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Judeus durante a Primeira Cruzada por Reuven Faingold “Morrer, mas não transgredir” é a expressão que melhor descreve a postura dos judeus na época das Cruzadas. Martírio e Kidush Hashem (Santificação em Nome de D’us) eram valores essenciais para proteger os preceitos do Judaísmo. Na chegada dos cruzados toda uma geração foi testada, demonstrando atos de heroísmo pouco comuns. Edição 91 - Abril de 2016 HISTORIOGRAFIA DAS CRUZADAS As Cruzadas são um dos temas mais instigantes da história. Pesquisadores dos séculos 19 e 20 entendem as Cruzadas como uma campanha medieval para libertar o Santo Sepulcro, local em Jerusalém onde se acreditava que Jesus fora sepultado, mas também as estudaram tomando em consideração os interesses comerciais das cidades italianas, a força política do Papado diante das monarquias europeias e a busca pela reunificação da Igreja Católica com a Igreja do Oriente nascida em Bizâncio. Historiadores positivistas explicaram as Cruzadas sob uma ótica socioeconômica e política, mantendo como eixo fundamental o choque entre duas religiões opostas, a luta entre a cruz e o crescente. Assim, as Cruzadas devem ser vistas como uma disputa pelo

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Judeus durante a Primeira Cruzadapor Reuven Faingold“Morrer, mas não transgredir” é a expressão que melhor descreve a postura dos judeus na época das Cruzadas. Martírio e Kidush Hashem (Santificação em Nome de D’us) eram valores essenciais para proteger os preceitos do Judaísmo. Na chegada dos cruzados toda uma geração foi testada, demonstrando atos de heroísmo pouco comuns.Edição 91 - Abril de 2016

HISTORIOGRAFIA DAS CRUZADASAs Cruzadas são um dos temas mais instigantes da história. Pesquisadores dos séculos 19 e 20 entendem as Cruzadas como uma campanha medieval para libertar o Santo Sepulcro, local em Jerusalém onde se acreditava que Jesus fora sepultado, mas também as estudaram tomando em consideração os interesses comerciais das cidades italianas, a força política do Papado diante das monarquias europeias e a busca pela reunificação da Igreja Católica com a Igreja do Oriente nascida em Bizâncio.Historiadores positivistas explicaram as Cruzadas sob uma ótica socioeconômica e política, mantendo como eixo fundamental o choque entre duas religiões opostas, a luta entre a cruz e o crescente. Assim, as Cruzadas devem ser vistas como uma disputa pelo domínio geográfico entre crenças que ofereciam a palavra dos Evangelhos ou a do Alcorão.Com o advento do marxismo, as Cruzadas ganharam um olhar sustentado em respostas meramente econômicas. Alguns historiadores do século 20 enquadraram-nas dentro de um campo histórico amplo e universal. Porém, nenhuma das linhas historiográficas outorgou importância aos judeus da Europa. A temática “judaica” lhes era totalmente esquecida: os positivistas não julgavam ser esse um assunto suficientemente relevante para ser pesquisado, enquanto para

os marxistas era um tema insignificante, sem maior interesse no contexto da luta de classes.Foi na visão globalizada dos professores Steven Runciman, e Joshua Prawer que encontramos uma análise detalhada sobre o papel dos judeus no decorrer das Cruzadas. Estes dois acadêmicos observam uma mudança ideológica radical na Europa do século 11. Para eles, a Primeira Cruzada transformaria o Cristianismo numa “religião combativa”, apropriando-se da ideia de “guerra santa” -um conceito que nascia na contramão dos princípios morais da Igreja. O Cristianismo criou um movimento religioso legitimando a ideia de peregrinação a Jerusalém desde o Velho Continente.JUDEUS NA EUROPANas peregrinações à Terra Santa participaram vários grupos sociais: condes, nobres, clérigos, camponeses e servos, todos buscando uma absolvição de seus pecados. Nos anos 1064-1065, sob a liderança do Arcebispo Sigfred de Mogúncia e do abade Ingulf de Croyland, 7 mil peregrinos se dirigiram a Jerusalém, falecendo a maioria no caminho.Este processo de peregrinação se inicia no “Concílio de Clermont”, em 1095, estabelecendo-se na Europa ordens militares como os Templários, que ocasionaram transformações na vida cotidiana e no destino dos judeus, e criaram um abismo entre a civilização ocidental e o Judaísmo. Cresce, assim, uma sistematização das hostilidades contra os judeus. Como a Igreja os declara “inimigos da fé”, as camadas populares iniciam uma onda de violência contra os Filhos de Israel. Afinal, a maioria deles vivia nas cidades e tinha uma formação superior àquela encontrada na população local.Vários pyutim (hinos hebraicos em verso) descrevem as dificuldades sofridas pelos judeus por rejeitar o Cristianismo como a “fé verdadeira”. Desde a destruição do Segundo Templo e o exílio de Roma em 70 E.C., várias comunidades judaicas se espalharam pela Europa.Seus membros jamais esqueceram Jerusalém, como bem o denota a contínua entoação da prece “O ano próximo, em Jerusalém”, e a reafirmação de seu compromisso com a Terra de Israel.

VÉSPERAS DA PRIMEIRA CRUZADANa época medieval, desfrutavam de tranquilidade e prosperidade na Europa cristã os judeus que habitavam em territórios do Império Carolíngio, assim como os que, na Península Ibérica, viviam sob domínio muçulmano. Porém, a luta entre o poder papal e o crescente poder político dos monarcas, criou-lhes uma nova situação.Em meados do século 11, era instável a situação dos judeus da Europa central. Na França e na Alemanha, dependiam da proteção dos reis, com os quais mantinham relações “aceitáveis” já que os reis careciam de seus talentos e suas riquezas. Os judeus concediam empréstimos aos governantes, que, entre outros, os incumbiam de coletar impostos para o Tesouro Real, atividade que os tornaria cada vez mais impopulares entre os camponeses e a pequena nobreza que os culpava pelas penúrias pessoais e a impossibilidade de progredir na vida. Ao se iniciarem as Cruzadas, muitos cristãos mantinham dívidas com judeus. A peregrinação à Terra Santa era não só uma forma de receber perdão da Igreja e do Céu pelos pecados, mas também um meio de libertar-se das obrigações econômicas.Alguns anos antes das Cruzadas, aconteciam perseguições esporádicas. Um cronista judeu anônimo relata o massacre de Otranto, uma vila ao sul da Itália, em 930: “Judeus foram perseguidos... ao Rabino Yeshaya lhe atravessaram o pescoço com uma faca e o mataram como a um cordeiro no pátio da sinagoga; e o Rabino Menachem caiu dentro de um poço, e a nosso mestre o estrangularam”. Em 1007 aconteceriam massacres na França e a expulsão e conversões dos judeus de Mogúncia (Mainz), na Alemanha.Entre os séculos 8 a 11, os judeus da Espanha viviam em paz e integrados ao Estado islâmico, sendo considerados pelos cristãos como “colaboradores” dos muçulmanos. Em 1064, na conquista de Barbastro, motivado pelos maus tratos a judeus, o Papa Alexandre II escreveu aos bispos hispânicos, lembrando-os da diferença entre muçulmanos e judeus: “Os primeiros são inimigos irreconciliáveis dos cristãos, enquanto os últimos são meros colaboradores”.

Antes da Primeira Cruzada, os reis e as autoridades eclesiásticas reconheciam o valor dos judeus oferecendo-lhes proteção e direitos. Em 1084, o Bispo de Espira lhes outorgou uma carta de privilégios, reconhecendo-os como agentes colonizadores da cidade. Em 1090, o rei Henrique IV renovou-lhes os privilégios, outorgando um direito similar aos judeus de Worms. Esses documentos lhes permitiam exercer livremente o comércio, garantindo também suas liberdades religiosas.No final do século 11, chegaram notícias do Oriente relatando as penúrias experimentadas pelos peregrinos que viajavam à Terra Santa. Além disso, os muçulmanos haviam profanado o Santo Sepulcro em Jerusalém e demais Lugares Santos cristãos na Terra Santa, fato que enfureceu as autoridades eclesiásticas. A resposta foi o discurso do Papa Urbano II, em Clermont Ferrant, em 26 de novembro de 1095. A chamada do Papa para as Cruzadas agitou o povo.PRIMEIRA CRUZADAA Primeira Cruzada foi proclamada em 1095, pelo Papa Urbano II, com o objetivo duplo de auxiliar os cristãos bizantinos e libertar Jerusalém e a Terra Santa do jugo muçulmano. Na verdade, a Primeira Cruzada não foi um único movimento, mas um conjunto de ações bélicas de inspiração religiosa, que incluiu a Cruzada Popular, a Cruzada dos Nobres e a Cruzada de 1101.A conclamação era para libertar Jerusalém dos infiéis, mas a Primeira Cruzada deu vazão a uma longa tradição de violência organizada contra os judeus. Primeiro na França e, depois, na Renânia, alguns líderes de grupos populares interpretaram que a guerra contra os infiéis podia ser aplicável não só aos muçulmanos, no Levante, mas também contra os judeus, que viviam na maioria das comunidades europeias. Muitos cristãos não viam motivo para viajar milhares de quilômetros para lutar contra os inimigos do Cristianismo, quando estes estavam, também, à porta de suas casas.O cronista Samuel ben Yehudá descreveu o sentimento judaico por volta de 1096: “... Caiu sobre nós uma densa escuridão”. Outro cronista do século 12 assim se expressou: “As lagostas não têm rei, mas

andam todas em bandos”, fazendo clara alusão à postura devastadora dos cruzados. Uma cruzada não era apenas a retomada dos Lugares Santos cristãos tomados pelos árabes; era também a vingança pelo suposto crime de “deicídio” cometidos pelos judeus.Em 1096, os cruzados, liderados por Godofredo de Bouillon e Robert de Normandia, iniciam sua própria guerra contra os infiéis, saqueando e assassinando, sem trégua, todos os judeus à sua frente. Na crônica de Samuel ben Yehudá ficou registrada a vinda dos cruzados: “Quando passam por povoados onde há judeus, dizem que viajam a terras distantes à procura de vingança dos ismaelitas; porém aqui vivem também judeus cujos antepassados mataram e crucificaram sem motivo. Portanto, devemos destruí-los como povo para que o nome de Israel não seja lembrado..”. O conceito de “deicídio” surgido no século 4 voltara revigorado.Mesmo que as atrocidades começassem em Rouen e Normandia, as maiores matanças se propagaram em direção do rio Reno, região superpovoada por comunidades judaicas. No início do verão de 1096, cerca de 10 mil cristãos partiram em cruzada, percorrendo o vale do Reno em direção ao Norte (direção oposta a Jerusalém), iniciando uma série de pogroms. A proteção dada aos judeus por bispos e imperadores não evitou uma catástrofe de dimensões gigantescas.MASSACRES EM ESPIRA, WORMS E MOGÚNCIANo Sacro Império Romano-Germânico, em Espira, vivia uma comunidade judaica importante que havia recebido privilégios do imperador. No entanto, em 3 de maio de 1096, os cruzados, junto com os moradores locais, atacaram os judeus. Segundo crônicas judaicas, 11 membros da comunidade que resistiram ao batismo foram mortos, enquanto outros se refugiaram na sinagoga. O bispo da cidade, Johannes, tentou reestabelecer a ordem, punindo os agitadores e oferecendo asilo aos judeus em seu próprio palácio.As notícias acerca dos sangrentos massacres de Espira chegaram rapidamente a Worms. Boa parte dos judeus da cidade procurou refúgio no palácio do Bispo Adalberto, enquanto outros tentavam confiar nos vizinhos, para que não os entregassem.

Quando os cruzados apareceram corria o boato que os judeus haviam matado um cristão. Em 18 de maio de 1096 a cidade foi palco de grande matança. Famílias judaicas inteiras foram chacinadas nas casas, rolos da Torá foram retirados das sinagogas e destruídos. Os cruzados conseguiram batizar poucos judeus à força. Muitos optaram por tirar suas próprias vidas; mães mataram seus filhos para depois se matarem. Segundo um cronista, “pelas ruas da cidade somente se escutava o Shemá Israel”.Dois dias mais tarde, chegou a hora dos judeus no Palácio Episcopal. Diante da ameaça dos Cruzados, o Bispo Adalberto tentou convencer os judeus entrincheirados que se deixassem converter. Eles pediram um tempo para pensar. Esgotado o prazo, o bispo abriu as portas e encontrou uma cena dantesca. Não tinha sobrado um único judeu com vida, todos se haviam suicidado. Eis o relato do cronista judeu: “No dia 25 de Iyar, o terror se instalou sobre aqueles judeus que se abrigaram no Palácio Episcopal. Eles se fortaleciam pelo exemplo de seus irmãos, santificando-se em Nome de D’s, observando as palavras do Profeta ‘as mães caem sobre suas filhas e os pais caem sobre seus filhos’. Um matava seu irmão, outro seus pais, esposa e filhos. Todos aceitavam de bom grado o Desígnio Divino, entregando suas almas ao Todo Poderoso, gritando, ‘Ouve Israel, o Eterno é Nosso D’us, o Eterno é Um”.

Segundo a crônica, os cruzados não respeitaram sequer os mortos. Retirando os corpos do palácio, cortaram-nos em pedaços e dispersaram seus restos. Apenas o judeu Simcha Cohen se salvou e foi batizado à força. Imediatamente, tirou uma faca e feriu três carrascos, porém o populacho o chacinou. Naqueles dias de 1096 foram mortos 800 judeus, todos atirados numa vala comum.Depois de Worms era a vez de Mogúncia. Liderados pelo Conde Emich de Leisingen, vários grupos de marginais e cruzados fanáticos entraram na cidade. Os membros da comunidade judaica pediram ajuda ao Arcebispo Rutardo, obtendo permissão para se refugiar até o perigo passar. Segundo o cronista, mil judeus se aglomeraram no pátio episcopal após entregarem ao bispo todos os seus objetos de valor. No

entanto, ao adentrar Emich com seus soldados no palácio, o bispo sumiu subitamente e a guarda episcopal os deixou sem proteção. O cronista cristão Alberto de Aix testemunhou esses momentos: “Emich e sua turba, armados com picaretas e lanças, atacaram os judeus (...). Depois de quebrar fechaduras e destruir portões, alcançaram-nos, matando 700 deles. Em vão tentaram defender-se; as mulheres foram assassinadas e os jovens, sem distinção de sexo, foram mortos a facadas. Os judeus se armaram contra si mesmos: correligionários, esposas, filhos, mães e irmãs, tiraram suas vidas mutuamente. Horror é ter que contar isto... Somente um pequeno número escapou com vida desse cruel massacre. Alguns receberam o batismo mais por temor à morte que por amor à fé cristã”.A chacina de Mogúncia foi presenciada pelo cronista Shelomo bar Shimon, um dos poucos sobreviventes. Seu relato é comovedor: “Quando os filhos da Aliança Sagrada, liderados pelo Rabino Kalonymos ben Meschulam, presenciaram a chegada dos cruzados, começaram a se preparar para o combate. Mas, pelas desgraças [ocorridas] haviam jejuado debilitando-se muito, sem poder resistir ao inimigo. Durante a Lua Nova do mês de Sivan, chegou o conde Emich com seu exército, assassinando anciãos e moças, sem ter compaixão pelo sofrimento nem pela dor, nem pela fraqueza nem pela doença... Quando viram que seu destino estava selado, incentivaram-se uns a outros dizendo: ‘Soframos com paciência e heroísmo tudo aquilo que nossa sagrada religião nos ordena...’. De imediato os inimigos nos matarão, porém nada interessa mais que nossas almas adentrando puras na Luz Eterna... Formando um coral exclamaram: ‘Bem-aventurados aqueles que sofrem em nome de um D’us único’ ”.Um parágrafo mais adiante, o cronista Shelomó bar Shimshon relata os últimos momentos dos judeus no pátio episcopal: “Homens piedosos [tzadikim] sentados no meio do pátio, junto ao Rabino Itzhak ben Moshé, rezavam embrulhados em seus xales de oração [talitot]... O Rabino foi o primeiro a entregar seu pescoço para logo ser decapitado, caindo sua cabeça no chão. Enquanto isso, os demais judeus continuavam sentados no mesmo pátio dispostos a atender a vontade do Criador. Os inimigos lhes atacaram com pedras e flechas, mas eles

não se mexeram de seus lugares, morrendo todos. Aqueles que estavam nos aposentos do palácio, decidiram matar-se com suas próprias mãos...”.Os judeus feridos imploravam por água, mas ao saber que essa seria a água para batizá-los se negavam a recebê-la. O cronista Shelomó bar Shimshon descreve a coragem de um judeu que matou três soldados com sua faca. Imediatamente, foi morto. Destaque para um grupo de judias refugiadas no palácio episcopal de Mogúncia. Elas “espalharam dinheiro entre os cruzados, para ganhar tempo e cometer o suicídio coletivo, al Kidush Hashem”. As mulheres atiravam pedras aos soldados, mas também eram feridas no rosto com pedras lançadas com estilingues.Emich matou e queimou o bairro judeu. Nesses fatídicos dias retiraram do palácio episcopal 1.300 cadáveres. Aproximadamente 60 judeus, que fugiram e se esconderam na catedral, foram rapidamente localizados e mortos. Dois judeus que haviam aceitado o batismo para salvar suas mães foram presos: Itzhak ben David e Uri ben Yosef. Ambos buscaram refúgio na sinagoga, mas acabaram morrendo nas chamas. O Rabino Kalonymos com 50 judeus fugiram rumo a Rudesheim, pedindo socorro ao Arcebispo da vila. Em vão o clérigo tentou convencê-los a se converter. Rabino Kalonymos quis agredir um nobre, mas rapidamente foi impedido e executado.O massacre de Mogúncia fortaleceu espiritualmente os judeus. Para o cronista Shelomó bar Shimshon, mesmo sendo desigual, a chacina consolidou o Kidush Hashem. Sentindo na própria carne o massacre. Shimshon atribuiu a derrota “ao cansaço físico resultado de rezas e jejuns”. Para ele, o judeu, “pisoteado como lixo de rua, se equipara em sua valentia ao intrépido cavaleiro cruzado”.Os judeus se defendiam como podiam, porém era impossível vencer um exército treinado. Quando Emich invadiu Colônia em 1º de junho de 1096, os judeus já estavam dispersos em localidades vizinhas. Houve judeus hospedados em casas de vizinhos cristãos. Ao encontrarem as casas judaicas vazias, os cruzados arrasaram tudo, queimando a sinagoga e a Torá.

Apenas em Treveris e Ratisbona (hoje Regensburg), na Baviera, os cruzados conseguiram batizar pela força a comunidade. Como de costume, a maioria buscou proteção no palácio do Arcebispo Eguilberto, mas os cruzados os achavam e assassinavam. Outros se jogavam no rio Mosel, situado ao nordeste da França. O cronista escreveu: “Algumas mulheres encheram suas mangas e sutiãs com pedras e se jogaram ao rio desde uma ponte”.O Arcebispo de Treveris e Ratisbona exigiu também o batismo. Um rabino de nome Micha solicitou que ele lhe ensinasse os princípios da religião católica, mas logo desistiu e abandonou o Cristianismo. Metz, onde morreram 22 judeus, teve batismos coletivos forçados. Famílias inteiras de judeus de Ratisbona foram lançadas brutalmente nas águas do Danúbio para serem batizadas. Durante três meses o terror se instalou nas comunidades do Reno. Um belo poema judaico medieval lamenta as valiosas perdas: “No terceiro dia do terceiro mês as lamentações não paravam... Cobrirei com torrentes de lágrimas os cadáveres de Espira e me lamentarei amargamente pelos da comunidade de Worms, e meus gritos de dor ecoarão pelas vítimas de Mogúncia”. Entre maio e julho de 1096, nas províncias do Reno foram mortos 12 mil judeus.RUMO A TERRA SANTANenhum dos grupos de cruzados que participaram da Cruzada Popular, parte do movimento chamado de Primeira Cruzada, chegou à Terra Santa. Pelas estradas, eram contidos por outros grupos cristãos que tinham suas terras devastadas. O cronista Albert de Aquisgran comenta: “Depois das crueldades cometidas, carregando as riquezas roubadas aos judeus, aquela gentalha insuportável composta por homens e mulheres, continuou sua viagem rumo a Jerusalém, passando pela Hungria”. Lá o rei húngaro Koloman os aniquilou. Para o cronista “tudo era obra de D’us contra peregrinos depravados que haviam pecado ao matar judeus”.O conde Emich e seu exército jamais chegaram a Jerusalém. Ele morreu ao regressar à sua pátria. O dia de sua morte em 1117, estrelas com formato de gotas de sangue teriam caído do céu.

O Imperador e o Papa se posicionaram contrariamente diante dos excessos dos cruzados. Henrique IV emitiu uma autorização para que as pessoas batizadas à força pudessem voltar ao Judaísmo. Já o Papa Clemente III replicou: “Ouvimos que judeus batizados estão desertando da Igreja, e tal coisa é pecaminosa; portanto nós exigimos de ti (Henrique IV) e de todos nossos irmãos que a santidade da Igreja não seja profanada pelos judeus”.Em 1103 houve uma trégua entre o poder político e religioso. Os judeus poderiam voltar ao Judaísmo mediante pagamento em favor da Igreja, e os bens das vítimas sem herdeiros seriam confiscados em benefício do Tesouro real. Todos saíram satisfeitos, inclusive os judeus que conseguiram reconstruir sua sinagoga em Mogúncia, apenas oito anos depois da Primeira Cruzada.PALAVRAS FINAISOs violentos ataques ocasionados pelos cruzados entre 1096-1099 poderiam ter sido apenas um episódio isolado na História Medieval, no entanto essas ações em busca de um “perdão religioso” mudaram radicalmente a mentalidade europeia. A procura de novos horizontes levou ao enriquecimento ilícito e a uma religiosidade extrema.As Cruzadas prejudicaram o desenvolvimento do Judaísmo das comunidades da Alemanha. Elas criaram um distanciamento cada vez maior entre cristãos e judeus, um espaço que foi aumentando com o tempo, atingindo seu ponto mais alto em 1215. Nesse ano, o Concílio Latrão IV, liderado pelo Papa Inocêncio III, ordena aos monarcas da Europa aceitar uma legislação que obriga todos os judeus a habitar em bairros separados e portar em suas vestes o distintivo amarelo, sinal de humilhação e discriminação. Dessa forma, ficava aberto o caminho para outras Cruzadas. Tudo era apenas uma questão de tempo.

Pompeia: a destruição do Templo e a Retribuição DivinaEm 24 e 25 de agosto do ano de 79 E.C., o vulcão Vesúvio entrou em erupção, arrasando Pompeia, onde a elite romana mantinha luxuosas mansões. A erupção ocorreu, praticamente no mesmo dia, nove anos

após os legionários romanos terem incendiado o Templo Sagrado de Jerusalém. Uma trágica coincidência ou a tempestade de fogo que se abateu sobre os romanos foi um dos castigos por terem destruído o Templo?Edição 88 - Junho de 2015

De acordo com relatos da época, naqueles dois dias de agosto do ano de 79 o Vesúvio entrou em erupção, após quase 900 anos de inatividade, lançando na atmosfera toneladas de lava, rochas vulcânicas e gás sulfúrico, altamente tóxico, a uma proporção de 1,5 milhão de toneladas por segundo. A tempestade de fogo atingiu as imediações de Pompeia, Herculano e Estábia, sendo que as duas primeiras foram completamente destruídas. Estima-se que 16 mil pessoas morreram, 2 mil das quais dentro de Pompeia. A energia térmica liberada durante a erupção, considerada uma das mais catastróficas de todos os tempos, foi milhares de vezes maior do que a decorrente da bomba atômica jogada sobre Hiroshima.Um judeu desconhecido foi o autor do mais antigo depoimento que chegou até nós sobre a tempestade de fogo provocada pelo Vesúvio. Escrito apenas um ano depois de sua ocorrência, no mais tardar em agosto de 80, o depoimento está no IV livro dos Libri Sibillini. Para o autor, assim como para muitos outros judeus, não havia dúvida de que a catástrofe tinha sido um dos merecidos castigos que se abateram sobre os romanos por terem destruído o Templo de Jerusalém “e a maldade feita aos piedosos homens que viviam nos arredores do Templo Sagrado de Shlomo, HaMelech”.É verdade que D’us revela Seus desígnios apenas para profetas, e não temos como saber com certeza que a destruição de Pompeia ocorreu devido à destruição do Templo. Não obstante, a coincidência é tremenda e o judaísmo não acredita em coincidências. E, pensemos no seguinte – coincidência ou não, a cidade de Pompeia foi nomeada em homenagem a um general que profanou o Templo de Jerusalém. Lá foi também a capital das diversões e prazeres, independentemente do seu

grau de moralidade, da elite romana. Quando foi soterrada em cinzas, muitos pensaram que os romanos já o esperavam, e viram a erupção como um castigo Divino.Pompeia e HerculanoNo dia da erupção, Pompeia (em latim, Pompeii), uma cidade na região da Campânia, vivia seu auge em meio à sociedade romana. A cidade, produtora de vinho e azeite, situava-se a 22 km a sudoeste da baía de Nápoles, próxima ao vulcão Vesúvio, de 1.300 metros de altura.  A cidade foi fundada pelo povo osco, de origem pelágica da Campânia, talvez ainda antes da fundação de Roma, ficando nos séculos seguintes sob domínio grego, etrusco e samnita antes de ser conquistada pelo general romano Lúcio Cornelio Sulla, em 89 a.E.C. Situava-se às margens do mar e isto, aliado ao fato de estar próxima à foz do Rio Sarno, favorecia o comércio. Ao se tornar uma colônia romana, sob o nome de Colonia Cornelia Veneria Pompeianorum, transformou-se numa via importante para o transporte de bens e produtos que chegavam do mar e precisavam ser levados a Roma ou ao sul da Itália.A comercialização de água, vinho e da agricultura também se tornou fator importante para a cidade. Naquele agosto do ano 79 havia em Pompeia cerca de 20 mil pessoas. Além da elite romana que lá possuía luxuosas mansões, viviam na cidade mercadores, artesãos e agricultores, que exploravam o rico solo da região. Achados arqueológicos revelam que também havia judeus vivendo em Pompeia.A segunda cidade totalmente destruída pela erupção, Herculano, situada a 8 km a sudoeste da baía de Nápoles, havia sido construída entre dois rios que desciam do Vesúvio. A cidade era o principal destino de veraneio dos ricos patrícios romanos. Também nessa cidade acredita-se que viviam judeus.Judeus em PompeiaSão raras e discrepantes as informações sobre quando os judeus se estabeleceram em solo italiano e os vestígios dos que viviam no Sul da Itália ainda estão envoltos na escuridão, especialmente no período

antes da queda de Jerusalém no ano de 70 E.C.. Ainda mais escassas são as informações sobre os que habitavam em Pompeia. Mas sabemos que mesmo antes da destruição do Templo de Jerusalém, por Tito, numerosos judeus já viviam em Roma, perto de Nápoles e em várias outras localidades da parte sul da Península.A emigração judaica em direção ao Ocidente teve início com a conquista do Oriente Médio por Alexandre, o Grande. Mas, num primeiro momento, poucos foram os judeus que se estabeleceram na Itália; na época, Roma era ainda uma república oligárquica. Durante o último século da República, o número de judeus que vivia na Itália aumentou consideravelmente, especialmente após o general Pompeu conquistar a Judeia em 61 a.E.C., e trazer em seu triunfal retorno a Roma centenas de prisioneiros.Com a conquista, por Roma, do mundo Mediterrâneo e o estabelecimento do Império Romano, em 27 a.E.C., a cidade se tornara centro de todos os fluxos migratórios. A Roma imperial passou a oferecer aos estrangeiros múltiplas vantagens e garantias de liberdade religiosa. Assim, numerosos judeus se estabeleceram na Campânia, em outros locais do Sul da Itália e foram chegando até Roma.Os judeus não demoraram em se organizar e, por mais distantes que estivessem de Eretz Israel, eles nunca esqueceram sua amada terra e a necessidade de ajudar os irmãos em desgraça. Quando, após a conquista de Jerusalém, em 70, as legiões romanas vitoriosas trouxeram de volta os prisioneiros, seus correligionários procuravam resgatá-los. Muitos acabaram sendo libertados por seus donos, pois os judeus escravos acabavam sendo de pouca utilidade por causa de sua intransigência feroz em observar oShabat e as leis dietéticas. Assim, os prisioneiros libertados e seus descendentes assumiram a condição de libertos1.Com o aumento das relações com os países d’além-mar, os comerciantes estrangeiros aumentavam sua permanência em Pompeia.  No rastro das famílias ricas e aristocratas romanas, aumentava também o número de escravos de diversas origens. Libertos de seus donos, conseguiam, de modo  geral, ter sucesso

graças à sua inteligência e habilidades, fundindo-se na vida social, política e econômica da cidade, além de se tornarem parte integral e funcional de seu dia-a-dia.Há evidências epigráficas suficientes, principalmente grafites, para mostrar que os judeus viveram em Pompeia e, também, em cidades vizinhas como Herculano e Estábia. Inscrições e grafites e alguns traços encontrados aqui e ali permitem que, ao se escrever e reconstruir a história de Pompeia, dedique-se uma página aos seus habitantes de origem judaica. Historiadores e arqueólogos acreditam que a maioria dos judeus chegou a Pompeia depois da vitória de Roma e a queda de Jerusalém, no ano de 70 E.C.. Tal hipótese é corroborada pelo fato de a maioria das descobertas arqueológicas revelar seu status como libertos, escravos ou servos. Não temos, até hoje, no entanto, informações precisas sobre o número dos que lá viviam ou sobre o desenvolvimento de uma comunidade.Em Pompeia, além de um papel ativo na vida comercial, os judeus participavam na vida municipal da cidade. Arqueólogos têm encontrado vários nomes judeus em grafites, jarros de vinho e cartazes eleitorais: Ionas, Abner, Maria (Miriam). Youdaikou, por exemplo, cujo nome foi encontrado em jarros de vinho com inscrições em grego, foi um judeu mercador de vinho. Ele teria uma situação econômica confortável, que lhe permitia possuir escravos. Outra descoberta epigráfica foi a figura de Fabius Eupor, rico comerciante de vinho, político e financista, cuja casa estava localizada na Via Consalare. Eupor era uma espécie de “archisinagogus”, um “príncipe da sinagoga” da comunidade de Pompeia. Em sua capacidade de líder comunitário, seu nome aparecia em cartazes eleitorais, conclamando seus correligionários a votarem em determinado candidato.Uma das casas escavadas na cidade foi chamada de “Casa degli ebrei”  (N. 6, Reg. VIII, Ins. 6 Casa dos Judeus) e tinha pinturas de parede.Uma das primeiras pinturas que descreve uma cena bíblica – o julgamento do Rei Salomão – veio de Pompeia. No afresco, os personagens são pigmeus, umas caricaturas, daí os arqueólogos terem

concluído que seu proprietário não era judeu e nutria sentimentos negativos em relação a nosso povo.Em outra inscrição, encontrada na Região 9, Insula2 11, Casa 14, lê-se, em letras latinas, a palavra “Cherem”. Se, em hebraico, a palavra fosse escrita com a letra hebraica “het”, significava excomunhão ou destruição. A palavra pode ser interpretada como referência à destruição de Pompeia, como uma condenação Divina da cidade pela destruição pela mão dos romanos de Seu Templo Sagrado, em Jerusalém.Em uma casa, na região de Pompeia hoje designada como Região 9, Ínsula 1, Casa 26, uma testemunha que viu a ruína e a destruição da cidade, rabiscou na parede em caracteres latinos grandes as palavras “Sodoma e Gomorra”. Aos olhos dessa testemunha ocular, o castigo Divino sobre essas duas cidades bíblicas ecoou através da chuva  de fogo que se abateu sobre Pompeia. Essa inscrição, quase imperceptível, encontrada em uma escavação do século 19 no local, e que hoje está no Museu Arqueológico de Nápoles, é considerada mais uma prova do fato de que havia judeus vivendo em Pompeia à época da tragédia.Reconstruindo  a tragédiaGraças a relatos romanos e achados arqueológicos, os historiadores reconstruíram os dois últimos dias de Pompeia e Herculano. Devemos muito do que se sabe ao relato feito por Plínio, o Jovem, testemunha ocular do evento, em duas cartas endereçadas ao historiador romano Tácito, escritas nos anos de 106 e 107. No dia da erupção, Plínio, o Jovem, estava em Miseno, do outro lado do Golfo de Nápoles, a 30 Km de Pompeia, hospedado na casa de seu tio, Plínio, o Velho, autor da renomada obra Historia Naturalis, que estava na cidade como comandante da esquadra romana.Apesar de terem ocorrido tremores alguns dias antes, o dia 24 de agosto começara como qualquer outro para os habitantes das cidades de Pompeia e Herculano. A baía estava calma e não havia nenhuma nuvem no céu. Por volta de meio-dia, a terra estremeceu e houve uma explosão violenta, seguida de um ruído contínuo e trovejante.

Às 13h a erupção começou. No interior da cratera, após a expulsão da tampa de lava, a pressão começou a cair vertiginosamente. O magma vulcânico, adormecido há séculos, começou lentamente a espumar. O topo do Vesúvio partira-se em dois, propelindo na estratosfera uma nuvem monstruosa. Segundo Plínio, o Jovem, “como um pinheiro, pois subiu a uma altura monumental, como um tronco, e depois se abriu em ramificações”...A rocha derretida, lançada a 27 km na estratosfera, transformara-se em uma nuvem de cinzas brancas e rochas vulcânicas, que chegou a atingir, três horas mais tarde,  32 km de altitude. A nuvem se moveu em direção de Pompeia e Estábia.  Nessa fase, um forte vento à oeste ainda protegia Herculano. Uma chuva de cinzas e projéteis começou a desabar, cobrindo a região:  rochas vulcânicas ou pedras-pomes, lapíli, pedaços de rochas – fragmentos arrancados do topo da montanha e da tampa de lava resfriada que obstruía a cratera. A chuva era tão densa que obscureceu o sol e fez-se noite em pleno dia, uma noite marcada por raios. A chuva vinha carregada de vapores clorídricos, tóxicos. Um espetáculo alucinante.O terror tomou conta da população  e milhares fugiram em direção à praia. Alguns poucos milhares conseguiram se salvar. Relata Plínio, o Jovem, em suas cartas: “Dificilmente podíamos ver as coisas; parecia noite, como num lugar fechado e sem luz. Em Pompeia, a chuva de pedras já durava pelo menos 12 horas e, praticamente,  toda a cidade estava soterrada embaixo de 20 metros de rochas incandescentes e cinzas... (...)  As pessoas cobriam a cabeça com travesseiros, a única defesa contra a chuva de pedras, e, de repente, como uma nuvem negra carregada de material incandescente, cobriu tudo. Alguns lamentavam seu destino e outros rezavam. Podiam-se ouvir os soluços das mulheres, o lamento das crianças e os gritos dos homens. Muitos clamavam pela ajuda dos deuses, mas muitos outros imaginavam que não havia mais deuses e que o universo estava imerso numa eterna escuridão”.Entre os que acorreram de outros locais para prestar ajuda estavam Plínio, o Velho. Como Almirante- da-armada, ele havia ordenado que os navios da Marinha Imperial atracados em Miseno atravessassem o

golfo para auxiliar nas tentativas de evacuação.  O Almirante morreu enquanto tentava resgatar vítimas isoladas.O sobrinho relata: “Meu tio correu para o lugar do qual todo mundo, desesperadamente, tentava fugir, dirigindo-se diretamente para a zona de perigo. Cinzas já estavam caindo, mais quentes e mais grossas à medida que as embarcações se aproximavam, seguidas por pedaços de rochas vulcânicas e pedras enegrecidas, torradas e rachadas pelas chamas. Por um momento, ele se deteve, como que calculando se batia em retirada, mas quando o timoneiro o aconselhou a fazê-lo, ele recusou, ordenando que avançassem para a casa de Pomponianus, em Estábia”.Cerca de 2 mil pessoas optaram por permanecer em Pompeia, refugiando-se em porões ou debaixo de estruturas de pedra. Todos acabaram morrendo na manhã do dia seguinte, quando uma nuvem de gás tóxico cobriu a cidade, sufocando a todos.Em Pompeia, os escombros vulcânicos atingiram uma profundidade de mais de 2 metros e uma nuvem letal, acompanhada de um mar de lava, engolfa a cidade. Quem ainda tinha sobrevivido e permanecido no local, acabou sufocado pelos gases venenosos e soterrado. Por volta das 6h, mais uma nuvem piroclástica atinge Pompeia, sendo seguida por mais uma. Essas nuvens moviam-se rapidamente, eram densas e de temperatura intensa, destruindo todas as estruturas em seu caminho, incinerando ou sufocando e alterando a paisagem, incluindo a faixa costeira. A exposição ao calor de, no mínimo, 250°C, a uma distância de 10 km da erupção, foi suficiente para causar morte instantânea, mesmo daqueles abrigados em construções, durante a erupção o calor passou dos 700º C.A nuvem letal de gases tóxicos prosseguiu em direção a Estábia.  Os moradores perceberam e tentaram fugir, atravessando, sem sucesso,  a baía de Nápoles. Ocorriam paralelamente tremores leves de  terra, enquanto um maremoto atingia o Golfo de Nápoles. Às 8h, uma última nuvem piroclástica, a mais poderosa de todas, cai sobre Herculano e Pompeia e seus arredores, queimando ou asfixiando todos. Entre 10 e 12h, a erupção começa a se enfraquecer, embora as cinzas

continuassem a cair ao longo do dia. De acordo com Plínio, a erupção durou 18 horas, milhares de pessoas ficaram soterradas a 20 metros de profundidade de massa vulcânica.A escala da tragédia era apavorante. A população e as construções de Pompeia foram cobertas por doze diferentes camadas de piroclastos, que totalizaram 25 metros de profundidade. A vida estava totalmente interrompida naquele que fora um dos mais ativos e esplêndidos centros romanos.Pompeia ou Pompeios [nota 1] foi outrora uma cidade do Império Romano situada a 22 km da cidade de Nápoles, naItália, no território do atual município de Pompeia. A antiga cidade

foi destruída durante uma grande erupção do vulcão Vesúvio em 79, que provocou uma intensa chuva de cinzas que sepultou completamente a cidade. Ela se manteve oculta por 1600

anos, até ser reencontrada por acaso em 1748. Cinzas e lama protegeram as construções e objetos dos efeitos do tempo, moldando também os corpos das vítimas, o que fez com que

fossem encontradas do modo exato como foram atingidas pela erupção. Desde então, as escavações proporcionaram um sítio arqueológico extraordinário, que possibilita uma visão

detalhada na vida de uma cidade dos tempos da Roma Antiga.

A descobertaDepois que as grossas camadas de cinzas cobriram Pompeia e Herculano, estas cidades foram abandonadas e seus nomes e localizações eventualmente esquecidos. Pompeia se manteve oculta por 1.600 anos, até ser eventualmente reencontrada em 1649. Cinzas e lama protegeram as construções e objetos dos efeitos do tempo, moldando também os corpos das vítimas, o que fez com que fossem encontradas do modo exato como foram atingidas pela erupção. Desde então, as escavações proporcionaram um sítio arqueológico extraordinário, que possibilita uma visão detalhada na vida de uma cidade dos tempos da Roma Antiga.A primeira vez em que parte delas foi redescoberta foi em 1599, quando a escavação de um canal subterrâneo para desviar o curso do rio Sarno esbarrou acidentalmente em muros antigos recobertos por pinturas e inscrições. O arquiteto Domenico Fontana foi então convocado, e ele escavou alguns outros afrescos antes de mandar que tudo fosse coberto novamente. Tal procedimento foi visto posteriormente tanto como um ato de preservação do sítio para gerações posteriores quanto um ato de censura, considerando-se o conteúdo sexual das pinturas e o clima moralista e classicista da Contrarreforma, à época.

Herculano foi apropriadamente redescoberta em 1738 por operários que escavavam as fundações do palácio de verão do Rei Carlos III,  de Nápoles. Pompeia foi redescoberta como resultado de escavações intencionais realizadas em 1748  pelo engenheiro militar espanhol, Rocque Joaquin de Alcubierre.As duas cidades passaram então a ser escavadas, revelando muitas construções e pinturas intactas. Pompeia nos fornece excelentes informações sobre a civilização romana, em geral e, mais especificamente, sobre a arte, os costumes, o comércio e o dia-a-dia de seus cidadãos.Pompeia tem sido um sítio turístico por mais de 250 anos. Atualmente faz parte do Patrimônio Mundial  da UNESCO e é uma das atrações mais populares da Itália, recebendo cerca de 2,5 milhões de visitantes por ano.1  Antigo escravo a quem, de algum modo, foi concedida a liberdade, por emancipação ou por alforria.2 Ínsula era um tipo de edifício de apartamentos na Roma antiga que fornecia moradia para todos, menos os membros da elite.

Médicos cristãos novos abandonam Portugal em 1614por por REUVEN FAINGOLDMédicos e cirurgiões exerceram a medicina em Portugal na Idade Média e início dos tempos modernos. Seus sobrenomes são citados nos “Livros de Chancelaria Real dos Reis de Portugal” ou em obras dedicadas à medicina lusitana. Na “Lista de 1614”, encontrada em Lisboa no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, achei dados curiosos sobre esses profissionais da saúde.Edição 84 - Julho de 2014

Há quatro décadas, aproximadamente, a pesquisa dos cristãos novos ibéricos vem fazendo avanços consideráveis. Valiosos trabalhos já

foram publicados sobre a dinâmica dos tribunais do Santo Ofício, o modo de vida judaico e o cumprimento de preceitos por parte dos cristãos novos, a difusão de uma literatura antijudaica em Portugal durante os 300 anos em que atuou a Inquisição e a inserção desses conversos em suas novas comunidades da Europa e do Novo Mundo.No entanto, é bastante escasso o material histórico acerca dos itinerários e rotas de fuga escolhidos pelos cristãos novos, principalmente aqueles que exerciam profissões necessárias para a sociedade ou a corte real. Médicos de origem cristã nova trabalhavam diariamente na Península Ibérica e na Bacia do Mediterrâneo entre 1580 e 1640, época em que Espanha e Portugal constituíam um único Reino. Muitos deles são lembrados rapidamente nas fontes inquisitoriais. No Arquivo Nacional da Torre do Tombo conserva-se uma lista de médicos cristãos novos que fugiram de Portugal em 1614, no auge da união hispano-lusitana. Esta lista nominal (ANTT, maço 7, Mss. 2578-2644) inclui minibiografias de quase 70 médicos cripto-judeus que abandonaram o país rumo a “nações livres”, como Marrocos, França, Holanda, Inglaterra, o Império Turco-otomano e, também, em direção ao “Novo Mundo”, esquivando-se às constantes perseguições organizadas pelo Santo Ofício.Physicus, cirurgicus e boticariusÉ comum fontes medievais portuguesas elencarem profissões específicas vinculadas à arte da medicina. Primeiramente, encontramos o physicus ou medicus, responsável por detectar diversos tipos de lesões e doenças (sejam estas físicas ou psicológicas). Mas, a partir do século 13, começou-se a exigir do physicus o diploma de cirurgicus, um especialista formado nas universidades europeias, profissional capacitado para operar fraturas, realizar cirurgias de órgãos vitais e efetuar qualquer tipo de procedimento médico. Em Portugal, contrariamente aos países da Bacia do Mediterrâneo, tais como Grécia, Itália, Creta, Espanha e sul da França, o médico clínico e o cirurgião portavam o título de magister ou mestre. O farmacêutico era o boticarius, mas a manipulação dos medicamentos era feita pelo apothecarius. Uma profissão menos valorizada em Portugal era a

de barbeiro, o responsável pela extração de dentes, infusões de sangue e raspagem do paciente antes das cirurgias.Em Portugal regiam as mesmas normas que vigoravam em outros países da Europa. Neles havia uma rígida fiscalização das atividades médicas e os profissionais que atuavam nessas áreas recebiam suas licenças dos próprios governos, entrando automaticamente nas guildas (associações de profissionais) destinadas aos médicos. Tanto médicos como cirurgiões constituíam “comissões especializadas”, cujo objetivo era testar as aptidões daqueles que desejavam ingressar nas especialidades médicas. A maioria dos judeus fazia parte dessas comissões, que outorgavam aos candidatos a tão almejada “licentia practicandi” ou “licentia curandi”.Segundo a tradição europeia, era proibido aos médicos lusitanos mudar de área de trabalho. Porém, certas vezes, encontramos exceções, como os médicos cristãos novos Gaspar Lopes, que abriu uma loja de fios de seda, ou Manuel de Mello, que atuou como cônego na cidade francesa de Nantes.Como especialistas da saúde, os médicos deviam comunicar aos governos os nomes dos pacientes doentes ou feridos sob seus cuidados, o tipo de tratamento por eles recomendados e as etapas sugeridas para sua recuperação. Também deviam informar todos os casos de óbito. Quando as brigas de rua causavam a morte de um dos envolvidos, as partes sobreviventes eram punidas. Este tipo de legislação era bastante comum em países mediterrâneos, tais como Espanha, Itália, Grécia, Sicília e Creta e sul da França.Na Idade Média, os médicos portugueses eram na sua maioria judeus, atingindo 63% da população médica do país. Este dado estatístico derruba o preconceituoso mito de que os médicos judeus tinham repulsa pelas cirurgias, autópsias ou por procedimentos cirúrgicos mais delicados nos quais era necessário abrir o corpo do paciente.QUEM ERAM OS MÉDICOS?A “Lista de 1614” fornece valiosa informação acerca da origem, lugar de nascimento, moradia e idade dos médicos cristãos novos. Seus nomes e sobrenomes aparecem sob a grafia hispano-portuguesa,

sendo possível desvendar os motivos que levaram seus ancestrais nos séculos 12-13 a se assentarem em terras lusitanas.O estabelecimento do Santo Ofício da Inquisição em Portugal, em 1536, após longa negociação entre o Estado e o Papado, gerou uma violenta onda de perseguições com frequentes ataques endereçados aos novos convertidos. Este fato originou uma fuga de médicos, a maioria deles descendentes dos judeus “batizados em pé”, à força, em 1497. Como veremos a seguir, vários foram os itinerários ou rotas de fuga dos exilados.Na lista aparece um número considerável de médicos nascidos em aldeias e vilarejos densamente povoados por judeus, enquanto apenas uma pequena minoria nasceu em grandes centros urbanos de Portugal. Assim, em Lisboa, capital da metrópole, quase não achamos médicos cristãos novos, à exceção do “Physico-mór do Rei” e de um número reduzido de boticários a serviço da nobreza. O principal porto do império ultramarino foi uma “parada obrigatória” para aqueles aventureiros que emigravam rumo ao Oriente.Dentre as regiões geográficas mais procuradas pelos médicos cripto-judeus, podemos mencionar a região montanhosa das Beiras, com seis localidades: Lamego, Covilhã, Viseu, Trancoso, Fundão e Belmonte, Alentejo, as vilas próximas ao Porto e o cinturão de Lisboa. A “Lista de 1614” revela, também, que boa parte dos médicos morava na Espanha, e atravessava a fronteira para trabalhar em Portugal.Há, também, informação relevante sobre as idades desses profissionais.  De um total de quase 70 médicos, 23 abandonaram Portugal na faixa dos 40-50 anos. Os médicos jovens (cinco entre 21-30 anos) raramente deixavam o país, enquanto três médicos mais idosos (entre 70-80 anos), tampouco abandonaram tão facilmente seu território natal. Há outros 33 médicos listados sem registro de idade.No que tange aos salários dos médicos judeus, a “Lista de 1614” nos fornece poucas informações, registrando uma faixa salarial razoável: um cirurgião recebia 1.600 réis e um médico-mór, 2.000 réis mensais. Consultando uma obra sobre as profissões e a vida econômica na sociedade portuguesa, encontramos que, naquela mesma época, um

barbeiro da corte ganhava entre 600-650 réis mensais, um alfaiate entre 700-750 réis e um ferreiro poderia receber até 1.200 réis/mês. Sendo assim, tudo indica que a saída de Portugal não estaria relacionada com reivindicações salariais, pois todos se sustentavam condignamente.PERFIL FÍSICO DOS MÉDICOSA lista dos médicos judeu-portugueses descreve com detalhes os traços físicos e as características psicológicas desses profissionais, encontrando-se, também, ligações entre os próprios familiares. Fruto de relações endogâmicas, eles se casavam com “Mulheres da Nação”, ou seja, com cristãs novas. Leonora da Cunha, mulher do médico Gaspar Lopes, é retratada como uma “mulher de 40 anos, rosto pálido e doente, boca torta desdentada e fala defeituosa”. Leonor Rodrigues, mãe do médico Antônio Lopes, era uma “mulher de mais de 60 anos, obesa, alta, nariz grande, boca torta desdentada, muito doente, com manchas no rosto, fruto de erupção cutânea”.As mulheres dos médicos possuem atributos e qualidades especiais.  A mulher de Pero Francês se chama Catharina Alves. Viajou para a França, onde ficou famosa por ensinar “a Lei Hebraica”, ou seja, ritos e preceitos judaicos. Há, ainda, na lista descrições específicas dos médicos lusos: Francisco Mourão possui “corpo ereto, estatura baixa, rosto delicado, barba ruiva, bons dentes e, acima de sua orelha direita, vestígios de uma cicatriz”. O filho do cristão novo João Rodrigues é um “médico de 50 anos, baixo e magro, barba longa escura, olhos grandes pretos e é tido como um homem experiente, sábio e astuto”. Já o médico Vasco Gomes aparece retratado como “um homem de 33 anos, alto, louro, com pequenas sardas no rosto, nariz largo, olhos grandes, gosta de falar, tem mãos delicadas e longas, com manchas, notando-se uma lesão no dedo mindinho”.  O doutor Lopo Mendes, de 70 anos, “tem barba e cabelos brancos, corpo grande, com sinais de curvatura”.Poucas são as descrições psicológicas desses médicos se comparadas com as físicas. Menciona-se o médico Lopo Gil, que trabalhava em Vila Viçosa, de vez em quando, “se faz doudo” (doido),

enquanto seu colega, o médico Gaspar Lopes e sua esposa Leonarda da Cunha, “caíram em prantos” por terem que abandonar Portugal.MOTIVOS PARA DEIXAR  O PAÍSQuatro seriam os principais motivos para os cristãos novos “judaizantes” abandonarem a pátria portuguesa  por volta de 1614. Em primeiro lugar, as perseguições inquisitoriais.   O clima de extrema violência,  medo e terror instaurado pelo Santo Ofício, originou uma fuga coletiva rumo a países do norte da África, Europa e regiões distantes do vasto Império Turco-otomano. A interferência imposta por esta instituição na vida pessoal dos médicos e suas famílias teve motivações variadas: há os que foram descobertos ainda antes de deixar o território, como o licenciado Lopo Nunes e sua esposa Antônia; há os que escaparam sem serem pegos, como o doutor André Vaz; e há, também, aqueles, como Rui Mendes, sua mulher e seu filho Antônio, cujos familiares ou amigos foram tomados prisioneiros, mas eles conseguiram fugir. Outro grupo estava composto por médicos que não conseguiram escapar do Reino, pois respondiam a processos inquisitoriais.Em segundo lugar, havia médicos e cirurgiões perseguidos por participarem em atentados e assassinatos. Eram tentativas frustradas de atirar com armas de fogo, que às vezes  causavam lesões físicas em cristãos. Na “Lista de 1614” há dois médicos cristãos  novos, Mestre Jorge e Joseph Camelo, ambos indiciados por causar danos físicos a cristãos, acontecimentos que, certamente, devem ter acelerado sua saída do país. Joseph Camelo chegou a ser procurado pelas autoridades locais “por atirar com um pistolete e ferir um certo Marcos D´Abreu”, mas conseguiu fugir a tempo para o Reino de Castela, na Espanha. A maioria dos médicos vivia dignamente com seus recursos, porém, como acontece em toda sociedade, há, também, aqueles que encontram dificuldades para obter o sustento. A “Lista de 1614” relaciona dois médicos de nome Manoel Nunes e Lucas Fernandes, cuja saída do país foi motivada por dificuldades econômicas. Ambos saíram de Portugal em “situação de extrema pobreza, passando a viver no Brasil”. 

E, por último, as pestes e epidemias que atingiram boa parte da população da Europa no século 17 foram a gota que faltava para terminar com esse capítulo dos médicos cristãos novos em Portugal. A sociedade lusitana precisou combater estes males em diferentes épocas de sua história: 1348, 1356, 1384, 1415, 1432-1435, 1437-1438, 1464, 1477 e entre os anos 1480-1497. Nos anos 1599 e 1600, uma devastadora epidemia dizimou milhares de portugueses, o que levou médicos como Luiz Gomes, de 50 anos, morador de Porto, a fugir com toda sua família de sua cidade natal para a França.ITINERÁRIOS DOS  MÉDICOSA unificação das Coroas de Espanha e Portugal, que duraria 60 anos (1580-1640), não alterou a política persecutória imposta pelo Santo Ofício aos conversos. Em ambos os países, os olhos da Igreja e a Inquisição continuariam a vigiar aqueles conversos que pretendiam deixar a Península Ibérica. Especificamente em Portugal o batismo forçado de 1497, o pogrom de 1506 em Lisboa (ver Morashá 53) e o estabelecimento da Inquisição em 1536, pelo rei D. João III, foram responsáveis por uma rígida política de marginalização dos cristãos novos da sociedade lusitana, perseguindo-os ainda antes de abandonar o Reino rumo às novas comunidades florescentes da Europa. A fuga era a única opção para salvar suas vidas. Neste contexto, fica evidente que os cristãos novos com profissões liberais, dentre elas a medicina, conseguiriam com maior facilidade sair e se integrar às novas comunidades.Dentre os médicos que fugiram de Portugal é importante distinguir aqueles foragidos após ser concedido o “perdão geral” de 1605 e aqueles que não usufruíram desta autorização por parte do Estado. Diferente da política imposta na Espanha, Portugal decidiu abrir e fechar suas fronteiras por curtos espaços de tempo. Cada cristão novo disposto a deixar o país devia encaminhar uma petição às autoridades e pagar altas quantias pela saída do Reino. Em 1605, por exemplo, os foragidos pagaram 1.700.000 ducados à coroa. Nessa política de enriquecimento dos cofres públicos, encontramos aportes de um grande número de cristãos novos espanhóis (a maioria castelhanos) bem como de portugueses.

A “Lista de 1614” não fornece informações sobre os perigos eminentes encontrados pelos foragidos rumo às novas comunidades. Tampouco  menciona os falsos “salvo-condutos” obtidos pelos médicos conversos  ou faz qualquer referência aos familiares que fugiam junto  com eles. Os médicos levavam consigo bens materiais, como ouro e prata, no entanto, isto não é mencionado na documentação pesquisada.Tudo indica que as condições para abandonar o território luso rumo à Europa eram difíceis e nem todos os médicos cristãos novos estavam dispostos a se aventurar por itinerários geralmente desconhecidos. A saída destes, com ou sem bens materiais, foi sempre um projeto pessoal de cada profissional, mas nunca uma empreitada coletiva. Segundo a “Lista de 1614”, na hora da partida é possível detectar cinco itinerários ou rotas de fuga: das cidades de Portugal rumo às regiões da Galícia e Madri (norte e centro da Espanha); via Espanha rumo a Nantes, no sul da França; rumo à Itália (por terra ou via marítima); até os Países Baixos: Flandres e Antuérpia; ou ainda do porto de Lisboa rumo ao “Novo Mundo”: Brasil, Peru e Nova Espanha (região do México).Driblando a presença permanente dos corregedores (policiais que vigiavam portos e fronteiras), os médicos conversos conseguiam ingressar nas pequenas cidades e fugir das perseguições inquisitoriais. Os pequenos vilarejos eram “postos intermediários” nessa longa jornada rumo às grandes metrópoles da Europa.CONCLUSÕES FINAISAs informações recolhidas pela “Lista de 1614” e “Livros de Chancelaria Real dos Reis de Portugal” nos permitem reconstruir o perfil de uma verdadeira elite cristã nova composta por rabinos, cortesãos, administradores, fiscais de impostos e, naturalmente, médicos e cirurgiões.Mesmo estudada parcialmente, essa relação de nomes revela dados biográficos bastante significativos sobre os médicos que atendiam à população lusa no início do século 17. O documento histórico nos coloca diante de profissionais da saúde pouco estudados, um grupo

seleto de enorme importância na pesquisa da medicina judaica portuguesa.BIBLIOGRAFIA 

A queima do TalmudO dia 17 de Tamuz do calendário judaico é um dia de jejum e marca o início das Três Semanas de Luto que vão até 9 de Av. No ano de 1242, o dia foi marcado pela queima de centenas de volumes manuscritos do Talmud, em Paris. Era a primeira vez na história que se queimavam livros judaicos, mas, infelizmente, não seria a última.Edição 72 - Julho de 2011

Dois anos antes, na capital francesa, oTalmud foi julgado como herético, na qualidade de “réu”, após uma farsa jurídica envolvendo a Igreja Católica, um judeu convertido ao cristianismo e o rei Luís IX. A pena era a execução pública da obra sagrada, na fogueira.A pergunta que se interpõe é: por que justamente o Talmud? A importância dessa obra monumental para nós, judeus, não pode ser subestimada. O Talmud não é um único livro, mas uma obra que consiste de 63 tratados de assuntos legais, éticos e históricos.  Seus dois componentes principais são a Mishná, tratados sobre a lei judaica, e a Guemará, composta de  comentário e elucidação da primeira. É o Talmud que define e dá forma ao judaísmo, alicerçando todas as leis e rituais judaicos, pois enquanto a Torá Escrita – o Chumash (os Cinco Livros de Moshé) – apenas alude aos mandamentos, é a Lei Oral, codificada no Talmud, queos explica, discute e esclarece. O Rabino Adin Steinsaltz, responsável por sua tradução ao hebraico moderno, inglês e russo, assim se referiu à importância dessa obra: “Se a Torá é a pedra fundamental do judaísmo, o Talmud é seu pilar central”. Ademais, como outras religiões adotaram o texto da Torá Escrita –mesmo a tendo traduzido de forma errada, é o Talmud o verdadeiro

divisor de águas, o texto sagrado que diferencia os judeus das outras nações do mundo.Se nós, judeus, sempre tivemos consciência de que nossa sobrevivência como grupo dependia do estudo dessa obra magna, todos os que almejavam converter os judeus ou destruir o judaísmo, tinham essa mesma certeza. Por isso, quem declarava guerra à religião judaica, começava por proibir o estudo do Talmud, ameaçando quem desobedecesse com a pena de morte. Através do curso da história, em diferentes países e períodos, esta obra foi acusada, censurada, proibida e queimada. O ataque mais antigo ao Talmud remonta ao século 6, quando o imperador Justiniano tentou extirpar o judaísmo de seus direitos legais. Entre outros pontos, o Código Justiniano afirma: “A Mishná ou, como eles a chamam, a segunda tradição, nós a proibimos totalmente”. Justiniano proibiu o estudo da Mishná, pois, segundo ele, esta “distorcia” a Bíblia e prejudicava as atividades missionárias cristãs. E, em 712, os visigodos na Espanha proibiram os conversos de ler livros hebraicos.  No entanto, até o século 13, apesar das restrições impostas aos judeus pela Igreja, não havia, ainda, uma campanha declarada contra seus textos sagrados. Foram as ações de um apostata, Nicholas Donin, que resultaram no fatídico julgamento realizado no ano de 1240, em Paris. O evento teve conseqüências duradouras, além de ter desencadeado uma série de incidentes por toda a Europa, e influenciado atos anti-semitas subseqüentes durante os séculos que se seguiram.A grande disputa de 1240Nicholas Donin, judeu de La Rochelle, estudara na Ieshivá de Paris, então sob a direção de Rabi Yehiel ben Joseph, o mais proeminente rabino da França. Após expressar, em repetidas ocasiões, posições radicais em relação aos textos sagrados e a importância da Lei Oral, Donin foi expulso da instituição e, em seguida, excomungado. Acabou convertendo-se ao cristianismo e tornou-se frade. Nutria em relação aos seus antigos correligionários um profundo ódio. Seu primeiro ato de vingança foi insuflar os ânimos dos cruzados contra os judeus durante as perseguições sangrentas de Poitou e Anjou, na Bretanha,

que resultaram na morte de cerca de 3 mil judeus. Mas, vai ser a luta contra o Talmud o ponto central de sua cruzada pessoal anti-judaica. Habilmente usou o tradicional anti-judaismo da Igreja Católica para atingir sua vingança, fornecendo, ao mesmo tempo, uma importante ferramenta na campanha travada pelos cristãos para conseguir a conversão de judeus.Em 1236, Donin enviou ao papa Gregório IX uma denúncia formal contra os judeus, em geral, e o Talmud, em particular. O pontífice, empenhado em erradicar todo tipo de heresia, conferira essa incumbência, três anos antes, à Ordem dos Dominicanos. Na França, a Ordem obtivera a permissão para instituir tribunais permanentes para julgar as acusações de heresia, prender suspeitos e pronunciar sentenças sumárias de morte. A temida Inquisição estava oficialmente instalada.O fatídico relatório enviado ao Papa continha uma lista de 35 acusações. Donin abordou pontos extremamente sensíveis para a doutrina cristã. Entre outros, acusava o Talmud de conter blasfêmias contra Jesus e Maria, ataques à Igreja e pronunciamentos hostis contra os não-judeus, além de outras falsidades. Ele afirmava que a grande importância que os judeus conferiam ao Talmud era uma “afronta” à Bíblia e aos profetas. Concluía que sendo o Talmud a razão pela qual os judeus teimosamente se recusavam a aceitar o cristianismo, sua eliminação levaria, inevitavelmente, à sua conversão.Quase três anos após receber as denúncias de Donin, o Papa Gregório IX as enviou aos reis da França, Inglaterra, Castela, Aragão e Portugal, além de todos os principados italianos. Junto com as acusações, o papa ordena aos bispos daqueles países que confiscassem todos os exemplares do Talmud no primeiro sábado da Quaresma do ano seguinte, que cairia no dia 3 de março de 1240.O rei da França, Luís IX, foi o único monarca a obedecer a ordem papal. No dia determinado, foram entregues centenas de volumes manuscritos do Talmud anteriormente levados pelos judeus de Paris a suas sinagogas, sob pena de morte, para que os frades franciscanos e dominicanos incumbidos pela Santa Sé as “analisassem”. A ordem

papal era que os livros contendo qualquer tipo de “heresia fossem sumariamente queimados”. Luís IX, no entanto, decidiu realizar uma disputa pública, um julgamento doTalmud, durante o qual quatro dos mais renomados rabinos da França confrontariam Donin para responder as acusações. Historiadores acreditam que esta medida foi tomada pelo rei apenas para diversão própria, pois não havia dúvida de antemão do resultado.A farsa jurídica montada por Luís IX aconteceu no dia 25 de junho de 1240, em Paris, e durou três dias.  Durante o julgamento estavam presentes, ostentando toda sua pompa e poder, tanto a realeza como cortesãos, príncipes da Igreja e inúmeros teólogos. A Igreja se referia a esse confronto como um “torneio por D’us e pela fé”. Representando o lado cristão, a acusação, estavam Donin e Eudes de Chateauroux, da Sorbonne. Do lado judaico, atuando na defesa do Talmud, estavam o Rabi Yehiel ben Joseph, de Paris, atuando como o principal defensor, e Rabi Moses de Coucy, Rabi Judah ben David de Melun e Rabi Samuel ben Solomon, de Château Thierry. Todos eram famosos Tosafistas1 franceses.Chegaram até nós duas versões sobre esta disputa: a versão cristã, em latim, intitulada Extractiones de Talmut, e a versão judaica, em hebraico, intitulada Vikuach Rabenu Yehiel mi-Paris, A Disputa de Rabi Yehiel de Paris, compilada provavelmente pelos alunos do rabino. Há divergências entre as duas versões e é bem possível que a versão judaica inclua observações que não foram feitas, mas que certamente teriam sido ditas se os judeus tivessem tido a liberdade de se expressar. Após apresentar as denúncias de Donin, a acusação concluiu que o Talmud era uma “obra herética”, já que, pelo fato de ser seguido pelos judeus, havia levado os mesmos a “abandonarem” a Bíblia e os ensinamentos dos profetas. Em vão Rabi Yehiel tentou desmascarar as acusações de Donin, demonstrando que eram puras invenções e deformações. Em resposta à acusação de que o Talmud continha insultos contra Jesus, o cristianismo e a Igreja Católica, Rabi Yehiel apontou que São Jerônimo e outros ilustres padres da Igreja, grandes

estudiosos e conhecedores dessa grande obra judaica, nunca haviam apontado qualquer afirmativa hostil ou abusiva nesse sentido. Portanto, indagava, como era possível que tais “descobertas” tivessem que esperar oito ou nove séculos até que um renegado pouco instruído, claramente movido pela má-fé, surgisse para apontá-las? Além do mais, Rabi Yehiel disse ao Tribunal que o que impedia a conversão dos judeus não era o Talmud, mas sim os princípios básicos do judaísmo. Em um dos momentos mais tensos, ele afirmou: “Mesmo se vocês nos punirem, nós e nossa lei estamos espalhados pelo mundo. Na Babilônia, na Pérsia, na Grécia e nas terras do Islã e em outras 70 nações além dos rios da Etiópia – nossas leis ainda serão encontradas”. Como era de se esperar, nenhum argumento “convenceu” o tribunal eclesiástico composto de prelados de destaque. O “réu” prisioneiro – o Talmud– foi considerado culpado por todos os crimes de heresia e blasfêmias que Donin enumerara em sua denúncia. A pena, a queima em praça pública.A sentença, no entanto, não foi executada durante dois anos, pois o arcebispo de Sens, um dos membros do tribunal, intercedeu em favor dos judeus impedindo que a pena fosse aplicada. Infelizmente, quando o arcebispo morreu, subitamente, sua morte foi apontada pela Igreja como uma punição por ter intercedido em favor dos judeus. Decidiu-se, então, executar a sentença.No dia 17 de Tamuz, 24 carroças com centenas de manuscritos do Talmud foram queimados pelos dominicanos, em Paris, diante dos olhares desesperados dos judeus parisienses, mantidos afastados pela guarda real. Em toda a Europa, as comunidades judaicas ficaram de luto.Sobre este trágico acontecimento o rabino alemão Rabi Meir ben Baruch, de Rothenburg, que estava em Paris, escreveu uma Kiná2:Sha’ali Seruyá Ba’ê – “Pergunte, ó, você que foi queimado”. No primeiro trecho, Rabi Meir conclama a Torá e o próprio D’us para que vejam a dor que aqueles que os amam estavam sofrendo em consequência do acontecido; segue-se um lamento perguntando como

tal evento pôde ter ocorrido. Em seguida, descreve a glória com que a Torá nos foi entregue, e lamenta o lugar tão vergonhoso a que agora foi relegada. Os dois trechos finais traçam o caminho do abismo do desespero à esperança pela salvação. Rabi Meir termina com uma prece para que no futuro próximo D’us redima os judeus dos terríveis apuros em que se encontram. Essa Kiná foi incluída nas Kinot de rito asquenazita recitadas nas sinagogas no dia 9 de Av, data da destruição do Primeiro e Segundo Grande Templos de Jerusalém.A queima de centenas de manuscritos representava uma imensa perda para a comunidade judaica francesa. Significava não apenas a destruição de anos e anos de trabalho, mas também que não havia, na França, exemplares para os alunos das ieshivot estudarem. A resposta dos rabinos franceses é uma prova da resiliência judaica face as perseguições. Rabi Yehiel ensinou de cor seus 300 alunos, com o que tinha gravado em sua memória. Ainda mais importantes foram dois trabalhos escritos com semelhante propósito. Rav Moshe de Coucy classificou a Lei Judaica de acordo com a tradicional enumeração dos 613 Mandamentos. Esta obra, intitulada de Sefer Mitzvot Gadol (Livro Grandedas Mitzvot), é geralmente conhecida por sua abreviatura, SeMaG. Logo após a publicação dessa obra, Rav Yitzchak de Corbeil compôs um trabalho semelhante, o Sefer Mitzvot Katan (Livro Pequeno das Mitzvot) - SeMaK, de forma abreviada.As duas obras são, ainda hoje, importantes guias de referência para a Halachá.Os trágicos eventos ocorridos em Paris no mês de Tamuz de 1242 deixaram marca profunda na nossa história, pois sinalizaram uma ruptura radical nas relações entre cristãos e judeus. Foi o fim da relativa tolerância da Igreja face aos judeus que viviam ao seu redor, e o início de uma campanha de violenta difamação e perseguição cujos maléficos frutos desabrocharam no anti-semitismo moderno. A disputa em Paris serviu, entre outros, de “modelo” para outras disputas públicas, cada vez mais violentas e conseqüências cada vez mais dramáticas, nas quais os rabinos eram obrigados a rebater publicamente acusações cristãs apresentadas por prelados e apostatas. Entre as mais conhecidas, a Disputa de Barcelona (1263), contrapondo o Ramban contra o apostata Pablo Christiani, e a Disputa

de Tortosa, que levou dois anos (1413-14), que contrapôs o Rabino Chefe de Saragossa, o Nasi Vidal Beneveniste, juntamente com os Rabis Astruch Halevi, Zerach e Joseph Albo contra São Vicente Ferrer e o apostata Gerônimo de Santa Fé.Após 1242, os papas continuaram a defender a queima do Talmud. Manuscritos desta obra monumental foram queimadas em 1263, 1299,1309, 1322 e1415. Em 1552, o Papa Júlio III ordenou a queima, em Roma, de centenas de cópias da obra sagrada. A Inquisição Espanhola também “contribuiu” em larga escala para essa destruição e, até a Idade Moderna, a Igreja continuou a queimar cópias doTalmud. A barbárie aconteceu pela última vez na Polônia, em Kamenets-Podolski, no final de 1757. 

Os livros judaicos foram novamente “condenados” e jogados em fogueiras no ano de 1933 na Alemanha do Terceiro Reich. Entre as obras queimadas estavam os trabalhos do poeta judeu alemão do século 19, Heinrich Heine. Este, em sua peça “Almansor”, de 1820-1821, faz a famosa e trágica advertência: “Dort, wo man Bücher verbrennt, verbrennt man am Ende auch Menschen”, traduzindo: “Onde se queimam livros, hão de queimar homens, também...”.

Reminiscências de uma judia marroquinaNas primeiras décadas do século 19 chegaram à região norte do Brasil, procedentes do Marrocos, os primeiros judeus. Eram na maioria jovens, em busca de vida nova.Edição 71 - Abril de 2011

Esses judeus marroquinos criaram as importantes comunidades judaicas de Belém e Manaus, vibrantes até hoje. Preocupados em não perder a própria identidade, eles mantiveram e transmitiram suas milenares tradições através das gerações.De meus avós a meus netos

Meus avós, Simão Sarraf (1872-1952) e Clara Roffé Sarraf (1886-1960), eram nascidos em Belém do Pará. Ambos eram originários de famílias de Marrocos, porém a mãe de Simão, minha bisavó Elisa Baruel, já era brasileira e, portanto, meus netos  são a 6ª geração de judeus brasileiros.Meu avô era descendente de sefaraditas portugueses que foram para Tetuan, e vovó, de família de Arzila, aldeia de pescadores na costa norte marroquina. Casaram-se em Belém, em 1899, e formaram uma grande família, com seus oito filhos, sendo que os três últimos já nasceram em São Paulo, para onde vovô, que era guarda-livros, se mudou com os seus.Assim como milhares  de origem marroquina, meus avós haviam herdado toda uma bagagem de usos e costumes, além da tradicional religiosidade judaica  que carinhosamente  transmitiram  a filhos e netos.O Shabat e a DafinaEm casa de meus avós, o Shabat merecia realmente ser um dia de descanso, pois os preparativos começavam alguns dias antes. No almoço do sábado, quando os homens voltavam da esnoga1, era servida a Dafina2, que exigia três dias de elaboração. Na 4a. feira, vovó e suas filhas sentavam-se na varanda da casa da Al. Lorena e, enquanto conversavam, moldavam manualmente uma a uma pequenas porções de massa na forma de grãos de café. Essa massa era secada ao sol na 5a. feira e, no dia seguinte, torrada e peneirada para tirar o excesso de farinha. Na 6ª. feira, antes do início doShabat, começava o preparo da Dafina. Numa grande panela, queimava-se um pouco de açúcar e, a seguir, forrava-se o fundo com batatas, cebolas inteiras e colocavam-se pedaços grandes de carne de peito de boi. Eram acrescentados a seguir, dois saquinhos de fina cambraia de linho, recheados, um com arroz cozido misturado com ovos batidos, canela e temperos perfumados, e o outro, com carne moída amassada com muitas especiarias. Por último, os grãos já secos e torrados, pouco sal e água suficiente para cozinhar em fogo muito brando. Desta maneira, a Dafina, enquanto cozinhava lentamente até ser servida, impregnava

a casa com o perfume delicioso e exótico dos seus sabores marroquinos.Na memória olfativa, ficou gravado o cheiro da Dafina da casa de minha avó, associada ao convívio familiar de um Shabatdistante, que por vezes procuro reviver, para que meus netos também venham a lembrar, um dia.Creio que não há casa de judeu marroquino sem uma cadeira de balanço ou uma rede; acredito que seja para descansar após o almoço do Shabat, ou para embalar sonhos e recordações. Merece ser mencionada uma peculiaridade do ritual do Shabat entre os marroquinos, que ocorre no Hamossí(bênção do pão), quando os pedaços da Chalá que são distribuídos pelo oficiante, devem ser tocados no sal e jogados aos pratos das pessoas presentes, porém nunca entregues diretamente em suas mãos.Pessach – do Seder à MimonaA semana de Pessach era iniciada com o tradicional Seder que tinha um momento muito esperado, quando vovô passava a keará sobre a cabeça de todos os presentes, entoando a doce melodia do “Bibehílu”, que quer dizer “precipitadamente”, pois foi assim que saímos do Egito. O restante da semana passava rápido entre trocas de receitas à base de Matzá, (el pan de l’aflición), dúzias e dúzias de ovos e pratos tradicionais altamente calóricos e, felizmente, sem a releitura dos novos  conceitos dietéticos.Mas o mais peculiar dessa data era a finalização festiva em Mimona, momento em que se come pela primeira vez os produtos fermentados, isto é, pão, bolo, doces, biscoitos e todos os farináceos que foram proibidos pelo que parecia o interminável tempo de uma semana. Assim a casa é enfeitada com ramos de trigo, a mesa tem tigelas com levedura de fermento e farinha de trigo, sobre as quais se apóiam ovos e moedas numa simbologia de fartura. Servem-se bimuelos e mufletas (fritura passada no mel), enquanto parentes e amigos entram e saem, pois muitas visitas são feitas com votos de Mimona Shalom, paz em Mimona e para sempre.Fadas – cerimônia quando nasce uma menina

O nascimento de uma criança traz sempre alegria e grandes comemorações para uma família judaica, especialmente se for um menino, cujo Berit Milásimboliza a continuidade do Pacto com  Abrahão, Pai do nosso povo, com o Eterno. Entretanto, entre os judeus marroquinos, também se dá as boas-vindas às  meninas, com a lindíssima festa das Fadas, que pode ser feita durante o primeiro ano de vida da criança. A palavra “fadar”, vem de fado, destino, portanto “fadar uma menina” é desejar-lhe um bom destino, desejar que uma “estrela alta” lhe ilumine o caminho.A festa das Fadas se inicia quando a recém-nascida é trazida para a sala onde estão os convidados, precedida de um vaso de rosas, cujo perfume separa um dia comum deste dia de festa. Após o Baruch Habá entoado pelos presentes, o rabino ou o oficiante reza o Shehecheianu e invoca as quatro mães do Povo Judeu, Sarah, Rebeca, Raquel e Léa, para que  acompanhem e inspirem a menina a seguir o caminho do bem, da verdade e das boas ações e para que tenha uma boa Chupá, para a continuidade do povo de Israel.Sete amigas da mãe da criança são convidadas a acender cada uma das  velas colocadas em uma bandeja, fazendo votos de saúde, beleza, fortuna, bondade e outros bons desejos. Confeitos de amêndoas cor de rosa e brancos, marzipã e doces são servidos com votos de uma vida doce e feliz. A festa das Fadas tem a correspondente das “Siete Kandelas”, entre os judeus sefaraditas de origem turca. Esse costume testemunha o valor que se dá à mulher, mostrando que sua vinda a este mundo é tão festejada quanto a de um filho varão e que suas responsabilidades são, por vezes, até maiores na transmissão dos valores milenares do judaísmo.Interessantes nomes usados pelos marroquinosAs famílias marroquinas costumavam ter muitos filhos, para poder“nombrar”, isto é dar nomes em homenagem aos avós maternos e paternos. Ao contrário dos judeus asquenazitas, os sefaradim costumam dar aos recém-nascidos o nome de pessoas vivas, para que essa honra seja uma homenagem em vida. Para mulheres, além dos tradicionais nomes bíblicos, vale mencionar nomes

originais, tais como Sol, Oro, Alegria, Vida, Preciada, Gracia, Sultana, Perla, Rica, Luna e outros. Para os homens, eram comuns nomes como, Mazaltov (boa sorte), Ayiush (vivo), Yomtov (dia feliz), Habib  (bem amado), Nissim (milagres) e outros.O banho – água que purificaO primeiro banho de um bebê, em nossa família, era presenciado por parentes e amigos, que com muita alegria, colocavam suas jóias e brilhantes na água, para que essa criança fosse “endiamantada”. Vovó costumava dizer que quanto mais jóias houvesse no primeiro banho, mais caridosa e boa seria “la kriatura”, isto é, a criança.  Esse costume curioso encontrou ótima acolhida no lado asquenazita da família, que logo adotou e incorporou esse lindo momento.Não se pode deixar de mencionar a purificação pela água, feita pelo banho ritual, a Micvá, nas vésperas do casamento e sempre que as Leis judaicas determinem. Nas vésperas do casamento usava-se sempre que possível as toalhas bordadas com fios de ouro, que faziam parte dos enxovais, para essas ocasiões especiais.Casamento – la noviaEntre os judeus marroquinos,  “tener Hada” quer dizer ter o costume,  assim existem várias tradições que não são explicadas; mas, como “es hada”, são mantidas e se baseiam na afirmação “kostumimos”, ou seja, costumamos ou “no kostumimos”, não é nosso costume. E com essas palavras dá-se o assunto por resolvido e encerrado. Era Hada seguir-se ao Dia del Banyo (o dia da Micvá), a comemoração La Noche de La Novia, quando a jovem era vestida com a roupa de “berberisca”, um vestido festivo dos berberes do Norte da África.Enquanto viviam no Maroccos, nessa noite, véspera do casamento naChupá, a noiva passeava pelo Mellah, iluminada por tochas, ao som estridente das “bargualás” (gritos guturais de alegria em sinal de festa) das judias marroquinas, enquanto se cantavam Piyutim e a família distribuía doces e moedas aos necessitados. Luzes e som são elementos da alegria de ser judeu e participar da festa da continuidade.Ditados e konsejas

O saber usar ditados populares, bênçãos e maldições é outra faceta interessante dos sefaraditas, em geral, e uma arte daqueles originários do Marrocos, especialmente quando ditos em Hakitia, a língua habitual dos judeus marroquinos, originada na Espanha e acrescida de palavras árabes e hebraicas. Quando algum convidado chegava numa festa, trazendo sua família  inteira e mais alguns amigos e parentes para a comemoração, vovó costumava dizer, espirituosa: “Vino Fulano kon toda la Rabat”.  Rabat é a capital do Marrocos e, portanto, ela queria dizer, ironizando, que Fulano veio trazendo tanta companhia consigo quanto a população de uma grande cidade.Outro ditado curioso é sempre usado quando alguém mora numa casa pequena, onde há pouco espaço: “Lugar no teníamos en la kasa i la abuelita se puso a parir”. Isto é, onde já não cabia ninguém, só faltava a avó ter um bebê. “Komites o no komites, a la meza te pusites”, era o que vovô  dizia quando um filho ou um convidado não apreciava a comida, mas se mantinha sentado à mesa por educação e respeito. “Hijos no tengo, nietos me lloran”, dito usado quando alguém se preocupa com problemas alheios.“Kon el sol vendrá”, isto é: durma tranqüilo que amanhã se resolve o problema.“Shofea la sahená, la kara de Tisha be Av ke tiene”. Esta frase tem a peculiaridade de usar palavras em árabe, hebraico e espanhol e sua tradução literal é: “Veja a vizinha, a cara de luto que tem”.“No te hagas mala sangre”. Muito verdadeiro. É um apelo para acalmar alguém, explicando que um aborrecimento envenena o sangue.Frases de bons augúrios são comuns, tais como: Mazal bueno (boa sorte),Dulce lo vivas (que tenhas vida doce), En fiestas i alegrias (em festas e alegrias), Mejorado el despozorio de tu hija (em breve o casamento de sua filha), Kon salud ke lo uses i gozes (que o desfrutes com saúde), El D'io no guadre (que D’us nos livre), Los malahines ke te akonpanien (que os anjos te acompanhem)Além do vasto refraneiro sefardita, existem inúmeras konsejas, pequenos contos, lendas ou realidade, de conteúdo moral e educativo, que sempre são contados pelos mais velhos, como a célebre história

de Sol – La Sadiká', a Justa, que não quis se converter ao islamismo para casar com o Sultão que por ela se apaixonara.  Jurando que jamais deixaria de ser judia, como nascera, foi decapitada  e está enterrada no cemitério de Fez. Sol Hachuel se tornou um  exemplo de fé e amor ao judaísmo.Amuletos e Meldados (orações)Hamsa e Shadai são os amuletos preferidos dos marroquinos, além das folhas de arruda, alhos e os ojikos (olhinhos). Havia ainda palavras fortes e muito usadas, tais como Ferazmal, que quer dizer afastado de mal eMalogrado, infeliz. Existem também orações e frases poderosas  para livrar perigos e evitar desgraças.  “Kapará por ti” é um voto que se faz para que um mal que ocorreu seja pequeno e tenha acontecido em lugar da preservação de algo maior, como a saúde e vida de alguém. Ser abençoado pelos avós, ao beijar sua mão, é costume marroquino que se situa entre a realidade respeitosa e a proteção mística.Na curiosa mistura de religião e superstições, muitas tradições foram-se perdendo por medo de serem ridicularizadas ou por incompreensão e intolerância.Acreditando em milagresUma figura sempre presente entre os judeus de origem marroquina é o pai do misticismo judaico, autor do Zohar, Rabi Shimon Bar Yohai, ou Rabi Shimon para seus adeptos. Nas horas de aflição é a ele que se recorre e seu retrato está presente em todas as casas, na cabeceira dos doentes, no quarto das crianças, associando sua imagem a grandes milagres. Quando uma criança engasga ou chora com dor, a mãe clama automaticamente por Rabi Shimon, “O Mestre dos Milagres” e sabe que ele estará presente com os feitos que o fizeram famoso. SuaHilulá, festa de recordação de um Sadik3, é até hoje uma data respeitada em Belém do Pará.Em momentos difíceis os judeus marroquinos voltam-se  também ao Rabi Meir, o Grande Rabi Meir Ba'al Ha-Ness, em busca de salvação. Pois, sabem que ele é “Senhor dos Milagres”, “Aquele que irradia Luz”, e  que  também acode os aflitos sozinho ou aliado a Rabi Shimon, se o

caso exigir uma “dupla com alto poder nos Céus”. Acredita-se que uma doação feita em nome de Rabi Meir é uma segulá, uma ação que atrai bênçãos, para engravidar, infalível para a pronta recuperação, salvaguarda de sofrimentos e até para achar coisas perdidas.A única certezaA consciência da mortalidade é na verdade a única certeza que temos.Entre os judeus marroquinos, lidar com a perda exige a observância daHalachá e de alguns costumes que, por interferência da vida moderna, vão sendo afastados.Assim, no Norte do Brasil, onde há a maior concentração de sefaraditas de origem marroquina, ainda hoje é usual enterrar as pessoas apenas envoltas na mortalha, É importante ressaltar que uma tradição marroquina muito respeitada é o costume de não ir direto para casa, quando se sai do Cemitério. Assim se torna obrigatório descer do carro e dar uma parada, seja para tomar um café, comprar um jornal, dar uma esmola ou qualquer outra coisa. Dizem que a observância desse princípio faz com que o Malach Hamavet (Anjo da Morte) não nos siga.O que fomos ontem é o que hoje somosManter acesa a chama do judaísmo, depois de várias gerações na Diáspora brasileira, é um trabalho de recuperar, revitalizar as tradições, manter e transmití-las, para que as novas gerações compreendam a essência dos valores que lhes são entregues e as passem com orgulho para seus filhos.1   Esnoga - como os marroquinos chamam a sinagoga. Talvez uma corruptela do termo em português e espanhol.2   Dafina - prato tradicional para o almoço de Shabat entre os judeus marroquinos; equivalente ao Tcholent asquenazita.3   Tzadik, Justo, em pronúncia marroquinaClara Kochen é formada em Direito pela Universidade de São Paulo. Entusiasta do ladino, da herança cultural - marroquina e  turca - que recebeu de seus pais, vem trabalhando sobre temas que deseja salvar do esquecimento.

Massada, epopéia trágicaA alguns quilômetros do Mar Morto estão as ruínas de Massada, onde ocorreu um dos mais dramáticos episódios da história judaica. Foi lá que, no ano 73 desta Era, 960 judeus optaram pelo Kidush Hashem, a morte em santificação do Nome Divino, à submissão a Roma.Edição 66 - Dezembro de 2009

Massada, palavra que em hebraico significa fortaleza, é um dos pontos turísticos mais visitados em Israel, apenas perdendo para Jerusalém. Sua beleza singular, que desponta em meio ao deserto da Judéia, aliada à força de seu passado, é apenas um dos elementos que atraem milhares de viajantes. A partir do século 20, o sítio arqueológico se tornou símbolo do heroísmo nacional judaico, exercendo um forte apelo à liberdade e à independência de Israel. Em 2001, a UNESCO designou Patrimônio Histórico da Humanidade o Parque Nacional de Massada, no qual estão as ruínas da fortaleza construída por Herodes, o Grande.A aventura em Massada começa com a viagem em meio à maravilhosa paisagem pelo deserto da Judéia, margeado pelas dunas de areia e salinas do Mar Morto. Para chegar ao topo da montanha, pode-se usar um serviço de teleférico ou se aventurar pela trilha, também conhecida como Caminho da Serpente. Em algumas épocas do ano, principalmente durante o verão, há espetáculos noturnos, com luzes. Além das ruínas, o local abriga um museu, uma sala de exibição, uma loja de suvenires e um restaurante. O museu foi inaugurado em maio de 2007, em memória de Yigael Yadin, (V. página 35), arqueólogo israelense que dirigiu as expedições na década de 1960. Combinando artefatos arqueológicos e uma atmosfera teatral, com narrativas de áudio, o museu cria uma experiência única e inesquecível para os visitantes.A fortalezaMassada é uma fortaleza natural, com penhascos íngremes em um terreno acidentado. Na parte leste, a face do penhasco se eleva 400 m

acima da planície circundante. As vertentes norte e sul são igualmente escarpadas, mas o lado oeste é mais facilmente alcançável. O platô de Massada tem o formato de um losango, com cerca de 600 m de comprimento e 300 m em sua parte mais larga.Segundo o historiador Flávio Josefo1, Herodes construiu a fortaleza entre os anos 37-31 antes da Era Comum. Escolhido por Roma para ser rei da Judéia, não era benquisto pela população judaica e fez do lugar seu refúgio pessoal. Exímio construtor, fez erguer uma dupla muralha de pedra, com quatro portões e mais de 30 torres, com 140 m de extensão e quase 6 m de altura em alguns pontos, estendendo-se por todo o perímetro do platô.O complexo da fortaleza incluía depósitos para guardar armas e alojar as tropas, enormes cisternas escavadas na pedra para coletar água da chuva, com capacidade para mais de 40 milhões de litros, armazéns, casas de banho, sinagogas e micvês, além de dois palácios com todo conforto e luxo para a época: pisos de mosaicos, afrescos e colunatas. Para vencer o clima quente e árido da região, os edifícios foram construídos com camadas de sólidas pedras de dolomita recobertas com gesso. Nada nas obras de Herodes era feito com descaso. Seu gosto pelo luxo e pela sofisticação, além da perfeição nos detalhes, era notório.A face norte da montanha, que oferece uma paisagem fantástica, foi a escolhida por Herodes para erguer um dos dois palácios da fortaleza. Este possuía várias construções, como um centro administrativo e quarteirões residenciais para oficiais e suas famílias. Separados do restante do complexo por um muro, que garantia-lhes total privacidade e segurança, havia três terraços luxuosos interligados por uma escadaria. No superior, vários quartos serviam como alojamento e eram decorados com mosaicos pretos e brancos, em padrão geométrico. Tudo indica que os dois terraços inferiores eram usados como área de lazer, pois incluíam uma pequena casa de banho particular.Ao longo das escavações realizadas na década de 1960 por Yigael Yadin cada novo achado foi desvendando a história de Massada. Entre

as ruínas da fortaleza foram encontrados restos de uma ampla sinagoga, voltada para Jerusalém, incorporada à seção norte do muro da casamata. Encontraram-se vários indícios de que teria sido usada durante a Revolta Judaica. Nesse local havia uma placa com a inscrição hebraica Me'aser Cohen - Lugar do Sacerdote, além de fragmentos de duas Torot, partes de Deuteronômio e Ezequiel, escondidos em covas abaixo do chão de um pequeno recinto dentro da sinagoga. Esta construção é considerada o melhor exemplo da arquitetura das sinagogas anteriores à destruição do Templo de Jerusalém, em 70 desta Era. Ânforas, restos de armas - principalmente flechas, roupas e alimentos da época dos zelotes foram também descobertos nas ruínas da fortaleza durante as escavações, além de cartas em hebraico, moedas e shekhalim datados da época da 1ª Revolta Judaica. Despertou especial interesse entre os estudiosos uma ânfora usada para importação de vinho de Roma, com a inscrição "Para Herodes, Rei dos Judeus". A ânfora trazia também uma inscrição com o nome de C. Sentius Saturininus, cônsul durante o ano 19 a.E.C.Duas micvês, ou piscinas para a imersão ritual de purificação judaica, foram também encontradas. Com emoção, Yadin recorda, em seu livro Massada, Última Fortaleza de Herodes e Última Posição dos Zelotes: "Estas micvês atestam que os defensores de Massada eram judeus devotos, pois que até aqui, na inóspita Massada, eles se deram ao árduo trabalho de construir esses banhos rituais em escrupulosa conformidade com as exigências da Lei judaica".Antecedentes da tragédiaCom o início da 1ª Revolta Judaica, em 66 da nossa Era contra o Império Romano, um grupo de judeus conhecidos como sicários consegue tomar a fortaleza de Massada, então sob controle de uma guarnição romana. A Grande Revolta Judaica termina no ano 70 da Era Comum, com a destruição de Jerusalém e do Segundo Templo pelas tropas do imperador romano Vespasiano, comandadas por seu filho, Tito. Rebeldes zelotes e suas famílias que haviam conseguido se salvar da fúria romana procuram abrigo em Massada. Fazendo da fortaleza a sua base, realizam uma série de operações conjuntas contra os romanos.

A queda de Massada tornou-se uma questão de honra para Roma, que incumbe o general Lucius Flavius Silva, governador da Judéia e cônsul, de dar um fim à rebelião. À frente da 10ª Legião e de várias unidades de apoio, Flavius Silva marcha contra Massada. Lá no alto da montanha, os judeus resistiram durante quase três anos ao cerco da 10ª Legião.Em torno de Massada, Flavius Silva construiu oito acampamentos de base, cujos restos podem ainda ser vistos, de maneira a acompanhar as atividades dos rebeldes. O general romano estabeleceu seu quartel-general em um dos acampamentos maiores, a noroeste da fortaleza. Sua primeira meta era impedir a fuga dos rebelados e, para isso, construiu uma muralha de três quilômetros de extensão e quase dois metros de espessura, circundando toda a montanha. O segundo objetivo era transpor a muralha defensiva, no alto da montanha, e assim penetrar na fortaleza. Sabia que um cerco prolongado era inconcebível, pois Massada tinha abundante reserva de água e provisões. Decide, então, construir uma rampa sobre a elevação natural na encosta oeste da fortaleza, que era a mais acessível. O plano inclinado foi concluído e a potente máquina de guerra romana entra em ação.À medida que acompanhavam a movimentação no sopé da montanha, os zelotes sabiam que era uma questão de tempo para que o inimigo conseguisse alcançá-los. Além de um exército numeroso, os romanos dispunham de armas, munições, grandes catapultas e estrategistas de guerra. Ademais, estavam determinados a não permitir que um pequeno grupo de judeus desafiasse o poderio do maior império da época. Diante do lento e inevitável avanço dos romanos, crescia rapidamente entre os judeus a certeza de que o desfecho seria apenas um: escravidão e morte sob as armas dos inimigos - o mesmo destino do qual haviam fugido ao deixar Jerusalém.Últimos suspiros de resistênciaAo compreender que os judeus de Massada viviam um dos últimos atos de sua epopéia, o líder Elazar ben Yair os reuniu. Disse-lhes não haver outra saída a não ser a morte Al Kidush Hashem, o suicídio para

santificar o Nome do Eterno. "Antes morrer do que sermos escravizados por nossos inimigos. Deixaremos este mundo como homens livres", disse no discurso feito na última noite antes do ataque derradeiro.Quando os romanos finalmente alcançaram a fortaleza e derrubaram suas muralhas, encontraram os corpos de 960 homens, mulheres e crianças. Haviam deixado intactas as provisões de água e alimentos, para que Roma tivesse a certeza de sua escolha pela morte à escravidão. Ademais, haviam incendiado a fortaleza.A principal fonte de informações sobre os fatos relativos a Massada é a obra do historiador judeu Flávio Josefo, baseada no depoimento de uma sobrevivente. Segundo esta testemunha, mais seis pessoas conseguiram salvar-se - uma mulher e cinco crianças, que se esconderam durante o suicídio coletivo e, depois, dos romanos. Em seu livro Guerras dos Judeus, Josefo dedica amplo espaço ao episódio de Massada. Na obra, ele inclui parte do suposto discurso de Elazar ben Yair na fatídica noite: "De acordo com a decisão que tomamos, há muito tempo, de nunca servir aos romanos, nem a qualquer outro deus além do Todo Poderoso, somente Ele é o Verdadeiro e Justo Senhor da Humanidade, é chegado o momento que nos obriga a transformar nossa resolução em prática...Fomos os primeiros que se revoltaram (contra Roma) e somos os últimos que a combateram, e só posso considerar isto como um privilégio que o Eterno nos concedeu de decidir morrer bravamente e em liberdade...Vamos permitir que nossas esposas morram antes de serem violentadas e, nossos filhos, antes de provarem o gosto amargo da escravidão e, depois que os tivermos matado, vamos dar este glorioso benefício mutuamente, uns aos outros".Ainda segundo o relato, Elazar teria então ordenado que todos os bens dos judeus, com exceção dos alimentos, fossem destruídos, "pois (a comida intacta) será testemunha de que ao morrer não estávamos passando necessidade. Mas que, de acordo com a nossa decisão original, preferimos morrer a ser escravizados".Um encontro de emoções

Poucos são os lugares nos quais o passado foi resgatado com tanto realismo quanto em Massada. Os achados foram considerados extraordinários por estudiosos do mundo inteiro. O sítio foi inicialmente identificado em 1842, mas somente na década de 1960, quando das primeiras escavações na área por Yadin, foi revelada ao mundo, em toda a sua pungente dignidade, a história de um dos mais trágicos acontecimentos da história judaica da Antigüidade. O projeto foi resultado de uma parceria da Universidade Hebraica de Jerusalém com a Sociedade de Exploração de Israel e o Departamento de Antigüidades e Museus de Israel (atual Departamento de Antigüidades de Israel). Durante as escavações, Yadin explorou os restos dos acampamentos romanos, instalados no sopé da montanha, e a rampa construída para possibilitar a subida de suas máquinas de guerra até o topo do rochedo. Um dos momentos mais emocionantes de suas descobertas, segundo o próprio Yadin, foi quando se deparou, em frente ao palácio da ala norte, em meio a camadas de cinzas, com 11 pequenos fragmentos de cerâmica, ou óstracos, com nomes inscritos nos mesmos. Em um deles aparece o nome "ben Yair" e pode referir-se ao nome de Elazar ben Yair, líder dos judeus rebelados. Estudiosos acreditam que são os fragmentos de cerâmica com os quais os judeus podem ter sorteado qual dentre eles seria o último a morrer.Nada melhor do que as próprias palavras de Yigael Yadin para descrever o a dramaticidade da descoberta em Massada: "Ficamos sem ação diante de uma descoberta difícil de ser descrita em termos arqueológicos, pois tal experiência não é freqüente nas escavações arqueológicas. Mesmo os mais veteranos e mais céticos entre nós ficaram paralisados, olhando estupefatos para o que tinha sido desenterrado; pois, ao fixar o olhar, revivíamos os momentos finais e mais trágicos do drama maior de Massada. Sobre os degraus que levavam à piscina de água fria e no chão, ali ao lado, jaziam os esqueletos de três pessoas. Um, de um homem de uns 20 anos - talvez um dos comandantes de Massada. Perto dele, encontramos centenas de escamas prateadas de armaduras, uma enorme quantidade de flechas, fragmentos de um talit e também um óstraco, ou fragmento de cerâmica com uma inscrição em letras hebraicas. Não muito distante

dali, também nos degraus, jazia o esqueleto de uma mulher jovem, com o couro cabeludo intacto em virtude da extrema secura do ar. Seus cabelos escuros, lindamente trançados, pareciam ter sido penteados há pouco.... Ao seu lado, delicadas sandálias de mulher, ao gosto da época. O terceiro esqueleto era de uma criança. Não havia dúvida de que o que viam nossos olhos incrédulos eram os despojos de alguns dos valentes defensores de Massada".Yadin concluiu: "Graças a Elazar ben Yair e seus camaradas e à sua heróica posição; graças ao fato de terem optado pela morte sobre a escravidão e a terem queimado seus humildes bens como derradeiro ato em desacato ao inimigo foi que eles conseguiram elevar Massada ao patamar de símbolo imorredouro da coragem desesperada - um símbolo que mobilizou os corações ao longo dos últimos 19 séculos. Foi isso o que levou estudiosos e leigos a subirem o caminho de Massada. Foi isso o que levou o moderno poeta hebreu a bradar: 'Massada não voltará a cair!'. É isso o que levou a juventude judaica de nossa geração, aos milhares, a ascender a seu topo em solene peregrinação. E é isso o que leva os recrutas das unidades blindadas das Forças de Defesa do moderno Israel a fazerem nas alturas de Massada seu juramento de lealdade. 'Massada não voltará a cair!'"

Os últimos 100 anos dos judeus na EspanhaNo ano de 1492, os judeus da Espanha que, no decorrer dos séculos, haviam adquirido mais poder econômico e político do que qualquer outra comunidade judaica medieval, foram sumariamente expulsos do país. O Édito de 31 de março, outorgado pelos reis Fernando de Aragão e Isabel de Castela, tornara o judaísmo ilegal em seus domínios e, num prazo de quatro meses, os judeus tiveram que escolher entre o exílio ou o batismo.Edição 91 - Abril de 2016

O Édito foi um choque. Os judeus acreditavam serem transitórias, como tantas outras, as perseguições e discriminações das quais tinham sido vítima a partir do final do século 14. Havia judeus vivendo

na Península Ibérica desde a queda do Segundo Templo, e, durante os séculos, haviam sobrevivido a invasões, guerras, pogroms, ao domínio islâmico e cristão. Viveram épocas de ouro e de discriminações. Estavam convencidos de que sua proeminência em todas as esferas da vida econômica, além da presença na Corte de judeus que atuavam como administradores e conselheiros dos reis, serviriam de proteção contra a hostilidade da Igreja e do povo. Ademais, acreditavam que os Reis Católicos, nome pelo qual ficaram conhecidos Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os protegeriam. Afinal, até 1491 e mesmo no início de 1492, depois da captura de Granada, os reis ainda nomeavam judeus para importantes postos na Corte e haviam também renovado os contratos com os judeus que arrecadavam impostos. O choque sobre a decisão dos Reis Católicos não era fruto de ilusões sem fundamento...No entanto, a expulsão foi o desfecho de um processo lento e progressivo de mais de dois séculos. Quando a Reconquista chegou praticamente ao fim, a atitude dos monarcas em relação aos judeus se transformou. Não sendo mais necessários para administrar as terras reconquistadas, os judeus passaram a ser vistos apenas como uma vultuosa fonte de renda para a Coroa.Não há dúvida de que no século 14 o poder da Igreja Católica crescera em demasia e, consequentemente, a situação dos judeus na Europa tornava-se cada vez mais difícil. Após a Igreja determinar que as heresias cristãs deviam ser vistas não apenas com um flagrante desafio às doutrinas católicas, mas também como um desafio à própria estrutura da Igreja Romana, e que deveriam ser eliminadas nem que fosse pela força, era inevitável a pergunta sobre o que fazer com a presença judaica na Europa.A partir do Concílio de Latrão, em 1215, a Igreja passa a exigir dos governantes ações mais severas em relação à população judaica. No entanto, por muito tempo, as mesmas não foram acatadas pelos reis cristãos da Península Ibérica ainda dividida entre vários reinos autônomos.

A atitude benevolente dos monarcas com os judeus era guiada por interesses próprios. Em Castela e Aragão, por exemplo, o benefício que os reis obtinham através dos exorbitantes impostos pagos pelos judeus superavam qualquer inclinação, decorrente de convicções próprias ou pressões da Igreja ou do povo, de tomarem medidas mais drásticas.Porém, quaisquer que fossem as atitudes da Coroa, entre as massas os sentimentos antijudaicos eram cada vez mais fortes. Ataques verbais e físicos contra judeus se repetiam, também, com frequência muito maior. Já estava impregnada no imaginário popular a figura do judeu como um ser maligno – a “encarnação do diabo”, ou, no mínimo, seus parceiros no mal, que “visavam a ruína” do Cristianismo. Para as massas, o judeu era o culpado por todo infortúnio e desastre.Vale ressaltar, porém, que apesar do clima antijudaico, para os judeus a vida na Península Ibérica era melhor do que em outras partes da Europa, ainda que crescesse a conscientização de insegurança.Não há como entender a expulsão de 1492 sem examinar os acontecimentos de 1391, de 1412 e 1413.O primeiro desastre – o ano de 1391O ano de 1391 foi determinante na história dos judeus na Península Ibérica. Frades franciscanos e dominicanos, apoiados pelo papado, percorriam a Península e davam sermões inflamatórios cujo intuito era a conversão dos judeus. A instabilidade política e as pregações do Arquidiácono de Ecija, Ferrant Martinez, que vivia em Sevilha, armaram o palco para a ampla violência antijudaica que ocorreu em 1391. Agitador antissemita sem escrúpulos, Martinez iniciara, no final da década de 1370, uma violenta campanha contra os judeus. Em suas pregações, costumava “alertar” a população de Sevilha para a “iniquidade” desse povo, encorajando a violência contra seus membros.Em 1390, Martinez aproveitou a morte do Arcebispo de Sevilha e do Rei de Castela, que deixara como herdeiro ao trono um filho menor de idade, para intensificar seus ataques. Para a maioria dos historiadores, Martinez foi o principal instigador dos pogroms que, no ano seguinte,

varreram a Península. No dia 4 de junho de 1391, os judeus de Sevilha foram atacados. Os pogroms espalharam-se rapidamente de uma cidade a outra, nos reinos de Aragão e Catalunha e nas Ilhas Baleares. Massas ensandecidas impulsionadas por um grande fervor religioso avançavam sobre os bairros judaicos obrigando os judeus a optar entre a cruz e a morte. Milhares escolheram a morte, mas tantos outros aceitaram batismo, sendo poupados, sem exceção. Famosas comunidades judaicas foram destruídas, como a de Gerona, sinagogas foram tomadas e transformadas em igrejas.Em Castela, como vimos acima, não havia um monarca forte, e a devastação foi terrível; poucas comunidades foram poupadas. Apenas nos Reinos de Navarra e Portugal, governados por reis poderosos, as comunidades judaicas ficaram em segurança.Estimativas do total da população judaica, em 1391, variam amplamente, mas calcula-se que 300 mil judeus viviam na época em terras ibéricas. Após um ano de distúrbios, quando a ordem foi restaurada, um terço da comunidade havia sido assassinada; um terço havia sobrevivido como judeus praticantes, conseguindo se esconder ou fugir para terras muçulmanas, e cerca de 100 mil haviam-se convertido.Após a devastação, os judeus tentaram reerguer suas comunidades. A de Aragão foi salva da total destruição, graças ao Rabi Hasdai Crescas, uma das principais autoridades rabínicas de seu tempo, que liderou o judaísmo espanhol durante um de seus períodos mais críticos. As aljamas foram reconstruídas e a normalidade restabelecida. Mas, para os judeus se reerguerem era necessário mais do que a reabilitação física nas juderías arruinadas. Os pogroms de 1391 haviam reduzido seus números, sua riqueza e seu moral.O judaísmo espanhol conseguiu sobreviver nos Reinos Cristãos durante um século após a catástrofe de 1391, principalmente, por causa da determinação dos monarcas de Castela e Aragão em proteger as comunidades judaicas, e o reconhecimento por parte de cristãos, que viviam em pequenos centros urbanos, de que a presença de uma comunidade judaica lhes era favorável.

O segundo desastre – os anos de 1412 e 1413Os vinte anos que se seguiram após os eventos de 1391 foram de uma relativa calmaria na intensidade da perseguição. Para a grande maioria, era um indício de que havia um futuro em terras ibéricas para os judeus. Mas muitos haviam perdido a esperança e procuraram deixar a Península estabelecendo-se em volta da bacia do Mediterrâneo. (Os governos passaram a restringir a emigração judaica – não queriam “perder” seus judeus, “apenas” convertê-los.)A Igreja Católica, por intermédio das suas campanhas contra os judeus, colocava um número cada vez maior de obstáculos na interação entre eles e os cristãos. Queria isolar a população judaica cada vez mais, querendo “preservar” os cristãosde toda “contaminação” judaica.Nos anos de 1412 e 1413, as comunidades judaicas de Castela e Aragão sofreram novos desastres.O primeiro ocorreu em 2 de janeiro de 1412, quando, no Reino de Castela, foi imposta, pelas Cortes de Valladolid, uma lista de restrições que passaram a regulamentar as relações entre cristãos e judeus, visando minar a economia destes últimos, suprimindo suas liberdades e reduzindo-os à condição de párias. Entre outros, os judeus foram despejados de seus bairros para separá-los dos cristãos, proibidos de coletar impostos para os governantes, que era parte significativa da origem da riqueza judaica.Os instigadores das novas leis foram o pregador Vincent Ferrer e Pablo Garcia de Santa Maria – um apóstata judeu que Ferrer convertera e que se tornara bispo de Burgos e Castela. Em decorrência da união de Castela e Leon sob um monarca, embora os reinos permanecessem separados, as leis de Valladolid eram válidas tanto em Castela quanto em Leon. Também em Aragão, Fernando I procurou estabelecer ordenações parecidas com as castelhanas contra os judeus. As novas restrições foram um grande golpe para os judeus ainda que continuassem a ser ignoradas pelas classes governantes pelo tempo que lhes conviesse. Na mesma época, com a aproximação entre o Antipapa Benedito XIII – reconhecido como Papa na Espanha, e Fernando I de Aragão, surgiu uma aliança política entre a Igreja e a

Coroa contra os judeus. A “guerra contra os judeus” tornou-se uma política oficial desses dois poderes.Em 1412, Benedito XIII, com o apoio de Fernando I, ordenou que as comunidades de Aragão e Catalunha enviassem delegados para Tortosa, para que fossem debatidas em sua presença as alegações de Gerónimo de Santa Fé, um apostata judeu de nome Joshua Lorki, que dizia poder provar em fontes judaicas a autenticidade do messianismo de Jesus.A Disputa de Tortosa, que teve início em 1413 e durou 20 meses, foi a mais longa e importante das disputas cristãs-judaicas impostas aos judeus durante a Idade Média. Essa Disputa de Tortosa, dirigida por Benedito XIII, adquire maior relevância não apenas pelo tempo que durou, mas também pelo número de autoridades eclesiásticas envolvidas: compareceram mais de 60 cardeais, bispos e outras personalidades religiosas e laicas. As fontes judaicas mencionam cerca de 20 participantes do lado judeu, sendo suas personalidades mais proeminentes os Rabis Zerahiah ha-Levi, Astruc ha-Levi, Joseph Albo e Mattathias ha-Yizhari.A disputa não foi um debate, mas uma exibição pública, e o método utilizado não privilegiou a discussão, mas a instrução. Os judeus tinham que apenas responder aos questionamentos de Jerônimo de Santa Fé, sendo-lhes proibida a oportunidade de réplica. A disputa foi um ataque verbal cristão contra os judeus, acompanhado de pressão psicológica – a ponto de intimidação e ameaças, a fim de obrigá-los a aceitar os argumentos de seus adversários. Como afirmara Benedito XIII na abertura da disputa: “Eu não vos fiz vir aqui para provar qual de nossas religiões é a verdadeira, pois para mim é perfeitamente claro que a minha é verdadeira e que a vossa está ultrapassada”. Para os cristãos era indispensável que os judeus reconhecessem falhas na própria interpretação do Talmud, no que diz respeito ao Messias.Os motivos que levaram a instituir a disputa são vários. As autoridades eclesiásticas queriam desmoralizar o Judaísmo, em um grande espetáculo público, e despertar o entusiasmo popular pelo Cristianismo

como única religião válida, e então efetuar uma conversão em massa dos judeus.Quanto ao desfecho da Disputa em Tortosa, historiadores concordam que a derrota judaica não foi plena. Mesmo diante das dificuldades e da grande pressão que sofreram, os judeus se comportaram com coragem, fazendo uso de argumentos dignos e sensatos. A contestação judaica aos argumentos cristãos produziu as melhores respostas oferecidas dentre todas as disputas judaico-cristãs na Idade Média.Para a população judaica, as consequências foram bastante negativas. Enquanto os rabinos eram obrigados a enfrentar as alegações cristãs em Tortosa, os frades andavam pelas comunidades judaicas desprovidas de líderes, e, como consequência, muitos se desesperaram e se converteram. No entanto, a intenção de Benedito XIII, em tornar o Cristianismo um símbolo de identificação para todos os habitantes da Península Ibérica não se realizou.A onda de antissemitismo, resultante da disputa em Tortosa acabou perdendo força. Quando Afonso V de Aragão assumiu o poder, tanto ele quanto João II de Castela e Leon, estavam mais interessados em assuntos seculares do que em fanatismo religioso. Ambos queriam a sobrevivência das comunidades judaicas para beneficiar seus reinos. Entre 1419 e 1422, João II, Afonso V e o Papa Martin V aboliram todos os éditos antijudaicos desde 1391, juntamente com algumas das restrições socioeconômicas. Outras restrições caíram em desuso. Algumas sinagogas e o uso do Talmud foram restituídos aos judeus.No reino de Castela-Leon, onde viviam a maioria dos judeus espanhóis, sua população judaica conseguiu uma recuperação melhor. Ainda restavam comunidades nas principais cidades (Sevilha, Toledo, Burgos), mas os judeus estavam, então, mais dispersos por várias cidades menores.No entanto, prejuízos irreparáveis tinham sido feito às comunidades, pelos eventos de 1391, 1412 e 1413 não tinham volta. O judaísmo espanhol jamais voltaria à condição que desfrutava antes de 1391. Mas, apesar de todas as depredações, ainda restavam vários judeus

de posses nas grandes cidades, com conexões na Corte e no governo, que atuavam como líderes comunitários. Contudo, eles já não gozavam do semi-monopólio das profissões intelectuais, e os cargos que antes possuíam, agora tinham que dividir com cristãos e conversos – sendo que havia agora muitos milhares destes últimos.Os conversosA enchente de conversos do Judaísmo resultante da violência e insistente pressão exercida sobre os judeus, durante décadas, foi um verdadeiro desastre para as comunidades judaicas, e um aparente triunfo para a Igreja. Mas para o Cristianismo, foi um cálice de veneno.Estima-se que até meados de 1415 outros 50 mil judeus se converteram, juntando-se aos 100 mil que já o haviam feito durante os pogroms de 1391. Como resultado dessas conversões, a população judaica ficou dividida em três grupos: os que haviam permanecido judeus, os que se haviam convertido e viviam como cristãos; e os criptojudeus, que repudiavam os batismos forçados e, no segredo de seus lares, permaneciam judeus. Segundo a lei judaica, os conversos ainda eram judeus, pois as conversões forçadas não têm validade, já que um homem só pode ser responsabilizado pelas atitudes que toma por livre e espontânea vontade.Precisa ser ressaltado que nem todos os cristãos-novos, como eram também chamados, haviam sido forçados a se converter. Alguns o haviam feito por livre vontade por acreditar na fé cristã, outros por quererem fugir da legislação discriminatória de humilhações às quais os judeus estavam submetidos e poder, assim, alcançar ambições profissionais ou comerciais. Alguns dos cristãos-novos demonstravam grande zelo por sua nova religião, e, voltando-se contra seus irmãos, foram veículo de grande sofrimento.É difícil para os historiadores estimar o número de conversos que eram criptojudeus. O criptojudaísmo foge ao olho do historiador e escapa de todos os registros escritos. Sabemos, porém, que os conversos mantinham estreitos laços familiares e comerciais, e se casavam apenas entre si. Havia os que, no maior sigilo, frequentavam

sinagogas, evitavam alimentos proibidos, jejuavam, mantinham as festas e guardavam, na medida do possível, o Shabat.Apesar de todas as promessas da Igreja, para os novos cristãos durou pouco a ilusão de viver em paz. Logo descobriram que não podiam fugir ao antagonismo antissemita da população, que os via com uma hostilidade ainda maior do que a que existia em relação aos judeus, e se referia a eles de forma pejorativa. Chamavam-nos de marranos (porcos).Os conversos e suas famílias tendiam a estar entre as pessoas mais cultas dos Reinos Cristãos e, apesar do preconceito que as cercava, muitas famílias de conversos prosperaram, tornando-se das mais ricas. Ao aceitar o batismo, os recém-convertidos não estavam mais sujeitos às leis que restringiam a vida dos judeus. Nos anos seguintes, vários deles galgariam posições de destaque na administração real, na burocracia civil e até mesmo na Igreja, chegando a casar seus filhos com membro da nobreza.A rápida ascensão dos conversos provocava inveja e ressentimento, exacerbando o antagonismo cristão. Os conversos acabaram por se transformar em um problema social além de religioso. A judeufobia, o antijudaísmo religioso das massas, fundiu-se com um novo tipo de antissemitismo – o racial. Depois de 1391, o conceito de limpieza de la sangre (pureza de sangue) tornou-se incorporado na vida espanhola nos séculos seguintes. Para um cristão provar sua “pureza de sangue” devia provar que não havia nenhum judeu em sua linhagem. A política de limpieza de la sangre será adotada primeiramente, em 1449, em Toledo, onde um conflito anti-conversos conseguiu bani-los e a seus descendentes da maioria dos cargos oficiais. O objetivo do estatuto de exclusão foi impedir uma maior inserção de cristãos-novos na vida econômica e social, pois essa mistura contrariava os interesses dos cristãos-velhos.A crescente hostilidade dos cristãos-velhos e o conceito de “limpeza do sangue” – que levaram a um isolamento dos cristãos-novos, foram fatores que levaram um grande número de conversos, assim como

seus filhos e netos – nascidos nominalmente no seio do Cristianismo – a traçar o caminho de volta às suas raízes.Ao longo do século 15 a questão dos conversos começou a preocupar os governantes e a Igreja. Num primeiro momento, as conversões em massa de judeus haviam sido vistas pelas autoridades eclesiásticas como uma vitória do Cristianismo. Elas partiam do pressuposto que, com o passar do tempo, mesmo os que haviam sido convertidos à força se tornariam cristãos sinceros. Mas, no decorrer do século, a Igreja passou a ver o grande contingente de cristãos-novos como um “um perigo oculto”, passando a querer eliminar todos aqueles cuja lealdade a seu credo não fosse confiável.Como vimos acima, os primeiros motins contra conversos irromperam em Toledo. Em junho de 1449, os que viviam na Ciudad Real, no Reino de Castela, reagiram após terem sido atacados por cristãos-velhos, tendo a luta durado 15 dias. Os ataques se repetiram em 1464, 1467 e 1474, sendo que esse último pogrom foi particularmente grave. A intranquilidade popular causada pela hostilidade dos cristãos-velhos contra os conversos preocupava cada vez mais os governantes.O ideólogo do antissemitismo que se abateu contra judeus e conversos espanhóis foi um franciscano, frei Alonso de Espina, o superior da Casa de Estudos de Salamanca, que os odiava igualmente e defendia a completa extirpação do judaísmo da Espanha por expulsão ou extermínio. Em seu devido tempo, todas as sugestões de frei Alonso foram adotadas pelos governantes ibéricos.Os Reis Católicos e a InquisiçãoA história dos judeus na Espanha vai dar sua guinada final em outubro de 1469, quando Isabel de Castela se casa com o príncipe Fernando de Aragão. Em 1474, Isabel ascendeu ao trono de Castela e, cinco anos depois, Fernando se tornou rei de Aragão. De 1479 em diante eles governaram o que era, de fato, um único reino unificado. Isabel e Fernando gradualmente restauraram a ordem e impuseram sua autoridade sobre toda a Espanha. Num primeiro momento, os reis não eram hostis aos judeus, pelo contrário.

Havia inúmeros judeus e conversos que foram nomeados para ocupar cargos importantes na administração do Reino. Entre outros, havia duas figuras de destaque: Rabi Isaac ben Judah Abravanel – que se refugiou em Castela após a morte do rei D. Afonso V, rei de Portugal, e Don Abraham Senior, de Segóvia, Rabino Chefe da comunidade judaica e Coletor-Chefe de impostos reais, em Castela. Os dois eram encarregados de administrar as receitas e fornecer abastecimentos ao exército real. Outros estadistas cristãos-novos prestavam serviços à Coroa e dentro da casa real, Isabel conseguiu conceber o Príncipe Juan devido ao tratamento médico que recebeu de seu médico judeu, Lorenzo Badoc. Havia também administradores e intelectuais judeus também na corte de Aragão e a serviço de vários nobres e clérigos.Ademais, em várias ocasiões, Fernando e Isabel intervieram pessoalmente para impedir distúrbios antijudaicos e punir os que haviam fomentado a violência. Para conter os excessos dos nobres e das autoridades municipais em sua tentativa de restringir os direitos dos judeus, Fernando havia deixado claro que não deviam ser prejudicados. Em 1477, ao defender os judeus de Trujillo, Isabel declarou, “Todos os judeus do meu reino são meus e estão sob minha proteção, e cabe a mim defender e protegê-los, e manter seus direitos”. São inúmeras as provas de que, até a véspera da expulsão, os governantes de Aragão e Castela consideravam os judeus como súditos leais e merecedores de proteção. A confiança judaica em seu apoio não se baseava, de fato, como alguns estudiosos alegam, em ilusões fantasiosas.Mas, Fernando e Isabel eram antes de mais nada monarcas católicos e levavam a sério suas responsabilidades religiosas em relação à Igreja. Não foi apenas por razões políticas que eles receberam do Papa Alexander VI o título de los Reyes Católicos.Os constantes relatórios sobre as alegadas atividades judaizantes realizadas por conversos alarmavam os Reis, principalmente Isabel. E, uma vez consolidada sua posição política, os Reis Católicos decidiram agir para resolver a questão dos conversos, de acordo com as diretrizes propostas pelos mais extremos fanáticos católicos: extirpar a

“heresia” dos conversos e tomar severas medidas contra os judeus para impedi-los de influenciar a população cristã.Em 1447, Isabel e Fernando foram convencidos pelo prior dominicano de Sevilha, Alonso de Hojeda, de estabelecer a Inquisição em suas terras. O dominicano alegava de que os conversos se reuniam secretamente para praticar seus “ritos antigos”, e essa ameaça só poderia ser adequadamente combatida se fosse instalado na Espanha um Tribunal da Inquisição, sob controle real. Ao contrário dos antigos Tribunais do Santo instituídos no século 13, a Inquisição espanhola não seria um instrumento do Papado. Prestaria contas diretamente a Fernando e Isabel. Como nos domínios dos monarcas espanhóis a Igreja e o Estado atuavam em conjunto, a Inquisição espanhola funcionaria como um instrumento da Igreja, mas também de política real.Em novembro de 1478, uma Bula do Papa Sisto IV autorizou a criação de uma Inquisição única na Espanha. Concedeu aos monarcas espanhóis o inédito direito de nomear e demitir os inquisidores. Em setembro de 1480, dois dominicanos foram nomeados inquisidores.O primeiro auto-de-fé se realizou em fevereiro de 1481, e seis conversos foram queimados vivos na estaca. Só em Sevilha, no início de novembro, as chamas ganharam mais 288 vítimas, enquanto 79 foram condenadas à prisão perpétua. Segundo os registros, entre 1481 e 1488, houve 750 autos-de-fé apenas em Sevilha. A Inquisição tomou nova dimensão quando Torquemada foi nomeado Inquisidor Geral. Todos os tribunais da Inquisição, em toda a Espanha cristã, achavam-se sob sua jurisdição. Nos quinze anos seguintes, até sua morte em 1498, ele teve um poder que rivalizava com o dos Reis Católicos. Sob Torquemada, o trabalho da Inquisição prosseguiu com renovada e diabólica energia. Na década seguinte, a Inquisição se ramificou, cobrindo quase todo o país em fins do século. Talvez uns 30 mil conversos tenham sido queimados vivos em todo o reino. Milhares de pessoas ficaram aleijadas ou enlouqueceram por causas das torturas, arruinadas porque seus bens haviam sido confiscados. Desde o momento de sua instalação, a Inquisição cobiçava a riqueza dos conversos e dos judeus. Nada podia deter as atrocidades, cuja relação

ocuparia centenas de milhares de páginas. A certa altura, os dignitários de Barcelona escreveram ao Rei Fernando: “Estamos todos arrasados com as notícias que recebemos das execuções e atos que dizem estar tendo lugar em Castela”. Em Castela, havia protestos contra o renascimento de uma instituição bárbara, criada originalmente em um clima mais primitivo espiritual. Mas os críticos foram silenciados.Desde o início, a Inquisição espanhola moveu-se com brutalidade em seu uso de confissões secretas extorquidas sob tortura, que era considerada “a melhor maneira de capturar o maior número de judeus secretos”. Em sua metodologia e técnicas de intimidação e tortura, não difere da Inquisição Papal, mas foi certamente na Espanha que atingiu novas dimensões de intolerância, cinismo, perversidade e terror. Todo tipo de tortura que a depravada imaginação dos inquisidores idealizava acabava sendo sancionado. Há registros de que um inquisidor falou aos colegas: “Devemos lembrar que o objetivo principal do julgamento e execução não é salvar a alma do acusado, mas alcançar o bem público e impor medo aos demais”.O Édito de Expulsão de 1492O ódio da Inquisição não era apenas em relação aos conversos. Era maior o ódio aos judeus praticantes, porque, em teoria, ficavam fora de sua jurisdição legal oficial. Os inquisidores eram autorizados a tratar de hereges, isto é, cristãos que se haviamdesviado da ortodoxia da fé cristã, ou seja, cristãos-novos acusados de judaizar, e, supostamente, não tinham poder sobre membros de outras religiões. Mas, como a Inquisição considerava o judaísmo um inimigo mortal da fé cristã, encontrava meios de implicar, arrastar e destruir os judeus praticantes. A verdade é que todos os que ocuparam cargos importantes no Tribunal do Santo Ofício tinham como objetivo se livrar dos judeus e, no final, conseguiram destruir o judaísmo na Espanha.Para conseguir seu objetivo final a Inquisição foi em frente em um crescendo de histeria, paranoia e terror. Ironicamente, o horror dessa primeira década, fez com que um número ainda maior de conversos voltassem a procurar suas raízes judaicas. A religião e a tradição, que eram vistas como crime pelos cristãos, novamente se tornaram fonte

de honra e orgulho. De fato, os judeus cada vez mais queriam se arriscar mesmo à fogueira do auto-de-fé de modo a permanecerem fieis ao D’us de Israel.A Inquisição embarcou em sua própria e constante propaganda antissemita, usando técnicas que iriam ser adotadas cerca de quatro séculos e meio mais tarde, na Alemanha nazista, por Josef Goebbels. Reiteravam-se e repetiam-se acusações revoltantes, com o conhecimento de que acabariam por ser aceitas, pois “uma mentira muitas vezes repetida se torna uma verdade”. Utilizando-se do antissemitismo que ela própria dera um jeito de provocar na população, a Inquisição pediu à Coroa medidas apropriadas. A proposta de expulsar todos os judeus da Espanha veio diretamente da Inquisição.O Rei Fernando reconheceu que a perseguição dos judeus e conversos teria inevitavelmente repercussões econômicas adversas para o país. Nem ele nem a Rainha Isabel, porém, puderam resistir à combinada pressão da Inquisição e do sentimento popular. Numa carta a seus mais influentes nobres e cortesãos, o Rei escreveu: “O Santo Ofício da Inquisição, vendo que alguns cristãos são postos em perigo pelo contato e comunicação com os judeus, estipulou que eles sejam expulsos de todos os nossos reinos e territórios, e convenceu-nos a dar nosso apoio e concordância a isso... fazemo-lo com grande dano para nós, buscando e preferindo a salvação de nossas almas acima do nosso proveito...”.Em janeiro de 1483, para apaziguar a Inquisição na Andaluzia, os monarcas anunciaram que todos os judeus da região deveriam ser expulsos. Em maio de 1486, todos os judeus foram enxotados de grandes partes de Aragão. Mas a expulsão geral teve de ser adiada porque a Coroa precisava do dinheiro, expertise e outras formas de apoio dos judeus e conversos para a campanha em andamento contra os muçulmanos do Reino de Granada.Em 1478, a batalha com o Reino de Granada foi retomada e, na década seguinte, Castela perseguiu, incessantemente, a ofensiva contra o último reino muçulmano na Península Ibérica.

Torquemada aceitou o adiamento pela Coroa da expulsão de todos os judeus da Espanha até que o Reino muçulmano de Granada fosse final e definitivamente conquistado. Mas, nesse meio tempo, passou a preparar o terreno.Assim surgiu uma acusação de libelo de sangue, conhecida como El Niño de la Guardia. Um converso, Benito Garcia, foi levado perante a Inquisição e acusado de participar da crucificação de uma criança cristã na véspera de Pessach. Submetido à tortura, ele “confessou” o nome de vários conversos e judeus supostamente envolvidos num complô para derrubar o Cristianismo, a Inquisição e matar todos os cristãos. Ainda que nenhuma criança estivesse desaparecida em La Guardia, nem houvesse fundamento na patológica acusação de assassinato ritual, os judeus, uma vez mais, se viram vítimas dessa calúnia medieval. Torquemada indicou uma comissão especial investigadora que, como se previa, “julgou culpados” os acusados. Em novembro de 1491, duas semanas antes da queda de Granada, cinco judeus e seis conversos foram mandados para a fogueira em Ávila.O intuito de Torquemada era atiçar ainda mais o povo contra os judeus e conversos, e assim preparar os ânimos para o decreto de expulsão, que seria divulgado apenas três meses após o veredicto.Em 2 de janeiro de 1492, quando o estandarte espanhol foi alçado na torre de Alhambra, palácio-fortaleza em Granada, a sorte dos judeus estava selada. Logo após a queda de Granada, começaram a circular rumores na corte de que um decreto de expulsão para todos os judeus estava para ser decretado. As datas específicas para a formulação, promulgação e anúncio público do decreto continuam alvo de discussão, mas provavelmente foram assinados em fim de janeiro e promulgados no final de março.Nesse ínterim, Rabi Abrabanel e Rabi Seneor tentaram influenciar os Reis Católicos a revogar o decreto. Na introdução a seu comentário sobre os Profetas, Rabi Abrabanel recorda ter-se reunido três vezes com o Rei, implorando, incessantemente, mas em vão, por seu povo. Apesar de necessitar do apoio dos poderosos cortesãos judeus e

conversos, Fernando manteve-se firme, enquanto Isabel o estimulava a manter sua decisão de remover todos os judeus da Espanha.Rabi Abrabanel é bastante sucinto em sua descrição de seu dramático encontro com o casal real, mas Rabi Moshé Capsali, Rabino Chefe de Istambul no século 15, e cronistas que se basearam nos relatos de Capsali, revelam detalhes da última defesa dos Mestres sefaraditas: “Naquele dia, Don Isaac Abravanel recebeu permissão para falar e defender seu povo. E lá se pôs, como um leão, em sabedoria e força, e, na mais eloquente linguagem, dirigiu-se ao Rei e à Rainha. Don Abram Seneor, também, dirigiu-se aos monarcas, mas vendo que era em vão, eles acabaram concordando em não seguir adiante com o assunto...”.Apesar de assinado em 31 de março, o Édito da Expulsão foi promulgado somente entre 29 de abril e 1º de maio. A razão dada no documento para a expulsão foi evitar que os judeus infligissem mais injúrias à religião cristã. O Édito enumera, em um estilo que denota ter sido redigido pelos inquisidores, os passos tomados durante os 12 anos anteriores para “evitar que os judeus influenciassem os conversos e para purificar a fé cristã”. Os judeus estavam estarrecidos; eles teriam apenas quatro meses de tempo para deixar a Espanha, onde seus ancestrais tinham vivido durante milênios. Ademais teriam que deixar bens e propriedades e lhes foi proibido levarem consigo ouro, prata ou pedras preciosas. As sinagogas (algumas das quais foram convertidas em igrejas), cemitérios e a propriedade das aljamas foram confiscadas. A pedido dos judeus, a data fatídica de 31 de julho foi adiada para 2 de agosto por causa de Tishá B’av.

Imediatamente após ter sido publicado o Édito, o clero começou uma ampla campanha de conversão. Houve um número significativo de judeus que claramente não tinham condições de enfrentar o exílio e se batizaram. Entre esses, dois dos mais importantes membros da comunidade judaica espanhola, Don Abraham Seneor e seu genro, Rabi Meir Melamed, que foram batizados em uma grande cerimônia, em junho de 1492. Ambos eram favoritos da Rainha Isabel e é possível que eles ou suas famílias tenham sido ameaçados, até se submeterem.

Outro líder da comunidade, Rabi Don Isaac Abravanel, recusou-se a se converter e optou pelo exílio, mas teve que renunciar a seus direitos de restituição das grandes somas que emprestara ao governo.O número de judeus que se converteram para evitar o exílio e aqueles que partiram é puramente especulativo. Entre os que partiram, a grande maioria foi para Portugal. O número destes últimos é estimado entre 100 mil e 120 mil. É possível que mais uns 50 mil tenham-se exilado em vários outros destinos partindo direto da Espanha em 1492, para as terras mediterrâneas, alguns para a África Ocidental, poucos para a Holanda. 

A História dos judeus na Península Ibérica chegara ao fim. Uma comunidade judaica famosa, tanto por sua sabedoria e conhecimentos quanto por sua importância econômica e política foi abrupta e cruelmente desarraigada. Mas, sua extraordinária civilização não desapareceu, pois, os judeus expulsos levaram seus conhecimentos, sua sabedoria e tradições para outras terras. Mas isto é um outro capítulo da História dos Judeus Sefaraditas...

Os Judeus e a Medicinapor Sergio D. SimonHá algum tempo, no final de uma consulta, recomendei à minha paciente que procurasse um determinado especialista para acompanhá-la junto comigo. A paciente, uma senhora já idosa, católica, ostentando um grande crucifixo no pescoço, me pediu: “Doutor, o senhor se incomodaria de me recomendar um outro especialista, mas um que fosse judeu?Edição 91 - Abril de 2016

Minha avó, que era portuguesa, sempre nos ensinou que devíamos procurar médicos judeus, porque esta é uma velha tradição na nossa família. Parece que em Portugal, há séculos, se recomenda, sempre que possível, que se procure um médico judeu, porque são os

melhores”. Surpreso com esta observação, decidi buscar fontes históricas que confirmassem o que me contava essa senhora.E foi sem muito esforço que descobri que realmente, ao longo de muitos séculos, na Europa, reis e nobres, famílias abastadas e até o próprio Papa, optavam, quando possível, por médicos judeus. Essa figura arquetipal de um médico judeu remonta até mesmo à Babilônia do século III, onde se dizia que um sábio talmúdico de nome Samuel, que se expressava em aramaico, era tão conhecedor da anatomia humana e das regras higiênicas dos judeus que era capaz de curar todas as doenças, menos três1.O grande livro de Medicina do povo judaico, o Sefer Refuot, entretanto, apareceu por volta do século IV, escrito por Assaf ben Berechiahu (também conhecido por Assaf ha Rofé) e Yohanan ben Zabda. É um livro que abrangia conhecimentos médicos da Mesopotâmia, do Egito, da Índia e dos países mediterrâneos da época, principalmente da Grécia. Acompanhava o livro um “Juramento de Assaf”, que, de maneira muito interessante, é bastante parecido com o Juramento de Hipócrates usado pelos formandos em Medicina até os dias de hoje. Entre outros tópicos, o Juramento de Assaf proíbe o médico, por exemplo, de causar intencionalmente a morte de um doente por meio de ervas ou poções; obriga o médico a guardar segredo sobre seus pacientes, além de inúmeras outras considerações que continuam bastante atuais. 

O Sefer Refuot advoga que os médicos dediquem especial atenção aos pobres, num cuidado social provavelmente originado nos escritos dos profetas. O Sefer Refuot estabeleceu entre os judeus a figura singular do médico como uma profissão diferenciada, a ser cultuada com muito estudo e muita humildade. Talvez daí venha a fama dos judeus como especialmente ligados à arte da cura. Existem ainda 15 manuscritos completos do Sefer Refuot, todos em coleções de museus europeus, a mais bem conservada no Museu de Munique.No século XII, por exemplo, no Cairo, um rabino-filósofo judeu de nome Moshe, que se expressava em árabe e era grande estudioso da Lei e da Medicina judaicas, era procurado durante as Cruzadas tanto por

monarcas cristãos quanto por califas muçulmanos, devido à eficácia de suas curas.Na Europa medieval, entretanto, a grande figura médica judaica foi, sem dúvida, Maimônides. Moshe ben Maimon, também conhecido pelo acrônimo de Rambam, nasceu em Córdoba, na Espanha, provavelmente em 1135, tendo morrido no Cairo em 1204 e levado a Israel para ser enterrado em Tiberíades. O grande Maimônides, homem de intelecto privilegiado, tornou-se um grande filósofo, cientista e rabino, tendo lançado as bases da fé judaica como a conhecemos hoje em dia. Sua obra Mishne Torá, em 14 volumes, ainda tem considerável autoridade canônica como uma grande compilação da lei talmúdica.Grande conhecedor das bases da Medicina grega, Maimônides publicou dez volumes sobre temas médicos, entre eles a grande farmacopeia da época, com 405 parágrafos sobre todas as drogas então conhecidas, e com todos os nomes por ele traduzidos para o árabe, o grego, o siríaco, o persa, o berbere e o espanhol. Maimônides praticou medicina no Marrocos e no Egito, onde se tornou uma referência na época, recebendo pacientes de regiões tão distantes como o Iraque e a Espanha.Mas nesta mesma Europa medieval, vários éditos e legislações tentavam proibir que médicos judeus atendessem pacientes cristãos. Uma delas, por exemplo, promulgada por Carlos II na Provença, em 1306, dizia especificamente: “Ordenamos que ninguém, quando acometido por enfermidade, busque um médico judeu ou qualquer outro infiel para conseguir dele, ou através dele, conselhos e tratamentos. Um médico judeu chamado por um cristão pagará uma multa de 10 libras da nova moeda (reforsas) e, se ele se recusar a pagar dita multa, ele será flagelado...”. Mas estes éditos, aparentemente, eram ignorados por grande parte da população. A figura do médico judeu era simplesmente muito forte no imaginário popular. Tanto assim que, em 1341, o Sínodo de Avignon revogou esta ordem, de maneira muito clara, alegando “utilidade pública”, “urgência” e “escassez de médicos cristãos”. Aparentemente a própria Igreja sabia que não era possível proibir o acesso dos cristãos aos médicos judeus.

O próprio Papa Nicolau IV tinha como seu médico de cabeceira o Mestre Gaio, o Judeu (Isac ben Mordechai) até sua morte, em 1292. E o importante Papa Bonifácio IX (papado de 1389-1404) teve dois médicos judeus: Angelo Manuelis, amigo íntimo e declarado “familiaris” pelo papa, e Salomão de Matasia de Saubauducio, que continuou depois como médico do Papa Inocêncio VII, que sucedeu Bonifácio IX.Entre o alto episcopado católico o quadro não era muito diferente. Em 1398 o poderosíssimo Don Pedro Tenório, Arcebispo de Toledo, contratou o Mestre Haim Ha-Levi como seu médico particular. Já o Bispo de Avignon, Don Nicolau, contratou em 1443 o médico Bonsenior Vitalis, que aparece pouco depois como médico também do Arcebispo de Aix-en-Provence. Inúmeros outros exemplos de altos clérigos da Igreja contratando serviços de médicos judeus são bem documentados também na Alemanha, em Portugal, em Luxemburgo e na Espanha.E quando chegamos aos próprios padres da Igreja Católica, há inúmeros registros de contratos de médicos judeus em conventos europeus. Na mesma Toledo do Arcebispo Don Pedro Tenório, seus padres apressaram-se a contratar os médicos Yosef (Yucaf) e Avraham, o primeiro por um pago de 333 maravedís2 por ano, o segundo por apenas 200...Todos os dignatários da Igreja sabiam que transgrediam a lei. Numa interessante carta de queixas de Arnoldo de Villanova ao Rei Frederico III de Nápoles, esta frustração fica clara: “Não há um só convento que não haja contratado médicos judeus. Vemos que o costume é de que nenhum outro médico entre nos conventos, a menos que seja judeu. Isto tanto nos conventos dos padres quanto nos das freiras...”. Alguma reação era esboçada pela Igreja, como o Cabildo Catedral de Cartagena, em Murcia, que, em 1470, substituiu um médico judeu por um cristão chamado Martin Jaimes, argumentando que “será preferível ter um médico cristão do que um judeu atendendo a Igreja”. Com o mesmo sentimento, entretanto, os padres do mosteiro de Burgos também reconhecem que seria melhor um cristão, mas acabam contratando Rabi Samuel (Simuel) como médico da instituição, com um salário de mil maravedís por ano. Assim, a medicina dos poderosos

europeus era, quase sempre, praticada por médicos judeus ao longo de toda a Idade Média.A situação piorou muito para os judeus europeus no fim da Idade Média e nos séculos da Renascença. A partir do século XV, a Igreja Católica aumentou muito seu discurso contra “os inimigos da cruz”, e esta perseguição e discriminação acabaram levando à expulsão dos judeus da Península Ibérica e ao aparecimento da Inquisição. Mesmo nessa época, entretanto, os médicos judeus continuavam em voga. Os anciãos religiosos (“anziani”) de Lucca, por exemplo, eram temerosos de continuar empregando médicos judeus devido à intensa propaganda antijudaica da Igreja. Mas passaram a instituir, então, uma dispensa papal (“bolla”)para manter empregado o médico judeu que os atendia, um certo Dr. Samuel. Há ampla documentação de dispensas papais para médicos judeus a partir de 1426, quando o Papa Pio II permitiu que dois médicos judeus atendessem cristãos. A última delas foi para “Doctor Benjamin (Gullielmo) Salamonis”, um médico judeu de Massa, na Itália. Essas dispensas papais eram documentos complexos, nas quais se externava a esperança de que, através do contato diário com pacientes cristãos, os médicos judeus encontrassem o verdadeiro caminho da salvação. As dispensas lembravam ainda aos médicos judeus que eles deveriam permitir a extrema-unção aos seus pacientes cristãos, e, inclusive, induzi-los a isto.Mas a dispensa papal não era garantia de emprego e segurança para os médicos judeus da época. Há casos como os de Mestre Elia, na cidade de Assisi, e de Daniel da Castro, na cidade de Bagnoregio, que terminaram desempregados. Apesar de possuirem abolla papal, a população não mais se sentia à vontade em pagar pelos serviços de um médico judeu, não pela sua eventual falta de competência, mas simplesmente por ser judeu, numa época de grande perseguição por parte da Igreja Católica. Quando se observa a deterioração global da relação entre judeus e Igreja Católica na época, com acusações fantásticas, instituição do ghetto em várias cidades européias, restrições à prática da usura, e, finalmente, a sua expulsão de vários países, não é de se admirar que a relação com os médicos judeus

também tenha sofrido enormemente. Mas, mesmo assim, os médicos judeus continuaram sua prática por toda a Europa.Descrições da época mostram como eram vistos e como agiam os médicos. Relatos detalhados de Kalonymus ben Kalonymus, de Arles, e de Shem Tov Falaquera, de Navarra, mostram os médicos como pessoas de destaque e respeito na sociedade, mas muitas vezes com uma certa arrogância e pompa, por eles ridicularizada. Ambos descrevem como o médico, vestindo um rico manto bordado, atendia em sua casa vários pacientes de uma só vez ou fazia visitas domiciliares a pacientes acamados. Tomavam o pulso, examinavam a língua e os olhos, cheiravam o hálito do doente e analizavam longamente um frasco de urina contra a luz de uma janela antes de darem seu diagnóstico e de receitarem laxantes, remédios à base de ervas, aquecimento do corpo e aplicação de sanguessugas.A situação dos médicos judeus na Europa, com um misto de admiração e ódio por parte dos cristãos, só veio a se modificar com o advento da Revolução Francesa e do movimento do Iluminismo alemão, que permitiu o acesso de estudantes judeus às grandes universidades.Devido à longa tradição médica judaica na Europa, as faculdades de Medicina receberam um grande número de estudantes judeus, desproporcional à sua distribuição na sociedade. Ao longo de todo o século XIX os judeus foram ocupando postos de destaque na pesquisa médica européia, principalmente na Alemanha e na Áustria. Vários professores catedráticos foram preenchendo vagas nas grandes universidades.Em 1930, apesar de décadas de forte antissemitismo europeu, os estudantes judeus ocupavam 11% das vagas nas faculdades de medicina na Alemanha - todos expulsos já em 1933, meses após a ascensão de Hitler ao poder. 

Portanto, não foi surpresa quando, nos primeiros 100 anos de outorga do Prêmio Nobel, constatou-se que 26% dos laureados em Medicina eram judeus! Este número, absolutamente fora das proporções

esperadas para um povo que constituia 1% da população européia na época, se deve à longa ligação do povo judeu com a Medicina.De Assaf HaRofé a Maimônides, passando por toda a classe médica judaica da Idade Média, chegando aos gigantes do século XX, como Robert Koch, Paul Ehrlich, Karl Landsteiner, Sigmund Freud, Otto Meyerhof, Rita Levi-Montalcini e inúmeros outros, a Medicina tem sido um grande campo de atuação do povo judeu.

Assim, ficou claro que minha paciente, pedindo-me uma indicação de um médico que fosse judeu, seguia apenas uma tradição secular européia: a de associar judeus à boa medicina.1              Não há referência na bibliografia sobre quais seriam essas três doenças. 2              Maravedí: Moeda de ouro ou prata (“maravedí de plata”) da Península Ibérica, usada principalmente na Espanha dos Almorávidas. Provem do árabe marabet.

Judeus dos países árabes: a história não contadaNos anos que se seguiram à criação de Israel, em 1948, cerca de 900 mil judeus que viviam no mundo muçulmano foram forçados a abandonar os países onde viviam, deixando para trás séculos de história e bilhões de dólares em patrimônio. Comunidades que existiam por mais de dois milênios simplesmente desapareceram.Edição 87 - Março de 2015

No entanto, até hoje, a história da expulsão desses judeus é praticamente desconhecida. Pouco se sabe sobre as humilhações, perseguições, pogroms, prisões e torturas sofridas por eles a partir de 1948, bem como as incontáveis dificuldades que tiveram que enfrentar até conseguirem refazer sua vida em outros países. Tampouco há consenso sobre o valor total de bens abandonados, ou melhor, sequestrados pelos vários governos muçulmanos. Os números oscilam

entre US$ 10 e 100 bilhões (em valores de 2006). 

Um dos grandes pontos de interrogação é o valor das propriedades comunitárias, tais como hospitais, sinagogas e escolas religiosas deixadas para trás. Para se ter uma ideia, uma estimativa sobre o montante das propriedades comunitárias judaicas no Egito gira em volta de US$ 550 milhões, em valores de 2007. A verdade é que o drama vivido pelos judeus dos países muçulmanos não interessa à mídia nem ao mundo acadêmico, raros são os livros ou estudos que tratam do assunto e não há museus sobre a vida judaica no mundo islâmico. A expulsão dos judeus orientais tampouco interessa às organizações de direitos humanos, não sendo mencionada nos fóruns de debates sobre direitos de minorias perseguidas.O próprio mundo judaico mostrou pouco ou nenhum interesse, durante décadas, sobre a história do fim da vida judaica no Oriente Médio muçulmano. Entre outros, a magnitude da Shoá e os mais de 6 milhões de judeus assassinados pelos nazistas sobrepujaram qualquer outra tragédia. Somente nos últimos anos a saga dos judeus dos países árabes tem atraído o interesse de pesquisadores e historiadores. Ademais, a segunda geração desses judeus tem começado a revelar o sofrimento vivido por seus pais.  Em Israel, a primeira cerimônia para lembrar o drama dos judeus orientais foi realizada no dia 30 de novembro ano passado, quase 70 anos após o ocorrido, em Jerusalém. O Knesset determinou que a partir de então, nessa data, sejam oficialmente lembrados a expulsão e o exílio dos judeus dos países muçulmanos. A data tem um significado especial, pois, foi em 30 de novembro de 1947, um dia após a aprovação da Partilha da Palestina pela Assembleia Geral das Nações Unidas, que, em vários países árabes, ocorreram os primeiros atos de violência contra a população judaica. Era o início do fim da vida judaica no Oriente Médio muçulmano.Em discurso proferido durante a cerimônia realizada em Jerusalém, no ano passado, o presidente israelense Reuven Rivlin afirmou: “Este dia

nos pede que recordemos... os tesouros culturais criados nessas comunidades judaicas dos países árabes e do Irã, e conheçamos o papel importante que desempenharam na criação do futuro comum hoje aqui entrelaçado como parte da história do Estado de Israel”. Rivlin fez um apelo aos países árabes e ao Irã para que devolvam aos judeus o patrimônio que lhes pertence. Ele ressaltou, ainda, que mais de dois terços desses judeus orientais foram para Israel, tornando-se cidadãos israelenses, apontando para o fato de que “Teerã, Alepo, Bagdá, Sana’a e Trípoli são locais onde os judeus israelenses não têm autorização de pôr os pés, e onde seus tesouros culturais e propriedades têm sido vandalizados e saqueados mais de uma vez”.  Pano de fundoNo Oriente Médio havia comunidades judaicas estáveis e pujantes desde o século 6 a.E.C, após a Babilônia conquistar o Reino de Judá, dando início à Primeira Diáspora – praticamente um milênio antes do surgimento do Islã, no século 7 de nossa Era.Os 1.400 anos de história dos judeus sob domínio muçulmano foram marcados por períodos de paz e prosperidade e outros de opressão, dependendo da época, do local e do governante no poder. A situação da população judaica agravou-se de forma definitiva em todo o mundo islâmico com a ascensão do nacionalismo árabe, do sionismo e o acirramento do conflito sobre o controle da Terra Santa, na primeira metade do século 20.  Durante a década de 1930, o antissionismo e o antissemitismo que permeavam o mundo árabe foram alimentados pelo nazismo. Ao eclodir a 2ª Guerra, o mundo árabe se alinhou ideologicamente com a Alemanha. O exemplo mais flagrante foi dado pelo Mufti de Jerusalém, Haj Amin al-Husseini. O líder religioso muçulmano era grande admirador de Hitler, e passou os anos da 2ª Guerra em Berlim. O Mufti defendia a adoção pela Alemanha da “Solução Final” também no Oriente Médio.Durante a 2ª Guerra, em vários países do mundo muçulmano, a população judaica foi vítima de violência e discriminação. No Norte da

África, sob o domínio francês pró-nazista de Vichy, o governo implantou leis antijudaicas. No Iraque, em 1 e 2 de junho de 1941, após um fracassado golpe de estado pró-nazista, ocorreu em Bagdá um pogrom – ou Farhud, em árabe, que matou 180 judeus, ferindo inúmeros outros e causando grandes prejuízos às propriedades privadas e comunitárias. Ataques semelhantes foram registrados em outros países vizinhos. Na então Palestina as hostilidades aumentaram nos últimos anos do Mandato Britânico. No dia 2 de novembro de 1945, aniversário da Declaração Balfour, eclodiram manifestações violentas, assassinatos e destruição de sinagogas e propriedades judaicas no Cairo, em Trípoli e Alepo.Mas, foi com a decisão da ONU da Partilha da Palestina e, em seguida, a criação do Estado de Israel que a natureza dos ataques contra judeus mudou. A perseguição tornou-se sistemática, planejada e patrocinada pelas nações árabes, que se negavam terminantemente a aceitar a criação de um Estado judeu lado ao lado de um Estado árabe.Antes mesmo da decisão da ONU líderes árabes haviam passado a encarar os cidadãos judeus como reféns. Duas semanas antes da votação, Heykal Pasha, o delegado egípcio, disse em discurso à Assembleia: “A solução proposta poderá pôr em perigo milhões de judeus que vivem nos países muçulmanos. A Partilha da Palestina poderá criar nessas nações um antissemitismo ainda mais difícil de extirpar do que o nazismo. Se a ONU aprovar a divisão da Palestina, será responsável pelo massacre de um grande número de judeus”.As ameaças árabes provocaram sérios temores. Em janeiro de 1948, o presidente do Congresso Judaico Mundial, Dr. Stephen Wise, fez um apelo ao secretário de Estado norte-americano, George Marshall, alertando que “entre 800 mil e um milhão de judeus no Oriente Médio e Norte da África correm o maior perigo de destruição em mãos dos muçulmanos que estão sendo incitados à guerra santa em virtude da Partilha da Palestina... Atos de violência já perpetrados, junto aos contemplados, claramente visando a total destruição dos judeus, constituem genocídio, que, sob as resoluções da Assembleia Geral, é um crime contra a humanidade”.

Em maio, dois dias após a Declaração de Independência de Israel, o jornal New York Times publicou a seguinte manchete: “Judeus em grave perigo em todas as terras muçulmanas: 900 mil na África e Ásia enfrentam a ira de seus inimigos”. O artigonoticiava um “esboço de um projeto de lei elaborado pelo Comitê Político da Liga Árabe visando definir o status dos judeus residentes nos países membros da Liga. O projeto determinava que todos os judeus – exceto aqueles que eram cidadãos de países não-árabes –, seriam considerados ‘membros do Estado da Palestina de minoria judaica’. Suas contas bancárias seriam congeladas e usadas para financiar a resistência às ‘ambições sionistas na Palestina’. Judeus suspeitos de serem sionistas seriam detidos e seus bens confiscados”. Enquanto o jornal ressaltava que “as condições podiam variar de um país muçulmano a outro”, também alertava sobre o potencial da escalada de violência: “Teme-se, entretanto, que, se uma guerra total eclodir, as repercussões serão muito graves para os judeus de Casablanca a Karachi”.No dia 14 de maio de 1948, Ben Gurion proclamou a Declaração de Independência do Estado de Israel. No dia seguinte, os exércitos regulares do Egito, Jordânia, Síria, Líbano e Iraque invadiram o recém-fundado Estado judaico. Os governos árabes acreditavam que sairiam vitoriosos e rapidamente seus exércitos “jogariam os judeus no mar”. Estavam muito enganados.Enquanto era travada a luta, nos países árabes as autoridades se voltaram contra os judeus de seus países que passaram a sofrer sistemáticas perseguições e humilhações. Ademais, foi criada, em todos os países, uma legislação discriminatória, altamente perniciosa, restringindo liberdades e direitos humanos dos seus cidadãos judeus.Durante todo o ano de 1947 e 1948, os judeus da Argélia, Egito, Iraque, Líbia, Marrocos, Síria e Iêmen foram perseguidos e tiveram suas posses e suas propriedades confiscadas. Ademais, foram sujeitos a terríveis tumultos instigados pelos governos de seus países. Na Síria, irromperam pogroms Pogrom (em iídiche, ,ּפָאגרָאם

]1[ do russo погром) é um ataque violento maciço a pessoas, com a destruição simultânea do seu ambiente

(casas, negócios, centros religiosos). Historicamente, o termo tem sido usado para denominar atos em massa de violência, espontânea ou premeditada, contra judeus, protestantes, eslavos e outras

minorias étnicas da Europa, porém é aplicável a outros casos, a envolver países e povos do mundo inteiro. anti-judaicos na cidade de Alepo, e o governo congelou todas as contas bancárias pertencentes a

cidadãos judeus, tornando o sionismo crime passível de pena capital. No Egito, detonaram bombas no bairro judeu, matando dezenas de pessoas. Na Argélia, foram rapidamente promulgados decretos contra a população judaica e, no Iêmen, sangrentas pogroms anti-judaicos levaram à morte quase 100 membros da comunidade.Há um consenso entre historiadores e pesquisadores de que o objetivo e a semelhança das medidas e dos ataques são uma clara indicação da existência de um modus operandi, sancionado e coordenado pela Liga Árabe, para forçar a saída dos judeus dos vários países. Foram adotadas medidas legais, econômicas e políticas com o objetivo de isolar os judeus, que, pouco a pouco se tornaram alvo de discriminação e isolamento socioeconômico legalizado. Entre outros, eram proibidos de atuar em vários setores da economia e, em muitos casos, valendo-se das desculpas as mais esfarrapadas possíveis, os governos confiscavam suas propriedades. Os ataques físicos se tornaram frequentes. Muitos foram presos, espancados, torturados e ameaçados de morte. Os poucos judeus que não deixaram rapidamente os países ficaram, num segundo momento, impedidos de sair e foram reduzidos a uma minoria sem direitos, sem liberdade e sua saída do país foi vetada. Para todos os efeitos, ficaram reféns dos governos dos países onde viviam.Estudo sobre os refugiados judeusIn 2003, a organização “Justice for Jews from Arab Countries” (JJAC)1 publicou um estudo, Jewish Refugees from Arab Countries: The Case for Rights and Redress” (Refugiados Judeus dos Países Árabes: A Defesa de seus Direitos Pessoais e de Reparação).O estudo, o primeiro do gênero, lançou uma nova luz sobre a natureza das pressões que forçaram 97% de todos os judeus dos países árabes a abandonar comunidades muito bem integradas em seus países de origem. No decorrer da pesquisa foram encontrados novos documentos que mostram que a crueldade generalizada dos governantes árabes com seus cidadãos de origem judaica foi uma represália à criação do Estado de Israel. Revelam, também, que foi uma perseguição patrocinada pelo governos dos países árabes, de forma consciente e

metódica, orquestrada com um objetivo: o fim das comunidades judaicas nesses países.O professor de Direito e ministro da Justiça canadense Irwin Cotler escreveu que a campanha árabe contra os judeus incluiu não apenas o incitamento e ataques esporádicos, como são descritos em vários estudos, mas foi mais sistemática do que se supunha e acompanhada pelo que ele definiu como “violação em massa dos direitos humanos... incluindo leis semelhantes às leis nazistas de Nuremberg contra os cidadãos judeus”. Atos que, segundo Cotler, ativista de direitos humanos, evidenciam a “intenção criminosa, senão mesmo a conspiração criminosa”. “Se olharmos para o planejado modelo estatal de repressão e para a legislação sistemática que criminalizou, cassou os direitos civis e se apossou dos bens dos judeus, concluiremos, então, que o que aconteceu faz parte dos anais da limpeza étnica”.

XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXO caso dos judeus expulsos  Não há como negar que cada vez que se faz alguma referência aos “refugiados do Oriente Médio” está-se pensando apenas nos refugiados palestinos. Mas a verdade é que, em decorrência do conflito árabe-israelense, foram deslocadas tanto populações de árabes quanto de judeus, sendo os refugiados judeus numericamente superiores aos palestinos. Mais de 850 mil judeus foram obrigados a deixar dez países muçulmanos, enquanto, segundo fontes das Nações Unidas, 711mil árabes palestinos deixaram, em 1948, a zona de guerra entre os exércitos de cinco países árabes e as Forças de Defesa de Israel.Diferentemente dos palestinos, os judeus não fugiram de áreas que eram zonas de guerra, mas o fizeram em decorrência de violentas e sistemáticas perseguições. Os primeiros êxodos em grande escala de judeus ocorreram no Iraque, Síria, Iêmen e Líbia. Cerca de 90% dos membros destas comunidades deixaram os respectivos países em poucos anos. O auge do êxodo do Egito ocorreu em 1956, logo após a

Crise do Suez; e nos países do Magreb, nos anos 1960. Na década de 1980, foi a vez dos judeus do Irã deixarem o país.Mais de 85 % desses judeus expulsos foram para Israel, o restante se estabeleceu no Líbano, até a década de 1970, quando tiveram que deixar esse país, na Europa e na América do Norte e do Sul. Os que foram para Israel foram amparados pelo recém- criado Estado, e os que se estabeleceram em outros países contaram com a ajuda de familiares, dos membros das comunidades e de organizações judaicas internacionais.As dificuldades que tiveram que enfrentar para refazer a vida foram imensas. Muitos se viram sem nenhum ou com muito poucos recursos. A maioria tornara-se apátrida, sem passaportes válidos, pois os governos dos países árabes haviam cassado sua cidadania. Os que não foram para o Líbano, se estabeleceram em países de idiomas e hábitos diferentes. Mas, onde quer que se estabelecessem, seguiram em frente, recebendo a cidadania dos países nos quais se refugiaram, lutaram para se reerguer economicamente, reconstruindo suas vidas e suas comunidades.Os que foram para Israel passaram por sérias provações. Grande parte chegava com poucos pertences, na maioria das vezes, uma única mala. É importante lembrar que o recém-criado Estado, além de ter que lutar uma guerra de sobrevivência contra seus vizinhos, enfrentava todo tipo de dificuldades econômicas e sociais e uma profunda crise habitacional. Entre 1948 e 1954 o fluxo de imigrantes dobrou a população de Israel e a triplicou no início da década de 1960. A magnitude do esforço de Israel para acudir os refugiados vindos da Europa pós-Holocausto e dos países árabes foi extraordinário. Um país de 650 mil habitantes conseguiu absorver uma população totalmente destituída de recursos de 685 mil. Apesar das imensas dificuldades, o então primeiro-ministro David Ben-Gurion não queria que os judeus que retornavam a seu Lar Nacional fossem classificados como “refugiados”. Portanto, não houve pedidos à comunidade internacional, como no caso dos palestinos, para que lhes fosse concedido o status formal de refugiados.

O caso dos refugiados palestinosO caso dos refugiados palestinos árabes é historicamente diferente. Após a decisão da Partilha, eles conclamaram seus irmãos árabes a invadir e destruir o Estado Judeu. A decisão da Liga Árabe, de 10 de abril de 1948, de invadir o novo país para “salvar a Palestina” foi um divisor de águas.A Declaração da Independência de Israel garantia liberdade e cidadania para os árabes palestinos, assim para como todas as minorias. Mas isso não bastava para eles. Os árabes não aceitavam a existência de um Estado Judeu. No dia seguinte à Declaração de Independência, os exércitos árabes invadem Israel. Cerca de 70% da população que vivia no território que se tornara o Estado de Israel fugiu, sendo que os primeiros foram seus principais líderes. Isso criou um colapso absoluto das instituições árabes.As estações de rádio árabes incentivaram os palestinos a deixar suas casas, assegurando-lhes que voltariam com os exércitos árabes vitoriosos. Vele ressaltar que apenas uma pequena parte, que vivia em locais militarmente estratégicos, teve que sair sob pressão das forças de defesa de Israel. Os governos árabes incentivaram a fuga em massa não só para abrir espaço para a invasão, mas também visando criar comoção e apoio para a causa palestina. Rapidamente, o mundo acabou “esquecendo” que, ao não aceitar a Partilha e ao declarar guerra ao Estado de Israel, os Estados árabes foram responsáveis pelo deslocamento dos palestinos.Como vimos acima, a ONU contabilizou na época 711 mil refugiados palestinos. Tendo o status formal de refugiados, eles recebiam anualmente – e ainda recebem – milhões de dólares em auxílio das Nações Unidas. (De 1950 até 2007 receberam US$ 13,7 bilhões).Ao fugir, a maioria deles se refugiou na Jordânia, principalmente na chamada “Margem Ocidental”, na época sob domínio jordaniano; em Gaza, então sob domínio egípcio; na Síria e no Líbano. Na maioria dos países onde se estabeleceram foram tratados como cidadãos de segunda categoria. Milhares foram instalados em “acampamentos provisórios” de refugiados, principalmente, no Líbano, em Gaza e na

Jordânia. Este foi o único país que lhes ofereceu cidadania, mas, apesar disso, os palestinos mantiveram o status de refugiados. Com o decreto 1547 de 1959, a Liga Árabe determinou que não seria consentida cidadania aos palestinos nos países árabes “com o intuito de preservar a entidade e identidade palestina”. Há uma clara motivação política por parte dos países árabes em manterem os refugiados palestinos como párias da sociedade. Seu objetivo é ganhar, através da diplomacia, o que foi perdido nos campos de batalha. Essa manipulação política tornou única a questão dos refugiados palestinos. É a situação mais antiga ligada a refugiados gerenciada pelas Nações Unidas e a única na qual o status de refugiados é garantido aos seus descendentes diretos por linhagem patrilinear. Hoje, eles somam quase 5 milhões de pessoas consideradas refugiadas após 60 anos – ou seja, três gerações.A ONU e suas agênciasA ONU e suas agências estão entre os piores ofensores em relação aos refugiados judeus. A visão da organização sobre o Oriente Médio é distorcida, pois sequer menciona a existência dos refugiados judeus no contexto do conflito árabe-israelense. A organização deveria deixar bem claro que quando se fala em refugiados deve-se reconhecer que no Oriente Médio há duas populações refugiadas, e que ambos os assuntos devem ser abordados da mesma maneira. A realidade, porém, é outra. Desde 1947 a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou 687 resoluções relativas à questão dos refugiados, porém todas só fazem referência aos refugiados árabes.Na realidade, a única agência da ONU que agiu em relação aos refugiados judeus foi o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, que procurou atuar para agilizar a transferência de bens dos judeus do Egito que já haviam fugido do país, e conduziu negociações diplomáticas sigilosas para tentar aliviar a situação dos que ainda eram mantidos como reféns em países árabes.Tais medidas não podem ser comparadas com o forte apoio que recebe da ONU o tema dos refugiados palestinos, tanto em termos de

financiamento, criação de comitês especiais para analisar o tema, como de uma série de resoluções que criaram direitos para os palestinos.Espoliação EconômicaQual o montante dos bens e propriedades deixados para trás? Apesar de na primeira fase das perseguições e, em certos países, uma minoria de judeus abastada ter conseguido fazer sair do país onde vivia algum dinheiro, a grandíssima maioria teve que deixar tudo para trás. Em todos os países árabes, raríssima foram as exceções. Após a criação do Estado de Israel, os governos, de olho nos bens e propriedades dos judeus, determinaram que todos os ativos líquidos, contas bancárias e propriedades individuais ou comunitárias fossem sistematicamente colocados em “custódia” e, a seguir, nacionalizados, tomados para fins de resgate e simplesmente roubados quando eles partissem. E foi o que ocorreu. 

A Síriaapreendeu, em 1949,os ativos financeiros judaicos e proibiu a venda de suas propriedades. Mediante uma medida emergencial, em abril de 1950, o governo confiscou várias propriedades judaicas – casas, propriedades rurais, lojas. De 1958 a 1961, os judeus que abandonavam o país foram forçados a transferir seus bens ao governo sírio e a pagar consideráveis impostos de partida. No Iêmen, em 1949, foram listados os bens e propriedades dos judeus a fim de retê-los para resgate.No Iraque, em julho de 1948 e em março de 1951, foram congelados bens dos judeus que deixavam o país. Em 1951, o Governo iraquiano discretamente concordou em deixar os judeus emigrarem para Israel, e quase todos o fizeram. Paralelamente, promulgou uma lei que decretava a nacionalização de todos os bens de propriedade judaica – casas, fábricas, bens, joias e contas bancárias. No Egito, em fevereiro de 1949, foram sequestrados todos os bens de judeus autóctones e daqueles que viviam no exterior. Gamal Abdel Nasser promulgou leis similares às adotadas pelo governo iraquiano após a Guerra do Sinai. Na Líbia, em 1961, o governo decretou o confisco dos bens dos judeus

que deixavam o país com destino a Israel. Em 1970, propriedades dos judeus foram confiscadas.O Marrocos sequestrou com fins de resgate bens e propriedades dos judeus que queriam emigrar para Israel, em 1961, e o Congresso Mundial Judaico teve que pagar US$ 250 por cada judeu autorizado a deixar o país. Na Tunísia, em 1961-1962, os judeus que deixavam o país podiam levar consigo apenas um dinar (o equivalente, hoje, a US$ 3). O Irã confiscou bens e imóveis dos judeus em 1979.Não há consenso entre pesquisadores e as organizações judaicas sobre o valor total dos bens pertencentes aos judeus dos países muçulmanos. O economista Sidney Zabludoff, ex-funcionário do governo americano, fez estimativas de que as propriedades totalizavam cerca de US$ 700 milhões, na década de 1950, ou seja, cerca de US$ 6 bilhões, em 2007. Uma organização judaica calcula que os judeus deixaram nos países árabes entre depósitos bancários, bens e propriedades por volta de US$ 30 bilhões, mas segundo a JJAC seriam mais de US$ 100. Essas fontes argumentam que os judeus eram proprietários de muitos terrenos e imóveis e que só os do Iraque deixaram US$ 2 bilhões apenas em depósitos bancários.Mesa das negociaçõesOrganizações judaicas, entre outras a Justice for Jews from Arab Countries(JJAC), Congresso Judaico Mundial, a Federação Sefardita Americana e a Organização Mundial de Judeus dos Países Árabes, têm lutado em fóruns internacionais para assegurar-se de que os direitos dos judeus dos países árabes também estejam nas mesas das negociações no Oriente Médio. Segundo o fundador do JJAC, Stanley Urman, “talvez nossa conquista mais significativa tenha sido a adoção, em abril de 2008, pelo Congresso Americano, da Resolução 185, que concedeu o primeiro reconhecimento aos refugiados judeus dos países árabes. Agora, é preciso que os diplomatas americanos, em todas as negociações sobre o Oriente Médio, se refiram a uma citação dessa Resolução com uma prescrição específica que estipule que qualquer referência aos refugiados palestinos deve ser equiparada por uma referência explícita aos refugiados judeus”.

A verdade é que o fato de os judeus refugiados das terras muçulmanas terem reconstruído suas vidas em Israel e em outros lugares não minimiza as injustiças que sofreram em seus países de origem. Não minimiza as perdas culturais e econômicas sofridas. Qualquer narrativa do Oriente Médio que não inclua a história do êxodo dos judeus dos países árabes no século 20 é uma afronta à verdade, à memória e à justiça.

A Sinagoga de JobarNo fogo cruzado entre rebeldes e forças do governo da Síria, o patrimônio histórico-cultural do país, até mesmo o judaico, está ameaçado de extinção.Edição 81 - Agosto de 2013Tags: Atualidades

Prova da gravidade da situação foi o bombardeio da Sinagoga de Jobar, localizada em um distrito nos arredores de Damasco, em 31 de março deste ano. A Sinagoga é uma das mais antigas do mundo, pois, de acordo com a tradição, foi fundada pelo profeta Elisha, por volta do século 8 antes da Era Comum (a.E.C.).Há mais de dois anos, uma sangrenta luta entre o exército sírio, leal ao presidente Bashar al-Assad, e as forças rebeldes, tomou conta da Síria. O conflito continua causando sofrimento humano e destruição incalculáveis. De acordo com dados compilados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, desde março de 2011, 100 mil pessoas foram mortas e 6,8 milhões necessitam de assistência humanitária urgente – entre os quais 3,1 milhões de crianças. Estima-se ainda que cerca de 1,2 milhão de famílias tiveram suas casas atingidas, das quais 400 mil foram completamente destruídas. Até 1º de julho, já havia mais de 1,7 milhão de refugiados sírios nos países vizinhos e na África do Norte.A guerra civil está destruindo o país, junto com seu patrimônio cultural e histórico. Nas últimas semanas, a luta atingiu novos níveis de

brutalidade e destruição. Os dois lados negam a culpa pela situação e atribuem total responsabilidade ao inimigo. No entanto, vídeos revelam que o fogo, tanto das forças do governo quanto dos rebeldes, tem atingido mesquitas, igrejas, castelos, santuários antigos, sítios arqueológicos, museus e souks.Damasco tem sido alvo de intensos combates e o distrito de Jobar, por exemplo, foi bombardeado por mais de dois meses. A cidade de Alepo também foi palco de violentas lutas. Durante a batalha pela cidade, iniciada em julho de 2012, grande parte da mesma foi reduzida a escombros, até mesmo a antiga cidadela, o souk medieval, e a torre da mesquita Ummayyad,construída no século 12.A Sinagoga de Jobar, que já havia sido atingida e saqueada nos meses anteriores ao bombardeio que atingiu o local, em março último, é o sexto edifício considerado Patrimônio Mundial da Humanidade a ser danificado na Síria. Após a agência Reuters divulgar a notícia dos bombardeios, fortes rumores circularam na mídia e na internet de que a sinagoga havia sido totalmente destruída pelo fogo. Ativistas disseram que pelo menos seis morteiros atingiram-na, tendo causado focos de incêndio em alguns lugares. Vídeos divulgados no início de março por grupos de oposição mostraram danos causados aos muros externos, de concreto, que circundam a edificação, e pilhas de escombros junto à entrada, na qual há uma inscrição em árabe, hebraico e inglês.As duas facções trocaram acusações pelo ocorrido. Na realidade, ainda não se sabe qual delas foi a responsável pelo bombardeio que atingiu o local, no final daquele mês. Tampouco se sabe, ainda, quão destruída está a sinagoga, apesar de os saques terem sido confirmados à Reuters por Mamoun Abdulkarim, diretor do Departamento de Antiguidades da Síria. Ele chegou a afirmar que... “Apesar de ainda não haver informações exatas sobre o que foi roubado, sabemos que entre os itens saqueados estão objetos e candelabros de ouro com mais de 70 a 100 anos. Lideranças judaicas tentaram entrar na sinagoga há quatro meses, mas não conseguiram por causa da presença dos combatentes”. No entanto, Abdulkarim afirmou duvidar que as centenas de manuscritos antigos, de inestimável valor, tenham sido roubadas da sinagoga, pois a maioria,

incluindo as Torot guardadas em caixas com filigranas em prata, já tinham sido transferidas para a sinagoga da Cidade Velha de Damasco, local considerado Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO. A Sinagoga de Jobar possuía um “Tãj” ou “Keter Torah1”, com iluminuras datadas de 1252.História da sinagogaA história e as inúmeras tradições da Sinagoga de Jobar se entrelaçam com a vida de dois de nossos maiores profetas, Eliahu Hanavi e Elisha. Viveram no Reino de Israel no século 7 a.E.C., uma época turbulenta em que a Terra de Israel estava dividida entre os reinos de Israel, ao norte, e Judá, ao sul.Segundo a tradição, a Sinagoga foi fundada pelo profeta Elisha, acima da gruta na qual o profeta Eliahu se teria refugiado de seus perseguidores. Em uma das paredes, há uma inscrição em inglês “Santuário e Sinagoga do Profeta Eliahu Hanavi desde 720 antes da Era Comum”. A sinagoga sempre foi um local de peregrinação para os judeus da região. A santidade do local é tamanha que doentes ali costumavam ser deixados sozinhos, durante a noite, para que o espírito do profeta Elisha pudesse curá-los ou aliviar suas dores. No século 1 E.C, a Sinagoga de Jobar foi restaurada por Rabi Eleazar ben-Arak, discípulo de Rabi Yochanan ben-Zakai e há menção dela no Talmud, pois nele há um relato de que o Amorá Rabi Rafram bar Pappa (século 4) orou no local.Durante a Idade Média, nos registros deixados por judeus que percorreram a região, há informações sobre a comunidade judaica de Damasco e de Jobar. A sinagoga de Jobar é mencionada nos relatos de Pethahiah de Regensburg, que esteve na região em 1180, e de Samuel ben-Simson, judeu francês que visitou Damasco em 1210. Ben-Simson conta que os judeus de Jobar, na época ainda um vilarejo próximo a Damasco, possuíam terras, plantações e vinhedos, mas muitos também trabalhavam como artesãos e comerciantes, e relata ter visto “a linda sinagoga de Jobar”.Após a expulsão dos judeus da Espanha, inúmeras famílias sefaraditasinstalaram-se em Jobar. Um judeu viajante anônimo, que

chegou à região poucos anos depois da imigração hispânica, disse ter encontrado 60 famílias vivendo no vilarejo e mencionou, ainda, a linda sinagoga local, afirmando: “Nunca vi nada igual”.A Sinagoga foi descrita com mais detalhes nos diários de viagem do Rabino Moses Bassola D’Ancona, italiano que visitou a Síria em 1522. Em seu diário, o Rabino relata que encontrou em Damasco “cerca de 500 famílias judias e três sinagogas – lindamente construídas e decoradas: uma para os sefaraditas, uma para os judeus nativos e uma para os sicilianos”. Ele assim descreveu sua visita à Sinagoga de Jobar:“Há lá uma sinagoga linda, como jamais vi. Foi construída em colunatas2 – seis à direita e sete à esquerda. Acima da sinagoga há uma gruta na qual o profeta Elihu Hanavi – de abençoada memória –, escondeu-se. Diz-se que a construção da sinagoga data da época do profeta Elisha. E há uma pedra sobre a qual dizem que Hazael (rei da Síria) foi ungido pelo profeta. Posteriormente, a sinagoga foi restaurada por Rabi Eliezer ben Arakh. De fato, trata-se de um lugar impressionante. Segundo o que me contaram, muitos milagres aí aconteceram. Nas épocas de desespero, os judeus sempre se reuniam na sinagoga e ninguém os incomodava”.Em sua “Crônica”, de 1672, Joseph Sambari relata que a comunidade judaica de Damasco vivia principalmente em Jobar e que ele tinha conhecimento da existência da sinagoga de Elisha e da gruta de Eliahu. A Sinagoga foi também descrita por Benjamin II3, outro viajante judeu que percorreu o Oriente Médio em meados do século 19.A Sinagoga de Jobar sofreu danos e foi saqueada, em 1840, logo após o Caso Damasco, quando os judeus damascenos foram acusados de assassinato ritual. Na ocasião uma multidão invadiu o local, saqueando a sinagoga e destruindo os Sefarim, os Rolos da Torá.A arquitetura da sinagogaGraças a um projeto do fotógrafo Robert Lyons, patrocinado pelo Jewish Heritage Council (JHC) – órgão criado pelo World Monumental Fund (WMF), em 1988, uma organização internacional de preservação –, é possível conhecer, em detalhes, como eram as sinagogas sírias,

inclusive a de Jobar. Ele viajou à Síria em 1995 para visitar e fotografar sítios históricos e os principais pontos que compõem a herança cultural judaica do país. Visitou oito sinagogas; na época, a maioria estava praticamente intacta, e conseguiu captar a impressionante arquitetura e a rica decoração de cada local. Entre as sinagogas fotografadas por Robert Lyons está a de Jobar. O resultado desse projeto pode ser considerado o único documento sobre as sinagogas sírias.As fotos tiradas por Lyons da Sinagoga de Jobar mostram o teto de madeira do qual pendiam inúmeros candelabros e lamparinas, feitos com materiais nobres; e lindos tapetes persas que ornavam as paredes e cobriam o chão. Havia bancos almofadados ao longo das paredes e também das arcadas laterais. Escadas à direta do Hechal (Arca Sagrada na qual são guardados os Rolos de Torá) levam à Caverna do Profeta Eliahu. Nesse local, os judeus costumavam acender velas e orar. Assim como em outras sinagogas sírias, a Tebá era octogonal e elevada por quatro ou mais degraus e adornada por leões. Colunas estreitas elevam-se a partir dos cantos octogonais como suportes para um dossel aberto, como se fosse uma cobertura, sempre em madeira. Nas sinagogas sírias, como a de Jobar, a Tebá geralmente possui uma pequena cerca de ferro ou uma balaustrada de madeira, ou ambas.A ala central era construída em um nível um pouco mais alto para melhor iluminar o interior, principalmente a área da Tebá. Além da iluminação mais adequada para a leitura da Torá, há também um significado simbólico, pois, ao entrar na sinagoga, tem-se uma visão imediata da mesma, o local a partir do qual a Lei de D’us é lida e proclamada. Janelas na galeria superior, nas paredes das alas laterais e lamparinas também garantem maior iluminação.Em Jobar um elemento comum à maioria das sinagogas sírias era a posição do Hechal, nas paredes ao Sul, apontando em direção a Jerusalém (nas sinagogas europeias e norte-americanas encontra-se geralmente a Leste). Nichos duplos ladeados por portas de madeira trabalhadas com relevos decorativos, cujo acesso é feito por três degraus, são outro elemento comum. Cortinas cobrem oHechal que abriga os Sefarim.

Com a eclosão da guerra civil na Síria, o patrimônio cultural e religioso judaico está seriamente ameaçado. Não se sabe ao certo o que acontecerá com esse legado – e as perspectivas não são muito boas. Nesse contexto, as fotografias de Lyons são um testemunho da riqueza das sinagogas sírias e uma forma de manter viva a memória desses espaços sagrados que, no passado, abrigaram vibrantes comunidades.1 Usa-se o termo Keter para um manuscrito da Torá em livro em folha de pergaminho (os Sefer Torá da Sinagoga são Rolos, mas o Keter é como um livro.) 2 Série de colunas dispostas simetricamente.3 Benjamin II. BENJAMIN II., J. J. (nome verdadeiro, Joseph Israel): viajante romeno nascido na Moldávia, em 1818, morreu em Londres em 1864. De espírito aventureiro, adotou o nome de Benjamin de Tudela, o famoso viajante judeu que, do século 12 e até o final de 1844, viajou em busca das Dez Tribos Perdidas.

Os nove de Budapestepor por Zevi GhivelderForam nove judeus oriundos da Hungria. Em primeiro lugar, deixaram Budapeste e, em segundo, a Europa quando o nazismo começou a convergir sobre o continente. Todos encontraram refúgio no ocidente onde inscreveram seu nome como algumas das mais notáveis celebridades do século 20.Edição 80 - Junho de 2013

Era um dia de intenso calor, em 1939, quando dois jovens físicos judeus húngaros, Eugene Wigner e Leo Szilard, saíram de Nova York e seguiram de automóvel rumo à pequena localidade de Peconic, nas imediações de Long Island, onde Albert Einstein passava o verão. Os rapazes levaram-lhe uma informação da qual Einstein já tinha algum conhecimento. 

Na Alemanha sob Hitler estavam sendo realizadas experiências pelas

quais o urânio bombardeado por nêutrons poderia desencadear uma reação em cadeia, dando origem a um artefato com imenso potencial de explosão. Em resumo, uma bomba atômica. Einstein observou: “Eu não sabia que a energia nuclear já estava prestes a ser liberada”. Pediram, então, que o cientista escrevesse uma carta de alerta ao embaixador da Bélgica em Washington, porque o urânio para tais experiências estava sendo extraído do Congo Belga. Entretanto, os dois jovens concluíram que aquela carta não seria suficiente. Duas semanas mais tarde, no fim de julho, voltaram ao encontro de Einstein e pediram-lhe que escrevesse diretamente ao presidente Roosevelt.O conteúdo da carta era terrível. Einstein descreveu qual seria o efeito devastador e até mesmo inimaginável de uma bomba atômica e o perigo desta para a humanidade se Hitler chegasse a possuir uma arma daquela natureza. Sugeriu de forma dramática que experiências iguais com urânio começassem de imediato nos Estados Unidos. A carta foi parar em alguma gaveta de algum gabinete da Casa Branca e só chegou ao conhecimento de Roosevelt no início de outubro, quando a Alemanha nazista já havia invadido a Polônia e se desdobrava a 2ª Guerra Mundial. Assim, o presidente ordenou a urgente implantação de um projeto que recebeu o nome de Manhattan, em Los Alamos, no estado do Novo México e contou com a competente contribuição de Wigner e Szilard e do cientista Edward Teller, outro judeu vindo de Budapeste. O projeto mencionado alongou-se por seis anos e foi consumado na bomba lançada sobre Hiroxima.Enquanto os norte-americanos desvendavam os segredos da energia nuclear, mais um cientista judeu húngaro, John von Neumann, radicado nos Estados Unidos, iniciava as pesquisas que dariam origem à ciência da computação. Ao mesmo tempo, no campo literário, o livro Darkness at Noon (traduzido para o português como O Zero e o Infinito) ganhava a condição de best-seller internacional, escrito pelo judeu húngaro Arthur Koestler, uma das primeiras obras que denunciou a brutalidade do comunismo sob Stalin. 

Enquanto isso, em Hollywood, o judeu húngaro Michael Curtiz dirigia o filme Casablanca, até hoje invariavelmente apontado como um dos dez melhores filmes de todos os tempos. Ainda nesse segmento, do outro lado do Atlântico, um arrojado produtor assentava sólidas bases para a indústria cinematográfica britânica, o judeu de Budapeste, Alexander Korda. Na imprensa americana, um jovem judeu húngaro, Andre Kertesz, ganhava destaque como o grande mentor do fotojornalismo, sendo seus passos seguidos por outro judeu húngaro, Robert Capa. Os terríveis momentos por ele captados durante a guerra civil na Espanha e no desembarque dos aliados no dia D, na Normandia, além de outras centenas de memoráveis trabalhos, tornaram-no um dos mais consagrados fotógrafos do século passado.Quatro grandes cientistas, dois eficientes profissionais do cinema, dois incansáveis caçadores de imagens através de lentes e um profícuo e polêmico escritor: esses foram os nove de Budapeste.Os judeus viviam uma boa época na Hungria no final do século 19, livres de quaisquer restrições. Somavam apenas 5% da população do país, mas constituíam um quinto dos habitantes de Budapeste. No decorrer de toda uma geração, os judeus húngaros eram desprovidos de sentimentos nacionais ou étnicos. Tinham o judaísmo apenas como uma questão de fé. Em 1912, o judeu Ferenc Heltai, sobrinho de Theodor Herzl, foi eleito prefeito de Budapeste, mas o sionismo nem de longe o contagiou. Para os judeus de Budapeste, a terra prometida se situava nas margens do Danúbio e não na remota Palestina. A principal ambição de seus moradores e das autoridades era atingir a grandiosidade material e cultural de Viena.Em Budapeste não havia nada semelhante a um gueto, embora o distrito de Pest tivesse a população composta por 70% de judeus que falavam o idioma magiar e desconheciam o iídiche. Na capital húngara, por volta de 1910, 50% dos advogados e médicos eram judeus, assim como 30% dos engenheiros e 40% dos jornalistas. Isso sem falar da maciça presença dos judeus nas atividades comerciais e financeiras.Filho de pais ortodoxos, nascido em 1888, o verdadeiro sobrenome de Michael Curtiz, era Kaminer. Quando começou no cinema, achou conveniente “hungarizar” o sobrenome para Kertesz e, finalmente,

optou por Curtiz. O cinema o fascinou desde a adolescência. Convenceu-se de que a principal figura para a realização de um filme era o diretor a quem sempre deveria competir a escolha da história, do elenco, dos cenários, dos figurinos e a edição final, postura que manteve durante toda a sua carreira profissional. Dirigiu na Hungria diversas películas sem som e logo percebeu que Budapeste dificilmente se tornaria um centro importante da indústria cinematográfica. 

Em 1913, embarcou rumo à Dinamarca, a Meca do cinema daquela época. Ali permaneceu um semestre, assimilando tudo em matéria de cinema. Voltou para Budapeste onde se defrontou com uma difícil situação política. A Hungria, após a dissolução do império austro-húngaro, encontrava-se sob o domínio totalitário e antissemita do almirante Horthy. Decidiu partir para Viena, onde continuou trabalhando como diretor. O filme que ali realizou, Sodoma e Gomorra, alçou-o à fama internacional. Em 1925, o produtor Harry Warner assistiu ao filme Moon of Israel (Lua de Israel), realizado por Curtiz para a empresa alemã Ufa. Entusiasmado, recomendou a seu irmão Jack que levasse aquele diretor para Hollywood porque, no seu entender, seria o único capaz de fazer frente a Cecil B. DeMille, da rival Paramount. Só que o dono da Paramount, Adolph Zukor, outro judeu húngaro, passou a perna nos irmãos Warner e adquiriu os direitos daquele filme, não para exibi-lo, mas para guardá-lo no cofre, um solerte ardil contra os concorrentes. Foi assim que Michael Curtiz teve seu primeiro contato com o jogo pesado que era a marca registrada da capital mundial do cinema.Em Hollywood, logo encontrou o que mais o seduzia na vida: garra e ambição. Adorou Los Angeles e, no primeiro dia em que chegou aos estúdios da Warner, já lhe estava confiado um filme de mistério e crimes, O Terceiro Degrau. Pôs-se a dirigi-lo, acrescentando dezenas de cenas que não constavam do roteiro original. Justificou: “Quando a câmera começa a rodar, a roda é do diretor”. A partir daí, sucederam-se numerosos êxitos coroados por vultosas bilheterias para a Warner Brothers. A consagração definitiva deu-se com Casablanca, em 1942, a

princípio um filme sem maiores pretensões, que teve como protagonistas Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Há quem atribua o monumental sucesso de Casablanca ao clima de tensão desenvolvido por Curtiz por meio da fotografia marcada por luzes e sombras. Outros preferem acentuar a singular e suprema qualidade do roteiro do filme, que além de intrigante, romântico e antinazista, foi feito e exibido quando a Alemanha se expandia sobre a Europa. Ao longo dos últimos 70 anos, Casablanca continua acumulando crescente admiração. O filme foi nomeado para oito Oscars, dos quais ganhou três, cabendo àquele pobre menino judeu de Budapeste a estatueta de melhor diretor.No início de abril de 1962, ele escreveu uma carta para um amigo na Hungria que continha o seguinte trecho: ”Ontem eu estava andando pelas ruas de Los Angeles e de súbito tive a sensação de estar a bordo de um navio que navegava rumo a Budapeste. Por que será que depois de tantos anos na América ainda tenho saudades da minha casa em Pest? Eu sei que a morte é igual em qualquer lugar. Aqui em Hollywood há palmeiras nos cemitérios. Em Budapeste, há salgueiros. Acho que prefiro os salgueiros”. Michael Curtiz morreu no dia 11 daquele mesmo mês.Arthur Koestler nasceu em Budapeste em 1905, filho de pai húngaro e mãe vienense. Por causa da turbulência política na Hungria, os Koestlers decidiram radicar-se em Viena. Arthur tinha, então, 14 anos de idade e a adolescência chegou-lhe ao mesmo tempo em que uma intensa paixão pelo sionismo. Escreveu: “Por não terem uma casa própria, os judeus têm de pagar aluguéis em outras casas e, mesmo tolerados ou agredidos são vistos sempre como diferentes”.Em Viena, Koestler conheceu Vladimir Jabotinsky, uma das mais importantes personalidades da história do sionismo, e apegou-se de corpo e alma a seu ideário: o renascimento de uma pátria judaica na Terra de Israel, nos dois lados do rio Jordão, mesmo se, para isso, tivesse de ser usada a força das armas. Ofereceu-se como voluntário para secretário de Jabotinsky e acompanhou-o nas palestras que este fazia pela Europa, arrebatando a adesão e a admiração das populações judaicas. Em abril de 1926, aos 21 anos de idade, Koestler

abandonou os estudos na Escola Técnica de Viena e comunicou aos pais que viajaria para a então Palestina por uma breve temporada quando, na verdade, sua intenção era jamais regressar à Áustria. Foi aceito num kibutz (colônia agrícola coletiva) no vale de Jezreel onde ficou apenas três semanas. Sentiu aversão ao trabalho no campo e logo concluiu que seu individualismo jamais se adaptaria a um sistema de vida coletiva. Foi vender limonada em Tel Aviv ao mesmo tempo em que começou a escrever no idioma alemão. Um de seus primeiros textos foi sobre a cidade de Haifa, publicado com destaque no jornalNeue Freie Presse, o de maior circulação em Viena.O artigo fez tanto sucesso que a rede de jornais Ullstein, de Berlim, convidou-o para servir como seu correspondente no Oriente Médio. Depois de oito anos naquelas paragens, retornou à capital alemã. Ali percebeu que somente a esquerda pressentia o perigo da ascensão de Hitler. Em 1931, filiou-se ao partido comunista e, por consequência, perdeu o emprego. No ano seguinte, a título de compensação, o partido o enviou para a União Soviética, incumbindo-lhe de escrever um livro sobre as grandes vitórias do comunismo. Enquanto o trem percorria a Ucrânia, ficou desolado com a pobreza que desfilava perante seus olhos. Em Moscou, assistiu a julgamentos de supostos dissidentes e ficou prostrado com a farsa dos procedimentos. Por onde passou, só viu miséria e descontentamento. Voltou a Berlim, trazendo na bagagem o material que lhe serviria para o livro Darkness at Noon.Em 1936, rumou para a Espanha e juntou-se às forças que combatiam o general Franco. Tido como inimigo, foi preso e amargou um confinamento de três meses numa prisão de Sevilha. Conseguiu fugir para Paris onde oficializou seu rompimento com o partido comunista. Foi para o interior da França onde começou a escrever seu famoso livro anticomunista e, na volta a Paris, o porteiro do prédio onde morava aconselhou-o a sumir do mapa porque estava sendo procurado. Não deu tempo. Prenderam-no e levaram-no para um campo de internamento em Le Vernet. Ali acabou de escrever Darkness at Noon e conseguiu enviar o manuscrito para um editor em Londres que, por sua vez, reuniu um grupo de intelectuais que intercedeu junto às autoridades francesas para que ele fosse

libertado e deportado para a Inglaterra. Chegou a Londres quase ao mesmo tempo em que as tropas nazistas desfilavam sob o Arco do Triunfo, em Paris.A partir de então, foi intensa sua produção literária, enquanto foi-se afastando e questionando o judaísmo. Seus livros foram traduzidos para dezenas de idiomas, entre os quais Ladrões na Noite, Os Gladiadores, O Ioga e o Comissário, O Homem e o Universo e O Fantasma da Máquina. Seu último e controvertido livro, de 1976, The 13th Tribe (traduzido para o português como Os Khazares: A 13ª Tribo e as Origens do Judaísmo Moderno) fez a alegria dos antissionistas. Nele, Koestler pretendeu expor que os judeus da Europa central não tinham relação alguma com a ancestralidade das Doze Tribos de Israel. Esses judeus seriam descendentes de um povo chamado khazar, que havia optado por absorver o judaísmo, incluindo a religião, as tradições, os ensinamentos e o idioma hebraico. Assim, o renascimento de uma pátria judaica na antiga Terra de Israel, ou seja, a pretensão territorial do sionismo, carecia de legitimidade. Estudos posteriores demonstraram definitivamente que, embora os khazares de fato tivessem existido desde o ano 618 até 1048 na região do Turcomenistão, a tese defendida no livro era absurda e desprovida de qualquer fundamento acadêmico. Aos 77 anos de idade, sofrendo de leucemia e do mal de Parkinson, Arthur Koestler suicidou-se com sua última mulher, Cynthia Jefferies, em sua casa em Londres, no dia 10 de março de 1983.Os quatro notáveis cientistas judeus húngaros, Leo Szilard, Eugene Wigner, John von Neumann e Edward Teller dedicaram-se desde o início de sua carreira aos estudos da mecânica quântica, as leis aplicadas ao comportamento das moléculas e dos átomos. Assim como o Renascimento atraiu artistas para a Itália, na década de 1920, a ciência atraiu físicos e químicos para a Alemanha. Szilard e Wigner estavam convencidos de que a fissão nuclear se tornava uma possibilidade cada vez mais próxima.O primeiro foi radicar-se nos Estados Unidos e em seu laboratório na universidade de Princeton se dedicou noite e dia ao que ele mesmo chamou de “a procura dos nêutrons”. Na companhia de Wigner, que

também havia emigrado para a América, procurou chamar a atenção das autoridades militares americanas para a possibilidade da elaboração de uma bomba atômica, “mas recebemos apenas sorrisos como respostas”. Já ao lado de Teller, manteve uma reunião com o coronel Keith Adamson, perito em armamentos do exército e da marinha. Este lhes perguntou de quanto dinheiro precisariam para desenvolver seu projeto. A quantia informada foi da ordem de seis mil dólares, uma soma expressiva para aquela época. Apesar de sua grande relutância e de seu grande ceticismo, Adamson concordou em liberar a quantia. Passaram-se seis meses até que os fundos lhes chegassem. Szilard lembrou: “Era como se a gente estivesse nadando num tanque cheio de geleia”. 

Em setembro de 1941, o físico americano Arthur Compton, detentor do prêmio Nobel, convocou os jovens cientistas húngaros para trabalharem com o físico italiano Enrico Fermi no Laboratório Metalúrgico da universidade de Chicago. Sua missão: separar o urânio do plutônio. Wigner recordou: “Naquele dia eu percebi que por fim iríamos obter a tão perseguida reação em cadeia”. Prosseguiram sob a liderança do famoso cientista judeu, de origem alemã, Robert J. Oppenheimer que, por sua vez, recrutou seu velho amigo John von Neumann. A este competiria desenvolver os cálculos matemáticos daquele inédito experimento. Um cientista baseado em Los Alamos disse: “Johnny nos encantou não apenas pela rapidez com que trabalhava, mas pela beleza de seus processos”.O triunfo do Projeto Manhattan assinalou o início da era nuclear e marcou também diferentes posturas entre os homens que a desencadearam. Teller e Neumann aderiram às causas e ideias conservadoras do establishment americano. Szilard tornou-se ardente defensor do controle das armas nucleares e para esse fim criou organizações pacifistas e passou a dar palestras nesse teor em todos os Estados Unidos. Wigner revelou-se menos politizado e recebeu o Prêmio Nobel de Física em 1964, o único dos quatro que mereceu tal honraria.

Nascido em 1893, o judeu húngaro Sandor Laszlo Kellner tornou-se uma celebridade mundial sob o nome de Alexander Korda. Aos 16 anos de idade, saiu de sua pequena cidade e rumou para Budapeste levando uma imensa bagagem feita de sonhos: as leituras das obras de Jules Verne, Rudyard Kipling, H.G. Wells e Charles Dickens. Começou a trabalhar como repórter de um jornal local e passou a assinar-se Alexander Korda, um nome que lhe pareceu ao mesmo tempo um tanto húngaro e um tanto internacional.

 Quando assistiu ao primeiro filme mudo, disse para um amigo: “É isso que vou fazer pelo resto da minha vida”. Assim como Curtiz, partiu para um grande centro de produção cinematográfica, no caso Paris. A aventura durou apenas dois anos. Sem um tostão e nenhuma perspectiva de trabalho, precisou da ajuda do cônsul da Hungria para comprar-lhe uma passagem de volta para Budapeste. Na capital, começou a escrever críticas sobre filmes, fundou uma revista chamada Budapest Cinema e já com algum renome arranjou um emprego na Projectograph, a única companhia cinematográfica do país. Vaidoso, charmoso, muito bem-vestido e bem-falante, frequentava os cafés de Budapeste com a postura de um ricaço, embora seus bolsos estivessem quase vazios e os braços ocupados com dois ou três livros que sempre carregava. A rigor, Alexander Korda representava o papel de um personagem chamado Alexander Korda. Um dia, no café New York, o preferido dos artistas e intelectuais, ficou esperando que ali entrasse Gabor Rajnay, o maior ator do Teatro Nacional. Apresentou-se a ele e disse: “Gostaria que você estrelasse o filme que vou dirigir. Você vai fazer o papel de um oficial dos hussardos. Já tenho o dinheiro, os equipamentos, tenho tudo”. Na verdade, tinha coisa nenhuma. Conseguiu uma câmera emprestada e marcou a filmagem para a manhã do dia seguinte na estação ferroviária. Ele sabia que por ali passaria um verdadeiro destacamento dos militares conhecidos como hussardos. Quando o pelotão se aproximou, ordenou que o ator marchasse à frente e acionou a câmera. Lançou, então, o filme (que naqueles tempos do cinema mudo duravam de cinco a seis minutos), anunciando: “Rajnay e centenas de extras!”

No decorrer dos anos seguintes, contando com a ajuda de seus irmãos mais jovens, Vincent e Zoltan, dirigiu cinco filmes em Budapeste cujos negativos se perderam. Sobrou apenas uma película, O Homem de Ouro, com três horas de duração, filmada em atraentes locações externas, que obteve espetacular sucesso e marcou o início de sua própria produtora, a Corvin Films, a maior da Hungria.O êxito, entretanto, foi ofuscado com a tomada do poder por Horthy que tinha um credo inamovível: detestava os judeus, os intelectuais e o cosmopolitismo. Novos tumultos de caráter antissemita fizeram com que Korda embarcasse para Viena e jamais voltasse a seu país natal. Na Áustria, dirigiu um filme que ganhou fama internacional, O Príncipe e o Pobre. Em seguida, trabalhou na Alemanha, voltou a Viena e teve Hollywood como destino final. Sua temporada na Califórnia não foi das mais bem-sucedidas, por conta dos constantes conflitos dos donos dos estúdios. Em 1932, trocou os Estados Unidos pela Inglaterra. 

O primeiro filme que produziu em Londres, Os Amores de Henrique VIII, arrebatou multidões aos cinemas e valeu o Oscar de melhor ator para Charles Laughton. Sua carreira cinematográfica incluiu a produção de 62 filmes, alguns dos quais memoráveis como O Terceiro Homem, O Ídolo Caído, Lady Hamilton, a Divina Dama, Anna Karenina, O Ladrão de Bagdá, A Volta do Pimpinela Escarlatee As Quatro Penas Brancas. Alexander Korda recebeu do rei George VI o título de Sir (Cavaleiro da Ordem do Império Britânico) por sua contribuição para a lucratividade e produtividade do cinema britânico. Casado pela terceira vez, Alexander Korda morreu em Londres em 1956. Sua segunda mulher havia sido a bela atriz Merle Oberon. Os dois grandes caçadores de imagens, Andre Kertesz e Robert Capa nasceram em Budapeste. 

O primeiro em 1894 e o segundo em 1913. O primeiro nome de Kertesz era Andor e o verdadeiro nome de Capa, Endre Erno Friedmann. Como se diz que uma fotografia vale mais do que mil palavras, seriam necessárias centenas de milhares de palavras para descrever as fotos operadas por esses dois profissionais. Kertesz começou a carreira em

1912 e teve seu batismo de fogo dois anos mais tarde, captando flagrantes dinâmicos da Primeira Guerra Mundial, o ponto inicial do moderno fotojornalismo. No conflito, foi ferido por uma bala e perdeu parte da mobilidade do braço direito, depois recuperada. Com 25 anos de idade foi para Paris e dali suas fotos foram publicadas em diversos jornais e revistas da Europa, além de um livro próprio em 1933.Três anos depois, pressentindo o perigo do nazismo, radicou-se nos Estados Unidos, onde trabalhou para diferentes revistas, notadamente a Vogue. A partir da década de 60, mereceu exposições individuais de suas fotos nos Estados Unidos e na Europa e a consagração veio com uma mostra no Museu de Arte Moderna de Nova York. Seus amigos lembram que ele jamais conseguiu dominar corretamente o idioma inglês e diziam que falava em “kertsziano”. Aclamado como um dos maiores fotógrafos de todos os tempos, Andre Kertesz morreu em 1985.Robert Capa tinha 17 anos quando, durante uma manifestação política em Budapeste, foi preso pela polícia de Horthy. Insultado como judeu, logo concluiu que teria de ganhar a vida fora da Hungria. Começou a trabalhar em Berlim e chamou a atenção dos editores dos jornais e revistas ao obter uma excelente fotografia de Trotsky durante um congresso em Copenhague, em 1931.A ascensão do nazismo levou-o para Viena e, em seguida, para Paris. Casou-se com Gerda Taro, também fotógrafa e criadora do seu novo nome profissional. Ambos foram para a Espanha onde, em 1936, começava uma sangrenta guerra civil que custou a vida de Gerda. Depois de cobrir a guerra entre a China e o Japão regressou à França e antes que fosse preso como judeu conseguiu fugir para os Estados Unidos, logo obtendo um contrato com a revista mais prestigiosa do país, a Life.Engajou-se com as tropas americanas durante a 2ª Guerra Mundial tendo tirado excepcionais fotografias do desembarque aliado na Normandia, no dia D. No dia 14 de maio de 1948, fotografou em Tel Aviv a cerimônia de proclamação do nascente Estado de Israel, presidida por Ben Gurion. Já no dia seguinte, começou a cobertura da

Guerra da Independência até a vitória do novo país. Chegou a pensar em ficar para sempre em Israel, tanto que escreveu numa carta para sua mãe: “Finalmente me sinto em casa”. Mas, o dever profissional levou-o para a guerra na Indochina, onde pisou numa mina terrestre e morreu no dia 25 de maio de 1954. Suas pernas estavam dilaceradas e as mãos ainda seguravam a câmera fotográfica.

Judeus ibéricos deportados a São Tomé entre 1492-1497por por Reuven FaingoldAs crônicas judaicas dos séculos 15 e 16 retratam o sofrimento dos exilados ibéricos face à expulsão da Espanha e o batismo forçado de Portugal. Nas travessias rumo as colônias d'Além Mar, maus tratos infringidos aos judeus e cristãos novos eram uma constante.Edição 79 - Março de 2013

A “Expulsão dos Judeus da Espanha”, em 31 de Março de 1492, e, posteriormente a “Conversão de Portugal”, em 5 de Dezembro de 1497, foram acontecimentos emblemáticos que permitiram o rápido povoamento das Colonias d´Álém-Mar. Três cronistas judeus contam as tribulações vividas na época. Nesses anos, Portugal programou uma deportação especial à Ilha de São Tomé, na África. Crianças e adultos sofreram maus tratos nas travessias ultramarinas, quando não acabavam presa de animais ferozes que habitavam as recônditas regiões.A vida em São ToméPoucas fontes judaicas descrevem São Tomé, uma ilha no golfo da Guiné, descoberta durante o reinado de D. João II de Portugal, em 21 de dezembro de 1471. A única fonte que a menciona é o Sêfer Orchot Olam de Abraham Farissol, que dedicou o capítulo 16 ao descobrimento da ilha. Sua descrição morfológica, dados sobre flora e fauna e a existência de população é de enorme valor histórico. Ele relembra que os portugueses esforçavam-se para chegar até a Etiópia

e que, abrindo caminho na direção sudeste,“acharam uma ilha jamais colonizada que denominaram Porto Santo; e o rei de Portugal a povoou com moços e moças [nearim unearot], rebanhos e gado, como também homens e mulheres. Ouvi também que lá há cristãos novos [anussim] vindos durante a época da expulsão, javalis, coelhos e um número incalculável de pombas”.Uma Carta de Sesmarias registra os primórdios de São Tomé entre 1471-1490. Essa colonização iniciou-se, de fato, quando D. João II outorgou uma autorização a Álvaro de Caminha e Souto para povoar a região, principalmente com judeus e cristãos novos. Assim, o programa de colonização aliviaria problemas demográficos surgidos em Lisboa e outras cidades de Portugal. Sabemos que o auge da colonização aconteceu entre 1530-1540, e que, entre 1493-1500, os primeiros judeus chegaram à região, resistindo às adversidades climáticas.São Tomé representou para Portugal um “laboratório experimental”, uma mescla étnico-social jamais vista antes. Ali a Coroa adotou uma política dupla: transportava grupos humanos explorando a economia do território e, paralelamente, educava e catequizava os nativos na observância dos ensinamentos cristãos. O homem branco (português ou europeu) recebia em São Tomé grandes encomendas de escravos negros oriundos da África e da Ásia, prontos para serem vendidos nos mercados. O contato racial originaria uma população mulata. O processo étnico-racial foi registrado por um aventureiro que ancorou em São Tomé em 1506:“Poucas mulheres tinham filhos de homens brancos e a maioria tinha filhos de negros, enquanto as [mulheres] negras tinham seus filhos de brancos”.Um português cujo navio zarpou de Lisboa a São Tomé retrata a população autóctone da ilha. Ele comenta que “todos têm mulher e filhos, e algumas crianças ali nascidas são brancas como as nossas [em Portugal]. Às vezes, quando a esposa de um comerciante morria; ele tomava uma mulher negra. Isto era uma prática aceita; pois a população negra era rica e inteligente, educando os filhos à nossa maneira [europeia], tanto no que diz respeito aos costumes como ao vestir. As crianças nascidas dessas uniões são de compleição escura e são chamadas de mulatos, sendo maliciosas e difíceis de tratar”.

Com a chegada dos judeus convertidos ou anussim a São Tomé, no final do século 15, a vida econômica floresceu. Os reis D. João II e D. Manuel I consideraram o comércio de importação a atividade principal, incentivando a comercialização de produtos como animais exóticos, perfumes e outros objetos de valor. Uma fonte inestimável da receita geral dependia do ouro, marfim, tráfico de escravos e especiarias. Por outra parte, as exportações incluíam cavalos de raça, tapetes, tecidos, joias e outros artigos de luxo. A inserção de judeus hispano-portugueses no comércio internacional abriu mercados até então desconhecidos. Os exilados de 1492-1497 levaram a essa ilha o cultivo da cana de açúcar, empregando de 150 a 300 escravos por engenho. Graças a essa atividade industrial, a ilha se converteu em um dos maiores centros açucareiros. Trinta anos depois, por 1522, havia em São Tomé 60 engenhos.Sob uma perspectiva social, o império ultramarino português confrontou-se com sérias dificuldades, principalmente por causa da forte discriminação racial. A segregação de minorias foi crescendo, gerando um mosaico étnico que se cristalizou dentro e fora de suas fronteiras. Charles R. Boxer, o estudioso do império português, chegou a afirmar que “algumas colônias como Cabo Verde, São Tomé e a Guiné Alta e Baixa, tornaram-se verdadeiros depósitos de escravos, onde os mesmos esperavam para serem despachados para a América Espanhola e o Brasil”.A “Questão Judaica” na IbériaA política colonizadora de São Tomé se sustentava nas atividades socioeconômicas dos judeus expulsos da Espanha, em 1492. O maior questionamento, na época, era: De que forma um país pequeno e densamente povoado como Portugal seria capaz de absorver dentro de suas fronteiras um número tão grande de judeus? Hoje sabemos que a política real era aproveitar o judeu e povoar colônias distanciadas da metrópole, Lisboa, impedindo a organização de uma vida comunitária judaica nos diferentes centros urbanos do país. O destino dos exilados judeus não foi determinado por eles mesmos; os itinerários traçados e os traslados efetuados eram determinados pela Coroa. Dentre eles surge São Tomé.

Mesmo depois da conversão forçada em Portugal (1496-1497), a política régia colonizadora não sofreu alterações significativas. Segundo os cronistas, Portugal continuou a deportar para suas colônias judeus convertidos ao Cristianismo, consolidando sua presença em regiões afastadas do gigantesco império ultramarino.Três crônicas judaicas descrevem claramente as ideias dos portugueses ao programar o povoamento dos territórios conquistados. São elas: Shebet Yehudá ou Vara de Judá, de Salomão Ibn Verga; Emeq Ha-Baqa ou Vale das Lágrimas, de Yosef Ha-Cohen, e asConsolaçam às Tribulações de Israel, de Samuel Usque.Rabi Salomão Ibn VergaNo relato do Shebet Yehudá, de Rabi Salomão Ibn Verga, fica evidente a falta de sensibilidade dos portugueses para lidar com os judeus. Ele menciona um barco repleto de judeus que partiu da Espanha em 1492 e foi interceptado em alto-mar, para que o piloto negociasse “a vida ou a morte” de seus passageiros em troca de seus pertences. Nesta embarcação viajavam dois tripulantes que conversavam sobre a piedade e misericórdia que deveria ser outorgada aos desterrados judeus. Este diálogo aparece personificado na figura de um comerciante justo (socher rodef tzedek) e um homem malvado (ish arur), o capitão do navio.O comerciante dirigiu-se ao malvado para lhe pedir que tratasse com benevolência os passageiros judeus, dizendo-lhe que caso contrário uma grande injustiça seria cometida ao ser derramado sangue de judeus inocentes. O pedido do comerciante ao malvado capitão surtiu resultado parcial: todos os judeus que estavam a bordo foram poupados, porém jogados às margens de uma rocha do mar, num lugar desértico.Despojados de suas roupas e atirados à ilha de São Tomé, os judeus se sentiram envergonhados ao serem atingidos em seu pudor. Para o cronista: “Tal era a vergonha que estes judeus não se punham se pé, senão ao escurecer ou à noite”. Na ilha, dois deportados travaram uma dura luta pela sobrevivência. Caminharam por três dias às margens do mar, bebendo água das cascatas. Ao fim do terceiro dia, um dos judeus

propôs ao companheiro escalar uma montanha para descansar das peripécias. Com dificuldade, ambos atingiram o cume da montanha para pedir auxílio do outro lado da ilha. Lá chegando, os dois encontraram uma caverna com leões, mas felizmente as feras voltaram às cavernas, “salvando-se assim os judeus por outros cinco dias”.Já no quinto dia, os dois judeus avistaram uma embarcação. Os passageiros alojados no convés ficaram perplexos ao ver judeus naquele lugar, pois “sabiam que não havia população alguma em região tão desértica e inóspita”.O capitão enviou, então, uma parte da tripulação para saber qual era o estado dos judeus. Os marinheiros retornaram à embarcação relatando as tribulações vividas pelos dois desafortunados.Rabi Ibn Verga comenta ainda que “a piedade se impôs e o capitão ordenou que os [dois] judeus fossem embarcados”. Já a bordo, um tripulante enviado ao resgate tomou uma cortina velha (vilon iashan) e rasgou-a em pedaços para dividi-la e cobrir o pudor dos judeus. O capitão lhes ofereceu também comida e bebida. O relato de Rabi Salomão Ibn Verga esclarece que a embarcação lusa passou por outro lugar já povoado de judeus, e lá os dois exilados desceram. Um deles aproximou-se para conversar e negociar com outro judeu que vivia no lugar, pois suspeitava que seus irmãos os venderiam. Mas, os judeus locais lhes disseram que não havia intenção de tomá-los prisioneiros, mas apenas solicitar uma pequena quantia pelo resgate (lakachat pidion), e assim pagar os gastos ocasionados.Os dois exilados judeus pagaram com dinheiro e presentes. Em troca, os judeus locais lhes deram alimentos e vestimentas, tal como rezava o costume entre os israelitas. Ao final da aventura, os resgatados agradeceram ao capitão por tirá-los do inferno de São Tomé.No capítulo 59 do Shebet Yehudá, Salomão Ibn Verga descreve o traslado de crianças judias a São Tomé, ou como as denominou Luiz Vaz de Camões, as Ilhas Perdidas. Esta deportação de menores foi, sem dúvida, o episódio mais comovedor ocorrido após 1492. Segundo este autor: ”Quem não assistiu estas terríveis cenas de prantos, choros e gritos de mulheres, jamais haverá visto nem escutado em vida,

tamanha preocupação e desconsolo. E ninguém consola e ninguém protege ou defende”.Rabi Yosef Ha-CohenNa obra martirológica Emeq Ha-Baqa (Vale das Lágrimas), o cronista Yosef Ha-Cohen (1496-1575) narra as perseguições enfrentadas pelos judeus desde as origens até a época da publicação de sua crônica, em 1575. Após citar os motivos que o levaram a escrevê-la, Ha-Cohen faz um relato das tribulações dos judeus portugueses. Para o autor, as dificuldades para os israelitas lusos começaram durante a chegada dos judeus castelhanos, em 1492. 

Famílias inteiras se assentaram no Reino, mediante pagamento de “dois dourados” per capita. O acordo assinado entre o governo e os judeus enfatizava que Portugal seria apenas uma estação temporária, fornecendo o rei embarcações para que esses judeus pudessem continuar a travessia para onde desejassem.  A entrada dos judeus em Portugal havia acontecido com extrema rapidez, mas a vida dos judeus foi amargurada; pois naqueles tempos os súditos do rei viajavam em navios a ilhas desconhecidas como São Tomé, lugares onde nada existia; a não ser grandes peixes (daguim guedolim), denominados lagartos, serpentes, répteis e víboras.Em 1492, meses após a entrada dos deportados castelhanos, uma epidemia mortal se espalhou por Portugal e pela Itália. Imediatamente, um número de judeus solicitou ao rei luso que dispusesse de embarcações e assim possibilitasse sua saída rumo aos países islâmicos e ao império turco. O rei não teria manifestado oposição alguma ao desejo de emigrar, porém sabemos que maus tratos haviam sido impostos tanto nos portos como dentro das embarcações.Para Yosef Ha-Cohen, os abusos perpetrados a bordo contra os judeus jamais poderão ser esquecidos. No percurso da viagem,“cruéis marinheiros portugueses se atiraram com extrema violência sobre os israelitas, os despojaram de suas roupas e os ataram com cordas grossas e, na presença dos homens, violentaram suas esposas, sem

que ninguém pudesse ajudá-los naquele terrível momento”. Dramáticas cenas continuaram durante a travessia.O lugar destinado para despejar os judeus foi uma área desértica na África. Yosef Ha-Cohen conta que “os judeus estavam famintos, mas ninguém lhes fornecia comida. Mulheres, com poucas esperanças de vida, rezavam e imploravam aos Céus; enquanto outros judeus começavam a cavar suas próprias sepulturas, pedindo às montanhas que os cubram de imediato”.Na sua obra historiográfica, Ha-Cohen traz também a reação dos exilados aos abusos durante a espera para zarpar do porto de Lisboa. Uma mistura de medo e espanto era o denominador comum entre aqueles judeus prestes a partir. Temor de serem vítimas de um novo tipo de vandalismo. Alguns decidiram ficar em Portugal e não arriscar suas vidas, enquanto outros zarparam com esperanças. O retrato do cronista é bem detalhado, captando o péssimo tratamento ministrado aos judeus.A documentação analisada deixa claro que a corte de Portugal não teve participação direta no tratamento imposto aos judeus; não obstante, fica evidente que a mesma se furtou a tomar alguma providência para evitar abusos, facilitar itinerários e rotas de fuga e, consequentemente, possibilitar um destino seguro aos exilados judeus.Para São Tomé o rei enviava marginais, condenados à morte e judeus do Reino. Ha-Cohen desabafa dizendo que “naqueles dias não havia ninguém - nem sequer D´us – que pudesse redimir os desditosos judeus (iehudim umlalim), e todas as mulheres choravam aos prantos, quando seus filhos lhes eram arrancados dos braços, enquanto seus maridos, amargados e desesperados, arrancavam suas barbas à força”.Mulheres judias se curvavam diante do rei de Portugal implorando misericórdia. Outras clamavam: “Permita que zarpemos junto a nossos filhos!”. Porém, o monarca ignorou as súplicas e sequer olhou para seus semblantes.Yosef Ha-Cohen destaca a crueldade dos ibéricos com os deportados. As represálias não foram tomadas somente contra os judeus lusos,

mas contra todos aqueles judeus hispânicos que não obtiveram um acordo de permanência no país. Estes foram degredados à ilha. O cronista caracterizou os portugueses com o adjetivo “cães” (klavim), por embarcarem pela força crianças, provocando desespero entre os pais. O rei não autorizou a saída dos pais, aumentando a tristeza, a dor e o sofrimento.Já em São Tomé, alguns judeus viraram presa fácil dos lagartos, e a maioria acabou morrendo por falta de água, comida e moradia segura. Somente um pequeno número conseguiu sobreviver às adversidades do lugar. Uma vez concluída a narração, Yosef Ha-Cohen passa a descrever a conversão forçada de 1497, em Portugal.Samuel UsqueNa obra Consolaçam as Tribulações de Israel, Samuel Usque (1530-1596) menciona os interesses colonizadores dos portugueses em São Tomé e o programa colonizador de D. João II. A informação solicitada pelo monarca deixa evidente que seu desejo era colocar em cativeiro os judeus vindos de Castela. Como Ibn Verga, Usque relembra os difíceis momentos vividos pelos judeus antes de zarpar de Portugal. Para ele, os judeus “depositaram demasiada confiança na população local, mas foram enganados, sem escrúpulos. Durante a travessia marítima, seus membros superiores e inferiores foram amarrados com cordas, suas mulheres humilhadas e ultrajadas enquanto membros da tripulação as despojavam de suas roupas”.Uma das naves partiu rumo à costa africana até um lugar deserto. Ao chegar, os judeus foram castigados por uma forte epidemia que minguou parte dos emigrados. O trágico quadro foi relatado por Usque: “...os lançaram na praya erma e desamparada de todo socorro humano, vireis as criaturas pedirem pam e as madres levantarem os olhos ao ceo que lhes acodisse; outros convidando-os a desesperação da fome e grande desamparo vireis para se enterrar [e] fazer as covas..., etc”.O capítulo 27 da Consolaçam as Tribulações de Israel, cita o traslado forçado de crianças judias a São Tomé. Usque informa acerca do interesse do rei João II em saber quantos exilados espanhóis haviam

entrado em Portugal sem autorização oficial da Coroa. Estes residentes ilegais seriam levados em cativeiro, negando-lhes o direito de se estabelecer dentro do território lusitano.De que maneira resolver, então, o problema dos judeus ilegais? Face à descoberta de uma ilha desabitada na qual havia apenas animais selvagens, seria oportuno para lá desterrar os judeus. Escreve Usque: “quis também que entrassem as inocentes criaturas de todos estes judeus, cujos pais parece que ante o juízo divino eram condenados”. A sorte estava lançada e a Coroa desterraria crianças judias. 

Samuel Usque, como Rabi Yosef Ha-Cohen, retrata as doídas despedidas entre pais e filhos. Pela força, os portugueses puxavam os filhos dos braços das mães desconsoladas, enquanto as barbas dos “velhos honrados” eram arrancadas com violência. Os judeus gritavam de sofrimento ao ver o acontecido. Alguns desterrados se ajoelhavam diante do monarca, implorando-lhe para zarparem junto a seus filhos queridos. Uma das mães emocionou o próprio cronista: “... entre estas mães [h]ouve uma que considerada a horrenda e nova crueza sem mistura de alguma misericórdia a seus clamores; arrebatando seu filho nos braços d´alta nau, [a]dentrou no tempestuoso mar, se lançou e fundiu com sua única criatura abraçada”.Embarcações continuavam a sair de Lisboa rumo além-mar. Uma ancorou em São Tomé e a maioria dos judeus foi devorada pelos lagartos. Usque acredita que o amargo destino dos judeus foi fruto da Providência Divina. Para sustentar esta ideia, cita o Deuteronômio 28: 32-45: “Os teus filhos e tuas filhas serão dados a outro povo, e teus olhos o verão, e desfalecerão por eles todo o dia, pois não voltarão; e não haverá poder nas tuas mãos para fazer coisa alguma... E te tornarás louco pela visão que teus olhos hão de ver... Gerarás filhos e filhas, mas não serão para ti: porque irão ao cativeiro,...”O sistema jurídico em PortugalTudo indica que o “Programa de São Tomé” não foi pensado exclusivamente para os judeus ou para solucionar o problema do

cristão novo. Segundo os cronistas judeus, o programa visava desterrar também grupos não judaicos em geral; indivíduos que residiam em Portugal como hereges e condenados, prestes a serem punidos pelo rigor da lei.Em 1500, os judeus lusos estavam totalmente afastados dos cargos públicos e eram enquadrados nas Ordenações do Reyno(Afonsinas e Manuelinas) como raça infesta ou “elemento não grato”. Representavam um grupo humano do qual era preciso livrar-se no menor tempo possível.É fundamental lembrar que a sociedade portuguesa dos séculos 15-16 era um marco rigidamente hierarquizado e, portanto, eram quase nulas as possibilidades de ascender socialmente de uma classe para outra. Assim, a estratificação fez com que todas as minorias, entre elas a judaica, sofressem discriminação social, econômica, política e principalmente religiosa.Os relatos dos cronistas judeus da época mostram de forma convincente que a política régia estava voltada para a expulsão dos hereges, vistos como “indesejáveis”. Desde a expulsão dos judeus da Espanha, em 1492, até a conversão de Portugal, em 1497, a deportação às colônias foi um fenômeno que trazia soluções práticas para problemas domésticos.Um “Tratado” escrito em Portugal mais de 100 anos depois, em 1625, explica que uma das soluções adotadas para resolver a questão dos cristãos novos, era desterrar judaizantes a colônias distantes, como Guiné, Cafraria, Cabo Verde e São Tomé. Em todas já atuavam missões catequizantes, encarregadas de conduzir os novos fiéis nos ensinamentos católicos. São Tomé foi um polo de evangelização durante o auge do Império português ultramarino.Palavras FinaisNo final do século 15, Portugal havia elaborado um plano de deportação de judeus, rumo à ilha de São Tomé. Um fato irrefutável é que a documentação não deixa de citar as atrocidades cometidas pelos portugueses nos portos de embarque, como também os ultrajes perpetrados a bordo durante as longas viagens d´além mar. O

programa de deportação não rendeu resultados. É difícil visualizar uma única causa para o fracasso deste “Programa”. Naturalmente, é preciso apontar alguns motivos.A motivação dos portugueses em purgaro país de“elementos que não prestam”, desprezando objetivos práticos, pragmáticos e de rentabilidade, metas essenciais, naquele então, e o transporte de judeus e cristãos novos (tidos como grupo intelectualizado), junto a grupos de bandidos, assassinos ou transgressores, contribuíram para o fracasso do projeto colonizador. Ademais, o clima tropical de São Tomé era propício para qualquer tipo de agricultura, principalmente o cultivo de café e banana. Apesar disso, os judeus jamais se dedicaram à agricultura, sendo os árabesos envolvidos nesta atividade econômica. 

A fauna e flora da ilha colaboraram para que o programa colonizador fracassasse. Como demonstramos, animais exóticos, como felinos, répteis, serpentes e lagartos, espantaram os judeus chegados a São Tomé. Finalmente, a descoberta do Brasil por 1500 e o auge da indústria açucareira durante o século 16 reduziram significativamente a população de São Tomé.Boa parte dos filhos de judeus e cristãos novos acabou abandonando a colônia, dirigindo-se à Terra de Santa Cruz, descoberta pelos portugueses. O declínio da economia de São Tomé fez com que grupos de pouca expressão ficassem trabalhando na ilha, dentre eles tribos indígenas, negros africanos e alguns filhos de portugueses nascidos no lugar.Bibliografia: Farissol, Abraham, Orchot Olam. (Ms. Paris No. 897/26853). Cap. XVI.Ha-Cohen, Yosef, Emeq Ha-Baqa. Edição de M. Letteris. Vilna 1852.Ibn Verga, Salomon, Shebet Iehudah (La Vara de Judá). Texto revisado y anotado por U. Schohat, compilación e introducción de Itzhak Baer. Jerusalém 1936. Kayserling, M., História dos Judeus em Portugal. Editora Pioneira. São Paulo 1971.Usque, Samuel, Consolação às Tribulações de Israel. Edição de J.

Mendes dos Remedios. 3 vols. Coimbra 1906. English edition: Samuel Usque's Consolations for the Tribulations of Israel: Third Dialogue. Sixteenth Century Classic written in Portuguese by the noted Historian and Mystic Samuel Usque, by Gershon I. Gelbart. PHD Dissertation. Dropsie College 1964.Tucci Carneiro, M.L., Preconceito Racial no Brasil Colônia. Editora Brasiliense. São Paulo 1983.Prof. Reuven Faingold é historiador e educador, PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. É também professor titular da pós-graduação no Departamento de História da Arte da FAAP em São Paulo e Ribeirão Preto, sócio fundador da Sociedade Genealógica Judaica do Brasil e, desde 1984, membro do Congresso Mundial de Ciências Judaicas de Jerusalém.

A Conturbada Vida Judaica na Espanha CristãOs judeus de Sefarad viveram sob o domínio de reis cristãos desde o século 10 até serem expulsos, em 1492. Durante esses séculos, um grande número de comunidades, ricas e importantes, lá floresceram. Mas, à medida que crescia o poder da Igreja, a posição dos judeus se enfraquecia. Os pogroms de 1391 marcaram o fim de uma era de relativa tranquilidade. Eram o prenúncio do sofrimento que os aguardava...Edição 90 - Dezembro de 2015

As forças muçulmanas que haviam invadido a Península Ibérica no início do século 8 jamais conseguiram dominar toda a Península. Uma parte das Astúrias, ao Norte, ficou em mãos cristãs, resistindo às investidas muçulmanas. No século 9, a Península Ibérica já estava dividida entre reinos cristãos, ao Norte, e o domínio islâmico, ao Sul, em Al- Andaluz.Quando, nos primeiros anos do século 11, o califado de Córdoba se decompôs em vários pequenos reinos islâmicos, chamados Taifas, os

cristãos se sentiram fortalecidos e retomaram as tentativas de reconquista da Península.A ofensiva contra os mouros, a “Reconquista”, como os historiadores a intitularam, foi um longo e tumultuado processo que durou quase 200 anos Os principais Reinos Cristãos que surgiram nesse período foram: o Reino de Navarra, de Castela, de Aragão, de Leão e de Portugal. A Reconquista foi concluída, para todos os efeitos, com exceção do pequeno enclave muçulmano de Granada que durou até 1492, por Ferdinando III (1217-1252) e Alfonso X (1252-1284), do Reino de Castela e Jaime I (1213-1276), do Reino de Aragão. Com a capitulação de Sevilha, que ocorreu em 1248, forçada por Ferdinando III, estava praticamente concluída a Reconquista.Há um consenso entre historiadores de que o ideal que permeou as guerras de reconquista foi, em grande parte, religioso – derrotar o inimigo islâmico para que a Península voltasse às mãos dos cristãos; e, em parte, de conquista. O elemento religioso é de suma importância, pois os guerreiros cristãos acreditavam estar lutando por sua fé em uma grande cruzada. A Igreja também via a Reconquista como parte do movimento geral das cruzadas que se estendeu do final do século 11 até o final do século 13. Os sentimentos religiosos e anti-judaicos que vieram à tona acabam minando a posição das populações judaicas que viviam nos Reinos Cristãos.Durante a Reconquista os judeus estiveram em constante movimento. À medida que os mouros se defrontavam com o inimigo cristão tornavam-se cada vez mais intolerantes em sua religião, principalmente em relação aos não muçulmanos. Perseguidos, forçados a escolher entre sua fé e a morte, os judeus passam a procurar refúgio entre os cristãos. Para eles, tratava-se de escolher viver no lugar que naquele momento histórico representava o menor perigo. Assimtrocaram o domínio islâmico onde reinava uma intolerância ativa, pelo domínio cristão, onde no passado haviam enfrentado grande animosidade.O início do domínio cristãoPouco se sabe sobre o reduzido número de judeus que vivia no Norte da Península nos anos de formação dos primeiros Reinos Cristãos –

Astúrias, León e nas serranias do Norte e Noroeste da região. Sabe-se, porém, que nos primeiros estágios da Reconquista os cristãos não poupavam as populações judaicas, destruindo sinagogas e matando rabinos e sábios.Mas, as perseguições acabaram à medida que os governantes perceberam que precisavam dos judeus. Hábeis artesão e comerciantes, sua presença era vital para a continuidade da vida urbana nas áreas conquistadas aos muçulmanos. Fluentes em árabe, assim como nos vernáculos utilizados nos Reinos Cristãos, os judeus eram intermediários entre os muçulmanos derrotados e os cristãos vitoriosos.Ademais, os cristãos não eram capazes de atuar nos campos nos quais os judeus eram hábeis, entre outros, não tinham a cultura e conhecimentos dos habitantes de Al-andaluz, pois na Europa cristã apenas a Igreja mantinha o controle absoluto do saber erudito. Pode-se dizer que durante a Reconquista criara-se um tácito acordo: enquanto as populações cristãs cuidavam da agricultura e do pastoreio e os nobres dos assuntos de guerra, os judeus cuidavam da reorganização do Estado e da economia. Isso levou os judeus a acreditarem que poderiam replicar o tipo de vida que tinham em Al-Andaluz.À medida que iam conquistando novos territórios, os reis cristãos ofereciam aos judeus que lá viviam uma série de garantias: entre outras, a proteção real e isenções fiscais. Concediam terras aos que queriam se estabelecer em seus domínios. Essas, geralmente, incluíam fortalezas que, em tempos de perigo, os judeus deviam defender contra os inimigos do rei. Nas cidades recém-fundadas não havia, inicialmente, diferenças entre áreas destinadas aos cristãos e aos judeus.Alfonso V de León (999-1027), por exemplo, atraiu judeus para seus territórios oferecendo terras, privilégios e liberdade. Na cidade de Léon, a partir do século 10, os judeus controlavam o comércio têxtil e de pedras preciosas, possuindo muitas propriedades no reino e atuando, também, na agricultura e viticultura. Em Barcelona, tornaram-se

importantes proprietários de terras, indicando algumas estimativas que chegaram a possuir cerca de um terço das propriedades do condado.Os Reinos Cristãos eram monarquias feudais e na estratificada sociedade feudal não havia lugar para os judeus. Assim sendo, direitos, “privilégios” e obrigações eram definidos pelos governantes em cartas de direitos (fueros). Em termos gerais, pois cada reino era independente, tais cartas de direitos declaravam que os judeus eram legalmente “propriedade” do rei e estavam sob sua proteção. Mas tais direitos podiam ser cancelados ou mudados pelo rei no poder num piscar de olhos, em muitas ocasiões em decorrência de pressões da Igreja ou da população local.Em épocas de estabilidade isto significava nada mais do que a obrigação de pagar impostos diretamente ao Tesouro Real. Os reis não tinham interesse em interferir na estrutura interna das comunidades – conhecidas como aljama (o nome em árabe foi mantido), entidades autônomas politicamente independentes.A partir do final do século 12, um número cada vez maior de judeus – em fuga das perseguições dos Almorávidas e, mais tarde, dos Almôadas, refugiaram-se nos Reinos Cristãos. Entre eles havia “judeus cortesãos” que haviam servido príncipes muçulmanos e que se colocaram à disposição dos governantes cristãos. Um número significativo passou a ocupar cargos importantes. Para os monarcas, os judeus eram mais “confiáveis”, pois não representavam um perigo em termos políticos, como era o caso dos cristãos que podiam se aliar com nobres e tentar tomar o poder, tampouco militares, como era o caso dos muçulmanos que podiam se aliar às forças mouras.Os judeus tornaram-se, entre outros, médicos, conselheiros, administradores financeiros, inclusive de ordens religiosas católicas. Por dominarem vários idiomas, tornaram-se diplomatas para os Reinos Cristãos, e intérpretes capazes de traduzir rapidamente os textos árabes para o idioma castelhano e catalão. Os sefarditas transformaram-se em uma ponte cultural, um vínculo vital para a transmissão de obras clássicas gregas e romanas, assim como islâmicas para a Europa cristã.

A vida judaica na Espanha cristã floresceu. Durante a Reconquista, formou-se nos Reinos Cristãos um grande número de importantes e ricas comunidades organizadas e seguramente estabelecidas. Essas comunidades foram-se fortalecendo à medida que os antigos bairros judaicos se expandiam ou novos eram estabelecidos.Enquanto o status social e econômico dos judeus rapidamente voltou a ser o que era na Al-Andaluz antes que o fanatismo dos Almôadas imperasse completamente, ainda levou algum tempo para que a cultura judaica renascesse. Eventualmente, porém, comentaristas talmúdicos e bíblicos, halachistas e poetas produziram obras que influenciaram todo o mundo judaico. A vida cultural e religiosa floresceu. Os antigos centros de estudo judaico, Córdoba, Lucena, Granada, estavam em ruínas, mas o estudo continuou a florescer em Toledo e Barcelona.O perfil do judaísmo sefaradita, porém, havia mudado. O hebraico e não mais o árabe passou a ser principal expressão da cultura judaica. Apenas na poesia e na arquitetura continuaram a ter os traços da cultura andaluza. Ademais, no seio das comunidades judaicas surgira uma nova realidade: à medida que a Espanha cristã se distanciava fortemente do mundo islâmico, as tradições do judaísmo do norte europeu passaram a influenciar o judaísmo sefaradita. O estudo do Talmud se tornara o novo ponto focal de estudo. Os judeus também estavam desenvolvendo um interesse novo e profundo em disseminar as noções de misticismo judaico, a Cabalá.O brilho dourado da vida judaica era, no entanto, ofuscado pela forte antipatia que existia contra os judeus nos domínios cristãos, especialmente entre as massas. Apesar da atitude benevolente dos monarcas em relação aos judeus – por mais interesseira que fosse – de modo geral os cristãos consideravam o visível exercício de poder dos judeus ofensivo e contrário à doutrina da Igreja. Mas, em comparação com o resto da Europa, os Reinos Cristãos eram lugar de grandes oportunidades para os judeus, e o judaísmo de Sefarad desempenhou um papel central no mundo judaico durante os séculos, atuando como uma das principais forças da vida cultural judaica na Europa.

Os judeus de ToledoO Reino de Castela e Toledo são exemplos típicos do desenvolvimento da vida judaica nos domínios cristãos. Já no século10 os governantes de Castela outorgaram aos judeus, em muitos aspectos, condições de igualdade em relação aos cristãos. Quando o rei Alfonso VI reconquistou Toledo, em 1085, não apenas garantiu aos judeus que lá viviam igualdade total de direitos, mas concedeu-lhes outros desfrutados apenas pela nobreza.Historiadores acreditam que Alfonso VI,o Bravo, rei de Leão e Castela (1043–1109) foi o monarca ibérico que criou a tradição de que os cortesãos judeus, ainda que permanecessem fiéis à sua religião, exerciam autoridade considerável sobre os habitantes do reino. Durante o reinado de Alfonso VI havia judeus atuando em vitais missões diplomáticas e alguns chegaram a ocupar importantes funções na corte e nas forças armadas. O grande favoritismo do rei pelos judeus despertou a inveja e o ódio dos cristãos, e o Papa Gregório VII advertiu-o para que não permitisse que os judeus governassem sobre os cristãos.O confidente e médico pessoal de Alfonso VI era o judeu Joseph ha-Nasi Ferrizuel (também conhecido como Cidellus). Ferrizuel, que ocupou vários cargos importantes, usufruiu amplo poder político e econômico. Entre outros, os nobres do reino que não se aventuravam a abordar diretamente o rei, pediam a Ferrizuel para fazê-lo em seu nome. Como Nasi da comunidade judaica de Toledo, trabalhou seu crescimento e consolidação. Muitos judeus vindos de Al- Andaluz se estabeleceram na cidade ajudados pelas atividades de resgate de Ferrizuel. No século 12, intelectuais judeus e não judeus dirigiam-se a Toledo vindos de várias partes da Europa. Na Toledo do século 12 e 13, os judeus trabalharam harmoniosamente lado a lado com cristãos e muçulmanos. A cidade tornou-se um centro de conhecimento. Obras clássicas gregas e romanas antes esquecidas na Europa foram recuperadas e traduzidas. E o conhecimento vindo do mundo muçulmano nas áreas de Matemática, Filosofia, Medicina, Botânica, Astronomia e Geometria, tornado acessível ao Ocidente.

O exemplo de Alfonso VI em relação aos judeus foi seguido nos Reinos de Aragão e Navarra. Porém, mesmo nesse período, havia tensões latentes que poderiam minar a situação favorável aos judeus tanto em Castela quanto em Aragão. Revoltas contra a Coroa geralmente levavam à violência contra judeus, principalmente em Léon, na região Norte do Reino de León-Castela. Em 1108, depois da desastrosa Batalha de Ucles, na qual 30 mil soldados cristãos foram mortos, manifestações anti-judaicas eclodiram em Toledo. Muitos judeus foram assassinados e tiveram suas casas e sinagogas incendiadas. Alfonso VI queria punir os culpados, mas morreu antes que pudesse fazer o que pretendia. Depois de sua morte os habitantes de Carrion atacaram os judeus, matando muitos, prendendo outros e pilhando suas casas.Alfonso VII manteve os judeus nas mesmas condições de igualdade que os cristãos. E, mais uma vez um judeu, Judah ben Joseph ibn Ezra (Nasi), exerceu grande influência sobre o monarca. Judah foi nomeado comandante da fortaleza em Calatrava, depois de sua conquista em 1147. A seu pedido, o rei não apenas permitiu que judeus fugidos das perseguições dos Almôadas se estabelecessem em Toledo, mas também permitiu que o fizessem em outras cidades, como Fromista, Flascala, Palencia, nas quais novas comunidades acabaram por se formar.Durante o reinado de seu sucessor, Alfonso VIII, O Nobre, que ascendeu ao trono de Castela e de Toledo em 1158, os judeus exercem uma influência ainda maior, entre outros fatores beneficiados pelo amor do rei pela linda judia Rachel (“A Formosa”). Afonso VIII é lembrado principalmente pelo seu papel na Reconquista, levando à queda do Califado Almóada. Em sua guerra contra os mouros, o rei foi muito auxiliado pela riqueza dos judeus de Toledo. Mas, em1212, esses judeus foram atacados pelos cruzados que o arcebispo de Toledo chamara após Afonso VIII ser derrotado pelos Almôadas. Os cruzados deram início a uma “guerra santa”, roubando e massacrando os judeus. Se o rei não tivesse intervindo todos os judeus da cidade teriam sido mortos.Durante o reinado de Alfonso VIII os judeus ergueram a Sinagoga Ibn Shushan, hoje Santa María la Blanca. Inaugurada em 1180, foi

construída em estilo arquitetônico mudejar1. A sinagoga convertida na segunda metade do século 15 em Igreja é considerada por alguns como a mais antiga da Europa, ainda de pé. Atualmente, é propriedade da Igreja Católica, que a mantém.A vida judaica a partir do século 13A história da Península Ibérica chegou a um ponto crucial no século 13, quando Ferdinando III (1217-1252) de Castela, e Jaime I (1213 – 1276), de Aragão, concluíram um longo processo da Reconquista.O século 13 iniciou-se com os judeus tendo alcançado posições de grande poder político, econômico e social muitas vezes superior às dos cristãos. E ainda se destacavam por seu conhecimento científico e empresarial superior. Os cristãos se ressentiam profundamente de seu poder e de sua presença. Apesar da inclinação religiosa e das pressões do papado para que os governantes adotassem medidas mais duras contra os judeus, tanto Ferdinando III como Jaime I reconheciam o valor dos judeus na economia de seus reinos. Sendo assim, não cederam as pressões e mantiveram seus direitos e privilégios. Continuaram a recompensar os judeus pelos serviços prestados à Coroa, colocando-os em cargos importantes como secretários, coletores de impostos nas cidades e nos campos, e intérpretes e agentes comerciais. Deve-se ressaltar que as razões econômicas por trás de tal política não eram insignificantes: estima-se que entre 35 a 60% dos recursos de cada reino era proveniente de judeus.Nas cidades conquistadas, Ferdinando III encorajou os judeus a usarem seus talentos e potencial a serviço dos projetos da Coroa. Após a conquista de Sevilha, deu-lhes terras. E, apesar da objeção da Igreja, permitiu que os judeus de Córdoba construíssem uma nova e magnífica sinagoga, erguida em estilo mudéjar foi inaugurada em 1315.Quando Jaime I, rei de Aragão, conquistou Maiorca, não havia ninguém capaz de redigir o documento de capitulação da cidade, exceto dois judeus que atuavam como intérpretes em Saragosa. Ao consolidar seu reinado, o rei garantiu aos judeus de Aragão inúmeros privilégios e incentivos financeiros para que ali se estabelecessem.

É difícil caracterizar a vida judaica nos anos que se seguiram às conquistas cristãs do século 13, e precederam o início dos ataques anti-judaicos no final do Século 14. Não se podem negar os efeitos da hegemonia cristã na Península e, portanto, a consequente importância da Igreja nos assuntos dos Reinos. Tampouco podemos esquecer o fato de que os judeus ainda exerciam um grande poder e importante papel. Mas, por volta de 1300, após os cristãos terem completado suas conquistas mais significativas, a população cristã da Península começou a desenvolver os talentos urbanos que tanto lhes faltavam no século anterior. A aquisição de habilidades comerciais foi especialmente rápida em Aragão e, como resultado, o status dos judeus locais declinou, diferentemente da situação em Castela, onde continuou relativamente estável.O poder da IgrejaCresce no século 13, na Península Ibérica, o poder da Igreja Católica assim como seus esforços dirigidos contra os judeus. Durante séculos, a Península ficara fora do alcance da Igreja, mais importante instituição do mundo feudal.Neste século, a Europa estava obcecada por dois temas: dogma e fé. O temor à heresia era também muito forte. Para conter a ameaça da heresia, a Igreja criou as ordens dos franciscanos (1209) e dominicanos (1216), dando-lhes poder para combater todas as manifestações religiosas consideradas heréticas. Para combater contra as heresias, em abril de 1233, o Papa Gregório IX editou duas bulas que marcaram o início da Inquisição2 e os dominicanos foram incumbidos de lhe dar assistência e direção.As raízes da futura perseguição aos judeus em toda Europa remontam ao 4º Concílio de Latrão, que teve início em novembro de 1215, sob o comando do Papa Inocente III. As determnações do Conciílio tinham como intuito regulamentar o relacionamento judaico-cristão e estabelecer restrições sobre as comunidades judaicas. O Conciílio ordenou aos judeus, para impedi-los de se relacionarem com os cristãos, que usassem distintitvos especiais de identificação em suas roupas. Ademais, não podiam relacionar-se com cristãos, viver sob o

mesmo teto que eles, comer e beber em sua companhia ou usar o mesmo banheiro, entre outros. Um cristão não podia tomar um vinho produzido por um judeu. A bula papal de 1250 proibia aos judeus de construir uma nova sinagoga sem uma autorização especial.Os judeus de Sefarad fizeram o impossível para impedir o cumprimento da humilhante obrigação de usar distintitvos especiais de identificação em suas roupas. Tudo em vão. Tanto Jaime I de Aragão como Teobaldo I, de Navarra, adotaram a medida. Apenas Ferdinando III de Castela se recusou. O Papa Honorius III enfureceu-se quando o rei de Castela não exigiu que os judeus usassem uma roupa especial e o distintivo. Quando exigiu uma explicação ao rei, este disse que os judeus de seu reino iriam fugir para a Granada muçulmana se tais medidas humilhantes fossem impostas e que tal êxodo teria resultados desastrosos para seu reino.As determinações da Igreja eram um sinal da crescente hostilidade dos cristãos contra os judeus. A situação tendia a se tornar cada vez mais frágil, principalmente, face ao fato de para Igreja a conversão dos judeus ter-se tornado prioritária. Para os pontífices, a sobrevivência do judaísmo era uma afronta pessoal. Coagidos apenas pela lei canônica de que a conversão pela força era ilegal, a necessidade de converter judeus e, depois, evitar sua recaída se tornou uma obsessão.Naquele então, porém, os defensores da tolerância prevaleceram, pois, apesar de a maioria concordar com a visão da Igreja em relação aos judeus, os reis espanhóis estavam de acordo sobre as vantagens de terem judeus em seus reinos. Assim, apesar das novas determinações da Igreja e das nocivas percepções sociais e teológicas que haviam tomado conta das populações cristãs, os judeus continuam a manter cargos importantes na administração e em funções públicas até 1492.Jaime I de AragãoJaime I, de Aragão (1208 -1276), é um exemplo da ambivalência da época em relação aos judeus. Como vimos acima ele manteve seus direitos e privilégios, e muitos judeus ocupavam cargos importantes em seu reino. No entanto, durante todo esse período, os judeus foram obrigados a ouvir os sermões do clero que visavam a conversão. E, foi

ele que organizou o famoso debate religioso entre um frei dominicano apóstata, Pablo Christiani, e o Rabi Moses ben Nahman, ou Nahmanides. Uma das mais importantes personalidades judaicas de todos os tempos, Nahmanides era um grande estudioso bíblico e talmúdico, além de cabalista.Instigado por Christiani, o rei armou o debate e no verão de 1263, Nahmanides, então com cerca de 60 anos, recebeu ordem do rei Jaime I para se apresentar no Palácio Real em Barcelona. Durante o debate os dois oponentes representando o cristianismo e o judaísmo iriam discutir sobre vários temas: a missão messiânica havia sido cumprida por Jesus? Havia no Talmud provas de que Jesus fora de fato o messias? Era o messias divino ou humano?Pablo Christiani, um judeu convertido que havia se tornado frei dominicano, esperava acelerar a conversão dos judeus de Sefarad convencendo Nahmanides de que o messias já tinha de fato vindo, na pessoa de Jesus, e que havia textos judaicos comprovando tal tese. Historiadores modernos acreditam que o debate era, de fato, parte de um plano dominicano para converter todos os judeus na Europa.Mesmo após se terem passado mais de sete séculos, ainda evoca pesar e tristeza a figura solitária de Nahmanides no palácio real confrontando corajosamente as forças combinadas da Igreja e do Estado, na pessoa do rei, os líderes dominicanos e franciscanos, além de elementos hostis da população, de modo geral.Os judeus tinham muita relutância em participar de qualquer debate religioso, seja com muçulmanos ou cristãos. Tais debates eram cheios de perigo, uma situação impossível de se vencer para o adversário judeu. Se Nahmanides falasse livremente poderia despertar a ira de seus poderosos oponentes, mas se não rebatesse as acusações e alegações de Christiani poderia desmoralizar seus correligionários, judeus. Assim, como defensor do judaísmo, ele tinha que satisfazer duas audiências simultaneamente. No final do debate, o rei disse: “Nunca vi ninguém que estivesse defendendo uma causa errada e argumentar tão bem quanto você”.

Algum tempo após o fim do debate Nahmanides voltou a Gerona e fez seu relato, dando uma cópia ao bispo da cidade, que provavelmente caiu nas mãos dos dominicanos, que o acusaram de blasfêmia. Ele foi forçado ao exílio em 1267, deixando sua família e indo sozinho para a Palestina.Afonso X, o SábioAfonso X, o Sábio (1221-1284), rei de Castela e León, é outro exemplo de ambivalência em relação aos judeus. Amante das ciências e das artes mantinha relações com os judeus antes mesmo de sua ascensão ao trono, em 1252. Em virtude de sua inclinação pelos estudos, ele convidava judeus à sua Corte especialmente para traduzir obras de hebraico e do árabe. Durante seu reinado, o chazanda sinagoga de Toledo, Isaac ibn Sid, editou as famosas tabelas astronômicas conhecidas como Tabelas Alfonsinas, enquanto três dos seus médicos, Judah Kohen e Samuel e Abraham Levi, traduziram trabalhos de Astronomia e Astrologia do árabe para o castelhano.

Alfonso X, que mantinha judeus nas funções de tesoureiros e coletores de impostos, garantiu privilégios e benefícios à população judaica que vivia em seus territórios. Permitiu, também, que a aljama de Toledo construísse uma magnífica sinagoga, e, em 1264, destinou casas, vinhedos e terras aos judeus que se instalassem em Santa Maria del Puerto.No entanto,apesar dessas atitudes, o monarca submeteu os judeus às limitações expressas no corpo normativo das Siete Partidas 3, no qual é inegável a influência das determinações do 4º Concílio de Latrão. No texto os judeus define como “suspeitos de malignidade”.A separação de judeus e cristãos se sobressai em quase todos os artigos e uma das leis determina que os judeus usassem algum distintivo para destacá-los e separá-los do restante da população. Exige-se que os judeus fossem quietos e organizados para não causar tumultos, praticando de forma reservada os próprios ritos religiosos. A doutrina da Igreja de que “os reis não podiam permitir aos judeus serem senhores dos cristãos ou terem qualquer autoridade sobre eles”

foi incorporada às Siete Partidas. E, o novo corpo normativo não apenas endossavam o alcance missionário aos judeus, mas também oferecia incentivos econômicos aos que se convertiam. 

Nas Cantigas de Santa Maria, entre suas 426 composições a figura do judeu aparece em 30. Nenhuma delas de uma forma positiva. Há dúvidas sobre a autoria direta do Rei Afonso X, mas ninguém duvida de sua participação direta como compositor em muitas delas.Uma nova realidadeOs tratados legais do século 13, apenas moderadamente favoráveis à população judaica, marcam o início do fim de uma era de tranquilidade e tolerância religiosa. Ao longo do século 13 organizaram-se cada vez mais forças com o objetivo de neutralizar os benefícios concedidos aos judeus pelos reis de Castela e Aragão. Com a solidificação da sociedade após a Reconquista, as atitudes contra os judeus tornaram-se mais abertas e constantes. Ademais, após a determinação de que os hereges não poderiam mais ser tolerados pela Igreja e que deveriam ser extirpados nem que fosse pela força, veio à tona a inevitável questão sobre a contínua tolerância em relação à presença judaica na Europa.No entanto, o fator novo mais alarmante que começa a se impingir sobre a vida judaica em Sefarad não provém dos níveis mais altos da Igreja nem do Estado, mas do meio do povo e do baixo clero onde toma forma uma imagem popular, sem precedentes, do judeu como uma figura condenável, até mesmo diabólica. Baseando-se nas antigas fontes pagãs e cristãs, a imaginação popular invocava a imagem dos judeus como destruidores do Cristianismo, profanadores de relíquias cristãs, feiticeiros, inimigos da humanidade – de fato, “verdadeiras encarnações do diabo”, ou, no mínimo, seus parceiros no mal. A identificação dos judeus como envenenadores já havia aparecido nas Siete Partidas, que decretavam que um cristão poderia tomar um medicamento de um judeu apenas se um médico cristão conhecesse o conteúdo.

Disseminando-se por toda a parte – na arte e nos ornamentos arquitetônicos, na música e na literatura, assim como nos cortejos religiosos, nos sermões semanais e nos rumores espalhados pelos padres – esta descrição extremamente danosa foi reforçada, com cruel ironia, pelo crescente isolamento e segregação das comunidades judaicas.Em tal atmosfera, não surpreende que os judeus recebessem a culpa por desastres naturais. Em 1348, a temida Peste Negra varreu misteriosamente a Europa. Surgindo praticamente da noite para o dia, dizimou entre 25 e 75 milhões de pessoas (por volta de um terço da população europeia), sendo que alguns pesquisadores acreditam que o número mais próximo da realidade é de 75 milhões, aproximadamente metade da população da época. 

O horror inconcebível, na época inexplicável, levou a explosões populares de histeria contra os judeus, que foram acusados de espalhar a doença envenenando os poços. Esses rumores de envenenamento dos poços varreram a França, Espanha e Alemanha, ganhando crédito imediato, pois ninguém duvidava que os judeus estivessem ligados com bruxaria. Na verdade, os judeus sofreram igualmente com a Peste; o número de suas vítimas era tão grande que novos cemitérios tiveram que ser adquiridos. Mas nem a lógica nem pedidos reais de contenção puderam silenciar as vis acusações.Apesar do crescente anti-judaísmo e das acusações, os judeus dos Reinos Cristãos não sofreram o tipo de persecuções que sofreram seus irmãos do resto da Europa. Em Castela, o sucessor de Alfonso, Pedro, o Cruel, reempregou os cortesãos a seu serviço, permitindo que Dom Samuel Meir ha-Levi Abulafia, se tesoureiro chefe, construísse uma sinagoga particular em Toledo, em 1357 (posteriormente chamada de El Transito).Os massacres de 1391Num ambiente de crescente tensão, o prelado Ferrant Martinez, de Sevilha, lançou uma campanha anti-judaica em 1378, “alertando” a

população da cidade para a “iniquidade” dos judeus. Suas pregações destilavam ódio e encorajavam a violência contra a população judaica.Suas propostas para “minimizar” o “problema judaico” eram drásticas: destruição das 23 sinagogas da cidade, confinamento de todos os judeus no gueto, fim de qualquer contato entre judeus e cristãos e a remoção de todos os judeus das posições de influência.

Suas atividades tornaram-se mais belicosas e nefastas após as mortes do arcebispo de Sevilha e do rei de Castela, em 1390, que deixara como herdeiro ao trono um filho menor de idade. Como era a Coroa que atuava como protetor, os judeus viram-se indefesos. (Por outro lado, os Reinos de Navarra e Portugal eram governados por monarcas fortes e poderosos, o que garantiu a segurança das comunidades judaicas lá instaladas).Nenhuma voz se levantou para se opor ao discurso venenoso do prelado e os judeus de Sevilha foram atacados no dia 4 de junho de 1391. Tanto a matança quando seus resultados devastadores foram inesperados. Na escolha entre o batismo ou a morte muitos escolheram a morte, mas tantos outros o batismo. Relatos da época afirmam que, após incendiar os portões do bairro judaico, os cristãos “mataram muitos de seu povo… e muitos morreram para santificar O Nome de D’us e muitos violaram o Pacto Sagrado” (através da conversão...). Obviamente, os ataques de Martinez haviam caído em solo fértil. Os pogroms espalharam-se rapidamente de uma cidade para outra através da Ibéria e das Ilhas Baleares. Em todos os lugares era oferecida a mesma opção aos judeus: conversão ou morte.Em Castela, em particular, as multidões sentiram que podiam promover arruaças impunemente por causa da ausência de poder central e poucas comunidades foram poupadas. Em certos casos, os judeus conseguiam evitar a conversão pagando generosas somas aos nobres, que concordavam em escondê-los em fortalezas locais, mas no final eram entregues às multidões enfurecidas e convertidos à força. Em Maiorca, o governador evacuou os judeus para uma fortaleza em Palma, mas lá, também, a multidão invadiu o local e obrigou os judeus a escolher entre a morte e o batismo.

Foi apenas graças à intervenção do Rabi Hasdai Crescas (ca. 1340–1410) que essa foi salva da total destruição. Rabi Cresca, uma das principais autoridades rabínicas de seu tempo, era o líder da comunidade judaica de Aragão e, de várias formas, do judaísmo espanhol durante um de seus períodos mais críticos.O fervor religioso que motivava os perseguidores era inconfundível, pois quem se convertia era poupado sem exceção. Os vândalos avançaram sobre os bairros judaicos como se estivessem em uma cruzada. Os distúrbios só cessaram quando os judeus se converteram e suas sinagogas foram transformadas em igrejas.As massas, em particular, eram motivadas, também, pela inveja econômica pelo tamanho, riqueza e proeminência da comunidade judaica medieval. Não é por acaso que os primeiros objetos destruídos foram os arquivos referentes aos empréstimos feitos por judeus a cristãos.Após a devastação de 1391, os judeus tentaram reintegrar os fragmentos de suas comunidades sobreviventes sob a liderança do Rabi Hasdai Crescas. As aljamas tiveram que ser reconstruídas e a normalidade restabelecida. Mas, era necessário mais do que a reabilitação física nas juderías arruinadas, pois os sobreviventes estavam traumatizados e angustiados. Não era fácil restaurar sua autoconfiança tampouco encontrar uma explicação para a destruição de sua glória passada.As estimativas sobre o total da população judaica em 1391 variam muito, mas acredita-se que, quando a calma foi restaurada – cerca de um ano após os massacres, por volta de 100 mil foram mortos, outros 100 mil sobreviveram de alguma forma, seja se escondendo nas florestas ou fugindo para terras muçulmanas, e 100 mil se converteram.Até 1391, a conversão diante da perseguição era algo impensável em terras cristãs. Quando os judeus se defrontaram com a fúria das massas na Renânia, durante a 1a e 2ª Cruzadas, 1096 e1147, escolheram o martírio sem a menor hesitação, tornando-se um exemplo que ecoou na liturgia judaica e na memória coletiva do povo.

A presença dos novos convertidos, conhecidos como conversos, vai se tornar uma fonte de prolongada angústia para os judeus e de antagonismo por parte da população cristã. Como cristãos, os judeus recém-convertidos não estariam mais sujeitos à legislação discriminatória, sendo que assim poderiam ascender socialmente de forma rápida, como de fato aconteceu. Muitos, no entanto, convertidos à força e contra sua vontade, tornar-se-iam criptojudeus.Em um nível prático, os judeus tinham que enfrentar a questão mais difícil de todas: como lidar com o crescente contingente deconversos, que, afinal, eram seus próprios parentes. Em um nível espiritual, eles tinham que entender o significado daquela onda de conversões à sua volta.Em última instância, a questão dos conversos levaria diretamente a Expulsão de 1492. Assim sendo, o ano de 1391, determinou o desenrolar do último capítulo do da história dos judeus na Península Ibérica.

Judeus de SefaradA saga dos judeus na Espanha acabou tragicamente em 1492, quando os Reis Católicos determinaram que nenhum deles poderia mais viver em seus domínios. Mais de 200 mil tiveram que decidir entre se converter ou deixar o país. Uma extraordinária civilização foi abruptamente desarraigada, mas não desapareceu, pois os judeus expulsos levaram seus conhecimentos, sua sabedoria e tradições para outras terras. Edição 89 - Setembro de 2015

Hoje, após 553 anos, a Espanha decidiu ser hora de corrigir aquilo que, nas palavras do Ministro da Justiça espanhola, Alberto Ruiz-Gallardón, tinha sido “o maior erro da história espanhola”.A história dos judeus em Sefarad, como é chamada a Espanha em hebraico, foi longa e rica, marcada por épocas áureas e outras de terror, à medida que romanos, visigodos, muçulmanos e cristãos se

sucediam no poder. Foi durante o domínio muçulmano omíada que floresceu, em Sefarad, uma comunidade judaica famosa, tanto por sua sabedoria e conhecimentos quanto por sua importância econômica e política. Em terras ibéricas surgiram vários dentre os maiores sábios e poetas de toda a história judaica.Sob os califas omíadas, enquanto os judeus que viviam sob o domínio cristão eram sistematicamente perseguidos, a comunidade judaica de Sefarad floresceu, tornando-se o mais importante centro cultural e religioso do mundo judaico e produzindo milhares de obras, seja no campo da filosofia e teologia judaica seja em todos os ramos da ciência e da literatura. Graças a seu conhecimento da língua e cultura árabe, assim como das línguas latinas e o hebraico, os judeus espanhóis se tornaram emissários das atividades científicas e culturais da Espanha islâmica no restante da Europa.A erudição e sede pelo conhecimento dos judeus sefaraditas iam muito além de sua excelência nos campos da Torá, do Talmud e da língua hebraica. Incluíam, harmoniosamente, todos os outros ramos do conhecimento humano. Para os sefaraditas, o judeu “ideal” combinava uma fé absoluta nas Leis e preceitos judaicos, vivo interesse por sua teologia e filosofia e elevado apreço pela cultura geral e ciências naturais. Sábios e eruditos judeus eram, também, grandes médicos, poetas, filósofos, matemáticos, cartógrafos e astrônomos, além de servir os califas e príncipes como ministros, vizires e generais. Suas contribuições à civilização mundial foram tão significativas que nos influenciam até o presente dia.Morashá não poderia relatar em uma única edição, ainda que resumidamente, a história dos judeus de Sefarad, suas contribuições ou suas mais importantes figuras. Optamos, portanto, por dividir essa história em períodos que serão publicados nas próximas edições.Primeiros assentamentosOs primórdios da vida judaica em Sefarad são envoltos em lendas. De acordo com as tradições dos judeus ibéricos, suas raízes na Península Ibérica remontam à época do rei Salomão. Por volta de 970 antes da Era Comum (AEC), após o rei selar uma aliança com Hiram, rei de Tiro,

mercadores judeus, a bordo de embarcações fenícias, tornaram-se ativos comerciantes nas terras que circundavam o Mar Mediterrâneo, estabelecendo entrepostos em suas margens e chegando até a Península Ibérica. E, ainda segundo uma tradição, Adoniram, emissário e general do rei Salomão, foi enterrado em Murvierdo. De acordo com o Tanach1, já no século 10 AEC eram rotineiras expedições para a Península. Ainda no Tanach , no versículo 20 do Livro de Ovadia, o profeta menciona Sefarad quando se refere aos “judeus exilados de Jerusalém”. Segundo uma tradição que perdura até hoje, algumas das famílias aristocráticas do Reino de Judá, ao serem deportadas pelos babilônios no século 6 AEC, assentaram-se no litoral da Espanha.Apesar das especulações sobre o ano em que os judeus se estabeleceram na Península Ibérica, sabe-se, com certeza, que lá havia inúmeros deles quando a região fazia parte dos domínios de Roma. Os romanos haviam invadido a Península, por volta de 220 AEC, e, no início do 1º século EC, estava sob seu domínio toda a Hispânia, nome com o qual os romanos designavam a Península Ibérica. Após a derrota judaica durante as Guerras judaico-romanas (70 e 135 EC), os Imperadores Vespasiano e Adriano para lá despacharam milhares de prisioneiros judeus. Uma estimativa, considerada “exagerada” pelos historiadores, chegou a avaliar em 80 mil o número de judeus prisioneiros enviados à Hispânia nesse período. Outros milhares fugiram de Eretz Israel, buscando refúgio em Sefarad, e, nas décadas seguintes, houve uma substancial imigração judaica tanto vinda do norte da África quanto do sul europeu.Moedas judaicas encontradas em Tarragona são prova da existência dos primeiros assentamentos judaicos. Fontes judaicas, como oMidrash Leviticus Rabá 29:2, mencionam uma “volta da Diáspora” da Espanha no ano 165 EC. Porém, a mais antiga prova concreta da presença judaica na Península é uma lápide datada por volta do 2º século, com inscrições em hebraico, latim e grego, encontrada em Tortosa. O texto hebraico diz “Paz para Israel... Esta é a tumba de Meliosa, filha de Yehuda e (?) Miriam (..)”. Outra lápide datada do século 3, foi encontrada em Adra, à leste de Granada, pertencente ao

túmulo de uma criança de nome Annia Saomónula. A inscrição em latim a identifica como sendo uma Judaea (menina judia).Seguramente, no final do século 3,era grande o número de judeus em várias partes da Hispânia, especialmente nas regiões de Granada, Córdoba e Sevilha, ao Sul, Toledo e Barcelona, ao Norte. Achados arqueológicos revelam que os judeus viviam em comunidades prósperas e organizadas. No período romano, sua vida era relativamente tranquila, pois o judaísmo era uma religio licita – religião lícita, permitida. Cada comunidade podia, entre outros, estabelecer sinagogas, cemitérios, cobrar impostos, bem como manter tribunais para julgar disputas entre os membros da comunidade. Mas, a situação foi-se modificando à medida que o Cristianismo, que no final do século 3, já era uma força poderosa no Império Romano, passou a ser adotado pela população hispano-romana.No início do século 4, a Igreja na Hispânia estava suficientemente fortalecida para convocar, em 303, o Concílio de Elvira, o primeiro entre todos os que viriam a seguir. Entre os cânones adotados estava a proibição de cristãos se casarem com judeus, viverem com eles ou comerem juntos. As determinações de Elvira revelam tanto o reconhecimento por parte da Igreja do tamanho e importância da comunidade judaica, quanto o fato de que os judeus já eram vistos pela Igreja como “nocivos“. Os bispos viam com preocupação o fato de estarem bem integrados na sociedade e de manterem relações amigáveis com os cristãos.No entanto, apesar do fortalecimento da Igreja na Hispânia e no resto do mundo romano, já que o cristianismo se tornara, em 313, a religião oficial do Império através do Édito de Constantino, os cânones não possuíam força legal e os judeus e cristãos continuaram a coexistir em harmonia na Ibéria Romana. Mas, a Europa estava prestes a passar por grandes mudanças.No final do século 4, o Império Romano foi definitivamente dividido em dois: o do Ocidente, cuja capital era Roma, e o do Oriente, o Império Bizantino. O Império Romano do Ocidente não sobreviveria às invasões dos bárbaros nos séculos seguintes.

O domínio visigodoA administração romana manteve-se na Hispânia até o início do século 5, quando a região foi invadida por bárbaros. Em 419 os visigodos conquistaram grande parte da Península. Mantendo o nome Hispânia, o poder dominante estabeleceu, em Toledo, o centro político do seu novo reino. O período visigodo, que duraria três séculos, foi marcado por agitação política, para não dizer uma verdadeira anarquia.Os séculos em que os judeus viveram sob domínio visigodo estão entre os mais obscuros da história judaica. Sabemos que em Sefarad vivia uma comunidade integrada e afluente. Até Recaredo se tornar rei, em 586, a vida dos judeus não sofreu mudanças drásticas. Até então os visigodos praticavam o arianismo, uma forma de cristianismo considerado herético pela Igreja Católica, por negar a Trindade, e não viam os judeus como um elemento “perigoso” para a sociedade.O fato de os governantes visigodos não terem conseguido estender sua autoridade muito além de Toledo seria determinante na decisão de Recaredo de adotar o Cristianismo normativo da Trindade (Catolicismo). Ao se converter, ele passou a controlar a Igreja Católica com representantes espalhados por todo o reino, já que era prerrogativados reis nomear bispos e convocar os Concílios em Toledo. Em teoria, ao controlar a Igreja, os reis visigodos controlariam toda a Hispânia.Em 589, Recaredo convocou o 3º Concílio de Toledo, dando início ao domínio católico na Península. Um objetivo do Concílio era eliminar a influência judaica na população cristã. Entre outros, os judeus não podiam ocupar cargos públicos, tampouco se casar com cristãos. Ele também proibiu os judeus de possuírem escravos cristãos, e, num segundo momento, de contratar cristãos para serviços pagos.Os dois séculos que se seguiram figuram entre os períodos mais difíceis na história judaica e foram um prenúncio ameaçador das futuras políticas espanholas contra os judeus. E concílio após concílio realizado em Toledo, promulgavam decretos antijudaicos, com crescente ferocidade.

Em 616, o 3º Concílio determinou que todos os judeus que se recusassem a se converter fossem punidos com 100 chibatadas. Se teimassem em não aceitar o batismo, teriam seus bens confiscados e seriam expulsos do Reino. Os resultados foram devastadores. Crianças judias eram tiradas de seus pais, que eram impedidos de deixar o país. Muitos conseguiram fugir, mas grande parte da população judaica – mais de 90 mil, viram-se forçados à conversão. Centenas morreram em atos de Kidush Hashem. Porém, a maioria desses conversos, chamados em hebraico de anussim (coagidos), mantinham sua identidade judaica em segredo. Nascia em solo espanhol o criptojudaísmo, uma prática que seria adotada, no futuro, por milhares de judeus que foram forçados a se converter.Dez cânones do 4º Concílio, convocado, em 633, diziam respeito a judeus e criptojudeus. Apesar dos bispos reconhecerem a imoralidade e ilegalidade das conversões forçadas, determinaram que os judeus batizados não poderiam retomar sua fé “por causa da natureza imutável do batismo”. Portanto, cabia à Igreja forçar os criptojudeus a se tornarem cristãos de fato. Para a Igreja, os judeus secretos já representavam uma ameaça ainda maior do que os que nunca haviam sido batizados. Medidas cada vez mais severas foram adotadas em relação a qualquer “judeu batizado” que fosse descoberto tendo “uma recaída”. Entre outros, lhe seriam tirados seus filhos, que seriam entregues a um monastério para serem criados como “verdadeiros cristãos”.Em 638, o 6o Concílio determinou que a punição para os conversos que não seguissem os cânones da fé cristã seria a fogueira ou o apedrejamento. E o 9o, realizado no ano de 654, trouxe a obrigatoriedade por parte de todo cristão de vigiar os conversos como forma de garantir que realmente haviam abandonado os costumes judaicos. As bases da futura Inquisição espanhola estavam sendo traçadas.No entanto, apesar de todos os esforços, os reis visigodos não conseguiram converter os judeus em massa nem tampouco extirpar o criptojudaísmo. Além da Coroa não ter muito controle sobre as terras além de Toledo, muitos dos nobres visigóticos prestavam pouca

atenção às leis da Igreja e necessitavam dos serviços dos judeus para dirigir suas propriedades e feudos. Consequentemente, os judeus que viviam distantes de Toledo desfrutavam de um grau maior de liberdade do que os que habitavam aquela cidade ou as outras de grande porte, onde a autoridade da Coroa ou a presença da Igreja eram muito fortes.Os últimos reis visigodos adotaram medidas cada vez mais perniciosas. Tentaram, novamente, forçar os judeus a aceitar o batismo, ameaçando-os com a expulsão. As medidas adotadas pelo rei Egica (687–702) foram especialmente cruéis. Entre outros, declarou escravos todos os judeus, batizados ou não, dando-os “de presente” aos cristãos. Crianças judias com mais de sete anos (certas fontes afirmam que menores, também) foram tiradas de seus pais para serem criadas como cristãs, para, no final, serem escravizadas.Não é de se estranhar que os judeus recebessem os invasores muçulmanos como libertadores. Uma nova era de muitas realizações tem início para os judeus de Sefarad ao passar da esfera de domínio cristão para o domínio islâmico.A invasão islâmicaA expansão muçulmana, iniciada após a morte de Maomé, atingiu a Península Ibérica no início do século 8. Na época, a monarquia visigótica estava enfraquecida pelas lutas internas. De acordo com muitos historiadores, entre as facções em luta estaria o filho do falecido rei, não conformado pelo seu afastamento do poder. Esta facção apelou ao governador omíada, da Ifríquia2, Musa ibn Nusair,que intercedesse na guerra civil. Este último enviou o General Tarik ibn Ziyad à península. O objetivo mouro3, porém, não era apenas interceder na luta interna, mas tomar a península.Em 30 de abril de 711, chefiando um exército de 12 mil homens, em sua maioria composto por berberes norte-africanos, Tarik desembarcou no rochedo que, posteriormente, foi chamado de Jabal Tarik (“monte de Tarik”), que hoje é conhecido como Gibraltar.Divididos, os visigodos foram facilmente vencidos, em julho, na Batalha de Guadalete (em Jerez de la Frontera), no primeiro embate entre visigodos e muçulmanos. Sabe-se que havia inúmeros judeus vindos

do norte da África lutando em Jerez, sob o comando de Kaula al-Yahudi, general judeu nomeado por Tarik.Os invasores avançavam rapidamente. Em 712, as forças de Musa ibn Nusair se juntaram às de Tarik. Prosseguindo em direção ao Norte, os invasores capturaram Toledo e Córdoba, em outubro do mesmo ano; Saragoza, em 714; e Barcelona, em 720. No decorrer de dez anos, os mouros assumiram o controle de uma parte substancial da Península, que chamaram de Al-Andaluz ou Andaluzia, e que passou a fazer parte do imenso Império Islâmico, controlado pela dinastia Omíada. Não conseguiram, porém, dominar parte do noroeste da atual Espanha e parte do norte do que é hoje Portugal, que permaneceram em mãos dos reis cristãos.De acordo com cronistas muçulmanos, grande parte da população cristã fugira antes da chegada dos mouros, ficando apenas os judeus. Enquanto os invasores prosseguiam em suas conquistas, as cidades eram deixadas a cargo de judeus que atuavam como uma milícia. As cidades de Córdoba, Málaga, Granada, Toledo e Sevilha foram confiadas aos cuidados dessas milícias. Devido à sua grande população judaica, Sevilha tornou-se conhecida como “Villa de Judíos” (Cidade dos Judeus). Estes se estabeleceram também, nas zonas agrícolas, pois não era raro receberem dos invasores propriedades agrícolas pertencentes a cristãos em fuga diante do avanço mouro.Não há dúvida de que os judeus cooperaram com os invasores muçulmanos, pois sua chegada colocara um fim às violentas perseguições sofridas sob os visigodos. É preciso ressaltar, porém, que eles não “convidaram” os mouros a invadir a região, nem “entregaram-lhes” a Espanha. Tais acusações perniciosas foram disseminadas pelos cristãos durante a Idade Média para “explicar” a queda da Península Ibérica em mãos dos invasores muçulmanos, como resultado da “traição e perfídia judaica”.Apesar de os muçulmanos serem uma minoria em Al-Andaluz, e grande parte da população ser composta de cristãos e judeus, as leis islâmicas ditavam a vida de todos. O Islã permitia que judeus e cristãos lá vivessem na condição de dhimmis, assim como em qualquer outra

parte do mundo islâmico. Isto implicava aceitar a supremacia do Islã e se submeter ao Estado muçulmano que, em troca, garantia-lhes a vida, a propriedade e o direito de praticar sua religião. Em contrapartida, tinham que cumprir uma série de obrigações, conhecidas como o Código de Omar, cujo rigor variava ao bel-prazer e de acordo com os interesses dos governantes. Em teoria, os dhimmis viviam em constante risco, já que a al-Adhimma apenas suspendia temporariamente o “direito” do conquistador de matar o conquistado e de lhe confiscar a propriedade.Mesmo sendo considerados cidadãos de segunda classe, para os judeus de Andaluz a vida era bem melhor do que havia sido sob os visigodos. Entre a chegada dos mouros, em 711, e a invasão dos almorávidas, em 1086, não houve uma política antijudaica – ainda que o relacionamento entre as autoridades muçulmanas e os judeus não fosse perfeito.O Califado Omíada em al-AndaluzEm 750, uma nova dinastia islâmica, os abássidas, tomou o poder aos omíadas, passando a governar o vasto Império Islâmico. Ao fazê-lo, os abássidas procuraram eliminaram todos os príncipes omíadas. Apenas Abd-al-Rahman conseguiu escapar, refugiando-se, inicialmente, no norte da África, e, em momento posterior, em Al-Andaluz.Após rapidamente derrotar seus opositores ele assume o poder. Funda, em 756, o Emirado Omíada de Al-Andaluz, tendo Córdoba por capital. O emirado floresceu comercial e culturalmente durante o século 8, apesar das insurreições instigadas pelos abássidas e as incursões militares dos francos e de forças cristãs do Reino das Astúrias.Para os habitantes da Al-Andaluz, o século 10 foi um período de grandes avanços culturais e econômicos. Enquanto o resto do continente europeu afundara na ignorância e no obscurantismo, no longo período de trevas imposto pela Igreja, em Al-Andaluz floresceu uma civilização altamente sofisticada e requintada, baseada em uma cultura cosmopolita e secular. Esse período de florescimento cultural imprimiu uma marca profunda na civilização ocidental e nos judeus espanhóis, que iriam criar as bases de uma cultura inigualável.

Em 929, Abd al-Rahman III elevou o emirado ao status de califado e cortou os vínculos políticos com Bagdá. O califa, cuja mãe era europeia, foi um governante extraordinário. De acordo com a tradição, sua grandeza havia sido profetizada por um sábio judeu, que se tornara um de seus conselheiros.Sob seu reinado, Al-Andaluz atingiu seu apogeu, tornando-se a primeira economia urbana e comercial a florescer na Europa, depois da queda do Império Romano. Com uma população de mais de 500 mil habitantes e perto de 60 mil palácios, a Córdoba do século 10 rivalizava em opulência cultural e econômica com Damasco e Bagdá. Abd al-Rahman III construiu hospitais, instituições de pesquisa e centros de estudos, criando uma tradição intelectual e um sistema educacional que fizeram da Espanha islâmica um centro de referência pelos quatro séculos seguintes.Apaixonado pela filosofia, poesia, teologia e ciências seculares, Abd al-Rahman III estimulou e patrocinou o conhecimento sob todas as formas e em todas as áreas. Sem medir esforços, recrutou sábios, poetas, filósofos, historiadores e músicos muçulmanos e não muçulmanos. Ele tornou o califado um proeminente centro de educação islâmica, ultrapassando Bagdá. Criou bibliotecas ímpares, importando livros de Bagdá e de outros locais. No século 10, Córdoba possuía cerca de 70 bibliotecas, sendo que na do califa, que abrigava 500 mil manuscritos, trabalhavam pesquisadores, tradutores e encadernadores.Para os judeus, o reinado de Abd al-Rahman III foi o início da Idade de Ouro da cultura judaica, uma época de grandes realizações. Abd al-Rahman III e seus sucessores não exerceram nenhuma discriminação opressiva contra os judeus. Pelo contrário, estes eram considerados um segmento útil e leal da população, sendo tratados com dignidade e respeito. Sua cultura e riqueza fizeram com que os califas os indicassem para cargos importantes. Inúmeros judeus tornaram-se conselheiros, astrólogos, secretários de estado de califas e príncipes.Livres para exercer qualquer atividade cultural ou econômica, os judeus ingressaram em vários setores da economia, incluindo o comércio, as finanças e as profissões liberais. Atuavam principalmente no comércio

de seda e seus inúmeros empreendimentos contribuíram para a prosperidade do reino. Tornaram-se médicos famosos, poetas ilustres, filósofos, astrônomos, cartógrafos de renome. Podendo assumir cargos públicos, destacaram-se na administração pública e desenvolveram habilidades políticas e diplomáticas.Em pouco tempo, Sefarad atraiu milhares de judeus de outras partes do Oriente Médio e da África do Norte. A comunidade judaica de Al-Andaluz tornou-se a mais populosa e próspera fora da Babilônia. Havia comunidades em não menos de 44 cidades, muitas com suas próprias ieshivot. As de Córdoba, Granada, Sevilha, Lucena e Toledo eram as mais importantes.A partir do momento que o califado se tornara independente de Bagdá, os laços que prendiam os judeus sefaraditas às autoridades gaônicas começaram a se afrouxar e os judeus espanhóis se tornaram independentes do protecionismo religioso e intelectual da comunidade judaica da Babilônia.Os judeus de Sefarad incentivavam o estudo e o saber em todas as áreas, e sábios e eruditos judeus gozavam de privilégios e honras parecidos aos dispensados aos estudiosos muçulmanos. No século 10, Sefarad – e não mais a Babilônia – passou a ser o maior centro cultural judaico do mundo, sinônimo de sabedoria e conhecimento, o local onde surgiram alguns dos maiores sábios de toda a história judaica.Um dos homens que mais contribuíram para o florescimento da cultura judaica foi Hasdai Ibn Shaprut (915-970), líder da comunidade judaica de Córdoba e Nasi de todo os judeus ibéricos. Médico extraordinário, tornou-se um dos homens de confiança de Abd-al-Rahman III. Dotado de grande capacidade de organização e de estadista e fluente em hebraico, árabe e idiomas de origem latina, Ibn Shaprut conduzia as negociações entre o califado e os impérios bizantino e germânico e, também, com inúmeros governantes espanhóis cristãos.Generoso patrono, Ibn Shaprut trazia a Córdoba sábios talmúdicos, filósofos, poetas e médicos judeus. Incentivou o estudo da Torá, do Talmud, do hebraico. Fundou uma ieshivá para formação de rabinos, que ficou a cargo do Gaon Moses ben-Hanok (Enoch), permitindo

assim aos judeus espanhóis não terem que depender dos Gaonim da Babilônia em questões referentes à lei judaica.É preciso ressaltar, contudo, que nem tudo era “dourado”, nesse período. Não há dúvida que judeus espanhóis viviam melhor do que qualquer outra comunidade judaica da Europa cristã, mas a vida judaica na Espanha muçulmana não era imune às ameaças decorrentes dos perigos inerentes à sua condição de dhimmis e à dinâmica da política islâmica. Tampouco foi a Idade de Ouro um período de total tolerância e compreensão entre as comunidades das três religiões que lá viviam. No tocante à população judaica, mais do que tolerância, havia na Espanha moura o reconhecimento, por parte das autoridades, da “utilidade” dos judeus e a tendência dos governantes de ignorar as exigências mais rigorosas da lei islâmica quanto ao tratamento que lhes tocava.Os TaifasO califado de Córdoba continuou, de modo geral, a exercer uma hegemonia em Al-Andaluz até o final do século 10, sendo que praticamente desabou em 1008, sendo formalmente abolido em 1031.A ausência de um poder central permitiu o estabelecimento, em Al-Andaluz, de uma série de pequenos estados islâmicos, chamados Taifas. Esses principados variavam em extensão, recursos e poder competiam militarmente entre si. Entre 1010 e 1080 formaram-se aproximadamente 30 que acabaram sendo consolidados em 9 maiores. Os mais ricos e poderosos, Toledo, Sevilha, Badajós e Granada, mantiveram em seus domínios a tradição dos omíadas de patrocinar as artes e as ciências.Para a população judaica de Al-Andaluz, com a queda dos califas omíadas, tornaram-se mais evidentes os perigos inerentes à sua condição de dhimmis. Ao longo da primeira metade do século 11, embora houvesse alguns episódios de hostilidade, eles não foram totalmente discriminados. A participação judaica nas atividades profissionais, administrativas e governamentais, iniciada durante o califado, manteve-se ao longo do período taifa. Os governantes, relativamente tolerantes, haviam sabiamente acolhido os financistas,

conselheiros em questões econômicas e políticas, escritores e poetas, cientistas e médicos judeus. Um número significativo de judeus ocupou cargos importantes nas diversas cortes, até mesmo o de vizir.Os traços característicos entre os judeus mais proeminentes era a harmonia entre a tradição religiosa e a cultura secular – o estudo do Talmud, junto com a poesia e a filosofia, e uma mesma proficiência em árabe e em hebraico.Um exemplo típico da realização do ideal sefardita judaico foi o poeta e estudioso da Halachá, o Rabi Samuel ha-Naguid. Líder da comunidade judaica, atuou como vizir e comandante do exército do Reino de Granada de 1030 até sua morte, em 1056.No século 11 havia em Sefarad comunidades importantes, entre outras, em Sevilha, Denia, Tudela, Almeria, Huesca, Toledo, Córdoba, Saragoza e Lucena.O grande talmudista, Rabi Isaac Alfasi, que trocou Fez por Sefarad, tornou-se Rosh Ieshivá (diretor) da Ieshivá de Lucena, em 1089. O mais famoso dentre seus inúmeros alunos foi o Rabi Yehuda Halevi, autor da obra Kuzari. Médico e filósofo, é considerado um dos maiores poetas hebraicos. Rabi Isaac Alfasi foi, também, professor do Rabi Joseph ibn Migash (o Ri Migash). Saragoza foi o lar do filólogo, gramático e poeta Shlomo ibn Gabirol e de Rabi Bahiya ibn Pakuda.A ausência de um poder central representava um grande perigo para os judeus de Sefarad, pois permitia a extremistas religiosos cometerem atos de violência contra os judeus. Em Granada, o fato de judeus ocuparem posições importantes nas cortes provocou o descontentamento do resto da população.Em 30 de dezembro de 1066, essa mesma cidade foi palco do primeiro massacre de judeus em Al-Andaluz desde a sua fundação, em 711. Uma multidão furiosa muçulmana – após assassinar o vizir Joseph Ibn Naghrela, filho de Rabi Samuel ha-Naguid – matou 4.000 judeus.O domínio almorávidaAs lutas entre os diferentes reinos taifas tornou evidente a inabilidade dos inúmeros governantes da Espanha islâmica em manter uma

unidade política. Os reinos cristãos vão-se aproveitar da divisão muçulmana e da debilidade de cada taifa individual em tentar subjugá-los.Num primeiro momento, a submissão foi unicamente econômica, forçando os governantes das taifas a pagarem tributos anuais de não agressão aos monarcas cristãos. Mas, percebendo que os muculmanos não resistiriam a seus avanços militares, iniciaram uma campanha de reconquista de terras aos mouros. Em 1085, Afonso VI, de Leão e Castela, aproveitando o pedido de ajuda do rei taifa de Toledo contra um usurpador, sitiou esta cidade e aceitou a sua rendição em maio. Com a ocupação de Toledo, Afonso VI pôde iniciar campanhas militares contra os taifas de Córdoba, Sevilha, Badajoz e Granada.Ao perceber que os reis cristãos se haviam tornado uma ameaça real para os domínios islâmicos, seus governantes pedem a ajuda aos almorávidas, uma dinastia berbere fundamentalista do norte da África. O líder dos almorávidas, o emir Yusuf ibn Tashfin, atravessou, com seu exército, o estreito de Gibraltar e venceu Alfonso VI na batalha de Zalaca (1086). Os mouros ainda cercaram Toledo, mas não lhes foi possível retomar a cidade. O avanço cristão perdeu o ímpeto e só seria retomado na metade do século 12.Após derrotar os cristãos, os almorávidas tomam o poder, conquistando os diferentes reinos taifas. Cultural e religiosamente menos tolerante que seus predecessores, os almorávidas queriam estabelecer uma nação onde pudessem aplicar os princípios islâmicos. De temperamento violento, introduziram na Espanha muçulmana uma intolerância até então desconhecida.Sob o regime dos almorávidas, a situação dos judeus se tornou muito precária, durante certo tempo. Entre outros, Yusuf ibn Tashfin tentou forçar a comunidade judaica de Lucena, uma das mais respeitadas de Sefarad, a se converter ao islamismo. Somente o pagamento de uma grande soma em dinheiro fez com que ele desistisse.Mas, apesar do status vulnerável, os judeus tinham permissão para permanecer onde viviam e eram tolerados. Além de serem fonte de

vultosos impostos que alimentavam os cofres públicos, eles tinham muito a oferecer aos novos conquistadores, em particular na área administrativa e diplomática, e, com o tempo, conseguiram reconquistar um tratamento favorável. Com a subida ao trono do filho e sucessor de Yusuf, Ali, os judeus voltaram a ocupar postos importantes na Corte, tendo alguns se tornado importantes conselheiros. Córdoba, Sevilha, Lucena e Granada tornaram-se importantes centros de estudos judaicos. Assim, a primeira metade do século 12 assistiu o apogeu da Idade de Ouro do judaísmo sefaradita. A maioria de seus grandes expoentes justamente viveram entre os séculos 11 e 12.A chegada dos almôadasOs almorávidas não foram capazes de se manter no poder quando sua expansão militar chegou ao fim. Com seu enfraquecimento, os reinos cristãos reiniciaram a Reconquista. Isto fez com que uma nova dinastia berbere do norte da África, os almôadas, fosse chamada, em 1146, para intervir na luta. Ferozes guerreiros, eles rapidamente passaram a controlar grande parte de Al-Andaluz.O fanatismo religioso e a incondicional intolerância dos almôadas, que queriam pôr fim à corrupção e à lassidão dos governantes islâmicos em aplicar as leis do Corão, trouxeram grande destruição e sofrimento para as comunidades judaicas do sul da Espanha.Sob os almôadas, os judeus foram perseguidos e segregados. Entre outros, foram impedidos de negociar livremente, tiveram seus bens confiscados, sendo obrigados a usar roupas que os diferenciassem. Eles viram sinagogas sendo destruídas e ieshivot fechadas e, sob a ponta da espada, foram obrigados a se converter – desta vez ao islamismo. Muitos judeus, entre os quais Maimônides, fugiram para a África à procura de governos muçulmanos mais tolerantes. Outros foram para o norte da Espanha, então sob domínio cristão, onde foram recebidos de braços abertos. Muitos dos que permaneceram sob domínio muçulmano tornaram-se criptojudeus.As comunidades judaicas do sul da Espanha não conseguiram sobreviver à intolerância e à perseguição de seus novos governantes.

Chegava ao fim a saga dos judeus de Sefarad, que tanto tinham contribuído àquelas terras e ao mundo, sob domínio muçulmano.1      O Tanach é composto de 24 livros. Esta palavra simboliza o conteúdo desses livros e contém a inicial de cada grupo de livros:Torá, Nevi’im (Profetas) e Ctuvim (Escrituras Sagradas)2     Território da região norte do Norte de África, parte do Império Islâmico.3     Mouros ou sarracenos foram povos oriundos do Norte de África, praticantes do Islã, invasores da região da Península Ibérica, Sicília, Malta e parte de França, durante a Idade Média.

Judeus na Ucrânia no século 20No início do século 20, os judeus viviam em quase todas as cidades da Ucrânia. Segundo o primeiro censo geral, realizado no Império Russo em 1897, 1 milhão e 930 mil judeus viviam no território da atual Ucrânia sob o domínio dos czares, representando 9,2% do total da população. Os maiores grupos populacionais viviam no oeste e sudoeste do país. Mais de um terço da população judaica da Ucrânia Ocidental e Central ainda vivia em shtetls, onde era maioria absoluta.Edição 85 - Setembro de 2014

No início do século 20, a Rússia czarista passava por uma grave crise político-social. O império, que desde o final do século 19 vivia uma abrupta transição do feudalismo para o capitalismo e uma rápida industrialização, ainda era governado por uma monarquia autocrática, sistema político arcaico que se chocava com o modelo econômico de capitalismo. Ademais, eram insustentáveis as desigualdades entre a privilegiada e poderosa classe de nobres e o restante da população do Império, composta em sua maioria por camponeses paupérrimos que, até sua emancipação, em 1861, haviam vivido em regime feudal de servidão.A falta de condições de sobrevivência no campo levara um número cada vez maior deles a abandonar a zona rural. Nas cidades, eles se

juntavam às fileiras das descontentes massas operárias urbanas submetidas a condições de trabalho e de vida extremamente duras. A burguesia também estava insatisfeita com o status quo, em especial face aos entraves impostos pelo governo às suas atividades e a falta de acesso à vida política. E, à medida que as ideologias socialistas e liberais iam permeando o país, crescia a convicção de que a situação econômica e social só seria resolvida através de radicais mudanças políticas.A situação dos judeus russos era a mais precária. Além da pobreza e dos problemas econômicos e sociais, o antissemitismo e os pogroms eram sancionados pelo governo czarista. Os que moravam no território da atual Ucrânia não eram exceção, pelo contrário, pois o ódio dos ucranianos pelos judeus conseguia superar o antissemitismo russo.Os pogroms de 1881-1884, ocorridos em grande parte em terras ucranianas, e as Leis de Maio haviam abalado profundamente os judeus de todo o Império. Ademais, o czar Nicolau II manipulava o sentimento antijudaico das massas, tentando convencê-los de que todos os “males da Rússia” eram causados pelos judeus. Panfletos e jornais com propaganda antissemita eram impressos, em sua maioria, nas tipografias do governo, inclusive os famigerados Protocolos dos Sábios de Sião, que eram distribuídos por todo o Império.Entre os judeus também crescia a convicção de que sua situação só melhoraria se houvesse uma mudança política. O despertar social das massas judaicas deu origem a um grande número de partidos socialistas judeus. Entre eles, o Bund e o Poalei Tsion (Trabalhadores de Sion), um partido socialista-sionista. Surge também o Movimento Autonomista (também conhecido como Nacionalismo da Diáspora). Sua meta era criar uma forma secular e modernizada de autonomia nacional judaica na Ucrânia do século 20.Havia muitos judeus, porém, que acreditavam que não havia futuro para os judeus no Leste Europeu, qualquer que fosse o sistema político. Acreditavam que os judeus só poderiam viver dignamente em Eretz Israel. Os primeiros passos do sionismo moderno foram, efetivamente, dados na Ucrânia, articulados principalmente pelo

Movimento Bilu1. Em Odessa, o Movimento Sionista funda uma influente organização, que atraiu grupos de jovens intelectuais de todas as partes da Zona de Residência2. Odessa, que contava com uma numerosa e influente comunidade, tornara-se um centro intelectual judaico. Um grande número de intelectuais e ativistas se reunia em torno do Movimento Sionista e participava ativamente no trabalho de suas instituições. Entre os pensadores sionistas da época se destacavam Lev Pinsker e Achad Ha’am.A Revolução de 1905 

No ano de1905, o descontentamento, as greves e as manifestações que se alastraram por todo Império czarista culminaram na Revolução Russa de 1905. Em janeiro daquele ano, uma marcha espontânea, contando com mais de um milhão de pessoas, dirigiu-se ao Palácio de Inverno do czar Nicolau II, em São Petersburgo. Os manifestantes reivindicavam, entre outros pontos, liberdades civis e o fim da censura. Os guardas do palácio metralharam os manifestantes para impedir que a multidão se aproximasse, originando um terrível massacre que ficou conhecido como “Domingo Sangrento”. 

Diante do clima de revolta, o czar lançou um manifesto que garantia liberdades civis básicas e criava a Duma – uma Assembleia Legislativa que congregava representantes de todas as classes sociais e permitia a ação de partidos políticos. Dois anos antes, em 1903, ainda na clandestinidade, o Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR), o mais importante dentre os partidos russos, havia-se dividido em dois: o Partido Menchevique e o Bolchevique. Esse acontecimento foi crucial para o futuro da Rússia. Mais moderado, o Partido Menchevique adotara uma interpretação ortodoxa do pensamento marxista e defendia uma reforma política e econômica gradual, com o apoio da burguesia. Por outro lado, o Partido Bolchevique, mais radical e majoritário, defendia uma revolução proletária na qual o governo seria diretamente controlado pelos trabalhadores.Para os judeus, a crise de 1905 teve consequências dramáticas. O governo czarista passou a instigar a violência contra os judeus e,

bandos de rua armados (as Centúrias Negras) atacaram judeus em dezenas de cidades e vilarejos. No período de 1903 a 1907 ocorreram 691 pogroms que deixaram milhares de vítimas. Cerca de 660 ocorreram na Ucrânia e Bessarábia, o mais violento em Kiev. Na época viviam em Kiev cerca de 80 mil judeus. A violência só cessou em 1907, mas continuou a campanha antissemita do governo czarista, incitando o ódio aos judeus.O caso BeilisO Caso Beilis, ocorrido na Ucrânia entre 1911 e 1913, foi uma clara demonstração dos sentimentos antijudaicos do governo czarista. No dia de Tisha B’Av de 1911, Mendel Beilis, um judeu de Kiev, é preso sob a acusação de matar um jovem cristão por “motivos religiosos”. A prisão ocorreu dois meses após ter sido encontrado o corpo mutilado de um garoto cristão de 12 anos, Andrei Yushchinsky. Os verdadeiros assassinos – uma gangue de ladrões – já estavam na custódia da polícia, no entanto, as forças reacionárias haviam conseguido que o então ministro da Justiça, I.G. Schcheglovitov, declarasse que o assassinato havia sido perpetrado por “razões religiosas”. A Procuradoria de Kiev manda libertar os verdadeiros assassinos e, publicamente, acusa Beilis e todo o Povo Judeu pelo crime hediondo. Nicolau II, ao receber a notícia da prisão de Beilis, demonstra, publicamente, sua profunda satisfação em saber que um judeu fora acusado.A imprensa de direita orquestra uma intensa campanha difamatória contra os judeus. Não era a primeira vez, nem a última, que as autoridades os usavam como bode expiatório, nem tampouco era a primeira vez que explorava uma acusação para fins políticos. Mas nunca antes uma campanha de difamação atingira tamanha intensidade. Em outubro de 1913, logo após Yom Kipur, inicia-se, em Kiev, o julgamento de Beilis. Supreendentemente, porém, e apesar das pressões e manipulações, um júri popular, composto em sua maioria por camponeses, declara Beilis inocente. Mas as suspeitas de que os judeus eram “maus e traidores” estavam profundamente arraigadas no subconsciente da população.

A 1ª Guerra MundialA Ucrânia foi palco de sangrentas batalhas durante a 1ª Guerra, com intensos combates na Ucrânia Ocidental. A entrada da Rússia na Guerra acelerou o colapso do Império Czarista. Os exércitos do czar, que não estavam preparados para enfrentar o poderio militar da Alemanha, sofrem uma derrota atrás da outra. Na frente ucraniana, à medida que as forças russas iam debandando, seus soldados atacavam as populações judaicas.Em fevereiro de 1917, a miséria e as derrotas sofridas nos campos de batalha levaram o povo a se revoltar. Em 15 de março, as forças de oposição (liberais, burguesas e socialistas) depuseram Nicolau II, dando início à Revolução Russa de 1917. Nessa primeira fase, conhecida como Revolução de Fevereiro ou Revolução Branca, foi estabelecida uma república de cunho liberal. Mas teve vida curta, pois, em novembro daquele mesmo ano, o Partido Bolchevique derrubou o governo provisório. A Revolução de Outubro, como é chamada, impôs o governo socialista soviético. 

A implantação do regime bolchevique desencadeou uma guerra civil. Para os judeus, com a Revolução Bolchevique foram abolidas as restrições que os confinavam à “Zona de Residência”. Apesar dos bolcheviques serem contrários à religião – fosse ela cristã ou judaica – eles se opunham, em teoria, ao antissemitismo e a qualquer forma de discriminação contra os judeus ou contra qualquer outra minoria. Em 1918 o Conselho dos Comissários do Povo adotou um decreto condenando todo tipo de antissemitismo e conclamando os operários e camponeses a combatê-lo.Uma batalha pela Ucrânia – 1917 a 1921A 1ª Guerra Mundial viu o colapso dos Impérios Austríaco e Russo e o crescimento do movimento nacional pela autodeterminação da Ucrânia. Logo após a Revolução Bolchevique inicia-se, na Ucrânia, uma luta militar pelo controle da região entre forças ucranianas nacionalistas pró-independência e os bolcheviques ucranianos que queriam

estabelecer na região o domínio soviético. Uma luta semelhante à que hoje está sendo travada na região.Do conflito participaram, também, forças militares de outras nações: o Exército Branco anti-bolchevique e o Exército Vermelho que se enfrentavam na guerra civil russa, os exércitos da Alemanha, da Áustria-Hungria e da Polônia, além de vários bandos anarquistas de cossacos.Os ucranianos nacionalistas estabeleceram-se em Kiev, onde criaram um Conselho Nacional (Rada), que, em janeiro de 1918, proclamou a independência da República Nacional da Ucrânia (RNU) e sua separação da Rússia. As facções ucranianas bolcheviques, no entanto, boicotaram as iniciativas do governo e instigaram conflitos armados, querendo estabelecer o poder soviético na região.Em dezembro de 1917, um exército de 30 mil homens da Guarda Vermelha3 russa pôs-se em marcha em direção à Ucrânia para ajudar as facções pró-soviéticas.A República Socialista Soviética da Ucrânia(RSSU), pró-soviética, é criada em 1919, tendo Cracóvia, ou Kharkiv, como capital. Naquele mesmo ano, o território ucraniano é invadido a leste pelos soviéticos e, em 1920, a oeste pela Polônia. Em 1921, o Exército Vermelho já havia conquistado dois terços da Ucrânia e a RNU é anexada à RSSU.A luta pela independência nacional ucraniana terminou com uma Ucrânia dividida e subjugada por outras nações. A República Socialista Soviética da Ucrânia passa a integrar a ex-URSS. E a Polônia anexa a República Nacional do Oeste da Ucrânia, inclusive Lviv, que havia sido criada na Galícia, em 1918.Com esse desmembramento do território ucraniano, um número considerável de judeus ficou sob domínio polonês, mas a grande maioria, mais de 1,5 milhão, ficam sob domínio soviético.Os judeus e a guerra pela independênciaA guerra pela independênciaconstitui um capítulo especial na história dos judeus da Ucrânia. Muitos haviam aderido ao movimento nacionalista ucraniano, o que fez com que fosse substancial a

participação judaica na luta pela independência ucraniana. Na Galícia Oriental, por exemplo, ucranianos e judeus lutaram conjuntamente contra as forças polonesas.Os partidos políticos judaicos das mais diferentes ideologias – dos socialistas judaicos aos revisionistas sionistas – uniram-se à Rada. Querendo melhorar as relações com a população judaica, e manter seu apoio na luta pela independência, políticos ucranianos comprometeram-se a dar aos judeus igualdade plena, direitos comunitários e individuais, e uma autonomia comunitária. Prometeram, também, a indicação de um ministro de Assuntos Judaicos no Gabinete ucraniano, a destinação de uma parcela de impostos estaduais para programas educacionais judaicos e outros propósitos, e a declaração do iídiche como um idioma oficial do Estado.Após a declaração de independência da República Nacional da Ucrânia, os judeus passaram a ser representados na Rada por 50 delegados; foi estabelecida uma Secretaria de Assuntos Judaicos, nomeado um ministro e aprovada uma lei sobre “autonomia pessoal nacional”. Mas, em julho de 1918, a autonomia foi revogada e a Secretaria dissolvida.Ademais, desde outubro de 1917 uma onda de violência contra a população judaica alastrara-se por toda Ucrânia, só terminando em maio de 1921. Nesse período, foram atacadas 530 comunidades judaicas, na sequência de 887 pogroms, e mais de 156 mil judeus foram brutalmente assassinados. Todas as facções que lutaram durante a guerra pela independência da Ucrânia participaram, em maior ou menor grau da violência, mas a maior parte dos pogroms, cerca de 40%, foram perpetrados por tropas ucranianas.Durante o governo nacionalista de Symon Petliura (1919-1920), os pogroms foram uma constante. Ao invés de coibir suas tropas, Petliura fechou os olhos para a violência antijudaica. Em 1926, ele foi assassinado em Paris, onde se refugiara, por um judeu da Bessarábia, Sholem Shvartsbard, que o considerava responsável pelos pogroms. Após um julgamento polêmico e controverso, ele foi libertado. (Ver

Morashá 77). Hoje na Ucrânia Petliura é considerado um herói nacional que lutou pela independência ucraniana.A Guerra Civil de 1918-21 trouxe em seu bojo a maior violência, não vista desde o século 17, contra os judeus da Ucrânia. E, apesar desses horrores hoje parecerem mínimos perante o terror do Holocausto, e, serem às vezes relegados ao esquecimento, foram das piores catástrofes da História Judaica.Poder soviéticoSob domínio soviético, a República Ucraniana Socialista Soviética, a Ucrânia, passou a ser uma das 15 repúblicas, que, em 1922, formaram a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Era a segunda mais poderosa república, econômica e politicamente, superada apenas pela República Socialista Federativa Soviética da Rússia. No entanto, apesar disso, ou talvez por causa disso, era vítima de um tratamento particularmente duro por parte do governo central.Viviam, então, na Ucrânia 1,5 milhão de judeus, que representavam cerca de 5% da população total. E, apesar de 300 mil judeus terem deixado a República para se estabelecer em outras partes da então União Soviética, representavam 60% do total dos judeus que viviam na URSS.Era grande o número deles nos grandes centros urbanos, principalmente, em Kiev, Mykolaiv, Kharkiv, Donetsk, Odessa e Dnipropetrovs, que abrigava então a segunda maior população judaica da Ucrânia, depois de Kiev. Na década de 1920, os judeus já representavam 22% da população urbana ucraniana.O iídiche era o idioma falado por 97% dos judeus locais em 1897 e, em 1926, 76,3 % ainda o consideravam a língua-materna. Nos primeiros anos do domínio soviético, a Ucrânia (juntamente com a Bielorrússia) tornou-se um centro de cultura iídiche desprovida de qualquer conteúdo religioso. Escolas, teatros, jornais e editoras foram fundados como, também, o “Instituto Judaico de Cultura Proletária na Ucrânia”, vinculado à Academia Ucraniana de Ciências. Coleções judaicas etnográficas foram criadas e ampliadas. No final da década de 1930,

durante os expurgos stalinistas, quase todas essas instituições foram eliminadas.A Ucrânia sempre foi vista com desconfiança por Moscou. Os líderes soviéticos sabiam que a nacionalidade e a língua ucraniana eram um elemento de grande peso, e que teriam que enfrentar uma contínua resistência e incessantes insurreições, a menos que fizessem grandes concessões à autonomia cultural ucraniana.No início da década de 1920, o regime soviético, querendo harmonizar seu relacionamento com as repúblicas da ex-URSS, adotou uma política chamada korenizatsiya, cujo significado era “nativização” ou, no sentido literal, “arrancar raízes”. Sob o lema “nacionalista em sua forma, mas socialista em seu conteúdo”, encorajava o desenvolvimento das artes e da cultura das diversas minorias, principalmente dos idiomas reprimidos pelos governos czaristas. Permitia, também, às lideranças locais, ocuparem postos administrativos nos governos e na burocracia das respectivas repúblicas. O objetivo era prevenir o desenvolvimento de movimentos antissoviéticos.Apesar da ideologia marxista questionar a legitimidade de uma identidade nacional judaica, os judeus foram incluídos nakorenizatsiya. Essa política gerou conflito entre os judeus e os ucranianos. Sendo eles a nacionalidade predominante, os soviéticos encorajaram a “ucranização” da República. Entre outros, o idioma ucraniano tornou-se o idioma oficial e aumentou o percentual de ucranianos no Partido Comunista local.Os judeus optaram por se aproximar dos russos, uma minoria nessa república, mas a nacionalidade dominante na então URSS. Essa aproximação e o fato de muitos judeus terem tido participação na Revolução Russa fez com que eles passassem a ser associados com os bolcheviques e a opressão soviética. Surge, então, mais um elemento no imaginário antissemita ucraniano: a figura do “judeu-bolchevique”, isto é, do “opressor judeu-comunista”.Era Stalinista1927 a 1953

A partir da subida ao poder de Joseph Stalin, em 1927, a ex-URSS sofreu uma transformação radical. Stalin procurou reformar a sociedade através de um planejamento econômico agressivo realizado através de planos quinquenais, que visavam a coletivização da agricultura e uma industrialização de base acelerada.Com poder quase ilimitado, seu governo, um brutal regime totalitário, foi marcado por execuções e expurgos múltiplos. Há historiadores que acreditam que o número de vítimas da era stalinista pode ter chegado a 20 milhões. Todas as armas eram utilizadas para eliminar os “inimigos”. Se verdadeiros ou imaginários, isto era irrelevante; a sobrevivência do sistema de poder criado por Lênin e Stalin dependia de sua existência.Para Stalin, a Ucrânia tornou-se um laboratório de testes para o processo de reestruturação soviética. Ademais, ele estava decidido a eliminar o sentimento nacionalista ucraniano, que considerava uma ameaça ao regime, e pôr um fim “ao problema da lealdade ucraniana dividida”.É indiscutível o antissemitismo de Stalin, bem como a sua determinação de se livrar, de alguma forma, dos judeus enquanto judeus. Mas, até a década de 1940, ele manteve uma atitude pública cautelosa, já que muitos dos principais bolcheviques eram judeus ou casados com judias. O que não o impediu, no entanto, de perseguir qualquer manifestação do espirito judaico.Em 1929, Stalin dá início a uma campanha contra a cultura ucraniana e judaica, reprimindo brutalmente os aspectos “nacionais” das duas culturas. O russo, por exemplo, substituiu o ucraniano em todos os estabelecimentos oficiais. Os judeus viram suas instituições culturais, teatros e escolas serem fechados; e as publicações judaicas reduzidas ao mínimo. As atividades religiosas e sionistas tiveram que ir para a clandestinidade. No final da década de 1930, a maioria dos envolvidos na propagação da religião judaica ou do sionismo haviam sido presas.As perseguições contra opositores políticos, intelectuais e escritores – judeus e não judeus – atingiram proporções absurdas. Milhares foram presos, enviados ao exílio ou executados. Após ter retirado de circulação todas as pessoas que poderiam se transformar em líderes

de qualquer movimento de resistência, Stalin passa a atacar o campesinato, o real núcleo das tradições ucranianas. A “guerra” travada contra os camponeses ucranianos era, de certa forma, empreendida contra a consciência nacional ucraniana.Em 1928, ele implantou uma política de requisição compulsória de cereais, que autorizava o governo a se apropriar de todo o cereal cultivado pelos camponeses, pagando um preço muito abaixo dos custos de produção. Em seguida, deu início à coletivização forçada das propriedades agrícolas. Foi na Ucrânia que a política de coletivização deparou-se com a mais violenta resistência – que não impediu, entretanto, que o processo já estivesse praticamente completo por volta de 1932.Stalin também impôs metas de produção e de confisco de grãos, se fosse necessário, para atingir tais metas, que só poderiam ser alcançadas caso os ucranianos parassem de se alimentar. O resultado não deve surpreender: a fome se alastrou e por volta de 5 milhões4 de ucranianos morreram de fome entre 1932-1933.Ainda na década de 1930, as autoridades soviéticas estabeleceram quatro distritos judaicos autônomos no sul da Ucrânia e na Crimeia. Foram implantadas amplas fazendas coletivas, cujos membros eram, em sua maioria, judeus. Sua criação causou mais uma vez um grande atrito entre judeus e nacionalistas ucranianos. As fazendas funcionaram até a 2ª Guerra Mundial, quando forças alemãs as ocuparam e mataram seus habitantes.A ShoáNa Ucrânia, entre 1,4 e 1,5 milhão homens, mulheres e crianças foram assassinados – a maioria executados a tiros pelosEinsatzgruppen5.Para os judeus da República Ucraniana, o pesadelo nazista teve início no dia 22 de junho de 1941, quando a Alemanha deu início à Operação Barbarossa, a invasão da União Soviética. Esse acontecimento foi decisivo no Holocausto, pois deu início ao genocídio sistemático de judeus, com a destruição metódica e organizada de comunidades inteiras, mesmo antes de entrarem em funcionamento as câmaras de gás.

O avanço para o Leste das forças nazistas foi rápido; em apenas dois meses conquistaram a Ucrânia, o leste da Polônia, a Letônia, Estônia e Lituânia, a Bielorrússia e o oeste da República Russa. À medida que os alemães avançavam e forças soviéticas batiam em retirada, milhões de militares e civis – judeus e não judeus – eram evacuados ou fugiam mais para o Leste. Mas nem todos conseguiram. Historiadores acreditam que cerca de 2,4 milhões de judeus – em sua maioria mulheres, idosos e crianças – ficaram presos nas áreas sob domínio nazista.A Ucrânia foi a primeira das repúblicas soviéticas a ser ocupada pelos nazistas – Kiev caiu em 19 de setembro. À véspera da invasão viviam na República Ucraniana Socialista Soviética (incluindo os recém-anexados territórios da Galícia Oriental e Volínia Ocidental) aproximadamente 2,3 milhões de judeus. Como grande parte deles viviam na região ocidental, eles não conseguiram escapar antes da chegada da Wehrmacht, tampouco conseguiram fugir os judeus que viviam nos shtetls. Apenas os que estavam no sul e na parte oriental da Ucrânia tiveram tempo de fugir. Até recentemente, não havia sido possível confirmar os números. As poucas informações se deviam, em grande parte, à política soviética que procurava ignorar o fato de que a maioria das vítimas dos massacres era composta por judeus.Desde os primeiros dias da ocupação da Ucrânia, os nazistas iniciaram a perseguição e matança de judeus. Unidades deEinsatzgruppen, passaram a cercar judeus, comunistas e outros grupos e a executá-los a tiros. Eles contavam com a ativa e entusiástica colaboração da população. Os alemães sabiam que, no Leste Europeu, durante séculos, os judeus haviam sido odiados e amaldiçoados, perseguidos e mortos e uma das “tarefas” dos Einsatzgruppen era organizar, entre a população local, grupos de assassinos. Estavam confiantes de que os antissemitas poderiam facilmente perpetrar assassinatos em massa, e estavam absolutamente certos. Sem tal participação, teria sido impossível que as matanças atingissem a escala que de fato tiveram.Em toda a Ucrânia, antes mesmo de os nazistas iniciarem a matança, a população local foi responsável por sangrentos pogroms. Para muitos ucranianos a invasão nazista foi vista como a libertação do jugo

soviético, na percepção de muitos, o “opressor judeu-comunista”. Ainda não se tem certeza se a eclosão desta violência fez parte nas discussões pré-invasão entre a Inteligência Alemã (Abwehr) e membros da Organização de Nacionalistas da Ucrânia (OUN), liderada por Stepan Bandera6. Sob a liderança militante de Bandera, a OUN organizou as Waffen SS Ucranianas da Galícia e as Divisões Nichtengall e Roland, que participaram do assassinato de judeus. (Em 2010, o ex-presidente ucraniano Yushchenko elevou Stepan Bandera a “herói da Ucrânia”, que é hoje o maior ícone político da direita nacionalista). Além desses grupos militantes, milhares de ucranianos se voluntariaram para ajudar os nazistas participando da perseguição e do assassinato de judeus. Milhares se tornaram guardas nos campos de extermínio. O fato de a polícia alemã ter mais de 120 mil membros da polícia ucraniana à sua disposição, permitiu aos nazistas, rapidamente, identificar e reunir os judeus em grandes grupos que, a seguir, eram conduzidos para locais ermos onde, um a um, família após família – homens e mulheres, velhos e crianças – eram mortos a tiros.Poucos foram os ucranianos que protestaram, entre eles, Andrei Sheptytsky, da Igreja Grego-Católica-Ucraniana, que condenou publicamente a violência contra os judeus e resgatou crianças, escondendo-as em sua rede de conventos e mosteiros.Em novembro de 1941, dois terços da Ucrânia estavam sob a administração civil alemã – o Reichskommissariat Ukraine (RKU). Rapidamente, os nazistas impuseram sobre os judeus as medidas adotadas em outros países, colocando-os fora da jurisdição da lei e obrigando-os a usar a Estrela de David. Os homens eram levados aos campos de trabalho forçados e foram criados guetos na Ucrânia Ocidental. Quando os judeus eram despojados pelos alemães de seus pertences, ucranianos tentavam se aproveitar da situação, passando a se apossar e saquear propriedades de judeus.O primeiro assassinato em massa de mulheres e crianças ocorreu em julho de 1941, em Ostrih, na Volínia. O genocídio assumiu uma nova dimensão após o massacre organizado em agosto pelo líder SS, Friedrich Jeckeln, em Kamianets-Podilskyi. Entre os dias 27 e 29 desse

mês, os nazistas mataram a tiros 23.600 judeus. Em setembro, os assassinatos em massa continuaram na Ucrânia Oriental. O maior massacre aconteceu em Babi Yar, ravina nos arredores de Kiev, onde mais de 30 mil judeus foram assassinados.Na primavera de 1942, os nazistas passaram a “organizar” os que haviam sobrevivido às chacinas – a maioria na Ucrânia Ocidental, de acordo com sua capacidade de trabalho. Consequentemente, intensificou-se o assassinato de mulheres e crianças. Judeus da Galícia selecionados para destruição foram deportados no campo da morte em Betzec, e recomeçaram as execuções em massa na Volínia e em Podília e na região de Mykolaiv. Em julho de 1942, aproximadamente 600 mil judeus ainda estavam vivos. Mas, a maioria foi vítima da campanha de assassinatos executada entre julho e novembro daquele mesmo ano.O terror nazista pegara os judeus ucranianos totalmente desprevenidos. Essa foi a principal razão pela qual os nazistas não enfrentaram maiores obstáculos durante a primeira onda de matança. Mas, a situação mudou em 1942, principalmente durante os ataques aos guetos. Houve tentativas de fuga em massa em direção às florestas e, quando ficou claro que os nazistas pretendiam liquidar os guetos, iniciou-se a resistência armada, inicialmente. na Volínia Ocidental e, em 1943, também na Galícia.De 1944 a 1991No final da guerra, pouco restara da comunidade judaica ucraniana e os judeus que sobreviveram defrontaram-se com um violento antissemitismo ao tentarem recuperar suas casas e propriedades.A preservação pública da memória do Holocausto durou pouco, desaparecendo completamente das comemorações oficiais. Os anos do pós-guerra foram caracterizados pelo silêncio oficial soviético em relação ao sofrimento singular dos judeus durante o Holocausto. As autoridade davam ênfase ao mito da “Grande Guerra Patriótica” e aos comunistas mortos, negligenciando completamente o fato da identidade judaica de 1,5 milhão de vítimas. A linha oficial referia-se a eles como os “pacíficos cidadãos soviéticos”. Foi somente a partir do final de 1980

que começaram a surgir esforços governamentais e, posteriormente, públicos para manter a memória do Holocausto e integrar esse período à história da Ucrânia.Na Ucrânia, o antissemitismo oficial, algumas vezes encoberto com um leve verniz de anti-sionismo, assim como da população em geral, era especialmente proeminente. Em 1963, por exemplo, a Academia de Ciências da Ucrânia publicou um trabalho de Trokhym Kichko, Iudaizmbez prykras (Judaísmo sem Embelezamento), uma obra abertamente antissemita.No início de 1960, dissidentes ucranianos e judeus intensificavam suas atividades, os primeiros pedindo mudanças políticas e os últimos defendendo a livre emigração para Israel. Embora suas demandas fossem diferentes, a necessidade por mudanças era algo que os dois grupos compartilhavam e havia contatos informais entre os movimentos.Com o início da Era da Glasnost, o movimento ucraniano predominante na luta por mudanças era o Rukh, que adotara uma postura amistosa em relação aos judeus da Ucrânia quanto do Estado de Israel. Quando, em maio de 1990, o Pamiat, organização de extrema direita russa, clamou pela violência antissemita, o Rukh fez uma exitosa campanha contra tais ataques, convencendo muitos ucranianos judeus de que o movimento nacional democrático merecia o seu apoio.Após 1991A Ucrânia tornou-se oficialmente independente em 1991, com o colapso da então União Soviética. Ao longo dos anos 1990, o país enfrentou uma dura trajetória na transição da economia socialista planificada para uma de mercado.No final do período soviético, os judeus tinham começado a emigrar rapidamente, principalmente para os Estados Unidos e Israel. Segundo o censo de 2001, cerca de 380 mil judeus escolheram partir. Representavam três quartos da população judaica do país.No entanto, o judaísmo ucraniano mostrava impressionante vitalidade. Uma comunidade forte permaneceu em Kiev, inicialmente organizada

sob a liderança de Yaakov Dov Bleich, um chassídico americano que se tornou rabino-chefe da Ucrânia durante os últimos anos de dominação soviética. Uma rede de escolas judaicas e sinagogas surgiu nos centros mais importantes, principalmente em Kiev, L’viv e Dnipropetrovs’k, e muitos edifícios que haviam sido confiscados pelo regime da URSS foram devolvidos à comunidade. Jornais judaicos em russo circulavam e instituições culturais foram reavivadas, como o Museum Tkuma do Holocausto e o Centro de Pesquisa em Dnipropetrovs’k.A comunidade judaica ucraniana é hoje uma das mais numerosas da Europa. Vivem no país cerca de 70 mil judeus praticantes e mais de 300 mil ucranianos têm origem judaica. Até a atual crise Ucrânia versus Rússia, eles constituíam uma comunidade florescente. Mas, a crise política que está dilacerando o país também esta afetando a vida dos judeus. Muitos se perguntam até que ponto as lutas internas vão alimentar o enraizado antissemitismo ucraniano, e se serão obrigado a deixar o país...BIBLIOGRAFIADubnow, Simon, History of the Jews in Russia and Poland: From the Earliest Times Until the Present Day, Ed. Nabu Press, 2010

Heifetz, Elias,The Slaughter of the Jews in the Ukraine in 1919: [1921] Cornell University Library, 2009

Brandon, Ray (Editor), Lower, Wendy The Shoah in Ukraine: History, Testimony, Memorialization, Indiana University Press  Levine, Naomi, Jews in Soviet Union (Vol. 1): A History From 1917 to the Present, NYU Press

Meir,Natan M. Kiev, Jewish Metropolis: A History, 1859-1914 (The Modern Jewish Experience), Ed. Indiana University Press, 2010REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1 Movimento Bilu – um acrônimo do versículo bíblico de Isaías: Beit Ya’akov Lechu Venelcha (“Ó Casa de Yaakov, subamos (à Terra de

Israel)”, era um movimento cujo objetivo era a colonização agrícola da Terra de Israel. 2 Zona de Residência - Zona de assentamento judeu na Rússia Imperial (1791-1917). Este termo designava uma determinada região do Império Russo destinada exclusivamente aos judeus, sendo a sua residência proibida no restante da Rússia. 3  Guarda Vermelha ou Exército Vermelho é o nome abreviado do “Exército Vermelho dos Operários e dos Camponeses”. Criado por Leon Trotsky, bolchevique, durante a guerra civil russa, foi desmantelado em 1991. O nome faz referência à cor vermelha, símbolo do socialismo, e ao sangue derramado pela classe operária em sua luta contra o capitalismo.4  De  acordo com os dados oficiais do governo ucraniano foram 7 milhões5 Einsatzgruppen - esquadrões especiais homicidas preparados pelos líderes da SS em antecipação à invasão.

A vida dos judeus na Ucrânia até início do século 20Os judeus viviam no território da atual Ucrânia centenas de anos antes do estabelecimento da nação ucraniana, no século 9. Sua história foi marcada por sofrimento e muito sangue judeu derramado em solo ucraniano. Mas foi, também, o lugar dos shtetls, onde nasceu o Chassidismo e viveram grandes Rebes, onde floresceu o sionismo e onde nasceram e viveram personalidades da História e da Literatura judaica.Edição 84 - Julho de 2014Tags: Comunidades

É difícil traçar a história dos judeus que viveram nesse território, pois esta se entrelaça com a da região. Ao longo dos séculos, a Ucrânia foi cobiçada, conquistada e dividida entre inúmeras nações. Khazares, varegues, mongóis, lituanos, poloneses, russos, austro-húngaros e soviéticos dominaram, em algum momento de sua história, parte do território ucraniano. Assim como o território, seus habitantes passavam

de uma soberania à outra. No caso da população judaica, isso significava que esta teria que se sujeitar à postura e às discriminações e restrições do novo poder dominante relativas aos judeus.Gregos e KhazaresA partir do século 7 antes da Era Comum (a.E.C.), os gregos instalaram colônias na parte norte da costa do Mar Negro (sul da atual Ucrânia), uma área estratégica para o comércio marítimo, e nas terras férteis da Península de Taurica ou Tauris (atual Crimeia). Desde o início dessa colonização havia judeus vivendo nas cidades-estados gregas. Inscrições datadas do ano 80 da E.C., descobertas no Bósforo, uma das principais cidades-estados gregas, testemunham a existência de uma comunidade judaica estruturada, já possuidora de uma casa de orações.No século 7 da E.C., os khazares, um novo poder militar vindo do Cáucaso e da região Cáspia, subjuga as tribos eslavas e conquista a região. O Império Khazar (ca. 650 – ca. 965/968), que chegou ao seu apogeu no século 8, durante o reinado de B?l?n, estendia-se das estepes ucranianas às terras que se avizinham ao Rio Ural, e da região do Meio Volga ao Cáucaso do Norte, na cidade de Astrakhan, no Mar Cáspio. Acredita-se que durante o reinado de B?l?n, por volta do ano de 740 da E.C., a dinastia real, as classes dominantes e, em seguida, parte da população se converteram ao judaísmo.O século seguinte foi marcado pela prosperidade. Uma das mais importantes rotas de comércio da época, que conectava as três partes do mundo até então conhecido, atravessava os domínios khazares. Atraídos pela prosperidade e pela possibilidade de viver numa nação onde o judaísmo era a religião dos governantes, um grande número de judeus se estabeleceu no Império Khazar. Muitos vinham dos domínios bizantinos para escapar às constantes discriminações, perseguições e conversão forçadas ao cristianismo grego-ortodoxo. No século 9, havia judeus em todas as regiões que hoje constituem o território ucraniano, principalmente às margens do rio Dnieper e no leste e sul da Ucrânia.A existência de um reino judaico no Cáucaso desperta, em meados do século 10, o interesse de Rabi Hasdai ibn Shaprut, médico pessoal dos

califas de Córdoba, Abd-al-Rahman III, e seu filho, Hakam II. Rabi Ibn Shaprut era, também, ministro da corte e diplomata encarregado, entre outros, das negociações com delegações estrangeiras que chegavam ao Califado.Por volta do ano de 950, Ibn Shaprut envia uma missiva ao rei dos khazares indagando sobre a história de seu povo. A carta chega às mãos de Joseph, o rei khazar, através dos bons ofícios de dois judeus que haviam acompanhado uma delegação a Córdoba. Em sua resposta, o rei Joseph relata o início da história dos khazares e sua conversão ao judaísmo. A troca de correspondência entre Rabi Ibn Shaprut e o rei Joseph, que ficou conhecida como a “Correspondência Khazar”, é um dos poucos documentos conhecidos de autoria khazar e uma das poucas fontes primárias da história desse império.Por volta de 966, tribos eslavas lideradas por príncipes russos invadem o Império. Os khazares retiram-se para seus domínios na Península da Crimeia, a Khazaria, como era chamado seu estado, e mantêm sua independência até meados do século 11, quando são conquistados pelos russos e pelos bizantinos.Estado Rus’ Kievana e a identidade ucranianaVaregues da Escandinávia – chamados de Rus’ – conquistam, no século 9, o território que hoje engloba três nações eslavas orientais modernas: a Ucrânia, a Bielorrússia e a Rússia Ocidental, lançando as bases para o Rus’ Kievana (Kyivan Rus’), o primeiro estado eslavo oriental. A criação desse estado é de suprema importância para a região, pois, do ponto de vista historiográfico, estabeleceu as bases da identidade nacional dessas três nações.Em 877, os rus’ conquistam Kyiv (Kiev) e fazem dela a capital de seu estado – Kyivan Rus’. Essa localização estratégica da nova capital, situada na confluência de dois rios, Dnieper e Pripyat,e no cruzamento das principais rotas comerciais Norte-Sul e Leste-Oeste, vai ser fundamental para a rápida ascensão de seu império. Kyivan Rus’ atingiu seu apogeu nos séculos 10 e 11, com um território de 800 mil km2, que se estendia desde as montanhas dos Cárpatos até o rio Volga, e do Mar Negro até o Mar Báltico.

Um dos grandes pontos de inflexão da história ucraniana foi a conversão, no século 10, do povo ao cristianismo greco-ortodoxo. Essa conversão vai ser crucial, também, para a história dos judeus da Ucrânia, por ser marcada por um profundo e endêmico antijudaismo. Logo após a conversão, o clero ortodoxo passou a incitar o povo contra os judeus. Em Kiev, por exemplo, Theodosius (1057-1074), abade do Mosteiro Pechersk Lavra, pregava a necessidade de “viver em paz com os amigos e inimigos, mas com seus próprios inimigos, não os inimigos de D’us: os judeus e os hereges”. Em Chernigov, uma das mais antigas comunidades judaicas, também os judeus passaram a ser alvo da hostilidade da população.A partir de 1054, as lutas entre príncipes de Rus’ levaram à fragmentação do Kyivan Rus’ em 13 principados. Dois deles são de grande importância na história da região, em geral, e na judaica, em particular: o de Kiev e o da Galícia-Volínia. Em 1187, a palavra Ucrânia (Ukrayina) é usada pela primeira vez para descrever o principado de Kyiv (Kiev) e o da Galícia.O Principado de KievO Principado deKyiv, que ocupava a área da Ucrânia da margem direita do rio Dnieper, foi o mais importante principado de Kyivan Rus’. Desde a fundação de Kiev, mercadores judeus haviam sido atraídos à cidade, que era um próspero centro comercial situado nos cruzamentos das rotas de comércio, que uniam, de um lado, a Europa Ocidental, e, de outro, as províncias do Mar Negro, a Europa Oriental e o continente asiático.Uma carta escrita por judeus de Kiev, encontrada na Guenizá do Cairo, revela que havia judeus vivendo na cidade e em outras partes na Ucrânia central já no século 10. Sob o governo do príncipe Svyatopolk II (1093-1113), os judeus eram protegidos e usufruíam de total liberdade em termos comerciais, tendo mesmo confiado a alguns deles a cobrança de impostos do principado.Já era marcante a dicotomia entre os interesses dos governantes e o antijudaismo do povo, funesta herança do cristianismo greco-ortodoxo. Em 1113, logo após a morte de Svyatopolk, os judeus de Kiev foram

vítimas do primeiro pogrom. Mas, apesar das dificuldades, continuaram a viver lá e em outros locais do principado, tendo sido fundamentais para seu desenvolvimento comercial, ajudando a conectar a região com os centros mais desenvolvidos da época. 

Com o crescimento econômico da região, aumenta o influxo de judeus oriundos da Khazaria, do Império Bizantino e da Europa Ocidental, particularmente da Renânia (em alemão, Rheinland), uma região no oeste da Alemanha. Em crônicas da metade do século 12, há frequentes citações do “Portão Judaico” de Kiev. E os rabinos alemães do período referem-se, em seus escritos, a judeus que viajam com suas mercadorias para a “Russ”. Há referência a Kiev, também, nos relatos de viajantes judeus da época, entre os quais, Benjamin de Tudela e do Rabi Petachiah de Ratisbon (Regensburg, na Bavária).No início do século 13, os mongóis invadem a região semeando terror, morte e destruição, e os judeus sofrem amargamente, assim como o restante dos habitantes. Em 1240, liderados por Batu, neto de Genghis Khan, os mongóis tomaram Kiev pondo fim à independência do principado, que passa a fazer parte do Império Mongol.Principado de Galícia-VolíniaO Principado de Galícia-Volínia surgiu em 1199, resultante da união de dois principados distintos, Volínia (região oeste da Ucrânia) e Galícia (hoje, Ucrânia Ocidental). Durou 150 anos e foi um dos três estados mais importantes que emergiram da desintegração de Kyivan Rus’.A Galícia-Volínia atingiu o apogeu nos séculos 12 e 13. Um grande número de judeus alemães se estabeleceu na Galícia e em outras cidades na parte oeste da Ucrânia, a partir do século 12. Em Lviv1 estabeleceram-se logo após a cidade ter sido fundada, em meados do século 13. Por causa de sua localização mais no oeste da atual Ucrânia, a Galícia-Volínia não foi invadida por hordas nômades vindas do Leste mantendo um considerável grau de independência até 1340. Mas, acabou sendo presa de seus vizinhos católicos: a Polônia ficou com a Galícia e a Lituânia, com aVolínia.A Comunidade Polaco-Lituana

Enfraquecidos por conflitos internos e invasão dos mongóis e dos tártaros, os principados ucranianos ofereceram pouca resistência à hegemonia lituana. Progressivamente, a maioria das terras de Rus’ Kievana, inclusive Kiev, foi caindo em mãos da Lituânia.A expansão do Grão-Ducado da Lituânia atingiu o seu auge em meados do século 14, quando este incluía o território da atual Bielorrússia e da maioria dos territórios ucranianos, além de parte da Polônia e Rússia.Os grão-duques concederam privilégios a todos os judeus em seus domínios. Em Kiev, o número de judeus aumentou consideravelmente e eles desfrutavam de muita prosperidade.Em 1386, o casamento entre Jogaila, grão-duque da Lituânia, e Edviges I, rainha da Polônia, vai ser de extrema importância na história da região. Além de o casamento ter sido condicionado à conversão de Jogaila e outros nobres lituanos ao catolicismo, criou-se uma união dinástica entre a Polônia e a Lituânia.No decorrer do século seguinte, em todo território sob a união dinástica da Polônia e a Lituânia aprofunda-se o processo de “polonização”. Quando passa a ser necessário ser católico para fazer parte da cúpula governamental e militar, a maior parte da elite ucraniana e lituana se converte ao catolicismo.Durante longo tempo, os judeus sob o domínio dos grão-duques lituanos gozavam de direitos sociais e econômicos mais favoráveis do que os vigentes na Polônia. Por isso, em 1389, com a união da Polônia e Lituânia, para assegurar aos súditos judeus os seus direitos, outorgou-se lhes uma carta-privilégio. O documento não só lhes garantia participação em pé de igualdade com os comerciantes cristãos como, também, assegurava-lhes a compra e o uso de terras.Cem anos mais tarde, em 1495, os judeus são expulsos da Lituânia, causando a emigração de muitos para a Crimeia, mas serão readmitidos em 1503. Em fins do século 15 havia judeus ocupando importantes posições financeiras em Lvov e Kiev, sendo que na corte circulavam médicos, banqueiros, grandes comerciantes e arrendatários judeus.

O processo de “polonização” foi concluído em 1569 com a União de Lublin, que transformou o Reino da Polônia e o Grão-Ducado da Lituânia em um único estado, a Primeira República da Polônia, conhecida, também, como a Comunidade Polaco-Lituana ou das Duas Nações. Oficialmente, a Polônia era uma república governada por um rei eleito pela nobreza polonesa, a szlachta.Nos séculos seguintes, o estado polonês continuou a se expandir para o Leste, tornando-se um dos maiores e mais populosos países da Europa. A República abrangia os territórios do que são hoje a Polônia e a Lituânia, a Bielorrússia e a Letônia, grande parte da Ucrânia e Estônia, além da região ocidental da atual Rússia.Vida judaicaNo final da Idade Média, milhares de judeus de várias partes da Europa Ocidental se haviam estabelecido na Polônia. As Cruzadas, as expulsões, os pogroms, a Peste Negra os haviam forçado a buscar refúgio no leste da Europa. A grande maioria instalou-se nos domínios da Coroa Polonesa, que, a partir do final do século 13, concedera condições favoráveis ao seu assentamento, com amplas garantias jurídicas.Os direitos concedidos pela Coroa Polonesa lhes haviam aberto novas oportunidades econômicas tanto da zona rural como nas cidades onde lhes era permitido viver. Na medida que prosperavam, a população cristã se ressentia da competição. Repetidamente, em inúmeras cidades, durante os séculos 17 e 18, acumulavam-se os pedidos à Coroa para que esta determinasse que, naquela cidade, não podiam viver judeus. Era o famoso non tolerandis Judaeis. Em Kiev, em 1619, conseguiram, pela primeira vez, expulsá-los.Em meados do século 17, estavam na Ucrânia 45 mil dos 150 mil judeus que viviam nas terras sob o domínio polonês na margem direita do Rio Dnieper, nas províncias de Volínia, Podólia, Bratislaw, Ru? Czerwona e Kiev. A população judaica era organizada emkehilot (congregações) dirigidas por um conselho comunitário composto de rabinos e personalidades da comunidade. Na Polônia, um nível adicional foi acrescentado: um conselho nacional, o Conselho das

Quatro Terras (Vaad Arba’ah Aratzot), composto pela maioria dos rabinos proeminentes e líderes leigos da época.O ídiche era o idioma utilizado por todos os judeus. A vidas girava em volta de suas sinagogas. Sua profunda religiosidade lhes era fonte de consolo e determinava todos os aspectos de seu cotidiano. O estudo judaico era de primordial importância. A fama de uma cidade não residia em sua importância econômica, mas no número de suas ieshivot e na reputação de seus rabinos. Em meio à população polonesa, na qual só o clero e uma minoria da alta nobreza eram educados, e 90% do povo não sabiam nem ler nem escrever, era praticamente nulo o analfabetismo entre os judeus.O Sistema ArendaA partir de1569, quando foi criada a Primeira República da Polônia, foram disponibilizados aos judeus amplos lotes de terra, na Ucrânia, pertencentes à alta nobreza polonesa. Judeus vindos de toda a Europa foram para essa região. Os nobres poloneses lhes arrendavam suas propriedades e os judeus as administravam através do chamado sistema arenda. 

O nobre polonês, dono de enormes propriedades de terra, era o governante absoluto dos camponeses, servos semi-escravizados, que viviam em suas propriedades. O fato de os senhores das terras serem católicos, os servos ucranianos greco-ortodoxos e os administradores judeus era fonte de grande tensão.Pelo sistema arenda, a nobreza polonesa arrendava não apenas a terra, mas todos os ativos fixos de sua propriedade, tais como moinhos, destilarias, hospedarias e outros. O contrato incluía, também, o direito exclusivo de destilar e vender bebidas alcoólicas. Cabia ao arrendatário coletar impostos, pagamentos e produtos agrícolas dos servos. O judeu que fechava o contrato levava consigo, além de sua família, todos os que quisessem acompanhá-lo como subarrendatários. Acabou-se criando uma classe média judaica na zona rural ucraniana e a receita advinda da arenda e da venda de bebidas alcoólicas constituía, em grande parte, o esteio da economia judaica.

Cresce o número de judeus de tal forma que foi sancionada uma lei transferindo o status jurídico e fiscal dos judeus da Coroa aos nobres. Esses passaram a construir cidadezinhas, os shtetls, onde eram judeus a maioria dos habitantes.O sistema de arenda era um verdadeiro barril de pólvora pronto a explodir. Para aumentar suas receitas, os latifundiários exigiam pagamentos cada vez mais elevados dos arrendatários judeus, e o não pagamento tinha seríssimas consequências. Para conseguir fazer face a tais compromissos, os judeus pressionavam os camponeses. Líderes judeus sensíveis aos males que sofriam estes últimos tentaram aliviar seu fardo. Em 1602, por exemplo, rabinos e o conselho comunitário de Volínia pediram aos arrendatários judeus que os camponeses não trabalhassem aos sábados e nas festas. Para a grande maioria dos servos ucranianos ortodoxos não importava muito quem era o responsável por sua miserável situação. Os judeus, “infames infiéis e estrangeiros”, representantes dos nobres poloneses católicos, eram vistos como os culpados por impor sobre eles um pesado ônus econômico. O ódio religioso e o profundo ressentimento acabaram se concretizando em perseguições violentas e massacres terríveis. Para piorar a situação, não sendo os judeus aliados formais da nobreza polonesa, eles não estavam, automaticamente, sob sua proteção.Os massacres de Chmielnicki em 1648-1649Em meados do século 17 a Polônia foi sacudida por duas décadas de lutas internas e externas (1648-1667), chamadas na história polonesa de “Dilúvio”(em polonês, Potop). O ressentimento contra o poder polonês veio à tona em várias revoltas rapidamente reprimidas. Mas, em maio de 1648, a situação saiu do controle do governo.Uma rebelião de cossacos e camponeses ucranianos, liderada pelo chefe cossaco Bohdan Chmielnicki, alastrou-se por todo o território da atual Ucrânia.Chmielnicki, à frente de um exército de cossacos do Dnieper e de tártaros da Crimeia, transformou a insurreição numa luta política para acabar com o domínio polonês na região, que teve

repercussões internacionais. Suas forças semearam morte e terror por onde passavam. Ao capturar as cidades e os vilarejos poloneses, judeus e padres católicos eram cruelmente assassinados, sendo poucos os que se salvaram. Apesar de serem os poloneses o principal alvo, foi sobre os judeus que se abateu toda a sua fúria. Estima-se que havia 150 mil judeus vivendo no território da atual Ucrânia.Judeus das áreas rurais dirigiram-se às cidades procurando proteção. Milhares deles batalharam ao lado dos poloneses nas cidades fortificadas, que se transformaram para eles em armadilhas mortais. Na hora do perigo, os poloneses sempre abandonavam os judeus sozinhos.A literatura martirológica judaica da época recorda o massacre de comunidades como Nemirov, Ostrog e Narol. Em Tulchin, soldados poloneses entregaram os judeus em troca de suas próprias vidas; em Tarnopol impediram os judeus de entrar, apenas para dar alguns exemplos da barbárie. Em Dubno, dois mil judeus que viviam na cidade e redondezas foram massacrados porque os poloneses não permitiram que se refugiassem na fortaleza. Segundo a tradição, os túmulos estavam localizados próximos ao muro oriental da Grande Sinagoga, onde era costume orar pelos mortos durante o jejum de Tishá B’Av.O pesadelo chegou praticamente ao fim em agosto de 1649, quando um tratado assinado entre Chmielnicki e a Coroa Polonesa restabeleceu o domínio do governo polonês nas partes da Ucrânia onde vivia a maior população judaica.Uma das crônicas judaicas da época descreve a devastação e a obscena brutalidade: “Muitas comunidades além do Dnieper, como Pereyaslaw, Baryszowka, Piratyn e Boryspolê, Lubin, Lachowce (...) tiveram morte cruel e amarga. Alguns de seus integrantes foram esfolados vivos e sua carne atirada aos cães; outros tiveram as mãos e membros decepados e seus corpos atirados na estrada só para serem destroçados pelos carros e esmagados pelos cavalos (...). O inimigo massacrou mulheres crianças no colo de suas mães (...). Atrocidades semelhantes foram perpetradas em todos os lugares por onde passavam...”.

É muito difícil determinar o número total de vítimas judias dos massacres de 1648 e 1649, conhecidos entre os judeus como Gzeyres takh vetat (Malignos decretos). As crônicas judaicas dizem que foram 100 mil, mas há relatos de que foram 300 mil e que mais de 300 comunidades foram destruídas. Foi decretado um dia de jejum (20 de Sivan) e preces especiais foram compostas em memória das vítimas.No entanto, apesar da magnitude do desastre, muitos judeus retornaram à Ucrânia após ter sido restaurada a calma, mas décadas se passaram até novamente se tornarem importantes no contexto do judaísmo polonês. A história da Ucrânia daria mais uma guinada quando Chmielnicki procurou a ajuda dos russos, que invadiram o nordeste da Polônia e a Ucrânia. Em 1655, os suecos invadiram a Polônia Ocidental. Ao final daquele ano, quase toda a Polônia estava ocupada por cossacos, russos e suecos. No ano seguinte, todavia, o exército polonês foi reorganizado e fez recuar os invasores. Mas a Polônia se encontrava em estado caótico e era grande a deterioração econômica.No século 18, o ódio acumulado pelas massas ucranianas volta à tona. A desordem geral e a agitação dos padres greco-ortodoxos levaram à formação de bandos conhecidos como Haidamacks, compostos por cossacos da Rússia, Ucrânia e servos fugitivos.Os Haidamacks atacaram a Ucrânia em 1734, roubando e destruindo muitas cidades e vilarejos, assassinando grande número de nobres poloneses e milhares de judeus. O comandante das forças Haidamacks, Wasski Washchilo, proclamara que o objetivo da revolta era “destruir o Povo Judeu para proteger o cristianismo”. De acordo com o censo oficial de 1764 viviam no  território da atual Ucrânia 258 mil judeus, mas acredita-se que eram mais de 300 mil. Bandos de Haidamacks acabaram destruindo comunidades em Fastov, Granov, Zhivotov, Tulchin e Dashev. Em 1768, os judeus de Uman foram alvo de um terrível massacre. Segundo relatos de testemunhas, entre 50 mil e 60 mil judeus foram cruelmente assassinados.

Os massacres não interromperam a imigração judaica para a Ucrânia apesar das tensões entre os judeus e as populações ucranianas ao longo do século 19.ChassidismoO Chassidismo apareceu primeiramente nos povoados da Ucrânia no início do século 18. Uma mistura de sofrimentos e sentimentos, aglutinada por uma debilitante pobreza, serviu de pano de fundo para o surgimento dos movimentos chassídicos.O fundador Rabi Israel Ben Eliezer, o Baal Shem Tov (o Besht), nasceu na Podólia, em 1700. Na época, as comunidades judaicas estavam afundadas em desespero, com a intensificação dos pogroms e das acusações de assassinato ritual contra os judeus. Ademais, a Polônia enfrentava graves dificuldades econômicas e tensões sociais que afetavam o dia-a-dia e sustento das populações judaicas. Esses fatores, aliados à desilusão decorrente do episódio de Shabetai Zvi – um pseudo-cabalista que alegara ser o Mashiach –, reforçaram a procura de sinais da redenção messiânica.Os líderes religiosos, à época traumatizados pelo episódio de Shabetai Zvi, baniram o ensino do misticismo judaico, ficando o estudo da Torá restrito à elite. Deve-se lembrar que, naquele então, somente a erudição da Torá era considerada o caminho do judaísmo, mas eram poucos os que podiam dar-se ao luxo de estudar. Os livros sagrados eram raros e caros e a maioria trabalhava dia e noite para sobreviver. Barreiras, incluindo diferentes sinagogas, separavam os cultos dos incultos, os ricos dos pobres, os líderes dos homens do povo.Grande parte da vida do Baal Shem Tov foi dedicada a aliviar a sensação de desespero – tranquilizar os judeus, animar seu espírito deprimido e eliminar temores e ansiedades. Para os judeus da Europa Central e Oriental, especialmente aqueles que viviam na miséria e sofrimento, ele passou a ser a materialização da esperança. Quando deixou esse mundo, em 1760, não houve um único vilarejo judaico na Ucrânia e no resto da Europa Oriental que não estivesse sob a influência do Baal Shem Tov e de seus ensinamentos.

Com sua morte, a liderança do movimento passa para o discípulo que lhe era mais próximo – o Maguid, Rabi Dov Baer (1710-1772), que se estabeleceu na cidade de Mezeritch, na Volínia. Rabi Dov Baer enviou discípulos para espalhar os ensinamentos do Baal Shem Tov.A cidade de Berditchev, localizada na atual Ucrânia, está inexoravelmente ligado ao nome de Rabi Levi Yitzhak – “o advogado do Povo Judeu perante o Trono Celestial”. Rabi Levi Yitzhak foi dos mais famosos alunos de Rabi Dov Baer. Este foi o Rebe dos Rebes foi o mestre dos pilares espirituais do Chassidismo: Rabi Shneur Zalman de Liadi – o fundador do movimento Chabad-Lubavitch –, o Vidente de Lublin e os dois “irmãos sagrados”, Rabi Elimelech de Lizensk e Rabi Zusia de Anipoli.O domínio russoOs 20 anos de guerra que colocaram a Polônia contra invasores suecos e russos resultaram em uma deterioração econômica e em tensões sociais, e no final do século 18, a Polônia deixa de existir como país soberano, sendo dividida entre seus poderosos vizinhos em 1772, 1793 e 1795. A Prússia ficou com a parte ocidental até o Mar Báltico, a Áustria com um pedaço central que incluía a Galícia, mas coube à Rússia ficar com a maior parte do território- a Ucrânia, Lituânia e Polésia.Centenas de milhares de judeus se tornam súditos indesejáveis dos czares, antes disso não lhes era permitido se estabelecerem nos domínios dos czares. Sua história foi bem diferente, mais sofrida do que a daqueles que ficaram sob domínio austro-húngaro, bem como das populações judaicas que viviam na Europa Ocidental e Central.O regime czarista foi um dos exemplos mais persistentes de autocracia da História. Os soberanos exerciam poder absoluto e, no século 19, ainda existia uma ordem pré-moderna de classes sociais: de um lado, privilégios aristocráticos, e, de outro, um sistema legalizado de servidão. No final do séc. 19 e início do séc. 20, em todo o território russo, o antissemitismo era uma política oficialmente sancionada pelo governo, algo que não acontecia em outros países europeus. Dentre todas as minorias que viviam sob o jugo czarista, a mais hostilizada era

a judaica; os maus-tratos, a hostilidade e o desprezo eram uma constante. A política czarista era uma mistura de desprezo e medidas discriminatórias, e de esforços para “regenerá-los”, “russificando-os” e os obrigando a se “amalgamar” com a população cristã.Por breve tempo, depois de 1772, a czarina Catarina II, a Grande, expressou certa benevolência em relação aos novos súditos judeus, concedendo-lhes o direito de residência. No entanto, pressionada por negociantes cristãos de Moscou, que queriam impedir a atuação de comerciantes judeus, em 1791 a Czarina proíbe os judeus de se estabelecerem na Rússia Central, no “solo da Mãe Rússia”. Uma exceção foi feita no antigo território do sul da Ucrânia. Esta região, a “Nova Rússia”, foi aberta aos judeus e outras minorias com o intuito de povoar a área e desenvolver sua economia. A cidade principal, Odessa, tornou-se rapidamente importante centro de vida judaica.Em 1775, a Czarina promulgou um decreto determinando o confinamento dos judeus – dessa vez não em guetos, mas numa parte de seu Império, a chamada “Zona de Residência” ou “Território do Acordo” – em russo, Cherta Osedlosti. 

Na área que incluía a antiga Polônia, Ucrânia, Bielorrússia e Lituânia passaram a viver mais de 90% dos judeus do Império. Eles só podiam se aventurar fora da área delimitada com permissão especial, de curta validade, de difícil obtenção. Esse confinamento forçado prevaleceu até a queda do regime czarista, em 1917. Nos território da atual Ucrânia os judeus ainda viviam em cidades emshtetls, onde eram a maioria da população. De acordo com o censo oficial de 1847 por volta de 600 mil judeus viviam no território da atual Ucrânia, mas acredita-se que eram mais de 900 mil. Suas vidas não haviam mudado, continuavam a falar o iídiche e seus filhos estudavam nos cheders2. A vida ainda girava em volta das sinagogas, dos Rebes, das leis judaicas e das festas do calendário judaico. No decorrer do século 19, progressivamente, os judeus dos vilarejos migraram para povoados e cidades maiores, onde, em muitos casos, se tornaram um amplo segmento das classes pobres trabalhadoras.

Súditos dos czares, os judeus dos territórios ucranianos (com exceção dos judeus da Galícia que estavam sob o domínio austro-húngaro) estavam sujeitos a todas as leis e imposições promulgadas pelo governo imperial. Em 1804, Alexandre I promulga o “Estatuto dos Judeus”. Grande parte das medidas visava sua “russificação”. Outro estatutos atacava as bases econômicas da população judaica, proibindo-a de arrendar terras, comercializar bebidas alcoólicas, inclusive dirigir tabernas. Milhares de judeus ficaram de um dia para outro sem meios de sustento. O governo czarista queria convencer os servos de que sua vida miserável e sofrida era “consequência” das atividades econômicas dos judeus, e não de sua exploração por nobres latifundiários.É difícil dizer qual dos czares russos foi pior para os judeus. Mas, não há dúvida de que Nicolau I foi um dos piores. Odiava todas as minorias mas, em particular, os judeus. Entre outras medidas que atingiram a população judaica Nicolau I reduziu ainda mais drasticamente a área de residência permitida aos judeus, proibiu o uso de vestuário tradicional judaico e do uso da língua iídiche. Ele foi o responsável pelos famigerados “Decretos Cantonais” publicados em 1827. Era obrigatório para todos os homens do Império se alistar a partir de 18 anos, com a duração de 25 anos, o decreto determinava, porém, que os judeus se alistassem aos 12 anos e, até completarem 18 anos, vivessem em escolas “cantonais”. O objetivo era convertê-los; se resistiam às pressões psicológicas, eram submetidos a cruéis castigos. Em 1844, o czar aboliu as kehilot e colocou os judeus diretamente sob a supervisão da polícia e das autoridades municipais.A situação dos judeus apresentou alguma melhora com a subida ao trono do Czar Alexandre II (que reinou de 1855 até 1881), que iniciou de imediato reformas para implantar um sistema de produção capitalista incentivando a indústria, o comércio e a construção de uma rede de estradas de ferro. Em 1861, emancipou os 47 milhões de servos russos.Ninguém tinha mais esperanças no novo Czar do que os 3 milhões de judeus que viviam na Cherta. Durante seu reinado: o odiado alistamento compulsório foi reduzido para seis anos, e foi abolido o

“acantonamento” dos jovens judeus. Em 1865, permitiu que os chamados judeus “úteis” – comerciantes, banqueiros, artistas e artesãos qualificados e os que tinham curso superior – se estabelecessem na própria Rússia, pois o Czar queria que o capital e o talento judaicos fossem usados para o desenvolvimento da economia de seu império.  Comunidades judaicas formadas por grandes comerciantes, financistas, industriais, artistas e acadêmicos surgiram em várias cidades, principalmente em Odessa. Esses judeus vestiam-se seguindo os padrões ocidentais, falavam russo e seus filhos frequentavam escolas russas, e muitos adotaram as ideias da Haskalá. 

Nas duas últimas décadas do governo de Alexandre II, a Rússia vivenciou um impressionante desenvolvimento econômico. Empresários judeus destacavam-se no comércio e no sistema bancário. Graças a seu acesso ao capital e às relações internacionais, eles estabeleceram as bases do moderno sistema financeiro da Rússia e foram responsáveis pela construção e financiamento de 75 % do sistema ferroviário do país.Mas, nuvens pretas se avizinhavam da população judaica. Na década de 1870, Alexandre II deu uma guinada reacionária adotando ideias do nacionalismo eslavo, que pregava uma volta aos valores russos e desprezava qualquer ideia liberal. Como era de se esperar, os judeus foram os grandes alvos da nova política. Até início do século 20, foi-se gradualmente acumulando contra eles uma enorme massa de legislação discriminatória.A fase relativamente liberalizada terminou abruptamente em 1881, quando Alexandre II foi assassinado por revolucionários. Seis semanas após a sua morte, por ocasião da Páscoa, inicia-se, no sul da Ucrânia, uma onda de violência. Os pogroms duraram dois anos, espalhando terror e derramamento de sangue por cerca 150 localidades. Enquanto matavam os judeus e suas propriedades eram saqueadas e destruídas, a polícia e o exército eram mantidos afastados, por vários dias, antes de intervir. 

Segundo vários historiadores, os pogroms foram iniciados, acobertados ou organizados pelo ministro do Interior. Na época, o governo russo negou qualquer responsabilidade, mas não há dúvida de que se não há “provas” de uma participação direta do governo, há certeza, no mínimo, de sua conivência, haja vista o alastramento rápido e simultâneo dos pogroms por toda a Rússia. Os oficiais do governo cinicamente justificavam-nos, afirmando que eram “culpa” dos próprios judeus, já que não passavam de “uma explosão de raiva dos camponeses contra a população judaica”. 

Em 1882, o governo czarista deu mais um passo contra a população judaica. O novo conjunto de leis, intitulado as “Leis de Maio”, era extremamente discriminatório e cruel, restringindo ainda mais sua liberdade de movimento e de residência. Tornava extremamente difícil, senão impossível, seu acesso à educação e à atividade econômica. Os judeus russos não podiam comprar terras, ter cargos públicos, ser professores universitários. Segundo o censo de 1897 viviam nos territórios ucranianos sob domínio russo 1.927.268 judeus. Pressionados de todos os lados, a grande maioria deles viviam em condições críticas. O choque emocional provocado pelos pogroms de 1881-82 e as Leis de Maio tiveram várias consequências. Entre outras, acelerou a formação do Movimento Sionista e a fuga de judeus russos para o Ocidente. Calcula-se que, entre 1881 e 1918, cerca de 1 milhão e 300 mil judeus deixaram o Império Russo. Com a subida ao trono do novo czar, Alexandre III, o ódio aos judeus assumiu inúmeras formas, desde a organização de pogroms até a falsificação e a publicação dos famigerados “Protocolos dos Sábios de Sião”. Sob a proteção de “eslavófilos” – cujo credo centrava-se no conceito da “Santa Madre Rússia” e da “Rússia para os russos”, da Igreja Ortodoxa – que deu sua aprovação religiosa – e do governo – agindo nos bastidores – o antissemitismo se tornou um movimento bem organizado, “respeitável” mesmo.A violência era abertamente instigada pelo governo, que passou a manipular abertamente o sentimento antijudaico das massas russas,

com dois objetivos. O primeiro era tentar reduzir a população judaica da forma a mais rápida e drástica possível. O segundo, canalizar a insatisfação popular, especialmente entre os camponeses, alimentando o seu ódio contra os judeus.O intuito do governo czarista era controlar uma onda revolucionária muito mais abrangente que acabaria eclodindo no início do século 20 e poria fim ao odiado regime czarista. Para muitos judeus, parecia o fim de seu sofrimento. Mal sabiam que era o início de outro pesadelo...

Judeus no MéxicoApesar da presença judaica no México datar dos primórdios da conquista espanhola, no século 16, a atual comunidade judaica data do final do século 19 e início do século 20, quando chegaram ao país diferentes levas de imigrantes judeus oriundos do Império Otomano e da Europa.Edição 83 - Abril de 2014

Em 1492, ano em que os judeus foram definitivamente expulsos da Espanha, Cristóvão Colombo desembarcava nas Índias Ocidentais. Sabe-se que havia conversos1 integrando essa expedição, assim como em outras que foram até o Novo Mundo, muitas vezes até financiando tais viagens. Nas décadas seguintes, quando centenas de aventureiros espanhóis foram para as Américas, não houve um barco que não levasse consigo cristãos novos, como eram também chamados os conversos.Eles também faziam parte da expedição de Hernán Cortés, que, em fevereiro de 1519, saiu de Cuba e desembarcou na ilha de Cozumel, situada perto da costa da Península de Iucatã, localizada no sudeste do território do atual México. Iucatã havia sido descoberta dois anos antes por uma expedição espanhola liderada por Francisco Hernández de Córdoba.As notícias da existência de ouro em Iucatã eram um grande estímulo para os homens de Cortés. Para conquistar a região, eles não temem o

enfrentamento com o Império Asteca, poder dominante da região, que atingira o apogeu sob o imperador Montezuma.  Além de uma tecnologia militar superior – armas de ferro e aço e cavalos – uma casualidade ajudou os espanhóis a derrotar os temidos astecas. De acordo com antigos mitos, Quetzalcóatl, um de seus deuses, estava por regressar. Ao ser informado da chegada dos espanhóis, Montezuma crê que Cortés era a personificação dessa divindade. Envia-lhe, então, presentes em ouro e prata de grande valor, o que iria atiçar ainda mais a cobiça espanhola.Em novembro, Cortés chega a Tenochtitlan,  capital do Império, localizada onde atualmente é a Cidade do México. Montezuma recebe-os amigavelmente, mas, dias depois, é feito prisioneiro.  Ao se tornar evidente que estes não eram deuses, os astecas se revoltam. Montezuma acaba sendo morto  e seu sucessor, Cuauhtémoc, resiste ferozmente aos invasores. Mas, em meados de 1521, após um longo  sítio, as tropas de Cortés tomam Tenochtitlan.  É o inicio do Período Colonial, que durou até 1810. Durante este período, o território do atual México fazia parte do vice-reinado da Nueva España, cuja capital era a Cidade do México. Incluía, também, as ilhas espanholas do Caribe, a América Central descendo até a Costa Rica, inclusive, e o sudoeste dos Estados Unidos.A estrutura do império espanhol nas Américas tomou forma em 1533 e manteve sua estrutura até o final do século 18. Colônia de exploração, a economia da Nueva España era baseada na exploração das minas de prata e ouro, e o comércio estava sob rígido controle monopolista. A Igreja, rica e poderosa, dona de grandes extensões de terra, vai desempenhar um papel preponderante durante o Período Colonial.Presença judaicaEm 1502, antes mesmo de o México ter sido descoberto, a Coroa Espanhola outorgara uma lei que fechava os domínios espanhóis nas Américas para os cristãos novos. De acordo com a lei, apenas cristãos velhos poderiam integrar-se às expedições. Eram, portanto, excluídos judeus, conversos, os que possuíam sangue judeu entre seus

ancestrais e qualquer pessoa que tivesse sido processada pela Inquisição, bem como os mouros.Mas, as notícias das riquezas das Américas, aliadas à possibilidade de viver longe da intolerância e do ódio e, principalmente, das garras da Inquisição, levaram milhares de conversos a procurar meios para embarcar para o Novo Mundo.Nem todos os conversos que vieram para o Novo Mundo mantinham-se fieis à fé de seus ancestrais, mas, mesmo os que haviam abraçado o cristianismo, eram visados pela Inquisição e não estavam a salvo. Reservava-se maior hostilidade aos chamados “judaizantes”, cristãos novos suspeitos de continuarem praticando o judaísmo em segredo, ou, pior ainda, de levar outros cristãos novos de volta ao judaísmo.Como vimos acima, havia conversos na expedição de Cortés, que, em 1519, desembarcou em Cozumel. Sabe-se também que participaram ativamente do processo de ocupação e colonização das principais áreas da Nova Espanha. Em 1528, quatro deles foram acusados de serem “judaizantes”, dois foram queimados vivos.No mesmo período, aumentou o número de cristãos novos que se fixaram no território do atual México, vindos principalmente de Madri e Sevilha e de Portugal. Vinham como soldados, conquistadores e colonizadores. No ano de 1536 já havia comunidades de conversos em Tlaxcala e Mérida. Com o surgimento de novos centros de mineração, havia conversos, entre outros, em Taxco, Zacualpan, Zumpango del Rio, Espírito Santo e Tlalpujahua. No final do século 16, surgiram pequenos núcleos em Guadalajara, Puebla, Querétaro, Oaxaca e Michoacan, entre outras áreas. Sabe-se que, no início do século 17, havia pelo menos um grupo de conversos em cada cidade. Sua ativa participação na vida econômica e comercial leva-os a prosperar, mantendo relações comerciais com conversos da Espanha, de Portugal, Inglaterra, Holanda e do Império Otomano. Mas, a sociedade colonial os via com antipatia e desprezo e a Inquisição era uma ameaça constante em sua vida. Os conversos mantinham estreitos laços entre si e procuravam casar seus filhos entre os membros do grupo. Apesar dos perigos, reuniam-se para rezar em

quartos secretos, nas casas de líderes comunitários, que, muitas vezes, atuavam como rabinos.A família CarvajalA família Carvajal escreveu um capítulo importante na história dos judeus no México. Em 1579, o converso Don Luís de Carvajal y de la Cueva, El Viejo (o Velho) foi indicado pela Coroa espanhola como governador de um distrito no México. Como agradecimento por sua indicação, colonizou uma extensa área com recursos próprios. Denominou sua jurisdição de Nuevo Reino de Leon. O território incluía uma porção significativa do México atual, bem como partes do Texas e do Novo México. A Coroa deu-lhe a permissão de trazer da Espanha 100 famílias, a maioria delas de conversos. Uma década após seu estabelecimento, já eram uma comunidade significativa. Mas suas expectativas de conseguir escapar das perseguições foram frustradas, pois muitos deles, acusados de serem “judaizantes”, foram punidos.  Outra figura importante foi Luis de Carvajal, El Mozo (o Jovem), neto de Luis de Carvajal y Cueva. A casa onde ele e vários membros da família viviam, na Cidade do México, no bairro Santiago Tlatelco, era uma sinagoga e um lugar de refúgio.  El Mozo foi preso pela Inquisição em duas ocasiões e morreu na fogueira em 8 de dezembro de 1596. Após sua última prisão, foi cruelmente torturado até denunciar 21 pessoas, incluindo sua família imediata, apesar de ter repudiado sua confissão, posteriormente. Deixou significativo material escrito, que ficou escondido nos arquivos da Inquisição Mexicana durante mais de 300 anos antes de serem liberados. Luis de Carvajal é reconhecido, hoje, como o primeiro autor judeu no Novo Mundo.A inquisição no MéxicoA Inquisição chegou às Índias Ocidentais por volta de 1519, exatamente quando Cortés iniciava a conquista do México. Em 1527, foram nomeados os primeiros bispos do México, com autorização para atuar como inquisidores. Um dos principais alvos da Inquisição eram os “judaizantes” – conversosque retornavam ao judaísmo.  Assim como em todos os lugares onde atuavam, os inquisidores escolhiam um dia em que todos eram obrigados a assistir a uma missa

especial, e ali ouvir o “édito” da Inquisição que condenava, além do judaísmo, várias outras heresias. Os que se julgavam culpados de “contaminação” deviam apresentar-se e confessar dentro de um período estipulado, sem incorrer em penitências sérias. Eram obrigados, porém, a denunciar outros supostos culpados. Na verdade, esse era o requisito crucial para poder escapar sem nada mais severo que uma penitência. Os acusados podiam  ficar encarcerados durante anos,  sem ao menos saber a transgressão  de que se dizia serem culpados,  nem quem os denunciara. A prisão era invariavelmente seguida do imediato confisco de todos os seus pertences, desde a casa até as roupas, os pratos e panelas. Não foram poucas as vezes em que acusações eram fabricadas, visando obter os bens e propriedades do indivíduo, que jamais eram devolvidos, mesmo sendo o acusado inocentado.A Inquisição estabeleceu seu próprio tribunal no México em 1570, na Cidade do México. A Igreja fazia do Auto-de-fé um grande espetáculo e a cidade se preparava como para uma festa, sendo convidados à cidade para a ocasião dignitários provinciais.O primeiro Auto-de-fé foi realizado quatro anos mais tarde. No dia 28 de fevereiro de 1574, era protestante a maioria dos 74 prisioneiros levados a julgamento. Estima-se que entre 1574 e 1603, mais de 115 conversos tenham sido condenados.O ponto alto da Inquisição no México veio com o Grande Auto  de 11 de abril de 1649. Anunciado  de antemão por trombetas e tambores por todo o México, atraiu as multidões que começaram a chegar à Cidade do México duas semanas antes do acontecimento. No dia anterior ao “evento”, muitos espectadores chegaram à praça onde se realizaria o Auto-de-fé, permanecendo a noite toda para não perder os lugares ou a visão dos acontecimentos. No total, foram julgados e condenados 109 prisioneiros, dos quais apenas um não era cristão novo. Representavam “a maior parte do comércio do México”, pois os conversos dominavam o comércio entre a Espanha e suas colônias. Dos 109 prisioneiros,  13 foram sentenciados à estaca  e 20 queimados em efígie – não estando de corpo presente. Desses 20, alguns haviam

escapado da prisão, outros morreram sob tortura  e dois deram fim à vida.Os confiscos relacionados ao Grande Auto trouxeram aos cofres da Inquisição um total de três milhões de pesos. Essa quantia teria bastado para construir mais de 238 grandes prédios municipais. Entre 1646 e 1649, com seus confiscos a Inquisição obteve renda suficiente para se manter por 327 anos.A incansável atuação da Inquisição e a violência dos Autos-de-fé semearam o medo entre os cristãos-novos e, gradativamente, as comunidades conversas foram desaparecendo. Já no século 18 há poucos indícios da presença judaica na região.Século 19 – da Independência a 1900A luta pela independência  mexicana teve início em 1810  e prolongou-se até 1821. A guerra civil deixou o México destruído,  sua economia arruinada e uma imensa dívida externa. Em 1823 nasce um novo país, independente:  os Estados Unidos Mexicanos. A guerra da independência foi um dos episódios da longa e sangrenta luta entre forças liberais e conservadoras que dominaram a história do país no século 19. Enquanto os conservadores queriam um governo de centro, eventualmente uma monarquia sob os Bourbon, em que Igreja e militares mantivessem seus poderes tradicionais, os liberais queriam um governo federalista e a limitação da influência da Igreja Católica e dos militares sobre o país. Para os liberais, o poder da Igreja era o maior entrave para qualquer avanço político ou econômico.No decorrer do século 19, governos liberais são derrubados por forças militares conservadoras e vice-versa. O resultado foi um período de grande instabilidade política e caos econômico. A pobreza e as doenças tomaram conta do país. Na Europa, dizia-se que “no México, se não se morre de epidemia, morre-se por causa das guerras internas”.Como foi mencionado acima, não havia praticamente judeus no país no final do século 18. As antigas comunidades de conversos haviam desaparecido e apenas uma dezena de judeus se aventurara a entrar no país. Ademais, até 1860, quando o então presidente liberal Benito

Juaréz instituiu a liberdade religiosa, o catolicismo era a única religião oficial do Estado. E ainda era grande o preconceito e desconfiança do povo em relação aos judeus, uma herança da Inquisição e do fato do México ser um país de grande devoção católica.O número de judeus foi aumentando após o México fechar acordos comerciais com empresas europeias que pertenciam a judeus e alguns de seus representantes passarem a viver no país. Em 1861, já havia uma comunidade judaica organizada.  Na ocasião, a mídia judaica londrina publicara que “100 famílias judias planejam construir uma sinagoga na Cidade do México”. Muitas, porém, acabam por deixar o país em decorrência da violência das revoltas e contrarrevoltas.As lutas internas acabam com uma intervenção francesa e a formação do Segundo Império Mexicano. Em 1864, Maximiliano de Hamburgo torna-se imperador do México. Ele traz consigo 100 famílias judias da Bélgica, França, Áustria e Alsácia. Abastados e com estreitas ligações com a aristocracia, chegaram a cogitar a possibilidade de construir uma sinagoga, mas nada foi feito nesse sentido. Em 1867 as forças liberais derrubam o império e prendem Maximiliano, que é fuzilado em junho desse ano.A maioria dos judeus deixa  o México e, na década seguinte, a vida comunitária judaica quase desaparece. Em 1879 havia  apenas 20 famílias na Cidade  do México, a assimilação atingira níveis altíssimos e eram frequentes  os casamentos mistos. Com a subida ao poder de Porfirio Diaz, em 1876, o país entra em um período de estabilidade política e desenvolvimento econômico. Investidores estrangeiros passam a ver a nação como uma opção para seus negócios. Ainda era pequeno o número de judeus que vivia na Cidade do México, mas este foi crescendo com a chegada de correligionários europeus.Entre os representantes de companhias estrangeiras que passaram a investir no país havia inúmeros judeus, ainda que não  se identificassem abertamente  como tal. Abastados, assimilados eram oriundos de vários países – França, Áustria, Alemanha, Itália, Bélgica, Estados Unidos e Canadá. Mas, apesar de não quererem se envolver em assuntos da comunidade judaica local, eles cooperaram

economicamente em situações de crise, como na época dos pogroms de 1881, na Rússia.Apesar do seu pequeno número, não foi desprezível a participação dos judeus na vida econômica e política do México, e grandes empreendimentos foram fundados nesse período por eles, entre os quais, o Palácio de Hierro e o Banco Nacional do México.No início do século 20 começou a exploração petrolífera no país. Ainda que as concessões tenham sido entregues a companhias estrangeiras, a exploração levou o país a uma industrialização. Os judeus vão participar ativamente desse processo.As bases da atual comunidade As bases da atual comunidade judaica mexicana foram criadas no final do século 19 e início do século 20, quando chegaram ao país diferentes levas de imigrantes judeus oriundos do Império Otomano e da Europa. Durante o governo de Porfirio Diaz a imigração judaica era incentivada, pois era vista como muito positiva para a nação.A deterioração da qualidade de vida dos judeus no Império Turco-otomano, além das novas leis de alistamento obrigatório, levaram jovens judeus a deixarem seus países de origem para se estabelecer em terras com melhores condições econômicas.Os primeiros judeus sírios vindos de Damasco e Alepo chegaram ao México em 1899. Eles vão ser os primeiros a tentar reconstruir sua vida no país, pois até então o México era visto como paragem transitória. Sem recursos financeiros, sem conhecer o país e nem falar o idioma, a maioria começou trabalhando como vendedores ambulantes, na esperança de conseguir os meios financeiros para mandar buscar toda a família. A comunidade judaica síria foi-se formando, pois, de modo geral, havia entre eles estreitos laços familiares. Tradicionalistas e religiosos, reuniam-se para as preces diárias e festas religiosas em casas particulares. Nesse mesmo período chegaram, também, ao México, judeus dos Bálcãs e da Turquia.Paralelamente, os asquenazitas tentavam organizar uma vida comunitária. Em 1904, um grupo chamado “El Comité” organizou os

serviços de Rosh Hashaná num Centro Maçônico. Quatro anos mais tarde é estabelecida a “Sociedad  de Beneficencia Monte Sinai”.  A criação dessa comunidade se deu, em grande parte, graças aos esforços do rabino Martin Zielonka, enviado ao México pela União Americana das Congregações Hebraicas. Essa organização decidira incentivar a formação de uma comunidade judaica para evitar a emigração ilegal de judeus para os Estados Unidos.  A nova sociedade beneficente não teve vida longa. Entre outros, inúmeros asquenazitas deixaram o país quando eclodiu a Revolução Mexicana de 1910, considerada o acontecimento político e social mais importante do século 20 no México.O conflito revolucionário resultou na diminuição da população judaica. Mas, apesar da violência e da falta de alimentos, os judeus oriundos do Império Otomano e da Rússia lá permaneceram. Além de não terem meios financeiros para voltar para suas cidades, não tinham para onde voltar. O que os esperava não era melhor do que a situação reinante. Em 1912 é, então, criada na Cidade do México a “Alianza Monte Sinai”, a AMS, por iniciativa de um judeu de Salônica, Isaac Capon. A nova entidade reuniria judeus de todas as nacionalidades. Uma das primeiras medidas tomadas foi o estabelecimento de um cemitério judaico. Graças ao bom relacionamento entre Jacobo Granat, um dos dirigentes da Alianza, com Francisco I. Madero, líder revolucionário que assumira  a presidência mexicana, a AMS  teve autorização para adquirir um terreno para o primeiro cemitério judaico do país. Em 1918, compraram uma casa no centro da Cidade do México, que viria a ser a primeira sinagoga da comunidade judaica mexicana.  O dia em que o presidente Venustiano Carranza assinou a autorização da nova sinagoga tornou-se uma data memorável, pois foi a primeira vez em que a comunidade judaica foi reconhecida por lei.Apesar de altos e baixos, a AMS conseguiu manter-se unida por uma década, durante a qual a instituição realizava serviços religiosos e oferecia assistência aos novos imigrantes, incluindo aulas de hebraico, refeições casher e serviços de mohel. Havia, também, uma mikvê.

Após anos de lutas internas e penúria, os políticos mexicanos convenceram-se da necessidade de uma nova constituição. Ela vai ser outorgada em 1917. O objetivo era a independência econômica e o desenvolvimento do país. Entre as novas disposições, são definidas novas relações de trabalho, mais humanizadas. É também reafirmada a liberdade religiosa e definida uma nítida separação entre Estado e Igreja. Esta última, assim como outras entidades religiosas, devia submeter-se às leis constitucionais.A chegada de novos imigrantesEm 1912, a população judaica do México era de 12 mil pessoas, aproximadamente, representando cerca de 0,1% da população mexicana que então somava 12 milhões.  A imigração tanto sefaradita quanto asquenazita, principalmente da Europa Oriental, continuou nas primeiras décadas do século 20.Curiosamente, os primeiros imigrantes judeus da Europa Oriental chegaram em 1917,  através dos EUA. Esse país entrara na 1ª Guerra Mundial e esses imigrantes não queriam servir no exército americano. Eram homens jovens que falavam russo e iídiche. Sionistas, fundaram na Cidade do México a primeira organização cultural judaica do país: a Associação Hebraica de Homens Jovens (em inglês, YMHA), que funcionava como um clube e se dedicava à promoção da cultura e do esporte. A YMHA tornou-se um ponto de encontros sociais e auxílio econômico para os novos imigrantes asquenazitas.A década de 1920Esses anos foram decisivos para a consolidação da comunidade judaica local. Em 1921 o México passa a ser o segundo produtor mundial de petróleo e a nação está em franco processo de reconstrução econômica.É, também, no início da década de 1920 que começa uma imigração maciça de judeus vindos de todas as partes do mundo, mas principalmente da Europa Central e Oriental. Somente no ano de 1920 chegaram aproximadamente 9 mil ashquenazim e 6 milsefaradim, elevando o número de judeus no México ao total de 21 mil pessoas. A grande maioria estabeleceu-se na Cidade do México.

Para muitos, o país era apenas uma escala em sua jornada rumo aos EUA. Mas, com o estabelecimento de cotas de imigração por parte das autoridades americanas, em 1921, que se tornaram mais rígidas em 1924, grande contingente dessas famílias ficou no México. Para a comunidade asquenazita, a nova onda migratória foi muito significativa, pois até então mais da metade da população judaica era sefaradita.  Nessa década, a comunidade passou por uma reestruturação. As diferenças de língua, rituais religiosos e até hábitos do cotidiano, especialmente entre os que vinham da Europa e do Oriente Médio, levaram diferentes grupos ao estabelecimento de comunidades separadas. Cada uma ergueu suas sinagogas, mantendo casas de estudos, organizações beneficentes, escolas e até cemitérios individualizados. A separação dos ashquenazim da AMS se deu em 1922, quando este grupo decidiu realizar serviços religiosos independentes e criou a Nidje Israel (Consejo Comunitario Askenazi). Em 1924 foi a vez dos judeus da Turquia, Grécia e dos Bálcãs – que falavam o ladino – separarem-se da AMS, fundando a sua própria organização e associação de assistência social, a Fraternidad. Em 1940 a Fraternidad, integrou-se à Buena Voluntad e ao movimento juvenil Unión y Progreso, criando a Unión Sefaradi. Judeus de Alepo também se separaram da AMS para criar o que é hoje a comunidade Magen David (antiga Sedaká u Marpé). Na realidade, mesmo antes da construção de sua primeira sinagoga, em 1931, a Rodfe Sedek, os judeus alepinos tinham seus próprios locais de reza, escolas e instituições beneficentes. A AMS passou a ser liderada pelos damascenos, que, em 1935, mudaram seu estatuto e seu nome, passando a ser conhecida como a comunidade Monte Sinai, que reunia os judeus de Damasco.O sionismo sempre teve grande apelo entre os judeus mexicanos e, em 1925, foi criada a Federação Sionista. Mas, por não se sentirem confortáveis nas reuniões nas quais a língua predominante era o iídiche, os sefaraditas fundaram sua própria organização sionista, a Bnei Kedem.

A década de 1920 viu prosperarem os judeus do México e participarem ativamente no processo de desenvolvimento e industrialização do país. O Banco Mercantil, fundado pelos judeus, passou a financiar a aquisição de máquinas para a indústria têxtil e outros segmentos, ajudando os judeus a abrirem seus próprios negócios. Em 1931 foi criada a Câmara Israelita de Indústria y Comércio com o objetivo de coordenar o esforço judaico para se organizar economicamente e representar a comunidade junto às autoridades.Política imigratória e antissemitismoNo final da década, há uma mudança na política mexicana em relação à imigração, que até então mantivera uma postura aberta. Antes da Revolução Mexicana não havia praticamente uma regulamentação legal desta questão e, durante toda a década, o governo convidara os judeus a imigrarem para o México.No final dos anos 1920, porém, a situação mudou. O nacionalismo ocupa um lugar central no projeto político de reconstrução nacional. Uma nova política migratória seletiva vai ser o resultado da busca de um desenvolvimento econômico autônomo e de um perfil populacional próprio. Esse perfil seria o resultado da homogeneização da população através da “mestiçagem”, entendida como fusão, assimilação e dissolução de grupos étnicos. Além de critérios, também o viés econômico passa a orientar a política migratória. A partir de 1927 o Congresso aprova uma nova legislação para a imigração baseada em critérios éticos-raciais, a capacidade de assimilação dos imigrantes e sua contribuição  para o desenvolvimento do país.Em 1936, a Lei Populacional estabelece diferentes cotas de imigração e elabora tabelas com restrições a determinados grupos de estrangeiros. Os grupos objeto de maior hostilidade foram os chineses e os judeus.Apesar dos intensos esforços feitos pelos judeus locais e das pressões internacionais, os judeus alemães e austríacos que haviam fugido da Alemanha nazista tinham dificuldades para entrar no país, e o governo concedia apenas dez vistos por ano para poloneses e romenos. Entre 1933 e 1945, o México recebeu apenas 1.850 judeus. 

O suposto “interesse nacional” foi também utilizado internamente como estratégia discriminatória. Na década de 1930 há um aumento do antissemitismo, expresso através de ataques dos grupos fascistas locais, entre os quais, o “Camisas Doradas” e o Comitê Pró-Raça, que buscou expulsar do país os estrangeiros já residentes. Em maio de 1931, a população judaica fica chocada com a expulsão de 250 comerciantes judeus do mercado La Lagunilla. Determinados a resistir a tais situações, as inúmeras entidades judaicas mexicanas se unem para criar o Comité Central Israelita do México.Segunda metade  do século 20Na segunda metade do século 20 a ascensão socioeconômica alçou os judeus às esferas mais altas da sociedade mexicana. Novos ventos sopram, provocando uma mudança positiva definitiva no relacionamento entre as comunidades judaicas e o Estado, em 1992. Desde 1940 as relações entre Estado e Igreja baseavam-se no acordo segundo o qual o Governo não interferia nas questões da Igreja em troca do reconhecimento da Igreja da hegemonia sociopolítica do Estado. Esta equação aplicava-se em relação a qualquer grupo religioso. Os judeus haviam-se adaptado, registrando suas congregações e sinagogas como associações civis. Mas, com a reforma constitucional de 1992, há um reconhecimento legal das instituições religiosas e de suas atividades comunitárias. A ligação entre os judeus do México e Israel sempre foi forte, mas, apesar dos esforços, não consegue mudar, em várias ocasiões, a política antissionista do governo mexicano. Na histórica votação das Nações Unidas que, em 29 de novembro de 1947, decidiu a Partilha da Palestina, o México se absteve. E só reconheceu o Estado de Israel em abril de 1952. Mas, o momento mais grave se deu em 1975, quando o então presidente do México, Luis Echeverria, propôs à Assembleia Geral das Nações Unidas que o sionismo fosse considerado uma forma de racismo. A Resolução acabou sendo aprovada e as relações diplomáticas entre Israel e o México ficaram tensas. O México mudou sua posição em 1992, quando o então presidente Carlos Salinas propôs e conseguiu a revogação da Resolução de 1975, na ONU.

Século 21De acordo com dados publicados pelo World Jewish Congress, atualmente a comunidade judaica mexicana soma 40 mil a 50 mil membros, dos quais cerca de 37 mil vivem na Cidade do México. Há, também, comunidades em Guadalajara, Monterrey, Tijuana, Cancun e San Miguel. Diferentemente de outros países onde a percentagem de casamentos mistos passou de 50%, no México apenas 6% dos casamentos são de judeus com não-judeus.  Há cerca de 30 sinagogas na Cidade do México e número igual de locais menores para orações e estudos e cerca de 20 locais adicionais alugados para os serviços durante as Grandes Festas. Duas sinagogas são conservadoras e as demais, ortodoxas.Cerca de 95% dos judeus na Cidade do México estão diretamente afiliados à alguma comunidade ou ao renomado Centro Desportivo Israelita (CDI). Cada comunidade fornece praticamente todos os serviços do ciclo de vida de seus membros – desde o nascimento ao falecimento. Isso abrange os âmbitos religioso, educacional, social, cultural e assistencial.O Centro Desportivo Israelita (CDI), fundado em 1950, tem atualmente mais de 28 mil membros. Além de uma infraestrutura excelente para a prática de esportes, possui, também, uma galeria de arte, um teatro e um salão para eventos. Ali é realizado, anualmente, o mais importante Festival de Dança e Música Judaica da América Latina.A rede judaica de educação conta com 16 escolas na Cidade do México. Segundo as estatísticas, mais de 90% das crianças judias estudam em estabelecimentos da comunidade, da pré-escola ao ensino médio.Há, ainda, 16 movimentos juvenis com aproximadamente 2 mil membros, a maioria dos quais identificados com o Estado de Israel. Anualmente, milhares de jovens judeus mexicanos visitam o Estado Judeu através de programas organizados pelas escolas.1 Na Espanha, após os pogroms de 1391 e até o Édito de expulsão de 1492, milhares de judeus foram obrigados, na ponta da espada, a renunciar à sua fé e abraçar o cristianismo. Ficam conhecidos como

conversos, cristãos novos ou, pejorativamente, marranos. Na literatura judaica são chamados de anusim.

A Crimeia e os judeuspor por Jaime SpitscovskyPivô de uma das crises internacionais mais relevantes das últimas décadas, a península da Crimeia, anexada em março pela Rússia após seis décadas de controle pela Ucrânia, evoca diversos momentos importantes da história judaica.Edição 83 - Abril de 2014

A presença comunitária remonta ao  século I (EC), e a região representou abrigo para judeus que fugiam de pogroms da era czarista, foi palco de projetos agrícolas de treinamento para o movimento sionista e serviu como pretexto para um dos momentos mais dramáticos do antissemitismo soviético. O ditador  Josef Stalin fabricou a paranoia de que a Crimeia serviria para a criação de um separatismo judaico, com apoio do arqui-inimigo EUA.A Crimeia se notabilizou ao longo da história por representar uma área estratégica. Trata-se de saída para  o importante mar Negro, cujas águas banham o litoral  de dois gigantes, russos e turcos. Czares e sultões travaram guerras para garantir também um território com solo cultivável. Em 1783, Catarina, a Grande,  impôs o controle russo sobre a região, ao derrotar os rivais otomanos.Sete décadas mais tarde, eclodiu a Guerra da Crimeia, responsável por envolver o sul da Rússia e se estender até os Bálcãs. Naquele conflito, o império russo tentou ampliar sua hegemonia avançando sobre o decadente poder otomano, mas teve de enfrentar reação responsável por unir britânicos, franceses, e italianos. O czar  Nicolau I testemunhou o fracasso da empreitada militar, que se celebrizou como uma das primeiras “guerras modernas”, com uso intenso de estradas de ferro e telégrafos.Apesar da derrota, que diversos historiadores classificam como o início

da decadência dos czares que levaria à Revolução Bolchevique de 1917, o império russo manteve a península da Crimeia sob seu domínio.  Na região de clima temperado, a presença judaica, registrada há quase vinte séculos, passou a aumentar depois de 1791, após a permissão czarista para o assentamento de judeus.Os pogroms de 1881e 1882 em outras áreas do império russo impulsionaram a chegada de judeus à Crimeia, atraídos também pela perspectiva da região se transformar num polo para produção e exportação agrícola. A discriminação também era menos intensa do que em áreas do império russo, como Ucrânia ou Bielorrússia, cenário histórico de shttels, a aldeia judaica típica da Europa Oriental. A vida comunitária na península se intensifica a partir do final do século 19, com a organização de vida religiosa e cultural. Em 1897, contabilizavam-se lá mais de 28 mil judeus, cerca de 5% da população.Nessa época, florescia o movimento sionista, que encontrou na Crimeia uma comunidade interessada em participar ativamente do sonho da reconstrução do Estado judeu. Um dos personagens mais importantes da história do sionismo, Joseph Trumpeldor, buscou aquelas terras às margens do Mar Negro para treinar jovens interessados em aprender técnicas agrícolas que seriam fundamentais para a criação das comunidades judaicas na Terra de Israel, então dominada pelo império otomano. Trumpeldor, nascido na Rússia, morreu em 1920, na batalha pela defesa de Tel Hai, comunidade pioneira localizada na Galileia.Chamada muitas vezes de “parte da Nova Rússia”, por ter sido conquistada pelo império apenas no final do século 18, a Crimeia não escapou das turbulências e da violência que castigaram a região durante a guerra civil ocorrida após a revolução bolchevique de 1917. Comunistas liderados por Vladimir Lênin enfrentaram a resistência do antigo regime czarista, e a península do Mar Negro testemunhou algumas das batalhas mais sangrentas. Houve também significativo êxodo de população civil. Após ter chegado ao ápice demográfico, com 60 mil integrantes, a comunidade judaica viu seu tamanho se reduzir à metade, quando do conflito final entre vermelhos e brancos, em 1921.O fim do enfrentamento representou um novo impulso para a presença judaica na Crimeia. A derrota dos remanescentes do czarismo não

significou estabilidade nos domínios bolcheviques, e muitos judeus do interior da Ucrânia buscaram refúgio na península meridional, à espera da consolidação do regime comunista ou na rota da aliá, aguardando a oportunidade de emigrar para a Terra de Israel. Entre 1922 e 1929, a parte norte da Crimeia abrigou três comunas judaicas.A década de 1920 reservou momentos fundamentais para a história judaica na península. O norte-americano, agrônomo, Joseph Rosen, de origem judaica, propôs ao governo soviético que reassentasse judeus atingidos por pogroms em áreas da Ucrânia, no solo fértil e no clima mais ameno da Crimeia. O Joint, organização judaica de assistência humanitária, financiaria a empreitada.O Kremlin aprovou a ideia. Imaginava ganhar assim reforço em bolsões de resistência anticomunista na Crimeia, onde os tártaros, habitantes da região desde a invasão mongol no início da Idade Média, além de ucranianos e descendentes de alemães, ensaiavam movimentos nacionalistas e contrários ao poder soviético. O poderoso Politburo, órgão máximo de decisões do Partido Comunista da URSS, aprovou, em 1923, a criação da Região Autônoma Judaica da Crimeia. Meses depois, a cúpula bolchevique reviu a decisão e, para a “questão judaica”, optou por desenhar uma região na longínqua Birobidjan, próxima à Sibéria e à fronteira com a China.A Crimeia, no entanto, não saiu do mapa do Joint. A organização angariou recursos junto a filantropos judeus, como Julius Rosenwald, empresário famoso por sua participação na história da Sears, Roebuck & Co., para viabilizar fazendas coletivas judaicas em solo soviético. O censo oficial de 1939 indicou mais de 65 mil judeus vivendo na península (quase 6% da população), dos quais 20 mil em colônias agrícolas.Os nomes das iniciativas revelavam a riqueza linguística e diferentes influências ideológicas que conseguiram conviver em meio à agitação dos anos 1930. Havia Pobeda (vitória, em russo), Fraylebn (vida livre, em iídiche), e Yidendorf (vilarejo judaico, em iídiche), rótulos mais inspiradores para os judeus comunistas do que os nomes Achdut

(unidade, em hebraico) e Herut (liberdade, em hebraico), certamente mais apreciados por aqueles que sonhavam em fazer aliá.Professor da Universidade de Michigan, Jeffrey Veidlinger, lembrou, em texto recente publicado no site Tablet Magazine, que uma das canções em iídiche mais famosas do período soviético começa com o verso “A caminho de Sebastopol, não muito longe de Simferopol”, referências a duas das mais importantes cidades da Crimeia.  A música celebra uma fazenda coletiva judaica na localidade de Dzhankoy e fala das “conquistas da sovietização”, além de destacar a transformação de judeus comerciantes em agricultores. A propaganda do Kremlin buscava alicerçar as bases de um regime imposto pelo stalinismo.De Moscou, o ditador Josef Stalin preferia a opção de Birobidjan para a “questão judaica”. Mas, na Crimeia, os judeus comunistas não desistiam de trazer para a península a proposta de uma região em que ganhassem autonomia, ainda que debaixo do guarda-chuva vermelho.Em 1941, para surpresa de Stalin, os nazistas invadiram a URSS, rompendo um pacto de não-agressão que havia sido assinado dois anos antes. Adolf Hitler desejava manter a frente oriental em silêncio, enquanto avançava sobre o oeste da Europa. O ditador soviético avaliou que poderia dividir com seu inimigo ideológico o espólio dos impérios britânico e francês. Interessados na agricultura da Ucrânia e no petróleo do Cáucaso, fundamentais para a estratégia bélica de Berlim, os hitleristas rasgaram o pacto e mergulharam no solo do império fundado por Lênin.A aproximação da barbárie nazista levou judeus a buscarem refúgio em paragens no leste da URSS, chegando, por exemplo, ao Cazaquistão e ao Uzbequistão, na Ásia Central. Reorganizaram lá suas fazendas coletivas. Muitos retornaram ao front, para combater no Exército vermelho. Em 1944, os nazistas foram derrotados na península da Crimeia, depois do massacre de cerca de 40 mil judeus na península.A vitória sobre o nazismo significou o início de uma nova etapa de atrocidades na região. O regime stalinista deportou 180 mil tártaros da Crimeia para a Ásia Central, acusados de colaborar com o invasor hitlerista. Na punição coletiva, calcula-se que quase 50% das vítimas

morreram de fome e de doenças durante o deslocamento. Apenas em 1967, o Partido Comunista da URSS reabilitou a população punida, mas manteve restrições a seu retorno à península. Tais limites duraram até os últimos dias da União Soviética, que se desintegrou em 1991. No período stalinista, a Crimeia também esteve presente numa tragédia para o povo judeu. O capítulo começa quando o líder Salomon Mikhoels, do Comitê Judaico Antifascista, se reuniu com o chanceler soviético, Vyacheslav Molotov, para resgatar a ideia de criar uma região de autonomia judaica na Crimeia do pós-guerra. Mikhoels havia retornado de uma viagem aos Estados Unidos, onde, a mando de Stalin, esforçou-se para arrecadar fundos para o esforço de guerra do Kremlin.Expoente do teatro iídiche, Mikhoels foi ao encontro com Molotov acompanhado do poeta Yitzik Fefer, integrante do Comitê Judaico Antifascista. Os dois saíram da reunião convencidos do apoio de Molotov à ideia, que tinha respaldo do Joint. Em seguida, enviaram a proposta por escrito a Josef Stalin.Cometeram um equívoco trágico.  O ditador soviético nutria a paranoia de que poderiam ser espiões os soviéticos que haviam entrado em contato com o inimigo. Mikhoels se encaixava na categoria, devido à viagem aos EUA. Além disso, o popular ator e diretor havia ousado desenhar uma proposta para a “questão judaica” com o apoio da comunidade judaica norte-americana. Stalin, logo após a Segunda Guerra Mundial, manifestou a crença de que um conflito armado com os Estados Unidos seria inevitável e num futuro próximo. E, na visão stalinista, “os judeus conspirariam a favor do inimigo”.Uma onda de antissemitismo varreu a  URSS. Salomon Mikhoels foi assassinado em 12 de janeiro de 1948. Seu corpo foi colocado sob um carro, para simular atropelamento.  A sanha stalinista prendeu o poeta Fefer.  Foi executado em 1952, na prisão de Lubyanka,  sede da NKVD, a antecessora da KGB.Naquele 12 de agosto, que entrou para a história como a Noite dos Poetas Assassinados, foram também mortos mais doze intelectuais

judeus, como Dovid Hofshteyn, Benjamin Zuskin, Peretz Markish e Leyb Kvitko.  A perseguição seguiu com outra fabricação do stalinismo: o Complô dos Médicos.  O Kremlin acusou diversos médicos, em sua maioria judeus, de tentar envenenar lideranças soviéticas. Stalin morreu em 5 de março de 1953, antes do final do julgamento-farsa.  Os acusados foram então libertados. No ano seguinte, Nikita Khruschev, successor de  Stalin, transferiu o controle da Crimeia da Rússia para a Ucrânia. À época, pareceu uma mudança cosmética, já que o fim da União Soviética não despontava no horizonte.  Ao contrário. O regime comunista parecia reforçar seu controle sobre os solos russo e ucraniano, vindo, a mão-de-ferro, de Moscou.Porém, em 1991, a URSS se desintegrou,  e o império criado por Lênin deu lugar a  15 países independentes, entre eles a Rússia, o maior de todos, e a Ucrânia. E, em março de 2014, o presidente Vladimir Putin, após a Ucrânia iniciar o afastamento da órbita  de influência de Moscou, reanexou a península da Crimeia, sob o argumento de que 60%  dos habitantes são russos e que “corrigia o erro histórico de Khruschev”. Atualmente,  vivem na península cerca de 17 mil judeus.  E que assistem, preocupados, às turbulências  da região e às ameaças antissemitas.Recentemente, antes da anexação russa, a sinagoga de Simferopol amanheceu pichada, com a inscrição “Morte aos judeus”. Putin afirmou que vai combater o antissemitismo e outras formas de intolerância na Crimeia. Importantíssimo acompanhar, com atenção, uma região com um histórico longo de guerras, tragédias e mortes.

Antissemitismo volta a golpear judeus na EuropaA chaga do antissemitismo volta a mostrar suas garras em pleno século 21, e em pleno coração da Europa. Marcaram o cenário, a partir de 2012, ataques bárbaros contra alvos judaicos, numa escola em Toulouse, no museu em Bruxelas, no mercado casher em Paris e na sinagoga em Copenhague.Edição 87 - Março de 2015

O terrorismo oriundo do Oriente Médio, inspirado por grupos como o Estado Islâmico e a Al-Qaeda, inflama jovens em um continente que vive sua pior crise econômica e social desde a 2ª Guerra Mundial. Líderes políticos e comunitários debatem os caminhos para proteger os judeus e impedir a repetição de tragédias.Sinal dos tempos, o presidente da comunidade judaica na Alemanha, Josef Schuster, sugeriu que os judeus evitem usar kipá(solidéu) ao passar por áreas onde se registra maior hostilidade. “O ponto é se, em uma área com grande proporção de muçulmanos, faz sentido ser reconhecido como judeu por usar uma kipá ou se não é melhor usar outra forma de cobrir a cabeça”, afirmou ele. “É um desdobramento que eu não esperava há cinco anos e é, de certa maneira, chocante”.Acompanhado à distância por guarda-costas e cinegrafista com uma câmera escondida na mochila, o jornalista israelense Zvika Klein passou dez horas caminhando por ruas de Paris, com kipá e tsitsit. Enfrentou xingamentos e ameaças. Postou o vídeo no Youtube.A experiência de Klein se soma a monitoramentos feitos por entidades judaicas e instituições voltadas ao combate ao antissemitismo. Ataques como o perpetrado em janeiro contra o mercado casher de Paris recebem atenção da mídia, mas inúmeras manifestações antissemitas no cotidiano não são registradas pela cobertura jornalística. Um levantamento feito pelo norte-americano Pew Research Center demonstrou que as hostilidades a judeus atingiram um ápice em relação aos últimos sete anos, pois em 2013 foram registrados episódios em 77 países (39% do total, contra 26% em 2007). Na Europa, o estudo mostrou manifestações de antissemitismo em 34 dos 45 países do continente (76%).Em meados da década passada, o espectro do antissemitismo rondava, sobretudo, países menores da Europa, como a Hungria. Atualmente, seus efeitos atingem nações centrais, como Alemanha, França e Reino Unido. Em 2014, houve um aumento de 30% em crimes antissemitas no cenário alemão, com 1.076 casos de vandalismo em cemitérios, incitamento ao preconceito e pichações de suásticas em sinagogas.

A comunidade judaica alemã passou a receber seu jornal mensal em envelopes sem marcas externas, a fim de impedir a identificação da origem do destinatário. Vivem em solo alemão aproximadamente 105 mil judeus, o triplo do número verificado em 1991. Naquele ano, a URSS se desintegrou, e a Alemanha virou um destino importante para judeus que fugiam da instabilidade de terras governadas por Moscou.Em janeiro, às vésperas do 70° aniversário da libertação de Auschwitz, a primeira-ministra alemã Angela Merkel declarou: “Temos de lutar contra o antissemitismo e todas as formas de racismo desde o início”. Ela liderou, em setembro, uma manifestação no portão de Brandemburgo, em Berlim, sob a bandeira do combate ao preconceito antijudaico. Principal aliado diplomático de Israel na Europa, a Alemanha reforçou a segurança de edifícios de comunidades judaicas espalhadas pelo país.Depois dos ataques de janeiro, o presidente francês, François Hollande, também passou a se mobilizar. “Vocês, franceses de fé judaica, seu lugar é aqui, em seu lar, a França é seu país”, discursou ele na cerimônia para lembrar a chegada das tropas soviéticas a Auschwitz. Em 2014, cerca de 7 mil judeus emigraram da França, para fazer Aliá, na primeira vez em que os franceses alcançam o primeiro lugar no ranking de imigrantes que desembarcam em Israel. Em 2013 e 2012, haviam emigrado 3,4 mil e 1,9 mil, respectivamente.Hollande comparou o antissemitismo à lepra, “que sempre retorna quando as civilizações acreditam ter-se livrado dela”. O primeiro-ministro Manuel Valls fez, no Parlamento francês, um dos discursos mais incisivos e emocionantes sobre o momento vivido pela nação. “Devemos responder a essa situação excepcional com medidas excepcionais”, sustentou o premiê, para em seguida descartar “medidas excepcionais que desviem dos princípios da lei e dos valores” na França. No pacote de medidas, novas leis com punições mais rápidas e mais severas, reforço das agências de segurança e contraterrorismo e monitoramento de suspeitos de envolvimento com grupos terroristas.

O presidente Hollande também recebeu líderes judaicos e muçulmanos, a fim de buscar pontes de diálogos entre as comunidades. Ao se referir às questões das fontes do antissemitismo e ao jihadismo, ele lembrou que a destruição de 250 túmulos em um cemitério judaico na região francesa da Alsácia foi perpetrada por jovens de origem cristã.Roger Cukierman, dirigente da comunidade judaica francesa, que contabiliza cerca de 470 mil pessoas, alertou para o perigo representado pela extrema direita, liderada, na França, por Marine Le Pen. Recentemente, de olho na Presidência, a filha de Jean Marie Le Pen passou a investir numa moderação de discurso em relação aos judeus, na tentativa de ampliar seu eleitorado. No entanto, Cukierman descartou a aproximação e destacou a presença, no Front National, de “negacionistas, vichyistas e petainistas”, referindo-se a colaboradores da ocupação nazista, e desafiou Marine a denunciar as infames declarações antissemitas feitas por seu pai, condenado por elas em tribunais franceses.Ao atravessar o canal da Mancha, o ódio racial também contamina. Em uma pesquisa, mais da metade dos judeus britânicos entrevistados afirmaram terem testemunhado mais manifestações de hostilidade nos últimos dois anos do que em períodos anteriores. O estudo da iniciativa Campanha Contra o Antissemitismo mostrou que 25% da comunidade judaica, de 269 mil integrantes, cogitou deixar o país, enquanto 54% das respostas apontaram não enxergar futuro para o judaísmo no Reino Unido.Duas personalidades da comunidade judaica britânica jogaram luzes sobre as incertezas. “Nunca me senti tão desconfortável como judeu no Reino Unido como nos últimos doze meses”, declarou Danny Cohen, diretor da TV BBC. “E isso me fez pensar se realmente aqui é um local para o longo prazo. Porque você sente isso. E senti isso de uma forma que nunca havia sentido antes”.A atriz Maureen Lipman ecoou os temores de Danny Cohen. Descreveu o avanço do antijudaísmo como “muito, muito deprimente” e revelou ter pensado na hipótese de deixar o país. “Quando a economia

vai mal, então se volta ao bode expiatório de sempre”, observou Maureen, que estrelou no filme “O Pianista”, de Roman Polanski.Em 13 de janeiro, o primeiro-ministro David Cameron recebeu lideranças comunitárias e assegurou que o governo, em cooperação com agências de segurança e forças policiais, não poupa esforços para enfrentar o antissemitismo. Em carta ao rabino-chefe Ephraim Mirvis, o premiê escreveu: “Um amigo judeu me perguntou, certa feita, se sempre será seguro, para seus filhos e netos, viver na Grã-Bretanha. A resposta a essa questão sempre será ‘sim’. Espero que nos próximos anos atinjamos um ponto em que a questão nem precisará ser colocada”.Abe Foxman, norte-americano e símbolo da luta contra o antissemitismo, por sua histórica atuação da Liga Antidifamação, descreveu a situação atual do judaísmo na Europa recorrendo à 2ª Guerra Mundial. Para ele, um êxodo judaico do continente seria “uma vitória póstuma para Hitler, e realizaria a sua visão de Judenrein” – uma Europa livre de judeus.

Antissemitismo assombra a Hungriapor por Jaime SpitzcovskyO fantasma do antissemitismo volta a rondar a Hungria, em movimentos impensáveis para um país integrante da União Europeia.Edição 79 - Março de 2013

A infame memória do líder fascista Miklos Horthy, aliado do nazismo, ganha homenagens; autores racistas dos anos 1920 passam a fazer parte de currículos escolares e um deputado de extrema-direita pede às autoridades que seja compilada uma lista de judeus húngaros que representem “um risco para a segurança nacional”.Nem o futebol escapou. Em janeiro, a FIFA puniu a seleção húngara depois que torcedores gritaram slogans antissemitas durante uma partida contra Israel, em Budapeste. No momento em que foi tocado o hino israelense, Hatikva, um grupo na torcida deu as costas ao campo

e disparou ofensas racistas e homenagens ao ditador Benito Mussolini. O jogo pelas eliminatórias para a Copa do Mundo no Brasil terminou empatado em 1 a 1.

A Hungria vai jogar sua próxima partida, contra a Romênia, num estádio vazio. Além de impedir o acesso de torcedores, a FIFA impôs à Associação Húngara de Futebol a multa de 43 mil francos suíços e ainda ameaçou excluir o país da Copa de 2014, caso se repitam lufadas racistas em jogos do time de Budapeste.Dirigentes esportivos húngaros classificaram como “excessiva” a punição imposta pela entidade máxima do futebol mundial. No entanto, o Comitê Disciplinar da FIFA sustentou que “condenava de forma unânime o repugnante episódio de antissemitismo” e as ações de “natureza política, provocativa e agressiva perpetradas por torcedores da seleção nacional da Hungria”.A marcha para o extremismo paira sobre o país há alguns anos. Porém, se intensificou sobremaneira nos últimos meses. Em 2010, o partido de direita Fidesz (Aliança dos Jovens Democratas) obteve 52% dos votos, o que, graças a engrenagens do sistema político, proporcionou-lhe valiosa maioria de dois terços das cadeiras no Parlamento. Pôde então comandar a elaboração de uma nova Constituição, adotada em 1° de janeiro de 2012 e responsável por uma saraivada de críticas oriundas da oposição e do exterior.Autoridades, parlamentares e juristas europeus, especialistas das Nações Unidas, governos alemão e norte-americano, entre outros, expressaram preocupação com os rumos da jovem democracia húngara em um novo quadro constitucional que, por exemplo, ameaça separação entre os poderes, a liberdade de imprensa e a independência do Banco Central.  Dezenas de milhares de manifestantes foram às ruas da capital Budapeste protestar contra a nova Constituição.O Fidesz surgiu em 1988, como partido de jovens empenhados em derrubar o moribundo regime comunista e colocar a Hungria no universo das democracias liberais. No ano seguinte, caíram o Muro de

Berlim e o regime húngaro controlado pelo Kremlin.  Anteriormente, Budapeste despontava como um “laboratório de reformas” para a Perestroika e, por haver avançado bastante nas mudanças, candidatava-se ao posto de pérola democrática do Leste europeu.Os últimos anos, no entanto, enterraram essa percepção. A Hungria do atual premiê Viktor Orban, do Fidesz, abocanhou espaço no noticiário internacional não por conquistas democráticas, mas por guinadas à xenofobia e ao autoritarismo, envoltas na incapacidade governamental de lidar com a crise econômica que se abate sobre o continente. Em maio de 2012, a taxa de desemprego húngara batia em 11%.A extrema direita, representada pelo Jobbik (Movimento por uma Hungria Melhor), passou a mostrar suas garras com mais intensidade. Transformou-se no terceiro principal partido do país, com 43 deputados em um total de 386. E um de seus líderes protagonizou, no final do ano passado, um dos momentos mais sombrios na deterioração da democracia húngara.Marton Gyongyosi, deputado do Jobbik e vice-presidente do comitê de Relações Exteriores do Parlamento, exortou as autoridades a compilar uma lista de húngaros de origem judaica, no Legislativo e no Executivo, que “representem um risco para a segurança nacional”. O apelo lembrou momentos dramáticos da Alemanha nazista e também da Hungria governada por Miklos Horthy, entre 1920 e 1944, aliado do Terceiro Reich.Mais de 500 mil judeus da Hungria pereceram no Holocausto. Atualmente, a comunidade contabiliza cerca de 100 mil integrantes, numa população total de 10 milhões de pessoas. A fala de Gyongyosi trouxe à tona memórias de perseguições e massacres.Num primeiro momento, o primeiro-ministro Viktor Orban, do direitista Fidesz, permaneceu calado. O porta-voz do governo condenou a saraivada racista de Gyongyosi. O conjunto da obra, de reação governista, foi tachado de “tépido” pela publicação britânica The Economist. Dias depois, milhares de pessoas se concentraram em frente ao Parlamento húngaro, para denunciar o antissemitismo do

deputado do Jobbik. Discursaram lideranças da oposição socialista e até mesmo do governista Fidesz.No dia seguinte, o premiê Orban finalmente saiu das sombras e criticou a proposta de Gyongyosi. Recebeu Peter Feldmajer, líder da comunidade judaica húngara, e prometeu segurança e proteção. A reação levou até mesmo o deputado racista a rever sua proposta, ao afirmar que “apenas os judeus com cidadania húngara e israelense” teriam de ser monitorados.De olho nas eleições de 2014, o Jobbik busca explorar a insatisfação com os rumos da economia húngara e distribui ataques de xenofobia contra judeus e outras minorias, como ciganos. O partido tenta ainda faturar politicamente com a reabilitação de Horthy, cujo nome foi emprestado a diversas ruas pelo país, além de estátuas inauguradas em homenagem ao colaborador nazista.O Partido Socialista, de oposição, enviou em junho uma carta aberta ao primeiro-ministro Orban, advertindo que o país mergulhava em “séria crise moral” devido ao culto à memória de Miklos Horthy. No mês seguinte, o presidente húngaro, Janos Ader, reuniu-se em Jerusalém com o premiê Binyamin Netanyahu, que expressou sua preocupação com o “ressurgimento do antissemitismo na Hungria”.Com medo do avanço do Jobbik, o governista Fidesz faz um jogo duplo, de tentar manter credenciais democráticas e críticas a ações extremistas, ao mesmo tempo em que alimenta o nacionalismo extremado, com alicerces em um período de racismo e perseguições. Em maio, por exemplo, o premiê Orban autorizou a inclusão em currículos escolares de obras de autores antissemitas. A comunidade judaica húngara enviou um protesto ao Ministério da Cultura.Em 2009, a justiça do país funcionou ao banir a Guarda Húngara, organização com uniforme e símbolos calcados no Partido da Cruz de Flechas, de ação hitlerista e que, de 1944 a 1945, governou Budapeste. Entre a fundação e o banimento da estrutura neonazista, passaram-se dois anos.Após o final do regime comunista, em 1989, a comunidade judaica húngara viveu uma onda de revitalização, com abertura de centros

religiosos, museus, restaurantes e escolas. A maior sinagoga da Europa, localizada em Budapeste e construída em meados do século 19, passou por reformas. O festival judaico de verão, criado em 1998, saltou de um público inicial de 3 mil para os atuais 120 mil visitantes.Oskar Deutsch, presidente da comunidade judaica vienense, constatou recentemente um aumento na chegada de judeus oriundos de solo húngaro. “Fico contente pelo fato de haver pessoas chegando, mas as circunstâncias que as forçam a deixar a Hungria, devido à situação política, devido ao antissemitismo, me desagradam profundamente”, observou o dirigente comunitário.

A tragédia dos judeus de Vichypor por Zevi GhivelderO drama dos judeus de Vichy não começou em Vichy. Suas raízes mais acentuadas remontam ao início do século 19, quando o antissemitismo já permeava grande parte da sociedade francesa e Napoleão Bonaparte agia de forma ambígua com relação aos judeus.Edição 73 - Setembro de 2011

Por um lado, ordenou a suspensão de todas as restrições aos judeus e a demolição dos guetos, tanto na França como nos territórios que ocupou. Por outro, se empenhava em ver os judeus se assimilarem, em vez de formar uma comunidade. Esse objetivo obviamente não se consumou e o antissemitismo francês foi assumindo contornos cada vez mais malignos até expor-se ao mundo, sem pudor, em 1894, no processo contra o Capitão Dreyfus, um militar judeu injustamente acusado de traição, primeiro condenado e depois reabilitado.A nova e escancarada onda de antissemitismo na França teve início pouco antes da década de 1930, quando um judeu chamado Sholem Schwarzbard assassinou, à luz do dia, na rua Saint Michel, o militar nacionalista ucraniano, Semyon Petliura, como vingança pelas dezenas de pogroms (massacres) que este havia ordenado na Polônia. O julgamento de Schwartzbard, que foi absolvido, atraiu quase tanta

atenção quanto o de Dreyfus e fez crescer o antissemitismo. 

Nos anos seguintes, esse comportamento atraiu grande número de homens públicos e, inclusive, escritores de renome. Os historiadores concordam que esse antissemitismo não foi importado diretamente daquele disseminado por Hitler na Alemanha nazista. Era um antissemitismo gerado e nutrido na própria França, voltado principalmente contra os estrangeiros, ou seja, os judeus europeus que tinham deixado seus países e buscavam refúgio no território francês, acreditando no postulado da igualdade, fraternidade e liberdade. 

Naqueles dias, alcançou grande repercussão, por exemplo, uma série de artigos escritos no jornal Le Temps, assinados pelo respeitado jornalista Raymond Millet, que incitavam o governo a agir contra o que ele classificava como “desordem”. O famoso dramaturgo Jean Giraudoux escreveu: “Nossa terra tornou-se uma terra invadida. É uma invasão igual àquela que sofreu o império romano, não por exércitos, mas por uma contínua invasão de bárbaros”.Como consequência, foi decretado um Estatuto dos Estrangeiros com proibições aos imigrantes que pretendiam estabelecer negócios na França. Os ânimos anti-judaicos se tornaram ainda mais virulentos quando, no dia 7 de novembro de 1938, o judeu Herschel Grynzpan, de dezessete anos de idade, assassinou na embaixada alemã, em Paris, o diplomata Ernst von Rath, para, segundo suas próprias palavras, chamar a atenção da opinião pública para a perseguição aos judeus na Alemanha. A polícia francesa prendeu Grynszpan, porém seu julgamento foi interrompido por causa da guerra, e o assassinato de Rath deu origem à tristemente célebre Noite dos Cristais. Em 1940, o jovem judeu foi entregue aos ocupantes nazistas.Os antissemitas franceses tornaram-se ainda mais furiosos em 1936 quando a Frente Socialista Popular subiu ao poder, tendo como primeiro-ministro o judeu Léon Blum. Vociferavam que a chamada Terceira República da França estava à beira de uma revolução bolchevique liderada pelos judeus. Em oposição a Blum, um político chamado Louis Darquier de Villepoix, ardente defensor do fascismo e

editor do jornal Action Française, declarou o seguinte em um ato público: “Precisamos, com a máxima urgência, resolver o problema judaico, seja através da expulsão ou de um massacre”. Suas palavras foram endossadas por outro político de destaque chamado Xavier Vallat.Em 1940, acreditando poder conter o avanço militar alemão em uma obsoleta sucessão de trincheiras conhecida como Linha Maginot, o exército francês foi derrotado de forma fulminante pelas tropas nazistas. A Terceira República, comandada pelo Marechal Pétain, respeitado herói da 1a Guerra Mundial, rendeu-se quase sem resistência e as suásticas desfilaram orgulhosamente sob o Arco do Triunfo, em Paris.Coube a Pétain assinar um armistício com Hitler segundo o qual a França seria dividida. Ao nordeste, o território permaneceria sob ocupação alemã; ao sudoeste, com dois quintos do território francês, seria criada uma “zona livre”, tendo Vichy como capital e abrangendo duas grandes cidades, Lyon e Marselha. Coube a Pétain assumir a chefia desse estado artificial. A chefia do governo foi entregue a Pierre Laval, que havia sido chanceler da França de 1931 até o ano seguinte. Quando a invasão alemã foi consumada, Laval apoiou Pétain, tornando-se o homem forte do regime de Vichy e sucessor do marechal, além de pregar uma união entre a França e a Alemanha nazista. Foi ele quem ordenou a perseguição sistemática aos judeus franceses e deu permissão para que a Gestapo agisse dentro das fronteiras do território que tinha Vichy como capital.Um debate que até hoje perdura ocupa-se em averiguar até que ponto Pétain e Laval agiam por conta própria ou obedeciam às ordens dos ocupantes nazistas. Em outubro de 2010, o advogado Serge Klarsfeld, há anos notório em todo o mundo junto com sua mulher, Beate, por suas bem sucedidas caçadas a criminosos de guerra nazistas, trouxe a público um documento oficial intitulado “Lei Referente à Condição dos Judeus”, doado anonimamente ao Memorial do Holocausto, em Paris. Abaixo do carimbo “confidencial”, peritos atestaram que nas entrelinhas do documento datilografado havia anotações, correções e emendas

manuscritas cuja caligrafia não deixava dúvida de que era do próprio punho do marechal.Klarsfeld declarou em uma entrevista: “Ainda há quem diga que Pétain fez o possível para aliviar os sofrimentos dos judeus em Vichy, que ele era apenas um velho decrépito manipulado pelos alemães. Aquele documento mostra claramente que Pétain incrementou as medidas antissemitas, de forma ainda mais contundente do que as impostas pelos alemães no início da ocupação. Pétain foi além dos nazistas em termos de antissemitismo e o documento também prova que as autoridades de Vichy, nomeadas pelo marechal, se esforçavam em provar que se situavam na vanguarda da nova ordem européia conclamada pelo hitlerismo”.Ao ser estabelecida a “zona livre”, cerca de 150 mil judeus se deslocaram para Vichy na esperança de que ali poderiam estar a salvo dos nazistas. Entretanto, encontraram uma realidade idêntica à dos judeus que haviam permanecido na zona ocupada. Dentre as humilhações que sofriam, veio a ordem para que exibissem a estrela amarela em suas roupas. As autoridades de Vichy implantaram um “Estatuto dos Judeus” pelo qual todos foram impedidos de exercer profissões, proibidos de atuar em atividades artísticas, banidos dos serviços públicos e do jornalismo. Em seguida, os comércios pertencentes a judeus foram “arianizados”, eufemismo para um implacável confisco.Ao mesmo tempo, 40 mil refugiados judeus, oriundos da Europa do leste, foram confinados em um campo de concentração no território de Vichy sob horríveis condições. Enquanto isso, no dia 16 de julho de 1942, na zona ocupada, 12.884 judeus, incluindo 4.501 crianças e 5.802 mulheres, foram reunidos à força no estádio de ciclismo de Paris, em uma operação que passou a ser conhecida como La Grande Rafle.Em Vichy, em agosto do mesmo ano, 11 mil judeus foram presos e mandados para Drancy, onde outros 4 mil já se encontravam. Há testemunhos sobre as terríveis condições às quais foram ali submetidos, a começar pela separação das crianças de seus pais. Em Drancy havia pouca água, nenhuma luz elétrica, ninguém tinha

privacidade e as rações de comida eram insuficientes. Os adultos começaram a ser deportados para Auschwitz desde o mês de março. Os menores ficaram em Drancy, sem quaisquer cuidados, e muitos morreram de fome. Em setembro, 6 mil crianças, vindas de todos os cantos da França, foram aglomeradas em trens de carga e tiveram Auschwitz como destino final.A par da ocupação nazista que vitimou mais de 70 mil judeus e se estendeu na França por quatro anos, a sociedade francesa foi sendo corrompida, durante esse tempo, pela prática da delação. Segundo um livro há pouco lançado pelo jornalista e escritor André Halimi, entre 1940 e 1944 circularam de 3 a 4 milhões de documentos de delação, tanto em Vichy como na zona ocupada. Essas delações eram feitas tanto em caráter particular como através da imprensa, onde se destacou o semanário Je suis partout, de responsabilidade do jornalista Robert Brasillach, condenado à morte depois da guerra e executado em fevereiro de 1945.O historiador Henri Amouroux fez um levantamento no qual revela que a SS pagava os delatores conforme uma tabela: mil francos por um judeu, três mil francos por um comunista ou um seguidor de De Gaulle e de cinco a trinta mil francos por uma informação referente a um local que escondesse armas ou munições. O general Otto von Stulpnagel, governador militar de Paris, oferecia dez mil francos (de três a quatro meses de salário de um trabalhador comum) a quem indicasse o paradeiro de qualquer piloto britânico que tivesse sido abatido sobre o território francês.Grande parte das delações tinha violento caráter antissemita, como esta carta enviada ao Ministério da Justiça: “A população de Nice não mais suporta a efervescência judaica. O descontentamento é geral em face da atitude escandalosa de todos os judeus que flanam na Promenade des Anglais (a orla marítima), que ocupam lugares nos cinemas, nas boates noturnas e passam o tempo criticando as obras empreendidas pelo governo”. No dia 5 de janeiro de 1943, a Secretaria de Assuntos Judaicos recebeu uma carta com os seguintes dizeres: “Será que ainda estamos na França? Há razão para dúvida quando andamos pelas ruas da cidade de Pau. Demos um suspiro de alívio

quando soubemos que havia sido criada uma Secretaria de Assuntos Judaicos. Pensamos que, finalmente, iríamos assistir a uma depuração radical em todos os lugares invadidos por aquela gente. Pensávamos que estaríamos livres desse bando de rapinas, era uma esperança que afagava os corações de muitos franceses. Mas, hélas, depois de dois anos constatamos com grande pesar que nada, ou quase nada, mudou. O que foi feito contra esses mercantilistas, esses traficantes do mercado negro? É o que eu lhes pergunto”.Em março de 1942, o jornal L’Appel publicou como manchete na primeira página: “Como os judeus escapam da lei e continuam a controlar de forma fraudulenta as indústrias que lhes são proibidas”. As delações se voltaram inclusive contra cidadãos franceses que, de alguma maneira, pretenderam ajudar os judeus. O jornal La France de Bordeaux publicou o seguinte, em abril de 1942: “O padre de Chateaunef-sur-Loire e seu abade falsificaram papéis, registrando em sua paróquia o batismo de dois judeus. Eis um padre que merece uma punição exemplar”.Uma das figuras mais sinistras do regime de Vichy foi Louis Darquier de Villepoix, político conhecido por sua militância em organizações fascistas e irredutível antissemita. Por conta de suas estreitas ligações com os ocupantes nazistas, Darquier foi nomeado comissário-geral para os Assuntos Judaicos em Vichy, sucedendo a Xavier Vallat, que os nazistas julgavam moderado. Couberam a Darquier as primeiras deportações em massa de judeus de Vichy e ele acabou sendo destituído da função que ocupava em 1944, acusado de corrupção e de pilhagem de bens de judeus. Depois da guerra, Darquier foi condenado à morte pela Alta Corte de Justiça da França, mas fugiu para a Espanha, onde, sob a bênção do general Franco, escapou de todos os processos de extradição contra ele expedidos. (Ver na pág. 28 a entrevista que concedeu ao semanário L’Express).Outro personagem abjeto daquela época foi Maurice Papon, chefe de polícia do regime de Vichy. Ele manteve estreita colaboração com as tropas SS e, sob ordens suas, 1.560 judeus foram mandados de Bordéus para Drancy. Depois do desembarque aliado na Normandia, em 1944, Papon percebeu que os ventos da guerra estavam soprando

a favor dos aliados, razão pela qual conseguiu esconder seu passado e infiltrar-se na Resistência, a ponto de ser condecorado e de receber a Legião de Honra das mãos do general e presidente Charles de Gaulle. Mais tarde, serviu ao governo de Valéry d’Estaing como ministro do orçamento. Entretanto, por volta de 1980, sua cumplicidade com o regime de Vichy começou a aparecer na imprensa francesa. Passaram-se catorze anos de lutas judiciais até que Papon fosse declarado cúmplice de crimes contra a humanidade. Em suas alegações perante o tribunal, Papon não demonstrou remorso, não se referiu aos deportados, rotulando-se como “uma vítima do mais triste capítulo da história legal da França”. Foi-lhe imposta a pena de dez anos de prisão e retiraram-lhe todas as medalhas e condecorações. Papon morreu em 2007, aos 96 anos de idade.Depois da guerra, Pétain e Laval foram levados a julgamento. Acusado de traição, o marechal foi condenado à morte, mas De Gaulle interveio e comutou a pena para prisão perpétua. Pétain foi levado para uma prisão na ilha de Yeu, onde morreu senil, aos 95 anos de idade. Pouco antes do fim do conflito, Pierre Laval fugiu para Barcelona. 

No dia 30 de julho de 1945 foi extraditado para a França. Considerado culpado por colaboração com o inimigo e por violação da segurança do estado, foi condenado à morte e fuzilado na prisão de Frennes, no dia 15 de outubro daquele ano.Por ocasião da ocupação nazista, o político Xavier Vallat foi nomeado pelo governo de Vichy Comissário Geral para os Assuntos Judaicos. Nessa função, ocupou-se da “arianização” da economia, dos serviços educacionais e da obrigatoriedade de todos os judeus se registrarem na polícia. Antissemita por convicção, porém um patriota francês, Vallat começou a se indispor com as autoridades da ocupação, das quais pedia menos rigor com a população. O embaixador da Alemanha nazista na França, Otto Abetz, pediu, ou melhor, ordenou que Pétain demitisse Vallat.Quando os aliados desembarcaram na Normandia, ele se apossou da rádio de Vichy, onde produziu uma série de programas antissemitas, até ser preso. Levado a julgamento, objetou a presença do juiz Maurice

Kriegel-Vairimont, alegando que o mesmo tinha origem judaica. Eximiu-se das deportações e mentiu ao afirmar que todo o antissemitismo de Vichy fora ordenado pelos alemães. Ele foi condenado a dez anos de prisão, tendo sido anistiado em 1954. Imediatamente retomou suas atividades antissemitas expostas no jornal Aspects de la France. Quando Vallat morreu, em 1972, Serge e Beate Klarsfeld compareceram a seu funeral e jogaram sobre o caixão uma coroa de flores todas amarelas. A coroa tinha o formato da Estrela de Davi.Zevi Ghivelder é escritor e jornalistaBibliografia Vichy France and the Jews, Michael R. Marcus e Robert O. Paxton, Stanford University Press, 1995; La Délation Sous L’Occupation, André Halimi, Le Cherche Midi, 2010Os passos da infâmia-  22 de junho de 1940Assinatura do armistício entre a França de Vichy e a Alemanha nazista. O país é dividido entre uma zona ocupada pelo exército alemão e uma zona “livre”, cujo governo se instala em Vichy sob o comando do Marechal Pétain e tendo Laval como primeiro-ministro. Entretanto, a chamada liberdade era apenas aparência.-  27 de agosto de 1940A lei francesa que proibia manifestações de antissemitismo foi revogada.-  3 de outubro de 1940Promulgação do primeiro estatuto dos judeus em Vichy que foram considerados uma raça e não uma eligião. Os judeus vindos do exterior viram-se privados de todos os seus direitos. Os judeus nascidos na França foram excluídos de quaisquer cargos públicos e de diversas profissões.-  7 de outubro de 1940Promulgação de um decreto segundo o qual os judeus da Argélia foram privados da cidadania francesa.

- Qualquer comércio empreendido por um judeu devia afixar um cartaz com um fundo amarelo e letras pretas na vitrine ou no interior da loja explicitando que o negócio pertencia a um judeu, com os seguintes dizeres: Jüdisches Geschäft e Entreprise Juïve.-  18 de outubro de 1940O diário oficial de Vichy publicou um estatuto destinado aos judeus não-franceses, que deveriam ser internados em campos especiais.-  Foi publicado outro estatuto voltado para os judeus em geral com restrições de diferentes naturezas. Foram considerados judeus os descendentes de duas gerações de judeus.-  21 de outubro de 1940Os judeus da zona ocupada pela Alemanha deviam ter carimbada a palavra juif em seus documentos de identidade.-  11 de março de 1941O estatuto concedeu algumas regalias aos judeus que lutaram pela França na 1ª. Guerra Mundial.-  29 de março de 1941Criação do Comissariado Geral para Assuntos Judaicos, dirigido por Xavier Vallat, que instituiu a expressão “antissemitismo de Estado”.-  31 de março de 1941Começou a atuar o Comissariado que teve como missão fixar datas para os confiscos de bens pertencentes a judeus e propor ao Chefe do Estado todas as medidas legislativas destinadas a restringir as atividades profissionais dos judeus.

-  5 de setembro de 1941Aberta no Palais Berlitz, em Paris, a exposição antissemita “Os judeus e a França”.-  9 de outubro de 1941Criação em Vichy de um departamento de polícia destinado exclusivamente à vigilância dos judeus.

-  29 de novembro de 1941Foi instituído um censo dos judeus chamado União Geral dos Israelitas da França que serviu para as futuras deportações.-  6 de maio de 1942Louis Darquier de Villepoix assumiu o cargo de Comissário para os Assuntos Judaicos com o entusiasmado aval dos alemães.-  29 de outubro de 1942Obrigatoriedade do uso da estrela amarela em Vichy para crianças acima de seis anos de idade. Não houve exceções para os adultos. Qualquer relutância deveria ser severamente punida.-  1943 e 1944Deportação dos judeus de Vichy primeiro para Drancy e depois para Auschwitz, somando 31.889 homens, mulheres e crianças. O último trem para o campo de extermínio partiu em agosto de 1944, pouco antes da libertação de Paris pelos aliados. No total, foram deportados 75.721 judeus da França. Menos de 2 mil sobreviveram.Os passos da infâmia-  22 de junho de 1940Assinatura do armistício entre a França de Vichy e a Alemanha nazista. O país é dividido entre uma zona ocupada pelo exército alemão e uma zona “livre”, cujo governo se instala em Vichy sob o comando do Marechal Pétain e tendo Laval como primeiro-ministro. Entretanto, a chamada liberdade era apenas aparência.-  27 de agosto de 1940A lei francesa que proibia manifestações de antissemitismo foi revogada.-  3 de outubro de 1940Promulgação do primeiro estatuto dos judeus em Vichy que foram considerados uma raça e não uma eligião. Os judeus vindos do exterior viram-se privados de todos os seus direitos. Os judeus nascidos na França foram excluídos de quaisquer cargos públicos e de diversas profissões.

-  7 de outubro de 1940Promulgação de um decreto segundo o qual os judeus da Argélia foram privados da cidadania francesa.

-Qualquer comércio empreendido por um judeu devia afixar um cartaz com um fundo amarelo e letras pretas na vitrine ou no interior da loja explicitando que o negócio pertencia a um judeu, com os seguintes dizeres: Jüdisches Geschäft e Entreprise Juïve.- 18 de outubro de 1940O diário oficial de Vichy publicou um estatuto destinado aos judeus não-franceses, que deveriam ser internados em campos especiais.-  Foi publicado outro estatuto voltado para os judeus em geral com restrições de diferentes naturezas. Foram considerados judeus os descendentes de duas gerações de judeus.-  21 de outubro de 1940Os judeus da zona ocupada pela Alemanha deviam ter carimbada a palavra juif em seus documentos de identidade.-  11 de março de 1941O estatuto concedeu algumas regalias aos judeus que lutaram pela França na 1ª. Guerra Mundial.-  29 de março de 1941Criação do Comissariado Geral para Assuntos Judaicos, dirigido por Xavier Vallat, que instituiu a expressão “antissemitismo de Estado”.-  31 de março de 1941Começou a atuar o Comissariado que teve como missão fixar datas para os confiscos de bens pertencentes a judeus e propor ao Chefe do Estado todas as medidas legislativas destinadas a restringir as atividades profissionais dos judeus.

-  5 de setembro de 1941Aberta no Palais Berlitz, em Paris, a exposição antissemita “Os judeus e a França”.

-  9 de outubro de 1941Criação em Vichy de um departamento de polícia destinado exclusivamente à vigilância dos judeus.-  29 de novembro de 1941Foi instituído um censo dos judeus chamado União Geral dos Israelitas da França que serviu para as futuras deportações.-  6 de maio de 1942Louis Darquier de Villepoix assumiu o cargo de Comissário para os Assuntos Judaicos com o entusiasmado aval dos alemães.-  29 de outubro de 1942Obrigatoriedade do uso da estrela amarela em Vichy para crianças acima de seis anos de idade. Não houve exceções para os adultos. Qualquer relutância deveria ser severamente punida.-  1943 e 1944Deportação dos judeus de Vichy primeiro para Drancy e depois para Auschwitz, somando 31.889 homens, mulheres e crianças. O último trem para o campo de extermínio partiu em agosto de 1944, pouco antes da libertação de Paris pelos aliados. No total, foram deportados 75.721 judeus da França. Menos de 2 mil sobreviveram.

Uma fraude centenária: Os Protocolos dos Sábios de SiãoApesar de repetidamente desacreditado e de ter sua falsificação comprovada, o livro Os Protocolos dos Sábios de Sião se tornou o documento anti-semita mais lido, em todos os tempos.Edição 64 - Abril de 2009

A mais notória fraude política dos tempos modernos, "obra prima" da literatura racista, tornou-se eficiente ferramenta para o anti-semitismo moderno, desde sua criação pela polícia secreta do czar da Rússia, há mais de 100 anos. O pequeno, mas diabólico panfleto, contém minutas de um suposto conclave secreto de líderes mundiais judeus. Composto de 24 capítulos ou protocolos, o livro "descreve" os "planos" traçados na dita reunião, que, supostamente acontecia uma vez a cada 100

anos. O objetivo de tais líderes judeus seria arquitetar a manipulação e o controle do mundo que ocorreria no século seguinte. Acreditam seus seguidores que Os Protocolos contêm a "prova cabal" da existência de uma "conspiração judaica mundial" que teria como propósito "dominar o planeta".Sobre o texto, Elie Wiesel, Nobel da Paz, foi enfático ao declarar: "Se há um texto que pode produzir o ódio massificado contra os judeus, é este o texto... todo composto por mentiras e difamações". Ao longo de sua nefasta trajetória, Os Protocolos foram usados para justificar a perseguição de judeus na Rússia czarista e no período comunista e continuam em uso, até hoje, pela extrema direita russa. Nas mãos de Hitler, o texto se tornou verdadeira arma mortífera na guerra que travou contra os judeus, a partir da década de 1920. Os Protocolos também fazem parte do embasamento ideológico da extrema-direita americana e européia, bem como da extrema-esquerda da Europa. E, desde 1921, vêm sendo usados no mundo islâmico, sendo que hoje as cópias desta preciosidade anti-semita são impressas e distribuídas gratuitamente. Adotado por todos os inimigos do Estado de Israel, tornou-se a própria "bíblia" dos anti-sionistas.A pergunta que deixa perplexos estudiosos e leigos é de que maneira um produto da Rússia czarista, oligárquica e cristã, conseguiu perdurar até hoje e foi adotado entusiasticamente por pessoas das mais diferentes ideologias e crenças religiosas? Uma das razões é o fato de, no texto, não haver qualquer definição de tempo ou contexto nacional e ideológico, podendo ser facilmente "adaptado" a qualquer situação.O texto dos Protocolos é sempre o mesmo, mas cada uma das milhares de edições produzidas ao longo dos anos vem acompanhada de um prefácio que "explica" como o "plano judaico" está em funcionamento naquele preciso momento. As "idéias" contidas nos Protocolos constituem uma poderosa arma em países ou grupos sociais onde prevalece uma situação de frustrações ou incertezas. É sempre mais fácil acreditar que as dificuldades são decorrentes de um "agente externo invencível" - uma conspiração judaica mundial ou o imperialismo americano - do que encarar a realidade. Apesar de outras obras anti-semitas poderem vir a ter maior "embasamento intelectual",

foram as imagens conspiratórias dos Protocolos o que conquistou pessoas tão diferentes como o magnata dos automóveis, Henry Ford, membros da Ku-Klux-Klan ou o atual presidente do Irã. O único elo entre os "seguidores" do livro é seu ódio contra os judeus.Quase inacreditável também é o alcance geográfico de Os Protocolos, que pode ser encontrado nos quatro cantos do mundo, até em lugares onde praticamente não há judeus. Após a 2ª. Guerra Mundial, virou best-seller não só em paises islâmicos, mas também no Japão. No Brasil, são inúmeras as publicações. Com o advento da Internet, Os Protocolos passam a ter uma divulgação jamais vista e, desde 1994, circulam livremente na rede mundial versões completas em vários idiomas, sendo indicados como leitura obrigatória em sites de grupos separatistas, nazistas, nacionalistas, do Poder Branco, KKK e até mesmo do MV - Movimento de Valorização da Cultura, do Idioma e das Riquezas do Brasil.Denunciar os Protocolos como uma mentira deslavada não é novidade; isto tem sido feito ao longo de quase um século, por profissionais idôneos e muito respeitados. Por que, então, a necessidade de expor, mais uma vez, essa fraude centenária? Lamentavelmente, com a proliferação do anti-semitismo em diferentes partes do mundo, as "verdades" dos Protocolos servem, uma vez mais, de alimento para fomentar sentimentos anti-judaicos.O primeiro a denunciar o texto, ainda em 1920, logo após sua introdução na Europa Ocidental pela mão de refugiados russos, foi o historiador judeu britânico, Lucien Wolf. No ano seguinte, Philip Grave, jornalista do The Times, denunciou em vários artigos como se forjara aquele embuste. Centenas de outros artigos e livros e atualmente até documentários se seguiram, sempre de respeitados autores, que, no entanto, fracassaram em seu intento de convencer seus seguidores de que o panfleto nada mais era de uma grande fraude.Incontáveis são as vezes em que Os Protocolos foram derrotados nos tribunais de vários países. Em 1933, a comunidade judaica da Austrália e, no ano seguinte, da Suíça, moveram ações vitoriosas, para proibir a distribuição do execrado livro. No ano de 1993, em Moscou, houve um

processo contra o grupo ultra-nacionalista russo, Pamyat, que alegava ser o texto historicamente legítimo. No Brasil, federações judaicas denunciaram o panfleto e houve sentenças favoráveis pronunciadas nos tribunais estaduais de praticamente todas as cidades onde surgiram seus exemplares, sendo confiscados os estoques dos livros.Raízes "ideológicas"As acusações contidas nos Protocolos dos Sábios de Sião não são totalmente novas. Algumas, como o mito de reuniões secretas de rabinos para arquitetar planos para subjugar cristãos, fazem parte da literatura medieval cristã anti-semita. Mas, uma fonte de inspiração mais moderna remonta à época da Revolução Francesa, quando, em 1797, o abade Barruel, defensor do Antigo Regime, publicou um trabalho em que afirmava que os revolucionários franceses faziam parte de uma conspiração secreta maçônica, cujo objetivo era tomar o poder. Alegação totalmente sem sentido, pois era a nobreza francesa quem estava profundamente envolvida com a instituição maçônica. No documento inicial, o abade não faz acusação aos judeus, mas, em 1806, ele "enriquece" sua teoria conspirativa lançando e distribuindo uma carta forjada, na qual os judeus eram acusados de fazer parte da conspiração que o autor, anteriormente, atribuíra aos maçons.No entanto, o antecessor direto dos Protocolos foi uma sátira política, os Diálogos no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu ou A política de Maquiavel no séc. 19, por um contemporâneo (1864), de autoria do advogado parisiense Maurice Joly. A trama do livro é um complô elaborado no Inferno. O alvo, Napoleão III e seu regime despótico. No texto, os judeus sequer são mencionados...A sátira de Joly chega à Alemanha em plena efervescência liberal, auge da proliferação das teorias racistas. O livro cai nas mãos de Herman Goedsche, anti-semita convicto, agente incitador da polícia secreta prussiana, conhecido por forjar cartas usadas para incriminar líderes democráticos. Escrevendo sob o pseudônimo de Sir John Retcliffe, Goedsche "adapta" a sátira política de Joly de modo a criar uma "fantasia" sobre a existência de uma conspiração judaica; e incluiu tal "conto" em seu romance, Biarritz, publicado em 1868. No capítulo

denominado "O Cemitério Judaico em Praga", o autor "narra" um encontro secreto de rabinos, à meia-noite, quando eram avaliadas as ações realizadas nos últimos cem anos, para dominar o mundo, e eram planejadas as do século seguinte.O conto de Goedsche encontrou terreno fértil na Rússia czarista, onde foi traduzido pela primeira vez em 1872, reaparecendo em 1891 sob o título de Discursos do Rabino. O texto foi utilizado pela Okhrana, a polícia secreta do Czar Nicolau II, para dar substância às suas posições anti-semitas.A criação dos ProtocolosApós o Caso Dreyfus, em Paris, por volta de 1895, os agentes da Okhrana viram a possibilidade de "adaptar" o texto de Joly. E assim - sem que se saiba ao certo por quem - "criou-se" um panfleto que recebeu o título de Os Protocolos dos Sábios de Sião. O manuscrito foi levado à Rússia e, em 1903, teve sua publicação iniciada, em capítulos, no jornal russo Znamya (A Bandeira).A versão do texto, que circula até hoje, foi publicada pela primeira vez por Sergei Nilus, em 1905, como adendo de seu livro, The Great within the Small. Naquele mesmo ano, após a Revolução de Outubro, o czar Nicolau II, a contragosto, promulgou a Constituição e criou o Duna, parlamento russo. Ansioso para esvaziar a revolução, o Czar achou por bem culpar nosso povo por todos os males da Rússia. Manda publicar, então, para incitar as massas, panfletos incendiários. Os de distribuição mais ampla foram Os Protocolos, que, segundo a Okhrana, eram a "prova incontestável" das intenções judaicas contra a Rússia.Foi após a Revolução de 1917 que Os Protocolos adquirem vida própria. Quando a elite russa foge para outros países da Europa, leva consigo o panfleto, apresentado como "prova" de que a Revolução Bolchevique era parte de uma conspiração judaica mundial. Rapidamente, o conteúdo dos Protocolos se difundiu por vários países, tornando-se excelente munição para qualquer governo que desejasse perseguir os judeus. No ano de 1920, são lançadas em vários países (Alemanha, Polônia, França, Inglaterra e Estados Unidos) as primeiras edições não escritas no idioma russo.

Provas da falsificaçãoVimos acima que, ao longo dos anos, Os Protocolos foram repetidamente denunciados como fraude. Em agosto de 1921, o jornalista inglês Philip Graves faz uma denúncia pública do embuste, em dois artigos no jornal The Times, de Londres, onde prova que o panfleto difamatório era um plágio da sátira de Joly, Os Diálogos no Inferno. Nos artigos Graves aponta, uma a uma, as "extraordinárias semelhanças" entre os dois textos, publicando, até, uma tabela comparativa dos mesmos, lado a lado; a paráfrase é irrefutável. Até o suposto "plano judaico de dominação mundial" não passa de uma transposição do discurso entre Maquiavel e Napoleão, no original de Joly, e os planos dos dois para os Estados europeus se tornam, nos Protocolos, o "plano judaico para dominar todo o mundo cristão".Graves aponta, também, as inúmeras versões sobre como o texto teria chegado às mãos de Sergei Nilus. Pela edição russa de 1905, as minutas teriam sido obtidas através de uma mulher que as roubara de "um dos mais influentes líderes da franca maçonaria". Outra versão afirma que são a ata de uma reunião secreta de "iniciados", na França. Na versão de 1917, consta que os "Protocolos" eram notas de um plano apresentado por Theodor Herzl, no Primeiro Congresso Sionista, que teria "deixado vazar" a informação. Uma outra, ainda, que o texto fora lido secretamente no Primeiro Congresso Sionista e que tinha sido encontrado por um amigo de Nilus, na "sede francesa da "Sociedade de Sião" - instituição inexistente!Quanto às denúncias dos Protocolos contra os judeus, trata-se de acusações que fazem parte do secular arsenal anti-semita, facilmente refutadas através de referências bíblicas e talmúdicas.Uso por diferentes correntes ideológicasNos Estados Unidos, onde, como vimos, aterrissaram em 1920, Os Protocolos encontraram em Henry Ford III, capitão da indústria automobilística, fervoroso defensor. O empresário os fez publicar, em capítulos, no Dearborn Independent, jornal de sua propriedade, entre maio e setembro daquele ano. A série foi intitulada "The International

Jew: the World's Foremost Problem" (O judeu internacional, principal problema mundial).No ano seguinte, Herman Bernstein, do New York Herald, publica "A História de uma Mentira: Os Protocolos dos Sábios de Sião", levando pela primeira vez ao público norte-americano a verdade sobre a fraudulência dos Protocolos. Mesmo denunciada aos quatro cantos como falsa, a série foi publicada em livro, que acabou sendo traduzido para mais de doze idiomas. Ford continuou a citar o texto para provar uma suposta "ameaça judaica", até 1927, quando escreve um pedido oficial de desculpas aos judeus americanos por ter publicado Os Protocolos, os quais ele admite serem "falsificações grosseiras".Em 1921 é a vez dos árabes, na então Palestina e Síria, de usar Os Protocolos para incitar as massas contra os judeus, sugerindo que a criação de um Estado Judeu, na região, era parte da tal "conspiração judaica internacional".É inegável a influência de Os Protocolos sobre Hitler. O mito da conspiração judaica permeia todo o seu pensamento e pode ser constatado no livro Mein Kampf, em que ele "explica", entre outros, seus planos para livrar o mundo dos judeus e de seus complôs traiçoeiros. Ao assumir o poder, Hitler utilizou inúmeras vezes Os Protocolos para justificar as leis e atos anti-semitas, até mesmo o extermínio em massa, como forma de impedir os judeus de exercerem o "domínio" mundial. Uma guerra de propaganda sem fronteiras foi empreendida pelos nazistas para convencer o mundo dos malefícios do judaísmo e os Protocolos foram instrumento fundamental, sendo distribuídos na maioria dos países ocidentais.No Brasil da Era Vargas, Os Protocolos mereceram atenção especial, ganhando comentários de Gustavo Barroso, ideólogo do integralismo. Foi o aval deste historiador laureado, presidente da Academia Brasileira de Letras, que deu ao famigerado panfleto "o ar de respeitável literatura". Reeditados oficialmente até há pouco tempo, ainda hoje Os Protocolos podem ser encontrados na Internet e em diversas livrarias e feiras de livros.

Nos países islâmicos, como mencionado acima, Os Protocolos também se tornaram, desde 1921, uma ferramenta para disseminação do anti-semitismo. Ainda mais intensamente a partir da 2ª. Guerra Mundial e após a criação do Estado de Israel, quando se tornaram um dos principais instrumentos da metódica campanha de propaganda anti-sionista. Apesar de haver uns poucos intelectuais que, de certa forma, timidamente admitem que Os Protocolos sejam realmente uma impostura, de modo geral o mundo muçulmano acredita nas mentiras contidas no panfleto.Nos últimos anos, o texto dos Protocolos tem sido usado para produzir, em vários países do Oriente Médio, mini-séries de TV. O "plano judaico de dominação mundial", incluindo todo o Oriente Médio, e outras "verdades" contidas no panfleto são o tema central dos enredos. Transmitidas em todo o mundo árabe durante o Ramadã, quando da reunião familiar para a quebra do jejum religioso, essas "verdades" conseguem incendiar os ânimos. Entre essas produções destacamos duas - uma, em 41 capítulos, transmitida pela televisão estatal egípcia, "Cavaleiro sem Cavalo", em 2002; e a outra, uma produção síria em 21 episódios, levada ao ar em 2003 pela rede de televisão a cabo libanesa, Al-Manar.Em 2002, o panfleto foi disseminado ainda mais por todo Oriente Médio, quando jornais controlados pelos governos do Egito, Síria, Jordânia e Arábia Saudita, em uma ação coordenada, passam a imprimir e distribuir gratuitamente cópias dos Protocolos dos Sábios de Sião. No ano seguinte, a UNESCO denunciou publicamente a exibição de livros sagrados de religiões monoteístas na Biblioteca de Alexandria, no Egito, onde, ao lado de uma Torá estava exposto um exemplar dos famigerados Protocolos. E, enquanto o atual Presidente do Irã anunciava publicamente o seu intento contra Israel, ordenava a edição e distribuição do panfleto; além disso, uma versão inglesa do livro foi exposta, para espanto geral, no estande de seu país, na conceituadíssima Feira Internacional do Livro de Frankfurt.Nos anos de 2004 os Protocolos são publicados respectivamente em Okinawa, no Japão; no ano seguinte, uma edição na Cidade do México

sugere que o Holocausto foi organizado pelos Sábios de Sião em troca da criação do Estado de Israel.Já transcorreu mais de um século desde que o mundo foi exposto a tão perigosa mentira, que acusa os judeus por todas as ruínas da humanidade - uma acusação de que a nossa existência enquanto Povo seria uma ameaça à paz mundial. Faz quase 100 anos, portanto, que é nosso dever repudiar esta conspiração, expondo-a e a desmascarando, por todos os meios a nosso alcance.

Levantado o véu da chacina nazista na UcrâniaPercorreram em silêncio um descampado nas redondezas do vilarejo ucraniano de Rava-Ruska, até que Olga Kushta indicou um lugar ao homem de batina que a acompanhava. ‘É aqui que os judeus foram mortos a tiros, eu assisti as matanças’...Edição 60 - Abril de 2008

Na floresta perto desse mesmo vilarejo, há oito anos, o padre francês Patrick Desbois iniciou a busca pelos locais onde, há mais de 60 anos, os nazistas haviam fuzilado e enterrado os judeus. Ao se aproximar do sítio onde 1.500 judeus haviam sido executados, disse para si mesmo: "D'us, se eu encontrar aqui uma cova comum, removerei pedra por pedra desta terra maldita até encontrá-las todas". E assim foi.Padre Desbois, figura central nas relações judaico-católicas, Secretário do Comitê episcopal para as relações com o judaísmo da Conferência dos Bispos da França e Consultor junto ao Vaticano nas Relações com o Judaísmo, pediu e recebeu o aval e as bênçãos do Rabino-chefe de Kiev, Rabi Yaakov Bleich, para a sua investigação. Em 2004, a busca se transformou no "Projeto Ucrânia", a cargo da Yahad-In Unum ('Juntos, em união', tradução livre de hebraico e latim), organização que Desbois ajudou a fundar para estreitar o relacionamento entre cristãos e judeus. A Fundação para a Memória da Shoá forneceu grande parte da verba necessária para a execução do projeto, e até o final de 2007, um terço do território ucraniano fora coberto, 750 locais de chacina

mapeados. Pe. Desbois acredita que ainda haja outras 1.800 valas comuns, de localização desconhecida, espalhadas por toda a Ucrânia.Ao iniciar, por conta própria, aquilo que ele chama de "uma verdadeira investigação policial", o religioso não tinha noção da magnitude e complexidade da tarefa. Os historiadores acreditam que 2,4 milhões de judeus ficaram presos nas áreas da União Soviética conquistadas em 1941 pelo exército alemão. Deste total, 1,5 milhão foram assassinados, a maioria executados pelos Einsatzgruppen, esquadrões da morte nazistas, e enterrados em covas comuns. No entanto, até agora, não havia sido possível confirmar esses números. Não se sabia quantos judeus, de fato, haviam conseguido fugir para o Leste ou tinham sido evacuados pelos soviéticos, nem quantos tinham sido alistados pelo Exército Vermelho.Os dados sobre as execuções em massa se baseavam nos relatos de sobreviventes, nos testemunhos de nazistas sob julgamento e nos arquivos nazistas e soviéticos. Com poucas exceções - entre estas o terrível massacre de quase 34 mil judeus no vale de Babi Yar, Kiev, em 1941 - não havia informações suficientes sobre o que hoje se conhece como a "Shoá dos tiros" ou a "Shoá das balas". Durante décadas, a política soviética ignorou o fato de que a maioria das vítimas dos massacres eram judeus. E isto contribuiu para que o genocídio perpetrado pelos nazistas na região não fosse revelado em sua total brutalidade.Holocausto na UcrâniaA invasão da União Soviética, em junho de 1941, foi um momento decisivo no Holocausto, pois foi em território soviético que o genocídio sistemático de judeus se tornou operacional, antes que, no início de 1942, as câmaras de gás fizessem suas primeiras vítimas.A função dos esquadrões da morte móveis das SS (Einsatzgruppen), que entravam em ação logo após as forças avançadas do exército alemão, era executar todos os judeus e comunistas que encontrassem em seu caminho. Além do apoio dos Batalhões da Polícia e do próprio exército alemão, os nazistas contavam com a ativa colaboração de ucranianos e lituanos. Sem tal participação, teria sido impossível as

matanças atingirem tão grande escala. Na Ucrânia, a primeira das repúblicas soviéticas a ser ocupada, um anti-semitismo endêmico permeava todos os setores da sociedade. Milhares de judeus foram mortos em pogroms executados pela população local, e muitos foram os ucranianos que se voluntariaram para ajudar os nazistas na chacina ou para trabalhar como guardas em campos de extermínio.Assim que o exército alemão conquistava uma região, a ação dos Einsatzgruppen era rápida e sistemática. Como a maioria dos judeus vivia nas cidades, com a ajuda da policia ucraniana era fácil identificá-los e reuni-los em grandes grupos que, a seguir, eram conduzidos para locais ermos, fora dos centros. Obrigados a se despir, eram então levados até a beira de barrancos ou fossos recém-escavados, onde, um a um, família após família - homens e mulheres, velhos e crianças - eram mortos a tiros. Em certos casos, os judeus eram obrigados a se deitar de bruços sobre os corpos inanimados de outros, para serem fuzilados. Numa das mais atrozes execuções do gênero, 12 nazistas mataram 13 mil judeus. Uma das covas comuns localizada por Padre Desbois continha 97 mil corpos.Os moradores das aldeias e vilarejos próximos viam as levas de judeus sendo arrastados até as valas e ouviam, por intermináveis horas a fio, os gritos das vítimas, que se sobrepunham ao tiroteio. Em muitos casos, esses aldeões eram usados pelos nazistas para cavar e fechar as valas comuns, ou para distribuir e receber parte dos pertences das vítimas. O fato de ajudarem, de certa maneira, nas execuções - voluntariamente ou não - e de receberem os pertences dos mortos, talvez explique o muro de silêncio que se ergueu por mais de seis décadas.Uma jornada em busca da verdadePatrick Desbois nasceu em 1955, em Chalon-sur-Saen, na França, em uma família marcada pela ocupação alemã. A jornada que o levaria até os bosques da Ucrânia iniciou-se quando, ainda criança, ouvia de seu avô relatos dos anos em que ficara preso no campo de concentração alemão, no vilarejo de Rava-Ruska, na Ucrânia. Seu sofrimento nada representava, dizia-lhe o avô, se comparado ao "tratamento especial"

reservado aos "outros" - os judeus. Com pouco mais de 20 anos, Patrick decidiu ser padre. Algum tempo após sua ordenação, foi escolhido pelo Cardeal de Lyon como elemento de ligação entre a Igreja e a comunidade judaica. Desbois, que visitara Israel várias vezes, estudava o judaísmo e a língua hebraica.Entre suas múltiplas atividades, ele organizava conferências e viagens para estudo do Holocausto. Numa destas, em 1997, foi até Rava-Ruska, ao campo onde seu avô ficara preso, para assistir a um serviço in memoriam. Ao término da cerimônia, perguntou ao prefeito do vilarejo onde haviam sido enterrados os judeus. Ele respondeu que não sabia. Pe. Desbois não se conformou com a resposta, pois sabia que mais de 10 mil judeus haviam sido assassinados na região, e nos anos seguintes em que passou a ir a Rava-Ruska, pressionava o prefeito por uma resposta. Esta só viria após a mudança na direção da prefeitura local.Em uma de suas visitas anuais à cidade, o padre foi procurado pelo novo prefeito, Yaroslav Nadyk. "Venha, quero lhe mostrar algo", disse. Levou-o à floresta de Borowe, onde 110 moradores da aldeia desmatavam um pequeno bosque, arrancando as árvores pela raiz. Nadyk queria mostrar ao padre a vala comum onde, em novembro de 1943, 1.500 judeus fuzilados por uma unidade dos Einsatzgruppen haviam sido enterrados. Naquele momento, Desbois tomou a decisão que nortearia sua vida dali em diante. Vasculharia toda a Ucrânia à procura dos sítios onde nazistas haviam enterrado os judeus. O prefeito Nadyk se dispôs a levá-lo a centenas de vilarejos como aquele, e, com efeito, durante mais de um ano o acompanhou nas buscas.Procurando por valas comunsNão é simples a tarefa de Pe. Desbois e sua equipe. O primeiro passo é decidir onde procurar. Estudantes judeus, alemães e ucranianos pesquisam relatórios enviados pelas Einsatzgruppen a Berlim, atrás de informações sobre os locais de execução e o número de mortos. As informações são em seguida cruzadas com dados recolhidos em 1944-45 pelos soviéticos.

A cada dois meses, Desbois vai à Ucrânia acompanhado por uma equipe de campo que inclui intérpretes, um fotógrafo, um cinegrafista, um historiador, um arqueólogo e um técnico em mapeamento. Sempre presente está um perito em balística encarregado de recolher, datar e analisar a origem dos cartuchos encontrados nas sepulturas. Os cartuchos recolhidos são a prova física de que o massacre foi perpetrado nos anos de 1941-43 pelos Einsatzgruppen e não pelos soviéticos - como os revisionistas do Holocausto e os ucranianos ultranacionalistas querem fazer-nos acreditar. Desbois frisa que não se encontrou, até hoje, um único cartucho sequer de proveniência soviética nos locais de execução.Ao chegar a um local onde os documentos indicam ter havido uma execução, a equipe procura um mínimo de três testemunhas oculares, não relacionadas entre si, para confirmar os acontecimentos. Desbois confessa que o fato de ser padre ajuda muito: "Às vezes, quando alguém hesita, outros o encorajam, dizendo, 'Ele é padre, você pode lhe falar sem medo'. Eu procuro usar palavras simples e ouvir as histórias das atrocidades - sem fazer qualquer julgamento, sem reagir aos horrores que brotam. Se eu mostro alguma reação, as histórias são interrompidas". Cada testemunha é entrevistada, fotografada e filmada e, através de seus relatos, os massacres são reconstruídos.Detectores de metais são utilizados para descobrir o local exato da sepultura e quando os primeiros restos mortais são encontrados, o local é demarcado. A equipe procura balas ou outra evidência física, enquanto se estima o número de mortos. Em muitos casos, debaixo da superfície só restam pó e cinzas. Isto porque antes de se retirar os alemães procuraram destruir as provas dos massacres. Em tais casos, o número de vítimas é calculado com base na documentação nazista.Os despojos das vítimas não são tocados. Desde o início de sua busca, Pe. Desbois exigiu que tudo fosse feito conforme a Halachá, a Lei judaica. Quem o orientou nas diretrizes para esta parte do trabalho foi o Rabi Bleich e rabinos Lubavitcher da Ucrânia. A partir de 2006, Rabi Elyokim Schlesinger, do Conselho Rabínico do Comitê para a Preservação de Cemitérios Judaicos na Europa, passou a acompanhar os trabalhos.

Ao se deparar com uma destas covas, não há quem não se abale, emocionalmente, e, por isso, Desbois diz que ele é o único de sua equipe que participou de todas as viagens. Para se ter uma idéia, em 2006 uma cova comum contendo 1.800 corpos foi encontrada na floresta perto de Lvov. Haviam-se juntado à equipe de Desbois oito membros da Zaka - a organização israelense que realiza a busca e identificação de vítimas em atentados e grandes acidentes. Entre eles, estava Yehuda Meshi-Zahav, fundador da organização, que disse: "Devíamos estar preparados, mas ao bater com as pás naquelas pilhas de ossos, não houve quem resistisse ao choque". Quando a equipe dá por concluída a investigação em determinado sítio, colocam, dentro da cova, um sistema GPS de localização por satélite, para marcar o local. Só então a sepultura é novamente fechada e camuflada para impedir profanações. Entrevistas, documentos, fotografias tiradas no local e todas as provas físicas obtidas são processadas para posterior disponibilização em pesquisas e exibições.DepoimentosTodos os depoimentos obtidos por Desbois foram registrados em vídeo. Em sua maioria, os depoentes eram crianças ou adolescentes quando dos massacres. Olga Kushta - uma das primeiras a contar sua história - lembra que ficava parada, com as amigas, à beira da estrada, dia após dia, vendo os nazistas conduzirem milhares de judeus ao vale, onde os assassinavam. Um dia, em dezembro, viu passar uma amiga de sua mãe, que lhe pediu ajuda. "Fiquei apenas olhando; eu era pouco mais do que uma criança, o que podia ter feito para salvá-lá?"Na cidade de Lvov, Adolf Wislowski, levou Desbois à floresta Lisinichi, fora do perímetro urbano. Contou-lhe como, subindo em uma árvore viu, pela primeira vez, os nazistas matarem os judeus. Diariamente, durante seis meses, Wislowski e seus colegas de classe subiam nas árvores para observar a chacina judaica. Em 1944, com os exércitos soviéticos se aproximando, os nazistas fizeram prisioneiros judeus abrirem as valas e queimar os corpos, para apagar evidências dos massacres. "Colunas de fumaça subiam da floresta em direção ao céu, dificultando a respiração dos moradores das redondezas", conta Wislowski. Seu depoimento confirma a estimativa de que, na floresta

Lisinichi, estão enterrados cerca de 90 mil judeus, em mais de 40 covas coletivas. Acredita-se que haja, também, centenas de soldados italianos mortos pelos nazistas depois que a Itália se rendeu aos Aliados, em 1943.Em Vysotsk, um vilarejo no norte da Ucrânia, está uma das provas da política soviética de pretender ignorar que durante a ocupação alemã as vítimas de massacres eram, na maioria, judeus. Em 1942, os nazistas levaram milhares destes para um vale, onde os assassinaram. Em um único dia, 1.864 foram fuzilados. Os soviéticos ergueram um memorial no local, cuja placa, em russo, informa o ocorrido. No entanto, fala de 1.864 "soviéticos" assassinados, sem qualquer menção a serem judeus...Quando chegou em Vysotsk, Desbois foi, de porta em porta, perguntando se alguém vira o ocorrido, no local, em 1942. Hanna Dvurinska lhe contou o que via da janela de sua casa. "Eram grupos de judeus, arrastados pelas estradas até as covas recém-abertas. Via-se, em seu semblante, que sabiam o que os esperava. Os tiros duravam horas", lembra Hanna. Poucas casas adiante, Iarino Hanitko disse lembrar-se claramente daquele dia de 1942, pois seus pais esconderam um menino judeu que conseguiu fugir e sobreviver à guerra. Padre Desbois confessa que muitas vezes pede que o entrevistado volte no dia seguinte. Apesar da violência e o sadismo perpetrado já serem conhecidos e os macabros detalhes terem sido revelados no final da 2a Guerra Mundial, as revelações são por demais terríveis. Ele revela que um fato, em especial, o marcou profundamente. Todas as testemunhas descrevem as sepulturas coletivas como algo vivo. "Demorou algum tempo", afirma, "até compreender o que queriam dizer. Aparentemente, eram necessários três dias para um túmulo coletivo "morrer". Durante esse tempo, os movimentos das vítimas faziam o chão se mover, porque, para economizar munição, os nazistas enterravam os judeus ainda vivos. Principalmente crianças eram jogadas vivas dentro das covas...".Resultados do Projeto Ucrânia

O Projeto Ucrânia despertou grande interesse do público e da mídia internacional sobre o Holocausto dos Tiros - que aconteceu com os judeus nas áreas da União Soviética em poder dos nazistas, de 1941 a 1944.Para os historiadores, as covas comuns descobertas e os depoimentos colhidos por Pe. Desbois revelam a ocorrência de um genocídio sistemático, nos povoados ucranianos, sem que ninguém quisesse ou pudesse fazer algo em favor das vítimas. Além do mais o fato de terem sido localizadas, fossas comuns cuja existência era totalmente ignorada, pode levar a uma revisão do total de judeus mortos no Holocausto.As descobertas de Desbois são importantes, também, para as novas gerações de ucranianos. Embora o estudo do Holocausto faça parte do currículo escolar, a maioria dos jovens continua desinformada sobre os eventos trágicos que ocorreram em seu país e da participação e responsabilidade ucraniana nos massacres.Parte do material coletado pelo Projeto Ucrânia - entrevistas em vídeo, fotografias, balas e cartuchos de munições oxidados e objetos pessoais das vítimas - foram exibidos, pela primeira vez, em uma exposição realizada de junho de 2007 até janeiro deste ano, no Memorial do Holocausto, no Marais, em Paris. Numa das salas, via-se, por exemplo, os oito estágios do processo de exterminação, segundo reconstrução da equipe da Yahad-in Unum. Podia-se, também, consultar inúmeros documentos alemães e soviéticos e fotografias dos arquivos, inclusive uma série de imagens de judeus sendo removidos de Lubny, rumo aos sítios de execução, nos arredores da cidade, e um policial alemão atirando em mulheres judias despidas, em uma ravina na região de Rivne.Padre Desbois lançou um livro sobre sua busca: "Porteur de mémoires: Sur les traces de la Shoah par balles" (Portador de lembranças: Nos rastros da Shoá dos tiros). Nele, o autor conta como recolheu provas e reconstituiu as condições daqueles milhares de assassinatos de rara selvageria. A importância do trabalho e das descobertas de Padre Desbois na Ucrânia tem sido reconhecida por todos os centros de

estudos e pesquisa sobre o Holocausto. Em 2006, recebeu o Prêmio B'nai B'rith de Direitos Humanos, da França. Em maio de 2007, em sua reunião anual, o American Jewish Committee lhe concedeu o "Prêmio Jan Karski". Em abril deste ano de 2008, o Museu do Holocausto, em Washington, vai homenageá-lo com um jantar e, em maio, o Centro Simon Wiesenthal lhe outorgará a sua Medalha de Valor.Em dezembro de 2007, Yaroslav Nadyk inaugurou, na floresta de Borowe, no primeiro lugar que indicara a Desbois, um memorial com a Estrela de David. Neste mesmo local, na semana seguinte, um grupo de judeus de Lvov recitou o Kadish para reverenciar os 1.500 judeus lá assassinados. Para Desbois, este momento foi o ponto mais significativo de sua jornada. "É importante que todas as vítimas tenham uma sepultura digna e, de alguma forma, sintam que a verdade sobre sua morte não foi enterrada com eles".

A missão de um judeu em Nurembergpor Zevi GhivelderEm junho de 1945, um mês depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o soldado raso americano Richard Sonnenfeldt, de 22 anos, prestava serviço na Áustria, engajado no Sétimo Batalhão do Exército Aliado. Certa manhã foi convocado por um tenente que lhe disse: "Apronte-se, praça, o general quer Falar consigo". A partir daquele momento, o jovem combatente judeu, nascido na Alemanha, saiu do anonimato para ter seu nome inscrito na história como o principal intérprete do tribunal de Nuremberg.Edição 91 - Abril de 2016

O rapaz foi ao encontro do famoso general William “Bill” Donovan, que, depois de sucessivos êxitos nos campos de batalha, era o diretor da OSS (Sigla correspondente ao Departamento de Serviços Estratégicos, antecessor da CIA). Sonnenfeldt escreveu em suas memórias: “Eu imaginava o mítico Bill assim como uma espécie de John Wayne, com medalhas no peito e revólver na cintura. No entanto, deparei-me com

uma pessoa de cabelos grisalhos, afável, simples, que me perguntou se eu falava alemão e se eu seria capaz de me desincumbir como intérprete. Respondi que o alemão era meu idioma nativo. Deu-me, então, um documento em alemão e me mandou traduzir. Quando terminei, disse que eu era o melhor de todos que até então tinha entrevistado”. Em seguida, Sonnenfeldt foi encaminhado a um coronel chamado Hinkel, que foi direto ao ponto: “Você gostaria de trabalhar para a OSS?” Poucos dias depois, acompanhado pelo dito coronel, estava a bordo de um avião rumo a Paris. Durante a viagem, ficou surpreso com as próprias contas que fez: eram decorridos apenas sete anos desde que deixara a Alemanha para escapar do nazismo. 

Heinz Wolfgang Richard Sonnenfeldt nasceu em 1923 na pequena localidade alemã de Gardelgen, Saxônia, cidade que pouco antes do fim do conflito foi palco de um massacre perpetrado pelas tropas SS contra mais de mil estrangeiros submetidos a trabalhos escravos. Quando o pequeno Richard completou quinze anos de idade, embora as leis antissemitas do Reich se avolumassem, a mãe decidiu mandá-lo, junto com o irmão menor, Helmut, para Berlim, para que, como disse, “pudessem viver o clima de uma cidade grande”. Mas, a capital alemã seria apenas um pouso, porque quando a guerra começou, a mãe contatou um parente na Inglaterra e pediu-lhe que acolhesse os dois filhos. Em Londres, ambos foram matriculados num internato, onde Richard se tornou fluente no idioma inglês. Entretanto, sua vida pacata sofreu um revés. Em 1940, quando a Inglaterra rompeu relações e entrou na guerra contra a Alemanha, ele acabara de completar dezesseis anos. Por isso, de acordo com as leis britânicas, passou a ser considerado um “inimigo estrangeiro”. Portanto, devia ser expulso do país. Revoltado e destacando sua condição de judeu, escreveu cartas para o primeiro-ministro Churchill e para o Rei George VI pedindo que fosse reconsiderado seu mandado de expulsão. Inclusive acrescentou que, assim como os ingleses, seu desejo era lutar contra o nazismo. Não adiantou e o rapaz foi deportado para a Austrália. Enquanto isso, o casal Sonnenfeldt conseguiu custosos vistos para sair da Alemanha, via Suécia, junto com o filho Helmut. Rumaram para Baltimore, nos Estados Unidos, após obterem a

indispensável carta de chamada emitida por uma família americana que vagamente conheciam.

Richard Sonnenfeldt ficou pouco tempo na Austrália. Decidiu viajar para a Índia e se fixou na cidade de Bombaim (atual Mumbai). Ali, conforme escreve em suas memórias, viveu um tempo feliz, sobretudo por ter feito amizade com uma família Parsi, oriunda da Pérsia, seguidora da doutrina de Zoroastro, e com um grupo de jovens judeus alemães que também tinham emigrado para aquelas paragens. Certo dia, como nada tinha a perder, dirigiu-se ao Consulado americano. Ele conta que quando entrou naquele prédio, viu uma pequena placa onde se lia: Air Conditioned by Carrier. Ficou maravilhado. Nunca tinha visto na vida um aparelho de ar condicionado. Foi recebido pelo simpático vice-cônsul Wallace La Rue que lhe informou que, naquele então, ainda havia cotas disponíveis para imigrantes alemães e pediu-lhe uma certidão de nascimento. Richard não tinha, mas enfatizou que seus pais já estavam em Baltimore a chamado de uma família de nome Lansbury. Por incrível coincidência, o diplomata, que era de Baltimore, conhecia os Lansbury e, após algumas formalidades burocráticas, concedeu-lhe o visto. Richard pensou em embarcar num navio que faria escala em Yokohama, no Japão, e dali navegaria para a costa oeste dos Estados Unidos. Porém, a perspectiva de parar no Japão não o entusiasmou. Já pairava a perspectiva de os japoneses entrarem em guerra contra os americanos. Embarcou em outro navio que fez escala na África do Sul, tendo como roteiro a Jamaica, Trinidad-Tobago e, por fim, Nova York.

Nos Estados Unidos, em 1942, Sonnenfeldt pretendeu alistar-se no exército, mas foi recusado por não ser cidadão americano. Entretanto, foi convocado em novembro do ano seguinte e mandado para um centro de treinamento em Fort Meade. Dali seguiu para outro centro de treinamento na Flórida. Para encurtar a história, Richard estava engajado em definitivo como soldado raso no exército americano em ação na Europa. Participou da feroz Batalha das Ardenas e, mais tarde, foi um dos primeiros militares que libertaram o campo de concentração de Dachau. A imagem de cadáveres empilhados e de pessoas

esqueléticas e famintas nunca mais lhe saiu da memória.

Voltemos a seu voo para Paris. Depois de descer no aeroporto de Le Bourget, foi conduzido para uma mansão no número 7 da rua Pressbourg, perto do Arco do Triunfo, que seria seu local de serviço durante os meses seguintes. Sua tarefa consistia em analisar pilhas e mais pilhas de documentos escritos em alemão e assinalar as passagens que julgasse importantes para serem usadas no futuro tribunal de crimes de guerra. Além disso, em face dos documentos apreendidos, ele deveria apontar quais os nazistas passíveis de serem levados a julgamento, tendo encontrado mais de 800 nomes. Os soviéticos davam preferência a Berlim para a sede do tribunal que seria instalado. Isto provocou discussões acaloradas com os russos. Um dia, já impaciente, Robert Jackson, promotor-chefe dos Estados Unidos, explodiu: “Então vocês julgam os seus criminosos em Berlim e nós julgaremos os nossos aonde decidirmos!” A escolha acabou sendo a cidade de Nuremberg porque ali se encontrava quase intacto o Palácio da Justiça, capaz de ser reformado a tempo do início dos julgamentos e também porque a cidade havia sido o local de sucessivas demonstrações do partido nazista. No final de julho de 1945, a equipe de promotores americanos, incluindo Sonnenfeldt, embarcou num voo de Paris para Nuremberg.Richard jamais se esqueceu de ter avistado do alto o estádio da cidade, cenário das monumentais manifestações empreendidas por Hitler e seus comparsas. Também do alto ele pôde observar que a cidade estava quase toda destruída. Em solo, viu centenas de alemães que vagavam pelo pouco que restava das ruas, em andrajos, e sem quaisquer expressões em suas fisionomias. Do jipe aberto, jogou fora o cigarro que acabara de fumar e logo viu um bando de mulheres correndo para disputar o resto do cigarro, para elas uma preciosidade.Sonnenfeldt foi acomodado numa instalação provisória onde se encontravam as celas destinadas aos futuros interrogatórios e foi encaminhado para um escritório exclusivo. Escreveu: “Incrível! Eu tinha apenas 23 anos de idade e era mais jovem do que a maioria das secretárias ali em serviço”. Ele soube que seu primeiro trabalho como

intérprete seria no interrogatório do marechal Goering, braço direito de Hitler quase até o fim do conflito. Ficou impressionado quando este ficou à sua frente. Vestia um uniforme de cor cinza do qual haviam sido retiradas as insígnias militares. Exibia uma face amassada e enrugada e um olhar esgazeado, consequência dos quarentas comprimidos que ingeria por dia, destinados a substituir seu vício pela morfina. Vestia botas fornecidas pelo exército americano. O inquisidor era um coronel chamado Amen, que, conforme o protocolo, ordenou que Richard fizesse um juramento segundo o qual traduziria fielmente as perguntas e respostas a serem feitas do inglês para o alemão e do alemão para o inglês.  Sua primeira intervenção: “Por favor, identifique-se”. Resposta: “Meu nome é Herman Goering, marechal do Terceiro Reich”. Em seguida, o intérprete dirigiu-se ao prisioneiro: “Herr Gering!...” O marechal objetou: “Meu nome é Goering e não Gering”. Sonnenfeldt havia distorcido o sobrenome de propósito porque o vocábulo alemão gering tem a tradução aproximada de “coisinha”. Num interrogatório subsequente, Goering fez de tudo para eximir-se de culpa, declarando: “Muitas coisas foram feitas usando meu nome e sobre as quais eu não tenho a menor ideia. Hitler não sabia sobre os campos de concentração e nem sobre os extermínios. Quanto a mim, embora algo chegasse aos meus ouvidos, passei toda a guerra como principal assessor de Hitler. Era um militar muito ocupado e muito importante. Duas pessoas sabiam de tudo: Himmler e Bormann. Um morreu e outro desapareceu”. O coronel Amen fez uma pergunta que o deixou sem resposta: “Se você era tão próximo de Hitler como sabia de algo e esse algo nunca chegou ao conhecimento do Fuhrer?”

O general Bill Donovan fazia questão de que Goering confessasse os crimes de guerra do nazismo, mas o acusado permanecia inamovível nesse sentido. O general pediu-me que lhe perguntasse se era verdade que ele tinha mandado matar os aviadores americanos e ingleses que tivessem sido obrigados a saltar sobre o território alemão. Goering respondeu: “Eu não admito isso”. Richard traduziu: “Eu não concordo com isso”. Donovan, que tinha algum conhecimento do idioma alemão, chamou a atenção do intérprete: “Você traduziu errado. Ele disse que não admite isso”. Temeroso, por ser apenas um soldado raso, Richard

argumentou que no sentido da frase, o verbo concordar era mais preciso do que o verbo admitir. Com um sorriso irônico, e para fustigar o intérprete, Goering falou em inglês; “O que eu disse, foi: eu não admito isso”. A propósito desse tipo de controvérsia, Sonnenfeldt escreveu em suas memórias: “Um trabalho de intérprete de alta qualidade não era uma coisa automática. Na verdade, a ida e volta das perguntas e respostas beneficiavam os acusados porque enquanto se processavam as traduções, eles tinham tempo para pensar nas respostas”. Em outra ocasião, o próprio Jackson interrogou Joachim von Ribbentrop, que servira como ministro das relações exteriores do Terceiro Reich. O promotor-chefe perguntou-lhe se era verdade que ele havia proibido a concessão de passaportes e de vistos de saída para judeus da Alemanha. Antes que Ribbentrop pudesse ouvir a tradução, Richard passou uma nota por escrito para Jackson: “O responsável por isso era Himmler e não ele”. Assim evitou que Jackson deixasse registrada uma pergunta impertinente.

No curso dos interrogatórios preliminares, antes do início dos julgamentos, Richard Sonnenfeldt foi incumbido de chefiar todos os demais intérpretes lotados em Nuremberg. Mas, como seu status militar era nada expressivo, foi exonerado do exército e, no mesmo ato, contratado como civil a serviço das forças armadas dos Estados Unidos com salário equivalente ao de um coronel. Dessa maneira, poderia se relacionar com mais desenvoltura com os oficiais superiores.

No dia 19 de outubro de 1945, Sonnenfeldt foi convocado para apresentar-se no escritório de um dos principais promotores americanos, o coronel Williams. Para sua surpresa, deu de cara com mais de uma dezena de oficiais de alta patente num ambiente solene.O coronel ordenou que fizesse um novo juramento de lealdade. A partir daquele momento, o civil Richard Sonnenfeldt estava enquadrado na equipe da promotoria americana que atuaria no Tribunal de Nuremberg. Nessa função, competiu-lhe percorrer as celas dos prisioneiros, chamá-los um por um e ler para todos as acusações que

lhes competiam. O texto comum era o seguinte: “Pesa-lhe a acusação de ter cometido crimes contra a paz, crimes de guerra, conspiração para violências, crimes contra a humanidade e genocídio”. Goering foi o primeiro. Antes que Sonnenfeldt lesse a acusação, Goering atalhou: “Acho que vou precisar mais de um bom intérprete do que de um bom advogado”. Assim queria dizer que faria sua própria defesa. Hjalmar Shacht, ministro da economia do Reich, ouviu a acusação com indiferença e murmurou: “Não sou culpado de nada”. (Mais tarde foi absolvido pelo Tribunal). O marechal Keitel, chefe do estado-maior alemão, ouviu a acusação em posição ereta sem esboçar nenhuma reação. Mas Sonnenfeldt percebeu que a artéria de sua carótida latejava. Na equipe da promotoria, Richard manteve contato com três grandes advogados, todos judeus e que falavam em ídiche entre si: os americanos Jacob Robinson e Raphael Lemkin e o inglês Sir Richard Lauterpacht, professor da Universidade de Cambridge.

Sir Lauterpacht, até hoje considerado uma das maiores autoridades do mundo em matéria de Direito Internacional, nasceu no seio de uma família ortodoxa na cidade de Zolkiev, perto de Lvov, Polônia. Obteve o doutorado em Direito Internacional na Universidade de Viena e completou um segundo doutorado na Escola de Economia de Londres. Em 1944 foi convidado para integrar o Departamento Britânico de Crimes de Guerra. Nesta organização, insistiu para que uma seção fosse dedicada com exclusividade aos crimes cometidos contra os judeus durante o conflito. Além disso, foi o formulador da Lei Universal dos Direitos Humanos, tal como aprovada anos mais tarde pelas Nações Unidas.

Jacob Robinson, o mais velho dos três, nasceu na Lituânia. Graduou-se em direito na Universidade de Varsóvia e foi feito prisioneiro pelos alemães durante a 1ª Guerra. Voltou para a Lituânia, onde atuou como advogado em favor de minorias, como hebraísta e conselheiro do Ministério das Relações Exteriores nos anos 30. Escapou do nazismo e aportou com a família em Nova York, em 1941, via Portugal. Nos Estados Unidos, fundou o Instituto de Assuntos Judaicos, vinculado ao Congresso Judaico Mundial.

Raphael Lamkin, o mais jovem do trio, foi quem cunhou para a posteridade a palavra genocídio. Este termo aparece pela primeira vez num livro que escreveu, intitulado O Regime do Eixo na Europa Ocupada. Lamkin nasceu na pequena cidade de Nesvodene, a 250 quilômetros de Varsóvia que, depois de sucessivas soberanias, hoje está situada na Bielorrússia. Graduou-se em direito na Universidade de Lvov e foi ferido quando a Alemanha invadiu a Polônia. Fugiu para a Lituânia, de lá para a Rússia e chegou aos Estados Unidos via Japão. Foi convidado por Jackson para integrar a equipe de promotores em Nuremberg.

Entre a leitura das acusações e o início dos trabalhos no Tribunal, houve um período de folga que Sonnenfeldt aproveitou, por curiosidade própria, para visitar a viúva de Himmler. Esta lhe repetiu sem cessar que as atividades do marido eram tão intensas que ele não tinha tempo para falar a respeito de tais assuntos no convívio da família. A filha adolescente de Himmler revelou que só tinha tomado conhecimento da trajetória do pai através de artigos publicados em jornais alemães. Quando Richard pretendeu aprofundar a conversa, a moça saiu da sala chorando. A viúva deu-lhe de presente as insígnias do uniforme de Himmler e duas páginas de seu diário que Sonnenfeldt guardou para sempre. Anos mais tarde, escreveu em suas memórias: “Cheguei à conclusão de que para as conquistas de Hitler não era necessário o extermínio dos judeus. Ditadores precisam de inimigos para que sejam venerados como salvadores da pátria. No contexto da Alemanha, somente os judeus poderiam desempenhar os papéis de inimigos e de bodes expiatórios. Hitler precisava mais de inimigos do que de apoios para arrastar os alemães em sua esteira”. E mais adiante: “As lições da história acabam sendo esquecidas se não forem criadas instituições que evitem suas repetições. Todos aqueles que acreditam que basta a simples lembrança dos horrores de Hitler e lamentam os trágicos desenlaces de suas vítimas, devem manter a consciência de que quando tiranos assumem o poder são capazes de se comportar tal como Hitler”.

O Tribunal de Nuremberg começou os trabalhos no dia 20 de

novembro de 1945, com traduções simultâneas em inglês, francês, alemão e russo. Os quatro juízes e eventuais substitutos se encontravam à esquerda de Richard e os acusados e respectivos advogados bem à sua frente. Atrás, havia um reservado para a imprensa; pouco mais afastado, uma galeria para pessoas que tinham recebido convites especiais. Militares com capacetes brancos estavam postados atrás dos réus. A Sonnenfeldt ocorreu o seguinte pensamento, conforme escreveu: “Naquele momento o Tribunal era o centro do mundo e eu estava na linha de frente!”O diretor dos intérpretes era um coronel francês internacionalmente famoso como linguista e que pediu que Sonnenfeldt integrasse sua equipe. Ele pôde então perceber que o trabalho no Tribunal era bem diferente daquele que havia exercido nas dependências dos interrogatórios iniciais. Primeiro, porque era complicado traduzir os termos estritamente jurídicos. Segundo, porque nas celas ocorriam intervalos entre as sessões. Ademais, se um intérprete não entendesse bem o que um acusado dizia, pedia que este repetisse a resposta. No tribunal o ritmo era completamente diferente. Ciente de que talvez não pudesse se desincumbir a contento da tarefa porque a linguagem jurídica estava acima de seu conhecimento, pediu ao coronel francês que o dispensasse. A acusação inicial do promotor-chefe Jackson foi objetiva e contundente: “O privilégio de abrir o primeiro julgamento da história por crimes contra a paz no mundo impõe-me uma grande responsabilidade. Os crimes que vamos condenar e punir foram tão calculados, tão malignos e tão devastadores que a civilização não há de suportar se eles vierem a ser repetidos”. Anos mais tarde, Sonnenfeldt assinalou: “Achei digno de nota que Jackson tivesse começado por se referir à importância histórica do julgamento antes de abordar seu significado legal”.

Durante as sessões do Tribunal, Richard ficou acomodado na bancada dos promotores com a missão de verificar se os depoimentos dos acusados e das testemunhas coincidiam com os relatos que havia colhido anteriormente. Ficou particularmente impressionado com a forma pela qual o presidente da corte, Sir Geoffrey Lawrence, se

mantinha imperturbável, mesmo vendo desfilar na sua presença as mentiras mais perversas, as manobras diversionistas dos advogados e as distorções dos fatos. Também se ocupou em observar as reações dos réus enquanto os trabalhos prosseguiam. Um parecia apoiar o outro, mas a maioria evitava sequer olhar na direção de Julius Streicher, o arauto do antissemitismo. Embora a mesma condição valesse para todos, era evidente que Goering continuava a desempenhar um papel de liderança, além de fazer charme à distância para as mulheres sentadas na galeria. Algumas vezes chegou a piscar o olho para Richard. Quando foram exibidos filmes terríveis sobre as atrocidades e os campos de concentração, Goering ficou indiferente. Sonnenfeldt soube depois que Goering considerava que tudo aquilo não passava de propaganda, o mesmo tipo de propaganda que Goebbels havia produzido para o nazismo. 

Conforme a avaliação de Sonnenfeldt, os promotores britânicos eram os mais eficazes. Indagando os réus com fria cortesia, acabaram arrancando de Goering a confissão de que ele de fato tinha sido responsável pelos assassinatos dos pilotos das forças aéreas aliadas. Concluiu, ainda, que os americanos eram os que mais trabalhavam, enquanto os soviéticos se revelavam pouco preparados.Os réus com patentes militares, Keitel, Jodl, Raeder e Doenitz, foram unânimes em suas defesas: tinham sido apenas leais subordinados do Fuhrer. Sonnenfeldt ficou revoltado com o depoimento de Albert Speer, o arquiteto preferido por Hitler, encarregado da produção de veículos, aviões, armamentos e munições durante a guerra. Speer se comportou de maneira cordial e obediente, tendo admitido sua culpa de forma tão cândida que chegou a ser rotulado pela mídia internacional como “o bom nazista”.(Foi condenado a 20 anos de prisão).Mas, no decorrer de seu interrogatório, omitiu o fato criminoso de que só foi capaz de desempenhar suas tarefas porque teve milhões de trabalhadores escravos como mão-de-obra.De tudo o que viu e ouviu em Nuremberg, o que mais impressionou Sonnenfeldt foi o depoimento que lhe prestou Rudolf Hoess, comandante do campo de concentração de Auschwitz. Pergunta de

Sonnenfeldt: “É verdade que você ordenou a execução de três milhões e meio de seres humanos?” Resposta: “Não, foram apenas dois milhões e meio. Os demais morreram por outras causas”. Pergunta: “Que outras causas?” Resposta: “Doenças, epidemias inevitáveis e fome quando nos faltaram recursos para alimentar os prisioneiros”. Pergunta: “Por que os maiores e principais campos de concentração foram situados fora da Alemanha?” Resposta: “Para que a população alemã não soubesse o que estava acontecendo”. Pergunta: “Quando você e sua família moraram em Birkenau, no complexo de Auschwitz, sua mulher revelou que sempre havia um mau cheiro no ar. Você lhe contou a verdade?” Resposta: “Não. Eu disse que o cheiro era de uma fábrica de sabão”. Sonnenfeldt conteve o ódio. Sim, de fato era uma fábrica de sabão, mas feito com despojos de seres humanos exterminados.

Em Nuremberg, Richard fez boa amizade com Poul Kjalke, chefe da delegação dinamarquesa e, durante a guerra, chefe da resistência clandestina na Dinamarca. Num fim de semana, Poul levou-o para visitar Copenhague. Ali, Sonnenfeldt foi convidado para participar de um jantar de gala no Palácio Real. Na recepção que antecedeu o banquete, Richard manteve longa e agradável conversa com um senhor de certa idade, vestindo fraque e uma gravata borboleta branca. A certa altura, este disse: “Agora o senhor me desculpe, mas tenho que começar a servir a mesa”. Era o chefe dos garçons. Durante o jantar, Richard sentou-se ao lado do príncipe da Dinamarca. Somente um pensamento lhe passava pela mente: era puro surrealismo que um simples judeu de uma pequena cidade alemã pudesse estar junto a um membro da monarquia europeia.Richard W. Sonnenfedt regressou aos Estados Unidos em 1946 e matriculou-se na Faculdade de Engenharia da Universidade John Hopkins. Teve uma extraordinária carreira profissional. Foi o diretor da equipe de técnicos da RCA que inventou a televisão em cores. Trabalhou na NASA, onde participou do projeto que levou o primeiro homem à Lua. Foi um dos principais executivos da rede de comunicação NBC e reitor de uma faculdade de administração. A par

dessas atividades, deteve patentes de uma série de invenções tecnológicas. Com mais de 70 anos, atravessou três vezes o Atlântico no comando de seu próprio iate. Morreu no dia 9 de outubro de 2009, vítima de um derrame, em sua residência de Port Washington, Nova York, aos 86 anos.

Música em Dachaupor Reuven FaingoldA música nos campos de concentração nazistas sempre ocupou uma posição ambivalente, ora servindo como estratégia legítima de sobrevivência para as vítimas através do desvio da atenção da desgraçada situação em que se encontravam, ora sendo utilizada pelos perpetradores como uma tentativa perversa de as rebaixar e degradar.  em Dachau, para onde centenas de milhares de judeus foram deportados, essa situação não foi diferente.Edição 90 - Dezembro de 2015

Não há dúvida de que tanto em Dachau como nos outros campos de concentração e de extermínio era comum que os mandantes usassem os prisioneiros com habilidades musicais para seus próprios propósitos e como meio de desumanizá-los e de quebrar, ainda mais, a resistência dos internos. Tampouco há dúvida de que para os presos a música funcionava como estratégia legítima de sobrevivência – física e espiritual. Alguns judeus conseguiram sobreviver à Shoá, pois os nazistas “apreciavam” seus dons musicais.A música tornou-se uma forma de resistência à barbárie nazista, parte da denominada “resistência cultural”. Isto era parte das tentativas dos indivíduos em manter sua humanidade e integridade pessoal face às investidas nazistas para desumanizar e degradar todos os judeus e o judaísmo. O linguista e historiador iídiche, Zelig Kalmanovich (1885-1944), descreveu-a como “uma clara vitória do espírito sobre a matéria”.Inaugurado o Campo de Dachau

Dachau não era um campo de extermínio como Auschwitz, Treblinka e Sobibor; foi criado como um “campo seletivo”, em 1933, para encarcerar alemães dissidentes do regime nacional-socialista. É importante ressaltar o fato.É verdade de que o “componente essencial” de todos os campos nazistas era “o mesmo”: a fome, a privação do sono e de todo tipo de necessidade primária, brutal ritmo de trabalho, o sadismo incessantes por parte das SS, e a morte lenta por inanição, ou súbita e aleatória pelas mãos de algum nazista. Contudo, em cada campo os prisioneiros estavam sujeitos às condições específicas daquele local. Em suma, a categoria do campo e sua história individual eram decisivas não apenas para a chance de sobrevivência do prisioneiro, mas também para sua liberdade de participar ou não das “atividades culturais”. Comparado a Mauthausen, na Áustria, e a Auschwitz, na Polônia, Dachau, por não ser um campo de extermínio, oferecia alguma flexibilidade nas atividades cotidianas.O campo de Dachau foi criado em 20 de março de 1933, após Hitler tomar o poder. Nessa ocasião, Heinrich Himmler anunciou à imprensa oficial:  “Na próxima 4ª feira, 22 de março de 1933, será aberto o primeiro campo de concentração na localidade de Dachau. Com capacidade para 5 mil pessoas, lá serão confinados comunistas e, se necessário for, a Reichsbanner (milícia de esquerda) e os membros do partido socialdemocrata, grupos estes que atentam contra a segurança do Estado. (...) Adotamos esta medida sem dar atenção às críticas insignificantes, tendo plena convicção de que esta ação certamente ajudará a restabelecer a calma em nosso país, realizando-se isto em benefício de nossa população”.Dachau, cidade localizada a 18 km a noroeste de Munique, ficou famosa, no século 19, por ser um centro cultural e uma colônia de artistas. Ao eclodir a 1ª Guerra, em 1914, foi construída uma fábrica de pólvora na periferia da cidade, fechada ao acabar a guerra. A fábrica abandonada abrigaria as principais moradias do campo, durante os doze anos de seu funcionamento, entre 1933 e 1945.

Desde sua inauguração, os nazistas outorgaram a Dachau um papel central, funcionando primeiramente como base de treinamento das temidas SS (Schutzstaffel), e como modelo de organização para outros campos que foram sendo edificados.Os prisioneiros reclusos em Dachau nos anos que antecederam a 2ª Guerra, seja para serem “reeducados”, seja para confinamento por “custódia preventiva” (schutzhaft), eram principalmente membros de organizações antinazistas, grupos religiosos, movimentos de resistência ou indivíduos que criticavam abertamente Hitler, assim como também milhares de judeus. Depois de 1938, o campo de Dachau foi-se lotando gradualmente com outros prisioneiros austríacos, ciganos, padres e pastores protestantes, e Testemunhas de Jeová, de diferentes nacionalidades.Submetido às exigências da “Administração Central dos Campos”, Dachau foi mudando consideravelmente ao longo de seu funcionamento, atendendo às loucuras dos comandantes alemães, assim como às necessidade bélicas decorrentes da Guerra que era travada.Até 1941, ano em que os nazistas passam a autorizar atividades culturais, o “tempo livre” dos presos era limitado. Em 1943, quando o Terceiro Reich começa a explorar o trabalho escravo, as condições dos campos “melhoram” uma vez que o objetivo principal era incrementar a produção. Assim, os presos passam a receber porções adicionais de alimentos, e são permitidas algumas atividades culturais e esportivas. Mas, no outono de 1944, com as sucessivas derrotas sofridas pela Wehrmacht, as condições voltam a piorar, fazendo com que as atividades sociais e culturais passem à clandestinidade, dentre elas a música e a pintura.O campo foi libertado pelas tropas americanas em 29 de abril de 1945. Pode-se ter uma ideia das terríveis condições de Dachau através do relato da libertação do campo feito pelo rabino-militar norte-americano, Eli Bohnen (1909-1992). Bohnen que participou na libertação de Dachau escreveu em suas memórias: “Eu tinha vontade de pedir desculpas ao nosso cachorro por pertencer à raça humana. Quanto

mais adentrávamos o campo de concentração e víamos os esqueletos revestidos de pele e as instalações características do campo de extermínio, tanto mais eu me sentia inferior ao cachorro, porque, como pessoa, eu pertencia à raça responsável por Dachau”...A música como instrumento de torturaNo campo de Dachau, assim como em outros campos nazistas, a música foi utilizada para degradar e brutalizar os presos. Um sobrevivente relembra que as atividades musicais existiam para enganar não apenas as pessoas que os nazistas para lá deportavam, pois os recém-chegados eram, às vezes, recebidos por uma banda, como também os possíveis visitantes.Ele relembra que, “ao chegar uma personalidade para visitar o campo, ‘descansava’ após a refeição escutando uma banda musical composta de músicos famintos e esfarrapados, que se colocava em pé, sorridente, à porta do refeitório, tocando alguma marcha de tons suaves e cordiais”. Havia também uma “orquestra de cordas” que tocava aos domingos à tarde para entreter outras autoridades do campo.Como acontecia em outros campos nazistas, o canto obrigatório era parte indispensável das temidas “chamadas prévias” por listagem e marchas cotidianas rumo ao trabalho forçado. Alguns sobreviventes, como Karl Röder, lembram-se de serem obrigados a cantar por longas horas após um dia extenuante de trabalho: “Nem sei quantas horas cantei no campo. Devem ter sido milhares. Cantávamos quando íamos trabalhar e ao regressar. Cantávamos horas inteiras durante o chamado das listas, para encobrir os gritos de outros prisioneiros brutalmente torturados ou violentamente espancados, mas também cantávamos quando o oficial do campo decidia que tínhamos que cantar... Os nazistas consideravam o ritmo muito importante. Tínhamos que cantar marchando a passo rápido e enérgico, e, acima de tudo, em voz alta. Depois de horas e horas cantando, já não conseguíamos emitir som algum. Os nazistas sabiam que esse canto era um castigo e por isso sempre nos faziam cantar...”. Na maior parte das vezes as

autoridades do campo de Dachau exigiam que os prisioneiros cantassem marchas nazistas e canções nostálgicas alemãs.Os SS obrigavam os prisioneiros a marchar pelas imediações do campo com um cartaz pendurado que dizia: “Estou aqui novamente”. Uma pequena orquestra os acompanhava. Röder recorda: “As canções que entoávamos eram sempre as mesmas. Eu nunca consegui cantá-las sem me engasgar. O ódio e a raiva me asfixiavam, sentindo-me afogado. Teria preferido o abuso físico”.Os presos eram também frequentemente obrigados a tocar em concertos privados para os oficiais das SS. Cabia-lhes animar as festas de aniversário e entreter os convidados. O uso da música como forma de tortura em Dachau teve ainda outro aspecto: o “lager”1 foi onde o rádio foi mais utilizado para torturar seus prisioneiros. Durante as noites ou na hora das refeições, o comandante do campo interrompia bruscamente a programação do rádio e, pelos alto-falantes, colocava discursos de Hitler, notícias que falavam da “inevitável vitória” do exército alemão e canções que ironizavam o sistema de valores do comunismo. Era comum os nazistas baterem violentamente nos prisioneiros enquanto eram obrigados a escutar o rádio. A música dos alto-falantes se misturava aos gritos.A música como “Resistência Cultural”Além das atividades musicais forçadas, havia em Dachau o que podemos chamar de “música voluntária”. Sendo raramente permitida pelos SS, era em muitos casos informal e secreta. Corais, grupos musicais, quartetos de cordas, espetáculos e orquestras constituíam uma parte fundamental da “resistênciacultural” organizada pelos prisioneiros de Dachau. Diante da destruição física e mental de centenas de milhares de seres humanos, fortalecer o espírito com a música era uma forma de resistência àquela barbárie.O canto comunitário era uma das atividades mais populares entre as lá praticadas. Prisioneiros políticos, judeus ou não, entoavam melodias comuns a militantes que faziam parte de movimentos revolucionários internacionais, tais como a famosa “Moorsoldatenlied” (Canção do Soldado). De fato, nos primeiros tempos de campo, a maioria das

atividades musicais dos judeus incluíam melodias e hinos de movimentos juvenis ou movimentos radicais de ideologia sionista e nacionalista.As canções de caráter nacionalista serviam não apenas para fortalecer o espírito como para estreitar os laços de solidariedade entre os presos. Todos compartilhavam lembranças do que haviam perdido. Nas barracas era comum cantar à noite, mesmo após um dia exaustivo de trabalho forçado. Um sobrevivente lembra: “Em voz baixa e depois um pouquinho mais forte, um preso entoou um canto eclesiástico. O homem era um cantor litúrgico de uma grande igreja da Polônia e tinha uma voz lírica excelente, de tenor. Ouvimo-lo com atenção. Logo, do cântico eclesiástico continuaram canções em iídiche, que eram bem mais solenes e trágicas”.Esse sobrevivente lembra que naquela ocasião ninguém foi punido. O encarregado da barraca (prisioneiro, também) falou: “Quem mais quer cantar?’ Desta vez, a nova voz soava mais forte e firme. Cantou Valentine’s Prayer (Oração de Valentine). Um cantor de ópera de Praga acompanhava. Após uma passagem do Fausto (de Goethe) vieram outras árias de ópera. A última canção foi a pungente Mein Shtetele Beltz (Minha pequena cidade de Beltz), que ficou afogada em prantos. Tanto o cantor quanto o prisioneiro responsável pela barraca choraram ao lembrarem seus lares destruídos e seus parentes assassinados”.Além do repertório existente, havia prisioneiros que compunham novas canções e músicas sobre a terrível realidade, falando do sofrimento, às vezes dando conselhos práticos de como sobreviver àqueles tempos difíceis. Muitas ainda se baseavam em músicas pré-existentes, enquanto havia outras composições com melodias desconhecidas. Paralelamente ao canto informal dos grupos, havia uma variedade de corais, alguns clandestinos e outros oficialmente permitidos.ORQUESTRAS E BANDASEm 1938, com a chegada das primeiras vítimas da Anchlüss (Anexação da Áustria), as apresentações musicais passaram a ser frequentes em Dachau. No início, a ideia de fazer

apresentações no campo parecia absurda, mas, gradualmente, tornou-se algo importante para os presos. Em maio naquele ano Herbert Zipper (1904-1997) decidiu organizar uma pequena orquestra para tocar secretamente para os presos de Dachau. Sua “orquestra” fazia performances para os internos aos domingos à noite.O prisioneiro Bruno Heilig descreve: “Cada domingo, diversos artistas do campo de concentração apresentavam um espetáculo musical... Neles participavam Fritz Grünbaum, Paul Morgan, Hermann Leopoldi e o cantor berlinense Kurt Fuss. Leopoldi teve êxito cantando melodias vienenses. Kurt Fuss compunha baladas sofisticadas... A música From early youth the cunning band has had me on the string (Desde a juventude a banda esperta me prendeu pelas cordas), que nunca teve sucesso, havia ressurgido no campo de Dachau, virando tema favorito. Estas apresentações geravam uma ilusão de liberdade. Durante uma hora ou duas, tínhamos a sensação de estar em casa”.O historiador Milan Kuna documentou a existência de três conjuntos musicais em Dachau durante a 2ª Guerra Mundial: uma orquestra de músicos checos criada em 1941 e oficialmente autorizada pelas SS, uma banda uniformizada de instrumentos de sopro e uma terceira regida por um prisioneiro de nome Von Hurk. Esta última contava com músicos profissionais e tocava para os oficiais e staff do campo temas clássicos variados, incluindo peças de compositores proibidos por não serem arianos.A composição e funções das orquestras e bandas de Dachau eram parecidas às dos outros campos. Os músicos tocavam com os instrumentos disponíveis. Eles trabalhavam dentro da rádio do campo e escreviam suas próprias partituras e arranjos musicais, tendo direito assim a receber porções adicionais de comida.Como mencionamos acima, os espetáculos musicais eram, na sua maioria, apresentados para os comandantes e oficiais das SS ou para visitantes convidados. Geralmente, os repertórios incluíam uma variedade de marchinhas alemãs e melodias populares. Os presos não tinham acesso a essas performances, mas com a devida autorização dos SS era comum fazer sessões especiais para eles.

HERBERT ZIPPER E JURA SOYFERHerbert Zipper, compositor e diretor de orquestra, teve forte reconhecimento internacional. Nascido em Viena, em 1904, em uma família judia assimilada, seu pai era filho de um cantor litúrgico (chazan) e sua mãe filha de um rabino. Apesar disso, eles o criaram numa atmosfera laica e, como seus amigos, ele se identificava muito mais com austríacos do que com judeus. Os Zipper adoravam a música e por isso seus filhos receberam ótima educação musical.Estudou na Academia de Música de Viena de 1923 a 1928 e, após graduar-se, batalhou para obter seu primeiro trabalho de tempo integral numa Áustria em crise. Em 1930, foi para a Alemanha e aceitou uma vaga como professor em Düsseldorf, mas na hora em que os nazistas tomaram o poder na Alemanha, a situação mudou drasticamente para os judeus. Amigos e colegas começaram a se afastar dele. Como outros artistas, Zipper decidiu voltar a Viena, com a esperança de escapar do regime nazista. Foi nessa época que ele conheceu o escritor Jura Soyfer.A Áustria foi anexada ao Reich em 1938. Zipper e família estavam planejando a saída do país, porém era difícil obter os documentos necessários, quando ele foi preso pela polícia austríaca e enviado à prisão junto com seu irmão Walter e outros 20 colegas. Em poucos dias, todos foram enviados a Dachau, aonde chegaram em 31 de maio de 1938. Ele se relembra: “O traslado de trem foi brutal, houve socos, humilhações e escassez de comida e água”.Durante o tempo que passou no campo, a música era para Zipper uma fonte de inspiração e de resistência. Como vimos acima, como forma de tortura, os prisioneiros eram obrigados a cantar individual ou coletivamente. Nessa circunstância, Zipper escolhia cantar “Ode à Alegria”, numa tentativa de dar força aos demais.Em Dachau, Zipper era obrigado a transportar uma barra de cimento pelo campo. A vantagem estava no fato de poder falar com os outros. Assim foi que reencontrou Jura Soyfer. Sobre o tempo que passou em Dachau, ele conta: “Poderia suportar ter que carregar sacos de feijão de 100 quilos sobre minhas costas, mas jamais poderia suportar que

roubassem minha vida”. O desejo de manter alguma normalidade em sua vida o fez recitar poesias para outros prisioneiros. Dessa forma, conseguiu conhecer músicos judeus e convenceu marceneiros a construírem instrumentos de corda com madeira roubada.Em início de julho de 1938 já havia reunido 14 músicos para dar concertos aos domingos à tarde. Nesses concertos, os músicos tocavam peças clássicas conhecidas, mas também obras do próprio Zipper ou de Soyfer, compostas por eles após o trabalho.Certa vez, Zipper pediu a Jura Soyfer que criasse um poema baseado no slogan nazista “Arbeit macht frei” (O trabalho liberta). Ele  guardou de cabeça a letra que Soyfer lhe havia recitado, memorizou a música que havia preparado e, junto com outros, começou a cantarolá-la a músicos prisioneiros. Desta forma surgiu “Dachaulied” (Canção de Dachau). Rapidamente, os músicos judeus difundiram a letra dessa marcha pelo campo, que virou uma canção extremamente popular. A canção teve uma vida dupla, pois agradava tanto os nazistas como os presos. Agradava a oficiais das SS por sua qualidade e ritmo, mas para os prisioneiros do campo a composição encobria uma mensagem de resistência e perseverança. Foi uma das poucas músicas cantadas pelos prisioneiros com o aval das autoridades do campo.Em setembro de 1938, Zipper e seu amigo Soyfer foram transferidos a Buchenwald. Ao tempo da deportação, os pais de Herbert Zipper haviam fugido para Paris, lutando para libertá-lo e a seu irmão. Em fevereiro de 1939, após uma curta estada em Viena, os pais foram informados que ambos os filhos seriam liberados. Finalmente, em Paris aconteceu o reencontro da família Zipper. Em maio do mesmo ano, Herbert recebeu um convite para fundar e dirigir a Orquestra Sinfônica de Manila. Durante o período que esteve na capital das Filipinas, ele conseguiu visto para residir nos Estados Unidos com sua família.O Japão invadiu as Filipinas em 8 de dezembro de 1941, destruindo a força aérea norte-americana. Em janeiro de 1942, Zipper se alistou no exército local, mas os filipinos o prenderam por sua amizade com os EUA. Após breve reclusão, foi libertado para organizar uma orquestra que colaboraria com a propaganda japonesa. Mas o projeto da

orquestra foi postergado e Herbert se uniu à resistência clandestina, repassando informação militar importante aos americanos. Em março de 1946, Zipper e sua esposa decidiram reunir sua família nos EUA, onde trabalhou como compositor, diretor de orquestra e docente.GRÜNBAUM E LÖHNER BEDAEra 31 de dezembro de 1941, o artista Fritz Grünbaum, já muito doente, encerrou seu último espetáculo em Dachau frente a um público de prisioneiros moribundos.Grünbaum nasceu em 1880, completou seus estudos em Direito, mas rapidamente foi seduzido pela música. Em 1906 fez a primeira apresentação. Até a ascensão de Hitler, em 1933, teve uma carreira ativa em Berlim e Munique. Depois emigrou para Viena, sendo membro do quadro do “Kabarett Simpl”. Em poucos meses, fazia parte do seleto grupo de artistas que despontavam na vida cultural da capital austríaca.Grünbaum especializou-se em musicais políticos, encenando peças que ironizavam Hitler e seus comparsas, bem como a falta de liberdade sob seu regime, e a impossibilidade de viver dignamente na Alemanha ou na Áustria. Em março de 1938, o artista judeu realizou sua última apresentação no “Kabarett Simpl”. Ao se abrir a cortina, sob um cenário totalmente escuro, apareceu Fritz Grünbaum gritando: “Não enxergo nada, absolutamente nada; com certeza estou navegando pela cultura nacional-socialista”. Um dia depois, foi proibido de se apresentar na Áustria. Após a “Anschlüss”, Grünbaum tentou fugir para Bratislava, mas foi pego, deportado e encarcerado, com sua esposa, em instalações das SS.Em maio de 1938, ele chegou a Dachau. Lá encontrou Fritz Löhner-Beda, que havia sido deportado ao campo em abril. Um sobrevivente lembra que Grünbaum contava piadas dizendo que “sozinho iria acabar com o Reich”. Para levantar o ânimo dos prisioneiros, costumava dizer que “a privação total e a fome sistemática eram as melhores defesas contra o diabetes”. Certa vez, um oficial das SS negou-lhe um sabão, e ele ironicamente lhe diz: “Quem não tem dinheiro para sabão não poderá arcar com os custos dos campos de concentração”.

Rapidamente, foi transportado a Buchenwald, lugar em que também teve participação ativa na vida cultural.Acabou sendo enviado novamente a Dachau. Lá fez sua última atuação às vésperas do Ano Novo de 1940. Gravemente doente de tuberculose, decidiu fazer um espetáculo para entreter os prisioneiros da enfermaria do campo. A mensagem de Grünbaum aos presentes: “Peço que lembrem que não é Fritz Grünbaum quem está atuando diante de vocês, mas o prisioneiro No.... [ele mencionou seu número], que pretende transmitir um pouco de alegria a vocês neste último dia do ano”.Depois desse derradeiro espetáculo, Grünbaum tentou o suicídio, mas não teve sucesso e foi “resgatado” pelos oficiais das SS. Duas semanas depois, em 14 de janeiro de 1941, foi encontrada sua certidão de óbito. Para os nazistas, o artista faleceu de um ataque cardíaco.Löhner Beda nasceu em 1883 e foi um dos maiores roteiristas e cantores líricos de toda Viena. Em parceria com o compositor Franz Léhar, o roterista Ludwig Herzer e o cantor Richard Tauber, ele produziu, entre outros, a opereta Friederike (1928), Das Land des Lächelns (O país do riso, 1929) e Giuditta (1934). Fritz Löhner Beda foi preso em 1 de abril de 1938 e deportado a Dachau. Em 23 de setembro foi enviado ao campo de Buchenwald. Lá compôs com o prisioneiro Hermann Leopoldi o anátema do campo “Das Buchenwaldlied”  (O canto de Buchenwald):[Oh Buchenwald, eu não posso te esquecer,porque és o meu destino.Só aquele que te abandona, pode apreciar quão maravilhosa é a liberdade! Oh Buchenwald, não choramos nem reclamamos,seja qual for o nosso destino, no entanto vamos dizer “sim” à vida; pois chegará o dia da nossa liberdade!]Em 1942, o poeta Löhner-Beda foi enviado ao campo de Monowitz (próximo de Auschwitz-Birkenau), falecendo em dezembro de1942.

Dois anos após sua morte, a música Buchenwaldlied ressoava durante a entrada triunfal do exército americano no campo de Buchenwald. Os prisioneiros entoaram a canção, pela primeira vez em liberdade.PALAVRAS FINAISEsta pesquisa deixa nitidamente claro que a música esteve presente em Dachau com uma conotação positiva, mas também negativa. A música ouvida pelos prisioneiros neste lager teve momentos difíceis, de desespero e torturas, mas serviu também para relembrar vários instantes de heroísmo, resistência, luta e superação.Os poucos poetas, cantores, compositores e músicos que atuaram em campos como Dachau, preencheram um papel crucial, alentando os demais prisioneiros nas horas mais difíceis de suas vidas.Durante o Holocausto, a música de Dachau e outros campos nazistas representou uma forma de resistência, a denominada “resistência cultural”, um tema significativo que somente agora começa a ser devidamente pesquisado e revelado ao grande público.

Uma Heroína para a Históriapor Zevi GhivelderA judia Marthe Cohn cresceu em Metz, na Alsácia-Lorena, uma região por muitos séculos disputada entre a França e a Alemanha. Educada num lar ortodoxo, Marthe jamais imaginou que, com pouco mais de vinte anos de idade, agiria como espiã, infiltrada nas tropas nazistas. É extraordinária a história da sua sobrevivência e coragem.Edição 90 - Dezembro de 2015

A Alsácia-Lorena pertenceu à França durante os séculos 17 e 18, passando em seguida ao controle da Alemanha. Depois da Primeira Guerra Mundial, a província retornou ao domínio da França. Em 1938, depois da conferência de Munique, os judeus de Metz passaram a sofrer represálias por parte da população local, repetindo-se ataques semelhantes aos que haviam ocorrido em Berlim, no mesmo ano,

na Noite dos Cristais. A região foi novamente ocupada pela Alemanha na Segunda Guerra. Naquela ocasião, ali viviam cerca de 20 mil judeus, dos quais 14 mil buscaram refúgio em Estrasburgo, onde já vivia uma grande comunidade judaica desde a Idade Média. Em julho de 1940 foram todos expulsos e os nazistas declararam que a Alsácia-Lorena podia ser consideradaJudenfrai (livre dos judeus).Marthe Cohn (Gutgluck, de solteira) nasceu em Metz, cidade contígua à fronteira da Alemanha, no dia 13 de abril de 1920, sendo uma de seis irmãos e irmãs. Desde cedo sua identidade judaica se fortaleceu através das narrativas das tragédias sofridas pelos judeus de Metz ao longo da história. Durante as Cruzadas de 1096 ali foi perpetrado um massacre de judeus. Em 1322, judeus foram queimados vivos, acusados de envenenarem os reservatórios de água da cidade. O episódio que mais sensibilizou a jovem Marthe ocorreu em 1670. Na aldeia de Bolchen, perto de Metz, vivia um judeu observante chamado Rafael Halevi. Ele foi absurdamente acusado de ter assassinado uma jovem cristã para fins rituais. Preso e sucessivamente torturado, Halevi negou ser o autor do crime. Embora o verdadeiro criminoso tivesse sido descoberto, os juízes, pressionados pelos comerciantes locais que queriam livrar-se da concorrência dos judeus, mantiveram a condenação à morte e ordenaram a expulsão dos judeus de Metz. Envolto em seu talit (xale para orações), Rafael Halevi foi queimado vivo.Marthe recorda que apesar de não haver um antissemitismo explícito em Metz era possível perceber a hostilidade com que os judeus eram tratados. Assim, logo que se iniciou a Segunda Guerra, sua família transferiu-se para a cidade de Poitiers, a 200 quilômetros de distância. Àquela altura, dois de seus irmãos serviam ao exército francês. O mais velho estava na Linha Maginot e o mais novo na Tunísia, tendo sido dispensado em 1940 porque o exército francês passara a proibir a presença de judeus em suas fileiras. O irmão da Linha Maginot foi capturado pelos alemães que haviam invadido a França e enviado a um campo de prisioneiros em Estrasburgo, de onde conseguiu escapar, juntando-se à família em Poitiers, em dezembro de 1940. Marthe escreveu em seu livro Atrás das Linhas Inimigas: “Para nós,

Poitiers parecia um país diferente, onde viviam apenas quatro famílias judias, inteiramente assimiladas.Antes que uma leva de refugiados ali chegasse, a população local, de um modo geral, desconhecia os judeus e ainda havia quem acreditasse que nós tínhamos chifres e rabos à feição de animais. De qualquer maneira, os habitantes de Poitiers nos acolheram com boa vontade porque, afinal de contas, éramos todos franceses e teríamos que enfrentar um inimigo comum”. Às noites, os Gutgluck se reuniam para captar em ondas curtas a Radio France e assim puderam tomar conhecimento da ascensão de Churchill ao poder, na Inglaterra, a investida nazista sobre a Bélgica, a retirada de Dunquerque e a ocupação de Metz: “Fiquei angustiada, imaginando que fim levaria a magnífica biblioteca do meu pai”.Aos poucos, a família foi-se adaptando à vida em Poitiers, naquela quadra de 1940, e o pai conseguiu abrir um pequeno negócio, fechado no ano seguinte por ordem dos alemães que, aos poucos, foram implantando suas ações antissemitas. Os chefes de famílias judaicas foram obrigados a comparecer à prefeitura e a preencher formulários nos quais deveriam constar os nomes e as datas de nascimentos de todos os seus familiares. Qualquer omissão seria punida com prisão ou morte: “Ao mesmo tempo, idênticas iniciativas aconteceram na cidade de Vichy que, pelo menos teoricamente, não era considerada uma zona ocupada. Nas fachadas de todas as lojas de judeus tornou-se obrigatória a inscrição Maison Juive (casa judaica).O irmão mais velho de Marthe, que fugira do campo de prisioneiros, tentou sair da França, mas foi preso em Bordeaux. Os alemães não sabiam de seu passado de fugitivo, nem que se tratava de um judeu, mas assim mesmo foi trancado numa cela em Poitiers. Ele conseguiu fugir mais uma vez e se esconder em Saint Etienne, na zona não ocupada. O irmão menor tomou a mesma direção da zona não ocupada: “Em nossa ingenuidade, imaginávamos que somente os mais moços corriam perigo e que nada aconteceria aos mais velhos e às mulheres. Minha irmã Stephanie e eu fazíamos o possível e o impossível para ajudar as pessoas que também queriam fugir para a zona não ocupada. Para isso contamos com a colaboração de um fazendeiro

cristão chamado Noel Degout, da aldeia de Dienne, perto de Poitiers, que ajudou centenas de judeus a atravessarem suas terras fronteiriças sem pretender qualquer vantagem pessoal. Ele recebeu postumamente o título de Justo Entre as Nações, concedido pelo Yad Vashem (Museu do Holocausto) depois que, em Jerusalém, leram a seu respeito no meu livro”.Em junho de 1942, Stephanie foi presa por causa de um descuido. Degout, lhe havia dado cupons de racionamento de tabaco recebidos de um judeu a quem ajudara. Esses cupons poderiam ser trocados de forma oculta por cupons de comida. A jovem foi flagrada pelos alemães no momento dessa troca. Apesar do insistente interrogatório, ela não revelou o nome do fazendeiro. Em represália, a Gestapo prendeu seu pai, mas libertou-o em seguida, sem mandado de deportação, porque a condição de cidadão francês ainda era respeitada. Somente os judeus estrangeiros eram levados aos campos de extermínio. Stephanie foi mandada para uma internação perto de Limoges, em seguida para Drancy e finalmente para o campo de Pithiviers. A família Gutgluck conseguiu de forma mirabolante organizar uma ação através da qual ela escaparia do campo, mas a irmã de Marthe recusou. Conseguiu mandar uma mensagem dizendo que se isso acontecesse, toda a família seria presa e deportada. No Yom Kipur (Dia do Perdão) de 21 de setembro de 1942 ela foi colocada num trem direcionado a Auschwitz, de onde nunca mais voltou.Em Poitiers, Marthe fez amizade com um cavalheiro chamado Charpentier, seu colega de trabalho na prefeitura. De forma espontânea, este lhe disse ter ouvido um rumor segundo o qual haveria uma ação contundente contra os judeus e se ofereceu para fornecer a toda a família novas identidades: “Eu lhe perguntei quanto custaria e ele me respondeu, com lágrimas nos olhos, que jamais faria aquilo por dinheiro. Nunca mais o esqueci”.No mesmo dia, uma amiga de Marthe da escola de enfermagem que ambas frequentavam, chamada Odile de Morin, abrigou a família Gutgluck em sua casa, porque à noite, conforme ordens nazistas, os judeus franceses seriam presos e deportados por policiais também franceses. (A jovem Odile também recebeu de forma póstuma o título

de Justa Entre as Nações). Dois dos irmãos de Marthe estavam em Arles onde todos se reuniram e foram para Marselha, zona não ocupada. Nesta cidade, Marthe terminou o curso de enfermagem na escola mantida pela Cruz Vermelha. Uma de suas irmãs, Cecile, conseguira chegar escondida a Paris. Marthe foi ao seu encontro dois meses antes do desembarque aliado na Normandia. O panorama permanecia sombrio porque o conflito estava longe de terminar. Em Paris, as duas irmãs souberam do fuzilamento de 700 franceses na cidade de Oradour-sur-Glane, em represália a um ato de sabotagem.Mal acreditaram nas fotografias que mostravam Londres bombardeada e vibraram com a notícia sobre a captura de Varsóvia pelo exército soviético. Marthe decidiu que era seu dever participar da Resistência. Depois de tortuosas iniciativas conseguiu encontrar-se com um dos chefes dos resistentes. Ela não esqueceu a conversa: “Ele me questionou por mais de uma hora e finalmente disse:Mademoiselle, você não passa de uma criança, o que acha que pode fazer por nós?” Durante uma semana, as duas moças observaram da janela de seu apartamento a luta pela libertação de Paris que crescia, a ferro e fogo, enquanto as forças aliadas, depois do desembarque no Dia D, avançavam na direção da capital da França. Apesar dos tiroteios, Marthe conseguiu chegar até a sede da Cruz Vermelha e se ofereceu como voluntária: “Sou enfermeira formada e quero cuidar das pessoas feridas nas ruas. A mulher que me recebeu, perguntou se eu era judia. Confirmei. Ela então respondeu que judeus não eram aceitos em sua organização. Foi incrível constatar como alguns franceses permaneciam obstinados em seu antissemitismo, mesmo naquelas circunstâncias”. Os combates continuaram nas ruas da capital até que, na noite de 24 de agosto de 1944, os parisienses souberam que as tropas da França Livre, comandadas pelo coronel Jacques Leclerc, já estavam às portas da cidade. Marthe escreveu em seu livro: “A libertação de Paris foi uma resposta para as nossas orações e eu sempre soube que isto acabaria acontecendo. É claro que muitas vezes eu tive medo e depressão, mas jamais deixei de confiar que o bem dos aliados triunfaria sobre o mal dos alemães”.

Em outubro de 1944, depois da libertação, Marthe procurou as autoridades francesas, apresentando-se como voluntária para integrar o exército, mas em função de sua pouca idade e nenhuma experiência militar não foi aceita. Em Marselha, ela conhecera um estudante de medicina chamado Jacques Delaunay com quem mantinha um relacionamento. Entretanto, o rapaz se engajou na Resistência e sumiu de sua vida. Em Paris, ela se encontrou com a mãe de Delaunay que lhe disse que o filho fora fuzilado na prisão pelos nazistas e o marido, também da Resistência, fora preso e assassinado no campo de concentração de Buchenwald. A senhora Delaunay, mãe e esposa de dois heróis de guerra, interveio em favor de Marthe. Em novembro, a jovem Cohn foi aceita como enfermeira pelo exército e enviada para a frente de combate ainda em curso na Alsácia-Lorena.Chegou a uma aldeia perto de Metz. Foi levada a um oficial do serviço de inteligência e novamente submetida a longo interrogatório. Falou-lhe sobre as atividades de ajuda a refugiados que havia desempenhado junto com a irmã Stephanie e enfatizou que procurara a Resistência sem ser levada a sério. O oficial não revelou o menor entusiasmo por seu relato e ainda ironizou: “Você deveria é ter matado alguns alemães”. Marthe respondeu que era enfermeira e, portanto, sua missão era trazer pessoas para a vida e não conduzi-las à morte. Acrescentou: “Seus chefes em Paris me mandaram para cá e é aqui que eu vou ficar”. O capitão não se deu por achado: “Estou abarrotado de enfermeiras. Você vai trabalhar como assistente social”. Enfim, ordens eram ordens. Marthe tomou o rumo das trincheiras e passou a assistir aos soldados trazendo-lhes o que mais precisavam: meias grossas de lã, cobertores, alimentos, mais agasalhos, materiais de leitura e de escrita. Uma das trincheiras em que se encontrava ficou sob intenso fogo de artilharia: “Eu me afundei na trincheira e fiquei imóvel até que tudo serenasse. Esta foi a minha bravura sob fogo inimigo...”Certa ocasião, Marthe foi apresentada ao coronel Pierre Fabien, um dos mais destacados membros da Resistência. Ele tinha a cabeça a prêmio pelos alemães por ter detonado uma bomba num vagão do metrô de Paris repleto de soldados e oficiais nazistas. Durante as duas

semanas de lutas em Paris, antes da libertação, Fabien comandara um grupo de resistentes tão eficientes e corajosos que De Gaulle o inscreveu como um regimento do exército francês. Era este o regimento em que Marthe servia como assistente social. Dias depois, ela se encontrava na sala de Fabien quando este lhe pediu para atender ao telefone enquanto almoçava. Desculpou-se: “Sinto não ter nada aqui para você ler nesse meio tempo. Só há livros em alemão”. Marthe respondeu que lia e falava alemão fluentemente e uma luz pareceu acender-se sobre a cabeça do coronel. Ele revelou que estava precisando com urgência de mulheres que soubessem falar alemão para cumprir missões no território da Alemanha, ainda ferozmente defendido: “Perguntou-me se eu aceitaria ser transferida para o serviço de inteligência. Disse que sim, ele saiu da sala, sentei-me em sua cadeira e fiquei pensando em que tipo de encrenca eu me havia metido, mas já era tarde”.A missão oficial de Marthe Cohn no exército da França começou oficialmente no dia 20 de janeiro de 1945, tendo sido designada para a unidade conhecida como Commandes d’Afrique que havia combatido de forma excepcional nas frentes africanas e agora investia contra os alemães na Europa. Com temperatura abaixo de zero, Marthe foi levada para as montanhas de Vosges, uma cadeia que se estendia desde o vale do Reno até Mainz, num total de 250 quilômetros. Os combatentes se amontoavam no porão de um hospital abandonado e, somente naquele dia, 189 deles haviam morrido e 192 jaziam feridos. Da frente de combate, Marthe foi levada à presença de outro oficial que lhe perguntou se em algum tempo ela já havia interrogado prisioneiros alemães. Recebeu, então, um manual de técnicas de interrogatório e assim conseguiu colher importantes informações, sobretudo sobre os preparativos nazistas que lutariam na batalha das Ardenas, seu último esforço para conter o avanço das tropas aliadas, além de seguirem combatendo na região da Alsácia-Lorena. Em seguida, foi transferida para Mulhouse, no nordeste da França, onde passou a ser treinada para as tarefas de espionagem que deveria cumprir. O grupo ao qual pertencia atendia pelo codinome de “Antena” e se deslocou para a Suíça com a missão de dali penetrar em território alemão. Marthe

atravessou a pé uma floresta até avistar, depois da localidade de Schaufhasen, dois sentinelas alemães junto a uma barreira na estrada. Saudou-os com o infalível “Heil Hitler” e lhes apresentou seus documentos nos quais constava o nome de Marthe Ulrich. Já em contato com os militares da Wermacht, disse-lhes que se alistara como enfermeira e que estava à procura de seu noivo, chamado Hans, do qual nunca mais tivera qualquer notícia. Se, por acaso, ele estivesse designado para a batalha das Ardenas, indagava informalmente, em qual regimento poderia estar servindo, ou talvez integrasse um corpo de blindados. Mas para encontrá-lo, precisava saber quantas unidades de combate estavam-se preparando para o confronto nas florestas das Ardenas e onde se concentravam. Colheu, assim, preciosas informações. Fez o perigoso percurso de volta para a Suíça e surpreendeu a inteligência francesa com a acuidade de suas narrativas, todas de memória, pois não podia arriscar ser flagrada com anotações. De tudo que descreveu, dois pontos foram cruciais: ao noroeste de Freiburg a Wernacht havia abandonado a linha de defesa conhecida como Siegfried e havia um considerável contingente de tropas alemãs concentrado na Floresta Negra com a missão de emboscar os aliados. Por conta de sua informação sobre o abandono da linha Siegfried, os aliados puderam alterar e facilitar seus planos relativos à invasão da Alemanha, porque não mais teriam que lutar para atravessar aquelas trincheiras até então consideradas inexpugnáveis. Como recompensa por sua ação, Marthe Cohn recebeu do governo da França, em 1945, a condecoração da Cruz de Guerra.Sabendo de seu bom conhecimento da região da Alsácia-Lorena, a inteligência francesa enviou-a em fevereiro de 1945 para uma pequena aldeia perto da cidade alsaciana de Thann, com ordens para se apresentar a uma unidade de tanques: “Só entendi o que era claustrofobia quando me colocaram dentro de um tanque. Era tudo escuro somado a um cheiro insuportável de combustível. E lá estava eu, ao lado de um condutor do veículo e de mais dois soldados encarregados da artilharia. Parecíamos sardinhas dentro de uma lata”. O tanque no qual Marthe se encontrava investiu contra a cidade com o objetivo de expulsar os alemães, mas foi logo atingido por um morteiro:

“Pensei comigo mesma, é aqui que você vai morrer, neste veículo e neste lugar, imobilizada entre dois homens que nunca antes viu na vida”.O destino de Rafael Halevi cruzou seu pensamento: “Também vou ser queimada viva”. No fim das contas, conseguiu sair das profundezas do tanque e dias depois foi transferida para a localidade de Lutzelhof, onde seu comandante, o coronel Bouvert, chamou-a para uma conversa. Disse-lhe que tinham como prisioneiro um soldado raso da Wermacht que afirmava estar no exército nazista contra a sua vontade e que queria desertar para os aliados. Pediu que Marthe o interrogasse. O rapaz era alsaciano e repetiu que jamais pretendera lutar ao lado dos alemães. Talvez fosse verdade, porque os nazistas haviam recrutado à força cerca de 140 mil jovens da Alsácia para servirem como bucha para canhão na frente russa. Depois de uma longa sessão de perguntas e respostas, Marthe foi ao coronel e disse: “Pode prendê-lo. Trata-se de um espião”. – “Como você sabe?” – “Se de fato ele fosse alsaciano estaria na frente russa e não aqui”. Quando as forças aliadas estavam prestes a entrar em Freiburg, Marthe lhes antecedeu e mais uma vez vestiu o disfarce de enfermeira alemã à procura do noivo. Foi bem aceita pelos militares e novamente coletou informações que permitiram a invasão da cidade de forma mais rápida e eficiente.Findo o conflito na Europa, Marthe se apresentou para servir como enfermeira na Indochina, onde as tropas francesas ainda guerreavam os invasores japoneses. Foi designada para um imenso navio da Força Expedicionária da França que deixaria Marselha com destino à zona do conflito. A viagem durou 36 dias e, quando chegou à Indochina (depois Vietnã), os japoneses já haviam sido derrotados. A mulher que comandava as enfermeiras era esposa de Henri Torres, o mais famoso advogado da França. Ao chegarem a Saigon, esta disse a Marthe: “Prepare-se que temos muito trabalho pela frente”.Um dia, em viagem a Pnohm Penh, no Cambódia, Marthe sentiu o zumbido de um projétil a poucos centímetros de sua cabeça. A bala era proveniente de três franco-atiradores japoneses que simplesmente não sabiam que a guerra já havia acabado. Na Indochina, começou a

namorar um oficial chamado Jacques Darrieux e os dois chegaram a pensar em casamento. “Mas, quando eu lhe disse que era judia, o relacionamento esfriou”.Marthe retornou a Paris e, em seguida, mudou-se para Genebra com a finalidade de se aprimorar na carreira de enfermagem. Em 1956, ali conheceu um estudante de medicina americano, chamado Lloyd Cohn, com o qual se casou, e ambos foram morar em Palos Verdes, na Califórnia. Em 1998, em uma de suas viagens à França, decidiu resgatar os documentos referentes às atividades que cumprira no exército francês durante a Segunda Guerra. Enredou-se na burocracia e esqueceu o assunto. No ano seguinte, para sua surpresa, recebeu uma notificação do Ministério da Defesa da França, informando que fora agraciada com a Medalha do Mérito Militar, que lhe foi entregue pelo cônsul da França em Los Angeles. Em 2004 recebeu outra condecoração, ainda mais significativa: Cavaleira da Legião de Honra. Dois anos mais tarde, outra honraria francesa: a Medalha de Reconhecimento da Nação.Somente na década de 90, com a aquiescência do marido, Marthe começou a desvendar seu passado na Segunda Guerra. Passou a percorrer dezenas de cidades dos Estados Unidos proferindo palestras que atraíram plateias cada vez mais numerosas e agora, aos 95 anos de idade, continua ativa e falante. No capítulo final de seu livro de memórias, escreveu: “Eu olho para mim mesma, para a toda a minha família, e sustento a cabeça erguida com grande orgulho. Apesar de tudo que passamos naqueles anos de terrores diários, nenhum de nós jamais perdeu as esperanças”.

A Viagem dos Condenadospor Zevi GhivelderNo dia 30 de janeiro de 1933, Franklin Delano Roosevelt completou 51 anos de idade. Em menos de um mês seria eleito presidente dos Estados Unidos. No mesmo dia, Adolf Hitler tornou-se o chanceler da Alemanha. Seis anos mais tarde, no oceano que separava estes dois homens, navegou um navio chamado St. Louis, abarrotado por refugiados.

Edição 89 - Setembro de 2015

O Führer alemão arquitetou e executou contra o Povo Judeu um genocídio alheio aos mais elementares valores e princípios da civilização ocidental. O presidente americano tratou-os com um comportamento ambíguo e até hoje controverso.Naquele final dos anos 1930, os Estados Unidos estavam dispostos a aceitar exatamente 25.957 imigrantes oriundos da Alemanha. Mas, desse total, qual seria o número de judeus? Eleanor, a mulher de Roosevelt, era solidária com relação aos refugiados judeus. O presidente, porém, temia a reação da maioria da opinião pública americana, que não queria acolher “essa gente”, além do fato de boa parte dos funcionários do governo explicitarem seu antissemitismo. De qualquer maneira, a pergunta tinha duas respostas. A primeira dependia da emissão de vistos que deveriam ser concedidos pelos diplomatas americanos que serviam em Berlim e outras grandes cidades da Alemanha. A segunda dependia das diretivas do recém-implantado regime nazista, que impunha toda a sorte de dificuldades para os judeus que pretendiam emigrar, incluindo o confisco de seus bens e a cobrança de taxas exorbitantes, em moeda forte, para as permissões de saídas. Além disso, nenhum imigrante poderia partir com mais de 1 dólar no bolso.No dia 3 de maio de 1939, o navio de passageiros St. Louis, pertencente à Hamburg-America Line, chegou à Alemanha, vindo dos Estados Unidos, comandado por Gustav Schroeder, um homem do mar, com 37 anos de experiência em viagens transatlânticas. Era uma pessoa correta que, no decorrer dos últimos seis anos, não aceitava filiar-se ao partido nazista embora sofresse frequentes pressões nesse sentido. Ele foi chamado para uma conversa com o diretor da companhia naval, de nome Holthusen, que começou a distrair-lhe com banalidades até chegar ao que de fato pretendia: “Você vai levar o St. Louis com cerca de mil passageiros, todos refugiados, para Cuba, o que é uma coisa formidável em face da crise financeira que o país está atravessando”. Schroeder indagou quem eram os viajantes e recebeu a

seguinte resposta: “São apenas judeus que não querem mais viver na Alemanha, nada fora do comum. Mas este é um assunto sobre o qual lhe aconselho a não fazer muitas perguntas. Só posso adiantar que em Havana você será recebido por um dos nossos funcionários, chamado Robert Hofman, a quem entregará uma encomenda”. Schroeder deixou o escritório do diretor convicto de que este não lhe tinha passado as informações mais importantes. Naquele mesmo dia, em Havana, o tal Hofman estava sendo vigiado por agentes americanos a serviço da Inteligência Naval Militar, do Departamento de Imigração dos Estados Unidos e do FBI, todos sob o comando do coronel Ross Rowell, da Inteligência Naval. No dia seguinte, em seu escritório na embaixada americana em Cuba, Rowell enviou um comunicado para Washington informando que uma agente nazista chegaria em breve a Havana, vinda do canal do Panamá, com a missão de encontrar-se com o dito alemão e entregar-lhe um pacote. Àquela altura, Rowell já possuía elementos sobre a rede de espionagem instalada pelo regime nazista em Cuba, compreendendo cerca de sessenta agentes que, na eventualidade de um conflito, já estariam perto da costa americana. Em um de seus relatórios oficiais, enfatizou: “O elemento de contato dos espiões chama-se Julius Otto Ott, que não logrei apurar se é suíço ou alemão, proprietário do restaurante Swiss Home”. Rowell só não sabia que o dito pacote continha papéis e microfilmes com informações pormenorizadas sobre locais a serem sabotados nos Estados Unidos caso estourasse uma guerra por iniciativa da Alemanha. O restante das informações secretas e complementares chegariam a Cuba no navio St. Louis e seriam entregues pelo comandante Gustav Schroeder.No dia 13 de maio de 1939, o navio St. Louis acolheu em Hamburgo 936 homens, mulheres e crianças (há fontes que citam o número 937). Desse total, 930 eram judeus, em cujos passaportes estavam impressos em vermelho uma grande letra “J”, referência a Jude (judeu, no idioma alemão). Assustados desde os dramáticos acontecimentos da Noite dos Cristais, seis meses antes, além de frequentes medidas de caráter antissemita, aqueles judeus haviam decidido deixar a Alemanha para sempre. À custa de muito dinheiro e sacrifícios, tais

como se despojarem de todos os seus bens e abdicarem de suas profissões e ocupações, tinham obtido vistos de entrada para um país distante chamado Cuba. Dali, julgavam, tomariam diferentes destinos, mas tendo como ponto final e preferencial os Estados Unidos. Com essa finalidade, 734 deles já tinham preenchido formulários exigidos pela imigração americana e poderiam entrar no país de três meses a três anos depois de aportarem em Cuba. De qualquer maneira ainda lhes restava uma sombria dúvida. Depois de terem pagado 262 dólares pela passagem (volumosa quantia naquela época), além do custo dos vistos, foram obrigados a desembolsar mais 181 dólares a título de uma espécie de seguro caso o governo de Cuba impedisse seu desembarque, embora os vistos contivessem a assinatura do coronel Manuel Benites, diretor do Departamento de Imigração de Cuba. Esses vistos lhes tinham sido entregues pela Hamburg Line,que os comprara por uma quantia ridícula do Coronel Benites e os havia revendido ao custo de 150 dólares por pessoa, contabilizando um lucro expressivo.Dentre os passageiros do St. Louis encontravam-se judeus proeminentes. Um deles era o famoso advogado Max Loewe, que lutara pela Alemanha na 1ª Guerra Mundial, tendo sido condecorado por heroísmo. Ele estava com a mulher, a mãe, e dois filhos adolescentes. Viajava, também, o artista plástico Moritz Schoenberger, celebrizado pelos cartazes que concebera para os filmes alemães produzidos pela empresa UFA. O rabino Gelder, de 67 anos de idade, ansiava por encontrar na América seus dois filhos que já tinham emigrado. A senhora Feinchfeld, de Breslau, levava seus quatro filhos com idades de um a onze anos. O marido estava à espera de todos em Nova York.Por ordem do comandante Schroeder, os passageiros não eram tratados como refugiados, mas como passageiros comuns, que haviam comprado suas passagens e, portanto, mereciam todas as atenções e cortesias por parte da tripulação, que incluía alguns ferrenhos a adeptos do nazismo. Mas, em função, dos regulamentos marítimos internacionais, estes não ousavam desrespeitar quaisquer ordens superiores. A viagem através do oceano Atlântico transcorreu na mais

absoluta tranquilidade com os passageiros tendo acesso às chaises longues do convés e a excelentes refeições.Antes que o navio chegasse a seu destino, o comandante começou a receber telegramas que aludiam à frágil validade dos vistos repassados pela empresa de navegação. Isto se deveu à ação de antissemitas cubanos instigados pelos agentes nazistas infiltrados no país. Logo essa informação correu entre os passageiros, que foram ficando ansiosos e deprimidos. Durante os jantares a bordo, os viajantes eram entretidos pelo comediante Max Schlesiger, de Viena, que, em face do ambiente reinante no navio, interrompeu suas apresentações.Os menos preocupados, pelo menos na aparência, eram aqueles 734 que haviam preenchido os papéis americanos. Achavam que, mesmo se o St. Louis fosse obrigado a retornar à Europa, estariam sob a proteção das leis de imigração dos Estados Unidos. A atmosfera no navio ficou tão carregada que um de seus mais importantes passageiros, o professor Moritz Weller, sofreu um infarto e morreu. Os judeus insistiram em que seu corpo fosse acomodado no frigorífico da embarcação para que, uma vez em terra, tivesse um funeral judaico. Schroeder invocou as leis marítimas, segundo as quais um corpo inanimado deveria ser jogado ao mar. A revolta dos refugiados foi quase incontrolável. Schroeder, então, valeu-se de um argumento que não comportava contestação: a existência de um cadáver a bordo poderia concorrer para que as autoridades cubanas impedissem a atracação do navio. O corpo do professor foi jogado ao mar tendo o próprio Schroeder proferido um emocionado elogio fúnebre.No dia 27 de maio o St. Louis chegou ao porto de Havana. Ninguém teve permissão para desembarcar, nem as pessoas que se encontravam no cais puderam subir ao navio. Os judeus que aguardavam familiares e amigos alugaram pequenos botes e margearam o transatlântico, na esperança de que, protegidos pela escuridão noturna, alguns se atirassem na água e nadassem ao seu encontro. Os cubanos, entretanto, instalaram poderosos holofotes em torno do navio e essa arriscada fuga tornou-se impossível.

Entretanto, 28 passageiros obtiveram permissão para desembarcar. Desconfiados dos vistos sob responsabilidade da Hamburg Line, eles haviam contratado advogados na Europa que lhes obtiveram documentos adicionais emitidos pelo Departamento do Tesouro e pelo Departamento do Trabalho do governo cubano. Outros seis que escaparam, foram um casal cubano que retornava de uma viagem de lua de mel na Europa e quatro turistas espanhóis. A bordo permaneceram 908 judeus. As autoridades cubanas alegaram que seus vistos tinham origem ilegal e assim careciam de validade. Além disso, argumentavam que Cuba, uma pequena ilha, já tinha recebido desde a segunda metade da década de 1930 milhares de imigrantes (2.500 dos quais eram judeus), muito mais, em proporção, do que países muito maiores e muito mais ricos. O drama do St. Louis chegou às páginas de todos os jornais do mundo, notadamente dos Estados Unidos, que ressaltavam o perigo com que se defrontavam os refugiados judeus caso fossem obrigados a retornar à Alemanha.Apesar de atento à imprensa, o presidente Roosevelt nada fez para aliviar o sofrimento dos refugiados do St. Louis. Por essa razão, diversos segmentos da sociedade americana, judeus e não-judeus, até hoje acusam seu presidente de ter permanecido indiferente à sorte dos judeus europeus que viriam a ser assassinados no Holocausto.No entanto, um livro lançado em novembro de 2014, da autoria de Richard Breitman e Allan J. Lichtman, isenta Roosevelt de tal comportamento. Os autores afirmam que os refugiados do St. Louis só conseguiram embarcar rumo a Cuba graças a importantes medidas tomadas pelo governo americano. Quando Roosevelt tomou conhecimento da ocorrência da Noite dos Cristais (novembro de 1938), ordenou que o Departamento de Estado entrasse em contato com diversos países latino-americanos, pedindo-lhes que dessem acolhida aos judeus perseguidos pelo nazismo. Roosevelt, inclusive, teve um encontro pessoal com o segundo homem do governo cubano, porém o mais influente, chamado Fulgencio Batista, que lhe prometeu total colaboração. Mas não foi de graça.Por conta da sua aquiescência, Batista conseguiu que o governo americano diminuísse as tarifas referentes às operações comerciais do

açúcar importado de Cuba, além de obter por parte de Washington ajuda militar e tecnológica. O fato de Batista não ter cumprido o acordo firmado com Roosevelt não chega a admirar em face do seu caráter pouco confiável. Tornado ditador de Cuba, anos mais tarde, ele acabou sendo deposto por Fidel Castro, em 1959.Há um outro livro, intitulado Refugees and Rescue, de 2009, escrito por James McDonald, que foi assessor de Roosevelt para todos os assuntos referentes aos refugiados. O autor afirma que, já em abril de 1938, o presidente elaborou um plano segundo o qual os judeus perseguidos na Alemanha nazista seriam absorvidos por dez nações democráticas e até pediu ao Congresso um orçamento de 150 milhões de dólares a título de compensações para os países que os recebessem. Era uma quantia fabulosa e McDonald afirma que ouviu de Roosevelt o seguinte comentário: “Não se trata de dinheiro, trata-se de seres humanos”. O autor afirma que o plano do presidente teve de ser abandonado porque, em 1940, a prioridade dos Estados Unidos era a segurança nacional e não ações humanitárias.Mas, a posição americana, vista pelo aspecto humano, não apagava a frustração dos refugiados do St. Louis que avistaram, nas proximidades da Flórida, embarcações da guarda-costeira americana e tiveram a esperança de que estas fariam algum tipo de intervenção em seu favor. No dia 29 de maio, a entidade beneficente americano-judaica Joint (Joint Distribution Committee) enviou dois representantes a Havana. Eram a assistente social Cecilia Razovsky e um famoso advogado de Nova York, Lawrence Berenson, presidente da Câmara de Comércio Cubano-Americana e amigo pessoal de Fulgencio Batista, àquela altura posicionado como chefe do Estado Maior do exército de Cuba. Cecília garantiu às autoridades locais que, se os judeus pudessem desembarcar, o Jointcuidaria de seus alojamentos e refeições até que pudessem partir para outros países. Em um encontro com Batista, o advogado Berenson comprometeu-se a fazer uma doação de 125 mil dólares ao governo cubano, como garantia de que os passageiros, uma vez em terra firme, não se tornariam dependentes da economia do país. De bordo do navio, Schroeder solicitou uma audiência com o presidente de Cuba, Laredi Bru, mas não foi atendido. No telegrama

enviado ao chefe do governo, o comandante havia advertido, com todo o respeito, que se o St. Louis tivesse que retornar para a Europa, um número incerto de refugiados poderia optar pelo suicídio. Mas, Bru aceitou receber Berenson para uma conversa inútil: nenhum judeu tocaria o solo cubano. Disse que tinha simpatia pelos refugiados, mas não aceitava a intermediação dos vistos pela Hamburg Line porque aquele expediente atentava contra a dignidade de seu governo. Enquanto isso, o passageiro Max Loewe, cortou os pulsos, foi socorrido e levado para um hospital em Havana. Sua mulher e filhos não tiveram permissão para acompanhá-lo. Ele só reencontrou a família anos mais tarde, na França. No dia 1º de junho, o presidente Bru assinou um decreto ordenando que o St. Louis levantasse âncora e navegasse até doze milhas além do porto de Havana, caso contrário seria conduzido à força pela marinha cubana. Era o tempo que Berenson, bastante otimista, precisava para orquestrar a entrega dos dólares prometidos. Em contato telefônico com a sede do Joint em Nova York, Berenson foi informado de que, segundo a avaliação do Departamento de Estado, aquelas pessoas que haviam preenchido formulários para a obtenção de vistos não se enquadravam nas leis americanas de acolhimento de imigrantes. Berenson ainda tentou oferecer mais dinheiro (500 mil dólares) ao governo cubano e acabou enredado numa disputa entre Bru, candidato a um novo mandato, e Batista, também candidato à presidência. Nos dias seguintes, Berenson sofreu as mais repugnantes chantagens e manobras escusas, inclusive ameaças físicas, das quais acabou se descartando e regressou para os Estados Unidos.No dia 2 de junho o St. Louis partiu para Hamburgo, às onze horas da manhã. O comandante Schroeder, ciente de um novo encontro de Berenson com Bru, no dia 4, cuidou de ganhar tempo navegando na direção de Miami. Ali o navio passou a ser monitorado pela lancha da guarda-costeira americana de número 244, incumbida de impedir que algum passageiro se aventurasse a nadar até a costa. A imprensa americana continuou publicando reportagens sobre o drama do St. Louis. No jornal The Richmond Times Dispatch, o bispo James Cannon Jr. escreveu: “A indiferença com relação a esses judeus, que vivem um

momento de extrema angústia, é uma desgraça para a história americana e cobre nossa nação com uma mancha de vergonha”.No dia 6 de junho, às 23 horas e 40 minutos, sem receber qualquer notícia por parte de Berenson, o comandante Schroeder decidiu partir rumo a Hamburgo. Um comitê formado pelos refugiados enviou um telegrama ao presidente Roosevelt dizendo que dentre os 907 passageiros do navio mais de 400 eram mulheres e crianças. Não obtiveram resposta. Mandaram, então, outro telegrama para a sede do Joint: “Em grande desespero pedimos sua ajuda para desembarcar em Southampton ou receber asilo da benevolente e nobre França”.Em Paris, o representante do Joint, Morris Troper, tinha acumulado uma série de telegramas recebidos do escritório central em Nova York. Estes diziam: “Imigração fechada na Colômbia”. “Nada de positivo no Chile”. “Situação política conturbada no Paraguai. Nada”. “Argentina receptiva, porém resultado incerto”. Troper entrou em contato com o ministro da justiça da Bélgica, que, após consultar o primeiro-ministro, deu sinal verde para o desembarque de 200 refugiados. Em seguida, falou com a responsável pelo comitê de refugiados da Holanda. A Rainha Guilhermina permitiu, então, o acolhimento de 194 passageiros. O representante do Jointestabeleceu contatos com as autoridades da Grã Bretanha, Portugal e Luxemburgo. Não lhe disseram que sim, mas também não lhe disseram que não, razão pela qual enviou um telegrama para Schroeder: “Talvez tenha boas notícias em 36 horas”.O comandante seguiu curso para Hamburgo, porém, de propósito, da forma mais lenta possível. Em Paris, Troper encontrou-se com Louise Weiss, secretária do Comitê Central de Refugiados, que, por sua vez, recorreu ao ministro das relações exteriores da França. Enquanto esses conluios se desdobravam, Troper recebeu um telegrama informando que a Grã Bretanha aceitava receber 250 refugiados. Isto fez com que os franceses concordassem com igual número. No fim das contas, 214 judeus ficaram na Bélgica, 181 na Holanda e 224 na França.Às vésperas de receber os 250 destinados à Inglaterra, o Subsecretário britânico do Interior declarou, numa entrevista coletiva: “Estamos dando

um exemplo, mas não estamos abrindo um precedente. Não há mais lugar para refugiados em nosso país”.Os judeus restantes no St. Louis se viram obrigados a descer em Hamburgo, no dia 20 de junho, e enfrentar os mais incertos destinos. A passageira Gerda Blachmann, nascida em Breslau, foi para o interior da Alemanha, se disfarçou como camponesa, junto com a mãe. Ambas conseguiram atravessar a fronteira para a Suíça. Ali trabalharam como operárias numa fábrica de tecidos e emigraram para os Estados Unidos em 1949. A viúva polonesa Klara Gottfried Reif, um filho e uma filha encontraram refúgio em Paris até a normalidade de suas vidas ser devastada pela invasão nazista. Eles deixaram a capital francesa e se esconderam na pequena cidade de Limoges. Um ano depois, seus parentes que moravam nos Estados Unidos tiveram a sorte de resgatá-los e levá-los via Portugal para Nova York, onde Liane, filha de Klara, completou seu doutorado em química. No dia 1º de setembro de 1939 eclodiu a 2ª Guerra Mundial. Por este motivo, só ficaram a salvo os judeus acolhidos na Inglaterra. Os outros, após as invasões nazistas nos países que os tinham abrigado, acabaram sendo deportados junto com as demais populações judaicas para campos de concentração, onde a maioria encontrou a morte em câmaras de gás. Dez anos depois do fim do conflito, o comandante Gustav Schroeder recebeu uma condecoração do governo da Alemanha Ocidental por sua corajosa e impecável conduta. Ele morreu em janeiro de 1959, aos 74 anos de idade.O último país a negar ajuda ao St. Louis foi o Canadá. Por isso, em janeiro de 2011, foi inaugurado no Museu Marítimo da cidade costeira de Halifax, na província da Nova Escócia, um memorial em homenagem aos refugiados daquele navio, criado pelo arquiteto israelense David Libeskind. O memorial, uma grande instalação à feição de um tambor e contendo dezenas de fotografias, recebeu o significativo nome de Roda da Consciência. Dentre as centenas de pessoas presentes à solenidade, encontrava-se um prestigioso médico canadense chamado Sol Messinger, então com 74 anos. Aos sete anos de idade, Messinger fora passageiro do St. Louis e descera na Bélgica

junto com os pais. Em setembro, eles embarcaram num trem oriundo de Antuérpia rumo à França.O comboio foi bombardeado por aviões alemães e Messinger nunca mais se esqueceu do peso de sua mãe sobre ele, para livrá-lo dos explosivos. A família conseguiu chegar ao sul da França, de onde partiu para o outro lado do Atlântico, pouco depois de parte dos judeus de Vichy terem sido conduzidos para campos de concentração. Em Halifax, o doutor Messinger declarou aos jornalistas: “Que brilhante simbolismo! Neste mesmo porto de Halifax, que fechou as portas para os judeus do St. Louis, ficará para sempre um monumento em sua memória”.É pouco provável que o comandante Schroeder tenha entregado os documentos secretos para o espião nazista sediado em Havana, porque em nenhum momento pisou o solo de Cuba e ninguém obteve permissão para subir a bordo. Ross Rowell foi um dos mais destacados pilotos da marinha militar americana durante a guerra, tendo sido promovido a general e recebido uma série de condecorações por bravura. Morreu em 1947.É preciso acentuar que todos os acontecimentos referentes à malograda viagem do St. Louis se desenrolaram durante três meses e dezessete dias antes do início da 2a Guerra Mundial. A perspectiva histórica evidencia que o St. Louis foi o prenúncio do Holocausto.

Je suis survivantpor por Marcio PitliukEm 27 de janeiro de 1945, o I Exército Ucraniano Soviético chegou à cidade polonesa de Oswiecim, forçando os nazistas a recuarem cada vez mais em direção à Alemanha. Aqueles soldados já tinham presenciado e, até mesmo participado, das piores barbáries e violências durante quatro anos de guerra. No entanto, homens rudes, acostumados a carnificinas, choraram ao chegar em Oswiecim.Edição 87 - Março de 2015

O que poderia tê-los chocado tanto, depois de verem cidades destruídas, mulheres violentadas, campos de batalhas com dezenas de milhares de mortos? Auschwitz.

Auschwitz é o nome em alemão da cidade de Oswiecim, onde estava instalado o maior campo de concentração e extermínio nazista.Do outro lado do arame farpado encontraram pilhas de cadáveres, mortos-vivos enrolados em farrapos, crianças cadavéricas, mulheres famintas e galpões repletos de cabelos, sapatos, óculos e brinquedos. Achavam que tinham chegado ao Inferno.Pior. Tinham chegado a Auschwitz, Birkenau e Monowitz.Tinham descoberto o terror e a maldade planejados milimetricamente pela Alemanha nazista para exterminar o Povo Judeu.Sete mil prisioneiros vivos foram encontrados, porque estavam fracos demais para acompanhar outros 60 mil obrigados a marchar com os soldados alemães em fuga.Infelizmente, alguns dias após a libertação, quase a metade ainda morreria de doenças e debilidades físicas.Demorou para que o exército soviético compreendesse a complexidade do campo, com as salas de torturas, os depósitos de objetos roubados dos prisioneiros, os próprios restos mortais, as câmaras de gás e os fornos crematórios.Conforme os exércitos aliados iam libertando as centenas de campos de extermínio, de trabalhos forçados e de concentração na Polônia, Áustria, Alemanha, Ucrânia, a humanidade ia tomando conhecimento da desumanização da Alemanha nazista, e, por que não dizer, da insanidade que tomou conta de um dos países culturalmente mais desenvolvidos do mundo? Do absurdo que o racismo, o preconceito e a intolerância tinham atingido.Um terço da população judaica mundial desapareceu nos fornos crematórios. O antissemitismo atingiu o ápice da insanidade em pleno Século 20.

Sessenta anos depois, em 2005, a ONU decidiu instituir o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto e escolheu como data simbólica 27 de janeiro, o dia em que o exército soviético libertou Auschwitz.É provável que, se fosse recentemente, a ONU estaria mais preocupada em aprovar sanções contra o Estado de Israel do que aprovar uma data em memória das vítimas judias.Este ano, para comemorar o 70º aniversário da libertação, o Congresso Judaico Mundial preparou uma cerimônia especial em Auschwitz. Convidou sobreviventes, e quase 200 deles, de dezenas de países diferentes, estiveram presentes no evento. A maior delegação era de Israel, com quase a metade dos participantes, e centenas de familiares.No dia 26, foram organizadas visitas ao Museu de Auschwitz, que recebe anualmente quase dois milhões de visitantes do mundo inteiro. À noite, houve a recepção e o jantar de boas-vindas aos sobreviventes, no evento chamado de “Passado está Presente” (“The Past is Present”).David Zaslav, CEO da Discovery Communications e Presidente do comitê organizador do evento, junto à USC Shoah Foundation, abriu a cerimônia. O dr. Piotr Cywinski e Jacek Kastelaniec, diretores do Museu de Auschwitz, também, falaram. Jacek, polonês cristão, lembrou que seu avô era judeu e foi assassinado no campo.O cineasta Steven Spielberg foi outro orador. Para quem não sabe, a renda que Spielberg obteve com o filme “Lista de Schindler”, foi utilizada para iniciar a USC Shoah Foundation, da qual ele é, atualmente, o Presidente Fundador. A primeira atividade dessa fundação, há 20 anos, foi coletar depoimentos de sobreviventes de todas as partes do mundo. Hoje conta com mais de 50 mil vídeos. É por isso que tantos sobreviventes dizem que deram “depoimentos para o Spielberg”. O ministro da Defesa de Israel, Moshe Yaalon, também discursou nessa noite.No dia seguinte, 27 de janeiro, a cerimônia foi realizada em Birkenau, o campo de extermínio conjugado a Auschwitz, onde os trens desembarcavam os judeus.

O evento foi impressionante. Quem já teve a oportunidade de visitar o lugar, não se esquece da entrada monumental, a construção de tijolos vermelhos, com sua torre central. Uma imensa tenda foi montada para receber três mil pessoas sentadas, protegidas do rigoroso inverno polonês. Essa tenda englobava “O portão da morte”, a entrada de Birkenau.Estavam presentes reis e rainhas, presidentes e primeiros-ministros da Áustria, Alemanha, Bélgica, Bulgária, Canadá, Dinamarca, França, Polônia e Suécia, entre outros.O discurso do embaixador Ronald Lauder, presidente do Congresso Judaico Mundial, foi incisivo e marcante, uma vez que destacou a volta do antissemitismo na Europa, especificando a França, onde afirmou que se um jovem judeu andar de kipá na rua, ou com uma Estrela de David aparente, corre grande risco de ser fisicamente agredido. O presidente francês François Hollande estava sentado na primeira fileira.O antissemitismo não foi erradicado com o Holocausto, ao final da 2ª Guerra. Hoje suas origens estão no Oriente Médio, mas se espalham pelo mundo todo, encontrando novamente, ou como sempre, eco na civilizada Europa. A mentira de que os judeus estão por trás dos problemas do mundo continua a ser repetida. Ondas de ódio ressurgem e é preciso tolerância zero de todos os Governos. “O silêncio”, como disse Ronald Lauder, “leva a Auschwitz”.Nos últimos anos assistimos a atentados letais contra escolas, sinagogas e museus em várias capitais europeias, e não vimos indignação ou manifestações populares. Não vimos pessoas levantarem cartazes com “Je suis juif”. No entanto, um único atentado, sem dúvida abominável, contra o jornal Charlie Hebdo, levou o mundo a gritar “Je suis Charlie”.Muita gente grita que é preciso riscar Israel do mapa, jogar os judeus no mar, como se sete milhões de pessoas fossem descartáveis. O fato é que o foram, para os nazistas, há 70 anos, durante o Holocausto. Tão pouco tempo transcorreu, que ainda temos sobreviventes entre nós.“Je suis Charlie”, “Je suis juif” e “Je suis survivant”. Na realidade, todos nós somos sobreviventes, judeus e não judeus. Pois, se a barbárie

nazista tivesse vencido, a civilização teria desaparecido da face da Terra.

Inferno em SobiborHá mais de 40 anos fui procurado na redação da revista Manchete por um judeu baixinho, careca, bigode fino, um tanto nervoso. Chamava-se Stanislaw Szmajzner, vindo de Goiás onde era fazendeiro. Trazia um calhamaço de papéis, o manuscrito de um livro que acabara de escrever. Queria saber se a Editora Bloch poderia editá-lo.Edição 87 - Março de 2015

    Por falta de tempo imediato para ler, encaminhei o manuscrito ao jornalista Macedo Miranda, na época diretor do Departamento de Livros da empresa. Decorrido algum tempo, ele me disse: “Do jeito que está, é impossível publicar. O livro está cheio de erros de português, mas o conteúdo é fascinante, principalmente por causa da revolta dos judeus confinados no campo de concentração de Sobibor”.Convoquei o Stanislaw, transmiti-lhe o diagnóstico e perguntei se poderíamos reescrever o livro. Aceitou na hora e deu-me carta branca. Não me lembro de quem foi incumbido daquela tarefa, cabendo-me a revisão final. Assim nasceu o livro Inferno em Sobibor, lançado em 1968 e que obteve fraca repercussão tanto de crítica como de público, embora ainda seja um documento histórico da maior importância e se trate, de fato, de um trabalho extraordinário no segmento universal das obras memorialistas. Alguns excertos do livro poderão ser lidos mais adiante.Até hoje não se sabe a razão pela qual os nazistas fizeram de tudo para esconder a existência de Sobibor. Um sobrevivente daquele campo, chamado Toivi Blatt, escreveu suas memórias e entregou o manuscrito a um amigo polonês que lhe disse: “Você tem muita imaginação. Eu nunca ouvi falar de Sobibor, muito menos de uma revolta que ali teria acontecido”. Entretanto, a verdade é que Sobibor

realmente existiu e operou durante 18 meses a partir de abril de 1942. Nesse tempo, lá foram mortos 250 mil judeus, homens, mulheres e crianças. Sobibor era parte da chamada Ação Reinhard que também compreendia os campos de Belzec e Treblinka. O local do campo foi escolhido por se situar perto de uma aldeia polonesa do mesmo nome, no distrito de Lublin, Polônia oriental.O local era conveniente porque ficava numa região quase isolada e em cuja proximidade passava uma ferrovia. Sua construção começou em março de 1942. Como as obras atrasaram, o responsável foi substituído por Franz Stangl, que chefiou o campo entre abril e agosto daquele ano, quando foi transferido para Treblinka, onde se tornou o supremo comandante. Em Sobibor, no início, ele tinha como subordinados 20 homens das tropas SS e uns 100 guardas ucranianos que se haviam aliado aos nazistas. As vítimas eram desembarcadas na estação da estrada de ferro e depois seguiam para o campo, conduzidas pelos ucranianos que vestiam fardas negras. O aspecto mais bizarro daquele desembarque é que aqueles judeus estavam quase todos bem vestidos e traziam volumosas bagagens, porque os alemães os haviam enganado, dizendo que seriam apenas deslocados para a parte oriental da Europa. Por cúmulo do cinismo, eram recebidos por prisioneiros judeus que lhes entregavam tickets correspondentes às suas bagagens. Alguns dos desembarcados inclusivenãose furtavam a lhes dar gorjetas.Um oficial das SS, chamado Gustav Wagner, separava os recém-chegados em dois blocos: de um lado, os homens, de outro, mulheres e crianças. Os guardas começaram a perguntar quais dentre os cativos eram ferreiros, agricultores, carpinteiros, alfaiates, costureiras e outras profissões. Aqueles que se voluntariaram, jamais tornaram a ver seus filhos, ou maridos e esposas. Stanislaw, então com quinze anos de idade, recordou: “Como não chamaram a profissão de joalheiro, tomei coragem e aproximei-me de um imenso alemão a quem expliquei o que sabia fazer e mostrei-lhe minha maleta de ferramentas. Ele me tirou do bloco dos homens e eu acrescentei que ali também estavam meus três irmãos, todos do

mesmo ofício. O alemão nos separou dos demais prisioneiros e disse que conversaríamos no dia seguinte”.Os quatro jovens ganharam, dias depois, um pequeno espaço transformado em oficina onde começaram a fazer joias e outros adereços para os nazistas. Um dos primeiros a fazer-lhes a encomenda de um monograma de ouro foi Gustav Wagner, chefe do Campo 1 (em Sobibor havia três campos separados), onde ficavam os judeus com profissões definidas. À medida que Stanislaw se desdobrava como ourives, milhares de seres humanos eram conduzidos para as câmaras de gás e, em seguida, para os fornos crematórios.Os prisioneiros do Campo 3 eram levados por guardas ucranianos para tarefas agrícolas e, enquanto caminhavam, alinhados em coluna por um, eram obrigados a cantar hinos nazistas. Stanislaw escreve: “Um dia, eu estava ajudando no trabalho do jardim, quando um SS chamado Karl Frenzel puxou seu revólver e atirou no homem que estava bem ao meu lado. Até hoje não sei o motivo daquele assassinato a sangue frio”.A rigor, o campo de Sobibor estava tão bem enquadrado nas normas nazistas, que os guardas alemães e ucranianos se entediavam. Era quando se tornavam mais perigosos e, para passar o tempo, inventavam “brincadeiras”. Uma delas consistia em colocar um rato dentro das calças de alguém. Se este infeliz se movesse, era castigado com chibatadas. Na rotina da morte nascâmaras de gás, os judeus vindos dos trens eram guiados atéum barracãoonde se lia“chuveiros”. Então, um oficial da SS fazia o seguinte discurso:“Vocêsirãopara a Ucrânia para trabalhar. Épreciso evitar qualquer tipo de epidemia e, portanto, vocês terão agora que tomar um banho desinfetante. Tirem e dobrem suas roupas. Lembrem-se bem do lugar aonde as deixarão porque depois eu não poderei ajudar. Os objetos de valor devem ser entregues na entrada dos chuveiros”.Stanislaw Szmajzner nasceu na cidade de Pulawi, Polônia, no dia 13 de março de 1927. Seus pais eram judeus ortodoxos e, desde cedo, ele aprendeu o ofício de ourives, ao mesmo tempo em que frequentava

o ginásio numa escola judaica onde o ensino era em hebraico. Quando Pulawi foi bombardeada pelos alemães, Stanislaw fugiu sozinho para o Leste polonês, então ocupado pela União Soviética. Achou que encontraria refúgio junto ao exército russo. Acabou se perdendo e voltou para Pulawi, cidade de longa tradição antissemita, e ele foi apontado como judeu, logo sendo preso.Conseguiu escapar e rumou para Walwonica, onde, num chalé abandonado, encontrou os pais, um irmão e uma irmã. Foram descobertos e fugiram para Kazimierz. Ali trabalharam num estábulo, mas, passando fome, se deslocaram para o gueto da cidade de Opole. Foi dali que saiu, no dia 12 de maio de 1942, o primeiro trem para Sobibor. A bordo estavam os Szmajzner, junto com outros dois mil judeus. Stanislaw nunca mais reencontrou sua família. No campo, o ouro que lhe davam para trabalhar era tirado dos dentes dos judeus assassinados. Stanislaw trabalhava com afinco porque as encomendas na oficina se multiplicavam. Terrível ironia: os SS exigiam adereços para ornamentar os chicotes com que golpeavam suas vítimas.Em um de seus relatos mais pungentes, Stanislaw escreveu: “A rotina em Sobibor foi mudando a olhos vistos. Começamos a viver num verdadeiro regime militar. Às sete horas da manhã tínhamos que estar formados para receber as instruções sobre as tarefas diárias. Antes, porém, havia a contagem dos judeus na presença de Wagner. Se ocorria uma falta, o responsável pelo bloco recebia a punição de 25 chibatadas. As contagens eram repetidas na hora do almoço e antes de nos recolhermos, à noite. Começamos a ver os repetidos castigos como simples incidentes”.Na verdade, os relatos de Stanislaw parecem corresponder mais àficção do que à realidade. Durante o dia, os nazistas se empenhavam no ritual das crueldades e das matanças. E à noite? “No pátio destinado aos alemães, ergueu-se um cassino para os oficiais. Era lá que eles comiam, bebiam e se divertiam. Muitas vezes organizavam verdadeiras orgias para comemorar as vitórias dos exércitos nazistas. Nessas ocasiões cantavam e bebiam até alta madrugada, promovendo uma algazarra infernal”.

Depois de um breve intervalo  durante o qual menos trens chegaram a Sobibor, foi retomado o ritmo acelerado dos transportes. Certa tarde, chegaram ao campo centenas de judeus bem vestidos, até mesmo parecendo turistas, um contraste com os usuais maltrapilhos oriundos dos guetos da Polônia. Tinham vindo da Checoslováquia e foram alinhados no pátio até perto do anoitecer. A um dado momento, todos se posicionaram na direção do Oriente, colocaram talitim (xáles para orações) e começaram a rezar com intenso fervor. Pacientemente, os nazistas esperaram que as orações terminassem e então os levaram para a câmara de gás.Tanto em Sobibor quanto em outros campos de concentração, os alemães se preocupavam em aprimorar a logística do assassinato em massa. Em Sobibor, por exemplo, construíram uma extensão da estrada de ferro que começava bem em frente aos “chuveiros” e terminava na boca do forno do Campo 3. Assim poupavam o tempo de levar os mortos da câmara até as fornalhas. Em outra ocasião, apareceu no barracão do Campo 1 um médico judeu. Era, porém, um pobre velho quase inválido. Como não dispunha de nenhum recurso, era inútil para os prisioneiros. Quando alguém adoecia, o carrasco Gustav Wagner vinha perguntar há quanto tempo aquela pessoa estava na cama. Se dois dias tivessem decorrido, o doente era enrolado num cobertor e levado para o Campo 3, o campo da morte.Stanislaw assinala o dia 15 de maio de 1943 como o do início da rebelião. A paisagem humana de Sobibor se havia modificado com a chegada de prisioneiros do exército russo, a maioria judeus, todos fortes, arrogantes e inconformados. Seu líder era o judeu Sasha Perchevsky, filho de um proeminente advogado em Moscou. Foi ele quem começou a tramar a revolta. Testemunho de Stanislaw: “Pensávamos num levante, porém faltava alguém para impulsioná-lo. Ninguém melhor do que o Sasha para o liderar. Daquele momento em diante, ele seria o nosso condutor junto com os judeus russos, que possuíam comprovada experiência militar e isso nos dava ilimitada confiança”. Do lado judeu, Sasha fez sólida parceria com o polonês Leon Feldhendler, filho de um rabino. (No filme para a televisão, Fuga de Sobibor, de 1987, o russo é interpretado por Rutger Hauer e o judeu

por Alan Arkin). Ambos conspiravam no mais absoluto silêncio e segredo porque achavam que alguns covardes poderiam delatá-los aos alemães.A sugestão inicial de Sasha foi escavar umtúnel que fosse além da cerca de arame farpado do campo. Começaram a trabalhar nessa tarefa, mas ele logo concluiu que não haveria tempo para que todos os prisioneiros rastejassem pelo túnel em direção à liberdade. Além disso, caiu uma forte chuva e o buraco desmoronou. A ideia foi abandonada. Sasha e Leon reuniram, então, as pessoas em quem confiavam e ordenaram que usassem todos os tipos de madeira e metal para fazer armas: facas, facões, machados e furadoras, por mais rudimentares que fossem. No dia 12 de outubro, Gustav Wagner foi transferido para outro campo e isso encheu de coragem os revoltosos. Wagner era um homem inteligente, perspicaz, e tinha o hábito de aparecer de forma inesperada nos lugares menos previsíveis. Sua ausência era um bom sinal. Naquela noite o russo informou aos companheiros que a rebelião estava em pleno andamento.O plano básico de Sasha e Leon consistia em atrair osSS para locais onde diferentes atividades eram desenvolvidas em Sobibor. Na adolescência dos seus 16 anos de idade, Stanislaw, que todos no campo chamavam de Shlomo, foi designado para uma tarefa crucial: entrar no depósito de armas dos ucranianos, retirá-las e fornecer a maior quantidade possível de rifles para os revoltosos. Ele era o único que poderia se incumbir dessa missão porque gozava de particular liberdade para circular pelo campo e tinha os alicates capazes de romper os cadeados das estantes de armas. Enquanto isso, os combatentes deveriam ir tomando as estratégicas posições que lhes haviam sido designadas.O oficial Josef Niemann, um dos mais perversos de Sobibor, desmontou de seu belo cavalo e entrou na alfaiataria onde encomendara um novo uniforme. Enquanto provava a roupa, foi abatido com um golpe de machado na cabeça. Arrastaram seu corpo às pressas para o fundo da alfaiataria porque o chefe dos guardas ucranianos começava a cruzar a porta de entrada. Foi morto a facadas.

Em seguida entrou outro ucraniano, o guarda Klat, que teve o mesmo destino.O oficial Goettinger, responsável pelo Campo 3, foi chamado à sapataria para experimentar seu novo par de botas. Também morreu com um golpe de machado na cabeça. O oficial Gaulstich foi emboscado e morto na carpintaria. Outro nazista, chamado Beckman, foi eliminado por três prisioneiros em sua mesa de trabalho. Como era corpulento para ser carregado ou escondido, deixaram seu corpo ali mesmo. O oficial Walter Ryba entrou na garagem das SS e foi morto por um mecânico que ali trabalhava.Os prisioneiros se reuniram no pátio às cinco da tarde, meia hora antes da contagem. Às cinco e dez, Sasha faria soar um apito depois do qual todos deveriam correr na direção das cercas e do portão. Mas, ele percebeu que seria impossível que a fuga se desse de forma ordeira. Subiu no capô de um veículo e gritou: “Nosso dia chegou! Os carrascos estão mortos e nós vamos morrer com honra. Quem sobreviver, terá que contar ao mundo o que aconteceu aqui”.Relato de Stanislaw: “O grosso da multidão corria para o local que dava acesso ao pátio dos oficiais da guarda ucraniana. Naquele instante vinha entrando um deles. Morreu esmagado, estraçalhado sob as centenas de pés daquele rolo compressor. Enquanto os soldados de plantão atiravam sobre nós com fuzis e metralhadoras, seguimos para as três cercas próximas à saída principal de Sobibor. Passando sobre centenas de cadáveres, continuamos avançando e logo começamos a pisar num terreno todo cheio de minas explosivas. Mais mortes. A um certo momento, peguei meu fuzil de forma desajeitada e disparei quatro vazes na direção de uma das torres de vigilância que nos atingia. Soube depois que meus tiros acertaram no guarda ali postado”.Os prisioneiros que conseguiram escapar chegaram a uma floresta adjacente ao campo de concentração. O primeiro desejo de todos foi tentar encontrar parentes e amigos. Poucos tiveram essa sorte. Decidiram, então, se dividir em pequenos grupos que sairiam em busca de comida e abrigo. Sasha Perchevsy liderou um grupo de cinquenta ex-prisioneiros e no dia 17 de outubro lhes disse que se ausentaria

para conseguir alimentos. Nunca mais voltou, nunca mais foi visto pelos companheiros de rebelião. (Ele regressou à União Soviética onde foi preso, acusado de ser um cosmopolita judeu. Depois de solto, continuou sendo perseguido, levou uma existência obscura e morreu em 1990).Dos 300 prisioneiros que escaparam, 100 foram recapturados pelos nazistas. Os 200 restantes vagaram pela floresta em busca de esconderijos e muitos deles foram assassinados ao longo dos seus percalços por poloneses civis e poloneses partisans. Entre esses mortos estava Leon Feldhendler. Ao final da epopeia, sobreviveram apenas de 50 a 70, entre os quais Stanislaw Szmajzner. “Andamos durante toda a noite e achamos um lugar para descansar. Começamos a divagar e a fazer perguntas a nós mesmos, pois estávamos completamente atordoados”.Ele se separou dos demais companheiros e decidiu comandar a própria sorte. Depois da guerra, enfrentou inúmeras e perigosas andanças pela Polônia, parando em cidades pequenas e não tão pequenas  e ganhando o sustento como ourives. Juntou-se a um grupo de judeus que aguardava ser levado para a então Palestina em navios ilegais. Julgou que já tinha assumidos riscos demais e desistiu da empreitada. Sabia que tinha parentes no Brasil e, com o dinheiro poupado, chegou até a Itália, embarcando em Gênova para o Rio de Janeiro. Em seguida, inesperadas circunstâncias levaram-no a se estabelecer numa fazenda no estado de Goiás, onde começou a escrever seu livro de memórias.Em 1967, o célebre caçador de nazistas, Simon Wiesenthal, conseguiu detectar a presença de Franz Stangl na capital de São Paulo. Stangl, nascido na Áustria em 1908, entrou para o partido nazista em 1938, quando a Áustria foi anexada pela Alemanha. Revelou-se um eficiente cumpridor de ordens e foi destacado para a Gestapo. Começou a atuar no Centro de Eutanásia da cidade de Linz, onde eram sacrificados deficientes físicos e mentais de toda sorte. Em 1942, recebeu a incumbência de acelerar a construção do campo de concentração de Sobibor. Ali permaneceu de abril a agosto daquele ano, deixando como legado um manual de instruções para o sistemático extermínio de

judeus. Foi transferido para Treblinka, onde a matança de judeus obedecia ao ritmo de 22 mil por dia. Por sua eficiência, recebeu a cobiçada “Cruz de Ferro” do exército alemão. Depois da guerra foi preso pelos aliados que procuraram desvendar seu passado. Permaneceu durante dois anos num campo de internação, de onde escapou rumo à Itália.Em Roma, obteve com o notório bispo Alois Hudal documentos falsos, surpreendentemente com seu verdadeiro nome, e viajou para a Síria, onde obteve emprego numa indústria têxtil, sua especialidade anterior ao engajamento nazista. Em 1951, resgatou a mulher e a filha, que se encontravam na Alemanha, e a família embarcou para o Brasil.Segundo Wiesenthal, o paradeiro de Stangl lhe foi informado no final de 1966, por um antigo oficial da Gestapo que queria ser remunerado para colaborar. Ele fez uma conta assombrosa e repugnante. Como em Treblinka haviam sido exterminados 700 mil judeus, queria um centavo por cabeça. Assim, o total chegou a 7 mil dólares, que seriam pagos (como de fato foram) se a informação fosse verdadeira e se Stangl fosse preso. Wiesenthal passou a informação para o Mossad (serviço secreto de Israel), que acabou encontrando Stangl como funcionário menor da fábrica Volkswagen, em São Paulo. Era uma situação delicada porque a Volkswagen fora bem acolhida pelo governo brasileiro, já era uma empresa de prestígio internacional e abrigava milhares de trabalhadores brasileiros. A prisão do carrasco de Treblinka e Sobibor só se consumaria se houvesse a concordância do governador Abreu Sodré, que, sem titubear, encaminhou a questão à Secretaria de Segurança.A prisão foi efetuada no dia 28 de fevereiro de 1967 e Stanislaw foi chamado para colaborar na identificação. A então Alemanha Ocidental requereu a extradição de Stangl, concedida pelo Brasil. Entretanto,  foi levantada uma controvérsia jurídica: por que ele seria julgado na Alemanha se os seus crimes haviam sido cometidos na Polônia? O poder judiciário alemão discutiu o assunto durante três anos até concluir que Stangl fora responsável pelo assassinato de 1 milhão e 200 mil pessoas e, assim, os crimes contra a humanidade se sobrepunham à questão da jurisdição. O julgamento de Stangl teve

início em Dusseldorf, no dia 13 de maio de 1970. O livro Inferno em Sobibor foi traduzido para o alemão e serviu como um dos principais itens da promotoria, e Stanislaw foi convocado como testemunha.Enviei um repórter e um fotógrafo da sucursal da Manchete em Paris para cobrirem o julgamento. Numa das sessões do tribunal, o inquieto Stanislaw saiu de seu lugar, caminhou até o banco dos réus e ofereceu um cigarro a Stangl, dizendo: “Você nunca me deu nada, mas deixe eu lhe dar alguma coisa”. O cigarro foi recusado e o fotógrafo captou aquele exato momento, mostrando o Stanislaw com o braço estendido.Franz Stangl não contestou a maioria das acusações que lhe foram imputadas e foi condenado à prisão perpétua. Seis meses depois do julgamento ele morreu vítima de um infarto na prisão, mas pouco antes concedeu uma entrevista histórica à jornalista Gitta Sereny, um dos depoimentos mais contundentes relativos ao Holocausto. Ele disse, entre outras informações, que tinha a consciência tranquila porque via as pessoas desembarcando dos trens como se fossem apenas um carregamento. Acrescentou que jamais teve ódio dos judeus, mas que sentia orgulho pelo perfeito trabalho que havia implantado nos campos de concentração e pelo fato de nunca ter matado alguém com as próprias mãos. Por fim, assim como fez Eichmann em Jerusalém, insistiu que estava apenas cumprindo ordens.No tribunal, Stangl revelou que um dos chefes de Sobibor, Gustav Wagner, também se encontrava no Brasil e também no estado de São Paulo. Wiesenthal informou o Mossad, que, agindo junto com a polícia paulista, localizou o criminoso num lugarejo entre as cidades de Mairiporã e Atibaia. Ao ser preso, no fim de maio de 1978, Wagner apresentou o nome falso de Gunther Mendel, que usava há trinta anos, e negou que tivesse qualquer relação com o regime nazista ou com Sobibor. Foi levado a uma delegacia na capital e ali aconteceu um episódio em estilo de dramaturgia. Stanislaw estava sentado num banco quando Wagner passou junto dele e seguiu em frente. Stanislaw gritou: “Gustl!” (Seu apelido no campo). O carrasco virou a cabeça de imediato e deu de cara com Stanislaw, que lhe disse: “Eu tinha quinze anos. Você me tirou do trem a pontapés, lembra?” Wagner respondeu: “Sim, sim, você e mais três irmãos”. Stanislaw: “Não eram meus

irmãos, eram meus amigos”. A identificação do nazista estava consumada. Mais uma vez a Alemanha Ocidental pediu a extradição, mas a justiça brasileira negou, tendo em vista a controvérsia jurídica anterior. No dia 12 de junho, preso na Polícia Federal, em Brasília, Wagner amassou as lentes de seus óculos e tentou suicidar-se, ingerindo os cacos de vidros. No mesmo dia, as autoridades emitiram o seguinte comunicado: “O Departamento de Polícia Federal informa que na madrugada de hoje, Gustav Wagner, após fragmentar as lentes de seus óculos com o solado de seus sapatos, passou a ingerir o vidro triturado, no que foi impedido pelo policial responsável por sua guarda. O cidadão em referência continua submetido a assistência médica diária”. Gustav Wagner morreu de infarto na prisão em outubro de 1980.A última vez que me encontrei com Stanislaw foi no início de 1987. Estava eufórico. Tinha chegado da antiga Iugoslávia onde atuara como consultor durante as filmagens de Fuga de Sobibor. Garantiu que o filme, fora algumas poucas licenças para efeitos dramáticos, é um retrato fidelíssimo dos acontecimentos naquele campo de concentração. Voltou para Goiás, de onde me mandou um saco de arroz e outro de feijão. Morreu dois anos depois. Desconheço o motivo.