judicialização da saúde: um estudo de caso de três tribunais brasileiros the judicialization of...

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TEMAS LIVRES FREE THEMES 3419 1 Departamento de Odontologia Social e Preventiva, Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Antonio Carlos 6627, Pampulha. 31.270-901 Belo Horizonte MG Brasil. [email protected] 2 Departamento de Direito Penal, Faculdade de Direito, UFMG. Judicialização da Saúde: um estudo de caso de três tribunais brasileiros The judicialization of health care: a case study of three state courts in Brazil Resumo O objetivo deste trabalho foi descrever e comparar registros de três tribunais brasileiros quanto às características e resultados das ações relacionadas ao Sistema Único de Saúde (SUS). Foi realizada pesquisa dos acórdãos nos sítios ele- trônicos dos Tribunais de Justiça dos estados de Pernambuco, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, utilizando-se roteiro próprio. Analisou-se 558 acórdãos. Houve maior frequência de ações ordi- nárias (73,1%), na maior parte das decisões não foi possível verificar a situação econômico-finan- ceira do demandante e o representante do autor (69,1% e 54,5%) Nas que foram possíveis, a de- fensoria pública foi mais frequente (71,5), princi- palmente no Rio Grande do Sul (90,2%). A titu- laridade das ações foi predominantemente indi- vidual nos três grupos. Houve grande número de pedidos liminares (83,8%), quase sempre deferi- dos (91,2%), com alegação de urgência/emergên- cia em quase todos (98,8%). A maioria das deci- sões foi favorável aos usuários (97,8%). As deci- sões estudadas demonstraram que o usuário tem buscado de forma individual garantir seu direito à saúde, recorrendo ao próprio poder público para a propositura da ação, mas percebe-se uma dife- rença de postura jurídica entre os tribunais ava- liados. Há uma forte tendência do Judiciário em acolher estas solicitações. Palavras-chave Direito à Saúde, Sistema Único de Saúde, Jurisprudência Abstract The scope of this study was to describe and compare records of the results of lawsuits filed in three Brazilian courts in cases involving the Unified Health System. A survey was made of the judgments listed on electronic sites of Courts of Justice in the states of Pernambuco, Rio Grande do Sul and Minas Gerais using a specific script. A total of 558 judgments was analyzed. There was a greater frequency of ordinary lawsuits (73.1%). In the majority of cases, it was not possible to identify the economic situation of the plaintiff or the legal representative of the defendant (54.5%). In cases where such identification was possible, a public defender was the most common (71.5%). The cases were predominantly individual in all three states. There was a large number of requests for injunctions (83.8%), which were almost al- ways granted (91.2%), with the allegation of ur- gency/emergency in almost all cases (98.8%). The majority of decisions were favorable to the users of the public healthcare system (97.8%). The de- cisions studied showed that the users sought to ensure their right to health individually, using the public authorities to file their lawsuit, but there is a perceived difference in posture between legal courts evaluated. There is a strong tendency of the judiciary to accept these requests. Key words Right to health, Unified health sys- tem, Jurisprudence Denise Vieira Travassos 1 Raquel Conceição Ferreira 1 Andréa Maria Duarte Vargas 1 Rosa Núbia Vieira de Moura 1 Elza Maria de Araújo Conceição 1 Daniela de Freitas Marques 2 Efigênia Ferreira e Ferreira 1

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1 Departamento de

Odontologia Social e

Preventiva, Faculdade de

Odontologia, Universidade

Federal de Minas Gerais. Av.

Antonio Carlos 6627,

Pampulha. 31.270-901

Belo Horizonte MG Brasil.

[email protected] Departamento de Direito

Penal, Faculdade de Direito,

UFMG.

Judicialização da Saúde: um estudo de casode três tribunais brasileiros

The judicialization of health care: a case studyof three state courts in Brazil

Resumo O objetivo deste trabalho foi descrever ecomparar registros de três tribunais brasileirosquanto às características e resultados das açõesrelacionadas ao Sistema Único de Saúde (SUS).Foi realizada pesquisa dos acórdãos nos sítios ele-trônicos dos Tribunais de Justiça dos estados dePernambuco, Rio Grande do Sul e Minas Gerais,utilizando-se roteiro próprio. Analisou-se 558acórdãos. Houve maior frequência de ações ordi-nárias (73,1%), na maior parte das decisões nãofoi possível verificar a situação econômico-finan-ceira do demandante e o representante do autor(69,1% e 54,5%) Nas que foram possíveis, a de-fensoria pública foi mais frequente (71,5), princi-palmente no Rio Grande do Sul (90,2%). A titu-laridade das ações foi predominantemente indi-vidual nos três grupos. Houve grande número depedidos liminares (83,8%), quase sempre deferi-dos (91,2%), com alegação de urgência/emergên-cia em quase todos (98,8%). A maioria das deci-sões foi favorável aos usuários (97,8%). As deci-sões estudadas demonstraram que o usuário tembuscado de forma individual garantir seu direitoà saúde, recorrendo ao próprio poder público paraa propositura da ação, mas percebe-se uma dife-rença de postura jurídica entre os tribunais ava-liados. Há uma forte tendência do Judiciário emacolher estas solicitações.Palavras-chave Direito à Saúde, Sistema Únicode Saúde, Jurisprudência

Abstract The scope of this study was to describeand compare records of the results of lawsuits filedin three Brazilian courts in cases involving theUnified Health System. A survey was made of thejudgments listed on electronic sites of Courts ofJustice in the states of Pernambuco, Rio Grandedo Sul and Minas Gerais using a specific script. Atotal of 558 judgments was analyzed. There was agreater frequency of ordinary lawsuits (73.1%).In the majority of cases, it was not possible toidentify the economic situation of the plaintiff orthe legal representative of the defendant (54.5%).In cases where such identification was possible, apublic defender was the most common (71.5%).The cases were predominantly individual in allthree states. There was a large number of requestsfor injunctions (83.8%), which were almost al-ways granted (91.2%), with the allegation of ur-gency/emergency in almost all cases (98.8%). Themajority of decisions were favorable to the usersof the public healthcare system (97.8%). The de-cisions studied showed that the users sought toensure their right to health individually, usingthe public authorities to file their lawsuit, butthere is a perceived difference in posture betweenlegal courts evaluated. There is a strong tendencyof the judiciary to accept these requests.Key words Right to health, Unified health sys-tem, Jurisprudence

Denise Vieira Travassos 1

Raquel Conceição Ferreira 1

Andréa Maria Duarte Vargas 1

Rosa Núbia Vieira de Moura 1

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Introdução

O conceito de saúde abrangente da OrganizaçãoMundial de Saúde (OMS, 1946) definido “comoum estado de completo bem-estar físico, mentale social e não apenas a simples ausência de doen-ças e outros danos”, foi determinante para o re-conhecimento deste direito fundamental do serhumano, consolidando a concepção da necessi-dade de integração do indivíduo na sociedade1.

A saúde, assim considerada2, foi incluída comogarantia aos povos pelos governos em tratadosinternacionais, em seu sentido abrangente3.

A Declaração Universal dos Direitos Huma-nos (1948) e o Protocolo sobre Direitos Econô-micos, Sociais e Culturais (1988) consideraram asaúde condição indispensável à dignidade huma-na, com estreita relação com condições socioam-bientais, econômicas e obrigação do Estado paradar condições ao pleno exercício desses direitos2.

O direito à saúde torna governos responsá-veis pela prevenção, tratamento e controle dedoenças e criação de condições para garantir aces-so aos serviços de saúde. Em função dos direitoshumanos (econômicos, sociais, culturais, civis epolíticos) serem considerados interdependentese indivisíveis, os governos são responsáveis porprogramar e implementar condições progressi-vas para garantir o direito à saúde, assim comoaos demais direitos sociais4.

As Constituições brasileiras anteriores foramomissas em relação à garantia do direito à saúde.Apenas previam que cabia ao Estado cuidar daassistência pública e da prestação de assistênciamédica e hospitalar ao trabalhador filiado aoregime previdenciário. Este direito só foi contem-plado na atual Constituição, 40 anos após a De-claração Universal dos Direitos Humanos5.

O Brasil tem um sistema de proteção dos di-reitos humanos que integra o ordenamento jurí-dico nacional e as proteções oferecidas pelas nor-mas jurídicas de direito internacional6. A saúdefoi eleita como direito extremamente relevantena Constituição Federal, pois o princípio da dig-nidade da pessoa humana é um dos fundamen-tos do Estado, assegurada ainda a inviolabilida-de do direito à vida7.

Entretanto, como disposto em lei, todos têmdireito à saúde, independente de raça, gênero,idade e classe social, mas isso muitas vezes nãoocorre. Percebe-se que há uma grande insatisfa-ção/descrença em relação ao Sistema Único deSaúde (SUS)5. Muitas vezes, o cidadão tem a sen-sação de não acolhimento de seus anseios porparte dos serviços de saúde, público ou privado,

sensação que pode ser fundada na necessidadereal ou percebida de sua própria saúde.

A compreensão da saúde varia de acordo como indivíduo, suas crenças e valores, em função dacausa de sua doença e a possibilidade de controlede sua situação estes fatores podem influenciar aadesão dos pacientes aos tratamentos propostose a forma de utilização dos serviços de saúde8.

Há necessidade de buscar formas de tornarcoerentes as leis positivadas e o sentimento dacomunidade em relação ao direito. A norma ju-rídica preconiza um entendimento, de ser o di-reito à saúde universal, integral e gratuito, noentanto, as situações vividas pelos indivíduos ca-minham em sentindo oposto. Vivenciam-se cons-tantes violações desses princípios, o que agravaas iniquidades do sistema de saúde9.

Em algumas situações, nas quais os usuáriosdos Sistemas de Saúde, público ou suplementar,ficam insatisfeitos pode haver o questionamentojudicial das prestações.

A partir dos anos 70, o Poder Judiciário, am-pliou sua presença na sociedade e na política,como forma de garantia de direitos, resultandonuma explosão das discussões. O direito invade osocial para garantir proteção aos mais vulnerá-veis. O cidadão passou a utilizar-se dos recursoscriados pelo legislador, como vias alternativas paraa defesa e eventuais conquistas de direitos10.

Este fenômeno foi denominado de judiciali-zação por Tate e Vallinder, em 1995, em estudosobre as relações do poder judiciário e a políti-ca11. Genericamente, pode-se considerar a judici-alização como fenômeno constituído pela influ-ência do Poder Judiciário nas instituições políti-cas e sociais12.

No Brasil, este fenômeno ganhou força na dé-cada de 90, com pacientes contaminados pelo ví-rus da síndrome de imunodeficiência adquirida(HIV) que se uniram através de Organizações NãoGovernamentais (ONG) ou outras associações cri-adas na sua defesa para, coletivamente, pleitearemnovos medicamentos e tratamentos. A liminar jul-gada favorável, em 25 de julho de 1996, movidapelo Grupo de Apoio à Prevenção à Síndrome deImunodeficiência Adquirida (AIDS) (GAPA-SP)contra o Estado de São Paulo, para fornecimentogratuito de medicamentos pelo Poder Público foio marco inicial. A decisão abriu precedente paraajuizamento de outras demandas. Em 2001, asações tiveram grande impacto no orçamento e noPrograma Estadual de Doenças SexualmenteTransmissíveis (DST/AIDS) de São Paulo2.

Uma crítica recorrente ao direito à saúde éque ele não seria passível de ser reclamado judici-

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almente. Esta perspectiva se tomada como ver-dadeira, estaria negando qualquer qualidade delegalidade aos direitos sociais e econômicos, re-servando esta característica apenas para os direi-tos civis e políticos tradicionais13.

O fenômeno da Judicialização da Saúde vemcrescendo de forma vertiginosa e a cada ano háincremento das ações contra o Poder Público14.As decisões dos processos podem ser favoráveisaos cidadãos, obrigando os sistemas de saúde aarcarem com a viabilização dos direitos, que nemsempre significam benefícios para o próprio in-divíduo, mas podem acarretar desequilíbriossociais. Uma revisão sistemática sobre o temamostrou que a maioria dos estudos tem abran-gência local e está concentrada na discussão daassistência farmacêutica. A maioria dos estudoscentralizou atenção em estados do Sul e Sudeste,especialmente São Paulo e um número reduzidoincluiu o Nordeste15.

Este estudo teve como foco a descrição e aanálise dos registros de três tribunais brasileirosquanto às características das ações relacionadasao Sistema Único de Saúde (SUS) e quanto aosresultados dessas ações.

Metodologia

É um estudo transversal, com base em dadossecundários, obtidos nos acórdãos dos Tribu-nais de Justiça dos estados de Minas de Gerais(TJMG), Rio Grande do Sul (TJRS) e Pernambu-co (TJPE), disponíveis nos sítios eletrônicos dosrespectivos tribunais. Foram incluídos acórdãosreferentes ao ano de 2009, cujas ementas consta-vam dados relativos ao SUS e a condenação ouabsolvição de cumprimento de uma obrigaçãoao usuário.

Os três estados foram escolhidos por conve-niência, buscando-se representação de três regi-ões distintas do Brasil: Sul (RS), Sudeste (MG) eNordeste (PE). Optou-se pela segunda instânciapor serem estas decisões disponibilizadas pormeio eletrônico. Além disso, a pesquisa se res-tringiu, mesmo nesta instância, às decisões cole-giadas dos tribunais.

O cálculo amostral foi feito pelo método deestimativa de proporções, para amostra finita,segundo o total de acórdãos disponíveis em cadasítio, considerando a prevalência de eventos de50%, erro de 5% e significância de 95%. Obteve-se o total da amostra, após acerto final, de 283para Minas Gerais (MG) (n = 1.681) e 256 para oRio Grande do Sul (RS) (n = 1.000).

O total de acórdãos do RS para o ano de 2009foi de 3.464. No entanto, a correção foi feita para1000 decisões, total disponibilizado no sítio dotribunal, via internet. Em Pernambuco (PE), emfunção do número de acórdãos disponíveis, foiconsiderado o universo, 86 unidades de análise.As palavras-chave para pesquisa dos acórdãosforam: SUS e direito à saúde. Houve substituiçãodos acórdãos sorteados que não continham ob-jeto de interesse para análise, como os de caráterprevidenciário ou ressarcimentos de danos, peloimediatamente seguinte até o limite do próximosorteado.

A seleção dos acórdãos foi feita por meio detabela de números randômicos, construída noprograma Microsoft Office Excel 2007, para cadaestado.

Utilizou-se, para a coleta de dados, um for-mulário elaborado para este fim. As variáveiscoletadas foram: tipo de ação (ordinária, man-dado de segurança, ação civil pública, ação cau-telar inominada); representação jurídica do au-tor (Defensoria Pública, Ministério Público ouadvogado particular e ONG); condição econô-mico-financeira alegada pelo autor (justiça gra-tuita, hipossuficiente economicamente); titulari-dade da ação (individual, coletiva ou individual ecoletiva, pedido se fundamentado em um paci-ente mas pedia a extensão a outros com a condi-ção semelhante); existência de pedido liminar(antecipação de tutela ou liminar); decisão dopedido liminar (deferimento ou indeferimento);existência de fundamentação da urgência e emer-gência alegada no pedido; resultado em segundainstância (favorável ao usuário, ao SUS ou usu-ário-SUS) e o tipo de recurso julgado. Advoga-dos, Ministério Público e Defensoria poderiamser considerados representantes de ações tantoindividuais como coletivas, de acordo com o des-crito na ação.

Considerou-se não informado julgamentosque se extinguiram sem resolução do mérito, porperda da necessidade de decisão, por exemplo,pela morte do demandante.

Os dados foram analisados empregando-seo Software Package for Social Sciences (SPSS forWindows, version 17.00), sendo submetidos àanálise descritiva, com obtenção de frequênciaabsoluta e relativa. A comparação entre tribu-nais dos três estados quanto às característicasdas ações e quanto aos seus resultados foi reali-zada pelo teste qui-quadrado ou exato de Fisher,considerando-se nível de significância de 5%.

A coleta de dados foi feita em banco público,disponibilizado pela internet, o que dispensa

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aprovação de projeto em comitês de ética empesquisa, sem prejuízo do respeito às normas.

Resultados

Foram analisados 558 acórdãos, sendo 282 deMG representando 99,6% da amostra para esseestado, 222 do RS (86,7%) e 54 (62,8%) de Per-nambuco.

Os tipos de ações mais frequentes foram asordinárias (73,1%), seguidas dos mandados desegurança (19,9%). Houve maior frequência deações ordinárias no TJRS e de mandado de segu-rança nos TJMG e TJPE (Tabela 1).

O principal recurso que levou a análise dadecisão em segunda instância foi a apelação(52,8%) (incluídas decisões revistas em grau dereexame necessário), seguido pelo agravo de ins-trumento (38,4%). Os agravos internos e em-bargos de declaração apareceram em 4,8% e 4,0%dos acórdãos, respectivamente.

Quanto ao representante jurídico do autor,na maior parte havia ausência dessa informação(54,5%); sendo maior a falta desse registro no

TJMG. Nos acórdãos identificados, observou-seque a Defensoria representou a maior parte dasações (71,5%), sendo mais frequente no TJRS(Tabela 1).

Do total de ações analisadas, 61,6% solicita-ram antecipação de tutela e 22,2% requereramoutras liminares. A frequência de solicitação deantecipação de tutela foi maior no TJRS e a deliminar foi maior no TJMG e TJPE. Os pedidosliminares foram concedidos na maioria das ações(91,2%), com percentual de indeferimento signi-ficativamente maior no TJMG e TJRS (Tabela 2).

A existência de fundamentação da decisão naurgência e emergência alegada no pedido foi en-contrada na maioria das ações (81,2%), inde-pendentemente do tribunal analisado (TJMG =79,8%; TJRS = 80,2%; TJPE = 92,6%) (p = 0,56).

Quanto ao resultado dos recursos em segun-da instância, houve predominância de favorá-veis aos usuários (97,8%). Um maior número defavoráveis ao SUS (20,2%) e favorável a ambos(4,3%) foi observado em MG, se comparado comos outros dois estados (Tabela 3). Nos favorá-veis aos usuários (n = 481), houve maior frequ-ência de ações ordinárias no RS (58,2%) compa-

Nota: ausência de dados sobre propositura da ação em 203 acórdãos do TJMG, 69 no TJRS e 32 no TJPE.

p>0,05 - Sem diferença significativa entre os grupos

Características da ação

Tipo de ação

Ação ordinária

Mandado de segurança

Ação civil pública

Ação cautelar inominada

Representante jurídico do autor*

Defensoria pública

Advogado particular

Ministério público

Organização não-governamental

Titularidade das ações

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Individual e coletiva

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TJMG TJRS TJPE Total

Tabela 1. Frequência e comparação das características das ações demandadas de acordo com Tribunais de

Justiça de Minas Gerais (TJMG), do Rio Grande do Sul (TJRS) e de Pernambuco (TJPE).

Tribunal

* Diferença com significância estatística dos três tribunais entre si (p<0,05)

* Diferença com significância estatística dos três tribunais entre si (p<0,05)

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rativamente a MG (36,4%) e PE (5,4%) e maiorfrequência de ações do tipo mandado de segu-rança em MG (73,7%) comparativamente ao RS(1,1%) e PE (25,3%) (p = 0,000). Entre os resul-tados favoráveis ao SUS e ao Usuário-SUS, nãofoi observada diferença significativa na distribui-ção da frequência dos tipos de ações entre os tri-bunais (p > 0,05).

Discussão

Os resultados deste estudo mostraram que, demodo geral, houve variabilidade nas ações queenvolviam a saúde pública e nas decisões judici-ais entre os tribunais de justiça dos estados deMG, RS e PE.

O estudo obteve resultados satisfatórios nostrês tribunais, não alcançou a amostra calculada

pela limitação da reposição de perdas. Nos dadosde PE, não foi possível reposição das perdas porser análise do universo. Considerando-se o nú-mero total de acórdãos no ano de 2009, houvediferença entre os três tribunais, desproporcionalà população de cada estado. O maior número deações encontradas foi no estado do RS (3.464),que possuía, em 2009, aproximadamente 10 mi-lhões de habitantes, quase a metade da popula-ção de MG (19 milhões de habitantes), com umtotal de 1.681 acórdãos no mesmo período. JáPernambuco (8 milhões de habitantes) apresen-tou 86 acórdãos, número bem inferior aos de-mais estudados. Estes dados sugerem maior pro-cura pelo Poder Judiciário para o direito à saúdeno RS e que outros fatores, além do tamanho dapopulação, podem ter influenciado essa procura.

Contudo, como foram analisados tribunaisde segunda instância, essa comparação entre os

Pedido liminares

Antecipacao de tutela

Liminar

Não informado

Concessão de pedidos

Deferida

Indeferida

Não informado

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TJMG TJRS TJPE Total

Tabela 2. Resultados dos pedidos de liminares e das concessões de pedidos nos tribunais de Minas Gerais,

Rio Grande do Sul e Pernambuco, 2009.

* Diferença com significância estatística dos três tribunais entre si (p<0,05)

* Diferença com significância estatística do TJPE para os TJMG e TJRS (p<0,05)

Tribunal

Resultado em 2a Instância

Favorável usuário

Favorável SUS

Favorável SUS e usuário

Não informado

%

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20,2

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TJMG TJRS TJPE Total

Tabela 3. Resultados das ações em segunda instância nos tribunais de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e

Pernambuco, 2009.

* Diferença com significância estatística do TJMG para o TJRS e TJPE (p<0,05)

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estados pode não refletir a demanda real, pois aanálise incluiu apenas decisões onde houve re-curso pela parte sucumbente na primeira instân-cia de julgamento, procurando revisão da deci-são e segundo julgamento, ou nos casos de ree-xame necessário. Portanto, esta limitação per-meia todos os resultados apresentados. Adicio-nalmente, uma discussão da diferença acerca daprocura pela efetivação dos direitos à saúde pelapopulação dos três estados deveria incluir tam-bém o cenário da saúde suplementar.

No entanto, esses estados apresentam diferen-ças socioeconômicas e culturais que poderiamjustificar os resultados encontrados. Há caracterís-ticas específicas em relação aos tipos de doenças eagravos mais prevalentes16,17 e o acesso aos servi-ços de saúde17,18. Este acesso, melhor nas regiõesSul e Sudeste apresenta piores índices nas regiõesNorte e Nordeste. Interessante ressaltar, que hádiscrepâncias socioeconômicas não só entre asregiões, mas também internamente. Um exemploé a região Sul, uma das mais desenvolvidas dopaís, mas com maior desigualdade social19.

Em alguns estados, como os pedidos judi-ciais estão aumentando, os serviços de saúde es-tão se organizando para acompanhar o perfil dasdemandas. Há relatos deste acompanhamentoentre os estados estudados, MG14 e RS20, sendotambém identificadas iniciativas em São Paulo21.Não foi possível identificar que o mesmo ocorrano estado de Pernambuco. A baixa frequência deações encontradas na segunda instância ou a fal-ta de pesquisa nesta região do país são possíveisexplicações para este achado.

Ao comparar os tribunais e as ações, verifi-cou-se que as ações ordinárias foram mais pre-valentes no TJRS e os mandados de segurançano TJMG e TJPE. Interessante ressaltar que o tipode ação mais frequente em MG e no RS foi a demaior frequência de resultados favoráveis aosusuários no tribunal correspondente, efeito nãoobservado entre os resultados favoráveis ao SUS.Este fato sugere haver predisposição de resulta-do favorável ao usuário relacionado ao tipo deação escolhida e o tribunal no qual será impetra-da. Estudos específicos poderiam avaliar melhoras causas e consequências deste resultado, se háinfluência nesta escolha pelos representantes ju-rídicos dos pacientes nos estados citados, basea-da na jurisprudência de cada tribunal.

A opção pela ação ordinária justifica-se pelapossibilidade de produzir provas durante o pro-cesso, por exemplo, através de receitas, atestadosmédicos ou perícia, para comprovar o pedidorealizado e, caso tenha uma necessidade premen-

te de receber a prestação, há a possibilidade depedir antecipação de tutela. Nos mandados desegurança, o paciente busca intervenção rápidado poder judiciário, no entanto, as provas quecomprovam o pedido devem ser demonstradasno momento da propositura da ação22. A açãocivil pública reveste-se da particularidade da re-presentação ser específica, só podendo ser feitopelo Ministério Público (MP), Defensoria e As-sociações, destinando-se à defesa de direitos es-pecíficos23. A escolha do tipo de ação é decisão aser tomada em conjunto entre representante ju-rídico do autor e o próprio autor, de acordo comexpectativas e características do direito pleiteado.

Houve predomínio de ações com representa-ção jurídica da Defensoria Pública. Resultadossemelhantes foram encontrados no Rio de Janei-ro24,25 e no Distrito Federal24. Em alguns estados,a Defensoria e o MP são mais atuantes. Em estu-dos nos quais se verificou um predomínio darepresentação da Defensoria Pública, relata-seque a comprovação da hipossuficiência da pes-soa é requisito para propositura da ação por esteórgão e a condição socioeconômica é avaliadano caso concreto. Em outros, como São Paulo,MG e RS, um critério para o acesso à Defensoriaé a renda familiar que deve ser, no máximo, detrês salários mínimos24.

A participação da Defensoria no RS foi maior,estado este com significativo número de hipossu-ficientes informados. Este fato pode ser explicadopela posição atuante da Defensoria no estado, quefacilitaria o acesso dos menos favorecidos parapleitear seus pedidos. O MP tem participação des-tacada em Pernambuco (50,0%), assim como aDefensoria (33,3%).

O acesso à justiça é condição imprescindívelpara o exercício dos direitos de cidadão. Nestesentido, a assistência judiciária é garantida aohipossuficiente, economicamente, consideradopela lei, no art. 2° como “aquele cuja situaçãoeconômica não lhe permita pagar custas proces-suais e honorários de advogado, sem prejuízodo sustento próprio ou da família”26. A Consti-tuição Federal procura promover legalmente estaassistência7 aos que comprovarem insuficiênciade recursos, considerando além da defensoria, oMP e a advocacia pública como funções essen-ciais ao acesso à Justiça por a viabilizarem27.

Portanto, apesar dos questionamentos, é co-mum encontrar ações civis públicas propostaspelo MP na defesa do interesse de um único paci-ente ou de um grupo determinado e restrito, ba-seado na capacidade conferida pela ConstituiçãoFederal, que lhe atribuiu legitimidade para de-

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fender direitos individuais indisponíveis, como odireito à saúde. Dentro dos limites legais, estaprática pode ser um caminho eficiente no com-bate à ineficácia do Poder Público na implemen-tação de políticas públicas, podendo beneficiarsegmentos sociais hipossuficientes28.

No total dos acórdãos nos quais foi possívelverificar o representante, a participação de advo-gados particulares foi pequena, achado seme-lhante ao descrito no Distrito Federal15; por ou-tro lado, em desacordo com o predomínio dacondução das ações por advogados particularesencontrado no estado de São Paulo29, Santa Ca-tarina30 e MG31.

Uma possível explicação para este achado éque a maioria dos estudos concentra em pedidosde medicamentos, diferentemente deste e do rea-lizado no Distrito Federal, que analisou qualquertipo de demanda. Como para a propositura deuma ação, o indivíduo necessita, obrigatoriamen-te, estar representado juridicamente, este dadosugere que usuários do SUS que buscam o PoderJudiciário o fazem com apoio no próprio PoderPúblico, ou seja, através da Defensoria ou MP.

No presente estudo, a falta de dados sobre asituação econômica dos demandantes das deci-sões analisadas não permitiu avaliar se eram hi-possuficientes ou se foi concedido a eles o benefí-cio da justiça gratuita, impossibilitando discutira situação de vulnerabilidade social. A variávelfoi incluída no estudo como de interesse pelo fatode alguns autores discutirem se a judicializaçãoda saúde estaria priorizando os que podem arcarcom os custos de um processo14, atendendo, por-tanto, a pessoas que teriam condições de pagarpelo tratamento pleiteado12,29,31-33 e, assim, o Ju-diciário estaria agravando a situação dos menosfavorecidos. No entanto, embora não se possadizer com certeza que quem procura um advo-gado particular pode realmente arcar com oscustos de tratamento em saúde, pode-se dizerque a afirmação contrária leva a um dado confi-ável, ou seja, pode-se considerar que quem re-correu ao Poder Público, como forma de viabili-zar o acesso ao Poder Judiciário, não pertence auma classe mais favorecida15.

Há ainda a possibilidade do cidadão, mesmosendo hipossuficiente, procurar a justiça utilizan-do-se de advogados particulares, pois a remune-ração de um advogado privado pode ser relati-vamente baixa ou pode haver parceria entre oPoder Público e advogados privados para a atu-ação jurídica15.

O que deve ser considerado na análise é se ocidadão poderia dispor do valor para custear as

despesas judiciais sem comprometer a sua sub-sistência e a de sua família, o que é um dadorelativo ao valor do tratamento do qual se neces-sita e a renda familiar. Esta variável já foi utiliza-da em outro estudo, que considerou que aquelesque eram beneficiários da justiça gratuita eramconsiderados hipossuficientes economicamente,tendo sido encontrado que a concessão da justi-ça gratuita e, consequentemente, o reconhecimen-to da hipossuficiência econômica é característicamajoritária nas demandas por medicamentos9.

No entanto, as comparações e as discussõesquanto à representação jurídica das ações e suarelação com a condição de hipossuficiência pre-cisam ser avaliadas com cuidado, devendo serconfirmadas por outros estudos, considerando-se a alta proporção de ações com ausência deinformações sobre esta representação e sobre acondição socioeconômica.

Nos três tribunais estudados, as ações forampropostas predominantemente de forma indivi-dual, com baixa frequência de ações coletivas.Estes resultados conduzem à reflexão sobre apossibilidade de aumento das desigualdades emfunção de privilégios individuais contrapondo-se o direito à vida e à saúde na esfera individual ena coletiva. Há um questionamento se o gasto derecursos para atender de forma individualizadaaos pedidos poderia gerar falta de recurso para osuprimento das necessidades coletivas. Como ogasto com a saúde pública no Brasil é aquem donecessário, parece-nos ser este um argumentosimplista com que os gestores do orçamento dasaúde tentam justificar o não atendimento deuma demanda individual.

Nesse sentido, o direito individual poderia serconsiderado um obstáculo às necessidades detoda a população, constituindo um equívococonsiderar o não fornecimento de determinadoserviço como mitigação do próprio direito à saú-de34. As leis enfatizam mais o direito individual àsaúde, entretanto, este deveria ser consideradolevando-se em conta a coletividade. A existênciade um direito à saúde individual leva ao questi-onamento de como pesar o direito de um indiví-duo contra o do outro, ou como resolver o con-flito de direitos13.

Sob a ótica de um indivíduo, que se encontradoente, com uma necessidade urgente, conside-ra-se que a sua demanda deve ser atendida deforma integral e com celeridade, pois há, para omesmo, a possibilidade de sofrer com o descasoou com a ineficiência do Estado em cumprir comas suas obrigações legais de garantias ao direito àsaúde e à vida. Esperar um sacrifício de sua inte-

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gridade física ou mesmo de sua vida, em proldos direitos coletivos, não seria uma atitude fac-tível em termos de conduta individual9.

Não há dúvidas que o direito à saúde com-preende o plano coletivo e o individual. No indi-vidual, implicaria a possibilidade de escolhas dis-tintas e alternativas, entre elas, os recursos a se-rem procurados e o tipo de tratamento a ser sub-metido. No coletivo, remete-se à garantia da ofertade cuidados da saúde dos quais todos necessi-tam, o que corresponde ao ideal de igualdade eque, por sua vez, se submete ao pleno desenvol-vimento do Estado35.

O argumento da existência do direito à saúde,especialmente o individual, reveste-se de uma im-portância singular para o Judiciário, que tem odever de decidir quando solicitado, quase sempreem situação de prestações de cunho emergencial,cujo indeferimento acarretaria o comprometimen-to irreversível ou mesmo o sacrifício de outrosbens essenciais, como a vida, a integridade física ea dignidade da pessoa humana36. Há a argumen-tação de que indeferimento de uma prestação re-ferente à saúde por falta de recursos poderia sercomparado ao de condenar, mesmo que indire-tamente, uma pessoa à morte, pena esta proibidano ordenamento jurídico brasileiro36.

Frente aos fatos e considerando a teoria dajustiça distributiva, o poder judiciário tem consi-derado como parâmetro mais justo, o princípioda necessidade descrito por Deutsch em 1975, ten-dendo a se preocupar com a promoção do bemestar do indivíduo. No entanto, em um país mar-cado pelas injustiças, existe a necessidade de secompreender a associação entre o julgamento dejustiça, o comportamento distributivo e o desen-volvimento sociomoral, como forma de um mai-or entendimento da dinâmica da vida social37 .

Houve uma pequena frequência de ações comrepresentação jurídica com a participação deONG. Assim, a participação dessas organizações,que foram tão importantes para o surgimento eo fortalecimento do processo de judicializaçãoda saúde no Brasil2, parecem ter perdido força ejá não são tão procuradas pelo usuários15. Con-clui-se que o perfil dos demandantes já não é omesmo do início do fenômeno, quando houveuma mobilização de pessoas com os mesmosinteresses. Os usuários têm preferido a solicita-ção individual dos pedidos à procura de associa-ções para a defesa de seus direitos, sem uma pre-ocupação com a coletividade.

O indivíduo, quando procura a via judicial,seja pela urgência do agravo a saúde ou pela de-mora já apresentada pelos serviços, deseja rápi-

da satisfação de suas necessidades, fato compro-vado pelo alto número de pedidos liminares.Neste estudo, foi encontrada uma grande por-centagem de deferimento desses pedidos, nos trêsestados. Percentual alto de concessão de tutelafoi também observado no Rio de Janeiro (96,9%das ações)9, Distrito Federal (91,95%)15 e em SãoPaulo (93,5%)38.

As decisões estão fundamentadas na descri-ção de situações que levam o Judiciário a acredi-tar em prejuízo na demora de concessão de umadeterminada prestação. Entretanto, muitas vezesa medida torna-se irrevogável pelo cumprimen-to, por exemplo, no caso de intervenções cirúrgi-cas, tornando também irreversível o dano causa-do ao orçamento do ente estatal. Nas decisõesquanto à concessão de antecipação de tutela, oprincipal critério judicial seria a constatação danecessidade do demandante em ter acesso urgen-te a determinado medicamento ou procedimen-to, tendo como respaldo os documentos forneci-dos pelo demandante, em geral, os receituáriosmédicos9,24. O tribunal de Minas Gerais e o doRio Grande do Sul se mostraram mais conserva-dores na concessão desses pedidos, com o maiorpercentual de pedidos indeferidos, fator que podeser mais uma vez explicado pela aproximação dosserviços públicos de saúde e de justiça14,20,21,29.

Neste estudo, observou-se a alegação de ur-gência e emergência em quase totalidade das açõescom solicitação de pedidos liminares. Resulta-dos semelhantes foram encontrados em MinasGerais14, São Paulo39 e Distrito Federal15, com altopercentual de concessão dos pedidos de limina-res usando como fundamento a urgência do pe-dido, em face da possibilidade de se causar danoirreversível à saúde do demandante.

O conceito de urgência e emergência, defini-do pelo Conselho Federal de Medicina, conside-ra a urgência como a “ocorrência imprevista deagravo à saúde com ou sem risco potencial devida, cujo portador necessita de assistência mé-dica imediata” e emergência “a constatação decondições de agravo à saúde que impliquem ris-co iminente de vida ou sofrimento intenso, exi-gindo, portanto, tratamento médico imediato”40.Se nem mesmo neste conceito fica realmente fácildefinir e diferenciar uma condição da outra, pode-se imaginar o que acontece com a percepção deum usuário e de um juiz ou desembargador nomomento de emitir uma decisão. Como os pró-prios profissionais de saúde não têm a clara no-ção destes conceitos, o usuário vai utilizá-los deacordo com a necessidade ou percepção a respei-to do seu próprio estado de saúde e sua experiên-

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cia de vida41. O mesmo, possivelmente, é o queacontece com o julgador ao proferir sua decisãono processo. Neste estudo, observou-se que, paraa maioria das ações nas quais foi alegada urgên-cia e emergência, houve o deferimento destes pe-didos liminares, independentemente do tribunal.

Enquanto a concessão da medida liminarpode causar danos ao erário, o indeferimentopoderia causar um comprometimento irreversí-vel da saúde, integridade física, dignidade da pes-soa humana e, muitas vezes, da própria vida docidadão. A urgência/emergência por si só podeacarretar resultados que podem ser desfavorá-veis, tanto para o usuário como para o SUS, so-bretudo pela exígua discussão do caso.

O maior número de decisões foi favorável aosusuários nos três estados, o que se assemelha aoobservado em São Paulo, onde 90,3% das açõesforam julgadas como procedentes, ou seja, osdemandantes, pacientes do SUS, obtiveram a pres-tação pretendida na maioria das vezes38. No pre-sente estudo, houve ainda um pequeno númerono qual os desembargadores optaram por conce-der o pedido de forma parcial, o que foi conside-rado como favorável a ambos. O estado de Mi-nas Gerais apresentou mais decisões favoráveisao SUS ou de concessão parcial do pedido frenteaos outros dois estados estudados, sugerindo umadiferença de posicionamento nas decisões de acor-do com o tribunal avaliado. Há ainda que se pon-derar o fato do TJRS ser conhecido como umtribunal de vanguarda, muitas vezes proferindodecisões inéditas entre os tribunais brasileiros42, oque poderia explicar, em parte, algumas destasdiferenças encontradas neste estudo.

Este dado deve ser analisado com mais pro-fundidade, pois sugere que fatores como o tipode ação mais frequente no estado e o perfil soci-oeconômico do demandante podem estar inter-ferindo nos resultados.

O fenômeno de judicialização da saúde é umarealidade para ambos, Poder Judiciário e SistemaÚnico de Saúde. A participação da Defensoria edo MP parece estar viabilizando o acesso aosprocessos judiciais. Embora o processo de judi-cialização tenha começado de forma coletiva nopaís, o que se observa atualmente é que o cida-dão tem buscado de forma individual garantirseu direito à saúde, mesmo que recorrendo ao

próprio Poder Público como forma de auxíliono processo. Os tribunais estudados demons-tram que há uma forte tendência do Judiciárioem acolher as solicitações de prestações feitas aoSistema Único de Saúde, inclusive com conces-sões de liminares fundamentando-se, muitas ve-zes, na urgência/emergência da necessidade daprestação, acreditando evitar, desta maneira, queo usuário possa sofrer algum dano irreversívelpela demora na prestação.

Considerações Finais

No estudo realizado, baseado nos recursos jul-gados em segunda instância de ações impetradascontra os serviços públicos de saúde, evidencia-ram-se diferenças entre os estados quanto ao tipoda ação demandada e a participação do poderpúblico na representação jurídica dessas ações.Os resultados sugerem maior acesso ao poderjudiciário e maior representação pela defensoriapública no Estado do Rio Grande do Sul. EsteEstado, juntamente com Pernambuco, apresen-tou maior frequência de resultados favoráveisaos usuários comparativamente a Minas Gerais.

O maior número de decisões favoráveis aosusuários pode interferir e modificar os sistemas desaúde, em especial o Sistema Único de Saúde, ce-nário deste estudo. O poder judiciário funcionan-do como guardião, com base na Constituição tempossibilitado essas mudanças, que precisam, noentanto, ser refletidas criticamente. E o princípioda equidade deve permear essas reflexões.

As diferenças entre decisões dos tribunais dejustiça devem ser estudadas com finalidade de secompreender as características regionais de aces-so aos serviços tanto de saúde como os relacio-nados ao poder judiciário, da eficiência na pres-tação dos serviços públicos, posturas dos profis-sionais de saúde e gestores locais e ainda do co-nhecimento e da capacidade de exercício dos di-reitos, garantidos por lei, por parte da popula-ção, bem como valores e concepções utilizadospelos juízes no julgamento dos recursos.

Reforça-se a necessidade de estudos que con-templem não somente a dimensão do “judiciário”,mas que incluam nessa discussão valores distribu-tivos e o comportamento moral da sociedade.

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Colaboradores

DV Travassos foi responsável pela coleta de da-dos. RC Ferreira foi responsável pela revisão es-tatística, análise dos dados e revisão do trabalho.Os demais autores participaram em conjunto naconcepção, redação, análise dos dados e revisãodo trabalho.

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Artigo apresentado em 31/07/2012Aprovado em 29/10/2012Versão final apresentada em 13/11/2012

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