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Juliana Santana de Almeida A RACIONALIDADE DAS EMOÇÕES EM ARISTÓTELES Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para obtenção do título de doutora em filosofia. Área de concentração: Ética e Política Orientadora: Profa. Dra. Maria de Lourdes Alves Borges Coorientadora: Profa. Dra. Marina dos Santos FLORIANÓPOLIS 2017

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Page 1: Juliana Santana de Almeidarepositorio.uft.edu.br/bitstream/11612/519/1/Juliana...3.b.1) Desejos 54 3.b.2) Os desejos menos racionais 56 3.b.3 O desejo mais racional 63 3.b.4) Desejo

Juliana Santana de Almeida

A RACIONALIDADE DAS EMOCcedilOtildeES EM

ARISTOacuteTELES

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia do Centro de

Filosofia e Ciecircncias Humanas da

Universidade Federal de Santa

Catarina como requisito parcial para

obtenccedilatildeo do tiacutetulo de doutora em

filosofia

Aacuterea de concentraccedilatildeo Eacutetica e Poliacutetica

Orientadora Profa Dra Maria de

Lourdes Alves Borges

Coorientadora Profa Dra Marina dos

Santos

FLORIANOacutePOLIS

2017

Agradecimentos

Agradeccedilo agraves professoras Maria de Lourdes Borges e Marina dos Santos

pelas orientaccedilotildees Agradeccedilo aos professores Maacuterio Nogueira e Maria

Aparecida de Oliveira pelo apoio

Agradeccedilo aos amigos Clarissa Ayres Mendes Giuliano Orsi Catherinne

Melo Alves Suecircnia Mendes e Ruacutebia Oliveira que tiveram papel

indispensaacutevel nessa etapa de vida e pesquisa Agradeccedilo Marisa e Cauatilde

famiacutelia

Agradeccedilo ao Alex pela companhia paciecircncia e compreensatildeo

Resumo

A tese trataraacute a possibilidade de educaccedilatildeo das emoccedilotildees existente graccedilas

agrave racionalidade apresentada em sua natureza e nas emoccedilotildees educadas

moralmente O estudo seraacute feito a partir das propostas da Eacutetica

Nicomaqueia recorrendo quando necessaacuterio ao De anima agrave Retoacuterica e

agrave Poeacutetica textos que dedicaram atenccedilatildeo especial ao assunto Para

defender essas propostas a investigaccedilatildeo busca compreender aquilo que

Aristoacuteteles entende por emoccedilatildeo partindo do Livro I da EN que indicaraacute

a possibilidade da capacidade desiderativa ouvir a razatildeo Com isso

percebemos que Aristoacuteteles natildeo pretende excluir os elementos natildeo

racionais da vida moral estando mais preocupado em encontrar formas

capazes de conciliar as capacidades aniacutemicas e de sentir emoccedilotildees com

as coisas certas nos momentos convenientes em direccedilatildeo a quecirc e a quem

eacute adequado Essa interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel porque o filoacutesofo compreende

a alma como algo composto por capacidades natildeo seccionadas pondo as

emoccedilotildees que satildeo da alccedilada do desiderativo desde seu iniacutecio em

contato com a capacidade racional da alma Esta uacuteltima capacidade

indica os motivos para se emocionar mas igualmente propotildee ao homem

educado moralmente uma forma moderada de emoccedilatildeo que lhe permitiraacute

levar uma vida proacutepria ao homem Tal vida agrave qual eacute imprescindiacutevel a

eupraxiacutea soacute eacute alcanccedilada com o apoio das virtudes Por isso eacute necessaacuterio

entender o que Aristoacuteteles propotildee como virtude e por que a relaciona

com a emoccedilatildeo a partir do Livro II da EN Tal estudo permite dar

continuidade agrave investigaccedilatildeo acerca das capacidades da alma humana

sugeridas por EN I 13 texto que apresenta a divisatildeo das virtudes

conforme capacidades da alma em morais e intelectuais As virtudes

configuram-se como melhor estado possiacutevel para cada capacidade da

alma sendo assunto imprescindiacutevel agrave pesquisa proposta No final da

exposiccedilatildeo da EN a alternativa de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma

forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica parece

destoar das propostas de nosso estudo Natildeo obstante o proacuteprio Livro X

traz argumentos que permitem manter a leitura da melhor forma de vida

possiacutevel ao homem ou seja de sua funccedilatildeo proacutepria como uma vida na

poacutelis que conjuga o bom exerciacutecio de todas as suas capacidades

Interpretaccedilatildeo viaacutevel pela apresentaccedilatildeo de faculdades racionais

encadeadas que podem tocar a emoccedilatildeo desde seu despertar ateacute quando

forem moderadas com o auxiacutelio da razatildeo praacutetica Contato que seraacute

facilitado pelos instrumentos aos quais os cidadatildeos podem recorrer para

garantir a chance de bem se emocionar a fim de serem virtuosos e

felizes vivendo em comunidade

Palavras-chave Emoccedilatildeo Razatildeo Virtude Felicidade

Abstract

The thesis will deal with the possibility to educate the emotions because

the rationality presented in its nature and in the morally educated

emotions The study will be based on the proposals of Nicomachean

Ethics using when necessary the De anima the Rhetoric and the

Poetics texts that have given special attention to the subject To defend

these proposals the research seeks to understand what Aristotle

understands by emotion starting from Book I of NE which will indicate

the possibility of the desiderative capacity to hear reason Because of

this we realize that Aristotle does not intend to exclude the non-rational

elements of the moral life being more concerned to find ways that

reconcile the psychic capacities and to feel emotions with the right

things in the convenient moments towards what and to whom it is

appropriate This interpretation is possible because the philosopher

understands the soul as something composed of connected capacities

putting the emotions which are from the domain of the desiderative

from its beginning in contact with the rational capacity of the soul This

last ability indicates the reasons for the corret emotion but also

proposes to the man morally educated a moderate form of emotion that

will allow him to lead anapproprieted life Such a life identified with

eupraxiacutea is only achieved with the support of the virtues Therefore it

is necessary to understand what Aristotle proposes as virtue and why it

relates it to emotion from Book II of NE This study allows us to

continue the investigation of the human soul capacities suggested by

ENI 13 a text that presents the division of the virtues according to the

souls capacities into moral and intellectual virtues The virtues are the

best possible state for each capacity of the soul being essential subject

to the proposed research At the end of the NE exposition the alternative

of interpreting eudaimōniacutea as a life totally dedicated to theoretical

contemplation seems to beadequate to the proposals of our study

Nevertheless Book X itself contains arguments that allow us to keep

understanding the best way of life possible for man that is his own

function as a life in the poacutelis which combines the good exercise of all

his capacities Interpretation viable by the presentation of rational

chained faculties that can touch the emotion from its awakening to

when they are moderated with the aid of practical reason Contact that

will be facilitated by the instruments that the citizens can use to

guarantee the chance of feel appropriatly in order to be virtuous and

happy living in community

Key-words Emotion Reason Virtue Happiness

Abreviaccedilotildees

Obras de Aristoacuteteles

Poet - Poeacutetica

Top ndash Toacutepicos

DA ndash De Anima

MA ndash Motu Animalium

Met ndash Metafiacutesica

EN ndash Eacutetica a Nicocircmaco

EE ndash Eacutetica a Eudemo

Pol ndash Poliacutetica

Ret ndash Retoacuterica

Obra de Platatildeo

Rep - Repuacuteblica

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo

17

Capiacutetulo I - A emoccedilatildeo e suas

implicaccedilotildees na vida feliz

25

1 Primeiros apontamentos

25

2 Funccedilatildeo proacutepria ao homem

27

3 EN I 13 a alma humana e a

emoccedilatildeo

39

3a) Capacidades da alma

43

3b) A capacidade desiderativa da

alma as accedilotildees e as emoccedilotildees na

vida feliz

50

3b1) Desejos

54

3b2) Os desejos menos racionais

56

3b3 O desejo mais racional

63

3b4) Desejo e accedilatildeo rumo agrave accedilatildeo

boa moralmente

66

4 Em busca da definiccedilatildeo

de emoccedilatildeo em Aristoacuteteles

72

4a) Alma corpo e emoccedilotildees

interpretadas a partir de EN I com

o auxiacutelio do DA da Rhet e da

Poet

78

5 A emoccedilatildeo

90

Capiacutetulo II - Virtude como

possibilidade de acordo entre

razatildeo e emoccedilatildeo

93

1 Virtude completa virtudes

virtude moral

93

2 A virtude moral

99

2a) Caraacuteter tautoloacutegico ou trivial

da doutrina da virtude moral como

mediania

102

2b) Exemplo da viabilidade da

virtude moral como mediania nas

emoccedilotildees a virtude particular da

coragem e o medo

111

2c) A forccedila do haacutebito para o

correto se emocionar

117

2d) Virtude voluntaacuteria diante das

circunstacircncias e responsabilidade

121

3 Metriopaacutethēia o ideal de

emoccedilatildeo para a vida virtuosa

125

4 Virtudes intelectuais satildeo

necessaacuterias agraves virtudes morais e

para a ldquoboa formardquo das

emoccedilotildees

133

4a) A prudecircncia

135

4b) Deliberaccedilatildeo

138

4c) Escolha deliberada

140

4d) Prudecircncia deliberaccedilatildeo

escolha deliberada e sua relaccedilatildeo

com o particular e o universal

142

5 Virtude natural e virtude em

sentido estrito

148

Capiacutetulo III -

A racionalidade das emoccedilotildees

153

1 Eudaiacutemōniacutea vida dedicada agrave

atividade racional (EN X)

153

2 A racionalidade das emoccedilotildees

interpretaccedilotildees desde EN I agraves

luzes do De Anima

157

2 a) Um quecirc ou o quecirc de

racionalidade nas emoccedilotildees

161

2 b) Percepccedilatildeo

162

2 c) Imaginaccedilatildeo

170

2 d) Pensamentos

173

2 e) Intelecto praacutetico 177

2 f) Opiniatildeo

183

3 O acordo entre a razatildeo e as

emoccedilotildees a educaccedilatildeo moral e os

instrumentos de modificaccedilatildeo da

emoccedilatildeo

187

3 a) Educaccedilatildeo haacutebito e lei para a virtude

187

3 b) A retoacuterica como instrumento

de mudanccedila nas emoccedilotildees

193

3 c) A poesia como facilitadora

da educaccedilatildeo moral

201

Conclusatildeo

213

Referecircncias

221

17

Introduccedilatildeo

Na histoacuteria da filosofia o entendimento acerca do que sejam as

emoccedilotildees (paacutethē) varia Aristoacuteteles1 se viu em meio a posturas diversas

sobre o assunto antes e depois de suas teorias apareceram fortes

oposiccedilotildees agrave intervenccedilatildeo das emoccedilotildees na vida moral2 Provavelmente

esse tipo de apreciaccedilatildeo seja o motivo para as inuacutemeras consideraccedilotildees

cautelosas que o filoacutesofo faz sobre o paacutethos em sua proposta eacutetica

entretanto Aristoacuteteles natildeo se mostra um pensador desfavoraacutevel agrave

participaccedilatildeo do emocional na vida humana feliz mas mesmo nas teorias

do filoacutesofo grego o tema das emoccedilotildees pode causar embaraccedilos Para

exemplificar o termo paacutethē que ora traduzimos por ldquoemoccedilotildeesrdquo pode

admitir sentidos mais amplos que aquele atribuiacutedo hoje em dia agrave palavra

emoccedilatildeo razatildeo pela qual tambeacutem se utilizam para traduzi-lo palavras

como ldquopaixotildeesrdquo ou ldquoafecccedilotildeesrdquo dentre outras Como observa Konstan

(2006 p IX et seq) em relaccedilatildeo agrave Liacutengua Inglesa atual haacute uma

diferenccedila consideraacutevel entre aquilo que os gregos dos tempos do

1 Observa Zingano que segundo Aristoacuteteles o paacutethos natildeo precisa ser extirpado

mas deve receber uma justa medida e isso indica a necessidade de ldquoexaminaacute-lo

mediante uma deliberaccedilatildeo pois a virtude eacute uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha

deliberadardquo (ZINGANO 2007 p 165) Tal tese que confirmaremos mais

adiante considera central a teoria das emoccedilotildees proposta por Aristoacuteteles 2 Tal pensamento afirma Sorabji (2000 p 181 traduccedilatildeo nossa cf tambeacutem p 7

et seq) eacute defendido por Crisipo embora natildeo por todos os estoacuteicos ldquoMas o que

eu quero considerar neste capiacutetulo eacute a tese muito mais radical de Crisipo de que

quase todas elas devem ser erradicadas Que razotildees poderia haver para tantordquo

Contudo as opiniotildees sobre a aceitaccedilatildeo estoacuteica da erradicaccedilatildeo da emoccedilatildeo

parecem divergir Enquanto os manuais de Histoacuteria da Filosofia como aqueles

que foram escritos por Kenny (2011 p 328) e Reale (2003 p 292) parecem

afirmar que todos os estoacuteicos concordavam com a necessidade de erradicaccedilatildeo

das emoccedilotildees haacute estudos mais minuciosos sobre o assunto que parecem

discordar dessa proposta e que trazem motivos significativos para tal

discordacircncia Esse eacute o caso da tese de doutorado defendida por Santos na

UNICAMP em 2008 Com relaccedilatildeo a esse tema vale tambeacutem conferir a

proposta do proacuteprio Sorabji que nos apresenta entendimentos variados para o

termo apaacutethēia trazidos pelos estoicos (ANTISSERI D REALE G Histoacuteria

da filosofia Vol 1 Satildeo Paulo Paulus 2003 KENNY A Uma nova histoacuteria

da filosofia Vol 1 Satildeo Paulo Loyola 2011 SANTOS R A Sobre a doutrina

das paixotildees no estoicismo 2008 100f Tese (Doutorado em Filosofia) ndash

UNICAMP Campinas 2008 Disponiacutevel em

lthttpwwwbibliotecadigitalunicampbrdocumentcode=vtls000439214ampfd=

ygt Acesso em 22 de jun de 2015)

18

Estagirita consideravam ldquoemoccedilatildeordquo (paacutethos traduzido pelo estudioso por

emotion) e o que consideramos emoccedilatildeo hoje O proacuteprio Aristoacuteteles nos

leva a admitir isso com o que apresenta em Metafiacutesica ao trazer quatro

possibilidades de entendimento do termo em questatildeo

(1) Afecccedilotildees significam em um primeiro

sentido uma qualidade segundo a qual algo pode

se alterar por exemplo o branco e o preto o doce

e o amargo o peso e a leveza e todas as

qualidades deste tipo

(2) Noutro sentido afecccedilatildeo significa a atuaccedilatildeo

dessas alteraccedilotildees isto eacute as alteraccedilotildees que estatildeo

em ato

(3) Ademais dizem-se afecccedilotildees especialmente

as alteraccedilotildees e mudanccedilas danosas e sobretudo os

danos que produzem dor

(4) Enfim chamam-se afecccedilotildees as grandes

calamidades e as grandes dores (Met Δ 1022b15-

21)3

Zingano (2007 p 147-148) traz consideraccedilotildees interessantes

sobre este trecho e suas possibilidades de interpretaccedilatildeo em seus Estudos

de Eacutetica Antiga O estudioso parece optar por entender paacutethos no

sentido de emoccedilatildeo em termos eacuteticos como um ser afetado ou uma

alteraccedilatildeo que diz respeito agrave natureza praacutetica do agente uma afecccedilatildeo

que eacute fonte de accedilatildeo devido a algo provocado por outrem Algumas

dessas possibilidades interpretativas (que levam a diferentes escolhas de

traduccedilatildeo) satildeo empregadas nos textos que aqui estudaremos

Para citar um exemplo em nota agrave traduccedilatildeo do De Anima feita por

Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis a tradutora afirma haver trecircs significados

nesse tratado para a expressatildeo tagrave paacutethē que traduz por ldquoas afecccedilotildeesrdquo

(REIS 2006 p 150) O significado do termo varia do sentido geral de

atributos e predicados a ldquoformas de passividade e de oposiccedilatildeo agraves

atividadesrdquo e a ldquoemoccedilotildeesrdquo contudo enfocaremos aqui as acepccedilotildees que

3 Traduccedilatildeo de Marcelo Perini (2010) no original Πάθος λέγεται ἕνα μὲν

τρόπον ποιότης καθ ἣν ἀλλοιοῦσθαι ἐνδέχεται οἷον τὸ λευκὸν καὶ τὸ μέλαν

καὶ γλυκὺ καὶ πικρόν καὶ βαρύτης καὶ κουφότης καὶ ὅσα ἄλλα τοιαῦτα ἕνα δὲ

αἱ τούτων ἐνέργειαι καὶ ἀλλοιώσεις ἤδη ἔτι τούτων μᾶλλον αἱ βλαβεραὶ

ἀλλοιώσεις καὶ κινήσεις καὶ μάλιστα αἱ λυπηραὶ βλάβαι ἔτι τὰ μεγέθη τῶν

συμφορῶν καὶ λυπηρῶν πάθη λέγεται

19

tocam nosso objeto de estudo a saber aquelas paacutethē da relaccedilatildeo que

aparece especialmente na Eacutetica Nicomaqueia (II 3 1105b19-22) mas

que igualmente se repete nas listas apresentadas na Retoacuterica (II 2

1378a19-22) e no De Anima (I 1 403a16-18) aleacutem de contemplarem as

duas ldquoemoccedilotildeesrdquo descritas na Poeacutetica raiva arrojo inveja medo

alegria amizade oacutedio anelo emulaccedilatildeo piedade calma inimizade

desvergonha amabilidade indignaccedilatildeo e maacutegoa Esses uacuteltimos textos

viratildeo em nosso auxiacutelio quando se apresentarem instrumentos eficazes agrave

compreensatildeo de algumas questotildees suscitadas pela EN a respeito da

nossa investigaccedilatildeo que versaraacute sobre a possibilidade de mudanccedila ou

educaccedilatildeo das emoccedilotildees graccedilas agrave racionalidade apresentada em sua

natureza e que tecircm lugar ou influecircncia nas emoccedilotildees educadas

moralmente entendimento possiacutevel a partir da concepccedilatildeo de uma alma

una com capacidades variadas mas conectadas entre si

A partir das propostas da Eacutetica Nicomaqueia e dos textos que

seratildeo auxiliares interpretativos de suas teorias salientamos a opccedilatildeo pelo

direcionamento do estudo do termo no sentido em que ele pode ser

traduzido por ldquoemoccedilatildeordquo Natildeo usaremos a palavra paixatildeo porque hoje

em dia como ressaltam Sorabji (2002 p 7) e Zingano (2007 p 148)

pode restringir o entendimento do leitor e levaacute-lo a pensar que se tratem

apenas de emoccedilotildees mais fortes Por conseguinte justificamos nossa

opccedilatildeo por comeccedilar o estudo ora apresentado em busca de uma

compreensatildeo melhor e maior daquilo que Aristoacuteteles propotildee ser a

emoccedilatildeo partindo do Livro I da EN de onde retiramos o pensamento que

permearaacute toda a nossa pesquisa as emoccedilotildees satildeo sofridas

concomitantemente por corpo e alma e satildeo educaacuteveis por serem de

certo modo racionais caracteriacutestica devida agrave unicidade da alma

humana

Esse tipo de entendimento das emoccedilotildees tem por base o projeto

filosoacutefico de Aristoacuteteles que embora apresente diversos tratados

dedicados a diversos objetos de pesquisa com abordagem conforme o

objeto em anaacutelise faz com que as obras se sustentem entre si Tal

entendimento permitiraacute tambeacutem respondermos agrave questatildeo norteadora

desta tese como mudar as emoccedilotildees educando-as conforme as

solicitaccedilotildees da razatildeo praacutetica A percepccedilatildeo de que a pesquisa

empreendida por Aristoacuteteles eacute uma obra com coerecircncia interna permite

leituras de filoacutesofos contemporacircneos como Martha Nussbaum que por

vezes recorre a mais de um tratado aristoteacutelico para defender suas

interpretaccedilotildees Esse olhar para o conjunto da obra de Aristoacuteteles

igualmente nos conduz a leituras como aquelas feitas por Zingano e

Sorabji ao perceberem que Aristoacuteteles natildeo exclui conteuacutedos

20

emocionais mas que estaacute mais preocupado em encontrar formas capazes

de conciliar as capacidades aniacutemicas e com isso sentir emoccedilotildees com as

coisas certas nos momentos convenientes em direccedilatildeo a quecirc e a quem eacute

adequado A essas propostas eacute imprescindiacutevel acrescentar aquelas que

compreendem a alma descrita pelo filoacutesofo como algo composto por

partes natildeo seccionadas para que possamos defender emoccedilotildees que desde

seu iniacutecio tecircm contato com a capacidade racional da alma que indica os

motivos para se emocionar Essa capacidade racional igualmente propotildee

ao homem educado moralmente uma forma moderada de emoccedilatildeo que

lhe permitiraacute levar uma vida em conformidade com a virtude com a

razatildeo como um todo e por isso feliz

Para podermos sustentar essas propostas iniciaremos nossa tese

com um estudo sobre a natureza das emoccedilotildees buscando entender qual a

natureza da emoccedilatildeo Qual seu papel na teoria da felicidade de

Aristoacuteteles Para responder a essas perguntas procuraremos

compreender o argumento da funccedilatildeo humana e sua relaccedilatildeo com o fim

proposto agrave vida do homem Tal caminho nos indicaraacute a necessidade de

definir o lugar das emoccedilotildees na vida feliz e nos encaminharaacute agrave discussatildeo

da relaccedilatildeo imprescindiacutevel entre emoccedilotildees e a virtude considerada

completa a virtude intelectual a virtude moral e suas formas

particulares Essa pesquisa encaminharaacute nossa discussatildeo agrave anaacutelise dos

tipos de vida que se candidatam ao cargo de felicidade e ao

questionamento de tal vida ser definida por Aristoacuteteles como a

existecircncia dedicada agrave contemplaccedilatildeo intelectual filosoacutefica (discussatildeo que

somente encontraraacute seu desfecho com o nosso terceiro capiacutetulo) O

primeiro capiacutetulo prosseguiraacute com a discussatildeo apresentada em EN I 13 a

respeito da alma humana e de suas capacidades Esse estudo seraacute

necessaacuterio pois eacute a partir da proposta da existecircncia de capacidades

diversas na alma que poderemos inquirir acerca dos diferentes tipos de

vida e que provavelmente possamos indicar um deles como a vida mais

propriamente humana

Nesse ponto da EN Aristoacuteteles nos apresenta uma alma bipartida

que comporta as emoccedilotildees em sua capacidade natildeo racional capacidade

esta que no entanto apresenta-se como apta a ouvir e obedecer agrave razatildeo

primeiro sinal da possibilidade de defesa da racionalidade e

educabilidade das emoccedilotildees Por esse motivo julgamos pertinente

desenvolver na medida em que contemple nossos interesses um

pequeno estudo a respeito da alma humana buscando para essa teoria o

auxiacutelio do tratado sobre a alma a fim de obter maior clareza quanto agrave

questatildeo O estudo do De Anima permitiraacute reforccedilar uma teoria da alma

como um todo composto por partes que mantecircm certo contato bem

21

como a teoria hilemoacutefica a respeito do homem que comeccedila a demonstrar

seus contornos ainda com o assunto da funccedilatildeo proacutepria ao homem na EN

A defesa de uma psychḗ composta por capacidades imprescindivelmente

correlacionadas e que tem suas funccedilotildees manifestas mesmo que

imperceptivelmente no corpo nos permitiraacute tratar as emoccedilotildees como

afecccedilotildees do conjunto corpoalma Tudo isso soacute seraacute possiacutevel se

conseguirmos sustentar aleacutem de uma teoria da unidade da alma uma

teoria que proponha a capacidade da alma responsaacutevel pelas emoccedilotildees a

desiderativa como um todo coeso embora composta por diferentes

tipos de desejos conforme seus objetos e suas relaccedilotildees com a razatildeo

Portanto deveremos apreciar brevemente as propostas de Aristoacuteteles

acerca da capacidade desiderativa desde que o desejo e seus tipos

igualmente satildeo considerados paacutethē Defender uma capacidade

desiderativa unificada nos permitiraacute defender tambeacutem uma alma

unificada e emoccedilotildees capazes de concordar com as solicitaccedilotildees da

capacidade racional ao menos em sua vertente praacutetica Poderemos

entender que haacute desejos mais ou menos aptos a obedecer agrave razatildeo assim

como seratildeo igualmente as emoccedilotildees diretamente a eles relacionadas Por

conseguinte a possibilidade de educaccedilatildeo que veremos se abrir agrave

capacidade desiderativa como um todo indicaraacute a possibilidade de

propor emoccedilotildees capazes de serem educadas conforme a razatildeo teoria

que defenderemos mais detalhadamente no terceiro capiacutetulo Para tal

seraacute necessaacuterio indicarmos como essa abertura dos desejos agrave razatildeo

permitiraacute ao homem agir bem diferenciando accedilotildees e atividades de

simples movimentos fiacutesicos sendo as primeiras intimamente

relacionadas ao desejo pelos fins e por isso agrave possibilidade de apreciaccedilatildeo

eacutetica

Com isso identificaremos a eupraxiacutea como elemente

imprescindiacutevel agrave vida feliz justificando todo o percurso argumentativo

do primeiro capiacutetulo desde a proposta de anaacutelise da funccedilatildeo humana que

leva agrave consideraccedilatildeo de diferentes tipos de vida existentes em

conformidade com as diferentes capacidades aniacutemicas que em boa

associaccedilatildeo permitiratildeo a real felicidade Esta seraacute compreendida como

um tipo excelente de desempenho das accedilotildees e atividades adequadas ao

homem e somente ao homem mas que dependem igualmente da boa

condiccedilatildeo emocional Por isso seraacute necessaacuterio para desfecho do

primeiro momento de nossa pesquisa buscar compreender o que

Aristoacuteteles descreve como emoccedilatildeo e esboccedilar um conceito de emoccedilatildeo

com apoio das sugestotildees dos quatro tratados abordados nesse estudo

Essa proposta permitiraacute que reforcemos as teorias hilemoacuterficas que

descreveratildeo o paacutethos aristoteacutelico como possiacutevel ouvinte da

22

racionalidade desde o momento em que eacute despertado Permitiraacute ainda

que atentemos agrave obrigatoriedade de tratar as virtudes jaacute que se

mostraratildeo dependentes de emoccedilotildees educadas e que natildeo contrastem com

a execuccedilatildeo excelente das atividades humanas que se coadunam em

felicidade

A fim de obtermos sucesso na defesa da educabilidade das

emoccedilotildees devida agrave sua racionalidade - tendo em vista o que nos foi

proposto pelo argumento da funccedilatildeo humana pela proposta de uma

capacidade natildeo racional da alma que se apresenta como capaz de ouvir a

capacidade racional e das relaccedilotildees das emoccedilotildees com as virtudes

mencionadas em meio a esses assuntos - julgamos necessaacuterio dedicar o

segundo capiacutetulo de nossa tese ao estudo da relaccedilatildeo das emoccedilotildees com as

virtudes Iniciamos esse momento da pesquisa agrave procura de

compreender melhor e apenas na medida das necessidades de nossa

pesquisa o que Aristoacuteteles propotildee como virtude e por que a relaciona

com a emoccedilatildeo a partir do Livro II da EN O estudo nos conduziraacute a

diferentes tratamentos da virtude apreciaremos a virtude entendida de

um modo geral ou em sua completude como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave

felicidade estudaremos os componentes de tal virtude completa

entendidos como a virtude moral as formas particulares da virtude

moral e a virtude intelectual Tal estudo nos permitiraacute dar continuidade

agrave investigaccedilatildeo acerca das capacidades da alma humana sugeridas por EN

I 13 texto que apresenta a divisatildeo das virtudes conforme ldquopartesrdquo da

alma em virtudes morais e intelectuais Para reforccedilar o que

constataremos com o estudo da virtude moral chamaremos em auxiacutelio o

exemplo da coragem prosseguindo pelo percurso argumentativo da

discussatildeo feita por Aristoacuteteles na medida do possiacutevel dos Livros III a V

da EN que proporaacute as virtudes morais particulares como concretizaccedilatildeo

do melhor estado possiacutevel para cada funccedilatildeo da capacidade desiderativa

do homem Esse caminho nos permitiraacute sair de possiacuteveis embaraccedilos que

cercam a interpretaccedilatildeo da virtude moral como boa medida nas emoccedilotildees

Esse estudo nos apresentaraacute a ideia de virtude como boa medida

nas emoccedilotildees alcanccedilada por meio da habituaccedilatildeo agrave praacutetica de accedilotildees

moralmente corretas A visita a essa forma de interpretaccedilatildeo eacute

imprescindiacutevel a fim de compreender a possibilidade de se educar ou

mudar as emoccedilotildees favoravelmente ao bem humano A discussatildeo da

virtude moral nos apresentaraacute seu caraacuteter voluntaacuterio bem como

apresentaraacute o homem virtuoso como responsaacutevel por suas accedilotildees

especialmente das accedilotildees que desempenha adequadamente cumprindo

aquilo que se entende por sua funccedilatildeo Com isso alcanccedilaremos a

proposta da metriopaacutethēia ideal de emoccedilatildeo concorde com a capacidade

23

racional em sua face praacutetica (e talvez tambeacutem com sua face teoacuterica)

mas nos depararemos com a impossibilidade de todas as emoccedilotildees serem

moderadas Embora natildeo seja uma proposta de Aristoacuteteles a ideia da

metriopaacutethēia se nos apresentaraacute como melhor forma de compreender as

emoccedilotildees adequadas agrave boa medida As emoccedilotildees moderadas possibilitam

as virtudes morais mas nos indicaratildeo igualmente a necessidade ao

menos da virtude intelectual da prudecircncia para que tais virtudes venham

a efetivar-se

O estudo da prudecircncia e de seus componentes - deliberaccedilatildeo

escolha deliberada e accedilatildeo moralmente adequada - nos permitiraacute entender

melhor a relaccedilatildeo entre as capacidades da alma Se as virtudes morais

podem ser entendidas como melhor desempenho de certas capacidades

humanas que somente se concretizam diante de emoccedilotildees que cedem aos

conselhos da razatildeo ratificaremos nossa interpretaccedilatildeo acerca de uma

alma composta por faculdades em acordo Sendo a prudecircncia uma

virtude intelectual indispensaacutevel agrave vida feliz identificaremos a

necessidade de tratar de seus objetos Por isso necessitaremos discutir

sua relaccedilatildeo com coisas particulares e mutaacuteveis proacuteprias ao acircmbito da

prāxis mas tambeacutem de seu direcionamento para os assuntos

considerados universais dentre os quais encontramos a proposta

aristoteacutelica da felicidade o bem norteador de toda accedilatildeo que possa ser

considerada moralmente correta

A discussatildeo da relaccedilatildeo entre a prudecircncia particulares e universais

indica a unidade da alma identificada a partir dos objetos

compartilhados pela capacidade uacutenica do intelecto em seus aspectos

praacutetico e teoacuterico Esses assuntos iniciados por nossa anaacutelise dos

primeiros Livros da EN nos levaratildeo pelas questotildees sugeridas pelo Livro

VI que nos manteratildeo em contato direto com as discussotildees sobre a alma

Por isso a finalizaccedilatildeo dessa parte de nosso estudo seraacute feita com a

relaccedilatildeo apresentada ao final do Livro mencionado entre virtude natural

e virtude em sentido estrito Julgamos que tal questatildeo seraacute de grande

valia para o entendimento daquilo que Aristoacuteteles propocircs como virtude

completa relacionada como se mostraraacute com a funccedilatildeo proacutepria ao

homem e agrave praacutetica de boas accedilotildees propostas por um desejo adequado agrave

razatildeo bem como por emoccedilotildees doacuteceis agrave razatildeo Essa possiacutevel docilidade

demandaraacute pesquisar a racionalidade implicada nas emoccedilotildees

Para garantir essas interpretaccedilotildees prosseguiremos com nossa

anaacutelise ateacute o final da exposiccedilatildeo da EN momento que boa parte das

interpretaccedilotildees corriqueiras do livro X parecem se distanciar de todas as

propostas que defenderemos ao longo de nossa tese Em EN X nos

depararemos como a alternativa de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma

24

forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica proposta que

a muitos soa como desfecho ideal das discussotildees iniciadas com o tratado

em questatildeo Natildeo obstante o proacuteprio Livro X nos encorajaraacute a manter a

leitura da melhor forma de vida possiacutevel ao homem ou seja de sua

funccedilatildeo proacutepria como uma vida na poacutelis que conjugue o bom exerciacutecio

de todas as suas capacidades aniacutemicas Essa interpretaccedilatildeo seraacute

viabilizada e reforccedilada pela apresentaccedilatildeo de faculdades racionais

encadeadas que podem tocar a emoccedilatildeo desde seu despertar ateacute quando

forem moderadas com o auxiacutelio da razatildeo praacutetica Essa leitura ganharaacute

apoio nos demais tratados estudados e em suas propostas sobre as

emoccedilotildees que nos indicaratildeo um amplo vocabulaacuterio relacionado tanto agraves

emoccedilotildees quanto agraves capacidades racionais da alma humana colocando

em cena novamente a ligaccedilatildeo das capacidades racional e natildeo racional da

alma

A apreciaccedilatildeo do mencionado vocabulaacuterio nos indicaraacute

(sub)capacidades da alma que atuam na emoccedilatildeo e nos encaminharaacute para

o desfecho de nossa pesquisa Estudaremos brevemente a percepccedilatildeo

sensiacutevel a imaginaccedilatildeo o intelecto e certos tipos de pensamento dentre

os quais poderemos localizar a opiniatildeo responsaacuteveis pelo despertar de

boa parte das emoccedilotildees ou que se envolveratildeo com a educaccedilatildeo moral

emocional Novamente as consultas ao De Anima agrave Retoacuterica e agrave Poeacutetica

se mostraratildeo fonte indispensaacutevel agrave defesa de nossa tese acerca da

educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua implicaccedilatildeo com a razatildeo e com

elementos de razatildeo devido agrave proacutepria natureza aniacutemica do homem Estes

tratados igualmente nos permitiratildeo investigar oportunidades para

direcionar as emoccedilotildees de modo que consigam ouvir as propostas das

diversas formas de razatildeo existentes Por fim apresentaremos os

instrumentos aos quais os cidadatildeos podem recorrer para garantir a

chance de bem se emocionar a fim de se tornarem virtuosos e felizes

naquele que identificaremos como meio mais propiacutecio ao florescimento

humano a poacutelis

25

Capiacutetulo I

A emoccedilatildeo e suas implicaccedilotildees na vida feliz

1 Primeiros apontamentos

A leitura da EN nos traz uma seacuterie de indagaccedilotildees quanto agrave

natureza das emoccedilotildees A lista de tais questotildees pode comeccedilar pela

afirmaccedilatildeo que agraves vezes aparece nesse texto segundo a qual as emoccedilotildees

satildeo natildeo racionais Por esse motivo talvez tenhamos a impressatildeo

frequente de que o filoacutesofo em alguma medida natildeo seja favoraacutevel agrave

intervenccedilatildeo das emoccedilotildees nas accedilotildees consideradas boas moralmente De

acordo com a proposta de uma alma que ldquotem uma parte racional e uma

irracionalrdquo (EN I 13 1102a27-28)4 as emoccedilotildees tecircm por sede a

capacidade natildeo racional da alma a desiderativa de onde viriam

igualmente as suas relaccedilotildees com certos prazeres e dores Tais

associaccedilotildees com outros elementos que tambeacutem natildeo costumavam receber

apreciaccedilatildeo favoraacutevel em questotildees morais parecem agravar a situaccedilatildeo das

emoccedilotildees e provavelmente por isso sejam feitas afirmaccedilotildees que parecem

colocar a emoccedilatildeo como algo arredio aos ditames da razatildeo sendo mesmo

capaz de sobrepor-se a estes (EN IX 8 1168b29-35 1169a1-8)5 Vaacuterias

assertivas que apresentam um tom de advertecircncia quanto aos perigos de

se entregar agraves emoccedilotildees aparecem ao longo do texto

A primeira menccedilatildeo que o tratado faz ao assunto pode confirmar

isso no Livro I da EN Aristoacuteteles explica o motivo pelo qual os jovens

natildeo tiram bom proveito das liccedilotildees sobre poliacutetica primeiro natildeo tecircm

experiecircncia dos fatos da vida em torno dos quais giram as discussotildees

dessa natureza segundo os jovens tendem a seguir suas paixotildees (EN I 1

1095a5) Por isso o estudo da ciecircncia poliacutetica lhes seraacute vatildeo jaacute que o fim

que se almeja com essa mateacuteria eacute a accedilatildeo e natildeo o conhecimento (EN I 1

1095a6) Essas falhas abrangem tanto aqueles que satildeo jovens em anos

quanto os que satildeo jovens em caraacuteter pois o defeito natildeo depende da

idade mas do modo de viver e seguir cada objetivo proposto pela

emoccedilatildeo (EN I 1 1095a9) ldquoA tais pessoas como aos incontinentes a

ciecircncia natildeo traz proveito algum mas aos que desejam e agem de acordo

4 Todas as traduccedilotildees da EN seratildeo feitas a partir da traduccedilatildeo francesa de J Tricot

(2012) com exceccedilatildeo dos trechos I 13 a III 8 que tecircm traduccedilatildeo de Zingano

(2008) no original οἷον τὸ μὲν ἄλογον αὐτῆς εἶναι τὸ δὲ λόγον ἔχον 5 O filoacutesofo parece expressar postura semelhante tambeacutem em EN 1106b35

1107a1-9 1097b35 1098a1-17 1168b34-35 1169a18 1177a12-18 1178a6-7

etc

26

com um princiacutepio racional o conhecimento desses assuntos faraacute grande

vantagemrdquo (EN I 1 1095a11-15)6 na distinccedilatildeo do que seja o bem

Por conseguinte em nada nos admiraria a proposta da melhor

vida possiacutevel como aquela guiada pela reta razatildeo A felicidade fim

(teacutelos) da vida humana seria descrita como uma atividade mas uma

atividade (eneacutergeia) realizada conforme o que manda a razatildeo Tal

atividade deve ser de acordo com o que eacute descrito como o que haacute de

melhor no homem e que o diferencia dos outros animais e das plantas

(EN I 6 1097b35 1098a1-5) Esse tipo de vida natildeo seria possiacutevel sem as

virtudes especialmente sem a virtude moral pois aleacutem de ser conforme

o que haacute de mais proacuteprio ao homem se isso fosse a razatildeo a vida boa

moralmente e feliz seria aquela que permitiria desempenhar da melhor

forma a funccedilatildeo humana e segundo Aristoacuteteles desempenhar bem sua

funccedilatildeo eacute ser virtuoso

Caso seja possiacutevel entender essa proposta como indicativo de que

o homem deva ouvir sua razatildeo a fim de possuir a mais excelente virtude

e a melhor vida precisamos ressaltar que Aristoacuteteles nos chama atenccedilatildeo

para que a razatildeo deva ser o guia ou deva ao menos estar presente em

todos os homens Natildeo conveacutem esquecer que no Livro X o filoacutesofo

afirmaraacute que tal possibilidade natildeo eacute a mais recorrente - embora devesse

ser - agrave vida humana comum Os homens em sua grande maioria natildeo

obedecem espontaneamente agrave razatildeo mesmo sendo capazes de fazecirc-lo

Por isso natildeo tendem a uma vida de pura contemplaccedilatildeo que na verdade

extrapolaria as possibilidades humanas Na maior parte das vezes os

elementos da capacidade natildeo racional da alma conduzem as accedilotildees

sendo necessaacuterio portanto buscar moderaacute-los para que haja excelecircncia

dessa capacidade e que se viva a vida propriamente humana7 Diante

dessa impossibilidade de a capacidade racional reger de modo exclusivo

a vida humana o que levaria o homem a desempenhar uma funccedilatildeo

6 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original τοῖς γὰρ τοιούτοις ἀνόνητος ἡ γνῶσις γίνεται καθάπερ τοῖς

ἀκρατέσιν τοῖς δὲ κατὰ λόγον τὰς ὀρέξεις ποιουμένοις καὶ πράττουσι

πολυωφελὲς ἂν εἴη τὸ περὶ τούτων εἰδέναι 7 Essa proposta eacute encontrada tambeacutem em Poliacutetica 1253a25-28 ldquoQue nessas

condiccedilotildees a cidade seja tambeacutem anterior naturalmente ao indiviacuteduo isso eacute

evidente se com efeito o indiviacuteduo tomado isoladamente eacute incapaz de bastar a

si mesmo seraacute por relaccedilatildeo agrave cidade como nos nossos outros exemplos as

partes satildeo em relaccedilatildeo ao todo Mas o homem que estaacute na incapacidade de ser

membro de uma comunidade ou que disso natildeo experimenta nada a necessidade

porque ele se basta a si mesmo natildeo faz em nada parte de uma cidade e por

consequecircncia eacute ou um bruto ou um deusrdquo

27

totalmente racional ou conforme a razatildeo como sua marca distintiva

cabe-nos questionar qual seria a funccedilatildeo proacutepria ao homem de acordo

com a EN

2 Funccedilatildeo proacutepria ao homem

Aristoacuteteles inaugura as discussotildees da EN afirmando que toda arte

bem como toda atividade tende a um fim ou bem Os bens podem ser

diferentes ou idecircnticos agraves suas fontes originadoras e por isso existem

tantos fins quanto haacute artes e atividades das quais satildeo provenientes

Ademais quando os bens satildeo identificados agraves atividades que os geram

estas satildeo consideradas mais excelentes que aquelas que natildeo se

identificam ao fim gerado ocasionando uma hierarquia que organiza

atividades e bens

Essas propostas abrem a discussatildeo sobre os fins e os meios para

alcanccedilaacute-los e nesse ponto logo no iniacutecio da EN o filoacutesofo nos informa

que haacute um fim maior desejado por si mesmo e em vista do qual todas as

demais coisas e bens satildeo buscados Essa delimitaccedilatildeo de um bem maior

ou supremo impede que a lista de bens existentes obedeccedila a uma

progressatildeo infinita Diante disso o filoacutesofo propotildee que o conhecimento

da natureza do bem supremo poderia colaborar com seu alcance jaacute que

uma procura eacute facilitada quando se conhece o que estaacute sendo procurado

Por isso a investigaccedilatildeo da EN a partir do Livro I 2 se direciona agrave

delimitaccedilatildeo do bem supremo e daquela ciecircncia que se dedicaria ao seu

estudo a poliacutetica teoria determinadora de tudo quanto seria preciso

saber para o bom andamento das questotildees de uma poacutelis A ciecircncia

poliacutetica determinaria aquilo que os cidadatildeos deveriam fazer e por isso

abrangeria todas as demais ciecircncias sendo arquitetocircnica responsaacutevel

pelo bem humano e mais importante pelo bem da poacutelis

Tendo em vista as constataccedilotildees feitas ateacute os Livros I 3-4

Aristoacuteteles pensa que deve estabelecer ao menos em linhas gerais a

verdade sobre o que eacute a felicidade pois todos sem exceccedilatildeo

identificam-na com um bem ou um fim inerente ao ser humano O passo

destaca a poliacutetica como a ciecircncia responsaacutevel por determinar tais

assuntos e por isso seria de grande auxiacutelio agraves pessoas que vivem agem e

desejam conforme a razatildeo ao mesmo tempo em que delimita o campo

de interesse da pesquisa em curso Seria tarefa de a poliacutetica definir

felicidade pois a despeito do consenso quanto ao que seria o melhor

fim e resultado da melhor accedilatildeo possiacutevel haveria vaacuterias formas de

conceber a felicidade e de entender quais seriam os modos de obtecirc-la

Os homens comuns pensariam que a felicidade seria o prazer ou a

28

riqueza ou as honras percepccedilatildeo diferenciada daquela tida pelos saacutebios

Chegariam mesmo a mudar de entendimento acerca da eudaiacutemōniacutea

conforme o tipo de vida que levassem

Quanto ao tipo de vida levada o Livro I 5 aponta trecircs formas

principais a serem analisadas a vida preocupada com a (1) obtenccedilatildeo de

prazer a vida (2) poliacutetica e a vida dada agrave (3) contemplaccedilatildeo filosoacutefica O

filoacutesofo explica que a maioria das pessoas identifica a felicidade com o

prazer e pouco mais adiante compara a vida escolhida pela multidatildeo

agravequela vida dos escravos e agrave qual chama bestial Em contrapartida a

opiniatildeo dos homens de gosto mais refinado bem como das pessoas que

satildeo mais ativas seria que a felicidade se resume agrave honra que

normalmente eacute entendida como fim da vida poliacutetica No entanto

Aristoacuteteles pensa que a honra natildeo poderia ser o fim buscado pelo

homem jaacute que dependeria mais de quem a conferiria que daqueles que a

mereceriam as honrarias poderiam ser retiradas de algueacutem ao contraacuterio

da felicidade Aleacutem disso o filoacutesofo nos conta que as honras seriam

procuradas em vista da virtude sendo que talvez a virtude e natildeo a

honra fosse o fim procurado pela vida poliacutetica Contudo entende que a

virtude igualmente natildeo eacute a felicidade pois um homem pode ser

considerado virtuoso por exemplo quando dorme e quando eacute

desafortunado mas natildeo eacute possiacutevel ser feliz no infortuacutenio Na sequecircncia

da exposiccedilatildeo Aristoacuteteles afirma que examinaraacute a vida contemplativa em

outro momento (Livro X) e acrescenta agrave sua anaacutelise o tratamento da vida

dedicada ao ganho percebendo que a riqueza tambeacutem natildeo contemplaria

suas intenccedilotildees quanto agravequilo que seria a eudaiacutemōniacutea A riqueza seria uacutetil

a uma vida considerada feliz poreacutem natildeo poderia resumir tal vida porque

natildeo seria buscada por si mesma Com isso o filoacutesofo nos apresenta uma

das suas exigecircncias para definirmos a felicidade ser um fim ou bem

buscado por si mesmo

No Livro I 6 da EN o bem eacute tratado em dois sentidos haveria

bens em si mesmos considerados realmente bons e bens relativos a

estes uacuteteis agrave obtenccedilatildeo dos bens em si mesmos Estes seriam como jaacute se

propusera acerca da felicidade procurados sem pensar em algo mais que

se pudesse conseguir a partir deles mas haveria vaacuterias coisas que se

encaixariam nesse tipo de descriccedilatildeo como a riqueza o prazer etc o

que forccedila o filoacutesofo a delimitar o bem que procura a algo que possa ser

alcanccedilado pelo homem apresentando nova exigecircncia agrave definiccedilatildeo da

felicidade

29

Diante de tantas distinccedilotildees o Livro I 7 afunila mais a proposta de

bem buscado descrevendo-o novamente como ldquoaquilo em cujo interesse

se fazem todas as coisasrdquo (EN I 5 1097a21-22)8 O bem seria a

finalidade das accedilotildees e os homens fariam tudo em vista dele Aristoacuteteles

ratifica a existecircncia de vaacuterios fins mas propotildee que apenas o bem

supremo ou absoluto seria escolhido por si mesmo o que implica que

nem todos os fins satildeo absolutos O sumo bem no entanto seria

absoluto o uacutenico fim absoluto ou o mais absoluto no caso de haver mais

de um fim desse tipo caracteriacutestica daquilo que eacute procurado e desejado

por si mesmo A esses aspectos Aristoacuteteles acrescenta outro ndash que

voltaraacute a ser analisada no Livro X a autossuficiecircncia A princiacutepio este

conceito eacute explicado em I 7 como aquilo que basta para um homem e

todos agrave sua volta porque o homem segundo esse capiacutetulo (EN I 7

1097b12) existe para ser cidadatildeo A autossuficiecircncia tornaria a vida

desejaacutevel e sem necessidade de nada sendo que somente a felicidade

cumpriria tais requisitos aleacutem de ser a coisa mais desejaacutevel de todas

natildeo sendo um bem entre outros A felicidade eacute redefinida portanto

como a finalidade uacuteltima de toda accedilatildeo (EN I 7 1097b14-21)9

Diante de todo esse debate e da tentativa de delimitaccedilatildeo da

felicidade Aristoacuteteles natildeo se daacute por satisfeito com o possiacutevel conceito

determinado ateacute o ponto Evoca entatildeo a questatildeo da funccedilatildeo (eacutergon) do

homem pois pensa que talvez esclareccedila o caso O filoacutesofo questiona

haveria uma funccedilatildeo especificamente humana Verificar qual seria a

funccedilatildeo humana facilitaria entender o que eacute a felicidade (EN I 7

1097b24) mas por quecirc Aristoacuteteles pensa que para todas as coisas que

apresentam uma funccedilatildeo e uma atividade o bem estaacute na funccedilatildeo (EN I 7

1097b26-27)

Korsgaard afirma que o argumento da funccedilatildeo da forma como eacute

elaborado por Aristoacuteteles parece depender da ligaccedilatildeo existente entre ser

uma boa pessoa ter uma vida boa ou feliz aleacutem de objetivar ligar essas

propostas em torno da racionalidade Haacute igualmente a intenccedilatildeo de

mostrar que devido a alguns argumentos sobre razatildeo e virtude o

argumento da funccedilatildeo eacute um bom caminho para abordar a questatildeo de

como viver bem Se tudo tem uma funccedilatildeo por que o homem natildeo teria

nenhuma (EN I 7 1097b22-23) Isso significaria que o homem segue um

8 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original τούτου γὰρ ἕνεκα τὰ λοιπὰ πράττουσι πάντες 9Esse trecho abriria a questatildeo para as interpretaccedilotildees da eudaiacutemōniacutea como bem

inclusivo ou dominante Neste estudo apenas mencionaremos quando

pertinente o problema pois natildeo pretendemos esgotaacute-lo

30

propoacutesito ou um destino Korsgaard propotildee duas maneiras de ler a

passagem em questatildeo A primeira com assombro e jaacute proposta acima

soaria mais ou menos assim se todas as coisas que existem tecircm uma

funccedilatildeo por que o homem natildeo teria nenhuma O passo poderia ser lido

ainda como um argumento e soaria mais ou menos assim ldquopartes do

corpo tecircm funccedilotildees mas o que fazem soacute faz sentido se houver uma

funccedilatildeo do todo relativo ao qual as partes tecircm uma funccedilatildeo as vaacuterias artes

e profissotildees tecircm funccedilotildees mas que soacute fazem sentido se haacute uma funccedilatildeo

geral da vida humana agrave qual contribuemrdquo (KORSGAARD 2008 p 130-

131)

Assim a funccedilatildeo do todo respaldaria e explicaria aquelas das

partes De modo semelhante Reeve (2014 p 279) entende que qualquer

que seja a funccedilatildeo humana ela deve justificar as funccedilotildees das partes do

corpo bem como deve justificar o homem como praticante de uma arte

especiacutefica que segue princiacutepios e normas racionais Isso porque apoacutes

analisar as funccedilotildees atreladas agraves capacidades da alma que o homem

compartilha com os animais o texto de EN I 7 (1097b33-1098a7) acaba

por identificar uma funccedilatildeo que chama ldquovida praacutetica do que possui

razatildeordquo que eacute capaz tanto de obedecer agrave razatildeo quanto de possuiacute-la

exercitando o intelecto (noucircs) De um modo ou de outro o argumento

parece depender de uma concepccedilatildeo teleoloacutegica de mundo Essa

concepccedilatildeo no primeiro caso indica simplesmente um propoacutesito para

tudo quanto haacute No segundo caso indica um tipo de raciociacutenio que vai

de um propoacutesito relativo a um propoacutesito absoluto Mas caberia entender

o argumento da funccedilatildeo como a defesa de um propoacutesito para o homem

Mesmo que se assuma o argumento em questatildeo eacute preciso esclarecer por

que o bem humano estaacute atrelado ao bom desempenho de uma funccedilatildeo

Haacute entre funccedilatildeo e virtude uma ligaccedilatildeo conceitual da qual natildeo

podemos prescindir pois como Reeve salienta o argumento prepara o

campo para a teoria da virtude Segundo tal teoria o exerciacutecio de uma

funccedilatildeo poderia ser compreendido como melhor estado das capacidades

que se agrupam em um todo que pode ser entendido como a melhor

forma de vida humana Entendemos tambeacutem com Reeve (2013 p 38)

que essa vida eacute proposta sagazmente por Aristoacuteteles como agrupamento

dos aspectos que considerava os melhores dentre todas as opiniotildees

correntes agrave eacutepoca sobre o tipo de vida tido como felicidade Diante

disso explica Korsgaard a virtude eacute uma qualidade que faz o homem

bom ao desempenhar sua funccedilatildeo composta por qualidades que o tornam

31

bom quanto agrave atividade racional10 Contudo fazemos questatildeo de frisar

que a virtude igualmente deve ser entendida como desempenho

excelente de todas as atividades cuja execuccedilatildeo pelo homem eacute possiacutevel

Korsgaard esclarece ldquoEntatildeo Aristoacuteteles precisa da conclusatildeo do

argumento da funccedilatildeo natildeo somente para dar suporte agrave sua visatildeo sobre

que tipo de vida eacute o melhor assim como a fim de nos dar uma base

teoacuterica agrave afirmaccedilatildeo que certas qualidades satildeo virtudesrdquo (KORSGAARD

2008 p 133-134 traduccedilatildeo nossa) O argumento nos permite

compreender melhor as virtudes e com isso a proposta sobre o bem ou

fim humano entendido por Aristoacuteteles como atividade em conformidade

com a virtude

O mau entendimento do argumento em questatildeo pode vir do fato

de interpretaacute-lo teleologicamente pensando eacutergon como propoacutesito

Haveria alternativas de interpretaccedilatildeo como um significado mais amplo

de trabalho funcionamento produtos ou atividades caracteriacutesticas

indicando igualmente a ligaccedilatildeo entre funccedilatildeo e atividade que levaria o

homem ao bem que procura Natildeo reconstruiremos totalmente a proposta

de Korsgaard sobre esse assunto que passaria por complexas noccedilotildees

metafiacutesicas agraves quais natildeo podemos nos dedicar nesse momento11 mas a

melhor alternativa agrave compreensatildeo da funccedilatildeo proposta em EN I seria

indicada pela autora como a de atividade caracteriacutestica que faz de uma

coisa aquilo que ela eacute Assim uma concepccedilatildeo de homem tambeacutem estaacute

em questatildeo como reforccedilaremos no nosso terceiro Capiacutetulo porque

quem sabe o que a coisa faz a conhece melhor O que parece coadunar

outra possibilidade de entendimento proposta pela autora a de como

uma coisa funciona ou seja como uma coisa faz o que ela faz natildeo

impedindo que tenha vaacuterios propoacutesitos Entatildeo propoacutesito seria diferente

de funccedilatildeo mesmo que os dois sentidos estivessem intimamente

relacionados pois saber ldquoo que uma coisa fazrdquo estaacute totalmente ligado ao

saber ldquocomo uma coisa faz o que ela fazrdquo

Desse modo natildeo bastaria saber o propoacutesito da coisa para

conhececirc-la explica a autora ldquoMas algueacutem que sabe para que o coraccedilatildeo

10 De acordo com Boyle haacute uma proposta do homem como animal racional que

tem sua tradiccedilatildeo iniciada com Aristoacuteteles Conforme a interpretaccedilatildeo do autor

para essa proposta que pensamos ser condizente com nossas proacuteprias

interpretaccedilotildees sobre o assunto ldquoUma implicaccedilatildeo crucial da Visatildeo Claacutessica eu

argumentarei eacute que a racionalidade natildeo eacute uma potecircncia particular de animais

racionais que satildeo equipados com ela mas seu modo distintivo de ter potecircnciasrdquo

(BOYLE 2012 p 6 traduccedilatildeo nossa) 11 Mateacuteria e forma substacircncia causa

32

serve seus arranjos estruturais e como aqueles arranjos capacitam o

coraccedilatildeo a fazer o que ele faz pode dizer verdadeiramente entendecirc-lordquo

(KORSGAARD 2008 p 139 traduccedilatildeo nossa) Por isso a autora pensa

que o melhor candidato agrave interpretaccedilatildeo de funccedilatildeo eacute ldquocomo a coisa faz o

que ela fazrdquo indo do conhecimento da estrutura ao conhecimento do

propoacutesito atrelado ao objeto estudado Com isso poderemos pensar que

compreender a alma humana e suas capacidades em relaccedilatildeo seria

extremamente beneacutefico entre outras coisas para nossa compreensatildeo

daquilo que o homem eacute capaz de fazer pois nos encaminharia para o

conhecimento do proacuteprio homem e de como ele faz o que faz O que a

nosso ver natildeo descartaria uma proposta teleoloacutegica acerca da felicidade

humana mas a reelaboraria nos termos propostos acima com o apoio de

Korsgaard Natildeo importa se o homem tem um propoacutesito o que importa eacute

que o homem desempenha suas atividades de um modo que lhe eacute

especiacutefico e que pode ser entendido e explicado Assim quem entende

isso poderaacute dizer o que eacute a funccedilatildeo humana aleacutem do mais seraacute possiacutevel

conhecer melhor o proacuteprio homem

Por conseguinte quando Aristoacuteteles afirma que a funccedilatildeo humana

eacute a atividade da parte racional da alma natildeo quer dizer simplesmente que

o raciociacutenio eacute o propoacutesito do ser humano Igualmente estaacute a dizer que a

atividade racional eacute a atividade caracteriacutestica do homem caso se

entenda que isso significa uma atividade que somente a espeacutecie humana

escolhe Aleacutem disso Korsgaard entende que Aristoacuteteles quer dizer que a

ldquoatividade racional eacute como noacutes seres humanos fazemos o que fazemos e

em particular como conduzimos nossa forma especiacutefica de vidardquo

(KORSGAARD 2008 p 141 traduccedilatildeo nossa) O que nos leva de volta

agrave lista dos tipos de vida No DA II 2 Aristoacuteteles elenca trecircs formas de

viver conforme as capacidades da alma humana vegetativa (das plantas

e de todos os animais) de percepccedilatildeo e accedilatildeo (de todos os animais) e de

razatildeo ou da escolha racional (apenas dos animais humanos) O homem

apresenta todas as trecircs formas de vida duas em comum com os demais

viventes mas uma que lhe eacute especiacutefica o que faz com que gerencie de

um jeito especial as outras formas que compotildeem a vida humana Assim

para Aristoacuteteles ldquoser racional transforma a natureza de ser um animal e

assim constitui um jeito novo de ser uma coisa vivardquo (BOYLE 2012 p

16 traduccedilatildeo nossa)

Com as observaccedilotildees feitas a respeito desse assunto Aristoacuteteles

parece entender a vida regida pela razatildeo como mais apropriada aos

homens contudo o filoacutesofo pondera neste tipo de vida e no que a rege

haacute algo que eacute obediente agrave razatildeo mas haacute ainda algo que possui e exerce o

pensamento A vida da capacidade racional portanto igualmente

33

poderia ter dois significados mas nesse ponto especiacutefico estar-se-ia a

falar da vida como atividade racional O que provavelmente poderia

nos levar a interpretar essa proposta como natildeo tratando de algo

puramente racional pois eacute nesse ponto da argumentaccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

do homem que Aristoacuteteles parece ceder lugar a uma racionalidade

relacionada e dedicada inteiramente ao cuidado da capacidade natildeo

racional e de suas (sub)capacidades fazendo valer a proposta da

atividade humana como aquela feita com razatildeo ou natildeo sem razatildeo

Nussbaum entende que nesse momento Aristoacuteteles comeccedila a abrir matildeo

de algo totalmente divino como funccedilatildeo especiacutefica do homem propondo

como tiacutepico agrave alma humana uma sabedoria diferenciada daquela

compartilhada pela divindade a sabedoria praacutetica Diante dessas

possibilidades de interpretaccedilatildeo precisamos analisar as propostas em

jogo para entender qual seria realmente a funccedilatildeo e portanto a melhor

forma de viver ou o fim humano pois Aristoacuteteles escreve

Ora se haacute uma funccedilatildeo do homem consistindo em

uma atividade da alma conforme agrave razatildeo ou que

natildeo existe sem a razatildeo e se noacutes dizemos que essa

funccedilatildeo eacute genericamente a mesma em um

indiviacuteduo qualquer e em um indiviacuteduo de meacuterito

(assim em um citarista e em um bom citarista e

isso eacute verdade de uma maneira absoluta em todos

os casos) a excelecircncia devida ao meacuterito se

acrescentando agrave funccedilatildeo (pois a funccedilatildeo do citarista

eacute tocar a ciacutetara e aquela do bom citarista eacute tocaacute-la

bem) se eacute assim se noacutes colocamos que a funccedilatildeo

do homem consiste em um certo gecircnero de vida

quer dizer em uma atividade da alma e nas accedilotildees

acompanhadas de razatildeo se a funccedilatildeo de um

homem virtuoso eacute cumprir essa tarefa e cumpri-la

bem e com sucesso cada coisa aleacutem estando bem

completa quando eacute segundo a excelecircncia que lhe eacute

proacutepria - nessas condiccedilotildees eacute portanto que o bem

para o homem consiste em uma atividade da alma

em acordo com a virtude e no caso de

pluralidade de virtudes em acordo com a mais

excelente e perfeita entre elas (EN I 6 1098a7-

18)12

12 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original εἰ δ ἐστὶν ἔργον ἀνθρώπου ψυχῆς ἐνέργεια κατὰ λόγον ἢ

μὴ ἄνευ λόγου τὸ δ αὐτό φαμεν ἔργον εἶναι τῷ γένει τοῦδε καὶ τοῦδε

34

A anaacutelise do passo em questatildeo gerou celeuma em relaccedilatildeo agrave

questatildeo da eudaiacutemōniacutea provocando discussotildees propostas em ceacutelebres

artigos publicados desde 1964 (ou mesmo antes) por estudiosos como

Hardie Ackrill e Kenny A menccedilatildeo aos trecircs comentadores e respectivos

estudos eacute vaacutelida na medida em que haacute propostas sobre a eudaiacutemōniacutea

como aquela elaborada por Kenny que concebeu a felicidade como um

bem dominante e entendia que o passo em questatildeo se opotildee agraves teorias

como aquelas dos demais estudiosos mencionados e agraves suas concepccedilotildees

de eudaiacutemōniacutea Segundo Kenny o passo liga as teorias da felicidade

apresentadas pelos Livros I e X da EN tomando as teorias de Aristoacuteteles

sobre os variados tipos de vida no Livro I como ponto de partida para a

interpretaccedilatildeo da eudaiacutemōniacutea como vida totalmente dedicada agrave

contemplaccedilatildeo Embora concordemos com a possibilidade de existecircncia

de um elo entre as teorias apresentadas nos dois tratados sobre a

felicidade elo do qual trataremos mais detidamente em nosso terceiro

Capiacutetulo os demais comentadores citados parecem-nos mais coerentes

com as reais intenccedilotildees de Aristoacuteteles para sua teoria da felicidade

Pensamos assim especialmente por natildeo tomarem como proposta (ou

intenccedilatildeo de proposta do filoacutesofo segundo a leitura de Hardie (2009 p

35)) a felicidade como fim dominante encaminhando-se agrave defesa de

uma vida plena como aquela dedicada ao puro contemplar Todavia se

um tipo de vida eacute indicado como o melhor e se esse tipo for

compreendido como um conjunto de atividades operadas de modo

racional e natildeo exatamente como uma vida inteiramente direcionada agraves

atividades especificamente contemplativas qual seria esse tipo de vida

Aristoacuteteles o determinaria

As questotildees nos levaram a repensar as propostas do filoacutesofo

acerca dos meios e dos fins variados que se nos apresentam ao longo de

toda uma vida e que conduzem agraves muitas opiniotildees e aos muitos modos

de entender o que seja a melhor vida possiacutevel e os bens que satildeo

necessaacuterios a ela (se satildeo necessaacuterios) As opiniotildees quanto agrave funccedilatildeo e agrave

atividade apropriada ao homem descritos no Livro I 8 variam e por isso

σπουδαίου ὥσπερ κιθαριστοῦ καὶ σπουδαίου κιθαριστοῦ καὶ ἁπλῶς δὴ τοῦτ

ἐπὶ πάντων προστιθεμένης τῆς κατὰ τὴν ἀρετὴν ὑπεροχῆς πρὸς τὸ ἔργον

κιθαριστοῦ μὲν γὰρ κιθαρίζειν σπουδαίου δὲ τὸ εὖ εἰ δ οὕτως [ἀνθρώπου δὲ

τίθεμεν ἔργον ζωήν τινα ταύτην δὲ ψυχῆς ἐνέργειαν καὶ πράξεις μετὰ λόγου

σπουδαίου δ ἀνδρὸς εὖ ταῦτα καὶ καλῶς ἕκαστον δ εὖ κατὰ τὴν οἰκείαν

ἀρετὴν ἀποτελεῖται εἰ δ οὕτω] τὸ ἀνθρώπινον ἀγαθὸν ψυχῆς ἐνέργεια γίνεται

κατ ἀρετήν εἰ δὲ πλείους αἱ ἀρεταί κατὰ τὴν ἀρίστην καὶ τελειοτάτην

35

Aristoacuteteles parece entender que essa variedade de opccedilotildees eacute devida ao

prazer que se sente com as atividades que se desempenha com mais

frequecircncia As atividades virtuosas satildeo deste tipo e satildeo destacas pelo

filoacutesofo como sendo boas e nobres Os homens bons igualmente as tecircm

em alta consideraccedilatildeo datildeo-lhes o valor devido sendo que tais homens

satildeo bons juiacutezes daquilo que conhecem bem como a virtude ldquoA

felicidade eacute pois a melhor a mais nobre e a mais apraziacutevel coisa do

mundo e esses atributos natildeo se acham separados []rdquo (EN I 9 1099a24-

25)13 O conceito de felicidade esboccedilado no Livro I eacute portanto

preenchido pelos atributos das atividades mais excelentes

Reforccedilando essas ideias o Livro I 9 nos informa que a felicidade

eacute tomada como algo de melhor e mais divino existente na vida humana

portanto eacute de acordo com a excelecircncia nas accedilotildees e atividades que o

homem eacute capaz de realizar Diante dessas constataccedilotildees Aristoacuteteles

declara que os objetivos da ciecircncia poliacutetica entre as demais vidas

observadas satildeo o melhor fim que pode haver (EN 1099b30) o que

pareceraacute contradizer as propostas do Livro X e a proposta de Kenny

supramencionada Essas explicaccedilotildees ainda que lacunares nos levam agrave

nossa crenccedila que a funccedilatildeo especiacutefica ao homem seja uma atividade que

somente se constituiria com uma vida em comunidade associando todas

as capacidades aniacutemicas acima mencionadas sendo por isso conforme

a razatildeo que se configura como elemento diferencial da psychḗ humana

Todavia ainda precisaremos confrontar essas propostas com aquelas do

Livro X acerca da vida contemplativa como melhor das vidas possiacuteveis

para garantir o que se afirma aqui

O Livro mencionado nos apresenta vaacuterios argumentos que

indicam um Aristoacuteteles aparentemente ldquoracionalistardquo propondo que o

homem se dedique agravequilo que de mais divino haacute em si a razatildeo No

entanto recorrendo ao curso de toda a EN inclusive ao proacuteprio Livro X

encontramos indicaccedilotildees de que natildeo haacute possibilidade do homem dedicar-

se inteiramente agraves atividades da contemplaccedilatildeo filosoacutefica ao exerciacutecio

mais alto e puro da razatildeo teoacuterica Mesmo um filoacutesofo explica

Aristoacuteteles necessita de comida bebida dinheiro conviacutevio e todos

esses bens sejam eles necessaacuterios ao estabelecimento de uma vida feliz

sejam eles instrumentos para tal estabelecimento soacute satildeo encontrados

como propusemos ainda haacute pouco na poacutelis Devemos reforccedilar que a EN

nos apresenta o homem como animal poliacutetico de vida essencialmente

13 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ἄριστον ἄρα καὶ κάλλιστον καὶ ἥδιστον ἡ εὐδαιμονία καὶ

οὐ διώρισται ταῦτα []

36

comunitaacuteria Por conseguinte todas as suas escolhas seratildeo tomadas

tendo em vista essa sua natureza poliacutetica explicando que a funccedilatildeo

proacutepria ao homem seria o bom desempenho de suas capacidades

aniacutemicas que o permitissem viver bem na poacutelis entre seus iguais ou

semelhantes de forma excelente mas em conformidade a leitura de

Korsgaard e Boyle (2012 p 6 et seq) de um jeito racional Quanto ao

assunto Nussbaum escreveu

O argumento do ergon natildeo pode estar nos dizendo

que devemos nos preocupar somente com a razatildeo

Nem parece dizer isso Mas a ecircnfase em tal

atividade caracteriacutestica pode ser vista como

motivada (1) pelo desafio do hedonismo e (2) pela

funccedilatildeo arquitetocircnica da razatildeo praacutetica esta e soacute

esta pode arranjar para que ambas razatildeo e as

funccedilotildees compartilhadas com os animais

obtenham seu devido lugar em uma vida humana

complexa Aristoacuteteles recomenda agrave sua audiecircncia

reflexiva uma vida que (1) envolva o exerciacutecio de

todas as nossas capacidades humanas e seja assim

uma verdadeira vida humana antes que uma

[vida] que possa justamente ser levada por uma

planta ou uma vaca e que (2) seja governada e

planejada de um tal modo a dar a ambas

capacidades compartilhadas e natildeo compartilhadas

seu papel apropriado ndash e isso significa governada

e planejada pela razatildeo praacutetica Se pensarmos

reflexivamente sobre o que eacute um ser humano ele

sugere teremos razatildeo em preferir uma vida sob a

direccedilatildeo da razatildeo praacutetica agrave vida escrava ou como a

da vaca de prazer e tambeacutem agrave alguma vida que eacute

levada sem ordem ou direccedilatildeo Queremos uma vida

que use todas as nossas capacidades Uma tal vida

inclui tanto o exerciacutecio da razatildeo quanto requer a

direccedilatildeo racional (NUSSBAUM 1985 p 106

traduccedilatildeo nossa)

Embora concordemos em grande medida com as propostas da

estudiosa que entende a opccedilatildeo pelo argumento do eacutergon humano em

um tratado eacutetico justificada por ser necessaacuterio considerar o que eacute o

homem a fim de melhor entender e acatar um tipo de vida a se buscar

pensamos que a filoacutesofa natildeo esteja de acordo com as propostas de

Aristoacuteteles em um certo ponto Este diria respeito agrave tocircnica dada agrave

37

proposta de uma vida boa ser governada pela razatildeo ou melhor pela

razatildeo praacutetica Nossa ressalva ou discordacircncia vem do fato de pensarmos

que essa alternativa seja vaacutelida agrave maioria dos homens para os homens

que satildeo capazes de agir corretamente embora possam natildeo o fazer mas

natildeo dos homens realmente virtuosos que vivem ldquocom razatildeordquo ou de um

jeito racional Pensamos diferente das propostas da autora porque

cremos que o bom exerciacutecio de todas as capacidades humanas que ela

menciona compartilhadas ou natildeo com outros viventes resulta em uma

vida virtuosa e que o homem verdadeiramente virtuoso tenha em

consonacircncia as capacidades aniacutemicas como defenderemos ao longo de

todo esse trabalho A nosso ver uma vida conforme o melhor estado

dessas capacidades desempenhadas racionalmente eacute o que

verdadeiramente se configura como a funccedilatildeo humana exclusivamente

humana dentre todas as funccedilotildees que o homem se mostra capaz de

desempenhar14

A pacificaccedilatildeo das capacidades aniacutemicas que permite uma vida de

plena realizaccedilatildeo das tarefas necessaacuterias para o conviacutevio em comunidade

eacute o que mais se mostra como exclusividade do homem natildeo dos deuses

nem dos animais em geral A possibilidade de conciliar a capacidade

natildeo racional por esta ser capaz de ouvir obedecer e participar da razatildeo

por intermeacutedio do desiderativo com a capacidade racional da alma

representada pela racionalidade praacutetica que harmoniza e participa da

capacidade natildeo racional mas que ao mesmo tempo sabe daquilo que eacute

necessaacuterio para garantir o exerciacutecio da racionalidade teoacuterica garante a

funccedilatildeo apropriada ao homem e a vida feliz O melhor estado e as

melhores atividades de ambas as capacidades da alma quando em

harmonia permitem que o homem seja o que eacute que se perceba como

aquilo que eacute animal poliacutetico razatildeo e emoccedilatildeo em consonacircncia

Devemos no entanto trabalhar mais em defesa desse entendimento

porque nos permitiraacute defender a educabilidade das emoccedilotildees

14Temos ciecircncia de que a vida pode variar de que a virtude pode se ver

ameaccedilada pelas circunstacircncias O homem virtuoso natildeo estaacute imune agraves forccedilas

do acaso mas resiste-lhes mais fortemente como na proposta da feita no

Livro I graccedilas ao seu caraacuteter ldquofirme e imutaacutevelrdquo Concordamos no entanto

com Frede que explica que mesmo o virtuoso carece de muita deliberaccedilatildeo

para agir bem pois mesmo sua boa habituaccedilatildeo que lhe confere certa (e

maior que o normal) estabilidade frente agraves vicissitudes natildeo lhe tornem

totalmente indiferente ao que o mundo apresenta como proporemos mais

adiante

38

Nossa proposta eacute coerente com as interpretaccedilotildees de estuidiosos

como Korsgaard (2008 p 143) e Boyle (2012 p 6) acerca da funccedilatildeo

humana que entende a vida feliz como atividade racional no sentido que

o poder da escolha racional facultado ao homem muda o modo que os

humanos conduzem as atividades que compartilham com os outros

animais como a construccedilatildeo a procriaccedilatildeo alimentaccedilatildeo etc A autora

defende que os seres humanos abordam essas atividades criativamente e

desenvolvem vaacuterios modos de desempenhaacute-las entre os quais noacutes entatildeo

escolhemos Igualmente fazem coisas que os outros animais natildeo fazem

de jeito nenhum como contar piadas pintar e se engajar na pesquisa

cientiacutefica e filosoacutefica Entatildeo a escolha racional introduz um sentido de

vida todo novo no qual uma pessoa pode dizer ldquoter uma vidardquo A vida eacute

entendida nesse sentido quando se diz que algueacutem vive bem ou mal ndash se

eacute eudaiacutemōn ou natildeo Entatildeo a autora afirma que esse eacute o sentido de

ldquovidardquo relevante para o argumento da funccedilatildeo A razatildeo eacute a funccedilatildeo do ser

humano desde que entendida como uma forma especificamente humana

de conduzir a vida e pensamos que tal tipo de conduccedilatildeo soacute pode ser

exercido em comunidade Assim atividade racional deveria ser

entendida natildeo no sentido de gastar toda a vida em contemplaccedilatildeo mas

como um modo de conduzir a vida o que provavelmente seja mais

condizente com nossa proposta embora entendamos que nos virtuosos

isso signifique a harmonia das capacidades da alma e natildeo a prevalecircncia

da capacidade racional15

Discutiremos as virtudes no capiacutetulo seguinte Por enquanto

destacamos outro motivo para entendermos que a funccedilatildeo totalmente

humana somente pode ser atualizada na poacutelis nas atividades e nas accedilotildees

moralmente avaliaacuteveis que se apresentam na poacutelis Parece impossiacutevel ao

homem atualizar as potecircncias de suas capacidades aniacutemicas em

consonacircncia que levam a emoccedilotildees bem educadas se natildeo por meio

daquilo que o corpo eacute capaz de fazer Todas as atividades e accedilotildees

completadas pelo composto corpoalma chamado por Aristoacuteteles em

parte da Metafiacutesica tograve syacutenolon (conjunto) de mateacuteria e forma

(hyacutelēmorphḗ) levam agrave produccedilatildeo de algo uacutetil ao homem agrave praacutetica de

boas accedilotildees e igualmente ao exerciacutecio da razatildeo teoacuterica e estatildeo de acordo

com Lawrence (2009 p 46) e com nossa interpretaccedilatildeo a serviccedilo dessa

vida boa em comunidade Por isso deveremos nos concentrar agora em

abordar as questotildees da alma humana como levantadas ao final do Livro

I da EN capiacutetulo 13 chamando em nosso auxiacutelio quando necessaacuterias

15 Quanto agrave classificaccedilatildeo do homem como animal racional especificar a

essecircncia humana ver Boyle (2012)

39

as consideraccedilotildees do De Anima sobre o assunto especialmente quando

este tratado puder nos auxiliar a confirmar nossa interpretaccedilatildeo

hilemoacuterfica que nos permitiraacute defender nossa teoria da funccedilatildeo proacutepria ao

homem como necessaacuteria ao entendimento do papel das emoccedilotildees na vida

moral

3 EN I 13 a alma humana e a emoccedilatildeo

A felicidade foi proposta em EN I 13 como atividade da alma

conforme a virtude mais completa16 Por isso para compreender melhor

o que seja a felicidade Aristoacuteteles julga necessaacuterio estudar a natureza da

virtude O filoacutesofo explica que a virtude a ser estudada eacute humana como

satildeo humanos o bem e a felicidade que procura esclarecer Por

conseguinte escreve ldquoPor virtude humana entendemos natildeo a do corpo

mas da alma e igualmente agrave felicidade chamamos uma atividade da

alma Mas assim sendo eacute oacutebvio que o poliacutetico deve saber de algum

modo o que diz respeito agrave almardquo (EN I 13 1102a16-19)17 O estudo da

alma que um legislador buscaria empreender no entanto teria por

finalidade tornar os cidadatildeos bons e entender como isso eacute possiacutevel o

que bastaria para o tipo de investigaccedilatildeo ora feito contudo pensamos

que a consulta do tratado da alma quando necessaacuteria pode ser mais

esclarecedora dos problemas que levantamos Natildeo obstante

comeccedilaremos a discussatildeo com as propostas da EN a respeito do assunto

em questatildeo nesse momento

Quando o tema eacute a alma humana a EN aponta a existecircncia de

opiniotildees consideraacuteveis mesmo que natildeo venham de Aristoacuteteles ou de

seus companheiros de estudo Uma dessas opiniotildees considerada vaacutelida eacute

a mencionada teoria que a alma apresenta uma capacidade racional e

outra natildeo racional (EN I 13 1102a29) Costuma-se aceitar igualmente

uma subdivisatildeo das capacidades aniacutemicas natildeo racionais propondo agrave

capacidade natildeo racional primeiro uma (sub)capacidade vegetativa

responsaacutevel pela nutriccedilatildeo e pelo crescimento Esta eacute presente em todos

16 Embora nos trechos em questatildeo nesse ponto do estudo utilizemos a traduccedilatildeo

de Zingano preferimos usar ldquovirtude completardquo a ldquovirtude perfeitardquo devido agrave

compreensatildeo que temos de tal virtude e que seraacute esclarecida brevemente mais

adiante 17 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original καὶ γὰρ τἀγαθὸν ἀνθρώπινον

ἐζητοῦμεν καὶ τὴν εὐδαιμονίαν ἀνθρωπίνην ἀρετὴν δὲ λέγομεν ἀνθρωπίνην οὐ

τὴν τοῦ σώματος ἀλλὰ τὴν τῆς ψυχῆς καὶ τὴν εὐδαιμονίαν δὲ ψυχῆς ἐνέργειαν

λέγομεν

40

os animais vivos adultos embriotildees lactantes etc A excelecircncia de tal

capacidade por esse aspecto comum aos viventes eacute pertencente a todos

e natildeo eacute especificamente humana18 Aleacutem disso a capacidade nutritiva

ou vegetativa trabalha especialmente durante o sono quando a maldade

ou a bondade de caraacuteter natildeo se manifestam Assim tal faculdade pode

ser posta de lado por ora em nossas investigaccedilotildees jaacute que na EN eacute tida

como natildeo participante da excelecircncia especificamente humana19 No

entanto Aristoacuteteles segue com o exame da capacidade natildeo racional da

alma e escreve

Parece haver na alma ainda outro elemento

irracional mas que em certo sentido participa da

razatildeo Com efeito louvamos o princiacutepio racional

do homem continente e do incontinente assim

como a parte de sua alma que possui tal princiacutepio

porquanto ela os impele na direccedilatildeo certa e para os

melhores objetivos mas ao mesmo tempo

encontra-se neles um outro elemento naturalmente

oposto ao princiacutepio racional lutando contra este e

resistindo-lhe (EN I 13 1102b13-21)20

Esse princiacutepio opositor agrave racionalidade aparece nitidamente no

caso dos incontinentes e dos continentes pessoas nas quais a capacidade

racional e a natildeo racional esta uacuteltima na figura dos desejos entram em

conflito quanto aos objetos a serem perseguidos21 Aristoacuteteles assim nos

18 A respeito da forma como a posse de uma alma racional que muda a

organizaccedilatildeo das demais capcidades da alma em um ser classificado como

ldquoracionalrdquo ver Boyle (2012 p 15 et seq) Essa explicaccedilatildeo revalida a teoria

proposta acima a respeito do viver humano natildeo ser puramente racional mas

organizado de um jeito racional 19 De acordo com Boyle (2012 p 2) a tendecircncia crescente eacute entender que a

diferenccedila entre a mente humana e a dos animais chamados tradicionalmente

ldquonatildeo racionaisrdquo pousa mais no grau em que tais mentes diferem e natildeo nas suas

diferenccedilas por tipo ou espeacutecie O autor faz tal observaccedilatildeo ao falar das disvisotildees

propostas para a alma desde Aristoacuteteles 20 Idem no original ἔοικε δὲ καὶ ἄλλη τις φύσις τῆς ψυχῆς ἄλογος εἶναι

μετέχουσα μέντοι πῃ λόγου τοῦ γὰρ ἐγκρατοῦς καὶ ἀκρατοῦς τὸν λόγον καὶ τῆς

ψυχῆς τὸ λόγον ἔχον ἐπαινοῦμεν ὀρθῶς γὰρ καὶ ἐπὶ τὰ βέλτιστα παρακαλεῖ

φαίνεται δ ἐν αὐτοῖς καὶ ἄλλο τι παρὰ τὸν λόγον πεφυκός ὃ μάχεται καὶ

ἀντιτείνει τῷ λόγῳ 21 A questatildeo da acrasia eacute muito mais complexa do que esse arremedo de resumo

aqui apresentado mas no momento natildeo nos caberia discuti-la em detalhes bem

41

adverte que na alma haacute algo que eacute contraacuterio agrave capacidade racional

resistindo-lhe e fazendo-lhe frente Isso parece nem participar da

capacidade racional embora no continente obedeccedila-a no temperante e

no bravo obedece ainda mais ldquopois em tais homens ele fala a respeito

de todas as coisas com a mesma voz que o princiacutepio racionalrdquo (EN I 13

1102b28)22 Mesmo que esta capacidade pareccedila natildeo participar da

racional os exemplos de virtudes e virtuosos dados no passo nos

mostram que essa faculdade ou (sub)capacidade da capacidade natildeo

racional constituiacuteda por querer (bouacutelēsis) apetite (epithymiacutea) e impulso

(thymoacutes) satildeo desejos aptos a ouvir a racionalidade obedececirc-la e ateacute

participar dela embora pareccedilam sempre fazer o contraacuterio Explicaremos

melhor essa proposta a seguir quando tratarmos especificamente a

capacidade desiderativa

Ateacute o momento a interpretaccedilatildeo feita nos permite afirmar que a

capacidade natildeo racional eacute ou parece ser dupla Isso porque a vegetativa

natildeo participa da capacidade racional mas a desiderativa em geral

participa ao menos de certo modo (EN I 13 1102b32) porque no

miacutenimo eacute capaz de escutar e obedecer agrave razatildeo como um filho ouve e

obedece a um pai Conselhos censuras e exortaccedilotildees comprovam

portanto que o natildeo racional eacute de certo modo persuadido pela razatildeo O

argumentoexemplo do filho e do pai daacute azo ao nosso argumento

porque o filho pode ainda natildeo possuir plenamente a razatildeo em ato mas eacute

considerado na Poliacutetica como parte da famiacutelia cujo elemento racional eacute

figurado pelo pai sendo este representante da razatildeo praacutetica na analogia

apresentada na EN Essa participaccedilatildeo enquanto natildeo se atualiza a

potecircncia de razatildeo do filho eacute siacutembolo da participaccedilatildeo do que na alma haacute

de menos racional mas capaz de ouvir agrave razatildeo praacutetica Por isso a

virtude recebe distinccedilatildeo semelhante nesse tratado indicando a existecircncia

de uma virtude moral e de uma virtude intelectual cada destas uma

componente indispensaacutevel de uma alma humana una que soacute pode ver

atualizadas suas muacuteltiplas capacidades pelo composto corpoalma

Quando se fala do caraacuteter humano no entanto estaacute-se a falar da virtude

moral entendida por Aristoacuteteles como disposiccedilatildeo digna de louvor

quando o agente se comporta bem diante dos arroubos de suas emoccedilotildees

Mas em grau secundaacuterio a vida de acordo com a

outra espeacutecie de virtude eacute feliz porque as

atividades que concordam com esta condizem

como nos faltaria recursos para encampar a tarefa no presente estudo 22 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original πάντα γὰρ ὁμοφωνεῖ τῷ λόγῳ

42

com a nossa condiccedilatildeo humana Os atos corajosos

e justos bem como outros atos virtuosos noacutes os

praticamos em relaccedilatildeo uns aos outros observando

nossos respectivos deveres no tocante a contratos

serviccedilos e toda sorte de accedilotildees bem assim como agraves

paixotildees e todas essas coisas parecem ser

tipicamente humanas Dir-se-ia ateacute que algumas

delas provecircm do proacuteprio corpo e que o caraacuteter

virtuoso se prende por muitos laccedilos agraves paixotildees

(EN X 8 1178a8-15)23

A vida voltada aos assuntos da poacutelis eacute portanto feliz mas

cercada pelas inevitaacuteveis emoccedilotildees e pelos desejos Esta eacute a vida que

procuramos examinar estando no exerciacutecio de sua funccedilatildeo proacutepria

Ressaltamos anteriormente e reforccedilamos aqui que uma existecircncia

totalmente em contemplaccedilatildeo filosoacutefica natildeo parece possiacutevel devido agrave

presenccedila dos elementos natildeo racionais acima mencionados na vida de

todos e da necessidade humana de viver em comunidade A despeito das

associaccedilotildees da eudamōniacutea com a contemplaccedilatildeo de Aristoacuteteles definir o

filoacutesofo como capaz de tal vida por exercer o cultivo da sua razatildeo

teoacuterica (ou do uso teoacuterico de sua razatildeo) de propor o filoacutesofo como

capaz de desfrutar a melhor disposiccedilatildeo de espiacuterito e ser caro aos deuses

devemos dar atenccedilatildeo agrave ressalva seguinte feita por Sorabji

Aristoacuteteles [] aborda a questatildeo seraacute que eacute

errado uma vez que somos humanos aspirar a

vida mais divina de contemplaccedilatildeo intelectual Ele

responde (embora eu natildeo ache que esta seja sua

uacuteltima palavra) que pelo contraacuterio o nosso

intelecto eacute o nosso verdadeiro eu [] Aristoacuteteles

viu as emoccedilotildees natildeo apenas como uacuteteis mas como

essenciais agrave melhor vida que os homens podem

alcanccedilar na praacutetica Embora dividido ele

reconhece que uma vida de nada mais que

contemplaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel para noacutes Ateacute mesmo

23 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Δευτέρως δ ὁ κατὰ τὴν ἄλλην ἀρετήν αἱ γὰρ κατὰ ταύτην

ἐνέργειαι ἀνθρωπικαί δίκαια γὰρ καὶ ἀνδρεῖα καὶ τὰ ἄλλα τὰ κατὰ τὰς ἀρετὰς

πρὸς ἀλλήλους πράττομεν ἐν συναλλάγμασι καὶ χρείαις καὶ πράξεσι παντοίαις

ἔν τε τοῖς πάθεσι διατηροῦντες τὸ πρέπον ἑκάστῳ ταῦτα δ εἶναι φαίνεται

πάντα ἀνθρωπικά ἔνια δὲ καὶ συμβαίνειν ἀπὸ τοῦ σώματος δοκεῖ καὶ πολλὰ

συνῳκειῶσθαι τοῖς πάθεσιν ἡ τοῦ ἤθους ἀρετή

43

os filoacutesofos devem comer e viver em sociedade e

a vida mais feliz envolveraacute tambeacutem o exerciacutecio

das virtudes em sociedade As virtudes por sua

vez envolvem acertar o ponto meacutedio na emoccedilatildeo

bem como na accedilatildeo (SORABJI 2000 p 190-191

traduccedilatildeo nossa)

Assim percebemos que Aristoacuteteles natildeo deixa os homens comuns

fora de suas consideraccedilotildees sobre a vida feliz dos cidadatildeos e admite

inclusive que esses homens sejam a maioria Aristoacuteteles igualmente natildeo

retira os filoacutesofos do conviacutevio na poacutelis pois natildeo eacute o fato de serem

filoacutesofos que faraacute com que deixem de ser humanos e de apresentar

funccedilatildeo e necessidades especiacuteficas agrave humanidade Aleacutem do mais entende

que mesmo os homens mais excelentes carecem de conviacutevio para deixar

claras as suas aptidotildees e beneficiar seus amigos com sua companhia (EN

Livro IX) No conviacutevio desses homens em comunidade eacute que aparecem

as emoccedilotildees e por isso o papel de destaque que o paacutethos tem na eacutetica

aristoteacutelica e na sua proposta da vida feliz motivo suficiente para nos

encorajar a continuar a pesquisar sobre o papel das emoccedilotildees na boa vida

descrita pelo filoacutesofo Para ressaltar essa interpretaccedilatildeo devemos

continuar a examinar as propostas de EN I 13 acerca das diferentes

capacidades aniacutemicas e buscar compreender como essas tais

capacidades podem estar associadas agrave emoccedilatildeo e ao seu papel junto agrave

eudaiacutemōniacutea aleacutem de deixar clara sua possibilidade de participaccedilatildeo na

razatildeo (praacutetica)

3a) Capacidades da alma

Diante das propostas de I 13 o que podemos depreender a

respeito da alma e suas capacidades O passo provavelmente

interessado em introduzir a discussatildeo das virtudes mais especificamente

da virtude moral frente agrave felicidade humana acaba por natildeo trazer

grandes informaccedilotildees sobre a psychḗ Eacute possiacutevel poreacutem apreender um

pouco mais que a famosa e provavelmente popular biparticcedilatildeo da alma

se contarmos na medida do possiacutevel com explanaccedilotildees esclarecedoras

apresentadas pelo DA Para comeccedilar podemos questionar a ideia de

uma alma partiacutevel Em decorrecircncia disso parece viaacutevel o questionamento acerca da capacidade racional e da natildeo racional e de

suas (sub)capacidades assunto que ganharaacute ainda mais esclarecimento

ao tratarmos as propostas do Livro VI sobre as virtudes intelectuais no

capiacutetulo que se seguiraacute

44

A discussatildeo sobre as emoccedilotildees nos conduziu agrave reflexatildeo acerca das

chamadas ldquopartesrdquo da alma agraves quais nos referiremos aqui pela palavra

ldquocapacidadesrdquo24 ideia que parece mais adequada agravequilo que

interpretamos como real teoria da alma em Aristoacuteteles pois o termo

grego em questatildeo eacute dyacutenamis Com EN I 13 propusemos uma capacidade

racional da alma e uma capacidade natildeo racional sendo que nesta uacuteltima

eacute demasiado importante agrave presente investigaccedilatildeo sua possibilidade de

ouvir a razatildeo Eacute duacutevida frequente entre os estudiosos da psychḗ25 e do

assunto especialmente no DA se Aristoacuteteles realmente haveria dividido

a alma como observa Bastit ao se perguntar ldquoO que eacute uma parte da

alma para Aristoacuteteles26rdquo A questatildeo eacute importante para o nosso estudo

porque nos levaraacute a entender melhor as possibilidades de mudanccedilas

nasdas emoccedilotildees a fim de que concordem com a razatildeo praacutetica Essas

variaccedilotildees satildeo necessaacuterias agrave vida feliz aleacutem de nos ajudar a entender

melhor a postura de Aristoacuteteles acerca da relaccedilatildeo corpoalma colocando

nossa investigaccedilatildeo no centro de debates ativos e atuais a respeito das

propostas do nosso filoacutesofo

Ao tratar uma possiacutevel divisatildeo da alma em partes Aristoacuteteles

ressalta que existem aqueles pensadores que a dividem e julgam que em

uma destas secccedilotildees estaria o pensar em outra o apetite Se assim fosse

questiona o que manteria a alma unida Afirma que natildeo seria o corpo e

pondera ldquoAo contraacuterio parece mais que eacute a alma que manteacutem junto o

corpo pois quando ela o abandona ele se dissipa e corromperdquo (DA I 5

411b7-8)27 Se algo diferente do corpo manteacutem a alma una seria a

proacutepria psychḗ e seria necessaacuterio investigar novamente se eacute uma unidade

ou se se divide em muitas partes O tal unificador sendo uno seria

igualmente correto afirmar que a alma eacute una Se fosse divisiacutevel seria

preciso novamente buscar o que manteacutem esse unificador coeso mas isso

24 Escolhemos traduzir dyacutenamis por ldquocapacidaderdquo tambeacutem pelo fato de termos

traduzido eacutergon por ldquofunccedilatildeordquo Traduzir ambos os termos por ldquofunccedilatildeordquo poderia

comprometer o entendimento de nossas propostas 25Novamente a conversa pode ser travada com Platatildeo que por exemplo no

Timeu (69c et seq) trata da particcedilatildeo da alma em racional e natildeo-racional

mortal e imortal base para a triparticcedilatildeo da alma em racional impulsiva e

apetitiva proposta pelo filoacutesofo ateniense 26 A frase que convenientemente nos serve como indagaccedilatildeo eacute o tiacutetulo do artigo

redigido pelo estudioso em questatildeo e que nos ajudaraacute a defender algumas das

ideias que aqui apresentaremos 27 Todas as citaccedilotildees feitas do DA tecircm traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos

Reis (2006) e seratildeo indicadas em rodapeacute no original δοκεῖ γὰρ τοὐναντίον

μᾶλλον ἡ ψυχὴ τὸ σῶμα συνέχειν ἐξελθούσης γοῦν διαπνεῖται καὶ σήπεται

45

levaria a uma progressatildeo ao infinito e seria ininteligiacutevel o que natildeo eacute

aceitaacutevel para Aristoacuteteles

Quanto agraves partes ou capacidades da alma igualmente haacute um

problema ldquoque potecircncia cada uma possui no corpordquo (DA I 5 411b15)28

Se a alma inteira eacute responsaacutevel por manter o corpo unido seria

conveniente que cada uma das suas partes mantivesse unida uma parte

do corpo Para Aristoacuteteles isso parece impossiacutevel pois seria difiacutecil

imaginar qual parte do corpo o intelecto manteria unida jaacute que parece

natildeo haver um oacutergatildeo especiacutefico correspondente agrave funccedilatildeo intelectiva o

que dificultaria igualmente saber o modo como o faria Ademais eacute

sabido que algumas espeacutecies de plantas e animais quando seccionados

continuam a viver como se tivessem a mesma alma embora natildeo

numericamente jaacute que cada uma das partes tem sensaccedilatildeo e se move

localmente ainda por um tempo Caso natildeo sobrevivam natildeo seria um

absurdo pois natildeo manteriam oacutergatildeos que lhes permitiriam continuar a

viver Assim em cada uma das partes do corpo estatildeo todas as partes ou

capacidades da alma como nos explica Bastit no passo abaixo

Assim eacute preservada uma certa determinaccedilatildeo local

dos atos de certos sentidos ndash a vista eacute o fato do

olho ndash que natildeo implica a separaccedilatildeo nem das partes

da alma nem das funccedilotildees dos sentidos e que por

consequecircncia natildeo causa subordinaccedilatildeo das partes

da alma agraves partes do corpo mas bem ao contraacuterio

uma subordinaccedilatildeo dos oacutergatildeos ao ato da parte da

alma da qual satildeo o instrumento o olho agrave visatildeo

por exemplo Por analogia a faculdade eacute

subordinada agrave alma inteira e natildeo eacute separada

Por conseguinte o ato da alma inteira deve poder

efetivamente se manifestar em todas as partes do

vivente Tratando-se de um ato este deve ser

constataacutevel Eacute justamente por isso que Aristoacuteteles

recorre ainda para repelir simultaneamente a

separaccedilatildeo real das partes da alma e sua

localizaccedilatildeo a uma observaccedilatildeo no quadro do qual

o ato do vivente inteiramente presente atualiza as

faculdades da alma do observador Ele nota na

verdade que ldquoeacute evidente que as plantas divididas

vivemrdquo Cada buquecirc de flores nos mostra isso []

Isso significa que a alma inteira princiacutepio de vida

estaacute presente em cada segmento vivente O que o

28 No original τίν ἔχει δύναμιν ἕκαστον ἐν τῷ σώματι

46

indica eacute sua capacidade de se mover e de sentir

(BASTIT 1996 p 23-24 traduccedilatildeo nossa)

Tais informaccedilotildees conduzem o estudioso da alma em Aristoacuteteles a

pensar qual a natureza do objeto em questatildeo Ao longo do DA existem

algumas tentativas de definir o que seria a alma e estas parecem levar a

entender que a melhor forma de defini-la seria a partir das capacidades

que faculta ao corpo desempenhar Para informar melhor ao interessado

nas coisas aniacutemicas o que seja a psychḗ e sua funccedilatildeo proacutepria Aristoacuteteles

escreve ldquodigamos entatildeo que o animado se distingue do inanimado pelo

viver E de muitos modos se diz o viver pois dizemos que algo vive se

nele subsiste pelo menos um destes ndash intelecto percepccedilatildeo sensiacutevel

movimento local e repouso e ainda o movimento segundo a nutriccedilatildeo o

decaimento e o crescimentordquo (DA II 2 413a20-25)29 Mesmo que as

capacidades natildeo estejam presentes em todos os viventes parece que a

melhor forma de entender a alma desde as plantas ateacute animais mais

complexos como o homem eacute como princiacutepio animador que confere

capacidades A psychḗ conferiria vida ao todo orgacircnico constituinte do

corpo sendo este conjunto de mateacuteria e forma como jaacute propusemos30

Tais capacidades permitem ao homem desde o mais simples tato ateacute a

percepccedilatildeo sensiacutevel mais sutil que conduziria agrave phantasiacutea como podemos

ler no passo que segue

O viver subsiste nos seres vivos por conta deste

princiacutepio e o animal constitui-se primordialmente

pela percepccedilatildeo sensiacutevel Pois dizemos que satildeo

animais ndash e natildeo apenas que vivem ndash tambeacutem os

que natildeo se movem nem mudam de lugar mas

possuem percepccedilatildeo E da percepccedilatildeo eacute o tato que

em todos subsiste primeiro E assim como a

capacidade nutritiva pode estar separada do tato e

de toda e qualquer percepccedilatildeo sensiacutevel tambeacutem o

29 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis no original λέγομεν οὖν ἀρχὴν

λαβόντες τῆς σκέψεως διωρίσθαι τὸ ἔμψυχον τοῦ ἀψύχου τῷ ζῆν πλεοναχῶς

δὲ τοῦ ζῆν λεγομένου κἂν ἕν τι τούτων ἐνυπάρχῃ μόνον ζῆν αὐτό φαμεν οἷον

νοῦς αἴσθησις κίνησις καὶ στάσις ἡ κατὰ τόπον ἔτι κίνησις ἡ κατὰ τροφὴν καὶ

φθίσις τε καὶ αὔξησις 30 Sobre a questatildeo da alma como conjunto de mateacuteria e forma questatildeo que

renderia ao menos um capiacutetulo agrave parte eacute possiacutevel ler mais nos dois capiacutetulos

escritos por Robinson e dedicados agrave questatildeo da alma em Aristoacuteteles em seu As

origens da alma

47

tato pode estar separado dos demais sentidos

Denominamos nutritiva tal parte da alma da qual

participam tambeacutem as plantas Todos os animais

por outro lado revelam possuir o sentido do tato ndash

e diremos posteriormente por meio de que causa

cada uma dessas coisas Por ora eacute suficiente dizer

apenas isto que a alma eacute princiacutepio das

capacidades mencionadas ndash nutritiva perceptiva

raciocinativa e de movimento ndash e que por elas eacute

definida (DA II 2 413b1-13)31

Conferindo unidade agrave sua psychḗ Aristoacuteteles abre para noacutes uma

possibilidade maior de entender a participaccedilatildeo do sensiacutevel no inteligiacutevel

bem como do racional no natildeo racional da alma descrita na EN Sendo

capacidades de algo uno natildeo seriam totalmente desconectadas

relacionando-se de algum modo como explica o Zingano ldquoA alma eacute

uma uacutenica forma com diferentes funccedilotildeesrdquo (Zingano 1998 p 37)

Retornando agraves capacidades que vivificam o corpo podemos

entender que alguns seres tecircm capacidade perceptiva e igualmente

desiderativa porque o desejo eacute querer (bouacutelēsis) impulso (thymoacutes) e

apetite (epithymiacutea DA II 3 414b2) Capacidades que estatildeo ao menos a

princiacutepio associadas agraves formas da percepccedilatildeo sensiacutevel e aos sentidos que

lhes correspondem que na descriccedilatildeo de Aristoacuteteles satildeo os mesmos que

ainda conhecemos tato olfato paladar visatildeo e audiccedilatildeo

Para que os viventes sejam classificados como animais todos

devem possuir ao menos um desses sentidos o tato Os animais que

apresentam percepccedilatildeo sensiacutevel igualmente tecircm prazer e dor Ao serem

capazes de perceber o prazeroso e o doloroso tambeacutem apresentam

apetite que eacute desejo pelo prazeroso (DA II 3 414b5-6) fogem ou

buscam o que lhes aparece como prazeroso Tais animais apresentam

obviamente percepccedilatildeo do alimento pelo tato sentido por meio do

31 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original τὸ μὲν οὖν ζῆν διὰ τὴν

ἀρχὴν ταύτην ὑπάρχει τοῖς ζῶσι τὸ δὲ ζῷον διὰ τὴν αἴσθησιν πρώτως καὶ γὰρ

τὰ μὴ κινούμενα μηδ ἀλλάττοντα τόπον ἔχοντα δ αἴσθησιν ζῷα λέγομεν καὶ

οὐ ζῆν μόνον αἰσθήσεως δὲ πρῶτον ὑπάρχει πᾶσιν ἁφή ὥσπερ δὲ τὸ θρεπτικὸν

δύναται χωρίζεσθαι τῆς ἁφῆς καὶ πάσης αἰσθήσεως οὕτως ἡ ἁφὴ τῶν ἄλλων

αἰσθήσεων (θρεπτικὸν δὲ λέγομεν τὸ τοιοῦτον μόριον τῆς ψυχῆς οὗ καὶ τὰ

φυόμενα μετέχει) τὰ δὲ ζῷα πάντα φαίνεται τὴν ἁπτικὴν αἴσθησιν ἔχοντα δι

ἣν δ αἰτίαν ἑκάτερον τούτων συμβέβηκεν ὕστερον ἐροῦμεν νῦν δ ἐπὶ

τοσοῦτον εἰρήσθω μόνον ὅτι ἐστὶν ἡ ψυχὴ τῶν εἰρημένων τούτων ἀρχὴ καὶ

τούτοις ὥρισται θρεπτικῷ αἰσθητικῷ διανοητικῷ κινήσει

48

paladar Todos os seres vivos se alimentam de coisas secas e uacutemidas

quentes e frias percebidas pelo tocar mas os seres vivos que possuem

tato igualmente possuem desejo Aristoacuteteles parece mesmo admitir a

existecircncia de imaginaccedilatildeo nesses animais embora afirme que esse

assunto natildeo estaacute esclarecido e que a phantasiacutea seraacute analisada

posteriormente anaacutelise que tambeacutem efetuaremos posteriormente Com

as descriccedilotildees e afirmaccedilatildeo feitas ateacute agora percebemos uma espeacutecie de

hierarquia entre as capacidades Mas qual a razatildeo de serem dispostas

em sucessatildeo A resposta do filoacutesofo eacute que

[] sem a nutritiva natildeo existe a capacidade

perceptiva embora nas plantas a nutritiva exista

separada da perceptiva E novamente sem o tato

nenhum dos outros sentidos subsiste embora o

tato subsista sem os outros pois diversos animais

natildeo tecircm a capacidade perceptiva uns tecircm a

locomotiva e outros natildeo Por fim pouquiacutessimos

tecircm caacutelculo e raciociacutenio Pois entre os seres

pereciacuteveis naqueles em que subsiste caacutelculo

tambeacutem subsiste cada uma das outras nem todos

tecircm caacutelculo (e alguns nem sequer imaginaccedilatildeo ao

passo que outros vivem unicamente por meio

dela) O intelecto capaz de inquirir requer uma

outra discussatildeo Eacute claro entatildeo que o enunciado

de cada uma destas capacidades eacute tambeacutem o mais

apropriado a respeito da alma (DA II 3 415a1-

13)32

A relaccedilatildeo entre as capacidades em sucessatildeo indica como

buscamos defender a unidade da alma que permite falar de emoccedilotildees

educaacuteveis graccedilas aos seus contatos com a capacidade racional e aos

elementos de racionalidade presentes em sua constituiccedilatildeo sendo por

32 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original ἄνευ μὲν γὰρ τοῦ

θρεπτικοῦ τὸ αἰσθητικὸν οὐκ ἔστιν τοῦ δ αἰσθητικοῦ χωρίζεται τὸ θρεπτικὸν

ἐν τοῖς φυτοῖς πάλιν δ ἄνευ μὲν τοῦ ἁπτικοῦ τῶν ἄλλων αἰσθήσεων οὐδεμία

ὑπάρχει ἁφὴ δ ἄνευ τῶν ἄλλων ὑπάρχει πολλὰ γὰρ τῶν ζῴων οὔτ ὄψιν οὔτ

ἀκοὴν ἔχουσιν οὔτ ὀσμῆς αἴσθησιν καὶ τῶν αἰσθητικῶν δὲ τὰ μὲν ἔχει τὸ κατὰ

τόπον κινητικόν τὰ δ οὐκ ἔχει τελευταῖον δὲ καὶ ἐλάχιστα λογισμὸν καὶ

διάνοιαν οἷς μὲν γὰρ ὑπάρχει λογισμὸς τῶν φθαρτῶν τούτοις καὶ τὰ λοιπὰ

πάντα οἷς δ ἐκείνων ἕκαστον οὐ πᾶσι λογισμός ἀλλὰ τοῖς μὲν οὐδὲ φαντασία

τὰ δὲ ταύτῃ μόνῃ ζῶσιν περὶ δὲ τοῦ θεωρητικοῦ νοῦ ἕτερος λόγος ὅτι μὲν οὖν

ὁ περὶ τούτων ἑκάστου λόγος οὗτος οἰκειότατος καὶ περὶ ψυχῆς δῆλον

49

isso assunto relevante agrave nossa pesquisa Fazemos tal afirmaccedilatildeo porque a

capacidade perceptiva mencionada no passo manteacutem contato com a

desiderativa e portanto aparece como relacionada agraves afecccedilotildees do corpo

e da alma dentre as quais estatildeo aquilo que buscamos entender como

emoccedilotildees Estando tal capacidade atrelada igualmente agraves formas que

facultam ao homem conhecer o mundo ao seu redor voltaremos ao

assunto da percepccedilatildeo sensiacutevel mais tarde Por ora nos damos por

satisfeitos em compreender e esclarecer certas questotildees levantadas pelo

comeccedilo da EN acerca da alma e de suas capacidades a) Aristoacuteteles

assim como pensadores precedentes realmente propocircs uma divisatildeo da

alma Entendemos que na EN e em Aristoacuteteles de um modo geral natildeo

haacute cisatildeo na alma e nem entre corpo e alma b) Entatildeo por que falar em

parte (moacuterion) da alma A discussatildeo sobre as partes da alma aparece

mais detalhadamente no DA em uma franca discussatildeo com os filoacutesofos

que se dedicaram anteriormente agrave questatildeo Em Aristoacuteteles mesmo na

EN aquilo que costuma ser chamado ldquoparterdquo da alma parece ser

capacidade daquilo que o filoacutesofo entende por psychḗ sendo esta

definida pelo que faculta ao corpo com o qual forma um todo

substancialmente uno desempenhar o exerciacutecio de suas capacidades -

das mais baacutesicas agraves mais complexas Acrescentamos ainda apoacutes o

estudo dos dois tratados em questatildeo nesse momento que a alma move

sem ser movida quando se trata do movimento local e de certas partes

do corpo Por esses motivos compreendemos tambeacutem que as afecccedilotildees da

alma dentre as quais estatildeo as emoccedilotildees aqui estudadas causam

mudanccedilas fiacutesicas embora natildeo necessariamente causem movimentos de

deslocamento mas podem influenciar nos movimentos dos animais

dotados de percepccedilatildeo sensiacutevel ldquoPois o perceber eacute ser afetado por algo

de maneira que o agente torna como si mesmo em atividade aquele que

eacute tal em potecircnciardquo (DA II 11 423b30-424a1)33

O estudo da alma e de suas capacidades nos levou agrave discussatildeo da

existecircncia de ldquopartesrdquo distintas e componentes de uma alma teoria que

com ajuda de Aristoacuteteles e de alguns comentadores como Zingano e

Bastit acabamos por rejeitar Mas por que deveriacuteamos nos deter em

uma pesquisa sobre uma alma partiacutevel ou unitaacuteria em um trabalho que

se pretende de cunho eacutetico A questatildeo comeccedila a ser respondida ainda

por EN I 13 passo no qual Aristoacuteteles menciona uma alma bipartida a

fim de defender a existecircncia de diferentes virtudes que comporiam a

33 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original τὸ δὲ αἰσθητήριον αὐτῶν

τὸ ἁπτικόν καὶ ἐν ᾧ ἡ καλουμένη ἁφὴ ὑπάρχει αἴσθησις πρώτῳ τὸ δυνάμει

τοιοῦτόν ἐστι μόριον

50

vida feliz Entender essa proposta somente agraves luzes da EN natildeo nos

pareceu suficiente e por isso optamos por recorrer ao DA obra

dedicada quase exclusivamente ao assunto Nesse tratado bem como ao

longo da exposiccedilatildeo da EN percebemos que a interpretaccedilatildeo de uma alma

natildeo divisiacutevel apesar de contrariar boa parte dos filoacutesofos precedentes

que dedicaram tempo agrave questatildeo contemplaria nossa interpretaccedilatildeo das

emoccedilotildees jaacute que o filoacutesofo estudado as propotildee como ldquopertencentesrdquo agrave

capacidade desiderativa da alma capaz de participar da razatildeo

Cremos que a uacutenica forma de acatar essa proposta seria

compreender a alma como algo uno sem partes totalmente isoladas

umas das outras Defendemos essa interpretaccedilatildeo a fim de que as

capacidades aniacutemicas pudessem se comunicar de que o desiderativo

participasse da razatildeo a despeito da proposta da capacidade nutritiva

acima apresentada Esta capacidade igualmente participa da vida

humana mais completa pois natildeo eacute possiacutevel a homem nenhum nem

mesmo aos filoacutesofos deixar de se alimentar por exemplo Tendo em

vista nosso interesse nas relaccedilotildees das emoccedilotildees com a razatildeo e sendo a

capacidade desiderativa o caminho possibilitador de tal relaccedilatildeo em uma

alma una que reflete um desejo capaz de se associar agrave razatildeo cabe-nos

agora estudar ao menos em grandes linhas a capacidade desiderativa da

alma humana Voltaremos agrave questatildeo da unidade da alma no capiacutetulo III

a fim de concluir nossos estudos sobre as emoccedilotildees na alma humana e

sua possiacutevel racionalidade

3b) A capacidade desiderativa da alma as accedilotildees e as emoccedilotildees na vida

feliz

Para dar prosseguimento agrave nossa busca por esclarecer os pontos

suscitados por EN I 13 trataremos agora a capacidade desiderativa da

alma humana As consideraccedilotildees supramencionadas nos levam a pensar

um desejo que apresenta trecircs formas quanto agrave sua capacidade de ouvir e

obedecer agrave razatildeo34 (DA II 12 414b2) Essas possibilidades por sua vez

perfazem uma capacidade desiderativa global e una (haplṓs orektikoacuten)

a oacuterexis Vejamos melhor qual a influecircncia desta capacidade aniacutemica no

se emocionar e no agir mas comecemos seguindo o conselho de

Aristoacuteteles e buscando entender o desejo O desiderativo estaacute entre aquelas capacidades que permitem ao

34 Ver EN II - III 1111a23-35 1111b1-3 sobre as emoccedilotildees natildeo racionais

conformes aos desejos natildeo racionais tambeacutem Sorabji (2002 p 323) e AGGIO

(2017 no prelo)

51

corpo executar as atividades indispensaacuteveis agrave sua existecircncia a nutriccedilatildeo

a percepccedilatildeo e o raciociacutenio A funccedilatildeo desiderativa seria comum a todos

os animais embora somente o homem possuiacutesse todas as dynaacutemeis (capacidades) mencionadas sendo o desejo natural ao homem Como

isso pode ser importante se nesse ponto do estudo temos em vista a

definiccedilatildeo de emoccedilatildeo frente a uma vida feliz A resposta eacute Aristoacuteteles

considera que na alma haacute trecircs fatores determinantes da accedilatildeo e da

verdade sensaccedilatildeo intelecto e desejo (aiacutesthēsis noucircs oacuterexis) mas a

sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepio da accedilatildeo moral pois mesmo as bestas a

possuem Ocasionaria o movimento comum a todos os viventes mas a

accedilatildeo eacute composta por movimentos fiacutesicos todavia tendo em vista um

fim especiacutefico e bom quando da associaccedilatildeo entre desejo e intelecto seria

propriamente humana assunto que abordaremos em maiores detalhes

adiante

A afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo satildeo da ordem do pensamento o buscar e

o fugir satildeo da ordem do desiderativo (EN VI 2 1139a20-22) As

aparecircncias que excitam o desejo levam agrave emoccedilatildeo e podem levar a

formulaccedilatildeo de tipos de juiacutezos (DA III 9 MA II) Ainda que o orthograves

loacutegos (reta razatildeo) segundo Tricot (2012 p 298) seja a maacutexima geral da

conduta e que deste modo o pensamento deva determinar aquilo a ser

alcanccedilado o intelecto por si mesmo natildeo move pois ldquoda parte do

intelecto praacutetico seu bom estado consiste na verdade correspondente ao

desejo ao desejo corretordquo (EN 1139a29-31)35 Sem a oacuterexis que define

o fim a se buscar natildeo haacute accedilatildeo Assim o desejaacutevel eacute a causa final da

accedilatildeo e o desejo pode ser sua causa eficiente quando conjugado ao

intelecto praacutetico fazendo mover na direccedilatildeo do que eacute correto Este

intelecto depois que a oacuterexis determina o objeto a se buscar potildee-se a

procurar os meios necessaacuterios para que se alcance aquilo que eacute desejado

Apoacutes determinados os meios a tarefa de tal intelecto estaacute completa e

vem a accedilatildeo quem move portanto eacute um intelecto que tem em vista um

fim e que eacute de ordem praacutetica ou seja associado ao desejo que precede a

atividade no tempo (EN X 5 1175b30-33)36 Quanto a isso o DA

explica

Aleacutem disso mesmo que o intelecto ordene e o

raciociacutenio diga que se evite ou busque algo o

35 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original τοῦ δὲ πρακτικοῦ καὶ διανοητικοῦ ἀλήθεια ὁμολόγως

ἔχουσα τῇ ὀρέξει τῇ ὀρθῇ 36 Mas o prazer lhe eacute simultacircneo

52

indiviacuteduo natildeo se move mas age de acordo com o

apetite como no caso dos incontinentes []

Tampouco o desejo eacute responsaacutevel por esse

movimento pois os que satildeo continentes mesmo

desejando e tendo apetite natildeo fazem essas coisas

pelas quais tecircm desejo mas seguem o intelecto

Mostra-se entatildeo que haacute dois fatores que fazem

mover o desejo ou o intelecto contanto que se

considere a imaginaccedilatildeo um certo pensamento

Pois muitos seguem sua imaginaccedilatildeo em vez da

ciecircncia mas nos outros animais natildeo haacute nem

pensamento nem raciociacutenio e sim imaginaccedilatildeo

Logo satildeo estes os dois capazes de fazer mover

segundo o lugar o intelecto que raciocina em

vista de algo e que eacute praacutetico o qual difere do

intelecto contemplativo quanto ao fim E todo

desejo por sua vez eacute em vista de algo pois aquilo

de que haacute desejo eacute o princiacutepio do intelecto praacutetico

ao passo que o uacuteltimo item pensado eacute o princiacutepio

da accedilatildeo (DA III 9-10 433a1-17)37

Assim confirma-se que satildeo o desejo e o intelecto praacutetico que

fazem mover porque o objeto desejado leva ao movimento e o intelecto

determina como buscaacute-lo Em uacuteltima anaacutelise existe ldquoalgo uacutenico de fato

que faz mover o desejaacutevelrdquo (tograve orektoacuten DA 433a18-20 cf Besnier

2008 p 58)38 Isso acontece porque o desejo eacute princiacutepio indispensaacutevel

da accedilatildeo e quando a imaginaccedilatildeo move igualmente natildeo o faz sem desejo

Se intelecto e desejo movessem quanto ao lugar moveriam segundo

uma forma comum Isso implica que quando o desejo concorda desde o

iniacutecio e sem grandes resistecircncias com o intelecto eacute sua forma querer

37 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original ἔτι καὶ ἐπιτάττοντος τοῦ

νοῦ καὶ λεγούσης τῆς διανοίας φεύγειν τι ἢ διώκειν οὐ κινεῖται ἀλλὰ κατὰ τὴν

ἐπιθυμίαν πράττει οἷον ὁ ἀκρατής [] ἀλλὰ μὴν οὐδ ἡ ὄρεξις ταύτης κυρία

τῆς κινήσεως οἱ γὰρ ἐγκρατεῖς ὀρεγόμενοι καὶ ἐπιθυμοῦντες οὐ πράττουσιν ὧν

ἔχουσι τὴν ὄρεξιν ἀλλ ἀκολουθοῦσι τῷ νῷ Φαίνεται δέ γε δύο ταῦτα

κινοῦντα ἢ ὄρεξις ἢ νοῦς εἴ τις τὴν φαντασίαν τιθείη ὡς νόησίν τινα πολλοὶ

γὰρ παρὰ τὴν ἐπιστήμην ἀκολουθοῦσι ταῖς φαντασίαις καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις ζῴοις

οὐ νόησις οὐδὲ λογισμὸς ἔστιν ἀλλὰ φαντασία ἄμφω ἄρα ταῦτα κινητικὰ κατὰ

τόπον νοῦς καὶ ὄρεξις νοῦς δὲ ὁ ἕνεκά του λογιζόμενος καὶ ὁ πρακτικός

διαφέρει δὲ τοῦ θεωρητικοῦ τῷ τέλει καὶ ἡ ὄρεξις ltδgt ἕνεκά του πᾶσα οὗ γὰρ

ἡ ὄρεξις αὕτη ἀρχὴ τοῦ πρακτικοῦ νοῦ τὸ δ ἔσχατον ἀρχὴ τῆς πράξεως ὥστε

εὐλόγως δύο ταῦτα φαίνεται τὰ κινοῦντα ὄρεξις καὶ διάνοια πρακτική 38 Idem no original ἓν δή τι τὸ κινοῦν τὸ ὀρεκτικόν

53

(bouacutelēsis) que move O desejo contudo eacute capaz de mover sem o

raciociacutenio jaacute que o apetite (epithymiacutea) pode ser um tipo de desejo natildeo

conformado ou minimamente conformado ao intelecto ldquoIntelecto

entatildeo eacute sempre correto ao passo que o desejo e a imaginaccedilatildeo ora

corretos ora natildeo corretos Por isso eacute sempre o desejaacutevel que move

embora este seja tanto o bem como o bem aparente mas natildeo todo o

bem e sim o bem praacutetico apenas E o praticaacutevel eacute o que admite ser de

outro modordquo (DA III 10 433a26-30)39 Fica claro entatildeo que eacute uma

capacidade da alma do tipo desiderativo que move (DA III 10 433a31-

32) embora o proacuteprio desejaacutevel se mantenha estaacutetico ldquoEm suma eacute isto

o que foi dito na medida em que o animal eacute capaz de desejar por isso

mesmo ele eacute capaz de se moverrdquo (DA III 10 433b27-28)40 portanto sem

desejo natildeo haacute accedilatildeo Deste modo Aristoacuteteles apresenta a equaccedilatildeo cujos

termos resultam na accedilatildeo

[] primeiro o que faz mover segundo aquilo

por meio de que move e terceiro aquele que eacute

movido E de dois tipos o que faz mover ndash um eacute o

imoacutevel outro eacute o que faz mover sendo movido -

o bem praticaacutevel por sua vez eacute imoacutevel o que faz

mover sendo movida eacute a capacidade de desejar

(pois aquele que deseja move-se enquanto deseja

e o desejo eacute um certo movimento quando eacute desejo

em ato) e aquele que eacute movido por fim eacute o

animal O oacutergatildeo por meio do qual o desejo move

eacute de sua parte algo corporal ndash e por isso eacute nas

funccedilotildees comuns ao corpo e agrave alma que se deve

inquirir sobre ele (DA III 10 433b13-21)41

39 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original νοῦς μὲν οὖν πᾶς ὀρθός

ἐστιν ὄρεξις δὲ καὶ φαντασία καὶ ὀρθὴ καὶ οὐκ ὀρθή διὸ ἀεὶ κινεῖ μὲν τὸ

ὀρεκτόν ἀλλὰ τοῦτ ἐστὶν ἢ τὸ ἀγαθὸν ἢ τὸ φαινόμενον ἀγαθόν οὐ πᾶν δέ

ἀλλὰ τὸ πρακτὸν ἀγαθόν πρακτὸν δ ἐστὶ τὸ ἐνδεχόμενον καὶ ἄλλως ἔχειν 40 Idem no original ὅλως μὲν οὖν ὥσπερ εἴρηται ᾗ ὀρεκτικὸν τὸ ζῷον ταύτῃ

αὑτοῦ κινητικόν 41 Idem no original ἐπεὶ δ ἔστι τρία ἓν μὲν τὸ κινοῦν δεύτερον δ ᾧ κινεῖ ἔτι

τρίτον τὸ κινούμενον τὸ δὲ κινοῦν διττόν τὸ μὲν ἀκίνητον τὸ δὲ κινοῦν καὶ

κινούμενον ἔστι δὴ τὸ μὲν ἀκίνητον τὸ πρακτὸν ἀγαθόν τὸ δὲ κινοῦν καὶ

κινούμενον τὸ ὀρεκτικόν (κινεῖται γὰρ τὸ κινούμενον ᾗ ὀρέγεται καὶ ἡ ὄρεξις

κίνησίς τίς ἐστιν ἡ ἐνεργείᾳ) τὸ δὲ κινούμενον τὸ ζῷον ᾧ δὲ κινεῖ ὀργάνῳ ἡ

ὄρεξις ἤδη τοῦτο σωματικόν ἐστιν ndash διὸ ἐν τοῖς κοινοῖς σώματος καὶ ψυχῆς

ἔργοις θεωρητέον περὶ αὐτοῦ

54

O passo do DA esclarece que o desejo eacute entendido como uma

capacidade da alma que move a accedilatildeo por isso dizendo respeito aos fins

Eacute todavia especificamente EN I 13 que primeiro indica o desejo como

devendo se harmonizar com as sugestotildees de accedilatildeo do intelecto praacutetico

para que este mova de certo modo (ou do modo certo) Estes podem se

harmonizar pois o desejo pelo que foi exposto nas obras estudadas

apesar de natildeo racional eacute capaz ouvir e seguir a razatildeo mais ou menos

quando educado e bem-educado ouve-a mais O mesmo parece ser

vaacutelido quanto agraves emoccedilotildees devido agrave sua natureza desiderativa podem

ouvir e obedecer ou seja ser educadas conforme o orthograves loacutegos como

proposto na exposiccedilatildeo de Aggio

Pois bem ao contraacuterio da moral estoacuteica

Aristoacuteteles pressupotildee uma possiacutevel e necessaacuteria

harmonia das nossas afecccedilotildees da parte natildeo

racional tais como os desejos e as emoccedilotildees com

a nossa racionalidade praacutetica Para ele desejo e

razatildeo satildeo inseparaacuteveis como o corpo e a alma a

cera e o selo impresso o maacutermore e a estaacutetua

Inseparaacuteveis todavia distintos Por isso mesmo

desprovido ele proacuteprio de razatildeo o desejo pode

participar dela e por outro lado mesmo a razatildeo

desprovida de desejo ela pode participar dele

(AGGIO 2017 no prelo)

Sendo assim o desejo eacute o que nos move e sendo o movimento

um tipo de alteraccedilatildeo imprescindiacutevel agrave prāxis sofrida ao mesmo tempo

pelo corpo e pela alma entendemos por que o apetite estaacute na lista das

paacutethē na EN Tal presenccedila confirma nossa proposta da existecircncia de um

significado mais amplo para o termo que o nosso entendimento hodierno

de emoccedilatildeo ou paixatildeo mas como vimos Aristoacuteteles expotildee mais de uma

forma de desejo e relaciona tais formas a diferentes emoccedilotildees Portanto

seraacute preciso discutir o assunto que ainda nos eacute um tanto obscuro e

problemaacutetico para que possamos compreender melhor nosso objeto de

estudo atrelado como estaacute desde a alma ao desejo

3b1) Desejos

Apoacutes definir brevemente a forma geral do desejo e abordar a

capacidade aniacutemica que eacute responsaacutevel por ela resta tratar suas formas

especiacuteficas Como expusemos pouco acima Aristoacuteteles distingue trecircs

formas de sentir dentro da faculdade desiderativa querer impulso e

55

apetite Estas satildeo importantes agrave medida que se associam agraves diferentes

emoccedilotildees bem como influenciam accedilotildees variadas e que estatildeo em poder

dos agentes Ao falar de trecircs tipos de desejo contudo deveriacuteamos inferir

que a capacidade desiderativa eacute passiacutevel de divisatildeo Aristoacuteteles estaria a

concordar com Platatildeo e a propor um desejo dividido em trecircs Trechos

como Retoacuterica 1369a1-7 nos apresentam diferentes desejos racionais e

irracionais todavia isso natildeo implica que o desejo em Aristoacuteteles seja

seccionado Pensamos jaacute ter esclarecido que Aristoacuteteles fala de uma

cisatildeo da alma para se posicionar frente aos pensadores de sua eacutepoca e

provavelmente para abordar a existecircncia de virtudes morais e

intelectuais Existem contudo posturas como as de Cooper (1999 p

256 et seq) que defende a existecircncia de desejo racional e desejos natildeo

racionais Se todavia classificamos o desiderativo como capacidade da

alma e entendemos que esta natildeo pode ser fracionada respondemos

negativamente agrave possibilidade de fracionamento do desejo Temos uma

capacidade que pode ouvir mais ou menos agrave razatildeo conforme seus

objetos sendo por isso una e complexa como nos explica Aggio

Primeiramente se jaacute eacute um erro dividir a alma em

partes seria com mais razatildeo absurdo dividir a

faculdade desiderativa colocando o querer na

parte racional mas o apetite e o impulso na parte

natildeo racional ou mesmo distribuindo o desejo em

trecircs partes se reconhececircssemos trecircs partes da

alma como fez Platatildeo em Repuacuteblica livro IV

Ao contraacuterio o desejo natildeo se divide em partes

mas se diz de trecircs modos conforme a razatildeo o

prazer e a dor visto que o desejo (oacuterexis) eacute tanto o

querer (bouacutelēsis) o apetite (epithymiacutea) e impulso

(thymoacutes) (AGGIO 2017 no prelo)

Haacute diferentes desejos sob a capacidade desiderativa da

alma que satildeo capazes de participar da razatildeo de modos diferentes

negando a possibilidade de perceber em Aristoacuteteles uma triparticcedilatildeo do

desejo de tipo platocircnica Por tal motivo trataremos sucintamente de

cada forma do desejo e buscaremos ressaltar suas qualidades pateacuteticas

bem como suas relaccedilotildees com as emoccedilotildees Cremos que isso ao fim de nossa pesquisa nos permitiraacute responder agraves questotildees que propomos

devido agrave possibilidade de educaccedilatildeo e de habituaccedilatildeo dos desejos agraves boas

accedilotildees conformes agrave razatildeo Portanto observaremos agora e brevemente

as formas particulares do desejo

56

3b2) Os desejos menos racionais

Aristoacuteteles nos apresenta dois tipos de desejo natildeo racionais

embora capazes de ouvir a razatildeo42 Tal proposta sugerida em EN I 13

tem sua comprovaccedilatildeo em Rhet I com sua descriccedilatildeo do apetite O passo

aparenta propor este desejo como irracional poreacutem acaba por desfazer

tal embaraccedilo se lhe prestamos a devida atenccedilatildeo O apetite eacute descrito pelo

filoacutesofo como desejo pelo que eacute prazeroso embora afirme tambeacutem que

todo desejo estaacute relacionado ao prazeroso Por conseguinte

Faz-se pelo desejo tudo o que parece agradaacutevel

Tambeacutem o familiar e o habitual se contam entre as

coisas agradaacuteveis pois muitas coisas que natildeo satildeo

naturalmente agradaacuteveis se fazem com prazer

quando se tornam habituais Assim em resumo

todos os atos que os homens praticam por si

mesmos satildeo realmente bons ou parecem secirc-lo satildeo

realmente agradaacuteveis ou parecem secirc-lo Ora como

os homens fazem voluntariamente o que fazem

por si mesmos segue-se que tudo o que fazem

voluntariamente seraacute bom ou aparentemente bom

seraacute agradaacutevel ou aparentemente agradaacutevel []

Agradaacutevel eacute tambeacutem tudo aquilo que temos em

noacutes o desejo pois o desejo eacute apetite do agradaacutevel

Dos desejos uns satildeo irracionais e outros

racionais Chamo irracionais aos que natildeo

procedem de um ato preacutevio da compreensatildeo e satildeo

desse tipo todos os que se dizem ser naturais

como os que procedem do corpo [] Satildeo

racionais os desejos que procedem da persuasatildeo

pois haacute muitas coisas que desejamos ver e adquirir

porque ouvimos falar delas e fomos persuadidos

de que satildeo agradaacuteveis (Rhet I 10 1369b15-23 I

11 1370a16-21 e 25-27)43

42Novamente a conversa pode ser travada com Platatildeo que por exemplo no

Fedro fala da alma como um carro conduzido por dois cavalos que simbolizam

as forccedilas irracionais da psychḗ que conflitam entre si uma seguindo agrave esquerda

enquanto outra puxa para a direita 43 Todas as citaccedilotildees da Rhet tecircm traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena

(2012) com o original em grego anotado no rodapeacute tal como a seguinte

anotaccedilatildeo δι ἐπιθυμίαν δὲ πράττεται ὅσα φαίνεται ἡδέα ἔστιν δὲ καὶ τὸ σύνηθες

καὶ τὸ ἐθιστὸν ἐν τοῖς ἡδέσιν πολλὰ γὰρ καὶ τῶν φύσει μὴ ἡδέων ὅταν

57

Este passo da Retoacuterica nos diz muito sobre o apetite busca o

agradaacutevel eacute ldquoirracionalrdquo quando natildeo ldquoproceder de um ato preacutevio da

compreensatildeordquo ressaltando sua possibilidade de ouvir a razatildeo quando

proceder da compreensatildeo e eacute natural jaacute que natildeo eacute engendrado no

homem por haacutebitos ou ensinamentos existindo por toda a vida humana

eacute responsaacutevel por aqueles prazeres como os que vecircm do corpo O

proacuteprio Aristoacuteteles admite a dificuldade em se fugir desse tipo de prazer

(EN II 2 1105a7-8) e com isso entendemos igualmente a dificuldade

em controlar ou mesmo evitar o desejo relacionado ao prazer corporal

pois o filoacutesofo o associa agraves afecccedilotildees ligadas aos prazeres corporais Em

certo passo da EN (III 3 1111a30-31) curiosamente Aristoacuteteles afirma

que os apetites e por sua vez os prazeres do corpo natildeo ouvem agrave razatildeo

ao contraacuterio do impulso ldquoAssim o apetite enquanto um desejo natildeo

racional (aacutelogos) toma o que eacute prazeroso como aquilo que simples e

naturalmente aparece ao agente como prazeroso E o que nos parece ser

prazeroso eacute o que nos parece ser bom mesmo que natildeo o sejardquo (AGGIO

2017 no prelo) A interpretaccedilatildeo do passo natildeo eacute simples jaacute que na Eacutetica

Nicomaqueia podemos ler tambeacutem uma afirmaccedilatildeo que diz natildeo ser

correto considerar accedilotildees praticadas por apetite e impulso como

involuntaacuterias

Sendo involuntaacuteria a accedilatildeo realizada por forccedila e

por ignoracircncia o voluntaacuterio parece ser aquilo cujo

princiacutepio reside no agente que conhece as

circunstacircncias particulares nas quais ocorre a

accedilatildeo Natildeo eacute presumivelmente correto dizer pois

que as accedilotildees praticadas por impulso ou por apetite

satildeo involuntaacuterias pois neste caso em primeiro

lugar nenhum outro animal poderaacute agir

voluntariamente tampouco poderatildeo as crianccedilas

Depois quer isto dizer que natildeo fazemos nada

voluntariamente por apetite ou por impulso ou

συνεθισθῶσιν ἡδέως ποιοῦσιν ὥστε συλλαβόντι εἰπεῖν ὅσα δι αὑτοὺς

πράττουσιν ἅπαντ ἐστὶν ἢ ἀγαθὰ ἢ φαινόμενα ἀγαθά ἢ ἡδέα ἢ φαινόμενα ἡδέα

ἐπεὶ δ ὅσα δι αὑτοὺς ἑκόντες πράττουσιν οὐχ ἑκόντες δὲ ὅσα μὴ δι αὑτούς

πάντ ἂν εἴη ὅσα ἑκόντες πράττουσιν ἢ ἀγαθὰ ἢ φαινόμενα ἀγαθά ἢ ἡδέα ἢ

φαινόμενα ἡδέα[] τῶν δὲ ἐπιθυμιῶν αἱ μὲν ἄλογοί εἰσιν αἱ δὲ μετὰ λόγου

λέγω δὲ ἀλόγους ὅσας μὴ ἐκ τοῦ ὑπο-λαμβάνειν ἐπιθυμοῦσιν (εἰσὶν δὲ τοιαῦται

ὅσαι εἶναι λέγονται φύσει ὥσπερ αἱ διὰ τοῦ σώματος ὑπάρχουσαι [] μετὰ

λόγου δὲ ὅσας ἐκ τοῦ εισθῆναι ἐπιθυμοῦσιν πολλὰ γὰρ καὶ θεάσασθαι καὶ

κτήσασθαι ἐπιθυμοῦσιν ἀκούσαντες καὶ πεισθέντες

58

que fazemos as coisas belas voluntariamente e

involuntariamente as ignoacutebeis Natildeo eacute isto risiacutevel

havendo uma uacutenica causa Eacute igualmente absurdo

dizer que satildeo involuntaacuterias as coisas que eacute preciso

desejar eacute preciso encolerizar-se a respeito de

algumas e ter apetite por outras (por exemplo

pela sauacutede e pela instruccedilatildeo) E as accedilotildees

involuntaacuterias parecem ser penosas as por apetite

agradaacuteveis Aleacutem disso qual eacute a diferenccedila quanto

ao ser involuntaacuterio dos erros cometidos por

caacutelculo ou por impulso Por um lado ambos satildeo a

evitar por outro parecem natildeo ser menos humanas

as emoccedilotildees natildeo-racionais de sorte que tambeacutem as

accedilotildees por impulso e por apetite pertencem ao

homem Postular que satildeo involuntaacuterias eacute assim

um absurdo (EN III 3 1111a22-35 1111b1-3)44

A nosso ver o passo desfaz a duacutevida quanto agrave participaccedilatildeo do

apetite na razatildeo concordando com o que expusemos anteriormente Tal

desejo difere dos demais por ser mais resistente agrave razatildeo natildeo por ser-lhe

totalmente surdo portanto quando em acordo com o loacutegos leva a

prazeres convenientes e a accedilotildees adequadas bem como a emoccedilotildees

moderadas

Os trechos supracitados ao falarem do impulso e do apetite

indicam que haacute mais coisas comuns aos desejos em questatildeo que seu

caraacuteter natildeo racional e os impasses quanto a isso por exemplo ambos

existem nos animais O Livro VII da EN entretanto aumenta nossos

conhecimentos e duacutevidas acerca dos apetites ao passo que esclarece

algumas coisas sobre os impulsos Faz isso ao tratar da incontinecircncia

44 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Ὄντος δ ἀκουσίου τοῦ βίᾳ καὶ δι ἄγνοιαν τὸ ἑκούσιον

δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξις ἴσως

γὰρ οὐ καλῶς λέγεται ἀκούσια εἶναι τὰ διὰ θυμὸν ἢ ἐπιθυμίαν πρῶτον μὲν γὰρ

οὐδὲν ἔτι τῶν ἄλλων ζῴων ἑκουσίως πράξει οὐδ οἱ παῖδες εἶτα πότερον οὐδὲν

ἑκουσίως πράττομεν τῶν δι ἐπιθυμίαν καὶ θυμόν ἢ τὰ καλὰ μὲν ἑκουσίως τὰ δ

αἰσχρὰ ἀκουσίως ἢ γελοῖον ἑνός γε αἰτίου ὄντος ἄτοπον δὲ ἴσως ἀκούσια

φάναι ὧν δεῖ ὀρέγεσθαι δεῖ δὲ καὶ ὀργίζεσθαι ἐπί τισι καὶ ἐπιθυμεῖν τινῶν οἷον

ὑγιείας καὶ μαθήσεως δοκεῖ δὲ καὶ τὰ μὲν ἀκούσια λυπηρὰ εἶναι τὰ δὲ κατ

ἐπιθυμίαν ἡδέα ἔτι δὲ τί διαφέρει τῷ ἀκούσια εἶναι τὰ κατὰ λογισμὸν ἢ θυμὸν

ἁμαρτηθέντα φευκτὰ μὲν γὰρ ἄμφω δοκεῖ δὲ οὐχ ἧττον ἀνθρωπικὰ εἶναι τὰ

ἄλογα πάθη ὥστε καὶ αἱ πράξεις τοῦ ἀνθρώπου αἱ ἀπὸ θυμοῦ καὶ ἐπιθυμίας

ἄτοπον δὴ τὸ τιθέναι ἀκούσια ταῦτα

59

(mais que da continecircncia) separando-a em incontinecircncia por epithymiacutea

(prazer) e incontinecircncia por thymoacutes (raiva) O incontinente em sentido

estrito ou seja por epithymiacutea natildeo age por escolha deliberada mas age

por apetite O continente escolhe deliberadamente mas natildeo age de

acordo com a epithymiacutea A escolha deliberada se opotildee a este uacuteltimo

desejo e natildeo eacute o apetite que se opotildee a um outro apetite (EN III 4

1111b14-17) Este estaacute relacionado ao agradaacutevel e ao penoso enquanto

a escolha deliberada natildeo estaacute relacionada a nenhum dos dois

Eis aiacute uma segunda semelhanccedila o impulso tambeacutem natildeo leva a

agir por escolha deliberada (EN III 4 1111b19) mas parece estar

relacionado principalmente agrave dor o que eacute percebido quando a Retoacuterica

(I 10 1369a4) o liga agrave raiva e a EN (III 3 1111a30-31) ao enraivecer-se

A natureza impetuosa eacute combativa guerreira Pede por justiccedila e

vinganccedila manifestando-se por meio da injuacuteria do ultraje e do desprezo

O apetite eacute naturalmente sedutor manipulador dado a tramas tem o

prazer por objeto mesmo que se valha do ultraje do engano e da ilusatildeo

para consegui-lo e sua manifestaccedilatildeo pode surgir com o prazer

proporcionado por estes tipos de atos As accedilotildees do impulso causam dor

ao agente mas as do apetite causam prazer (EN VII 7 1149b20-21) O

impulso reage a algo doloroso aparentemente desmerecido e injusto

como um ultraje sofrido Por isso a accedilatildeo impulsiva parece mais

dolorosa e involuntaacuteria que a accedilatildeo por apetite sendo uma accedilatildeo

voluntaacuteria prazerosa mais grave moralmente do que uma accedilatildeo voluntaacuteria

dolorosa Sobre esse assunto Aristoacuteteles escreveu

A primeira forma de incontinecircncia eacute a

impetuosidade e a outra fraqueza Alguns

homens na verdade depois que deliberaram natildeo

persistem no resultado de sua deliberaccedilatildeo e estatildeo

sob o efeito da paixatildeo para outros ao contraacuterio eacute

graccedilas agrave sua falta de deliberaccedilatildeo que satildeo levados

pela paixatildeo alguns em verdade (semelhantes

nisso agravequeles que tendo sido tomados por coacutecegas

natildeo satildeo eles mesmos os que fazem coacutecegas) se

eles sentiram e viram antecipadamente que vai

lhes acontecer e se eles puderam antes dar o

despertar agrave eles mesmos e agrave faculdade de

raciocinar natildeo sucumbem entatildeo pelo efeito da

paixatildeo quer este seja um prazer ou uma dor Satildeo

acima de tudo homens de humor vivo e os homens

de temperamento excitaacutevel que estatildeo sujeitos agrave

incontinecircncia sob a forma de impetuosidade os

60

primeiros por sua precipitaccedilatildeo e os segundos por

sua violecircncia natildeo tecircm a paciecircncia de ouvir a

razatildeo inclinados que estatildeo a seguir a sua

imaginaccedilatildeo (EN VII 8 1150b19-28)45

Nesse passo a incontinecircncia pela raiva (akrasiacutea toucirc thymoucirc) eacute

considerada menos desonrosa que aquela por apetite Aristoacuteteles

enumera alguns motivos para tanto e noacutes o seguiremos 1) como

dissemos devemos pensar que a raiva (thymoacutes) ateacute certo ponto parece

ouvir a razatildeo mas daquele modo como os servos que mal escutam a

ordem do senhor e saem correndo para fazer o que eacute ordenado sendo

sua accedilatildeo resultado de um impulso natildeo educado Assim a raiva devido

ao seu calor e precipitaccedilatildeo naturais natildeo ouve direito a ordem do

racional (natildeo entende mas pensa ter entendido) e se lanccedila agrave vinganccedila

portanto pode ser excitada por razatildeo ou imaginaccedilatildeo enquanto o apetite

pode ser despertado por razatildeo ou sensaccedilatildeo (EN VII 7 1149a30-36)

Essas afirmaccedilotildees satildeo confirmadas pelo passo abaixo

A razatildeo ou a imaginaccedilatildeo na verdade apresentam

a nossos olhos um insulto ou uma marca de

desdeacutem sentido e a coacutelera depois de ter

concluiacutedo por um tipo de raciociacutenio eacute engajar as

hostilidades contra um tal insultador explode

entatildeo bruscamente o apetite ao contraacuterio uma

vez que a razatildeo ou a sensaccedilatildeo apenas disse que

uma coisa eacute agradaacutevel se lanccedila por gozaacute-la Em

consequecircncia a coacutelera obedece agrave razatildeo em um

sentido enquanto o apetite natildeo obedece Portanto

a vergonha eacute maior nesse uacuteltimo caso jaacute que o

homem intemperante na coacutelera eacute em um sentido

vencido pela razatildeo enquanto o outro eacute pelo

apetite e natildeo pela razatildeo (EN VII 7 1149a31-35

45Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ἀκρασίας δὲ τὸ μὲν προπέτεια τὸ δ ἀσθένεια οἳ μὲν γὰρ

βουλευσάμενοι οὐκ ἐμμένουσιν οἷς ἐβουλεύσαντο διὰ τὸ πάθος οἳ δὲ διὰ τὸ μὴ

βουλεύσασθαι ἄγονται ὑπὸ τοῦ πάθους ἔνιοι γάρ ὥσπερ προγαργαλίσαντες οὐ

γαργαλίζονται οὕτω καὶ προαισθόμενοι καὶ προϊδόντες καὶ προεγείραντες

ἑαυτοὺς καὶ τὸν λογισμὸν οὐχ ἡττῶνται ὑπὸ τοῦ πάθους οὔτ ἂν ἡδὺ ᾖ οὔτ ἂν

λυπηρόν μάλιστα δ οἱ ὀξεῖς καὶ μελαγχολικοὶ τὴν προπετῆ ἀκρασίαν εἰσὶν

ἀκρατεῖς οἳ μὲν γὰρ διὰ τὴν ταχυτῆτα οἳ δὲ διὰ τὴν σφοδρότητα οὐκ

ἀναμένουσι τὸν λόγον διὰ τὸ ἀκολουθητικοὶ εἶναι τῇ φαντασίᾳ

61

1149b1-3)46

2) Outra coisa a se pensar eacute que perdoamos com maior facilidade

aqueles que satildeo levados por desejos naturais mesmo no caso dos

apetites quando cedem aos desejos comuns a todos e na medida em que

satildeo comuns A raiva e o mau humor satildeo mais naturais que os apetites

pelos prazeres excessivos e desnecessaacuterios 3) Ainda uma coisa a se

considerar eacute que se eacute tanto mais injusto quanto mais se vale de manobras

peacuterfidas O raivoso natildeo tem perfiacutedia mas o apetite eacute ardiloso se a

incontinecircncia por apetite eacute mais injusta eacute igualmente mais vergonhosa e

eacute um viacutecio em certo sentido (em um certo sentido porque lhe falta a

escolha deliberada) 4) Uma uacuteltima consideraccedilatildeo feita por Aristoacuteteles

acerca do assunto eacute que se ningueacutem faz sofrer um ultraje com um

sentimento de afliccedilatildeo (ao contraacuterio) um homem que age por raiva age

sentindo dor ao passo que quem ultraja sente prazer Se os atos contra

os quais uma viacutetima se enraivece mais justamente satildeo mais injustos que

outros a incontinecircncia por apetite eacute igualmente mais injusta que a por

raiva pois na raiva natildeo haacute ultraje

Diante disso entendemos que natildeo eacute o fato de amar e desejar

coisas como o prazer que faz de um homem culpaacutevel mas o modo como

se ama o objeto amado e o fato de desejar tais coisas excessivamente

Assim fazem os que burlam a regra como o incontinente sendo que a

incontinecircncia deve ser evitada pois eacute maacute e culpaacutevel Haacute contudo

incontinecircncia por analogia naqueles casos mencionados em que

chamamos ldquoacrasia porrdquo caso da incontinecircncia por raiva Com essas

consideraccedilotildees fica claro que incontinecircncia e continecircncia verdadeiras soacute

se aplicam ao caso em que os objetos buscados satildeo os mesmos buscados

pelos temperantes e pelos intemperantes sendo os demais mesmo no

caso da raiva incontinecircncia por similitude Eacute claro tambeacutem que haacute tipos

46Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ἀκρασία ἡ τοῦ θυμοῦ ἢ ἡ τῶν ἐπιθυμιῶν θεωρήσωμεν

ἔοικε γὰρ ὁ θυμὸς ἀκούειν μέν τι τοῦ λόγου παρακούειν δέ καθάπερ οἱ ταχεῖς

τῶν διακόνων οἳ πρὶν ἀκοῦσαι πᾶν τὸ λεγόμενον ἐκθέουσιν εἶτα ἁμαρτάνουσι

τῆς προστάξεως καὶ οἱ κύνες πρὶν σκέψασθαι εἰ φίλος ἂν μόνον ψοφήσῃ

ὑλακτοῦσιν οὕτως ὁ θυμὸς διὰ θερμότητα καὶ ταχυτῆτα τῆς φύσεως ἀκούσας

μέν οὐκ ἐπίταγμα δ ἀκούσας ὁρμᾷ πρὸς τὴν τιμωρίαν ὁ μὲν γὰρ λόγος ἢ ἡ

φαντασία ὅτι ὕβρις ἢ ὀλιγωρία ἐδήλωσεν ὃ δ ὥσπερ συλλογισάμενος ὅτι δεῖ

τῷ τοιούτῳ πολεμεῖν χαλεπαίνει δὴ εὐθύς ἡ δ ἐπιθυμία ἐὰν μόνον εἴπῃ ὅτι ἡδὺ

ὁ λόγος ἢ ἡ αἴσθησις ὁρμᾷ πρὸς τὴν ἀπόλαυσιν ὥσθ ὁ μὲν θυμὸς ἀκολουθεῖ

τῷ λόγῳ πως ἡ δ ἐπιθυμία οὔ αἰσχίων οὖν ὁ μὲν γὰρ τοῦ θυμοῦ ἀκρατὴς τοῦ

λόγου πως ἡττᾶται ὃ δὲ τῆς ἐπιθυμίας καὶ οὐ τοῦ λόγου

62

de incontinecircncia sendo que Aristoacuteteles considera aquela por apetite

mais desonrosa que aquela por raiva como ademais eacute claro que

incontinecircncia e continecircncia em sentido absoluto se relacionam com

apetites e prazeres do corpo

A descriccedilatildeo dos apetites como o que natildeo ouve a razatildeo47 parece

acontecer nos trechos mencionados e nos quais o filoacutesofo enfatiza

somente a incontinecircncia Nesse caso natildeo estaacute a estudar o continente

que claramente percebemos eacute um homem que sofre com maus apetites

mas que por meio de seu raciociacutenio consegue se desviar dos maus fins

que o atraem Se observada a continecircncia teremos nela a possibilidade

como ressalta Nussbaum do apetite poder ser posto se natildeo em acordo

ao menos sob o comando da razatildeo praacutetica O homem que cai em

descontrole devido aos mesmos objetos com os quais se relacionam os

intemperantes e os temperantes eacute chamado simplesmente lsquoincontinentersquo

Enfim mesmo que haja diferenccedilas entre o apetite e o impulso que um

seja apontado por certos trechos da EN como incapaz de ouvir agrave razatildeo

praacutetica a verdade que a leitura e a interpretaccedilatildeo dos passos analisados

nos levam a alcanccedilar eacute que todas as formas do desejo satildeo capazes de

participar da razatildeo praacutetica conforme os haacutebitos introjetados pelo agente

como podemos ler na citaccedilatildeo abaixo

Mesmo que o apetite seja menos permeaacutevel agrave

razatildeo mais entranhado em nossa vida e

forccedilosamente determinante na escolha das accedilotildees

Aristoacuteteles atribuiu voluntarismo agrave accedilatildeo causada

por ambos os desejos embora a accedilatildeo por apetite

possa ser eventualmente mais voluntaacuteria do que

por impulso [] Ambos os desejos satildeo emoccedilotildees

ou afecccedilotildees natildeo racionais (aacuteloga pathḗ) que

tambeacutem pertencem agrave natureza humana ldquode sorte

47Aggio propotildee a seguinte saiacuteda para a questatildeo ldquoPortanto natildeo haacute contradiccedilatildeo

em dizer que um logos constitui o objeto do apetite e que o apetite natildeo ouve de

modo algum o logos se nesse caso entendermos que este uacuteltimo se refere ao

orthograves loacutegos agrave reta razatildeo agravequela que apreende verdadeiramente o que deve ser

feito e o primeiro se refere ao sentido corrente de logos ie de um pensamento

que concebe algo como prazerosordquo (2011 p 161-162) A autora ainda observa

que o apetite que natildeo ouve de jeito nenhum a reta razatildeo eacute aquele do

descontrolado e do intemperante No virtuoso eacute diferente seu apetite jaacute estaacute

educado e por isso natildeo segue qualquer prazer aleacutem do gozo apropriado agraves accedilotildees

virtuosas Mas quando os desejos menos racionais natildeo estatildeo educados o apetite

eacute mais vergonhoso que o impulso e por isso tambeacutem eacute menos perdoaacutevel

63

que tambeacutem accedilotildees por impulso e por apetite

pertencem ao homemrdquo (EN III 1 1111b2-3) Tais

accedilotildees satildeo proacuteprias ao homem no sentido do seu

princiacutepio residir nele (heacute archḗ en autōi) ou seja

o agente sempre poderia ter agido de outro modo

Desse modo o homem que age por impulso ou

apetite natildeo poderia ser considerado uma

marionete viacutetima de seus desejos [] Dizer

portanto que ambos os tipos de accedilotildees satildeo

voluntaacuterias implica dizer que estaacute em nosso poder

e sob nossa responsabilidade agir por apetite ou

por impulso E isso parece ser plausiacutevel mesmo

que se assuma que um desses desejos ndash o apetite ndash

seja mais avesso agrave razatildeo (AGGIO 2017 no

prelo)

A anaacutelise precedente parece demonstrar que eacute possiacutevel

responsabilizar quem age sob impulso e apetite por seus atos Parece

apontar igualmente a possibilidade de adequaccedilatildeo destes desejos como

esclarece Aggio (2017 no prelo) pela habituaccedilatildeo e por sua capacidade

de ouvir agrave razatildeo Esta eacute se natildeo toda ao menos parte crucial da educaccedilatildeo

moral do desejo Quando o comando da razatildeo eacute obedecido os desejos

natildeo racionais ou menos racionais participam da razatildeo e facilitam o

acesso agrave virtude e agrave vida feliz devido a possibilitarem a procura pelo

bom fim e a accedilatildeo correta na direccedilatildeo de tal fim Quando todavia o

desejo eacute sempre mais facilmente concorde com a razatildeo sem necessidade

de grandes esforccedilos educacionais estamos diante da terceira forma de

desejar o querer que trataremos agora

3b3 O desejo mais racional

Resta-nos tratar o desejo considerado racional ou o mais racional

(DA III 10 433a24-25) o querer (bouacutelēsis) Apesar desse seu aspecto o

querer pode se direcionar a objetos impossiacuteveis mas estaacute relacionado

com accedilotildees que satildeo escolhidas por si mesmas ou seja relaciona-se com

coisas que igualmente podem ser escolhidas deliberadamente e que satildeo

entendidas por Aristoacuteteles como variaacuteveis aleacutem de ser relativo aos fins

ou bens Mas que tipo de bem eacute o fim buscado pelo querer O objeto

deste desejo natildeo existe por natureza mas eacute aquilo que parece bom a

cada um e sendo as pessoas diferentes coisas diferentes lhes parecem

boas Assim natildeo seria melhor delimitar o fim deste tipo de desejo como

o bem buscado pelo virtuoso embora o que se apresenta a cada um seja

64

um bem aparente

A resposta pode comeccedilar a ser dada com a explicaccedilatildeo de que o

querer eacute um tipo de desejo naturalmente mais apto a concordar com as

coisas que satildeo sugeridas pela reta razatildeo Concilia-se com o que haacute de

racionalmente necessaacuterio para que haja boas accedilotildees e um bom caraacuteter

sendo de sua natureza estar de acordo com a razatildeo praacutetica Por

conseguinte o querer eacute o elemento natildeo racional mais capaz de acatar as

sugestotildees (ou ordens) do orthograves loacutegos Por isso concordamos com Aggio

quando escreve

[] se for preciso dizer que esta parte a natildeo

racional tem razatildeo entatildeo a parte desiderativa

deve ser compreendida como tendo razatildeo por

participaccedilatildeo e natildeo por essecircncia como se ela

pudesse ser sob o aspecto do querer

essencialmente racional Esta eacute uma interpretaccedilatildeo

possiacutevel e que me parece mais adequada pois

nega a suposiccedilatildeo de que a parte desiderativa teria

um aspecto absolutamente racional a saber a

bouacutelēsis (AGGIO 2017 no prelo)

O querer eacute o desejo ldquocultivadordquo especialmente sentido pelo

homem bom e virtuoso que se habituou a desejar conforme agrave razatildeo

praacutetica e que sente prazer com as coisas realmente boas e virtuosas Tal

tipo de desejo - veremos em detalhes maiores no segundo momento de

nosso estudo - coloca-se ao lado da escolha deliberada do caacutelculo

deliberativo e do julgamento correto sendo consoante com a virtude

intelectual e eacute necessaacuterio agrave virtude moral graccedilas agrave educaccedilatildeo que

recebe48 Eacute igualmente um desejo relacionado ao sentimento de prazer

48 Fazemos tal afirmaccedilatildeo com base nas propostas de Aggio que entende que

para a virtude eacute necessaacuteria a educaccedilatildeo moral do desejo implicando tambeacutem

como veremos mais adiante a forma correta de se emocionar (AGGIO 2017

no prelo) A eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma eacutetica da accedilatildeo jaacute que o querer natildeo eacute

suficiente para uma mudanccedila real (EN 1114a13-15) Eacute preciso agir ou seja

educar o desejo para o meio termo Por isso a accedilatildeo eacute o principal meio para que

a razatildeo aceda ao desejo Entatildeo haacute um momento em que o desejo ainda natildeo foi

educado e um no qual ouve e obedece a razatildeo Porque natildeo nascemos virtuosos

mas pelo haacutebito podemos secirc-lo Educar o desejo eacute se tornar moralmente

virtuoso Se o desejo busca o prazer e foge da dor educado buscaraacute e fugiraacute

destes dois de modo conveniente quando conveniente Educado desejo eacute

desejo pelo fim levando agrave boa accedilatildeo que eacute apreendida pela razatildeo persuasiva ou

pela capacidade de persuadir da razatildeo (EN 1139b4-5)

65

porque a Rhet explica que os ldquodesejos satildeo na sua maioria

acompanhados de um certo prazer pois as pessoas gozam de algum

prazer quer lembrando-se de como o alcanccedilaram quer esperando o que

alcanccedilaratildeordquo (Rhet I 11 1370b15-19)49 Por isso mesmo as accedilotildees

virtuosas que satildeo direcionadas por essa terceira forma de desejo satildeo

prazerosas a quem as faz desejando bem Vale reforccedilar que qualquer

tipo de desejo associado agrave reta razatildeo pode ser considerado participante

dela sendo bom e direcionado ao bem verdadeiro como explica Aggio

Isso porque o querer tendo como objeto o que

julgamos ser um bem natildeo eacute capaz de vencer o

desejo pelo prazeroso (epithymiacutea) ou o impulso de

aversatildeo ao doloroso (thymoacutes) Eacute preciso incutir o

haacutebito de se desejar bem incluindo aiacute os trecircs tipos

de desejo mas sobretudo aqueles que satildeo mais

avessos agrave razatildeo o impulso e ainda mais o

apetite Natildeo basta portanto querer apenas o que eacute

bom Eacute preciso que isto apareccedila como prazeroso

i e como objeto do apetite Menos ainda basta

saber o que eacute bom para desejaacute-lo como queria

Soacutecrates Eacute preciso que o bem natildeo seja apenas um

objeto cognitivo mas que se torne objeto de nosso

desejo e parte de nossa segunda natureza

(AGGIO 2017 no prelo)

O bom desejo sempre eacute conforme a reta razatildeo Para a

estudiosa isso leva a entender que eacute preciso desejar antes o bem que

aquilo que eacute prazeroso ou impulsivo Assim o prazeroso e o impulsivo

devem ser desejados tendo em vista o bem entatildeo os desejos natildeo

racionais tambeacutem de algum modo podem estar em harmonia com o

querer agir retamente Aristoacuteteles explica ldquoquando se eacute movido com o

raciociacutenio tambeacutem se eacute movido de acordo com a vontaderdquo (DA III 10

433a24-25)50 Isso acontece porque somente os desejos ordenados pela

reta razatildeo (bons desejos) constituem bons fins

Com os estudos empreendidos sobre o desejo entendemos

49 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original καὶ ἐν ταῖς

πλείσταις ἐπιθυμίαις ἀκολουθεῖ τις ἡδονή ἢ γὰρ μεμνημένοι ὡς ἔτυχον ἢ

ἐλπίζοντες ὡς τεύξονται χαίρουσίν τινα ἡδονήν οἷον οἵ τ ἐν τοῖς πυρετοῖς

ἐχόμενοι ταῖς δίψαις καὶ μεμνημένοι ὡς ἔπιον καὶ ἐλπίζοντες πιεῖσθαι χαίρουσιν

[] 50 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ὅταν δὲ κατὰ

τὸν λογισμὸν κινῆται καὶ κατὰ βούλησιν κινεῖται

66

que para Aristoacuteteles haacute trecircs formas de desejar o bem pela razatildeo pelo

prazer ou pelo impulso Aggio (2017 no prelo) explica que cada tipo de

desejo natildeo inclui nem exclui o outro o que significa que eacute possiacutevel e

mesmo necessaacuterio que o objeto daquele desejo conforme o prazer

tambeacutem seja conforme a razatildeo (EN III 14 1119a12-21) devido agrave

unicidade da alma que defendemos acima e consequentemente da

unicidade do desejo Por exemplo o homem virtuoso age com um

apetite governado pela razatildeo tem o apetite em harmonia com seu

querer sendo-lhe possiacutevel igualmente desejar alguns objetos

inadequados de prazer mas escolher natildeo os realizar pois o desejo pode

ou natildeo ser realizado Ter prazer portanto difere de desejar ter prazer ou

seja de realizar a atividade prazerosa O estudo do desejo mostrou-nos

igualmente que a capacidade desiderativa eacute aquela que propotildee o fim a

ser buscado ou evitado e com isso pede accedilatildeo Por isso estudaremos

agora na medida que contemplar nossas intenccedilotildees a relaccedilatildeo dos desejos

com a accedilatildeo humana que pode ser moralmente avaliada jaacute que o objeto

do desejo foi identificado com o que move as accedilotildees desse tipo e

igualmente aquela que entenderemos como boa accedilatildeo

3b4) Desejo e accedilatildeo rumo agrave accedilatildeo boa moralmente

Como vimos o desejo eacute associado agraves emoccedilotildees aos prazeres agraves

accedilotildees e portanto agrave virtude que vem com a praacutetica de boas accedilotildees

solicitadas pelos desejos por fins adequados e agrave vida feliz considerada

atividade (eneacutergeia) segundo a virtude mais completa Por conseguinte

a teoria da accedilatildeo eacute central na eacutetica de Aristoacuteteles porque tanto na EE

quanto na EN a definiccedilatildeo de felicidade eacute baseada na noccedilatildeo de atividade

(EN I 6 1098a16-17 EE II 1 1219a38-39) que aparece atrelada agravequela

de accedilatildeo Algumas passagens destes tratados apresentam o conceito de

eneacutergeia natildeo o de prāxis associado agrave eudaiacutemōniacutea mas qual a

diferenccedila entre os dois conceitos em Aristoacuteteles E quais satildeo seus papeacuteis

junto a uma teoria do desejo e por conseguinte da emoccedilatildeo

Natali (1996 p 101) afirma que Aristoacuteteles entende que a

eneacutergeia humana eacute feita de praacutexeis o que pode ser confirmado por EN

1098a12-14 onde se lecirc ldquoa funccedilatildeo do homem consiste em um certo

gecircnero de vida isto eacute em uma atividade da alma e das accedilotildees acompanhada de razatildeordquo (EN 1098b15-16) o que nos lembra de que

ainda estamos a discutir as questotildees sugeridas por EN I Tendo em vista

o passo citado Natali explica que o homem feliz eacute aquele que realiza

kalaigrave praacutexeis (belas ou boas accedilotildees) ou praacutexeis katacutearetḗn (accedilotildees

segundo a virtude) Isso leva a embasar a definiccedilatildeo de felicidade e a de

67

bem humano no conceito de accedilatildeo a pensar e determinar que a felicidade

requeira que se conheccedila o que eacute uma prāxis portanto aleacutem de ser

assunto associado ao tema do desejo e das emoccedilotildees a questatildeo nos

interessa porque pode nos dizer mais sobre a relaccedilatildeo destes com a

felicidade tema do nosso primeiro Capiacutetulo

Apoacutes ter exposto brevemente a ligaccedilatildeo da funccedilatildeo humana como

associada agrave accedilatildeo em EN I 13 Aristoacuteteles comeccedila suas discussotildees no

Livro II da EN com a lembranccedila de que anteriormente havia sido

discutido um problema importante a questatildeo das accedilotildees determinarem a

qualidade do caraacuteter (EN II 2 1103b30-31) Afirmaccedilatildeo associada agravequela

de que as virtudes aparecem com a praacutetica de accedilotildees virtuosas (EN II 2

1103a31-33) porque a ldquoaccedilatildeo eacute princiacutepio da virtude em sentido causalrdquo

(NATALI 1996 p 103) sendo a boa accedilatildeo que leva agrave virtude Como

vimos para que haja accedilatildeo realmente verdadeira eacute preciso que intelecto

praacutetico e desejo estejam agindo juntos porque eacute preciso raciociacutenio

verdadeiro e desejo reto para que haja accedilotildees dignas daquilo que eacute

proacuteprio ao homem prosseguindo no esclarecimento do que foi proposto

com EN I 13 A relaccedilatildeo do desejo do intelecto praacutetico e da boa accedilatildeo

reafirma que aquilo que Aristoacuteteles chama accedilatildeo seja relevante ao nosso

estudo

Para compreender melhor a questatildeo pode-se contar com o auxiacutelio

especial do Livro VI que parece entender a accedilatildeo e sua relaccedilatildeo com o

que se pretende moralmente dela passando pela comparaccedilatildeo e distinccedilatildeo

entre prāxis e poiacuteēsis O iniacutecio da EN apresenta tal distinccedilatildeo ao

diferenciar dois tipos de fins uns satildeo identificados com as proacuteprias

atividades outros diferem das atividades que levam ateacute os fins (EN I 1

1094a3-5) A separaccedilatildeo essencial entre prāxis e poiacuteēsis portanto que

tambeacutem aparece em EN VI 4 propotildee-nas como objetos de duas formas

diferentes de saber a phroacutenēsis e a teacutechnē que lidam com dois tipos

diferentes de ser Este uacuteltimo Livro mencionado explora suas relaccedilotildees

(EN VI 2 1139a35-b4) quando Aristoacuteteles afirma que o pensamento

sozinho nada move sendo que apenas o pensamento praacutetico eacute capaz de

mover a accedilatildeo quando associado ao desejo e de mover a produccedilatildeo

quando se tenciona algum produto Este eacute feito tendo algo aleacutem de si em

vista natildeo eacute um fim absoluto mas o fim da accedilatildeo poderia ser absoluto

quando o desejo levasse a agir bem51

Dessas reflexotildees apresentadas pela EN Natali (1996 p 110)

ressalta que poderiacuteamos entender que 1) o pensamento praacutetico (diaacutenoia

51Haveria segundo o Livro VI dois tipos de deliberaccedilatildeo e de phroacutenēsis um

relacionado agrave prāxis outro agrave poiacuteēsis

68

praktikḗ) domina (archḗ) a prāxis e tambeacutem a poietikḗ 2) o que eacute

produzido natildeo eacute um fim absoluto apenas um fim em vista de algo mais

3) a accedilatildeo realizada (praktoacuten) eacute o proacuteprio fim ou o fim absoluto 4) haacute

uma hierarquia de fins que organiza tambeacutem os saberes a eles

direcionados sendo a phroacutenēsis superior agrave teacutechnē 5) e a phroacutenēsis teria

a eupraxiacutea por fim como explicitaremos no capiacutetulo seguinte

Essas observaccedilotildees levariam a entender que o agir humano

segundo Aristoacuteteles se dividiria em duas partes com caracteriacutesticas

diferentes e opostas Para dar conta dessa teoria da accedilatildeo Natali pensa

ser preciso primeiro saber se todos os movimentos intencionais feitos

pelo homem satildeo objeto da teoria da accedilatildeo ou se tal teoria teria interesse

apenas nas accedilotildees em acepccedilatildeo proacutepria

Aristoacuteteles diferentemente dos modernos e contemporacircneos natildeo

estaria interessado em distinguir accedilatildeo e movimento fiacutesico (distinccedilatildeo

oacutebvia para o filoacutesofo) Accedilotildees segundo o filoacutesofo e a interpretaccedilatildeo feita

por Natali (1996 p 111) satildeo comportamentos complexos dentre os

quais eacute possiacutevel diferenciar prāxis e poiacuteēsis Simples movimentos

fiacutesicos natildeo permitiriam tal distinccedilatildeo podendo ser tanto parte da prāxis

quanto da poiacuteēsis ainda mais se natildeo se levasse o fim em conta Assim

segundo o estudioso ldquoPara Aristoacuteteles o significado da accedilatildeo eacute dado

pelo teacutelos pelo fim Em exemplos como ldquolevantar um braccedilordquo aquilo

que estaacute oculto eacute propriamente o teacutelos []rdquo (NATALI 1996 p 112)

Para Aristoacuteteles nessa observaccedilatildeo do fim os movimentos fiacutesicos natildeo

podem ser compreendidos como accedilotildees mas essas informaccedilotildees natildeo

completam a teoria da accedilatildeo eacute preciso ir aleacutem como o comentador faz

Para distinguir prāxis e poiacuteēsis nas eacuteticas Aristoacuteteles recorre a

uma diferenciaccedilatildeo de tipo metafiacutesico entre kiacutenēsis e eneacutergeia Em Met Θ 6 1048b18-23 fala-se que natildeo satildeo accedilotildees ou que natildeo satildeo accedilotildees

perfeitas aquelas cujo fim natildeo se encontra nelas mesmas O passo no

entanto eacute visto por Natali (1996 p 113) como duvidoso por muitos

motivos que natildeo elencaremos aqui por ultrapassarem as nossas

intenccedilotildees com essa explicaccedilatildeo A passagem mesmo assim condiz com

as propostas que depreendemos rapidamente de EN I importando aquilo

que a Met nos apresenta como relaccedilotildees e dissociaccedilotildees entre kiacutenēsis e

eneacutergeia bem como suas relaccedilotildees com prāxis e poiacuteēsis Para explicar

melhor a questatildeo podemos citar as palavras de Natali sobre o assunto

Consideradas do ponto de vista do fim eneacutergeia e

kiacutenēsis satildeo de todo distintas ao menos

aparentemente

- agrave primeira no campo da accedilatildeo humana

69

corresponde a prāxis e eacute um agir com um fim em

si mesmo O exemplo corrente que hoje eacute dado de

uma prāxis estaacute ausente em Aristoacuteteles mas jaacute

aparece em Alexandre de Afrodiacutesias o danccedilar

- a segunda sempre no campo do agir humano

corresponde a poiacuteēsis para dar um exemplo

Aristoacuteteles frequentemente refere-se agrave construccedilatildeo

de uma casa Os dois casos satildeo distintos pela

relaccedilatildeo ao fim enquanto na poiacuteēsis afirma

Aristoacuteteles a obtenccedilatildeo do fim potildee termo ao

processo na prāxis isto natildeo acontece aliaacutes a

obtenccedilatildeo do fim estaacute presente em cada instante do

processo []

De fato em uma kiacutenēsis a obtenccedilatildeo do fim tem

valor em si mas tem valor apenas como modo de

atingir o proacuteprio fim (NATALI 1996 p 113-

114)

Conforme essa explicaccedilatildeo que aparece em Met Θ 6 1048b23-28

a prāxis natildeo teria seu fim apenas ao termo de um processo enquanto a

poiacuteēsis seria composta por momentos de um processo que levaria a um

fim almejado Na prāxis todo instante contemplaria agravequilo que eacute seu

objetivo estando o fim da accedilatildeo em cada momento do processo que a

constituiria Dito de outro modo a poiacuteēsis seria um processo que soacute

resultaria em seu fim quando completado mas a prāxis seria um

processo completo em cada um de seus instantes Mas toda poiacuteēsis seria

kiacutenēsis O movimento fiacutesico implicado na poiacuteēsis poderia ser esmiuccedilado

em uma seacuterie de movimentos menores estruturantes do todo da

produccedilatildeo e que natildeo poderiam ser tomados em separado O exemplo eacute a

construccedilatildeo de casas que aparece em EN 1174a21-29 cada movimento

do processo de construir pode ser percebido separadamente mas soacute tem

sentido com o fim que lhe excede a casa construiacuteda Entatildeo a poiacuteēsis eacute

composta por ldquopoiacuteeseis parciais incompletasrdquo (NATALI 1996 p 116)

que resultaratildeo em um produto homogecircneo ontologicamente

Agora resta saber se toda prāxis eacute uma eneacutergeia Met IX 6 daacute

exemplos de eneacutergeiai que natildeo parecem precisar de movimentos fiacutesicos

Estariam portanto fora da alccedilada da fiacutesica pois excluiriam a kiacutenēsis

Aristoacuteteles no entanto nos apresenta a vida como exemplo de eneacutergeia e a vida comporta movimentos Caberia portanto

questionar a prāxis eacute ou natildeo eacute kiacutenēsis52

52 Vale ressaltar tambeacutem com Natali (NATALI 1996 p 117) que haveria

70

Ao analisarmos os exemplos de praacutexeis virtuosas veremos que

satildeo compostas por uma seacuterie de atos parciais com a estrutura da kiacutenēsis

Um desses exemplos poderia ser o mover a espada para golpear um

inimigo Segundo Natali

[] estes movimentos satildeo dirigidos agrave obtenccedilatildeo de

um fim e natildeo satildeo fins em si mesmos como se

fossem passos de danccedila De fato contra o que se

disse na Metafiacutesica na qual havia se afirmado que

nenhuma prāxis eacute uma kiacutenēsis Aristoacuteteles afirma

na Ethica Eudemia que toda prāxis eacute uma

kiacutenēsisrdquo (EE 1220b26-27 1222b28-29) Assim

segundo tal Eacutetica toda prāxis seria uma kiacutenēsis

mas qual seria a verdade sobre a questatildeo toda

prāxis eacute uma kiacutenēsis ou nenhuma prāxis eacute uma

kiacutenēsis como propotildee a Metafiacutesica (NATALI

1996 p 117)

Natali responde com o auxiacutelio de outro passo da Met (Β 2

996a27) no qual eacute possiacutevel ler que todas as accedilotildees implicam movimento

Nesse trecho aparece a preposiccedilatildeo meta traduzida pelo estudioso como

ldquoimplicardquo o que diferenciaria a prāxis da poiacuteeisis por ser composta

implicando movimentos enquanto a poiacuteēsis aconteceria por meio de

movimentos usando a preposiccedilatildeo diaacute como diferencial dando agrave prāxis

uma heterogeneidade ontoloacutegica

Ainda segundo a Met IX 6 (1048b6-9) e segundo a interpretaccedilatildeo

do passo feita por Natali (1996 p 119) vaacuterios movimentos singulares

compotildeem uma prāxis sendo os movimentos como que a mateacuteria e a

accedilatildeo a forma Assim o estudioso chega agrave seguinte formulaccedilatildeo ldquoToda

prāxis eacute do ponto de vista formal uma eneacutergeia e do ponto de vista

material eacute composta de kiacutenesisrdquo (NATALI 1996 p 119) O que faz a

diferenccedila entre prāxis e poiacuteēsis eacute que na explicaccedilatildeo do estudioso

Ambas satildeo eventos humanos que se datildeo no

mundo sublunar satildeo compostas de movimentos

mas enquanto a poiacuteēsis tem uma estrutura

ontoloacutegica de movimento in totoacute a prāxis tem

uma estrutura ontoloacutegica apenas em parte similar

agravequela das eneacutergeiai mais puras como a auto-

poiacuteēseis feitas com fim moral como poderemos ver ao propor elementos

favoraacuteveis a uma educaccedilatildeo emocional moral no Capiacutetulo III

71

contemplaccedilatildeo divina porque mesmo sendo fim

em si mesma na sua atuaccedilatildeo eacute composta de

movimentos O todo da accedilatildeo tem seu fim em si

mas as partes das quais se compotildee tecircm cada uma

o seu fim particular (NATALI 1996 p 119)

Haveria segundo essa proposta accedilotildees componentes particulares

que perseguiriam outros objetivos como o levantar uma espada para

golpear um inimigo em batalha mas que tenderia agrave vitoacuteria Haveria

assim o todo da accedilatildeo com objetivos em si como as accedilotildees virtuosas que

natildeo tenderiam a um resultado praacutetico fora delas mesmas Ou as accedilotildees

virtuosas igualmente deveriam ser eficazes como o golpe de espada

Desse tipo de interrogaccedilatildeo surge a questatildeo da eupraxiacutea que Natali

pensa responder ao problema em curso e que voltaraacute ao nosso estudo no

capiacutetulo seguinte mas que por ora pode ser entendido do modo

descrito abaixo

A prāxis humana propriamente dita natildeo eacute totalmente eneacutergeia

como seria a contemplaccedilatildeo divina Eacute composta por kiacuteneseis que buscam

um resultado e no caso da accedilatildeo moralmente avaliaacutevel esse resultado

seria um conjunto de sucesso na accedilatildeo e valor moral Essa proposta

condiz com a descriccedilatildeo que Aristoacuteteles faz do homem ser o

intermediaacuterio entre divino e animal que discutimos desde o argumento

da funccedilatildeo humana porque a eupraxiacutea aos olhos de Natali natildeo seria

apenas a accedilatildeo boa moralmente mas a accedilatildeo completa bem-sucedida

senatildeo Aristoacuteteles natildeo daria tanta importacircncia agrave deliberaccedilatildeo em suas

reflexotildees eacuteticas Caso o fim da accedilatildeo fosse sempre ela mesma ou

somente ela mesma a deliberaccedilatildeo seria inuacutetil porque um ato corajoso

por exemplo seria um fim em si mesmo natildeo buscando nada mais

Entatildeo natildeo seria preciso investigar (zḗtein) o modo mais eficaz ou nas

palavras de Natali (1996 p 122) ldquomais raacutepido e eleganterdquo para alcanccedilar

um fim Por isso a prāxis humana natildeo pode ser pura eneacutergeia mas deve

ser tambeacutem composta de kiacuteneseis justificando que as accedilotildees humanas

satildeo tributaacuterias de deliberaccedilatildeo de escolha deliberada e da phroacutenēsis

Estas satildeo essenciais agrave boa accedilatildeo humana pois dizem respeito tanto agrave

determinaccedilatildeo dos fins a serem buscados como dos meios que permitam

alcanccedilaacute-los e que satildeo solicitados pelos desejos e mudados pelas

emoccedilotildees No entanto antes de saber como as paacutethē se encaixam nesse

processo que conduz agrave eupraxiacutea e como podem influenciaacute-la eacute preciso

buscar delimitar a partir das indagaccedilotildees surgidas com a EN e do que foi

inferido ateacute o momento o que vem a ser ldquoemoccedilatildeordquo Fazer essa

72

delimitaccedilatildeo seraacute necessaacuterio para que possamos responder agraves questotildees

que foram postas ateacute o momento mas tambeacutem para podermos

compreender como pode ser possiacutevel mudaacute-las para que se liguem agraves

sugestotildees da razatildeo permitindo-nos tratar a educabilidade e a

racionalidade das emoccedilotildees A discussatildeo acima apresentada sobre a

relaccedilatildeo da eupraxiacutea com o paacutethos eacute crucial para que isso seja feito pois

insere definitivamente a emoccedilatildeo entre as coisas relacionadas agrave

eudaiacutemōniacutea pois como buscaremos apontar no proacuteximo Capiacutetulo

eupraxiacutea e eudaiacutemōniacutea satildeo indissociaacuteveis

4 Em busca da definiccedilatildeo de emoccedilatildeo em Aristoacuteteles

Na Eacutetica Nicomaqueia (Livro I capiacutetulo 7) Aristoacuteteles propotildee

que uma investigaccedilatildeo deva comeccedilar com o estabelecimento ao menos

em linhas gerais daquilo que eacute o objeto investigado Contudo pelo

menos nesse tratado o filoacutesofo natildeo parece dar contornos bem definidos

a uma noccedilatildeo geral daquilo que entende por emoccedilatildeo nem em sentido

moderno53 nem ao menos em seus proacuteprios termos Uma definiccedilatildeo

segundo Aristoacuteteles deveria apresentar o geacutenos (gecircnero) e a diferenccedila

especiacutefica daquilo que eacute definido mostrando o que o objeto estudado

realmente eacute (Top I 5 101b38 et seq)54 A EN todavia a princiacutepio

apresenta apenas o gecircnero da emoccedilatildeo paacutethos e uma lista de coisas agraves

quais chama emoccedilatildeo como podemos conferir na passagem abaixo

Dado pois que os estados que se geram na alma

satildeo trecircs55 emoccedilotildees capacidades disposiccedilotildees a

53 Uma definiccedilatildeo em lsquosentido modernorsquo buscaria explicar o que eacute uma emoccedilatildeo

Carlo Natali explica desse modo a deficiecircncia na definiccedilatildeo que EN II fornece da

accedilatildeo (1996 p 102) pois agrave eacutetica natildeo caberia tal tipo de explicaccedilatildeo proacutepria agrave

metafiacutesica Podemos tambeacutem pensar em uma proposta feita por Barnes que

justificaria tal insuficiecircncia bem como a insuficiecircncia de definiccedilatildeo de outros

termos chave na teoria eacutetica aristoteacutelica o autor ao escrever para si natildeo

elaboraria tais propostas ou talvez natildeo o fizesse por tratar de assunto que

julgava suficientemente conhecido daqueles a quem discursava 54Traduccedilatildeo Valandro e Bornheim (1978) no original ἔστι δ ὅρος μὲν λόγος ὁ

τὸ τί ἦν εἶναι σημαίνων [] 55Note-se que no Grego aparece a palavra ldquognoacutemenardquo lsquotraduzidarsquo por Zingano

(2008) como ldquoestadordquo Juliaacuten Marias (2009) bem como Bornhein e Vallandro

(1979) optaram por ldquocoisasrdquo Ross (1995) opta por ldquosentimentosrdquo e Tricot

(2002) por ldquofenocircmenosrdquo para a traduccedilatildeo do termo Contudo eacute difiacutecil escolher

uma das propostas para interpretar o que eacute pouco explicado por Aristoacuteteles Os

73

virtude seraacute um deles Entendo por emoccedilotildees

apetite coacutelera medo arrojo inveja alegria

amizade oacutedio anelo emulaccedilatildeo piedade em geral

tudo a que se segue prazer ou dor por

capacidades os estados em funccedilatildeo dos quais

dizemos que somos afetados pelas emoccedilotildees por

exemplo aqueles em funccedilatildeo dos quais somos

capazes de encolerizar-nos afligir-nos ou apiedar-

nos por disposiccedilotildees aqueles em funccedilatildeo dos quais

nos portamos bem ou mal com relaccedilatildeo agraves

emoccedilotildees por exemplo com relaccedilatildeo ao

encolerizar-se se nos encolerizamos forte ou

fracamente portamo-nos mal se moderadamente

bem e de modo semelhante com relaccedilatildeo agraves outras

emoccedilotildees (EN II 4 1105b19-29)56

O passo do Livro II 3 da Eacutetica Nicomaqueia nos apresenta

algumas dificuldades mas igualmente algumas ideias de por onde

possamos caminhar a fim de entender o que Aristoacuteteles propotildee como

emoccedilatildeo A primeira inquietaccedilatildeo que nos traz eacute justamente a

supramencionada definiccedilatildeo insatisfatoacuteria o que todavia pode sofrer a

seguinte objeccedilatildeo o texto apresenta-nos igualmente a especificaccedilatildeo de

que tais coisas satildeo acompanhadas de prazer ou dor Essa afirmaccedilatildeo natildeo

satisfaz a nossa curiosidade porque entendemos que uma lista com

substantivos no acusativo natildeo serve como definiccedilatildeo (sequer em termos

aristoteacutelicos) Natildeo nos satisfaz tambeacutem porque haacute outras coisas

mencionadas nos tratados aristoteacutelicos que satildeo descritas como

acompanhadas de prazer ou dor como as accedilotildees afirmaccedilatildeo que pode ser

lida nos Livros VII e X por exemplo natildeo levando esse traccedilo a

constituir-se realmente como uma diferenccedila especiacutefica

O prazer e a dor todavia satildeo indicados na definiccedilatildeo das emoccedilotildees

feita pela EN como seu traccedilo distintivo traccedilo que eacute repetido em quase

tradutores parecem utilizar o que lhes parece calhar melhor agrave sua proacutepria

interpretaccedilatildeo 56 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ἐπεὶ οὖν τὰ ἐν τῇ ψυχῇ γινόμενα τρία ἐστί πάθη δυνάμεις

ἕξεις τούτων ἄν τι εἴη ἡ ἀρετή λέγω δὲ πάθη μὲν ἐπιθυμίαν ὀργὴν φόβον

θάρσος φθόνον χαρὰν φιλίαν μῖσος πόθον ζῆλον ἔλεον ὅλως οἷς ἕπεται ἡδονὴ

ἢ λύπη δυνάμεις δὲ καθ ἃς παθητικοὶ τούτων λεγόμεθα οἷον καθ ἃς δυνατοὶ

ὀργισθῆναι ἢ λυπηθῆναι ἢ ἐλεῆσαι ἕξεις δὲ καθ ἃς πρὸς τὰ πάθη ἔχομεν εὖ ἢ

κακῶς οἷον πρὸς τὸ ὀργισθῆναι εἰ μὲν σφοδρῶς ἢ ἀνειμένως κακῶς ἔχομεν εἰ

δὲ μέσως εὖ ὁμοίως δὲ καὶ πρὸς τἆλλα

74

todas as outras definiccedilotildees apresentadas nos demais tratados que

chamaremos em nosso auxiacutelio o que natildeo nos permite ignorar essa

caracteriacutestica Aristoacuteteles explica que comumente se admite o prazer

como o que toca mais de perto a natureza humana ideia relevante para

nossa investigaccedilatildeo porque haacute prazeres ligados ao natildeo racional e

prazeres do intelecto como aqueles associados agrave vida contemplativa

que satildeo descritos pelo filoacutesofo como maiores e melhores dentre os

prazeres Por isso na educaccedilatildeo dos jovens satildeo usados prazer e dor para

direcionaacute-los pois se pensa que para formar a excelecircncia do caraacuteter eacute

preciso se comprazer com as coisas certas e detestar as que devem ser

detestadas (EN X 1 1172a19-24) Percebemos contudo o filoacutesofo a

abordar os prazeres natildeo racionais com a cautela costumeira dispensada

aos elementos natildeo racionais pois parece pensar ser necessaacuterio educaacute-las

conforme a reta razatildeo Assim Aristoacuteteles natildeo nega que prazer e dor nos

acompanham por toda vida que tenham grande importacircncia e forccedila para

a virtude e para a vida feliz porque escolhemos o que eacute agradaacutevel e

fugimos do que eacute doloroso sendo que o prazer eacute naturalmente buscado

pelo desejo e a dor evitada Portanto prazer e dor estatildeo ligados

igualmente agrave accedilatildeo que conduziraacute ao alcance dos fins desejados

Aleacutem do passo do Livro II no qual Aristoacuteteles relaciona prazer e

dor agraves emoccedilotildees o pensador aborda-os especialmente em trecircs momentos

de sua EN Primeiro trata esses assuntos quando estuda as propostas

correntes sobre a melhor forma de vida humana Nesse ponto vimos que

ainda no Livro I percebe que boa parte dos homens busca uma vida

voltada totalmente para o prazer considerado indiscriminada ou

vulgarmente um bem ou o bem supremo A consideraccedilatildeo eacute feita e

descartada pelo filoacutesofo que concorda que o prazer seja um bem mas

que seja impossiacutevel consideraacute-lo o bem supremo ainda que se configure

como um bem final

O segundo momento em que a temaacutetica eacute discutida eacute o Livro VII

que apresenta um diaacutelogo com Platatildeo e sua proposta do prazer como um

processo ideia descartada pela Eacutetica em questatildeo O terceiro ponto do

tratado no qual o prazer aparece eacute a primeira ldquometaderdquo do Livro X da

EN quando o filoacutesofo parece retomar as propostas sobre os prazeres da

vida vulgar abordados no Livro I reforccedilando sua ideia de que o prazer

natildeo pode ser o bem supremo mas que ainda assim pode ser um bem

porque apesar de poder ser escolhido por si mesmo natildeo apresentaria a

autossuficiecircncia e completude da felicidade deixando espaccedilo em uma

vida voltada agrave busca de prazer ainda para a necessidade de outras coisas

Nesse trecho o filoacutesofo apresentaria sua real concepccedilatildeo do prazer e

chegaria a relacionaacute-lo com a moralidade Como propotildee Frede (2009 p

75

241) Aristoacuteteles daacute lugar agraves inclinaccedilotildees em sua moral embora as accedilotildees

corretas moralmente natildeo dependam apenas das inclinaccedilotildees dependem

igualmente da racionalidade praacutetica exercida na figura da deliberaccedilatildeo

ldquoAinda que sentimentos gostos e desgostos desempenhem um

importante papel para estabelecer o fim uacuteltimo da accedilatildeo eles natildeo

determinam a deliberaccedilatildeo racional acerca do caraacuteter apropriado de uma

accedilatildeordquo (FREDE 2009 p 241) Entatildeo os prazeres podem e devem ser

bem-educados moralmente o que possibilitaraacute realizar a recomendaccedilatildeo

de EN II de que eacute preciso ser educado a fim de sentir prazer com o que

eacute devido e para desprezar o que eacute devido

A estudiosa observa que na EN contudo Aristoacuteteles natildeo discute

o tipo de prazer e dor envolvido nas emoccedilotildees Por isso e por sugestatildeo

de Frede eacute preciso recorrer agrave Retoacuterica para saber de tal assunto Neste

livro Aristoacuteteles usa a tese que havia rejeitado na EN aquela que propotildee

o prazer como um processo (Rhet I 10 1369b33-35) De acordo com

Frede (2009 p 249)

Natildeo eacute difiacutecil ver por que Aristoacuteteles recorre agrave

definiccedilatildeo das dores e dos prazeres como

ldquoprocessos de interrupccedilatildeo e restauraccedilatildeordquo as

emoccedilotildees satildeo baseadas em necessidades quereres

desejos ou em suas aversotildees correspondentes

Todos esses fenocircmenos pressupotildeem algum tipo de

carecircncia uma necessidade que deve ser satisfeita

Os oradores tratam das necessidades humanas de

diferentes modos [] os prazeres e as dores

relevantes estatildeo ligados agraves necessidades e aos

quereres das pessoas

A autora entende que a Retoacuterica conteacutem um tipo de anaacutelise que

Aristoacuteteles deve ter pressuposto na EN e isso natildeo requer que se

assumam tratamentos diferentes para o prazer e para a dor em diferentes

fases do pensamento de Aristoacuteteles Ambos os conceitos sobre o prazer

devem ter existido na eacutepoca do filoacutesofo que os apresenta em textos

diferentes (Top I 2 121a35-36) Aristoacuteteles pode ter escrito a Retoacuterica

consideravelmente cedo mas continuou a usaacute-la e reformulaacute-la o que eacute

apontado por marcas posteriores de revisatildeo Nem assim sentiu

necessidade de alterar sua explicaccedilatildeo sobre prazer e dor quando tratou

das emoccedilotildees neste livro Frede pensa que o filoacutesofo deve ter

considerado a familiaridade dos leitores com as paacutethē (da Retoacuterica)

76

quando natildeo fez descriccedilatildeo minuciosa do tema na EN57 ldquoAristoacuteteles

parece assim ter reconhecido diferentes tipos de prazer e dor em sua

eacutetica sem chamar a atenccedilatildeo do leitor para esse fatordquo (FREDE 2009 p

249) o que justificaria a postura da Retoacuterica

Agraves observaccedilotildees de Frede acrescentamos que o prazer associado

agraves emoccedilotildees como no caso das propostas da Rhet da Poet e tambeacutem da

EN tem um quecirc de racionalidade Nos tratados de ciecircncia produtiva eacute

faacutecil perceber o que afirmamos porque as emoccedilotildees traacutegicas bem como

aquelas despertadas pelo discurso retoacuterico acontecem por um tipo de

lsquoidentificaccedilatildeorsquo entre o puacuteblico e as imagens criadas pelo enredo ou pelo

proferimento do orador Essas imagens provocam certo tipo de

pensamento (ao menos imaginaccedilatildeo) em quem tem contato com elas Eacute o

caso do reconhecimento de que ldquoesse eacute aquelerdquo mencionado em Poet

IV e provocado pela trageacutedia que causa prazer proacuteprio a este tipo de

literatura ou encenaccedilatildeo Tal prazer natildeo eacute advindo somente da aparecircncia

da arte em questatildeo mas das formulaccedilotildees racionais que leva o puacuteblico a

elaborar

Pensamos que o mesmo seja vaacutelido para a EN porque o prazer e a

dor causados pelas emoccedilotildees descritas neste tratado tecircm a ver com certas

elaboraccedilotildees que se encadeiam a partir do contato com algumas

aparecircncias e resultam em determinados tipos de operaccedilotildees psiacutequicas

como as opiniotildees O prazer vem com o sentir certa emoccedilatildeo e

igualmente com a lembranccedila ou a imaginaccedilatildeo pois estas causam ao

menos certas alteraccedilotildees no corpo pondo-o em movimento por isso satildeo

tambeacutem classificados como paacutethos (EN II 2 1105a2) pois afetam o

homem embora como observa Konstan (2006 p 42) os prazeres natildeo

sejam exatamente emoccedilatildeo pois satildeo sensaccedilotildees (aisthḗseis) resultantes da

percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo O jovem ao ser educado deve adquirir o

haacutebito de sentir prazer e dor com o que eacute adequado seu caraacuteter deve se

familiarizar previamente com a virtude gostando do que eacute belo e

desprezando o vil58 indicando a forma correta de sentir

57 Talvez por isso tambeacutem natildeo faccedila grandes explicaccedilotildees sobre as emoccedilotildees 58 Segundo Frede das consideraccedilotildees acerca das emoccedilotildees e do prazer feitas por

Aristoacuteteles o que fica para pensarmos atualmente eacute a proposta da necessidade

de uma educaccedilatildeo moral apropriada das emoccedilotildees do sentir prazer e dor com

atividades e atitudes corretas Um segundo benefiacutecio seria o enfoque na

qualidade de vida na qual se preze o desenvolvimento das qualidades que

apresentamos naturalmente para termos uma vida satisfatoacuteria e pensamos em

harmonia dentro de nossas comunidades Aristoacuteteles entendeu que a moralidade

eacute compatiacutevel com inclinaccedilotildees pessoais e pressupocircs tais inclinaccedilotildees Isso eacute o

77

Aleacutem da menccedilatildeo ao prazer e agrave dor e das listas apresentadas no

passo que provavelmente deveria explicar o que Aristoacuteteles entende

por emoccedilatildeo devemos considerar em que medida a ldquodefiniccedilatildeordquo

apresentada pode ser uacutetil em nossa busca por maior especificidade sobre

o assunto Para comeccedilar podemos observar um pouco mais EN II 4

1105b19-29 e com isso notar a relaccedilatildeo do paacutethos com as capacidades

(dynaacutemeis) e as disposiccedilotildees (heacutexeis) A passagem busca esclarecer o que

satildeo as virtudes e por isso as diferencia das emoccedilotildees estas natildeo seriam

nem disposiccedilotildees ou seja aquilo que nos faz ter bom ou mau

comportamento frente agraves emoccedilotildees nem dynaacutemeis que satildeo as

capacidades que se tem de sentir as emoccedilotildees O passo todavia diz

muito da importacircncia eacutetica do paacutethos pois se a virtude eacute disposiccedilatildeo e eacute

fundamental agrave felicidade - e sendo a felicidade o fim humano - se estaacute

ligada desde a alma agrave emoccedilatildeo - por ser disposiccedilatildeo de se posicionar bem

diante das emoccedilotildees - percebemos que o papel desses elementos

desprezados ou postos em segundo plano por outros filoacutesofos eacute

realmente grande em Aristoacuteteles como bem observa Zingano (2007 p

145 EN II 1 1103b25) As emoccedilotildees interferem no ser e no agir

virtuosamente (EN II 2 1104b4-13) pois haacute modos diferentes de se

sentir e lidar com a emoccedilatildeo conforme o estado e a heacutexis nos quais nos

encontramos Entatildeo ser virtuoso implica se comportar bem em relaccedilatildeo agrave

emoccedilatildeo e senti-la de modo (ou na quantia) adequado

A partir das observaccedilotildees feitas podemos afirmar que o passo em

questatildeo deixa claro que as virtudes natildeo satildeo emoccedilotildees embora se

relacionem com estas pois virtudes e viacutecios (kakiacuteai) levam a considerar

um agente como bom ou mau a ser louvado ou censurado e envolvem

escolha deliberada Um homem que apresenta uma virtude eacute dito

disposto de certo modo mas ningueacutem eacute considerado bom ou mau

ningueacutem eacute louvado ou censurado nem considerado disposto de certo

modo por sentir uma emoccedilatildeo ou por ser capaz de sentir uma emoccedilatildeo

A relaccedilatildeo da emoccedilatildeo com a virtude moral em EN II confirma as

propostas de EN I 13 a respeito da alma humana bipartida cuja

capacidade desiderativa ldquocomportariardquo as emoccedilotildees Tal capacidade eacute

forccediloso lembrar seria natildeo racional mas capaz de ouvir as sugestotildees da

razatildeo praacutetica portanto deveriacuteamos supor que aquilo que fosse de sua

alccedilada refletisse tal capacidade de ouvir a razatildeo A possibilidade de as

emoccedilotildees seguirem a reta razatildeo todavia se configura como um

meacuterito da teoria em questatildeo e a proposta de que a accedilatildeo deve ser feita com

inclinaccedilatildeo e natildeo por inclinaccedilatildeo pouparia muita discussatildeo se tivesse sido levada

a seacuterio pelos filoacutesofos posteriores

78

problema pois ainda no Livro II Aristoacuteteles nos fala de emoccedilotildees que

satildeo moralmente maacutes e que natildeo admitem mudanccedila59

Dado que os trechos da Eacutetica Nicomaqueia em anaacutelise por ora

nos trouxeram mais duacutevidas que respostas - ao mostrar-nos o ldquolugarrdquo

das emoccedilotildees na alma e com este sua capacidade de participar do

racional - consideramos que para entendermos esses assuntos

igualmente seja relevante consultar tratados que se dedicaram mais

especificamente ao tema e consultar o texto no qual particularmente se

analisa as questotildees relativas agrave alma Essa consulta nos permitiraacute trazer

soluccedilotildees agraves questotildees suscitadas desde EN I 13 a respeito da

possibilidade de participaccedilatildeo do natildeo racional na razatildeo humana dado

que ambos satildeo capacidades de uma alma una que se manifestam no

corpo Por isso julgamos que o tratado sobre a alma assim como os

demais textos que seratildeo nossos auxiliares nos permitiratildeo ter maior

clareza sobre as relaccedilotildees das emoccedilotildees com corpo e alma e com a razatildeo

humana

4a) Alma corpo e emoccedilotildees interpretadas a partir de EN I com o auxiacutelio

do DA da Rhet e da Poet

No De Anima o estudo da psychḗ estaacute entre aqueles dedicados agraves

coisas da natureza por ser um tipo de investigaccedilatildeo que pretende

conhecer a natureza a substacircncia e os atributos da alma dentre os quais

estatildeo as afecccedilotildees (paacutethē) que lhes satildeo proacuteprias Essas afirmaccedilotildees

conduzem agrave questatildeo complexa da separaccedilatildeo ou unidade entre corpo e

alma Devemos retomar o problema ainda que brevemente jaacute que

Aristoacuteteles faz com que alma e corpo compartilhem as emoccedilotildees

afirmaccedilatildeo feita anteriormente Frente a esse assunto cabe a questatildeo da

inseparabilidade entre corpo e alma Quanto agrave questatildeo Aristoacuteteles

parece pocircr-se em franca oposiccedilatildeo agraves teorias dualistas de Platatildeo como

aquelas apresentadas no Feacutedon quando escreve

Haacute ainda uma dificuldade de saber se as afecccedilotildees

59 Eacute o que confirma Sorabji quando fala da proposta de Aristoacuteteles sobre o meio

termo nas emoccedilotildees ldquoPois ele diz que o que conta muito ou pouco depende de

quem noacutes somos da ocasiatildeo do para quecirc e para quem a nossa emoccedilatildeo eacute

dirigida do resultado provaacutevel e do modo de reagir Aleacutem disso ele aponta que

algumas emoccedilotildees como Schadenfreude (sentir prazer com o insucesso alheio) e

inveja tecircm a ideia de maldade construiacuteda nelas de modo que natildeo haacute espaccedilo para

a ideia de moderaccedilatildeo em exercecirc-lasrdquo (SORABJI 2000 p 195 traduccedilatildeo nossa)

79

da alma satildeo todas comuns agravequilo que possui alma

ou se haacute tambeacutem alguma afecccedilatildeo proacutepria agrave alma

tatildeo somente E embora natildeo seja faacutecil eacute necessaacuterio

compreender isto Revela-se que na maioria dos

casos a alma nada sofre ou faz sem o corpo

como por exemplo irritar-se persistir ter

vontade e perceber em geral por outro lado

parece ser proacuteprio a ela particularmente o pensar

Natildeo obstante se o pensar tambeacutem eacute um tipo de

imaginaccedilatildeo ou se ele natildeo pode ocorrer sem a

imaginaccedilatildeo entatildeo nem mesmo o pensar poderia

existir sem o corpo Enfim se alguma das funccedilotildees

ou afecccedilotildees eacute proacutepria agrave alma ela poderia existir

separada mas se nada lhe eacute proacuteprio a alma natildeo

seria separaacutevel [] Parece tambeacutem que todas as

afecccedilotildees da alma ocorrem com um corpo acircnimo

mansidatildeo medo comiseraccedilatildeo ousadia bem

como a alegria o amar e o odiar ndash pois o corpo eacute

afetado de algum modo simultaneamente a elas

(DA 403a3-19)60

O passo apresenta simultaneidade nas afecccedilotildees do corpo e da

alma inviabilizando a separaccedilatildeo destas duas instacircncias61 pois como

observa Everson (2012 p 238) ldquose o corpo deve ter oacutergatildeos que satildeo

capazes de realizar suas funccedilotildees constitutivas estes igualmente

precisam ter particulares constituiccedilotildees materiaisrdquo Reforccedilamos portanto

que para Aristoacuteteles natildeo haacute separaccedilatildeo entre corpo e alma o que nos

mostra sua teoria das emoccedilotildees pois nesta teoria o filoacutesofo explicita que

60 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ἀπορίαν δ

ἔχει καὶ τὰ πάθη τῆς ψυχῆς πότερόν ἐστι πάντα κοινὰ καὶ τοῦ ἔχοντος ἢ ἔστι τι

καὶ τῆς ψυχῆς ἴδιον αὐτῆς τοῦτο γὰρ λαβεῖν μὲν ἀναγκαῖον οὐ ῥᾴδιον δέ

φαίνεται δὲ τῶν μὲν πλείστων οὐθὲν ἄνευ τοῦ σώματος πάσχειν οὐδὲ ποιεῖν

οἷον ὀργίζεσθαι θαρρεῖν ἐπιθυμεῖν ὅλως αἰσθάνεσθαι μάλιστα δ ἔοικεν ἰδίῳ

τὸ νοεῖν εἰ δ ἐστὶ καὶ τοῦτο φαντασία τις ἢ μὴ ἄνευ φαντασίας οὐκ ἐνδέχοιτ

ἂν οὐδὲ τοῦτ ἄνευ σώματος εἶναι εἰ μὲν οὖν ἔστι τι τῶν τῆς ψυχῆς ἔργων ἢ

παθημάτων ἴδιον ἐνδέχοιτ ἂν αὐτὴν χωρίζεσθαι εἰ δὲ μηθέν ἐστιν ἴδιον αὐτῆς

οὐκ ἂν εἴη χωριστή [] ἔοικε δὲ καὶ τὰ τῆς ψυχῆς πάθη πάντα εἶναι μετὰ

σώματος θυμός πραότης φόβος ἔλεος θάρσος ἔτι χαρὰ καὶ τὸ φιλεῖν τε καὶ

μισεῖν ἅμα γὰρ τούτοις πάσχει τι τὸ σῶμα 61 A questatildeo eacute bem mais complexa poreacutem natildeo poderiacuteamos estudaacute-la em

detalhes nesse momento Sobre o assunto sugerimos a leitura de textos como os

de Robinson e Everson indicados nas referecircncias Estes lidam com a questatildeo

com muito mais cuidado do que noacutes podemos lhe dispensar no presente

80

quem se emociona natildeo eacute o corpo mas o composto corpoalma

apresentando claramente sua perspectiva hilemoacuterfica A prova que

Aristoacuteteles daacute para tanto eacute que agraves vezes as emoccedilotildees fortes e violentas

(hiskyrograven kaigrave enargograven pathḗmaton) natildeo produzem excitaccedilatildeo ou medo

mas agraves vezes emoccedilotildees pequenas e imperceptiacuteveis (mikroacuten kaigrave

amauroacuten) nos movem (kineicircsthai) Isso se torna ainda mais evidente

por exemplo quando natildeo acontece nada de temiacutevel mas se sente medo

(DA I 1 403a20-24) tendo o corpo a tremer como eacute o caso em um

teatro Por isso o filoacutesofo considera evidente que as afecccedilotildees satildeo

determinaccedilotildees na mateacuteria - ou seja implicam ou envolvem mateacuteria mas

natildeo somente (DA I 1 403a24-25 loacutegoi eacutenyloi eisiacuten62) Por isso tambeacutem

as definiccedilotildees que daacute para as emoccedilotildees satildeo do tipo o encolerizar-se eacute um

movimento no corpo do sangue na regiatildeo que estaacute em volta do

coraccedilatildeo ocasionado por certo desejo63 Tais potecircncias satildeo despertadas

por percepccedilotildees imagens e imaginaccedilotildees fatores que estatildeo atrelados ao

exterior e agrave percepccedilatildeo sensiacutevel e estatildeo associadas ao desejo e ao

pensamento daquele que se emociona

Dessas consideraccedilotildees do tratado sobre a alma acerca das

emoccedilotildees aleacutem da velha lista das paacutethē eacute possiacutevel entender que afetam

simultaneamente alma e corpo e que neste provocam alteraccedilotildees e

mesmo movimentos Teorias que parecem ser de grande ajuda agrave nossa

pesquisa embora no DA Aristoacuteteles possa natildeo estar preocupado em

especificar o valor moral das emoccedilotildees dado o caraacuteter bioloacutegico (ou

psicoloacutegico) do texto Pelas propostas observadas entendemos ldquoque as

afecccedilotildees da alma satildeo assim inseparaacuteveis da mateacuteria natural dos animais

na medida em que de fato subsistem neles coisas tais como acircnimo e

62Everson traduz a expressatildeo por ldquoexplicaccedilotildees materiadasrdquo e Tricot por ldquodes

formes engageacutees dans la matiegravererdquo (as formas determinadas da mateacuteria) Este

uacuteltimo explica o raciociacutenio de Aristoacuteteles no passo da seguinte forma ldquoas

emoccedilotildees variam segundo os diferentes indiviacuteduos elas tanto se produzem e

elas tanto natildeo se produzem Ora essa diferenccedila natildeo eacute devida ao πάθημα que eacute o

mesmo para todos eacute devida agrave diferenccedila dos temperamentos da constituiccedilatildeo

fiacutesica Portanto uma emoccedilatildeo eacute sempre acompanhada mesmo no caso em que o

fato natildeo eacute aparente de um concomitante fiacutesicordquo (2010 nota 2 p 29 traduccedilatildeo

nossa) 63Embora nos interesse em demasia a questatildeo de como as afecccedilotildees da alma se

manifestam no corpo eacute mais bem discutida por Aristoacuteteles em seus tratados

bioloacutegicos mas natildeo apareceraacute aqui por questotildees de exequibilidade de nosso

estudo

81

temor e natildeo satildeo como a linha e a superfiacutecierdquo (DA I 1 403b17-19)64

Constataccedilatildeo possiacutevel porque o estudioso da natureza trataria as afecccedilotildees

de modo diferente do que o faria um dialeacutetico como Everson escreve

Noacutes jaacute vimos que ao definir as afecccedilotildees da

psyche Aristoacuteteles daacute prioridade agrave identificaccedilatildeo

das causas das mudanccedilas relevantes e aqui ele

insiste que tambeacutem ter (sic) de ser feita referecircncia

ao corpo Que aqui ldquoeste tipo de corpordquo natildeo

represente uma referecircncia agrave forma eacute confirmado

pelo que se segue Ele contrasta as definiccedilotildees de

ira que seriam oferecidas pelo dialeacutetico e pelo

fiacutesico o primeiro definiria a ira como ldquolsquoo desejo

de retribuir a dorrsquo ou algo parecidordquo enquanto o

uacuteltimo a definiria como a agitaccedilatildeo do sangue ao

redor do coraccedilatildeo (EVERSON 2010 p 241)

Essa diferenccedila nas descriccedilotildees das afecccedilotildees acontece porque ldquoUm

discorre sobre a mateacuteria e o outro sobre a forma e a determinaccedilatildeordquo (DA I

1 403b1-2)65 A determinaccedilatildeo eacute a forma da coisa e precisa existir em

uma mateacuteria que possua tal qualidade O estudioso da natureza eacute

portanto aquele que aborda as afecccedilotildees correspondentes a um corpo

especiacutefico e a uma mateacuteria especiacutefica natildeo tratando das afecccedilotildees que natildeo

satildeo deste tipo assunto que cabe a estudos como os da arte retoacuterica dos

quais falaremos na sequecircncia

Por ora seguiremos com a investigaccedilatildeo do DA que continua

questionando afirmaccedilotildees sobre a acomodaccedilatildeo da alma no corpo e

afirmando que tal consideraccedilatildeo eacute necessaacuteria pois eacute devido agrave comunhatildeo

corpoalma que um faz e outro sofre um move e outro eacute movido sendo

que nada disso acontece casualmente a um ou ao outro Aristoacuteteles

observa em contrapartida parece que cada corpo apresenta

configuraccedilatildeo proacutepria Nesse ponto provavelmente tenhamos a

importacircncia de chamar as consideraccedilotildees de um tratado bioloacutegico para

uma discussatildeo eacutetica se o primeiro tipo de investigaccedilatildeo tem por

preocupaccedilatildeo o mover poderaacute auxiliar na resoluccedilatildeo de questotildees morais

pois natildeo haacute accedilatildeo (prāxis) ou atividade (eneacutergeia) moralmente

consideraacutevel sem movimento (kiacutenēsis) tampouco sem o movimento

64 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ὅτι τὰ πάθη

τῆς ψυχῆς οὕτως ἀχώριστα τῆς φυσικῆς ὕλης τῶν ζῴων ᾗ γε τοιαῦθ ὑπάρχει

ltοἷαgt θυμὸς καὶ φόβος καὶ οὐχ ὥσπερ γραμμὴ καὶ ἐπίπεδον 65 Idem no original ὁ μὲν τὴν ὕλην ἀποδίδωσιν ὁ δὲ τὸ εἶδος καὶ τὸν λόγον

82

daquilo que pede as accedilotildees ou as atividades como vimos pouco acima

Diante da questatildeo do mover e do que faz mover podemos

explicitar a proposta precedentemente mencionada que a alma eacute o que

move sem ser movido tratando-se do movimento local ldquoeacute possiacutevel

como dissemos que a alma se mova por acidente e que mova a si

mesma ndash eacute possiacutevel por exemplo que aquilo em que ela estaacute seja

movido e seja movido justamente pela alma - mas natildeo eacute possiacutevel de

nenhuma outra maneira que a alma se mova quanto ao lugarrdquo (DA I 4

408a30-34)66 A partir dessa afirmaccedilatildeo Tricot (2010 nota 2 p 65)

esclarece que a alma se move no corpo em que estaacute por acidente pois

move-o e que o movimento quanto ao lugar bem como as alteraccedilotildees

fisioloacutegicas provocadas pelas paacutethē podem nos preocupar justamente

pela relaccedilatildeo da kiacutenēsis com as accedilotildees e as atividades morais que

mencionamos Aristoacuteteles pensa que o deslocamento da alma poderia

ser inferido mais verossimilmente das suas capacidades consideradas

pela opiniatildeo comum como movimento Esta eacute a interpretaccedilatildeo dada por

Tricot (2010 nota 4 p 65) para o passo que segue

E seria mais razoaacutevel algueacutem ter certa dificuldade

em relaccedilatildeo agrave alma como movida tendo em vista o

que se segue dizemos que a alma se magoa se

alegra ousa teme e ainda que se irrita percebe e

raciocina e haacute a opiniatildeo de que todas estas coisas

satildeo movimentos donde algueacutem poderia pensar

que a alma se move Isso contudo natildeo eacute

necessaacuterio Pois mesmo que o magoar-se o

alegrar-se ou o raciocinar sejam especialmente

movimentos e que cada um deles o seja pela alma

ndash por exemplo que o irritar-se ou o temer seja um

tipo de movimento do coraccedilatildeo e que o raciocinar

seja um tipo de movimento desse oacutergatildeo ou talvez

de outro diverso e que dentre estes casos uns

ocorram segundo a locomoccedilatildeo de certas partes

movidas outros segundo a alteraccedilatildeo das mesmas

(quais e como eacute outra questatildeo) ndash dizer que a alma

se irrita eacute como dizer que a alma tece ou edifica

Talvez seja melhor dizer natildeo que a alma se apieda

ou apreende ou raciocina mas que o homem o faz

66 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original κατὰ

συμβεβηκὸς δὲ κινεῖσθαι καθάπερ εἴπομεν ἔστι καὶ κινεῖν ἑαυτήν οἷον

κινεῖσθαι μὲν ἐν ᾧ ἐστι τοῦτο δὲ κινεῖσθαι ὑπὸ τῆς ψυχῆς ἄλλως δ οὐχ οἷόν τε

κινεῖσθαι κατὰ τόπον αὐτήν

83

com a alma E isso natildeo porque o movimento

existe nela mas porque o movimento ora chega

ateacute ela ora parte dela na percepccedilatildeo sensiacutevel por

exemplo ele parte de fora e na reminiscecircncia

parte dela ateacute chegar aos movimentos e agraves

estabilizaccedilotildees nos oacutergatildeos da percepccedilatildeo (DA I 4

408a34-35 408b1-17)67

Assim dando por fim nossa breve discussatildeo sobre a questatildeo do

movimento provocado pelas paacutethē da alma no corpo confirmamos que a

alma natildeo eacute o que faz mover e o que eacute movido Ela eacute somente o que faz

mover (DA 409a18 allagrave tograve kinoucircn moacutenon) e natildeo eacute preciso que se mova

para que conceda movimento aos corpos embora por esses argumentos

natildeo fosse possiacutevel explicar as funccedilotildees (tagrave eacuterga) e as afecccedilotildees (tagrave paacutethē)

da alma68 Essas propostas do DA portanto natildeo potildeem fim agraves nossas

duacutevidas acerca da definiccedilatildeo de emoccedilatildeo

Frente agraves indefiniccedilotildees apresentadas pela EN e pelo DA a

Retoacuterica ressalta algo novo e importante Esse tratado propotildee que as

emoccedilotildees satildeo ldquoas causas que fazem alterar os seres humanos e

introduzem mudanccedilas nos seus juiacutezos na medida em que elas

comportam dor e prazer tais satildeo a ira a compaixatildeo o medo e outras

67 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original ἄλλως δ οὐχ οἷόν τε

κινεῖσθαι κατὰ τόπον αὐτήν εὐλογώτερον δ ἀπορήσειεν ἄν τις περὶ αὐτῆς ὡς

κινουμένης εἰς τὰ τοιαῦτα ἀποβλέψας φαμὲν γὰρ τὴν ψυχὴν λυπεῖσθαι χαίρειν

θαρρεῖν φοβεῖσθαι ἔτι δὲ ὀργίζεσθαί τε καὶ αἰσθάνεσθαι καὶ διανοεῖσθαι ταῦτα

δὲ πάντα κινήσεις εἶναι δοκοῦσιν ὅθεν οἰηθείη τις ἂν αὐτὴν κινεῖσθαι τὸ δ οὐκ

ἔστιν ἀναγκαῖον εἰ γὰρ καὶ ὅτι μάλιστα τὸ λυπεῖσθαι ἢ χαίρειν ἢ διανοεῖσθαι

κινήσεις εἰσί καὶ ἕκαστον κινεῖσθαί τι τούτων τὸ δὲ κινεῖσθαί ἐστιν ὑπὸ τῆς

ψυχῆς οἷον τὸ ὀργίζεσθαι ἢ φοβεῖσθαι τὸ τὴν καρδίαν ὡδὶ κινεῖσθαι τὸ δὲ

διανοεῖσθαι ἤ τι τοιοῦτον ἴσως ἢ ἕτερόν τι τούτων δὲ συμβαίνει τὰ μὲν κατὰ

φοράν τινων κινουμένων τὰ δὲ κατ ἀλλοίωσιν (ποῖα δὲ καὶ πῶς ἕτερός ἐστι

λόγος) τὸ δὴ λέγειν ὀργίζεσθαι τὴν ψυχὴν ὅμοιον κἂν εἴ τις λέγοι τὴν ψυχὴν

ὑφαίνειν ἢ οἰκοδομεῖν βέλτιον γὰρ ἴσως μὴ λέγειν τὴν ψυχὴν ἐλεεῖν ἢ

μανθάνειν ἢ διανοεῖσθαι ἀλλὰ τὸν ἄνθρωπον τῇ ψυχῇ τοῦτο δὲ μὴ ὡς ἐν

ἐκείνῃ τῆς κινήσεως οὔσης ἀλλ ὁτὲ μὲν μέχρι ἐκείνης ὁτὲ δ ἀπ ἐκείνης οἷον

ἡ μὲν αἴσθησις ἀπὸ τωνδί ἡ δ ἀνάμνησις ἀπ ἐκείνης ἐπὶ τὰς ἐν τοῖς

αἰσθητηρίοις κινήσεις ἢ μονάς 68 Raciociacutenios (logismouacutes) percepccedilotildees (aisthḗsis) prazeres (hēdonaacutes) dores

(lyacutepas) etc

84

semelhantes assim como as suas contraacuteriasrdquo (Rhet II 1 1378a19-22)69

Mais adiante no texto lemos outro passo que parece proceder a uma

exemplificaccedilatildeo ou lista de emoccedilotildees ldquoPor paixotildees entendo a ira o desejo

e outras emoccedilotildees da mesma natureza de que falamos anteriormenterdquo

(Rhet II 12 1388b32-33)70 O que pode chamar nossa atenccedilatildeo nesses

trechos eacute resumido por Konstan (2006 p 33 traduccedilatildeo nossa) do

seguinte modo ldquoA definiccedilatildeo de emoccedilatildeo ou paacutethos entretanto que

Aristoacuteteles oferece na Retoacuterica ndash o mais perto que ele chega de dar uma

tal definiccedilatildeo do que em nenhum outro de seus escritos [] ndash natildeo

relaciona emoccedilatildeo com sua causa externa ou estiacutemulo mas insiste antes

em seu efeito sobre o julgamentordquo Observaccedilatildeo extremamente vaacutelida

embora entendamos que as definiccedilotildees das emoccedilotildees particulares trazidas

pelo Livro II da Rhet apresentem as referecircncias aos mencionados

estiacutemulos ou causas externas como mostraremos pouco adiante

Deixemos isso por ora concentremo-nos na tentativa de definiccedilatildeo dada

pelo texto e nos juiacutezos que se diz serem alterados

Comecemos com uma interrogaccedilatildeo como o destaque na

capacidade de ldquomudanccedilas nos juiacutezosrdquo poderia ser importante para nossa

pesquisa se as coisas que dizem respeito agrave retoacuterica diferem daquelas

especiacuteficas agrave eacutetica Sendo a retoacuterica considerada uma arte e se a arte

trata do universal como poderia nos ajudar a esclarecer questotildees eacuteticas

se vemos Aristoacuteteles sempre a ressaltar o caraacuteter particular das accedilotildees

morais Antes de responder agraves questotildees vale frisar que a eacutetica tambeacutem

aborda universalmente suas questotildees graccedilas ao seu caraacuteter filosoacutefico jaacute

indicando certa proximidade entre as investigaccedilotildees dos dois tratados

Diante disso podemos ir agraves respotas o filoacutesofo nos informa que a arte

retoacuterica natildeo teoriza sobre o provaacutevel para o indiviacuteduo mas sobre o que

parece verdadeiro para pessoas de certa condiccedilatildeo formando silogismos

a partir daquilo sobre o que estamos habituados a deliberar Esse

envolvimento do haacutebito e da deliberaccedilatildeo mesmo que natildeo implique

necessariamente uma accedilatildeo particular ainda eacute de grande importacircncia

para nossos estudos porque a funccedilatildeo da retoacuterica ldquoconsiste em tratar das

questotildees sobre as quais deliberamos e para as quais natildeo dispomos de

artes especiacuteficas e isto perante um auditoacuterio incapaz de ver muitas

coisas ao mesmo tempo ou de seguir uma longa cadeia de raciociacuteniosrdquo

69 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original ἔστι δὲ τὰ

πάθη δι ὅσα μεταβάλλοντες διαφέρουσι πρὸς τὰς κρίσεις οἷς ἕπεται λύπη καὶ

ἡδονή οἷον ὀργὴ ἔλεος φόβος καὶ ὅσα ἄλλα τοιαῦτα καὶ τὰ τούτοις ἐναντία 70 Idem no original λέγω δὲ πάθη μὲν ὀργὴν ἐπιθυμίαν καὶ τὰ τοιαῦτα περὶ ὧν

εἰρήκαμεν πρότερον

85

(Rhet I 2 1357a1-4)71

A arte retoacuterica tem o poder de incitar a deliberaccedilatildeo e tal poder eacute

empregado em julgamentos e em outras instacircncias importantes agraves

decisotildees da poacutelis Por isso Konstan (2006 p 34) observa que os

momentos nos quais as emoccedilotildees eram excitadas por artifiacutecios retoacutericos

satildeo representantes de como as paacutethē estatildeo presentes no cotidiano

poliacutetico ateniense e mesmo moral Assim nosso empenho em estudar as

emoccedilotildees propostas no tratado eacute vaacutelido mesmo que estudiosos como

Fortenbaugh (2008 p 114) entendam que os intentos da Retoacuterica satildeo

distintos daqueles da Eacutetica Nicomaqueia Esta proposta pode sofrer

abalo se confrontada com a interpretaccedilatildeo de Nussbaum (1996 p 306 et

seq) que vecirc elemento cognitivo na constituiccedilatildeo das emoccedilotildees (e natildeo soacute

nas emoccedilotildees propostas pela Poeacutetica e pela Retoacuterica) aproximando suas

teorias sobre a emoccedilatildeo da tese de Konstan acerca dos ajuizamentos

influentes no cotidiano da poacutelis

Tendo em vista a objeccedilatildeo de se relacionar as propostas da EN e

da Rhet acerca das emoccedilotildees reforccedilamos a importacircncia mesmo na vida

de um filoacutesofo do conviacutevio poliacutetico na realizaccedilatildeo da vida humana feliz

Se a retoacuterica traz as emoccedilotildees para as praacuteticas comuns da poacutelis

consideramos o exerciacutecio de conjugaccedilatildeo das ideias dos dois tratados

como vaacutelido porque a Rhet aleacutem de trazer algo mais proacuteximo de uma

definiccedilatildeo de emoccedilatildeo fala mais detalhadamente do nosso objeto de

pesquisa e da possibilidade de mudanccedila nasde emoccedilotildees operadas pelo

discurso As paacutethē sendo coisas que fazem alterar os homens e que

mudam seu juiacutezo e sendo acompanhadas por prazer ou dor (ou

ambos)72 na arte retoacuterica estatildeo relacionadas agraves disposiccedilotildees do puacuteblico e

ao caraacuteter apresentado pelo orador assegurando ao tratado um lugar em

nossa investigaccedilatildeo

Para que o discurso tenha o poder da persuasatildeo e da mudanccedila nos

juiacutezos Aristoacuteteles pensa ser conveniente distinguir trecircs aspectos em

cada uma das emoccedilotildees que possa suscitar 1) em que estado de espiacuterito

71 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original ἔστιν δὲ τὸ

ἔργον αὐτῆς περί τε τοιούτων περὶ ὧν βουλευόμεθα καὶ τέχνας μὴ ἔχομεν καὶ

ἐν τοῖς τοιούτοις ἀκροαταῖς οἳ οὐ δύνανται διὰ πολλῶν συνορᾶν οὐδὲ

λογίζεσθαι πόρρωθεν 72 Sobre o misto de sentimentos que acompanha as emoccedilotildees da Retoacuterica ver

FREDE D ldquoMixed feelings in Aristotleacutes Rhetoricrdquo In Essays on Aristotleacutes

Rhetoric Berkeley Los Angeles London 1996 p 258-285 Ver tambeacutem

Konstan (2006 p 41 et seq) que admite por exemplo o misto de prazer e dor

com a raiva

86

se encontra quem se emociona 2) com o quecirc costuma se emocionar e

3) em que circunstacircncias se emociona Com base nesses criteacuterios o

filoacutesofo elabora descriccedilotildees das emoccedilotildees particulares implicadas com a

arte de persuadir se uma pessoa concentra um ou dois destes aspectos e

natildeo todos natildeo inspira a emoccedilatildeo Aristoacuteteles faz uma distinccedilatildeo das

paacutethē conforme esse meacutetodo que seraacute de grande ajuda aos nossos

propoacutesitos de definir o que satildeo as emoccedilotildees e sua natureza e embora natildeo

apresentemos aqui uma reproduccedilatildeo da definiccedilatildeo dada para cada paacutethos

mais adiante no entanto recorreremos ao medo (phoacutebos) como exemplo

do que expomos73 As descriccedilotildees contudo nos levam a perceber as

emoccedilotildees a serem despertadas com o discurso que tem por base

caracteres jaacute estabelecidos sejam estes aparentes ou reais Estes

caracteres podem ser apresentados pelos espectadores dos discursos

pelos envolvidos nas situaccedilotildees apresentadas em uma exposiccedilatildeo ou

pelos oradores que proferem uma fala Nesse ponto provavelmente

existe uma pequena diferenccedila entre as propostas da Retoacuterica e aquelas

da Eacutetica Nicomaqueia texto no qual as emoccedilotildees ainda tecircm a ver com

um caraacuteter em formaccedilatildeo74 embora as consideraccedilotildees apresentadas no

Livro X mostrem tal tratado preocupado igualmente com a conservaccedilatildeo

de um caraacuteter bem formado

As diferenccedilas entre os dois escritos cessam quando lidam com

pessoas e com o mundo que cerca quem se emociona como explica

Nussbaum (2008 p 46-47) A partir desses estudos entendemos que

estes fatores despertam e sofrem influecircncia das emoccedilotildees trazendo

sempre o olho do outro para nosso mais iacutentimo75 embora no acircmbito

73Tal escolha se justifica porque o medo parece ser uma das emoccedilotildees que

comporta todas as caracteriacutesticas que consideramos importantes para essa classe

(subclasse) de coisa seja entendida 74 Hutchinson observa que os estudantes que acompanhavam Aristoacuteteles

deveriam ser jovens das melhores classes sociais de Atenas 75 Isso porque segundo Konstan (2006 p 27-28 traduccedilatildeo nossa) ldquodado que o

julgamento e a crenccedila satildeo centrais para a dinacircmica das emoccedilotildees como

Aristoacuteteles as concebe eacute natural que um entendimento das pathḗ deve fazer

parte da arte da persuasatildeo Aristoacuteteles caracteriza as emoccedilotildees como consistindo

de dois elementos baacutesicos primeiro todo paacutethos eacute acompanhado por dor e

prazer segundo as pathḗ satildeo nas palavras de Aristoacuteteles aquelas coisas lsquoem

consideraccedilatildeo das quais as pessoas mudam e diferem em observaccedilatildeo aos seus

julgamentosrsquo [] noacutes podemos observar que algueacutem deve estar alerta agrave

possibilidade que um foco no papel da emoccedilatildeo no argumento condicionou o

tipo de sentimentos que Aristoacuteteles e outros estudantes de retoacuterica selecionaram

para anaacutelise Mas pode ser tambeacutem que ambientes forenses e deliberativos

87

poliacutetico sendo as paixotildees entendidas tambeacutem como respostas a

interaccedilotildees na poacutelis O que implica que haacute uma relaccedilatildeo de identidade ou

dessemelhanccedila entre as pessoas envolvidas com determinada emoccedilatildeo

Por isso parece que todas as paacutethē da Retoacuterica envolvem um tipo de

pensamento - ou ao menos opiniatildeo - ou imaginaccedilatildeo devidos a

determinadas situaccedilotildees e posturas dos outros com relaccedilatildeo agravequeles que se

emocionam Essas emoccedilotildees parecem ser despertadas por pessoas ou

relatos aos quais se daacute importacircncia envolvendo tipos de crenccedilas76

(piacutestis) eou opiniotildees (doacutexai) e juiacutezos do puacuteblico permitindo-o se

emocionar por exemplo com o que eacute exposto em um julgamento Com

isso a plateia pode deliberar e tomar certa decisatildeo os ouvintes dos

discursos tratados na Retoacuterica agem ou ao menos reagem de formas

semelhantes em conformidade com aquilo que o orador deixa

transparecer e do modo como busca afetaacute-los Informaccedilotildees de grande

relevacircncia aos nossos propoacutesitos por implicar ldquoaccedilotildeesrdquo particulares (EN

VI 12 1143a28 et seq)

Esse tipo de postura pode ser confirmado ainda por outra arte de

emocionar a poesia traacutegica Quando Aristoacuteteles faz sugestotildees para a boa

composiccedilatildeo de enredos e personagens traacutegicos deixa ainda mais

aparentes as propostas sobre as emoccedilotildees que destacamos como aquelas

fossem vistos como exibindo cenaacuterios intensificados do modo como as emoccedilotildees

operavam geralmente na vida grega onde elas estavam proximamente ligadas a

interaccedilotildees puacuteblicas e [eram] manifestadas principalmente em uma negociaccedilatildeo

de papeis socais contiacutenua e puacuteblica Emoccedilotildees vistas deste modo natildeo satildeo

expressotildees estaacuteticas resultantes de estiacutemulos impessoais como com os pacientes

sujeitos a choque eleacutetrico nas fotografias publicadas por Darwin mas [satildeo]

antes elementos em conjuntos complexos de trocas interpessoais nas quais os

indiviacuteduos estatildeo conscientes dos motivos dos outros e prontos a responder na

mesma moeda Natildeo eacute que Aristoacuteteles esteja certo quanto agraves emoccedilotildees e Darwin

errado mas antes que a abordagem de Aristoacuteteles pode descrever melhor o que

as emoccedilotildees significam na vida social da cidade-estado claacutessica enquanto [a

abordagem] de Darwin pode ser mais adequada ao modo que as emoccedilotildees satildeo

percebidas no universo moderno poacutes-Cartesiano A visatildeo de Aristoacuteteles das

emoccedilotildees depende implicitamente de um contexto narrativordquo 76 Quanto agrave presenccedila da crenccedila nas emoccedilotildees Nussbaum (2008 p 34 traduccedilatildeo

nossa) escreveu ldquoAristoacuteteles Crisipo Secircneca Spinoza Smith e mesmo

Descartes e Hume [] ndash todas essas figuras definem emoccedilotildees em termos de

crenccedilardquo Sugere-se conferir tambeacutem da mesma autora The fragility of

goodness Konstan em seu The emotions of the ancient greecks (2006 p 261)

ressalta a presenccedila da crenccedila na constituiccedilatildeo das emoccedilotildees aristoteacutelicas Sobre a

opiniatildeo na base da emoccedilatildeo ver Zingano (2007 p 152)

88

pretendidas pelo futuro orador na Retoacuterica contudo lanccedilando matildeo de

um instrumento emocional diferente com intenccedilotildees diferentes Vejamos

em que medida caracteres emoccedilotildees e accedilotildees - bem como as virtudes e os

viacutecios que deixam transparecer - podem estar ligados agraves emoccedilotildees

mesmo quando se trata das emoccedilotildees traacutegicas

Assim como a retoacuterica a poesia pode ser encarada como uma arte

de emocionar porque a Poeacutetica composta por Aristoacuteteles apresenta-se

ateacute certo ponto como um manual do fazer poeacutetico Sendo a funccedilatildeo da

poesia traacutegica descrita como provocar medo piedade e a kaacutetharsis

(catarse purificaccedilatildeo purgaccedilatildeo) dessas emoccedilotildees entendemos que

tambeacutem ensina ao menos em linhas gerais o que satildeo as tais emoccedilotildees

embora a Poacutetica natildeo apresente uma definiccedilatildeo de emoccedilatildeo Esse texto

todavia nos ajuda a compreender o que eacute o paacutethos para Aristoacuteteles

aleacutem de dar excelentes dicas a respeito do papel eacutetico das paacutethē

ressaltando duas emoccedilotildees em especial o medo (phoacutebos) e a piedade

(eleeinoacutes) Uma hipoacutetese demasiado interessante defendida por

Nussbaum quanto a estas eacute a de que de acordo com Aristoacuteteles as

emoccedilotildees natildeo satildeo particulares apenas por derivarem da percepccedilatildeo

sensiacutevel assim como por serem individualizadas por crenccedilas e

julgamentos que satildeo internalizados por cada pessoa ldquoUma tiacutepica

emoccedilatildeo aristoteacutelica eacute definida como um composto de um sentimento ou

prazer ou dor e de um tipo de crenccedila particular sobre o mundo [] O

sentimento e a crenccedila natildeo estatildeo somente incidentalmente ligados a

crenccedila eacute a base do sentimentordquo (NUSSBAUM 2001 p 383) Por

conseguinte se as emoccedilotildees traacutegicas tecircm um quecirc moral e implicam

crenccedila como aquelas emoccedilotildees que estudamos com a Retoacuterica eacute

possiacutevel entendecirc-las como constituiacutedas de ao menos um elemento de

racionalidade Composiccedilatildeo que pode ser comprovada pelas exigecircncias

aristoteacutelicas da racionalidade atrelada ao tipo de prazer sentido com a

poesia traacutegica Assim acontece conforme Ricoeur (2012 p 72) porque

ldquoAprender concluir reconhecer a forma eacute esse o esqueleto inteligiacutevel

do prazer da imitaccedilatildeo (ou da representaccedilatildeo)rdquo presente nas emoccedilotildees

traacutegicas sendo um tipo de prazer intelectual

A reaccedilatildeo que cada espectador tem diante de um espetaacuteculo pode

ser mesmo sinal de suas disposiccedilotildees de caraacuteter Desse modo podemos

entender que para Aristoacuteteles as paixotildees que satildeo despertadas atraveacutes da

ficccedilatildeo expressa na poesia traacutegica dizem muito a respeito do caraacuteter e da

virtude humana Sua manifestaccedilatildeo atraveacutes de gestos ou de simples e

quase imperceptiacuteveis sinais do corpo podem revelar as disposiccedilotildees

morais de um cidadatildeo podem mesmo ser uacuteteis agrave consolidaccedilatildeo de um

caraacuteter virtuoso ou agrave correccedilatildeo de um caraacuteter vicioso As reaccedilotildees

89

apresentadas pelo homem quando acometido por emoccedilotildees ou mesmo

quando inspirado poeticamente a sentimentos como os provocados pelas

emoccedilotildees podem deste modo deixar transparecer o caraacuteter

desenvolvido pelo cidadatildeo e preparaacute-lo para reagir ao mundo77 O

agente seraacute instigado a agir de modo a demonstrar por meio da beleza

de suas accedilotildees que seratildeo dignas de louvor a boa forma de suas

disposiccedilotildees e sua retidatildeo moral78 ao ser tocado por uma emoccedilatildeo

verdadeira ou simulada por meio de miacutemesis

Apesar do caraacuteter ficcional da trageacutedia que pode afetar o teor das

emoccedilotildees que tem por funccedilatildeo despertar boa parte do que foi proposto agraves

emoccedilotildees suscitadas pela retoacuterica parece valer tambeacutem agravequelas

provocadas pela trageacutedia Percebemos a presenccedila do prazer e da dor

embora o prazer das emoccedilotildees traacutegicas pareccedila um tanto paradoxal e mais

complexo devido agrave sua racionalidade de tipo especiacutefico agrave trageacutedia e ao

fato de vir da dor que cada um sente com o estiacutemulo do ficcional

Assim a trageacutedia eacute exemplo de como eacute possiacutevel juntar os dois lados da

alma humana pois suas emoccedilotildees dependem da racionalidade

apresentada pela forma como o enredo eacute composto e pela racionalidade

do puacuteblico que consegue compreender o encadeamento loacutegico

apresentado pelo texto ao ponto de se emocionar com as sugestotildees feitas

pela composiccedilatildeo traacutegica Sempre percebemos a necessidade de se imitar

homens a agir de modo que a unidade do enredo e da accedilatildeo apareccedila

necessaacuteria e verossimilmente a partir de sua estrutura Esse tipo de

elaboraccedilatildeo textual leva a reaccedilotildees por parte do puacuteblico e este eacute

conduzido ao que parece a pensar e ateacute mesmo a julgar devido agrave

racionalidade do enredo a respeito do caraacuteter dos personagens o que

tambeacutem emociona Assim a Poeacutetica faz mais que nos propor como

despertar emoccedilotildees conta-nos sobre a constituiccedilatildeo das emoccedilotildees que

pretende provocar

Essa afirmaccedilatildeo pode ser confirmada pela proposta que ter

simpatia pelos personagens - emoccedilatildeo que natildeo consta das listas de

Aristoacuteteles mas que eacute mencionada na Poeacutetica - faz com que

percebamos a forte necessidade da relaccedilatildeo com o outro tambeacutem nesse

77Aleacutem de apresentarem o caraacuteter do poeta ligando novamente a poesia traacutegica

agrave concretude do mundo mas dessa vez a um mundo preacutevio agrave composiccedilatildeo

traacutegica (a miacutemesis I descrita por Ricoeur em Tempo e Narrativa) 78Provavelmente nesse ponto seja validada a proposta de Ricoeur que percebe

na Poeacutetica de Aristoacuteteles os primeiros passos de uma esteacutetica da recepccedilatildeo jaacute

que a poesia teria ecos em um depois da composiccedilatildeo a chamada miacutemesis III

(RICOEUR 2010 p 86 et seq)

90

tipo de exposiccedilatildeo sendo que leva a plateia a imaginar de certo modo as

situaccedilotildees apresentadas A trageacutedia pode mesmo fazer pensar sobre as

possibilidades de acontecimentos obviamente natildeo idecircnticos aos

expostos mas de teor minimamente semelhante Eacute isso que toca o

espectador e o leva a temer e a se apiedar mas isso tambeacutem nos conta o

que satildeo medo e piedade A presenccedila de um forte elemento de

racionalidade implicado no despertar das emoccedilotildees que o espectador das

trageacutedias sente indica-nos os componentes da emoccedilatildeo traacutegica e geral Eacute

possiacutevel que haja mesmo crenccedilas opiniotildees e certos tipos de

pensamentos aleacutem da inegaacutevel imaginaccedilatildeo envolvida nas emoccedilotildees

mesmo que estas sejam emoccedilotildees traacutegicas

Apoacutes esses apontamentos parece que estamos prontos para tentar

uma delimitaccedilatildeo com contornos um pouco mais bem determinados

daquilo que entendemos juntamente com Aristoacuteteles acerca do que seja

a emoccedilatildeo

5 A emoccedilatildeo

Diante de tudo o que estudamos entendemos que quanto ao

gecircnero a emoccedilatildeo classifica-se como paacutethos sendo uma afecccedilatildeo sofrida

conjuntamente por corpo e alma seja ela visiacutevel ou natildeo em uma

manifestaccedilatildeo fiacutesica Pode ser traduzida biologicamente em termos de

processos desencadeados no organismo que podem incorrer em

movimento local embora por vezes somente ponha certos oacutergatildeos e

partes do corpo afetado em movimento Pertence agrave capacidade da alma

desiderativa sendo por isso hiacutebrida como tal capacidade Por

conseguinte Nussbaum (1996 p 306) chega mesmo a interpretaacute-la

como subclasse do desejo Igualmente por isso a maioria das emoccedilotildees

tem a possibilidade de ouvir e ateacute de obedecer agrave razatildeo todavia a

emoccedilatildeo natildeo pode ser escolhida deliberadamente natildeo se escolhe se

emocionar ou natildeo bem como natildeo se escolhe desejar ou natildeo e o que se

deseja (EN 1106a3-4) Por isso as emoccedilotildees natildeo se confundem com as

virtudes morais fruto de escolha deliberada que eacute digna de elogio mas

tecircm um papel crucial junto agrave constituiccedilatildeo e possibilidade destas virtudes

Um homem portanto pode ser responsabilizado pelo modo como

escolhe agir mas natildeo por suas emoccedilotildees entretanto parece poder ser

responsabilizado desde que minimamente educado moralmente pela

forma como se emociona e pela intensidade com que sente emoccedilatildeo bem

como pode controlar em direccedilatildeo a quecirc e a quem leva suas paacutethē

As emoccedilotildees satildeo indubitavelmente acompanhadas pelos

sentimentos de prazer de dor ou ambos contudo caracterizam-se ainda

91

por fazerem alterar mais que o corpo alteram os juiacutezos dos homens

Juntamente com sua natureza desiderativa tal possibilidade aponta para

um elemento racional em certa medida constituinte ou decorrente da

emoccedilatildeo Para que algueacutem se emocione eacute preciso que apresente certas

opiniotildees e mesmo juiacutezos sobre determinadas coisas ou pessoas no

mundo ou eacute preciso ao menos que se imagine em certas situaccedilotildees mas

as emoccedilotildees tambeacutem podem influenciar a formulaccedilatildeo de juiacutezos opiniotildees

e pensamentos sobre certas questotildees Por isso como explica Tricot

(2010 nota 3 p 107 traduccedilatildeo nossa) ldquoπάθος que quer dizer afecccedilatildeo

emoccedilatildeo sentimento em geral eacute um movimento da alma provocado por

um objeto exteriorrdquo O dito elemento racional eacute tambeacutem constitutivo

porque a forma como algueacutem toma uma circunstacircncia sob certo aspecto

o perceber um estiacutemulo externo que interage consigo leva o agente a ser

afetado ou seja a se emocionar ou ao menos a responder

emocionalmente de uma ou outra forma

Tal afetaccedilatildeo faz jus ao caraacuteter pateacutetico da emoccedilatildeo aristoteacutelica

bem como abre a possibilidade para que entendamos o paacutethos proposto

pelo filoacutesofo como muitas vezes resultante da interaccedilatildeo entre os

cidadatildeos na poacutelis e influente em tal relaccedilatildeo Igualmente parece nos

permitir acatar a ideia de que a emoccedilatildeo faz com que o agente perceba a

si mesmo como impotente e vulneraacutevel agraves coisas importantes do mundo

que podem lhe atingir No entanto a emoccedilatildeo natildeo pode em hipoacutetese

alguma ser tomada somente como uma passividade e nem todas essas

emoccedilotildees podem ser postas em acordo com a reta razatildeo Assim sendo

quanto agrave sua diferenccedila especiacutefica o paacutethos descrito por Aristoacuteteles natildeo eacute

apenas algo que atinge o homem porque existe a partir de um

movimento iniciado por certas formas de racionalidade como a

percepccedilatildeo sensiacutevel e que pode despertar certas formas da racionalidade

humana pondo mais do que o corpo em accedilatildeo Deste modo a emoccedilatildeo

movimenta o homem ou potildee-no em um certo tipo de movimento seja

quando julga e decide sobre questotildees poliacuteticas ou juriacutedicas quando

impele um espectador agrave kaacutetharsis mas tambeacutem quando pode levar o

agente moral a agir Por esses motivos concordamos com a seguinte

proposta sobre a constituiccedilatildeo da emoccedilatildeo

[] sensaccedilotildees de prazer e dor alteraccedilotildees e

processos fisioloacutegicos crenccedilas e opiniotildees e

atitudes ou impulsos Nenhum desses sentimentos

isolado explica por si mesmo qualquer emoccedilatildeo

Sensaccedilotildees alteraccedilotildees fisioloacutegicas crenccedilas e

atitudes constituem os quatro componentes

92

estruturais da emoccedilatildeo (TRUEBA p 53 traduccedilatildeo

nossa)

Acrescentamos a esses componentes a importacircncia do papel do

outro e do mundo que cercam cada agente na formulaccedilatildeo e no

desencadeamento de um tipo de pensamento ou de raciociacutenio que pode

ser diferente mas natildeo exatamente dissociado das opiniotildees e das

crenccedilas como a imaginaccedilatildeo e as conjeturas presentes na constituiccedilatildeo da

emoccedilatildeo ou na boa forma que ela venha adquirir graccedilas ao seu possiacutevel

contato com a razatildeo praacutetica Quando internalizadas por exemplo na

memoacuteria nas imaginaccedilotildees ou nos pensamentos as emoccedilotildees podem

tambeacutem partir da alma Satildeo portanto afecccedilotildees do conjunto corpoalma

passiacuteveis de serem educadas recebendo a boa medida concebida como

virtude moral e que eacute necessaacuteria agrave vida feliz Pensamos que a boa

medida no entanto soacute eacute possiacutevel devido a um quecirc de racionalidade que

pode acompanhar as emoccedilotildees desde sua constituiccedilatildeo como procuramos

e procuraremos provar ao longo desse estudo

Em suma podemos esboccedilar a seguinte definiccedilatildeo de emoccedilatildeo

conforme os tratados estudados a emoccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo ocasionada

por uma consideraccedilatildeo acerca de determinada situaccedilatildeo Tal consideraccedilatildeo

eacute acompanhada de alteraccedilotildees fisioloacutegicas mas nem sempre de

movimentos sendo que a emoccedilatildeo eacute igualmente capaz de alterar o

julgamento de quem acredita que determinada situaccedilatildeo tem influecircncia

relevante em sua vida tendo por isso inegaacutevel papel na vida humana

descrita pelo filoacutesofo

A presenccedila da emoccedilatildeo hiacutebrida como o desejo eacute indispensaacutevel agraves

propostas eacuteticas de Aristoacuteteles seja como ocasionadora

(biologicamente) de alteraccedilatildeo seja como causadora de mudanccedila no

ajuizamento e mesmo de reflexatildeo ou seja como (eticamente) elemento

do desiderativo que concorre para a accedilatildeo boa ou maacute moralmente Todos

esses aspectos se completam em um entendimento de algo que

realmente tem seu lugar na accedilatildeo humana e que pode influenciaacute-la ao

ponto de ser valorado moralmente Ainda precisamos saber contudo

como e por que meios eacute possiacutevel que as paacutethē ouccedilam e obedeccedilam agrave

razatildeo praacutetica para que dela realmente participem Por isso julgamos

interessante e mesmo necessaacuterio pensar a exigecircncia de sua moderaccedilatildeo a

fim da virtude moral como isso interferiraacute na caminhada rumo agrave vida

feliz na poacutelis

93

Capiacutetulo II

Virtude como possibilidade de acordo entre razatildeo e emoccedilatildeo

1 Virtude completa79 virtudes virtude moral

A discussatildeo sobre a virtude aparece no primeiro Livro da EN em

meio agrave primeira discussatildeo sobre a eudaiacutemōniacutea ou naquele que pode ser

chamado de primeiro tratado sobre a felicidade Nesse ponto do texto a

identificaccedilatildeo do bem supremo com a felicidade parece uma coisa

acertada para Aristoacuteteles mas o filoacutesofo considera preciso esclarecer

qual a natureza da felicidade Admite que um caminho possiacutevel a tal

esclarecimento seja a determinaccedilatildeo da funccedilatildeo do homem Por isso

defendemos no Capiacutetulo anterior desta tese que a funccedilatildeo proacutepria ao

homem e com esta a vida feliz deve ser atividade sempre pautada pela

razatildeo mas defendemos igualmente que nos parece impossiacutevel uma vida

totalmente voltada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica Eacute por isso que nesse

momento nos dedicaremos ao estudo daquela vida ativa segundo a

razatildeo excelente quanto agraves coisas propriamente humanas e portanto

virtuosa nesse sentido Entendemos que tal vida cumpriraacute as exigecircncias

de Aristoacuteteles para a felicidade o que pode ser confirmado pela nossa

interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo que eacute proacutepria ao homem executar bem

atividades e accedilotildees em comunidade de acordo com o mais racional em

cada circunstacircncia

Para que isso seja possiacutevel seraacute preciso se emocionar de modo

adequado associando ldquoelegantementerdquo (LEBRUN 2009 p 16)

emoccedilatildeo e razatildeo associaccedilatildeo que mostraremos resultar em virtude moral

e na virtude que entenderemos como a mais completa Para apresentar

essa possibilidade comeccedilaremos nossa pesquisa com o estudo do ideal

de eudaiacutemōniacutea pensado pelo filoacutesofo no primeiro Livro da EN

Escolhemos essa via para dar prosseguimento agraves discussotildees iniciadas

no Capiacutetulo I e porque justificaraacute a necessidade de se tratar as virtudes

79 Existe uma polecircmica quanto agrave forma correta de se traduzir o termo que define

a caracteriacutestica que Aristoacuteteles atribui para atividade conforme a alma que

chama de felicidade no Livro I 7 ldquoteleicircanrdquo Natildeo discutiremos a questatildeo nesse

momento por isso deixaremos a termo traduzido conforme a ediccedilatildeo brasileira

mais conhecida a da coleccedilatildeo Os Pensadores de 1973 texto que apresenta

1098a14-15 da seguinte forma ldquoo bem do homem nos aparece como uma

atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de uma virtude

com a melhor e mais completardquo No original σπουδαίου δ ἀνδρὸς εὖ ταῦτα καὶ

καλῶς ἕκαστον δ εὖ κατὰ τὴν οἰκείαν ἀρετὴν ἀποτελεῖται

94

bem como ressaltaraacute seu aspecto de representante da funccedilatildeo

propriamente humana e de bem se emocionar A escolha nos parece

apropriada porque graccedilas agrave natureza natildeo racional capaz de concordar

com a razatildeo que identificamos na base das emoccedilotildees eacute possiacutevel pensar a

proposta de Aristoacuteteles acerca da melhor vida possiacutevel como resultante

do bom desempenho da funccedilatildeo humana sendo que este somente pode

acontecer com a harmonizaccedilatildeo das emoccedilotildees com o que a razatildeo

demanda sendo como veremos virtuoso

No primeiro tratado sobre a felicidade o filoacutesofo analisa o que

muitos dizem acerca da eudaiacutemōniacutea que eacute uma atividade de tipo

especiacutefico que alguns dos outros bens (externos) satildeo necessaacuterios e parte

integrante da felicidade mas outros satildeo auxiliares e uacuteteis como

instrumentos naturais A questatildeo eacute destacada como assunto tocante agrave

poliacutetica pois a principal preocupaccedilatildeo dessa ciecircncia eacute fazer com que os

cidadatildeos sejam seres de certa qualidade ou seja fazer com sejam

pessoas honestas e capazes de agir nobremente (EN I 10 1099b31) Por

isso os animais natildeo humanos natildeo satildeo chamados felizes jaacute que natildeo

podem participar desse tipo de atividade Igualmente por isso a crianccedila

natildeo pode ser feliz por ainda natildeo ser capaz desse tipo de accedilatildeo e porque a

felicidade requer uma virtude completa mas para tal completude seria

necessaacuteria a observaccedilatildeo do termo da vida Isso porque as vicissitudes

que ocorrem ao longo da existecircncia podem fazer com que um homem

proacutespero sofra males enormes em sua velhice como no caso de

Priacuteamo80 Um fim de vida desastroso impede uma pessoa de ser

considerada feliz pois ldquoA causa verdadeiramente determinante da

felicidade reside na atividade conforme agrave virtude a atividade em sentido

contraacuterio sendo a causa do estado opostordquo (EN I 10 1100b9-11)81 ou

seja natildeo eacute o acaso ou a fortuna a causa da felicidade mas a virtude que

cabe ao homem

A virtude recebe tamanha importacircncia porque em nenhuma das

outras atividades humanas haacute maior fixidez Entre as atividades

virtuosas as mais altas satildeo as mais estaacuteveis82 porque eacute no seu exerciacutecio

80 HOMERO Iliacuteada V 81 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original κύριαι δ εἰσὶν αἱ κατ ἀρετὴν ἐνέργειαι τῆς εὐδαιμονίας αἱ

δ ἐναντίαι τοῦ ἐναντίου 82As atividades da sophiacutea segundo Tricot (2010 p 78 nota 3) mas seraacute que

natildeo poderiacuteamos estender tal fixidez agraves atividades do prudente (que certamente

apresentaraacute a sophiacutea) e tambeacutem daquele que dispotildee da virtude moral Seriam

essas virtudes separaacuteveis

95

que o homem feliz gasta boa parte de sua vida e com maior

continuidade Deste modo a estabilidade procurada eacute aquela do homem

feliz ao longo de toda sua vida e por esse motivo o homem feliz se

engaja em accedilotildees e contemplaccedilotildees que satildeo conformes agrave virtude

suportando os golpes da fortuna com maior dignidade e perfeiccedilatildeo

honesto e acima de censura Frente a estas afirmaccedilotildees a definiccedilatildeo de

felicidade que parece ser a mais completa apresentada no Livro I eacute posta

em forma de questatildeo

[] que nos impede de chamar feliz o homem cuja

atividade eacute conforme a uma virtude perfeita83 e

suficientemente provida dos bens exteriores e

isso natildeo por uma duraccedilatildeo qualquer mas durante

uma vida completa Natildeo devemos acrescentar

ainda cuja vida se prosseguiraacute nas mesmas

condiccedilotildees e cujo fim estaraacute em relaccedilatildeo com o

resto da existecircncia jaacute que o futuro nos eacute oculto e

que noacutes colocamos a felicidade como um fim

como alguma coisa de absolutamente perfeita

(EN I 11 1101a14-17)84

Essa proposta leva o filoacutesofo a refletir se eacute assim qualificaremos

como venturoso (makaacuterios) o homem que entre os vivos possui e iraacute

possuir os bens necessaacuterios a esse tipo de vida mas venturoso do modo

como o homem pode secirc-lo ou seja conforme as virtudes que satildeo

proacuteprias ao homem O destaque dado a essas virtudes indica o grande

papel que tecircm na vida humana feliz e por isso doravante trataacute-las-emos

Faremos tal apreciaccedilatildeo devido ao fato de as virtudes e em especial as

morais - como poderemos ver ao longo de nossa investigaccedilatildeo e como jaacute

ressaltamos em alguns dos momentos precedentes - serem

estreitamente relacionadas agraves emoccedilotildees e necessaacuterias ao bom

83 Para Zingano (2008 p 77) a virtude perfeita proacutepria eacute aquela que faz o que

deve fazer seguindo boas razotildees (metagrave phronḗseos EE 1234 a29-30) Portanto

eacute a composiccedilatildeo entre razatildeo e virtude moral virtude dianoeacutetica e eacutetica 84Coisa semelhante a respeito da eudaiacutemōniacutea eacute proposta pela Retoacuterica como

veremos logo em seguida Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da

traduccedilatildeo francesa de Tricot (2012) no original τί οὖν κωλύει λέγειν εὐδαίμονα

τὸν κατ ἀρετὴν τελείαν ἐνεργοῦντα καὶ τοῖς ἐκτὸς ἀγαθοῖς ἱκανῶς

κεχορηγημένον μὴ τὸν τυχόντα χρόνον ἀλλὰ τέλειον βίον ἢ προσθετέον καὶ

βιωσόμενον οὕτω καὶ τελευτήσοντα κατὰ λόγον ἐπειδὴ τὸ μέλλον ἀφανὲς ἡμῖν

ἐστίν τὴν εὐδαιμονίαν δὲ τέλος καὶ τέλειον τίθεμεν πάντῃ πάντως

96

desempenho de todas as funccedilotildees aniacutemicas que compotildeem aquilo que se

entende como funccedilatildeo propriamente humana condiccedilatildeo para a

eudaiacutemōniacutea Prova do que afirmamos eacute o passo da Retoacuterica que indica a

necessidade da virtude para a vida feliz como destacaremos a seguir

Fazemos tal proposta pois como vimos e veremos consideramos

virtudes os melhores estados das faculdades da alma

Seja pois a felicidade o viver bem combinado

com a virtude ou a autossuficiecircncia na vida ou a

vida mais agradaacutevel com seguranccedila ou a pujanccedila

de bens materiais e dos corpos juntamente com a

faculdade de os conservar e usar pois

praticamente todos concordam que a felicidade eacute

uma ou vaacuterias destas coisas

Ora se tal eacute a natureza da felicidade eacute necessaacuterio

que as suas partes sejam a nobreza muitos

amigos bons amigos a riqueza bons filhos

muitos filhos uma boa velhice tambeacutem as

virtudes do corpo como a sauacutede a beleza o vigor

a estatura a forccedila para a luta a reputaccedilatildeo a

honra a boa sorte e a virtude [ou tambeacutem as suas

partes a prudecircncia a coragem a justiccedila e a

temperanccedila] Com efeito uma pessoa seria

inteiramente autossuficiente se possuiacutesse os bens

internos e externos pois fora destes natildeo haacute outros

Os bens internos satildeo os da alma e os do corpo os

externos satildeo a nobreza os amigos o dinheiro e a

honra Cremos contudo que a estes se devem

acrescentar certas capacidades e boa sorte pois

assim a vida seraacute muito mais segura (Rhet I 3

1360b14-29)85

85 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original ἔστω δὴ

εὐδαιμονία εὐπραξία μετ ἀρετῆς ἢ αὐτάρκεια ζωῆς ἢ ὁ βίος ὁ μετὰ ἀσφαλείας

ἥδιστος ἢ εὐθενία κτημάτων καὶ σωμάτων μετὰ δυνάμεως φυλακτικῆς τε καὶ

πρακτικῆς τούτων σχεδὸν γὰρ τούτων ἓν ἢ πλείω τὴν εὐδαιμονίαν

ὁμολογοῦσιν εἶναι ἅπαντες εἰ δή ἐστιν ἡ εὐδαιμονία τοιοῦτον ἀνάγκη αὐτῆς

εἶναι μέρη εὐγένειαν πολυφιλίαν χρηστοφιλίαν πλοῦτον εὐτεκνίαν

πολυτεκνίαν εὐγηρίαν ἔτι τὰς τοῦ σώματος ἀρετάς (οἷον ὑγίειαν κάλλος

ἰσχύν μέγεθος δύναμιν ἀγωνιστικήν) δόξαν τιμήν εὐτυχίαν ἀρετήν [ἢ καὶ τὰ

μέρη αὐτῆς φρόνησιν ἀνδρείαν δικαιοσύνην σωφροσύνην] οὕτω γὰρ ἂν

αὐταρκέστατός τις εἴη εἰ ὑπάρχοι αὐτῷ τά τ ἐν αὐτῷ καὶ τὰ ἐκτὸς ἀγαθά οὐ

γὰρ ἔστιν ἄλλα παρὰ ταῦτα ἔστι δ ἐν αὐτῷ μὲν τὰ περὶ ψυχὴν καὶ τὰ ἐν

97

O passo nos mostra Aristoacuteteles a discutir tanto a virtude (he

aretḗ) no singular quanto as virtudes (haigrave aretaiacute) particulares no

plural tornando-as coisas que soacute podem ser alcanccediladas por corpo e alma

em conjunto quando estatildeo na poacutelis Isso acontece porque para satisfazer

agraves exigecircncias da boa vida ou da melhor vida possiacutevel haacute ainda a

exigecircncia da capacidade racional associada e tentando conferir boa

forma agrave capacidade natildeo racional da alma responsaacutevel pelas virtudes

morais Por isso eacute indispensaacutevel agrave nossa investigaccedilatildeo tratar tambeacutem as

virtudes intelectuais e suas relaccedilotildees com a moralidade pois a funccedilatildeo

proacutepria ao homem eacute uma atividade da alma em conformidade com a

razatildeo (metagrave toucirc orthoucirc loacutegou) ou natildeo sem a razatildeo (katagrave tograven orthograven

loacutegon) Como vimos somente esse tipo de atividade ou esse conjunto

de atividades permitiria que o homem desempenhasse bem sua funccedilatildeo

do modo como o homem faz especificamente garantindo com esse bom

desempenho a felicidade devido ao bom cumprimento daquilo que

somente os humanos satildeo capazes de fazer e que entendemos como

resultado da virtude completa As virtudes todavia natildeo satildeo tomadas

somente no sentido comum de qualidades que um homem possa

apresentar mas como excelecircncia de suas capacidades Assim a

discussatildeo da virtude e das virtudes se faz necessaacuteria a quem reflete

sobre a eudaiacutemōniacutea mas obedecendo os contornos proacuteprios agrave

terminologia aristoteacutelica pois

[] felicidade eacute a boa ou bem-sucedida atividade

ou a atualizaccedilatildeo da faculdade que eacute peculiar agrave

alma humana e o vocaacutebulo grego para lsquovirtudersquo

aretḗ vem para indicar natildeo que cada mas

somente a boa atividade da alma deve ser

associada agrave felicidade portanto eacute claro que o que

importa na definiccedilatildeo de felicidade eacute a intenccedilatildeo da

palavra aretḗ a saber que significa um estado

excelente algo que exerce bem sua funccedilatildeo e

atinge os padrotildees mais elevados Este eacute um

sentido possiacutevel e comum da palavra grega aretḗ

mas o emprego no singular referindo o melhor

estado possiacutevel em qualquer campo particular eacute

ainda com efeito mais distante do emprego da

palavra no plural por meio do qual referimos as

σώματι ἔξω δὲ εὐγένεια καὶ φίλοι καὶ χρήματα καὶ τιμή ἔτι δὲ προσήκειν

οἰόμεθα δυνάμεις ὑπάρχειν καὶ τύχην οὕτω γὰρ ἀσφαλέστατος ὁ βίος

98

virtudes lsquocorriqueirasrsquo como justiccedila coragem

moderaccedilatildeo (RAPP 2010 p 408)

Se as propostas de Rapp estiverem corretas podemos pensar que

a felicidade existe graccedilas ao melhor estado possiacutevel agrave alma mas que

requer igualmente as virtudes particulares Por isso Aristoacuteteles entende

que os pensadores que identificaram a felicidade com a virtude ou com

a phroacutenēsis ou com a sophiacutea (saber teoacuterico) com uma delas algumas

delas ou todas elas acompanhadas ou natildeo de prazer e prosperidade

exterior parecem ter razatildeo ao menos em um ponto se natildeo em todos (EN

I 8 1098b20-29) O filoacutesofo igualmente pensa que acerta quem identifica

a eudaiacutemōniacutea com a virtude em geral ou com alguma virtude particular

porque a atividade virtuosa pertence agrave virtude embora seja diferente

entender o bem supremo como posse ou como uso em uma disposiccedilatildeo

ou em uma atividade A diferenccedila pousa no fato da disposiccedilatildeo poder

existir sem provocar um bom resultado quando se dorme por exemplo

mas a atividade virtuosa deve agir e agir bem pois as coisas nobres e

boas da vida soacute vecircm a quem age bem (EN 1099a1-7) Se as propostas

apresentam como virtude o que permite agir bem e o melhor estado de

uma ou de todas as capacidades da alma humana mantemos nossos

estudos no campo das questotildees aniacutemicas e por isso devemos recordar

que anteriormente entendemos que a aretḗ assim como a alma se

ldquodividerdquo umas satildeo intelectuais outras morais86 mas quanto ao caraacuteter

as virtudes satildeo morais e satildeo entendidas como disposiccedilotildees de caraacuteter

Assim eacute preciso que sejam examinadas algumas questotildees a respeito da

86 Rapp (2010 p 409) explica a relaccedilatildeo dos diferentes sentidos de virtude e

virtudes ldquoDeve estar mais evidente agora que a relaccedilatildeo entre lsquovirtudersquo

significando o excelente estado da alma e lsquovirtudesrsquo referindo os louvaacuteveis

traccedilos de personalidade admitidos correntemente e socialmente eacute um ponto

crucial em toda filosofia moral de inspiraccedilatildeo platocircnica e que eacute exatamente a esta

relaccedilatildeo que Aristoacuteteles devota sua atenccedilatildeo estrita Uma vez que eacute o primeiro

sentido de lsquovirtudersquo que estaacute em jogo no primeiro livro da EN (ie na definiccedilatildeo

de felicidade) e o uacuteltimo sentido que se torna proeminentemente no terceiro e

quarto livros estamos agora justificados em esperar que a definiccedilatildeo geral de

virtude ndash que eacute desenvolvida entre o primeiro e o terceiro livros e do qual a

doutrina do meio termo eacute um tema indispensaacutevel ndash ajudaraacute o leitor a

compreender a ligaccedilatildeo entre a excelecircncia da alma humana e as virtudes

corriqueiras tais como as conheciacuteamos antes de lidar com a filosofia moralrdquo

Diante dessas dissociaccedilotildees e associaccedilotildees podemos tomar o sentido geral de

virtude e questionar o sentido da virtude moral como meio termo que apresenta

enorme importacircncia para a tese que buscamos defender

99

virtude moral

2 A virtude moral

Pode parecer dispecircndio desnecessaacuterio de energia e tempo devido

a ser um longo e antigo debate mas neste momento entendemos ser

conveniente agrave nossa inquiriccedilatildeo questionar a natureza da virtude moral

ainda que Aristoacuteteles a defina a seu modo Lidaremos com a discussatildeo

na medida em que eacute importante auxiliar no esclarecimento quanto agraves

questotildees que propomos acerca das emoccedilotildees bem como de sua relaccedilatildeo

com a racionalidade A questatildeo se impotildee porque haacute comentaacuterios

recentes sobre a eacutetica de Aristoacuteteles que consideram improacutepria a

proposta da virtude como mediania87 nas emoccedilotildees e nas accedilotildees pois

entre outras falhas da doutrina seria relativa a cada agente e

circunstacircncia sendo inuacutetil como paracircmetro moral Seria tambeacutem

considerada questatildeo paradoxal pois o filoacutesofo recomenda que a medida

seja ldquorelativa a noacutesrdquo ao mesmo tempo em que exemplifica tal medida

com quantidades contaacuteveis Apesar de natildeo concordarmos com essas

interpretaccedilotildees decidimos tratar o assunto porque remete diretamente agrave

proposta das virtudes morais como medida na emoccedilatildeo pelo fato de o

filoacutesofo natildeo admitir a eudaiacutemōniacutea sem virtude moral e por algumas

questotildees intrigantes que surgem ao longo do passo da EN chamado por

Zingano Tratado da virtude moral (EN I 13-III 8) Com isso

buscaremos reavaliar a definiccedilatildeo de virtude moral como boa medida nas

accedilotildees e nas emoccedilotildees tentando evitar o aspecto relativista que tantas

vezes foi conferido agrave doutrina

A partir do que jaacute foi exposto percebemos que aleacutem da doutrina

da boa medida temos Aristoacuteteles a definir o tipo de virtude ora estudado

como uma espeacutecie de excelecircncia moral mas define-a tambeacutem como

uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha deliberada em II 6 e como virtude na

qual eacute possiacutevel que a razatildeo opere Aristoacuteteles resume a aretḗ ethikḗ do

seguinte modo ldquoDiscutimos em geral e em grandes linhas a respeito das

virtudes o gecircnero que satildeo mediedades que satildeo disposiccedilotildees por si

87Hurtshouse em seu A doutrina central da mediania em Aristoacuteteles afirma-se

ceacutetica quanto agrave utilidade da teoria em questatildeo Sorabji (2002 p 7-194-195)

embora aponte os estoicos alguns preacute-socraacuteticos e acadecircmicos como

propositores de uma perspectiva negativa quanto agrave teoria da mediedade afirma

que tal doutrina em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees natildeo eacute banal tendo grande papel social

Assim podemos perceber que as criacuteticas agrave doutrina natildeo satildeo recentes Mesmo

Kant jaacute havia dado sua opiniatildeo negativa quanto agrave proposta

100

mesmas de praticar aqueles atos pelos quais se engendram que estatildeo em

nosso poder e satildeo voluntaacuterias e que satildeo como a reta razatildeo ordenardquo (EN

III 8 1114b28-30) O estudo da phroacutenēsis no Livro VI da EN seria um

complemento agraves possibilidades de virtude e da vida boa moralmente

que soacute seriam completas juntamente com a virtude intelectual da

prudecircncia Adiantando o assunto deste uacuteltimo Livro mencionado e

dando coesatildeo agrave obra em EN II o filoacutesofo obteve a seguinte definiccedilatildeo de

virtude moral

A virtude eacute portanto uma disposiccedilatildeo de escolher

por deliberaccedilatildeo consistindo em uma mediedade

relativa a noacutes disposiccedilatildeo delimitada pela razatildeo

isto eacute como a delimitaria o prudente Eacute uma

mediedade entre dois males o mal por excesso e o

mal por falta Ainda pelo fato de as disposiccedilotildees

faltarem umas outras excederem no que se deve

tanto nas emoccedilotildees como nas accedilotildees a virtude

descobre e toma o meio termo Por isso por

essecircncia e pela foacutermula que exprime a quumlidade a

virtude eacute uma mediedade mas segundo o melhor

eacute o bem eacute um aacutepice (EN II 5 1106b35 II 6

1107a1-8)88

Essa investigaccedilatildeo acerca da natureza da virtude moral que

comeccedila em EN I eacute o foco de nossa investigaccedilatildeo nesse ponto Por isso

nosso estudo nesse momento se dedicaraacute a entender melhor a virtude

considerada desde II 4 como capacidade de se portar bem frente agraves

emoccedilotildees Buscaremos tambeacutem elaborar um breve estudo sobre a virtude

intelectual sem a qual natildeo eacute possiacutevel agir bem quanto agraves mesmas

emoccedilotildees O bom comportamento frente agraves emoccedilotildees eacute imprescindiacutevel agraves

virtudes morais particulares mas pensamos tambeacutem agravequela concepccedilatildeo

do que seja a virtude mais completa O passo da EN citado haacute pouco e

que daacute destaque agrave virtude moral nos leva a entendecirc-la como melhor

estado possiacutevel agrave capacidade natildeo racional da alma humana reforccedilando a

88 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original Ἔστιν ἄρα ἡ ἀρετὴ ἕξις

προαιρετική ἐν μεσότητι οὖσα τῇ πρὸς ἡμᾶς ὡρισμένῃ λόγῳ καὶ ᾧ ἂν ὁ

φρόνιμος ὁρίσειεν μεσότης δὲ δύο κακιῶν τῆς μὲν καθ ὑπερβολὴν τῆς δὲ κατ

ἔλλειψιν καὶ ἔτι τῷ τὰς μὲν ἐλλείπειν τὰς δ ὑπερβάλλειν τοῦ δέοντος ἔν τε τοῖς

πάθεσι καὶ ἐν ταῖς πράξεσι τὴν δ ἀρετὴν τὸ μέσον καὶ εὑρίσκειν καὶ αἱρεῖσθαι

διὸ κατὰ μὲν τὴν οὐσίαν καὶ τὸν λόγον τὸν τὸ τί ἦν εἶναι λέγοντα μεσότης ἐστὶν

ἡ ἀρετή κατὰ δὲ τὸ ἄριστον καὶ τὸ εὖ ἀκρότης

101

proposta da funccedilatildeo proacutepria ao homem como resultado da associaccedilatildeo das

melhores condiccedilotildees das duas capacidades da alma condiccedilatildeo excelente

que consideramos possibilitadora da eudaiacutemōniacutea A questatildeo no entanto

eacute entender como isso eacute possiacutevel Rapp bem observa (2010 p 410) que eacute

preciso esclarecer de que modo as virtudes podem ser entendidas como

melhor estado de cada capacidade da alma humana

No caso das virtudes intelectuais o autor pensa que o

entendimento seja faacutecil jaacute que manifestam o melhor estado da

capacidade racional sendo que tal funccedilatildeo estaacute em bom estado quando se

tem certas capacidades racionais ou intelectuais e se realiza bem as

funccedilotildees que lhes cabem Natildeo eacute claro contudo o modo como eacute possiacutevel

definir o bom estado da capacidade natildeo racional embora tal definiccedilatildeo

seja crucial para nossa pesquisa Tendo em mira esta duacutevida podemos

entatildeo questionar qual eacute o criteacuterio para o bom funcionamento da

capacidade natildeo racional desiderativa Sendo esta capacidade apta a

ouvir e obedecer agrave razatildeo seu bom estado eacute perceptiacutevel se ela realmente

concorda com as propostas racionais ou se reage como a razatildeo pede

mas

lsquoObedecer ao que a razatildeo demandarsquo pode

significar duas coisas bem diferentes que a

pessoa controlada (enkrates) faz o que a razatildeo

demanda enquanto existem impulsos opostos

incitando-a a agir de outra maneira ou a pessoa

virtuosa faz o que pede a razatildeo poreacutem sem ter

impulsos contraacuterios ou concorrentes Estes satildeo

dois niacuteveis de obediecircncia visto que Aristoacuteteles diz

que no uacuteltimo caso a parte natildeo-racional da alma

eacute muito mais facilmente obediente

(euekoacutemeteron) e tudo em uma tal pessoa eacute

consoante agrave razatildeo (homophoacutenei tocirci loacutegoi) (RAPP

2010 p 410-41)89

A partir dessa explicaccedilatildeo surge nova questatildeo Quando a

capacidade natildeo racional concorda com a racional Pensamos que nossa

questatildeo tambeacutem caiba aqui o que pode facilitar a concordacircncia entre

racional e natildeo racional para que as emoccedilotildees sejam educadas e para que a vida feliz seja possiacutevel A resposta para essas questotildees nos permitiraacute

entender por que as virtudes eacuteticas manifestam o bom estado da

capacidade natildeo racional embora o Livro I da EN natildeo solucione a

89 Igualmente em EN I 13 1102b27

102

indagaccedilatildeo A resposta buscada eacute deixada a cargo do Livro II que em seu

fim com a exposiccedilatildeo de uma espeacutecie de resumo dessa discussatildeo

apresenta um elemento definidor para a consonacircncia da capacidade natildeo

racional com a reta razatildeo Entatildeo esse Livro deve explicar como as

virtudes eacuteticas podem ser o bom estado da capacidade natildeo racional Mas

seraacute que tal resposta viraacute com a doutrina do meio termo Rapp entende

que esta doutrina ao menos contribuiraacute para a soluccedilatildeo do problema e noacutes

concordamos com esse entendimento Por isso julgamos ser

interessante discutir a validade e a aplicabilidade da teoria da boa

medida jaacute que Aristoacuteteles considera virtude moral como boa medida nas

emoccedilotildees Apesar das possiacuteveis falhas e das objeccedilotildees que tecircm sido

apresentadas ao longo dos tempos agrave doutrina buscaremos uma

abordagem sucinta e natildeo exaustiva do assunto mas na medida em que

reforce a importacircncia de tal teoria no que diz respeito agrave relaccedilatildeo da

virtude moral com a boa medida nas emoccedilotildees

2a) Caraacuteter tautoloacutegico ou trivial da doutrina da virtude moral como

mediania

A doutrina da boa medida como eacute chamada por estudiosos como

Rapp (2010 p 405 et seq) e Urmson (1984 p 157 et seq) eacute tomada

por alguns como trivial ou mesmo tautoloacutegica Um dos motivos para

esse tipo de acusaccedilatildeo agrave teoria eacute o fato de ela propor que a medida seja

lsquorelativa a noacutesrsquo afirmaccedilatildeo que daria agrave proposta do meio termo um tom

relativista ou subjetivo gerando duacutevidas sobre sua utilidade e

aplicabilidade como padratildeo para as accedilotildees moralmente boas A criacutetica

tambeacutem eacute feita porque parece pretender quantificar o que Aristoacuteteles

defende ser em muitos passos ldquorelativo a noacutesrdquo e que tem como

paracircmetro o homem bom suas accedilotildees o bem e as circunstacircncias90

90 Kant por exemplo se posiciona contrariamente agrave doutrina da boa medida

porque entendeu o princiacutepio como falso Pensava que natildeo se pode buscar

diferenccedilas entre virtude e viacutecio no grau segundo o qual algumas maacuteximas satildeo

observadas As diferenccedilas deveriam ser buscadas na qualidade especiacutefica de tais

maacuteximas Seria falso portanto propor a virtude como meio termo entre dois

viacutecios pois cada um deles teria sua proacutepria maacutexima e por isso um contradiria o

outro impedindo a doutrina de ser tomada como proposta universal que guiasse

a accedilatildeo humana A postura eacutetica kantiana contraacuteria as propostas aristoteacutelicas

sobre a virtude moral como boa medida eacute posta agrave prova de modo interessante e

favoraacutevel a Aristoacuteteles por Anscombe em seu Modern moral philosophy Por

isso quem deseja reforccedilar a validade das teorias de Aristoacuteteles em detrimento a

propostas como as de Kant como eacute o nosso caso deve ao menos mencionar o

103

Pensamentos como estes acusariam a mencionada doutrina de um

desacordo interno e como propusemos levaram filoacutesofos e

comentadores a um longo debate sobre o passo em que a virtude moral

aparece descrita como mediania entre excesso e falta o Livro II 6 da

EN

Aleacutem disso as objeccedilotildees atingem diretamente as propostas do

filoacutesofo a respeito do comportamento que o virtuoso - ou o homem de

um modo geral - deve apresentar diante das emoccedilotildees Portanto

julgamos ser conveniente discutir um pouco a questatildeo para tentar

desfazer esses embaraccedilos e na medida em que nos auxilie a por emoccedilatildeo

e razatildeo em acordo Para tanto defenderemos que a doutrina apresenta

conjuntamente e sem complicaccedilotildees aspectos quantitativos qualitativos

e avaliativos Buscaremos fazer isso pois pensamos ser a melhor forma

de entender a virtude moral e sua exigecircncia de boa medida raciocinada

quanto agraves inevitaacuteveis emoccedilotildees Entendemos que o aspecto avaliativo da

doutrina natildeo eacute invalidado pela proposta conceitual atribuiacuteda agrave mesma

porque a capacidade de avaliaccedilatildeo do entorno permite ao virtuoso ser

bom juiz91

artigo da filoacutesofa que abre espaccedilo na contemporaneidade para uma eacutetica das

virtudes com base em Aristoacuteteles 91 Rapp explica que haacute duas possibilidades interpretativas para a doutrina da boa

medida e que podemos apresentar aqui com os trechos citados Por conseguinte

a doutrina tem aspecto conceitual que pode ser expresso do seguinte modo ser

muito ou muito pouco levam a esquecer a quantia correta Para o autor esse eacute

um sentido analiacutetico da doutrina que eacute importante quando em EN 2 VI e EE 2

III define-se a virtude contudo esse caraacuteter conceitual se torna pouco claro com

a exposiccedilatildeo na EN de uma opccedilatildeo empiacuterica da doutrina em questatildeo Em 2 II eacute

afirmado que aquilo que se discute pode ser destruiacutedo por excesso ou falta mas

preservado pelo meio termo e Aristoacuteteles daacute o exemplo da forccedila fiacutesica

conservada ou destruiacuteda por treinamento (EN 1104a11-13) Nesse ponto

excesso deficiecircncia e meio termo satildeo entendidos como o que gera preserva ou

destroacutei o que ultrapassa segundo o comentador a questatildeo conceitual pois o

filoacutesofo descreve tal fato como observaacutevel (horocircmen)

As duas possibilidades da doutrina analiacutetica e empiacuterica dadas pelo livro II

induzem em erro pensa Rapp e pensa tambeacutem que por isso haacute comentaacuterios

que entendem que tal doutrina oscile entre um modelo analiacutetico e alguma outra

coisa ldquoEntretanto haacute algumas evidecircncias de que a versatildeo empiacuterica natildeo se

equipara agrave versatildeo analiacutetica (i) a versatildeo empiacuterica em EN 22 natildeo desenvolve a

doutrina de modo completo que deveria pelo menos incluir o conceito de lsquomeio

termo para noacutesrsquo etc (ii) EE e EN concordam amplamente na definiccedilatildeo de

virtude eacutetica e na doutrina do meio termo que eacute um elemento da discussatildeo mas

a EE oferece apenas a versatildeo conceitual e natildeo inclui um equivalente da variaccedilatildeo

104

A desavenccedila quanto agrave teoria da boa medida pode ter como iniacutecio

afirmaccedilotildees feitas por Aristoacuteteles propondo que os discursos sobre

questotildees praacuteticas satildeo em linhas gerais e natildeo exatas Isso significaria que

quando se trata das accedilotildees particulares natildeo haacute fixidez Se natildeo haacute fixidez

nos discursos sobre as coisas gerais desse tipo muito menos haveraacute

quando se tratar das coisas particulares92 O filoacutesofo entende que por

isso os agentes devem apreciar o momento da accedilatildeo (EN II 2 1104a1-9)

embora pense que mesmo assim natildeo devamos nos furtar a discutir tais

assuntos pois em eacutetica ou seja para o filoacutesofo moral interessam

sobremaneira as accedilotildees particulares Por conseguinte Aristoacuteteles comeccedila

o tratamento da virtude como boa medida afirmando que as coisas ora

estudadas satildeo naturalmente corrompidas por excesso e falta mas que a

mediania eacute aliada das virtudes Ao exemplificar seu pensamento

contudo parece se referir a quantidades (EN 1104a13-17) como no caso

que segue

Foi dito satisfatoriamente que a virtude moral eacute

empiacutericardquo (RAPP 2010 p 414-415) A partir disso o autor conclui que natildeo eacute

preciso recorrer agraves referecircncias empiacutericas para defender a doutrina da boa

medida 92 Zingano faz consideraccedilotildees muito interessantes a respeito desse trecho e do

que ele realmente pretende dizer Apoia-se para tanto na proposta de Burnet

que sugere voltar aos manuscritos para a leitura e interpretaccedilatildeo correta do passo

(onde se poderia ler pacircs ho perigrave tocircn prakteacuteon loacutegos diferentemente do que se lecirc

nas ediccedilotildees modernas como a de Bekker pacircs ho perigrave tocircn praktocircn loacutegos) Com

isso entende o seguinte sobre o passo ldquoSegundo a versatildeo dos manuscritos todo

discurso de questotildees praacuteticas isto eacute sobre o que devemos fazer em tal situaccedilatildeo

deve ser dado em grandes linhas na versatildeo dos editores modernos eacute antes a

imprecisatildeo do discurso sobre questotildees praacuteticas que eacute posta em realce isto eacute do

discurso que porta sobre o que satildeo as accedilotildees e questotildees similares Aristoacuteteles

poreacutem como observa Burnet natildeo estaacute falando de como fornecer regras sobre o

que fazer Como Aristoacuteteles diraacute a seguir os agentes devem sempre buscar a

soluccedilatildeo segundo as circunstacircncias isto eacute uma consideraccedilatildeo que faz o filoacutesofo

moral e tal consideraccedilatildeo estaacute expressa no registro do que sempre ocorre No

campo praacutetico o que deve ser feito por ser sempre circunstancial varia

enormemente o que ocasiona a referida perda de exatidatildeo [] Poreacutem o ponto

da inexatidatildeo e expressatildeo unicamente em linhas gerais vale para as decisotildees

praacuteticas aquelas que toma o prudente o que o filoacutesofo faz a teoria moral natildeo

estaacute aqui sob anaacutelise (quando Aristoacuteteles define o que eacute a felicidade ele natildeo

pensa estar fornecendo uma proposiccedilatildeo que eacute vaacutelida somente nas mais das

vezes)rdquo (ZINGANO 2008 p 104-105) Assim o discurso moral seria

impreciso natildeo por falha cognitiva nossa mas por seu objeto impreciso a accedilatildeo

105

um meio termo como o eacute que eacute um meio termo

nas emoccedilotildees e nas accedilotildees Por isso eacute aacuterduo ser

bom pois eacute aacuterduo determinar o meio termo em

cada situaccedilatildeo ndash por exemplo determinar o meio

de um ciacuterculo natildeo eacute para qualquer um mas para

quem sabe assim tambeacutem eacute para qualquer um e eacute

faacutecil encolerizar-se dar ou gastar dinheiro mas

natildeo eacute para qualquer um nem eacute faacutecil o determinar a

quem quanto quando em vista do que e como

fazer Por esta razatildeo o bem agir eacute raro louvaacutevel e

belo Por isso quem mira no meio termo deve

primeiramente se apartar do que eacute mais contraacuterio

[] Entendo por meio termo da coisa o que dista

igualmente de cada um dos extremos que

justamente eacute uacutenico e mesmo para todos os casos

por meio termo relativo a noacutes o que natildeo excede

nem falta mas isso natildeo eacute uacutenico nem o mesmo

para todos os casos (EN II 9 1109a20-30)93

Uma argumentaccedilatildeo e uma exemplificaccedilatildeo desse tipo abririam

espaccedilo agraves duacutevidas acima mencionadas e tambeacutem agraves duacutevidas a respeito

das reais intenccedilotildees de Aristoacuteteles ao propor a teoria da mediania

Questatildeo que aparece com a afirmaccedilatildeo de que em tudo que eacute contiacutenuo e

divisiacutevel se pode tomar mais menos e igual quantidade relativamente a

noacutes ou agrave coisa (EN II 5 1106a24-27) O igual eacute considerado meio termo

entre excesso e falta94 podendo apresentar um conflito com a ideia de

que a boa medida nas emoccedilotildees deva ser relativa a noacutes

Para destacar o problema podemos tomar a afirmaccedilatildeo que a

virtude moral estaacute relacionada com accedilotildees e emoccedilotildees (praacutexeis kaigrave paacutethē)

93 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original Ὅτι μὲν οὖν ἐστὶν ἡ ἀρετὴ ἡ ἠθικὴ

μεσότης καὶ πῶς καὶ ὅτι μεσότης δύο κακιῶν τῆς ὲν καθ ὑπερβολὴν τῆς δὲ

κατ ἔλλειψιν καὶ ὅτι τοιαύτη ἐστὶ διὰ τὸ στοχαστικὴ τοῦ μέσου εἶναι τοῦ ἐν

τοῖς πάθεσι καὶ ἐν ταῖς πράξεσιν ἱκανῶς εἴρηται διὸ καὶ ἔργον ἐστὶ σπουδαῖον

εἶναι ἐν ἑκάστῳ γὰρ τὸ μέσον λαβεῖν ἔργον οἷον κύκλου τὸ μέσον οὐ παντὸς

ἀλλὰ τοῦ εἰδότος οὕτω δὲ καὶ τὸ μὲν ὀργισθῆναι παντὸς καὶ ῥᾴδιον καὶ τὸ

οῦναι ἀργύριον καὶ δαπανῆσαι τὸ δ ᾧ καὶ ὅσον καὶ ὅτε καὶ οὗ ἕνεκα καὶ ὥς

οὐκέτι παντὸς οὐδὲ ῥᾴδιον διόπερ τὸ εὖ καὶ σπάνιον καὶ ἐπαινετὸν καὶ καλόν

διὸ δεῖ τὸν στοχαζόμενον τοῦ μέσου πρῶτον μὲν ἀποχωρεῖν τοῦ μᾶλλον

ἐναντίου [] τὸ μὲν ἄρα τοσοῦτο δηλοῖ ὅτι ἡ μέση ἕξις ἐν πᾶσιν ἐπαινετή

ἀποκλίνειν δὲ δεῖ ὁτὲ μὲν ἐπὶ τὴν ὑπερβολὴν ὁτὲ δ ἐπὶ τὴν ἔλλειψινοὕτω γὰρ

ῥᾷστα τοῦ μέσου καὶ τοῦ εὖ τευξόμεθα 93 Idem τὸ δ ἴσον καὶ ταῦτα ἢ κατ αὐτὸ τὸ πρᾶγμα ἢ πρὸς ἡμᾶς

106

pois estas podem admitir excesso ou falta ou meio termo sendo

possiacutevel por exemplo temer muito ou pouco ou como conveacutem Essa

proposta parece ser referente agrave quantidade de emoccedilatildeo a ser sentida mas

que natildeo eacute a uacutenica delimitaccedilatildeo da boa medida Aristoacuteteles parece

estabelecer aleacutem disso certos paracircmetros para se emocionar

adequadamente pois para que haja a virtude eacute preciso sentir emoccedilotildees

quando com o quecirc e com quem se deve etc o mesmo sendo vaacutelido

para as accedilotildees impedindo uma interpretaccedilatildeo meramente quantitativa da

boa medida As questotildees que se impotildeem frente a tal proposiccedilatildeo satildeo as

seguintes (1) Como interpretar a doutrina da boa medida quantitativa

ou qualitativamente (2) Como aplicar a proposta da quantia certa agraves

accedilotildees (3) A doutrina eacute tautoloacutegica e trivial Temos portanto trecircs

questotildees em matildeos e a resolver antes de aceitar que para a vida feliz seja

preciso que se decirc boa medida agraves emoccedilotildees

A primeira questatildeo que devemos responder nos apresenta a boa

medida como quantidade certa de emoccedilatildeo sentida e accedilatildeo praticada

Devemos entender como conciliar a ideia de boa medida que estaacute entre

dois extremos com a proposta de que a virtude natildeo eacute meacutedia aritmeacutetica

Questatildeo a ser discutida pois o proacuteprio filoacutesofo admite que em certas

disposiccedilotildees a virtude moral se aproxima mais de um dos viacutecios que de

outros como percebemos a partir dos exemplos quantificadores Com

isso agraves vezes os extremos estatildeo mais distantes uns dos outros que do

meio este uacuteltimo podendo apresentar mais semelhanccedila com um dos

contraacuterios por exemplo a covardia eacute mais oposta agrave coragem que a

temeridade Outro exemplo eacute que por tendermos mais aos prazeres que

agrave moderaccedilatildeo somos mais propensos agrave intemperanccedila que agrave temperanccedila e

por isso os extremos aos quais tendemos mais satildeo mais contraacuterios de

seus contraacuterios sendo a intemperanccedila mais contraacuteria agrave temperanccedila (EN

II 6 1107a20 et seq) Todas essas afirmaccedilotildees natildeo desfazem o incocircmodo

que se sente ao somar esse tipo de distinccedilatildeo do que seja a virtude aos

exemplos aritmeacuteticos que lhes seguem A observaccedilatildeo que nas accedilotildees e

emoccedilotildees excessos e faltas satildeo censurados enquanto o meio termo eacute

digno de louvor sendo que para o filoacutesofo as marcas da virtude satildeo o

acerto e digno de louvor intensifica a duacutevida

Quem teme e foge de tudo e nada suporta torna-se

covarde quem em geral nada teme mas tudo

enfrenta torna-se temeraacuterio [] a temperanccedila e a

coragem entatildeo satildeo destruiacutedas pelo excesso e pela

falta mas preservadas pela mediedade [] Assim

tambeacutem acontece com as virtudes do abster-se

107

dos prazeres tornamo-nos temperantes tornados

temperantes somos os mais capazes de abster-nos

deles Igualmente com a coragem habituados a

desprezar tornamo-nos corajosos tornados

corajosos seremos os mais capazes de suportar

coisas temiacuteveis (EN II 2 1104a20-35 1104b1-3)95

A virtude eacute entendida como o que visa o meio termo mas acertar

esse meio soacute acontece de um modo embora errar seja possiacutevel de vaacuterias

formas Diante dessas consideraccedilotildees destacam-se tambeacutem as marcas do

viacutecio o erro o excesso e a falta todas aparentemente relacionadas agraves

quantidades de accedilotildees e emoccedilotildees praticadas e sentidas

Assim da primeira questatildeo viria ainda o segundo problema

enquadrar a teoria do mais do menos e do mesmo tanto agrave forma de agir

Seria relativamente faacutecil entender como eacute possiacutevel exigir medidas

quantitativas em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees poreacutem determinar quantidades

aplicaacuteveis aos modos de agir eticamente natildeo seria tatildeo simples

Aristoacuteteles fala de qualificadores determinantes das accedilotildees conforme agraves

circunstacircncias mas seus exemplos praacuteticos natildeo se aplicam exatamente

agraves questotildees eacuteticas reforccedilando o tom problemaacutetico das propostas nesse

sentido

Temos que encarar ainda outra questatildeo inquietante a terceira

que diz respeito agrave trivialidade da doutrina devido agrave inexatidatildeo e

particularidade do assunto Caso expresso tambeacutem ao se afirmar que um

dos extremos induz mais ao erro que o outro Por isso como eacute difiacutecil

acertar o meio seria preferiacutevel tomar entre os extremos aquele que eacute o

mal menor cabendo ao agente decidir o que fazer em cada situaccedilatildeo

Deste modo eacute preciso prestar atenccedilatildeo aos erros aos quais se tem

propensatildeo sendo isto perceptiacutevel pelo prazer e pela dor que o agente

sente com o que faz (EN I 1 1109b4) O filoacutesofo sugere que o agente se

encaminhe para o lado oposto ao mais apraziacutevel para se afastar o

maacuteximo do erro pois natildeo eacute bom juiz quanto ao agradaacutevel e ao prazer

Ao se afastar do prazer corre menos riscos de errar e eacute mais propenso a

95 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ὅ τε γὰρ πάντα φεύγων καὶ

φοβούμενος καὶ μηδὲν ὑπομένων δειλὸς γίνεται ὅ τε μηδὲν ὅλως φοβούμενος

[] φθείρεται δὴ σωφροσύνη καὶ ἡ ἀνδρεία ὑπὸ τῆς ὑπερβολῆς καὶ τῆς ἐλλείψεως ὑπὸ δὲ τῆς μεσότητος σῴζεται [] οὕτω δ ἔχει καὶ ἐπὶ τῶν

ἀρετῶν ἔκ τε γὰρ τοῦ ἀπέχεσθαι τῶν ἡδονῶν γινόμεθα σώφρονες καὶ

γενόμενοι μάλιστα δυνάμεθα ἀπέχεσθαι αὐτῶν ὁμοίως δὲ καὶ ἐπὶ τῆς

ἀνδρείας ἐθιζόμενοι γὰρ καταφρονεῖν τῶν φοβερῶν καὶ ὑπομένειν αὐτὰ

γινόμεθα ἀνδρεῖοι καὶ γενόμενοι μάλιστα δυνησόμεθα ὑπομένειν τὰ φοβερά

108

atingir o meio termo Tarefa que natildeo eacute faacutecil de ser cumprida pois se

trata de casos particulares e das sensaccedilotildees mateacuteria da discriminaccedilatildeo

(EN II 9 1109b23) Em todos os casos a postura meacutedia eacute louvaacutevel mas

certas vezes se deve tender para um dos extremos a fim de atingir mais

facilmente o meio termo ou o bem explicaccedilatildeo que novamente natildeo alivia

nossas duacutevidas Essas propostas de Aristoacuteteles que afastam a accedilatildeo

correta moralmente do meio termo como meacutedia aritmeacutetica igualmente

levam a duvidar da possibilidade de entender como se pode afirmar que

as accedilotildees soacute seriam viaacuteveis eticamente se seguissem a doutrina da

mediania

A soluccedilatildeo que parece interessante agraves questotildees (1) e (3) vem com

as consideraccedilotildees de Rapp (2010 p 414 et seq) O autor entende e

justifica a viabilidade da doutrina do meio termo caso interpretada

conceitualmente ou seja como delimitadora da bondade ou retidatildeo das

disposiccedilotildees que concordam com as sugestotildees da capacidade racional

Segundo tal proposta natildeo confiariacuteamos totalmente a validaccedilatildeo da teoria

da boa medida a exemplos empiacutericos como aqueles que destacamos

acima e que satildeo causadores da confusatildeo que ora apresentamos Ao

compreender deste modo seria possiacutevel salvar a credibilidade da

doutrina por pensar que natildeo interpretariacuteamos o meio termo apenas

quantitativamente O que fariacuteamos seria tomar como possibilidade

entender a proposta de Aristoacuteteles como simultaneamente quantitativa

e qualitativa sem anular uma ou outra postura Temos ainda a questatildeo

(2) que nos leva a pensar a teoria da boa medida como uacutetil agrave vida moral

por ser aplicaacutevel agraves accedilotildees concretas Podemos comeccedilar a refletir sobre o

assunto e a buscar soluccedilatildeo para ele a partir da definiccedilatildeo da virtude moral

como mediania que tem iniacutecio juntamente com aquela lsquodefiniccedilatildeorsquo de

emoccedilatildeo entendendo as virtudes como

[] disposiccedilotildees [] em funccedilatildeo das quais nos

portamos bem ou mal com relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees

por exemplo com relaccedilatildeo ao encolerizar-se se

nos encolerizamos forte ou fracamente portamo-

nos mal se moderadamente bem e de modo

semelhante com relaccedilatildeo agraves outras emoccedilotildees (EN II

4 1105b25-28)96

A forma como um agente se comporta em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees

96 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἕξεις [] καθ ἃς πρὸς τὰ πάθη

ἔχομεν εὖ ἢ κακῶς οἷον πρὸς τὸ ὀργισθῆναι εἰ μὲν σφοδρῶς ἢ ἀνειμένως

κακῶς ἔχομεν εἰ δὲ μέσως εὖ ὁμοίως δὲ καὶ πρὸς τἆλλα

109

que sente embora possa sugerir accedilatildeo particular determina politicamente

a vida pois tais accedilotildees satildeo cometidas na poacutelis e para Aristoacuteteles as

virtudes morais eram percebidas por elogios dispensados a um cidadatildeo

Uma pessoa era considerada virtuosa ou viciosa quando elogiada ou

censurada pela forma como - ou pela intensidade com que - sentia as

emoccedilotildees embora natildeo se teccedila elogios ou censuras em razatildeo das

emoccedilotildees As pessoas natildeo recebem aprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo da

comunidade por sentirem medo excessivo ou fora de hora por exemplo

pois podem natildeo demonstrar tal medo por meio de gestos accedilotildees e

palavras Sentir temor em excesso natildeo eacute motivo de louvor ou censura

mas a forma como cada cidadatildeo apresenta tais emoccedilotildees agrave sua

comunidade eacute motivo para tanto Por isso Aristoacuteteles afirma que natildeo se

elogia ou censura quem teme mas quem teme de certo modo (EN II 4

1106a1) porque a pessoa sente medo sem escolher deliberadamente

mas as virtudes satildeo escolhas deliberadas ou natildeo acontecem sem escolha

desse tipo Emocionar-se e escolher deliberadamente contudo devem

ser fruto do haacutebito e da aprendizagem

Por isso as virtudes morais foram tratadas como disposiccedilotildees que

levam a agir sem excesso ou falta relativamente agraves emoccedilotildees e agraves accedilotildees e

que podem ser habituadas Justamente por essa relaccedilatildeo de proximidade

entre emoccedilotildees e accedilotildees na eacutetica eacute que se pode tambeacutem buscar uma

resposta para questatildeo (2) a saber como estender a boa medida agraves accedilotildees

para que estas sejam boas As accedilotildees podem ser tratadas desse modo

como explica Zingano por sua intimidade com as emoccedilotildees Ao se

regular as emoccedilotildees regular-se-ia tambeacutem as atividades e accedilotildees a estas

associadas ldquoAs accedilotildees sujeitam-se assim agrave anaacutelise do excesso falta ou

justo meio relativos agraves emoccedilotildees que exprimem encolerizar-se em

demasia ou em relaccedilatildeo a quem natildeo se deve eacute um excesso emotivo que

coloca a accedilatildeo fora do compasso da virtuderdquo (ZINGANO 2008 p 127)

Interpretaccedilatildeo que favorece a doutrina do meio termo

Tal proposta nos faz pensar que satildeo postos paracircmetros para a boa

accedilatildeo relacionada agraves emoccedilotildees Seria preciso se emocionar como jaacute

repetimos algumas vezes em relaccedilatildeo a quem eacute devido adequadamente e

no momento apropriado Isso contudo natildeo favoreceria somente uma

interpretaccedilatildeo qualitativa da doutrina da boa medida Parece que natildeo se

admitirmos com Rapp a ideia de que em relaccedilatildeo a cada virtude haacute

escalas contiacutenuas que vatildeo do agir lsquomais em excessorsquo ao lsquoagir mais

deficientementersquo mas sem que por isso seja necessaacuterio colocar a boa

medida absolutamente no centro de cada escala Com isso estaria salva

a possibilidade quantificadora da doutrina embora natildeo seja uma

determinaccedilatildeo de uma medida exata natural ou absoluta A proposta

110

qualificadora igualmente se conservaria jaacute que a observaccedilatildeo do

momento da accedilatildeo e dos demais paracircmetros mencionados (ou natildeo) nos

levaria a compreender como eacute possiacutevel tomar o meio sem

necessariamente exigir uma meacutedia aritmeacutetica para tanto bem como sem

incorrer em relativismo

Assim apoacutes as propostas sobre as questotildees levantadas podemos

entender que a doutrina pode ser tomada como conceitual ou natildeo

empiacuterica natildeo sendo necessaacuterio que entendamos os exemplos

matemaacuteticos e a explicaccedilatildeo do lsquomeio termo relativo a noacutesrsquo como

contraditoacuterios mesmo porque satildeo propostas que aparecem no mesmo

passo da EN (EN II 9 1109a19-30) Deste modo eacute possiacutevel entender que

o filoacutesofo descreve toda virtude como o bom estado que leva ao

desempenho da funccedilatildeo proacutepria agravequilo de que ela eacute virtude O exemplo

dado por Aristoacuteteles eacute que haacute tocadores de ciacutetara mas os tocadores

virtuosos satildeo os bons tocadores de ciacutetara entendimento que igualmente

se aplica ao bom agente (EN II 5 1106b20-35 II 6 1107a1-6) O homem

virtuoso eacute aquele que busca o bem que lhe eacute natural a eudaiacutemōniacutea e

busca cientemente e de acordo com os paracircmetros e quantidades

adequados na emoccedilatildeo e na accedilatildeo Portanto esse homem e o bem que ele

procura satildeo os padrotildees da bondade e da virtude a serem seguidos

impedindo que a doutrina da boa medida soe como totalmente relativa

aos agentes ou agraves circunstacircncias

Em suma ao longo das discussotildees acima propostas vimos a

virtude moral ser descrita como disposiccedilatildeo de caraacuteter em acordo com a

deliberaccedilatildeo com a escolha deliberada e com a prudecircncia ou seja

conforme o que a razatildeo praacutetica propotildee A virtude moral em essecircncia eacute

boa medida quanto agrave forma como se age e ao modo como se emociona

(EN II 9 1109a20-24) A teoria eacute viaacutevel porque podemos tomar o

esquema do excessofaltaboa medida em termos conceituais natildeo

descartando mas pondo lado a lado seus melhores aspectos

quantitativos e qualitativos aplicando a boa medida tambeacutem agraves accedilotildees

Esses aspectos igualmente se aplicam agraves accedilotildees porque haacute uma relaccedilatildeo

indispensaacutevel entre accedilatildeo e emoccedilatildeo sendo tal relaccedilatildeo o motivo de

podermos propor a teoria da boa medida como qualitativa e ao mesmo

tempo quantitativa sem o risco de incoerecircncias Assim a doutrina

igualmente pode ser estendida agraves accedilotildees mas pensamos que para tanto

devem ser observados ainda seus aspectos avaliativos jaacute que os

paracircmetros podem sugerir que o homem virtuoso avalie as

circunstacircncias agrave sua volta e depois se posicione com o modo adequado

de agir

Embora comentadores como Rapp apresentem algumas dessas

111

caracteriacutesticas em separado pensamos que a proposta apaziguadora que

trazemos confere validade e utilidade agrave teoria da boa medida e resposta

agraves questotildees que foram discutidas (1) A teoria da boa medida eacute

qualitativa ou quantitativa (2) A doutrina da boa medida pode ser

tomada como diretriz praacutetica para a accedilatildeo e (3) A doutrina eacute trivial e

tautoloacutegica Ratificando nossa resposta agrave primeira questatildeo eacute que a

doutrina pode apresentar ambos os aspectos qualitativos e quantitativos

atribuindo-os tanto agraves emoccedilotildees quanto agraves accedilotildees A resposta agrave segunda

questatildeo eacute que a doutrina natildeo pode ser entendida como diretriz praacutetica

no sentido de um procedimento de decisatildeo sendo um delimitador da

bondade ou da retidatildeo das disposiccedilotildees de caraacuteter que entram em acordo

com a razatildeo Entendemos contudo divergindo de Rapp que se eacute

doutrina conceitual formulada por um filoacutesofo que pensa em agentes

possiacuteveis como os prudentes pode preparar tais agentes racionalmente

e permitir que estejam mais aptos a decisotildees natildeo retirando certa

praticidade que possa ser ligada ainda que indiretamente agrave doutrina

Ainda quanto agrave segunda questatildeo concordamos com Zingano (2008 p

127) que entende as emoccedilotildees como intrinsecamente ligadas agraves accedilotildees

Esse elo torna impossiacutevel pensar que se as accedilotildees satildeo respostas dadas agraves

emoccedilotildees haveria como separaacute-las conferindo medida a umas e natildeo a

outras A resposta de Rapp agrave terceira questatildeo eacute que a doutrina fornece

um esquema geral que serve como guia para a exploraccedilatildeo das vaacuterias

virtudes e concordamos com essa postura Pensamos que nossas

perspectivas estando ou natildeo associadas agraves dos comentadores

supracitados se tornaratildeo mais claras com a anaacutelise que se seguiraacute da

virtude particular da coragem que apresentaraacute nitidamente a relaccedilatildeo da

virtude moral como boa medida com a emoccedilatildeo do medo

2b) Exemplo da viabilidade da virtude moral como mediania nas

emoccedilotildees a virtude particular da coragem e o medo

Para verificar e comprovar tudo que propusemos anteriormente

podemos tomar a emoccedilatildeo do medo como exemplo Isso nos ajudaraacute a

confirmar que o fato da doutrina natildeo prescrever modos de accedilatildeo natildeo

significa que natildeo possa ser empregada97 ou ligada agraves accedilotildees

97 A questatildeo da natildeo empregabilidade da doutrina se deve como propusemos

anteriormente ao aspecto filosoacutefico e natildeo praacutetico que Aristoacuteteles confere agrave sua

investigaccedilatildeo eacutetica Mesmo que proponha que o interesse do estudo eacute agir e natildeo

conhecer o filoacutesofo ressalta a importacircncia de anaacutelise filosoacutefica das questotildees

relativas a accedilotildees e casos particulares de accedilatildeo Por isso quando esquadrinha sua

112

As definiccedilotildees da virtude moral oferecidas na EE e na EN satildeo

seguidas por discussotildees sobre virtudes particulares que tecircm em sua

definiccedilatildeo o elemento lsquomeio termorsquo quanto a accedilotildees e emoccedilotildees Ao

propor mesmo que com variaccedilotildees que as virtudes particulares satildeo meio

termos tem-se um certo tipo de aplicaccedilatildeo agrave doutrina explica Rapp Tal

teoria a princiacutepio pode natildeo ser aplicada a decisotildees ou accedilotildees

particulares mas agravequilo que o autor chama de ldquoexploraccedilatildeo filosoacutefica das

vaacuterias virtudes eacuteticasrdquo (RAPP 2010 p 420) Isso acontece porque a

eacutetica de Aristoacuteteles admite niacuteveis variados de particularidade e

generalidade e a proposta da virtude como meio termo estaacute em um niacutevel

mais alto de generalidade Por isso as verdades eacuteticas satildeo um tanto

vagas ou como escreve o proacuteprio Aristoacuteteles satildeo em grandes linhas

(tyacutepoi) e imprecisas (EN II 2 1104a1-2) A discussatildeo sobre as virtudes

particulares comparada a isso eacute bem mais concreta mas ainda natildeo tem

a concretude de uma deliberaccedilatildeo para agir em uma situaccedilatildeo particular

ldquoHaacute portanto uma aplicaccedilatildeo da doutrina mas natildeo como um

procedimento de decisatildeordquo explica Rapp (2010 p 421) No entanto

propusemos acima e reforccedilamos aqui que pensamos um pouco diferente

desse comentador porque acreditamos que essa anaacutelise das virtudes

particulares mesmo tomando a teoria da boa medida como conceitual

leva a um ganho real na eacutetica de Aristoacuteteles

A proposta de excessofaltaboa medida nas emoccedilotildees e nas accedilotildees

que levam aos viacutecios ou agrave virtude pode natildeo ser aplicada ao processo de

decisatildeo mas faz com que o agente conheccedila melhor suas reaccedilotildees

emocionais e que esteja mais bem preparado para tomar decisotildees e

agir98 Aleacutem disso se seguirmos a proposta aristoteacutelica de que o

exemplo e a conduccedilatildeo exterior satildeo o que a princiacutepio ajuda na

habituaccedilatildeo moral do futuro cidadatildeo que tal exemplo vem do homem

virtuoso moralmente e prudente provavelmente encontraremos nisso

um passo aleacutem da reflexatildeo puramente filosoacutefica mencionada pela EN

Ao sugerir que se deva buscar agir como agiria um homem corajoso

provavelmente a doutrina ultrapasse o campo da teoria moral

traduccedilatildeo do ldquoquadrordquo das virtudes morais apresentado na EN Zingano propotildee

que nesse ponto da discussatildeo aparece o que seria o uacutenico momento em que

Aristoacuteteles se posiciona como o prudente e natildeo como o filoacutesofo pois aconselha

quanto a modos de atingir o meio termo e natildeo teoriza sobre a questatildeo O passo

no qual isso acontece eacute aquele que mencionamos como apresentando a ldquocurardquo

pelo contraacuterio 1109b1 quando a EN admite o tom de cartilha moral 98 Nussbaum propotildee esse tipo de interpretaccedilatildeo mas a respeito das emoccedilotildees

despertadas pela trageacutedia em seu The Fragility of Goodness

113

encaminhando-se para uma possiacutevel embora natildeo insistente proposta de

accedilatildeo

Tratando das virtudes morais especiacuteficas a abordagem procederaacute

nesse ponto a partir da perspectiva da virtude moral relativa ao medo a

coragem Eacute interessante lembrar que essa virtude estaacute relacionada com

um desejo menos racional denominado impulso (thymoacutes) que estaacute

relacionado a emoccedilotildees natildeo racionais (tagrave aacuteloga paacutethē) ou menos

racionais como propusemos no Capiacutetulo anterior Vimos tambeacutem que

estas emoccedilotildees natildeo parecem menos humanas ao filoacutesofo entatildeo ele pensa

ser absurdo considerar as accedilotildees feitas por impulso como involuntaacuterias

(EN III 3 1111a34-35 1111b1-3) A coragem natildeo eacute conforme esse

desejo sendo uma virtude parece-nos estar entre aqueles estados nos

quais o agente jaacute educou seus impulsos fazendo-os concordes com a

deliberaccedilatildeo a escolha deliberada e com o que solicita a reta razatildeo Deste

modo trata-se de uma disposiccedilatildeo moral consolidada por bons haacutebitos

que escapou agrave forccedila dos extremos chamados do desejo em uma de suas

versotildees menos racionais99 interpretaccedilatildeo que favorece o entendimento da

99 Mas se considerarmos a doutrina uma verdade conceitual no que ela

favorece a discussatildeo das virtudes individuais ldquoO miacutenimo que podemos dizer eacute

que a doutrina do meio termo estrutura e sistematiza a anaacutelise das vaacuterias

virtudes Antes de tudo a descriccedilatildeo de cada virtude em termos da doutrina

requer a identificaccedilatildeo de uma escala contiacutenua de emoccedilotildees com respeito agrave qual a

virtude especiacutefica eacute o ponto meacutedio Esse natildeo eacute um passo trivial porquanto

pressupotildee o projeto de Aristoacuteteles (tal como descrito acima nas seccedilotildees 11 e

12) de descrever as virtudes eacuteticas enquanto o bom estado da parte natildeo-racional

da alma de modo que toda virtude deve estar ligada a um tipo de impulso ou

desejo natildeo-racional Depois a doutrina exige que as vaacuterias maneiras de errar a

virtude ou a accedilatildeo correta sejam encontradas identificadas e organizadas de

acordo com as duas direccedilotildees de deficiecircncia e excesso Esse procedimento

tambeacutem ajuda com as falhas que natildeo satildeo tatildeo frequentes ou natildeo tatildeo oacutebvias como

as falhas opostas o satildeo Ademais a reconstruccedilatildeo das vaacuterias virtudes em termos

da doutrina transforma o cataacutelogo contingente de virtudes comumente aceitas

em um sistema organizado de virtudes no qual toda virtude corresponde a uma

certa porccedilatildeo da nossa vida natildeo-racional e todo tipo de falha pode ser localizada

nas proximidades da virtude respectiva Essa sistematizaccedilatildeo leva ateacute mesmo agrave

identificaccedilatildeo de pontos meacutedios que natildeo haviam sido reconhecidos como

virtudes ateacute entatildeo E acima de tudo ao analisar e explicar cada virtude de

acordo com o esquema de excesso deficiecircncia e meio termo aprendemos como

entender que cada virtude contribui para o bom estado da parte natildeo-racional da

nossa alma E isto mais uma vez eacute essencial para a funccedilatildeo que atribuiacutemos ao

segundo livro da EN na seccedilatildeo 11 qual seja que a discussatildeo das virtudes deve

revelar como as vaacuterias virtudes normalmente admitidas se relacionam com a

114

boa medida como concordacircncia entre a capacidade natildeo racional e a

capacidade racional a fim de que a primeira alcance seu melhor estado

A coragem descrita por Aristoacuteteles em EN III 9 1115a8 eacute um

meio termo que corresponde a duas emoccedilotildees diferentes o medo e o

arrojo ou confianccedila Mas seguindo nossa proposta inicial observaremos

apenas sua relaccedilatildeo com o medo Neste Livro Aristoacuteteles descreve

pessoas que excedem em medo como covardes enquanto pessoas que

sentem tal emoccedilatildeo insuficientemente satildeo temeraacuterias Ser corajoso no

sentido de natildeo temer como natildeo conveacutem exige admitir que as coisas que

satildeo temiacuteveis parecem ter grande poder de destruiccedilatildeo ou de causar danos

que produzam grandes tristezas e ainda assim natildeo fugir e se acovardar

diante delas Isso natildeo significa que ter coragem eacute medir uma quantia

exata de medo a se sentir pondo de lado o medo excessivo ou

deficiente Ter coragem eacute saber o quanto temer poreacutem contando e

avaliando as condiccedilotildees que nos indicam tambeacutem como quando em

relaccedilatildeo a quecirc e em que circunstacircncias se deve temer e o bem a ser

alcanccedilado com a accedilatildeo corajosa

A disposiccedilatildeo em que se encontra quem teme eacute descrita pela

Retoacuterica coerentemente aos relatos eacuteticos como seguiraacute abaixo

Conforme tal descriccedilatildeo podemos tentar com o auxiacutelio da doutrina da

boa medida e dos paracircmetros para que seja aplicaacutevel propor que as

posturas de um homem corajoso atendem agrave exigecircncia de equiliacutebrio

quanto a essa disposiccedilatildeo apresentando-se como disposiccedilatildeo mais forte e

segura para a vida marca da virtude

Se o medo eacute acompanhado pelo pressentimento de

que vamos sofrer algum mal que nos aniquila eacute

oacutebvio que aqueles que acham que nunca lhes vai

acontecer nada de mal natildeo tecircm medo nem

receiam as coisas as pessoas e os momentos que

na sua maneira de pensar natildeo podem provocar

medo Assim pois necessariamente sentem

medo os que pensam que podem vir a sofrer

algum mal e os que pensam que podem ser

afetados por pessoas coisas e momentos

Creem que nenhum mal pode lhes acontecer as

pessoas que estatildeo ou pensam estar em grande

prosperidade [] as que pensam jaacute ter sofrido toda

espeacutecie de desgraccedilas e permanecem frias perante

o futuro agrave semelhanccedila dos que alguma vez jaacute

ideia de um bom estado ou excelecircncia da almardquo (RAPP 2010 p 421-422)

115

levaram uma surra de paulada Para que sintamos

receio eacute preciso que haja alguma esperanccedila de

salvaccedilatildeo pela qual valha a pena lutar E aqui vai

um sinal disso o medo leva as pessoas a deliberar

ao passo que ningueacutem delibera sobre casos

desesperados (Rhet II 5 1382b29-34 1383a1-

8)100

Em associaccedilatildeo agrave proposta sobre o medo supramencionada

podemos pensar que a disposiccedilatildeo corajosa eacute apresentada pelas pessoas

que se mantecircm de certo modo entre as posiccedilotildees de quem teme mas

esse lsquoentrersquo natildeo significa necessariamente algo fixo dentro de uma

escala quantificaacutevel O corajoso eacute descrito na EN como aquele que

encara as coisas temiacuteveis convenientemente e como manda a razatildeo

confirmando que a doutrina da boa medida leva agrave harmonia da

capacidade natildeo racional com a racional conferindo agrave primeira seu

melhor estado Igualmente apresenta a lsquoaplicabilidadersquo de tal doutrina

conceitual sendo mesmo possiacutevel que um homem percebendo seu bom

estado aniacutemico ou auxiliado por um bom estado aniacutemico que venha de

fora natildeo se furte jamais agraves boas accedilotildees jaacute que busca o que eacute nobre

Aquele portanto que espera de peacute firme e teme as

coisas que eacute preciso por um fim direito do modo

que conveacutem e no momento oportuno ou que se

mostra confiante sob as mesmas condiccedilotildees este eacute

um homem corajoso (pois o homem corajoso

padece e age por um objeto que vale a pena e do

modo que exige a razatildeo E o fim de toda atividade

eacute aquele que eacute conforme as disposiccedilotildees do caraacuteter

do qual ela procede e estaacute aiacute uma verdade para o

homem corajoso igualmente sua coragem eacute uma

coisa nobre por conseguinte seu fim tambeacutem eacute

100 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original εἰ δή

ἐστιν ὁ φόβος μετὰ προσδοκίας τινὸς τοῦ πείσεσθαί τι φθαρτικὸν πάθος

φανερὸν ὅτι οὐδεὶς φοβεῖται τῶν οἰομένων μηδὲν ἂν παθεῖν οὐδὲ ταῦτα ἃ μὴ

οἴονται ἂν παθεῖν οὐδὲ τούτους ὑφ ὧν μὴ οἴονται οὐδὲ τότε ὅτε μὴ οἴονται

ἀνάγκη τοίνυν φοβεῖσθαι τοὺς οἰομένους τι παθεῖν ἄν καὶ τοὺς ὑπὸ τούτων καὶ

ταῦτα καὶ τότε οὐκ οἴονται δὲ παθεῖν ἂν οὔτε οἱ ἐν εὐτυχίαις μεγάλαις ὄντες

καὶ δοκοῦντες [] οὔτε οἱ ἤδη πεπονθέναι πάντα νομίζοντες τὰ δεινὰ καὶ

ἀπεψυγμένοι πρὸς τὸ μέλλον ὥσπερ οἱ ἀποτυμπανιζόμενοι ἤδη ἀλλὰ δεῖ τινα

ἐλπίδα ὑπεῖναι σωτηρίας περὶ οὗ ἀγωνιῶσιν σημεῖον δέ ὁ γὰρ φόβος

βουλευτικοὺς ποιεῖ καίτοι οὐδεὶς βουλεύεται περὶ τῶν ἀνελπίστων

116

nobre jaacute que uma coisa se define sempre por seu

fim e por consequecircncia eacute em vista de um fim

nobre que o homem corajoso faz frente aos

perigos e completa as accedilotildees que lhe dita sua

coragem (EN III 10 1115b17-24)101

Assim a coragem eacute a mediania em relaccedilatildeo agraves coisas que inspiram

medo nas circunstacircncias mencionadas O corajoso escolhe ou encara tais

coisas por ser nobre agir desse modo ou por ser vergonhoso agir

diferentemente mas o filoacutesofo lista lsquotiposrsquo de coragem (EN III 11

1116a28 et seq) dentre as quais destaca o desejo de evitar a vergonha e

o medo da desonra como o que mais se aproxima da coragem

propriamente dita Haveria mesmo como vimos uma coragem por

impulso (thymoacutes) considerada plena de emoccedilatildeo no sentido que

movimenta corpo e alma mas que quando acompanhada de impulso

bem-educado acrescida de escolha deliberada e de um bom fim

tenderia mais de perto agrave virtude moral da coragem (EN III 11 1117a4)

Haveria ainda uma coragem incitada por discursos retoacutericos e por

apresentaccedilotildees artiacutesticas e estas provavelmente fossem os tipos que

menos colocassem os homens em accedilotildees corajosas Entendemos no

entanto que mesmo estas uacuteltimas poderiam ser capazes de preparar

ouvintes e espectadores para decisotildees e accedilotildees reais jaacute que expotildeem

modelos de coragem o que prepararia os cidadatildeos para momentos em

que realmente necessitassem de decisotildees influenciadas pela virtude em

questatildeo

O distintivo de um homem verdadeiramente corajoso contudo eacute

suportar aquilo que realmente eacute temiacutevel ou que lhe parece como tal (EN III 11 1117a16-17) Aleacutem disso Aristoacuteteles ressalta que normalmente se

pensa que um homem mostra maior coragem ao natildeo temer e natildeo se

abalar frente a perigos bruscos e natildeo previsiacuteveis jaacute que a associaccedilatildeo

entre sua phroacutenēsis e virtude moral o deixam em boas condiccedilotildees para

agir em quaisquer situaccedilotildees Assim a coragem eacute fruto de uma

disposiccedilatildeo de caraacuteter e requer menos preparaccedilatildeo para a accedilatildeo Os perigos

previsiacuteveis podem ser alvo de caacutelculo (logismoucirc) e de raciociacutenio

101 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ὁ μὲν οὖν ἃ δεῖ καὶ οὗ ἕνεκα ὑπομένων καὶ φοβούμενος καὶ

ὡς δεῖ καὶ ὅτε ὁμοίως δὲ καὶ θαρρῶν ἀνδρεῖος κατ ἀξίαν γάρ καὶ ὡς ἂν ὁ

λόγος πάσχει καὶ πράττει ὁ ἀνδρεῖος τέλος δὲ πάσης ἐνεργείας ἐστὶ τὸ κατὰ

τὴν ἕξιν daggerκαὶ τῷ ἀνδρείῳ δὲ ἡ ἀνδρεία καλόνdagger τοιοῦτον δὴ καὶ τὸ τέλος

ὁρίζεται γὰρ ἕκαστον τῷ τέλει καλοῦ δὴ ἕνεκα ὁ ἀνδρεῖος ὑπομένει καὶ πράττει

τὰ κατὰ τὴν ἀνδρείαν

117

(loacutegou) implicando essas operaccedilotildees racionais com a forma adequada de

temer mas os perigos suacutebitos pedem uma disposiccedilatildeo de caraacuteter estaacutevel

(EN III 11 1117a17-22) e esta parece ser a verdadeira virtude Ademais

o filoacutesofo apresenta como mais corajoso quem permanece imperturbaacutevel

diante de perigos e age como aquele que tem esse tipo de

comportamento quando estaacute seguro A coragem em si mesma portanto

eacute descrita como algo doloroso por sua ligaccedilatildeo com o thymoacutes mas eacute

digna de elogios porque eacute mais difiacutecil encarar dores que se abster de

prazeres

Diante do exemplo de virtude moral particular exposto podemos

compreender a despeito das teorias contraacuterias agrave postura da teoria do

meio termo e da variabilidade das coisas particulares que tocam agrave moral

que realmente eacute devido tratar filosoficamente tais assuntos validando o

fato de Aristoacuteteles comeccedilar sua discussatildeo sobre a mateacuteria afirmando que

as coisas ora estudadas satildeo naturalmente corrompidas por excesso e

falta A ideia de que a mediania eacute aliada das virtudes igualmente eacute

vaacutelida natildeo conflitando com os exemplos que parecem lidar sempre com

quantias contaacuteveis (EN II 2 1104a13-17) e que extrapolam o acircmbito das

puras reflexotildees filosoacuteficas

2c) A forccedila do haacutebito para o correto se emocionar

Ao admitir dois tipos diferentes de virtude conforme a lsquodivisatildeorsquo

da alma Aristoacuteteles nos fala da existecircncia da virtude moral que ldquoresulta

do haacutebito de onde tirou tambeacutem o nome divergindo ligeiramente de

eacutethos102rdquo (EN II 1 1103a17-18)103 O exemplo dado para esclarecer tal

proposta eacute o da pedra que se lanccedilada seguidamente para cima natildeo se

habituaria agraves alturas uma vez que eacute de sua natureza o estar embaixo

explicando que nenhuma virtude moral eacute dada a noacutes por natureza porque

as coisas da natureza natildeo podem ser alteradas pelo haacutebito104 Por isso o

102 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἡ δ ἠθικὴ ἐξ ἔθους περιγίνεται

ὅθεν καὶ τοὔνομα ἔσχηκε μικρὸν παρεκκλῖνον ἀπὸ τοῦ ἔθους 103 Dessas propostas que diferenciam virtude moral e virtude intelectual surge

uma questatildeo intrigante e que provavelmente consigamos responder no Capiacutetulo

seguinte Ela eacute proposta Por Zingano (2008 p 93) do seguinte modo ldquoPode-se

no entanto perguntar por que Aristoacuteteles introduziu aqui esta observaccedilatildeo jaacute

que por contraste esperar-se-ia que as virtudes morais natildeo tivessem a mesma

exigecircncia quando parece ser o contraacuterio visto surgirem do haacutebito e o haacutebito

certamente requer tempo e experiecircnciardquo 104Com essa postura Aristoacuteteles parece buscar responder agrave questatildeo jaacute

apresentada pelo Mecircnon a respeito da possibilidade de se ensinar a virtude O

118

filoacutesofo explica que ldquoas virtudes natildeo se engendram nem naturalmente

nem contra a natureza mas porque somos naturalmente aptos a recebecirc-

las aperfeiccediloamo-nos pelo haacutebitordquo (EN II 1 1103a23-26)105

As virtudes morais satildeo adquiridas pelo exerciacutecio que lhes

precede implicando que um homem se torna justo praticando atos justos

(EN II 2 1103b31) Por exemplo os cidadatildeos satildeo tornados bons porque

as famiacutelias o legislador e a poacutelis como um todo lhes incute bons haacutebitos

direcionados pela lei Por isso os mestres satildeo necessaacuterios jaacute que natildeo

nascemos sabendo fazer as coisas Isso confirma que em um primeiro

momento da formaccedilatildeo moral a virtude vem de fora O que reforccedila essa

ideia eacute o fato que das coisas naturais primeiro temos a potecircncia e depois

as exercitamos em atividades Por exemplo o haacutebito nos apetites e na

raiva tem destino distinto pois uns se tornam temperantes e tolerantes

outros intemperantes e irasciacuteveis devido agrave sua insistecircncia em agir do

mesmo modo em situaccedilotildees semelhantes Esse tipo de explicaccedilatildeo nos

permite defender a possibilidade de habituar apetites e raiva ou seja de

alterar as emoccedilotildees com o auxiacutelio dos haacutebitos do bom conselho e de

outros instrumentos que favoreccedilam a virtude Portanto habituar-se de

um modo ou de outro desde jovem natildeo eacute de somenos mas de muita ou

melhor de toda importacircnciardquo (EN II 1 1103b23-25)106 porque um

homem mal habituado em suas emoccedilotildees torna-se vicioso

Habituar-se de um modo ou de outro estaacute relacionado ao prazer

que se sente com determinadas atividades como vimos no Capiacutetulo

anterior Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer

ou dor implicando que para Aristoacuteteles a virtude tem por natureza

praticar o melhor quanto a estes (EN II 2 1104b9-24) pois eacute proacuteprio agrave

virtude moral o prazer tido com as accedilotildees corretas A capacidade de

retidatildeo nas accedilotildees nas emoccedilotildees nos desejos e nos prazeres viraacute com a

praacutetica habitual de boas accedilotildees proposta que aparece em EN III e na qual

Hutchinson (2009 p 276-277) percebe um paradoxo se as virtudes

estagirita afirma que virtudes morais vecircm com haacutebito e natildeo com ensino Platatildeo

poderia ter chegado a conclusatildeo semelhante (Leis 792e2 Rep 518e1-2 apud

ZINGANO 2008 p 93) contudo ao que parece faz uma concessatildeo aos que

natildeo satildeo saacutebios e que poderiam alcanccedilar a virtude moral por meio da praacutetica Jaacute

Aristoacuteteles entende que todos independentemente de suas tendecircncias naturais

alcanccedilam a virtude por meio do haacutebito 105 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original οὔτ ἄρα φύσει οὔτε παρὰ φύσιν

ἐγγίνονται αἱ ἀρεταί ἀλλὰ πεφυκόσι μὲν ἡμῖν δέξασθαι αὐτάς τελειουμένοις δὲ

διὰ τοῦ ἔθους 106 Idem no original οὐ μικρὸν οὖν διαφέρει τὸ οὕτως ἢ οὕτως εὐθὺς ἐκ νέων

ἐθίζεσθαι ἀλλὰ πάμπολυ μᾶλλον δὲ τὸ πᾶν

119

morais se consolidam pelo treino que leva a se comportar

adequadamente como eacute possiacutevel desenvolvecirc-las Sendo preciso repetir

accedilotildees corajosas para nos tornarmos corajosos natildeo seria preciso ser

previamente corajoso para agir de tal modo O estudioso aponta duas

soluccedilotildees dadas pelo proacuteprio Aristoacuteteles para desfazer o inconveniente

A primeira afirma que haacute coisas que fazemos sob a orientaccedilatildeo do outro

o que nos capacita fazer o que eacute indicado sem ainda sermos haacutebeis para

tanto Isso acontece igualmente com as virtudes morais pois a princiacutepio

devemos agir conforme a sugestatildeo de um educador tornando o conselho

e o exemplo cruciais como observa Aggio (2017 no prelo) Nesse

ponto da formaccedilatildeo natildeo importa que a virtude natildeo esteja no agente ou

que esteja naquele que o aconselha a agir bem pois ainda natildeo foi

internalizada pelo agente embora esse possa seguir um bom conselho

que auxiliaraacute sua habituaccedilatildeo moral para a virtude

A segunda soluccedilatildeo nos diz que as virtudes morais satildeo diferentes

da habilidade porque seu desempenho eacute expressatildeo do caraacuteter uma accedilatildeo

realmente corajosa eacute feita por um homem que sabe o que faz e que tem

um caraacuteter firme e permanentemente corajoso agindo deste modo pela

coragem mesma coisa correta a se fazer Por conseguinte o treinamento

do jovem para a coragem natildeo exige que este seja previamente corajoso

pois a virtude viraacute com o exerciacutecio A praacutetica e a aquisiccedilatildeo de

entendimento tornaratildeo o jovem senhor de suas accedilotildees a partir do que

deixaraacute de seguir propostas alheias sobre como agir corretamente seraacute

realmente virtuoso moralmente pois agiraacute por si mesmo e por amor ao

que eacute correto e bom Mas o filoacutesofo observa ldquoCom efeito eacute possiacutevel

fazer algo de cunho gramaacutetico tanto por acaso como instruiacutedo por outra

pessoardquo (EN II 3 1105a23-26)107 A esse problema Aristoacuteteles respondeu

resumidamente da seguinte maneira para agir com virtude eacute preciso

estar em um certo estado ou o agente sabe o que faz e em seguida

escolhe por deliberaccedilatildeo as coisas elas mesmas agindo por fim de

forma firme e inalteraacutevel (EN II 3 1105a31-1105b1) ou eacute guiado por

algueacutem que sabe o que faz ao menos ateacute atingir a capacidade de guiar

por si mesmo suas accedilotildees Deste modo ratifica-se que as virtudes satildeo

adquiridas por serem exercitadas (EN II 1 1103a31) ou seja satildeo

aprendidas fazendo tornamo-nos corajosos com a praacutetica frequente de

accedilotildees de coragem sendo o haacutebito incutido que leva agrave virtude moral O

contraacuterio contudo pode ocorrer caso se pratique frequentemente maacutes

accedilotildees eacute possiacutevel incorrer em viacutecio como explica o passo abaixo

107 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἐνδέχεται γὰρ γραμματικόν τι

ποιῆσαι καὶ ἀπὸ τύχης καὶ ἄλλου ὑποθεμένου

120

Assim tambeacutem acontece com as virtudes agindo

nas transaccedilotildees entre homens tornam-se uns

justos outros injustos agindo nas situaccedilotildees de

perigo e habituando-se a temer ou a ter confianccedila

tornam-se uns corajosos outros covardes O

mesmo ocorre no caso dos apetites assim como

no das iras pois se tornam uns temperantes e

tolerantes outros intemperantes e irasciacuteveis uns

por persistirem a agir de um jeito nas mesmas

situaccedilotildees outros por persistirem de outro jeito

Por esta razatildeo eacute preciso que as atividades

exprimam certas qualidades pois as disposiccedilotildees

seguem as diferenccedilas das atividades (EN II 1

1103b13-22)108

O passo confirma a possibilidade de alteraccedilatildeo dasnas emoccedilotildees

por via da habituaccedilatildeo Por isso um educador deve se valer da dor e do

prazer com as accedilotildees como indiacutecios das disposiccedilotildees do agente (EN II 2

1104b4-5) e como guia para os haacutebitos que deve incutir ou afastar de

seus disciacutepulos

Apesar de as discussotildees travadas acima tornarem o assunto

satisfatoriamente claro precisaremos ainda mais agrave frente apreciar a

questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre ensino e habituaccedilatildeo auxiliados pelo

prazer com certas accedilotildees e atividades Por ora o passo supracitado chama

nossa atenccedilatildeo para a questatildeo mas pensamos que as puniccedilotildees tambeacutem

sirvam como indicadores de disposiccedilotildees morais pois se costuma operar

ldquocurardquo pelo contraacuterio Segundo essa proposta os homens se tornam bons

ou maus pelos prazeres e dores evitando-os ou buscando-os como

quando e com o que se deve ou natildeo se deve e eacute isso que se observaraacute na

educaccedilatildeo e para as puniccedilotildees Isso indica que a virtude tem por natureza

a praacutetica do que eacute melhor frente a prazeres e dores mas o viacutecio leva ao

contraacuterio (EN II 2 1104b26-28) e por isso eacute preciso ter disciplina quanto

a essas afecccedilotildees

108 Idem οὕτω δὴ καὶ ἐπὶ τῶν ἀρετῶν ἔχει πράττοντες γὰρ τὰ ἐν τοῖς

συναλλάγμασι τοῖς πρὸς τοὺς ἀνθρώπους γινόμεθα οἳ μὲν δίκαιοι οἳ δὲ ἄδικοι

πράττοντες δὲ τὰ ἐν τοῖς δεινοῖς καὶ ἐθιζόμενοι φοβεῖσθαι ἢ θαρρεῖν οἳ μὲν

ἀνδρεῖοι οἳ δὲ δειλοί ὁμοίως δὲ καὶ τὰ περὶ τὰς ἐπιθυμίας ἔχει καὶ τὰ περὶ τὰς

ὀργάς οἳ μὲν γὰρ σώφρονες καὶ πρᾶοι γίνονται οἳ δ ἀκόλαστοι καὶ ὀργίλοι οἳ

μὲν ἐκ τοῦ οὑτωσὶ ἐν αὐτοῖς ἀναστρέφεσθαι οἳ δὲ ἐκ τοῦ οὑτωσί καὶ ἑνὶ δὴ

λόγῳ ἐκ τῶν ὁμοίων ἐνεργειῶν αἱ ἕξεις γίνονται διὸ δεῖ τὰς ἐνεργείας ποιὰς

ἀποδιδόναι κατὰ γὰρ τὰς τούτων διαφορὰς ἀκολουθοῦσιν αἱ ἕξεις

121

A partir do que foi proposto entendemos que a virtude estaacute

relacionada a prazeres e dores que cresce e se corrompe pelas mesmas

coisas (EN II 3 1105a13-16) mas para se tornar virtuoso eacute preciso

praticar frequentemente atos por exemplo corajosos mesmo que estes

sejam dolorosos Os atos satildeo considerados corajosos quando forem

feitos como faria a pessoa considerada dotada de tal virtude embora natildeo

seja corajoso quem realiza atos de coragem mas quem os faz como faria

o homem corajoso Esta virtude moral vem da praacutetica de accedilotildees desse

tipo e natildeo haacute problema como demonstramos haacute pouco com esse tipo

de proposta Ademais Aristoacuteteles frisa que em eacutetica natildeo basta discursar

sobre a conduta virtuosa eacute preciso agir a fim da verdadeira virtude

tendo esses haacutebitos em conformidade agrave virtude intelectual Mas se o

haacutebito eacute bastante para consolidar a virtude moral para que necessitamos

da razatildeo praacutetica A resposta pode ser indicada pela questatildeo da

responsabilidade pelas accedilotildees que tecircm princiacutepio em cada agente que sabe

o que faz como veremos a seguir

2d) Virtude voluntaacuteria diante das circunstacircncias e responsabilidade

A proposta da boa medida tomada como melhor estado da

capacidade natildeo racional da alma humana e como melhor forma de se

emocionar exige que pensemos o agente bom moralmente como

personificaccedilatildeo do equiliacutebrio entre racional e natildeo racional na figura do

prudente Ou seja esse cidadatildeo deve ser pensado como atualizaccedilatildeo

plena daquilo que Aristoacuteteles considera o proacuteprio homem temos um

agente que coordena bem as capacidades de sua alma que eacute princiacutepio de

suas accedilotildees e por conseguinte estas accedilotildees satildeo consideradas voluntaacuterias

(hekouacutesioi) Caso contraacuterio as accedilotildees cometidas satildeo consideradas

involuntaacuterias (akouacutesioi) embora haja tambeacutem atos desse tipo que satildeo

perdoados e ateacute dignos de piedade Mas por que distinguir

voluntariedade e involuntariedade em uma pesquisa sobre as emoccedilotildees

jaacute que tais caracteriacutesticas podem ser atribuiacutedas agraves accedilotildees e natildeo agraves

emoccedilotildees

Quando se estuda a virtude tal distinccedilatildeo eacute necessaacuteria pois as

virtudes satildeo configuradas por accedilotildees voluntaacuterias ligadas agraves emoccedilotildees e ao

que eacute desejado Ademais procuramos encontrar instrumentos que nos

levem a entender a possibilidade de um homem que tenha seu lado natildeo

racional no melhor estado possiacutevel e isso diz respeito a bem agir e bem

se emocionar o que parece ser condizente com a figura de quem age de

acordo com o que julga por si mesmo correto e natildeo por aquele que

meramente toma o conselho de outrem de que algo eacute o correto a se

122

desejar e fazer Este homem atua de certo modo voluntariamente jaacute

que as accedilotildees involuntaacuterias parecem ser aquelas ldquoaccedilotildees praticadas por

forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccedilado o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao

agente princiacutepio para o qual o agente ou o paciente em nada contribuirdquo

(EN III 1 1109b35 1110a1)109

As accedilotildees tambeacutem podem ser mistas quando praticadas conforme

a ocasiatildeo e natildeo como se agiria normalmente Por isso o caraacuteter

voluntaacuterio ou involuntaacuterio da accedilatildeo deve ser atribuiacutedo tendo em vista o

momento em que foi praticada as accedilotildees voluntaacuterias satildeo aquelas cujo

poder de fazer ou natildeo fazer determinada coisa em certa situaccedilatildeo estaacute no

proacuteprio agente ldquoRigorosamente entatildeo agir voluntariamente eacute ldquoagir

com razoaacutevel conhecimento das circunstacircncias a natildeo ser que fosse

literalmente impossiacutevel fazer outra coisardquordquo (HUTCHINSON 2009 p

272) Em contrapartida as accedilotildees que podem ser consideradas forccediladas

satildeo penosas Aristoacuteteles explica que o ldquoato forccedilado portanto mostra-se

aquele cujo princiacutepio eacute exterior a pessoa forccedilada em nada contribuindo

ao princiacutepio da accedilatildeordquo (EN III 1 1110b15-17)110 O fato das

circunstacircncias serem definidoras do que se decide fazer inviabiliza

certas objeccedilotildees agrave proposta da mediania como virtude moral pois como

vimos coloca paracircmetros externos para a accedilatildeo natildeo permitindo que seja

totalmente relativa ao que o agente deseja

Tambeacutem como vimos o fim bem amparado pela razatildeo praacutetica eacute

objeto do desejo reto das emoccedilotildees adequadas e causa da accedilatildeo embora

no homem virtuoso as coisas que levam ao fim sejam objetos da

deliberaccedilatildeo e da escolha deliberada Por conseguinte accedilotildees que lhes

dizem respeito satildeo feitas por escolha deliberada e voluntariamente

sendo estas as accedilotildees corretas moralmente111 Assim

Sobre as virtudes em geral temos dito pois

esquematicamente quanto a seu gecircnero que satildeo

meios termos e haacutebitos que por si mesmas

tendem a praticar as accedilotildees que as produzem que

dependem de noacutes e satildeo voluntaacuterias e atuam de

acordo com as normas da reta razatildeo Mas as accedilotildees

109 Traduccedilatildeo Zingano (2008) no original ἀκούσια εἶναι τὰ βίᾳ ἢ δι ἄγνοιαν

γινόμενα βίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ

πράττων ἢ ὁ πάσχων 110 Idem τὸ βίαιον εἶναι οὗ ἔξωθεν ἡ ἀρχή μηδὲν συμβαλλομένου τοῦ

βιασθέντος 111 No entanto vale observar com Korsgaard que o homem virtuoso natildeo passa

a vida toda deliberando mas delibera apenas frente a determinadas situaccedilotildees

123

natildeo satildeo voluntaacuterias do mesmo modo que os

haacutebitos de nossas accedilotildees somos donos desde o

princiacutepio ateacute o fim se conhecemos as

circunstacircncias particulares dos nossos haacutebitos no

princiacutepio mas seu incremento natildeo eacute perceptiacutevel

como ocorre com as doenccedilas Natildeo obstante como

estava em nossa matildeo comportar-nos de tal ou tal

maneira satildeo por isso voluntaacuterios (EN III 8

1114b26-35 III 9 1115a1-3)112

O passo nos permite reforccedilar que a virtude moral eacute uma

disposiccedilatildeo louvaacutevel sendo a capacidade de se comportar bem em

relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees comportar-se com medida relativa a noacutes e que de

certo modo somos responsaacuteveis por esse comportamento De acordo

com Hutchinson (2009 p 267) satildeo ldquoas disposiccedilotildees de nossas emoccedilotildees

que nos ajudam a dar as respostas corretas agraves situaccedilotildees praacuteticasrdquo Por

isso eacute preciso estabelecer um certo tipo de educaccedilatildeo favoraacutevel agrave virtude

moral malgrado a inexatidatildeo dos assuntos que tocam a esse tipo de

virtude Nessa educaccedilatildeo cabem os haacutebitos que satildeo o modo pelo qual se

pode consolidar a virtude poreacutem devem ser haacutebitos conscientes e

escolhidos deliberadamente113 As virtudes morais vecircm de atos

voluntaacuterios que tecircm sua fonte no proacuteprio agente embora sejam

pautadas nas circunstacircncias e na procura pelo bem Assim o homem

virtuoso eacute responsaacutevel por tais virtudes - e igualmente pelos viacutecios -

como eacute responsaacutevel por seus atos114 na medida em que escolhe e decide

112 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Κοινῇ μὲν οὖν περὶ τῶν ἀρετῶν εἴρηται ἡμῖν τό τε γένος

τύπῳ ὅτι μεσότητές εἰσιν καὶ ὅτι ἕξεις ὑφ ὧν τε γίνονται ὅτι τούτων

πρακτικαὶ ltκαὶgt καθ αὑτάς καὶ ὅτι ἐφ ἡμῖν καὶ ἑκούσιοι καὶ οὕτως ὡς ἂν ὁ

ὀρθὸς λόγος προστάξῃ οὐχ ὁμοίως δὲ αἱ πράξεις ἑκούσιοί εἰσι καὶ αἱ ἕξεις τῶν

μὲν γὰρ πράξεων ἀπ ἀρχῆς μέχρι τοῦ τέλους κύριοί ἐσμεν εἰδότες τὰ καθ

ἕκαστα τῶν ἕξεων δὲ τῆς ἀρχῆς καθ ἕκαστα δὲ ἡ πρόσθεσις οὐ γνώριμος

ὥσπερ ἐπὶ τῶν ἀρρωστιῶν ἀλλ ὅτι ἐφ ἡμῖν ἦν οὕτως ἢ μὴ οὕτω χρήσασθαι

διὰ τοῦτο ἑκούσιοι 113 Mesmo que a princiacutepio sejam conscientes e deliberadamente escolhidos por

outrem 114 Haacute um problema quanto a ligar atos voluntaacuterios e responsabilidade pelos

atos Natildeo vamos entrar nos meacuteritos da questatildeo nesse momento pois

extrapolaria nossas forccedilas Podemos contudo indicar que quanto a isso

Zingano difere de Irwin pois pensa que para que um agente seja responsaacutevel

por suas accedilotildees precisa agir voluntariamente mas para que um ato seja

considerado voluntaacuterio natildeo eacute necessaacuterio responsabilizar o agente Assim

124

por si mesmo o que deve fazer podendo ser elogiado ou censurado

A virtude moral quando bem exercitada eacute disposiccedilatildeo segundo a

regra justa que eacute estabelecida pela prudecircncia e por isso pode ordenar

por-se o fim Se o fim tem relaccedilatildeo com o desejo este precisa ser

educado ateacute que se conforme a reta razatildeo que implica aprender a

desejar assim como a se emocionar para agir bem bela e nobremente

em comunidade A aplicaccedilatildeo da teoria da boa medida bem como a

aplicaccedilatildeo de seus paracircmetros eacute necessaacuteria para que tal educaccedilatildeo se

concretize Por isso e pela maleabilidade da capacidade natildeo racional

frente agraves sugestotildees da razatildeo eacute possiacutevel a Aristoacuteteles propor a boa

medida nas emoccedilotildees

O virtuoso em sentido moral e completo julga bem (kriacutenei

orthocircs) as coisas e a verdade se manifesta a ele (talēthegraves autograve phaiacutenetai)

sendo o homem que se distingue por sua capacidade de ver o verdadeiro

(talēthegraves hōraacuten) em cada coisa padratildeo e medida para todas as coisas

(EN III 6 1113a30-35) eliminando novamente a relatividade da

doutrina O virtuoso eacute o homem cujas atividades envolvem deliberaccedilatildeo e

escolha deliberada pois natildeo haacute virtude sem estes traccedilos de razatildeo ou ao

menos natildeo haacute virtude completa (aretegraven teleiacutean) entendida aqui como

aquela junccedilatildeo entre a virtude moral e a virtude intelectual que a

aperfeiccediloa Por isso tanto a virtude quanto o viacutecio estaacute em nosso poder

(ephacutehēmicircn) pois podemos agir quando eacute belo bem como deixar de agir

quando isso eacute desonroso e portanto estaacute em nosso poder sermos bons

ou maus contrariando Soacutecrates

Como vimos as coisas consideradas em nosso poder e

voluntaacuterias satildeo as coisas das quais o princiacutepio estaacute em noacutes e por isso a

distribuiccedilatildeo dos castigos e das honrarias feita pelos legisladores eacute

pautada na boa administraccedilatildeo que cada agente tem de si e de sua

capacidade natildeo racional o que soacute eacute possiacutevel se entendermos as

propostas de Aristoacuteteles sobre a alma como tendendo agrave unicidade que

permite a comunicaccedilatildeo entre as capacidades da alma Sendo as virtudes

voluntaacuterias noacutes somos de certo modo causas coadjuvantes de nossas

disposiccedilotildees jaacute que temos o poder de controlaacute-las a princiacutepio embora

escapem ao nosso controle apoacutes certo tempo e exerciacutecio Isso nos

confere deliberadamente o princiacutepio das qualidades que carregaremos

Zingano entende o voluntaacuterio como condiccedilatildeo necessaacuteria embora natildeo suficiente

para uma accedilatildeo da responsabilidade do agente Isso porque soacute pode ser

responsabilizado aquele que eacute princiacutepio da accedilatildeo e cuja accedilatildeo levar a elogio ou

censura que aperfeiccediloem o agente Mais sobre essas questotildees consultar Zingano

(2008 p 146-147)

125

vida afora115 e por nossa qualidade pomos o fim correspondente agraves

nossas accedilotildees (EN III 7 1114b21-24) eis o motivo de Aristoacuteteles ter

afirmado que agindo bem nos tornamos bons e que as maacutes accedilotildees nos

levam ao viacutecio

Apoacutes atingirmos essas conclusotildees deveremos tratar as questotildees

acerca da proposta da mediania nas emoccedilotildees pois como observa

Besnier (2008 p 78) ldquoSendo a paixatildeo um movimento reativo passivo e

indeliberado resta saber de que modo podemos constituir uma atitude

como virtuosa a seu respeito tal como podemos fazer para a accedilatildeordquo A

questatildeo eacute entatildeo como moderamos nossas emoccedilotildees

3 Metriopaacutethēia o ideal de emoccedilatildeo para a vida virtuosa

Com o que vimos ateacute agora ficou evidente que Aristoacuteteles propotildee

a virtude moral e a virtude mais completa como dependentes da boa

medida em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees possiacutevel graccedilas ao equiliacutebrio entre as

capacidades que datildeo ao homem o que lhe eacute peculiar116 Tal teoria a

partir do periacuteodo heleniacutestico ficou conhecida como metriopaacutethēia e

embora o termo natildeo seja de Aristoacuteteles Zingano (2007 p 143)

considera que seja a definiccedilatildeo ldquosucinta e felizrdquo das teorias do filoacutesofo

acerca de como devemos nos portar frente agraves emoccedilotildees O estudioso

explica que ldquonatildeo se trata de extirpar as emoccedilotildees mas de lhes dar uma

justa medida vivecirc-las metriocircs e a virtude moral consiste justamente em

encontrar sua medida em funccedilatildeo e no meio das circunstacircncias em que se

produzem as accedilotildeesrdquo (ZINGANO 2007 p 144) Entende que isso

significa ldquoexaminaacute-lo [o paacutethos] mediante uma deliberaccedilatildeo pois a

virtude eacute uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha deliberadardquo (2007 p 165) A

virtude moral tem em vista o meio termo quanto agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees

porque nestas pode haver excesso falta e boa medida Dessa

possibilidade de variaccedilatildeo surgiu nossa necessidade de questionar a

doutrina na medida em que tal questionamento nos auxiliasse a resolver

as questotildees propostas por nossa pesquisa

Pelos estudos acima apresentados pudemos entender a mediania

relativamente a noacutes abarcando tanto especificaccedilotildees quantitativas como

115Essa questatildeo que parece segundo anaacutelise de Zingano (2008 p 92)

questionar a tese central do capiacutetulo II (ldquoa disposiccedilatildeo acompanha e em um

sentido relevante eacute dependente das accedilotildeesrdquo) seraacute respondida no item que trataraacute

dos haacutebitos 116EN I 1098a7-12 IX 1172a4-6 X I 1177b26-30 Pol 1253a25-28

126

qualitativas tendo em vista a circunstacircncia na qual a accedilatildeo precisa ser

cometida e que lhe fornece paracircmetros e possibilidades de ajuizamento

Deste modo determinar a mediania relativa a noacutes implica determinar

aquilo que as circunstacircncias relevantes em seu conjunto apontam tendo

em conta o fim buscado pelo agente Para que isso seja cumprido dever-

se-aacute fazer o que for preciso na hora certa na ocasiatildeo certa e do modo

certo (EN II 5 1106b21-22) Tal ideia eacute chamada por Hursthouse (2009

p 104) de ldquodoutrina centralrdquo da mediania e pode ser exemplificada do

seguinte modo conforme o proacuteprio Aristoacuteteles

[] eacute possiacutevel temer ter arrojo ter apetite

encolerizar-se ter piedade e em geral aprazer-se

e afligir-se muito e muito pouco e ambos de

modo natildeo adequado o quando deve a respeito de

quais relativamente a quem com que fim e como

deve eacute o meio termo e o melhor o que justamente

eacute a marca da virtude Similarmente haacute excesso

falta e meio termo no tocante agraves accedilotildees A virtude

diz respeito a emoccedilotildees e accedilatildeo nas quais o excesso

erra e a falta eacute censurada ao passo que o meio

termo acerta e eacute louvado acertar e ser louvado

pertencem agrave virtude (EN II 5 1106b18-26)117

No capiacutetulo anterior todavia foi mencionado que nem toda accedilatildeo

e nem toda emoccedilatildeo admite mediania No Livro IV da EN Aristoacuteteles

questiona se podemos realmente considerar a vergonha ou pudor (aidṓs)

como uma virtude118 jaacute que natildeo eacute possiacutevel ter boa medida quanto a ela

117 Isso eacute vaacutelido caso a interpretaccedilatildeo de Rapp (2010 p 424) esteja correta e se

quando Aristoacuteteles afirma que o meio termo eacute o padratildeo bom e correto quanto ao

contiacutenuo e o divisiacutevel estaacute a tratar das escalas contiacutenuas das emoccedilotildees e accedilotildees e

natildeo das virtudes e dos viacutecios Por isso natildeo haacute como encontrar escalas realmente

quantitativas entre virtudes e viacutecios mas podem ser encontradas entre emoccedilotildees

e accedilotildees

O passo supracitado tem traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original οἷον καὶ

φοβηθῆναι καὶ θαρρῆσαι καὶ ἐπιθυμῆσαι καὶ ὀργισθῆναι καὶ ἐλεῆσαι καὶ ὅλως

ἡσθῆναι καὶ λυπηθῆναι ἔστι καὶ μᾶλλον καὶ ἧττον καὶ ἀμφότερα οὐκ εὖ τὸ δ

ὅτε δεῖ καὶ ἐφ οἷς καὶ πρὸς οὓς καὶ οὗ ἕνεκα καὶ ὡς δεῖ μέσον τε καὶ ἄριστον

ὅπερ ἐστὶ τῆς ἀρετῆς ὁμοίως δὲ καὶ περὶ τὰς πράξεις ἔστιν ὑπερβολὴ καὶ

ἔλλειψις καὶ τὸ μέσον ἡ δ ἀρετὴ περὶ πάθη καὶ πράξεις ἐστίν ἐν οἷς ἡ μὲν

ὑπερβολὴ ἁμαρτάνεται καὶ ἡ ἔλλειψις [ψέγεται] τὸ δὲ μέσον ἐπαινεῖται καὶ

κατορθοῦται 118 Zingano levanta esse problema em seus Estudos de Eacutetica Antiga (2007 p

127

A questatildeo se impotildee porque o filoacutesofo considera as caracteriacutesticas

atreladas ao pudor mais proacuteximas daquelas que normalmente se daria a

uma afecccedilatildeo que igualmente atinge o corpo A vergonha cuja emoccedilatildeo

que lhe seria proacutepria levaria o mesmo nome seria distinta das demais

afecccedilotildees devido a ser identificada com aquilo que traria para o agente

medo da desonra ou um embaraccedilo diante das maacutes accedilotildees que este

comete Por isso o filoacutesofo considera que provavelmente seja

inadequado classificaacute-la como virtude moral jaacute que este tipo de

disposiccedilatildeo proacutepria ao homem bom natildeo comportaria maacutes accedilotildees A

despeito dessas questotildees o texto eacute sobremaneira interessante ao

concordar com as propostas dos tratados bioloacutegicos em especial com

aquelas do DA Vimos que esse escrito descreve um dos aspectos do

paacutethos como uma mudanccedila fiacutesica entre outras caracteriacutesticas e ressalta

tambeacutem que haveria emoccedilotildees moralmente neutras aleacutem daquelas que

seriam capazes de se adequar ao que eacute correto moralmente Diante

dessas dificuldades Sorabji explica que Aristoacuteteles

[] diz que o que conta muito ou pouco depende

de quem noacutes somos da ocasiatildeo do para quecirc e

para quem a nossa emoccedilatildeo eacute dirigida do resultado

provaacutevel e do modo de reagir Aleacutem disso ele

aponta que algumas emoccedilotildees como

Schadenfreude e inveja tecircm a ideia de maldade

construiacuteda nelas de modo que natildeo haacute espaccedilo para

a ideia de moderaccedilatildeo em exercecirc-las (SORABJI

2000 p 195 traduccedilatildeo nossa)

Algumas destas emoccedilotildees satildeo denominadas precisamente por sua

vileza caso da inveja Esse tipo de paacutethos eacute censurado devido ao fato de

ser vil e natildeo por ser excessivo ou em falta ou provavelmente seja

censurado por excesso ou falta devido ao fato de romper com os

paracircmetros propostos pela racionalidade praacutetica para natildeo exceder nem

faltar Tal rompimento caracterizaria uma extrapolaccedilatildeo dos padrotildees para

a boa medida e sinalizaria errar tambeacutem no direcionamento da emoccedilatildeo

aos objetos que lhe correspondem naquilo que as circunstacircncias que

envolvem as emoccedilotildees exigem ser apreciado e natildeo somente nas

lsquoquantidadesrsquo ou na lsquointensidadersquo de emoccedilatildeo sentida Estatildeo em jogo

como propusemos anteriormente as falhas quantitativas mas tambeacutem as

falhas qualitativas e de avaliaccedilatildeo que o agente que delibera pode

165) embora natildeo lhe traga soluccedilatildeo

128

cometer ao se emocionar Por exemplo somos censurados por nos

enfurecer muito ou muito pouco e por isso levar a uma accedilatildeo errada bem

como somos censurados por nos enfurecer contra muitas pessoas ou

contra a pessoa errada Rapp (2010 p 430) no entanto observa que a

doutrina parece se adequar melhor ao primeiro caso que eacute quantitativo

embora pense que com uma anaacutelise proacutexima a questatildeo quantitativa

pareccedila duvidosa Segundo este estudioso

[] haacute dois tipos de problemas com os casos

quantitativos os quais podem ser resolvidos

somente se os equipararmos ao qualitativo O

primeiro problema eacute que a quantidade de uma

accedilatildeo ou emoccedilatildeo pode se manifestar de muitos

modos distintos pode ser questatildeo de sentir

intensamente de forccedila motivacional de duraccedilatildeo

ou frequecircncia enquanto a frequecircncia por sua vez

pode ser medida pelas ocorrecircncias pelo nuacutemero

de pessoas envolvidas pelo nuacutemero de ocasiotildees

pelo nuacutemero de lugares etc excesso nestes

vaacuterios aspectos corresponde a diferentes tipos de

falhas Neste sentido as descriccedilotildees quantitativas

em separado de que algueacutem estaacute lsquoenfurecido

demaisrsquo ou lsquoage enfurecidamente demaisrsquo satildeo

eliacutepticas Quando reprovamos algueacutem por sua

raiva excessiva ou por agir muito raivosamente

deveriacuteamos em princiacutepio poder explicar o

sentido ou o conjunto de sentidos em que as

reaccedilotildees raivosas dele satildeo excessivas O segundo

problema traz agrave tona uma outra razatildeo de por que

descriccedilotildees quantitativas em separado satildeo

incompletas quando algueacutem se enraivece em

muitas ocasiotildees e com muitas pessoas podemos

reprovaacute-lo por raiva excessiva Mas quantas

ocasiotildees e pessoas satildeo o bastante e quando isto

comeccedila a ser excessivo Quando realmente

ultrapassamos o nuacutemero moderado de ocasiotildees ou

pessoas Talvez a nossa pessoa enraivecida encare

mais ofensas e insultos que uma pessoa comum

ela natildeo estaria portanto justificada em enfurecer-

se mais frequentemente Eacute oacutebvio que estaacute A fatal

poreacutem inevitaacutevel conclusatildeo eacute que o nuacutemero

absoluto ou a quantidade absoluta natildeo pode nos

informar quando as coisas se tornam deficientes

ou excessivas Sempre que precisamos julgar o

129

grau de raiva de uma pessoa devemos saber se ela

estaacute enraivecida somente com as pessoas que

merecem isto ou se com mais pessoas se ela se

enfurece somente por razotildees respeitaacuteveis ou se

suas reaccedilotildees satildeo apropriadas ou exageradas se ela

se acalma depois de um periacuteodo razoaacutevel de

tempo ou se natildeo tem como dar a volta por cima

etc Podemos concluir entatildeo que a imputaccedilatildeo de

deficiecircncia ou excesso quantitativo em casos

como este depende em uacuteltima instacircncia do caacutelculo

de falhas especificadas qualitativamente (RAPP

2010 p 430-431)

Esse tipo de interpretaccedilatildeo parece razoaacutevel e reforccedila a proposta da

teoria da boa medida como relativa a noacutes amparada na situaccedilatildeo na

bondade do agente e do fim por este procurado garantida por sua

capacidade de boa deliberaccedilatildeo ou prudecircncia visando natildeo um nuacutemero

especiacutefico que aponte como agir corretamente mas paracircmetros e

avaliaccedilotildees que indiquem o agir deste ou daquele modo Aristoacuteteles

contudo insiste que em relaccedilatildeo agraves paacutethē que trazem a maldade desde o

nome natildeo haacute como acertar sendo que quem as sente sempre erra

Entendemos que tais emoccedilotildees satildeo decorrentes dos desejos que natildeo

ouvem ou que ouvem pouco a razatildeo quando natildeo satildeo educados para a

virtude e que acabam por falhar em seu caacutelculo para a boa accedilatildeo Assim

eacute possiacutevel ao filoacutesofo elaborar uma lista dos meios termos ou seja das

virtudes quanto a certas emoccedilotildees fazendo o mesmo em relaccedilatildeo agraves

accedilotildees que devem ser moderadas Estas satildeo descritas no resumo das

virtudes morais apresentado pelo Livro II 7 da EN assim como nos

livros que seguem (EN III-V) quando descrevem em maiores detalhes

aquelas que se costuma chamar virtudes morais

As virtudes morais particulares dizem respeito ao comportamento

relativo agraves emoccedilotildees particulares como bem observa Hutchinson mas

sem esquecer que isso diz respeito agrave forma de conduzir tais emoccedilotildees

diante das situaccedilotildees que se apresentam Por exemplo em tal suma lemos

que a boa medida quanto ao medo e ao arrojo eacute a coragem enquanto em

relaccedilatildeo agrave raiva seria o que geralmente eacute chamado de calma O que

importa nas listas que descrevem as virtudes poreacutem eacute notarmos que a relaccedilatildeo do homem com as emoccedilotildees que sente confirma a proposta

acerca da relevacircncia da presenccedila de emoccedilotildees moderadas quantitativa e

qualitativamente na boa vida moral e da relevacircncia que o entorno e sua

avaliaccedilatildeo tecircm nessas emoccedilotildees ldquoA quantidade correta depende de

paracircmetros que nos concernem ou que concernem a todos que se

130

encontram na mesma situaccedilatildeo que nos encontramosrdquo explica Rapp

(2010 p 431-432) Os paracircmetros salvam tambeacutem o aspecto mais

concreto da doutrina da boa medida como virtude moral havendo

compatibilidade nas duas propostas A aplicaccedilatildeo destes padrotildees agraves

emoccedilotildees permite o ldquocaacutelculordquo da medida nas emoccedilotildees conciliando

novamente os aspectos quantitativos e qualitativos da doutrina dentro da

proposta da metriopaacutethēia bem como permite que a teoria seja aplicada

agraves accedilotildees

A uacutenica quantidade que interessa eacute a quantidade

de reaccedilotildees inapropriadas natildeo a quantidade

absoluta digamos de prazeres que fruiacutemos

somente quando confundimos estes tipos de

escalas quantitativas podemos pensar que falhas

do tipo quantitativo tais como comer doces

demasiadamente beber ouzo demasiadamente

dormir com muitas mulhereshomens etc satildeo

paradigmas para a caracterizaccedilatildeo aristoteacutelica da

virtude e do viacutecio Mas em verdade natildeo faz uma

grande diferenccedila para a doutrina se por exemplo

a nossa fruiccedilatildeo excessiva de prazeres do corpo

tem por base a fruiccedilatildeo de coisas erradas ou de

coisas demais cada uma destas uacuteltimas podendo

ser boa ou beneacutefica em separado (RAPP 2010 p

437)

Soacute se pode dizer que se sente muito ou muito pouco se as

emoccedilotildees satildeo corretas ao se analisar os paracircmetros e as circunstacircncias

por intermeacutedio do caacutelculo deliberativo que leva agrave escolha deliberada do

modo de accedilatildeo A questatildeo da medida nas emoccedilotildees eacute portanto mais a

questatildeo da natildeo violaccedilatildeo dos paracircmetros para a accedilatildeo que da quantidade

exata entre excessos e faltas Para esclarecer o que propomos podemos

dar um exemplo o do homem virtuoso e que encontra a boa medida em

suas emoccedilotildees A descriccedilatildeo estaacute na Retoacuterica e nos apresenta o perfil dos

cidadatildeos que estatildeo no auge da vida Estes homens natildeo satildeo muito

confiantes (temeraacuterios) nem muito temerosos tecircm a justa medida nestas

emoccedilotildees natildeo confiam ou desconfiam de tudo emitem juiacutezos conforme

a verdade natildeo vivem somente para o belo ou para o uacutetil mas para

ambos natildeo vivem apenas para a frugalidade nem para a prodigalidade

mas para o justo meio

O mesmo acontece em relaccedilatildeo ao seu impulso e ao seu apetite

adultos tecircm sua temperanccedila acompanhada de coragem e vice-versa

131

Diferem dos jovens que satildeo valentes e licenciosos e dos idosos que satildeo

moderados e covardes Portanto o homem no auge da vida eacute modelo da

virtude moral que eacute o bem agir diante das emoccedilotildees sentidas nas

circunstacircncias vividas Tal homem eacute a expressatildeo do bom estado da alma

natildeo racional que pensamos ser impossiacutevel sem o acordo com a

capacidade racional representada pela prudecircncia sendo modelo

igualmente da influecircncia das circunstacircncias que natildeo satildeo as mesmas para

quem se encontra no ponto alto de sua existecircncia na melhor forma de

suas capacidades e para aqueles que ainda satildeo demasiado jovens ou que

jaacute satildeo demasiado velhos

O auge da vida exige uma razatildeo reta capaz de discriminar

(kriacutenein) corretamente situaccedilotildees particulares encontrar o meio termo

desejado e buscado com a accedilatildeo Aggio propotildee que isso soacute acontece agrave

pessoa que tenha preparaccedilatildeo afetiva preacutevia sendo afetivamente capaz de

ver o que eacute melhor A autora entende que usar bem a razatildeo depende de

um bem-estar afetivo ou do bom estado da capacidade natildeo racional

como Rapp e a sua leitura da boa medida igualmente nos propotildeem

ldquoMas o que eacute o modo certo e as vezes certas e quem eacute a pessoa certa

depende do tipo de situaccedilatildeo e contexto em que agimosrdquo (AGGIO 2017

no prelo) Isso nos leva a entender que o conceito de meio termo relativo

a noacutes foi elaborado para abarcar a ideia do conteuacutedo dos mencionados

paracircmetros e por isso pode variar conforme as circunstacircncias para a boa

accedilatildeo - mas natildeo sem ter o bem supremo em vista

Uma quantificaccedilatildeo do que eacute bom ou mau natildeo eacute usada para

determinar paracircmetros individuais na doutrina esta apresenta as

condiccedilotildees nas quais as solicitaccedilotildees da capacidade natildeo racional da alma e

as accedilotildees que lhes correspondem sejam tomadas como boas ou corretas

Valendo-nos ainda do exemplo do homem no auge da vida eacute possiacutevel

dizer que estaacute afetivamente apto tanto para ter juiacutezos corretos frente agraves

situaccedilotildees quanto para por em acordo suas afecccedilotildees e sua razatildeo Para que

tal acordo aconteccedila eacute preciso estar disposto para tal coisa ou seja ver o

que eacute bom a ser feito depende de querer ver tal coisa Esse tipo de visatildeo

implica virtude completa pois somente uma pessoa virtuosa consegue

distinguir por si mesma o que eacute melhor Por isso uma pessoa virtuosa

age bem e como consegue ver o que deve fazer como explica a citaccedilatildeo

que segue

Por exemplo trata-se de ser coleacuterico o suficiente

para saber bem se vingar ou se defender de uma

ofensa de ser moderado o suficiente i e na justa

medida para desfrutar no momento oportuno de

132

prazeres saudaacuteveis de ser bem disposto a

enfrentar a dor de modo a ver o que eacute corajoso a

ser feito trata-se de perceber que uma dada

situaccedilatildeo exige uma accedilatildeo generosa e de desejar

realizaacute-la mas tal sensibilidade moral depende de

jaacute haver uma disposiccedilatildeo generosa para tanto e

assim por diante com relaccedilatildeo agraves outras virtudes

particulares e suas respectivas emoccedilotildees e desejo

As coisas assim nos aparecem conforme a

disposiccedilatildeo que temos em percebecirc-las e o estado

afetivo em que nos encontramos (AGGIO 2017

no prelo)

Acrescentamos a esta proposta de acordo com os intuitos de

nosso estudo que desejar bem e retamente faculta se emocionar bem e

retamente mas ainda precisamos investigar certas questotildees para

continuar a admitir com seguranccedila que satildeo a razatildeo e afetos que

determinam em conjunto o agir Embora pareccedila plausiacutevel existem ainda

as tantas apostas de Aristoacuteteles na razatildeo para nos fazer pensar mais um

pouco sobre a questatildeo Contudo Aggio pensa que mais que conhecer o

que eacute certo para agir moralmente bem eacute preciso que os afetos

determinem o que importa moralmente A accedilatildeo correta depende do

engajamento afetivo porque a razatildeo natildeo conduz direta ou indiretamente

os afetos ela vecirc o que eacute certo porque se tem uma tendecircncia afetiva para

tanto Quando as afecccedilotildees se tornam disposiccedilotildees eacute possiacutevel agirem

como padrotildees ou regularidades sendo modos de raciocinar e perceber

Quando o momento exige tomar uma atitude quem dita o melhor a ser

feito satildeo o desejo reto e a reta razatildeo E com isso uma accedilatildeo natildeo seria

movida por princiacutepios do intelecto caso natildeo fosse afetivamente

engajada

Assim as afecccedilotildees seriam determinantes para a atribuiccedilatildeo do

valor moral agrave accedilatildeo porque na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees resultam das

afecccedilotildees que estatildeo em sua origem Estes tecircm a ver com prazer e dor

com o desejo por buscar ou evitar alguma coisa e Aristoacuteteles frisa o

desejo como princiacutepio da accedilatildeo Nossa cautela nesse momento ainda nos

leva a pensar na questatildeo da necessidade da boa associaccedilatildeo entre razatildeo e

afecccedilotildees para a boa accedilatildeo mas foi por percebermos a possibilidade desse destaque da afecccedilatildeo na vida moral que decidimos tratar a questatildeo

poreacutem com relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees entendidas como emoccedilotildees No entanto

devemos finalizar nossa discussatildeo das relaccedilotildees das virtudes com as

paacutethē ateacute mesmo para podermos nos posicionar melhor quanto ao

assunto Por isso abordaremos a mencionada disposiccedilatildeo em perceber o

133

que eacute correto e conveniente e sua ligaccedilatildeo com as emoccedilotildees

4 Virtudes intelectuais satildeo necessaacuterias agraves virtudes morais e para a

ldquoboa formardquo das emoccedilotildees

Tendo em vista que a virtude eacute necessaacuteria agrave eudaiacutemōniacutea que a

vida excelente plenamente parece ser considerada por Aristoacuteteles a vida

conforme a razatildeo e que a virtude moral natildeo pode existir sem a razatildeo119

trataremos agora do modo como a razatildeo praacutetica pode comandar ou

segundo nossa proposta andar junto com as emoccedilotildees conferindo-lhes a

boa medida proacutepria agrave virtude moral e agrave virtude completa ldquoE jaacute que de

fato noacutes dissemos mais acima que devemos escolher o meio termo e

natildeo o excesso ou a falta e que o meio termo eacute conforme o que enuncia a

reta razatildeo analisemos agora esse uacuteltimo pontordquo (EN VI 1 1138b18-

20)120 O que seria a reta razatildeo (orthograves loacutegos)

Em todas as disposiccedilotildees morais discutidas haacute certa finalidade que

fixa sua regra fazendo com que o homem que estaacute em posse da reta

razatildeo intensifique ou relaxe seus esforccedilos Por conseguinte existe um

princiacutepio que determina as medianias permitindo que estejam em

acordo com a mencionada regra mas Aristoacuteteles bem como noacutes pensa

que o assunto ainda carece de atenccedilatildeo Embora seja verdade afirmar que

se deva empregar a justa medida nos esforccedilos saber disso nada

acrescenta ao conhecimento eacute preciso determinar a reta razatildeo

Aristoacuteteles nos fala de virtudes morais e intelectuais As

primeiras foram tratadas mas falta falar das virtudes intelectuais e de

sua importacircncia na vida moralmente boa jaacute que destacamos a

imprescindibilidade da capacidade natildeo racional em tal vida Em EN VI

119 Como observa Zingano (2008 p 24) e como vimos no capiacutetulo anterior eacute

preciso moderaccedilatildeo nas emoccedilotildees ou seja uma boa habituaccedilatildeo para que a razatildeo

tenha ao menos a possibilidade de atuar Isso sinaliza a postura contraacuteria ao

racionalismo socraacutetico defendida por Aristoacuteteles pensa o estudioso O mesmo

estudioso no mesmo estudo (2008 p 75) explica que a virtude moral depende

da razatildeo para poder operar sendo que a razatildeo aperfeiccediloa a virtude moral Por

isso acatamos a proposta de Zingano um estudo da phroacutenēsis ainda que breve

como o propomos completa o estudo da virtude moral jaacute que eacute esta virtude

intelectual que faz a aretḗ eacutetica completa 120 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Ἐπεὶ δὲ τυγχάνομεν πρότερον εἰρηκότες ὅτι δεῖ τὸ μέσον

αἱρεῖσθαι μὴ τὴν ὑπερβολὴν μηδὲ τὴν ἔλλειψιν τὸ δὲ μέσον ἐστὶν ὡς ὁ λόγος ὁ

ὀρθὸς λέγει τοῦτο διέλωμεν

134

1 o filoacutesofo estabelece uma divisatildeo como aquela das capacidades alma

para o racional comeccedilando com a admissatildeo de que satildeo duas as lsquopartesrsquo

da alma racional Uma delas eacute responsaacutevel pela contemplaccedilatildeo dos seres

que natildeo podem ser de outro modo a outra eacute responsaacutevel pelo

conhecimento das coisas contingentes (EN VI 2 1139a5-8) sendo que

isso eacute possiacutevel caso seja verdade que haacute certo tipo de semelhanccedila e de

afinidade entre o sujeito e o objeto que se daacute ao conhecimento como

proposto tambeacutem no DA

Uma dessas capacidades (ou (sub)capacidades como propusemos

para as virtudes morais) eacute chamada cientiacutefica outra calculativa na

medida em que deliberar e calcular satildeo o mesmo e cada uma apresenta

virtude proacutepria Jaacute vimos no Capiacutetulo anterior a relaccedilatildeo das coisas que

segundo EN VI 2 controlam a accedilatildeo e a verdade quais sejam percepccedilatildeo

intelecto e desejo e que Aristoacuteteles a princiacutepio exclui a percepccedilatildeo

sensiacutevel como responsaacutevel por aquelas accedilotildees consideradas moralmente

por ser compartilhada por todos os animais Precisamos agora

estabelecer o modo como as outras duas coisas intelecto e desejo

podem se relacionar bem concedendo a forma adequada ao desejo que

conduziraacute agrave procura pelo fim correto e pela boa accedilatildeo e para tanto

deveremos ver a importacircncia das virtudes intelectuais na moralidade

Precisamos analisar essa possibilidade jaacute que Aristoacuteteles mais

adiante nas discussotildees do Livro VI 10 apresenta a possibilidade de

objeccedilatildeo agrave necessidade das virtudes intelectuais junto a uma vida feliz

Isso inviabilizaria as propostas que temos feito a partir de EN I 13

trecho que indica uma alma una na qual a capacidade desiderativa seria

apta a ouvir a razatildeo portanto devemos buscar sair desse embaraccedilo

Podemos comeccedilar nossa empreitada observando que Aristoacuteteles em VI

3 menciona cinco estados ou virtudes intelectuais pelos quais a alma

enuncia o que eacute verdadeiro por afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo arte (teacutechnē)

ciecircncia (episteacuteme) prudecircncia (phroacutenēsis) sabedoria (sophiacutea) e intelecto

(noucircs) Mesmo que o filoacutesofo pareccedila admitir a sabedoria121 como maior

e mais excelente das virtudes humanas a virtude intelectual que estaacute

relacionada diretamente agrave boa accedilatildeo (eupraxiacutea) e consequentemente agraves

emoccedilotildees moderadas eacute agrave prudecircncia Neste estudo natildeo analisaremos

121 De acordo com a interpretaccedilatildeo feita por Tricot a virtude mais perfeita eacute a

sophiacutea virtude mais alta da parte intelectual humana Reeve parece

compartilhar dessa opiniatildeo de certo modo pois natildeo a entende como virtude

mais completa (REEVE 2013 p 27) Embora Zingano (2007 p 160) observe

que eacute possiacutevel que a mais alta virtude mencionada pelo filoacutesofo possa ser uma

junccedilatildeo de sophiacutea e phroacutenēsis o que nos parece mais plausiacutevel

135

especificamente a sabedoria porque segundo o filoacutesofo natildeo se dedica a

nenhum dos meios que permitem ao homem ser feliz dados os seus

objetos Eacute de se presumir no entanto que o detentor de tal virtude

intelectual tenha as demais virtudes inclusive aquelas relativas agraves

emoccedilotildees moderadas devido ao caraacuteter uno da psychḗ humana Parece

ser isso que podemos ler no passo escrito por Reeve acerca das virtudes

da capacidade racional da alma humana proposta pela EN trecho que

subscrevemos

Juntas essas duas partes compotildeem a parte da alma

que tem razatildeo (logos) porque esta pode dar

razotildees que justificam e explicam

A funccedilatildeo de cada subparte racional eacute conhecer a

verdade confiaacutevel (239b12-13) No caso da parte

cientiacutefica (ou da contemplativa ou do pensamento

teoacuterico que ela capacita) a verdade em questatildeo eacute a

verdade totalmente familiar naquele da parte

calculativa (ou pensamento praacutetico) eacute a verdade

praacutetica ou determinante-da-accedilatildeo que eacute ldquoverdade

em conformidade como desejo corretordquo (239a17-

35) Desde que uma virtude eacute apenas algo que

capacita seu detentor a cumprir ou completar bem

sua funccedilatildeo satildeo essas funccedilotildees que tecircm as chaves

para as virtudes do pensamento (139a16-17) e

entatildeo para o tipo de razatildeo eticamente correta

procurada (REEVE 2013 p 4 traduccedilatildeo nossa)

Embora como observa Reeve (2013 p 1) seja difiacutecil determinar

o papel da razatildeo teoacuterica na moralidade suspeitamos que tal relaccedilatildeo

exista necessariamente Todavia por motivo das propostas que

defendemos nesse estudo nesse momento trataremos a phroacutenēsis devido

agrave sua atuaccedilatildeo evidente junto agrave vida feliz e doravante apontaremos

quando possiacutevel e necessaacuterio indiacutecios de que a sabedoria teoacuterica

participa da virtude completa que viabiliza a boa vida

4a) A prudecircncia

Dissemos muitas vezes que natildeo haacute virtude moral sem prudecircncia

Mas qual a utilidade desta para a vida moral se a maioria dos homens

parece estar sob o domiacutenio das capacidades natildeo racionais da alma e se

Aristoacuteteles cede agrave virtude moral a indicaccedilatildeo do fim a ser buscado pelo

agente Aristoacuteteles responde a partir de VI 7 (mas a proposta aparece

136

tambeacutem em III 4 5 e 7) que a prudecircncia eacute uacutetil agrave vida moral por analisar

os meios que permitem ser feliz tendo por objeto as coisas justas belas

e boas para o homem Sendo assim quando Aristoacuteteles escreve que a

razatildeo sozinha nada move escreve tambeacutem que a razatildeo praacutetica associada

ao desejo move

A associaccedilatildeo das capacidades desiderativa e racional da alma

esta representada ao menos pela razatildeo praacutetica que retifica os desejos

pelos fins ajusta o caacutelculo dos meios e a escolha do meio mais eficiente

de agir para alcanccedilar o bom fim proposto pelo desejo retificado graccedilas agrave

sua docilidade agrave razatildeo praacutetica como veremos e defenderemos Esse tipo

de interpretaccedilatildeo nos forccedila a ver as possibilidades de entendimento da

virtude da razatildeo praacutetica chamada prudecircncia de seus objetos e de sua

funccedilatildeo junto a uma vida boa moralmente

Um modo de compreender melhor o papel moral da prudecircncia e o

que ela eacute passa pela consideraccedilatildeo de quem satildeo os prudentes A opiniatildeo

geral - com a qual Aristoacuteteles parece concordar - eacute que o prudente tem a

capacidade de bem deliberar quando estaacute em jogo o que eacute vantajoso e

bom para o homem A prudecircncia eacute ldquouma disposiccedilatildeo acompanhada da

regra justa capaz de agir na esfera do que eacute bom ou mau para um ser

humanordquo (EN VI 5 1140b4-5)122 O cidadatildeo que apresenta essa virtude

intelectual eacute dotado de reta razatildeo e por isso eacute capaz de deliberar sobre

as coisas que levam agrave boa accedilatildeo e agrave vida feliz Sendo assim de um modo

geral eacute possiacutevel classificar o prudente como o homem capaz de

deliberaccedilatildeo A prudecircncia estaacute ligada igualmente ao agir eacutetico e por isso

Wolf (2010 p 152) entende que viver exercendo a virtude moral eacute uma

forma de eudaiacutemōniacutea pois para a realizaccedilatildeo plena desse tipo de vida

natildeo basta ter a virtude da capacidade desiderativa Para que haja a boa

accedilatildeo eacute preciso haver aquilo que a autora chama de ldquoboa compleiccedilatildeo

constitutivardquo da capacidade desiderativa e tambeacutem a virtude intelectual

definidora do exerciacutecio da virtude moral que eacute a prudecircncia Por isso

Aristoacuteteles escreve A phroacutenēsis eacute uacutetil agrave vida moral por indicar os

meios de se alcanccedilar um fim desejado pois o fim

eacute da alccedilada da virtude moral a obra proacutepria do

homem natildeo eacute totalmente acabada senatildeo em

conformidade com a prudecircncia e com a virtude a

virtude moral eacute com efeito garantia da retidatildeo do

122 Traduccedilatildeo para o portuguecircs nossa feita a partir da traduccedilatildeo francesa feita por

Tricot (2012) No original ἕξιν ἀληθῆ μετὰ λόγου πρακτικὴν περὶ τὰ ἀνθρώπῳ

ἀγαθὰ καὶ κακά

137

fim que buscamos e a prudecircncia aquela dos meios

para alcanccedilar esse fim (EN VI 13 1144a6-9)123

Segundo Hutchinson (2009 p 270) mais que propor meios a

prudecircncia torna a virtude moral sensata jaacute que os princiacutepios de nossas

accedilotildees satildeo os fins aos quais tendem nossos atos e estes princiacutepios

necessitam de tal sensatez Ela eacute a virtude da capacidade da alma apta a

calcular (tograve logistikoacuten) os meios implicada tanto na accedilatildeo quanto na

produccedilatildeo porque o caacutelculo ou deliberaccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o que pode

ser de outro modo sendo que a accedilatildeo moral e a produccedilatildeo satildeo do acircmbito

do que eacute variaacutevel A prudecircncia natildeo pode ser esquecida e eacute caracterizada

como a virtude intelectual que tem por objeto os universais mas que

deve tambeacutem ter o conhecimento dos fatos particulares pois sendo da

ordem da accedilatildeo estaacute relacionada com as coisas particulares (EN VI 8

1141b9-16) Por conseguinte a prudecircncia precisa do conhecimento do

universal e dos particulares mas o prudente deve saber

preferencialmente daquilo que estaacute relacionado ao particular imediato

ou uacuteltimo que eacute objeto de um tipo de percepccedilatildeo (aiacutesthēsis) do particular

mas um tipo de percepccedilatildeo tida como na percepccedilatildeo um ente matemaacutetico

diferenciando-se da percepccedilatildeo dos sensiacuteveis proacuteprios como explica o

DA III 10 433a16-17

Assim na prudecircncia ou melhor na deliberaccedilatildeo da qual eacute em

parte constituiacuteda haacute percepccedilatildeo daquilo que eacute uacuteltimo mas primeiro na

accedilatildeo124 Tal percepccedilatildeo explica Reeve (2013 p 3 2014 p 211) capta

algo uacutenico ou universal entre uma multidatildeo de coisas particulares com

o auxiacutelio da capacidade perceptiva da alma como veremos no proacuteximo

Capiacutetulo De acordo com essas descriccedilotildees eacute possiacutevel entender a

prudecircncia portanto como

[] a virtude intelectual chamada sabedoria

praacutetica cuja funccedilatildeo eacute permitir-nos saber a maneira

correta de nos comportar Embora a sabedoria

praacutetica natildeo seja ela proacutepria uma virtude moral

estaacute intimamente associada com as virtudes

morais [] Como resultado de tudo isso a

sabedoria praacutetica eacute uma apreciaccedilatildeo do que eacute bom

e mau para noacutes no niacutevel mais alto acrescida de

123 Idem ἔτι τὸ ἔργον ἀποτελεῖται κατὰ τὴν φρόνησιν καὶ τὴν ἠθικὴν ἀρετήν ἡ

μὲν γὰρ ἀρετὴ τὸν σκοπὸν ποιεῖ ὀρθόν ἡ δὲ φρόνησις τὰ πρὸς τοῦτον 124 Para uma discussatildeo mais detalhada das diferenccedilas e similaridades entre

percepccedilatildeo comum e percepccedilatildeo deliberativa ver Reeve (2014 p 213)

138

uma correta assimilaccedilatildeo dos fatos da experiecircncia e

da habilidade de fazer de maneira raacutepida e

confiaacutevel as inferecircncias corretas sobre como

aplicar nosso conhecimento moral geral a nossa

situaccedilatildeo particular Ela eacute usada em nossos

proacuteprios casos quando somos obrigados a manter

certo modo de accedilatildeo Obviamente ela eacute um recurso

muito importante se a tiveacutessemos noacutes sempre

agiriacuteamos de maneira correta e nossas vidas

seriam proacutesperas e felizes (HUTCHINSON 2009

p 267-269)

Apoacutes expor brevemente a relaccedilatildeo de necessidade entre a virtude

intelectual da prudecircncia e a virtude moral devemos prosseguir em nossa

investigaccedilatildeo Vale avisar que explicaremos melhor a relaccedilatildeo da

prudecircncia com o particular e o universal mas no momento a exposiccedilatildeo

que fazemos da virtude intelectual em questatildeo solicita que a

explicitemos o modo como capacita o homem a agir bem graccedilas a ter a

boa deliberaccedilatildeo (eubouliacutea) por peculiaridade Com seu caacutelculo bem

executado a prudecircncia associada agrave virtude moral possibilita que as

accedilotildees sejam perfeitas permitindo mesmo a completude da virtude

humana pois leva a agir seguindo boas razotildees Assim sendo a

deliberaccedilatildeo necessaacuteria agrave determinaccedilatildeo racional que faraacute dos atos

corretos eacute preciso analisaacute-la ainda que brevemente

4b) Deliberaccedilatildeo

As propostas indicam que a funccedilatildeo a ser exercida pelo prudente eacute

a deliberaccedilatildeo ou melhor a boa deliberaccedilatildeo sendo esta uma espeacutecie de

pesquisa ou caacutelculo que apontaraacute ao agente suas possibilidades de accedilatildeo

para que sua procura por um fim resulte bem-sucedida Quem delibera

busca os meios convenientes para as accedilotildees e nesse caso o conveniente eacute

o bom mas o que eacute objeto de deliberaccedilatildeo (bouacuteleusis) ldquoDeliberar

entatildeo diz respeito agraves coisas que ocorrem nas mais das vezes mas nas

quais eacute obscuro como resultaratildeo e agravequelas nas quais eacute indefinido como

resultaratildeordquo (EN III 5 1112b8-9)125 Por isso se nas accedilotildees cabe variaccedilatildeo

para agir bem quanto aos assuntos incertos eacute preciso deliberar bem agrave

eacutetica de Aristoacuteteles eacute imprescindiacutevel apontar bons meios que seratildeo

escolhidos e que poratildeo por fim o cidadatildeo a agir Vimos que nesta eacutetica

125 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original τὸ βουλεύεσθαι δὲ ἐν τοῖς ὡς ἐπὶ

τὸ πολύ ἀδήλοις δὲ πῶς ἀποβήσεται

139

a capacidade mesma de adotar os meios corretos de agir que iniciam

com a deliberaccedilatildeo consiste na ideia de responsabilidade Quando o

agente prefere certos meios por deliberaccedilatildeo pode vir a se tornar senhor

de suas accedilotildees como explicitaremos melhor adiante

Mas qual a natureza da boa deliberaccedilatildeo Quem delibera bem o

faz corretamente e por isso a boa deliberaccedilatildeo eacute um tipo de retidatildeo na

procura e indicaccedilatildeo dos meios para alcanccedilar determinados fins O bem

deliberar eacute um tipo de retidatildeo de pensamento mas natildeo eacute ainda uma

asserccedilatildeo pois o homem que delibera bem calcula e investiga alguma

coisa Se a eubouliacutea eacute correccedilatildeo no deliberar a bouacuteleusis propriamente

dita eacute a forma correta de analisar racionalmente os meios uacuteteis para a

realizaccedilatildeo de um fim Esse tipo de caacutelculo parte do objetivo uacuteltimo da

accedilatildeo concebendo modos de alcanccedilaacute-lo ateacute se entender o que realmente

eacute possiacutevel fazer Quem delibera analisa e ao fim de tal anaacutelise chega ao

que eacute primeiro na execuccedilatildeo da accedilatildeo a escolha deliberada do meio que

conduziraacute ao fim mas quando o deliberador se depara com algo

impossiacutevel a investigaccedilatildeo eacute suspensa Em contrapartida caso se depare

com algo possiacutevel a accedilatildeo eacute posta em curso Por conseguinte os objetos

da bouacuteleusis satildeo os instrumentos de accedilatildeo sua utilizaccedilatildeo e o meio pelo

qual a accedilatildeo ocorreraacute buscando ser bem-sucedida Deliberando portanto

o homem pode ser considerado princiacutepio das accedilotildees que comete porque

a deliberaccedilatildeo estaacute relacionada a coisas que podem ser feitas pelos

proacuteprios esforccedilos (EN III 6 1113a3-12)

Com as observaccedilotildees feitas acima expressamos em linhas gerais a

deliberaccedilatildeo quais satildeo seus objetos e determinamos que estatildeo

relacionados agraves coisas que conduzem aos fins Como explicita VI 8 a

deliberaccedilatildeo eacute a capacidade do prudente que apresenta uma consideraccedilatildeo

(hypoacutelēpsis) verdadeira e por isso entendemos o deliberar como segundo

passo rumo ao alcance de um fim pois o desejo eacute o iniacutecio e ocorre antes

da anaacutelise dos meios A deliberaccedilatildeo eacute expressa sob a forma loacutegica do

silogismo praacutetico que eacute concluiacutedo com a accedilatildeo (EN VII 5 1147a25-31)

sendo este silogismo considerado por Reeve (2014 p 202 210) um

plano para a accedilatildeo126 Em tal plano a premissa universal eacute apresentada ao

agente como um bem (ou como o bem supremo) pois segundo o autor e

como explicita o DA III 10 433b21-27 eacute preciso que haja um ponto fixo

126 Reeve descreve tal silogismo do seguinte modo ldquoPremissa maior definiccedilatildeo

de felicidade

Premissa menor decreto

Conclusatildeo accedilatildeordquo (REEVE 2013 p 9)

140

ou uma espeacutecie de motor imoacutevel que ponha a accedilatildeo em movimento127

Neste caso tal ponto fixo seria o desejo pela felicidade (ou pelo fim que

percebemos como nosso condutor agrave felicidade DA III 11 434a16-20

EN VI 3 1139b17-18) Haveria ainda sob esta foacutermula loacutegica da accedilatildeo

gerada pela deliberaccedilatildeo opiniotildees ou juiacutezos que poderiam ser verdadeiros

ou falsos como nos informa VI 11 constituintes da premissa menor

sendo uma questatildeo de percepccedilatildeo praacutetica assunto do qual trataremos um

pouco mais detidamente no Capiacutetulo III A premissa menor eacute proposta

por Reeve como um decreto (2014 p 210) que antecede a escolha que

resultaraacute na accedilatildeo Por isso na sequecircncia desse processo deve haver a

escolha deliberada do meio para conseguir o fim desejado Por

conseguinte a escolha deliberada eacute o ldquoato de pesar razotildees rivaisrdquo

(ZINGANO 2007 p 158) quanto aos meios para alcanccedilar aquilo que eacute

desejado e por isso a analisaremos brevemente

4c) Escolha deliberada

A escolha deliberada (proaiacuteresis) eacute exclusividade dos animais

humanos nos quais a razatildeo exerce adequadamente seu papel Aristoacuteteles

a define em VI 2 por relaccedilatildeo ao desejo classificando-a como desejo

deliberado (oacuterexis dianoetikeacute) ou intelecto desejante (orektikograves noucircs)

por ser um tipo de desejo formado apoacutes o processo de deliberaccedilatildeo apoacutes

o agente considerar o modo mais adequado de agir para alcanccedilar seu

objetivo Por isso segundo Besnier (2008 p 90) a escolha deliberada eacute

o momento em que eacute possiacutevel que a capacidade natildeo racional da alma

escute a razatildeo praacutetica deixando-se levar por ela Ou ainda melhor eacute o

momento no qual tal capacidade pode se unir agrave razatildeo praacutetica e se

determinar pelas razotildees por ela propostas levando agrave accedilatildeo virtuosa Por

exemplo o continente escolhe deliberadamente e por isso natildeo age por

apetite imoderado (EN III 4 1111b14-17) ldquoEm suma pois a escolha

deliberada parece dizer respeito agravequelas coisas que estatildeo em nosso

poderrdquo (EN III 4 1111b29-30)128

Por tal motivo atribui-se certa qualidade a um homem pelas

escolhas que faz jaacute que prefere obter ou evitar certo tipo de coisa com o

auxiacutelio da reflexatildeo e do pensamento (logoucirc kaigrave diaacutenoias) implicando

que a escolha deliberada acontece apoacutes a deliberaccedilatildeo que indica meios

127 A respeito da premissa maior como um desejo tambeacutem Nussbaum (1985 p

201 et seq) 128 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ὅλως γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ

τὰ ἐφ ἡμῖν εἶναι

141

calculados para se conseguir o fim determinado racionalmente Isso

significa que ldquoa escolha deliberada introduz no centro da virtude por

conseguinte no seio mesmo das emoccedilotildees o ato de pesar razotildees para

aquilo que se faz ou se deixa de fazerrdquo (ZINGANO 2007 p 158)

Escolher eacute essencial para a virtude moral pois eacute a partir da escolha

deliberada que se consolida a preferecircncia por esta e natildeo por aquela accedilatildeo

apontada na deliberaccedilatildeo manifestando aquilo que Zingano chama

ldquofaculdade de contraacuteriosrdquo (2008 p 27129) ou razatildeo Esta pode aceitar ou

deixar de aceitar uma ou outra das propostas da deliberaccedilatildeo - donde os

mencionados contraacuterios - e nisso consiste a escolha deliberada

Deste modo o processo que leva agrave accedilatildeo virtuosa pode ser descrito

do modo como fez Aggio no passo seguinte

Comeccedilamos desejando algo em seguida

passamos a investigar os meios para realizaacute-lo

por fim escolhemos realizaacute-lo ou natildeo Devemos

portanto conceber a escolha como sendo

necessariamente o resultado de uma investigaccedilatildeo

129 Zingano (p 186-187) quanto agrave variedade de fins a serem escolhidos e ao

mesmo tempo quanto ao natildeo relativismo da eacutetica de Aristoacuteteles graccedilas a

existecircncia de um fim maior O que confere agrave deliberaccedilatildeo a tarefa de

avaliaccedilatildeomoral das accedilotildees embora a escolha dos fins seja da alccedilada dos desejos

e das virtudes morais Assim a proaiacuteresis seria parte disso tudo em sua funccedilatildeo

de preferecircncia moral que escolhe entre as alternativas propostas pela

deliberaccedilatildeo A escolha deliberada aleacutem ser por objeto de deliberaccedilatildeo concluiacuteda

apresenta assentimento com tal objeto de deliberaccedilatildeo e isso leva a agir (EN

1147a28) Haacute contudo deliberaccedilatildeo sobre o futuro por isso nem toda

deliberaccedilatildeo eacute seguida de accedilatildeo

De acordo com Nussbaum haacute na escolha deliberada tambeacutem um outro aspecto

de preferecircncia associado ao valor do objeto buscado ldquoPara Aristoacuteteles a busca

por valor eacute a busca pelo que eacute bom para o ser humanordquo (NUSSBAUM 2008 p

49 traduccedilatildeo nossa) Frequentemente a verdade eacute que tal busca eacute parte da vida

emocional Coisas muito queridas geralmente satildeo avaliadas como parte

importante da vida Tais objetos das emoccedilotildees satildeo vistos como valiosos e bons

E se o objeto eacute escolhido livremente eacute provaacutevel que seu valor seja ainda mais

elevado Por exemplo ldquoEu escolho algo porque penso que este algo conteacutem

valor agraves vezes somente para mim mas frequentemente vejo isso como valioso

para as pessoas de um modo geralrdquo A autora contudo discorda um pouco da

proposta eudaimocircnica grega porque pensa que nem tudo que uma pessoa

entende como valioso pode ser recomendado aos outros Nesse caso haacute uma

falta de limite entre particular e geral mas natildeo analisaremos essa proposta nesse

momento (para esse assunto consultar NUSSBAUM 2008 p 50 et seq)

142

deliberativa e o iniacutecio da accedilatildeo pois escolhemos

agir ao escolhermos o meio que realiza certo fim

(AGGIO 2017 no prelo)

Sendo no momento da escolha deliberada que nossos desejos e

emoccedilotildees capazes de ouvir a razatildeo praacutetica podem vir a mudar a

concordar ou discordar com o que foi racionalmente proposto

entendemos que eacute durante esse caminho apresentado pela prudecircncia - da

deliberaccedilatildeo agrave escolha da accedilatildeo - que uma emoccedilatildeo pode se tornar

adequada ou seja pode receber a mediania A escolha deliberada eacute a

forma pela qual a razatildeo praacutetica age no interior de todos os desejos por

tornaacute-los mais proacuteximos ao que a razatildeo sugere e eacute por isso que

podemos continuar a afirmar como fizemos no primeiro Capiacutetulo que

haacute um modo correto de ter apetite e de se encolerizar O que implica

tambeacutem sentir tais desejos e emoccedilotildees pelos objetos adequados Nisso se

resume o encontrar o ldquoponto certordquo da emoccedilatildeo segundo as palavras de

Zingano (2008 p 167) sendo tal ponto determinado pela razatildeo

associada agrave virtude moral permitindo deste modo se emocionar

conforme a justa medida

No entanto entendemos que as emoccedilotildees assim como os desejos

satildeo despertadas em noacutes a princiacutepio por certas percepccedilotildees praacuteticas que

temos acerca do mundo que anteriormente determinamos estarem

relacionadas com um sem nuacutemero de particulares que nos afetam e

dentre os quais eacute preciso pela accedilatildeo da prudecircncia abstrair algo universal

que norteia as boas accedilotildees Esse tipo de afecccedilatildeo que se origina com o

exterior deve passar pelo crivo da razatildeo praacutetica e seus processos a fim

de conferir adequaccedilatildeo aos desejos que provoca e agraves emoccedilotildees que

desperta levando-os a adquirir uma modelagem mais adequada agraves

propostas racionais em geral Por isso na sequecircncia deveremos nos

dedicar a trabalhar a relaccedilatildeo do processo da prudecircncia com o particular

(heacutekastos) e o universal (kathoacutelou)

4d) Prudecircncia deliberaccedilatildeo escolha deliberada e sua relaccedilatildeo com o

particular e o universal

Com as discussotildees postas acima pudemos observar momentos

nos quais Aristoacuteteles afirma a relaccedilatildeo entre a prudecircncia suas operaccedilotildees

e as coisas particulares bem como com o universal Esse tipo de

proposta nos leva a indagar novamente o real papel dessa virtude

intelectual pois traz duacutevida quanto ao que seria o tal universal O

particular pudemos deduzir satildeo as circunstacircncias nas quais acontece o

143

mencionado processo e que levam cada agente a por em praacutetica seu

plano de accedilatildeo para realizaccedilatildeo de um fim que veremos ser apontado no

silogismo praacutetico como premissa menor ou um tipo de opiniatildeo Mas se

tudo que eacute feito pelo homem leva a um fim que tende ao fim supremo

seria este uacuteltimo o dito universal Pelo que estudamos ateacute o momento a

resposta parece ser positiva e por conseguinte seraacute favoraacutevel agrave nossa

interpretaccedilatildeo a partir da EN e do DA de uma unidade da alma pois nos

mostraria a prudecircncia apontando para algo mais que as situaccedilotildees

peculiares e contingentes

Essa leitura leva a virtude intelectual da prudecircncia a se conectar

ao menos com um certo tipo de objeto invariaacutevel mesmo que no campo

do que eacute procurado pelas accedilotildees humanas Por isso potildee-na em contato

com o restante das capacidades da alma racional e seus melhores

estados que apresentam por objeto coisas imutaacuteveis Ratificamos que

natildeo traremos especificamente dessas uacuteltimas virtudes intelectuais pois

no momento basta-nos confirmar que a prudecircncia se direciona ao

universal configurado como a eudaiacutemōniacutea e lida com os modos

particulares de alcanccedilaacute-la como explica Reeve (2014 p 211)

Quando a felicidade eacute apreendida por um agente

a tarefa deliberativa deste eacute encontrar a (espeacutecie

de) accedilatildeo particular que a constitui nas

circunstacircncias presentes Uma vez encontrada

esta desempenha dois papeacuteis em seu pensamento

praacutetico serve [1] como a premissa menor do

silogismo praacutetico que incorpora a deliberaccedilatildeo do

agente e [2] como uma especificaccedilatildeo concreta do

fim do agente Em [1] a accedilatildeo conclui o caminho

que desce de um fim universal para suas

ocorrecircncias particulares e assim o entendimento

incorporado na percepccedilatildeo deliberativa que a

apreende concerne agrave aplicaccedilatildeo de um universal

(felicidade agir bem) a particulares (esta accedilatildeo)

Em [2] a accedilatildeo eacute o ponto inicial de uma induccedilatildeo

que avanccedila para um universal a partir da

percepccedilatildeo envolvendo entendimento de

particulares Eacute das ldquoaccedilotildees na vidardquo somos

lembrados que as discussotildees em eacutetica e poliacutetica

ldquose ocupam e derivamrdquo (EN I 3 1095a3-4) e eacute a

habituaccedilatildeo adequada que assegura que

alcancemos as conclusotildees corretas nos causando

prazer e dor Em um aspecto portanto a

felicidade eacute um ponto inicial jaacute que eacute o fim

144

uacuteltimo de toda accedilatildeo Em outro as accedilotildees

particulares que a instanciam satildeo pontos iniciais

uma vez que eacute a partir delas que eacute preenchido um

entendimento da felicidade (universal)130

Aristoacuteteles explica a proposta com uma analogia entre silogismo

discursivo e silogismo praacutetico comparando mesmo (e ateacute chamando) a

prudecircncia que apreende o que eacute uacuteltimo ou particular com o intelecto

(noucircs) que capta o universal (EN VI 9 1142a25) Haveria assim uma

espeacutecie de percepccedilatildeo especificamente eacutetica que levaria agrave apreensatildeo dos

juiacutezos e que vimos natildeo ser a percepccedilatildeo dos sensiacuteveis proacuteprios Eacute uma

questatildeo de referir-se a um processo analiacutetico que no caso de um

triacircngulo por exemplo decomporia a figura ateacute levar agrave apreensatildeo do

triacircngulo reconstruindo-o A imagem deste modo apreendida jaacute permite

que seja explicitado de modo discursivo sendo um particular alguma

coisa uacuteltima Assim quando o filoacutesofo trata nesse ponto do texto (EN

VI 9 1142a27) o ver implica que esse ldquover geralrdquo eacute a apreensatildeo do

triacircngulo como o uacuteltimo ponto da anaacutelise efetuada (WOLF 2010 p

155-156)

Quando na anaacutelise da figura geomeacutetrica foi apreendido o

triacircngulo uacuteltimo elemento constitutivo que pode sofrer anaacutelise tecircm-se

dele em mente uma ldquopercepccedilatildeo geralrdquo e sabe-se que pode ser percebido

em um contexto de fundamentaccedilatildeo Por isso eacute visto como o uacuteltimo

elemento em uma cadeia de argumentaccedilatildeo de fundamentaccedilatildeo Jaacute natildeo

pode mais ser expresso em premissas mas eacute agora objeto do

130 Quanto ao particular e o universal segundo Wolf (2010 p 155) eacute que

ldquoAristoacuteteles acentua que a correta deliberaccedilatildeo se refere ao que a quem quando

e como etc na situaccedilatildeo concreta (assim novamente em 1142b28) Que o

kathacuteheacutekaston eacute pensado aqui no sentido da situaccedilatildeo concreta vem atestado pela

indicaccedilatildeo de que o julgar consiste aqui em uma espeacutecie de aiacutesthēsis (percepccedilatildeo

sentir sensorial ndash 1142a27) tanto quanto pela comparaccedilatildeo da phroacutenēsis com o

noucircs No acircmbito teoacuterico essa eacute a faculdade responsaacutevel pela aquisiccedilatildeo de

conceitos uacuteltimos que jaacute natildeo podem ser explicitados por outros conceitos mas

que soacute podem ainda ser apreendidos Agraves vezes Aristoacuteteles chama a proacutepria

phroacutenēsis de uma espeacutecie de noucircs (1142a25) Isso pode ser esclarecido pelo fato

de ambos referirem-se a algo uacuteltimo (heacutekhaston) o noucircs apreende os conceitos

mais elevados mais abstratos a phroacutenēsis ndash pelo menos onde deve ser

compreendida como aiacutesthēsis ndash apreende o mais concreto A questatildeo decisiva

portanto eacute saber o que tem em mente Aristoacuteteles ao designar a phroacutenēsis como

uma espeacutecie de aiacutesthēsisrdquo

145

pensamento A partir desse ponto eacute possiacutevel questionar se a figura que

se busca eacute um triacircngulo ou um ciacuterculo

Aplicando isso para a deliberaccedilatildeo eacutetica eacute possiacutevel questionar o

quanto a prudecircncia eacute composta por uma percepccedilatildeo geral

questionamento que lemos no passo abaixo

Desde o princiacutepio a analogia deixa claro que a

phroacutenēsis percebe o ldquoconcreto derradeirordquo o que

eacute concreto na situaccedilatildeo individual mas natildeo no

modo de um conhecimento eacutetico intuitivo Ao

contraacuterio deveria apreendecirc-lo em um contexto a

saber como o passo derradeiro em um processo

deliberativo Assim como a anaacutelise geomeacutetrica

reconduz a figura complexa a uma mais simples

de modo que jaacute natildeo possa ser reduzida a

deliberaccedilatildeo eacutetica analisa o conceito de eupraxiacutea

ou de ser-justo ateacute encontrar uma accedilatildeo que jaacute natildeo

remete a outra que podemos antes levar a efeito

imediatamente E como podemos discutir na

anaacutelise geomeacutetrica se eacute o triacircngulo ou outra figura

complexa que se constitui no ponto derradeiro

correto tambeacutem na deliberaccedilatildeo praacutetica podemos

sopesar qual das alternativas de accedilatildeo concretas

possibilitadas pela situaccedilatildeo eacute a correta ou a

melhor tornando-se o conteuacutedo da proaiacuteresis

Desse modo tambeacutem aqui temos a ver com uma

aiacutesthesis ldquogeralrdquo postada em um contexto

racional A proaiacuteresis ou accedilatildeo que deve ser

executada concretamente eacute apreendida como

correta no contexto da deliberaccedilatildeo praacutetica

(WOLF 2010 p 156)

Permanece contudo um problema a boa accedilatildeo natildeo pode ser

analisada como um fim teacutecnico por um processo claro como um ente

geomeacutetrico Se seguirmos o exemplo do triacircngulo transpondo-o para a

accedilatildeo eacutetica natildeo deveriacuteamos pensar que podemos mencionar os passos

para que uma accedilatildeo seja uma boa accedilatildeo O que deveria ser analisado eacute a

circunstacircncia para que ocorra a boa accedilatildeo e diante de tal circunstacircncia

qual eacute a boa accedilatildeo Nesse caso a deliberaccedilatildeo que precede a percepccedilatildeo poderia ser proposta em passos Primeiro o agente deveria esclarecer

qual o fim ou bem constitui o conteuacutedo da virtude moral e que deve ser

alcanccedilado pela accedilatildeo Depois disso deveria explicitar como alcanccedilar tal

bem propondo a circunstacircncia concreta O juiacutezo por sua vez deveria

146

indicar que a accedilatildeo eacute adequada por vaacuterios motivos e aspectos (o que

quem como quando etc) e que se insere na vida do agente em seu

rumo para a eudaiacutemōniacutea por conseguinte a boa accedilatildeo

A percepccedilatildeo relativa agrave prudecircncia e sua concretude poderia ser

entendida por tudo que foi explicado como uma percepccedilatildeo que ldquovecircrdquo a

accedilatildeo que leva um agente a uma boa vida Isso eacute parte do processo de

deliberaccedilatildeo racional articulador das ldquovisotildeesrdquo que se apoiam na empiria

apresenta e analisa as possibilidades de accedilatildeo ateacute o ponto de propor um

projeto de accedilatildeo que com componentes deliberativos vai atingir a forma

que pretende para a boa accedilatildeo Natildeo se trata de um processo que possa ser

decomposto em passos claros como no caso da technḗ mas o que temos

eacute uma busca incerta por um fim sem conteuacutedo preacute-definido

Essas explicaccedilotildees apontam porque a prudecircncia natildeo se direciona

somente para o bem do indiviacuteduo mas para o bem comum Segundo os

Livros II-VI o bem eacute a accedilatildeo bem-sucedida resultante da virtude moral

associada agrave racionalidade praacutetica e quiccedilaacute agrave razatildeo teoacuterica Conforme os

Livros III-VI esse bem deveria ser posto previamente pelo desejo por

uma disposiccedilatildeo que se direcionasse ao bem ou premissa maior da

deliberaccedilatildeo praacutetica Estatildeo envolvidos portanto com o particular e com

o universal como explica Wolf

Ora a faculdade desiderativa estaacute referida agrave razatildeo

as aspiraccedilotildees podem exprimir-se de tal modo que

sejam apreendidas em conceitos podem portanto

adotar a forma de desejos articulados na

linguagem Por si soacute a faculdade desiderativa natildeo

consegue formular um desejo como o desejo de

ser corajoso ou de ser justo Como vimos a

concretizaccedilatildeo daquilo que se deve fazer na

situaccedilatildeo natildeo apenas exige deliberaccedilatildeo Tambeacutem

essa deliberaccedilatildeo soacute poderaacute ser feita se a pessoa jaacute

dispotildee de uma representaccedilatildeo reflexiva da

eupraxiacutea no acircmbito relevante quando a phroacutenēsis

portanto se refere tambeacutem ao fim pois do

contraacuterio a pessoa agente nada teria em que

pudesse se orientar na reflexatildeo sobre o que seria o

melhor modo de realizar a aretḗ na situaccedilatildeo

presente

Aleacutem do mais a representaccedilatildeo impliacutecita do bem

viver contida na aretḗ deve ser implantada por

algueacutem no caraacuteter o qual tem ele proacuteprio uma

representaccedilatildeo reflexiva do direcionamento a ser

seguido na educaccedilatildeo Essa dupla tarefa da aretḗ eacute

147

confirmada pela ponderaccedilatildeo que Aristoacuteteles faz

em relaccedilatildeo agrave poliacutetica E uma vez que tambeacutem a

tarefa da poliacutetica igualmente deve ser

considerada uma forma de bom conselho ou uma

phroacutenēsis (1141b23-1142a10) Nesse contexto

ele acentua que a phroacutenēsis na poliacutetica possui

duas partes a parte legislativa (nomothesiacutea) e a

executiva (politikḗ em sentido estrito) A primeira

eacute a parte diretriz ou ordenadora a segunda a parte

ativa concreta agrave qual estaacute referida a deliberaccedilatildeo

O educador individual igualmente deve ser

considerado como orientador no sentido dessa

dupla particcedilatildeo de tal modo que ele tem uma

representaccedilatildeo de regras em que se explicita a

eupraxiacutea (WOLF 2010 p 158)

Essas consideraccedilotildees indicam que os processos da prudecircncia se

encaminham por meio de accedilotildees dadas em circunstacircncias particulares a

um universal que eacute o bem supremo comum a todos

Os apontamentos acerca da virtude moral da prudecircncia nos levam

a entender que o agente igualmente se torna responsaacutevel pela forma

como suas emoccedilotildees se datildeo ao mundo porque apoacutes formado

moralmente sua capacidade de por-se os fins acaba por tornaacute-lo mais

que senhor de suas accedilotildees eacute agora senhor de seus desejos e da forma

como age e se emociona Embora natildeo escolha a emoccedilatildeo que sente o ato

de pesar razotildees e de por-se o fim acaba no processo de deliberaccedilatildeo por

apresentar a possibilidade de mudar ou de ao menos moderar as

emoccedilotildees conforme o desejo eacute mudado ao longo desse processo Com

isso eacute possiacutevel que um impulso natural venha a se acalmar ao ponderar e

decidir unindo desejo e razatildeo praacutetica mudando raiva em calma ou

diminuindo a intensidade da raiva ou adequando a raiva sentida agrave

circunstacircncia por exemplo Pensamos que isso seja possiacutevel porque a

nosso ver se a alma eacute una como viemos propondo o prudente tem

contato com a uma verdade mais universal que se configura como

eudaiacutemōniacutea como propotildeem os comentadores apresentados tendo uma

visatildeo do que eacute mais geral graccedilas provavelmente agrave sua capacidade de

raciocinar bem que vai aleacutem do acircmbito da accedilatildeo que pode ser

considerada moralmente e da prāxis humana Provavelmente com isso

seja possiacutevel dizer que de certo modo a prudecircncia vecirc o fim a ser

alcanccedilado o melhor fim possiacutevel em uma espeacutecie de percepccedilatildeo que lhe

eacute proacutepria e que aponta para algo mais universal de modo similar agrave accedilatildeo

da razatildeo teoacuterica No homem virtuoso bem formado moralmente eacute

148

preciso saber o que seja esse bom fim eacute preciso desejar corretamente o

fim e se emocionar corretamente para que haja accedilotildees adequadas que

levaratildeo a tal fim Por conseguinte pensamos que ao menos no virtuoso a

prudecircncia que lhe eacute posse real e natildeo um conselho vindo de fora

implique de certo modo em conseguir distinguir o bom fim para

encadear o processo deliberativo Esse tipo de capacidade eacute conseguida

com a boa conjunccedilatildeo da razatildeo praacutetica com o lado natildeo racional da alma

humana formando a virtude em sentido estrito que na melhor das

hipoacuteteses capacita o homem bem educado agrave emoccedilatildeo adequada como

veremos no ponto seguinte

5 Virtude natural e virtude em sentido estrito

No final Livro VI capiacutetulo 13 da EN Aristoacuteteles procede a novo

exame da natureza da virtude Nessa parte do texto o filoacutesofo estabelece

diferenccedilas entre virtude moral em sentido estrito e virtude natural (aretḕ

physikeacute ndash aretḕ ethikḗ) embora ambas se relacionem Comeccedila a

discussatildeo observando o fato de todos admitirem que aqueles que

apresentam certo caraacuteter o tecircm de certo modo por natureza Pensa no

entanto que uma investigaccedilatildeo eacutetica procura a virtude moral em sentido

estrito e que seja possuiacuteda de um certo modo Aristoacuteteles considera que

se tais disposiccedilotildees naturais natildeo forem acompanhadas pela razatildeo se

tornaratildeo nocivas embora ldquoao contraacuterio uma vez que a razatildeo veio

entatildeo no domiacutenio da accedilatildeo moral eacute uma mudanccedila radical e a disposiccedilatildeo

que natildeo tinha ateacute aqui senatildeo uma semelhanccedila com a virtude seraacute agora

virtude em sentido estritordquo (EN VI 13 1144b12-14)131 Assim como na

capacidade opinante da alma haacute dois tipos de qualidade a habilidade e a

prudecircncia na funccedilatildeo moral (tograve ethikoacuten pelo qual leia-se tograve orektikoacuten)

existem dois tipos de virtude natural e em sentido estrito

A virtude propriamente dita contudo natildeo se produz sem

prudecircncia porque virtude em sentido estrito eacute conforme a regra justa e

a regra justa eacute a prudecircncia ou a disposiccedilatildeo segundo a prudecircncia Mais

ainda natildeo eacute apenas disposiccedilatildeo conforme a regra justa mas intimamente

131 Na nota 1 (2012 p 334) Tricot afirma que nesse caso no lugar de noucircs

pode ser lido phroacutenēsis e que por parte opinante entenda-se tograve logistikoacuten No

original ἐὰν δὲ λάβῃ νοῦν ἐν τῷ πράττειν διαφέρει ἡ δ ἕξις ὁμοία οὖσα τότ

ἔσται κυρίως ἀρετή

Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs a partir da traduccedilatildeo francesa feita por Tricot

No Original ἐὰν δὲ λάβῃ νοῦν ἐν τῷ πράττειν διαφέρει ἡ δ ἕξις ὁμοία οὖσα

τότ ἔσται κυρίως ἀρετή

149

ligada agrave regra justa (EN VI 13 1144b26-27)132 portanto eacute impossiacutevel

ser um homem de bem em sentido proacuteprio sem a phroacutenēsis e com ela

todas as virtudes satildeo dadas Essa concepccedilatildeo da virtude moral eacute proposta

porque natildeo haacute escolha deliberada sem a prudecircncia e provavelmente

natildeo haacute prudecircncia sem as demais virtudes das demais capacidades

racionais A virtude moral ordena o fim e a prudecircncia leva a completar

as accedilotildees que conduzem a este (EN VI 13 1145a4-6)133

Consideramos que as virtudes do intelecto satildeo portanto

imprescindiacuteveis a uma vida feliz porque sem as atividades que facultam

o homem natildeo poderia ser pensado como desempenhando sua funccedilatildeo

proacutepria Embora valha relembrar que ldquoum tipo secundaacuterio que eacute a vida

segundo o outro tipo de virtude eacute feliz pois as atividades que satildeo

conformes a ela satildeo puramente humanasrdquo (EN X 8 1178a9-11)134 Este

outro tipo de excelecircncia como vimos acima eacute a virtude moral que

busca segundo interpretaccedilatildeo de Tricot uma felicidade relacionada agrave

vida dos homens na poacutelis (2012 nota 3 p 551-552) Por isso os atos de

virtude moral satildeo tomados nas relaccedilotildees com os outros e em relaccedilatildeo agraves

emoccedilotildees sendo ligados igualmente agrave prudecircncia A proximidade dessas

virtudes com as emoccedilotildees aconteceraacute no composto corpoalma fazendo

delas excelecircncias especialmente humanas como Tricot observa

[] as virtudes morais satildeo ligadas agrave prudecircncia e a

prudecircncia agraves virtudes morais e por um outro lado

elas satildeo ligadas agraves paixotildees pois prudecircncia e

virtudes morais se aplicam igualmente a modificaacute-

las Por consequecircncia todas essas virtudes

incluindo a prudecircncia satildeo realmente as virtudes

do composto humano (TRICOT 2012 nota 4 p

552-553 traduccedilatildeo nossa)

132Assim explica Tricot (2012 nota 3 p 335) a virtude eacute com razatildeo e segundo

a razatildeo 133 Reeve (2013 p 15) explica que uma vez que o entendimento faz

compreender o alvo ele natildeo eacute indiferente ao fim da vida humana ele vecirc o que

tal alvo eacute e assim nossa virtude natural ou habituada eacute transformada em virtude

total e o agente se torna completamente bom (EN VI 13 1144b1-32) Ao mesmo

tempo as virtudes naturais que podem ser possuiacutedas em separado se conectam

em um soacute estado pois todas satildeo requeridas pela sabedoria praacutetica e a sabedoria

praacutetica eacute requerida por ela (EN VI 13 1144b30-1145a2) 134 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Δευτέρως δ ὁ κατὰ τὴν ἄλλην ἀρετήν αἱ γὰρ κατὰ ταύτην

ἐνέργειαι ἀνθρωπικαί

150

Com a virtude natural ou seja com a disposiccedilatildeo natildeo

consolidada135 pelo o auxiacutelio da virtude intelectual da prudecircncia o

agente eacute capaz de fazer o que deve ser feito mas sem dispor das razotildees

para tanto Natildeo eacute capaz de cumprir plenamente a funccedilatildeo proacutepria do

homem pois natildeo tem por si e em si mesmo suas capacidades aniacutemicas

bem ajustadas favorecendo as accedilotildees que seriam moralmente corretas e a

eudaiacutemōniacutea Mas quando o agente desenvolve a virtude proacutepria ou em

sentido estrito tem sua virtude moral acompanhada pela prudecircncia e

muito provavelmente pela razatildeo como um todo e por isso faz o que

deve ser feito segundo boas razotildees136 O ato de escolher e agir segundo

suas proacuteprias boas razotildees eacute aquilo que podemos entender como virtude

completa e indispensaacutevel agrave vida feliz mas a virtude moral embora

possa ser favorecida por certo traccedilo natural soacute vem ao homem pelo

haacutebito

Por conseguinte pudemos perceber quatildeo proacuteximas estatildeo as

virtudes morais e as intelectuais bem como entendemos a necessidade

de colaboraccedilatildeo entre estas a fim de que se viva bem Eacute esse acordo que

permite a Aristoacuteteles propor uma virtude completa no singular e que a

nosso ver permitiraacute que as exigecircncias do filoacutesofo para a educaccedilatildeo ou

habituaccedilatildeo moral das emoccedilotildees sejam efetivadas

Diante disto resta pesquisarmos as possibilidades e os meios de

se executar essa formaccedilatildeo emocional Isso designado ainda nos caberaacute

ressaltar os instrumentos que podem facilitar o acordo entre ambas as

capacidades da alma Eacute preciso entender melhor o papel da razatildeo na

vida emocional moral jaacute que Aristoacuteteles confere ao racional uma

importacircncia semelhante ou ainda maior que agraves instacircncias natildeo racionais

da alma humana Como estivemos a salientar a retidatildeo necessaacuteria aos

desejos e agraves emoccedilotildees falta apresentar ao menos uma possibilidade para

tal retidatildeo Por isso na sequecircncia deveremos apreciar as formas

disponiacuteveis de educaccedilatildeo moral das emoccedilotildees seguindo em parte o

135Possivelmente estaacute em jogo a diferenccedila entre heacutexis disposiccedilatildeo que se tornou

fixa e diaacutethesis estado ou disposiccedilatildeo ainda maleaacutevel (ZINGANO 2008 p

122) Na EE se fala mesmo da melhor disposiccedilatildeo (II 1 1218b38 1219a1

1219a3 1219a32) 136Conferir Poliacutetica 1260a15-19 a respeito do modo de operar as virtudes O

passo apresenta tais modos em relaccedilatildeo aos escravos agraves mulheres e agraves crianccedilas

sendo que em nenhuma dessas condiccedilotildees se apresentaria a virtude perfeita

Sobre o ato de escolher conforme agraves boas razotildees tambeacutem se pode conferir

Magna Moralia 1200a3-4

151

modelo de educaccedilatildeo que poder ser aplicado aos desejos e que eacute

explicado por Aggio (2017 no prelo) Essa educaccedilatildeo seraacute possibilitada

pelos haacutebitos e formaraacute juntamente com a virtude intelectual aquilo

que no Livro VI da EN Aristoacuteteles chama de ldquovirtude em sentido

estritordquo

152

153

Capiacutetulo III

A racionalidade das emoccedilotildees

1 Eudaiacutemōniacutea vida dedicada agrave atividade racional (EN X)

Ao longo da EN Aristoacuteteles parece dar destaque especial agrave

participaccedilatildeo da razatildeo na vida que considera a melhor mas mesmo na

vida cabiacutevel agrave maioria dos homens o regime do loacutegos natildeo eacute posto de

lado Por conseguinte a vida feliz proposta como ativa e em acordo com

o princiacutepio racional seria dedicada agrave contemplaccedilatildeo conforme certas

propostas do Livro X Nesse ponto da tese fazemos um apanhado

geneacuterico sobre a eudaiacutemōniacutea nesse Livro com as devidas remissotildees ao

Livro I para ressaltar a aparente divergecircncia entre natildeo racional e

racional contudo temos ciecircncia de que a questatildeo eacute mais densa e por

isso natildeo eacute nossa pretensatildeo resolver os problemas relativos agrave felicidade

tampouco defini-la Temos ciecircncia igualmente da querela

contemporacircnea entre as leituras dominantes e inclusivistas sobre o bem

supremo como indicamos no Capiacutetulo I mas a despeito disso nos

parece que o papel da razatildeo na vida feliz sempre eacute preservado por

Aristoacuteteles embora este natildeo minore outros aspectos componentes do

humano Observaremos o tema portanto na medida em que pode nos

auxiliar a resolver nossa questatildeo e comeccedilaremos considerando a

proposta de que a eudaiacutemōniacutea se confunde com a vida contemplativa

embora tenhamos ressaltado anteriormente que tal ideia natildeo apresenta o

real pensamento de Aristoacuteteles sobre o assunto mesmo que o filoacutesofo

escreva linhas como as que seguem abaixo

Mas se a felicidade eacute uma atividade conforme agrave

virtude eacute racional que seja atividade conforme a

mais alta virtude e esta seraacute a virtude da parte a

mais nobre de noacutes Que seja portanto o intelecto

ou qualquer outra faculdade que seja observada

como possuindo por natureza o comando e a

direccedilatildeo e como tendo o conhecimento das

realidades belas e divinas que aleacutem disso esse

elemento seja ele mesmo divino ou somente a

parte mais divina de noacutes eacute o ato desta parte

segundo a virtude que lhe eacute proacutepria que seraacute a

felicidade perfeita Ora que essa atividade seja

teoreacutetica eacute o que temos dito (EN X 7 1177a12-

154

18)137

Aristoacuteteles pensa que essas afirmaccedilotildees parecem estar em acordo

com a verdade Por isso elenca oito motivos para concordar com as

propostas que definem a melhor vida como aquela em contemplaccedilatildeo

Primeiro a atividade mencionada eacute a mais alta porque o intelecto eacute a

melhor parte que temos e os objetos do intelecto teoacuterico satildeo os mais

altos dos objetos conheciacuteveis Segundo seria a eneacutergeia mais contiacutenua

pois podemos nos deixar agrave contemplaccedilatildeo de uma forma menos

interrompida do que a qualquer outra atividade Terceiro pensa-se que o

prazer intelectual deve ser componente da felicidade jaacute que a atividade

segundo a sabedoria eacute reconhecidamente a mais agradaacutevel das

atividades conformes agrave virtude A filosofia conteacutem prazeres

maravilhosos no que toca agrave pureza e agrave estabilidade por isso seria

normal se a alegria de conhecer fosse uma tarefa mais agradaacutevel que a

procura pelo conhecimento Quarto aquilo que eacute chamado lsquoplena

suficiecircnciarsquo pertenceria ao maacuteximo agrave atividade contemplativa Se eacute

verdade que o saacutebio o justo e todo homem detentor de virtude(s)

precisariam das coisas necessaacuterias agrave vida uma vez que estivessem

suficientemente providos de tais bens viveriam bem dedicando-se agrave

contemplaccedilatildeo teoacuterica O saacutebio ao contraacuterio dos outros virtuosos se

fosse deixado a si mesmo teria a capacidade de contemplar e seria

mesmo mais saacutebio se contemplasse nesse estado de vantagem Eacute claro

contudo que mesmo ao saacutebio eacute preferiacutevel viver na companhia de seus

semelhantes embora este seja o homem que mais baste a si mesmo

Quinto esse tipo de atividade descrito pareceria o uacutenico desejado por si

mesmo Por isso natildeo produziria nada aleacutem do ato de contemplar ao

contraacuterio das atividades praacuteticas Sexto a felicidade parece consistir em

lazer pois o homem soacute se satisfaz com uma vida ativa que busca o lazer

e natildeo vai agrave guerra com outra intenccedilatildeo que natildeo a paz Ateacute mesmo as

atividades poliacuteticas tecircm outro fim em vista e natildeo somente o lazer

buscam satisfazer os interesses gerais e a sauacutede da cidade natildeo sendo

desejaacuteveis por si mesmas enquanto a atividade do intelecto ou

137 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Εἰ δ ἐστὶν ἡ εὐδαιμονία κατ ἀρετὴν ἐνέργεια εὔλογον

κατὰ τὴν κρατίστην αὕτη δ ἂν εἴη τοῦ ἀρίστου εἴτε δὴ νοῦς τοῦτο εἴτε ἄλλο τι

ὃ δὴ κατὰ φύσιν δοκεῖ ἄρχειν καὶ ἡγεῖσθαι καὶ ἔννοιαν ἔχειν περὶ καλῶν καὶ

θείων εἴτε θεῖον ὂν καὶ αὐτὸ εἴτε τῶν ἐν ἡμῖν τὸ θειότατον ἡ τούτου ἐνέργεια

κατὰ τὴν οἰκείαν ἀρετὴν εἴη ἂν ἡ τελεία εὐδαιμονία ὅτι δ ἐστὶ θεωρητική

εἴρηται

155

contemplativa eacute prazerosa e completa ou perfeita (EN X 7 1177b19-26)

Seacutetimo uma vida desse tipo contudo seria demais para a condiccedilatildeo

humana pois natildeo se viveria como um homem mas segundo um

elemento divino que estivesse presente em noacutes Tanto quanto esse

elemento fosse superior ao composto humano sua atividade seria

superior agravequela do outro tipo de virtude (EN X 7 1177b28) ldquoSe

portanto o intelecto eacute algo de divino por comparaccedilatildeo com o homem a

vida segundo o intelecto eacute igualmente divina comparada com a vida

humanardquo (EN X 7 1177b30-31)138 por isso natildeo se deveria escutar

conselhos daqueles que os datildeo pois satildeo conselhos vindos de homens

sobre as coisas humanas O homem deveria se imortalizar na medida do

possiacutevel e fazer de tudo para viver segundo sua parte mais nobre

porque ldquomesmo que essa parte seja pequena em sua massa por sua

potecircncia e seu valor ela passa em muito todo o restordquo (EN X 7 1178a1-

2)139 Em oitavo lugar cada homem se identificaria com essa parte por

ser fundamental em seu ser e por ser a melhor sendo estranho que natildeo

concordasse com a vida que lhe eacute proacutepria mas com qualquer outra

porque o que eacute proacuteprio a cada coisa eacute o que lhe haacute de mais excelente e

agradaacutevel ldquoE para o homem esta seraacute a vida segundo o intelecto se eacute

verdade que o intelecto eacute no mais alto grau o proacuteprio homem Essa vida

eacute portanto igualmente a mais felizrdquo (EN X 7 11786a6-8140)

Nosso estudo precisa questionar todavia a imponecircncia desse tipo

de postura Embora natildeo seja interesse da tese apresentada definir qual

dos usos da razatildeo eacute melhor que o outro o praacutetico ou o teoacuterico

estivemos a defender a existecircncia de uma excelecircncia para cada uma das

(sub)capacidades racionais destacadas por Aristoacuteteles Todavia

pensamos ser indiscutiacutevel que um homem feliz natildeo possa prescindir do

uso praacutetico de sua razatildeo justamente pelo fato de ser um homem e natildeo

outro tipo de ser sendo que tal uso eacute tambeacutem indiscutivelmente

envolvido com as emoccedilotildees Em contrapartida ao lidarmos com eacutetica e

com as accedilotildees boas moralmente estivemos o tempo todo a tratar daquilo

que no homem se apresenta como natildeo racional mas observamos ao

138 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original εἰ δὴ θεῖον ὁ νοῦς πρὸς τὸν ἄνθρωπον καὶ ὁ κατὰ τοῦτον

βίος θεῖοςπρὸςτὸνἀνθρώπινονβίον 139 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original εἰ γὰρ καὶ τῷ ὄγκῳ μικρόν ἐστι δυνάμει καὶ τιμιότητι πολὺ

μᾶλλον πάντων ὑπερέχει 140 Idem καὶ τῷ ἀνθρώπῳ δὴ ὁ κατὰ τὸν νοῦν βίος εἴπερ τοῦτο μάλιστα

ἄνθρωπος οὗτος ἄρα καὶ εὐδαιμονέστατος

156

longo do estudo anteriormente apresentado a respeito da boa medida nas

emoccedilotildees que haacute sempre a presenccedila da racionalidade mesmo quando

tratamos da excelecircncia do natildeo racional que pede accedilatildeo

Por exemplo a junccedilatildeo da virtude moral com a virtude intelectual

da prudecircncia mostrou-se imprescindiacutevel sendo mesmo condiccedilatildeo sine

qua non para a boa forma das emoccedilotildees na vida moral e se apresentou

como aquilo que realmente caracteriza o homem na eacutetica de Aristoacuteteles

e seu modo de tocar a vida que lhe eacute peculiar141 O filoacutesofo retira de suas

divindades mas tambeacutem das bestas a possibilidade de ver apaziguados

em si esses elementos aparentemente diacutespares Tal possibilidade de

conciliaccedilatildeo entre a capacidade racional e capacidade natildeo racional na

alma humana permitiu ateacute o momento que conjugaacutessemos vaacuterios

campos de conhecimento descritos pelo filoacutesofo como destinados ao

tratamento de questotildees especiacuteficas Por isso dedicamos esse terceiro

Capiacutetulo de nosso estudo agrave observaccedilatildeo das possibilidades das relaccedilotildees

da capacidade racional com a capacidade natildeo racional jaacute que Aristoacuteteles

frisa demasiadamente que a melhor vida eacute atrelada agrave razatildeo

Tal anaacutelise seraacute necessaacuteria porque sejam quais forem os motivos

adotados pelo filoacutesofo o fato eacute que o Livro X da EN nos apresenta a

proposta de que a felicidade perfeita eacute uma certa atividade

contemplativa Todavia entendemos que ainda que estabelececircssemos a

vida contemplativa como melhor forma de vida natildeo poderiacuteamos abrir

matildeo de especificar o papel das emoccedilotildees nem neste nem naquele que

muitos consideram um segundo melhor tipo de vida a vida poliacutetica No

entanto ressaltamos que essa natildeo eacute nossa postura jaacute que nossas leituras

de Aristoacuteteles nos levam a pensar que uma vida contemplativa natildeo

aconteceria em total isolamento ou sem os bens elementares agrave

manutenccedilatildeo de uma existecircncia bem vivida entre os quais Aristoacuteteles

parece incluir nos livros VIII IX e mesmo no Livro X da EN as

relaccedilotildees de amizade Mesmo tendo exposto nossa duacutevida quanto agrave

validade do pensamento que defende a pura contemplaccedilatildeo teoacuterica como

representante legiacutetimo das intenccedilotildees do filoacutesofo devemos consideraacute-lo

141 Sobre o assutno Reeve escreveu ldquoA vida que consiste em atividade poliacutetica

sem oacutecio em acordo com a sabedoria praacutetica e com as virtudes de caraacuteter eacute uma

vida completamente mais feliz quando ndash porque ela eacute levada em uma cidade

com a melhor constituiccedilatildeo idealmente situada e provida com bens externos ndash

acontece alcanccedilando o melhor tipo de felicidade para quem a possui Essa vida

complexa ndash parte praacutetica parte contemplativa ndash eacute a melhor vida humana que a

sabedoria praacutetica que eacute o melhor tipo de conhecimento praacutetico pode organizarrdquo

(REEVE 2013 p 18)

157

e buscar perceber em que medida natildeo destoa das propostas

anteriormente levantadas Natildeo esqueccedilamos a ressalva do proacuteprio

Aristoacuteteles em questotildees de eacutetica eacute a experiecircncia que tem a palavra final

Por isso eacute preciso cotejar as conclusotildees que forem racionalmente tiradas

com as coisas que a vida apresenta pois tais coisas estando em acordo

com as conclusotildees tornam-se aceitaacuteveis

Com isso confirmamos a proposta de Aristoacuteteles porque afirma

que a maioria dos homens natildeo preza o racional142 embora ao descrever

a razatildeo como o que haacute de melhor no homem faccedila-nos entender que eacute

preciso tratar do papel do loacutegos na vida moral Como vimos natildeo haacute

virtude moral sem a participaccedilatildeo do intelecto mesmo que essa virtude

seja consolidada pelos haacutebitos e que este intelecto seja praacutetico e natildeo haacute

virtude moral nem boa vida sem uma educaccedilatildeo para as emoccedilotildees Tal

vida como jaacute propusemos somente seraacute possiacutevel na medida em que

pudermos ter nossas emoccedilotildees e nossa razatildeo em acordo o que eacute

viabilizado pela proposta de impossibilidade de uma vida puramente

dada ao racional teoacuterico impossibilidade exposta entre os motivos do

filoacutesofo para que a vida puramente contemplativa seja feliz (EN X 7

1177b26-30) Ainda precisamos confirmar como se datildeo as

possibilidades da racionalidade das emoccedilotildees aristoteacutelicas e os

instrumentos que interferem no sentir emoccedilatildeo e que permitem que esta

seja ao menos mudada favorecendo a virtude moral e a virtude como

um todo Sendo nosso objetivo explicitar o que permite e facilita a

participaccedilatildeo do natildeo racional na razatildeo praacutetica eacute forccediloso que doravante

estudemos mais detidamente a relaccedilatildeo desta razatildeo com as emoccedilotildees ou

seja o se emocionar racionalmente

2 A racionalidade das emoccedilotildees interpretaccedilotildees desde EN I agraves luzes

do De Anima

Os argumentos acima apresentam uma postura bastante favoraacutevel

agrave vida contemplativa como sendo a vida feliz poreacutem ao longo de nosso

estudo apresentamos vaacuterias possibilidades dentro do proacuteprio texto da

EN para suspeitar disso Mesmo o Livro X como acabamos de ressaltar

potildee em duacutevida a possibilidade de um homem ainda que fosse filoacutesofo

totalmente deixado agrave pura contemplaccedilatildeo teoacuterica Cremos que este tipo

de afirmaccedilatildeo (ou de questionamento) estabelece mais que a proposta de

142 Ou como propotildee Boyle (2012 p 31) muitos dos homens natildeo chegam a

alcanccedilar essa capacidade (ou capacidades) ao menos natildeo em sua melhor forma

pensamos

158

Kenny apresentada demasiado sucintamente no Capiacutetulo I o elo entre os

dois tratados sobre a felicidade Igualmente reforccedila a possibilidade de

defendermos nossa tese o homem eacute um composto de corpo e alma que

soacute realiza sua funccedilatildeo proacutepria na poacutelis mas para tanto precisa

harmonizar suas emoccedilotildees com a totalidade de sua razatildeo gerando

emoccedilotildees educadas O Livro X trecho X 7 1177b26-30 que parece por

em xeque todas as afirmaccedilotildees que tendem agrave elevaccedilatildeo da vida

contemplativa ao status de eudaiacutemōniacutea permitiraacute como pretendemos

demonstrar reforccedilar a defesa de nossa tese graccedilas agrave ligaccedilatildeo que

estabelece tanto com o argumento da funccedilatildeo apresentado em EN I

quanto com a proposta especificada em EN I 13 a respeito da capacidade

do desiderativo ouvir e participar da razatildeo desejando e se emocionando

de um jeito racional Para confirmar tais interpretaccedilotildees evocaremos o

DA quando necessaacuterio jaacute que esse tratado igualmente apresenta uma

proposta de homem como composto por corpo e alma sendo somente

tal composto capaz de sofrer afecccedilotildees do tipo das emoccedilotildees (DA I 4

408b18 et seq) e da forma como as sofre143 Por isso tambeacutem quando

necessaacuterio retomaremos algumas das propostas escritas a partir dos dois

tratados e que foram mencionadas nos demais capiacutetulos

Segundo nosso entendimento o Livro I da EN acompanhado de

outros trechos supramencionados da mesma obra nos apresenta uma

perspectiva acerca do que seja o homem No Capiacutetulo I estudamos uma

concepccedilatildeo de homem forjada a partir das distinccedilotildees que representaram o

ser humano como diferente dos demais animais graccedilas agrave natureza

proacutepria agrave sua alma dotada de razatildeo e igualmente da capacidade que tal

alma apresenta de conjugar em si capacidades que muitos pensaram ser

totalmente inconciliaacuteveis Isso eacute o que podemos entender ao lermos em

EN I 13 que a alma tem uma ldquoparterdquo racional e que igualmente apresenta

algo contraacuterio agrave razatildeo que lhe resiste e faz frente mas na sequecircncia do

texto o tom da discussatildeo desse assunto eacute suavizado dizendo que nos

homens com certos tipos de disposiccedilotildees de caraacuteter essa tal capacidade

ambiacutegua ldquofala a respeito de todas as coisas com a mesma voz que o

princiacutepio racionalrdquo (EN I 13 1102b28144) Vimos essas assertivas serem

introduzidas no tratado a fim de permitir a discussatildeo da virtude moral

143 Boyle (2012 p 21 traduccedilatildeo nossa) explica que um animal como o homem

racional ldquoeacute capaz natildeo somente de ser ter e fazer mais que uma criatura natildeo

racional mas de ser o sujeito de atribuiccedilotildees do ser ter e fazer num sentido

distintivordquo 144Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original πάντα γὰρ ὁμοφωνεῖ τῷ λόγῳ

φαίνεται δὴ καὶ τὸ ἄλογον διττόν

159

em cada um de seus tipos que existe apenas devido agraves duas capacidades

elementares na alma humana diferenciando novamente o homem dos

demais animais que nem sempre apresentam uma capacidade aniacutemica

racional

Com essas consideraccedilotildees percebemos em Aristoacuteteles e

confirmamos com apoio em alguns comentaacuterios como os de Nussbaum

Korsgaard Reeve Boyle e Sorabji o desenho de uma figura humana

dotada de uma funccedilatildeo proacutepria (como tudo mais que existe) sendo esta

funccedilatildeo adequada agrave alma caracteriacutestica agrave espeacutecie Agora vale reforccedilar tal

interpretaccedilatildeo com uma visita ao DA pois seu texto confirmaraacute nossas

intenccedilotildees acerca do caraacuteter antropoloacutegico esboccedilado pela EN O homem

descrito pelo tratado da alma confirmaraacute os traccedilos indicados pelo texto

eacutetico em momentos como o citado abaixo

O seguinte absurdo acontece tanto nesta como na

maioria das discussotildees sobre a alma elas

acomodam a alma no corpo nada definindo em

acreacutescimo sobre a causa e o modo como o corpo

se manteacutem Todavia isso parece necessaacuterio pois

devido a esta comunhatildeo um faz e o outro sofre

um eacute movido e o outro move e nada disso ocorre

casualmente a um e a outro (DA I 3 407b13-19145)

Esse posicionamento vale lembrar traz reforccedilo agrave importacircncia da

discussatildeo das emoccedilotildees consideradas entre as afecccedilotildees aniacutemicas

expressas pelo corpo seja por meio de movimentos de certas partes

suas seja com accedilotildees cometidas deliberadamente ou indeliberadamente

trazendo a responsabilidade ou isenccedilatildeo moral bem como a

voluntariedade agraves accedilotildees solicitadas pelas afecccedilotildees que satildeo as emoccedilotildees e

os desejos Esse tipo de interpretaccedilatildeo pode ser adotado a partir dos dois

tratados ora estudados a comeccedilar pela proposta da alma que em EN I 13

resultou na distinccedilatildeo das virtudes em intelectuais e morais discussatildeo

estendida ateacute o Livro VI da EN bem como apresentada em trechos do

DA como o passo I 4 408a34-b8 no qual lemos que as emoccedilotildees satildeo

vindas de fora que movimentam o corpo (por locomoccedilatildeo ou alteraccedilatildeo) e

145 Traduccedilatildeo de Maria Cecilia Gomes dos Reis (2006) no original ἐκεῖνο δὲ

ἄτοπον συμβαίνει καὶ τούτῳ τῷ λόγῳ καὶ τοῖς πλείστοις τῶν περὶ ψυχῆς

συνάπτουσι γὰρ καὶ τιθέασιν εἰς σῶμα τὴν ψυχήν οὐθὲν προσδιορίσαντες διὰ

τίν αἰτίαν καὶ πῶς ἔχοντος τοῦ σώματος καίτοι δόξειεν ἂν τοῦτ ἀναγκαῖον

εἶναι διὰ γὰρ τὴν κοινωνίαν τὸ μὲν ποιεῖ τὸ δὲ πάσχει καὶ τὸ μὲν κινεῖται τὸ δὲ

κινεῖ τούτων δ οὐθὲν ὑπάρχει πρὸς ἄλληλα τοῖς τυχοῦσιν

160

que o homem o faz ldquocom a almardquo A indissociabilidade entre corpoalma

leva ao fato jaacute mencionado de que um faz e o outro sofre um move e

outro eacute movido

O homem sendo entatildeo composto de corpo e alma somente se

emociona devido a esse seu aspecto (DA I 1 403a16 et seq) ldquoE por isso

supotildeem corretamente aqueles que tecircm a opiniatildeo de natildeo existir alma sem

corpo e tampouco ser a alma um certo corpo pois ela natildeo eacute corpo mas eacute

algo do corpo e por isso subsiste no corpo e em um corpo de tal tipordquo

(DA II 3 414a19-22146) Essas ideias servem como reforccedilo agrave EN quando

este texto apresenta o homem como animal poliacutetico dotado de funccedilatildeo

proacutepria a eudaiacutemōniacutea A alma una que defendemos se torna condiccedilatildeo

para que tal funccedilatildeo se realize de modo pleno Por isso repetimos

somente em uma poacutelis o homem pode desenvolver todas as suas

potencialidades de alma ou a maior parte delas pois somente a poacutelis

fornece o indispensaacutevel ao bom funcionamento da alma A

indissociabilidade do corpo e da alma humana (DA I 1 403a3-15) e de

suas capacidades dentro de uma soacute e mesma alma (DA I 4 408b18 et

seq) nos levou a pensar e afirmar a unidade da alma e igualmente do

desejo a fim de que o homem completasse sua funccedilatildeo que entendemos

ser realizaacutevel apenas mediante agrave boa relaccedilatildeo das capacidades aniacutemicas

elementares Aleacutem disso vimos que a poacutelis eacute o ambiente que daacute

condiccedilotildees para desenvolver e coordenar as virtudes necessaacuterias para a

vida considerada feliz

Voltemos ainda um instante agrave EN I 13 e agrave proposta de uma

capacidade racional da alma e uma capacidade natildeo racional sendo que

nesta uacuteltima eacute demasiado importante agrave presente investigaccedilatildeo sua

possibilidade de ouvir a razatildeo o que nos levou a entender melhor as

possibilidades de mudanccedilas nasdas emoccedilotildees Essas variaccedilotildees satildeo

necessaacuterias agrave vida feliz aleacutem de nos ajudar a entender melhor a postura

de Aristoacuteteles acerca da relaccedilatildeo corpoalma Ao definir a alma a partir

das capacidades que faculta ao corpo desempenhar (DA II 2 413a20-25)

Aristoacuteteles permite entender o homem como se enquadrando naquela

descriccedilatildeo de todo orgacircnico vivificado por uma alma e dotado de um

certo nuacutemero de capacidades que iriam como vimos desde a percepccedilatildeo

sensiacutevel ateacute a elaboraccedilatildeo mais fina e sofisticada de raciociacutenios a respeito

das coisas imutaacuteveis (DA II 2 413b1-12)

146 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original καὶ διὰ

τοῦτο καλῶς ὑπολαμβάνουσιν οἷς δοκεῖ μήτ ἄνευ σώματος εἶναι μήτε σῶμά τι

ἡ ψυχή σῶμα μὲν γὰρ οὐκ ἔστι σώματος δέ τι καὶ διὰ τοῦτο ἐν σώματι

ὑπάρχει καὶ ἐν σώματι τοιούτῳ

161

A alma propusemos no Capiacutetulo I seria algo uno com o

exerciacutecio de vaacuterias capacidades que a constituiriam Por conseguinte

para as capacidades serem adequadamente exercidas a alma precisa da

harmonia indicada em EN I 13 no DA I e ao longo destes tratados que

indicam o caraacuteter indissociaacutevel das capacidades natildeo haacute desejo e emoccedilatildeo

sem percepccedilatildeo sensiacutevel e natildeo haacute imaginaccedilatildeo e pensamento sem os

outros dois O que vem do mundo emociona e faz pensar e agir mas

como vimos em Capiacutetulo anterior eacute preciso pensar e agir bem a fim de

viver uma vida feliz Natildeo haacute possibilidade de felicidade nos termos de

Aristoacuteteles sem aquela chamada virtude completa que entendemos ser

a comunhatildeo perfeita da virtude intelectual e da moral e portanto das

duas capacidades elementares exercitadas em seu melhor O acordo eacute

possibilitador da eudaiacutemōniacutea porque a eudaiacutemōniacutea na vida que

defendemos eacute impossiacutevel sem eupraxiacutea Por esses motivos devemos dar

continuidade agraves discussotildees que aparecem no iniacutecio dos dois tratados e

observar outros pontos que permitem confirmar nossas teorias

2 a) Um quecirc ou o quecirc de racionalidade nas emoccedilotildees

A ideia do homem como composto de corpo e alma que faz e

sofre accedilotildees solicitadas pelas paacutethē ouvintes ou natildeo das sugestotildees da

razatildeo praacutetica deve ser defendida em nossa pesquisa porque busca

caracterizar as emoccedilotildees como elementos eacuteticos cruciais agrave vida feliz O

que reforccedila essa proposta eacute a identificaccedilatildeo de um certo nuacutemero de

termos aplicados geralmente a operaccedilotildees concernentes agraves capacidades

racionais ou que levam ao exerciacutecio de tais capacidades mas indicando

a constituiccedilatildeo das emoccedilotildees ou implicadas com as emoccedilotildees educadas

Esses termos aparecem quando (ou especialmente quando) se trata das

virtudes morais particulares ou concretas bem como da definiccedilatildeo de

diversas emoccedilotildees (Rhet II) Entendemos que assim seja graccedilas agrave ligaccedilatildeo

de interdependecircncia entre as capacidades aniacutemicas mencionada

explicitamente em DA (II 4 414b33 et seq) conferindo unidade agrave alma

humana Essa ligaccedilatildeo possibilita a participaccedilatildeo do desiderativo na razatildeo

praacutetica e a boa accedilatildeo proposta confirmada pela afirmaccedilatildeo de Boyle

(2012 p 23-31) que pensa a racionalidade como um conjunto de capacidades que permitem ao homem fazer ou no caso se emocionar

da forma como se emociona

Por isso julgamos conveniente apreciar sucintamente em nosso

estudo algumas capacidades intelectuais que possam constituir a forma

como nos emocionamos ou mesmo que possam influenciar a mudanccedila

162

nas emoccedilotildees e a mudanccedila de uma emoccedilatildeo em outra Comeccedilaremos com

a percepccedilatildeo sensiacutevel iniacutecio que se justifica porque em Aristoacuteteles eacute com

ela que se inicia a possibilidade de conhecimento sobre o mundo147 e eacute

com ela que as emoccedilotildees parecem ter iniacutecio Seguiremos com breve

estudo da imaginaccedilatildeo considerada um elemento do pensamento

inexistente sem o corpo mas que sempre aparece associada agraves

descriccedilotildees diversas das emoccedilotildees que analisamos ateacute agora Apoacutes

mencionaremos tipos de pensamento e intelecto de certo modo

relacionados com a percepccedilatildeo e com a emoccedilatildeo Estudaremos ainda a

opiniatildeo ligada agraves emoccedilotildees abordada apenas de modo que nos ajude a

reforccedilar a defesa das propostas de nosso estudo A escolha das

capacidades mencionadas eacute devida ao fato de serem discutidas tanto na

EN quanto no DA assim como por aparecerem nos outros dois tratados

que servem de apoio agrave nossa inquiriccedilatildeo Todavia o estudo natildeo se

pretende exaustivo nem de caraacuteter conclusivo acerca da questatildeo mas

seraacute apresentado agrave medida que confirme nossas propostas a respeito da

racionalidade da emoccedilatildeo Comeccedilaremos portanto com a percepccedilatildeo

pois sem esta natildeo haacute imaginaccedilatildeo e sem estas duas provavelmente natildeo

haja pensamentos que igualmente podem estar de implicados na

emoccedilatildeo

2 b) Percepccedilatildeo

Nosso intento com essa pequena parte da pesquisa eacute entender o

papel da percepccedilatildeo na emoccedilatildeo com o apoio da EN eacute do DA A

interpretaccedilatildeo tradicional deste uacuteltimo tratado propotildee a percepccedilatildeo atraveacutes

dos oacutergatildeos da sensibilidade como iniacutecio do conhecimento sendo isto um

tipo de afecccedilatildeo (paacutethos) ou movimento que igualmente nos levaraacute a

imaginar e a nos emocionar

A EN natildeo nos propotildee explicitamente a percepccedilatildeo sensiacutevel como

ligada agrave maioria das emoccedilotildees mas ao lermos as descriccedilotildees das virtudes

morais particulares percebemos sua presenccedila pois se emocionar parece

depender ao menos inicialmente de um contato com o mundo do

agente e este contato acontece por via dos sentidos da percepccedilatildeo Aleacutem

disso quando na EN Aristoacuteteles diferencia a capacidade raciocinativa da

percepccedilatildeo sensiacutevel por aquela ser generalizante ao passo que esta outra

eacute particularizante (EN II 9 1109b21) aponta a discriminaccedilatildeo como

mateacuteria da percepccedilatildeo (EN III 5 1126b4-6) tida com as coisas que nos

147 Segundo Zingano (1996 p 17) essa eacute a interpretaccedilatildeo tradicional para as

teorias sobre a relaccedilatildeo entre sensaccedilatildeo e pensamento expostas no De anima

163

aparecem Quanto a esse assunto o tratado tambeacutem nos informa que

para um homem ser prudente eacute preciso saber dos casos particulares O

texto explica que por isso um jovem nunca seraacute prudente por natildeo ter

experiecircncias suficientes dos casos desse tipo pois a experiecircncia nesses

assuntos vem com o tempo

A prudecircncia por sua vez diz respeito ao que haacute de mais

particular jaacute que a accedilatildeo a ser efetuada eacute ela mesma particular (EN VI 9

1142a24-25) embora diga respeito tambeacutem aos universais captados a

partir de um sem nuacutemero de particularidades como vimos no Capiacutetulo

anterior Deste modo a prudecircncia eacute o conhecimento do que haacute de mais

individual remetendo-se reforccedilamos a algo de universal diferindo

assim da percepccedilatildeo sensiacutevel (EN VI 8 1141b14 et seq VI 9 1142a27)

eacute percepccedilatildeo praacutetica como propotildee Reeve (2013 p 13 e 23) Esse

particular natildeo eacute objeto da ciecircncia mas da percepccedilatildeo trazendo-a -

mesmo aquela percepccedilatildeo descrita no DA III - para o campo eacutetico

Aristoacuteteles entretanto adverte a percepccedilatildeo participante das coisas

eacuteticas natildeo lida com os sensiacuteveis proacuteprios mas com os sensiacuteveis de outro

tipo como aqueles que distinguem formas geomeacutetricas (EN VI 9

1142a26-30) Mesmo que haja um tipo especiacutefico de percepccedilatildeo

associado agrave prudecircncia pensamos que seja impossiacutevel a essa virtude

intelectual dispensar o contato com o particular que eacute objeto da

percepccedilatildeo sensiacutevel Por isso cabe-nos estudar essa capacidade

Se pensarmos que a percepccedilatildeo sensiacutevel natildeo estaacute totalmente isenta

do contato com a emoccedilatildeo ligada como estaacute a aparecircncias externas

devemos descrevecirc-la como algo que consiste em ser movido e afetado

pois parece haver opiniotildees que a afirmam como certa alteraccedilatildeo embora

certo tipo de percepccedilatildeo possa natildeo ter ligaccedilatildeo direta com a accedilatildeo de teor

moral A percepccedilatildeo sensiacutevel eacute explicada pelo De Anima de modo

condizente a esta proposta como um movimento partindo de fora da

alma (DA I 4 408a34-35 408b1-17) que todavia natildeo eacute capacidade

exclusiva do homem148 eacute proacutepria aos animais em geral Por

conseguinte Aristoacuteteles segue sua exposiccedilatildeo sobre o assunto com a

proposiccedilatildeo de que o diferencial entre um animal e os outros seres natildeo eacute

o movimento ou a mudanccedila de lugar mas a percepccedilatildeo sensiacutevel (DA II 2

148 Nos An Post Aristoacuteteles descreveu a despeito das diferenccedilas de propoacutesitos

das investigaccedilotildees nesse tratado a percepccedilatildeo como ldquoOra assim eacute a sensaccedilatildeo

uma faculdade discriminativa (portanto de conhecimento)natural a todos os

animaisrdquo (99b36)Traduccedilatildeo de Vallandro e Bornheim (1978) no

originalἐνούσης δ αἰσθήσεως τοῖς μὲν τῶν ζῴων ἐγγίγνεται μονὴ τοῦ

αἰσθήματος τοῖςδ οὐκἐγγίγνεται

164

413b1-9) Por exemplo vimos que em certos animais e plantas

fragmentados cada parte conserva sensaccedilatildeo e movimento local O

filoacutesofo entretanto explica que se assim acontece com a sensaccedilatildeo

igualmente aconteceraacute com a imaginaccedilatildeo e com o desejo porque onde

haacute sensaccedilatildeo haacute prazer e dor e onde estes existem tambeacutem existe

necessariamente o desejo (DA II 2 413b21-23) Com os sentidos

acontece algo parecido alguns animais os tecircm todos outros apenas

alguns outros soacute precisam dee tecircm o tato como propusemos no

Capiacutetulo I As capacidades da alma satildeo propostas entretanto em

sucessatildeo porque sem a alma nutritiva natildeo existe a capacidade

perceptiva portanto e de acordo com Kenny

As almas dos seres vivos podem ser ordenadas

hierarquicamente Plantas possuem uma alma

vegetativa ou nutritiva a qual consiste nos

poderes de crescimento nutriccedilatildeo e reproduccedilatildeo (2

4 415a22-26) Aleacutem disso os animais possuem os

poderes de percepccedilatildeo e locomoccedilatildeo eles possuem

uma alma sensiacutevel e todo animal tem pelo menos

uma capacidade sensitiva das quais o tato eacute a

mais universal O que quer que possa sentir

afinal pode sentir prazer e os animais portanto

que possuem sentidos tambeacutem tecircm desejos Os

humanos aleacutem disso tecircm o poder da razatildeo e do

pensamento (logiacutesmos kaigrave diaacutenoia) que podemos

chamar de alma racional (KENNY 2008 p 284)

Nos animais que possuem tato haacute igualmente a percepccedilatildeo do

alimento e todos os seres vivos se alimentam de coisas secas e uacutemidas

quentes e frias A percepccedilatildeo desses tipos de coisas acontece atraveacutes do

tato que soacute percebe acidentalmente outras qualidades sensiacuteveis

implicando que o sabor eacute seu objeto embora o cheiro e ruiacutedo natildeo

acrescentem nada ao alimento Assim para cada sentido haacute um plano

sensiacutevel que eacute seu objeto proacuteprio e nenhum dos outros sentidos subsiste

sem o tato sendo que este subsiste sem os demais jaacute que haacute animais

sem visatildeo audiccedilatildeo ou percepccedilatildeo do odor

Quanto a essa relaccedilatildeo entre as capacidades o filoacutesofo explica que entre os animais que possuem a capacidade perceptiva uns tecircm a

locomoccedilatildeo outros natildeo mas poucos satildeo os que tecircm caacutelculo e raciociacutenio

Naqueles em que subsiste o caacutelculo igualmente haacute as demais

capacidades mas dos que tecircm cada uma das outras capacidades nem

todos tecircm o caacutelculo Haacute animais que natildeo tecircm sequer a imaginaccedilatildeo e

165

igualmente aqueles que vivem exclusivamente por ela Tendo em vista

estas propostas vale lembrar que desde o primeiro momento de nosso

estudo aceitamos a possibilidade de natildeo haver muacuteltiplas e distintas

almas mas de a alma se constituir das capacidades que faculta ao corpo

animado Com isso a capacidade perceptiva nos seres humanos de

certo modo se liga agraves emoccedilotildees por sua dependecircncia do desiderativo

comprovando mais uma vez a unicidade da alma e as propostas iniciadas

em EN I 13

A essa ideia eacute preciso acrescentar que Aristoacuteteles entende o

perceber de dois modos haacute percepccedilatildeo em ato e em potecircncia e o objeto

de percepccedilatildeo sensiacutevel tambeacutem seraacute em potecircncia ou em atividade

Igualmente eacute preciso fazer distinccedilotildees quanto agrave potecircncia e agrave atualidade

porque como proposto a sensaccedilatildeo eacute a faculdade discriminadora e

dessas discriminaccedilotildees viratildeo os motivos para as emoccedilotildees que deveratildeo

passar pelo crivo da razatildeo praacutetica e de sua forma especiacutefica de

percepccedilatildeo a fim de que adquiram aspecto conveniente Conforme

Aristoacuteteles o ser que nasce jaacute tem o perceber como um discriminar e a

atividade de perceber eacute dita de modo similar agrave de inquirir A diferenccedila

entre as duas funccedilotildees eacute que as coisas que tecircm o poder eficiente da

atividade satildeo externas - satildeo visiacuteveis audiacuteveis e demais objetos da

percepccedilatildeo sensiacutevel - porque a atividade da percepccedilatildeo diz respeito agraves

particularidades enquanto o conhecimento diz respeito aos universais -

que de algum modo estatildeo na alma Assim a capacidade perceptiva eacute

potencialmente ldquotal como seu objeto o eacute jaacute em atualidade Portanto ela eacute

afetada enquanto natildeo semelhante mas uma vez que tenha sido afetada

ela se assemelha e torna-se tal como elerdquo (DA II 5 418a4-6)149 levando

esses dados da percepccedilatildeo para a apreciaccedilatildeo da razatildeo em suas diferentes

formas mas sob a forma praacutetica quando se tratar das accedilotildees

Por conseguinte podemos ressaltar o assunto dos objetos da

percepccedilatildeo sensiacutevel e da discriminaccedilatildeo O filoacutesofo observa

primeiramente que os sensiacuteveis devem ser tratados segundo cada um

dos sentidos ldquoO sensiacutevel se diz de trecircs modos dos quais dois afirmamos

que satildeo percebidos por si mesmos e um por acidente E dos dois um eacute

proacuteprio a cada sentido outro comum a todosrdquo (DA II 6 418a8-11)150

Sensiacutevel proacuteprio eacute aquilo que natildeo pode ser percebido por um outro

149 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original πάσχει μὲν

οὖν οὐχ ὅμοιον ὄν πεπονθὸς δ ὡμοίωται καὶ ἔστιν οἷον ἐκεῖνο 150Idem λέγεται δὲ τὸ αἰσθητὸν τριχῶς ὧν δύο μὲν καθ αὑτά φαμεν

αἰσθάνεσθαι τὸ δὲ ἓν κατὰ συμβεβηκός τῶν δὲ δυοῖν τὸ μὲν ἴδιόν ἐστιν

ἑκάστης αἰσθήσεως τὸ δὲ κοινὸν πασῶν

166

sentido que natildeo lhe corresponda - caso da visatildeo da cor da gustaccedilatildeo etc

Cada sentido destes eacute diferente e natildeo haacute engano sobre se eacute cor ou som

mas sobre o que eacute e onde estaacute o colorido ou o sonante Sensiacuteveis comuns

satildeo o movimento o repouso o nuacutemero a figura e a magnitude (DA II 6

418a17-20) porque satildeo percebidos por mais de um sentido ou por todos

os sentidos Por exemplo um certo movimento eacute percebido tanto pelo

tato quanto pela visatildeo Haacute ainda o sensiacutevel por acidente explicado pelo

famoso exemplo do branco que eacute filho de Diares (DA II 6 418a21-25)

Mas em relaccedilatildeo a toda percepccedilatildeo sensiacutevel eacute preciso compreender que o

sentido recebe as formas sensiacuteveis sem a mateacuteria e do mesmo modo o

sentido eacute afetado pela accedilatildeo do que tem cor sabor ou som O oacutergatildeo

sensorial primeiro eacute aquele em que subsiste essa potecircncia mas dos

sensiacuteveis comuns temos uma percepccedilatildeo comum sem um sentido ou um

oacutergatildeo proacuteprio diante do que Robinson explica

Mas Aristoacuteteles estaacute ciente de que muito mais estaacute

sendo dito quando afirmamos que percebemos as

coisas em particular afirmamos que natildeo vemos

apenas cores mas objetos coloridos que estatildeo em

movimento ou em repouso que tecircm determinado

tamanho e que satildeo unos ou muacuteltiplos em nuacutemero

Estes satildeo chamados ldquosensiacuteveis comunsrdquo

Aristoacuteteles afirma satildeo percebidos per accidens

pelos cinco sentidos que temos e portanto

podemos nos referir a eles como o ldquosentido

comumrdquo ou ldquoos sentidos tomados em comumrdquo

(ROBINSON 2010 p 239)

A percepccedilatildeo sensiacutevel deste modo eacute tida como a capacidade

discriminativa entre as coisas sensiacuteveis que nos aparecem podendo

mesmo levar a ajuizamento Informaccedilatildeo crucial a uma pesquisa eacutetica

sobre as emoccedilotildees pois mais adiante veremos a proposiccedilatildeo da relaccedilatildeo

entre o sentir emoccedilatildeo e o ajuizar quanto aos particulares que nos tocam

Vimos que a percepccedilatildeo sensiacutevel que nos forneceraacute os dados dos

julgamentos por sua vez eacute ou uma potecircncia (como a visatildeo) ou uma

atividade (como o ato de ver) e estaacute sempre presente

Aleacutem disso as percepccedilotildees sensiacuteveis satildeo sempre verdadeiras se haacute boas condiccedilotildees do oacutergatildeo perceptivo e de seu objeto Por exemplo

quando estamos em plena atividade da percepccedilatildeo natildeo dizemos que um

objeto perceptiacutevel aparenta ser um homem dizemos isso quando natildeo

percebemos claramente Nesse caso a percepccedilatildeo seria verdadeira ou

falsa porque (1) haacute percepccedilatildeo sensiacutevel dos objetos sensiacuteveis proacuteprios

167

sendo esta verdadeira ou contendo minimamente o falso (2) porque natildeo

haacute percepccedilatildeo tambeacutem do incidir essas coisas que satildeo acidentais nos

objetos perceptiacuteveis e nesse caso admite-se errar e (3) haacute igualmente a

percepccedilatildeo dos sensiacuteveis comuns que acompanham os incidentais onde

subsistem os sensiacuteveis proacuteprios Essas trecircs percepccedilotildees sensiacuteveis daratildeo as

diferenccedilas do movimento que ocorre pela atividade da percepccedilatildeo se ela

estaacute presente (1) eacute verdadeiro Os outros podem ser falsos estando ela

presente ou natildeo principalmente quando estiver longe do objeto

perceptiacutevel que eacute totalmente particular

Assim agraves afirmaccedilotildees do DA se coadunam as propostas da EN

sobre a percepccedilatildeo quando esta uacuteltima obra nos informa que cada sentido

vem a ato pela relaccedilatildeo com o objeto sensiacutevel que lhe eacute correspondente

Tal operaccedilatildeo se torna perfeita quando o sentido - em uma disposiccedilatildeo satilde -

tem sua relaccedilatildeo com o melhor objeto que lhe corresponde como

proposto haacute pouco Nessas condiccedilotildees o ato eacute o mais perfeito e o mais

agradaacutevel porque para cada um dos sentidos haacute um prazer

correspondente sendo que nesse caso o prazer eacute o acabamento do ato de

perceber e discriminar Se o sentido e os sensiacuteveis estiverem nas

condiccedilotildees propostas sempre haveraacute prazer e verdade porque seratildeo

postos diante do princiacutepio eficiente e do princiacutepio passivo aiacutesthēsis e

aisthetoacuten Estes quando juntos contemplam as exigecircncias de perfeiccedilatildeo

da capacidade perceptiva permitindo o ato perceptivo perfeito em mais

alto grau

Mas esse tipo de percepccedilatildeo eacute o mesmo mencionado em EN VI

como associado agrave prudecircncia O Livro sobre as virtudes intelectuais nos

informa que a prudecircncia (EN VI 9 1142a26-30) eacute mais percepccedilatildeo

deliberativa ou praacutetica que qualquer outra coisa no entanto vimos que o

tipo de percepccedilatildeo associado agrave phroacutenēsis eacute diferente do outro (EN VI 9

1142a28) A percepccedilatildeo deliberativa envolve um universal que soacute pode

ser atingido por deliberaccedilatildeo praacutetica Nessas condiccedilotildees conta a posse de

desejos e emoccedilotildees moderados jaacute que podem ser em excesso ou falta e

por isso apresentam viacutecios que distorcem a visatildeo tornando-a falsa

quanto ao iniacutecio das accedilotildees (EN VI 13 1144a34-36) Por isso a percepccedilatildeo

relacionada agrave prudecircncia eacute de certa forma diferente da percepccedilatildeo dos

sensiacuteveis proacuteprios mencionados em DA III

No caso da prudecircncia opera-se uma percepccedilatildeo como aquela das

figuras que eacute chamada por Reeve (2014 p 211 et seq) percepccedilatildeo

deliberativa Estaacute relacionada ao silogismo praacutetico sendo percepccedilatildeo do

que eacute uacuteltimo na demonstraccedilatildeo praacutetica donde seu caraacuteter particular A

EN III 5 1112b11-24 e a EE II 10 1226a37 nos informam que o

deliberador age como quem analisa um diagrama Um matemaacutetico

168

analisa materiais e formas para serem desenhadas compondo uma

figura Esta eacute a uacuteltima coisa alcanccedilada na anaacutelise mas a primeira na

construccedilatildeo do objeto analisado (DA III 10 433a16-17) Com isso cessa a

investigaccedilatildeo (EN VI 9 1142a29) mais ou menos do mesmo modo que

ocorre na deliberaccedilatildeo praacutetica do prudente quando a anaacutelise chega ao

que deve ser feito ou seja age

Assim a percepccedilatildeo deliberativa resulta de deliberaccedilatildeo e eacute um

tipo de percepccedilatildeo porque o universal que ela discerne eacute captado a partir

de ocorrecircncias particulares perceptiacuteveis como explica Reeve (2013 p

23 p 32) ligando-se assim agrave percepccedilatildeo geral Mesmo que a percepccedilatildeo

de tipo deliberativo soacute ocorra em animais dotados de capacidade

calculativa ela eacute um ato perceptivo porque discerne um particular

perceptiacutevel pela capacidade perceptiva conforme o que explicamos

acima e o que Reeve ressalta

Se o particular em questatildeo eacute um perceptiacutevel

proacuteprio (como poderia ser por exemplo se

estiveacutessemos deliberando sobre que cor de roupa

nos protege melhor do sol) esse ato eacute mais

estritamente o de um sentido proacuteprio (visatildeo) Se eacute

um perceptiacutevel comum (como o formato

triangular) eacute um ato de senso comum (REEVE

2014 p 213)

Ao contraacuterio da percepccedilatildeo do sensiacutevel proacuteprio que eacute sempre

correta ou tem pouca chance de errar a percepccedilatildeo deliberativa pode

cometer erro por exemplo se a deliberaccedilatildeo ligada a ela natildeo for

verdadeira ou for invaacutelida Por isso a prudecircncia eacute ao mesmo tempo

percepccedilatildeo e deliberativa (EN VI 8 1141b9-10) porque perceber

corretamente sensiacuteveis comuns depende frequentemente de caacutelculo

sendo similar agrave percepccedilatildeo deliberativa Especificamente quanto agrave accedilatildeo a

deliberaccedilatildeo praacutetica que a determina tem por alvo a melhor coisa para o

homem e que pode ser realizada por ele (EN VI 8 1141b13-14) Esse

tipo de deliberaccedilatildeo eacute precursora da imaginaccedilatildeo deliberativa e envolve

desejos e emoccedilotildees que possuem boa medida O que faz da percepccedilatildeo

deliberativa praacutetica eacute o fato de seu objeto envolver prazer e dor como

no caso do desejo pela felicidade

Deste modo reforccedilamos que a percepccedilatildeo sensiacutevel pode ser

entendida mesmo em diferentes tratados como iniacutecio do conhecimento

e como afecccedilatildeo tocada por objetos particulares externos que satildeo

proacuteprios ou comuns Conduz a prazeres variados e pode mesmo ter

169

relaccedilatildeo com a emoccedilatildeo ocasionada pelo agente externo particular ao qual

discrimina Difere contudo dos pensamentos para os quais encaminha

suas distinccedilotildees e que em sua forma praacutetica ocasionaraacute a percepccedilatildeo de

tipo deliberativa Por isso questionamos assim como fez Zingano que

tipo de alteraccedilatildeo eacute a percepccedilatildeo sensiacutevel se natildeo eacute qualquer alteraccedilatildeo

Aristoacuteteles natildeo apresenta resposta exata agrave questatildeo mas com apoio no

que foi estudado podemos aceitar a proposta de Zingano (1996 p 16)

Este estudioso entende que a percepccedilatildeo seria ldquouma certa afecccedilatildeo aquela

que a faculdade sensitiva sofre quando passa agrave atualidade e identifica-se

formalmente agrave coisa que do exterior causa sua atualizaccedilatildeo

constituindo-se nesta relaccedilatildeo um objeto de conhecimento (mais

precisamente um objeto sensiacutevel)rdquo o que ratifica a proposta de EN X 7

1177b26-30 e as propostas de nossa pesquisa

Ao homem natildeo eacute possiacutevel uma vida afastada do mundo e de seus

objetos pois mesmo para boa parte de suas reflexotildees seria necessaacuterio o

contato com aquilo que o cerca e sobre o que deve deliberar em casos

embaraccedilosos e por isso haacute a percepccedilatildeo deliberativa que distingue a

partir do que eacute proposto em um silogismo praacutetico levando agrave boa accedilatildeo A

percepccedilatildeo natildeo se identifica com o pensar sendo atividade de outra

natureza que pode operar com a percepccedilatildeo sensiacutevel para produzir o

conhecimento151 Assim como a percepccedilatildeo deliberativa natildeo se identifica

151Para Zingano (1996 p 17) contudo essa natildeo eacute a interpretaccedilatildeo tradicional

Esta propotildee da forma como explica o estudioso uma iacutentima afinidade da

atividade dos sentidos com aquela do intelecto Isso eacute correto pensa o autor

porque todo conhecimento humano por conceitos necessita da ligaccedilatildeo entre as

operaccedilotildees da razatildeo e da sensaccedilatildeo O problema existente com a proposta

tradicional pensa estaacute no modo como tal afinidade eacute concebida Para

Aristoacuteteles essas duas operaccedilotildees satildeo distintas porque o pensamento apreende

os universais enquanto a sensaccedilatildeo apreende os particulares A proposta

tradicional no entanto atribui agraves operaccedilotildees algo mais que a tarefa

discriminativa (e de conhecer) os objetos teriam um modo de operaccedilatildeo

semelhante Por isso entender como funciona uma implicaria entender o

funcionamento da outra Nesse caso tanto com intelecto quanto com a sensaccedilatildeo

o conhecimento viria da passagem da potencialidade agrave atualidade sendo que o

objeto proacuteprio a cada operaccedilatildeo lhe cederia certa determinaccedilatildeo Nessa

passividade as operaccedilotildees estariam intimamente ligadas Entatildeo tanto uma

quanto outra seria uma potecircncia que dependeria do seu objeto para ser

atualizada

Isso afastaria Aristoacuteteles da proposta das Ideias de Platatildeo (como na Rep)

porque natildeo precisaria duplicar o objeto do conhecimento ldquoAristoacuteteles duplica

as operaccedilotildees da alma mas natildeo a proacutepria coisa partindo da apreensatildeo das

170

com a deliberaccedilatildeo mas eacute parte constituinte desta Todavia entre os

tipos de percepccedilatildeo mencionados e os tipos de pensamento e razatildeo com

os quais tecircm contato temos outro elemento presente a imaginaccedilatildeo

portanto cabe-nos agora dissertar brevemente sobre a imaginaccedilatildeo e as

emoccedilotildees

2 c) Imaginaccedilatildeo

Na EN VII 7 1149a32 a imaginaccedilatildeo aparece ligada agrave raiva

(thymoacutes) contrapondo-se agraves propostas do filoacutesofo quanto ao apetite No

passo em questatildeo satildeo feitas observaccedilotildees quanto agrave capacidade desses

dois desejos ouvirem agrave razatildeo e agrave forma como as emoccedilotildees relacionadas a

eles se comportam devido a essa participaccedilatildeo no racional Estas paacutethē

estatildeo associadas agrave percepccedilatildeo e agraves aparecircncias explicando que a razatildeo ou

a imaginaccedilatildeo estaacute presente nas apreciaccedilotildees dos insultos que enraivecem

relacionando o homem que deve se emocionar com o mundo (Pol I 2

1253a25-28 EN X 7 1177b26-30) Assim a imaginaccedilatildeo eacute atrelada ao

impulso e agrave raiva que pode acompanhaacute-lo

O DA parece nos trazer informaccedilotildees adicionais sobre a questatildeo

pois Aristoacuteteles nos fala da imaginaccedilatildeo ao comparaacute-la e associaacute-la com

a percepccedilatildeo sensiacutevel e com tipos de pensamento ldquoPois a imaginaccedilatildeo eacute

algo diverso tanto da percepccedilatildeo sensiacutevel como do raciociacutenio mas a

imaginaccedilatildeo natildeo ocorre sem percepccedilatildeo sensiacutevel e tampouco sem a

imaginaccedilatildeo ocorrem suposiccedilotildeesrdquo (DA III 2 427b14-16)152 Tratamos da

imaginaccedilatildeo ao abordarmos as capacidades da razatildeo que podem estar

implicadas com as emoccedilotildees porque haacute vaacuterias menccedilotildees a ela quando o

assunto eacute o paacutethos especialmente em Rhet II sendo a proacutepria um

paacutethos ao mesmo tempo em que eacute considerada como ponto

intermediaacuterio entre o perceber e o pensar Teoria que justifica o estudo

qualidades sensiacuteveis o homem chega aos inteligiacuteveis natildeo tendo uma relaccedilatildeo

com outra coisa mas retrabalhando esta mesma apreensatildeo sensiacutevel sob a forma

agora de reproduccedilatildeo imaginativa no interior da qual a razatildeo apreende os

inteligiacuteveis Haacute dois objetos de conhecimento o sensiacutevel e o inteligiacutevel aos

quais correspondem (sic) uma soacute coisa na realidade um particular que eacute

composto de mateacuteria e formardquo (ZINGANO 1997 p 18) Isso culminaraacute na tese

do intelecto agente e passivo Com essas propostas Aristoacuteteles elimina as Ideias

e resta-lhe a imanecircncia segundo a qual os inteligiacuteveis somente satildeo separados na

alma 152 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original φαντασία γὰρ ἕτερον

καὶ αἰσθήσεως καὶ διανοίας αὕτη τε οὐ γίγνεται ἄνευ αἰσθήσεως καὶ ἄνευ

ταύτης οὐκ ἔστιν ὑπόληψις

171

das trecircs capacidades racionais em um trabalho acerca das emoccedilotildees por

serem diferentes e exercerem tarefas diferentes junto agrave emoccedilatildeo e agrave

possibilidade de bem viver a imaginaccedilatildeo natildeo eacute nem pensamento nem

suposiccedilatildeo mas eacute uma afecccedilatildeo que depende de noacutes e do nosso querer

Aristoacuteteles explica que quando temos imaginaccedilatildeo de coisas terriacuteveis ou

pavorosas por exemplo podemos permanecer como que a contemplar

uma pintura (DA III 3 427b16-24153) pois a imaginaccedilatildeo natildeo nos leva

imediatamente a compartilhar a emoccedilatildeo Assim

Se a imaginaccedilatildeo eacute aquilo segundo o que dizemos

que nos ocorre uma imagem ndash e natildeo no sentido

em que o dizemos por metaacutefora - seria ela entatildeo

alguma daquelas potecircncias ou disposiccedilotildees

segundo as quais discernimos ou expressamos o

verdadeiro ou o falso Deste tipo satildeo a percepccedilatildeo

sensiacutevel a opiniatildeo a ciecircncia e o intelecto (DA III

3 428a1-4)154

A imaginaccedilatildeo natildeo eacute percepccedilatildeo sensiacutevel porque como vimos

pouco acima a percepccedilatildeo eacute ou uma potecircncia como a visatildeo ou um ato

como o de ver mas algo pode aparecer (phaiacutenetai) para noacutes quando natildeo

subsiste (em sonho por exemplo) e a percepccedilatildeo sensiacutevel eacute sempre

presente mas a imaginaccedilatildeo natildeo As imagens nos aparecem mesmo com

os olhos fechados enquanto a percepccedilatildeo depende destes abertos para

que contate seus objetos Aleacutem disso diferem porque se a imaginaccedilatildeo

fosse o mesmo que a percepccedilatildeo em atividade subsistiria em todos os

153 Ver tambeacutem Nussbaum (2008 p 65 et seq) embora a filoacutesofa natildeo esteja

propriamente a explicar Aristoacuteteles trata da compaixatildeo para exemplificar sua

teoria e exemplifica o papel da imaginaccedilatildeo na emoccedilatildeo ldquoNa compaixatildeo nossa

habilidade para pintar vividamente o dilema de uma pessoa ajuda na formaccedilatildeo

das emoccedilotildees [] podemos sentir menos emoccedilatildeo por outros casos que natildeo

podemos similarmente imaginar com vivacidade embora eles possam ter uma

estrutura similar Aqui o que a imaginaccedilatildeo parece fazer eacute nos ajudar trazendo

um indiviacuteduo distante para a esfera de nossos objetivos e projetos humanizando

a pessoa e criando apossibilidade de ligaccedilatildeo A compaixatildeo ainda seraacute definida

pelo seu conteuacutedo de pensamento incluindo seu conteuacutedo eudaiacutemōniacutestico []

mas a imaginaccedilatildeo eacute uma ponte que permite ao outro se tornar um objeto de

nossa compaixatildeordquo (NUSSBAUM 2008 p 66 traduccedilatildeo nossa) 154 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis (2006) no original εἰ δή ἐστιν ἡ

φαντασία καθ ἣν λέγομεν φάντασμά τι ἡμῖν γίγνεσθαι καὶ μὴ εἴ τι κατὰ

μεταφορὰν λέγομεν ἆρα μία τις ἔστι τούτων δύναμις ἢ ἕξις καθ ἃς κρίνομεν

καὶ ἀληθεύομεν ἢ ψευδόμεθα τοιαῦται δ εἰσὶν αἴσθησις δόξα ἐπιστήμη νοῦς

172

animais mas ela natildeo parece existir por exemplo nas formigas Outra

diferenccedila eacute que as percepccedilotildees satildeo sempre verdadeiras mas a maioria das

imaginaccedilotildees eacute falsa pois existe imaginaccedilatildeo falsa e os animais natildeo

possuem convicccedilatildeo (piacutestis) mas muitos tecircm imaginaccedilatildeo aleacutem do mais

alguns animais a possuem mas natildeo possuem razatildeo

A imaginaccedilatildeo eacute descrita portanto como movimento decorrente

da atividade da percepccedilatildeo sensiacutevel (DA III 3 429a1-2) sendo a uacutenica a

apresentar os atributos mencionados Zingano (2008 p 203) explica a

imaginaccedilatildeo como ldquoa faculdade da alma que preserva o que eacute dado pela

sensaccedilatildeo sob a forma de imagens sobre as quais o intelecto vai operar

funcionando como uma ponte entre razatildeo e sensaccedilatildeordquo Estando

relacionada agrave percepccedilatildeo sensiacutevel que tem sua principal expressatildeo na

visatildeo forma de percepccedilatildeo sensiacutevel por excelecircncia o nome imaginaccedilatildeo

deriva de luz (tograve phocircs) pois sem luz natildeo eacute possiacutevel ver e sem ver natildeo eacute

possiacutevel imaginar sendo tal capacidade uma espeacutecie de criadora de

coisas que satildeo ldquovistasrdquo pelo pensamento Assim as imaginaccedilotildees

perduram e se assemelham agraves percepccedilotildees sensiacuteveis sendo que os

animais fazem muitas coisas de acordo com essas uns por natildeo terem

intelecto outros como os homens por terem o intelecto agraves vezes

obscurecido pelo sono ou pela doenccedila

O DA tambeacutem nos faz entender que haacute diferentes tipos de

imaginaccedilatildeo ldquoA imaginaccedilatildeo perceptiva como foi dito subsiste

igualmente nos outros animais mas a deliberativa apenas nos seres

capazes de calcular pois decidir por fazer isto ou aquilo de fato jaacute eacute

uma funccedilatildeo do caacutelculordquo (DA III 9 434a5-7)155 Essas propostas ligam-se

agravequelas de EN VI texto no qual estudamos a imaginaccedilatildeo deliberativa

como Reeve (2014 p 212) esclarece ldquoA percepccedilatildeo deliberativa eacute um

parente proacuteximo ndash no sentido de que eacute o precursor essencial ndash da

imaginaccedilatildeo calculativa ou deliberativardquo Como nos explica o DA

compartilhamos a imaginaccedilatildeo perceptiva com todos os animais mas a

imaginaccedilatildeo deliberativa eacute exclusiva dos seres dotados de caacutelculo porque

ela eacute questatildeo de deliberaccedilatildeo em prol do bem supremo Por isso esse tipo

de imaginaccedilatildeo capacita ou vem da capacidade de discernir uma entre

muitas aparecircncias a partir do silogismo praacutetico no caso da accedilatildeo

colaborando com o tipo de visatildeo proacuteprio agrave prudecircncia

Por conseguinte se a imaginaccedilatildeo perceptiva eacute um tipo de

movimento que soacute acontece nos seres que tecircm percepccedilatildeo sensiacutevel a

155 Idem ἡ μὲν οὖν αἰσθητικὴ φαντασία ὥσπερ εἴρηται καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις

ζῴοις ὑπάρχει ἡ δὲ βουλευτικὴ ἐν τοῖς λογιστικοῖς (πότερον γὰρ πράξει τόδε ἢ

τόδε λογισμοῦ ἤδη ἐστὶν ἔργον[])

173

respeito das coisas das quais se tem tal percepccedilatildeo sendo possiacutevel que

aconteccedila pela atividade da aiacutesthēsis eacute preciso que o movimento seja

semelhante a esta O ser que possui esse movimento poderaacute fazer e

sofrer muitas coisas em conformidade a ele confirmando que a

percepccedilatildeo sensiacutevel se relaciona com a emoccedilatildeo pois esta uacuteltima move

de certo modo Se natildeo haacute imaginaccedilatildeo sem percepccedilatildeo sensiacutevel tais

operaccedilotildees se encadeiam no esquema daquilo que de mais proacuteximo ao

racional pode tocar agrave emoccedilatildeo mas haacute ainda a imaginaccedilatildeo deliberativa

que se associa agraves emoccedilotildees moderadas agrave deliberaccedilatildeo praacutetica e agrave escolha

deliberada dando ao prudente um tipo de visatildeo das coisas

possivelmente corretas a fazer com isso favorecendo a boa medida Na

sequecircncia da cadeia de operaccedilotildees tratada encontramos certos tipos de

pensamento e igualmente de intelecto sendo preciso estudaacute-los A

imaginaccedilatildeo contudo viraacute a ser mencionada novamente no estudo acerca

da opiniatildeo momento oportuno pois o filoacutesofo potildee-nas em comparaccedilatildeo

tanto na EN quanto no DA

2 d) Pensamentos

As anaacutelises feitas a partir dos textos estudados nos permitiram

constatar que haacute tipos de pensamento associados agrave emoccedilatildeo desejos e

prazeres Um destes tipos de pensamento (diaacutenoia) quanto agraves coisas

relativas agrave moralidade parece estar presente especialmente nas virtudes

intelectuais agraves quais se chama desde EN I 13 dianoeacuteticas entendidas

como as melhores condiccedilotildees da capacidade racional designada por

Aristoacuteteles como diaacutenoia Em EN I 6 todavia a vida bem-sucedida eacute

associada agrave posse da razatildeo e ao exerciacutecio desse tipo de pensamento (EN I 7 1098a5) ligaccedilatildeo comprovada pelo caso da boa deliberaccedilatildeo sempre

relacionada ao raciociacutenio ou caacutelculo A boa deliberaccedilatildeo eacute a uma

investigaccedilatildeo sobre algo especiacutefico agraves coisas morais permite calcular

corretamente sendo um tipo de retidatildeo de pensamento Deste modo natildeo

haacute boa deliberaccedilatildeo sem caacutelculo consciente mesmo que ela ainda natildeo

seja uma asserccedilatildeo O homem que delibera bem calcula e investiga

alguma coisa levando o desejo reto a emoccedilatildeo adequada e a escolha

deliberada a buscarem um objeto determinado quando devido (EN VI 2

1139a21 et seq) A associaccedilatildeo desse tipo de pensamento com o bem se

emocionar foi evidenciada mais acima quando tratamos da necessidade

da virtude dianoeacutetica ou intelectual da prudecircncia para que haja virtude

moral e para a formaccedilatildeo da virtude completa

O De Anima tambeacutem associa esse tipo de terminologia ao paacutethos quando nos confirma por exemplo que determinados objetos como o

174

que eacute doce movem a percepccedilatildeo sensiacutevel ou o pensar (ou entender tegraven

noacuteesin III 2 426b31-427a1) mas o texto que mais aproxima o pensar e

as emoccedilotildees eacute DA III 7 Em tal Livro podemos ler o seguinte

A ciecircncia em atividade eacute idecircntica ao seu objeto

[] Sentir entatildeo eacute semelhante ao mero proferir e

pensar156 e quando eacute agradaacutevel ou doloroso como

o afirmado ou negado isso eacute perseguido ou

evitado e sentir prazer ou dor consiste em estar

em atividade com a meacutedia da capacidade

sensitiva em face do bem ou do mal como tais A

aversatildeo e o desejo satildeo o mesmo em atividade e a

capacidade de desejar e de evitar natildeo satildeo

diferentes nem entre si nem da capacidade de

sentir embora o ser seja diverso Para a alma

capaz de pensar as imagens subsistem como

sensaccedilotildees percebidas E quando se afirma algo

bom ou nega-se algo ruim evita-o ou persegue-o

Por isso a alma jamais pensa sem imagem (DA III

7 431a1-16)157

156 Robinson (2010 p 245) explica que traduzir noucircs em certos trechos do DA

como aquele que identifica pensar e perceber seria mais convenientemente

entendido se se traduzisse o termo por lsquoentendimentorsquo Isso porque o estudioso

concebe o noucircs nesses pontos como parte do processo de pensamento mas que

natildeo eacute todo o processo Assim aiacutesthēsis e noucircs seriam anaacutelogos por serem

ambos eventos tipos de impressotildees mas cada um a seu modo (Robinson 2010

p 244) Pensamento em nosso sentido seria diaacutenoiesthai que tambeacutem se

ligaria agrave aiacutesthēsis e ao julgamento 157 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis (2006) no original Τὸ δ αὐτό ἐστιν ἡ

κατ ἐνέργειαν ἐπιστήμη τῷ πρά-

γματι ἡ δὲ κατὰ δύναμιν χρόνῳ προτέρα ἐν τῷ ἑνί ὅλως δὲ οὐδὲ χρόνῳ ἔστι

γὰρ ἐξ ἐντελεχείᾳ ὄντος πάντα τὰ γιγνόμενα ndash φαίνεται δὲ τὸ μὲν αἰσθητὸν ἐκ

δυνάμει ὄντος τοῦ αἰσθητικοῦ ἐνεργείᾳ ποιοῦν οὐ γὰρ πάσχει οὐδ ἀλλοιοῦται

διὸ ἄλλο εἶδος τοῦτο κινήσεως ἡ γὰρ κίνησις τοῦ ἀτελοῦς ἐνέργεια ἡ δ ἁπλῶς

ἐνέργεια ἑτέρα ἡ τοῦ τετελεσμένου ndash τὸ μὲν οὖν αἰσθάνεσθαι ὅμοιον τῷ

φάναι μόνον καὶ νοεῖνὅταν δὲ ἡδὺ ἢ λυπηρόν οἷον καταφᾶσα ἢ ἀποφᾶσα

διώκει ἢ φεύγει καὶ ἔστι τὸ ἥδεσθαι καὶ λυπεῖσθαι τὸ ἐνεργεῖν τῇ αἰσθητικῇ

μεσότητι πρὸς τὸ ἀγαθὸν ἢ κακόν ᾗ τοιαῦτα καὶ ἡ φυγὴ δὲ καὶ ἡ ὄρεξις ταὐτό

ἡ κατ ἐνέργειαν καὶ οὐχ ἕτερον τὸ ὀρεκτικὸν καὶ τὸ φευκτικόν οὔτ ἀλλήλων

οὔτε τοῦ αἰσθητικοῦ ἀλλὰ τὸ εἶναι ἄλλο τῇ δὲ διανοητικῇ ψυχῇ τὰ

φαντάσματα οἷον αἰσθήματα ὑπάρχει ὅταν δὲ ἀγαθὸν ἢ κακὸν φήσῃ ἢ

ἀποφήσῃ φεύγει ἢ διώκει διὸ οὐδέποτε νοεῖ ἄνευ φαντάσματος ἡ ψυχή

175

Por conseguinte o que eacute capaz de pensar pensa formas em

imagens Nestas se define para quem pensa o que deve ser perseguido e

evitado e por isso mesmo que se ponha a percepccedilatildeo sensiacutevel agrave parte o

que pensa se move quando diante de imagens Em outro momento

quando as imagens (phantasiacuteai) e os pensamentos estatildeo na alma o

homem raciocina como se visse tais imagens Delibera sobre as coisas

que poderatildeo acontecer (ou ser) a partir das que estatildeo presentes nesse

tipo de imagens do pensamento ldquovendordquo nestas o agradaacutevel ou o penoso

evita-o ou persegue-o relacionando-se com o desejo Mesmo o

verdadeiro e o falso que satildeo desprovidos de accedilatildeo estatildeo no mesmo

gecircnero que o bom e o mau embora difiram pois um eacute em absoluto e

outro eacute relativo a algueacutem

Haacute ainda outro tipo de pensamento com significado variado

relacionado agraves emoccedilotildees a serem despertadas e se apresenta nas

sugestotildees do filoacutesofo para que o orador consiga emocionar seu puacuteblico

Se o medo eacute acompanhado de algum

pressentimento de que vamos sofrer algum mal

que nos aniquila eacute oacutebvio que aqueles que acham

que nunca lhes vai acontecer algo de mal natildeo tecircm

medo nem receiam as coisas as pessoas e os

momentos que na sua maneira de pensar natildeo

podem provocar medo Assim pois

necessariamente sentem medo os que pensam que

podem vir a sofrer algum mal e os que pensam

que podem ser afetados por pessoas coisas e

momentos (Rhet II 5 1382b29-34)158

A Eacutetica Nicomaqueia tambeacutem apresenta o verbo oicircomai nesse

sentido de um pensar incerto ou de um tipo de crenccedila associado agraves

posturas intemperantes e incontinentes (EN VII 11 1152a6) As pessoas

que estatildeo ou pensam estar em grande prosperidade acreditam que natildeo haacute

mal que possa lhes acontecer satildeo insolentes desdenhosas e atrevidas

por disporem de riquezas muitas amizades forccedila e poder As pessoas

que acreditam jaacute ter sofrido todo o tipo de desgraccedilas tambeacutem pensam

assim sendo frias quanto ao futuro ldquoPara que sintamos receio eacute preciso

158 Traduccedilatildeo de Alves Alberto Pena (2012) no original εἰ δή ἐστιν ὁ φόβος

μετὰ προσδοκίας τινὸς τοῦ πείσεσθαί τι φθαρτικὸν πάθος φανερὸν ὅτι οὐδεὶς

φοβεῖται τῶν οἰομένων μηδὲν ἂν παθεῖν οὐδὲ ταῦτα ἃ μὴ οἴονται ἂν παθεῖν

οὐδὲ τούτους ὑφ ὧν μὴ οἴονται οὐδὲ τότε ὅτε μὴ οἴονται ἀνάγκη τοίνυν

φοβεῖσθαι τοὺς οἰομένους τι παθεῖν ἄν καὶ τοὺς ὑπὸ τούτων καὶ ταῦτα καὶ τότε

176

que haja alguma esperanccedila de salvaccedilatildeo pela qual valha a pena lutar

Sinal disso eacute que o medo leva as pessoas a deliberar ao passo que

ningueacutem delibera sobre casos desesperadosrdquo (Rhet II 5 1383a5-8)159

Essa apresentaccedilatildeo natildeo acontece nas trageacutedias embora os poemas faccedilam

com que o espectador imagine tal situaccedilatildeo a acontecer com algueacutem que

conhece Esse tipo de imaginaccedilatildeo basta para que o organismo de algueacutem

na plateia se prepare para sentir o medo proposta confirmada pela Eacutetica

Nicomaqueia IV 6 estudo acerca da disposiccedilatildeo corajosa oposta ao

medo emoccedilatildeo que encara ameaccedilas externas como males Por isso

alguns definem o medo como expectaccedilatildeo do mal ocasionado

geralmente pela relaccedilatildeo entre pessoas na poacutelis

O vocaacutebulo em questatildeo eacute empregado para designar algo

semelhante ao pensar ou ao imaginar e opinar Conforme Chantraine

(1977 p 785) aparece no sentido de ldquoopinonrdquo (opiniatildeo) fazendo

oposiccedilatildeo a saphṑs eideacutenai ver claramente ter certeza De acordo com

Aldo Dinucci e Alfredo Julien (2014 p 36) em sua traduccedilatildeo do

Encheiriacutedion de Epicteto o verbo na voz passiva oicircomai quer dizer

ldquolsquopensarrsquo no sentido de lsquopresumirrsquo referindo-se a coisas incertas ndash daiacute

lsquopressentir crer estimarrsquordquo Esses empregos assim como os da Retoacuterica parecem conservar a ideia de que haacute um quecirc de racionalidade se natildeo de

pensamento exatamente no sentido que hoje usamos a palavra que deve

estar presente nas emoccedilotildees despertadas na plateia de um juacuteri por

exemplo abrindo espaccedilo para a atuaccedilatildeo da razatildeo praacutetica na forma de

deliberaccedilatildeo Por isso a Rhet nos apresenta tambeacutem um termo

conhecidamente eacutetico o verbo bouleuacuteō (deliberar) sugerindo que

quando um orador mexe com as emoccedilotildees do puacuteblico este eacute levado agrave

deliberaccedilatildeo sobre os assuntos em questatildeo reforccedilando nossa teoria

Os estados de espiacuterito em que se sente piedade por exemplo

parecem estar diretamente ligados agrave lembranccedila que pode despertar a

imaginaccedilatildeo mas que igualmente parecem estar relacionados no caso do

medo com certo pensamento mesmo que este seja um tipo de

imaginaccedilatildeo que sugira deliberaccedilatildeo Assim haacute certos tipos de

pensamento especialmente envolvidos com a emoccedilatildeo que seraacute

despertada lembrando que estas associam o homem de modo especial

a uma vida que ultrapassa a total contemplaccedilatildeo intelectual embora natildeo

inviabilizando esse tipo de atividade racional No entanto as emoccedilotildees

igualmente satildeo acompanhadas por outras capacidades (ou

159 Idem ἀλλὰ δεῖ τινα ἐλπίδα ὑπεῖναι σωτηρίας περὶ οὗ ἀγωνιῶσιν σημεῖον

δέ ὁ γὰρ φόβος βουλευτικοὺς ποιεῖ καίτοι οὐδεὶς βουλεύεται περὶ τῶν

ἀνελπίστων

177

(sub)capacidades) racionais quando estatildeo acompanhadas dos processos

da prudecircncia Uma destas capacidades eacute o intelecto em sua funccedilatildeo

praacutetica como poderemos entender com o breve estudo a seguir

2 e) Intelecto praacutetico160

Existe uma capacidade na alma humana o intelecto (noucircs) que

se desdobra em intelecto praacutetico e intelecto teoacuterico Em sua funccedilatildeo ou

uso praacutetico age apreendendo o que por uacuteltimo eacute apresentado na

deliberaccedilatildeo a premissa menor Depois dessa deliberaccedilatildeo eacute possiacutevel

escolher deliberadamente tendo em vista um termo meacutedio e quando isso

acontece se atinge o ponto inicial para a accedilatildeo e deixa-se de investigar

Assim o intelecto tem papel tanto nas demonstraccedilotildees em geral quanto

nas demonstraccedilotildees praacuteticas embora seja uma soacute capacidade Por isso

Reeve (2014 p 209) escreve que ldquoo entendimento teoacuterico envolvido em

demonstraccedilotildees teoacutericas eacute o mesmo estado que o entendimento praacutetico

envolvido nas demonstraccedilotildees praacuteticasrdquo o que confere mais uma vez

credibilidade a nossa proposta de interpretaccedilatildeo da alma O intelecto

praacutetico (noucircs praktikoacutes) quando associado ao desejo pede accedilatildeo (DA III 5 433a1-17) Deste modo tem relaccedilatildeo com a prudecircncia que tambeacutem se

relaciona com o desejo buscando para este seu melhor estado

Em razatildeo das propostas acima resumidas o Livro VI da EN (VI 2

1139a18 et seq) nos fala do noucircs como um dos candidatos a

determinante da accedilatildeo e da verdade praacuteticos relacionados agrave prāxis e ao

desejo correto pelo que eacute bom A passagem aponta a escolha deliberada

como origem da accedilatildeo moralmente boa e afirma que natildeo haacute escolha

deliberada sem intelecto ou pensamento (noucirc kaigrave diaacutenoias EN VI 2

1139a33-34) ligando-os aos bons desejos e accedilotildees Por isso

anteriormente entendemos e provamos que igualmente se ligam agraves

emoccedilotildees adequadas No Livro IX por sua vez o intelecto eacute tido como

natildeo dominante naqueles que satildeo intemperantes mas dominante nos

160 As observaccedilotildees sobre o noucircs que aqui apresentamos satildeo baseadas

exclusivamente nos tratamentos que os Livros VI e IX da EN e III do DA

dispensam ao assunto mas pensando em uma forma que possam colaborar com

a tese defendida Usaremos ldquointelectordquo para traduzir noucircs e ldquointelecto praacuteticordquo

para traduzir noucircs praktikoacutes poreacutem quando formos usar traduccedilotildees feitas por

outros autores ou citar cometaacuterios feitos por outros autores a respeito desses

dois termosconceitos optaremos por manter a escolha de traduccedilatildeo de cada

autor Portanto podem aparecer palavras como ldquoentendimentordquo e ldquorazatildeo

intuitivardquo referindo-se ao noucircs

178

temperantes propondo-o como o proacuteprio homem embora novamente

relacionando-o agrave emoccedilatildeo moderada (EN IX 8 1168b35) Nesse passo

afirma-se que pode haver o impeacuterio da emoccedilatildeo quando o homem natildeo eacute

bem conduzido ou seja quando razatildeo praacutetica e emoccedilatildeo estatildeo

dissociadas Neste ponto eacute descrita a capacidade racional anteriormente

mencionada que se relaciona ao intelecto praacutetico e provavelmente agrave

accedilatildeo moral Para que haja tal tipo de intelecto satildeo imprescindiacuteveis

percepccedilotildees sensiacuteveis e imaginaccedilatildeo buscar e evitar que tambeacutem teratildeo a

ver com desejos e emoccedilotildees mesmo que estejam relacionados agrave forma

mais fina de se emocionar jaacute passada pela educaccedilatildeo moral adequada e

da qual falaremos a seguir Nisso consiste a possibilidade mesmo de

ouvir e obedecer agrave razatildeo como um todo de abrir-se agrave prudecircncia e agrave

mediania nas emoccedilotildees

O DA (III 10 433a15-30) parece concordar com essas propostas

ao explicar que o desejo eacute a origem (archḗ) do intelecto praacutetico

(praktikoucirc noucirc) e que a uacuteltima coisa nesse caso eacute o ponto inicial da

accedilatildeo Para que isso aconteccedila eacute preciso conceber a felicidade ou uma

ideia de felicidade como toacutepico maacuteximo da deliberaccedilatildeo praacutetica Aqui se

entende por felicidade a atividade racional em conformidade com a

virtude mais completa Por isso um deliberador procura saber diante

das circunstacircncias nas quais se encontra o que eacute ou o que constitui a

felicidade A resposta viraacute quando tiver detectado um ponto meacutedio que

apresente a melhor accedilatildeo dentro daquelas circunstacircncias que o agente

tenha ciecircncia de tal accedilatildeo com base na percepccedilatildeo e que possa efetuar tal

accedilatildeo Esse silogismo eacute o foco do deliberar para alcanccedilar a tal felicidade

Por isso deve mostrar o termo meacutedio que a indique sendo o silogismo o

plano de accedilatildeo do deliberador que resultaraacute em accedilatildeo complexa

constituindo agir bem e felicidade Mas para que haja a tal accedilatildeo proposta

pelo silogismo eacute preciso acreditar praticamente ou seja afirmar com a

parte calculativa e exercitar a conclusatildeo proposta pelo silogismo (EN VI

8 1141b13-14 VI 2 1139a21-31)

Segundo Reeve (2014 p 203) satildeo a natureza e a nossa funccedilatildeo

que determinam a felicidade Esta eacute a premissa maior da demonstraccedilatildeo

praacutetica e eacute fixa e imutaacutevel por isso natildeo se delibera a seu respeito Esse

ponto fixo eacute essencial para que haja movimento (DA III 10 433b21-27)

e no silogismo praacutetico eacute a premissa maior universal que proporciona o

movimento por ser fixa ou uma verdade imutaacutevel (DA III 11 434a16-

21) Ao contraacuterio as opiniotildees ou suposiccedilotildees indicam como lidar com as

coisas que natildeo satildeo fixas tratando do que pode variar e ser verdadeiro ou

falso por isso devem ser adequadas agrave variabilidade das circunstacircncias

(EN VI 3 1139b17-18) O desejo correto nesse caso eacute o ponto fixo que

179

leva agrave accedilatildeo demandada pela premissa menor No caso de um desejo natildeo

educado como o apetite no incontinente age-se contra a natureza ou

seja contra a premissa maior que eacute apreendida pelo intelecto praacutetico

Contudo pode haver dois tipos de silogismo praacutetico um proposto pela

prudecircncia outro pela inteligecircncia (syacutenesis) Esta uacuteltima eacute discriminadora

e natildeo prescritiva como a primeira (EN VI 13 1143a8-10) e por isso o

silogismo da inteligecircncia natildeo termina em accedilatildeo diferentemente daquele

relacionado agrave prudecircncia

Ao tratar das virtudes intelectuais no Livro VI da EN Aristoacuteteles

apresenta-nos a inteligecircncia e a perspicaacutecia (hē syacutenesis kaigrave hē eusynesiacutea)

como diferentes de ciecircncia e opiniatildeo A inteligecircncia natildeo trata das coisas

eternas nem do que deve ser mas das coisas sobre as quais pode haver

duacutevida e nas quais cabe deliberar sendo relativa agraves coisas de ordem

praacutetica161 Trata portanto dos mesmos objetos que a prudecircncia embora

natildeo sejam idecircnticas A prudecircncia eacute diretiva - tem por fim determinar o

que devemos ou natildeo devemos fazer - e a inteligecircncia eacute apenas

judicativa Deste modo inteligecircncia e julgamento tecircm lugar em nossa

pesquisa por serem associados agrave capacidade da alma que rege o

conhecimento do contingente A inteligecircncia natildeo consiste nem em

possuir nem em adquirir a prudecircncia mas se aplica agrave faculdade da

opiniatildeo

[] quando se trata de emitir um julgamento sobre

o que uma outra pessoa enuncia nas mateacuterias que

vecircm da prudecircncia e por julgamento entendo um

julgamento fundado (reto belo) pois bem eacute o

mesmo que fundado (reto belo) E o emprego do

termo inteligecircncia para designar a qualidade das

pessoas perspicazes veio da inteligecircncia no

sentido de aprender pois tomamos

frequentemente aprender no sentido de

compreender (EN VI 11 1143a13-18)162

Entendemos que nossa proposta de interpretaccedilatildeo da capacidade

161 Reeve entende a syacutenesis como um aspecto da phroacutenēsis e natildeo exatamente

como uma virtude autocircnoma (REEVE 2013 p 3) 162 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original οὕτως ἐν τῷ χρῆσθαι τῇ δόξῃ ἐπὶ τὸ κρίνειν περὶ τούτων

περὶ ὧν ἡ φρόνησίς ἐστιν ἄλλου λέγοντος καὶ κρίνειν καλῶς τὸ γὰρ εὖ τῷ

καλῶς τὸ αὐτό καὶ ἐντεῦθεν ἐλήλυθε τοὔνομα ἡ σύνεσις καθ ἣν εὐσύνετοι ἐκ

τῆς ἐν τῷ μανθάνειν λέγομεν γὰρ τὸ μανθάνειν συνιέναι πολλάκις

180

de julgamento na EN eacute ratificada pelo esboccedilo de definiccedilatildeo da emoccedilatildeo

proposto pela Retoacuterica relacionando-a com sua capacidade de alterar os

juiacutezos ou discriminaccedilotildees (tagrave kriacuteseis) e a EN chama julgamento

(gnomḗ)163 a qualidade segundo a qual se considera que as pessoas tecircm

correta discriminaccedilatildeo daquilo que eacute equitaacutevel (syngnomonikoacuten) Prova

disto eacute o fato de normalmente se dizer que um homem equitaacutevel eacute

disposto favoravelmente ao outro Tricot (2012 nota 3 p 325) explica

que o equitaacutevel eacute uma qualidade que leva o homem a compreender as

razotildees de agir de uma outra pessoa sendo uma espeacutecie de ldquolargueza de

espiacuteritordquo levando mesmo agrave indulgecircncia e ao perdatildeo Eacute o pensar com [o

outro]164 fundamental como explica Nussbaum para que certas

emoccedilotildees como a piedade sejam sentidas pois para a autora esta emoccedilatildeo

ou sua falta dependem dos julgamentos sobre o florescimento que

seratildeo tatildeo confiaacuteveis quanto a moral geral do observador

Para sentir piedade a pessoa deve considerar o sofrimento do

outro como parte importante de seu proacuteprio esquema de objetivos e fins

deve pensar que a falta daquela pessoa afeta seu florescimento e deve

ver-se como tatildeo vulneraacutevel quanto o outro165 Nessa possibilidade de

colocar-se no lugar do outro parece haver um tipo de julgamento

envolvido ou um tipo de imaginaccedilatildeo chamada por Nussbaum (2008 p

319) de ldquojulgamento da possibilidade similarrdquo Para que isso aconteccedila

natildeo eacute estritamente necessaacuterio que a pessoa focalize a relaccedilatildeo da outra

consigo mesma mas imaginar-se em uma posiccedilatildeo de possibilidade

similar ajuda na medida da imaginaccedilatildeo eudaimoniacutestica da proacutepria

pessoa porque seres humanos tecircm dificuldade de relacionar os outros

consigo mesmos a natildeo ser por pensamentos com os quais jaacute estejam

preocupados Por conseguinte eacute possiacutevel entender melhor o que

Aristoacuteteles poderia ter pretendido chamar de julgamento ou

discriminaccedilatildeo e porque resolveu associaacute-lo com um traccedilo eacutetico cedido

agraves emoccedilotildees que descreveu e pensou como ligadas agraves relaccedilotildees humanas

teoria comprovada pelo o passo subsequente

[] atribuiacutemos julgamento inteligecircncia

prudecircncia e razatildeo intuitiva indiferentemente aos

mesmos indiviacuteduos quando dizemos que eles

163 Robinson (2010 p 245) observa que Aristoacuteteles usa os verbos kriacutenein e

gnoriacutezein para designar a discriminaccedilatildeo 164 LIDDELL amp SCOTT 1996 sv 165 Sobre a discussatildeo desse assunto feita por Nussbaum ver tambeacutem seu livro

Sem fins lucrativos

181

alcanccedilaram a idade do julgamento e da razatildeo e

que eles satildeo prudentes e inteligentes Pois todas

essas faculdades satildeo sobre as coisas uacuteltimas e

particulares e eacute sendo capaz de julgar as coisas

retornando ao domiacutenio do homem prudente que

somos inteligentes benevolentes e

favoravelmente dispostos [em relaccedilatildeo] aos outros

as accedilotildees equitaacuteveis sendo comuns a todas as

pessoas de bem em suas relaccedilotildees com os outros

Ora todas as accedilotildees que devemos completar

retornam agraves coisas particulares e uacuteltimas pois o

homem prudente deve conhecer os fatos

particulares e por seu lado a inteligecircncia e o

julgamento giram em torno das accedilotildees a completar

que satildeo as coisas uacuteltimas A razatildeo intuitiva se

aplica tambeacutem agraves coisas particulares em ambos os

sentidos jaacute que os termos primeiros bem como os

uacuteltimos satildeo do domiacutenio da razatildeo intuitiva e natildeo

da discursividade nas demonstraccedilotildees a razatildeo

intuitiva apreende os termos imutaacuteveis e

primeiros e nos raciociacutenios de ordem praacutetica ela

apreende o fato uacuteltimo e contingente quer dizer a

premissa menor jaacute que esses fatos satildeo do fim a

alcanccedilar os casos particulares servindo de ponto

de partida para alcanccedilar os universais Devemos

portanto ter uma percepccedilatildeo dos casos

particulares e essa percepccedilatildeo eacute a razatildeo intuitiva

(EN VI 12 1143a25-35 1143b1-5)166

166 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Εἰσὶ δὲ πᾶσαι αἱ ἕξεις εὐλόγως εἰς ταὐτὸ τείνουσαι λέγομεν

γὰρ γνώμην καὶ σύνεσιν καὶ φρόνησιν καὶ νοῦν ἐπὶ τοὺς αὐτοὺς ἐπιφέροντες

γνώμην ἔχειν καὶ νοῦν ἤδη καὶ φρονίμους καὶ συνετούς πᾶσαι γὰρ αἱ δυνάμεις

αὗται τῶν ἐσχάτων εἰσὶ καὶ τῶν καθ ἕκαστον καὶ ἐν μὲν τῷ κριτικὸς εἶναι περὶ

ὧν ὁ φρόνιμος συνετὸς καὶ εὐγνώμων ἢ συγγνώμων τὰ γὰρ ἐπιεικῆ κοινὰ τῶν

ἀγαθῶν ἁπάντων ἐστὶν ἐν τῷ πρὸς ἄλλον ἔστι δὲ τῶν καθ ἕκαστα καὶ τῶν

ἐσχάτων ἅπαντα τὰ πρακτά καὶ γὰρ τὸν φρόνιμον δεῖ γινώσκειν αὐτά καὶ ἡ

σύνεσις καὶ ἡ γνώμη περὶ τὰ πρακτά ταῦτα δ ἔσχατα καὶ ὁ νοῦς τῶν ἐσχάτων

ἐπ ἀμφότερα καὶ γὰρ τῶν πρώτων ὅρων καὶ τῶν ἐσχάτων νοῦς ἐστὶ καὶ οὐ

λόγος καὶ ὁ μὲν κατὰ τὰς ἀποδείξεις τῶν ἀκινήτων ὅρων καὶ πρώτων ὁ δ ἐν

ταῖς πρακτικαῖς τοῦ ἐσχάτου καὶ ἐνδεχομένου καὶ τῆς ἑτέρας προτάσεωςἀρχαὶ

γὰρ τοῦ οὗ ἕνεκα αὗται ἐκ τῶν καθ ἕκαστα γὰρ τὰ καθόλου τούτων οὖν ἔχειν

δεῖ αἴσθησιν αὕτη δ ἐστὶ νοῦς

182

A prudecircncia eacute um tipo de boa administraccedilatildeo como vemos no

caso da temperanccedila cujo nome sophrosyacutene indica a conservaccedilatildeo da

prudecircncia sendo que esta conserva o julgamento ou discriminaccedilatildeo jaacute

que o prazer e a dor satildeo capazes de destruir juiacutezos acerca da accedilatildeo porque

os princiacutepios de nossas accedilotildees satildeo os fins aos quais tendem nossos atos

Eacute a faculdade discriminativa do julgamento contudo que parece estar

desde a origem mais proacutexima agraves emoccedilotildees jaacute que estas estatildeo

irremediavelmente relacionadas agrave sensibilidade que por sua vez nos

fornece as imagenspercepccedilotildees dentre as quais devemos efetuar a

discriminaccedilatildeo Com nossa pesquisa entendemos que a faculdade

judicativa ou discriminativa da razatildeo portanto tem grande importacircncia

no bem emocionar-se podendo mesmo favorecer que a prudecircncia se

achegue ao natildeo racional desiderativo e agraves emoccedilotildees

Diante disso o papel do julgamento e da inteligecircncia na

demonstraccedilatildeo praacutetica eacute restrito agraves coisas uacuteltimas e particulares porque

natildeo satildeo direcionadas ao que eacute imoacutevel ou imutaacutevel (EN VI 12 1143a4-5)

Isso acontece porque tecircm seu foco na accedilatildeo particular dentro de uma

circunstacircncia mas a premissa maior nessas demonstraccedilotildees tem que ser

imutaacutevel e imoacutevel como o soquete na articulaccedilatildeo bola-e-soquete

descrita no DA Contudo propusemos anteriormente que a prudecircncia de

certo modo tambeacutem se relaciona com o universal (a felicidade ou o

desejo por felicidade) que nesse caso eacute a premissa maior do silogismo

praacutetico diferenciando os silogismos por prudecircncia e por inteligecircncia

Vimos que os diferentes papeacuteis do intelecto nas demonstraccedilotildees

aparecerem descritos em EN VI 12 1143a35-b11 O intelecto tem por

ocupaccedilatildeo tanto os termos primaacuterios quanto as coisas que satildeo uacuteltimas

Nas demonstraccedilotildees cientiacuteficas o intelecto apreende um dos termos

primeiros e que natildeo muda Nas demonstraccedilotildees praacuteticas relaciona-se

com as coisas uacuteltimas e com as que podem ser de outro jeito bem como

com a premissa menor O intelecto praacutetico lida com tais coisas porque

elas satildeo o ponto de partida do que se tem em vista porque os universais

vecircm dos particulares Dos universais precisamos ter percepccedilatildeo (sendo

esta neste caso intelecto noucircs citado no fim do passo acima) Por isso o

intelecto eacute tanto princiacutepio quanto fim (archḗ e teacutelos) pois as

demonstraccedilotildees vecircm do intelecto e satildeo sobre o intelecto

O segundo papel do intelecto em uma demonstraccedilatildeo praacutetica eacute

apreender a premissa menor Como vimos acima esta eacute a uacuteltima coisa

alcanccedilada em uma deliberaccedilatildeo Pode ser de outra maneira porque

prescreve um tipo de accedilatildeo particular que pode variar conforme a

circunstacircncia e ao que cabe ao agente fazer ou natildeo O termo crucial

dessa premissa eacute o termo meacutedio que designa um tipo de accedilatildeo particular

183

que eacute apreendido pela percepccedilatildeo (EN VII 5 1147a25-26) e a percepccedilatildeo

envolve apreensatildeo ldquoconcomitante de universaisrdquo (REEVE 2014 p

210) A apreensatildeo do termo meacutedio por sua vez acontece devido agrave

apreensatildeo pelo intelecto de um misto das premissas maior e menor

quando se entende as duas premissas se entende a conclusatildeo Assim

Como a percepccedilatildeo do termo meacutedio (ou a accedilatildeo que

ele designa) deve ser mediada dessa maneira para

ser do tipo deliberativo ou determinador da accedilatildeo

relevante ela eacute um exerciacutecio tanto da percepccedilatildeo

como do entendimento Como a escolha

deliberativa portanto que eacute ldquoentendimento

envolvendo desejo ou desejo envolvendo

pensamentordquo (EN VI 2 1139b4-5) a percepccedilatildeo

deliberativa eacute entendimento envolvendo

pensamento (REEVE 2014 p 211)

Em retomada agrave questatildeo da relaccedilatildeo do silogismo empreendido

pelo prudente com particular e universal proposta no Capiacutetulo II e aqui

detalhada na medida em que contemplasse nossas discussotildees foi

possiacutevel compreender que por um lado a felicidade eacute o ponto inicial

por ser fim de toda accedilatildeo sendo universal Por outro lado o ponto inicial

satildeo as accedilotildees particulares que se direcionam ao alcance da felicidade

Portanto mesmo o intelecto em sua funccedilatildeo praacutetica necessita da

conjugaccedilatildeo entre corpo e alma para que atue de modo excelente pois os

particulares mesmo na deliberaccedilatildeo praacutetica se originam da percepccedilatildeo

sensiacutevel mais elementar que afeta o corpo e potildee a capacidade racional a

trabalhar em prol do que haacute de melhor para o homem Tal percepeccedilatildeo

tambeacutem pode estar pautada em um tipo de opiniatildeo relacionada agraves

premissas da deliberaccedilatildeo que natildeo se veem de todo desvencilhadas da

opiniatildeo geral ocasionada pelo contato com dados da sensibilidade como

veremos a seguir

2 f) Opiniatildeo

As premissas que devem ser captadas pelo intelecto satildeo

constituiacutedas por opiniotildees acerca do que eacute buscado e do que se deve fazer

ou deixar de fazer para alcanccedilar um objetivo Assim a opiniatildeo em EN

VI 10 1142b11-15 eacute apontada como um tipo de afirmaccedilatildeo baseada em

deliberaccedilatildeo Difere da prudecircncia que eacute virtude e fixa por ser um estado

e por poder ser esquecida Mas com auxiacutelio da virtude moral adquirida

por boa habituaccedilatildeo algueacutem pode ser ensinado a ter a opiniatildeo correta

184

sobre algo que levaraacute a uma deliberaccedilatildeo e possivelmente a uma accedilatildeo

(EN VII 9 1151a18-19) A correccedilatildeo daquilo que eacute afirmado pela

capacidade opinativa eacute importante assim como a retidatildeo do desejo mas

eacute preciso tambeacutem haver correccedilatildeo da deliberaccedilatildeo que apoia a opiniatildeo

Em EN VI ao comparar escolha deliberada e opiniatildeo Aristoacuteteles

nos daacute importantes traccedilos de ambas em especial da segunda A opiniatildeo

parece ter por alvo qualquer coisa inclusive o que eacute impossiacutevel e o que

natildeo estaacute em nosso poder Pode ser falsa ou verdadeira e natildeo eacute boa ou

maacute como eacute classificada a escolha deliberada Um homem tem tal ou tal

qualidade atribuiacuteda a si pelas escolhas que faz e natildeo por defender

determinada opiniatildeo embora escolha obter ou evitar mas natildeo opine

sobre esse tipo de coisa Algueacutem escolhe deliberadamente as coisas que

sabe serem boas mas a opiniatildeo eacute emitida igualmente acerca daquilo que

natildeo se sabe se eacute bom ou mau e natildeo parecem ser as mesmas pessoas

aquelas que deliberam bem e as que opinam bem porque mesmo quem

opina melhor pode escolher coisas que levam ao viacutecio A escolha

deliberada eacute diferente da opiniatildeo portanto por ser proposta como

capacidade do prudente que estaacute diretamente ligada agrave accedilatildeo avaliaacutevel

moralmente A prudecircncia eacute virtude da parte da alma capaz de opinar

porque a opiniatildeo tem relaccedilatildeo com o que pode ser de outro modo

todavia natildeo eacute simplesmente uma opiniatildeo acompanhada de regra Por

isso nos procedimentos de decisatildeo cabiacuteveis ao prudente a opiniatildeo tem

lugar antes da escolha deliberada (EE II 10 1226b9) Zingano (2008 p

171) esclarece isso do seguinte modo ldquoNo acircmbito do aristotelismo a

accedilatildeo necessariamente estaacute envolvida com as opiniotildees que o agente tem

se suspendecircssemos todas as nossas opiniotildees natildeo poderiacuteamos agirrdquo167

A opiniatildeo eacute mais bem explicada pelo De anima quando

comparada agrave imaginaccedilatildeo ldquoPois essa afecccedilatildeo depende de noacutes e somente

de noacutes e do nosso querer [] e ter opiniatildeo natildeo depende somente de noacutes

167Provavelmente por este motivo Aristoacuteteles quando trata da causa da

incontinecircncia tambeacutem emite sua opiniatildeo A premissa universal do silogismo

praacutetico empenhado pelo acraacutetico eacute uma opiniatildeo a outra premissa se relaciona

com os fatos particulares no campo dos quais a percepccedilatildeo manda Haacute pessoas

poreacutem que se mantecircm em sua opiniatildeo e que natildeo satildeo facilmente convencidas a

alterar a estas chamamos obstinadas (teimosas) Na contramatildeo haacute pessoas que

natildeo persistem em suas opiniotildees devido a uma causa estranha agrave incontinecircncia o

que implica que quem age por prazer nem sempre eacute intemperante incontinente

ou perverso Por conseguinte a opiniatildeo pode estar ligada a toda a cadeia de

relaccedilatildeo racional anteriormente mencionada e que se potildee em contato com o

desiderativo sendo forccediloso que admitamos seus contatos com a emoccedilatildeo

mesmo porque o termo aparece associado agrave emoccedilatildeo

185

pois haacute necessidade de que ela seja falsa ou verdadeirardquo (DA III 3

427b17-21)168 A opiniatildeo de que algo eacute terriacutevel pavoroso ou

encorajador leva imediatamente a certas emoccedilotildees diferentemente da

imaginaccedilatildeo (DA III 3 427b16-23) Isso implicaria que a opiniatildeo tem

papel mais efetivo que a imaginaccedilatildeo no provocar emoccedilotildees

Ao que tudo indica a resposta eacute positiva pois a opiniatildeo eacute

acompanhada de crenccedila a crenccedila eacute acompanhada do estar persuadido e

a persuasatildeo eacute acompanhada da razatildeo (DA III 3 428a18-24) Por

conseguinte e sendo que haacute accedilatildeo da opiniatildeo na emoccedilatildeo haacute certo

elemento racional no se emocionar ou haacute ao menos a comprovaccedilatildeo de

nossa proposta sobre a possibilidade de participaccedilatildeo do natildeo racional no

racional e vice-versa jaacute que ainda no DA (III 3 427b10) Aristoacuteteles

chega a definir a opiniatildeo como um tipo de pensar (noeicircn) que pode ser

correto ou incorreto de acordo com seu contato com a realidade

Propostas que satildeo reforccediladas tambeacutem como no caso da percepccedilatildeo

sensiacutevel por EN X 7 1177b26-30 trecho no qual o filoacutesofo destaca a

impossibilidade ou inviabilidade do homem viver totalmente para a

razatildeo porque esse tipo de existecircncia o livraria por completo de sua

humanidade Assim soacute existe opiniatildeo daquilo que haacute percepccedilatildeo

sensiacutevel mas haacute igualmente um tipo de opiniatildeo relacionada agrave percepccedilatildeo

deliberativa quando aparece em um silogismo praacutetico

Vimos que as deliberaccedilotildees praacuteticas satildeo expressas sob a forma de

silogismos praacuteticos que satildeo concluiacutedos com accedilotildees (EN VII 5 1147a25-

31) Nesse tipo de silogismo uma opiniatildeo eacute universal outra eacute particular

da parte da percepccedilatildeo Quando dessas duas premissas se gera uma

proposiccedilatildeo eacute preciso que a alma afirme a conclusatildeo obtida com o

silogismo Apoacutes age-se desde que natildeo haja impedimentos Deste modo

seja a opiniatildeo corriqueira ou aquela associada ao silogismo praacutetico ela

se configura sempre como um traccedilo de razatildeo que interfere na emoccedilatildeo

desde seu surgimento frente ao mundo ateacute seu aprimoramento pelos

processos da prudecircncia e da razatildeo praacutetica

Diante do que foi exposto podemos agora acatar a seguinte

proposta de Zingano a emoccedilatildeo natildeo eacute um bloco impermeaacutevel A maioria

das emoccedilotildees eacute um todo poroso permeaacutevel por certas formas da

racionalidade Seus poros podem dar lugar agraves sugestotildees da razatildeo que

estatildeo presentes realmente desde o iniacutecio com grande parte das paacutethē

Assim essa permeabilidade natildeo eacute exclusividade das emoccedilotildees traacutegicas

168 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original τοῦτο μὲν γὰρ τὸ

πάθος ἐφ ἡμῖν ἐστιν ὅταν βουλώμεθα [] δοξάζειν δ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἀνάγκη γὰρ

ἢ ψεύδεσθαι ἢ ἀληθεύειν

186

ou daquelas despertadas pelo discurso persuasivo embora

provavelmente seja nas descriccedilotildees destas que a relaccedilatildeo do emocional

com a razatildeo se faccedila mais visiacutevel Por isso na anaacutelise das virtudes

particulares e das emoccedilotildees a estas relacionadas sempre nos deparamos

com termos como ldquopensardquo ldquoimaginardquo ldquocrecircrdquo ldquotem opiniatildeordquo As

aparecircncias que tocam o agente e levam agraves crenccedilas que podem dar em

uma ou outra emoccedilatildeo precisam dos phainoacutemena (aparecircncias) e estes soacute

encontram o homem por meio das percepccedilotildees sensiacuteveis que estatildeo

relacionadas agrave opiniatildeo e agrave capacidade opinativa da razatildeo porque a

opiniatildeo eacute atrelada ao que pode ser diferente Portanto entendemos que

estas capacidades racionais ao menos em certa medida recobrem todas

as emoccedilotildees especialmente as que podem ser moderadas ou mudadas de

algum modo

Eacute certo contudo que a educaccedilatildeo moral proposta pelo filoacutesofo

cede mais importacircncia ao haacutebito que agrave forccedila da razatildeo mas natildeo se pode

esquecer que para ser realmente virtuoso para ser capaz de agir por si

mesmo de perceber por conta proacutepria o que eacute bom se munir de bons

desejos boas emoccedilotildees e desencadear a accedilatildeo correta a racionalidade

precisa estar presente ao menos sob a forma da phroacutenēsis que

desencadeia a bouacuteleusis e a proaiacuteresis A educaccedilatildeo que permitiraacute mudar

as emoccedilotildees ou mudar de emoccedilotildees natildeo pode se contentar portanto com

uma vida boa poreacutem conduzida por uma razatildeo que venha de fora

porque mesmo que tal vida seja boa natildeo eacute totalmente feliz O agente

precisa ter todas as virtudes intelectuais e morais agrave sua disposiccedilatildeo Eacute

preciso portanto que tenha a capacidade racional e a capacidade natildeo

racional em cooperaccedilatildeo em sua alma reforccedilando a proposta de EN I 13

para que manifeste aquilo que eacute propriamente humano e isso eacute possiacutevel

devido agraves caracteriacutesticas das capacidades que acabamos de descrever

Essa leitura favorece nossa interpretaccedilatildeo que ressalta o papel das

emoccedilotildees na vida moral colocando emoccedilotildees e razatildeo praacutetica juntas em

uma vida considerada feliz e natildeo subjugando as emoccedilotildees agrave forccedila da

razatildeo Todavia apresenta o problema da conciliaccedilatildeo entre razatildeo e

emoccedilatildeo Essa conciliaccedilatildeo se faz possiacutevel a partir de quando se

reconhece a impossibilidade de que mesmo os melhores dos homens

vivam isolados a contemplar ou que extirpem suas emoccedilotildees com o

auxiacutelio de algum tipo de razatildeo pois as emoccedilotildees satildeo presentes na

constituiccedilatildeo do sujeito moral Neste tecircm papel significativo tanto para o

caraacuteter quanto para o iniacutecio das accedilotildees jaacute a razatildeo praacutetica atua no interior

do sujeito moral Pode conduzi-lo melhor ao seu objetivo mas tambeacutem

frear ou redirecionar seus movimentos tornando-o um agente moderado

em suas emoccedilotildees Isso soacute acontece porque tal agente graccedilas agrave natureza

187

de sua alma tem a racionalidade na base de suas emoccedilotildees bem como

porque entendemos que um cidadatildeo eacute racional em suas accedilotildees e vida

quando apazigua suas capacidades aniacutemicas racionais e natildeo racionais

completando a funccedilatildeo propriamente humana e conferindo a

possibilidade educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua racionalidade

Mas como levar a cabo essa educaccedilatildeo Eacute nesse ponto que cabe nossa

exposiccedilatildeo acerca dos instrumentos que permitem as mudanccedilas nasdas

emoccedilotildees

3 O acordo entre a razatildeo e as emoccedilotildees a educaccedilatildeo moral e os

instrumentos de modificaccedilatildeo da emoccedilatildeo169

3 a) Educaccedilatildeo haacutebito e lei para a virtude

Depois de todo o proposto percebemos que a razatildeo praacutetica (e a

razatildeo como um todo jaacute que se trata de uma mesma capacidade) deve

entrar em acordo com o natildeo racional para que haja virtude ou seja para

que haja moderaccedilatildeo nas emoccedilotildees e felicidade170 Somente assim o

homem seraacute capaz de manifestar o que entendemos nesse estudo como

verdadeiramente humano a plenitude de sua alma em harmonia

Provavelmente uma soluccedilatildeo apontada pela Eacutetica Nicomaqueia para

nossa indagaccedilatildeo a respeito de como por emoccedilotildees e razatildeo praacutetica em

acordo esteja a ser indicada pelo passo II 2 1104b9-24 (cf ainda EN X

1 1172a19-24) que fala de um tipo especiacutefico de educaccedilatildeo com base

em proposta feita por Platatildeo171 e que provavelmente deva ser

empregado a fim da virtude O passo propotildee que as virtudes morais

estatildeo relacionadas com o prazer e o desejo Sendo possiacutevel educar-se ou

habituar-se a fim de se comprazer e desejar devidamente igualmente

deve ser possiacutevel educar e habituar as emoccedilotildees Do mesmo modo

podemos usar a explicaccedilatildeo de Aggio a respeito do modo como conciliar

razatildeo praacutetica e desejo como exemplo para entender o que propomos

ldquoAo que tudo indica a educaccedilatildeo moral parece ser condiccedilatildeo preacutevia

necessaacuteria para que razatildeo e desejo se harmonizem e para que a razatildeo

possa ser efetivamente causa coadjuvante (synaitiacutea) na constituiccedilatildeo do

169Lebrun entende que a possibilidade de regular as emoccedilotildees eacute a garantia de

poderem ser julgadas eticamente (2009 p 14-15) 170 Sorabji (2002 p 7) nos explica que para Aristoacuteteles as emoccedilotildees satildeo uacuteteis agrave

poacutelis desde que moderadas por permitirem catarse Por conseguinte Platatildeo

estava errado ao expulsar os poetas da sua cidade ideal 171Rep 410e-402a Leis 653a

188

fim da accedilatildeordquo (AGGIO 2017 no prelo) Pensamos que apoacutes a

explanaccedilatildeo subsequente poderemos defender algo semelhante para a

boa conduccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees

Pelo que a EN aponta vimos que o desejo por um fim deve

concordar com o escolher e o deliberar bem sobre os meios adequados

ao alcance do fim buscado e com isso pedir a accedilatildeo para que tal fim seja

alcanccedilado resultando na accedilatildeo virtuosa A interpretaccedilatildeo mais

comumente aceita propotildee que para Aristoacuteteles a parte desiderativa da

alma ainda que chamada irracional compartilharia da razatildeo e poderia

mesmo ter razatildeo (loacutegos eacutekhein) praacutetica pois a ouve mesmo natildeo

raciocinando as coisas fora de si (EN I 13 1102b29 1103a3) Por

exemplo ldquoO efeito geral eacute fazer a bouacutelēsis distinta da razatildeo embora

ainda relacionada a elardquo (SORABJI 2002 p 322 traduccedilatildeo nossa)

Relaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel para o homem prudente A obra de um

homem soacute eacute perfeita (teacuteleios) quando estaacute em acordo com a totalidade

da razatildeo mas especialmente quando em acordo com a prudecircncia e com

a virtude moral pois a prudecircncia torna o propoacutesito humano reto e

culmina na boa conduta e no desejo reto Conforme a explicaccedilatildeo de

Aggio

Para que o desejo se torne reto i e para que ele

seja conforme a razatildeo Aristoacuteteles nos diz

sucintamente que ele deve ser educado a ldquoouvi-lardquo

e a ldquoobedececirc-lardquo Dizer isso significa pressupor

que o desejo natildeo nasce reto e que o fim natildeo eacute

naturalmente um bom fim mas que ao contraacuterio

deve ser constituiacutedo dessa forma Se fosse

naturalmente bom natildeo haveria por que educaacute-lo

ou seja natildeo haveria motivo eacutetico para tanto nem

uma razatildeo que fosse capaz de persuadir a parte

desiderativa Tampouco poderia haver educaccedilatildeo

do desejo se a parte desiderativa natildeo fosse

naturalmente educaacutevel i e constituiacuteda por

natureza para obedecer agrave razatildeo (AGGIO 2017

no prelo)

Essa possibilidade de educar o desejo eacute igualmente a

possibilidade de educar a emoccedilatildeo pois a emoccedilatildeo eacute da alccedilada do

desiderativo assim como os trecircs tipos de desejo que lhe correspondem e

como as virtudes morais que potildeem o fim e que satildeo possiacuteveis devido agrave

habituaccedilatildeo ao que eacute correto Ao habituar corretamente os desejos

igualmente seratildeo corretamente habituadas as emoccedilotildees que lhes

189

acompanham Tal educaccedilatildeo eacute demasiado importante o que percebemos

por interpretaccedilotildees como as de Zingano (2008 p 24) que escreve ldquoas

emoccedilotildees tecircm que estar previamente educadas moralmente para que a

razatildeo possa acompanhaacute-las e lhes dar a reta direccedilatildeordquo Poreacutem ainda

devemos fornecer melhor explicaccedilatildeo para a possibilidade de moderar e

alterar as emoccedilotildees a forma e a possibilidade de alterar o modo como

sentimos e o que sentimos mudanccedilas operadas pela educaccedilatildeo Essa

explicaccedilatildeo eacute necessaacuteria bem observa o mesmo estudioso como vimos

anteriormente porque mesmo que a razatildeo praacutetica interfira nas emoccedilotildees

nada garante que consiga modificaacute-las Eacute preciso conseguir uma

precedecircncia e prevalecircncia da accedilatildeo (bem conduzida pelo haacutebito) em

relaccedilatildeo agrave disposiccedilatildeo moral que se fixaraacute em virtude Mas o que eacute

preciso fazer para que tal educaccedilatildeo aconteccedila

Aristoacuteteles no Livro X da EN comeccedila a responder tais perguntas

observando que a maioria natildeo faz o que deve por ser nobre mas por

medo da puniccedilatildeo Isso acontece porque ldquovivendo sob o impeacuterio da

paixatildeo os homens perseguem suas proacuteprias satisfaccedilotildees e os meios de

realizaacute-las e evitam as dores que a isso se opotildeem e eles natildeo tecircm

nenhuma ideia do que eacute nobre e verdadeiramente agradaacutevel por natildeo o

terem jamais experimentadordquo (EN X 10 1179b13-16)172 Assim sendo

haveria algum argumento capaz de persuadir essas pessoas Aristoacuteteles

observa que se natildeo eacute impossiacutevel eacute ao menos difiacutecil extirpar por meio do

raciociacutenio os haacutebitos inveterados no caraacuteter Pensa ainda que devemos

nos considerar felizes se dispomos de todos os meios para nos tornarmos

honestos e com isso conseguirmos participar de algum modo da virtude

Mas como isso seria possiacutevel Por natureza por haacutebito ou pelo ensino

Natildeo seria por natureza jaacute que os dons naturais natildeo dependem de noacutes

como explica o passo seguinte

O raciociacutenio e o ensino por sua vez natildeo satildeo

temo igualmente poderosos em todos os homens

mas eacute preciso cultivar antes ao menos os haacutebitos

a alma do ouvinte em vista de lhe fazer estimar

ou abominar o que deve secirc-lo como por uma terra

chamada a fazer frutificar a semente Pois o

homem que vive sob o impeacuterio da paixatildeo natildeo

saberaacute escutar um raciociacutenio que busca desviaacute-lo

172 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original πάθει γὰρ ζῶντες τὰς οἰκείας ἡδονὰς διώκουσι καὶ δι ὧν

αὗται ἔσονται φεύγουσι δὲ τὰς ἀντικειμένας λύπας τοῦ δὲ καλοῦ καὶ ὡς

ἀληθῶς ἡδέος οὐδ ἔννοιαν ἔχουσιν ἄγευστοι ὄντες

190

de seu viacutecio e nem mesmo o compreenderaacute Mas

o homem que estaacute nesse estado como eacute possiacutevel

fazecirc-lo alterar de sentimento (EN X 10 1179b23-

28)173

De um modo geral parece que o raciociacutenio que cede agrave paixatildeo natildeo

o faz por constrangimento assim para que um homem seja bom deve

haver previamente uma disposiccedilatildeo do caraacuteter que seja apropriada agrave

virtude que estime o que eacute nobre e que despreze o que eacute vergonhoso

Mesmo que tais disposiccedilotildees recebam uma educaccedilatildeo de acordo com a

retidatildeo desde a juventude a tarefa se torna ainda mais difiacutecil se natildeo se

for educado sob leis justas porque viver corajosamente natildeo eacute agradaacutevel

para a maioria das pessoas especialmente para os jovens Por isso eacute

conveniente estipular pelas leis o modo de educar e o modo de viver

que deixaraacute de ser doloroso com o haacutebito Natildeo basta todavia uma

educaccedilatildeo e cuidados desde a juventude eacute preciso que os cidadatildeos ainda

quando adultos sejam capazes de praticar as coisas aprendidas e faccedilam

delas haacutebitos A habituaccedilatildeo eacute necessaacuteria desde a infacircncia desde os

ensinamentos apresentados no acircmbito domeacutestico mas as leis seratildeo

necessaacuterias na idade adulta e por toda a vida porque a maioria obedece

mais agrave necessidade que agrave razatildeo e mais agrave puniccedilatildeo que ao sentido do bem

Do mesmo modo caso se pretenda que um homem seja bom este

deve receber uma boa educaccedilatildeo e os haacutebitos do homem de bem aleacutem de

se ocupar com coisas honestas natildeo fazendo o que eacute vil nem voluntaacuteria

nem involuntariamente Se aqueles que natildeo alcanccedilam a plena virtude soacute

podem agir bem em uma vida submissa agrave regra inteligente e perfeita

conseguida agrave forccedila Aristoacuteteles entende que ao menos no iniacutecio da

educaccedilatildeo a autoridade eacute necessaacuteria A autoridade paterna contudo natildeo

seraacute suficiente por natildeo possuir nem a forccedila nem o poder corretivo por

isso a lei que tem poder de obrigar eacute uma regra que emana de certa

prudecircncia e a inteligecircncia deve poder fazecirc-lo Se o homem detesta

aquilo que faz oposiccedilatildeo aos seus impulsos a lei natildeo deve estar a cargo

da pessoa mas prescrever o que eacute honesto dispensando o agente de se

tornar quando natildeo for possiacutevel prudente ldquoA melhor soluccedilatildeo eacute

portanto se entregar agrave justa solicitude da autoridade puacuteblica e ser capaz

173 Idem ὁ δὲ λόγος καὶ ἡ διδαχὴ μή ποτ οὐκ ἐν ἅπασιν ἰσχύει ἀλλὰ δεῖ

προδιειργάσθαι τοῖς ἔθεσι τὴν τοῦ ἀκροατοῦ ψυχὴν πρὸς τὸ καλῶς χαίρειν καὶ

μισεῖν ὥσπερ γῆν τὴν θρέψουσαν τὸ σπέρμα οὐ γὰρ ἂν ἀκούσειε λόγου

ἀποτρέποντος οὐδ αὖ συνείη ὁ κατὰ πάθος ζῶν τὸν δ οὕτως ἔχοντα πῶς οἷόν

τε μεταπεῖσαι

191

de fazecirc-lordquo (EN X 10 1180a29-31)174 Caso natildeo haja o interesse da

autoridade puacuteblica nesses assuntos pensa-se que o melhor eacute que cada

indiviacuteduo deva propor a seus filhos e amigos uma vida virtuosa ou ao

menos tentar fazer com que tenham vontade viver virtuosamente

Com isso Aristoacuteteles parece pensar que um patriarca conseguiraacute

cumprir sua tarefa educadora se tiver um espiacuterito legislador Se a

educaccedilatildeo puacuteblica eacute exercida em meio agraves leis e se somente boas leis

produzem uma boa educaccedilatildeo igualmente em casa deve haver boas

regras Se tais leis satildeo escritas ou natildeo natildeo importa O que importa eacute que

sejam capazes de fornecer a educaccedilatildeo a uma soacute pessoa ou a um grupo

Na cidade satildeo as disposiccedilotildees legais e os costumes que tecircm a forccedila para

sancionar mas nas famiacutelias o pai e os usos privados devem ter tal poder

sendo que o poder coercitivo deve ser mais forte nesse acircmbito porque

haacute laccedilos afetivos que unem pai e filho Isso deve ser aproveitado pois

nas crianccedilas existe uma afecccedilatildeo e uma docilidade naturais Nesse ponto

a educaccedilatildeo individual eacute superior agrave puacuteblica pois sabe o que eacute melhor

para o indiviacuteduo a ser educado ldquoJulgaremos entatildeo que eacute tida uma conta

mais exata dos particulares individuais quando se lida com a educaccedilatildeo

privada cada sujeito encontrando entatildeo mais facilmente o que

corresponde agraves suas necessidadesrdquo (EN X 10 1180b11-12) Os cuidados

dispensados ao indiviacuteduo seratildeo no entanto mais bem dados por algueacutem

que conheccedila do universal que saiba de um modo geral o que conveacutem

aos que se encontram em formaccedilatildeo A esse respeito Aristoacuteteles escreve

Eacute provaacutevel portanto que aquele que deseja por

meio da disciplina educativa tornar os homens

melhores quer eles sejam em grande nuacutemero

quer em pequeno nuacutemero deve se esforccedilar para

tornar-se a si mesmo capaz de legislar se eacute pelas

leis que noacutes podemos nos tornar bons colocar de

fato a um indiviacuteduo qualquer que seja aquilo que

propomos a vosso cuidado na disposiccedilatildeo moral

conveniente natildeo estaacute ao alcance de qualquer um

mas se essa tarefa vem a algueacutem eacute seguramente

ao homem que possui o conhecimento cientiacutefico

como eacute aplicaacutevel para a medicina e para as outras

artes que fazem apelo a alguma solicitude e agrave

174 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original κράτιστον μὲν οὖν τὸ γίνεσθαι κοινὴν ἐπιμέλειαν καὶ ὀρθὴν

καὶ δρᾶν αὐτὸ δύνασθαι

192

prudecircncia (EN X 10 1180b23-28)175

A analogia meacutedica nos faz entender melhor por que a educaccedilatildeo

proposta eacute adequada agrave emoccedilatildeo a medicina grega de linha hipocraacutetica

bem conhecida por Aristoacuteteles era questatildeo de equiliacutebrio Por esses

motivos pensamos que o mesmo valha para a emoccedilatildeo sendo

acompanhada de prazer e dor e tendo a ver com os desejos deveraacute

igualmente poder receber certa educaccedilatildeo para equilibrar-se com a razatildeo

praacutetica Tal educaccedilatildeo emocional por sua vez viraacute com o auxiacutelio da

melhor forma da capacidade calculativa da alma a prudecircncia e de seus

recursos a saber a boa deliberaccedilatildeo e a escolha deliberada que

concorreratildeo agrave boa accedilatildeo e agrave melhor forma que a vida humana possa

alcanccedilar Por isso Besnier propocircs (2008 p 91) que a formaccedilatildeo eacutetica

poderia ser entendida como uma ldquoarte da paixatildeordquo - embora lsquoartersquo natildeo

pareccedila ser termo empregado pelo comentador no mesmo sentido que

teacutechnē eacute usado por Aristoacuteteles - sendo oposta ao viver segundo a

emoccedilatildeo traccedilo dos jovens e dos incompletamente educados Sobre isso

Besnier escreveu

Para Aristoacuteteles quem vive segundo as paixotildees

(no niacutevel das paixotildees) vive certamente sem arte

(sem a arte da felicidade) para a qual lhe falta a

disposiccedilatildeo) o vicioso e o virtuoso tecircm essa

capacidade o segundo como arte verdadeira o

primeiro conforme uma contra-arte [] que natildeo o

tornaraacute feliz mas ao menos teraacute a vantagem de lhe

proporcionar um percurso de vida coerente Um

torna sua vida coerente pela busca da mediania o

outro pela de um extremo (em excesso ou

deficiecircncia) (BESNIER 2008 p 92)

O haacutebito agrave virtude moral proporcionado pelas regras corretas - da

razatildeo da casa da poacutelis - favorece a forma adequada da emoccedilatildeo E para

responder a pergunta que haviacuteamos levantado em um capiacutetulo anterior

acerca da diferenccedila entre haacutebito e ensino jaacute que ao longo deste toacutepico

175 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original τάχα δὲ καὶ τῷ βουλομένῳ δι ἐπιμελείας βελτίους ποιεῖν

εἴτε πολλοὺς εἴτ ὀλίγους νομοθετικῷ πειρατέον γενέσθαι εἰ διὰ νόμων ἀγαθοὶ

γενοίμεθ ἄν ὅντινα γὰρ οὖν καὶ τὸν προτεθέντα διαθεῖναι καλῶς οὐκ ἔστι τοῦ

τυχόντος ἀλλ εἴπερ τινός τοῦ εἰδότος ὥσπερ ἐπ ἰατρικῆς καὶ τῶν λοιπῶν ὧν

ἔστιν ἐπιμέλειά τις καὶ φρόνησις

193

falamos dos dois podemos acatar a proposta de Irwin (1978 p 568) O

estudioso entende ensino como aquele tipo de educaccedilatildeo apto a

desenvolver as virtudes intelectuais tatildeo necessaacuterias agrave virtude moral O

ensino natildeo determina os fins buscados por um homem que devem ser

determinados pela virtude moral que eacute adquirida por meio de treino ou

seja do haacutebito Ambos como observa Zingano exigem tempo e

experiecircncia constituindo aquilo que parece ser a educaccedilatildeo ideal para a

vida moralmente boa A habituaccedilatildeo moral sozinha seria como na

proposta de Irwin (1975 p 576-577) uma educaccedilatildeo incompleta porque

natildeo produziria virtude de caraacuteter Por conseguinte embora Irwin

entenda que Aristoacuteteles natildeo o diga pensamos ter deixado claro ao longo

de nosso estudo que o filoacutesofo entende que a virtude moral requer o

envolvimento de ambas as capacidades da alma em diversas de suas

(sub)capacidades para fazer do homem pleno Quando o filoacutesofo exige

que a virtude completa requeira sabedoria exige ao mesmo tempo que

haja cooperaccedilatildeo entre as duas capacidades da alma ao menos sob a

forma de um alinhamento entre percepccedilotildees imaginaccedilotildees pensamento

intelecto opiniotildees juiacutezos desejos prazeres e emoccedilotildees Por conseguinte

algo mais que uma accedilatildeo virtuosa irrefletida (palavras de Irwin) eacute

necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um bom caraacuteter

O tipo de educaccedilatildeo proposto ao fim e ao longo da EN permitiraacute

ao cidadatildeo mais que deliberar corretamente e escolher deliberadamente

por auxiacutelio de uma virtude que lhe eacute alheia Permitiraacute fazer tais caacutelculos

e ter tais preferecircncias por si mesmo graccedilas agrave sua proacutepria prudecircncia que

o levaraacute aos melhores desejos e a por-se os bons fins Isso tudo garantiraacute

a emoccedilatildeo moderada e ajustada na escolha que levaraacute agrave boa accedilatildeo e agrave vida

feliz peculiares ao homem ldquoNo homem bem-educado o paacutethos natildeo eacute

uma forccedila que colocaraacute permanentes obstaacuteculos agrave alma razoaacutevel ele estaacute

a serviccedilo do loacutegos e em consonacircncia com elerdquo (LEBRUN 2009 p 16)

Para tanto poacutelis e poliacutetēs (cidadatildeo) contam com auxiliares na mudanccedila

e adequaccedilatildeo emocional as artes (teacutechnai) que facilitam o trabalho de

habituaccedilatildeo conforme a razatildeo Vejamos portanto de que modo a arte

poeacutetica e arte retoacuterica podem colaborar com a educaccedilatildeo proposta para

mudanccedila dasnas emoccedilotildees para que harmonizem com a solicitaccedilatildeo

racional e como tal mudanccedila pode ser apreciada eticamente

3 b) A retoacuterica como instrumento de mudanccedila nas emoccedilotildees

194

Na Retoacuterica tambeacutem podemos ler sobre os perigos que

determinadas emoccedilotildees (ou emoccedilotildees desmesuradas) representam agrave vida

poliacutetica Aristoacuteteles afirma que o ldquoataque verbal a compaixatildeo a ira e

outras paixotildees da alma semelhantes a estas natildeo afetam o assunto mas

sim o juizrdquo (Rhet 1354a16-18)176 Afirma tambeacutem que determinadas

emoccedilotildees natildeo devem ser suscitadas em certos lugares caso da ira do

oacutedio e da piedade que natildeo devem estar presentes no areoacutepago porque

pervertem o juiz (Rhet I 1 1354a24-25) ldquoNa sua apreciaccedilatildeo dos fatos

intervecircm muitas vezes a amizade a hostilidade e o interesse pessoal

com a consequecircncia de natildeo mais conseguirem discernir a verdade com

exatidatildeo e de seu juiacutezo ser obscurecido por um sentimento egoiacutesta de

prazer ou de dorrdquo (Rhet I 1 1354b8-11)177 No acircmbito do discurso

persuasivo as emoccedilotildees apresentam esse aspecto especiacutefico sua

capacidade de alterar de afetar os juiacutezos

Tal aspecto da Retoacuterica eacute interessante porque aborda a arte que

tem ldquocapacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim

de persuadirrdquo (Rhet I 2 1355b25-26)178 A arte retoacuterica revela a

capacidade de descobrir os meios de persuasatildeo sobre qualquer questatildeo

o que a torna peculiar Conveacutem notar quais propostas do tratado em

questatildeo possam valer para uma investigaccedilatildeo de cunho eacutetico acerca das

emoccedilotildees em sua relaccedilatildeo com a plenitude daquilo que eacute propriamente

humano e que favoreccedila as relaccedilotildees das capacidades racionais e natildeo

racionais Pretendemos entender especialmente como o orador

consegue suscitar ou mudar emoccedilotildees com estas mudar o juiacutezo do

puacuteblico e como essa habilidade pode auxiliar uma educaccedilatildeo moral que

modere as emoccedilotildees

Podemos comeccedilar nossa pesquisa do assunto pela observaccedilatildeo das

provas de persuasatildeo proacuteprias agrave retoacuterica ldquoAs provas de persuasatildeo

fornecidas pelo discurso satildeo de trecircs espeacutecies umas residem no caraacuteter

moral do orador outras no modo como se dispotildee o ouvinte e outras no

proacuteprio discurso pelo que este demonstra ou parece demonstrarrdquo (Rhet

176 Traduccedilatildeo de Alves Alberto e Pena (2012) no original διαβολὴ γὰρ καὶ

ἔλεος καὶ ὀργὴ καὶ τὰ τοιαῦτα πάθη τῆς ψυχῆς οὐ περὶ τοῦ πράγματός ἐστιν

ἀλλὰ πρὸς τὸν δικαστήν 177Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original πρὸς οὓς

καὶ τὸ φιλεῖν ἤδη καὶ τὸ μισεῖν καὶ τὸ ἴδιον συμφέρον συνήρτηται πολλάκις

ὥστε μηκέτι δύνασθαι θεωρεῖν ἱκανῶς τὸ ἀληθές ἀλλ ἐπισκοτεῖν τῇ κρίσει τὸ

ἴδιον ἡδὺ ἢ λυπηρόν 178 Idem δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν

195

I 2 1356a1-4)179 A persuasatildeo pelo caraacuteter ocorre quando o discurso eacute

proferido de modo a deixar a impressatildeo de que o orador eacute digno de feacute

Essa confianccedila deve resultar do discurso e natildeo de uma opiniatildeo preacutevia

quanto ao caraacuteter do orador pois a probidade de quem fala eacute importante

agrave persuasatildeo sendo o caraacuteter ldquoquaserdquo o principal meio de persuasatildeo

Quando acarretada pela disposiccedilatildeo dos ouvintes a persuasatildeo ocorre ao

serem levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso Isso acontece

porque os juiacutezos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou

alegria amor ou oacutedio (Rhet I 2 1356a15-16) Entatildeo a persuasatildeo eacute

especialmente tratada quando se fala das emoccedilotildees e parece que na

retoacuterica os juiacutezos podem decorrer ou vir junto das emoccedilotildees por

intermeacutedio das aparecircncias e opiniotildees que devem ser apresentadas pelo

discurso tornando essas emoccedilotildees afecccedilotildees do corpo e da alma

Se as provas por persuasatildeo satildeo obtidas por estes meios quem

pode se servir delas eacute aquele que eacute capaz de formar silogismos que

pode teorizar sobre os caracteres sobre as virtudes e sobre as emoccedilotildees

Aristoacuteteles entende a retoacuterica como filha da dialeacutetica e da poliacutetica e noacutes

arriscamos ainda a dizer tal arte pode ter influecircncia na moralidade por

interferir em um certo tipo de deliberaccedilatildeo e por depender de

conhecimentos sobre caracteres e virtudes aleacutem de manipular as

aparecircncias dos caracteres proporcionando razatildeo para os argumentos

Konstan explica ldquoas emoccedilotildees satildeo obtidas por nossa interpretaccedilatildeo das

palavras atos e intenccedilotildees dos outros cada uma de seu modo

caracteriacutesticordquo (KONSTAN 2006 p XII traduccedilatildeo nossa) Para o autor

uma consequecircncia dessa abordagem eacute a possiacutevel mudanccedila das emoccedilotildees

ao modificar seu modo de interpretar o evento que desencadeia a

emoccedilatildeo em questatildeo mas afirma que isso natildeo eacute o mesmo que convencer

algueacutem por argumentos racionais Propotildee que diferentemente dos

apetites e dos impulsos as emoccedilotildees satildeo dependentes da capacidade de

simbolizar donde a importacircncia da persuasatildeo para mudar os

julgamentos que as compotildeem pois tal apreciaccedilatildeo eacute capaz de tocar a

ldquomola dos afetosrdquo (LEBRUN 2009 p 14)

Provavelmente essa interpretaccedilatildeo seja conveniente agrave teoria

proposta por Nussbaum acerca da percepccedilatildeo do objeto de emoccedilatildeo poder

modificaacute-la A autora avalia a possibilidade pautada em uma esperanccedila

179 Estas provas podem mesmo alterar uma emoccedilatildeo em outra afirma Sorabji

(2002 p 23) Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no

original τῶν δὲ διὰ τοῦ λόγου ποριζομένων πίστεων τρία εἴδη ἔστιν αἱ μὲν γάρ

εἰσιν ἐν τῷ ἤθει τοῦ λέγοντος αἱ δὲ ἐν τῷ τὸν ἀκροατὴν διαθεῖναί πως αἱ δὲ ἐν

αὐτῷ τῷ λόγῳ διὰ τοῦ δεικνύναι ἢ φαίνεσθαι δεικνύναι

196

de que uma mudanccedila no pensamento possa levar a uma mudanccedila no

comportamento e igualmente na emoccedilatildeo pois esta eacute um modo de ver

ldquocarregado-de-valorrdquo (NUSSBAUM 2008 p 232) como propusemos

acima Essa teoria tem importante implicaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo moral

pois a autora entende que Aristoacuteteles fornece ao futuro orador instruccedilotildees

para provocar coacutelera apresentando os seus objetos por um novo acircngulo

Sendo possiacutevel provocar as emoccedilotildees eacute possiacutevel direcionar o agente a

senti-las de uma maneira ou de outra e com isso haacute a possibilidade de

mudanccedila nasdas emoccedilotildees por um tipo de instruccedilatildeo com certo fundo

racional o discurso persuasivo e emocional como leremos a seguir

Se ele diz entendemos que os Persas realmente

natildeo erraram conosco deixaremos de estar

encolerizados com eles Mas claro a vida nem

sempre eacute assim Algumas coacuteleras podem na

verdade alterar diretamente com uma nova

consideraccedilatildeo dos fatos muitas natildeo Novamente

algum oacutedio e repulsa por grupos pode prevenir seu

surgimento por uma boa educaccedilatildeo moral e ainda

a despeito de nossos melhores esforccedilos eacute como se

isso tivesse alguma raiz profunda na

personalidade (NUSSBAUM 2008 p 233

traduccedilatildeo nossa)

Eacute provaacutevel que as propostas dos dois estudiosos natildeo destoem jaacute

que ao se falar de educaccedilatildeo moral estaacute-se a falar tambeacutem de habituaccedilatildeo

e embora esta natildeo dispense a racionalidade e portanto eacute provaacutevel que

natildeo dispense a formulaccedilatildeo de certo tipo de silogismos por parte do

puacuteblico eacute possiacutevel entender que estes caacutelculos natildeo estejam realmente

implicados no acircmbito emocional retoacuterico nem mesmo em sua

capacidade de auxiliar e consolidador de uma educaccedilatildeo moral para a

cidadania pois a racionalidade estaacute no discurso proferido e talvez natildeo

exatamente na percepccedilatildeo que o puacuteblico tem de tal discurso

Uma possiacutevel prova disso eacute que para que o jovem retor alcance

seus intentos eacute preciso ter o que dizer e dizecirc-lo de forma conveniente

Por isso a retoacuterica trata da ordem dos elementos persuasivos no

enunciado e tambeacutem da pronunciaccedilatildeo Esta assenta na voz ou seja na forma como eacute necessaacuterio empregaacute-la de acordo com cada emoccedilatildeo

lindando com aparecircncias com corpo e alma como Aristoacuteteles explica

A expressatildeo possuiraacute a forma conveniente se

exprimir emoccedilotildees e caracteres e se conservar a

197

ldquoanalogiardquo com os assuntos estabelecidos Haacute

analogia se natildeo se falar grosseiramente acerca de

assuntos importantes nem solenemente de

assuntos de pouca monta nem se se colocarem

ornamentos em uma palavra vulgar [] O

discurso seraacute ldquoemocionalrdquo se relativamente a uma

ofensa o estilo for o de um indiviacuteduo

encolerizado se relativo a assuntos iacutempios e

vergonhosos for o de um homem indignado e

reverente se sobre algo que deve ser louvado o

for de tal forma que suscite admiraccedilatildeo com

humildade se sobre coisas que suscitam

compaixatildeo (RhetIII 7 1408a10-14 e 16-19)180

O estilo apropriado torna o discurso convincente porque o

ouvinte eacute levado a pensar (oiacuteountai) que quem fala diz a verdade A

persuasatildeo pelo discurso acontece quando se mostra a verdade ou o que

parece verdadeiro a partir daquilo que eacute persuasivo em cada caso

particular Nestas circunstacircncias os ouvintes estatildeo em tal estado

emocional que pensam que as coisas satildeo como o orador expotildee mesmo

que natildeo sejam O ouvinte compartilha as emoccedilotildees do orador embora

este possa natildeo as dizer

Um discurso que pretenda emocionar deveraacute usar de recursos

como o dizer nomes apropriados agrave maneira de ser que expressa

caracteres condizentes ao puacuteblico sendo que o tipo de palavras

empregado pode facilitar a persuasatildeo e as emoccedilotildees O discurso deve ser

solene e capaz de emocionar e para tanto deve usar o ritmo certo

portanto em debates satildeo adequadas as teacutecnicas de representaccedilatildeo teatral

gerando uma aparecircncia convincente e favorecendo a emoccedilatildeo ldquoEacute por

isso que quando a componente de representaccedilatildeo eacute retirada o discurso

natildeo perfaz o seu trabalho e parece fracordquo (Rhet III 12 1413b) Haacute

portanto uma seacuterie de peculiaridades atreladas a esse tipo de discurso

Os elementos que se relacionam com o auditoacuterio consistem em

obter a sua benevolecircncia suscitar a sua coacutelera e por vezes atrair a sua

180 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original Τὸ δὲ

πρέπον ἕξει ἡ λέξις ἐὰν ᾖ παθητική τε καὶ ἠθικὴ καὶ τοῖς ὑποκειμένοις

πράγμασιν ἀνάλογον τὸ δ ἀνάλογόν ἐστιν ἐὰν μήτε περὶ εὐόγκων

αὐτοκαβδάλως λέγηται μήτε περὶ εὐτελῶν σεμνῶς μηδ ἐπὶ τῷ εὐτελεῖ ὀνόματι

ἐπῇ κόσμος[] παθητικὴ δέ ἐὰν μὲν ᾖ ὕβρις ὀργιζομένου λέξις ἐὰν δὲ ἀσεβῆ

καὶ αἰσχρά δυσχεραίνοντος καὶ εὐλαβουμένου καὶ λέγειν ἐὰν δὲ ἐπαινετά

ἀγαμένως ἐὰν δὲ ἐλεεινά ταπεινῶς καὶ ἐπὶ τῶν ἄλλων δὲ ὁμοίως

198

atenccedilatildeo ou dispersaacute-la porque nem sempre eacute conveniente por o

auditoacuterio atento razatildeo pela qual muitos dos oradores tentam levaacute-lo a

rir Todos estes recursos caso se queira levam a uma boa compreensatildeo

e a apresentar o orador como um homem respeitaacutevel pois a este tipo de

homem os ouvintes prestam mais atenccedilatildeo Satildeo igualmente mais atentos

a temas importantes a coisas que lhes digam respeito agraves que encham de

espanto e agraves que sejam agradaacuteveis Por isso eacute necessaacuterio introduzir a

ideia de que o discurso trata de coisas deste gecircnero O que implica

novamente a presenccedila das aparecircncias que provocam a imaginaccedilatildeo e

portanto da percepccedilatildeo (ao menos sensiacutevel) no discurso persuasivo

poreacutem se a intenccedilatildeo eacute que o puacuteblico natildeo esteja atento dever-se-aacute dizer

que o assunto natildeo eacute importante que natildeo lhe diz respeito que eacute penoso

O orador deve igualmente usar o epiacutelogo parte do discurso

composta por quatro elementos tornar o ouvinte favoraacutevel agrave causa do

orador e desfavoraacutevel agrave do adversaacuterio amplificar ou minimizar aquilo

que eacute exposto dispor o ouvinte a um comportamento emocional

recapitular Apoacutes ter mostrado que se diz a verdade e o adversaacuterio diz

falsidades eacute preciso fazer um elogio ou uma censura e finalmente

ratificar o assunto Eacute necessaacuterio visar uma de duas coisas ou revelar-se

como homem de bem quer diante dos ouvintes quer em termos gerais

ou apresentar o adversaacuterio como perverso quer diante dos ouvintes

quer em termos gerais Portanto o discurso do retor eacute capaz de mostraacute-

lo e de mostrar os outros como virtuosos ou viciosos mas precisa

tambeacutem provocar nos ouvintes comportamentos emocionais como

propotildee o passo subsequente

Assim a ciecircncia das emoccedilotildees181 eacute semelhante

agravequela da arquitetura como a arquitetura (ou a

construccedilatildeo de casa na frase de Aristoacuteteles) nos

informa como construir a estrutura que nos

protegeraacute dos elementos entatildeo o conhecimento

das emoccedilotildees nos diz como excitar ou causar

emoccedilotildees que disporatildeo os outros de um modo que

eacute para nossa proacutepria vantagem A teacutecnica de

causar emoccedilotildees requer um entendimento dos

comportamentos que as excitam mas isso tem em

mira suplementar os outros meios de persuasatildeo

que Aristoacuteteles analisa na Retoacuterica explorando

em particular os tipos de crenccedila que satildeo assistidos

pela dor e pelo prazer (KONSTAN 2006 p 37

181Termos de Konstan

199

traduccedilatildeo nossa)

Desta feita entendemos que o discurso persuasivo eacute um dos

modos de mudar as emoccedilotildees ou ao menos de emocionar conforme o

desejo e o intelecto do orador Confirmando nossa proposta Besnier

pensa que a praacutetica do discurso persuasivo em conjunto com o

conhecimento das predisposiccedilotildees que satildeo favoraacuteveis ou que obstam o

desencadeamento de uma emoccedilatildeo poderia ser exercida a fim de formar

uma disposiccedilatildeo virtuosa acerca de cada emoccedilatildeo Igualmente poderia ser

usada para extenuar ou fazer desaparecer uma reaccedilatildeo passional que

fosse julgada pouco fundada ou se o juiacutezo axioloacutegico (palavras de

Besnier) que muda o estado do desejo for mal justificado ou

desproporcional pois para Aristoacuteteles as disposiccedilotildees concernem agraves

emoccedilotildees Para que sejam formadas podem requerer capacidade oratoacuteria

ou dialeacutetica e um conhecimento da alma assunto cabiacutevel agrave funccedilatildeo

educativa da arte poliacutetica

O que significaria que o caraacuteter comporta disposiccedilotildees que satildeo

fixadas por meio de treinamento ou adestramento a partir de

disposiccedilotildees deficientes ou de uma habituaccedilatildeo sem interferecircncia da

inteligecircncia e da deliberaccedilatildeo Com isso o Livro II da Retoacuterica pode

integrar a deliberaccedilatildeo aos componentes psiacutequicos que satildeo disponiacuteveis ao

ouvinte e nos quais o orador pode intervir mas tal intervenccedilatildeo natildeo seria

educaccedilatildeo Essa distinccedilatildeo potildee as disposiccedilotildees virtuosas e viciosas ao lado

da idade e das circunstacircncias sendo potecircncias que podem ser exploradas

pelo orador que pode transformaacute-las em emoccedilotildees ou em juiacutezos sobre o

que fazer (Rhet II 12 1388b31 1389a2) dando conforme Besnier

(2008 p 107) um elemento de deliberaccedilatildeo agrave emoccedilatildeo

O mesmo autor afirma compreender que isso acontece desde que

a mudanccedila nos juiacutezos possa ser provocada pelo orador atraveacutes dos

recursos da arte A mudanccedila em questatildeo acontece nos juiacutezos e se daacute por

persuasatildeo mas mesmo assim o movimento que leva a ela pode ser

considerado afecccedilatildeo porque quem a produz natildeo eacute o ouvinte e sim o

orador Este eacute agente externo e o que pretende ou seja alterar a crenccedila

do ouvinte acontece por meios que satildeo proacuteximos agrave deliberaccedilatildeo Nesse

caso contudo o que afeta o ouvinte natildeo eacute um discurso que o educa e

que faz com que mude de juiacutezo portanto ldquoo juiacutezo obtido por persuasatildeo

se distingue do adquirido por exerciacutecio repetido da deliberaccedilatildeordquo

(BESNIER 2008 p 107) o que diferencia a accedilatildeo da retoacuterica daquela da

educaccedilatildeo moral das emoccedilotildees

Pensamos que as consideraccedilotildees supramencionadas poreacutem natildeo

invalidam nossas observaccedilotildees acerca da forma como a persuasatildeo

200

retoacuterica pode atingir o campo eacutetico-poliacutetico jaacute que Aristoacuteteles deixa

bem claro que tal arte age nos juiacutezos dos cidadatildeos em momento

propriamente ligados agrave vida poliacutetica quando haacute exerciacutecio da democracia

em sua forma mais ativa Natildeo desmerecem nossa consideraccedilatildeo da

retoacuterica como elemento poliacutetico propiacutecio agrave educaccedilatildeo moral das

emoccedilotildees pois saber como conduzi-las ou perceber que satildeo manipuladas

pode ser favoraacutevel agraves instacircncias poliacuteticas de decisatildeo bem como aos

educadores que pretendem moderaacute-las Sendo nessas instacircncias que se

propotildeem os rumos da vida na poacutelis haveraacute intervenccedilatildeo da arte retoacuterica

nos modos como os cidadatildeos deveratildeo proceder em certas situaccedilotildees

Aleacutem do mais entendemos que de nada vale a simples habituaccedilatildeo

dirigida pela razatildeo na formaccedilatildeo da virtude se natildeo haacute ocasiatildeo de praticar

aquilo ao que se eacute habituado a fim de consolidar o que tal educaccedilatildeo

faculta Portanto defendemos que o conhecimento e a arte solicitados

pelo discurso satildeo igualmente uacuteteis agrave moralidade

Defenderemos proposta semelhante quanto agrave arte poeacutetica pois na

Poeacutetica ou a partir de tal tratado pode-se observar que para produzir a

catarse do medo e da piedade eacute preciso ldquoexcitaacute-los na audiecircnciardquo

(SORABJI 2002 p 24 traduccedilatildeo nossa) Por isso o poeta quando

escreve deve saber que tipo de poema de enredo excitaraacute tais emoccedilotildees

Diante dessa semelhanccedila a questatildeo eacute a consideraccedilatildeo do medo e da

piedade na Retoacuterica eacute coordenada com a observaccedilatildeo dessas emoccedilotildees

feita na Poeacutetica A resposta dada por Sorabji eacute em grande medida O

estudioso pensa que a pequena diferenccedila eacute que na Poeacutetica o medo eacute

sentido pela audiecircncia a princiacutepio depois pelos personagens da peccedila

As semelhanccedilas contudo satildeo mais visiacuteveis e satildeo ateacute usadas por

Aristoacuteteles em suas observaccedilotildees sobre o enredo com as quais o filoacutesofo

esquiva-se agrave objeccedilatildeo moral feita pela Repuacuteblica X aos poetas Platatildeo

compreendia que estes artistas mostravam a injusticcedila como bem-

sucedida e a justiccedila como malsucedida Aristoacuteteles pensava tal

proposta como incompatiacutevel com a necessidade da trageacutedia de imitar

acontecimentos temiacuteveis e dignos de piedade entendia que o enredo natildeo

deveria mostrar o homem bom passando da fortuna ao infortuacutenio nem o

homem mal passando do infortuacutenio agrave fortuna porque tais eventos natildeo

seriam dignos de temor ou piedade Tambeacutem por isso natildeo deveriam

apresentar um heroacutei excelente em virtude e justiccedila jaacute que a piedade vem

com um infortuacutenio natildeo merecido e o medo com o infortuacutenio de algueacutem

que percebemos ser como noacutes (hoacutemoios) Essas proposiccedilotildees potildeem a

Poeacutetica em contato com a Retoacuterica porque esta uacuteltima afirma que o

medo e a piedade satildeo excitados ao mostrar um sofrimento que aconteceu

com algueacutem como noacutes (Poet 13 1452b34 1453a1 Rhet II 5 1383a10

201

II 8 1386a25) Por isso Aristoacuteteles pode afirmar que o medo sentido no

teatro eacute genuiacuteno

Sorabji no entanto percebe que haacute ainda pequenas discrepacircncias

entre as duas obras em questatildeo Por exemplo quando a Poeacutetica

despreza a trageacutedia na qual o homem bom passa da boa agrave maacute fortuna o

texto parece contradizer a Retoacuterica que reserva a piedade agraves viacutetimas

boas (RhetII 8 1385b34) Na Poeacutetica eacute proposto o oposto pois tal

situaccedilatildeo pode ser antes uma profanaccedilatildeo de algo digno de temor e

piedade parecendo muito diferente da Retoacuterica Sobre esse assunto o

autor escreve

Mas o ponto importante para o presente propoacutesito

eacute que as consideraccedilotildees da emoccedilatildeo na Poeacutetica satildeo

tatildeo cognitivas como aquelas na Retoacuterica e isso

natildeo eacute deslocado de jeito nenhum pela analogia da

catharsis mesmo que aquela [] seja uma

analogia com coisas tais como os natildeo-cognitivos

laxativos e emotivos (SORABJI 2002 p 25

traduccedilatildeo nossa)

Por motivos como estes que datildeo margens agrave comparaccedilatildeo das duas

artes de emocionar em termos de cognitividade implicada nas emoccedilotildees

que despertam e por entendermos ambas as artes como colaboradoras

agravequela educaccedilatildeo moral que eacute proposta na EN por trabalharem e fazerem

aflorar no cidadatildeo aquilo que haacute de mais propriamente humano trataremos agora da forma como a Poeacutetica propotildee possibilidades de

mudanccedilas nasdas emoccedilotildees Buscaremos entender quais elementos de

racionalidade estatildeo implicados em tais mudanccedilas bem como o modo

pelo qual a poesia opera como forte aliada da educaccedilatildeo emocional

moral

3 c) A poesia como facilitadora da educaccedilatildeo moral

Nesse ponto da pesquisa estudaremos a poesia traacutegica porque

tambeacutem pode ser entendida como um tipo de arte de emocionar e como

um meio de alterar ou despertar emoccedilatildeo A confirmaccedilatildeo desta afirmaccedilatildeo

aparece com a definiccedilatildeo que Aristoacuteteles oferece da trageacutedia e que

destaca a funccedilatildeo especiacutefica de tal arte provocar medo e piedade bem

como a kaacutetharsis (catarse) dessas emoccedilotildees O filoacutesofo destaca os

acontecimentos e o enredo como o fim da trageacutedia sendo o fim o mais

importante de tudo Natildeo poderia haver trageacutedia sem accedilatildeo mas poderia

haver sem caracteres pois se um poeta juntar palavras bem elaboradas

202

quanto agrave elocuccedilatildeo e ao pensamento exprimindo caraacuteter natildeo realizaraacute a

funccedilatildeo traacutegica Uma trageacutedia ainda que seja inferior nesses aspectos

conseguiraacute muito mais por ter enredo e estruturaccedilatildeo de accedilotildees bem

elaboradas (Poet 6 1450a30-33) pois ldquoA trageacutedia eacute a imitaccedilatildeo de uma

accedilatildeo elevada e completa dotada de extensatildeo em uma linguagem

embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes que se

serve da acccedilatildeo e natildeo da narraccedilatildeo e que por meio da compaixatildeo e do

temor provoca a purificaccedilatildeo de tais paixotildeesrdquo (Poet 6 1449b24-28)182

As partes do enredo (myacutethos) satildeo os elementos da trageacutedia que

exercem maior atraccedilatildeo e emoccedilatildeo e essas partes satildeo a peripeacutecia

(peripeacuteteia) e os reconhecimentos (anagnōriacuteseis Poet 6 1450a34-35)

Sendo peripeacutecia a mudanccedila dos acontecimentos em seu contraacuterio

acontecendo de modo verossiacutemil e necessaacuterio agrave construccedilatildeo do texto e

reconhecimento a passagem da ignoracircncia ao conhecimento para

amizade ou oacutedio entre os que estatildeo destinados a serem infelizes ou

felizes Aristoacuteteles considera o reconhecimento que se daacute entre pessoas

mais belo se acompanhado da peripeacutecia e embora estes elementos natildeo

apareccedilam sempre juntos o tipo mais proacuteprio de reconhecimento eacute o que

vem acompanhado da peripeacutecia pois deste modo suscitam piedade ou

medo com maior facilidade As emoccedilotildees traacutegicas acontecem porque as

duas partes do enredo supramencionadas estatildeo extremamente ligadas ao

ser feliz ou infeliz contudo haacute um terceiro elemento do enredo o

sofrimento (paacutethos) que eacute um ato destruidor ou doloroso como as

mortes que aparecem em cena que igualmente pode causar medo e

piedade Com estes componentes percebemos a accedilatildeo das aparecircncias que

afetam a percepccedilatildeo provocando o puacuteblico pois mostram o sofrimento

alheio de forma surpreendente e emocionante podendo mesmo fazer

com que de certo modo o puacuteblico se ponha no lugar da personagem

sofredora ao associar certo tipo de pensamento ao desencadeamento das

emoccedilotildees traacutegicas

Esse tipo de proposta emocional eacute sugerido pela forma como o

filoacutesofo dispotildee as partes componentes da trageacutedia em grau de

importacircncia agrave composiccedilatildeo de um bom poema Primeiro o enredo parte

mais importante e essencial agrave trageacutedia segundo o caraacuteter (eacutethos) que eacute

uma espeacutecie de bela imagem A trageacutedia eacute entatildeo imitaccedilatildeo de accedilotildees em

uma trama (ou enredo myacutethos) e imitando accedilotildees imita os homens que

182 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original στιν οὖν τραγῳδία

μίμησις πράξεως σπουδαίας καὶ τελείας μέγεθος ἐχούσης ἡδυσμένῳ λόγῳ

χωρὶς ἑκάστῳ τῶν εἰδῶν ἐν τοῖς μορίοις δρώντων καὶ οὐ δι ἀπαγγελίας δι

ἐλέου καὶ φόβου περαίνουσα τὴν τῶν τοιούτων παθημάτων κάθαρσιν

203

agem demonstrando seu caraacuteter Em terceiro lugar vem o pensamento

(diaacutenoia) o ser capaz de exprimir o que eacute possiacutevel e o que eacute apropriado

O caraacuteter revela igualmente as decisotildees e o pensamento aparece nos

enunciados Quarto a elocuccedilatildeo (leacutexis) que tem relaccedilatildeo com as palavras

comunicadoras do pensamento Em quinto lugar aparece a muacutesica

(melopoiiacutea) mais agradaacutevel dentre os componentes elencados e o

espetaacuteculo (oacutepsis) sexto componente que atrai os espiacuteritos embora seja

a parte mais desprovida de arte e mais alheia agrave poeacutetica na opiniatildeo do

filoacutesofo porque a potecircncia da trageacutedia existe mesmo sem concursos e

atores aleacutem do que a montagem dos espetaacuteculos e a arte de quem

executa os acessoacuterios valem mais que do que a arte dos poetas em uma

encenaccedilatildeo (Poet 26 1461b26-36 et seq)

A duraccedilatildeo dos os enredos eacute igualmente importante deveratildeo ter

extensatildeo que facilite a recordaccedilatildeo pois como afirmamos se emocionar

com a trageacutedia requer certo tipo de pensamento O filoacutesofo entende

contudo que o limite mais amplo desde que perfeitamente claro seja

sempre o mais belo Para exemplificar a extensatildeo deve ter um tamanho

que reuacutena conforme os princiacutepios da verossimilhanccedila e da necessidade

a sequecircncia dos acontecimentos apresentados pelo enredo de modo que

mudem da felicidade agrave infelicidade e vice-versa (Poet 8 1451a12-15 9

1551b27-32) favorecendo a inteligibilidade e credibilidade do poema

Uma vez que a imitaccedilatildeo representa natildeo soacute uma

acccedilatildeo completa mas tambeacutem factos que inspiram

temor e compaixatildeo estes sentimentos satildeo muito

[mais] facilmente suscitados quando os factos se

processam contra a nossa expectativa por uma

relaccedilatildeo de causalidade entre si Desta forma a

imitaccedilatildeo seraacute mais surpreendente do que se

surgisse do acaso e da sorte pois os factos

acidentais causam mais admiraccedilatildeo quando parece

que acontecem de propoacutesito (Poet 10 1452a1-

6)183

Os fatos que natildeo parecem acontecer por acaso agitam os sentidos

183 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original ἐπεὶ δὲ οὐ μόνον

τελείας ἐστὶ πράξεως ἡ μίμησις ἀλλὰ καὶ φοβερῶν καὶ ἐλεεινῶν ταῦτα δὲ

γίνεται καὶ μάλιστα καὶ μᾶλλον ὅταν γένηται παρὰ τὴν δόξαν δι ἄλληλα τὸ γὰρ

θαυμαστὸν οὕτως ἕξει μᾶλλον ἢ εἰ ἀπὸ τοῦ αὐτομάτου καὶ τῆς τύχης ἐπεὶ καὶ

τῶν ἀπὸ τύχης ταῦτα θαυμασιώτατα δοκεῖ ὅσα ὥσπερ ἐπίτηδες φαίνεται

γεγονέναι

204

e a imaginaccedilatildeo do puacuteblico tornando os enredos mais belos Tais fatos

fazem tambeacutem o efeito proacuteprio agraves trageacutedias mais forte sendo este efeito

provocar emoccedilotildees e kaacutetharsis no puacuteblico graccedilas a uma agitaccedilatildeo de

certos elementos da razatildeo a partir da percepccedilatildeo sensiacutevel que eacute

provocada pela trama da trageacutedia e pela inteligibilidade interna agrave

composiccedilatildeo dessa trama Do mesmo modo ldquotemor e a compaixatildeo

podem realmente ser despertados pelo espetaacuteculo e tambeacutem pela

proacutepria estruturaccedilatildeo dos acontecimentos o que eacute preferiacutevel e proacuteprio de

um poeta superiorrdquo (Poet11 1453b1-3)184 A estrutura da trageacutedia

representa boas pessoas que sentem pesar mas natildeo devido a uma falta

que tenham cometido Esse aspecto correto conferido ao caraacuteter do heroacutei

traacutegico eacute causador da crenccedila que eacute parte do conteuacutedo da piedade

Partindo da proposta aristoteacutelica da emoccedilatildeo em questatildeo Nussbaum

(2008 p 239) entende que os julgamentos seratildeo suficientes para

despertaacute-la quando estiverem em conjunto com aquilo que chama de

julgamento eudaiacutemoniacutestico Tal julgamento concebe a pessoa ou o que

acontece a ela como partes do que eacute importante para o bem-estar de

quem avalia e os dramas despertam aquele tipo de preocupaccedilatildeo com o

foco na possibilidade de evento similar vir a acontecer como

propusemos pouco acima

Quanto ao medo ele eacute sentido segundo a interpretaccedilatildeo de

Nussbaum tanto pelo personagem que percebe coisas maacutes e iminentes

como por quem assistelecircouve como algum reflexo de possibilidades

que mostram da vida humana em geral Os personagens igualmente

podem ter e expressar vaacuterias emoccedilotildees enquanto os espectadores por

uma parte do texto se identificam com um ou outro personagem e por

isso tambeacutem experimentaratildeo aquelas emoccedilotildees ldquocompartilhando a raiva

e a desolaccedilatildeo de Filoctetes ou a devastaccedilatildeo de Eacutedipo quando ele

descobre o que fezrdquo (NUSSBAUM 2008 p 240 traduccedilatildeo nossa) Para

tanto eacute preciso que o enredo seja estruturado de tal forma necessaacuteria e

verossimilmente de modo que mesmo o simples ouvir a sequecircncia dos

acontecimentos embora natildeo a vendo faccedila temer e sentir piedade pelo

que aconteceu ao personagem com o qual se estabeleceu um certo

ldquoelordquo O viacutenculo eacute causado por certa semelhanccedila existente entre

personagem e puacuteblico graccedilas ao caraacuteter natildeo perfeito do heroacutei traacutegico

como explica Ricoeur

184 Idem Ἔστιν μὲν οὖν τὸ φοβερὸν καὶ ἐλεεινὸν ἐκ τῆς ὄψεως γίγνεσθαι ἔστιν

δὲ καὶ ἐξ αὐτῆς τῆς συστάσεως τῶν πραγμάτων ὅπερ ἐστὶ πρότερον καὶ

ποιητοῦ ἀμείνονος

205

[] satildeo tambeacutem as emoccedilotildees traacutegicas que exigem

que o heroacutei natildeo alcance a excelecircncia na virtude e

justiccedila devido a alguma ldquofaltardquo mas sem chegar

ao viacutecio ou maldade que o leve a desgraccedila eacute

intermediaacuterio [] Assim mesmo o discernimento

da falta traacutegica eacute excetuado pela qualidade

emocional da piedade do temor e do senso do

humano185 (RICOEUR 2010 p 82)

Se o poeta deve suscitar o prazer inerente ao medo e agrave piedade

por meio da imitaccedilatildeo isso deve ser feito a partir do encadeamento

racional dos acontecimentos na trama (Poet 14 1453b15-34 1454a1-9)

Por isso entendemos que a forma exigida por Aristoacuteteles agrave composiccedilatildeo

traacutegica potildee em associaccedilatildeo as duas instacircncias que completam um ser

verdadeiramente humano a racionalidade e as emoccedilotildees provocadas e

trabalhadas pela kaacutetharsis contemplando no acircmbito poeacutetico as

propostas que destacamos a partir de EN I13 e do passo EN X 7

1177b26-30

Igualmente haacute exigecircncias quanto aos caracteres dos personagens

com seu papel no emocionar e tambeacutem no efeito da trageacutedia eacute preciso

primeiro que sejam bons e que apareccedilam porque as accedilotildees do

personagem mostram-no empenhado em um propoacutesito sendo o caraacuteter

bom quando tal propoacutesito for bom Segundo os caracteres devem ser

apropriados Terceiro eacute preciso que sejam semelhantes aos nossos

caracteres confirmando a proposta da possibilidade similar Quarto e

uacuteltimo eacute exigido que sejam coerentes O que igualmente aproxima a

proposta da Poeacutetica das coisas eacuteticas bem como o faz a exigecircncia de

que seja representada uma accedilatildeo verossiacutemil e necessaacuteria mexendo ao

menos com as imaginaccedilotildees e as opiniotildees de quem com ela interage Por

conseguinte Nussbaum (2008 p 166) entende que reaccedilotildees a obras

como filmes se devem agrave grande identificaccedilatildeo com os eventos

apresentados pela ficccedilatildeo que satildeo nas palavras de Aristoacuteteles

parafraseadas pela autora ldquoo tipo de coisa que pode acontecerrdquo

Interpretaccedilatildeo que nos parece aplicaacutevel ao caso da trageacutedia e de seu

185Contudo o filoacutesofo observa que haacute tambeacutem contraponto entre eacutetica e poeacutetica

ldquoO myacutethos traacutegico ao girar em torno das reviravoltas da fortuna e

exclusivamente da felicidade para a infelicidade eacute uma exploraccedilatildeo das vias

pelas quais a accedilatildeo lanccedila contra todas as expectativas os homens de valor na

infelicidade Serve de contraponto agrave eacutetica que ensina como a accedilatildeo pelo

exerciacutecio das virtudes conduz agrave felicidade Ao mesmo tempo soacute adota do preacute-

saber da accedilatildeo seus aspectos eacuteticosrdquo (RICOEUR 2012 p 83)

206

espetaacuteculo

Por esses motivos o necessaacuterio e o verossiacutemil devem sempre ser

buscados tanto nos caracteres quanto nos acontecimentos de modo que

uma personagem diga ou faccedila o que eacute necessaacuterio ou verossiacutemil e que

uma coisa aconteccedila por causa da outra conferindo conforme tais

princiacutepios racionalidade ao enredo Aristoacuteteles sugere ainda que o

desenlace das tramas deve resultar do proacuteprio myacutethos e natildeo de uma

intervenccedilatildeo ex-machina Esse artifiacutecio no entanto pode ser usado em

coisas que se passam fora da accedilatildeo da peccedila ou em coisas que

aconteceram antes dela e que um mortal natildeo conheccedila ou em coisas

futuras que devem ser preditas e anunciadas Do mesmo modo natildeo deve

haver nada de irracional nas trageacutedias mas se houver que natildeo seja

apresentado em cena186

Os enredos devem ser estruturados e completados com a

elocuccedilatildeo dando aos acontecimentos o ar mais criacutevel possiacutevel Ao vecirc-los

como se estivesse diante dos proacuteprios fatos o poeta poderaacute descobrir o

que eacute apropriado e natildeo incorrer em contradiccedilatildeo ressaltando o primeiro

momento da miacutemesis identificado por Ricoeur baseado na relaccedilatildeo do

poeta com o mundo O poeta igualmente deve completar o enredo com

gestos o quanto for possiacutevel Do mesmo modo dos poetas com o

186Sobre a composiccedilatildeo do enredo ver Ricoeur (2010 p 59-60) mas haacute normas

tambeacutem para a composiccedilatildeo do heroacutei traacutegico Ricoeur considera essencial o

entendimento da importacircncia da composiccedilatildeo do enredo para entendermos entre

outras coisas mesmo o significado de miacutemesis na Poeacutetica Por isso trata

juntamente o par crucial de conceitos aristoteacutelicos miacutemesis-myacutethos

(representaccedilatildeo de accedilatildeocomposiccedilatildeo da intriga) que ratifica o propoacutesito

aristoteacutelico da ecircnfase na accedilatildeo representada pela trageacutedia e que nos ajuda a

defender nosso propoacutesito em estudar um texto poeacutetico em um estudo eacutetico ldquoO

que conservarei para a sequecircncia de meu trabalho eacute a quase identificaccedilatildeo entre

duas expressotildees imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo de accedilatildeo e agenciamento dos fatos A

segunda expressatildeo eacute como jaacute dissemos o definidor que Aristoacuteteles potildee no lugar

do definido myacutethos intriga Essa quase identificaccedilatildeo estaacute garantida por uma

primeira hierarquizaccedilatildeo entre as seis partes que daacute prioridade ao ldquoo quecircrdquo

(objeto) da representaccedilatildeo ndash intriga caracteres pensamento ndash sobre o ldquopor quecircrdquo

(meio) ndash a expressatildeo e o canto ndash e sobre o ldquocomordquo (modo) ndash o espetaacuteculo

depois por uma segunda hierarquizaccedilatildeo no interior do ldquoo quecircrdquo que potildee a accedilatildeo

acima dos caracteres e do pensamento (ldquoporque se trata sobretudo de uma

representaccedilatildeo de accedilatildeo (miacutemesis praacutexeos) e atraveacutes dela de homens que agemrdquo

50b3) No final dessa dupla hierarquizaccedilatildeo a accedilatildeo aparece como a ldquoparte

principalrdquo o ldquoobjetivo visadordquo o ldquoprinciacutepiordquo e por assim dizer a ldquoalmardquo da

trageacutedia Essa quase identificaccedilatildeo estaacute garantida pela foacutermula ldquoEacute a intriga que eacute

a representaccedilatildeo da accedilatildeordquo (50a1)rdquo (RICOEUR 2012 p 61)

207

mesmo talento satildeo mais convincentes aqueles que sentem as emoccedilotildees

porque quem sente fuacuteria transmite fuacuteria quem estaacute irritado mostra

irritaccedilatildeo de modo mais convincente ldquoPor isso a arte da poesia eacute proacutepria

dos gecircnios ou dos loucos jaacute que os gecircnios satildeo versaacuteteis os loucos

deliramrdquo (Poet17 1455a32-34)187 Igualmente por isso podemos fazer

um paralelo entre a ficccedilatildeo traacutegica e a moral real salvaguardadas as

devidas proporccedilotildees Aleacutem do que sendo o poeta imitador como

qualquer outro criador de imagens sempre imita necessariamente trecircs

coisas possiacuteveis (1) as coisas como eram ou satildeo em realidade (2) como

dizem ou parecem (3) como deviam ser188 Isso eacute expresso por meio da

elocuccedilatildeo que apresenta palavras raras metaacuteforas e muitas modificaccedilotildees

da linguagem o que somente eacute permitido ao poeta Ainda precisamos

abordar melhor a elocuccedilatildeo para desfecho da listagem de como os

elementos da poesia emocionam Aristoacuteteles a define como palavra que

expressa o pensamento a fim de demonstrar refutar despertar emoccedilotildees

engrandecer ou minimizar algo ou algueacutem Elemento poderoso embora

187 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original διὸ εὐφυοῦς ἡ ποιητική

ἐστιν ἢ μανικοῦ ούτων γὰρ οἱ μὲν εὔπλαστοι οἱ δὲ ἐκστατικοί εἰσιν 188 Donde a famosa teoria das trecircs miacutemeseis proposta por Paul Ricoeur em seu

Tempo e narrativa ldquoMiacutemese I designa a preacute-compreensatildeo na vida quotidiana

daquilo que se denominou justamente a qualidade narrativa da experiecircncia ndash

entendendo por tal o facto da vida e ainda mais a acccedilatildeo como Hanna Arendt

exprime brilhantemente exigirem ser contados Miacutemese II designa a auto-

estruturaccedilatildeo da narrativa sobre a base dos coacutedigos narrativos internos ao

discurso A este niacutevel Miacutemese II e myacutethos ou seja a intriga ndash ou melhor o

dispor em intriga ndash coincidem Finalmente Miacutemese III designa o equivalente

narrativo da refiguraccedilatildeo do real pela metaacuteforardquo (ABEL POREgraveE 2010 p 77) A

relaccedilatildeo com o antes da poesia eacute evidenciada em Aristoacuteteles segundo Ricoeur

devido agrave sua referecircncia aos caracteres escolhidos para as personagens da

trageacutedia e da comeacutedia que se classificam somente em ldquonobres ou baixosrdquo isso

porque todo mundo (paacutentes) na realidade eacute de um ou outro jeito As

qualificaccedilotildees eacuteticas vecircm do real e o que depende da imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo eacute

a exigecircncia loacutegica da coerecircncia O filoacutesofo francecircs afirma ainda que eacute dito que

trageacutedia e comeacutedia diferem por representar personagens piores ou melhores que

os homens reais (tograven vucircn 1448a16-18) o que eacute a segunda marca da miacutemesis I

Entatildeo o poeta pressupotildee que os caracteres possam ser melhorados ou

corrompidos pela accedilatildeo (RICOEUR 2012 p 84) ldquoOs caracteres satildeo o que

permite qualificar os personagens em accedilatildeordquo (Poet 1450a6) Haacute ainda o fato dos

poetas trabalharem com os mitos tradicionais inseridos como estatildeo na tradiccedilatildeo

grega da eacutepoca (Idem p 85) embora o pensador francecircs ligue essa continuaccedilatildeo

em Aristoacuteteles somente agraves propostas sobre o prazer proacuteprio agrave trageacutedia e ao

alcance da kaacutetharsis

208

natildeo seja um dos primeiros da lista em importacircncia a elocuccedilatildeo ajuda a

provocar as emoccedilotildees traacutegicas e a conferir verossimilhanccedila ao enredo

(Poet 18 1456a36-38 19 1456b1-8) podendo servir igualmente como

recurso retoacuterico como vimos acima

A muacutesica o espetaacuteculo e o enredo entretanto satildeo os elementos

considerados como os mais emocionantes da trageacutedia O enredo eacute nas

palavras do proacuteprio filoacutesofo ldquoa alma da trageacutediardquo aquilo que quando

bem elaborado permite imaginar e despertar emoccedilatildeo Tendo isso em

vista Nussbaum (2008 p 240 traduccedilatildeo nossa) observa ldquoo digno de

piedade e o temiacutevel natildeo satildeo simplesmente locais eles satildeo encaixados na

estrutura global da forma pelo tipo particular de identificaccedilatildeo e simpatia

com o heroacutei que a proacutepria forma cultivardquo Nussbaum admite contudo

que frequentemente a perspectiva na trageacutedia eacute modelada pelas reaccedilotildees

do coro traacutegico que encoraja uma certa variaccedilatildeo de reaccedilotildees pelo

desenrolar do enredo O sentido que corre por esses trabalhos eacute o de

algueacutem que olha os reveses e sofrimentos da pessoa razoavelmente boa

tanto com medo quanto com piedade Esse tipo de percepccedilatildeo ou de

pensamento pode mesmo alterar uma emoccedilatildeo em outra pois a pessoa

que chega indiferente ao teatro pode deixar aflorar sua piedade

transbordando ou ajustando o seu excesso dessa emoccedilatildeo e nesse caso

modificando a emoccedilatildeo Tais mudanccedilas favorecem as emoccedilotildees reais

como se expotildee na explicaccedilatildeo de Nussbaum que citamos abaixo

Compaixatildeo seraacute um motivo social valioso

somente se estaacute equipada com uma teoria

adequada do valor dos bens baacutesicos somente se

estaacute equipada com um entendimento adequado da

accedilatildeo e da culpa e somente se estaacute equipada com

uma consideraccedilatildeo adequadamente vasta da pessoa

que deve ser o objeto da preocupaccedilatildeo de um

agente tanto distante como proacuteximo Esses

julgamentos devem ser engendrados por um bom

processo de desenvolvimento Por outro lado a

compaixatildeo fornece uma vida essencial e

conexidade com a moralidade sem que esteja

perigosamente vazia e desarraigada Em casos

centrais bem representados na trageacutedia grega a

compaixatildeo incorpora avaliaccedilotildees corretas e

direciona nossa preocupaccedilatildeo para todos que

compartilham conosco uma humanidade comum

Aprendidas nas relaccedilotildees da infacircncia essas

conexotildees satildeo importantes para fazer a moralidade

209

perspicaz antes que obscura Assim a compaixatildeo

eacute um complemento necessaacuterio ao respeito []

(NUSSBAUM 2008 p 399 traduccedilatildeo nossa)189

Do mesmo modo a trageacutedia que provoca ou muda as emoccedilotildees

do puacuteblico na direccedilatildeo do outro tem enorme papel moral na poacutelis de

Aristoacuteteles como a autora tambeacutem explicaraacute ldquoPor outro lado conveacutem

lembrar ainda o dito por Aristoacuteteles sobre uma accedilatildeo que eacute moralmente

virtuosa somente quando eacute feita pelos motivos corretosrdquo (NUSSBAUM

2008 p 400 traduccedilatildeo nossa) Ajudar os outros sem amor agrave humanidade

e sem preocupaccedilatildeo compassiva por sua situaccedilatildeo natildeo tem valor moral A

interpretaccedilatildeo da autora se volta para Soacutefocles pois eacute nesse momento

que se pode evocar a posiccedilatildeo grega antiga sobre o papel do drama

traacutegico na educaccedilatildeo embora entendamos ainda que essa postura

colabore com a proposta de EN X apresentada anteriormente acerca da

necessidade de extensatildeo da ldquoeducaccedilatildeordquo moral por toda a vida do

cidadatildeo Defendemos assim que a trageacutedia eacute forte aliada na formaccedilatildeo

do caraacuteter e na manutenccedilatildeo da felicidade por toda vida mas que tem seu

papel como educadora da juventude como ressalta Nussbaum

A trageacutedia natildeo eacute para os muito jovens e natildeo eacute

exatamente para os jovens As pessoas maduras

sempre precisam expandir suas experiecircncias e

reforccedilar sua posse das verdades eacuteticas centrais

Mas para o jovem futuro cidadatildeo a trageacutedia tem

um significado especial Porque esse espectador

estaacute em processo de aprender a compaixatildeo As

trageacutedias familiarizam-nos com as coisas ruins

que podem acontecer na vida humana muito antes

da proacutepria vida fazer isso assim ativam a

preocupaccedilatildeo com os outros que estatildeo sofrendo o

que a pessoa natildeo sofreu E fazem isso de um jeito

que faz a profundidade e significacircncia do

sofrimento e as perdas que o inspiram

inequivocamente claras ndash os recursos poeacutetico

visual e musical do drama assim tecircm peso moral

Convidando o espectador a se tornar intensamente

preocupado com o destino do heroacutei traacutegico e ao

mesmo tempo retratando o heroacutei como uma

pessoa de valor o drama estabelece a compaixatildeo

189 Sobre a questatildeo da compaixatildeo como necessaacuteria agrave vida em comunidade ver

tambeacutem Sem fins lucrativos Capiacutetulo III p 36 et seq

210

um espectador atento teraacute apreendendo isso

aquela emoccedilatildeo Os gregos cultivavam a emoccedilatildeo

principalmente pelo drama uma crianccedila

contemporacircnea pode aprender essas mesmas

histoacuterias miacuteticas ou seu equivalente moderno

(NUSSBAUM 2008 p 428-429 traduccedilatildeo nossa)

Para tanto devem ser buscados trabalhos que familiarizem o

jovem leitor mas pensamos que tambeacutem o leitor adulto com uma vasta

variedade de possiacuteveis sofrimentos e de coisas agraves quais eacute vulneraacutevel

mas agraves quais possa reagir Tais obras levam ao reconhecimento e agrave

preocupaccedilatildeo mas especialmente agrave percepccedilatildeo de uma humanidade em

comum e de seus traccedilos especiacuteficos confirmando o ldquohoucirctos ekeicircnosrdquo de

Poet IV Enquanto Nussbaum se concentra no papel moral da

compaixatildeo afirmamos que o mesmo vale para o medo traacutegico emoccedilatildeo

que a proacutepria autora associa agrave piedade em seu The fragility of goodness

Afirmamos que a combinaccedilatildeo desses elementos da trageacutedia

favorece seus objetivos e mostra que a arte em questatildeo igualmente pode

ser entendida como um meio de emocionar ou direcionar as emoccedilotildees do

puacuteblico que satildeo despertadas por algo que afeta conjuntamente corpo e

alma Em certo momento da histoacuteria de Atenas todos compartilhavam

os momentos no teatro sendo este aleacutem de um meio de diversatildeo para a

populaccedilatildeo um potente aliado agraves formas convencionais de educaccedilatildeo para

a cidadania vida afora Os exemplos e contraexemplos expostos nos

espetaacuteculos cecircnicos podiam transmitir liccedilotildees sobre as formas mais ou

menos adequadas de comportamento em comunidade apesar de seu

caraacuteter ficcional Podiam transmitir um ideal de homem ou levar a

refletir sobre a proacutepria existecircncia preparando para a accedilatildeo real aleacutem de

despertar reflexatildeo sobre a condiccedilatildeo alheia Com isso as emoccedilotildees

traacutegicas e seu convite agrave reflexatildeo sobre a vida podem enquadrar-se em

nossas perspectivas de emoccedilotildees modificadas ou despertadas por certo

instrumento racional qual seja a trageacutedia que trabalharia como auxiliar

daquela educaccedilatildeo emocional proposta na EN Com suas sugestotildees a

trageacutedia seria mesmo capaz de conduzir as emoccedilotildees da plateia ao ponto

de purificaacute-las ou esclarececirc-las e aclarando o mundo eacute provaacutevel que

fossem capazes de extenuaacute-las expurgaacute-las ou controlaacute-las pela

kaacutetharsis190 mesmo que primeiro devessem ser excitadas pela poesia O

190 Sobre a kaacutetharsis ver Sorabji (2002 p 288 et seq) Natildeo nos debruccedilaremos

sobre esse problema em nosso estudo pois demandaria mais forccedila do que ora

apresentamos

211

que poderia contribuir para a formaccedilatildeo dos caracteres jovens sendo a

trageacutedia e sua catarse encaradas mesmo como um tipo de terapia191 das

emoccedilotildees mas tambeacutem como colaboradoras para o aperfeiccediloamento do

caraacuteter nos adultos auxiliando-os nas mudanccedilas ou efetivaccedilatildeo de seus

haacutebitos graccedilas ao conhecimento que adquirem de suas proacuteprias

emoccedilotildees

Do mesmo modo como Aristoacuteteles frisou a poesia eacute mais

filosoacutefica que a histoacuteria porque esta nos conta o que houve sendo que o

passado natildeo nos mostra algo interessante sobre as nossas possibilidades

por indicar um evento narrado idiossincraacutetico Por sua vez os trabalhos

literaacuterios nos mostram o geral plausiacutevel como padrotildees de accedilatildeo

Mostram-nos ldquocoisas como as que podem acontecerrdquo na vida do homem

levando ao prazer intelectual (e talvez esteacutetico) proacuteprio agrave trageacutedia bem

como na proposta da miacutemesis III de Ricoeur que eacute levada com o

espectador agrave vida fora da poesia pelo prazer que a trageacutedia provoca Ao

compreender tais padrotildees de importacircncia na poesia compreendemos

tambeacutem as nossas proacuteprias possibilidades Mesmo a procura pelas

emoccedilotildees dolorosas das peccedilas e textos satildeo aberturas a esse ldquoespaccedilo

potencialrdquo da poesia pois ajuda-nos a lidar com nossa falibilidade

vulnerabilidade e impotecircncia preparando-nos para a vida Isso soacute

acontece graccedilas ao movimento duplo que nos permite perceber os

acontecimentos traacutegicos como ficcionais que natildeo nos levam a agir e que

natildeo implicam escolha deliberada mas com os quais nos identificamos

sentindo emoccedilotildees reais ao reagir ao sofrimento alheio

A verossimilhanccedila e a necessidade do enredo garantem como

propusemos que entendamos os acontecimentos traacutegicos como coisas

possiacuteveis de acontecer Garante a realidade das emoccedilotildees suscitadas pela

trageacutedia com todo seu conteuacutedo cognitivo ao menos pelas crenccedilas e

opiniotildees vindas das aparecircncias e pelo julgamento de possibilidades

similares que levam os homens a se perceberem tais como satildeo

humanos nada mais nada

191 O termo terapia natildeo aparece em Aristoacuteteles mas haacute estudiosos que defendem

essa possibilidade de interpretaccedilatildeo das kaacutetharsis como Sorabji (2002 p 288 et

seq)

212

213

Conclusatildeo

Nossa tese procurou responder agrave questatildeo como operar mudanccedilas

nas emoccedilotildees a fim de que se tornassem condizentes com a proposta de

vida feliz feita por Aristoacuteteles Para responder a pergunta norteadora de

nosso trabalho buscamos dar embasamento agrave hipoacutetese levantada a partir

de EN I de que haacute uma funccedilatildeo especificamente humana que se

confunde com a felicidade entendida como melhor desempenho das

capacidades aniacutemicas em conjunto com o corpo e que tais capacidades

devido agrave natureza da alma natildeo podem ser isoladas Esse contato das

capacidades aniacutemicas percebido a partir da discussatildeo sobre a funccedilatildeo

humana levou-nos a entender que a possibilidade de se educar as

emoccedilotildees existe pelo contato entre as capacidades racional e natildeo racional

que eacute tipicamente humano e que confere uma espeacutecie de racionalidade

agraves emoccedilotildees

Para podermos sustentar essas propostas iniciamos com um

estudo sobre a natureza das emoccedilotildees A princiacutepio buscamos responder agrave

questatildeo acerca da funccedilatildeo humana e sua importacircncia na eacutetica de

Aristoacuteteles O argumento da funccedilatildeo situado em meio agraves discussotildees

sobre a melhor forma de vida possiacutevel nos indicou sua relaccedilatildeo com o

fim proposto para o homem e nos permitiu identificar a felicidade como

um tipo de vida especificamente humano no qual as capacidades da

alma seriam desempenhadas de modo excelente Compreendemos assim

a proposta de que a vida feliz eacute um tipo de atividade conforme a virtude

indicando-nos igualmente a necessidade de entender o que seja a

virtude apontando as direccedilotildees a serem tomadas em um segundo

momento de nossa pesquisa Nessas circunstacircncias apareceu-nos o tema

das emoccedilotildees vez que Aristoacuteteles aponta a virtude ao menos em sua

face moral como boa medida nas emoccedilotildees e nas accedilotildees A pesquisa

pelos tipos de vida que se candidatam ao cargo de felicidade e a

tentativa de resposta ao questionamento acerca da existecircncia de um soacute

tipo de vida como especificamente humano conduziu nossa discussatildeo

em direccedilatildeo a EN I 13 que propotildee a biparticcedilatildeo da alma e que nos

apresenta as ldquopartesrdquo racional e natildeo racional da alma bem como a

possibilidade de entrarem em acordo

A partir da proposta da existecircncia de ldquopartesrdquo na alma pudemos questionar a validade dessa afirmaccedilatildeo e chegamos agrave conclusatildeo de que

Aristoacuteteles natildeo propotildee uma alma realmente dividida mas composta por

diferentes capacidades operadas majoritariamente pelo corpo Tais

entendimentos permitiram que respondecircssemos agrave indagaccedilatildeo pela forma

de vida que constituiria o fim ou felicidade humana como realizaccedilatildeo do

214

bom desempenho de uma funccedilatildeo defendendo com o auxiacutelio de

Korsgaard Nussbaum e Reeve a impossibilidade de acatar a

interpretaccedilatildeo da eudaimoniacutea como uma vida plenamente contemplativa

Com a ajuda de estudiosos como Sorabji e Zingano percebemos que haacute

que se duvidar de propostas de leitura que tendam a esboccedilar Aristoacuteteles

como um filoacutesofo que apresenta um apreccedilo exacerbado das capacidades

racionais Pareceu-nos mais verdadeiro defender que suas teorias

apontam para uma vida mais intensa que aquela disposta agrave simples

contemplaccedilatildeo teoacuterica Propusemos uma vida que se completa na poacutelis

com o exerciacutecio de capacidades aniacutemicas desempenhadas de um modo

racional ou seja especialmente humano como propotildeem Korsgaard e

Boyle Tal defesa foi possiacutevel justamente devido ao conjunto das

capacidades indicadas pelo DA como tiacutepico agrave psychḗ do homem a saber

nutritiva perceptiva (e com esta a desiderativa) e raciocinativa Por esse

motivo julgamos pertinente desenvolvermos mas apenas de modo a

sanar nossas duacutevidas acerca das emoccedilotildees e seu papel na felicidade um

pequeno estudo a respeito da alma humana

O estudo tambeacutem contou com o apoio do De Anima texto que

confirmou nossas suspeitas e nos capacitou a defender uma teoria da

alma como um todo composto por capacidades que faculta ao corpo

realizar ou seja uma teoria hilemoacuterfica a respeito do homem que

comeccedilou a ser esboccedilada ainda com as nossas constataccedilotildees a respeito da

funccedilatildeo humana A defesa de uma psychḗ composta por capacidades

imprescindivelmente correlacionadas e que tecircm suas funccedilotildees

manifestas mesmo que imperceptivelmente no corpo teve apoio em

estudos como os de Bastit e Zingano e nos permitiu tratar as emoccedilotildees

como afecccedilotildees do conjunto corpoalma Tudo isso soacute foi possiacutevel porque

pensamos ter conseguido sustentar aleacutem de uma teoria da unidade da

alma uma teoria que entendeu a capacidade desiderativa como um todo

coeso Embora o desejo apresente diferentes tipos de manifestaccedilatildeo

relacionados aos seus objetos e agraves relaccedilotildees dos tipos de desejo com a

razatildeo proposta devedora aos estudos de Aggio dedicados agrave questatildeo do

desejo e do prazer na EN os desejos igualmente considerados paacutethē por

Aristoacuteteles nos mostraram diferentes emoccedilotildees que satildeo por eles

acompanhadas Tais emoccedilotildees como os desejos aos quais se relacionam

podem sofrer algum tipo de educaccedilatildeo validando desde o iniacutecio de

nossa pesquisa a teoria sobre a possibilidade de mudar as emoccedilotildees

favoravelmente agrave vida moral conforme a razatildeo praacutetica

Compreendemos contudo que nem todas as emoccedilotildees podem ser

mudadas ou moderadas Defender uma capacidade desiderativa

unificada reforccedilou a defesa de uma alma una e de emoccedilotildees capazes de

215

se harmonizar com as solicitaccedilotildees da capacidade racional A abertura

dos desejos e das emoccedilotildees para ao menos um tipo de razatildeo garantiu ao

homem a possibilidade de agir bem e com isso validamos a proposta

feita por Reeve Natali e Korsgaard da vida feliz entendida como

indispensavelmente atrelada agrave eupraxiacutea Neste tipo de vida o homem

apresenta por si mesmo ou por auxiacutelio de algueacutem ou das leis a virtude

moral como boa medida nas emoccedilotildees Por isso para desfecho Capiacutetulo

I buscamos compreender o que Aristoacuteteles entendia por emoccedilatildeo jaacute que

no momento da EN que parecia o mais propiacutecio a tal descriccedilatildeo o Livro

II 4 o filoacutesofo procedeu a uma listagem das coisas que chama emoccedilatildeo

Esse tipo de exposiccedilatildeo deu origem agrave boa parte dos questionamentos que

apontamos ao longo desse Capiacutetulo Recorrendo novamente ao DA mas

agora tambeacutem agrave Poet agrave Rhet e a alguns dos comentadores acima

relacionados que de certo modo abordaram o assunto esboccedilamos um

conceito de emoccedilatildeo que pode ser resumido do modo que segue

Emoccedilatildeo eacute um paacutethos que ocasiona certo tipo de movimento ou

alteraccedilatildeo no corpo de modo perceptiacutevel ou imperceptivelmente por

algo que atinge o homem a partir de fora (ou que vem de dentro da

alma quando age a memoacuteria de coisas que atingem o homem a partir de

fora) Acontece especialmente pelas consideraccedilotildees que se tem das

cirscunstacircncias nas quais ocorrem as relaccedilotildees com os outros e com o

mundo e aciona ou eacute acionada por algumas das capacidades aniacutemicas

humanas possivelmente consideradas racionais tais como a opiniatildeo o

julgamento a imaginaccedilatildeo e mesmo certos tipos de pensamento Por isso

as emoccedilotildees podem ser postas em conformidade com a reta razatildeo a fim

da virtude pois apresentam um quecirc de razatildeo desde sua constituiccedilatildeo A

emoccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles natildeo eacute mera passividade porque sugere

accedilatildeo ou reaccedilatildeo por parte de quem a sente Assim as emoccedilotildees satildeo

respostas agraves propostas que vecircm do mundo agrave sua volta diferem da

simples afecccedilatildeo e tecircm relevacircncia moral por interferirem nas accedilotildees e nas

interaccedilotildees com o mundo sendo esta sua diferenccedila em vista das demais

paacutethē

O primeiro momento de nossa tese encorajou o estudo acerca da

racionalidade que pensamos cercar as emoccedilotildees desde suas origens e

apontou-nos a necessidade de dedicar parte da pesquisa ao tratamento

das virtudes que se mostraram associadas agrave existecircncia de emoccedilotildees

educadas e natildeo contrastantes com a execuccedilatildeo excelente das atividades

humanas que se coadunam em felicidade Assim para dar

prosseguimento ao estudo o segundo Capiacutetulo teve iniacutecio com uma

breve tentativa de compreender melhor o conceito de virtude A partir

da afirmaccedilatildeo da existecircncia de dois tipos de virtude moral e intelectual

216

pudemos entender igualmente a existecircncia da virtude completa Essas

constataccedilotildees apontaram a necessidade de discutirmos as virtudes morais

compreendidas como meios termos nas accedilotildees e nas emoccedilotildees que satildeo

condiccedilatildeo necessaacuteria agrave felicidade A proposta contudo sofreu e sofre

objeccedilotildees por parte de filoacutesofos e pesquisadores que se dedicaram ao

estudo da virtude moral O problema foi tratado somente de modo a

contemplar nossas intenccedilotildees e desse tratamento pudemos concluir que a

doutrina da virtude moral proposta por Aristoacuteteles embora apresente

empecilhos agrave sua interpretaccedilatildeo pode ser tomada como uma teoria que

apresenta aspectos variados para a virtude moral

Distinguimos aspectos quantitativos quando nos fala de

intensidades ou quantidades com que sentimos emoccedilotildees aspectos

qualitativos ao indicar padrotildees para que as emoccedilotildees sejam

adequadamente sentidas e ainda aspectos conceituais quando nos

mostra que a doutrina da virtude se direciona ao entendimento dessas

qualidades da alma desiderativa em suas manifestaccedilotildees particulares

Tais manifestaccedilotildees igualmente validam certa aplicabilidade agrave teoria da

boa medida por abordarem a proposta quando se trata de accedilotildees

particulares que podem ser concretizadas sob a influecircncia das emoccedilotildees

Nossa interpretaccedilatildeo sobre o assunto e nossa posiccedilatildeo quanto agrave celeuma

sobre a validade da doutrina da boa medida eacute que todos esses traccedilos

devem ser tomados como distintivos das virtudes em questatildeo porque

natildeo excluem uns aos outros e podem tambeacutem ser aplicaacuteveis agraves accedilotildees

Estas satildeo atreladas agraves emoccedilotildees sendo que como na proposta de

Zingano aquilo que eacute plausiacutevel quanto agraves emoccedilotildees de certo modo

tambeacutem seraacute aplicaacutevel agraves accedilotildees que sugerem

A fim de levar adiante o entendimento da doutrina da boa

medida procuramos estudar as possibilidades de conferir o meio termo

agraves emoccedilotildees Deparamo-nos com as propostas da habituaccedilatildeo agrave praacutetica de

accedilotildees moralmente corretas indicando o caminho que deveriacuteamos

percorrer ateacute o teacutermino de nosso estudo para compreensatildeo da

possibilidade de se educar ou mudar as emoccedilotildees para o bem humano

Essa habituaccedilatildeo na melhor das hipoacuteteses torna o agente capaz de

escolher por si mesmo as accedilotildees que iratildeo conduzi-lo aos bens que deseja

alcanccedilar Isso daacute um caraacuteter voluntaacuterio agrave accedilatildeo e agrave virtude moral bem

como um aspecto responsaacutevel ao homem virtuoso que busca o melhor

modo de agir em direccedilatildeo ao bem supremo cumprindo aquilo que se

entende por sua funccedilatildeo Para tanto as emoccedilotildees devem ser moderadas

conforme as sugestotildees da capacidade de razatildeo como um todo o que

indicou a necessidade ao menos da virtude intelectual da prudecircncia

efetivando as virtudes morais

217

Entendemos por virtude completa a junccedilatildeo das virtudes das duas

as capacidades da alma manifestada atraveacutes de uma vivecircncia poliacutetica

favoraacutevel ao bom desempenho do raciociacutenio e de consequentes boas

accedilotildees Com isso pareceu-nos apropriado dedicar certo tempo embora

curto ao estudo das virtudes intelectuais em especial ao estudo da

prudecircncia e de seu processo ndash da deliberaccedilatildeo agrave escolha deliberada e agrave

accedilatildeo moralmente boa Esse estudo nos levou a perceber a prudecircncia

como um tipo de percepccedilatildeo praacutetica ou deliberativa diferente da

percepccedilatildeo sensiacutevel comum mas natildeo desvencilhado desta sugerindo

ainda a accedilatildeo de outras capacidades racionais entendidas do modo

proposto pelo De Anima bem como pela EN Isso indicou uma inegaacutevel

associaccedilatildeo da capacidade racional do intelecto com a percepccedilatildeo

confirmando novamente nossas propostas sobre a unidade da alma A

prudecircncia pede deliberaccedilatildeo praacutetica em casos excepcionais apresentados

pela vida Tal deliberaccedilatildeo se relaciona com um tipo especial de

imaginaccedilatildeo embora natildeo totalmente diacutespar e distante daquela

imaginaccedilatildeo entendida como (sub)capacidade da alma que eacute

intermediaacuteria entre percepccedilatildeo sensiacutevel e pensamento

A imaginaccedilatildeo deliberativa bem como a percepccedilatildeo

especificamente associada agrave prudecircncia como um tipo de visatildeo permite

um caacutelculo apresentado sob a forma do silogismo praacutetico Este iraacute

conduzir o agente desde a percepccedilatildeo daquilo que entende como um bom

fim e que eacute desejado passando pela proposiccedilatildeo de meios para que tal

fim possa ser alcanccedilado e chegando agrave indicaccedilatildeo pela escolha deliberada

da melhor forma de accedilatildeo para atingir tal fim Nesse percurso o agente

tem contato com um sem-nuacutemero de aparecircncias particulares que acabam

por indicar-lhe de certo modo o universal ao menos sob a forma do

bem supremo a ser procurado O contato com esse tipo de bem relaciona

a prudecircncia natildeo somente com particulares mas tambeacutem com algo de

universal A prudecircncia eacute asociada igualmente agrave indicaccedilatildeo dos meios

para a consecuccedilatildeo da proacutepria felicidade entendida como fim de toda

vida humana

De certo modo essas propostas relacionam todas as capacidades

da alma pois conferem agrave virtude intelectual certa semelhanccedila com a

atividade e os objetos especiacuteficos agraves virtudes intelectuais teoacutericas Por

conseguinte reforccedilamos nossa interpretaccedilatildeo de uma alma una composta

por capacidades interligadas Com isso pudemos indicar ainda que natildeo

conclusivamente a possibilidade ou mesmo a necessidade de

comunicaccedilatildeo da capacidade natildeo racional da alma com a capacidade

racional em sua vertente teoacuterica jaacute que tratamos de uma alma soacute isenta

de secccedilotildees Ao final dessa parte apresentamos a relaccedilatildeo proposta no fim

218

do Livro VI da EN da virtude natural e da virtude em sentido estrito

pois entendemos que tal questatildeo reforccedila nossa proposta da virtude

completa como junccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais que concorrem

para o exerciacutecio da funccedilatildeo humana Nesse ponto da pesquisa ainda

julgamos necessaacuterio ratificar a racionalidade das emoccedilotildees e propor

condiccedilotildees ou instrumentos para que isso aconteccedila coisa que buscamos

fazer com o terceiro e uacuteltimo momento desta tese

A tiacutetulo de desfecho da pesquisa o Capiacutetulo III buscou

fundamentar suas anaacutelises especialmente na parte final EN parte do

tratado que a princiacutepio pareceu se distanciar de todas as propostas que

defendemos ao longo do estudo apresentado anteriormente O Livro X

nos apresentou a possibilidade de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma

forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica proposta que

para estudiosos como Kenny se mostra o desfecho perfeito agraves discussotildees

sobre a felicidade iniciadas em EN I No entanto o proacuteprio Livro X nos

encorajou a seguir em frente com nossa leitura da funccedilatildeo humana como

desempenho excelente e de um modo racional do conjunto de atividades

que compotildeem a melhor forma de vida possiacutevel ao homem Em EN X 7

1176b19-26 Aristoacuteteles apresenta o questionamento ressaltado por

Sorabji entre outros que potildee em jogo a possibilidade da contemplaccedilatildeo

teoacuterica como fim da vida humana Tendo em vista que nosso tema

solicita uma defesa da capacidade natildeo racional da alma humana em

harmonia com a capacidade racional acatamos as sugestotildees dos

comentadores mas recorremos agraves questotildees sobre a alma para defesa de

nossa proposta pautada em postura contraacuteria ao entendimento da vida

feliz como vida puramente contemplativa

Para reforccedilarmos essa ideia lanccedilamos matildeo de um vocabulaacuterio

associado tanto agraves capacidades racionais humanas quanto agraves descriccedilotildees

das emoccedilotildees que encontramos ao longo de todo o estudo e das leituras

dos textos de Aristoacuteteles As propostas sobre a psychḗ indicaram que o

vocabulaacuterio em questatildeo apresentava mais que termos atrelados agrave

racionalidade Os termos designavam (sub)capacidades da alma que

permitiram explicar o despertar das emoccedilotildees pelo contato do homem

com mundo atraveacutes da percepccedilatildeo sensiacutevel Propunham a imaginaccedilatildeo

com suas elaboraccedilotildees a respeito das relaccedilotildees com os outros e poderiam

despertar tipos de pensamento ou ao menos opiniotildees e crenccedilas que

instigassem as emoccedilotildees Com o apoio do estudo sobre as virtudes

intelectuais pudemos mesmo sugerir uma ligaccedilatildeo entre essas

(sub)capacidades mencionadas com outras similares As emoccedilotildees

manteriam contatos com essas uacuteltimas (sub)capacidades tambeacutem quando

passassem pelo filtro da deliberaccedilatildeo praacutetica e da escolha deliberada

219

Esta seria uma das formas possiacuteveis de lhes conceder a forma adequada

e ao mesmo tempo um modo de alcanccedilar o melhor estado das

capacidades aniacutemicas como um todo Com isso as chamadas ldquopartesrdquo

da alma estavam relacionadas pois constatamos que mesmo quando se

propotildee o intelecto relacionado ao paacutethos a capacidade intelectual

humana constitui-se assim como toda a alma como uma soacute A relaccedilatildeo

da razatildeo teoacuterica com as emoccedilotildees natildeo foi mais bem explorada por

questotildees de exequibilidade da pesquisa mas salientamos que o assunto

nos instiga apresentando-se como tema para pesquisa futura

Apoacutes essas inferecircncias novamente consultamos o De anima a

Retoacuterica e a Poeacutetica que se mostraram fonte indispensaacutevel agrave defesa de

nossa tese Estes tratados nos permitiram finalizar nosso trabalho

estudando instrumentos diferentes da habituaccedilatildeo e do ensino defendidos

pela EN mas que se associam em uma proposta educacional que

percorre toda a vida do cidadatildeo Nas poacuteleis haacute dispositivos disponiacuteveis

para que se possa consolidar e manter a educaccedilatildeo moral emocional

Uma educaccedilatildeo que comeccedila com atenccedilatildeo a cada pessoa em famiacutelia e

que possa se estender para os ambientes de conviacutevio na cidade eacute a

proposta de Aristoacuteteles para educar os cidadatildeos e suas emoccedilotildees

Entendemos que a poacutelis apresenta entre outros recursos o teatro

e os ambientes nos quais satildeo proferidos os discursos retoacutericos como

auxiliares da formaccedilatildeo moral Esses ambientes satildeo fontes riquiacutessimas

para que a percepccedilatildeo que se inicia com o intermeacutedio dos sentidos possa

solicitar as construccedilotildees das formas de imaginaccedilatildeo e provavelmente

direcionar convenientemente os cidadatildeos a certos tipos de opiniotildees

crenccedilas e mesmo elaboraccedilotildees racionais mais sofisticadas A partir de um

estudo eacutetico apoiado na proposta aristoteacutelica sobre a alma bem como

em demais obras de Aristoacuteteles e por todos os motivos acima elencados

entendemos que a defesa da educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua

racionalidade se faz possiacutevel Tal defesa foi necessaacuteria pois eacute somente o

contato da racionalidade com as emoccedilotildees seja em sua constituiccedilatildeo seja

atraveacutes das propostas dos elementos de racionalidade que podem tocaacute-

la que percebemos a possibilidade de educar ou mudar as emoccedilotildees

220

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Page 2: Juliana Santana de Almeidarepositorio.uft.edu.br/bitstream/11612/519/1/Juliana...3.b.1) Desejos 54 3.b.2) Os desejos menos racionais 56 3.b.3 O desejo mais racional 63 3.b.4) Desejo

Agradecimentos

Agradeccedilo agraves professoras Maria de Lourdes Borges e Marina dos Santos

pelas orientaccedilotildees Agradeccedilo aos professores Maacuterio Nogueira e Maria

Aparecida de Oliveira pelo apoio

Agradeccedilo aos amigos Clarissa Ayres Mendes Giuliano Orsi Catherinne

Melo Alves Suecircnia Mendes e Ruacutebia Oliveira que tiveram papel

indispensaacutevel nessa etapa de vida e pesquisa Agradeccedilo Marisa e Cauatilde

famiacutelia

Agradeccedilo ao Alex pela companhia paciecircncia e compreensatildeo

Resumo

A tese trataraacute a possibilidade de educaccedilatildeo das emoccedilotildees existente graccedilas

agrave racionalidade apresentada em sua natureza e nas emoccedilotildees educadas

moralmente O estudo seraacute feito a partir das propostas da Eacutetica

Nicomaqueia recorrendo quando necessaacuterio ao De anima agrave Retoacuterica e

agrave Poeacutetica textos que dedicaram atenccedilatildeo especial ao assunto Para

defender essas propostas a investigaccedilatildeo busca compreender aquilo que

Aristoacuteteles entende por emoccedilatildeo partindo do Livro I da EN que indicaraacute

a possibilidade da capacidade desiderativa ouvir a razatildeo Com isso

percebemos que Aristoacuteteles natildeo pretende excluir os elementos natildeo

racionais da vida moral estando mais preocupado em encontrar formas

capazes de conciliar as capacidades aniacutemicas e de sentir emoccedilotildees com

as coisas certas nos momentos convenientes em direccedilatildeo a quecirc e a quem

eacute adequado Essa interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel porque o filoacutesofo compreende

a alma como algo composto por capacidades natildeo seccionadas pondo as

emoccedilotildees que satildeo da alccedilada do desiderativo desde seu iniacutecio em

contato com a capacidade racional da alma Esta uacuteltima capacidade

indica os motivos para se emocionar mas igualmente propotildee ao homem

educado moralmente uma forma moderada de emoccedilatildeo que lhe permitiraacute

levar uma vida proacutepria ao homem Tal vida agrave qual eacute imprescindiacutevel a

eupraxiacutea soacute eacute alcanccedilada com o apoio das virtudes Por isso eacute necessaacuterio

entender o que Aristoacuteteles propotildee como virtude e por que a relaciona

com a emoccedilatildeo a partir do Livro II da EN Tal estudo permite dar

continuidade agrave investigaccedilatildeo acerca das capacidades da alma humana

sugeridas por EN I 13 texto que apresenta a divisatildeo das virtudes

conforme capacidades da alma em morais e intelectuais As virtudes

configuram-se como melhor estado possiacutevel para cada capacidade da

alma sendo assunto imprescindiacutevel agrave pesquisa proposta No final da

exposiccedilatildeo da EN a alternativa de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma

forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica parece

destoar das propostas de nosso estudo Natildeo obstante o proacuteprio Livro X

traz argumentos que permitem manter a leitura da melhor forma de vida

possiacutevel ao homem ou seja de sua funccedilatildeo proacutepria como uma vida na

poacutelis que conjuga o bom exerciacutecio de todas as suas capacidades

Interpretaccedilatildeo viaacutevel pela apresentaccedilatildeo de faculdades racionais

encadeadas que podem tocar a emoccedilatildeo desde seu despertar ateacute quando

forem moderadas com o auxiacutelio da razatildeo praacutetica Contato que seraacute

facilitado pelos instrumentos aos quais os cidadatildeos podem recorrer para

garantir a chance de bem se emocionar a fim de serem virtuosos e

felizes vivendo em comunidade

Palavras-chave Emoccedilatildeo Razatildeo Virtude Felicidade

Abstract

The thesis will deal with the possibility to educate the emotions because

the rationality presented in its nature and in the morally educated

emotions The study will be based on the proposals of Nicomachean

Ethics using when necessary the De anima the Rhetoric and the

Poetics texts that have given special attention to the subject To defend

these proposals the research seeks to understand what Aristotle

understands by emotion starting from Book I of NE which will indicate

the possibility of the desiderative capacity to hear reason Because of

this we realize that Aristotle does not intend to exclude the non-rational

elements of the moral life being more concerned to find ways that

reconcile the psychic capacities and to feel emotions with the right

things in the convenient moments towards what and to whom it is

appropriate This interpretation is possible because the philosopher

understands the soul as something composed of connected capacities

putting the emotions which are from the domain of the desiderative

from its beginning in contact with the rational capacity of the soul This

last ability indicates the reasons for the corret emotion but also

proposes to the man morally educated a moderate form of emotion that

will allow him to lead anapproprieted life Such a life identified with

eupraxiacutea is only achieved with the support of the virtues Therefore it

is necessary to understand what Aristotle proposes as virtue and why it

relates it to emotion from Book II of NE This study allows us to

continue the investigation of the human soul capacities suggested by

ENI 13 a text that presents the division of the virtues according to the

souls capacities into moral and intellectual virtues The virtues are the

best possible state for each capacity of the soul being essential subject

to the proposed research At the end of the NE exposition the alternative

of interpreting eudaimōniacutea as a life totally dedicated to theoretical

contemplation seems to beadequate to the proposals of our study

Nevertheless Book X itself contains arguments that allow us to keep

understanding the best way of life possible for man that is his own

function as a life in the poacutelis which combines the good exercise of all

his capacities Interpretation viable by the presentation of rational

chained faculties that can touch the emotion from its awakening to

when they are moderated with the aid of practical reason Contact that

will be facilitated by the instruments that the citizens can use to

guarantee the chance of feel appropriatly in order to be virtuous and

happy living in community

Key-words Emotion Reason Virtue Happiness

Abreviaccedilotildees

Obras de Aristoacuteteles

Poet - Poeacutetica

Top ndash Toacutepicos

DA ndash De Anima

MA ndash Motu Animalium

Met ndash Metafiacutesica

EN ndash Eacutetica a Nicocircmaco

EE ndash Eacutetica a Eudemo

Pol ndash Poliacutetica

Ret ndash Retoacuterica

Obra de Platatildeo

Rep - Repuacuteblica

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo

17

Capiacutetulo I - A emoccedilatildeo e suas

implicaccedilotildees na vida feliz

25

1 Primeiros apontamentos

25

2 Funccedilatildeo proacutepria ao homem

27

3 EN I 13 a alma humana e a

emoccedilatildeo

39

3a) Capacidades da alma

43

3b) A capacidade desiderativa da

alma as accedilotildees e as emoccedilotildees na

vida feliz

50

3b1) Desejos

54

3b2) Os desejos menos racionais

56

3b3 O desejo mais racional

63

3b4) Desejo e accedilatildeo rumo agrave accedilatildeo

boa moralmente

66

4 Em busca da definiccedilatildeo

de emoccedilatildeo em Aristoacuteteles

72

4a) Alma corpo e emoccedilotildees

interpretadas a partir de EN I com

o auxiacutelio do DA da Rhet e da

Poet

78

5 A emoccedilatildeo

90

Capiacutetulo II - Virtude como

possibilidade de acordo entre

razatildeo e emoccedilatildeo

93

1 Virtude completa virtudes

virtude moral

93

2 A virtude moral

99

2a) Caraacuteter tautoloacutegico ou trivial

da doutrina da virtude moral como

mediania

102

2b) Exemplo da viabilidade da

virtude moral como mediania nas

emoccedilotildees a virtude particular da

coragem e o medo

111

2c) A forccedila do haacutebito para o

correto se emocionar

117

2d) Virtude voluntaacuteria diante das

circunstacircncias e responsabilidade

121

3 Metriopaacutethēia o ideal de

emoccedilatildeo para a vida virtuosa

125

4 Virtudes intelectuais satildeo

necessaacuterias agraves virtudes morais e

para a ldquoboa formardquo das

emoccedilotildees

133

4a) A prudecircncia

135

4b) Deliberaccedilatildeo

138

4c) Escolha deliberada

140

4d) Prudecircncia deliberaccedilatildeo

escolha deliberada e sua relaccedilatildeo

com o particular e o universal

142

5 Virtude natural e virtude em

sentido estrito

148

Capiacutetulo III -

A racionalidade das emoccedilotildees

153

1 Eudaiacutemōniacutea vida dedicada agrave

atividade racional (EN X)

153

2 A racionalidade das emoccedilotildees

interpretaccedilotildees desde EN I agraves

luzes do De Anima

157

2 a) Um quecirc ou o quecirc de

racionalidade nas emoccedilotildees

161

2 b) Percepccedilatildeo

162

2 c) Imaginaccedilatildeo

170

2 d) Pensamentos

173

2 e) Intelecto praacutetico 177

2 f) Opiniatildeo

183

3 O acordo entre a razatildeo e as

emoccedilotildees a educaccedilatildeo moral e os

instrumentos de modificaccedilatildeo da

emoccedilatildeo

187

3 a) Educaccedilatildeo haacutebito e lei para a virtude

187

3 b) A retoacuterica como instrumento

de mudanccedila nas emoccedilotildees

193

3 c) A poesia como facilitadora

da educaccedilatildeo moral

201

Conclusatildeo

213

Referecircncias

221

17

Introduccedilatildeo

Na histoacuteria da filosofia o entendimento acerca do que sejam as

emoccedilotildees (paacutethē) varia Aristoacuteteles1 se viu em meio a posturas diversas

sobre o assunto antes e depois de suas teorias apareceram fortes

oposiccedilotildees agrave intervenccedilatildeo das emoccedilotildees na vida moral2 Provavelmente

esse tipo de apreciaccedilatildeo seja o motivo para as inuacutemeras consideraccedilotildees

cautelosas que o filoacutesofo faz sobre o paacutethos em sua proposta eacutetica

entretanto Aristoacuteteles natildeo se mostra um pensador desfavoraacutevel agrave

participaccedilatildeo do emocional na vida humana feliz mas mesmo nas teorias

do filoacutesofo grego o tema das emoccedilotildees pode causar embaraccedilos Para

exemplificar o termo paacutethē que ora traduzimos por ldquoemoccedilotildeesrdquo pode

admitir sentidos mais amplos que aquele atribuiacutedo hoje em dia agrave palavra

emoccedilatildeo razatildeo pela qual tambeacutem se utilizam para traduzi-lo palavras

como ldquopaixotildeesrdquo ou ldquoafecccedilotildeesrdquo dentre outras Como observa Konstan

(2006 p IX et seq) em relaccedilatildeo agrave Liacutengua Inglesa atual haacute uma

diferenccedila consideraacutevel entre aquilo que os gregos dos tempos do

1 Observa Zingano que segundo Aristoacuteteles o paacutethos natildeo precisa ser extirpado

mas deve receber uma justa medida e isso indica a necessidade de ldquoexaminaacute-lo

mediante uma deliberaccedilatildeo pois a virtude eacute uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha

deliberadardquo (ZINGANO 2007 p 165) Tal tese que confirmaremos mais

adiante considera central a teoria das emoccedilotildees proposta por Aristoacuteteles 2 Tal pensamento afirma Sorabji (2000 p 181 traduccedilatildeo nossa cf tambeacutem p 7

et seq) eacute defendido por Crisipo embora natildeo por todos os estoacuteicos ldquoMas o que

eu quero considerar neste capiacutetulo eacute a tese muito mais radical de Crisipo de que

quase todas elas devem ser erradicadas Que razotildees poderia haver para tantordquo

Contudo as opiniotildees sobre a aceitaccedilatildeo estoacuteica da erradicaccedilatildeo da emoccedilatildeo

parecem divergir Enquanto os manuais de Histoacuteria da Filosofia como aqueles

que foram escritos por Kenny (2011 p 328) e Reale (2003 p 292) parecem

afirmar que todos os estoacuteicos concordavam com a necessidade de erradicaccedilatildeo

das emoccedilotildees haacute estudos mais minuciosos sobre o assunto que parecem

discordar dessa proposta e que trazem motivos significativos para tal

discordacircncia Esse eacute o caso da tese de doutorado defendida por Santos na

UNICAMP em 2008 Com relaccedilatildeo a esse tema vale tambeacutem conferir a

proposta do proacuteprio Sorabji que nos apresenta entendimentos variados para o

termo apaacutethēia trazidos pelos estoicos (ANTISSERI D REALE G Histoacuteria

da filosofia Vol 1 Satildeo Paulo Paulus 2003 KENNY A Uma nova histoacuteria

da filosofia Vol 1 Satildeo Paulo Loyola 2011 SANTOS R A Sobre a doutrina

das paixotildees no estoicismo 2008 100f Tese (Doutorado em Filosofia) ndash

UNICAMP Campinas 2008 Disponiacutevel em

lthttpwwwbibliotecadigitalunicampbrdocumentcode=vtls000439214ampfd=

ygt Acesso em 22 de jun de 2015)

18

Estagirita consideravam ldquoemoccedilatildeordquo (paacutethos traduzido pelo estudioso por

emotion) e o que consideramos emoccedilatildeo hoje O proacuteprio Aristoacuteteles nos

leva a admitir isso com o que apresenta em Metafiacutesica ao trazer quatro

possibilidades de entendimento do termo em questatildeo

(1) Afecccedilotildees significam em um primeiro

sentido uma qualidade segundo a qual algo pode

se alterar por exemplo o branco e o preto o doce

e o amargo o peso e a leveza e todas as

qualidades deste tipo

(2) Noutro sentido afecccedilatildeo significa a atuaccedilatildeo

dessas alteraccedilotildees isto eacute as alteraccedilotildees que estatildeo

em ato

(3) Ademais dizem-se afecccedilotildees especialmente

as alteraccedilotildees e mudanccedilas danosas e sobretudo os

danos que produzem dor

(4) Enfim chamam-se afecccedilotildees as grandes

calamidades e as grandes dores (Met Δ 1022b15-

21)3

Zingano (2007 p 147-148) traz consideraccedilotildees interessantes

sobre este trecho e suas possibilidades de interpretaccedilatildeo em seus Estudos

de Eacutetica Antiga O estudioso parece optar por entender paacutethos no

sentido de emoccedilatildeo em termos eacuteticos como um ser afetado ou uma

alteraccedilatildeo que diz respeito agrave natureza praacutetica do agente uma afecccedilatildeo

que eacute fonte de accedilatildeo devido a algo provocado por outrem Algumas

dessas possibilidades interpretativas (que levam a diferentes escolhas de

traduccedilatildeo) satildeo empregadas nos textos que aqui estudaremos

Para citar um exemplo em nota agrave traduccedilatildeo do De Anima feita por

Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis a tradutora afirma haver trecircs significados

nesse tratado para a expressatildeo tagrave paacutethē que traduz por ldquoas afecccedilotildeesrdquo

(REIS 2006 p 150) O significado do termo varia do sentido geral de

atributos e predicados a ldquoformas de passividade e de oposiccedilatildeo agraves

atividadesrdquo e a ldquoemoccedilotildeesrdquo contudo enfocaremos aqui as acepccedilotildees que

3 Traduccedilatildeo de Marcelo Perini (2010) no original Πάθος λέγεται ἕνα μὲν

τρόπον ποιότης καθ ἣν ἀλλοιοῦσθαι ἐνδέχεται οἷον τὸ λευκὸν καὶ τὸ μέλαν

καὶ γλυκὺ καὶ πικρόν καὶ βαρύτης καὶ κουφότης καὶ ὅσα ἄλλα τοιαῦτα ἕνα δὲ

αἱ τούτων ἐνέργειαι καὶ ἀλλοιώσεις ἤδη ἔτι τούτων μᾶλλον αἱ βλαβεραὶ

ἀλλοιώσεις καὶ κινήσεις καὶ μάλιστα αἱ λυπηραὶ βλάβαι ἔτι τὰ μεγέθη τῶν

συμφορῶν καὶ λυπηρῶν πάθη λέγεται

19

tocam nosso objeto de estudo a saber aquelas paacutethē da relaccedilatildeo que

aparece especialmente na Eacutetica Nicomaqueia (II 3 1105b19-22) mas

que igualmente se repete nas listas apresentadas na Retoacuterica (II 2

1378a19-22) e no De Anima (I 1 403a16-18) aleacutem de contemplarem as

duas ldquoemoccedilotildeesrdquo descritas na Poeacutetica raiva arrojo inveja medo

alegria amizade oacutedio anelo emulaccedilatildeo piedade calma inimizade

desvergonha amabilidade indignaccedilatildeo e maacutegoa Esses uacuteltimos textos

viratildeo em nosso auxiacutelio quando se apresentarem instrumentos eficazes agrave

compreensatildeo de algumas questotildees suscitadas pela EN a respeito da

nossa investigaccedilatildeo que versaraacute sobre a possibilidade de mudanccedila ou

educaccedilatildeo das emoccedilotildees graccedilas agrave racionalidade apresentada em sua

natureza e que tecircm lugar ou influecircncia nas emoccedilotildees educadas

moralmente entendimento possiacutevel a partir da concepccedilatildeo de uma alma

una com capacidades variadas mas conectadas entre si

A partir das propostas da Eacutetica Nicomaqueia e dos textos que

seratildeo auxiliares interpretativos de suas teorias salientamos a opccedilatildeo pelo

direcionamento do estudo do termo no sentido em que ele pode ser

traduzido por ldquoemoccedilatildeordquo Natildeo usaremos a palavra paixatildeo porque hoje

em dia como ressaltam Sorabji (2002 p 7) e Zingano (2007 p 148)

pode restringir o entendimento do leitor e levaacute-lo a pensar que se tratem

apenas de emoccedilotildees mais fortes Por conseguinte justificamos nossa

opccedilatildeo por comeccedilar o estudo ora apresentado em busca de uma

compreensatildeo melhor e maior daquilo que Aristoacuteteles propotildee ser a

emoccedilatildeo partindo do Livro I da EN de onde retiramos o pensamento que

permearaacute toda a nossa pesquisa as emoccedilotildees satildeo sofridas

concomitantemente por corpo e alma e satildeo educaacuteveis por serem de

certo modo racionais caracteriacutestica devida agrave unicidade da alma

humana

Esse tipo de entendimento das emoccedilotildees tem por base o projeto

filosoacutefico de Aristoacuteteles que embora apresente diversos tratados

dedicados a diversos objetos de pesquisa com abordagem conforme o

objeto em anaacutelise faz com que as obras se sustentem entre si Tal

entendimento permitiraacute tambeacutem respondermos agrave questatildeo norteadora

desta tese como mudar as emoccedilotildees educando-as conforme as

solicitaccedilotildees da razatildeo praacutetica A percepccedilatildeo de que a pesquisa

empreendida por Aristoacuteteles eacute uma obra com coerecircncia interna permite

leituras de filoacutesofos contemporacircneos como Martha Nussbaum que por

vezes recorre a mais de um tratado aristoteacutelico para defender suas

interpretaccedilotildees Esse olhar para o conjunto da obra de Aristoacuteteles

igualmente nos conduz a leituras como aquelas feitas por Zingano e

Sorabji ao perceberem que Aristoacuteteles natildeo exclui conteuacutedos

20

emocionais mas que estaacute mais preocupado em encontrar formas capazes

de conciliar as capacidades aniacutemicas e com isso sentir emoccedilotildees com as

coisas certas nos momentos convenientes em direccedilatildeo a quecirc e a quem eacute

adequado A essas propostas eacute imprescindiacutevel acrescentar aquelas que

compreendem a alma descrita pelo filoacutesofo como algo composto por

partes natildeo seccionadas para que possamos defender emoccedilotildees que desde

seu iniacutecio tecircm contato com a capacidade racional da alma que indica os

motivos para se emocionar Essa capacidade racional igualmente propotildee

ao homem educado moralmente uma forma moderada de emoccedilatildeo que

lhe permitiraacute levar uma vida em conformidade com a virtude com a

razatildeo como um todo e por isso feliz

Para podermos sustentar essas propostas iniciaremos nossa tese

com um estudo sobre a natureza das emoccedilotildees buscando entender qual a

natureza da emoccedilatildeo Qual seu papel na teoria da felicidade de

Aristoacuteteles Para responder a essas perguntas procuraremos

compreender o argumento da funccedilatildeo humana e sua relaccedilatildeo com o fim

proposto agrave vida do homem Tal caminho nos indicaraacute a necessidade de

definir o lugar das emoccedilotildees na vida feliz e nos encaminharaacute agrave discussatildeo

da relaccedilatildeo imprescindiacutevel entre emoccedilotildees e a virtude considerada

completa a virtude intelectual a virtude moral e suas formas

particulares Essa pesquisa encaminharaacute nossa discussatildeo agrave anaacutelise dos

tipos de vida que se candidatam ao cargo de felicidade e ao

questionamento de tal vida ser definida por Aristoacuteteles como a

existecircncia dedicada agrave contemplaccedilatildeo intelectual filosoacutefica (discussatildeo que

somente encontraraacute seu desfecho com o nosso terceiro capiacutetulo) O

primeiro capiacutetulo prosseguiraacute com a discussatildeo apresentada em EN I 13 a

respeito da alma humana e de suas capacidades Esse estudo seraacute

necessaacuterio pois eacute a partir da proposta da existecircncia de capacidades

diversas na alma que poderemos inquirir acerca dos diferentes tipos de

vida e que provavelmente possamos indicar um deles como a vida mais

propriamente humana

Nesse ponto da EN Aristoacuteteles nos apresenta uma alma bipartida

que comporta as emoccedilotildees em sua capacidade natildeo racional capacidade

esta que no entanto apresenta-se como apta a ouvir e obedecer agrave razatildeo

primeiro sinal da possibilidade de defesa da racionalidade e

educabilidade das emoccedilotildees Por esse motivo julgamos pertinente

desenvolver na medida em que contemple nossos interesses um

pequeno estudo a respeito da alma humana buscando para essa teoria o

auxiacutelio do tratado sobre a alma a fim de obter maior clareza quanto agrave

questatildeo O estudo do De Anima permitiraacute reforccedilar uma teoria da alma

como um todo composto por partes que mantecircm certo contato bem

21

como a teoria hilemoacutefica a respeito do homem que comeccedila a demonstrar

seus contornos ainda com o assunto da funccedilatildeo proacutepria ao homem na EN

A defesa de uma psychḗ composta por capacidades imprescindivelmente

correlacionadas e que tem suas funccedilotildees manifestas mesmo que

imperceptivelmente no corpo nos permitiraacute tratar as emoccedilotildees como

afecccedilotildees do conjunto corpoalma Tudo isso soacute seraacute possiacutevel se

conseguirmos sustentar aleacutem de uma teoria da unidade da alma uma

teoria que proponha a capacidade da alma responsaacutevel pelas emoccedilotildees a

desiderativa como um todo coeso embora composta por diferentes

tipos de desejos conforme seus objetos e suas relaccedilotildees com a razatildeo

Portanto deveremos apreciar brevemente as propostas de Aristoacuteteles

acerca da capacidade desiderativa desde que o desejo e seus tipos

igualmente satildeo considerados paacutethē Defender uma capacidade

desiderativa unificada nos permitiraacute defender tambeacutem uma alma

unificada e emoccedilotildees capazes de concordar com as solicitaccedilotildees da

capacidade racional ao menos em sua vertente praacutetica Poderemos

entender que haacute desejos mais ou menos aptos a obedecer agrave razatildeo assim

como seratildeo igualmente as emoccedilotildees diretamente a eles relacionadas Por

conseguinte a possibilidade de educaccedilatildeo que veremos se abrir agrave

capacidade desiderativa como um todo indicaraacute a possibilidade de

propor emoccedilotildees capazes de serem educadas conforme a razatildeo teoria

que defenderemos mais detalhadamente no terceiro capiacutetulo Para tal

seraacute necessaacuterio indicarmos como essa abertura dos desejos agrave razatildeo

permitiraacute ao homem agir bem diferenciando accedilotildees e atividades de

simples movimentos fiacutesicos sendo as primeiras intimamente

relacionadas ao desejo pelos fins e por isso agrave possibilidade de apreciaccedilatildeo

eacutetica

Com isso identificaremos a eupraxiacutea como elemente

imprescindiacutevel agrave vida feliz justificando todo o percurso argumentativo

do primeiro capiacutetulo desde a proposta de anaacutelise da funccedilatildeo humana que

leva agrave consideraccedilatildeo de diferentes tipos de vida existentes em

conformidade com as diferentes capacidades aniacutemicas que em boa

associaccedilatildeo permitiratildeo a real felicidade Esta seraacute compreendida como

um tipo excelente de desempenho das accedilotildees e atividades adequadas ao

homem e somente ao homem mas que dependem igualmente da boa

condiccedilatildeo emocional Por isso seraacute necessaacuterio para desfecho do

primeiro momento de nossa pesquisa buscar compreender o que

Aristoacuteteles descreve como emoccedilatildeo e esboccedilar um conceito de emoccedilatildeo

com apoio das sugestotildees dos quatro tratados abordados nesse estudo

Essa proposta permitiraacute que reforcemos as teorias hilemoacuterficas que

descreveratildeo o paacutethos aristoteacutelico como possiacutevel ouvinte da

22

racionalidade desde o momento em que eacute despertado Permitiraacute ainda

que atentemos agrave obrigatoriedade de tratar as virtudes jaacute que se

mostraratildeo dependentes de emoccedilotildees educadas e que natildeo contrastem com

a execuccedilatildeo excelente das atividades humanas que se coadunam em

felicidade

A fim de obtermos sucesso na defesa da educabilidade das

emoccedilotildees devida agrave sua racionalidade - tendo em vista o que nos foi

proposto pelo argumento da funccedilatildeo humana pela proposta de uma

capacidade natildeo racional da alma que se apresenta como capaz de ouvir a

capacidade racional e das relaccedilotildees das emoccedilotildees com as virtudes

mencionadas em meio a esses assuntos - julgamos necessaacuterio dedicar o

segundo capiacutetulo de nossa tese ao estudo da relaccedilatildeo das emoccedilotildees com as

virtudes Iniciamos esse momento da pesquisa agrave procura de

compreender melhor e apenas na medida das necessidades de nossa

pesquisa o que Aristoacuteteles propotildee como virtude e por que a relaciona

com a emoccedilatildeo a partir do Livro II da EN O estudo nos conduziraacute a

diferentes tratamentos da virtude apreciaremos a virtude entendida de

um modo geral ou em sua completude como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave

felicidade estudaremos os componentes de tal virtude completa

entendidos como a virtude moral as formas particulares da virtude

moral e a virtude intelectual Tal estudo nos permitiraacute dar continuidade

agrave investigaccedilatildeo acerca das capacidades da alma humana sugeridas por EN

I 13 texto que apresenta a divisatildeo das virtudes conforme ldquopartesrdquo da

alma em virtudes morais e intelectuais Para reforccedilar o que

constataremos com o estudo da virtude moral chamaremos em auxiacutelio o

exemplo da coragem prosseguindo pelo percurso argumentativo da

discussatildeo feita por Aristoacuteteles na medida do possiacutevel dos Livros III a V

da EN que proporaacute as virtudes morais particulares como concretizaccedilatildeo

do melhor estado possiacutevel para cada funccedilatildeo da capacidade desiderativa

do homem Esse caminho nos permitiraacute sair de possiacuteveis embaraccedilos que

cercam a interpretaccedilatildeo da virtude moral como boa medida nas emoccedilotildees

Esse estudo nos apresentaraacute a ideia de virtude como boa medida

nas emoccedilotildees alcanccedilada por meio da habituaccedilatildeo agrave praacutetica de accedilotildees

moralmente corretas A visita a essa forma de interpretaccedilatildeo eacute

imprescindiacutevel a fim de compreender a possibilidade de se educar ou

mudar as emoccedilotildees favoravelmente ao bem humano A discussatildeo da

virtude moral nos apresentaraacute seu caraacuteter voluntaacuterio bem como

apresentaraacute o homem virtuoso como responsaacutevel por suas accedilotildees

especialmente das accedilotildees que desempenha adequadamente cumprindo

aquilo que se entende por sua funccedilatildeo Com isso alcanccedilaremos a

proposta da metriopaacutethēia ideal de emoccedilatildeo concorde com a capacidade

23

racional em sua face praacutetica (e talvez tambeacutem com sua face teoacuterica)

mas nos depararemos com a impossibilidade de todas as emoccedilotildees serem

moderadas Embora natildeo seja uma proposta de Aristoacuteteles a ideia da

metriopaacutethēia se nos apresentaraacute como melhor forma de compreender as

emoccedilotildees adequadas agrave boa medida As emoccedilotildees moderadas possibilitam

as virtudes morais mas nos indicaratildeo igualmente a necessidade ao

menos da virtude intelectual da prudecircncia para que tais virtudes venham

a efetivar-se

O estudo da prudecircncia e de seus componentes - deliberaccedilatildeo

escolha deliberada e accedilatildeo moralmente adequada - nos permitiraacute entender

melhor a relaccedilatildeo entre as capacidades da alma Se as virtudes morais

podem ser entendidas como melhor desempenho de certas capacidades

humanas que somente se concretizam diante de emoccedilotildees que cedem aos

conselhos da razatildeo ratificaremos nossa interpretaccedilatildeo acerca de uma

alma composta por faculdades em acordo Sendo a prudecircncia uma

virtude intelectual indispensaacutevel agrave vida feliz identificaremos a

necessidade de tratar de seus objetos Por isso necessitaremos discutir

sua relaccedilatildeo com coisas particulares e mutaacuteveis proacuteprias ao acircmbito da

prāxis mas tambeacutem de seu direcionamento para os assuntos

considerados universais dentre os quais encontramos a proposta

aristoteacutelica da felicidade o bem norteador de toda accedilatildeo que possa ser

considerada moralmente correta

A discussatildeo da relaccedilatildeo entre a prudecircncia particulares e universais

indica a unidade da alma identificada a partir dos objetos

compartilhados pela capacidade uacutenica do intelecto em seus aspectos

praacutetico e teoacuterico Esses assuntos iniciados por nossa anaacutelise dos

primeiros Livros da EN nos levaratildeo pelas questotildees sugeridas pelo Livro

VI que nos manteratildeo em contato direto com as discussotildees sobre a alma

Por isso a finalizaccedilatildeo dessa parte de nosso estudo seraacute feita com a

relaccedilatildeo apresentada ao final do Livro mencionado entre virtude natural

e virtude em sentido estrito Julgamos que tal questatildeo seraacute de grande

valia para o entendimento daquilo que Aristoacuteteles propocircs como virtude

completa relacionada como se mostraraacute com a funccedilatildeo proacutepria ao

homem e agrave praacutetica de boas accedilotildees propostas por um desejo adequado agrave

razatildeo bem como por emoccedilotildees doacuteceis agrave razatildeo Essa possiacutevel docilidade

demandaraacute pesquisar a racionalidade implicada nas emoccedilotildees

Para garantir essas interpretaccedilotildees prosseguiremos com nossa

anaacutelise ateacute o final da exposiccedilatildeo da EN momento que boa parte das

interpretaccedilotildees corriqueiras do livro X parecem se distanciar de todas as

propostas que defenderemos ao longo de nossa tese Em EN X nos

depararemos como a alternativa de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma

24

forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica proposta que

a muitos soa como desfecho ideal das discussotildees iniciadas com o tratado

em questatildeo Natildeo obstante o proacuteprio Livro X nos encorajaraacute a manter a

leitura da melhor forma de vida possiacutevel ao homem ou seja de sua

funccedilatildeo proacutepria como uma vida na poacutelis que conjugue o bom exerciacutecio

de todas as suas capacidades aniacutemicas Essa interpretaccedilatildeo seraacute

viabilizada e reforccedilada pela apresentaccedilatildeo de faculdades racionais

encadeadas que podem tocar a emoccedilatildeo desde seu despertar ateacute quando

forem moderadas com o auxiacutelio da razatildeo praacutetica Essa leitura ganharaacute

apoio nos demais tratados estudados e em suas propostas sobre as

emoccedilotildees que nos indicaratildeo um amplo vocabulaacuterio relacionado tanto agraves

emoccedilotildees quanto agraves capacidades racionais da alma humana colocando

em cena novamente a ligaccedilatildeo das capacidades racional e natildeo racional da

alma

A apreciaccedilatildeo do mencionado vocabulaacuterio nos indicaraacute

(sub)capacidades da alma que atuam na emoccedilatildeo e nos encaminharaacute para

o desfecho de nossa pesquisa Estudaremos brevemente a percepccedilatildeo

sensiacutevel a imaginaccedilatildeo o intelecto e certos tipos de pensamento dentre

os quais poderemos localizar a opiniatildeo responsaacuteveis pelo despertar de

boa parte das emoccedilotildees ou que se envolveratildeo com a educaccedilatildeo moral

emocional Novamente as consultas ao De Anima agrave Retoacuterica e agrave Poeacutetica

se mostraratildeo fonte indispensaacutevel agrave defesa de nossa tese acerca da

educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua implicaccedilatildeo com a razatildeo e com

elementos de razatildeo devido agrave proacutepria natureza aniacutemica do homem Estes

tratados igualmente nos permitiratildeo investigar oportunidades para

direcionar as emoccedilotildees de modo que consigam ouvir as propostas das

diversas formas de razatildeo existentes Por fim apresentaremos os

instrumentos aos quais os cidadatildeos podem recorrer para garantir a

chance de bem se emocionar a fim de se tornarem virtuosos e felizes

naquele que identificaremos como meio mais propiacutecio ao florescimento

humano a poacutelis

25

Capiacutetulo I

A emoccedilatildeo e suas implicaccedilotildees na vida feliz

1 Primeiros apontamentos

A leitura da EN nos traz uma seacuterie de indagaccedilotildees quanto agrave

natureza das emoccedilotildees A lista de tais questotildees pode comeccedilar pela

afirmaccedilatildeo que agraves vezes aparece nesse texto segundo a qual as emoccedilotildees

satildeo natildeo racionais Por esse motivo talvez tenhamos a impressatildeo

frequente de que o filoacutesofo em alguma medida natildeo seja favoraacutevel agrave

intervenccedilatildeo das emoccedilotildees nas accedilotildees consideradas boas moralmente De

acordo com a proposta de uma alma que ldquotem uma parte racional e uma

irracionalrdquo (EN I 13 1102a27-28)4 as emoccedilotildees tecircm por sede a

capacidade natildeo racional da alma a desiderativa de onde viriam

igualmente as suas relaccedilotildees com certos prazeres e dores Tais

associaccedilotildees com outros elementos que tambeacutem natildeo costumavam receber

apreciaccedilatildeo favoraacutevel em questotildees morais parecem agravar a situaccedilatildeo das

emoccedilotildees e provavelmente por isso sejam feitas afirmaccedilotildees que parecem

colocar a emoccedilatildeo como algo arredio aos ditames da razatildeo sendo mesmo

capaz de sobrepor-se a estes (EN IX 8 1168b29-35 1169a1-8)5 Vaacuterias

assertivas que apresentam um tom de advertecircncia quanto aos perigos de

se entregar agraves emoccedilotildees aparecem ao longo do texto

A primeira menccedilatildeo que o tratado faz ao assunto pode confirmar

isso no Livro I da EN Aristoacuteteles explica o motivo pelo qual os jovens

natildeo tiram bom proveito das liccedilotildees sobre poliacutetica primeiro natildeo tecircm

experiecircncia dos fatos da vida em torno dos quais giram as discussotildees

dessa natureza segundo os jovens tendem a seguir suas paixotildees (EN I 1

1095a5) Por isso o estudo da ciecircncia poliacutetica lhes seraacute vatildeo jaacute que o fim

que se almeja com essa mateacuteria eacute a accedilatildeo e natildeo o conhecimento (EN I 1

1095a6) Essas falhas abrangem tanto aqueles que satildeo jovens em anos

quanto os que satildeo jovens em caraacuteter pois o defeito natildeo depende da

idade mas do modo de viver e seguir cada objetivo proposto pela

emoccedilatildeo (EN I 1 1095a9) ldquoA tais pessoas como aos incontinentes a

ciecircncia natildeo traz proveito algum mas aos que desejam e agem de acordo

4 Todas as traduccedilotildees da EN seratildeo feitas a partir da traduccedilatildeo francesa de J Tricot

(2012) com exceccedilatildeo dos trechos I 13 a III 8 que tecircm traduccedilatildeo de Zingano

(2008) no original οἷον τὸ μὲν ἄλογον αὐτῆς εἶναι τὸ δὲ λόγον ἔχον 5 O filoacutesofo parece expressar postura semelhante tambeacutem em EN 1106b35

1107a1-9 1097b35 1098a1-17 1168b34-35 1169a18 1177a12-18 1178a6-7

etc

26

com um princiacutepio racional o conhecimento desses assuntos faraacute grande

vantagemrdquo (EN I 1 1095a11-15)6 na distinccedilatildeo do que seja o bem

Por conseguinte em nada nos admiraria a proposta da melhor

vida possiacutevel como aquela guiada pela reta razatildeo A felicidade fim

(teacutelos) da vida humana seria descrita como uma atividade mas uma

atividade (eneacutergeia) realizada conforme o que manda a razatildeo Tal

atividade deve ser de acordo com o que eacute descrito como o que haacute de

melhor no homem e que o diferencia dos outros animais e das plantas

(EN I 6 1097b35 1098a1-5) Esse tipo de vida natildeo seria possiacutevel sem as

virtudes especialmente sem a virtude moral pois aleacutem de ser conforme

o que haacute de mais proacuteprio ao homem se isso fosse a razatildeo a vida boa

moralmente e feliz seria aquela que permitiria desempenhar da melhor

forma a funccedilatildeo humana e segundo Aristoacuteteles desempenhar bem sua

funccedilatildeo eacute ser virtuoso

Caso seja possiacutevel entender essa proposta como indicativo de que

o homem deva ouvir sua razatildeo a fim de possuir a mais excelente virtude

e a melhor vida precisamos ressaltar que Aristoacuteteles nos chama atenccedilatildeo

para que a razatildeo deva ser o guia ou deva ao menos estar presente em

todos os homens Natildeo conveacutem esquecer que no Livro X o filoacutesofo

afirmaraacute que tal possibilidade natildeo eacute a mais recorrente - embora devesse

ser - agrave vida humana comum Os homens em sua grande maioria natildeo

obedecem espontaneamente agrave razatildeo mesmo sendo capazes de fazecirc-lo

Por isso natildeo tendem a uma vida de pura contemplaccedilatildeo que na verdade

extrapolaria as possibilidades humanas Na maior parte das vezes os

elementos da capacidade natildeo racional da alma conduzem as accedilotildees

sendo necessaacuterio portanto buscar moderaacute-los para que haja excelecircncia

dessa capacidade e que se viva a vida propriamente humana7 Diante

dessa impossibilidade de a capacidade racional reger de modo exclusivo

a vida humana o que levaria o homem a desempenhar uma funccedilatildeo

6 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original τοῖς γὰρ τοιούτοις ἀνόνητος ἡ γνῶσις γίνεται καθάπερ τοῖς

ἀκρατέσιν τοῖς δὲ κατὰ λόγον τὰς ὀρέξεις ποιουμένοις καὶ πράττουσι

πολυωφελὲς ἂν εἴη τὸ περὶ τούτων εἰδέναι 7 Essa proposta eacute encontrada tambeacutem em Poliacutetica 1253a25-28 ldquoQue nessas

condiccedilotildees a cidade seja tambeacutem anterior naturalmente ao indiviacuteduo isso eacute

evidente se com efeito o indiviacuteduo tomado isoladamente eacute incapaz de bastar a

si mesmo seraacute por relaccedilatildeo agrave cidade como nos nossos outros exemplos as

partes satildeo em relaccedilatildeo ao todo Mas o homem que estaacute na incapacidade de ser

membro de uma comunidade ou que disso natildeo experimenta nada a necessidade

porque ele se basta a si mesmo natildeo faz em nada parte de uma cidade e por

consequecircncia eacute ou um bruto ou um deusrdquo

27

totalmente racional ou conforme a razatildeo como sua marca distintiva

cabe-nos questionar qual seria a funccedilatildeo proacutepria ao homem de acordo

com a EN

2 Funccedilatildeo proacutepria ao homem

Aristoacuteteles inaugura as discussotildees da EN afirmando que toda arte

bem como toda atividade tende a um fim ou bem Os bens podem ser

diferentes ou idecircnticos agraves suas fontes originadoras e por isso existem

tantos fins quanto haacute artes e atividades das quais satildeo provenientes

Ademais quando os bens satildeo identificados agraves atividades que os geram

estas satildeo consideradas mais excelentes que aquelas que natildeo se

identificam ao fim gerado ocasionando uma hierarquia que organiza

atividades e bens

Essas propostas abrem a discussatildeo sobre os fins e os meios para

alcanccedilaacute-los e nesse ponto logo no iniacutecio da EN o filoacutesofo nos informa

que haacute um fim maior desejado por si mesmo e em vista do qual todas as

demais coisas e bens satildeo buscados Essa delimitaccedilatildeo de um bem maior

ou supremo impede que a lista de bens existentes obedeccedila a uma

progressatildeo infinita Diante disso o filoacutesofo propotildee que o conhecimento

da natureza do bem supremo poderia colaborar com seu alcance jaacute que

uma procura eacute facilitada quando se conhece o que estaacute sendo procurado

Por isso a investigaccedilatildeo da EN a partir do Livro I 2 se direciona agrave

delimitaccedilatildeo do bem supremo e daquela ciecircncia que se dedicaria ao seu

estudo a poliacutetica teoria determinadora de tudo quanto seria preciso

saber para o bom andamento das questotildees de uma poacutelis A ciecircncia

poliacutetica determinaria aquilo que os cidadatildeos deveriam fazer e por isso

abrangeria todas as demais ciecircncias sendo arquitetocircnica responsaacutevel

pelo bem humano e mais importante pelo bem da poacutelis

Tendo em vista as constataccedilotildees feitas ateacute os Livros I 3-4

Aristoacuteteles pensa que deve estabelecer ao menos em linhas gerais a

verdade sobre o que eacute a felicidade pois todos sem exceccedilatildeo

identificam-na com um bem ou um fim inerente ao ser humano O passo

destaca a poliacutetica como a ciecircncia responsaacutevel por determinar tais

assuntos e por isso seria de grande auxiacutelio agraves pessoas que vivem agem e

desejam conforme a razatildeo ao mesmo tempo em que delimita o campo

de interesse da pesquisa em curso Seria tarefa de a poliacutetica definir

felicidade pois a despeito do consenso quanto ao que seria o melhor

fim e resultado da melhor accedilatildeo possiacutevel haveria vaacuterias formas de

conceber a felicidade e de entender quais seriam os modos de obtecirc-la

Os homens comuns pensariam que a felicidade seria o prazer ou a

28

riqueza ou as honras percepccedilatildeo diferenciada daquela tida pelos saacutebios

Chegariam mesmo a mudar de entendimento acerca da eudaiacutemōniacutea

conforme o tipo de vida que levassem

Quanto ao tipo de vida levada o Livro I 5 aponta trecircs formas

principais a serem analisadas a vida preocupada com a (1) obtenccedilatildeo de

prazer a vida (2) poliacutetica e a vida dada agrave (3) contemplaccedilatildeo filosoacutefica O

filoacutesofo explica que a maioria das pessoas identifica a felicidade com o

prazer e pouco mais adiante compara a vida escolhida pela multidatildeo

agravequela vida dos escravos e agrave qual chama bestial Em contrapartida a

opiniatildeo dos homens de gosto mais refinado bem como das pessoas que

satildeo mais ativas seria que a felicidade se resume agrave honra que

normalmente eacute entendida como fim da vida poliacutetica No entanto

Aristoacuteteles pensa que a honra natildeo poderia ser o fim buscado pelo

homem jaacute que dependeria mais de quem a conferiria que daqueles que a

mereceriam as honrarias poderiam ser retiradas de algueacutem ao contraacuterio

da felicidade Aleacutem disso o filoacutesofo nos conta que as honras seriam

procuradas em vista da virtude sendo que talvez a virtude e natildeo a

honra fosse o fim procurado pela vida poliacutetica Contudo entende que a

virtude igualmente natildeo eacute a felicidade pois um homem pode ser

considerado virtuoso por exemplo quando dorme e quando eacute

desafortunado mas natildeo eacute possiacutevel ser feliz no infortuacutenio Na sequecircncia

da exposiccedilatildeo Aristoacuteteles afirma que examinaraacute a vida contemplativa em

outro momento (Livro X) e acrescenta agrave sua anaacutelise o tratamento da vida

dedicada ao ganho percebendo que a riqueza tambeacutem natildeo contemplaria

suas intenccedilotildees quanto agravequilo que seria a eudaiacutemōniacutea A riqueza seria uacutetil

a uma vida considerada feliz poreacutem natildeo poderia resumir tal vida porque

natildeo seria buscada por si mesma Com isso o filoacutesofo nos apresenta uma

das suas exigecircncias para definirmos a felicidade ser um fim ou bem

buscado por si mesmo

No Livro I 6 da EN o bem eacute tratado em dois sentidos haveria

bens em si mesmos considerados realmente bons e bens relativos a

estes uacuteteis agrave obtenccedilatildeo dos bens em si mesmos Estes seriam como jaacute se

propusera acerca da felicidade procurados sem pensar em algo mais que

se pudesse conseguir a partir deles mas haveria vaacuterias coisas que se

encaixariam nesse tipo de descriccedilatildeo como a riqueza o prazer etc o

que forccedila o filoacutesofo a delimitar o bem que procura a algo que possa ser

alcanccedilado pelo homem apresentando nova exigecircncia agrave definiccedilatildeo da

felicidade

29

Diante de tantas distinccedilotildees o Livro I 7 afunila mais a proposta de

bem buscado descrevendo-o novamente como ldquoaquilo em cujo interesse

se fazem todas as coisasrdquo (EN I 5 1097a21-22)8 O bem seria a

finalidade das accedilotildees e os homens fariam tudo em vista dele Aristoacuteteles

ratifica a existecircncia de vaacuterios fins mas propotildee que apenas o bem

supremo ou absoluto seria escolhido por si mesmo o que implica que

nem todos os fins satildeo absolutos O sumo bem no entanto seria

absoluto o uacutenico fim absoluto ou o mais absoluto no caso de haver mais

de um fim desse tipo caracteriacutestica daquilo que eacute procurado e desejado

por si mesmo A esses aspectos Aristoacuteteles acrescenta outro ndash que

voltaraacute a ser analisada no Livro X a autossuficiecircncia A princiacutepio este

conceito eacute explicado em I 7 como aquilo que basta para um homem e

todos agrave sua volta porque o homem segundo esse capiacutetulo (EN I 7

1097b12) existe para ser cidadatildeo A autossuficiecircncia tornaria a vida

desejaacutevel e sem necessidade de nada sendo que somente a felicidade

cumpriria tais requisitos aleacutem de ser a coisa mais desejaacutevel de todas

natildeo sendo um bem entre outros A felicidade eacute redefinida portanto

como a finalidade uacuteltima de toda accedilatildeo (EN I 7 1097b14-21)9

Diante de todo esse debate e da tentativa de delimitaccedilatildeo da

felicidade Aristoacuteteles natildeo se daacute por satisfeito com o possiacutevel conceito

determinado ateacute o ponto Evoca entatildeo a questatildeo da funccedilatildeo (eacutergon) do

homem pois pensa que talvez esclareccedila o caso O filoacutesofo questiona

haveria uma funccedilatildeo especificamente humana Verificar qual seria a

funccedilatildeo humana facilitaria entender o que eacute a felicidade (EN I 7

1097b24) mas por quecirc Aristoacuteteles pensa que para todas as coisas que

apresentam uma funccedilatildeo e uma atividade o bem estaacute na funccedilatildeo (EN I 7

1097b26-27)

Korsgaard afirma que o argumento da funccedilatildeo da forma como eacute

elaborado por Aristoacuteteles parece depender da ligaccedilatildeo existente entre ser

uma boa pessoa ter uma vida boa ou feliz aleacutem de objetivar ligar essas

propostas em torno da racionalidade Haacute igualmente a intenccedilatildeo de

mostrar que devido a alguns argumentos sobre razatildeo e virtude o

argumento da funccedilatildeo eacute um bom caminho para abordar a questatildeo de

como viver bem Se tudo tem uma funccedilatildeo por que o homem natildeo teria

nenhuma (EN I 7 1097b22-23) Isso significaria que o homem segue um

8 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original τούτου γὰρ ἕνεκα τὰ λοιπὰ πράττουσι πάντες 9Esse trecho abriria a questatildeo para as interpretaccedilotildees da eudaiacutemōniacutea como bem

inclusivo ou dominante Neste estudo apenas mencionaremos quando

pertinente o problema pois natildeo pretendemos esgotaacute-lo

30

propoacutesito ou um destino Korsgaard propotildee duas maneiras de ler a

passagem em questatildeo A primeira com assombro e jaacute proposta acima

soaria mais ou menos assim se todas as coisas que existem tecircm uma

funccedilatildeo por que o homem natildeo teria nenhuma O passo poderia ser lido

ainda como um argumento e soaria mais ou menos assim ldquopartes do

corpo tecircm funccedilotildees mas o que fazem soacute faz sentido se houver uma

funccedilatildeo do todo relativo ao qual as partes tecircm uma funccedilatildeo as vaacuterias artes

e profissotildees tecircm funccedilotildees mas que soacute fazem sentido se haacute uma funccedilatildeo

geral da vida humana agrave qual contribuemrdquo (KORSGAARD 2008 p 130-

131)

Assim a funccedilatildeo do todo respaldaria e explicaria aquelas das

partes De modo semelhante Reeve (2014 p 279) entende que qualquer

que seja a funccedilatildeo humana ela deve justificar as funccedilotildees das partes do

corpo bem como deve justificar o homem como praticante de uma arte

especiacutefica que segue princiacutepios e normas racionais Isso porque apoacutes

analisar as funccedilotildees atreladas agraves capacidades da alma que o homem

compartilha com os animais o texto de EN I 7 (1097b33-1098a7) acaba

por identificar uma funccedilatildeo que chama ldquovida praacutetica do que possui

razatildeordquo que eacute capaz tanto de obedecer agrave razatildeo quanto de possuiacute-la

exercitando o intelecto (noucircs) De um modo ou de outro o argumento

parece depender de uma concepccedilatildeo teleoloacutegica de mundo Essa

concepccedilatildeo no primeiro caso indica simplesmente um propoacutesito para

tudo quanto haacute No segundo caso indica um tipo de raciociacutenio que vai

de um propoacutesito relativo a um propoacutesito absoluto Mas caberia entender

o argumento da funccedilatildeo como a defesa de um propoacutesito para o homem

Mesmo que se assuma o argumento em questatildeo eacute preciso esclarecer por

que o bem humano estaacute atrelado ao bom desempenho de uma funccedilatildeo

Haacute entre funccedilatildeo e virtude uma ligaccedilatildeo conceitual da qual natildeo

podemos prescindir pois como Reeve salienta o argumento prepara o

campo para a teoria da virtude Segundo tal teoria o exerciacutecio de uma

funccedilatildeo poderia ser compreendido como melhor estado das capacidades

que se agrupam em um todo que pode ser entendido como a melhor

forma de vida humana Entendemos tambeacutem com Reeve (2013 p 38)

que essa vida eacute proposta sagazmente por Aristoacuteteles como agrupamento

dos aspectos que considerava os melhores dentre todas as opiniotildees

correntes agrave eacutepoca sobre o tipo de vida tido como felicidade Diante

disso explica Korsgaard a virtude eacute uma qualidade que faz o homem

bom ao desempenhar sua funccedilatildeo composta por qualidades que o tornam

31

bom quanto agrave atividade racional10 Contudo fazemos questatildeo de frisar

que a virtude igualmente deve ser entendida como desempenho

excelente de todas as atividades cuja execuccedilatildeo pelo homem eacute possiacutevel

Korsgaard esclarece ldquoEntatildeo Aristoacuteteles precisa da conclusatildeo do

argumento da funccedilatildeo natildeo somente para dar suporte agrave sua visatildeo sobre

que tipo de vida eacute o melhor assim como a fim de nos dar uma base

teoacuterica agrave afirmaccedilatildeo que certas qualidades satildeo virtudesrdquo (KORSGAARD

2008 p 133-134 traduccedilatildeo nossa) O argumento nos permite

compreender melhor as virtudes e com isso a proposta sobre o bem ou

fim humano entendido por Aristoacuteteles como atividade em conformidade

com a virtude

O mau entendimento do argumento em questatildeo pode vir do fato

de interpretaacute-lo teleologicamente pensando eacutergon como propoacutesito

Haveria alternativas de interpretaccedilatildeo como um significado mais amplo

de trabalho funcionamento produtos ou atividades caracteriacutesticas

indicando igualmente a ligaccedilatildeo entre funccedilatildeo e atividade que levaria o

homem ao bem que procura Natildeo reconstruiremos totalmente a proposta

de Korsgaard sobre esse assunto que passaria por complexas noccedilotildees

metafiacutesicas agraves quais natildeo podemos nos dedicar nesse momento11 mas a

melhor alternativa agrave compreensatildeo da funccedilatildeo proposta em EN I seria

indicada pela autora como a de atividade caracteriacutestica que faz de uma

coisa aquilo que ela eacute Assim uma concepccedilatildeo de homem tambeacutem estaacute

em questatildeo como reforccedilaremos no nosso terceiro Capiacutetulo porque

quem sabe o que a coisa faz a conhece melhor O que parece coadunar

outra possibilidade de entendimento proposta pela autora a de como

uma coisa funciona ou seja como uma coisa faz o que ela faz natildeo

impedindo que tenha vaacuterios propoacutesitos Entatildeo propoacutesito seria diferente

de funccedilatildeo mesmo que os dois sentidos estivessem intimamente

relacionados pois saber ldquoo que uma coisa fazrdquo estaacute totalmente ligado ao

saber ldquocomo uma coisa faz o que ela fazrdquo

Desse modo natildeo bastaria saber o propoacutesito da coisa para

conhececirc-la explica a autora ldquoMas algueacutem que sabe para que o coraccedilatildeo

10 De acordo com Boyle haacute uma proposta do homem como animal racional que

tem sua tradiccedilatildeo iniciada com Aristoacuteteles Conforme a interpretaccedilatildeo do autor

para essa proposta que pensamos ser condizente com nossas proacuteprias

interpretaccedilotildees sobre o assunto ldquoUma implicaccedilatildeo crucial da Visatildeo Claacutessica eu

argumentarei eacute que a racionalidade natildeo eacute uma potecircncia particular de animais

racionais que satildeo equipados com ela mas seu modo distintivo de ter potecircnciasrdquo

(BOYLE 2012 p 6 traduccedilatildeo nossa) 11 Mateacuteria e forma substacircncia causa

32

serve seus arranjos estruturais e como aqueles arranjos capacitam o

coraccedilatildeo a fazer o que ele faz pode dizer verdadeiramente entendecirc-lordquo

(KORSGAARD 2008 p 139 traduccedilatildeo nossa) Por isso a autora pensa

que o melhor candidato agrave interpretaccedilatildeo de funccedilatildeo eacute ldquocomo a coisa faz o

que ela fazrdquo indo do conhecimento da estrutura ao conhecimento do

propoacutesito atrelado ao objeto estudado Com isso poderemos pensar que

compreender a alma humana e suas capacidades em relaccedilatildeo seria

extremamente beneacutefico entre outras coisas para nossa compreensatildeo

daquilo que o homem eacute capaz de fazer pois nos encaminharia para o

conhecimento do proacuteprio homem e de como ele faz o que faz O que a

nosso ver natildeo descartaria uma proposta teleoloacutegica acerca da felicidade

humana mas a reelaboraria nos termos propostos acima com o apoio de

Korsgaard Natildeo importa se o homem tem um propoacutesito o que importa eacute

que o homem desempenha suas atividades de um modo que lhe eacute

especiacutefico e que pode ser entendido e explicado Assim quem entende

isso poderaacute dizer o que eacute a funccedilatildeo humana aleacutem do mais seraacute possiacutevel

conhecer melhor o proacuteprio homem

Por conseguinte quando Aristoacuteteles afirma que a funccedilatildeo humana

eacute a atividade da parte racional da alma natildeo quer dizer simplesmente que

o raciociacutenio eacute o propoacutesito do ser humano Igualmente estaacute a dizer que a

atividade racional eacute a atividade caracteriacutestica do homem caso se

entenda que isso significa uma atividade que somente a espeacutecie humana

escolhe Aleacutem disso Korsgaard entende que Aristoacuteteles quer dizer que a

ldquoatividade racional eacute como noacutes seres humanos fazemos o que fazemos e

em particular como conduzimos nossa forma especiacutefica de vidardquo

(KORSGAARD 2008 p 141 traduccedilatildeo nossa) O que nos leva de volta

agrave lista dos tipos de vida No DA II 2 Aristoacuteteles elenca trecircs formas de

viver conforme as capacidades da alma humana vegetativa (das plantas

e de todos os animais) de percepccedilatildeo e accedilatildeo (de todos os animais) e de

razatildeo ou da escolha racional (apenas dos animais humanos) O homem

apresenta todas as trecircs formas de vida duas em comum com os demais

viventes mas uma que lhe eacute especiacutefica o que faz com que gerencie de

um jeito especial as outras formas que compotildeem a vida humana Assim

para Aristoacuteteles ldquoser racional transforma a natureza de ser um animal e

assim constitui um jeito novo de ser uma coisa vivardquo (BOYLE 2012 p

16 traduccedilatildeo nossa)

Com as observaccedilotildees feitas a respeito desse assunto Aristoacuteteles

parece entender a vida regida pela razatildeo como mais apropriada aos

homens contudo o filoacutesofo pondera neste tipo de vida e no que a rege

haacute algo que eacute obediente agrave razatildeo mas haacute ainda algo que possui e exerce o

pensamento A vida da capacidade racional portanto igualmente

33

poderia ter dois significados mas nesse ponto especiacutefico estar-se-ia a

falar da vida como atividade racional O que provavelmente poderia

nos levar a interpretar essa proposta como natildeo tratando de algo

puramente racional pois eacute nesse ponto da argumentaccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

do homem que Aristoacuteteles parece ceder lugar a uma racionalidade

relacionada e dedicada inteiramente ao cuidado da capacidade natildeo

racional e de suas (sub)capacidades fazendo valer a proposta da

atividade humana como aquela feita com razatildeo ou natildeo sem razatildeo

Nussbaum entende que nesse momento Aristoacuteteles comeccedila a abrir matildeo

de algo totalmente divino como funccedilatildeo especiacutefica do homem propondo

como tiacutepico agrave alma humana uma sabedoria diferenciada daquela

compartilhada pela divindade a sabedoria praacutetica Diante dessas

possibilidades de interpretaccedilatildeo precisamos analisar as propostas em

jogo para entender qual seria realmente a funccedilatildeo e portanto a melhor

forma de viver ou o fim humano pois Aristoacuteteles escreve

Ora se haacute uma funccedilatildeo do homem consistindo em

uma atividade da alma conforme agrave razatildeo ou que

natildeo existe sem a razatildeo e se noacutes dizemos que essa

funccedilatildeo eacute genericamente a mesma em um

indiviacuteduo qualquer e em um indiviacuteduo de meacuterito

(assim em um citarista e em um bom citarista e

isso eacute verdade de uma maneira absoluta em todos

os casos) a excelecircncia devida ao meacuterito se

acrescentando agrave funccedilatildeo (pois a funccedilatildeo do citarista

eacute tocar a ciacutetara e aquela do bom citarista eacute tocaacute-la

bem) se eacute assim se noacutes colocamos que a funccedilatildeo

do homem consiste em um certo gecircnero de vida

quer dizer em uma atividade da alma e nas accedilotildees

acompanhadas de razatildeo se a funccedilatildeo de um

homem virtuoso eacute cumprir essa tarefa e cumpri-la

bem e com sucesso cada coisa aleacutem estando bem

completa quando eacute segundo a excelecircncia que lhe eacute

proacutepria - nessas condiccedilotildees eacute portanto que o bem

para o homem consiste em uma atividade da alma

em acordo com a virtude e no caso de

pluralidade de virtudes em acordo com a mais

excelente e perfeita entre elas (EN I 6 1098a7-

18)12

12 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original εἰ δ ἐστὶν ἔργον ἀνθρώπου ψυχῆς ἐνέργεια κατὰ λόγον ἢ

μὴ ἄνευ λόγου τὸ δ αὐτό φαμεν ἔργον εἶναι τῷ γένει τοῦδε καὶ τοῦδε

34

A anaacutelise do passo em questatildeo gerou celeuma em relaccedilatildeo agrave

questatildeo da eudaiacutemōniacutea provocando discussotildees propostas em ceacutelebres

artigos publicados desde 1964 (ou mesmo antes) por estudiosos como

Hardie Ackrill e Kenny A menccedilatildeo aos trecircs comentadores e respectivos

estudos eacute vaacutelida na medida em que haacute propostas sobre a eudaiacutemōniacutea

como aquela elaborada por Kenny que concebeu a felicidade como um

bem dominante e entendia que o passo em questatildeo se opotildee agraves teorias

como aquelas dos demais estudiosos mencionados e agraves suas concepccedilotildees

de eudaiacutemōniacutea Segundo Kenny o passo liga as teorias da felicidade

apresentadas pelos Livros I e X da EN tomando as teorias de Aristoacuteteles

sobre os variados tipos de vida no Livro I como ponto de partida para a

interpretaccedilatildeo da eudaiacutemōniacutea como vida totalmente dedicada agrave

contemplaccedilatildeo Embora concordemos com a possibilidade de existecircncia

de um elo entre as teorias apresentadas nos dois tratados sobre a

felicidade elo do qual trataremos mais detidamente em nosso terceiro

Capiacutetulo os demais comentadores citados parecem-nos mais coerentes

com as reais intenccedilotildees de Aristoacuteteles para sua teoria da felicidade

Pensamos assim especialmente por natildeo tomarem como proposta (ou

intenccedilatildeo de proposta do filoacutesofo segundo a leitura de Hardie (2009 p

35)) a felicidade como fim dominante encaminhando-se agrave defesa de

uma vida plena como aquela dedicada ao puro contemplar Todavia se

um tipo de vida eacute indicado como o melhor e se esse tipo for

compreendido como um conjunto de atividades operadas de modo

racional e natildeo exatamente como uma vida inteiramente direcionada agraves

atividades especificamente contemplativas qual seria esse tipo de vida

Aristoacuteteles o determinaria

As questotildees nos levaram a repensar as propostas do filoacutesofo

acerca dos meios e dos fins variados que se nos apresentam ao longo de

toda uma vida e que conduzem agraves muitas opiniotildees e aos muitos modos

de entender o que seja a melhor vida possiacutevel e os bens que satildeo

necessaacuterios a ela (se satildeo necessaacuterios) As opiniotildees quanto agrave funccedilatildeo e agrave

atividade apropriada ao homem descritos no Livro I 8 variam e por isso

σπουδαίου ὥσπερ κιθαριστοῦ καὶ σπουδαίου κιθαριστοῦ καὶ ἁπλῶς δὴ τοῦτ

ἐπὶ πάντων προστιθεμένης τῆς κατὰ τὴν ἀρετὴν ὑπεροχῆς πρὸς τὸ ἔργον

κιθαριστοῦ μὲν γὰρ κιθαρίζειν σπουδαίου δὲ τὸ εὖ εἰ δ οὕτως [ἀνθρώπου δὲ

τίθεμεν ἔργον ζωήν τινα ταύτην δὲ ψυχῆς ἐνέργειαν καὶ πράξεις μετὰ λόγου

σπουδαίου δ ἀνδρὸς εὖ ταῦτα καὶ καλῶς ἕκαστον δ εὖ κατὰ τὴν οἰκείαν

ἀρετὴν ἀποτελεῖται εἰ δ οὕτω] τὸ ἀνθρώπινον ἀγαθὸν ψυχῆς ἐνέργεια γίνεται

κατ ἀρετήν εἰ δὲ πλείους αἱ ἀρεταί κατὰ τὴν ἀρίστην καὶ τελειοτάτην

35

Aristoacuteteles parece entender que essa variedade de opccedilotildees eacute devida ao

prazer que se sente com as atividades que se desempenha com mais

frequecircncia As atividades virtuosas satildeo deste tipo e satildeo destacas pelo

filoacutesofo como sendo boas e nobres Os homens bons igualmente as tecircm

em alta consideraccedilatildeo datildeo-lhes o valor devido sendo que tais homens

satildeo bons juiacutezes daquilo que conhecem bem como a virtude ldquoA

felicidade eacute pois a melhor a mais nobre e a mais apraziacutevel coisa do

mundo e esses atributos natildeo se acham separados []rdquo (EN I 9 1099a24-

25)13 O conceito de felicidade esboccedilado no Livro I eacute portanto

preenchido pelos atributos das atividades mais excelentes

Reforccedilando essas ideias o Livro I 9 nos informa que a felicidade

eacute tomada como algo de melhor e mais divino existente na vida humana

portanto eacute de acordo com a excelecircncia nas accedilotildees e atividades que o

homem eacute capaz de realizar Diante dessas constataccedilotildees Aristoacuteteles

declara que os objetivos da ciecircncia poliacutetica entre as demais vidas

observadas satildeo o melhor fim que pode haver (EN 1099b30) o que

pareceraacute contradizer as propostas do Livro X e a proposta de Kenny

supramencionada Essas explicaccedilotildees ainda que lacunares nos levam agrave

nossa crenccedila que a funccedilatildeo especiacutefica ao homem seja uma atividade que

somente se constituiria com uma vida em comunidade associando todas

as capacidades aniacutemicas acima mencionadas sendo por isso conforme

a razatildeo que se configura como elemento diferencial da psychḗ humana

Todavia ainda precisaremos confrontar essas propostas com aquelas do

Livro X acerca da vida contemplativa como melhor das vidas possiacuteveis

para garantir o que se afirma aqui

O Livro mencionado nos apresenta vaacuterios argumentos que

indicam um Aristoacuteteles aparentemente ldquoracionalistardquo propondo que o

homem se dedique agravequilo que de mais divino haacute em si a razatildeo No

entanto recorrendo ao curso de toda a EN inclusive ao proacuteprio Livro X

encontramos indicaccedilotildees de que natildeo haacute possibilidade do homem dedicar-

se inteiramente agraves atividades da contemplaccedilatildeo filosoacutefica ao exerciacutecio

mais alto e puro da razatildeo teoacuterica Mesmo um filoacutesofo explica

Aristoacuteteles necessita de comida bebida dinheiro conviacutevio e todos

esses bens sejam eles necessaacuterios ao estabelecimento de uma vida feliz

sejam eles instrumentos para tal estabelecimento soacute satildeo encontrados

como propusemos ainda haacute pouco na poacutelis Devemos reforccedilar que a EN

nos apresenta o homem como animal poliacutetico de vida essencialmente

13 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ἄριστον ἄρα καὶ κάλλιστον καὶ ἥδιστον ἡ εὐδαιμονία καὶ

οὐ διώρισται ταῦτα []

36

comunitaacuteria Por conseguinte todas as suas escolhas seratildeo tomadas

tendo em vista essa sua natureza poliacutetica explicando que a funccedilatildeo

proacutepria ao homem seria o bom desempenho de suas capacidades

aniacutemicas que o permitissem viver bem na poacutelis entre seus iguais ou

semelhantes de forma excelente mas em conformidade a leitura de

Korsgaard e Boyle (2012 p 6 et seq) de um jeito racional Quanto ao

assunto Nussbaum escreveu

O argumento do ergon natildeo pode estar nos dizendo

que devemos nos preocupar somente com a razatildeo

Nem parece dizer isso Mas a ecircnfase em tal

atividade caracteriacutestica pode ser vista como

motivada (1) pelo desafio do hedonismo e (2) pela

funccedilatildeo arquitetocircnica da razatildeo praacutetica esta e soacute

esta pode arranjar para que ambas razatildeo e as

funccedilotildees compartilhadas com os animais

obtenham seu devido lugar em uma vida humana

complexa Aristoacuteteles recomenda agrave sua audiecircncia

reflexiva uma vida que (1) envolva o exerciacutecio de

todas as nossas capacidades humanas e seja assim

uma verdadeira vida humana antes que uma

[vida] que possa justamente ser levada por uma

planta ou uma vaca e que (2) seja governada e

planejada de um tal modo a dar a ambas

capacidades compartilhadas e natildeo compartilhadas

seu papel apropriado ndash e isso significa governada

e planejada pela razatildeo praacutetica Se pensarmos

reflexivamente sobre o que eacute um ser humano ele

sugere teremos razatildeo em preferir uma vida sob a

direccedilatildeo da razatildeo praacutetica agrave vida escrava ou como a

da vaca de prazer e tambeacutem agrave alguma vida que eacute

levada sem ordem ou direccedilatildeo Queremos uma vida

que use todas as nossas capacidades Uma tal vida

inclui tanto o exerciacutecio da razatildeo quanto requer a

direccedilatildeo racional (NUSSBAUM 1985 p 106

traduccedilatildeo nossa)

Embora concordemos em grande medida com as propostas da

estudiosa que entende a opccedilatildeo pelo argumento do eacutergon humano em

um tratado eacutetico justificada por ser necessaacuterio considerar o que eacute o

homem a fim de melhor entender e acatar um tipo de vida a se buscar

pensamos que a filoacutesofa natildeo esteja de acordo com as propostas de

Aristoacuteteles em um certo ponto Este diria respeito agrave tocircnica dada agrave

37

proposta de uma vida boa ser governada pela razatildeo ou melhor pela

razatildeo praacutetica Nossa ressalva ou discordacircncia vem do fato de pensarmos

que essa alternativa seja vaacutelida agrave maioria dos homens para os homens

que satildeo capazes de agir corretamente embora possam natildeo o fazer mas

natildeo dos homens realmente virtuosos que vivem ldquocom razatildeordquo ou de um

jeito racional Pensamos diferente das propostas da autora porque

cremos que o bom exerciacutecio de todas as capacidades humanas que ela

menciona compartilhadas ou natildeo com outros viventes resulta em uma

vida virtuosa e que o homem verdadeiramente virtuoso tenha em

consonacircncia as capacidades aniacutemicas como defenderemos ao longo de

todo esse trabalho A nosso ver uma vida conforme o melhor estado

dessas capacidades desempenhadas racionalmente eacute o que

verdadeiramente se configura como a funccedilatildeo humana exclusivamente

humana dentre todas as funccedilotildees que o homem se mostra capaz de

desempenhar14

A pacificaccedilatildeo das capacidades aniacutemicas que permite uma vida de

plena realizaccedilatildeo das tarefas necessaacuterias para o conviacutevio em comunidade

eacute o que mais se mostra como exclusividade do homem natildeo dos deuses

nem dos animais em geral A possibilidade de conciliar a capacidade

natildeo racional por esta ser capaz de ouvir obedecer e participar da razatildeo

por intermeacutedio do desiderativo com a capacidade racional da alma

representada pela racionalidade praacutetica que harmoniza e participa da

capacidade natildeo racional mas que ao mesmo tempo sabe daquilo que eacute

necessaacuterio para garantir o exerciacutecio da racionalidade teoacuterica garante a

funccedilatildeo apropriada ao homem e a vida feliz O melhor estado e as

melhores atividades de ambas as capacidades da alma quando em

harmonia permitem que o homem seja o que eacute que se perceba como

aquilo que eacute animal poliacutetico razatildeo e emoccedilatildeo em consonacircncia

Devemos no entanto trabalhar mais em defesa desse entendimento

porque nos permitiraacute defender a educabilidade das emoccedilotildees

14Temos ciecircncia de que a vida pode variar de que a virtude pode se ver

ameaccedilada pelas circunstacircncias O homem virtuoso natildeo estaacute imune agraves forccedilas

do acaso mas resiste-lhes mais fortemente como na proposta da feita no

Livro I graccedilas ao seu caraacuteter ldquofirme e imutaacutevelrdquo Concordamos no entanto

com Frede que explica que mesmo o virtuoso carece de muita deliberaccedilatildeo

para agir bem pois mesmo sua boa habituaccedilatildeo que lhe confere certa (e

maior que o normal) estabilidade frente agraves vicissitudes natildeo lhe tornem

totalmente indiferente ao que o mundo apresenta como proporemos mais

adiante

38

Nossa proposta eacute coerente com as interpretaccedilotildees de estuidiosos

como Korsgaard (2008 p 143) e Boyle (2012 p 6) acerca da funccedilatildeo

humana que entende a vida feliz como atividade racional no sentido que

o poder da escolha racional facultado ao homem muda o modo que os

humanos conduzem as atividades que compartilham com os outros

animais como a construccedilatildeo a procriaccedilatildeo alimentaccedilatildeo etc A autora

defende que os seres humanos abordam essas atividades criativamente e

desenvolvem vaacuterios modos de desempenhaacute-las entre os quais noacutes entatildeo

escolhemos Igualmente fazem coisas que os outros animais natildeo fazem

de jeito nenhum como contar piadas pintar e se engajar na pesquisa

cientiacutefica e filosoacutefica Entatildeo a escolha racional introduz um sentido de

vida todo novo no qual uma pessoa pode dizer ldquoter uma vidardquo A vida eacute

entendida nesse sentido quando se diz que algueacutem vive bem ou mal ndash se

eacute eudaiacutemōn ou natildeo Entatildeo a autora afirma que esse eacute o sentido de

ldquovidardquo relevante para o argumento da funccedilatildeo A razatildeo eacute a funccedilatildeo do ser

humano desde que entendida como uma forma especificamente humana

de conduzir a vida e pensamos que tal tipo de conduccedilatildeo soacute pode ser

exercido em comunidade Assim atividade racional deveria ser

entendida natildeo no sentido de gastar toda a vida em contemplaccedilatildeo mas

como um modo de conduzir a vida o que provavelmente seja mais

condizente com nossa proposta embora entendamos que nos virtuosos

isso signifique a harmonia das capacidades da alma e natildeo a prevalecircncia

da capacidade racional15

Discutiremos as virtudes no capiacutetulo seguinte Por enquanto

destacamos outro motivo para entendermos que a funccedilatildeo totalmente

humana somente pode ser atualizada na poacutelis nas atividades e nas accedilotildees

moralmente avaliaacuteveis que se apresentam na poacutelis Parece impossiacutevel ao

homem atualizar as potecircncias de suas capacidades aniacutemicas em

consonacircncia que levam a emoccedilotildees bem educadas se natildeo por meio

daquilo que o corpo eacute capaz de fazer Todas as atividades e accedilotildees

completadas pelo composto corpoalma chamado por Aristoacuteteles em

parte da Metafiacutesica tograve syacutenolon (conjunto) de mateacuteria e forma

(hyacutelēmorphḗ) levam agrave produccedilatildeo de algo uacutetil ao homem agrave praacutetica de

boas accedilotildees e igualmente ao exerciacutecio da razatildeo teoacuterica e estatildeo de acordo

com Lawrence (2009 p 46) e com nossa interpretaccedilatildeo a serviccedilo dessa

vida boa em comunidade Por isso deveremos nos concentrar agora em

abordar as questotildees da alma humana como levantadas ao final do Livro

I da EN capiacutetulo 13 chamando em nosso auxiacutelio quando necessaacuterias

15 Quanto agrave classificaccedilatildeo do homem como animal racional especificar a

essecircncia humana ver Boyle (2012)

39

as consideraccedilotildees do De Anima sobre o assunto especialmente quando

este tratado puder nos auxiliar a confirmar nossa interpretaccedilatildeo

hilemoacuterfica que nos permitiraacute defender nossa teoria da funccedilatildeo proacutepria ao

homem como necessaacuteria ao entendimento do papel das emoccedilotildees na vida

moral

3 EN I 13 a alma humana e a emoccedilatildeo

A felicidade foi proposta em EN I 13 como atividade da alma

conforme a virtude mais completa16 Por isso para compreender melhor

o que seja a felicidade Aristoacuteteles julga necessaacuterio estudar a natureza da

virtude O filoacutesofo explica que a virtude a ser estudada eacute humana como

satildeo humanos o bem e a felicidade que procura esclarecer Por

conseguinte escreve ldquoPor virtude humana entendemos natildeo a do corpo

mas da alma e igualmente agrave felicidade chamamos uma atividade da

alma Mas assim sendo eacute oacutebvio que o poliacutetico deve saber de algum

modo o que diz respeito agrave almardquo (EN I 13 1102a16-19)17 O estudo da

alma que um legislador buscaria empreender no entanto teria por

finalidade tornar os cidadatildeos bons e entender como isso eacute possiacutevel o

que bastaria para o tipo de investigaccedilatildeo ora feito contudo pensamos

que a consulta do tratado da alma quando necessaacuteria pode ser mais

esclarecedora dos problemas que levantamos Natildeo obstante

comeccedilaremos a discussatildeo com as propostas da EN a respeito do assunto

em questatildeo nesse momento

Quando o tema eacute a alma humana a EN aponta a existecircncia de

opiniotildees consideraacuteveis mesmo que natildeo venham de Aristoacuteteles ou de

seus companheiros de estudo Uma dessas opiniotildees considerada vaacutelida eacute

a mencionada teoria que a alma apresenta uma capacidade racional e

outra natildeo racional (EN I 13 1102a29) Costuma-se aceitar igualmente

uma subdivisatildeo das capacidades aniacutemicas natildeo racionais propondo agrave

capacidade natildeo racional primeiro uma (sub)capacidade vegetativa

responsaacutevel pela nutriccedilatildeo e pelo crescimento Esta eacute presente em todos

16 Embora nos trechos em questatildeo nesse ponto do estudo utilizemos a traduccedilatildeo

de Zingano preferimos usar ldquovirtude completardquo a ldquovirtude perfeitardquo devido agrave

compreensatildeo que temos de tal virtude e que seraacute esclarecida brevemente mais

adiante 17 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original καὶ γὰρ τἀγαθὸν ἀνθρώπινον

ἐζητοῦμεν καὶ τὴν εὐδαιμονίαν ἀνθρωπίνην ἀρετὴν δὲ λέγομεν ἀνθρωπίνην οὐ

τὴν τοῦ σώματος ἀλλὰ τὴν τῆς ψυχῆς καὶ τὴν εὐδαιμονίαν δὲ ψυχῆς ἐνέργειαν

λέγομεν

40

os animais vivos adultos embriotildees lactantes etc A excelecircncia de tal

capacidade por esse aspecto comum aos viventes eacute pertencente a todos

e natildeo eacute especificamente humana18 Aleacutem disso a capacidade nutritiva

ou vegetativa trabalha especialmente durante o sono quando a maldade

ou a bondade de caraacuteter natildeo se manifestam Assim tal faculdade pode

ser posta de lado por ora em nossas investigaccedilotildees jaacute que na EN eacute tida

como natildeo participante da excelecircncia especificamente humana19 No

entanto Aristoacuteteles segue com o exame da capacidade natildeo racional da

alma e escreve

Parece haver na alma ainda outro elemento

irracional mas que em certo sentido participa da

razatildeo Com efeito louvamos o princiacutepio racional

do homem continente e do incontinente assim

como a parte de sua alma que possui tal princiacutepio

porquanto ela os impele na direccedilatildeo certa e para os

melhores objetivos mas ao mesmo tempo

encontra-se neles um outro elemento naturalmente

oposto ao princiacutepio racional lutando contra este e

resistindo-lhe (EN I 13 1102b13-21)20

Esse princiacutepio opositor agrave racionalidade aparece nitidamente no

caso dos incontinentes e dos continentes pessoas nas quais a capacidade

racional e a natildeo racional esta uacuteltima na figura dos desejos entram em

conflito quanto aos objetos a serem perseguidos21 Aristoacuteteles assim nos

18 A respeito da forma como a posse de uma alma racional que muda a

organizaccedilatildeo das demais capcidades da alma em um ser classificado como

ldquoracionalrdquo ver Boyle (2012 p 15 et seq) Essa explicaccedilatildeo revalida a teoria

proposta acima a respeito do viver humano natildeo ser puramente racional mas

organizado de um jeito racional 19 De acordo com Boyle (2012 p 2) a tendecircncia crescente eacute entender que a

diferenccedila entre a mente humana e a dos animais chamados tradicionalmente

ldquonatildeo racionaisrdquo pousa mais no grau em que tais mentes diferem e natildeo nas suas

diferenccedilas por tipo ou espeacutecie O autor faz tal observaccedilatildeo ao falar das disvisotildees

propostas para a alma desde Aristoacuteteles 20 Idem no original ἔοικε δὲ καὶ ἄλλη τις φύσις τῆς ψυχῆς ἄλογος εἶναι

μετέχουσα μέντοι πῃ λόγου τοῦ γὰρ ἐγκρατοῦς καὶ ἀκρατοῦς τὸν λόγον καὶ τῆς

ψυχῆς τὸ λόγον ἔχον ἐπαινοῦμεν ὀρθῶς γὰρ καὶ ἐπὶ τὰ βέλτιστα παρακαλεῖ

φαίνεται δ ἐν αὐτοῖς καὶ ἄλλο τι παρὰ τὸν λόγον πεφυκός ὃ μάχεται καὶ

ἀντιτείνει τῷ λόγῳ 21 A questatildeo da acrasia eacute muito mais complexa do que esse arremedo de resumo

aqui apresentado mas no momento natildeo nos caberia discuti-la em detalhes bem

41

adverte que na alma haacute algo que eacute contraacuterio agrave capacidade racional

resistindo-lhe e fazendo-lhe frente Isso parece nem participar da

capacidade racional embora no continente obedeccedila-a no temperante e

no bravo obedece ainda mais ldquopois em tais homens ele fala a respeito

de todas as coisas com a mesma voz que o princiacutepio racionalrdquo (EN I 13

1102b28)22 Mesmo que esta capacidade pareccedila natildeo participar da

racional os exemplos de virtudes e virtuosos dados no passo nos

mostram que essa faculdade ou (sub)capacidade da capacidade natildeo

racional constituiacuteda por querer (bouacutelēsis) apetite (epithymiacutea) e impulso

(thymoacutes) satildeo desejos aptos a ouvir a racionalidade obedececirc-la e ateacute

participar dela embora pareccedilam sempre fazer o contraacuterio Explicaremos

melhor essa proposta a seguir quando tratarmos especificamente a

capacidade desiderativa

Ateacute o momento a interpretaccedilatildeo feita nos permite afirmar que a

capacidade natildeo racional eacute ou parece ser dupla Isso porque a vegetativa

natildeo participa da capacidade racional mas a desiderativa em geral

participa ao menos de certo modo (EN I 13 1102b32) porque no

miacutenimo eacute capaz de escutar e obedecer agrave razatildeo como um filho ouve e

obedece a um pai Conselhos censuras e exortaccedilotildees comprovam

portanto que o natildeo racional eacute de certo modo persuadido pela razatildeo O

argumentoexemplo do filho e do pai daacute azo ao nosso argumento

porque o filho pode ainda natildeo possuir plenamente a razatildeo em ato mas eacute

considerado na Poliacutetica como parte da famiacutelia cujo elemento racional eacute

figurado pelo pai sendo este representante da razatildeo praacutetica na analogia

apresentada na EN Essa participaccedilatildeo enquanto natildeo se atualiza a

potecircncia de razatildeo do filho eacute siacutembolo da participaccedilatildeo do que na alma haacute

de menos racional mas capaz de ouvir agrave razatildeo praacutetica Por isso a

virtude recebe distinccedilatildeo semelhante nesse tratado indicando a existecircncia

de uma virtude moral e de uma virtude intelectual cada destas uma

componente indispensaacutevel de uma alma humana una que soacute pode ver

atualizadas suas muacuteltiplas capacidades pelo composto corpoalma

Quando se fala do caraacuteter humano no entanto estaacute-se a falar da virtude

moral entendida por Aristoacuteteles como disposiccedilatildeo digna de louvor

quando o agente se comporta bem diante dos arroubos de suas emoccedilotildees

Mas em grau secundaacuterio a vida de acordo com a

outra espeacutecie de virtude eacute feliz porque as

atividades que concordam com esta condizem

como nos faltaria recursos para encampar a tarefa no presente estudo 22 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original πάντα γὰρ ὁμοφωνεῖ τῷ λόγῳ

42

com a nossa condiccedilatildeo humana Os atos corajosos

e justos bem como outros atos virtuosos noacutes os

praticamos em relaccedilatildeo uns aos outros observando

nossos respectivos deveres no tocante a contratos

serviccedilos e toda sorte de accedilotildees bem assim como agraves

paixotildees e todas essas coisas parecem ser

tipicamente humanas Dir-se-ia ateacute que algumas

delas provecircm do proacuteprio corpo e que o caraacuteter

virtuoso se prende por muitos laccedilos agraves paixotildees

(EN X 8 1178a8-15)23

A vida voltada aos assuntos da poacutelis eacute portanto feliz mas

cercada pelas inevitaacuteveis emoccedilotildees e pelos desejos Esta eacute a vida que

procuramos examinar estando no exerciacutecio de sua funccedilatildeo proacutepria

Ressaltamos anteriormente e reforccedilamos aqui que uma existecircncia

totalmente em contemplaccedilatildeo filosoacutefica natildeo parece possiacutevel devido agrave

presenccedila dos elementos natildeo racionais acima mencionados na vida de

todos e da necessidade humana de viver em comunidade A despeito das

associaccedilotildees da eudamōniacutea com a contemplaccedilatildeo de Aristoacuteteles definir o

filoacutesofo como capaz de tal vida por exercer o cultivo da sua razatildeo

teoacuterica (ou do uso teoacuterico de sua razatildeo) de propor o filoacutesofo como

capaz de desfrutar a melhor disposiccedilatildeo de espiacuterito e ser caro aos deuses

devemos dar atenccedilatildeo agrave ressalva seguinte feita por Sorabji

Aristoacuteteles [] aborda a questatildeo seraacute que eacute

errado uma vez que somos humanos aspirar a

vida mais divina de contemplaccedilatildeo intelectual Ele

responde (embora eu natildeo ache que esta seja sua

uacuteltima palavra) que pelo contraacuterio o nosso

intelecto eacute o nosso verdadeiro eu [] Aristoacuteteles

viu as emoccedilotildees natildeo apenas como uacuteteis mas como

essenciais agrave melhor vida que os homens podem

alcanccedilar na praacutetica Embora dividido ele

reconhece que uma vida de nada mais que

contemplaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel para noacutes Ateacute mesmo

23 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Δευτέρως δ ὁ κατὰ τὴν ἄλλην ἀρετήν αἱ γὰρ κατὰ ταύτην

ἐνέργειαι ἀνθρωπικαί δίκαια γὰρ καὶ ἀνδρεῖα καὶ τὰ ἄλλα τὰ κατὰ τὰς ἀρετὰς

πρὸς ἀλλήλους πράττομεν ἐν συναλλάγμασι καὶ χρείαις καὶ πράξεσι παντοίαις

ἔν τε τοῖς πάθεσι διατηροῦντες τὸ πρέπον ἑκάστῳ ταῦτα δ εἶναι φαίνεται

πάντα ἀνθρωπικά ἔνια δὲ καὶ συμβαίνειν ἀπὸ τοῦ σώματος δοκεῖ καὶ πολλὰ

συνῳκειῶσθαι τοῖς πάθεσιν ἡ τοῦ ἤθους ἀρετή

43

os filoacutesofos devem comer e viver em sociedade e

a vida mais feliz envolveraacute tambeacutem o exerciacutecio

das virtudes em sociedade As virtudes por sua

vez envolvem acertar o ponto meacutedio na emoccedilatildeo

bem como na accedilatildeo (SORABJI 2000 p 190-191

traduccedilatildeo nossa)

Assim percebemos que Aristoacuteteles natildeo deixa os homens comuns

fora de suas consideraccedilotildees sobre a vida feliz dos cidadatildeos e admite

inclusive que esses homens sejam a maioria Aristoacuteteles igualmente natildeo

retira os filoacutesofos do conviacutevio na poacutelis pois natildeo eacute o fato de serem

filoacutesofos que faraacute com que deixem de ser humanos e de apresentar

funccedilatildeo e necessidades especiacuteficas agrave humanidade Aleacutem do mais entende

que mesmo os homens mais excelentes carecem de conviacutevio para deixar

claras as suas aptidotildees e beneficiar seus amigos com sua companhia (EN

Livro IX) No conviacutevio desses homens em comunidade eacute que aparecem

as emoccedilotildees e por isso o papel de destaque que o paacutethos tem na eacutetica

aristoteacutelica e na sua proposta da vida feliz motivo suficiente para nos

encorajar a continuar a pesquisar sobre o papel das emoccedilotildees na boa vida

descrita pelo filoacutesofo Para ressaltar essa interpretaccedilatildeo devemos

continuar a examinar as propostas de EN I 13 acerca das diferentes

capacidades aniacutemicas e buscar compreender como essas tais

capacidades podem estar associadas agrave emoccedilatildeo e ao seu papel junto agrave

eudaiacutemōniacutea aleacutem de deixar clara sua possibilidade de participaccedilatildeo na

razatildeo (praacutetica)

3a) Capacidades da alma

Diante das propostas de I 13 o que podemos depreender a

respeito da alma e suas capacidades O passo provavelmente

interessado em introduzir a discussatildeo das virtudes mais especificamente

da virtude moral frente agrave felicidade humana acaba por natildeo trazer

grandes informaccedilotildees sobre a psychḗ Eacute possiacutevel poreacutem apreender um

pouco mais que a famosa e provavelmente popular biparticcedilatildeo da alma

se contarmos na medida do possiacutevel com explanaccedilotildees esclarecedoras

apresentadas pelo DA Para comeccedilar podemos questionar a ideia de

uma alma partiacutevel Em decorrecircncia disso parece viaacutevel o questionamento acerca da capacidade racional e da natildeo racional e de

suas (sub)capacidades assunto que ganharaacute ainda mais esclarecimento

ao tratarmos as propostas do Livro VI sobre as virtudes intelectuais no

capiacutetulo que se seguiraacute

44

A discussatildeo sobre as emoccedilotildees nos conduziu agrave reflexatildeo acerca das

chamadas ldquopartesrdquo da alma agraves quais nos referiremos aqui pela palavra

ldquocapacidadesrdquo24 ideia que parece mais adequada agravequilo que

interpretamos como real teoria da alma em Aristoacuteteles pois o termo

grego em questatildeo eacute dyacutenamis Com EN I 13 propusemos uma capacidade

racional da alma e uma capacidade natildeo racional sendo que nesta uacuteltima

eacute demasiado importante agrave presente investigaccedilatildeo sua possibilidade de

ouvir a razatildeo Eacute duacutevida frequente entre os estudiosos da psychḗ25 e do

assunto especialmente no DA se Aristoacuteteles realmente haveria dividido

a alma como observa Bastit ao se perguntar ldquoO que eacute uma parte da

alma para Aristoacuteteles26rdquo A questatildeo eacute importante para o nosso estudo

porque nos levaraacute a entender melhor as possibilidades de mudanccedilas

nasdas emoccedilotildees a fim de que concordem com a razatildeo praacutetica Essas

variaccedilotildees satildeo necessaacuterias agrave vida feliz aleacutem de nos ajudar a entender

melhor a postura de Aristoacuteteles acerca da relaccedilatildeo corpoalma colocando

nossa investigaccedilatildeo no centro de debates ativos e atuais a respeito das

propostas do nosso filoacutesofo

Ao tratar uma possiacutevel divisatildeo da alma em partes Aristoacuteteles

ressalta que existem aqueles pensadores que a dividem e julgam que em

uma destas secccedilotildees estaria o pensar em outra o apetite Se assim fosse

questiona o que manteria a alma unida Afirma que natildeo seria o corpo e

pondera ldquoAo contraacuterio parece mais que eacute a alma que manteacutem junto o

corpo pois quando ela o abandona ele se dissipa e corromperdquo (DA I 5

411b7-8)27 Se algo diferente do corpo manteacutem a alma una seria a

proacutepria psychḗ e seria necessaacuterio investigar novamente se eacute uma unidade

ou se se divide em muitas partes O tal unificador sendo uno seria

igualmente correto afirmar que a alma eacute una Se fosse divisiacutevel seria

preciso novamente buscar o que manteacutem esse unificador coeso mas isso

24 Escolhemos traduzir dyacutenamis por ldquocapacidaderdquo tambeacutem pelo fato de termos

traduzido eacutergon por ldquofunccedilatildeordquo Traduzir ambos os termos por ldquofunccedilatildeordquo poderia

comprometer o entendimento de nossas propostas 25Novamente a conversa pode ser travada com Platatildeo que por exemplo no

Timeu (69c et seq) trata da particcedilatildeo da alma em racional e natildeo-racional

mortal e imortal base para a triparticcedilatildeo da alma em racional impulsiva e

apetitiva proposta pelo filoacutesofo ateniense 26 A frase que convenientemente nos serve como indagaccedilatildeo eacute o tiacutetulo do artigo

redigido pelo estudioso em questatildeo e que nos ajudaraacute a defender algumas das

ideias que aqui apresentaremos 27 Todas as citaccedilotildees feitas do DA tecircm traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos

Reis (2006) e seratildeo indicadas em rodapeacute no original δοκεῖ γὰρ τοὐναντίον

μᾶλλον ἡ ψυχὴ τὸ σῶμα συνέχειν ἐξελθούσης γοῦν διαπνεῖται καὶ σήπεται

45

levaria a uma progressatildeo ao infinito e seria ininteligiacutevel o que natildeo eacute

aceitaacutevel para Aristoacuteteles

Quanto agraves partes ou capacidades da alma igualmente haacute um

problema ldquoque potecircncia cada uma possui no corpordquo (DA I 5 411b15)28

Se a alma inteira eacute responsaacutevel por manter o corpo unido seria

conveniente que cada uma das suas partes mantivesse unida uma parte

do corpo Para Aristoacuteteles isso parece impossiacutevel pois seria difiacutecil

imaginar qual parte do corpo o intelecto manteria unida jaacute que parece

natildeo haver um oacutergatildeo especiacutefico correspondente agrave funccedilatildeo intelectiva o

que dificultaria igualmente saber o modo como o faria Ademais eacute

sabido que algumas espeacutecies de plantas e animais quando seccionados

continuam a viver como se tivessem a mesma alma embora natildeo

numericamente jaacute que cada uma das partes tem sensaccedilatildeo e se move

localmente ainda por um tempo Caso natildeo sobrevivam natildeo seria um

absurdo pois natildeo manteriam oacutergatildeos que lhes permitiriam continuar a

viver Assim em cada uma das partes do corpo estatildeo todas as partes ou

capacidades da alma como nos explica Bastit no passo abaixo

Assim eacute preservada uma certa determinaccedilatildeo local

dos atos de certos sentidos ndash a vista eacute o fato do

olho ndash que natildeo implica a separaccedilatildeo nem das partes

da alma nem das funccedilotildees dos sentidos e que por

consequecircncia natildeo causa subordinaccedilatildeo das partes

da alma agraves partes do corpo mas bem ao contraacuterio

uma subordinaccedilatildeo dos oacutergatildeos ao ato da parte da

alma da qual satildeo o instrumento o olho agrave visatildeo

por exemplo Por analogia a faculdade eacute

subordinada agrave alma inteira e natildeo eacute separada

Por conseguinte o ato da alma inteira deve poder

efetivamente se manifestar em todas as partes do

vivente Tratando-se de um ato este deve ser

constataacutevel Eacute justamente por isso que Aristoacuteteles

recorre ainda para repelir simultaneamente a

separaccedilatildeo real das partes da alma e sua

localizaccedilatildeo a uma observaccedilatildeo no quadro do qual

o ato do vivente inteiramente presente atualiza as

faculdades da alma do observador Ele nota na

verdade que ldquoeacute evidente que as plantas divididas

vivemrdquo Cada buquecirc de flores nos mostra isso []

Isso significa que a alma inteira princiacutepio de vida

estaacute presente em cada segmento vivente O que o

28 No original τίν ἔχει δύναμιν ἕκαστον ἐν τῷ σώματι

46

indica eacute sua capacidade de se mover e de sentir

(BASTIT 1996 p 23-24 traduccedilatildeo nossa)

Tais informaccedilotildees conduzem o estudioso da alma em Aristoacuteteles a

pensar qual a natureza do objeto em questatildeo Ao longo do DA existem

algumas tentativas de definir o que seria a alma e estas parecem levar a

entender que a melhor forma de defini-la seria a partir das capacidades

que faculta ao corpo desempenhar Para informar melhor ao interessado

nas coisas aniacutemicas o que seja a psychḗ e sua funccedilatildeo proacutepria Aristoacuteteles

escreve ldquodigamos entatildeo que o animado se distingue do inanimado pelo

viver E de muitos modos se diz o viver pois dizemos que algo vive se

nele subsiste pelo menos um destes ndash intelecto percepccedilatildeo sensiacutevel

movimento local e repouso e ainda o movimento segundo a nutriccedilatildeo o

decaimento e o crescimentordquo (DA II 2 413a20-25)29 Mesmo que as

capacidades natildeo estejam presentes em todos os viventes parece que a

melhor forma de entender a alma desde as plantas ateacute animais mais

complexos como o homem eacute como princiacutepio animador que confere

capacidades A psychḗ conferiria vida ao todo orgacircnico constituinte do

corpo sendo este conjunto de mateacuteria e forma como jaacute propusemos30

Tais capacidades permitem ao homem desde o mais simples tato ateacute a

percepccedilatildeo sensiacutevel mais sutil que conduziria agrave phantasiacutea como podemos

ler no passo que segue

O viver subsiste nos seres vivos por conta deste

princiacutepio e o animal constitui-se primordialmente

pela percepccedilatildeo sensiacutevel Pois dizemos que satildeo

animais ndash e natildeo apenas que vivem ndash tambeacutem os

que natildeo se movem nem mudam de lugar mas

possuem percepccedilatildeo E da percepccedilatildeo eacute o tato que

em todos subsiste primeiro E assim como a

capacidade nutritiva pode estar separada do tato e

de toda e qualquer percepccedilatildeo sensiacutevel tambeacutem o

29 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis no original λέγομεν οὖν ἀρχὴν

λαβόντες τῆς σκέψεως διωρίσθαι τὸ ἔμψυχον τοῦ ἀψύχου τῷ ζῆν πλεοναχῶς

δὲ τοῦ ζῆν λεγομένου κἂν ἕν τι τούτων ἐνυπάρχῃ μόνον ζῆν αὐτό φαμεν οἷον

νοῦς αἴσθησις κίνησις καὶ στάσις ἡ κατὰ τόπον ἔτι κίνησις ἡ κατὰ τροφὴν καὶ

φθίσις τε καὶ αὔξησις 30 Sobre a questatildeo da alma como conjunto de mateacuteria e forma questatildeo que

renderia ao menos um capiacutetulo agrave parte eacute possiacutevel ler mais nos dois capiacutetulos

escritos por Robinson e dedicados agrave questatildeo da alma em Aristoacuteteles em seu As

origens da alma

47

tato pode estar separado dos demais sentidos

Denominamos nutritiva tal parte da alma da qual

participam tambeacutem as plantas Todos os animais

por outro lado revelam possuir o sentido do tato ndash

e diremos posteriormente por meio de que causa

cada uma dessas coisas Por ora eacute suficiente dizer

apenas isto que a alma eacute princiacutepio das

capacidades mencionadas ndash nutritiva perceptiva

raciocinativa e de movimento ndash e que por elas eacute

definida (DA II 2 413b1-13)31

Conferindo unidade agrave sua psychḗ Aristoacuteteles abre para noacutes uma

possibilidade maior de entender a participaccedilatildeo do sensiacutevel no inteligiacutevel

bem como do racional no natildeo racional da alma descrita na EN Sendo

capacidades de algo uno natildeo seriam totalmente desconectadas

relacionando-se de algum modo como explica o Zingano ldquoA alma eacute

uma uacutenica forma com diferentes funccedilotildeesrdquo (Zingano 1998 p 37)

Retornando agraves capacidades que vivificam o corpo podemos

entender que alguns seres tecircm capacidade perceptiva e igualmente

desiderativa porque o desejo eacute querer (bouacutelēsis) impulso (thymoacutes) e

apetite (epithymiacutea DA II 3 414b2) Capacidades que estatildeo ao menos a

princiacutepio associadas agraves formas da percepccedilatildeo sensiacutevel e aos sentidos que

lhes correspondem que na descriccedilatildeo de Aristoacuteteles satildeo os mesmos que

ainda conhecemos tato olfato paladar visatildeo e audiccedilatildeo

Para que os viventes sejam classificados como animais todos

devem possuir ao menos um desses sentidos o tato Os animais que

apresentam percepccedilatildeo sensiacutevel igualmente tecircm prazer e dor Ao serem

capazes de perceber o prazeroso e o doloroso tambeacutem apresentam

apetite que eacute desejo pelo prazeroso (DA II 3 414b5-6) fogem ou

buscam o que lhes aparece como prazeroso Tais animais apresentam

obviamente percepccedilatildeo do alimento pelo tato sentido por meio do

31 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original τὸ μὲν οὖν ζῆν διὰ τὴν

ἀρχὴν ταύτην ὑπάρχει τοῖς ζῶσι τὸ δὲ ζῷον διὰ τὴν αἴσθησιν πρώτως καὶ γὰρ

τὰ μὴ κινούμενα μηδ ἀλλάττοντα τόπον ἔχοντα δ αἴσθησιν ζῷα λέγομεν καὶ

οὐ ζῆν μόνον αἰσθήσεως δὲ πρῶτον ὑπάρχει πᾶσιν ἁφή ὥσπερ δὲ τὸ θρεπτικὸν

δύναται χωρίζεσθαι τῆς ἁφῆς καὶ πάσης αἰσθήσεως οὕτως ἡ ἁφὴ τῶν ἄλλων

αἰσθήσεων (θρεπτικὸν δὲ λέγομεν τὸ τοιοῦτον μόριον τῆς ψυχῆς οὗ καὶ τὰ

φυόμενα μετέχει) τὰ δὲ ζῷα πάντα φαίνεται τὴν ἁπτικὴν αἴσθησιν ἔχοντα δι

ἣν δ αἰτίαν ἑκάτερον τούτων συμβέβηκεν ὕστερον ἐροῦμεν νῦν δ ἐπὶ

τοσοῦτον εἰρήσθω μόνον ὅτι ἐστὶν ἡ ψυχὴ τῶν εἰρημένων τούτων ἀρχὴ καὶ

τούτοις ὥρισται θρεπτικῷ αἰσθητικῷ διανοητικῷ κινήσει

48

paladar Todos os seres vivos se alimentam de coisas secas e uacutemidas

quentes e frias percebidas pelo tocar mas os seres vivos que possuem

tato igualmente possuem desejo Aristoacuteteles parece mesmo admitir a

existecircncia de imaginaccedilatildeo nesses animais embora afirme que esse

assunto natildeo estaacute esclarecido e que a phantasiacutea seraacute analisada

posteriormente anaacutelise que tambeacutem efetuaremos posteriormente Com

as descriccedilotildees e afirmaccedilatildeo feitas ateacute agora percebemos uma espeacutecie de

hierarquia entre as capacidades Mas qual a razatildeo de serem dispostas

em sucessatildeo A resposta do filoacutesofo eacute que

[] sem a nutritiva natildeo existe a capacidade

perceptiva embora nas plantas a nutritiva exista

separada da perceptiva E novamente sem o tato

nenhum dos outros sentidos subsiste embora o

tato subsista sem os outros pois diversos animais

natildeo tecircm a capacidade perceptiva uns tecircm a

locomotiva e outros natildeo Por fim pouquiacutessimos

tecircm caacutelculo e raciociacutenio Pois entre os seres

pereciacuteveis naqueles em que subsiste caacutelculo

tambeacutem subsiste cada uma das outras nem todos

tecircm caacutelculo (e alguns nem sequer imaginaccedilatildeo ao

passo que outros vivem unicamente por meio

dela) O intelecto capaz de inquirir requer uma

outra discussatildeo Eacute claro entatildeo que o enunciado

de cada uma destas capacidades eacute tambeacutem o mais

apropriado a respeito da alma (DA II 3 415a1-

13)32

A relaccedilatildeo entre as capacidades em sucessatildeo indica como

buscamos defender a unidade da alma que permite falar de emoccedilotildees

educaacuteveis graccedilas aos seus contatos com a capacidade racional e aos

elementos de racionalidade presentes em sua constituiccedilatildeo sendo por

32 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original ἄνευ μὲν γὰρ τοῦ

θρεπτικοῦ τὸ αἰσθητικὸν οὐκ ἔστιν τοῦ δ αἰσθητικοῦ χωρίζεται τὸ θρεπτικὸν

ἐν τοῖς φυτοῖς πάλιν δ ἄνευ μὲν τοῦ ἁπτικοῦ τῶν ἄλλων αἰσθήσεων οὐδεμία

ὑπάρχει ἁφὴ δ ἄνευ τῶν ἄλλων ὑπάρχει πολλὰ γὰρ τῶν ζῴων οὔτ ὄψιν οὔτ

ἀκοὴν ἔχουσιν οὔτ ὀσμῆς αἴσθησιν καὶ τῶν αἰσθητικῶν δὲ τὰ μὲν ἔχει τὸ κατὰ

τόπον κινητικόν τὰ δ οὐκ ἔχει τελευταῖον δὲ καὶ ἐλάχιστα λογισμὸν καὶ

διάνοιαν οἷς μὲν γὰρ ὑπάρχει λογισμὸς τῶν φθαρτῶν τούτοις καὶ τὰ λοιπὰ

πάντα οἷς δ ἐκείνων ἕκαστον οὐ πᾶσι λογισμός ἀλλὰ τοῖς μὲν οὐδὲ φαντασία

τὰ δὲ ταύτῃ μόνῃ ζῶσιν περὶ δὲ τοῦ θεωρητικοῦ νοῦ ἕτερος λόγος ὅτι μὲν οὖν

ὁ περὶ τούτων ἑκάστου λόγος οὗτος οἰκειότατος καὶ περὶ ψυχῆς δῆλον

49

isso assunto relevante agrave nossa pesquisa Fazemos tal afirmaccedilatildeo porque a

capacidade perceptiva mencionada no passo manteacutem contato com a

desiderativa e portanto aparece como relacionada agraves afecccedilotildees do corpo

e da alma dentre as quais estatildeo aquilo que buscamos entender como

emoccedilotildees Estando tal capacidade atrelada igualmente agraves formas que

facultam ao homem conhecer o mundo ao seu redor voltaremos ao

assunto da percepccedilatildeo sensiacutevel mais tarde Por ora nos damos por

satisfeitos em compreender e esclarecer certas questotildees levantadas pelo

comeccedilo da EN acerca da alma e de suas capacidades a) Aristoacuteteles

assim como pensadores precedentes realmente propocircs uma divisatildeo da

alma Entendemos que na EN e em Aristoacuteteles de um modo geral natildeo

haacute cisatildeo na alma e nem entre corpo e alma b) Entatildeo por que falar em

parte (moacuterion) da alma A discussatildeo sobre as partes da alma aparece

mais detalhadamente no DA em uma franca discussatildeo com os filoacutesofos

que se dedicaram anteriormente agrave questatildeo Em Aristoacuteteles mesmo na

EN aquilo que costuma ser chamado ldquoparterdquo da alma parece ser

capacidade daquilo que o filoacutesofo entende por psychḗ sendo esta

definida pelo que faculta ao corpo com o qual forma um todo

substancialmente uno desempenhar o exerciacutecio de suas capacidades -

das mais baacutesicas agraves mais complexas Acrescentamos ainda apoacutes o

estudo dos dois tratados em questatildeo nesse momento que a alma move

sem ser movida quando se trata do movimento local e de certas partes

do corpo Por esses motivos compreendemos tambeacutem que as afecccedilotildees da

alma dentre as quais estatildeo as emoccedilotildees aqui estudadas causam

mudanccedilas fiacutesicas embora natildeo necessariamente causem movimentos de

deslocamento mas podem influenciar nos movimentos dos animais

dotados de percepccedilatildeo sensiacutevel ldquoPois o perceber eacute ser afetado por algo

de maneira que o agente torna como si mesmo em atividade aquele que

eacute tal em potecircnciardquo (DA II 11 423b30-424a1)33

O estudo da alma e de suas capacidades nos levou agrave discussatildeo da

existecircncia de ldquopartesrdquo distintas e componentes de uma alma teoria que

com ajuda de Aristoacuteteles e de alguns comentadores como Zingano e

Bastit acabamos por rejeitar Mas por que deveriacuteamos nos deter em

uma pesquisa sobre uma alma partiacutevel ou unitaacuteria em um trabalho que

se pretende de cunho eacutetico A questatildeo comeccedila a ser respondida ainda

por EN I 13 passo no qual Aristoacuteteles menciona uma alma bipartida a

fim de defender a existecircncia de diferentes virtudes que comporiam a

33 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original τὸ δὲ αἰσθητήριον αὐτῶν

τὸ ἁπτικόν καὶ ἐν ᾧ ἡ καλουμένη ἁφὴ ὑπάρχει αἴσθησις πρώτῳ τὸ δυνάμει

τοιοῦτόν ἐστι μόριον

50

vida feliz Entender essa proposta somente agraves luzes da EN natildeo nos

pareceu suficiente e por isso optamos por recorrer ao DA obra

dedicada quase exclusivamente ao assunto Nesse tratado bem como ao

longo da exposiccedilatildeo da EN percebemos que a interpretaccedilatildeo de uma alma

natildeo divisiacutevel apesar de contrariar boa parte dos filoacutesofos precedentes

que dedicaram tempo agrave questatildeo contemplaria nossa interpretaccedilatildeo das

emoccedilotildees jaacute que o filoacutesofo estudado as propotildee como ldquopertencentesrdquo agrave

capacidade desiderativa da alma capaz de participar da razatildeo

Cremos que a uacutenica forma de acatar essa proposta seria

compreender a alma como algo uno sem partes totalmente isoladas

umas das outras Defendemos essa interpretaccedilatildeo a fim de que as

capacidades aniacutemicas pudessem se comunicar de que o desiderativo

participasse da razatildeo a despeito da proposta da capacidade nutritiva

acima apresentada Esta capacidade igualmente participa da vida

humana mais completa pois natildeo eacute possiacutevel a homem nenhum nem

mesmo aos filoacutesofos deixar de se alimentar por exemplo Tendo em

vista nosso interesse nas relaccedilotildees das emoccedilotildees com a razatildeo e sendo a

capacidade desiderativa o caminho possibilitador de tal relaccedilatildeo em uma

alma una que reflete um desejo capaz de se associar agrave razatildeo cabe-nos

agora estudar ao menos em grandes linhas a capacidade desiderativa da

alma humana Voltaremos agrave questatildeo da unidade da alma no capiacutetulo III

a fim de concluir nossos estudos sobre as emoccedilotildees na alma humana e

sua possiacutevel racionalidade

3b) A capacidade desiderativa da alma as accedilotildees e as emoccedilotildees na vida

feliz

Para dar prosseguimento agrave nossa busca por esclarecer os pontos

suscitados por EN I 13 trataremos agora a capacidade desiderativa da

alma humana As consideraccedilotildees supramencionadas nos levam a pensar

um desejo que apresenta trecircs formas quanto agrave sua capacidade de ouvir e

obedecer agrave razatildeo34 (DA II 12 414b2) Essas possibilidades por sua vez

perfazem uma capacidade desiderativa global e una (haplṓs orektikoacuten)

a oacuterexis Vejamos melhor qual a influecircncia desta capacidade aniacutemica no

se emocionar e no agir mas comecemos seguindo o conselho de

Aristoacuteteles e buscando entender o desejo O desiderativo estaacute entre aquelas capacidades que permitem ao

34 Ver EN II - III 1111a23-35 1111b1-3 sobre as emoccedilotildees natildeo racionais

conformes aos desejos natildeo racionais tambeacutem Sorabji (2002 p 323) e AGGIO

(2017 no prelo)

51

corpo executar as atividades indispensaacuteveis agrave sua existecircncia a nutriccedilatildeo

a percepccedilatildeo e o raciociacutenio A funccedilatildeo desiderativa seria comum a todos

os animais embora somente o homem possuiacutesse todas as dynaacutemeis (capacidades) mencionadas sendo o desejo natural ao homem Como

isso pode ser importante se nesse ponto do estudo temos em vista a

definiccedilatildeo de emoccedilatildeo frente a uma vida feliz A resposta eacute Aristoacuteteles

considera que na alma haacute trecircs fatores determinantes da accedilatildeo e da

verdade sensaccedilatildeo intelecto e desejo (aiacutesthēsis noucircs oacuterexis) mas a

sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepio da accedilatildeo moral pois mesmo as bestas a

possuem Ocasionaria o movimento comum a todos os viventes mas a

accedilatildeo eacute composta por movimentos fiacutesicos todavia tendo em vista um

fim especiacutefico e bom quando da associaccedilatildeo entre desejo e intelecto seria

propriamente humana assunto que abordaremos em maiores detalhes

adiante

A afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo satildeo da ordem do pensamento o buscar e

o fugir satildeo da ordem do desiderativo (EN VI 2 1139a20-22) As

aparecircncias que excitam o desejo levam agrave emoccedilatildeo e podem levar a

formulaccedilatildeo de tipos de juiacutezos (DA III 9 MA II) Ainda que o orthograves

loacutegos (reta razatildeo) segundo Tricot (2012 p 298) seja a maacutexima geral da

conduta e que deste modo o pensamento deva determinar aquilo a ser

alcanccedilado o intelecto por si mesmo natildeo move pois ldquoda parte do

intelecto praacutetico seu bom estado consiste na verdade correspondente ao

desejo ao desejo corretordquo (EN 1139a29-31)35 Sem a oacuterexis que define

o fim a se buscar natildeo haacute accedilatildeo Assim o desejaacutevel eacute a causa final da

accedilatildeo e o desejo pode ser sua causa eficiente quando conjugado ao

intelecto praacutetico fazendo mover na direccedilatildeo do que eacute correto Este

intelecto depois que a oacuterexis determina o objeto a se buscar potildee-se a

procurar os meios necessaacuterios para que se alcance aquilo que eacute desejado

Apoacutes determinados os meios a tarefa de tal intelecto estaacute completa e

vem a accedilatildeo quem move portanto eacute um intelecto que tem em vista um

fim e que eacute de ordem praacutetica ou seja associado ao desejo que precede a

atividade no tempo (EN X 5 1175b30-33)36 Quanto a isso o DA

explica

Aleacutem disso mesmo que o intelecto ordene e o

raciociacutenio diga que se evite ou busque algo o

35 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original τοῦ δὲ πρακτικοῦ καὶ διανοητικοῦ ἀλήθεια ὁμολόγως

ἔχουσα τῇ ὀρέξει τῇ ὀρθῇ 36 Mas o prazer lhe eacute simultacircneo

52

indiviacuteduo natildeo se move mas age de acordo com o

apetite como no caso dos incontinentes []

Tampouco o desejo eacute responsaacutevel por esse

movimento pois os que satildeo continentes mesmo

desejando e tendo apetite natildeo fazem essas coisas

pelas quais tecircm desejo mas seguem o intelecto

Mostra-se entatildeo que haacute dois fatores que fazem

mover o desejo ou o intelecto contanto que se

considere a imaginaccedilatildeo um certo pensamento

Pois muitos seguem sua imaginaccedilatildeo em vez da

ciecircncia mas nos outros animais natildeo haacute nem

pensamento nem raciociacutenio e sim imaginaccedilatildeo

Logo satildeo estes os dois capazes de fazer mover

segundo o lugar o intelecto que raciocina em

vista de algo e que eacute praacutetico o qual difere do

intelecto contemplativo quanto ao fim E todo

desejo por sua vez eacute em vista de algo pois aquilo

de que haacute desejo eacute o princiacutepio do intelecto praacutetico

ao passo que o uacuteltimo item pensado eacute o princiacutepio

da accedilatildeo (DA III 9-10 433a1-17)37

Assim confirma-se que satildeo o desejo e o intelecto praacutetico que

fazem mover porque o objeto desejado leva ao movimento e o intelecto

determina como buscaacute-lo Em uacuteltima anaacutelise existe ldquoalgo uacutenico de fato

que faz mover o desejaacutevelrdquo (tograve orektoacuten DA 433a18-20 cf Besnier

2008 p 58)38 Isso acontece porque o desejo eacute princiacutepio indispensaacutevel

da accedilatildeo e quando a imaginaccedilatildeo move igualmente natildeo o faz sem desejo

Se intelecto e desejo movessem quanto ao lugar moveriam segundo

uma forma comum Isso implica que quando o desejo concorda desde o

iniacutecio e sem grandes resistecircncias com o intelecto eacute sua forma querer

37 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original ἔτι καὶ ἐπιτάττοντος τοῦ

νοῦ καὶ λεγούσης τῆς διανοίας φεύγειν τι ἢ διώκειν οὐ κινεῖται ἀλλὰ κατὰ τὴν

ἐπιθυμίαν πράττει οἷον ὁ ἀκρατής [] ἀλλὰ μὴν οὐδ ἡ ὄρεξις ταύτης κυρία

τῆς κινήσεως οἱ γὰρ ἐγκρατεῖς ὀρεγόμενοι καὶ ἐπιθυμοῦντες οὐ πράττουσιν ὧν

ἔχουσι τὴν ὄρεξιν ἀλλ ἀκολουθοῦσι τῷ νῷ Φαίνεται δέ γε δύο ταῦτα

κινοῦντα ἢ ὄρεξις ἢ νοῦς εἴ τις τὴν φαντασίαν τιθείη ὡς νόησίν τινα πολλοὶ

γὰρ παρὰ τὴν ἐπιστήμην ἀκολουθοῦσι ταῖς φαντασίαις καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις ζῴοις

οὐ νόησις οὐδὲ λογισμὸς ἔστιν ἀλλὰ φαντασία ἄμφω ἄρα ταῦτα κινητικὰ κατὰ

τόπον νοῦς καὶ ὄρεξις νοῦς δὲ ὁ ἕνεκά του λογιζόμενος καὶ ὁ πρακτικός

διαφέρει δὲ τοῦ θεωρητικοῦ τῷ τέλει καὶ ἡ ὄρεξις ltδgt ἕνεκά του πᾶσα οὗ γὰρ

ἡ ὄρεξις αὕτη ἀρχὴ τοῦ πρακτικοῦ νοῦ τὸ δ ἔσχατον ἀρχὴ τῆς πράξεως ὥστε

εὐλόγως δύο ταῦτα φαίνεται τὰ κινοῦντα ὄρεξις καὶ διάνοια πρακτική 38 Idem no original ἓν δή τι τὸ κινοῦν τὸ ὀρεκτικόν

53

(bouacutelēsis) que move O desejo contudo eacute capaz de mover sem o

raciociacutenio jaacute que o apetite (epithymiacutea) pode ser um tipo de desejo natildeo

conformado ou minimamente conformado ao intelecto ldquoIntelecto

entatildeo eacute sempre correto ao passo que o desejo e a imaginaccedilatildeo ora

corretos ora natildeo corretos Por isso eacute sempre o desejaacutevel que move

embora este seja tanto o bem como o bem aparente mas natildeo todo o

bem e sim o bem praacutetico apenas E o praticaacutevel eacute o que admite ser de

outro modordquo (DA III 10 433a26-30)39 Fica claro entatildeo que eacute uma

capacidade da alma do tipo desiderativo que move (DA III 10 433a31-

32) embora o proacuteprio desejaacutevel se mantenha estaacutetico ldquoEm suma eacute isto

o que foi dito na medida em que o animal eacute capaz de desejar por isso

mesmo ele eacute capaz de se moverrdquo (DA III 10 433b27-28)40 portanto sem

desejo natildeo haacute accedilatildeo Deste modo Aristoacuteteles apresenta a equaccedilatildeo cujos

termos resultam na accedilatildeo

[] primeiro o que faz mover segundo aquilo

por meio de que move e terceiro aquele que eacute

movido E de dois tipos o que faz mover ndash um eacute o

imoacutevel outro eacute o que faz mover sendo movido -

o bem praticaacutevel por sua vez eacute imoacutevel o que faz

mover sendo movida eacute a capacidade de desejar

(pois aquele que deseja move-se enquanto deseja

e o desejo eacute um certo movimento quando eacute desejo

em ato) e aquele que eacute movido por fim eacute o

animal O oacutergatildeo por meio do qual o desejo move

eacute de sua parte algo corporal ndash e por isso eacute nas

funccedilotildees comuns ao corpo e agrave alma que se deve

inquirir sobre ele (DA III 10 433b13-21)41

39 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original νοῦς μὲν οὖν πᾶς ὀρθός

ἐστιν ὄρεξις δὲ καὶ φαντασία καὶ ὀρθὴ καὶ οὐκ ὀρθή διὸ ἀεὶ κινεῖ μὲν τὸ

ὀρεκτόν ἀλλὰ τοῦτ ἐστὶν ἢ τὸ ἀγαθὸν ἢ τὸ φαινόμενον ἀγαθόν οὐ πᾶν δέ

ἀλλὰ τὸ πρακτὸν ἀγαθόν πρακτὸν δ ἐστὶ τὸ ἐνδεχόμενον καὶ ἄλλως ἔχειν 40 Idem no original ὅλως μὲν οὖν ὥσπερ εἴρηται ᾗ ὀρεκτικὸν τὸ ζῷον ταύτῃ

αὑτοῦ κινητικόν 41 Idem no original ἐπεὶ δ ἔστι τρία ἓν μὲν τὸ κινοῦν δεύτερον δ ᾧ κινεῖ ἔτι

τρίτον τὸ κινούμενον τὸ δὲ κινοῦν διττόν τὸ μὲν ἀκίνητον τὸ δὲ κινοῦν καὶ

κινούμενον ἔστι δὴ τὸ μὲν ἀκίνητον τὸ πρακτὸν ἀγαθόν τὸ δὲ κινοῦν καὶ

κινούμενον τὸ ὀρεκτικόν (κινεῖται γὰρ τὸ κινούμενον ᾗ ὀρέγεται καὶ ἡ ὄρεξις

κίνησίς τίς ἐστιν ἡ ἐνεργείᾳ) τὸ δὲ κινούμενον τὸ ζῷον ᾧ δὲ κινεῖ ὀργάνῳ ἡ

ὄρεξις ἤδη τοῦτο σωματικόν ἐστιν ndash διὸ ἐν τοῖς κοινοῖς σώματος καὶ ψυχῆς

ἔργοις θεωρητέον περὶ αὐτοῦ

54

O passo do DA esclarece que o desejo eacute entendido como uma

capacidade da alma que move a accedilatildeo por isso dizendo respeito aos fins

Eacute todavia especificamente EN I 13 que primeiro indica o desejo como

devendo se harmonizar com as sugestotildees de accedilatildeo do intelecto praacutetico

para que este mova de certo modo (ou do modo certo) Estes podem se

harmonizar pois o desejo pelo que foi exposto nas obras estudadas

apesar de natildeo racional eacute capaz ouvir e seguir a razatildeo mais ou menos

quando educado e bem-educado ouve-a mais O mesmo parece ser

vaacutelido quanto agraves emoccedilotildees devido agrave sua natureza desiderativa podem

ouvir e obedecer ou seja ser educadas conforme o orthograves loacutegos como

proposto na exposiccedilatildeo de Aggio

Pois bem ao contraacuterio da moral estoacuteica

Aristoacuteteles pressupotildee uma possiacutevel e necessaacuteria

harmonia das nossas afecccedilotildees da parte natildeo

racional tais como os desejos e as emoccedilotildees com

a nossa racionalidade praacutetica Para ele desejo e

razatildeo satildeo inseparaacuteveis como o corpo e a alma a

cera e o selo impresso o maacutermore e a estaacutetua

Inseparaacuteveis todavia distintos Por isso mesmo

desprovido ele proacuteprio de razatildeo o desejo pode

participar dela e por outro lado mesmo a razatildeo

desprovida de desejo ela pode participar dele

(AGGIO 2017 no prelo)

Sendo assim o desejo eacute o que nos move e sendo o movimento

um tipo de alteraccedilatildeo imprescindiacutevel agrave prāxis sofrida ao mesmo tempo

pelo corpo e pela alma entendemos por que o apetite estaacute na lista das

paacutethē na EN Tal presenccedila confirma nossa proposta da existecircncia de um

significado mais amplo para o termo que o nosso entendimento hodierno

de emoccedilatildeo ou paixatildeo mas como vimos Aristoacuteteles expotildee mais de uma

forma de desejo e relaciona tais formas a diferentes emoccedilotildees Portanto

seraacute preciso discutir o assunto que ainda nos eacute um tanto obscuro e

problemaacutetico para que possamos compreender melhor nosso objeto de

estudo atrelado como estaacute desde a alma ao desejo

3b1) Desejos

Apoacutes definir brevemente a forma geral do desejo e abordar a

capacidade aniacutemica que eacute responsaacutevel por ela resta tratar suas formas

especiacuteficas Como expusemos pouco acima Aristoacuteteles distingue trecircs

formas de sentir dentro da faculdade desiderativa querer impulso e

55

apetite Estas satildeo importantes agrave medida que se associam agraves diferentes

emoccedilotildees bem como influenciam accedilotildees variadas e que estatildeo em poder

dos agentes Ao falar de trecircs tipos de desejo contudo deveriacuteamos inferir

que a capacidade desiderativa eacute passiacutevel de divisatildeo Aristoacuteteles estaria a

concordar com Platatildeo e a propor um desejo dividido em trecircs Trechos

como Retoacuterica 1369a1-7 nos apresentam diferentes desejos racionais e

irracionais todavia isso natildeo implica que o desejo em Aristoacuteteles seja

seccionado Pensamos jaacute ter esclarecido que Aristoacuteteles fala de uma

cisatildeo da alma para se posicionar frente aos pensadores de sua eacutepoca e

provavelmente para abordar a existecircncia de virtudes morais e

intelectuais Existem contudo posturas como as de Cooper (1999 p

256 et seq) que defende a existecircncia de desejo racional e desejos natildeo

racionais Se todavia classificamos o desiderativo como capacidade da

alma e entendemos que esta natildeo pode ser fracionada respondemos

negativamente agrave possibilidade de fracionamento do desejo Temos uma

capacidade que pode ouvir mais ou menos agrave razatildeo conforme seus

objetos sendo por isso una e complexa como nos explica Aggio

Primeiramente se jaacute eacute um erro dividir a alma em

partes seria com mais razatildeo absurdo dividir a

faculdade desiderativa colocando o querer na

parte racional mas o apetite e o impulso na parte

natildeo racional ou mesmo distribuindo o desejo em

trecircs partes se reconhececircssemos trecircs partes da

alma como fez Platatildeo em Repuacuteblica livro IV

Ao contraacuterio o desejo natildeo se divide em partes

mas se diz de trecircs modos conforme a razatildeo o

prazer e a dor visto que o desejo (oacuterexis) eacute tanto o

querer (bouacutelēsis) o apetite (epithymiacutea) e impulso

(thymoacutes) (AGGIO 2017 no prelo)

Haacute diferentes desejos sob a capacidade desiderativa da

alma que satildeo capazes de participar da razatildeo de modos diferentes

negando a possibilidade de perceber em Aristoacuteteles uma triparticcedilatildeo do

desejo de tipo platocircnica Por tal motivo trataremos sucintamente de

cada forma do desejo e buscaremos ressaltar suas qualidades pateacuteticas

bem como suas relaccedilotildees com as emoccedilotildees Cremos que isso ao fim de nossa pesquisa nos permitiraacute responder agraves questotildees que propomos

devido agrave possibilidade de educaccedilatildeo e de habituaccedilatildeo dos desejos agraves boas

accedilotildees conformes agrave razatildeo Portanto observaremos agora e brevemente

as formas particulares do desejo

56

3b2) Os desejos menos racionais

Aristoacuteteles nos apresenta dois tipos de desejo natildeo racionais

embora capazes de ouvir a razatildeo42 Tal proposta sugerida em EN I 13

tem sua comprovaccedilatildeo em Rhet I com sua descriccedilatildeo do apetite O passo

aparenta propor este desejo como irracional poreacutem acaba por desfazer

tal embaraccedilo se lhe prestamos a devida atenccedilatildeo O apetite eacute descrito pelo

filoacutesofo como desejo pelo que eacute prazeroso embora afirme tambeacutem que

todo desejo estaacute relacionado ao prazeroso Por conseguinte

Faz-se pelo desejo tudo o que parece agradaacutevel

Tambeacutem o familiar e o habitual se contam entre as

coisas agradaacuteveis pois muitas coisas que natildeo satildeo

naturalmente agradaacuteveis se fazem com prazer

quando se tornam habituais Assim em resumo

todos os atos que os homens praticam por si

mesmos satildeo realmente bons ou parecem secirc-lo satildeo

realmente agradaacuteveis ou parecem secirc-lo Ora como

os homens fazem voluntariamente o que fazem

por si mesmos segue-se que tudo o que fazem

voluntariamente seraacute bom ou aparentemente bom

seraacute agradaacutevel ou aparentemente agradaacutevel []

Agradaacutevel eacute tambeacutem tudo aquilo que temos em

noacutes o desejo pois o desejo eacute apetite do agradaacutevel

Dos desejos uns satildeo irracionais e outros

racionais Chamo irracionais aos que natildeo

procedem de um ato preacutevio da compreensatildeo e satildeo

desse tipo todos os que se dizem ser naturais

como os que procedem do corpo [] Satildeo

racionais os desejos que procedem da persuasatildeo

pois haacute muitas coisas que desejamos ver e adquirir

porque ouvimos falar delas e fomos persuadidos

de que satildeo agradaacuteveis (Rhet I 10 1369b15-23 I

11 1370a16-21 e 25-27)43

42Novamente a conversa pode ser travada com Platatildeo que por exemplo no

Fedro fala da alma como um carro conduzido por dois cavalos que simbolizam

as forccedilas irracionais da psychḗ que conflitam entre si uma seguindo agrave esquerda

enquanto outra puxa para a direita 43 Todas as citaccedilotildees da Rhet tecircm traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena

(2012) com o original em grego anotado no rodapeacute tal como a seguinte

anotaccedilatildeo δι ἐπιθυμίαν δὲ πράττεται ὅσα φαίνεται ἡδέα ἔστιν δὲ καὶ τὸ σύνηθες

καὶ τὸ ἐθιστὸν ἐν τοῖς ἡδέσιν πολλὰ γὰρ καὶ τῶν φύσει μὴ ἡδέων ὅταν

57

Este passo da Retoacuterica nos diz muito sobre o apetite busca o

agradaacutevel eacute ldquoirracionalrdquo quando natildeo ldquoproceder de um ato preacutevio da

compreensatildeordquo ressaltando sua possibilidade de ouvir a razatildeo quando

proceder da compreensatildeo e eacute natural jaacute que natildeo eacute engendrado no

homem por haacutebitos ou ensinamentos existindo por toda a vida humana

eacute responsaacutevel por aqueles prazeres como os que vecircm do corpo O

proacuteprio Aristoacuteteles admite a dificuldade em se fugir desse tipo de prazer

(EN II 2 1105a7-8) e com isso entendemos igualmente a dificuldade

em controlar ou mesmo evitar o desejo relacionado ao prazer corporal

pois o filoacutesofo o associa agraves afecccedilotildees ligadas aos prazeres corporais Em

certo passo da EN (III 3 1111a30-31) curiosamente Aristoacuteteles afirma

que os apetites e por sua vez os prazeres do corpo natildeo ouvem agrave razatildeo

ao contraacuterio do impulso ldquoAssim o apetite enquanto um desejo natildeo

racional (aacutelogos) toma o que eacute prazeroso como aquilo que simples e

naturalmente aparece ao agente como prazeroso E o que nos parece ser

prazeroso eacute o que nos parece ser bom mesmo que natildeo o sejardquo (AGGIO

2017 no prelo) A interpretaccedilatildeo do passo natildeo eacute simples jaacute que na Eacutetica

Nicomaqueia podemos ler tambeacutem uma afirmaccedilatildeo que diz natildeo ser

correto considerar accedilotildees praticadas por apetite e impulso como

involuntaacuterias

Sendo involuntaacuteria a accedilatildeo realizada por forccedila e

por ignoracircncia o voluntaacuterio parece ser aquilo cujo

princiacutepio reside no agente que conhece as

circunstacircncias particulares nas quais ocorre a

accedilatildeo Natildeo eacute presumivelmente correto dizer pois

que as accedilotildees praticadas por impulso ou por apetite

satildeo involuntaacuterias pois neste caso em primeiro

lugar nenhum outro animal poderaacute agir

voluntariamente tampouco poderatildeo as crianccedilas

Depois quer isto dizer que natildeo fazemos nada

voluntariamente por apetite ou por impulso ou

συνεθισθῶσιν ἡδέως ποιοῦσιν ὥστε συλλαβόντι εἰπεῖν ὅσα δι αὑτοὺς

πράττουσιν ἅπαντ ἐστὶν ἢ ἀγαθὰ ἢ φαινόμενα ἀγαθά ἢ ἡδέα ἢ φαινόμενα ἡδέα

ἐπεὶ δ ὅσα δι αὑτοὺς ἑκόντες πράττουσιν οὐχ ἑκόντες δὲ ὅσα μὴ δι αὑτούς

πάντ ἂν εἴη ὅσα ἑκόντες πράττουσιν ἢ ἀγαθὰ ἢ φαινόμενα ἀγαθά ἢ ἡδέα ἢ

φαινόμενα ἡδέα[] τῶν δὲ ἐπιθυμιῶν αἱ μὲν ἄλογοί εἰσιν αἱ δὲ μετὰ λόγου

λέγω δὲ ἀλόγους ὅσας μὴ ἐκ τοῦ ὑπο-λαμβάνειν ἐπιθυμοῦσιν (εἰσὶν δὲ τοιαῦται

ὅσαι εἶναι λέγονται φύσει ὥσπερ αἱ διὰ τοῦ σώματος ὑπάρχουσαι [] μετὰ

λόγου δὲ ὅσας ἐκ τοῦ εισθῆναι ἐπιθυμοῦσιν πολλὰ γὰρ καὶ θεάσασθαι καὶ

κτήσασθαι ἐπιθυμοῦσιν ἀκούσαντες καὶ πεισθέντες

58

que fazemos as coisas belas voluntariamente e

involuntariamente as ignoacutebeis Natildeo eacute isto risiacutevel

havendo uma uacutenica causa Eacute igualmente absurdo

dizer que satildeo involuntaacuterias as coisas que eacute preciso

desejar eacute preciso encolerizar-se a respeito de

algumas e ter apetite por outras (por exemplo

pela sauacutede e pela instruccedilatildeo) E as accedilotildees

involuntaacuterias parecem ser penosas as por apetite

agradaacuteveis Aleacutem disso qual eacute a diferenccedila quanto

ao ser involuntaacuterio dos erros cometidos por

caacutelculo ou por impulso Por um lado ambos satildeo a

evitar por outro parecem natildeo ser menos humanas

as emoccedilotildees natildeo-racionais de sorte que tambeacutem as

accedilotildees por impulso e por apetite pertencem ao

homem Postular que satildeo involuntaacuterias eacute assim

um absurdo (EN III 3 1111a22-35 1111b1-3)44

A nosso ver o passo desfaz a duacutevida quanto agrave participaccedilatildeo do

apetite na razatildeo concordando com o que expusemos anteriormente Tal

desejo difere dos demais por ser mais resistente agrave razatildeo natildeo por ser-lhe

totalmente surdo portanto quando em acordo com o loacutegos leva a

prazeres convenientes e a accedilotildees adequadas bem como a emoccedilotildees

moderadas

Os trechos supracitados ao falarem do impulso e do apetite

indicam que haacute mais coisas comuns aos desejos em questatildeo que seu

caraacuteter natildeo racional e os impasses quanto a isso por exemplo ambos

existem nos animais O Livro VII da EN entretanto aumenta nossos

conhecimentos e duacutevidas acerca dos apetites ao passo que esclarece

algumas coisas sobre os impulsos Faz isso ao tratar da incontinecircncia

44 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Ὄντος δ ἀκουσίου τοῦ βίᾳ καὶ δι ἄγνοιαν τὸ ἑκούσιον

δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξις ἴσως

γὰρ οὐ καλῶς λέγεται ἀκούσια εἶναι τὰ διὰ θυμὸν ἢ ἐπιθυμίαν πρῶτον μὲν γὰρ

οὐδὲν ἔτι τῶν ἄλλων ζῴων ἑκουσίως πράξει οὐδ οἱ παῖδες εἶτα πότερον οὐδὲν

ἑκουσίως πράττομεν τῶν δι ἐπιθυμίαν καὶ θυμόν ἢ τὰ καλὰ μὲν ἑκουσίως τὰ δ

αἰσχρὰ ἀκουσίως ἢ γελοῖον ἑνός γε αἰτίου ὄντος ἄτοπον δὲ ἴσως ἀκούσια

φάναι ὧν δεῖ ὀρέγεσθαι δεῖ δὲ καὶ ὀργίζεσθαι ἐπί τισι καὶ ἐπιθυμεῖν τινῶν οἷον

ὑγιείας καὶ μαθήσεως δοκεῖ δὲ καὶ τὰ μὲν ἀκούσια λυπηρὰ εἶναι τὰ δὲ κατ

ἐπιθυμίαν ἡδέα ἔτι δὲ τί διαφέρει τῷ ἀκούσια εἶναι τὰ κατὰ λογισμὸν ἢ θυμὸν

ἁμαρτηθέντα φευκτὰ μὲν γὰρ ἄμφω δοκεῖ δὲ οὐχ ἧττον ἀνθρωπικὰ εἶναι τὰ

ἄλογα πάθη ὥστε καὶ αἱ πράξεις τοῦ ἀνθρώπου αἱ ἀπὸ θυμοῦ καὶ ἐπιθυμίας

ἄτοπον δὴ τὸ τιθέναι ἀκούσια ταῦτα

59

(mais que da continecircncia) separando-a em incontinecircncia por epithymiacutea

(prazer) e incontinecircncia por thymoacutes (raiva) O incontinente em sentido

estrito ou seja por epithymiacutea natildeo age por escolha deliberada mas age

por apetite O continente escolhe deliberadamente mas natildeo age de

acordo com a epithymiacutea A escolha deliberada se opotildee a este uacuteltimo

desejo e natildeo eacute o apetite que se opotildee a um outro apetite (EN III 4

1111b14-17) Este estaacute relacionado ao agradaacutevel e ao penoso enquanto

a escolha deliberada natildeo estaacute relacionada a nenhum dos dois

Eis aiacute uma segunda semelhanccedila o impulso tambeacutem natildeo leva a

agir por escolha deliberada (EN III 4 1111b19) mas parece estar

relacionado principalmente agrave dor o que eacute percebido quando a Retoacuterica

(I 10 1369a4) o liga agrave raiva e a EN (III 3 1111a30-31) ao enraivecer-se

A natureza impetuosa eacute combativa guerreira Pede por justiccedila e

vinganccedila manifestando-se por meio da injuacuteria do ultraje e do desprezo

O apetite eacute naturalmente sedutor manipulador dado a tramas tem o

prazer por objeto mesmo que se valha do ultraje do engano e da ilusatildeo

para consegui-lo e sua manifestaccedilatildeo pode surgir com o prazer

proporcionado por estes tipos de atos As accedilotildees do impulso causam dor

ao agente mas as do apetite causam prazer (EN VII 7 1149b20-21) O

impulso reage a algo doloroso aparentemente desmerecido e injusto

como um ultraje sofrido Por isso a accedilatildeo impulsiva parece mais

dolorosa e involuntaacuteria que a accedilatildeo por apetite sendo uma accedilatildeo

voluntaacuteria prazerosa mais grave moralmente do que uma accedilatildeo voluntaacuteria

dolorosa Sobre esse assunto Aristoacuteteles escreveu

A primeira forma de incontinecircncia eacute a

impetuosidade e a outra fraqueza Alguns

homens na verdade depois que deliberaram natildeo

persistem no resultado de sua deliberaccedilatildeo e estatildeo

sob o efeito da paixatildeo para outros ao contraacuterio eacute

graccedilas agrave sua falta de deliberaccedilatildeo que satildeo levados

pela paixatildeo alguns em verdade (semelhantes

nisso agravequeles que tendo sido tomados por coacutecegas

natildeo satildeo eles mesmos os que fazem coacutecegas) se

eles sentiram e viram antecipadamente que vai

lhes acontecer e se eles puderam antes dar o

despertar agrave eles mesmos e agrave faculdade de

raciocinar natildeo sucumbem entatildeo pelo efeito da

paixatildeo quer este seja um prazer ou uma dor Satildeo

acima de tudo homens de humor vivo e os homens

de temperamento excitaacutevel que estatildeo sujeitos agrave

incontinecircncia sob a forma de impetuosidade os

60

primeiros por sua precipitaccedilatildeo e os segundos por

sua violecircncia natildeo tecircm a paciecircncia de ouvir a

razatildeo inclinados que estatildeo a seguir a sua

imaginaccedilatildeo (EN VII 8 1150b19-28)45

Nesse passo a incontinecircncia pela raiva (akrasiacutea toucirc thymoucirc) eacute

considerada menos desonrosa que aquela por apetite Aristoacuteteles

enumera alguns motivos para tanto e noacutes o seguiremos 1) como

dissemos devemos pensar que a raiva (thymoacutes) ateacute certo ponto parece

ouvir a razatildeo mas daquele modo como os servos que mal escutam a

ordem do senhor e saem correndo para fazer o que eacute ordenado sendo

sua accedilatildeo resultado de um impulso natildeo educado Assim a raiva devido

ao seu calor e precipitaccedilatildeo naturais natildeo ouve direito a ordem do

racional (natildeo entende mas pensa ter entendido) e se lanccedila agrave vinganccedila

portanto pode ser excitada por razatildeo ou imaginaccedilatildeo enquanto o apetite

pode ser despertado por razatildeo ou sensaccedilatildeo (EN VII 7 1149a30-36)

Essas afirmaccedilotildees satildeo confirmadas pelo passo abaixo

A razatildeo ou a imaginaccedilatildeo na verdade apresentam

a nossos olhos um insulto ou uma marca de

desdeacutem sentido e a coacutelera depois de ter

concluiacutedo por um tipo de raciociacutenio eacute engajar as

hostilidades contra um tal insultador explode

entatildeo bruscamente o apetite ao contraacuterio uma

vez que a razatildeo ou a sensaccedilatildeo apenas disse que

uma coisa eacute agradaacutevel se lanccedila por gozaacute-la Em

consequecircncia a coacutelera obedece agrave razatildeo em um

sentido enquanto o apetite natildeo obedece Portanto

a vergonha eacute maior nesse uacuteltimo caso jaacute que o

homem intemperante na coacutelera eacute em um sentido

vencido pela razatildeo enquanto o outro eacute pelo

apetite e natildeo pela razatildeo (EN VII 7 1149a31-35

45Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ἀκρασίας δὲ τὸ μὲν προπέτεια τὸ δ ἀσθένεια οἳ μὲν γὰρ

βουλευσάμενοι οὐκ ἐμμένουσιν οἷς ἐβουλεύσαντο διὰ τὸ πάθος οἳ δὲ διὰ τὸ μὴ

βουλεύσασθαι ἄγονται ὑπὸ τοῦ πάθους ἔνιοι γάρ ὥσπερ προγαργαλίσαντες οὐ

γαργαλίζονται οὕτω καὶ προαισθόμενοι καὶ προϊδόντες καὶ προεγείραντες

ἑαυτοὺς καὶ τὸν λογισμὸν οὐχ ἡττῶνται ὑπὸ τοῦ πάθους οὔτ ἂν ἡδὺ ᾖ οὔτ ἂν

λυπηρόν μάλιστα δ οἱ ὀξεῖς καὶ μελαγχολικοὶ τὴν προπετῆ ἀκρασίαν εἰσὶν

ἀκρατεῖς οἳ μὲν γὰρ διὰ τὴν ταχυτῆτα οἳ δὲ διὰ τὴν σφοδρότητα οὐκ

ἀναμένουσι τὸν λόγον διὰ τὸ ἀκολουθητικοὶ εἶναι τῇ φαντασίᾳ

61

1149b1-3)46

2) Outra coisa a se pensar eacute que perdoamos com maior facilidade

aqueles que satildeo levados por desejos naturais mesmo no caso dos

apetites quando cedem aos desejos comuns a todos e na medida em que

satildeo comuns A raiva e o mau humor satildeo mais naturais que os apetites

pelos prazeres excessivos e desnecessaacuterios 3) Ainda uma coisa a se

considerar eacute que se eacute tanto mais injusto quanto mais se vale de manobras

peacuterfidas O raivoso natildeo tem perfiacutedia mas o apetite eacute ardiloso se a

incontinecircncia por apetite eacute mais injusta eacute igualmente mais vergonhosa e

eacute um viacutecio em certo sentido (em um certo sentido porque lhe falta a

escolha deliberada) 4) Uma uacuteltima consideraccedilatildeo feita por Aristoacuteteles

acerca do assunto eacute que se ningueacutem faz sofrer um ultraje com um

sentimento de afliccedilatildeo (ao contraacuterio) um homem que age por raiva age

sentindo dor ao passo que quem ultraja sente prazer Se os atos contra

os quais uma viacutetima se enraivece mais justamente satildeo mais injustos que

outros a incontinecircncia por apetite eacute igualmente mais injusta que a por

raiva pois na raiva natildeo haacute ultraje

Diante disso entendemos que natildeo eacute o fato de amar e desejar

coisas como o prazer que faz de um homem culpaacutevel mas o modo como

se ama o objeto amado e o fato de desejar tais coisas excessivamente

Assim fazem os que burlam a regra como o incontinente sendo que a

incontinecircncia deve ser evitada pois eacute maacute e culpaacutevel Haacute contudo

incontinecircncia por analogia naqueles casos mencionados em que

chamamos ldquoacrasia porrdquo caso da incontinecircncia por raiva Com essas

consideraccedilotildees fica claro que incontinecircncia e continecircncia verdadeiras soacute

se aplicam ao caso em que os objetos buscados satildeo os mesmos buscados

pelos temperantes e pelos intemperantes sendo os demais mesmo no

caso da raiva incontinecircncia por similitude Eacute claro tambeacutem que haacute tipos

46Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ἀκρασία ἡ τοῦ θυμοῦ ἢ ἡ τῶν ἐπιθυμιῶν θεωρήσωμεν

ἔοικε γὰρ ὁ θυμὸς ἀκούειν μέν τι τοῦ λόγου παρακούειν δέ καθάπερ οἱ ταχεῖς

τῶν διακόνων οἳ πρὶν ἀκοῦσαι πᾶν τὸ λεγόμενον ἐκθέουσιν εἶτα ἁμαρτάνουσι

τῆς προστάξεως καὶ οἱ κύνες πρὶν σκέψασθαι εἰ φίλος ἂν μόνον ψοφήσῃ

ὑλακτοῦσιν οὕτως ὁ θυμὸς διὰ θερμότητα καὶ ταχυτῆτα τῆς φύσεως ἀκούσας

μέν οὐκ ἐπίταγμα δ ἀκούσας ὁρμᾷ πρὸς τὴν τιμωρίαν ὁ μὲν γὰρ λόγος ἢ ἡ

φαντασία ὅτι ὕβρις ἢ ὀλιγωρία ἐδήλωσεν ὃ δ ὥσπερ συλλογισάμενος ὅτι δεῖ

τῷ τοιούτῳ πολεμεῖν χαλεπαίνει δὴ εὐθύς ἡ δ ἐπιθυμία ἐὰν μόνον εἴπῃ ὅτι ἡδὺ

ὁ λόγος ἢ ἡ αἴσθησις ὁρμᾷ πρὸς τὴν ἀπόλαυσιν ὥσθ ὁ μὲν θυμὸς ἀκολουθεῖ

τῷ λόγῳ πως ἡ δ ἐπιθυμία οὔ αἰσχίων οὖν ὁ μὲν γὰρ τοῦ θυμοῦ ἀκρατὴς τοῦ

λόγου πως ἡττᾶται ὃ δὲ τῆς ἐπιθυμίας καὶ οὐ τοῦ λόγου

62

de incontinecircncia sendo que Aristoacuteteles considera aquela por apetite

mais desonrosa que aquela por raiva como ademais eacute claro que

incontinecircncia e continecircncia em sentido absoluto se relacionam com

apetites e prazeres do corpo

A descriccedilatildeo dos apetites como o que natildeo ouve a razatildeo47 parece

acontecer nos trechos mencionados e nos quais o filoacutesofo enfatiza

somente a incontinecircncia Nesse caso natildeo estaacute a estudar o continente

que claramente percebemos eacute um homem que sofre com maus apetites

mas que por meio de seu raciociacutenio consegue se desviar dos maus fins

que o atraem Se observada a continecircncia teremos nela a possibilidade

como ressalta Nussbaum do apetite poder ser posto se natildeo em acordo

ao menos sob o comando da razatildeo praacutetica O homem que cai em

descontrole devido aos mesmos objetos com os quais se relacionam os

intemperantes e os temperantes eacute chamado simplesmente lsquoincontinentersquo

Enfim mesmo que haja diferenccedilas entre o apetite e o impulso que um

seja apontado por certos trechos da EN como incapaz de ouvir agrave razatildeo

praacutetica a verdade que a leitura e a interpretaccedilatildeo dos passos analisados

nos levam a alcanccedilar eacute que todas as formas do desejo satildeo capazes de

participar da razatildeo praacutetica conforme os haacutebitos introjetados pelo agente

como podemos ler na citaccedilatildeo abaixo

Mesmo que o apetite seja menos permeaacutevel agrave

razatildeo mais entranhado em nossa vida e

forccedilosamente determinante na escolha das accedilotildees

Aristoacuteteles atribuiu voluntarismo agrave accedilatildeo causada

por ambos os desejos embora a accedilatildeo por apetite

possa ser eventualmente mais voluntaacuteria do que

por impulso [] Ambos os desejos satildeo emoccedilotildees

ou afecccedilotildees natildeo racionais (aacuteloga pathḗ) que

tambeacutem pertencem agrave natureza humana ldquode sorte

47Aggio propotildee a seguinte saiacuteda para a questatildeo ldquoPortanto natildeo haacute contradiccedilatildeo

em dizer que um logos constitui o objeto do apetite e que o apetite natildeo ouve de

modo algum o logos se nesse caso entendermos que este uacuteltimo se refere ao

orthograves loacutegos agrave reta razatildeo agravequela que apreende verdadeiramente o que deve ser

feito e o primeiro se refere ao sentido corrente de logos ie de um pensamento

que concebe algo como prazerosordquo (2011 p 161-162) A autora ainda observa

que o apetite que natildeo ouve de jeito nenhum a reta razatildeo eacute aquele do

descontrolado e do intemperante No virtuoso eacute diferente seu apetite jaacute estaacute

educado e por isso natildeo segue qualquer prazer aleacutem do gozo apropriado agraves accedilotildees

virtuosas Mas quando os desejos menos racionais natildeo estatildeo educados o apetite

eacute mais vergonhoso que o impulso e por isso tambeacutem eacute menos perdoaacutevel

63

que tambeacutem accedilotildees por impulso e por apetite

pertencem ao homemrdquo (EN III 1 1111b2-3) Tais

accedilotildees satildeo proacuteprias ao homem no sentido do seu

princiacutepio residir nele (heacute archḗ en autōi) ou seja

o agente sempre poderia ter agido de outro modo

Desse modo o homem que age por impulso ou

apetite natildeo poderia ser considerado uma

marionete viacutetima de seus desejos [] Dizer

portanto que ambos os tipos de accedilotildees satildeo

voluntaacuterias implica dizer que estaacute em nosso poder

e sob nossa responsabilidade agir por apetite ou

por impulso E isso parece ser plausiacutevel mesmo

que se assuma que um desses desejos ndash o apetite ndash

seja mais avesso agrave razatildeo (AGGIO 2017 no

prelo)

A anaacutelise precedente parece demonstrar que eacute possiacutevel

responsabilizar quem age sob impulso e apetite por seus atos Parece

apontar igualmente a possibilidade de adequaccedilatildeo destes desejos como

esclarece Aggio (2017 no prelo) pela habituaccedilatildeo e por sua capacidade

de ouvir agrave razatildeo Esta eacute se natildeo toda ao menos parte crucial da educaccedilatildeo

moral do desejo Quando o comando da razatildeo eacute obedecido os desejos

natildeo racionais ou menos racionais participam da razatildeo e facilitam o

acesso agrave virtude e agrave vida feliz devido a possibilitarem a procura pelo

bom fim e a accedilatildeo correta na direccedilatildeo de tal fim Quando todavia o

desejo eacute sempre mais facilmente concorde com a razatildeo sem necessidade

de grandes esforccedilos educacionais estamos diante da terceira forma de

desejar o querer que trataremos agora

3b3 O desejo mais racional

Resta-nos tratar o desejo considerado racional ou o mais racional

(DA III 10 433a24-25) o querer (bouacutelēsis) Apesar desse seu aspecto o

querer pode se direcionar a objetos impossiacuteveis mas estaacute relacionado

com accedilotildees que satildeo escolhidas por si mesmas ou seja relaciona-se com

coisas que igualmente podem ser escolhidas deliberadamente e que satildeo

entendidas por Aristoacuteteles como variaacuteveis aleacutem de ser relativo aos fins

ou bens Mas que tipo de bem eacute o fim buscado pelo querer O objeto

deste desejo natildeo existe por natureza mas eacute aquilo que parece bom a

cada um e sendo as pessoas diferentes coisas diferentes lhes parecem

boas Assim natildeo seria melhor delimitar o fim deste tipo de desejo como

o bem buscado pelo virtuoso embora o que se apresenta a cada um seja

64

um bem aparente

A resposta pode comeccedilar a ser dada com a explicaccedilatildeo de que o

querer eacute um tipo de desejo naturalmente mais apto a concordar com as

coisas que satildeo sugeridas pela reta razatildeo Concilia-se com o que haacute de

racionalmente necessaacuterio para que haja boas accedilotildees e um bom caraacuteter

sendo de sua natureza estar de acordo com a razatildeo praacutetica Por

conseguinte o querer eacute o elemento natildeo racional mais capaz de acatar as

sugestotildees (ou ordens) do orthograves loacutegos Por isso concordamos com Aggio

quando escreve

[] se for preciso dizer que esta parte a natildeo

racional tem razatildeo entatildeo a parte desiderativa

deve ser compreendida como tendo razatildeo por

participaccedilatildeo e natildeo por essecircncia como se ela

pudesse ser sob o aspecto do querer

essencialmente racional Esta eacute uma interpretaccedilatildeo

possiacutevel e que me parece mais adequada pois

nega a suposiccedilatildeo de que a parte desiderativa teria

um aspecto absolutamente racional a saber a

bouacutelēsis (AGGIO 2017 no prelo)

O querer eacute o desejo ldquocultivadordquo especialmente sentido pelo

homem bom e virtuoso que se habituou a desejar conforme agrave razatildeo

praacutetica e que sente prazer com as coisas realmente boas e virtuosas Tal

tipo de desejo - veremos em detalhes maiores no segundo momento de

nosso estudo - coloca-se ao lado da escolha deliberada do caacutelculo

deliberativo e do julgamento correto sendo consoante com a virtude

intelectual e eacute necessaacuterio agrave virtude moral graccedilas agrave educaccedilatildeo que

recebe48 Eacute igualmente um desejo relacionado ao sentimento de prazer

48 Fazemos tal afirmaccedilatildeo com base nas propostas de Aggio que entende que

para a virtude eacute necessaacuteria a educaccedilatildeo moral do desejo implicando tambeacutem

como veremos mais adiante a forma correta de se emocionar (AGGIO 2017

no prelo) A eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma eacutetica da accedilatildeo jaacute que o querer natildeo eacute

suficiente para uma mudanccedila real (EN 1114a13-15) Eacute preciso agir ou seja

educar o desejo para o meio termo Por isso a accedilatildeo eacute o principal meio para que

a razatildeo aceda ao desejo Entatildeo haacute um momento em que o desejo ainda natildeo foi

educado e um no qual ouve e obedece a razatildeo Porque natildeo nascemos virtuosos

mas pelo haacutebito podemos secirc-lo Educar o desejo eacute se tornar moralmente

virtuoso Se o desejo busca o prazer e foge da dor educado buscaraacute e fugiraacute

destes dois de modo conveniente quando conveniente Educado desejo eacute

desejo pelo fim levando agrave boa accedilatildeo que eacute apreendida pela razatildeo persuasiva ou

pela capacidade de persuadir da razatildeo (EN 1139b4-5)

65

porque a Rhet explica que os ldquodesejos satildeo na sua maioria

acompanhados de um certo prazer pois as pessoas gozam de algum

prazer quer lembrando-se de como o alcanccedilaram quer esperando o que

alcanccedilaratildeordquo (Rhet I 11 1370b15-19)49 Por isso mesmo as accedilotildees

virtuosas que satildeo direcionadas por essa terceira forma de desejo satildeo

prazerosas a quem as faz desejando bem Vale reforccedilar que qualquer

tipo de desejo associado agrave reta razatildeo pode ser considerado participante

dela sendo bom e direcionado ao bem verdadeiro como explica Aggio

Isso porque o querer tendo como objeto o que

julgamos ser um bem natildeo eacute capaz de vencer o

desejo pelo prazeroso (epithymiacutea) ou o impulso de

aversatildeo ao doloroso (thymoacutes) Eacute preciso incutir o

haacutebito de se desejar bem incluindo aiacute os trecircs tipos

de desejo mas sobretudo aqueles que satildeo mais

avessos agrave razatildeo o impulso e ainda mais o

apetite Natildeo basta portanto querer apenas o que eacute

bom Eacute preciso que isto apareccedila como prazeroso

i e como objeto do apetite Menos ainda basta

saber o que eacute bom para desejaacute-lo como queria

Soacutecrates Eacute preciso que o bem natildeo seja apenas um

objeto cognitivo mas que se torne objeto de nosso

desejo e parte de nossa segunda natureza

(AGGIO 2017 no prelo)

O bom desejo sempre eacute conforme a reta razatildeo Para a

estudiosa isso leva a entender que eacute preciso desejar antes o bem que

aquilo que eacute prazeroso ou impulsivo Assim o prazeroso e o impulsivo

devem ser desejados tendo em vista o bem entatildeo os desejos natildeo

racionais tambeacutem de algum modo podem estar em harmonia com o

querer agir retamente Aristoacuteteles explica ldquoquando se eacute movido com o

raciociacutenio tambeacutem se eacute movido de acordo com a vontaderdquo (DA III 10

433a24-25)50 Isso acontece porque somente os desejos ordenados pela

reta razatildeo (bons desejos) constituem bons fins

Com os estudos empreendidos sobre o desejo entendemos

49 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original καὶ ἐν ταῖς

πλείσταις ἐπιθυμίαις ἀκολουθεῖ τις ἡδονή ἢ γὰρ μεμνημένοι ὡς ἔτυχον ἢ

ἐλπίζοντες ὡς τεύξονται χαίρουσίν τινα ἡδονήν οἷον οἵ τ ἐν τοῖς πυρετοῖς

ἐχόμενοι ταῖς δίψαις καὶ μεμνημένοι ὡς ἔπιον καὶ ἐλπίζοντες πιεῖσθαι χαίρουσιν

[] 50 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ὅταν δὲ κατὰ

τὸν λογισμὸν κινῆται καὶ κατὰ βούλησιν κινεῖται

66

que para Aristoacuteteles haacute trecircs formas de desejar o bem pela razatildeo pelo

prazer ou pelo impulso Aggio (2017 no prelo) explica que cada tipo de

desejo natildeo inclui nem exclui o outro o que significa que eacute possiacutevel e

mesmo necessaacuterio que o objeto daquele desejo conforme o prazer

tambeacutem seja conforme a razatildeo (EN III 14 1119a12-21) devido agrave

unicidade da alma que defendemos acima e consequentemente da

unicidade do desejo Por exemplo o homem virtuoso age com um

apetite governado pela razatildeo tem o apetite em harmonia com seu

querer sendo-lhe possiacutevel igualmente desejar alguns objetos

inadequados de prazer mas escolher natildeo os realizar pois o desejo pode

ou natildeo ser realizado Ter prazer portanto difere de desejar ter prazer ou

seja de realizar a atividade prazerosa O estudo do desejo mostrou-nos

igualmente que a capacidade desiderativa eacute aquela que propotildee o fim a

ser buscado ou evitado e com isso pede accedilatildeo Por isso estudaremos

agora na medida que contemplar nossas intenccedilotildees a relaccedilatildeo dos desejos

com a accedilatildeo humana que pode ser moralmente avaliada jaacute que o objeto

do desejo foi identificado com o que move as accedilotildees desse tipo e

igualmente aquela que entenderemos como boa accedilatildeo

3b4) Desejo e accedilatildeo rumo agrave accedilatildeo boa moralmente

Como vimos o desejo eacute associado agraves emoccedilotildees aos prazeres agraves

accedilotildees e portanto agrave virtude que vem com a praacutetica de boas accedilotildees

solicitadas pelos desejos por fins adequados e agrave vida feliz considerada

atividade (eneacutergeia) segundo a virtude mais completa Por conseguinte

a teoria da accedilatildeo eacute central na eacutetica de Aristoacuteteles porque tanto na EE

quanto na EN a definiccedilatildeo de felicidade eacute baseada na noccedilatildeo de atividade

(EN I 6 1098a16-17 EE II 1 1219a38-39) que aparece atrelada agravequela

de accedilatildeo Algumas passagens destes tratados apresentam o conceito de

eneacutergeia natildeo o de prāxis associado agrave eudaiacutemōniacutea mas qual a

diferenccedila entre os dois conceitos em Aristoacuteteles E quais satildeo seus papeacuteis

junto a uma teoria do desejo e por conseguinte da emoccedilatildeo

Natali (1996 p 101) afirma que Aristoacuteteles entende que a

eneacutergeia humana eacute feita de praacutexeis o que pode ser confirmado por EN

1098a12-14 onde se lecirc ldquoa funccedilatildeo do homem consiste em um certo

gecircnero de vida isto eacute em uma atividade da alma e das accedilotildees acompanhada de razatildeordquo (EN 1098b15-16) o que nos lembra de que

ainda estamos a discutir as questotildees sugeridas por EN I Tendo em vista

o passo citado Natali explica que o homem feliz eacute aquele que realiza

kalaigrave praacutexeis (belas ou boas accedilotildees) ou praacutexeis katacutearetḗn (accedilotildees

segundo a virtude) Isso leva a embasar a definiccedilatildeo de felicidade e a de

67

bem humano no conceito de accedilatildeo a pensar e determinar que a felicidade

requeira que se conheccedila o que eacute uma prāxis portanto aleacutem de ser

assunto associado ao tema do desejo e das emoccedilotildees a questatildeo nos

interessa porque pode nos dizer mais sobre a relaccedilatildeo destes com a

felicidade tema do nosso primeiro Capiacutetulo

Apoacutes ter exposto brevemente a ligaccedilatildeo da funccedilatildeo humana como

associada agrave accedilatildeo em EN I 13 Aristoacuteteles comeccedila suas discussotildees no

Livro II da EN com a lembranccedila de que anteriormente havia sido

discutido um problema importante a questatildeo das accedilotildees determinarem a

qualidade do caraacuteter (EN II 2 1103b30-31) Afirmaccedilatildeo associada agravequela

de que as virtudes aparecem com a praacutetica de accedilotildees virtuosas (EN II 2

1103a31-33) porque a ldquoaccedilatildeo eacute princiacutepio da virtude em sentido causalrdquo

(NATALI 1996 p 103) sendo a boa accedilatildeo que leva agrave virtude Como

vimos para que haja accedilatildeo realmente verdadeira eacute preciso que intelecto

praacutetico e desejo estejam agindo juntos porque eacute preciso raciociacutenio

verdadeiro e desejo reto para que haja accedilotildees dignas daquilo que eacute

proacuteprio ao homem prosseguindo no esclarecimento do que foi proposto

com EN I 13 A relaccedilatildeo do desejo do intelecto praacutetico e da boa accedilatildeo

reafirma que aquilo que Aristoacuteteles chama accedilatildeo seja relevante ao nosso

estudo

Para compreender melhor a questatildeo pode-se contar com o auxiacutelio

especial do Livro VI que parece entender a accedilatildeo e sua relaccedilatildeo com o

que se pretende moralmente dela passando pela comparaccedilatildeo e distinccedilatildeo

entre prāxis e poiacuteēsis O iniacutecio da EN apresenta tal distinccedilatildeo ao

diferenciar dois tipos de fins uns satildeo identificados com as proacuteprias

atividades outros diferem das atividades que levam ateacute os fins (EN I 1

1094a3-5) A separaccedilatildeo essencial entre prāxis e poiacuteēsis portanto que

tambeacutem aparece em EN VI 4 propotildee-nas como objetos de duas formas

diferentes de saber a phroacutenēsis e a teacutechnē que lidam com dois tipos

diferentes de ser Este uacuteltimo Livro mencionado explora suas relaccedilotildees

(EN VI 2 1139a35-b4) quando Aristoacuteteles afirma que o pensamento

sozinho nada move sendo que apenas o pensamento praacutetico eacute capaz de

mover a accedilatildeo quando associado ao desejo e de mover a produccedilatildeo

quando se tenciona algum produto Este eacute feito tendo algo aleacutem de si em

vista natildeo eacute um fim absoluto mas o fim da accedilatildeo poderia ser absoluto

quando o desejo levasse a agir bem51

Dessas reflexotildees apresentadas pela EN Natali (1996 p 110)

ressalta que poderiacuteamos entender que 1) o pensamento praacutetico (diaacutenoia

51Haveria segundo o Livro VI dois tipos de deliberaccedilatildeo e de phroacutenēsis um

relacionado agrave prāxis outro agrave poiacuteēsis

68

praktikḗ) domina (archḗ) a prāxis e tambeacutem a poietikḗ 2) o que eacute

produzido natildeo eacute um fim absoluto apenas um fim em vista de algo mais

3) a accedilatildeo realizada (praktoacuten) eacute o proacuteprio fim ou o fim absoluto 4) haacute

uma hierarquia de fins que organiza tambeacutem os saberes a eles

direcionados sendo a phroacutenēsis superior agrave teacutechnē 5) e a phroacutenēsis teria

a eupraxiacutea por fim como explicitaremos no capiacutetulo seguinte

Essas observaccedilotildees levariam a entender que o agir humano

segundo Aristoacuteteles se dividiria em duas partes com caracteriacutesticas

diferentes e opostas Para dar conta dessa teoria da accedilatildeo Natali pensa

ser preciso primeiro saber se todos os movimentos intencionais feitos

pelo homem satildeo objeto da teoria da accedilatildeo ou se tal teoria teria interesse

apenas nas accedilotildees em acepccedilatildeo proacutepria

Aristoacuteteles diferentemente dos modernos e contemporacircneos natildeo

estaria interessado em distinguir accedilatildeo e movimento fiacutesico (distinccedilatildeo

oacutebvia para o filoacutesofo) Accedilotildees segundo o filoacutesofo e a interpretaccedilatildeo feita

por Natali (1996 p 111) satildeo comportamentos complexos dentre os

quais eacute possiacutevel diferenciar prāxis e poiacuteēsis Simples movimentos

fiacutesicos natildeo permitiriam tal distinccedilatildeo podendo ser tanto parte da prāxis

quanto da poiacuteēsis ainda mais se natildeo se levasse o fim em conta Assim

segundo o estudioso ldquoPara Aristoacuteteles o significado da accedilatildeo eacute dado

pelo teacutelos pelo fim Em exemplos como ldquolevantar um braccedilordquo aquilo

que estaacute oculto eacute propriamente o teacutelos []rdquo (NATALI 1996 p 112)

Para Aristoacuteteles nessa observaccedilatildeo do fim os movimentos fiacutesicos natildeo

podem ser compreendidos como accedilotildees mas essas informaccedilotildees natildeo

completam a teoria da accedilatildeo eacute preciso ir aleacutem como o comentador faz

Para distinguir prāxis e poiacuteēsis nas eacuteticas Aristoacuteteles recorre a

uma diferenciaccedilatildeo de tipo metafiacutesico entre kiacutenēsis e eneacutergeia Em Met Θ 6 1048b18-23 fala-se que natildeo satildeo accedilotildees ou que natildeo satildeo accedilotildees

perfeitas aquelas cujo fim natildeo se encontra nelas mesmas O passo no

entanto eacute visto por Natali (1996 p 113) como duvidoso por muitos

motivos que natildeo elencaremos aqui por ultrapassarem as nossas

intenccedilotildees com essa explicaccedilatildeo A passagem mesmo assim condiz com

as propostas que depreendemos rapidamente de EN I importando aquilo

que a Met nos apresenta como relaccedilotildees e dissociaccedilotildees entre kiacutenēsis e

eneacutergeia bem como suas relaccedilotildees com prāxis e poiacuteēsis Para explicar

melhor a questatildeo podemos citar as palavras de Natali sobre o assunto

Consideradas do ponto de vista do fim eneacutergeia e

kiacutenēsis satildeo de todo distintas ao menos

aparentemente

- agrave primeira no campo da accedilatildeo humana

69

corresponde a prāxis e eacute um agir com um fim em

si mesmo O exemplo corrente que hoje eacute dado de

uma prāxis estaacute ausente em Aristoacuteteles mas jaacute

aparece em Alexandre de Afrodiacutesias o danccedilar

- a segunda sempre no campo do agir humano

corresponde a poiacuteēsis para dar um exemplo

Aristoacuteteles frequentemente refere-se agrave construccedilatildeo

de uma casa Os dois casos satildeo distintos pela

relaccedilatildeo ao fim enquanto na poiacuteēsis afirma

Aristoacuteteles a obtenccedilatildeo do fim potildee termo ao

processo na prāxis isto natildeo acontece aliaacutes a

obtenccedilatildeo do fim estaacute presente em cada instante do

processo []

De fato em uma kiacutenēsis a obtenccedilatildeo do fim tem

valor em si mas tem valor apenas como modo de

atingir o proacuteprio fim (NATALI 1996 p 113-

114)

Conforme essa explicaccedilatildeo que aparece em Met Θ 6 1048b23-28

a prāxis natildeo teria seu fim apenas ao termo de um processo enquanto a

poiacuteēsis seria composta por momentos de um processo que levaria a um

fim almejado Na prāxis todo instante contemplaria agravequilo que eacute seu

objetivo estando o fim da accedilatildeo em cada momento do processo que a

constituiria Dito de outro modo a poiacuteēsis seria um processo que soacute

resultaria em seu fim quando completado mas a prāxis seria um

processo completo em cada um de seus instantes Mas toda poiacuteēsis seria

kiacutenēsis O movimento fiacutesico implicado na poiacuteēsis poderia ser esmiuccedilado

em uma seacuterie de movimentos menores estruturantes do todo da

produccedilatildeo e que natildeo poderiam ser tomados em separado O exemplo eacute a

construccedilatildeo de casas que aparece em EN 1174a21-29 cada movimento

do processo de construir pode ser percebido separadamente mas soacute tem

sentido com o fim que lhe excede a casa construiacuteda Entatildeo a poiacuteēsis eacute

composta por ldquopoiacuteeseis parciais incompletasrdquo (NATALI 1996 p 116)

que resultaratildeo em um produto homogecircneo ontologicamente

Agora resta saber se toda prāxis eacute uma eneacutergeia Met IX 6 daacute

exemplos de eneacutergeiai que natildeo parecem precisar de movimentos fiacutesicos

Estariam portanto fora da alccedilada da fiacutesica pois excluiriam a kiacutenēsis

Aristoacuteteles no entanto nos apresenta a vida como exemplo de eneacutergeia e a vida comporta movimentos Caberia portanto

questionar a prāxis eacute ou natildeo eacute kiacutenēsis52

52 Vale ressaltar tambeacutem com Natali (NATALI 1996 p 117) que haveria

70

Ao analisarmos os exemplos de praacutexeis virtuosas veremos que

satildeo compostas por uma seacuterie de atos parciais com a estrutura da kiacutenēsis

Um desses exemplos poderia ser o mover a espada para golpear um

inimigo Segundo Natali

[] estes movimentos satildeo dirigidos agrave obtenccedilatildeo de

um fim e natildeo satildeo fins em si mesmos como se

fossem passos de danccedila De fato contra o que se

disse na Metafiacutesica na qual havia se afirmado que

nenhuma prāxis eacute uma kiacutenēsis Aristoacuteteles afirma

na Ethica Eudemia que toda prāxis eacute uma

kiacutenēsisrdquo (EE 1220b26-27 1222b28-29) Assim

segundo tal Eacutetica toda prāxis seria uma kiacutenēsis

mas qual seria a verdade sobre a questatildeo toda

prāxis eacute uma kiacutenēsis ou nenhuma prāxis eacute uma

kiacutenēsis como propotildee a Metafiacutesica (NATALI

1996 p 117)

Natali responde com o auxiacutelio de outro passo da Met (Β 2

996a27) no qual eacute possiacutevel ler que todas as accedilotildees implicam movimento

Nesse trecho aparece a preposiccedilatildeo meta traduzida pelo estudioso como

ldquoimplicardquo o que diferenciaria a prāxis da poiacuteeisis por ser composta

implicando movimentos enquanto a poiacuteēsis aconteceria por meio de

movimentos usando a preposiccedilatildeo diaacute como diferencial dando agrave prāxis

uma heterogeneidade ontoloacutegica

Ainda segundo a Met IX 6 (1048b6-9) e segundo a interpretaccedilatildeo

do passo feita por Natali (1996 p 119) vaacuterios movimentos singulares

compotildeem uma prāxis sendo os movimentos como que a mateacuteria e a

accedilatildeo a forma Assim o estudioso chega agrave seguinte formulaccedilatildeo ldquoToda

prāxis eacute do ponto de vista formal uma eneacutergeia e do ponto de vista

material eacute composta de kiacutenesisrdquo (NATALI 1996 p 119) O que faz a

diferenccedila entre prāxis e poiacuteēsis eacute que na explicaccedilatildeo do estudioso

Ambas satildeo eventos humanos que se datildeo no

mundo sublunar satildeo compostas de movimentos

mas enquanto a poiacuteēsis tem uma estrutura

ontoloacutegica de movimento in totoacute a prāxis tem

uma estrutura ontoloacutegica apenas em parte similar

agravequela das eneacutergeiai mais puras como a auto-

poiacuteēseis feitas com fim moral como poderemos ver ao propor elementos

favoraacuteveis a uma educaccedilatildeo emocional moral no Capiacutetulo III

71

contemplaccedilatildeo divina porque mesmo sendo fim

em si mesma na sua atuaccedilatildeo eacute composta de

movimentos O todo da accedilatildeo tem seu fim em si

mas as partes das quais se compotildee tecircm cada uma

o seu fim particular (NATALI 1996 p 119)

Haveria segundo essa proposta accedilotildees componentes particulares

que perseguiriam outros objetivos como o levantar uma espada para

golpear um inimigo em batalha mas que tenderia agrave vitoacuteria Haveria

assim o todo da accedilatildeo com objetivos em si como as accedilotildees virtuosas que

natildeo tenderiam a um resultado praacutetico fora delas mesmas Ou as accedilotildees

virtuosas igualmente deveriam ser eficazes como o golpe de espada

Desse tipo de interrogaccedilatildeo surge a questatildeo da eupraxiacutea que Natali

pensa responder ao problema em curso e que voltaraacute ao nosso estudo no

capiacutetulo seguinte mas que por ora pode ser entendido do modo

descrito abaixo

A prāxis humana propriamente dita natildeo eacute totalmente eneacutergeia

como seria a contemplaccedilatildeo divina Eacute composta por kiacuteneseis que buscam

um resultado e no caso da accedilatildeo moralmente avaliaacutevel esse resultado

seria um conjunto de sucesso na accedilatildeo e valor moral Essa proposta

condiz com a descriccedilatildeo que Aristoacuteteles faz do homem ser o

intermediaacuterio entre divino e animal que discutimos desde o argumento

da funccedilatildeo humana porque a eupraxiacutea aos olhos de Natali natildeo seria

apenas a accedilatildeo boa moralmente mas a accedilatildeo completa bem-sucedida

senatildeo Aristoacuteteles natildeo daria tanta importacircncia agrave deliberaccedilatildeo em suas

reflexotildees eacuteticas Caso o fim da accedilatildeo fosse sempre ela mesma ou

somente ela mesma a deliberaccedilatildeo seria inuacutetil porque um ato corajoso

por exemplo seria um fim em si mesmo natildeo buscando nada mais

Entatildeo natildeo seria preciso investigar (zḗtein) o modo mais eficaz ou nas

palavras de Natali (1996 p 122) ldquomais raacutepido e eleganterdquo para alcanccedilar

um fim Por isso a prāxis humana natildeo pode ser pura eneacutergeia mas deve

ser tambeacutem composta de kiacuteneseis justificando que as accedilotildees humanas

satildeo tributaacuterias de deliberaccedilatildeo de escolha deliberada e da phroacutenēsis

Estas satildeo essenciais agrave boa accedilatildeo humana pois dizem respeito tanto agrave

determinaccedilatildeo dos fins a serem buscados como dos meios que permitam

alcanccedilaacute-los e que satildeo solicitados pelos desejos e mudados pelas

emoccedilotildees No entanto antes de saber como as paacutethē se encaixam nesse

processo que conduz agrave eupraxiacutea e como podem influenciaacute-la eacute preciso

buscar delimitar a partir das indagaccedilotildees surgidas com a EN e do que foi

inferido ateacute o momento o que vem a ser ldquoemoccedilatildeordquo Fazer essa

72

delimitaccedilatildeo seraacute necessaacuterio para que possamos responder agraves questotildees

que foram postas ateacute o momento mas tambeacutem para podermos

compreender como pode ser possiacutevel mudaacute-las para que se liguem agraves

sugestotildees da razatildeo permitindo-nos tratar a educabilidade e a

racionalidade das emoccedilotildees A discussatildeo acima apresentada sobre a

relaccedilatildeo da eupraxiacutea com o paacutethos eacute crucial para que isso seja feito pois

insere definitivamente a emoccedilatildeo entre as coisas relacionadas agrave

eudaiacutemōniacutea pois como buscaremos apontar no proacuteximo Capiacutetulo

eupraxiacutea e eudaiacutemōniacutea satildeo indissociaacuteveis

4 Em busca da definiccedilatildeo de emoccedilatildeo em Aristoacuteteles

Na Eacutetica Nicomaqueia (Livro I capiacutetulo 7) Aristoacuteteles propotildee

que uma investigaccedilatildeo deva comeccedilar com o estabelecimento ao menos

em linhas gerais daquilo que eacute o objeto investigado Contudo pelo

menos nesse tratado o filoacutesofo natildeo parece dar contornos bem definidos

a uma noccedilatildeo geral daquilo que entende por emoccedilatildeo nem em sentido

moderno53 nem ao menos em seus proacuteprios termos Uma definiccedilatildeo

segundo Aristoacuteteles deveria apresentar o geacutenos (gecircnero) e a diferenccedila

especiacutefica daquilo que eacute definido mostrando o que o objeto estudado

realmente eacute (Top I 5 101b38 et seq)54 A EN todavia a princiacutepio

apresenta apenas o gecircnero da emoccedilatildeo paacutethos e uma lista de coisas agraves

quais chama emoccedilatildeo como podemos conferir na passagem abaixo

Dado pois que os estados que se geram na alma

satildeo trecircs55 emoccedilotildees capacidades disposiccedilotildees a

53 Uma definiccedilatildeo em lsquosentido modernorsquo buscaria explicar o que eacute uma emoccedilatildeo

Carlo Natali explica desse modo a deficiecircncia na definiccedilatildeo que EN II fornece da

accedilatildeo (1996 p 102) pois agrave eacutetica natildeo caberia tal tipo de explicaccedilatildeo proacutepria agrave

metafiacutesica Podemos tambeacutem pensar em uma proposta feita por Barnes que

justificaria tal insuficiecircncia bem como a insuficiecircncia de definiccedilatildeo de outros

termos chave na teoria eacutetica aristoteacutelica o autor ao escrever para si natildeo

elaboraria tais propostas ou talvez natildeo o fizesse por tratar de assunto que

julgava suficientemente conhecido daqueles a quem discursava 54Traduccedilatildeo Valandro e Bornheim (1978) no original ἔστι δ ὅρος μὲν λόγος ὁ

τὸ τί ἦν εἶναι σημαίνων [] 55Note-se que no Grego aparece a palavra ldquognoacutemenardquo lsquotraduzidarsquo por Zingano

(2008) como ldquoestadordquo Juliaacuten Marias (2009) bem como Bornhein e Vallandro

(1979) optaram por ldquocoisasrdquo Ross (1995) opta por ldquosentimentosrdquo e Tricot

(2002) por ldquofenocircmenosrdquo para a traduccedilatildeo do termo Contudo eacute difiacutecil escolher

uma das propostas para interpretar o que eacute pouco explicado por Aristoacuteteles Os

73

virtude seraacute um deles Entendo por emoccedilotildees

apetite coacutelera medo arrojo inveja alegria

amizade oacutedio anelo emulaccedilatildeo piedade em geral

tudo a que se segue prazer ou dor por

capacidades os estados em funccedilatildeo dos quais

dizemos que somos afetados pelas emoccedilotildees por

exemplo aqueles em funccedilatildeo dos quais somos

capazes de encolerizar-nos afligir-nos ou apiedar-

nos por disposiccedilotildees aqueles em funccedilatildeo dos quais

nos portamos bem ou mal com relaccedilatildeo agraves

emoccedilotildees por exemplo com relaccedilatildeo ao

encolerizar-se se nos encolerizamos forte ou

fracamente portamo-nos mal se moderadamente

bem e de modo semelhante com relaccedilatildeo agraves outras

emoccedilotildees (EN II 4 1105b19-29)56

O passo do Livro II 3 da Eacutetica Nicomaqueia nos apresenta

algumas dificuldades mas igualmente algumas ideias de por onde

possamos caminhar a fim de entender o que Aristoacuteteles propotildee como

emoccedilatildeo A primeira inquietaccedilatildeo que nos traz eacute justamente a

supramencionada definiccedilatildeo insatisfatoacuteria o que todavia pode sofrer a

seguinte objeccedilatildeo o texto apresenta-nos igualmente a especificaccedilatildeo de

que tais coisas satildeo acompanhadas de prazer ou dor Essa afirmaccedilatildeo natildeo

satisfaz a nossa curiosidade porque entendemos que uma lista com

substantivos no acusativo natildeo serve como definiccedilatildeo (sequer em termos

aristoteacutelicos) Natildeo nos satisfaz tambeacutem porque haacute outras coisas

mencionadas nos tratados aristoteacutelicos que satildeo descritas como

acompanhadas de prazer ou dor como as accedilotildees afirmaccedilatildeo que pode ser

lida nos Livros VII e X por exemplo natildeo levando esse traccedilo a

constituir-se realmente como uma diferenccedila especiacutefica

O prazer e a dor todavia satildeo indicados na definiccedilatildeo das emoccedilotildees

feita pela EN como seu traccedilo distintivo traccedilo que eacute repetido em quase

tradutores parecem utilizar o que lhes parece calhar melhor agrave sua proacutepria

interpretaccedilatildeo 56 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ἐπεὶ οὖν τὰ ἐν τῇ ψυχῇ γινόμενα τρία ἐστί πάθη δυνάμεις

ἕξεις τούτων ἄν τι εἴη ἡ ἀρετή λέγω δὲ πάθη μὲν ἐπιθυμίαν ὀργὴν φόβον

θάρσος φθόνον χαρὰν φιλίαν μῖσος πόθον ζῆλον ἔλεον ὅλως οἷς ἕπεται ἡδονὴ

ἢ λύπη δυνάμεις δὲ καθ ἃς παθητικοὶ τούτων λεγόμεθα οἷον καθ ἃς δυνατοὶ

ὀργισθῆναι ἢ λυπηθῆναι ἢ ἐλεῆσαι ἕξεις δὲ καθ ἃς πρὸς τὰ πάθη ἔχομεν εὖ ἢ

κακῶς οἷον πρὸς τὸ ὀργισθῆναι εἰ μὲν σφοδρῶς ἢ ἀνειμένως κακῶς ἔχομεν εἰ

δὲ μέσως εὖ ὁμοίως δὲ καὶ πρὸς τἆλλα

74

todas as outras definiccedilotildees apresentadas nos demais tratados que

chamaremos em nosso auxiacutelio o que natildeo nos permite ignorar essa

caracteriacutestica Aristoacuteteles explica que comumente se admite o prazer

como o que toca mais de perto a natureza humana ideia relevante para

nossa investigaccedilatildeo porque haacute prazeres ligados ao natildeo racional e

prazeres do intelecto como aqueles associados agrave vida contemplativa

que satildeo descritos pelo filoacutesofo como maiores e melhores dentre os

prazeres Por isso na educaccedilatildeo dos jovens satildeo usados prazer e dor para

direcionaacute-los pois se pensa que para formar a excelecircncia do caraacuteter eacute

preciso se comprazer com as coisas certas e detestar as que devem ser

detestadas (EN X 1 1172a19-24) Percebemos contudo o filoacutesofo a

abordar os prazeres natildeo racionais com a cautela costumeira dispensada

aos elementos natildeo racionais pois parece pensar ser necessaacuterio educaacute-las

conforme a reta razatildeo Assim Aristoacuteteles natildeo nega que prazer e dor nos

acompanham por toda vida que tenham grande importacircncia e forccedila para

a virtude e para a vida feliz porque escolhemos o que eacute agradaacutevel e

fugimos do que eacute doloroso sendo que o prazer eacute naturalmente buscado

pelo desejo e a dor evitada Portanto prazer e dor estatildeo ligados

igualmente agrave accedilatildeo que conduziraacute ao alcance dos fins desejados

Aleacutem do passo do Livro II no qual Aristoacuteteles relaciona prazer e

dor agraves emoccedilotildees o pensador aborda-os especialmente em trecircs momentos

de sua EN Primeiro trata esses assuntos quando estuda as propostas

correntes sobre a melhor forma de vida humana Nesse ponto vimos que

ainda no Livro I percebe que boa parte dos homens busca uma vida

voltada totalmente para o prazer considerado indiscriminada ou

vulgarmente um bem ou o bem supremo A consideraccedilatildeo eacute feita e

descartada pelo filoacutesofo que concorda que o prazer seja um bem mas

que seja impossiacutevel consideraacute-lo o bem supremo ainda que se configure

como um bem final

O segundo momento em que a temaacutetica eacute discutida eacute o Livro VII

que apresenta um diaacutelogo com Platatildeo e sua proposta do prazer como um

processo ideia descartada pela Eacutetica em questatildeo O terceiro ponto do

tratado no qual o prazer aparece eacute a primeira ldquometaderdquo do Livro X da

EN quando o filoacutesofo parece retomar as propostas sobre os prazeres da

vida vulgar abordados no Livro I reforccedilando sua ideia de que o prazer

natildeo pode ser o bem supremo mas que ainda assim pode ser um bem

porque apesar de poder ser escolhido por si mesmo natildeo apresentaria a

autossuficiecircncia e completude da felicidade deixando espaccedilo em uma

vida voltada agrave busca de prazer ainda para a necessidade de outras coisas

Nesse trecho o filoacutesofo apresentaria sua real concepccedilatildeo do prazer e

chegaria a relacionaacute-lo com a moralidade Como propotildee Frede (2009 p

75

241) Aristoacuteteles daacute lugar agraves inclinaccedilotildees em sua moral embora as accedilotildees

corretas moralmente natildeo dependam apenas das inclinaccedilotildees dependem

igualmente da racionalidade praacutetica exercida na figura da deliberaccedilatildeo

ldquoAinda que sentimentos gostos e desgostos desempenhem um

importante papel para estabelecer o fim uacuteltimo da accedilatildeo eles natildeo

determinam a deliberaccedilatildeo racional acerca do caraacuteter apropriado de uma

accedilatildeordquo (FREDE 2009 p 241) Entatildeo os prazeres podem e devem ser

bem-educados moralmente o que possibilitaraacute realizar a recomendaccedilatildeo

de EN II de que eacute preciso ser educado a fim de sentir prazer com o que

eacute devido e para desprezar o que eacute devido

A estudiosa observa que na EN contudo Aristoacuteteles natildeo discute

o tipo de prazer e dor envolvido nas emoccedilotildees Por isso e por sugestatildeo

de Frede eacute preciso recorrer agrave Retoacuterica para saber de tal assunto Neste

livro Aristoacuteteles usa a tese que havia rejeitado na EN aquela que propotildee

o prazer como um processo (Rhet I 10 1369b33-35) De acordo com

Frede (2009 p 249)

Natildeo eacute difiacutecil ver por que Aristoacuteteles recorre agrave

definiccedilatildeo das dores e dos prazeres como

ldquoprocessos de interrupccedilatildeo e restauraccedilatildeordquo as

emoccedilotildees satildeo baseadas em necessidades quereres

desejos ou em suas aversotildees correspondentes

Todos esses fenocircmenos pressupotildeem algum tipo de

carecircncia uma necessidade que deve ser satisfeita

Os oradores tratam das necessidades humanas de

diferentes modos [] os prazeres e as dores

relevantes estatildeo ligados agraves necessidades e aos

quereres das pessoas

A autora entende que a Retoacuterica conteacutem um tipo de anaacutelise que

Aristoacuteteles deve ter pressuposto na EN e isso natildeo requer que se

assumam tratamentos diferentes para o prazer e para a dor em diferentes

fases do pensamento de Aristoacuteteles Ambos os conceitos sobre o prazer

devem ter existido na eacutepoca do filoacutesofo que os apresenta em textos

diferentes (Top I 2 121a35-36) Aristoacuteteles pode ter escrito a Retoacuterica

consideravelmente cedo mas continuou a usaacute-la e reformulaacute-la o que eacute

apontado por marcas posteriores de revisatildeo Nem assim sentiu

necessidade de alterar sua explicaccedilatildeo sobre prazer e dor quando tratou

das emoccedilotildees neste livro Frede pensa que o filoacutesofo deve ter

considerado a familiaridade dos leitores com as paacutethē (da Retoacuterica)

76

quando natildeo fez descriccedilatildeo minuciosa do tema na EN57 ldquoAristoacuteteles

parece assim ter reconhecido diferentes tipos de prazer e dor em sua

eacutetica sem chamar a atenccedilatildeo do leitor para esse fatordquo (FREDE 2009 p

249) o que justificaria a postura da Retoacuterica

Agraves observaccedilotildees de Frede acrescentamos que o prazer associado

agraves emoccedilotildees como no caso das propostas da Rhet da Poet e tambeacutem da

EN tem um quecirc de racionalidade Nos tratados de ciecircncia produtiva eacute

faacutecil perceber o que afirmamos porque as emoccedilotildees traacutegicas bem como

aquelas despertadas pelo discurso retoacuterico acontecem por um tipo de

lsquoidentificaccedilatildeorsquo entre o puacuteblico e as imagens criadas pelo enredo ou pelo

proferimento do orador Essas imagens provocam certo tipo de

pensamento (ao menos imaginaccedilatildeo) em quem tem contato com elas Eacute o

caso do reconhecimento de que ldquoesse eacute aquelerdquo mencionado em Poet

IV e provocado pela trageacutedia que causa prazer proacuteprio a este tipo de

literatura ou encenaccedilatildeo Tal prazer natildeo eacute advindo somente da aparecircncia

da arte em questatildeo mas das formulaccedilotildees racionais que leva o puacuteblico a

elaborar

Pensamos que o mesmo seja vaacutelido para a EN porque o prazer e a

dor causados pelas emoccedilotildees descritas neste tratado tecircm a ver com certas

elaboraccedilotildees que se encadeiam a partir do contato com algumas

aparecircncias e resultam em determinados tipos de operaccedilotildees psiacutequicas

como as opiniotildees O prazer vem com o sentir certa emoccedilatildeo e

igualmente com a lembranccedila ou a imaginaccedilatildeo pois estas causam ao

menos certas alteraccedilotildees no corpo pondo-o em movimento por isso satildeo

tambeacutem classificados como paacutethos (EN II 2 1105a2) pois afetam o

homem embora como observa Konstan (2006 p 42) os prazeres natildeo

sejam exatamente emoccedilatildeo pois satildeo sensaccedilotildees (aisthḗseis) resultantes da

percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo O jovem ao ser educado deve adquirir o

haacutebito de sentir prazer e dor com o que eacute adequado seu caraacuteter deve se

familiarizar previamente com a virtude gostando do que eacute belo e

desprezando o vil58 indicando a forma correta de sentir

57 Talvez por isso tambeacutem natildeo faccedila grandes explicaccedilotildees sobre as emoccedilotildees 58 Segundo Frede das consideraccedilotildees acerca das emoccedilotildees e do prazer feitas por

Aristoacuteteles o que fica para pensarmos atualmente eacute a proposta da necessidade

de uma educaccedilatildeo moral apropriada das emoccedilotildees do sentir prazer e dor com

atividades e atitudes corretas Um segundo benefiacutecio seria o enfoque na

qualidade de vida na qual se preze o desenvolvimento das qualidades que

apresentamos naturalmente para termos uma vida satisfatoacuteria e pensamos em

harmonia dentro de nossas comunidades Aristoacuteteles entendeu que a moralidade

eacute compatiacutevel com inclinaccedilotildees pessoais e pressupocircs tais inclinaccedilotildees Isso eacute o

77

Aleacutem da menccedilatildeo ao prazer e agrave dor e das listas apresentadas no

passo que provavelmente deveria explicar o que Aristoacuteteles entende

por emoccedilatildeo devemos considerar em que medida a ldquodefiniccedilatildeordquo

apresentada pode ser uacutetil em nossa busca por maior especificidade sobre

o assunto Para comeccedilar podemos observar um pouco mais EN II 4

1105b19-29 e com isso notar a relaccedilatildeo do paacutethos com as capacidades

(dynaacutemeis) e as disposiccedilotildees (heacutexeis) A passagem busca esclarecer o que

satildeo as virtudes e por isso as diferencia das emoccedilotildees estas natildeo seriam

nem disposiccedilotildees ou seja aquilo que nos faz ter bom ou mau

comportamento frente agraves emoccedilotildees nem dynaacutemeis que satildeo as

capacidades que se tem de sentir as emoccedilotildees O passo todavia diz

muito da importacircncia eacutetica do paacutethos pois se a virtude eacute disposiccedilatildeo e eacute

fundamental agrave felicidade - e sendo a felicidade o fim humano - se estaacute

ligada desde a alma agrave emoccedilatildeo - por ser disposiccedilatildeo de se posicionar bem

diante das emoccedilotildees - percebemos que o papel desses elementos

desprezados ou postos em segundo plano por outros filoacutesofos eacute

realmente grande em Aristoacuteteles como bem observa Zingano (2007 p

145 EN II 1 1103b25) As emoccedilotildees interferem no ser e no agir

virtuosamente (EN II 2 1104b4-13) pois haacute modos diferentes de se

sentir e lidar com a emoccedilatildeo conforme o estado e a heacutexis nos quais nos

encontramos Entatildeo ser virtuoso implica se comportar bem em relaccedilatildeo agrave

emoccedilatildeo e senti-la de modo (ou na quantia) adequado

A partir das observaccedilotildees feitas podemos afirmar que o passo em

questatildeo deixa claro que as virtudes natildeo satildeo emoccedilotildees embora se

relacionem com estas pois virtudes e viacutecios (kakiacuteai) levam a considerar

um agente como bom ou mau a ser louvado ou censurado e envolvem

escolha deliberada Um homem que apresenta uma virtude eacute dito

disposto de certo modo mas ningueacutem eacute considerado bom ou mau

ningueacutem eacute louvado ou censurado nem considerado disposto de certo

modo por sentir uma emoccedilatildeo ou por ser capaz de sentir uma emoccedilatildeo

A relaccedilatildeo da emoccedilatildeo com a virtude moral em EN II confirma as

propostas de EN I 13 a respeito da alma humana bipartida cuja

capacidade desiderativa ldquocomportariardquo as emoccedilotildees Tal capacidade eacute

forccediloso lembrar seria natildeo racional mas capaz de ouvir as sugestotildees da

razatildeo praacutetica portanto deveriacuteamos supor que aquilo que fosse de sua

alccedilada refletisse tal capacidade de ouvir a razatildeo A possibilidade de as

emoccedilotildees seguirem a reta razatildeo todavia se configura como um

meacuterito da teoria em questatildeo e a proposta de que a accedilatildeo deve ser feita com

inclinaccedilatildeo e natildeo por inclinaccedilatildeo pouparia muita discussatildeo se tivesse sido levada

a seacuterio pelos filoacutesofos posteriores

78

problema pois ainda no Livro II Aristoacuteteles nos fala de emoccedilotildees que

satildeo moralmente maacutes e que natildeo admitem mudanccedila59

Dado que os trechos da Eacutetica Nicomaqueia em anaacutelise por ora

nos trouxeram mais duacutevidas que respostas - ao mostrar-nos o ldquolugarrdquo

das emoccedilotildees na alma e com este sua capacidade de participar do

racional - consideramos que para entendermos esses assuntos

igualmente seja relevante consultar tratados que se dedicaram mais

especificamente ao tema e consultar o texto no qual particularmente se

analisa as questotildees relativas agrave alma Essa consulta nos permitiraacute trazer

soluccedilotildees agraves questotildees suscitadas desde EN I 13 a respeito da

possibilidade de participaccedilatildeo do natildeo racional na razatildeo humana dado

que ambos satildeo capacidades de uma alma una que se manifestam no

corpo Por isso julgamos que o tratado sobre a alma assim como os

demais textos que seratildeo nossos auxiliares nos permitiratildeo ter maior

clareza sobre as relaccedilotildees das emoccedilotildees com corpo e alma e com a razatildeo

humana

4a) Alma corpo e emoccedilotildees interpretadas a partir de EN I com o auxiacutelio

do DA da Rhet e da Poet

No De Anima o estudo da psychḗ estaacute entre aqueles dedicados agraves

coisas da natureza por ser um tipo de investigaccedilatildeo que pretende

conhecer a natureza a substacircncia e os atributos da alma dentre os quais

estatildeo as afecccedilotildees (paacutethē) que lhes satildeo proacuteprias Essas afirmaccedilotildees

conduzem agrave questatildeo complexa da separaccedilatildeo ou unidade entre corpo e

alma Devemos retomar o problema ainda que brevemente jaacute que

Aristoacuteteles faz com que alma e corpo compartilhem as emoccedilotildees

afirmaccedilatildeo feita anteriormente Frente a esse assunto cabe a questatildeo da

inseparabilidade entre corpo e alma Quanto agrave questatildeo Aristoacuteteles

parece pocircr-se em franca oposiccedilatildeo agraves teorias dualistas de Platatildeo como

aquelas apresentadas no Feacutedon quando escreve

Haacute ainda uma dificuldade de saber se as afecccedilotildees

59 Eacute o que confirma Sorabji quando fala da proposta de Aristoacuteteles sobre o meio

termo nas emoccedilotildees ldquoPois ele diz que o que conta muito ou pouco depende de

quem noacutes somos da ocasiatildeo do para quecirc e para quem a nossa emoccedilatildeo eacute

dirigida do resultado provaacutevel e do modo de reagir Aleacutem disso ele aponta que

algumas emoccedilotildees como Schadenfreude (sentir prazer com o insucesso alheio) e

inveja tecircm a ideia de maldade construiacuteda nelas de modo que natildeo haacute espaccedilo para

a ideia de moderaccedilatildeo em exercecirc-lasrdquo (SORABJI 2000 p 195 traduccedilatildeo nossa)

79

da alma satildeo todas comuns agravequilo que possui alma

ou se haacute tambeacutem alguma afecccedilatildeo proacutepria agrave alma

tatildeo somente E embora natildeo seja faacutecil eacute necessaacuterio

compreender isto Revela-se que na maioria dos

casos a alma nada sofre ou faz sem o corpo

como por exemplo irritar-se persistir ter

vontade e perceber em geral por outro lado

parece ser proacuteprio a ela particularmente o pensar

Natildeo obstante se o pensar tambeacutem eacute um tipo de

imaginaccedilatildeo ou se ele natildeo pode ocorrer sem a

imaginaccedilatildeo entatildeo nem mesmo o pensar poderia

existir sem o corpo Enfim se alguma das funccedilotildees

ou afecccedilotildees eacute proacutepria agrave alma ela poderia existir

separada mas se nada lhe eacute proacuteprio a alma natildeo

seria separaacutevel [] Parece tambeacutem que todas as

afecccedilotildees da alma ocorrem com um corpo acircnimo

mansidatildeo medo comiseraccedilatildeo ousadia bem

como a alegria o amar e o odiar ndash pois o corpo eacute

afetado de algum modo simultaneamente a elas

(DA 403a3-19)60

O passo apresenta simultaneidade nas afecccedilotildees do corpo e da

alma inviabilizando a separaccedilatildeo destas duas instacircncias61 pois como

observa Everson (2012 p 238) ldquose o corpo deve ter oacutergatildeos que satildeo

capazes de realizar suas funccedilotildees constitutivas estes igualmente

precisam ter particulares constituiccedilotildees materiaisrdquo Reforccedilamos portanto

que para Aristoacuteteles natildeo haacute separaccedilatildeo entre corpo e alma o que nos

mostra sua teoria das emoccedilotildees pois nesta teoria o filoacutesofo explicita que

60 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ἀπορίαν δ

ἔχει καὶ τὰ πάθη τῆς ψυχῆς πότερόν ἐστι πάντα κοινὰ καὶ τοῦ ἔχοντος ἢ ἔστι τι

καὶ τῆς ψυχῆς ἴδιον αὐτῆς τοῦτο γὰρ λαβεῖν μὲν ἀναγκαῖον οὐ ῥᾴδιον δέ

φαίνεται δὲ τῶν μὲν πλείστων οὐθὲν ἄνευ τοῦ σώματος πάσχειν οὐδὲ ποιεῖν

οἷον ὀργίζεσθαι θαρρεῖν ἐπιθυμεῖν ὅλως αἰσθάνεσθαι μάλιστα δ ἔοικεν ἰδίῳ

τὸ νοεῖν εἰ δ ἐστὶ καὶ τοῦτο φαντασία τις ἢ μὴ ἄνευ φαντασίας οὐκ ἐνδέχοιτ

ἂν οὐδὲ τοῦτ ἄνευ σώματος εἶναι εἰ μὲν οὖν ἔστι τι τῶν τῆς ψυχῆς ἔργων ἢ

παθημάτων ἴδιον ἐνδέχοιτ ἂν αὐτὴν χωρίζεσθαι εἰ δὲ μηθέν ἐστιν ἴδιον αὐτῆς

οὐκ ἂν εἴη χωριστή [] ἔοικε δὲ καὶ τὰ τῆς ψυχῆς πάθη πάντα εἶναι μετὰ

σώματος θυμός πραότης φόβος ἔλεος θάρσος ἔτι χαρὰ καὶ τὸ φιλεῖν τε καὶ

μισεῖν ἅμα γὰρ τούτοις πάσχει τι τὸ σῶμα 61 A questatildeo eacute bem mais complexa poreacutem natildeo poderiacuteamos estudaacute-la em

detalhes nesse momento Sobre o assunto sugerimos a leitura de textos como os

de Robinson e Everson indicados nas referecircncias Estes lidam com a questatildeo

com muito mais cuidado do que noacutes podemos lhe dispensar no presente

80

quem se emociona natildeo eacute o corpo mas o composto corpoalma

apresentando claramente sua perspectiva hilemoacuterfica A prova que

Aristoacuteteles daacute para tanto eacute que agraves vezes as emoccedilotildees fortes e violentas

(hiskyrograven kaigrave enargograven pathḗmaton) natildeo produzem excitaccedilatildeo ou medo

mas agraves vezes emoccedilotildees pequenas e imperceptiacuteveis (mikroacuten kaigrave

amauroacuten) nos movem (kineicircsthai) Isso se torna ainda mais evidente

por exemplo quando natildeo acontece nada de temiacutevel mas se sente medo

(DA I 1 403a20-24) tendo o corpo a tremer como eacute o caso em um

teatro Por isso o filoacutesofo considera evidente que as afecccedilotildees satildeo

determinaccedilotildees na mateacuteria - ou seja implicam ou envolvem mateacuteria mas

natildeo somente (DA I 1 403a24-25 loacutegoi eacutenyloi eisiacuten62) Por isso tambeacutem

as definiccedilotildees que daacute para as emoccedilotildees satildeo do tipo o encolerizar-se eacute um

movimento no corpo do sangue na regiatildeo que estaacute em volta do

coraccedilatildeo ocasionado por certo desejo63 Tais potecircncias satildeo despertadas

por percepccedilotildees imagens e imaginaccedilotildees fatores que estatildeo atrelados ao

exterior e agrave percepccedilatildeo sensiacutevel e estatildeo associadas ao desejo e ao

pensamento daquele que se emociona

Dessas consideraccedilotildees do tratado sobre a alma acerca das

emoccedilotildees aleacutem da velha lista das paacutethē eacute possiacutevel entender que afetam

simultaneamente alma e corpo e que neste provocam alteraccedilotildees e

mesmo movimentos Teorias que parecem ser de grande ajuda agrave nossa

pesquisa embora no DA Aristoacuteteles possa natildeo estar preocupado em

especificar o valor moral das emoccedilotildees dado o caraacuteter bioloacutegico (ou

psicoloacutegico) do texto Pelas propostas observadas entendemos ldquoque as

afecccedilotildees da alma satildeo assim inseparaacuteveis da mateacuteria natural dos animais

na medida em que de fato subsistem neles coisas tais como acircnimo e

62Everson traduz a expressatildeo por ldquoexplicaccedilotildees materiadasrdquo e Tricot por ldquodes

formes engageacutees dans la matiegravererdquo (as formas determinadas da mateacuteria) Este

uacuteltimo explica o raciociacutenio de Aristoacuteteles no passo da seguinte forma ldquoas

emoccedilotildees variam segundo os diferentes indiviacuteduos elas tanto se produzem e

elas tanto natildeo se produzem Ora essa diferenccedila natildeo eacute devida ao πάθημα que eacute o

mesmo para todos eacute devida agrave diferenccedila dos temperamentos da constituiccedilatildeo

fiacutesica Portanto uma emoccedilatildeo eacute sempre acompanhada mesmo no caso em que o

fato natildeo eacute aparente de um concomitante fiacutesicordquo (2010 nota 2 p 29 traduccedilatildeo

nossa) 63Embora nos interesse em demasia a questatildeo de como as afecccedilotildees da alma se

manifestam no corpo eacute mais bem discutida por Aristoacuteteles em seus tratados

bioloacutegicos mas natildeo apareceraacute aqui por questotildees de exequibilidade de nosso

estudo

81

temor e natildeo satildeo como a linha e a superfiacutecierdquo (DA I 1 403b17-19)64

Constataccedilatildeo possiacutevel porque o estudioso da natureza trataria as afecccedilotildees

de modo diferente do que o faria um dialeacutetico como Everson escreve

Noacutes jaacute vimos que ao definir as afecccedilotildees da

psyche Aristoacuteteles daacute prioridade agrave identificaccedilatildeo

das causas das mudanccedilas relevantes e aqui ele

insiste que tambeacutem ter (sic) de ser feita referecircncia

ao corpo Que aqui ldquoeste tipo de corpordquo natildeo

represente uma referecircncia agrave forma eacute confirmado

pelo que se segue Ele contrasta as definiccedilotildees de

ira que seriam oferecidas pelo dialeacutetico e pelo

fiacutesico o primeiro definiria a ira como ldquolsquoo desejo

de retribuir a dorrsquo ou algo parecidordquo enquanto o

uacuteltimo a definiria como a agitaccedilatildeo do sangue ao

redor do coraccedilatildeo (EVERSON 2010 p 241)

Essa diferenccedila nas descriccedilotildees das afecccedilotildees acontece porque ldquoUm

discorre sobre a mateacuteria e o outro sobre a forma e a determinaccedilatildeordquo (DA I

1 403b1-2)65 A determinaccedilatildeo eacute a forma da coisa e precisa existir em

uma mateacuteria que possua tal qualidade O estudioso da natureza eacute

portanto aquele que aborda as afecccedilotildees correspondentes a um corpo

especiacutefico e a uma mateacuteria especiacutefica natildeo tratando das afecccedilotildees que natildeo

satildeo deste tipo assunto que cabe a estudos como os da arte retoacuterica dos

quais falaremos na sequecircncia

Por ora seguiremos com a investigaccedilatildeo do DA que continua

questionando afirmaccedilotildees sobre a acomodaccedilatildeo da alma no corpo e

afirmando que tal consideraccedilatildeo eacute necessaacuteria pois eacute devido agrave comunhatildeo

corpoalma que um faz e outro sofre um move e outro eacute movido sendo

que nada disso acontece casualmente a um ou ao outro Aristoacuteteles

observa em contrapartida parece que cada corpo apresenta

configuraccedilatildeo proacutepria Nesse ponto provavelmente tenhamos a

importacircncia de chamar as consideraccedilotildees de um tratado bioloacutegico para

uma discussatildeo eacutetica se o primeiro tipo de investigaccedilatildeo tem por

preocupaccedilatildeo o mover poderaacute auxiliar na resoluccedilatildeo de questotildees morais

pois natildeo haacute accedilatildeo (prāxis) ou atividade (eneacutergeia) moralmente

consideraacutevel sem movimento (kiacutenēsis) tampouco sem o movimento

64 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ὅτι τὰ πάθη

τῆς ψυχῆς οὕτως ἀχώριστα τῆς φυσικῆς ὕλης τῶν ζῴων ᾗ γε τοιαῦθ ὑπάρχει

ltοἷαgt θυμὸς καὶ φόβος καὶ οὐχ ὥσπερ γραμμὴ καὶ ἐπίπεδον 65 Idem no original ὁ μὲν τὴν ὕλην ἀποδίδωσιν ὁ δὲ τὸ εἶδος καὶ τὸν λόγον

82

daquilo que pede as accedilotildees ou as atividades como vimos pouco acima

Diante da questatildeo do mover e do que faz mover podemos

explicitar a proposta precedentemente mencionada que a alma eacute o que

move sem ser movido tratando-se do movimento local ldquoeacute possiacutevel

como dissemos que a alma se mova por acidente e que mova a si

mesma ndash eacute possiacutevel por exemplo que aquilo em que ela estaacute seja

movido e seja movido justamente pela alma - mas natildeo eacute possiacutevel de

nenhuma outra maneira que a alma se mova quanto ao lugarrdquo (DA I 4

408a30-34)66 A partir dessa afirmaccedilatildeo Tricot (2010 nota 2 p 65)

esclarece que a alma se move no corpo em que estaacute por acidente pois

move-o e que o movimento quanto ao lugar bem como as alteraccedilotildees

fisioloacutegicas provocadas pelas paacutethē podem nos preocupar justamente

pela relaccedilatildeo da kiacutenēsis com as accedilotildees e as atividades morais que

mencionamos Aristoacuteteles pensa que o deslocamento da alma poderia

ser inferido mais verossimilmente das suas capacidades consideradas

pela opiniatildeo comum como movimento Esta eacute a interpretaccedilatildeo dada por

Tricot (2010 nota 4 p 65) para o passo que segue

E seria mais razoaacutevel algueacutem ter certa dificuldade

em relaccedilatildeo agrave alma como movida tendo em vista o

que se segue dizemos que a alma se magoa se

alegra ousa teme e ainda que se irrita percebe e

raciocina e haacute a opiniatildeo de que todas estas coisas

satildeo movimentos donde algueacutem poderia pensar

que a alma se move Isso contudo natildeo eacute

necessaacuterio Pois mesmo que o magoar-se o

alegrar-se ou o raciocinar sejam especialmente

movimentos e que cada um deles o seja pela alma

ndash por exemplo que o irritar-se ou o temer seja um

tipo de movimento do coraccedilatildeo e que o raciocinar

seja um tipo de movimento desse oacutergatildeo ou talvez

de outro diverso e que dentre estes casos uns

ocorram segundo a locomoccedilatildeo de certas partes

movidas outros segundo a alteraccedilatildeo das mesmas

(quais e como eacute outra questatildeo) ndash dizer que a alma

se irrita eacute como dizer que a alma tece ou edifica

Talvez seja melhor dizer natildeo que a alma se apieda

ou apreende ou raciocina mas que o homem o faz

66 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original κατὰ

συμβεβηκὸς δὲ κινεῖσθαι καθάπερ εἴπομεν ἔστι καὶ κινεῖν ἑαυτήν οἷον

κινεῖσθαι μὲν ἐν ᾧ ἐστι τοῦτο δὲ κινεῖσθαι ὑπὸ τῆς ψυχῆς ἄλλως δ οὐχ οἷόν τε

κινεῖσθαι κατὰ τόπον αὐτήν

83

com a alma E isso natildeo porque o movimento

existe nela mas porque o movimento ora chega

ateacute ela ora parte dela na percepccedilatildeo sensiacutevel por

exemplo ele parte de fora e na reminiscecircncia

parte dela ateacute chegar aos movimentos e agraves

estabilizaccedilotildees nos oacutergatildeos da percepccedilatildeo (DA I 4

408a34-35 408b1-17)67

Assim dando por fim nossa breve discussatildeo sobre a questatildeo do

movimento provocado pelas paacutethē da alma no corpo confirmamos que a

alma natildeo eacute o que faz mover e o que eacute movido Ela eacute somente o que faz

mover (DA 409a18 allagrave tograve kinoucircn moacutenon) e natildeo eacute preciso que se mova

para que conceda movimento aos corpos embora por esses argumentos

natildeo fosse possiacutevel explicar as funccedilotildees (tagrave eacuterga) e as afecccedilotildees (tagrave paacutethē)

da alma68 Essas propostas do DA portanto natildeo potildeem fim agraves nossas

duacutevidas acerca da definiccedilatildeo de emoccedilatildeo

Frente agraves indefiniccedilotildees apresentadas pela EN e pelo DA a

Retoacuterica ressalta algo novo e importante Esse tratado propotildee que as

emoccedilotildees satildeo ldquoas causas que fazem alterar os seres humanos e

introduzem mudanccedilas nos seus juiacutezos na medida em que elas

comportam dor e prazer tais satildeo a ira a compaixatildeo o medo e outras

67 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original ἄλλως δ οὐχ οἷόν τε

κινεῖσθαι κατὰ τόπον αὐτήν εὐλογώτερον δ ἀπορήσειεν ἄν τις περὶ αὐτῆς ὡς

κινουμένης εἰς τὰ τοιαῦτα ἀποβλέψας φαμὲν γὰρ τὴν ψυχὴν λυπεῖσθαι χαίρειν

θαρρεῖν φοβεῖσθαι ἔτι δὲ ὀργίζεσθαί τε καὶ αἰσθάνεσθαι καὶ διανοεῖσθαι ταῦτα

δὲ πάντα κινήσεις εἶναι δοκοῦσιν ὅθεν οἰηθείη τις ἂν αὐτὴν κινεῖσθαι τὸ δ οὐκ

ἔστιν ἀναγκαῖον εἰ γὰρ καὶ ὅτι μάλιστα τὸ λυπεῖσθαι ἢ χαίρειν ἢ διανοεῖσθαι

κινήσεις εἰσί καὶ ἕκαστον κινεῖσθαί τι τούτων τὸ δὲ κινεῖσθαί ἐστιν ὑπὸ τῆς

ψυχῆς οἷον τὸ ὀργίζεσθαι ἢ φοβεῖσθαι τὸ τὴν καρδίαν ὡδὶ κινεῖσθαι τὸ δὲ

διανοεῖσθαι ἤ τι τοιοῦτον ἴσως ἢ ἕτερόν τι τούτων δὲ συμβαίνει τὰ μὲν κατὰ

φοράν τινων κινουμένων τὰ δὲ κατ ἀλλοίωσιν (ποῖα δὲ καὶ πῶς ἕτερός ἐστι

λόγος) τὸ δὴ λέγειν ὀργίζεσθαι τὴν ψυχὴν ὅμοιον κἂν εἴ τις λέγοι τὴν ψυχὴν

ὑφαίνειν ἢ οἰκοδομεῖν βέλτιον γὰρ ἴσως μὴ λέγειν τὴν ψυχὴν ἐλεεῖν ἢ

μανθάνειν ἢ διανοεῖσθαι ἀλλὰ τὸν ἄνθρωπον τῇ ψυχῇ τοῦτο δὲ μὴ ὡς ἐν

ἐκείνῃ τῆς κινήσεως οὔσης ἀλλ ὁτὲ μὲν μέχρι ἐκείνης ὁτὲ δ ἀπ ἐκείνης οἷον

ἡ μὲν αἴσθησις ἀπὸ τωνδί ἡ δ ἀνάμνησις ἀπ ἐκείνης ἐπὶ τὰς ἐν τοῖς

αἰσθητηρίοις κινήσεις ἢ μονάς 68 Raciociacutenios (logismouacutes) percepccedilotildees (aisthḗsis) prazeres (hēdonaacutes) dores

(lyacutepas) etc

84

semelhantes assim como as suas contraacuteriasrdquo (Rhet II 1 1378a19-22)69

Mais adiante no texto lemos outro passo que parece proceder a uma

exemplificaccedilatildeo ou lista de emoccedilotildees ldquoPor paixotildees entendo a ira o desejo

e outras emoccedilotildees da mesma natureza de que falamos anteriormenterdquo

(Rhet II 12 1388b32-33)70 O que pode chamar nossa atenccedilatildeo nesses

trechos eacute resumido por Konstan (2006 p 33 traduccedilatildeo nossa) do

seguinte modo ldquoA definiccedilatildeo de emoccedilatildeo ou paacutethos entretanto que

Aristoacuteteles oferece na Retoacuterica ndash o mais perto que ele chega de dar uma

tal definiccedilatildeo do que em nenhum outro de seus escritos [] ndash natildeo

relaciona emoccedilatildeo com sua causa externa ou estiacutemulo mas insiste antes

em seu efeito sobre o julgamentordquo Observaccedilatildeo extremamente vaacutelida

embora entendamos que as definiccedilotildees das emoccedilotildees particulares trazidas

pelo Livro II da Rhet apresentem as referecircncias aos mencionados

estiacutemulos ou causas externas como mostraremos pouco adiante

Deixemos isso por ora concentremo-nos na tentativa de definiccedilatildeo dada

pelo texto e nos juiacutezos que se diz serem alterados

Comecemos com uma interrogaccedilatildeo como o destaque na

capacidade de ldquomudanccedilas nos juiacutezosrdquo poderia ser importante para nossa

pesquisa se as coisas que dizem respeito agrave retoacuterica diferem daquelas

especiacuteficas agrave eacutetica Sendo a retoacuterica considerada uma arte e se a arte

trata do universal como poderia nos ajudar a esclarecer questotildees eacuteticas

se vemos Aristoacuteteles sempre a ressaltar o caraacuteter particular das accedilotildees

morais Antes de responder agraves questotildees vale frisar que a eacutetica tambeacutem

aborda universalmente suas questotildees graccedilas ao seu caraacuteter filosoacutefico jaacute

indicando certa proximidade entre as investigaccedilotildees dos dois tratados

Diante disso podemos ir agraves respotas o filoacutesofo nos informa que a arte

retoacuterica natildeo teoriza sobre o provaacutevel para o indiviacuteduo mas sobre o que

parece verdadeiro para pessoas de certa condiccedilatildeo formando silogismos

a partir daquilo sobre o que estamos habituados a deliberar Esse

envolvimento do haacutebito e da deliberaccedilatildeo mesmo que natildeo implique

necessariamente uma accedilatildeo particular ainda eacute de grande importacircncia

para nossos estudos porque a funccedilatildeo da retoacuterica ldquoconsiste em tratar das

questotildees sobre as quais deliberamos e para as quais natildeo dispomos de

artes especiacuteficas e isto perante um auditoacuterio incapaz de ver muitas

coisas ao mesmo tempo ou de seguir uma longa cadeia de raciociacuteniosrdquo

69 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original ἔστι δὲ τὰ

πάθη δι ὅσα μεταβάλλοντες διαφέρουσι πρὸς τὰς κρίσεις οἷς ἕπεται λύπη καὶ

ἡδονή οἷον ὀργὴ ἔλεος φόβος καὶ ὅσα ἄλλα τοιαῦτα καὶ τὰ τούτοις ἐναντία 70 Idem no original λέγω δὲ πάθη μὲν ὀργὴν ἐπιθυμίαν καὶ τὰ τοιαῦτα περὶ ὧν

εἰρήκαμεν πρότερον

85

(Rhet I 2 1357a1-4)71

A arte retoacuterica tem o poder de incitar a deliberaccedilatildeo e tal poder eacute

empregado em julgamentos e em outras instacircncias importantes agraves

decisotildees da poacutelis Por isso Konstan (2006 p 34) observa que os

momentos nos quais as emoccedilotildees eram excitadas por artifiacutecios retoacutericos

satildeo representantes de como as paacutethē estatildeo presentes no cotidiano

poliacutetico ateniense e mesmo moral Assim nosso empenho em estudar as

emoccedilotildees propostas no tratado eacute vaacutelido mesmo que estudiosos como

Fortenbaugh (2008 p 114) entendam que os intentos da Retoacuterica satildeo

distintos daqueles da Eacutetica Nicomaqueia Esta proposta pode sofrer

abalo se confrontada com a interpretaccedilatildeo de Nussbaum (1996 p 306 et

seq) que vecirc elemento cognitivo na constituiccedilatildeo das emoccedilotildees (e natildeo soacute

nas emoccedilotildees propostas pela Poeacutetica e pela Retoacuterica) aproximando suas

teorias sobre a emoccedilatildeo da tese de Konstan acerca dos ajuizamentos

influentes no cotidiano da poacutelis

Tendo em vista a objeccedilatildeo de se relacionar as propostas da EN e

da Rhet acerca das emoccedilotildees reforccedilamos a importacircncia mesmo na vida

de um filoacutesofo do conviacutevio poliacutetico na realizaccedilatildeo da vida humana feliz

Se a retoacuterica traz as emoccedilotildees para as praacuteticas comuns da poacutelis

consideramos o exerciacutecio de conjugaccedilatildeo das ideias dos dois tratados

como vaacutelido porque a Rhet aleacutem de trazer algo mais proacuteximo de uma

definiccedilatildeo de emoccedilatildeo fala mais detalhadamente do nosso objeto de

pesquisa e da possibilidade de mudanccedila nasde emoccedilotildees operadas pelo

discurso As paacutethē sendo coisas que fazem alterar os homens e que

mudam seu juiacutezo e sendo acompanhadas por prazer ou dor (ou

ambos)72 na arte retoacuterica estatildeo relacionadas agraves disposiccedilotildees do puacuteblico e

ao caraacuteter apresentado pelo orador assegurando ao tratado um lugar em

nossa investigaccedilatildeo

Para que o discurso tenha o poder da persuasatildeo e da mudanccedila nos

juiacutezos Aristoacuteteles pensa ser conveniente distinguir trecircs aspectos em

cada uma das emoccedilotildees que possa suscitar 1) em que estado de espiacuterito

71 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original ἔστιν δὲ τὸ

ἔργον αὐτῆς περί τε τοιούτων περὶ ὧν βουλευόμεθα καὶ τέχνας μὴ ἔχομεν καὶ

ἐν τοῖς τοιούτοις ἀκροαταῖς οἳ οὐ δύνανται διὰ πολλῶν συνορᾶν οὐδὲ

λογίζεσθαι πόρρωθεν 72 Sobre o misto de sentimentos que acompanha as emoccedilotildees da Retoacuterica ver

FREDE D ldquoMixed feelings in Aristotleacutes Rhetoricrdquo In Essays on Aristotleacutes

Rhetoric Berkeley Los Angeles London 1996 p 258-285 Ver tambeacutem

Konstan (2006 p 41 et seq) que admite por exemplo o misto de prazer e dor

com a raiva

86

se encontra quem se emociona 2) com o quecirc costuma se emocionar e

3) em que circunstacircncias se emociona Com base nesses criteacuterios o

filoacutesofo elabora descriccedilotildees das emoccedilotildees particulares implicadas com a

arte de persuadir se uma pessoa concentra um ou dois destes aspectos e

natildeo todos natildeo inspira a emoccedilatildeo Aristoacuteteles faz uma distinccedilatildeo das

paacutethē conforme esse meacutetodo que seraacute de grande ajuda aos nossos

propoacutesitos de definir o que satildeo as emoccedilotildees e sua natureza e embora natildeo

apresentemos aqui uma reproduccedilatildeo da definiccedilatildeo dada para cada paacutethos

mais adiante no entanto recorreremos ao medo (phoacutebos) como exemplo

do que expomos73 As descriccedilotildees contudo nos levam a perceber as

emoccedilotildees a serem despertadas com o discurso que tem por base

caracteres jaacute estabelecidos sejam estes aparentes ou reais Estes

caracteres podem ser apresentados pelos espectadores dos discursos

pelos envolvidos nas situaccedilotildees apresentadas em uma exposiccedilatildeo ou

pelos oradores que proferem uma fala Nesse ponto provavelmente

existe uma pequena diferenccedila entre as propostas da Retoacuterica e aquelas

da Eacutetica Nicomaqueia texto no qual as emoccedilotildees ainda tecircm a ver com

um caraacuteter em formaccedilatildeo74 embora as consideraccedilotildees apresentadas no

Livro X mostrem tal tratado preocupado igualmente com a conservaccedilatildeo

de um caraacuteter bem formado

As diferenccedilas entre os dois escritos cessam quando lidam com

pessoas e com o mundo que cerca quem se emociona como explica

Nussbaum (2008 p 46-47) A partir desses estudos entendemos que

estes fatores despertam e sofrem influecircncia das emoccedilotildees trazendo

sempre o olho do outro para nosso mais iacutentimo75 embora no acircmbito

73Tal escolha se justifica porque o medo parece ser uma das emoccedilotildees que

comporta todas as caracteriacutesticas que consideramos importantes para essa classe

(subclasse) de coisa seja entendida 74 Hutchinson observa que os estudantes que acompanhavam Aristoacuteteles

deveriam ser jovens das melhores classes sociais de Atenas 75 Isso porque segundo Konstan (2006 p 27-28 traduccedilatildeo nossa) ldquodado que o

julgamento e a crenccedila satildeo centrais para a dinacircmica das emoccedilotildees como

Aristoacuteteles as concebe eacute natural que um entendimento das pathḗ deve fazer

parte da arte da persuasatildeo Aristoacuteteles caracteriza as emoccedilotildees como consistindo

de dois elementos baacutesicos primeiro todo paacutethos eacute acompanhado por dor e

prazer segundo as pathḗ satildeo nas palavras de Aristoacuteteles aquelas coisas lsquoem

consideraccedilatildeo das quais as pessoas mudam e diferem em observaccedilatildeo aos seus

julgamentosrsquo [] noacutes podemos observar que algueacutem deve estar alerta agrave

possibilidade que um foco no papel da emoccedilatildeo no argumento condicionou o

tipo de sentimentos que Aristoacuteteles e outros estudantes de retoacuterica selecionaram

para anaacutelise Mas pode ser tambeacutem que ambientes forenses e deliberativos

87

poliacutetico sendo as paixotildees entendidas tambeacutem como respostas a

interaccedilotildees na poacutelis O que implica que haacute uma relaccedilatildeo de identidade ou

dessemelhanccedila entre as pessoas envolvidas com determinada emoccedilatildeo

Por isso parece que todas as paacutethē da Retoacuterica envolvem um tipo de

pensamento - ou ao menos opiniatildeo - ou imaginaccedilatildeo devidos a

determinadas situaccedilotildees e posturas dos outros com relaccedilatildeo agravequeles que se

emocionam Essas emoccedilotildees parecem ser despertadas por pessoas ou

relatos aos quais se daacute importacircncia envolvendo tipos de crenccedilas76

(piacutestis) eou opiniotildees (doacutexai) e juiacutezos do puacuteblico permitindo-o se

emocionar por exemplo com o que eacute exposto em um julgamento Com

isso a plateia pode deliberar e tomar certa decisatildeo os ouvintes dos

discursos tratados na Retoacuterica agem ou ao menos reagem de formas

semelhantes em conformidade com aquilo que o orador deixa

transparecer e do modo como busca afetaacute-los Informaccedilotildees de grande

relevacircncia aos nossos propoacutesitos por implicar ldquoaccedilotildeesrdquo particulares (EN

VI 12 1143a28 et seq)

Esse tipo de postura pode ser confirmado ainda por outra arte de

emocionar a poesia traacutegica Quando Aristoacuteteles faz sugestotildees para a boa

composiccedilatildeo de enredos e personagens traacutegicos deixa ainda mais

aparentes as propostas sobre as emoccedilotildees que destacamos como aquelas

fossem vistos como exibindo cenaacuterios intensificados do modo como as emoccedilotildees

operavam geralmente na vida grega onde elas estavam proximamente ligadas a

interaccedilotildees puacuteblicas e [eram] manifestadas principalmente em uma negociaccedilatildeo

de papeis socais contiacutenua e puacuteblica Emoccedilotildees vistas deste modo natildeo satildeo

expressotildees estaacuteticas resultantes de estiacutemulos impessoais como com os pacientes

sujeitos a choque eleacutetrico nas fotografias publicadas por Darwin mas [satildeo]

antes elementos em conjuntos complexos de trocas interpessoais nas quais os

indiviacuteduos estatildeo conscientes dos motivos dos outros e prontos a responder na

mesma moeda Natildeo eacute que Aristoacuteteles esteja certo quanto agraves emoccedilotildees e Darwin

errado mas antes que a abordagem de Aristoacuteteles pode descrever melhor o que

as emoccedilotildees significam na vida social da cidade-estado claacutessica enquanto [a

abordagem] de Darwin pode ser mais adequada ao modo que as emoccedilotildees satildeo

percebidas no universo moderno poacutes-Cartesiano A visatildeo de Aristoacuteteles das

emoccedilotildees depende implicitamente de um contexto narrativordquo 76 Quanto agrave presenccedila da crenccedila nas emoccedilotildees Nussbaum (2008 p 34 traduccedilatildeo

nossa) escreveu ldquoAristoacuteteles Crisipo Secircneca Spinoza Smith e mesmo

Descartes e Hume [] ndash todas essas figuras definem emoccedilotildees em termos de

crenccedilardquo Sugere-se conferir tambeacutem da mesma autora The fragility of

goodness Konstan em seu The emotions of the ancient greecks (2006 p 261)

ressalta a presenccedila da crenccedila na constituiccedilatildeo das emoccedilotildees aristoteacutelicas Sobre a

opiniatildeo na base da emoccedilatildeo ver Zingano (2007 p 152)

88

pretendidas pelo futuro orador na Retoacuterica contudo lanccedilando matildeo de

um instrumento emocional diferente com intenccedilotildees diferentes Vejamos

em que medida caracteres emoccedilotildees e accedilotildees - bem como as virtudes e os

viacutecios que deixam transparecer - podem estar ligados agraves emoccedilotildees

mesmo quando se trata das emoccedilotildees traacutegicas

Assim como a retoacuterica a poesia pode ser encarada como uma arte

de emocionar porque a Poeacutetica composta por Aristoacuteteles apresenta-se

ateacute certo ponto como um manual do fazer poeacutetico Sendo a funccedilatildeo da

poesia traacutegica descrita como provocar medo piedade e a kaacutetharsis

(catarse purificaccedilatildeo purgaccedilatildeo) dessas emoccedilotildees entendemos que

tambeacutem ensina ao menos em linhas gerais o que satildeo as tais emoccedilotildees

embora a Poacutetica natildeo apresente uma definiccedilatildeo de emoccedilatildeo Esse texto

todavia nos ajuda a compreender o que eacute o paacutethos para Aristoacuteteles

aleacutem de dar excelentes dicas a respeito do papel eacutetico das paacutethē

ressaltando duas emoccedilotildees em especial o medo (phoacutebos) e a piedade

(eleeinoacutes) Uma hipoacutetese demasiado interessante defendida por

Nussbaum quanto a estas eacute a de que de acordo com Aristoacuteteles as

emoccedilotildees natildeo satildeo particulares apenas por derivarem da percepccedilatildeo

sensiacutevel assim como por serem individualizadas por crenccedilas e

julgamentos que satildeo internalizados por cada pessoa ldquoUma tiacutepica

emoccedilatildeo aristoteacutelica eacute definida como um composto de um sentimento ou

prazer ou dor e de um tipo de crenccedila particular sobre o mundo [] O

sentimento e a crenccedila natildeo estatildeo somente incidentalmente ligados a

crenccedila eacute a base do sentimentordquo (NUSSBAUM 2001 p 383) Por

conseguinte se as emoccedilotildees traacutegicas tecircm um quecirc moral e implicam

crenccedila como aquelas emoccedilotildees que estudamos com a Retoacuterica eacute

possiacutevel entendecirc-las como constituiacutedas de ao menos um elemento de

racionalidade Composiccedilatildeo que pode ser comprovada pelas exigecircncias

aristoteacutelicas da racionalidade atrelada ao tipo de prazer sentido com a

poesia traacutegica Assim acontece conforme Ricoeur (2012 p 72) porque

ldquoAprender concluir reconhecer a forma eacute esse o esqueleto inteligiacutevel

do prazer da imitaccedilatildeo (ou da representaccedilatildeo)rdquo presente nas emoccedilotildees

traacutegicas sendo um tipo de prazer intelectual

A reaccedilatildeo que cada espectador tem diante de um espetaacuteculo pode

ser mesmo sinal de suas disposiccedilotildees de caraacuteter Desse modo podemos

entender que para Aristoacuteteles as paixotildees que satildeo despertadas atraveacutes da

ficccedilatildeo expressa na poesia traacutegica dizem muito a respeito do caraacuteter e da

virtude humana Sua manifestaccedilatildeo atraveacutes de gestos ou de simples e

quase imperceptiacuteveis sinais do corpo podem revelar as disposiccedilotildees

morais de um cidadatildeo podem mesmo ser uacuteteis agrave consolidaccedilatildeo de um

caraacuteter virtuoso ou agrave correccedilatildeo de um caraacuteter vicioso As reaccedilotildees

89

apresentadas pelo homem quando acometido por emoccedilotildees ou mesmo

quando inspirado poeticamente a sentimentos como os provocados pelas

emoccedilotildees podem deste modo deixar transparecer o caraacuteter

desenvolvido pelo cidadatildeo e preparaacute-lo para reagir ao mundo77 O

agente seraacute instigado a agir de modo a demonstrar por meio da beleza

de suas accedilotildees que seratildeo dignas de louvor a boa forma de suas

disposiccedilotildees e sua retidatildeo moral78 ao ser tocado por uma emoccedilatildeo

verdadeira ou simulada por meio de miacutemesis

Apesar do caraacuteter ficcional da trageacutedia que pode afetar o teor das

emoccedilotildees que tem por funccedilatildeo despertar boa parte do que foi proposto agraves

emoccedilotildees suscitadas pela retoacuterica parece valer tambeacutem agravequelas

provocadas pela trageacutedia Percebemos a presenccedila do prazer e da dor

embora o prazer das emoccedilotildees traacutegicas pareccedila um tanto paradoxal e mais

complexo devido agrave sua racionalidade de tipo especiacutefico agrave trageacutedia e ao

fato de vir da dor que cada um sente com o estiacutemulo do ficcional

Assim a trageacutedia eacute exemplo de como eacute possiacutevel juntar os dois lados da

alma humana pois suas emoccedilotildees dependem da racionalidade

apresentada pela forma como o enredo eacute composto e pela racionalidade

do puacuteblico que consegue compreender o encadeamento loacutegico

apresentado pelo texto ao ponto de se emocionar com as sugestotildees feitas

pela composiccedilatildeo traacutegica Sempre percebemos a necessidade de se imitar

homens a agir de modo que a unidade do enredo e da accedilatildeo apareccedila

necessaacuteria e verossimilmente a partir de sua estrutura Esse tipo de

elaboraccedilatildeo textual leva a reaccedilotildees por parte do puacuteblico e este eacute

conduzido ao que parece a pensar e ateacute mesmo a julgar devido agrave

racionalidade do enredo a respeito do caraacuteter dos personagens o que

tambeacutem emociona Assim a Poeacutetica faz mais que nos propor como

despertar emoccedilotildees conta-nos sobre a constituiccedilatildeo das emoccedilotildees que

pretende provocar

Essa afirmaccedilatildeo pode ser confirmada pela proposta que ter

simpatia pelos personagens - emoccedilatildeo que natildeo consta das listas de

Aristoacuteteles mas que eacute mencionada na Poeacutetica - faz com que

percebamos a forte necessidade da relaccedilatildeo com o outro tambeacutem nesse

77Aleacutem de apresentarem o caraacuteter do poeta ligando novamente a poesia traacutegica

agrave concretude do mundo mas dessa vez a um mundo preacutevio agrave composiccedilatildeo

traacutegica (a miacutemesis I descrita por Ricoeur em Tempo e Narrativa) 78Provavelmente nesse ponto seja validada a proposta de Ricoeur que percebe

na Poeacutetica de Aristoacuteteles os primeiros passos de uma esteacutetica da recepccedilatildeo jaacute

que a poesia teria ecos em um depois da composiccedilatildeo a chamada miacutemesis III

(RICOEUR 2010 p 86 et seq)

90

tipo de exposiccedilatildeo sendo que leva a plateia a imaginar de certo modo as

situaccedilotildees apresentadas A trageacutedia pode mesmo fazer pensar sobre as

possibilidades de acontecimentos obviamente natildeo idecircnticos aos

expostos mas de teor minimamente semelhante Eacute isso que toca o

espectador e o leva a temer e a se apiedar mas isso tambeacutem nos conta o

que satildeo medo e piedade A presenccedila de um forte elemento de

racionalidade implicado no despertar das emoccedilotildees que o espectador das

trageacutedias sente indica-nos os componentes da emoccedilatildeo traacutegica e geral Eacute

possiacutevel que haja mesmo crenccedilas opiniotildees e certos tipos de

pensamentos aleacutem da inegaacutevel imaginaccedilatildeo envolvida nas emoccedilotildees

mesmo que estas sejam emoccedilotildees traacutegicas

Apoacutes esses apontamentos parece que estamos prontos para tentar

uma delimitaccedilatildeo com contornos um pouco mais bem determinados

daquilo que entendemos juntamente com Aristoacuteteles acerca do que seja

a emoccedilatildeo

5 A emoccedilatildeo

Diante de tudo o que estudamos entendemos que quanto ao

gecircnero a emoccedilatildeo classifica-se como paacutethos sendo uma afecccedilatildeo sofrida

conjuntamente por corpo e alma seja ela visiacutevel ou natildeo em uma

manifestaccedilatildeo fiacutesica Pode ser traduzida biologicamente em termos de

processos desencadeados no organismo que podem incorrer em

movimento local embora por vezes somente ponha certos oacutergatildeos e

partes do corpo afetado em movimento Pertence agrave capacidade da alma

desiderativa sendo por isso hiacutebrida como tal capacidade Por

conseguinte Nussbaum (1996 p 306) chega mesmo a interpretaacute-la

como subclasse do desejo Igualmente por isso a maioria das emoccedilotildees

tem a possibilidade de ouvir e ateacute de obedecer agrave razatildeo todavia a

emoccedilatildeo natildeo pode ser escolhida deliberadamente natildeo se escolhe se

emocionar ou natildeo bem como natildeo se escolhe desejar ou natildeo e o que se

deseja (EN 1106a3-4) Por isso as emoccedilotildees natildeo se confundem com as

virtudes morais fruto de escolha deliberada que eacute digna de elogio mas

tecircm um papel crucial junto agrave constituiccedilatildeo e possibilidade destas virtudes

Um homem portanto pode ser responsabilizado pelo modo como

escolhe agir mas natildeo por suas emoccedilotildees entretanto parece poder ser

responsabilizado desde que minimamente educado moralmente pela

forma como se emociona e pela intensidade com que sente emoccedilatildeo bem

como pode controlar em direccedilatildeo a quecirc e a quem leva suas paacutethē

As emoccedilotildees satildeo indubitavelmente acompanhadas pelos

sentimentos de prazer de dor ou ambos contudo caracterizam-se ainda

91

por fazerem alterar mais que o corpo alteram os juiacutezos dos homens

Juntamente com sua natureza desiderativa tal possibilidade aponta para

um elemento racional em certa medida constituinte ou decorrente da

emoccedilatildeo Para que algueacutem se emocione eacute preciso que apresente certas

opiniotildees e mesmo juiacutezos sobre determinadas coisas ou pessoas no

mundo ou eacute preciso ao menos que se imagine em certas situaccedilotildees mas

as emoccedilotildees tambeacutem podem influenciar a formulaccedilatildeo de juiacutezos opiniotildees

e pensamentos sobre certas questotildees Por isso como explica Tricot

(2010 nota 3 p 107 traduccedilatildeo nossa) ldquoπάθος que quer dizer afecccedilatildeo

emoccedilatildeo sentimento em geral eacute um movimento da alma provocado por

um objeto exteriorrdquo O dito elemento racional eacute tambeacutem constitutivo

porque a forma como algueacutem toma uma circunstacircncia sob certo aspecto

o perceber um estiacutemulo externo que interage consigo leva o agente a ser

afetado ou seja a se emocionar ou ao menos a responder

emocionalmente de uma ou outra forma

Tal afetaccedilatildeo faz jus ao caraacuteter pateacutetico da emoccedilatildeo aristoteacutelica

bem como abre a possibilidade para que entendamos o paacutethos proposto

pelo filoacutesofo como muitas vezes resultante da interaccedilatildeo entre os

cidadatildeos na poacutelis e influente em tal relaccedilatildeo Igualmente parece nos

permitir acatar a ideia de que a emoccedilatildeo faz com que o agente perceba a

si mesmo como impotente e vulneraacutevel agraves coisas importantes do mundo

que podem lhe atingir No entanto a emoccedilatildeo natildeo pode em hipoacutetese

alguma ser tomada somente como uma passividade e nem todas essas

emoccedilotildees podem ser postas em acordo com a reta razatildeo Assim sendo

quanto agrave sua diferenccedila especiacutefica o paacutethos descrito por Aristoacuteteles natildeo eacute

apenas algo que atinge o homem porque existe a partir de um

movimento iniciado por certas formas de racionalidade como a

percepccedilatildeo sensiacutevel e que pode despertar certas formas da racionalidade

humana pondo mais do que o corpo em accedilatildeo Deste modo a emoccedilatildeo

movimenta o homem ou potildee-no em um certo tipo de movimento seja

quando julga e decide sobre questotildees poliacuteticas ou juriacutedicas quando

impele um espectador agrave kaacutetharsis mas tambeacutem quando pode levar o

agente moral a agir Por esses motivos concordamos com a seguinte

proposta sobre a constituiccedilatildeo da emoccedilatildeo

[] sensaccedilotildees de prazer e dor alteraccedilotildees e

processos fisioloacutegicos crenccedilas e opiniotildees e

atitudes ou impulsos Nenhum desses sentimentos

isolado explica por si mesmo qualquer emoccedilatildeo

Sensaccedilotildees alteraccedilotildees fisioloacutegicas crenccedilas e

atitudes constituem os quatro componentes

92

estruturais da emoccedilatildeo (TRUEBA p 53 traduccedilatildeo

nossa)

Acrescentamos a esses componentes a importacircncia do papel do

outro e do mundo que cercam cada agente na formulaccedilatildeo e no

desencadeamento de um tipo de pensamento ou de raciociacutenio que pode

ser diferente mas natildeo exatamente dissociado das opiniotildees e das

crenccedilas como a imaginaccedilatildeo e as conjeturas presentes na constituiccedilatildeo da

emoccedilatildeo ou na boa forma que ela venha adquirir graccedilas ao seu possiacutevel

contato com a razatildeo praacutetica Quando internalizadas por exemplo na

memoacuteria nas imaginaccedilotildees ou nos pensamentos as emoccedilotildees podem

tambeacutem partir da alma Satildeo portanto afecccedilotildees do conjunto corpoalma

passiacuteveis de serem educadas recebendo a boa medida concebida como

virtude moral e que eacute necessaacuteria agrave vida feliz Pensamos que a boa

medida no entanto soacute eacute possiacutevel devido a um quecirc de racionalidade que

pode acompanhar as emoccedilotildees desde sua constituiccedilatildeo como procuramos

e procuraremos provar ao longo desse estudo

Em suma podemos esboccedilar a seguinte definiccedilatildeo de emoccedilatildeo

conforme os tratados estudados a emoccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo ocasionada

por uma consideraccedilatildeo acerca de determinada situaccedilatildeo Tal consideraccedilatildeo

eacute acompanhada de alteraccedilotildees fisioloacutegicas mas nem sempre de

movimentos sendo que a emoccedilatildeo eacute igualmente capaz de alterar o

julgamento de quem acredita que determinada situaccedilatildeo tem influecircncia

relevante em sua vida tendo por isso inegaacutevel papel na vida humana

descrita pelo filoacutesofo

A presenccedila da emoccedilatildeo hiacutebrida como o desejo eacute indispensaacutevel agraves

propostas eacuteticas de Aristoacuteteles seja como ocasionadora

(biologicamente) de alteraccedilatildeo seja como causadora de mudanccedila no

ajuizamento e mesmo de reflexatildeo ou seja como (eticamente) elemento

do desiderativo que concorre para a accedilatildeo boa ou maacute moralmente Todos

esses aspectos se completam em um entendimento de algo que

realmente tem seu lugar na accedilatildeo humana e que pode influenciaacute-la ao

ponto de ser valorado moralmente Ainda precisamos saber contudo

como e por que meios eacute possiacutevel que as paacutethē ouccedilam e obedeccedilam agrave

razatildeo praacutetica para que dela realmente participem Por isso julgamos

interessante e mesmo necessaacuterio pensar a exigecircncia de sua moderaccedilatildeo a

fim da virtude moral como isso interferiraacute na caminhada rumo agrave vida

feliz na poacutelis

93

Capiacutetulo II

Virtude como possibilidade de acordo entre razatildeo e emoccedilatildeo

1 Virtude completa79 virtudes virtude moral

A discussatildeo sobre a virtude aparece no primeiro Livro da EN em

meio agrave primeira discussatildeo sobre a eudaiacutemōniacutea ou naquele que pode ser

chamado de primeiro tratado sobre a felicidade Nesse ponto do texto a

identificaccedilatildeo do bem supremo com a felicidade parece uma coisa

acertada para Aristoacuteteles mas o filoacutesofo considera preciso esclarecer

qual a natureza da felicidade Admite que um caminho possiacutevel a tal

esclarecimento seja a determinaccedilatildeo da funccedilatildeo do homem Por isso

defendemos no Capiacutetulo anterior desta tese que a funccedilatildeo proacutepria ao

homem e com esta a vida feliz deve ser atividade sempre pautada pela

razatildeo mas defendemos igualmente que nos parece impossiacutevel uma vida

totalmente voltada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica Eacute por isso que nesse

momento nos dedicaremos ao estudo daquela vida ativa segundo a

razatildeo excelente quanto agraves coisas propriamente humanas e portanto

virtuosa nesse sentido Entendemos que tal vida cumpriraacute as exigecircncias

de Aristoacuteteles para a felicidade o que pode ser confirmado pela nossa

interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo que eacute proacutepria ao homem executar bem

atividades e accedilotildees em comunidade de acordo com o mais racional em

cada circunstacircncia

Para que isso seja possiacutevel seraacute preciso se emocionar de modo

adequado associando ldquoelegantementerdquo (LEBRUN 2009 p 16)

emoccedilatildeo e razatildeo associaccedilatildeo que mostraremos resultar em virtude moral

e na virtude que entenderemos como a mais completa Para apresentar

essa possibilidade comeccedilaremos nossa pesquisa com o estudo do ideal

de eudaiacutemōniacutea pensado pelo filoacutesofo no primeiro Livro da EN

Escolhemos essa via para dar prosseguimento agraves discussotildees iniciadas

no Capiacutetulo I e porque justificaraacute a necessidade de se tratar as virtudes

79 Existe uma polecircmica quanto agrave forma correta de se traduzir o termo que define

a caracteriacutestica que Aristoacuteteles atribui para atividade conforme a alma que

chama de felicidade no Livro I 7 ldquoteleicircanrdquo Natildeo discutiremos a questatildeo nesse

momento por isso deixaremos a termo traduzido conforme a ediccedilatildeo brasileira

mais conhecida a da coleccedilatildeo Os Pensadores de 1973 texto que apresenta

1098a14-15 da seguinte forma ldquoo bem do homem nos aparece como uma

atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de uma virtude

com a melhor e mais completardquo No original σπουδαίου δ ἀνδρὸς εὖ ταῦτα καὶ

καλῶς ἕκαστον δ εὖ κατὰ τὴν οἰκείαν ἀρετὴν ἀποτελεῖται

94

bem como ressaltaraacute seu aspecto de representante da funccedilatildeo

propriamente humana e de bem se emocionar A escolha nos parece

apropriada porque graccedilas agrave natureza natildeo racional capaz de concordar

com a razatildeo que identificamos na base das emoccedilotildees eacute possiacutevel pensar a

proposta de Aristoacuteteles acerca da melhor vida possiacutevel como resultante

do bom desempenho da funccedilatildeo humana sendo que este somente pode

acontecer com a harmonizaccedilatildeo das emoccedilotildees com o que a razatildeo

demanda sendo como veremos virtuoso

No primeiro tratado sobre a felicidade o filoacutesofo analisa o que

muitos dizem acerca da eudaiacutemōniacutea que eacute uma atividade de tipo

especiacutefico que alguns dos outros bens (externos) satildeo necessaacuterios e parte

integrante da felicidade mas outros satildeo auxiliares e uacuteteis como

instrumentos naturais A questatildeo eacute destacada como assunto tocante agrave

poliacutetica pois a principal preocupaccedilatildeo dessa ciecircncia eacute fazer com que os

cidadatildeos sejam seres de certa qualidade ou seja fazer com sejam

pessoas honestas e capazes de agir nobremente (EN I 10 1099b31) Por

isso os animais natildeo humanos natildeo satildeo chamados felizes jaacute que natildeo

podem participar desse tipo de atividade Igualmente por isso a crianccedila

natildeo pode ser feliz por ainda natildeo ser capaz desse tipo de accedilatildeo e porque a

felicidade requer uma virtude completa mas para tal completude seria

necessaacuteria a observaccedilatildeo do termo da vida Isso porque as vicissitudes

que ocorrem ao longo da existecircncia podem fazer com que um homem

proacutespero sofra males enormes em sua velhice como no caso de

Priacuteamo80 Um fim de vida desastroso impede uma pessoa de ser

considerada feliz pois ldquoA causa verdadeiramente determinante da

felicidade reside na atividade conforme agrave virtude a atividade em sentido

contraacuterio sendo a causa do estado opostordquo (EN I 10 1100b9-11)81 ou

seja natildeo eacute o acaso ou a fortuna a causa da felicidade mas a virtude que

cabe ao homem

A virtude recebe tamanha importacircncia porque em nenhuma das

outras atividades humanas haacute maior fixidez Entre as atividades

virtuosas as mais altas satildeo as mais estaacuteveis82 porque eacute no seu exerciacutecio

80 HOMERO Iliacuteada V 81 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original κύριαι δ εἰσὶν αἱ κατ ἀρετὴν ἐνέργειαι τῆς εὐδαιμονίας αἱ

δ ἐναντίαι τοῦ ἐναντίου 82As atividades da sophiacutea segundo Tricot (2010 p 78 nota 3) mas seraacute que

natildeo poderiacuteamos estender tal fixidez agraves atividades do prudente (que certamente

apresentaraacute a sophiacutea) e tambeacutem daquele que dispotildee da virtude moral Seriam

essas virtudes separaacuteveis

95

que o homem feliz gasta boa parte de sua vida e com maior

continuidade Deste modo a estabilidade procurada eacute aquela do homem

feliz ao longo de toda sua vida e por esse motivo o homem feliz se

engaja em accedilotildees e contemplaccedilotildees que satildeo conformes agrave virtude

suportando os golpes da fortuna com maior dignidade e perfeiccedilatildeo

honesto e acima de censura Frente a estas afirmaccedilotildees a definiccedilatildeo de

felicidade que parece ser a mais completa apresentada no Livro I eacute posta

em forma de questatildeo

[] que nos impede de chamar feliz o homem cuja

atividade eacute conforme a uma virtude perfeita83 e

suficientemente provida dos bens exteriores e

isso natildeo por uma duraccedilatildeo qualquer mas durante

uma vida completa Natildeo devemos acrescentar

ainda cuja vida se prosseguiraacute nas mesmas

condiccedilotildees e cujo fim estaraacute em relaccedilatildeo com o

resto da existecircncia jaacute que o futuro nos eacute oculto e

que noacutes colocamos a felicidade como um fim

como alguma coisa de absolutamente perfeita

(EN I 11 1101a14-17)84

Essa proposta leva o filoacutesofo a refletir se eacute assim qualificaremos

como venturoso (makaacuterios) o homem que entre os vivos possui e iraacute

possuir os bens necessaacuterios a esse tipo de vida mas venturoso do modo

como o homem pode secirc-lo ou seja conforme as virtudes que satildeo

proacuteprias ao homem O destaque dado a essas virtudes indica o grande

papel que tecircm na vida humana feliz e por isso doravante trataacute-las-emos

Faremos tal apreciaccedilatildeo devido ao fato de as virtudes e em especial as

morais - como poderemos ver ao longo de nossa investigaccedilatildeo e como jaacute

ressaltamos em alguns dos momentos precedentes - serem

estreitamente relacionadas agraves emoccedilotildees e necessaacuterias ao bom

83 Para Zingano (2008 p 77) a virtude perfeita proacutepria eacute aquela que faz o que

deve fazer seguindo boas razotildees (metagrave phronḗseos EE 1234 a29-30) Portanto

eacute a composiccedilatildeo entre razatildeo e virtude moral virtude dianoeacutetica e eacutetica 84Coisa semelhante a respeito da eudaiacutemōniacutea eacute proposta pela Retoacuterica como

veremos logo em seguida Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da

traduccedilatildeo francesa de Tricot (2012) no original τί οὖν κωλύει λέγειν εὐδαίμονα

τὸν κατ ἀρετὴν τελείαν ἐνεργοῦντα καὶ τοῖς ἐκτὸς ἀγαθοῖς ἱκανῶς

κεχορηγημένον μὴ τὸν τυχόντα χρόνον ἀλλὰ τέλειον βίον ἢ προσθετέον καὶ

βιωσόμενον οὕτω καὶ τελευτήσοντα κατὰ λόγον ἐπειδὴ τὸ μέλλον ἀφανὲς ἡμῖν

ἐστίν τὴν εὐδαιμονίαν δὲ τέλος καὶ τέλειον τίθεμεν πάντῃ πάντως

96

desempenho de todas as funccedilotildees aniacutemicas que compotildeem aquilo que se

entende como funccedilatildeo propriamente humana condiccedilatildeo para a

eudaiacutemōniacutea Prova do que afirmamos eacute o passo da Retoacuterica que indica a

necessidade da virtude para a vida feliz como destacaremos a seguir

Fazemos tal proposta pois como vimos e veremos consideramos

virtudes os melhores estados das faculdades da alma

Seja pois a felicidade o viver bem combinado

com a virtude ou a autossuficiecircncia na vida ou a

vida mais agradaacutevel com seguranccedila ou a pujanccedila

de bens materiais e dos corpos juntamente com a

faculdade de os conservar e usar pois

praticamente todos concordam que a felicidade eacute

uma ou vaacuterias destas coisas

Ora se tal eacute a natureza da felicidade eacute necessaacuterio

que as suas partes sejam a nobreza muitos

amigos bons amigos a riqueza bons filhos

muitos filhos uma boa velhice tambeacutem as

virtudes do corpo como a sauacutede a beleza o vigor

a estatura a forccedila para a luta a reputaccedilatildeo a

honra a boa sorte e a virtude [ou tambeacutem as suas

partes a prudecircncia a coragem a justiccedila e a

temperanccedila] Com efeito uma pessoa seria

inteiramente autossuficiente se possuiacutesse os bens

internos e externos pois fora destes natildeo haacute outros

Os bens internos satildeo os da alma e os do corpo os

externos satildeo a nobreza os amigos o dinheiro e a

honra Cremos contudo que a estes se devem

acrescentar certas capacidades e boa sorte pois

assim a vida seraacute muito mais segura (Rhet I 3

1360b14-29)85

85 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original ἔστω δὴ

εὐδαιμονία εὐπραξία μετ ἀρετῆς ἢ αὐτάρκεια ζωῆς ἢ ὁ βίος ὁ μετὰ ἀσφαλείας

ἥδιστος ἢ εὐθενία κτημάτων καὶ σωμάτων μετὰ δυνάμεως φυλακτικῆς τε καὶ

πρακτικῆς τούτων σχεδὸν γὰρ τούτων ἓν ἢ πλείω τὴν εὐδαιμονίαν

ὁμολογοῦσιν εἶναι ἅπαντες εἰ δή ἐστιν ἡ εὐδαιμονία τοιοῦτον ἀνάγκη αὐτῆς

εἶναι μέρη εὐγένειαν πολυφιλίαν χρηστοφιλίαν πλοῦτον εὐτεκνίαν

πολυτεκνίαν εὐγηρίαν ἔτι τὰς τοῦ σώματος ἀρετάς (οἷον ὑγίειαν κάλλος

ἰσχύν μέγεθος δύναμιν ἀγωνιστικήν) δόξαν τιμήν εὐτυχίαν ἀρετήν [ἢ καὶ τὰ

μέρη αὐτῆς φρόνησιν ἀνδρείαν δικαιοσύνην σωφροσύνην] οὕτω γὰρ ἂν

αὐταρκέστατός τις εἴη εἰ ὑπάρχοι αὐτῷ τά τ ἐν αὐτῷ καὶ τὰ ἐκτὸς ἀγαθά οὐ

γὰρ ἔστιν ἄλλα παρὰ ταῦτα ἔστι δ ἐν αὐτῷ μὲν τὰ περὶ ψυχὴν καὶ τὰ ἐν

97

O passo nos mostra Aristoacuteteles a discutir tanto a virtude (he

aretḗ) no singular quanto as virtudes (haigrave aretaiacute) particulares no

plural tornando-as coisas que soacute podem ser alcanccediladas por corpo e alma

em conjunto quando estatildeo na poacutelis Isso acontece porque para satisfazer

agraves exigecircncias da boa vida ou da melhor vida possiacutevel haacute ainda a

exigecircncia da capacidade racional associada e tentando conferir boa

forma agrave capacidade natildeo racional da alma responsaacutevel pelas virtudes

morais Por isso eacute indispensaacutevel agrave nossa investigaccedilatildeo tratar tambeacutem as

virtudes intelectuais e suas relaccedilotildees com a moralidade pois a funccedilatildeo

proacutepria ao homem eacute uma atividade da alma em conformidade com a

razatildeo (metagrave toucirc orthoucirc loacutegou) ou natildeo sem a razatildeo (katagrave tograven orthograven

loacutegon) Como vimos somente esse tipo de atividade ou esse conjunto

de atividades permitiria que o homem desempenhasse bem sua funccedilatildeo

do modo como o homem faz especificamente garantindo com esse bom

desempenho a felicidade devido ao bom cumprimento daquilo que

somente os humanos satildeo capazes de fazer e que entendemos como

resultado da virtude completa As virtudes todavia natildeo satildeo tomadas

somente no sentido comum de qualidades que um homem possa

apresentar mas como excelecircncia de suas capacidades Assim a

discussatildeo da virtude e das virtudes se faz necessaacuteria a quem reflete

sobre a eudaiacutemōniacutea mas obedecendo os contornos proacuteprios agrave

terminologia aristoteacutelica pois

[] felicidade eacute a boa ou bem-sucedida atividade

ou a atualizaccedilatildeo da faculdade que eacute peculiar agrave

alma humana e o vocaacutebulo grego para lsquovirtudersquo

aretḗ vem para indicar natildeo que cada mas

somente a boa atividade da alma deve ser

associada agrave felicidade portanto eacute claro que o que

importa na definiccedilatildeo de felicidade eacute a intenccedilatildeo da

palavra aretḗ a saber que significa um estado

excelente algo que exerce bem sua funccedilatildeo e

atinge os padrotildees mais elevados Este eacute um

sentido possiacutevel e comum da palavra grega aretḗ

mas o emprego no singular referindo o melhor

estado possiacutevel em qualquer campo particular eacute

ainda com efeito mais distante do emprego da

palavra no plural por meio do qual referimos as

σώματι ἔξω δὲ εὐγένεια καὶ φίλοι καὶ χρήματα καὶ τιμή ἔτι δὲ προσήκειν

οἰόμεθα δυνάμεις ὑπάρχειν καὶ τύχην οὕτω γὰρ ἀσφαλέστατος ὁ βίος

98

virtudes lsquocorriqueirasrsquo como justiccedila coragem

moderaccedilatildeo (RAPP 2010 p 408)

Se as propostas de Rapp estiverem corretas podemos pensar que

a felicidade existe graccedilas ao melhor estado possiacutevel agrave alma mas que

requer igualmente as virtudes particulares Por isso Aristoacuteteles entende

que os pensadores que identificaram a felicidade com a virtude ou com

a phroacutenēsis ou com a sophiacutea (saber teoacuterico) com uma delas algumas

delas ou todas elas acompanhadas ou natildeo de prazer e prosperidade

exterior parecem ter razatildeo ao menos em um ponto se natildeo em todos (EN

I 8 1098b20-29) O filoacutesofo igualmente pensa que acerta quem identifica

a eudaiacutemōniacutea com a virtude em geral ou com alguma virtude particular

porque a atividade virtuosa pertence agrave virtude embora seja diferente

entender o bem supremo como posse ou como uso em uma disposiccedilatildeo

ou em uma atividade A diferenccedila pousa no fato da disposiccedilatildeo poder

existir sem provocar um bom resultado quando se dorme por exemplo

mas a atividade virtuosa deve agir e agir bem pois as coisas nobres e

boas da vida soacute vecircm a quem age bem (EN 1099a1-7) Se as propostas

apresentam como virtude o que permite agir bem e o melhor estado de

uma ou de todas as capacidades da alma humana mantemos nossos

estudos no campo das questotildees aniacutemicas e por isso devemos recordar

que anteriormente entendemos que a aretḗ assim como a alma se

ldquodividerdquo umas satildeo intelectuais outras morais86 mas quanto ao caraacuteter

as virtudes satildeo morais e satildeo entendidas como disposiccedilotildees de caraacuteter

Assim eacute preciso que sejam examinadas algumas questotildees a respeito da

86 Rapp (2010 p 409) explica a relaccedilatildeo dos diferentes sentidos de virtude e

virtudes ldquoDeve estar mais evidente agora que a relaccedilatildeo entre lsquovirtudersquo

significando o excelente estado da alma e lsquovirtudesrsquo referindo os louvaacuteveis

traccedilos de personalidade admitidos correntemente e socialmente eacute um ponto

crucial em toda filosofia moral de inspiraccedilatildeo platocircnica e que eacute exatamente a esta

relaccedilatildeo que Aristoacuteteles devota sua atenccedilatildeo estrita Uma vez que eacute o primeiro

sentido de lsquovirtudersquo que estaacute em jogo no primeiro livro da EN (ie na definiccedilatildeo

de felicidade) e o uacuteltimo sentido que se torna proeminentemente no terceiro e

quarto livros estamos agora justificados em esperar que a definiccedilatildeo geral de

virtude ndash que eacute desenvolvida entre o primeiro e o terceiro livros e do qual a

doutrina do meio termo eacute um tema indispensaacutevel ndash ajudaraacute o leitor a

compreender a ligaccedilatildeo entre a excelecircncia da alma humana e as virtudes

corriqueiras tais como as conheciacuteamos antes de lidar com a filosofia moralrdquo

Diante dessas dissociaccedilotildees e associaccedilotildees podemos tomar o sentido geral de

virtude e questionar o sentido da virtude moral como meio termo que apresenta

enorme importacircncia para a tese que buscamos defender

99

virtude moral

2 A virtude moral

Pode parecer dispecircndio desnecessaacuterio de energia e tempo devido

a ser um longo e antigo debate mas neste momento entendemos ser

conveniente agrave nossa inquiriccedilatildeo questionar a natureza da virtude moral

ainda que Aristoacuteteles a defina a seu modo Lidaremos com a discussatildeo

na medida em que eacute importante auxiliar no esclarecimento quanto agraves

questotildees que propomos acerca das emoccedilotildees bem como de sua relaccedilatildeo

com a racionalidade A questatildeo se impotildee porque haacute comentaacuterios

recentes sobre a eacutetica de Aristoacuteteles que consideram improacutepria a

proposta da virtude como mediania87 nas emoccedilotildees e nas accedilotildees pois

entre outras falhas da doutrina seria relativa a cada agente e

circunstacircncia sendo inuacutetil como paracircmetro moral Seria tambeacutem

considerada questatildeo paradoxal pois o filoacutesofo recomenda que a medida

seja ldquorelativa a noacutesrdquo ao mesmo tempo em que exemplifica tal medida

com quantidades contaacuteveis Apesar de natildeo concordarmos com essas

interpretaccedilotildees decidimos tratar o assunto porque remete diretamente agrave

proposta das virtudes morais como medida na emoccedilatildeo pelo fato de o

filoacutesofo natildeo admitir a eudaiacutemōniacutea sem virtude moral e por algumas

questotildees intrigantes que surgem ao longo do passo da EN chamado por

Zingano Tratado da virtude moral (EN I 13-III 8) Com isso

buscaremos reavaliar a definiccedilatildeo de virtude moral como boa medida nas

accedilotildees e nas emoccedilotildees tentando evitar o aspecto relativista que tantas

vezes foi conferido agrave doutrina

A partir do que jaacute foi exposto percebemos que aleacutem da doutrina

da boa medida temos Aristoacuteteles a definir o tipo de virtude ora estudado

como uma espeacutecie de excelecircncia moral mas define-a tambeacutem como

uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha deliberada em II 6 e como virtude na

qual eacute possiacutevel que a razatildeo opere Aristoacuteteles resume a aretḗ ethikḗ do

seguinte modo ldquoDiscutimos em geral e em grandes linhas a respeito das

virtudes o gecircnero que satildeo mediedades que satildeo disposiccedilotildees por si

87Hurtshouse em seu A doutrina central da mediania em Aristoacuteteles afirma-se

ceacutetica quanto agrave utilidade da teoria em questatildeo Sorabji (2002 p 7-194-195)

embora aponte os estoicos alguns preacute-socraacuteticos e acadecircmicos como

propositores de uma perspectiva negativa quanto agrave teoria da mediedade afirma

que tal doutrina em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees natildeo eacute banal tendo grande papel social

Assim podemos perceber que as criacuteticas agrave doutrina natildeo satildeo recentes Mesmo

Kant jaacute havia dado sua opiniatildeo negativa quanto agrave proposta

100

mesmas de praticar aqueles atos pelos quais se engendram que estatildeo em

nosso poder e satildeo voluntaacuterias e que satildeo como a reta razatildeo ordenardquo (EN

III 8 1114b28-30) O estudo da phroacutenēsis no Livro VI da EN seria um

complemento agraves possibilidades de virtude e da vida boa moralmente

que soacute seriam completas juntamente com a virtude intelectual da

prudecircncia Adiantando o assunto deste uacuteltimo Livro mencionado e

dando coesatildeo agrave obra em EN II o filoacutesofo obteve a seguinte definiccedilatildeo de

virtude moral

A virtude eacute portanto uma disposiccedilatildeo de escolher

por deliberaccedilatildeo consistindo em uma mediedade

relativa a noacutes disposiccedilatildeo delimitada pela razatildeo

isto eacute como a delimitaria o prudente Eacute uma

mediedade entre dois males o mal por excesso e o

mal por falta Ainda pelo fato de as disposiccedilotildees

faltarem umas outras excederem no que se deve

tanto nas emoccedilotildees como nas accedilotildees a virtude

descobre e toma o meio termo Por isso por

essecircncia e pela foacutermula que exprime a quumlidade a

virtude eacute uma mediedade mas segundo o melhor

eacute o bem eacute um aacutepice (EN II 5 1106b35 II 6

1107a1-8)88

Essa investigaccedilatildeo acerca da natureza da virtude moral que

comeccedila em EN I eacute o foco de nossa investigaccedilatildeo nesse ponto Por isso

nosso estudo nesse momento se dedicaraacute a entender melhor a virtude

considerada desde II 4 como capacidade de se portar bem frente agraves

emoccedilotildees Buscaremos tambeacutem elaborar um breve estudo sobre a virtude

intelectual sem a qual natildeo eacute possiacutevel agir bem quanto agraves mesmas

emoccedilotildees O bom comportamento frente agraves emoccedilotildees eacute imprescindiacutevel agraves

virtudes morais particulares mas pensamos tambeacutem agravequela concepccedilatildeo

do que seja a virtude mais completa O passo da EN citado haacute pouco e

que daacute destaque agrave virtude moral nos leva a entendecirc-la como melhor

estado possiacutevel agrave capacidade natildeo racional da alma humana reforccedilando a

88 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original Ἔστιν ἄρα ἡ ἀρετὴ ἕξις

προαιρετική ἐν μεσότητι οὖσα τῇ πρὸς ἡμᾶς ὡρισμένῃ λόγῳ καὶ ᾧ ἂν ὁ

φρόνιμος ὁρίσειεν μεσότης δὲ δύο κακιῶν τῆς μὲν καθ ὑπερβολὴν τῆς δὲ κατ

ἔλλειψιν καὶ ἔτι τῷ τὰς μὲν ἐλλείπειν τὰς δ ὑπερβάλλειν τοῦ δέοντος ἔν τε τοῖς

πάθεσι καὶ ἐν ταῖς πράξεσι τὴν δ ἀρετὴν τὸ μέσον καὶ εὑρίσκειν καὶ αἱρεῖσθαι

διὸ κατὰ μὲν τὴν οὐσίαν καὶ τὸν λόγον τὸν τὸ τί ἦν εἶναι λέγοντα μεσότης ἐστὶν

ἡ ἀρετή κατὰ δὲ τὸ ἄριστον καὶ τὸ εὖ ἀκρότης

101

proposta da funccedilatildeo proacutepria ao homem como resultado da associaccedilatildeo das

melhores condiccedilotildees das duas capacidades da alma condiccedilatildeo excelente

que consideramos possibilitadora da eudaiacutemōniacutea A questatildeo no entanto

eacute entender como isso eacute possiacutevel Rapp bem observa (2010 p 410) que eacute

preciso esclarecer de que modo as virtudes podem ser entendidas como

melhor estado de cada capacidade da alma humana

No caso das virtudes intelectuais o autor pensa que o

entendimento seja faacutecil jaacute que manifestam o melhor estado da

capacidade racional sendo que tal funccedilatildeo estaacute em bom estado quando se

tem certas capacidades racionais ou intelectuais e se realiza bem as

funccedilotildees que lhes cabem Natildeo eacute claro contudo o modo como eacute possiacutevel

definir o bom estado da capacidade natildeo racional embora tal definiccedilatildeo

seja crucial para nossa pesquisa Tendo em mira esta duacutevida podemos

entatildeo questionar qual eacute o criteacuterio para o bom funcionamento da

capacidade natildeo racional desiderativa Sendo esta capacidade apta a

ouvir e obedecer agrave razatildeo seu bom estado eacute perceptiacutevel se ela realmente

concorda com as propostas racionais ou se reage como a razatildeo pede

mas

lsquoObedecer ao que a razatildeo demandarsquo pode

significar duas coisas bem diferentes que a

pessoa controlada (enkrates) faz o que a razatildeo

demanda enquanto existem impulsos opostos

incitando-a a agir de outra maneira ou a pessoa

virtuosa faz o que pede a razatildeo poreacutem sem ter

impulsos contraacuterios ou concorrentes Estes satildeo

dois niacuteveis de obediecircncia visto que Aristoacuteteles diz

que no uacuteltimo caso a parte natildeo-racional da alma

eacute muito mais facilmente obediente

(euekoacutemeteron) e tudo em uma tal pessoa eacute

consoante agrave razatildeo (homophoacutenei tocirci loacutegoi) (RAPP

2010 p 410-41)89

A partir dessa explicaccedilatildeo surge nova questatildeo Quando a

capacidade natildeo racional concorda com a racional Pensamos que nossa

questatildeo tambeacutem caiba aqui o que pode facilitar a concordacircncia entre

racional e natildeo racional para que as emoccedilotildees sejam educadas e para que a vida feliz seja possiacutevel A resposta para essas questotildees nos permitiraacute

entender por que as virtudes eacuteticas manifestam o bom estado da

capacidade natildeo racional embora o Livro I da EN natildeo solucione a

89 Igualmente em EN I 13 1102b27

102

indagaccedilatildeo A resposta buscada eacute deixada a cargo do Livro II que em seu

fim com a exposiccedilatildeo de uma espeacutecie de resumo dessa discussatildeo

apresenta um elemento definidor para a consonacircncia da capacidade natildeo

racional com a reta razatildeo Entatildeo esse Livro deve explicar como as

virtudes eacuteticas podem ser o bom estado da capacidade natildeo racional Mas

seraacute que tal resposta viraacute com a doutrina do meio termo Rapp entende

que esta doutrina ao menos contribuiraacute para a soluccedilatildeo do problema e noacutes

concordamos com esse entendimento Por isso julgamos ser

interessante discutir a validade e a aplicabilidade da teoria da boa

medida jaacute que Aristoacuteteles considera virtude moral como boa medida nas

emoccedilotildees Apesar das possiacuteveis falhas e das objeccedilotildees que tecircm sido

apresentadas ao longo dos tempos agrave doutrina buscaremos uma

abordagem sucinta e natildeo exaustiva do assunto mas na medida em que

reforce a importacircncia de tal teoria no que diz respeito agrave relaccedilatildeo da

virtude moral com a boa medida nas emoccedilotildees

2a) Caraacuteter tautoloacutegico ou trivial da doutrina da virtude moral como

mediania

A doutrina da boa medida como eacute chamada por estudiosos como

Rapp (2010 p 405 et seq) e Urmson (1984 p 157 et seq) eacute tomada

por alguns como trivial ou mesmo tautoloacutegica Um dos motivos para

esse tipo de acusaccedilatildeo agrave teoria eacute o fato de ela propor que a medida seja

lsquorelativa a noacutesrsquo afirmaccedilatildeo que daria agrave proposta do meio termo um tom

relativista ou subjetivo gerando duacutevidas sobre sua utilidade e

aplicabilidade como padratildeo para as accedilotildees moralmente boas A criacutetica

tambeacutem eacute feita porque parece pretender quantificar o que Aristoacuteteles

defende ser em muitos passos ldquorelativo a noacutesrdquo e que tem como

paracircmetro o homem bom suas accedilotildees o bem e as circunstacircncias90

90 Kant por exemplo se posiciona contrariamente agrave doutrina da boa medida

porque entendeu o princiacutepio como falso Pensava que natildeo se pode buscar

diferenccedilas entre virtude e viacutecio no grau segundo o qual algumas maacuteximas satildeo

observadas As diferenccedilas deveriam ser buscadas na qualidade especiacutefica de tais

maacuteximas Seria falso portanto propor a virtude como meio termo entre dois

viacutecios pois cada um deles teria sua proacutepria maacutexima e por isso um contradiria o

outro impedindo a doutrina de ser tomada como proposta universal que guiasse

a accedilatildeo humana A postura eacutetica kantiana contraacuteria as propostas aristoteacutelicas

sobre a virtude moral como boa medida eacute posta agrave prova de modo interessante e

favoraacutevel a Aristoacuteteles por Anscombe em seu Modern moral philosophy Por

isso quem deseja reforccedilar a validade das teorias de Aristoacuteteles em detrimento a

propostas como as de Kant como eacute o nosso caso deve ao menos mencionar o

103

Pensamentos como estes acusariam a mencionada doutrina de um

desacordo interno e como propusemos levaram filoacutesofos e

comentadores a um longo debate sobre o passo em que a virtude moral

aparece descrita como mediania entre excesso e falta o Livro II 6 da

EN

Aleacutem disso as objeccedilotildees atingem diretamente as propostas do

filoacutesofo a respeito do comportamento que o virtuoso - ou o homem de

um modo geral - deve apresentar diante das emoccedilotildees Portanto

julgamos ser conveniente discutir um pouco a questatildeo para tentar

desfazer esses embaraccedilos e na medida em que nos auxilie a por emoccedilatildeo

e razatildeo em acordo Para tanto defenderemos que a doutrina apresenta

conjuntamente e sem complicaccedilotildees aspectos quantitativos qualitativos

e avaliativos Buscaremos fazer isso pois pensamos ser a melhor forma

de entender a virtude moral e sua exigecircncia de boa medida raciocinada

quanto agraves inevitaacuteveis emoccedilotildees Entendemos que o aspecto avaliativo da

doutrina natildeo eacute invalidado pela proposta conceitual atribuiacuteda agrave mesma

porque a capacidade de avaliaccedilatildeo do entorno permite ao virtuoso ser

bom juiz91

artigo da filoacutesofa que abre espaccedilo na contemporaneidade para uma eacutetica das

virtudes com base em Aristoacuteteles 91 Rapp explica que haacute duas possibilidades interpretativas para a doutrina da boa

medida e que podemos apresentar aqui com os trechos citados Por conseguinte

a doutrina tem aspecto conceitual que pode ser expresso do seguinte modo ser

muito ou muito pouco levam a esquecer a quantia correta Para o autor esse eacute

um sentido analiacutetico da doutrina que eacute importante quando em EN 2 VI e EE 2

III define-se a virtude contudo esse caraacuteter conceitual se torna pouco claro com

a exposiccedilatildeo na EN de uma opccedilatildeo empiacuterica da doutrina em questatildeo Em 2 II eacute

afirmado que aquilo que se discute pode ser destruiacutedo por excesso ou falta mas

preservado pelo meio termo e Aristoacuteteles daacute o exemplo da forccedila fiacutesica

conservada ou destruiacuteda por treinamento (EN 1104a11-13) Nesse ponto

excesso deficiecircncia e meio termo satildeo entendidos como o que gera preserva ou

destroacutei o que ultrapassa segundo o comentador a questatildeo conceitual pois o

filoacutesofo descreve tal fato como observaacutevel (horocircmen)

As duas possibilidades da doutrina analiacutetica e empiacuterica dadas pelo livro II

induzem em erro pensa Rapp e pensa tambeacutem que por isso haacute comentaacuterios

que entendem que tal doutrina oscile entre um modelo analiacutetico e alguma outra

coisa ldquoEntretanto haacute algumas evidecircncias de que a versatildeo empiacuterica natildeo se

equipara agrave versatildeo analiacutetica (i) a versatildeo empiacuterica em EN 22 natildeo desenvolve a

doutrina de modo completo que deveria pelo menos incluir o conceito de lsquomeio

termo para noacutesrsquo etc (ii) EE e EN concordam amplamente na definiccedilatildeo de

virtude eacutetica e na doutrina do meio termo que eacute um elemento da discussatildeo mas

a EE oferece apenas a versatildeo conceitual e natildeo inclui um equivalente da variaccedilatildeo

104

A desavenccedila quanto agrave teoria da boa medida pode ter como iniacutecio

afirmaccedilotildees feitas por Aristoacuteteles propondo que os discursos sobre

questotildees praacuteticas satildeo em linhas gerais e natildeo exatas Isso significaria que

quando se trata das accedilotildees particulares natildeo haacute fixidez Se natildeo haacute fixidez

nos discursos sobre as coisas gerais desse tipo muito menos haveraacute

quando se tratar das coisas particulares92 O filoacutesofo entende que por

isso os agentes devem apreciar o momento da accedilatildeo (EN II 2 1104a1-9)

embora pense que mesmo assim natildeo devamos nos furtar a discutir tais

assuntos pois em eacutetica ou seja para o filoacutesofo moral interessam

sobremaneira as accedilotildees particulares Por conseguinte Aristoacuteteles comeccedila

o tratamento da virtude como boa medida afirmando que as coisas ora

estudadas satildeo naturalmente corrompidas por excesso e falta mas que a

mediania eacute aliada das virtudes Ao exemplificar seu pensamento

contudo parece se referir a quantidades (EN 1104a13-17) como no caso

que segue

Foi dito satisfatoriamente que a virtude moral eacute

empiacutericardquo (RAPP 2010 p 414-415) A partir disso o autor conclui que natildeo eacute

preciso recorrer agraves referecircncias empiacutericas para defender a doutrina da boa

medida 92 Zingano faz consideraccedilotildees muito interessantes a respeito desse trecho e do

que ele realmente pretende dizer Apoia-se para tanto na proposta de Burnet

que sugere voltar aos manuscritos para a leitura e interpretaccedilatildeo correta do passo

(onde se poderia ler pacircs ho perigrave tocircn prakteacuteon loacutegos diferentemente do que se lecirc

nas ediccedilotildees modernas como a de Bekker pacircs ho perigrave tocircn praktocircn loacutegos) Com

isso entende o seguinte sobre o passo ldquoSegundo a versatildeo dos manuscritos todo

discurso de questotildees praacuteticas isto eacute sobre o que devemos fazer em tal situaccedilatildeo

deve ser dado em grandes linhas na versatildeo dos editores modernos eacute antes a

imprecisatildeo do discurso sobre questotildees praacuteticas que eacute posta em realce isto eacute do

discurso que porta sobre o que satildeo as accedilotildees e questotildees similares Aristoacuteteles

poreacutem como observa Burnet natildeo estaacute falando de como fornecer regras sobre o

que fazer Como Aristoacuteteles diraacute a seguir os agentes devem sempre buscar a

soluccedilatildeo segundo as circunstacircncias isto eacute uma consideraccedilatildeo que faz o filoacutesofo

moral e tal consideraccedilatildeo estaacute expressa no registro do que sempre ocorre No

campo praacutetico o que deve ser feito por ser sempre circunstancial varia

enormemente o que ocasiona a referida perda de exatidatildeo [] Poreacutem o ponto

da inexatidatildeo e expressatildeo unicamente em linhas gerais vale para as decisotildees

praacuteticas aquelas que toma o prudente o que o filoacutesofo faz a teoria moral natildeo

estaacute aqui sob anaacutelise (quando Aristoacuteteles define o que eacute a felicidade ele natildeo

pensa estar fornecendo uma proposiccedilatildeo que eacute vaacutelida somente nas mais das

vezes)rdquo (ZINGANO 2008 p 104-105) Assim o discurso moral seria

impreciso natildeo por falha cognitiva nossa mas por seu objeto impreciso a accedilatildeo

105

um meio termo como o eacute que eacute um meio termo

nas emoccedilotildees e nas accedilotildees Por isso eacute aacuterduo ser

bom pois eacute aacuterduo determinar o meio termo em

cada situaccedilatildeo ndash por exemplo determinar o meio

de um ciacuterculo natildeo eacute para qualquer um mas para

quem sabe assim tambeacutem eacute para qualquer um e eacute

faacutecil encolerizar-se dar ou gastar dinheiro mas

natildeo eacute para qualquer um nem eacute faacutecil o determinar a

quem quanto quando em vista do que e como

fazer Por esta razatildeo o bem agir eacute raro louvaacutevel e

belo Por isso quem mira no meio termo deve

primeiramente se apartar do que eacute mais contraacuterio

[] Entendo por meio termo da coisa o que dista

igualmente de cada um dos extremos que

justamente eacute uacutenico e mesmo para todos os casos

por meio termo relativo a noacutes o que natildeo excede

nem falta mas isso natildeo eacute uacutenico nem o mesmo

para todos os casos (EN II 9 1109a20-30)93

Uma argumentaccedilatildeo e uma exemplificaccedilatildeo desse tipo abririam

espaccedilo agraves duacutevidas acima mencionadas e tambeacutem agraves duacutevidas a respeito

das reais intenccedilotildees de Aristoacuteteles ao propor a teoria da mediania

Questatildeo que aparece com a afirmaccedilatildeo de que em tudo que eacute contiacutenuo e

divisiacutevel se pode tomar mais menos e igual quantidade relativamente a

noacutes ou agrave coisa (EN II 5 1106a24-27) O igual eacute considerado meio termo

entre excesso e falta94 podendo apresentar um conflito com a ideia de

que a boa medida nas emoccedilotildees deva ser relativa a noacutes

Para destacar o problema podemos tomar a afirmaccedilatildeo que a

virtude moral estaacute relacionada com accedilotildees e emoccedilotildees (praacutexeis kaigrave paacutethē)

93 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original Ὅτι μὲν οὖν ἐστὶν ἡ ἀρετὴ ἡ ἠθικὴ

μεσότης καὶ πῶς καὶ ὅτι μεσότης δύο κακιῶν τῆς ὲν καθ ὑπερβολὴν τῆς δὲ

κατ ἔλλειψιν καὶ ὅτι τοιαύτη ἐστὶ διὰ τὸ στοχαστικὴ τοῦ μέσου εἶναι τοῦ ἐν

τοῖς πάθεσι καὶ ἐν ταῖς πράξεσιν ἱκανῶς εἴρηται διὸ καὶ ἔργον ἐστὶ σπουδαῖον

εἶναι ἐν ἑκάστῳ γὰρ τὸ μέσον λαβεῖν ἔργον οἷον κύκλου τὸ μέσον οὐ παντὸς

ἀλλὰ τοῦ εἰδότος οὕτω δὲ καὶ τὸ μὲν ὀργισθῆναι παντὸς καὶ ῥᾴδιον καὶ τὸ

οῦναι ἀργύριον καὶ δαπανῆσαι τὸ δ ᾧ καὶ ὅσον καὶ ὅτε καὶ οὗ ἕνεκα καὶ ὥς

οὐκέτι παντὸς οὐδὲ ῥᾴδιον διόπερ τὸ εὖ καὶ σπάνιον καὶ ἐπαινετὸν καὶ καλόν

διὸ δεῖ τὸν στοχαζόμενον τοῦ μέσου πρῶτον μὲν ἀποχωρεῖν τοῦ μᾶλλον

ἐναντίου [] τὸ μὲν ἄρα τοσοῦτο δηλοῖ ὅτι ἡ μέση ἕξις ἐν πᾶσιν ἐπαινετή

ἀποκλίνειν δὲ δεῖ ὁτὲ μὲν ἐπὶ τὴν ὑπερβολὴν ὁτὲ δ ἐπὶ τὴν ἔλλειψινοὕτω γὰρ

ῥᾷστα τοῦ μέσου καὶ τοῦ εὖ τευξόμεθα 93 Idem τὸ δ ἴσον καὶ ταῦτα ἢ κατ αὐτὸ τὸ πρᾶγμα ἢ πρὸς ἡμᾶς

106

pois estas podem admitir excesso ou falta ou meio termo sendo

possiacutevel por exemplo temer muito ou pouco ou como conveacutem Essa

proposta parece ser referente agrave quantidade de emoccedilatildeo a ser sentida mas

que natildeo eacute a uacutenica delimitaccedilatildeo da boa medida Aristoacuteteles parece

estabelecer aleacutem disso certos paracircmetros para se emocionar

adequadamente pois para que haja a virtude eacute preciso sentir emoccedilotildees

quando com o quecirc e com quem se deve etc o mesmo sendo vaacutelido

para as accedilotildees impedindo uma interpretaccedilatildeo meramente quantitativa da

boa medida As questotildees que se impotildeem frente a tal proposiccedilatildeo satildeo as

seguintes (1) Como interpretar a doutrina da boa medida quantitativa

ou qualitativamente (2) Como aplicar a proposta da quantia certa agraves

accedilotildees (3) A doutrina eacute tautoloacutegica e trivial Temos portanto trecircs

questotildees em matildeos e a resolver antes de aceitar que para a vida feliz seja

preciso que se decirc boa medida agraves emoccedilotildees

A primeira questatildeo que devemos responder nos apresenta a boa

medida como quantidade certa de emoccedilatildeo sentida e accedilatildeo praticada

Devemos entender como conciliar a ideia de boa medida que estaacute entre

dois extremos com a proposta de que a virtude natildeo eacute meacutedia aritmeacutetica

Questatildeo a ser discutida pois o proacuteprio filoacutesofo admite que em certas

disposiccedilotildees a virtude moral se aproxima mais de um dos viacutecios que de

outros como percebemos a partir dos exemplos quantificadores Com

isso agraves vezes os extremos estatildeo mais distantes uns dos outros que do

meio este uacuteltimo podendo apresentar mais semelhanccedila com um dos

contraacuterios por exemplo a covardia eacute mais oposta agrave coragem que a

temeridade Outro exemplo eacute que por tendermos mais aos prazeres que

agrave moderaccedilatildeo somos mais propensos agrave intemperanccedila que agrave temperanccedila e

por isso os extremos aos quais tendemos mais satildeo mais contraacuterios de

seus contraacuterios sendo a intemperanccedila mais contraacuteria agrave temperanccedila (EN

II 6 1107a20 et seq) Todas essas afirmaccedilotildees natildeo desfazem o incocircmodo

que se sente ao somar esse tipo de distinccedilatildeo do que seja a virtude aos

exemplos aritmeacuteticos que lhes seguem A observaccedilatildeo que nas accedilotildees e

emoccedilotildees excessos e faltas satildeo censurados enquanto o meio termo eacute

digno de louvor sendo que para o filoacutesofo as marcas da virtude satildeo o

acerto e digno de louvor intensifica a duacutevida

Quem teme e foge de tudo e nada suporta torna-se

covarde quem em geral nada teme mas tudo

enfrenta torna-se temeraacuterio [] a temperanccedila e a

coragem entatildeo satildeo destruiacutedas pelo excesso e pela

falta mas preservadas pela mediedade [] Assim

tambeacutem acontece com as virtudes do abster-se

107

dos prazeres tornamo-nos temperantes tornados

temperantes somos os mais capazes de abster-nos

deles Igualmente com a coragem habituados a

desprezar tornamo-nos corajosos tornados

corajosos seremos os mais capazes de suportar

coisas temiacuteveis (EN II 2 1104a20-35 1104b1-3)95

A virtude eacute entendida como o que visa o meio termo mas acertar

esse meio soacute acontece de um modo embora errar seja possiacutevel de vaacuterias

formas Diante dessas consideraccedilotildees destacam-se tambeacutem as marcas do

viacutecio o erro o excesso e a falta todas aparentemente relacionadas agraves

quantidades de accedilotildees e emoccedilotildees praticadas e sentidas

Assim da primeira questatildeo viria ainda o segundo problema

enquadrar a teoria do mais do menos e do mesmo tanto agrave forma de agir

Seria relativamente faacutecil entender como eacute possiacutevel exigir medidas

quantitativas em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees poreacutem determinar quantidades

aplicaacuteveis aos modos de agir eticamente natildeo seria tatildeo simples

Aristoacuteteles fala de qualificadores determinantes das accedilotildees conforme agraves

circunstacircncias mas seus exemplos praacuteticos natildeo se aplicam exatamente

agraves questotildees eacuteticas reforccedilando o tom problemaacutetico das propostas nesse

sentido

Temos que encarar ainda outra questatildeo inquietante a terceira

que diz respeito agrave trivialidade da doutrina devido agrave inexatidatildeo e

particularidade do assunto Caso expresso tambeacutem ao se afirmar que um

dos extremos induz mais ao erro que o outro Por isso como eacute difiacutecil

acertar o meio seria preferiacutevel tomar entre os extremos aquele que eacute o

mal menor cabendo ao agente decidir o que fazer em cada situaccedilatildeo

Deste modo eacute preciso prestar atenccedilatildeo aos erros aos quais se tem

propensatildeo sendo isto perceptiacutevel pelo prazer e pela dor que o agente

sente com o que faz (EN I 1 1109b4) O filoacutesofo sugere que o agente se

encaminhe para o lado oposto ao mais apraziacutevel para se afastar o

maacuteximo do erro pois natildeo eacute bom juiz quanto ao agradaacutevel e ao prazer

Ao se afastar do prazer corre menos riscos de errar e eacute mais propenso a

95 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ὅ τε γὰρ πάντα φεύγων καὶ

φοβούμενος καὶ μηδὲν ὑπομένων δειλὸς γίνεται ὅ τε μηδὲν ὅλως φοβούμενος

[] φθείρεται δὴ σωφροσύνη καὶ ἡ ἀνδρεία ὑπὸ τῆς ὑπερβολῆς καὶ τῆς ἐλλείψεως ὑπὸ δὲ τῆς μεσότητος σῴζεται [] οὕτω δ ἔχει καὶ ἐπὶ τῶν

ἀρετῶν ἔκ τε γὰρ τοῦ ἀπέχεσθαι τῶν ἡδονῶν γινόμεθα σώφρονες καὶ

γενόμενοι μάλιστα δυνάμεθα ἀπέχεσθαι αὐτῶν ὁμοίως δὲ καὶ ἐπὶ τῆς

ἀνδρείας ἐθιζόμενοι γὰρ καταφρονεῖν τῶν φοβερῶν καὶ ὑπομένειν αὐτὰ

γινόμεθα ἀνδρεῖοι καὶ γενόμενοι μάλιστα δυνησόμεθα ὑπομένειν τὰ φοβερά

108

atingir o meio termo Tarefa que natildeo eacute faacutecil de ser cumprida pois se

trata de casos particulares e das sensaccedilotildees mateacuteria da discriminaccedilatildeo

(EN II 9 1109b23) Em todos os casos a postura meacutedia eacute louvaacutevel mas

certas vezes se deve tender para um dos extremos a fim de atingir mais

facilmente o meio termo ou o bem explicaccedilatildeo que novamente natildeo alivia

nossas duacutevidas Essas propostas de Aristoacuteteles que afastam a accedilatildeo

correta moralmente do meio termo como meacutedia aritmeacutetica igualmente

levam a duvidar da possibilidade de entender como se pode afirmar que

as accedilotildees soacute seriam viaacuteveis eticamente se seguissem a doutrina da

mediania

A soluccedilatildeo que parece interessante agraves questotildees (1) e (3) vem com

as consideraccedilotildees de Rapp (2010 p 414 et seq) O autor entende e

justifica a viabilidade da doutrina do meio termo caso interpretada

conceitualmente ou seja como delimitadora da bondade ou retidatildeo das

disposiccedilotildees que concordam com as sugestotildees da capacidade racional

Segundo tal proposta natildeo confiariacuteamos totalmente a validaccedilatildeo da teoria

da boa medida a exemplos empiacutericos como aqueles que destacamos

acima e que satildeo causadores da confusatildeo que ora apresentamos Ao

compreender deste modo seria possiacutevel salvar a credibilidade da

doutrina por pensar que natildeo interpretariacuteamos o meio termo apenas

quantitativamente O que fariacuteamos seria tomar como possibilidade

entender a proposta de Aristoacuteteles como simultaneamente quantitativa

e qualitativa sem anular uma ou outra postura Temos ainda a questatildeo

(2) que nos leva a pensar a teoria da boa medida como uacutetil agrave vida moral

por ser aplicaacutevel agraves accedilotildees concretas Podemos comeccedilar a refletir sobre o

assunto e a buscar soluccedilatildeo para ele a partir da definiccedilatildeo da virtude moral

como mediania que tem iniacutecio juntamente com aquela lsquodefiniccedilatildeorsquo de

emoccedilatildeo entendendo as virtudes como

[] disposiccedilotildees [] em funccedilatildeo das quais nos

portamos bem ou mal com relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees

por exemplo com relaccedilatildeo ao encolerizar-se se

nos encolerizamos forte ou fracamente portamo-

nos mal se moderadamente bem e de modo

semelhante com relaccedilatildeo agraves outras emoccedilotildees (EN II

4 1105b25-28)96

A forma como um agente se comporta em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees

96 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἕξεις [] καθ ἃς πρὸς τὰ πάθη

ἔχομεν εὖ ἢ κακῶς οἷον πρὸς τὸ ὀργισθῆναι εἰ μὲν σφοδρῶς ἢ ἀνειμένως

κακῶς ἔχομεν εἰ δὲ μέσως εὖ ὁμοίως δὲ καὶ πρὸς τἆλλα

109

que sente embora possa sugerir accedilatildeo particular determina politicamente

a vida pois tais accedilotildees satildeo cometidas na poacutelis e para Aristoacuteteles as

virtudes morais eram percebidas por elogios dispensados a um cidadatildeo

Uma pessoa era considerada virtuosa ou viciosa quando elogiada ou

censurada pela forma como - ou pela intensidade com que - sentia as

emoccedilotildees embora natildeo se teccedila elogios ou censuras em razatildeo das

emoccedilotildees As pessoas natildeo recebem aprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo da

comunidade por sentirem medo excessivo ou fora de hora por exemplo

pois podem natildeo demonstrar tal medo por meio de gestos accedilotildees e

palavras Sentir temor em excesso natildeo eacute motivo de louvor ou censura

mas a forma como cada cidadatildeo apresenta tais emoccedilotildees agrave sua

comunidade eacute motivo para tanto Por isso Aristoacuteteles afirma que natildeo se

elogia ou censura quem teme mas quem teme de certo modo (EN II 4

1106a1) porque a pessoa sente medo sem escolher deliberadamente

mas as virtudes satildeo escolhas deliberadas ou natildeo acontecem sem escolha

desse tipo Emocionar-se e escolher deliberadamente contudo devem

ser fruto do haacutebito e da aprendizagem

Por isso as virtudes morais foram tratadas como disposiccedilotildees que

levam a agir sem excesso ou falta relativamente agraves emoccedilotildees e agraves accedilotildees e

que podem ser habituadas Justamente por essa relaccedilatildeo de proximidade

entre emoccedilotildees e accedilotildees na eacutetica eacute que se pode tambeacutem buscar uma

resposta para questatildeo (2) a saber como estender a boa medida agraves accedilotildees

para que estas sejam boas As accedilotildees podem ser tratadas desse modo

como explica Zingano por sua intimidade com as emoccedilotildees Ao se

regular as emoccedilotildees regular-se-ia tambeacutem as atividades e accedilotildees a estas

associadas ldquoAs accedilotildees sujeitam-se assim agrave anaacutelise do excesso falta ou

justo meio relativos agraves emoccedilotildees que exprimem encolerizar-se em

demasia ou em relaccedilatildeo a quem natildeo se deve eacute um excesso emotivo que

coloca a accedilatildeo fora do compasso da virtuderdquo (ZINGANO 2008 p 127)

Interpretaccedilatildeo que favorece a doutrina do meio termo

Tal proposta nos faz pensar que satildeo postos paracircmetros para a boa

accedilatildeo relacionada agraves emoccedilotildees Seria preciso se emocionar como jaacute

repetimos algumas vezes em relaccedilatildeo a quem eacute devido adequadamente e

no momento apropriado Isso contudo natildeo favoreceria somente uma

interpretaccedilatildeo qualitativa da doutrina da boa medida Parece que natildeo se

admitirmos com Rapp a ideia de que em relaccedilatildeo a cada virtude haacute

escalas contiacutenuas que vatildeo do agir lsquomais em excessorsquo ao lsquoagir mais

deficientementersquo mas sem que por isso seja necessaacuterio colocar a boa

medida absolutamente no centro de cada escala Com isso estaria salva

a possibilidade quantificadora da doutrina embora natildeo seja uma

determinaccedilatildeo de uma medida exata natural ou absoluta A proposta

110

qualificadora igualmente se conservaria jaacute que a observaccedilatildeo do

momento da accedilatildeo e dos demais paracircmetros mencionados (ou natildeo) nos

levaria a compreender como eacute possiacutevel tomar o meio sem

necessariamente exigir uma meacutedia aritmeacutetica para tanto bem como sem

incorrer em relativismo

Assim apoacutes as propostas sobre as questotildees levantadas podemos

entender que a doutrina pode ser tomada como conceitual ou natildeo

empiacuterica natildeo sendo necessaacuterio que entendamos os exemplos

matemaacuteticos e a explicaccedilatildeo do lsquomeio termo relativo a noacutesrsquo como

contraditoacuterios mesmo porque satildeo propostas que aparecem no mesmo

passo da EN (EN II 9 1109a19-30) Deste modo eacute possiacutevel entender que

o filoacutesofo descreve toda virtude como o bom estado que leva ao

desempenho da funccedilatildeo proacutepria agravequilo de que ela eacute virtude O exemplo

dado por Aristoacuteteles eacute que haacute tocadores de ciacutetara mas os tocadores

virtuosos satildeo os bons tocadores de ciacutetara entendimento que igualmente

se aplica ao bom agente (EN II 5 1106b20-35 II 6 1107a1-6) O homem

virtuoso eacute aquele que busca o bem que lhe eacute natural a eudaiacutemōniacutea e

busca cientemente e de acordo com os paracircmetros e quantidades

adequados na emoccedilatildeo e na accedilatildeo Portanto esse homem e o bem que ele

procura satildeo os padrotildees da bondade e da virtude a serem seguidos

impedindo que a doutrina da boa medida soe como totalmente relativa

aos agentes ou agraves circunstacircncias

Em suma ao longo das discussotildees acima propostas vimos a

virtude moral ser descrita como disposiccedilatildeo de caraacuteter em acordo com a

deliberaccedilatildeo com a escolha deliberada e com a prudecircncia ou seja

conforme o que a razatildeo praacutetica propotildee A virtude moral em essecircncia eacute

boa medida quanto agrave forma como se age e ao modo como se emociona

(EN II 9 1109a20-24) A teoria eacute viaacutevel porque podemos tomar o

esquema do excessofaltaboa medida em termos conceituais natildeo

descartando mas pondo lado a lado seus melhores aspectos

quantitativos e qualitativos aplicando a boa medida tambeacutem agraves accedilotildees

Esses aspectos igualmente se aplicam agraves accedilotildees porque haacute uma relaccedilatildeo

indispensaacutevel entre accedilatildeo e emoccedilatildeo sendo tal relaccedilatildeo o motivo de

podermos propor a teoria da boa medida como qualitativa e ao mesmo

tempo quantitativa sem o risco de incoerecircncias Assim a doutrina

igualmente pode ser estendida agraves accedilotildees mas pensamos que para tanto

devem ser observados ainda seus aspectos avaliativos jaacute que os

paracircmetros podem sugerir que o homem virtuoso avalie as

circunstacircncias agrave sua volta e depois se posicione com o modo adequado

de agir

Embora comentadores como Rapp apresentem algumas dessas

111

caracteriacutesticas em separado pensamos que a proposta apaziguadora que

trazemos confere validade e utilidade agrave teoria da boa medida e resposta

agraves questotildees que foram discutidas (1) A teoria da boa medida eacute

qualitativa ou quantitativa (2) A doutrina da boa medida pode ser

tomada como diretriz praacutetica para a accedilatildeo e (3) A doutrina eacute trivial e

tautoloacutegica Ratificando nossa resposta agrave primeira questatildeo eacute que a

doutrina pode apresentar ambos os aspectos qualitativos e quantitativos

atribuindo-os tanto agraves emoccedilotildees quanto agraves accedilotildees A resposta agrave segunda

questatildeo eacute que a doutrina natildeo pode ser entendida como diretriz praacutetica

no sentido de um procedimento de decisatildeo sendo um delimitador da

bondade ou da retidatildeo das disposiccedilotildees de caraacuteter que entram em acordo

com a razatildeo Entendemos contudo divergindo de Rapp que se eacute

doutrina conceitual formulada por um filoacutesofo que pensa em agentes

possiacuteveis como os prudentes pode preparar tais agentes racionalmente

e permitir que estejam mais aptos a decisotildees natildeo retirando certa

praticidade que possa ser ligada ainda que indiretamente agrave doutrina

Ainda quanto agrave segunda questatildeo concordamos com Zingano (2008 p

127) que entende as emoccedilotildees como intrinsecamente ligadas agraves accedilotildees

Esse elo torna impossiacutevel pensar que se as accedilotildees satildeo respostas dadas agraves

emoccedilotildees haveria como separaacute-las conferindo medida a umas e natildeo a

outras A resposta de Rapp agrave terceira questatildeo eacute que a doutrina fornece

um esquema geral que serve como guia para a exploraccedilatildeo das vaacuterias

virtudes e concordamos com essa postura Pensamos que nossas

perspectivas estando ou natildeo associadas agraves dos comentadores

supracitados se tornaratildeo mais claras com a anaacutelise que se seguiraacute da

virtude particular da coragem que apresentaraacute nitidamente a relaccedilatildeo da

virtude moral como boa medida com a emoccedilatildeo do medo

2b) Exemplo da viabilidade da virtude moral como mediania nas

emoccedilotildees a virtude particular da coragem e o medo

Para verificar e comprovar tudo que propusemos anteriormente

podemos tomar a emoccedilatildeo do medo como exemplo Isso nos ajudaraacute a

confirmar que o fato da doutrina natildeo prescrever modos de accedilatildeo natildeo

significa que natildeo possa ser empregada97 ou ligada agraves accedilotildees

97 A questatildeo da natildeo empregabilidade da doutrina se deve como propusemos

anteriormente ao aspecto filosoacutefico e natildeo praacutetico que Aristoacuteteles confere agrave sua

investigaccedilatildeo eacutetica Mesmo que proponha que o interesse do estudo eacute agir e natildeo

conhecer o filoacutesofo ressalta a importacircncia de anaacutelise filosoacutefica das questotildees

relativas a accedilotildees e casos particulares de accedilatildeo Por isso quando esquadrinha sua

112

As definiccedilotildees da virtude moral oferecidas na EE e na EN satildeo

seguidas por discussotildees sobre virtudes particulares que tecircm em sua

definiccedilatildeo o elemento lsquomeio termorsquo quanto a accedilotildees e emoccedilotildees Ao

propor mesmo que com variaccedilotildees que as virtudes particulares satildeo meio

termos tem-se um certo tipo de aplicaccedilatildeo agrave doutrina explica Rapp Tal

teoria a princiacutepio pode natildeo ser aplicada a decisotildees ou accedilotildees

particulares mas agravequilo que o autor chama de ldquoexploraccedilatildeo filosoacutefica das

vaacuterias virtudes eacuteticasrdquo (RAPP 2010 p 420) Isso acontece porque a

eacutetica de Aristoacuteteles admite niacuteveis variados de particularidade e

generalidade e a proposta da virtude como meio termo estaacute em um niacutevel

mais alto de generalidade Por isso as verdades eacuteticas satildeo um tanto

vagas ou como escreve o proacuteprio Aristoacuteteles satildeo em grandes linhas

(tyacutepoi) e imprecisas (EN II 2 1104a1-2) A discussatildeo sobre as virtudes

particulares comparada a isso eacute bem mais concreta mas ainda natildeo tem

a concretude de uma deliberaccedilatildeo para agir em uma situaccedilatildeo particular

ldquoHaacute portanto uma aplicaccedilatildeo da doutrina mas natildeo como um

procedimento de decisatildeordquo explica Rapp (2010 p 421) No entanto

propusemos acima e reforccedilamos aqui que pensamos um pouco diferente

desse comentador porque acreditamos que essa anaacutelise das virtudes

particulares mesmo tomando a teoria da boa medida como conceitual

leva a um ganho real na eacutetica de Aristoacuteteles

A proposta de excessofaltaboa medida nas emoccedilotildees e nas accedilotildees

que levam aos viacutecios ou agrave virtude pode natildeo ser aplicada ao processo de

decisatildeo mas faz com que o agente conheccedila melhor suas reaccedilotildees

emocionais e que esteja mais bem preparado para tomar decisotildees e

agir98 Aleacutem disso se seguirmos a proposta aristoteacutelica de que o

exemplo e a conduccedilatildeo exterior satildeo o que a princiacutepio ajuda na

habituaccedilatildeo moral do futuro cidadatildeo que tal exemplo vem do homem

virtuoso moralmente e prudente provavelmente encontraremos nisso

um passo aleacutem da reflexatildeo puramente filosoacutefica mencionada pela EN

Ao sugerir que se deva buscar agir como agiria um homem corajoso

provavelmente a doutrina ultrapasse o campo da teoria moral

traduccedilatildeo do ldquoquadrordquo das virtudes morais apresentado na EN Zingano propotildee

que nesse ponto da discussatildeo aparece o que seria o uacutenico momento em que

Aristoacuteteles se posiciona como o prudente e natildeo como o filoacutesofo pois aconselha

quanto a modos de atingir o meio termo e natildeo teoriza sobre a questatildeo O passo

no qual isso acontece eacute aquele que mencionamos como apresentando a ldquocurardquo

pelo contraacuterio 1109b1 quando a EN admite o tom de cartilha moral 98 Nussbaum propotildee esse tipo de interpretaccedilatildeo mas a respeito das emoccedilotildees

despertadas pela trageacutedia em seu The Fragility of Goodness

113

encaminhando-se para uma possiacutevel embora natildeo insistente proposta de

accedilatildeo

Tratando das virtudes morais especiacuteficas a abordagem procederaacute

nesse ponto a partir da perspectiva da virtude moral relativa ao medo a

coragem Eacute interessante lembrar que essa virtude estaacute relacionada com

um desejo menos racional denominado impulso (thymoacutes) que estaacute

relacionado a emoccedilotildees natildeo racionais (tagrave aacuteloga paacutethē) ou menos

racionais como propusemos no Capiacutetulo anterior Vimos tambeacutem que

estas emoccedilotildees natildeo parecem menos humanas ao filoacutesofo entatildeo ele pensa

ser absurdo considerar as accedilotildees feitas por impulso como involuntaacuterias

(EN III 3 1111a34-35 1111b1-3) A coragem natildeo eacute conforme esse

desejo sendo uma virtude parece-nos estar entre aqueles estados nos

quais o agente jaacute educou seus impulsos fazendo-os concordes com a

deliberaccedilatildeo a escolha deliberada e com o que solicita a reta razatildeo Deste

modo trata-se de uma disposiccedilatildeo moral consolidada por bons haacutebitos

que escapou agrave forccedila dos extremos chamados do desejo em uma de suas

versotildees menos racionais99 interpretaccedilatildeo que favorece o entendimento da

99 Mas se considerarmos a doutrina uma verdade conceitual no que ela

favorece a discussatildeo das virtudes individuais ldquoO miacutenimo que podemos dizer eacute

que a doutrina do meio termo estrutura e sistematiza a anaacutelise das vaacuterias

virtudes Antes de tudo a descriccedilatildeo de cada virtude em termos da doutrina

requer a identificaccedilatildeo de uma escala contiacutenua de emoccedilotildees com respeito agrave qual a

virtude especiacutefica eacute o ponto meacutedio Esse natildeo eacute um passo trivial porquanto

pressupotildee o projeto de Aristoacuteteles (tal como descrito acima nas seccedilotildees 11 e

12) de descrever as virtudes eacuteticas enquanto o bom estado da parte natildeo-racional

da alma de modo que toda virtude deve estar ligada a um tipo de impulso ou

desejo natildeo-racional Depois a doutrina exige que as vaacuterias maneiras de errar a

virtude ou a accedilatildeo correta sejam encontradas identificadas e organizadas de

acordo com as duas direccedilotildees de deficiecircncia e excesso Esse procedimento

tambeacutem ajuda com as falhas que natildeo satildeo tatildeo frequentes ou natildeo tatildeo oacutebvias como

as falhas opostas o satildeo Ademais a reconstruccedilatildeo das vaacuterias virtudes em termos

da doutrina transforma o cataacutelogo contingente de virtudes comumente aceitas

em um sistema organizado de virtudes no qual toda virtude corresponde a uma

certa porccedilatildeo da nossa vida natildeo-racional e todo tipo de falha pode ser localizada

nas proximidades da virtude respectiva Essa sistematizaccedilatildeo leva ateacute mesmo agrave

identificaccedilatildeo de pontos meacutedios que natildeo haviam sido reconhecidos como

virtudes ateacute entatildeo E acima de tudo ao analisar e explicar cada virtude de

acordo com o esquema de excesso deficiecircncia e meio termo aprendemos como

entender que cada virtude contribui para o bom estado da parte natildeo-racional da

nossa alma E isto mais uma vez eacute essencial para a funccedilatildeo que atribuiacutemos ao

segundo livro da EN na seccedilatildeo 11 qual seja que a discussatildeo das virtudes deve

revelar como as vaacuterias virtudes normalmente admitidas se relacionam com a

114

boa medida como concordacircncia entre a capacidade natildeo racional e a

capacidade racional a fim de que a primeira alcance seu melhor estado

A coragem descrita por Aristoacuteteles em EN III 9 1115a8 eacute um

meio termo que corresponde a duas emoccedilotildees diferentes o medo e o

arrojo ou confianccedila Mas seguindo nossa proposta inicial observaremos

apenas sua relaccedilatildeo com o medo Neste Livro Aristoacuteteles descreve

pessoas que excedem em medo como covardes enquanto pessoas que

sentem tal emoccedilatildeo insuficientemente satildeo temeraacuterias Ser corajoso no

sentido de natildeo temer como natildeo conveacutem exige admitir que as coisas que

satildeo temiacuteveis parecem ter grande poder de destruiccedilatildeo ou de causar danos

que produzam grandes tristezas e ainda assim natildeo fugir e se acovardar

diante delas Isso natildeo significa que ter coragem eacute medir uma quantia

exata de medo a se sentir pondo de lado o medo excessivo ou

deficiente Ter coragem eacute saber o quanto temer poreacutem contando e

avaliando as condiccedilotildees que nos indicam tambeacutem como quando em

relaccedilatildeo a quecirc e em que circunstacircncias se deve temer e o bem a ser

alcanccedilado com a accedilatildeo corajosa

A disposiccedilatildeo em que se encontra quem teme eacute descrita pela

Retoacuterica coerentemente aos relatos eacuteticos como seguiraacute abaixo

Conforme tal descriccedilatildeo podemos tentar com o auxiacutelio da doutrina da

boa medida e dos paracircmetros para que seja aplicaacutevel propor que as

posturas de um homem corajoso atendem agrave exigecircncia de equiliacutebrio

quanto a essa disposiccedilatildeo apresentando-se como disposiccedilatildeo mais forte e

segura para a vida marca da virtude

Se o medo eacute acompanhado pelo pressentimento de

que vamos sofrer algum mal que nos aniquila eacute

oacutebvio que aqueles que acham que nunca lhes vai

acontecer nada de mal natildeo tecircm medo nem

receiam as coisas as pessoas e os momentos que

na sua maneira de pensar natildeo podem provocar

medo Assim pois necessariamente sentem

medo os que pensam que podem vir a sofrer

algum mal e os que pensam que podem ser

afetados por pessoas coisas e momentos

Creem que nenhum mal pode lhes acontecer as

pessoas que estatildeo ou pensam estar em grande

prosperidade [] as que pensam jaacute ter sofrido toda

espeacutecie de desgraccedilas e permanecem frias perante

o futuro agrave semelhanccedila dos que alguma vez jaacute

ideia de um bom estado ou excelecircncia da almardquo (RAPP 2010 p 421-422)

115

levaram uma surra de paulada Para que sintamos

receio eacute preciso que haja alguma esperanccedila de

salvaccedilatildeo pela qual valha a pena lutar E aqui vai

um sinal disso o medo leva as pessoas a deliberar

ao passo que ningueacutem delibera sobre casos

desesperados (Rhet II 5 1382b29-34 1383a1-

8)100

Em associaccedilatildeo agrave proposta sobre o medo supramencionada

podemos pensar que a disposiccedilatildeo corajosa eacute apresentada pelas pessoas

que se mantecircm de certo modo entre as posiccedilotildees de quem teme mas

esse lsquoentrersquo natildeo significa necessariamente algo fixo dentro de uma

escala quantificaacutevel O corajoso eacute descrito na EN como aquele que

encara as coisas temiacuteveis convenientemente e como manda a razatildeo

confirmando que a doutrina da boa medida leva agrave harmonia da

capacidade natildeo racional com a racional conferindo agrave primeira seu

melhor estado Igualmente apresenta a lsquoaplicabilidadersquo de tal doutrina

conceitual sendo mesmo possiacutevel que um homem percebendo seu bom

estado aniacutemico ou auxiliado por um bom estado aniacutemico que venha de

fora natildeo se furte jamais agraves boas accedilotildees jaacute que busca o que eacute nobre

Aquele portanto que espera de peacute firme e teme as

coisas que eacute preciso por um fim direito do modo

que conveacutem e no momento oportuno ou que se

mostra confiante sob as mesmas condiccedilotildees este eacute

um homem corajoso (pois o homem corajoso

padece e age por um objeto que vale a pena e do

modo que exige a razatildeo E o fim de toda atividade

eacute aquele que eacute conforme as disposiccedilotildees do caraacuteter

do qual ela procede e estaacute aiacute uma verdade para o

homem corajoso igualmente sua coragem eacute uma

coisa nobre por conseguinte seu fim tambeacutem eacute

100 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original εἰ δή

ἐστιν ὁ φόβος μετὰ προσδοκίας τινὸς τοῦ πείσεσθαί τι φθαρτικὸν πάθος

φανερὸν ὅτι οὐδεὶς φοβεῖται τῶν οἰομένων μηδὲν ἂν παθεῖν οὐδὲ ταῦτα ἃ μὴ

οἴονται ἂν παθεῖν οὐδὲ τούτους ὑφ ὧν μὴ οἴονται οὐδὲ τότε ὅτε μὴ οἴονται

ἀνάγκη τοίνυν φοβεῖσθαι τοὺς οἰομένους τι παθεῖν ἄν καὶ τοὺς ὑπὸ τούτων καὶ

ταῦτα καὶ τότε οὐκ οἴονται δὲ παθεῖν ἂν οὔτε οἱ ἐν εὐτυχίαις μεγάλαις ὄντες

καὶ δοκοῦντες [] οὔτε οἱ ἤδη πεπονθέναι πάντα νομίζοντες τὰ δεινὰ καὶ

ἀπεψυγμένοι πρὸς τὸ μέλλον ὥσπερ οἱ ἀποτυμπανιζόμενοι ἤδη ἀλλὰ δεῖ τινα

ἐλπίδα ὑπεῖναι σωτηρίας περὶ οὗ ἀγωνιῶσιν σημεῖον δέ ὁ γὰρ φόβος

βουλευτικοὺς ποιεῖ καίτοι οὐδεὶς βουλεύεται περὶ τῶν ἀνελπίστων

116

nobre jaacute que uma coisa se define sempre por seu

fim e por consequecircncia eacute em vista de um fim

nobre que o homem corajoso faz frente aos

perigos e completa as accedilotildees que lhe dita sua

coragem (EN III 10 1115b17-24)101

Assim a coragem eacute a mediania em relaccedilatildeo agraves coisas que inspiram

medo nas circunstacircncias mencionadas O corajoso escolhe ou encara tais

coisas por ser nobre agir desse modo ou por ser vergonhoso agir

diferentemente mas o filoacutesofo lista lsquotiposrsquo de coragem (EN III 11

1116a28 et seq) dentre as quais destaca o desejo de evitar a vergonha e

o medo da desonra como o que mais se aproxima da coragem

propriamente dita Haveria mesmo como vimos uma coragem por

impulso (thymoacutes) considerada plena de emoccedilatildeo no sentido que

movimenta corpo e alma mas que quando acompanhada de impulso

bem-educado acrescida de escolha deliberada e de um bom fim

tenderia mais de perto agrave virtude moral da coragem (EN III 11 1117a4)

Haveria ainda uma coragem incitada por discursos retoacutericos e por

apresentaccedilotildees artiacutesticas e estas provavelmente fossem os tipos que

menos colocassem os homens em accedilotildees corajosas Entendemos no

entanto que mesmo estas uacuteltimas poderiam ser capazes de preparar

ouvintes e espectadores para decisotildees e accedilotildees reais jaacute que expotildeem

modelos de coragem o que prepararia os cidadatildeos para momentos em

que realmente necessitassem de decisotildees influenciadas pela virtude em

questatildeo

O distintivo de um homem verdadeiramente corajoso contudo eacute

suportar aquilo que realmente eacute temiacutevel ou que lhe parece como tal (EN III 11 1117a16-17) Aleacutem disso Aristoacuteteles ressalta que normalmente se

pensa que um homem mostra maior coragem ao natildeo temer e natildeo se

abalar frente a perigos bruscos e natildeo previsiacuteveis jaacute que a associaccedilatildeo

entre sua phroacutenēsis e virtude moral o deixam em boas condiccedilotildees para

agir em quaisquer situaccedilotildees Assim a coragem eacute fruto de uma

disposiccedilatildeo de caraacuteter e requer menos preparaccedilatildeo para a accedilatildeo Os perigos

previsiacuteveis podem ser alvo de caacutelculo (logismoucirc) e de raciociacutenio

101 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ὁ μὲν οὖν ἃ δεῖ καὶ οὗ ἕνεκα ὑπομένων καὶ φοβούμενος καὶ

ὡς δεῖ καὶ ὅτε ὁμοίως δὲ καὶ θαρρῶν ἀνδρεῖος κατ ἀξίαν γάρ καὶ ὡς ἂν ὁ

λόγος πάσχει καὶ πράττει ὁ ἀνδρεῖος τέλος δὲ πάσης ἐνεργείας ἐστὶ τὸ κατὰ

τὴν ἕξιν daggerκαὶ τῷ ἀνδρείῳ δὲ ἡ ἀνδρεία καλόνdagger τοιοῦτον δὴ καὶ τὸ τέλος

ὁρίζεται γὰρ ἕκαστον τῷ τέλει καλοῦ δὴ ἕνεκα ὁ ἀνδρεῖος ὑπομένει καὶ πράττει

τὰ κατὰ τὴν ἀνδρείαν

117

(loacutegou) implicando essas operaccedilotildees racionais com a forma adequada de

temer mas os perigos suacutebitos pedem uma disposiccedilatildeo de caraacuteter estaacutevel

(EN III 11 1117a17-22) e esta parece ser a verdadeira virtude Ademais

o filoacutesofo apresenta como mais corajoso quem permanece imperturbaacutevel

diante de perigos e age como aquele que tem esse tipo de

comportamento quando estaacute seguro A coragem em si mesma portanto

eacute descrita como algo doloroso por sua ligaccedilatildeo com o thymoacutes mas eacute

digna de elogios porque eacute mais difiacutecil encarar dores que se abster de

prazeres

Diante do exemplo de virtude moral particular exposto podemos

compreender a despeito das teorias contraacuterias agrave postura da teoria do

meio termo e da variabilidade das coisas particulares que tocam agrave moral

que realmente eacute devido tratar filosoficamente tais assuntos validando o

fato de Aristoacuteteles comeccedilar sua discussatildeo sobre a mateacuteria afirmando que

as coisas ora estudadas satildeo naturalmente corrompidas por excesso e

falta A ideia de que a mediania eacute aliada das virtudes igualmente eacute

vaacutelida natildeo conflitando com os exemplos que parecem lidar sempre com

quantias contaacuteveis (EN II 2 1104a13-17) e que extrapolam o acircmbito das

puras reflexotildees filosoacuteficas

2c) A forccedila do haacutebito para o correto se emocionar

Ao admitir dois tipos diferentes de virtude conforme a lsquodivisatildeorsquo

da alma Aristoacuteteles nos fala da existecircncia da virtude moral que ldquoresulta

do haacutebito de onde tirou tambeacutem o nome divergindo ligeiramente de

eacutethos102rdquo (EN II 1 1103a17-18)103 O exemplo dado para esclarecer tal

proposta eacute o da pedra que se lanccedilada seguidamente para cima natildeo se

habituaria agraves alturas uma vez que eacute de sua natureza o estar embaixo

explicando que nenhuma virtude moral eacute dada a noacutes por natureza porque

as coisas da natureza natildeo podem ser alteradas pelo haacutebito104 Por isso o

102 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἡ δ ἠθικὴ ἐξ ἔθους περιγίνεται

ὅθεν καὶ τοὔνομα ἔσχηκε μικρὸν παρεκκλῖνον ἀπὸ τοῦ ἔθους 103 Dessas propostas que diferenciam virtude moral e virtude intelectual surge

uma questatildeo intrigante e que provavelmente consigamos responder no Capiacutetulo

seguinte Ela eacute proposta Por Zingano (2008 p 93) do seguinte modo ldquoPode-se

no entanto perguntar por que Aristoacuteteles introduziu aqui esta observaccedilatildeo jaacute

que por contraste esperar-se-ia que as virtudes morais natildeo tivessem a mesma

exigecircncia quando parece ser o contraacuterio visto surgirem do haacutebito e o haacutebito

certamente requer tempo e experiecircnciardquo 104Com essa postura Aristoacuteteles parece buscar responder agrave questatildeo jaacute

apresentada pelo Mecircnon a respeito da possibilidade de se ensinar a virtude O

118

filoacutesofo explica que ldquoas virtudes natildeo se engendram nem naturalmente

nem contra a natureza mas porque somos naturalmente aptos a recebecirc-

las aperfeiccediloamo-nos pelo haacutebitordquo (EN II 1 1103a23-26)105

As virtudes morais satildeo adquiridas pelo exerciacutecio que lhes

precede implicando que um homem se torna justo praticando atos justos

(EN II 2 1103b31) Por exemplo os cidadatildeos satildeo tornados bons porque

as famiacutelias o legislador e a poacutelis como um todo lhes incute bons haacutebitos

direcionados pela lei Por isso os mestres satildeo necessaacuterios jaacute que natildeo

nascemos sabendo fazer as coisas Isso confirma que em um primeiro

momento da formaccedilatildeo moral a virtude vem de fora O que reforccedila essa

ideia eacute o fato que das coisas naturais primeiro temos a potecircncia e depois

as exercitamos em atividades Por exemplo o haacutebito nos apetites e na

raiva tem destino distinto pois uns se tornam temperantes e tolerantes

outros intemperantes e irasciacuteveis devido agrave sua insistecircncia em agir do

mesmo modo em situaccedilotildees semelhantes Esse tipo de explicaccedilatildeo nos

permite defender a possibilidade de habituar apetites e raiva ou seja de

alterar as emoccedilotildees com o auxiacutelio dos haacutebitos do bom conselho e de

outros instrumentos que favoreccedilam a virtude Portanto habituar-se de

um modo ou de outro desde jovem natildeo eacute de somenos mas de muita ou

melhor de toda importacircnciardquo (EN II 1 1103b23-25)106 porque um

homem mal habituado em suas emoccedilotildees torna-se vicioso

Habituar-se de um modo ou de outro estaacute relacionado ao prazer

que se sente com determinadas atividades como vimos no Capiacutetulo

anterior Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer

ou dor implicando que para Aristoacuteteles a virtude tem por natureza

praticar o melhor quanto a estes (EN II 2 1104b9-24) pois eacute proacuteprio agrave

virtude moral o prazer tido com as accedilotildees corretas A capacidade de

retidatildeo nas accedilotildees nas emoccedilotildees nos desejos e nos prazeres viraacute com a

praacutetica habitual de boas accedilotildees proposta que aparece em EN III e na qual

Hutchinson (2009 p 276-277) percebe um paradoxo se as virtudes

estagirita afirma que virtudes morais vecircm com haacutebito e natildeo com ensino Platatildeo

poderia ter chegado a conclusatildeo semelhante (Leis 792e2 Rep 518e1-2 apud

ZINGANO 2008 p 93) contudo ao que parece faz uma concessatildeo aos que

natildeo satildeo saacutebios e que poderiam alcanccedilar a virtude moral por meio da praacutetica Jaacute

Aristoacuteteles entende que todos independentemente de suas tendecircncias naturais

alcanccedilam a virtude por meio do haacutebito 105 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original οὔτ ἄρα φύσει οὔτε παρὰ φύσιν

ἐγγίνονται αἱ ἀρεταί ἀλλὰ πεφυκόσι μὲν ἡμῖν δέξασθαι αὐτάς τελειουμένοις δὲ

διὰ τοῦ ἔθους 106 Idem no original οὐ μικρὸν οὖν διαφέρει τὸ οὕτως ἢ οὕτως εὐθὺς ἐκ νέων

ἐθίζεσθαι ἀλλὰ πάμπολυ μᾶλλον δὲ τὸ πᾶν

119

morais se consolidam pelo treino que leva a se comportar

adequadamente como eacute possiacutevel desenvolvecirc-las Sendo preciso repetir

accedilotildees corajosas para nos tornarmos corajosos natildeo seria preciso ser

previamente corajoso para agir de tal modo O estudioso aponta duas

soluccedilotildees dadas pelo proacuteprio Aristoacuteteles para desfazer o inconveniente

A primeira afirma que haacute coisas que fazemos sob a orientaccedilatildeo do outro

o que nos capacita fazer o que eacute indicado sem ainda sermos haacutebeis para

tanto Isso acontece igualmente com as virtudes morais pois a princiacutepio

devemos agir conforme a sugestatildeo de um educador tornando o conselho

e o exemplo cruciais como observa Aggio (2017 no prelo) Nesse

ponto da formaccedilatildeo natildeo importa que a virtude natildeo esteja no agente ou

que esteja naquele que o aconselha a agir bem pois ainda natildeo foi

internalizada pelo agente embora esse possa seguir um bom conselho

que auxiliaraacute sua habituaccedilatildeo moral para a virtude

A segunda soluccedilatildeo nos diz que as virtudes morais satildeo diferentes

da habilidade porque seu desempenho eacute expressatildeo do caraacuteter uma accedilatildeo

realmente corajosa eacute feita por um homem que sabe o que faz e que tem

um caraacuteter firme e permanentemente corajoso agindo deste modo pela

coragem mesma coisa correta a se fazer Por conseguinte o treinamento

do jovem para a coragem natildeo exige que este seja previamente corajoso

pois a virtude viraacute com o exerciacutecio A praacutetica e a aquisiccedilatildeo de

entendimento tornaratildeo o jovem senhor de suas accedilotildees a partir do que

deixaraacute de seguir propostas alheias sobre como agir corretamente seraacute

realmente virtuoso moralmente pois agiraacute por si mesmo e por amor ao

que eacute correto e bom Mas o filoacutesofo observa ldquoCom efeito eacute possiacutevel

fazer algo de cunho gramaacutetico tanto por acaso como instruiacutedo por outra

pessoardquo (EN II 3 1105a23-26)107 A esse problema Aristoacuteteles respondeu

resumidamente da seguinte maneira para agir com virtude eacute preciso

estar em um certo estado ou o agente sabe o que faz e em seguida

escolhe por deliberaccedilatildeo as coisas elas mesmas agindo por fim de

forma firme e inalteraacutevel (EN II 3 1105a31-1105b1) ou eacute guiado por

algueacutem que sabe o que faz ao menos ateacute atingir a capacidade de guiar

por si mesmo suas accedilotildees Deste modo ratifica-se que as virtudes satildeo

adquiridas por serem exercitadas (EN II 1 1103a31) ou seja satildeo

aprendidas fazendo tornamo-nos corajosos com a praacutetica frequente de

accedilotildees de coragem sendo o haacutebito incutido que leva agrave virtude moral O

contraacuterio contudo pode ocorrer caso se pratique frequentemente maacutes

accedilotildees eacute possiacutevel incorrer em viacutecio como explica o passo abaixo

107 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἐνδέχεται γὰρ γραμματικόν τι

ποιῆσαι καὶ ἀπὸ τύχης καὶ ἄλλου ὑποθεμένου

120

Assim tambeacutem acontece com as virtudes agindo

nas transaccedilotildees entre homens tornam-se uns

justos outros injustos agindo nas situaccedilotildees de

perigo e habituando-se a temer ou a ter confianccedila

tornam-se uns corajosos outros covardes O

mesmo ocorre no caso dos apetites assim como

no das iras pois se tornam uns temperantes e

tolerantes outros intemperantes e irasciacuteveis uns

por persistirem a agir de um jeito nas mesmas

situaccedilotildees outros por persistirem de outro jeito

Por esta razatildeo eacute preciso que as atividades

exprimam certas qualidades pois as disposiccedilotildees

seguem as diferenccedilas das atividades (EN II 1

1103b13-22)108

O passo confirma a possibilidade de alteraccedilatildeo dasnas emoccedilotildees

por via da habituaccedilatildeo Por isso um educador deve se valer da dor e do

prazer com as accedilotildees como indiacutecios das disposiccedilotildees do agente (EN II 2

1104b4-5) e como guia para os haacutebitos que deve incutir ou afastar de

seus disciacutepulos

Apesar de as discussotildees travadas acima tornarem o assunto

satisfatoriamente claro precisaremos ainda mais agrave frente apreciar a

questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre ensino e habituaccedilatildeo auxiliados pelo

prazer com certas accedilotildees e atividades Por ora o passo supracitado chama

nossa atenccedilatildeo para a questatildeo mas pensamos que as puniccedilotildees tambeacutem

sirvam como indicadores de disposiccedilotildees morais pois se costuma operar

ldquocurardquo pelo contraacuterio Segundo essa proposta os homens se tornam bons

ou maus pelos prazeres e dores evitando-os ou buscando-os como

quando e com o que se deve ou natildeo se deve e eacute isso que se observaraacute na

educaccedilatildeo e para as puniccedilotildees Isso indica que a virtude tem por natureza

a praacutetica do que eacute melhor frente a prazeres e dores mas o viacutecio leva ao

contraacuterio (EN II 2 1104b26-28) e por isso eacute preciso ter disciplina quanto

a essas afecccedilotildees

108 Idem οὕτω δὴ καὶ ἐπὶ τῶν ἀρετῶν ἔχει πράττοντες γὰρ τὰ ἐν τοῖς

συναλλάγμασι τοῖς πρὸς τοὺς ἀνθρώπους γινόμεθα οἳ μὲν δίκαιοι οἳ δὲ ἄδικοι

πράττοντες δὲ τὰ ἐν τοῖς δεινοῖς καὶ ἐθιζόμενοι φοβεῖσθαι ἢ θαρρεῖν οἳ μὲν

ἀνδρεῖοι οἳ δὲ δειλοί ὁμοίως δὲ καὶ τὰ περὶ τὰς ἐπιθυμίας ἔχει καὶ τὰ περὶ τὰς

ὀργάς οἳ μὲν γὰρ σώφρονες καὶ πρᾶοι γίνονται οἳ δ ἀκόλαστοι καὶ ὀργίλοι οἳ

μὲν ἐκ τοῦ οὑτωσὶ ἐν αὐτοῖς ἀναστρέφεσθαι οἳ δὲ ἐκ τοῦ οὑτωσί καὶ ἑνὶ δὴ

λόγῳ ἐκ τῶν ὁμοίων ἐνεργειῶν αἱ ἕξεις γίνονται διὸ δεῖ τὰς ἐνεργείας ποιὰς

ἀποδιδόναι κατὰ γὰρ τὰς τούτων διαφορὰς ἀκολουθοῦσιν αἱ ἕξεις

121

A partir do que foi proposto entendemos que a virtude estaacute

relacionada a prazeres e dores que cresce e se corrompe pelas mesmas

coisas (EN II 3 1105a13-16) mas para se tornar virtuoso eacute preciso

praticar frequentemente atos por exemplo corajosos mesmo que estes

sejam dolorosos Os atos satildeo considerados corajosos quando forem

feitos como faria a pessoa considerada dotada de tal virtude embora natildeo

seja corajoso quem realiza atos de coragem mas quem os faz como faria

o homem corajoso Esta virtude moral vem da praacutetica de accedilotildees desse

tipo e natildeo haacute problema como demonstramos haacute pouco com esse tipo

de proposta Ademais Aristoacuteteles frisa que em eacutetica natildeo basta discursar

sobre a conduta virtuosa eacute preciso agir a fim da verdadeira virtude

tendo esses haacutebitos em conformidade agrave virtude intelectual Mas se o

haacutebito eacute bastante para consolidar a virtude moral para que necessitamos

da razatildeo praacutetica A resposta pode ser indicada pela questatildeo da

responsabilidade pelas accedilotildees que tecircm princiacutepio em cada agente que sabe

o que faz como veremos a seguir

2d) Virtude voluntaacuteria diante das circunstacircncias e responsabilidade

A proposta da boa medida tomada como melhor estado da

capacidade natildeo racional da alma humana e como melhor forma de se

emocionar exige que pensemos o agente bom moralmente como

personificaccedilatildeo do equiliacutebrio entre racional e natildeo racional na figura do

prudente Ou seja esse cidadatildeo deve ser pensado como atualizaccedilatildeo

plena daquilo que Aristoacuteteles considera o proacuteprio homem temos um

agente que coordena bem as capacidades de sua alma que eacute princiacutepio de

suas accedilotildees e por conseguinte estas accedilotildees satildeo consideradas voluntaacuterias

(hekouacutesioi) Caso contraacuterio as accedilotildees cometidas satildeo consideradas

involuntaacuterias (akouacutesioi) embora haja tambeacutem atos desse tipo que satildeo

perdoados e ateacute dignos de piedade Mas por que distinguir

voluntariedade e involuntariedade em uma pesquisa sobre as emoccedilotildees

jaacute que tais caracteriacutesticas podem ser atribuiacutedas agraves accedilotildees e natildeo agraves

emoccedilotildees

Quando se estuda a virtude tal distinccedilatildeo eacute necessaacuteria pois as

virtudes satildeo configuradas por accedilotildees voluntaacuterias ligadas agraves emoccedilotildees e ao

que eacute desejado Ademais procuramos encontrar instrumentos que nos

levem a entender a possibilidade de um homem que tenha seu lado natildeo

racional no melhor estado possiacutevel e isso diz respeito a bem agir e bem

se emocionar o que parece ser condizente com a figura de quem age de

acordo com o que julga por si mesmo correto e natildeo por aquele que

meramente toma o conselho de outrem de que algo eacute o correto a se

122

desejar e fazer Este homem atua de certo modo voluntariamente jaacute

que as accedilotildees involuntaacuterias parecem ser aquelas ldquoaccedilotildees praticadas por

forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccedilado o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao

agente princiacutepio para o qual o agente ou o paciente em nada contribuirdquo

(EN III 1 1109b35 1110a1)109

As accedilotildees tambeacutem podem ser mistas quando praticadas conforme

a ocasiatildeo e natildeo como se agiria normalmente Por isso o caraacuteter

voluntaacuterio ou involuntaacuterio da accedilatildeo deve ser atribuiacutedo tendo em vista o

momento em que foi praticada as accedilotildees voluntaacuterias satildeo aquelas cujo

poder de fazer ou natildeo fazer determinada coisa em certa situaccedilatildeo estaacute no

proacuteprio agente ldquoRigorosamente entatildeo agir voluntariamente eacute ldquoagir

com razoaacutevel conhecimento das circunstacircncias a natildeo ser que fosse

literalmente impossiacutevel fazer outra coisardquordquo (HUTCHINSON 2009 p

272) Em contrapartida as accedilotildees que podem ser consideradas forccediladas

satildeo penosas Aristoacuteteles explica que o ldquoato forccedilado portanto mostra-se

aquele cujo princiacutepio eacute exterior a pessoa forccedilada em nada contribuindo

ao princiacutepio da accedilatildeordquo (EN III 1 1110b15-17)110 O fato das

circunstacircncias serem definidoras do que se decide fazer inviabiliza

certas objeccedilotildees agrave proposta da mediania como virtude moral pois como

vimos coloca paracircmetros externos para a accedilatildeo natildeo permitindo que seja

totalmente relativa ao que o agente deseja

Tambeacutem como vimos o fim bem amparado pela razatildeo praacutetica eacute

objeto do desejo reto das emoccedilotildees adequadas e causa da accedilatildeo embora

no homem virtuoso as coisas que levam ao fim sejam objetos da

deliberaccedilatildeo e da escolha deliberada Por conseguinte accedilotildees que lhes

dizem respeito satildeo feitas por escolha deliberada e voluntariamente

sendo estas as accedilotildees corretas moralmente111 Assim

Sobre as virtudes em geral temos dito pois

esquematicamente quanto a seu gecircnero que satildeo

meios termos e haacutebitos que por si mesmas

tendem a praticar as accedilotildees que as produzem que

dependem de noacutes e satildeo voluntaacuterias e atuam de

acordo com as normas da reta razatildeo Mas as accedilotildees

109 Traduccedilatildeo Zingano (2008) no original ἀκούσια εἶναι τὰ βίᾳ ἢ δι ἄγνοιαν

γινόμενα βίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ

πράττων ἢ ὁ πάσχων 110 Idem τὸ βίαιον εἶναι οὗ ἔξωθεν ἡ ἀρχή μηδὲν συμβαλλομένου τοῦ

βιασθέντος 111 No entanto vale observar com Korsgaard que o homem virtuoso natildeo passa

a vida toda deliberando mas delibera apenas frente a determinadas situaccedilotildees

123

natildeo satildeo voluntaacuterias do mesmo modo que os

haacutebitos de nossas accedilotildees somos donos desde o

princiacutepio ateacute o fim se conhecemos as

circunstacircncias particulares dos nossos haacutebitos no

princiacutepio mas seu incremento natildeo eacute perceptiacutevel

como ocorre com as doenccedilas Natildeo obstante como

estava em nossa matildeo comportar-nos de tal ou tal

maneira satildeo por isso voluntaacuterios (EN III 8

1114b26-35 III 9 1115a1-3)112

O passo nos permite reforccedilar que a virtude moral eacute uma

disposiccedilatildeo louvaacutevel sendo a capacidade de se comportar bem em

relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees comportar-se com medida relativa a noacutes e que de

certo modo somos responsaacuteveis por esse comportamento De acordo

com Hutchinson (2009 p 267) satildeo ldquoas disposiccedilotildees de nossas emoccedilotildees

que nos ajudam a dar as respostas corretas agraves situaccedilotildees praacuteticasrdquo Por

isso eacute preciso estabelecer um certo tipo de educaccedilatildeo favoraacutevel agrave virtude

moral malgrado a inexatidatildeo dos assuntos que tocam a esse tipo de

virtude Nessa educaccedilatildeo cabem os haacutebitos que satildeo o modo pelo qual se

pode consolidar a virtude poreacutem devem ser haacutebitos conscientes e

escolhidos deliberadamente113 As virtudes morais vecircm de atos

voluntaacuterios que tecircm sua fonte no proacuteprio agente embora sejam

pautadas nas circunstacircncias e na procura pelo bem Assim o homem

virtuoso eacute responsaacutevel por tais virtudes - e igualmente pelos viacutecios -

como eacute responsaacutevel por seus atos114 na medida em que escolhe e decide

112 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Κοινῇ μὲν οὖν περὶ τῶν ἀρετῶν εἴρηται ἡμῖν τό τε γένος

τύπῳ ὅτι μεσότητές εἰσιν καὶ ὅτι ἕξεις ὑφ ὧν τε γίνονται ὅτι τούτων

πρακτικαὶ ltκαὶgt καθ αὑτάς καὶ ὅτι ἐφ ἡμῖν καὶ ἑκούσιοι καὶ οὕτως ὡς ἂν ὁ

ὀρθὸς λόγος προστάξῃ οὐχ ὁμοίως δὲ αἱ πράξεις ἑκούσιοί εἰσι καὶ αἱ ἕξεις τῶν

μὲν γὰρ πράξεων ἀπ ἀρχῆς μέχρι τοῦ τέλους κύριοί ἐσμεν εἰδότες τὰ καθ

ἕκαστα τῶν ἕξεων δὲ τῆς ἀρχῆς καθ ἕκαστα δὲ ἡ πρόσθεσις οὐ γνώριμος

ὥσπερ ἐπὶ τῶν ἀρρωστιῶν ἀλλ ὅτι ἐφ ἡμῖν ἦν οὕτως ἢ μὴ οὕτω χρήσασθαι

διὰ τοῦτο ἑκούσιοι 113 Mesmo que a princiacutepio sejam conscientes e deliberadamente escolhidos por

outrem 114 Haacute um problema quanto a ligar atos voluntaacuterios e responsabilidade pelos

atos Natildeo vamos entrar nos meacuteritos da questatildeo nesse momento pois

extrapolaria nossas forccedilas Podemos contudo indicar que quanto a isso

Zingano difere de Irwin pois pensa que para que um agente seja responsaacutevel

por suas accedilotildees precisa agir voluntariamente mas para que um ato seja

considerado voluntaacuterio natildeo eacute necessaacuterio responsabilizar o agente Assim

124

por si mesmo o que deve fazer podendo ser elogiado ou censurado

A virtude moral quando bem exercitada eacute disposiccedilatildeo segundo a

regra justa que eacute estabelecida pela prudecircncia e por isso pode ordenar

por-se o fim Se o fim tem relaccedilatildeo com o desejo este precisa ser

educado ateacute que se conforme a reta razatildeo que implica aprender a

desejar assim como a se emocionar para agir bem bela e nobremente

em comunidade A aplicaccedilatildeo da teoria da boa medida bem como a

aplicaccedilatildeo de seus paracircmetros eacute necessaacuteria para que tal educaccedilatildeo se

concretize Por isso e pela maleabilidade da capacidade natildeo racional

frente agraves sugestotildees da razatildeo eacute possiacutevel a Aristoacuteteles propor a boa

medida nas emoccedilotildees

O virtuoso em sentido moral e completo julga bem (kriacutenei

orthocircs) as coisas e a verdade se manifesta a ele (talēthegraves autograve phaiacutenetai)

sendo o homem que se distingue por sua capacidade de ver o verdadeiro

(talēthegraves hōraacuten) em cada coisa padratildeo e medida para todas as coisas

(EN III 6 1113a30-35) eliminando novamente a relatividade da

doutrina O virtuoso eacute o homem cujas atividades envolvem deliberaccedilatildeo e

escolha deliberada pois natildeo haacute virtude sem estes traccedilos de razatildeo ou ao

menos natildeo haacute virtude completa (aretegraven teleiacutean) entendida aqui como

aquela junccedilatildeo entre a virtude moral e a virtude intelectual que a

aperfeiccediloa Por isso tanto a virtude quanto o viacutecio estaacute em nosso poder

(ephacutehēmicircn) pois podemos agir quando eacute belo bem como deixar de agir

quando isso eacute desonroso e portanto estaacute em nosso poder sermos bons

ou maus contrariando Soacutecrates

Como vimos as coisas consideradas em nosso poder e

voluntaacuterias satildeo as coisas das quais o princiacutepio estaacute em noacutes e por isso a

distribuiccedilatildeo dos castigos e das honrarias feita pelos legisladores eacute

pautada na boa administraccedilatildeo que cada agente tem de si e de sua

capacidade natildeo racional o que soacute eacute possiacutevel se entendermos as

propostas de Aristoacuteteles sobre a alma como tendendo agrave unicidade que

permite a comunicaccedilatildeo entre as capacidades da alma Sendo as virtudes

voluntaacuterias noacutes somos de certo modo causas coadjuvantes de nossas

disposiccedilotildees jaacute que temos o poder de controlaacute-las a princiacutepio embora

escapem ao nosso controle apoacutes certo tempo e exerciacutecio Isso nos

confere deliberadamente o princiacutepio das qualidades que carregaremos

Zingano entende o voluntaacuterio como condiccedilatildeo necessaacuteria embora natildeo suficiente

para uma accedilatildeo da responsabilidade do agente Isso porque soacute pode ser

responsabilizado aquele que eacute princiacutepio da accedilatildeo e cuja accedilatildeo levar a elogio ou

censura que aperfeiccediloem o agente Mais sobre essas questotildees consultar Zingano

(2008 p 146-147)

125

vida afora115 e por nossa qualidade pomos o fim correspondente agraves

nossas accedilotildees (EN III 7 1114b21-24) eis o motivo de Aristoacuteteles ter

afirmado que agindo bem nos tornamos bons e que as maacutes accedilotildees nos

levam ao viacutecio

Apoacutes atingirmos essas conclusotildees deveremos tratar as questotildees

acerca da proposta da mediania nas emoccedilotildees pois como observa

Besnier (2008 p 78) ldquoSendo a paixatildeo um movimento reativo passivo e

indeliberado resta saber de que modo podemos constituir uma atitude

como virtuosa a seu respeito tal como podemos fazer para a accedilatildeordquo A

questatildeo eacute entatildeo como moderamos nossas emoccedilotildees

3 Metriopaacutethēia o ideal de emoccedilatildeo para a vida virtuosa

Com o que vimos ateacute agora ficou evidente que Aristoacuteteles propotildee

a virtude moral e a virtude mais completa como dependentes da boa

medida em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees possiacutevel graccedilas ao equiliacutebrio entre as

capacidades que datildeo ao homem o que lhe eacute peculiar116 Tal teoria a

partir do periacuteodo heleniacutestico ficou conhecida como metriopaacutethēia e

embora o termo natildeo seja de Aristoacuteteles Zingano (2007 p 143)

considera que seja a definiccedilatildeo ldquosucinta e felizrdquo das teorias do filoacutesofo

acerca de como devemos nos portar frente agraves emoccedilotildees O estudioso

explica que ldquonatildeo se trata de extirpar as emoccedilotildees mas de lhes dar uma

justa medida vivecirc-las metriocircs e a virtude moral consiste justamente em

encontrar sua medida em funccedilatildeo e no meio das circunstacircncias em que se

produzem as accedilotildeesrdquo (ZINGANO 2007 p 144) Entende que isso

significa ldquoexaminaacute-lo [o paacutethos] mediante uma deliberaccedilatildeo pois a

virtude eacute uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha deliberadardquo (2007 p 165) A

virtude moral tem em vista o meio termo quanto agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees

porque nestas pode haver excesso falta e boa medida Dessa

possibilidade de variaccedilatildeo surgiu nossa necessidade de questionar a

doutrina na medida em que tal questionamento nos auxiliasse a resolver

as questotildees propostas por nossa pesquisa

Pelos estudos acima apresentados pudemos entender a mediania

relativamente a noacutes abarcando tanto especificaccedilotildees quantitativas como

115Essa questatildeo que parece segundo anaacutelise de Zingano (2008 p 92)

questionar a tese central do capiacutetulo II (ldquoa disposiccedilatildeo acompanha e em um

sentido relevante eacute dependente das accedilotildeesrdquo) seraacute respondida no item que trataraacute

dos haacutebitos 116EN I 1098a7-12 IX 1172a4-6 X I 1177b26-30 Pol 1253a25-28

126

qualitativas tendo em vista a circunstacircncia na qual a accedilatildeo precisa ser

cometida e que lhe fornece paracircmetros e possibilidades de ajuizamento

Deste modo determinar a mediania relativa a noacutes implica determinar

aquilo que as circunstacircncias relevantes em seu conjunto apontam tendo

em conta o fim buscado pelo agente Para que isso seja cumprido dever-

se-aacute fazer o que for preciso na hora certa na ocasiatildeo certa e do modo

certo (EN II 5 1106b21-22) Tal ideia eacute chamada por Hursthouse (2009

p 104) de ldquodoutrina centralrdquo da mediania e pode ser exemplificada do

seguinte modo conforme o proacuteprio Aristoacuteteles

[] eacute possiacutevel temer ter arrojo ter apetite

encolerizar-se ter piedade e em geral aprazer-se

e afligir-se muito e muito pouco e ambos de

modo natildeo adequado o quando deve a respeito de

quais relativamente a quem com que fim e como

deve eacute o meio termo e o melhor o que justamente

eacute a marca da virtude Similarmente haacute excesso

falta e meio termo no tocante agraves accedilotildees A virtude

diz respeito a emoccedilotildees e accedilatildeo nas quais o excesso

erra e a falta eacute censurada ao passo que o meio

termo acerta e eacute louvado acertar e ser louvado

pertencem agrave virtude (EN II 5 1106b18-26)117

No capiacutetulo anterior todavia foi mencionado que nem toda accedilatildeo

e nem toda emoccedilatildeo admite mediania No Livro IV da EN Aristoacuteteles

questiona se podemos realmente considerar a vergonha ou pudor (aidṓs)

como uma virtude118 jaacute que natildeo eacute possiacutevel ter boa medida quanto a ela

117 Isso eacute vaacutelido caso a interpretaccedilatildeo de Rapp (2010 p 424) esteja correta e se

quando Aristoacuteteles afirma que o meio termo eacute o padratildeo bom e correto quanto ao

contiacutenuo e o divisiacutevel estaacute a tratar das escalas contiacutenuas das emoccedilotildees e accedilotildees e

natildeo das virtudes e dos viacutecios Por isso natildeo haacute como encontrar escalas realmente

quantitativas entre virtudes e viacutecios mas podem ser encontradas entre emoccedilotildees

e accedilotildees

O passo supracitado tem traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original οἷον καὶ

φοβηθῆναι καὶ θαρρῆσαι καὶ ἐπιθυμῆσαι καὶ ὀργισθῆναι καὶ ἐλεῆσαι καὶ ὅλως

ἡσθῆναι καὶ λυπηθῆναι ἔστι καὶ μᾶλλον καὶ ἧττον καὶ ἀμφότερα οὐκ εὖ τὸ δ

ὅτε δεῖ καὶ ἐφ οἷς καὶ πρὸς οὓς καὶ οὗ ἕνεκα καὶ ὡς δεῖ μέσον τε καὶ ἄριστον

ὅπερ ἐστὶ τῆς ἀρετῆς ὁμοίως δὲ καὶ περὶ τὰς πράξεις ἔστιν ὑπερβολὴ καὶ

ἔλλειψις καὶ τὸ μέσον ἡ δ ἀρετὴ περὶ πάθη καὶ πράξεις ἐστίν ἐν οἷς ἡ μὲν

ὑπερβολὴ ἁμαρτάνεται καὶ ἡ ἔλλειψις [ψέγεται] τὸ δὲ μέσον ἐπαινεῖται καὶ

κατορθοῦται 118 Zingano levanta esse problema em seus Estudos de Eacutetica Antiga (2007 p

127

A questatildeo se impotildee porque o filoacutesofo considera as caracteriacutesticas

atreladas ao pudor mais proacuteximas daquelas que normalmente se daria a

uma afecccedilatildeo que igualmente atinge o corpo A vergonha cuja emoccedilatildeo

que lhe seria proacutepria levaria o mesmo nome seria distinta das demais

afecccedilotildees devido a ser identificada com aquilo que traria para o agente

medo da desonra ou um embaraccedilo diante das maacutes accedilotildees que este

comete Por isso o filoacutesofo considera que provavelmente seja

inadequado classificaacute-la como virtude moral jaacute que este tipo de

disposiccedilatildeo proacutepria ao homem bom natildeo comportaria maacutes accedilotildees A

despeito dessas questotildees o texto eacute sobremaneira interessante ao

concordar com as propostas dos tratados bioloacutegicos em especial com

aquelas do DA Vimos que esse escrito descreve um dos aspectos do

paacutethos como uma mudanccedila fiacutesica entre outras caracteriacutesticas e ressalta

tambeacutem que haveria emoccedilotildees moralmente neutras aleacutem daquelas que

seriam capazes de se adequar ao que eacute correto moralmente Diante

dessas dificuldades Sorabji explica que Aristoacuteteles

[] diz que o que conta muito ou pouco depende

de quem noacutes somos da ocasiatildeo do para quecirc e

para quem a nossa emoccedilatildeo eacute dirigida do resultado

provaacutevel e do modo de reagir Aleacutem disso ele

aponta que algumas emoccedilotildees como

Schadenfreude e inveja tecircm a ideia de maldade

construiacuteda nelas de modo que natildeo haacute espaccedilo para

a ideia de moderaccedilatildeo em exercecirc-las (SORABJI

2000 p 195 traduccedilatildeo nossa)

Algumas destas emoccedilotildees satildeo denominadas precisamente por sua

vileza caso da inveja Esse tipo de paacutethos eacute censurado devido ao fato de

ser vil e natildeo por ser excessivo ou em falta ou provavelmente seja

censurado por excesso ou falta devido ao fato de romper com os

paracircmetros propostos pela racionalidade praacutetica para natildeo exceder nem

faltar Tal rompimento caracterizaria uma extrapolaccedilatildeo dos padrotildees para

a boa medida e sinalizaria errar tambeacutem no direcionamento da emoccedilatildeo

aos objetos que lhe correspondem naquilo que as circunstacircncias que

envolvem as emoccedilotildees exigem ser apreciado e natildeo somente nas

lsquoquantidadesrsquo ou na lsquointensidadersquo de emoccedilatildeo sentida Estatildeo em jogo

como propusemos anteriormente as falhas quantitativas mas tambeacutem as

falhas qualitativas e de avaliaccedilatildeo que o agente que delibera pode

165) embora natildeo lhe traga soluccedilatildeo

128

cometer ao se emocionar Por exemplo somos censurados por nos

enfurecer muito ou muito pouco e por isso levar a uma accedilatildeo errada bem

como somos censurados por nos enfurecer contra muitas pessoas ou

contra a pessoa errada Rapp (2010 p 430) no entanto observa que a

doutrina parece se adequar melhor ao primeiro caso que eacute quantitativo

embora pense que com uma anaacutelise proacutexima a questatildeo quantitativa

pareccedila duvidosa Segundo este estudioso

[] haacute dois tipos de problemas com os casos

quantitativos os quais podem ser resolvidos

somente se os equipararmos ao qualitativo O

primeiro problema eacute que a quantidade de uma

accedilatildeo ou emoccedilatildeo pode se manifestar de muitos

modos distintos pode ser questatildeo de sentir

intensamente de forccedila motivacional de duraccedilatildeo

ou frequecircncia enquanto a frequecircncia por sua vez

pode ser medida pelas ocorrecircncias pelo nuacutemero

de pessoas envolvidas pelo nuacutemero de ocasiotildees

pelo nuacutemero de lugares etc excesso nestes

vaacuterios aspectos corresponde a diferentes tipos de

falhas Neste sentido as descriccedilotildees quantitativas

em separado de que algueacutem estaacute lsquoenfurecido

demaisrsquo ou lsquoage enfurecidamente demaisrsquo satildeo

eliacutepticas Quando reprovamos algueacutem por sua

raiva excessiva ou por agir muito raivosamente

deveriacuteamos em princiacutepio poder explicar o

sentido ou o conjunto de sentidos em que as

reaccedilotildees raivosas dele satildeo excessivas O segundo

problema traz agrave tona uma outra razatildeo de por que

descriccedilotildees quantitativas em separado satildeo

incompletas quando algueacutem se enraivece em

muitas ocasiotildees e com muitas pessoas podemos

reprovaacute-lo por raiva excessiva Mas quantas

ocasiotildees e pessoas satildeo o bastante e quando isto

comeccedila a ser excessivo Quando realmente

ultrapassamos o nuacutemero moderado de ocasiotildees ou

pessoas Talvez a nossa pessoa enraivecida encare

mais ofensas e insultos que uma pessoa comum

ela natildeo estaria portanto justificada em enfurecer-

se mais frequentemente Eacute oacutebvio que estaacute A fatal

poreacutem inevitaacutevel conclusatildeo eacute que o nuacutemero

absoluto ou a quantidade absoluta natildeo pode nos

informar quando as coisas se tornam deficientes

ou excessivas Sempre que precisamos julgar o

129

grau de raiva de uma pessoa devemos saber se ela

estaacute enraivecida somente com as pessoas que

merecem isto ou se com mais pessoas se ela se

enfurece somente por razotildees respeitaacuteveis ou se

suas reaccedilotildees satildeo apropriadas ou exageradas se ela

se acalma depois de um periacuteodo razoaacutevel de

tempo ou se natildeo tem como dar a volta por cima

etc Podemos concluir entatildeo que a imputaccedilatildeo de

deficiecircncia ou excesso quantitativo em casos

como este depende em uacuteltima instacircncia do caacutelculo

de falhas especificadas qualitativamente (RAPP

2010 p 430-431)

Esse tipo de interpretaccedilatildeo parece razoaacutevel e reforccedila a proposta da

teoria da boa medida como relativa a noacutes amparada na situaccedilatildeo na

bondade do agente e do fim por este procurado garantida por sua

capacidade de boa deliberaccedilatildeo ou prudecircncia visando natildeo um nuacutemero

especiacutefico que aponte como agir corretamente mas paracircmetros e

avaliaccedilotildees que indiquem o agir deste ou daquele modo Aristoacuteteles

contudo insiste que em relaccedilatildeo agraves paacutethē que trazem a maldade desde o

nome natildeo haacute como acertar sendo que quem as sente sempre erra

Entendemos que tais emoccedilotildees satildeo decorrentes dos desejos que natildeo

ouvem ou que ouvem pouco a razatildeo quando natildeo satildeo educados para a

virtude e que acabam por falhar em seu caacutelculo para a boa accedilatildeo Assim

eacute possiacutevel ao filoacutesofo elaborar uma lista dos meios termos ou seja das

virtudes quanto a certas emoccedilotildees fazendo o mesmo em relaccedilatildeo agraves

accedilotildees que devem ser moderadas Estas satildeo descritas no resumo das

virtudes morais apresentado pelo Livro II 7 da EN assim como nos

livros que seguem (EN III-V) quando descrevem em maiores detalhes

aquelas que se costuma chamar virtudes morais

As virtudes morais particulares dizem respeito ao comportamento

relativo agraves emoccedilotildees particulares como bem observa Hutchinson mas

sem esquecer que isso diz respeito agrave forma de conduzir tais emoccedilotildees

diante das situaccedilotildees que se apresentam Por exemplo em tal suma lemos

que a boa medida quanto ao medo e ao arrojo eacute a coragem enquanto em

relaccedilatildeo agrave raiva seria o que geralmente eacute chamado de calma O que

importa nas listas que descrevem as virtudes poreacutem eacute notarmos que a relaccedilatildeo do homem com as emoccedilotildees que sente confirma a proposta

acerca da relevacircncia da presenccedila de emoccedilotildees moderadas quantitativa e

qualitativamente na boa vida moral e da relevacircncia que o entorno e sua

avaliaccedilatildeo tecircm nessas emoccedilotildees ldquoA quantidade correta depende de

paracircmetros que nos concernem ou que concernem a todos que se

130

encontram na mesma situaccedilatildeo que nos encontramosrdquo explica Rapp

(2010 p 431-432) Os paracircmetros salvam tambeacutem o aspecto mais

concreto da doutrina da boa medida como virtude moral havendo

compatibilidade nas duas propostas A aplicaccedilatildeo destes padrotildees agraves

emoccedilotildees permite o ldquocaacutelculordquo da medida nas emoccedilotildees conciliando

novamente os aspectos quantitativos e qualitativos da doutrina dentro da

proposta da metriopaacutethēia bem como permite que a teoria seja aplicada

agraves accedilotildees

A uacutenica quantidade que interessa eacute a quantidade

de reaccedilotildees inapropriadas natildeo a quantidade

absoluta digamos de prazeres que fruiacutemos

somente quando confundimos estes tipos de

escalas quantitativas podemos pensar que falhas

do tipo quantitativo tais como comer doces

demasiadamente beber ouzo demasiadamente

dormir com muitas mulhereshomens etc satildeo

paradigmas para a caracterizaccedilatildeo aristoteacutelica da

virtude e do viacutecio Mas em verdade natildeo faz uma

grande diferenccedila para a doutrina se por exemplo

a nossa fruiccedilatildeo excessiva de prazeres do corpo

tem por base a fruiccedilatildeo de coisas erradas ou de

coisas demais cada uma destas uacuteltimas podendo

ser boa ou beneacutefica em separado (RAPP 2010 p

437)

Soacute se pode dizer que se sente muito ou muito pouco se as

emoccedilotildees satildeo corretas ao se analisar os paracircmetros e as circunstacircncias

por intermeacutedio do caacutelculo deliberativo que leva agrave escolha deliberada do

modo de accedilatildeo A questatildeo da medida nas emoccedilotildees eacute portanto mais a

questatildeo da natildeo violaccedilatildeo dos paracircmetros para a accedilatildeo que da quantidade

exata entre excessos e faltas Para esclarecer o que propomos podemos

dar um exemplo o do homem virtuoso e que encontra a boa medida em

suas emoccedilotildees A descriccedilatildeo estaacute na Retoacuterica e nos apresenta o perfil dos

cidadatildeos que estatildeo no auge da vida Estes homens natildeo satildeo muito

confiantes (temeraacuterios) nem muito temerosos tecircm a justa medida nestas

emoccedilotildees natildeo confiam ou desconfiam de tudo emitem juiacutezos conforme

a verdade natildeo vivem somente para o belo ou para o uacutetil mas para

ambos natildeo vivem apenas para a frugalidade nem para a prodigalidade

mas para o justo meio

O mesmo acontece em relaccedilatildeo ao seu impulso e ao seu apetite

adultos tecircm sua temperanccedila acompanhada de coragem e vice-versa

131

Diferem dos jovens que satildeo valentes e licenciosos e dos idosos que satildeo

moderados e covardes Portanto o homem no auge da vida eacute modelo da

virtude moral que eacute o bem agir diante das emoccedilotildees sentidas nas

circunstacircncias vividas Tal homem eacute a expressatildeo do bom estado da alma

natildeo racional que pensamos ser impossiacutevel sem o acordo com a

capacidade racional representada pela prudecircncia sendo modelo

igualmente da influecircncia das circunstacircncias que natildeo satildeo as mesmas para

quem se encontra no ponto alto de sua existecircncia na melhor forma de

suas capacidades e para aqueles que ainda satildeo demasiado jovens ou que

jaacute satildeo demasiado velhos

O auge da vida exige uma razatildeo reta capaz de discriminar

(kriacutenein) corretamente situaccedilotildees particulares encontrar o meio termo

desejado e buscado com a accedilatildeo Aggio propotildee que isso soacute acontece agrave

pessoa que tenha preparaccedilatildeo afetiva preacutevia sendo afetivamente capaz de

ver o que eacute melhor A autora entende que usar bem a razatildeo depende de

um bem-estar afetivo ou do bom estado da capacidade natildeo racional

como Rapp e a sua leitura da boa medida igualmente nos propotildeem

ldquoMas o que eacute o modo certo e as vezes certas e quem eacute a pessoa certa

depende do tipo de situaccedilatildeo e contexto em que agimosrdquo (AGGIO 2017

no prelo) Isso nos leva a entender que o conceito de meio termo relativo

a noacutes foi elaborado para abarcar a ideia do conteuacutedo dos mencionados

paracircmetros e por isso pode variar conforme as circunstacircncias para a boa

accedilatildeo - mas natildeo sem ter o bem supremo em vista

Uma quantificaccedilatildeo do que eacute bom ou mau natildeo eacute usada para

determinar paracircmetros individuais na doutrina esta apresenta as

condiccedilotildees nas quais as solicitaccedilotildees da capacidade natildeo racional da alma e

as accedilotildees que lhes correspondem sejam tomadas como boas ou corretas

Valendo-nos ainda do exemplo do homem no auge da vida eacute possiacutevel

dizer que estaacute afetivamente apto tanto para ter juiacutezos corretos frente agraves

situaccedilotildees quanto para por em acordo suas afecccedilotildees e sua razatildeo Para que

tal acordo aconteccedila eacute preciso estar disposto para tal coisa ou seja ver o

que eacute bom a ser feito depende de querer ver tal coisa Esse tipo de visatildeo

implica virtude completa pois somente uma pessoa virtuosa consegue

distinguir por si mesma o que eacute melhor Por isso uma pessoa virtuosa

age bem e como consegue ver o que deve fazer como explica a citaccedilatildeo

que segue

Por exemplo trata-se de ser coleacuterico o suficiente

para saber bem se vingar ou se defender de uma

ofensa de ser moderado o suficiente i e na justa

medida para desfrutar no momento oportuno de

132

prazeres saudaacuteveis de ser bem disposto a

enfrentar a dor de modo a ver o que eacute corajoso a

ser feito trata-se de perceber que uma dada

situaccedilatildeo exige uma accedilatildeo generosa e de desejar

realizaacute-la mas tal sensibilidade moral depende de

jaacute haver uma disposiccedilatildeo generosa para tanto e

assim por diante com relaccedilatildeo agraves outras virtudes

particulares e suas respectivas emoccedilotildees e desejo

As coisas assim nos aparecem conforme a

disposiccedilatildeo que temos em percebecirc-las e o estado

afetivo em que nos encontramos (AGGIO 2017

no prelo)

Acrescentamos a esta proposta de acordo com os intuitos de

nosso estudo que desejar bem e retamente faculta se emocionar bem e

retamente mas ainda precisamos investigar certas questotildees para

continuar a admitir com seguranccedila que satildeo a razatildeo e afetos que

determinam em conjunto o agir Embora pareccedila plausiacutevel existem ainda

as tantas apostas de Aristoacuteteles na razatildeo para nos fazer pensar mais um

pouco sobre a questatildeo Contudo Aggio pensa que mais que conhecer o

que eacute certo para agir moralmente bem eacute preciso que os afetos

determinem o que importa moralmente A accedilatildeo correta depende do

engajamento afetivo porque a razatildeo natildeo conduz direta ou indiretamente

os afetos ela vecirc o que eacute certo porque se tem uma tendecircncia afetiva para

tanto Quando as afecccedilotildees se tornam disposiccedilotildees eacute possiacutevel agirem

como padrotildees ou regularidades sendo modos de raciocinar e perceber

Quando o momento exige tomar uma atitude quem dita o melhor a ser

feito satildeo o desejo reto e a reta razatildeo E com isso uma accedilatildeo natildeo seria

movida por princiacutepios do intelecto caso natildeo fosse afetivamente

engajada

Assim as afecccedilotildees seriam determinantes para a atribuiccedilatildeo do

valor moral agrave accedilatildeo porque na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees resultam das

afecccedilotildees que estatildeo em sua origem Estes tecircm a ver com prazer e dor

com o desejo por buscar ou evitar alguma coisa e Aristoacuteteles frisa o

desejo como princiacutepio da accedilatildeo Nossa cautela nesse momento ainda nos

leva a pensar na questatildeo da necessidade da boa associaccedilatildeo entre razatildeo e

afecccedilotildees para a boa accedilatildeo mas foi por percebermos a possibilidade desse destaque da afecccedilatildeo na vida moral que decidimos tratar a questatildeo

poreacutem com relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees entendidas como emoccedilotildees No entanto

devemos finalizar nossa discussatildeo das relaccedilotildees das virtudes com as

paacutethē ateacute mesmo para podermos nos posicionar melhor quanto ao

assunto Por isso abordaremos a mencionada disposiccedilatildeo em perceber o

133

que eacute correto e conveniente e sua ligaccedilatildeo com as emoccedilotildees

4 Virtudes intelectuais satildeo necessaacuterias agraves virtudes morais e para a

ldquoboa formardquo das emoccedilotildees

Tendo em vista que a virtude eacute necessaacuteria agrave eudaiacutemōniacutea que a

vida excelente plenamente parece ser considerada por Aristoacuteteles a vida

conforme a razatildeo e que a virtude moral natildeo pode existir sem a razatildeo119

trataremos agora do modo como a razatildeo praacutetica pode comandar ou

segundo nossa proposta andar junto com as emoccedilotildees conferindo-lhes a

boa medida proacutepria agrave virtude moral e agrave virtude completa ldquoE jaacute que de

fato noacutes dissemos mais acima que devemos escolher o meio termo e

natildeo o excesso ou a falta e que o meio termo eacute conforme o que enuncia a

reta razatildeo analisemos agora esse uacuteltimo pontordquo (EN VI 1 1138b18-

20)120 O que seria a reta razatildeo (orthograves loacutegos)

Em todas as disposiccedilotildees morais discutidas haacute certa finalidade que

fixa sua regra fazendo com que o homem que estaacute em posse da reta

razatildeo intensifique ou relaxe seus esforccedilos Por conseguinte existe um

princiacutepio que determina as medianias permitindo que estejam em

acordo com a mencionada regra mas Aristoacuteteles bem como noacutes pensa

que o assunto ainda carece de atenccedilatildeo Embora seja verdade afirmar que

se deva empregar a justa medida nos esforccedilos saber disso nada

acrescenta ao conhecimento eacute preciso determinar a reta razatildeo

Aristoacuteteles nos fala de virtudes morais e intelectuais As

primeiras foram tratadas mas falta falar das virtudes intelectuais e de

sua importacircncia na vida moralmente boa jaacute que destacamos a

imprescindibilidade da capacidade natildeo racional em tal vida Em EN VI

119 Como observa Zingano (2008 p 24) e como vimos no capiacutetulo anterior eacute

preciso moderaccedilatildeo nas emoccedilotildees ou seja uma boa habituaccedilatildeo para que a razatildeo

tenha ao menos a possibilidade de atuar Isso sinaliza a postura contraacuteria ao

racionalismo socraacutetico defendida por Aristoacuteteles pensa o estudioso O mesmo

estudioso no mesmo estudo (2008 p 75) explica que a virtude moral depende

da razatildeo para poder operar sendo que a razatildeo aperfeiccediloa a virtude moral Por

isso acatamos a proposta de Zingano um estudo da phroacutenēsis ainda que breve

como o propomos completa o estudo da virtude moral jaacute que eacute esta virtude

intelectual que faz a aretḗ eacutetica completa 120 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Ἐπεὶ δὲ τυγχάνομεν πρότερον εἰρηκότες ὅτι δεῖ τὸ μέσον

αἱρεῖσθαι μὴ τὴν ὑπερβολὴν μηδὲ τὴν ἔλλειψιν τὸ δὲ μέσον ἐστὶν ὡς ὁ λόγος ὁ

ὀρθὸς λέγει τοῦτο διέλωμεν

134

1 o filoacutesofo estabelece uma divisatildeo como aquela das capacidades alma

para o racional comeccedilando com a admissatildeo de que satildeo duas as lsquopartesrsquo

da alma racional Uma delas eacute responsaacutevel pela contemplaccedilatildeo dos seres

que natildeo podem ser de outro modo a outra eacute responsaacutevel pelo

conhecimento das coisas contingentes (EN VI 2 1139a5-8) sendo que

isso eacute possiacutevel caso seja verdade que haacute certo tipo de semelhanccedila e de

afinidade entre o sujeito e o objeto que se daacute ao conhecimento como

proposto tambeacutem no DA

Uma dessas capacidades (ou (sub)capacidades como propusemos

para as virtudes morais) eacute chamada cientiacutefica outra calculativa na

medida em que deliberar e calcular satildeo o mesmo e cada uma apresenta

virtude proacutepria Jaacute vimos no Capiacutetulo anterior a relaccedilatildeo das coisas que

segundo EN VI 2 controlam a accedilatildeo e a verdade quais sejam percepccedilatildeo

intelecto e desejo e que Aristoacuteteles a princiacutepio exclui a percepccedilatildeo

sensiacutevel como responsaacutevel por aquelas accedilotildees consideradas moralmente

por ser compartilhada por todos os animais Precisamos agora

estabelecer o modo como as outras duas coisas intelecto e desejo

podem se relacionar bem concedendo a forma adequada ao desejo que

conduziraacute agrave procura pelo fim correto e pela boa accedilatildeo e para tanto

deveremos ver a importacircncia das virtudes intelectuais na moralidade

Precisamos analisar essa possibilidade jaacute que Aristoacuteteles mais

adiante nas discussotildees do Livro VI 10 apresenta a possibilidade de

objeccedilatildeo agrave necessidade das virtudes intelectuais junto a uma vida feliz

Isso inviabilizaria as propostas que temos feito a partir de EN I 13

trecho que indica uma alma una na qual a capacidade desiderativa seria

apta a ouvir a razatildeo portanto devemos buscar sair desse embaraccedilo

Podemos comeccedilar nossa empreitada observando que Aristoacuteteles em VI

3 menciona cinco estados ou virtudes intelectuais pelos quais a alma

enuncia o que eacute verdadeiro por afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo arte (teacutechnē)

ciecircncia (episteacuteme) prudecircncia (phroacutenēsis) sabedoria (sophiacutea) e intelecto

(noucircs) Mesmo que o filoacutesofo pareccedila admitir a sabedoria121 como maior

e mais excelente das virtudes humanas a virtude intelectual que estaacute

relacionada diretamente agrave boa accedilatildeo (eupraxiacutea) e consequentemente agraves

emoccedilotildees moderadas eacute agrave prudecircncia Neste estudo natildeo analisaremos

121 De acordo com a interpretaccedilatildeo feita por Tricot a virtude mais perfeita eacute a

sophiacutea virtude mais alta da parte intelectual humana Reeve parece

compartilhar dessa opiniatildeo de certo modo pois natildeo a entende como virtude

mais completa (REEVE 2013 p 27) Embora Zingano (2007 p 160) observe

que eacute possiacutevel que a mais alta virtude mencionada pelo filoacutesofo possa ser uma

junccedilatildeo de sophiacutea e phroacutenēsis o que nos parece mais plausiacutevel

135

especificamente a sabedoria porque segundo o filoacutesofo natildeo se dedica a

nenhum dos meios que permitem ao homem ser feliz dados os seus

objetos Eacute de se presumir no entanto que o detentor de tal virtude

intelectual tenha as demais virtudes inclusive aquelas relativas agraves

emoccedilotildees moderadas devido ao caraacuteter uno da psychḗ humana Parece

ser isso que podemos ler no passo escrito por Reeve acerca das virtudes

da capacidade racional da alma humana proposta pela EN trecho que

subscrevemos

Juntas essas duas partes compotildeem a parte da alma

que tem razatildeo (logos) porque esta pode dar

razotildees que justificam e explicam

A funccedilatildeo de cada subparte racional eacute conhecer a

verdade confiaacutevel (239b12-13) No caso da parte

cientiacutefica (ou da contemplativa ou do pensamento

teoacuterico que ela capacita) a verdade em questatildeo eacute a

verdade totalmente familiar naquele da parte

calculativa (ou pensamento praacutetico) eacute a verdade

praacutetica ou determinante-da-accedilatildeo que eacute ldquoverdade

em conformidade como desejo corretordquo (239a17-

35) Desde que uma virtude eacute apenas algo que

capacita seu detentor a cumprir ou completar bem

sua funccedilatildeo satildeo essas funccedilotildees que tecircm as chaves

para as virtudes do pensamento (139a16-17) e

entatildeo para o tipo de razatildeo eticamente correta

procurada (REEVE 2013 p 4 traduccedilatildeo nossa)

Embora como observa Reeve (2013 p 1) seja difiacutecil determinar

o papel da razatildeo teoacuterica na moralidade suspeitamos que tal relaccedilatildeo

exista necessariamente Todavia por motivo das propostas que

defendemos nesse estudo nesse momento trataremos a phroacutenēsis devido

agrave sua atuaccedilatildeo evidente junto agrave vida feliz e doravante apontaremos

quando possiacutevel e necessaacuterio indiacutecios de que a sabedoria teoacuterica

participa da virtude completa que viabiliza a boa vida

4a) A prudecircncia

Dissemos muitas vezes que natildeo haacute virtude moral sem prudecircncia

Mas qual a utilidade desta para a vida moral se a maioria dos homens

parece estar sob o domiacutenio das capacidades natildeo racionais da alma e se

Aristoacuteteles cede agrave virtude moral a indicaccedilatildeo do fim a ser buscado pelo

agente Aristoacuteteles responde a partir de VI 7 (mas a proposta aparece

136

tambeacutem em III 4 5 e 7) que a prudecircncia eacute uacutetil agrave vida moral por analisar

os meios que permitem ser feliz tendo por objeto as coisas justas belas

e boas para o homem Sendo assim quando Aristoacuteteles escreve que a

razatildeo sozinha nada move escreve tambeacutem que a razatildeo praacutetica associada

ao desejo move

A associaccedilatildeo das capacidades desiderativa e racional da alma

esta representada ao menos pela razatildeo praacutetica que retifica os desejos

pelos fins ajusta o caacutelculo dos meios e a escolha do meio mais eficiente

de agir para alcanccedilar o bom fim proposto pelo desejo retificado graccedilas agrave

sua docilidade agrave razatildeo praacutetica como veremos e defenderemos Esse tipo

de interpretaccedilatildeo nos forccedila a ver as possibilidades de entendimento da

virtude da razatildeo praacutetica chamada prudecircncia de seus objetos e de sua

funccedilatildeo junto a uma vida boa moralmente

Um modo de compreender melhor o papel moral da prudecircncia e o

que ela eacute passa pela consideraccedilatildeo de quem satildeo os prudentes A opiniatildeo

geral - com a qual Aristoacuteteles parece concordar - eacute que o prudente tem a

capacidade de bem deliberar quando estaacute em jogo o que eacute vantajoso e

bom para o homem A prudecircncia eacute ldquouma disposiccedilatildeo acompanhada da

regra justa capaz de agir na esfera do que eacute bom ou mau para um ser

humanordquo (EN VI 5 1140b4-5)122 O cidadatildeo que apresenta essa virtude

intelectual eacute dotado de reta razatildeo e por isso eacute capaz de deliberar sobre

as coisas que levam agrave boa accedilatildeo e agrave vida feliz Sendo assim de um modo

geral eacute possiacutevel classificar o prudente como o homem capaz de

deliberaccedilatildeo A prudecircncia estaacute ligada igualmente ao agir eacutetico e por isso

Wolf (2010 p 152) entende que viver exercendo a virtude moral eacute uma

forma de eudaiacutemōniacutea pois para a realizaccedilatildeo plena desse tipo de vida

natildeo basta ter a virtude da capacidade desiderativa Para que haja a boa

accedilatildeo eacute preciso haver aquilo que a autora chama de ldquoboa compleiccedilatildeo

constitutivardquo da capacidade desiderativa e tambeacutem a virtude intelectual

definidora do exerciacutecio da virtude moral que eacute a prudecircncia Por isso

Aristoacuteteles escreve A phroacutenēsis eacute uacutetil agrave vida moral por indicar os

meios de se alcanccedilar um fim desejado pois o fim

eacute da alccedilada da virtude moral a obra proacutepria do

homem natildeo eacute totalmente acabada senatildeo em

conformidade com a prudecircncia e com a virtude a

virtude moral eacute com efeito garantia da retidatildeo do

122 Traduccedilatildeo para o portuguecircs nossa feita a partir da traduccedilatildeo francesa feita por

Tricot (2012) No original ἕξιν ἀληθῆ μετὰ λόγου πρακτικὴν περὶ τὰ ἀνθρώπῳ

ἀγαθὰ καὶ κακά

137

fim que buscamos e a prudecircncia aquela dos meios

para alcanccedilar esse fim (EN VI 13 1144a6-9)123

Segundo Hutchinson (2009 p 270) mais que propor meios a

prudecircncia torna a virtude moral sensata jaacute que os princiacutepios de nossas

accedilotildees satildeo os fins aos quais tendem nossos atos e estes princiacutepios

necessitam de tal sensatez Ela eacute a virtude da capacidade da alma apta a

calcular (tograve logistikoacuten) os meios implicada tanto na accedilatildeo quanto na

produccedilatildeo porque o caacutelculo ou deliberaccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o que pode

ser de outro modo sendo que a accedilatildeo moral e a produccedilatildeo satildeo do acircmbito

do que eacute variaacutevel A prudecircncia natildeo pode ser esquecida e eacute caracterizada

como a virtude intelectual que tem por objeto os universais mas que

deve tambeacutem ter o conhecimento dos fatos particulares pois sendo da

ordem da accedilatildeo estaacute relacionada com as coisas particulares (EN VI 8

1141b9-16) Por conseguinte a prudecircncia precisa do conhecimento do

universal e dos particulares mas o prudente deve saber

preferencialmente daquilo que estaacute relacionado ao particular imediato

ou uacuteltimo que eacute objeto de um tipo de percepccedilatildeo (aiacutesthēsis) do particular

mas um tipo de percepccedilatildeo tida como na percepccedilatildeo um ente matemaacutetico

diferenciando-se da percepccedilatildeo dos sensiacuteveis proacuteprios como explica o

DA III 10 433a16-17

Assim na prudecircncia ou melhor na deliberaccedilatildeo da qual eacute em

parte constituiacuteda haacute percepccedilatildeo daquilo que eacute uacuteltimo mas primeiro na

accedilatildeo124 Tal percepccedilatildeo explica Reeve (2013 p 3 2014 p 211) capta

algo uacutenico ou universal entre uma multidatildeo de coisas particulares com

o auxiacutelio da capacidade perceptiva da alma como veremos no proacuteximo

Capiacutetulo De acordo com essas descriccedilotildees eacute possiacutevel entender a

prudecircncia portanto como

[] a virtude intelectual chamada sabedoria

praacutetica cuja funccedilatildeo eacute permitir-nos saber a maneira

correta de nos comportar Embora a sabedoria

praacutetica natildeo seja ela proacutepria uma virtude moral

estaacute intimamente associada com as virtudes

morais [] Como resultado de tudo isso a

sabedoria praacutetica eacute uma apreciaccedilatildeo do que eacute bom

e mau para noacutes no niacutevel mais alto acrescida de

123 Idem ἔτι τὸ ἔργον ἀποτελεῖται κατὰ τὴν φρόνησιν καὶ τὴν ἠθικὴν ἀρετήν ἡ

μὲν γὰρ ἀρετὴ τὸν σκοπὸν ποιεῖ ὀρθόν ἡ δὲ φρόνησις τὰ πρὸς τοῦτον 124 Para uma discussatildeo mais detalhada das diferenccedilas e similaridades entre

percepccedilatildeo comum e percepccedilatildeo deliberativa ver Reeve (2014 p 213)

138

uma correta assimilaccedilatildeo dos fatos da experiecircncia e

da habilidade de fazer de maneira raacutepida e

confiaacutevel as inferecircncias corretas sobre como

aplicar nosso conhecimento moral geral a nossa

situaccedilatildeo particular Ela eacute usada em nossos

proacuteprios casos quando somos obrigados a manter

certo modo de accedilatildeo Obviamente ela eacute um recurso

muito importante se a tiveacutessemos noacutes sempre

agiriacuteamos de maneira correta e nossas vidas

seriam proacutesperas e felizes (HUTCHINSON 2009

p 267-269)

Apoacutes expor brevemente a relaccedilatildeo de necessidade entre a virtude

intelectual da prudecircncia e a virtude moral devemos prosseguir em nossa

investigaccedilatildeo Vale avisar que explicaremos melhor a relaccedilatildeo da

prudecircncia com o particular e o universal mas no momento a exposiccedilatildeo

que fazemos da virtude intelectual em questatildeo solicita que a

explicitemos o modo como capacita o homem a agir bem graccedilas a ter a

boa deliberaccedilatildeo (eubouliacutea) por peculiaridade Com seu caacutelculo bem

executado a prudecircncia associada agrave virtude moral possibilita que as

accedilotildees sejam perfeitas permitindo mesmo a completude da virtude

humana pois leva a agir seguindo boas razotildees Assim sendo a

deliberaccedilatildeo necessaacuteria agrave determinaccedilatildeo racional que faraacute dos atos

corretos eacute preciso analisaacute-la ainda que brevemente

4b) Deliberaccedilatildeo

As propostas indicam que a funccedilatildeo a ser exercida pelo prudente eacute

a deliberaccedilatildeo ou melhor a boa deliberaccedilatildeo sendo esta uma espeacutecie de

pesquisa ou caacutelculo que apontaraacute ao agente suas possibilidades de accedilatildeo

para que sua procura por um fim resulte bem-sucedida Quem delibera

busca os meios convenientes para as accedilotildees e nesse caso o conveniente eacute

o bom mas o que eacute objeto de deliberaccedilatildeo (bouacuteleusis) ldquoDeliberar

entatildeo diz respeito agraves coisas que ocorrem nas mais das vezes mas nas

quais eacute obscuro como resultaratildeo e agravequelas nas quais eacute indefinido como

resultaratildeordquo (EN III 5 1112b8-9)125 Por isso se nas accedilotildees cabe variaccedilatildeo

para agir bem quanto aos assuntos incertos eacute preciso deliberar bem agrave

eacutetica de Aristoacuteteles eacute imprescindiacutevel apontar bons meios que seratildeo

escolhidos e que poratildeo por fim o cidadatildeo a agir Vimos que nesta eacutetica

125 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original τὸ βουλεύεσθαι δὲ ἐν τοῖς ὡς ἐπὶ

τὸ πολύ ἀδήλοις δὲ πῶς ἀποβήσεται

139

a capacidade mesma de adotar os meios corretos de agir que iniciam

com a deliberaccedilatildeo consiste na ideia de responsabilidade Quando o

agente prefere certos meios por deliberaccedilatildeo pode vir a se tornar senhor

de suas accedilotildees como explicitaremos melhor adiante

Mas qual a natureza da boa deliberaccedilatildeo Quem delibera bem o

faz corretamente e por isso a boa deliberaccedilatildeo eacute um tipo de retidatildeo na

procura e indicaccedilatildeo dos meios para alcanccedilar determinados fins O bem

deliberar eacute um tipo de retidatildeo de pensamento mas natildeo eacute ainda uma

asserccedilatildeo pois o homem que delibera bem calcula e investiga alguma

coisa Se a eubouliacutea eacute correccedilatildeo no deliberar a bouacuteleusis propriamente

dita eacute a forma correta de analisar racionalmente os meios uacuteteis para a

realizaccedilatildeo de um fim Esse tipo de caacutelculo parte do objetivo uacuteltimo da

accedilatildeo concebendo modos de alcanccedilaacute-lo ateacute se entender o que realmente

eacute possiacutevel fazer Quem delibera analisa e ao fim de tal anaacutelise chega ao

que eacute primeiro na execuccedilatildeo da accedilatildeo a escolha deliberada do meio que

conduziraacute ao fim mas quando o deliberador se depara com algo

impossiacutevel a investigaccedilatildeo eacute suspensa Em contrapartida caso se depare

com algo possiacutevel a accedilatildeo eacute posta em curso Por conseguinte os objetos

da bouacuteleusis satildeo os instrumentos de accedilatildeo sua utilizaccedilatildeo e o meio pelo

qual a accedilatildeo ocorreraacute buscando ser bem-sucedida Deliberando portanto

o homem pode ser considerado princiacutepio das accedilotildees que comete porque

a deliberaccedilatildeo estaacute relacionada a coisas que podem ser feitas pelos

proacuteprios esforccedilos (EN III 6 1113a3-12)

Com as observaccedilotildees feitas acima expressamos em linhas gerais a

deliberaccedilatildeo quais satildeo seus objetos e determinamos que estatildeo

relacionados agraves coisas que conduzem aos fins Como explicita VI 8 a

deliberaccedilatildeo eacute a capacidade do prudente que apresenta uma consideraccedilatildeo

(hypoacutelēpsis) verdadeira e por isso entendemos o deliberar como segundo

passo rumo ao alcance de um fim pois o desejo eacute o iniacutecio e ocorre antes

da anaacutelise dos meios A deliberaccedilatildeo eacute expressa sob a forma loacutegica do

silogismo praacutetico que eacute concluiacutedo com a accedilatildeo (EN VII 5 1147a25-31)

sendo este silogismo considerado por Reeve (2014 p 202 210) um

plano para a accedilatildeo126 Em tal plano a premissa universal eacute apresentada ao

agente como um bem (ou como o bem supremo) pois segundo o autor e

como explicita o DA III 10 433b21-27 eacute preciso que haja um ponto fixo

126 Reeve descreve tal silogismo do seguinte modo ldquoPremissa maior definiccedilatildeo

de felicidade

Premissa menor decreto

Conclusatildeo accedilatildeordquo (REEVE 2013 p 9)

140

ou uma espeacutecie de motor imoacutevel que ponha a accedilatildeo em movimento127

Neste caso tal ponto fixo seria o desejo pela felicidade (ou pelo fim que

percebemos como nosso condutor agrave felicidade DA III 11 434a16-20

EN VI 3 1139b17-18) Haveria ainda sob esta foacutermula loacutegica da accedilatildeo

gerada pela deliberaccedilatildeo opiniotildees ou juiacutezos que poderiam ser verdadeiros

ou falsos como nos informa VI 11 constituintes da premissa menor

sendo uma questatildeo de percepccedilatildeo praacutetica assunto do qual trataremos um

pouco mais detidamente no Capiacutetulo III A premissa menor eacute proposta

por Reeve como um decreto (2014 p 210) que antecede a escolha que

resultaraacute na accedilatildeo Por isso na sequecircncia desse processo deve haver a

escolha deliberada do meio para conseguir o fim desejado Por

conseguinte a escolha deliberada eacute o ldquoato de pesar razotildees rivaisrdquo

(ZINGANO 2007 p 158) quanto aos meios para alcanccedilar aquilo que eacute

desejado e por isso a analisaremos brevemente

4c) Escolha deliberada

A escolha deliberada (proaiacuteresis) eacute exclusividade dos animais

humanos nos quais a razatildeo exerce adequadamente seu papel Aristoacuteteles

a define em VI 2 por relaccedilatildeo ao desejo classificando-a como desejo

deliberado (oacuterexis dianoetikeacute) ou intelecto desejante (orektikograves noucircs)

por ser um tipo de desejo formado apoacutes o processo de deliberaccedilatildeo apoacutes

o agente considerar o modo mais adequado de agir para alcanccedilar seu

objetivo Por isso segundo Besnier (2008 p 90) a escolha deliberada eacute

o momento em que eacute possiacutevel que a capacidade natildeo racional da alma

escute a razatildeo praacutetica deixando-se levar por ela Ou ainda melhor eacute o

momento no qual tal capacidade pode se unir agrave razatildeo praacutetica e se

determinar pelas razotildees por ela propostas levando agrave accedilatildeo virtuosa Por

exemplo o continente escolhe deliberadamente e por isso natildeo age por

apetite imoderado (EN III 4 1111b14-17) ldquoEm suma pois a escolha

deliberada parece dizer respeito agravequelas coisas que estatildeo em nosso

poderrdquo (EN III 4 1111b29-30)128

Por tal motivo atribui-se certa qualidade a um homem pelas

escolhas que faz jaacute que prefere obter ou evitar certo tipo de coisa com o

auxiacutelio da reflexatildeo e do pensamento (logoucirc kaigrave diaacutenoias) implicando

que a escolha deliberada acontece apoacutes a deliberaccedilatildeo que indica meios

127 A respeito da premissa maior como um desejo tambeacutem Nussbaum (1985 p

201 et seq) 128 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ὅλως γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ

τὰ ἐφ ἡμῖν εἶναι

141

calculados para se conseguir o fim determinado racionalmente Isso

significa que ldquoa escolha deliberada introduz no centro da virtude por

conseguinte no seio mesmo das emoccedilotildees o ato de pesar razotildees para

aquilo que se faz ou se deixa de fazerrdquo (ZINGANO 2007 p 158)

Escolher eacute essencial para a virtude moral pois eacute a partir da escolha

deliberada que se consolida a preferecircncia por esta e natildeo por aquela accedilatildeo

apontada na deliberaccedilatildeo manifestando aquilo que Zingano chama

ldquofaculdade de contraacuteriosrdquo (2008 p 27129) ou razatildeo Esta pode aceitar ou

deixar de aceitar uma ou outra das propostas da deliberaccedilatildeo - donde os

mencionados contraacuterios - e nisso consiste a escolha deliberada

Deste modo o processo que leva agrave accedilatildeo virtuosa pode ser descrito

do modo como fez Aggio no passo seguinte

Comeccedilamos desejando algo em seguida

passamos a investigar os meios para realizaacute-lo

por fim escolhemos realizaacute-lo ou natildeo Devemos

portanto conceber a escolha como sendo

necessariamente o resultado de uma investigaccedilatildeo

129 Zingano (p 186-187) quanto agrave variedade de fins a serem escolhidos e ao

mesmo tempo quanto ao natildeo relativismo da eacutetica de Aristoacuteteles graccedilas a

existecircncia de um fim maior O que confere agrave deliberaccedilatildeo a tarefa de

avaliaccedilatildeomoral das accedilotildees embora a escolha dos fins seja da alccedilada dos desejos

e das virtudes morais Assim a proaiacuteresis seria parte disso tudo em sua funccedilatildeo

de preferecircncia moral que escolhe entre as alternativas propostas pela

deliberaccedilatildeo A escolha deliberada aleacutem ser por objeto de deliberaccedilatildeo concluiacuteda

apresenta assentimento com tal objeto de deliberaccedilatildeo e isso leva a agir (EN

1147a28) Haacute contudo deliberaccedilatildeo sobre o futuro por isso nem toda

deliberaccedilatildeo eacute seguida de accedilatildeo

De acordo com Nussbaum haacute na escolha deliberada tambeacutem um outro aspecto

de preferecircncia associado ao valor do objeto buscado ldquoPara Aristoacuteteles a busca

por valor eacute a busca pelo que eacute bom para o ser humanordquo (NUSSBAUM 2008 p

49 traduccedilatildeo nossa) Frequentemente a verdade eacute que tal busca eacute parte da vida

emocional Coisas muito queridas geralmente satildeo avaliadas como parte

importante da vida Tais objetos das emoccedilotildees satildeo vistos como valiosos e bons

E se o objeto eacute escolhido livremente eacute provaacutevel que seu valor seja ainda mais

elevado Por exemplo ldquoEu escolho algo porque penso que este algo conteacutem

valor agraves vezes somente para mim mas frequentemente vejo isso como valioso

para as pessoas de um modo geralrdquo A autora contudo discorda um pouco da

proposta eudaimocircnica grega porque pensa que nem tudo que uma pessoa

entende como valioso pode ser recomendado aos outros Nesse caso haacute uma

falta de limite entre particular e geral mas natildeo analisaremos essa proposta nesse

momento (para esse assunto consultar NUSSBAUM 2008 p 50 et seq)

142

deliberativa e o iniacutecio da accedilatildeo pois escolhemos

agir ao escolhermos o meio que realiza certo fim

(AGGIO 2017 no prelo)

Sendo no momento da escolha deliberada que nossos desejos e

emoccedilotildees capazes de ouvir a razatildeo praacutetica podem vir a mudar a

concordar ou discordar com o que foi racionalmente proposto

entendemos que eacute durante esse caminho apresentado pela prudecircncia - da

deliberaccedilatildeo agrave escolha da accedilatildeo - que uma emoccedilatildeo pode se tornar

adequada ou seja pode receber a mediania A escolha deliberada eacute a

forma pela qual a razatildeo praacutetica age no interior de todos os desejos por

tornaacute-los mais proacuteximos ao que a razatildeo sugere e eacute por isso que

podemos continuar a afirmar como fizemos no primeiro Capiacutetulo que

haacute um modo correto de ter apetite e de se encolerizar O que implica

tambeacutem sentir tais desejos e emoccedilotildees pelos objetos adequados Nisso se

resume o encontrar o ldquoponto certordquo da emoccedilatildeo segundo as palavras de

Zingano (2008 p 167) sendo tal ponto determinado pela razatildeo

associada agrave virtude moral permitindo deste modo se emocionar

conforme a justa medida

No entanto entendemos que as emoccedilotildees assim como os desejos

satildeo despertadas em noacutes a princiacutepio por certas percepccedilotildees praacuteticas que

temos acerca do mundo que anteriormente determinamos estarem

relacionadas com um sem nuacutemero de particulares que nos afetam e

dentre os quais eacute preciso pela accedilatildeo da prudecircncia abstrair algo universal

que norteia as boas accedilotildees Esse tipo de afecccedilatildeo que se origina com o

exterior deve passar pelo crivo da razatildeo praacutetica e seus processos a fim

de conferir adequaccedilatildeo aos desejos que provoca e agraves emoccedilotildees que

desperta levando-os a adquirir uma modelagem mais adequada agraves

propostas racionais em geral Por isso na sequecircncia deveremos nos

dedicar a trabalhar a relaccedilatildeo do processo da prudecircncia com o particular

(heacutekastos) e o universal (kathoacutelou)

4d) Prudecircncia deliberaccedilatildeo escolha deliberada e sua relaccedilatildeo com o

particular e o universal

Com as discussotildees postas acima pudemos observar momentos

nos quais Aristoacuteteles afirma a relaccedilatildeo entre a prudecircncia suas operaccedilotildees

e as coisas particulares bem como com o universal Esse tipo de

proposta nos leva a indagar novamente o real papel dessa virtude

intelectual pois traz duacutevida quanto ao que seria o tal universal O

particular pudemos deduzir satildeo as circunstacircncias nas quais acontece o

143

mencionado processo e que levam cada agente a por em praacutetica seu

plano de accedilatildeo para realizaccedilatildeo de um fim que veremos ser apontado no

silogismo praacutetico como premissa menor ou um tipo de opiniatildeo Mas se

tudo que eacute feito pelo homem leva a um fim que tende ao fim supremo

seria este uacuteltimo o dito universal Pelo que estudamos ateacute o momento a

resposta parece ser positiva e por conseguinte seraacute favoraacutevel agrave nossa

interpretaccedilatildeo a partir da EN e do DA de uma unidade da alma pois nos

mostraria a prudecircncia apontando para algo mais que as situaccedilotildees

peculiares e contingentes

Essa leitura leva a virtude intelectual da prudecircncia a se conectar

ao menos com um certo tipo de objeto invariaacutevel mesmo que no campo

do que eacute procurado pelas accedilotildees humanas Por isso potildee-na em contato

com o restante das capacidades da alma racional e seus melhores

estados que apresentam por objeto coisas imutaacuteveis Ratificamos que

natildeo traremos especificamente dessas uacuteltimas virtudes intelectuais pois

no momento basta-nos confirmar que a prudecircncia se direciona ao

universal configurado como a eudaiacutemōniacutea e lida com os modos

particulares de alcanccedilaacute-la como explica Reeve (2014 p 211)

Quando a felicidade eacute apreendida por um agente

a tarefa deliberativa deste eacute encontrar a (espeacutecie

de) accedilatildeo particular que a constitui nas

circunstacircncias presentes Uma vez encontrada

esta desempenha dois papeacuteis em seu pensamento

praacutetico serve [1] como a premissa menor do

silogismo praacutetico que incorpora a deliberaccedilatildeo do

agente e [2] como uma especificaccedilatildeo concreta do

fim do agente Em [1] a accedilatildeo conclui o caminho

que desce de um fim universal para suas

ocorrecircncias particulares e assim o entendimento

incorporado na percepccedilatildeo deliberativa que a

apreende concerne agrave aplicaccedilatildeo de um universal

(felicidade agir bem) a particulares (esta accedilatildeo)

Em [2] a accedilatildeo eacute o ponto inicial de uma induccedilatildeo

que avanccedila para um universal a partir da

percepccedilatildeo envolvendo entendimento de

particulares Eacute das ldquoaccedilotildees na vidardquo somos

lembrados que as discussotildees em eacutetica e poliacutetica

ldquose ocupam e derivamrdquo (EN I 3 1095a3-4) e eacute a

habituaccedilatildeo adequada que assegura que

alcancemos as conclusotildees corretas nos causando

prazer e dor Em um aspecto portanto a

felicidade eacute um ponto inicial jaacute que eacute o fim

144

uacuteltimo de toda accedilatildeo Em outro as accedilotildees

particulares que a instanciam satildeo pontos iniciais

uma vez que eacute a partir delas que eacute preenchido um

entendimento da felicidade (universal)130

Aristoacuteteles explica a proposta com uma analogia entre silogismo

discursivo e silogismo praacutetico comparando mesmo (e ateacute chamando) a

prudecircncia que apreende o que eacute uacuteltimo ou particular com o intelecto

(noucircs) que capta o universal (EN VI 9 1142a25) Haveria assim uma

espeacutecie de percepccedilatildeo especificamente eacutetica que levaria agrave apreensatildeo dos

juiacutezos e que vimos natildeo ser a percepccedilatildeo dos sensiacuteveis proacuteprios Eacute uma

questatildeo de referir-se a um processo analiacutetico que no caso de um

triacircngulo por exemplo decomporia a figura ateacute levar agrave apreensatildeo do

triacircngulo reconstruindo-o A imagem deste modo apreendida jaacute permite

que seja explicitado de modo discursivo sendo um particular alguma

coisa uacuteltima Assim quando o filoacutesofo trata nesse ponto do texto (EN

VI 9 1142a27) o ver implica que esse ldquover geralrdquo eacute a apreensatildeo do

triacircngulo como o uacuteltimo ponto da anaacutelise efetuada (WOLF 2010 p

155-156)

Quando na anaacutelise da figura geomeacutetrica foi apreendido o

triacircngulo uacuteltimo elemento constitutivo que pode sofrer anaacutelise tecircm-se

dele em mente uma ldquopercepccedilatildeo geralrdquo e sabe-se que pode ser percebido

em um contexto de fundamentaccedilatildeo Por isso eacute visto como o uacuteltimo

elemento em uma cadeia de argumentaccedilatildeo de fundamentaccedilatildeo Jaacute natildeo

pode mais ser expresso em premissas mas eacute agora objeto do

130 Quanto ao particular e o universal segundo Wolf (2010 p 155) eacute que

ldquoAristoacuteteles acentua que a correta deliberaccedilatildeo se refere ao que a quem quando

e como etc na situaccedilatildeo concreta (assim novamente em 1142b28) Que o

kathacuteheacutekaston eacute pensado aqui no sentido da situaccedilatildeo concreta vem atestado pela

indicaccedilatildeo de que o julgar consiste aqui em uma espeacutecie de aiacutesthēsis (percepccedilatildeo

sentir sensorial ndash 1142a27) tanto quanto pela comparaccedilatildeo da phroacutenēsis com o

noucircs No acircmbito teoacuterico essa eacute a faculdade responsaacutevel pela aquisiccedilatildeo de

conceitos uacuteltimos que jaacute natildeo podem ser explicitados por outros conceitos mas

que soacute podem ainda ser apreendidos Agraves vezes Aristoacuteteles chama a proacutepria

phroacutenēsis de uma espeacutecie de noucircs (1142a25) Isso pode ser esclarecido pelo fato

de ambos referirem-se a algo uacuteltimo (heacutekhaston) o noucircs apreende os conceitos

mais elevados mais abstratos a phroacutenēsis ndash pelo menos onde deve ser

compreendida como aiacutesthēsis ndash apreende o mais concreto A questatildeo decisiva

portanto eacute saber o que tem em mente Aristoacuteteles ao designar a phroacutenēsis como

uma espeacutecie de aiacutesthēsisrdquo

145

pensamento A partir desse ponto eacute possiacutevel questionar se a figura que

se busca eacute um triacircngulo ou um ciacuterculo

Aplicando isso para a deliberaccedilatildeo eacutetica eacute possiacutevel questionar o

quanto a prudecircncia eacute composta por uma percepccedilatildeo geral

questionamento que lemos no passo abaixo

Desde o princiacutepio a analogia deixa claro que a

phroacutenēsis percebe o ldquoconcreto derradeirordquo o que

eacute concreto na situaccedilatildeo individual mas natildeo no

modo de um conhecimento eacutetico intuitivo Ao

contraacuterio deveria apreendecirc-lo em um contexto a

saber como o passo derradeiro em um processo

deliberativo Assim como a anaacutelise geomeacutetrica

reconduz a figura complexa a uma mais simples

de modo que jaacute natildeo possa ser reduzida a

deliberaccedilatildeo eacutetica analisa o conceito de eupraxiacutea

ou de ser-justo ateacute encontrar uma accedilatildeo que jaacute natildeo

remete a outra que podemos antes levar a efeito

imediatamente E como podemos discutir na

anaacutelise geomeacutetrica se eacute o triacircngulo ou outra figura

complexa que se constitui no ponto derradeiro

correto tambeacutem na deliberaccedilatildeo praacutetica podemos

sopesar qual das alternativas de accedilatildeo concretas

possibilitadas pela situaccedilatildeo eacute a correta ou a

melhor tornando-se o conteuacutedo da proaiacuteresis

Desse modo tambeacutem aqui temos a ver com uma

aiacutesthesis ldquogeralrdquo postada em um contexto

racional A proaiacuteresis ou accedilatildeo que deve ser

executada concretamente eacute apreendida como

correta no contexto da deliberaccedilatildeo praacutetica

(WOLF 2010 p 156)

Permanece contudo um problema a boa accedilatildeo natildeo pode ser

analisada como um fim teacutecnico por um processo claro como um ente

geomeacutetrico Se seguirmos o exemplo do triacircngulo transpondo-o para a

accedilatildeo eacutetica natildeo deveriacuteamos pensar que podemos mencionar os passos

para que uma accedilatildeo seja uma boa accedilatildeo O que deveria ser analisado eacute a

circunstacircncia para que ocorra a boa accedilatildeo e diante de tal circunstacircncia

qual eacute a boa accedilatildeo Nesse caso a deliberaccedilatildeo que precede a percepccedilatildeo poderia ser proposta em passos Primeiro o agente deveria esclarecer

qual o fim ou bem constitui o conteuacutedo da virtude moral e que deve ser

alcanccedilado pela accedilatildeo Depois disso deveria explicitar como alcanccedilar tal

bem propondo a circunstacircncia concreta O juiacutezo por sua vez deveria

146

indicar que a accedilatildeo eacute adequada por vaacuterios motivos e aspectos (o que

quem como quando etc) e que se insere na vida do agente em seu

rumo para a eudaiacutemōniacutea por conseguinte a boa accedilatildeo

A percepccedilatildeo relativa agrave prudecircncia e sua concretude poderia ser

entendida por tudo que foi explicado como uma percepccedilatildeo que ldquovecircrdquo a

accedilatildeo que leva um agente a uma boa vida Isso eacute parte do processo de

deliberaccedilatildeo racional articulador das ldquovisotildeesrdquo que se apoiam na empiria

apresenta e analisa as possibilidades de accedilatildeo ateacute o ponto de propor um

projeto de accedilatildeo que com componentes deliberativos vai atingir a forma

que pretende para a boa accedilatildeo Natildeo se trata de um processo que possa ser

decomposto em passos claros como no caso da technḗ mas o que temos

eacute uma busca incerta por um fim sem conteuacutedo preacute-definido

Essas explicaccedilotildees apontam porque a prudecircncia natildeo se direciona

somente para o bem do indiviacuteduo mas para o bem comum Segundo os

Livros II-VI o bem eacute a accedilatildeo bem-sucedida resultante da virtude moral

associada agrave racionalidade praacutetica e quiccedilaacute agrave razatildeo teoacuterica Conforme os

Livros III-VI esse bem deveria ser posto previamente pelo desejo por

uma disposiccedilatildeo que se direcionasse ao bem ou premissa maior da

deliberaccedilatildeo praacutetica Estatildeo envolvidos portanto com o particular e com

o universal como explica Wolf

Ora a faculdade desiderativa estaacute referida agrave razatildeo

as aspiraccedilotildees podem exprimir-se de tal modo que

sejam apreendidas em conceitos podem portanto

adotar a forma de desejos articulados na

linguagem Por si soacute a faculdade desiderativa natildeo

consegue formular um desejo como o desejo de

ser corajoso ou de ser justo Como vimos a

concretizaccedilatildeo daquilo que se deve fazer na

situaccedilatildeo natildeo apenas exige deliberaccedilatildeo Tambeacutem

essa deliberaccedilatildeo soacute poderaacute ser feita se a pessoa jaacute

dispotildee de uma representaccedilatildeo reflexiva da

eupraxiacutea no acircmbito relevante quando a phroacutenēsis

portanto se refere tambeacutem ao fim pois do

contraacuterio a pessoa agente nada teria em que

pudesse se orientar na reflexatildeo sobre o que seria o

melhor modo de realizar a aretḗ na situaccedilatildeo

presente

Aleacutem do mais a representaccedilatildeo impliacutecita do bem

viver contida na aretḗ deve ser implantada por

algueacutem no caraacuteter o qual tem ele proacuteprio uma

representaccedilatildeo reflexiva do direcionamento a ser

seguido na educaccedilatildeo Essa dupla tarefa da aretḗ eacute

147

confirmada pela ponderaccedilatildeo que Aristoacuteteles faz

em relaccedilatildeo agrave poliacutetica E uma vez que tambeacutem a

tarefa da poliacutetica igualmente deve ser

considerada uma forma de bom conselho ou uma

phroacutenēsis (1141b23-1142a10) Nesse contexto

ele acentua que a phroacutenēsis na poliacutetica possui

duas partes a parte legislativa (nomothesiacutea) e a

executiva (politikḗ em sentido estrito) A primeira

eacute a parte diretriz ou ordenadora a segunda a parte

ativa concreta agrave qual estaacute referida a deliberaccedilatildeo

O educador individual igualmente deve ser

considerado como orientador no sentido dessa

dupla particcedilatildeo de tal modo que ele tem uma

representaccedilatildeo de regras em que se explicita a

eupraxiacutea (WOLF 2010 p 158)

Essas consideraccedilotildees indicam que os processos da prudecircncia se

encaminham por meio de accedilotildees dadas em circunstacircncias particulares a

um universal que eacute o bem supremo comum a todos

Os apontamentos acerca da virtude moral da prudecircncia nos levam

a entender que o agente igualmente se torna responsaacutevel pela forma

como suas emoccedilotildees se datildeo ao mundo porque apoacutes formado

moralmente sua capacidade de por-se os fins acaba por tornaacute-lo mais

que senhor de suas accedilotildees eacute agora senhor de seus desejos e da forma

como age e se emociona Embora natildeo escolha a emoccedilatildeo que sente o ato

de pesar razotildees e de por-se o fim acaba no processo de deliberaccedilatildeo por

apresentar a possibilidade de mudar ou de ao menos moderar as

emoccedilotildees conforme o desejo eacute mudado ao longo desse processo Com

isso eacute possiacutevel que um impulso natural venha a se acalmar ao ponderar e

decidir unindo desejo e razatildeo praacutetica mudando raiva em calma ou

diminuindo a intensidade da raiva ou adequando a raiva sentida agrave

circunstacircncia por exemplo Pensamos que isso seja possiacutevel porque a

nosso ver se a alma eacute una como viemos propondo o prudente tem

contato com a uma verdade mais universal que se configura como

eudaiacutemōniacutea como propotildeem os comentadores apresentados tendo uma

visatildeo do que eacute mais geral graccedilas provavelmente agrave sua capacidade de

raciocinar bem que vai aleacutem do acircmbito da accedilatildeo que pode ser

considerada moralmente e da prāxis humana Provavelmente com isso

seja possiacutevel dizer que de certo modo a prudecircncia vecirc o fim a ser

alcanccedilado o melhor fim possiacutevel em uma espeacutecie de percepccedilatildeo que lhe

eacute proacutepria e que aponta para algo mais universal de modo similar agrave accedilatildeo

da razatildeo teoacuterica No homem virtuoso bem formado moralmente eacute

148

preciso saber o que seja esse bom fim eacute preciso desejar corretamente o

fim e se emocionar corretamente para que haja accedilotildees adequadas que

levaratildeo a tal fim Por conseguinte pensamos que ao menos no virtuoso a

prudecircncia que lhe eacute posse real e natildeo um conselho vindo de fora

implique de certo modo em conseguir distinguir o bom fim para

encadear o processo deliberativo Esse tipo de capacidade eacute conseguida

com a boa conjunccedilatildeo da razatildeo praacutetica com o lado natildeo racional da alma

humana formando a virtude em sentido estrito que na melhor das

hipoacuteteses capacita o homem bem educado agrave emoccedilatildeo adequada como

veremos no ponto seguinte

5 Virtude natural e virtude em sentido estrito

No final Livro VI capiacutetulo 13 da EN Aristoacuteteles procede a novo

exame da natureza da virtude Nessa parte do texto o filoacutesofo estabelece

diferenccedilas entre virtude moral em sentido estrito e virtude natural (aretḕ

physikeacute ndash aretḕ ethikḗ) embora ambas se relacionem Comeccedila a

discussatildeo observando o fato de todos admitirem que aqueles que

apresentam certo caraacuteter o tecircm de certo modo por natureza Pensa no

entanto que uma investigaccedilatildeo eacutetica procura a virtude moral em sentido

estrito e que seja possuiacuteda de um certo modo Aristoacuteteles considera que

se tais disposiccedilotildees naturais natildeo forem acompanhadas pela razatildeo se

tornaratildeo nocivas embora ldquoao contraacuterio uma vez que a razatildeo veio

entatildeo no domiacutenio da accedilatildeo moral eacute uma mudanccedila radical e a disposiccedilatildeo

que natildeo tinha ateacute aqui senatildeo uma semelhanccedila com a virtude seraacute agora

virtude em sentido estritordquo (EN VI 13 1144b12-14)131 Assim como na

capacidade opinante da alma haacute dois tipos de qualidade a habilidade e a

prudecircncia na funccedilatildeo moral (tograve ethikoacuten pelo qual leia-se tograve orektikoacuten)

existem dois tipos de virtude natural e em sentido estrito

A virtude propriamente dita contudo natildeo se produz sem

prudecircncia porque virtude em sentido estrito eacute conforme a regra justa e

a regra justa eacute a prudecircncia ou a disposiccedilatildeo segundo a prudecircncia Mais

ainda natildeo eacute apenas disposiccedilatildeo conforme a regra justa mas intimamente

131 Na nota 1 (2012 p 334) Tricot afirma que nesse caso no lugar de noucircs

pode ser lido phroacutenēsis e que por parte opinante entenda-se tograve logistikoacuten No

original ἐὰν δὲ λάβῃ νοῦν ἐν τῷ πράττειν διαφέρει ἡ δ ἕξις ὁμοία οὖσα τότ

ἔσται κυρίως ἀρετή

Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs a partir da traduccedilatildeo francesa feita por Tricot

No Original ἐὰν δὲ λάβῃ νοῦν ἐν τῷ πράττειν διαφέρει ἡ δ ἕξις ὁμοία οὖσα

τότ ἔσται κυρίως ἀρετή

149

ligada agrave regra justa (EN VI 13 1144b26-27)132 portanto eacute impossiacutevel

ser um homem de bem em sentido proacuteprio sem a phroacutenēsis e com ela

todas as virtudes satildeo dadas Essa concepccedilatildeo da virtude moral eacute proposta

porque natildeo haacute escolha deliberada sem a prudecircncia e provavelmente

natildeo haacute prudecircncia sem as demais virtudes das demais capacidades

racionais A virtude moral ordena o fim e a prudecircncia leva a completar

as accedilotildees que conduzem a este (EN VI 13 1145a4-6)133

Consideramos que as virtudes do intelecto satildeo portanto

imprescindiacuteveis a uma vida feliz porque sem as atividades que facultam

o homem natildeo poderia ser pensado como desempenhando sua funccedilatildeo

proacutepria Embora valha relembrar que ldquoum tipo secundaacuterio que eacute a vida

segundo o outro tipo de virtude eacute feliz pois as atividades que satildeo

conformes a ela satildeo puramente humanasrdquo (EN X 8 1178a9-11)134 Este

outro tipo de excelecircncia como vimos acima eacute a virtude moral que

busca segundo interpretaccedilatildeo de Tricot uma felicidade relacionada agrave

vida dos homens na poacutelis (2012 nota 3 p 551-552) Por isso os atos de

virtude moral satildeo tomados nas relaccedilotildees com os outros e em relaccedilatildeo agraves

emoccedilotildees sendo ligados igualmente agrave prudecircncia A proximidade dessas

virtudes com as emoccedilotildees aconteceraacute no composto corpoalma fazendo

delas excelecircncias especialmente humanas como Tricot observa

[] as virtudes morais satildeo ligadas agrave prudecircncia e a

prudecircncia agraves virtudes morais e por um outro lado

elas satildeo ligadas agraves paixotildees pois prudecircncia e

virtudes morais se aplicam igualmente a modificaacute-

las Por consequecircncia todas essas virtudes

incluindo a prudecircncia satildeo realmente as virtudes

do composto humano (TRICOT 2012 nota 4 p

552-553 traduccedilatildeo nossa)

132Assim explica Tricot (2012 nota 3 p 335) a virtude eacute com razatildeo e segundo

a razatildeo 133 Reeve (2013 p 15) explica que uma vez que o entendimento faz

compreender o alvo ele natildeo eacute indiferente ao fim da vida humana ele vecirc o que

tal alvo eacute e assim nossa virtude natural ou habituada eacute transformada em virtude

total e o agente se torna completamente bom (EN VI 13 1144b1-32) Ao mesmo

tempo as virtudes naturais que podem ser possuiacutedas em separado se conectam

em um soacute estado pois todas satildeo requeridas pela sabedoria praacutetica e a sabedoria

praacutetica eacute requerida por ela (EN VI 13 1144b30-1145a2) 134 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Δευτέρως δ ὁ κατὰ τὴν ἄλλην ἀρετήν αἱ γὰρ κατὰ ταύτην

ἐνέργειαι ἀνθρωπικαί

150

Com a virtude natural ou seja com a disposiccedilatildeo natildeo

consolidada135 pelo o auxiacutelio da virtude intelectual da prudecircncia o

agente eacute capaz de fazer o que deve ser feito mas sem dispor das razotildees

para tanto Natildeo eacute capaz de cumprir plenamente a funccedilatildeo proacutepria do

homem pois natildeo tem por si e em si mesmo suas capacidades aniacutemicas

bem ajustadas favorecendo as accedilotildees que seriam moralmente corretas e a

eudaiacutemōniacutea Mas quando o agente desenvolve a virtude proacutepria ou em

sentido estrito tem sua virtude moral acompanhada pela prudecircncia e

muito provavelmente pela razatildeo como um todo e por isso faz o que

deve ser feito segundo boas razotildees136 O ato de escolher e agir segundo

suas proacuteprias boas razotildees eacute aquilo que podemos entender como virtude

completa e indispensaacutevel agrave vida feliz mas a virtude moral embora

possa ser favorecida por certo traccedilo natural soacute vem ao homem pelo

haacutebito

Por conseguinte pudemos perceber quatildeo proacuteximas estatildeo as

virtudes morais e as intelectuais bem como entendemos a necessidade

de colaboraccedilatildeo entre estas a fim de que se viva bem Eacute esse acordo que

permite a Aristoacuteteles propor uma virtude completa no singular e que a

nosso ver permitiraacute que as exigecircncias do filoacutesofo para a educaccedilatildeo ou

habituaccedilatildeo moral das emoccedilotildees sejam efetivadas

Diante disto resta pesquisarmos as possibilidades e os meios de

se executar essa formaccedilatildeo emocional Isso designado ainda nos caberaacute

ressaltar os instrumentos que podem facilitar o acordo entre ambas as

capacidades da alma Eacute preciso entender melhor o papel da razatildeo na

vida emocional moral jaacute que Aristoacuteteles confere ao racional uma

importacircncia semelhante ou ainda maior que agraves instacircncias natildeo racionais

da alma humana Como estivemos a salientar a retidatildeo necessaacuteria aos

desejos e agraves emoccedilotildees falta apresentar ao menos uma possibilidade para

tal retidatildeo Por isso na sequecircncia deveremos apreciar as formas

disponiacuteveis de educaccedilatildeo moral das emoccedilotildees seguindo em parte o

135Possivelmente estaacute em jogo a diferenccedila entre heacutexis disposiccedilatildeo que se tornou

fixa e diaacutethesis estado ou disposiccedilatildeo ainda maleaacutevel (ZINGANO 2008 p

122) Na EE se fala mesmo da melhor disposiccedilatildeo (II 1 1218b38 1219a1

1219a3 1219a32) 136Conferir Poliacutetica 1260a15-19 a respeito do modo de operar as virtudes O

passo apresenta tais modos em relaccedilatildeo aos escravos agraves mulheres e agraves crianccedilas

sendo que em nenhuma dessas condiccedilotildees se apresentaria a virtude perfeita

Sobre o ato de escolher conforme agraves boas razotildees tambeacutem se pode conferir

Magna Moralia 1200a3-4

151

modelo de educaccedilatildeo que poder ser aplicado aos desejos e que eacute

explicado por Aggio (2017 no prelo) Essa educaccedilatildeo seraacute possibilitada

pelos haacutebitos e formaraacute juntamente com a virtude intelectual aquilo

que no Livro VI da EN Aristoacuteteles chama de ldquovirtude em sentido

estritordquo

152

153

Capiacutetulo III

A racionalidade das emoccedilotildees

1 Eudaiacutemōniacutea vida dedicada agrave atividade racional (EN X)

Ao longo da EN Aristoacuteteles parece dar destaque especial agrave

participaccedilatildeo da razatildeo na vida que considera a melhor mas mesmo na

vida cabiacutevel agrave maioria dos homens o regime do loacutegos natildeo eacute posto de

lado Por conseguinte a vida feliz proposta como ativa e em acordo com

o princiacutepio racional seria dedicada agrave contemplaccedilatildeo conforme certas

propostas do Livro X Nesse ponto da tese fazemos um apanhado

geneacuterico sobre a eudaiacutemōniacutea nesse Livro com as devidas remissotildees ao

Livro I para ressaltar a aparente divergecircncia entre natildeo racional e

racional contudo temos ciecircncia de que a questatildeo eacute mais densa e por

isso natildeo eacute nossa pretensatildeo resolver os problemas relativos agrave felicidade

tampouco defini-la Temos ciecircncia igualmente da querela

contemporacircnea entre as leituras dominantes e inclusivistas sobre o bem

supremo como indicamos no Capiacutetulo I mas a despeito disso nos

parece que o papel da razatildeo na vida feliz sempre eacute preservado por

Aristoacuteteles embora este natildeo minore outros aspectos componentes do

humano Observaremos o tema portanto na medida em que pode nos

auxiliar a resolver nossa questatildeo e comeccedilaremos considerando a

proposta de que a eudaiacutemōniacutea se confunde com a vida contemplativa

embora tenhamos ressaltado anteriormente que tal ideia natildeo apresenta o

real pensamento de Aristoacuteteles sobre o assunto mesmo que o filoacutesofo

escreva linhas como as que seguem abaixo

Mas se a felicidade eacute uma atividade conforme agrave

virtude eacute racional que seja atividade conforme a

mais alta virtude e esta seraacute a virtude da parte a

mais nobre de noacutes Que seja portanto o intelecto

ou qualquer outra faculdade que seja observada

como possuindo por natureza o comando e a

direccedilatildeo e como tendo o conhecimento das

realidades belas e divinas que aleacutem disso esse

elemento seja ele mesmo divino ou somente a

parte mais divina de noacutes eacute o ato desta parte

segundo a virtude que lhe eacute proacutepria que seraacute a

felicidade perfeita Ora que essa atividade seja

teoreacutetica eacute o que temos dito (EN X 7 1177a12-

154

18)137

Aristoacuteteles pensa que essas afirmaccedilotildees parecem estar em acordo

com a verdade Por isso elenca oito motivos para concordar com as

propostas que definem a melhor vida como aquela em contemplaccedilatildeo

Primeiro a atividade mencionada eacute a mais alta porque o intelecto eacute a

melhor parte que temos e os objetos do intelecto teoacuterico satildeo os mais

altos dos objetos conheciacuteveis Segundo seria a eneacutergeia mais contiacutenua

pois podemos nos deixar agrave contemplaccedilatildeo de uma forma menos

interrompida do que a qualquer outra atividade Terceiro pensa-se que o

prazer intelectual deve ser componente da felicidade jaacute que a atividade

segundo a sabedoria eacute reconhecidamente a mais agradaacutevel das

atividades conformes agrave virtude A filosofia conteacutem prazeres

maravilhosos no que toca agrave pureza e agrave estabilidade por isso seria

normal se a alegria de conhecer fosse uma tarefa mais agradaacutevel que a

procura pelo conhecimento Quarto aquilo que eacute chamado lsquoplena

suficiecircnciarsquo pertenceria ao maacuteximo agrave atividade contemplativa Se eacute

verdade que o saacutebio o justo e todo homem detentor de virtude(s)

precisariam das coisas necessaacuterias agrave vida uma vez que estivessem

suficientemente providos de tais bens viveriam bem dedicando-se agrave

contemplaccedilatildeo teoacuterica O saacutebio ao contraacuterio dos outros virtuosos se

fosse deixado a si mesmo teria a capacidade de contemplar e seria

mesmo mais saacutebio se contemplasse nesse estado de vantagem Eacute claro

contudo que mesmo ao saacutebio eacute preferiacutevel viver na companhia de seus

semelhantes embora este seja o homem que mais baste a si mesmo

Quinto esse tipo de atividade descrito pareceria o uacutenico desejado por si

mesmo Por isso natildeo produziria nada aleacutem do ato de contemplar ao

contraacuterio das atividades praacuteticas Sexto a felicidade parece consistir em

lazer pois o homem soacute se satisfaz com uma vida ativa que busca o lazer

e natildeo vai agrave guerra com outra intenccedilatildeo que natildeo a paz Ateacute mesmo as

atividades poliacuteticas tecircm outro fim em vista e natildeo somente o lazer

buscam satisfazer os interesses gerais e a sauacutede da cidade natildeo sendo

desejaacuteveis por si mesmas enquanto a atividade do intelecto ou

137 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Εἰ δ ἐστὶν ἡ εὐδαιμονία κατ ἀρετὴν ἐνέργεια εὔλογον

κατὰ τὴν κρατίστην αὕτη δ ἂν εἴη τοῦ ἀρίστου εἴτε δὴ νοῦς τοῦτο εἴτε ἄλλο τι

ὃ δὴ κατὰ φύσιν δοκεῖ ἄρχειν καὶ ἡγεῖσθαι καὶ ἔννοιαν ἔχειν περὶ καλῶν καὶ

θείων εἴτε θεῖον ὂν καὶ αὐτὸ εἴτε τῶν ἐν ἡμῖν τὸ θειότατον ἡ τούτου ἐνέργεια

κατὰ τὴν οἰκείαν ἀρετὴν εἴη ἂν ἡ τελεία εὐδαιμονία ὅτι δ ἐστὶ θεωρητική

εἴρηται

155

contemplativa eacute prazerosa e completa ou perfeita (EN X 7 1177b19-26)

Seacutetimo uma vida desse tipo contudo seria demais para a condiccedilatildeo

humana pois natildeo se viveria como um homem mas segundo um

elemento divino que estivesse presente em noacutes Tanto quanto esse

elemento fosse superior ao composto humano sua atividade seria

superior agravequela do outro tipo de virtude (EN X 7 1177b28) ldquoSe

portanto o intelecto eacute algo de divino por comparaccedilatildeo com o homem a

vida segundo o intelecto eacute igualmente divina comparada com a vida

humanardquo (EN X 7 1177b30-31)138 por isso natildeo se deveria escutar

conselhos daqueles que os datildeo pois satildeo conselhos vindos de homens

sobre as coisas humanas O homem deveria se imortalizar na medida do

possiacutevel e fazer de tudo para viver segundo sua parte mais nobre

porque ldquomesmo que essa parte seja pequena em sua massa por sua

potecircncia e seu valor ela passa em muito todo o restordquo (EN X 7 1178a1-

2)139 Em oitavo lugar cada homem se identificaria com essa parte por

ser fundamental em seu ser e por ser a melhor sendo estranho que natildeo

concordasse com a vida que lhe eacute proacutepria mas com qualquer outra

porque o que eacute proacuteprio a cada coisa eacute o que lhe haacute de mais excelente e

agradaacutevel ldquoE para o homem esta seraacute a vida segundo o intelecto se eacute

verdade que o intelecto eacute no mais alto grau o proacuteprio homem Essa vida

eacute portanto igualmente a mais felizrdquo (EN X 7 11786a6-8140)

Nosso estudo precisa questionar todavia a imponecircncia desse tipo

de postura Embora natildeo seja interesse da tese apresentada definir qual

dos usos da razatildeo eacute melhor que o outro o praacutetico ou o teoacuterico

estivemos a defender a existecircncia de uma excelecircncia para cada uma das

(sub)capacidades racionais destacadas por Aristoacuteteles Todavia

pensamos ser indiscutiacutevel que um homem feliz natildeo possa prescindir do

uso praacutetico de sua razatildeo justamente pelo fato de ser um homem e natildeo

outro tipo de ser sendo que tal uso eacute tambeacutem indiscutivelmente

envolvido com as emoccedilotildees Em contrapartida ao lidarmos com eacutetica e

com as accedilotildees boas moralmente estivemos o tempo todo a tratar daquilo

que no homem se apresenta como natildeo racional mas observamos ao

138 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original εἰ δὴ θεῖον ὁ νοῦς πρὸς τὸν ἄνθρωπον καὶ ὁ κατὰ τοῦτον

βίος θεῖοςπρὸςτὸνἀνθρώπινονβίον 139 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original εἰ γὰρ καὶ τῷ ὄγκῳ μικρόν ἐστι δυνάμει καὶ τιμιότητι πολὺ

μᾶλλον πάντων ὑπερέχει 140 Idem καὶ τῷ ἀνθρώπῳ δὴ ὁ κατὰ τὸν νοῦν βίος εἴπερ τοῦτο μάλιστα

ἄνθρωπος οὗτος ἄρα καὶ εὐδαιμονέστατος

156

longo do estudo anteriormente apresentado a respeito da boa medida nas

emoccedilotildees que haacute sempre a presenccedila da racionalidade mesmo quando

tratamos da excelecircncia do natildeo racional que pede accedilatildeo

Por exemplo a junccedilatildeo da virtude moral com a virtude intelectual

da prudecircncia mostrou-se imprescindiacutevel sendo mesmo condiccedilatildeo sine

qua non para a boa forma das emoccedilotildees na vida moral e se apresentou

como aquilo que realmente caracteriza o homem na eacutetica de Aristoacuteteles

e seu modo de tocar a vida que lhe eacute peculiar141 O filoacutesofo retira de suas

divindades mas tambeacutem das bestas a possibilidade de ver apaziguados

em si esses elementos aparentemente diacutespares Tal possibilidade de

conciliaccedilatildeo entre a capacidade racional e capacidade natildeo racional na

alma humana permitiu ateacute o momento que conjugaacutessemos vaacuterios

campos de conhecimento descritos pelo filoacutesofo como destinados ao

tratamento de questotildees especiacuteficas Por isso dedicamos esse terceiro

Capiacutetulo de nosso estudo agrave observaccedilatildeo das possibilidades das relaccedilotildees

da capacidade racional com a capacidade natildeo racional jaacute que Aristoacuteteles

frisa demasiadamente que a melhor vida eacute atrelada agrave razatildeo

Tal anaacutelise seraacute necessaacuteria porque sejam quais forem os motivos

adotados pelo filoacutesofo o fato eacute que o Livro X da EN nos apresenta a

proposta de que a felicidade perfeita eacute uma certa atividade

contemplativa Todavia entendemos que ainda que estabelececircssemos a

vida contemplativa como melhor forma de vida natildeo poderiacuteamos abrir

matildeo de especificar o papel das emoccedilotildees nem neste nem naquele que

muitos consideram um segundo melhor tipo de vida a vida poliacutetica No

entanto ressaltamos que essa natildeo eacute nossa postura jaacute que nossas leituras

de Aristoacuteteles nos levam a pensar que uma vida contemplativa natildeo

aconteceria em total isolamento ou sem os bens elementares agrave

manutenccedilatildeo de uma existecircncia bem vivida entre os quais Aristoacuteteles

parece incluir nos livros VIII IX e mesmo no Livro X da EN as

relaccedilotildees de amizade Mesmo tendo exposto nossa duacutevida quanto agrave

validade do pensamento que defende a pura contemplaccedilatildeo teoacuterica como

representante legiacutetimo das intenccedilotildees do filoacutesofo devemos consideraacute-lo

141 Sobre o assutno Reeve escreveu ldquoA vida que consiste em atividade poliacutetica

sem oacutecio em acordo com a sabedoria praacutetica e com as virtudes de caraacuteter eacute uma

vida completamente mais feliz quando ndash porque ela eacute levada em uma cidade

com a melhor constituiccedilatildeo idealmente situada e provida com bens externos ndash

acontece alcanccedilando o melhor tipo de felicidade para quem a possui Essa vida

complexa ndash parte praacutetica parte contemplativa ndash eacute a melhor vida humana que a

sabedoria praacutetica que eacute o melhor tipo de conhecimento praacutetico pode organizarrdquo

(REEVE 2013 p 18)

157

e buscar perceber em que medida natildeo destoa das propostas

anteriormente levantadas Natildeo esqueccedilamos a ressalva do proacuteprio

Aristoacuteteles em questotildees de eacutetica eacute a experiecircncia que tem a palavra final

Por isso eacute preciso cotejar as conclusotildees que forem racionalmente tiradas

com as coisas que a vida apresenta pois tais coisas estando em acordo

com as conclusotildees tornam-se aceitaacuteveis

Com isso confirmamos a proposta de Aristoacuteteles porque afirma

que a maioria dos homens natildeo preza o racional142 embora ao descrever

a razatildeo como o que haacute de melhor no homem faccedila-nos entender que eacute

preciso tratar do papel do loacutegos na vida moral Como vimos natildeo haacute

virtude moral sem a participaccedilatildeo do intelecto mesmo que essa virtude

seja consolidada pelos haacutebitos e que este intelecto seja praacutetico e natildeo haacute

virtude moral nem boa vida sem uma educaccedilatildeo para as emoccedilotildees Tal

vida como jaacute propusemos somente seraacute possiacutevel na medida em que

pudermos ter nossas emoccedilotildees e nossa razatildeo em acordo o que eacute

viabilizado pela proposta de impossibilidade de uma vida puramente

dada ao racional teoacuterico impossibilidade exposta entre os motivos do

filoacutesofo para que a vida puramente contemplativa seja feliz (EN X 7

1177b26-30) Ainda precisamos confirmar como se datildeo as

possibilidades da racionalidade das emoccedilotildees aristoteacutelicas e os

instrumentos que interferem no sentir emoccedilatildeo e que permitem que esta

seja ao menos mudada favorecendo a virtude moral e a virtude como

um todo Sendo nosso objetivo explicitar o que permite e facilita a

participaccedilatildeo do natildeo racional na razatildeo praacutetica eacute forccediloso que doravante

estudemos mais detidamente a relaccedilatildeo desta razatildeo com as emoccedilotildees ou

seja o se emocionar racionalmente

2 A racionalidade das emoccedilotildees interpretaccedilotildees desde EN I agraves luzes

do De Anima

Os argumentos acima apresentam uma postura bastante favoraacutevel

agrave vida contemplativa como sendo a vida feliz poreacutem ao longo de nosso

estudo apresentamos vaacuterias possibilidades dentro do proacuteprio texto da

EN para suspeitar disso Mesmo o Livro X como acabamos de ressaltar

potildee em duacutevida a possibilidade de um homem ainda que fosse filoacutesofo

totalmente deixado agrave pura contemplaccedilatildeo teoacuterica Cremos que este tipo

de afirmaccedilatildeo (ou de questionamento) estabelece mais que a proposta de

142 Ou como propotildee Boyle (2012 p 31) muitos dos homens natildeo chegam a

alcanccedilar essa capacidade (ou capacidades) ao menos natildeo em sua melhor forma

pensamos

158

Kenny apresentada demasiado sucintamente no Capiacutetulo I o elo entre os

dois tratados sobre a felicidade Igualmente reforccedila a possibilidade de

defendermos nossa tese o homem eacute um composto de corpo e alma que

soacute realiza sua funccedilatildeo proacutepria na poacutelis mas para tanto precisa

harmonizar suas emoccedilotildees com a totalidade de sua razatildeo gerando

emoccedilotildees educadas O Livro X trecho X 7 1177b26-30 que parece por

em xeque todas as afirmaccedilotildees que tendem agrave elevaccedilatildeo da vida

contemplativa ao status de eudaiacutemōniacutea permitiraacute como pretendemos

demonstrar reforccedilar a defesa de nossa tese graccedilas agrave ligaccedilatildeo que

estabelece tanto com o argumento da funccedilatildeo apresentado em EN I

quanto com a proposta especificada em EN I 13 a respeito da capacidade

do desiderativo ouvir e participar da razatildeo desejando e se emocionando

de um jeito racional Para confirmar tais interpretaccedilotildees evocaremos o

DA quando necessaacuterio jaacute que esse tratado igualmente apresenta uma

proposta de homem como composto por corpo e alma sendo somente

tal composto capaz de sofrer afecccedilotildees do tipo das emoccedilotildees (DA I 4

408b18 et seq) e da forma como as sofre143 Por isso tambeacutem quando

necessaacuterio retomaremos algumas das propostas escritas a partir dos dois

tratados e que foram mencionadas nos demais capiacutetulos

Segundo nosso entendimento o Livro I da EN acompanhado de

outros trechos supramencionados da mesma obra nos apresenta uma

perspectiva acerca do que seja o homem No Capiacutetulo I estudamos uma

concepccedilatildeo de homem forjada a partir das distinccedilotildees que representaram o

ser humano como diferente dos demais animais graccedilas agrave natureza

proacutepria agrave sua alma dotada de razatildeo e igualmente da capacidade que tal

alma apresenta de conjugar em si capacidades que muitos pensaram ser

totalmente inconciliaacuteveis Isso eacute o que podemos entender ao lermos em

EN I 13 que a alma tem uma ldquoparterdquo racional e que igualmente apresenta

algo contraacuterio agrave razatildeo que lhe resiste e faz frente mas na sequecircncia do

texto o tom da discussatildeo desse assunto eacute suavizado dizendo que nos

homens com certos tipos de disposiccedilotildees de caraacuteter essa tal capacidade

ambiacutegua ldquofala a respeito de todas as coisas com a mesma voz que o

princiacutepio racionalrdquo (EN I 13 1102b28144) Vimos essas assertivas serem

introduzidas no tratado a fim de permitir a discussatildeo da virtude moral

143 Boyle (2012 p 21 traduccedilatildeo nossa) explica que um animal como o homem

racional ldquoeacute capaz natildeo somente de ser ter e fazer mais que uma criatura natildeo

racional mas de ser o sujeito de atribuiccedilotildees do ser ter e fazer num sentido

distintivordquo 144Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original πάντα γὰρ ὁμοφωνεῖ τῷ λόγῳ

φαίνεται δὴ καὶ τὸ ἄλογον διττόν

159

em cada um de seus tipos que existe apenas devido agraves duas capacidades

elementares na alma humana diferenciando novamente o homem dos

demais animais que nem sempre apresentam uma capacidade aniacutemica

racional

Com essas consideraccedilotildees percebemos em Aristoacuteteles e

confirmamos com apoio em alguns comentaacuterios como os de Nussbaum

Korsgaard Reeve Boyle e Sorabji o desenho de uma figura humana

dotada de uma funccedilatildeo proacutepria (como tudo mais que existe) sendo esta

funccedilatildeo adequada agrave alma caracteriacutestica agrave espeacutecie Agora vale reforccedilar tal

interpretaccedilatildeo com uma visita ao DA pois seu texto confirmaraacute nossas

intenccedilotildees acerca do caraacuteter antropoloacutegico esboccedilado pela EN O homem

descrito pelo tratado da alma confirmaraacute os traccedilos indicados pelo texto

eacutetico em momentos como o citado abaixo

O seguinte absurdo acontece tanto nesta como na

maioria das discussotildees sobre a alma elas

acomodam a alma no corpo nada definindo em

acreacutescimo sobre a causa e o modo como o corpo

se manteacutem Todavia isso parece necessaacuterio pois

devido a esta comunhatildeo um faz e o outro sofre

um eacute movido e o outro move e nada disso ocorre

casualmente a um e a outro (DA I 3 407b13-19145)

Esse posicionamento vale lembrar traz reforccedilo agrave importacircncia da

discussatildeo das emoccedilotildees consideradas entre as afecccedilotildees aniacutemicas

expressas pelo corpo seja por meio de movimentos de certas partes

suas seja com accedilotildees cometidas deliberadamente ou indeliberadamente

trazendo a responsabilidade ou isenccedilatildeo moral bem como a

voluntariedade agraves accedilotildees solicitadas pelas afecccedilotildees que satildeo as emoccedilotildees e

os desejos Esse tipo de interpretaccedilatildeo pode ser adotado a partir dos dois

tratados ora estudados a comeccedilar pela proposta da alma que em EN I 13

resultou na distinccedilatildeo das virtudes em intelectuais e morais discussatildeo

estendida ateacute o Livro VI da EN bem como apresentada em trechos do

DA como o passo I 4 408a34-b8 no qual lemos que as emoccedilotildees satildeo

vindas de fora que movimentam o corpo (por locomoccedilatildeo ou alteraccedilatildeo) e

145 Traduccedilatildeo de Maria Cecilia Gomes dos Reis (2006) no original ἐκεῖνο δὲ

ἄτοπον συμβαίνει καὶ τούτῳ τῷ λόγῳ καὶ τοῖς πλείστοις τῶν περὶ ψυχῆς

συνάπτουσι γὰρ καὶ τιθέασιν εἰς σῶμα τὴν ψυχήν οὐθὲν προσδιορίσαντες διὰ

τίν αἰτίαν καὶ πῶς ἔχοντος τοῦ σώματος καίτοι δόξειεν ἂν τοῦτ ἀναγκαῖον

εἶναι διὰ γὰρ τὴν κοινωνίαν τὸ μὲν ποιεῖ τὸ δὲ πάσχει καὶ τὸ μὲν κινεῖται τὸ δὲ

κινεῖ τούτων δ οὐθὲν ὑπάρχει πρὸς ἄλληλα τοῖς τυχοῦσιν

160

que o homem o faz ldquocom a almardquo A indissociabilidade entre corpoalma

leva ao fato jaacute mencionado de que um faz e o outro sofre um move e

outro eacute movido

O homem sendo entatildeo composto de corpo e alma somente se

emociona devido a esse seu aspecto (DA I 1 403a16 et seq) ldquoE por isso

supotildeem corretamente aqueles que tecircm a opiniatildeo de natildeo existir alma sem

corpo e tampouco ser a alma um certo corpo pois ela natildeo eacute corpo mas eacute

algo do corpo e por isso subsiste no corpo e em um corpo de tal tipordquo

(DA II 3 414a19-22146) Essas ideias servem como reforccedilo agrave EN quando

este texto apresenta o homem como animal poliacutetico dotado de funccedilatildeo

proacutepria a eudaiacutemōniacutea A alma una que defendemos se torna condiccedilatildeo

para que tal funccedilatildeo se realize de modo pleno Por isso repetimos

somente em uma poacutelis o homem pode desenvolver todas as suas

potencialidades de alma ou a maior parte delas pois somente a poacutelis

fornece o indispensaacutevel ao bom funcionamento da alma A

indissociabilidade do corpo e da alma humana (DA I 1 403a3-15) e de

suas capacidades dentro de uma soacute e mesma alma (DA I 4 408b18 et

seq) nos levou a pensar e afirmar a unidade da alma e igualmente do

desejo a fim de que o homem completasse sua funccedilatildeo que entendemos

ser realizaacutevel apenas mediante agrave boa relaccedilatildeo das capacidades aniacutemicas

elementares Aleacutem disso vimos que a poacutelis eacute o ambiente que daacute

condiccedilotildees para desenvolver e coordenar as virtudes necessaacuterias para a

vida considerada feliz

Voltemos ainda um instante agrave EN I 13 e agrave proposta de uma

capacidade racional da alma e uma capacidade natildeo racional sendo que

nesta uacuteltima eacute demasiado importante agrave presente investigaccedilatildeo sua

possibilidade de ouvir a razatildeo o que nos levou a entender melhor as

possibilidades de mudanccedilas nasdas emoccedilotildees Essas variaccedilotildees satildeo

necessaacuterias agrave vida feliz aleacutem de nos ajudar a entender melhor a postura

de Aristoacuteteles acerca da relaccedilatildeo corpoalma Ao definir a alma a partir

das capacidades que faculta ao corpo desempenhar (DA II 2 413a20-25)

Aristoacuteteles permite entender o homem como se enquadrando naquela

descriccedilatildeo de todo orgacircnico vivificado por uma alma e dotado de um

certo nuacutemero de capacidades que iriam como vimos desde a percepccedilatildeo

sensiacutevel ateacute a elaboraccedilatildeo mais fina e sofisticada de raciociacutenios a respeito

das coisas imutaacuteveis (DA II 2 413b1-12)

146 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original καὶ διὰ

τοῦτο καλῶς ὑπολαμβάνουσιν οἷς δοκεῖ μήτ ἄνευ σώματος εἶναι μήτε σῶμά τι

ἡ ψυχή σῶμα μὲν γὰρ οὐκ ἔστι σώματος δέ τι καὶ διὰ τοῦτο ἐν σώματι

ὑπάρχει καὶ ἐν σώματι τοιούτῳ

161

A alma propusemos no Capiacutetulo I seria algo uno com o

exerciacutecio de vaacuterias capacidades que a constituiriam Por conseguinte

para as capacidades serem adequadamente exercidas a alma precisa da

harmonia indicada em EN I 13 no DA I e ao longo destes tratados que

indicam o caraacuteter indissociaacutevel das capacidades natildeo haacute desejo e emoccedilatildeo

sem percepccedilatildeo sensiacutevel e natildeo haacute imaginaccedilatildeo e pensamento sem os

outros dois O que vem do mundo emociona e faz pensar e agir mas

como vimos em Capiacutetulo anterior eacute preciso pensar e agir bem a fim de

viver uma vida feliz Natildeo haacute possibilidade de felicidade nos termos de

Aristoacuteteles sem aquela chamada virtude completa que entendemos ser

a comunhatildeo perfeita da virtude intelectual e da moral e portanto das

duas capacidades elementares exercitadas em seu melhor O acordo eacute

possibilitador da eudaiacutemōniacutea porque a eudaiacutemōniacutea na vida que

defendemos eacute impossiacutevel sem eupraxiacutea Por esses motivos devemos dar

continuidade agraves discussotildees que aparecem no iniacutecio dos dois tratados e

observar outros pontos que permitem confirmar nossas teorias

2 a) Um quecirc ou o quecirc de racionalidade nas emoccedilotildees

A ideia do homem como composto de corpo e alma que faz e

sofre accedilotildees solicitadas pelas paacutethē ouvintes ou natildeo das sugestotildees da

razatildeo praacutetica deve ser defendida em nossa pesquisa porque busca

caracterizar as emoccedilotildees como elementos eacuteticos cruciais agrave vida feliz O

que reforccedila essa proposta eacute a identificaccedilatildeo de um certo nuacutemero de

termos aplicados geralmente a operaccedilotildees concernentes agraves capacidades

racionais ou que levam ao exerciacutecio de tais capacidades mas indicando

a constituiccedilatildeo das emoccedilotildees ou implicadas com as emoccedilotildees educadas

Esses termos aparecem quando (ou especialmente quando) se trata das

virtudes morais particulares ou concretas bem como da definiccedilatildeo de

diversas emoccedilotildees (Rhet II) Entendemos que assim seja graccedilas agrave ligaccedilatildeo

de interdependecircncia entre as capacidades aniacutemicas mencionada

explicitamente em DA (II 4 414b33 et seq) conferindo unidade agrave alma

humana Essa ligaccedilatildeo possibilita a participaccedilatildeo do desiderativo na razatildeo

praacutetica e a boa accedilatildeo proposta confirmada pela afirmaccedilatildeo de Boyle

(2012 p 23-31) que pensa a racionalidade como um conjunto de capacidades que permitem ao homem fazer ou no caso se emocionar

da forma como se emociona

Por isso julgamos conveniente apreciar sucintamente em nosso

estudo algumas capacidades intelectuais que possam constituir a forma

como nos emocionamos ou mesmo que possam influenciar a mudanccedila

162

nas emoccedilotildees e a mudanccedila de uma emoccedilatildeo em outra Comeccedilaremos com

a percepccedilatildeo sensiacutevel iniacutecio que se justifica porque em Aristoacuteteles eacute com

ela que se inicia a possibilidade de conhecimento sobre o mundo147 e eacute

com ela que as emoccedilotildees parecem ter iniacutecio Seguiremos com breve

estudo da imaginaccedilatildeo considerada um elemento do pensamento

inexistente sem o corpo mas que sempre aparece associada agraves

descriccedilotildees diversas das emoccedilotildees que analisamos ateacute agora Apoacutes

mencionaremos tipos de pensamento e intelecto de certo modo

relacionados com a percepccedilatildeo e com a emoccedilatildeo Estudaremos ainda a

opiniatildeo ligada agraves emoccedilotildees abordada apenas de modo que nos ajude a

reforccedilar a defesa das propostas de nosso estudo A escolha das

capacidades mencionadas eacute devida ao fato de serem discutidas tanto na

EN quanto no DA assim como por aparecerem nos outros dois tratados

que servem de apoio agrave nossa inquiriccedilatildeo Todavia o estudo natildeo se

pretende exaustivo nem de caraacuteter conclusivo acerca da questatildeo mas

seraacute apresentado agrave medida que confirme nossas propostas a respeito da

racionalidade da emoccedilatildeo Comeccedilaremos portanto com a percepccedilatildeo

pois sem esta natildeo haacute imaginaccedilatildeo e sem estas duas provavelmente natildeo

haja pensamentos que igualmente podem estar de implicados na

emoccedilatildeo

2 b) Percepccedilatildeo

Nosso intento com essa pequena parte da pesquisa eacute entender o

papel da percepccedilatildeo na emoccedilatildeo com o apoio da EN eacute do DA A

interpretaccedilatildeo tradicional deste uacuteltimo tratado propotildee a percepccedilatildeo atraveacutes

dos oacutergatildeos da sensibilidade como iniacutecio do conhecimento sendo isto um

tipo de afecccedilatildeo (paacutethos) ou movimento que igualmente nos levaraacute a

imaginar e a nos emocionar

A EN natildeo nos propotildee explicitamente a percepccedilatildeo sensiacutevel como

ligada agrave maioria das emoccedilotildees mas ao lermos as descriccedilotildees das virtudes

morais particulares percebemos sua presenccedila pois se emocionar parece

depender ao menos inicialmente de um contato com o mundo do

agente e este contato acontece por via dos sentidos da percepccedilatildeo Aleacutem

disso quando na EN Aristoacuteteles diferencia a capacidade raciocinativa da

percepccedilatildeo sensiacutevel por aquela ser generalizante ao passo que esta outra

eacute particularizante (EN II 9 1109b21) aponta a discriminaccedilatildeo como

mateacuteria da percepccedilatildeo (EN III 5 1126b4-6) tida com as coisas que nos

147 Segundo Zingano (1996 p 17) essa eacute a interpretaccedilatildeo tradicional para as

teorias sobre a relaccedilatildeo entre sensaccedilatildeo e pensamento expostas no De anima

163

aparecem Quanto a esse assunto o tratado tambeacutem nos informa que

para um homem ser prudente eacute preciso saber dos casos particulares O

texto explica que por isso um jovem nunca seraacute prudente por natildeo ter

experiecircncias suficientes dos casos desse tipo pois a experiecircncia nesses

assuntos vem com o tempo

A prudecircncia por sua vez diz respeito ao que haacute de mais

particular jaacute que a accedilatildeo a ser efetuada eacute ela mesma particular (EN VI 9

1142a24-25) embora diga respeito tambeacutem aos universais captados a

partir de um sem nuacutemero de particularidades como vimos no Capiacutetulo

anterior Deste modo a prudecircncia eacute o conhecimento do que haacute de mais

individual remetendo-se reforccedilamos a algo de universal diferindo

assim da percepccedilatildeo sensiacutevel (EN VI 8 1141b14 et seq VI 9 1142a27)

eacute percepccedilatildeo praacutetica como propotildee Reeve (2013 p 13 e 23) Esse

particular natildeo eacute objeto da ciecircncia mas da percepccedilatildeo trazendo-a -

mesmo aquela percepccedilatildeo descrita no DA III - para o campo eacutetico

Aristoacuteteles entretanto adverte a percepccedilatildeo participante das coisas

eacuteticas natildeo lida com os sensiacuteveis proacuteprios mas com os sensiacuteveis de outro

tipo como aqueles que distinguem formas geomeacutetricas (EN VI 9

1142a26-30) Mesmo que haja um tipo especiacutefico de percepccedilatildeo

associado agrave prudecircncia pensamos que seja impossiacutevel a essa virtude

intelectual dispensar o contato com o particular que eacute objeto da

percepccedilatildeo sensiacutevel Por isso cabe-nos estudar essa capacidade

Se pensarmos que a percepccedilatildeo sensiacutevel natildeo estaacute totalmente isenta

do contato com a emoccedilatildeo ligada como estaacute a aparecircncias externas

devemos descrevecirc-la como algo que consiste em ser movido e afetado

pois parece haver opiniotildees que a afirmam como certa alteraccedilatildeo embora

certo tipo de percepccedilatildeo possa natildeo ter ligaccedilatildeo direta com a accedilatildeo de teor

moral A percepccedilatildeo sensiacutevel eacute explicada pelo De Anima de modo

condizente a esta proposta como um movimento partindo de fora da

alma (DA I 4 408a34-35 408b1-17) que todavia natildeo eacute capacidade

exclusiva do homem148 eacute proacutepria aos animais em geral Por

conseguinte Aristoacuteteles segue sua exposiccedilatildeo sobre o assunto com a

proposiccedilatildeo de que o diferencial entre um animal e os outros seres natildeo eacute

o movimento ou a mudanccedila de lugar mas a percepccedilatildeo sensiacutevel (DA II 2

148 Nos An Post Aristoacuteteles descreveu a despeito das diferenccedilas de propoacutesitos

das investigaccedilotildees nesse tratado a percepccedilatildeo como ldquoOra assim eacute a sensaccedilatildeo

uma faculdade discriminativa (portanto de conhecimento)natural a todos os

animaisrdquo (99b36)Traduccedilatildeo de Vallandro e Bornheim (1978) no

originalἐνούσης δ αἰσθήσεως τοῖς μὲν τῶν ζῴων ἐγγίγνεται μονὴ τοῦ

αἰσθήματος τοῖςδ οὐκἐγγίγνεται

164

413b1-9) Por exemplo vimos que em certos animais e plantas

fragmentados cada parte conserva sensaccedilatildeo e movimento local O

filoacutesofo entretanto explica que se assim acontece com a sensaccedilatildeo

igualmente aconteceraacute com a imaginaccedilatildeo e com o desejo porque onde

haacute sensaccedilatildeo haacute prazer e dor e onde estes existem tambeacutem existe

necessariamente o desejo (DA II 2 413b21-23) Com os sentidos

acontece algo parecido alguns animais os tecircm todos outros apenas

alguns outros soacute precisam dee tecircm o tato como propusemos no

Capiacutetulo I As capacidades da alma satildeo propostas entretanto em

sucessatildeo porque sem a alma nutritiva natildeo existe a capacidade

perceptiva portanto e de acordo com Kenny

As almas dos seres vivos podem ser ordenadas

hierarquicamente Plantas possuem uma alma

vegetativa ou nutritiva a qual consiste nos

poderes de crescimento nutriccedilatildeo e reproduccedilatildeo (2

4 415a22-26) Aleacutem disso os animais possuem os

poderes de percepccedilatildeo e locomoccedilatildeo eles possuem

uma alma sensiacutevel e todo animal tem pelo menos

uma capacidade sensitiva das quais o tato eacute a

mais universal O que quer que possa sentir

afinal pode sentir prazer e os animais portanto

que possuem sentidos tambeacutem tecircm desejos Os

humanos aleacutem disso tecircm o poder da razatildeo e do

pensamento (logiacutesmos kaigrave diaacutenoia) que podemos

chamar de alma racional (KENNY 2008 p 284)

Nos animais que possuem tato haacute igualmente a percepccedilatildeo do

alimento e todos os seres vivos se alimentam de coisas secas e uacutemidas

quentes e frias A percepccedilatildeo desses tipos de coisas acontece atraveacutes do

tato que soacute percebe acidentalmente outras qualidades sensiacuteveis

implicando que o sabor eacute seu objeto embora o cheiro e ruiacutedo natildeo

acrescentem nada ao alimento Assim para cada sentido haacute um plano

sensiacutevel que eacute seu objeto proacuteprio e nenhum dos outros sentidos subsiste

sem o tato sendo que este subsiste sem os demais jaacute que haacute animais

sem visatildeo audiccedilatildeo ou percepccedilatildeo do odor

Quanto a essa relaccedilatildeo entre as capacidades o filoacutesofo explica que entre os animais que possuem a capacidade perceptiva uns tecircm a

locomoccedilatildeo outros natildeo mas poucos satildeo os que tecircm caacutelculo e raciociacutenio

Naqueles em que subsiste o caacutelculo igualmente haacute as demais

capacidades mas dos que tecircm cada uma das outras capacidades nem

todos tecircm o caacutelculo Haacute animais que natildeo tecircm sequer a imaginaccedilatildeo e

165

igualmente aqueles que vivem exclusivamente por ela Tendo em vista

estas propostas vale lembrar que desde o primeiro momento de nosso

estudo aceitamos a possibilidade de natildeo haver muacuteltiplas e distintas

almas mas de a alma se constituir das capacidades que faculta ao corpo

animado Com isso a capacidade perceptiva nos seres humanos de

certo modo se liga agraves emoccedilotildees por sua dependecircncia do desiderativo

comprovando mais uma vez a unicidade da alma e as propostas iniciadas

em EN I 13

A essa ideia eacute preciso acrescentar que Aristoacuteteles entende o

perceber de dois modos haacute percepccedilatildeo em ato e em potecircncia e o objeto

de percepccedilatildeo sensiacutevel tambeacutem seraacute em potecircncia ou em atividade

Igualmente eacute preciso fazer distinccedilotildees quanto agrave potecircncia e agrave atualidade

porque como proposto a sensaccedilatildeo eacute a faculdade discriminadora e

dessas discriminaccedilotildees viratildeo os motivos para as emoccedilotildees que deveratildeo

passar pelo crivo da razatildeo praacutetica e de sua forma especiacutefica de

percepccedilatildeo a fim de que adquiram aspecto conveniente Conforme

Aristoacuteteles o ser que nasce jaacute tem o perceber como um discriminar e a

atividade de perceber eacute dita de modo similar agrave de inquirir A diferenccedila

entre as duas funccedilotildees eacute que as coisas que tecircm o poder eficiente da

atividade satildeo externas - satildeo visiacuteveis audiacuteveis e demais objetos da

percepccedilatildeo sensiacutevel - porque a atividade da percepccedilatildeo diz respeito agraves

particularidades enquanto o conhecimento diz respeito aos universais -

que de algum modo estatildeo na alma Assim a capacidade perceptiva eacute

potencialmente ldquotal como seu objeto o eacute jaacute em atualidade Portanto ela eacute

afetada enquanto natildeo semelhante mas uma vez que tenha sido afetada

ela se assemelha e torna-se tal como elerdquo (DA II 5 418a4-6)149 levando

esses dados da percepccedilatildeo para a apreciaccedilatildeo da razatildeo em suas diferentes

formas mas sob a forma praacutetica quando se tratar das accedilotildees

Por conseguinte podemos ressaltar o assunto dos objetos da

percepccedilatildeo sensiacutevel e da discriminaccedilatildeo O filoacutesofo observa

primeiramente que os sensiacuteveis devem ser tratados segundo cada um

dos sentidos ldquoO sensiacutevel se diz de trecircs modos dos quais dois afirmamos

que satildeo percebidos por si mesmos e um por acidente E dos dois um eacute

proacuteprio a cada sentido outro comum a todosrdquo (DA II 6 418a8-11)150

Sensiacutevel proacuteprio eacute aquilo que natildeo pode ser percebido por um outro

149 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original πάσχει μὲν

οὖν οὐχ ὅμοιον ὄν πεπονθὸς δ ὡμοίωται καὶ ἔστιν οἷον ἐκεῖνο 150Idem λέγεται δὲ τὸ αἰσθητὸν τριχῶς ὧν δύο μὲν καθ αὑτά φαμεν

αἰσθάνεσθαι τὸ δὲ ἓν κατὰ συμβεβηκός τῶν δὲ δυοῖν τὸ μὲν ἴδιόν ἐστιν

ἑκάστης αἰσθήσεως τὸ δὲ κοινὸν πασῶν

166

sentido que natildeo lhe corresponda - caso da visatildeo da cor da gustaccedilatildeo etc

Cada sentido destes eacute diferente e natildeo haacute engano sobre se eacute cor ou som

mas sobre o que eacute e onde estaacute o colorido ou o sonante Sensiacuteveis comuns

satildeo o movimento o repouso o nuacutemero a figura e a magnitude (DA II 6

418a17-20) porque satildeo percebidos por mais de um sentido ou por todos

os sentidos Por exemplo um certo movimento eacute percebido tanto pelo

tato quanto pela visatildeo Haacute ainda o sensiacutevel por acidente explicado pelo

famoso exemplo do branco que eacute filho de Diares (DA II 6 418a21-25)

Mas em relaccedilatildeo a toda percepccedilatildeo sensiacutevel eacute preciso compreender que o

sentido recebe as formas sensiacuteveis sem a mateacuteria e do mesmo modo o

sentido eacute afetado pela accedilatildeo do que tem cor sabor ou som O oacutergatildeo

sensorial primeiro eacute aquele em que subsiste essa potecircncia mas dos

sensiacuteveis comuns temos uma percepccedilatildeo comum sem um sentido ou um

oacutergatildeo proacuteprio diante do que Robinson explica

Mas Aristoacuteteles estaacute ciente de que muito mais estaacute

sendo dito quando afirmamos que percebemos as

coisas em particular afirmamos que natildeo vemos

apenas cores mas objetos coloridos que estatildeo em

movimento ou em repouso que tecircm determinado

tamanho e que satildeo unos ou muacuteltiplos em nuacutemero

Estes satildeo chamados ldquosensiacuteveis comunsrdquo

Aristoacuteteles afirma satildeo percebidos per accidens

pelos cinco sentidos que temos e portanto

podemos nos referir a eles como o ldquosentido

comumrdquo ou ldquoos sentidos tomados em comumrdquo

(ROBINSON 2010 p 239)

A percepccedilatildeo sensiacutevel deste modo eacute tida como a capacidade

discriminativa entre as coisas sensiacuteveis que nos aparecem podendo

mesmo levar a ajuizamento Informaccedilatildeo crucial a uma pesquisa eacutetica

sobre as emoccedilotildees pois mais adiante veremos a proposiccedilatildeo da relaccedilatildeo

entre o sentir emoccedilatildeo e o ajuizar quanto aos particulares que nos tocam

Vimos que a percepccedilatildeo sensiacutevel que nos forneceraacute os dados dos

julgamentos por sua vez eacute ou uma potecircncia (como a visatildeo) ou uma

atividade (como o ato de ver) e estaacute sempre presente

Aleacutem disso as percepccedilotildees sensiacuteveis satildeo sempre verdadeiras se haacute boas condiccedilotildees do oacutergatildeo perceptivo e de seu objeto Por exemplo

quando estamos em plena atividade da percepccedilatildeo natildeo dizemos que um

objeto perceptiacutevel aparenta ser um homem dizemos isso quando natildeo

percebemos claramente Nesse caso a percepccedilatildeo seria verdadeira ou

falsa porque (1) haacute percepccedilatildeo sensiacutevel dos objetos sensiacuteveis proacuteprios

167

sendo esta verdadeira ou contendo minimamente o falso (2) porque natildeo

haacute percepccedilatildeo tambeacutem do incidir essas coisas que satildeo acidentais nos

objetos perceptiacuteveis e nesse caso admite-se errar e (3) haacute igualmente a

percepccedilatildeo dos sensiacuteveis comuns que acompanham os incidentais onde

subsistem os sensiacuteveis proacuteprios Essas trecircs percepccedilotildees sensiacuteveis daratildeo as

diferenccedilas do movimento que ocorre pela atividade da percepccedilatildeo se ela

estaacute presente (1) eacute verdadeiro Os outros podem ser falsos estando ela

presente ou natildeo principalmente quando estiver longe do objeto

perceptiacutevel que eacute totalmente particular

Assim agraves afirmaccedilotildees do DA se coadunam as propostas da EN

sobre a percepccedilatildeo quando esta uacuteltima obra nos informa que cada sentido

vem a ato pela relaccedilatildeo com o objeto sensiacutevel que lhe eacute correspondente

Tal operaccedilatildeo se torna perfeita quando o sentido - em uma disposiccedilatildeo satilde -

tem sua relaccedilatildeo com o melhor objeto que lhe corresponde como

proposto haacute pouco Nessas condiccedilotildees o ato eacute o mais perfeito e o mais

agradaacutevel porque para cada um dos sentidos haacute um prazer

correspondente sendo que nesse caso o prazer eacute o acabamento do ato de

perceber e discriminar Se o sentido e os sensiacuteveis estiverem nas

condiccedilotildees propostas sempre haveraacute prazer e verdade porque seratildeo

postos diante do princiacutepio eficiente e do princiacutepio passivo aiacutesthēsis e

aisthetoacuten Estes quando juntos contemplam as exigecircncias de perfeiccedilatildeo

da capacidade perceptiva permitindo o ato perceptivo perfeito em mais

alto grau

Mas esse tipo de percepccedilatildeo eacute o mesmo mencionado em EN VI

como associado agrave prudecircncia O Livro sobre as virtudes intelectuais nos

informa que a prudecircncia (EN VI 9 1142a26-30) eacute mais percepccedilatildeo

deliberativa ou praacutetica que qualquer outra coisa no entanto vimos que o

tipo de percepccedilatildeo associado agrave phroacutenēsis eacute diferente do outro (EN VI 9

1142a28) A percepccedilatildeo deliberativa envolve um universal que soacute pode

ser atingido por deliberaccedilatildeo praacutetica Nessas condiccedilotildees conta a posse de

desejos e emoccedilotildees moderados jaacute que podem ser em excesso ou falta e

por isso apresentam viacutecios que distorcem a visatildeo tornando-a falsa

quanto ao iniacutecio das accedilotildees (EN VI 13 1144a34-36) Por isso a percepccedilatildeo

relacionada agrave prudecircncia eacute de certa forma diferente da percepccedilatildeo dos

sensiacuteveis proacuteprios mencionados em DA III

No caso da prudecircncia opera-se uma percepccedilatildeo como aquela das

figuras que eacute chamada por Reeve (2014 p 211 et seq) percepccedilatildeo

deliberativa Estaacute relacionada ao silogismo praacutetico sendo percepccedilatildeo do

que eacute uacuteltimo na demonstraccedilatildeo praacutetica donde seu caraacuteter particular A

EN III 5 1112b11-24 e a EE II 10 1226a37 nos informam que o

deliberador age como quem analisa um diagrama Um matemaacutetico

168

analisa materiais e formas para serem desenhadas compondo uma

figura Esta eacute a uacuteltima coisa alcanccedilada na anaacutelise mas a primeira na

construccedilatildeo do objeto analisado (DA III 10 433a16-17) Com isso cessa a

investigaccedilatildeo (EN VI 9 1142a29) mais ou menos do mesmo modo que

ocorre na deliberaccedilatildeo praacutetica do prudente quando a anaacutelise chega ao

que deve ser feito ou seja age

Assim a percepccedilatildeo deliberativa resulta de deliberaccedilatildeo e eacute um

tipo de percepccedilatildeo porque o universal que ela discerne eacute captado a partir

de ocorrecircncias particulares perceptiacuteveis como explica Reeve (2013 p

23 p 32) ligando-se assim agrave percepccedilatildeo geral Mesmo que a percepccedilatildeo

de tipo deliberativo soacute ocorra em animais dotados de capacidade

calculativa ela eacute um ato perceptivo porque discerne um particular

perceptiacutevel pela capacidade perceptiva conforme o que explicamos

acima e o que Reeve ressalta

Se o particular em questatildeo eacute um perceptiacutevel

proacuteprio (como poderia ser por exemplo se

estiveacutessemos deliberando sobre que cor de roupa

nos protege melhor do sol) esse ato eacute mais

estritamente o de um sentido proacuteprio (visatildeo) Se eacute

um perceptiacutevel comum (como o formato

triangular) eacute um ato de senso comum (REEVE

2014 p 213)

Ao contraacuterio da percepccedilatildeo do sensiacutevel proacuteprio que eacute sempre

correta ou tem pouca chance de errar a percepccedilatildeo deliberativa pode

cometer erro por exemplo se a deliberaccedilatildeo ligada a ela natildeo for

verdadeira ou for invaacutelida Por isso a prudecircncia eacute ao mesmo tempo

percepccedilatildeo e deliberativa (EN VI 8 1141b9-10) porque perceber

corretamente sensiacuteveis comuns depende frequentemente de caacutelculo

sendo similar agrave percepccedilatildeo deliberativa Especificamente quanto agrave accedilatildeo a

deliberaccedilatildeo praacutetica que a determina tem por alvo a melhor coisa para o

homem e que pode ser realizada por ele (EN VI 8 1141b13-14) Esse

tipo de deliberaccedilatildeo eacute precursora da imaginaccedilatildeo deliberativa e envolve

desejos e emoccedilotildees que possuem boa medida O que faz da percepccedilatildeo

deliberativa praacutetica eacute o fato de seu objeto envolver prazer e dor como

no caso do desejo pela felicidade

Deste modo reforccedilamos que a percepccedilatildeo sensiacutevel pode ser

entendida mesmo em diferentes tratados como iniacutecio do conhecimento

e como afecccedilatildeo tocada por objetos particulares externos que satildeo

proacuteprios ou comuns Conduz a prazeres variados e pode mesmo ter

169

relaccedilatildeo com a emoccedilatildeo ocasionada pelo agente externo particular ao qual

discrimina Difere contudo dos pensamentos para os quais encaminha

suas distinccedilotildees e que em sua forma praacutetica ocasionaraacute a percepccedilatildeo de

tipo deliberativa Por isso questionamos assim como fez Zingano que

tipo de alteraccedilatildeo eacute a percepccedilatildeo sensiacutevel se natildeo eacute qualquer alteraccedilatildeo

Aristoacuteteles natildeo apresenta resposta exata agrave questatildeo mas com apoio no

que foi estudado podemos aceitar a proposta de Zingano (1996 p 16)

Este estudioso entende que a percepccedilatildeo seria ldquouma certa afecccedilatildeo aquela

que a faculdade sensitiva sofre quando passa agrave atualidade e identifica-se

formalmente agrave coisa que do exterior causa sua atualizaccedilatildeo

constituindo-se nesta relaccedilatildeo um objeto de conhecimento (mais

precisamente um objeto sensiacutevel)rdquo o que ratifica a proposta de EN X 7

1177b26-30 e as propostas de nossa pesquisa

Ao homem natildeo eacute possiacutevel uma vida afastada do mundo e de seus

objetos pois mesmo para boa parte de suas reflexotildees seria necessaacuterio o

contato com aquilo que o cerca e sobre o que deve deliberar em casos

embaraccedilosos e por isso haacute a percepccedilatildeo deliberativa que distingue a

partir do que eacute proposto em um silogismo praacutetico levando agrave boa accedilatildeo A

percepccedilatildeo natildeo se identifica com o pensar sendo atividade de outra

natureza que pode operar com a percepccedilatildeo sensiacutevel para produzir o

conhecimento151 Assim como a percepccedilatildeo deliberativa natildeo se identifica

151Para Zingano (1996 p 17) contudo essa natildeo eacute a interpretaccedilatildeo tradicional

Esta propotildee da forma como explica o estudioso uma iacutentima afinidade da

atividade dos sentidos com aquela do intelecto Isso eacute correto pensa o autor

porque todo conhecimento humano por conceitos necessita da ligaccedilatildeo entre as

operaccedilotildees da razatildeo e da sensaccedilatildeo O problema existente com a proposta

tradicional pensa estaacute no modo como tal afinidade eacute concebida Para

Aristoacuteteles essas duas operaccedilotildees satildeo distintas porque o pensamento apreende

os universais enquanto a sensaccedilatildeo apreende os particulares A proposta

tradicional no entanto atribui agraves operaccedilotildees algo mais que a tarefa

discriminativa (e de conhecer) os objetos teriam um modo de operaccedilatildeo

semelhante Por isso entender como funciona uma implicaria entender o

funcionamento da outra Nesse caso tanto com intelecto quanto com a sensaccedilatildeo

o conhecimento viria da passagem da potencialidade agrave atualidade sendo que o

objeto proacuteprio a cada operaccedilatildeo lhe cederia certa determinaccedilatildeo Nessa

passividade as operaccedilotildees estariam intimamente ligadas Entatildeo tanto uma

quanto outra seria uma potecircncia que dependeria do seu objeto para ser

atualizada

Isso afastaria Aristoacuteteles da proposta das Ideias de Platatildeo (como na Rep)

porque natildeo precisaria duplicar o objeto do conhecimento ldquoAristoacuteteles duplica

as operaccedilotildees da alma mas natildeo a proacutepria coisa partindo da apreensatildeo das

170

com a deliberaccedilatildeo mas eacute parte constituinte desta Todavia entre os

tipos de percepccedilatildeo mencionados e os tipos de pensamento e razatildeo com

os quais tecircm contato temos outro elemento presente a imaginaccedilatildeo

portanto cabe-nos agora dissertar brevemente sobre a imaginaccedilatildeo e as

emoccedilotildees

2 c) Imaginaccedilatildeo

Na EN VII 7 1149a32 a imaginaccedilatildeo aparece ligada agrave raiva

(thymoacutes) contrapondo-se agraves propostas do filoacutesofo quanto ao apetite No

passo em questatildeo satildeo feitas observaccedilotildees quanto agrave capacidade desses

dois desejos ouvirem agrave razatildeo e agrave forma como as emoccedilotildees relacionadas a

eles se comportam devido a essa participaccedilatildeo no racional Estas paacutethē

estatildeo associadas agrave percepccedilatildeo e agraves aparecircncias explicando que a razatildeo ou

a imaginaccedilatildeo estaacute presente nas apreciaccedilotildees dos insultos que enraivecem

relacionando o homem que deve se emocionar com o mundo (Pol I 2

1253a25-28 EN X 7 1177b26-30) Assim a imaginaccedilatildeo eacute atrelada ao

impulso e agrave raiva que pode acompanhaacute-lo

O DA parece nos trazer informaccedilotildees adicionais sobre a questatildeo

pois Aristoacuteteles nos fala da imaginaccedilatildeo ao comparaacute-la e associaacute-la com

a percepccedilatildeo sensiacutevel e com tipos de pensamento ldquoPois a imaginaccedilatildeo eacute

algo diverso tanto da percepccedilatildeo sensiacutevel como do raciociacutenio mas a

imaginaccedilatildeo natildeo ocorre sem percepccedilatildeo sensiacutevel e tampouco sem a

imaginaccedilatildeo ocorrem suposiccedilotildeesrdquo (DA III 2 427b14-16)152 Tratamos da

imaginaccedilatildeo ao abordarmos as capacidades da razatildeo que podem estar

implicadas com as emoccedilotildees porque haacute vaacuterias menccedilotildees a ela quando o

assunto eacute o paacutethos especialmente em Rhet II sendo a proacutepria um

paacutethos ao mesmo tempo em que eacute considerada como ponto

intermediaacuterio entre o perceber e o pensar Teoria que justifica o estudo

qualidades sensiacuteveis o homem chega aos inteligiacuteveis natildeo tendo uma relaccedilatildeo

com outra coisa mas retrabalhando esta mesma apreensatildeo sensiacutevel sob a forma

agora de reproduccedilatildeo imaginativa no interior da qual a razatildeo apreende os

inteligiacuteveis Haacute dois objetos de conhecimento o sensiacutevel e o inteligiacutevel aos

quais correspondem (sic) uma soacute coisa na realidade um particular que eacute

composto de mateacuteria e formardquo (ZINGANO 1997 p 18) Isso culminaraacute na tese

do intelecto agente e passivo Com essas propostas Aristoacuteteles elimina as Ideias

e resta-lhe a imanecircncia segundo a qual os inteligiacuteveis somente satildeo separados na

alma 152 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original φαντασία γὰρ ἕτερον

καὶ αἰσθήσεως καὶ διανοίας αὕτη τε οὐ γίγνεται ἄνευ αἰσθήσεως καὶ ἄνευ

ταύτης οὐκ ἔστιν ὑπόληψις

171

das trecircs capacidades racionais em um trabalho acerca das emoccedilotildees por

serem diferentes e exercerem tarefas diferentes junto agrave emoccedilatildeo e agrave

possibilidade de bem viver a imaginaccedilatildeo natildeo eacute nem pensamento nem

suposiccedilatildeo mas eacute uma afecccedilatildeo que depende de noacutes e do nosso querer

Aristoacuteteles explica que quando temos imaginaccedilatildeo de coisas terriacuteveis ou

pavorosas por exemplo podemos permanecer como que a contemplar

uma pintura (DA III 3 427b16-24153) pois a imaginaccedilatildeo natildeo nos leva

imediatamente a compartilhar a emoccedilatildeo Assim

Se a imaginaccedilatildeo eacute aquilo segundo o que dizemos

que nos ocorre uma imagem ndash e natildeo no sentido

em que o dizemos por metaacutefora - seria ela entatildeo

alguma daquelas potecircncias ou disposiccedilotildees

segundo as quais discernimos ou expressamos o

verdadeiro ou o falso Deste tipo satildeo a percepccedilatildeo

sensiacutevel a opiniatildeo a ciecircncia e o intelecto (DA III

3 428a1-4)154

A imaginaccedilatildeo natildeo eacute percepccedilatildeo sensiacutevel porque como vimos

pouco acima a percepccedilatildeo eacute ou uma potecircncia como a visatildeo ou um ato

como o de ver mas algo pode aparecer (phaiacutenetai) para noacutes quando natildeo

subsiste (em sonho por exemplo) e a percepccedilatildeo sensiacutevel eacute sempre

presente mas a imaginaccedilatildeo natildeo As imagens nos aparecem mesmo com

os olhos fechados enquanto a percepccedilatildeo depende destes abertos para

que contate seus objetos Aleacutem disso diferem porque se a imaginaccedilatildeo

fosse o mesmo que a percepccedilatildeo em atividade subsistiria em todos os

153 Ver tambeacutem Nussbaum (2008 p 65 et seq) embora a filoacutesofa natildeo esteja

propriamente a explicar Aristoacuteteles trata da compaixatildeo para exemplificar sua

teoria e exemplifica o papel da imaginaccedilatildeo na emoccedilatildeo ldquoNa compaixatildeo nossa

habilidade para pintar vividamente o dilema de uma pessoa ajuda na formaccedilatildeo

das emoccedilotildees [] podemos sentir menos emoccedilatildeo por outros casos que natildeo

podemos similarmente imaginar com vivacidade embora eles possam ter uma

estrutura similar Aqui o que a imaginaccedilatildeo parece fazer eacute nos ajudar trazendo

um indiviacuteduo distante para a esfera de nossos objetivos e projetos humanizando

a pessoa e criando apossibilidade de ligaccedilatildeo A compaixatildeo ainda seraacute definida

pelo seu conteuacutedo de pensamento incluindo seu conteuacutedo eudaiacutemōniacutestico []

mas a imaginaccedilatildeo eacute uma ponte que permite ao outro se tornar um objeto de

nossa compaixatildeordquo (NUSSBAUM 2008 p 66 traduccedilatildeo nossa) 154 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis (2006) no original εἰ δή ἐστιν ἡ

φαντασία καθ ἣν λέγομεν φάντασμά τι ἡμῖν γίγνεσθαι καὶ μὴ εἴ τι κατὰ

μεταφορὰν λέγομεν ἆρα μία τις ἔστι τούτων δύναμις ἢ ἕξις καθ ἃς κρίνομεν

καὶ ἀληθεύομεν ἢ ψευδόμεθα τοιαῦται δ εἰσὶν αἴσθησις δόξα ἐπιστήμη νοῦς

172

animais mas ela natildeo parece existir por exemplo nas formigas Outra

diferenccedila eacute que as percepccedilotildees satildeo sempre verdadeiras mas a maioria das

imaginaccedilotildees eacute falsa pois existe imaginaccedilatildeo falsa e os animais natildeo

possuem convicccedilatildeo (piacutestis) mas muitos tecircm imaginaccedilatildeo aleacutem do mais

alguns animais a possuem mas natildeo possuem razatildeo

A imaginaccedilatildeo eacute descrita portanto como movimento decorrente

da atividade da percepccedilatildeo sensiacutevel (DA III 3 429a1-2) sendo a uacutenica a

apresentar os atributos mencionados Zingano (2008 p 203) explica a

imaginaccedilatildeo como ldquoa faculdade da alma que preserva o que eacute dado pela

sensaccedilatildeo sob a forma de imagens sobre as quais o intelecto vai operar

funcionando como uma ponte entre razatildeo e sensaccedilatildeordquo Estando

relacionada agrave percepccedilatildeo sensiacutevel que tem sua principal expressatildeo na

visatildeo forma de percepccedilatildeo sensiacutevel por excelecircncia o nome imaginaccedilatildeo

deriva de luz (tograve phocircs) pois sem luz natildeo eacute possiacutevel ver e sem ver natildeo eacute

possiacutevel imaginar sendo tal capacidade uma espeacutecie de criadora de

coisas que satildeo ldquovistasrdquo pelo pensamento Assim as imaginaccedilotildees

perduram e se assemelham agraves percepccedilotildees sensiacuteveis sendo que os

animais fazem muitas coisas de acordo com essas uns por natildeo terem

intelecto outros como os homens por terem o intelecto agraves vezes

obscurecido pelo sono ou pela doenccedila

O DA tambeacutem nos faz entender que haacute diferentes tipos de

imaginaccedilatildeo ldquoA imaginaccedilatildeo perceptiva como foi dito subsiste

igualmente nos outros animais mas a deliberativa apenas nos seres

capazes de calcular pois decidir por fazer isto ou aquilo de fato jaacute eacute

uma funccedilatildeo do caacutelculordquo (DA III 9 434a5-7)155 Essas propostas ligam-se

agravequelas de EN VI texto no qual estudamos a imaginaccedilatildeo deliberativa

como Reeve (2014 p 212) esclarece ldquoA percepccedilatildeo deliberativa eacute um

parente proacuteximo ndash no sentido de que eacute o precursor essencial ndash da

imaginaccedilatildeo calculativa ou deliberativardquo Como nos explica o DA

compartilhamos a imaginaccedilatildeo perceptiva com todos os animais mas a

imaginaccedilatildeo deliberativa eacute exclusiva dos seres dotados de caacutelculo porque

ela eacute questatildeo de deliberaccedilatildeo em prol do bem supremo Por isso esse tipo

de imaginaccedilatildeo capacita ou vem da capacidade de discernir uma entre

muitas aparecircncias a partir do silogismo praacutetico no caso da accedilatildeo

colaborando com o tipo de visatildeo proacuteprio agrave prudecircncia

Por conseguinte se a imaginaccedilatildeo perceptiva eacute um tipo de

movimento que soacute acontece nos seres que tecircm percepccedilatildeo sensiacutevel a

155 Idem ἡ μὲν οὖν αἰσθητικὴ φαντασία ὥσπερ εἴρηται καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις

ζῴοις ὑπάρχει ἡ δὲ βουλευτικὴ ἐν τοῖς λογιστικοῖς (πότερον γὰρ πράξει τόδε ἢ

τόδε λογισμοῦ ἤδη ἐστὶν ἔργον[])

173

respeito das coisas das quais se tem tal percepccedilatildeo sendo possiacutevel que

aconteccedila pela atividade da aiacutesthēsis eacute preciso que o movimento seja

semelhante a esta O ser que possui esse movimento poderaacute fazer e

sofrer muitas coisas em conformidade a ele confirmando que a

percepccedilatildeo sensiacutevel se relaciona com a emoccedilatildeo pois esta uacuteltima move

de certo modo Se natildeo haacute imaginaccedilatildeo sem percepccedilatildeo sensiacutevel tais

operaccedilotildees se encadeiam no esquema daquilo que de mais proacuteximo ao

racional pode tocar agrave emoccedilatildeo mas haacute ainda a imaginaccedilatildeo deliberativa

que se associa agraves emoccedilotildees moderadas agrave deliberaccedilatildeo praacutetica e agrave escolha

deliberada dando ao prudente um tipo de visatildeo das coisas

possivelmente corretas a fazer com isso favorecendo a boa medida Na

sequecircncia da cadeia de operaccedilotildees tratada encontramos certos tipos de

pensamento e igualmente de intelecto sendo preciso estudaacute-los A

imaginaccedilatildeo contudo viraacute a ser mencionada novamente no estudo acerca

da opiniatildeo momento oportuno pois o filoacutesofo potildee-nas em comparaccedilatildeo

tanto na EN quanto no DA

2 d) Pensamentos

As anaacutelises feitas a partir dos textos estudados nos permitiram

constatar que haacute tipos de pensamento associados agrave emoccedilatildeo desejos e

prazeres Um destes tipos de pensamento (diaacutenoia) quanto agraves coisas

relativas agrave moralidade parece estar presente especialmente nas virtudes

intelectuais agraves quais se chama desde EN I 13 dianoeacuteticas entendidas

como as melhores condiccedilotildees da capacidade racional designada por

Aristoacuteteles como diaacutenoia Em EN I 6 todavia a vida bem-sucedida eacute

associada agrave posse da razatildeo e ao exerciacutecio desse tipo de pensamento (EN I 7 1098a5) ligaccedilatildeo comprovada pelo caso da boa deliberaccedilatildeo sempre

relacionada ao raciociacutenio ou caacutelculo A boa deliberaccedilatildeo eacute a uma

investigaccedilatildeo sobre algo especiacutefico agraves coisas morais permite calcular

corretamente sendo um tipo de retidatildeo de pensamento Deste modo natildeo

haacute boa deliberaccedilatildeo sem caacutelculo consciente mesmo que ela ainda natildeo

seja uma asserccedilatildeo O homem que delibera bem calcula e investiga

alguma coisa levando o desejo reto a emoccedilatildeo adequada e a escolha

deliberada a buscarem um objeto determinado quando devido (EN VI 2

1139a21 et seq) A associaccedilatildeo desse tipo de pensamento com o bem se

emocionar foi evidenciada mais acima quando tratamos da necessidade

da virtude dianoeacutetica ou intelectual da prudecircncia para que haja virtude

moral e para a formaccedilatildeo da virtude completa

O De Anima tambeacutem associa esse tipo de terminologia ao paacutethos quando nos confirma por exemplo que determinados objetos como o

174

que eacute doce movem a percepccedilatildeo sensiacutevel ou o pensar (ou entender tegraven

noacuteesin III 2 426b31-427a1) mas o texto que mais aproxima o pensar e

as emoccedilotildees eacute DA III 7 Em tal Livro podemos ler o seguinte

A ciecircncia em atividade eacute idecircntica ao seu objeto

[] Sentir entatildeo eacute semelhante ao mero proferir e

pensar156 e quando eacute agradaacutevel ou doloroso como

o afirmado ou negado isso eacute perseguido ou

evitado e sentir prazer ou dor consiste em estar

em atividade com a meacutedia da capacidade

sensitiva em face do bem ou do mal como tais A

aversatildeo e o desejo satildeo o mesmo em atividade e a

capacidade de desejar e de evitar natildeo satildeo

diferentes nem entre si nem da capacidade de

sentir embora o ser seja diverso Para a alma

capaz de pensar as imagens subsistem como

sensaccedilotildees percebidas E quando se afirma algo

bom ou nega-se algo ruim evita-o ou persegue-o

Por isso a alma jamais pensa sem imagem (DA III

7 431a1-16)157

156 Robinson (2010 p 245) explica que traduzir noucircs em certos trechos do DA

como aquele que identifica pensar e perceber seria mais convenientemente

entendido se se traduzisse o termo por lsquoentendimentorsquo Isso porque o estudioso

concebe o noucircs nesses pontos como parte do processo de pensamento mas que

natildeo eacute todo o processo Assim aiacutesthēsis e noucircs seriam anaacutelogos por serem

ambos eventos tipos de impressotildees mas cada um a seu modo (Robinson 2010

p 244) Pensamento em nosso sentido seria diaacutenoiesthai que tambeacutem se

ligaria agrave aiacutesthēsis e ao julgamento 157 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis (2006) no original Τὸ δ αὐτό ἐστιν ἡ

κατ ἐνέργειαν ἐπιστήμη τῷ πρά-

γματι ἡ δὲ κατὰ δύναμιν χρόνῳ προτέρα ἐν τῷ ἑνί ὅλως δὲ οὐδὲ χρόνῳ ἔστι

γὰρ ἐξ ἐντελεχείᾳ ὄντος πάντα τὰ γιγνόμενα ndash φαίνεται δὲ τὸ μὲν αἰσθητὸν ἐκ

δυνάμει ὄντος τοῦ αἰσθητικοῦ ἐνεργείᾳ ποιοῦν οὐ γὰρ πάσχει οὐδ ἀλλοιοῦται

διὸ ἄλλο εἶδος τοῦτο κινήσεως ἡ γὰρ κίνησις τοῦ ἀτελοῦς ἐνέργεια ἡ δ ἁπλῶς

ἐνέργεια ἑτέρα ἡ τοῦ τετελεσμένου ndash τὸ μὲν οὖν αἰσθάνεσθαι ὅμοιον τῷ

φάναι μόνον καὶ νοεῖνὅταν δὲ ἡδὺ ἢ λυπηρόν οἷον καταφᾶσα ἢ ἀποφᾶσα

διώκει ἢ φεύγει καὶ ἔστι τὸ ἥδεσθαι καὶ λυπεῖσθαι τὸ ἐνεργεῖν τῇ αἰσθητικῇ

μεσότητι πρὸς τὸ ἀγαθὸν ἢ κακόν ᾗ τοιαῦτα καὶ ἡ φυγὴ δὲ καὶ ἡ ὄρεξις ταὐτό

ἡ κατ ἐνέργειαν καὶ οὐχ ἕτερον τὸ ὀρεκτικὸν καὶ τὸ φευκτικόν οὔτ ἀλλήλων

οὔτε τοῦ αἰσθητικοῦ ἀλλὰ τὸ εἶναι ἄλλο τῇ δὲ διανοητικῇ ψυχῇ τὰ

φαντάσματα οἷον αἰσθήματα ὑπάρχει ὅταν δὲ ἀγαθὸν ἢ κακὸν φήσῃ ἢ

ἀποφήσῃ φεύγει ἢ διώκει διὸ οὐδέποτε νοεῖ ἄνευ φαντάσματος ἡ ψυχή

175

Por conseguinte o que eacute capaz de pensar pensa formas em

imagens Nestas se define para quem pensa o que deve ser perseguido e

evitado e por isso mesmo que se ponha a percepccedilatildeo sensiacutevel agrave parte o

que pensa se move quando diante de imagens Em outro momento

quando as imagens (phantasiacuteai) e os pensamentos estatildeo na alma o

homem raciocina como se visse tais imagens Delibera sobre as coisas

que poderatildeo acontecer (ou ser) a partir das que estatildeo presentes nesse

tipo de imagens do pensamento ldquovendordquo nestas o agradaacutevel ou o penoso

evita-o ou persegue-o relacionando-se com o desejo Mesmo o

verdadeiro e o falso que satildeo desprovidos de accedilatildeo estatildeo no mesmo

gecircnero que o bom e o mau embora difiram pois um eacute em absoluto e

outro eacute relativo a algueacutem

Haacute ainda outro tipo de pensamento com significado variado

relacionado agraves emoccedilotildees a serem despertadas e se apresenta nas

sugestotildees do filoacutesofo para que o orador consiga emocionar seu puacuteblico

Se o medo eacute acompanhado de algum

pressentimento de que vamos sofrer algum mal

que nos aniquila eacute oacutebvio que aqueles que acham

que nunca lhes vai acontecer algo de mal natildeo tecircm

medo nem receiam as coisas as pessoas e os

momentos que na sua maneira de pensar natildeo

podem provocar medo Assim pois

necessariamente sentem medo os que pensam que

podem vir a sofrer algum mal e os que pensam

que podem ser afetados por pessoas coisas e

momentos (Rhet II 5 1382b29-34)158

A Eacutetica Nicomaqueia tambeacutem apresenta o verbo oicircomai nesse

sentido de um pensar incerto ou de um tipo de crenccedila associado agraves

posturas intemperantes e incontinentes (EN VII 11 1152a6) As pessoas

que estatildeo ou pensam estar em grande prosperidade acreditam que natildeo haacute

mal que possa lhes acontecer satildeo insolentes desdenhosas e atrevidas

por disporem de riquezas muitas amizades forccedila e poder As pessoas

que acreditam jaacute ter sofrido todo o tipo de desgraccedilas tambeacutem pensam

assim sendo frias quanto ao futuro ldquoPara que sintamos receio eacute preciso

158 Traduccedilatildeo de Alves Alberto Pena (2012) no original εἰ δή ἐστιν ὁ φόβος

μετὰ προσδοκίας τινὸς τοῦ πείσεσθαί τι φθαρτικὸν πάθος φανερὸν ὅτι οὐδεὶς

φοβεῖται τῶν οἰομένων μηδὲν ἂν παθεῖν οὐδὲ ταῦτα ἃ μὴ οἴονται ἂν παθεῖν

οὐδὲ τούτους ὑφ ὧν μὴ οἴονται οὐδὲ τότε ὅτε μὴ οἴονται ἀνάγκη τοίνυν

φοβεῖσθαι τοὺς οἰομένους τι παθεῖν ἄν καὶ τοὺς ὑπὸ τούτων καὶ ταῦτα καὶ τότε

176

que haja alguma esperanccedila de salvaccedilatildeo pela qual valha a pena lutar

Sinal disso eacute que o medo leva as pessoas a deliberar ao passo que

ningueacutem delibera sobre casos desesperadosrdquo (Rhet II 5 1383a5-8)159

Essa apresentaccedilatildeo natildeo acontece nas trageacutedias embora os poemas faccedilam

com que o espectador imagine tal situaccedilatildeo a acontecer com algueacutem que

conhece Esse tipo de imaginaccedilatildeo basta para que o organismo de algueacutem

na plateia se prepare para sentir o medo proposta confirmada pela Eacutetica

Nicomaqueia IV 6 estudo acerca da disposiccedilatildeo corajosa oposta ao

medo emoccedilatildeo que encara ameaccedilas externas como males Por isso

alguns definem o medo como expectaccedilatildeo do mal ocasionado

geralmente pela relaccedilatildeo entre pessoas na poacutelis

O vocaacutebulo em questatildeo eacute empregado para designar algo

semelhante ao pensar ou ao imaginar e opinar Conforme Chantraine

(1977 p 785) aparece no sentido de ldquoopinonrdquo (opiniatildeo) fazendo

oposiccedilatildeo a saphṑs eideacutenai ver claramente ter certeza De acordo com

Aldo Dinucci e Alfredo Julien (2014 p 36) em sua traduccedilatildeo do

Encheiriacutedion de Epicteto o verbo na voz passiva oicircomai quer dizer

ldquolsquopensarrsquo no sentido de lsquopresumirrsquo referindo-se a coisas incertas ndash daiacute

lsquopressentir crer estimarrsquordquo Esses empregos assim como os da Retoacuterica parecem conservar a ideia de que haacute um quecirc de racionalidade se natildeo de

pensamento exatamente no sentido que hoje usamos a palavra que deve

estar presente nas emoccedilotildees despertadas na plateia de um juacuteri por

exemplo abrindo espaccedilo para a atuaccedilatildeo da razatildeo praacutetica na forma de

deliberaccedilatildeo Por isso a Rhet nos apresenta tambeacutem um termo

conhecidamente eacutetico o verbo bouleuacuteō (deliberar) sugerindo que

quando um orador mexe com as emoccedilotildees do puacuteblico este eacute levado agrave

deliberaccedilatildeo sobre os assuntos em questatildeo reforccedilando nossa teoria

Os estados de espiacuterito em que se sente piedade por exemplo

parecem estar diretamente ligados agrave lembranccedila que pode despertar a

imaginaccedilatildeo mas que igualmente parecem estar relacionados no caso do

medo com certo pensamento mesmo que este seja um tipo de

imaginaccedilatildeo que sugira deliberaccedilatildeo Assim haacute certos tipos de

pensamento especialmente envolvidos com a emoccedilatildeo que seraacute

despertada lembrando que estas associam o homem de modo especial

a uma vida que ultrapassa a total contemplaccedilatildeo intelectual embora natildeo

inviabilizando esse tipo de atividade racional No entanto as emoccedilotildees

igualmente satildeo acompanhadas por outras capacidades (ou

159 Idem ἀλλὰ δεῖ τινα ἐλπίδα ὑπεῖναι σωτηρίας περὶ οὗ ἀγωνιῶσιν σημεῖον

δέ ὁ γὰρ φόβος βουλευτικοὺς ποιεῖ καίτοι οὐδεὶς βουλεύεται περὶ τῶν

ἀνελπίστων

177

(sub)capacidades) racionais quando estatildeo acompanhadas dos processos

da prudecircncia Uma destas capacidades eacute o intelecto em sua funccedilatildeo

praacutetica como poderemos entender com o breve estudo a seguir

2 e) Intelecto praacutetico160

Existe uma capacidade na alma humana o intelecto (noucircs) que

se desdobra em intelecto praacutetico e intelecto teoacuterico Em sua funccedilatildeo ou

uso praacutetico age apreendendo o que por uacuteltimo eacute apresentado na

deliberaccedilatildeo a premissa menor Depois dessa deliberaccedilatildeo eacute possiacutevel

escolher deliberadamente tendo em vista um termo meacutedio e quando isso

acontece se atinge o ponto inicial para a accedilatildeo e deixa-se de investigar

Assim o intelecto tem papel tanto nas demonstraccedilotildees em geral quanto

nas demonstraccedilotildees praacuteticas embora seja uma soacute capacidade Por isso

Reeve (2014 p 209) escreve que ldquoo entendimento teoacuterico envolvido em

demonstraccedilotildees teoacutericas eacute o mesmo estado que o entendimento praacutetico

envolvido nas demonstraccedilotildees praacuteticasrdquo o que confere mais uma vez

credibilidade a nossa proposta de interpretaccedilatildeo da alma O intelecto

praacutetico (noucircs praktikoacutes) quando associado ao desejo pede accedilatildeo (DA III 5 433a1-17) Deste modo tem relaccedilatildeo com a prudecircncia que tambeacutem se

relaciona com o desejo buscando para este seu melhor estado

Em razatildeo das propostas acima resumidas o Livro VI da EN (VI 2

1139a18 et seq) nos fala do noucircs como um dos candidatos a

determinante da accedilatildeo e da verdade praacuteticos relacionados agrave prāxis e ao

desejo correto pelo que eacute bom A passagem aponta a escolha deliberada

como origem da accedilatildeo moralmente boa e afirma que natildeo haacute escolha

deliberada sem intelecto ou pensamento (noucirc kaigrave diaacutenoias EN VI 2

1139a33-34) ligando-os aos bons desejos e accedilotildees Por isso

anteriormente entendemos e provamos que igualmente se ligam agraves

emoccedilotildees adequadas No Livro IX por sua vez o intelecto eacute tido como

natildeo dominante naqueles que satildeo intemperantes mas dominante nos

160 As observaccedilotildees sobre o noucircs que aqui apresentamos satildeo baseadas

exclusivamente nos tratamentos que os Livros VI e IX da EN e III do DA

dispensam ao assunto mas pensando em uma forma que possam colaborar com

a tese defendida Usaremos ldquointelectordquo para traduzir noucircs e ldquointelecto praacuteticordquo

para traduzir noucircs praktikoacutes poreacutem quando formos usar traduccedilotildees feitas por

outros autores ou citar cometaacuterios feitos por outros autores a respeito desses

dois termosconceitos optaremos por manter a escolha de traduccedilatildeo de cada

autor Portanto podem aparecer palavras como ldquoentendimentordquo e ldquorazatildeo

intuitivardquo referindo-se ao noucircs

178

temperantes propondo-o como o proacuteprio homem embora novamente

relacionando-o agrave emoccedilatildeo moderada (EN IX 8 1168b35) Nesse passo

afirma-se que pode haver o impeacuterio da emoccedilatildeo quando o homem natildeo eacute

bem conduzido ou seja quando razatildeo praacutetica e emoccedilatildeo estatildeo

dissociadas Neste ponto eacute descrita a capacidade racional anteriormente

mencionada que se relaciona ao intelecto praacutetico e provavelmente agrave

accedilatildeo moral Para que haja tal tipo de intelecto satildeo imprescindiacuteveis

percepccedilotildees sensiacuteveis e imaginaccedilatildeo buscar e evitar que tambeacutem teratildeo a

ver com desejos e emoccedilotildees mesmo que estejam relacionados agrave forma

mais fina de se emocionar jaacute passada pela educaccedilatildeo moral adequada e

da qual falaremos a seguir Nisso consiste a possibilidade mesmo de

ouvir e obedecer agrave razatildeo como um todo de abrir-se agrave prudecircncia e agrave

mediania nas emoccedilotildees

O DA (III 10 433a15-30) parece concordar com essas propostas

ao explicar que o desejo eacute a origem (archḗ) do intelecto praacutetico

(praktikoucirc noucirc) e que a uacuteltima coisa nesse caso eacute o ponto inicial da

accedilatildeo Para que isso aconteccedila eacute preciso conceber a felicidade ou uma

ideia de felicidade como toacutepico maacuteximo da deliberaccedilatildeo praacutetica Aqui se

entende por felicidade a atividade racional em conformidade com a

virtude mais completa Por isso um deliberador procura saber diante

das circunstacircncias nas quais se encontra o que eacute ou o que constitui a

felicidade A resposta viraacute quando tiver detectado um ponto meacutedio que

apresente a melhor accedilatildeo dentro daquelas circunstacircncias que o agente

tenha ciecircncia de tal accedilatildeo com base na percepccedilatildeo e que possa efetuar tal

accedilatildeo Esse silogismo eacute o foco do deliberar para alcanccedilar a tal felicidade

Por isso deve mostrar o termo meacutedio que a indique sendo o silogismo o

plano de accedilatildeo do deliberador que resultaraacute em accedilatildeo complexa

constituindo agir bem e felicidade Mas para que haja a tal accedilatildeo proposta

pelo silogismo eacute preciso acreditar praticamente ou seja afirmar com a

parte calculativa e exercitar a conclusatildeo proposta pelo silogismo (EN VI

8 1141b13-14 VI 2 1139a21-31)

Segundo Reeve (2014 p 203) satildeo a natureza e a nossa funccedilatildeo

que determinam a felicidade Esta eacute a premissa maior da demonstraccedilatildeo

praacutetica e eacute fixa e imutaacutevel por isso natildeo se delibera a seu respeito Esse

ponto fixo eacute essencial para que haja movimento (DA III 10 433b21-27)

e no silogismo praacutetico eacute a premissa maior universal que proporciona o

movimento por ser fixa ou uma verdade imutaacutevel (DA III 11 434a16-

21) Ao contraacuterio as opiniotildees ou suposiccedilotildees indicam como lidar com as

coisas que natildeo satildeo fixas tratando do que pode variar e ser verdadeiro ou

falso por isso devem ser adequadas agrave variabilidade das circunstacircncias

(EN VI 3 1139b17-18) O desejo correto nesse caso eacute o ponto fixo que

179

leva agrave accedilatildeo demandada pela premissa menor No caso de um desejo natildeo

educado como o apetite no incontinente age-se contra a natureza ou

seja contra a premissa maior que eacute apreendida pelo intelecto praacutetico

Contudo pode haver dois tipos de silogismo praacutetico um proposto pela

prudecircncia outro pela inteligecircncia (syacutenesis) Esta uacuteltima eacute discriminadora

e natildeo prescritiva como a primeira (EN VI 13 1143a8-10) e por isso o

silogismo da inteligecircncia natildeo termina em accedilatildeo diferentemente daquele

relacionado agrave prudecircncia

Ao tratar das virtudes intelectuais no Livro VI da EN Aristoacuteteles

apresenta-nos a inteligecircncia e a perspicaacutecia (hē syacutenesis kaigrave hē eusynesiacutea)

como diferentes de ciecircncia e opiniatildeo A inteligecircncia natildeo trata das coisas

eternas nem do que deve ser mas das coisas sobre as quais pode haver

duacutevida e nas quais cabe deliberar sendo relativa agraves coisas de ordem

praacutetica161 Trata portanto dos mesmos objetos que a prudecircncia embora

natildeo sejam idecircnticas A prudecircncia eacute diretiva - tem por fim determinar o

que devemos ou natildeo devemos fazer - e a inteligecircncia eacute apenas

judicativa Deste modo inteligecircncia e julgamento tecircm lugar em nossa

pesquisa por serem associados agrave capacidade da alma que rege o

conhecimento do contingente A inteligecircncia natildeo consiste nem em

possuir nem em adquirir a prudecircncia mas se aplica agrave faculdade da

opiniatildeo

[] quando se trata de emitir um julgamento sobre

o que uma outra pessoa enuncia nas mateacuterias que

vecircm da prudecircncia e por julgamento entendo um

julgamento fundado (reto belo) pois bem eacute o

mesmo que fundado (reto belo) E o emprego do

termo inteligecircncia para designar a qualidade das

pessoas perspicazes veio da inteligecircncia no

sentido de aprender pois tomamos

frequentemente aprender no sentido de

compreender (EN VI 11 1143a13-18)162

Entendemos que nossa proposta de interpretaccedilatildeo da capacidade

161 Reeve entende a syacutenesis como um aspecto da phroacutenēsis e natildeo exatamente

como uma virtude autocircnoma (REEVE 2013 p 3) 162 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original οὕτως ἐν τῷ χρῆσθαι τῇ δόξῃ ἐπὶ τὸ κρίνειν περὶ τούτων

περὶ ὧν ἡ φρόνησίς ἐστιν ἄλλου λέγοντος καὶ κρίνειν καλῶς τὸ γὰρ εὖ τῷ

καλῶς τὸ αὐτό καὶ ἐντεῦθεν ἐλήλυθε τοὔνομα ἡ σύνεσις καθ ἣν εὐσύνετοι ἐκ

τῆς ἐν τῷ μανθάνειν λέγομεν γὰρ τὸ μανθάνειν συνιέναι πολλάκις

180

de julgamento na EN eacute ratificada pelo esboccedilo de definiccedilatildeo da emoccedilatildeo

proposto pela Retoacuterica relacionando-a com sua capacidade de alterar os

juiacutezos ou discriminaccedilotildees (tagrave kriacuteseis) e a EN chama julgamento

(gnomḗ)163 a qualidade segundo a qual se considera que as pessoas tecircm

correta discriminaccedilatildeo daquilo que eacute equitaacutevel (syngnomonikoacuten) Prova

disto eacute o fato de normalmente se dizer que um homem equitaacutevel eacute

disposto favoravelmente ao outro Tricot (2012 nota 3 p 325) explica

que o equitaacutevel eacute uma qualidade que leva o homem a compreender as

razotildees de agir de uma outra pessoa sendo uma espeacutecie de ldquolargueza de

espiacuteritordquo levando mesmo agrave indulgecircncia e ao perdatildeo Eacute o pensar com [o

outro]164 fundamental como explica Nussbaum para que certas

emoccedilotildees como a piedade sejam sentidas pois para a autora esta emoccedilatildeo

ou sua falta dependem dos julgamentos sobre o florescimento que

seratildeo tatildeo confiaacuteveis quanto a moral geral do observador

Para sentir piedade a pessoa deve considerar o sofrimento do

outro como parte importante de seu proacuteprio esquema de objetivos e fins

deve pensar que a falta daquela pessoa afeta seu florescimento e deve

ver-se como tatildeo vulneraacutevel quanto o outro165 Nessa possibilidade de

colocar-se no lugar do outro parece haver um tipo de julgamento

envolvido ou um tipo de imaginaccedilatildeo chamada por Nussbaum (2008 p

319) de ldquojulgamento da possibilidade similarrdquo Para que isso aconteccedila

natildeo eacute estritamente necessaacuterio que a pessoa focalize a relaccedilatildeo da outra

consigo mesma mas imaginar-se em uma posiccedilatildeo de possibilidade

similar ajuda na medida da imaginaccedilatildeo eudaimoniacutestica da proacutepria

pessoa porque seres humanos tecircm dificuldade de relacionar os outros

consigo mesmos a natildeo ser por pensamentos com os quais jaacute estejam

preocupados Por conseguinte eacute possiacutevel entender melhor o que

Aristoacuteteles poderia ter pretendido chamar de julgamento ou

discriminaccedilatildeo e porque resolveu associaacute-lo com um traccedilo eacutetico cedido

agraves emoccedilotildees que descreveu e pensou como ligadas agraves relaccedilotildees humanas

teoria comprovada pelo o passo subsequente

[] atribuiacutemos julgamento inteligecircncia

prudecircncia e razatildeo intuitiva indiferentemente aos

mesmos indiviacuteduos quando dizemos que eles

163 Robinson (2010 p 245) observa que Aristoacuteteles usa os verbos kriacutenein e

gnoriacutezein para designar a discriminaccedilatildeo 164 LIDDELL amp SCOTT 1996 sv 165 Sobre a discussatildeo desse assunto feita por Nussbaum ver tambeacutem seu livro

Sem fins lucrativos

181

alcanccedilaram a idade do julgamento e da razatildeo e

que eles satildeo prudentes e inteligentes Pois todas

essas faculdades satildeo sobre as coisas uacuteltimas e

particulares e eacute sendo capaz de julgar as coisas

retornando ao domiacutenio do homem prudente que

somos inteligentes benevolentes e

favoravelmente dispostos [em relaccedilatildeo] aos outros

as accedilotildees equitaacuteveis sendo comuns a todas as

pessoas de bem em suas relaccedilotildees com os outros

Ora todas as accedilotildees que devemos completar

retornam agraves coisas particulares e uacuteltimas pois o

homem prudente deve conhecer os fatos

particulares e por seu lado a inteligecircncia e o

julgamento giram em torno das accedilotildees a completar

que satildeo as coisas uacuteltimas A razatildeo intuitiva se

aplica tambeacutem agraves coisas particulares em ambos os

sentidos jaacute que os termos primeiros bem como os

uacuteltimos satildeo do domiacutenio da razatildeo intuitiva e natildeo

da discursividade nas demonstraccedilotildees a razatildeo

intuitiva apreende os termos imutaacuteveis e

primeiros e nos raciociacutenios de ordem praacutetica ela

apreende o fato uacuteltimo e contingente quer dizer a

premissa menor jaacute que esses fatos satildeo do fim a

alcanccedilar os casos particulares servindo de ponto

de partida para alcanccedilar os universais Devemos

portanto ter uma percepccedilatildeo dos casos

particulares e essa percepccedilatildeo eacute a razatildeo intuitiva

(EN VI 12 1143a25-35 1143b1-5)166

166 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Εἰσὶ δὲ πᾶσαι αἱ ἕξεις εὐλόγως εἰς ταὐτὸ τείνουσαι λέγομεν

γὰρ γνώμην καὶ σύνεσιν καὶ φρόνησιν καὶ νοῦν ἐπὶ τοὺς αὐτοὺς ἐπιφέροντες

γνώμην ἔχειν καὶ νοῦν ἤδη καὶ φρονίμους καὶ συνετούς πᾶσαι γὰρ αἱ δυνάμεις

αὗται τῶν ἐσχάτων εἰσὶ καὶ τῶν καθ ἕκαστον καὶ ἐν μὲν τῷ κριτικὸς εἶναι περὶ

ὧν ὁ φρόνιμος συνετὸς καὶ εὐγνώμων ἢ συγγνώμων τὰ γὰρ ἐπιεικῆ κοινὰ τῶν

ἀγαθῶν ἁπάντων ἐστὶν ἐν τῷ πρὸς ἄλλον ἔστι δὲ τῶν καθ ἕκαστα καὶ τῶν

ἐσχάτων ἅπαντα τὰ πρακτά καὶ γὰρ τὸν φρόνιμον δεῖ γινώσκειν αὐτά καὶ ἡ

σύνεσις καὶ ἡ γνώμη περὶ τὰ πρακτά ταῦτα δ ἔσχατα καὶ ὁ νοῦς τῶν ἐσχάτων

ἐπ ἀμφότερα καὶ γὰρ τῶν πρώτων ὅρων καὶ τῶν ἐσχάτων νοῦς ἐστὶ καὶ οὐ

λόγος καὶ ὁ μὲν κατὰ τὰς ἀποδείξεις τῶν ἀκινήτων ὅρων καὶ πρώτων ὁ δ ἐν

ταῖς πρακτικαῖς τοῦ ἐσχάτου καὶ ἐνδεχομένου καὶ τῆς ἑτέρας προτάσεωςἀρχαὶ

γὰρ τοῦ οὗ ἕνεκα αὗται ἐκ τῶν καθ ἕκαστα γὰρ τὰ καθόλου τούτων οὖν ἔχειν

δεῖ αἴσθησιν αὕτη δ ἐστὶ νοῦς

182

A prudecircncia eacute um tipo de boa administraccedilatildeo como vemos no

caso da temperanccedila cujo nome sophrosyacutene indica a conservaccedilatildeo da

prudecircncia sendo que esta conserva o julgamento ou discriminaccedilatildeo jaacute

que o prazer e a dor satildeo capazes de destruir juiacutezos acerca da accedilatildeo porque

os princiacutepios de nossas accedilotildees satildeo os fins aos quais tendem nossos atos

Eacute a faculdade discriminativa do julgamento contudo que parece estar

desde a origem mais proacutexima agraves emoccedilotildees jaacute que estas estatildeo

irremediavelmente relacionadas agrave sensibilidade que por sua vez nos

fornece as imagenspercepccedilotildees dentre as quais devemos efetuar a

discriminaccedilatildeo Com nossa pesquisa entendemos que a faculdade

judicativa ou discriminativa da razatildeo portanto tem grande importacircncia

no bem emocionar-se podendo mesmo favorecer que a prudecircncia se

achegue ao natildeo racional desiderativo e agraves emoccedilotildees

Diante disso o papel do julgamento e da inteligecircncia na

demonstraccedilatildeo praacutetica eacute restrito agraves coisas uacuteltimas e particulares porque

natildeo satildeo direcionadas ao que eacute imoacutevel ou imutaacutevel (EN VI 12 1143a4-5)

Isso acontece porque tecircm seu foco na accedilatildeo particular dentro de uma

circunstacircncia mas a premissa maior nessas demonstraccedilotildees tem que ser

imutaacutevel e imoacutevel como o soquete na articulaccedilatildeo bola-e-soquete

descrita no DA Contudo propusemos anteriormente que a prudecircncia de

certo modo tambeacutem se relaciona com o universal (a felicidade ou o

desejo por felicidade) que nesse caso eacute a premissa maior do silogismo

praacutetico diferenciando os silogismos por prudecircncia e por inteligecircncia

Vimos que os diferentes papeacuteis do intelecto nas demonstraccedilotildees

aparecerem descritos em EN VI 12 1143a35-b11 O intelecto tem por

ocupaccedilatildeo tanto os termos primaacuterios quanto as coisas que satildeo uacuteltimas

Nas demonstraccedilotildees cientiacuteficas o intelecto apreende um dos termos

primeiros e que natildeo muda Nas demonstraccedilotildees praacuteticas relaciona-se

com as coisas uacuteltimas e com as que podem ser de outro jeito bem como

com a premissa menor O intelecto praacutetico lida com tais coisas porque

elas satildeo o ponto de partida do que se tem em vista porque os universais

vecircm dos particulares Dos universais precisamos ter percepccedilatildeo (sendo

esta neste caso intelecto noucircs citado no fim do passo acima) Por isso o

intelecto eacute tanto princiacutepio quanto fim (archḗ e teacutelos) pois as

demonstraccedilotildees vecircm do intelecto e satildeo sobre o intelecto

O segundo papel do intelecto em uma demonstraccedilatildeo praacutetica eacute

apreender a premissa menor Como vimos acima esta eacute a uacuteltima coisa

alcanccedilada em uma deliberaccedilatildeo Pode ser de outra maneira porque

prescreve um tipo de accedilatildeo particular que pode variar conforme a

circunstacircncia e ao que cabe ao agente fazer ou natildeo O termo crucial

dessa premissa eacute o termo meacutedio que designa um tipo de accedilatildeo particular

183

que eacute apreendido pela percepccedilatildeo (EN VII 5 1147a25-26) e a percepccedilatildeo

envolve apreensatildeo ldquoconcomitante de universaisrdquo (REEVE 2014 p

210) A apreensatildeo do termo meacutedio por sua vez acontece devido agrave

apreensatildeo pelo intelecto de um misto das premissas maior e menor

quando se entende as duas premissas se entende a conclusatildeo Assim

Como a percepccedilatildeo do termo meacutedio (ou a accedilatildeo que

ele designa) deve ser mediada dessa maneira para

ser do tipo deliberativo ou determinador da accedilatildeo

relevante ela eacute um exerciacutecio tanto da percepccedilatildeo

como do entendimento Como a escolha

deliberativa portanto que eacute ldquoentendimento

envolvendo desejo ou desejo envolvendo

pensamentordquo (EN VI 2 1139b4-5) a percepccedilatildeo

deliberativa eacute entendimento envolvendo

pensamento (REEVE 2014 p 211)

Em retomada agrave questatildeo da relaccedilatildeo do silogismo empreendido

pelo prudente com particular e universal proposta no Capiacutetulo II e aqui

detalhada na medida em que contemplasse nossas discussotildees foi

possiacutevel compreender que por um lado a felicidade eacute o ponto inicial

por ser fim de toda accedilatildeo sendo universal Por outro lado o ponto inicial

satildeo as accedilotildees particulares que se direcionam ao alcance da felicidade

Portanto mesmo o intelecto em sua funccedilatildeo praacutetica necessita da

conjugaccedilatildeo entre corpo e alma para que atue de modo excelente pois os

particulares mesmo na deliberaccedilatildeo praacutetica se originam da percepccedilatildeo

sensiacutevel mais elementar que afeta o corpo e potildee a capacidade racional a

trabalhar em prol do que haacute de melhor para o homem Tal percepeccedilatildeo

tambeacutem pode estar pautada em um tipo de opiniatildeo relacionada agraves

premissas da deliberaccedilatildeo que natildeo se veem de todo desvencilhadas da

opiniatildeo geral ocasionada pelo contato com dados da sensibilidade como

veremos a seguir

2 f) Opiniatildeo

As premissas que devem ser captadas pelo intelecto satildeo

constituiacutedas por opiniotildees acerca do que eacute buscado e do que se deve fazer

ou deixar de fazer para alcanccedilar um objetivo Assim a opiniatildeo em EN

VI 10 1142b11-15 eacute apontada como um tipo de afirmaccedilatildeo baseada em

deliberaccedilatildeo Difere da prudecircncia que eacute virtude e fixa por ser um estado

e por poder ser esquecida Mas com auxiacutelio da virtude moral adquirida

por boa habituaccedilatildeo algueacutem pode ser ensinado a ter a opiniatildeo correta

184

sobre algo que levaraacute a uma deliberaccedilatildeo e possivelmente a uma accedilatildeo

(EN VII 9 1151a18-19) A correccedilatildeo daquilo que eacute afirmado pela

capacidade opinativa eacute importante assim como a retidatildeo do desejo mas

eacute preciso tambeacutem haver correccedilatildeo da deliberaccedilatildeo que apoia a opiniatildeo

Em EN VI ao comparar escolha deliberada e opiniatildeo Aristoacuteteles

nos daacute importantes traccedilos de ambas em especial da segunda A opiniatildeo

parece ter por alvo qualquer coisa inclusive o que eacute impossiacutevel e o que

natildeo estaacute em nosso poder Pode ser falsa ou verdadeira e natildeo eacute boa ou

maacute como eacute classificada a escolha deliberada Um homem tem tal ou tal

qualidade atribuiacuteda a si pelas escolhas que faz e natildeo por defender

determinada opiniatildeo embora escolha obter ou evitar mas natildeo opine

sobre esse tipo de coisa Algueacutem escolhe deliberadamente as coisas que

sabe serem boas mas a opiniatildeo eacute emitida igualmente acerca daquilo que

natildeo se sabe se eacute bom ou mau e natildeo parecem ser as mesmas pessoas

aquelas que deliberam bem e as que opinam bem porque mesmo quem

opina melhor pode escolher coisas que levam ao viacutecio A escolha

deliberada eacute diferente da opiniatildeo portanto por ser proposta como

capacidade do prudente que estaacute diretamente ligada agrave accedilatildeo avaliaacutevel

moralmente A prudecircncia eacute virtude da parte da alma capaz de opinar

porque a opiniatildeo tem relaccedilatildeo com o que pode ser de outro modo

todavia natildeo eacute simplesmente uma opiniatildeo acompanhada de regra Por

isso nos procedimentos de decisatildeo cabiacuteveis ao prudente a opiniatildeo tem

lugar antes da escolha deliberada (EE II 10 1226b9) Zingano (2008 p

171) esclarece isso do seguinte modo ldquoNo acircmbito do aristotelismo a

accedilatildeo necessariamente estaacute envolvida com as opiniotildees que o agente tem

se suspendecircssemos todas as nossas opiniotildees natildeo poderiacuteamos agirrdquo167

A opiniatildeo eacute mais bem explicada pelo De anima quando

comparada agrave imaginaccedilatildeo ldquoPois essa afecccedilatildeo depende de noacutes e somente

de noacutes e do nosso querer [] e ter opiniatildeo natildeo depende somente de noacutes

167Provavelmente por este motivo Aristoacuteteles quando trata da causa da

incontinecircncia tambeacutem emite sua opiniatildeo A premissa universal do silogismo

praacutetico empenhado pelo acraacutetico eacute uma opiniatildeo a outra premissa se relaciona

com os fatos particulares no campo dos quais a percepccedilatildeo manda Haacute pessoas

poreacutem que se mantecircm em sua opiniatildeo e que natildeo satildeo facilmente convencidas a

alterar a estas chamamos obstinadas (teimosas) Na contramatildeo haacute pessoas que

natildeo persistem em suas opiniotildees devido a uma causa estranha agrave incontinecircncia o

que implica que quem age por prazer nem sempre eacute intemperante incontinente

ou perverso Por conseguinte a opiniatildeo pode estar ligada a toda a cadeia de

relaccedilatildeo racional anteriormente mencionada e que se potildee em contato com o

desiderativo sendo forccediloso que admitamos seus contatos com a emoccedilatildeo

mesmo porque o termo aparece associado agrave emoccedilatildeo

185

pois haacute necessidade de que ela seja falsa ou verdadeirardquo (DA III 3

427b17-21)168 A opiniatildeo de que algo eacute terriacutevel pavoroso ou

encorajador leva imediatamente a certas emoccedilotildees diferentemente da

imaginaccedilatildeo (DA III 3 427b16-23) Isso implicaria que a opiniatildeo tem

papel mais efetivo que a imaginaccedilatildeo no provocar emoccedilotildees

Ao que tudo indica a resposta eacute positiva pois a opiniatildeo eacute

acompanhada de crenccedila a crenccedila eacute acompanhada do estar persuadido e

a persuasatildeo eacute acompanhada da razatildeo (DA III 3 428a18-24) Por

conseguinte e sendo que haacute accedilatildeo da opiniatildeo na emoccedilatildeo haacute certo

elemento racional no se emocionar ou haacute ao menos a comprovaccedilatildeo de

nossa proposta sobre a possibilidade de participaccedilatildeo do natildeo racional no

racional e vice-versa jaacute que ainda no DA (III 3 427b10) Aristoacuteteles

chega a definir a opiniatildeo como um tipo de pensar (noeicircn) que pode ser

correto ou incorreto de acordo com seu contato com a realidade

Propostas que satildeo reforccediladas tambeacutem como no caso da percepccedilatildeo

sensiacutevel por EN X 7 1177b26-30 trecho no qual o filoacutesofo destaca a

impossibilidade ou inviabilidade do homem viver totalmente para a

razatildeo porque esse tipo de existecircncia o livraria por completo de sua

humanidade Assim soacute existe opiniatildeo daquilo que haacute percepccedilatildeo

sensiacutevel mas haacute igualmente um tipo de opiniatildeo relacionada agrave percepccedilatildeo

deliberativa quando aparece em um silogismo praacutetico

Vimos que as deliberaccedilotildees praacuteticas satildeo expressas sob a forma de

silogismos praacuteticos que satildeo concluiacutedos com accedilotildees (EN VII 5 1147a25-

31) Nesse tipo de silogismo uma opiniatildeo eacute universal outra eacute particular

da parte da percepccedilatildeo Quando dessas duas premissas se gera uma

proposiccedilatildeo eacute preciso que a alma afirme a conclusatildeo obtida com o

silogismo Apoacutes age-se desde que natildeo haja impedimentos Deste modo

seja a opiniatildeo corriqueira ou aquela associada ao silogismo praacutetico ela

se configura sempre como um traccedilo de razatildeo que interfere na emoccedilatildeo

desde seu surgimento frente ao mundo ateacute seu aprimoramento pelos

processos da prudecircncia e da razatildeo praacutetica

Diante do que foi exposto podemos agora acatar a seguinte

proposta de Zingano a emoccedilatildeo natildeo eacute um bloco impermeaacutevel A maioria

das emoccedilotildees eacute um todo poroso permeaacutevel por certas formas da

racionalidade Seus poros podem dar lugar agraves sugestotildees da razatildeo que

estatildeo presentes realmente desde o iniacutecio com grande parte das paacutethē

Assim essa permeabilidade natildeo eacute exclusividade das emoccedilotildees traacutegicas

168 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original τοῦτο μὲν γὰρ τὸ

πάθος ἐφ ἡμῖν ἐστιν ὅταν βουλώμεθα [] δοξάζειν δ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἀνάγκη γὰρ

ἢ ψεύδεσθαι ἢ ἀληθεύειν

186

ou daquelas despertadas pelo discurso persuasivo embora

provavelmente seja nas descriccedilotildees destas que a relaccedilatildeo do emocional

com a razatildeo se faccedila mais visiacutevel Por isso na anaacutelise das virtudes

particulares e das emoccedilotildees a estas relacionadas sempre nos deparamos

com termos como ldquopensardquo ldquoimaginardquo ldquocrecircrdquo ldquotem opiniatildeordquo As

aparecircncias que tocam o agente e levam agraves crenccedilas que podem dar em

uma ou outra emoccedilatildeo precisam dos phainoacutemena (aparecircncias) e estes soacute

encontram o homem por meio das percepccedilotildees sensiacuteveis que estatildeo

relacionadas agrave opiniatildeo e agrave capacidade opinativa da razatildeo porque a

opiniatildeo eacute atrelada ao que pode ser diferente Portanto entendemos que

estas capacidades racionais ao menos em certa medida recobrem todas

as emoccedilotildees especialmente as que podem ser moderadas ou mudadas de

algum modo

Eacute certo contudo que a educaccedilatildeo moral proposta pelo filoacutesofo

cede mais importacircncia ao haacutebito que agrave forccedila da razatildeo mas natildeo se pode

esquecer que para ser realmente virtuoso para ser capaz de agir por si

mesmo de perceber por conta proacutepria o que eacute bom se munir de bons

desejos boas emoccedilotildees e desencadear a accedilatildeo correta a racionalidade

precisa estar presente ao menos sob a forma da phroacutenēsis que

desencadeia a bouacuteleusis e a proaiacuteresis A educaccedilatildeo que permitiraacute mudar

as emoccedilotildees ou mudar de emoccedilotildees natildeo pode se contentar portanto com

uma vida boa poreacutem conduzida por uma razatildeo que venha de fora

porque mesmo que tal vida seja boa natildeo eacute totalmente feliz O agente

precisa ter todas as virtudes intelectuais e morais agrave sua disposiccedilatildeo Eacute

preciso portanto que tenha a capacidade racional e a capacidade natildeo

racional em cooperaccedilatildeo em sua alma reforccedilando a proposta de EN I 13

para que manifeste aquilo que eacute propriamente humano e isso eacute possiacutevel

devido agraves caracteriacutesticas das capacidades que acabamos de descrever

Essa leitura favorece nossa interpretaccedilatildeo que ressalta o papel das

emoccedilotildees na vida moral colocando emoccedilotildees e razatildeo praacutetica juntas em

uma vida considerada feliz e natildeo subjugando as emoccedilotildees agrave forccedila da

razatildeo Todavia apresenta o problema da conciliaccedilatildeo entre razatildeo e

emoccedilatildeo Essa conciliaccedilatildeo se faz possiacutevel a partir de quando se

reconhece a impossibilidade de que mesmo os melhores dos homens

vivam isolados a contemplar ou que extirpem suas emoccedilotildees com o

auxiacutelio de algum tipo de razatildeo pois as emoccedilotildees satildeo presentes na

constituiccedilatildeo do sujeito moral Neste tecircm papel significativo tanto para o

caraacuteter quanto para o iniacutecio das accedilotildees jaacute a razatildeo praacutetica atua no interior

do sujeito moral Pode conduzi-lo melhor ao seu objetivo mas tambeacutem

frear ou redirecionar seus movimentos tornando-o um agente moderado

em suas emoccedilotildees Isso soacute acontece porque tal agente graccedilas agrave natureza

187

de sua alma tem a racionalidade na base de suas emoccedilotildees bem como

porque entendemos que um cidadatildeo eacute racional em suas accedilotildees e vida

quando apazigua suas capacidades aniacutemicas racionais e natildeo racionais

completando a funccedilatildeo propriamente humana e conferindo a

possibilidade educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua racionalidade

Mas como levar a cabo essa educaccedilatildeo Eacute nesse ponto que cabe nossa

exposiccedilatildeo acerca dos instrumentos que permitem as mudanccedilas nasdas

emoccedilotildees

3 O acordo entre a razatildeo e as emoccedilotildees a educaccedilatildeo moral e os

instrumentos de modificaccedilatildeo da emoccedilatildeo169

3 a) Educaccedilatildeo haacutebito e lei para a virtude

Depois de todo o proposto percebemos que a razatildeo praacutetica (e a

razatildeo como um todo jaacute que se trata de uma mesma capacidade) deve

entrar em acordo com o natildeo racional para que haja virtude ou seja para

que haja moderaccedilatildeo nas emoccedilotildees e felicidade170 Somente assim o

homem seraacute capaz de manifestar o que entendemos nesse estudo como

verdadeiramente humano a plenitude de sua alma em harmonia

Provavelmente uma soluccedilatildeo apontada pela Eacutetica Nicomaqueia para

nossa indagaccedilatildeo a respeito de como por emoccedilotildees e razatildeo praacutetica em

acordo esteja a ser indicada pelo passo II 2 1104b9-24 (cf ainda EN X

1 1172a19-24) que fala de um tipo especiacutefico de educaccedilatildeo com base

em proposta feita por Platatildeo171 e que provavelmente deva ser

empregado a fim da virtude O passo propotildee que as virtudes morais

estatildeo relacionadas com o prazer e o desejo Sendo possiacutevel educar-se ou

habituar-se a fim de se comprazer e desejar devidamente igualmente

deve ser possiacutevel educar e habituar as emoccedilotildees Do mesmo modo

podemos usar a explicaccedilatildeo de Aggio a respeito do modo como conciliar

razatildeo praacutetica e desejo como exemplo para entender o que propomos

ldquoAo que tudo indica a educaccedilatildeo moral parece ser condiccedilatildeo preacutevia

necessaacuteria para que razatildeo e desejo se harmonizem e para que a razatildeo

possa ser efetivamente causa coadjuvante (synaitiacutea) na constituiccedilatildeo do

169Lebrun entende que a possibilidade de regular as emoccedilotildees eacute a garantia de

poderem ser julgadas eticamente (2009 p 14-15) 170 Sorabji (2002 p 7) nos explica que para Aristoacuteteles as emoccedilotildees satildeo uacuteteis agrave

poacutelis desde que moderadas por permitirem catarse Por conseguinte Platatildeo

estava errado ao expulsar os poetas da sua cidade ideal 171Rep 410e-402a Leis 653a

188

fim da accedilatildeordquo (AGGIO 2017 no prelo) Pensamos que apoacutes a

explanaccedilatildeo subsequente poderemos defender algo semelhante para a

boa conduccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees

Pelo que a EN aponta vimos que o desejo por um fim deve

concordar com o escolher e o deliberar bem sobre os meios adequados

ao alcance do fim buscado e com isso pedir a accedilatildeo para que tal fim seja

alcanccedilado resultando na accedilatildeo virtuosa A interpretaccedilatildeo mais

comumente aceita propotildee que para Aristoacuteteles a parte desiderativa da

alma ainda que chamada irracional compartilharia da razatildeo e poderia

mesmo ter razatildeo (loacutegos eacutekhein) praacutetica pois a ouve mesmo natildeo

raciocinando as coisas fora de si (EN I 13 1102b29 1103a3) Por

exemplo ldquoO efeito geral eacute fazer a bouacutelēsis distinta da razatildeo embora

ainda relacionada a elardquo (SORABJI 2002 p 322 traduccedilatildeo nossa)

Relaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel para o homem prudente A obra de um

homem soacute eacute perfeita (teacuteleios) quando estaacute em acordo com a totalidade

da razatildeo mas especialmente quando em acordo com a prudecircncia e com

a virtude moral pois a prudecircncia torna o propoacutesito humano reto e

culmina na boa conduta e no desejo reto Conforme a explicaccedilatildeo de

Aggio

Para que o desejo se torne reto i e para que ele

seja conforme a razatildeo Aristoacuteteles nos diz

sucintamente que ele deve ser educado a ldquoouvi-lardquo

e a ldquoobedececirc-lardquo Dizer isso significa pressupor

que o desejo natildeo nasce reto e que o fim natildeo eacute

naturalmente um bom fim mas que ao contraacuterio

deve ser constituiacutedo dessa forma Se fosse

naturalmente bom natildeo haveria por que educaacute-lo

ou seja natildeo haveria motivo eacutetico para tanto nem

uma razatildeo que fosse capaz de persuadir a parte

desiderativa Tampouco poderia haver educaccedilatildeo

do desejo se a parte desiderativa natildeo fosse

naturalmente educaacutevel i e constituiacuteda por

natureza para obedecer agrave razatildeo (AGGIO 2017

no prelo)

Essa possibilidade de educar o desejo eacute igualmente a

possibilidade de educar a emoccedilatildeo pois a emoccedilatildeo eacute da alccedilada do

desiderativo assim como os trecircs tipos de desejo que lhe correspondem e

como as virtudes morais que potildeem o fim e que satildeo possiacuteveis devido agrave

habituaccedilatildeo ao que eacute correto Ao habituar corretamente os desejos

igualmente seratildeo corretamente habituadas as emoccedilotildees que lhes

189

acompanham Tal educaccedilatildeo eacute demasiado importante o que percebemos

por interpretaccedilotildees como as de Zingano (2008 p 24) que escreve ldquoas

emoccedilotildees tecircm que estar previamente educadas moralmente para que a

razatildeo possa acompanhaacute-las e lhes dar a reta direccedilatildeordquo Poreacutem ainda

devemos fornecer melhor explicaccedilatildeo para a possibilidade de moderar e

alterar as emoccedilotildees a forma e a possibilidade de alterar o modo como

sentimos e o que sentimos mudanccedilas operadas pela educaccedilatildeo Essa

explicaccedilatildeo eacute necessaacuteria bem observa o mesmo estudioso como vimos

anteriormente porque mesmo que a razatildeo praacutetica interfira nas emoccedilotildees

nada garante que consiga modificaacute-las Eacute preciso conseguir uma

precedecircncia e prevalecircncia da accedilatildeo (bem conduzida pelo haacutebito) em

relaccedilatildeo agrave disposiccedilatildeo moral que se fixaraacute em virtude Mas o que eacute

preciso fazer para que tal educaccedilatildeo aconteccedila

Aristoacuteteles no Livro X da EN comeccedila a responder tais perguntas

observando que a maioria natildeo faz o que deve por ser nobre mas por

medo da puniccedilatildeo Isso acontece porque ldquovivendo sob o impeacuterio da

paixatildeo os homens perseguem suas proacuteprias satisfaccedilotildees e os meios de

realizaacute-las e evitam as dores que a isso se opotildeem e eles natildeo tecircm

nenhuma ideia do que eacute nobre e verdadeiramente agradaacutevel por natildeo o

terem jamais experimentadordquo (EN X 10 1179b13-16)172 Assim sendo

haveria algum argumento capaz de persuadir essas pessoas Aristoacuteteles

observa que se natildeo eacute impossiacutevel eacute ao menos difiacutecil extirpar por meio do

raciociacutenio os haacutebitos inveterados no caraacuteter Pensa ainda que devemos

nos considerar felizes se dispomos de todos os meios para nos tornarmos

honestos e com isso conseguirmos participar de algum modo da virtude

Mas como isso seria possiacutevel Por natureza por haacutebito ou pelo ensino

Natildeo seria por natureza jaacute que os dons naturais natildeo dependem de noacutes

como explica o passo seguinte

O raciociacutenio e o ensino por sua vez natildeo satildeo

temo igualmente poderosos em todos os homens

mas eacute preciso cultivar antes ao menos os haacutebitos

a alma do ouvinte em vista de lhe fazer estimar

ou abominar o que deve secirc-lo como por uma terra

chamada a fazer frutificar a semente Pois o

homem que vive sob o impeacuterio da paixatildeo natildeo

saberaacute escutar um raciociacutenio que busca desviaacute-lo

172 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original πάθει γὰρ ζῶντες τὰς οἰκείας ἡδονὰς διώκουσι καὶ δι ὧν

αὗται ἔσονται φεύγουσι δὲ τὰς ἀντικειμένας λύπας τοῦ δὲ καλοῦ καὶ ὡς

ἀληθῶς ἡδέος οὐδ ἔννοιαν ἔχουσιν ἄγευστοι ὄντες

190

de seu viacutecio e nem mesmo o compreenderaacute Mas

o homem que estaacute nesse estado como eacute possiacutevel

fazecirc-lo alterar de sentimento (EN X 10 1179b23-

28)173

De um modo geral parece que o raciociacutenio que cede agrave paixatildeo natildeo

o faz por constrangimento assim para que um homem seja bom deve

haver previamente uma disposiccedilatildeo do caraacuteter que seja apropriada agrave

virtude que estime o que eacute nobre e que despreze o que eacute vergonhoso

Mesmo que tais disposiccedilotildees recebam uma educaccedilatildeo de acordo com a

retidatildeo desde a juventude a tarefa se torna ainda mais difiacutecil se natildeo se

for educado sob leis justas porque viver corajosamente natildeo eacute agradaacutevel

para a maioria das pessoas especialmente para os jovens Por isso eacute

conveniente estipular pelas leis o modo de educar e o modo de viver

que deixaraacute de ser doloroso com o haacutebito Natildeo basta todavia uma

educaccedilatildeo e cuidados desde a juventude eacute preciso que os cidadatildeos ainda

quando adultos sejam capazes de praticar as coisas aprendidas e faccedilam

delas haacutebitos A habituaccedilatildeo eacute necessaacuteria desde a infacircncia desde os

ensinamentos apresentados no acircmbito domeacutestico mas as leis seratildeo

necessaacuterias na idade adulta e por toda a vida porque a maioria obedece

mais agrave necessidade que agrave razatildeo e mais agrave puniccedilatildeo que ao sentido do bem

Do mesmo modo caso se pretenda que um homem seja bom este

deve receber uma boa educaccedilatildeo e os haacutebitos do homem de bem aleacutem de

se ocupar com coisas honestas natildeo fazendo o que eacute vil nem voluntaacuteria

nem involuntariamente Se aqueles que natildeo alcanccedilam a plena virtude soacute

podem agir bem em uma vida submissa agrave regra inteligente e perfeita

conseguida agrave forccedila Aristoacuteteles entende que ao menos no iniacutecio da

educaccedilatildeo a autoridade eacute necessaacuteria A autoridade paterna contudo natildeo

seraacute suficiente por natildeo possuir nem a forccedila nem o poder corretivo por

isso a lei que tem poder de obrigar eacute uma regra que emana de certa

prudecircncia e a inteligecircncia deve poder fazecirc-lo Se o homem detesta

aquilo que faz oposiccedilatildeo aos seus impulsos a lei natildeo deve estar a cargo

da pessoa mas prescrever o que eacute honesto dispensando o agente de se

tornar quando natildeo for possiacutevel prudente ldquoA melhor soluccedilatildeo eacute

portanto se entregar agrave justa solicitude da autoridade puacuteblica e ser capaz

173 Idem ὁ δὲ λόγος καὶ ἡ διδαχὴ μή ποτ οὐκ ἐν ἅπασιν ἰσχύει ἀλλὰ δεῖ

προδιειργάσθαι τοῖς ἔθεσι τὴν τοῦ ἀκροατοῦ ψυχὴν πρὸς τὸ καλῶς χαίρειν καὶ

μισεῖν ὥσπερ γῆν τὴν θρέψουσαν τὸ σπέρμα οὐ γὰρ ἂν ἀκούσειε λόγου

ἀποτρέποντος οὐδ αὖ συνείη ὁ κατὰ πάθος ζῶν τὸν δ οὕτως ἔχοντα πῶς οἷόν

τε μεταπεῖσαι

191

de fazecirc-lordquo (EN X 10 1180a29-31)174 Caso natildeo haja o interesse da

autoridade puacuteblica nesses assuntos pensa-se que o melhor eacute que cada

indiviacuteduo deva propor a seus filhos e amigos uma vida virtuosa ou ao

menos tentar fazer com que tenham vontade viver virtuosamente

Com isso Aristoacuteteles parece pensar que um patriarca conseguiraacute

cumprir sua tarefa educadora se tiver um espiacuterito legislador Se a

educaccedilatildeo puacuteblica eacute exercida em meio agraves leis e se somente boas leis

produzem uma boa educaccedilatildeo igualmente em casa deve haver boas

regras Se tais leis satildeo escritas ou natildeo natildeo importa O que importa eacute que

sejam capazes de fornecer a educaccedilatildeo a uma soacute pessoa ou a um grupo

Na cidade satildeo as disposiccedilotildees legais e os costumes que tecircm a forccedila para

sancionar mas nas famiacutelias o pai e os usos privados devem ter tal poder

sendo que o poder coercitivo deve ser mais forte nesse acircmbito porque

haacute laccedilos afetivos que unem pai e filho Isso deve ser aproveitado pois

nas crianccedilas existe uma afecccedilatildeo e uma docilidade naturais Nesse ponto

a educaccedilatildeo individual eacute superior agrave puacuteblica pois sabe o que eacute melhor

para o indiviacuteduo a ser educado ldquoJulgaremos entatildeo que eacute tida uma conta

mais exata dos particulares individuais quando se lida com a educaccedilatildeo

privada cada sujeito encontrando entatildeo mais facilmente o que

corresponde agraves suas necessidadesrdquo (EN X 10 1180b11-12) Os cuidados

dispensados ao indiviacuteduo seratildeo no entanto mais bem dados por algueacutem

que conheccedila do universal que saiba de um modo geral o que conveacutem

aos que se encontram em formaccedilatildeo A esse respeito Aristoacuteteles escreve

Eacute provaacutevel portanto que aquele que deseja por

meio da disciplina educativa tornar os homens

melhores quer eles sejam em grande nuacutemero

quer em pequeno nuacutemero deve se esforccedilar para

tornar-se a si mesmo capaz de legislar se eacute pelas

leis que noacutes podemos nos tornar bons colocar de

fato a um indiviacuteduo qualquer que seja aquilo que

propomos a vosso cuidado na disposiccedilatildeo moral

conveniente natildeo estaacute ao alcance de qualquer um

mas se essa tarefa vem a algueacutem eacute seguramente

ao homem que possui o conhecimento cientiacutefico

como eacute aplicaacutevel para a medicina e para as outras

artes que fazem apelo a alguma solicitude e agrave

174 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original κράτιστον μὲν οὖν τὸ γίνεσθαι κοινὴν ἐπιμέλειαν καὶ ὀρθὴν

καὶ δρᾶν αὐτὸ δύνασθαι

192

prudecircncia (EN X 10 1180b23-28)175

A analogia meacutedica nos faz entender melhor por que a educaccedilatildeo

proposta eacute adequada agrave emoccedilatildeo a medicina grega de linha hipocraacutetica

bem conhecida por Aristoacuteteles era questatildeo de equiliacutebrio Por esses

motivos pensamos que o mesmo valha para a emoccedilatildeo sendo

acompanhada de prazer e dor e tendo a ver com os desejos deveraacute

igualmente poder receber certa educaccedilatildeo para equilibrar-se com a razatildeo

praacutetica Tal educaccedilatildeo emocional por sua vez viraacute com o auxiacutelio da

melhor forma da capacidade calculativa da alma a prudecircncia e de seus

recursos a saber a boa deliberaccedilatildeo e a escolha deliberada que

concorreratildeo agrave boa accedilatildeo e agrave melhor forma que a vida humana possa

alcanccedilar Por isso Besnier propocircs (2008 p 91) que a formaccedilatildeo eacutetica

poderia ser entendida como uma ldquoarte da paixatildeordquo - embora lsquoartersquo natildeo

pareccedila ser termo empregado pelo comentador no mesmo sentido que

teacutechnē eacute usado por Aristoacuteteles - sendo oposta ao viver segundo a

emoccedilatildeo traccedilo dos jovens e dos incompletamente educados Sobre isso

Besnier escreveu

Para Aristoacuteteles quem vive segundo as paixotildees

(no niacutevel das paixotildees) vive certamente sem arte

(sem a arte da felicidade) para a qual lhe falta a

disposiccedilatildeo) o vicioso e o virtuoso tecircm essa

capacidade o segundo como arte verdadeira o

primeiro conforme uma contra-arte [] que natildeo o

tornaraacute feliz mas ao menos teraacute a vantagem de lhe

proporcionar um percurso de vida coerente Um

torna sua vida coerente pela busca da mediania o

outro pela de um extremo (em excesso ou

deficiecircncia) (BESNIER 2008 p 92)

O haacutebito agrave virtude moral proporcionado pelas regras corretas - da

razatildeo da casa da poacutelis - favorece a forma adequada da emoccedilatildeo E para

responder a pergunta que haviacuteamos levantado em um capiacutetulo anterior

acerca da diferenccedila entre haacutebito e ensino jaacute que ao longo deste toacutepico

175 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original τάχα δὲ καὶ τῷ βουλομένῳ δι ἐπιμελείας βελτίους ποιεῖν

εἴτε πολλοὺς εἴτ ὀλίγους νομοθετικῷ πειρατέον γενέσθαι εἰ διὰ νόμων ἀγαθοὶ

γενοίμεθ ἄν ὅντινα γὰρ οὖν καὶ τὸν προτεθέντα διαθεῖναι καλῶς οὐκ ἔστι τοῦ

τυχόντος ἀλλ εἴπερ τινός τοῦ εἰδότος ὥσπερ ἐπ ἰατρικῆς καὶ τῶν λοιπῶν ὧν

ἔστιν ἐπιμέλειά τις καὶ φρόνησις

193

falamos dos dois podemos acatar a proposta de Irwin (1978 p 568) O

estudioso entende ensino como aquele tipo de educaccedilatildeo apto a

desenvolver as virtudes intelectuais tatildeo necessaacuterias agrave virtude moral O

ensino natildeo determina os fins buscados por um homem que devem ser

determinados pela virtude moral que eacute adquirida por meio de treino ou

seja do haacutebito Ambos como observa Zingano exigem tempo e

experiecircncia constituindo aquilo que parece ser a educaccedilatildeo ideal para a

vida moralmente boa A habituaccedilatildeo moral sozinha seria como na

proposta de Irwin (1975 p 576-577) uma educaccedilatildeo incompleta porque

natildeo produziria virtude de caraacuteter Por conseguinte embora Irwin

entenda que Aristoacuteteles natildeo o diga pensamos ter deixado claro ao longo

de nosso estudo que o filoacutesofo entende que a virtude moral requer o

envolvimento de ambas as capacidades da alma em diversas de suas

(sub)capacidades para fazer do homem pleno Quando o filoacutesofo exige

que a virtude completa requeira sabedoria exige ao mesmo tempo que

haja cooperaccedilatildeo entre as duas capacidades da alma ao menos sob a

forma de um alinhamento entre percepccedilotildees imaginaccedilotildees pensamento

intelecto opiniotildees juiacutezos desejos prazeres e emoccedilotildees Por conseguinte

algo mais que uma accedilatildeo virtuosa irrefletida (palavras de Irwin) eacute

necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um bom caraacuteter

O tipo de educaccedilatildeo proposto ao fim e ao longo da EN permitiraacute

ao cidadatildeo mais que deliberar corretamente e escolher deliberadamente

por auxiacutelio de uma virtude que lhe eacute alheia Permitiraacute fazer tais caacutelculos

e ter tais preferecircncias por si mesmo graccedilas agrave sua proacutepria prudecircncia que

o levaraacute aos melhores desejos e a por-se os bons fins Isso tudo garantiraacute

a emoccedilatildeo moderada e ajustada na escolha que levaraacute agrave boa accedilatildeo e agrave vida

feliz peculiares ao homem ldquoNo homem bem-educado o paacutethos natildeo eacute

uma forccedila que colocaraacute permanentes obstaacuteculos agrave alma razoaacutevel ele estaacute

a serviccedilo do loacutegos e em consonacircncia com elerdquo (LEBRUN 2009 p 16)

Para tanto poacutelis e poliacutetēs (cidadatildeo) contam com auxiliares na mudanccedila

e adequaccedilatildeo emocional as artes (teacutechnai) que facilitam o trabalho de

habituaccedilatildeo conforme a razatildeo Vejamos portanto de que modo a arte

poeacutetica e arte retoacuterica podem colaborar com a educaccedilatildeo proposta para

mudanccedila dasnas emoccedilotildees para que harmonizem com a solicitaccedilatildeo

racional e como tal mudanccedila pode ser apreciada eticamente

3 b) A retoacuterica como instrumento de mudanccedila nas emoccedilotildees

194

Na Retoacuterica tambeacutem podemos ler sobre os perigos que

determinadas emoccedilotildees (ou emoccedilotildees desmesuradas) representam agrave vida

poliacutetica Aristoacuteteles afirma que o ldquoataque verbal a compaixatildeo a ira e

outras paixotildees da alma semelhantes a estas natildeo afetam o assunto mas

sim o juizrdquo (Rhet 1354a16-18)176 Afirma tambeacutem que determinadas

emoccedilotildees natildeo devem ser suscitadas em certos lugares caso da ira do

oacutedio e da piedade que natildeo devem estar presentes no areoacutepago porque

pervertem o juiz (Rhet I 1 1354a24-25) ldquoNa sua apreciaccedilatildeo dos fatos

intervecircm muitas vezes a amizade a hostilidade e o interesse pessoal

com a consequecircncia de natildeo mais conseguirem discernir a verdade com

exatidatildeo e de seu juiacutezo ser obscurecido por um sentimento egoiacutesta de

prazer ou de dorrdquo (Rhet I 1 1354b8-11)177 No acircmbito do discurso

persuasivo as emoccedilotildees apresentam esse aspecto especiacutefico sua

capacidade de alterar de afetar os juiacutezos

Tal aspecto da Retoacuterica eacute interessante porque aborda a arte que

tem ldquocapacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim

de persuadirrdquo (Rhet I 2 1355b25-26)178 A arte retoacuterica revela a

capacidade de descobrir os meios de persuasatildeo sobre qualquer questatildeo

o que a torna peculiar Conveacutem notar quais propostas do tratado em

questatildeo possam valer para uma investigaccedilatildeo de cunho eacutetico acerca das

emoccedilotildees em sua relaccedilatildeo com a plenitude daquilo que eacute propriamente

humano e que favoreccedila as relaccedilotildees das capacidades racionais e natildeo

racionais Pretendemos entender especialmente como o orador

consegue suscitar ou mudar emoccedilotildees com estas mudar o juiacutezo do

puacuteblico e como essa habilidade pode auxiliar uma educaccedilatildeo moral que

modere as emoccedilotildees

Podemos comeccedilar nossa pesquisa do assunto pela observaccedilatildeo das

provas de persuasatildeo proacuteprias agrave retoacuterica ldquoAs provas de persuasatildeo

fornecidas pelo discurso satildeo de trecircs espeacutecies umas residem no caraacuteter

moral do orador outras no modo como se dispotildee o ouvinte e outras no

proacuteprio discurso pelo que este demonstra ou parece demonstrarrdquo (Rhet

176 Traduccedilatildeo de Alves Alberto e Pena (2012) no original διαβολὴ γὰρ καὶ

ἔλεος καὶ ὀργὴ καὶ τὰ τοιαῦτα πάθη τῆς ψυχῆς οὐ περὶ τοῦ πράγματός ἐστιν

ἀλλὰ πρὸς τὸν δικαστήν 177Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original πρὸς οὓς

καὶ τὸ φιλεῖν ἤδη καὶ τὸ μισεῖν καὶ τὸ ἴδιον συμφέρον συνήρτηται πολλάκις

ὥστε μηκέτι δύνασθαι θεωρεῖν ἱκανῶς τὸ ἀληθές ἀλλ ἐπισκοτεῖν τῇ κρίσει τὸ

ἴδιον ἡδὺ ἢ λυπηρόν 178 Idem δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν

195

I 2 1356a1-4)179 A persuasatildeo pelo caraacuteter ocorre quando o discurso eacute

proferido de modo a deixar a impressatildeo de que o orador eacute digno de feacute

Essa confianccedila deve resultar do discurso e natildeo de uma opiniatildeo preacutevia

quanto ao caraacuteter do orador pois a probidade de quem fala eacute importante

agrave persuasatildeo sendo o caraacuteter ldquoquaserdquo o principal meio de persuasatildeo

Quando acarretada pela disposiccedilatildeo dos ouvintes a persuasatildeo ocorre ao

serem levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso Isso acontece

porque os juiacutezos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou

alegria amor ou oacutedio (Rhet I 2 1356a15-16) Entatildeo a persuasatildeo eacute

especialmente tratada quando se fala das emoccedilotildees e parece que na

retoacuterica os juiacutezos podem decorrer ou vir junto das emoccedilotildees por

intermeacutedio das aparecircncias e opiniotildees que devem ser apresentadas pelo

discurso tornando essas emoccedilotildees afecccedilotildees do corpo e da alma

Se as provas por persuasatildeo satildeo obtidas por estes meios quem

pode se servir delas eacute aquele que eacute capaz de formar silogismos que

pode teorizar sobre os caracteres sobre as virtudes e sobre as emoccedilotildees

Aristoacuteteles entende a retoacuterica como filha da dialeacutetica e da poliacutetica e noacutes

arriscamos ainda a dizer tal arte pode ter influecircncia na moralidade por

interferir em um certo tipo de deliberaccedilatildeo e por depender de

conhecimentos sobre caracteres e virtudes aleacutem de manipular as

aparecircncias dos caracteres proporcionando razatildeo para os argumentos

Konstan explica ldquoas emoccedilotildees satildeo obtidas por nossa interpretaccedilatildeo das

palavras atos e intenccedilotildees dos outros cada uma de seu modo

caracteriacutesticordquo (KONSTAN 2006 p XII traduccedilatildeo nossa) Para o autor

uma consequecircncia dessa abordagem eacute a possiacutevel mudanccedila das emoccedilotildees

ao modificar seu modo de interpretar o evento que desencadeia a

emoccedilatildeo em questatildeo mas afirma que isso natildeo eacute o mesmo que convencer

algueacutem por argumentos racionais Propotildee que diferentemente dos

apetites e dos impulsos as emoccedilotildees satildeo dependentes da capacidade de

simbolizar donde a importacircncia da persuasatildeo para mudar os

julgamentos que as compotildeem pois tal apreciaccedilatildeo eacute capaz de tocar a

ldquomola dos afetosrdquo (LEBRUN 2009 p 14)

Provavelmente essa interpretaccedilatildeo seja conveniente agrave teoria

proposta por Nussbaum acerca da percepccedilatildeo do objeto de emoccedilatildeo poder

modificaacute-la A autora avalia a possibilidade pautada em uma esperanccedila

179 Estas provas podem mesmo alterar uma emoccedilatildeo em outra afirma Sorabji

(2002 p 23) Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no

original τῶν δὲ διὰ τοῦ λόγου ποριζομένων πίστεων τρία εἴδη ἔστιν αἱ μὲν γάρ

εἰσιν ἐν τῷ ἤθει τοῦ λέγοντος αἱ δὲ ἐν τῷ τὸν ἀκροατὴν διαθεῖναί πως αἱ δὲ ἐν

αὐτῷ τῷ λόγῳ διὰ τοῦ δεικνύναι ἢ φαίνεσθαι δεικνύναι

196

de que uma mudanccedila no pensamento possa levar a uma mudanccedila no

comportamento e igualmente na emoccedilatildeo pois esta eacute um modo de ver

ldquocarregado-de-valorrdquo (NUSSBAUM 2008 p 232) como propusemos

acima Essa teoria tem importante implicaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo moral

pois a autora entende que Aristoacuteteles fornece ao futuro orador instruccedilotildees

para provocar coacutelera apresentando os seus objetos por um novo acircngulo

Sendo possiacutevel provocar as emoccedilotildees eacute possiacutevel direcionar o agente a

senti-las de uma maneira ou de outra e com isso haacute a possibilidade de

mudanccedila nasdas emoccedilotildees por um tipo de instruccedilatildeo com certo fundo

racional o discurso persuasivo e emocional como leremos a seguir

Se ele diz entendemos que os Persas realmente

natildeo erraram conosco deixaremos de estar

encolerizados com eles Mas claro a vida nem

sempre eacute assim Algumas coacuteleras podem na

verdade alterar diretamente com uma nova

consideraccedilatildeo dos fatos muitas natildeo Novamente

algum oacutedio e repulsa por grupos pode prevenir seu

surgimento por uma boa educaccedilatildeo moral e ainda

a despeito de nossos melhores esforccedilos eacute como se

isso tivesse alguma raiz profunda na

personalidade (NUSSBAUM 2008 p 233

traduccedilatildeo nossa)

Eacute provaacutevel que as propostas dos dois estudiosos natildeo destoem jaacute

que ao se falar de educaccedilatildeo moral estaacute-se a falar tambeacutem de habituaccedilatildeo

e embora esta natildeo dispense a racionalidade e portanto eacute provaacutevel que

natildeo dispense a formulaccedilatildeo de certo tipo de silogismos por parte do

puacuteblico eacute possiacutevel entender que estes caacutelculos natildeo estejam realmente

implicados no acircmbito emocional retoacuterico nem mesmo em sua

capacidade de auxiliar e consolidador de uma educaccedilatildeo moral para a

cidadania pois a racionalidade estaacute no discurso proferido e talvez natildeo

exatamente na percepccedilatildeo que o puacuteblico tem de tal discurso

Uma possiacutevel prova disso eacute que para que o jovem retor alcance

seus intentos eacute preciso ter o que dizer e dizecirc-lo de forma conveniente

Por isso a retoacuterica trata da ordem dos elementos persuasivos no

enunciado e tambeacutem da pronunciaccedilatildeo Esta assenta na voz ou seja na forma como eacute necessaacuterio empregaacute-la de acordo com cada emoccedilatildeo

lindando com aparecircncias com corpo e alma como Aristoacuteteles explica

A expressatildeo possuiraacute a forma conveniente se

exprimir emoccedilotildees e caracteres e se conservar a

197

ldquoanalogiardquo com os assuntos estabelecidos Haacute

analogia se natildeo se falar grosseiramente acerca de

assuntos importantes nem solenemente de

assuntos de pouca monta nem se se colocarem

ornamentos em uma palavra vulgar [] O

discurso seraacute ldquoemocionalrdquo se relativamente a uma

ofensa o estilo for o de um indiviacuteduo

encolerizado se relativo a assuntos iacutempios e

vergonhosos for o de um homem indignado e

reverente se sobre algo que deve ser louvado o

for de tal forma que suscite admiraccedilatildeo com

humildade se sobre coisas que suscitam

compaixatildeo (RhetIII 7 1408a10-14 e 16-19)180

O estilo apropriado torna o discurso convincente porque o

ouvinte eacute levado a pensar (oiacuteountai) que quem fala diz a verdade A

persuasatildeo pelo discurso acontece quando se mostra a verdade ou o que

parece verdadeiro a partir daquilo que eacute persuasivo em cada caso

particular Nestas circunstacircncias os ouvintes estatildeo em tal estado

emocional que pensam que as coisas satildeo como o orador expotildee mesmo

que natildeo sejam O ouvinte compartilha as emoccedilotildees do orador embora

este possa natildeo as dizer

Um discurso que pretenda emocionar deveraacute usar de recursos

como o dizer nomes apropriados agrave maneira de ser que expressa

caracteres condizentes ao puacuteblico sendo que o tipo de palavras

empregado pode facilitar a persuasatildeo e as emoccedilotildees O discurso deve ser

solene e capaz de emocionar e para tanto deve usar o ritmo certo

portanto em debates satildeo adequadas as teacutecnicas de representaccedilatildeo teatral

gerando uma aparecircncia convincente e favorecendo a emoccedilatildeo ldquoEacute por

isso que quando a componente de representaccedilatildeo eacute retirada o discurso

natildeo perfaz o seu trabalho e parece fracordquo (Rhet III 12 1413b) Haacute

portanto uma seacuterie de peculiaridades atreladas a esse tipo de discurso

Os elementos que se relacionam com o auditoacuterio consistem em

obter a sua benevolecircncia suscitar a sua coacutelera e por vezes atrair a sua

180 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original Τὸ δὲ

πρέπον ἕξει ἡ λέξις ἐὰν ᾖ παθητική τε καὶ ἠθικὴ καὶ τοῖς ὑποκειμένοις

πράγμασιν ἀνάλογον τὸ δ ἀνάλογόν ἐστιν ἐὰν μήτε περὶ εὐόγκων

αὐτοκαβδάλως λέγηται μήτε περὶ εὐτελῶν σεμνῶς μηδ ἐπὶ τῷ εὐτελεῖ ὀνόματι

ἐπῇ κόσμος[] παθητικὴ δέ ἐὰν μὲν ᾖ ὕβρις ὀργιζομένου λέξις ἐὰν δὲ ἀσεβῆ

καὶ αἰσχρά δυσχεραίνοντος καὶ εὐλαβουμένου καὶ λέγειν ἐὰν δὲ ἐπαινετά

ἀγαμένως ἐὰν δὲ ἐλεεινά ταπεινῶς καὶ ἐπὶ τῶν ἄλλων δὲ ὁμοίως

198

atenccedilatildeo ou dispersaacute-la porque nem sempre eacute conveniente por o

auditoacuterio atento razatildeo pela qual muitos dos oradores tentam levaacute-lo a

rir Todos estes recursos caso se queira levam a uma boa compreensatildeo

e a apresentar o orador como um homem respeitaacutevel pois a este tipo de

homem os ouvintes prestam mais atenccedilatildeo Satildeo igualmente mais atentos

a temas importantes a coisas que lhes digam respeito agraves que encham de

espanto e agraves que sejam agradaacuteveis Por isso eacute necessaacuterio introduzir a

ideia de que o discurso trata de coisas deste gecircnero O que implica

novamente a presenccedila das aparecircncias que provocam a imaginaccedilatildeo e

portanto da percepccedilatildeo (ao menos sensiacutevel) no discurso persuasivo

poreacutem se a intenccedilatildeo eacute que o puacuteblico natildeo esteja atento dever-se-aacute dizer

que o assunto natildeo eacute importante que natildeo lhe diz respeito que eacute penoso

O orador deve igualmente usar o epiacutelogo parte do discurso

composta por quatro elementos tornar o ouvinte favoraacutevel agrave causa do

orador e desfavoraacutevel agrave do adversaacuterio amplificar ou minimizar aquilo

que eacute exposto dispor o ouvinte a um comportamento emocional

recapitular Apoacutes ter mostrado que se diz a verdade e o adversaacuterio diz

falsidades eacute preciso fazer um elogio ou uma censura e finalmente

ratificar o assunto Eacute necessaacuterio visar uma de duas coisas ou revelar-se

como homem de bem quer diante dos ouvintes quer em termos gerais

ou apresentar o adversaacuterio como perverso quer diante dos ouvintes

quer em termos gerais Portanto o discurso do retor eacute capaz de mostraacute-

lo e de mostrar os outros como virtuosos ou viciosos mas precisa

tambeacutem provocar nos ouvintes comportamentos emocionais como

propotildee o passo subsequente

Assim a ciecircncia das emoccedilotildees181 eacute semelhante

agravequela da arquitetura como a arquitetura (ou a

construccedilatildeo de casa na frase de Aristoacuteteles) nos

informa como construir a estrutura que nos

protegeraacute dos elementos entatildeo o conhecimento

das emoccedilotildees nos diz como excitar ou causar

emoccedilotildees que disporatildeo os outros de um modo que

eacute para nossa proacutepria vantagem A teacutecnica de

causar emoccedilotildees requer um entendimento dos

comportamentos que as excitam mas isso tem em

mira suplementar os outros meios de persuasatildeo

que Aristoacuteteles analisa na Retoacuterica explorando

em particular os tipos de crenccedila que satildeo assistidos

pela dor e pelo prazer (KONSTAN 2006 p 37

181Termos de Konstan

199

traduccedilatildeo nossa)

Desta feita entendemos que o discurso persuasivo eacute um dos

modos de mudar as emoccedilotildees ou ao menos de emocionar conforme o

desejo e o intelecto do orador Confirmando nossa proposta Besnier

pensa que a praacutetica do discurso persuasivo em conjunto com o

conhecimento das predisposiccedilotildees que satildeo favoraacuteveis ou que obstam o

desencadeamento de uma emoccedilatildeo poderia ser exercida a fim de formar

uma disposiccedilatildeo virtuosa acerca de cada emoccedilatildeo Igualmente poderia ser

usada para extenuar ou fazer desaparecer uma reaccedilatildeo passional que

fosse julgada pouco fundada ou se o juiacutezo axioloacutegico (palavras de

Besnier) que muda o estado do desejo for mal justificado ou

desproporcional pois para Aristoacuteteles as disposiccedilotildees concernem agraves

emoccedilotildees Para que sejam formadas podem requerer capacidade oratoacuteria

ou dialeacutetica e um conhecimento da alma assunto cabiacutevel agrave funccedilatildeo

educativa da arte poliacutetica

O que significaria que o caraacuteter comporta disposiccedilotildees que satildeo

fixadas por meio de treinamento ou adestramento a partir de

disposiccedilotildees deficientes ou de uma habituaccedilatildeo sem interferecircncia da

inteligecircncia e da deliberaccedilatildeo Com isso o Livro II da Retoacuterica pode

integrar a deliberaccedilatildeo aos componentes psiacutequicos que satildeo disponiacuteveis ao

ouvinte e nos quais o orador pode intervir mas tal intervenccedilatildeo natildeo seria

educaccedilatildeo Essa distinccedilatildeo potildee as disposiccedilotildees virtuosas e viciosas ao lado

da idade e das circunstacircncias sendo potecircncias que podem ser exploradas

pelo orador que pode transformaacute-las em emoccedilotildees ou em juiacutezos sobre o

que fazer (Rhet II 12 1388b31 1389a2) dando conforme Besnier

(2008 p 107) um elemento de deliberaccedilatildeo agrave emoccedilatildeo

O mesmo autor afirma compreender que isso acontece desde que

a mudanccedila nos juiacutezos possa ser provocada pelo orador atraveacutes dos

recursos da arte A mudanccedila em questatildeo acontece nos juiacutezos e se daacute por

persuasatildeo mas mesmo assim o movimento que leva a ela pode ser

considerado afecccedilatildeo porque quem a produz natildeo eacute o ouvinte e sim o

orador Este eacute agente externo e o que pretende ou seja alterar a crenccedila

do ouvinte acontece por meios que satildeo proacuteximos agrave deliberaccedilatildeo Nesse

caso contudo o que afeta o ouvinte natildeo eacute um discurso que o educa e

que faz com que mude de juiacutezo portanto ldquoo juiacutezo obtido por persuasatildeo

se distingue do adquirido por exerciacutecio repetido da deliberaccedilatildeordquo

(BESNIER 2008 p 107) o que diferencia a accedilatildeo da retoacuterica daquela da

educaccedilatildeo moral das emoccedilotildees

Pensamos que as consideraccedilotildees supramencionadas poreacutem natildeo

invalidam nossas observaccedilotildees acerca da forma como a persuasatildeo

200

retoacuterica pode atingir o campo eacutetico-poliacutetico jaacute que Aristoacuteteles deixa

bem claro que tal arte age nos juiacutezos dos cidadatildeos em momento

propriamente ligados agrave vida poliacutetica quando haacute exerciacutecio da democracia

em sua forma mais ativa Natildeo desmerecem nossa consideraccedilatildeo da

retoacuterica como elemento poliacutetico propiacutecio agrave educaccedilatildeo moral das

emoccedilotildees pois saber como conduzi-las ou perceber que satildeo manipuladas

pode ser favoraacutevel agraves instacircncias poliacuteticas de decisatildeo bem como aos

educadores que pretendem moderaacute-las Sendo nessas instacircncias que se

propotildeem os rumos da vida na poacutelis haveraacute intervenccedilatildeo da arte retoacuterica

nos modos como os cidadatildeos deveratildeo proceder em certas situaccedilotildees

Aleacutem do mais entendemos que de nada vale a simples habituaccedilatildeo

dirigida pela razatildeo na formaccedilatildeo da virtude se natildeo haacute ocasiatildeo de praticar

aquilo ao que se eacute habituado a fim de consolidar o que tal educaccedilatildeo

faculta Portanto defendemos que o conhecimento e a arte solicitados

pelo discurso satildeo igualmente uacuteteis agrave moralidade

Defenderemos proposta semelhante quanto agrave arte poeacutetica pois na

Poeacutetica ou a partir de tal tratado pode-se observar que para produzir a

catarse do medo e da piedade eacute preciso ldquoexcitaacute-los na audiecircnciardquo

(SORABJI 2002 p 24 traduccedilatildeo nossa) Por isso o poeta quando

escreve deve saber que tipo de poema de enredo excitaraacute tais emoccedilotildees

Diante dessa semelhanccedila a questatildeo eacute a consideraccedilatildeo do medo e da

piedade na Retoacuterica eacute coordenada com a observaccedilatildeo dessas emoccedilotildees

feita na Poeacutetica A resposta dada por Sorabji eacute em grande medida O

estudioso pensa que a pequena diferenccedila eacute que na Poeacutetica o medo eacute

sentido pela audiecircncia a princiacutepio depois pelos personagens da peccedila

As semelhanccedilas contudo satildeo mais visiacuteveis e satildeo ateacute usadas por

Aristoacuteteles em suas observaccedilotildees sobre o enredo com as quais o filoacutesofo

esquiva-se agrave objeccedilatildeo moral feita pela Repuacuteblica X aos poetas Platatildeo

compreendia que estes artistas mostravam a injusticcedila como bem-

sucedida e a justiccedila como malsucedida Aristoacuteteles pensava tal

proposta como incompatiacutevel com a necessidade da trageacutedia de imitar

acontecimentos temiacuteveis e dignos de piedade entendia que o enredo natildeo

deveria mostrar o homem bom passando da fortuna ao infortuacutenio nem o

homem mal passando do infortuacutenio agrave fortuna porque tais eventos natildeo

seriam dignos de temor ou piedade Tambeacutem por isso natildeo deveriam

apresentar um heroacutei excelente em virtude e justiccedila jaacute que a piedade vem

com um infortuacutenio natildeo merecido e o medo com o infortuacutenio de algueacutem

que percebemos ser como noacutes (hoacutemoios) Essas proposiccedilotildees potildeem a

Poeacutetica em contato com a Retoacuterica porque esta uacuteltima afirma que o

medo e a piedade satildeo excitados ao mostrar um sofrimento que aconteceu

com algueacutem como noacutes (Poet 13 1452b34 1453a1 Rhet II 5 1383a10

201

II 8 1386a25) Por isso Aristoacuteteles pode afirmar que o medo sentido no

teatro eacute genuiacuteno

Sorabji no entanto percebe que haacute ainda pequenas discrepacircncias

entre as duas obras em questatildeo Por exemplo quando a Poeacutetica

despreza a trageacutedia na qual o homem bom passa da boa agrave maacute fortuna o

texto parece contradizer a Retoacuterica que reserva a piedade agraves viacutetimas

boas (RhetII 8 1385b34) Na Poeacutetica eacute proposto o oposto pois tal

situaccedilatildeo pode ser antes uma profanaccedilatildeo de algo digno de temor e

piedade parecendo muito diferente da Retoacuterica Sobre esse assunto o

autor escreve

Mas o ponto importante para o presente propoacutesito

eacute que as consideraccedilotildees da emoccedilatildeo na Poeacutetica satildeo

tatildeo cognitivas como aquelas na Retoacuterica e isso

natildeo eacute deslocado de jeito nenhum pela analogia da

catharsis mesmo que aquela [] seja uma

analogia com coisas tais como os natildeo-cognitivos

laxativos e emotivos (SORABJI 2002 p 25

traduccedilatildeo nossa)

Por motivos como estes que datildeo margens agrave comparaccedilatildeo das duas

artes de emocionar em termos de cognitividade implicada nas emoccedilotildees

que despertam e por entendermos ambas as artes como colaboradoras

agravequela educaccedilatildeo moral que eacute proposta na EN por trabalharem e fazerem

aflorar no cidadatildeo aquilo que haacute de mais propriamente humano trataremos agora da forma como a Poeacutetica propotildee possibilidades de

mudanccedilas nasdas emoccedilotildees Buscaremos entender quais elementos de

racionalidade estatildeo implicados em tais mudanccedilas bem como o modo

pelo qual a poesia opera como forte aliada da educaccedilatildeo emocional

moral

3 c) A poesia como facilitadora da educaccedilatildeo moral

Nesse ponto da pesquisa estudaremos a poesia traacutegica porque

tambeacutem pode ser entendida como um tipo de arte de emocionar e como

um meio de alterar ou despertar emoccedilatildeo A confirmaccedilatildeo desta afirmaccedilatildeo

aparece com a definiccedilatildeo que Aristoacuteteles oferece da trageacutedia e que

destaca a funccedilatildeo especiacutefica de tal arte provocar medo e piedade bem

como a kaacutetharsis (catarse) dessas emoccedilotildees O filoacutesofo destaca os

acontecimentos e o enredo como o fim da trageacutedia sendo o fim o mais

importante de tudo Natildeo poderia haver trageacutedia sem accedilatildeo mas poderia

haver sem caracteres pois se um poeta juntar palavras bem elaboradas

202

quanto agrave elocuccedilatildeo e ao pensamento exprimindo caraacuteter natildeo realizaraacute a

funccedilatildeo traacutegica Uma trageacutedia ainda que seja inferior nesses aspectos

conseguiraacute muito mais por ter enredo e estruturaccedilatildeo de accedilotildees bem

elaboradas (Poet 6 1450a30-33) pois ldquoA trageacutedia eacute a imitaccedilatildeo de uma

accedilatildeo elevada e completa dotada de extensatildeo em uma linguagem

embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes que se

serve da acccedilatildeo e natildeo da narraccedilatildeo e que por meio da compaixatildeo e do

temor provoca a purificaccedilatildeo de tais paixotildeesrdquo (Poet 6 1449b24-28)182

As partes do enredo (myacutethos) satildeo os elementos da trageacutedia que

exercem maior atraccedilatildeo e emoccedilatildeo e essas partes satildeo a peripeacutecia

(peripeacuteteia) e os reconhecimentos (anagnōriacuteseis Poet 6 1450a34-35)

Sendo peripeacutecia a mudanccedila dos acontecimentos em seu contraacuterio

acontecendo de modo verossiacutemil e necessaacuterio agrave construccedilatildeo do texto e

reconhecimento a passagem da ignoracircncia ao conhecimento para

amizade ou oacutedio entre os que estatildeo destinados a serem infelizes ou

felizes Aristoacuteteles considera o reconhecimento que se daacute entre pessoas

mais belo se acompanhado da peripeacutecia e embora estes elementos natildeo

apareccedilam sempre juntos o tipo mais proacuteprio de reconhecimento eacute o que

vem acompanhado da peripeacutecia pois deste modo suscitam piedade ou

medo com maior facilidade As emoccedilotildees traacutegicas acontecem porque as

duas partes do enredo supramencionadas estatildeo extremamente ligadas ao

ser feliz ou infeliz contudo haacute um terceiro elemento do enredo o

sofrimento (paacutethos) que eacute um ato destruidor ou doloroso como as

mortes que aparecem em cena que igualmente pode causar medo e

piedade Com estes componentes percebemos a accedilatildeo das aparecircncias que

afetam a percepccedilatildeo provocando o puacuteblico pois mostram o sofrimento

alheio de forma surpreendente e emocionante podendo mesmo fazer

com que de certo modo o puacuteblico se ponha no lugar da personagem

sofredora ao associar certo tipo de pensamento ao desencadeamento das

emoccedilotildees traacutegicas

Esse tipo de proposta emocional eacute sugerido pela forma como o

filoacutesofo dispotildee as partes componentes da trageacutedia em grau de

importacircncia agrave composiccedilatildeo de um bom poema Primeiro o enredo parte

mais importante e essencial agrave trageacutedia segundo o caraacuteter (eacutethos) que eacute

uma espeacutecie de bela imagem A trageacutedia eacute entatildeo imitaccedilatildeo de accedilotildees em

uma trama (ou enredo myacutethos) e imitando accedilotildees imita os homens que

182 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original στιν οὖν τραγῳδία

μίμησις πράξεως σπουδαίας καὶ τελείας μέγεθος ἐχούσης ἡδυσμένῳ λόγῳ

χωρὶς ἑκάστῳ τῶν εἰδῶν ἐν τοῖς μορίοις δρώντων καὶ οὐ δι ἀπαγγελίας δι

ἐλέου καὶ φόβου περαίνουσα τὴν τῶν τοιούτων παθημάτων κάθαρσιν

203

agem demonstrando seu caraacuteter Em terceiro lugar vem o pensamento

(diaacutenoia) o ser capaz de exprimir o que eacute possiacutevel e o que eacute apropriado

O caraacuteter revela igualmente as decisotildees e o pensamento aparece nos

enunciados Quarto a elocuccedilatildeo (leacutexis) que tem relaccedilatildeo com as palavras

comunicadoras do pensamento Em quinto lugar aparece a muacutesica

(melopoiiacutea) mais agradaacutevel dentre os componentes elencados e o

espetaacuteculo (oacutepsis) sexto componente que atrai os espiacuteritos embora seja

a parte mais desprovida de arte e mais alheia agrave poeacutetica na opiniatildeo do

filoacutesofo porque a potecircncia da trageacutedia existe mesmo sem concursos e

atores aleacutem do que a montagem dos espetaacuteculos e a arte de quem

executa os acessoacuterios valem mais que do que a arte dos poetas em uma

encenaccedilatildeo (Poet 26 1461b26-36 et seq)

A duraccedilatildeo dos os enredos eacute igualmente importante deveratildeo ter

extensatildeo que facilite a recordaccedilatildeo pois como afirmamos se emocionar

com a trageacutedia requer certo tipo de pensamento O filoacutesofo entende

contudo que o limite mais amplo desde que perfeitamente claro seja

sempre o mais belo Para exemplificar a extensatildeo deve ter um tamanho

que reuacutena conforme os princiacutepios da verossimilhanccedila e da necessidade

a sequecircncia dos acontecimentos apresentados pelo enredo de modo que

mudem da felicidade agrave infelicidade e vice-versa (Poet 8 1451a12-15 9

1551b27-32) favorecendo a inteligibilidade e credibilidade do poema

Uma vez que a imitaccedilatildeo representa natildeo soacute uma

acccedilatildeo completa mas tambeacutem factos que inspiram

temor e compaixatildeo estes sentimentos satildeo muito

[mais] facilmente suscitados quando os factos se

processam contra a nossa expectativa por uma

relaccedilatildeo de causalidade entre si Desta forma a

imitaccedilatildeo seraacute mais surpreendente do que se

surgisse do acaso e da sorte pois os factos

acidentais causam mais admiraccedilatildeo quando parece

que acontecem de propoacutesito (Poet 10 1452a1-

6)183

Os fatos que natildeo parecem acontecer por acaso agitam os sentidos

183 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original ἐπεὶ δὲ οὐ μόνον

τελείας ἐστὶ πράξεως ἡ μίμησις ἀλλὰ καὶ φοβερῶν καὶ ἐλεεινῶν ταῦτα δὲ

γίνεται καὶ μάλιστα καὶ μᾶλλον ὅταν γένηται παρὰ τὴν δόξαν δι ἄλληλα τὸ γὰρ

θαυμαστὸν οὕτως ἕξει μᾶλλον ἢ εἰ ἀπὸ τοῦ αὐτομάτου καὶ τῆς τύχης ἐπεὶ καὶ

τῶν ἀπὸ τύχης ταῦτα θαυμασιώτατα δοκεῖ ὅσα ὥσπερ ἐπίτηδες φαίνεται

γεγονέναι

204

e a imaginaccedilatildeo do puacuteblico tornando os enredos mais belos Tais fatos

fazem tambeacutem o efeito proacuteprio agraves trageacutedias mais forte sendo este efeito

provocar emoccedilotildees e kaacutetharsis no puacuteblico graccedilas a uma agitaccedilatildeo de

certos elementos da razatildeo a partir da percepccedilatildeo sensiacutevel que eacute

provocada pela trama da trageacutedia e pela inteligibilidade interna agrave

composiccedilatildeo dessa trama Do mesmo modo ldquotemor e a compaixatildeo

podem realmente ser despertados pelo espetaacuteculo e tambeacutem pela

proacutepria estruturaccedilatildeo dos acontecimentos o que eacute preferiacutevel e proacuteprio de

um poeta superiorrdquo (Poet11 1453b1-3)184 A estrutura da trageacutedia

representa boas pessoas que sentem pesar mas natildeo devido a uma falta

que tenham cometido Esse aspecto correto conferido ao caraacuteter do heroacutei

traacutegico eacute causador da crenccedila que eacute parte do conteuacutedo da piedade

Partindo da proposta aristoteacutelica da emoccedilatildeo em questatildeo Nussbaum

(2008 p 239) entende que os julgamentos seratildeo suficientes para

despertaacute-la quando estiverem em conjunto com aquilo que chama de

julgamento eudaiacutemoniacutestico Tal julgamento concebe a pessoa ou o que

acontece a ela como partes do que eacute importante para o bem-estar de

quem avalia e os dramas despertam aquele tipo de preocupaccedilatildeo com o

foco na possibilidade de evento similar vir a acontecer como

propusemos pouco acima

Quanto ao medo ele eacute sentido segundo a interpretaccedilatildeo de

Nussbaum tanto pelo personagem que percebe coisas maacutes e iminentes

como por quem assistelecircouve como algum reflexo de possibilidades

que mostram da vida humana em geral Os personagens igualmente

podem ter e expressar vaacuterias emoccedilotildees enquanto os espectadores por

uma parte do texto se identificam com um ou outro personagem e por

isso tambeacutem experimentaratildeo aquelas emoccedilotildees ldquocompartilhando a raiva

e a desolaccedilatildeo de Filoctetes ou a devastaccedilatildeo de Eacutedipo quando ele

descobre o que fezrdquo (NUSSBAUM 2008 p 240 traduccedilatildeo nossa) Para

tanto eacute preciso que o enredo seja estruturado de tal forma necessaacuteria e

verossimilmente de modo que mesmo o simples ouvir a sequecircncia dos

acontecimentos embora natildeo a vendo faccedila temer e sentir piedade pelo

que aconteceu ao personagem com o qual se estabeleceu um certo

ldquoelordquo O viacutenculo eacute causado por certa semelhanccedila existente entre

personagem e puacuteblico graccedilas ao caraacuteter natildeo perfeito do heroacutei traacutegico

como explica Ricoeur

184 Idem Ἔστιν μὲν οὖν τὸ φοβερὸν καὶ ἐλεεινὸν ἐκ τῆς ὄψεως γίγνεσθαι ἔστιν

δὲ καὶ ἐξ αὐτῆς τῆς συστάσεως τῶν πραγμάτων ὅπερ ἐστὶ πρότερον καὶ

ποιητοῦ ἀμείνονος

205

[] satildeo tambeacutem as emoccedilotildees traacutegicas que exigem

que o heroacutei natildeo alcance a excelecircncia na virtude e

justiccedila devido a alguma ldquofaltardquo mas sem chegar

ao viacutecio ou maldade que o leve a desgraccedila eacute

intermediaacuterio [] Assim mesmo o discernimento

da falta traacutegica eacute excetuado pela qualidade

emocional da piedade do temor e do senso do

humano185 (RICOEUR 2010 p 82)

Se o poeta deve suscitar o prazer inerente ao medo e agrave piedade

por meio da imitaccedilatildeo isso deve ser feito a partir do encadeamento

racional dos acontecimentos na trama (Poet 14 1453b15-34 1454a1-9)

Por isso entendemos que a forma exigida por Aristoacuteteles agrave composiccedilatildeo

traacutegica potildee em associaccedilatildeo as duas instacircncias que completam um ser

verdadeiramente humano a racionalidade e as emoccedilotildees provocadas e

trabalhadas pela kaacutetharsis contemplando no acircmbito poeacutetico as

propostas que destacamos a partir de EN I13 e do passo EN X 7

1177b26-30

Igualmente haacute exigecircncias quanto aos caracteres dos personagens

com seu papel no emocionar e tambeacutem no efeito da trageacutedia eacute preciso

primeiro que sejam bons e que apareccedilam porque as accedilotildees do

personagem mostram-no empenhado em um propoacutesito sendo o caraacuteter

bom quando tal propoacutesito for bom Segundo os caracteres devem ser

apropriados Terceiro eacute preciso que sejam semelhantes aos nossos

caracteres confirmando a proposta da possibilidade similar Quarto e

uacuteltimo eacute exigido que sejam coerentes O que igualmente aproxima a

proposta da Poeacutetica das coisas eacuteticas bem como o faz a exigecircncia de

que seja representada uma accedilatildeo verossiacutemil e necessaacuteria mexendo ao

menos com as imaginaccedilotildees e as opiniotildees de quem com ela interage Por

conseguinte Nussbaum (2008 p 166) entende que reaccedilotildees a obras

como filmes se devem agrave grande identificaccedilatildeo com os eventos

apresentados pela ficccedilatildeo que satildeo nas palavras de Aristoacuteteles

parafraseadas pela autora ldquoo tipo de coisa que pode acontecerrdquo

Interpretaccedilatildeo que nos parece aplicaacutevel ao caso da trageacutedia e de seu

185Contudo o filoacutesofo observa que haacute tambeacutem contraponto entre eacutetica e poeacutetica

ldquoO myacutethos traacutegico ao girar em torno das reviravoltas da fortuna e

exclusivamente da felicidade para a infelicidade eacute uma exploraccedilatildeo das vias

pelas quais a accedilatildeo lanccedila contra todas as expectativas os homens de valor na

infelicidade Serve de contraponto agrave eacutetica que ensina como a accedilatildeo pelo

exerciacutecio das virtudes conduz agrave felicidade Ao mesmo tempo soacute adota do preacute-

saber da accedilatildeo seus aspectos eacuteticosrdquo (RICOEUR 2012 p 83)

206

espetaacuteculo

Por esses motivos o necessaacuterio e o verossiacutemil devem sempre ser

buscados tanto nos caracteres quanto nos acontecimentos de modo que

uma personagem diga ou faccedila o que eacute necessaacuterio ou verossiacutemil e que

uma coisa aconteccedila por causa da outra conferindo conforme tais

princiacutepios racionalidade ao enredo Aristoacuteteles sugere ainda que o

desenlace das tramas deve resultar do proacuteprio myacutethos e natildeo de uma

intervenccedilatildeo ex-machina Esse artifiacutecio no entanto pode ser usado em

coisas que se passam fora da accedilatildeo da peccedila ou em coisas que

aconteceram antes dela e que um mortal natildeo conheccedila ou em coisas

futuras que devem ser preditas e anunciadas Do mesmo modo natildeo deve

haver nada de irracional nas trageacutedias mas se houver que natildeo seja

apresentado em cena186

Os enredos devem ser estruturados e completados com a

elocuccedilatildeo dando aos acontecimentos o ar mais criacutevel possiacutevel Ao vecirc-los

como se estivesse diante dos proacuteprios fatos o poeta poderaacute descobrir o

que eacute apropriado e natildeo incorrer em contradiccedilatildeo ressaltando o primeiro

momento da miacutemesis identificado por Ricoeur baseado na relaccedilatildeo do

poeta com o mundo O poeta igualmente deve completar o enredo com

gestos o quanto for possiacutevel Do mesmo modo dos poetas com o

186Sobre a composiccedilatildeo do enredo ver Ricoeur (2010 p 59-60) mas haacute normas

tambeacutem para a composiccedilatildeo do heroacutei traacutegico Ricoeur considera essencial o

entendimento da importacircncia da composiccedilatildeo do enredo para entendermos entre

outras coisas mesmo o significado de miacutemesis na Poeacutetica Por isso trata

juntamente o par crucial de conceitos aristoteacutelicos miacutemesis-myacutethos

(representaccedilatildeo de accedilatildeocomposiccedilatildeo da intriga) que ratifica o propoacutesito

aristoteacutelico da ecircnfase na accedilatildeo representada pela trageacutedia e que nos ajuda a

defender nosso propoacutesito em estudar um texto poeacutetico em um estudo eacutetico ldquoO

que conservarei para a sequecircncia de meu trabalho eacute a quase identificaccedilatildeo entre

duas expressotildees imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo de accedilatildeo e agenciamento dos fatos A

segunda expressatildeo eacute como jaacute dissemos o definidor que Aristoacuteteles potildee no lugar

do definido myacutethos intriga Essa quase identificaccedilatildeo estaacute garantida por uma

primeira hierarquizaccedilatildeo entre as seis partes que daacute prioridade ao ldquoo quecircrdquo

(objeto) da representaccedilatildeo ndash intriga caracteres pensamento ndash sobre o ldquopor quecircrdquo

(meio) ndash a expressatildeo e o canto ndash e sobre o ldquocomordquo (modo) ndash o espetaacuteculo

depois por uma segunda hierarquizaccedilatildeo no interior do ldquoo quecircrdquo que potildee a accedilatildeo

acima dos caracteres e do pensamento (ldquoporque se trata sobretudo de uma

representaccedilatildeo de accedilatildeo (miacutemesis praacutexeos) e atraveacutes dela de homens que agemrdquo

50b3) No final dessa dupla hierarquizaccedilatildeo a accedilatildeo aparece como a ldquoparte

principalrdquo o ldquoobjetivo visadordquo o ldquoprinciacutepiordquo e por assim dizer a ldquoalmardquo da

trageacutedia Essa quase identificaccedilatildeo estaacute garantida pela foacutermula ldquoEacute a intriga que eacute

a representaccedilatildeo da accedilatildeordquo (50a1)rdquo (RICOEUR 2012 p 61)

207

mesmo talento satildeo mais convincentes aqueles que sentem as emoccedilotildees

porque quem sente fuacuteria transmite fuacuteria quem estaacute irritado mostra

irritaccedilatildeo de modo mais convincente ldquoPor isso a arte da poesia eacute proacutepria

dos gecircnios ou dos loucos jaacute que os gecircnios satildeo versaacuteteis os loucos

deliramrdquo (Poet17 1455a32-34)187 Igualmente por isso podemos fazer

um paralelo entre a ficccedilatildeo traacutegica e a moral real salvaguardadas as

devidas proporccedilotildees Aleacutem do que sendo o poeta imitador como

qualquer outro criador de imagens sempre imita necessariamente trecircs

coisas possiacuteveis (1) as coisas como eram ou satildeo em realidade (2) como

dizem ou parecem (3) como deviam ser188 Isso eacute expresso por meio da

elocuccedilatildeo que apresenta palavras raras metaacuteforas e muitas modificaccedilotildees

da linguagem o que somente eacute permitido ao poeta Ainda precisamos

abordar melhor a elocuccedilatildeo para desfecho da listagem de como os

elementos da poesia emocionam Aristoacuteteles a define como palavra que

expressa o pensamento a fim de demonstrar refutar despertar emoccedilotildees

engrandecer ou minimizar algo ou algueacutem Elemento poderoso embora

187 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original διὸ εὐφυοῦς ἡ ποιητική

ἐστιν ἢ μανικοῦ ούτων γὰρ οἱ μὲν εὔπλαστοι οἱ δὲ ἐκστατικοί εἰσιν 188 Donde a famosa teoria das trecircs miacutemeseis proposta por Paul Ricoeur em seu

Tempo e narrativa ldquoMiacutemese I designa a preacute-compreensatildeo na vida quotidiana

daquilo que se denominou justamente a qualidade narrativa da experiecircncia ndash

entendendo por tal o facto da vida e ainda mais a acccedilatildeo como Hanna Arendt

exprime brilhantemente exigirem ser contados Miacutemese II designa a auto-

estruturaccedilatildeo da narrativa sobre a base dos coacutedigos narrativos internos ao

discurso A este niacutevel Miacutemese II e myacutethos ou seja a intriga ndash ou melhor o

dispor em intriga ndash coincidem Finalmente Miacutemese III designa o equivalente

narrativo da refiguraccedilatildeo do real pela metaacuteforardquo (ABEL POREgraveE 2010 p 77) A

relaccedilatildeo com o antes da poesia eacute evidenciada em Aristoacuteteles segundo Ricoeur

devido agrave sua referecircncia aos caracteres escolhidos para as personagens da

trageacutedia e da comeacutedia que se classificam somente em ldquonobres ou baixosrdquo isso

porque todo mundo (paacutentes) na realidade eacute de um ou outro jeito As

qualificaccedilotildees eacuteticas vecircm do real e o que depende da imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo eacute

a exigecircncia loacutegica da coerecircncia O filoacutesofo francecircs afirma ainda que eacute dito que

trageacutedia e comeacutedia diferem por representar personagens piores ou melhores que

os homens reais (tograven vucircn 1448a16-18) o que eacute a segunda marca da miacutemesis I

Entatildeo o poeta pressupotildee que os caracteres possam ser melhorados ou

corrompidos pela accedilatildeo (RICOEUR 2012 p 84) ldquoOs caracteres satildeo o que

permite qualificar os personagens em accedilatildeordquo (Poet 1450a6) Haacute ainda o fato dos

poetas trabalharem com os mitos tradicionais inseridos como estatildeo na tradiccedilatildeo

grega da eacutepoca (Idem p 85) embora o pensador francecircs ligue essa continuaccedilatildeo

em Aristoacuteteles somente agraves propostas sobre o prazer proacuteprio agrave trageacutedia e ao

alcance da kaacutetharsis

208

natildeo seja um dos primeiros da lista em importacircncia a elocuccedilatildeo ajuda a

provocar as emoccedilotildees traacutegicas e a conferir verossimilhanccedila ao enredo

(Poet 18 1456a36-38 19 1456b1-8) podendo servir igualmente como

recurso retoacuterico como vimos acima

A muacutesica o espetaacuteculo e o enredo entretanto satildeo os elementos

considerados como os mais emocionantes da trageacutedia O enredo eacute nas

palavras do proacuteprio filoacutesofo ldquoa alma da trageacutediardquo aquilo que quando

bem elaborado permite imaginar e despertar emoccedilatildeo Tendo isso em

vista Nussbaum (2008 p 240 traduccedilatildeo nossa) observa ldquoo digno de

piedade e o temiacutevel natildeo satildeo simplesmente locais eles satildeo encaixados na

estrutura global da forma pelo tipo particular de identificaccedilatildeo e simpatia

com o heroacutei que a proacutepria forma cultivardquo Nussbaum admite contudo

que frequentemente a perspectiva na trageacutedia eacute modelada pelas reaccedilotildees

do coro traacutegico que encoraja uma certa variaccedilatildeo de reaccedilotildees pelo

desenrolar do enredo O sentido que corre por esses trabalhos eacute o de

algueacutem que olha os reveses e sofrimentos da pessoa razoavelmente boa

tanto com medo quanto com piedade Esse tipo de percepccedilatildeo ou de

pensamento pode mesmo alterar uma emoccedilatildeo em outra pois a pessoa

que chega indiferente ao teatro pode deixar aflorar sua piedade

transbordando ou ajustando o seu excesso dessa emoccedilatildeo e nesse caso

modificando a emoccedilatildeo Tais mudanccedilas favorecem as emoccedilotildees reais

como se expotildee na explicaccedilatildeo de Nussbaum que citamos abaixo

Compaixatildeo seraacute um motivo social valioso

somente se estaacute equipada com uma teoria

adequada do valor dos bens baacutesicos somente se

estaacute equipada com um entendimento adequado da

accedilatildeo e da culpa e somente se estaacute equipada com

uma consideraccedilatildeo adequadamente vasta da pessoa

que deve ser o objeto da preocupaccedilatildeo de um

agente tanto distante como proacuteximo Esses

julgamentos devem ser engendrados por um bom

processo de desenvolvimento Por outro lado a

compaixatildeo fornece uma vida essencial e

conexidade com a moralidade sem que esteja

perigosamente vazia e desarraigada Em casos

centrais bem representados na trageacutedia grega a

compaixatildeo incorpora avaliaccedilotildees corretas e

direciona nossa preocupaccedilatildeo para todos que

compartilham conosco uma humanidade comum

Aprendidas nas relaccedilotildees da infacircncia essas

conexotildees satildeo importantes para fazer a moralidade

209

perspicaz antes que obscura Assim a compaixatildeo

eacute um complemento necessaacuterio ao respeito []

(NUSSBAUM 2008 p 399 traduccedilatildeo nossa)189

Do mesmo modo a trageacutedia que provoca ou muda as emoccedilotildees

do puacuteblico na direccedilatildeo do outro tem enorme papel moral na poacutelis de

Aristoacuteteles como a autora tambeacutem explicaraacute ldquoPor outro lado conveacutem

lembrar ainda o dito por Aristoacuteteles sobre uma accedilatildeo que eacute moralmente

virtuosa somente quando eacute feita pelos motivos corretosrdquo (NUSSBAUM

2008 p 400 traduccedilatildeo nossa) Ajudar os outros sem amor agrave humanidade

e sem preocupaccedilatildeo compassiva por sua situaccedilatildeo natildeo tem valor moral A

interpretaccedilatildeo da autora se volta para Soacutefocles pois eacute nesse momento

que se pode evocar a posiccedilatildeo grega antiga sobre o papel do drama

traacutegico na educaccedilatildeo embora entendamos ainda que essa postura

colabore com a proposta de EN X apresentada anteriormente acerca da

necessidade de extensatildeo da ldquoeducaccedilatildeordquo moral por toda a vida do

cidadatildeo Defendemos assim que a trageacutedia eacute forte aliada na formaccedilatildeo

do caraacuteter e na manutenccedilatildeo da felicidade por toda vida mas que tem seu

papel como educadora da juventude como ressalta Nussbaum

A trageacutedia natildeo eacute para os muito jovens e natildeo eacute

exatamente para os jovens As pessoas maduras

sempre precisam expandir suas experiecircncias e

reforccedilar sua posse das verdades eacuteticas centrais

Mas para o jovem futuro cidadatildeo a trageacutedia tem

um significado especial Porque esse espectador

estaacute em processo de aprender a compaixatildeo As

trageacutedias familiarizam-nos com as coisas ruins

que podem acontecer na vida humana muito antes

da proacutepria vida fazer isso assim ativam a

preocupaccedilatildeo com os outros que estatildeo sofrendo o

que a pessoa natildeo sofreu E fazem isso de um jeito

que faz a profundidade e significacircncia do

sofrimento e as perdas que o inspiram

inequivocamente claras ndash os recursos poeacutetico

visual e musical do drama assim tecircm peso moral

Convidando o espectador a se tornar intensamente

preocupado com o destino do heroacutei traacutegico e ao

mesmo tempo retratando o heroacutei como uma

pessoa de valor o drama estabelece a compaixatildeo

189 Sobre a questatildeo da compaixatildeo como necessaacuteria agrave vida em comunidade ver

tambeacutem Sem fins lucrativos Capiacutetulo III p 36 et seq

210

um espectador atento teraacute apreendendo isso

aquela emoccedilatildeo Os gregos cultivavam a emoccedilatildeo

principalmente pelo drama uma crianccedila

contemporacircnea pode aprender essas mesmas

histoacuterias miacuteticas ou seu equivalente moderno

(NUSSBAUM 2008 p 428-429 traduccedilatildeo nossa)

Para tanto devem ser buscados trabalhos que familiarizem o

jovem leitor mas pensamos que tambeacutem o leitor adulto com uma vasta

variedade de possiacuteveis sofrimentos e de coisas agraves quais eacute vulneraacutevel

mas agraves quais possa reagir Tais obras levam ao reconhecimento e agrave

preocupaccedilatildeo mas especialmente agrave percepccedilatildeo de uma humanidade em

comum e de seus traccedilos especiacuteficos confirmando o ldquohoucirctos ekeicircnosrdquo de

Poet IV Enquanto Nussbaum se concentra no papel moral da

compaixatildeo afirmamos que o mesmo vale para o medo traacutegico emoccedilatildeo

que a proacutepria autora associa agrave piedade em seu The fragility of goodness

Afirmamos que a combinaccedilatildeo desses elementos da trageacutedia

favorece seus objetivos e mostra que a arte em questatildeo igualmente pode

ser entendida como um meio de emocionar ou direcionar as emoccedilotildees do

puacuteblico que satildeo despertadas por algo que afeta conjuntamente corpo e

alma Em certo momento da histoacuteria de Atenas todos compartilhavam

os momentos no teatro sendo este aleacutem de um meio de diversatildeo para a

populaccedilatildeo um potente aliado agraves formas convencionais de educaccedilatildeo para

a cidadania vida afora Os exemplos e contraexemplos expostos nos

espetaacuteculos cecircnicos podiam transmitir liccedilotildees sobre as formas mais ou

menos adequadas de comportamento em comunidade apesar de seu

caraacuteter ficcional Podiam transmitir um ideal de homem ou levar a

refletir sobre a proacutepria existecircncia preparando para a accedilatildeo real aleacutem de

despertar reflexatildeo sobre a condiccedilatildeo alheia Com isso as emoccedilotildees

traacutegicas e seu convite agrave reflexatildeo sobre a vida podem enquadrar-se em

nossas perspectivas de emoccedilotildees modificadas ou despertadas por certo

instrumento racional qual seja a trageacutedia que trabalharia como auxiliar

daquela educaccedilatildeo emocional proposta na EN Com suas sugestotildees a

trageacutedia seria mesmo capaz de conduzir as emoccedilotildees da plateia ao ponto

de purificaacute-las ou esclarececirc-las e aclarando o mundo eacute provaacutevel que

fossem capazes de extenuaacute-las expurgaacute-las ou controlaacute-las pela

kaacutetharsis190 mesmo que primeiro devessem ser excitadas pela poesia O

190 Sobre a kaacutetharsis ver Sorabji (2002 p 288 et seq) Natildeo nos debruccedilaremos

sobre esse problema em nosso estudo pois demandaria mais forccedila do que ora

apresentamos

211

que poderia contribuir para a formaccedilatildeo dos caracteres jovens sendo a

trageacutedia e sua catarse encaradas mesmo como um tipo de terapia191 das

emoccedilotildees mas tambeacutem como colaboradoras para o aperfeiccediloamento do

caraacuteter nos adultos auxiliando-os nas mudanccedilas ou efetivaccedilatildeo de seus

haacutebitos graccedilas ao conhecimento que adquirem de suas proacuteprias

emoccedilotildees

Do mesmo modo como Aristoacuteteles frisou a poesia eacute mais

filosoacutefica que a histoacuteria porque esta nos conta o que houve sendo que o

passado natildeo nos mostra algo interessante sobre as nossas possibilidades

por indicar um evento narrado idiossincraacutetico Por sua vez os trabalhos

literaacuterios nos mostram o geral plausiacutevel como padrotildees de accedilatildeo

Mostram-nos ldquocoisas como as que podem acontecerrdquo na vida do homem

levando ao prazer intelectual (e talvez esteacutetico) proacuteprio agrave trageacutedia bem

como na proposta da miacutemesis III de Ricoeur que eacute levada com o

espectador agrave vida fora da poesia pelo prazer que a trageacutedia provoca Ao

compreender tais padrotildees de importacircncia na poesia compreendemos

tambeacutem as nossas proacuteprias possibilidades Mesmo a procura pelas

emoccedilotildees dolorosas das peccedilas e textos satildeo aberturas a esse ldquoespaccedilo

potencialrdquo da poesia pois ajuda-nos a lidar com nossa falibilidade

vulnerabilidade e impotecircncia preparando-nos para a vida Isso soacute

acontece graccedilas ao movimento duplo que nos permite perceber os

acontecimentos traacutegicos como ficcionais que natildeo nos levam a agir e que

natildeo implicam escolha deliberada mas com os quais nos identificamos

sentindo emoccedilotildees reais ao reagir ao sofrimento alheio

A verossimilhanccedila e a necessidade do enredo garantem como

propusemos que entendamos os acontecimentos traacutegicos como coisas

possiacuteveis de acontecer Garante a realidade das emoccedilotildees suscitadas pela

trageacutedia com todo seu conteuacutedo cognitivo ao menos pelas crenccedilas e

opiniotildees vindas das aparecircncias e pelo julgamento de possibilidades

similares que levam os homens a se perceberem tais como satildeo

humanos nada mais nada

191 O termo terapia natildeo aparece em Aristoacuteteles mas haacute estudiosos que defendem

essa possibilidade de interpretaccedilatildeo das kaacutetharsis como Sorabji (2002 p 288 et

seq)

212

213

Conclusatildeo

Nossa tese procurou responder agrave questatildeo como operar mudanccedilas

nas emoccedilotildees a fim de que se tornassem condizentes com a proposta de

vida feliz feita por Aristoacuteteles Para responder a pergunta norteadora de

nosso trabalho buscamos dar embasamento agrave hipoacutetese levantada a partir

de EN I de que haacute uma funccedilatildeo especificamente humana que se

confunde com a felicidade entendida como melhor desempenho das

capacidades aniacutemicas em conjunto com o corpo e que tais capacidades

devido agrave natureza da alma natildeo podem ser isoladas Esse contato das

capacidades aniacutemicas percebido a partir da discussatildeo sobre a funccedilatildeo

humana levou-nos a entender que a possibilidade de se educar as

emoccedilotildees existe pelo contato entre as capacidades racional e natildeo racional

que eacute tipicamente humano e que confere uma espeacutecie de racionalidade

agraves emoccedilotildees

Para podermos sustentar essas propostas iniciamos com um

estudo sobre a natureza das emoccedilotildees A princiacutepio buscamos responder agrave

questatildeo acerca da funccedilatildeo humana e sua importacircncia na eacutetica de

Aristoacuteteles O argumento da funccedilatildeo situado em meio agraves discussotildees

sobre a melhor forma de vida possiacutevel nos indicou sua relaccedilatildeo com o

fim proposto para o homem e nos permitiu identificar a felicidade como

um tipo de vida especificamente humano no qual as capacidades da

alma seriam desempenhadas de modo excelente Compreendemos assim

a proposta de que a vida feliz eacute um tipo de atividade conforme a virtude

indicando-nos igualmente a necessidade de entender o que seja a

virtude apontando as direccedilotildees a serem tomadas em um segundo

momento de nossa pesquisa Nessas circunstacircncias apareceu-nos o tema

das emoccedilotildees vez que Aristoacuteteles aponta a virtude ao menos em sua

face moral como boa medida nas emoccedilotildees e nas accedilotildees A pesquisa

pelos tipos de vida que se candidatam ao cargo de felicidade e a

tentativa de resposta ao questionamento acerca da existecircncia de um soacute

tipo de vida como especificamente humano conduziu nossa discussatildeo

em direccedilatildeo a EN I 13 que propotildee a biparticcedilatildeo da alma e que nos

apresenta as ldquopartesrdquo racional e natildeo racional da alma bem como a

possibilidade de entrarem em acordo

A partir da proposta da existecircncia de ldquopartesrdquo na alma pudemos questionar a validade dessa afirmaccedilatildeo e chegamos agrave conclusatildeo de que

Aristoacuteteles natildeo propotildee uma alma realmente dividida mas composta por

diferentes capacidades operadas majoritariamente pelo corpo Tais

entendimentos permitiram que respondecircssemos agrave indagaccedilatildeo pela forma

de vida que constituiria o fim ou felicidade humana como realizaccedilatildeo do

214

bom desempenho de uma funccedilatildeo defendendo com o auxiacutelio de

Korsgaard Nussbaum e Reeve a impossibilidade de acatar a

interpretaccedilatildeo da eudaimoniacutea como uma vida plenamente contemplativa

Com a ajuda de estudiosos como Sorabji e Zingano percebemos que haacute

que se duvidar de propostas de leitura que tendam a esboccedilar Aristoacuteteles

como um filoacutesofo que apresenta um apreccedilo exacerbado das capacidades

racionais Pareceu-nos mais verdadeiro defender que suas teorias

apontam para uma vida mais intensa que aquela disposta agrave simples

contemplaccedilatildeo teoacuterica Propusemos uma vida que se completa na poacutelis

com o exerciacutecio de capacidades aniacutemicas desempenhadas de um modo

racional ou seja especialmente humano como propotildeem Korsgaard e

Boyle Tal defesa foi possiacutevel justamente devido ao conjunto das

capacidades indicadas pelo DA como tiacutepico agrave psychḗ do homem a saber

nutritiva perceptiva (e com esta a desiderativa) e raciocinativa Por esse

motivo julgamos pertinente desenvolvermos mas apenas de modo a

sanar nossas duacutevidas acerca das emoccedilotildees e seu papel na felicidade um

pequeno estudo a respeito da alma humana

O estudo tambeacutem contou com o apoio do De Anima texto que

confirmou nossas suspeitas e nos capacitou a defender uma teoria da

alma como um todo composto por capacidades que faculta ao corpo

realizar ou seja uma teoria hilemoacuterfica a respeito do homem que

comeccedilou a ser esboccedilada ainda com as nossas constataccedilotildees a respeito da

funccedilatildeo humana A defesa de uma psychḗ composta por capacidades

imprescindivelmente correlacionadas e que tecircm suas funccedilotildees

manifestas mesmo que imperceptivelmente no corpo teve apoio em

estudos como os de Bastit e Zingano e nos permitiu tratar as emoccedilotildees

como afecccedilotildees do conjunto corpoalma Tudo isso soacute foi possiacutevel porque

pensamos ter conseguido sustentar aleacutem de uma teoria da unidade da

alma uma teoria que entendeu a capacidade desiderativa como um todo

coeso Embora o desejo apresente diferentes tipos de manifestaccedilatildeo

relacionados aos seus objetos e agraves relaccedilotildees dos tipos de desejo com a

razatildeo proposta devedora aos estudos de Aggio dedicados agrave questatildeo do

desejo e do prazer na EN os desejos igualmente considerados paacutethē por

Aristoacuteteles nos mostraram diferentes emoccedilotildees que satildeo por eles

acompanhadas Tais emoccedilotildees como os desejos aos quais se relacionam

podem sofrer algum tipo de educaccedilatildeo validando desde o iniacutecio de

nossa pesquisa a teoria sobre a possibilidade de mudar as emoccedilotildees

favoravelmente agrave vida moral conforme a razatildeo praacutetica

Compreendemos contudo que nem todas as emoccedilotildees podem ser

mudadas ou moderadas Defender uma capacidade desiderativa

unificada reforccedilou a defesa de uma alma una e de emoccedilotildees capazes de

215

se harmonizar com as solicitaccedilotildees da capacidade racional A abertura

dos desejos e das emoccedilotildees para ao menos um tipo de razatildeo garantiu ao

homem a possibilidade de agir bem e com isso validamos a proposta

feita por Reeve Natali e Korsgaard da vida feliz entendida como

indispensavelmente atrelada agrave eupraxiacutea Neste tipo de vida o homem

apresenta por si mesmo ou por auxiacutelio de algueacutem ou das leis a virtude

moral como boa medida nas emoccedilotildees Por isso para desfecho Capiacutetulo

I buscamos compreender o que Aristoacuteteles entendia por emoccedilatildeo jaacute que

no momento da EN que parecia o mais propiacutecio a tal descriccedilatildeo o Livro

II 4 o filoacutesofo procedeu a uma listagem das coisas que chama emoccedilatildeo

Esse tipo de exposiccedilatildeo deu origem agrave boa parte dos questionamentos que

apontamos ao longo desse Capiacutetulo Recorrendo novamente ao DA mas

agora tambeacutem agrave Poet agrave Rhet e a alguns dos comentadores acima

relacionados que de certo modo abordaram o assunto esboccedilamos um

conceito de emoccedilatildeo que pode ser resumido do modo que segue

Emoccedilatildeo eacute um paacutethos que ocasiona certo tipo de movimento ou

alteraccedilatildeo no corpo de modo perceptiacutevel ou imperceptivelmente por

algo que atinge o homem a partir de fora (ou que vem de dentro da

alma quando age a memoacuteria de coisas que atingem o homem a partir de

fora) Acontece especialmente pelas consideraccedilotildees que se tem das

cirscunstacircncias nas quais ocorrem as relaccedilotildees com os outros e com o

mundo e aciona ou eacute acionada por algumas das capacidades aniacutemicas

humanas possivelmente consideradas racionais tais como a opiniatildeo o

julgamento a imaginaccedilatildeo e mesmo certos tipos de pensamento Por isso

as emoccedilotildees podem ser postas em conformidade com a reta razatildeo a fim

da virtude pois apresentam um quecirc de razatildeo desde sua constituiccedilatildeo A

emoccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles natildeo eacute mera passividade porque sugere

accedilatildeo ou reaccedilatildeo por parte de quem a sente Assim as emoccedilotildees satildeo

respostas agraves propostas que vecircm do mundo agrave sua volta diferem da

simples afecccedilatildeo e tecircm relevacircncia moral por interferirem nas accedilotildees e nas

interaccedilotildees com o mundo sendo esta sua diferenccedila em vista das demais

paacutethē

O primeiro momento de nossa tese encorajou o estudo acerca da

racionalidade que pensamos cercar as emoccedilotildees desde suas origens e

apontou-nos a necessidade de dedicar parte da pesquisa ao tratamento

das virtudes que se mostraram associadas agrave existecircncia de emoccedilotildees

educadas e natildeo contrastantes com a execuccedilatildeo excelente das atividades

humanas que se coadunam em felicidade Assim para dar

prosseguimento ao estudo o segundo Capiacutetulo teve iniacutecio com uma

breve tentativa de compreender melhor o conceito de virtude A partir

da afirmaccedilatildeo da existecircncia de dois tipos de virtude moral e intelectual

216

pudemos entender igualmente a existecircncia da virtude completa Essas

constataccedilotildees apontaram a necessidade de discutirmos as virtudes morais

compreendidas como meios termos nas accedilotildees e nas emoccedilotildees que satildeo

condiccedilatildeo necessaacuteria agrave felicidade A proposta contudo sofreu e sofre

objeccedilotildees por parte de filoacutesofos e pesquisadores que se dedicaram ao

estudo da virtude moral O problema foi tratado somente de modo a

contemplar nossas intenccedilotildees e desse tratamento pudemos concluir que a

doutrina da virtude moral proposta por Aristoacuteteles embora apresente

empecilhos agrave sua interpretaccedilatildeo pode ser tomada como uma teoria que

apresenta aspectos variados para a virtude moral

Distinguimos aspectos quantitativos quando nos fala de

intensidades ou quantidades com que sentimos emoccedilotildees aspectos

qualitativos ao indicar padrotildees para que as emoccedilotildees sejam

adequadamente sentidas e ainda aspectos conceituais quando nos

mostra que a doutrina da virtude se direciona ao entendimento dessas

qualidades da alma desiderativa em suas manifestaccedilotildees particulares

Tais manifestaccedilotildees igualmente validam certa aplicabilidade agrave teoria da

boa medida por abordarem a proposta quando se trata de accedilotildees

particulares que podem ser concretizadas sob a influecircncia das emoccedilotildees

Nossa interpretaccedilatildeo sobre o assunto e nossa posiccedilatildeo quanto agrave celeuma

sobre a validade da doutrina da boa medida eacute que todos esses traccedilos

devem ser tomados como distintivos das virtudes em questatildeo porque

natildeo excluem uns aos outros e podem tambeacutem ser aplicaacuteveis agraves accedilotildees

Estas satildeo atreladas agraves emoccedilotildees sendo que como na proposta de

Zingano aquilo que eacute plausiacutevel quanto agraves emoccedilotildees de certo modo

tambeacutem seraacute aplicaacutevel agraves accedilotildees que sugerem

A fim de levar adiante o entendimento da doutrina da boa

medida procuramos estudar as possibilidades de conferir o meio termo

agraves emoccedilotildees Deparamo-nos com as propostas da habituaccedilatildeo agrave praacutetica de

accedilotildees moralmente corretas indicando o caminho que deveriacuteamos

percorrer ateacute o teacutermino de nosso estudo para compreensatildeo da

possibilidade de se educar ou mudar as emoccedilotildees para o bem humano

Essa habituaccedilatildeo na melhor das hipoacuteteses torna o agente capaz de

escolher por si mesmo as accedilotildees que iratildeo conduzi-lo aos bens que deseja

alcanccedilar Isso daacute um caraacuteter voluntaacuterio agrave accedilatildeo e agrave virtude moral bem

como um aspecto responsaacutevel ao homem virtuoso que busca o melhor

modo de agir em direccedilatildeo ao bem supremo cumprindo aquilo que se

entende por sua funccedilatildeo Para tanto as emoccedilotildees devem ser moderadas

conforme as sugestotildees da capacidade de razatildeo como um todo o que

indicou a necessidade ao menos da virtude intelectual da prudecircncia

efetivando as virtudes morais

217

Entendemos por virtude completa a junccedilatildeo das virtudes das duas

as capacidades da alma manifestada atraveacutes de uma vivecircncia poliacutetica

favoraacutevel ao bom desempenho do raciociacutenio e de consequentes boas

accedilotildees Com isso pareceu-nos apropriado dedicar certo tempo embora

curto ao estudo das virtudes intelectuais em especial ao estudo da

prudecircncia e de seu processo ndash da deliberaccedilatildeo agrave escolha deliberada e agrave

accedilatildeo moralmente boa Esse estudo nos levou a perceber a prudecircncia

como um tipo de percepccedilatildeo praacutetica ou deliberativa diferente da

percepccedilatildeo sensiacutevel comum mas natildeo desvencilhado desta sugerindo

ainda a accedilatildeo de outras capacidades racionais entendidas do modo

proposto pelo De Anima bem como pela EN Isso indicou uma inegaacutevel

associaccedilatildeo da capacidade racional do intelecto com a percepccedilatildeo

confirmando novamente nossas propostas sobre a unidade da alma A

prudecircncia pede deliberaccedilatildeo praacutetica em casos excepcionais apresentados

pela vida Tal deliberaccedilatildeo se relaciona com um tipo especial de

imaginaccedilatildeo embora natildeo totalmente diacutespar e distante daquela

imaginaccedilatildeo entendida como (sub)capacidade da alma que eacute

intermediaacuteria entre percepccedilatildeo sensiacutevel e pensamento

A imaginaccedilatildeo deliberativa bem como a percepccedilatildeo

especificamente associada agrave prudecircncia como um tipo de visatildeo permite

um caacutelculo apresentado sob a forma do silogismo praacutetico Este iraacute

conduzir o agente desde a percepccedilatildeo daquilo que entende como um bom

fim e que eacute desejado passando pela proposiccedilatildeo de meios para que tal

fim possa ser alcanccedilado e chegando agrave indicaccedilatildeo pela escolha deliberada

da melhor forma de accedilatildeo para atingir tal fim Nesse percurso o agente

tem contato com um sem-nuacutemero de aparecircncias particulares que acabam

por indicar-lhe de certo modo o universal ao menos sob a forma do

bem supremo a ser procurado O contato com esse tipo de bem relaciona

a prudecircncia natildeo somente com particulares mas tambeacutem com algo de

universal A prudecircncia eacute asociada igualmente agrave indicaccedilatildeo dos meios

para a consecuccedilatildeo da proacutepria felicidade entendida como fim de toda

vida humana

De certo modo essas propostas relacionam todas as capacidades

da alma pois conferem agrave virtude intelectual certa semelhanccedila com a

atividade e os objetos especiacuteficos agraves virtudes intelectuais teoacutericas Por

conseguinte reforccedilamos nossa interpretaccedilatildeo de uma alma una composta

por capacidades interligadas Com isso pudemos indicar ainda que natildeo

conclusivamente a possibilidade ou mesmo a necessidade de

comunicaccedilatildeo da capacidade natildeo racional da alma com a capacidade

racional em sua vertente teoacuterica jaacute que tratamos de uma alma soacute isenta

de secccedilotildees Ao final dessa parte apresentamos a relaccedilatildeo proposta no fim

218

do Livro VI da EN da virtude natural e da virtude em sentido estrito

pois entendemos que tal questatildeo reforccedila nossa proposta da virtude

completa como junccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais que concorrem

para o exerciacutecio da funccedilatildeo humana Nesse ponto da pesquisa ainda

julgamos necessaacuterio ratificar a racionalidade das emoccedilotildees e propor

condiccedilotildees ou instrumentos para que isso aconteccedila coisa que buscamos

fazer com o terceiro e uacuteltimo momento desta tese

A tiacutetulo de desfecho da pesquisa o Capiacutetulo III buscou

fundamentar suas anaacutelises especialmente na parte final EN parte do

tratado que a princiacutepio pareceu se distanciar de todas as propostas que

defendemos ao longo do estudo apresentado anteriormente O Livro X

nos apresentou a possibilidade de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma

forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica proposta que

para estudiosos como Kenny se mostra o desfecho perfeito agraves discussotildees

sobre a felicidade iniciadas em EN I No entanto o proacuteprio Livro X nos

encorajou a seguir em frente com nossa leitura da funccedilatildeo humana como

desempenho excelente e de um modo racional do conjunto de atividades

que compotildeem a melhor forma de vida possiacutevel ao homem Em EN X 7

1176b19-26 Aristoacuteteles apresenta o questionamento ressaltado por

Sorabji entre outros que potildee em jogo a possibilidade da contemplaccedilatildeo

teoacuterica como fim da vida humana Tendo em vista que nosso tema

solicita uma defesa da capacidade natildeo racional da alma humana em

harmonia com a capacidade racional acatamos as sugestotildees dos

comentadores mas recorremos agraves questotildees sobre a alma para defesa de

nossa proposta pautada em postura contraacuteria ao entendimento da vida

feliz como vida puramente contemplativa

Para reforccedilarmos essa ideia lanccedilamos matildeo de um vocabulaacuterio

associado tanto agraves capacidades racionais humanas quanto agraves descriccedilotildees

das emoccedilotildees que encontramos ao longo de todo o estudo e das leituras

dos textos de Aristoacuteteles As propostas sobre a psychḗ indicaram que o

vocabulaacuterio em questatildeo apresentava mais que termos atrelados agrave

racionalidade Os termos designavam (sub)capacidades da alma que

permitiram explicar o despertar das emoccedilotildees pelo contato do homem

com mundo atraveacutes da percepccedilatildeo sensiacutevel Propunham a imaginaccedilatildeo

com suas elaboraccedilotildees a respeito das relaccedilotildees com os outros e poderiam

despertar tipos de pensamento ou ao menos opiniotildees e crenccedilas que

instigassem as emoccedilotildees Com o apoio do estudo sobre as virtudes

intelectuais pudemos mesmo sugerir uma ligaccedilatildeo entre essas

(sub)capacidades mencionadas com outras similares As emoccedilotildees

manteriam contatos com essas uacuteltimas (sub)capacidades tambeacutem quando

passassem pelo filtro da deliberaccedilatildeo praacutetica e da escolha deliberada

219

Esta seria uma das formas possiacuteveis de lhes conceder a forma adequada

e ao mesmo tempo um modo de alcanccedilar o melhor estado das

capacidades aniacutemicas como um todo Com isso as chamadas ldquopartesrdquo

da alma estavam relacionadas pois constatamos que mesmo quando se

propotildee o intelecto relacionado ao paacutethos a capacidade intelectual

humana constitui-se assim como toda a alma como uma soacute A relaccedilatildeo

da razatildeo teoacuterica com as emoccedilotildees natildeo foi mais bem explorada por

questotildees de exequibilidade da pesquisa mas salientamos que o assunto

nos instiga apresentando-se como tema para pesquisa futura

Apoacutes essas inferecircncias novamente consultamos o De anima a

Retoacuterica e a Poeacutetica que se mostraram fonte indispensaacutevel agrave defesa de

nossa tese Estes tratados nos permitiram finalizar nosso trabalho

estudando instrumentos diferentes da habituaccedilatildeo e do ensino defendidos

pela EN mas que se associam em uma proposta educacional que

percorre toda a vida do cidadatildeo Nas poacuteleis haacute dispositivos disponiacuteveis

para que se possa consolidar e manter a educaccedilatildeo moral emocional

Uma educaccedilatildeo que comeccedila com atenccedilatildeo a cada pessoa em famiacutelia e

que possa se estender para os ambientes de conviacutevio na cidade eacute a

proposta de Aristoacuteteles para educar os cidadatildeos e suas emoccedilotildees

Entendemos que a poacutelis apresenta entre outros recursos o teatro

e os ambientes nos quais satildeo proferidos os discursos retoacutericos como

auxiliares da formaccedilatildeo moral Esses ambientes satildeo fontes riquiacutessimas

para que a percepccedilatildeo que se inicia com o intermeacutedio dos sentidos possa

solicitar as construccedilotildees das formas de imaginaccedilatildeo e provavelmente

direcionar convenientemente os cidadatildeos a certos tipos de opiniotildees

crenccedilas e mesmo elaboraccedilotildees racionais mais sofisticadas A partir de um

estudo eacutetico apoiado na proposta aristoteacutelica sobre a alma bem como

em demais obras de Aristoacuteteles e por todos os motivos acima elencados

entendemos que a defesa da educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua

racionalidade se faz possiacutevel Tal defesa foi necessaacuteria pois eacute somente o

contato da racionalidade com as emoccedilotildees seja em sua constituiccedilatildeo seja

atraveacutes das propostas dos elementos de racionalidade que podem tocaacute-

la que percebemos a possibilidade de educar ou mudar as emoccedilotildees

220

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Page 3: Juliana Santana de Almeidarepositorio.uft.edu.br/bitstream/11612/519/1/Juliana...3.b.1) Desejos 54 3.b.2) Os desejos menos racionais 56 3.b.3 O desejo mais racional 63 3.b.4) Desejo

Resumo

A tese trataraacute a possibilidade de educaccedilatildeo das emoccedilotildees existente graccedilas

agrave racionalidade apresentada em sua natureza e nas emoccedilotildees educadas

moralmente O estudo seraacute feito a partir das propostas da Eacutetica

Nicomaqueia recorrendo quando necessaacuterio ao De anima agrave Retoacuterica e

agrave Poeacutetica textos que dedicaram atenccedilatildeo especial ao assunto Para

defender essas propostas a investigaccedilatildeo busca compreender aquilo que

Aristoacuteteles entende por emoccedilatildeo partindo do Livro I da EN que indicaraacute

a possibilidade da capacidade desiderativa ouvir a razatildeo Com isso

percebemos que Aristoacuteteles natildeo pretende excluir os elementos natildeo

racionais da vida moral estando mais preocupado em encontrar formas

capazes de conciliar as capacidades aniacutemicas e de sentir emoccedilotildees com

as coisas certas nos momentos convenientes em direccedilatildeo a quecirc e a quem

eacute adequado Essa interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel porque o filoacutesofo compreende

a alma como algo composto por capacidades natildeo seccionadas pondo as

emoccedilotildees que satildeo da alccedilada do desiderativo desde seu iniacutecio em

contato com a capacidade racional da alma Esta uacuteltima capacidade

indica os motivos para se emocionar mas igualmente propotildee ao homem

educado moralmente uma forma moderada de emoccedilatildeo que lhe permitiraacute

levar uma vida proacutepria ao homem Tal vida agrave qual eacute imprescindiacutevel a

eupraxiacutea soacute eacute alcanccedilada com o apoio das virtudes Por isso eacute necessaacuterio

entender o que Aristoacuteteles propotildee como virtude e por que a relaciona

com a emoccedilatildeo a partir do Livro II da EN Tal estudo permite dar

continuidade agrave investigaccedilatildeo acerca das capacidades da alma humana

sugeridas por EN I 13 texto que apresenta a divisatildeo das virtudes

conforme capacidades da alma em morais e intelectuais As virtudes

configuram-se como melhor estado possiacutevel para cada capacidade da

alma sendo assunto imprescindiacutevel agrave pesquisa proposta No final da

exposiccedilatildeo da EN a alternativa de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma

forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica parece

destoar das propostas de nosso estudo Natildeo obstante o proacuteprio Livro X

traz argumentos que permitem manter a leitura da melhor forma de vida

possiacutevel ao homem ou seja de sua funccedilatildeo proacutepria como uma vida na

poacutelis que conjuga o bom exerciacutecio de todas as suas capacidades

Interpretaccedilatildeo viaacutevel pela apresentaccedilatildeo de faculdades racionais

encadeadas que podem tocar a emoccedilatildeo desde seu despertar ateacute quando

forem moderadas com o auxiacutelio da razatildeo praacutetica Contato que seraacute

facilitado pelos instrumentos aos quais os cidadatildeos podem recorrer para

garantir a chance de bem se emocionar a fim de serem virtuosos e

felizes vivendo em comunidade

Palavras-chave Emoccedilatildeo Razatildeo Virtude Felicidade

Abstract

The thesis will deal with the possibility to educate the emotions because

the rationality presented in its nature and in the morally educated

emotions The study will be based on the proposals of Nicomachean

Ethics using when necessary the De anima the Rhetoric and the

Poetics texts that have given special attention to the subject To defend

these proposals the research seeks to understand what Aristotle

understands by emotion starting from Book I of NE which will indicate

the possibility of the desiderative capacity to hear reason Because of

this we realize that Aristotle does not intend to exclude the non-rational

elements of the moral life being more concerned to find ways that

reconcile the psychic capacities and to feel emotions with the right

things in the convenient moments towards what and to whom it is

appropriate This interpretation is possible because the philosopher

understands the soul as something composed of connected capacities

putting the emotions which are from the domain of the desiderative

from its beginning in contact with the rational capacity of the soul This

last ability indicates the reasons for the corret emotion but also

proposes to the man morally educated a moderate form of emotion that

will allow him to lead anapproprieted life Such a life identified with

eupraxiacutea is only achieved with the support of the virtues Therefore it

is necessary to understand what Aristotle proposes as virtue and why it

relates it to emotion from Book II of NE This study allows us to

continue the investigation of the human soul capacities suggested by

ENI 13 a text that presents the division of the virtues according to the

souls capacities into moral and intellectual virtues The virtues are the

best possible state for each capacity of the soul being essential subject

to the proposed research At the end of the NE exposition the alternative

of interpreting eudaimōniacutea as a life totally dedicated to theoretical

contemplation seems to beadequate to the proposals of our study

Nevertheless Book X itself contains arguments that allow us to keep

understanding the best way of life possible for man that is his own

function as a life in the poacutelis which combines the good exercise of all

his capacities Interpretation viable by the presentation of rational

chained faculties that can touch the emotion from its awakening to

when they are moderated with the aid of practical reason Contact that

will be facilitated by the instruments that the citizens can use to

guarantee the chance of feel appropriatly in order to be virtuous and

happy living in community

Key-words Emotion Reason Virtue Happiness

Abreviaccedilotildees

Obras de Aristoacuteteles

Poet - Poeacutetica

Top ndash Toacutepicos

DA ndash De Anima

MA ndash Motu Animalium

Met ndash Metafiacutesica

EN ndash Eacutetica a Nicocircmaco

EE ndash Eacutetica a Eudemo

Pol ndash Poliacutetica

Ret ndash Retoacuterica

Obra de Platatildeo

Rep - Repuacuteblica

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo

17

Capiacutetulo I - A emoccedilatildeo e suas

implicaccedilotildees na vida feliz

25

1 Primeiros apontamentos

25

2 Funccedilatildeo proacutepria ao homem

27

3 EN I 13 a alma humana e a

emoccedilatildeo

39

3a) Capacidades da alma

43

3b) A capacidade desiderativa da

alma as accedilotildees e as emoccedilotildees na

vida feliz

50

3b1) Desejos

54

3b2) Os desejos menos racionais

56

3b3 O desejo mais racional

63

3b4) Desejo e accedilatildeo rumo agrave accedilatildeo

boa moralmente

66

4 Em busca da definiccedilatildeo

de emoccedilatildeo em Aristoacuteteles

72

4a) Alma corpo e emoccedilotildees

interpretadas a partir de EN I com

o auxiacutelio do DA da Rhet e da

Poet

78

5 A emoccedilatildeo

90

Capiacutetulo II - Virtude como

possibilidade de acordo entre

razatildeo e emoccedilatildeo

93

1 Virtude completa virtudes

virtude moral

93

2 A virtude moral

99

2a) Caraacuteter tautoloacutegico ou trivial

da doutrina da virtude moral como

mediania

102

2b) Exemplo da viabilidade da

virtude moral como mediania nas

emoccedilotildees a virtude particular da

coragem e o medo

111

2c) A forccedila do haacutebito para o

correto se emocionar

117

2d) Virtude voluntaacuteria diante das

circunstacircncias e responsabilidade

121

3 Metriopaacutethēia o ideal de

emoccedilatildeo para a vida virtuosa

125

4 Virtudes intelectuais satildeo

necessaacuterias agraves virtudes morais e

para a ldquoboa formardquo das

emoccedilotildees

133

4a) A prudecircncia

135

4b) Deliberaccedilatildeo

138

4c) Escolha deliberada

140

4d) Prudecircncia deliberaccedilatildeo

escolha deliberada e sua relaccedilatildeo

com o particular e o universal

142

5 Virtude natural e virtude em

sentido estrito

148

Capiacutetulo III -

A racionalidade das emoccedilotildees

153

1 Eudaiacutemōniacutea vida dedicada agrave

atividade racional (EN X)

153

2 A racionalidade das emoccedilotildees

interpretaccedilotildees desde EN I agraves

luzes do De Anima

157

2 a) Um quecirc ou o quecirc de

racionalidade nas emoccedilotildees

161

2 b) Percepccedilatildeo

162

2 c) Imaginaccedilatildeo

170

2 d) Pensamentos

173

2 e) Intelecto praacutetico 177

2 f) Opiniatildeo

183

3 O acordo entre a razatildeo e as

emoccedilotildees a educaccedilatildeo moral e os

instrumentos de modificaccedilatildeo da

emoccedilatildeo

187

3 a) Educaccedilatildeo haacutebito e lei para a virtude

187

3 b) A retoacuterica como instrumento

de mudanccedila nas emoccedilotildees

193

3 c) A poesia como facilitadora

da educaccedilatildeo moral

201

Conclusatildeo

213

Referecircncias

221

17

Introduccedilatildeo

Na histoacuteria da filosofia o entendimento acerca do que sejam as

emoccedilotildees (paacutethē) varia Aristoacuteteles1 se viu em meio a posturas diversas

sobre o assunto antes e depois de suas teorias apareceram fortes

oposiccedilotildees agrave intervenccedilatildeo das emoccedilotildees na vida moral2 Provavelmente

esse tipo de apreciaccedilatildeo seja o motivo para as inuacutemeras consideraccedilotildees

cautelosas que o filoacutesofo faz sobre o paacutethos em sua proposta eacutetica

entretanto Aristoacuteteles natildeo se mostra um pensador desfavoraacutevel agrave

participaccedilatildeo do emocional na vida humana feliz mas mesmo nas teorias

do filoacutesofo grego o tema das emoccedilotildees pode causar embaraccedilos Para

exemplificar o termo paacutethē que ora traduzimos por ldquoemoccedilotildeesrdquo pode

admitir sentidos mais amplos que aquele atribuiacutedo hoje em dia agrave palavra

emoccedilatildeo razatildeo pela qual tambeacutem se utilizam para traduzi-lo palavras

como ldquopaixotildeesrdquo ou ldquoafecccedilotildeesrdquo dentre outras Como observa Konstan

(2006 p IX et seq) em relaccedilatildeo agrave Liacutengua Inglesa atual haacute uma

diferenccedila consideraacutevel entre aquilo que os gregos dos tempos do

1 Observa Zingano que segundo Aristoacuteteles o paacutethos natildeo precisa ser extirpado

mas deve receber uma justa medida e isso indica a necessidade de ldquoexaminaacute-lo

mediante uma deliberaccedilatildeo pois a virtude eacute uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha

deliberadardquo (ZINGANO 2007 p 165) Tal tese que confirmaremos mais

adiante considera central a teoria das emoccedilotildees proposta por Aristoacuteteles 2 Tal pensamento afirma Sorabji (2000 p 181 traduccedilatildeo nossa cf tambeacutem p 7

et seq) eacute defendido por Crisipo embora natildeo por todos os estoacuteicos ldquoMas o que

eu quero considerar neste capiacutetulo eacute a tese muito mais radical de Crisipo de que

quase todas elas devem ser erradicadas Que razotildees poderia haver para tantordquo

Contudo as opiniotildees sobre a aceitaccedilatildeo estoacuteica da erradicaccedilatildeo da emoccedilatildeo

parecem divergir Enquanto os manuais de Histoacuteria da Filosofia como aqueles

que foram escritos por Kenny (2011 p 328) e Reale (2003 p 292) parecem

afirmar que todos os estoacuteicos concordavam com a necessidade de erradicaccedilatildeo

das emoccedilotildees haacute estudos mais minuciosos sobre o assunto que parecem

discordar dessa proposta e que trazem motivos significativos para tal

discordacircncia Esse eacute o caso da tese de doutorado defendida por Santos na

UNICAMP em 2008 Com relaccedilatildeo a esse tema vale tambeacutem conferir a

proposta do proacuteprio Sorabji que nos apresenta entendimentos variados para o

termo apaacutethēia trazidos pelos estoicos (ANTISSERI D REALE G Histoacuteria

da filosofia Vol 1 Satildeo Paulo Paulus 2003 KENNY A Uma nova histoacuteria

da filosofia Vol 1 Satildeo Paulo Loyola 2011 SANTOS R A Sobre a doutrina

das paixotildees no estoicismo 2008 100f Tese (Doutorado em Filosofia) ndash

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18

Estagirita consideravam ldquoemoccedilatildeordquo (paacutethos traduzido pelo estudioso por

emotion) e o que consideramos emoccedilatildeo hoje O proacuteprio Aristoacuteteles nos

leva a admitir isso com o que apresenta em Metafiacutesica ao trazer quatro

possibilidades de entendimento do termo em questatildeo

(1) Afecccedilotildees significam em um primeiro

sentido uma qualidade segundo a qual algo pode

se alterar por exemplo o branco e o preto o doce

e o amargo o peso e a leveza e todas as

qualidades deste tipo

(2) Noutro sentido afecccedilatildeo significa a atuaccedilatildeo

dessas alteraccedilotildees isto eacute as alteraccedilotildees que estatildeo

em ato

(3) Ademais dizem-se afecccedilotildees especialmente

as alteraccedilotildees e mudanccedilas danosas e sobretudo os

danos que produzem dor

(4) Enfim chamam-se afecccedilotildees as grandes

calamidades e as grandes dores (Met Δ 1022b15-

21)3

Zingano (2007 p 147-148) traz consideraccedilotildees interessantes

sobre este trecho e suas possibilidades de interpretaccedilatildeo em seus Estudos

de Eacutetica Antiga O estudioso parece optar por entender paacutethos no

sentido de emoccedilatildeo em termos eacuteticos como um ser afetado ou uma

alteraccedilatildeo que diz respeito agrave natureza praacutetica do agente uma afecccedilatildeo

que eacute fonte de accedilatildeo devido a algo provocado por outrem Algumas

dessas possibilidades interpretativas (que levam a diferentes escolhas de

traduccedilatildeo) satildeo empregadas nos textos que aqui estudaremos

Para citar um exemplo em nota agrave traduccedilatildeo do De Anima feita por

Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis a tradutora afirma haver trecircs significados

nesse tratado para a expressatildeo tagrave paacutethē que traduz por ldquoas afecccedilotildeesrdquo

(REIS 2006 p 150) O significado do termo varia do sentido geral de

atributos e predicados a ldquoformas de passividade e de oposiccedilatildeo agraves

atividadesrdquo e a ldquoemoccedilotildeesrdquo contudo enfocaremos aqui as acepccedilotildees que

3 Traduccedilatildeo de Marcelo Perini (2010) no original Πάθος λέγεται ἕνα μὲν

τρόπον ποιότης καθ ἣν ἀλλοιοῦσθαι ἐνδέχεται οἷον τὸ λευκὸν καὶ τὸ μέλαν

καὶ γλυκὺ καὶ πικρόν καὶ βαρύτης καὶ κουφότης καὶ ὅσα ἄλλα τοιαῦτα ἕνα δὲ

αἱ τούτων ἐνέργειαι καὶ ἀλλοιώσεις ἤδη ἔτι τούτων μᾶλλον αἱ βλαβεραὶ

ἀλλοιώσεις καὶ κινήσεις καὶ μάλιστα αἱ λυπηραὶ βλάβαι ἔτι τὰ μεγέθη τῶν

συμφορῶν καὶ λυπηρῶν πάθη λέγεται

19

tocam nosso objeto de estudo a saber aquelas paacutethē da relaccedilatildeo que

aparece especialmente na Eacutetica Nicomaqueia (II 3 1105b19-22) mas

que igualmente se repete nas listas apresentadas na Retoacuterica (II 2

1378a19-22) e no De Anima (I 1 403a16-18) aleacutem de contemplarem as

duas ldquoemoccedilotildeesrdquo descritas na Poeacutetica raiva arrojo inveja medo

alegria amizade oacutedio anelo emulaccedilatildeo piedade calma inimizade

desvergonha amabilidade indignaccedilatildeo e maacutegoa Esses uacuteltimos textos

viratildeo em nosso auxiacutelio quando se apresentarem instrumentos eficazes agrave

compreensatildeo de algumas questotildees suscitadas pela EN a respeito da

nossa investigaccedilatildeo que versaraacute sobre a possibilidade de mudanccedila ou

educaccedilatildeo das emoccedilotildees graccedilas agrave racionalidade apresentada em sua

natureza e que tecircm lugar ou influecircncia nas emoccedilotildees educadas

moralmente entendimento possiacutevel a partir da concepccedilatildeo de uma alma

una com capacidades variadas mas conectadas entre si

A partir das propostas da Eacutetica Nicomaqueia e dos textos que

seratildeo auxiliares interpretativos de suas teorias salientamos a opccedilatildeo pelo

direcionamento do estudo do termo no sentido em que ele pode ser

traduzido por ldquoemoccedilatildeordquo Natildeo usaremos a palavra paixatildeo porque hoje

em dia como ressaltam Sorabji (2002 p 7) e Zingano (2007 p 148)

pode restringir o entendimento do leitor e levaacute-lo a pensar que se tratem

apenas de emoccedilotildees mais fortes Por conseguinte justificamos nossa

opccedilatildeo por comeccedilar o estudo ora apresentado em busca de uma

compreensatildeo melhor e maior daquilo que Aristoacuteteles propotildee ser a

emoccedilatildeo partindo do Livro I da EN de onde retiramos o pensamento que

permearaacute toda a nossa pesquisa as emoccedilotildees satildeo sofridas

concomitantemente por corpo e alma e satildeo educaacuteveis por serem de

certo modo racionais caracteriacutestica devida agrave unicidade da alma

humana

Esse tipo de entendimento das emoccedilotildees tem por base o projeto

filosoacutefico de Aristoacuteteles que embora apresente diversos tratados

dedicados a diversos objetos de pesquisa com abordagem conforme o

objeto em anaacutelise faz com que as obras se sustentem entre si Tal

entendimento permitiraacute tambeacutem respondermos agrave questatildeo norteadora

desta tese como mudar as emoccedilotildees educando-as conforme as

solicitaccedilotildees da razatildeo praacutetica A percepccedilatildeo de que a pesquisa

empreendida por Aristoacuteteles eacute uma obra com coerecircncia interna permite

leituras de filoacutesofos contemporacircneos como Martha Nussbaum que por

vezes recorre a mais de um tratado aristoteacutelico para defender suas

interpretaccedilotildees Esse olhar para o conjunto da obra de Aristoacuteteles

igualmente nos conduz a leituras como aquelas feitas por Zingano e

Sorabji ao perceberem que Aristoacuteteles natildeo exclui conteuacutedos

20

emocionais mas que estaacute mais preocupado em encontrar formas capazes

de conciliar as capacidades aniacutemicas e com isso sentir emoccedilotildees com as

coisas certas nos momentos convenientes em direccedilatildeo a quecirc e a quem eacute

adequado A essas propostas eacute imprescindiacutevel acrescentar aquelas que

compreendem a alma descrita pelo filoacutesofo como algo composto por

partes natildeo seccionadas para que possamos defender emoccedilotildees que desde

seu iniacutecio tecircm contato com a capacidade racional da alma que indica os

motivos para se emocionar Essa capacidade racional igualmente propotildee

ao homem educado moralmente uma forma moderada de emoccedilatildeo que

lhe permitiraacute levar uma vida em conformidade com a virtude com a

razatildeo como um todo e por isso feliz

Para podermos sustentar essas propostas iniciaremos nossa tese

com um estudo sobre a natureza das emoccedilotildees buscando entender qual a

natureza da emoccedilatildeo Qual seu papel na teoria da felicidade de

Aristoacuteteles Para responder a essas perguntas procuraremos

compreender o argumento da funccedilatildeo humana e sua relaccedilatildeo com o fim

proposto agrave vida do homem Tal caminho nos indicaraacute a necessidade de

definir o lugar das emoccedilotildees na vida feliz e nos encaminharaacute agrave discussatildeo

da relaccedilatildeo imprescindiacutevel entre emoccedilotildees e a virtude considerada

completa a virtude intelectual a virtude moral e suas formas

particulares Essa pesquisa encaminharaacute nossa discussatildeo agrave anaacutelise dos

tipos de vida que se candidatam ao cargo de felicidade e ao

questionamento de tal vida ser definida por Aristoacuteteles como a

existecircncia dedicada agrave contemplaccedilatildeo intelectual filosoacutefica (discussatildeo que

somente encontraraacute seu desfecho com o nosso terceiro capiacutetulo) O

primeiro capiacutetulo prosseguiraacute com a discussatildeo apresentada em EN I 13 a

respeito da alma humana e de suas capacidades Esse estudo seraacute

necessaacuterio pois eacute a partir da proposta da existecircncia de capacidades

diversas na alma que poderemos inquirir acerca dos diferentes tipos de

vida e que provavelmente possamos indicar um deles como a vida mais

propriamente humana

Nesse ponto da EN Aristoacuteteles nos apresenta uma alma bipartida

que comporta as emoccedilotildees em sua capacidade natildeo racional capacidade

esta que no entanto apresenta-se como apta a ouvir e obedecer agrave razatildeo

primeiro sinal da possibilidade de defesa da racionalidade e

educabilidade das emoccedilotildees Por esse motivo julgamos pertinente

desenvolver na medida em que contemple nossos interesses um

pequeno estudo a respeito da alma humana buscando para essa teoria o

auxiacutelio do tratado sobre a alma a fim de obter maior clareza quanto agrave

questatildeo O estudo do De Anima permitiraacute reforccedilar uma teoria da alma

como um todo composto por partes que mantecircm certo contato bem

21

como a teoria hilemoacutefica a respeito do homem que comeccedila a demonstrar

seus contornos ainda com o assunto da funccedilatildeo proacutepria ao homem na EN

A defesa de uma psychḗ composta por capacidades imprescindivelmente

correlacionadas e que tem suas funccedilotildees manifestas mesmo que

imperceptivelmente no corpo nos permitiraacute tratar as emoccedilotildees como

afecccedilotildees do conjunto corpoalma Tudo isso soacute seraacute possiacutevel se

conseguirmos sustentar aleacutem de uma teoria da unidade da alma uma

teoria que proponha a capacidade da alma responsaacutevel pelas emoccedilotildees a

desiderativa como um todo coeso embora composta por diferentes

tipos de desejos conforme seus objetos e suas relaccedilotildees com a razatildeo

Portanto deveremos apreciar brevemente as propostas de Aristoacuteteles

acerca da capacidade desiderativa desde que o desejo e seus tipos

igualmente satildeo considerados paacutethē Defender uma capacidade

desiderativa unificada nos permitiraacute defender tambeacutem uma alma

unificada e emoccedilotildees capazes de concordar com as solicitaccedilotildees da

capacidade racional ao menos em sua vertente praacutetica Poderemos

entender que haacute desejos mais ou menos aptos a obedecer agrave razatildeo assim

como seratildeo igualmente as emoccedilotildees diretamente a eles relacionadas Por

conseguinte a possibilidade de educaccedilatildeo que veremos se abrir agrave

capacidade desiderativa como um todo indicaraacute a possibilidade de

propor emoccedilotildees capazes de serem educadas conforme a razatildeo teoria

que defenderemos mais detalhadamente no terceiro capiacutetulo Para tal

seraacute necessaacuterio indicarmos como essa abertura dos desejos agrave razatildeo

permitiraacute ao homem agir bem diferenciando accedilotildees e atividades de

simples movimentos fiacutesicos sendo as primeiras intimamente

relacionadas ao desejo pelos fins e por isso agrave possibilidade de apreciaccedilatildeo

eacutetica

Com isso identificaremos a eupraxiacutea como elemente

imprescindiacutevel agrave vida feliz justificando todo o percurso argumentativo

do primeiro capiacutetulo desde a proposta de anaacutelise da funccedilatildeo humana que

leva agrave consideraccedilatildeo de diferentes tipos de vida existentes em

conformidade com as diferentes capacidades aniacutemicas que em boa

associaccedilatildeo permitiratildeo a real felicidade Esta seraacute compreendida como

um tipo excelente de desempenho das accedilotildees e atividades adequadas ao

homem e somente ao homem mas que dependem igualmente da boa

condiccedilatildeo emocional Por isso seraacute necessaacuterio para desfecho do

primeiro momento de nossa pesquisa buscar compreender o que

Aristoacuteteles descreve como emoccedilatildeo e esboccedilar um conceito de emoccedilatildeo

com apoio das sugestotildees dos quatro tratados abordados nesse estudo

Essa proposta permitiraacute que reforcemos as teorias hilemoacuterficas que

descreveratildeo o paacutethos aristoteacutelico como possiacutevel ouvinte da

22

racionalidade desde o momento em que eacute despertado Permitiraacute ainda

que atentemos agrave obrigatoriedade de tratar as virtudes jaacute que se

mostraratildeo dependentes de emoccedilotildees educadas e que natildeo contrastem com

a execuccedilatildeo excelente das atividades humanas que se coadunam em

felicidade

A fim de obtermos sucesso na defesa da educabilidade das

emoccedilotildees devida agrave sua racionalidade - tendo em vista o que nos foi

proposto pelo argumento da funccedilatildeo humana pela proposta de uma

capacidade natildeo racional da alma que se apresenta como capaz de ouvir a

capacidade racional e das relaccedilotildees das emoccedilotildees com as virtudes

mencionadas em meio a esses assuntos - julgamos necessaacuterio dedicar o

segundo capiacutetulo de nossa tese ao estudo da relaccedilatildeo das emoccedilotildees com as

virtudes Iniciamos esse momento da pesquisa agrave procura de

compreender melhor e apenas na medida das necessidades de nossa

pesquisa o que Aristoacuteteles propotildee como virtude e por que a relaciona

com a emoccedilatildeo a partir do Livro II da EN O estudo nos conduziraacute a

diferentes tratamentos da virtude apreciaremos a virtude entendida de

um modo geral ou em sua completude como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave

felicidade estudaremos os componentes de tal virtude completa

entendidos como a virtude moral as formas particulares da virtude

moral e a virtude intelectual Tal estudo nos permitiraacute dar continuidade

agrave investigaccedilatildeo acerca das capacidades da alma humana sugeridas por EN

I 13 texto que apresenta a divisatildeo das virtudes conforme ldquopartesrdquo da

alma em virtudes morais e intelectuais Para reforccedilar o que

constataremos com o estudo da virtude moral chamaremos em auxiacutelio o

exemplo da coragem prosseguindo pelo percurso argumentativo da

discussatildeo feita por Aristoacuteteles na medida do possiacutevel dos Livros III a V

da EN que proporaacute as virtudes morais particulares como concretizaccedilatildeo

do melhor estado possiacutevel para cada funccedilatildeo da capacidade desiderativa

do homem Esse caminho nos permitiraacute sair de possiacuteveis embaraccedilos que

cercam a interpretaccedilatildeo da virtude moral como boa medida nas emoccedilotildees

Esse estudo nos apresentaraacute a ideia de virtude como boa medida

nas emoccedilotildees alcanccedilada por meio da habituaccedilatildeo agrave praacutetica de accedilotildees

moralmente corretas A visita a essa forma de interpretaccedilatildeo eacute

imprescindiacutevel a fim de compreender a possibilidade de se educar ou

mudar as emoccedilotildees favoravelmente ao bem humano A discussatildeo da

virtude moral nos apresentaraacute seu caraacuteter voluntaacuterio bem como

apresentaraacute o homem virtuoso como responsaacutevel por suas accedilotildees

especialmente das accedilotildees que desempenha adequadamente cumprindo

aquilo que se entende por sua funccedilatildeo Com isso alcanccedilaremos a

proposta da metriopaacutethēia ideal de emoccedilatildeo concorde com a capacidade

23

racional em sua face praacutetica (e talvez tambeacutem com sua face teoacuterica)

mas nos depararemos com a impossibilidade de todas as emoccedilotildees serem

moderadas Embora natildeo seja uma proposta de Aristoacuteteles a ideia da

metriopaacutethēia se nos apresentaraacute como melhor forma de compreender as

emoccedilotildees adequadas agrave boa medida As emoccedilotildees moderadas possibilitam

as virtudes morais mas nos indicaratildeo igualmente a necessidade ao

menos da virtude intelectual da prudecircncia para que tais virtudes venham

a efetivar-se

O estudo da prudecircncia e de seus componentes - deliberaccedilatildeo

escolha deliberada e accedilatildeo moralmente adequada - nos permitiraacute entender

melhor a relaccedilatildeo entre as capacidades da alma Se as virtudes morais

podem ser entendidas como melhor desempenho de certas capacidades

humanas que somente se concretizam diante de emoccedilotildees que cedem aos

conselhos da razatildeo ratificaremos nossa interpretaccedilatildeo acerca de uma

alma composta por faculdades em acordo Sendo a prudecircncia uma

virtude intelectual indispensaacutevel agrave vida feliz identificaremos a

necessidade de tratar de seus objetos Por isso necessitaremos discutir

sua relaccedilatildeo com coisas particulares e mutaacuteveis proacuteprias ao acircmbito da

prāxis mas tambeacutem de seu direcionamento para os assuntos

considerados universais dentre os quais encontramos a proposta

aristoteacutelica da felicidade o bem norteador de toda accedilatildeo que possa ser

considerada moralmente correta

A discussatildeo da relaccedilatildeo entre a prudecircncia particulares e universais

indica a unidade da alma identificada a partir dos objetos

compartilhados pela capacidade uacutenica do intelecto em seus aspectos

praacutetico e teoacuterico Esses assuntos iniciados por nossa anaacutelise dos

primeiros Livros da EN nos levaratildeo pelas questotildees sugeridas pelo Livro

VI que nos manteratildeo em contato direto com as discussotildees sobre a alma

Por isso a finalizaccedilatildeo dessa parte de nosso estudo seraacute feita com a

relaccedilatildeo apresentada ao final do Livro mencionado entre virtude natural

e virtude em sentido estrito Julgamos que tal questatildeo seraacute de grande

valia para o entendimento daquilo que Aristoacuteteles propocircs como virtude

completa relacionada como se mostraraacute com a funccedilatildeo proacutepria ao

homem e agrave praacutetica de boas accedilotildees propostas por um desejo adequado agrave

razatildeo bem como por emoccedilotildees doacuteceis agrave razatildeo Essa possiacutevel docilidade

demandaraacute pesquisar a racionalidade implicada nas emoccedilotildees

Para garantir essas interpretaccedilotildees prosseguiremos com nossa

anaacutelise ateacute o final da exposiccedilatildeo da EN momento que boa parte das

interpretaccedilotildees corriqueiras do livro X parecem se distanciar de todas as

propostas que defenderemos ao longo de nossa tese Em EN X nos

depararemos como a alternativa de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma

24

forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica proposta que

a muitos soa como desfecho ideal das discussotildees iniciadas com o tratado

em questatildeo Natildeo obstante o proacuteprio Livro X nos encorajaraacute a manter a

leitura da melhor forma de vida possiacutevel ao homem ou seja de sua

funccedilatildeo proacutepria como uma vida na poacutelis que conjugue o bom exerciacutecio

de todas as suas capacidades aniacutemicas Essa interpretaccedilatildeo seraacute

viabilizada e reforccedilada pela apresentaccedilatildeo de faculdades racionais

encadeadas que podem tocar a emoccedilatildeo desde seu despertar ateacute quando

forem moderadas com o auxiacutelio da razatildeo praacutetica Essa leitura ganharaacute

apoio nos demais tratados estudados e em suas propostas sobre as

emoccedilotildees que nos indicaratildeo um amplo vocabulaacuterio relacionado tanto agraves

emoccedilotildees quanto agraves capacidades racionais da alma humana colocando

em cena novamente a ligaccedilatildeo das capacidades racional e natildeo racional da

alma

A apreciaccedilatildeo do mencionado vocabulaacuterio nos indicaraacute

(sub)capacidades da alma que atuam na emoccedilatildeo e nos encaminharaacute para

o desfecho de nossa pesquisa Estudaremos brevemente a percepccedilatildeo

sensiacutevel a imaginaccedilatildeo o intelecto e certos tipos de pensamento dentre

os quais poderemos localizar a opiniatildeo responsaacuteveis pelo despertar de

boa parte das emoccedilotildees ou que se envolveratildeo com a educaccedilatildeo moral

emocional Novamente as consultas ao De Anima agrave Retoacuterica e agrave Poeacutetica

se mostraratildeo fonte indispensaacutevel agrave defesa de nossa tese acerca da

educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua implicaccedilatildeo com a razatildeo e com

elementos de razatildeo devido agrave proacutepria natureza aniacutemica do homem Estes

tratados igualmente nos permitiratildeo investigar oportunidades para

direcionar as emoccedilotildees de modo que consigam ouvir as propostas das

diversas formas de razatildeo existentes Por fim apresentaremos os

instrumentos aos quais os cidadatildeos podem recorrer para garantir a

chance de bem se emocionar a fim de se tornarem virtuosos e felizes

naquele que identificaremos como meio mais propiacutecio ao florescimento

humano a poacutelis

25

Capiacutetulo I

A emoccedilatildeo e suas implicaccedilotildees na vida feliz

1 Primeiros apontamentos

A leitura da EN nos traz uma seacuterie de indagaccedilotildees quanto agrave

natureza das emoccedilotildees A lista de tais questotildees pode comeccedilar pela

afirmaccedilatildeo que agraves vezes aparece nesse texto segundo a qual as emoccedilotildees

satildeo natildeo racionais Por esse motivo talvez tenhamos a impressatildeo

frequente de que o filoacutesofo em alguma medida natildeo seja favoraacutevel agrave

intervenccedilatildeo das emoccedilotildees nas accedilotildees consideradas boas moralmente De

acordo com a proposta de uma alma que ldquotem uma parte racional e uma

irracionalrdquo (EN I 13 1102a27-28)4 as emoccedilotildees tecircm por sede a

capacidade natildeo racional da alma a desiderativa de onde viriam

igualmente as suas relaccedilotildees com certos prazeres e dores Tais

associaccedilotildees com outros elementos que tambeacutem natildeo costumavam receber

apreciaccedilatildeo favoraacutevel em questotildees morais parecem agravar a situaccedilatildeo das

emoccedilotildees e provavelmente por isso sejam feitas afirmaccedilotildees que parecem

colocar a emoccedilatildeo como algo arredio aos ditames da razatildeo sendo mesmo

capaz de sobrepor-se a estes (EN IX 8 1168b29-35 1169a1-8)5 Vaacuterias

assertivas que apresentam um tom de advertecircncia quanto aos perigos de

se entregar agraves emoccedilotildees aparecem ao longo do texto

A primeira menccedilatildeo que o tratado faz ao assunto pode confirmar

isso no Livro I da EN Aristoacuteteles explica o motivo pelo qual os jovens

natildeo tiram bom proveito das liccedilotildees sobre poliacutetica primeiro natildeo tecircm

experiecircncia dos fatos da vida em torno dos quais giram as discussotildees

dessa natureza segundo os jovens tendem a seguir suas paixotildees (EN I 1

1095a5) Por isso o estudo da ciecircncia poliacutetica lhes seraacute vatildeo jaacute que o fim

que se almeja com essa mateacuteria eacute a accedilatildeo e natildeo o conhecimento (EN I 1

1095a6) Essas falhas abrangem tanto aqueles que satildeo jovens em anos

quanto os que satildeo jovens em caraacuteter pois o defeito natildeo depende da

idade mas do modo de viver e seguir cada objetivo proposto pela

emoccedilatildeo (EN I 1 1095a9) ldquoA tais pessoas como aos incontinentes a

ciecircncia natildeo traz proveito algum mas aos que desejam e agem de acordo

4 Todas as traduccedilotildees da EN seratildeo feitas a partir da traduccedilatildeo francesa de J Tricot

(2012) com exceccedilatildeo dos trechos I 13 a III 8 que tecircm traduccedilatildeo de Zingano

(2008) no original οἷον τὸ μὲν ἄλογον αὐτῆς εἶναι τὸ δὲ λόγον ἔχον 5 O filoacutesofo parece expressar postura semelhante tambeacutem em EN 1106b35

1107a1-9 1097b35 1098a1-17 1168b34-35 1169a18 1177a12-18 1178a6-7

etc

26

com um princiacutepio racional o conhecimento desses assuntos faraacute grande

vantagemrdquo (EN I 1 1095a11-15)6 na distinccedilatildeo do que seja o bem

Por conseguinte em nada nos admiraria a proposta da melhor

vida possiacutevel como aquela guiada pela reta razatildeo A felicidade fim

(teacutelos) da vida humana seria descrita como uma atividade mas uma

atividade (eneacutergeia) realizada conforme o que manda a razatildeo Tal

atividade deve ser de acordo com o que eacute descrito como o que haacute de

melhor no homem e que o diferencia dos outros animais e das plantas

(EN I 6 1097b35 1098a1-5) Esse tipo de vida natildeo seria possiacutevel sem as

virtudes especialmente sem a virtude moral pois aleacutem de ser conforme

o que haacute de mais proacuteprio ao homem se isso fosse a razatildeo a vida boa

moralmente e feliz seria aquela que permitiria desempenhar da melhor

forma a funccedilatildeo humana e segundo Aristoacuteteles desempenhar bem sua

funccedilatildeo eacute ser virtuoso

Caso seja possiacutevel entender essa proposta como indicativo de que

o homem deva ouvir sua razatildeo a fim de possuir a mais excelente virtude

e a melhor vida precisamos ressaltar que Aristoacuteteles nos chama atenccedilatildeo

para que a razatildeo deva ser o guia ou deva ao menos estar presente em

todos os homens Natildeo conveacutem esquecer que no Livro X o filoacutesofo

afirmaraacute que tal possibilidade natildeo eacute a mais recorrente - embora devesse

ser - agrave vida humana comum Os homens em sua grande maioria natildeo

obedecem espontaneamente agrave razatildeo mesmo sendo capazes de fazecirc-lo

Por isso natildeo tendem a uma vida de pura contemplaccedilatildeo que na verdade

extrapolaria as possibilidades humanas Na maior parte das vezes os

elementos da capacidade natildeo racional da alma conduzem as accedilotildees

sendo necessaacuterio portanto buscar moderaacute-los para que haja excelecircncia

dessa capacidade e que se viva a vida propriamente humana7 Diante

dessa impossibilidade de a capacidade racional reger de modo exclusivo

a vida humana o que levaria o homem a desempenhar uma funccedilatildeo

6 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original τοῖς γὰρ τοιούτοις ἀνόνητος ἡ γνῶσις γίνεται καθάπερ τοῖς

ἀκρατέσιν τοῖς δὲ κατὰ λόγον τὰς ὀρέξεις ποιουμένοις καὶ πράττουσι

πολυωφελὲς ἂν εἴη τὸ περὶ τούτων εἰδέναι 7 Essa proposta eacute encontrada tambeacutem em Poliacutetica 1253a25-28 ldquoQue nessas

condiccedilotildees a cidade seja tambeacutem anterior naturalmente ao indiviacuteduo isso eacute

evidente se com efeito o indiviacuteduo tomado isoladamente eacute incapaz de bastar a

si mesmo seraacute por relaccedilatildeo agrave cidade como nos nossos outros exemplos as

partes satildeo em relaccedilatildeo ao todo Mas o homem que estaacute na incapacidade de ser

membro de uma comunidade ou que disso natildeo experimenta nada a necessidade

porque ele se basta a si mesmo natildeo faz em nada parte de uma cidade e por

consequecircncia eacute ou um bruto ou um deusrdquo

27

totalmente racional ou conforme a razatildeo como sua marca distintiva

cabe-nos questionar qual seria a funccedilatildeo proacutepria ao homem de acordo

com a EN

2 Funccedilatildeo proacutepria ao homem

Aristoacuteteles inaugura as discussotildees da EN afirmando que toda arte

bem como toda atividade tende a um fim ou bem Os bens podem ser

diferentes ou idecircnticos agraves suas fontes originadoras e por isso existem

tantos fins quanto haacute artes e atividades das quais satildeo provenientes

Ademais quando os bens satildeo identificados agraves atividades que os geram

estas satildeo consideradas mais excelentes que aquelas que natildeo se

identificam ao fim gerado ocasionando uma hierarquia que organiza

atividades e bens

Essas propostas abrem a discussatildeo sobre os fins e os meios para

alcanccedilaacute-los e nesse ponto logo no iniacutecio da EN o filoacutesofo nos informa

que haacute um fim maior desejado por si mesmo e em vista do qual todas as

demais coisas e bens satildeo buscados Essa delimitaccedilatildeo de um bem maior

ou supremo impede que a lista de bens existentes obedeccedila a uma

progressatildeo infinita Diante disso o filoacutesofo propotildee que o conhecimento

da natureza do bem supremo poderia colaborar com seu alcance jaacute que

uma procura eacute facilitada quando se conhece o que estaacute sendo procurado

Por isso a investigaccedilatildeo da EN a partir do Livro I 2 se direciona agrave

delimitaccedilatildeo do bem supremo e daquela ciecircncia que se dedicaria ao seu

estudo a poliacutetica teoria determinadora de tudo quanto seria preciso

saber para o bom andamento das questotildees de uma poacutelis A ciecircncia

poliacutetica determinaria aquilo que os cidadatildeos deveriam fazer e por isso

abrangeria todas as demais ciecircncias sendo arquitetocircnica responsaacutevel

pelo bem humano e mais importante pelo bem da poacutelis

Tendo em vista as constataccedilotildees feitas ateacute os Livros I 3-4

Aristoacuteteles pensa que deve estabelecer ao menos em linhas gerais a

verdade sobre o que eacute a felicidade pois todos sem exceccedilatildeo

identificam-na com um bem ou um fim inerente ao ser humano O passo

destaca a poliacutetica como a ciecircncia responsaacutevel por determinar tais

assuntos e por isso seria de grande auxiacutelio agraves pessoas que vivem agem e

desejam conforme a razatildeo ao mesmo tempo em que delimita o campo

de interesse da pesquisa em curso Seria tarefa de a poliacutetica definir

felicidade pois a despeito do consenso quanto ao que seria o melhor

fim e resultado da melhor accedilatildeo possiacutevel haveria vaacuterias formas de

conceber a felicidade e de entender quais seriam os modos de obtecirc-la

Os homens comuns pensariam que a felicidade seria o prazer ou a

28

riqueza ou as honras percepccedilatildeo diferenciada daquela tida pelos saacutebios

Chegariam mesmo a mudar de entendimento acerca da eudaiacutemōniacutea

conforme o tipo de vida que levassem

Quanto ao tipo de vida levada o Livro I 5 aponta trecircs formas

principais a serem analisadas a vida preocupada com a (1) obtenccedilatildeo de

prazer a vida (2) poliacutetica e a vida dada agrave (3) contemplaccedilatildeo filosoacutefica O

filoacutesofo explica que a maioria das pessoas identifica a felicidade com o

prazer e pouco mais adiante compara a vida escolhida pela multidatildeo

agravequela vida dos escravos e agrave qual chama bestial Em contrapartida a

opiniatildeo dos homens de gosto mais refinado bem como das pessoas que

satildeo mais ativas seria que a felicidade se resume agrave honra que

normalmente eacute entendida como fim da vida poliacutetica No entanto

Aristoacuteteles pensa que a honra natildeo poderia ser o fim buscado pelo

homem jaacute que dependeria mais de quem a conferiria que daqueles que a

mereceriam as honrarias poderiam ser retiradas de algueacutem ao contraacuterio

da felicidade Aleacutem disso o filoacutesofo nos conta que as honras seriam

procuradas em vista da virtude sendo que talvez a virtude e natildeo a

honra fosse o fim procurado pela vida poliacutetica Contudo entende que a

virtude igualmente natildeo eacute a felicidade pois um homem pode ser

considerado virtuoso por exemplo quando dorme e quando eacute

desafortunado mas natildeo eacute possiacutevel ser feliz no infortuacutenio Na sequecircncia

da exposiccedilatildeo Aristoacuteteles afirma que examinaraacute a vida contemplativa em

outro momento (Livro X) e acrescenta agrave sua anaacutelise o tratamento da vida

dedicada ao ganho percebendo que a riqueza tambeacutem natildeo contemplaria

suas intenccedilotildees quanto agravequilo que seria a eudaiacutemōniacutea A riqueza seria uacutetil

a uma vida considerada feliz poreacutem natildeo poderia resumir tal vida porque

natildeo seria buscada por si mesma Com isso o filoacutesofo nos apresenta uma

das suas exigecircncias para definirmos a felicidade ser um fim ou bem

buscado por si mesmo

No Livro I 6 da EN o bem eacute tratado em dois sentidos haveria

bens em si mesmos considerados realmente bons e bens relativos a

estes uacuteteis agrave obtenccedilatildeo dos bens em si mesmos Estes seriam como jaacute se

propusera acerca da felicidade procurados sem pensar em algo mais que

se pudesse conseguir a partir deles mas haveria vaacuterias coisas que se

encaixariam nesse tipo de descriccedilatildeo como a riqueza o prazer etc o

que forccedila o filoacutesofo a delimitar o bem que procura a algo que possa ser

alcanccedilado pelo homem apresentando nova exigecircncia agrave definiccedilatildeo da

felicidade

29

Diante de tantas distinccedilotildees o Livro I 7 afunila mais a proposta de

bem buscado descrevendo-o novamente como ldquoaquilo em cujo interesse

se fazem todas as coisasrdquo (EN I 5 1097a21-22)8 O bem seria a

finalidade das accedilotildees e os homens fariam tudo em vista dele Aristoacuteteles

ratifica a existecircncia de vaacuterios fins mas propotildee que apenas o bem

supremo ou absoluto seria escolhido por si mesmo o que implica que

nem todos os fins satildeo absolutos O sumo bem no entanto seria

absoluto o uacutenico fim absoluto ou o mais absoluto no caso de haver mais

de um fim desse tipo caracteriacutestica daquilo que eacute procurado e desejado

por si mesmo A esses aspectos Aristoacuteteles acrescenta outro ndash que

voltaraacute a ser analisada no Livro X a autossuficiecircncia A princiacutepio este

conceito eacute explicado em I 7 como aquilo que basta para um homem e

todos agrave sua volta porque o homem segundo esse capiacutetulo (EN I 7

1097b12) existe para ser cidadatildeo A autossuficiecircncia tornaria a vida

desejaacutevel e sem necessidade de nada sendo que somente a felicidade

cumpriria tais requisitos aleacutem de ser a coisa mais desejaacutevel de todas

natildeo sendo um bem entre outros A felicidade eacute redefinida portanto

como a finalidade uacuteltima de toda accedilatildeo (EN I 7 1097b14-21)9

Diante de todo esse debate e da tentativa de delimitaccedilatildeo da

felicidade Aristoacuteteles natildeo se daacute por satisfeito com o possiacutevel conceito

determinado ateacute o ponto Evoca entatildeo a questatildeo da funccedilatildeo (eacutergon) do

homem pois pensa que talvez esclareccedila o caso O filoacutesofo questiona

haveria uma funccedilatildeo especificamente humana Verificar qual seria a

funccedilatildeo humana facilitaria entender o que eacute a felicidade (EN I 7

1097b24) mas por quecirc Aristoacuteteles pensa que para todas as coisas que

apresentam uma funccedilatildeo e uma atividade o bem estaacute na funccedilatildeo (EN I 7

1097b26-27)

Korsgaard afirma que o argumento da funccedilatildeo da forma como eacute

elaborado por Aristoacuteteles parece depender da ligaccedilatildeo existente entre ser

uma boa pessoa ter uma vida boa ou feliz aleacutem de objetivar ligar essas

propostas em torno da racionalidade Haacute igualmente a intenccedilatildeo de

mostrar que devido a alguns argumentos sobre razatildeo e virtude o

argumento da funccedilatildeo eacute um bom caminho para abordar a questatildeo de

como viver bem Se tudo tem uma funccedilatildeo por que o homem natildeo teria

nenhuma (EN I 7 1097b22-23) Isso significaria que o homem segue um

8 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original τούτου γὰρ ἕνεκα τὰ λοιπὰ πράττουσι πάντες 9Esse trecho abriria a questatildeo para as interpretaccedilotildees da eudaiacutemōniacutea como bem

inclusivo ou dominante Neste estudo apenas mencionaremos quando

pertinente o problema pois natildeo pretendemos esgotaacute-lo

30

propoacutesito ou um destino Korsgaard propotildee duas maneiras de ler a

passagem em questatildeo A primeira com assombro e jaacute proposta acima

soaria mais ou menos assim se todas as coisas que existem tecircm uma

funccedilatildeo por que o homem natildeo teria nenhuma O passo poderia ser lido

ainda como um argumento e soaria mais ou menos assim ldquopartes do

corpo tecircm funccedilotildees mas o que fazem soacute faz sentido se houver uma

funccedilatildeo do todo relativo ao qual as partes tecircm uma funccedilatildeo as vaacuterias artes

e profissotildees tecircm funccedilotildees mas que soacute fazem sentido se haacute uma funccedilatildeo

geral da vida humana agrave qual contribuemrdquo (KORSGAARD 2008 p 130-

131)

Assim a funccedilatildeo do todo respaldaria e explicaria aquelas das

partes De modo semelhante Reeve (2014 p 279) entende que qualquer

que seja a funccedilatildeo humana ela deve justificar as funccedilotildees das partes do

corpo bem como deve justificar o homem como praticante de uma arte

especiacutefica que segue princiacutepios e normas racionais Isso porque apoacutes

analisar as funccedilotildees atreladas agraves capacidades da alma que o homem

compartilha com os animais o texto de EN I 7 (1097b33-1098a7) acaba

por identificar uma funccedilatildeo que chama ldquovida praacutetica do que possui

razatildeordquo que eacute capaz tanto de obedecer agrave razatildeo quanto de possuiacute-la

exercitando o intelecto (noucircs) De um modo ou de outro o argumento

parece depender de uma concepccedilatildeo teleoloacutegica de mundo Essa

concepccedilatildeo no primeiro caso indica simplesmente um propoacutesito para

tudo quanto haacute No segundo caso indica um tipo de raciociacutenio que vai

de um propoacutesito relativo a um propoacutesito absoluto Mas caberia entender

o argumento da funccedilatildeo como a defesa de um propoacutesito para o homem

Mesmo que se assuma o argumento em questatildeo eacute preciso esclarecer por

que o bem humano estaacute atrelado ao bom desempenho de uma funccedilatildeo

Haacute entre funccedilatildeo e virtude uma ligaccedilatildeo conceitual da qual natildeo

podemos prescindir pois como Reeve salienta o argumento prepara o

campo para a teoria da virtude Segundo tal teoria o exerciacutecio de uma

funccedilatildeo poderia ser compreendido como melhor estado das capacidades

que se agrupam em um todo que pode ser entendido como a melhor

forma de vida humana Entendemos tambeacutem com Reeve (2013 p 38)

que essa vida eacute proposta sagazmente por Aristoacuteteles como agrupamento

dos aspectos que considerava os melhores dentre todas as opiniotildees

correntes agrave eacutepoca sobre o tipo de vida tido como felicidade Diante

disso explica Korsgaard a virtude eacute uma qualidade que faz o homem

bom ao desempenhar sua funccedilatildeo composta por qualidades que o tornam

31

bom quanto agrave atividade racional10 Contudo fazemos questatildeo de frisar

que a virtude igualmente deve ser entendida como desempenho

excelente de todas as atividades cuja execuccedilatildeo pelo homem eacute possiacutevel

Korsgaard esclarece ldquoEntatildeo Aristoacuteteles precisa da conclusatildeo do

argumento da funccedilatildeo natildeo somente para dar suporte agrave sua visatildeo sobre

que tipo de vida eacute o melhor assim como a fim de nos dar uma base

teoacuterica agrave afirmaccedilatildeo que certas qualidades satildeo virtudesrdquo (KORSGAARD

2008 p 133-134 traduccedilatildeo nossa) O argumento nos permite

compreender melhor as virtudes e com isso a proposta sobre o bem ou

fim humano entendido por Aristoacuteteles como atividade em conformidade

com a virtude

O mau entendimento do argumento em questatildeo pode vir do fato

de interpretaacute-lo teleologicamente pensando eacutergon como propoacutesito

Haveria alternativas de interpretaccedilatildeo como um significado mais amplo

de trabalho funcionamento produtos ou atividades caracteriacutesticas

indicando igualmente a ligaccedilatildeo entre funccedilatildeo e atividade que levaria o

homem ao bem que procura Natildeo reconstruiremos totalmente a proposta

de Korsgaard sobre esse assunto que passaria por complexas noccedilotildees

metafiacutesicas agraves quais natildeo podemos nos dedicar nesse momento11 mas a

melhor alternativa agrave compreensatildeo da funccedilatildeo proposta em EN I seria

indicada pela autora como a de atividade caracteriacutestica que faz de uma

coisa aquilo que ela eacute Assim uma concepccedilatildeo de homem tambeacutem estaacute

em questatildeo como reforccedilaremos no nosso terceiro Capiacutetulo porque

quem sabe o que a coisa faz a conhece melhor O que parece coadunar

outra possibilidade de entendimento proposta pela autora a de como

uma coisa funciona ou seja como uma coisa faz o que ela faz natildeo

impedindo que tenha vaacuterios propoacutesitos Entatildeo propoacutesito seria diferente

de funccedilatildeo mesmo que os dois sentidos estivessem intimamente

relacionados pois saber ldquoo que uma coisa fazrdquo estaacute totalmente ligado ao

saber ldquocomo uma coisa faz o que ela fazrdquo

Desse modo natildeo bastaria saber o propoacutesito da coisa para

conhececirc-la explica a autora ldquoMas algueacutem que sabe para que o coraccedilatildeo

10 De acordo com Boyle haacute uma proposta do homem como animal racional que

tem sua tradiccedilatildeo iniciada com Aristoacuteteles Conforme a interpretaccedilatildeo do autor

para essa proposta que pensamos ser condizente com nossas proacuteprias

interpretaccedilotildees sobre o assunto ldquoUma implicaccedilatildeo crucial da Visatildeo Claacutessica eu

argumentarei eacute que a racionalidade natildeo eacute uma potecircncia particular de animais

racionais que satildeo equipados com ela mas seu modo distintivo de ter potecircnciasrdquo

(BOYLE 2012 p 6 traduccedilatildeo nossa) 11 Mateacuteria e forma substacircncia causa

32

serve seus arranjos estruturais e como aqueles arranjos capacitam o

coraccedilatildeo a fazer o que ele faz pode dizer verdadeiramente entendecirc-lordquo

(KORSGAARD 2008 p 139 traduccedilatildeo nossa) Por isso a autora pensa

que o melhor candidato agrave interpretaccedilatildeo de funccedilatildeo eacute ldquocomo a coisa faz o

que ela fazrdquo indo do conhecimento da estrutura ao conhecimento do

propoacutesito atrelado ao objeto estudado Com isso poderemos pensar que

compreender a alma humana e suas capacidades em relaccedilatildeo seria

extremamente beneacutefico entre outras coisas para nossa compreensatildeo

daquilo que o homem eacute capaz de fazer pois nos encaminharia para o

conhecimento do proacuteprio homem e de como ele faz o que faz O que a

nosso ver natildeo descartaria uma proposta teleoloacutegica acerca da felicidade

humana mas a reelaboraria nos termos propostos acima com o apoio de

Korsgaard Natildeo importa se o homem tem um propoacutesito o que importa eacute

que o homem desempenha suas atividades de um modo que lhe eacute

especiacutefico e que pode ser entendido e explicado Assim quem entende

isso poderaacute dizer o que eacute a funccedilatildeo humana aleacutem do mais seraacute possiacutevel

conhecer melhor o proacuteprio homem

Por conseguinte quando Aristoacuteteles afirma que a funccedilatildeo humana

eacute a atividade da parte racional da alma natildeo quer dizer simplesmente que

o raciociacutenio eacute o propoacutesito do ser humano Igualmente estaacute a dizer que a

atividade racional eacute a atividade caracteriacutestica do homem caso se

entenda que isso significa uma atividade que somente a espeacutecie humana

escolhe Aleacutem disso Korsgaard entende que Aristoacuteteles quer dizer que a

ldquoatividade racional eacute como noacutes seres humanos fazemos o que fazemos e

em particular como conduzimos nossa forma especiacutefica de vidardquo

(KORSGAARD 2008 p 141 traduccedilatildeo nossa) O que nos leva de volta

agrave lista dos tipos de vida No DA II 2 Aristoacuteteles elenca trecircs formas de

viver conforme as capacidades da alma humana vegetativa (das plantas

e de todos os animais) de percepccedilatildeo e accedilatildeo (de todos os animais) e de

razatildeo ou da escolha racional (apenas dos animais humanos) O homem

apresenta todas as trecircs formas de vida duas em comum com os demais

viventes mas uma que lhe eacute especiacutefica o que faz com que gerencie de

um jeito especial as outras formas que compotildeem a vida humana Assim

para Aristoacuteteles ldquoser racional transforma a natureza de ser um animal e

assim constitui um jeito novo de ser uma coisa vivardquo (BOYLE 2012 p

16 traduccedilatildeo nossa)

Com as observaccedilotildees feitas a respeito desse assunto Aristoacuteteles

parece entender a vida regida pela razatildeo como mais apropriada aos

homens contudo o filoacutesofo pondera neste tipo de vida e no que a rege

haacute algo que eacute obediente agrave razatildeo mas haacute ainda algo que possui e exerce o

pensamento A vida da capacidade racional portanto igualmente

33

poderia ter dois significados mas nesse ponto especiacutefico estar-se-ia a

falar da vida como atividade racional O que provavelmente poderia

nos levar a interpretar essa proposta como natildeo tratando de algo

puramente racional pois eacute nesse ponto da argumentaccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

do homem que Aristoacuteteles parece ceder lugar a uma racionalidade

relacionada e dedicada inteiramente ao cuidado da capacidade natildeo

racional e de suas (sub)capacidades fazendo valer a proposta da

atividade humana como aquela feita com razatildeo ou natildeo sem razatildeo

Nussbaum entende que nesse momento Aristoacuteteles comeccedila a abrir matildeo

de algo totalmente divino como funccedilatildeo especiacutefica do homem propondo

como tiacutepico agrave alma humana uma sabedoria diferenciada daquela

compartilhada pela divindade a sabedoria praacutetica Diante dessas

possibilidades de interpretaccedilatildeo precisamos analisar as propostas em

jogo para entender qual seria realmente a funccedilatildeo e portanto a melhor

forma de viver ou o fim humano pois Aristoacuteteles escreve

Ora se haacute uma funccedilatildeo do homem consistindo em

uma atividade da alma conforme agrave razatildeo ou que

natildeo existe sem a razatildeo e se noacutes dizemos que essa

funccedilatildeo eacute genericamente a mesma em um

indiviacuteduo qualquer e em um indiviacuteduo de meacuterito

(assim em um citarista e em um bom citarista e

isso eacute verdade de uma maneira absoluta em todos

os casos) a excelecircncia devida ao meacuterito se

acrescentando agrave funccedilatildeo (pois a funccedilatildeo do citarista

eacute tocar a ciacutetara e aquela do bom citarista eacute tocaacute-la

bem) se eacute assim se noacutes colocamos que a funccedilatildeo

do homem consiste em um certo gecircnero de vida

quer dizer em uma atividade da alma e nas accedilotildees

acompanhadas de razatildeo se a funccedilatildeo de um

homem virtuoso eacute cumprir essa tarefa e cumpri-la

bem e com sucesso cada coisa aleacutem estando bem

completa quando eacute segundo a excelecircncia que lhe eacute

proacutepria - nessas condiccedilotildees eacute portanto que o bem

para o homem consiste em uma atividade da alma

em acordo com a virtude e no caso de

pluralidade de virtudes em acordo com a mais

excelente e perfeita entre elas (EN I 6 1098a7-

18)12

12 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original εἰ δ ἐστὶν ἔργον ἀνθρώπου ψυχῆς ἐνέργεια κατὰ λόγον ἢ

μὴ ἄνευ λόγου τὸ δ αὐτό φαμεν ἔργον εἶναι τῷ γένει τοῦδε καὶ τοῦδε

34

A anaacutelise do passo em questatildeo gerou celeuma em relaccedilatildeo agrave

questatildeo da eudaiacutemōniacutea provocando discussotildees propostas em ceacutelebres

artigos publicados desde 1964 (ou mesmo antes) por estudiosos como

Hardie Ackrill e Kenny A menccedilatildeo aos trecircs comentadores e respectivos

estudos eacute vaacutelida na medida em que haacute propostas sobre a eudaiacutemōniacutea

como aquela elaborada por Kenny que concebeu a felicidade como um

bem dominante e entendia que o passo em questatildeo se opotildee agraves teorias

como aquelas dos demais estudiosos mencionados e agraves suas concepccedilotildees

de eudaiacutemōniacutea Segundo Kenny o passo liga as teorias da felicidade

apresentadas pelos Livros I e X da EN tomando as teorias de Aristoacuteteles

sobre os variados tipos de vida no Livro I como ponto de partida para a

interpretaccedilatildeo da eudaiacutemōniacutea como vida totalmente dedicada agrave

contemplaccedilatildeo Embora concordemos com a possibilidade de existecircncia

de um elo entre as teorias apresentadas nos dois tratados sobre a

felicidade elo do qual trataremos mais detidamente em nosso terceiro

Capiacutetulo os demais comentadores citados parecem-nos mais coerentes

com as reais intenccedilotildees de Aristoacuteteles para sua teoria da felicidade

Pensamos assim especialmente por natildeo tomarem como proposta (ou

intenccedilatildeo de proposta do filoacutesofo segundo a leitura de Hardie (2009 p

35)) a felicidade como fim dominante encaminhando-se agrave defesa de

uma vida plena como aquela dedicada ao puro contemplar Todavia se

um tipo de vida eacute indicado como o melhor e se esse tipo for

compreendido como um conjunto de atividades operadas de modo

racional e natildeo exatamente como uma vida inteiramente direcionada agraves

atividades especificamente contemplativas qual seria esse tipo de vida

Aristoacuteteles o determinaria

As questotildees nos levaram a repensar as propostas do filoacutesofo

acerca dos meios e dos fins variados que se nos apresentam ao longo de

toda uma vida e que conduzem agraves muitas opiniotildees e aos muitos modos

de entender o que seja a melhor vida possiacutevel e os bens que satildeo

necessaacuterios a ela (se satildeo necessaacuterios) As opiniotildees quanto agrave funccedilatildeo e agrave

atividade apropriada ao homem descritos no Livro I 8 variam e por isso

σπουδαίου ὥσπερ κιθαριστοῦ καὶ σπουδαίου κιθαριστοῦ καὶ ἁπλῶς δὴ τοῦτ

ἐπὶ πάντων προστιθεμένης τῆς κατὰ τὴν ἀρετὴν ὑπεροχῆς πρὸς τὸ ἔργον

κιθαριστοῦ μὲν γὰρ κιθαρίζειν σπουδαίου δὲ τὸ εὖ εἰ δ οὕτως [ἀνθρώπου δὲ

τίθεμεν ἔργον ζωήν τινα ταύτην δὲ ψυχῆς ἐνέργειαν καὶ πράξεις μετὰ λόγου

σπουδαίου δ ἀνδρὸς εὖ ταῦτα καὶ καλῶς ἕκαστον δ εὖ κατὰ τὴν οἰκείαν

ἀρετὴν ἀποτελεῖται εἰ δ οὕτω] τὸ ἀνθρώπινον ἀγαθὸν ψυχῆς ἐνέργεια γίνεται

κατ ἀρετήν εἰ δὲ πλείους αἱ ἀρεταί κατὰ τὴν ἀρίστην καὶ τελειοτάτην

35

Aristoacuteteles parece entender que essa variedade de opccedilotildees eacute devida ao

prazer que se sente com as atividades que se desempenha com mais

frequecircncia As atividades virtuosas satildeo deste tipo e satildeo destacas pelo

filoacutesofo como sendo boas e nobres Os homens bons igualmente as tecircm

em alta consideraccedilatildeo datildeo-lhes o valor devido sendo que tais homens

satildeo bons juiacutezes daquilo que conhecem bem como a virtude ldquoA

felicidade eacute pois a melhor a mais nobre e a mais apraziacutevel coisa do

mundo e esses atributos natildeo se acham separados []rdquo (EN I 9 1099a24-

25)13 O conceito de felicidade esboccedilado no Livro I eacute portanto

preenchido pelos atributos das atividades mais excelentes

Reforccedilando essas ideias o Livro I 9 nos informa que a felicidade

eacute tomada como algo de melhor e mais divino existente na vida humana

portanto eacute de acordo com a excelecircncia nas accedilotildees e atividades que o

homem eacute capaz de realizar Diante dessas constataccedilotildees Aristoacuteteles

declara que os objetivos da ciecircncia poliacutetica entre as demais vidas

observadas satildeo o melhor fim que pode haver (EN 1099b30) o que

pareceraacute contradizer as propostas do Livro X e a proposta de Kenny

supramencionada Essas explicaccedilotildees ainda que lacunares nos levam agrave

nossa crenccedila que a funccedilatildeo especiacutefica ao homem seja uma atividade que

somente se constituiria com uma vida em comunidade associando todas

as capacidades aniacutemicas acima mencionadas sendo por isso conforme

a razatildeo que se configura como elemento diferencial da psychḗ humana

Todavia ainda precisaremos confrontar essas propostas com aquelas do

Livro X acerca da vida contemplativa como melhor das vidas possiacuteveis

para garantir o que se afirma aqui

O Livro mencionado nos apresenta vaacuterios argumentos que

indicam um Aristoacuteteles aparentemente ldquoracionalistardquo propondo que o

homem se dedique agravequilo que de mais divino haacute em si a razatildeo No

entanto recorrendo ao curso de toda a EN inclusive ao proacuteprio Livro X

encontramos indicaccedilotildees de que natildeo haacute possibilidade do homem dedicar-

se inteiramente agraves atividades da contemplaccedilatildeo filosoacutefica ao exerciacutecio

mais alto e puro da razatildeo teoacuterica Mesmo um filoacutesofo explica

Aristoacuteteles necessita de comida bebida dinheiro conviacutevio e todos

esses bens sejam eles necessaacuterios ao estabelecimento de uma vida feliz

sejam eles instrumentos para tal estabelecimento soacute satildeo encontrados

como propusemos ainda haacute pouco na poacutelis Devemos reforccedilar que a EN

nos apresenta o homem como animal poliacutetico de vida essencialmente

13 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ἄριστον ἄρα καὶ κάλλιστον καὶ ἥδιστον ἡ εὐδαιμονία καὶ

οὐ διώρισται ταῦτα []

36

comunitaacuteria Por conseguinte todas as suas escolhas seratildeo tomadas

tendo em vista essa sua natureza poliacutetica explicando que a funccedilatildeo

proacutepria ao homem seria o bom desempenho de suas capacidades

aniacutemicas que o permitissem viver bem na poacutelis entre seus iguais ou

semelhantes de forma excelente mas em conformidade a leitura de

Korsgaard e Boyle (2012 p 6 et seq) de um jeito racional Quanto ao

assunto Nussbaum escreveu

O argumento do ergon natildeo pode estar nos dizendo

que devemos nos preocupar somente com a razatildeo

Nem parece dizer isso Mas a ecircnfase em tal

atividade caracteriacutestica pode ser vista como

motivada (1) pelo desafio do hedonismo e (2) pela

funccedilatildeo arquitetocircnica da razatildeo praacutetica esta e soacute

esta pode arranjar para que ambas razatildeo e as

funccedilotildees compartilhadas com os animais

obtenham seu devido lugar em uma vida humana

complexa Aristoacuteteles recomenda agrave sua audiecircncia

reflexiva uma vida que (1) envolva o exerciacutecio de

todas as nossas capacidades humanas e seja assim

uma verdadeira vida humana antes que uma

[vida] que possa justamente ser levada por uma

planta ou uma vaca e que (2) seja governada e

planejada de um tal modo a dar a ambas

capacidades compartilhadas e natildeo compartilhadas

seu papel apropriado ndash e isso significa governada

e planejada pela razatildeo praacutetica Se pensarmos

reflexivamente sobre o que eacute um ser humano ele

sugere teremos razatildeo em preferir uma vida sob a

direccedilatildeo da razatildeo praacutetica agrave vida escrava ou como a

da vaca de prazer e tambeacutem agrave alguma vida que eacute

levada sem ordem ou direccedilatildeo Queremos uma vida

que use todas as nossas capacidades Uma tal vida

inclui tanto o exerciacutecio da razatildeo quanto requer a

direccedilatildeo racional (NUSSBAUM 1985 p 106

traduccedilatildeo nossa)

Embora concordemos em grande medida com as propostas da

estudiosa que entende a opccedilatildeo pelo argumento do eacutergon humano em

um tratado eacutetico justificada por ser necessaacuterio considerar o que eacute o

homem a fim de melhor entender e acatar um tipo de vida a se buscar

pensamos que a filoacutesofa natildeo esteja de acordo com as propostas de

Aristoacuteteles em um certo ponto Este diria respeito agrave tocircnica dada agrave

37

proposta de uma vida boa ser governada pela razatildeo ou melhor pela

razatildeo praacutetica Nossa ressalva ou discordacircncia vem do fato de pensarmos

que essa alternativa seja vaacutelida agrave maioria dos homens para os homens

que satildeo capazes de agir corretamente embora possam natildeo o fazer mas

natildeo dos homens realmente virtuosos que vivem ldquocom razatildeordquo ou de um

jeito racional Pensamos diferente das propostas da autora porque

cremos que o bom exerciacutecio de todas as capacidades humanas que ela

menciona compartilhadas ou natildeo com outros viventes resulta em uma

vida virtuosa e que o homem verdadeiramente virtuoso tenha em

consonacircncia as capacidades aniacutemicas como defenderemos ao longo de

todo esse trabalho A nosso ver uma vida conforme o melhor estado

dessas capacidades desempenhadas racionalmente eacute o que

verdadeiramente se configura como a funccedilatildeo humana exclusivamente

humana dentre todas as funccedilotildees que o homem se mostra capaz de

desempenhar14

A pacificaccedilatildeo das capacidades aniacutemicas que permite uma vida de

plena realizaccedilatildeo das tarefas necessaacuterias para o conviacutevio em comunidade

eacute o que mais se mostra como exclusividade do homem natildeo dos deuses

nem dos animais em geral A possibilidade de conciliar a capacidade

natildeo racional por esta ser capaz de ouvir obedecer e participar da razatildeo

por intermeacutedio do desiderativo com a capacidade racional da alma

representada pela racionalidade praacutetica que harmoniza e participa da

capacidade natildeo racional mas que ao mesmo tempo sabe daquilo que eacute

necessaacuterio para garantir o exerciacutecio da racionalidade teoacuterica garante a

funccedilatildeo apropriada ao homem e a vida feliz O melhor estado e as

melhores atividades de ambas as capacidades da alma quando em

harmonia permitem que o homem seja o que eacute que se perceba como

aquilo que eacute animal poliacutetico razatildeo e emoccedilatildeo em consonacircncia

Devemos no entanto trabalhar mais em defesa desse entendimento

porque nos permitiraacute defender a educabilidade das emoccedilotildees

14Temos ciecircncia de que a vida pode variar de que a virtude pode se ver

ameaccedilada pelas circunstacircncias O homem virtuoso natildeo estaacute imune agraves forccedilas

do acaso mas resiste-lhes mais fortemente como na proposta da feita no

Livro I graccedilas ao seu caraacuteter ldquofirme e imutaacutevelrdquo Concordamos no entanto

com Frede que explica que mesmo o virtuoso carece de muita deliberaccedilatildeo

para agir bem pois mesmo sua boa habituaccedilatildeo que lhe confere certa (e

maior que o normal) estabilidade frente agraves vicissitudes natildeo lhe tornem

totalmente indiferente ao que o mundo apresenta como proporemos mais

adiante

38

Nossa proposta eacute coerente com as interpretaccedilotildees de estuidiosos

como Korsgaard (2008 p 143) e Boyle (2012 p 6) acerca da funccedilatildeo

humana que entende a vida feliz como atividade racional no sentido que

o poder da escolha racional facultado ao homem muda o modo que os

humanos conduzem as atividades que compartilham com os outros

animais como a construccedilatildeo a procriaccedilatildeo alimentaccedilatildeo etc A autora

defende que os seres humanos abordam essas atividades criativamente e

desenvolvem vaacuterios modos de desempenhaacute-las entre os quais noacutes entatildeo

escolhemos Igualmente fazem coisas que os outros animais natildeo fazem

de jeito nenhum como contar piadas pintar e se engajar na pesquisa

cientiacutefica e filosoacutefica Entatildeo a escolha racional introduz um sentido de

vida todo novo no qual uma pessoa pode dizer ldquoter uma vidardquo A vida eacute

entendida nesse sentido quando se diz que algueacutem vive bem ou mal ndash se

eacute eudaiacutemōn ou natildeo Entatildeo a autora afirma que esse eacute o sentido de

ldquovidardquo relevante para o argumento da funccedilatildeo A razatildeo eacute a funccedilatildeo do ser

humano desde que entendida como uma forma especificamente humana

de conduzir a vida e pensamos que tal tipo de conduccedilatildeo soacute pode ser

exercido em comunidade Assim atividade racional deveria ser

entendida natildeo no sentido de gastar toda a vida em contemplaccedilatildeo mas

como um modo de conduzir a vida o que provavelmente seja mais

condizente com nossa proposta embora entendamos que nos virtuosos

isso signifique a harmonia das capacidades da alma e natildeo a prevalecircncia

da capacidade racional15

Discutiremos as virtudes no capiacutetulo seguinte Por enquanto

destacamos outro motivo para entendermos que a funccedilatildeo totalmente

humana somente pode ser atualizada na poacutelis nas atividades e nas accedilotildees

moralmente avaliaacuteveis que se apresentam na poacutelis Parece impossiacutevel ao

homem atualizar as potecircncias de suas capacidades aniacutemicas em

consonacircncia que levam a emoccedilotildees bem educadas se natildeo por meio

daquilo que o corpo eacute capaz de fazer Todas as atividades e accedilotildees

completadas pelo composto corpoalma chamado por Aristoacuteteles em

parte da Metafiacutesica tograve syacutenolon (conjunto) de mateacuteria e forma

(hyacutelēmorphḗ) levam agrave produccedilatildeo de algo uacutetil ao homem agrave praacutetica de

boas accedilotildees e igualmente ao exerciacutecio da razatildeo teoacuterica e estatildeo de acordo

com Lawrence (2009 p 46) e com nossa interpretaccedilatildeo a serviccedilo dessa

vida boa em comunidade Por isso deveremos nos concentrar agora em

abordar as questotildees da alma humana como levantadas ao final do Livro

I da EN capiacutetulo 13 chamando em nosso auxiacutelio quando necessaacuterias

15 Quanto agrave classificaccedilatildeo do homem como animal racional especificar a

essecircncia humana ver Boyle (2012)

39

as consideraccedilotildees do De Anima sobre o assunto especialmente quando

este tratado puder nos auxiliar a confirmar nossa interpretaccedilatildeo

hilemoacuterfica que nos permitiraacute defender nossa teoria da funccedilatildeo proacutepria ao

homem como necessaacuteria ao entendimento do papel das emoccedilotildees na vida

moral

3 EN I 13 a alma humana e a emoccedilatildeo

A felicidade foi proposta em EN I 13 como atividade da alma

conforme a virtude mais completa16 Por isso para compreender melhor

o que seja a felicidade Aristoacuteteles julga necessaacuterio estudar a natureza da

virtude O filoacutesofo explica que a virtude a ser estudada eacute humana como

satildeo humanos o bem e a felicidade que procura esclarecer Por

conseguinte escreve ldquoPor virtude humana entendemos natildeo a do corpo

mas da alma e igualmente agrave felicidade chamamos uma atividade da

alma Mas assim sendo eacute oacutebvio que o poliacutetico deve saber de algum

modo o que diz respeito agrave almardquo (EN I 13 1102a16-19)17 O estudo da

alma que um legislador buscaria empreender no entanto teria por

finalidade tornar os cidadatildeos bons e entender como isso eacute possiacutevel o

que bastaria para o tipo de investigaccedilatildeo ora feito contudo pensamos

que a consulta do tratado da alma quando necessaacuteria pode ser mais

esclarecedora dos problemas que levantamos Natildeo obstante

comeccedilaremos a discussatildeo com as propostas da EN a respeito do assunto

em questatildeo nesse momento

Quando o tema eacute a alma humana a EN aponta a existecircncia de

opiniotildees consideraacuteveis mesmo que natildeo venham de Aristoacuteteles ou de

seus companheiros de estudo Uma dessas opiniotildees considerada vaacutelida eacute

a mencionada teoria que a alma apresenta uma capacidade racional e

outra natildeo racional (EN I 13 1102a29) Costuma-se aceitar igualmente

uma subdivisatildeo das capacidades aniacutemicas natildeo racionais propondo agrave

capacidade natildeo racional primeiro uma (sub)capacidade vegetativa

responsaacutevel pela nutriccedilatildeo e pelo crescimento Esta eacute presente em todos

16 Embora nos trechos em questatildeo nesse ponto do estudo utilizemos a traduccedilatildeo

de Zingano preferimos usar ldquovirtude completardquo a ldquovirtude perfeitardquo devido agrave

compreensatildeo que temos de tal virtude e que seraacute esclarecida brevemente mais

adiante 17 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original καὶ γὰρ τἀγαθὸν ἀνθρώπινον

ἐζητοῦμεν καὶ τὴν εὐδαιμονίαν ἀνθρωπίνην ἀρετὴν δὲ λέγομεν ἀνθρωπίνην οὐ

τὴν τοῦ σώματος ἀλλὰ τὴν τῆς ψυχῆς καὶ τὴν εὐδαιμονίαν δὲ ψυχῆς ἐνέργειαν

λέγομεν

40

os animais vivos adultos embriotildees lactantes etc A excelecircncia de tal

capacidade por esse aspecto comum aos viventes eacute pertencente a todos

e natildeo eacute especificamente humana18 Aleacutem disso a capacidade nutritiva

ou vegetativa trabalha especialmente durante o sono quando a maldade

ou a bondade de caraacuteter natildeo se manifestam Assim tal faculdade pode

ser posta de lado por ora em nossas investigaccedilotildees jaacute que na EN eacute tida

como natildeo participante da excelecircncia especificamente humana19 No

entanto Aristoacuteteles segue com o exame da capacidade natildeo racional da

alma e escreve

Parece haver na alma ainda outro elemento

irracional mas que em certo sentido participa da

razatildeo Com efeito louvamos o princiacutepio racional

do homem continente e do incontinente assim

como a parte de sua alma que possui tal princiacutepio

porquanto ela os impele na direccedilatildeo certa e para os

melhores objetivos mas ao mesmo tempo

encontra-se neles um outro elemento naturalmente

oposto ao princiacutepio racional lutando contra este e

resistindo-lhe (EN I 13 1102b13-21)20

Esse princiacutepio opositor agrave racionalidade aparece nitidamente no

caso dos incontinentes e dos continentes pessoas nas quais a capacidade

racional e a natildeo racional esta uacuteltima na figura dos desejos entram em

conflito quanto aos objetos a serem perseguidos21 Aristoacuteteles assim nos

18 A respeito da forma como a posse de uma alma racional que muda a

organizaccedilatildeo das demais capcidades da alma em um ser classificado como

ldquoracionalrdquo ver Boyle (2012 p 15 et seq) Essa explicaccedilatildeo revalida a teoria

proposta acima a respeito do viver humano natildeo ser puramente racional mas

organizado de um jeito racional 19 De acordo com Boyle (2012 p 2) a tendecircncia crescente eacute entender que a

diferenccedila entre a mente humana e a dos animais chamados tradicionalmente

ldquonatildeo racionaisrdquo pousa mais no grau em que tais mentes diferem e natildeo nas suas

diferenccedilas por tipo ou espeacutecie O autor faz tal observaccedilatildeo ao falar das disvisotildees

propostas para a alma desde Aristoacuteteles 20 Idem no original ἔοικε δὲ καὶ ἄλλη τις φύσις τῆς ψυχῆς ἄλογος εἶναι

μετέχουσα μέντοι πῃ λόγου τοῦ γὰρ ἐγκρατοῦς καὶ ἀκρατοῦς τὸν λόγον καὶ τῆς

ψυχῆς τὸ λόγον ἔχον ἐπαινοῦμεν ὀρθῶς γὰρ καὶ ἐπὶ τὰ βέλτιστα παρακαλεῖ

φαίνεται δ ἐν αὐτοῖς καὶ ἄλλο τι παρὰ τὸν λόγον πεφυκός ὃ μάχεται καὶ

ἀντιτείνει τῷ λόγῳ 21 A questatildeo da acrasia eacute muito mais complexa do que esse arremedo de resumo

aqui apresentado mas no momento natildeo nos caberia discuti-la em detalhes bem

41

adverte que na alma haacute algo que eacute contraacuterio agrave capacidade racional

resistindo-lhe e fazendo-lhe frente Isso parece nem participar da

capacidade racional embora no continente obedeccedila-a no temperante e

no bravo obedece ainda mais ldquopois em tais homens ele fala a respeito

de todas as coisas com a mesma voz que o princiacutepio racionalrdquo (EN I 13

1102b28)22 Mesmo que esta capacidade pareccedila natildeo participar da

racional os exemplos de virtudes e virtuosos dados no passo nos

mostram que essa faculdade ou (sub)capacidade da capacidade natildeo

racional constituiacuteda por querer (bouacutelēsis) apetite (epithymiacutea) e impulso

(thymoacutes) satildeo desejos aptos a ouvir a racionalidade obedececirc-la e ateacute

participar dela embora pareccedilam sempre fazer o contraacuterio Explicaremos

melhor essa proposta a seguir quando tratarmos especificamente a

capacidade desiderativa

Ateacute o momento a interpretaccedilatildeo feita nos permite afirmar que a

capacidade natildeo racional eacute ou parece ser dupla Isso porque a vegetativa

natildeo participa da capacidade racional mas a desiderativa em geral

participa ao menos de certo modo (EN I 13 1102b32) porque no

miacutenimo eacute capaz de escutar e obedecer agrave razatildeo como um filho ouve e

obedece a um pai Conselhos censuras e exortaccedilotildees comprovam

portanto que o natildeo racional eacute de certo modo persuadido pela razatildeo O

argumentoexemplo do filho e do pai daacute azo ao nosso argumento

porque o filho pode ainda natildeo possuir plenamente a razatildeo em ato mas eacute

considerado na Poliacutetica como parte da famiacutelia cujo elemento racional eacute

figurado pelo pai sendo este representante da razatildeo praacutetica na analogia

apresentada na EN Essa participaccedilatildeo enquanto natildeo se atualiza a

potecircncia de razatildeo do filho eacute siacutembolo da participaccedilatildeo do que na alma haacute

de menos racional mas capaz de ouvir agrave razatildeo praacutetica Por isso a

virtude recebe distinccedilatildeo semelhante nesse tratado indicando a existecircncia

de uma virtude moral e de uma virtude intelectual cada destas uma

componente indispensaacutevel de uma alma humana una que soacute pode ver

atualizadas suas muacuteltiplas capacidades pelo composto corpoalma

Quando se fala do caraacuteter humano no entanto estaacute-se a falar da virtude

moral entendida por Aristoacuteteles como disposiccedilatildeo digna de louvor

quando o agente se comporta bem diante dos arroubos de suas emoccedilotildees

Mas em grau secundaacuterio a vida de acordo com a

outra espeacutecie de virtude eacute feliz porque as

atividades que concordam com esta condizem

como nos faltaria recursos para encampar a tarefa no presente estudo 22 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original πάντα γὰρ ὁμοφωνεῖ τῷ λόγῳ

42

com a nossa condiccedilatildeo humana Os atos corajosos

e justos bem como outros atos virtuosos noacutes os

praticamos em relaccedilatildeo uns aos outros observando

nossos respectivos deveres no tocante a contratos

serviccedilos e toda sorte de accedilotildees bem assim como agraves

paixotildees e todas essas coisas parecem ser

tipicamente humanas Dir-se-ia ateacute que algumas

delas provecircm do proacuteprio corpo e que o caraacuteter

virtuoso se prende por muitos laccedilos agraves paixotildees

(EN X 8 1178a8-15)23

A vida voltada aos assuntos da poacutelis eacute portanto feliz mas

cercada pelas inevitaacuteveis emoccedilotildees e pelos desejos Esta eacute a vida que

procuramos examinar estando no exerciacutecio de sua funccedilatildeo proacutepria

Ressaltamos anteriormente e reforccedilamos aqui que uma existecircncia

totalmente em contemplaccedilatildeo filosoacutefica natildeo parece possiacutevel devido agrave

presenccedila dos elementos natildeo racionais acima mencionados na vida de

todos e da necessidade humana de viver em comunidade A despeito das

associaccedilotildees da eudamōniacutea com a contemplaccedilatildeo de Aristoacuteteles definir o

filoacutesofo como capaz de tal vida por exercer o cultivo da sua razatildeo

teoacuterica (ou do uso teoacuterico de sua razatildeo) de propor o filoacutesofo como

capaz de desfrutar a melhor disposiccedilatildeo de espiacuterito e ser caro aos deuses

devemos dar atenccedilatildeo agrave ressalva seguinte feita por Sorabji

Aristoacuteteles [] aborda a questatildeo seraacute que eacute

errado uma vez que somos humanos aspirar a

vida mais divina de contemplaccedilatildeo intelectual Ele

responde (embora eu natildeo ache que esta seja sua

uacuteltima palavra) que pelo contraacuterio o nosso

intelecto eacute o nosso verdadeiro eu [] Aristoacuteteles

viu as emoccedilotildees natildeo apenas como uacuteteis mas como

essenciais agrave melhor vida que os homens podem

alcanccedilar na praacutetica Embora dividido ele

reconhece que uma vida de nada mais que

contemplaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel para noacutes Ateacute mesmo

23 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Δευτέρως δ ὁ κατὰ τὴν ἄλλην ἀρετήν αἱ γὰρ κατὰ ταύτην

ἐνέργειαι ἀνθρωπικαί δίκαια γὰρ καὶ ἀνδρεῖα καὶ τὰ ἄλλα τὰ κατὰ τὰς ἀρετὰς

πρὸς ἀλλήλους πράττομεν ἐν συναλλάγμασι καὶ χρείαις καὶ πράξεσι παντοίαις

ἔν τε τοῖς πάθεσι διατηροῦντες τὸ πρέπον ἑκάστῳ ταῦτα δ εἶναι φαίνεται

πάντα ἀνθρωπικά ἔνια δὲ καὶ συμβαίνειν ἀπὸ τοῦ σώματος δοκεῖ καὶ πολλὰ

συνῳκειῶσθαι τοῖς πάθεσιν ἡ τοῦ ἤθους ἀρετή

43

os filoacutesofos devem comer e viver em sociedade e

a vida mais feliz envolveraacute tambeacutem o exerciacutecio

das virtudes em sociedade As virtudes por sua

vez envolvem acertar o ponto meacutedio na emoccedilatildeo

bem como na accedilatildeo (SORABJI 2000 p 190-191

traduccedilatildeo nossa)

Assim percebemos que Aristoacuteteles natildeo deixa os homens comuns

fora de suas consideraccedilotildees sobre a vida feliz dos cidadatildeos e admite

inclusive que esses homens sejam a maioria Aristoacuteteles igualmente natildeo

retira os filoacutesofos do conviacutevio na poacutelis pois natildeo eacute o fato de serem

filoacutesofos que faraacute com que deixem de ser humanos e de apresentar

funccedilatildeo e necessidades especiacuteficas agrave humanidade Aleacutem do mais entende

que mesmo os homens mais excelentes carecem de conviacutevio para deixar

claras as suas aptidotildees e beneficiar seus amigos com sua companhia (EN

Livro IX) No conviacutevio desses homens em comunidade eacute que aparecem

as emoccedilotildees e por isso o papel de destaque que o paacutethos tem na eacutetica

aristoteacutelica e na sua proposta da vida feliz motivo suficiente para nos

encorajar a continuar a pesquisar sobre o papel das emoccedilotildees na boa vida

descrita pelo filoacutesofo Para ressaltar essa interpretaccedilatildeo devemos

continuar a examinar as propostas de EN I 13 acerca das diferentes

capacidades aniacutemicas e buscar compreender como essas tais

capacidades podem estar associadas agrave emoccedilatildeo e ao seu papel junto agrave

eudaiacutemōniacutea aleacutem de deixar clara sua possibilidade de participaccedilatildeo na

razatildeo (praacutetica)

3a) Capacidades da alma

Diante das propostas de I 13 o que podemos depreender a

respeito da alma e suas capacidades O passo provavelmente

interessado em introduzir a discussatildeo das virtudes mais especificamente

da virtude moral frente agrave felicidade humana acaba por natildeo trazer

grandes informaccedilotildees sobre a psychḗ Eacute possiacutevel poreacutem apreender um

pouco mais que a famosa e provavelmente popular biparticcedilatildeo da alma

se contarmos na medida do possiacutevel com explanaccedilotildees esclarecedoras

apresentadas pelo DA Para comeccedilar podemos questionar a ideia de

uma alma partiacutevel Em decorrecircncia disso parece viaacutevel o questionamento acerca da capacidade racional e da natildeo racional e de

suas (sub)capacidades assunto que ganharaacute ainda mais esclarecimento

ao tratarmos as propostas do Livro VI sobre as virtudes intelectuais no

capiacutetulo que se seguiraacute

44

A discussatildeo sobre as emoccedilotildees nos conduziu agrave reflexatildeo acerca das

chamadas ldquopartesrdquo da alma agraves quais nos referiremos aqui pela palavra

ldquocapacidadesrdquo24 ideia que parece mais adequada agravequilo que

interpretamos como real teoria da alma em Aristoacuteteles pois o termo

grego em questatildeo eacute dyacutenamis Com EN I 13 propusemos uma capacidade

racional da alma e uma capacidade natildeo racional sendo que nesta uacuteltima

eacute demasiado importante agrave presente investigaccedilatildeo sua possibilidade de

ouvir a razatildeo Eacute duacutevida frequente entre os estudiosos da psychḗ25 e do

assunto especialmente no DA se Aristoacuteteles realmente haveria dividido

a alma como observa Bastit ao se perguntar ldquoO que eacute uma parte da

alma para Aristoacuteteles26rdquo A questatildeo eacute importante para o nosso estudo

porque nos levaraacute a entender melhor as possibilidades de mudanccedilas

nasdas emoccedilotildees a fim de que concordem com a razatildeo praacutetica Essas

variaccedilotildees satildeo necessaacuterias agrave vida feliz aleacutem de nos ajudar a entender

melhor a postura de Aristoacuteteles acerca da relaccedilatildeo corpoalma colocando

nossa investigaccedilatildeo no centro de debates ativos e atuais a respeito das

propostas do nosso filoacutesofo

Ao tratar uma possiacutevel divisatildeo da alma em partes Aristoacuteteles

ressalta que existem aqueles pensadores que a dividem e julgam que em

uma destas secccedilotildees estaria o pensar em outra o apetite Se assim fosse

questiona o que manteria a alma unida Afirma que natildeo seria o corpo e

pondera ldquoAo contraacuterio parece mais que eacute a alma que manteacutem junto o

corpo pois quando ela o abandona ele se dissipa e corromperdquo (DA I 5

411b7-8)27 Se algo diferente do corpo manteacutem a alma una seria a

proacutepria psychḗ e seria necessaacuterio investigar novamente se eacute uma unidade

ou se se divide em muitas partes O tal unificador sendo uno seria

igualmente correto afirmar que a alma eacute una Se fosse divisiacutevel seria

preciso novamente buscar o que manteacutem esse unificador coeso mas isso

24 Escolhemos traduzir dyacutenamis por ldquocapacidaderdquo tambeacutem pelo fato de termos

traduzido eacutergon por ldquofunccedilatildeordquo Traduzir ambos os termos por ldquofunccedilatildeordquo poderia

comprometer o entendimento de nossas propostas 25Novamente a conversa pode ser travada com Platatildeo que por exemplo no

Timeu (69c et seq) trata da particcedilatildeo da alma em racional e natildeo-racional

mortal e imortal base para a triparticcedilatildeo da alma em racional impulsiva e

apetitiva proposta pelo filoacutesofo ateniense 26 A frase que convenientemente nos serve como indagaccedilatildeo eacute o tiacutetulo do artigo

redigido pelo estudioso em questatildeo e que nos ajudaraacute a defender algumas das

ideias que aqui apresentaremos 27 Todas as citaccedilotildees feitas do DA tecircm traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos

Reis (2006) e seratildeo indicadas em rodapeacute no original δοκεῖ γὰρ τοὐναντίον

μᾶλλον ἡ ψυχὴ τὸ σῶμα συνέχειν ἐξελθούσης γοῦν διαπνεῖται καὶ σήπεται

45

levaria a uma progressatildeo ao infinito e seria ininteligiacutevel o que natildeo eacute

aceitaacutevel para Aristoacuteteles

Quanto agraves partes ou capacidades da alma igualmente haacute um

problema ldquoque potecircncia cada uma possui no corpordquo (DA I 5 411b15)28

Se a alma inteira eacute responsaacutevel por manter o corpo unido seria

conveniente que cada uma das suas partes mantivesse unida uma parte

do corpo Para Aristoacuteteles isso parece impossiacutevel pois seria difiacutecil

imaginar qual parte do corpo o intelecto manteria unida jaacute que parece

natildeo haver um oacutergatildeo especiacutefico correspondente agrave funccedilatildeo intelectiva o

que dificultaria igualmente saber o modo como o faria Ademais eacute

sabido que algumas espeacutecies de plantas e animais quando seccionados

continuam a viver como se tivessem a mesma alma embora natildeo

numericamente jaacute que cada uma das partes tem sensaccedilatildeo e se move

localmente ainda por um tempo Caso natildeo sobrevivam natildeo seria um

absurdo pois natildeo manteriam oacutergatildeos que lhes permitiriam continuar a

viver Assim em cada uma das partes do corpo estatildeo todas as partes ou

capacidades da alma como nos explica Bastit no passo abaixo

Assim eacute preservada uma certa determinaccedilatildeo local

dos atos de certos sentidos ndash a vista eacute o fato do

olho ndash que natildeo implica a separaccedilatildeo nem das partes

da alma nem das funccedilotildees dos sentidos e que por

consequecircncia natildeo causa subordinaccedilatildeo das partes

da alma agraves partes do corpo mas bem ao contraacuterio

uma subordinaccedilatildeo dos oacutergatildeos ao ato da parte da

alma da qual satildeo o instrumento o olho agrave visatildeo

por exemplo Por analogia a faculdade eacute

subordinada agrave alma inteira e natildeo eacute separada

Por conseguinte o ato da alma inteira deve poder

efetivamente se manifestar em todas as partes do

vivente Tratando-se de um ato este deve ser

constataacutevel Eacute justamente por isso que Aristoacuteteles

recorre ainda para repelir simultaneamente a

separaccedilatildeo real das partes da alma e sua

localizaccedilatildeo a uma observaccedilatildeo no quadro do qual

o ato do vivente inteiramente presente atualiza as

faculdades da alma do observador Ele nota na

verdade que ldquoeacute evidente que as plantas divididas

vivemrdquo Cada buquecirc de flores nos mostra isso []

Isso significa que a alma inteira princiacutepio de vida

estaacute presente em cada segmento vivente O que o

28 No original τίν ἔχει δύναμιν ἕκαστον ἐν τῷ σώματι

46

indica eacute sua capacidade de se mover e de sentir

(BASTIT 1996 p 23-24 traduccedilatildeo nossa)

Tais informaccedilotildees conduzem o estudioso da alma em Aristoacuteteles a

pensar qual a natureza do objeto em questatildeo Ao longo do DA existem

algumas tentativas de definir o que seria a alma e estas parecem levar a

entender que a melhor forma de defini-la seria a partir das capacidades

que faculta ao corpo desempenhar Para informar melhor ao interessado

nas coisas aniacutemicas o que seja a psychḗ e sua funccedilatildeo proacutepria Aristoacuteteles

escreve ldquodigamos entatildeo que o animado se distingue do inanimado pelo

viver E de muitos modos se diz o viver pois dizemos que algo vive se

nele subsiste pelo menos um destes ndash intelecto percepccedilatildeo sensiacutevel

movimento local e repouso e ainda o movimento segundo a nutriccedilatildeo o

decaimento e o crescimentordquo (DA II 2 413a20-25)29 Mesmo que as

capacidades natildeo estejam presentes em todos os viventes parece que a

melhor forma de entender a alma desde as plantas ateacute animais mais

complexos como o homem eacute como princiacutepio animador que confere

capacidades A psychḗ conferiria vida ao todo orgacircnico constituinte do

corpo sendo este conjunto de mateacuteria e forma como jaacute propusemos30

Tais capacidades permitem ao homem desde o mais simples tato ateacute a

percepccedilatildeo sensiacutevel mais sutil que conduziria agrave phantasiacutea como podemos

ler no passo que segue

O viver subsiste nos seres vivos por conta deste

princiacutepio e o animal constitui-se primordialmente

pela percepccedilatildeo sensiacutevel Pois dizemos que satildeo

animais ndash e natildeo apenas que vivem ndash tambeacutem os

que natildeo se movem nem mudam de lugar mas

possuem percepccedilatildeo E da percepccedilatildeo eacute o tato que

em todos subsiste primeiro E assim como a

capacidade nutritiva pode estar separada do tato e

de toda e qualquer percepccedilatildeo sensiacutevel tambeacutem o

29 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis no original λέγομεν οὖν ἀρχὴν

λαβόντες τῆς σκέψεως διωρίσθαι τὸ ἔμψυχον τοῦ ἀψύχου τῷ ζῆν πλεοναχῶς

δὲ τοῦ ζῆν λεγομένου κἂν ἕν τι τούτων ἐνυπάρχῃ μόνον ζῆν αὐτό φαμεν οἷον

νοῦς αἴσθησις κίνησις καὶ στάσις ἡ κατὰ τόπον ἔτι κίνησις ἡ κατὰ τροφὴν καὶ

φθίσις τε καὶ αὔξησις 30 Sobre a questatildeo da alma como conjunto de mateacuteria e forma questatildeo que

renderia ao menos um capiacutetulo agrave parte eacute possiacutevel ler mais nos dois capiacutetulos

escritos por Robinson e dedicados agrave questatildeo da alma em Aristoacuteteles em seu As

origens da alma

47

tato pode estar separado dos demais sentidos

Denominamos nutritiva tal parte da alma da qual

participam tambeacutem as plantas Todos os animais

por outro lado revelam possuir o sentido do tato ndash

e diremos posteriormente por meio de que causa

cada uma dessas coisas Por ora eacute suficiente dizer

apenas isto que a alma eacute princiacutepio das

capacidades mencionadas ndash nutritiva perceptiva

raciocinativa e de movimento ndash e que por elas eacute

definida (DA II 2 413b1-13)31

Conferindo unidade agrave sua psychḗ Aristoacuteteles abre para noacutes uma

possibilidade maior de entender a participaccedilatildeo do sensiacutevel no inteligiacutevel

bem como do racional no natildeo racional da alma descrita na EN Sendo

capacidades de algo uno natildeo seriam totalmente desconectadas

relacionando-se de algum modo como explica o Zingano ldquoA alma eacute

uma uacutenica forma com diferentes funccedilotildeesrdquo (Zingano 1998 p 37)

Retornando agraves capacidades que vivificam o corpo podemos

entender que alguns seres tecircm capacidade perceptiva e igualmente

desiderativa porque o desejo eacute querer (bouacutelēsis) impulso (thymoacutes) e

apetite (epithymiacutea DA II 3 414b2) Capacidades que estatildeo ao menos a

princiacutepio associadas agraves formas da percepccedilatildeo sensiacutevel e aos sentidos que

lhes correspondem que na descriccedilatildeo de Aristoacuteteles satildeo os mesmos que

ainda conhecemos tato olfato paladar visatildeo e audiccedilatildeo

Para que os viventes sejam classificados como animais todos

devem possuir ao menos um desses sentidos o tato Os animais que

apresentam percepccedilatildeo sensiacutevel igualmente tecircm prazer e dor Ao serem

capazes de perceber o prazeroso e o doloroso tambeacutem apresentam

apetite que eacute desejo pelo prazeroso (DA II 3 414b5-6) fogem ou

buscam o que lhes aparece como prazeroso Tais animais apresentam

obviamente percepccedilatildeo do alimento pelo tato sentido por meio do

31 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original τὸ μὲν οὖν ζῆν διὰ τὴν

ἀρχὴν ταύτην ὑπάρχει τοῖς ζῶσι τὸ δὲ ζῷον διὰ τὴν αἴσθησιν πρώτως καὶ γὰρ

τὰ μὴ κινούμενα μηδ ἀλλάττοντα τόπον ἔχοντα δ αἴσθησιν ζῷα λέγομεν καὶ

οὐ ζῆν μόνον αἰσθήσεως δὲ πρῶτον ὑπάρχει πᾶσιν ἁφή ὥσπερ δὲ τὸ θρεπτικὸν

δύναται χωρίζεσθαι τῆς ἁφῆς καὶ πάσης αἰσθήσεως οὕτως ἡ ἁφὴ τῶν ἄλλων

αἰσθήσεων (θρεπτικὸν δὲ λέγομεν τὸ τοιοῦτον μόριον τῆς ψυχῆς οὗ καὶ τὰ

φυόμενα μετέχει) τὰ δὲ ζῷα πάντα φαίνεται τὴν ἁπτικὴν αἴσθησιν ἔχοντα δι

ἣν δ αἰτίαν ἑκάτερον τούτων συμβέβηκεν ὕστερον ἐροῦμεν νῦν δ ἐπὶ

τοσοῦτον εἰρήσθω μόνον ὅτι ἐστὶν ἡ ψυχὴ τῶν εἰρημένων τούτων ἀρχὴ καὶ

τούτοις ὥρισται θρεπτικῷ αἰσθητικῷ διανοητικῷ κινήσει

48

paladar Todos os seres vivos se alimentam de coisas secas e uacutemidas

quentes e frias percebidas pelo tocar mas os seres vivos que possuem

tato igualmente possuem desejo Aristoacuteteles parece mesmo admitir a

existecircncia de imaginaccedilatildeo nesses animais embora afirme que esse

assunto natildeo estaacute esclarecido e que a phantasiacutea seraacute analisada

posteriormente anaacutelise que tambeacutem efetuaremos posteriormente Com

as descriccedilotildees e afirmaccedilatildeo feitas ateacute agora percebemos uma espeacutecie de

hierarquia entre as capacidades Mas qual a razatildeo de serem dispostas

em sucessatildeo A resposta do filoacutesofo eacute que

[] sem a nutritiva natildeo existe a capacidade

perceptiva embora nas plantas a nutritiva exista

separada da perceptiva E novamente sem o tato

nenhum dos outros sentidos subsiste embora o

tato subsista sem os outros pois diversos animais

natildeo tecircm a capacidade perceptiva uns tecircm a

locomotiva e outros natildeo Por fim pouquiacutessimos

tecircm caacutelculo e raciociacutenio Pois entre os seres

pereciacuteveis naqueles em que subsiste caacutelculo

tambeacutem subsiste cada uma das outras nem todos

tecircm caacutelculo (e alguns nem sequer imaginaccedilatildeo ao

passo que outros vivem unicamente por meio

dela) O intelecto capaz de inquirir requer uma

outra discussatildeo Eacute claro entatildeo que o enunciado

de cada uma destas capacidades eacute tambeacutem o mais

apropriado a respeito da alma (DA II 3 415a1-

13)32

A relaccedilatildeo entre as capacidades em sucessatildeo indica como

buscamos defender a unidade da alma que permite falar de emoccedilotildees

educaacuteveis graccedilas aos seus contatos com a capacidade racional e aos

elementos de racionalidade presentes em sua constituiccedilatildeo sendo por

32 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original ἄνευ μὲν γὰρ τοῦ

θρεπτικοῦ τὸ αἰσθητικὸν οὐκ ἔστιν τοῦ δ αἰσθητικοῦ χωρίζεται τὸ θρεπτικὸν

ἐν τοῖς φυτοῖς πάλιν δ ἄνευ μὲν τοῦ ἁπτικοῦ τῶν ἄλλων αἰσθήσεων οὐδεμία

ὑπάρχει ἁφὴ δ ἄνευ τῶν ἄλλων ὑπάρχει πολλὰ γὰρ τῶν ζῴων οὔτ ὄψιν οὔτ

ἀκοὴν ἔχουσιν οὔτ ὀσμῆς αἴσθησιν καὶ τῶν αἰσθητικῶν δὲ τὰ μὲν ἔχει τὸ κατὰ

τόπον κινητικόν τὰ δ οὐκ ἔχει τελευταῖον δὲ καὶ ἐλάχιστα λογισμὸν καὶ

διάνοιαν οἷς μὲν γὰρ ὑπάρχει λογισμὸς τῶν φθαρτῶν τούτοις καὶ τὰ λοιπὰ

πάντα οἷς δ ἐκείνων ἕκαστον οὐ πᾶσι λογισμός ἀλλὰ τοῖς μὲν οὐδὲ φαντασία

τὰ δὲ ταύτῃ μόνῃ ζῶσιν περὶ δὲ τοῦ θεωρητικοῦ νοῦ ἕτερος λόγος ὅτι μὲν οὖν

ὁ περὶ τούτων ἑκάστου λόγος οὗτος οἰκειότατος καὶ περὶ ψυχῆς δῆλον

49

isso assunto relevante agrave nossa pesquisa Fazemos tal afirmaccedilatildeo porque a

capacidade perceptiva mencionada no passo manteacutem contato com a

desiderativa e portanto aparece como relacionada agraves afecccedilotildees do corpo

e da alma dentre as quais estatildeo aquilo que buscamos entender como

emoccedilotildees Estando tal capacidade atrelada igualmente agraves formas que

facultam ao homem conhecer o mundo ao seu redor voltaremos ao

assunto da percepccedilatildeo sensiacutevel mais tarde Por ora nos damos por

satisfeitos em compreender e esclarecer certas questotildees levantadas pelo

comeccedilo da EN acerca da alma e de suas capacidades a) Aristoacuteteles

assim como pensadores precedentes realmente propocircs uma divisatildeo da

alma Entendemos que na EN e em Aristoacuteteles de um modo geral natildeo

haacute cisatildeo na alma e nem entre corpo e alma b) Entatildeo por que falar em

parte (moacuterion) da alma A discussatildeo sobre as partes da alma aparece

mais detalhadamente no DA em uma franca discussatildeo com os filoacutesofos

que se dedicaram anteriormente agrave questatildeo Em Aristoacuteteles mesmo na

EN aquilo que costuma ser chamado ldquoparterdquo da alma parece ser

capacidade daquilo que o filoacutesofo entende por psychḗ sendo esta

definida pelo que faculta ao corpo com o qual forma um todo

substancialmente uno desempenhar o exerciacutecio de suas capacidades -

das mais baacutesicas agraves mais complexas Acrescentamos ainda apoacutes o

estudo dos dois tratados em questatildeo nesse momento que a alma move

sem ser movida quando se trata do movimento local e de certas partes

do corpo Por esses motivos compreendemos tambeacutem que as afecccedilotildees da

alma dentre as quais estatildeo as emoccedilotildees aqui estudadas causam

mudanccedilas fiacutesicas embora natildeo necessariamente causem movimentos de

deslocamento mas podem influenciar nos movimentos dos animais

dotados de percepccedilatildeo sensiacutevel ldquoPois o perceber eacute ser afetado por algo

de maneira que o agente torna como si mesmo em atividade aquele que

eacute tal em potecircnciardquo (DA II 11 423b30-424a1)33

O estudo da alma e de suas capacidades nos levou agrave discussatildeo da

existecircncia de ldquopartesrdquo distintas e componentes de uma alma teoria que

com ajuda de Aristoacuteteles e de alguns comentadores como Zingano e

Bastit acabamos por rejeitar Mas por que deveriacuteamos nos deter em

uma pesquisa sobre uma alma partiacutevel ou unitaacuteria em um trabalho que

se pretende de cunho eacutetico A questatildeo comeccedila a ser respondida ainda

por EN I 13 passo no qual Aristoacuteteles menciona uma alma bipartida a

fim de defender a existecircncia de diferentes virtudes que comporiam a

33 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original τὸ δὲ αἰσθητήριον αὐτῶν

τὸ ἁπτικόν καὶ ἐν ᾧ ἡ καλουμένη ἁφὴ ὑπάρχει αἴσθησις πρώτῳ τὸ δυνάμει

τοιοῦτόν ἐστι μόριον

50

vida feliz Entender essa proposta somente agraves luzes da EN natildeo nos

pareceu suficiente e por isso optamos por recorrer ao DA obra

dedicada quase exclusivamente ao assunto Nesse tratado bem como ao

longo da exposiccedilatildeo da EN percebemos que a interpretaccedilatildeo de uma alma

natildeo divisiacutevel apesar de contrariar boa parte dos filoacutesofos precedentes

que dedicaram tempo agrave questatildeo contemplaria nossa interpretaccedilatildeo das

emoccedilotildees jaacute que o filoacutesofo estudado as propotildee como ldquopertencentesrdquo agrave

capacidade desiderativa da alma capaz de participar da razatildeo

Cremos que a uacutenica forma de acatar essa proposta seria

compreender a alma como algo uno sem partes totalmente isoladas

umas das outras Defendemos essa interpretaccedilatildeo a fim de que as

capacidades aniacutemicas pudessem se comunicar de que o desiderativo

participasse da razatildeo a despeito da proposta da capacidade nutritiva

acima apresentada Esta capacidade igualmente participa da vida

humana mais completa pois natildeo eacute possiacutevel a homem nenhum nem

mesmo aos filoacutesofos deixar de se alimentar por exemplo Tendo em

vista nosso interesse nas relaccedilotildees das emoccedilotildees com a razatildeo e sendo a

capacidade desiderativa o caminho possibilitador de tal relaccedilatildeo em uma

alma una que reflete um desejo capaz de se associar agrave razatildeo cabe-nos

agora estudar ao menos em grandes linhas a capacidade desiderativa da

alma humana Voltaremos agrave questatildeo da unidade da alma no capiacutetulo III

a fim de concluir nossos estudos sobre as emoccedilotildees na alma humana e

sua possiacutevel racionalidade

3b) A capacidade desiderativa da alma as accedilotildees e as emoccedilotildees na vida

feliz

Para dar prosseguimento agrave nossa busca por esclarecer os pontos

suscitados por EN I 13 trataremos agora a capacidade desiderativa da

alma humana As consideraccedilotildees supramencionadas nos levam a pensar

um desejo que apresenta trecircs formas quanto agrave sua capacidade de ouvir e

obedecer agrave razatildeo34 (DA II 12 414b2) Essas possibilidades por sua vez

perfazem uma capacidade desiderativa global e una (haplṓs orektikoacuten)

a oacuterexis Vejamos melhor qual a influecircncia desta capacidade aniacutemica no

se emocionar e no agir mas comecemos seguindo o conselho de

Aristoacuteteles e buscando entender o desejo O desiderativo estaacute entre aquelas capacidades que permitem ao

34 Ver EN II - III 1111a23-35 1111b1-3 sobre as emoccedilotildees natildeo racionais

conformes aos desejos natildeo racionais tambeacutem Sorabji (2002 p 323) e AGGIO

(2017 no prelo)

51

corpo executar as atividades indispensaacuteveis agrave sua existecircncia a nutriccedilatildeo

a percepccedilatildeo e o raciociacutenio A funccedilatildeo desiderativa seria comum a todos

os animais embora somente o homem possuiacutesse todas as dynaacutemeis (capacidades) mencionadas sendo o desejo natural ao homem Como

isso pode ser importante se nesse ponto do estudo temos em vista a

definiccedilatildeo de emoccedilatildeo frente a uma vida feliz A resposta eacute Aristoacuteteles

considera que na alma haacute trecircs fatores determinantes da accedilatildeo e da

verdade sensaccedilatildeo intelecto e desejo (aiacutesthēsis noucircs oacuterexis) mas a

sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepio da accedilatildeo moral pois mesmo as bestas a

possuem Ocasionaria o movimento comum a todos os viventes mas a

accedilatildeo eacute composta por movimentos fiacutesicos todavia tendo em vista um

fim especiacutefico e bom quando da associaccedilatildeo entre desejo e intelecto seria

propriamente humana assunto que abordaremos em maiores detalhes

adiante

A afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo satildeo da ordem do pensamento o buscar e

o fugir satildeo da ordem do desiderativo (EN VI 2 1139a20-22) As

aparecircncias que excitam o desejo levam agrave emoccedilatildeo e podem levar a

formulaccedilatildeo de tipos de juiacutezos (DA III 9 MA II) Ainda que o orthograves

loacutegos (reta razatildeo) segundo Tricot (2012 p 298) seja a maacutexima geral da

conduta e que deste modo o pensamento deva determinar aquilo a ser

alcanccedilado o intelecto por si mesmo natildeo move pois ldquoda parte do

intelecto praacutetico seu bom estado consiste na verdade correspondente ao

desejo ao desejo corretordquo (EN 1139a29-31)35 Sem a oacuterexis que define

o fim a se buscar natildeo haacute accedilatildeo Assim o desejaacutevel eacute a causa final da

accedilatildeo e o desejo pode ser sua causa eficiente quando conjugado ao

intelecto praacutetico fazendo mover na direccedilatildeo do que eacute correto Este

intelecto depois que a oacuterexis determina o objeto a se buscar potildee-se a

procurar os meios necessaacuterios para que se alcance aquilo que eacute desejado

Apoacutes determinados os meios a tarefa de tal intelecto estaacute completa e

vem a accedilatildeo quem move portanto eacute um intelecto que tem em vista um

fim e que eacute de ordem praacutetica ou seja associado ao desejo que precede a

atividade no tempo (EN X 5 1175b30-33)36 Quanto a isso o DA

explica

Aleacutem disso mesmo que o intelecto ordene e o

raciociacutenio diga que se evite ou busque algo o

35 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original τοῦ δὲ πρακτικοῦ καὶ διανοητικοῦ ἀλήθεια ὁμολόγως

ἔχουσα τῇ ὀρέξει τῇ ὀρθῇ 36 Mas o prazer lhe eacute simultacircneo

52

indiviacuteduo natildeo se move mas age de acordo com o

apetite como no caso dos incontinentes []

Tampouco o desejo eacute responsaacutevel por esse

movimento pois os que satildeo continentes mesmo

desejando e tendo apetite natildeo fazem essas coisas

pelas quais tecircm desejo mas seguem o intelecto

Mostra-se entatildeo que haacute dois fatores que fazem

mover o desejo ou o intelecto contanto que se

considere a imaginaccedilatildeo um certo pensamento

Pois muitos seguem sua imaginaccedilatildeo em vez da

ciecircncia mas nos outros animais natildeo haacute nem

pensamento nem raciociacutenio e sim imaginaccedilatildeo

Logo satildeo estes os dois capazes de fazer mover

segundo o lugar o intelecto que raciocina em

vista de algo e que eacute praacutetico o qual difere do

intelecto contemplativo quanto ao fim E todo

desejo por sua vez eacute em vista de algo pois aquilo

de que haacute desejo eacute o princiacutepio do intelecto praacutetico

ao passo que o uacuteltimo item pensado eacute o princiacutepio

da accedilatildeo (DA III 9-10 433a1-17)37

Assim confirma-se que satildeo o desejo e o intelecto praacutetico que

fazem mover porque o objeto desejado leva ao movimento e o intelecto

determina como buscaacute-lo Em uacuteltima anaacutelise existe ldquoalgo uacutenico de fato

que faz mover o desejaacutevelrdquo (tograve orektoacuten DA 433a18-20 cf Besnier

2008 p 58)38 Isso acontece porque o desejo eacute princiacutepio indispensaacutevel

da accedilatildeo e quando a imaginaccedilatildeo move igualmente natildeo o faz sem desejo

Se intelecto e desejo movessem quanto ao lugar moveriam segundo

uma forma comum Isso implica que quando o desejo concorda desde o

iniacutecio e sem grandes resistecircncias com o intelecto eacute sua forma querer

37 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original ἔτι καὶ ἐπιτάττοντος τοῦ

νοῦ καὶ λεγούσης τῆς διανοίας φεύγειν τι ἢ διώκειν οὐ κινεῖται ἀλλὰ κατὰ τὴν

ἐπιθυμίαν πράττει οἷον ὁ ἀκρατής [] ἀλλὰ μὴν οὐδ ἡ ὄρεξις ταύτης κυρία

τῆς κινήσεως οἱ γὰρ ἐγκρατεῖς ὀρεγόμενοι καὶ ἐπιθυμοῦντες οὐ πράττουσιν ὧν

ἔχουσι τὴν ὄρεξιν ἀλλ ἀκολουθοῦσι τῷ νῷ Φαίνεται δέ γε δύο ταῦτα

κινοῦντα ἢ ὄρεξις ἢ νοῦς εἴ τις τὴν φαντασίαν τιθείη ὡς νόησίν τινα πολλοὶ

γὰρ παρὰ τὴν ἐπιστήμην ἀκολουθοῦσι ταῖς φαντασίαις καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις ζῴοις

οὐ νόησις οὐδὲ λογισμὸς ἔστιν ἀλλὰ φαντασία ἄμφω ἄρα ταῦτα κινητικὰ κατὰ

τόπον νοῦς καὶ ὄρεξις νοῦς δὲ ὁ ἕνεκά του λογιζόμενος καὶ ὁ πρακτικός

διαφέρει δὲ τοῦ θεωρητικοῦ τῷ τέλει καὶ ἡ ὄρεξις ltδgt ἕνεκά του πᾶσα οὗ γὰρ

ἡ ὄρεξις αὕτη ἀρχὴ τοῦ πρακτικοῦ νοῦ τὸ δ ἔσχατον ἀρχὴ τῆς πράξεως ὥστε

εὐλόγως δύο ταῦτα φαίνεται τὰ κινοῦντα ὄρεξις καὶ διάνοια πρακτική 38 Idem no original ἓν δή τι τὸ κινοῦν τὸ ὀρεκτικόν

53

(bouacutelēsis) que move O desejo contudo eacute capaz de mover sem o

raciociacutenio jaacute que o apetite (epithymiacutea) pode ser um tipo de desejo natildeo

conformado ou minimamente conformado ao intelecto ldquoIntelecto

entatildeo eacute sempre correto ao passo que o desejo e a imaginaccedilatildeo ora

corretos ora natildeo corretos Por isso eacute sempre o desejaacutevel que move

embora este seja tanto o bem como o bem aparente mas natildeo todo o

bem e sim o bem praacutetico apenas E o praticaacutevel eacute o que admite ser de

outro modordquo (DA III 10 433a26-30)39 Fica claro entatildeo que eacute uma

capacidade da alma do tipo desiderativo que move (DA III 10 433a31-

32) embora o proacuteprio desejaacutevel se mantenha estaacutetico ldquoEm suma eacute isto

o que foi dito na medida em que o animal eacute capaz de desejar por isso

mesmo ele eacute capaz de se moverrdquo (DA III 10 433b27-28)40 portanto sem

desejo natildeo haacute accedilatildeo Deste modo Aristoacuteteles apresenta a equaccedilatildeo cujos

termos resultam na accedilatildeo

[] primeiro o que faz mover segundo aquilo

por meio de que move e terceiro aquele que eacute

movido E de dois tipos o que faz mover ndash um eacute o

imoacutevel outro eacute o que faz mover sendo movido -

o bem praticaacutevel por sua vez eacute imoacutevel o que faz

mover sendo movida eacute a capacidade de desejar

(pois aquele que deseja move-se enquanto deseja

e o desejo eacute um certo movimento quando eacute desejo

em ato) e aquele que eacute movido por fim eacute o

animal O oacutergatildeo por meio do qual o desejo move

eacute de sua parte algo corporal ndash e por isso eacute nas

funccedilotildees comuns ao corpo e agrave alma que se deve

inquirir sobre ele (DA III 10 433b13-21)41

39 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Reis (2006) no original νοῦς μὲν οὖν πᾶς ὀρθός

ἐστιν ὄρεξις δὲ καὶ φαντασία καὶ ὀρθὴ καὶ οὐκ ὀρθή διὸ ἀεὶ κινεῖ μὲν τὸ

ὀρεκτόν ἀλλὰ τοῦτ ἐστὶν ἢ τὸ ἀγαθὸν ἢ τὸ φαινόμενον ἀγαθόν οὐ πᾶν δέ

ἀλλὰ τὸ πρακτὸν ἀγαθόν πρακτὸν δ ἐστὶ τὸ ἐνδεχόμενον καὶ ἄλλως ἔχειν 40 Idem no original ὅλως μὲν οὖν ὥσπερ εἴρηται ᾗ ὀρεκτικὸν τὸ ζῷον ταύτῃ

αὑτοῦ κινητικόν 41 Idem no original ἐπεὶ δ ἔστι τρία ἓν μὲν τὸ κινοῦν δεύτερον δ ᾧ κινεῖ ἔτι

τρίτον τὸ κινούμενον τὸ δὲ κινοῦν διττόν τὸ μὲν ἀκίνητον τὸ δὲ κινοῦν καὶ

κινούμενον ἔστι δὴ τὸ μὲν ἀκίνητον τὸ πρακτὸν ἀγαθόν τὸ δὲ κινοῦν καὶ

κινούμενον τὸ ὀρεκτικόν (κινεῖται γὰρ τὸ κινούμενον ᾗ ὀρέγεται καὶ ἡ ὄρεξις

κίνησίς τίς ἐστιν ἡ ἐνεργείᾳ) τὸ δὲ κινούμενον τὸ ζῷον ᾧ δὲ κινεῖ ὀργάνῳ ἡ

ὄρεξις ἤδη τοῦτο σωματικόν ἐστιν ndash διὸ ἐν τοῖς κοινοῖς σώματος καὶ ψυχῆς

ἔργοις θεωρητέον περὶ αὐτοῦ

54

O passo do DA esclarece que o desejo eacute entendido como uma

capacidade da alma que move a accedilatildeo por isso dizendo respeito aos fins

Eacute todavia especificamente EN I 13 que primeiro indica o desejo como

devendo se harmonizar com as sugestotildees de accedilatildeo do intelecto praacutetico

para que este mova de certo modo (ou do modo certo) Estes podem se

harmonizar pois o desejo pelo que foi exposto nas obras estudadas

apesar de natildeo racional eacute capaz ouvir e seguir a razatildeo mais ou menos

quando educado e bem-educado ouve-a mais O mesmo parece ser

vaacutelido quanto agraves emoccedilotildees devido agrave sua natureza desiderativa podem

ouvir e obedecer ou seja ser educadas conforme o orthograves loacutegos como

proposto na exposiccedilatildeo de Aggio

Pois bem ao contraacuterio da moral estoacuteica

Aristoacuteteles pressupotildee uma possiacutevel e necessaacuteria

harmonia das nossas afecccedilotildees da parte natildeo

racional tais como os desejos e as emoccedilotildees com

a nossa racionalidade praacutetica Para ele desejo e

razatildeo satildeo inseparaacuteveis como o corpo e a alma a

cera e o selo impresso o maacutermore e a estaacutetua

Inseparaacuteveis todavia distintos Por isso mesmo

desprovido ele proacuteprio de razatildeo o desejo pode

participar dela e por outro lado mesmo a razatildeo

desprovida de desejo ela pode participar dele

(AGGIO 2017 no prelo)

Sendo assim o desejo eacute o que nos move e sendo o movimento

um tipo de alteraccedilatildeo imprescindiacutevel agrave prāxis sofrida ao mesmo tempo

pelo corpo e pela alma entendemos por que o apetite estaacute na lista das

paacutethē na EN Tal presenccedila confirma nossa proposta da existecircncia de um

significado mais amplo para o termo que o nosso entendimento hodierno

de emoccedilatildeo ou paixatildeo mas como vimos Aristoacuteteles expotildee mais de uma

forma de desejo e relaciona tais formas a diferentes emoccedilotildees Portanto

seraacute preciso discutir o assunto que ainda nos eacute um tanto obscuro e

problemaacutetico para que possamos compreender melhor nosso objeto de

estudo atrelado como estaacute desde a alma ao desejo

3b1) Desejos

Apoacutes definir brevemente a forma geral do desejo e abordar a

capacidade aniacutemica que eacute responsaacutevel por ela resta tratar suas formas

especiacuteficas Como expusemos pouco acima Aristoacuteteles distingue trecircs

formas de sentir dentro da faculdade desiderativa querer impulso e

55

apetite Estas satildeo importantes agrave medida que se associam agraves diferentes

emoccedilotildees bem como influenciam accedilotildees variadas e que estatildeo em poder

dos agentes Ao falar de trecircs tipos de desejo contudo deveriacuteamos inferir

que a capacidade desiderativa eacute passiacutevel de divisatildeo Aristoacuteteles estaria a

concordar com Platatildeo e a propor um desejo dividido em trecircs Trechos

como Retoacuterica 1369a1-7 nos apresentam diferentes desejos racionais e

irracionais todavia isso natildeo implica que o desejo em Aristoacuteteles seja

seccionado Pensamos jaacute ter esclarecido que Aristoacuteteles fala de uma

cisatildeo da alma para se posicionar frente aos pensadores de sua eacutepoca e

provavelmente para abordar a existecircncia de virtudes morais e

intelectuais Existem contudo posturas como as de Cooper (1999 p

256 et seq) que defende a existecircncia de desejo racional e desejos natildeo

racionais Se todavia classificamos o desiderativo como capacidade da

alma e entendemos que esta natildeo pode ser fracionada respondemos

negativamente agrave possibilidade de fracionamento do desejo Temos uma

capacidade que pode ouvir mais ou menos agrave razatildeo conforme seus

objetos sendo por isso una e complexa como nos explica Aggio

Primeiramente se jaacute eacute um erro dividir a alma em

partes seria com mais razatildeo absurdo dividir a

faculdade desiderativa colocando o querer na

parte racional mas o apetite e o impulso na parte

natildeo racional ou mesmo distribuindo o desejo em

trecircs partes se reconhececircssemos trecircs partes da

alma como fez Platatildeo em Repuacuteblica livro IV

Ao contraacuterio o desejo natildeo se divide em partes

mas se diz de trecircs modos conforme a razatildeo o

prazer e a dor visto que o desejo (oacuterexis) eacute tanto o

querer (bouacutelēsis) o apetite (epithymiacutea) e impulso

(thymoacutes) (AGGIO 2017 no prelo)

Haacute diferentes desejos sob a capacidade desiderativa da

alma que satildeo capazes de participar da razatildeo de modos diferentes

negando a possibilidade de perceber em Aristoacuteteles uma triparticcedilatildeo do

desejo de tipo platocircnica Por tal motivo trataremos sucintamente de

cada forma do desejo e buscaremos ressaltar suas qualidades pateacuteticas

bem como suas relaccedilotildees com as emoccedilotildees Cremos que isso ao fim de nossa pesquisa nos permitiraacute responder agraves questotildees que propomos

devido agrave possibilidade de educaccedilatildeo e de habituaccedilatildeo dos desejos agraves boas

accedilotildees conformes agrave razatildeo Portanto observaremos agora e brevemente

as formas particulares do desejo

56

3b2) Os desejos menos racionais

Aristoacuteteles nos apresenta dois tipos de desejo natildeo racionais

embora capazes de ouvir a razatildeo42 Tal proposta sugerida em EN I 13

tem sua comprovaccedilatildeo em Rhet I com sua descriccedilatildeo do apetite O passo

aparenta propor este desejo como irracional poreacutem acaba por desfazer

tal embaraccedilo se lhe prestamos a devida atenccedilatildeo O apetite eacute descrito pelo

filoacutesofo como desejo pelo que eacute prazeroso embora afirme tambeacutem que

todo desejo estaacute relacionado ao prazeroso Por conseguinte

Faz-se pelo desejo tudo o que parece agradaacutevel

Tambeacutem o familiar e o habitual se contam entre as

coisas agradaacuteveis pois muitas coisas que natildeo satildeo

naturalmente agradaacuteveis se fazem com prazer

quando se tornam habituais Assim em resumo

todos os atos que os homens praticam por si

mesmos satildeo realmente bons ou parecem secirc-lo satildeo

realmente agradaacuteveis ou parecem secirc-lo Ora como

os homens fazem voluntariamente o que fazem

por si mesmos segue-se que tudo o que fazem

voluntariamente seraacute bom ou aparentemente bom

seraacute agradaacutevel ou aparentemente agradaacutevel []

Agradaacutevel eacute tambeacutem tudo aquilo que temos em

noacutes o desejo pois o desejo eacute apetite do agradaacutevel

Dos desejos uns satildeo irracionais e outros

racionais Chamo irracionais aos que natildeo

procedem de um ato preacutevio da compreensatildeo e satildeo

desse tipo todos os que se dizem ser naturais

como os que procedem do corpo [] Satildeo

racionais os desejos que procedem da persuasatildeo

pois haacute muitas coisas que desejamos ver e adquirir

porque ouvimos falar delas e fomos persuadidos

de que satildeo agradaacuteveis (Rhet I 10 1369b15-23 I

11 1370a16-21 e 25-27)43

42Novamente a conversa pode ser travada com Platatildeo que por exemplo no

Fedro fala da alma como um carro conduzido por dois cavalos que simbolizam

as forccedilas irracionais da psychḗ que conflitam entre si uma seguindo agrave esquerda

enquanto outra puxa para a direita 43 Todas as citaccedilotildees da Rhet tecircm traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena

(2012) com o original em grego anotado no rodapeacute tal como a seguinte

anotaccedilatildeo δι ἐπιθυμίαν δὲ πράττεται ὅσα φαίνεται ἡδέα ἔστιν δὲ καὶ τὸ σύνηθες

καὶ τὸ ἐθιστὸν ἐν τοῖς ἡδέσιν πολλὰ γὰρ καὶ τῶν φύσει μὴ ἡδέων ὅταν

57

Este passo da Retoacuterica nos diz muito sobre o apetite busca o

agradaacutevel eacute ldquoirracionalrdquo quando natildeo ldquoproceder de um ato preacutevio da

compreensatildeordquo ressaltando sua possibilidade de ouvir a razatildeo quando

proceder da compreensatildeo e eacute natural jaacute que natildeo eacute engendrado no

homem por haacutebitos ou ensinamentos existindo por toda a vida humana

eacute responsaacutevel por aqueles prazeres como os que vecircm do corpo O

proacuteprio Aristoacuteteles admite a dificuldade em se fugir desse tipo de prazer

(EN II 2 1105a7-8) e com isso entendemos igualmente a dificuldade

em controlar ou mesmo evitar o desejo relacionado ao prazer corporal

pois o filoacutesofo o associa agraves afecccedilotildees ligadas aos prazeres corporais Em

certo passo da EN (III 3 1111a30-31) curiosamente Aristoacuteteles afirma

que os apetites e por sua vez os prazeres do corpo natildeo ouvem agrave razatildeo

ao contraacuterio do impulso ldquoAssim o apetite enquanto um desejo natildeo

racional (aacutelogos) toma o que eacute prazeroso como aquilo que simples e

naturalmente aparece ao agente como prazeroso E o que nos parece ser

prazeroso eacute o que nos parece ser bom mesmo que natildeo o sejardquo (AGGIO

2017 no prelo) A interpretaccedilatildeo do passo natildeo eacute simples jaacute que na Eacutetica

Nicomaqueia podemos ler tambeacutem uma afirmaccedilatildeo que diz natildeo ser

correto considerar accedilotildees praticadas por apetite e impulso como

involuntaacuterias

Sendo involuntaacuteria a accedilatildeo realizada por forccedila e

por ignoracircncia o voluntaacuterio parece ser aquilo cujo

princiacutepio reside no agente que conhece as

circunstacircncias particulares nas quais ocorre a

accedilatildeo Natildeo eacute presumivelmente correto dizer pois

que as accedilotildees praticadas por impulso ou por apetite

satildeo involuntaacuterias pois neste caso em primeiro

lugar nenhum outro animal poderaacute agir

voluntariamente tampouco poderatildeo as crianccedilas

Depois quer isto dizer que natildeo fazemos nada

voluntariamente por apetite ou por impulso ou

συνεθισθῶσιν ἡδέως ποιοῦσιν ὥστε συλλαβόντι εἰπεῖν ὅσα δι αὑτοὺς

πράττουσιν ἅπαντ ἐστὶν ἢ ἀγαθὰ ἢ φαινόμενα ἀγαθά ἢ ἡδέα ἢ φαινόμενα ἡδέα

ἐπεὶ δ ὅσα δι αὑτοὺς ἑκόντες πράττουσιν οὐχ ἑκόντες δὲ ὅσα μὴ δι αὑτούς

πάντ ἂν εἴη ὅσα ἑκόντες πράττουσιν ἢ ἀγαθὰ ἢ φαινόμενα ἀγαθά ἢ ἡδέα ἢ

φαινόμενα ἡδέα[] τῶν δὲ ἐπιθυμιῶν αἱ μὲν ἄλογοί εἰσιν αἱ δὲ μετὰ λόγου

λέγω δὲ ἀλόγους ὅσας μὴ ἐκ τοῦ ὑπο-λαμβάνειν ἐπιθυμοῦσιν (εἰσὶν δὲ τοιαῦται

ὅσαι εἶναι λέγονται φύσει ὥσπερ αἱ διὰ τοῦ σώματος ὑπάρχουσαι [] μετὰ

λόγου δὲ ὅσας ἐκ τοῦ εισθῆναι ἐπιθυμοῦσιν πολλὰ γὰρ καὶ θεάσασθαι καὶ

κτήσασθαι ἐπιθυμοῦσιν ἀκούσαντες καὶ πεισθέντες

58

que fazemos as coisas belas voluntariamente e

involuntariamente as ignoacutebeis Natildeo eacute isto risiacutevel

havendo uma uacutenica causa Eacute igualmente absurdo

dizer que satildeo involuntaacuterias as coisas que eacute preciso

desejar eacute preciso encolerizar-se a respeito de

algumas e ter apetite por outras (por exemplo

pela sauacutede e pela instruccedilatildeo) E as accedilotildees

involuntaacuterias parecem ser penosas as por apetite

agradaacuteveis Aleacutem disso qual eacute a diferenccedila quanto

ao ser involuntaacuterio dos erros cometidos por

caacutelculo ou por impulso Por um lado ambos satildeo a

evitar por outro parecem natildeo ser menos humanas

as emoccedilotildees natildeo-racionais de sorte que tambeacutem as

accedilotildees por impulso e por apetite pertencem ao

homem Postular que satildeo involuntaacuterias eacute assim

um absurdo (EN III 3 1111a22-35 1111b1-3)44

A nosso ver o passo desfaz a duacutevida quanto agrave participaccedilatildeo do

apetite na razatildeo concordando com o que expusemos anteriormente Tal

desejo difere dos demais por ser mais resistente agrave razatildeo natildeo por ser-lhe

totalmente surdo portanto quando em acordo com o loacutegos leva a

prazeres convenientes e a accedilotildees adequadas bem como a emoccedilotildees

moderadas

Os trechos supracitados ao falarem do impulso e do apetite

indicam que haacute mais coisas comuns aos desejos em questatildeo que seu

caraacuteter natildeo racional e os impasses quanto a isso por exemplo ambos

existem nos animais O Livro VII da EN entretanto aumenta nossos

conhecimentos e duacutevidas acerca dos apetites ao passo que esclarece

algumas coisas sobre os impulsos Faz isso ao tratar da incontinecircncia

44 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Ὄντος δ ἀκουσίου τοῦ βίᾳ καὶ δι ἄγνοιαν τὸ ἑκούσιον

δόξειεν ἂν εἶναι οὗ ἡ ἀρχὴ ἐν αὐτῷ εἰδότι τὰ καθ ἕκαστα ἐν οἷς ἡ πρᾶξις ἴσως

γὰρ οὐ καλῶς λέγεται ἀκούσια εἶναι τὰ διὰ θυμὸν ἢ ἐπιθυμίαν πρῶτον μὲν γὰρ

οὐδὲν ἔτι τῶν ἄλλων ζῴων ἑκουσίως πράξει οὐδ οἱ παῖδες εἶτα πότερον οὐδὲν

ἑκουσίως πράττομεν τῶν δι ἐπιθυμίαν καὶ θυμόν ἢ τὰ καλὰ μὲν ἑκουσίως τὰ δ

αἰσχρὰ ἀκουσίως ἢ γελοῖον ἑνός γε αἰτίου ὄντος ἄτοπον δὲ ἴσως ἀκούσια

φάναι ὧν δεῖ ὀρέγεσθαι δεῖ δὲ καὶ ὀργίζεσθαι ἐπί τισι καὶ ἐπιθυμεῖν τινῶν οἷον

ὑγιείας καὶ μαθήσεως δοκεῖ δὲ καὶ τὰ μὲν ἀκούσια λυπηρὰ εἶναι τὰ δὲ κατ

ἐπιθυμίαν ἡδέα ἔτι δὲ τί διαφέρει τῷ ἀκούσια εἶναι τὰ κατὰ λογισμὸν ἢ θυμὸν

ἁμαρτηθέντα φευκτὰ μὲν γὰρ ἄμφω δοκεῖ δὲ οὐχ ἧττον ἀνθρωπικὰ εἶναι τὰ

ἄλογα πάθη ὥστε καὶ αἱ πράξεις τοῦ ἀνθρώπου αἱ ἀπὸ θυμοῦ καὶ ἐπιθυμίας

ἄτοπον δὴ τὸ τιθέναι ἀκούσια ταῦτα

59

(mais que da continecircncia) separando-a em incontinecircncia por epithymiacutea

(prazer) e incontinecircncia por thymoacutes (raiva) O incontinente em sentido

estrito ou seja por epithymiacutea natildeo age por escolha deliberada mas age

por apetite O continente escolhe deliberadamente mas natildeo age de

acordo com a epithymiacutea A escolha deliberada se opotildee a este uacuteltimo

desejo e natildeo eacute o apetite que se opotildee a um outro apetite (EN III 4

1111b14-17) Este estaacute relacionado ao agradaacutevel e ao penoso enquanto

a escolha deliberada natildeo estaacute relacionada a nenhum dos dois

Eis aiacute uma segunda semelhanccedila o impulso tambeacutem natildeo leva a

agir por escolha deliberada (EN III 4 1111b19) mas parece estar

relacionado principalmente agrave dor o que eacute percebido quando a Retoacuterica

(I 10 1369a4) o liga agrave raiva e a EN (III 3 1111a30-31) ao enraivecer-se

A natureza impetuosa eacute combativa guerreira Pede por justiccedila e

vinganccedila manifestando-se por meio da injuacuteria do ultraje e do desprezo

O apetite eacute naturalmente sedutor manipulador dado a tramas tem o

prazer por objeto mesmo que se valha do ultraje do engano e da ilusatildeo

para consegui-lo e sua manifestaccedilatildeo pode surgir com o prazer

proporcionado por estes tipos de atos As accedilotildees do impulso causam dor

ao agente mas as do apetite causam prazer (EN VII 7 1149b20-21) O

impulso reage a algo doloroso aparentemente desmerecido e injusto

como um ultraje sofrido Por isso a accedilatildeo impulsiva parece mais

dolorosa e involuntaacuteria que a accedilatildeo por apetite sendo uma accedilatildeo

voluntaacuteria prazerosa mais grave moralmente do que uma accedilatildeo voluntaacuteria

dolorosa Sobre esse assunto Aristoacuteteles escreveu

A primeira forma de incontinecircncia eacute a

impetuosidade e a outra fraqueza Alguns

homens na verdade depois que deliberaram natildeo

persistem no resultado de sua deliberaccedilatildeo e estatildeo

sob o efeito da paixatildeo para outros ao contraacuterio eacute

graccedilas agrave sua falta de deliberaccedilatildeo que satildeo levados

pela paixatildeo alguns em verdade (semelhantes

nisso agravequeles que tendo sido tomados por coacutecegas

natildeo satildeo eles mesmos os que fazem coacutecegas) se

eles sentiram e viram antecipadamente que vai

lhes acontecer e se eles puderam antes dar o

despertar agrave eles mesmos e agrave faculdade de

raciocinar natildeo sucumbem entatildeo pelo efeito da

paixatildeo quer este seja um prazer ou uma dor Satildeo

acima de tudo homens de humor vivo e os homens

de temperamento excitaacutevel que estatildeo sujeitos agrave

incontinecircncia sob a forma de impetuosidade os

60

primeiros por sua precipitaccedilatildeo e os segundos por

sua violecircncia natildeo tecircm a paciecircncia de ouvir a

razatildeo inclinados que estatildeo a seguir a sua

imaginaccedilatildeo (EN VII 8 1150b19-28)45

Nesse passo a incontinecircncia pela raiva (akrasiacutea toucirc thymoucirc) eacute

considerada menos desonrosa que aquela por apetite Aristoacuteteles

enumera alguns motivos para tanto e noacutes o seguiremos 1) como

dissemos devemos pensar que a raiva (thymoacutes) ateacute certo ponto parece

ouvir a razatildeo mas daquele modo como os servos que mal escutam a

ordem do senhor e saem correndo para fazer o que eacute ordenado sendo

sua accedilatildeo resultado de um impulso natildeo educado Assim a raiva devido

ao seu calor e precipitaccedilatildeo naturais natildeo ouve direito a ordem do

racional (natildeo entende mas pensa ter entendido) e se lanccedila agrave vinganccedila

portanto pode ser excitada por razatildeo ou imaginaccedilatildeo enquanto o apetite

pode ser despertado por razatildeo ou sensaccedilatildeo (EN VII 7 1149a30-36)

Essas afirmaccedilotildees satildeo confirmadas pelo passo abaixo

A razatildeo ou a imaginaccedilatildeo na verdade apresentam

a nossos olhos um insulto ou uma marca de

desdeacutem sentido e a coacutelera depois de ter

concluiacutedo por um tipo de raciociacutenio eacute engajar as

hostilidades contra um tal insultador explode

entatildeo bruscamente o apetite ao contraacuterio uma

vez que a razatildeo ou a sensaccedilatildeo apenas disse que

uma coisa eacute agradaacutevel se lanccedila por gozaacute-la Em

consequecircncia a coacutelera obedece agrave razatildeo em um

sentido enquanto o apetite natildeo obedece Portanto

a vergonha eacute maior nesse uacuteltimo caso jaacute que o

homem intemperante na coacutelera eacute em um sentido

vencido pela razatildeo enquanto o outro eacute pelo

apetite e natildeo pela razatildeo (EN VII 7 1149a31-35

45Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ἀκρασίας δὲ τὸ μὲν προπέτεια τὸ δ ἀσθένεια οἳ μὲν γὰρ

βουλευσάμενοι οὐκ ἐμμένουσιν οἷς ἐβουλεύσαντο διὰ τὸ πάθος οἳ δὲ διὰ τὸ μὴ

βουλεύσασθαι ἄγονται ὑπὸ τοῦ πάθους ἔνιοι γάρ ὥσπερ προγαργαλίσαντες οὐ

γαργαλίζονται οὕτω καὶ προαισθόμενοι καὶ προϊδόντες καὶ προεγείραντες

ἑαυτοὺς καὶ τὸν λογισμὸν οὐχ ἡττῶνται ὑπὸ τοῦ πάθους οὔτ ἂν ἡδὺ ᾖ οὔτ ἂν

λυπηρόν μάλιστα δ οἱ ὀξεῖς καὶ μελαγχολικοὶ τὴν προπετῆ ἀκρασίαν εἰσὶν

ἀκρατεῖς οἳ μὲν γὰρ διὰ τὴν ταχυτῆτα οἳ δὲ διὰ τὴν σφοδρότητα οὐκ

ἀναμένουσι τὸν λόγον διὰ τὸ ἀκολουθητικοὶ εἶναι τῇ φαντασίᾳ

61

1149b1-3)46

2) Outra coisa a se pensar eacute que perdoamos com maior facilidade

aqueles que satildeo levados por desejos naturais mesmo no caso dos

apetites quando cedem aos desejos comuns a todos e na medida em que

satildeo comuns A raiva e o mau humor satildeo mais naturais que os apetites

pelos prazeres excessivos e desnecessaacuterios 3) Ainda uma coisa a se

considerar eacute que se eacute tanto mais injusto quanto mais se vale de manobras

peacuterfidas O raivoso natildeo tem perfiacutedia mas o apetite eacute ardiloso se a

incontinecircncia por apetite eacute mais injusta eacute igualmente mais vergonhosa e

eacute um viacutecio em certo sentido (em um certo sentido porque lhe falta a

escolha deliberada) 4) Uma uacuteltima consideraccedilatildeo feita por Aristoacuteteles

acerca do assunto eacute que se ningueacutem faz sofrer um ultraje com um

sentimento de afliccedilatildeo (ao contraacuterio) um homem que age por raiva age

sentindo dor ao passo que quem ultraja sente prazer Se os atos contra

os quais uma viacutetima se enraivece mais justamente satildeo mais injustos que

outros a incontinecircncia por apetite eacute igualmente mais injusta que a por

raiva pois na raiva natildeo haacute ultraje

Diante disso entendemos que natildeo eacute o fato de amar e desejar

coisas como o prazer que faz de um homem culpaacutevel mas o modo como

se ama o objeto amado e o fato de desejar tais coisas excessivamente

Assim fazem os que burlam a regra como o incontinente sendo que a

incontinecircncia deve ser evitada pois eacute maacute e culpaacutevel Haacute contudo

incontinecircncia por analogia naqueles casos mencionados em que

chamamos ldquoacrasia porrdquo caso da incontinecircncia por raiva Com essas

consideraccedilotildees fica claro que incontinecircncia e continecircncia verdadeiras soacute

se aplicam ao caso em que os objetos buscados satildeo os mesmos buscados

pelos temperantes e pelos intemperantes sendo os demais mesmo no

caso da raiva incontinecircncia por similitude Eacute claro tambeacutem que haacute tipos

46Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ἀκρασία ἡ τοῦ θυμοῦ ἢ ἡ τῶν ἐπιθυμιῶν θεωρήσωμεν

ἔοικε γὰρ ὁ θυμὸς ἀκούειν μέν τι τοῦ λόγου παρακούειν δέ καθάπερ οἱ ταχεῖς

τῶν διακόνων οἳ πρὶν ἀκοῦσαι πᾶν τὸ λεγόμενον ἐκθέουσιν εἶτα ἁμαρτάνουσι

τῆς προστάξεως καὶ οἱ κύνες πρὶν σκέψασθαι εἰ φίλος ἂν μόνον ψοφήσῃ

ὑλακτοῦσιν οὕτως ὁ θυμὸς διὰ θερμότητα καὶ ταχυτῆτα τῆς φύσεως ἀκούσας

μέν οὐκ ἐπίταγμα δ ἀκούσας ὁρμᾷ πρὸς τὴν τιμωρίαν ὁ μὲν γὰρ λόγος ἢ ἡ

φαντασία ὅτι ὕβρις ἢ ὀλιγωρία ἐδήλωσεν ὃ δ ὥσπερ συλλογισάμενος ὅτι δεῖ

τῷ τοιούτῳ πολεμεῖν χαλεπαίνει δὴ εὐθύς ἡ δ ἐπιθυμία ἐὰν μόνον εἴπῃ ὅτι ἡδὺ

ὁ λόγος ἢ ἡ αἴσθησις ὁρμᾷ πρὸς τὴν ἀπόλαυσιν ὥσθ ὁ μὲν θυμὸς ἀκολουθεῖ

τῷ λόγῳ πως ἡ δ ἐπιθυμία οὔ αἰσχίων οὖν ὁ μὲν γὰρ τοῦ θυμοῦ ἀκρατὴς τοῦ

λόγου πως ἡττᾶται ὃ δὲ τῆς ἐπιθυμίας καὶ οὐ τοῦ λόγου

62

de incontinecircncia sendo que Aristoacuteteles considera aquela por apetite

mais desonrosa que aquela por raiva como ademais eacute claro que

incontinecircncia e continecircncia em sentido absoluto se relacionam com

apetites e prazeres do corpo

A descriccedilatildeo dos apetites como o que natildeo ouve a razatildeo47 parece

acontecer nos trechos mencionados e nos quais o filoacutesofo enfatiza

somente a incontinecircncia Nesse caso natildeo estaacute a estudar o continente

que claramente percebemos eacute um homem que sofre com maus apetites

mas que por meio de seu raciociacutenio consegue se desviar dos maus fins

que o atraem Se observada a continecircncia teremos nela a possibilidade

como ressalta Nussbaum do apetite poder ser posto se natildeo em acordo

ao menos sob o comando da razatildeo praacutetica O homem que cai em

descontrole devido aos mesmos objetos com os quais se relacionam os

intemperantes e os temperantes eacute chamado simplesmente lsquoincontinentersquo

Enfim mesmo que haja diferenccedilas entre o apetite e o impulso que um

seja apontado por certos trechos da EN como incapaz de ouvir agrave razatildeo

praacutetica a verdade que a leitura e a interpretaccedilatildeo dos passos analisados

nos levam a alcanccedilar eacute que todas as formas do desejo satildeo capazes de

participar da razatildeo praacutetica conforme os haacutebitos introjetados pelo agente

como podemos ler na citaccedilatildeo abaixo

Mesmo que o apetite seja menos permeaacutevel agrave

razatildeo mais entranhado em nossa vida e

forccedilosamente determinante na escolha das accedilotildees

Aristoacuteteles atribuiu voluntarismo agrave accedilatildeo causada

por ambos os desejos embora a accedilatildeo por apetite

possa ser eventualmente mais voluntaacuteria do que

por impulso [] Ambos os desejos satildeo emoccedilotildees

ou afecccedilotildees natildeo racionais (aacuteloga pathḗ) que

tambeacutem pertencem agrave natureza humana ldquode sorte

47Aggio propotildee a seguinte saiacuteda para a questatildeo ldquoPortanto natildeo haacute contradiccedilatildeo

em dizer que um logos constitui o objeto do apetite e que o apetite natildeo ouve de

modo algum o logos se nesse caso entendermos que este uacuteltimo se refere ao

orthograves loacutegos agrave reta razatildeo agravequela que apreende verdadeiramente o que deve ser

feito e o primeiro se refere ao sentido corrente de logos ie de um pensamento

que concebe algo como prazerosordquo (2011 p 161-162) A autora ainda observa

que o apetite que natildeo ouve de jeito nenhum a reta razatildeo eacute aquele do

descontrolado e do intemperante No virtuoso eacute diferente seu apetite jaacute estaacute

educado e por isso natildeo segue qualquer prazer aleacutem do gozo apropriado agraves accedilotildees

virtuosas Mas quando os desejos menos racionais natildeo estatildeo educados o apetite

eacute mais vergonhoso que o impulso e por isso tambeacutem eacute menos perdoaacutevel

63

que tambeacutem accedilotildees por impulso e por apetite

pertencem ao homemrdquo (EN III 1 1111b2-3) Tais

accedilotildees satildeo proacuteprias ao homem no sentido do seu

princiacutepio residir nele (heacute archḗ en autōi) ou seja

o agente sempre poderia ter agido de outro modo

Desse modo o homem que age por impulso ou

apetite natildeo poderia ser considerado uma

marionete viacutetima de seus desejos [] Dizer

portanto que ambos os tipos de accedilotildees satildeo

voluntaacuterias implica dizer que estaacute em nosso poder

e sob nossa responsabilidade agir por apetite ou

por impulso E isso parece ser plausiacutevel mesmo

que se assuma que um desses desejos ndash o apetite ndash

seja mais avesso agrave razatildeo (AGGIO 2017 no

prelo)

A anaacutelise precedente parece demonstrar que eacute possiacutevel

responsabilizar quem age sob impulso e apetite por seus atos Parece

apontar igualmente a possibilidade de adequaccedilatildeo destes desejos como

esclarece Aggio (2017 no prelo) pela habituaccedilatildeo e por sua capacidade

de ouvir agrave razatildeo Esta eacute se natildeo toda ao menos parte crucial da educaccedilatildeo

moral do desejo Quando o comando da razatildeo eacute obedecido os desejos

natildeo racionais ou menos racionais participam da razatildeo e facilitam o

acesso agrave virtude e agrave vida feliz devido a possibilitarem a procura pelo

bom fim e a accedilatildeo correta na direccedilatildeo de tal fim Quando todavia o

desejo eacute sempre mais facilmente concorde com a razatildeo sem necessidade

de grandes esforccedilos educacionais estamos diante da terceira forma de

desejar o querer que trataremos agora

3b3 O desejo mais racional

Resta-nos tratar o desejo considerado racional ou o mais racional

(DA III 10 433a24-25) o querer (bouacutelēsis) Apesar desse seu aspecto o

querer pode se direcionar a objetos impossiacuteveis mas estaacute relacionado

com accedilotildees que satildeo escolhidas por si mesmas ou seja relaciona-se com

coisas que igualmente podem ser escolhidas deliberadamente e que satildeo

entendidas por Aristoacuteteles como variaacuteveis aleacutem de ser relativo aos fins

ou bens Mas que tipo de bem eacute o fim buscado pelo querer O objeto

deste desejo natildeo existe por natureza mas eacute aquilo que parece bom a

cada um e sendo as pessoas diferentes coisas diferentes lhes parecem

boas Assim natildeo seria melhor delimitar o fim deste tipo de desejo como

o bem buscado pelo virtuoso embora o que se apresenta a cada um seja

64

um bem aparente

A resposta pode comeccedilar a ser dada com a explicaccedilatildeo de que o

querer eacute um tipo de desejo naturalmente mais apto a concordar com as

coisas que satildeo sugeridas pela reta razatildeo Concilia-se com o que haacute de

racionalmente necessaacuterio para que haja boas accedilotildees e um bom caraacuteter

sendo de sua natureza estar de acordo com a razatildeo praacutetica Por

conseguinte o querer eacute o elemento natildeo racional mais capaz de acatar as

sugestotildees (ou ordens) do orthograves loacutegos Por isso concordamos com Aggio

quando escreve

[] se for preciso dizer que esta parte a natildeo

racional tem razatildeo entatildeo a parte desiderativa

deve ser compreendida como tendo razatildeo por

participaccedilatildeo e natildeo por essecircncia como se ela

pudesse ser sob o aspecto do querer

essencialmente racional Esta eacute uma interpretaccedilatildeo

possiacutevel e que me parece mais adequada pois

nega a suposiccedilatildeo de que a parte desiderativa teria

um aspecto absolutamente racional a saber a

bouacutelēsis (AGGIO 2017 no prelo)

O querer eacute o desejo ldquocultivadordquo especialmente sentido pelo

homem bom e virtuoso que se habituou a desejar conforme agrave razatildeo

praacutetica e que sente prazer com as coisas realmente boas e virtuosas Tal

tipo de desejo - veremos em detalhes maiores no segundo momento de

nosso estudo - coloca-se ao lado da escolha deliberada do caacutelculo

deliberativo e do julgamento correto sendo consoante com a virtude

intelectual e eacute necessaacuterio agrave virtude moral graccedilas agrave educaccedilatildeo que

recebe48 Eacute igualmente um desejo relacionado ao sentimento de prazer

48 Fazemos tal afirmaccedilatildeo com base nas propostas de Aggio que entende que

para a virtude eacute necessaacuteria a educaccedilatildeo moral do desejo implicando tambeacutem

como veremos mais adiante a forma correta de se emocionar (AGGIO 2017

no prelo) A eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma eacutetica da accedilatildeo jaacute que o querer natildeo eacute

suficiente para uma mudanccedila real (EN 1114a13-15) Eacute preciso agir ou seja

educar o desejo para o meio termo Por isso a accedilatildeo eacute o principal meio para que

a razatildeo aceda ao desejo Entatildeo haacute um momento em que o desejo ainda natildeo foi

educado e um no qual ouve e obedece a razatildeo Porque natildeo nascemos virtuosos

mas pelo haacutebito podemos secirc-lo Educar o desejo eacute se tornar moralmente

virtuoso Se o desejo busca o prazer e foge da dor educado buscaraacute e fugiraacute

destes dois de modo conveniente quando conveniente Educado desejo eacute

desejo pelo fim levando agrave boa accedilatildeo que eacute apreendida pela razatildeo persuasiva ou

pela capacidade de persuadir da razatildeo (EN 1139b4-5)

65

porque a Rhet explica que os ldquodesejos satildeo na sua maioria

acompanhados de um certo prazer pois as pessoas gozam de algum

prazer quer lembrando-se de como o alcanccedilaram quer esperando o que

alcanccedilaratildeordquo (Rhet I 11 1370b15-19)49 Por isso mesmo as accedilotildees

virtuosas que satildeo direcionadas por essa terceira forma de desejo satildeo

prazerosas a quem as faz desejando bem Vale reforccedilar que qualquer

tipo de desejo associado agrave reta razatildeo pode ser considerado participante

dela sendo bom e direcionado ao bem verdadeiro como explica Aggio

Isso porque o querer tendo como objeto o que

julgamos ser um bem natildeo eacute capaz de vencer o

desejo pelo prazeroso (epithymiacutea) ou o impulso de

aversatildeo ao doloroso (thymoacutes) Eacute preciso incutir o

haacutebito de se desejar bem incluindo aiacute os trecircs tipos

de desejo mas sobretudo aqueles que satildeo mais

avessos agrave razatildeo o impulso e ainda mais o

apetite Natildeo basta portanto querer apenas o que eacute

bom Eacute preciso que isto apareccedila como prazeroso

i e como objeto do apetite Menos ainda basta

saber o que eacute bom para desejaacute-lo como queria

Soacutecrates Eacute preciso que o bem natildeo seja apenas um

objeto cognitivo mas que se torne objeto de nosso

desejo e parte de nossa segunda natureza

(AGGIO 2017 no prelo)

O bom desejo sempre eacute conforme a reta razatildeo Para a

estudiosa isso leva a entender que eacute preciso desejar antes o bem que

aquilo que eacute prazeroso ou impulsivo Assim o prazeroso e o impulsivo

devem ser desejados tendo em vista o bem entatildeo os desejos natildeo

racionais tambeacutem de algum modo podem estar em harmonia com o

querer agir retamente Aristoacuteteles explica ldquoquando se eacute movido com o

raciociacutenio tambeacutem se eacute movido de acordo com a vontaderdquo (DA III 10

433a24-25)50 Isso acontece porque somente os desejos ordenados pela

reta razatildeo (bons desejos) constituem bons fins

Com os estudos empreendidos sobre o desejo entendemos

49 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original καὶ ἐν ταῖς

πλείσταις ἐπιθυμίαις ἀκολουθεῖ τις ἡδονή ἢ γὰρ μεμνημένοι ὡς ἔτυχον ἢ

ἐλπίζοντες ὡς τεύξονται χαίρουσίν τινα ἡδονήν οἷον οἵ τ ἐν τοῖς πυρετοῖς

ἐχόμενοι ταῖς δίψαις καὶ μεμνημένοι ὡς ἔπιον καὶ ἐλπίζοντες πιεῖσθαι χαίρουσιν

[] 50 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ὅταν δὲ κατὰ

τὸν λογισμὸν κινῆται καὶ κατὰ βούλησιν κινεῖται

66

que para Aristoacuteteles haacute trecircs formas de desejar o bem pela razatildeo pelo

prazer ou pelo impulso Aggio (2017 no prelo) explica que cada tipo de

desejo natildeo inclui nem exclui o outro o que significa que eacute possiacutevel e

mesmo necessaacuterio que o objeto daquele desejo conforme o prazer

tambeacutem seja conforme a razatildeo (EN III 14 1119a12-21) devido agrave

unicidade da alma que defendemos acima e consequentemente da

unicidade do desejo Por exemplo o homem virtuoso age com um

apetite governado pela razatildeo tem o apetite em harmonia com seu

querer sendo-lhe possiacutevel igualmente desejar alguns objetos

inadequados de prazer mas escolher natildeo os realizar pois o desejo pode

ou natildeo ser realizado Ter prazer portanto difere de desejar ter prazer ou

seja de realizar a atividade prazerosa O estudo do desejo mostrou-nos

igualmente que a capacidade desiderativa eacute aquela que propotildee o fim a

ser buscado ou evitado e com isso pede accedilatildeo Por isso estudaremos

agora na medida que contemplar nossas intenccedilotildees a relaccedilatildeo dos desejos

com a accedilatildeo humana que pode ser moralmente avaliada jaacute que o objeto

do desejo foi identificado com o que move as accedilotildees desse tipo e

igualmente aquela que entenderemos como boa accedilatildeo

3b4) Desejo e accedilatildeo rumo agrave accedilatildeo boa moralmente

Como vimos o desejo eacute associado agraves emoccedilotildees aos prazeres agraves

accedilotildees e portanto agrave virtude que vem com a praacutetica de boas accedilotildees

solicitadas pelos desejos por fins adequados e agrave vida feliz considerada

atividade (eneacutergeia) segundo a virtude mais completa Por conseguinte

a teoria da accedilatildeo eacute central na eacutetica de Aristoacuteteles porque tanto na EE

quanto na EN a definiccedilatildeo de felicidade eacute baseada na noccedilatildeo de atividade

(EN I 6 1098a16-17 EE II 1 1219a38-39) que aparece atrelada agravequela

de accedilatildeo Algumas passagens destes tratados apresentam o conceito de

eneacutergeia natildeo o de prāxis associado agrave eudaiacutemōniacutea mas qual a

diferenccedila entre os dois conceitos em Aristoacuteteles E quais satildeo seus papeacuteis

junto a uma teoria do desejo e por conseguinte da emoccedilatildeo

Natali (1996 p 101) afirma que Aristoacuteteles entende que a

eneacutergeia humana eacute feita de praacutexeis o que pode ser confirmado por EN

1098a12-14 onde se lecirc ldquoa funccedilatildeo do homem consiste em um certo

gecircnero de vida isto eacute em uma atividade da alma e das accedilotildees acompanhada de razatildeordquo (EN 1098b15-16) o que nos lembra de que

ainda estamos a discutir as questotildees sugeridas por EN I Tendo em vista

o passo citado Natali explica que o homem feliz eacute aquele que realiza

kalaigrave praacutexeis (belas ou boas accedilotildees) ou praacutexeis katacutearetḗn (accedilotildees

segundo a virtude) Isso leva a embasar a definiccedilatildeo de felicidade e a de

67

bem humano no conceito de accedilatildeo a pensar e determinar que a felicidade

requeira que se conheccedila o que eacute uma prāxis portanto aleacutem de ser

assunto associado ao tema do desejo e das emoccedilotildees a questatildeo nos

interessa porque pode nos dizer mais sobre a relaccedilatildeo destes com a

felicidade tema do nosso primeiro Capiacutetulo

Apoacutes ter exposto brevemente a ligaccedilatildeo da funccedilatildeo humana como

associada agrave accedilatildeo em EN I 13 Aristoacuteteles comeccedila suas discussotildees no

Livro II da EN com a lembranccedila de que anteriormente havia sido

discutido um problema importante a questatildeo das accedilotildees determinarem a

qualidade do caraacuteter (EN II 2 1103b30-31) Afirmaccedilatildeo associada agravequela

de que as virtudes aparecem com a praacutetica de accedilotildees virtuosas (EN II 2

1103a31-33) porque a ldquoaccedilatildeo eacute princiacutepio da virtude em sentido causalrdquo

(NATALI 1996 p 103) sendo a boa accedilatildeo que leva agrave virtude Como

vimos para que haja accedilatildeo realmente verdadeira eacute preciso que intelecto

praacutetico e desejo estejam agindo juntos porque eacute preciso raciociacutenio

verdadeiro e desejo reto para que haja accedilotildees dignas daquilo que eacute

proacuteprio ao homem prosseguindo no esclarecimento do que foi proposto

com EN I 13 A relaccedilatildeo do desejo do intelecto praacutetico e da boa accedilatildeo

reafirma que aquilo que Aristoacuteteles chama accedilatildeo seja relevante ao nosso

estudo

Para compreender melhor a questatildeo pode-se contar com o auxiacutelio

especial do Livro VI que parece entender a accedilatildeo e sua relaccedilatildeo com o

que se pretende moralmente dela passando pela comparaccedilatildeo e distinccedilatildeo

entre prāxis e poiacuteēsis O iniacutecio da EN apresenta tal distinccedilatildeo ao

diferenciar dois tipos de fins uns satildeo identificados com as proacuteprias

atividades outros diferem das atividades que levam ateacute os fins (EN I 1

1094a3-5) A separaccedilatildeo essencial entre prāxis e poiacuteēsis portanto que

tambeacutem aparece em EN VI 4 propotildee-nas como objetos de duas formas

diferentes de saber a phroacutenēsis e a teacutechnē que lidam com dois tipos

diferentes de ser Este uacuteltimo Livro mencionado explora suas relaccedilotildees

(EN VI 2 1139a35-b4) quando Aristoacuteteles afirma que o pensamento

sozinho nada move sendo que apenas o pensamento praacutetico eacute capaz de

mover a accedilatildeo quando associado ao desejo e de mover a produccedilatildeo

quando se tenciona algum produto Este eacute feito tendo algo aleacutem de si em

vista natildeo eacute um fim absoluto mas o fim da accedilatildeo poderia ser absoluto

quando o desejo levasse a agir bem51

Dessas reflexotildees apresentadas pela EN Natali (1996 p 110)

ressalta que poderiacuteamos entender que 1) o pensamento praacutetico (diaacutenoia

51Haveria segundo o Livro VI dois tipos de deliberaccedilatildeo e de phroacutenēsis um

relacionado agrave prāxis outro agrave poiacuteēsis

68

praktikḗ) domina (archḗ) a prāxis e tambeacutem a poietikḗ 2) o que eacute

produzido natildeo eacute um fim absoluto apenas um fim em vista de algo mais

3) a accedilatildeo realizada (praktoacuten) eacute o proacuteprio fim ou o fim absoluto 4) haacute

uma hierarquia de fins que organiza tambeacutem os saberes a eles

direcionados sendo a phroacutenēsis superior agrave teacutechnē 5) e a phroacutenēsis teria

a eupraxiacutea por fim como explicitaremos no capiacutetulo seguinte

Essas observaccedilotildees levariam a entender que o agir humano

segundo Aristoacuteteles se dividiria em duas partes com caracteriacutesticas

diferentes e opostas Para dar conta dessa teoria da accedilatildeo Natali pensa

ser preciso primeiro saber se todos os movimentos intencionais feitos

pelo homem satildeo objeto da teoria da accedilatildeo ou se tal teoria teria interesse

apenas nas accedilotildees em acepccedilatildeo proacutepria

Aristoacuteteles diferentemente dos modernos e contemporacircneos natildeo

estaria interessado em distinguir accedilatildeo e movimento fiacutesico (distinccedilatildeo

oacutebvia para o filoacutesofo) Accedilotildees segundo o filoacutesofo e a interpretaccedilatildeo feita

por Natali (1996 p 111) satildeo comportamentos complexos dentre os

quais eacute possiacutevel diferenciar prāxis e poiacuteēsis Simples movimentos

fiacutesicos natildeo permitiriam tal distinccedilatildeo podendo ser tanto parte da prāxis

quanto da poiacuteēsis ainda mais se natildeo se levasse o fim em conta Assim

segundo o estudioso ldquoPara Aristoacuteteles o significado da accedilatildeo eacute dado

pelo teacutelos pelo fim Em exemplos como ldquolevantar um braccedilordquo aquilo

que estaacute oculto eacute propriamente o teacutelos []rdquo (NATALI 1996 p 112)

Para Aristoacuteteles nessa observaccedilatildeo do fim os movimentos fiacutesicos natildeo

podem ser compreendidos como accedilotildees mas essas informaccedilotildees natildeo

completam a teoria da accedilatildeo eacute preciso ir aleacutem como o comentador faz

Para distinguir prāxis e poiacuteēsis nas eacuteticas Aristoacuteteles recorre a

uma diferenciaccedilatildeo de tipo metafiacutesico entre kiacutenēsis e eneacutergeia Em Met Θ 6 1048b18-23 fala-se que natildeo satildeo accedilotildees ou que natildeo satildeo accedilotildees

perfeitas aquelas cujo fim natildeo se encontra nelas mesmas O passo no

entanto eacute visto por Natali (1996 p 113) como duvidoso por muitos

motivos que natildeo elencaremos aqui por ultrapassarem as nossas

intenccedilotildees com essa explicaccedilatildeo A passagem mesmo assim condiz com

as propostas que depreendemos rapidamente de EN I importando aquilo

que a Met nos apresenta como relaccedilotildees e dissociaccedilotildees entre kiacutenēsis e

eneacutergeia bem como suas relaccedilotildees com prāxis e poiacuteēsis Para explicar

melhor a questatildeo podemos citar as palavras de Natali sobre o assunto

Consideradas do ponto de vista do fim eneacutergeia e

kiacutenēsis satildeo de todo distintas ao menos

aparentemente

- agrave primeira no campo da accedilatildeo humana

69

corresponde a prāxis e eacute um agir com um fim em

si mesmo O exemplo corrente que hoje eacute dado de

uma prāxis estaacute ausente em Aristoacuteteles mas jaacute

aparece em Alexandre de Afrodiacutesias o danccedilar

- a segunda sempre no campo do agir humano

corresponde a poiacuteēsis para dar um exemplo

Aristoacuteteles frequentemente refere-se agrave construccedilatildeo

de uma casa Os dois casos satildeo distintos pela

relaccedilatildeo ao fim enquanto na poiacuteēsis afirma

Aristoacuteteles a obtenccedilatildeo do fim potildee termo ao

processo na prāxis isto natildeo acontece aliaacutes a

obtenccedilatildeo do fim estaacute presente em cada instante do

processo []

De fato em uma kiacutenēsis a obtenccedilatildeo do fim tem

valor em si mas tem valor apenas como modo de

atingir o proacuteprio fim (NATALI 1996 p 113-

114)

Conforme essa explicaccedilatildeo que aparece em Met Θ 6 1048b23-28

a prāxis natildeo teria seu fim apenas ao termo de um processo enquanto a

poiacuteēsis seria composta por momentos de um processo que levaria a um

fim almejado Na prāxis todo instante contemplaria agravequilo que eacute seu

objetivo estando o fim da accedilatildeo em cada momento do processo que a

constituiria Dito de outro modo a poiacuteēsis seria um processo que soacute

resultaria em seu fim quando completado mas a prāxis seria um

processo completo em cada um de seus instantes Mas toda poiacuteēsis seria

kiacutenēsis O movimento fiacutesico implicado na poiacuteēsis poderia ser esmiuccedilado

em uma seacuterie de movimentos menores estruturantes do todo da

produccedilatildeo e que natildeo poderiam ser tomados em separado O exemplo eacute a

construccedilatildeo de casas que aparece em EN 1174a21-29 cada movimento

do processo de construir pode ser percebido separadamente mas soacute tem

sentido com o fim que lhe excede a casa construiacuteda Entatildeo a poiacuteēsis eacute

composta por ldquopoiacuteeseis parciais incompletasrdquo (NATALI 1996 p 116)

que resultaratildeo em um produto homogecircneo ontologicamente

Agora resta saber se toda prāxis eacute uma eneacutergeia Met IX 6 daacute

exemplos de eneacutergeiai que natildeo parecem precisar de movimentos fiacutesicos

Estariam portanto fora da alccedilada da fiacutesica pois excluiriam a kiacutenēsis

Aristoacuteteles no entanto nos apresenta a vida como exemplo de eneacutergeia e a vida comporta movimentos Caberia portanto

questionar a prāxis eacute ou natildeo eacute kiacutenēsis52

52 Vale ressaltar tambeacutem com Natali (NATALI 1996 p 117) que haveria

70

Ao analisarmos os exemplos de praacutexeis virtuosas veremos que

satildeo compostas por uma seacuterie de atos parciais com a estrutura da kiacutenēsis

Um desses exemplos poderia ser o mover a espada para golpear um

inimigo Segundo Natali

[] estes movimentos satildeo dirigidos agrave obtenccedilatildeo de

um fim e natildeo satildeo fins em si mesmos como se

fossem passos de danccedila De fato contra o que se

disse na Metafiacutesica na qual havia se afirmado que

nenhuma prāxis eacute uma kiacutenēsis Aristoacuteteles afirma

na Ethica Eudemia que toda prāxis eacute uma

kiacutenēsisrdquo (EE 1220b26-27 1222b28-29) Assim

segundo tal Eacutetica toda prāxis seria uma kiacutenēsis

mas qual seria a verdade sobre a questatildeo toda

prāxis eacute uma kiacutenēsis ou nenhuma prāxis eacute uma

kiacutenēsis como propotildee a Metafiacutesica (NATALI

1996 p 117)

Natali responde com o auxiacutelio de outro passo da Met (Β 2

996a27) no qual eacute possiacutevel ler que todas as accedilotildees implicam movimento

Nesse trecho aparece a preposiccedilatildeo meta traduzida pelo estudioso como

ldquoimplicardquo o que diferenciaria a prāxis da poiacuteeisis por ser composta

implicando movimentos enquanto a poiacuteēsis aconteceria por meio de

movimentos usando a preposiccedilatildeo diaacute como diferencial dando agrave prāxis

uma heterogeneidade ontoloacutegica

Ainda segundo a Met IX 6 (1048b6-9) e segundo a interpretaccedilatildeo

do passo feita por Natali (1996 p 119) vaacuterios movimentos singulares

compotildeem uma prāxis sendo os movimentos como que a mateacuteria e a

accedilatildeo a forma Assim o estudioso chega agrave seguinte formulaccedilatildeo ldquoToda

prāxis eacute do ponto de vista formal uma eneacutergeia e do ponto de vista

material eacute composta de kiacutenesisrdquo (NATALI 1996 p 119) O que faz a

diferenccedila entre prāxis e poiacuteēsis eacute que na explicaccedilatildeo do estudioso

Ambas satildeo eventos humanos que se datildeo no

mundo sublunar satildeo compostas de movimentos

mas enquanto a poiacuteēsis tem uma estrutura

ontoloacutegica de movimento in totoacute a prāxis tem

uma estrutura ontoloacutegica apenas em parte similar

agravequela das eneacutergeiai mais puras como a auto-

poiacuteēseis feitas com fim moral como poderemos ver ao propor elementos

favoraacuteveis a uma educaccedilatildeo emocional moral no Capiacutetulo III

71

contemplaccedilatildeo divina porque mesmo sendo fim

em si mesma na sua atuaccedilatildeo eacute composta de

movimentos O todo da accedilatildeo tem seu fim em si

mas as partes das quais se compotildee tecircm cada uma

o seu fim particular (NATALI 1996 p 119)

Haveria segundo essa proposta accedilotildees componentes particulares

que perseguiriam outros objetivos como o levantar uma espada para

golpear um inimigo em batalha mas que tenderia agrave vitoacuteria Haveria

assim o todo da accedilatildeo com objetivos em si como as accedilotildees virtuosas que

natildeo tenderiam a um resultado praacutetico fora delas mesmas Ou as accedilotildees

virtuosas igualmente deveriam ser eficazes como o golpe de espada

Desse tipo de interrogaccedilatildeo surge a questatildeo da eupraxiacutea que Natali

pensa responder ao problema em curso e que voltaraacute ao nosso estudo no

capiacutetulo seguinte mas que por ora pode ser entendido do modo

descrito abaixo

A prāxis humana propriamente dita natildeo eacute totalmente eneacutergeia

como seria a contemplaccedilatildeo divina Eacute composta por kiacuteneseis que buscam

um resultado e no caso da accedilatildeo moralmente avaliaacutevel esse resultado

seria um conjunto de sucesso na accedilatildeo e valor moral Essa proposta

condiz com a descriccedilatildeo que Aristoacuteteles faz do homem ser o

intermediaacuterio entre divino e animal que discutimos desde o argumento

da funccedilatildeo humana porque a eupraxiacutea aos olhos de Natali natildeo seria

apenas a accedilatildeo boa moralmente mas a accedilatildeo completa bem-sucedida

senatildeo Aristoacuteteles natildeo daria tanta importacircncia agrave deliberaccedilatildeo em suas

reflexotildees eacuteticas Caso o fim da accedilatildeo fosse sempre ela mesma ou

somente ela mesma a deliberaccedilatildeo seria inuacutetil porque um ato corajoso

por exemplo seria um fim em si mesmo natildeo buscando nada mais

Entatildeo natildeo seria preciso investigar (zḗtein) o modo mais eficaz ou nas

palavras de Natali (1996 p 122) ldquomais raacutepido e eleganterdquo para alcanccedilar

um fim Por isso a prāxis humana natildeo pode ser pura eneacutergeia mas deve

ser tambeacutem composta de kiacuteneseis justificando que as accedilotildees humanas

satildeo tributaacuterias de deliberaccedilatildeo de escolha deliberada e da phroacutenēsis

Estas satildeo essenciais agrave boa accedilatildeo humana pois dizem respeito tanto agrave

determinaccedilatildeo dos fins a serem buscados como dos meios que permitam

alcanccedilaacute-los e que satildeo solicitados pelos desejos e mudados pelas

emoccedilotildees No entanto antes de saber como as paacutethē se encaixam nesse

processo que conduz agrave eupraxiacutea e como podem influenciaacute-la eacute preciso

buscar delimitar a partir das indagaccedilotildees surgidas com a EN e do que foi

inferido ateacute o momento o que vem a ser ldquoemoccedilatildeordquo Fazer essa

72

delimitaccedilatildeo seraacute necessaacuterio para que possamos responder agraves questotildees

que foram postas ateacute o momento mas tambeacutem para podermos

compreender como pode ser possiacutevel mudaacute-las para que se liguem agraves

sugestotildees da razatildeo permitindo-nos tratar a educabilidade e a

racionalidade das emoccedilotildees A discussatildeo acima apresentada sobre a

relaccedilatildeo da eupraxiacutea com o paacutethos eacute crucial para que isso seja feito pois

insere definitivamente a emoccedilatildeo entre as coisas relacionadas agrave

eudaiacutemōniacutea pois como buscaremos apontar no proacuteximo Capiacutetulo

eupraxiacutea e eudaiacutemōniacutea satildeo indissociaacuteveis

4 Em busca da definiccedilatildeo de emoccedilatildeo em Aristoacuteteles

Na Eacutetica Nicomaqueia (Livro I capiacutetulo 7) Aristoacuteteles propotildee

que uma investigaccedilatildeo deva comeccedilar com o estabelecimento ao menos

em linhas gerais daquilo que eacute o objeto investigado Contudo pelo

menos nesse tratado o filoacutesofo natildeo parece dar contornos bem definidos

a uma noccedilatildeo geral daquilo que entende por emoccedilatildeo nem em sentido

moderno53 nem ao menos em seus proacuteprios termos Uma definiccedilatildeo

segundo Aristoacuteteles deveria apresentar o geacutenos (gecircnero) e a diferenccedila

especiacutefica daquilo que eacute definido mostrando o que o objeto estudado

realmente eacute (Top I 5 101b38 et seq)54 A EN todavia a princiacutepio

apresenta apenas o gecircnero da emoccedilatildeo paacutethos e uma lista de coisas agraves

quais chama emoccedilatildeo como podemos conferir na passagem abaixo

Dado pois que os estados que se geram na alma

satildeo trecircs55 emoccedilotildees capacidades disposiccedilotildees a

53 Uma definiccedilatildeo em lsquosentido modernorsquo buscaria explicar o que eacute uma emoccedilatildeo

Carlo Natali explica desse modo a deficiecircncia na definiccedilatildeo que EN II fornece da

accedilatildeo (1996 p 102) pois agrave eacutetica natildeo caberia tal tipo de explicaccedilatildeo proacutepria agrave

metafiacutesica Podemos tambeacutem pensar em uma proposta feita por Barnes que

justificaria tal insuficiecircncia bem como a insuficiecircncia de definiccedilatildeo de outros

termos chave na teoria eacutetica aristoteacutelica o autor ao escrever para si natildeo

elaboraria tais propostas ou talvez natildeo o fizesse por tratar de assunto que

julgava suficientemente conhecido daqueles a quem discursava 54Traduccedilatildeo Valandro e Bornheim (1978) no original ἔστι δ ὅρος μὲν λόγος ὁ

τὸ τί ἦν εἶναι σημαίνων [] 55Note-se que no Grego aparece a palavra ldquognoacutemenardquo lsquotraduzidarsquo por Zingano

(2008) como ldquoestadordquo Juliaacuten Marias (2009) bem como Bornhein e Vallandro

(1979) optaram por ldquocoisasrdquo Ross (1995) opta por ldquosentimentosrdquo e Tricot

(2002) por ldquofenocircmenosrdquo para a traduccedilatildeo do termo Contudo eacute difiacutecil escolher

uma das propostas para interpretar o que eacute pouco explicado por Aristoacuteteles Os

73

virtude seraacute um deles Entendo por emoccedilotildees

apetite coacutelera medo arrojo inveja alegria

amizade oacutedio anelo emulaccedilatildeo piedade em geral

tudo a que se segue prazer ou dor por

capacidades os estados em funccedilatildeo dos quais

dizemos que somos afetados pelas emoccedilotildees por

exemplo aqueles em funccedilatildeo dos quais somos

capazes de encolerizar-nos afligir-nos ou apiedar-

nos por disposiccedilotildees aqueles em funccedilatildeo dos quais

nos portamos bem ou mal com relaccedilatildeo agraves

emoccedilotildees por exemplo com relaccedilatildeo ao

encolerizar-se se nos encolerizamos forte ou

fracamente portamo-nos mal se moderadamente

bem e de modo semelhante com relaccedilatildeo agraves outras

emoccedilotildees (EN II 4 1105b19-29)56

O passo do Livro II 3 da Eacutetica Nicomaqueia nos apresenta

algumas dificuldades mas igualmente algumas ideias de por onde

possamos caminhar a fim de entender o que Aristoacuteteles propotildee como

emoccedilatildeo A primeira inquietaccedilatildeo que nos traz eacute justamente a

supramencionada definiccedilatildeo insatisfatoacuteria o que todavia pode sofrer a

seguinte objeccedilatildeo o texto apresenta-nos igualmente a especificaccedilatildeo de

que tais coisas satildeo acompanhadas de prazer ou dor Essa afirmaccedilatildeo natildeo

satisfaz a nossa curiosidade porque entendemos que uma lista com

substantivos no acusativo natildeo serve como definiccedilatildeo (sequer em termos

aristoteacutelicos) Natildeo nos satisfaz tambeacutem porque haacute outras coisas

mencionadas nos tratados aristoteacutelicos que satildeo descritas como

acompanhadas de prazer ou dor como as accedilotildees afirmaccedilatildeo que pode ser

lida nos Livros VII e X por exemplo natildeo levando esse traccedilo a

constituir-se realmente como uma diferenccedila especiacutefica

O prazer e a dor todavia satildeo indicados na definiccedilatildeo das emoccedilotildees

feita pela EN como seu traccedilo distintivo traccedilo que eacute repetido em quase

tradutores parecem utilizar o que lhes parece calhar melhor agrave sua proacutepria

interpretaccedilatildeo 56 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ἐπεὶ οὖν τὰ ἐν τῇ ψυχῇ γινόμενα τρία ἐστί πάθη δυνάμεις

ἕξεις τούτων ἄν τι εἴη ἡ ἀρετή λέγω δὲ πάθη μὲν ἐπιθυμίαν ὀργὴν φόβον

θάρσος φθόνον χαρὰν φιλίαν μῖσος πόθον ζῆλον ἔλεον ὅλως οἷς ἕπεται ἡδονὴ

ἢ λύπη δυνάμεις δὲ καθ ἃς παθητικοὶ τούτων λεγόμεθα οἷον καθ ἃς δυνατοὶ

ὀργισθῆναι ἢ λυπηθῆναι ἢ ἐλεῆσαι ἕξεις δὲ καθ ἃς πρὸς τὰ πάθη ἔχομεν εὖ ἢ

κακῶς οἷον πρὸς τὸ ὀργισθῆναι εἰ μὲν σφοδρῶς ἢ ἀνειμένως κακῶς ἔχομεν εἰ

δὲ μέσως εὖ ὁμοίως δὲ καὶ πρὸς τἆλλα

74

todas as outras definiccedilotildees apresentadas nos demais tratados que

chamaremos em nosso auxiacutelio o que natildeo nos permite ignorar essa

caracteriacutestica Aristoacuteteles explica que comumente se admite o prazer

como o que toca mais de perto a natureza humana ideia relevante para

nossa investigaccedilatildeo porque haacute prazeres ligados ao natildeo racional e

prazeres do intelecto como aqueles associados agrave vida contemplativa

que satildeo descritos pelo filoacutesofo como maiores e melhores dentre os

prazeres Por isso na educaccedilatildeo dos jovens satildeo usados prazer e dor para

direcionaacute-los pois se pensa que para formar a excelecircncia do caraacuteter eacute

preciso se comprazer com as coisas certas e detestar as que devem ser

detestadas (EN X 1 1172a19-24) Percebemos contudo o filoacutesofo a

abordar os prazeres natildeo racionais com a cautela costumeira dispensada

aos elementos natildeo racionais pois parece pensar ser necessaacuterio educaacute-las

conforme a reta razatildeo Assim Aristoacuteteles natildeo nega que prazer e dor nos

acompanham por toda vida que tenham grande importacircncia e forccedila para

a virtude e para a vida feliz porque escolhemos o que eacute agradaacutevel e

fugimos do que eacute doloroso sendo que o prazer eacute naturalmente buscado

pelo desejo e a dor evitada Portanto prazer e dor estatildeo ligados

igualmente agrave accedilatildeo que conduziraacute ao alcance dos fins desejados

Aleacutem do passo do Livro II no qual Aristoacuteteles relaciona prazer e

dor agraves emoccedilotildees o pensador aborda-os especialmente em trecircs momentos

de sua EN Primeiro trata esses assuntos quando estuda as propostas

correntes sobre a melhor forma de vida humana Nesse ponto vimos que

ainda no Livro I percebe que boa parte dos homens busca uma vida

voltada totalmente para o prazer considerado indiscriminada ou

vulgarmente um bem ou o bem supremo A consideraccedilatildeo eacute feita e

descartada pelo filoacutesofo que concorda que o prazer seja um bem mas

que seja impossiacutevel consideraacute-lo o bem supremo ainda que se configure

como um bem final

O segundo momento em que a temaacutetica eacute discutida eacute o Livro VII

que apresenta um diaacutelogo com Platatildeo e sua proposta do prazer como um

processo ideia descartada pela Eacutetica em questatildeo O terceiro ponto do

tratado no qual o prazer aparece eacute a primeira ldquometaderdquo do Livro X da

EN quando o filoacutesofo parece retomar as propostas sobre os prazeres da

vida vulgar abordados no Livro I reforccedilando sua ideia de que o prazer

natildeo pode ser o bem supremo mas que ainda assim pode ser um bem

porque apesar de poder ser escolhido por si mesmo natildeo apresentaria a

autossuficiecircncia e completude da felicidade deixando espaccedilo em uma

vida voltada agrave busca de prazer ainda para a necessidade de outras coisas

Nesse trecho o filoacutesofo apresentaria sua real concepccedilatildeo do prazer e

chegaria a relacionaacute-lo com a moralidade Como propotildee Frede (2009 p

75

241) Aristoacuteteles daacute lugar agraves inclinaccedilotildees em sua moral embora as accedilotildees

corretas moralmente natildeo dependam apenas das inclinaccedilotildees dependem

igualmente da racionalidade praacutetica exercida na figura da deliberaccedilatildeo

ldquoAinda que sentimentos gostos e desgostos desempenhem um

importante papel para estabelecer o fim uacuteltimo da accedilatildeo eles natildeo

determinam a deliberaccedilatildeo racional acerca do caraacuteter apropriado de uma

accedilatildeordquo (FREDE 2009 p 241) Entatildeo os prazeres podem e devem ser

bem-educados moralmente o que possibilitaraacute realizar a recomendaccedilatildeo

de EN II de que eacute preciso ser educado a fim de sentir prazer com o que

eacute devido e para desprezar o que eacute devido

A estudiosa observa que na EN contudo Aristoacuteteles natildeo discute

o tipo de prazer e dor envolvido nas emoccedilotildees Por isso e por sugestatildeo

de Frede eacute preciso recorrer agrave Retoacuterica para saber de tal assunto Neste

livro Aristoacuteteles usa a tese que havia rejeitado na EN aquela que propotildee

o prazer como um processo (Rhet I 10 1369b33-35) De acordo com

Frede (2009 p 249)

Natildeo eacute difiacutecil ver por que Aristoacuteteles recorre agrave

definiccedilatildeo das dores e dos prazeres como

ldquoprocessos de interrupccedilatildeo e restauraccedilatildeordquo as

emoccedilotildees satildeo baseadas em necessidades quereres

desejos ou em suas aversotildees correspondentes

Todos esses fenocircmenos pressupotildeem algum tipo de

carecircncia uma necessidade que deve ser satisfeita

Os oradores tratam das necessidades humanas de

diferentes modos [] os prazeres e as dores

relevantes estatildeo ligados agraves necessidades e aos

quereres das pessoas

A autora entende que a Retoacuterica conteacutem um tipo de anaacutelise que

Aristoacuteteles deve ter pressuposto na EN e isso natildeo requer que se

assumam tratamentos diferentes para o prazer e para a dor em diferentes

fases do pensamento de Aristoacuteteles Ambos os conceitos sobre o prazer

devem ter existido na eacutepoca do filoacutesofo que os apresenta em textos

diferentes (Top I 2 121a35-36) Aristoacuteteles pode ter escrito a Retoacuterica

consideravelmente cedo mas continuou a usaacute-la e reformulaacute-la o que eacute

apontado por marcas posteriores de revisatildeo Nem assim sentiu

necessidade de alterar sua explicaccedilatildeo sobre prazer e dor quando tratou

das emoccedilotildees neste livro Frede pensa que o filoacutesofo deve ter

considerado a familiaridade dos leitores com as paacutethē (da Retoacuterica)

76

quando natildeo fez descriccedilatildeo minuciosa do tema na EN57 ldquoAristoacuteteles

parece assim ter reconhecido diferentes tipos de prazer e dor em sua

eacutetica sem chamar a atenccedilatildeo do leitor para esse fatordquo (FREDE 2009 p

249) o que justificaria a postura da Retoacuterica

Agraves observaccedilotildees de Frede acrescentamos que o prazer associado

agraves emoccedilotildees como no caso das propostas da Rhet da Poet e tambeacutem da

EN tem um quecirc de racionalidade Nos tratados de ciecircncia produtiva eacute

faacutecil perceber o que afirmamos porque as emoccedilotildees traacutegicas bem como

aquelas despertadas pelo discurso retoacuterico acontecem por um tipo de

lsquoidentificaccedilatildeorsquo entre o puacuteblico e as imagens criadas pelo enredo ou pelo

proferimento do orador Essas imagens provocam certo tipo de

pensamento (ao menos imaginaccedilatildeo) em quem tem contato com elas Eacute o

caso do reconhecimento de que ldquoesse eacute aquelerdquo mencionado em Poet

IV e provocado pela trageacutedia que causa prazer proacuteprio a este tipo de

literatura ou encenaccedilatildeo Tal prazer natildeo eacute advindo somente da aparecircncia

da arte em questatildeo mas das formulaccedilotildees racionais que leva o puacuteblico a

elaborar

Pensamos que o mesmo seja vaacutelido para a EN porque o prazer e a

dor causados pelas emoccedilotildees descritas neste tratado tecircm a ver com certas

elaboraccedilotildees que se encadeiam a partir do contato com algumas

aparecircncias e resultam em determinados tipos de operaccedilotildees psiacutequicas

como as opiniotildees O prazer vem com o sentir certa emoccedilatildeo e

igualmente com a lembranccedila ou a imaginaccedilatildeo pois estas causam ao

menos certas alteraccedilotildees no corpo pondo-o em movimento por isso satildeo

tambeacutem classificados como paacutethos (EN II 2 1105a2) pois afetam o

homem embora como observa Konstan (2006 p 42) os prazeres natildeo

sejam exatamente emoccedilatildeo pois satildeo sensaccedilotildees (aisthḗseis) resultantes da

percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo O jovem ao ser educado deve adquirir o

haacutebito de sentir prazer e dor com o que eacute adequado seu caraacuteter deve se

familiarizar previamente com a virtude gostando do que eacute belo e

desprezando o vil58 indicando a forma correta de sentir

57 Talvez por isso tambeacutem natildeo faccedila grandes explicaccedilotildees sobre as emoccedilotildees 58 Segundo Frede das consideraccedilotildees acerca das emoccedilotildees e do prazer feitas por

Aristoacuteteles o que fica para pensarmos atualmente eacute a proposta da necessidade

de uma educaccedilatildeo moral apropriada das emoccedilotildees do sentir prazer e dor com

atividades e atitudes corretas Um segundo benefiacutecio seria o enfoque na

qualidade de vida na qual se preze o desenvolvimento das qualidades que

apresentamos naturalmente para termos uma vida satisfatoacuteria e pensamos em

harmonia dentro de nossas comunidades Aristoacuteteles entendeu que a moralidade

eacute compatiacutevel com inclinaccedilotildees pessoais e pressupocircs tais inclinaccedilotildees Isso eacute o

77

Aleacutem da menccedilatildeo ao prazer e agrave dor e das listas apresentadas no

passo que provavelmente deveria explicar o que Aristoacuteteles entende

por emoccedilatildeo devemos considerar em que medida a ldquodefiniccedilatildeordquo

apresentada pode ser uacutetil em nossa busca por maior especificidade sobre

o assunto Para comeccedilar podemos observar um pouco mais EN II 4

1105b19-29 e com isso notar a relaccedilatildeo do paacutethos com as capacidades

(dynaacutemeis) e as disposiccedilotildees (heacutexeis) A passagem busca esclarecer o que

satildeo as virtudes e por isso as diferencia das emoccedilotildees estas natildeo seriam

nem disposiccedilotildees ou seja aquilo que nos faz ter bom ou mau

comportamento frente agraves emoccedilotildees nem dynaacutemeis que satildeo as

capacidades que se tem de sentir as emoccedilotildees O passo todavia diz

muito da importacircncia eacutetica do paacutethos pois se a virtude eacute disposiccedilatildeo e eacute

fundamental agrave felicidade - e sendo a felicidade o fim humano - se estaacute

ligada desde a alma agrave emoccedilatildeo - por ser disposiccedilatildeo de se posicionar bem

diante das emoccedilotildees - percebemos que o papel desses elementos

desprezados ou postos em segundo plano por outros filoacutesofos eacute

realmente grande em Aristoacuteteles como bem observa Zingano (2007 p

145 EN II 1 1103b25) As emoccedilotildees interferem no ser e no agir

virtuosamente (EN II 2 1104b4-13) pois haacute modos diferentes de se

sentir e lidar com a emoccedilatildeo conforme o estado e a heacutexis nos quais nos

encontramos Entatildeo ser virtuoso implica se comportar bem em relaccedilatildeo agrave

emoccedilatildeo e senti-la de modo (ou na quantia) adequado

A partir das observaccedilotildees feitas podemos afirmar que o passo em

questatildeo deixa claro que as virtudes natildeo satildeo emoccedilotildees embora se

relacionem com estas pois virtudes e viacutecios (kakiacuteai) levam a considerar

um agente como bom ou mau a ser louvado ou censurado e envolvem

escolha deliberada Um homem que apresenta uma virtude eacute dito

disposto de certo modo mas ningueacutem eacute considerado bom ou mau

ningueacutem eacute louvado ou censurado nem considerado disposto de certo

modo por sentir uma emoccedilatildeo ou por ser capaz de sentir uma emoccedilatildeo

A relaccedilatildeo da emoccedilatildeo com a virtude moral em EN II confirma as

propostas de EN I 13 a respeito da alma humana bipartida cuja

capacidade desiderativa ldquocomportariardquo as emoccedilotildees Tal capacidade eacute

forccediloso lembrar seria natildeo racional mas capaz de ouvir as sugestotildees da

razatildeo praacutetica portanto deveriacuteamos supor que aquilo que fosse de sua

alccedilada refletisse tal capacidade de ouvir a razatildeo A possibilidade de as

emoccedilotildees seguirem a reta razatildeo todavia se configura como um

meacuterito da teoria em questatildeo e a proposta de que a accedilatildeo deve ser feita com

inclinaccedilatildeo e natildeo por inclinaccedilatildeo pouparia muita discussatildeo se tivesse sido levada

a seacuterio pelos filoacutesofos posteriores

78

problema pois ainda no Livro II Aristoacuteteles nos fala de emoccedilotildees que

satildeo moralmente maacutes e que natildeo admitem mudanccedila59

Dado que os trechos da Eacutetica Nicomaqueia em anaacutelise por ora

nos trouxeram mais duacutevidas que respostas - ao mostrar-nos o ldquolugarrdquo

das emoccedilotildees na alma e com este sua capacidade de participar do

racional - consideramos que para entendermos esses assuntos

igualmente seja relevante consultar tratados que se dedicaram mais

especificamente ao tema e consultar o texto no qual particularmente se

analisa as questotildees relativas agrave alma Essa consulta nos permitiraacute trazer

soluccedilotildees agraves questotildees suscitadas desde EN I 13 a respeito da

possibilidade de participaccedilatildeo do natildeo racional na razatildeo humana dado

que ambos satildeo capacidades de uma alma una que se manifestam no

corpo Por isso julgamos que o tratado sobre a alma assim como os

demais textos que seratildeo nossos auxiliares nos permitiratildeo ter maior

clareza sobre as relaccedilotildees das emoccedilotildees com corpo e alma e com a razatildeo

humana

4a) Alma corpo e emoccedilotildees interpretadas a partir de EN I com o auxiacutelio

do DA da Rhet e da Poet

No De Anima o estudo da psychḗ estaacute entre aqueles dedicados agraves

coisas da natureza por ser um tipo de investigaccedilatildeo que pretende

conhecer a natureza a substacircncia e os atributos da alma dentre os quais

estatildeo as afecccedilotildees (paacutethē) que lhes satildeo proacuteprias Essas afirmaccedilotildees

conduzem agrave questatildeo complexa da separaccedilatildeo ou unidade entre corpo e

alma Devemos retomar o problema ainda que brevemente jaacute que

Aristoacuteteles faz com que alma e corpo compartilhem as emoccedilotildees

afirmaccedilatildeo feita anteriormente Frente a esse assunto cabe a questatildeo da

inseparabilidade entre corpo e alma Quanto agrave questatildeo Aristoacuteteles

parece pocircr-se em franca oposiccedilatildeo agraves teorias dualistas de Platatildeo como

aquelas apresentadas no Feacutedon quando escreve

Haacute ainda uma dificuldade de saber se as afecccedilotildees

59 Eacute o que confirma Sorabji quando fala da proposta de Aristoacuteteles sobre o meio

termo nas emoccedilotildees ldquoPois ele diz que o que conta muito ou pouco depende de

quem noacutes somos da ocasiatildeo do para quecirc e para quem a nossa emoccedilatildeo eacute

dirigida do resultado provaacutevel e do modo de reagir Aleacutem disso ele aponta que

algumas emoccedilotildees como Schadenfreude (sentir prazer com o insucesso alheio) e

inveja tecircm a ideia de maldade construiacuteda nelas de modo que natildeo haacute espaccedilo para

a ideia de moderaccedilatildeo em exercecirc-lasrdquo (SORABJI 2000 p 195 traduccedilatildeo nossa)

79

da alma satildeo todas comuns agravequilo que possui alma

ou se haacute tambeacutem alguma afecccedilatildeo proacutepria agrave alma

tatildeo somente E embora natildeo seja faacutecil eacute necessaacuterio

compreender isto Revela-se que na maioria dos

casos a alma nada sofre ou faz sem o corpo

como por exemplo irritar-se persistir ter

vontade e perceber em geral por outro lado

parece ser proacuteprio a ela particularmente o pensar

Natildeo obstante se o pensar tambeacutem eacute um tipo de

imaginaccedilatildeo ou se ele natildeo pode ocorrer sem a

imaginaccedilatildeo entatildeo nem mesmo o pensar poderia

existir sem o corpo Enfim se alguma das funccedilotildees

ou afecccedilotildees eacute proacutepria agrave alma ela poderia existir

separada mas se nada lhe eacute proacuteprio a alma natildeo

seria separaacutevel [] Parece tambeacutem que todas as

afecccedilotildees da alma ocorrem com um corpo acircnimo

mansidatildeo medo comiseraccedilatildeo ousadia bem

como a alegria o amar e o odiar ndash pois o corpo eacute

afetado de algum modo simultaneamente a elas

(DA 403a3-19)60

O passo apresenta simultaneidade nas afecccedilotildees do corpo e da

alma inviabilizando a separaccedilatildeo destas duas instacircncias61 pois como

observa Everson (2012 p 238) ldquose o corpo deve ter oacutergatildeos que satildeo

capazes de realizar suas funccedilotildees constitutivas estes igualmente

precisam ter particulares constituiccedilotildees materiaisrdquo Reforccedilamos portanto

que para Aristoacuteteles natildeo haacute separaccedilatildeo entre corpo e alma o que nos

mostra sua teoria das emoccedilotildees pois nesta teoria o filoacutesofo explicita que

60 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ἀπορίαν δ

ἔχει καὶ τὰ πάθη τῆς ψυχῆς πότερόν ἐστι πάντα κοινὰ καὶ τοῦ ἔχοντος ἢ ἔστι τι

καὶ τῆς ψυχῆς ἴδιον αὐτῆς τοῦτο γὰρ λαβεῖν μὲν ἀναγκαῖον οὐ ῥᾴδιον δέ

φαίνεται δὲ τῶν μὲν πλείστων οὐθὲν ἄνευ τοῦ σώματος πάσχειν οὐδὲ ποιεῖν

οἷον ὀργίζεσθαι θαρρεῖν ἐπιθυμεῖν ὅλως αἰσθάνεσθαι μάλιστα δ ἔοικεν ἰδίῳ

τὸ νοεῖν εἰ δ ἐστὶ καὶ τοῦτο φαντασία τις ἢ μὴ ἄνευ φαντασίας οὐκ ἐνδέχοιτ

ἂν οὐδὲ τοῦτ ἄνευ σώματος εἶναι εἰ μὲν οὖν ἔστι τι τῶν τῆς ψυχῆς ἔργων ἢ

παθημάτων ἴδιον ἐνδέχοιτ ἂν αὐτὴν χωρίζεσθαι εἰ δὲ μηθέν ἐστιν ἴδιον αὐτῆς

οὐκ ἂν εἴη χωριστή [] ἔοικε δὲ καὶ τὰ τῆς ψυχῆς πάθη πάντα εἶναι μετὰ

σώματος θυμός πραότης φόβος ἔλεος θάρσος ἔτι χαρὰ καὶ τὸ φιλεῖν τε καὶ

μισεῖν ἅμα γὰρ τούτοις πάσχει τι τὸ σῶμα 61 A questatildeo eacute bem mais complexa poreacutem natildeo poderiacuteamos estudaacute-la em

detalhes nesse momento Sobre o assunto sugerimos a leitura de textos como os

de Robinson e Everson indicados nas referecircncias Estes lidam com a questatildeo

com muito mais cuidado do que noacutes podemos lhe dispensar no presente

80

quem se emociona natildeo eacute o corpo mas o composto corpoalma

apresentando claramente sua perspectiva hilemoacuterfica A prova que

Aristoacuteteles daacute para tanto eacute que agraves vezes as emoccedilotildees fortes e violentas

(hiskyrograven kaigrave enargograven pathḗmaton) natildeo produzem excitaccedilatildeo ou medo

mas agraves vezes emoccedilotildees pequenas e imperceptiacuteveis (mikroacuten kaigrave

amauroacuten) nos movem (kineicircsthai) Isso se torna ainda mais evidente

por exemplo quando natildeo acontece nada de temiacutevel mas se sente medo

(DA I 1 403a20-24) tendo o corpo a tremer como eacute o caso em um

teatro Por isso o filoacutesofo considera evidente que as afecccedilotildees satildeo

determinaccedilotildees na mateacuteria - ou seja implicam ou envolvem mateacuteria mas

natildeo somente (DA I 1 403a24-25 loacutegoi eacutenyloi eisiacuten62) Por isso tambeacutem

as definiccedilotildees que daacute para as emoccedilotildees satildeo do tipo o encolerizar-se eacute um

movimento no corpo do sangue na regiatildeo que estaacute em volta do

coraccedilatildeo ocasionado por certo desejo63 Tais potecircncias satildeo despertadas

por percepccedilotildees imagens e imaginaccedilotildees fatores que estatildeo atrelados ao

exterior e agrave percepccedilatildeo sensiacutevel e estatildeo associadas ao desejo e ao

pensamento daquele que se emociona

Dessas consideraccedilotildees do tratado sobre a alma acerca das

emoccedilotildees aleacutem da velha lista das paacutethē eacute possiacutevel entender que afetam

simultaneamente alma e corpo e que neste provocam alteraccedilotildees e

mesmo movimentos Teorias que parecem ser de grande ajuda agrave nossa

pesquisa embora no DA Aristoacuteteles possa natildeo estar preocupado em

especificar o valor moral das emoccedilotildees dado o caraacuteter bioloacutegico (ou

psicoloacutegico) do texto Pelas propostas observadas entendemos ldquoque as

afecccedilotildees da alma satildeo assim inseparaacuteveis da mateacuteria natural dos animais

na medida em que de fato subsistem neles coisas tais como acircnimo e

62Everson traduz a expressatildeo por ldquoexplicaccedilotildees materiadasrdquo e Tricot por ldquodes

formes engageacutees dans la matiegravererdquo (as formas determinadas da mateacuteria) Este

uacuteltimo explica o raciociacutenio de Aristoacuteteles no passo da seguinte forma ldquoas

emoccedilotildees variam segundo os diferentes indiviacuteduos elas tanto se produzem e

elas tanto natildeo se produzem Ora essa diferenccedila natildeo eacute devida ao πάθημα que eacute o

mesmo para todos eacute devida agrave diferenccedila dos temperamentos da constituiccedilatildeo

fiacutesica Portanto uma emoccedilatildeo eacute sempre acompanhada mesmo no caso em que o

fato natildeo eacute aparente de um concomitante fiacutesicordquo (2010 nota 2 p 29 traduccedilatildeo

nossa) 63Embora nos interesse em demasia a questatildeo de como as afecccedilotildees da alma se

manifestam no corpo eacute mais bem discutida por Aristoacuteteles em seus tratados

bioloacutegicos mas natildeo apareceraacute aqui por questotildees de exequibilidade de nosso

estudo

81

temor e natildeo satildeo como a linha e a superfiacutecierdquo (DA I 1 403b17-19)64

Constataccedilatildeo possiacutevel porque o estudioso da natureza trataria as afecccedilotildees

de modo diferente do que o faria um dialeacutetico como Everson escreve

Noacutes jaacute vimos que ao definir as afecccedilotildees da

psyche Aristoacuteteles daacute prioridade agrave identificaccedilatildeo

das causas das mudanccedilas relevantes e aqui ele

insiste que tambeacutem ter (sic) de ser feita referecircncia

ao corpo Que aqui ldquoeste tipo de corpordquo natildeo

represente uma referecircncia agrave forma eacute confirmado

pelo que se segue Ele contrasta as definiccedilotildees de

ira que seriam oferecidas pelo dialeacutetico e pelo

fiacutesico o primeiro definiria a ira como ldquolsquoo desejo

de retribuir a dorrsquo ou algo parecidordquo enquanto o

uacuteltimo a definiria como a agitaccedilatildeo do sangue ao

redor do coraccedilatildeo (EVERSON 2010 p 241)

Essa diferenccedila nas descriccedilotildees das afecccedilotildees acontece porque ldquoUm

discorre sobre a mateacuteria e o outro sobre a forma e a determinaccedilatildeordquo (DA I

1 403b1-2)65 A determinaccedilatildeo eacute a forma da coisa e precisa existir em

uma mateacuteria que possua tal qualidade O estudioso da natureza eacute

portanto aquele que aborda as afecccedilotildees correspondentes a um corpo

especiacutefico e a uma mateacuteria especiacutefica natildeo tratando das afecccedilotildees que natildeo

satildeo deste tipo assunto que cabe a estudos como os da arte retoacuterica dos

quais falaremos na sequecircncia

Por ora seguiremos com a investigaccedilatildeo do DA que continua

questionando afirmaccedilotildees sobre a acomodaccedilatildeo da alma no corpo e

afirmando que tal consideraccedilatildeo eacute necessaacuteria pois eacute devido agrave comunhatildeo

corpoalma que um faz e outro sofre um move e outro eacute movido sendo

que nada disso acontece casualmente a um ou ao outro Aristoacuteteles

observa em contrapartida parece que cada corpo apresenta

configuraccedilatildeo proacutepria Nesse ponto provavelmente tenhamos a

importacircncia de chamar as consideraccedilotildees de um tratado bioloacutegico para

uma discussatildeo eacutetica se o primeiro tipo de investigaccedilatildeo tem por

preocupaccedilatildeo o mover poderaacute auxiliar na resoluccedilatildeo de questotildees morais

pois natildeo haacute accedilatildeo (prāxis) ou atividade (eneacutergeia) moralmente

consideraacutevel sem movimento (kiacutenēsis) tampouco sem o movimento

64 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original ὅτι τὰ πάθη

τῆς ψυχῆς οὕτως ἀχώριστα τῆς φυσικῆς ὕλης τῶν ζῴων ᾗ γε τοιαῦθ ὑπάρχει

ltοἷαgt θυμὸς καὶ φόβος καὶ οὐχ ὥσπερ γραμμὴ καὶ ἐπίπεδον 65 Idem no original ὁ μὲν τὴν ὕλην ἀποδίδωσιν ὁ δὲ τὸ εἶδος καὶ τὸν λόγον

82

daquilo que pede as accedilotildees ou as atividades como vimos pouco acima

Diante da questatildeo do mover e do que faz mover podemos

explicitar a proposta precedentemente mencionada que a alma eacute o que

move sem ser movido tratando-se do movimento local ldquoeacute possiacutevel

como dissemos que a alma se mova por acidente e que mova a si

mesma ndash eacute possiacutevel por exemplo que aquilo em que ela estaacute seja

movido e seja movido justamente pela alma - mas natildeo eacute possiacutevel de

nenhuma outra maneira que a alma se mova quanto ao lugarrdquo (DA I 4

408a30-34)66 A partir dessa afirmaccedilatildeo Tricot (2010 nota 2 p 65)

esclarece que a alma se move no corpo em que estaacute por acidente pois

move-o e que o movimento quanto ao lugar bem como as alteraccedilotildees

fisioloacutegicas provocadas pelas paacutethē podem nos preocupar justamente

pela relaccedilatildeo da kiacutenēsis com as accedilotildees e as atividades morais que

mencionamos Aristoacuteteles pensa que o deslocamento da alma poderia

ser inferido mais verossimilmente das suas capacidades consideradas

pela opiniatildeo comum como movimento Esta eacute a interpretaccedilatildeo dada por

Tricot (2010 nota 4 p 65) para o passo que segue

E seria mais razoaacutevel algueacutem ter certa dificuldade

em relaccedilatildeo agrave alma como movida tendo em vista o

que se segue dizemos que a alma se magoa se

alegra ousa teme e ainda que se irrita percebe e

raciocina e haacute a opiniatildeo de que todas estas coisas

satildeo movimentos donde algueacutem poderia pensar

que a alma se move Isso contudo natildeo eacute

necessaacuterio Pois mesmo que o magoar-se o

alegrar-se ou o raciocinar sejam especialmente

movimentos e que cada um deles o seja pela alma

ndash por exemplo que o irritar-se ou o temer seja um

tipo de movimento do coraccedilatildeo e que o raciocinar

seja um tipo de movimento desse oacutergatildeo ou talvez

de outro diverso e que dentre estes casos uns

ocorram segundo a locomoccedilatildeo de certas partes

movidas outros segundo a alteraccedilatildeo das mesmas

(quais e como eacute outra questatildeo) ndash dizer que a alma

se irrita eacute como dizer que a alma tece ou edifica

Talvez seja melhor dizer natildeo que a alma se apieda

ou apreende ou raciocina mas que o homem o faz

66 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original κατὰ

συμβεβηκὸς δὲ κινεῖσθαι καθάπερ εἴπομεν ἔστι καὶ κινεῖν ἑαυτήν οἷον

κινεῖσθαι μὲν ἐν ᾧ ἐστι τοῦτο δὲ κινεῖσθαι ὑπὸ τῆς ψυχῆς ἄλλως δ οὐχ οἷόν τε

κινεῖσθαι κατὰ τόπον αὐτήν

83

com a alma E isso natildeo porque o movimento

existe nela mas porque o movimento ora chega

ateacute ela ora parte dela na percepccedilatildeo sensiacutevel por

exemplo ele parte de fora e na reminiscecircncia

parte dela ateacute chegar aos movimentos e agraves

estabilizaccedilotildees nos oacutergatildeos da percepccedilatildeo (DA I 4

408a34-35 408b1-17)67

Assim dando por fim nossa breve discussatildeo sobre a questatildeo do

movimento provocado pelas paacutethē da alma no corpo confirmamos que a

alma natildeo eacute o que faz mover e o que eacute movido Ela eacute somente o que faz

mover (DA 409a18 allagrave tograve kinoucircn moacutenon) e natildeo eacute preciso que se mova

para que conceda movimento aos corpos embora por esses argumentos

natildeo fosse possiacutevel explicar as funccedilotildees (tagrave eacuterga) e as afecccedilotildees (tagrave paacutethē)

da alma68 Essas propostas do DA portanto natildeo potildeem fim agraves nossas

duacutevidas acerca da definiccedilatildeo de emoccedilatildeo

Frente agraves indefiniccedilotildees apresentadas pela EN e pelo DA a

Retoacuterica ressalta algo novo e importante Esse tratado propotildee que as

emoccedilotildees satildeo ldquoas causas que fazem alterar os seres humanos e

introduzem mudanccedilas nos seus juiacutezos na medida em que elas

comportam dor e prazer tais satildeo a ira a compaixatildeo o medo e outras

67 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original ἄλλως δ οὐχ οἷόν τε

κινεῖσθαι κατὰ τόπον αὐτήν εὐλογώτερον δ ἀπορήσειεν ἄν τις περὶ αὐτῆς ὡς

κινουμένης εἰς τὰ τοιαῦτα ἀποβλέψας φαμὲν γὰρ τὴν ψυχὴν λυπεῖσθαι χαίρειν

θαρρεῖν φοβεῖσθαι ἔτι δὲ ὀργίζεσθαί τε καὶ αἰσθάνεσθαι καὶ διανοεῖσθαι ταῦτα

δὲ πάντα κινήσεις εἶναι δοκοῦσιν ὅθεν οἰηθείη τις ἂν αὐτὴν κινεῖσθαι τὸ δ οὐκ

ἔστιν ἀναγκαῖον εἰ γὰρ καὶ ὅτι μάλιστα τὸ λυπεῖσθαι ἢ χαίρειν ἢ διανοεῖσθαι

κινήσεις εἰσί καὶ ἕκαστον κινεῖσθαί τι τούτων τὸ δὲ κινεῖσθαί ἐστιν ὑπὸ τῆς

ψυχῆς οἷον τὸ ὀργίζεσθαι ἢ φοβεῖσθαι τὸ τὴν καρδίαν ὡδὶ κινεῖσθαι τὸ δὲ

διανοεῖσθαι ἤ τι τοιοῦτον ἴσως ἢ ἕτερόν τι τούτων δὲ συμβαίνει τὰ μὲν κατὰ

φοράν τινων κινουμένων τὰ δὲ κατ ἀλλοίωσιν (ποῖα δὲ καὶ πῶς ἕτερός ἐστι

λόγος) τὸ δὴ λέγειν ὀργίζεσθαι τὴν ψυχὴν ὅμοιον κἂν εἴ τις λέγοι τὴν ψυχὴν

ὑφαίνειν ἢ οἰκοδομεῖν βέλτιον γὰρ ἴσως μὴ λέγειν τὴν ψυχὴν ἐλεεῖν ἢ

μανθάνειν ἢ διανοεῖσθαι ἀλλὰ τὸν ἄνθρωπον τῇ ψυχῇ τοῦτο δὲ μὴ ὡς ἐν

ἐκείνῃ τῆς κινήσεως οὔσης ἀλλ ὁτὲ μὲν μέχρι ἐκείνης ὁτὲ δ ἀπ ἐκείνης οἷον

ἡ μὲν αἴσθησις ἀπὸ τωνδί ἡ δ ἀνάμνησις ἀπ ἐκείνης ἐπὶ τὰς ἐν τοῖς

αἰσθητηρίοις κινήσεις ἢ μονάς 68 Raciociacutenios (logismouacutes) percepccedilotildees (aisthḗsis) prazeres (hēdonaacutes) dores

(lyacutepas) etc

84

semelhantes assim como as suas contraacuteriasrdquo (Rhet II 1 1378a19-22)69

Mais adiante no texto lemos outro passo que parece proceder a uma

exemplificaccedilatildeo ou lista de emoccedilotildees ldquoPor paixotildees entendo a ira o desejo

e outras emoccedilotildees da mesma natureza de que falamos anteriormenterdquo

(Rhet II 12 1388b32-33)70 O que pode chamar nossa atenccedilatildeo nesses

trechos eacute resumido por Konstan (2006 p 33 traduccedilatildeo nossa) do

seguinte modo ldquoA definiccedilatildeo de emoccedilatildeo ou paacutethos entretanto que

Aristoacuteteles oferece na Retoacuterica ndash o mais perto que ele chega de dar uma

tal definiccedilatildeo do que em nenhum outro de seus escritos [] ndash natildeo

relaciona emoccedilatildeo com sua causa externa ou estiacutemulo mas insiste antes

em seu efeito sobre o julgamentordquo Observaccedilatildeo extremamente vaacutelida

embora entendamos que as definiccedilotildees das emoccedilotildees particulares trazidas

pelo Livro II da Rhet apresentem as referecircncias aos mencionados

estiacutemulos ou causas externas como mostraremos pouco adiante

Deixemos isso por ora concentremo-nos na tentativa de definiccedilatildeo dada

pelo texto e nos juiacutezos que se diz serem alterados

Comecemos com uma interrogaccedilatildeo como o destaque na

capacidade de ldquomudanccedilas nos juiacutezosrdquo poderia ser importante para nossa

pesquisa se as coisas que dizem respeito agrave retoacuterica diferem daquelas

especiacuteficas agrave eacutetica Sendo a retoacuterica considerada uma arte e se a arte

trata do universal como poderia nos ajudar a esclarecer questotildees eacuteticas

se vemos Aristoacuteteles sempre a ressaltar o caraacuteter particular das accedilotildees

morais Antes de responder agraves questotildees vale frisar que a eacutetica tambeacutem

aborda universalmente suas questotildees graccedilas ao seu caraacuteter filosoacutefico jaacute

indicando certa proximidade entre as investigaccedilotildees dos dois tratados

Diante disso podemos ir agraves respotas o filoacutesofo nos informa que a arte

retoacuterica natildeo teoriza sobre o provaacutevel para o indiviacuteduo mas sobre o que

parece verdadeiro para pessoas de certa condiccedilatildeo formando silogismos

a partir daquilo sobre o que estamos habituados a deliberar Esse

envolvimento do haacutebito e da deliberaccedilatildeo mesmo que natildeo implique

necessariamente uma accedilatildeo particular ainda eacute de grande importacircncia

para nossos estudos porque a funccedilatildeo da retoacuterica ldquoconsiste em tratar das

questotildees sobre as quais deliberamos e para as quais natildeo dispomos de

artes especiacuteficas e isto perante um auditoacuterio incapaz de ver muitas

coisas ao mesmo tempo ou de seguir uma longa cadeia de raciociacuteniosrdquo

69 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original ἔστι δὲ τὰ

πάθη δι ὅσα μεταβάλλοντες διαφέρουσι πρὸς τὰς κρίσεις οἷς ἕπεται λύπη καὶ

ἡδονή οἷον ὀργὴ ἔλεος φόβος καὶ ὅσα ἄλλα τοιαῦτα καὶ τὰ τούτοις ἐναντία 70 Idem no original λέγω δὲ πάθη μὲν ὀργὴν ἐπιθυμίαν καὶ τὰ τοιαῦτα περὶ ὧν

εἰρήκαμεν πρότερον

85

(Rhet I 2 1357a1-4)71

A arte retoacuterica tem o poder de incitar a deliberaccedilatildeo e tal poder eacute

empregado em julgamentos e em outras instacircncias importantes agraves

decisotildees da poacutelis Por isso Konstan (2006 p 34) observa que os

momentos nos quais as emoccedilotildees eram excitadas por artifiacutecios retoacutericos

satildeo representantes de como as paacutethē estatildeo presentes no cotidiano

poliacutetico ateniense e mesmo moral Assim nosso empenho em estudar as

emoccedilotildees propostas no tratado eacute vaacutelido mesmo que estudiosos como

Fortenbaugh (2008 p 114) entendam que os intentos da Retoacuterica satildeo

distintos daqueles da Eacutetica Nicomaqueia Esta proposta pode sofrer

abalo se confrontada com a interpretaccedilatildeo de Nussbaum (1996 p 306 et

seq) que vecirc elemento cognitivo na constituiccedilatildeo das emoccedilotildees (e natildeo soacute

nas emoccedilotildees propostas pela Poeacutetica e pela Retoacuterica) aproximando suas

teorias sobre a emoccedilatildeo da tese de Konstan acerca dos ajuizamentos

influentes no cotidiano da poacutelis

Tendo em vista a objeccedilatildeo de se relacionar as propostas da EN e

da Rhet acerca das emoccedilotildees reforccedilamos a importacircncia mesmo na vida

de um filoacutesofo do conviacutevio poliacutetico na realizaccedilatildeo da vida humana feliz

Se a retoacuterica traz as emoccedilotildees para as praacuteticas comuns da poacutelis

consideramos o exerciacutecio de conjugaccedilatildeo das ideias dos dois tratados

como vaacutelido porque a Rhet aleacutem de trazer algo mais proacuteximo de uma

definiccedilatildeo de emoccedilatildeo fala mais detalhadamente do nosso objeto de

pesquisa e da possibilidade de mudanccedila nasde emoccedilotildees operadas pelo

discurso As paacutethē sendo coisas que fazem alterar os homens e que

mudam seu juiacutezo e sendo acompanhadas por prazer ou dor (ou

ambos)72 na arte retoacuterica estatildeo relacionadas agraves disposiccedilotildees do puacuteblico e

ao caraacuteter apresentado pelo orador assegurando ao tratado um lugar em

nossa investigaccedilatildeo

Para que o discurso tenha o poder da persuasatildeo e da mudanccedila nos

juiacutezos Aristoacuteteles pensa ser conveniente distinguir trecircs aspectos em

cada uma das emoccedilotildees que possa suscitar 1) em que estado de espiacuterito

71 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original ἔστιν δὲ τὸ

ἔργον αὐτῆς περί τε τοιούτων περὶ ὧν βουλευόμεθα καὶ τέχνας μὴ ἔχομεν καὶ

ἐν τοῖς τοιούτοις ἀκροαταῖς οἳ οὐ δύνανται διὰ πολλῶν συνορᾶν οὐδὲ

λογίζεσθαι πόρρωθεν 72 Sobre o misto de sentimentos que acompanha as emoccedilotildees da Retoacuterica ver

FREDE D ldquoMixed feelings in Aristotleacutes Rhetoricrdquo In Essays on Aristotleacutes

Rhetoric Berkeley Los Angeles London 1996 p 258-285 Ver tambeacutem

Konstan (2006 p 41 et seq) que admite por exemplo o misto de prazer e dor

com a raiva

86

se encontra quem se emociona 2) com o quecirc costuma se emocionar e

3) em que circunstacircncias se emociona Com base nesses criteacuterios o

filoacutesofo elabora descriccedilotildees das emoccedilotildees particulares implicadas com a

arte de persuadir se uma pessoa concentra um ou dois destes aspectos e

natildeo todos natildeo inspira a emoccedilatildeo Aristoacuteteles faz uma distinccedilatildeo das

paacutethē conforme esse meacutetodo que seraacute de grande ajuda aos nossos

propoacutesitos de definir o que satildeo as emoccedilotildees e sua natureza e embora natildeo

apresentemos aqui uma reproduccedilatildeo da definiccedilatildeo dada para cada paacutethos

mais adiante no entanto recorreremos ao medo (phoacutebos) como exemplo

do que expomos73 As descriccedilotildees contudo nos levam a perceber as

emoccedilotildees a serem despertadas com o discurso que tem por base

caracteres jaacute estabelecidos sejam estes aparentes ou reais Estes

caracteres podem ser apresentados pelos espectadores dos discursos

pelos envolvidos nas situaccedilotildees apresentadas em uma exposiccedilatildeo ou

pelos oradores que proferem uma fala Nesse ponto provavelmente

existe uma pequena diferenccedila entre as propostas da Retoacuterica e aquelas

da Eacutetica Nicomaqueia texto no qual as emoccedilotildees ainda tecircm a ver com

um caraacuteter em formaccedilatildeo74 embora as consideraccedilotildees apresentadas no

Livro X mostrem tal tratado preocupado igualmente com a conservaccedilatildeo

de um caraacuteter bem formado

As diferenccedilas entre os dois escritos cessam quando lidam com

pessoas e com o mundo que cerca quem se emociona como explica

Nussbaum (2008 p 46-47) A partir desses estudos entendemos que

estes fatores despertam e sofrem influecircncia das emoccedilotildees trazendo

sempre o olho do outro para nosso mais iacutentimo75 embora no acircmbito

73Tal escolha se justifica porque o medo parece ser uma das emoccedilotildees que

comporta todas as caracteriacutesticas que consideramos importantes para essa classe

(subclasse) de coisa seja entendida 74 Hutchinson observa que os estudantes que acompanhavam Aristoacuteteles

deveriam ser jovens das melhores classes sociais de Atenas 75 Isso porque segundo Konstan (2006 p 27-28 traduccedilatildeo nossa) ldquodado que o

julgamento e a crenccedila satildeo centrais para a dinacircmica das emoccedilotildees como

Aristoacuteteles as concebe eacute natural que um entendimento das pathḗ deve fazer

parte da arte da persuasatildeo Aristoacuteteles caracteriza as emoccedilotildees como consistindo

de dois elementos baacutesicos primeiro todo paacutethos eacute acompanhado por dor e

prazer segundo as pathḗ satildeo nas palavras de Aristoacuteteles aquelas coisas lsquoem

consideraccedilatildeo das quais as pessoas mudam e diferem em observaccedilatildeo aos seus

julgamentosrsquo [] noacutes podemos observar que algueacutem deve estar alerta agrave

possibilidade que um foco no papel da emoccedilatildeo no argumento condicionou o

tipo de sentimentos que Aristoacuteteles e outros estudantes de retoacuterica selecionaram

para anaacutelise Mas pode ser tambeacutem que ambientes forenses e deliberativos

87

poliacutetico sendo as paixotildees entendidas tambeacutem como respostas a

interaccedilotildees na poacutelis O que implica que haacute uma relaccedilatildeo de identidade ou

dessemelhanccedila entre as pessoas envolvidas com determinada emoccedilatildeo

Por isso parece que todas as paacutethē da Retoacuterica envolvem um tipo de

pensamento - ou ao menos opiniatildeo - ou imaginaccedilatildeo devidos a

determinadas situaccedilotildees e posturas dos outros com relaccedilatildeo agravequeles que se

emocionam Essas emoccedilotildees parecem ser despertadas por pessoas ou

relatos aos quais se daacute importacircncia envolvendo tipos de crenccedilas76

(piacutestis) eou opiniotildees (doacutexai) e juiacutezos do puacuteblico permitindo-o se

emocionar por exemplo com o que eacute exposto em um julgamento Com

isso a plateia pode deliberar e tomar certa decisatildeo os ouvintes dos

discursos tratados na Retoacuterica agem ou ao menos reagem de formas

semelhantes em conformidade com aquilo que o orador deixa

transparecer e do modo como busca afetaacute-los Informaccedilotildees de grande

relevacircncia aos nossos propoacutesitos por implicar ldquoaccedilotildeesrdquo particulares (EN

VI 12 1143a28 et seq)

Esse tipo de postura pode ser confirmado ainda por outra arte de

emocionar a poesia traacutegica Quando Aristoacuteteles faz sugestotildees para a boa

composiccedilatildeo de enredos e personagens traacutegicos deixa ainda mais

aparentes as propostas sobre as emoccedilotildees que destacamos como aquelas

fossem vistos como exibindo cenaacuterios intensificados do modo como as emoccedilotildees

operavam geralmente na vida grega onde elas estavam proximamente ligadas a

interaccedilotildees puacuteblicas e [eram] manifestadas principalmente em uma negociaccedilatildeo

de papeis socais contiacutenua e puacuteblica Emoccedilotildees vistas deste modo natildeo satildeo

expressotildees estaacuteticas resultantes de estiacutemulos impessoais como com os pacientes

sujeitos a choque eleacutetrico nas fotografias publicadas por Darwin mas [satildeo]

antes elementos em conjuntos complexos de trocas interpessoais nas quais os

indiviacuteduos estatildeo conscientes dos motivos dos outros e prontos a responder na

mesma moeda Natildeo eacute que Aristoacuteteles esteja certo quanto agraves emoccedilotildees e Darwin

errado mas antes que a abordagem de Aristoacuteteles pode descrever melhor o que

as emoccedilotildees significam na vida social da cidade-estado claacutessica enquanto [a

abordagem] de Darwin pode ser mais adequada ao modo que as emoccedilotildees satildeo

percebidas no universo moderno poacutes-Cartesiano A visatildeo de Aristoacuteteles das

emoccedilotildees depende implicitamente de um contexto narrativordquo 76 Quanto agrave presenccedila da crenccedila nas emoccedilotildees Nussbaum (2008 p 34 traduccedilatildeo

nossa) escreveu ldquoAristoacuteteles Crisipo Secircneca Spinoza Smith e mesmo

Descartes e Hume [] ndash todas essas figuras definem emoccedilotildees em termos de

crenccedilardquo Sugere-se conferir tambeacutem da mesma autora The fragility of

goodness Konstan em seu The emotions of the ancient greecks (2006 p 261)

ressalta a presenccedila da crenccedila na constituiccedilatildeo das emoccedilotildees aristoteacutelicas Sobre a

opiniatildeo na base da emoccedilatildeo ver Zingano (2007 p 152)

88

pretendidas pelo futuro orador na Retoacuterica contudo lanccedilando matildeo de

um instrumento emocional diferente com intenccedilotildees diferentes Vejamos

em que medida caracteres emoccedilotildees e accedilotildees - bem como as virtudes e os

viacutecios que deixam transparecer - podem estar ligados agraves emoccedilotildees

mesmo quando se trata das emoccedilotildees traacutegicas

Assim como a retoacuterica a poesia pode ser encarada como uma arte

de emocionar porque a Poeacutetica composta por Aristoacuteteles apresenta-se

ateacute certo ponto como um manual do fazer poeacutetico Sendo a funccedilatildeo da

poesia traacutegica descrita como provocar medo piedade e a kaacutetharsis

(catarse purificaccedilatildeo purgaccedilatildeo) dessas emoccedilotildees entendemos que

tambeacutem ensina ao menos em linhas gerais o que satildeo as tais emoccedilotildees

embora a Poacutetica natildeo apresente uma definiccedilatildeo de emoccedilatildeo Esse texto

todavia nos ajuda a compreender o que eacute o paacutethos para Aristoacuteteles

aleacutem de dar excelentes dicas a respeito do papel eacutetico das paacutethē

ressaltando duas emoccedilotildees em especial o medo (phoacutebos) e a piedade

(eleeinoacutes) Uma hipoacutetese demasiado interessante defendida por

Nussbaum quanto a estas eacute a de que de acordo com Aristoacuteteles as

emoccedilotildees natildeo satildeo particulares apenas por derivarem da percepccedilatildeo

sensiacutevel assim como por serem individualizadas por crenccedilas e

julgamentos que satildeo internalizados por cada pessoa ldquoUma tiacutepica

emoccedilatildeo aristoteacutelica eacute definida como um composto de um sentimento ou

prazer ou dor e de um tipo de crenccedila particular sobre o mundo [] O

sentimento e a crenccedila natildeo estatildeo somente incidentalmente ligados a

crenccedila eacute a base do sentimentordquo (NUSSBAUM 2001 p 383) Por

conseguinte se as emoccedilotildees traacutegicas tecircm um quecirc moral e implicam

crenccedila como aquelas emoccedilotildees que estudamos com a Retoacuterica eacute

possiacutevel entendecirc-las como constituiacutedas de ao menos um elemento de

racionalidade Composiccedilatildeo que pode ser comprovada pelas exigecircncias

aristoteacutelicas da racionalidade atrelada ao tipo de prazer sentido com a

poesia traacutegica Assim acontece conforme Ricoeur (2012 p 72) porque

ldquoAprender concluir reconhecer a forma eacute esse o esqueleto inteligiacutevel

do prazer da imitaccedilatildeo (ou da representaccedilatildeo)rdquo presente nas emoccedilotildees

traacutegicas sendo um tipo de prazer intelectual

A reaccedilatildeo que cada espectador tem diante de um espetaacuteculo pode

ser mesmo sinal de suas disposiccedilotildees de caraacuteter Desse modo podemos

entender que para Aristoacuteteles as paixotildees que satildeo despertadas atraveacutes da

ficccedilatildeo expressa na poesia traacutegica dizem muito a respeito do caraacuteter e da

virtude humana Sua manifestaccedilatildeo atraveacutes de gestos ou de simples e

quase imperceptiacuteveis sinais do corpo podem revelar as disposiccedilotildees

morais de um cidadatildeo podem mesmo ser uacuteteis agrave consolidaccedilatildeo de um

caraacuteter virtuoso ou agrave correccedilatildeo de um caraacuteter vicioso As reaccedilotildees

89

apresentadas pelo homem quando acometido por emoccedilotildees ou mesmo

quando inspirado poeticamente a sentimentos como os provocados pelas

emoccedilotildees podem deste modo deixar transparecer o caraacuteter

desenvolvido pelo cidadatildeo e preparaacute-lo para reagir ao mundo77 O

agente seraacute instigado a agir de modo a demonstrar por meio da beleza

de suas accedilotildees que seratildeo dignas de louvor a boa forma de suas

disposiccedilotildees e sua retidatildeo moral78 ao ser tocado por uma emoccedilatildeo

verdadeira ou simulada por meio de miacutemesis

Apesar do caraacuteter ficcional da trageacutedia que pode afetar o teor das

emoccedilotildees que tem por funccedilatildeo despertar boa parte do que foi proposto agraves

emoccedilotildees suscitadas pela retoacuterica parece valer tambeacutem agravequelas

provocadas pela trageacutedia Percebemos a presenccedila do prazer e da dor

embora o prazer das emoccedilotildees traacutegicas pareccedila um tanto paradoxal e mais

complexo devido agrave sua racionalidade de tipo especiacutefico agrave trageacutedia e ao

fato de vir da dor que cada um sente com o estiacutemulo do ficcional

Assim a trageacutedia eacute exemplo de como eacute possiacutevel juntar os dois lados da

alma humana pois suas emoccedilotildees dependem da racionalidade

apresentada pela forma como o enredo eacute composto e pela racionalidade

do puacuteblico que consegue compreender o encadeamento loacutegico

apresentado pelo texto ao ponto de se emocionar com as sugestotildees feitas

pela composiccedilatildeo traacutegica Sempre percebemos a necessidade de se imitar

homens a agir de modo que a unidade do enredo e da accedilatildeo apareccedila

necessaacuteria e verossimilmente a partir de sua estrutura Esse tipo de

elaboraccedilatildeo textual leva a reaccedilotildees por parte do puacuteblico e este eacute

conduzido ao que parece a pensar e ateacute mesmo a julgar devido agrave

racionalidade do enredo a respeito do caraacuteter dos personagens o que

tambeacutem emociona Assim a Poeacutetica faz mais que nos propor como

despertar emoccedilotildees conta-nos sobre a constituiccedilatildeo das emoccedilotildees que

pretende provocar

Essa afirmaccedilatildeo pode ser confirmada pela proposta que ter

simpatia pelos personagens - emoccedilatildeo que natildeo consta das listas de

Aristoacuteteles mas que eacute mencionada na Poeacutetica - faz com que

percebamos a forte necessidade da relaccedilatildeo com o outro tambeacutem nesse

77Aleacutem de apresentarem o caraacuteter do poeta ligando novamente a poesia traacutegica

agrave concretude do mundo mas dessa vez a um mundo preacutevio agrave composiccedilatildeo

traacutegica (a miacutemesis I descrita por Ricoeur em Tempo e Narrativa) 78Provavelmente nesse ponto seja validada a proposta de Ricoeur que percebe

na Poeacutetica de Aristoacuteteles os primeiros passos de uma esteacutetica da recepccedilatildeo jaacute

que a poesia teria ecos em um depois da composiccedilatildeo a chamada miacutemesis III

(RICOEUR 2010 p 86 et seq)

90

tipo de exposiccedilatildeo sendo que leva a plateia a imaginar de certo modo as

situaccedilotildees apresentadas A trageacutedia pode mesmo fazer pensar sobre as

possibilidades de acontecimentos obviamente natildeo idecircnticos aos

expostos mas de teor minimamente semelhante Eacute isso que toca o

espectador e o leva a temer e a se apiedar mas isso tambeacutem nos conta o

que satildeo medo e piedade A presenccedila de um forte elemento de

racionalidade implicado no despertar das emoccedilotildees que o espectador das

trageacutedias sente indica-nos os componentes da emoccedilatildeo traacutegica e geral Eacute

possiacutevel que haja mesmo crenccedilas opiniotildees e certos tipos de

pensamentos aleacutem da inegaacutevel imaginaccedilatildeo envolvida nas emoccedilotildees

mesmo que estas sejam emoccedilotildees traacutegicas

Apoacutes esses apontamentos parece que estamos prontos para tentar

uma delimitaccedilatildeo com contornos um pouco mais bem determinados

daquilo que entendemos juntamente com Aristoacuteteles acerca do que seja

a emoccedilatildeo

5 A emoccedilatildeo

Diante de tudo o que estudamos entendemos que quanto ao

gecircnero a emoccedilatildeo classifica-se como paacutethos sendo uma afecccedilatildeo sofrida

conjuntamente por corpo e alma seja ela visiacutevel ou natildeo em uma

manifestaccedilatildeo fiacutesica Pode ser traduzida biologicamente em termos de

processos desencadeados no organismo que podem incorrer em

movimento local embora por vezes somente ponha certos oacutergatildeos e

partes do corpo afetado em movimento Pertence agrave capacidade da alma

desiderativa sendo por isso hiacutebrida como tal capacidade Por

conseguinte Nussbaum (1996 p 306) chega mesmo a interpretaacute-la

como subclasse do desejo Igualmente por isso a maioria das emoccedilotildees

tem a possibilidade de ouvir e ateacute de obedecer agrave razatildeo todavia a

emoccedilatildeo natildeo pode ser escolhida deliberadamente natildeo se escolhe se

emocionar ou natildeo bem como natildeo se escolhe desejar ou natildeo e o que se

deseja (EN 1106a3-4) Por isso as emoccedilotildees natildeo se confundem com as

virtudes morais fruto de escolha deliberada que eacute digna de elogio mas

tecircm um papel crucial junto agrave constituiccedilatildeo e possibilidade destas virtudes

Um homem portanto pode ser responsabilizado pelo modo como

escolhe agir mas natildeo por suas emoccedilotildees entretanto parece poder ser

responsabilizado desde que minimamente educado moralmente pela

forma como se emociona e pela intensidade com que sente emoccedilatildeo bem

como pode controlar em direccedilatildeo a quecirc e a quem leva suas paacutethē

As emoccedilotildees satildeo indubitavelmente acompanhadas pelos

sentimentos de prazer de dor ou ambos contudo caracterizam-se ainda

91

por fazerem alterar mais que o corpo alteram os juiacutezos dos homens

Juntamente com sua natureza desiderativa tal possibilidade aponta para

um elemento racional em certa medida constituinte ou decorrente da

emoccedilatildeo Para que algueacutem se emocione eacute preciso que apresente certas

opiniotildees e mesmo juiacutezos sobre determinadas coisas ou pessoas no

mundo ou eacute preciso ao menos que se imagine em certas situaccedilotildees mas

as emoccedilotildees tambeacutem podem influenciar a formulaccedilatildeo de juiacutezos opiniotildees

e pensamentos sobre certas questotildees Por isso como explica Tricot

(2010 nota 3 p 107 traduccedilatildeo nossa) ldquoπάθος que quer dizer afecccedilatildeo

emoccedilatildeo sentimento em geral eacute um movimento da alma provocado por

um objeto exteriorrdquo O dito elemento racional eacute tambeacutem constitutivo

porque a forma como algueacutem toma uma circunstacircncia sob certo aspecto

o perceber um estiacutemulo externo que interage consigo leva o agente a ser

afetado ou seja a se emocionar ou ao menos a responder

emocionalmente de uma ou outra forma

Tal afetaccedilatildeo faz jus ao caraacuteter pateacutetico da emoccedilatildeo aristoteacutelica

bem como abre a possibilidade para que entendamos o paacutethos proposto

pelo filoacutesofo como muitas vezes resultante da interaccedilatildeo entre os

cidadatildeos na poacutelis e influente em tal relaccedilatildeo Igualmente parece nos

permitir acatar a ideia de que a emoccedilatildeo faz com que o agente perceba a

si mesmo como impotente e vulneraacutevel agraves coisas importantes do mundo

que podem lhe atingir No entanto a emoccedilatildeo natildeo pode em hipoacutetese

alguma ser tomada somente como uma passividade e nem todas essas

emoccedilotildees podem ser postas em acordo com a reta razatildeo Assim sendo

quanto agrave sua diferenccedila especiacutefica o paacutethos descrito por Aristoacuteteles natildeo eacute

apenas algo que atinge o homem porque existe a partir de um

movimento iniciado por certas formas de racionalidade como a

percepccedilatildeo sensiacutevel e que pode despertar certas formas da racionalidade

humana pondo mais do que o corpo em accedilatildeo Deste modo a emoccedilatildeo

movimenta o homem ou potildee-no em um certo tipo de movimento seja

quando julga e decide sobre questotildees poliacuteticas ou juriacutedicas quando

impele um espectador agrave kaacutetharsis mas tambeacutem quando pode levar o

agente moral a agir Por esses motivos concordamos com a seguinte

proposta sobre a constituiccedilatildeo da emoccedilatildeo

[] sensaccedilotildees de prazer e dor alteraccedilotildees e

processos fisioloacutegicos crenccedilas e opiniotildees e

atitudes ou impulsos Nenhum desses sentimentos

isolado explica por si mesmo qualquer emoccedilatildeo

Sensaccedilotildees alteraccedilotildees fisioloacutegicas crenccedilas e

atitudes constituem os quatro componentes

92

estruturais da emoccedilatildeo (TRUEBA p 53 traduccedilatildeo

nossa)

Acrescentamos a esses componentes a importacircncia do papel do

outro e do mundo que cercam cada agente na formulaccedilatildeo e no

desencadeamento de um tipo de pensamento ou de raciociacutenio que pode

ser diferente mas natildeo exatamente dissociado das opiniotildees e das

crenccedilas como a imaginaccedilatildeo e as conjeturas presentes na constituiccedilatildeo da

emoccedilatildeo ou na boa forma que ela venha adquirir graccedilas ao seu possiacutevel

contato com a razatildeo praacutetica Quando internalizadas por exemplo na

memoacuteria nas imaginaccedilotildees ou nos pensamentos as emoccedilotildees podem

tambeacutem partir da alma Satildeo portanto afecccedilotildees do conjunto corpoalma

passiacuteveis de serem educadas recebendo a boa medida concebida como

virtude moral e que eacute necessaacuteria agrave vida feliz Pensamos que a boa

medida no entanto soacute eacute possiacutevel devido a um quecirc de racionalidade que

pode acompanhar as emoccedilotildees desde sua constituiccedilatildeo como procuramos

e procuraremos provar ao longo desse estudo

Em suma podemos esboccedilar a seguinte definiccedilatildeo de emoccedilatildeo

conforme os tratados estudados a emoccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo ocasionada

por uma consideraccedilatildeo acerca de determinada situaccedilatildeo Tal consideraccedilatildeo

eacute acompanhada de alteraccedilotildees fisioloacutegicas mas nem sempre de

movimentos sendo que a emoccedilatildeo eacute igualmente capaz de alterar o

julgamento de quem acredita que determinada situaccedilatildeo tem influecircncia

relevante em sua vida tendo por isso inegaacutevel papel na vida humana

descrita pelo filoacutesofo

A presenccedila da emoccedilatildeo hiacutebrida como o desejo eacute indispensaacutevel agraves

propostas eacuteticas de Aristoacuteteles seja como ocasionadora

(biologicamente) de alteraccedilatildeo seja como causadora de mudanccedila no

ajuizamento e mesmo de reflexatildeo ou seja como (eticamente) elemento

do desiderativo que concorre para a accedilatildeo boa ou maacute moralmente Todos

esses aspectos se completam em um entendimento de algo que

realmente tem seu lugar na accedilatildeo humana e que pode influenciaacute-la ao

ponto de ser valorado moralmente Ainda precisamos saber contudo

como e por que meios eacute possiacutevel que as paacutethē ouccedilam e obedeccedilam agrave

razatildeo praacutetica para que dela realmente participem Por isso julgamos

interessante e mesmo necessaacuterio pensar a exigecircncia de sua moderaccedilatildeo a

fim da virtude moral como isso interferiraacute na caminhada rumo agrave vida

feliz na poacutelis

93

Capiacutetulo II

Virtude como possibilidade de acordo entre razatildeo e emoccedilatildeo

1 Virtude completa79 virtudes virtude moral

A discussatildeo sobre a virtude aparece no primeiro Livro da EN em

meio agrave primeira discussatildeo sobre a eudaiacutemōniacutea ou naquele que pode ser

chamado de primeiro tratado sobre a felicidade Nesse ponto do texto a

identificaccedilatildeo do bem supremo com a felicidade parece uma coisa

acertada para Aristoacuteteles mas o filoacutesofo considera preciso esclarecer

qual a natureza da felicidade Admite que um caminho possiacutevel a tal

esclarecimento seja a determinaccedilatildeo da funccedilatildeo do homem Por isso

defendemos no Capiacutetulo anterior desta tese que a funccedilatildeo proacutepria ao

homem e com esta a vida feliz deve ser atividade sempre pautada pela

razatildeo mas defendemos igualmente que nos parece impossiacutevel uma vida

totalmente voltada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica Eacute por isso que nesse

momento nos dedicaremos ao estudo daquela vida ativa segundo a

razatildeo excelente quanto agraves coisas propriamente humanas e portanto

virtuosa nesse sentido Entendemos que tal vida cumpriraacute as exigecircncias

de Aristoacuteteles para a felicidade o que pode ser confirmado pela nossa

interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo que eacute proacutepria ao homem executar bem

atividades e accedilotildees em comunidade de acordo com o mais racional em

cada circunstacircncia

Para que isso seja possiacutevel seraacute preciso se emocionar de modo

adequado associando ldquoelegantementerdquo (LEBRUN 2009 p 16)

emoccedilatildeo e razatildeo associaccedilatildeo que mostraremos resultar em virtude moral

e na virtude que entenderemos como a mais completa Para apresentar

essa possibilidade comeccedilaremos nossa pesquisa com o estudo do ideal

de eudaiacutemōniacutea pensado pelo filoacutesofo no primeiro Livro da EN

Escolhemos essa via para dar prosseguimento agraves discussotildees iniciadas

no Capiacutetulo I e porque justificaraacute a necessidade de se tratar as virtudes

79 Existe uma polecircmica quanto agrave forma correta de se traduzir o termo que define

a caracteriacutestica que Aristoacuteteles atribui para atividade conforme a alma que

chama de felicidade no Livro I 7 ldquoteleicircanrdquo Natildeo discutiremos a questatildeo nesse

momento por isso deixaremos a termo traduzido conforme a ediccedilatildeo brasileira

mais conhecida a da coleccedilatildeo Os Pensadores de 1973 texto que apresenta

1098a14-15 da seguinte forma ldquoo bem do homem nos aparece como uma

atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de uma virtude

com a melhor e mais completardquo No original σπουδαίου δ ἀνδρὸς εὖ ταῦτα καὶ

καλῶς ἕκαστον δ εὖ κατὰ τὴν οἰκείαν ἀρετὴν ἀποτελεῖται

94

bem como ressaltaraacute seu aspecto de representante da funccedilatildeo

propriamente humana e de bem se emocionar A escolha nos parece

apropriada porque graccedilas agrave natureza natildeo racional capaz de concordar

com a razatildeo que identificamos na base das emoccedilotildees eacute possiacutevel pensar a

proposta de Aristoacuteteles acerca da melhor vida possiacutevel como resultante

do bom desempenho da funccedilatildeo humana sendo que este somente pode

acontecer com a harmonizaccedilatildeo das emoccedilotildees com o que a razatildeo

demanda sendo como veremos virtuoso

No primeiro tratado sobre a felicidade o filoacutesofo analisa o que

muitos dizem acerca da eudaiacutemōniacutea que eacute uma atividade de tipo

especiacutefico que alguns dos outros bens (externos) satildeo necessaacuterios e parte

integrante da felicidade mas outros satildeo auxiliares e uacuteteis como

instrumentos naturais A questatildeo eacute destacada como assunto tocante agrave

poliacutetica pois a principal preocupaccedilatildeo dessa ciecircncia eacute fazer com que os

cidadatildeos sejam seres de certa qualidade ou seja fazer com sejam

pessoas honestas e capazes de agir nobremente (EN I 10 1099b31) Por

isso os animais natildeo humanos natildeo satildeo chamados felizes jaacute que natildeo

podem participar desse tipo de atividade Igualmente por isso a crianccedila

natildeo pode ser feliz por ainda natildeo ser capaz desse tipo de accedilatildeo e porque a

felicidade requer uma virtude completa mas para tal completude seria

necessaacuteria a observaccedilatildeo do termo da vida Isso porque as vicissitudes

que ocorrem ao longo da existecircncia podem fazer com que um homem

proacutespero sofra males enormes em sua velhice como no caso de

Priacuteamo80 Um fim de vida desastroso impede uma pessoa de ser

considerada feliz pois ldquoA causa verdadeiramente determinante da

felicidade reside na atividade conforme agrave virtude a atividade em sentido

contraacuterio sendo a causa do estado opostordquo (EN I 10 1100b9-11)81 ou

seja natildeo eacute o acaso ou a fortuna a causa da felicidade mas a virtude que

cabe ao homem

A virtude recebe tamanha importacircncia porque em nenhuma das

outras atividades humanas haacute maior fixidez Entre as atividades

virtuosas as mais altas satildeo as mais estaacuteveis82 porque eacute no seu exerciacutecio

80 HOMERO Iliacuteada V 81 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original κύριαι δ εἰσὶν αἱ κατ ἀρετὴν ἐνέργειαι τῆς εὐδαιμονίας αἱ

δ ἐναντίαι τοῦ ἐναντίου 82As atividades da sophiacutea segundo Tricot (2010 p 78 nota 3) mas seraacute que

natildeo poderiacuteamos estender tal fixidez agraves atividades do prudente (que certamente

apresentaraacute a sophiacutea) e tambeacutem daquele que dispotildee da virtude moral Seriam

essas virtudes separaacuteveis

95

que o homem feliz gasta boa parte de sua vida e com maior

continuidade Deste modo a estabilidade procurada eacute aquela do homem

feliz ao longo de toda sua vida e por esse motivo o homem feliz se

engaja em accedilotildees e contemplaccedilotildees que satildeo conformes agrave virtude

suportando os golpes da fortuna com maior dignidade e perfeiccedilatildeo

honesto e acima de censura Frente a estas afirmaccedilotildees a definiccedilatildeo de

felicidade que parece ser a mais completa apresentada no Livro I eacute posta

em forma de questatildeo

[] que nos impede de chamar feliz o homem cuja

atividade eacute conforme a uma virtude perfeita83 e

suficientemente provida dos bens exteriores e

isso natildeo por uma duraccedilatildeo qualquer mas durante

uma vida completa Natildeo devemos acrescentar

ainda cuja vida se prosseguiraacute nas mesmas

condiccedilotildees e cujo fim estaraacute em relaccedilatildeo com o

resto da existecircncia jaacute que o futuro nos eacute oculto e

que noacutes colocamos a felicidade como um fim

como alguma coisa de absolutamente perfeita

(EN I 11 1101a14-17)84

Essa proposta leva o filoacutesofo a refletir se eacute assim qualificaremos

como venturoso (makaacuterios) o homem que entre os vivos possui e iraacute

possuir os bens necessaacuterios a esse tipo de vida mas venturoso do modo

como o homem pode secirc-lo ou seja conforme as virtudes que satildeo

proacuteprias ao homem O destaque dado a essas virtudes indica o grande

papel que tecircm na vida humana feliz e por isso doravante trataacute-las-emos

Faremos tal apreciaccedilatildeo devido ao fato de as virtudes e em especial as

morais - como poderemos ver ao longo de nossa investigaccedilatildeo e como jaacute

ressaltamos em alguns dos momentos precedentes - serem

estreitamente relacionadas agraves emoccedilotildees e necessaacuterias ao bom

83 Para Zingano (2008 p 77) a virtude perfeita proacutepria eacute aquela que faz o que

deve fazer seguindo boas razotildees (metagrave phronḗseos EE 1234 a29-30) Portanto

eacute a composiccedilatildeo entre razatildeo e virtude moral virtude dianoeacutetica e eacutetica 84Coisa semelhante a respeito da eudaiacutemōniacutea eacute proposta pela Retoacuterica como

veremos logo em seguida Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da

traduccedilatildeo francesa de Tricot (2012) no original τί οὖν κωλύει λέγειν εὐδαίμονα

τὸν κατ ἀρετὴν τελείαν ἐνεργοῦντα καὶ τοῖς ἐκτὸς ἀγαθοῖς ἱκανῶς

κεχορηγημένον μὴ τὸν τυχόντα χρόνον ἀλλὰ τέλειον βίον ἢ προσθετέον καὶ

βιωσόμενον οὕτω καὶ τελευτήσοντα κατὰ λόγον ἐπειδὴ τὸ μέλλον ἀφανὲς ἡμῖν

ἐστίν τὴν εὐδαιμονίαν δὲ τέλος καὶ τέλειον τίθεμεν πάντῃ πάντως

96

desempenho de todas as funccedilotildees aniacutemicas que compotildeem aquilo que se

entende como funccedilatildeo propriamente humana condiccedilatildeo para a

eudaiacutemōniacutea Prova do que afirmamos eacute o passo da Retoacuterica que indica a

necessidade da virtude para a vida feliz como destacaremos a seguir

Fazemos tal proposta pois como vimos e veremos consideramos

virtudes os melhores estados das faculdades da alma

Seja pois a felicidade o viver bem combinado

com a virtude ou a autossuficiecircncia na vida ou a

vida mais agradaacutevel com seguranccedila ou a pujanccedila

de bens materiais e dos corpos juntamente com a

faculdade de os conservar e usar pois

praticamente todos concordam que a felicidade eacute

uma ou vaacuterias destas coisas

Ora se tal eacute a natureza da felicidade eacute necessaacuterio

que as suas partes sejam a nobreza muitos

amigos bons amigos a riqueza bons filhos

muitos filhos uma boa velhice tambeacutem as

virtudes do corpo como a sauacutede a beleza o vigor

a estatura a forccedila para a luta a reputaccedilatildeo a

honra a boa sorte e a virtude [ou tambeacutem as suas

partes a prudecircncia a coragem a justiccedila e a

temperanccedila] Com efeito uma pessoa seria

inteiramente autossuficiente se possuiacutesse os bens

internos e externos pois fora destes natildeo haacute outros

Os bens internos satildeo os da alma e os do corpo os

externos satildeo a nobreza os amigos o dinheiro e a

honra Cremos contudo que a estes se devem

acrescentar certas capacidades e boa sorte pois

assim a vida seraacute muito mais segura (Rhet I 3

1360b14-29)85

85 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original ἔστω δὴ

εὐδαιμονία εὐπραξία μετ ἀρετῆς ἢ αὐτάρκεια ζωῆς ἢ ὁ βίος ὁ μετὰ ἀσφαλείας

ἥδιστος ἢ εὐθενία κτημάτων καὶ σωμάτων μετὰ δυνάμεως φυλακτικῆς τε καὶ

πρακτικῆς τούτων σχεδὸν γὰρ τούτων ἓν ἢ πλείω τὴν εὐδαιμονίαν

ὁμολογοῦσιν εἶναι ἅπαντες εἰ δή ἐστιν ἡ εὐδαιμονία τοιοῦτον ἀνάγκη αὐτῆς

εἶναι μέρη εὐγένειαν πολυφιλίαν χρηστοφιλίαν πλοῦτον εὐτεκνίαν

πολυτεκνίαν εὐγηρίαν ἔτι τὰς τοῦ σώματος ἀρετάς (οἷον ὑγίειαν κάλλος

ἰσχύν μέγεθος δύναμιν ἀγωνιστικήν) δόξαν τιμήν εὐτυχίαν ἀρετήν [ἢ καὶ τὰ

μέρη αὐτῆς φρόνησιν ἀνδρείαν δικαιοσύνην σωφροσύνην] οὕτω γὰρ ἂν

αὐταρκέστατός τις εἴη εἰ ὑπάρχοι αὐτῷ τά τ ἐν αὐτῷ καὶ τὰ ἐκτὸς ἀγαθά οὐ

γὰρ ἔστιν ἄλλα παρὰ ταῦτα ἔστι δ ἐν αὐτῷ μὲν τὰ περὶ ψυχὴν καὶ τὰ ἐν

97

O passo nos mostra Aristoacuteteles a discutir tanto a virtude (he

aretḗ) no singular quanto as virtudes (haigrave aretaiacute) particulares no

plural tornando-as coisas que soacute podem ser alcanccediladas por corpo e alma

em conjunto quando estatildeo na poacutelis Isso acontece porque para satisfazer

agraves exigecircncias da boa vida ou da melhor vida possiacutevel haacute ainda a

exigecircncia da capacidade racional associada e tentando conferir boa

forma agrave capacidade natildeo racional da alma responsaacutevel pelas virtudes

morais Por isso eacute indispensaacutevel agrave nossa investigaccedilatildeo tratar tambeacutem as

virtudes intelectuais e suas relaccedilotildees com a moralidade pois a funccedilatildeo

proacutepria ao homem eacute uma atividade da alma em conformidade com a

razatildeo (metagrave toucirc orthoucirc loacutegou) ou natildeo sem a razatildeo (katagrave tograven orthograven

loacutegon) Como vimos somente esse tipo de atividade ou esse conjunto

de atividades permitiria que o homem desempenhasse bem sua funccedilatildeo

do modo como o homem faz especificamente garantindo com esse bom

desempenho a felicidade devido ao bom cumprimento daquilo que

somente os humanos satildeo capazes de fazer e que entendemos como

resultado da virtude completa As virtudes todavia natildeo satildeo tomadas

somente no sentido comum de qualidades que um homem possa

apresentar mas como excelecircncia de suas capacidades Assim a

discussatildeo da virtude e das virtudes se faz necessaacuteria a quem reflete

sobre a eudaiacutemōniacutea mas obedecendo os contornos proacuteprios agrave

terminologia aristoteacutelica pois

[] felicidade eacute a boa ou bem-sucedida atividade

ou a atualizaccedilatildeo da faculdade que eacute peculiar agrave

alma humana e o vocaacutebulo grego para lsquovirtudersquo

aretḗ vem para indicar natildeo que cada mas

somente a boa atividade da alma deve ser

associada agrave felicidade portanto eacute claro que o que

importa na definiccedilatildeo de felicidade eacute a intenccedilatildeo da

palavra aretḗ a saber que significa um estado

excelente algo que exerce bem sua funccedilatildeo e

atinge os padrotildees mais elevados Este eacute um

sentido possiacutevel e comum da palavra grega aretḗ

mas o emprego no singular referindo o melhor

estado possiacutevel em qualquer campo particular eacute

ainda com efeito mais distante do emprego da

palavra no plural por meio do qual referimos as

σώματι ἔξω δὲ εὐγένεια καὶ φίλοι καὶ χρήματα καὶ τιμή ἔτι δὲ προσήκειν

οἰόμεθα δυνάμεις ὑπάρχειν καὶ τύχην οὕτω γὰρ ἀσφαλέστατος ὁ βίος

98

virtudes lsquocorriqueirasrsquo como justiccedila coragem

moderaccedilatildeo (RAPP 2010 p 408)

Se as propostas de Rapp estiverem corretas podemos pensar que

a felicidade existe graccedilas ao melhor estado possiacutevel agrave alma mas que

requer igualmente as virtudes particulares Por isso Aristoacuteteles entende

que os pensadores que identificaram a felicidade com a virtude ou com

a phroacutenēsis ou com a sophiacutea (saber teoacuterico) com uma delas algumas

delas ou todas elas acompanhadas ou natildeo de prazer e prosperidade

exterior parecem ter razatildeo ao menos em um ponto se natildeo em todos (EN

I 8 1098b20-29) O filoacutesofo igualmente pensa que acerta quem identifica

a eudaiacutemōniacutea com a virtude em geral ou com alguma virtude particular

porque a atividade virtuosa pertence agrave virtude embora seja diferente

entender o bem supremo como posse ou como uso em uma disposiccedilatildeo

ou em uma atividade A diferenccedila pousa no fato da disposiccedilatildeo poder

existir sem provocar um bom resultado quando se dorme por exemplo

mas a atividade virtuosa deve agir e agir bem pois as coisas nobres e

boas da vida soacute vecircm a quem age bem (EN 1099a1-7) Se as propostas

apresentam como virtude o que permite agir bem e o melhor estado de

uma ou de todas as capacidades da alma humana mantemos nossos

estudos no campo das questotildees aniacutemicas e por isso devemos recordar

que anteriormente entendemos que a aretḗ assim como a alma se

ldquodividerdquo umas satildeo intelectuais outras morais86 mas quanto ao caraacuteter

as virtudes satildeo morais e satildeo entendidas como disposiccedilotildees de caraacuteter

Assim eacute preciso que sejam examinadas algumas questotildees a respeito da

86 Rapp (2010 p 409) explica a relaccedilatildeo dos diferentes sentidos de virtude e

virtudes ldquoDeve estar mais evidente agora que a relaccedilatildeo entre lsquovirtudersquo

significando o excelente estado da alma e lsquovirtudesrsquo referindo os louvaacuteveis

traccedilos de personalidade admitidos correntemente e socialmente eacute um ponto

crucial em toda filosofia moral de inspiraccedilatildeo platocircnica e que eacute exatamente a esta

relaccedilatildeo que Aristoacuteteles devota sua atenccedilatildeo estrita Uma vez que eacute o primeiro

sentido de lsquovirtudersquo que estaacute em jogo no primeiro livro da EN (ie na definiccedilatildeo

de felicidade) e o uacuteltimo sentido que se torna proeminentemente no terceiro e

quarto livros estamos agora justificados em esperar que a definiccedilatildeo geral de

virtude ndash que eacute desenvolvida entre o primeiro e o terceiro livros e do qual a

doutrina do meio termo eacute um tema indispensaacutevel ndash ajudaraacute o leitor a

compreender a ligaccedilatildeo entre a excelecircncia da alma humana e as virtudes

corriqueiras tais como as conheciacuteamos antes de lidar com a filosofia moralrdquo

Diante dessas dissociaccedilotildees e associaccedilotildees podemos tomar o sentido geral de

virtude e questionar o sentido da virtude moral como meio termo que apresenta

enorme importacircncia para a tese que buscamos defender

99

virtude moral

2 A virtude moral

Pode parecer dispecircndio desnecessaacuterio de energia e tempo devido

a ser um longo e antigo debate mas neste momento entendemos ser

conveniente agrave nossa inquiriccedilatildeo questionar a natureza da virtude moral

ainda que Aristoacuteteles a defina a seu modo Lidaremos com a discussatildeo

na medida em que eacute importante auxiliar no esclarecimento quanto agraves

questotildees que propomos acerca das emoccedilotildees bem como de sua relaccedilatildeo

com a racionalidade A questatildeo se impotildee porque haacute comentaacuterios

recentes sobre a eacutetica de Aristoacuteteles que consideram improacutepria a

proposta da virtude como mediania87 nas emoccedilotildees e nas accedilotildees pois

entre outras falhas da doutrina seria relativa a cada agente e

circunstacircncia sendo inuacutetil como paracircmetro moral Seria tambeacutem

considerada questatildeo paradoxal pois o filoacutesofo recomenda que a medida

seja ldquorelativa a noacutesrdquo ao mesmo tempo em que exemplifica tal medida

com quantidades contaacuteveis Apesar de natildeo concordarmos com essas

interpretaccedilotildees decidimos tratar o assunto porque remete diretamente agrave

proposta das virtudes morais como medida na emoccedilatildeo pelo fato de o

filoacutesofo natildeo admitir a eudaiacutemōniacutea sem virtude moral e por algumas

questotildees intrigantes que surgem ao longo do passo da EN chamado por

Zingano Tratado da virtude moral (EN I 13-III 8) Com isso

buscaremos reavaliar a definiccedilatildeo de virtude moral como boa medida nas

accedilotildees e nas emoccedilotildees tentando evitar o aspecto relativista que tantas

vezes foi conferido agrave doutrina

A partir do que jaacute foi exposto percebemos que aleacutem da doutrina

da boa medida temos Aristoacuteteles a definir o tipo de virtude ora estudado

como uma espeacutecie de excelecircncia moral mas define-a tambeacutem como

uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha deliberada em II 6 e como virtude na

qual eacute possiacutevel que a razatildeo opere Aristoacuteteles resume a aretḗ ethikḗ do

seguinte modo ldquoDiscutimos em geral e em grandes linhas a respeito das

virtudes o gecircnero que satildeo mediedades que satildeo disposiccedilotildees por si

87Hurtshouse em seu A doutrina central da mediania em Aristoacuteteles afirma-se

ceacutetica quanto agrave utilidade da teoria em questatildeo Sorabji (2002 p 7-194-195)

embora aponte os estoicos alguns preacute-socraacuteticos e acadecircmicos como

propositores de uma perspectiva negativa quanto agrave teoria da mediedade afirma

que tal doutrina em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees natildeo eacute banal tendo grande papel social

Assim podemos perceber que as criacuteticas agrave doutrina natildeo satildeo recentes Mesmo

Kant jaacute havia dado sua opiniatildeo negativa quanto agrave proposta

100

mesmas de praticar aqueles atos pelos quais se engendram que estatildeo em

nosso poder e satildeo voluntaacuterias e que satildeo como a reta razatildeo ordenardquo (EN

III 8 1114b28-30) O estudo da phroacutenēsis no Livro VI da EN seria um

complemento agraves possibilidades de virtude e da vida boa moralmente

que soacute seriam completas juntamente com a virtude intelectual da

prudecircncia Adiantando o assunto deste uacuteltimo Livro mencionado e

dando coesatildeo agrave obra em EN II o filoacutesofo obteve a seguinte definiccedilatildeo de

virtude moral

A virtude eacute portanto uma disposiccedilatildeo de escolher

por deliberaccedilatildeo consistindo em uma mediedade

relativa a noacutes disposiccedilatildeo delimitada pela razatildeo

isto eacute como a delimitaria o prudente Eacute uma

mediedade entre dois males o mal por excesso e o

mal por falta Ainda pelo fato de as disposiccedilotildees

faltarem umas outras excederem no que se deve

tanto nas emoccedilotildees como nas accedilotildees a virtude

descobre e toma o meio termo Por isso por

essecircncia e pela foacutermula que exprime a quumlidade a

virtude eacute uma mediedade mas segundo o melhor

eacute o bem eacute um aacutepice (EN II 5 1106b35 II 6

1107a1-8)88

Essa investigaccedilatildeo acerca da natureza da virtude moral que

comeccedila em EN I eacute o foco de nossa investigaccedilatildeo nesse ponto Por isso

nosso estudo nesse momento se dedicaraacute a entender melhor a virtude

considerada desde II 4 como capacidade de se portar bem frente agraves

emoccedilotildees Buscaremos tambeacutem elaborar um breve estudo sobre a virtude

intelectual sem a qual natildeo eacute possiacutevel agir bem quanto agraves mesmas

emoccedilotildees O bom comportamento frente agraves emoccedilotildees eacute imprescindiacutevel agraves

virtudes morais particulares mas pensamos tambeacutem agravequela concepccedilatildeo

do que seja a virtude mais completa O passo da EN citado haacute pouco e

que daacute destaque agrave virtude moral nos leva a entendecirc-la como melhor

estado possiacutevel agrave capacidade natildeo racional da alma humana reforccedilando a

88 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original Ἔστιν ἄρα ἡ ἀρετὴ ἕξις

προαιρετική ἐν μεσότητι οὖσα τῇ πρὸς ἡμᾶς ὡρισμένῃ λόγῳ καὶ ᾧ ἂν ὁ

φρόνιμος ὁρίσειεν μεσότης δὲ δύο κακιῶν τῆς μὲν καθ ὑπερβολὴν τῆς δὲ κατ

ἔλλειψιν καὶ ἔτι τῷ τὰς μὲν ἐλλείπειν τὰς δ ὑπερβάλλειν τοῦ δέοντος ἔν τε τοῖς

πάθεσι καὶ ἐν ταῖς πράξεσι τὴν δ ἀρετὴν τὸ μέσον καὶ εὑρίσκειν καὶ αἱρεῖσθαι

διὸ κατὰ μὲν τὴν οὐσίαν καὶ τὸν λόγον τὸν τὸ τί ἦν εἶναι λέγοντα μεσότης ἐστὶν

ἡ ἀρετή κατὰ δὲ τὸ ἄριστον καὶ τὸ εὖ ἀκρότης

101

proposta da funccedilatildeo proacutepria ao homem como resultado da associaccedilatildeo das

melhores condiccedilotildees das duas capacidades da alma condiccedilatildeo excelente

que consideramos possibilitadora da eudaiacutemōniacutea A questatildeo no entanto

eacute entender como isso eacute possiacutevel Rapp bem observa (2010 p 410) que eacute

preciso esclarecer de que modo as virtudes podem ser entendidas como

melhor estado de cada capacidade da alma humana

No caso das virtudes intelectuais o autor pensa que o

entendimento seja faacutecil jaacute que manifestam o melhor estado da

capacidade racional sendo que tal funccedilatildeo estaacute em bom estado quando se

tem certas capacidades racionais ou intelectuais e se realiza bem as

funccedilotildees que lhes cabem Natildeo eacute claro contudo o modo como eacute possiacutevel

definir o bom estado da capacidade natildeo racional embora tal definiccedilatildeo

seja crucial para nossa pesquisa Tendo em mira esta duacutevida podemos

entatildeo questionar qual eacute o criteacuterio para o bom funcionamento da

capacidade natildeo racional desiderativa Sendo esta capacidade apta a

ouvir e obedecer agrave razatildeo seu bom estado eacute perceptiacutevel se ela realmente

concorda com as propostas racionais ou se reage como a razatildeo pede

mas

lsquoObedecer ao que a razatildeo demandarsquo pode

significar duas coisas bem diferentes que a

pessoa controlada (enkrates) faz o que a razatildeo

demanda enquanto existem impulsos opostos

incitando-a a agir de outra maneira ou a pessoa

virtuosa faz o que pede a razatildeo poreacutem sem ter

impulsos contraacuterios ou concorrentes Estes satildeo

dois niacuteveis de obediecircncia visto que Aristoacuteteles diz

que no uacuteltimo caso a parte natildeo-racional da alma

eacute muito mais facilmente obediente

(euekoacutemeteron) e tudo em uma tal pessoa eacute

consoante agrave razatildeo (homophoacutenei tocirci loacutegoi) (RAPP

2010 p 410-41)89

A partir dessa explicaccedilatildeo surge nova questatildeo Quando a

capacidade natildeo racional concorda com a racional Pensamos que nossa

questatildeo tambeacutem caiba aqui o que pode facilitar a concordacircncia entre

racional e natildeo racional para que as emoccedilotildees sejam educadas e para que a vida feliz seja possiacutevel A resposta para essas questotildees nos permitiraacute

entender por que as virtudes eacuteticas manifestam o bom estado da

capacidade natildeo racional embora o Livro I da EN natildeo solucione a

89 Igualmente em EN I 13 1102b27

102

indagaccedilatildeo A resposta buscada eacute deixada a cargo do Livro II que em seu

fim com a exposiccedilatildeo de uma espeacutecie de resumo dessa discussatildeo

apresenta um elemento definidor para a consonacircncia da capacidade natildeo

racional com a reta razatildeo Entatildeo esse Livro deve explicar como as

virtudes eacuteticas podem ser o bom estado da capacidade natildeo racional Mas

seraacute que tal resposta viraacute com a doutrina do meio termo Rapp entende

que esta doutrina ao menos contribuiraacute para a soluccedilatildeo do problema e noacutes

concordamos com esse entendimento Por isso julgamos ser

interessante discutir a validade e a aplicabilidade da teoria da boa

medida jaacute que Aristoacuteteles considera virtude moral como boa medida nas

emoccedilotildees Apesar das possiacuteveis falhas e das objeccedilotildees que tecircm sido

apresentadas ao longo dos tempos agrave doutrina buscaremos uma

abordagem sucinta e natildeo exaustiva do assunto mas na medida em que

reforce a importacircncia de tal teoria no que diz respeito agrave relaccedilatildeo da

virtude moral com a boa medida nas emoccedilotildees

2a) Caraacuteter tautoloacutegico ou trivial da doutrina da virtude moral como

mediania

A doutrina da boa medida como eacute chamada por estudiosos como

Rapp (2010 p 405 et seq) e Urmson (1984 p 157 et seq) eacute tomada

por alguns como trivial ou mesmo tautoloacutegica Um dos motivos para

esse tipo de acusaccedilatildeo agrave teoria eacute o fato de ela propor que a medida seja

lsquorelativa a noacutesrsquo afirmaccedilatildeo que daria agrave proposta do meio termo um tom

relativista ou subjetivo gerando duacutevidas sobre sua utilidade e

aplicabilidade como padratildeo para as accedilotildees moralmente boas A criacutetica

tambeacutem eacute feita porque parece pretender quantificar o que Aristoacuteteles

defende ser em muitos passos ldquorelativo a noacutesrdquo e que tem como

paracircmetro o homem bom suas accedilotildees o bem e as circunstacircncias90

90 Kant por exemplo se posiciona contrariamente agrave doutrina da boa medida

porque entendeu o princiacutepio como falso Pensava que natildeo se pode buscar

diferenccedilas entre virtude e viacutecio no grau segundo o qual algumas maacuteximas satildeo

observadas As diferenccedilas deveriam ser buscadas na qualidade especiacutefica de tais

maacuteximas Seria falso portanto propor a virtude como meio termo entre dois

viacutecios pois cada um deles teria sua proacutepria maacutexima e por isso um contradiria o

outro impedindo a doutrina de ser tomada como proposta universal que guiasse

a accedilatildeo humana A postura eacutetica kantiana contraacuteria as propostas aristoteacutelicas

sobre a virtude moral como boa medida eacute posta agrave prova de modo interessante e

favoraacutevel a Aristoacuteteles por Anscombe em seu Modern moral philosophy Por

isso quem deseja reforccedilar a validade das teorias de Aristoacuteteles em detrimento a

propostas como as de Kant como eacute o nosso caso deve ao menos mencionar o

103

Pensamentos como estes acusariam a mencionada doutrina de um

desacordo interno e como propusemos levaram filoacutesofos e

comentadores a um longo debate sobre o passo em que a virtude moral

aparece descrita como mediania entre excesso e falta o Livro II 6 da

EN

Aleacutem disso as objeccedilotildees atingem diretamente as propostas do

filoacutesofo a respeito do comportamento que o virtuoso - ou o homem de

um modo geral - deve apresentar diante das emoccedilotildees Portanto

julgamos ser conveniente discutir um pouco a questatildeo para tentar

desfazer esses embaraccedilos e na medida em que nos auxilie a por emoccedilatildeo

e razatildeo em acordo Para tanto defenderemos que a doutrina apresenta

conjuntamente e sem complicaccedilotildees aspectos quantitativos qualitativos

e avaliativos Buscaremos fazer isso pois pensamos ser a melhor forma

de entender a virtude moral e sua exigecircncia de boa medida raciocinada

quanto agraves inevitaacuteveis emoccedilotildees Entendemos que o aspecto avaliativo da

doutrina natildeo eacute invalidado pela proposta conceitual atribuiacuteda agrave mesma

porque a capacidade de avaliaccedilatildeo do entorno permite ao virtuoso ser

bom juiz91

artigo da filoacutesofa que abre espaccedilo na contemporaneidade para uma eacutetica das

virtudes com base em Aristoacuteteles 91 Rapp explica que haacute duas possibilidades interpretativas para a doutrina da boa

medida e que podemos apresentar aqui com os trechos citados Por conseguinte

a doutrina tem aspecto conceitual que pode ser expresso do seguinte modo ser

muito ou muito pouco levam a esquecer a quantia correta Para o autor esse eacute

um sentido analiacutetico da doutrina que eacute importante quando em EN 2 VI e EE 2

III define-se a virtude contudo esse caraacuteter conceitual se torna pouco claro com

a exposiccedilatildeo na EN de uma opccedilatildeo empiacuterica da doutrina em questatildeo Em 2 II eacute

afirmado que aquilo que se discute pode ser destruiacutedo por excesso ou falta mas

preservado pelo meio termo e Aristoacuteteles daacute o exemplo da forccedila fiacutesica

conservada ou destruiacuteda por treinamento (EN 1104a11-13) Nesse ponto

excesso deficiecircncia e meio termo satildeo entendidos como o que gera preserva ou

destroacutei o que ultrapassa segundo o comentador a questatildeo conceitual pois o

filoacutesofo descreve tal fato como observaacutevel (horocircmen)

As duas possibilidades da doutrina analiacutetica e empiacuterica dadas pelo livro II

induzem em erro pensa Rapp e pensa tambeacutem que por isso haacute comentaacuterios

que entendem que tal doutrina oscile entre um modelo analiacutetico e alguma outra

coisa ldquoEntretanto haacute algumas evidecircncias de que a versatildeo empiacuterica natildeo se

equipara agrave versatildeo analiacutetica (i) a versatildeo empiacuterica em EN 22 natildeo desenvolve a

doutrina de modo completo que deveria pelo menos incluir o conceito de lsquomeio

termo para noacutesrsquo etc (ii) EE e EN concordam amplamente na definiccedilatildeo de

virtude eacutetica e na doutrina do meio termo que eacute um elemento da discussatildeo mas

a EE oferece apenas a versatildeo conceitual e natildeo inclui um equivalente da variaccedilatildeo

104

A desavenccedila quanto agrave teoria da boa medida pode ter como iniacutecio

afirmaccedilotildees feitas por Aristoacuteteles propondo que os discursos sobre

questotildees praacuteticas satildeo em linhas gerais e natildeo exatas Isso significaria que

quando se trata das accedilotildees particulares natildeo haacute fixidez Se natildeo haacute fixidez

nos discursos sobre as coisas gerais desse tipo muito menos haveraacute

quando se tratar das coisas particulares92 O filoacutesofo entende que por

isso os agentes devem apreciar o momento da accedilatildeo (EN II 2 1104a1-9)

embora pense que mesmo assim natildeo devamos nos furtar a discutir tais

assuntos pois em eacutetica ou seja para o filoacutesofo moral interessam

sobremaneira as accedilotildees particulares Por conseguinte Aristoacuteteles comeccedila

o tratamento da virtude como boa medida afirmando que as coisas ora

estudadas satildeo naturalmente corrompidas por excesso e falta mas que a

mediania eacute aliada das virtudes Ao exemplificar seu pensamento

contudo parece se referir a quantidades (EN 1104a13-17) como no caso

que segue

Foi dito satisfatoriamente que a virtude moral eacute

empiacutericardquo (RAPP 2010 p 414-415) A partir disso o autor conclui que natildeo eacute

preciso recorrer agraves referecircncias empiacutericas para defender a doutrina da boa

medida 92 Zingano faz consideraccedilotildees muito interessantes a respeito desse trecho e do

que ele realmente pretende dizer Apoia-se para tanto na proposta de Burnet

que sugere voltar aos manuscritos para a leitura e interpretaccedilatildeo correta do passo

(onde se poderia ler pacircs ho perigrave tocircn prakteacuteon loacutegos diferentemente do que se lecirc

nas ediccedilotildees modernas como a de Bekker pacircs ho perigrave tocircn praktocircn loacutegos) Com

isso entende o seguinte sobre o passo ldquoSegundo a versatildeo dos manuscritos todo

discurso de questotildees praacuteticas isto eacute sobre o que devemos fazer em tal situaccedilatildeo

deve ser dado em grandes linhas na versatildeo dos editores modernos eacute antes a

imprecisatildeo do discurso sobre questotildees praacuteticas que eacute posta em realce isto eacute do

discurso que porta sobre o que satildeo as accedilotildees e questotildees similares Aristoacuteteles

poreacutem como observa Burnet natildeo estaacute falando de como fornecer regras sobre o

que fazer Como Aristoacuteteles diraacute a seguir os agentes devem sempre buscar a

soluccedilatildeo segundo as circunstacircncias isto eacute uma consideraccedilatildeo que faz o filoacutesofo

moral e tal consideraccedilatildeo estaacute expressa no registro do que sempre ocorre No

campo praacutetico o que deve ser feito por ser sempre circunstancial varia

enormemente o que ocasiona a referida perda de exatidatildeo [] Poreacutem o ponto

da inexatidatildeo e expressatildeo unicamente em linhas gerais vale para as decisotildees

praacuteticas aquelas que toma o prudente o que o filoacutesofo faz a teoria moral natildeo

estaacute aqui sob anaacutelise (quando Aristoacuteteles define o que eacute a felicidade ele natildeo

pensa estar fornecendo uma proposiccedilatildeo que eacute vaacutelida somente nas mais das

vezes)rdquo (ZINGANO 2008 p 104-105) Assim o discurso moral seria

impreciso natildeo por falha cognitiva nossa mas por seu objeto impreciso a accedilatildeo

105

um meio termo como o eacute que eacute um meio termo

nas emoccedilotildees e nas accedilotildees Por isso eacute aacuterduo ser

bom pois eacute aacuterduo determinar o meio termo em

cada situaccedilatildeo ndash por exemplo determinar o meio

de um ciacuterculo natildeo eacute para qualquer um mas para

quem sabe assim tambeacutem eacute para qualquer um e eacute

faacutecil encolerizar-se dar ou gastar dinheiro mas

natildeo eacute para qualquer um nem eacute faacutecil o determinar a

quem quanto quando em vista do que e como

fazer Por esta razatildeo o bem agir eacute raro louvaacutevel e

belo Por isso quem mira no meio termo deve

primeiramente se apartar do que eacute mais contraacuterio

[] Entendo por meio termo da coisa o que dista

igualmente de cada um dos extremos que

justamente eacute uacutenico e mesmo para todos os casos

por meio termo relativo a noacutes o que natildeo excede

nem falta mas isso natildeo eacute uacutenico nem o mesmo

para todos os casos (EN II 9 1109a20-30)93

Uma argumentaccedilatildeo e uma exemplificaccedilatildeo desse tipo abririam

espaccedilo agraves duacutevidas acima mencionadas e tambeacutem agraves duacutevidas a respeito

das reais intenccedilotildees de Aristoacuteteles ao propor a teoria da mediania

Questatildeo que aparece com a afirmaccedilatildeo de que em tudo que eacute contiacutenuo e

divisiacutevel se pode tomar mais menos e igual quantidade relativamente a

noacutes ou agrave coisa (EN II 5 1106a24-27) O igual eacute considerado meio termo

entre excesso e falta94 podendo apresentar um conflito com a ideia de

que a boa medida nas emoccedilotildees deva ser relativa a noacutes

Para destacar o problema podemos tomar a afirmaccedilatildeo que a

virtude moral estaacute relacionada com accedilotildees e emoccedilotildees (praacutexeis kaigrave paacutethē)

93 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original Ὅτι μὲν οὖν ἐστὶν ἡ ἀρετὴ ἡ ἠθικὴ

μεσότης καὶ πῶς καὶ ὅτι μεσότης δύο κακιῶν τῆς ὲν καθ ὑπερβολὴν τῆς δὲ

κατ ἔλλειψιν καὶ ὅτι τοιαύτη ἐστὶ διὰ τὸ στοχαστικὴ τοῦ μέσου εἶναι τοῦ ἐν

τοῖς πάθεσι καὶ ἐν ταῖς πράξεσιν ἱκανῶς εἴρηται διὸ καὶ ἔργον ἐστὶ σπουδαῖον

εἶναι ἐν ἑκάστῳ γὰρ τὸ μέσον λαβεῖν ἔργον οἷον κύκλου τὸ μέσον οὐ παντὸς

ἀλλὰ τοῦ εἰδότος οὕτω δὲ καὶ τὸ μὲν ὀργισθῆναι παντὸς καὶ ῥᾴδιον καὶ τὸ

οῦναι ἀργύριον καὶ δαπανῆσαι τὸ δ ᾧ καὶ ὅσον καὶ ὅτε καὶ οὗ ἕνεκα καὶ ὥς

οὐκέτι παντὸς οὐδὲ ῥᾴδιον διόπερ τὸ εὖ καὶ σπάνιον καὶ ἐπαινετὸν καὶ καλόν

διὸ δεῖ τὸν στοχαζόμενον τοῦ μέσου πρῶτον μὲν ἀποχωρεῖν τοῦ μᾶλλον

ἐναντίου [] τὸ μὲν ἄρα τοσοῦτο δηλοῖ ὅτι ἡ μέση ἕξις ἐν πᾶσιν ἐπαινετή

ἀποκλίνειν δὲ δεῖ ὁτὲ μὲν ἐπὶ τὴν ὑπερβολὴν ὁτὲ δ ἐπὶ τὴν ἔλλειψινοὕτω γὰρ

ῥᾷστα τοῦ μέσου καὶ τοῦ εὖ τευξόμεθα 93 Idem τὸ δ ἴσον καὶ ταῦτα ἢ κατ αὐτὸ τὸ πρᾶγμα ἢ πρὸς ἡμᾶς

106

pois estas podem admitir excesso ou falta ou meio termo sendo

possiacutevel por exemplo temer muito ou pouco ou como conveacutem Essa

proposta parece ser referente agrave quantidade de emoccedilatildeo a ser sentida mas

que natildeo eacute a uacutenica delimitaccedilatildeo da boa medida Aristoacuteteles parece

estabelecer aleacutem disso certos paracircmetros para se emocionar

adequadamente pois para que haja a virtude eacute preciso sentir emoccedilotildees

quando com o quecirc e com quem se deve etc o mesmo sendo vaacutelido

para as accedilotildees impedindo uma interpretaccedilatildeo meramente quantitativa da

boa medida As questotildees que se impotildeem frente a tal proposiccedilatildeo satildeo as

seguintes (1) Como interpretar a doutrina da boa medida quantitativa

ou qualitativamente (2) Como aplicar a proposta da quantia certa agraves

accedilotildees (3) A doutrina eacute tautoloacutegica e trivial Temos portanto trecircs

questotildees em matildeos e a resolver antes de aceitar que para a vida feliz seja

preciso que se decirc boa medida agraves emoccedilotildees

A primeira questatildeo que devemos responder nos apresenta a boa

medida como quantidade certa de emoccedilatildeo sentida e accedilatildeo praticada

Devemos entender como conciliar a ideia de boa medida que estaacute entre

dois extremos com a proposta de que a virtude natildeo eacute meacutedia aritmeacutetica

Questatildeo a ser discutida pois o proacuteprio filoacutesofo admite que em certas

disposiccedilotildees a virtude moral se aproxima mais de um dos viacutecios que de

outros como percebemos a partir dos exemplos quantificadores Com

isso agraves vezes os extremos estatildeo mais distantes uns dos outros que do

meio este uacuteltimo podendo apresentar mais semelhanccedila com um dos

contraacuterios por exemplo a covardia eacute mais oposta agrave coragem que a

temeridade Outro exemplo eacute que por tendermos mais aos prazeres que

agrave moderaccedilatildeo somos mais propensos agrave intemperanccedila que agrave temperanccedila e

por isso os extremos aos quais tendemos mais satildeo mais contraacuterios de

seus contraacuterios sendo a intemperanccedila mais contraacuteria agrave temperanccedila (EN

II 6 1107a20 et seq) Todas essas afirmaccedilotildees natildeo desfazem o incocircmodo

que se sente ao somar esse tipo de distinccedilatildeo do que seja a virtude aos

exemplos aritmeacuteticos que lhes seguem A observaccedilatildeo que nas accedilotildees e

emoccedilotildees excessos e faltas satildeo censurados enquanto o meio termo eacute

digno de louvor sendo que para o filoacutesofo as marcas da virtude satildeo o

acerto e digno de louvor intensifica a duacutevida

Quem teme e foge de tudo e nada suporta torna-se

covarde quem em geral nada teme mas tudo

enfrenta torna-se temeraacuterio [] a temperanccedila e a

coragem entatildeo satildeo destruiacutedas pelo excesso e pela

falta mas preservadas pela mediedade [] Assim

tambeacutem acontece com as virtudes do abster-se

107

dos prazeres tornamo-nos temperantes tornados

temperantes somos os mais capazes de abster-nos

deles Igualmente com a coragem habituados a

desprezar tornamo-nos corajosos tornados

corajosos seremos os mais capazes de suportar

coisas temiacuteveis (EN II 2 1104a20-35 1104b1-3)95

A virtude eacute entendida como o que visa o meio termo mas acertar

esse meio soacute acontece de um modo embora errar seja possiacutevel de vaacuterias

formas Diante dessas consideraccedilotildees destacam-se tambeacutem as marcas do

viacutecio o erro o excesso e a falta todas aparentemente relacionadas agraves

quantidades de accedilotildees e emoccedilotildees praticadas e sentidas

Assim da primeira questatildeo viria ainda o segundo problema

enquadrar a teoria do mais do menos e do mesmo tanto agrave forma de agir

Seria relativamente faacutecil entender como eacute possiacutevel exigir medidas

quantitativas em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees poreacutem determinar quantidades

aplicaacuteveis aos modos de agir eticamente natildeo seria tatildeo simples

Aristoacuteteles fala de qualificadores determinantes das accedilotildees conforme agraves

circunstacircncias mas seus exemplos praacuteticos natildeo se aplicam exatamente

agraves questotildees eacuteticas reforccedilando o tom problemaacutetico das propostas nesse

sentido

Temos que encarar ainda outra questatildeo inquietante a terceira

que diz respeito agrave trivialidade da doutrina devido agrave inexatidatildeo e

particularidade do assunto Caso expresso tambeacutem ao se afirmar que um

dos extremos induz mais ao erro que o outro Por isso como eacute difiacutecil

acertar o meio seria preferiacutevel tomar entre os extremos aquele que eacute o

mal menor cabendo ao agente decidir o que fazer em cada situaccedilatildeo

Deste modo eacute preciso prestar atenccedilatildeo aos erros aos quais se tem

propensatildeo sendo isto perceptiacutevel pelo prazer e pela dor que o agente

sente com o que faz (EN I 1 1109b4) O filoacutesofo sugere que o agente se

encaminhe para o lado oposto ao mais apraziacutevel para se afastar o

maacuteximo do erro pois natildeo eacute bom juiz quanto ao agradaacutevel e ao prazer

Ao se afastar do prazer corre menos riscos de errar e eacute mais propenso a

95 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ὅ τε γὰρ πάντα φεύγων καὶ

φοβούμενος καὶ μηδὲν ὑπομένων δειλὸς γίνεται ὅ τε μηδὲν ὅλως φοβούμενος

[] φθείρεται δὴ σωφροσύνη καὶ ἡ ἀνδρεία ὑπὸ τῆς ὑπερβολῆς καὶ τῆς ἐλλείψεως ὑπὸ δὲ τῆς μεσότητος σῴζεται [] οὕτω δ ἔχει καὶ ἐπὶ τῶν

ἀρετῶν ἔκ τε γὰρ τοῦ ἀπέχεσθαι τῶν ἡδονῶν γινόμεθα σώφρονες καὶ

γενόμενοι μάλιστα δυνάμεθα ἀπέχεσθαι αὐτῶν ὁμοίως δὲ καὶ ἐπὶ τῆς

ἀνδρείας ἐθιζόμενοι γὰρ καταφρονεῖν τῶν φοβερῶν καὶ ὑπομένειν αὐτὰ

γινόμεθα ἀνδρεῖοι καὶ γενόμενοι μάλιστα δυνησόμεθα ὑπομένειν τὰ φοβερά

108

atingir o meio termo Tarefa que natildeo eacute faacutecil de ser cumprida pois se

trata de casos particulares e das sensaccedilotildees mateacuteria da discriminaccedilatildeo

(EN II 9 1109b23) Em todos os casos a postura meacutedia eacute louvaacutevel mas

certas vezes se deve tender para um dos extremos a fim de atingir mais

facilmente o meio termo ou o bem explicaccedilatildeo que novamente natildeo alivia

nossas duacutevidas Essas propostas de Aristoacuteteles que afastam a accedilatildeo

correta moralmente do meio termo como meacutedia aritmeacutetica igualmente

levam a duvidar da possibilidade de entender como se pode afirmar que

as accedilotildees soacute seriam viaacuteveis eticamente se seguissem a doutrina da

mediania

A soluccedilatildeo que parece interessante agraves questotildees (1) e (3) vem com

as consideraccedilotildees de Rapp (2010 p 414 et seq) O autor entende e

justifica a viabilidade da doutrina do meio termo caso interpretada

conceitualmente ou seja como delimitadora da bondade ou retidatildeo das

disposiccedilotildees que concordam com as sugestotildees da capacidade racional

Segundo tal proposta natildeo confiariacuteamos totalmente a validaccedilatildeo da teoria

da boa medida a exemplos empiacutericos como aqueles que destacamos

acima e que satildeo causadores da confusatildeo que ora apresentamos Ao

compreender deste modo seria possiacutevel salvar a credibilidade da

doutrina por pensar que natildeo interpretariacuteamos o meio termo apenas

quantitativamente O que fariacuteamos seria tomar como possibilidade

entender a proposta de Aristoacuteteles como simultaneamente quantitativa

e qualitativa sem anular uma ou outra postura Temos ainda a questatildeo

(2) que nos leva a pensar a teoria da boa medida como uacutetil agrave vida moral

por ser aplicaacutevel agraves accedilotildees concretas Podemos comeccedilar a refletir sobre o

assunto e a buscar soluccedilatildeo para ele a partir da definiccedilatildeo da virtude moral

como mediania que tem iniacutecio juntamente com aquela lsquodefiniccedilatildeorsquo de

emoccedilatildeo entendendo as virtudes como

[] disposiccedilotildees [] em funccedilatildeo das quais nos

portamos bem ou mal com relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees

por exemplo com relaccedilatildeo ao encolerizar-se se

nos encolerizamos forte ou fracamente portamo-

nos mal se moderadamente bem e de modo

semelhante com relaccedilatildeo agraves outras emoccedilotildees (EN II

4 1105b25-28)96

A forma como um agente se comporta em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees

96 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἕξεις [] καθ ἃς πρὸς τὰ πάθη

ἔχομεν εὖ ἢ κακῶς οἷον πρὸς τὸ ὀργισθῆναι εἰ μὲν σφοδρῶς ἢ ἀνειμένως

κακῶς ἔχομεν εἰ δὲ μέσως εὖ ὁμοίως δὲ καὶ πρὸς τἆλλα

109

que sente embora possa sugerir accedilatildeo particular determina politicamente

a vida pois tais accedilotildees satildeo cometidas na poacutelis e para Aristoacuteteles as

virtudes morais eram percebidas por elogios dispensados a um cidadatildeo

Uma pessoa era considerada virtuosa ou viciosa quando elogiada ou

censurada pela forma como - ou pela intensidade com que - sentia as

emoccedilotildees embora natildeo se teccedila elogios ou censuras em razatildeo das

emoccedilotildees As pessoas natildeo recebem aprovaccedilatildeo ou reprovaccedilatildeo da

comunidade por sentirem medo excessivo ou fora de hora por exemplo

pois podem natildeo demonstrar tal medo por meio de gestos accedilotildees e

palavras Sentir temor em excesso natildeo eacute motivo de louvor ou censura

mas a forma como cada cidadatildeo apresenta tais emoccedilotildees agrave sua

comunidade eacute motivo para tanto Por isso Aristoacuteteles afirma que natildeo se

elogia ou censura quem teme mas quem teme de certo modo (EN II 4

1106a1) porque a pessoa sente medo sem escolher deliberadamente

mas as virtudes satildeo escolhas deliberadas ou natildeo acontecem sem escolha

desse tipo Emocionar-se e escolher deliberadamente contudo devem

ser fruto do haacutebito e da aprendizagem

Por isso as virtudes morais foram tratadas como disposiccedilotildees que

levam a agir sem excesso ou falta relativamente agraves emoccedilotildees e agraves accedilotildees e

que podem ser habituadas Justamente por essa relaccedilatildeo de proximidade

entre emoccedilotildees e accedilotildees na eacutetica eacute que se pode tambeacutem buscar uma

resposta para questatildeo (2) a saber como estender a boa medida agraves accedilotildees

para que estas sejam boas As accedilotildees podem ser tratadas desse modo

como explica Zingano por sua intimidade com as emoccedilotildees Ao se

regular as emoccedilotildees regular-se-ia tambeacutem as atividades e accedilotildees a estas

associadas ldquoAs accedilotildees sujeitam-se assim agrave anaacutelise do excesso falta ou

justo meio relativos agraves emoccedilotildees que exprimem encolerizar-se em

demasia ou em relaccedilatildeo a quem natildeo se deve eacute um excesso emotivo que

coloca a accedilatildeo fora do compasso da virtuderdquo (ZINGANO 2008 p 127)

Interpretaccedilatildeo que favorece a doutrina do meio termo

Tal proposta nos faz pensar que satildeo postos paracircmetros para a boa

accedilatildeo relacionada agraves emoccedilotildees Seria preciso se emocionar como jaacute

repetimos algumas vezes em relaccedilatildeo a quem eacute devido adequadamente e

no momento apropriado Isso contudo natildeo favoreceria somente uma

interpretaccedilatildeo qualitativa da doutrina da boa medida Parece que natildeo se

admitirmos com Rapp a ideia de que em relaccedilatildeo a cada virtude haacute

escalas contiacutenuas que vatildeo do agir lsquomais em excessorsquo ao lsquoagir mais

deficientementersquo mas sem que por isso seja necessaacuterio colocar a boa

medida absolutamente no centro de cada escala Com isso estaria salva

a possibilidade quantificadora da doutrina embora natildeo seja uma

determinaccedilatildeo de uma medida exata natural ou absoluta A proposta

110

qualificadora igualmente se conservaria jaacute que a observaccedilatildeo do

momento da accedilatildeo e dos demais paracircmetros mencionados (ou natildeo) nos

levaria a compreender como eacute possiacutevel tomar o meio sem

necessariamente exigir uma meacutedia aritmeacutetica para tanto bem como sem

incorrer em relativismo

Assim apoacutes as propostas sobre as questotildees levantadas podemos

entender que a doutrina pode ser tomada como conceitual ou natildeo

empiacuterica natildeo sendo necessaacuterio que entendamos os exemplos

matemaacuteticos e a explicaccedilatildeo do lsquomeio termo relativo a noacutesrsquo como

contraditoacuterios mesmo porque satildeo propostas que aparecem no mesmo

passo da EN (EN II 9 1109a19-30) Deste modo eacute possiacutevel entender que

o filoacutesofo descreve toda virtude como o bom estado que leva ao

desempenho da funccedilatildeo proacutepria agravequilo de que ela eacute virtude O exemplo

dado por Aristoacuteteles eacute que haacute tocadores de ciacutetara mas os tocadores

virtuosos satildeo os bons tocadores de ciacutetara entendimento que igualmente

se aplica ao bom agente (EN II 5 1106b20-35 II 6 1107a1-6) O homem

virtuoso eacute aquele que busca o bem que lhe eacute natural a eudaiacutemōniacutea e

busca cientemente e de acordo com os paracircmetros e quantidades

adequados na emoccedilatildeo e na accedilatildeo Portanto esse homem e o bem que ele

procura satildeo os padrotildees da bondade e da virtude a serem seguidos

impedindo que a doutrina da boa medida soe como totalmente relativa

aos agentes ou agraves circunstacircncias

Em suma ao longo das discussotildees acima propostas vimos a

virtude moral ser descrita como disposiccedilatildeo de caraacuteter em acordo com a

deliberaccedilatildeo com a escolha deliberada e com a prudecircncia ou seja

conforme o que a razatildeo praacutetica propotildee A virtude moral em essecircncia eacute

boa medida quanto agrave forma como se age e ao modo como se emociona

(EN II 9 1109a20-24) A teoria eacute viaacutevel porque podemos tomar o

esquema do excessofaltaboa medida em termos conceituais natildeo

descartando mas pondo lado a lado seus melhores aspectos

quantitativos e qualitativos aplicando a boa medida tambeacutem agraves accedilotildees

Esses aspectos igualmente se aplicam agraves accedilotildees porque haacute uma relaccedilatildeo

indispensaacutevel entre accedilatildeo e emoccedilatildeo sendo tal relaccedilatildeo o motivo de

podermos propor a teoria da boa medida como qualitativa e ao mesmo

tempo quantitativa sem o risco de incoerecircncias Assim a doutrina

igualmente pode ser estendida agraves accedilotildees mas pensamos que para tanto

devem ser observados ainda seus aspectos avaliativos jaacute que os

paracircmetros podem sugerir que o homem virtuoso avalie as

circunstacircncias agrave sua volta e depois se posicione com o modo adequado

de agir

Embora comentadores como Rapp apresentem algumas dessas

111

caracteriacutesticas em separado pensamos que a proposta apaziguadora que

trazemos confere validade e utilidade agrave teoria da boa medida e resposta

agraves questotildees que foram discutidas (1) A teoria da boa medida eacute

qualitativa ou quantitativa (2) A doutrina da boa medida pode ser

tomada como diretriz praacutetica para a accedilatildeo e (3) A doutrina eacute trivial e

tautoloacutegica Ratificando nossa resposta agrave primeira questatildeo eacute que a

doutrina pode apresentar ambos os aspectos qualitativos e quantitativos

atribuindo-os tanto agraves emoccedilotildees quanto agraves accedilotildees A resposta agrave segunda

questatildeo eacute que a doutrina natildeo pode ser entendida como diretriz praacutetica

no sentido de um procedimento de decisatildeo sendo um delimitador da

bondade ou da retidatildeo das disposiccedilotildees de caraacuteter que entram em acordo

com a razatildeo Entendemos contudo divergindo de Rapp que se eacute

doutrina conceitual formulada por um filoacutesofo que pensa em agentes

possiacuteveis como os prudentes pode preparar tais agentes racionalmente

e permitir que estejam mais aptos a decisotildees natildeo retirando certa

praticidade que possa ser ligada ainda que indiretamente agrave doutrina

Ainda quanto agrave segunda questatildeo concordamos com Zingano (2008 p

127) que entende as emoccedilotildees como intrinsecamente ligadas agraves accedilotildees

Esse elo torna impossiacutevel pensar que se as accedilotildees satildeo respostas dadas agraves

emoccedilotildees haveria como separaacute-las conferindo medida a umas e natildeo a

outras A resposta de Rapp agrave terceira questatildeo eacute que a doutrina fornece

um esquema geral que serve como guia para a exploraccedilatildeo das vaacuterias

virtudes e concordamos com essa postura Pensamos que nossas

perspectivas estando ou natildeo associadas agraves dos comentadores

supracitados se tornaratildeo mais claras com a anaacutelise que se seguiraacute da

virtude particular da coragem que apresentaraacute nitidamente a relaccedilatildeo da

virtude moral como boa medida com a emoccedilatildeo do medo

2b) Exemplo da viabilidade da virtude moral como mediania nas

emoccedilotildees a virtude particular da coragem e o medo

Para verificar e comprovar tudo que propusemos anteriormente

podemos tomar a emoccedilatildeo do medo como exemplo Isso nos ajudaraacute a

confirmar que o fato da doutrina natildeo prescrever modos de accedilatildeo natildeo

significa que natildeo possa ser empregada97 ou ligada agraves accedilotildees

97 A questatildeo da natildeo empregabilidade da doutrina se deve como propusemos

anteriormente ao aspecto filosoacutefico e natildeo praacutetico que Aristoacuteteles confere agrave sua

investigaccedilatildeo eacutetica Mesmo que proponha que o interesse do estudo eacute agir e natildeo

conhecer o filoacutesofo ressalta a importacircncia de anaacutelise filosoacutefica das questotildees

relativas a accedilotildees e casos particulares de accedilatildeo Por isso quando esquadrinha sua

112

As definiccedilotildees da virtude moral oferecidas na EE e na EN satildeo

seguidas por discussotildees sobre virtudes particulares que tecircm em sua

definiccedilatildeo o elemento lsquomeio termorsquo quanto a accedilotildees e emoccedilotildees Ao

propor mesmo que com variaccedilotildees que as virtudes particulares satildeo meio

termos tem-se um certo tipo de aplicaccedilatildeo agrave doutrina explica Rapp Tal

teoria a princiacutepio pode natildeo ser aplicada a decisotildees ou accedilotildees

particulares mas agravequilo que o autor chama de ldquoexploraccedilatildeo filosoacutefica das

vaacuterias virtudes eacuteticasrdquo (RAPP 2010 p 420) Isso acontece porque a

eacutetica de Aristoacuteteles admite niacuteveis variados de particularidade e

generalidade e a proposta da virtude como meio termo estaacute em um niacutevel

mais alto de generalidade Por isso as verdades eacuteticas satildeo um tanto

vagas ou como escreve o proacuteprio Aristoacuteteles satildeo em grandes linhas

(tyacutepoi) e imprecisas (EN II 2 1104a1-2) A discussatildeo sobre as virtudes

particulares comparada a isso eacute bem mais concreta mas ainda natildeo tem

a concretude de uma deliberaccedilatildeo para agir em uma situaccedilatildeo particular

ldquoHaacute portanto uma aplicaccedilatildeo da doutrina mas natildeo como um

procedimento de decisatildeordquo explica Rapp (2010 p 421) No entanto

propusemos acima e reforccedilamos aqui que pensamos um pouco diferente

desse comentador porque acreditamos que essa anaacutelise das virtudes

particulares mesmo tomando a teoria da boa medida como conceitual

leva a um ganho real na eacutetica de Aristoacuteteles

A proposta de excessofaltaboa medida nas emoccedilotildees e nas accedilotildees

que levam aos viacutecios ou agrave virtude pode natildeo ser aplicada ao processo de

decisatildeo mas faz com que o agente conheccedila melhor suas reaccedilotildees

emocionais e que esteja mais bem preparado para tomar decisotildees e

agir98 Aleacutem disso se seguirmos a proposta aristoteacutelica de que o

exemplo e a conduccedilatildeo exterior satildeo o que a princiacutepio ajuda na

habituaccedilatildeo moral do futuro cidadatildeo que tal exemplo vem do homem

virtuoso moralmente e prudente provavelmente encontraremos nisso

um passo aleacutem da reflexatildeo puramente filosoacutefica mencionada pela EN

Ao sugerir que se deva buscar agir como agiria um homem corajoso

provavelmente a doutrina ultrapasse o campo da teoria moral

traduccedilatildeo do ldquoquadrordquo das virtudes morais apresentado na EN Zingano propotildee

que nesse ponto da discussatildeo aparece o que seria o uacutenico momento em que

Aristoacuteteles se posiciona como o prudente e natildeo como o filoacutesofo pois aconselha

quanto a modos de atingir o meio termo e natildeo teoriza sobre a questatildeo O passo

no qual isso acontece eacute aquele que mencionamos como apresentando a ldquocurardquo

pelo contraacuterio 1109b1 quando a EN admite o tom de cartilha moral 98 Nussbaum propotildee esse tipo de interpretaccedilatildeo mas a respeito das emoccedilotildees

despertadas pela trageacutedia em seu The Fragility of Goodness

113

encaminhando-se para uma possiacutevel embora natildeo insistente proposta de

accedilatildeo

Tratando das virtudes morais especiacuteficas a abordagem procederaacute

nesse ponto a partir da perspectiva da virtude moral relativa ao medo a

coragem Eacute interessante lembrar que essa virtude estaacute relacionada com

um desejo menos racional denominado impulso (thymoacutes) que estaacute

relacionado a emoccedilotildees natildeo racionais (tagrave aacuteloga paacutethē) ou menos

racionais como propusemos no Capiacutetulo anterior Vimos tambeacutem que

estas emoccedilotildees natildeo parecem menos humanas ao filoacutesofo entatildeo ele pensa

ser absurdo considerar as accedilotildees feitas por impulso como involuntaacuterias

(EN III 3 1111a34-35 1111b1-3) A coragem natildeo eacute conforme esse

desejo sendo uma virtude parece-nos estar entre aqueles estados nos

quais o agente jaacute educou seus impulsos fazendo-os concordes com a

deliberaccedilatildeo a escolha deliberada e com o que solicita a reta razatildeo Deste

modo trata-se de uma disposiccedilatildeo moral consolidada por bons haacutebitos

que escapou agrave forccedila dos extremos chamados do desejo em uma de suas

versotildees menos racionais99 interpretaccedilatildeo que favorece o entendimento da

99 Mas se considerarmos a doutrina uma verdade conceitual no que ela

favorece a discussatildeo das virtudes individuais ldquoO miacutenimo que podemos dizer eacute

que a doutrina do meio termo estrutura e sistematiza a anaacutelise das vaacuterias

virtudes Antes de tudo a descriccedilatildeo de cada virtude em termos da doutrina

requer a identificaccedilatildeo de uma escala contiacutenua de emoccedilotildees com respeito agrave qual a

virtude especiacutefica eacute o ponto meacutedio Esse natildeo eacute um passo trivial porquanto

pressupotildee o projeto de Aristoacuteteles (tal como descrito acima nas seccedilotildees 11 e

12) de descrever as virtudes eacuteticas enquanto o bom estado da parte natildeo-racional

da alma de modo que toda virtude deve estar ligada a um tipo de impulso ou

desejo natildeo-racional Depois a doutrina exige que as vaacuterias maneiras de errar a

virtude ou a accedilatildeo correta sejam encontradas identificadas e organizadas de

acordo com as duas direccedilotildees de deficiecircncia e excesso Esse procedimento

tambeacutem ajuda com as falhas que natildeo satildeo tatildeo frequentes ou natildeo tatildeo oacutebvias como

as falhas opostas o satildeo Ademais a reconstruccedilatildeo das vaacuterias virtudes em termos

da doutrina transforma o cataacutelogo contingente de virtudes comumente aceitas

em um sistema organizado de virtudes no qual toda virtude corresponde a uma

certa porccedilatildeo da nossa vida natildeo-racional e todo tipo de falha pode ser localizada

nas proximidades da virtude respectiva Essa sistematizaccedilatildeo leva ateacute mesmo agrave

identificaccedilatildeo de pontos meacutedios que natildeo haviam sido reconhecidos como

virtudes ateacute entatildeo E acima de tudo ao analisar e explicar cada virtude de

acordo com o esquema de excesso deficiecircncia e meio termo aprendemos como

entender que cada virtude contribui para o bom estado da parte natildeo-racional da

nossa alma E isto mais uma vez eacute essencial para a funccedilatildeo que atribuiacutemos ao

segundo livro da EN na seccedilatildeo 11 qual seja que a discussatildeo das virtudes deve

revelar como as vaacuterias virtudes normalmente admitidas se relacionam com a

114

boa medida como concordacircncia entre a capacidade natildeo racional e a

capacidade racional a fim de que a primeira alcance seu melhor estado

A coragem descrita por Aristoacuteteles em EN III 9 1115a8 eacute um

meio termo que corresponde a duas emoccedilotildees diferentes o medo e o

arrojo ou confianccedila Mas seguindo nossa proposta inicial observaremos

apenas sua relaccedilatildeo com o medo Neste Livro Aristoacuteteles descreve

pessoas que excedem em medo como covardes enquanto pessoas que

sentem tal emoccedilatildeo insuficientemente satildeo temeraacuterias Ser corajoso no

sentido de natildeo temer como natildeo conveacutem exige admitir que as coisas que

satildeo temiacuteveis parecem ter grande poder de destruiccedilatildeo ou de causar danos

que produzam grandes tristezas e ainda assim natildeo fugir e se acovardar

diante delas Isso natildeo significa que ter coragem eacute medir uma quantia

exata de medo a se sentir pondo de lado o medo excessivo ou

deficiente Ter coragem eacute saber o quanto temer poreacutem contando e

avaliando as condiccedilotildees que nos indicam tambeacutem como quando em

relaccedilatildeo a quecirc e em que circunstacircncias se deve temer e o bem a ser

alcanccedilado com a accedilatildeo corajosa

A disposiccedilatildeo em que se encontra quem teme eacute descrita pela

Retoacuterica coerentemente aos relatos eacuteticos como seguiraacute abaixo

Conforme tal descriccedilatildeo podemos tentar com o auxiacutelio da doutrina da

boa medida e dos paracircmetros para que seja aplicaacutevel propor que as

posturas de um homem corajoso atendem agrave exigecircncia de equiliacutebrio

quanto a essa disposiccedilatildeo apresentando-se como disposiccedilatildeo mais forte e

segura para a vida marca da virtude

Se o medo eacute acompanhado pelo pressentimento de

que vamos sofrer algum mal que nos aniquila eacute

oacutebvio que aqueles que acham que nunca lhes vai

acontecer nada de mal natildeo tecircm medo nem

receiam as coisas as pessoas e os momentos que

na sua maneira de pensar natildeo podem provocar

medo Assim pois necessariamente sentem

medo os que pensam que podem vir a sofrer

algum mal e os que pensam que podem ser

afetados por pessoas coisas e momentos

Creem que nenhum mal pode lhes acontecer as

pessoas que estatildeo ou pensam estar em grande

prosperidade [] as que pensam jaacute ter sofrido toda

espeacutecie de desgraccedilas e permanecem frias perante

o futuro agrave semelhanccedila dos que alguma vez jaacute

ideia de um bom estado ou excelecircncia da almardquo (RAPP 2010 p 421-422)

115

levaram uma surra de paulada Para que sintamos

receio eacute preciso que haja alguma esperanccedila de

salvaccedilatildeo pela qual valha a pena lutar E aqui vai

um sinal disso o medo leva as pessoas a deliberar

ao passo que ningueacutem delibera sobre casos

desesperados (Rhet II 5 1382b29-34 1383a1-

8)100

Em associaccedilatildeo agrave proposta sobre o medo supramencionada

podemos pensar que a disposiccedilatildeo corajosa eacute apresentada pelas pessoas

que se mantecircm de certo modo entre as posiccedilotildees de quem teme mas

esse lsquoentrersquo natildeo significa necessariamente algo fixo dentro de uma

escala quantificaacutevel O corajoso eacute descrito na EN como aquele que

encara as coisas temiacuteveis convenientemente e como manda a razatildeo

confirmando que a doutrina da boa medida leva agrave harmonia da

capacidade natildeo racional com a racional conferindo agrave primeira seu

melhor estado Igualmente apresenta a lsquoaplicabilidadersquo de tal doutrina

conceitual sendo mesmo possiacutevel que um homem percebendo seu bom

estado aniacutemico ou auxiliado por um bom estado aniacutemico que venha de

fora natildeo se furte jamais agraves boas accedilotildees jaacute que busca o que eacute nobre

Aquele portanto que espera de peacute firme e teme as

coisas que eacute preciso por um fim direito do modo

que conveacutem e no momento oportuno ou que se

mostra confiante sob as mesmas condiccedilotildees este eacute

um homem corajoso (pois o homem corajoso

padece e age por um objeto que vale a pena e do

modo que exige a razatildeo E o fim de toda atividade

eacute aquele que eacute conforme as disposiccedilotildees do caraacuteter

do qual ela procede e estaacute aiacute uma verdade para o

homem corajoso igualmente sua coragem eacute uma

coisa nobre por conseguinte seu fim tambeacutem eacute

100 Traduccedilatildeo de Alberto Alexandre Juacutenior e Pena (2012) no original εἰ δή

ἐστιν ὁ φόβος μετὰ προσδοκίας τινὸς τοῦ πείσεσθαί τι φθαρτικὸν πάθος

φανερὸν ὅτι οὐδεὶς φοβεῖται τῶν οἰομένων μηδὲν ἂν παθεῖν οὐδὲ ταῦτα ἃ μὴ

οἴονται ἂν παθεῖν οὐδὲ τούτους ὑφ ὧν μὴ οἴονται οὐδὲ τότε ὅτε μὴ οἴονται

ἀνάγκη τοίνυν φοβεῖσθαι τοὺς οἰομένους τι παθεῖν ἄν καὶ τοὺς ὑπὸ τούτων καὶ

ταῦτα καὶ τότε οὐκ οἴονται δὲ παθεῖν ἂν οὔτε οἱ ἐν εὐτυχίαις μεγάλαις ὄντες

καὶ δοκοῦντες [] οὔτε οἱ ἤδη πεπονθέναι πάντα νομίζοντες τὰ δεινὰ καὶ

ἀπεψυγμένοι πρὸς τὸ μέλλον ὥσπερ οἱ ἀποτυμπανιζόμενοι ἤδη ἀλλὰ δεῖ τινα

ἐλπίδα ὑπεῖναι σωτηρίας περὶ οὗ ἀγωνιῶσιν σημεῖον δέ ὁ γὰρ φόβος

βουλευτικοὺς ποιεῖ καίτοι οὐδεὶς βουλεύεται περὶ τῶν ἀνελπίστων

116

nobre jaacute que uma coisa se define sempre por seu

fim e por consequecircncia eacute em vista de um fim

nobre que o homem corajoso faz frente aos

perigos e completa as accedilotildees que lhe dita sua

coragem (EN III 10 1115b17-24)101

Assim a coragem eacute a mediania em relaccedilatildeo agraves coisas que inspiram

medo nas circunstacircncias mencionadas O corajoso escolhe ou encara tais

coisas por ser nobre agir desse modo ou por ser vergonhoso agir

diferentemente mas o filoacutesofo lista lsquotiposrsquo de coragem (EN III 11

1116a28 et seq) dentre as quais destaca o desejo de evitar a vergonha e

o medo da desonra como o que mais se aproxima da coragem

propriamente dita Haveria mesmo como vimos uma coragem por

impulso (thymoacutes) considerada plena de emoccedilatildeo no sentido que

movimenta corpo e alma mas que quando acompanhada de impulso

bem-educado acrescida de escolha deliberada e de um bom fim

tenderia mais de perto agrave virtude moral da coragem (EN III 11 1117a4)

Haveria ainda uma coragem incitada por discursos retoacutericos e por

apresentaccedilotildees artiacutesticas e estas provavelmente fossem os tipos que

menos colocassem os homens em accedilotildees corajosas Entendemos no

entanto que mesmo estas uacuteltimas poderiam ser capazes de preparar

ouvintes e espectadores para decisotildees e accedilotildees reais jaacute que expotildeem

modelos de coragem o que prepararia os cidadatildeos para momentos em

que realmente necessitassem de decisotildees influenciadas pela virtude em

questatildeo

O distintivo de um homem verdadeiramente corajoso contudo eacute

suportar aquilo que realmente eacute temiacutevel ou que lhe parece como tal (EN III 11 1117a16-17) Aleacutem disso Aristoacuteteles ressalta que normalmente se

pensa que um homem mostra maior coragem ao natildeo temer e natildeo se

abalar frente a perigos bruscos e natildeo previsiacuteveis jaacute que a associaccedilatildeo

entre sua phroacutenēsis e virtude moral o deixam em boas condiccedilotildees para

agir em quaisquer situaccedilotildees Assim a coragem eacute fruto de uma

disposiccedilatildeo de caraacuteter e requer menos preparaccedilatildeo para a accedilatildeo Os perigos

previsiacuteveis podem ser alvo de caacutelculo (logismoucirc) e de raciociacutenio

101 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original ὁ μὲν οὖν ἃ δεῖ καὶ οὗ ἕνεκα ὑπομένων καὶ φοβούμενος καὶ

ὡς δεῖ καὶ ὅτε ὁμοίως δὲ καὶ θαρρῶν ἀνδρεῖος κατ ἀξίαν γάρ καὶ ὡς ἂν ὁ

λόγος πάσχει καὶ πράττει ὁ ἀνδρεῖος τέλος δὲ πάσης ἐνεργείας ἐστὶ τὸ κατὰ

τὴν ἕξιν daggerκαὶ τῷ ἀνδρείῳ δὲ ἡ ἀνδρεία καλόνdagger τοιοῦτον δὴ καὶ τὸ τέλος

ὁρίζεται γὰρ ἕκαστον τῷ τέλει καλοῦ δὴ ἕνεκα ὁ ἀνδρεῖος ὑπομένει καὶ πράττει

τὰ κατὰ τὴν ἀνδρείαν

117

(loacutegou) implicando essas operaccedilotildees racionais com a forma adequada de

temer mas os perigos suacutebitos pedem uma disposiccedilatildeo de caraacuteter estaacutevel

(EN III 11 1117a17-22) e esta parece ser a verdadeira virtude Ademais

o filoacutesofo apresenta como mais corajoso quem permanece imperturbaacutevel

diante de perigos e age como aquele que tem esse tipo de

comportamento quando estaacute seguro A coragem em si mesma portanto

eacute descrita como algo doloroso por sua ligaccedilatildeo com o thymoacutes mas eacute

digna de elogios porque eacute mais difiacutecil encarar dores que se abster de

prazeres

Diante do exemplo de virtude moral particular exposto podemos

compreender a despeito das teorias contraacuterias agrave postura da teoria do

meio termo e da variabilidade das coisas particulares que tocam agrave moral

que realmente eacute devido tratar filosoficamente tais assuntos validando o

fato de Aristoacuteteles comeccedilar sua discussatildeo sobre a mateacuteria afirmando que

as coisas ora estudadas satildeo naturalmente corrompidas por excesso e

falta A ideia de que a mediania eacute aliada das virtudes igualmente eacute

vaacutelida natildeo conflitando com os exemplos que parecem lidar sempre com

quantias contaacuteveis (EN II 2 1104a13-17) e que extrapolam o acircmbito das

puras reflexotildees filosoacuteficas

2c) A forccedila do haacutebito para o correto se emocionar

Ao admitir dois tipos diferentes de virtude conforme a lsquodivisatildeorsquo

da alma Aristoacuteteles nos fala da existecircncia da virtude moral que ldquoresulta

do haacutebito de onde tirou tambeacutem o nome divergindo ligeiramente de

eacutethos102rdquo (EN II 1 1103a17-18)103 O exemplo dado para esclarecer tal

proposta eacute o da pedra que se lanccedilada seguidamente para cima natildeo se

habituaria agraves alturas uma vez que eacute de sua natureza o estar embaixo

explicando que nenhuma virtude moral eacute dada a noacutes por natureza porque

as coisas da natureza natildeo podem ser alteradas pelo haacutebito104 Por isso o

102 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἡ δ ἠθικὴ ἐξ ἔθους περιγίνεται

ὅθεν καὶ τοὔνομα ἔσχηκε μικρὸν παρεκκλῖνον ἀπὸ τοῦ ἔθους 103 Dessas propostas que diferenciam virtude moral e virtude intelectual surge

uma questatildeo intrigante e que provavelmente consigamos responder no Capiacutetulo

seguinte Ela eacute proposta Por Zingano (2008 p 93) do seguinte modo ldquoPode-se

no entanto perguntar por que Aristoacuteteles introduziu aqui esta observaccedilatildeo jaacute

que por contraste esperar-se-ia que as virtudes morais natildeo tivessem a mesma

exigecircncia quando parece ser o contraacuterio visto surgirem do haacutebito e o haacutebito

certamente requer tempo e experiecircnciardquo 104Com essa postura Aristoacuteteles parece buscar responder agrave questatildeo jaacute

apresentada pelo Mecircnon a respeito da possibilidade de se ensinar a virtude O

118

filoacutesofo explica que ldquoas virtudes natildeo se engendram nem naturalmente

nem contra a natureza mas porque somos naturalmente aptos a recebecirc-

las aperfeiccediloamo-nos pelo haacutebitordquo (EN II 1 1103a23-26)105

As virtudes morais satildeo adquiridas pelo exerciacutecio que lhes

precede implicando que um homem se torna justo praticando atos justos

(EN II 2 1103b31) Por exemplo os cidadatildeos satildeo tornados bons porque

as famiacutelias o legislador e a poacutelis como um todo lhes incute bons haacutebitos

direcionados pela lei Por isso os mestres satildeo necessaacuterios jaacute que natildeo

nascemos sabendo fazer as coisas Isso confirma que em um primeiro

momento da formaccedilatildeo moral a virtude vem de fora O que reforccedila essa

ideia eacute o fato que das coisas naturais primeiro temos a potecircncia e depois

as exercitamos em atividades Por exemplo o haacutebito nos apetites e na

raiva tem destino distinto pois uns se tornam temperantes e tolerantes

outros intemperantes e irasciacuteveis devido agrave sua insistecircncia em agir do

mesmo modo em situaccedilotildees semelhantes Esse tipo de explicaccedilatildeo nos

permite defender a possibilidade de habituar apetites e raiva ou seja de

alterar as emoccedilotildees com o auxiacutelio dos haacutebitos do bom conselho e de

outros instrumentos que favoreccedilam a virtude Portanto habituar-se de

um modo ou de outro desde jovem natildeo eacute de somenos mas de muita ou

melhor de toda importacircnciardquo (EN II 1 1103b23-25)106 porque um

homem mal habituado em suas emoccedilotildees torna-se vicioso

Habituar-se de um modo ou de outro estaacute relacionado ao prazer

que se sente com determinadas atividades como vimos no Capiacutetulo

anterior Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer

ou dor implicando que para Aristoacuteteles a virtude tem por natureza

praticar o melhor quanto a estes (EN II 2 1104b9-24) pois eacute proacuteprio agrave

virtude moral o prazer tido com as accedilotildees corretas A capacidade de

retidatildeo nas accedilotildees nas emoccedilotildees nos desejos e nos prazeres viraacute com a

praacutetica habitual de boas accedilotildees proposta que aparece em EN III e na qual

Hutchinson (2009 p 276-277) percebe um paradoxo se as virtudes

estagirita afirma que virtudes morais vecircm com haacutebito e natildeo com ensino Platatildeo

poderia ter chegado a conclusatildeo semelhante (Leis 792e2 Rep 518e1-2 apud

ZINGANO 2008 p 93) contudo ao que parece faz uma concessatildeo aos que

natildeo satildeo saacutebios e que poderiam alcanccedilar a virtude moral por meio da praacutetica Jaacute

Aristoacuteteles entende que todos independentemente de suas tendecircncias naturais

alcanccedilam a virtude por meio do haacutebito 105 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original οὔτ ἄρα φύσει οὔτε παρὰ φύσιν

ἐγγίνονται αἱ ἀρεταί ἀλλὰ πεφυκόσι μὲν ἡμῖν δέξασθαι αὐτάς τελειουμένοις δὲ

διὰ τοῦ ἔθους 106 Idem no original οὐ μικρὸν οὖν διαφέρει τὸ οὕτως ἢ οὕτως εὐθὺς ἐκ νέων

ἐθίζεσθαι ἀλλὰ πάμπολυ μᾶλλον δὲ τὸ πᾶν

119

morais se consolidam pelo treino que leva a se comportar

adequadamente como eacute possiacutevel desenvolvecirc-las Sendo preciso repetir

accedilotildees corajosas para nos tornarmos corajosos natildeo seria preciso ser

previamente corajoso para agir de tal modo O estudioso aponta duas

soluccedilotildees dadas pelo proacuteprio Aristoacuteteles para desfazer o inconveniente

A primeira afirma que haacute coisas que fazemos sob a orientaccedilatildeo do outro

o que nos capacita fazer o que eacute indicado sem ainda sermos haacutebeis para

tanto Isso acontece igualmente com as virtudes morais pois a princiacutepio

devemos agir conforme a sugestatildeo de um educador tornando o conselho

e o exemplo cruciais como observa Aggio (2017 no prelo) Nesse

ponto da formaccedilatildeo natildeo importa que a virtude natildeo esteja no agente ou

que esteja naquele que o aconselha a agir bem pois ainda natildeo foi

internalizada pelo agente embora esse possa seguir um bom conselho

que auxiliaraacute sua habituaccedilatildeo moral para a virtude

A segunda soluccedilatildeo nos diz que as virtudes morais satildeo diferentes

da habilidade porque seu desempenho eacute expressatildeo do caraacuteter uma accedilatildeo

realmente corajosa eacute feita por um homem que sabe o que faz e que tem

um caraacuteter firme e permanentemente corajoso agindo deste modo pela

coragem mesma coisa correta a se fazer Por conseguinte o treinamento

do jovem para a coragem natildeo exige que este seja previamente corajoso

pois a virtude viraacute com o exerciacutecio A praacutetica e a aquisiccedilatildeo de

entendimento tornaratildeo o jovem senhor de suas accedilotildees a partir do que

deixaraacute de seguir propostas alheias sobre como agir corretamente seraacute

realmente virtuoso moralmente pois agiraacute por si mesmo e por amor ao

que eacute correto e bom Mas o filoacutesofo observa ldquoCom efeito eacute possiacutevel

fazer algo de cunho gramaacutetico tanto por acaso como instruiacutedo por outra

pessoardquo (EN II 3 1105a23-26)107 A esse problema Aristoacuteteles respondeu

resumidamente da seguinte maneira para agir com virtude eacute preciso

estar em um certo estado ou o agente sabe o que faz e em seguida

escolhe por deliberaccedilatildeo as coisas elas mesmas agindo por fim de

forma firme e inalteraacutevel (EN II 3 1105a31-1105b1) ou eacute guiado por

algueacutem que sabe o que faz ao menos ateacute atingir a capacidade de guiar

por si mesmo suas accedilotildees Deste modo ratifica-se que as virtudes satildeo

adquiridas por serem exercitadas (EN II 1 1103a31) ou seja satildeo

aprendidas fazendo tornamo-nos corajosos com a praacutetica frequente de

accedilotildees de coragem sendo o haacutebito incutido que leva agrave virtude moral O

contraacuterio contudo pode ocorrer caso se pratique frequentemente maacutes

accedilotildees eacute possiacutevel incorrer em viacutecio como explica o passo abaixo

107 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ἐνδέχεται γὰρ γραμματικόν τι

ποιῆσαι καὶ ἀπὸ τύχης καὶ ἄλλου ὑποθεμένου

120

Assim tambeacutem acontece com as virtudes agindo

nas transaccedilotildees entre homens tornam-se uns

justos outros injustos agindo nas situaccedilotildees de

perigo e habituando-se a temer ou a ter confianccedila

tornam-se uns corajosos outros covardes O

mesmo ocorre no caso dos apetites assim como

no das iras pois se tornam uns temperantes e

tolerantes outros intemperantes e irasciacuteveis uns

por persistirem a agir de um jeito nas mesmas

situaccedilotildees outros por persistirem de outro jeito

Por esta razatildeo eacute preciso que as atividades

exprimam certas qualidades pois as disposiccedilotildees

seguem as diferenccedilas das atividades (EN II 1

1103b13-22)108

O passo confirma a possibilidade de alteraccedilatildeo dasnas emoccedilotildees

por via da habituaccedilatildeo Por isso um educador deve se valer da dor e do

prazer com as accedilotildees como indiacutecios das disposiccedilotildees do agente (EN II 2

1104b4-5) e como guia para os haacutebitos que deve incutir ou afastar de

seus disciacutepulos

Apesar de as discussotildees travadas acima tornarem o assunto

satisfatoriamente claro precisaremos ainda mais agrave frente apreciar a

questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre ensino e habituaccedilatildeo auxiliados pelo

prazer com certas accedilotildees e atividades Por ora o passo supracitado chama

nossa atenccedilatildeo para a questatildeo mas pensamos que as puniccedilotildees tambeacutem

sirvam como indicadores de disposiccedilotildees morais pois se costuma operar

ldquocurardquo pelo contraacuterio Segundo essa proposta os homens se tornam bons

ou maus pelos prazeres e dores evitando-os ou buscando-os como

quando e com o que se deve ou natildeo se deve e eacute isso que se observaraacute na

educaccedilatildeo e para as puniccedilotildees Isso indica que a virtude tem por natureza

a praacutetica do que eacute melhor frente a prazeres e dores mas o viacutecio leva ao

contraacuterio (EN II 2 1104b26-28) e por isso eacute preciso ter disciplina quanto

a essas afecccedilotildees

108 Idem οὕτω δὴ καὶ ἐπὶ τῶν ἀρετῶν ἔχει πράττοντες γὰρ τὰ ἐν τοῖς

συναλλάγμασι τοῖς πρὸς τοὺς ἀνθρώπους γινόμεθα οἳ μὲν δίκαιοι οἳ δὲ ἄδικοι

πράττοντες δὲ τὰ ἐν τοῖς δεινοῖς καὶ ἐθιζόμενοι φοβεῖσθαι ἢ θαρρεῖν οἳ μὲν

ἀνδρεῖοι οἳ δὲ δειλοί ὁμοίως δὲ καὶ τὰ περὶ τὰς ἐπιθυμίας ἔχει καὶ τὰ περὶ τὰς

ὀργάς οἳ μὲν γὰρ σώφρονες καὶ πρᾶοι γίνονται οἳ δ ἀκόλαστοι καὶ ὀργίλοι οἳ

μὲν ἐκ τοῦ οὑτωσὶ ἐν αὐτοῖς ἀναστρέφεσθαι οἳ δὲ ἐκ τοῦ οὑτωσί καὶ ἑνὶ δὴ

λόγῳ ἐκ τῶν ὁμοίων ἐνεργειῶν αἱ ἕξεις γίνονται διὸ δεῖ τὰς ἐνεργείας ποιὰς

ἀποδιδόναι κατὰ γὰρ τὰς τούτων διαφορὰς ἀκολουθοῦσιν αἱ ἕξεις

121

A partir do que foi proposto entendemos que a virtude estaacute

relacionada a prazeres e dores que cresce e se corrompe pelas mesmas

coisas (EN II 3 1105a13-16) mas para se tornar virtuoso eacute preciso

praticar frequentemente atos por exemplo corajosos mesmo que estes

sejam dolorosos Os atos satildeo considerados corajosos quando forem

feitos como faria a pessoa considerada dotada de tal virtude embora natildeo

seja corajoso quem realiza atos de coragem mas quem os faz como faria

o homem corajoso Esta virtude moral vem da praacutetica de accedilotildees desse

tipo e natildeo haacute problema como demonstramos haacute pouco com esse tipo

de proposta Ademais Aristoacuteteles frisa que em eacutetica natildeo basta discursar

sobre a conduta virtuosa eacute preciso agir a fim da verdadeira virtude

tendo esses haacutebitos em conformidade agrave virtude intelectual Mas se o

haacutebito eacute bastante para consolidar a virtude moral para que necessitamos

da razatildeo praacutetica A resposta pode ser indicada pela questatildeo da

responsabilidade pelas accedilotildees que tecircm princiacutepio em cada agente que sabe

o que faz como veremos a seguir

2d) Virtude voluntaacuteria diante das circunstacircncias e responsabilidade

A proposta da boa medida tomada como melhor estado da

capacidade natildeo racional da alma humana e como melhor forma de se

emocionar exige que pensemos o agente bom moralmente como

personificaccedilatildeo do equiliacutebrio entre racional e natildeo racional na figura do

prudente Ou seja esse cidadatildeo deve ser pensado como atualizaccedilatildeo

plena daquilo que Aristoacuteteles considera o proacuteprio homem temos um

agente que coordena bem as capacidades de sua alma que eacute princiacutepio de

suas accedilotildees e por conseguinte estas accedilotildees satildeo consideradas voluntaacuterias

(hekouacutesioi) Caso contraacuterio as accedilotildees cometidas satildeo consideradas

involuntaacuterias (akouacutesioi) embora haja tambeacutem atos desse tipo que satildeo

perdoados e ateacute dignos de piedade Mas por que distinguir

voluntariedade e involuntariedade em uma pesquisa sobre as emoccedilotildees

jaacute que tais caracteriacutesticas podem ser atribuiacutedas agraves accedilotildees e natildeo agraves

emoccedilotildees

Quando se estuda a virtude tal distinccedilatildeo eacute necessaacuteria pois as

virtudes satildeo configuradas por accedilotildees voluntaacuterias ligadas agraves emoccedilotildees e ao

que eacute desejado Ademais procuramos encontrar instrumentos que nos

levem a entender a possibilidade de um homem que tenha seu lado natildeo

racional no melhor estado possiacutevel e isso diz respeito a bem agir e bem

se emocionar o que parece ser condizente com a figura de quem age de

acordo com o que julga por si mesmo correto e natildeo por aquele que

meramente toma o conselho de outrem de que algo eacute o correto a se

122

desejar e fazer Este homem atua de certo modo voluntariamente jaacute

que as accedilotildees involuntaacuterias parecem ser aquelas ldquoaccedilotildees praticadas por

forccedila ou por ignoracircncia Eacute forccedilado o ato cujo princiacutepio eacute exterior ao

agente princiacutepio para o qual o agente ou o paciente em nada contribuirdquo

(EN III 1 1109b35 1110a1)109

As accedilotildees tambeacutem podem ser mistas quando praticadas conforme

a ocasiatildeo e natildeo como se agiria normalmente Por isso o caraacuteter

voluntaacuterio ou involuntaacuterio da accedilatildeo deve ser atribuiacutedo tendo em vista o

momento em que foi praticada as accedilotildees voluntaacuterias satildeo aquelas cujo

poder de fazer ou natildeo fazer determinada coisa em certa situaccedilatildeo estaacute no

proacuteprio agente ldquoRigorosamente entatildeo agir voluntariamente eacute ldquoagir

com razoaacutevel conhecimento das circunstacircncias a natildeo ser que fosse

literalmente impossiacutevel fazer outra coisardquordquo (HUTCHINSON 2009 p

272) Em contrapartida as accedilotildees que podem ser consideradas forccediladas

satildeo penosas Aristoacuteteles explica que o ldquoato forccedilado portanto mostra-se

aquele cujo princiacutepio eacute exterior a pessoa forccedilada em nada contribuindo

ao princiacutepio da accedilatildeordquo (EN III 1 1110b15-17)110 O fato das

circunstacircncias serem definidoras do que se decide fazer inviabiliza

certas objeccedilotildees agrave proposta da mediania como virtude moral pois como

vimos coloca paracircmetros externos para a accedilatildeo natildeo permitindo que seja

totalmente relativa ao que o agente deseja

Tambeacutem como vimos o fim bem amparado pela razatildeo praacutetica eacute

objeto do desejo reto das emoccedilotildees adequadas e causa da accedilatildeo embora

no homem virtuoso as coisas que levam ao fim sejam objetos da

deliberaccedilatildeo e da escolha deliberada Por conseguinte accedilotildees que lhes

dizem respeito satildeo feitas por escolha deliberada e voluntariamente

sendo estas as accedilotildees corretas moralmente111 Assim

Sobre as virtudes em geral temos dito pois

esquematicamente quanto a seu gecircnero que satildeo

meios termos e haacutebitos que por si mesmas

tendem a praticar as accedilotildees que as produzem que

dependem de noacutes e satildeo voluntaacuterias e atuam de

acordo com as normas da reta razatildeo Mas as accedilotildees

109 Traduccedilatildeo Zingano (2008) no original ἀκούσια εἶναι τὰ βίᾳ ἢ δι ἄγνοιαν

γινόμενα βίαιον δὲ οὗ ἡ ἀρχὴ ἔξωθεν τοιαύτη οὖσα ἐν ᾗ μηδὲν συμβάλλεται ὁ

πράττων ἢ ὁ πάσχων 110 Idem τὸ βίαιον εἶναι οὗ ἔξωθεν ἡ ἀρχή μηδὲν συμβαλλομένου τοῦ

βιασθέντος 111 No entanto vale observar com Korsgaard que o homem virtuoso natildeo passa

a vida toda deliberando mas delibera apenas frente a determinadas situaccedilotildees

123

natildeo satildeo voluntaacuterias do mesmo modo que os

haacutebitos de nossas accedilotildees somos donos desde o

princiacutepio ateacute o fim se conhecemos as

circunstacircncias particulares dos nossos haacutebitos no

princiacutepio mas seu incremento natildeo eacute perceptiacutevel

como ocorre com as doenccedilas Natildeo obstante como

estava em nossa matildeo comportar-nos de tal ou tal

maneira satildeo por isso voluntaacuterios (EN III 8

1114b26-35 III 9 1115a1-3)112

O passo nos permite reforccedilar que a virtude moral eacute uma

disposiccedilatildeo louvaacutevel sendo a capacidade de se comportar bem em

relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees comportar-se com medida relativa a noacutes e que de

certo modo somos responsaacuteveis por esse comportamento De acordo

com Hutchinson (2009 p 267) satildeo ldquoas disposiccedilotildees de nossas emoccedilotildees

que nos ajudam a dar as respostas corretas agraves situaccedilotildees praacuteticasrdquo Por

isso eacute preciso estabelecer um certo tipo de educaccedilatildeo favoraacutevel agrave virtude

moral malgrado a inexatidatildeo dos assuntos que tocam a esse tipo de

virtude Nessa educaccedilatildeo cabem os haacutebitos que satildeo o modo pelo qual se

pode consolidar a virtude poreacutem devem ser haacutebitos conscientes e

escolhidos deliberadamente113 As virtudes morais vecircm de atos

voluntaacuterios que tecircm sua fonte no proacuteprio agente embora sejam

pautadas nas circunstacircncias e na procura pelo bem Assim o homem

virtuoso eacute responsaacutevel por tais virtudes - e igualmente pelos viacutecios -

como eacute responsaacutevel por seus atos114 na medida em que escolhe e decide

112 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Κοινῇ μὲν οὖν περὶ τῶν ἀρετῶν εἴρηται ἡμῖν τό τε γένος

τύπῳ ὅτι μεσότητές εἰσιν καὶ ὅτι ἕξεις ὑφ ὧν τε γίνονται ὅτι τούτων

πρακτικαὶ ltκαὶgt καθ αὑτάς καὶ ὅτι ἐφ ἡμῖν καὶ ἑκούσιοι καὶ οὕτως ὡς ἂν ὁ

ὀρθὸς λόγος προστάξῃ οὐχ ὁμοίως δὲ αἱ πράξεις ἑκούσιοί εἰσι καὶ αἱ ἕξεις τῶν

μὲν γὰρ πράξεων ἀπ ἀρχῆς μέχρι τοῦ τέλους κύριοί ἐσμεν εἰδότες τὰ καθ

ἕκαστα τῶν ἕξεων δὲ τῆς ἀρχῆς καθ ἕκαστα δὲ ἡ πρόσθεσις οὐ γνώριμος

ὥσπερ ἐπὶ τῶν ἀρρωστιῶν ἀλλ ὅτι ἐφ ἡμῖν ἦν οὕτως ἢ μὴ οὕτω χρήσασθαι

διὰ τοῦτο ἑκούσιοι 113 Mesmo que a princiacutepio sejam conscientes e deliberadamente escolhidos por

outrem 114 Haacute um problema quanto a ligar atos voluntaacuterios e responsabilidade pelos

atos Natildeo vamos entrar nos meacuteritos da questatildeo nesse momento pois

extrapolaria nossas forccedilas Podemos contudo indicar que quanto a isso

Zingano difere de Irwin pois pensa que para que um agente seja responsaacutevel

por suas accedilotildees precisa agir voluntariamente mas para que um ato seja

considerado voluntaacuterio natildeo eacute necessaacuterio responsabilizar o agente Assim

124

por si mesmo o que deve fazer podendo ser elogiado ou censurado

A virtude moral quando bem exercitada eacute disposiccedilatildeo segundo a

regra justa que eacute estabelecida pela prudecircncia e por isso pode ordenar

por-se o fim Se o fim tem relaccedilatildeo com o desejo este precisa ser

educado ateacute que se conforme a reta razatildeo que implica aprender a

desejar assim como a se emocionar para agir bem bela e nobremente

em comunidade A aplicaccedilatildeo da teoria da boa medida bem como a

aplicaccedilatildeo de seus paracircmetros eacute necessaacuteria para que tal educaccedilatildeo se

concretize Por isso e pela maleabilidade da capacidade natildeo racional

frente agraves sugestotildees da razatildeo eacute possiacutevel a Aristoacuteteles propor a boa

medida nas emoccedilotildees

O virtuoso em sentido moral e completo julga bem (kriacutenei

orthocircs) as coisas e a verdade se manifesta a ele (talēthegraves autograve phaiacutenetai)

sendo o homem que se distingue por sua capacidade de ver o verdadeiro

(talēthegraves hōraacuten) em cada coisa padratildeo e medida para todas as coisas

(EN III 6 1113a30-35) eliminando novamente a relatividade da

doutrina O virtuoso eacute o homem cujas atividades envolvem deliberaccedilatildeo e

escolha deliberada pois natildeo haacute virtude sem estes traccedilos de razatildeo ou ao

menos natildeo haacute virtude completa (aretegraven teleiacutean) entendida aqui como

aquela junccedilatildeo entre a virtude moral e a virtude intelectual que a

aperfeiccediloa Por isso tanto a virtude quanto o viacutecio estaacute em nosso poder

(ephacutehēmicircn) pois podemos agir quando eacute belo bem como deixar de agir

quando isso eacute desonroso e portanto estaacute em nosso poder sermos bons

ou maus contrariando Soacutecrates

Como vimos as coisas consideradas em nosso poder e

voluntaacuterias satildeo as coisas das quais o princiacutepio estaacute em noacutes e por isso a

distribuiccedilatildeo dos castigos e das honrarias feita pelos legisladores eacute

pautada na boa administraccedilatildeo que cada agente tem de si e de sua

capacidade natildeo racional o que soacute eacute possiacutevel se entendermos as

propostas de Aristoacuteteles sobre a alma como tendendo agrave unicidade que

permite a comunicaccedilatildeo entre as capacidades da alma Sendo as virtudes

voluntaacuterias noacutes somos de certo modo causas coadjuvantes de nossas

disposiccedilotildees jaacute que temos o poder de controlaacute-las a princiacutepio embora

escapem ao nosso controle apoacutes certo tempo e exerciacutecio Isso nos

confere deliberadamente o princiacutepio das qualidades que carregaremos

Zingano entende o voluntaacuterio como condiccedilatildeo necessaacuteria embora natildeo suficiente

para uma accedilatildeo da responsabilidade do agente Isso porque soacute pode ser

responsabilizado aquele que eacute princiacutepio da accedilatildeo e cuja accedilatildeo levar a elogio ou

censura que aperfeiccediloem o agente Mais sobre essas questotildees consultar Zingano

(2008 p 146-147)

125

vida afora115 e por nossa qualidade pomos o fim correspondente agraves

nossas accedilotildees (EN III 7 1114b21-24) eis o motivo de Aristoacuteteles ter

afirmado que agindo bem nos tornamos bons e que as maacutes accedilotildees nos

levam ao viacutecio

Apoacutes atingirmos essas conclusotildees deveremos tratar as questotildees

acerca da proposta da mediania nas emoccedilotildees pois como observa

Besnier (2008 p 78) ldquoSendo a paixatildeo um movimento reativo passivo e

indeliberado resta saber de que modo podemos constituir uma atitude

como virtuosa a seu respeito tal como podemos fazer para a accedilatildeordquo A

questatildeo eacute entatildeo como moderamos nossas emoccedilotildees

3 Metriopaacutethēia o ideal de emoccedilatildeo para a vida virtuosa

Com o que vimos ateacute agora ficou evidente que Aristoacuteteles propotildee

a virtude moral e a virtude mais completa como dependentes da boa

medida em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees possiacutevel graccedilas ao equiliacutebrio entre as

capacidades que datildeo ao homem o que lhe eacute peculiar116 Tal teoria a

partir do periacuteodo heleniacutestico ficou conhecida como metriopaacutethēia e

embora o termo natildeo seja de Aristoacuteteles Zingano (2007 p 143)

considera que seja a definiccedilatildeo ldquosucinta e felizrdquo das teorias do filoacutesofo

acerca de como devemos nos portar frente agraves emoccedilotildees O estudioso

explica que ldquonatildeo se trata de extirpar as emoccedilotildees mas de lhes dar uma

justa medida vivecirc-las metriocircs e a virtude moral consiste justamente em

encontrar sua medida em funccedilatildeo e no meio das circunstacircncias em que se

produzem as accedilotildeesrdquo (ZINGANO 2007 p 144) Entende que isso

significa ldquoexaminaacute-lo [o paacutethos] mediante uma deliberaccedilatildeo pois a

virtude eacute uma disposiccedilatildeo ligada agrave escolha deliberadardquo (2007 p 165) A

virtude moral tem em vista o meio termo quanto agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees

porque nestas pode haver excesso falta e boa medida Dessa

possibilidade de variaccedilatildeo surgiu nossa necessidade de questionar a

doutrina na medida em que tal questionamento nos auxiliasse a resolver

as questotildees propostas por nossa pesquisa

Pelos estudos acima apresentados pudemos entender a mediania

relativamente a noacutes abarcando tanto especificaccedilotildees quantitativas como

115Essa questatildeo que parece segundo anaacutelise de Zingano (2008 p 92)

questionar a tese central do capiacutetulo II (ldquoa disposiccedilatildeo acompanha e em um

sentido relevante eacute dependente das accedilotildeesrdquo) seraacute respondida no item que trataraacute

dos haacutebitos 116EN I 1098a7-12 IX 1172a4-6 X I 1177b26-30 Pol 1253a25-28

126

qualitativas tendo em vista a circunstacircncia na qual a accedilatildeo precisa ser

cometida e que lhe fornece paracircmetros e possibilidades de ajuizamento

Deste modo determinar a mediania relativa a noacutes implica determinar

aquilo que as circunstacircncias relevantes em seu conjunto apontam tendo

em conta o fim buscado pelo agente Para que isso seja cumprido dever-

se-aacute fazer o que for preciso na hora certa na ocasiatildeo certa e do modo

certo (EN II 5 1106b21-22) Tal ideia eacute chamada por Hursthouse (2009

p 104) de ldquodoutrina centralrdquo da mediania e pode ser exemplificada do

seguinte modo conforme o proacuteprio Aristoacuteteles

[] eacute possiacutevel temer ter arrojo ter apetite

encolerizar-se ter piedade e em geral aprazer-se

e afligir-se muito e muito pouco e ambos de

modo natildeo adequado o quando deve a respeito de

quais relativamente a quem com que fim e como

deve eacute o meio termo e o melhor o que justamente

eacute a marca da virtude Similarmente haacute excesso

falta e meio termo no tocante agraves accedilotildees A virtude

diz respeito a emoccedilotildees e accedilatildeo nas quais o excesso

erra e a falta eacute censurada ao passo que o meio

termo acerta e eacute louvado acertar e ser louvado

pertencem agrave virtude (EN II 5 1106b18-26)117

No capiacutetulo anterior todavia foi mencionado que nem toda accedilatildeo

e nem toda emoccedilatildeo admite mediania No Livro IV da EN Aristoacuteteles

questiona se podemos realmente considerar a vergonha ou pudor (aidṓs)

como uma virtude118 jaacute que natildeo eacute possiacutevel ter boa medida quanto a ela

117 Isso eacute vaacutelido caso a interpretaccedilatildeo de Rapp (2010 p 424) esteja correta e se

quando Aristoacuteteles afirma que o meio termo eacute o padratildeo bom e correto quanto ao

contiacutenuo e o divisiacutevel estaacute a tratar das escalas contiacutenuas das emoccedilotildees e accedilotildees e

natildeo das virtudes e dos viacutecios Por isso natildeo haacute como encontrar escalas realmente

quantitativas entre virtudes e viacutecios mas podem ser encontradas entre emoccedilotildees

e accedilotildees

O passo supracitado tem traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original οἷον καὶ

φοβηθῆναι καὶ θαρρῆσαι καὶ ἐπιθυμῆσαι καὶ ὀργισθῆναι καὶ ἐλεῆσαι καὶ ὅλως

ἡσθῆναι καὶ λυπηθῆναι ἔστι καὶ μᾶλλον καὶ ἧττον καὶ ἀμφότερα οὐκ εὖ τὸ δ

ὅτε δεῖ καὶ ἐφ οἷς καὶ πρὸς οὓς καὶ οὗ ἕνεκα καὶ ὡς δεῖ μέσον τε καὶ ἄριστον

ὅπερ ἐστὶ τῆς ἀρετῆς ὁμοίως δὲ καὶ περὶ τὰς πράξεις ἔστιν ὑπερβολὴ καὶ

ἔλλειψις καὶ τὸ μέσον ἡ δ ἀρετὴ περὶ πάθη καὶ πράξεις ἐστίν ἐν οἷς ἡ μὲν

ὑπερβολὴ ἁμαρτάνεται καὶ ἡ ἔλλειψις [ψέγεται] τὸ δὲ μέσον ἐπαινεῖται καὶ

κατορθοῦται 118 Zingano levanta esse problema em seus Estudos de Eacutetica Antiga (2007 p

127

A questatildeo se impotildee porque o filoacutesofo considera as caracteriacutesticas

atreladas ao pudor mais proacuteximas daquelas que normalmente se daria a

uma afecccedilatildeo que igualmente atinge o corpo A vergonha cuja emoccedilatildeo

que lhe seria proacutepria levaria o mesmo nome seria distinta das demais

afecccedilotildees devido a ser identificada com aquilo que traria para o agente

medo da desonra ou um embaraccedilo diante das maacutes accedilotildees que este

comete Por isso o filoacutesofo considera que provavelmente seja

inadequado classificaacute-la como virtude moral jaacute que este tipo de

disposiccedilatildeo proacutepria ao homem bom natildeo comportaria maacutes accedilotildees A

despeito dessas questotildees o texto eacute sobremaneira interessante ao

concordar com as propostas dos tratados bioloacutegicos em especial com

aquelas do DA Vimos que esse escrito descreve um dos aspectos do

paacutethos como uma mudanccedila fiacutesica entre outras caracteriacutesticas e ressalta

tambeacutem que haveria emoccedilotildees moralmente neutras aleacutem daquelas que

seriam capazes de se adequar ao que eacute correto moralmente Diante

dessas dificuldades Sorabji explica que Aristoacuteteles

[] diz que o que conta muito ou pouco depende

de quem noacutes somos da ocasiatildeo do para quecirc e

para quem a nossa emoccedilatildeo eacute dirigida do resultado

provaacutevel e do modo de reagir Aleacutem disso ele

aponta que algumas emoccedilotildees como

Schadenfreude e inveja tecircm a ideia de maldade

construiacuteda nelas de modo que natildeo haacute espaccedilo para

a ideia de moderaccedilatildeo em exercecirc-las (SORABJI

2000 p 195 traduccedilatildeo nossa)

Algumas destas emoccedilotildees satildeo denominadas precisamente por sua

vileza caso da inveja Esse tipo de paacutethos eacute censurado devido ao fato de

ser vil e natildeo por ser excessivo ou em falta ou provavelmente seja

censurado por excesso ou falta devido ao fato de romper com os

paracircmetros propostos pela racionalidade praacutetica para natildeo exceder nem

faltar Tal rompimento caracterizaria uma extrapolaccedilatildeo dos padrotildees para

a boa medida e sinalizaria errar tambeacutem no direcionamento da emoccedilatildeo

aos objetos que lhe correspondem naquilo que as circunstacircncias que

envolvem as emoccedilotildees exigem ser apreciado e natildeo somente nas

lsquoquantidadesrsquo ou na lsquointensidadersquo de emoccedilatildeo sentida Estatildeo em jogo

como propusemos anteriormente as falhas quantitativas mas tambeacutem as

falhas qualitativas e de avaliaccedilatildeo que o agente que delibera pode

165) embora natildeo lhe traga soluccedilatildeo

128

cometer ao se emocionar Por exemplo somos censurados por nos

enfurecer muito ou muito pouco e por isso levar a uma accedilatildeo errada bem

como somos censurados por nos enfurecer contra muitas pessoas ou

contra a pessoa errada Rapp (2010 p 430) no entanto observa que a

doutrina parece se adequar melhor ao primeiro caso que eacute quantitativo

embora pense que com uma anaacutelise proacutexima a questatildeo quantitativa

pareccedila duvidosa Segundo este estudioso

[] haacute dois tipos de problemas com os casos

quantitativos os quais podem ser resolvidos

somente se os equipararmos ao qualitativo O

primeiro problema eacute que a quantidade de uma

accedilatildeo ou emoccedilatildeo pode se manifestar de muitos

modos distintos pode ser questatildeo de sentir

intensamente de forccedila motivacional de duraccedilatildeo

ou frequecircncia enquanto a frequecircncia por sua vez

pode ser medida pelas ocorrecircncias pelo nuacutemero

de pessoas envolvidas pelo nuacutemero de ocasiotildees

pelo nuacutemero de lugares etc excesso nestes

vaacuterios aspectos corresponde a diferentes tipos de

falhas Neste sentido as descriccedilotildees quantitativas

em separado de que algueacutem estaacute lsquoenfurecido

demaisrsquo ou lsquoage enfurecidamente demaisrsquo satildeo

eliacutepticas Quando reprovamos algueacutem por sua

raiva excessiva ou por agir muito raivosamente

deveriacuteamos em princiacutepio poder explicar o

sentido ou o conjunto de sentidos em que as

reaccedilotildees raivosas dele satildeo excessivas O segundo

problema traz agrave tona uma outra razatildeo de por que

descriccedilotildees quantitativas em separado satildeo

incompletas quando algueacutem se enraivece em

muitas ocasiotildees e com muitas pessoas podemos

reprovaacute-lo por raiva excessiva Mas quantas

ocasiotildees e pessoas satildeo o bastante e quando isto

comeccedila a ser excessivo Quando realmente

ultrapassamos o nuacutemero moderado de ocasiotildees ou

pessoas Talvez a nossa pessoa enraivecida encare

mais ofensas e insultos que uma pessoa comum

ela natildeo estaria portanto justificada em enfurecer-

se mais frequentemente Eacute oacutebvio que estaacute A fatal

poreacutem inevitaacutevel conclusatildeo eacute que o nuacutemero

absoluto ou a quantidade absoluta natildeo pode nos

informar quando as coisas se tornam deficientes

ou excessivas Sempre que precisamos julgar o

129

grau de raiva de uma pessoa devemos saber se ela

estaacute enraivecida somente com as pessoas que

merecem isto ou se com mais pessoas se ela se

enfurece somente por razotildees respeitaacuteveis ou se

suas reaccedilotildees satildeo apropriadas ou exageradas se ela

se acalma depois de um periacuteodo razoaacutevel de

tempo ou se natildeo tem como dar a volta por cima

etc Podemos concluir entatildeo que a imputaccedilatildeo de

deficiecircncia ou excesso quantitativo em casos

como este depende em uacuteltima instacircncia do caacutelculo

de falhas especificadas qualitativamente (RAPP

2010 p 430-431)

Esse tipo de interpretaccedilatildeo parece razoaacutevel e reforccedila a proposta da

teoria da boa medida como relativa a noacutes amparada na situaccedilatildeo na

bondade do agente e do fim por este procurado garantida por sua

capacidade de boa deliberaccedilatildeo ou prudecircncia visando natildeo um nuacutemero

especiacutefico que aponte como agir corretamente mas paracircmetros e

avaliaccedilotildees que indiquem o agir deste ou daquele modo Aristoacuteteles

contudo insiste que em relaccedilatildeo agraves paacutethē que trazem a maldade desde o

nome natildeo haacute como acertar sendo que quem as sente sempre erra

Entendemos que tais emoccedilotildees satildeo decorrentes dos desejos que natildeo

ouvem ou que ouvem pouco a razatildeo quando natildeo satildeo educados para a

virtude e que acabam por falhar em seu caacutelculo para a boa accedilatildeo Assim

eacute possiacutevel ao filoacutesofo elaborar uma lista dos meios termos ou seja das

virtudes quanto a certas emoccedilotildees fazendo o mesmo em relaccedilatildeo agraves

accedilotildees que devem ser moderadas Estas satildeo descritas no resumo das

virtudes morais apresentado pelo Livro II 7 da EN assim como nos

livros que seguem (EN III-V) quando descrevem em maiores detalhes

aquelas que se costuma chamar virtudes morais

As virtudes morais particulares dizem respeito ao comportamento

relativo agraves emoccedilotildees particulares como bem observa Hutchinson mas

sem esquecer que isso diz respeito agrave forma de conduzir tais emoccedilotildees

diante das situaccedilotildees que se apresentam Por exemplo em tal suma lemos

que a boa medida quanto ao medo e ao arrojo eacute a coragem enquanto em

relaccedilatildeo agrave raiva seria o que geralmente eacute chamado de calma O que

importa nas listas que descrevem as virtudes poreacutem eacute notarmos que a relaccedilatildeo do homem com as emoccedilotildees que sente confirma a proposta

acerca da relevacircncia da presenccedila de emoccedilotildees moderadas quantitativa e

qualitativamente na boa vida moral e da relevacircncia que o entorno e sua

avaliaccedilatildeo tecircm nessas emoccedilotildees ldquoA quantidade correta depende de

paracircmetros que nos concernem ou que concernem a todos que se

130

encontram na mesma situaccedilatildeo que nos encontramosrdquo explica Rapp

(2010 p 431-432) Os paracircmetros salvam tambeacutem o aspecto mais

concreto da doutrina da boa medida como virtude moral havendo

compatibilidade nas duas propostas A aplicaccedilatildeo destes padrotildees agraves

emoccedilotildees permite o ldquocaacutelculordquo da medida nas emoccedilotildees conciliando

novamente os aspectos quantitativos e qualitativos da doutrina dentro da

proposta da metriopaacutethēia bem como permite que a teoria seja aplicada

agraves accedilotildees

A uacutenica quantidade que interessa eacute a quantidade

de reaccedilotildees inapropriadas natildeo a quantidade

absoluta digamos de prazeres que fruiacutemos

somente quando confundimos estes tipos de

escalas quantitativas podemos pensar que falhas

do tipo quantitativo tais como comer doces

demasiadamente beber ouzo demasiadamente

dormir com muitas mulhereshomens etc satildeo

paradigmas para a caracterizaccedilatildeo aristoteacutelica da

virtude e do viacutecio Mas em verdade natildeo faz uma

grande diferenccedila para a doutrina se por exemplo

a nossa fruiccedilatildeo excessiva de prazeres do corpo

tem por base a fruiccedilatildeo de coisas erradas ou de

coisas demais cada uma destas uacuteltimas podendo

ser boa ou beneacutefica em separado (RAPP 2010 p

437)

Soacute se pode dizer que se sente muito ou muito pouco se as

emoccedilotildees satildeo corretas ao se analisar os paracircmetros e as circunstacircncias

por intermeacutedio do caacutelculo deliberativo que leva agrave escolha deliberada do

modo de accedilatildeo A questatildeo da medida nas emoccedilotildees eacute portanto mais a

questatildeo da natildeo violaccedilatildeo dos paracircmetros para a accedilatildeo que da quantidade

exata entre excessos e faltas Para esclarecer o que propomos podemos

dar um exemplo o do homem virtuoso e que encontra a boa medida em

suas emoccedilotildees A descriccedilatildeo estaacute na Retoacuterica e nos apresenta o perfil dos

cidadatildeos que estatildeo no auge da vida Estes homens natildeo satildeo muito

confiantes (temeraacuterios) nem muito temerosos tecircm a justa medida nestas

emoccedilotildees natildeo confiam ou desconfiam de tudo emitem juiacutezos conforme

a verdade natildeo vivem somente para o belo ou para o uacutetil mas para

ambos natildeo vivem apenas para a frugalidade nem para a prodigalidade

mas para o justo meio

O mesmo acontece em relaccedilatildeo ao seu impulso e ao seu apetite

adultos tecircm sua temperanccedila acompanhada de coragem e vice-versa

131

Diferem dos jovens que satildeo valentes e licenciosos e dos idosos que satildeo

moderados e covardes Portanto o homem no auge da vida eacute modelo da

virtude moral que eacute o bem agir diante das emoccedilotildees sentidas nas

circunstacircncias vividas Tal homem eacute a expressatildeo do bom estado da alma

natildeo racional que pensamos ser impossiacutevel sem o acordo com a

capacidade racional representada pela prudecircncia sendo modelo

igualmente da influecircncia das circunstacircncias que natildeo satildeo as mesmas para

quem se encontra no ponto alto de sua existecircncia na melhor forma de

suas capacidades e para aqueles que ainda satildeo demasiado jovens ou que

jaacute satildeo demasiado velhos

O auge da vida exige uma razatildeo reta capaz de discriminar

(kriacutenein) corretamente situaccedilotildees particulares encontrar o meio termo

desejado e buscado com a accedilatildeo Aggio propotildee que isso soacute acontece agrave

pessoa que tenha preparaccedilatildeo afetiva preacutevia sendo afetivamente capaz de

ver o que eacute melhor A autora entende que usar bem a razatildeo depende de

um bem-estar afetivo ou do bom estado da capacidade natildeo racional

como Rapp e a sua leitura da boa medida igualmente nos propotildeem

ldquoMas o que eacute o modo certo e as vezes certas e quem eacute a pessoa certa

depende do tipo de situaccedilatildeo e contexto em que agimosrdquo (AGGIO 2017

no prelo) Isso nos leva a entender que o conceito de meio termo relativo

a noacutes foi elaborado para abarcar a ideia do conteuacutedo dos mencionados

paracircmetros e por isso pode variar conforme as circunstacircncias para a boa

accedilatildeo - mas natildeo sem ter o bem supremo em vista

Uma quantificaccedilatildeo do que eacute bom ou mau natildeo eacute usada para

determinar paracircmetros individuais na doutrina esta apresenta as

condiccedilotildees nas quais as solicitaccedilotildees da capacidade natildeo racional da alma e

as accedilotildees que lhes correspondem sejam tomadas como boas ou corretas

Valendo-nos ainda do exemplo do homem no auge da vida eacute possiacutevel

dizer que estaacute afetivamente apto tanto para ter juiacutezos corretos frente agraves

situaccedilotildees quanto para por em acordo suas afecccedilotildees e sua razatildeo Para que

tal acordo aconteccedila eacute preciso estar disposto para tal coisa ou seja ver o

que eacute bom a ser feito depende de querer ver tal coisa Esse tipo de visatildeo

implica virtude completa pois somente uma pessoa virtuosa consegue

distinguir por si mesma o que eacute melhor Por isso uma pessoa virtuosa

age bem e como consegue ver o que deve fazer como explica a citaccedilatildeo

que segue

Por exemplo trata-se de ser coleacuterico o suficiente

para saber bem se vingar ou se defender de uma

ofensa de ser moderado o suficiente i e na justa

medida para desfrutar no momento oportuno de

132

prazeres saudaacuteveis de ser bem disposto a

enfrentar a dor de modo a ver o que eacute corajoso a

ser feito trata-se de perceber que uma dada

situaccedilatildeo exige uma accedilatildeo generosa e de desejar

realizaacute-la mas tal sensibilidade moral depende de

jaacute haver uma disposiccedilatildeo generosa para tanto e

assim por diante com relaccedilatildeo agraves outras virtudes

particulares e suas respectivas emoccedilotildees e desejo

As coisas assim nos aparecem conforme a

disposiccedilatildeo que temos em percebecirc-las e o estado

afetivo em que nos encontramos (AGGIO 2017

no prelo)

Acrescentamos a esta proposta de acordo com os intuitos de

nosso estudo que desejar bem e retamente faculta se emocionar bem e

retamente mas ainda precisamos investigar certas questotildees para

continuar a admitir com seguranccedila que satildeo a razatildeo e afetos que

determinam em conjunto o agir Embora pareccedila plausiacutevel existem ainda

as tantas apostas de Aristoacuteteles na razatildeo para nos fazer pensar mais um

pouco sobre a questatildeo Contudo Aggio pensa que mais que conhecer o

que eacute certo para agir moralmente bem eacute preciso que os afetos

determinem o que importa moralmente A accedilatildeo correta depende do

engajamento afetivo porque a razatildeo natildeo conduz direta ou indiretamente

os afetos ela vecirc o que eacute certo porque se tem uma tendecircncia afetiva para

tanto Quando as afecccedilotildees se tornam disposiccedilotildees eacute possiacutevel agirem

como padrotildees ou regularidades sendo modos de raciocinar e perceber

Quando o momento exige tomar uma atitude quem dita o melhor a ser

feito satildeo o desejo reto e a reta razatildeo E com isso uma accedilatildeo natildeo seria

movida por princiacutepios do intelecto caso natildeo fosse afetivamente

engajada

Assim as afecccedilotildees seriam determinantes para a atribuiccedilatildeo do

valor moral agrave accedilatildeo porque na eacutetica de Aristoacuteteles as accedilotildees resultam das

afecccedilotildees que estatildeo em sua origem Estes tecircm a ver com prazer e dor

com o desejo por buscar ou evitar alguma coisa e Aristoacuteteles frisa o

desejo como princiacutepio da accedilatildeo Nossa cautela nesse momento ainda nos

leva a pensar na questatildeo da necessidade da boa associaccedilatildeo entre razatildeo e

afecccedilotildees para a boa accedilatildeo mas foi por percebermos a possibilidade desse destaque da afecccedilatildeo na vida moral que decidimos tratar a questatildeo

poreacutem com relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees entendidas como emoccedilotildees No entanto

devemos finalizar nossa discussatildeo das relaccedilotildees das virtudes com as

paacutethē ateacute mesmo para podermos nos posicionar melhor quanto ao

assunto Por isso abordaremos a mencionada disposiccedilatildeo em perceber o

133

que eacute correto e conveniente e sua ligaccedilatildeo com as emoccedilotildees

4 Virtudes intelectuais satildeo necessaacuterias agraves virtudes morais e para a

ldquoboa formardquo das emoccedilotildees

Tendo em vista que a virtude eacute necessaacuteria agrave eudaiacutemōniacutea que a

vida excelente plenamente parece ser considerada por Aristoacuteteles a vida

conforme a razatildeo e que a virtude moral natildeo pode existir sem a razatildeo119

trataremos agora do modo como a razatildeo praacutetica pode comandar ou

segundo nossa proposta andar junto com as emoccedilotildees conferindo-lhes a

boa medida proacutepria agrave virtude moral e agrave virtude completa ldquoE jaacute que de

fato noacutes dissemos mais acima que devemos escolher o meio termo e

natildeo o excesso ou a falta e que o meio termo eacute conforme o que enuncia a

reta razatildeo analisemos agora esse uacuteltimo pontordquo (EN VI 1 1138b18-

20)120 O que seria a reta razatildeo (orthograves loacutegos)

Em todas as disposiccedilotildees morais discutidas haacute certa finalidade que

fixa sua regra fazendo com que o homem que estaacute em posse da reta

razatildeo intensifique ou relaxe seus esforccedilos Por conseguinte existe um

princiacutepio que determina as medianias permitindo que estejam em

acordo com a mencionada regra mas Aristoacuteteles bem como noacutes pensa

que o assunto ainda carece de atenccedilatildeo Embora seja verdade afirmar que

se deva empregar a justa medida nos esforccedilos saber disso nada

acrescenta ao conhecimento eacute preciso determinar a reta razatildeo

Aristoacuteteles nos fala de virtudes morais e intelectuais As

primeiras foram tratadas mas falta falar das virtudes intelectuais e de

sua importacircncia na vida moralmente boa jaacute que destacamos a

imprescindibilidade da capacidade natildeo racional em tal vida Em EN VI

119 Como observa Zingano (2008 p 24) e como vimos no capiacutetulo anterior eacute

preciso moderaccedilatildeo nas emoccedilotildees ou seja uma boa habituaccedilatildeo para que a razatildeo

tenha ao menos a possibilidade de atuar Isso sinaliza a postura contraacuteria ao

racionalismo socraacutetico defendida por Aristoacuteteles pensa o estudioso O mesmo

estudioso no mesmo estudo (2008 p 75) explica que a virtude moral depende

da razatildeo para poder operar sendo que a razatildeo aperfeiccediloa a virtude moral Por

isso acatamos a proposta de Zingano um estudo da phroacutenēsis ainda que breve

como o propomos completa o estudo da virtude moral jaacute que eacute esta virtude

intelectual que faz a aretḗ eacutetica completa 120 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Ἐπεὶ δὲ τυγχάνομεν πρότερον εἰρηκότες ὅτι δεῖ τὸ μέσον

αἱρεῖσθαι μὴ τὴν ὑπερβολὴν μηδὲ τὴν ἔλλειψιν τὸ δὲ μέσον ἐστὶν ὡς ὁ λόγος ὁ

ὀρθὸς λέγει τοῦτο διέλωμεν

134

1 o filoacutesofo estabelece uma divisatildeo como aquela das capacidades alma

para o racional comeccedilando com a admissatildeo de que satildeo duas as lsquopartesrsquo

da alma racional Uma delas eacute responsaacutevel pela contemplaccedilatildeo dos seres

que natildeo podem ser de outro modo a outra eacute responsaacutevel pelo

conhecimento das coisas contingentes (EN VI 2 1139a5-8) sendo que

isso eacute possiacutevel caso seja verdade que haacute certo tipo de semelhanccedila e de

afinidade entre o sujeito e o objeto que se daacute ao conhecimento como

proposto tambeacutem no DA

Uma dessas capacidades (ou (sub)capacidades como propusemos

para as virtudes morais) eacute chamada cientiacutefica outra calculativa na

medida em que deliberar e calcular satildeo o mesmo e cada uma apresenta

virtude proacutepria Jaacute vimos no Capiacutetulo anterior a relaccedilatildeo das coisas que

segundo EN VI 2 controlam a accedilatildeo e a verdade quais sejam percepccedilatildeo

intelecto e desejo e que Aristoacuteteles a princiacutepio exclui a percepccedilatildeo

sensiacutevel como responsaacutevel por aquelas accedilotildees consideradas moralmente

por ser compartilhada por todos os animais Precisamos agora

estabelecer o modo como as outras duas coisas intelecto e desejo

podem se relacionar bem concedendo a forma adequada ao desejo que

conduziraacute agrave procura pelo fim correto e pela boa accedilatildeo e para tanto

deveremos ver a importacircncia das virtudes intelectuais na moralidade

Precisamos analisar essa possibilidade jaacute que Aristoacuteteles mais

adiante nas discussotildees do Livro VI 10 apresenta a possibilidade de

objeccedilatildeo agrave necessidade das virtudes intelectuais junto a uma vida feliz

Isso inviabilizaria as propostas que temos feito a partir de EN I 13

trecho que indica uma alma una na qual a capacidade desiderativa seria

apta a ouvir a razatildeo portanto devemos buscar sair desse embaraccedilo

Podemos comeccedilar nossa empreitada observando que Aristoacuteteles em VI

3 menciona cinco estados ou virtudes intelectuais pelos quais a alma

enuncia o que eacute verdadeiro por afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo arte (teacutechnē)

ciecircncia (episteacuteme) prudecircncia (phroacutenēsis) sabedoria (sophiacutea) e intelecto

(noucircs) Mesmo que o filoacutesofo pareccedila admitir a sabedoria121 como maior

e mais excelente das virtudes humanas a virtude intelectual que estaacute

relacionada diretamente agrave boa accedilatildeo (eupraxiacutea) e consequentemente agraves

emoccedilotildees moderadas eacute agrave prudecircncia Neste estudo natildeo analisaremos

121 De acordo com a interpretaccedilatildeo feita por Tricot a virtude mais perfeita eacute a

sophiacutea virtude mais alta da parte intelectual humana Reeve parece

compartilhar dessa opiniatildeo de certo modo pois natildeo a entende como virtude

mais completa (REEVE 2013 p 27) Embora Zingano (2007 p 160) observe

que eacute possiacutevel que a mais alta virtude mencionada pelo filoacutesofo possa ser uma

junccedilatildeo de sophiacutea e phroacutenēsis o que nos parece mais plausiacutevel

135

especificamente a sabedoria porque segundo o filoacutesofo natildeo se dedica a

nenhum dos meios que permitem ao homem ser feliz dados os seus

objetos Eacute de se presumir no entanto que o detentor de tal virtude

intelectual tenha as demais virtudes inclusive aquelas relativas agraves

emoccedilotildees moderadas devido ao caraacuteter uno da psychḗ humana Parece

ser isso que podemos ler no passo escrito por Reeve acerca das virtudes

da capacidade racional da alma humana proposta pela EN trecho que

subscrevemos

Juntas essas duas partes compotildeem a parte da alma

que tem razatildeo (logos) porque esta pode dar

razotildees que justificam e explicam

A funccedilatildeo de cada subparte racional eacute conhecer a

verdade confiaacutevel (239b12-13) No caso da parte

cientiacutefica (ou da contemplativa ou do pensamento

teoacuterico que ela capacita) a verdade em questatildeo eacute a

verdade totalmente familiar naquele da parte

calculativa (ou pensamento praacutetico) eacute a verdade

praacutetica ou determinante-da-accedilatildeo que eacute ldquoverdade

em conformidade como desejo corretordquo (239a17-

35) Desde que uma virtude eacute apenas algo que

capacita seu detentor a cumprir ou completar bem

sua funccedilatildeo satildeo essas funccedilotildees que tecircm as chaves

para as virtudes do pensamento (139a16-17) e

entatildeo para o tipo de razatildeo eticamente correta

procurada (REEVE 2013 p 4 traduccedilatildeo nossa)

Embora como observa Reeve (2013 p 1) seja difiacutecil determinar

o papel da razatildeo teoacuterica na moralidade suspeitamos que tal relaccedilatildeo

exista necessariamente Todavia por motivo das propostas que

defendemos nesse estudo nesse momento trataremos a phroacutenēsis devido

agrave sua atuaccedilatildeo evidente junto agrave vida feliz e doravante apontaremos

quando possiacutevel e necessaacuterio indiacutecios de que a sabedoria teoacuterica

participa da virtude completa que viabiliza a boa vida

4a) A prudecircncia

Dissemos muitas vezes que natildeo haacute virtude moral sem prudecircncia

Mas qual a utilidade desta para a vida moral se a maioria dos homens

parece estar sob o domiacutenio das capacidades natildeo racionais da alma e se

Aristoacuteteles cede agrave virtude moral a indicaccedilatildeo do fim a ser buscado pelo

agente Aristoacuteteles responde a partir de VI 7 (mas a proposta aparece

136

tambeacutem em III 4 5 e 7) que a prudecircncia eacute uacutetil agrave vida moral por analisar

os meios que permitem ser feliz tendo por objeto as coisas justas belas

e boas para o homem Sendo assim quando Aristoacuteteles escreve que a

razatildeo sozinha nada move escreve tambeacutem que a razatildeo praacutetica associada

ao desejo move

A associaccedilatildeo das capacidades desiderativa e racional da alma

esta representada ao menos pela razatildeo praacutetica que retifica os desejos

pelos fins ajusta o caacutelculo dos meios e a escolha do meio mais eficiente

de agir para alcanccedilar o bom fim proposto pelo desejo retificado graccedilas agrave

sua docilidade agrave razatildeo praacutetica como veremos e defenderemos Esse tipo

de interpretaccedilatildeo nos forccedila a ver as possibilidades de entendimento da

virtude da razatildeo praacutetica chamada prudecircncia de seus objetos e de sua

funccedilatildeo junto a uma vida boa moralmente

Um modo de compreender melhor o papel moral da prudecircncia e o

que ela eacute passa pela consideraccedilatildeo de quem satildeo os prudentes A opiniatildeo

geral - com a qual Aristoacuteteles parece concordar - eacute que o prudente tem a

capacidade de bem deliberar quando estaacute em jogo o que eacute vantajoso e

bom para o homem A prudecircncia eacute ldquouma disposiccedilatildeo acompanhada da

regra justa capaz de agir na esfera do que eacute bom ou mau para um ser

humanordquo (EN VI 5 1140b4-5)122 O cidadatildeo que apresenta essa virtude

intelectual eacute dotado de reta razatildeo e por isso eacute capaz de deliberar sobre

as coisas que levam agrave boa accedilatildeo e agrave vida feliz Sendo assim de um modo

geral eacute possiacutevel classificar o prudente como o homem capaz de

deliberaccedilatildeo A prudecircncia estaacute ligada igualmente ao agir eacutetico e por isso

Wolf (2010 p 152) entende que viver exercendo a virtude moral eacute uma

forma de eudaiacutemōniacutea pois para a realizaccedilatildeo plena desse tipo de vida

natildeo basta ter a virtude da capacidade desiderativa Para que haja a boa

accedilatildeo eacute preciso haver aquilo que a autora chama de ldquoboa compleiccedilatildeo

constitutivardquo da capacidade desiderativa e tambeacutem a virtude intelectual

definidora do exerciacutecio da virtude moral que eacute a prudecircncia Por isso

Aristoacuteteles escreve A phroacutenēsis eacute uacutetil agrave vida moral por indicar os

meios de se alcanccedilar um fim desejado pois o fim

eacute da alccedilada da virtude moral a obra proacutepria do

homem natildeo eacute totalmente acabada senatildeo em

conformidade com a prudecircncia e com a virtude a

virtude moral eacute com efeito garantia da retidatildeo do

122 Traduccedilatildeo para o portuguecircs nossa feita a partir da traduccedilatildeo francesa feita por

Tricot (2012) No original ἕξιν ἀληθῆ μετὰ λόγου πρακτικὴν περὶ τὰ ἀνθρώπῳ

ἀγαθὰ καὶ κακά

137

fim que buscamos e a prudecircncia aquela dos meios

para alcanccedilar esse fim (EN VI 13 1144a6-9)123

Segundo Hutchinson (2009 p 270) mais que propor meios a

prudecircncia torna a virtude moral sensata jaacute que os princiacutepios de nossas

accedilotildees satildeo os fins aos quais tendem nossos atos e estes princiacutepios

necessitam de tal sensatez Ela eacute a virtude da capacidade da alma apta a

calcular (tograve logistikoacuten) os meios implicada tanto na accedilatildeo quanto na

produccedilatildeo porque o caacutelculo ou deliberaccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o que pode

ser de outro modo sendo que a accedilatildeo moral e a produccedilatildeo satildeo do acircmbito

do que eacute variaacutevel A prudecircncia natildeo pode ser esquecida e eacute caracterizada

como a virtude intelectual que tem por objeto os universais mas que

deve tambeacutem ter o conhecimento dos fatos particulares pois sendo da

ordem da accedilatildeo estaacute relacionada com as coisas particulares (EN VI 8

1141b9-16) Por conseguinte a prudecircncia precisa do conhecimento do

universal e dos particulares mas o prudente deve saber

preferencialmente daquilo que estaacute relacionado ao particular imediato

ou uacuteltimo que eacute objeto de um tipo de percepccedilatildeo (aiacutesthēsis) do particular

mas um tipo de percepccedilatildeo tida como na percepccedilatildeo um ente matemaacutetico

diferenciando-se da percepccedilatildeo dos sensiacuteveis proacuteprios como explica o

DA III 10 433a16-17

Assim na prudecircncia ou melhor na deliberaccedilatildeo da qual eacute em

parte constituiacuteda haacute percepccedilatildeo daquilo que eacute uacuteltimo mas primeiro na

accedilatildeo124 Tal percepccedilatildeo explica Reeve (2013 p 3 2014 p 211) capta

algo uacutenico ou universal entre uma multidatildeo de coisas particulares com

o auxiacutelio da capacidade perceptiva da alma como veremos no proacuteximo

Capiacutetulo De acordo com essas descriccedilotildees eacute possiacutevel entender a

prudecircncia portanto como

[] a virtude intelectual chamada sabedoria

praacutetica cuja funccedilatildeo eacute permitir-nos saber a maneira

correta de nos comportar Embora a sabedoria

praacutetica natildeo seja ela proacutepria uma virtude moral

estaacute intimamente associada com as virtudes

morais [] Como resultado de tudo isso a

sabedoria praacutetica eacute uma apreciaccedilatildeo do que eacute bom

e mau para noacutes no niacutevel mais alto acrescida de

123 Idem ἔτι τὸ ἔργον ἀποτελεῖται κατὰ τὴν φρόνησιν καὶ τὴν ἠθικὴν ἀρετήν ἡ

μὲν γὰρ ἀρετὴ τὸν σκοπὸν ποιεῖ ὀρθόν ἡ δὲ φρόνησις τὰ πρὸς τοῦτον 124 Para uma discussatildeo mais detalhada das diferenccedilas e similaridades entre

percepccedilatildeo comum e percepccedilatildeo deliberativa ver Reeve (2014 p 213)

138

uma correta assimilaccedilatildeo dos fatos da experiecircncia e

da habilidade de fazer de maneira raacutepida e

confiaacutevel as inferecircncias corretas sobre como

aplicar nosso conhecimento moral geral a nossa

situaccedilatildeo particular Ela eacute usada em nossos

proacuteprios casos quando somos obrigados a manter

certo modo de accedilatildeo Obviamente ela eacute um recurso

muito importante se a tiveacutessemos noacutes sempre

agiriacuteamos de maneira correta e nossas vidas

seriam proacutesperas e felizes (HUTCHINSON 2009

p 267-269)

Apoacutes expor brevemente a relaccedilatildeo de necessidade entre a virtude

intelectual da prudecircncia e a virtude moral devemos prosseguir em nossa

investigaccedilatildeo Vale avisar que explicaremos melhor a relaccedilatildeo da

prudecircncia com o particular e o universal mas no momento a exposiccedilatildeo

que fazemos da virtude intelectual em questatildeo solicita que a

explicitemos o modo como capacita o homem a agir bem graccedilas a ter a

boa deliberaccedilatildeo (eubouliacutea) por peculiaridade Com seu caacutelculo bem

executado a prudecircncia associada agrave virtude moral possibilita que as

accedilotildees sejam perfeitas permitindo mesmo a completude da virtude

humana pois leva a agir seguindo boas razotildees Assim sendo a

deliberaccedilatildeo necessaacuteria agrave determinaccedilatildeo racional que faraacute dos atos

corretos eacute preciso analisaacute-la ainda que brevemente

4b) Deliberaccedilatildeo

As propostas indicam que a funccedilatildeo a ser exercida pelo prudente eacute

a deliberaccedilatildeo ou melhor a boa deliberaccedilatildeo sendo esta uma espeacutecie de

pesquisa ou caacutelculo que apontaraacute ao agente suas possibilidades de accedilatildeo

para que sua procura por um fim resulte bem-sucedida Quem delibera

busca os meios convenientes para as accedilotildees e nesse caso o conveniente eacute

o bom mas o que eacute objeto de deliberaccedilatildeo (bouacuteleusis) ldquoDeliberar

entatildeo diz respeito agraves coisas que ocorrem nas mais das vezes mas nas

quais eacute obscuro como resultaratildeo e agravequelas nas quais eacute indefinido como

resultaratildeordquo (EN III 5 1112b8-9)125 Por isso se nas accedilotildees cabe variaccedilatildeo

para agir bem quanto aos assuntos incertos eacute preciso deliberar bem agrave

eacutetica de Aristoacuteteles eacute imprescindiacutevel apontar bons meios que seratildeo

escolhidos e que poratildeo por fim o cidadatildeo a agir Vimos que nesta eacutetica

125 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original τὸ βουλεύεσθαι δὲ ἐν τοῖς ὡς ἐπὶ

τὸ πολύ ἀδήλοις δὲ πῶς ἀποβήσεται

139

a capacidade mesma de adotar os meios corretos de agir que iniciam

com a deliberaccedilatildeo consiste na ideia de responsabilidade Quando o

agente prefere certos meios por deliberaccedilatildeo pode vir a se tornar senhor

de suas accedilotildees como explicitaremos melhor adiante

Mas qual a natureza da boa deliberaccedilatildeo Quem delibera bem o

faz corretamente e por isso a boa deliberaccedilatildeo eacute um tipo de retidatildeo na

procura e indicaccedilatildeo dos meios para alcanccedilar determinados fins O bem

deliberar eacute um tipo de retidatildeo de pensamento mas natildeo eacute ainda uma

asserccedilatildeo pois o homem que delibera bem calcula e investiga alguma

coisa Se a eubouliacutea eacute correccedilatildeo no deliberar a bouacuteleusis propriamente

dita eacute a forma correta de analisar racionalmente os meios uacuteteis para a

realizaccedilatildeo de um fim Esse tipo de caacutelculo parte do objetivo uacuteltimo da

accedilatildeo concebendo modos de alcanccedilaacute-lo ateacute se entender o que realmente

eacute possiacutevel fazer Quem delibera analisa e ao fim de tal anaacutelise chega ao

que eacute primeiro na execuccedilatildeo da accedilatildeo a escolha deliberada do meio que

conduziraacute ao fim mas quando o deliberador se depara com algo

impossiacutevel a investigaccedilatildeo eacute suspensa Em contrapartida caso se depare

com algo possiacutevel a accedilatildeo eacute posta em curso Por conseguinte os objetos

da bouacuteleusis satildeo os instrumentos de accedilatildeo sua utilizaccedilatildeo e o meio pelo

qual a accedilatildeo ocorreraacute buscando ser bem-sucedida Deliberando portanto

o homem pode ser considerado princiacutepio das accedilotildees que comete porque

a deliberaccedilatildeo estaacute relacionada a coisas que podem ser feitas pelos

proacuteprios esforccedilos (EN III 6 1113a3-12)

Com as observaccedilotildees feitas acima expressamos em linhas gerais a

deliberaccedilatildeo quais satildeo seus objetos e determinamos que estatildeo

relacionados agraves coisas que conduzem aos fins Como explicita VI 8 a

deliberaccedilatildeo eacute a capacidade do prudente que apresenta uma consideraccedilatildeo

(hypoacutelēpsis) verdadeira e por isso entendemos o deliberar como segundo

passo rumo ao alcance de um fim pois o desejo eacute o iniacutecio e ocorre antes

da anaacutelise dos meios A deliberaccedilatildeo eacute expressa sob a forma loacutegica do

silogismo praacutetico que eacute concluiacutedo com a accedilatildeo (EN VII 5 1147a25-31)

sendo este silogismo considerado por Reeve (2014 p 202 210) um

plano para a accedilatildeo126 Em tal plano a premissa universal eacute apresentada ao

agente como um bem (ou como o bem supremo) pois segundo o autor e

como explicita o DA III 10 433b21-27 eacute preciso que haja um ponto fixo

126 Reeve descreve tal silogismo do seguinte modo ldquoPremissa maior definiccedilatildeo

de felicidade

Premissa menor decreto

Conclusatildeo accedilatildeordquo (REEVE 2013 p 9)

140

ou uma espeacutecie de motor imoacutevel que ponha a accedilatildeo em movimento127

Neste caso tal ponto fixo seria o desejo pela felicidade (ou pelo fim que

percebemos como nosso condutor agrave felicidade DA III 11 434a16-20

EN VI 3 1139b17-18) Haveria ainda sob esta foacutermula loacutegica da accedilatildeo

gerada pela deliberaccedilatildeo opiniotildees ou juiacutezos que poderiam ser verdadeiros

ou falsos como nos informa VI 11 constituintes da premissa menor

sendo uma questatildeo de percepccedilatildeo praacutetica assunto do qual trataremos um

pouco mais detidamente no Capiacutetulo III A premissa menor eacute proposta

por Reeve como um decreto (2014 p 210) que antecede a escolha que

resultaraacute na accedilatildeo Por isso na sequecircncia desse processo deve haver a

escolha deliberada do meio para conseguir o fim desejado Por

conseguinte a escolha deliberada eacute o ldquoato de pesar razotildees rivaisrdquo

(ZINGANO 2007 p 158) quanto aos meios para alcanccedilar aquilo que eacute

desejado e por isso a analisaremos brevemente

4c) Escolha deliberada

A escolha deliberada (proaiacuteresis) eacute exclusividade dos animais

humanos nos quais a razatildeo exerce adequadamente seu papel Aristoacuteteles

a define em VI 2 por relaccedilatildeo ao desejo classificando-a como desejo

deliberado (oacuterexis dianoetikeacute) ou intelecto desejante (orektikograves noucircs)

por ser um tipo de desejo formado apoacutes o processo de deliberaccedilatildeo apoacutes

o agente considerar o modo mais adequado de agir para alcanccedilar seu

objetivo Por isso segundo Besnier (2008 p 90) a escolha deliberada eacute

o momento em que eacute possiacutevel que a capacidade natildeo racional da alma

escute a razatildeo praacutetica deixando-se levar por ela Ou ainda melhor eacute o

momento no qual tal capacidade pode se unir agrave razatildeo praacutetica e se

determinar pelas razotildees por ela propostas levando agrave accedilatildeo virtuosa Por

exemplo o continente escolhe deliberadamente e por isso natildeo age por

apetite imoderado (EN III 4 1111b14-17) ldquoEm suma pois a escolha

deliberada parece dizer respeito agravequelas coisas que estatildeo em nosso

poderrdquo (EN III 4 1111b29-30)128

Por tal motivo atribui-se certa qualidade a um homem pelas

escolhas que faz jaacute que prefere obter ou evitar certo tipo de coisa com o

auxiacutelio da reflexatildeo e do pensamento (logoucirc kaigrave diaacutenoias) implicando

que a escolha deliberada acontece apoacutes a deliberaccedilatildeo que indica meios

127 A respeito da premissa maior como um desejo tambeacutem Nussbaum (1985 p

201 et seq) 128 Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original ὅλως γὰρ ἔοικεν ἡ προαίρεσις περὶ

τὰ ἐφ ἡμῖν εἶναι

141

calculados para se conseguir o fim determinado racionalmente Isso

significa que ldquoa escolha deliberada introduz no centro da virtude por

conseguinte no seio mesmo das emoccedilotildees o ato de pesar razotildees para

aquilo que se faz ou se deixa de fazerrdquo (ZINGANO 2007 p 158)

Escolher eacute essencial para a virtude moral pois eacute a partir da escolha

deliberada que se consolida a preferecircncia por esta e natildeo por aquela accedilatildeo

apontada na deliberaccedilatildeo manifestando aquilo que Zingano chama

ldquofaculdade de contraacuteriosrdquo (2008 p 27129) ou razatildeo Esta pode aceitar ou

deixar de aceitar uma ou outra das propostas da deliberaccedilatildeo - donde os

mencionados contraacuterios - e nisso consiste a escolha deliberada

Deste modo o processo que leva agrave accedilatildeo virtuosa pode ser descrito

do modo como fez Aggio no passo seguinte

Comeccedilamos desejando algo em seguida

passamos a investigar os meios para realizaacute-lo

por fim escolhemos realizaacute-lo ou natildeo Devemos

portanto conceber a escolha como sendo

necessariamente o resultado de uma investigaccedilatildeo

129 Zingano (p 186-187) quanto agrave variedade de fins a serem escolhidos e ao

mesmo tempo quanto ao natildeo relativismo da eacutetica de Aristoacuteteles graccedilas a

existecircncia de um fim maior O que confere agrave deliberaccedilatildeo a tarefa de

avaliaccedilatildeomoral das accedilotildees embora a escolha dos fins seja da alccedilada dos desejos

e das virtudes morais Assim a proaiacuteresis seria parte disso tudo em sua funccedilatildeo

de preferecircncia moral que escolhe entre as alternativas propostas pela

deliberaccedilatildeo A escolha deliberada aleacutem ser por objeto de deliberaccedilatildeo concluiacuteda

apresenta assentimento com tal objeto de deliberaccedilatildeo e isso leva a agir (EN

1147a28) Haacute contudo deliberaccedilatildeo sobre o futuro por isso nem toda

deliberaccedilatildeo eacute seguida de accedilatildeo

De acordo com Nussbaum haacute na escolha deliberada tambeacutem um outro aspecto

de preferecircncia associado ao valor do objeto buscado ldquoPara Aristoacuteteles a busca

por valor eacute a busca pelo que eacute bom para o ser humanordquo (NUSSBAUM 2008 p

49 traduccedilatildeo nossa) Frequentemente a verdade eacute que tal busca eacute parte da vida

emocional Coisas muito queridas geralmente satildeo avaliadas como parte

importante da vida Tais objetos das emoccedilotildees satildeo vistos como valiosos e bons

E se o objeto eacute escolhido livremente eacute provaacutevel que seu valor seja ainda mais

elevado Por exemplo ldquoEu escolho algo porque penso que este algo conteacutem

valor agraves vezes somente para mim mas frequentemente vejo isso como valioso

para as pessoas de um modo geralrdquo A autora contudo discorda um pouco da

proposta eudaimocircnica grega porque pensa que nem tudo que uma pessoa

entende como valioso pode ser recomendado aos outros Nesse caso haacute uma

falta de limite entre particular e geral mas natildeo analisaremos essa proposta nesse

momento (para esse assunto consultar NUSSBAUM 2008 p 50 et seq)

142

deliberativa e o iniacutecio da accedilatildeo pois escolhemos

agir ao escolhermos o meio que realiza certo fim

(AGGIO 2017 no prelo)

Sendo no momento da escolha deliberada que nossos desejos e

emoccedilotildees capazes de ouvir a razatildeo praacutetica podem vir a mudar a

concordar ou discordar com o que foi racionalmente proposto

entendemos que eacute durante esse caminho apresentado pela prudecircncia - da

deliberaccedilatildeo agrave escolha da accedilatildeo - que uma emoccedilatildeo pode se tornar

adequada ou seja pode receber a mediania A escolha deliberada eacute a

forma pela qual a razatildeo praacutetica age no interior de todos os desejos por

tornaacute-los mais proacuteximos ao que a razatildeo sugere e eacute por isso que

podemos continuar a afirmar como fizemos no primeiro Capiacutetulo que

haacute um modo correto de ter apetite e de se encolerizar O que implica

tambeacutem sentir tais desejos e emoccedilotildees pelos objetos adequados Nisso se

resume o encontrar o ldquoponto certordquo da emoccedilatildeo segundo as palavras de

Zingano (2008 p 167) sendo tal ponto determinado pela razatildeo

associada agrave virtude moral permitindo deste modo se emocionar

conforme a justa medida

No entanto entendemos que as emoccedilotildees assim como os desejos

satildeo despertadas em noacutes a princiacutepio por certas percepccedilotildees praacuteticas que

temos acerca do mundo que anteriormente determinamos estarem

relacionadas com um sem nuacutemero de particulares que nos afetam e

dentre os quais eacute preciso pela accedilatildeo da prudecircncia abstrair algo universal

que norteia as boas accedilotildees Esse tipo de afecccedilatildeo que se origina com o

exterior deve passar pelo crivo da razatildeo praacutetica e seus processos a fim

de conferir adequaccedilatildeo aos desejos que provoca e agraves emoccedilotildees que

desperta levando-os a adquirir uma modelagem mais adequada agraves

propostas racionais em geral Por isso na sequecircncia deveremos nos

dedicar a trabalhar a relaccedilatildeo do processo da prudecircncia com o particular

(heacutekastos) e o universal (kathoacutelou)

4d) Prudecircncia deliberaccedilatildeo escolha deliberada e sua relaccedilatildeo com o

particular e o universal

Com as discussotildees postas acima pudemos observar momentos

nos quais Aristoacuteteles afirma a relaccedilatildeo entre a prudecircncia suas operaccedilotildees

e as coisas particulares bem como com o universal Esse tipo de

proposta nos leva a indagar novamente o real papel dessa virtude

intelectual pois traz duacutevida quanto ao que seria o tal universal O

particular pudemos deduzir satildeo as circunstacircncias nas quais acontece o

143

mencionado processo e que levam cada agente a por em praacutetica seu

plano de accedilatildeo para realizaccedilatildeo de um fim que veremos ser apontado no

silogismo praacutetico como premissa menor ou um tipo de opiniatildeo Mas se

tudo que eacute feito pelo homem leva a um fim que tende ao fim supremo

seria este uacuteltimo o dito universal Pelo que estudamos ateacute o momento a

resposta parece ser positiva e por conseguinte seraacute favoraacutevel agrave nossa

interpretaccedilatildeo a partir da EN e do DA de uma unidade da alma pois nos

mostraria a prudecircncia apontando para algo mais que as situaccedilotildees

peculiares e contingentes

Essa leitura leva a virtude intelectual da prudecircncia a se conectar

ao menos com um certo tipo de objeto invariaacutevel mesmo que no campo

do que eacute procurado pelas accedilotildees humanas Por isso potildee-na em contato

com o restante das capacidades da alma racional e seus melhores

estados que apresentam por objeto coisas imutaacuteveis Ratificamos que

natildeo traremos especificamente dessas uacuteltimas virtudes intelectuais pois

no momento basta-nos confirmar que a prudecircncia se direciona ao

universal configurado como a eudaiacutemōniacutea e lida com os modos

particulares de alcanccedilaacute-la como explica Reeve (2014 p 211)

Quando a felicidade eacute apreendida por um agente

a tarefa deliberativa deste eacute encontrar a (espeacutecie

de) accedilatildeo particular que a constitui nas

circunstacircncias presentes Uma vez encontrada

esta desempenha dois papeacuteis em seu pensamento

praacutetico serve [1] como a premissa menor do

silogismo praacutetico que incorpora a deliberaccedilatildeo do

agente e [2] como uma especificaccedilatildeo concreta do

fim do agente Em [1] a accedilatildeo conclui o caminho

que desce de um fim universal para suas

ocorrecircncias particulares e assim o entendimento

incorporado na percepccedilatildeo deliberativa que a

apreende concerne agrave aplicaccedilatildeo de um universal

(felicidade agir bem) a particulares (esta accedilatildeo)

Em [2] a accedilatildeo eacute o ponto inicial de uma induccedilatildeo

que avanccedila para um universal a partir da

percepccedilatildeo envolvendo entendimento de

particulares Eacute das ldquoaccedilotildees na vidardquo somos

lembrados que as discussotildees em eacutetica e poliacutetica

ldquose ocupam e derivamrdquo (EN I 3 1095a3-4) e eacute a

habituaccedilatildeo adequada que assegura que

alcancemos as conclusotildees corretas nos causando

prazer e dor Em um aspecto portanto a

felicidade eacute um ponto inicial jaacute que eacute o fim

144

uacuteltimo de toda accedilatildeo Em outro as accedilotildees

particulares que a instanciam satildeo pontos iniciais

uma vez que eacute a partir delas que eacute preenchido um

entendimento da felicidade (universal)130

Aristoacuteteles explica a proposta com uma analogia entre silogismo

discursivo e silogismo praacutetico comparando mesmo (e ateacute chamando) a

prudecircncia que apreende o que eacute uacuteltimo ou particular com o intelecto

(noucircs) que capta o universal (EN VI 9 1142a25) Haveria assim uma

espeacutecie de percepccedilatildeo especificamente eacutetica que levaria agrave apreensatildeo dos

juiacutezos e que vimos natildeo ser a percepccedilatildeo dos sensiacuteveis proacuteprios Eacute uma

questatildeo de referir-se a um processo analiacutetico que no caso de um

triacircngulo por exemplo decomporia a figura ateacute levar agrave apreensatildeo do

triacircngulo reconstruindo-o A imagem deste modo apreendida jaacute permite

que seja explicitado de modo discursivo sendo um particular alguma

coisa uacuteltima Assim quando o filoacutesofo trata nesse ponto do texto (EN

VI 9 1142a27) o ver implica que esse ldquover geralrdquo eacute a apreensatildeo do

triacircngulo como o uacuteltimo ponto da anaacutelise efetuada (WOLF 2010 p

155-156)

Quando na anaacutelise da figura geomeacutetrica foi apreendido o

triacircngulo uacuteltimo elemento constitutivo que pode sofrer anaacutelise tecircm-se

dele em mente uma ldquopercepccedilatildeo geralrdquo e sabe-se que pode ser percebido

em um contexto de fundamentaccedilatildeo Por isso eacute visto como o uacuteltimo

elemento em uma cadeia de argumentaccedilatildeo de fundamentaccedilatildeo Jaacute natildeo

pode mais ser expresso em premissas mas eacute agora objeto do

130 Quanto ao particular e o universal segundo Wolf (2010 p 155) eacute que

ldquoAristoacuteteles acentua que a correta deliberaccedilatildeo se refere ao que a quem quando

e como etc na situaccedilatildeo concreta (assim novamente em 1142b28) Que o

kathacuteheacutekaston eacute pensado aqui no sentido da situaccedilatildeo concreta vem atestado pela

indicaccedilatildeo de que o julgar consiste aqui em uma espeacutecie de aiacutesthēsis (percepccedilatildeo

sentir sensorial ndash 1142a27) tanto quanto pela comparaccedilatildeo da phroacutenēsis com o

noucircs No acircmbito teoacuterico essa eacute a faculdade responsaacutevel pela aquisiccedilatildeo de

conceitos uacuteltimos que jaacute natildeo podem ser explicitados por outros conceitos mas

que soacute podem ainda ser apreendidos Agraves vezes Aristoacuteteles chama a proacutepria

phroacutenēsis de uma espeacutecie de noucircs (1142a25) Isso pode ser esclarecido pelo fato

de ambos referirem-se a algo uacuteltimo (heacutekhaston) o noucircs apreende os conceitos

mais elevados mais abstratos a phroacutenēsis ndash pelo menos onde deve ser

compreendida como aiacutesthēsis ndash apreende o mais concreto A questatildeo decisiva

portanto eacute saber o que tem em mente Aristoacuteteles ao designar a phroacutenēsis como

uma espeacutecie de aiacutesthēsisrdquo

145

pensamento A partir desse ponto eacute possiacutevel questionar se a figura que

se busca eacute um triacircngulo ou um ciacuterculo

Aplicando isso para a deliberaccedilatildeo eacutetica eacute possiacutevel questionar o

quanto a prudecircncia eacute composta por uma percepccedilatildeo geral

questionamento que lemos no passo abaixo

Desde o princiacutepio a analogia deixa claro que a

phroacutenēsis percebe o ldquoconcreto derradeirordquo o que

eacute concreto na situaccedilatildeo individual mas natildeo no

modo de um conhecimento eacutetico intuitivo Ao

contraacuterio deveria apreendecirc-lo em um contexto a

saber como o passo derradeiro em um processo

deliberativo Assim como a anaacutelise geomeacutetrica

reconduz a figura complexa a uma mais simples

de modo que jaacute natildeo possa ser reduzida a

deliberaccedilatildeo eacutetica analisa o conceito de eupraxiacutea

ou de ser-justo ateacute encontrar uma accedilatildeo que jaacute natildeo

remete a outra que podemos antes levar a efeito

imediatamente E como podemos discutir na

anaacutelise geomeacutetrica se eacute o triacircngulo ou outra figura

complexa que se constitui no ponto derradeiro

correto tambeacutem na deliberaccedilatildeo praacutetica podemos

sopesar qual das alternativas de accedilatildeo concretas

possibilitadas pela situaccedilatildeo eacute a correta ou a

melhor tornando-se o conteuacutedo da proaiacuteresis

Desse modo tambeacutem aqui temos a ver com uma

aiacutesthesis ldquogeralrdquo postada em um contexto

racional A proaiacuteresis ou accedilatildeo que deve ser

executada concretamente eacute apreendida como

correta no contexto da deliberaccedilatildeo praacutetica

(WOLF 2010 p 156)

Permanece contudo um problema a boa accedilatildeo natildeo pode ser

analisada como um fim teacutecnico por um processo claro como um ente

geomeacutetrico Se seguirmos o exemplo do triacircngulo transpondo-o para a

accedilatildeo eacutetica natildeo deveriacuteamos pensar que podemos mencionar os passos

para que uma accedilatildeo seja uma boa accedilatildeo O que deveria ser analisado eacute a

circunstacircncia para que ocorra a boa accedilatildeo e diante de tal circunstacircncia

qual eacute a boa accedilatildeo Nesse caso a deliberaccedilatildeo que precede a percepccedilatildeo poderia ser proposta em passos Primeiro o agente deveria esclarecer

qual o fim ou bem constitui o conteuacutedo da virtude moral e que deve ser

alcanccedilado pela accedilatildeo Depois disso deveria explicitar como alcanccedilar tal

bem propondo a circunstacircncia concreta O juiacutezo por sua vez deveria

146

indicar que a accedilatildeo eacute adequada por vaacuterios motivos e aspectos (o que

quem como quando etc) e que se insere na vida do agente em seu

rumo para a eudaiacutemōniacutea por conseguinte a boa accedilatildeo

A percepccedilatildeo relativa agrave prudecircncia e sua concretude poderia ser

entendida por tudo que foi explicado como uma percepccedilatildeo que ldquovecircrdquo a

accedilatildeo que leva um agente a uma boa vida Isso eacute parte do processo de

deliberaccedilatildeo racional articulador das ldquovisotildeesrdquo que se apoiam na empiria

apresenta e analisa as possibilidades de accedilatildeo ateacute o ponto de propor um

projeto de accedilatildeo que com componentes deliberativos vai atingir a forma

que pretende para a boa accedilatildeo Natildeo se trata de um processo que possa ser

decomposto em passos claros como no caso da technḗ mas o que temos

eacute uma busca incerta por um fim sem conteuacutedo preacute-definido

Essas explicaccedilotildees apontam porque a prudecircncia natildeo se direciona

somente para o bem do indiviacuteduo mas para o bem comum Segundo os

Livros II-VI o bem eacute a accedilatildeo bem-sucedida resultante da virtude moral

associada agrave racionalidade praacutetica e quiccedilaacute agrave razatildeo teoacuterica Conforme os

Livros III-VI esse bem deveria ser posto previamente pelo desejo por

uma disposiccedilatildeo que se direcionasse ao bem ou premissa maior da

deliberaccedilatildeo praacutetica Estatildeo envolvidos portanto com o particular e com

o universal como explica Wolf

Ora a faculdade desiderativa estaacute referida agrave razatildeo

as aspiraccedilotildees podem exprimir-se de tal modo que

sejam apreendidas em conceitos podem portanto

adotar a forma de desejos articulados na

linguagem Por si soacute a faculdade desiderativa natildeo

consegue formular um desejo como o desejo de

ser corajoso ou de ser justo Como vimos a

concretizaccedilatildeo daquilo que se deve fazer na

situaccedilatildeo natildeo apenas exige deliberaccedilatildeo Tambeacutem

essa deliberaccedilatildeo soacute poderaacute ser feita se a pessoa jaacute

dispotildee de uma representaccedilatildeo reflexiva da

eupraxiacutea no acircmbito relevante quando a phroacutenēsis

portanto se refere tambeacutem ao fim pois do

contraacuterio a pessoa agente nada teria em que

pudesse se orientar na reflexatildeo sobre o que seria o

melhor modo de realizar a aretḗ na situaccedilatildeo

presente

Aleacutem do mais a representaccedilatildeo impliacutecita do bem

viver contida na aretḗ deve ser implantada por

algueacutem no caraacuteter o qual tem ele proacuteprio uma

representaccedilatildeo reflexiva do direcionamento a ser

seguido na educaccedilatildeo Essa dupla tarefa da aretḗ eacute

147

confirmada pela ponderaccedilatildeo que Aristoacuteteles faz

em relaccedilatildeo agrave poliacutetica E uma vez que tambeacutem a

tarefa da poliacutetica igualmente deve ser

considerada uma forma de bom conselho ou uma

phroacutenēsis (1141b23-1142a10) Nesse contexto

ele acentua que a phroacutenēsis na poliacutetica possui

duas partes a parte legislativa (nomothesiacutea) e a

executiva (politikḗ em sentido estrito) A primeira

eacute a parte diretriz ou ordenadora a segunda a parte

ativa concreta agrave qual estaacute referida a deliberaccedilatildeo

O educador individual igualmente deve ser

considerado como orientador no sentido dessa

dupla particcedilatildeo de tal modo que ele tem uma

representaccedilatildeo de regras em que se explicita a

eupraxiacutea (WOLF 2010 p 158)

Essas consideraccedilotildees indicam que os processos da prudecircncia se

encaminham por meio de accedilotildees dadas em circunstacircncias particulares a

um universal que eacute o bem supremo comum a todos

Os apontamentos acerca da virtude moral da prudecircncia nos levam

a entender que o agente igualmente se torna responsaacutevel pela forma

como suas emoccedilotildees se datildeo ao mundo porque apoacutes formado

moralmente sua capacidade de por-se os fins acaba por tornaacute-lo mais

que senhor de suas accedilotildees eacute agora senhor de seus desejos e da forma

como age e se emociona Embora natildeo escolha a emoccedilatildeo que sente o ato

de pesar razotildees e de por-se o fim acaba no processo de deliberaccedilatildeo por

apresentar a possibilidade de mudar ou de ao menos moderar as

emoccedilotildees conforme o desejo eacute mudado ao longo desse processo Com

isso eacute possiacutevel que um impulso natural venha a se acalmar ao ponderar e

decidir unindo desejo e razatildeo praacutetica mudando raiva em calma ou

diminuindo a intensidade da raiva ou adequando a raiva sentida agrave

circunstacircncia por exemplo Pensamos que isso seja possiacutevel porque a

nosso ver se a alma eacute una como viemos propondo o prudente tem

contato com a uma verdade mais universal que se configura como

eudaiacutemōniacutea como propotildeem os comentadores apresentados tendo uma

visatildeo do que eacute mais geral graccedilas provavelmente agrave sua capacidade de

raciocinar bem que vai aleacutem do acircmbito da accedilatildeo que pode ser

considerada moralmente e da prāxis humana Provavelmente com isso

seja possiacutevel dizer que de certo modo a prudecircncia vecirc o fim a ser

alcanccedilado o melhor fim possiacutevel em uma espeacutecie de percepccedilatildeo que lhe

eacute proacutepria e que aponta para algo mais universal de modo similar agrave accedilatildeo

da razatildeo teoacuterica No homem virtuoso bem formado moralmente eacute

148

preciso saber o que seja esse bom fim eacute preciso desejar corretamente o

fim e se emocionar corretamente para que haja accedilotildees adequadas que

levaratildeo a tal fim Por conseguinte pensamos que ao menos no virtuoso a

prudecircncia que lhe eacute posse real e natildeo um conselho vindo de fora

implique de certo modo em conseguir distinguir o bom fim para

encadear o processo deliberativo Esse tipo de capacidade eacute conseguida

com a boa conjunccedilatildeo da razatildeo praacutetica com o lado natildeo racional da alma

humana formando a virtude em sentido estrito que na melhor das

hipoacuteteses capacita o homem bem educado agrave emoccedilatildeo adequada como

veremos no ponto seguinte

5 Virtude natural e virtude em sentido estrito

No final Livro VI capiacutetulo 13 da EN Aristoacuteteles procede a novo

exame da natureza da virtude Nessa parte do texto o filoacutesofo estabelece

diferenccedilas entre virtude moral em sentido estrito e virtude natural (aretḕ

physikeacute ndash aretḕ ethikḗ) embora ambas se relacionem Comeccedila a

discussatildeo observando o fato de todos admitirem que aqueles que

apresentam certo caraacuteter o tecircm de certo modo por natureza Pensa no

entanto que uma investigaccedilatildeo eacutetica procura a virtude moral em sentido

estrito e que seja possuiacuteda de um certo modo Aristoacuteteles considera que

se tais disposiccedilotildees naturais natildeo forem acompanhadas pela razatildeo se

tornaratildeo nocivas embora ldquoao contraacuterio uma vez que a razatildeo veio

entatildeo no domiacutenio da accedilatildeo moral eacute uma mudanccedila radical e a disposiccedilatildeo

que natildeo tinha ateacute aqui senatildeo uma semelhanccedila com a virtude seraacute agora

virtude em sentido estritordquo (EN VI 13 1144b12-14)131 Assim como na

capacidade opinante da alma haacute dois tipos de qualidade a habilidade e a

prudecircncia na funccedilatildeo moral (tograve ethikoacuten pelo qual leia-se tograve orektikoacuten)

existem dois tipos de virtude natural e em sentido estrito

A virtude propriamente dita contudo natildeo se produz sem

prudecircncia porque virtude em sentido estrito eacute conforme a regra justa e

a regra justa eacute a prudecircncia ou a disposiccedilatildeo segundo a prudecircncia Mais

ainda natildeo eacute apenas disposiccedilatildeo conforme a regra justa mas intimamente

131 Na nota 1 (2012 p 334) Tricot afirma que nesse caso no lugar de noucircs

pode ser lido phroacutenēsis e que por parte opinante entenda-se tograve logistikoacuten No

original ἐὰν δὲ λάβῃ νοῦν ἐν τῷ πράττειν διαφέρει ἡ δ ἕξις ὁμοία οὖσα τότ

ἔσται κυρίως ἀρετή

Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs a partir da traduccedilatildeo francesa feita por Tricot

No Original ἐὰν δὲ λάβῃ νοῦν ἐν τῷ πράττειν διαφέρει ἡ δ ἕξις ὁμοία οὖσα

τότ ἔσται κυρίως ἀρετή

149

ligada agrave regra justa (EN VI 13 1144b26-27)132 portanto eacute impossiacutevel

ser um homem de bem em sentido proacuteprio sem a phroacutenēsis e com ela

todas as virtudes satildeo dadas Essa concepccedilatildeo da virtude moral eacute proposta

porque natildeo haacute escolha deliberada sem a prudecircncia e provavelmente

natildeo haacute prudecircncia sem as demais virtudes das demais capacidades

racionais A virtude moral ordena o fim e a prudecircncia leva a completar

as accedilotildees que conduzem a este (EN VI 13 1145a4-6)133

Consideramos que as virtudes do intelecto satildeo portanto

imprescindiacuteveis a uma vida feliz porque sem as atividades que facultam

o homem natildeo poderia ser pensado como desempenhando sua funccedilatildeo

proacutepria Embora valha relembrar que ldquoum tipo secundaacuterio que eacute a vida

segundo o outro tipo de virtude eacute feliz pois as atividades que satildeo

conformes a ela satildeo puramente humanasrdquo (EN X 8 1178a9-11)134 Este

outro tipo de excelecircncia como vimos acima eacute a virtude moral que

busca segundo interpretaccedilatildeo de Tricot uma felicidade relacionada agrave

vida dos homens na poacutelis (2012 nota 3 p 551-552) Por isso os atos de

virtude moral satildeo tomados nas relaccedilotildees com os outros e em relaccedilatildeo agraves

emoccedilotildees sendo ligados igualmente agrave prudecircncia A proximidade dessas

virtudes com as emoccedilotildees aconteceraacute no composto corpoalma fazendo

delas excelecircncias especialmente humanas como Tricot observa

[] as virtudes morais satildeo ligadas agrave prudecircncia e a

prudecircncia agraves virtudes morais e por um outro lado

elas satildeo ligadas agraves paixotildees pois prudecircncia e

virtudes morais se aplicam igualmente a modificaacute-

las Por consequecircncia todas essas virtudes

incluindo a prudecircncia satildeo realmente as virtudes

do composto humano (TRICOT 2012 nota 4 p

552-553 traduccedilatildeo nossa)

132Assim explica Tricot (2012 nota 3 p 335) a virtude eacute com razatildeo e segundo

a razatildeo 133 Reeve (2013 p 15) explica que uma vez que o entendimento faz

compreender o alvo ele natildeo eacute indiferente ao fim da vida humana ele vecirc o que

tal alvo eacute e assim nossa virtude natural ou habituada eacute transformada em virtude

total e o agente se torna completamente bom (EN VI 13 1144b1-32) Ao mesmo

tempo as virtudes naturais que podem ser possuiacutedas em separado se conectam

em um soacute estado pois todas satildeo requeridas pela sabedoria praacutetica e a sabedoria

praacutetica eacute requerida por ela (EN VI 13 1144b30-1145a2) 134 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Δευτέρως δ ὁ κατὰ τὴν ἄλλην ἀρετήν αἱ γὰρ κατὰ ταύτην

ἐνέργειαι ἀνθρωπικαί

150

Com a virtude natural ou seja com a disposiccedilatildeo natildeo

consolidada135 pelo o auxiacutelio da virtude intelectual da prudecircncia o

agente eacute capaz de fazer o que deve ser feito mas sem dispor das razotildees

para tanto Natildeo eacute capaz de cumprir plenamente a funccedilatildeo proacutepria do

homem pois natildeo tem por si e em si mesmo suas capacidades aniacutemicas

bem ajustadas favorecendo as accedilotildees que seriam moralmente corretas e a

eudaiacutemōniacutea Mas quando o agente desenvolve a virtude proacutepria ou em

sentido estrito tem sua virtude moral acompanhada pela prudecircncia e

muito provavelmente pela razatildeo como um todo e por isso faz o que

deve ser feito segundo boas razotildees136 O ato de escolher e agir segundo

suas proacuteprias boas razotildees eacute aquilo que podemos entender como virtude

completa e indispensaacutevel agrave vida feliz mas a virtude moral embora

possa ser favorecida por certo traccedilo natural soacute vem ao homem pelo

haacutebito

Por conseguinte pudemos perceber quatildeo proacuteximas estatildeo as

virtudes morais e as intelectuais bem como entendemos a necessidade

de colaboraccedilatildeo entre estas a fim de que se viva bem Eacute esse acordo que

permite a Aristoacuteteles propor uma virtude completa no singular e que a

nosso ver permitiraacute que as exigecircncias do filoacutesofo para a educaccedilatildeo ou

habituaccedilatildeo moral das emoccedilotildees sejam efetivadas

Diante disto resta pesquisarmos as possibilidades e os meios de

se executar essa formaccedilatildeo emocional Isso designado ainda nos caberaacute

ressaltar os instrumentos que podem facilitar o acordo entre ambas as

capacidades da alma Eacute preciso entender melhor o papel da razatildeo na

vida emocional moral jaacute que Aristoacuteteles confere ao racional uma

importacircncia semelhante ou ainda maior que agraves instacircncias natildeo racionais

da alma humana Como estivemos a salientar a retidatildeo necessaacuteria aos

desejos e agraves emoccedilotildees falta apresentar ao menos uma possibilidade para

tal retidatildeo Por isso na sequecircncia deveremos apreciar as formas

disponiacuteveis de educaccedilatildeo moral das emoccedilotildees seguindo em parte o

135Possivelmente estaacute em jogo a diferenccedila entre heacutexis disposiccedilatildeo que se tornou

fixa e diaacutethesis estado ou disposiccedilatildeo ainda maleaacutevel (ZINGANO 2008 p

122) Na EE se fala mesmo da melhor disposiccedilatildeo (II 1 1218b38 1219a1

1219a3 1219a32) 136Conferir Poliacutetica 1260a15-19 a respeito do modo de operar as virtudes O

passo apresenta tais modos em relaccedilatildeo aos escravos agraves mulheres e agraves crianccedilas

sendo que em nenhuma dessas condiccedilotildees se apresentaria a virtude perfeita

Sobre o ato de escolher conforme agraves boas razotildees tambeacutem se pode conferir

Magna Moralia 1200a3-4

151

modelo de educaccedilatildeo que poder ser aplicado aos desejos e que eacute

explicado por Aggio (2017 no prelo) Essa educaccedilatildeo seraacute possibilitada

pelos haacutebitos e formaraacute juntamente com a virtude intelectual aquilo

que no Livro VI da EN Aristoacuteteles chama de ldquovirtude em sentido

estritordquo

152

153

Capiacutetulo III

A racionalidade das emoccedilotildees

1 Eudaiacutemōniacutea vida dedicada agrave atividade racional (EN X)

Ao longo da EN Aristoacuteteles parece dar destaque especial agrave

participaccedilatildeo da razatildeo na vida que considera a melhor mas mesmo na

vida cabiacutevel agrave maioria dos homens o regime do loacutegos natildeo eacute posto de

lado Por conseguinte a vida feliz proposta como ativa e em acordo com

o princiacutepio racional seria dedicada agrave contemplaccedilatildeo conforme certas

propostas do Livro X Nesse ponto da tese fazemos um apanhado

geneacuterico sobre a eudaiacutemōniacutea nesse Livro com as devidas remissotildees ao

Livro I para ressaltar a aparente divergecircncia entre natildeo racional e

racional contudo temos ciecircncia de que a questatildeo eacute mais densa e por

isso natildeo eacute nossa pretensatildeo resolver os problemas relativos agrave felicidade

tampouco defini-la Temos ciecircncia igualmente da querela

contemporacircnea entre as leituras dominantes e inclusivistas sobre o bem

supremo como indicamos no Capiacutetulo I mas a despeito disso nos

parece que o papel da razatildeo na vida feliz sempre eacute preservado por

Aristoacuteteles embora este natildeo minore outros aspectos componentes do

humano Observaremos o tema portanto na medida em que pode nos

auxiliar a resolver nossa questatildeo e comeccedilaremos considerando a

proposta de que a eudaiacutemōniacutea se confunde com a vida contemplativa

embora tenhamos ressaltado anteriormente que tal ideia natildeo apresenta o

real pensamento de Aristoacuteteles sobre o assunto mesmo que o filoacutesofo

escreva linhas como as que seguem abaixo

Mas se a felicidade eacute uma atividade conforme agrave

virtude eacute racional que seja atividade conforme a

mais alta virtude e esta seraacute a virtude da parte a

mais nobre de noacutes Que seja portanto o intelecto

ou qualquer outra faculdade que seja observada

como possuindo por natureza o comando e a

direccedilatildeo e como tendo o conhecimento das

realidades belas e divinas que aleacutem disso esse

elemento seja ele mesmo divino ou somente a

parte mais divina de noacutes eacute o ato desta parte

segundo a virtude que lhe eacute proacutepria que seraacute a

felicidade perfeita Ora que essa atividade seja

teoreacutetica eacute o que temos dito (EN X 7 1177a12-

154

18)137

Aristoacuteteles pensa que essas afirmaccedilotildees parecem estar em acordo

com a verdade Por isso elenca oito motivos para concordar com as

propostas que definem a melhor vida como aquela em contemplaccedilatildeo

Primeiro a atividade mencionada eacute a mais alta porque o intelecto eacute a

melhor parte que temos e os objetos do intelecto teoacuterico satildeo os mais

altos dos objetos conheciacuteveis Segundo seria a eneacutergeia mais contiacutenua

pois podemos nos deixar agrave contemplaccedilatildeo de uma forma menos

interrompida do que a qualquer outra atividade Terceiro pensa-se que o

prazer intelectual deve ser componente da felicidade jaacute que a atividade

segundo a sabedoria eacute reconhecidamente a mais agradaacutevel das

atividades conformes agrave virtude A filosofia conteacutem prazeres

maravilhosos no que toca agrave pureza e agrave estabilidade por isso seria

normal se a alegria de conhecer fosse uma tarefa mais agradaacutevel que a

procura pelo conhecimento Quarto aquilo que eacute chamado lsquoplena

suficiecircnciarsquo pertenceria ao maacuteximo agrave atividade contemplativa Se eacute

verdade que o saacutebio o justo e todo homem detentor de virtude(s)

precisariam das coisas necessaacuterias agrave vida uma vez que estivessem

suficientemente providos de tais bens viveriam bem dedicando-se agrave

contemplaccedilatildeo teoacuterica O saacutebio ao contraacuterio dos outros virtuosos se

fosse deixado a si mesmo teria a capacidade de contemplar e seria

mesmo mais saacutebio se contemplasse nesse estado de vantagem Eacute claro

contudo que mesmo ao saacutebio eacute preferiacutevel viver na companhia de seus

semelhantes embora este seja o homem que mais baste a si mesmo

Quinto esse tipo de atividade descrito pareceria o uacutenico desejado por si

mesmo Por isso natildeo produziria nada aleacutem do ato de contemplar ao

contraacuterio das atividades praacuteticas Sexto a felicidade parece consistir em

lazer pois o homem soacute se satisfaz com uma vida ativa que busca o lazer

e natildeo vai agrave guerra com outra intenccedilatildeo que natildeo a paz Ateacute mesmo as

atividades poliacuteticas tecircm outro fim em vista e natildeo somente o lazer

buscam satisfazer os interesses gerais e a sauacutede da cidade natildeo sendo

desejaacuteveis por si mesmas enquanto a atividade do intelecto ou

137 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Εἰ δ ἐστὶν ἡ εὐδαιμονία κατ ἀρετὴν ἐνέργεια εὔλογον

κατὰ τὴν κρατίστην αὕτη δ ἂν εἴη τοῦ ἀρίστου εἴτε δὴ νοῦς τοῦτο εἴτε ἄλλο τι

ὃ δὴ κατὰ φύσιν δοκεῖ ἄρχειν καὶ ἡγεῖσθαι καὶ ἔννοιαν ἔχειν περὶ καλῶν καὶ

θείων εἴτε θεῖον ὂν καὶ αὐτὸ εἴτε τῶν ἐν ἡμῖν τὸ θειότατον ἡ τούτου ἐνέργεια

κατὰ τὴν οἰκείαν ἀρετὴν εἴη ἂν ἡ τελεία εὐδαιμονία ὅτι δ ἐστὶ θεωρητική

εἴρηται

155

contemplativa eacute prazerosa e completa ou perfeita (EN X 7 1177b19-26)

Seacutetimo uma vida desse tipo contudo seria demais para a condiccedilatildeo

humana pois natildeo se viveria como um homem mas segundo um

elemento divino que estivesse presente em noacutes Tanto quanto esse

elemento fosse superior ao composto humano sua atividade seria

superior agravequela do outro tipo de virtude (EN X 7 1177b28) ldquoSe

portanto o intelecto eacute algo de divino por comparaccedilatildeo com o homem a

vida segundo o intelecto eacute igualmente divina comparada com a vida

humanardquo (EN X 7 1177b30-31)138 por isso natildeo se deveria escutar

conselhos daqueles que os datildeo pois satildeo conselhos vindos de homens

sobre as coisas humanas O homem deveria se imortalizar na medida do

possiacutevel e fazer de tudo para viver segundo sua parte mais nobre

porque ldquomesmo que essa parte seja pequena em sua massa por sua

potecircncia e seu valor ela passa em muito todo o restordquo (EN X 7 1178a1-

2)139 Em oitavo lugar cada homem se identificaria com essa parte por

ser fundamental em seu ser e por ser a melhor sendo estranho que natildeo

concordasse com a vida que lhe eacute proacutepria mas com qualquer outra

porque o que eacute proacuteprio a cada coisa eacute o que lhe haacute de mais excelente e

agradaacutevel ldquoE para o homem esta seraacute a vida segundo o intelecto se eacute

verdade que o intelecto eacute no mais alto grau o proacuteprio homem Essa vida

eacute portanto igualmente a mais felizrdquo (EN X 7 11786a6-8140)

Nosso estudo precisa questionar todavia a imponecircncia desse tipo

de postura Embora natildeo seja interesse da tese apresentada definir qual

dos usos da razatildeo eacute melhor que o outro o praacutetico ou o teoacuterico

estivemos a defender a existecircncia de uma excelecircncia para cada uma das

(sub)capacidades racionais destacadas por Aristoacuteteles Todavia

pensamos ser indiscutiacutevel que um homem feliz natildeo possa prescindir do

uso praacutetico de sua razatildeo justamente pelo fato de ser um homem e natildeo

outro tipo de ser sendo que tal uso eacute tambeacutem indiscutivelmente

envolvido com as emoccedilotildees Em contrapartida ao lidarmos com eacutetica e

com as accedilotildees boas moralmente estivemos o tempo todo a tratar daquilo

que no homem se apresenta como natildeo racional mas observamos ao

138 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original εἰ δὴ θεῖον ὁ νοῦς πρὸς τὸν ἄνθρωπον καὶ ὁ κατὰ τοῦτον

βίος θεῖοςπρὸςτὸνἀνθρώπινονβίον 139 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original εἰ γὰρ καὶ τῷ ὄγκῳ μικρόν ἐστι δυνάμει καὶ τιμιότητι πολὺ

μᾶλλον πάντων ὑπερέχει 140 Idem καὶ τῷ ἀνθρώπῳ δὴ ὁ κατὰ τὸν νοῦν βίος εἴπερ τοῦτο μάλιστα

ἄνθρωπος οὗτος ἄρα καὶ εὐδαιμονέστατος

156

longo do estudo anteriormente apresentado a respeito da boa medida nas

emoccedilotildees que haacute sempre a presenccedila da racionalidade mesmo quando

tratamos da excelecircncia do natildeo racional que pede accedilatildeo

Por exemplo a junccedilatildeo da virtude moral com a virtude intelectual

da prudecircncia mostrou-se imprescindiacutevel sendo mesmo condiccedilatildeo sine

qua non para a boa forma das emoccedilotildees na vida moral e se apresentou

como aquilo que realmente caracteriza o homem na eacutetica de Aristoacuteteles

e seu modo de tocar a vida que lhe eacute peculiar141 O filoacutesofo retira de suas

divindades mas tambeacutem das bestas a possibilidade de ver apaziguados

em si esses elementos aparentemente diacutespares Tal possibilidade de

conciliaccedilatildeo entre a capacidade racional e capacidade natildeo racional na

alma humana permitiu ateacute o momento que conjugaacutessemos vaacuterios

campos de conhecimento descritos pelo filoacutesofo como destinados ao

tratamento de questotildees especiacuteficas Por isso dedicamos esse terceiro

Capiacutetulo de nosso estudo agrave observaccedilatildeo das possibilidades das relaccedilotildees

da capacidade racional com a capacidade natildeo racional jaacute que Aristoacuteteles

frisa demasiadamente que a melhor vida eacute atrelada agrave razatildeo

Tal anaacutelise seraacute necessaacuteria porque sejam quais forem os motivos

adotados pelo filoacutesofo o fato eacute que o Livro X da EN nos apresenta a

proposta de que a felicidade perfeita eacute uma certa atividade

contemplativa Todavia entendemos que ainda que estabelececircssemos a

vida contemplativa como melhor forma de vida natildeo poderiacuteamos abrir

matildeo de especificar o papel das emoccedilotildees nem neste nem naquele que

muitos consideram um segundo melhor tipo de vida a vida poliacutetica No

entanto ressaltamos que essa natildeo eacute nossa postura jaacute que nossas leituras

de Aristoacuteteles nos levam a pensar que uma vida contemplativa natildeo

aconteceria em total isolamento ou sem os bens elementares agrave

manutenccedilatildeo de uma existecircncia bem vivida entre os quais Aristoacuteteles

parece incluir nos livros VIII IX e mesmo no Livro X da EN as

relaccedilotildees de amizade Mesmo tendo exposto nossa duacutevida quanto agrave

validade do pensamento que defende a pura contemplaccedilatildeo teoacuterica como

representante legiacutetimo das intenccedilotildees do filoacutesofo devemos consideraacute-lo

141 Sobre o assutno Reeve escreveu ldquoA vida que consiste em atividade poliacutetica

sem oacutecio em acordo com a sabedoria praacutetica e com as virtudes de caraacuteter eacute uma

vida completamente mais feliz quando ndash porque ela eacute levada em uma cidade

com a melhor constituiccedilatildeo idealmente situada e provida com bens externos ndash

acontece alcanccedilando o melhor tipo de felicidade para quem a possui Essa vida

complexa ndash parte praacutetica parte contemplativa ndash eacute a melhor vida humana que a

sabedoria praacutetica que eacute o melhor tipo de conhecimento praacutetico pode organizarrdquo

(REEVE 2013 p 18)

157

e buscar perceber em que medida natildeo destoa das propostas

anteriormente levantadas Natildeo esqueccedilamos a ressalva do proacuteprio

Aristoacuteteles em questotildees de eacutetica eacute a experiecircncia que tem a palavra final

Por isso eacute preciso cotejar as conclusotildees que forem racionalmente tiradas

com as coisas que a vida apresenta pois tais coisas estando em acordo

com as conclusotildees tornam-se aceitaacuteveis

Com isso confirmamos a proposta de Aristoacuteteles porque afirma

que a maioria dos homens natildeo preza o racional142 embora ao descrever

a razatildeo como o que haacute de melhor no homem faccedila-nos entender que eacute

preciso tratar do papel do loacutegos na vida moral Como vimos natildeo haacute

virtude moral sem a participaccedilatildeo do intelecto mesmo que essa virtude

seja consolidada pelos haacutebitos e que este intelecto seja praacutetico e natildeo haacute

virtude moral nem boa vida sem uma educaccedilatildeo para as emoccedilotildees Tal

vida como jaacute propusemos somente seraacute possiacutevel na medida em que

pudermos ter nossas emoccedilotildees e nossa razatildeo em acordo o que eacute

viabilizado pela proposta de impossibilidade de uma vida puramente

dada ao racional teoacuterico impossibilidade exposta entre os motivos do

filoacutesofo para que a vida puramente contemplativa seja feliz (EN X 7

1177b26-30) Ainda precisamos confirmar como se datildeo as

possibilidades da racionalidade das emoccedilotildees aristoteacutelicas e os

instrumentos que interferem no sentir emoccedilatildeo e que permitem que esta

seja ao menos mudada favorecendo a virtude moral e a virtude como

um todo Sendo nosso objetivo explicitar o que permite e facilita a

participaccedilatildeo do natildeo racional na razatildeo praacutetica eacute forccediloso que doravante

estudemos mais detidamente a relaccedilatildeo desta razatildeo com as emoccedilotildees ou

seja o se emocionar racionalmente

2 A racionalidade das emoccedilotildees interpretaccedilotildees desde EN I agraves luzes

do De Anima

Os argumentos acima apresentam uma postura bastante favoraacutevel

agrave vida contemplativa como sendo a vida feliz poreacutem ao longo de nosso

estudo apresentamos vaacuterias possibilidades dentro do proacuteprio texto da

EN para suspeitar disso Mesmo o Livro X como acabamos de ressaltar

potildee em duacutevida a possibilidade de um homem ainda que fosse filoacutesofo

totalmente deixado agrave pura contemplaccedilatildeo teoacuterica Cremos que este tipo

de afirmaccedilatildeo (ou de questionamento) estabelece mais que a proposta de

142 Ou como propotildee Boyle (2012 p 31) muitos dos homens natildeo chegam a

alcanccedilar essa capacidade (ou capacidades) ao menos natildeo em sua melhor forma

pensamos

158

Kenny apresentada demasiado sucintamente no Capiacutetulo I o elo entre os

dois tratados sobre a felicidade Igualmente reforccedila a possibilidade de

defendermos nossa tese o homem eacute um composto de corpo e alma que

soacute realiza sua funccedilatildeo proacutepria na poacutelis mas para tanto precisa

harmonizar suas emoccedilotildees com a totalidade de sua razatildeo gerando

emoccedilotildees educadas O Livro X trecho X 7 1177b26-30 que parece por

em xeque todas as afirmaccedilotildees que tendem agrave elevaccedilatildeo da vida

contemplativa ao status de eudaiacutemōniacutea permitiraacute como pretendemos

demonstrar reforccedilar a defesa de nossa tese graccedilas agrave ligaccedilatildeo que

estabelece tanto com o argumento da funccedilatildeo apresentado em EN I

quanto com a proposta especificada em EN I 13 a respeito da capacidade

do desiderativo ouvir e participar da razatildeo desejando e se emocionando

de um jeito racional Para confirmar tais interpretaccedilotildees evocaremos o

DA quando necessaacuterio jaacute que esse tratado igualmente apresenta uma

proposta de homem como composto por corpo e alma sendo somente

tal composto capaz de sofrer afecccedilotildees do tipo das emoccedilotildees (DA I 4

408b18 et seq) e da forma como as sofre143 Por isso tambeacutem quando

necessaacuterio retomaremos algumas das propostas escritas a partir dos dois

tratados e que foram mencionadas nos demais capiacutetulos

Segundo nosso entendimento o Livro I da EN acompanhado de

outros trechos supramencionados da mesma obra nos apresenta uma

perspectiva acerca do que seja o homem No Capiacutetulo I estudamos uma

concepccedilatildeo de homem forjada a partir das distinccedilotildees que representaram o

ser humano como diferente dos demais animais graccedilas agrave natureza

proacutepria agrave sua alma dotada de razatildeo e igualmente da capacidade que tal

alma apresenta de conjugar em si capacidades que muitos pensaram ser

totalmente inconciliaacuteveis Isso eacute o que podemos entender ao lermos em

EN I 13 que a alma tem uma ldquoparterdquo racional e que igualmente apresenta

algo contraacuterio agrave razatildeo que lhe resiste e faz frente mas na sequecircncia do

texto o tom da discussatildeo desse assunto eacute suavizado dizendo que nos

homens com certos tipos de disposiccedilotildees de caraacuteter essa tal capacidade

ambiacutegua ldquofala a respeito de todas as coisas com a mesma voz que o

princiacutepio racionalrdquo (EN I 13 1102b28144) Vimos essas assertivas serem

introduzidas no tratado a fim de permitir a discussatildeo da virtude moral

143 Boyle (2012 p 21 traduccedilatildeo nossa) explica que um animal como o homem

racional ldquoeacute capaz natildeo somente de ser ter e fazer mais que uma criatura natildeo

racional mas de ser o sujeito de atribuiccedilotildees do ser ter e fazer num sentido

distintivordquo 144Traduccedilatildeo de Zingano (2008) no original πάντα γὰρ ὁμοφωνεῖ τῷ λόγῳ

φαίνεται δὴ καὶ τὸ ἄλογον διττόν

159

em cada um de seus tipos que existe apenas devido agraves duas capacidades

elementares na alma humana diferenciando novamente o homem dos

demais animais que nem sempre apresentam uma capacidade aniacutemica

racional

Com essas consideraccedilotildees percebemos em Aristoacuteteles e

confirmamos com apoio em alguns comentaacuterios como os de Nussbaum

Korsgaard Reeve Boyle e Sorabji o desenho de uma figura humana

dotada de uma funccedilatildeo proacutepria (como tudo mais que existe) sendo esta

funccedilatildeo adequada agrave alma caracteriacutestica agrave espeacutecie Agora vale reforccedilar tal

interpretaccedilatildeo com uma visita ao DA pois seu texto confirmaraacute nossas

intenccedilotildees acerca do caraacuteter antropoloacutegico esboccedilado pela EN O homem

descrito pelo tratado da alma confirmaraacute os traccedilos indicados pelo texto

eacutetico em momentos como o citado abaixo

O seguinte absurdo acontece tanto nesta como na

maioria das discussotildees sobre a alma elas

acomodam a alma no corpo nada definindo em

acreacutescimo sobre a causa e o modo como o corpo

se manteacutem Todavia isso parece necessaacuterio pois

devido a esta comunhatildeo um faz e o outro sofre

um eacute movido e o outro move e nada disso ocorre

casualmente a um e a outro (DA I 3 407b13-19145)

Esse posicionamento vale lembrar traz reforccedilo agrave importacircncia da

discussatildeo das emoccedilotildees consideradas entre as afecccedilotildees aniacutemicas

expressas pelo corpo seja por meio de movimentos de certas partes

suas seja com accedilotildees cometidas deliberadamente ou indeliberadamente

trazendo a responsabilidade ou isenccedilatildeo moral bem como a

voluntariedade agraves accedilotildees solicitadas pelas afecccedilotildees que satildeo as emoccedilotildees e

os desejos Esse tipo de interpretaccedilatildeo pode ser adotado a partir dos dois

tratados ora estudados a comeccedilar pela proposta da alma que em EN I 13

resultou na distinccedilatildeo das virtudes em intelectuais e morais discussatildeo

estendida ateacute o Livro VI da EN bem como apresentada em trechos do

DA como o passo I 4 408a34-b8 no qual lemos que as emoccedilotildees satildeo

vindas de fora que movimentam o corpo (por locomoccedilatildeo ou alteraccedilatildeo) e

145 Traduccedilatildeo de Maria Cecilia Gomes dos Reis (2006) no original ἐκεῖνο δὲ

ἄτοπον συμβαίνει καὶ τούτῳ τῷ λόγῳ καὶ τοῖς πλείστοις τῶν περὶ ψυχῆς

συνάπτουσι γὰρ καὶ τιθέασιν εἰς σῶμα τὴν ψυχήν οὐθὲν προσδιορίσαντες διὰ

τίν αἰτίαν καὶ πῶς ἔχοντος τοῦ σώματος καίτοι δόξειεν ἂν τοῦτ ἀναγκαῖον

εἶναι διὰ γὰρ τὴν κοινωνίαν τὸ μὲν ποιεῖ τὸ δὲ πάσχει καὶ τὸ μὲν κινεῖται τὸ δὲ

κινεῖ τούτων δ οὐθὲν ὑπάρχει πρὸς ἄλληλα τοῖς τυχοῦσιν

160

que o homem o faz ldquocom a almardquo A indissociabilidade entre corpoalma

leva ao fato jaacute mencionado de que um faz e o outro sofre um move e

outro eacute movido

O homem sendo entatildeo composto de corpo e alma somente se

emociona devido a esse seu aspecto (DA I 1 403a16 et seq) ldquoE por isso

supotildeem corretamente aqueles que tecircm a opiniatildeo de natildeo existir alma sem

corpo e tampouco ser a alma um certo corpo pois ela natildeo eacute corpo mas eacute

algo do corpo e por isso subsiste no corpo e em um corpo de tal tipordquo

(DA II 3 414a19-22146) Essas ideias servem como reforccedilo agrave EN quando

este texto apresenta o homem como animal poliacutetico dotado de funccedilatildeo

proacutepria a eudaiacutemōniacutea A alma una que defendemos se torna condiccedilatildeo

para que tal funccedilatildeo se realize de modo pleno Por isso repetimos

somente em uma poacutelis o homem pode desenvolver todas as suas

potencialidades de alma ou a maior parte delas pois somente a poacutelis

fornece o indispensaacutevel ao bom funcionamento da alma A

indissociabilidade do corpo e da alma humana (DA I 1 403a3-15) e de

suas capacidades dentro de uma soacute e mesma alma (DA I 4 408b18 et

seq) nos levou a pensar e afirmar a unidade da alma e igualmente do

desejo a fim de que o homem completasse sua funccedilatildeo que entendemos

ser realizaacutevel apenas mediante agrave boa relaccedilatildeo das capacidades aniacutemicas

elementares Aleacutem disso vimos que a poacutelis eacute o ambiente que daacute

condiccedilotildees para desenvolver e coordenar as virtudes necessaacuterias para a

vida considerada feliz

Voltemos ainda um instante agrave EN I 13 e agrave proposta de uma

capacidade racional da alma e uma capacidade natildeo racional sendo que

nesta uacuteltima eacute demasiado importante agrave presente investigaccedilatildeo sua

possibilidade de ouvir a razatildeo o que nos levou a entender melhor as

possibilidades de mudanccedilas nasdas emoccedilotildees Essas variaccedilotildees satildeo

necessaacuterias agrave vida feliz aleacutem de nos ajudar a entender melhor a postura

de Aristoacuteteles acerca da relaccedilatildeo corpoalma Ao definir a alma a partir

das capacidades que faculta ao corpo desempenhar (DA II 2 413a20-25)

Aristoacuteteles permite entender o homem como se enquadrando naquela

descriccedilatildeo de todo orgacircnico vivificado por uma alma e dotado de um

certo nuacutemero de capacidades que iriam como vimos desde a percepccedilatildeo

sensiacutevel ateacute a elaboraccedilatildeo mais fina e sofisticada de raciociacutenios a respeito

das coisas imutaacuteveis (DA II 2 413b1-12)

146 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original καὶ διὰ

τοῦτο καλῶς ὑπολαμβάνουσιν οἷς δοκεῖ μήτ ἄνευ σώματος εἶναι μήτε σῶμά τι

ἡ ψυχή σῶμα μὲν γὰρ οὐκ ἔστι σώματος δέ τι καὶ διὰ τοῦτο ἐν σώματι

ὑπάρχει καὶ ἐν σώματι τοιούτῳ

161

A alma propusemos no Capiacutetulo I seria algo uno com o

exerciacutecio de vaacuterias capacidades que a constituiriam Por conseguinte

para as capacidades serem adequadamente exercidas a alma precisa da

harmonia indicada em EN I 13 no DA I e ao longo destes tratados que

indicam o caraacuteter indissociaacutevel das capacidades natildeo haacute desejo e emoccedilatildeo

sem percepccedilatildeo sensiacutevel e natildeo haacute imaginaccedilatildeo e pensamento sem os

outros dois O que vem do mundo emociona e faz pensar e agir mas

como vimos em Capiacutetulo anterior eacute preciso pensar e agir bem a fim de

viver uma vida feliz Natildeo haacute possibilidade de felicidade nos termos de

Aristoacuteteles sem aquela chamada virtude completa que entendemos ser

a comunhatildeo perfeita da virtude intelectual e da moral e portanto das

duas capacidades elementares exercitadas em seu melhor O acordo eacute

possibilitador da eudaiacutemōniacutea porque a eudaiacutemōniacutea na vida que

defendemos eacute impossiacutevel sem eupraxiacutea Por esses motivos devemos dar

continuidade agraves discussotildees que aparecem no iniacutecio dos dois tratados e

observar outros pontos que permitem confirmar nossas teorias

2 a) Um quecirc ou o quecirc de racionalidade nas emoccedilotildees

A ideia do homem como composto de corpo e alma que faz e

sofre accedilotildees solicitadas pelas paacutethē ouvintes ou natildeo das sugestotildees da

razatildeo praacutetica deve ser defendida em nossa pesquisa porque busca

caracterizar as emoccedilotildees como elementos eacuteticos cruciais agrave vida feliz O

que reforccedila essa proposta eacute a identificaccedilatildeo de um certo nuacutemero de

termos aplicados geralmente a operaccedilotildees concernentes agraves capacidades

racionais ou que levam ao exerciacutecio de tais capacidades mas indicando

a constituiccedilatildeo das emoccedilotildees ou implicadas com as emoccedilotildees educadas

Esses termos aparecem quando (ou especialmente quando) se trata das

virtudes morais particulares ou concretas bem como da definiccedilatildeo de

diversas emoccedilotildees (Rhet II) Entendemos que assim seja graccedilas agrave ligaccedilatildeo

de interdependecircncia entre as capacidades aniacutemicas mencionada

explicitamente em DA (II 4 414b33 et seq) conferindo unidade agrave alma

humana Essa ligaccedilatildeo possibilita a participaccedilatildeo do desiderativo na razatildeo

praacutetica e a boa accedilatildeo proposta confirmada pela afirmaccedilatildeo de Boyle

(2012 p 23-31) que pensa a racionalidade como um conjunto de capacidades que permitem ao homem fazer ou no caso se emocionar

da forma como se emociona

Por isso julgamos conveniente apreciar sucintamente em nosso

estudo algumas capacidades intelectuais que possam constituir a forma

como nos emocionamos ou mesmo que possam influenciar a mudanccedila

162

nas emoccedilotildees e a mudanccedila de uma emoccedilatildeo em outra Comeccedilaremos com

a percepccedilatildeo sensiacutevel iniacutecio que se justifica porque em Aristoacuteteles eacute com

ela que se inicia a possibilidade de conhecimento sobre o mundo147 e eacute

com ela que as emoccedilotildees parecem ter iniacutecio Seguiremos com breve

estudo da imaginaccedilatildeo considerada um elemento do pensamento

inexistente sem o corpo mas que sempre aparece associada agraves

descriccedilotildees diversas das emoccedilotildees que analisamos ateacute agora Apoacutes

mencionaremos tipos de pensamento e intelecto de certo modo

relacionados com a percepccedilatildeo e com a emoccedilatildeo Estudaremos ainda a

opiniatildeo ligada agraves emoccedilotildees abordada apenas de modo que nos ajude a

reforccedilar a defesa das propostas de nosso estudo A escolha das

capacidades mencionadas eacute devida ao fato de serem discutidas tanto na

EN quanto no DA assim como por aparecerem nos outros dois tratados

que servem de apoio agrave nossa inquiriccedilatildeo Todavia o estudo natildeo se

pretende exaustivo nem de caraacuteter conclusivo acerca da questatildeo mas

seraacute apresentado agrave medida que confirme nossas propostas a respeito da

racionalidade da emoccedilatildeo Comeccedilaremos portanto com a percepccedilatildeo

pois sem esta natildeo haacute imaginaccedilatildeo e sem estas duas provavelmente natildeo

haja pensamentos que igualmente podem estar de implicados na

emoccedilatildeo

2 b) Percepccedilatildeo

Nosso intento com essa pequena parte da pesquisa eacute entender o

papel da percepccedilatildeo na emoccedilatildeo com o apoio da EN eacute do DA A

interpretaccedilatildeo tradicional deste uacuteltimo tratado propotildee a percepccedilatildeo atraveacutes

dos oacutergatildeos da sensibilidade como iniacutecio do conhecimento sendo isto um

tipo de afecccedilatildeo (paacutethos) ou movimento que igualmente nos levaraacute a

imaginar e a nos emocionar

A EN natildeo nos propotildee explicitamente a percepccedilatildeo sensiacutevel como

ligada agrave maioria das emoccedilotildees mas ao lermos as descriccedilotildees das virtudes

morais particulares percebemos sua presenccedila pois se emocionar parece

depender ao menos inicialmente de um contato com o mundo do

agente e este contato acontece por via dos sentidos da percepccedilatildeo Aleacutem

disso quando na EN Aristoacuteteles diferencia a capacidade raciocinativa da

percepccedilatildeo sensiacutevel por aquela ser generalizante ao passo que esta outra

eacute particularizante (EN II 9 1109b21) aponta a discriminaccedilatildeo como

mateacuteria da percepccedilatildeo (EN III 5 1126b4-6) tida com as coisas que nos

147 Segundo Zingano (1996 p 17) essa eacute a interpretaccedilatildeo tradicional para as

teorias sobre a relaccedilatildeo entre sensaccedilatildeo e pensamento expostas no De anima

163

aparecem Quanto a esse assunto o tratado tambeacutem nos informa que

para um homem ser prudente eacute preciso saber dos casos particulares O

texto explica que por isso um jovem nunca seraacute prudente por natildeo ter

experiecircncias suficientes dos casos desse tipo pois a experiecircncia nesses

assuntos vem com o tempo

A prudecircncia por sua vez diz respeito ao que haacute de mais

particular jaacute que a accedilatildeo a ser efetuada eacute ela mesma particular (EN VI 9

1142a24-25) embora diga respeito tambeacutem aos universais captados a

partir de um sem nuacutemero de particularidades como vimos no Capiacutetulo

anterior Deste modo a prudecircncia eacute o conhecimento do que haacute de mais

individual remetendo-se reforccedilamos a algo de universal diferindo

assim da percepccedilatildeo sensiacutevel (EN VI 8 1141b14 et seq VI 9 1142a27)

eacute percepccedilatildeo praacutetica como propotildee Reeve (2013 p 13 e 23) Esse

particular natildeo eacute objeto da ciecircncia mas da percepccedilatildeo trazendo-a -

mesmo aquela percepccedilatildeo descrita no DA III - para o campo eacutetico

Aristoacuteteles entretanto adverte a percepccedilatildeo participante das coisas

eacuteticas natildeo lida com os sensiacuteveis proacuteprios mas com os sensiacuteveis de outro

tipo como aqueles que distinguem formas geomeacutetricas (EN VI 9

1142a26-30) Mesmo que haja um tipo especiacutefico de percepccedilatildeo

associado agrave prudecircncia pensamos que seja impossiacutevel a essa virtude

intelectual dispensar o contato com o particular que eacute objeto da

percepccedilatildeo sensiacutevel Por isso cabe-nos estudar essa capacidade

Se pensarmos que a percepccedilatildeo sensiacutevel natildeo estaacute totalmente isenta

do contato com a emoccedilatildeo ligada como estaacute a aparecircncias externas

devemos descrevecirc-la como algo que consiste em ser movido e afetado

pois parece haver opiniotildees que a afirmam como certa alteraccedilatildeo embora

certo tipo de percepccedilatildeo possa natildeo ter ligaccedilatildeo direta com a accedilatildeo de teor

moral A percepccedilatildeo sensiacutevel eacute explicada pelo De Anima de modo

condizente a esta proposta como um movimento partindo de fora da

alma (DA I 4 408a34-35 408b1-17) que todavia natildeo eacute capacidade

exclusiva do homem148 eacute proacutepria aos animais em geral Por

conseguinte Aristoacuteteles segue sua exposiccedilatildeo sobre o assunto com a

proposiccedilatildeo de que o diferencial entre um animal e os outros seres natildeo eacute

o movimento ou a mudanccedila de lugar mas a percepccedilatildeo sensiacutevel (DA II 2

148 Nos An Post Aristoacuteteles descreveu a despeito das diferenccedilas de propoacutesitos

das investigaccedilotildees nesse tratado a percepccedilatildeo como ldquoOra assim eacute a sensaccedilatildeo

uma faculdade discriminativa (portanto de conhecimento)natural a todos os

animaisrdquo (99b36)Traduccedilatildeo de Vallandro e Bornheim (1978) no

originalἐνούσης δ αἰσθήσεως τοῖς μὲν τῶν ζῴων ἐγγίγνεται μονὴ τοῦ

αἰσθήματος τοῖςδ οὐκἐγγίγνεται

164

413b1-9) Por exemplo vimos que em certos animais e plantas

fragmentados cada parte conserva sensaccedilatildeo e movimento local O

filoacutesofo entretanto explica que se assim acontece com a sensaccedilatildeo

igualmente aconteceraacute com a imaginaccedilatildeo e com o desejo porque onde

haacute sensaccedilatildeo haacute prazer e dor e onde estes existem tambeacutem existe

necessariamente o desejo (DA II 2 413b21-23) Com os sentidos

acontece algo parecido alguns animais os tecircm todos outros apenas

alguns outros soacute precisam dee tecircm o tato como propusemos no

Capiacutetulo I As capacidades da alma satildeo propostas entretanto em

sucessatildeo porque sem a alma nutritiva natildeo existe a capacidade

perceptiva portanto e de acordo com Kenny

As almas dos seres vivos podem ser ordenadas

hierarquicamente Plantas possuem uma alma

vegetativa ou nutritiva a qual consiste nos

poderes de crescimento nutriccedilatildeo e reproduccedilatildeo (2

4 415a22-26) Aleacutem disso os animais possuem os

poderes de percepccedilatildeo e locomoccedilatildeo eles possuem

uma alma sensiacutevel e todo animal tem pelo menos

uma capacidade sensitiva das quais o tato eacute a

mais universal O que quer que possa sentir

afinal pode sentir prazer e os animais portanto

que possuem sentidos tambeacutem tecircm desejos Os

humanos aleacutem disso tecircm o poder da razatildeo e do

pensamento (logiacutesmos kaigrave diaacutenoia) que podemos

chamar de alma racional (KENNY 2008 p 284)

Nos animais que possuem tato haacute igualmente a percepccedilatildeo do

alimento e todos os seres vivos se alimentam de coisas secas e uacutemidas

quentes e frias A percepccedilatildeo desses tipos de coisas acontece atraveacutes do

tato que soacute percebe acidentalmente outras qualidades sensiacuteveis

implicando que o sabor eacute seu objeto embora o cheiro e ruiacutedo natildeo

acrescentem nada ao alimento Assim para cada sentido haacute um plano

sensiacutevel que eacute seu objeto proacuteprio e nenhum dos outros sentidos subsiste

sem o tato sendo que este subsiste sem os demais jaacute que haacute animais

sem visatildeo audiccedilatildeo ou percepccedilatildeo do odor

Quanto a essa relaccedilatildeo entre as capacidades o filoacutesofo explica que entre os animais que possuem a capacidade perceptiva uns tecircm a

locomoccedilatildeo outros natildeo mas poucos satildeo os que tecircm caacutelculo e raciociacutenio

Naqueles em que subsiste o caacutelculo igualmente haacute as demais

capacidades mas dos que tecircm cada uma das outras capacidades nem

todos tecircm o caacutelculo Haacute animais que natildeo tecircm sequer a imaginaccedilatildeo e

165

igualmente aqueles que vivem exclusivamente por ela Tendo em vista

estas propostas vale lembrar que desde o primeiro momento de nosso

estudo aceitamos a possibilidade de natildeo haver muacuteltiplas e distintas

almas mas de a alma se constituir das capacidades que faculta ao corpo

animado Com isso a capacidade perceptiva nos seres humanos de

certo modo se liga agraves emoccedilotildees por sua dependecircncia do desiderativo

comprovando mais uma vez a unicidade da alma e as propostas iniciadas

em EN I 13

A essa ideia eacute preciso acrescentar que Aristoacuteteles entende o

perceber de dois modos haacute percepccedilatildeo em ato e em potecircncia e o objeto

de percepccedilatildeo sensiacutevel tambeacutem seraacute em potecircncia ou em atividade

Igualmente eacute preciso fazer distinccedilotildees quanto agrave potecircncia e agrave atualidade

porque como proposto a sensaccedilatildeo eacute a faculdade discriminadora e

dessas discriminaccedilotildees viratildeo os motivos para as emoccedilotildees que deveratildeo

passar pelo crivo da razatildeo praacutetica e de sua forma especiacutefica de

percepccedilatildeo a fim de que adquiram aspecto conveniente Conforme

Aristoacuteteles o ser que nasce jaacute tem o perceber como um discriminar e a

atividade de perceber eacute dita de modo similar agrave de inquirir A diferenccedila

entre as duas funccedilotildees eacute que as coisas que tecircm o poder eficiente da

atividade satildeo externas - satildeo visiacuteveis audiacuteveis e demais objetos da

percepccedilatildeo sensiacutevel - porque a atividade da percepccedilatildeo diz respeito agraves

particularidades enquanto o conhecimento diz respeito aos universais -

que de algum modo estatildeo na alma Assim a capacidade perceptiva eacute

potencialmente ldquotal como seu objeto o eacute jaacute em atualidade Portanto ela eacute

afetada enquanto natildeo semelhante mas uma vez que tenha sido afetada

ela se assemelha e torna-se tal como elerdquo (DA II 5 418a4-6)149 levando

esses dados da percepccedilatildeo para a apreciaccedilatildeo da razatildeo em suas diferentes

formas mas sob a forma praacutetica quando se tratar das accedilotildees

Por conseguinte podemos ressaltar o assunto dos objetos da

percepccedilatildeo sensiacutevel e da discriminaccedilatildeo O filoacutesofo observa

primeiramente que os sensiacuteveis devem ser tratados segundo cada um

dos sentidos ldquoO sensiacutevel se diz de trecircs modos dos quais dois afirmamos

que satildeo percebidos por si mesmos e um por acidente E dos dois um eacute

proacuteprio a cada sentido outro comum a todosrdquo (DA II 6 418a8-11)150

Sensiacutevel proacuteprio eacute aquilo que natildeo pode ser percebido por um outro

149 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (2006) no original πάσχει μὲν

οὖν οὐχ ὅμοιον ὄν πεπονθὸς δ ὡμοίωται καὶ ἔστιν οἷον ἐκεῖνο 150Idem λέγεται δὲ τὸ αἰσθητὸν τριχῶς ὧν δύο μὲν καθ αὑτά φαμεν

αἰσθάνεσθαι τὸ δὲ ἓν κατὰ συμβεβηκός τῶν δὲ δυοῖν τὸ μὲν ἴδιόν ἐστιν

ἑκάστης αἰσθήσεως τὸ δὲ κοινὸν πασῶν

166

sentido que natildeo lhe corresponda - caso da visatildeo da cor da gustaccedilatildeo etc

Cada sentido destes eacute diferente e natildeo haacute engano sobre se eacute cor ou som

mas sobre o que eacute e onde estaacute o colorido ou o sonante Sensiacuteveis comuns

satildeo o movimento o repouso o nuacutemero a figura e a magnitude (DA II 6

418a17-20) porque satildeo percebidos por mais de um sentido ou por todos

os sentidos Por exemplo um certo movimento eacute percebido tanto pelo

tato quanto pela visatildeo Haacute ainda o sensiacutevel por acidente explicado pelo

famoso exemplo do branco que eacute filho de Diares (DA II 6 418a21-25)

Mas em relaccedilatildeo a toda percepccedilatildeo sensiacutevel eacute preciso compreender que o

sentido recebe as formas sensiacuteveis sem a mateacuteria e do mesmo modo o

sentido eacute afetado pela accedilatildeo do que tem cor sabor ou som O oacutergatildeo

sensorial primeiro eacute aquele em que subsiste essa potecircncia mas dos

sensiacuteveis comuns temos uma percepccedilatildeo comum sem um sentido ou um

oacutergatildeo proacuteprio diante do que Robinson explica

Mas Aristoacuteteles estaacute ciente de que muito mais estaacute

sendo dito quando afirmamos que percebemos as

coisas em particular afirmamos que natildeo vemos

apenas cores mas objetos coloridos que estatildeo em

movimento ou em repouso que tecircm determinado

tamanho e que satildeo unos ou muacuteltiplos em nuacutemero

Estes satildeo chamados ldquosensiacuteveis comunsrdquo

Aristoacuteteles afirma satildeo percebidos per accidens

pelos cinco sentidos que temos e portanto

podemos nos referir a eles como o ldquosentido

comumrdquo ou ldquoos sentidos tomados em comumrdquo

(ROBINSON 2010 p 239)

A percepccedilatildeo sensiacutevel deste modo eacute tida como a capacidade

discriminativa entre as coisas sensiacuteveis que nos aparecem podendo

mesmo levar a ajuizamento Informaccedilatildeo crucial a uma pesquisa eacutetica

sobre as emoccedilotildees pois mais adiante veremos a proposiccedilatildeo da relaccedilatildeo

entre o sentir emoccedilatildeo e o ajuizar quanto aos particulares que nos tocam

Vimos que a percepccedilatildeo sensiacutevel que nos forneceraacute os dados dos

julgamentos por sua vez eacute ou uma potecircncia (como a visatildeo) ou uma

atividade (como o ato de ver) e estaacute sempre presente

Aleacutem disso as percepccedilotildees sensiacuteveis satildeo sempre verdadeiras se haacute boas condiccedilotildees do oacutergatildeo perceptivo e de seu objeto Por exemplo

quando estamos em plena atividade da percepccedilatildeo natildeo dizemos que um

objeto perceptiacutevel aparenta ser um homem dizemos isso quando natildeo

percebemos claramente Nesse caso a percepccedilatildeo seria verdadeira ou

falsa porque (1) haacute percepccedilatildeo sensiacutevel dos objetos sensiacuteveis proacuteprios

167

sendo esta verdadeira ou contendo minimamente o falso (2) porque natildeo

haacute percepccedilatildeo tambeacutem do incidir essas coisas que satildeo acidentais nos

objetos perceptiacuteveis e nesse caso admite-se errar e (3) haacute igualmente a

percepccedilatildeo dos sensiacuteveis comuns que acompanham os incidentais onde

subsistem os sensiacuteveis proacuteprios Essas trecircs percepccedilotildees sensiacuteveis daratildeo as

diferenccedilas do movimento que ocorre pela atividade da percepccedilatildeo se ela

estaacute presente (1) eacute verdadeiro Os outros podem ser falsos estando ela

presente ou natildeo principalmente quando estiver longe do objeto

perceptiacutevel que eacute totalmente particular

Assim agraves afirmaccedilotildees do DA se coadunam as propostas da EN

sobre a percepccedilatildeo quando esta uacuteltima obra nos informa que cada sentido

vem a ato pela relaccedilatildeo com o objeto sensiacutevel que lhe eacute correspondente

Tal operaccedilatildeo se torna perfeita quando o sentido - em uma disposiccedilatildeo satilde -

tem sua relaccedilatildeo com o melhor objeto que lhe corresponde como

proposto haacute pouco Nessas condiccedilotildees o ato eacute o mais perfeito e o mais

agradaacutevel porque para cada um dos sentidos haacute um prazer

correspondente sendo que nesse caso o prazer eacute o acabamento do ato de

perceber e discriminar Se o sentido e os sensiacuteveis estiverem nas

condiccedilotildees propostas sempre haveraacute prazer e verdade porque seratildeo

postos diante do princiacutepio eficiente e do princiacutepio passivo aiacutesthēsis e

aisthetoacuten Estes quando juntos contemplam as exigecircncias de perfeiccedilatildeo

da capacidade perceptiva permitindo o ato perceptivo perfeito em mais

alto grau

Mas esse tipo de percepccedilatildeo eacute o mesmo mencionado em EN VI

como associado agrave prudecircncia O Livro sobre as virtudes intelectuais nos

informa que a prudecircncia (EN VI 9 1142a26-30) eacute mais percepccedilatildeo

deliberativa ou praacutetica que qualquer outra coisa no entanto vimos que o

tipo de percepccedilatildeo associado agrave phroacutenēsis eacute diferente do outro (EN VI 9

1142a28) A percepccedilatildeo deliberativa envolve um universal que soacute pode

ser atingido por deliberaccedilatildeo praacutetica Nessas condiccedilotildees conta a posse de

desejos e emoccedilotildees moderados jaacute que podem ser em excesso ou falta e

por isso apresentam viacutecios que distorcem a visatildeo tornando-a falsa

quanto ao iniacutecio das accedilotildees (EN VI 13 1144a34-36) Por isso a percepccedilatildeo

relacionada agrave prudecircncia eacute de certa forma diferente da percepccedilatildeo dos

sensiacuteveis proacuteprios mencionados em DA III

No caso da prudecircncia opera-se uma percepccedilatildeo como aquela das

figuras que eacute chamada por Reeve (2014 p 211 et seq) percepccedilatildeo

deliberativa Estaacute relacionada ao silogismo praacutetico sendo percepccedilatildeo do

que eacute uacuteltimo na demonstraccedilatildeo praacutetica donde seu caraacuteter particular A

EN III 5 1112b11-24 e a EE II 10 1226a37 nos informam que o

deliberador age como quem analisa um diagrama Um matemaacutetico

168

analisa materiais e formas para serem desenhadas compondo uma

figura Esta eacute a uacuteltima coisa alcanccedilada na anaacutelise mas a primeira na

construccedilatildeo do objeto analisado (DA III 10 433a16-17) Com isso cessa a

investigaccedilatildeo (EN VI 9 1142a29) mais ou menos do mesmo modo que

ocorre na deliberaccedilatildeo praacutetica do prudente quando a anaacutelise chega ao

que deve ser feito ou seja age

Assim a percepccedilatildeo deliberativa resulta de deliberaccedilatildeo e eacute um

tipo de percepccedilatildeo porque o universal que ela discerne eacute captado a partir

de ocorrecircncias particulares perceptiacuteveis como explica Reeve (2013 p

23 p 32) ligando-se assim agrave percepccedilatildeo geral Mesmo que a percepccedilatildeo

de tipo deliberativo soacute ocorra em animais dotados de capacidade

calculativa ela eacute um ato perceptivo porque discerne um particular

perceptiacutevel pela capacidade perceptiva conforme o que explicamos

acima e o que Reeve ressalta

Se o particular em questatildeo eacute um perceptiacutevel

proacuteprio (como poderia ser por exemplo se

estiveacutessemos deliberando sobre que cor de roupa

nos protege melhor do sol) esse ato eacute mais

estritamente o de um sentido proacuteprio (visatildeo) Se eacute

um perceptiacutevel comum (como o formato

triangular) eacute um ato de senso comum (REEVE

2014 p 213)

Ao contraacuterio da percepccedilatildeo do sensiacutevel proacuteprio que eacute sempre

correta ou tem pouca chance de errar a percepccedilatildeo deliberativa pode

cometer erro por exemplo se a deliberaccedilatildeo ligada a ela natildeo for

verdadeira ou for invaacutelida Por isso a prudecircncia eacute ao mesmo tempo

percepccedilatildeo e deliberativa (EN VI 8 1141b9-10) porque perceber

corretamente sensiacuteveis comuns depende frequentemente de caacutelculo

sendo similar agrave percepccedilatildeo deliberativa Especificamente quanto agrave accedilatildeo a

deliberaccedilatildeo praacutetica que a determina tem por alvo a melhor coisa para o

homem e que pode ser realizada por ele (EN VI 8 1141b13-14) Esse

tipo de deliberaccedilatildeo eacute precursora da imaginaccedilatildeo deliberativa e envolve

desejos e emoccedilotildees que possuem boa medida O que faz da percepccedilatildeo

deliberativa praacutetica eacute o fato de seu objeto envolver prazer e dor como

no caso do desejo pela felicidade

Deste modo reforccedilamos que a percepccedilatildeo sensiacutevel pode ser

entendida mesmo em diferentes tratados como iniacutecio do conhecimento

e como afecccedilatildeo tocada por objetos particulares externos que satildeo

proacuteprios ou comuns Conduz a prazeres variados e pode mesmo ter

169

relaccedilatildeo com a emoccedilatildeo ocasionada pelo agente externo particular ao qual

discrimina Difere contudo dos pensamentos para os quais encaminha

suas distinccedilotildees e que em sua forma praacutetica ocasionaraacute a percepccedilatildeo de

tipo deliberativa Por isso questionamos assim como fez Zingano que

tipo de alteraccedilatildeo eacute a percepccedilatildeo sensiacutevel se natildeo eacute qualquer alteraccedilatildeo

Aristoacuteteles natildeo apresenta resposta exata agrave questatildeo mas com apoio no

que foi estudado podemos aceitar a proposta de Zingano (1996 p 16)

Este estudioso entende que a percepccedilatildeo seria ldquouma certa afecccedilatildeo aquela

que a faculdade sensitiva sofre quando passa agrave atualidade e identifica-se

formalmente agrave coisa que do exterior causa sua atualizaccedilatildeo

constituindo-se nesta relaccedilatildeo um objeto de conhecimento (mais

precisamente um objeto sensiacutevel)rdquo o que ratifica a proposta de EN X 7

1177b26-30 e as propostas de nossa pesquisa

Ao homem natildeo eacute possiacutevel uma vida afastada do mundo e de seus

objetos pois mesmo para boa parte de suas reflexotildees seria necessaacuterio o

contato com aquilo que o cerca e sobre o que deve deliberar em casos

embaraccedilosos e por isso haacute a percepccedilatildeo deliberativa que distingue a

partir do que eacute proposto em um silogismo praacutetico levando agrave boa accedilatildeo A

percepccedilatildeo natildeo se identifica com o pensar sendo atividade de outra

natureza que pode operar com a percepccedilatildeo sensiacutevel para produzir o

conhecimento151 Assim como a percepccedilatildeo deliberativa natildeo se identifica

151Para Zingano (1996 p 17) contudo essa natildeo eacute a interpretaccedilatildeo tradicional

Esta propotildee da forma como explica o estudioso uma iacutentima afinidade da

atividade dos sentidos com aquela do intelecto Isso eacute correto pensa o autor

porque todo conhecimento humano por conceitos necessita da ligaccedilatildeo entre as

operaccedilotildees da razatildeo e da sensaccedilatildeo O problema existente com a proposta

tradicional pensa estaacute no modo como tal afinidade eacute concebida Para

Aristoacuteteles essas duas operaccedilotildees satildeo distintas porque o pensamento apreende

os universais enquanto a sensaccedilatildeo apreende os particulares A proposta

tradicional no entanto atribui agraves operaccedilotildees algo mais que a tarefa

discriminativa (e de conhecer) os objetos teriam um modo de operaccedilatildeo

semelhante Por isso entender como funciona uma implicaria entender o

funcionamento da outra Nesse caso tanto com intelecto quanto com a sensaccedilatildeo

o conhecimento viria da passagem da potencialidade agrave atualidade sendo que o

objeto proacuteprio a cada operaccedilatildeo lhe cederia certa determinaccedilatildeo Nessa

passividade as operaccedilotildees estariam intimamente ligadas Entatildeo tanto uma

quanto outra seria uma potecircncia que dependeria do seu objeto para ser

atualizada

Isso afastaria Aristoacuteteles da proposta das Ideias de Platatildeo (como na Rep)

porque natildeo precisaria duplicar o objeto do conhecimento ldquoAristoacuteteles duplica

as operaccedilotildees da alma mas natildeo a proacutepria coisa partindo da apreensatildeo das

170

com a deliberaccedilatildeo mas eacute parte constituinte desta Todavia entre os

tipos de percepccedilatildeo mencionados e os tipos de pensamento e razatildeo com

os quais tecircm contato temos outro elemento presente a imaginaccedilatildeo

portanto cabe-nos agora dissertar brevemente sobre a imaginaccedilatildeo e as

emoccedilotildees

2 c) Imaginaccedilatildeo

Na EN VII 7 1149a32 a imaginaccedilatildeo aparece ligada agrave raiva

(thymoacutes) contrapondo-se agraves propostas do filoacutesofo quanto ao apetite No

passo em questatildeo satildeo feitas observaccedilotildees quanto agrave capacidade desses

dois desejos ouvirem agrave razatildeo e agrave forma como as emoccedilotildees relacionadas a

eles se comportam devido a essa participaccedilatildeo no racional Estas paacutethē

estatildeo associadas agrave percepccedilatildeo e agraves aparecircncias explicando que a razatildeo ou

a imaginaccedilatildeo estaacute presente nas apreciaccedilotildees dos insultos que enraivecem

relacionando o homem que deve se emocionar com o mundo (Pol I 2

1253a25-28 EN X 7 1177b26-30) Assim a imaginaccedilatildeo eacute atrelada ao

impulso e agrave raiva que pode acompanhaacute-lo

O DA parece nos trazer informaccedilotildees adicionais sobre a questatildeo

pois Aristoacuteteles nos fala da imaginaccedilatildeo ao comparaacute-la e associaacute-la com

a percepccedilatildeo sensiacutevel e com tipos de pensamento ldquoPois a imaginaccedilatildeo eacute

algo diverso tanto da percepccedilatildeo sensiacutevel como do raciociacutenio mas a

imaginaccedilatildeo natildeo ocorre sem percepccedilatildeo sensiacutevel e tampouco sem a

imaginaccedilatildeo ocorrem suposiccedilotildeesrdquo (DA III 2 427b14-16)152 Tratamos da

imaginaccedilatildeo ao abordarmos as capacidades da razatildeo que podem estar

implicadas com as emoccedilotildees porque haacute vaacuterias menccedilotildees a ela quando o

assunto eacute o paacutethos especialmente em Rhet II sendo a proacutepria um

paacutethos ao mesmo tempo em que eacute considerada como ponto

intermediaacuterio entre o perceber e o pensar Teoria que justifica o estudo

qualidades sensiacuteveis o homem chega aos inteligiacuteveis natildeo tendo uma relaccedilatildeo

com outra coisa mas retrabalhando esta mesma apreensatildeo sensiacutevel sob a forma

agora de reproduccedilatildeo imaginativa no interior da qual a razatildeo apreende os

inteligiacuteveis Haacute dois objetos de conhecimento o sensiacutevel e o inteligiacutevel aos

quais correspondem (sic) uma soacute coisa na realidade um particular que eacute

composto de mateacuteria e formardquo (ZINGANO 1997 p 18) Isso culminaraacute na tese

do intelecto agente e passivo Com essas propostas Aristoacuteteles elimina as Ideias

e resta-lhe a imanecircncia segundo a qual os inteligiacuteveis somente satildeo separados na

alma 152 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original φαντασία γὰρ ἕτερον

καὶ αἰσθήσεως καὶ διανοίας αὕτη τε οὐ γίγνεται ἄνευ αἰσθήσεως καὶ ἄνευ

ταύτης οὐκ ἔστιν ὑπόληψις

171

das trecircs capacidades racionais em um trabalho acerca das emoccedilotildees por

serem diferentes e exercerem tarefas diferentes junto agrave emoccedilatildeo e agrave

possibilidade de bem viver a imaginaccedilatildeo natildeo eacute nem pensamento nem

suposiccedilatildeo mas eacute uma afecccedilatildeo que depende de noacutes e do nosso querer

Aristoacuteteles explica que quando temos imaginaccedilatildeo de coisas terriacuteveis ou

pavorosas por exemplo podemos permanecer como que a contemplar

uma pintura (DA III 3 427b16-24153) pois a imaginaccedilatildeo natildeo nos leva

imediatamente a compartilhar a emoccedilatildeo Assim

Se a imaginaccedilatildeo eacute aquilo segundo o que dizemos

que nos ocorre uma imagem ndash e natildeo no sentido

em que o dizemos por metaacutefora - seria ela entatildeo

alguma daquelas potecircncias ou disposiccedilotildees

segundo as quais discernimos ou expressamos o

verdadeiro ou o falso Deste tipo satildeo a percepccedilatildeo

sensiacutevel a opiniatildeo a ciecircncia e o intelecto (DA III

3 428a1-4)154

A imaginaccedilatildeo natildeo eacute percepccedilatildeo sensiacutevel porque como vimos

pouco acima a percepccedilatildeo eacute ou uma potecircncia como a visatildeo ou um ato

como o de ver mas algo pode aparecer (phaiacutenetai) para noacutes quando natildeo

subsiste (em sonho por exemplo) e a percepccedilatildeo sensiacutevel eacute sempre

presente mas a imaginaccedilatildeo natildeo As imagens nos aparecem mesmo com

os olhos fechados enquanto a percepccedilatildeo depende destes abertos para

que contate seus objetos Aleacutem disso diferem porque se a imaginaccedilatildeo

fosse o mesmo que a percepccedilatildeo em atividade subsistiria em todos os

153 Ver tambeacutem Nussbaum (2008 p 65 et seq) embora a filoacutesofa natildeo esteja

propriamente a explicar Aristoacuteteles trata da compaixatildeo para exemplificar sua

teoria e exemplifica o papel da imaginaccedilatildeo na emoccedilatildeo ldquoNa compaixatildeo nossa

habilidade para pintar vividamente o dilema de uma pessoa ajuda na formaccedilatildeo

das emoccedilotildees [] podemos sentir menos emoccedilatildeo por outros casos que natildeo

podemos similarmente imaginar com vivacidade embora eles possam ter uma

estrutura similar Aqui o que a imaginaccedilatildeo parece fazer eacute nos ajudar trazendo

um indiviacuteduo distante para a esfera de nossos objetivos e projetos humanizando

a pessoa e criando apossibilidade de ligaccedilatildeo A compaixatildeo ainda seraacute definida

pelo seu conteuacutedo de pensamento incluindo seu conteuacutedo eudaiacutemōniacutestico []

mas a imaginaccedilatildeo eacute uma ponte que permite ao outro se tornar um objeto de

nossa compaixatildeordquo (NUSSBAUM 2008 p 66 traduccedilatildeo nossa) 154 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis (2006) no original εἰ δή ἐστιν ἡ

φαντασία καθ ἣν λέγομεν φάντασμά τι ἡμῖν γίγνεσθαι καὶ μὴ εἴ τι κατὰ

μεταφορὰν λέγομεν ἆρα μία τις ἔστι τούτων δύναμις ἢ ἕξις καθ ἃς κρίνομεν

καὶ ἀληθεύομεν ἢ ψευδόμεθα τοιαῦται δ εἰσὶν αἴσθησις δόξα ἐπιστήμη νοῦς

172

animais mas ela natildeo parece existir por exemplo nas formigas Outra

diferenccedila eacute que as percepccedilotildees satildeo sempre verdadeiras mas a maioria das

imaginaccedilotildees eacute falsa pois existe imaginaccedilatildeo falsa e os animais natildeo

possuem convicccedilatildeo (piacutestis) mas muitos tecircm imaginaccedilatildeo aleacutem do mais

alguns animais a possuem mas natildeo possuem razatildeo

A imaginaccedilatildeo eacute descrita portanto como movimento decorrente

da atividade da percepccedilatildeo sensiacutevel (DA III 3 429a1-2) sendo a uacutenica a

apresentar os atributos mencionados Zingano (2008 p 203) explica a

imaginaccedilatildeo como ldquoa faculdade da alma que preserva o que eacute dado pela

sensaccedilatildeo sob a forma de imagens sobre as quais o intelecto vai operar

funcionando como uma ponte entre razatildeo e sensaccedilatildeordquo Estando

relacionada agrave percepccedilatildeo sensiacutevel que tem sua principal expressatildeo na

visatildeo forma de percepccedilatildeo sensiacutevel por excelecircncia o nome imaginaccedilatildeo

deriva de luz (tograve phocircs) pois sem luz natildeo eacute possiacutevel ver e sem ver natildeo eacute

possiacutevel imaginar sendo tal capacidade uma espeacutecie de criadora de

coisas que satildeo ldquovistasrdquo pelo pensamento Assim as imaginaccedilotildees

perduram e se assemelham agraves percepccedilotildees sensiacuteveis sendo que os

animais fazem muitas coisas de acordo com essas uns por natildeo terem

intelecto outros como os homens por terem o intelecto agraves vezes

obscurecido pelo sono ou pela doenccedila

O DA tambeacutem nos faz entender que haacute diferentes tipos de

imaginaccedilatildeo ldquoA imaginaccedilatildeo perceptiva como foi dito subsiste

igualmente nos outros animais mas a deliberativa apenas nos seres

capazes de calcular pois decidir por fazer isto ou aquilo de fato jaacute eacute

uma funccedilatildeo do caacutelculordquo (DA III 9 434a5-7)155 Essas propostas ligam-se

agravequelas de EN VI texto no qual estudamos a imaginaccedilatildeo deliberativa

como Reeve (2014 p 212) esclarece ldquoA percepccedilatildeo deliberativa eacute um

parente proacuteximo ndash no sentido de que eacute o precursor essencial ndash da

imaginaccedilatildeo calculativa ou deliberativardquo Como nos explica o DA

compartilhamos a imaginaccedilatildeo perceptiva com todos os animais mas a

imaginaccedilatildeo deliberativa eacute exclusiva dos seres dotados de caacutelculo porque

ela eacute questatildeo de deliberaccedilatildeo em prol do bem supremo Por isso esse tipo

de imaginaccedilatildeo capacita ou vem da capacidade de discernir uma entre

muitas aparecircncias a partir do silogismo praacutetico no caso da accedilatildeo

colaborando com o tipo de visatildeo proacuteprio agrave prudecircncia

Por conseguinte se a imaginaccedilatildeo perceptiva eacute um tipo de

movimento que soacute acontece nos seres que tecircm percepccedilatildeo sensiacutevel a

155 Idem ἡ μὲν οὖν αἰσθητικὴ φαντασία ὥσπερ εἴρηται καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις

ζῴοις ὑπάρχει ἡ δὲ βουλευτικὴ ἐν τοῖς λογιστικοῖς (πότερον γὰρ πράξει τόδε ἢ

τόδε λογισμοῦ ἤδη ἐστὶν ἔργον[])

173

respeito das coisas das quais se tem tal percepccedilatildeo sendo possiacutevel que

aconteccedila pela atividade da aiacutesthēsis eacute preciso que o movimento seja

semelhante a esta O ser que possui esse movimento poderaacute fazer e

sofrer muitas coisas em conformidade a ele confirmando que a

percepccedilatildeo sensiacutevel se relaciona com a emoccedilatildeo pois esta uacuteltima move

de certo modo Se natildeo haacute imaginaccedilatildeo sem percepccedilatildeo sensiacutevel tais

operaccedilotildees se encadeiam no esquema daquilo que de mais proacuteximo ao

racional pode tocar agrave emoccedilatildeo mas haacute ainda a imaginaccedilatildeo deliberativa

que se associa agraves emoccedilotildees moderadas agrave deliberaccedilatildeo praacutetica e agrave escolha

deliberada dando ao prudente um tipo de visatildeo das coisas

possivelmente corretas a fazer com isso favorecendo a boa medida Na

sequecircncia da cadeia de operaccedilotildees tratada encontramos certos tipos de

pensamento e igualmente de intelecto sendo preciso estudaacute-los A

imaginaccedilatildeo contudo viraacute a ser mencionada novamente no estudo acerca

da opiniatildeo momento oportuno pois o filoacutesofo potildee-nas em comparaccedilatildeo

tanto na EN quanto no DA

2 d) Pensamentos

As anaacutelises feitas a partir dos textos estudados nos permitiram

constatar que haacute tipos de pensamento associados agrave emoccedilatildeo desejos e

prazeres Um destes tipos de pensamento (diaacutenoia) quanto agraves coisas

relativas agrave moralidade parece estar presente especialmente nas virtudes

intelectuais agraves quais se chama desde EN I 13 dianoeacuteticas entendidas

como as melhores condiccedilotildees da capacidade racional designada por

Aristoacuteteles como diaacutenoia Em EN I 6 todavia a vida bem-sucedida eacute

associada agrave posse da razatildeo e ao exerciacutecio desse tipo de pensamento (EN I 7 1098a5) ligaccedilatildeo comprovada pelo caso da boa deliberaccedilatildeo sempre

relacionada ao raciociacutenio ou caacutelculo A boa deliberaccedilatildeo eacute a uma

investigaccedilatildeo sobre algo especiacutefico agraves coisas morais permite calcular

corretamente sendo um tipo de retidatildeo de pensamento Deste modo natildeo

haacute boa deliberaccedilatildeo sem caacutelculo consciente mesmo que ela ainda natildeo

seja uma asserccedilatildeo O homem que delibera bem calcula e investiga

alguma coisa levando o desejo reto a emoccedilatildeo adequada e a escolha

deliberada a buscarem um objeto determinado quando devido (EN VI 2

1139a21 et seq) A associaccedilatildeo desse tipo de pensamento com o bem se

emocionar foi evidenciada mais acima quando tratamos da necessidade

da virtude dianoeacutetica ou intelectual da prudecircncia para que haja virtude

moral e para a formaccedilatildeo da virtude completa

O De Anima tambeacutem associa esse tipo de terminologia ao paacutethos quando nos confirma por exemplo que determinados objetos como o

174

que eacute doce movem a percepccedilatildeo sensiacutevel ou o pensar (ou entender tegraven

noacuteesin III 2 426b31-427a1) mas o texto que mais aproxima o pensar e

as emoccedilotildees eacute DA III 7 Em tal Livro podemos ler o seguinte

A ciecircncia em atividade eacute idecircntica ao seu objeto

[] Sentir entatildeo eacute semelhante ao mero proferir e

pensar156 e quando eacute agradaacutevel ou doloroso como

o afirmado ou negado isso eacute perseguido ou

evitado e sentir prazer ou dor consiste em estar

em atividade com a meacutedia da capacidade

sensitiva em face do bem ou do mal como tais A

aversatildeo e o desejo satildeo o mesmo em atividade e a

capacidade de desejar e de evitar natildeo satildeo

diferentes nem entre si nem da capacidade de

sentir embora o ser seja diverso Para a alma

capaz de pensar as imagens subsistem como

sensaccedilotildees percebidas E quando se afirma algo

bom ou nega-se algo ruim evita-o ou persegue-o

Por isso a alma jamais pensa sem imagem (DA III

7 431a1-16)157

156 Robinson (2010 p 245) explica que traduzir noucircs em certos trechos do DA

como aquele que identifica pensar e perceber seria mais convenientemente

entendido se se traduzisse o termo por lsquoentendimentorsquo Isso porque o estudioso

concebe o noucircs nesses pontos como parte do processo de pensamento mas que

natildeo eacute todo o processo Assim aiacutesthēsis e noucircs seriam anaacutelogos por serem

ambos eventos tipos de impressotildees mas cada um a seu modo (Robinson 2010

p 244) Pensamento em nosso sentido seria diaacutenoiesthai que tambeacutem se

ligaria agrave aiacutesthēsis e ao julgamento 157 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia dos Reis (2006) no original Τὸ δ αὐτό ἐστιν ἡ

κατ ἐνέργειαν ἐπιστήμη τῷ πρά-

γματι ἡ δὲ κατὰ δύναμιν χρόνῳ προτέρα ἐν τῷ ἑνί ὅλως δὲ οὐδὲ χρόνῳ ἔστι

γὰρ ἐξ ἐντελεχείᾳ ὄντος πάντα τὰ γιγνόμενα ndash φαίνεται δὲ τὸ μὲν αἰσθητὸν ἐκ

δυνάμει ὄντος τοῦ αἰσθητικοῦ ἐνεργείᾳ ποιοῦν οὐ γὰρ πάσχει οὐδ ἀλλοιοῦται

διὸ ἄλλο εἶδος τοῦτο κινήσεως ἡ γὰρ κίνησις τοῦ ἀτελοῦς ἐνέργεια ἡ δ ἁπλῶς

ἐνέργεια ἑτέρα ἡ τοῦ τετελεσμένου ndash τὸ μὲν οὖν αἰσθάνεσθαι ὅμοιον τῷ

φάναι μόνον καὶ νοεῖνὅταν δὲ ἡδὺ ἢ λυπηρόν οἷον καταφᾶσα ἢ ἀποφᾶσα

διώκει ἢ φεύγει καὶ ἔστι τὸ ἥδεσθαι καὶ λυπεῖσθαι τὸ ἐνεργεῖν τῇ αἰσθητικῇ

μεσότητι πρὸς τὸ ἀγαθὸν ἢ κακόν ᾗ τοιαῦτα καὶ ἡ φυγὴ δὲ καὶ ἡ ὄρεξις ταὐτό

ἡ κατ ἐνέργειαν καὶ οὐχ ἕτερον τὸ ὀρεκτικὸν καὶ τὸ φευκτικόν οὔτ ἀλλήλων

οὔτε τοῦ αἰσθητικοῦ ἀλλὰ τὸ εἶναι ἄλλο τῇ δὲ διανοητικῇ ψυχῇ τὰ

φαντάσματα οἷον αἰσθήματα ὑπάρχει ὅταν δὲ ἀγαθὸν ἢ κακὸν φήσῃ ἢ

ἀποφήσῃ φεύγει ἢ διώκει διὸ οὐδέποτε νοεῖ ἄνευ φαντάσματος ἡ ψυχή

175

Por conseguinte o que eacute capaz de pensar pensa formas em

imagens Nestas se define para quem pensa o que deve ser perseguido e

evitado e por isso mesmo que se ponha a percepccedilatildeo sensiacutevel agrave parte o

que pensa se move quando diante de imagens Em outro momento

quando as imagens (phantasiacuteai) e os pensamentos estatildeo na alma o

homem raciocina como se visse tais imagens Delibera sobre as coisas

que poderatildeo acontecer (ou ser) a partir das que estatildeo presentes nesse

tipo de imagens do pensamento ldquovendordquo nestas o agradaacutevel ou o penoso

evita-o ou persegue-o relacionando-se com o desejo Mesmo o

verdadeiro e o falso que satildeo desprovidos de accedilatildeo estatildeo no mesmo

gecircnero que o bom e o mau embora difiram pois um eacute em absoluto e

outro eacute relativo a algueacutem

Haacute ainda outro tipo de pensamento com significado variado

relacionado agraves emoccedilotildees a serem despertadas e se apresenta nas

sugestotildees do filoacutesofo para que o orador consiga emocionar seu puacuteblico

Se o medo eacute acompanhado de algum

pressentimento de que vamos sofrer algum mal

que nos aniquila eacute oacutebvio que aqueles que acham

que nunca lhes vai acontecer algo de mal natildeo tecircm

medo nem receiam as coisas as pessoas e os

momentos que na sua maneira de pensar natildeo

podem provocar medo Assim pois

necessariamente sentem medo os que pensam que

podem vir a sofrer algum mal e os que pensam

que podem ser afetados por pessoas coisas e

momentos (Rhet II 5 1382b29-34)158

A Eacutetica Nicomaqueia tambeacutem apresenta o verbo oicircomai nesse

sentido de um pensar incerto ou de um tipo de crenccedila associado agraves

posturas intemperantes e incontinentes (EN VII 11 1152a6) As pessoas

que estatildeo ou pensam estar em grande prosperidade acreditam que natildeo haacute

mal que possa lhes acontecer satildeo insolentes desdenhosas e atrevidas

por disporem de riquezas muitas amizades forccedila e poder As pessoas

que acreditam jaacute ter sofrido todo o tipo de desgraccedilas tambeacutem pensam

assim sendo frias quanto ao futuro ldquoPara que sintamos receio eacute preciso

158 Traduccedilatildeo de Alves Alberto Pena (2012) no original εἰ δή ἐστιν ὁ φόβος

μετὰ προσδοκίας τινὸς τοῦ πείσεσθαί τι φθαρτικὸν πάθος φανερὸν ὅτι οὐδεὶς

φοβεῖται τῶν οἰομένων μηδὲν ἂν παθεῖν οὐδὲ ταῦτα ἃ μὴ οἴονται ἂν παθεῖν

οὐδὲ τούτους ὑφ ὧν μὴ οἴονται οὐδὲ τότε ὅτε μὴ οἴονται ἀνάγκη τοίνυν

φοβεῖσθαι τοὺς οἰομένους τι παθεῖν ἄν καὶ τοὺς ὑπὸ τούτων καὶ ταῦτα καὶ τότε

176

que haja alguma esperanccedila de salvaccedilatildeo pela qual valha a pena lutar

Sinal disso eacute que o medo leva as pessoas a deliberar ao passo que

ningueacutem delibera sobre casos desesperadosrdquo (Rhet II 5 1383a5-8)159

Essa apresentaccedilatildeo natildeo acontece nas trageacutedias embora os poemas faccedilam

com que o espectador imagine tal situaccedilatildeo a acontecer com algueacutem que

conhece Esse tipo de imaginaccedilatildeo basta para que o organismo de algueacutem

na plateia se prepare para sentir o medo proposta confirmada pela Eacutetica

Nicomaqueia IV 6 estudo acerca da disposiccedilatildeo corajosa oposta ao

medo emoccedilatildeo que encara ameaccedilas externas como males Por isso

alguns definem o medo como expectaccedilatildeo do mal ocasionado

geralmente pela relaccedilatildeo entre pessoas na poacutelis

O vocaacutebulo em questatildeo eacute empregado para designar algo

semelhante ao pensar ou ao imaginar e opinar Conforme Chantraine

(1977 p 785) aparece no sentido de ldquoopinonrdquo (opiniatildeo) fazendo

oposiccedilatildeo a saphṑs eideacutenai ver claramente ter certeza De acordo com

Aldo Dinucci e Alfredo Julien (2014 p 36) em sua traduccedilatildeo do

Encheiriacutedion de Epicteto o verbo na voz passiva oicircomai quer dizer

ldquolsquopensarrsquo no sentido de lsquopresumirrsquo referindo-se a coisas incertas ndash daiacute

lsquopressentir crer estimarrsquordquo Esses empregos assim como os da Retoacuterica parecem conservar a ideia de que haacute um quecirc de racionalidade se natildeo de

pensamento exatamente no sentido que hoje usamos a palavra que deve

estar presente nas emoccedilotildees despertadas na plateia de um juacuteri por

exemplo abrindo espaccedilo para a atuaccedilatildeo da razatildeo praacutetica na forma de

deliberaccedilatildeo Por isso a Rhet nos apresenta tambeacutem um termo

conhecidamente eacutetico o verbo bouleuacuteō (deliberar) sugerindo que

quando um orador mexe com as emoccedilotildees do puacuteblico este eacute levado agrave

deliberaccedilatildeo sobre os assuntos em questatildeo reforccedilando nossa teoria

Os estados de espiacuterito em que se sente piedade por exemplo

parecem estar diretamente ligados agrave lembranccedila que pode despertar a

imaginaccedilatildeo mas que igualmente parecem estar relacionados no caso do

medo com certo pensamento mesmo que este seja um tipo de

imaginaccedilatildeo que sugira deliberaccedilatildeo Assim haacute certos tipos de

pensamento especialmente envolvidos com a emoccedilatildeo que seraacute

despertada lembrando que estas associam o homem de modo especial

a uma vida que ultrapassa a total contemplaccedilatildeo intelectual embora natildeo

inviabilizando esse tipo de atividade racional No entanto as emoccedilotildees

igualmente satildeo acompanhadas por outras capacidades (ou

159 Idem ἀλλὰ δεῖ τινα ἐλπίδα ὑπεῖναι σωτηρίας περὶ οὗ ἀγωνιῶσιν σημεῖον

δέ ὁ γὰρ φόβος βουλευτικοὺς ποιεῖ καίτοι οὐδεὶς βουλεύεται περὶ τῶν

ἀνελπίστων

177

(sub)capacidades) racionais quando estatildeo acompanhadas dos processos

da prudecircncia Uma destas capacidades eacute o intelecto em sua funccedilatildeo

praacutetica como poderemos entender com o breve estudo a seguir

2 e) Intelecto praacutetico160

Existe uma capacidade na alma humana o intelecto (noucircs) que

se desdobra em intelecto praacutetico e intelecto teoacuterico Em sua funccedilatildeo ou

uso praacutetico age apreendendo o que por uacuteltimo eacute apresentado na

deliberaccedilatildeo a premissa menor Depois dessa deliberaccedilatildeo eacute possiacutevel

escolher deliberadamente tendo em vista um termo meacutedio e quando isso

acontece se atinge o ponto inicial para a accedilatildeo e deixa-se de investigar

Assim o intelecto tem papel tanto nas demonstraccedilotildees em geral quanto

nas demonstraccedilotildees praacuteticas embora seja uma soacute capacidade Por isso

Reeve (2014 p 209) escreve que ldquoo entendimento teoacuterico envolvido em

demonstraccedilotildees teoacutericas eacute o mesmo estado que o entendimento praacutetico

envolvido nas demonstraccedilotildees praacuteticasrdquo o que confere mais uma vez

credibilidade a nossa proposta de interpretaccedilatildeo da alma O intelecto

praacutetico (noucircs praktikoacutes) quando associado ao desejo pede accedilatildeo (DA III 5 433a1-17) Deste modo tem relaccedilatildeo com a prudecircncia que tambeacutem se

relaciona com o desejo buscando para este seu melhor estado

Em razatildeo das propostas acima resumidas o Livro VI da EN (VI 2

1139a18 et seq) nos fala do noucircs como um dos candidatos a

determinante da accedilatildeo e da verdade praacuteticos relacionados agrave prāxis e ao

desejo correto pelo que eacute bom A passagem aponta a escolha deliberada

como origem da accedilatildeo moralmente boa e afirma que natildeo haacute escolha

deliberada sem intelecto ou pensamento (noucirc kaigrave diaacutenoias EN VI 2

1139a33-34) ligando-os aos bons desejos e accedilotildees Por isso

anteriormente entendemos e provamos que igualmente se ligam agraves

emoccedilotildees adequadas No Livro IX por sua vez o intelecto eacute tido como

natildeo dominante naqueles que satildeo intemperantes mas dominante nos

160 As observaccedilotildees sobre o noucircs que aqui apresentamos satildeo baseadas

exclusivamente nos tratamentos que os Livros VI e IX da EN e III do DA

dispensam ao assunto mas pensando em uma forma que possam colaborar com

a tese defendida Usaremos ldquointelectordquo para traduzir noucircs e ldquointelecto praacuteticordquo

para traduzir noucircs praktikoacutes poreacutem quando formos usar traduccedilotildees feitas por

outros autores ou citar cometaacuterios feitos por outros autores a respeito desses

dois termosconceitos optaremos por manter a escolha de traduccedilatildeo de cada

autor Portanto podem aparecer palavras como ldquoentendimentordquo e ldquorazatildeo

intuitivardquo referindo-se ao noucircs

178

temperantes propondo-o como o proacuteprio homem embora novamente

relacionando-o agrave emoccedilatildeo moderada (EN IX 8 1168b35) Nesse passo

afirma-se que pode haver o impeacuterio da emoccedilatildeo quando o homem natildeo eacute

bem conduzido ou seja quando razatildeo praacutetica e emoccedilatildeo estatildeo

dissociadas Neste ponto eacute descrita a capacidade racional anteriormente

mencionada que se relaciona ao intelecto praacutetico e provavelmente agrave

accedilatildeo moral Para que haja tal tipo de intelecto satildeo imprescindiacuteveis

percepccedilotildees sensiacuteveis e imaginaccedilatildeo buscar e evitar que tambeacutem teratildeo a

ver com desejos e emoccedilotildees mesmo que estejam relacionados agrave forma

mais fina de se emocionar jaacute passada pela educaccedilatildeo moral adequada e

da qual falaremos a seguir Nisso consiste a possibilidade mesmo de

ouvir e obedecer agrave razatildeo como um todo de abrir-se agrave prudecircncia e agrave

mediania nas emoccedilotildees

O DA (III 10 433a15-30) parece concordar com essas propostas

ao explicar que o desejo eacute a origem (archḗ) do intelecto praacutetico

(praktikoucirc noucirc) e que a uacuteltima coisa nesse caso eacute o ponto inicial da

accedilatildeo Para que isso aconteccedila eacute preciso conceber a felicidade ou uma

ideia de felicidade como toacutepico maacuteximo da deliberaccedilatildeo praacutetica Aqui se

entende por felicidade a atividade racional em conformidade com a

virtude mais completa Por isso um deliberador procura saber diante

das circunstacircncias nas quais se encontra o que eacute ou o que constitui a

felicidade A resposta viraacute quando tiver detectado um ponto meacutedio que

apresente a melhor accedilatildeo dentro daquelas circunstacircncias que o agente

tenha ciecircncia de tal accedilatildeo com base na percepccedilatildeo e que possa efetuar tal

accedilatildeo Esse silogismo eacute o foco do deliberar para alcanccedilar a tal felicidade

Por isso deve mostrar o termo meacutedio que a indique sendo o silogismo o

plano de accedilatildeo do deliberador que resultaraacute em accedilatildeo complexa

constituindo agir bem e felicidade Mas para que haja a tal accedilatildeo proposta

pelo silogismo eacute preciso acreditar praticamente ou seja afirmar com a

parte calculativa e exercitar a conclusatildeo proposta pelo silogismo (EN VI

8 1141b13-14 VI 2 1139a21-31)

Segundo Reeve (2014 p 203) satildeo a natureza e a nossa funccedilatildeo

que determinam a felicidade Esta eacute a premissa maior da demonstraccedilatildeo

praacutetica e eacute fixa e imutaacutevel por isso natildeo se delibera a seu respeito Esse

ponto fixo eacute essencial para que haja movimento (DA III 10 433b21-27)

e no silogismo praacutetico eacute a premissa maior universal que proporciona o

movimento por ser fixa ou uma verdade imutaacutevel (DA III 11 434a16-

21) Ao contraacuterio as opiniotildees ou suposiccedilotildees indicam como lidar com as

coisas que natildeo satildeo fixas tratando do que pode variar e ser verdadeiro ou

falso por isso devem ser adequadas agrave variabilidade das circunstacircncias

(EN VI 3 1139b17-18) O desejo correto nesse caso eacute o ponto fixo que

179

leva agrave accedilatildeo demandada pela premissa menor No caso de um desejo natildeo

educado como o apetite no incontinente age-se contra a natureza ou

seja contra a premissa maior que eacute apreendida pelo intelecto praacutetico

Contudo pode haver dois tipos de silogismo praacutetico um proposto pela

prudecircncia outro pela inteligecircncia (syacutenesis) Esta uacuteltima eacute discriminadora

e natildeo prescritiva como a primeira (EN VI 13 1143a8-10) e por isso o

silogismo da inteligecircncia natildeo termina em accedilatildeo diferentemente daquele

relacionado agrave prudecircncia

Ao tratar das virtudes intelectuais no Livro VI da EN Aristoacuteteles

apresenta-nos a inteligecircncia e a perspicaacutecia (hē syacutenesis kaigrave hē eusynesiacutea)

como diferentes de ciecircncia e opiniatildeo A inteligecircncia natildeo trata das coisas

eternas nem do que deve ser mas das coisas sobre as quais pode haver

duacutevida e nas quais cabe deliberar sendo relativa agraves coisas de ordem

praacutetica161 Trata portanto dos mesmos objetos que a prudecircncia embora

natildeo sejam idecircnticas A prudecircncia eacute diretiva - tem por fim determinar o

que devemos ou natildeo devemos fazer - e a inteligecircncia eacute apenas

judicativa Deste modo inteligecircncia e julgamento tecircm lugar em nossa

pesquisa por serem associados agrave capacidade da alma que rege o

conhecimento do contingente A inteligecircncia natildeo consiste nem em

possuir nem em adquirir a prudecircncia mas se aplica agrave faculdade da

opiniatildeo

[] quando se trata de emitir um julgamento sobre

o que uma outra pessoa enuncia nas mateacuterias que

vecircm da prudecircncia e por julgamento entendo um

julgamento fundado (reto belo) pois bem eacute o

mesmo que fundado (reto belo) E o emprego do

termo inteligecircncia para designar a qualidade das

pessoas perspicazes veio da inteligecircncia no

sentido de aprender pois tomamos

frequentemente aprender no sentido de

compreender (EN VI 11 1143a13-18)162

Entendemos que nossa proposta de interpretaccedilatildeo da capacidade

161 Reeve entende a syacutenesis como um aspecto da phroacutenēsis e natildeo exatamente

como uma virtude autocircnoma (REEVE 2013 p 3) 162 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original οὕτως ἐν τῷ χρῆσθαι τῇ δόξῃ ἐπὶ τὸ κρίνειν περὶ τούτων

περὶ ὧν ἡ φρόνησίς ἐστιν ἄλλου λέγοντος καὶ κρίνειν καλῶς τὸ γὰρ εὖ τῷ

καλῶς τὸ αὐτό καὶ ἐντεῦθεν ἐλήλυθε τοὔνομα ἡ σύνεσις καθ ἣν εὐσύνετοι ἐκ

τῆς ἐν τῷ μανθάνειν λέγομεν γὰρ τὸ μανθάνειν συνιέναι πολλάκις

180

de julgamento na EN eacute ratificada pelo esboccedilo de definiccedilatildeo da emoccedilatildeo

proposto pela Retoacuterica relacionando-a com sua capacidade de alterar os

juiacutezos ou discriminaccedilotildees (tagrave kriacuteseis) e a EN chama julgamento

(gnomḗ)163 a qualidade segundo a qual se considera que as pessoas tecircm

correta discriminaccedilatildeo daquilo que eacute equitaacutevel (syngnomonikoacuten) Prova

disto eacute o fato de normalmente se dizer que um homem equitaacutevel eacute

disposto favoravelmente ao outro Tricot (2012 nota 3 p 325) explica

que o equitaacutevel eacute uma qualidade que leva o homem a compreender as

razotildees de agir de uma outra pessoa sendo uma espeacutecie de ldquolargueza de

espiacuteritordquo levando mesmo agrave indulgecircncia e ao perdatildeo Eacute o pensar com [o

outro]164 fundamental como explica Nussbaum para que certas

emoccedilotildees como a piedade sejam sentidas pois para a autora esta emoccedilatildeo

ou sua falta dependem dos julgamentos sobre o florescimento que

seratildeo tatildeo confiaacuteveis quanto a moral geral do observador

Para sentir piedade a pessoa deve considerar o sofrimento do

outro como parte importante de seu proacuteprio esquema de objetivos e fins

deve pensar que a falta daquela pessoa afeta seu florescimento e deve

ver-se como tatildeo vulneraacutevel quanto o outro165 Nessa possibilidade de

colocar-se no lugar do outro parece haver um tipo de julgamento

envolvido ou um tipo de imaginaccedilatildeo chamada por Nussbaum (2008 p

319) de ldquojulgamento da possibilidade similarrdquo Para que isso aconteccedila

natildeo eacute estritamente necessaacuterio que a pessoa focalize a relaccedilatildeo da outra

consigo mesma mas imaginar-se em uma posiccedilatildeo de possibilidade

similar ajuda na medida da imaginaccedilatildeo eudaimoniacutestica da proacutepria

pessoa porque seres humanos tecircm dificuldade de relacionar os outros

consigo mesmos a natildeo ser por pensamentos com os quais jaacute estejam

preocupados Por conseguinte eacute possiacutevel entender melhor o que

Aristoacuteteles poderia ter pretendido chamar de julgamento ou

discriminaccedilatildeo e porque resolveu associaacute-lo com um traccedilo eacutetico cedido

agraves emoccedilotildees que descreveu e pensou como ligadas agraves relaccedilotildees humanas

teoria comprovada pelo o passo subsequente

[] atribuiacutemos julgamento inteligecircncia

prudecircncia e razatildeo intuitiva indiferentemente aos

mesmos indiviacuteduos quando dizemos que eles

163 Robinson (2010 p 245) observa que Aristoacuteteles usa os verbos kriacutenein e

gnoriacutezein para designar a discriminaccedilatildeo 164 LIDDELL amp SCOTT 1996 sv 165 Sobre a discussatildeo desse assunto feita por Nussbaum ver tambeacutem seu livro

Sem fins lucrativos

181

alcanccedilaram a idade do julgamento e da razatildeo e

que eles satildeo prudentes e inteligentes Pois todas

essas faculdades satildeo sobre as coisas uacuteltimas e

particulares e eacute sendo capaz de julgar as coisas

retornando ao domiacutenio do homem prudente que

somos inteligentes benevolentes e

favoravelmente dispostos [em relaccedilatildeo] aos outros

as accedilotildees equitaacuteveis sendo comuns a todas as

pessoas de bem em suas relaccedilotildees com os outros

Ora todas as accedilotildees que devemos completar

retornam agraves coisas particulares e uacuteltimas pois o

homem prudente deve conhecer os fatos

particulares e por seu lado a inteligecircncia e o

julgamento giram em torno das accedilotildees a completar

que satildeo as coisas uacuteltimas A razatildeo intuitiva se

aplica tambeacutem agraves coisas particulares em ambos os

sentidos jaacute que os termos primeiros bem como os

uacuteltimos satildeo do domiacutenio da razatildeo intuitiva e natildeo

da discursividade nas demonstraccedilotildees a razatildeo

intuitiva apreende os termos imutaacuteveis e

primeiros e nos raciociacutenios de ordem praacutetica ela

apreende o fato uacuteltimo e contingente quer dizer a

premissa menor jaacute que esses fatos satildeo do fim a

alcanccedilar os casos particulares servindo de ponto

de partida para alcanccedilar os universais Devemos

portanto ter uma percepccedilatildeo dos casos

particulares e essa percepccedilatildeo eacute a razatildeo intuitiva

(EN VI 12 1143a25-35 1143b1-5)166

166 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original Εἰσὶ δὲ πᾶσαι αἱ ἕξεις εὐλόγως εἰς ταὐτὸ τείνουσαι λέγομεν

γὰρ γνώμην καὶ σύνεσιν καὶ φρόνησιν καὶ νοῦν ἐπὶ τοὺς αὐτοὺς ἐπιφέροντες

γνώμην ἔχειν καὶ νοῦν ἤδη καὶ φρονίμους καὶ συνετούς πᾶσαι γὰρ αἱ δυνάμεις

αὗται τῶν ἐσχάτων εἰσὶ καὶ τῶν καθ ἕκαστον καὶ ἐν μὲν τῷ κριτικὸς εἶναι περὶ

ὧν ὁ φρόνιμος συνετὸς καὶ εὐγνώμων ἢ συγγνώμων τὰ γὰρ ἐπιεικῆ κοινὰ τῶν

ἀγαθῶν ἁπάντων ἐστὶν ἐν τῷ πρὸς ἄλλον ἔστι δὲ τῶν καθ ἕκαστα καὶ τῶν

ἐσχάτων ἅπαντα τὰ πρακτά καὶ γὰρ τὸν φρόνιμον δεῖ γινώσκειν αὐτά καὶ ἡ

σύνεσις καὶ ἡ γνώμη περὶ τὰ πρακτά ταῦτα δ ἔσχατα καὶ ὁ νοῦς τῶν ἐσχάτων

ἐπ ἀμφότερα καὶ γὰρ τῶν πρώτων ὅρων καὶ τῶν ἐσχάτων νοῦς ἐστὶ καὶ οὐ

λόγος καὶ ὁ μὲν κατὰ τὰς ἀποδείξεις τῶν ἀκινήτων ὅρων καὶ πρώτων ὁ δ ἐν

ταῖς πρακτικαῖς τοῦ ἐσχάτου καὶ ἐνδεχομένου καὶ τῆς ἑτέρας προτάσεωςἀρχαὶ

γὰρ τοῦ οὗ ἕνεκα αὗται ἐκ τῶν καθ ἕκαστα γὰρ τὰ καθόλου τούτων οὖν ἔχειν

δεῖ αἴσθησιν αὕτη δ ἐστὶ νοῦς

182

A prudecircncia eacute um tipo de boa administraccedilatildeo como vemos no

caso da temperanccedila cujo nome sophrosyacutene indica a conservaccedilatildeo da

prudecircncia sendo que esta conserva o julgamento ou discriminaccedilatildeo jaacute

que o prazer e a dor satildeo capazes de destruir juiacutezos acerca da accedilatildeo porque

os princiacutepios de nossas accedilotildees satildeo os fins aos quais tendem nossos atos

Eacute a faculdade discriminativa do julgamento contudo que parece estar

desde a origem mais proacutexima agraves emoccedilotildees jaacute que estas estatildeo

irremediavelmente relacionadas agrave sensibilidade que por sua vez nos

fornece as imagenspercepccedilotildees dentre as quais devemos efetuar a

discriminaccedilatildeo Com nossa pesquisa entendemos que a faculdade

judicativa ou discriminativa da razatildeo portanto tem grande importacircncia

no bem emocionar-se podendo mesmo favorecer que a prudecircncia se

achegue ao natildeo racional desiderativo e agraves emoccedilotildees

Diante disso o papel do julgamento e da inteligecircncia na

demonstraccedilatildeo praacutetica eacute restrito agraves coisas uacuteltimas e particulares porque

natildeo satildeo direcionadas ao que eacute imoacutevel ou imutaacutevel (EN VI 12 1143a4-5)

Isso acontece porque tecircm seu foco na accedilatildeo particular dentro de uma

circunstacircncia mas a premissa maior nessas demonstraccedilotildees tem que ser

imutaacutevel e imoacutevel como o soquete na articulaccedilatildeo bola-e-soquete

descrita no DA Contudo propusemos anteriormente que a prudecircncia de

certo modo tambeacutem se relaciona com o universal (a felicidade ou o

desejo por felicidade) que nesse caso eacute a premissa maior do silogismo

praacutetico diferenciando os silogismos por prudecircncia e por inteligecircncia

Vimos que os diferentes papeacuteis do intelecto nas demonstraccedilotildees

aparecerem descritos em EN VI 12 1143a35-b11 O intelecto tem por

ocupaccedilatildeo tanto os termos primaacuterios quanto as coisas que satildeo uacuteltimas

Nas demonstraccedilotildees cientiacuteficas o intelecto apreende um dos termos

primeiros e que natildeo muda Nas demonstraccedilotildees praacuteticas relaciona-se

com as coisas uacuteltimas e com as que podem ser de outro jeito bem como

com a premissa menor O intelecto praacutetico lida com tais coisas porque

elas satildeo o ponto de partida do que se tem em vista porque os universais

vecircm dos particulares Dos universais precisamos ter percepccedilatildeo (sendo

esta neste caso intelecto noucircs citado no fim do passo acima) Por isso o

intelecto eacute tanto princiacutepio quanto fim (archḗ e teacutelos) pois as

demonstraccedilotildees vecircm do intelecto e satildeo sobre o intelecto

O segundo papel do intelecto em uma demonstraccedilatildeo praacutetica eacute

apreender a premissa menor Como vimos acima esta eacute a uacuteltima coisa

alcanccedilada em uma deliberaccedilatildeo Pode ser de outra maneira porque

prescreve um tipo de accedilatildeo particular que pode variar conforme a

circunstacircncia e ao que cabe ao agente fazer ou natildeo O termo crucial

dessa premissa eacute o termo meacutedio que designa um tipo de accedilatildeo particular

183

que eacute apreendido pela percepccedilatildeo (EN VII 5 1147a25-26) e a percepccedilatildeo

envolve apreensatildeo ldquoconcomitante de universaisrdquo (REEVE 2014 p

210) A apreensatildeo do termo meacutedio por sua vez acontece devido agrave

apreensatildeo pelo intelecto de um misto das premissas maior e menor

quando se entende as duas premissas se entende a conclusatildeo Assim

Como a percepccedilatildeo do termo meacutedio (ou a accedilatildeo que

ele designa) deve ser mediada dessa maneira para

ser do tipo deliberativo ou determinador da accedilatildeo

relevante ela eacute um exerciacutecio tanto da percepccedilatildeo

como do entendimento Como a escolha

deliberativa portanto que eacute ldquoentendimento

envolvendo desejo ou desejo envolvendo

pensamentordquo (EN VI 2 1139b4-5) a percepccedilatildeo

deliberativa eacute entendimento envolvendo

pensamento (REEVE 2014 p 211)

Em retomada agrave questatildeo da relaccedilatildeo do silogismo empreendido

pelo prudente com particular e universal proposta no Capiacutetulo II e aqui

detalhada na medida em que contemplasse nossas discussotildees foi

possiacutevel compreender que por um lado a felicidade eacute o ponto inicial

por ser fim de toda accedilatildeo sendo universal Por outro lado o ponto inicial

satildeo as accedilotildees particulares que se direcionam ao alcance da felicidade

Portanto mesmo o intelecto em sua funccedilatildeo praacutetica necessita da

conjugaccedilatildeo entre corpo e alma para que atue de modo excelente pois os

particulares mesmo na deliberaccedilatildeo praacutetica se originam da percepccedilatildeo

sensiacutevel mais elementar que afeta o corpo e potildee a capacidade racional a

trabalhar em prol do que haacute de melhor para o homem Tal percepeccedilatildeo

tambeacutem pode estar pautada em um tipo de opiniatildeo relacionada agraves

premissas da deliberaccedilatildeo que natildeo se veem de todo desvencilhadas da

opiniatildeo geral ocasionada pelo contato com dados da sensibilidade como

veremos a seguir

2 f) Opiniatildeo

As premissas que devem ser captadas pelo intelecto satildeo

constituiacutedas por opiniotildees acerca do que eacute buscado e do que se deve fazer

ou deixar de fazer para alcanccedilar um objetivo Assim a opiniatildeo em EN

VI 10 1142b11-15 eacute apontada como um tipo de afirmaccedilatildeo baseada em

deliberaccedilatildeo Difere da prudecircncia que eacute virtude e fixa por ser um estado

e por poder ser esquecida Mas com auxiacutelio da virtude moral adquirida

por boa habituaccedilatildeo algueacutem pode ser ensinado a ter a opiniatildeo correta

184

sobre algo que levaraacute a uma deliberaccedilatildeo e possivelmente a uma accedilatildeo

(EN VII 9 1151a18-19) A correccedilatildeo daquilo que eacute afirmado pela

capacidade opinativa eacute importante assim como a retidatildeo do desejo mas

eacute preciso tambeacutem haver correccedilatildeo da deliberaccedilatildeo que apoia a opiniatildeo

Em EN VI ao comparar escolha deliberada e opiniatildeo Aristoacuteteles

nos daacute importantes traccedilos de ambas em especial da segunda A opiniatildeo

parece ter por alvo qualquer coisa inclusive o que eacute impossiacutevel e o que

natildeo estaacute em nosso poder Pode ser falsa ou verdadeira e natildeo eacute boa ou

maacute como eacute classificada a escolha deliberada Um homem tem tal ou tal

qualidade atribuiacuteda a si pelas escolhas que faz e natildeo por defender

determinada opiniatildeo embora escolha obter ou evitar mas natildeo opine

sobre esse tipo de coisa Algueacutem escolhe deliberadamente as coisas que

sabe serem boas mas a opiniatildeo eacute emitida igualmente acerca daquilo que

natildeo se sabe se eacute bom ou mau e natildeo parecem ser as mesmas pessoas

aquelas que deliberam bem e as que opinam bem porque mesmo quem

opina melhor pode escolher coisas que levam ao viacutecio A escolha

deliberada eacute diferente da opiniatildeo portanto por ser proposta como

capacidade do prudente que estaacute diretamente ligada agrave accedilatildeo avaliaacutevel

moralmente A prudecircncia eacute virtude da parte da alma capaz de opinar

porque a opiniatildeo tem relaccedilatildeo com o que pode ser de outro modo

todavia natildeo eacute simplesmente uma opiniatildeo acompanhada de regra Por

isso nos procedimentos de decisatildeo cabiacuteveis ao prudente a opiniatildeo tem

lugar antes da escolha deliberada (EE II 10 1226b9) Zingano (2008 p

171) esclarece isso do seguinte modo ldquoNo acircmbito do aristotelismo a

accedilatildeo necessariamente estaacute envolvida com as opiniotildees que o agente tem

se suspendecircssemos todas as nossas opiniotildees natildeo poderiacuteamos agirrdquo167

A opiniatildeo eacute mais bem explicada pelo De anima quando

comparada agrave imaginaccedilatildeo ldquoPois essa afecccedilatildeo depende de noacutes e somente

de noacutes e do nosso querer [] e ter opiniatildeo natildeo depende somente de noacutes

167Provavelmente por este motivo Aristoacuteteles quando trata da causa da

incontinecircncia tambeacutem emite sua opiniatildeo A premissa universal do silogismo

praacutetico empenhado pelo acraacutetico eacute uma opiniatildeo a outra premissa se relaciona

com os fatos particulares no campo dos quais a percepccedilatildeo manda Haacute pessoas

poreacutem que se mantecircm em sua opiniatildeo e que natildeo satildeo facilmente convencidas a

alterar a estas chamamos obstinadas (teimosas) Na contramatildeo haacute pessoas que

natildeo persistem em suas opiniotildees devido a uma causa estranha agrave incontinecircncia o

que implica que quem age por prazer nem sempre eacute intemperante incontinente

ou perverso Por conseguinte a opiniatildeo pode estar ligada a toda a cadeia de

relaccedilatildeo racional anteriormente mencionada e que se potildee em contato com o

desiderativo sendo forccediloso que admitamos seus contatos com a emoccedilatildeo

mesmo porque o termo aparece associado agrave emoccedilatildeo

185

pois haacute necessidade de que ela seja falsa ou verdadeirardquo (DA III 3

427b17-21)168 A opiniatildeo de que algo eacute terriacutevel pavoroso ou

encorajador leva imediatamente a certas emoccedilotildees diferentemente da

imaginaccedilatildeo (DA III 3 427b16-23) Isso implicaria que a opiniatildeo tem

papel mais efetivo que a imaginaccedilatildeo no provocar emoccedilotildees

Ao que tudo indica a resposta eacute positiva pois a opiniatildeo eacute

acompanhada de crenccedila a crenccedila eacute acompanhada do estar persuadido e

a persuasatildeo eacute acompanhada da razatildeo (DA III 3 428a18-24) Por

conseguinte e sendo que haacute accedilatildeo da opiniatildeo na emoccedilatildeo haacute certo

elemento racional no se emocionar ou haacute ao menos a comprovaccedilatildeo de

nossa proposta sobre a possibilidade de participaccedilatildeo do natildeo racional no

racional e vice-versa jaacute que ainda no DA (III 3 427b10) Aristoacuteteles

chega a definir a opiniatildeo como um tipo de pensar (noeicircn) que pode ser

correto ou incorreto de acordo com seu contato com a realidade

Propostas que satildeo reforccediladas tambeacutem como no caso da percepccedilatildeo

sensiacutevel por EN X 7 1177b26-30 trecho no qual o filoacutesofo destaca a

impossibilidade ou inviabilidade do homem viver totalmente para a

razatildeo porque esse tipo de existecircncia o livraria por completo de sua

humanidade Assim soacute existe opiniatildeo daquilo que haacute percepccedilatildeo

sensiacutevel mas haacute igualmente um tipo de opiniatildeo relacionada agrave percepccedilatildeo

deliberativa quando aparece em um silogismo praacutetico

Vimos que as deliberaccedilotildees praacuteticas satildeo expressas sob a forma de

silogismos praacuteticos que satildeo concluiacutedos com accedilotildees (EN VII 5 1147a25-

31) Nesse tipo de silogismo uma opiniatildeo eacute universal outra eacute particular

da parte da percepccedilatildeo Quando dessas duas premissas se gera uma

proposiccedilatildeo eacute preciso que a alma afirme a conclusatildeo obtida com o

silogismo Apoacutes age-se desde que natildeo haja impedimentos Deste modo

seja a opiniatildeo corriqueira ou aquela associada ao silogismo praacutetico ela

se configura sempre como um traccedilo de razatildeo que interfere na emoccedilatildeo

desde seu surgimento frente ao mundo ateacute seu aprimoramento pelos

processos da prudecircncia e da razatildeo praacutetica

Diante do que foi exposto podemos agora acatar a seguinte

proposta de Zingano a emoccedilatildeo natildeo eacute um bloco impermeaacutevel A maioria

das emoccedilotildees eacute um todo poroso permeaacutevel por certas formas da

racionalidade Seus poros podem dar lugar agraves sugestotildees da razatildeo que

estatildeo presentes realmente desde o iniacutecio com grande parte das paacutethē

Assim essa permeabilidade natildeo eacute exclusividade das emoccedilotildees traacutegicas

168 Traduccedilatildeo de Maria Ceciacutelia Gomes (2006) no original τοῦτο μὲν γὰρ τὸ

πάθος ἐφ ἡμῖν ἐστιν ὅταν βουλώμεθα [] δοξάζειν δ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἀνάγκη γὰρ

ἢ ψεύδεσθαι ἢ ἀληθεύειν

186

ou daquelas despertadas pelo discurso persuasivo embora

provavelmente seja nas descriccedilotildees destas que a relaccedilatildeo do emocional

com a razatildeo se faccedila mais visiacutevel Por isso na anaacutelise das virtudes

particulares e das emoccedilotildees a estas relacionadas sempre nos deparamos

com termos como ldquopensardquo ldquoimaginardquo ldquocrecircrdquo ldquotem opiniatildeordquo As

aparecircncias que tocam o agente e levam agraves crenccedilas que podem dar em

uma ou outra emoccedilatildeo precisam dos phainoacutemena (aparecircncias) e estes soacute

encontram o homem por meio das percepccedilotildees sensiacuteveis que estatildeo

relacionadas agrave opiniatildeo e agrave capacidade opinativa da razatildeo porque a

opiniatildeo eacute atrelada ao que pode ser diferente Portanto entendemos que

estas capacidades racionais ao menos em certa medida recobrem todas

as emoccedilotildees especialmente as que podem ser moderadas ou mudadas de

algum modo

Eacute certo contudo que a educaccedilatildeo moral proposta pelo filoacutesofo

cede mais importacircncia ao haacutebito que agrave forccedila da razatildeo mas natildeo se pode

esquecer que para ser realmente virtuoso para ser capaz de agir por si

mesmo de perceber por conta proacutepria o que eacute bom se munir de bons

desejos boas emoccedilotildees e desencadear a accedilatildeo correta a racionalidade

precisa estar presente ao menos sob a forma da phroacutenēsis que

desencadeia a bouacuteleusis e a proaiacuteresis A educaccedilatildeo que permitiraacute mudar

as emoccedilotildees ou mudar de emoccedilotildees natildeo pode se contentar portanto com

uma vida boa poreacutem conduzida por uma razatildeo que venha de fora

porque mesmo que tal vida seja boa natildeo eacute totalmente feliz O agente

precisa ter todas as virtudes intelectuais e morais agrave sua disposiccedilatildeo Eacute

preciso portanto que tenha a capacidade racional e a capacidade natildeo

racional em cooperaccedilatildeo em sua alma reforccedilando a proposta de EN I 13

para que manifeste aquilo que eacute propriamente humano e isso eacute possiacutevel

devido agraves caracteriacutesticas das capacidades que acabamos de descrever

Essa leitura favorece nossa interpretaccedilatildeo que ressalta o papel das

emoccedilotildees na vida moral colocando emoccedilotildees e razatildeo praacutetica juntas em

uma vida considerada feliz e natildeo subjugando as emoccedilotildees agrave forccedila da

razatildeo Todavia apresenta o problema da conciliaccedilatildeo entre razatildeo e

emoccedilatildeo Essa conciliaccedilatildeo se faz possiacutevel a partir de quando se

reconhece a impossibilidade de que mesmo os melhores dos homens

vivam isolados a contemplar ou que extirpem suas emoccedilotildees com o

auxiacutelio de algum tipo de razatildeo pois as emoccedilotildees satildeo presentes na

constituiccedilatildeo do sujeito moral Neste tecircm papel significativo tanto para o

caraacuteter quanto para o iniacutecio das accedilotildees jaacute a razatildeo praacutetica atua no interior

do sujeito moral Pode conduzi-lo melhor ao seu objetivo mas tambeacutem

frear ou redirecionar seus movimentos tornando-o um agente moderado

em suas emoccedilotildees Isso soacute acontece porque tal agente graccedilas agrave natureza

187

de sua alma tem a racionalidade na base de suas emoccedilotildees bem como

porque entendemos que um cidadatildeo eacute racional em suas accedilotildees e vida

quando apazigua suas capacidades aniacutemicas racionais e natildeo racionais

completando a funccedilatildeo propriamente humana e conferindo a

possibilidade educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua racionalidade

Mas como levar a cabo essa educaccedilatildeo Eacute nesse ponto que cabe nossa

exposiccedilatildeo acerca dos instrumentos que permitem as mudanccedilas nasdas

emoccedilotildees

3 O acordo entre a razatildeo e as emoccedilotildees a educaccedilatildeo moral e os

instrumentos de modificaccedilatildeo da emoccedilatildeo169

3 a) Educaccedilatildeo haacutebito e lei para a virtude

Depois de todo o proposto percebemos que a razatildeo praacutetica (e a

razatildeo como um todo jaacute que se trata de uma mesma capacidade) deve

entrar em acordo com o natildeo racional para que haja virtude ou seja para

que haja moderaccedilatildeo nas emoccedilotildees e felicidade170 Somente assim o

homem seraacute capaz de manifestar o que entendemos nesse estudo como

verdadeiramente humano a plenitude de sua alma em harmonia

Provavelmente uma soluccedilatildeo apontada pela Eacutetica Nicomaqueia para

nossa indagaccedilatildeo a respeito de como por emoccedilotildees e razatildeo praacutetica em

acordo esteja a ser indicada pelo passo II 2 1104b9-24 (cf ainda EN X

1 1172a19-24) que fala de um tipo especiacutefico de educaccedilatildeo com base

em proposta feita por Platatildeo171 e que provavelmente deva ser

empregado a fim da virtude O passo propotildee que as virtudes morais

estatildeo relacionadas com o prazer e o desejo Sendo possiacutevel educar-se ou

habituar-se a fim de se comprazer e desejar devidamente igualmente

deve ser possiacutevel educar e habituar as emoccedilotildees Do mesmo modo

podemos usar a explicaccedilatildeo de Aggio a respeito do modo como conciliar

razatildeo praacutetica e desejo como exemplo para entender o que propomos

ldquoAo que tudo indica a educaccedilatildeo moral parece ser condiccedilatildeo preacutevia

necessaacuteria para que razatildeo e desejo se harmonizem e para que a razatildeo

possa ser efetivamente causa coadjuvante (synaitiacutea) na constituiccedilatildeo do

169Lebrun entende que a possibilidade de regular as emoccedilotildees eacute a garantia de

poderem ser julgadas eticamente (2009 p 14-15) 170 Sorabji (2002 p 7) nos explica que para Aristoacuteteles as emoccedilotildees satildeo uacuteteis agrave

poacutelis desde que moderadas por permitirem catarse Por conseguinte Platatildeo

estava errado ao expulsar os poetas da sua cidade ideal 171Rep 410e-402a Leis 653a

188

fim da accedilatildeordquo (AGGIO 2017 no prelo) Pensamos que apoacutes a

explanaccedilatildeo subsequente poderemos defender algo semelhante para a

boa conduccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees

Pelo que a EN aponta vimos que o desejo por um fim deve

concordar com o escolher e o deliberar bem sobre os meios adequados

ao alcance do fim buscado e com isso pedir a accedilatildeo para que tal fim seja

alcanccedilado resultando na accedilatildeo virtuosa A interpretaccedilatildeo mais

comumente aceita propotildee que para Aristoacuteteles a parte desiderativa da

alma ainda que chamada irracional compartilharia da razatildeo e poderia

mesmo ter razatildeo (loacutegos eacutekhein) praacutetica pois a ouve mesmo natildeo

raciocinando as coisas fora de si (EN I 13 1102b29 1103a3) Por

exemplo ldquoO efeito geral eacute fazer a bouacutelēsis distinta da razatildeo embora

ainda relacionada a elardquo (SORABJI 2002 p 322 traduccedilatildeo nossa)

Relaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel para o homem prudente A obra de um

homem soacute eacute perfeita (teacuteleios) quando estaacute em acordo com a totalidade

da razatildeo mas especialmente quando em acordo com a prudecircncia e com

a virtude moral pois a prudecircncia torna o propoacutesito humano reto e

culmina na boa conduta e no desejo reto Conforme a explicaccedilatildeo de

Aggio

Para que o desejo se torne reto i e para que ele

seja conforme a razatildeo Aristoacuteteles nos diz

sucintamente que ele deve ser educado a ldquoouvi-lardquo

e a ldquoobedececirc-lardquo Dizer isso significa pressupor

que o desejo natildeo nasce reto e que o fim natildeo eacute

naturalmente um bom fim mas que ao contraacuterio

deve ser constituiacutedo dessa forma Se fosse

naturalmente bom natildeo haveria por que educaacute-lo

ou seja natildeo haveria motivo eacutetico para tanto nem

uma razatildeo que fosse capaz de persuadir a parte

desiderativa Tampouco poderia haver educaccedilatildeo

do desejo se a parte desiderativa natildeo fosse

naturalmente educaacutevel i e constituiacuteda por

natureza para obedecer agrave razatildeo (AGGIO 2017

no prelo)

Essa possibilidade de educar o desejo eacute igualmente a

possibilidade de educar a emoccedilatildeo pois a emoccedilatildeo eacute da alccedilada do

desiderativo assim como os trecircs tipos de desejo que lhe correspondem e

como as virtudes morais que potildeem o fim e que satildeo possiacuteveis devido agrave

habituaccedilatildeo ao que eacute correto Ao habituar corretamente os desejos

igualmente seratildeo corretamente habituadas as emoccedilotildees que lhes

189

acompanham Tal educaccedilatildeo eacute demasiado importante o que percebemos

por interpretaccedilotildees como as de Zingano (2008 p 24) que escreve ldquoas

emoccedilotildees tecircm que estar previamente educadas moralmente para que a

razatildeo possa acompanhaacute-las e lhes dar a reta direccedilatildeordquo Poreacutem ainda

devemos fornecer melhor explicaccedilatildeo para a possibilidade de moderar e

alterar as emoccedilotildees a forma e a possibilidade de alterar o modo como

sentimos e o que sentimos mudanccedilas operadas pela educaccedilatildeo Essa

explicaccedilatildeo eacute necessaacuteria bem observa o mesmo estudioso como vimos

anteriormente porque mesmo que a razatildeo praacutetica interfira nas emoccedilotildees

nada garante que consiga modificaacute-las Eacute preciso conseguir uma

precedecircncia e prevalecircncia da accedilatildeo (bem conduzida pelo haacutebito) em

relaccedilatildeo agrave disposiccedilatildeo moral que se fixaraacute em virtude Mas o que eacute

preciso fazer para que tal educaccedilatildeo aconteccedila

Aristoacuteteles no Livro X da EN comeccedila a responder tais perguntas

observando que a maioria natildeo faz o que deve por ser nobre mas por

medo da puniccedilatildeo Isso acontece porque ldquovivendo sob o impeacuterio da

paixatildeo os homens perseguem suas proacuteprias satisfaccedilotildees e os meios de

realizaacute-las e evitam as dores que a isso se opotildeem e eles natildeo tecircm

nenhuma ideia do que eacute nobre e verdadeiramente agradaacutevel por natildeo o

terem jamais experimentadordquo (EN X 10 1179b13-16)172 Assim sendo

haveria algum argumento capaz de persuadir essas pessoas Aristoacuteteles

observa que se natildeo eacute impossiacutevel eacute ao menos difiacutecil extirpar por meio do

raciociacutenio os haacutebitos inveterados no caraacuteter Pensa ainda que devemos

nos considerar felizes se dispomos de todos os meios para nos tornarmos

honestos e com isso conseguirmos participar de algum modo da virtude

Mas como isso seria possiacutevel Por natureza por haacutebito ou pelo ensino

Natildeo seria por natureza jaacute que os dons naturais natildeo dependem de noacutes

como explica o passo seguinte

O raciociacutenio e o ensino por sua vez natildeo satildeo

temo igualmente poderosos em todos os homens

mas eacute preciso cultivar antes ao menos os haacutebitos

a alma do ouvinte em vista de lhe fazer estimar

ou abominar o que deve secirc-lo como por uma terra

chamada a fazer frutificar a semente Pois o

homem que vive sob o impeacuterio da paixatildeo natildeo

saberaacute escutar um raciociacutenio que busca desviaacute-lo

172 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original πάθει γὰρ ζῶντες τὰς οἰκείας ἡδονὰς διώκουσι καὶ δι ὧν

αὗται ἔσονται φεύγουσι δὲ τὰς ἀντικειμένας λύπας τοῦ δὲ καλοῦ καὶ ὡς

ἀληθῶς ἡδέος οὐδ ἔννοιαν ἔχουσιν ἄγευστοι ὄντες

190

de seu viacutecio e nem mesmo o compreenderaacute Mas

o homem que estaacute nesse estado como eacute possiacutevel

fazecirc-lo alterar de sentimento (EN X 10 1179b23-

28)173

De um modo geral parece que o raciociacutenio que cede agrave paixatildeo natildeo

o faz por constrangimento assim para que um homem seja bom deve

haver previamente uma disposiccedilatildeo do caraacuteter que seja apropriada agrave

virtude que estime o que eacute nobre e que despreze o que eacute vergonhoso

Mesmo que tais disposiccedilotildees recebam uma educaccedilatildeo de acordo com a

retidatildeo desde a juventude a tarefa se torna ainda mais difiacutecil se natildeo se

for educado sob leis justas porque viver corajosamente natildeo eacute agradaacutevel

para a maioria das pessoas especialmente para os jovens Por isso eacute

conveniente estipular pelas leis o modo de educar e o modo de viver

que deixaraacute de ser doloroso com o haacutebito Natildeo basta todavia uma

educaccedilatildeo e cuidados desde a juventude eacute preciso que os cidadatildeos ainda

quando adultos sejam capazes de praticar as coisas aprendidas e faccedilam

delas haacutebitos A habituaccedilatildeo eacute necessaacuteria desde a infacircncia desde os

ensinamentos apresentados no acircmbito domeacutestico mas as leis seratildeo

necessaacuterias na idade adulta e por toda a vida porque a maioria obedece

mais agrave necessidade que agrave razatildeo e mais agrave puniccedilatildeo que ao sentido do bem

Do mesmo modo caso se pretenda que um homem seja bom este

deve receber uma boa educaccedilatildeo e os haacutebitos do homem de bem aleacutem de

se ocupar com coisas honestas natildeo fazendo o que eacute vil nem voluntaacuteria

nem involuntariamente Se aqueles que natildeo alcanccedilam a plena virtude soacute

podem agir bem em uma vida submissa agrave regra inteligente e perfeita

conseguida agrave forccedila Aristoacuteteles entende que ao menos no iniacutecio da

educaccedilatildeo a autoridade eacute necessaacuteria A autoridade paterna contudo natildeo

seraacute suficiente por natildeo possuir nem a forccedila nem o poder corretivo por

isso a lei que tem poder de obrigar eacute uma regra que emana de certa

prudecircncia e a inteligecircncia deve poder fazecirc-lo Se o homem detesta

aquilo que faz oposiccedilatildeo aos seus impulsos a lei natildeo deve estar a cargo

da pessoa mas prescrever o que eacute honesto dispensando o agente de se

tornar quando natildeo for possiacutevel prudente ldquoA melhor soluccedilatildeo eacute

portanto se entregar agrave justa solicitude da autoridade puacuteblica e ser capaz

173 Idem ὁ δὲ λόγος καὶ ἡ διδαχὴ μή ποτ οὐκ ἐν ἅπασιν ἰσχύει ἀλλὰ δεῖ

προδιειργάσθαι τοῖς ἔθεσι τὴν τοῦ ἀκροατοῦ ψυχὴν πρὸς τὸ καλῶς χαίρειν καὶ

μισεῖν ὥσπερ γῆν τὴν θρέψουσαν τὸ σπέρμα οὐ γὰρ ἂν ἀκούσειε λόγου

ἀποτρέποντος οὐδ αὖ συνείη ὁ κατὰ πάθος ζῶν τὸν δ οὕτως ἔχοντα πῶς οἷόν

τε μεταπεῖσαι

191

de fazecirc-lordquo (EN X 10 1180a29-31)174 Caso natildeo haja o interesse da

autoridade puacuteblica nesses assuntos pensa-se que o melhor eacute que cada

indiviacuteduo deva propor a seus filhos e amigos uma vida virtuosa ou ao

menos tentar fazer com que tenham vontade viver virtuosamente

Com isso Aristoacuteteles parece pensar que um patriarca conseguiraacute

cumprir sua tarefa educadora se tiver um espiacuterito legislador Se a

educaccedilatildeo puacuteblica eacute exercida em meio agraves leis e se somente boas leis

produzem uma boa educaccedilatildeo igualmente em casa deve haver boas

regras Se tais leis satildeo escritas ou natildeo natildeo importa O que importa eacute que

sejam capazes de fornecer a educaccedilatildeo a uma soacute pessoa ou a um grupo

Na cidade satildeo as disposiccedilotildees legais e os costumes que tecircm a forccedila para

sancionar mas nas famiacutelias o pai e os usos privados devem ter tal poder

sendo que o poder coercitivo deve ser mais forte nesse acircmbito porque

haacute laccedilos afetivos que unem pai e filho Isso deve ser aproveitado pois

nas crianccedilas existe uma afecccedilatildeo e uma docilidade naturais Nesse ponto

a educaccedilatildeo individual eacute superior agrave puacuteblica pois sabe o que eacute melhor

para o indiviacuteduo a ser educado ldquoJulgaremos entatildeo que eacute tida uma conta

mais exata dos particulares individuais quando se lida com a educaccedilatildeo

privada cada sujeito encontrando entatildeo mais facilmente o que

corresponde agraves suas necessidadesrdquo (EN X 10 1180b11-12) Os cuidados

dispensados ao indiviacuteduo seratildeo no entanto mais bem dados por algueacutem

que conheccedila do universal que saiba de um modo geral o que conveacutem

aos que se encontram em formaccedilatildeo A esse respeito Aristoacuteteles escreve

Eacute provaacutevel portanto que aquele que deseja por

meio da disciplina educativa tornar os homens

melhores quer eles sejam em grande nuacutemero

quer em pequeno nuacutemero deve se esforccedilar para

tornar-se a si mesmo capaz de legislar se eacute pelas

leis que noacutes podemos nos tornar bons colocar de

fato a um indiviacuteduo qualquer que seja aquilo que

propomos a vosso cuidado na disposiccedilatildeo moral

conveniente natildeo estaacute ao alcance de qualquer um

mas se essa tarefa vem a algueacutem eacute seguramente

ao homem que possui o conhecimento cientiacutefico

como eacute aplicaacutevel para a medicina e para as outras

artes que fazem apelo a alguma solicitude e agrave

174 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original κράτιστον μὲν οὖν τὸ γίνεσθαι κοινὴν ἐπιμέλειαν καὶ ὀρθὴν

καὶ δρᾶν αὐτὸ δύνασθαι

192

prudecircncia (EN X 10 1180b23-28)175

A analogia meacutedica nos faz entender melhor por que a educaccedilatildeo

proposta eacute adequada agrave emoccedilatildeo a medicina grega de linha hipocraacutetica

bem conhecida por Aristoacuteteles era questatildeo de equiliacutebrio Por esses

motivos pensamos que o mesmo valha para a emoccedilatildeo sendo

acompanhada de prazer e dor e tendo a ver com os desejos deveraacute

igualmente poder receber certa educaccedilatildeo para equilibrar-se com a razatildeo

praacutetica Tal educaccedilatildeo emocional por sua vez viraacute com o auxiacutelio da

melhor forma da capacidade calculativa da alma a prudecircncia e de seus

recursos a saber a boa deliberaccedilatildeo e a escolha deliberada que

concorreratildeo agrave boa accedilatildeo e agrave melhor forma que a vida humana possa

alcanccedilar Por isso Besnier propocircs (2008 p 91) que a formaccedilatildeo eacutetica

poderia ser entendida como uma ldquoarte da paixatildeordquo - embora lsquoartersquo natildeo

pareccedila ser termo empregado pelo comentador no mesmo sentido que

teacutechnē eacute usado por Aristoacuteteles - sendo oposta ao viver segundo a

emoccedilatildeo traccedilo dos jovens e dos incompletamente educados Sobre isso

Besnier escreveu

Para Aristoacuteteles quem vive segundo as paixotildees

(no niacutevel das paixotildees) vive certamente sem arte

(sem a arte da felicidade) para a qual lhe falta a

disposiccedilatildeo) o vicioso e o virtuoso tecircm essa

capacidade o segundo como arte verdadeira o

primeiro conforme uma contra-arte [] que natildeo o

tornaraacute feliz mas ao menos teraacute a vantagem de lhe

proporcionar um percurso de vida coerente Um

torna sua vida coerente pela busca da mediania o

outro pela de um extremo (em excesso ou

deficiecircncia) (BESNIER 2008 p 92)

O haacutebito agrave virtude moral proporcionado pelas regras corretas - da

razatildeo da casa da poacutelis - favorece a forma adequada da emoccedilatildeo E para

responder a pergunta que haviacuteamos levantado em um capiacutetulo anterior

acerca da diferenccedila entre haacutebito e ensino jaacute que ao longo deste toacutepico

175 Traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs feita a partir da traduccedilatildeo francesa de Tricot

(2012) no original τάχα δὲ καὶ τῷ βουλομένῳ δι ἐπιμελείας βελτίους ποιεῖν

εἴτε πολλοὺς εἴτ ὀλίγους νομοθετικῷ πειρατέον γενέσθαι εἰ διὰ νόμων ἀγαθοὶ

γενοίμεθ ἄν ὅντινα γὰρ οὖν καὶ τὸν προτεθέντα διαθεῖναι καλῶς οὐκ ἔστι τοῦ

τυχόντος ἀλλ εἴπερ τινός τοῦ εἰδότος ὥσπερ ἐπ ἰατρικῆς καὶ τῶν λοιπῶν ὧν

ἔστιν ἐπιμέλειά τις καὶ φρόνησις

193

falamos dos dois podemos acatar a proposta de Irwin (1978 p 568) O

estudioso entende ensino como aquele tipo de educaccedilatildeo apto a

desenvolver as virtudes intelectuais tatildeo necessaacuterias agrave virtude moral O

ensino natildeo determina os fins buscados por um homem que devem ser

determinados pela virtude moral que eacute adquirida por meio de treino ou

seja do haacutebito Ambos como observa Zingano exigem tempo e

experiecircncia constituindo aquilo que parece ser a educaccedilatildeo ideal para a

vida moralmente boa A habituaccedilatildeo moral sozinha seria como na

proposta de Irwin (1975 p 576-577) uma educaccedilatildeo incompleta porque

natildeo produziria virtude de caraacuteter Por conseguinte embora Irwin

entenda que Aristoacuteteles natildeo o diga pensamos ter deixado claro ao longo

de nosso estudo que o filoacutesofo entende que a virtude moral requer o

envolvimento de ambas as capacidades da alma em diversas de suas

(sub)capacidades para fazer do homem pleno Quando o filoacutesofo exige

que a virtude completa requeira sabedoria exige ao mesmo tempo que

haja cooperaccedilatildeo entre as duas capacidades da alma ao menos sob a

forma de um alinhamento entre percepccedilotildees imaginaccedilotildees pensamento

intelecto opiniotildees juiacutezos desejos prazeres e emoccedilotildees Por conseguinte

algo mais que uma accedilatildeo virtuosa irrefletida (palavras de Irwin) eacute

necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um bom caraacuteter

O tipo de educaccedilatildeo proposto ao fim e ao longo da EN permitiraacute

ao cidadatildeo mais que deliberar corretamente e escolher deliberadamente

por auxiacutelio de uma virtude que lhe eacute alheia Permitiraacute fazer tais caacutelculos

e ter tais preferecircncias por si mesmo graccedilas agrave sua proacutepria prudecircncia que

o levaraacute aos melhores desejos e a por-se os bons fins Isso tudo garantiraacute

a emoccedilatildeo moderada e ajustada na escolha que levaraacute agrave boa accedilatildeo e agrave vida

feliz peculiares ao homem ldquoNo homem bem-educado o paacutethos natildeo eacute

uma forccedila que colocaraacute permanentes obstaacuteculos agrave alma razoaacutevel ele estaacute

a serviccedilo do loacutegos e em consonacircncia com elerdquo (LEBRUN 2009 p 16)

Para tanto poacutelis e poliacutetēs (cidadatildeo) contam com auxiliares na mudanccedila

e adequaccedilatildeo emocional as artes (teacutechnai) que facilitam o trabalho de

habituaccedilatildeo conforme a razatildeo Vejamos portanto de que modo a arte

poeacutetica e arte retoacuterica podem colaborar com a educaccedilatildeo proposta para

mudanccedila dasnas emoccedilotildees para que harmonizem com a solicitaccedilatildeo

racional e como tal mudanccedila pode ser apreciada eticamente

3 b) A retoacuterica como instrumento de mudanccedila nas emoccedilotildees

194

Na Retoacuterica tambeacutem podemos ler sobre os perigos que

determinadas emoccedilotildees (ou emoccedilotildees desmesuradas) representam agrave vida

poliacutetica Aristoacuteteles afirma que o ldquoataque verbal a compaixatildeo a ira e

outras paixotildees da alma semelhantes a estas natildeo afetam o assunto mas

sim o juizrdquo (Rhet 1354a16-18)176 Afirma tambeacutem que determinadas

emoccedilotildees natildeo devem ser suscitadas em certos lugares caso da ira do

oacutedio e da piedade que natildeo devem estar presentes no areoacutepago porque

pervertem o juiz (Rhet I 1 1354a24-25) ldquoNa sua apreciaccedilatildeo dos fatos

intervecircm muitas vezes a amizade a hostilidade e o interesse pessoal

com a consequecircncia de natildeo mais conseguirem discernir a verdade com

exatidatildeo e de seu juiacutezo ser obscurecido por um sentimento egoiacutesta de

prazer ou de dorrdquo (Rhet I 1 1354b8-11)177 No acircmbito do discurso

persuasivo as emoccedilotildees apresentam esse aspecto especiacutefico sua

capacidade de alterar de afetar os juiacutezos

Tal aspecto da Retoacuterica eacute interessante porque aborda a arte que

tem ldquocapacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim

de persuadirrdquo (Rhet I 2 1355b25-26)178 A arte retoacuterica revela a

capacidade de descobrir os meios de persuasatildeo sobre qualquer questatildeo

o que a torna peculiar Conveacutem notar quais propostas do tratado em

questatildeo possam valer para uma investigaccedilatildeo de cunho eacutetico acerca das

emoccedilotildees em sua relaccedilatildeo com a plenitude daquilo que eacute propriamente

humano e que favoreccedila as relaccedilotildees das capacidades racionais e natildeo

racionais Pretendemos entender especialmente como o orador

consegue suscitar ou mudar emoccedilotildees com estas mudar o juiacutezo do

puacuteblico e como essa habilidade pode auxiliar uma educaccedilatildeo moral que

modere as emoccedilotildees

Podemos comeccedilar nossa pesquisa do assunto pela observaccedilatildeo das

provas de persuasatildeo proacuteprias agrave retoacuterica ldquoAs provas de persuasatildeo

fornecidas pelo discurso satildeo de trecircs espeacutecies umas residem no caraacuteter

moral do orador outras no modo como se dispotildee o ouvinte e outras no

proacuteprio discurso pelo que este demonstra ou parece demonstrarrdquo (Rhet

176 Traduccedilatildeo de Alves Alberto e Pena (2012) no original διαβολὴ γὰρ καὶ

ἔλεος καὶ ὀργὴ καὶ τὰ τοιαῦτα πάθη τῆς ψυχῆς οὐ περὶ τοῦ πράγματός ἐστιν

ἀλλὰ πρὸς τὸν δικαστήν 177Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original πρὸς οὓς

καὶ τὸ φιλεῖν ἤδη καὶ τὸ μισεῖν καὶ τὸ ἴδιον συμφέρον συνήρτηται πολλάκις

ὥστε μηκέτι δύνασθαι θεωρεῖν ἱκανῶς τὸ ἀληθές ἀλλ ἐπισκοτεῖν τῇ κρίσει τὸ

ἴδιον ἡδὺ ἢ λυπηρόν 178 Idem δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν

195

I 2 1356a1-4)179 A persuasatildeo pelo caraacuteter ocorre quando o discurso eacute

proferido de modo a deixar a impressatildeo de que o orador eacute digno de feacute

Essa confianccedila deve resultar do discurso e natildeo de uma opiniatildeo preacutevia

quanto ao caraacuteter do orador pois a probidade de quem fala eacute importante

agrave persuasatildeo sendo o caraacuteter ldquoquaserdquo o principal meio de persuasatildeo

Quando acarretada pela disposiccedilatildeo dos ouvintes a persuasatildeo ocorre ao

serem levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso Isso acontece

porque os juiacutezos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou

alegria amor ou oacutedio (Rhet I 2 1356a15-16) Entatildeo a persuasatildeo eacute

especialmente tratada quando se fala das emoccedilotildees e parece que na

retoacuterica os juiacutezos podem decorrer ou vir junto das emoccedilotildees por

intermeacutedio das aparecircncias e opiniotildees que devem ser apresentadas pelo

discurso tornando essas emoccedilotildees afecccedilotildees do corpo e da alma

Se as provas por persuasatildeo satildeo obtidas por estes meios quem

pode se servir delas eacute aquele que eacute capaz de formar silogismos que

pode teorizar sobre os caracteres sobre as virtudes e sobre as emoccedilotildees

Aristoacuteteles entende a retoacuterica como filha da dialeacutetica e da poliacutetica e noacutes

arriscamos ainda a dizer tal arte pode ter influecircncia na moralidade por

interferir em um certo tipo de deliberaccedilatildeo e por depender de

conhecimentos sobre caracteres e virtudes aleacutem de manipular as

aparecircncias dos caracteres proporcionando razatildeo para os argumentos

Konstan explica ldquoas emoccedilotildees satildeo obtidas por nossa interpretaccedilatildeo das

palavras atos e intenccedilotildees dos outros cada uma de seu modo

caracteriacutesticordquo (KONSTAN 2006 p XII traduccedilatildeo nossa) Para o autor

uma consequecircncia dessa abordagem eacute a possiacutevel mudanccedila das emoccedilotildees

ao modificar seu modo de interpretar o evento que desencadeia a

emoccedilatildeo em questatildeo mas afirma que isso natildeo eacute o mesmo que convencer

algueacutem por argumentos racionais Propotildee que diferentemente dos

apetites e dos impulsos as emoccedilotildees satildeo dependentes da capacidade de

simbolizar donde a importacircncia da persuasatildeo para mudar os

julgamentos que as compotildeem pois tal apreciaccedilatildeo eacute capaz de tocar a

ldquomola dos afetosrdquo (LEBRUN 2009 p 14)

Provavelmente essa interpretaccedilatildeo seja conveniente agrave teoria

proposta por Nussbaum acerca da percepccedilatildeo do objeto de emoccedilatildeo poder

modificaacute-la A autora avalia a possibilidade pautada em uma esperanccedila

179 Estas provas podem mesmo alterar uma emoccedilatildeo em outra afirma Sorabji

(2002 p 23) Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no

original τῶν δὲ διὰ τοῦ λόγου ποριζομένων πίστεων τρία εἴδη ἔστιν αἱ μὲν γάρ

εἰσιν ἐν τῷ ἤθει τοῦ λέγοντος αἱ δὲ ἐν τῷ τὸν ἀκροατὴν διαθεῖναί πως αἱ δὲ ἐν

αὐτῷ τῷ λόγῳ διὰ τοῦ δεικνύναι ἢ φαίνεσθαι δεικνύναι

196

de que uma mudanccedila no pensamento possa levar a uma mudanccedila no

comportamento e igualmente na emoccedilatildeo pois esta eacute um modo de ver

ldquocarregado-de-valorrdquo (NUSSBAUM 2008 p 232) como propusemos

acima Essa teoria tem importante implicaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo moral

pois a autora entende que Aristoacuteteles fornece ao futuro orador instruccedilotildees

para provocar coacutelera apresentando os seus objetos por um novo acircngulo

Sendo possiacutevel provocar as emoccedilotildees eacute possiacutevel direcionar o agente a

senti-las de uma maneira ou de outra e com isso haacute a possibilidade de

mudanccedila nasdas emoccedilotildees por um tipo de instruccedilatildeo com certo fundo

racional o discurso persuasivo e emocional como leremos a seguir

Se ele diz entendemos que os Persas realmente

natildeo erraram conosco deixaremos de estar

encolerizados com eles Mas claro a vida nem

sempre eacute assim Algumas coacuteleras podem na

verdade alterar diretamente com uma nova

consideraccedilatildeo dos fatos muitas natildeo Novamente

algum oacutedio e repulsa por grupos pode prevenir seu

surgimento por uma boa educaccedilatildeo moral e ainda

a despeito de nossos melhores esforccedilos eacute como se

isso tivesse alguma raiz profunda na

personalidade (NUSSBAUM 2008 p 233

traduccedilatildeo nossa)

Eacute provaacutevel que as propostas dos dois estudiosos natildeo destoem jaacute

que ao se falar de educaccedilatildeo moral estaacute-se a falar tambeacutem de habituaccedilatildeo

e embora esta natildeo dispense a racionalidade e portanto eacute provaacutevel que

natildeo dispense a formulaccedilatildeo de certo tipo de silogismos por parte do

puacuteblico eacute possiacutevel entender que estes caacutelculos natildeo estejam realmente

implicados no acircmbito emocional retoacuterico nem mesmo em sua

capacidade de auxiliar e consolidador de uma educaccedilatildeo moral para a

cidadania pois a racionalidade estaacute no discurso proferido e talvez natildeo

exatamente na percepccedilatildeo que o puacuteblico tem de tal discurso

Uma possiacutevel prova disso eacute que para que o jovem retor alcance

seus intentos eacute preciso ter o que dizer e dizecirc-lo de forma conveniente

Por isso a retoacuterica trata da ordem dos elementos persuasivos no

enunciado e tambeacutem da pronunciaccedilatildeo Esta assenta na voz ou seja na forma como eacute necessaacuterio empregaacute-la de acordo com cada emoccedilatildeo

lindando com aparecircncias com corpo e alma como Aristoacuteteles explica

A expressatildeo possuiraacute a forma conveniente se

exprimir emoccedilotildees e caracteres e se conservar a

197

ldquoanalogiardquo com os assuntos estabelecidos Haacute

analogia se natildeo se falar grosseiramente acerca de

assuntos importantes nem solenemente de

assuntos de pouca monta nem se se colocarem

ornamentos em uma palavra vulgar [] O

discurso seraacute ldquoemocionalrdquo se relativamente a uma

ofensa o estilo for o de um indiviacuteduo

encolerizado se relativo a assuntos iacutempios e

vergonhosos for o de um homem indignado e

reverente se sobre algo que deve ser louvado o

for de tal forma que suscite admiraccedilatildeo com

humildade se sobre coisas que suscitam

compaixatildeo (RhetIII 7 1408a10-14 e 16-19)180

O estilo apropriado torna o discurso convincente porque o

ouvinte eacute levado a pensar (oiacuteountai) que quem fala diz a verdade A

persuasatildeo pelo discurso acontece quando se mostra a verdade ou o que

parece verdadeiro a partir daquilo que eacute persuasivo em cada caso

particular Nestas circunstacircncias os ouvintes estatildeo em tal estado

emocional que pensam que as coisas satildeo como o orador expotildee mesmo

que natildeo sejam O ouvinte compartilha as emoccedilotildees do orador embora

este possa natildeo as dizer

Um discurso que pretenda emocionar deveraacute usar de recursos

como o dizer nomes apropriados agrave maneira de ser que expressa

caracteres condizentes ao puacuteblico sendo que o tipo de palavras

empregado pode facilitar a persuasatildeo e as emoccedilotildees O discurso deve ser

solene e capaz de emocionar e para tanto deve usar o ritmo certo

portanto em debates satildeo adequadas as teacutecnicas de representaccedilatildeo teatral

gerando uma aparecircncia convincente e favorecendo a emoccedilatildeo ldquoEacute por

isso que quando a componente de representaccedilatildeo eacute retirada o discurso

natildeo perfaz o seu trabalho e parece fracordquo (Rhet III 12 1413b) Haacute

portanto uma seacuterie de peculiaridades atreladas a esse tipo de discurso

Os elementos que se relacionam com o auditoacuterio consistem em

obter a sua benevolecircncia suscitar a sua coacutelera e por vezes atrair a sua

180 Traduccedilatildeo de Alexandre Juacutenior Alberto e Pena (2012) no original Τὸ δὲ

πρέπον ἕξει ἡ λέξις ἐὰν ᾖ παθητική τε καὶ ἠθικὴ καὶ τοῖς ὑποκειμένοις

πράγμασιν ἀνάλογον τὸ δ ἀνάλογόν ἐστιν ἐὰν μήτε περὶ εὐόγκων

αὐτοκαβδάλως λέγηται μήτε περὶ εὐτελῶν σεμνῶς μηδ ἐπὶ τῷ εὐτελεῖ ὀνόματι

ἐπῇ κόσμος[] παθητικὴ δέ ἐὰν μὲν ᾖ ὕβρις ὀργιζομένου λέξις ἐὰν δὲ ἀσεβῆ

καὶ αἰσχρά δυσχεραίνοντος καὶ εὐλαβουμένου καὶ λέγειν ἐὰν δὲ ἐπαινετά

ἀγαμένως ἐὰν δὲ ἐλεεινά ταπεινῶς καὶ ἐπὶ τῶν ἄλλων δὲ ὁμοίως

198

atenccedilatildeo ou dispersaacute-la porque nem sempre eacute conveniente por o

auditoacuterio atento razatildeo pela qual muitos dos oradores tentam levaacute-lo a

rir Todos estes recursos caso se queira levam a uma boa compreensatildeo

e a apresentar o orador como um homem respeitaacutevel pois a este tipo de

homem os ouvintes prestam mais atenccedilatildeo Satildeo igualmente mais atentos

a temas importantes a coisas que lhes digam respeito agraves que encham de

espanto e agraves que sejam agradaacuteveis Por isso eacute necessaacuterio introduzir a

ideia de que o discurso trata de coisas deste gecircnero O que implica

novamente a presenccedila das aparecircncias que provocam a imaginaccedilatildeo e

portanto da percepccedilatildeo (ao menos sensiacutevel) no discurso persuasivo

poreacutem se a intenccedilatildeo eacute que o puacuteblico natildeo esteja atento dever-se-aacute dizer

que o assunto natildeo eacute importante que natildeo lhe diz respeito que eacute penoso

O orador deve igualmente usar o epiacutelogo parte do discurso

composta por quatro elementos tornar o ouvinte favoraacutevel agrave causa do

orador e desfavoraacutevel agrave do adversaacuterio amplificar ou minimizar aquilo

que eacute exposto dispor o ouvinte a um comportamento emocional

recapitular Apoacutes ter mostrado que se diz a verdade e o adversaacuterio diz

falsidades eacute preciso fazer um elogio ou uma censura e finalmente

ratificar o assunto Eacute necessaacuterio visar uma de duas coisas ou revelar-se

como homem de bem quer diante dos ouvintes quer em termos gerais

ou apresentar o adversaacuterio como perverso quer diante dos ouvintes

quer em termos gerais Portanto o discurso do retor eacute capaz de mostraacute-

lo e de mostrar os outros como virtuosos ou viciosos mas precisa

tambeacutem provocar nos ouvintes comportamentos emocionais como

propotildee o passo subsequente

Assim a ciecircncia das emoccedilotildees181 eacute semelhante

agravequela da arquitetura como a arquitetura (ou a

construccedilatildeo de casa na frase de Aristoacuteteles) nos

informa como construir a estrutura que nos

protegeraacute dos elementos entatildeo o conhecimento

das emoccedilotildees nos diz como excitar ou causar

emoccedilotildees que disporatildeo os outros de um modo que

eacute para nossa proacutepria vantagem A teacutecnica de

causar emoccedilotildees requer um entendimento dos

comportamentos que as excitam mas isso tem em

mira suplementar os outros meios de persuasatildeo

que Aristoacuteteles analisa na Retoacuterica explorando

em particular os tipos de crenccedila que satildeo assistidos

pela dor e pelo prazer (KONSTAN 2006 p 37

181Termos de Konstan

199

traduccedilatildeo nossa)

Desta feita entendemos que o discurso persuasivo eacute um dos

modos de mudar as emoccedilotildees ou ao menos de emocionar conforme o

desejo e o intelecto do orador Confirmando nossa proposta Besnier

pensa que a praacutetica do discurso persuasivo em conjunto com o

conhecimento das predisposiccedilotildees que satildeo favoraacuteveis ou que obstam o

desencadeamento de uma emoccedilatildeo poderia ser exercida a fim de formar

uma disposiccedilatildeo virtuosa acerca de cada emoccedilatildeo Igualmente poderia ser

usada para extenuar ou fazer desaparecer uma reaccedilatildeo passional que

fosse julgada pouco fundada ou se o juiacutezo axioloacutegico (palavras de

Besnier) que muda o estado do desejo for mal justificado ou

desproporcional pois para Aristoacuteteles as disposiccedilotildees concernem agraves

emoccedilotildees Para que sejam formadas podem requerer capacidade oratoacuteria

ou dialeacutetica e um conhecimento da alma assunto cabiacutevel agrave funccedilatildeo

educativa da arte poliacutetica

O que significaria que o caraacuteter comporta disposiccedilotildees que satildeo

fixadas por meio de treinamento ou adestramento a partir de

disposiccedilotildees deficientes ou de uma habituaccedilatildeo sem interferecircncia da

inteligecircncia e da deliberaccedilatildeo Com isso o Livro II da Retoacuterica pode

integrar a deliberaccedilatildeo aos componentes psiacutequicos que satildeo disponiacuteveis ao

ouvinte e nos quais o orador pode intervir mas tal intervenccedilatildeo natildeo seria

educaccedilatildeo Essa distinccedilatildeo potildee as disposiccedilotildees virtuosas e viciosas ao lado

da idade e das circunstacircncias sendo potecircncias que podem ser exploradas

pelo orador que pode transformaacute-las em emoccedilotildees ou em juiacutezos sobre o

que fazer (Rhet II 12 1388b31 1389a2) dando conforme Besnier

(2008 p 107) um elemento de deliberaccedilatildeo agrave emoccedilatildeo

O mesmo autor afirma compreender que isso acontece desde que

a mudanccedila nos juiacutezos possa ser provocada pelo orador atraveacutes dos

recursos da arte A mudanccedila em questatildeo acontece nos juiacutezos e se daacute por

persuasatildeo mas mesmo assim o movimento que leva a ela pode ser

considerado afecccedilatildeo porque quem a produz natildeo eacute o ouvinte e sim o

orador Este eacute agente externo e o que pretende ou seja alterar a crenccedila

do ouvinte acontece por meios que satildeo proacuteximos agrave deliberaccedilatildeo Nesse

caso contudo o que afeta o ouvinte natildeo eacute um discurso que o educa e

que faz com que mude de juiacutezo portanto ldquoo juiacutezo obtido por persuasatildeo

se distingue do adquirido por exerciacutecio repetido da deliberaccedilatildeordquo

(BESNIER 2008 p 107) o que diferencia a accedilatildeo da retoacuterica daquela da

educaccedilatildeo moral das emoccedilotildees

Pensamos que as consideraccedilotildees supramencionadas poreacutem natildeo

invalidam nossas observaccedilotildees acerca da forma como a persuasatildeo

200

retoacuterica pode atingir o campo eacutetico-poliacutetico jaacute que Aristoacuteteles deixa

bem claro que tal arte age nos juiacutezos dos cidadatildeos em momento

propriamente ligados agrave vida poliacutetica quando haacute exerciacutecio da democracia

em sua forma mais ativa Natildeo desmerecem nossa consideraccedilatildeo da

retoacuterica como elemento poliacutetico propiacutecio agrave educaccedilatildeo moral das

emoccedilotildees pois saber como conduzi-las ou perceber que satildeo manipuladas

pode ser favoraacutevel agraves instacircncias poliacuteticas de decisatildeo bem como aos

educadores que pretendem moderaacute-las Sendo nessas instacircncias que se

propotildeem os rumos da vida na poacutelis haveraacute intervenccedilatildeo da arte retoacuterica

nos modos como os cidadatildeos deveratildeo proceder em certas situaccedilotildees

Aleacutem do mais entendemos que de nada vale a simples habituaccedilatildeo

dirigida pela razatildeo na formaccedilatildeo da virtude se natildeo haacute ocasiatildeo de praticar

aquilo ao que se eacute habituado a fim de consolidar o que tal educaccedilatildeo

faculta Portanto defendemos que o conhecimento e a arte solicitados

pelo discurso satildeo igualmente uacuteteis agrave moralidade

Defenderemos proposta semelhante quanto agrave arte poeacutetica pois na

Poeacutetica ou a partir de tal tratado pode-se observar que para produzir a

catarse do medo e da piedade eacute preciso ldquoexcitaacute-los na audiecircnciardquo

(SORABJI 2002 p 24 traduccedilatildeo nossa) Por isso o poeta quando

escreve deve saber que tipo de poema de enredo excitaraacute tais emoccedilotildees

Diante dessa semelhanccedila a questatildeo eacute a consideraccedilatildeo do medo e da

piedade na Retoacuterica eacute coordenada com a observaccedilatildeo dessas emoccedilotildees

feita na Poeacutetica A resposta dada por Sorabji eacute em grande medida O

estudioso pensa que a pequena diferenccedila eacute que na Poeacutetica o medo eacute

sentido pela audiecircncia a princiacutepio depois pelos personagens da peccedila

As semelhanccedilas contudo satildeo mais visiacuteveis e satildeo ateacute usadas por

Aristoacuteteles em suas observaccedilotildees sobre o enredo com as quais o filoacutesofo

esquiva-se agrave objeccedilatildeo moral feita pela Repuacuteblica X aos poetas Platatildeo

compreendia que estes artistas mostravam a injusticcedila como bem-

sucedida e a justiccedila como malsucedida Aristoacuteteles pensava tal

proposta como incompatiacutevel com a necessidade da trageacutedia de imitar

acontecimentos temiacuteveis e dignos de piedade entendia que o enredo natildeo

deveria mostrar o homem bom passando da fortuna ao infortuacutenio nem o

homem mal passando do infortuacutenio agrave fortuna porque tais eventos natildeo

seriam dignos de temor ou piedade Tambeacutem por isso natildeo deveriam

apresentar um heroacutei excelente em virtude e justiccedila jaacute que a piedade vem

com um infortuacutenio natildeo merecido e o medo com o infortuacutenio de algueacutem

que percebemos ser como noacutes (hoacutemoios) Essas proposiccedilotildees potildeem a

Poeacutetica em contato com a Retoacuterica porque esta uacuteltima afirma que o

medo e a piedade satildeo excitados ao mostrar um sofrimento que aconteceu

com algueacutem como noacutes (Poet 13 1452b34 1453a1 Rhet II 5 1383a10

201

II 8 1386a25) Por isso Aristoacuteteles pode afirmar que o medo sentido no

teatro eacute genuiacuteno

Sorabji no entanto percebe que haacute ainda pequenas discrepacircncias

entre as duas obras em questatildeo Por exemplo quando a Poeacutetica

despreza a trageacutedia na qual o homem bom passa da boa agrave maacute fortuna o

texto parece contradizer a Retoacuterica que reserva a piedade agraves viacutetimas

boas (RhetII 8 1385b34) Na Poeacutetica eacute proposto o oposto pois tal

situaccedilatildeo pode ser antes uma profanaccedilatildeo de algo digno de temor e

piedade parecendo muito diferente da Retoacuterica Sobre esse assunto o

autor escreve

Mas o ponto importante para o presente propoacutesito

eacute que as consideraccedilotildees da emoccedilatildeo na Poeacutetica satildeo

tatildeo cognitivas como aquelas na Retoacuterica e isso

natildeo eacute deslocado de jeito nenhum pela analogia da

catharsis mesmo que aquela [] seja uma

analogia com coisas tais como os natildeo-cognitivos

laxativos e emotivos (SORABJI 2002 p 25

traduccedilatildeo nossa)

Por motivos como estes que datildeo margens agrave comparaccedilatildeo das duas

artes de emocionar em termos de cognitividade implicada nas emoccedilotildees

que despertam e por entendermos ambas as artes como colaboradoras

agravequela educaccedilatildeo moral que eacute proposta na EN por trabalharem e fazerem

aflorar no cidadatildeo aquilo que haacute de mais propriamente humano trataremos agora da forma como a Poeacutetica propotildee possibilidades de

mudanccedilas nasdas emoccedilotildees Buscaremos entender quais elementos de

racionalidade estatildeo implicados em tais mudanccedilas bem como o modo

pelo qual a poesia opera como forte aliada da educaccedilatildeo emocional

moral

3 c) A poesia como facilitadora da educaccedilatildeo moral

Nesse ponto da pesquisa estudaremos a poesia traacutegica porque

tambeacutem pode ser entendida como um tipo de arte de emocionar e como

um meio de alterar ou despertar emoccedilatildeo A confirmaccedilatildeo desta afirmaccedilatildeo

aparece com a definiccedilatildeo que Aristoacuteteles oferece da trageacutedia e que

destaca a funccedilatildeo especiacutefica de tal arte provocar medo e piedade bem

como a kaacutetharsis (catarse) dessas emoccedilotildees O filoacutesofo destaca os

acontecimentos e o enredo como o fim da trageacutedia sendo o fim o mais

importante de tudo Natildeo poderia haver trageacutedia sem accedilatildeo mas poderia

haver sem caracteres pois se um poeta juntar palavras bem elaboradas

202

quanto agrave elocuccedilatildeo e ao pensamento exprimindo caraacuteter natildeo realizaraacute a

funccedilatildeo traacutegica Uma trageacutedia ainda que seja inferior nesses aspectos

conseguiraacute muito mais por ter enredo e estruturaccedilatildeo de accedilotildees bem

elaboradas (Poet 6 1450a30-33) pois ldquoA trageacutedia eacute a imitaccedilatildeo de uma

accedilatildeo elevada e completa dotada de extensatildeo em uma linguagem

embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes que se

serve da acccedilatildeo e natildeo da narraccedilatildeo e que por meio da compaixatildeo e do

temor provoca a purificaccedilatildeo de tais paixotildeesrdquo (Poet 6 1449b24-28)182

As partes do enredo (myacutethos) satildeo os elementos da trageacutedia que

exercem maior atraccedilatildeo e emoccedilatildeo e essas partes satildeo a peripeacutecia

(peripeacuteteia) e os reconhecimentos (anagnōriacuteseis Poet 6 1450a34-35)

Sendo peripeacutecia a mudanccedila dos acontecimentos em seu contraacuterio

acontecendo de modo verossiacutemil e necessaacuterio agrave construccedilatildeo do texto e

reconhecimento a passagem da ignoracircncia ao conhecimento para

amizade ou oacutedio entre os que estatildeo destinados a serem infelizes ou

felizes Aristoacuteteles considera o reconhecimento que se daacute entre pessoas

mais belo se acompanhado da peripeacutecia e embora estes elementos natildeo

apareccedilam sempre juntos o tipo mais proacuteprio de reconhecimento eacute o que

vem acompanhado da peripeacutecia pois deste modo suscitam piedade ou

medo com maior facilidade As emoccedilotildees traacutegicas acontecem porque as

duas partes do enredo supramencionadas estatildeo extremamente ligadas ao

ser feliz ou infeliz contudo haacute um terceiro elemento do enredo o

sofrimento (paacutethos) que eacute um ato destruidor ou doloroso como as

mortes que aparecem em cena que igualmente pode causar medo e

piedade Com estes componentes percebemos a accedilatildeo das aparecircncias que

afetam a percepccedilatildeo provocando o puacuteblico pois mostram o sofrimento

alheio de forma surpreendente e emocionante podendo mesmo fazer

com que de certo modo o puacuteblico se ponha no lugar da personagem

sofredora ao associar certo tipo de pensamento ao desencadeamento das

emoccedilotildees traacutegicas

Esse tipo de proposta emocional eacute sugerido pela forma como o

filoacutesofo dispotildee as partes componentes da trageacutedia em grau de

importacircncia agrave composiccedilatildeo de um bom poema Primeiro o enredo parte

mais importante e essencial agrave trageacutedia segundo o caraacuteter (eacutethos) que eacute

uma espeacutecie de bela imagem A trageacutedia eacute entatildeo imitaccedilatildeo de accedilotildees em

uma trama (ou enredo myacutethos) e imitando accedilotildees imita os homens que

182 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original στιν οὖν τραγῳδία

μίμησις πράξεως σπουδαίας καὶ τελείας μέγεθος ἐχούσης ἡδυσμένῳ λόγῳ

χωρὶς ἑκάστῳ τῶν εἰδῶν ἐν τοῖς μορίοις δρώντων καὶ οὐ δι ἀπαγγελίας δι

ἐλέου καὶ φόβου περαίνουσα τὴν τῶν τοιούτων παθημάτων κάθαρσιν

203

agem demonstrando seu caraacuteter Em terceiro lugar vem o pensamento

(diaacutenoia) o ser capaz de exprimir o que eacute possiacutevel e o que eacute apropriado

O caraacuteter revela igualmente as decisotildees e o pensamento aparece nos

enunciados Quarto a elocuccedilatildeo (leacutexis) que tem relaccedilatildeo com as palavras

comunicadoras do pensamento Em quinto lugar aparece a muacutesica

(melopoiiacutea) mais agradaacutevel dentre os componentes elencados e o

espetaacuteculo (oacutepsis) sexto componente que atrai os espiacuteritos embora seja

a parte mais desprovida de arte e mais alheia agrave poeacutetica na opiniatildeo do

filoacutesofo porque a potecircncia da trageacutedia existe mesmo sem concursos e

atores aleacutem do que a montagem dos espetaacuteculos e a arte de quem

executa os acessoacuterios valem mais que do que a arte dos poetas em uma

encenaccedilatildeo (Poet 26 1461b26-36 et seq)

A duraccedilatildeo dos os enredos eacute igualmente importante deveratildeo ter

extensatildeo que facilite a recordaccedilatildeo pois como afirmamos se emocionar

com a trageacutedia requer certo tipo de pensamento O filoacutesofo entende

contudo que o limite mais amplo desde que perfeitamente claro seja

sempre o mais belo Para exemplificar a extensatildeo deve ter um tamanho

que reuacutena conforme os princiacutepios da verossimilhanccedila e da necessidade

a sequecircncia dos acontecimentos apresentados pelo enredo de modo que

mudem da felicidade agrave infelicidade e vice-versa (Poet 8 1451a12-15 9

1551b27-32) favorecendo a inteligibilidade e credibilidade do poema

Uma vez que a imitaccedilatildeo representa natildeo soacute uma

acccedilatildeo completa mas tambeacutem factos que inspiram

temor e compaixatildeo estes sentimentos satildeo muito

[mais] facilmente suscitados quando os factos se

processam contra a nossa expectativa por uma

relaccedilatildeo de causalidade entre si Desta forma a

imitaccedilatildeo seraacute mais surpreendente do que se

surgisse do acaso e da sorte pois os factos

acidentais causam mais admiraccedilatildeo quando parece

que acontecem de propoacutesito (Poet 10 1452a1-

6)183

Os fatos que natildeo parecem acontecer por acaso agitam os sentidos

183 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original ἐπεὶ δὲ οὐ μόνον

τελείας ἐστὶ πράξεως ἡ μίμησις ἀλλὰ καὶ φοβερῶν καὶ ἐλεεινῶν ταῦτα δὲ

γίνεται καὶ μάλιστα καὶ μᾶλλον ὅταν γένηται παρὰ τὴν δόξαν δι ἄλληλα τὸ γὰρ

θαυμαστὸν οὕτως ἕξει μᾶλλον ἢ εἰ ἀπὸ τοῦ αὐτομάτου καὶ τῆς τύχης ἐπεὶ καὶ

τῶν ἀπὸ τύχης ταῦτα θαυμασιώτατα δοκεῖ ὅσα ὥσπερ ἐπίτηδες φαίνεται

γεγονέναι

204

e a imaginaccedilatildeo do puacuteblico tornando os enredos mais belos Tais fatos

fazem tambeacutem o efeito proacuteprio agraves trageacutedias mais forte sendo este efeito

provocar emoccedilotildees e kaacutetharsis no puacuteblico graccedilas a uma agitaccedilatildeo de

certos elementos da razatildeo a partir da percepccedilatildeo sensiacutevel que eacute

provocada pela trama da trageacutedia e pela inteligibilidade interna agrave

composiccedilatildeo dessa trama Do mesmo modo ldquotemor e a compaixatildeo

podem realmente ser despertados pelo espetaacuteculo e tambeacutem pela

proacutepria estruturaccedilatildeo dos acontecimentos o que eacute preferiacutevel e proacuteprio de

um poeta superiorrdquo (Poet11 1453b1-3)184 A estrutura da trageacutedia

representa boas pessoas que sentem pesar mas natildeo devido a uma falta

que tenham cometido Esse aspecto correto conferido ao caraacuteter do heroacutei

traacutegico eacute causador da crenccedila que eacute parte do conteuacutedo da piedade

Partindo da proposta aristoteacutelica da emoccedilatildeo em questatildeo Nussbaum

(2008 p 239) entende que os julgamentos seratildeo suficientes para

despertaacute-la quando estiverem em conjunto com aquilo que chama de

julgamento eudaiacutemoniacutestico Tal julgamento concebe a pessoa ou o que

acontece a ela como partes do que eacute importante para o bem-estar de

quem avalia e os dramas despertam aquele tipo de preocupaccedilatildeo com o

foco na possibilidade de evento similar vir a acontecer como

propusemos pouco acima

Quanto ao medo ele eacute sentido segundo a interpretaccedilatildeo de

Nussbaum tanto pelo personagem que percebe coisas maacutes e iminentes

como por quem assistelecircouve como algum reflexo de possibilidades

que mostram da vida humana em geral Os personagens igualmente

podem ter e expressar vaacuterias emoccedilotildees enquanto os espectadores por

uma parte do texto se identificam com um ou outro personagem e por

isso tambeacutem experimentaratildeo aquelas emoccedilotildees ldquocompartilhando a raiva

e a desolaccedilatildeo de Filoctetes ou a devastaccedilatildeo de Eacutedipo quando ele

descobre o que fezrdquo (NUSSBAUM 2008 p 240 traduccedilatildeo nossa) Para

tanto eacute preciso que o enredo seja estruturado de tal forma necessaacuteria e

verossimilmente de modo que mesmo o simples ouvir a sequecircncia dos

acontecimentos embora natildeo a vendo faccedila temer e sentir piedade pelo

que aconteceu ao personagem com o qual se estabeleceu um certo

ldquoelordquo O viacutenculo eacute causado por certa semelhanccedila existente entre

personagem e puacuteblico graccedilas ao caraacuteter natildeo perfeito do heroacutei traacutegico

como explica Ricoeur

184 Idem Ἔστιν μὲν οὖν τὸ φοβερὸν καὶ ἐλεεινὸν ἐκ τῆς ὄψεως γίγνεσθαι ἔστιν

δὲ καὶ ἐξ αὐτῆς τῆς συστάσεως τῶν πραγμάτων ὅπερ ἐστὶ πρότερον καὶ

ποιητοῦ ἀμείνονος

205

[] satildeo tambeacutem as emoccedilotildees traacutegicas que exigem

que o heroacutei natildeo alcance a excelecircncia na virtude e

justiccedila devido a alguma ldquofaltardquo mas sem chegar

ao viacutecio ou maldade que o leve a desgraccedila eacute

intermediaacuterio [] Assim mesmo o discernimento

da falta traacutegica eacute excetuado pela qualidade

emocional da piedade do temor e do senso do

humano185 (RICOEUR 2010 p 82)

Se o poeta deve suscitar o prazer inerente ao medo e agrave piedade

por meio da imitaccedilatildeo isso deve ser feito a partir do encadeamento

racional dos acontecimentos na trama (Poet 14 1453b15-34 1454a1-9)

Por isso entendemos que a forma exigida por Aristoacuteteles agrave composiccedilatildeo

traacutegica potildee em associaccedilatildeo as duas instacircncias que completam um ser

verdadeiramente humano a racionalidade e as emoccedilotildees provocadas e

trabalhadas pela kaacutetharsis contemplando no acircmbito poeacutetico as

propostas que destacamos a partir de EN I13 e do passo EN X 7

1177b26-30

Igualmente haacute exigecircncias quanto aos caracteres dos personagens

com seu papel no emocionar e tambeacutem no efeito da trageacutedia eacute preciso

primeiro que sejam bons e que apareccedilam porque as accedilotildees do

personagem mostram-no empenhado em um propoacutesito sendo o caraacuteter

bom quando tal propoacutesito for bom Segundo os caracteres devem ser

apropriados Terceiro eacute preciso que sejam semelhantes aos nossos

caracteres confirmando a proposta da possibilidade similar Quarto e

uacuteltimo eacute exigido que sejam coerentes O que igualmente aproxima a

proposta da Poeacutetica das coisas eacuteticas bem como o faz a exigecircncia de

que seja representada uma accedilatildeo verossiacutemil e necessaacuteria mexendo ao

menos com as imaginaccedilotildees e as opiniotildees de quem com ela interage Por

conseguinte Nussbaum (2008 p 166) entende que reaccedilotildees a obras

como filmes se devem agrave grande identificaccedilatildeo com os eventos

apresentados pela ficccedilatildeo que satildeo nas palavras de Aristoacuteteles

parafraseadas pela autora ldquoo tipo de coisa que pode acontecerrdquo

Interpretaccedilatildeo que nos parece aplicaacutevel ao caso da trageacutedia e de seu

185Contudo o filoacutesofo observa que haacute tambeacutem contraponto entre eacutetica e poeacutetica

ldquoO myacutethos traacutegico ao girar em torno das reviravoltas da fortuna e

exclusivamente da felicidade para a infelicidade eacute uma exploraccedilatildeo das vias

pelas quais a accedilatildeo lanccedila contra todas as expectativas os homens de valor na

infelicidade Serve de contraponto agrave eacutetica que ensina como a accedilatildeo pelo

exerciacutecio das virtudes conduz agrave felicidade Ao mesmo tempo soacute adota do preacute-

saber da accedilatildeo seus aspectos eacuteticosrdquo (RICOEUR 2012 p 83)

206

espetaacuteculo

Por esses motivos o necessaacuterio e o verossiacutemil devem sempre ser

buscados tanto nos caracteres quanto nos acontecimentos de modo que

uma personagem diga ou faccedila o que eacute necessaacuterio ou verossiacutemil e que

uma coisa aconteccedila por causa da outra conferindo conforme tais

princiacutepios racionalidade ao enredo Aristoacuteteles sugere ainda que o

desenlace das tramas deve resultar do proacuteprio myacutethos e natildeo de uma

intervenccedilatildeo ex-machina Esse artifiacutecio no entanto pode ser usado em

coisas que se passam fora da accedilatildeo da peccedila ou em coisas que

aconteceram antes dela e que um mortal natildeo conheccedila ou em coisas

futuras que devem ser preditas e anunciadas Do mesmo modo natildeo deve

haver nada de irracional nas trageacutedias mas se houver que natildeo seja

apresentado em cena186

Os enredos devem ser estruturados e completados com a

elocuccedilatildeo dando aos acontecimentos o ar mais criacutevel possiacutevel Ao vecirc-los

como se estivesse diante dos proacuteprios fatos o poeta poderaacute descobrir o

que eacute apropriado e natildeo incorrer em contradiccedilatildeo ressaltando o primeiro

momento da miacutemesis identificado por Ricoeur baseado na relaccedilatildeo do

poeta com o mundo O poeta igualmente deve completar o enredo com

gestos o quanto for possiacutevel Do mesmo modo dos poetas com o

186Sobre a composiccedilatildeo do enredo ver Ricoeur (2010 p 59-60) mas haacute normas

tambeacutem para a composiccedilatildeo do heroacutei traacutegico Ricoeur considera essencial o

entendimento da importacircncia da composiccedilatildeo do enredo para entendermos entre

outras coisas mesmo o significado de miacutemesis na Poeacutetica Por isso trata

juntamente o par crucial de conceitos aristoteacutelicos miacutemesis-myacutethos

(representaccedilatildeo de accedilatildeocomposiccedilatildeo da intriga) que ratifica o propoacutesito

aristoteacutelico da ecircnfase na accedilatildeo representada pela trageacutedia e que nos ajuda a

defender nosso propoacutesito em estudar um texto poeacutetico em um estudo eacutetico ldquoO

que conservarei para a sequecircncia de meu trabalho eacute a quase identificaccedilatildeo entre

duas expressotildees imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo de accedilatildeo e agenciamento dos fatos A

segunda expressatildeo eacute como jaacute dissemos o definidor que Aristoacuteteles potildee no lugar

do definido myacutethos intriga Essa quase identificaccedilatildeo estaacute garantida por uma

primeira hierarquizaccedilatildeo entre as seis partes que daacute prioridade ao ldquoo quecircrdquo

(objeto) da representaccedilatildeo ndash intriga caracteres pensamento ndash sobre o ldquopor quecircrdquo

(meio) ndash a expressatildeo e o canto ndash e sobre o ldquocomordquo (modo) ndash o espetaacuteculo

depois por uma segunda hierarquizaccedilatildeo no interior do ldquoo quecircrdquo que potildee a accedilatildeo

acima dos caracteres e do pensamento (ldquoporque se trata sobretudo de uma

representaccedilatildeo de accedilatildeo (miacutemesis praacutexeos) e atraveacutes dela de homens que agemrdquo

50b3) No final dessa dupla hierarquizaccedilatildeo a accedilatildeo aparece como a ldquoparte

principalrdquo o ldquoobjetivo visadordquo o ldquoprinciacutepiordquo e por assim dizer a ldquoalmardquo da

trageacutedia Essa quase identificaccedilatildeo estaacute garantida pela foacutermula ldquoEacute a intriga que eacute

a representaccedilatildeo da accedilatildeordquo (50a1)rdquo (RICOEUR 2012 p 61)

207

mesmo talento satildeo mais convincentes aqueles que sentem as emoccedilotildees

porque quem sente fuacuteria transmite fuacuteria quem estaacute irritado mostra

irritaccedilatildeo de modo mais convincente ldquoPor isso a arte da poesia eacute proacutepria

dos gecircnios ou dos loucos jaacute que os gecircnios satildeo versaacuteteis os loucos

deliramrdquo (Poet17 1455a32-34)187 Igualmente por isso podemos fazer

um paralelo entre a ficccedilatildeo traacutegica e a moral real salvaguardadas as

devidas proporccedilotildees Aleacutem do que sendo o poeta imitador como

qualquer outro criador de imagens sempre imita necessariamente trecircs

coisas possiacuteveis (1) as coisas como eram ou satildeo em realidade (2) como

dizem ou parecem (3) como deviam ser188 Isso eacute expresso por meio da

elocuccedilatildeo que apresenta palavras raras metaacuteforas e muitas modificaccedilotildees

da linguagem o que somente eacute permitido ao poeta Ainda precisamos

abordar melhor a elocuccedilatildeo para desfecho da listagem de como os

elementos da poesia emocionam Aristoacuteteles a define como palavra que

expressa o pensamento a fim de demonstrar refutar despertar emoccedilotildees

engrandecer ou minimizar algo ou algueacutem Elemento poderoso embora

187 Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente (2011) no original διὸ εὐφυοῦς ἡ ποιητική

ἐστιν ἢ μανικοῦ ούτων γὰρ οἱ μὲν εὔπλαστοι οἱ δὲ ἐκστατικοί εἰσιν 188 Donde a famosa teoria das trecircs miacutemeseis proposta por Paul Ricoeur em seu

Tempo e narrativa ldquoMiacutemese I designa a preacute-compreensatildeo na vida quotidiana

daquilo que se denominou justamente a qualidade narrativa da experiecircncia ndash

entendendo por tal o facto da vida e ainda mais a acccedilatildeo como Hanna Arendt

exprime brilhantemente exigirem ser contados Miacutemese II designa a auto-

estruturaccedilatildeo da narrativa sobre a base dos coacutedigos narrativos internos ao

discurso A este niacutevel Miacutemese II e myacutethos ou seja a intriga ndash ou melhor o

dispor em intriga ndash coincidem Finalmente Miacutemese III designa o equivalente

narrativo da refiguraccedilatildeo do real pela metaacuteforardquo (ABEL POREgraveE 2010 p 77) A

relaccedilatildeo com o antes da poesia eacute evidenciada em Aristoacuteteles segundo Ricoeur

devido agrave sua referecircncia aos caracteres escolhidos para as personagens da

trageacutedia e da comeacutedia que se classificam somente em ldquonobres ou baixosrdquo isso

porque todo mundo (paacutentes) na realidade eacute de um ou outro jeito As

qualificaccedilotildees eacuteticas vecircm do real e o que depende da imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo eacute

a exigecircncia loacutegica da coerecircncia O filoacutesofo francecircs afirma ainda que eacute dito que

trageacutedia e comeacutedia diferem por representar personagens piores ou melhores que

os homens reais (tograven vucircn 1448a16-18) o que eacute a segunda marca da miacutemesis I

Entatildeo o poeta pressupotildee que os caracteres possam ser melhorados ou

corrompidos pela accedilatildeo (RICOEUR 2012 p 84) ldquoOs caracteres satildeo o que

permite qualificar os personagens em accedilatildeordquo (Poet 1450a6) Haacute ainda o fato dos

poetas trabalharem com os mitos tradicionais inseridos como estatildeo na tradiccedilatildeo

grega da eacutepoca (Idem p 85) embora o pensador francecircs ligue essa continuaccedilatildeo

em Aristoacuteteles somente agraves propostas sobre o prazer proacuteprio agrave trageacutedia e ao

alcance da kaacutetharsis

208

natildeo seja um dos primeiros da lista em importacircncia a elocuccedilatildeo ajuda a

provocar as emoccedilotildees traacutegicas e a conferir verossimilhanccedila ao enredo

(Poet 18 1456a36-38 19 1456b1-8) podendo servir igualmente como

recurso retoacuterico como vimos acima

A muacutesica o espetaacuteculo e o enredo entretanto satildeo os elementos

considerados como os mais emocionantes da trageacutedia O enredo eacute nas

palavras do proacuteprio filoacutesofo ldquoa alma da trageacutediardquo aquilo que quando

bem elaborado permite imaginar e despertar emoccedilatildeo Tendo isso em

vista Nussbaum (2008 p 240 traduccedilatildeo nossa) observa ldquoo digno de

piedade e o temiacutevel natildeo satildeo simplesmente locais eles satildeo encaixados na

estrutura global da forma pelo tipo particular de identificaccedilatildeo e simpatia

com o heroacutei que a proacutepria forma cultivardquo Nussbaum admite contudo

que frequentemente a perspectiva na trageacutedia eacute modelada pelas reaccedilotildees

do coro traacutegico que encoraja uma certa variaccedilatildeo de reaccedilotildees pelo

desenrolar do enredo O sentido que corre por esses trabalhos eacute o de

algueacutem que olha os reveses e sofrimentos da pessoa razoavelmente boa

tanto com medo quanto com piedade Esse tipo de percepccedilatildeo ou de

pensamento pode mesmo alterar uma emoccedilatildeo em outra pois a pessoa

que chega indiferente ao teatro pode deixar aflorar sua piedade

transbordando ou ajustando o seu excesso dessa emoccedilatildeo e nesse caso

modificando a emoccedilatildeo Tais mudanccedilas favorecem as emoccedilotildees reais

como se expotildee na explicaccedilatildeo de Nussbaum que citamos abaixo

Compaixatildeo seraacute um motivo social valioso

somente se estaacute equipada com uma teoria

adequada do valor dos bens baacutesicos somente se

estaacute equipada com um entendimento adequado da

accedilatildeo e da culpa e somente se estaacute equipada com

uma consideraccedilatildeo adequadamente vasta da pessoa

que deve ser o objeto da preocupaccedilatildeo de um

agente tanto distante como proacuteximo Esses

julgamentos devem ser engendrados por um bom

processo de desenvolvimento Por outro lado a

compaixatildeo fornece uma vida essencial e

conexidade com a moralidade sem que esteja

perigosamente vazia e desarraigada Em casos

centrais bem representados na trageacutedia grega a

compaixatildeo incorpora avaliaccedilotildees corretas e

direciona nossa preocupaccedilatildeo para todos que

compartilham conosco uma humanidade comum

Aprendidas nas relaccedilotildees da infacircncia essas

conexotildees satildeo importantes para fazer a moralidade

209

perspicaz antes que obscura Assim a compaixatildeo

eacute um complemento necessaacuterio ao respeito []

(NUSSBAUM 2008 p 399 traduccedilatildeo nossa)189

Do mesmo modo a trageacutedia que provoca ou muda as emoccedilotildees

do puacuteblico na direccedilatildeo do outro tem enorme papel moral na poacutelis de

Aristoacuteteles como a autora tambeacutem explicaraacute ldquoPor outro lado conveacutem

lembrar ainda o dito por Aristoacuteteles sobre uma accedilatildeo que eacute moralmente

virtuosa somente quando eacute feita pelos motivos corretosrdquo (NUSSBAUM

2008 p 400 traduccedilatildeo nossa) Ajudar os outros sem amor agrave humanidade

e sem preocupaccedilatildeo compassiva por sua situaccedilatildeo natildeo tem valor moral A

interpretaccedilatildeo da autora se volta para Soacutefocles pois eacute nesse momento

que se pode evocar a posiccedilatildeo grega antiga sobre o papel do drama

traacutegico na educaccedilatildeo embora entendamos ainda que essa postura

colabore com a proposta de EN X apresentada anteriormente acerca da

necessidade de extensatildeo da ldquoeducaccedilatildeordquo moral por toda a vida do

cidadatildeo Defendemos assim que a trageacutedia eacute forte aliada na formaccedilatildeo

do caraacuteter e na manutenccedilatildeo da felicidade por toda vida mas que tem seu

papel como educadora da juventude como ressalta Nussbaum

A trageacutedia natildeo eacute para os muito jovens e natildeo eacute

exatamente para os jovens As pessoas maduras

sempre precisam expandir suas experiecircncias e

reforccedilar sua posse das verdades eacuteticas centrais

Mas para o jovem futuro cidadatildeo a trageacutedia tem

um significado especial Porque esse espectador

estaacute em processo de aprender a compaixatildeo As

trageacutedias familiarizam-nos com as coisas ruins

que podem acontecer na vida humana muito antes

da proacutepria vida fazer isso assim ativam a

preocupaccedilatildeo com os outros que estatildeo sofrendo o

que a pessoa natildeo sofreu E fazem isso de um jeito

que faz a profundidade e significacircncia do

sofrimento e as perdas que o inspiram

inequivocamente claras ndash os recursos poeacutetico

visual e musical do drama assim tecircm peso moral

Convidando o espectador a se tornar intensamente

preocupado com o destino do heroacutei traacutegico e ao

mesmo tempo retratando o heroacutei como uma

pessoa de valor o drama estabelece a compaixatildeo

189 Sobre a questatildeo da compaixatildeo como necessaacuteria agrave vida em comunidade ver

tambeacutem Sem fins lucrativos Capiacutetulo III p 36 et seq

210

um espectador atento teraacute apreendendo isso

aquela emoccedilatildeo Os gregos cultivavam a emoccedilatildeo

principalmente pelo drama uma crianccedila

contemporacircnea pode aprender essas mesmas

histoacuterias miacuteticas ou seu equivalente moderno

(NUSSBAUM 2008 p 428-429 traduccedilatildeo nossa)

Para tanto devem ser buscados trabalhos que familiarizem o

jovem leitor mas pensamos que tambeacutem o leitor adulto com uma vasta

variedade de possiacuteveis sofrimentos e de coisas agraves quais eacute vulneraacutevel

mas agraves quais possa reagir Tais obras levam ao reconhecimento e agrave

preocupaccedilatildeo mas especialmente agrave percepccedilatildeo de uma humanidade em

comum e de seus traccedilos especiacuteficos confirmando o ldquohoucirctos ekeicircnosrdquo de

Poet IV Enquanto Nussbaum se concentra no papel moral da

compaixatildeo afirmamos que o mesmo vale para o medo traacutegico emoccedilatildeo

que a proacutepria autora associa agrave piedade em seu The fragility of goodness

Afirmamos que a combinaccedilatildeo desses elementos da trageacutedia

favorece seus objetivos e mostra que a arte em questatildeo igualmente pode

ser entendida como um meio de emocionar ou direcionar as emoccedilotildees do

puacuteblico que satildeo despertadas por algo que afeta conjuntamente corpo e

alma Em certo momento da histoacuteria de Atenas todos compartilhavam

os momentos no teatro sendo este aleacutem de um meio de diversatildeo para a

populaccedilatildeo um potente aliado agraves formas convencionais de educaccedilatildeo para

a cidadania vida afora Os exemplos e contraexemplos expostos nos

espetaacuteculos cecircnicos podiam transmitir liccedilotildees sobre as formas mais ou

menos adequadas de comportamento em comunidade apesar de seu

caraacuteter ficcional Podiam transmitir um ideal de homem ou levar a

refletir sobre a proacutepria existecircncia preparando para a accedilatildeo real aleacutem de

despertar reflexatildeo sobre a condiccedilatildeo alheia Com isso as emoccedilotildees

traacutegicas e seu convite agrave reflexatildeo sobre a vida podem enquadrar-se em

nossas perspectivas de emoccedilotildees modificadas ou despertadas por certo

instrumento racional qual seja a trageacutedia que trabalharia como auxiliar

daquela educaccedilatildeo emocional proposta na EN Com suas sugestotildees a

trageacutedia seria mesmo capaz de conduzir as emoccedilotildees da plateia ao ponto

de purificaacute-las ou esclarececirc-las e aclarando o mundo eacute provaacutevel que

fossem capazes de extenuaacute-las expurgaacute-las ou controlaacute-las pela

kaacutetharsis190 mesmo que primeiro devessem ser excitadas pela poesia O

190 Sobre a kaacutetharsis ver Sorabji (2002 p 288 et seq) Natildeo nos debruccedilaremos

sobre esse problema em nosso estudo pois demandaria mais forccedila do que ora

apresentamos

211

que poderia contribuir para a formaccedilatildeo dos caracteres jovens sendo a

trageacutedia e sua catarse encaradas mesmo como um tipo de terapia191 das

emoccedilotildees mas tambeacutem como colaboradoras para o aperfeiccediloamento do

caraacuteter nos adultos auxiliando-os nas mudanccedilas ou efetivaccedilatildeo de seus

haacutebitos graccedilas ao conhecimento que adquirem de suas proacuteprias

emoccedilotildees

Do mesmo modo como Aristoacuteteles frisou a poesia eacute mais

filosoacutefica que a histoacuteria porque esta nos conta o que houve sendo que o

passado natildeo nos mostra algo interessante sobre as nossas possibilidades

por indicar um evento narrado idiossincraacutetico Por sua vez os trabalhos

literaacuterios nos mostram o geral plausiacutevel como padrotildees de accedilatildeo

Mostram-nos ldquocoisas como as que podem acontecerrdquo na vida do homem

levando ao prazer intelectual (e talvez esteacutetico) proacuteprio agrave trageacutedia bem

como na proposta da miacutemesis III de Ricoeur que eacute levada com o

espectador agrave vida fora da poesia pelo prazer que a trageacutedia provoca Ao

compreender tais padrotildees de importacircncia na poesia compreendemos

tambeacutem as nossas proacuteprias possibilidades Mesmo a procura pelas

emoccedilotildees dolorosas das peccedilas e textos satildeo aberturas a esse ldquoespaccedilo

potencialrdquo da poesia pois ajuda-nos a lidar com nossa falibilidade

vulnerabilidade e impotecircncia preparando-nos para a vida Isso soacute

acontece graccedilas ao movimento duplo que nos permite perceber os

acontecimentos traacutegicos como ficcionais que natildeo nos levam a agir e que

natildeo implicam escolha deliberada mas com os quais nos identificamos

sentindo emoccedilotildees reais ao reagir ao sofrimento alheio

A verossimilhanccedila e a necessidade do enredo garantem como

propusemos que entendamos os acontecimentos traacutegicos como coisas

possiacuteveis de acontecer Garante a realidade das emoccedilotildees suscitadas pela

trageacutedia com todo seu conteuacutedo cognitivo ao menos pelas crenccedilas e

opiniotildees vindas das aparecircncias e pelo julgamento de possibilidades

similares que levam os homens a se perceberem tais como satildeo

humanos nada mais nada

191 O termo terapia natildeo aparece em Aristoacuteteles mas haacute estudiosos que defendem

essa possibilidade de interpretaccedilatildeo das kaacutetharsis como Sorabji (2002 p 288 et

seq)

212

213

Conclusatildeo

Nossa tese procurou responder agrave questatildeo como operar mudanccedilas

nas emoccedilotildees a fim de que se tornassem condizentes com a proposta de

vida feliz feita por Aristoacuteteles Para responder a pergunta norteadora de

nosso trabalho buscamos dar embasamento agrave hipoacutetese levantada a partir

de EN I de que haacute uma funccedilatildeo especificamente humana que se

confunde com a felicidade entendida como melhor desempenho das

capacidades aniacutemicas em conjunto com o corpo e que tais capacidades

devido agrave natureza da alma natildeo podem ser isoladas Esse contato das

capacidades aniacutemicas percebido a partir da discussatildeo sobre a funccedilatildeo

humana levou-nos a entender que a possibilidade de se educar as

emoccedilotildees existe pelo contato entre as capacidades racional e natildeo racional

que eacute tipicamente humano e que confere uma espeacutecie de racionalidade

agraves emoccedilotildees

Para podermos sustentar essas propostas iniciamos com um

estudo sobre a natureza das emoccedilotildees A princiacutepio buscamos responder agrave

questatildeo acerca da funccedilatildeo humana e sua importacircncia na eacutetica de

Aristoacuteteles O argumento da funccedilatildeo situado em meio agraves discussotildees

sobre a melhor forma de vida possiacutevel nos indicou sua relaccedilatildeo com o

fim proposto para o homem e nos permitiu identificar a felicidade como

um tipo de vida especificamente humano no qual as capacidades da

alma seriam desempenhadas de modo excelente Compreendemos assim

a proposta de que a vida feliz eacute um tipo de atividade conforme a virtude

indicando-nos igualmente a necessidade de entender o que seja a

virtude apontando as direccedilotildees a serem tomadas em um segundo

momento de nossa pesquisa Nessas circunstacircncias apareceu-nos o tema

das emoccedilotildees vez que Aristoacuteteles aponta a virtude ao menos em sua

face moral como boa medida nas emoccedilotildees e nas accedilotildees A pesquisa

pelos tipos de vida que se candidatam ao cargo de felicidade e a

tentativa de resposta ao questionamento acerca da existecircncia de um soacute

tipo de vida como especificamente humano conduziu nossa discussatildeo

em direccedilatildeo a EN I 13 que propotildee a biparticcedilatildeo da alma e que nos

apresenta as ldquopartesrdquo racional e natildeo racional da alma bem como a

possibilidade de entrarem em acordo

A partir da proposta da existecircncia de ldquopartesrdquo na alma pudemos questionar a validade dessa afirmaccedilatildeo e chegamos agrave conclusatildeo de que

Aristoacuteteles natildeo propotildee uma alma realmente dividida mas composta por

diferentes capacidades operadas majoritariamente pelo corpo Tais

entendimentos permitiram que respondecircssemos agrave indagaccedilatildeo pela forma

de vida que constituiria o fim ou felicidade humana como realizaccedilatildeo do

214

bom desempenho de uma funccedilatildeo defendendo com o auxiacutelio de

Korsgaard Nussbaum e Reeve a impossibilidade de acatar a

interpretaccedilatildeo da eudaimoniacutea como uma vida plenamente contemplativa

Com a ajuda de estudiosos como Sorabji e Zingano percebemos que haacute

que se duvidar de propostas de leitura que tendam a esboccedilar Aristoacuteteles

como um filoacutesofo que apresenta um apreccedilo exacerbado das capacidades

racionais Pareceu-nos mais verdadeiro defender que suas teorias

apontam para uma vida mais intensa que aquela disposta agrave simples

contemplaccedilatildeo teoacuterica Propusemos uma vida que se completa na poacutelis

com o exerciacutecio de capacidades aniacutemicas desempenhadas de um modo

racional ou seja especialmente humano como propotildeem Korsgaard e

Boyle Tal defesa foi possiacutevel justamente devido ao conjunto das

capacidades indicadas pelo DA como tiacutepico agrave psychḗ do homem a saber

nutritiva perceptiva (e com esta a desiderativa) e raciocinativa Por esse

motivo julgamos pertinente desenvolvermos mas apenas de modo a

sanar nossas duacutevidas acerca das emoccedilotildees e seu papel na felicidade um

pequeno estudo a respeito da alma humana

O estudo tambeacutem contou com o apoio do De Anima texto que

confirmou nossas suspeitas e nos capacitou a defender uma teoria da

alma como um todo composto por capacidades que faculta ao corpo

realizar ou seja uma teoria hilemoacuterfica a respeito do homem que

comeccedilou a ser esboccedilada ainda com as nossas constataccedilotildees a respeito da

funccedilatildeo humana A defesa de uma psychḗ composta por capacidades

imprescindivelmente correlacionadas e que tecircm suas funccedilotildees

manifestas mesmo que imperceptivelmente no corpo teve apoio em

estudos como os de Bastit e Zingano e nos permitiu tratar as emoccedilotildees

como afecccedilotildees do conjunto corpoalma Tudo isso soacute foi possiacutevel porque

pensamos ter conseguido sustentar aleacutem de uma teoria da unidade da

alma uma teoria que entendeu a capacidade desiderativa como um todo

coeso Embora o desejo apresente diferentes tipos de manifestaccedilatildeo

relacionados aos seus objetos e agraves relaccedilotildees dos tipos de desejo com a

razatildeo proposta devedora aos estudos de Aggio dedicados agrave questatildeo do

desejo e do prazer na EN os desejos igualmente considerados paacutethē por

Aristoacuteteles nos mostraram diferentes emoccedilotildees que satildeo por eles

acompanhadas Tais emoccedilotildees como os desejos aos quais se relacionam

podem sofrer algum tipo de educaccedilatildeo validando desde o iniacutecio de

nossa pesquisa a teoria sobre a possibilidade de mudar as emoccedilotildees

favoravelmente agrave vida moral conforme a razatildeo praacutetica

Compreendemos contudo que nem todas as emoccedilotildees podem ser

mudadas ou moderadas Defender uma capacidade desiderativa

unificada reforccedilou a defesa de uma alma una e de emoccedilotildees capazes de

215

se harmonizar com as solicitaccedilotildees da capacidade racional A abertura

dos desejos e das emoccedilotildees para ao menos um tipo de razatildeo garantiu ao

homem a possibilidade de agir bem e com isso validamos a proposta

feita por Reeve Natali e Korsgaard da vida feliz entendida como

indispensavelmente atrelada agrave eupraxiacutea Neste tipo de vida o homem

apresenta por si mesmo ou por auxiacutelio de algueacutem ou das leis a virtude

moral como boa medida nas emoccedilotildees Por isso para desfecho Capiacutetulo

I buscamos compreender o que Aristoacuteteles entendia por emoccedilatildeo jaacute que

no momento da EN que parecia o mais propiacutecio a tal descriccedilatildeo o Livro

II 4 o filoacutesofo procedeu a uma listagem das coisas que chama emoccedilatildeo

Esse tipo de exposiccedilatildeo deu origem agrave boa parte dos questionamentos que

apontamos ao longo desse Capiacutetulo Recorrendo novamente ao DA mas

agora tambeacutem agrave Poet agrave Rhet e a alguns dos comentadores acima

relacionados que de certo modo abordaram o assunto esboccedilamos um

conceito de emoccedilatildeo que pode ser resumido do modo que segue

Emoccedilatildeo eacute um paacutethos que ocasiona certo tipo de movimento ou

alteraccedilatildeo no corpo de modo perceptiacutevel ou imperceptivelmente por

algo que atinge o homem a partir de fora (ou que vem de dentro da

alma quando age a memoacuteria de coisas que atingem o homem a partir de

fora) Acontece especialmente pelas consideraccedilotildees que se tem das

cirscunstacircncias nas quais ocorrem as relaccedilotildees com os outros e com o

mundo e aciona ou eacute acionada por algumas das capacidades aniacutemicas

humanas possivelmente consideradas racionais tais como a opiniatildeo o

julgamento a imaginaccedilatildeo e mesmo certos tipos de pensamento Por isso

as emoccedilotildees podem ser postas em conformidade com a reta razatildeo a fim

da virtude pois apresentam um quecirc de razatildeo desde sua constituiccedilatildeo A

emoccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles natildeo eacute mera passividade porque sugere

accedilatildeo ou reaccedilatildeo por parte de quem a sente Assim as emoccedilotildees satildeo

respostas agraves propostas que vecircm do mundo agrave sua volta diferem da

simples afecccedilatildeo e tecircm relevacircncia moral por interferirem nas accedilotildees e nas

interaccedilotildees com o mundo sendo esta sua diferenccedila em vista das demais

paacutethē

O primeiro momento de nossa tese encorajou o estudo acerca da

racionalidade que pensamos cercar as emoccedilotildees desde suas origens e

apontou-nos a necessidade de dedicar parte da pesquisa ao tratamento

das virtudes que se mostraram associadas agrave existecircncia de emoccedilotildees

educadas e natildeo contrastantes com a execuccedilatildeo excelente das atividades

humanas que se coadunam em felicidade Assim para dar

prosseguimento ao estudo o segundo Capiacutetulo teve iniacutecio com uma

breve tentativa de compreender melhor o conceito de virtude A partir

da afirmaccedilatildeo da existecircncia de dois tipos de virtude moral e intelectual

216

pudemos entender igualmente a existecircncia da virtude completa Essas

constataccedilotildees apontaram a necessidade de discutirmos as virtudes morais

compreendidas como meios termos nas accedilotildees e nas emoccedilotildees que satildeo

condiccedilatildeo necessaacuteria agrave felicidade A proposta contudo sofreu e sofre

objeccedilotildees por parte de filoacutesofos e pesquisadores que se dedicaram ao

estudo da virtude moral O problema foi tratado somente de modo a

contemplar nossas intenccedilotildees e desse tratamento pudemos concluir que a

doutrina da virtude moral proposta por Aristoacuteteles embora apresente

empecilhos agrave sua interpretaccedilatildeo pode ser tomada como uma teoria que

apresenta aspectos variados para a virtude moral

Distinguimos aspectos quantitativos quando nos fala de

intensidades ou quantidades com que sentimos emoccedilotildees aspectos

qualitativos ao indicar padrotildees para que as emoccedilotildees sejam

adequadamente sentidas e ainda aspectos conceituais quando nos

mostra que a doutrina da virtude se direciona ao entendimento dessas

qualidades da alma desiderativa em suas manifestaccedilotildees particulares

Tais manifestaccedilotildees igualmente validam certa aplicabilidade agrave teoria da

boa medida por abordarem a proposta quando se trata de accedilotildees

particulares que podem ser concretizadas sob a influecircncia das emoccedilotildees

Nossa interpretaccedilatildeo sobre o assunto e nossa posiccedilatildeo quanto agrave celeuma

sobre a validade da doutrina da boa medida eacute que todos esses traccedilos

devem ser tomados como distintivos das virtudes em questatildeo porque

natildeo excluem uns aos outros e podem tambeacutem ser aplicaacuteveis agraves accedilotildees

Estas satildeo atreladas agraves emoccedilotildees sendo que como na proposta de

Zingano aquilo que eacute plausiacutevel quanto agraves emoccedilotildees de certo modo

tambeacutem seraacute aplicaacutevel agraves accedilotildees que sugerem

A fim de levar adiante o entendimento da doutrina da boa

medida procuramos estudar as possibilidades de conferir o meio termo

agraves emoccedilotildees Deparamo-nos com as propostas da habituaccedilatildeo agrave praacutetica de

accedilotildees moralmente corretas indicando o caminho que deveriacuteamos

percorrer ateacute o teacutermino de nosso estudo para compreensatildeo da

possibilidade de se educar ou mudar as emoccedilotildees para o bem humano

Essa habituaccedilatildeo na melhor das hipoacuteteses torna o agente capaz de

escolher por si mesmo as accedilotildees que iratildeo conduzi-lo aos bens que deseja

alcanccedilar Isso daacute um caraacuteter voluntaacuterio agrave accedilatildeo e agrave virtude moral bem

como um aspecto responsaacutevel ao homem virtuoso que busca o melhor

modo de agir em direccedilatildeo ao bem supremo cumprindo aquilo que se

entende por sua funccedilatildeo Para tanto as emoccedilotildees devem ser moderadas

conforme as sugestotildees da capacidade de razatildeo como um todo o que

indicou a necessidade ao menos da virtude intelectual da prudecircncia

efetivando as virtudes morais

217

Entendemos por virtude completa a junccedilatildeo das virtudes das duas

as capacidades da alma manifestada atraveacutes de uma vivecircncia poliacutetica

favoraacutevel ao bom desempenho do raciociacutenio e de consequentes boas

accedilotildees Com isso pareceu-nos apropriado dedicar certo tempo embora

curto ao estudo das virtudes intelectuais em especial ao estudo da

prudecircncia e de seu processo ndash da deliberaccedilatildeo agrave escolha deliberada e agrave

accedilatildeo moralmente boa Esse estudo nos levou a perceber a prudecircncia

como um tipo de percepccedilatildeo praacutetica ou deliberativa diferente da

percepccedilatildeo sensiacutevel comum mas natildeo desvencilhado desta sugerindo

ainda a accedilatildeo de outras capacidades racionais entendidas do modo

proposto pelo De Anima bem como pela EN Isso indicou uma inegaacutevel

associaccedilatildeo da capacidade racional do intelecto com a percepccedilatildeo

confirmando novamente nossas propostas sobre a unidade da alma A

prudecircncia pede deliberaccedilatildeo praacutetica em casos excepcionais apresentados

pela vida Tal deliberaccedilatildeo se relaciona com um tipo especial de

imaginaccedilatildeo embora natildeo totalmente diacutespar e distante daquela

imaginaccedilatildeo entendida como (sub)capacidade da alma que eacute

intermediaacuteria entre percepccedilatildeo sensiacutevel e pensamento

A imaginaccedilatildeo deliberativa bem como a percepccedilatildeo

especificamente associada agrave prudecircncia como um tipo de visatildeo permite

um caacutelculo apresentado sob a forma do silogismo praacutetico Este iraacute

conduzir o agente desde a percepccedilatildeo daquilo que entende como um bom

fim e que eacute desejado passando pela proposiccedilatildeo de meios para que tal

fim possa ser alcanccedilado e chegando agrave indicaccedilatildeo pela escolha deliberada

da melhor forma de accedilatildeo para atingir tal fim Nesse percurso o agente

tem contato com um sem-nuacutemero de aparecircncias particulares que acabam

por indicar-lhe de certo modo o universal ao menos sob a forma do

bem supremo a ser procurado O contato com esse tipo de bem relaciona

a prudecircncia natildeo somente com particulares mas tambeacutem com algo de

universal A prudecircncia eacute asociada igualmente agrave indicaccedilatildeo dos meios

para a consecuccedilatildeo da proacutepria felicidade entendida como fim de toda

vida humana

De certo modo essas propostas relacionam todas as capacidades

da alma pois conferem agrave virtude intelectual certa semelhanccedila com a

atividade e os objetos especiacuteficos agraves virtudes intelectuais teoacutericas Por

conseguinte reforccedilamos nossa interpretaccedilatildeo de uma alma una composta

por capacidades interligadas Com isso pudemos indicar ainda que natildeo

conclusivamente a possibilidade ou mesmo a necessidade de

comunicaccedilatildeo da capacidade natildeo racional da alma com a capacidade

racional em sua vertente teoacuterica jaacute que tratamos de uma alma soacute isenta

de secccedilotildees Ao final dessa parte apresentamos a relaccedilatildeo proposta no fim

218

do Livro VI da EN da virtude natural e da virtude em sentido estrito

pois entendemos que tal questatildeo reforccedila nossa proposta da virtude

completa como junccedilatildeo das virtudes intelectuais e morais que concorrem

para o exerciacutecio da funccedilatildeo humana Nesse ponto da pesquisa ainda

julgamos necessaacuterio ratificar a racionalidade das emoccedilotildees e propor

condiccedilotildees ou instrumentos para que isso aconteccedila coisa que buscamos

fazer com o terceiro e uacuteltimo momento desta tese

A tiacutetulo de desfecho da pesquisa o Capiacutetulo III buscou

fundamentar suas anaacutelises especialmente na parte final EN parte do

tratado que a princiacutepio pareceu se distanciar de todas as propostas que

defendemos ao longo do estudo apresentado anteriormente O Livro X

nos apresentou a possibilidade de interpretar a eudaiacutemōniacutea como uma

forma de vida totalmente dedicada agrave contemplaccedilatildeo teoacuterica proposta que

para estudiosos como Kenny se mostra o desfecho perfeito agraves discussotildees

sobre a felicidade iniciadas em EN I No entanto o proacuteprio Livro X nos

encorajou a seguir em frente com nossa leitura da funccedilatildeo humana como

desempenho excelente e de um modo racional do conjunto de atividades

que compotildeem a melhor forma de vida possiacutevel ao homem Em EN X 7

1176b19-26 Aristoacuteteles apresenta o questionamento ressaltado por

Sorabji entre outros que potildee em jogo a possibilidade da contemplaccedilatildeo

teoacuterica como fim da vida humana Tendo em vista que nosso tema

solicita uma defesa da capacidade natildeo racional da alma humana em

harmonia com a capacidade racional acatamos as sugestotildees dos

comentadores mas recorremos agraves questotildees sobre a alma para defesa de

nossa proposta pautada em postura contraacuteria ao entendimento da vida

feliz como vida puramente contemplativa

Para reforccedilarmos essa ideia lanccedilamos matildeo de um vocabulaacuterio

associado tanto agraves capacidades racionais humanas quanto agraves descriccedilotildees

das emoccedilotildees que encontramos ao longo de todo o estudo e das leituras

dos textos de Aristoacuteteles As propostas sobre a psychḗ indicaram que o

vocabulaacuterio em questatildeo apresentava mais que termos atrelados agrave

racionalidade Os termos designavam (sub)capacidades da alma que

permitiram explicar o despertar das emoccedilotildees pelo contato do homem

com mundo atraveacutes da percepccedilatildeo sensiacutevel Propunham a imaginaccedilatildeo

com suas elaboraccedilotildees a respeito das relaccedilotildees com os outros e poderiam

despertar tipos de pensamento ou ao menos opiniotildees e crenccedilas que

instigassem as emoccedilotildees Com o apoio do estudo sobre as virtudes

intelectuais pudemos mesmo sugerir uma ligaccedilatildeo entre essas

(sub)capacidades mencionadas com outras similares As emoccedilotildees

manteriam contatos com essas uacuteltimas (sub)capacidades tambeacutem quando

passassem pelo filtro da deliberaccedilatildeo praacutetica e da escolha deliberada

219

Esta seria uma das formas possiacuteveis de lhes conceder a forma adequada

e ao mesmo tempo um modo de alcanccedilar o melhor estado das

capacidades aniacutemicas como um todo Com isso as chamadas ldquopartesrdquo

da alma estavam relacionadas pois constatamos que mesmo quando se

propotildee o intelecto relacionado ao paacutethos a capacidade intelectual

humana constitui-se assim como toda a alma como uma soacute A relaccedilatildeo

da razatildeo teoacuterica com as emoccedilotildees natildeo foi mais bem explorada por

questotildees de exequibilidade da pesquisa mas salientamos que o assunto

nos instiga apresentando-se como tema para pesquisa futura

Apoacutes essas inferecircncias novamente consultamos o De anima a

Retoacuterica e a Poeacutetica que se mostraram fonte indispensaacutevel agrave defesa de

nossa tese Estes tratados nos permitiram finalizar nosso trabalho

estudando instrumentos diferentes da habituaccedilatildeo e do ensino defendidos

pela EN mas que se associam em uma proposta educacional que

percorre toda a vida do cidadatildeo Nas poacuteleis haacute dispositivos disponiacuteveis

para que se possa consolidar e manter a educaccedilatildeo moral emocional

Uma educaccedilatildeo que comeccedila com atenccedilatildeo a cada pessoa em famiacutelia e

que possa se estender para os ambientes de conviacutevio na cidade eacute a

proposta de Aristoacuteteles para educar os cidadatildeos e suas emoccedilotildees

Entendemos que a poacutelis apresenta entre outros recursos o teatro

e os ambientes nos quais satildeo proferidos os discursos retoacutericos como

auxiliares da formaccedilatildeo moral Esses ambientes satildeo fontes riquiacutessimas

para que a percepccedilatildeo que se inicia com o intermeacutedio dos sentidos possa

solicitar as construccedilotildees das formas de imaginaccedilatildeo e provavelmente

direcionar convenientemente os cidadatildeos a certos tipos de opiniotildees

crenccedilas e mesmo elaboraccedilotildees racionais mais sofisticadas A partir de um

estudo eacutetico apoiado na proposta aristoteacutelica sobre a alma bem como

em demais obras de Aristoacuteteles e por todos os motivos acima elencados

entendemos que a defesa da educabilidade das emoccedilotildees graccedilas agrave sua

racionalidade se faz possiacutevel Tal defesa foi necessaacuteria pois eacute somente o

contato da racionalidade com as emoccedilotildees seja em sua constituiccedilatildeo seja

atraveacutes das propostas dos elementos de racionalidade que podem tocaacute-

la que percebemos a possibilidade de educar ou mudar as emoccedilotildees

220

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