένους τι παθεῖν ἄν καὶ τοὺς ὑπὸ τούτων καὶ ταῦτα καὶ τότε
176
que haja alguma esperanccedila de salvaccedilatildeo pela qual valha a pena lutar
Sinal disso eacute que o medo leva as pessoas a deliberar ao passo que
ningueacutem delibera sobre casos desesperadosrdquo (Rhet II 5 1383a5-8)159
Essa apresentaccedilatildeo natildeo acontece nas trageacutedias embora os poemas faccedilam
com que o espectador imagine tal situaccedilatildeo a acontecer com algueacutem que
conhece Esse tipo de imaginaccedilatildeo basta para que o organismo de algueacutem
na plateia se prepare para sentir o medo proposta confirmada pela Eacutetica
Nicomaqueia IV 6 estudo acerca da disposiccedilatildeo corajosa oposta ao
medo emoccedilatildeo que encara ameaccedilas externas como males Por isso
alguns definem o medo como expectaccedilatildeo do mal ocasionado
geralmente pela relaccedilatildeo entre pessoas na poacutelis
O vocaacutebulo em questatildeo eacute empregado para designar algo
semelhante ao pensar ou ao imaginar e opinar Conforme Chantraine
(1977 p 785) aparece no sentido de ldquoopinonrdquo (opiniatildeo) fazendo
oposiccedilatildeo a saphṑs eideacutenai ver claramente ter certeza De acordo com
Aldo Dinucci e Alfredo Julien (2014 p 36) em sua traduccedilatildeo do
Encheiriacutedion de Epicteto o verbo na voz passiva oicircomai quer dizer
ldquolsquopensarrsquo no sentido de lsquopresumirrsquo referindo-se a coisas incertas ndash daiacute
lsquopressentir crer estimarrsquordquo Esses empregos assim como os da Retoacuterica parecem conservar a ideia de que haacute um quecirc de racionalidade se natildeo de
pensamento exatamente no sentido que hoje usamos a palavra que deve
estar presente nas emoccedilotildees despertadas na plateia de um juacuteri por
exemplo abrindo espaccedilo para a atuaccedilatildeo da razatildeo praacutetica na forma de
deliberaccedilatildeo Por isso a Rhet nos apresenta tambeacutem um termo
conhecidamente eacutetico o verbo bouleuacuteō (deliberar) sugerindo que
quando um orador mexe com as emoccedilotildees do puacuteblico este eacute levado agrave
deliberaccedilatildeo sobre os assuntos em questatildeo reforccedilando nossa teoria
Os estados de espiacuterito em que se sente piedade por exemplo
parecem estar diretamente ligados agrave lembranccedila que pode despertar a
imaginaccedilatildeo mas que igualmente parecem estar relacionados no caso do
medo com certo pensamento mesmo que este seja um tipo de
imaginaccedilatildeo que sugira deliberaccedilatildeo Assim haacute certos tipos de
pensamento especialmente envolvidos com a emoccedilatildeo que seraacute
despertada lembrando que estas associam o homem de modo especial
a uma vida que ultrapassa a total contemplaccedilatildeo intelectual embora natildeo
inviabilizando esse tipo de atividade racional No entanto as emoccedilotildees
igualmente satildeo acompanhadas por outras capacidades (ou
159 Idem ἀλλὰ δεῖ τινα ἐλπίδα ὑπεῖναι σωτηρίας περὶ οὗ ἀγωνιῶσιν σημεῖον
δέ ὁ γὰρ φόβος βουλευτικοὺς ποιεῖ καίτοι οὐδεὶς βουλεύεται περὶ τῶν
ἀνελπίστων
177
(sub)capacidades) racionais quando estatildeo acompanhadas dos processos
da prudecircncia Uma destas capacidades eacute o intelecto em sua funccedilatildeo
praacutetica como poderemos entender com o breve estudo a seguir
2 e) Intelecto praacutetico160
Existe uma capacidade na alma humana o intelecto (noucircs) que
se desdobra em intelecto praacutetico e intelecto teoacuterico Em sua funccedilatildeo ou
uso praacutetico age apreendendo o que por uacuteltimo eacute apresentado na
deliberaccedilatildeo a premissa menor Depois dessa deliberaccedilatildeo eacute possiacutevel
escolher deliberadamente tendo em vista um termo meacutedio e quando isso
acontece se atinge o ponto inicial para a accedilatildeo e deixa-se de investigar
Assim o intelecto tem papel tanto nas demonstraccedilotildees em geral quanto
nas demonstraccedilotildees praacuteticas embora seja uma soacute capacidade Por isso
Reeve (2014 p 209) escreve que ldquoo entendimento teoacuterico envolvido em
demonstraccedilotildees teoacutericas eacute o mesmo estado que o entendimento praacutetico
envolvido nas demonstraccedilotildees praacuteticasrdquo o que confere mais uma vez
credibilidade a nossa proposta de interpretaccedilatildeo da alma O intelecto
praacutetico (noucircs praktikoacutes) quando associado ao desejo pede accedilatildeo (DA III 5 433a1-17) Deste modo tem relaccedilatildeo com a prudecircncia que tambeacutem se
relaciona com o desejo buscando para este seu melhor estado
Em razatildeo das propostas acima resumidas o Livro VI da EN (VI 2
1139a18 et seq) nos fala do noucircs como um dos candidatos a
determinante da accedilatildeo e da verdade praacuteticos relacionados agrave prāxis e ao
desejo correto pelo que eacute bom A passagem aponta a escolha deliberada
como origem da accedilatildeo moralmente boa e afirma que natildeo haacute escolha
deliberada sem intelecto ou pensamento (noucirc kaigrave diaacutenoias EN VI 2
1139a33-34) ligando-os aos bons desejos e accedilotildees Por isso
anteriormente entendemos e provamos que igualmente se ligam agraves
emoccedilotildees adequadas No Livro IX por sua vez o intelecto eacute tido como
natildeo dominante naqueles que satildeo intemperantes mas dominante nos
160 As observaccedilotildees sobre o noucircs que aqui apresentamos satildeo baseadas
exclusivamente nos tratamentos que os Livros VI e IX da EN e III do DA
dispensam ao assunto mas pensando em uma forma que possam colaborar com
a tese defendida Usaremos ldquointelectordquo para traduzir noucircs e ldquointelecto praacuteticordquo
para traduzir noucircs praktikoacutes poreacutem quando formos usar traduccedilotildees feitas por
outros autores ou citar cometaacuterios feitos por outros autores a respeito desses
dois termosconceitos optaremos por manter a escolha de traduccedilatildeo de cada
autor Portanto podem aparecer palavras como ldquoentendimentordquo e ldquorazatildeo
intuitivardquo referindo-se ao noucircs
178
temperantes propondo-o como o proacuteprio homem embora novamente
relacionando-o agrave emoccedilatildeo moderada (EN IX 8 1168b35) Nesse passo
afirma-se que pode haver o impeacuterio da emoccedilatildeo quando o homem natildeo eacute
bem conduzido ou seja quando razatildeo praacutetica e emoccedilatildeo estatildeo
dissociadas Neste ponto eacute descrita a capacidade racional anteriormente
mencionada que se relaciona ao intelecto praacutetico e provavelmente agrave
accedilatildeo moral Para que haja tal tipo de intelecto satildeo imprescindiacuteveis
percepccedilotildees sensiacuteveis e imaginaccedilatildeo buscar e evitar que tambeacutem teratildeo a
ver com desejos e emoccedilotildees mesmo que estejam relacionados agrave forma
mais fina de se emocionar jaacute passada pela educaccedilatildeo moral adequada e
da qual falaremos a seguir Nisso consiste a possibilidade mesmo de
ouvir e obedecer agrave razatildeo como um todo de abrir-se agrave prudecircncia e agrave
mediania nas emoccedilotildees
O DA (III 10 433a15-30) parece concordar com essas propostas
ao explicar que o desejo eacute a origem (archḗ) do intelecto praacutetico
(praktikoucirc noucirc) e que a uacuteltima coisa nesse caso eacute o ponto inicial da
accedilatildeo Para que isso aconteccedila eacute preciso conceber a felicidade ou uma
ideia de felicidade como toacutepico maacuteximo da deliberaccedilatildeo praacutetica Aqui se
entende por felicidade a atividade racional em conformidade com a
virtude mais completa Por isso um deliberador procura saber diante
das circunstacircncias nas quais se encontra o que eacute ou o que constitui a
felicidade A resposta viraacute quando tiver detectado um ponto meacutedio que
apresente a melhor accedilatildeo dentro daquelas circunstacircncias que o agente
tenha ciecircncia de tal accedilatildeo com base na percepccedilatildeo e que possa efetuar tal
accedilatildeo Esse silogismo eacute o foco do deliberar para alcanccedilar a tal felicidade
Por isso deve mostrar o termo meacutedio que a indique sendo o silogismo o
plano de accedilatildeo do deliberador que resultaraacute em accedilatildeo complexa
constituindo agir bem e felicidade Mas para que haja a tal accedilatildeo proposta
pelo silogismo eacute preciso acreditar praticamente ou seja afirmar com a
parte calculativa e exercitar a conclusatildeo proposta pelo silogismo (EN VI
8 1141b13-14 VI 2 1139a21-31)
Segundo Reeve (2014 p 203) satildeo a natureza e a nossa funccedilatildeo
que determinam a felicidade Esta eacute a premissa maior da demonstraccedilatildeo
praacutetica e eacute fixa e imutaacutevel por isso natildeo se delibera a seu respeito Esse
ponto fixo eacute essencial para que haja movimento (DA III 10 433b21-27)
e no silogismo praacutetico eacute a premissa maior universal que proporciona o
movimento por ser fixa ou uma verdade imutaacutevel (DA III 11 434a16-
21) Ao contraacuterio as opiniotildees ou suposiccedilotildees indicam como lidar com as
coisas que natildeo satildeo fixas tratando do que pode variar e ser verdadeiro ou
falso por isso devem ser adequadas agrave variabilidade das circunstacircncias
(EN VI 3 1139b17-18) O desejo correto nesse caso eacute o ponto fixo que
179
leva agrave accedilatildeo demandada pela premissa menor No caso de um desejo natildeo
educado como o apetite no incontinente age-se contra a natureza ou
seja contra a premissa maior que eacute apreendida pelo intelecto praacutetico
Contudo pode haver dois tipos de silogismo praacutetico um proposto pela
prudecircncia outro pela inteligecircncia (syacutenesis) Esta uacuteltima eacute discriminadora
e natildeo prescritiva como a primeira (EN VI 13 1143a8-10) e por isso o
silogismo da inteligecircncia natildeo termina em accedilatildeo diferentemente daquele
relacionado agrave prudecircncia
Ao tratar das virtudes intelectuais no Livro VI da EN Aristoacuteteles
apresenta-nos a inteligecircncia e a perspicaacutecia (hē syacutenesis kaigrave hē eusynesiacutea)
como diferentes de ciecircncia e opiniatildeo A inteligecircncia natildeo trata das coisas
eternas nem do que deve ser mas das coisas sobre as quais pode haver
duacutevida e nas quais cabe deliberar sendo relativa agraves coisas de ordem
praacutetica161 Trata portanto dos mesmos objetos que a prudecircncia embora
natildeo sejam idecircnticas A prudecircncia eacute diretiva - tem por fim determinar o
que devemos ou natildeo devemos fazer - e a inteligecircncia eacute apenas
judicativa Deste modo inteligecircncia e julgamento tecircm lugar em nossa
pesquisa por serem associados agrave capacidade da alma que rege o
conhecimento do contingente A inteligecircncia natildeo consiste nem em
possuir nem em adquirir a prudecircncia mas se aplica agrave faculdade da
opiniatildeo
[] quando se trata de emitir um julgamento sobre
o que uma outra pessoa enuncia nas mateacuterias que
vecircm da prudecircncia e por julgamento entendo um
julgamento fundado (reto belo) pois bem eacute o
mesmo que fundado (reto belo) E o emprego do
termo inteligecircncia para designar a qualidade das
pessoas perspicazes veio da inteligecircncia no
sentido de aprender pois tomamos
frequentemente aprender no sentido de
compreender (EN VI 11 1143a13-18)162
Entendemos que nossa proposta de interpretaccedilatildeo da capacidade
161 Reeve entende a syacutenesis como um aspecto da phroacutenēsis e natildeo exatamente
como uma virtude autocircnoma (REEVE 2013 p 3) 162 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original οὕτως ἐν τῷ χρῆσθαι τῇ δόξῃ ἐπὶ τὸ κρίνειν περὶ τούτων
περὶ ὧν ἡ φρόνησίς ἐστιν ἄλλου λέγοντος καὶ κρίνειν καλῶς τὸ γὰρ εὖ τῷ
καλῶς τὸ αὐτό καὶ ἐντεῦθεν ἐλήλυθε τοὔνομα ἡ σύνεσις καθ ἣν εὐσύνετοι ἐκ
τῆς ἐν τῷ μανθάνειν λέγομεν γὰρ τὸ μανθάνειν συνιέναι πολλάκις
180
de julgamento na EN eacute ratificada pelo esboccedilo de definiccedilatildeo da emoccedilatildeo
proposto pela Retoacuterica relacionando-a com sua capacidade de alterar os
juiacutezos ou discriminaccedilotildees (tagrave kriacuteseis) e a EN chama julgamento
(gnomḗ)163 a qualidade segundo a qual se considera que as pessoas tecircm
correta discriminaccedilatildeo daquilo que eacute equitaacutevel (syngnomonikoacuten) Prova
disto eacute o fato de normalmente se dizer que um homem equitaacutevel eacute
disposto favoravelmente ao outro Tricot (2012 nota 3 p 325) explica
que o equitaacutevel eacute uma qualidade que leva o homem a compreender as
razotildees de agir de uma outra pessoa sendo uma espeacutecie de ldquolargueza de
espiacuteritordquo levando mesmo agrave indulgecircncia e ao perdatildeo Eacute o pensar com [o
outro]164 fundamental como explica Nussbaum para que certas
emoccedilotildees como a piedade sejam sentidas pois para a autora esta emoccedilatildeo
ou sua falta dependem dos julgamentos sobre o florescimento que
seratildeo tatildeo confiaacuteveis quanto a moral geral do observador
Para sentir piedade a pessoa deve considerar o sofrimento do
outro como parte importante de seu proacuteprio esquema de objetivos e fins
deve pensar que a falta daquela pessoa afeta seu florescimento e deve
ver-se como tatildeo vulneraacutevel quanto o outro165 Nessa possibilidade de
colocar-se no lugar do outro parece haver um tipo de julgamento
envolvido ou um tipo de imaginaccedilatildeo chamada por Nussbaum (2008 p
319) de ldquojulgamento da possibilidade similarrdquo Para que isso aconteccedila
natildeo eacute estritamente necessaacuterio que a pessoa focalize a relaccedilatildeo da outra
consigo mesma mas imaginar-se em uma posiccedilatildeo de possibilidade
similar ajuda na medida da imaginaccedilatildeo eudaimoniacutestica da proacutepria
pessoa porque seres humanos tecircm dificuldade de relacionar os outros
consigo mesmos a natildeo ser por pensamentos com os quais jaacute estejam
preocupados Por conseguinte eacute possiacutevel entender melhor o que
Aristoacuteteles poderia ter pretendido chamar de julgamento ou
discriminaccedilatildeo e porque resolveu associaacute-lo com um traccedilo eacutetico cedido
agraves emoccedilotildees que descreveu e pensou como ligadas agraves relaccedilotildees humanas
teoria comprovada pelo o passo subsequente
[] atribuiacutemos julgamento inteligecircncia
prudecircncia e razatildeo intuitiva indiferentemente aos
mesmos indiviacuteduos quando dizemos que eles
163 Robinson (2010 p 245) observa que Aristoacuteteles usa os verbos kriacutenein e
gnoriacutezein para designar a discriminaccedilatildeo 164 LIDDELL amp SCOTT 1996 sv 165 Sobre a discussatildeo desse assunto feita por Nussbaum ver tambeacutem seu livro
Sem fins lucrativos
181
alcanccedilaram a idade do julgamento e da razatildeo e
que eles satildeo prudentes e inteligentes Pois todas
essas faculdades satildeo sobre as coisas uacuteltimas e
particulares e eacute sendo capaz de julgar as coisas
retornando ao domiacutenio do homem prudente que
somos inteligentes benevolentes e
favoravelmente dispostos [em relaccedilatildeo] aos outros
as accedilotildees equitaacuteveis sendo comuns a todas as
pessoas de bem em suas relaccedilotildees com os outros
Ora todas as accedilotildees que devemos completar
retornam agraves coisas particulares e uacuteltimas pois o
homem prudente deve conhecer os fatos
particulares e por seu lado a inteligecircncia e o
julgamento giram em torno das accedilotildees a completar
que satildeo as coisas uacuteltimas A razatildeo intuitiva se
aplica tambeacutem agraves coisas particulares em ambos os
sentidos jaacute que os termos primeiros bem como os
uacuteltimos satildeo do domiacutenio da razatildeo intuitiva e natildeo
da discursividade nas demonstraccedilotildees a razatildeo
intuitiva apreende os termos imutaacuteveis e
primeiros e nos raciociacutenios de ordem praacutetica ela
apreende o fato uacuteltimo e contingente quer dizer a
premissa menor jaacute que esses fatos satildeo do fim a
alcanccedilar os casos particulares servindo de ponto
de partida para alcanccedilar os universais Devemos
portanto ter uma percepccedilatildeo dos casos
particulares e essa percepccedilatildeo eacute a razatildeo intuitiva
(EN VI 12 1143a25-35 1143b1-5)166
166 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original Εἰσὶ δὲ πᾶσαι αἱ ἕξεις εὐλόγως εἰς ταὐτὸ τείνουσαι λέγομεν
γὰρ γνώμην καὶ σύνεσιν καὶ φρόνησιν καὶ νοῦν ἐπὶ τοὺς αὐτοὺς ἐπιφέροντες
γνώμην ἔχειν καὶ νοῦν ἤδη καὶ φρονίμους καὶ συνετούς πᾶσαι γὰρ αἱ δυνάμεις
αὗται τῶν ἐσχάτων εἰσὶ καὶ τῶν καθ ἕκαστον καὶ ἐν μὲν τῷ κριτικὸς εἶναι περὶ
ὧν ὁ φρόνιμος συνετὸς καὶ εὐγνώμων ἢ συγγνώμων τὰ γὰρ ἐπιεικῆ κοινὰ τῶν
ἀγαθῶν ἁπάντων ἐστὶν ἐν τῷ πρὸς ἄλλον ἔστι δὲ τῶν καθ ἕκαστα καὶ τῶν
ἐσχάτων ἅπαντα τὰ πρακτά καὶ γὰρ τὸν φρόνιμον δεῖ γινώσκειν αὐτά καὶ ἡ
σύνεσις καὶ ἡ γνώμη περὶ τὰ πρακτά ταῦτα δ ἔσχατα καὶ ὁ νοῦς τῶν ἐσχάτων
ἐπ ἀμφότερα καὶ γὰρ τῶν πρώτων ὅρων καὶ τῶν ἐσχάτων νοῦς ἐστὶ καὶ οὐ
λόγος καὶ ὁ μὲν κατὰ τὰς ἀποδείξεις τῶν ἀκινήτων ὅρων καὶ πρώτων ὁ δ ἐν
ταῖς πρακτικαῖς τοῦ ἐσχάτου καὶ ἐνδεχομένου καὶ τῆς ἑτέρας προτάσεωςἀρχαὶ
γὰρ τοῦ οὗ ἕνεκα αὗται ἐκ τῶν καθ ἕκαστα γὰρ τὰ καθόλου τούτων οὖν ἔχειν
δεῖ αἴσθησιν αὕτη δ ἐστὶ νοῦς
182
A prudecircncia eacute um tipo de boa administraccedilatildeo como vemos no
caso da temperanccedila cujo nome sophrosyacutene indica a conservaccedilatildeo da
prudecircncia sendo que esta conserva o julgamento ou discriminaccedilatildeo jaacute
que o prazer e a dor satildeo capazes de destruir juiacutezos acerca da accedilatildeo porque
os princiacutepios de nossas accedilotildees satildeo os fins aos quais tendem nossos atos
Eacute a faculdade discriminativa do julgamento contudo que parece estar
desde a origem mais proacutexima agraves emoccedilotildees jaacute que estas estatildeo
irremediavelmente relacionadas agrave sensibilidade que por sua vez nos
fornece as imagenspercepccedilotildees dentre as quais devemos efetuar a
discriminaccedilatildeo Com nossa pesquisa entendemos que a faculdade
judicativa ou discriminativa da razatildeo portanto tem grande importacircncia
no bem emocionar-se podendo mesmo favorecer que a prudecircncia se
achegue ao natildeo racional desiderativo e agraves emoccedilotildees
Diante disso o papel do julgamento e da inteligecircncia na
demonstraccedilatildeo praacutetica eacute restrito agraves coisas uacuteltimas e particulares porque
natildeo satildeo direcionadas ao que eacute imoacutevel ou imutaacutevel (EN VI 12 1143a4-5)
Isso acontece porque tecircm seu foco na accedilatildeo particular dentro de uma
circunstacircncia mas a premissa maior nessas demonstraccedilotildees tem que ser
imutaacutevel e imoacutevel como o soquete na articulaccedilatildeo bola-e-soquete
descrita no DA Contudo propusemos anteriormente que a prudecircncia de
certo modo tambeacutem se relaciona com o universal (a felicidade ou o
desejo por felicidade) que nesse caso eacute a premissa maior do silogismo
praacutetico diferenciando os silogismos por prudecircncia e por inteligecircncia
Vimos que os diferentes papeacuteis do intelecto nas demonstraccedilotildees
aparecerem descritos em EN VI 12 1143a35-b11 O intelecto tem por
ocupaccedilatildeo tanto os termos primaacuterios quanto as coisas que satildeo uacuteltimas
Nas demonstraccedilotildees cientiacuteficas o intelecto apreende um dos termos
primeiros e que natildeo muda Nas demonstraccedilotildees praacuteticas relaciona-se
com as coisas uacuteltimas e com as que podem ser de outro jeito bem como
com a premissa menor O intelecto praacutetico lida com tais coisas porque
elas satildeo o ponto de partida do que se tem em vista porque os universais
vecircm dos particulares Dos universais precisamos ter percepccedilatildeo (sendo
esta neste caso intelecto noucircs citado no fim do passo acima) Por isso o
intelecto eacute tanto princiacutepio quanto fim (archḗ e teacutelos) pois as
demonstraccedilotildees vecircm do intelecto e satildeo sobre o intelecto
O segundo papel do intelecto em uma demonstraccedilatildeo praacutetica eacute
apreender a premissa menor Como vimos acima esta eacute a uacuteltima coisa
alcanccedilada em uma deliberaccedilatildeo Pode ser de outra maneira porque
prescreve um tipo de accedilatildeo particular que pode variar conforme a
circunstacircncia e ao que cabe ao agente fazer ou natildeo O termo crucial
dessa premissa eacute o termo meacutedio que designa um tipo de accedilatildeo particular
183
que eacute apreendido pela percepccedilatildeo (EN VII 5 1147a25-26) e a percepccedilatildeo
envolve apreensatildeo ldquoconcomitante de universaisrdquo (REEVE 2014 p
210) A apreensatildeo do termo meacutedio por sua vez acontece devido agrave
apreensatildeo pelo intelecto de um misto das premissas maior e menor
quando se entende as duas premissas se entende a conclusatildeo Assim
Como a percepccedilatildeo do termo meacutedio (ou a accedilatildeo que
ele designa) deve ser mediada dessa maneira para
ser do tipo deliberativo ou determinador da accedilatildeo
relevante ela eacute um exerciacutecio tanto da percepccedilatildeo
como do entendimento Como a escolha
deliberativa portanto que eacute ldquoentendimento
envolvendo desejo ou desejo envolvendo
pensamentordquo (EN VI 2 1139b4-5) a percepccedilatildeo
deliberativa eacute entendimento envolvendo
pensamento (REEVE 2014 p 211)
Em retomada agrave questatildeo da relaccedilatildeo do silogismo empreendido
pelo prudente com particular e universal proposta no Capiacutetulo II e aqui
detalhada na medida em que contemplasse nossas discussotildees foi
possiacutevel compreender que por um lado a felicidade eacute o ponto inicial
por ser fim de toda accedilatildeo sendo universal Por outro lado o ponto inicial
satildeo as accedilotildees particulares que se direcionam ao alcance da felicidade
Portanto mesmo o intelecto em sua funccedilatildeo praacutetica necessita da
conjugaccedilatildeo entre corpo e alma para que atue de modo excelente pois os
particulares mesmo na deliberaccedilatildeo praacutetica se originam da percepccedilatildeo
sensiacutevel mais elementar que afeta o corpo e potildee a capacidade racional a
trabalhar em prol do que haacute de melhor para o homem Tal percepeccedilatildeo
tambeacutem pode estar pautada em um tipo de opiniatildeo relacionada agraves
premissas da deliberaccedilatildeo que natildeo se veem de todo desvencilhadas da
opiniatildeo geral ocasionada pelo contato com dados da sensibilidade como
veremos a seguir
2 f) Opiniatildeo
As premissas que devem ser captadas pelo intelecto satildeo
constituiacutedas por opiniotildees acerca do que eacute buscado e do que se deve fazer
ou deixar de fazer para alcanccedilar um objetivo Assim a opiniatildeo em EN
VI 10 1142b11-15 eacute apontada como um tipo de afirmaccedilatildeo baseada em
deliberaccedilatildeo Difere da prudecircncia que eacute virtude e fixa por ser um estado
e por poder ser esquecida Mas com auxiacutelio da virtude moral adquirida
por boa habituaccedilatildeo algueacutem pode ser ensinado a ter a opiniatildeo correta
184
sobre algo que levaraacute a uma deliberaccedilatildeo e possivelmente a uma accedilatildeo
(EN VII 9 1151a18-19) A correccedilatildeo daquilo que eacute afirmado pela
capacidade opinativa eacute importante assim como a retidatildeo do desejo mas
eacute preciso tambeacutem haver correccedilatildeo da deliberaccedilatildeo que apoia a opiniatildeo
Em EN VI ao comparar escolha deliberada e opiniatildeo Aristoacuteteles
nos daacute importantes traccedilos de ambas em especial da segunda A opiniatildeo
parece ter por alvo qualquer coisa inclusive o que eacute impossiacutevel e o que
natildeo estaacute em nosso poder Pode ser falsa ou verdadeira e natildeo eacute boa ou
maacute como eacute classificada a escolha deliberada Um homem tem tal ou tal
qualidade atribuiacuteda a si pelas escolhas que faz e natildeo por defender
determinada opiniatildeo embora escolha obter ou evitar mas natildeo opine
sobre esse tipo de coisa Algueacutem escolhe deliberadamente as coisas que
sabe serem boas mas a opiniatildeo eacute emitida igualmente acerca daquilo que
natildeo se sabe se eacute bom ou mau e natildeo parecem ser as mesmas pessoas
aquelas que deliberam bem e as que opinam bem porque mesmo quem
opina melhor pode escolher coisas que levam ao viacutecio A escolha
deliberada eacute diferente da opiniatildeo portanto por ser proposta como
capacidade do prudente que estaacute diretamente ligada agrave accedilatildeo avaliaacutevel
moralmente A prudecircncia eacute virtude da parte da alma capaz de opinar
porque a opiniatildeo tem relaccedilatildeo com o que pode ser de outro modo
todavia natildeo eacute simplesmente uma opiniatildeo acompanhada de regra Por
isso nos procedimentos de decisatildeo cabiacuteveis ao prudente a opiniatildeo tem
lugar antes da escolha deliberada (EE II 10 1226b9) Zingano (2008 p
171) esclarece isso do seguinte modo ldquoNo acircmbito do aristotelismo a
accedilatildeo necessariamente estaacute envolvida com as opiniotildees que o agente tem
se suspendecircssemos todas as nossas opiniotildees natildeo poderiacuteamos agirrdquo167
A opiniatildeo eacute mais bem explicada pelo De anima quando
comparada agrave imaginaccedilatildeo ldquoPois essa afecccedilatildeo depende de noacutes e somente
de noacutes e do nosso querer [] e ter opiniatildeo natildeo depende somente de noacutes
167Provavelmente por este motivo Aristoacuteteles quando trata da causa da
incontinecircncia tambeacutem emite sua opiniatildeo A premissa universal do silogismo
praacutetico empenhado pelo acraacutetico eacute uma opiniatildeo a outra premissa se relaciona
com os fatos particulares no campo dos quais a percepccedilatildeo manda Haacute pessoas
poreacutem que se mantecircm em sua opiniatildeo e que natildeo satildeo facilmente convencidas a
alterar a estas chamamos obstinadas (teimosas) Na contramatildeo haacute pessoas que
natildeo persistem em suas opiniotildees devido a uma causa estranha agrave incontinecircncia o
que implica que quem age por prazer nem sempre eacute intemperante incontinente
ou perverso Por conseguinte a opiniatildeo pode estar ligada a toda a cadeia de
relaccedilatildeo racional anteriormente mencionada e que se potildee em contato com o
desiderativo sendo forccediloso que admitamos seus contatos com a emoccedilatildeo
mesmo porque o termo aparece associado agrave emoccedilatildeo
185
pois haacute necessidade de que ela seja falsa ou verdadeirardquo (DA III 3
427b17-21)168 A opiniatildeo de que algo eacute terriacutevel pavoroso ou
encorajador leva imediatamente a certas emoccedilotildees diferentemente da
imaginaccedilatildeo (DA III 3 427b16-23) Isso implicaria que a opiniatildeo tem
papel mais efetivo que a imaginaccedilatildeo no provocar emoccedilotildees
Ao que tudo indica a resposta eacute positiva pois a opiniatildeo eacute
acompanhada de crenccedila a crenccedila eacute acompanhada do estar persuadido e
a persuasatildeo eacute acompanhada da razatildeo (DA III 3 428a18-24) Por
conseguinte e sendo que haacute accedilatildeo da opiniatildeo na emoccedilatildeo haacute certo
elemento racional no se emocionar ou haacute ao menos a comprovaccedilatildeo de
nossa proposta sobre a possibilidade de participaccedilatildeo do natildeo racional no
racional e vice-versa jaacute que ainda no DA (III 3 427b10) Aristoacuteteles
chega a definir a opiniatildeo como um tipo de pensar (noeicircn) que pode ser
correto ou incorreto de acordo com seu contato com a realidade
Propostas que satildeo reforccediladas tambeacutem como no caso da percepccedilatildeo
sensiacutevel por EN X 7 1177b26-30 trecho no qual o filoacutesofo destaca a
impossibilidade ou inviabilidade do homem viver totalmente para a
razatildeo porque esse tipo de existecircncia o livraria por completo de sua
humanidade Assim soacute existe opiniatildeo daquilo que haacute percepccedilatildeo
sensiacutevel mas haacute igualmente um tipo de opiniatildeo relacionada agrave percepccedilatildeo
deliberativa quando aparece em um silogismo praacutetico
Vimos que as deliberaccedilotildees praacuteticas satildeo expressas sob a forma de
silogismos praacuteticos que satildeo concluiacutedos com accedilotildees (EN VII 5 1147a25-
31) Nesse tipo de silogismo uma opiniatildeo eacute universal outra eacute particular
da parte da percepccedilatildeo Quando dessas duas premissas se gera uma
proposiccedilatildeo eacute preciso que a alma afirme a conclusatildeo obtida com o
silogismo Apoacutes age-se desde que natildeo haja impedimentos Deste modo
seja a opiniatildeo corriqueira ou aquela associada ao silogismo praacutetico ela
se configura sempre como um traccedilo de razatildeo que interfere na emoccedilatildeo
desde seu surgimento frente ao mundo ateacute seu aprimoramento pelos
processos da prudecircncia e da razatildeo praacutetica
Diante do que foi exposto podemos agora acatar a seguinte
proposta de Zingano a emoccedilatildeo natildeo eacute um bloco impermeaacutevel A maioria
das emoccedilotildees eacute um todo poroso permeaacutevel por certas formas da
racionalidade Seus poros podem dar lugar agraves sugestotildees da razatildeo que
estatildeo presentes realmente desde o iniacutecio com grande parte das paacutethē
Assim essa permeabilidade natildeo eacute exclusividade das emoccedilotildees traacutegicas
168 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original τοῦτο μὲν γὰρ τὸ
πάθος ἐφ ἡμῖν ἐστιν ὅταν βουλώμεθα [] δοξάζειν δ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἀνάγκη γὰρ
ἢ ψεύδεσθαι ἢ ἀληθεύειν
186
ou daquelas despertadas pelo discurso persuasivo embora
provavelmente seja nas descriccedilotildees destas que a relaccedilatildeo do emocional
com a razatildeo se faccedila mais visiacutevel Por isso na anaacutelise das virtudes
particulares e das emoccedilotildees a estas relacionadas sempre nos deparamos
com termos como ldquopensardquo ldquoimaginardquo ldquocrecircrdquo ldquotem opiniatildeordquo As
aparecircncias que tocam o agente e levam agraves crenccedilas que podem dar em
uma ou outra emoccedilatildeo precisam dos phainoacutemena (aparecircncias) e estes soacute
encontram o homem por meio das percepccedilotildees sensiacuteveis que estatildeo
relacionadas agrave opiniatildeo e agrave capacidade opinativa da razatildeo porque a
opiniatildeo eacute atrelada ao que pode ser diferente Portanto entendemos que
estas capacidades racionais ao menos em certa medida recobrem todas
as emoccedilotildees especialmente as que podem ser moderadas ou mudadas de
algum modo
Eacute certo contudo que a educaccedilatildeo moral proposta pelo filoacutesofo
cede mais importacircncia ao haacutebito que agrave forccedila da razatildeo mas natildeo se pode
esquecer que para ser realmente virtuoso para ser capaz de agir por si
mesmo de perceber por conta proacutepria o que eacute bom se munir de bons
desejos boas emoccedilotildees e desencadear a accedilatildeo correta a racionalidade
precisa estar presente ao menos sob a forma da phroacutenēsis que
desencadeia a bouacuteleusis e a proaiacuteresis A educaccedilatildeo que permitiraacute mudar
as emoccedilotildees ou mudar de emoccedilotildees natildeo pode se contentar portanto com
uma vida boa poreacutem conduzida por uma razatildeo que venha de fora
porque mesmo que tal vida seja boa natildeo eacute totalmente feliz O agente
precisa ter todas as virtudes intelectuais e morais agrave sua disposiccedilatildeo Eacute
preciso portanto que tenha a capacidade racional e a capacidade natildeo
racional em cooperaccedilatildeo em sua alma reforccedilando a proposta de EN I 13
para que manifeste aquilo que eacute propriamente humano e isso eacute possiacutevel
devido agraves caracteriacutesticas das capacidades que acabamos de descrever
Essa leitura favorece nossa interpretaccedilatildeo que ressalta o papel das
emoccedilotildees na vida moral colocando emoccedilotildees e razatildeo praacutetica juntas em
uma vida considerada feliz e natildeo subjugando as emoccedilotildees agrave forccedila da
razatildeo Todavia apresenta o problema da conciliaccedilatildeo entre razatildeo e
emoccedilatildeo Essa conciliaccedilatildeo se faz possiacutevel a partir de quando se
reconhece a impossibilidade de que mesmo os melhores dos homens
vivam isolados a contemplar ou que extirpem suas emoccedilotildees com o
auxiacutelio de algum tipo de razatildeo pois as emoccedilotildees satildeo presentes na
constituiccedilatildeo do sujeito moral Neste tecircm papel significativo tanto para o
caraacuteter quanto para o iniacutecio das accedilotildees jaacute a razatildeo praacutetica atua no interior
do sujeito moral Pode conduzi-lo melhor ao seu objetivo mas tambeacutem
frear ou redirecionar seus movimentos tornando-o um agente moderado
em suas emoccedilotildees Isso soacute acontece porque tal agente graccedilas agrave natureza
187
de sua alma tem a racionalidade na base de suas emoccedilotildees bem como
porque entendemos que um cidadatildeo eacute racional em suas accedilotildees e vida
quando apazigua suas capacidades aniacutemicas racionais e natildeo racionais
completando a funccedilatildeo propriamente humana e conferindo a
possibilidade educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua racionalidade
Mas como levar a cabo essa educaccedilatildeo Eacute nesse ponto que cabe nossa
exposiccedilatildeo acerca dos instrumentos que permitem as mudanccedilas nasdas
emoccedilotildees
3 O acordo entre a razatildeo e as emoccedilotildees a educaccedilatildeo moral e os
instrumentos de modificaccedilatildeo da emoccedilatildeo169
3 a) Educaccedilatildeo haacutebito e lei para a virtude
Depois de todo o proposto percebemos que a razatildeo praacutetica (e a
razatildeo como um todo jaacute que se trata de uma mesma capacidade) deve
entrar em acordo com o natildeo racional para que haja virtude ou seja para
que haja moderaccedilatildeo nas emoccedilotildees e felicidade170 Somente assim o
homem seraacute capaz de manifestar o que entendemos nesse estudo como
verdadeiramente humano a plenitude de sua alma em harmonia
Provavelmente uma soluccedilatildeo apontada pela Eacutetica Nicomaqueia para
nossa indagaccedilatildeo a respeito de como por emoccedilotildees e razatildeo praacutetica em
acordo esteja a ser indicada pelo passo II 2 1104b9-24 (cf ainda EN X
1 1172a19-24) que fala de um tipo especiacutefico de educaccedilatildeo com base
em proposta feita por Platatildeo171 e que provavelmente deva ser
empregado a fim da virtude O passo propotildee que as virtudes morais
estatildeo relacionadas com o prazer e o desejo Sendo possiacutevel educar-se ou
habituar-se a fim de se comprazer e desejar devidamente igualmente
deve ser possiacutevel educar e habituar as emoccedilotildees Do mesmo modo
podemos usar a explicaccedilatildeo de Aggio a respeito do modo como conciliar
razatildeo praacutetica e desejo como exemplo para entender o que propomos
ldquoAo que tudo indica a educaccedilatildeo moral parece ser condiccedilatildeo preacutevia
necessaacuteria para que razatildeo e desejo se harmonizem e para que a razatildeo
possa ser efetivamente causa coadjuvante (synaitiacutea) na constituiccedilatildeo do
169Lebrun entende que a possibilidade de regular as emoccedilotildees eacute a garantia de
poderem ser julgadas eticamente (2009 p 14-15) 170 Sorabji (2002 p 7) nos explica que para Aristoacuteteles as emoccedilotildees satildeo uacuteteis agrave
poacutelis desde que moderadas por permitirem catarse Por conseguinte Platatildeo
estava errado ao expulsar os poetas da sua cidade ideal 171Rep 410e-402a Leis 653a
188
fim da accedilatildeordquo (AGGIO 2017 no prelo) Pensamos que apoacutes a
explanaccedilatildeo subsequente poderemos defender algo semelhante para a
boa conduccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees
Pelo que a EN aponta vimos que o desejo por um fim deve
concordar com o escolher e o deliberar bem sobre os meios adequados
ao alcance do fim buscado e com isso pedir a accedilatildeo para que tal fim seja
alcanccedilado resultando na accedilatildeo virtuosa A interpretaccedilatildeo mais
comumente aceita propotildee que para Aristoacuteteles a parte desiderativa da
alma ainda que chamada irracional compartilharia da razatildeo e poderia
mesmo ter razatildeo (loacutegos eacutekhein) praacutetica pois a ouve mesmo natildeo
raciocinando as coisas fora de si (EN I 13 1102b29 1103a3) Por
exemplo ldquoO efeito geral eacute fazer a bouacutelēsis distinta da razatildeo embora
ainda relacionada a elardquo (SORABJI 2002 p 322 traduccedilatildeo nossa)
Relaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel para o homem prudente A obra de um
homem soacute eacute perfeita (teacuteleios) quando estaacute em acordo com a totalidade
da razatildeo mas especialmente quando em acordo com a prudecircncia e com
a virtude moral pois a prudecircncia torna o propoacutesito humano reto e
culmina na boa conduta e no desejo reto Conforme a explicaccedilatildeo de
Aggio
Para que o desejo se torne reto i e para que ele
seja conforme a razatildeo Aristoacuteteles nos diz
sucintamente que ele deve ser educado a ldquoouvi-lardquo
e a ldquoobedececirc-lardquo Dizer isso significa pressupor
que o desejo natildeo nasce reto e que o fim natildeo eacute
naturalmente um bom fim mas que ao contraacuterio
deve ser constituiacutedo dessa forma Se fosse
naturalmente bom natildeo haveria por que educaacute-lo
ou seja natildeo haveria motivo eacutetico para tanto nem
uma razatildeo que fosse capaz de persuadir a parte
desiderativa Tampouco poderia haver educaccedilatildeo
do desejo se a parte desiderativa natildeo fosse
naturalmente educaacutevel i e constituiacuteda por
natureza para obedecer agrave razatildeo (AGGIO 2017
no prelo)
Essa possibilidade de educar o desejo eacute igualmente a
possibilidade de educar a emoccedilatildeo pois a emoccedilatildeo eacute da alccedilada do
desiderativo assim como os trecircs tipos de desejo que lhe correspondem e
como as virtudes morais que potildeem o fim e que satildeo possiacuteveis devido agrave
habituaccedilatildeo ao que eacute correto Ao habituar corretamente os desejos
igualmente seratildeo corretamente habituadas as emoccedilotildees que lhes
189
acompanham Tal educaccedilatildeo eacute demasiado importante o que percebemos
por interpretaccedilotildees como as de Zingano (2008 p 24) que escreve ldquoas
emoccedilotildees tecircm que estar previamente educadas moralmente para que a
razatildeo possa acompanhaacute-las e lhes dar a reta direccedilatildeordquo Poreacutem ainda
devemos fornecer melhor explicaccedilatildeo para a possibilidade de moderar e
alterar as emoccedilotildees a forma e a possibilidade de alterar o modo como
sentimos e o que sentimos mudanccedilas operadas pela educaccedilatildeo Essa
explicaccedilatildeo eacute necessaacuteria bem observa o mesmo estudioso como vimos
anteriormente porque mesmo que a razatildeo praacutetica interfira nas emoccedilotildees
nada garante que consiga modificaacute-las Eacute preciso conseguir uma
precedecircncia e prevalecircncia da accedilatildeo (bem conduzida pelo haacutebito) em
relaccedilatildeo agrave disposiccedilatildeo moral que se fixaraacute em virtude Mas o que eacute
preciso fazer para que tal educaccedilatildeo aconteccedila
Aristoacuteteles no Livro X da EN comeccedila a responder tais perguntas
observando que a maioria natildeo faz o que deve por ser nobre mas por
medo da puniccedilatildeo Isso acontece porque ldquovivendo sob o impeacuterio da
paixatildeo os homens perseguem suas proacuteprias satisfaccedilotildees e os meios de
realizaacute-las e evitam as dores que a isso se opotildeem e eles natildeo tecircm
nenhuma ideia do que eacute nobre e verdadeiramente agradaacutevel por natildeo o
terem jamais experimentadordquo (EN X 10 1179b13-16)172 Assim sendo
haveria algum argumento capaz de persuadir essas pessoas Aristoacuteteles
observa que se natildeo eacute impossiacutevel eacute ao menos difiacutecil extirpar por meio do
raciociacutenio os haacutebitos inveterados no caraacuteter Pensa ainda que devemos
nos considerar felizes se dispomos de todos os meios para nos tornarmos
honestos e com isso conseguirmos participar de algum modo da virtude
Mas como isso seria possiacutevel Por natureza por haacutebito ou pelo ensino
Natildeo seria por natureza jaacute que os dons naturais natildeo dependem de noacutes
como explica o passo seguinte
O raciociacutenio e o ensino por sua vez natildeo satildeo
temo igualmente poderosos em todos os homens
mas eacute preciso cultivar antes ao menos os haacutebitos
a alma do ouvinte em vista de lhe fazer estimar
ou abominar o que deve secirc-lo como por uma terra
chamada a fazer frutificar a semente Pois o
homem que vive sob o impeacuterio da paixatildeo natildeo
saberaacute escutar um raciociacutenio que busca desviaacute-lo
172 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original πάθει γὰρ ζῶντες τὰς οἰκείας ἡδονὰς διώκουσι καὶ δι ὧν
αὗται ἔσονται φεύγουσι δὲ τὰς ἀντικειμένας λύπας τοῦ δὲ καλοῦ καὶ ὡς
ἀληθῶς ἡδέος οὐδ ἔννοιαν ἔχουσιν ἄγευστοι ὄντες
190
de seu viacutecio e nem mesmo o compreenderaacute Mas
o homem que estaacute nesse estado como eacute possiacutevel
fazecirc-lo alterar de sentimento (EN X 10 1179b23-
28)173
De um modo geral parece que o raciociacutenio que cede agrave paixatildeo natildeo
o faz por constrangimento assim para que um homem seja bom deve
haver previamente uma disposiccedilatildeo do caraacuteter que seja apropriada agrave
virtude que estime o que eacute nobre e que despreze o que eacute vergonhoso
Mesmo que tais disposiccedilotildees recebam uma educaccedilatildeo de acordo com a
retidatildeo desde a juventude a tarefa se torna ainda mais difiacutecil se natildeo se
for educado sob leis justas porque viver corajosamente natildeo eacute agradaacutevel
para a maioria das pessoas especialmente para os jovens Por isso eacute
conveniente estipular pelas leis o modo de educar e o modo de viver
que deixaraacute de ser doloroso com o haacutebito Natildeo basta todavia uma
educaccedilatildeo e cuidados desde a juventude eacute preciso que os cidadatildeos ainda
quando adultos sejam capazes de praticar as coisas aprendidas e faccedilam
delas haacutebitos A habituaccedilatildeo eacute necessaacuteria desde a infacircncia desde os
ensinamentos apresentados no acircmbito domeacutestico mas as leis seratildeo
necessaacuterias na idade adulta e por toda a vida porque a maioria obedece
mais agrave necessidade que agrave razatildeo e mais agrave puniccedilatildeo que ao sentido do bem
Do mesmo modo caso se pretenda que um homem seja bom este
deve receber uma boa educaccedilatildeo e os haacutebitos do homem de bem aleacutem de
se ocupar com coisas honestas natildeo fazendo o que eacute vil nem voluntaacuteria
nem involuntariamente Se aqueles que natildeo alcanccedilam a plena virtude soacute
podem agir bem em uma vida submissa agrave regra inteligente e perfeita
conseguida agrave forccedila Aristoacuteteles entende que ao menos no iniacutecio da
educaccedilatildeo a autoridade eacute necessaacuteria A autoridade paterna contudo natildeo
seraacute suficiente por natildeo possuir nem a forccedila nem o poder corretivo por
isso a lei que tem poder de obrigar eacute uma regra que emana de certa
prudecircncia e a inteligecircncia deve poder fazecirc-lo Se o homem detesta
aquilo que faz oposiccedilatildeo aos seus impulsos a lei natildeo deve estar a cargo
da pessoa mas prescrever o que eacute honesto dispensando o agente de se
tornar quando natildeo for possiacutevel prudente ldquoA melhor soluccedilatildeo eacute
portanto se entregar agrave justa solicitude da autoridade puacuteblica e ser capaz
173 Idem ὁ δὲ λόγος καὶ ἡ διδαχὴ μή ποτ οὐκ ἐν ἅπασιν ἰσχύει ἀλλὰ δεῖ
προδιειργάσθαι τοῖς ἔθεσι τὴν τοῦ ἀκροατοῦ ψυχὴν πρὸς τὸ καλῶς χαίρειν καὶ
μισεῖν ὥσπερ γῆν τὴν θρέψουσαν τὸ σπέρμα οὐ γὰρ ἂν ἀκούσειε λόγου
ἀποτρέποντος οὐδ αὖ συνείη ὁ κατὰ πάθος ζῶν τὸν δ οὕτως ἔχοντα πῶς οἷόν
τε μεταπεῖσαι
191
de fazecirc-lordquo (EN X 10 1180a29-31)174 Caso natildeo haja o interesse da
autoridade puacuteblica nesses assuntos pensa-se que o melhor eacute que cada
indiviacuteduo deva propor a seus filhos e amigos uma vida virtuosa ou ao
menos tentar fazer com que tenham vontade viver virtuosamente
Com isso Aristoacuteteles parece pensar que um patriarca conseguiraacute
cumprir sua tarefa educadora se tiver um espiacuterito legislador Se a
educaccedilatildeo puacuteblica eacute exercida em meio agraves leis e se somente boas leis
produzem uma boa educaccedilatildeo igualmente em casa deve haver boas
regras Se tais leis satildeo escritas ou natildeo natildeo importa O que importa eacute que
sejam capazes de fornecer a educaccedilatildeo a uma soacute pessoa ou a um grupo
Na cidade satildeo as disposiccedilotildees legais e os costumes que tecircm a forccedila para
sancionar mas nas famiacutelias o pai e os usos privados devem ter tal poder
sendo que o poder coercitivo deve ser mais forte nesse acircmbito porque
haacute laccedilos afetivos que unem pai e filho Isso deve ser aproveitado pois
nas crianccedilas existe uma afecccedilatildeo e uma docilidade naturais Nesse ponto
a educaccedilatildeo individual eacute superior agrave puacuteblica pois sabe o que eacute melhor
para o indiviacuteduo a ser educado ldquoJulgaremos entatildeo que eacute tida uma conta
mais exata dos particulares individuais quando se lida com a educaccedilatildeo
privada cada sujeito encontrando entatildeo mais facilmente o que
corresponde agraves suas necessidadesrdquo (EN X 10 1180b11-12) Os cuidados
dispensados ao indiviacuteduo seratildeo no entanto mais bem dados por algueacutem
que conheccedila do universal que saiba de um modo geral o que conveacutem
aos que se encontram em formaccedilatildeo A esse respeito Aristoacuteteles escreve
Eacute provaacutevel portanto que aquele que deseja por
meio da disciplina educativa tornar os homens
melhores quer eles sejam em grande nuacutemero
quer em pequeno nuacutemero deve se esforccedilar para
tornar-se a si mesmo capaz de legislar se eacute pelas
leis que noacutes podemos nos tornar bons colocar de
fato a um indiviacuteduo qualquer que seja aquilo que
propomos a vosso cuidado na disposiccedilatildeo moral
conveniente natildeo estaacute ao alcance de qualquer um
mas se essa tarefa vem a algueacutem eacute seguramente
ao homem que possui o conhecimento cientiacutefico
como eacute aplicaacutevel para a medicina e para as outras
artes que fazem apelo a alguma solicitude e agrave
174 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original κράτιστον μὲν οὖν τὸ γίνεσθαι κοινὴν ἐπιμέλειαν καὶ ὀρθὴν
καὶ δρᾶν αὐτὸ δύνασθαι
192
prudecircncia (EN X 10 1180b23-28)175
A analogia meacutedica nos faz entender melhor por que a educaccedilatildeo
proposta eacute adequada agrave emoccedilatildeo a medicina grega de linha hipocraacutetica
bem conhecida por Aristoacuteteles era questatildeo de equiliacutebrio Por esses
motivos pensamos que o mesmo valha para a emoccedilatildeo sendo
acompanhada de prazer e dor e tendo a ver com os desejos deveraacute
igualmente poder receber certa educaccedilatildeo para equilibrar-se com a razatildeo
praacutetica Tal educaccedilatildeo emocional por sua vez viraacute com o auxiacutelio da
melhor forma da capacidade calculativa da alma a prudecircncia e de seus
recursos a saber a boa deliberaccedilatildeo e a escolha deliberada que
concorreratildeo agrave boa accedilatildeo e agrave melhor forma que a vida humana possa
alcanccedilar Por isso Besnier propocircs (2008 p 91) que a formaccedilatildeo eacutetica
poderia ser entendida como uma ldquoarte da paixatildeordquo - embora lsquoartersquo natildeo
pareccedila ser termo empregado pelo comentador no mesmo sentido que
teacutechnē eacute usado por Aristoacuteteles - sendo oposta ao viver segundo a
emoccedilatildeo traccedilo dos jovens e dos incompletamente educados Sobre isso
Besnier escreveu
Para Aristoacuteteles quem vive segundo as paixotildees
(no niacutevel das paixotildees) vive certamente sem arte
(sem a arte da felicidade) para a qual lhe falta a
disposiccedilatildeo) o vicioso e o virtuoso tecircm essa
capacidade o segundo como arte verdadeira o
primeiro conforme uma contra-arte [] que natildeo o
tornaraacute feliz mas ao menos teraacute a vantagem de lhe
proporcionar um percurso de vida coerente Um
torna sua vida coerente pela busca da mediania o
outro pela de um extremo (em excesso ou
deficiecircncia) (BESNIER 2008 p 92)
O haacutebito agrave virtude moral proporcionado pelas regras corretas - da
razatildeo da casa da poacutelis - favorece a forma adequada da emoccedilatildeo E para
responder a pergunta que haviacuteamos levantado em um capiacutetulo anterior
acerca da diferenccedila entre haacutebito e ensino jaacute que ao longo deste toacutepico
175 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot
(2012) no original τάχα δὲ καὶ τῷ βουλομένῳ δι ἐπιμελείας βελτίους ποιεῖν
εἴτε πολλοὺς εἴτ ὀλίγους νομοθετικῷ πειρατέον γενέσθαι εἰ διὰ νόμων ἀγαθοὶ
γενοίμεθ ἄν ὅντινα γὰρ οὖν καὶ τὸν προτεθέντα διαθεῖναι καλῶς οὐκ ἔστι τοῦ
τυχόντος ἀλλ εἴπερ τινός τοῦ εἰδότος ὥσπερ ἐπ ἰατρικῆς καὶ τῶν λοιπῶν ὧν
ἔστιν ἐπιμέλειά τις καὶ φρόνησις
193
falamos dos dois podemos acatar a proposta de Irwin (1978 p 568) O
estudioso entende ensino como aquele tipo de educaccedilatildeo apto a
desenvolver as virtudes intelectuais tatildeo necessaacuterias agrave virtude moral O
ensino natildeo determina os fins buscados por um homem que devem ser
determinados pela virtude moral que eacute adquirida por meio de treino ou
seja do haacutebito Ambos como observa Zingano exigem tempo e
experiecircncia constituindo aquilo que parece ser a educaccedilatildeo ideal para a
vida moralmente boa A habituaccedilatildeo moral sozinha seria como na
proposta de Irwin (1975 p 576-577) uma educaccedilatildeo incompleta porque
natildeo produziria virtude de caraacuteter Por conseguinte embora Irwin
entenda que Aristoacuteteles natildeo o diga pensamos ter deixado claro ao longo
de nosso estudo que o filoacutesofo entende que a virtude moral requer o
envolvimento de ambas as capacidades da alma em diversas de suas
(sub)capacidades para fazer do homem pleno Quando o filoacutesofo exige
que a virtude completa requeira sabedoria exige ao mesmo tempo que
haja cooperaccedilatildeo entre as duas capacidades da alma ao menos sob a
forma de um alinhamento entre percepccedilotildees imaginaccedilotildees pensamento
intelecto opiniotildees juiacutezos desejos prazeres e emoccedilotildees Por conseguinte
algo mais que uma accedilatildeo virtuosa irrefletida (palavras de Irwin) eacute
necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um bom caraacuteter
O tipo de educaccedilatildeo proposto ao fim e ao longo da EN permitiraacute
ao cidadatildeo mais que deliberar corretamente e escolher deliberadamente
por auxiacutelio de uma virtude que lhe eacute alheia Permitiraacute fazer tais caacutelculos
e ter tais preferecircncias por si mesmo graccedilas agrave sua proacutepria prudecircncia que
o levaraacute aos melhores desejos e a por-se os bons fins Isso tudo garantiraacute
a emoccedilatildeo moderada e ajustada na escolha que levaraacute agrave boa accedilatildeo e agrave vida
feliz peculiares ao homem ldquoNo homem bem-educado o paacutethos natildeo eacute
uma forccedila que colocaraacute permanentes obstaacuteculos agrave alma razoaacutevel ele estaacute
a serviccedilo do loacutegos e em consonacircncia com elerdquo (LEBRUN 2009 p 16)
Para tanto poacutelis e poliacutetēs (cidadatildeo) contam com auxiliares na mudanccedila
e adequaccedilatildeo emocional as artes (teacutechnai) que facilitam o trabalho de
habituaccedilatildeo conforme a razatildeo Vejamos portanto de que modo a arte
poeacutetica e arte retoacuterica podem colaborar com a educaccedilatildeo proposta para
mudanccedila dasnas emoccedilotildees para que harmonizem com a solicitaccedilatildeo
racional e como tal mudanccedila pode ser apreciada eticamente
3 b) A retoacuterica como instrumento de mudanccedila nas emoccedilotildees
194
Na Retoacuterica tambeacutem podemos ler sobre os perigos que
determinadas emoccedilotildees (ou emoccedilotildees desmesuradas) representam agrave vida
poliacutetica Aristoacuteteles afirma que o ldquoataque verbal a compaixatildeo a ira e
outras paixotildees da alma semelhantes a estas natildeo afetam o assunto mas
sim o juizrdquo (Rhet 1354a16-18)176 Afirma tambeacutem que determinadas
emoccedilotildees natildeo devem ser suscitadas em certos lugares caso da ira do
oacutedio e da piedade que natildeo devem estar presentes no areoacutepago porque
pervertem o juiz (Rhet I 1 1354a24-25) ldquoNa sua apreciaccedilatildeo dos fatos
intervecircm muitas vezes a amizade a hostilidade e o interesse pessoal
com a consequecircncia de natildeo mais conseguirem discernir a verdade com
exatidatildeo e de seu juiacutezo ser obscurecido por um sentimento egoiacutesta de
prazer ou de dorrdquo (Rhet I 1 1354b8-11)177 No acircmbito do discurso
persuasivo as emoccedilotildees apresentam esse aspecto especiacutefico sua
capacidade de alterar de afetar os juiacutezos
Tal aspecto da Retoacuterica eacute interessante porque aborda a arte que
tem ldquocapacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim
de persuadirrdquo (Rhet I 2 1355b25-26)178 A arte retoacuterica revela a
capacidade de descobrir os meios de persuasatildeo sobre qualquer questatildeo
o que a torna peculiar Conveacutem notar quais propostas do tratado em
questatildeo possam valer para uma investigaccedilatildeo de cunho eacutetico acerca das
emoccedilotildees em sua relaccedilatildeo com a plenitude daquilo que eacute propriamente
humano e que favoreccedila as relaccedilotildees das capacidades racionais e natildeo
racionais Pretendemos entender especialmente como o orador
consegue suscitar ou mudar emoccedilotildees com estas mudar o juiacutezo do
puacuteblico e como essa habilidade pode auxiliar uma educaccedilatildeo moral que
modere as emoccedilotildees
Podemos comeccedilar nossa pesquisa do assunto pela observaccedilatildeo das
provas de persuasatildeo proacuteprias agrave retoacuterica ldquoAs provas de persuasatildeo
fornecidas pelo discurso satildeo de trecircs espeacutecies umas residem no caraacuteter
moral do orador outras no modo como se dispotildee o ouvinte e outras no
proacuteprio discurso pelo que este demonstra ou parece demonstrarrdquo (Rhet
176 Traduccedilatildeo de Alves Alberto e Pena (2012) no original διαβολὴ γὰρ καὶ
ἔλεος καὶ ὀργὴ καὶ τὰ τοιαῦτα πάθη τῆς ψυχῆς οὐ περὶ τοῦ πράγματός ἐστιν
ἀλλὰ πρὸς τὸν δικαστήν 177Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original πρὸς οὓς
καὶ τὸ φιλεῖν ἤδη καὶ τὸ μισεῖν καὶ τὸ ἴδιον συμφέρον συνήρτηται πολλάκις
ὥστε μηκέτι δύνασθαι θεωρεῖν ἱκανῶς τὸ ἀληθές ἀλλ ἐπισκοτεῖν τῇ κρίσει τὸ
ἴδιον ἡδὺ ἢ λυπηρόν 178 Idem δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν
195
I 2 1356a1-4)179 A persuasatildeo pelo caraacuteter ocorre quando o discurso eacute
proferido de modo a deixar a impressatildeo de que o orador eacute digno de feacute
Essa confianccedila deve resultar do discurso e natildeo de uma opiniatildeo preacutevia
quanto ao caraacuteter do orador pois a probidade de quem fala eacute importante
agrave persuasatildeo sendo o caraacuteter ldquoquaserdquo o principal meio de persuasatildeo
Quando acarretada pela disposiccedilatildeo dos ouvintes a persuasatildeo ocorre ao
serem levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso Isso acontece
porque os juiacutezos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou
alegria amor ou oacutedio (Rhet I 2 1356a15-16) Entatildeo a persuasatildeo eacute
especialmente tratada quando se fala das emoccedilotildees e parece que na
retoacuterica os juiacutezos podem decorrer ou vir junto das emoccedilotildees por
intermeacutedio das aparecircncias e opiniotildees que devem ser apresentadas pelo
discurso tornando essas emoccedilotildees afecccedilotildees do corpo e da alma
Se as provas por persuasatildeo satildeo obtidas por estes meios quem
pode se servir delas eacute aquele que eacute capaz de formar silogismos que
pode teorizar sobre os caracteres sobre as virtudes e sobre as emoccedilotildees
Aristoacuteteles entende a retoacuterica como filha da dialeacutetica e da poliacutetica e noacutes
arriscamos ainda a dizer tal arte pode ter influecircncia na moralidade por
interferir em um certo tipo de deliberaccedilatildeo e por depender de
conhecimentos sobre caracteres e virtudes aleacutem de manipular as
aparecircncias dos caracteres proporcionando razatildeo para os argumentos
Konstan explica ldquoas emoccedilotildees satildeo obtidas por nossa interpretaccedilatildeo das
palavras atos e intenccedilotildees dos outros cada uma de seu modo
caracteriacutesticordquo (KONSTAN 2006 p XII traduccedilatildeo nossa) Para o autor
uma consequecircncia dessa abordagem eacute a possiacutevel mudanccedila das emoccedilotildees
ao modificar seu modo de interpretar o evento que desencadeia a
emoccedilatildeo em questatildeo mas afirma que isso natildeo eacute o mesmo que convencer
algueacutem por argumentos racionais Propotildee que diferentemente dos
apetites e dos impulsos as emoccedilotildees satildeo dependentes da capacidade de
simbolizar donde a importacircncia da persuasatildeo para mudar os
julgamentos que as compotildeem pois tal apreciaccedilatildeo eacute capaz de tocar a
ldquomola dos afetosrdquo (LEBRUN 2009 p 14)
Provavelmente essa interpretaccedilatildeo seja conveniente agrave teoria
proposta por Nussbaum acerca da percepccedilatildeo do objeto de emoccedilatildeo poder
modificaacute-la A autora avalia a possibilidade pautada em uma esperanccedila
179 Estas provas podem mesmo alterar uma emoccedilatildeo em outra afirma Sorabji
(2002 p 23) Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no
original τῶν δὲ διὰ τοῦ λόγου ποριζομένων πίστεων τρία εἴδη ἔστιν αἱ μὲν γάρ
εἰσιν ἐν τῷ ἤθει τοῦ λέγοντος αἱ δὲ ἐν τῷ τὸν ἀκροατὴν διαθεῖναί πως αἱ δὲ ἐν
αὐτῷ τῷ λόγῳ διὰ τοῦ δεικνύναι ἢ φαίνεσθαι δεικνύναι
196
de que uma mudanccedila no pensamento possa levar a uma mudanccedila no
comportamento e igualmente na emoccedilatildeo pois esta eacute um modo de ver
ldquocarregado-de-valorrdquo (NUSSBAUM 2008 p 232) como propusemos
acima Essa teoria tem importante implicaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo moral
pois a autora entende que Aristoacuteteles fornece ao futuro orador instruccedilotildees
para provocar coacutelera apresentando os seus objetos por um novo acircngulo
Sendo possiacutevel provocar as emoccedilotildees eacute possiacutevel direcionar o agente a
senti-las de uma maneira ou de outra e com isso haacute a possibilidade de
mudanccedila nasdas emoccedilotildees por um tipo de instruccedilatildeo com certo fundo
racional o discurso persuasivo e emocional como leremos a seguir
Se ele diz entendemos que os Persas realmente
natildeo erraram conosco deixaremos de estar
encolerizados com eles Mas claro a vida nem
sempre eacute assim Algumas coacuteleras podem na
verdade alterar diretamente com uma nova
consideraccedilatildeo dos fatos muitas natildeo Novamente
algum oacutedio e repulsa por grupos pode prevenir seu
surgimento por uma boa educaccedilatildeo moral e ainda
a despeito de nossos melhores esforccedilos eacute como se
isso tivesse alguma raiz profunda na
personalidade (NUSSBAUM 2008 p 233
traduccedilatildeo nossa)
Eacute provaacutevel que as propostas dos dois estudiosos natildeo destoem jaacute
que ao se falar de educaccedilatildeo moral estaacute-se a falar tambeacutem de habituaccedilatildeo
e embora esta natildeo dispense a racionalidade e portanto eacute provaacutevel que
natildeo dispense a formulaccedilatildeo de certo tipo de silogismos por parte do
puacuteblico eacute possiacutevel entender que estes caacutelculos natildeo estejam realmente
implicados no acircmbito emocional retoacuterico nem mesmo em sua
capacidade de auxiliar e consolidador de uma educaccedilatildeo moral para a
cidadania pois a racionalidade estaacute no discurso proferido e talvez natildeo
exatamente na percepccedilatildeo que o puacuteblico tem de tal discurso
Uma possiacutevel prova disso eacute que para que o jovem retor alcance
seus intentos eacute preciso ter o que dizer e dizecirc-lo de forma conveniente
Por isso a retoacuterica trata da ordem dos elementos persuasivos no
enunciado e tambeacutem da pronunciaccedilatildeo Esta assenta na voz ou seja na forma como eacute necessaacuterio empregaacute-la de acordo com cada emoccedilatildeo
lindando com aparecircncias com corpo e alma como Aristoacuteteles explica
A expressatildeo possuiraacute a forma conveniente se
exprimir emoccedilotildees e caracteres e se conservar a
197
ldquoanalogiardquo com os assuntos estabelecidos Haacute
analogia se natildeo se falar grosseiramente acerca de
assuntos importantes nem solenemente de
assuntos de pouca monta nem se se colocarem
ornamentos em uma palavra vulgar [] O
discurso seraacute ldquoemocionalrdquo se relativamente a uma
ofensa o estilo for o de um indiviacuteduo
encolerizado se relativo a assuntos iacutempios e
vergonhosos for o de um homem indignado e
reverente se sobre algo que deve ser louvado o
for de tal forma que suscite admiraccedilatildeo com
humildade se sobre coisas que suscitam
compaixatildeo (RhetIII 7 1408a10-14 e 16-19)180
O estilo apropriado torna o discurso convincente porque o
ouvinte eacute levado a pensar (oiacuteountai) que quem fala diz a verdade A
persuasatildeo pelo discurso acontece quando se mostra a verdade ou o que
parece verdadeiro a partir daquilo que eacute persuasivo em cada caso
particular Nestas circunstacircncias os ouvintes estatildeo em tal estado
emocional que pensam que as coisas satildeo como o orador expotildee mesmo
que natildeo sejam O ouvinte compartilha as emoccedilotildees do orador embora
este possa natildeo as dizer
Um discurso que pretenda emocionar deveraacute usar de recursos
como o dizer nomes apropriados agrave maneira de ser que expressa
caracteres condizentes ao puacuteblico sendo que o tipo de palavras
empregado pode facilitar a persuasatildeo e as emoccedilotildees O discurso deve ser
solene e capaz de emocionar e para tanto deve usar o ritmo certo
portanto em debates satildeo adequadas as teacutecnicas de representaccedilatildeo teatral
gerando uma aparecircncia convincente e favorecendo a emoccedilatildeo ldquoEacute por
isso que quando a componente de representaccedilatildeo eacute retirada o discurso
natildeo perfaz o seu trabalho e parece fracordquo (Rhet III 12 1413b) Haacute
portanto uma seacuterie de peculiaridades atreladas a esse tipo de discurso
Os elementos que se relacionam com o auditoacuterio consistem em
obter a sua benevolecircncia suscitar a sua coacutelera e por vezes atrair a sua
180 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original Τὸ δὲ
πρέπον ἕξει ἡ λέξις ἐὰν ᾖ παθητική τε καὶ ἠθικὴ καὶ τοῖς ὑποκειμένοις
πράγμασιν ἀνάλογον τὸ δ ἀνάλογόν ἐστιν ἐὰν μήτε περὶ εὐόγκων
αὐτοκαβδάλως λέγηται μήτε περὶ εὐτελῶν σεμνῶς μηδ ἐπὶ τῷ εὐτελεῖ ὀνόματι
ἐπῇ κόσμος[] παθητικὴ δέ ἐὰν μὲν ᾖ ὕβρις ὀργιζομένου λέξις ἐὰν δὲ ἀσεβῆ
καὶ αἰσχρά δυσχεραίνοντος καὶ εὐλαβουμένου καὶ λέγειν ἐὰν δὲ ἐπαινετά
ἀγαμένως ἐὰν δὲ ἐλεεινά ταπεινῶς καὶ ἐπὶ τῶν ἄλλων δὲ ὁμοίως
198
atenccedilatildeo ou dispersaacute-la porque nem sempre eacute conveniente por o
auditoacuterio atento razatildeo pela qual muitos dos oradores tentam levaacute-lo a
rir Todos estes recursos caso se queira levam a uma boa compreensatildeo
e a apresentar o orador como um homem respeitaacutevel pois a este tipo de
homem os ouvintes prestam mais atenccedilatildeo Satildeo igualmente mais atentos
a temas importantes a coisas que lhes digam respeito agraves que encham de
espanto e agraves que sejam agradaacuteveis Por isso eacute necessaacuterio introduzir a
ideia de que o discurso trata de coisas deste gecircnero O que implica
novamente a presenccedila das aparecircncias que provocam a imaginaccedilatildeo e
portanto da percepccedilatildeo (ao menos sensiacutevel) no discurso persuasivo
poreacutem se a intenccedilatildeo eacute que o puacuteblico natildeo esteja atento dever-se-aacute dizer
que o assunto natildeo eacute importante que natildeo lhe diz respeito que eacute penoso
O orador deve igualmente usar o epiacutelogo parte do discurso
composta por quatro elementos tornar o ouvinte favoraacutevel agrave causa do
orador e desfavoraacutevel agrave do adversaacuterio amplificar ou minimizar aquilo
que eacute exposto dispor o ouvinte a um comportamento emocional
recapitular Apoacutes ter mostrado que se diz a verdade e o adversaacuterio diz
falsidades eacute preciso fazer um elogio ou uma censura e finalmente
ratificar o assunto Eacute necessaacuterio visar uma de duas coisas ou revelar-se
como homem de bem quer diante dos ouvintes quer em termos gerais
ou apresentar o adversaacuterio como perverso quer diante dos ouvintes
quer em termos gerais Portanto o discurso do retor eacute capaz de mostraacute-
lo e de mostrar os outros como virtuosos ou viciosos mas precisa
tambeacutem provocar nos ouvintes comportamentos emocionais como
propotildee o passo subsequente
Assim a ciecircncia das emoccedilotildees181 eacute semelhante
agravequela da arquitetura como a arquitetura (ou a
construccedilatildeo de casa na frase de Aristoacuteteles) nos
informa como construir a estrutura que nos
protegeraacute dos elementos entatildeo o conhecimento
das emoccedilotildees nos diz como excitar ou causar
emoccedilotildees que disporatildeo os outros de um modo que
eacute para nossa proacutepria vantagem A teacutecnica de
causar emoccedilotildees requer um entendimento dos
comportamentos que as excitam mas isso tem em
mira suplementar os outros meios de persuasatildeo
que Aristoacuteteles analisa na Retoacuterica explorando
em particular os tipos de crenccedila que satildeo assistidos
pela dor e pelo prazer (KONSTAN 2006 p 37
181Termos de Konstan
199
traduccedilatildeo nossa)
Desta feita entendemos que o discurso persuasivo eacute um dos
modos de mudar as emoccedilotildees ou ao menos de emocionar conforme o
desejo e o intelecto do orador Confirmando nossa proposta Besnier
pensa que a praacutetica do discurso persuasivo em conjunto com o
conhecimento das predisposiccedilotildees que satildeo favoraacuteveis ou que obstam o
desencadeamento de uma emoccedilatildeo poderia ser exercida a fim de formar
uma disposiccedilatildeo virtuosa acerca de cada emoccedilatildeo Igualmente poderia ser
usada para extenuar ou fazer desaparecer uma reaccedilatildeo passional que
fosse julgada pouco fundada ou se o juiacutezo axioloacutegico (palavras de
Besnier) que muda o estado do desejo for mal justificado ou
desproporcional pois para Aristoacuteteles as disposiccedilotildees concernem agraves
emoccedilotildees Para que sejam formadas podem requerer capacidade oratoacuteria
ou dialeacutetica e um conhecimento da alma assunto cabiacutevel agrave funccedilatildeo
educativa da arte poliacutetica
O que significaria que o caraacuteter comporta disposiccedilotildees que satildeo
fixadas por meio de treinamento ou adestramento a partir de
disposiccedilotildees deficientes ou de uma habituaccedilatildeo sem interferecircncia da
inteligecircncia e da deliberaccedilatildeo Com isso o Livro II da Retoacuterica pode
integrar a deliberaccedilatildeo aos componentes psiacutequicos que satildeo disponiacuteveis ao
ouvinte e nos quais o orador pode intervir mas tal intervenccedilatildeo natildeo seria
educaccedilatildeo Essa distinccedilatildeo potildee as disposiccedilotildees virtuosas e viciosas ao lado
da idade e das circunstacircncias sendo potecircncias que podem ser exploradas
pelo orador que pode transformaacute-las em emoccedilotildees ou em juiacutezos sobre o
que fazer (Rhet II 12 1388b31 1389a2) dando conforme Besnier
(2008 p 107) um elemento de deliberaccedilatildeo agrave emoccedilatildeo
O mesmo autor afirma compreender que isso acontece desde que
a mudanccedila nos juiacutezos possa ser provocada pelo orador atraveacutes dos
recursos da arte A mudanccedila em questatildeo acontece nos juiacutezos e se daacute por
persuasatildeo mas mesmo assim o movimento que leva a ela pode ser
considerado afecccedilatildeo porque quem a produz natildeo eacute o ouvinte e sim o
orador Este eacute agente externo e o que pretende ou seja alterar a crenccedila
do ouvinte acontece por meios que satildeo proacuteximos agrave deliberaccedilatildeo Nesse
caso contudo o que afeta o ouvinte natildeo eacute um discurso que o educa e
que faz com que mude de juiacutezo portanto ldquoo juiacutezo obtido por persuasatildeo
se distingue do adquirido por exerciacutecio repetido da deliberaccedilatildeordquo
(BESNIER 2008 p 107) o que diferencia a accedilatildeo da retoacuterica daquela da
educaccedilatildeo moral das emoccedilotildees
Pensamos que as consideraccedilotildees supramencionadas poreacutem natildeo
invalidam nossas observaccedilotildees acerca da forma como a persuasatildeo
200
retoacuterica pode atingir o campo eacutetico-poliacutetico jaacute que Aristoacuteteles deixa
bem claro que tal arte age nos juiacutezos dos cidadatildeos em momento
propriamente ligados agrave vida poliacutetica quando haacute exerciacutecio da democracia
em sua forma mais ativa Natildeo desmerecem nossa consideraccedilatildeo da
retoacuterica como elemento poliacutetico propiacutecio agrave educaccedilatildeo moral das
emoccedilotildees pois saber como conduzi-las ou perceber que satildeo manipuladas
pode ser favoraacutevel agraves instacircncias poliacuteticas de decisatildeo bem como aos
educadores que pretendem moderaacute-las Sendo nessas instacircncias que se
propotildeem os rumos da vida na poacutelis haveraacute intervenccedilatildeo da arte retoacuterica
nos modos como os cidadatildeos deveratildeo proceder em certas situaccedilotildees
Aleacutem do mais entendemos que de nada vale a simples habituaccedilatildeo
dirigida pela razatildeo na formaccedilatildeo da virtude se natildeo haacute ocasiatildeo de praticar
aquilo ao que se eacute habituado a fim de consolidar o que tal educaccedilatildeo
faculta Portanto defendemos que o conhecimento e a arte solicitados
pelo discurso satildeo igualmente uacuteteis agrave moralidade
Defenderemos proposta semelhante quanto agrave arte poeacutetica pois na
Poeacutetica ou a partir de tal tratado pode-se observar que para produzir a
catarse do medo e da piedade eacute preciso ldquoexcitaacute-los na audiecircnciardquo
(SORABJI 2002 p 24 traduccedilatildeo nossa) Por isso o poeta quando
escreve deve saber que tipo de poema de enredo excitaraacute tais emoccedilotildees
Diante dessa semelhanccedila a questatildeo eacute a consideraccedilatildeo do medo e da
piedade na Retoacuterica eacute coordenada com a observaccedilatildeo dessas emoccedilotildees
feita na Poeacutetica A resposta dada por Sorabji eacute em grande medida O
estudioso pensa que a pequena diferenccedila eacute que na Poeacutetica o medo eacute
sentido pela audiecircncia a princiacutepio depois pelos personagens da peccedila
As semelhanccedilas contudo satildeo mais visiacuteveis e satildeo ateacute usadas por
Aristoacuteteles em suas observaccedilotildees sobre o enredo com as quais o filoacutesofo
esquiva-se agrave objeccedilatildeo moral feita pela Repuacuteblica X aos poetas Platatildeo
compreendia que estes artistas mostravam a injusticcedila como bem-
sucedida e a justiccedila como malsucedida Aristoacuteteles pensava tal
proposta como incompatiacutevel com a necessidade da trageacutedia de imitar
acontecimentos temiacuteveis e dignos de piedade entendia que o enredo natildeo
deveria mostrar o homem bom passando da fortuna ao infortuacutenio nem o
homem mal passando do infortuacutenio agrave fortuna porque tais eventos natildeo
seriam dignos de temor ou piedade Tambeacutem por isso natildeo deveriam
apresentar um heroacutei excelente em virtude e justiccedila jaacute que a piedade vem
com um infortuacutenio natildeo merecido e o medo com o infortuacutenio de algueacutem
que percebemos ser como noacutes (hoacutemoios) Essas proposiccedilotildees potildeem a
Poeacutetica em contato com a Retoacuterica porque esta uacuteltima afirma que o
medo e a piedade satildeo excitados ao mostrar um sofrimento que aconteceu
com algueacutem como noacutes (Poet 13 1452b34 1453a1 Rhet II 5 1383a10
201
II 8 1386a25) Por isso Aristoacuteteles pode afirmar que o medo sentido no
teatro eacute genuiacuteno
Sorabji no entanto percebe que haacute ainda pequenas discrepacircncias
entre as duas obras em questatildeo Por exemplo quando a Poeacutetica
despreza a trageacutedia na qual o homem bom passa da boa agrave maacute fortuna o
texto parece contradizer a Retoacuterica que reserva a piedade agraves viacutetimas
boas (RhetII 8 1385b34) Na Poeacutetica eacute proposto o oposto pois tal
situaccedilatildeo pode ser antes uma profanaccedilatildeo de algo digno de temor e
piedade parecendo muito diferente da Retoacuterica Sobre esse assunto o
autor escreve
Mas o ponto importante para o presente propoacutesito
eacute que as consideraccedilotildees da emoccedilatildeo na Poeacutetica satildeo
tatildeo cognitivas como aquelas na Retoacuterica e isso
natildeo eacute deslocado de jeito nenhum pela analogia da
catharsis mesmo que aquela [] seja uma
analogia com coisas tais como os natildeo-cognitivos
laxativos e emotivos (SORABJI 2002 p 25
traduccedilatildeo nossa)
Por motivos como estes que datildeo margens agrave comparaccedilatildeo das duas
artes de emocionar em termos de cognitividade implicada nas emoccedilotildees
que despertam e por entendermos ambas as artes como colaboradoras
agravequela educaccedilatildeo moral que eacute proposta na EN por trabalharem e fazerem
aflorar no cidadatildeo aquilo que haacute de mais propriamente humano trataremos agora da forma como a Poeacutetica propotildee possibilidades de
mudanccedilas nasdas emoccedilotildees Buscaremos entender quais elementos de
racionalidade estatildeo implicados em tais mudanccedilas bem como o modo
pelo qual a poesia opera como forte aliada da educaccedilatildeo emocional
moral
3 c) A poesia como facilitadora da educaccedilatildeo moral
Nesse ponto da pesquisa estudaremos a poesia traacutegica porque
tambeacutem pode ser entendida como um tipo de arte de emocionar e como
um meio de alterar ou despertar emoccedilatildeo A confirmaccedilatildeo desta afirmaccedilatildeo
aparece com a definiccedilatildeo que Aristoacuteteles oferece da trageacutedia e que
destaca a funccedilatildeo especiacutefica de tal arte provocar medo e piedade bem
como a kaacutetharsis (catarse) dessas emoccedilotildees O filoacutesofo destaca os
acontecimentos e o enredo como o fim da trageacutedia sendo o fim o mais
importante de tudo Natildeo poderia haver trageacutedia sem accedilatildeo mas poderia
haver sem caracteres pois se um poeta juntar palavras bem elaboradas
202
quanto agrave elocuccedilatildeo e ao pensamento exprimindo caraacuteter natildeo realizaraacute a
funccedilatildeo traacutegica Uma trageacutedia ainda que seja inferior nesses aspectos
conseguiraacute muito mais por ter enredo e estruturaccedilatildeo de accedilotildees bem
elaboradas (Poet 6 1450a30-33) pois ldquoA trageacutedia eacute a imitaccedilatildeo de uma
accedilatildeo elevada e completa dotada de extensatildeo em uma linguagem
embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes que se
serve da acccedilatildeo e natildeo da narraccedilatildeo e que por meio da compaixatildeo e do
temor provoca a purificaccedilatildeo de tais paixotildeesrdquo (Poet 6 1449b24-28)182
As partes do enredo (myacutethos) satildeo os elementos da trageacutedia que
exercem maior atraccedilatildeo e emoccedilatildeo e essas partes satildeo a peripeacutecia
(peripeacuteteia) e os reconhecimentos (anagnōriacuteseis Poet 6 1450a34-35)
Sendo peripeacutecia a mudanccedila dos acontecimentos em seu contraacuterio
acontecendo de modo verossiacutemil e necessaacuterio agrave construccedilatildeo do texto e
reconhecimento a passagem da ignoracircncia ao conhecimento para
amizade ou oacutedio entre os que estatildeo destinados a serem infelizes ou
felizes Aristoacuteteles considera o reconhecimento que se daacute entre pessoas
mais belo se acompanhado da peripeacutecia e embora estes elementos natildeo
apareccedilam sempre juntos o tipo mais proacuteprio de reconhecimento eacute o que
vem acompanhado da peripeacutecia pois deste modo suscitam piedade ou
medo com maior facilidade As emoccedilotildees traacutegicas acontecem porque as
duas partes do enredo supramencionadas estatildeo extremamente ligadas ao
ser feliz ou infeliz contudo haacute um terceiro elemento do enredo o
sofrimento (paacutethos) que eacute um ato destruidor ou doloroso como as
mortes que aparecem em cena que igualmente pode causar medo e
piedade Com estes componentes percebemos a accedilatildeo das aparecircncias que
afetam a percepccedilatildeo provocando o puacuteblico pois mostram o sofrimento
alheio de forma surpreendente e emocionante podendo mesmo fazer
com que de certo modo o puacuteblico se ponha no lugar da personagem
sofredora ao associar certo tipo de pensamento ao desencadeamento das
emoccedilotildees traacutegicas
Esse tipo de proposta emocional eacute sugerido pela forma como o
filoacutesofo dispotildee as partes componentes da trageacutedia em grau de
importacircncia agrave composiccedilatildeo de um bom poema Primeiro o enredo parte
mais importante e essencial agrave trageacutedia segundo o caraacuteter (eacutethos) que eacute
uma espeacutecie de bela imagem A trageacutedia eacute entatildeo imitaccedilatildeo de accedilotildees em
uma trama (ou enredo myacutethos) e imitando accedilotildees imita os homens que
182 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original στιν οὖν τραγῳδία
μίμησις πράξεως σπουδαίας καὶ τελείας μέγεθος ἐχούσης ἡδυσμένῳ λόγῳ
χωρὶς ἑκάστῳ τῶν εἰδῶν ἐν τοῖς μορίοις δρώντων καὶ οὐ δι ἀπαγγελίας δι
ἐλέου καὶ φόβου περαίνουσα τὴν τῶν τοιούτων παθημάτων κάθαρσιν
203
agem demonstrando seu caraacuteter Em terceiro lugar vem o pensamento
(diaacutenoia) o ser capaz de exprimir o que eacute possiacutevel e o que eacute apropriado
O caraacuteter revela igualmente as decisotildees e o pensamento aparece nos
enunciados Quarto a elocuccedilatildeo (leacutexis) que tem relaccedilatildeo com as palavras
comunicadoras do pensamento Em quinto lugar aparece a muacutesica
(melopoiiacutea) mais agradaacutevel dentre os componentes elencados e o
espetaacuteculo (oacutepsis) sexto componente que atrai os espiacuteritos embora seja
a parte mais desprovida de arte e mais alheia agrave poeacutetica na opiniatildeo do
filoacutesofo porque a potecircncia da trageacutedia existe mesmo sem concursos e
atores aleacutem do que a montagem dos espetaacuteculos e a arte de quem
executa os acessoacuterios valem mais que do que a arte dos poetas em uma
encenaccedilatildeo (Poet 26 1461b26-36 et seq)
A duraccedilatildeo dos os enredos eacute igualmente importante deveratildeo ter
extensatildeo que facilite a recordaccedilatildeo pois como afirmamos se emocionar
com a trageacutedia requer certo tipo de pensamento O filoacutesofo entende
contudo que o limite mais amplo desde que perfeitamente claro seja
sempre o mais belo Para exemplificar a extensatildeo deve ter um tamanho
que reuacutena conforme os princiacutepios da verossimilhanccedila e da necessidade
a sequecircncia dos acontecimentos apresentados pelo enredo de modo que
mudem da felicidade agrave infelicidade e vice-versa (Poet 8 1451a12-15 9
1551b27-32) favorecendo a inteligibilidade e credibilidade do poema
Uma vez que a imitaccedilatildeo representa natildeo soacute uma
acccedilatildeo completa mas tambeacutem factos que inspiram
temor e compaixatildeo estes sentimentos satildeo muito
[mais] facilmente suscitados quando os factos se
processam contra a nossa expectativa por uma
relaccedilatildeo de causalidade entre si Desta forma a
imitaccedilatildeo seraacute mais surpreendente do que se
surgisse do acaso e da sorte pois os factos
acidentais causam mais admiraccedilatildeo quando parece
que acontecem de propoacutesito (Poet 10 1452a1-
6)183
Os fatos que natildeo parecem acontecer por acaso agitam os sentidos
183 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original ἐπεὶ δὲ οὐ μόνον
τελείας ἐστὶ πράξεως ἡ μίμησις ἀλλὰ καὶ φοβερῶν καὶ ἐλεεινῶν ταῦτα δὲ
γίνεται καὶ μάλιστα καὶ μᾶλλον ὅταν γένηται παρὰ τὴν δόξαν δι ἄλληλα τὸ γὰρ
θαυμαστὸν οὕτως ἕξει μᾶλλον ἢ εἰ ἀπὸ τοῦ αὐτομάτου καὶ τῆς τύχης ἐπεὶ καὶ
τῶν ἀπὸ τύχης ταῦτα θαυμασιώτατα δοκεῖ ὅσα ὥσπερ ἐπίτηδες φαίνεται
γεγονέναι
204
e a imaginaccedilatildeo do puacuteblico tornando os enredos mais belos Tais fatos
fazem tambeacutem o efeito proacuteprio agraves trageacutedias mais forte sendo este efeito
provocar emoccedilotildees e kaacutetharsis no puacuteblico graccedilas a uma agitaccedilatildeo de
certos elementos da razatildeo a partir da percepccedilatildeo sensiacutevel que eacute
provocada pela trama da trageacutedia e pela inteligibilidade interna agrave
composiccedilatildeo dessa trama Do mesmo modo ldquotemor e a compaixatildeo
podem realmente ser despertados pelo espetaacuteculo e tambeacutem pela
proacutepria estruturaccedilatildeo dos acontecimentos o que eacute preferiacutevel e proacuteprio de
um poeta superiorrdquo (Poet11 1453b1-3)184 A estrutura da trageacutedia
representa boas pessoas que sentem pesar mas natildeo devido a uma falta
que tenham cometido Esse aspecto correto conferido ao caraacuteter do heroacutei
traacutegico eacute causador da crenccedila que eacute parte do conteuacutedo da piedade
Partindo da proposta aristoteacutelica da emoccedilatildeo em questatildeo Nussbaum
(2008 p 239) entende que os julgamentos seratildeo suficientes para
despertaacute-la quando estiverem em conjunto com aquilo que chama de
julgamento eudaiacutemoniacutestico Tal julgamento concebe a pessoa ou o que
acontece a ela como partes do que eacute importante para o bem-estar de
quem avalia e os dramas despertam aquele tipo de preocupaccedilatildeo com o
foco na possibilidade de evento similar vir a acontecer como
propusemos pouco acima
Quanto ao medo ele eacute sentido segundo a interpretaccedilatildeo de
Nussbaum tanto pelo personagem que percebe coisas maacutes e iminentes
como por quem assistelecircouve como algum reflexo de possibilidades
que mostram da vida humana em geral Os personagens igualmente
podem ter e expressar vaacuterias emoccedilotildees enquanto os espectadores por
uma parte do texto se identificam com um ou outro personagem e por
isso tambeacutem experimentaratildeo aquelas emoccedilotildees ldquocompartilhando a raiva
e a desolaccedilatildeo de Filoctetes ou a devastaccedilatildeo de Eacutedipo quando ele
descobre o que fezrdquo (NUSSBAUM 2008 p 240 traduccedilatildeo nossa) Para
tanto eacute preciso que o enredo seja estruturado de tal forma necessaacuteria e
verossimilmente de modo que mesmo o simples ouvir a sequecircncia dos
acontecimentos embora natildeo a vendo faccedila temer e sentir piedade pelo
que aconteceu ao personagem com o qual se estabeleceu um certo
ldquoelordquo O viacutenculo eacute causado por certa semelhanccedila existente entre
personagem e puacuteblico graccedilas ao caraacuteter natildeo perfeito do heroacutei traacutegico
como explica Ricoeur
184 Idem Ἔστιν μὲν οὖν τὸ φοβερὸν καὶ ἐλεεινὸν ἐκ τῆς ὄψεως γίγνεσθαι ἔστιν
δὲ καὶ ἐξ αὐτῆς τῆς συστάσεως τῶν πραγμάτων ὅπερ ἐστὶ πρότερον καὶ
ποιητοῦ ἀμείνονος
205
[] satildeo tambeacutem as emoccedilotildees traacutegicas que exigem
que o heroacutei natildeo alcance a excelecircncia na virtude e
justiccedila devido a alguma ldquofaltardquo mas sem chegar
ao viacutecio ou maldade que o leve a desgraccedila eacute
intermediaacuterio [] Assim mesmo o discernimento
da falta traacutegica eacute excetuado pela qualidade
emocional da piedade do temor e do senso do
humano185 (RICOEUR 2010 p 82)
Se o poeta deve suscitar o prazer inerente ao medo e agrave piedade
por meio da imitaccedilatildeo isso deve ser feito a partir do encadeamento
racional dos acontecimentos na trama (Poet 14 1453b15-34 1454a1-9)
Por isso entendemos que a forma exigida por Aristoacuteteles agrave composiccedilatildeo
traacutegica potildee em associaccedilatildeo as duas instacircncias que completam um ser
verdadeiramente humano a racionalidade e as emoccedilotildees provocadas e
trabalhadas pela kaacutetharsis contemplando no acircmbito poeacutetico as
propostas que destacamos a partir de EN I13 e do passo EN X 7
1177b26-30
Igualmente haacute exigecircncias quanto aos caracteres dos personagens
com seu papel no emocionar e tambeacutem no efeito da trageacutedia eacute preciso
primeiro que sejam bons e que apareccedilam porque as accedilotildees do
personagem mostram-no empenhado em um propoacutesito sendo o caraacuteter
bom quando tal propoacutesito for bom Segundo os caracteres devem ser
apropriados Terceiro eacute preciso que sejam semelhantes aos nossos
caracteres confirmando a proposta da possibilidade similar Quarto e
uacuteltimo eacute exigido que sejam coerentes O que igualmente aproxima a
proposta da Poeacutetica das coisas eacuteticas bem como o faz a exigecircncia de
que seja representada uma accedilatildeo verossiacutemil e necessaacuteria mexendo ao
menos com as imaginaccedilotildees e as opiniotildees de quem com ela interage Por
conseguinte Nussbaum (2008 p 166) entende que reaccedilotildees a obras
como filmes se devem agrave grande identificaccedilatildeo com os eventos
apresentados pela ficccedilatildeo que satildeo nas palavras de Aristoacuteteles
parafraseadas pela autora ldquoo tipo de coisa que pode acontecerrdquo
Interpretaccedilatildeo que nos parece aplicaacutevel ao caso da trageacutedia e de seu
185Contudo o filoacutesofo observa que haacute tambeacutem contraponto entre eacutetica e poeacutetica
ldquoO myacutethos traacutegico ao girar em torno das reviravoltas da fortuna e
exclusivamente da felicidade para a infelicidade eacute uma exploraccedilatildeo das vias
pelas quais a accedilatildeo lanccedila contra todas as expectativas os homens de valor na
infelicidade Serve de contraponto agrave eacutetica que ensina como a accedilatildeo pelo
exerciacutecio das virtudes conduz agrave felicidade Ao mesmo tempo soacute adota do preacute-
saber da accedilatildeo seus aspectos eacuteticosrdquo (RICOEUR 2012 p 83)
206
espetaacuteculo
Por esses motivos o necessaacuterio e o verossiacutemil devem sempre ser
buscados tanto nos caracteres quanto nos acontecimentos de modo que
uma personagem diga ou faccedila o que eacute necessaacuterio ou verossiacutemil e que
uma coisa aconteccedila por causa da outra conferindo conforme tais
princiacutepios racionalidade ao enredo Aristoacuteteles sugere ainda que o
desenlace das tramas deve resultar do proacuteprio myacutethos e natildeo de uma
intervenccedilatildeo ex-machina Esse artifiacutecio no entanto pode ser usado em
coisas que se passam fora da accedilatildeo da peccedila ou em coisas que
aconteceram antes dela e que um mortal natildeo conheccedila ou em coisas
futuras que devem ser preditas e anunciadas Do mesmo modo natildeo deve
haver nada de irracional nas trageacutedias mas se houver que natildeo seja
apresentado em cena186
Os enredos devem ser estruturados e completados com a
elocuccedilatildeo dando aos acontecimentos o ar mais criacutevel possiacutevel Ao vecirc-los
como se estivesse diante dos proacuteprios fatos o poeta poderaacute descobrir o
que eacute apropriado e natildeo incorrer em contradiccedilatildeo ressaltando o primeiro
momento da miacutemesis identificado por Ricoeur baseado na relaccedilatildeo do
poeta com o mundo O poeta igualmente deve completar o enredo com
gestos o quanto for possiacutevel Do mesmo modo dos poetas com o
186Sobre a composiccedilatildeo do enredo ver Ricoeur (2010 p 59-60) mas haacute normas
tambeacutem para a composiccedilatildeo do heroacutei traacutegico Ricoeur considera essencial o
entendimento da importacircncia da composiccedilatildeo do enredo para entendermos entre
outras coisas mesmo o significado de miacutemesis na Poeacutetica Por isso trata
juntamente o par crucial de conceitos aristoteacutelicos miacutemesis-myacutethos
(representaccedilatildeo de accedilatildeocomposiccedilatildeo da intriga) que ratifica o propoacutesito
aristoteacutelico da ecircnfase na accedilatildeo representada pela trageacutedia e que nos ajuda a
defender nosso propoacutesito em estudar um texto poeacutetico em um estudo eacutetico ldquoO
que conservarei para a sequecircncia de meu trabalho eacute a quase identificaccedilatildeo entre
duas expressotildees imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo de accedilatildeo e agenciamento dos fatos A
segunda expressatildeo eacute como jaacute dissemos o definidor que Aristoacuteteles potildee no lugar
do definido myacutethos intriga Essa quase identificaccedilatildeo estaacute garantida por uma
primeira hierarquizaccedilatildeo entre as seis partes que daacute prioridade ao ldquoo quecircrdquo
(objeto) da representaccedilatildeo ndash intriga caracteres pensamento ndash sobre o ldquopor quecircrdquo
(meio) ndash a expressatildeo e o canto ndash e sobre o ldquocomordquo (modo) ndash o espetaacuteculo
depois por uma segunda hierarquizaccedilatildeo no interior do ldquoo quecircrdquo que potildee a accedilatildeo
acima dos caracteres e do pensamento (ldquoporque se trata sobretudo de uma
representaccedilatildeo de accedilatildeo (miacutemesis praacutexeos) e atraveacutes dela de homens que agemrdquo
50b3) No final dessa dupla hierarquizaccedilatildeo a accedilatildeo aparece como a ldquoparte
principalrdquo o ldquoobjetivo visadordquo o ldquoprinciacutepiordquo e por assim dizer a ldquoalmardquo da
trageacutedia Essa quase identificaccedilatildeo estaacute garantida pela foacutermula ldquoEacute a intriga que eacute
a representaccedilatildeo da accedilatildeordquo (50a1)rdquo (RICOEUR 2012 p 61)
207
mesmo talento satildeo mais convincentes aqueles que sentem as emoccedilotildees
porque quem sente fuacuteria transmite fuacuteria quem estaacute irritado mostra
irritaccedilatildeo de modo mais convincente ldquoPor isso a arte da poesia eacute proacutepria
dos gecircnios ou dos loucos jaacute que os gecircnios satildeo versaacuteteis os loucos
deliramrdquo (Poet17 1455a32-34)187 Igualmente por isso podemos fazer
um paralelo entre a ficccedilatildeo traacutegica e a moral real salvaguardadas as
devidas proporccedilotildees Aleacutem do que sendo o poeta imitador como
qualquer outro criador de imagens sempre imita necessariamente trecircs
coisas possiacuteveis (1) as coisas como eram ou satildeo em realidade (2) como
dizem ou parecem (3) como deviam ser188 Isso eacute expresso por meio da
elocuccedilatildeo que apresenta palavras raras metaacuteforas e muitas modificaccedilotildees
da linguagem o que somente eacute permitido ao poeta Ainda precisamos
abordar melhor a elocuccedilatildeo para desfecho da listagem de como os
elementos da poesia emocionam Aristoacuteteles a define como palavra que
expressa o pensamento a fim de demonstrar refutar despertar emoccedilotildees
engrandecer ou minimizar algo ou algueacutem Elemento poderoso embora
187 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original διὸ εὐφυοῦς ἡ ποιητική
ἐστιν ἢ μανικοῦ ούτων γὰρ οἱ μὲν εὔπλαστοι οἱ δὲ ἐκστατικοί εἰσιν 188 Donde a famosa teoria das trecircs miacutemeseis proposta por Paul Ricoeur em seu
Tempo e narrativa ldquoMiacutemese I designa a preacute-compreensatildeo na vida quotidiana
daquilo que se denominou justamente a qualidade narrativa da experiecircncia ndash
entendendo por tal o facto da vida e ainda mais a acccedilatildeo como Hanna Arendt
exprime brilhantemente exigirem ser contados Miacutemese II designa a auto-
estruturaccedilatildeo da narrativa sobre a base dos coacutedigos narrativos internos ao
discurso A este niacutevel Miacutemese II e myacutethos ou seja a intriga ndash ou melhor o
dispor em intriga ndash coincidem Finalmente Miacutemese III designa o equivalente
narrativo da refiguraccedilatildeo do real pela metaacuteforardquo (ABEL POREgraveE 2010 p 77) A
relaccedilatildeo com o antes da poesia eacute evidenciada em Aristoacuteteles segundo Ricoeur
devido agrave sua referecircncia aos caracteres escolhidos para as personagens da
trageacutedia e da comeacutedia que se classificam somente em ldquonobres ou baixosrdquo isso
porque todo mundo (paacutentes) na realidade eacute de um ou outro jeito As
qualificaccedilotildees eacuteticas vecircm do real e o que depende da imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo eacute
a exigecircncia loacutegica da coerecircncia O filoacutesofo francecircs afirma ainda que eacute dito que
trageacutedia e comeacutedia diferem por representar personagens piores ou melhores que
os homens reais (tograven vucircn 1448a16-18) o que eacute a segunda marca da miacutemesis I
Entatildeo o poeta pressupotildee que os caracteres possam ser melhorados ou
corrompidos pela accedilatildeo (RICOEUR 2012 p 84) ldquoOs caracteres satildeo o que
permite qualificar os personagens em accedilatildeordquo (Poet 1450a6) Haacute ainda o fato dos
poetas trabalharem com os mitos tradicionais inseridos como estatildeo na tradiccedilatildeo
grega da eacutepoca (Idem p 85) embora o pensador francecircs ligue essa continuaccedilatildeo
em Aristoacuteteles somente agraves propostas sobre o prazer proacuteprio agrave trageacutedia e ao
alcance da kaacutetharsis
208
natildeo seja um dos primeiros da lista em importacircncia a elocuccedilatildeo ajuda a
provocar as emoccedilotildees traacutegicas e a conferir verossimilhanccedila ao enredo
(Poet 18 1456a36-38 19 1456b1-8) podendo servir igualmente como
recurso retoacuterico como vimos acima
A muacutesica o espetaacuteculo e o enredo entretanto satildeo os elementos
considerados como os mais emocionantes da trageacutedia O enredo eacute nas
palavras do proacuteprio filoacutesofo ldquoa alma da trageacutediardquo aquilo que quando
bem elaborado permite imaginar e despertar emoccedilatildeo Tendo isso em
vista Nussbaum (2008 p 240 traduccedilatildeo nossa) observa ldquoo digno de
piedade e o temiacutevel natildeo satildeo simplesmente locais eles satildeo encaixados na
estrutura global da forma pelo tipo particular de identificaccedilatildeo e simpatia
com o heroacutei que a proacutepria forma cultivardquo Nussbaum admite contudo
que frequentemente a perspectiva na trageacutedia eacute modelada pelas reaccedilotildees
do coro traacutegico que encoraja uma certa variaccedilatildeo de reaccedilotildees pelo
desenrolar do enredo O sentido que corre por esses trabalhos eacute o de
algueacutem que olha os reveses e sofrimentos da pessoa razoavelmente boa
tanto com medo quanto com piedade Esse tipo de percepccedilatildeo ou de
pensamento pode mesmo alterar uma emoccedilatildeo em outra pois a pessoa
que chega indiferente ao teatro pode deixar aflorar sua piedade
transbordando ou ajustando o seu excesso dessa emoccedilatildeo e nesse caso
modificando a emoccedilatildeo Tais mudanccedilas favorecem as emoccedilotildees reais
como se expotildee na explicaccedilatildeo de Nussbaum que citamos abaixo
Compaixatildeo seraacute um motivo social valioso
somente se estaacute equipada com uma teoria
adequada do valor dos bens baacutesicos somente se
estaacute equipada com um entendimento adequado da
accedilatildeo e da culpa e somente se estaacute equipada com
uma consideraccedilatildeo adequadamente vasta da pessoa
que deve ser o objeto da preocupaccedilatildeo de um
agente tanto distante como proacuteximo Esses
julgamentos devem ser engendrados por um bom
processo de desenvolvimento Por outro lado a
compaixatildeo fornece uma vida essencial e
conexidade com a moralidade sem que esteja
perigosamente vazia e desarraigada Em casos
centrais bem representados na trageacutedia grega a
compaixatildeo incorpora avaliaccedilotildees corretas e
direciona nossa preocupaccedilatildeo para todos que
compartilham conosco uma humanidade comum
Aprendidas nas relaccedilotildees da infacircncia essas
conexotildees satildeo importantes para fazer a moralidade
209
perspicaz antes que obscura Assim a compaixatildeo
eacute um complemento necessaacuterio ao respeito []
(NUSSBAUM 2008 p 399 traduccedilatildeo nossa)189
Do mesmo modo a trageacutedia que provoca ou muda as emoccedilotildees
do puacuteblico na direccedilatildeo do outro tem enorme papel moral na poacutelis de
Aristoacuteteles como a autora tambeacutem explicaraacute ldquoPor outro lado conveacutem
lembrar ainda o dito por Aristoacuteteles sobre uma accedilatildeo que eacute moralmente
virtuosa somente quando eacute feita pelos motivos corretosrdquo (NUSSBAUM
2008 p 400 traduccedilatildeo nossa) Ajudar os outros sem amor agrave humanidade
e sem preocupaccedilatildeo compassiva por sua situaccedilatildeo natildeo tem valor moral A
interpretaccedilatildeo da autora se volta para Soacutefocles pois eacute nesse momento
que se pode evocar a posiccedilatildeo grega antiga sobre o papel do drama
traacutegico na educaccedilatildeo embora entendamos ainda que essa postura
colabore com a proposta de EN X apresentada anteriormente acerca da
necessidade de extensatildeo da ldquoeducaccedilatildeordquo moral por toda a vida do
cidadatildeo Defendemos assim que a trageacutedia eacute forte aliada na formaccedilatildeo
do caraacuteter e na manutenccedilatildeo da felicidade por toda vida mas que tem seu
papel como educadora da juventude como ressalta Nussbaum
A trageacutedia natildeo eacute para os muito jovens e natildeo eacute
exatamente para os jovens As pessoas maduras
sempre precisam expandir suas experiecircncias e
reforccedilar sua posse das verdades eacuteticas centrais
Mas para o jovem futuro cidadatildeo a trageacutedia tem
um significado especial Porque esse espectador
estaacute em processo de aprender a compaixatildeo As
trageacutedias familiarizam-nos com as coisas ruins
que podem acontecer na vida humana muito antes
da proacutepria vida fazer isso assim ativam a
preocupaccedilatildeo com os outros que estatildeo sofrendo o
que a pessoa natildeo sofreu E fazem isso de um jeito
que faz a profundidade e significacircncia do
sofrimento e as perdas que o inspiram
inequivocamente claras ndash os recursos poeacutetico
visual e musical do drama assim tecircm peso moral
Convidando o espectador a se tornar intensamente
preocupado com o destino do heroacutei traacutegico e ao
mesmo tempo retratando o heroacutei como uma
pessoa de valor o drama estabelece a compaixatildeo
189 Sobre a questatildeo da compaixatildeo como necessaacuteria agrave vida em comunidade ver
tambeacutem Sem fins lucrativos Capiacutetulo III p 36 et seq
210
um espectador atento teraacute apreendendo isso
aquela emoccedilatildeo Os gregos cultivavam a emoccedilatildeo
principalmente pelo drama uma crianccedila
contemporacircnea pode aprender essas mesmas
histoacuterias miacuteticas ou seu equivalente moderno
(NUSSBAUM 2008 p 428-429 traduccedilatildeo nossa)
Para tanto devem ser buscados trabalhos que familiarizem o
jovem leitor mas pensamos que tambeacutem o leitor adulto com uma vasta
variedade de possiacuteveis sofrimentos e de coisas agraves quais eacute vulneraacutevel
mas agraves quais possa reagir Tais obras levam ao reconhecimento e agrave
preocupaccedilatildeo mas especialmente agrave percepccedilatildeo de uma humanidade em
comum e de seus traccedilos especiacuteficos confirmando o ldquohoucirctos ekeicircnosrdquo de
Poet IV Enquanto Nussbaum se concentra no papel moral da
compaixatildeo afirmamos que o mesmo vale para o medo traacutegico emoccedilatildeo
que a proacutepria autora associa agrave piedade em seu The fragility of goodness
Afirmamos que a combinaccedilatildeo desses elementos da trageacutedia
favorece seus objetivos e mostra que a arte em questatildeo igualmente pode
ser entendida como um meio de emocionar ou direcionar as emoccedilotildees do
puacuteblico que satildeo despertadas por algo que afeta conjuntamente corpo e
alma Em certo momento da histoacuteria de Atenas todos compartilhavam
os momentos no teatro sendo este aleacutem de um meio de diversatildeo para a
populaccedilatildeo um potente aliado agraves formas convencionais de educaccedilatildeo para
a cidadania vida afora Os exemplos e contraexemplos expostos nos
espetaacuteculos cecircnicos podiam transmitir liccedilotildees sobre as formas mais ou
menos adequadas de comportamento em comunidade apesar de seu
caraacuteter ficcional Podiam transmitir um ideal de homem ou levar a
refletir sobre a proacutepria existecircncia preparando para a accedilatildeo real aleacutem de
despertar reflexatildeo sobre a condiccedilatildeo alheia Com isso as emoccedilotildees
traacutegicas e seu convite agrave reflexatildeo sobre a vida podem enquadrar-se em
nossas perspectivas de emoccedilotildees modificadas ou despertadas por certo
instrumento racional qual seja a trageacutedia que trabalharia como auxiliar
daquela educaccedilatildeo emocional proposta na EN Com suas sugestotildees a
trageacutedia seria mesmo capaz de conduzir as emoccedilotildees da plateia ao ponto
de purificaacute-las ou esclarececirc-las e aclarando o mundo eacute provaacutevel que
fossem capazes de extenuaacute-las expurgaacute-las ou controlaacute-las pela
kaacutetharsis190 mesmo que primeiro devessem ser excitadas pela poesia O
190 Sobre a kaacutetharsis ver Sorabji (2002 p 288 et seq) Natildeo nos debruccedilaremos
sobre esse problema em nosso estudo pois demandaria mais forccedila do que ora
apresentamos
211
que poderia contribuir para a formaccedilatildeo dos caracteres jovens sendo a
trageacutedia e sua catarse encaradas mesmo como um tipo de terapia191 das
emoccedilotildees mas tambeacutem como colaboradoras para o aperfeiccediloamento do
caraacuteter nos adultos auxiliando-os nas mudanccedilas ou efetivaccedilatildeo de seus
haacutebitos graccedilas ao conhecimento que adquirem de suas proacuteprias
emoccedilotildees
Do mesmo modo como Aristoacuteteles frisou a poesia eacute mais
filosoacutefica que a histoacuteria porque esta nos conta o que houve sendo que o
passado natildeo nos mostra algo interessante sobre as nossas possibilidades
por indicar um evento narrado idiossincraacutetico Por sua vez os trabalhos
literaacuterios nos mostram o geral plausiacutevel como padrotildees de accedilatildeo
Mostram-nos ldquocoisas como as que podem acontecerrdquo na vida do homem
levando ao prazer intelectual (e talvez esteacutetico) proacuteprio agrave trageacutedia bem
como na proposta da miacutemesis III de Ricoeur que eacute levada com o
espectador agrave vida fora da poesia pelo prazer que a trageacutedia provoca Ao
compreender tais padrotildees de importacircncia na poesia compreendemos
tambeacutem as nossas proacuteprias possibilidades Mesmo a procura pelas
emoccedilotildees dolorosas das peccedilas e textos satildeo aberturas a esse ldquoespaccedilo
potencialrdquo da poesia pois ajuda-nos a lidar com nossa falibilidade
vulnerabilidade e impotecircncia preparando-nos para a vida Isso soacute
acontece graccedilas ao movimento duplo que nos permite perceber os
acontecimentos traacutegicos como ficcionais que natildeo nos levam a agir e que
natildeo implicam escolha deliberada mas com os quais nos identificamos
sentindo emoccedilotildees reais ao reagir ao sofrimento alheio
A verossimilhanccedila e a necessidade do enredo garantem como
propusemos que entendamos os acontecimentos traacutegicos como coisas
possiacuteveis de acontecer Garante a realidade das emoccedilotildees suscitadas pela
trageacutedia com todo seu conteuacutedo cognitivo ao menos pelas crenccedilas e
opiniotildees vindas das aparecircncias e pelo julgamento de possibilidades
similares que levam os homens a se perceberem tais como satildeo
humanos nada mais nada
191 O termo terapia natildeo aparece em Aristoacuteteles mas haacute estudiosos que defendem
essa possibilidade de interpretaccedilatildeo das kaacutetharsis como Sorabji (2002 p 288 et
seq)
212
213
Conclusatildeo
Nossa tese procurou responder agrave questatildeo como operar mudanccedilas
nas emoccedilotildees a fim de que se tornassem condizentes com a proposta de
vida feliz feita por Aristoacuteteles Para responder a pergunta norteadora de
nosso trabalho buscamos dar embasamento agrave hipoacutetese levantada a partir
de EN I de que haacute uma funccedilatildeo especificamente humana que se
confunde com a felicidade entendida como melhor desempenho das
capacidades aniacutemicas em conjunto com o corpo e que tais capacidades
devido agrave natureza da alma natildeo podem ser isoladas Esse contato das
capacidades aniacutemicas percebido a partir da discussatildeo sobre a funccedilatildeo
humana levou-nos a entender que a possibilidade de se educar as
emoccedilotildees existe pelo contato entre as capacidades racional e natildeo racional
que eacute tipicamente humano e que confere uma espeacutecie de racionalidade
agraves emoccedilotildees
Para podermos sustentar essas propostas iniciamos com um
estudo sobre a natureza das emoccedilotildees A princiacutepio buscamos responder agrave
questatildeo acerca da funccedilatildeo humana e sua importacircncia na eacutetica de
Aristoacuteteles O argumento da funccedilatildeo situado em meio agraves discussotildees
sobre a melhor forma de vida possiacutevel nos indicou sua relaccedilatildeo com o
fim proposto para o homem e nos permitiu identificar a felicidade como
um tipo de vida especificamente humano no qual as capacidades da
alma seriam desempenhadas de modo excelente Compreendemos assim
a proposta de que a vida feliz eacute um tipo de atividade conforme a virtude
indicando-nos igualmente a necessidade de entender o que seja a
virtude apontando as direccedilotildees a serem tomadas em um segundo
momento de nossa pesquisa Nessas circunstacircncias apareceu-nos o tema
das emoccedilotildees vez que Aristoacuteteles aponta a virtude ao menos em sua
face moral como boa medida nas emoccedilotildees e nas accedilotildees A pesquisa
pelos tipos de vida que se candidatam ao cargo de felicidade e a
tentativa de resposta ao questionamento acerca da existecircncia de um soacute
tipo de vida como especificamente humano conduziu nossa discussatildeo
em direccedilatildeo a EN I 13 que propotildee a biparticcedilatildeo da alma e que nos
apresenta as ldquopartesrdquo racional e natildeo racional da alma bem como a
possibilidade de entrarem em acordo
A partir da proposta da existecircncia de ldquopartesrdquo na alma pudemos questionar a validade dessa afirmaccedilatildeo e chegamos agrave conclusatildeo de que
Aristoacuteteles natildeo propotildee uma alma realmente dividida mas composta por
diferentes capacidades operadas majoritariamente pelo corpo Tais
entendimentos permitiram que respondecircssemos agrave indagaccedilatildeo pela forma
de vida que constituiria o fim ou felicidade humana como realizaccedilatildeo do
214
bom desempenho de uma funccedilatildeo defendendo com o auxiacutelio de
Korsgaard Nussbaum e Reeve a impossibilidade de acatar a
interpretaccedilatildeo da eudaimoniacutea como uma vida plenamente contemplativa
Com a ajuda de estudiosos como Sorabji e Zingano percebemos que haacute
que se duvidar de propostas de leitura que tendam a esboccedilar Aristoacuteteles
como um filoacutesofo que apresenta um apreccedilo exacerbado das capacidades
racionais Pareceu-nos mais verdadeiro defender que suas teorias
apontam para uma vida mais intensa que aquela disposta agrave simples
contemplaccedilatildeo teoacuterica Propusemos uma vida que se completa na poacutelis
com o exerciacutecio de capacidades aniacutemicas desempenhadas de um modo
racional ou seja especialmente humano como propotildeem Korsgaard e
Boyle Tal defesa foi possiacutevel justamente devido ao conjunto das
capacidades indicadas pelo DA como tiacutepico agrave psychḗ do homem a saber
nutritiva perceptiva (e com esta a desiderativa) e raciocinativa Por esse
motivo julgamos pertinente desenvolvermos mas apenas de modo a
sanar nossas duacutevidas acerca das emoccedilotildees e seu papel na felicidade um
pequeno estudo a respeito da alma humana
O estudo tambeacutem contou com o apoio do De Anima texto que
confirmou nossas suspeitas e nos capacitou a defender uma teoria da
alma como um todo composto por capacidades que faculta ao corpo
realizar ou seja uma teoria hilemoacuterfica a respeito do homem que
comeccedilou a ser esboccedilada ainda com as nossas constataccedilotildees a respeito da
funccedilatildeo humana A defesa de uma psychḗ composta por capacidades
imprescindivelmente correlacionadas e que tecircm suas funccedilotildees
manifestas mesmo que imperceptivelmente no corpo teve apoio em
estudos como os de Bastit e Zingano e nos permitiu tratar as emoccedilotildees
como afecccedilotildees do conjunto corpoalma Tudo isso soacute foi possiacutevel porque
pensamos ter conseguido sustentar aleacutem de uma teoria da unidade da
alma uma teoria que entendeu a capacidade desiderativa como um todo
coeso Embora o desejo apresente diferentes tipos de manifestaccedilatildeo
relacionados aos seus objetos e agraves relaccedilotildees dos tipos de desejo com a
razatildeo proposta devedora aos estudos de Aggio dedicados agrave questatildeo do
desejo e do prazer na EN os desejos igualmente considerados paacutethē por
Aristoacuteteles nos mostraram diferentes emoccedilotildees que satildeo por eles
acompanhadas Tais emoccedilotildees como os desejos aos quais se relacionam
podem sofrer algum tipo de educaccedilatildeo validando desde o iniacutecio de
nossa pesquisa a teoria sobre a possibilidade de mudar as emoccedilotildees
favoravelmente agrave vida moral conforme a razatildeo praacutetica
Compreendemos contudo que nem todas as emoccedilotildees podem ser
mudadas ou moderadas Defender uma capacidade desiderativa
unificada reforccedilou a defesa de uma alma una e de emoccedilotildees capazes de
215
se harmonizar com as solicitaccedilotildees da capacidade racional A abertura
dos desejos e das emoccedilotildees para ao menos um tipo de razatildeo garantiu ao
homem a possibilidade de agir bem e com isso validamos a proposta
feita por Reeve Natali e Korsgaard da vida feliz entendida como
indispensavelmente atrelada agrave eupraxiacutea Neste tipo de vida o homem
apresenta por si mesmo ou por auxiacutelio de algueacutem ou das leis a virtude
moral como boa medida nas emoccedilotildees Por isso para desfecho Capiacutetulo
I buscamos compreender o que Aristoacuteteles entendia por emoccedilatildeo jaacute que
no momento da EN que parecia o mais propiacutecio a tal descriccedilatildeo o Livro
II 4 o filoacutesofo procedeu a uma listagem das coisas que chama emoccedilatildeo
Esse tipo de exposiccedilatildeo deu origem agrave boa parte dos questionamentos que
apontamos ao longo desse Capiacutetulo Recorrendo novamente ao DA mas
agora tambeacutem agrave Poet agrave Rhet e a alguns dos comentadores acima
relacionados que de certo modo abordaram o assunto esboccedilamos um
conceito de emoccedilatildeo que pode ser resumido do modo que segue
Emoccedilatildeo eacute um paacutethos que ocasiona certo tipo de movimento ou
alteraccedilatildeo no corpo de modo perceptiacutevel ou imperceptivelmente por
algo que atinge o homem a partir de fora (ou que vem de dentro da
alma quando age a memoacuteria de coisas que atingem o homem a partir de
fora) Acontece especialmente pelas consideraccedilotildees que se tem das
cirscunstacircncias nas quais ocorrem as relaccedilotildees com os outros e com o
mundo e aciona ou eacute acionada por algumas das capacidades aniacutemicas
humanas possivelmente consideradas racionais tais como a opiniatildeo o
julgamento a imaginaccedilatildeo e mesmo certos tipos de pensamento Por isso
as emoccedilotildees podem ser postas em conformidade com a reta razatildeo a fim
da virtude pois apresentam um quecirc de razatildeo desde sua constituiccedilatildeo A
emoccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles natildeo eacute mera passividade porque sugere
accedilatildeo ou reaccedilatildeo por parte de quem a sente Assim as emoccedilotildees satildeo
respostas agraves propostas que vecircm do mundo agrave sua volta diferem da
simples afecccedilatildeo e tecircm relevacircncia moral por interferirem nas accedilotildees e nas
interaccedilotildees com o mundo sendo esta sua diferenccedila em vista das demais
paacutethē
O primeiro momento de nossa tese encorajou o estudo acerca da
racionalidade que pensamos cercar as emoccedilotildees desde suas origens e
apontou-nos a necessidade de dedicar parte da pesquisa ao tratamento
das virtudes que se mostraram associadas agrave existecircncia de emoccedilotildees
educadas e natildeo contrastantes com a execuccedilatildeo excelente das atividades
humanas que se coadunam em felicidade Assim para dar
prosseguimento ao estudo o segundo Capiacutetulo teve iniacutecio com uma
breve tentativa de compreender melhor o conceito de virtude A partir
da afirmaccedilatildeo da existecircncia de dois tipos de virtude moral e intelectual
216
pudemos entender igualmente a existecircncia da virtude completa Essas
constataccedilotildees apontaram a necessidade de discutirmos as virtudes morais
compreendidas como meios termos nas accedilotildees e nas emoccedilotildees que satildeo
condiccedilatildeo necessaacuteria agrave felicidade A proposta contudo sofreu e sofre
objeccedilotildees por parte de filoacutesofos e pesquisadores que se dedicaram ao
estudo da virtude moral O problema foi tratado somente de modo a
contemplar nossas intenccedilotildees e desse tratamento pudemos concluir que a
doutrina da virtude moral proposta por Aristoacuteteles embora apresente
empecilhos agrave sua interpretaccedilatildeo pode ser tomada como uma teoria que
apresenta aspectos variados para a virtude moral
Distinguimos aspectos quantitativos quando nos fala de
intensidades ou quantidades com que sentimos emoccedilotildees aspectos
qualitativos ao indicar padrotildees para que as emoccedilotildees sejam
adequadamente sentidas e ainda aspectos conceituais quando nos
mostra que a doutrina da virtude se direciona ao entendimento dessas
qualidades da alma desiderativa em suas manifestaccedilotildees particulares
Tais manifestaccedilotildees igualmente validam certa aplicabilidade agrave teoria da
boa medida por abordarem a proposta quando se trata de accedilotildees
particulares que podem ser concretizadas sob a influecircncia das emoccedilotildees
Nossa interpretaccedilatildeo sobre o assunto e nossa posiccedilatildeo quanto agrave celeuma
sobre a validade da doutrina da boa medida eacute que todos esses traccedilos
devem ser tomados como distintivos das virtudes em questatildeo porque
natildeo excluem uns aos outros e podem tambeacutem ser aplicaacuteveis agraves accedilotildees
Estas satildeo atreladas agraves emoccedilotildees sendo que como na proposta de
Zingano aquilo que eacute plausiacutevel quanto agraves emoccedilotildees de certo modo
tambeacutem seraacute aplicaacutevel agraves accedilotildees que sugerem
A fim de levar adiante o entendimento da doutrina da boa
medida procuramos estudar as possibilidades de conferir o meio termo
agraves emoccedilotildees Deparamo-nos com as propostas da habituaccedilatildeo agrave praacutetica de
accedilotildees moralmente corretas indicando o caminho que deveriacuteamos
percorrer ateacute o teacutermino de nosso estudo para compreensatildeo da
possibilidade de se educar ou mudar as emoccedilotildees para o bem humano
Essa habituaccedilatildeo na melhor das hipoacuteteses torna o agente capaz de
escolher por si mesmo as accedilotildees que iratildeo conduzi-lo aos bens que deseja
alcanccedilar Isso daacute um caraacuteter voluntaacuterio agrave accedilatildeo e agrave virtude moral bem
como um aspecto responsaacutevel ao homem virtuoso que busca o melhor
modo de agir em direccedilatildeo ao bem supremo cumprindo aquilo que se
entende por sua funccedilatildeo Para tanto as emoccedilotildees devem ser moderadas
conforme as sugestotildees da capacidade de razatildeo como um todo o que
indicou a necessidade ao menos da virtude intelectual da prudecircncia
efetivando as virtudes morais
217
Entendemos por virtude completa a junccedilatildeo das virtudes das duas
as capacidades da alma manifestada atraveacutes de uma vivecircncia poliacutetica
favoraacutevel ao bom desempenho do raciociacutenio e de consequentes boas
accedilotildees Com isso pareceu-nos apropriado dedicar certo tempo embora
curto ao estudo das virtudes intelectuais em especial ao estudo da
prudecircncia e de seu processo ndash da deliberaccedilatildeo agrave escolha deliberada e agrave
accedilatildeo moralmente boa Esse estudo nos levou a perceber a prudecircncia
como um tipo de percepccedilatildeo praacutetica ou deliberativa diferente da
percepccedilatildeo sensiacutevel comum mas natildeo desvencilhado desta sugerindo
ainda a accedilatildeo de outras capacidades racionais entendidas do modo
proposto pelo De Anima bem como pela EN Isso indicou uma inegaacutevel
associaccedilatildeo da capacidade racional do intelecto com a percepccedilatildeo
confirmando novamente nossas propostas sobre a unidade da alma A
prudecircncia pede deliberaccedilatildeo praacutetica em casos excepcionais apresentados
pela vida Tal deliberaccedilatildeo se relaciona com um tipo especial de
imaginaccedilatildeo embora natildeo totalmente diacutespar e distante daquela
imaginaccedilatildeo entendida como (sub)capacidade da alma que eacute
intermediaacuteria entre percepccedilatildeo sensiacutevel e pensamento
A imaginaccedilatildeo deliberativa bem como a percepccedilatildeo
especificamente associada agrave prudecircncia como um tipo de visatildeo permite
um caacutelculo apresentado sob a forma do silogismo praacutetico Este iraacute
conduzir o agente desde a percepccedilatildeo daquilo que entende como um bom
fim e que eacute desejado passando pela proposiccedilatildeo de meios para que tal
fim possa ser alcanccedilado e chegando agrave indicaccedilatildeo pela escolha deliberada
da melhor forma de accedilatildeo para atingir tal fim Nesse percurso o agente
tem contato com um sem-nuacutemero de aparecircncias particulares que acabam
por indicar-lhe de certo modo o universal ao menos sob a forma do
bem supremo a ser procurado O contato com esse tipo de bem relaciona
a prudecircncia natildeo somente com particulares mas tambeacutem com algo de
universal A prudecircncia eacute asociada igualmente agrave indicaccedilatildeo dos meios
para a consecuccedilatildeo da proacutepria felicidade entendida como fim de toda
vida humana
De certo modo essas propostas relacionam todas as capacidades
da alma pois conferem agrave virtude intelectual certa semelhanccedila com a
atividade e os objetos especiacuteficos agraves virtudes intelectuais teoacutericas Por
conseguinte reforccedilamos nossa interpretaccedilatildeo de uma alma una composta
por capacidades interligadas Com isso pudemos indicar ainda que natildeo
conclusivamente a possibilidade ou mesmo a necessidade de
comunicaccedilatildeo da capacidade natildeo racional da alma com a capacidade
racional em sua vertente teoacuterica jaacute que tratamos de uma alma soacute isenta
de secccedilotildees Ao final dessa parte apresentamos a relaccedilatildeo proposta no fim
218
do Livro VI da EN da virtude natural e da virtude em sentido estrito
pois entendemos que tal questatildeo reforccedila nossa proposta da virtude
completa como junccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais que concorrem
para o exerciacutecio da funccedilatildeo humana Nesse ponto da pesquisa ainda
julgamos necessaacuterio ratificar a racionalidade das emoccedilotildees e propor
condiccedilotildees ou instrumentos para que isso aconteccedila coisa que buscamos
fazer com o terceiro e uacuteltimo momento desta tese
A tiacutetulo de desfecho da pesquisa o Capiacutetulo III buscou
fundamentar suas anaacutelises especialmente na parte final EN parte do
tratado que a princiacutepio pareceu se distanciar de todas as propostas que
defendemos ao longo do estudo apresentado anteriormente O Livro X
nos apresentou a possibilidade de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma
forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica proposta que
para estudiosos como Kenny se mostra o desfecho perfeito agraves discussotildees
sobre a felicidade iniciadas em EN I No entanto o proacuteprio Livro X nos
encorajou a seguir em frente com nossa leitura da funccedilatildeo humana como
desempenho excelente e de um modo racional do conjunto de atividades
que compotildeem a melhor forma de vida possiacutevel ao homem Em EN X 7
1176b19-26 Aristoacuteteles apresenta o questionamento ressaltado por
Sorabji entre outros que potildee em jogo a possibilidade da contemplaccedilatildeo
teoacuterica como fim da vida humana Tendo em vista que nosso tema
solicita uma defesa da capacidade natildeo racional da alma humana em
harmonia com a capacidade racional acatamos as sugestotildees dos
comentadores mas recorremos agraves questotildees sobre a alma para defesa de
nossa proposta pautada em postura contraacuteria ao entendimento da vida
feliz como vida puramente contemplativa
Para reforccedilarmos essa ideia lanccedilamos matildeo de um vocabulaacuterio
associado tanto agraves capacidades racionais humanas quanto agraves descriccedilotildees
das emoccedilotildees que encontramos ao longo de todo o estudo e das leituras
dos textos de Aristoacuteteles As propostas sobre a psychḗ indicaram que o
vocabulaacuterio em questatildeo apresentava mais que termos atrelados agrave
racionalidade Os termos designavam (sub)capacidades da alma que
permitiram explicar o despertar das emoccedilotildees pelo contato do homem
com mundo atraveacutes da percepccedilatildeo sensiacutevel Propunham a imaginaccedilatildeo
com suas elaboraccedilotildees a respeito das relaccedilotildees com os outros e poderiam
despertar tipos de pensamento ou ao menos opiniotildees e crenccedilas que
instigassem as emoccedilotildees Com o apoio do estudo sobre as virtudes
intelectuais pudemos mesmo sugerir uma ligaccedilatildeo entre essas
(sub)capacidades mencionadas com outras similares As emoccedilotildees
manteriam contatos com essas uacuteltimas (sub)capacidades tambeacutem quando
passassem pelo filtro da deliberaccedilatildeo praacutetica e da escolha deliberada
219
Esta seria uma das formas possiacuteveis de lhes conceder a forma adequada
e ao mesmo tempo um modo de alcanccedilar o melhor estado das
capacidades aniacutemicas como um todo Com isso as chamadas ldquopartesrdquo
da alma estavam relacionadas pois constatamos que mesmo quando se
propotildee o intelecto relacionado ao paacutethos a capacidade intelectual
humana constitui-se assim como toda a alma como uma soacute A relaccedilatildeo
da razatildeo teoacuterica com as emoccedilotildees natildeo foi mais bem explorada por
questotildees de exequibilidade da pesquisa mas salientamos que o assunto
nos instiga apresentando-se como tema para pesquisa futura
Apoacutes essas inferecircncias novamente consultamos o De anima a
Retoacuterica e a Poeacutetica que se mostraram fonte indispensaacutevel agrave defesa de
nossa tese Estes tratados nos permitiram finalizar nosso trabalho
estudando instrumentos diferentes da habituaccedilatildeo e do ensino defendidos
pela EN mas que se associam em uma proposta educacional que
percorre toda a vida do cidadatildeo Nas poacuteleis haacute dispositivos disponiacuteveis
para que se possa consolidar e manter a educaccedilatildeo moral emocional
Uma educaccedilatildeo que comeccedila com atenccedilatildeo a cada pessoa em famiacutelia e
que possa se estender para os ambientes de conviacutevio na cidade eacute a
proposta de Aristoacuteteles para educar os cidadatildeos e suas emoccedilotildees
Entendemos que a poacutelis apresenta entre outros recursos o teatro
e os ambientes nos quais satildeo proferidos os discursos retoacutericos como
auxiliares da formaccedilatildeo moral Esses ambientes satildeo fontes riquiacutessimas
para que a percepccedilatildeo que se inicia com o intermeacutedio dos sentidos possa
solicitar as construccedilotildees das formas de imaginaccedilatildeo e provavelmente
direcionar convenientemente os cidadatildeos a certos tipos de opiniotildees
crenccedilas e mesmo elaboraccedilotildees racionais mais sofisticadas A partir de um
estudo eacutetico apoiado na proposta aristoteacutelica sobre a alma bem como
em demais obras de Aristoacuteteles e por todos os motivos acima elencados
entendemos que a defesa da educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua
racionalidade se faz possiacutevel Tal defesa foi necessaacuteria pois eacute somente o
contato da racionalidade com as emoccedilotildees seja em sua constituiccedilatildeo seja
atraveacutes das propostas dos elementos de racionalidade que podem tocaacute-
la que percebemos a possibilidade de educar ou mudar as emoccedilotildees
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