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JUAN ANDRÉS CAMOU VIACAVA SE ARMARON CON ELLOS LAS IDEAS PARA RESISTIR A LA FUERZA: POR UMA REAVALIAÇÃO DA OPOSIÇÃO ENTRE CAUDILHO E ESTADO NO URUGUAI A PARTIR DE HERRERA Y OBES, BERRO, ANTUÑA E ZÁS (1ª METADE DO SÉCULO XIX). Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de mestre pelo curso da Pós-Graduação do Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Carlos A. M. Lima CURITIBA 2005

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JUAN ANDRÉS CAMOU VIACAVA

SE ARMARON CON ELLOS LAS IDEAS PARA RESISTIR A LA FUERZA: POR UMA REAVALIAÇÃO DA OPOSIÇÃO ENTRE CAUDILHO E ESTADO NO URUGUAI A PARTIR DE HERRERA Y OBES, BERRO, ANTUÑA E ZÁS

(1ª METADE DO SÉCULO XIX).

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de mestre pelo curso da Pós-Graduação do Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Carlos A. M. Lima

CURITIBA 2005

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos professores doutores do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná, especialmente ao meu orientador Prof. Dr. Carlos Alberto Medeiros Lima. Outro grande agradecimento é dedicado à minha família, tanto em sua parte uruguaia quanto brasileira. Gracias a mi abuela Edith Camou (Mamina), a Blanca dos Santos y a Beatriz Torrendel Larravide. Mais especial ainda é meu agradecimento à Rachel Lora Lambrecht que, além de companheira, é minha revisora de texto. Este trabalho foi feito com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a quem também agradeço.

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iv

RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo estudar algumas relações entre caudilhismo e Estado para o contexto da ‘Guerra Grande’ uruguaia. Para a historiografia platina, o caudilho e seu fenômeno condensam uma série de relações sociais e políticas, resultando em modelos específicos de Estado e sociedade. Abordando sentidos construídos para as palavras ‘revolução’ e ‘civilização’ na interpretação de movimentos que se consideravam revolucionários no contexto platino da primeira metade do século XIX, examinam-se os textos de Manuel Herrera y Obes e Bernardo Prudencio Berro, publicados entre 1847 e 1848 como exemplos de dois indivíduos que puderam entender e reconstruir sua recente história sob a influência do contexto bélico da ‘Guerra Grande’ e de um campo de discussão que abrangia ambas as margens do rio da Prata. Na seqüência, com a ajuda das memórias de José Encarnación de Zás e Francisco Solano Antuña, procurar-se-á analisar possíveis combinações ou antagonismos entre instituições estatais e determinados elementos do caudilhismo. Estas duas últimas fontes não tinham as mesmas finalidades da escrita de Herrera y Obes e Bernardo Berro, uma vez que os textos de Zás e Antuña estavam baseados em suas experiências cotidianas e não tinham como objetivo a publicação; entretanto, as informações ali contidas oferecem boas oportunidades de verificação da utilização das categorias ‘civilização e barbárie’ e ‘caudilhismo’ em práticas políticas e estratégias de alguns atores sociais daquele período. Desta forma, serão encontrados elementos “modernos” e de Antigo Regime combinados na organização de instâncias estatais, discursos e práticas políticas. Palavras-chave: Caudilhismo, Estado, América Ibérica.

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v

ABSTRACT

This dissertation aims the study of some relations between caudillism and the State in the Uruguayan Guerra Grande’s context. To the River Plate historiography, the caudillo phenomenon sets a series of social and political relations. Revising some meanings of the words ‘revolution’ and ‘civilization’ in the interpretation of movements that considered themselves as revolutionaries engagements during the first half of the 19th century, the texts of Manuel Herrera y Obes and Bernardo Prudencio Berro are taken as examples of two individuals who were thinking their recent history under the influence of the Guerra Grande’s war years, a discussion field that covered both shores of the River Plate. As a sequence, José Encarnación de Zás and Francisco Solano Antuña are helping this work with their written memories, which will lead to the analyses of possible combinations or antagonisms between state institutions and certain elements of caudillism. These two last texts weren’t thought with the same intentions of Herrera y Obes and Berro, but their matter might offer an opportunity of verification of the concepts of ‘caudillism’, ‘civilization’ and ‘barbarism’ in political practices and strategies of some social actors of that period. Therefore, “modern” and Ancient Regime elements will be found mixed in the organization of state institutions, speeches and political practices. Key words: Caudillism, State, Latin America.

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SUMÁRIO

RESUMO ............................................................................................................................................. iv ABSTRACT .......................................................................................................................................... v INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 1 1 DEBATES ARGENTINOS E URUGUAIOS ACERCA DO CAUDILHISMO ........................ 20 1.1 HISTORIOGRAFIA URUGUAIA EM SEUS ASPECTOS GERAIS .......................................... 20 1.2 DUALISMOS: CAUDILHOS E DOCTORES; CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE. CONSTRUÇÃO

E USO PARA O CASO PLATINO............................................................................................... 31 1.3 ESTADO, CIVILIZAÇÃO E CAUDILHISMO EM ALGUNS AUTORES URUGUAIOS. ....... 39 1.4 QUESTÕES ATUAIS ACERCA DO “CAUDILHISMO CLÁSSICO” ....................................... 62 1.4.1 Dualismos: poder institucional e personalizado; civilização e barbárie; rural e urbano. ............ 62 1.4.2 Um tipo social e seu fenômeno: o gaúcho e as montoneras........................................................ 70 1.4.3 Clientelismo ................................................................................................................................ 74 1.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................... 77 2 AS CATEGORIAS “CIVILIZAÇÃO”, “CAUDILHISMO” E “REVOLUÇÃO” EM

ALGUNS AUTORES PLATINOS DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX ............. 81 2.1 A GERAÇÃO DE 1837 E SUA PRESENÇA EM MONTEVIDÉU ............................................. 81 2.1.1 A categoria “civilização” em Alberdi ......................................................................................... 91 2.2 UM SARMIENTIANO: MANUEL HERRERA Y OBES. REVOLUÇÃO E CIVILIZAÇÃO ... 98 2.4 A RESPOSTA BLANCA DE BERNARDO PRUDENCIO BERRO........................................... 118 2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................... 129 3 ENCONTROS DE (E COM) JOSÉ ENCARNACIÓN DE ZÁS E FRANCISCO SOLANO

ANTUÑA ...................................................................................................................................... 132 3.1 A TRAJETÓRIA DE JOSÉ ENCARNACIÓN DE ZÁS............................................................. 133 3.1.1 Encontro com um empleado...................................................................................................... 137 3.1.2 Instâncias estatais em um de seus empleado ............................................................................. 155 3.2 FRANCISCO SOLANO ANTUÑA, BLANCO Y DOCTOR ....................................................... 167 3.2.1 Encontro com um doctor e a necessidade de abandonar Montevidéu....................................... 172 3.2.2 A permeabilidade relativa do cerco / Crimes e punições .......................................................... 179 3.2.3 Pátria, nação e apropriação da história / Civilização e barbárie................................................ 187 3.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................... 203 4 CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 207 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................... 212 ANEXOS ........................................................................................................................................... 217

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1

INTRODUÇÃO

Em 1847, Manuel Herrera y Obes publicou no periódico El Conservador de

Montevidéu uma das primeiras versões uruguaias dedicadas à análise da recente

história daquele jovem Estado. Não se limitando a uma mera descrição cronológica

dos fatos, construiu uma interpretação que pretendia unificar toda sua história em um

sentido caracterizado por um progresso civilizador universal. De modo algum um texto

imparcial, sua intenção era atacar o partido rival blanco, posicionando-o

negativamente no interior desta mesma história, identificando-o como inimigo contra-

revolucionário e conservador frente aos avanços da civilização européia. Bernardo

Prudencio Berro tomaria para si a tarefa de refutar a versão colorada de Herrera y

Obes. Publicando no El Defensor de la Independencia Americana, ironizou a

arrogância dos seus opositores, querendo demonstrar a legitimidade do seu partido na

guerra civil que enfrentava.

O período que se seguiu à independência foi rico em projetos de organização

social e estatal. Especificamente para década de 1840, as guerras entre unitários e

federais, colorados e blancos, desencadeadas na Argentina e no Uruguai, deram um

tom particular às interpretações e projetos de cada um. Na mesma medida em que se

militarizavam pelo poder estatal, lutavam pelo privilégio de estabelecer uma versão

hegemônica que não apenas explicasse a situação social do Prata, mas que também

apresentasse as soluções que os livrariam daquela conjuntura bélica e “anárquica”.1

Nos dois autores acima citados, encontra-se a continuação de uma discussão

que colocava o caudilhismo no centro da problemática platina. O caudilhismo seria, e

ainda é, um tema central para o século XIX. Por este motivo, é possível encontrar

diversos vestígios deste tema “fundador” desencadeado no Prata por personalidades

como a de Sarmiento e Alberdi, retomado no Uruguai por Herrera y Obes e Bernardo

1 Esta “anarquia” era atribuída à ausência de um Estado estável e legítimo, ou aos que desobedeciam a um poder constituído.

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Berro, em trabalhos historiográficos recentes. A importância do debate entre Berro e

Herrera y Obes simboliza uma disputa secular entre os tradicionais partidos uruguaios,

a ponto de ser reeditada em uma compilação em formato de livro na década de 1960

em uma coleção patrocinada pelo governo uruguaio.

José Encarnación de Zás e Francisco Solano Antuña oferecem uma

oportunidade bastante diferente da anterior. O primeiro, escrevendo em 1851,

desenvolveu uma autobiografia, narrando sua participação em eventos históricos que

acreditava importantes. O segundo escreveu um diário durante o cerco a Montevidéu

da ‘Guerra Grande’ para o intervalo de 1843 a 1848, atendo-se principalmente ao

teatro de guerra com que se forçava a conviver. Menos preocupados em dar um

sentido histórico, os eventos narrados permitem a análise de algumas práticas destes

dois indivíduos e dos demais com quem interagiram. Principalmente para o caso de

Zás, seu trabalho de empleado em instâncias estatais artiguistas e coloradas garantem

boas oportunidades de comparação entre suas descrições e as propostas de Herrera y

Obes formuladas alguns poucos anos antes. Veremos como compartilharam de uma

série de valores comuns, mas a forma como estes foram aplicados em suas ações e

tomadas de posição diferem consideravelmente em vista de suas trajetórias

particulares. Por outro lado, Antuña abre espaço para uma versão blanca do cotidiano

da guerra, mas também oferece uma versão diferente de um caudilhismo que, se não

teorizado, é aplicado como categoria na avaliação de outros indivíduos. Doutor em

direito pela Universidade de Buenos Aires, Antuña se afasta da tradicional imagem do

caudilho blanco que fora construída ao longo da segunda metade do século XIX, e,

assim como seu colega de partido Bernardo Berro, questionará a auto-atribuição

civilizadora colorada enunciando suas contradições quando comparadas às práticas do

governo instalado e sitiado de Montevidéu.

Incluindo esta introdução, a dissertação está dividida em quatro partes. Nas

próximas páginas, encontra-se primeiramente um breve contexto que apresenta alguns

dos principais eventos levados em conta por Herrera y Obes e Berro para fundamentar

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suas posições. Neste mesmo sentido, o entendimento da ‘Guerra Grande’, ainda que

superficial, atende à necessidade de demonstrar como este conflito, estendido ao

território argentino, gerou um campo de discussão política em que se buscava a

legitimidade por intermédio da construção de concepções acerca da História da Banda

Oriental, principalmente para o período desencadeado pela Revolução de Maio de

1810. Apesar do seu inicial enfoque legitimista de 1808, data da abdicação forçada de

Fernando VII, o movimento de independência se radicalizou a partir de 1810, partindo

para um esforço de guerra cuja dinâmica marcou profundamente a formação da

sociedade platina para as décadas que se seguiram. Halperín Donghi já escrevia como

a guerra alterou profundamente a própria constituição das elites platinas, mas o

conflito armado não terminou com a independência proclamada pelo Congresso de

Tucumán de 1816, nem mesmo com a definitiva derrota espanhola no continente.2 A

questão a ser resolvida estava na legitimação de um governo que substituísse a

monarquia espanhola. As dificuldades em conciliar as lideranças provinciais, ou

mesmo em alcançar um consenso a respeito da forma de governo a ser adotado,

instituiu um clima de instabilidade que, aos olhos dos contemporâneos, parecia não ter

fim. Golpes de Estado e guerras civis se seguiram por todo o Rio da Prata do século

XIX. Ainda na década de 1840, com o conflito entre unitários e federais na Argentina,

e com a ‘Guerra Grande’ no Uruguai, as primeiras versões de explicação social e

histórica escritas no e para o Prata estão profundamente marcadas pela guerra que

insistia em se prolongar.

O primeiro capítulo conta com uma revisão de algumas das principais obras

historiográficas argentinas e uruguaias. Os temas abordados foram escolhidos pela

relevância que têm tanto para o período estudado, como para entender aquele passado

já analisado e julgado por Herrera y Obes e Bernardo Berro. Além do corte

cronológico, privilegiou-se compreender o uso consagrado de certas categorias, como

a de civilização e barbárie, e, principalmente, a do caudilhismo. Este foi considerado 2 HALPERÍN DONGHI, Tulio. Revolución y guerra. Buenos Aires : Siglo XXI, 1994.

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um fenômeno chave para o entendimento do século XIX. Explicaria tanto a política e a

guerra como as relações sociais e hierárquicas entre os platinos. Utilizado de formas

diferentes de acordo com a época da obra, o caudilhismo é um dos temas fundadores

para a historiografia daquela região.

Para o segundo capítulo, este trabalho dirige sua atenção para o debate

publicado por periódicos locais entre o final de 1847 e o início de 1848 entre Manuel

Herrera y Obes e Bernardo Prudencio Berro. Escrevendo sob a égide da ‘Guerra

Grande’, Herrera y Obes expôs uma versão colorada para o caudilhismo e para o

sentido da guerra, incluindo nesta a independência e a guerra civil que a seguiu.

Buscando apontar os erros desta versão colorada, o blanco Bernardo Berro respondeu

indicando contradições e reinterpretando o significado da guerra e da organização

social uruguaia. Enquanto o primeiro, profundamente influenciado por Sarmiento,

procurou construir uma versão acabada de ‘civilização e barbárie’ para o Uruguai, o

segundo, menos ambicioso, dedicou-se mais a atacar o texto adversário do que

propriamente elaborar uma interpretação própria. Porém, com a ajuda de outros textos

auxiliares de Berro, é possível entender um pouco do que seria uma versão blanca da

guerra e da independência. Assim, podemos traçar alguns elementos do campo político

de discussão gerado por facções inimigas em conflito.

No terceiro e último capítulo, partimos para a análise de práticas políticas. Em

José Encarnación de Zás, encontramos os Apuntes curiosos para mis hijos, memórias

que, escritas em 1851, narravam algumas “aventuras” vividas por este indivíduo,

interessado em contar um pouco da sua atuação de empleado, ou “pequeno burocrata”,

no interior de algumas versões ou tentativas de Estado no território do atual Uruguai.

Trata-se de uma obra dedicada à família, sem intenção de publicação. Contudo, escrita

ainda durante a ‘Guerra Grande’, e, mais do que isso, em boa parte interessando-se por

um corte cronológico bastante próximo ao de Herrera y Obes (da independência até

esta mesma ‘Guerra Grande’), cria a oportunidade de ultrapassar a propaganda política

do primeiro e entender como suas idéias aparecem ou não no interior da vida “prática”

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de um servidor do Estado. Questões como a do caudilhismo reaparecem em Zás não

como teorias sociais, mas como situações de enfrentamento pessoal. Enquanto Herrera

y Obes interpreta o artiguismo, Zás narra sua participação no interior deste

movimento, relembrando suas funções e os demais indivíduos que o acompanhavam.

Na seqüência, seu padrinho de casamento Francisco Solano Antuña oferece mais

algumas oportunidades para o estudo de um indivíduo e suas relações pessoais, mas

desta vez concentradas em um diário que descreve alguns acontecimentos da ‘Guerra

Grande’, escritos tanto dentro quanto fora da cidade sitiada de Montevidéu.

Por fim, ao término da leitura desta dissertação, será possível compreender

alguns aspectos da história da primeira metade do século XIX uruguaio, com ênfase

para a ‘Guerra Grande’, privilegiando a análise de um campo de disputa pela

legitimidade de uma versão histórica e social para um Uruguai recém independente.

Além disso, Zás e Antuña se colocam como dois indivíduos que participaram

ativamente de todo este período, possibilitando o aprofundamento das questões

levantadas pelo campo das idéias no estudo de práticas políticas. Nestas práticas, tanto

um como o outro apresentarão algumas possibilidades estratégicas de indivíduos e

“Estados” (projetos ou instâncias burocráticas e estatais). Seguindo caminhos

“modernizadores” ou típicos de Antigo Regime, o repertório de opções para a

construção de alianças, legitimidades e administração estatal estaria formado por uma

base muito mais ampla e híbrida do que a oposição maniqueísta de ‘civilização e

barbárie’, ou de ‘doctores y caudillos’, poderia supor. O fenômeno do caudilhismo e

da organização estatal uruguaia estarão passando por uma revisão que não os coloca

como necessariamente antagônicos, mas como integrantes de um momento específico

da história uruguaia, convivendo em co-participação ou não de acordo com a

percepção de cada indivíduo e de cada idéia de Estado elaborada por aquele contexto.

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Contexto histórico.3

1 – A ‘Guerra Grande’

Para entender o campo de discussão em que se inserem Manuel Herrera y

Obes, Bernardo Prudencio Berro, José Encarnación de Zás e Francisco Solano Antuña,

é vital avaliar alguns dos principais aspectos da chamada ‘Guerra Grande’. Neste

sentido, o espaço deste primeiro subtítulo tem como objetivo identificar algumas das

questões políticas e sociais que envolveram tanto as idéias contidas na discussão entre

os dois primeiros como o ambiente no qual se desenvolveu a trajetória de Zás e o

diário de Antuña. Por um lado, este breve contexto procura enunciar acontecimentos,

situações ou mesmo organizações daquela sociedade platina que receberam destes

indivíduos uma atenção diferenciada. Da mesma forma, serve como respaldo para o

entendimento da revisão historiográfica uruguaia e argentina que, na seqüência,

pretende apontar algumas interpretações relevantes para o tema desta dissertação.

Ao discutir em um tom de polêmica questões da controvérsia política do

período, Berro e Herrera y Obes são capazes de indicar alguns elementos de uma

polêmica que se ampliava para além do Uruguai do intervalo temporal indicado. Este

ambiente de reflexão política não pode ser encarado como marcado pela

preponderância de uma idéia, mas deve ser compreendido como um jogo legitimado

de tomadas de posição em confronto e, portanto, em relação. É na interação e no

choque político que surgiram, através destas controvérsias, as primeiras interpretações

sociais e históricas para o Rio da Prata recém independente.

Por outro lado, a finalidade de usar Zás e Antuña no último capítulo é a de

rastrear a inserção das questões fundantes da controvérsia política captadas na dupla

Berro e Herrera na trajetória de quem se vinculava à construção do estado. É isto o que

3 Este contexto não tem a intenção de retomar algum debate, mas apenas apresentar alguns acontecimentos que serão relevantes para o melhor entendimento dos próximos capítulos.

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justifica o aprofundamento nas fontes de Zás e Antuña. Um caminho possível é aquele

que atenta para os aspectos institucionais daquele contexto. Desta forma, mais do que

olhar para indivíduos que refletiam sobre o Estado e a política no Uruguai do período,

é importante observar as instituições que davam margem àquelas reflexões. A fim de

não produzir uma versão homogênea desse processo (a disputa, a controvérsia, o

relacional, enfim, são decisivos), parte-se para a leitura de fontes que apontem para

práticas como as de Zás e Antuña, encontrados em lados opostos do conflito durante a

‘Guerra Grande’.

A ‘Guerra Grande’, travada entre 1839 e 1851, inicialmente uma guerra civil

entre duas facções uruguaias que se organizaram logo após a independência de 1828,

teve grande impacto na interpretação que aquele mesmo período desenvolveu sobre si

mesmo, sua própria história e sociedade. Ela pode ser vista como o ápice de um longo

enfrentamento social que deixou profundas marcas na organização e na divisão do

poder estatal no Uruguai. O bipartidarismo que predominou até as últimas décadas do

século XX, e que somente encontrou seu declínio após o golpe militar de 1974, tem

suas raízes no acirramento das lutas entre colorados e blancos no século XIX e a

subseqüente necessidade de coexistência e co-participação que se seguiu. Segundo

aponta Pivel Devoto4 (cuja obra pertinente será analisada mais adiante), recém

promulgada a constituição de 1830, esta divisão partidária se deu entre aqueles que

foram perseguidos e combateram o governo luso-brasileiro que ali esteve entre 1817 e

1828 e aqueles que aderiram, mesmo que momentaneamente, à sua presença. Os

denominados “abrasilerados”, unidos em torno a Rivera, formariam o futuro partido

colorado, em cujos quadros encontraremos Herrera y Obes e Zás. Os “Defensores de

las Leyes”, batizados e liderados por Manuel Oribe5 a partir de 1836, estavam

4 PIVEL DEVOTO, J. E. Historia de los partidos políticos, la formación de los bandos (1829-1838). Montevidéu : Editorial Medina, 1956. 5 Manuel Oribe (1792-1857)

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formados por lavallejistas6, aporteñados7 e demais inimigos políticos de Fructuoso

Rivera, incluindo Berro e Antuña.

Tanto Rivera como Juan Antonio Lavalleja estiveram ao lado de Artigas na

formação da “Liga Federal” que, unindo a Banda Oriental8 a outras províncias

argentinas, opunha-se ao centralismo porteño. Também participaram da resistência à

invasão portuguesa iniciada em 1816. Contudo, enquanto o grupo mais próximo a

Lavalleja foi perseguido e se exilou na Argentina, Rivera logo se acertou com o

governo português. O mesmo ocorreu com a administração brasileira que se instalou a

partir de 1822, pois o grupo riverista se manteve ao lado dos imperiais. Três anos mais

tarde, com a já presente força lavallejista vinda e financiada desde Buenos Aires,

Rivera romperia com os representantes do Império para unir-se novamente aos antigos

colegas artiguistas.

As lutas entre as Províncias Unidas e o Império se estenderam por mais três

anos a partir de 1825. Após o tratado de paz de 1828 e acordada a criação de um novo

Estado, que logo receberia o nome de República Oriental del Uruguay, iniciaram-se os

trabalhos para a redação de uma Constituição que somente estaria pronta em 1830.

Assim que aprovada, foram promovidas as primeiras eleições departamentais de

representantes legislativos. Em 24 de outubro de 1830, tendo os riveristas obtido a

maioria das cadeiras da câmara, Rivera foi eleito, indiretamente, presidente da

república com 27 votos contra cinco de Lavalleja. Neste mandato, Rivera enfrentou as

primeiras revoltas dos seus opositores, lideradas pelo contrariado Lavalleja e seu bloco

6 Seguidores de Juan Antonio Lavalleja, líder da “Cruzada Libertadora” de 1825 que promoveu a luta contra o Império do Brasil para a “libertação” da antiga Banda Oriental, procurando, de início, reincorpora-la às Províncias Unidas do Rio da Prata (atual Argentina), mas resultando, posteriormente, na independência em 1828. 7 Ligados à elite de Buenos Aires e, em geral, adeptos da reincorporação ao Estado vizinho. 8 Este era o nome dado à região que aproximadamente ocupa o território do Uruguai atualmente. A Banda Oriental em si não estava de forma alguma unificada, e nem sequer constituía o território de uma instituição em particular, uma vez que se encontrava divida por jurisdições diversas. Seu nome apenas significava “o lado de lá”, ou seja, as terras ao leste do rio Uruguai para o ponto de vista de Buenos Aires. A idéia de “povo oriental” começa a surgir durante as primeiras décadas do XIX, porém, como veremos adiante, tem inicialmente pouco a ver com um nacionalismo para a região.

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derrotado nas eleições anteriores. Apesar dos transtornos, seu mandato foi mantido por

todo o período regulamentar.

Em 1835, como resultado de uma nova distribuição de poder na Câmara de

Representantes, assumiu a presidência o também militar Manuel Oribe.9 Para manter o

equilíbrio do poder, é criado especialmente para Rivera o cargo de Comandancia

General de la Campaña, o que é visto por muitos como uma divisão de poder entre

“dois presidentes”, o da cidade e o do campo. Todavia, Oribe extingue este posto em

19 de fevereiro de 1836, desencadeando uma revolta liderada por Rivera que terminará

com a renúncia do primeiro em 1838. É justamente nesta revolta desencadeada em

1836 que se dão nome aos partidos que estão presentes na política uruguaia até hoje.

A tradição conta que os nomes dos partidos têm origem nas cores das divisas

que utilizaram em batalha para diferenciar-se uns dos outros. Aqueles que pretendiam

manter a presidência e a ordem constitucional, os Defensores de las leyes, escolheram

a cor branca. Seus opositores inicialmente tomaram o celeste, e posteriormente

adotaram o vermelho, sendo conhecidos, a partir de então, como colorados.

A renúncia forçada do presidente blanco em 1838 não pôs fim ao conflito.

Oribe emigrou para Buenos Aires, onde lutou sob a bandeira federalista de Rosas

contra os unitários. Comandou os exércitos federais contra a Liga do Norte (união de

províncias do noroeste argentino), e igualmente venceu as tropas do General Lavalle

na região do Litoral10. Ainda em 1839, e desencadeando a ‘Guerra Grande’, Fructuoso

Rivera declarava-se hostil ao governador Juan Manuel de Rosas. Contudo, Oribe

obteve a importante vitória de Arroyo Grande em Entre Rios, desarticulando as forças

da aliança de correntinos e colorados. Com o apoio do governador da Província de

Buenos Aires, e momentaneamente pacificada a Confederação Argentina, Oribe

9 Para este indivíduo, existe uma interessante disputa de palavras entre os historiadores que ou o consideram caudilho ou apenas o classificam de militar. Mais adiante, veremos a importância que esta escolha tem para a interpretação histórica. 10 Para aquele contexto, incluem-se no ‘Litoral’ as províncias de Buenos Aires, Santa Fé, Entre Rios, Corrientes.

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retornou à Banda Oriental para retomar sua luta contra Rivera e os colorados. Em 16

de fevereiro de 1843, os habitantes de Montevidéu já podiam avistar a chegada dos

blancos ao Cerrito, dando início ao mais longo sítio que conheceu a cidade de

Montevidéu (nove anos).

A ‘Guerra Grande’ foi a expansão de um conflito inicialmente interno,

atraindo unitários e federais argentinos ao território do Uruguai. Não deixaram de

intervir também as potências européias – França e Inglaterra participaram ativamente.

Indo além da condição de mediadores, estes serão os responsáveis por um bloqueio aos

portos controlados por federais e blancos, e proporcionarão apoio naval na

movimentação de tropas coloradas pelo litoral.11 Além disso, a formação das

chamadas Legiões Estrangeiras que contavam com uma importante população

imigrante de franceses, italianos e espanhóis, deu aos colorados um contingente extra

à organização da defesa da capital. O Império do Brasil entrará no conflito já nos

últimos anos desta guerra, aliando-se a uma força conjunta de colorados e unitários

liderada por Justo Urquiza que conduzia uma facção federal que já retirara seu apoio

ao governador de Buenos Aires, Juan Manuel de Rosas.

Dentre as histórias que podem ser escritas sobre a Bacia do Prata, seguramente

está entre as menos adequadas a mera adição de histórias nacionais ou regionais. Se ao

Brasil e à historiografia brasileira esta integração é na maioria das vezes apresentada

como um problema de política externa (com a exceção do que corresponde ao Rio

Grande do Sul), para a Banda Oriental colonial e da primeira metade do século XIX

não existe separação nítida entre assunto interno e externo sob múltiplos aspectos,

principalmente quando relacionados às outras partes do antigo vice-reinado. A própria

historiografia carrega em seus títulos uma união histórica para o Prata. “História do

cone sul” ou “As Repúblicas do Prata” são freqüentes exemplos desta interpretação.

Os acontecimentos econômicos, sociais e políticos são constantemente

sentidos em ambas margens deste estuário, mesmo que com desdobramentos 11 Solitariamente, a França realizaria um bloqueio anterior em 1838.

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particulares. Tanto para Buenos Aires como para Montevidéu, existe uma constante

troca de posições e alianças que variam de acordo com a conjuntura. Especificamente

para a ‘Guerra Grande’, Oribe e os blancos receberão franco apoio rosista e federal,

deixando aos colorados a opção por uma aliança com os unitários, muitos já exilados

no Uruguai.12

A ‘Guerra Grande’ não termina com um nítido vencedor, mas com um acordo

de paz. Ao longo de todo o conflito, os blancos não conseguiram tomar Montevidéu,

porém detinham o poder em praticamente todo o interior. Da mesma forma, aos

colorados faltavam recursos para derrotar seus adversários. A paz foi somente

conquistada em 1851, mas este foi um tratado bilateral entre os partidos uruguaios,

mantendo-se o conflito em relação a Rosas, que seria derrubado no ano seguinte.

As divisões partidárias serão apaziguadas durante a década de 1850 com a

‘Política da Fusão’. Ambicionando a dissolução dos partidos, essa foi uma primeira

tentativa de união entre as facções inimigas que se consolidaram em 1836. Porém, os

rancores renascem e são novamente alimentados por conflitos que somente

terminariam às vésperas da Guerra da Tríplice Aliança, contando, novamente, com a

intervenção externa vinda do Império do Brasil. A partir de então, o partido colorado

solidifica sua liderança, deixando aos blancos uma participação coadjuvante. Será

apenas em 1958, após 93 anos de “ostracismo”, que o cargo de presidente da república

encontrar-se-á mais uma vez ocupado por um membro do Partido Nacional (atual

nome do Partido Blanco).

Uma outra questão deve ser abordada. Não se deve esperar destes partidos

uma composição homogênea. Os indivíduos que neles se associavam também

construíram suas facções internas. No que diz respeito aos colorados durante a ‘Guerra

Grande’, seus próprios integrantes reconheciam a existência de três ou mais grupos

que disputavam internamente o poder do partido. O próprio texto de Manuel Herrera y

12 Alguns federais também foram exilados, os ‘lomos negros’ defendiam a existência de uma Constituição para a Confederação, ao que se opunha a política de Rosas.

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Obes, ao mesmo tempo em que se dedica a legitimar uma certa superioridade histórica

e intelectual colorada frente aos blancos, justifica a expulsão de um grupo colorado

rival, representado pela figura de Fructuoso Rivera. Por vezes, os defensores de

Montevidéu temeram mais uma sublevação interna do que a capacidade blanca de

triunfar sobre a Capital.

2 – Das independências à ‘Guerra Grande’

O que marca a produção intelectual “historiográfica” platina entre as décadas

de 1830 e 1850 é uma revisão profundamente politizada do processo de independência

local. Como veremos na disputa entre Manuel Herrera y Obes e Bernardo Prudencio

Berro, o caminho que se inicia com as lutas contra a metrópole espanhola é aquele que

culminaria com a formação de “partidos de princípios” (o blanco e o colorado).

Principalmente em Herrera y Obes, a independência é entendida como uma

Revolução, e esta Revolução não termina com a libertação das colônias, mas com uma

total reformulação social civilizadora que se caracteriza por um forte preconceito em

relação à herança ibérica.

Neste subtítulo, escreve-se “das independências”, no plural, pois a região do

atual Uruguai enfrentou três movimentos que se enquadram neste termo. O primeiro é

a independência da Argentina, cujo marco fundamental, a Revolução de 25 de Maio de

1810, não só foi comemorada por algum tempo no Uruguai, mas também foi

interpretada como precursora de um “princípio revolucionário civilizador” platino e

mesmo americano por Herrera y Obes. Na década seguinte, em 1822, a Província

Cisplatina viu sua jurisdição se transformar de colônia portuguesa para território

integrante do novo Império do Brasil. Três anos depois, a tradicionalmente chamada

“Cruzada libertadora de los treinta y tres orientales”, que inicialmente nada mais era

do que uma tentativa de retorno da Banda Oriental à Argentina, acabou gerando mais

um Estado independente para a região.

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Progressivamente, a historiografia uruguaia abandonará os movimentos

resultantes de maio de 1810 e sua influência para os “primeiros uruguaios”,

identificando-os como pertencentes apenas ao Estado vizinho. Isto ocorre

principalmente na medida em que se deposita em Artigas um certo nacionalismo

oriental. Atualmente, pesquisas como a da historiadora Ana Frega vêm aprofundando

o conhecimento acerca da personagem Artigas, entendendo sua atuação e seu

movimento como menos autonomista e mais interessado em manter os laços com as

províncias vizinhas, ressaltando, assim, a idéia de “patria grande”.13

Para melhor entender estas questões, e para compreender com maior exatidão

as palavras de Herrera y Obes e Berro, torna-se necessário repassar rapidamente o

caminho entre as independências e a ‘Guerra Grande’. Como veremos ao longo do

segundo capítulo deste trabalho, a interpretação dada ao processo de independência e à

formação do Estado uruguaio foi transformada em argumento explicativo para as

causas da guerra civil que enfrentavam. Neste sentido, revestem seus partidos de um

sentido histórico e, para a versão de Herrera y Obes, herdeiros ou inimigos de uma

“Revolução Americana”.

Inicialmente aliada à França, a Espanha se posicionou contra os britânicos nas

guerras napoleônicas. Com sua superioridade naval, os ingleses pretendiam

comprometer as comunicações entre a América e as metrópoles inimigas, impedindo,

assim, a chegada de novos recursos à Europa em guerra. Mais do que isso, os ingleses

empreenderam duas invasões ao rio da Prata, ocupando Buenos Aires e Montevidéu

em 1806 e 1807. Em ambas ocasiões, o governo espanhol foi incapaz de organizar

uma força contra esta ocupação, cabendo aos próprios criollos14 a tarefa de combater a

expedição inglesa. Neste esforço de reconquista, os hispano-americanos estavam pela

primeira vez compondo instituições de administração sem responder diretamente ao

trono espanhol. Com este acontecimento, reconhece-se um importante impulso 13 FREGA, A. e ISLAS, A. Nuevas miradas en torno al artguismo. Montevidéu : Universidad de la República., 2001. 14 Criollos são os espanhóis já nascidos em território americano.

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institucional que rendeu aos locais uma primeira experiência de auto-gestão, além da

possibilidade de comerciar diretamente com um Estado estrangeiro e não apenas com a

monopolista Espanha.15

Com a intervenção de Napoleão no trono espanhol que culminou com a

coroação do seu irmão José Bonaparte, forçando a abdicação de Fernando VII em

1808, ocorreu uma disputa pela legitimidade do poder. Tanto na Espanha como nas

Américas, o novo rei francês foi considerado um usurpador. Os poderes locais

americanos se organizaram e muitas vezes se negaram a aceitar os novos vice-reis

enviados da Europa pelos representantes de Napoleão. Desta forma, inspirados em

movimentos análogos que já estavam se desdobrando na própria Espanha,

constituíram-se as juntas nas capitais coloniais, que inicialmente se declaravam de

administração provisória até o retorno do legítimo monarca ao trono. Estas juntas

pretendiam representar o poder de fato, pois o rei considerado legítimo fora deposto

pelo imperador francês. Ainda em 1808, formou-se em Montevidéu a primeira junta

autônoma na América espanhola, o que a conduziu a um rompimento com o vice-rei

de Buenos Aires. Em 1809, os portenhos tentaram o mesmo, mas ali o vice-rei

Santiago Liniers, de origem francesa, derrotou os revoltosos. Foi somente um ano

depois, a 25 de maio, que Buenos Aires conseguiu expulsar o vice-rei definitivamente.

Fernando VII recuperou o trono em 1814, e a nova constituição espanhola de

1812 já havia sido rejeitada na América por negar a autonomia até então adquirida

pelas juntas, pois objetivava retornar a região à antiga condição do vice-reinado. Em

tais circunstâncias, sob a hegemonia de Buenos Aires, reuniu-se um congresso que

declarava formalmente a independência em 1816, porém, sem representantes de Santa

Fé, Corrientes, Entre Ríos, Banda Oriental e Paraguai, todos rivalizando com o

15 HALPERÌN DONGUI, T. op. cit. Ao final do século XVIII, a Espanha já não conseguia acompanhar as necessidades comerciais do Prata. Por este motivo, eram concedidas permissões provisórias a navios de nações aliadas ou neutras para o transporte atlântico de mercadorias. Um exemplo estaria na concessão cedida a portugueses para o comércio entre a África e o Brasil, principalmente dedicado ao tráfico de escravos.

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centralismo de Buenos Aires. Das idéias deste congresso, redigiu-se uma Constituição,

aprovada em 1819. Assim, compreendendo parcialmente a atual Argentina, as

Províncias Unidas do Rio da Prata se organizam com os poderes legislativo, judiciário

e executivo na pretensão de unir todo o antigo vice-reinado.

Com a exceção do Paraguai, as demais províncias platinas que faltaram ao

Congresso de Tucumán estavam unidas pela ‘Liga Federal’. Tendo como chefe

supremo o oriental José Artigas, esta união, que no seu auge chegou a contar ainda

com Córdoba, representava uma forte oposição às ambições da cidade de Buenos

Aires. Aproveitando-se da instabilidade regional, tropas portuguesas invadiram a

Banda Oriental em 1816, ocupando Montevidéu em 1817 (com certa simpatia de

Buenos Aires por derrotar as pretensões de Artigas, o que esfriava as aspirações das

demais províncias). Contrário ao centralismo, Artigas concorreu contra Buenos Aires

por apoiar uma maior autonomia para o interior. Seu apoio pôde ser sentido com maior

intensidade no ambiente rural da Banda Oriental e nas províncias do Nordeste

argentino. Artigas perdeu suas últimas batalhas em 1820, exilando-se no Paraguai,

onde viveu até a morte.

As lutas contra a presença portuguesa persistiram, mas algumas das

administrações regionais já a haviam reconhecido em condição de autonomia

administrativa nos moldes das negociações acordadas entre Lecor16 e o cabildo de

Montevidéu. Solicitou-se a manutenção dos fueros, privilégios, leis, usos e costumes,

foi mantido o padrão de administração espanhola, os cabildos não tomaram a forma

municipal portuguesa, nem dos tribunais ou demais instituições foi exigido fato

semelhante. Entretanto, substituíram-se os ocupantes dos cargos por simpatizantes do

regime. Estes não foram poucos, mesmo que num primeiro momento, pois Lecor

contou com uma adesão significativa da oligarquia montevideana, contrariada pelos

levantes artiguistas vindos do interior.

16 Carlos Federico Lecor, nomeado Governador e Capitão Geral da província sob mando português.

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O comércio foi severamente prejudicado pelos diversos conflitos envolvendo

Artigas, centralistas de Buenos Aires e portugueses que desconectaram Montevidéu do

interior. A extração dos artigos de couro e carne não ressurgiu significativamente até a

consolidação temporária que possibilitou a reabertura das casas de comércio e a

reorganização dos portos em 1818. Gradativamente, o apoio obtido por Lecor retraiu

pela dificuldade de se restaurar a situação econômica e política após os quase dez anos

de conflito (1810-1820). Some-se a isso o favorecimento aos portugueses e brasileiros

que provocou descontentamento aos que possuíam iguais favores anteriores a este

regime.17

A independência do Brasil gerou mais uma divisão nas forças políticas. A

maioria das tropas, de origem brasileira, estava com Lecor, que se declarou favorável à

independência. Nesse momento, surgiu uma oportunidade de reatar os laços políticos

com Buenos Aires. Contudo, Lecor obteve confirmações públicas de juramentos ao

Brasil, como a de Rivera, enquanto que outros, a exemplo de Lavalleja, foram presos.

O cabildo eleito em 1823 declarou nula a união com Portugal e Brasil, alegando que a

única legítima seria com as Províncias Unidas. Esta decisão fracassou por falta total de

apoio. Lecor sitiou Montevidéu até que os últimos resistentes contrários à

incorporação ao Império do Brasil cederam. Esta nova entrada militar foi causa da

emigração de muitos orientais para Buenos Aires e para outras províncias do litoral

argentino.

Lecor passou a reorganizar suas influências, reconstruindo a ordem anterior

aos conflitos da independência brasileira e atendendo às novas normas institucionais

vindas do Império. A constituição brasileira previa um presidente para a província, um

conselho assessor de dez membros e câmaras municipais. Destes, somente o presidente

apareceu nomeado por D. Pedro I. Além disso, a Banda Oriental teve direito a um

senador e dois deputados no Rio de Janeiro.

17 CASTELLANOS, A. História uruguaya, la cisplatina, la independencia y la república caudillesca – 1820-1838. Montevidéu : Banda Oriental, 1980.

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Em 1825, vindos e financiados por Buenos Aires, penetraram no território da

então província Cisplatina os chamados Treinta y Tres Orientales18 na tentativa

armada de recuperar a Banda Oriental. Um governo provisório foi instalado na cidade

de Florida por Lavalleja, e apoiado por Rivera, seus seguidores votaram pela

incorporação às Províncias Unidas em 25 de agosto do mesmo ano. Aceita esta

votação por Buenos Aires, desencadeou-se uma guerra destes contra o Brasil,

mantendo uma rivalidade que as metrópoles européias construíram sobre a região.

Uma reviravolta na idéia de unir-se novamente aos antigos colegas de vice-

reinado aconteceu quando foi eleito presidente dos argentinos Bernardino Rivadavia19,

conhecido como unitário e centralista, justamente o que os artiguistas e autonomistas

provinciais, representados pelos Treinta y Tres Orientales que agora governavam a

Banda Oriental, recusavam-se a aceitar. A isto se sucede a substituição da sala de

representantes de unitários por federais, assim como a posterior dissolução desta sala

por Lavalleja. Além disso, ocorre uma ampla troca de funcionários da administração

provincial. Já em 1827, os contrários ao centralismo portenho conseguiram ir ainda

mais além, uma vez que se abandonou a idéia de união às demais províncias, e, no ano

seguinte, um acordo entre os países beligerantes e a Inglaterra criou a República

Oriental do Uruguai.

O resultado da guerra contra o Brasil fora entendido em Buenos Aires como

um fracasso unitário. Somando-se a isto a resistência das elites às reformas

“modernizantes” promovidas por aquele governo, Rivadavia foi deposto em 1827. A

derrota unitária não cessou com esta destituição, já que o próprio cargo de presidente

fora suprimido, e todas as tentativas de aprovação de uma Constituição foram

fracassadas, sendo que outra somente seria aprovada em 1853. Entre essas datas,

18 Este título foi concedido na construção de heróis nacionais. Os Treinta y Tres Orientales desembarcaram na Banda Oriental e, em peregrinação, foram progressivamente encontrando seguidores até que conseguiram formar um exército para lutar contra o Império do Brasil. 19 Bernardino Rivadavia (1780-1845), unitário e primeiro presidente das Províncias Unidas do Rio da Prata (1826-1827). Entre 1827 e 1853, não existirá o cargo de presidente da república. Durante este período, um pacto inter-provincial manterá uma frágil união entre as províncias argentinas.

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prevalecerá uma aliança entre as províncias, em geral sob a hegemonia da capital

portenha, mas a tentativa de erguer um Estado central para todo o território será

abandonada sob o ensejo de defesa das autonomias locais. Em boa parte deste período,

Juan Manuel de Rosas será seguidamente reeleito governador da Província de Buenos

Aires, apoiado nas “faculdades extraordinárias”, e atuando como representante da

Confederação Argentina para assuntos de política internacional. Rosas apenas se

afastará deste cargo por um breve intervalo, do qual retornará em 1835 até sua caída

em 1852. Uma das suas principais preocupações será a sempre inacabada guerra contra

os unitários, iniciada por estes pela deposição e fuzilamento do governador federal

Manuel Dorrego em 1829.

Com o enfraquecimento da causa unitária no Uruguai, os partidários dessa

política foram tomando parte dos grupos que se estabeleciam no Estado agora criado.

Apesar do prestígio de Rivera no interior, os Montevideanos que tanto temiam a

anarquia do campo passaram a preferencialmente apoiá-lo. Reunindo, assim, a adesão

de grupos da campanha e do meio urbano, Rivera se elege presidente da república pelo

voto de uma Sala de Representantes recém eleita.

Os primeiros anos de independência se caracterizam por uma frágil

configuração externa que sustentava a existência desse novo Estado. O rio Uruguai e

seu estuário são as fronteiras naturais com Buenos Aires e as demais províncias, suas

margens ao sul do entroncamento com o rio Negro estão povoadas e vinculadas à

capital. Por outro lado, os limites ao norte com o Brasil não foram demarcados, e a

própria volatilidade da fronteira no pampa dificulta um acerto definitivo. Com a difícil

fiscalização dos seus limites, o livre trânsito de pessoas e gado, mesmo que pouco

desejado aos olhos de Montevidéu, é repetidamente executado, escapando do regime

fiscal que poderia ser imposto pela alfândega portuária da capital. Além disso, o

tratado assinado para a criação da nova República deu pouca voz às elites da Banda

Oriental, e estava condicionado a uma nova reunião e ratificação brasileira e argentina.

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A interferência destas duas partes não terminaria nesta confirmação, continuando ativa

e decisiva na política oriental.

Outro quadro que passa a se formar politicamente é o que corresponde aos

partidos uruguaios. Anteriormente, a ambição de Artigas não se restringia à Banda

Oriental, conseguindo apoio expressivo das províncias mais próximas, porém, agora

limitados ao território oriental, os Treinta y Tres Orientales resultaram em uma união

provisória de diferentes grupos de poder por um mesmo objetivo. Estes logo

romperam e externaram suas diferenças na disputa pelos recursos do Estado.

O primeiro mandato, que foi exercido por Rivera, terminou no prazo

determinado, o que não significa que não tenha conhecido uma oposição. Lavalleja

empreendeu uma série de levantes que pretendiam derrubar o governo. Posteriormente,

com a ascensão de Oribe como segundo presidente, são os colorados que levantam as

armas até a renúncia e exílio deste presidente em Buenos Aires a partir de 1838. Mas a

luta entre estes dois grupos não está ainda terminada, uma vez que a “Guerra Grande”

assola o Uruguai entre 1839 e 1852, precisamente um ano depois de findarem os

escritos de José Encarnación Zás, personagem que será estudado no terceiro capítulo.

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1 DEBATES ARGENTINOS E URUGUAIOS ACERCA DO CAUDILHISMO

1.1 HISTORIOGRAFIA URUGUAIA EM SEUS ASPECTOS GERAIS

A historiografia uruguaia, ao contrário da porteña ou da brasileira, tem tido

grande dificuldade em colocar-se como “história nacional”. Enquanto a porteña

reclamou para si a escrita de uma “história da Argentina”, deixando para as províncias

um árduo e ainda incompleto caminho de reivindicação perante sua capital, alguns

historiadores uruguaios dirigiram seus esforços para uma tentativa de autonomizar sua

versão, cujo maior trabalho de construção da nacionalidade esteve permanentemente

ligado a um inacabado e pouco fundamentado empenho de distanciamento da história

vivida e escrita pela margem oeste do rio Uruguai. O próprio nome deste Estado,

República Oriental del Uruguay, aparenta manifestar o desejo de construção de uma

identidade diferenciada de uma imaginada “República Ocidental del Uruguay”, mais

conhecida por Argentina. Essencial será a “no segregación de la historia del naciente

Uruguay de la de sus vecinos, a un nivel tal, que de hecho se trata de una historia

común de la región platense”.1

A respeito da construção de uma nova nação, ainda que a viabilidade deste

projeto tenha sido amplamente discutida (inclusive pelo próprio Presidente da

República Bernardo Prudencio Berro – 1860-1864), esta se converteu em meta para

boa parte dos políticos e intelectuais desde o acordo de paz entre o Império de Brasil e

as Províncias Unidas do Rio da Prata de 1828, momento em que a até então defendida

re-incorporação aos vizinhos ocidentais é descartada por um acordo que, intermediado

pela Inglaterra, defendeu os interesses geopolíticos brasileiros na região. A idéia de

nação que se queria construir deve ser matizada, pois esta própria palavra depende do

momento em que é enunciada. Como veremos mais adiante, mas já adiantando um

1 SALA DE TOURON, Lucia; ALONSO ELOY, Rosa. El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco. Tomo II: Sociedad, política e ideología. Montevidéu : Banda Oriental, 1991. p. 7.

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pouco da contribuição de Chiaramonte a este respeito, a nação, na sua acepção atual

identificada com o nacionalismo e com o Estado-Nação somente será pensada a partir

da segunda metade do século XIX2. Até então, prevalecem dois sentidos: o primeiro,

que Chiaramonte denomina de “antigo”, seria uma forma de identificação étnica, mas

totalmente desvinculado da idéia de pacto social ou constituição de um corpo político

chamado Estado; a segunda, que predominou no pensamento político de então, refere-

se especificamente a um Estado formado pelo pacto social, constituído por indivíduos

que não necessariamente compartilham de uma vinculação étnica.

Nem toda a historiografia uruguaia esteve cega a estas questões, não aceitando

sem discussão a construção de uma nacionalidade. Por vezes, historiadores e demais

intelectuais consideraram esta construção mais como um dever necessário ao Estado

do que necessariamente algo baseado em árduos estudos de uma “realidade”. Este foi o

caso do pintor Zorrila de San Martín, que demonstrava consciência do papel que

Artigas e outros heróis tinham enquanto mitos, considerados mais importantes como

lendas do que como atores históricos.3 Assim, ao fim do século XIX, lentamente se

cria a necessidade de legitimar uma nação. Constroem-se mitos fundacionais dos mais

variados tipos. Mitos nacionais como o dos Charruas, desenvolvido a partir da década

de 1880, que entende a nação como preexistente nesta etnia indígena;4 o da Rivalidade

Portuária como origem para a divisão entre Montevidéu e Buenos Aires; e,

principalmente, o mito de Artigas como herói nacional, discutindo-se se ele seria um

fundador ou precursor da “Nação uruguaia”. Nestes mitos, o território do atual

Uruguai é visto por alguns como geograficamente predestinado desde a colônia a

formar um corpo político unificado e autônomo.

2 CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y estado en iberoamérica: el lenguaje político en tiempos de las independencias. Buenos Aires : Sudamericana, 2004. 3 TRIGO, A. Caudillo, Estado, Nación. Literatura, historia e ideología en el Uruguay. Gaithersburg : Ediciones Hispanoamérica, 1990. pp. 31-71 4 RIBEIRO, A. Historia e historiadores nacionales (1940-1990), del ensayo sociológico a la historia de las mentalidades. Montevidéu : de la Plaza, 1991. pp. 27-28. Ver também VIDART, D. El Uruguay visto por los viajeros. v. 3. Montevidéu, Banda Oriental, 2000.

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A nacionalidade, no entanto, como já exposto, não é aceita por todos.

Existiram também os chamados “unionistas”, aqueles que classificam como débil um

suposto desejo independentista para os eventos de 1811 (revolução artiguista) e 1825

(treinta y tres orientales). Acreditam que estes dois movimentos não pretendiam a

independência, mas mantinham a união com as demais províncias do antigo vice-

reinado5. Segundo esta corrente interpretativa, o que determinou a independência não

foram os movimentos internos por autonomia, mas a intervenção externa de luso-

brasileiros e a seguinte influência britânica nas negociações de paz entre as Províncias

Unidas e o Império do Brasil.6

Se a História como disciplina é algo que se estabelece neste mesmo período de

afirmação de identidades nacionais, alguns temas que percorreram e ainda percorrem a

historiografia uruguaia têm sua origem em discussões mais antigas. Surgem, então, as

“Polêmicas fundadoras”, ou marcos de uma série de problemas teóricos que também

delimitaram campos e objetivos de investigação. A primeira, tema central do segundo

capítulo deste trabalho, seria aquela entre Manuel Herrera y Obes e Bernardo

Prudencio Berro: um enfrentamento político, mas também de interpretação social e

histórica.7 Porém, esta controvérsia se insere num contexto de guerra e discussão mais

amplo, alcançando também a Argentina. Herrera y Obes constrói para o Uruguai uma

interpretação dedicada à Revolução de Maio (desencadeada por Buenos Aires, mas

contando com adesões decisivas na Banda Oriental) que mantém as linhas gerais já

escritas pela chamada Geração de ’37 (alguns destes exilados em Montevidéu ou em

Colônia do Sacramento) e por Faustino Sarmiento.

5 Ibid., p. 39. 6 Ibid., p. 40. 7 TORRES WILSON, J. de. Quiénes escribieron nuestra historia? (1940/1990). Montevidéu : de la Planta, 1992. p. 11-13. Este autor coloca ainda duas outras polêmicas “fundadoras”. O segundo grande enfrentamento constitutivo da história uruguaia é o encontrado em 1882 entre Carlos Maria Ramírez e Francisco Antonio Berra a respeito da reivindicação da figura de Artigas. A terceira grande polêmica corresponde à publicação de Pablo Blanco Acevedo, legislador colorado riverista, a respeito da necessidade de datar o dia em que deveria ser celebrado o centenário da independência.

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Principalmente na primeira metade do XIX, os orientais seguem o mesmo

padrão interpretativo dos vizinhos. Por toda sua recente história, os uruguaios estarão

integrados a discussões platinas. Mesmo mais adiante, na medida em que o

nacionalismo e a nação vão se afirmando, o campo intelectual e acadêmico em que se

pensa o caudilhismo, por exemplo, ultrapassa as fronteiras dos Estados. Enquanto que

para os argentinos o regime de Rosas é o que melhor se enquadraria em estudos de

caudilhismos, Artigas e blancos, estão entre os preferidos entre os uruguaios.

Fazendo uma breve retrospectiva da tradição uruguaia de escrever e interpretar

a história, é difícil encontrar um ponto em comum para iniciar sua trajetória. Letícia

Soler encontra a origem dos estudos de história apenas com Francisco Bauzá no fim do

século XIX.8 Isto porque ela pretende estudar a história a partir do momento em que

esta começa a se instaurar em solo uruguaio como uma disciplina específica e

delimitada. Já Abril Trigo, que classifica o intervalo imediatamente anterior à sua

organização disciplinar como proto-história, resolve iniciar seu trabalho com um

período anterior, pois acertadamente percebe como muitos dos temas e categorias

usadas pelos historiadores dessa disciplina ainda dialogam com algumas abordagens

fundadas por homens da primeira metade do século XIX.9

A história “tradicional” uruguaia, formulada a partir de 1880 e conhecida

como “vieja historia”, tem uma concepção nacionalista que costuma reduzir sua

cronologia ao período colonial e às lutas de independência. Em geral, seria uma

história

política, administrativa, constitucionalista y personalista, sin espacio para lo social, lo económico y lo cultural en un nivel que fuese más profundo que en el de la mera crónica. Las masas se excluyen como posibles protagonistas y solo hay lugar para los grandes personajes, ya sean ‘próceres impecables’ o sus necesarios contendientes: ‘los antihéroes aborrecibles’.10

8 SOLER, L. La historiografia uruguaya contemporánea, aproximación a su estudio. Montevidéu : Banda Oriental, 1993. pp. 7-10. 9 TRIGO, op. cit., pp. 9-29. 10 RIBEIRO, op. cit., pp. 31-32.

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Do ponto de vista disciplinar, Francisco Bauzá (1849-1899), forjador de um

“fatalismo de nuestra autonomía de raiz romântica”,11 aparece como o ponto de

partida, pois Soler está convencida de que antes deste autor no había historia uruguaya propiamente dicha, en el sentido que la producción existente no reunía las condiciones de lo que hemos definido como Historia. Existían sí, intentos de valor desigual que tienen por tema central el surgimiento de la vida independiente y en particular de la gesta revolucionaria (...). En general es una producción literaria, a veces filosofante, casi siempre erudita, pero poco rigurosa en sus enfoques que podríamos definir como una ‘protohistoriografía’. Su valor estriba fundamentalmente en la frecuentación de una temática, el abordaje de ciertos tópicos e incluso de definición de una terminología de presencia permanente en la historiografía posterior.12

Bauzá seria o primeiro a combinar “investigação” a um “manejo de fontes”.13

Em sua obra, surgem claramente as idéias de província-nação autônoma, de Artigas

caudilho, e de uma nacionalidade romântica “fatalista”, como se as principais

características da nação uruguaia se encontrassem predestinadas desde o período

colonial.14 Seus escritos são considerados colorados e católicos, revestidos de

otimismo militante, pois contêm um projeto social explícito, entendendo a história

como instrumento de consolidação desta nacionalidade.15

A historiografia que se extende desde Bauzá até meados do século XX seria

aquela que “desconoce lo precolombino, idealiza el período colonial, abona

sistemáticamente el mito del héroe de la provincia-nación, que confundiéndose con

ella misma va civilizando su imagen, va perdiendo facetas bárbaras, va incorporándose

a una institucionalidad constituyente”.16 A interpretação histórica do XIX uruguaio se

alterna entre um gradual processo de civilização, no qual se inclui a lenta centralização

e organização estatal associada à “domesticação” de um povo gaúcho e bárbaro, para

uma idealização da ordem colonial e da herança ibérica (e católica), transformando os 11 Ibid., p. 32. 12 SOLER, op. cit., pp. 10-11. 13 Ibid, p. 11. 14 Id. 15 Ibid, p. 12. 16 Ibid, p. 19.

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caudilhos em exemplos cívicos de heróis. Além disso, paralelamente ao que acontece

na Argentina na relação entre Buenos Aires e as demais províncias durante o século

XX, a história uruguaia vagarosamente se tornou mais “nacional” e menos

“montevideana”, incluindo cada vez mais a campaña em seus estudos.17

Um dos momentos decisivos para a disciplina História está na fundação da

Facultad de Humanidades y Ciencias, na qual é criado o curso de Licenciatura em

História. Convidado para sua direção o historiador argentino Emilio Ravignani, este

evento foi responsável pelo fortalecimento da história no interior do meio acadêmico.18

Mas o grande nome da historiografia moderna uruguaia seria o de Pivel

Devoto.19 De família colorada, mas convertido ao Partido Nacional (blanco), teve

importante atuação também como político, tornando-se Ministro de Instrução

Pública.20 Em 1942, assumiria a Direção do Museo Histórico Nacional.21 Este autor

ainda se apoiava em conceitos interpretativos como os de “orientalismo, extranjerismo,

oposición campo-ciudad, caudillo-doctor” que já estavam presentes desde Bauzá, mas

também em Alberto Zum Felde e Luis Alberto de Herrera.22 Enfatizando o político,

suas obras centrais são Raíces coloniales de la revolución artiguista e Historia de los

partidos políticos en el Uruguay.23

Pivel Devoto também concebe a Banda Oriental como naturalmente autônoma,

vinculada laxamente a Buenos Aires por apenas treita y dos años de virreinato; la experiência artiguista de la federación nunca fue concretada y la Misión García es el ejemplo del deseo de Buenos Aires de ‘amputar’ esa Banda Oriental – centro de oposición. Lavalleja al concretar la independencia es un continuador del artiguismo en lo que éste tiene de intransigente cuando defiende la autonomía de los derechos provinciales.24

17 RIBEIRO, op. cit., p. 34. 18 Id. 19 SOLER, op. cit., p. 20. 20 TORRES WILSON, op. cit., p. 31. 21 Ibid., p. 35. 22 SOLER, op. cit., p. 20. 23 RIBEIRO, op. cit., p. 37. 24 Ibid., pp. 37-38.

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Ao estudar o movimento artiguista, Pivel o considera uma “insurrección

campesina”, entendendo sua revolução como um esforço do “papel dirigente de los

caudillos en la conquista de la nacionalidad”.25 De certa forma, no livro Raíces

económicas de la revolución oriental, Pivel Devoto “es un preocupado por el tema de

cómo la antigua Banda Oriental y, más tarde, en Provincia Cisplatina, logra culminar

su destino como Estado Oriental, convirtiéndose en un país independiente”.26

Contrariando a idéia predominante do século XIX que culpa os caudilhos e as

disputas partidárias pelas mazelas do Uruguai, Pivel Devoto deposita-lhes a função de

construtores do Estado. Por um lado, o partido colorado é identificado com um

princípio revolucionário, enquanto que o blanco aparece no anseio de retorno à ordem

perdida. Estas duas facções, na medida em que iniciam suas guerras, de alguma forma

são portadoras destas duas essências uruguaias e, portanto, co-participantes na

construção do Estado, uma vez que a revolução cria as condições para a

independência, e o retorno à ordem estabelece os fundamentos para a um governo

estável. Durante la segunda mitad del siglo XIX privó la idea de la ‘acción funesta’ de los partidos, terminología aportada por Melián Lafinur. Eduardo Acevedo, luge Herrera, pero fundamentalmente Pivel Devoto, va dando lugar a la aceptación de la idea de los partidos como aquellos que forjaron la nación, puesto que ellos se identifican con todo el proceso histórico del país desde su surgimiento mismo.27

Um outro movimento historiográfico muito importante para a região platina é

o Revisionismo do século XX.28 Sua versão argentina desenvolve uma reivindicação

da figura de Rosas, defendendo neste antigo governador de Buenos Aires um

25 Ibid., p. 38. 26 TORRES WILSON, op. cit., p. 39. 27 RIBEIRO, op. cit., p. 39. 28 Para o revisionismo argentino, ver também CHIARAMONTE, J. C. En torno a los orígenes del revisionismo histórico argentino. In: FREGA, A.; ISLAS, A. (coords.) Nuevas miradas en torno al artiguismo. Montevidéu : Universidad de la República, 2001.

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nacionalismo de raiz hispânica, e propondo uma certa unidade latino-americana

católica e ibérica.29 Mas, para o Uruguai, Soler opta por discorrer sobre revisionistas e

não sobre o Revisionismo, pois, ao contrário do que aconteceria com seus vizinhos,

este termo não seria totalmente aplicável ao caso oriental.30 O primeiro problema seria

que Artigas, ao contrário de Rosas, ainda que caudilho, já há algum tempo gerava

unanimidades no Uruguai, não repercutindo um mesmo tipo de debate. E até mesmo

Oribe, “tan identificado con el ‘legalismo’, (...) tampoco dejaba ya mucho más espacio

para la polémica”.31 Além disso, “elementos caudillescos y doctorales integraron por

igual los partidos tradicionales. Todo esto limaba las aristas más polémicas que

planteó el revisionismo argentino”.32

Por outro lado, para Ana Ribeiro, o revisionismo em sua versão uruguaia é um esfuerzo por reexaminar los temas abordados, lo que conlleva una tarea de desautorización y crítica de las interpretaciones tradicionalmente aceptadas. Está muy ligada al nacionalismo latinoamericano, que surge como respuesta a la crisis y que vivirán como ‘el único posible’, tildando a lo contrario de ‘uruguayismo’.

O Revisionismo uruguaio seria fundamentalmente blanco e,

conseqüentemente, federal, uma vez que nasce ligado ao argentino, apresentando-se

como uma crítica à “história oficial colorada”.33 Em geral, são obras ensaísticas34 de

pouco apego metodológico.35 Dedicam-se principalmente ao processo de

modernização e ao fenômeno caudilhista.36 Dentre suas características, está a tentativa

de demonstrar uma superioridade do modelo colonial espanhol frente ao inglês ou

francês, uma forma de reabilitar a herança ibérica frente aos “civilizados” que

conferiam superioridade à civilização anglo-saxã. Os revisionistas classificavam de 29 RIBEIRO, op. cit., pp. 42/44. 30 SOLER, op. cit., p. 29. 31 Id. 32 Id. 33 RIBEIRO, op. cit., p. 41. 34 RIBEIRO, op. cit., p. 48. 35 SOLER, op. cit., p. 31. 36 RIBEIRO, op. cit., p. 48.

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história “acadêmica”, ou “falsificada” aquela que elaborou a dicotomia “civilização e

barbárie”, cuja clivagem de cidade versus campaña, elaborando a figura negativa de

Artigas e Rosas, destacou os textos de Bartolomé Mitre, Sarmiento e Vicente Fidel

López. Outra das suas características é o mito gauchesco, que esta intimamente

relacionada à re-interpretação do caudilho. O gaúcho é um ser “metafísico” que

acompanha o caudilho, protagonista da luta da nação contra o imperialismo britânico e

fiel representante de uma identidade nacional atacada pelas potências estrangeiras.

Citando Carlos Rama, Ana Ribeiro afirma que Mucho antes que los argentinos, estos autores [uruguaios] han defendido a Rosas y Oribe como representantes del tradicionalismo, del autoctonismo, de los ‘valores morales’, del catolicismo [lembrando que o Uruguai já havia passado pela forte laicização promovida pelo colorado Batlle], de la campaña, del ‘orden y la familia’, del americanismo, de la propiedad terrateniente, de las ‘viejas familias patricias’, expresiones de la definición ideológica de derecha que representa históricamente el Partido Nacional o blanco en la vida política uruguaya.

Estes enfrentam a história “progressista” do Partido Colorado e da burguesia

comercial e industrial de Montevidéu que o compõe ou apóia.37 Desta forma, o

principal revisionista uruguaio aparece no nome do político blanco Luis Alberto de

Herrera, “mezcla de caudillo y doctor”,38 autor de “Los orígenes de la Guerra

Grande”39 e, de acordo com Soler, próximo ao Alberdi tardio.40 Nos anos 60, o

movimento revisionista se direcionou um pouco rumo à esquerda em argumentos que

combatiam a “dominação externa”, o imperialismo das grandes potências. Em Vivian

Trias (1922-1980), o imperialismo britânico aparece como integrante da explicação do

surgimento do Uruguai, enquanto que seu equivalente norte-americano é empregado

para explicar seu presente. O federalismo artiguista, a “Pátria Grande” (Antigo Vice-

Reinado) e o fenômeno Rosas seriam uma resposta latino-americana ao imperialismo. 37 Ibid., p. 43. 38 TORRES WILSON, op. cit., p. 111. 39 HERRERA, L. A. Los orígenes de la guerra grande. 2 v. Montevidéu : Câmara de Representantes da R.O.U., 1989. 40 SOLER, op. cit., p. 30.

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Artigas, “como caudillo popular agrario será glorificado y estudiado por los sectores

de izquierda.”41

Apesar de ser uma corrente que aparece na França nos anos 20, é a partir de 55

que, sob o nome de “Nova História”, a Escola dos Annales inicia seus trabalhos no Rio

da Prata. Mediada pelo historiador espanhol Jaime Vicens Vives, alcança os latino-

americanos, principalmente José Luis Romero e Túlio Halperín Donghi.42 Seria uma

corrente essencialmente universitária, de uma preocupação mais econômica e social, e

com um tom monográfico. Admitindo também o provisório da verdade histórica,

supera o “urbano para ir a lo nacional (...) por contrabalancear el macrocefalismo

montevideano, que también aqueja a la historiografia”.43

Segundo Soler, a corrente marxista no Uruguai tem certa aproximação com a

história colorada ou mitrista, pelo menos para obra de Francisco R. Pintos.44 É um

marxismo que de início adota a seqüência feudalismo-burguesia-proletariado,

discorrendo a respeito de “rasgos feudales” ou “feudatarios”.45 Na representativa

equipe de Lucía Sala de Touron, vinculada ao Partido Comunista, o latifúndio é

encarado como a origem de todos os males em um estudo do processo de formação

dos modos de produção.46 Nestas obras marxistas de empreitada militante, a população

aparece menos maleável frente ao caudilho, e levanta a questão de até que ponto ela é

manipulada pelo caudilho ou este é manejado pelo povo.47

Sala de Touron, escrevendo a duas mãos com Rosa Alonso Eloy, observa o

Uruguai “comercial, pastoril y caudillesco” como uma “formación social de

transición” em que “predominan relaciones sociales de producción precapitalistas”.48

Suas referências teóricas a conduzem a comparar a revolução de independência local 41 RIBEIRO, op. cit., p. 49. 42 Id. 43 RIBEIRO, op. cit., pp. 50/52. 44 SOLER, op. cit., p. 39. 45 RIBEIRO, op. cit., p. 54. 46 SOLER, op. cit., p. 41. 47 Ibid., p. 46. 48 SALA DE TOURON, L.; ALONSO ELOY, R. op. cit., pp. 7/27/323.

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às revoluções burguesas européias. Porém, se estas autoras não incorrem no erro de

simplesmente aplicar um modelo marxista ao contexto platino, uma vez que não

encontram no movimento de independência uma luta da burguesia contra o Antigo

Regime, mantêm uma concepção processual marxista, acreditando que a Banda

Oriental se encontraria em um estágio anterior se comparada à Europa “donde el

proceso histórico estaba en cierto modo más avanzado (...)”.49 Neste caso, as

diferenças e a consciência de classe não estariam ainda completamente formadas, o

que não implica em uma sociedade sem hierarquias: Conformó igualmente una estructura piramidal de ancha base y en cuya cúspide se encuentra una oligarquía mercantil-agraria con sus categorías esenciales de “doctores” y “caudillos”, estos últimos dueños del efectivo poder durante la etapa, (...). Más allá de contradicciones a veces muy fuertes en su interior, no se enfrentó en el país la burguesía con los terratenientes “feudales”, sino en facciones no demasiado diferentes, ni por su papel en la economía ni por su concepción del mundo, pese a los elementos ideológicos distintos que esgrimirían las divisas blancas y coloradas, em que se escindió la entera población del país.50

Sua análise aponta para uma sociedade que carecia de classes dominantes

totalmente constituídas, incapazes, assim, de estabelecer um sistema estável de poder.

“Coexistían clases capitalistas y protocapitalistas”, e juntamente a “elementos

ideológicos modernos, provenientes del arsenal del liberalismo político (...) coexistían

relaciones de tipo paterno-clientelista, que eran la base de sustentación del caudillismo

predominante”. Esta inexistência de uma força hegemônica capaz de impor sua

vontade frente aos demais, produto de uma elite dividida, provocaria a instabilidade

das suas instituições, contrastando com a relativa estabilidade de Buenos Aires de

Rosas, representante de “clases dominantes mejor constituidas”, uma classe de grandes

proprietários rurais, da qual ele mesmo faria parte.51

Ainda na década de 70, e apesar de todas as mudanças, o chamado “ciclo

artiguista” manterá sua posição de grande tema da historiografia uruguaia.52 Em José 49 Ibid., p. 43. 50 Ibid., p. 28. 51 Ibid., pp. 112-113/310. 52 SOLER, op. cit., p. 28.

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Pedro Barrán, tanto abordando Batlle como na recente “História de la Sensibilidad”,

existe um estudo de como a sociedade uruguaia, rural ou urbana, resiste aos avanços

modernizadores. As mudanças apareceriam com o objetivo de conservação de um

“establishment”, ou, em outras palavras, pretenderiam transformar a sociedade para

readequá-la às novas exigências e expectativas de uma elite dominante. Esta é a

interpretação dada para o levantamento de Aparício Saravia de 1904, uma última

resistência caudilha frente à modernização a que tanto aspiravam os colorados,

simbolizados aqui pelo batllismo.53 Percebe-se, mais uma vez, que a dicotomia

civilização e barbárie, assim como “caudilhos e doctores”, é preservada como fonte

principal de explicação.

1.2 DUALISMOS: CAUDILHOS E DOCTORES; CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE.

CONSTRUÇÃO E USO PARA O CASO PLATINO.

Na tradição castelhana, a acepção da palavra ‘caudilho’ recebeu sentido

diverso do conceito consagrado pela Geração de ’37 e, posteriormente, propagado por

Sarmiento. Caudilho vem do latim capitellum, diminutivo de caput, cabeça.54 O

caudilho era o líder de um movimento armado que, na península ibérica, estava

intimamente relacionado à reconquista e suas guerras contra os mouros ao sul. O

caudilho era o homem, de preferência fidalgo, que detinha o poder de reunir forças

para determinada empresa. Era capaz de reunir homens e, com um poder ao mesmo

tempo militar e carismático, liderava um grupo de pessoas para a guerra. Assim sendo,

o caudilho teria um valor positivo, capaz de unir indivíduos em prol de um objetivo

legitimado.55

53 Ibid., p. 62. 54 TRIGO, op. cit., p. 15. 55 Ver também prefácio de Pivel Devoto em HERRERA Y OBES, M. e BERRO, B. P. El caudillismo y la revolución americana. Montevidéu : Ministerio de Instrucción Pública y Previsión Social, 1966.

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Contudo, o campo político das primeiras décadas do pós-independência

platino reposiciona esta categoria. Não por transformar seu significado, mas por

deslegitimar os objetivos que o impulsionavam. Este campo político, no qual se

destaca Sarmiento e a Geração de ’37, inicia uma temática fundadora. O caudilhismo

foi para o XIX o que foi o populismo para o XX, uma palavra que identifica uma

forma de organização e mobilização política.56 No século XIX, o caudilho se torna um

tipo negativo, para alguns, típico da região platina, para outros, característico da

América ibero-americana. E perdendo sua especificidade castelhana, o caudilho se

torna um híbrido social, uma mescla de tradição ibérica e condicionamento geográfico

americano, ou ainda, um mestiço, índio e branco. A forma como a palavra será

empregada para descrever e explicar a sociedade, a população e a história platina terá

certa variação, mas a idéia de caudilho que se manterá como base a partir da qual se

desenvolve uma discussão será a fundada pela Geração de ’37.

Esta Geração de ’37 foi formada, basicamente, mas não exclusivamente, por

simpatizantes da causa unitária. Boa parte deles esteve exilada em Santiago ou em

Montevidéu. Fugindo da perseguição rosista e federal, e profundamente influenciados

pelo movimento romântico, desenvolvem, com pioneirismo, uma forma de entender e

explicar a sociedade em que vivem, sua história recente, da colônia, passando pela

independência até o Governo Rosas e as guerras civis partidárias. Ainda que formada

por indivíduos oriundos das províncias argentinas, suas teorias encontram ouvintes,

leitores e até mesmo continuadores nos territórios vizinhos. Para o caso uruguaio, certa

facção do Partido Colorado logo adotará a linguagem desta geração, adaptando este

discurso político e “sociológico” para a história daquela antiga província recém

emancipada.

Contudo, a grande obra que marca o sentido que se estava construindo para a

palavra “caudilho” é a escrita por Sarmiento: Facundo, ou civilização e barbárie. Parte 56 SVAMPA, M. La dialéctica entre lo nuevo y lo viejo: sobre los usos y nociones del caudillismo en la Argentina durante el siglo XIX. In: GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. Caudillismos rioplatenses, nuevas miradas a un Viejo problema. Buenos Aires : Universidad de Buenos Aires, 1998. p. 51.

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biografia, parte história e ficção, publicada inicialmente como folhetim para um

periódico de Santiago, foi dividida em duas partes. Na primeira, descreve o meio

ambiente platino, ressaltando o pampa, um território de planícies desertas, longas

extensões planas e pouco povoadas. Esta característica impõe ao homem que ali vive

um condicionamento social e natural. O gaúcho, palavra intimamente relacionada ao

fenômeno do caudilhismo, seria fruto daquela “realidade” descrita. A partir disto,

surgem “tipos ideais” de habitantes: o gaucho malo, o rastreador, o baqueano e o

cantor. Tipos que, mesclados em diferentes proporções, poderiam ser encontrados no

homem platino; e em todos, ainda que escondidos sob o fraque da civilização. Um

terreno como o argentino proporcionaria a este gaúcho a oportunidade de sobreviver

com pouco trabalho, apenas explorando o gado solto para obtenção de carne e couro

para a venda. Soma-se a isto uma rarefeita população que resultaria em frouxos laços

sociais. Como conseqüência deste deserto, o gaúcho estaria condicionado a um estilo

de vida que, para Sarmiento, é definido como bárbaro. Inicia-se, então, a construção de

um dualismo maniqueísta. De um lado, a civilização, do outro, a barbárie. São dois

conceitos que se distribuem pelo território platino e, ainda que muitas vezes

encontrados em um mesmo indivíduo, constituiriam adversários implacáveis.

Na segunda parte do livro, encontra-se uma biografia de Facundo Quiroga,

caudilho de La Rioja. Sarmiento o aponta como um modelo de caudilho “ingênuo”,

oposto ao caudilho “inteligente” que estaria em Rosas. A descrição de Quiroga, sua

vida e sua pessoa, seriam exemplos de uma vida bárbara, não civilizada, uma vida de

crimes e violências, abusos de poder pessoal que constroem a imagem típica de um

caudilho, de um gaúcho líder de outros gaúchos. Para além disto, Sarmiento

desenvolve uma interpretação da história platina pós-independência. A Revolução de

Maio é revestida por um princípio civilizador. A Revolução teria duas fases. Na

primeira, Buenos Aires inicia sua luta contra os espanhóis, e progressivamente recebe

o apoio de outras cidades provinciais. Mas a segunda parte da Revolução se caracteriza

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por uma luta interna das cidades contra o campo.57 A princípio, as cidades se dedicam

a libertar politicamente o Vice-Reinado do Prata do domínio metropolitano espanhol,

mas apesar de concretizada a independência política, a Revolução ainda estaria

incompleta e, necessariamente liderada por uma elite urbana, deveria enfrentar o

núcleo de uma resistência cultural ibérica e bárbara localizado na campaña. O

princípio civilizador da revolução volta sua atenção para o interior, e é o início da luta

entre a cidade e o campo, respectivamente, civilização e barbárie. A natureza essencial

de maio de 1810 seria a de representar esta “dupla” revolução.58

No Sarmiento de Facundo, o caudilhismo tem algo de excepcional por ser

tipicamente americano; é um vício constitutivo das circunstâncias históricas deste

continente.59 Assim, Rosas é visto como o resultado do conflito dialético entre a

civilização e a barbárie.60 Entretanto, ao invés da crueldade espontânea e instintiva de

Quiroga, Rosas institui a crueldade e o caudilhismo premeditado e sistematizado. Ao

final do seu texto, este autor elabora uma interpretação “caudilhocêntrica” da

história,61 e acaba ajudando a erguer o caudilhismo ao centro das discussões políticas e

sociais da formação dos Estados platinos. O caudilhismo se torna, ao mesmo tempo,

um termo descritivo negativo e uma categoria de análise. Esta nova interpretação

recoloca o valor desta palavra, que do tradicional sentido de “líder” ou de “capitão”

passa a implicar em “governador personalista”, “autoritário” e imbuído pela força

bárbara da campaña, um inimigo da civilização.62

A partir de Sarmiento e de sua tentativa de explicar os Estados e a sociedade

do Rio da Prata, inicia-se uma tradição que coloca o caudilhismo como um elemento

descritivo e explicativo. Contradizendo, denunciando, revisando, invertendo ou

57 BUCHBINDER, P. Caudillos y caudillismo: una perspectiva historiográfica. In: GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 33. 58 MYERS, J. Las formas complejas del poder. In: GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 84. 59 SVAMPA, op. cit., p. 53. 60 MYERS, op. cit., p. 89. 61 Id. 62 Ibid., pp. 83-84.

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mantendo, as gerações seguintes continuarão estas discussões iniciadas na primeira

metade do século XIX acerca do caudilhismo. E, como regra, estarão, com raras

exceções, sempre dialogando com Sarmiento. E é o regime de Rosas que desempenhou

ao longo dos séculos XIX e XX, tanto no “imaginário” popular quanto no universo

acadêmico, o melhor exemplo de caudilhismo.63

O caudilhismo se torna uma categoria. O chamado “caudilhismo clássico”

formulado pela Geração de ’37 estabelece algumas das suas características básicas,

como a ruralização do poder, o mito do vazio institucional que se estabelece após 1820

e que será ocupado pelo caudilhismo, e a violência como o modo de resolução de

conflitos e disputas políticas. Em Sarmiento, o caudilhismo aparece como uma

patologia social pós-revolucionária, resultado histórico “natural” da experiência

revolucionária.64 Uma outra questão bastante abordada, que se justifica por se tratar de

obras de conteúdo político predominantemente unitário, é a construção de uma grande

vinculação entre caudilhismo e federalismo. A origens e o desenvolvimento do sistema

federal estariam interligados a este fenômeno social.65

Tanto para Sarmiento como para Alberdi, a suposta anarquia de 1820 era vista

como uma queda a um estado de natureza.66 Além da geografia determinista, o

caudilhismo emerge também de uma contingência de eventos históricos específicos

que ocorreram após a independência, destacando-se a “anarquia” da década de 1820.67

Esta vem sendo questionada, uma vez que a la caída del poder central en 1820, el ex Virreinato no se encontró ante un vacío institucional. Lejos de ello, los años 1820 y 1830 asistieron a un proceso de construcción, sobre la base de la ciudad-provincia – la única unidad político-social relevante en el período -, de Estados autónomos como punto de partida para una organización político-institucional del país. Las provincias fueron paulatinamente adoptando ciertas formas ‘republicanas representativas’ fundadas, en su mayoría, en rudimentarios textos constitucionales. Los

63 Ibid., p. 83. 64 GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. Introducción. In: GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., pp. 8-9. 65 BUCHBINDER, op. cit., p. 32. 66 GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 21. 67 SVAMPA, op. cit., p. 55.

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regímenes de caudillo no escaparon a esta solución provisional para legitimar, en el marco inestable de los pactos interprovinciales, los esfuerzos por lograr un nuevo orden social y político y, también para resistir a las tendencias hegemónicas de Buenos Aires.68

Contudo, ainda que esta anarquia possa ser matizada pelos historiadores mais

recentes, ela parecia suficientemente real para o século XIX, a ponto de justificar uma

série de atitudes políticas, inclusive as mais autoritárias. Mais do que isso, a crença de

que ela havia existido e que suas conseqüências - o caudilhismo - eram concretas,

mobilizou pensadores, mas também armas. Para Alberdi, o caudilhismo, fruto da

anarquia, seria um governo sem lei em um contexto de debilidade do Estado.69 A

província de Buenos Aires estaria se apropriando dos recursos da aduana portuária,

enfraquecendo as demais províncias e a “nação” como um todo.70 Esta apropriação

minaria o poder de organização institucional das províncias, o que fortaleceria e daria

espaço para manifestações caudilhescas. Além disso, criava uma rivalidade entre a

cidade de Buenos Aires e o interior, impossibilitando que um Estado central

aparecesse.

Alberdi e a Geração de 37 enfatizam o caráter americano do caudilhismo.71

Como Sarmiento, Alberdi constrói um dualismo, mas apontando um país “real”: a

ditadura, o caudilhismo e o retrógrado legado espanhol e indígena versus o país

“legal”: um constitucionalismo “cego” associado a um formalismo e uma

artificialidade teórica fracassada (Sarmientiana). Apesar da força da elaboração teórica

de Sarmiento, Alberdi é um exemplo de como esta nunca chegou a ser uma

68 GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., pp. 22-23. 69 A constituição era a lei que ele defendia para a Argentina. Seu livro Las Bases... era uma proposta para a constituinte reunida em 1852. ALBERDI, J. B. Fundamentos da organização política da Argentina. Campinas : Editora da UNICAMP, 1994. Na língua espanhola, recebeu o apelido de Las Bases... por seu título original Bases y puntos de partida para la organización política de la República Argentina. 70 GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 9. 71 SVAMPA, op. cit., p. 56.

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unanimidade, coexistindo com diversas críticas à versão unitária de civilização e

barbárie.72

Caudilhismo é um conceito “cambiante”, e já na segunda metade do século

XIX, “V. F. López y B. Mitre, considerados constructores de la historia nacional,

reconocen en la anarquía del año ’20 como el origen del fenómeno caudillista”.73

Naquele momento, ocorreu uma “disolución del ejército regular - reemplazo por

fuerzas informales o milicias, colapso del poder central como precondición de la

emergencia del caudillismo”.74 Mitre faz uma interpretação negativa do caudilho.

Interessado em construir uma nacionalidade para a Argentina, os caudilhos seriam os

inimigos da união nacional. Artigas é visto com o primeiro segregacionista, um dos

responsáveis pela perda de uma das províncias, a Banda Oriental: “El caudillo oriental

era el prototipo del líder segregacionista que había procurado a partir de su accionar

conformar un estado independiente y al margen del que configuraban las llamadas

Provincias Unidas.”75 Em Mitre, “mientras los héroes de la revolución estaban

asociados a la defensa de la nación en su conjunto, los caudillos estaban ligados a la

defensa de los intereses locales.”76 A noção política de federação, como uma das que

animavam as massas populares, era entendida, por Mitre, como sinônimo de barbárie,

tirania, antinacionalismo e liga de caudilhos contra povos e governos. Por outro lado,

para López, os caudilhos são equiparados a delinqüentes, mantendo a imagem clássica

que os coloca como ladrões, vândalos, sem respeito às coisas “civilizadas”, como

propriedade privada, família, trabalho e instituições.77

Outros pensadores reavaliaram a categoria caudilhismo ao longo do século

XIX e início do XX. Correntes de pensamento que chegaram a incluir nesta categoria

questões étnicas evolucionistas, em que enquadravam os gaúchos como miscigenados

72 Ibid., p. 58. 73 GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 18. 74 GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 9. 75 BUCHBINDER, op. cit., p. 35. 76 Ibid., p. 36. 77 Ibid., p. 37.

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– uma raça degenerada – de onde, fatalmente, sairia o caudilho. No final do século

XIX, para os chamados positivistas, caudilhismo representaria o atraso. E, em alguns

casos, o atraso seria equivalente a inferioridade étnica.78 Ou ainda, como já havia

iniciado López, os caudilhos provinciais passaram a ser considerados agentes que

contribuíram na construção do Estado. Principalmente historiadores provinciais

reivindicaram para suas localidades um papel mais ativo na “formação da Argentina”,

retirando de Buenos Aires o privilégio de única província fundadora, como se esta

tivesse que “conquistar” ou “impor a paz e a ordem” ao interior com seu próprio e

único esforço. A partir do início século XX, estas províncias até então tidas como

coadjuvantes passam a ter seu papel revalorizado como também colaboradoras da

formação do Estado e da nação. O papel das províncias é revisto, removendo o

protagonismo exclusivo de Buenos Aires. Contudo, até então, construía-se um íntimo

relacionamento entre o caudilhismo e as províncias.79

Nas primeiras décadas do século XX, a história se estabeleceu como uma

“ciência”, com método de pesquisa. A personalidade mais lembrada para este

movimento é a de Emilio Ravignani, mas estão também Luis V. Varela e Juan A.

González Calderón. Ravignani viu em Artigas o papel de “fundador del federalismo

republicano en la Argentina destacando además su patriotismo, valentía y su

contribución a la lucha por la independencia.”80 Em 1947, Ravignani é convidado para

dirigir a recém fundada Facultad de Humanidades y Ciencias da Universidad de la

República em Montevidéu (na qual logo se encontrariam o curso de Licenciatura em

História e o Instituto de Investigaciones Históricas), trazendo consigo a “racionalidade

desta nova ciência”.

Também na primeira metade do XX, aparece o Revisionismo, reclamando aos

caudilhos o papel de construtores do Estado e defensores da nação. Neste momento,

existe uma reivindicação da herança hispânica e da figura “demonizada” de Juan 78 Ibid., p. 41. 79 Ibid., p. 44. 80 Ibid., p. 48.

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Manuel de Rosas. Caracterizado por interpretação conservadora, este caudilhismo é

visto como uma salvação para uma nacionalidade sempre ameaçada.81

1.3 ESTADO, CIVILIZAÇÃO E CAUDILHISMO EM ALGUNS AUTORES

URUGUAIOS.

O objetivo aqui é discutir algumas interpretações que inter-relacionam os

temas da construção e papel do Estado uruguaio com o caudilhismo e com os

conceitos de civilização utilizados pelo século XIX para legitimar e explicar suas

“realidades”. Para isto, o foco estará em dois autores e algumas das suas obras mais

representativas no que se refere ao tema aqui tratado. Primeiramente está Juan E. Pivel

Devoto, com seus livros da década de 1950 Raíces coloniales de la revolución

artiguista e Historia de los partidos políticos en el Uruguay – Tomo II: la definición

de los bandos (1829-1838),82 este um segundo volume de uma coleção não

inteiramente publicada. Na seqüência, encontramos o professor de Literatura e Cultura

latinoamericana Abril Trigo com Caudillo, Estado, Nación. Literatura, historia e

ideologia en el Uruguay de 1990.83 Como terceiro autor, esta dissertação contará com

a ajuda de José Pedro Barrán, professor de história na Universidad de la República –

Montevidéu, em duas de suas obras de conteúdos e datas de publicação diversas. As

Bases económicas de la revolución artiguista escrita juntamente a Benjamin Nahum,

cuja primeira edição data de 1964, e Historia de la Sensibilidad, em dois volumes,

publicada na década de 1990, estarão dialogando com Herrera y Obes, Berro, Zás e

Antuña nos dois próximos capítulos. Estes autores ocupam posições diversas no

interior do campo acadêmico, o que nos ajudará em uma sempre limitada construção

de um ambiente diversificado de estudo da história.

81 SVAMPA, op. cit., p. 81. 82 PIVEL DEVOTO, J. E. Raíces coloniales de la revolución oriental de 1811. Montevidéu : Editorial Medina, 1957. 83 No momento da publicação do seu livro, lecionava na Ohio State University.

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1.3.1 – Pivel Devoto

Pivel Devoto, apesar de membro do Partido Nacional (blanco), mantém boa

parte das discussões e oposições “fundadoras” tão caracterizadas como coloradas,

todavia, matizando a barbárie caudilhesca, não a entende como necessariamente

blanca e ausente do partido oposto, observando que em ambos os partidos circulam

indivíduos doctores e caudilhos, vindos da cidade ou da campaña.

Na primeira de suas obras a serem analisadas, Raíces coloniales de la

revolución artiguista, o objetivo do autor está em encontrar no período colonial,

principalmente em suas últimas décadas, elementos que ao mesmo tempo estiveram

presentes, sejam como reivindicações ou “causas” da revolução ou até mesmo de

resistência a esta. Também é possível observar o interesse deste autor, ao separar a

revolução artiguista da contemporânea porteña Revolução de Maio. Percebe-se, ao

longo do livro, a intenção de demonstrar como, durante o período colonial, mas

também ao longo do próprio processo revolucionário, a rivalidade e a competição

entre as cidades de Buenos Aires e Montevidéu resultaram, ou melhor, criaram

condições ou motivos para que a segunda se tornasse, algumas décadas depois,

independente. Esta afirmação se baseia nos seguintes pressupostos: na concorrência

por privilégios portuários;84 na competição pelo território de jurisdição de cada cidade,

em que Montevidéu gradualmente tenta conquistar uma parcela da Banda Oriental

ainda dependente da capital porteña; e, finalmente, na rivalidade de Artigas, tido como

representante e defensor da “vontade da província oriental”, e em seu derrotado

projeto de Confederação que aspirava a formulação de uma aliança entre as províncias

84 Pivel Devoto sublinha as disputas comerciais entre os portos de Montevidéu e Buenos Aires como raiz de uma “tendencia autonomista de Montevideo”, destacando uma “clara vocación autonómica del puerto”. PIVEL DEVOTO, op. cit., p. 96/124/193.

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do antigo vice-reinado como uma defesa contra o poder centralizador de Buenos

Aires.85

Ao observar o relacionamento entre Montevidéu e Buenos Aires, é possível

dizer que essa rivalidade realmente existiu. Por outro lado, Pivel Devoto segue a

tendência, bastante comum em sua época, de colocá-la como uma afirmação de uma

nacionalidade uruguaia já assentada, ou que estaria já em formação desde o fim do

período colonial. A Banda Oriental teria uma nacionalidade natural: “Allí donde la

geografía se caracterizaba por una conjunción armoniosa de los accidentes naturales,

donde la ganadería imponía una misma actividad industrial y una uniformidad de

costumbres, las subdivisiones políticas obstaban para que se alcanzara la unidad

determinada por factores más poderosos que las delimitaciones artificiales”.86 Nesta

última citação, o autor comenta a inadequação da jurisdição porteña, cobrindo boa

parte do território oeste da Banda Oriental.

Contudo, melhor seria posicionar esta rivalidade na interpretação dada por

Chiaramonte em que, assim como ocorreu em várias outras províncias argentinas, a

legitimação de Buenos Aires para comandar a Revolução e uma nova organização

estatal não estava suficientemente assentada. Todo o processo de independência, e

mesmo boa parte do século XIX, foi um período de costura de alianças entre “cidades-

estado” e suas áreas de influência direta, as províncias. Não apenas as elites

provinciais demonstravam cautela em abrir mão de um poder em prol de Buenos

Aires, mas também não existia um consenso acerca da organização de um Estado.

Inclusive, a princípio, cada província, ou cada “pueblo”, como se costumava dizer,

seria livre e soberano. Através de preceitos do jusnaturalismo e do pacto social, cada

um desses “pueblos” soberanos, por menor que fosse, somente entraria em uma

Confederação ou Federação por livre vontade. Como vemos, mesmo nas demais

85 Era uma “tendência localista” dos cabildos, em especial a de Montevidéu. Isto contrariando a influência em favor da unidade que poderia ter exercido o vice-reinado e a Real Audiência. Ibid., p. 193. 86 Ibid., p. 133.

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províncias, a união de todo o vice-reinado em um único novo Estado não era tida como

algo óbvio ou necessariamente indispensável. Desta forma, a rivalidade entre

Montevidéu e Buenos Aires tende a seguir o mesmo padrão da de Buenos Aires com

suas demais províncias, e pouco tem a ver com um proto-nacionalismo, mas sim com

as noções contratualistas de organização de corpos políticos que circulavam naquela

época.

Mas, além destes objetivos gerais do livro, Pivel Devoto nos traz descrições

econômicas, geográficas e sociais da Banda Oriental. As estâncias e as “vaquerias”

“constituyeron la fuente única de nuestra riqueza colonial, e imprimieron un sello

propio a la vida que se desarrolló en ese escenario, a los hábitos y costumbres de sus

pobladores”.87 Nesta única citação, existe uma forte identificação entre o gaúcho, seus

hábitos e costumes com o cenário econômico da caça ao gado solto. Além disso, a

estância é classificada de latifúndio,88 uma grande extensão de terra, parcamente

utilizada, onde se caça gado para venda de couro e outros frutos destes animais. “Con

frecuencia se daba el caso de que el denunciante, beneficiado luego con la adquisición

de dilatadas extensiones de tierras [...], permanecía radicado en la ciudad, no realizaba

obra alguna en el campo, no lo poblaba con rodeos ni levantaba un rancho”.89

Seguindo a esteira sarmientiana, este é o tipo de lugar que fomentaria a barbárie.

Mas, como bem caracteriza a historiografia uruguaia o professor Jorge

Gelman,90 ao contrário da argentina, os historiadores uruguaios, ainda que mantendo a

supremacia e a representatividade do latifúndio e da caça ao gado, não desconhecem a

existência de outras formas de exploração. Assim sendo, “el hacendado civilizador del

medio rural se afinco en él con su familia, levantó su vivienda [...], pobló la estancia

87 Ibid., p. 10. 88 E chega a comparar a estância platina com um feudo medieval. Ibid., p. 17. 89 Ibid., p. 11. 90 GELMAN, Jorge. Campesinos y estancieros: una region del rio de la plata a fines de la epoca colonial. Buenos Aires : Editorial Los Libros del Riel, s/d.

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con rodeo de ganado manso [...].91A este tipo de empreendimento ele chama de

“racional”.92 Esta seria a “Explotación civilizadora”, a exploração racional do campo.93

Retornando ao gaúcho, “la empresa en la que se perseguía un fin de lucro,

lindaba por sus riesgos con la aventura y, por la aptitud para dominar las fuerzas

salvajes que revelaban quienes la acometían, denunciaba la existencia de un tipo

humano realmente singular [o gaúcho].”94 Esta economia também se converteu em um

“medio de vida de una clase social formada por el changador gaucho que en esa

actividad desarrolló sus instintos semisalvajes y modeló sus costumbres”.95

Mais uma vez, este ser bárbaro surge sem vontade ou sem intenção maior do

que a de satisfazer seus instintos básicos de sobrevivência ou suas ambições

“inferiores”. É com o caudilho que o gaúcho é conduzido, ainda que aparentemente

“sem saber por que”, rumo a uma participação política “indireta”. Visto como um

integrante de uma força de manobra, a historiografia costumava encontrá-lo “durante

las guerras civiles del siglo XIX, (...) [no] espectáculo de la peonada con el patrón al

frente, alistada en las filas de la revolución o en las del gobierno, sin más lema que el

del dueño, sin más odio que el del estanciero, amo y protector a la vez.”96

Herói nacional, Artigas também é um caudilho, mas está comparado a “El

Cid”: “Como un Cid, al frente de la mesnada propia, reconquistador de tierras,

defensor de derechos ultrajados, amparo de débiles.”97 Pivel Devoto reaproxima

Artigas do caudilho da reconquista, resgatando nele a virtude da liderança carismática.

Mas não apenas caudilho, ele próprio um gaúcho “persiguiendo ganado alzado para

hacer tropas, parando rodeo en las estancias o haciendo corambres en compañía de

hombres de rudo aspecto y alma simple, había penetrado en los secretos del gaucho,

91 PIVEL DEVOTO, op. cit., p. 14. 92 Ibid., p. 15. 93 Ibid., p. 17. 94 Ibid., p. 15. 95 Ibid., p. 17. 96 Id. 97 Ibid., p. 58.

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del changador y del indio, en la solidaridad que crea el peligro y las fatigas, en las

charlas y confidencias del fogón.”98 Artigas não apenas esta à frente da população do

campo, mas, de alguma forma, faz parte dela. Por dominar tanto sua linguagem como

seus costumes, é tido como um gaúcho “superior” entre os seus “iguais”, de quem o

respeito é conquistado segundo seus próprios valores. Artigas seria o grande

conhecedor da campaña em toda sua hierarquia e diversidade, vivendo “de manera tan

intensa en el medio rural, Artigas había adquirido un dominio del escenario geográfico

y un conocimiento de sus moradores: el rico propietario, el estanciero, el peón, el

gaucho y el indio, que lo convertían en la fuerza catalizadora de la conciencia

nacional”.99 Ele reúne em si vários elementos que, em seu conjunto, comporiam uma

nacionalidade uruguaia, incluindo habitantes do campo e da cidade.

A civilização da campaña, onde viveria a grande maioria da população

oriental, estaria intimamente ligada à reforma do sistema de propriedades. Desta

forma, Pivel Devoto faz uma relação direta entre Revolução artiguista e o chamado

arreglo de los campos,100 um conjunto de medidas que já se acreditavam necessárias

durante o regime colonial, mas que Artigas procurava impulsionar com seu reglamento

de 1815. Por outro lado, Barrán, mais densamente abordado no capítulo seguinte, ao

invés de considerá-la uma “raiz”, como consta no título de Pivel, a coloca como uma

“Base económica”. É menos uma “causa” e mais uma “característica”. No enfoque, os

dois livros se aproximam, mas diferem na interpretação entre causa e efeito.

O arreglo de los campos, ao reorganizar a campaña, pretendia a

“transformación de las costumbres bárbaras del medio rural (...)”.101 Em que consistia

este projeto? “Fundación de capillas (...), civilización de sus habitantes, organización

de las estancias, y adjudicación regular de las tierras para evitar que continuase la

98 Ibid., p. 42. 99 Mas é importante fazer uma ressalva, Pivel Devoto também utiliza a palavra caudilho no seu sentido “antigo”. Como exemplo, seu uso para Elío, caudilho que “interpretaba la voluntad popular” em 1808. Ibid., pp. 95/193/238. 100 Ibid., p. 59. 101 Ibid., p. 60.

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posesión ilegal de las mismas.”102 Além da “posesión ilegal”, poderíamos incluir

também a exploração ilegal, uma “tradição” contrabandista cuja prática remonta à

fundação da Colônia do Sacramento pelos portugueses no século XVII.

Felix Azara, que no período colonial elaborara um destes primeiros projetos

reformistas, afirmava que, com o arreglo de los campos, a população da Banda

Oriental passaria a ser composta de “civiles y cristianos”.103 Como podemos observar,

mesmo no fim do período colonial, suas autoridades já consideravam a campaña como

um lugar não civilizado. Este tipo de avaliação aparece em relatos e análises de

contemporâneos: “La campaña se halla en el mismo estado que los países salvajes en

que solo mandan la fuerza y las pasiones”.104 É interessante ressaltar como as

“pasiones” são vistas como anti-civilizadas, aproximando-se do sentido de processo

civilizador desenvolvido por Norbert Elias.105 A idéia de indivíduo civilizado de Azara

encontra seu significado em um uso de antigo-regime, porém, em transição. Estaria

ainda identificado à noção de educação e polidez, aos modos e costumes no

relacionamento com os demais indivíduos – uma questão de etiqueta. Todavia, o

simples fato de Azara pretender civilizar uma população subalterna contrasta com a

exclusividade aristocrática articulada pela nobreza como forma de legitimar sua

posição no interior de uma hierarquia social. Azara já contém alguns indícios do que

viria a representar o ideal de civilização burguês, algo contraditório por não abandonar

totalmente sua função de diferenciação social, alternando a necessidade de

manutenção hierárquica com um projeto de transformação social, uma intenção já

102 Id. 103 Civiles é uma palavra cujo sentido é típico de antigo regime, mas já se encontra em uso diferente daquele estabelecido por Elias que se aproxima da noção de educação e polidez dos costumes. Existe uma passagem do sentido civilizado aristocrático para o burguês, este mais relacionado a ideais de progresso e uma educação adequada a este fim. Durante os séculos XVII e XVIII, a burguesia tenta copiar os hábitos civis dos aristocratas; ao longo do XIX, tomam o conceito e o transformam, adaptando-o a uma visão particular. Isto será tratado adiante durante os capítulos 2 e 3. ELIAS, N. O processo civilizador. 2 v. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1994. 104 Exposição ao Cabildo de Montevidéu em 23/08/1803 citada por PIVEL DEVOTO, op. cit., 76. 105 ELIAS, op. cit.

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presente no particular reformismo dos Bourbons hispânicos do século XVIII.106

Mesmo anteriormente à ascensão burguesa do século XIX, esta camada social já havia

absorvido o ideal civilizador aristocrático, entrando em um jogo cujas regras sempre a

obrigavam a perder. Entretanto, a burguesia passaria a adaptar seu significado, e,

contando com futuras teorias de progresso e transformação social, iria direcionar seus

esforços a uma adequação da sociedade aos seus valores de civilização.

Uma característica importante que se atribuía à campaña corresponde à sua

imagem de permanente violência. O que pode ser observado em Sarmiento, mas

também nas versões federais, e mesmo em Rosas,107 é o entendimento de que o campo

se encontrava próximo ao estado de natureza de Hobbes. Neste sentido, a reforma

significa também “pacificar la campaña”, impor-lhe ordem.108 Esta violência se

relaciona ao estilo de vida do gaúcho, “el tipo social más representativo del ambiente

en el que había modelado su fisonomía.”109 O gaúcho é a “anarquía del medio

rural”.110 Ao arreglo de os campos igualmente se incluía um empenho de “persecución

de los vagos”.111 “Los [indios] minuanes y charrúas con el gaucho vagabundo,

representaban la parte anárquica y tumultuosa de la sociedad colonial, a la que no les

vinculó lazo alguno.”112 Estes setores, indígenas e gaúchos, eram colocados à margem

da sociedade, como que não adequadamente integrados.

A má fama do gaúcho não fora totalmente elaborada pela Geração de ’37 e

seus continuadores, estando presente já no período colonial. Não foram os

“civilizados” pós Geração de ’37 os que inventaram o mito da barbárie gaúcha, uma

vez que apenas deram a esta uma outra conotação, politizando muito sua utilização e

106 RUIBAL, B. C. Cultura y política em uma sociedad de Antiguo Régimen. In: TANDER, E. (org.). Nueva historia argentina: la sociedad colonial. Tomo II. Buenos Aires : Editorial Sudamericana, 2000. 107 LYNCH, J. Juan Manuel de Rosas. Buenos Aires : Emecé, 1984. 108 PIVEL DEVOTO, op. cit., p. 77. 109 Ibid., p. 95. 110 Ibid., p. 135. 111 Ibid., p. 188. 112 Ibid., p. 218.

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criando soluções diferentes, como a imigração européia. Os “civilizados” pós Geração

de ’37 embasavam seus argumentos em um senso comum sobre o campo que já estava

sendo construído desde o período colonial. De certa forma, uma “herança ibérica”.

Mas é importante frisar que Pivel não concorda totalmente com essa má reputação do

homem do campo.113 Não que o Antigo Regime esteja já pretendendo “civilizar” o

campo com um projeto igual ao posterior proposto por personagens como Sarmiento.

Mas, já no período colonial, nas reclamações ou petições de Montevidéu, fala-se muito

em “progresso” da cidade, e que fatores resultariam em promoção ou trava da

“prosperidade pública”.114 Contudo, em relação à revolução artiguista, Pivel Devoto a

relaciona mais a uma continuação de uma tradição política ibérica e às reformas que

estavam acontecendo na Espanha desde a formação das Cortes de Cádiz do que a um

iluminismo francês. É a “ penetración de las nuevas ideas, entre las que incluimos las

provenientes del movimiento revolucionario peninsular”, dando maior destaque a este

“reformismo” ibérico.115 Esta interpretação se aproxima um pouco do livro de

Halperín Donghi, publicado aproximadamente 10 anos depois, em que a Revolução de

Maio se coloca muito mais articulada à tradição política espanhola e à história da sua

monarquia, sua ascensão e queda, retirando-lhe a influência revolucionária francesa

que fora defendida pela Geração de ’37. Por outro lado, Pivel Devoto ressalta as

Cortes de Cádiz em seu conteúdo de novidade, como uma reação das “novas idéias” ao

antigo regime absolutista.

***

A Historia de los partidos políticos y de las ideas políticas en el Uruguay, la

definición de los bandos (1829-1838) é, provavelmente, a obra mais conhecida de Juan

Pivel Devoto. Esta seria parte de um projeto muito mais ambicioso, contendo dez

volumes, abrangendo a história das divisões políticas uruguaias desde 1810 até 1933.

Todavia, apenas o segundo volume foi publicado. Este segundo tomo de uma coleção 113 Ibid., p. 95. 114 Ibid., p. 169. 115 Ibid., p. 233.

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incompleta é justamente aquele em que os partidos tradicionais, o blanco e o colorado,

tomam forma. O livro está divido em cinco capítulos. Ao longo dos três primeiros,

Devoto desenvolve a história das facções que dominaram o cenário político do

intervalo estudado; privilegiando as alianças, estratégias, vitórias e derrotas de cada

um. No quarto capítulo, analisa a aplicabilidade de alguns itens da Constituição de

1830, mas também destaca algumas controvérsias geradas por alguns dos seus artigos.

Questões como a da independência dos Poderes e a das Faculdades Extraordinárias do

Executivo (a serem utilizadas em momentos de extrema necessidade para o Uruguai,

mas temidas pelo exemplo argentino em que se tornaram praticamente permanentes

nas mãos de Rosas) criaram ocasiões para interessantes discursos e publicações que

pretendiam melhor entender e organizar as instituições daquele Estado recém

formado.116 No último capítulo, intitulado Ideologia Social y Política, o autor aborda

alguns temas considerados importantes para e pelo período, principalmente no que diz

respeito ao entendimento que os indivíduos daquele momento formularam acerca do

caudilhismo.

Do ponto de vista formal, é difícil afirmar que existiam verdadeiros partidos

entre 1830 e 1838. As facções se diferenciavam simplesmente entre “oposição” e

“ministerial”.117 Esta divisão não era considerada de todo negativa, pois era vista como

parte importante do sistema republicano.118 Por volta de 1830, apesar de um periódico

local rogar aos orientais o abandono da sombra dos partidos argentinos, federal e

unitário,119 chegou-se a acreditar que os partidos uruguaios seriam diferentes, pois não

contavam com divergências tão intensas de organização institucional, o que os livraria

de conflitos similares aos do Estado vizinho.

116 Ver também para esta questão SALA DE TOURON, L.; ALONSO ELOY, R. op. cit. 117 PIVEL DEVOTO, J. E. Historia de los partidos políticos, la formación de los bandos (1829-1838). Montevidéu : Editorial Medina, 1956. p. 229. 118 Ibid., p. 230. 119 Ibid., p. 55.

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A formação dos partidos de Pivel Devoto aparece relacionada à dinâmica

política e à disputa pelo poder entre os caudillos e suas facções. É uma luta que opõe

duas essências do pós-independência: a revolução e a restauração da ordem. Por um

lado, esta oposição está próxima do proposto por Herrera y Obes em 1847,120 porém,

possui uma diferença fundamental: além de afastar a mancha da barbárie dos blancos,

relevando a ordem colonial perdida e a importância de figuras como a de Manuel

Oribe, valorizando neste o papel de administrador espanhol de antigo-regime, Pivel

Devoto não constrói esta oposição em termos de ideais teóricos, ainda que contidos em

princípios, mas como algo inerente à própria personalidade dos partidos. E uma vez

que a personalidade destes é escrita como profundamente ligada a dos seus líderes – o

partido à imagem do caudilho, a psicologia de Rivera e Oribe se transforma em via de

acesso para a compreensão do contexto de organização estatal uruguaio. Para Herrera

y Obes, os colorados representavam o impulso civilizador da revolução americana.

Este movimento não se encontraria na personalidade de Rivera, mas sim em um grupo

de indivíduos que, imbuídos de princípios universais, pretendiam conduzir o Uruguai a

uma cruzada contra o atraso bárbaro representado por Rosas e pelos blancos. Por outro

lado, a revolução entendida por Pivel Devoto contém o terrível risco da desordem.

Uma forte desestabilização da região também era temida no século XIX, e o risco da

“anarquia” era freqüentemente lançado como um alerta contra os “excessos

revolucionários”. Não é por acaso que Rosas, em Buenos Aires, recebia o título de

‘Restaurador de las Leyes’, enquanto que os blancos se auto-proclamavam os

‘Defensores de las Leyes’, como se seus inimigos, colorados e unitários, carregassem

consigo este germe da desordem.

A organização partidaria uruguaia é gerada pela própria dinâmica do conflito

entre estas duas essências do pós-independência: “una de ellas, imposición de la

realidad, reflejada en la existencia del caudillo y su sistema; la otra, trasunto de un

120 Uma de suas publicações ocupa posição central adiante no segundo capítulo, e contém diversos elementos em comum com esta obra de Pivel Devoto.

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anhelo de orden y disciplina en el gobierno (…)”.121 Com isto, este autor se transforma

em uma espécie de herdeiro alberdista.122 Mas se Alberdi se contrapunha às “utopias”

civilizadoras unitárias, impondo-lhes uma suposta “realidade” social argentina pouco

fecunda a tais aspirações, Pivel Devoto acredita que o “real” Uruguai, no que diz

respeito à sua composição social, era determinado pelo caudilhismo, e, portanto, pela

revolução. Assim sendo, e por estarem organizados em torno de Rivera, os colorados

são ao mesmo tempo um impulso ao caudilhismo e à revolução. Porém, é necessário

que se tomem algumas precauções para não classificar Pivel Devoto como um inimigo

desta revolução. Ainda que membro do partido blanco e crítico aos excessos

“jacobinistas”, pode-se perceber que este autor coloca ambos os partidos como

complementares à formação do Uruguai. Esta “definición de los bandos” está

intimamente ligada às personalidades de Rivera e Oribe, conectadas aos princípios de

liberdade e revolução, ordem e herança espanhola, respectivamente. É no conflito

entre estas duas essências que se formam os partidos uruguaios.

“Blancos y Colorados sin llegar a constituir aún partidos orgánicos, definen

sus tendencias a raíz de la guerra civil de 1836, sustentando, unos el principio de la

autoridad identificado con la nación, y otros el de la revolución personificada en la

figura del caudillo”.123 A revolução surge no próprio caudilho. Não foram os

intelectuais que dirigiram a independência. Ao contrário de Buenos Aires, a elite de

comerciantes de Montevidéu resistiu à Revolução de Maio. Por este motivo, foram

sitiados pelas forças do caudilho Artigas, símbolo da revolução oriental. Da mesma

forma, fora o caudilho Lavalleja o comandante da expedição que teria libertado a

Província Cisplatina do domínio imperial. Desta forma, a revolução está ligada à

psicologia do caudilho e dos seus seguidores. Seria um estilo de vida inquieto e

inerentemente revolucionário. Não seria uma revolução teoricamente fundamentada

121 PIVEL DEVOTO, Historia de los partidos..., p. 131. 122 ALBERDI, op. cit. 123 PIVEL DEVOTO, Historia de los partidos..., p. 154.

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em livros e estudos, mas algo que poderia ser encontrado também na essência do

homem platino, principalmente naquele habituado à vida da campaña.

Rivera, “más caudillo que militar”,124 comandava a campaña com recursos

políticos próprios, respaldado por um exército pessoal, feito à sua “imagen y

semejanza”.125 Este tipo de liderança representava uma importante força para aquele

cenário político, impondo a um Estado ainda instável a necessidade de um permanente

pacto de co-participação.126 Tipificando-os como líderes rurais, “cifraban todo su

poderío en el prestigio que les rodeaba en la campaña”; estrangeiros quando em

cidades, “a cuya psicología eran extraños (…)”.127

Filho da revolução, Rivera seria “el primer baqueano del país”.128 Carismático,

teria um “extraordinario don de simpatía y de atracción personal”.129 Hábil na

“destreza en dominar el caballo”,130 aproximar-se-ia dos seus subordinados gaúchos no

que se refere à perícia nos desafios da campaña. E vendo seus seguidores como “sus

hijos”,131 alimentava a imagem do patriarcalismo ibero-americano.132 Herrera y Obes

também tem em Rivera um exemplo de caudilho. E é justamente quando este é

expulso que os colorados podem vangloriar-se de aparecer na vanguarda da

civilização. Os objetivos de cada um são diversos, mas a descrição de Rivera

formulada por Pivel Devoto é muito semelhante àquela idealizada por Herrera y Obes

no século anterior. Dentre os diversos pontos de intersecção, encontram-se as forças 124 Ibid., p. 10. 125 Ibid., p. 9. 126 Ibid., p. 145. A oposição entre a “autoridad legal del gobierno y la autoridad real del caudillo”. 127 Ibid., p. 16. 128 Ibid., p. 76. Baqueano é o conhecedor dos caminhos da campaña. Uma espécie de topógrafo gaúcho. Sarmiento o tipifica socialmente como um dos habitantes encontrados no pampa. SARMIENTO, D. F. Facundo, civilización y barbarie. Buenos Aires : COLIHUE, 1990. p. 68-70. 129 Ibid., p. 77. 130 Id. 131 Ibid., p. 80. 132 Seguindo as considerações de Richard Morse em O Espelho de Próspero, creio ser mais adequado o uso de “ibero” ao invés de “latino” pela especificidade ibérica em relação aos demais, deixando de lado hipóteses centradas em mentalidades “católicas”, “sul-européias” ou latinas em vista das diferenças históricas e sociais que os distanciam de italianos e franceses. MORSE, Richard. O espelho de próspero: Cultura e idéias nas Américas. São Paulo : Schwarcz, 1995.

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que cimentavam seu poder, “el paisano y su familia, los gauchos e indios sueltos”.133

Rivera era o “elemento vivificador de las masas que le reconocían por caudillo”.134

Excluídas do direito à cidadania pela constituição de 1830, com um sistema

representativo com o qual não podiam contar, as reivindicações destas “massas” são

levadas ao caudilho, em quem buscam “protección para su desamparo”:135

Esas partidas numerosas de hombres sueltos y sin residencia fija, a quienes la autoridad podía calificar de vagos, que constituían el sector más modesto de la población, y eran una supervivencia del movimiento revolucionario y una expresión instintiva de la idea de libertad que lo había inspirado, estaban llamadas a convertirse en factores decisivos para la acción política de los caudillos.136

O movimento de independência platino e as guerras que o sucederam, em

especial para o caso uruguaio, resultaram em um ambiente favorável à ascensão dos

caudilhos.137 Em um contexto marcado pelo desejo de transformação, mas ainda

carregando consigo elementos coloniais, acreditava-se que a população subordinada ao

caudilho, acostumada à opressão ibérica, não estava preparada para a República, o que

legitimava a limitação da concessão da cidadania.138 Existia um certo consenso a

respeito da grande distância entre o sistema implantado e os hábitos da população. E

esta era uma opinião que poderia ser encontrada também em Sarmiento ou em Alberdi.

É nesta distância entre um Uruguai “real” e um “desejado” que nasceria a guerra, uma

vez que “(…) la lucha armada estaba llamada a ser el corolario fatal, el único

conciliable, en un ambiente donde no existían otros hábitos que el de la violencia

como medio de hacer triunfar las ideas”.139 Além dos gauchos sueltos, grupos

133 PIVEL DEVOTO, Historia de los partidos..., p. 80. 134 Ibid., p. 176. 135 Além disso, Pivel Devoto supõe que o caudilho poderia infundir nos seus subordinados algo como um nacionalismo uruguaio: “Identificado con ellas, el caudillo supo infundirles la pasión de un sentimiento colectivo, que se confundía con el de la nacionalidad.” PIVEL DEVOTO, Historia de los partidos..., pp. 67/75. 136 Ibid., p. 72. 137 Ibid., p. 74. “La independencia del país consagro en los hechos el triunfo de los caudillos a cuyo principal esfuerzo aquella era debida”. 138 Ibid., p. 232. 139 Ibid., pp. 90-91.

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indígenas que se organizavam em torno ao caudilho eram também seguidamente

acusados de depredar a campaña, los indios del Cuareim140 resultaban auxiliares codiciados por los caudillos que programaban empresas sobre Misiones y Corrientes ya fuera para alterar el orden, extraer ganados, o dar rienda suelta a los planes quiméricos que en sus espíritus inquietos suscitaban aquellos vastos desiertos sin límites definidos.141

Toda esta violência creditada ao caudilhismo era vista como uma

“manifestación de nuestra realidad política y social, (...) [uma] influencia personal de

los caudillos alrededor de quienes se congregaban las masas populares que habían

hecho la revolución (…)”.142 De modo geral, não apenas Pivel Devoto, mas também a

historiografia uruguaia confere às guerras civis o aparecimento de uma cultura de

violência e de retrocesso econômico, pois “veinte años de guerras habían cegado casi

las fuentes de riqueza del país, confundido los ganados, desmejorado los

establecimientos de campo, alterado la estructura social y económica del medio rural y

relajado los hábitos de trabajo de sus pobladores”.143

Não obstante esta “ruralização do poder”, parte da elite de Montevidéu

permaneceu ativa, alguns formando blocos de oposição, outros aderindo aos caudilhos

e ocupando posições administrativas no interior dos partidos, do próprio Estado ou em

outras “burocracias caudilhescas”. A historiografia uruguaia os chama de ‘doctores’¸

indivíduos que se sentiam repelidos pelos caudilhos “por el antagonismo que

trasuntaban y por ser psicológicamente extraños”.144 Realizando esta aproximação com

140 Rio Cuareim, ou Quaraí em português. É um dos rios que assinalam os limites entre Brasil e Uruguai. 141 PIVEL DEVOTO, Historia de los partidos..., p. 12 A idéia de “vastos desertos” como determinantes na formação social platina também está contida em Sarmiento e em outros contemporâneos. SARMIENTO, op. cit., pp. 49-61. 142 Ibid., p. 67. 143 Ibid., p. 72. 144 Continuando, “Pero debía ser ésa una norma en nuestra historia política. Los ‘caudillos’ armonizando con los ‘doctores’, sin quererse unos y otros, como medio de mantener el equilibrio y la paz; o distanciados radicalmente, y unidos los caudillos de uno y otro partido para combatir la tendencia principista que agrupaba también a ciudadanos de bandos opuestos, pero ligados por ideas comunes.” Ibid., p. 24.

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vistas a uma maior participação política, este setor de intelectuais revestiria a

“intuição” caudilhesca “de formas cultas con la pluma de los doctores”.145

Já a partir da constituinte que deu origem à carta magna de 1830, existiu uma

tendência a limitar o poder dos caudilhos, ou militares, no interior do Estado.

“Dominados por una indisimulada prevención contra el caudillismo”,146 aquela

primeira Constituição pretendia restringir sua participação, chegando a proibir a

eleição de militares, mas também de empregados civis, para a Câmara de

Representantes.147 Preocupados constantemente com dois extremos, a anarquia e o

absolutismo, pretendiam organizar um Estado capaz de manter a ordem, defendendo o

que acreditavam ser um sistema republicano.148 Dentre outras prevenções, foi

determinada a proibição do porte de armas em seções eleitorais,149 e estudou-se o

impedimento do sufrágio para os soldados de baixa graduação, pois eram considerados

demasiadamente influenciáveis por seus oficiais.150 Comerciantes, advogados e

grandes proprietários, principalmente os sediados em Montevidéu, trataram de “tomar

o poder” através desta Assembléia Constituinte, porém tiveram pouco sucesso, e logo

foram obrigados a cooperar com Rivera, primeiro presidente eleito.151

Na medida em que Pivel Devoto caracteriza esta divisão entre doctores e

caudillos, ele transcreve uma oposição consagrada do imaginário político do século

XIX. Este autor reforça determinados antagonismos: cidade contra a campaña; “clase

145 Ibid., p. 67. 146 Ibid., p. 39. 147 Ibid., p. 44. Esta prevenção em relação à influência das armas não era uma novidade. Com a Banda Oriental tomada pelo artiguismo, o padre Perez Castellanos já reclamava da presença desconfortável de militares em assembléias ou votações. PEREZ CASTELLANO, J. M. Selección de escritos: crónicas históricas (1787-1814). Montevidéu : Ministério da Cultura, Biblioteca Artigas, 1968. pp. 149-181. 148 Ibid., p. 53. 149 Ibid., p. 58. 150 Ibid., pp. 68-69. A propósito, prática ainda adotada para o Brasil deste início de século XXI, onde os recrutas do serviço militar têm seus títulos eleitorais confiscados pelas forças armadas, sendo proibidos de votar. 151 Ibid., p. 75.

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doctoral” versus caudilhos.152 Herrera y Obes, em 1847, sustentava sua argumentação

justamente nestas oposições. Estando os doctores e a cidade supostamente ao seu lado,

estes representariam a intectualidade e a civilização num embate histórico contra a

barbárie caudilhesca, esta apoiada pelo ambiente rural. Pivel Devoto não utiliza estes

termos sarmientianos para hierarquizar estes extremos sociais, mas mantém a

construção destas categorias rivais como geradoras de duas essências constituintes da

sociedade uruguaia. Enquanto a maioria dos “doctores y ilustrados” ou apoiaram a

presença do Império do Brasil, ou simplesmente não adotaram uma posição

definida,153 a parcela da população responsável pela independência então dependeria

da presença dos caudilhos para ter alguma participação política, mesmo que

gritantemente subalterna. Subsistiriam, então, dois governos: “el de la campaña

ejercido por el caudillo y el de la ciudad a cargo de los doctores”.154 A dualidade do

poder uruguaio seria ainda reforçada pela criação do cargo de Comandancia General

de la Campaña, especialmente criado para Rivera no início da presidência de Manuel

Oribe.

Como argumento para explicar o surgimento dos partidos blanco e colorado, é

nesta dualidade entre a campaña e a cidade, entre o caudilho e o cargo institucional da

presidência da república, entre a revolução e o desejo pelo retorno da ordem, entre

Rivera e Oribe, que Pivel Devoto pretende amparar seu livro. “Señalar el año 1830

como término concreto de período revolucionario, es hacer esa clausura artificiosa y

estéril que cierra el camino de lo real en el estudio de los procesos históricos”.155

Fructuoso Rivera representaria uma teimosa revolução; Manuel Oribe apareceria no

anseio de volta à ordem e à paz. Esta restauração de uma ordem colonial tradicional

espanhola entraria em choque com estes homens “filhos da revolução”. Os anos de

guerra que transcorreram entre a primeira invasão inglesa de 1806 e o acordo de paz

152 Id. 153 Ibid., p. 74. 154 Ibid., p. 80. 155 Ibid., p. 154.

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de 1828 transformaram a sociedade platina, conduzindo-a de uma estabilidade colonial

para uma instabilidade caudilhesca. A presença de Oribe, e para Pivel Devoto, sua

psicologia, teria como rival “el estado social de nuestro medio, reflejado en el prestigio

y la influencia del caudillo, [que] se opuso a la realización de eses propósitos de

política orgánica y disciplinada”.156

A temática fundadora do caudilhismo, cuja construção se define

principalmente ao longo das décadas de 1830 e 1840, introduziu àquelas sociedades

uma pioneira versão interpretativa da sua história. Não que esta fosse totalmente nova,

visto que dava continuidade a uma leitura social da campaña já parcialmente elaborada

durante o período colonial, mas constituía um novo arranjo para estas questões agora

adaptadas aos desafios intelectuais enfrentados pelas personagens das guerras entre

federais e unitários, blancos e colorados. Para as gerações posteriores, as formulações

“clássicas” dedicadas ao caudilhismo representavam um ponto de partida para novas

interpretações. Indivíduos como Sarmiento se tornaram referências quase que

obrigatórias de citação, não importando se para refutar ou reforçar algum argumento.

Mais do que isso, uma vez que Sarmiento apenas desenvolveu uma versão própria de

algumas idéias que já circulavam há algum tempo, todo um campo intelectual se

encontrava subentendido em boa parte dos textos cuja intenção seria analisar a

sociedade platina. Em especial para o caso uruguaio, a existência continuada dos

partidos blanco e colorado estava sempre disposta a reavivar sua história de disputas,

trazendo consigo estas “clássicas” teorias que davam sentido à sua atuação política.

Os dualismos definidos pelos contrastes entre a campaña e a cidade, entre o

caudilho e o Estado, entre blancos e colorados, foram diversas vezes reposicionados

por posteriores pensadores. Como veremos adiante, estas oposições seriam muito mais

utilizadas por unitários e colorados, mas mesmo futuros autores blancos as

reconheceriam como abertura de novos trabalhos. Lendo o trabalho de Pivel Devoto, é 156 Ibid., p. 176. “Oribe, cuyas actitudes e ideas trasuntan el estilo de la vida colonial personificó aquel anhelo. Pero a su honrada vocación de gobernante a la española, amigo del orden y de buena administración (…)”.

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possível perceber a força destes dualismos que, neste caso, comportariam a essência

psicológica das forças que dinamizaram a sociedade uruguaia. Definidos pelas

personalidades de Fructuoso Rivera e Manuel Oribe, estes dualismos ao mesmo tempo

definem o caudilhismo e a necessidade de derrotá-lo, representando tanto a revolução

e a independência quanto o anseio pelo retorno à ordem e à organização de um Estado-

nação. Enfim, Pivel Devoto reposiciona, porém mantém os elementos básicos que

caracterizam as interpretações “clássicas” que o precederam.

1.3.2 Abril Trigo

Através de um interessante livro de Abril Trigo, Caudillo, Estado, Nación.

Literatura, historia e ideologia en el Uruguay,157 podemos ao mesmo tempo mapear

um pouco da utilização das oposições doctores-caudillos/gauchos, cidade-campaña,

civilização-barbárie, assim como a construção e a utilização do mito de Artigas desde

o fim do século XIX até as últimas décadas do XX. Além disso, analisando o próprio

autor, podemos perceber que, ainda que retirando o julgamento prévio, depreciativo e

preconceituoso normalmente encontrado no pensamento do século XIX, este autor

mantém alguns dos seus temas como pontos de partida de discussão.

Principalmente no que se refere à primeira metade do XIX, presente em seu

primeiro capítulo, Abril Trigo mantém uma imagem histórica muito próxima àquela

desenhada por indivíduos como Sarmiento ou Manuel Herrera y Obes, e ainda utiliza

termos como “civilizado” ou “bárbaro”, identificando o primeiro ao europeu habitante

na cidade, e o segundo ao gaúcho, visto como tipo social predominante da campaña.

Desta forma, “Montevideo, producto de la política borbónica, no sería ciudad letrada

ni monacal, sino bastión militar, ciudad puerto, enclave mercantil, cuña civilizadora

empotrada en la entraña de la frontera bárbara, dibujada a las orillas del río como mar

157 TRIGO, op. cit.

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según la minuciosa preceptiva de las leyes de Indias.”158 Tomando como verdadeiras

impressões profundamente politizadas como a de Andrés Lamas, membro do partido

colorado extremamente envolvido com a Guerra Grande, Abril Trigo coloca os

gaúchos como indivíduos socialmente determinados pela extração do gado cimarrón,

pelas grandes distancias geográficas do pampa e pela “rebarbarização” do europeu em

contado com o Novo Mundo.159

Na seqüência, esta sociedade bárbara determina que el caudillo, primus inter pares, ha de ser un desprendimiento de la masa que le sigue, capaz de interpretar las vibraciones de ese cuerpo social que, bajo circunstancias de crisis o peligro, se identifica en él. (...) Ese es el rol del Artigas de la Redota: una masa fragmentaria, informe, indefinida, acorralada por enemigos múltiples, acude al caudillo en busca de amparo y conducción, porque él es la llave, el freno y el maestro; él, no la tierra de horizontes abiertos, es el núcleo de la nación en cierne; en él reside, por delegación voluntaria de sus miembros en un pacto escrito a punta de tacuara, la soberanía de la tribu emergente de la nebulosa original.160

O caudilho é aquele que acolhe e recolhe para si as reivindicações e as

expectativas da população gaúcha, tornando-se seu líder e porta-voz. Não é o pampa e

seu deserto, não é a geografia sarmientiana de “horizontes abiertos”, mas é o caudilho

o que define “el núcleo de la nación en cierne”.

A oposição entre caudilhos bárbaros, estes identificados com a “realidade

nacional”, e doctores idealistas e civilizados fica também evidente na medida em que

os coloca como representantes “de dos culturas distintas de las que son expresión

característica: el caudillo popular e indisciplinado, identificado con el espíritu

localista, y el elemento doctoral de la ciudad, con frecuencia alejado de la realidad

nacional, unas veces por su desconocimiento del medio y otras por la influencia de una

formación cargada de doctrinarismo.”161 Abril Trigo coloca no caudilho um

“conhecimento instintivo e prático” de uma suposta “realidade nacional”, o que

158 Ibid., pp. 10-11. 159 Ibid., p. 13. 160 Ibid., p. 17. 161 Ibid., p. 19.

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poderíamos entender como um conhecimento profundo da sua geografia e da sua gente

(os gaúchos), em oposição a um setor de intelectuais clausulados, ou pela guerra ou

por falta de interesse pela campaña, em Montevidéu. Mantendo uma interpretação já

exposta por Alberdi e invertida por Pivel Devoto,162 a autora aponta que estes doctores

construiriam seus ideais não pela análise da “realidade”, mas por teorias importadas do

contexto europeu que pouco poderiam fazer pela América. Suas teorias, elaboradas

conjuntamente aos exilados vindos de Buenos Aires, seriam la iniciativa más audaz y definitiva contra la ‘gauchocracia’. En la atmósfera cosmopolita y romántica del Montevideo sitiado (‘...Pero, ¿qué ciudad es ésa?, ¿es la ciudad de América, es la ciudad oriental? No; es la ciudad de los europeos...’ [citando Berro, responsável pela réplica blanca a Herrea y Obes]) se diseña el más refinado montaje ideológico que conociera esta parte del mundo, al racionalizar maniqueamente la dialéctica geopolítica, otorgándole fundamento de axioma moral. La irrupción del romanticismo liberal, teñido con los balbuceos del utopismo social importado por Esteban Echeverría (...), les proporciona un juvenil empuje mesiánico y misionario, no exento de soberbia.163

Para o Uruguai, já que para a recente historiografia argentina os caudillos são

considerados também construtores do Estado, Abril Trigo ainda reserva a estes líderes

gaúchos um papel anarquizante e destabilizador. E será justamente o fortalecimento do

Estado aquele que aniquilará o caudilho como “categoría histórica”.164 Apesar desta

afirmação, a autora ainda encontra no caudilhismo um longo processo de agonia, mas

também elabora a idéia de caudilho urbano – uma espécie de líder populista das

massas, cujo exemplo, no século XX, estaria na figura do blanco Luís Alberto de

Herrera.

Também em Abril Trigo, o caudilhismo é um elemento fundador para a

historiografia uruguaia: “Pues todos los proyectos estatales que cruzan nuestra historia,

así como las diversas concepciones de nación en que se engarzan, son partes de un

mismo y único discurso, permanentemente reiniciado, vertebrando en el imaginema

162 Invertida, pois ele coloca os blancos ao lado das idéias e Rivera ao lado da “realidade caudilhesca”. 163 TRIGO, op. cit., p. 19. 164 Ibid., p. 26.

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caudillo.”165 É um ponto de partida para medir e classificar o Estado segundo uma

gradação da interferência do personalismo do líder rural. O Estado “melhor formado”

é o menos caudilhesco, ou, segundo o padrão do século XIX, ao menos aquele em que

o caudilho urbano se adapta ao seu funcionamento. É por este motivo que tanto Abril

Trigo como a historiografia uruguaia em geral identificam a formação de um

“verdadeiro” Estado com a ascensão do Coronel Latorre,166 pois seria aí, a partir da

década de 1870, que o Estado se tornaria mais poderoso do que as forças particulares

do caudilho que até então o detinham como permanente refém de milícias gaúchas

vindas do interior. A partir de Latorre, mas principalmente com a presidência de

Batlle, as mudanças sofridas pelo “aparato estatal (que oficia ahora realmente como

‘nacional’) crece en tamaño y funciones e interviene en todas las instancias de la vida

nacional”.167 Com isto observamos também a existência de uma forte identificação

entre Estado e Montevidéu, mantendo, como sempre, a oposição cidade-civilização

versus campo-barbárie.

Assim como se costuma dizer a respeito do Brasil, é também com a Guerra da

Tríplice Aliança contra o Paraguai que se organiza o exército profissional no Uruguai,

um elemento classificado como “iniciación a la modernidad”.168 Surge o militarismo

como “una reiteración, aumentada, del caudillaje”.169 Curioso, porém, que este

fortalecimento do exército em detrimento ao enfraquecimento de forças milicianas

165 Ibid., p. 29. 166 Os governos colorados de Lorenzo Latorre (1876- 1880), Máximo Santos (1882-1886) e Máximo Tajes (1886-1890) foram capazes de centralizar o Estado, tornando cada vez mais raros e pouco frutíferos os levantes de caudilhos. O último grande levante blanco foi o protagonizado por Aparício Saravia (Seu sobrenome se alterna de Saraiva para Saravia. Aparício era irmão de Gumercino Saravia, caudilho que participou da Revolução Federalista no Brasil, inclusive tomando parte do cerco da Lapa). Este último levante caudilhista foi sufocado pelo governo colorado de José Batlle y Ordoñes, presidente identificado com a entrada do Uruguai na “modernidade”. Sala de Touron e Alonso Eloy sustentam este mesmo raciocínio sobre o Estado, identificando a sociedade em que predominam o caudilho e relações protocapitalisas de produção e trabalho como um período de transição. SALA DE TOURON, L.; ALONSO ELOY, R. op. cit. p. 7. 167 RIBEIRO, op. cit., p. 28. 168 TRIGO, op. cit., p. 32. 169 Ibid., p. 35.

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irregulares fosse defendido por aqueles doctores que não temiam a violência em si,

mas a violência desorganizada e não “racionalizada”. Ainda sim, a influência do

militar na política, já era temida e tida como nefasta desde a organização da

constituinte de 1830, em que se procura proibir a eleição de militares para a Câmara de

Representantes.

Neste final de século XIX, a presença de Facundo: civilización y barbárie

ainda é marcante; mesmo que em caso de discórdia, ainda é necessário escrever a

partir dos seus preceitos: “tanto Ordaña como Varela critiquen la falacia sarmientina,

no obstante propiciar un embate frontal contra las fuerzas anárquicas de la barbarie.”170

José Pedro Varela, intelectual responsável pela redação de uma lei de reforma do

ensino público, afirmava que a idéia de barbárie seria “relativa”, e a prefere como um

estado de ignorância a ser sanado por um sistema educacional eficiente orientado pelo

Estado.171 Citando Ordaña: “Aquí no existe el desierto como desierto: aquí existe la

soledad, el apartamento de las poblaciones, pero no hay pampas, ni chacos, ni ninguna

de aquellas extensiones en que las otras Repúblicas del continente se van gradualmente

ensanchando, haciendo retroceder á los aborígenes al desierto.”

Ao contrário da vizinha Argentina, no Uruguai não haveria mais o deserto

sarmientiano. As fronteiras, ao final do XIX, estavam demarcadas e ao alcance do

Estado. As estâncias já estavam cercadas por quilômetros de arame, e o gaucho suelto

se encontrava em extinção. O problema do Uruguai não seria a grande extensão, mas a

capacidade desta sociedade concentrar uma população esparzida.172 O Uruguai já não

tem um território reserva a conquistar, e os últimos indígenas infiéis e indomados

haviam sido aniquilados por Rivera a partir da década de 1830. Neste sentido, aquilo 170 Ibid., p. 43. 171 É interessante salientar que Sarmiento também depositava suas esperanças na educação pública como caminho para a civilização da Argentina. Mais do que isso, Sarmiento escreveu métodos de ensino para uso escolar, é, até hoje, visto também como um “educador”, um “pré-pedagogo”. Mais adiante, poderemos perceber que este era um desejo já presente em ambas as margens do Prata ainda na primeira metade do século XIX. Contudo, essas idéias somente seria postas em prática de forma mais intensa ao final daquele mesmo século. 172 TRIGO, op. cit., p. 45.

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que deu significado à Banda Oriental colonial e aos primeiros anos de sua

independência – a região essencialmente marcada pela fronteira – já havia

desaparecido. Tanto a luta entre os impérios ibéricos, depois continuada por Brasil e

Argentina, como a própria conquista da campaña pela cidade e pelo Estado, já

estavam terminadas. O país-fronteira já havia desaparecido,173 e a “dupla revolução”

detectada por Pivel Devoto e ressaltada por Herrera y Obes já estaria praticamente

concluída.

1.4 QUESTÕES ATUAIS ACERCA DO “CAUDILHISMO CLÁSSICO”

Esta seção não pretende esgotar as discussões e sentidos usados para o

caudilhismo, mas apenas indicar algumas novas abordagens que vêm matizando o seu

uso “clássico” instaurado pela primeira metade do século XIX e reutilizado pelas

gerações platinas posteriores.

1.4.1 Dualismos: poder institucional e personalizado; civilização e barbárie; rural e

urbano.

Para sua formulação clássica, o decisivo argumento que explicaria o

surgimento do fenômeno caudilhista encontra-se na especificidade histórica platina. A

própria dinâmica história que teria provocado a suposta “anarquia” de 1820, associada

a uma tradição ibérica condicionada por uma geografia determinista e por uma

sociedade “gaúcha” e rural de frouxos laços sociais seria a geradora do caudilhismo.

Este é encarado como produto de uma conjugação destes diversos fatores. Para

Sarmiento, é o fruto platino da barbárie, mas, também, seu principal agente. Ao

mesmo tempo, é causa e sintoma.

173 Ibid., pp. 45-46.

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Todavia, esta “anarquia” vem sendo matizada por novas abordagens. O vazio

institucional que a provocara não existiria, uma vez que o vice-rei fora substituído por

uma série de instituições autônomas provinciais. A província surge como entidade

política nova a partir de 1820.174 Após o fracasso das tentativas centralizadoras –

temporariamente abandonadas com a deposição de Bernardino Rivadavia, são os

Estados Provinciais aqueles que se organizam e se desenvolvem ao longo da primeira

metade do século XIX. Para a província de Buenos Aires do governo Rosas, recentes

estudos de Juan Carlos Garavaglia vêm demonstrando um admirável crescimento do

aparato estatal. Amparado em dados orçamentários, evidenciam-se seus ascendentes

investimentos, e, estimando-se o erário disponível para cada uma das suas repartições,

é possível imaginar até que ponto poderia ter chegado o poder de intervenção e

influência do governo de Rosas em seu território.175

En el Río de la Plata, las etapas iniciales del proceso de independencia fueron protagonizadas institucionalmente por las ciudades o ‘pueblos’ y sus organizaciones capitulares, compuestas de representaciones tanto sociales como territoriales, no así étnicas como es el caso de otras regiones de Hispanoamérica, por ejemplo, los Andes o Nueva España. Hacia 1820, estas ciudades junto a sus campañas, se convirtieron en ‘soberanas’ bajo la forma de Estados provinciales, con distintos grados de desarrollo institucional y firmaron un pacto de confederación en 1831. Durante el período coexistieron así Estados autónomos junto a proyectos constitucionales de unidad mayor, que no lograron consolidarse antes de la proclamación de la constitución federal de 1853176.

Nisto concorda Silvia Ratto que, em nota de citação a Chiaramonte, entende

que os Estados provinciais da década de 1820 não são uma fragmentação de uma

nação supostamente preexistente, mas, sim, um ponto de partida para uma organização

político-estatal pós-independência.177 De certa forma, ao longo do território argentino,

surgem uma série de cidades-estado que, em torno a suas áreas rurais de influência,

formaram as províncias. Assim, as elites locais defenderam seus interesses em um 174 GOLDMAN, N.; TEDESCHI, S. op. cit., p. 138. 175 GARAVAGLIA, Juan Carlos. La apoteósis del Leviathán: el estado em Buenos Aires durante la primera mitad del siglo XIX. Latin American Research Review, v. 38. 1, fev. 2003. 176 GOLDMAN, N.; TEDESCHI, S. op. cit., p. 137. 177 RATTO, op. cit., p. 242.

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ambíguo jogo entre a manutenção dos laços de união com os ex-colegas de um mesmo

vice-reinado e o resguardo das soberanias locais. Amparados em uma noção de direito

natural que afirmava o caráter de livre adesão a um pacto social, logo transformado em

pacto de sujeição, legitimavam suas ações na defesa das soberanias regionais.

Com acerto, Chiaramonte faz uma transposição entre a noção de indivíduo e a

noção de “povo”.178 Este “povo”, sem um contorno étnico definido, e que se

materializa na cidade, torna-se um indivíduo que, junto aos demais “povos” das

demais províncias, teria a escolha de aderir ou não a um Estado Central. Isto não pode

ser confundido com uma democracia contemporânea, mas deve ser entendido como

algo próximo a um pluralismo de Antigo Regime em que unidades diferentes

concorrem ou se associam na formação de Estados. A linguagem utilizada nas

primeiras décadas do XIX evidencia esta particularidade da idéia de indivíduo e de

povo. A “liberdade dos povos”, exaustivamente repetida por lideranças das campanhas

de independência, expõe a própria pluralidade de povos que poderiam ser libertados do

julgo espanhol. E mesmo em eleições representativas, era muito forte a idéia de que

cada grupamento urbano, por menor que fosse, representava um indivíduo do ponto de

vista jurídico e, o mais importante, em igualdade de direitos em relação a outros

centros urbanos maiores. Desta forma, apesar da liderança herdada por Buenos Aires

do período colonial, uma organização estatal central com a cidade porteña como

capital não era tida como totalmente óbvia ou legitimada. E seguindo o mesmo

raciocínio, a independência conquistada contra a metrópole européia não

necessariamente significaria uma transposição automática do centro político para

Buenos Aires, pois, como se argumentava na época, as províncias poderiam se tornar

apenas colônias desta capital. Ainda que a sede do Vice-reinado do Prata se

encontrasse em Buenos Aires, esta seria apenas uma instância administrativa

representante do monarca espanhol; a partir deste soberano estariam ligados todos os

espanhóis, tanto os europeus como os americanos. Vazio o trono espanhol, ou 178 CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y estado en iberoamérica....

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quebrado este pacto que os unia, caberia a cada “povo”, ou a cada localidade, a livre

decisão de aderir ou não a um novo pacto social. Enquanto foi hegemônico o Partido

Federal, principalmente sob a liderança de Rosas, o poder central formalmente

estabelecido simplesmente não existia. Sendo apenas governador da província de

Buenos Aires, Rosas adquiriu legalmente uma primazia em relação aos demais

governadores com o pacto da confederação de 1831. Este pacto lhe deu a posição de

porta-voz para os assuntos internacionais da Confederação Argentina. Desde a

derrocada unitária de Rivadavia em 1827 até a Constituição escrita sob o poder de

Urquiza em 1853, fora o pacto confederativo o responsável jurídico pela manutenção

da união entre as províncias argentinas.

A Banda Oriental não escapou a estas questões do parágrafo precedente.

Proclamando-se Artigas protetor do “povo oriental”, ele pretendia não somente

defender este “povo” do colonialismo europeu, mas faria o mesmo em relação à

opressão vinda da cidade vizinha de Buenos Aires. Assim sendo, não enviou

representantes para o Congresso de Tucumán de 1816. Em uma fonte muito

interessante para este período, o padre José Manuel Perez Castellano, escolhido

“diputado elector” do “pueblo de Concepción de Minas” em 1813, questiona a

submissão da Banda Oriental a Buenos Aires, pois, no seu entendimento, el mismo derecho que tuvo Buenos Aires para sustraerse al gobierno de la metrópoli en España, tiene esta Banda Oriental para sustraerse al gobierno de Buenos Aires. Desde que faltó la persona del rey que era el vínculo que a todos nos unía y subordinaba, han quedado los pueblos acéfalos y con derecho a gobernarse por sí mismos179.

Ainda que caudilhescas, as elites regionais ergueram e se aproveitaram destas

instâncias estatais. Estudando o “mítico” Juan Facundo Quiroga, Noemi Goldman e

Sonia Tedeschi encontraram uma coexistência do poder político destas lideranças

personalizadas junto a poderes provinciais legais.180 Estas autoras questionam a

dicotomia tradicional da oposição entre campo-cidade, algo intensamente explorado 179 PEREZ CASTELLANO, J. M. op. cit., pp. 171-172. 180 GOLDMAN, N.; TEDESCHI, S. op. cit., p. 135.

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pelas versões sarmientianas de construção de uma interpretação social para o Prata.

Durante a ‘Guerra Grande’, Montevidéu surge como um exemplo que corroboraria

esta oposição, contudo, aquela divisão imposta pela guerra aos uruguaios estava mais

articulada ao território que cada partido conseguia controlar do que a um choque de

populações totalmente identificadas ao urbano ou ao rural. Porém, e inclusive para

Sarmiento, Montevidéu aparecia como uma justa defensora da civilização; protetora de

valores universais em guerra contra a barbárie da campaña, vinda de Rosas e dos

blancos. Por outro lado, é ainda mais difícil encontrar um exemplo propriamente

argentino que valide esta divisão entre a cidade e o campo. Outro elemento clássico do

caudilhismo se define pelo excessivo valor atribuído ao poder personalizado e

supostamente livre de qualquer revestimento legal ou institucional que este fenômeno

poderia possuir. Mantendo uma construída característica “bárbara”, a voz do caudilho

se confunde totalmente com a da lei, libertando-o da necessidade de legitimar

legalmente seus atos ou decisões.

Goldman e Tedeschi comparam o governo de Estanislao López em Santa Fé

ao de Quiroga em La Rioja. Ambos classificados de caudilhos, estas autoras apontam

como suas atuações não seguiram um mesmo caminho, tomando decisões diversas do

que um caudilhismo clássico pareceria prever. López chega a formar um exército

praticamente profissional, algo que não se costuma atribuir aos caudilhos, geralmente

confiantes na força das milícias informais que comandavam. Porém, para ambos os

casos, “necesitaron articular su capacidad de mando con una estructura militar de

herencia colonial, reorganizada en el nuevo espacio de la soberanía provincial luego de

1820”.181 Nas conclusões do seu artigo, as autoras procuraram advertir seus leitores

“sobre la existencia de un conjunto de prácticas consuetudinarias y vínculos formales

que articularon las relaciones de los caudillos con el ámbito institucional provincial,

las milicias y otros agentes económicos”.182 Os caudilhos não seguiam totalmente a

181 Ibid., p. 145. 182 Ibid., p. 155.

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cartilha de conduta a eles escrita pelos unitários, mas adequavam suas ações a práticas

locais já bem assentadas, articulando-as às necessidades do momento. E para

demonstrar como o caudilho também dominava os métodos urbanos de se “ganhar a

vida”, Goldman e Tedeschi examinaram os negócios particulares de Quiroga. Este

diversificou seus interesses não apenas nas tradicionais estâncias ou propriedades

rurais, mas também em empreendimentos comerciais, inclusive direcionados para uma

economia interprovincial.183 Além disso, também obtinham importantes dividendos

como provedores do Estado provincial, como, por exemplo, garantindo seu suprimento

bélico.184

Rosas e Artigas também enfrentaram costumes tradicionais ibéricos e se

obrigaram a lidar com aspirações e legitimações diversas daquelas costumeiramente

colocadas pelo caudilhismo “clássico”. Rosas, como igualmente o fizeram os

unitários, apropriou-se da Revolução de Maio, e proclamando-se seu defensor,

revestiu seu discurso de uma legitimação republicana. Não ignorou a “vontade

popular”, apoiou eleições e plebiscitos (por ele controlados) que investiam legalmente

seu poder, mas mantendo uma herança de incorporação política e de inclusão

subordinada de Antigo Regime. Combatia os “anarquistas” unitários e seus aliados

europeus (em especial franceses) em favor de uma idealmente elaborada

“independência americana”, em prol da “liberdade de los pueblos” (o que se confunde

com federalismo) e lutou pela conservação da “Confederação”. Alguns anos antes,

Artigas ambicionava a formação de “cidadãos”, harmonizando a construção da

república com uma “soberania popular” emanada desde os governos locais dos

cabildos. Para isto, Artigas intermediou aspirações de grupos sociais heterogêneos: a

elite de Montevidéu, os vizinhos dos pequenos povoados e seu próprio exército.

Conclui-se que o poder de Artigas – para alguns “herói fundador da nacionalidade

uruguaia”, e para outros “chefe de bandidos”185 - não se encontraria exclusivamente 183 Ibid., p. 152. 184 Ibid., p. 153. 185 GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 23.

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assentando no ambiente rural, e que, se possível, este também buscaria apoio e

legitimação entre a população urbana, e, conseqüentemente, “formas urbanas” de

legitimação.

Retornando ao artigo de Silvia Ratto, observamos como os caudilhos se

vincularam às instâncias estatais provinciais a partir de 1820, reforçando uma

coexistência entre o poder pessoal do caudilho e determinadas estruturas legais.186 Os

caudilhos tinham grande preocupação na institucionalização do seu poder.187 Desta

forma, o caudilhismo até então demasiadamente explicado como uma “luta histórica

entre a sociedade e suas instituições” aparece articulando-se a instâncias que a

princípio deveria combater.188 A importância destas considerações decorre de um

consenso que, por muito tempo, culpou os caudilhos pelas dificuldades enfrentadas na

construção de um Estado Central para o século XIX.

Na medida em que organizavam seus “governos”, estas lideranças rurais

“bárbaras” seguiam práticas costumeiras, inclusive utilizando-se da burocracia.

Portanto, dúvidas emergem a respeito da dualidade clássica de oposição entre

instituições e poder personalizado ou informal, demonstrando como coexistiam

métodos diversos de acumulação de poder, com diferentes formas de legitimação.

Mais do que isso, os caudilhos buscavam toda esta diversificação, uma vez que lhes

assegurava uma base de apoio muito mais ampla, justificando seu domínio a públicos

com diferentes necessidades de legitimação.189

Porém, este fenômeno social pode aparecer como uma possibilidade de

inclusão “del ámbito rural a la vida política local. Relación de la cual las zonas rurales

186 RATTO, op. cit., p. 242. 187 GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 24. 188 SVAMPA, op. cit., p. 69. 189 Curioso notar que Zás trabalha numa instituição, a Aduana, que está a serviço de um caudilho, Artigas, e lá ele combate a arrecadação de impostos feita por outro caudilho, o Encarnación. Em última instância, é um caudilho contra outro. Mas é o “tradicional malvado” que Zás critica. Zás nem comenta Artigas como caudilho, e está ali, defendendo uma burocracia que está, na verdade, a serviço de outro caudilho (pelo menos do ponto de vista tradicional, já que Artigas é visto como O caudilho). Talvez Zás não considere aquilo um caudilhismo. Ver terceiro capítulo.

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surgieron como algo más que espacios de reclutamiento de hombres y campos de

batallas”.190 O caudilho apareceria como uma ligação entre diferentes posições sociais,

conduzindo e filtrando reivindicações dos seus seguidores. Mais e mais, compreende-

se como as relações entre este líder e seus subalternos incluíam uma densa negociação.

O caudilho não poderia ignorar as práticas e costumes de um campesinato

suficientemente ciente de seus (limitados) direitos. No que concerne a exploração da

terra, o gaúcho camponês confiou ao seu superior a aquisição ou a segurança de uma

propriedade rural, ou ainda o direito a algum posto de trabalho. Desta forma trabalhou

Artigas na elaboração do “Reglamento de 1815”, responsável por uma reorganização

fundiária para a Banda Oriental. Assim sendo, “los caudillos sustentaron su poder – es

decir, movilizaron recursos, milicias y electores – sobre un conjunto de complejas

relaciones basadas, en parte, en antiguos derechos consuetudinarios y formales”.191

Mas o próprio Rosas, que, a princípio seria o indivíduo mais poderoso do Rio da Prata,

deveria se submeter às práticas camponesas ao negociar os termos de ocupação das

suas próprias estâncias com os trabalhadores locais.

Todos estes dualismos ou oposições estão, de início, ligados a um confronto

político: unitários e federais. Mas, ainda durante o século XIX, Alberdi já expunha

uma das primeiras críticas a estas oposições “forçadas”. Nem todos os unitários são da

cidade, e nem todos os federais são do interior. O próprio Sarmiento era um indivíduo

do interior, e de uma das partes mais pobres da futura Argentina, a província de San

Juan. No início do século XX, Ayarragary, comentado por Maristella Svampa,

escrevia que, en primer lugar, lo positivo es lo que efectivamente existe, como tal, la cuestión remite a la oposición que la generación del ’37 había planteado entre ‘país legal’ y ‘país real’. En segundo lugar, la identificación de lo positivo con la realidad niega el carácter dual de esta última: hay un solo “temperamento”, una sola realidad, en definitiva, contrariamente a lo que afirmaba Sarmiento, una sola Argentina.192

190 GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 24. 191 Ibid., p. 29. 192 SVAMPA, op. cit., p. 79.

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Negam-se, assim, estas duas Argentinas, a bárbara e a civilizada. Esta

oposição perde seu caráter de dupla realidade em conflito. A barbárie se torna a

“realidade” e a civilização apenas um “princípio”, projeto ou intenção. Porém, ela é

“realidade” enquanto abstração ou leitura do real. É real na medida em que, constituída

como projeto e conteúdo a partir do qual se julga o “real”, gera efeitos bastante reais

no mundo “material”. Além disso, é preciso advertir que a afirmação de “uma só

Argentina” contém um sensível nacionalismo. A exemplo de outros “povos”, os

argentinos não formavam um povo homogêneo (a própria idéia de “argentinos” é

construída). A cultura se distribui de formas diferentes por diversos indivíduos e

localidades, dependendo da posição que esses ocupam no interior do campo social.

1.4.2 Um tipo social e seu fenômeno: o gaúcho e as montoneras

Para Bartolomé Mitre, em 1863, “gente del campo” era sinônimo de gaúcho.

Gaúchos seriam todos os habitantes da campaña. Enquanto isso, no interior argentino,

principalmente para a área noroeste de maior presença indígena, “índios” e “gaúchos”

apresentavam acepções semelhantes. Analisando a população de La Rioja, o

historiador Ariel de la Fuente encontra o líder de uma montonera. Chamado “El

Chacho”, definia a si mesmo como um gaúcho, e considerava seus seguidores “gente

de mi clase”.193 A palavra “paisano” era também comum e, costumeiramente, próxima

à noção de “gaúcho” para essa província.

Entretanto, “gaúcho” também aparecia como sinônimo de criminoso ou

vagabundo. “Gauchar un animal” seria o equivalente de “roubar um animal”. Para a

década de 1860 estudada por de la Fuente, esta palavra detinha um forte caráter

negativo, mas esta estigmatização poderia ser encontrada já na primeira metade do

século XIX. Eram também chamados de “gaúchos” os rebeldes federais, uma

193 FUENTE, A. de la. “Gauchos”, “Montoneros” y “Montoneras”. In: GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 271.

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estratégia utilizada pelos unitários para recriminá-los.194 Para além das origens destas

rivalidades partidárias, em geral, a historiografia platina manteve esta afinidade entre

caudilhismo e federalismo.

Trabalhos recentes têm se dedicado a rever a construção desta imagem

“clássica” do gaúcho. Em alguns autores, como Gelman e Garavaglia, evita-se o uso

da “palabra gaucho o diferencian a este de los habitantes más pobres de la campaña, a

quienes definen según su inserción en la economía – campesinos, peones, pastores,

etc...”195 Existe um forte empenho em desconstruir a tradicional imagem bipolar do

ambiente rural, formada quase que exclusivamente por estancieiros e gaúchos. Para

além desta simplificação, surge um mundo rural muito mais diversificado do que

aquele proposto pela imagem “clássica”, mais complexo do que a geografia física e

social que Sarmiento supunha e defendia.196

Para o século XIX, contudo, o decisivo é que o “gaúcho” aparece como o mais

representativo “tipo social” da campaña, ainda que possa ser apenas uma minoria,

como defende Gelman. A sociedade platina daquele momento histórico tem

demonstrado classificar hierarquicamente seus integrantes de formas diferentes das

atualmente utilizadas pelos historiadores. A inserção que cada indivíduo tinha no

interior da economia não parece ter sido nem a única nem a principal, isto pelo menos

se analisamos o ponto de vista dos “intelectuais” doctores que observavam os

“inferiores” com quem conviviam. Lembrando o trabalho de Norbert Elias Os

Estabelecidos e os Outsiders, este estudo demonstra como uma minoria “arruaceira”

era mais representativa no interior de um bairro proletário na construção de uma

opinião ou visão geral acerca deste mesmo bairro. Os vizinhos de outros bairros,

membros das famílias “estabelecidas”, mais antigas da cidade, construíram uma

opinião sobre os recentemente chegados que ocuparam esse outro bairro. Ainda que a

maior parte da população fosse “ordeira”, uma minoria “arruaceira” contaminava a 194 Ibid., p. 272. 195 Ibid., p. 267. 196 GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 26.

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região, estigmatizando a todos seus habitantes. E talvez o mais interessante seja que a

própria população deste bairro alvo de preconceitos em parte concordava com tal

opinião geral.197

Como indica Elias, dados estatísticos revelam detalhes interessantes. Porém,

sozinhos, não dão conta de entender o conjunto das relações que são passíveis de

desenvolvimento em determinada sociedade. Neste sentido, não se deve abandonar

totalmente o sentido dado à palavra “gaúcho” para o século XIX. Ainda que sejam

vitais estudos como os de Garavaglia e Gelman, desmistificando uma construção

profundamente arraigada na “mentalidade” platina, não se deve esquecer a importância

e os resultados bastante “reais” que tal crença e construção tiveram acerca do gaúcho e

da população da campaña. Para a organização social platina daquele período, e como

instrumentos utilizados por seus indivíduos na tentativa de justificar ou reorganizar

suas próprias hierarquizações, tais contribuições “mitificadoras”, como a da

construção do tipo social do gaúcho, são capazes de definir o lugar correspondente de

cada um no interior do campo social disponível. Esta “mitificação” do gaúcho constrói

um sentido para a hierarquia social; justifica uma permanência ou, para o caso

unitário, uma defendida transformação.

O fenômeno caudilhista e gauchesco “típico” para a guerra é a montonera. La palabra ‘montonera’ tuvo su origen en la Banda Oriental durante las guerras de la Independencia. De acuerdo con una versión, los grupos de gauchos entre quienes vivía el caudillo oriental José Gervasio Artigas se llamaban ‘montones’ y de allí vendría el nombre de ‘montonera’ con que se designaba a los grupos de caballería que lo seguían. Otra versión dice que la palabra proviene de ‘montón’ porque ‘...las guerrillas o bandoleros formaban montones o grupos’.198

A organização das montoneras seria similar à das milícias provinciais

(reproduzindo ou adaptando a experiência que tinham de organização militar), estas

que passaram a ser conhecidas pelo nome de ‘guardas nacionais’ a partir de 1853.

197 ELIAS, N; SCOTSON, J. L. Estabelecidos e outsiders. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1994. 198 FUENTE, op. cit., p. 276.

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Seguindo o exemplo das demais organizações militares, contava com vários escalões

hierárquicos que condiziam com a posição que cada um ocupava socialmente em

determinada localidade.199 Esta organização contava até mesmo com uma certa

burocracia, e, em geral, ainda que analfabetos, os escalões inferiores tinham o hábito

de pressionar seus superiores para que estes enviassem suas ordens e leis por escrito

(documento que os redimiria de uma futura culpa).200 A hierarquia era complexa

também para o interior destas montoneras. Um igualitarismo de fachada, como

também aponta Salvatore em seu artigo acerca das “expressões federais”,201 mas um

igualitarismo abertamente defendido, e até certo ponto buscado por alguns. E mesmo

alguns unitários chegavam a acreditar nesse igualitarismo, ainda que o considerassem

negativo. De qualquer forma, o igualitarismo gaúcho se tornou um mito, e, mesmo em

obras recentes, alguns autores o acabam repetindo. Barrán, por exemplo, parece

reprovar a transformação social que “civilizou” os uruguaios durante o século XIX.

Em seu livro, História de la Sensibilidad, descreve o período “bárbaro” do início

daquele século como o de uma espontaneidade perdida e reposta por uma

“artificialidade” moderna. Muito do que foi construído por indivíduos como Sarmiento

e Herrera y Obes foi mantido por Barrán, com a diferença de que este inverte o

julgamento de valor.202

Porém, ao contrário do que se defendia na construção clássica, e indo de

encontro aos trabalhos de Gelman e Garavaglia, Ariel de la Fuente indica que a maior

parte dos participantes destas montoneras não estaria composta apenas por gaúchos

vagabundos e salteadores, mas contaria também com pequenos lavradores ocupados

principalmente com uma agricultura de subsistência. O segundo maior grupo

corresponderia ao dos artesãos, sendo que apenas uma minoria dos indivíduos

encontrados se declarava ‘sem ocupação’. Além do mais, a maioria se declarava

199 Ibid., op. cit., p. 277. 200 Ibid., op. cit., p. 278. 201 SALVATORE, R. “Expresiones Federales”. In: GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit. 202 BARRÁN, J. P. Historia de la sensibilidad en el Uruguay. 2 v. Montevidéu : Banda Oriental, s/d.

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casado, e, presumivelmente, possuía família.203 “La presencia de labradores, artesanos

y trabajadores que llevaban una vida estable sugiere que la montonera era una de las

formas que tomaban las luchas partidarias y uno de los modos en que los gauchos

participaban en política.”204 Mais do que um movimento de baderna e destruição, a

montonera é entendida como uma estratégia a mais de participação política, uma das

poucas disponíveis para a população pobre da campaña.

Mas o gaúcho não contou sempre com um valor negativo. Para os federais, ele

estava vinculado a um ‘americanismo’. Seus hábitos e costumes eram valorizados

como autênticos e patriotas. Nisto se encaixa não apenas o gaúcho, mas também o

indígena. Para los unitarios, este “era un ‘salvaje’ sin valor alguno”, mas, “ya en 1830,

los federales estaban identificados con el indio abstracto como símbolo de la

nacionalidad que se estaba construyendo”.205 Mais tarde, já nas últimas décadas do

século XIX, mas com seu ápice no centenário da independência, ocorre uma espécie

de “invenção da tradição”, em que a figura do gaúcho é reformulada e recolocada

como ícone nacional.206 Por outro lado, para os unitários, denegrir a imagem do

indígena e do gaúcho ia ao encontra da necessidade de atacar o inimigo federal.

1.4.3 Clientelismo

Criticando a obra Juan Manuel de Rosas, Noemí Goldman e Ricardo Salvatore

afirmam que “el caudillismo que pintó Lynch operaba en un contexto político-social

caracterizado por la ausencia de instituciones, por la hegemonía de la clase

terrateniente, y por la prevalencia de relaciones de dependencia personal.”207 O

conjunto de relações entre os gaúchos e os caudilhos é freqüentemente tratado como

203 FUENTE, op. cit., p. 275. 204 Ibid., p. 287. 205 BECHIS, M. Fuerzas indígenas. In: GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 303. 206 SVAMPA, op. cit., p. 72. 207 GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 17.

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um modelo particular de clientelismo.208 Não podendo apelar para uma instituição

forte, o gaúcho buscaria a proteção privada de um caudilho, e a ele confiaria suas

demandas. São erguidas relações de reciprocidade em um contexto em que o

personalismo “reemplaza a la ley y a las instituciones, la violencia se torna en la forma

aceptada de dirimir conflictos políticos, y la estructura social se mantiene sin cambios,

protegida por el caudillo.”209 Este clientelismo representaria a fonte primordial de

poder caudilhesco. Justamente por sua capacidade de suprir um Estado pouco presente,

uma liderança local congregaria em torno de si um número significativo de seguidores

que, em geral, seriam seus dependentes econômicos. Soma-se a isto a imagem

tradicional de carisma que atrairia gaúchos facilmente condutíveis à guerra por um

discurso paternalista de pouco significado político, e se estabelece a explicação

hegemônica acerca do poder de um caudilho.

As guerras de independência teriam sido as responsáveis por criar as

condições necessárias ao surgimento deste estado extremo de militarização e des-

institucionalização da sociedade platina. Conforme questionam Noemí Goldman e

Ricardo Salvatore, para uma transição pouco pacífica entre regimes políticos tão

diferentes, a equação final teria sido simples: “en un Estado posindependiente con

débiles finanzas, solo los propietarios de tierras estaban en condiciones de financiar

guerras y sólo ellos contaban con una clientela cautiva – los peones – para organizar

bandas armadas – montoneras o milicias.”210

Os gaúchos seriam integrantes de uma massa rural homogênea de franco

predomínio numérico masculino, ou são vistos como peões diretamente ligados ao

proprietário rural, ou aparecem em grupos de changadores211 livres, sem residência

fixa ou família. De la Fuente afirma que estes tradicionalmente aparecem como

incapazes de negociar sua participação e de compreender os processos políticos que os

208 Ibid., p. 14. 209 Ibid., p. 15. 210 Ibid., p. 16. 211 Changadores: pessoas ocupadas em postos de trabalho temporários.

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rodeiam.212 Porém, análises mais recentes apontam uma campaña muito diferente da

desenhada até então. Como foi indicado anteriormente e como reforçam os trabalhos

de Gelman e de la Fuente, não somente a presença de pequenos lavradores seria muito

mais comum do que se imaginava, mas também sua presença nas montoneras era

muito mais significativa do que a propaganda anti-caudilhista costumava propor. Em

geral, ainda que vagando em busca de algum contrato temporário de trabalho, sempre

que possível este gaúcho buscava conseguir para si um pedaço de terra. Se não tinha

condições de pagar todos os custos burocráticos para a aquisição do terreno (em geral

mais dispendiosos do que o terreno em si), poderia arrendar um pedaço não explorado

da fazenda em que já trabalhava.213 Isto não apenas trazia uma vantagem econômica

direta ao estancieiro que poderia ficar com parte da produção, mas também prendia o

peão àquela terra, algo vantajoso se pensarmos em um mercado volúvel de mão-de-

obra como o da região do litoral platino.214

Esta reformulada imagem que recebe a campaña altera profundamente a

posição social do gaúcho. Transformado também em plantador de trigo, ao seu redor

criam-se articulações sociais muito mais complexas do que aquelas atribuídas às

interações de meros grupos de caçadores seminômades de gado. Analisando o

relacionamento entre o administrador da estância e seus subordinados, encontra-se um

espaço importante de negociação em uma relação de interdependência que, se ainda

favorável a um dos lados, não seria tão desequilibrada quanto se costumava supor. A

relativa escassez de mão-de-obra para o mercado estudado por Salvatore aparece como

uma possível explicação para as concessões que vêm sendo encontradas em favor das

reivindicações desses peões.215

212 FUENTE, op. cit., p. 269. 213 GELMAN, op. cit. 214 A região do Litoral não diz respeito às províncias banhadas pelo Atlântico, mas àquelas banhadas pelos rios Paraná e Uruguai. E estas seriam Buenos Aires, Corrientes (que incluía o que hoje é também Missiones), Entre Rios, Santa Fé, mas também a Banda Oriental. 215 SALVATORE, op. cit.

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1.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o objetivo de auxiliar o leitor, algumas conclusões já podem ser adiantas,

o que o ajudará na compreensão dos temas abordados na análise das discussões entre

Herrera y Obes e Berro, e nas práticas de Antuña e Zás.

É perigoso querer sustentar um trabalho acadêmico nesta oposição implacável

entre caudilhismo e Estado. A historiografia costuma considerar “O Estado” aquele

unificado e identificado com a “Nação”. Carregando consigo uma boa dose de

anacronismo, o Estado-Nação costumava aparecer como referência para a existência

ou não de um Estado. Se em nada alteramos esta visão do que consiste um Estado,

então sim ele apenas pode ser encontrado a partir de 1870. Deste modo, tratados como

inimigos irreconciliáveis, esta historiografia identifica a ascensão do Estado com a

decadência do fenômeno caudilho. Porém, “instâncias” estatais, ou projetos de Estados

fracassados existiram desde o início da Revolução de independência. Mesmo Artigas,

ainda que erroneamente identificado como precursor de uma nação, iniciou uma

organização burocrática local, algo que também estava ocorrendo nas demais

províncias da região. Em sua tentativa de costurar uma união entre essas províncias em

oposição àquela pregada desde Buenos Aires, encontraremos José Encarnación de Zás

em seu trabalho na Aduana de Colônia, apresentando-se como um exemplo particular

dessa organização burocrática. Da mesma forma, os caudilhos Rivera, Oribe e

Lavalleja não desdenharam a importância do Estado e da legitimação que este

oferecia. A primeira eleição para a Câmara de Representantes, que resultaria

indiretamente na eleição do Presidente, ocorreu com relativa paz. Para Pivel Devoto,

ainda que este discuta a ética de Rivera, não aponta nada de ilegal que este tenha feito

para vencer o pleito. A princípio, Rivera e Lavalleja declaram-se interessados em

respeitar este incipiente trâmite institucional. Inicialmente, a sucessão de Rivera em

que ascende Manuel Oribe também ocorreu pacificamente. Além disso, quando estes

dois iniciam a ‘Guerra Grande’, ambos os governos, colorado e blanco, criam seus

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respectivos Estados, com seus cargos, funções e burocracias próprias. Sala de Touron

e Alonso Eloy defendem que o caudilhismo uruguaio obteve maior êxito quando

combinado a formas legais, e não como um poder independente ao Estado.216

A problemática que envolve Rivera e Oribe não se apresenta na vontade

caudilhesca de construir ou não um Estado, mas na questão de um Uruguai recém

independente que não encontra um equilíbrio de poder suficientemente estável e

duradouro.217 O Estado que se encaixa no molde da década de 1870 surge porque o

equilíbrio de poder pende de tal forma para um lado que um golpe de Estado é capaz

de estabilizar a situação com a derrota praticamente definitiva de uma das facções.

Mas, até este momento, os processos de construção de novas formas estatais são

marcados pela instabilidade e por sua dependência frente aos partidos (justamente pelo

desequilíbrio). Pivel Devoto mostra que se no início houve relativa paz entre Rivera e

Lavalleja, foi porque existiu uma tentativa de co-participação. Porém, quando Rivera

força a renúncia de Oribe, é porque o primeiro sente que disto depende a permanência

do seu grupo na participação do poder, seriamente desafiado pela extinção do cargo da

Comandancia General de la Campaña.

Os caudilhos não estavam contra o Estado, e, como o tornam claro Rosas e

Latorre, de bom grado poderiam utilizar a legitimação e a força Estatal. Tanto é assim

que, quando entram em confronto bélico, os caudilhos o fazem justamente para

dominar o Estado. O objetivo final é o Estado e a legitimidade que ele representa,

ainda que sejam utilizadas forças irregulares vindas de um poder personalizado. Os

caudilhos podem não dispensar as tropas milicianas, pois dependem delas, mas

dificilmente deixariam de utilizar as regulares caso estivessem à disposição. E se os

doctores querem que apenas existam as regulares, é porque nestas eles podem ter

alguma influência através do aparato estatal, já que não têm como formar forças como

as milícias de gaúchos rurais.

216 SALA DE TOURON, L.; ALONSO ELOY, R. op. cit. p. 40. 217 Ibid., p. 219.

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Na visão clientelista, o caudilhismo aparece como uma forma de manipulação

das massas,218 mas, para Sarmiento, ele é muito mais do que isso, ele é uma forma de

sentir e agir própria dos gaúchos. Enfatizando heranças ibéricas, Sarmiento estava

mais interessado nas raízes sociais e culturais que identificavam o caudilhismo.

Contudo, o resultado é mais ou menos o mesmo: o caudilhismo é uma ausência de

Estado, uma barbárie quase inevitável, pois deita raízes nas características mais

íntimas da constituição e da dinâmica social platina. Mas um outro ponto vem sendo

abordado, aquele que chama a atenção para diversas fórmulas políticas interagindo e

competindo em um ambiente no qual está sendo montada uma outra estrutura social e

estatal, organizada a partir de inspirações e legados diversos. O processo de

independência, mais do que simplesmente “libertar” uma região, gerou uma série de

discussões dedicadas a modelos de Estado e legitimidade de instituições. Para o

período estudado por esta dissertação, estas discussões não haviam ainda encontrado

um fim, e se prolongavam por guerras civis entre partidos locais.

De modo geral, a historiografia recente vem desmistificando a construção

tradicional da campaña e seus habitantes. Primeiramente, a compreensão das

principais questões que afligiam determinados autores “clássicos” iluminou uma parte

do caminho interpretativo que definiu a imagem que os platinos desenvolveram sobre

si mesmos. A partir disto, foi possível reavaliar certas proposições e colocá-las frente a

novas fontes e trabalhos. A despeito desta “nova história” estar aparentemente

desviando sua atenção para outros temas além dos meramente políticos, ela acaba

retornando a estes ao avaliar os pressupostos sociais e econômicos que os

fundamentaram. O conjunto dessas recentes pesquisas colabora na elucidação de uma

sociedade mais complexa do que àquela tipificada pela história sarmientiana e mitrista.

218 O leitor brasileiro já deve ter notado alguma semelhança entre o caudilhismo e o coronelismo. Ambos têm em comum um tipo de clientelismo e uma certa resistência a avanços “liberais” modernizadores. Contudo, é importante ressaltar que o caudilho hispânico, ao contrário do coronel brasileiro, está principalmente relacionado à guerra e sua dinâmica particular.

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Contudo, é importante alertar contra o risco de se opor uma história politizada,

tida como “falsa”, contra uma científica e “real”. Por mais pobres que fossem os

argumentos unitários e colorados acerca da campaña, e ainda que seus fundamentos

possam ser facilmente questionados atualmente, vale lembrar que os efeitos daquela

construção politizada foram suficientemente “reais” a ponto de não serem

desconsiderados. E ainda que os sentidos dados às revoluções de independência sejam

diversos entre seus atores originais e a geração que os sucederam, esta envolvida na

‘Guerra Grande’, foram esses os maiores responsáveis pela cunhagem de boa parte dos

pressupostos legitimadores que se ocuparam em construir um Estado-Nação ao final

do século XIX.

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2 AS CATEGORIAS “CIVILIZAÇÃO”, “CAUDILHISMO” E “REVOLUÇÃO”

EM ALGUNS AUTORES PLATINOS DA PRIMEIRA METADE DO

SÉCULO XIX

2.1 A GERAÇÃO DE 1837 E SUA PRESENÇA EM MONTEVIDÉU

Em 1837, já se haviam passado dois anos desde a segunda chegada de Rosas

ao poder da província de Buenos Aires, e sua vitória parecia “un hecho irreversible y

destinado a gravitar durante décadas sobre la vida de la entera nación”.1 Mas um grupo

de jovens, alguns vindos do interior, outros da capital, tendo como objetivo comum

criar um ambiente de discussão político e literário, passou a reunir-se com certa

freqüência como meio de externar suas expectativas. Estes encontros permitiam aos

seus integrantes a exposição de análises dedicadas à arte e a assuntos correspondentes

ao futuro das províncias platinas. Contando entre seus membros personalidades que

futuramente se destacariam no cenário regional argentino, dentre elas Juan Bautista

Alberdi e Esteban Echeverría, este grupo seria, no futuro, conhecido como a Geração

de 1837.

Para Halperín Dongui, estes jovens buscavam mais do que suceder, mas

também suplantar o grupo político unitário original em sua fracassada tentativa de

organização estatal realizada entre 1824 e 1827. A grande medida da derrota unitária

estaria dada pelo triunfo dos “toscos jefes federales” que então ocupavam as principais

posições de poder.2 Além disso, esta retomada representava a busca por uma nova

hegemonia letrada para a ordem política, algo perdido frente aos mais enriquecidos,

porém “menos esclarecidos, jefes del federalismo”.3 Esta Geração de ’37 pretendia

evitar todos os erros unitários anteriores, em geral provocados pela arrogância e pelo

1 HALPERIN DONGUI, T. Una nación para el desierto argentino. Buenos Aires : Centro Editor de America Latina, 1982. p. 11. 2 Id. 3 Ibid., p. 12.

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idealismo exagerado e, inicialmente, chegaram a pensar em uma união com alguns

preceitos federais como abertura para uma fusão partidária que poria fim às guerras

fratricidas que assolavam o Prata. Ainda que potencialmente mais próximos a esta

“arrogância cultural” do unitarismo, diferenciavam-se dos contemporâneos de

Rivadavia, cuja inspiração decorria de um ainda sobrevivente Iluminismo, por

colocarem-se sob o signo de um movimento que estava recém desembarcando, o

Romantismo.4 Para os militantes de ‘37, a Revolução de Maio era “un período

mistificado de elevados ideales y nobles acciones”,5 algo que viria a ser destruído pela

“realidade” local após a queda de Rivadavia. Esta destruição tinha como principal

causa uma terrível falha na articulação de propostas européias idealizadas e pouco

efetivas para o entorno americano em que se encontravam.6

Por outro lado, a visão que a Geração de ’37 possuía sobre os federais era

muito diferente e contaminada por memórias de infância. Além da pré-definida

inferioridade intelectual, suas incursões montoneras eram associadas à violação de

uma sociedade civilizada. Sarmiento, em suas lembranças sobre a entrada de Facundo

Quiroga em San Juan, ou Vicente Fidel López e seu medo em vista da presença de

forças artiguistas próximas a Buenos Aires em 1820, tinham em mente uma população

rural pobre e rebelde, saqueando e perturbando as províncias.7

O que aparentava ser uma derrota definitiva para o Partido Unitário gerava

esperança para um segundo governo rosista de paz e ordem. Esta relativa paz, a ser

desmistificada com a crescente repressão desencadeada a partir de 1838, deu

oportunidade para um certo desenvolvimento do mercado literário portenho. De cinco

livrarias em 1830, a capital já contaria com ao menos dez em 1836. E não só a

4 Id. 5 KATRA, W. H. La generación de 1837: los hombres que hicieron el país. Buenos Aires : Emecé, 2000. p. 20. 6 Ibid., p. 22. 7 Ibid., pp. 30-31.

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imprensa local já dava importantes passos, mas a presença de publicações européias,

principalmente francesas, fazia-se notar com certa intensidade.8

Uma dessas livrarias era de propriedade de Marcos Sastre, uruguaio que

aportara em Buenos Aires em 1833 para logo se tornar o maior provedor de livros da

cidade. Por sua iniciativa, mas também contando com a presença de Echeverría e

Alberdi, formou o Salón Literário em 1837, ponto de encontro e discussão de “novas

idéias”.9 Apesar de durar alguns poucos meses, foi sua organização a responsável por

batizar e propor as idéias iniciais da Geração de ’37. O Salón contou com discursos

inaugurais de Alberdi, Sastre e Juan Maria Gutiérrez. Estes defendiam a tese de que o

aprofundamento e aplicação de estudos filosóficos conformariam um método de

melhoramento moral e progresso para a sociedade.10 Suas leituras privilegiavam

autores europeus, mas seu uso deveria convergir à necessidade de compreender melhor

seu próprio país, livrando-o de uma herança negativa da cultura espanhola.11

Os escritores de ’37 não podem ser unificados em uma única proposta

definida e sistematizada. Seus integrantes detinham uma ampla liberdade de ação, o

que os conduziu a versões específicas de escrita e militância. Enquanto Rosas

permanecesse à frente de Buenos Aires, suas diferenças seriam apaziguadas pelo

sentimento de dever que compartilhavam, mas tão logo o “tirano” foi derrotado, suas

subdivisões internas emergiram, evidenciando rivalidades até então parcialmente

controladas.12

De modo geral, existem dois momentos específicos para a configuração das

idéias da Geração de ’37. O primeiro, em que se destaca a liderança de Echeverría,

estaria mais preocupado em estabelecer bases morais e filosóficas para o movimento,

ao passo que o segundo, cujo comando passa a ser dividido por Sarmiento e Alberdi,

8 Ibid., p. 50. 9 Ibid., p. 54. 10 Ibid., p. 55. 11 Ibid., p. 56. 12 HALPERÍN DONGHI, op. cit., p. 17.

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lentamente abandona os idealismos iniciais, partindo para análises mais cínicas e

práticas. De qualquer forma, a Razão deveria modelar seu pensamento político.13

Echeverría voltou, em 1830, de uma viagem de cinco anos à Europa.

Enquanto foi reconhecido como membro mais influente, transmitiu aos companheiros

a experiência intelectual que tinha absorvido em sua estada em Paris, adaptando-a a

uma militância local que evidenciaria em seu grupo uma esperança de densa reforma

social. Queria impor à Argentina uma estrutura contrária ao resultado “de la

experiencia histórica atravesada por la entera nación en esas décadas atormentadas”,

pretendendo “implantar un modelo previamente definido por quienes toman a su cargo

la tarea de conducción política”.14 Acreditavam firmemente na superioridade

intelectual como legitimação do controle do processo político.

Os assuntos pertinentes às suas ambições eram a continuação de um

movimento de independência inacabado; a promoção de um distanciamento cada vez

maior do colonial, cultivando a cultura local e o progresso material e social.15 “Las

sociedades occidentales participaban en un proceso histórico, guiadas por la

Providencia, que evidenciaba una mejoría continua en tecnología, bienestar material e

instituciones sociales, políticas y culturales.”16 Logo, não estariam imunes ao risco de

encontrar uma solução amparada em um destino final para humanidade.17 Seus

instrumentos de ação seriam, inicialmente, a imprensa e a tribuna como meios de

comoção da opinião pública.18

Até 1838, tentaram conviver com o federalismo, mas é a inesperada agudización de los conflictos políticos á partir de 1838, con el entrelazamiento de la crisis uruguaya y argentina y los comienzos de la intervención francesa, la que lanza a

13 Ibid., p. 13. 14 Ibid., pp. 17-18. 15 KATRA, op. cit., p. 68. 16 Ibid., p. 102. 17 HAPERÍN DONGHI, op. cit., p. 38. 18 KATRA, op. cit., p. 79.

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una acción más militante a un grupo que se había creído hasta entonces desprovisto de la posibilidad de influir de modo directo en un desarrollo político sólidamente estabilizado.19

Na medida em que não se sentiam suficientemente seguros em relação ao

rosismo, partiram para o exílio indivíduos que de alguma forma estavam ameaçados

por suas posições. No Chile, mas principalmente em Montevidéu, encontraram não

apenas membros antigos do Partido Unitário que já haviam fugido do então vitorioso

federalismo, mas também um governo local bastante receptivo. O Partido Colorado já

controlava a capital oriental após uma bem sucedida revolta que forçara o presidente

blanco Manuel Oribe à renúncia. Enquanto Oribe partira para o berço do rosismo,

onde combateu a ameaça unitária sob a bandeira de Rosas, os colorados recebiam os

exilados unitários como um reforço para a luta civil que insistia em se prolongar

contra os blancos.

Alberdi, por exemplo, esteve em Montevidéu entre 1838 e 1843. Echeverría

primeiramente buscou refúgio na estância de seu irmão ao norte de Buenos Aires, mas

partiu para Colônia do Sacramento em 1841, onde esteve por alguns meses antes de se

estabelecer na capital, onde morreria em 19 de janeiro de 1851 aos 45 anos. O futuro

presidente argentino Bartolomé Mitre (1862-1868), que logo se juntaria ao grupo, era

o mais jovem de todos, nascido em 1821. Em 1833, membro de uma antiga família

unitária, fugiu com seus pais para Montevidéu, de onde saiu em 1846 para circular

entre os Estados andinos até se estabelecer provisoriamente no Chile. Ainda no

Uruguai, cursou a Academia Militar de Montevidéu, e atuou como tenente de artilharia

em uma companhia colorada de Fructuoso Rivera. Sarmiento, cujas publicações já lhe

dariam suficiente reconhecimento entre os demais, fez apenas uma breve visita a

Montevidéu em 1846, enquanto que Félix Frias, outro membro do grupo, ali esteve

entre 1838 e 1839.

Não apenas sua presença física, mas seus mais importantes textos políticos

foram publicados durante o exílio. Se a imprensa argentina sofria com o controle de

19 HALPERÍN DONGHI, op. cit., p. 14.

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Rosas, suas vizinhas uruguaias e chilenas conheceram as primeiras edições de suas

obras mais significativas. La Creencia, texto de Echeverría que serviu como manual

básico para o ativismo destes escritores foi escrito ainda em Buenos Aires, mas sua

primeira versão impressa oficial saiu pelo periódico controlado pelo colorado Andrés

Lamas El Iniciador de Montevidéu em janeiro de 1839 e, um mês depois, seria

relançada em um fascículo do El Nacional daquela mesma cidade. Além disso,

panfletos com cópias do manifesto circulavam também pela Argentina, contando com

uma notória difusão em Córdoba, San Juan e Tucumán.20 Em 1846, seu conteúdo

receberia algumas revisões, e seria republicado sob o título de El Dogma Socialista,

precedido de uma extensa introdução intitulada Ojeada retrospectiva sobre el

movimiento intelectual en el Plata desde el año 37.21

Em 1839, alguns membros de ’37 ajudaram na organização de um novo

levante armado contra Rosas que, sob a liderança de Lavalle, seria derrotado em

1841.22 A partir de então, decepcionados com os revezes militares, optaram por

reacender uma cruzada literária contra Rosas. José Rivera Idarte, em 1843, publica

Rosas y sus opositores com um apêndice intitulado Es guerra santa matar a Rosas,

incluindo um convite à filha de Rosas a matar seu próprio pai. No Chile de 1845,

Sarmiento publica pela primeira vez Facundo, e alguns de seus trechos poderiam ser

encontrados no El Nacional de Montevidéu ainda naquele mesmo ano. Este periódico

também publicaria várias poesias de Mitre e Echeverría.

Mas o jornal mais atuante e estável seria o editado por Florencio Varela. Este

unitário de uma geração anterior, mais apegado aos idealismos rivadavianos atacados

pelos escritores de ’37, era responsável pelo El Comercio del Plata, também de

Montevidéu. Muito respeitado entre os uruguaios, recebeu o título de doutor em direito

20 KATRA, op. cit., p. 80. 21 Ibid., p. 67. 22 Ibid., p. 90. “Lavalle, razonaba Alberdi, estará... siempre donde el arte, las ideas y la civilización han adquirido un progresso mayor...” O levante foi um fracasso e Lavalle foi morto no caminho de fuga para a Bolívia.

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pela Universidade de Buenos Aires em 1827, e foi empurrado ao exílio pela

conspiração que assassinou o federal Manuel Dorrego em 1828. Em 1835, foi

admitido na Suprema Corte uruguaia, mas foi expulso por Manuel Oribe em 1838,

retornando um ano depois com a vitória de Rivera sobre este seu opositor, ali

permanecendo até seu assassinato em 20 de março de 1848. Varela seria o primeiro a

sugerir uma das contradições internas do rosismo que resultariam na queda de 1852. O

monopólio portuário e o fechamento do acesso aos rios para os demais Estados fariam

dele um potencial inimigo das províncias do interior, do ainda não reconhecido

Paraguai e do Império do Brasil.23 Juntamente a Alberdi, Varela reorganizou a luta

armada que, contando com o apoio de Andrés Lamas e dos generais Lavalle, Gregório

Lamadrid e José Maria Paz, seria derrotada em 1841.24

Andrés Lamas, exilado no Brasil durante a presidência de Oribe, foi uma

influente liderança na cidade sitiada entre 1841 e 1852, e também um dos uruguaios

que mais participaram ao lado dos membros da Geração de ‘37. Em seu El Nacional,

escreve um texto muito semelhante ao primeiro capítulo do Facundo. São os Apuntes

sobre las agresiones del dictador argentino D. Juan Manuel de Rosas, adaptando os

escritos de Sarmiento ao caso uruguaio:25

Los abusos de Rosas giraban en torno de la conversión del Estado argentino en una máquina de guerra; su uso de poderes administrativos ‘extraordinarios’ acarreaba notorias violaciones de la confianza pública y sus insurgentes armados desestabilizaban las autoridades legítimamente constituidas de Uruguay. Igual que Sarmiento, Lamas describía una lucha épica que ubicaba a la civilización de las ciudades a merced del resurgimiento del barbarismo en el campo.26

Com o auxílio de Echeverría, Lamas fundou o Instituto Histórico y Geográfico

del Uruguay. Além disso, foi um dos articuladores da aliança internacional que

derrubaria Rosas. Para alcançar esta meta, retornou ao Rio de Janeiro em 1848 com o 23 HALPERÍN DONGHI, op. cit., p. 24. Até a década de 1840, a Confederação Argentina ainda não havia reconhecido a independência do Paraguai, tratando-o como província rebelde. 24 KATRA, op. cit., p. 90-92. 25 Ibid., pp. 117-119. 26 Ibid., p. 121.

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objetivo de solicitar o apoio do Império contra aquele governador e os blancos. Em

1852, refez esta mesma viagem, desta vez regressando com sucesso.

A influência de Echeverría entraria em decadência ao longo da década de

1840. Ainda que mantendo sua relevância de poeta, seus ideais políticos foram

progressivamente abandonados e suplantados pelas novas interpretações de seus

seguidores. Echeverría seria o único a se emocionar positivamente com as revoluções

européias de 1848. E se seus comentários acerca deste tema introduziram a palavra

“proletário” no vocabulário da região, suas idéias já não tinham o mesmo efeito, e os

demais integrantes da sua geração já estavam excluindo a palavra “socialismo” de seus

textos.27

Com a ascensão de Sarmiento e Alberdi frente aos demais, as propostas até

então parcialmente harmonizadas do grupo partiram para um distanciamento cada vez

maior. Ainda em 1845, Alberdi e Vicente Fidel López manifestaram seu desgosto

frente a Facundo, pois o consideraram pouco atento à Razão e aos fatos, mais

interessado na propaganda e na difamação do que propriamente em entender a

sociedade argentina. A ressalva que colocava Alberdi correspondia à tendência ao

exagero de Sarmiento, que abusava da dicotomia ‘civilização e barbárie’ e da ameaça

dos montoneros, mitos já consagrados desde suas infâncias, mas que se manteriam no

pensamento “maduro” destes indivíduos.28

Todavia, Echeverría e Mitre teceram consideráveis elogios àquela obra.29

Sarmiento estava se afastando da posição conciliadora original de ’37. Cada vez mais

unitário, contou com a aproximação de Mitre e Lamas, formando um grupo que

William Katra chama de neo-unitário.30

Enquanto Sarmiento se tornava cada vez mais intolerante em relação a Rosas,

Alberdi ainda sustentava uma possível fusão partidária, o que vinha acompanhado de

27 Ibid., p. 151. 28 Ibid., p. 26. 29 Ibid., pp. 114-115. 30 Ibid., pp. 116/121.

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um aproveitamento de algumas “conquistas” do governo federal. Este pensamento

estaria já presente em 1837, sendo reiterado em 1847 e ainda em Las Bases em 1852,

sua obra mais influente.31 Por “ensinar os argentinos a obedecer”, “Alberdi había visto

como principal mérito de Rosas, su reconstrucción de la autoridad política”.32 Las

Bases, representava a defesa de uma República “Possível”, autoritária e liberal apenas

no relativo ao econômico (aberta ao comércio europeu), com o objetivo posterior de

organizar uma República “Real”, que oferecesse liberdade política à população.33

Alberdi já estava abandonando a idéia da primazia de uma elite letrada na

política, entendendo que apenas uma co-participação desta com a elite econômica,

representada por Urquiza (caudilho e estancieiro exportador), poderia conduzir a

Argentina ao caminho do progresso.34 O econômico ocupa neste Alberdi um papel

decisivo, pois, se direcionado ao mercado externo, traria consigo os avanços europeus

tão desejados ao Prata. “Entregándose confiadamente a las fuerzas cada vez más

pujantes de una economía capitalista en expansión, el país conocerá un progreso cuya

unilateralidad Alberdi subraya complacido.”35 Esta superioridade do econômico

resultaria até mesmo em uma futura inutilidade do pensamento ilustrado: Esa imagen [de primazia do letrado] – que Alberdi ahora recusa – propone una estilización de su lugar y su función en el país que constituye una autoadulación, pero también un autoengaño, de la elite letrada. La superioridad de los letrados, supuestamente derivada de su apertura a las novedades ideológicas que los transforma en inspiradores de las necesarias renovaciones de la realidad local, vista más sobriamente, es legado de la etapa más arcaica del pasado hispanoamericano, se nutre del desprecio pre-moderno de la España conquistadora por el trabajo productivo.36

Las Bases são uma síntese do pensamento de Alberdi daquele momento. Seu

livro representava um programa dos mais precisos acerca de como manter as

conquistas de Rosas referentes à ordem e à subordinação da população somadas à 31 HALPERÍN DONGHI, op. cit., p. 20. 32 Ibid., p. 37. Uma ordem ruim seria melhor do que uma revolução incompleta 33 Ibid., p. 41. 34 Ibid., p. 38. 35 Ibid., p. 39. 36 Ibid., p. 42.

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abertura dos portos à influência benéfica do comércio europeu. Suas linhas são “tan

sencillas, tan precisas y coherentes, que es comprensible que se haya visto en él sin

más el de la nueva nación que comienza a hacerse en 1852”.37

Alberdi e Sarmiento compartilham de algumas idéias em comum. Dentre

outros possíveis exemplos, são favoráveis à queda de Rosas, à troca da referência da

França pela dos Estados Unidos, à imigração em massa de europeus e ao progresso

civilizador que estes poderiam trazer. Mas se em Alberdi o progresso econômico

antecede e conduz ao social, em Sarmiento, é o contrário.38 O desenvolvimento social

é uma condição para progresso. Opondo-se a Alberdi, a educação da população

defendida por Sarmiento não terminaria por inspirá-la em idéias “perigosas” de

transformação social, mas a impulsionaria ao desenvolvimento de necessidades

econômicas controladas por determinados limites socialmente aceitos (como seria o

caso dos Estados Unidos). O desejo da plebe de acender socialmente não seria uma

ameaça, mas um veículo de progresso material.39

É importantíssimo entender como as idéias desta Geração de ’37 se

desenvolveram e alcançaram o território uruguaio. Como podemos observar com

Sastre e Lamas, a influência deste movimento foi levada também para o Chile e para o

Uruguai. Especificamente para o caso deste último, os conflitos partidários entre

blancos e colorados, que logo se entrelaçaram aos pré-existentes federais e unitários,

geraram um rico ambiente de publicações e troca de idéias. Como poderá ser analisado

no decorrer deste segundo capítulo, muito do pensamento desta Geração estará

desenvolvido no texto de Manuel Herrera y Obes. Membro de uma facção colorada

bastante próxima a Andrés Lamas, escrevendo dois anos após a publicação do

Facundo (e apenas um ano após a visita de Sarmiento), Herrera y Obes traz em si uma

obra alinhada aos chamados neo-unitários, ou seja, aproxima seu conteúdo daquele

momento em que os escritores ’37 já estavam se dividindo entre as correntes propostas 37 Ibid., p. 44. 38 Ibid., p. 45. 39 Ibid., p. 48.

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por Alberdi e Sarmiento, na mesma medida em que abandonavam a liderança de

Echeverría.

2.1.1 A categoria “civilização” em Alberdi

Ao final da batalha de Monte Caseros, recém derrotado Juan Manuel Rosas,

governador da província de Buenos Aires, reuniu-se um Congresso de representantes

com o objetivo de organizar uma Constituição para a Confederação Argentina. Carente

de uma lei geral unificadora, a integração provincial fora até então estabelecida por

acordos políticos entre os governadores, cada um representando um Estado que

desfrutava de ampla autonomia interna. Rompidos estes pactos interprovinciais, Juan

Bautista Alberdi acreditou poder contribuir nas discussões que buscavam dar um novo

sentido à união política das diversas regiões das Províncias Unidas do Rio da Prata,

escrevendo, assim, os Fundamentos da organização política da Argentina em 1852.

Apelidada pelos argentinos de Las Bases, esta obra pretendia realçar e

defender duas grandes questões: a constituição de um governo central, até então

inexistente, e a implantação de um regime liberal capaz de promover o que Alberdi

entendia por progresso. Para concluir seu trabalho, obrigou-se a enfrentar a

contradição entre seus valores políticos liberais e a necessidade de consolidar uma

autoridade estatal.40 A extrema debilidade das instituições argentinas exigia um Estado

central forte e capaz, mas as intervenções deste na sociedade civil poderiam ser, do

ponto de vista liberal, um obstáculo para o desenvolvimento e o progresso. Por este

motivo, a consolidação de um poder institucional estável somente se legitimaria se

proporcionasse condições de segurança e previsibilidade ao liberal, dando ao

empreendedor do progresso a tranqüilidade de desenvolver seus negócios sem mais

40 PALERMO, Vicente. Pensamento político progressista no liberalismo argentino e mexicano do século XIX: Juan Bautista Alberdi e Justo Sierra. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 20, 1997. p. 1.

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temer as injustiças dos caudilhos e suas facções armadas.41 Por um lado, Rosas fora

capaz de impor a ordem, ainda que no emprego de uma ditadura. Mas mesmo

“acostumando os argentinos a obedecer”, o que na opinião de Alberdi fora um ponto

positivo daquela gestão autoritária, as guerras e perseguições entre partidos

continuaram, assim como se manteve o predomínio da vontade pessoal e partidária do

caudilho na deficiência de uma ordem legal burocrática. Desta forma, na Constituição

da “nova” Argentina, a paz e a lei deveriam reinar como garantias de consolidação das

condições necessárias que tornariam possível o curso do defendido progresso aos

agentes econômicos privados.

Veremos adiante como Alberdi acreditou descrever um processo, mas, por

fim, escreveu um projeto político de civilização. Ele pretendia apenas apresentar o

leitor a uma ordem natural, associando suas idéias a uma lógica processual da história

humana. Atribuiu aos seus estudos uma imparcialidade científica e interpretativa

aplicada ao estudo das adequadas leis que melhor serviriam à causa de um progresso

“natural”. Mas que progresso era esse?

Progresso significava caminhar na direção de um ideal de civilização, uma

expressão da “(...) consciência que o Ocidente tem de si mesmo”.42 O conceito de

civilização descreve a forma como a sociedade julga tanto a si mesma como as demais,

assim como indica quais parâmetros dispõe e utiliza na efetivação de tal julgamento.

Ainda que o argumento central de diferenciação entre os povos europeus e americanos

se localizasse, conforme a época, vagando entre a oposição ‘cristãos e pagãos’ e, mais

tarde, na de ‘industrialmente e comercialmente atrasados ou adiantados’, e mais além

até acrescentada por elementos evolucionistas e raciais de explicação, as referências

européias trazidas pelos conquistadores e povoadores foram consideradas superiores

aos elementos encontrados na América, pelo menos para a interpretação da Geração de

‘37. Por maiores que fossem as forças que impeliam o espanhol a se adaptar ao 41 Ibid., p. 3. 42 ELIAS, N. O processo civilizador. Vol 1. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1994. p. 23.

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ambiente sul-americano, esses valores europeus predominaram não apenas por estarem

interiorizadas desde o princípio, mas também pelo incessante fluxo cultural entre os

dois continentes que permanentemente foi capaz de revalidar tais valores de

civilização.

Em Alberdi, progresso e processo civilizador são a mesma coisa. Se a idéia de

que a humanidade segue um caminho de melhora e aperfeiçoamento constante é

evitada por Elias, para o autor argentino, ela é qualidade natural das sociedades

civilizadas. Assim sendo, a civilização se enriqueceria pelo contato entre diferentes

sociedades, disseminando-se cada vez mais por territórios bárbaros, abrigando seus

homens da selvageria e inserindo-os nos hábitos e costumes do progresso.

Primeiramente, a civilização tomara o continente europeu, e com a expansão marítima

e territorial iniciada a partir do século XVI, ela descobriu, conquistou e povoou a

América com “(...) raças civilizadas da Europa através de impulsos inerentes à mesma

lei que separou os povos do Egito de seu solo primitivo e os atraiu para a Grécia; mais

tarde, os habitantes moradores da Germânia para trocar com o resto do mundo romano

a virilidade de seu sangue pela luz do cristianismo.”43 A verdadeira lei da natureza

seria a do “aprimoramento indefinido da espécie humana”, uma lei de expansão

civilizadora.44

Todavia, seguindo o raciocínio de Alberdi, ainda que inicialmente civilizadora

frente aos barbarismos indígenas, a política estatal proposta pela coroa espanhola foi

lentamente se transformando em limitação do progresso. Por interesse espanhol, o

regime de monopólio e isolamento do território contra as demais nações européias

criou um sistema de exclusão que, durante três séculos, isolou o extenso solo

americano, tornando-o ambiente deserto e estéril. Assim, a grande conquista da

independência das novas repúblicas latino-americanas não estaria localizada apenas na

autodeterminação política, mas também na liberação dos entraves do progresso, 43 ALBERDI, J. B. Fundamentos da organização política da Argentina. Campinas : Editora da UNICAMP, 1994.. op. cit. p. 19. 44 Id.

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possibilitando a abertura dos portos à entrada da civilização vinda das nações

consideradas mais adiantadas do norte da Europa. Se a tarefa fora até aquele momento

colocada em mãos espanholas, caberia, então, aos americanos perpetuar a expansão

civilizadora no Novo Mundo.

Por outro lado, criticando a oposição sarmientiana que localiza

geograficamente a civilização na cidade e o barbarismo na campaña, Alberdi

argumenta que a única subdivisão que admite é a do homem do litoral e o de terra

adentro. Os principais unitários, ironicamente chamados por Alberdi de membros do

partido “inteligente”, seriam homens do campo; e os homens de Rosas, responsáveis

pela barbárie, teriam sido predominantemente educados na cidade. O homem litorâneo

receberia a ação civilizadora do comércio e da imigração, este é o que sente maior

proximidade com a Europa, enquanto que o de terra adentro, fruto da “Europa do

século XVI”, está isolado e atrasado.45

Em Alberdi, a civilização se desenvolve independentemente da vontade do

Estado. Ele possui uma “(...) fé inabalável na evolução que responde a leis

independentes da vontade dos homens”.46 Ao contrário do que pensam alguns de seus

contemporâneos, excitados pela atuação dos homens no processo de independência e

crentes na capacidade dos indivíduos de interferir na história, Alberdi entende que o

caminho do progresso corresponde a uma evolução natural. Assim sendo, a

Constituição a ser escrita, bem como todas as demais leis a serem aprovadas, não

podem ser consideradas uma conquista humana, mas apenas uma adequada

interpretação de um momento evolutivo particular de uma sociedade. As leis não

devem almejar a transformação, mas, sim, a garantia de que as necessidades dessa

sociedade, necessidades de progresso, serão correspondidas. Portanto, o direito nada

mais é do que um instrumento que deve conduzir “à reconciliação do indivíduo com a

ordem natural”.47

45 Ibid., pp. 70-71. 46 PALERMO, op. cit. p. 16. 47 Ibid., p. 16.

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Como podemos observar, o papel da transmissão de conhecimentos

civilizadores está depositado na sociedade civil, não no Estado. O estado pode criar

escolas e universidades, e estas existiam já no período colonial, mas a educação que a

Argentina precisa não é a dos filósofos ou advogados, simbolizados pelos inúteis

padres da retrógrada Córdoba, mas é a dos anglo-saxões em sua educação industrial e

comercial prática. O que Alberdi defende é uma moral liberal burguesa transmitida de

indivíduo para indivíduo. O homem não aprende a civilização com a alfabetização,

nem com a etiqueta ou com o conhecimento de curiosidades que apenas servem para

alegrar salões e festas. A civilização está no trabalho, na indústria e no comércio, não

em círculos de pedantes ilustrados.

Desta forma, são os homens em contato uns com os outros que se educam e,

uma vez que o tipo de educação como a alfabetização não é necessária para todos,

percebermos como Alberdi faz uma distinção entre liberdade política e liberdade civil.

Esta última é considerada mais importante, uma vez que é a liberdade de comerciar e

de ter propriedades, é aquela que aciona os interesses materiais que animam os meios

econômicos capazes de impulsionar a sociedade rumo ao progresso. A liberdade

política é apenas uma fonte de agitação, e nada desejável nem para nativos, nem para

estrangeiros imigrantes.48 A liberdade política, assim como o sufrágio universal, será

algum dia possível, mas somente será alcançada se primeiramente a Argentina

aprender a obedecer a instituições estáveis, legítimas e regidas por um estado de

direito. Para além desse estágio, sua população deve habituar-se à idéia e uso da

liberdade civil para, depois, ser introduzida à política. Desta forma, o Estado deve

limitar-se a escrever a Constituição adequada para o estágio em que se encontra a

Confederação, reservando aos indivíduos a tarefa de civilizar-se, pois o “(...) caminho

do governo de si mesmo é a educação de si mesmo”, e “educar-se a si mesmo é o

caminho para chegar a governar-se a si mesmo”.

48 Ibid., p. 15.

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Compete ao Estado garantir a ordem e a previsibilidade, intervindo somente

no fomento do que a sociedade civil demanda. Ainda que o exemplo colonial coloque

o Estado como um obstáculo interventor e monopolizador, este poderia ser usado para

“adiantar” o processo civilizador, acelerando movimentos que sozinhos demorariam

muito mais a se concretizar. Segundo Alberdi, o grande foco de incentivo deveria ser a

imigração, porque “países que não tem população própria, precisam da alheia”.49 Com

a vinda de europeus, principalmente anglo-saxões, a Argentina entraria em contato

com um povo mais civilizado capaz de transmitir os costumes da indústria e do

comércio. Da mesma forma que o espanhol pôde trazer um pouco de civilização ao

indígena, o inglês deve conduzir o argentino a um próximo estágio de

desenvolvimento. Se o governo colonial impedia a vinda de imigrantes não ibéricos, o

Estado argentino deve não apenas garantir, mas incentivar a vinda de homens do norte

europeu.

Em Las Bases, Europa e América padecem de problemas opostos, ambos

violações feitas ao “curso natural das coisas”. Ao norte do hemisfério existe uma

abundância de população, um mal excedente necessário e vital para a Argentina. Se na

Europa existe um crescente desalojamento dos homens do campo e um inchaço das

cidades com indivíduos desocupados, a América lhes oferece um território desabitado

e ansioso por progresso. “Os Estados do outro continente devem estar propensos a

enviar-nos, por meio de imigrações pacíficas, as populações que os nossos devem

saber atrair através de uma política e de instituições análogas”.50

Com isso, Alberdi não pretende apenas “trocar” de povo, mas expor os

argentinos à civilização. Ele não quer uma nação de ingleses, mas uma nação de

argentinos civilizados. Por este motivo, assim como o nativo deve apreender com o

trabalho do imigrante, este deve tornar-se argentino. O estrangeiro não pode ser um

perigo para a sustentação da nacionalidade local.51 O Estado deve não apenas atrair, 49 ALBERDI, op. cit., p. 48. 50 Ibid., p. 20. 51 Ibid., p. 46.

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mas igualmente fixar o imigrante, e, para isso, deve assegurar-lhe a cidadania, deve

torná-lo argentino. Porém, como aponta Halperín Donghi, nas décadas que se seguiram

ao livro, os imigrantes desembarcaram, mas não necessariamente corresponderam aos

anseios de Alberdi.52 Os traços negativos do estrangeiro se acentuaram ao longo de

três décadas de imigração. A visão que existia sobre a imigração muda e ela passa ser

vista como elemento de dissociação. O problema de “nacionalizar” essa população

estrangeira se mostrava mais complexo, uma vez que, inicialmente, nem lhes conviria

adquirir a cidadania, pois como estrangeiros contavam com uma proteção maior do

Estado. Ao invés de liderar a civilização e fazer a Argentina avançar, esses europeus

teriam aceitado o “primitivismo” local e nele exploravam suas vantagens e

possibilidades. Foram acusados de parasitar o Estado ao invés de reformá-lo.

Finalmente, chega-se à conclusão de que não se pode esperar do pai italiano uma

educação que transforme seu filho em argentino. A tarefa de nacionalizar, ou seja, de

educar o estrangeiro é devolvida ao Estado, é retirada do núcleo familiar.53

Em 1914, a Argentina já havia passado por uma intensa reorganização das

suas redes de interdependência, uma vez que um terço da sua população era já

estrangeira.54 Entretanto, a civilização européia, “civilizada e civilizante”,55 não se

assentou em território americano sem sofrer também suas transformações. Desta

forma, tanto o espanhol foi obrigado a se adaptar às exigências da região platina, como

os imigrantes italianos, ingleses e franceses acabaram por se deixar influenciar pelo

ambiente em que desembarcaram. O Estado conseguiu incentivar a vinda de

estrangeiros, mas estes não corresponderam ao curso natural da civilização como

pretendia Alberdi. No entanto, com isso, podemos observar como um indivíduo

pensou poder aproveitar a máquina Estatal para influir em um processo que acreditava

52 HALPERIN DONGHI, T. ¿Para qué la inmigración? Ideología y política inmigratoria en la Argentina (1810-1914) In: El espejo de la historia: problemas argentinos y perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires : Editorial Sudamericana, 1987. 53 Ibid., pp. 212-227. 54 Ibid., p. 228. 55 ALBERDI., op. cit., p. 104.

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natural, e que logo fugiu ao seu total controle. Alberdi faleceu na década de 1880,

impedido de conhecer os resultados do seu projeto civilizador, um projeto que foi

absorvido por uma lógica de transformações não programadas daquela sociedade.

2.2 UM SARMIENTIANO: MANUEL HERRERA Y OBES. REVOLUÇÃO E

CIVILIZAÇÃO

Intensificados a partir da renúncia forçada do presidente Manuel Oribe em

1838, os conflitos políticos do Uruguai recém independente logo alcançariam a

margem ocidental do Prata. Desde sua substituição por Fructuoso Rivera, Oribe se

transferira para a Argentina, onde combateu sob a bandeira federalista de Juan Manuel

de Rosas nas lutas contra o partido unitário. Relativamente pacificado o ambiente

argentino, e contando com forte apoio rosista, Oribe retornou à Banda Oriental para

reclamar pela nulidade da sua anterior renúncia imposta pelo partido colorado então

liderado por Rivera. Após alguns confrontos, Oribe conseguiu impor um cerco à

capital Montevidéu em 1843, somente desfeito em 1851 com um acordo de paz entre

as partes beligerantes. Com a derrota da resistência colorada na campaña, restou a

Montevidéu a posição de último reduto fortificado de uma resistência ao mesmo tempo

colorada e unitária.

Separadas por muros e trincheiras, tanto a campaña como a cidade

conheceram suas próprias instituições de governo, cada uma acreditando ser a legítima

defensora do Estado uruguaio. Dentre as causas do sucesso da resistência do “Governo

de la Defensa”, podemos destacar a incapacidade das forças opositoras do “Governo

del Cerrito” de organizar um bloqueio naval eficiente ao porto de Montevidéu, ao que

colaborou o apoio, de início velado, das potências marítimas européias à facção

colorado-unitária. Contribuiu igualmente para esta situação a precariedade técnica dos

exércitos de então, formados em sua maioria por forças irregulares raramente

portadoras de armas de fogo e inaptas para a empreitada de enfrentar uma cidade

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fortificada. Entretanto, como será exposto mais adiante, o decisivo desta separação

forçada entre o meio urbano e o rural está na forma como os olhos unitários e

colorados a ressaltaram como uma rivalidade entre duas grandes forças opostas: a

civilização e a barbárie, ou a cidade e a campaña.

Não se restringindo a um mero enfrentamento de campos de batalha, os

periódicos do período estiveram recheados por combates explícitos de propaganda e

contra-propaganda. Aqueles dois “Estados rivais”, simbolicamente o da cidade e o da

campaña, buscaram legitimar sua causa na mesma medida em que lutavam por

denegrir as idéias da oposição. Contudo, não foram publicadas apenas pequenas notas

de denúncia, palavras inflamatórias de adesão ou breves informativos da conjuntura

bélica. Existiram também textos mais elaborados que se distribuíram por semanas de

publicações e que se preocupavam por questões mais amplas e complexas. Alguns

autores chegaram a discorrer por interpretações que alcançavam o próprio processo

revolucionário e independentista que culminara na construção do Estado uruguaio.

Estes textos foram publicados por ambas as partes, cada uma com seu veículo próprio

de divulgação, construindo interpretações particulares de todo um processo que

abrangia as quatro primeiras décadas do século XIX e que culminaria com a criação

dos partidos que eles mesmos integravam. Na elaboração de um sentido histórico para

o processo de independência platino, cada partido construiu também um suporte

legitimador particular. Desta forma, não temos apenas duas linhas trocando tiros ou

apresentando espadas, mas um confronto entre interpretações da história e da

sociedade, nas quais se acrescentou a apresentação de conceitos como revolução e

civilização.

Discutindo estas questões, o colorado Manuel Herrera y Obes (1806-1890)

publicou os Estudios sobre la situación no jornal El Conservador entre 20 de

novembro de 1847 e 9 de dezembro do mesmo ano.56 Durante o cerco a Montevidéu,

56 HERRERA Y OBES, Manuel e BERRO, Bernardo Prudencio. El caudillismo y la revolución americana. Montevidéu : Ministerio de Instrucción Pública y Previsión Social, 1966. pp. 3-65.

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ele desempenhou o cargo de Juez Letrado de Comercio y Hacienda, tomou parte da

Asamblea de Notables e, em 1847, foi nomeado Ministro de Gobierno y Relaciones

Exteriores. Seu texto tem como principal objetivo analisar as mudanças estratégicas

provocadas pela expulsão do General Rivera do partido colorado. Esta ausência

forçada implicava não somente em uma reestruturação do partido, mas também em

uma nova justificativa para a defesa da capital frente à ofensiva blanca. Se as

desavenças que deram origem ao conflito entre as lideranças de Rivera e Oribe não

mais explicavam a manutenção da resistência em Montevidéu, restava aos

remanescentes uma nova legitimação para a guerra. Seguindo o discurso neo-unitário e

sarmientiano de oposição entre civilização e barbárie, Herrera y Obes coloca os

colorados ao lado da civilização, e, conseqüentemente, ao lado de uma “verdadeira”

revolução americana. Nesta interpretação, blancos e federais são considerados

inimigos da Revolução de Maio de 1810 e de todo o movimento de emancipação

americana que seria, enfim, mais um capítulo de uma história de um suposto progresso

civilizador.57

Domingo Faustino Sarmiento é o autor de Facundo: Civilización y Barbárie.

É desaconselhável ignorar esta obra quando se procura entender o jogo de

representações políticas que circulava na região platina naquele contexto de guerra

civil, e é inevitável encontrar diversos pontos em comum entre sua interpretação e a

realizada pela defesa colorada de Montevidéu.58 Por estes motivos, os textos de ambos

autores estarão em constante relacionamento ao longo desta seção deste capítulo.

Exilado no Chile, Sarmiento publicou sua obra como folhetim no jornal El Progreso

de Santiago a partir de 2 de maio de 1845. Seu título teve como inspiração a entrada da

barbárie de Juan Facundo Quiroga na província de San Juan em 1827. Parte ficção,

57 É extremamente provável que Herrera y Obes tenha tomado conhecimento acerca do conteúdo de Facundo, uma vez que seu texto foi publicado dois anos após a impressão de Civilizacion y barbárie, e apenas um ano após a visita de Sarmiento em 1846. Além disso, suas conexões com Andrés Lamas o aproximam ainda mais do grupo neo-unitário de Sarmiento. 58 SARMIENTO, D. F. Facundo, civilización y barbarie. Buenos Aires : COLIHUE, 1990.

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parte biografia e história, sua escrita se inicia por uma descrição geográfica e social

das Províncias Unidas do Rio da Prata. Nesta primeira parte, Sarmiento constrói tipos

sociais ideais cujos elementos básicos estão, em conjunto, em partes desiguais

distribuídos por todos os habitantes daquela região.59 El Rastreador, el Gaucho Malo,

el Baqueano e el Cantor são frutos do deserto e do pampa. A imensidão do terreno

aliada à escassez de homens tem como resultado o enfraquecimento da associação

entre os indivíduos. As grandes distâncias e a solidão do pampa não são capazes de

impor laços sociais fortes e estáveis. Acostumado a viver sozinho ou em pequenos

grupos, o gaúcho idealizado de Sarmiento é um ser egoísta e insensível por

condicionamento social e geográfico. Seu estilo de vida seminômade, no qual a

abundante oferta de carne a este caçador de gado cimarrón dá oportunidade a um meio

de vida que dispensaria a necessidade do trabalho, torna-o resistente à experiência

sedentária do lar e da família. Poder-se-ia dizer que, mais do que desinteresse, este

autor enxerga no gaúcho uma inaptidão à vida considerada civilizada.

Sarmiento não foi o único nem o primeiro a elaborar teorias que explicavam a

“natureza” ou o comportamento dos homens, separando-os entre sujeitos ideais, sejam

estes urbanos, camponeses, caçadores ou agricultores. Montesquieu, por exemplo,

discutindo a necessidade e a aplicabilidade das leis para cada circunstância política que

poderia ser encontrada em populações diversas, escreve sobre uma suposta natureza

dos povos e como esta é influenciada pelo clima, pelo modo de subsistência, pelas

características geográficas do terreno, pelos costumes e pela religião. O conjunto

destes elementos determinaria a formação de uma sociedade, tornando-a bárbara ou

civilizada. Ao contrário da Europa, “o que faz com que haja tantos povos selvagens na

América é o fato de seu solo produzir por si próprio muitos frutos com os quais

podemos nos alimentar”.60 Estas teorias procuravam explicar porque certos povos

seriam bárbaros ou civilizados, ou, ainda, como foi possível que alguns deles se 59 “(...) si solevantáis un poco las solapas del frac con que el argentino se disfraza, hallaréis siempre el gaucho más o menos civilizado, pero siempre gaucho”. Ibid., p. 161. 60 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo : Abril Cultural, 1985. p. 250.

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tornassem civilizados. Não pretendo afirmar aqui que Sarmiento seja um discípulo de

Montesquieu, mas apenas colocá-lo como mais um entre muitos adeptos de teorias

mecanicistas que acreditavam em certos modelos de determinismo natural ou social.

Na segunda parte do seu livro, Sarmiento tem na trajetória do já lendário

Facundo Quiroga um bom exemplo do que a Argentina teria de pior. Este gaúcho

bárbaro representa o atraso platino. Contra a barbárie, Sarmiento ergue uma

civilização européia que repousaria nas mãos de um dos partidos, o unitário. Para este

autor, a guerra civil que travam os unitários contra os federais é a guerra entre um

progresso civilizador europeu e um retrocesso identificado por vezes como americano

ou até mesmo ibérico.61 É uma guerra entre a ‘matéria’, mecanicamente construída

pelo ambiente geográfico e social americano, e as ‘idéias’, estas vindas do intelecto e

inspiradas pela civilização européia.

Para o século XIX, “a história, a reflexão do historiador, conjeturais ou

empíricas, põe mãos à obra para chegar a um ‘quadro dos progressos do espírito

humano’, a uma representação da marcha da civilização por meio de diversos estados

de aperfeiçoamento sucessivos”.62 Buscando suas origens na Grécia antiga ou no

resultado da união entre germânicos e romanos, o progresso, no século XIX, é

comumente entendido como um caminho de transformações que conduziram as

sociedades ocidentais rumo à cristianização e à industrialização. A Europa de então era

a referência de um estado civilizado. Seu desenvolvimento “material e espiritual” a

erguia como modelo de civilização, e sua trajetória histórica como exemplo de como

civilizar-se. A Europa é ao mesmo tempo um fim e um exemplo de um meio.

Escrevendo em 1852, Juan Bautista Alberdi evitava construir uma civilização

platina culturalmente autônoma. A história Argentina seria apenas parte de uma

61 Quando Sarmiento se refere a uma civilização européia, seu significado está vinculado ao norte da Europa. A Espanha e sua herança ibérica deixada na Argentina, ainda que não merecedoras da alcunha direta de bárbaras, são consideradas atrasadas e reacionárias frente aos progressos de uma civilização anglo-saxônica entendida como superior. 62 STAROBINSKI, Jean. A palavra “civilização”. In: As máscaras da Civilização. São Paulo : Companhia das Letras, 2001. p. 15.

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narrativa maior que corresponderia à da civilização européia. Não rejeitando

totalmente a herança espanhola (ainda que a considere inferior à anglo-saxônica),63

Alberdi pergunta: quem são os argentinos senão descendentes de espanhóis? Mais do

que herdeiros de sangue, seriam herdeiros da civilização espanhola, e, deste modo,

encarregados de garantir sua continuidade.64 Discutindo com Sarmiento, Alberdi

acrescenta que “(...) tudo o que não é europeu é bárbaro; não há outra divisão que esta:

o indígena, ou seja, o selvagem; o europeu, ou seja, nós que nascemos na América e

falamos espanhol, cremos em Jesus Cristo e não em Pillán, deus dos indígenas.”65

Como poderemos observar, o conceito de civilização não conhece um total consenso.

Mas, em todo caso, fica claro como a noção de o que é civilização e o que é barbárie

está colocada a partir da construção de uma imagem vinda da Europa e constantemente

renovada e reproduzida pelas trocas entre os dois continentes, ainda que readaptada às

condições sociais enfrentadas pela região platina.

Poucos anos antes de Alberdi, Bernardo Berro já afirmava que

La civilización de la Europa y la de América es la misma. Los elementos, los principios que las constituyen son también los mismos, salvo aquellos accidentes especiales que distinguen social y políticamente a los pueblos en que se hallan fraccionadas esas dos importantes secciones del globo. La civilización cristiano-romano combinada con la civilización germana, que pone en movimiento a las naciones europeas es la misma que impulsa a nuestros pueblos, y tanto es de la América como de la Europa. No hay principio ninguno importante de ella que no esté contenido en las sociedades modernas de América66.

63 Alberdi mudará de opinião mais tarde, já na década de 1860 quando reavalia a importância da herança ibérica. ALBERDI, Juan. Bautista. Proceso a Sarmiento. Buenos Aires : Ediciones Caldén, 1967. 64 Vejamos como Alberdi desconsidera a mestiçagem racial e o hibridismo cultural: “As repúblicas da América do Sul são produto e testemunho vivo da ação da Europa na América.” “Tudo na civilização de nosso solo é europeu; a própria América é um descobrimento europeu.” “Nós, que nos designamos americanos, não somos outra coisa do que europeus nascidos na América. Crânio, sangue, cor, tudo é de fora”. “O indígena nos faz justiça quando nos chama de espanhóis (...).” “O idioma que falamos é da Europa.” “E que são nossas constituições políticas senão adoção de sistemas europeus de governo?” ALBERDI, Juan Bautista. Fundamentos da organização política da Argentina. Campinas : Editora da UNICAMP, 1994. pp. 69-70. 65 Id. 66 HERRERA Y OBES, M. e BERRO, B. P. op. cit. pp. 118-119.

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Para Berro, a América e a Europa compartilham de uma mesma civilização.

Porém, neste enfoque, sua versão americana antecipa a de Alberdi por considerá-la

uma expansão da civilização européia iniciada nos tempos da conquista espanhola do

século XVI. De certa forma, a América hispânica também é européia, o que a afasta da

barbárie descrita por Sarmiento. Todavia, Berro e Alberdi dão margem ao

entendimento de que existem ao menos duas Américas, a “nativa” e a construída por

europeus. Em nenhum momento, Berro ou blancos iniciarão uma defesa pela América

“nativa”,67 mas a possibilidade de que a “América Blanca” seja uma expansão da

civilização espanhola conseguiria salvá-la da alcunha de bárbara.

Originalmente, o texto de Berro fora uma resposta a Manuel Herrera y Obes,

uma vez que este também acreditava que a Europa seria necessariamente civilizada,

enquanto que a América representaria sua infeliz oposição bárbara. Este autor

colorado se manteve na esteira sarmientiana de separação nítida entre dois modelos

ideais de sociedade, o bárbaro e o civilizado. Ainda que esses dois elementos

contrários possam coexistir, seriam necessariamente antagônicos, categorias inimigas

que escolheram o Prata como palco para a resolução dos seus conflitos. Na versão

unitária e colorada, a civilização deve erguer uma guerra sem tréguas aos bárbaros, e

já veremos como não apenas os indígenas foram incluídos nessa categoria, mas

também receberam essa classificação os federais e os blancos.

A consagração da palavra civilização na literatura tida como científica é

acompanhada por um uso cada vez mais indiscriminado da sua acepção na política e

na legitimação de certas ações. A civilização adquire uma autoridade apta a exercer

um poder mobilizador capaz de acender conflitos entre grupos políticos ou intelectuais

rivais. O civilizado demoniza o bárbaro, e, assim, alguns indivíduos pretendem se

67 Os federais valorizavam a figura do gaúcho como parte de um “americanismo”. Mas ainda que o hibridismo cultural do gaúcho - uma mistura de indígenas e espanhóis - exista, este estava incluído no que se considerava “civilização”, ao contrário das tribos nômades que eram combatidas, colocadas entre os bárbaros. Em uma empresa que engrandeceu seu prestígio, Rosas será responsável pela expansão das fronteiras argentinas em guerras contra os indígenas ao sul da Província de Buenos Aires.

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apresentar como os legítimos detentores do monopólio da sua propagação.68 A

civilização é o critério pelo qual se julgarão os demais, e sua defesa poderá, inclusive,

legitimar o uso da violência. No caso francês, “a linguagem pós-revolucionária

consagrava-se a identificar os valores sagrados da Revolução com os da civilização e,

em conseqüência, consagrava-se igualmente a reivindicar para a França, país da

Revolução, o privilégio de ser a vanguarda (ou o farol) da civilização”.69 Na

Argentina, membros do Partido Unitário e da Geração de ‘37 adotarão atitudes

semelhantes, reivindicando para si a posição de revolucionários condutores da

civilização, relegando seus inimigos ao papel de bárbaros reacionários.

Voltando à segunda parte do Facundo, repleta de ataques sutis ou abertos a

Rosas, a biografia de Quiroga emerge como porta de entrada para a explicação de uma

“natureza” e de uma história para o Prata. Principalmente através de Quiroga, mas

também por outras personagens, os tipos ideais do homem platino estarão presentes

nas personalidades de indivíduos como Artigas e Rivera. Este é o baqueano típico,

conhecedor dos caminhos e segredos do pampa, enquanto que, “si el lector no se ha

olvidado el baqueano y de las cualidades generales que constituyen el candidato para

la comandancia de campaña, comprenderá fácilmente el carácter e instintos de

Artigas”.70 Todavia, a biografia de Quiroga, homem que conhece a ascensão através da

revolução, da independência e dos conflitos entre unitários e federais, é um caminho

em que se acompanha a própria história da Argentina das primeiras décadas do século

XIX. Quiroga fornece um exemplo e um sentido, pois seria o “produto natural da

sociedade argentina num determinado ponto de sua evolução”.71 É na natureza de

Facundo e de Rosas, exemplos máximos da barbárie platina72 que se encontram as

68 STAROBINSKI, Jean. op. cit. p. 32. 69 Ibid. p. 35. 70 SARMIENTO, op. cit., pp. 70/81. 71 COELHO PRADO, Maria Lígia. Para ler o Facundo de Sarmiento. In: América latina no século XIX: tramas, telas e textos. São Paulo : Editora da USP, 1999. p. 162. 72 Sarmiento confere a Facundo a categoria de “bárbaro ingênuo”, enquanto que Rosas é transforma a barbárie em sistema de governo, racionalizando-a. “Rosas no ha inventado nada; su talento ha

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origens das guerras civis que tanto assolam o Prata, preocupam seus habitantes e

atrasam seu progresso rumo à civilização.

No Uruguai, Manuel Herrera y Obes publicou uma interpretação semelhante

apenas dois anos depois. Não é possível afirmar que este tenha lido o Facundo, uma

vez que em nenhum momento faz menção a esta obra, mas é pertinente observar que

as idéias de ambos estavam inseridas em um campo de idéias que abrangia ambas as

margens do Rio da Prata. Sarmiento, ainda que grande difusor, não inventou a

oposição entre civilização e barbárie. Tanto Herrera y Obes como Sarmiento estavam

sujeitos a um mesmo contexto de idéias e desafios, além de compartilharem os

mesmos inimigos. Mas, sem dúvida, o segundo não contradiz o primeiro; ao contrário,

conduzem seus esforços de guerra para a mesma direção. Porém, a versão de Herrera y

Obes está adaptada à história da antiga Banda Oriental. Por este motivo, a história que

é contada se concentra mais em Rivera e em Oribe, antigos seguidores de Artigas e,

em seguida, líderes dos partidos em conflito da ‘Guerra Grande’. Mais do que isso, seu

texto se posiciona num ponto específico da história do partido colorado: a quebra

formal entre o Governo de la Defensa de Montevidéu e seu antigo líder, Fructuoso

Rivera.

Qual o significado atribuído a este rompimento? Herrera y Obes o transforma

na expurgação definitiva dos resquícios de barbárie que ainda infectavam o Partido

Colorado. A expulsão de Rivera seria também uma transformação total de sentido para

a ‘Guerra Grande’. Esta deixaria de ser uma mera disputa entre caudilhos pela

presidência da república para se tornar uma guerra aberta entre a civilização e a

barbárie. Nesta interpretação, os paladinos do progresso e da civilização se

encontravam na defesa de Montevidéu.

O blanco Francisco Solano Antuña, nos seus diários do sítio da capital,

descreve as tropas que, além das formadas por homens colorados, defendiam a cidade:

consistido sólo en plagiar a sus antecesores y hacer de los instintos brutales de las masas ignorantes un sistema reeditado y coordinado fríamente”. SARMIENTO, op. cit., p. 82.

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“Un vice-almirante frances imbecil ó chocho llegó para tolerar y animar con su

aquiesciencia el armamento de dos mil franceses que uniformados y con sus banderas

y escarapelas francesas forman alineados con los negros y unitarios argentinos”.73

Todos esses grupos, inclusive com a contradição dos batalhões formados por libertos

(escravos até a abolição de 1842 e imediatamente armados e incorporados à guerra),

apareciam, para os colorados, como defensores da civilização. Estes eram comandados

pelo núcleo do partido colorado, associado a exilados unitários e a europeus

imigrantes.74 Assim, nas palavras de Herrera y Obes, a separação entre a campaña e a

cidade já anunciada por Sarmiento estava, mais do que nunca, comprovada pelo cerco

a Montevidéu:

Se armaron hombres para resistir (...); y, sin saberlo, se armaron con ellos las ideas para resistir a la fuerza; la Ciudad para resistir al Campo. Hace apenas 6 años que cualquier caudillo de departamento, se habría reído si le hubiesen dicho que la Capital se había convertido en arsenal, y sus habitantes de frac en soldados. Hoy es un echo, y no se ríe de él todo un ejército imponente.75

Nas palavras irônicas de Alberdi, o partido unitário é o “partido inteligente”.76

E repetindo, “las ideas para resistir a la fuerza”. Tanto o partido unitário como o

colorado, já sem Rivera, conferem a si próprios a nobreza das “idéias”, atribuem aos

federais e blancos o papel de bárbaros, cujas discutíveis qualidades estariam

73 ANTUÑA, Francisco Solano. Escritos históricos, políticos y jurídicos Del Dr. Francisco Solano Antuña: Nº 3 – Diario llevado por el Dr. Francisco Solano Antuña sobre los sucesos ocurridos en la República durante el año 1843. Revista Histórica. Montevidéu : Publicación del Museo Nacional, 1974. p. 486. 74 Sala de Touron e Alonso Eloy apontam uma estimativa de 42.000 habitantes para Montevidéu em 1842. Destes, 2000 franceses formavam a Legião Francesa comandada pelo “bonapartista Thiebaut”; 600 italianos sob ordens de Giuseppe Garibaldi (aqui ali esteve entre 1842-1848); 500 emigrados argentinos e 700 espanhóis. Citando Mitre, estas autoras escrevem que o batalhão de libertos contava com 11.000 soldados, respondendo à metade dos “nacionais” armados, o que conduz a uma estimativa de 25.800 para o total das forças da defesa, correspondendo a aproximadamente 61,4% do total da população da capital. SALA DE TOURON, Lucia; ALONSO ELOY, Rosa. El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco. Tomo II: Sociedad, política e ideología. Montevidéu : Banda Oriental, 1991. pp. 24/64/317. 75 HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., p. 16. 76 ALBERDI, Fundamentos... op. cit., p. 201.

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localizadas na força bruta e na sua capacidade de mobilizar uma população gaúcha

ainda mais selvagem do que seus líderes. Incapazes estes “intelectuais” de

organizarem forças semelhantes àquelas dos caudilhos, sustentavam suas ambições na

legitimidade intelectual.

É importante entender que o pensamento colorado e unitário tem pouco

interesse em aumentar o alcance da participação política para toda a população. Ao

contrário do que se poderia supor, se os blancos e federais conferem a si mesmos o

apoio da maioria da população, seus inimigos, que parecem não discordar deste fato,

declaram que essa população não passa de um amontoado de gaúchos selvagens

segundo o modelo sarmientiano. Desta forma, o argumento blanco de que o ‘Governo

del Cerrito’ seria o verdadeiro nacional por ter ao seu lado uma construída vontade

popular é desconsiderado por um rótulo de incapacidade colocado na sua população. O

‘Governo de la Defensa’, que se conforma em contar com uma minoria de orientais

ajudados por batalhões de libertos excluídos da condição de nacionais e estrangeiros

europeus, pretende estabelecer sua legitimidade em uma missão civilizadora para o

Prata. Mas que missão é essa?

Retomando as idéias de Alberdi, que em momento algum se declarou

unitário, mas propunha a fusão das idéias dos dois partidos, a civilização ocidental

teria percorrido um longo caminho de civilizar-se que pode ser traçado desde a Grécia

Clássica. Em determinado momento, já estabilizada, ela passou a expandir-se pelo

resto do globo, alcançando as Américas. Assim, a Espanha aparece como uma

condutora da civilização, carregando-a consigo através da conquista. Porém, com o

gradual declínio espanhol, perdendo seu espaço de potência européia para a Inglaterra,

ao invés de manter sua empreitada civilizadora, a metrópole ibérica estaria então

embaraçando o desenvolvimento das Américas com seu monopólio e isolamento

colonial. É neste ponto que a Revolução de Maio e a independência encontram um

significado civilizador. A Revolução detém um papel decisivo para este contexto.

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Como afirmou Antuña em seu diário, o mês de maio é “el mes de America”.77 A

revolução se torna uma revolta em prol do progresso e da modernidade contra um

antigo regime colonial. A Espanha torna-se, senão bárbara, uma civilização atrasada

ou decadente. Por esta razão, a atitude mais acertada teria sido a da independência,

acompanhada de uma conseqüente liberação dos entraves coloniais que, do ponto de

vista liberal, conduziriam o antigo vice-reinado do Prata a uma condição de atraso

econômico e social.

A importância dada à Revolução, mitificada e percebida como um momento

crucial de impulso de um progresso civilizador, já era aceita por colorados e unitários

da década de 1840. Herrera y Obes, em suas publicações de 1847, já explicava as

guerras civis platinas como prolongamentos do movimento revolucionário das idéias

de Maio de 1810: Una organización social inveterada por tres siglos, no se aniquila en los combates como el poder militar; y una revolución como la revolución americana no limita su empresa en el triunfo de la independencia política. La lucha de una y otra debía proseguir más allá de la guerra de la emancipación material, pasando del campo de los combates con la España, al de las resistencias morales entre nosotros mismos.

Em relação ao papel do reino espanhol na América e a estes embates “morales

entre nosotros mismos” que a herança ibérica impunha, Sarmiento se aproxima apenas

levemente da explicação de Alberdi ao opor as cidades de Córdoba e Buenos Aires.78

A primeira é a representação do mundo colonial fechado a inovações e contaminado

pelo poder eclesiástico. A segunda é a cidade aberta ao comércio e às idéias, onde os

intelectuais discutem livremente suas opiniões sem temer a intervenção da igreja ou da

metrópole. Contudo, pouco interessado em valorizar algum papel civilizador que o

mundo ibérico possa ter desempenhado na América colonial, Sarmiento se preocupa

mais em afirmar que, em 1845, a herança espanhola é um atraso e, nas mãos dos

federais, um instrumento de retrocesso. No Uruguai, Herrera y Obes dá à cultura

77 ANTUÑA, op. cit., p. 472. 78 SARMIENTO, op. cit., pp. 113-125.

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ibérica um caráter autodestrutivo fortemente associado à suposta barbárie blanca e

federal: “Fuimos educados por la España. Por la España que con la punta de su espada

ha escrito las páginas de su historia; el pueblo guerrero por excelencia, que cuando no

ha tenido pueblos extraños con quienes combatir, se ha puesto un sable en cada mano

y se ha hecho pedazos sus miembros, por no perder la costumbre de batirse.”79 A

cultura ibérica e a barbárie americana são responsáveis pela manutenção das guerras

civis que tanto destroem os estados platinos.

A partir desta visão, os blancos e federais são colocados como reacionários ou

contra-revolucionários, inimigos da revolução civilizadora de Maio. Marchando contra

as idéias unitárias e coloradas, que por lógica seriam as da civilização e da revolução,

são enquadrados como uma reação de um mundo colonial que resiste às

transformações do progresso. A partir desta interpretação, unitários e colorados

desenham um espaço social e procuram adequar cada ator dentro de um esquema de

pensamento que dá sentido a esta sua história: “Bustos, López, Quiroga, Ibarra, y por

último Rosas en la República Argentina, no han sido otra cosa que los delegados del

pueblo esclavo de las colonias que se reaccionaba contra el pueblo libre de la

revolución.”80 Neste trecho, Herrera y Obes coloca claramente dois grupos em

conflito. Existe um povo que é escravo do atraso, preso a um passado colonial tanto

pelas idéias como pela força. Mas existe outro que é o livre, o da revolução. A este

compete a tarefa de combater a barbárie, mantendo a civilização no seu curso natural

de desenvolvimento. Desta forma, temos um nítido sentido dado à revolução como um

episódio a mais de um progresso da civilização européia que se prolonga pela

América. Temos um discurso político, um projeto civilizador, que se considera

condutor de um progresso civilizador natural e inerente à sociedade européia. Com

essa versão maniqueísta em que de um lado existem bárbaros e, do outro, civilizados,

79 HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., p. 8. 80 Grifo meu. Ibid., p. 34.

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os adversários são posicionados contra o encaminhamento natural da história, e, assim,

contra a Revolução de 25 de Maio 1810.

Descrevendo a origem do desvirtuamento original da revolução, Herrera y

Obes segue o seguinte raciocínio. Nas suas origens, em Buenos Aires, a Revolução de

Maio fora idealizada por uma elite criolla. Mas esta não era capaz de conduzir a guerra

sozinha, pois não detinha a força física necessária para combater os exércitos

espanhóis na guerra de independência. Como então mobilizar os gaúchos da campaña?

Estes seriam conduzidos por uma simplificação dos ideais revolucionários, apelando

para uma ideal liberdade, um ideal patriotismo. E, então, aparecem os caudilhos, os

homens que conseguirão, com seu poder pessoal, conduzir os gaúchos até a guerra.

Assim, o que poderia ser uma continuidade entre revolução e guerra, para Herrera y

Obes, aparece como uma nítida separação entre estas duas. A revolução pertence às

idéias e à elite. A guerra pertence aos caudilhos e aos gaúchos. Os gaúchos se armam

por uma questão de necessidade prática; é um efeito secundário não desejado, mas

necessário. E é justamente neste ponto que surge a figura de Artigas, pois, ao contrário

do que ocorre em Buenos Aires, este caudilho oriental tem como núcleo de seu poder a

campaña. E ainda mais contraditoriamente, Montevidéu se torna um baluarte realista

de resistência à revolução. Assim, esta conhecera seu primeiro sítio em 1812 por uma

força conjunta de artiguistas e expedicionários porteños.

Mas a origem do desvirtuamento da revolução está no problema de que, tanto

durante o processo revolucionário como mesmo após a vitória dos criollos sobre os

espanhóis por todo o continente, os civilizados não conseguiram desarmar a

população. Assim, caudilhos diferentes de partidos rivais carregaram consigo as armas

desses selvagens gaúchos e, por interesses pessoais, assolaram o território dos novos

estados independentes com uma guerra civil que parecia não ter fim. A elite de Buenos

Aires teve sérias dificuldades em controlar seus grupamentos armados, assim como

encontrou graves problemas na tentativa de impor uma versão unificada para a

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revolução. Por este motivo, Artigas aparece como uma das primeiras e mais fortes

dissidências da Revolução de Maio.

Na década de 1840, para a interpretação unitária e colorada, os caudilhos são

os grandes culpados pelo desvirtuamento da revolução. Mais do que isso, eles se

tornaram uma força reacionária que procurava manter diversos elementos coloniais nas

novas repúblicas. O produto desejado da revolução não deveria se limitar apenas a

derrubar o poder do rei espanhol na América, mas sim implantar um Estado

“moderno” e diverso do colonial. O território que depois se transformaria no atual

Uruguai também vivera a Revolução de Maio e, de certa forma, sentia-se parte dela.

Maio faria parte de um processo revolucionário que encontrava seu início na deposição

do último vice-rei, mas que ainda se prolongava pela ‘Guerra Grande’ no Uruguai,

pela luta contra Rosas na Argentina. Para Manuel Herrera y Obes, a revolução ainda

estava incompleta em 1847:

Una Ciudad Capital que se hace guerrera; resiste cinco años a un ejército formado de todos los elementos acostumbrados a ser vencedores entre nosotros; que para esa resistencia se crea hombres y principios nuevos; y establece de más cerca relaciones con la Europa, no es un hecho en la América que puede tener un carácter vago y de transición; todo eso es colocarse ciertamente sobre las bases mismas de la revolución americana.81

Para além da simples propaganda política, como o artiguismo e o federalismo

podem aparecer como forças reacionárias? Primeiramente, é preciso observar que, para

a interpretação colorada, estes dois movimentos podem ser facilmente entrelaçados.

Artigas é o principal articulador da ‘Liga Federal’, projeto de constituição argentina

rival à inicial política centralizadora da Buenos Aires revolucionária. Enquanto o

artiguismo existiu, para as chamadas províncias do Litoral, ele foi praticamente um

sinônimo de federalismo. Como Halperín Donghi indica, afetada a Banda Oriental pela

invasão portuguesa de D. João VI iniciada em 1816, a decadência do artiguismo

conduziu seus aliados das demais províncias a utilizarem a nome de liberales para

81 Ibid., p. 60.

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designar os grupamentos políticos que compunham.82 Mais tarde, contudo, o

federalismo surgiu com maior intensidade como uma resistência ao movimento

unitário que também crescia e que se desenhava através de personalidades como a de

Bernardino Rivadavia. No mínimo, seria muito arriscado afirmar que o federalismo de

Rosas e o de Artigas tinham em comum algo além de se oporem a projetos

centralizadores como os dos unitários. Mas é correto dizer que, do ponto de vista do

‘partido inteligente’, Rosas e Artigas eram integrantes de um mesmo grupo: o da

barbárie da campaña.

Em uma publicação póstuma de crítica ao já presidente Sarmiento, Alberdi

anuncia que Artigas é o “baqueano, contrabandista (...), caudillo de las masas de a

caballo, es el mismo tipo que con ligeras variantes continúa reproduciéndose en cada

comandante de campaña que ha llegado a hacerse caudillo”.83 E ele coloca o líder

oriental como inventor da montonera, um dos grandes males que atingiriam o Prata:

“Artigas y su sistema de guerra – la montonera –, surgió de la revolución de la

independencia. No podía tener una forma más natural y normal, la guerra de la

revolución sudamericana (...)”.84 Assim, se tomarmos como referência os escritos de

Sarmiento, Herrera y Obes e Alberdi, ainda que este discorde com freqüência do

primeiro, Artigas é identificado como um dos pioneiros da mesma barbárie que,

depois, acolherá o governador Rosas; ele é também um dos primeiros caudilhos a se

aventurarem por uma guerra entre a campaña e a cidade.

Ao estudar as Bases economicas de la revolución artiguista, José Pedro

Barrán e Benjamin Nahum extraem de Artigas uma combinação de tradição e

revolução.85 Mesmo antes de concluído o período colonial, a presença espanhola já

preparava uma reorganização do sistema de propriedades agrárias da região. O

82 HALPERÍN DONGHI, T. Revolución y guerra. Buenos Aires : Siglo XXI, 1994. p. 318. 83 ALBERDI, Proceso... p. 43. 84 Id. 85 BARRÁN, J. P.; NAHUM, B. Bases económicas de la revolución artiguista. Montevidéu : Banda Oriental, 1972. p. 84.

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chamado arreglo de los campos tinha como principal objetivo promover uma nova

repartição de terras sob o argumento de que uma efetiva ocupação não apenas

contribuiria economicamente à colônia, mas também ergueria um obstáculo ao avanço

português vindo do norte. Este projeto pretendia repartir terras que ainda restavam sob

propriedade do estado, assim como as mal aproveitadas estâncias de longa extensão.

Artigas acompanhou o Capitán de Navío Félix Azara em uma viagem à

campaña cujo objetivo era a fundação do povoado de Batoví em 1800. Azara escreveu

a Memória sobre el Estado Rural del Rio de la Plata, obra que, analisando a situação

da campaña, reafirmava a necessidade de retomar o arreglo de los campos. É possível

conceber que, neste contato, Artigas tenha tido a oportunidade de discutir os termos

daquele esforço reformista. Mas está no Reglamento Provisorio de la Provincia

Oriental para el fomento de su Campaña y Seguridad de sus Hacendados de 10 de

setembro de 1815 a marca de que Artigas manteve o interesse em realizar uma

“reforma agrária”. Desta forma, é retomada a tradição espanhola de direito fundiário,

sobre a propriedade de terras e seu aproveitamento. A terra é uma concessão do

Estado, cedida ao súdito como uma permissão de uso que pode ser perdida caso o

favorecido não atenda a suas obrigações de exploração. Artigas tentou aplicar essa

tradição em 1815, mas, como argumentam Barrán, Nahum e Donghi, este esforço não

foi muito bem sucedido. As poucas terras desapropriadas e redistribuídas pertenciam

aos considerados inimigos da Revolução, e o resultado deste projeto foi se apagando

com a decadência do artiguismo frente à entrada portuguesa de 1816.

É interessante perceber como o artiguismo surge na historiografia uruguaia

como uma revolução em separado da contemporânea argentina. Os títulos dos livros

dedicados ao seu estudo o comprovam: temos o já citado Bases econômicas de la

Revolución Artiguista, mas também o Raíces coloniales de la Revolución Oriental de

1811 de Pivel Devoto, e os trabalhos da equipe formada por Lucia Sala de Touron,

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Nelson de La Torre e Julio Rodríguez, como o livro Artigas y su revolución agrária.86

Mesmo em historiadores argentinos, a adesão de Artigas à Revolução de Maio logo se

torna uma revolução com características próprias, como fica exposto pelo capítulo da

obra Revolución y Guerra de Halperín Dongui, La otra revolución: Artigas y el

Litoral.87 Neste último exemplo, a Revolución do título é a Revolução de Maio, a do

capítulo, é a artiguista.

Primeiramente, a diferença entre os dois casos está na origem dos indivíduos

que os compõem. Na versão da Banda Oriental, temos uma “revolución de multitudes

campesinas, no de minorías ilustradas urbanas como el golpe del 25 de Mayo de 1810

en Buenos Aires”.88 Nesta historiografia uruguaia, Artigas carrega esse charme de

apelo popular que logo o tornaria irresistível à corrente marxista, não muito adequada

para classificar Barrán e Nahum, mas mais correta para o caso da equipe de Sala de

Touron. Neste caso, a revolução de Artigas é a revolução camponesa da Banda

Oriental, e a reforma do arreglo de los campos recebe o sentido de reforma agrária

defendido pela esquerda do século XX. Barrán e Nahum, mas também Gélman89 e

Donghi, atenuam essa carga revolucionária ao observar como a reforma da campaña

está mais ligada a uma tradição colonial espanhola do que à própria revolução. Mas,

para além desta adesão popular, Artigas e sua ‘Liga Federal’ representam, acima de

tudo, um projeto revolucionário rival ao porteño.

Por outro lado, para o Herrera y Obes de 1847, são justamente as

características acima colocadas as responsáveis por fazer da Revolução Artiguista um

projeto não revolucionário, enfatizando seu caráter ibérico de antigo regime. Como já

foi visto, a adesão popular não conseguiria legitimar aquele movimento, uma vez que

86 PIVEL DEVOTO, J. Raíces coloniales de la Revolución Oriental de 1811. Montevidéu : Editorial Medina, 1957. SALA DE TOURON, L.; TORRE, N de la; RODRÍGUEZ, J. Artigas y su revolución agraria. Cidade do México : Siglo XXI, 1978. 87 HALPERÍN DONGHI, Tulio. Revolución... pp. 279-315. 88 BARRÁN; NAHUM, op. cit., p. 89. 89 GELMAN, Jorge. Campesinos y estancieros: una region del rio de la plata a fines de la epoca colonial. Buenos Aires : Editorial Los Libros del Riel, s/d.

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o gaúcho, o homem do campo, não passaria de um bárbaro, um selvagem. E Barrán e

Nahum parecem concordar com essa imagem, ainda que retirem todo o julgamento

negativo construído por Herrera y Obes e seus contemporâneos, pois se referem a um

suposto “obstáculo cultural” de “indole nomádica del gaucho” que o tornaria

incompatível a uma suposta vida civilizada e sedentária.90 Mas, para entender como a

elite montevideana entendeu o levantamento das massas artiguistas, se nos for

permitido utilizar a palavra massas, Barrán e Nahum escrevem que na “medida que la

Revolución comenzó a avanzar, y por su misma dinámica, a escapar del control de sus

primeros creadores, a medida que las multitudes urbanas y luego campesinas

empezaron a interesarse y a vivir el proceso revolucionario, los patriciados temieron el

resultado final de un cambio que habían iniciado y escapaba rápidamente a su

control”.91 E é esta a conclusão de Herrera y Obes. A Revolução de Maio fez a guerra,

pois a necessitava para expulsar o inimigo espanhol. Mas a própria dinâmica da guerra

deu poder a caudilhos que a desvirtuaram, tornando-a uma batalha de interesses

pessoais na busca pelo poder.

Donghi, em Revolución y Guerra, aponta como a guerra criou diversas

oportunidades de ascensão social, elevando diversos indivíduos a posições de

liderança. O autor também indica como, naquele contexto, o poder seria mais

acertadamente medido pela quantidade de homens que determinada posição poderia

mobilizar.92 Entre outros possíveis exemplos, foi assim que Artigas pôde ascender à

posição de líder regional. Abandonando um modesto cargo burocrático de

Montevidéu, Artigas lançou-se à revolução, na qual foi elevado ao título de ‘Protector

de los Pueblos Libres’.93 E a carreira da revolução igualmente conduziu Manuel Oribe

90 BARRÁN; NAHUM, op. cit., p. 107. 91 Ibid., p. 90. 92 HALPERÍN DONGHI, Tulio. Revolución... 93 BETANCUR, Arturo Ariel. En busca del personaje histórico José Artigas: breve análisis de su relacionamiento con el núcleo español de Montevideo. In: FREGA, Ana e ISLAS, Ariadna. Nuevas miradas en torno al artiguismo. Montevidéu : Faculdad de Humanidades y Ciencias de la Educación, 2001. pp. 247-260.

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e Fructuoso Rivera para posições de destaque. Já na década de 1830, com um Uruguai

recentemente independente, estes serão, respectivamente, os principais condutores dos

partidos blanco e colorado que iniciam o conflito civil conhecido por ‘Guerra

Grande’. Herrera y Obes escreve justamente quando os colorados expulsam das suas

filas o caudilho Rivera. É neste ponto, então, que o conflito entre poderes pessoais

caudilhescos se transforma, enfim, em uma luta entre a revolução e a contra-revolução,

entre a civilização e a barbárie:

Bien, pues, colocado el General Rivera, al frente de nuestras masas; constituido en su órgano, y en su representante inamovible; dueño del país desde el gobierno hasta el último peón de estancia; con ese carácter inconsecuente y desarreglado; con ese corazón sin fe, y con esa inteligencia desilustrada; con todas sus habitudes indolentes, y todos sus celos y susceptibilidades, ¿qué podría ser, decimos, el General Rivera, sino el disolvente más eficaz en la organización social? (...) Ausente del país el General Rivera, queda perfectamente definido el principio de cada uno de los dos contrarios en la presente guerra: Rosas por una parte invadiendo con el principio bárbaro; el gobierno de la República resistiendo, por otra, con el principio civilizador.94

Assim como a Geração de ’37 em geral, Herrera y Obes constrói uma versão

própria para o movimento de independência e para a Revolução. Como foi apontado

ao início deste capítulo, este grupo considerava a si mesmo um avanço intelectual

frente aos antigos unitários e demais atores originais da Revolução de Maio e da

inócua organização estatal da década de 1820. Sua versão, já distante dos termos

iluministas que legitimaram os primeiros unitários, conferiu um sentido histórico tanto

para o Prata quanto para seus próprios idealizadores, erguendo uma hierarquia social

baseada em preceitos intelectuais altamente excludentes. Com a purificação política do

Partido Colorado, este receberia a missão de eliminar os caudilhos da cena platina,

conduzindo sua sociedade a um próximo estágio rumo ao progresso: Rivera, Lavalleja, Oribe, Rosas, todos estos nombres en quienes está el pueblo acostumbrado a ver personificadas las guerras que lo despedazan, no son sin embargo sino la expresión inmediata de la época y de la sociedad en que figuran. Así, pasada la época, y purificada la sociedad, ninguno de esos nombres podrían reproducirse en ella. Así también, la

94 HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., pp. 42/54.

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desaparición de uno de esos hombres en la escena política (...) es un gran paso que da, sin saberlo, la sociedad entera al término de su situación (...).95

2.4 A RESPOSTA BLANCA DE BERNARDO PRUDENCIO BERRO

Em resposta ao texto de Herrera y Obes, Bernardo Prudencio Berro (1803-

1868) publicou seu revide no El Defensor de la Independencia Americana entre 20 de

dezembro de 1847 e 17 de março de 1848.96 Se fizermos uma breve revisão da sua

trajetória, já o encontraremos integrando a redação do La Diablada, uma publicação

anti-riverista, em 1832. Desde o início, esteve ao lado de Oribe e, representando o

partido blanco, ingressou na Cámara de Representantes em 1837.97 Morou do Rio de

Janeiro entre 1842 e 1844, ano em que retornou ao Uruguai para unir-se mais uma vez

a Oribe no ‘Governo del Cerrito’, desempenhando o cargo de Ministro de Gobierno

desde 1845. Será presidente da república entre 1860 e 1864. Terminará sua vida na

prisão do cabildo da capital, assassinado em 1868 após uma mal-sucedida tentativa de

golpe de Estado.

Enquanto se ateve a contra-argumentar o artigo colorado, Berro deu às

palavras revolução e civilização um sentido diverso da interpretação colorada,

iniciando uma competição estratégica de conceitos e história. Uma análise atenta à

versão blanca de civilização percebe que Berro não se destinava a delimitar uma idéia

acabada ou sistematizada, seu objetivo era muito mais modesto, concentrava-se apenas

em refutar ponto a ponto os argumentos de Herrera y Obes.

Ao ler essa precedente publicação colorada no jornal El Conservador, de que

forma poderia Bernardo Berro defender a posição do seu partido? Atribuindo a missão

civilizadora aos blancos e a si mesmo, declara: “¿Cómo podrían ellos, si obrasen de

buena fe, arrogarse una misión que nos pertenece evidentemente y creerse con una

95 HERRERA Y OBES (5) 96 Ibid., pp. 67-155. 97 Equivalente à Câmara dos Deputados.

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actitud que por precisión han de ver que no tienen?”, “¿cómo se puden comparar con

nosotros en poder y en justicia?”98 Mas é importante frisar que Berro tem uma outra

versão para a civilização. Aqui, ela enfatiza um sentido de coesão social (justamente o

que, na opinião de Sarmiento, falta aos gaúchos), algo que mantém as pessoas unidas

em torno de objetivos ou interesses comuns. Assim, como veremos no parágrafo

seguinte, qualquer sociedade que atenda a esta qualidade, mesmo que considerada

tecnologicamente ou socialmente atrasada, é uma civilização.

No siempre han estado de acuerdo los filósofos, los políticos, acerca de lo que debía entenderse por civilización. Algunos la han hecho consistir toda en la cultura del entendimiento, y otros en la perfección del estado social. (...). Pero cualquiera que haya sido la diversidad de modo de entender la civilización, hoy parece ya convenido que ella abraza ambos desarrollos, el social y el intelectual. En este concepto diremos que la civilización no es formada de la superabundancia de sabios y artistas y del exceso de establecimientos literarios, sino de aquella suma de conocimientos, de instituciones y de costumbres propias para llenar los altos fines del progreso y de la felicidad de las naciones99.

Uma civilização deve ser julgada por aquel modo de ser social en que están constituidos, aquel conjunto de ideas y creencias arraigadas en la generalidad, y aquellos hábitos y movimientos que forman la vida social. Donde esos conocimientos, esas instituciones y esas costumbres correspondan a los fines que más arriba hemos expresado, allí habrá verdadera civilización.100

Esta interpretação de civilização admite uma certa diversidade de formas, pois

é um modo de ‘ser social’ até certo ponto genérico, no qual é possível se organizar um

grupo de pessoas. Civilização é coesão social. Barbárie é dissociação, o que lembra um

pouco as idéias do seu inimigo Sarmiento a respeito do deserto: grandes distâncias e

pouca população como causas da baixa associação entre os homens, o que os conduz a

um individualismo egoísta e bárbaro. Ainda que se deva ter cuidado nesta

aproximação, Berro não discorda totalmente a respeito do entendimento do que seria

uma civilização ocidental:

98 Ibid., p. 102. 99 Ibid., p. 128. 100 Id.

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El mediodía de la Europa, en que la civilización se hallaba domiciliada con el Imperio Romano, después de la irrupción de los pueblos del Norte se vio sujeto a una larga lucha social con la barbarie, que éstos habían introducido. Al cabo terminó la lucha por una combinación de elementos en que figuraban, de una parte los suministrados por el cristianismo, de otra los que quedaron de la sociabilidad romana, y de otra los que trajeron los bárbaros y permanecieron después del choque. Verificada esta fusión, cesó la pugna, y la civilización con el complejo de los elementos nuevamente combinados empezó a desarrollarse, y a avanzar en su carrera más o menos rápidamente, según las circunstancias de los pueblos en que había definitivamente prevalecido. Desde entonces en la Europa dejó de existir la barbarie; puesto que como hemos dicho los mismos elementos introducidos por ésta que habían quedado, se amalgamaron con los demás elementos que entraron a servir para el nuevo desenvolvimiento de la civilización.101

Na opinião de Berro, a civilização européia já estaria consolidada. A luta que

nela persiste não é a que se trava contra a barbárie, mas a do saber contra a ignorância,

pois

esta lucha es inseparable de la existencia de las sociedades humanas; porque siempre ha de haber preocupados e ignorantes en abundancia aun en las naciones que más lleguen a civilizarse, y por bien organizadas que estén, aquellos han de lograr alguna influencia y han de oponerse muchas veces a los que más saben (...) No se puede, pues, decir que una nación de las de Europa es bárbara porque reine en ella más que en otra la ignorancia y las preocupaciones. Se dirá que es atrasada, poco culta; pero de ahí no se puede pasar.102

A barbárie, para Berro, está extinta entre os europeus ocidentais. Nem estes,

nem os americanos descendentes de espanhóis podem regredir ao passado. A

civilização existe, visto que a coesão social, aquilo que torna a vida em sociedade

possível, está consolidada pelo interesse comum. E por mais ignorantes que possam

ser os criollos, isto não os torna menos civilizados, pois, como imigrantes, trouxeram

consigo os mesmos princípios de organização social que davam sentido à civilização

do velho continente:

Nuestros padres vinieron de la Europa, trajeron consigo esa misma civilización que hay en aquella parte del mundo. Que fuesen más ignorantes que otros europeos no lo negamos; y que sujetos con su generación al régimen colonial, participase la sociedad que fundaron de todas aquellas cualidades que son propias de semejante modo social de existir, tampoco lo hemos de dar por incierto: pero sí nos opondremos a pasar porque perteneciesen ellos y esa sociedad a la barbarie.

101 Ibid., p. 129. 102 Ibid., p. 130.

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¿Dónde está pues esa barbarie hacia la cual dicen los salvajes unitarios que queremos volver? (...) ¿No somos cristianos como los europeos, no tenemos un idioma europeo, no pertenecemos al mismo tipo que los europeos, no es en fin nuestra civilización lo mismo que la de ellos?103

E é a partir daqui que Berro se opõe com maior intensidade à versão

colorado-unitária, pois mesmo que sejam civilizadas ambas as partes em conflito, em

apenas uma está a inteligência e a justiça. Destarte, os blancos nada estariam fazendo

além de defender a ilegalidade da renúncia de Manuel Oribe, forçado a tal ato por um

golpe de estado colorado. Neste sentido, os blancos se consideram os ‘Defensores de

las Leyes’, título utilizado na luta por um estado de direito e de ordem social. Este

título se identifica também com o recebido por Rosas anos antes, o de ‘Restaurador de

las Leyes’. Como já frisava Pivel Devoto, blancos e federais consideravam-se

protetores da ordem, representando um anseio à antiga paz e estabilidade colonial.

Mas atribui-se o barbarismo da campaña aos excessos violentos dos gaúchos?

A isto ele pergunta se não seria igualmente bárbara, então, a França revolucionária?

Existiram excessos durante o Regime do Terror, mas isso não significaria que a França

fosse bárbara. Nela, como em tantos outros lugares, também conviveriam elementos

ignorantes, violentos, sábios e civilizados. A Europa não é um exemplo de perfeição

civilizada, como querem os unitários, nela também haveria um “pouco de barbárie”.

Berro defende que, ao não se darem conta disso, os unitários e colorados imaginam

ser possível copiar modelos europeus e transportá-los ao caso americano.

A escolha da França como exemplo tem um duplo sentido. O primeiro, por

sua revolução servir de inicial modelo europeu às ambições unitárias e coloradas;

segundo, por este Estado europeu anteriormente organizar dois bloqueios navais ao

porto de Buenos Aires, e, depois, por se posicionar ao lado de Montevidéu na guerra

civil. Mas, além disso, a existência de um grande número de imigrantes franceses,

estimados em 13922 para o intervalo entre 1833 e 1842,104 muitos armados em defesa 103 Ibid., p. 131. 104 OTERO, H. A imigração francesa na Argentina: uma história aberta. In: FAUSTO, B. (org.). Fazer a América. São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 2000. p. 134.

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de Montevidéu contra as forças de Rosas e Oribe, igualmente gerava preocupações no

lado blanco da questão. Desta forma, ao atacar a França, Berro estava minando a

sustentação da legitimidade do ‘Governo de la Defensa’. Segundo ele, o erro dos

unitários estaria em transpor para a América um modelo de revolução que seria

inadequado até mesmo para a Europa. A extremamente condenável centralização de

poder em que teria caído a França seria uma terrível inspiração para os igualmente

centralizadores unitários.

Perseguindo este mesmo objetivo de delatar as falhas do inimigo, mas neste

caso em correspondência particular, Berro chega a condenar o romantismo como

movimento estético, mas também como uma eventual versão política. Os românticos,

igualmente identificados com a França, são acusados por seu ar “afetado” de pouca

racionalidade, pois abusam da estética das emoções, tornando-se pouco lúcidos na

administração do estado e das idéias. Este blanco que prega um frio cálculo e

raciocínio nas ações, escreve sobre o “uso frecuente e inmoderado que hacen de la

poesía y de los arbitrios oratorios los escritores salvajes unitarios, en las discusiones

más graves, y en las materias que piden una reflexión más fría y reposada.”105

Colorados e unitários costumavam trazer para si a autoridade civilizadora da

arte.106 Sarmiento denuncia que Rosas não teria nenhum escritor ou poeta ao seu lado,

e que boa parte destes artistas haviam fugido da opressão, cruzando o Prata em direção

ao refúgio de Montevidéu.107 “Desde 1836 empezaron a llegar a Montevideo de

emigrados, y mientras Rosas dispersaba la población natural de la República con sus

atrocidades, Montevideo se agrandaba en un año hasta hacerse una ciudad floreciente

y rica, más bella que Buenos Aires y más llena de movimiento y comercio”.108 De

certa forma, é “bonito” ou “esteticamente bem definido” ser inimigo Rosas. Os

105 HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., pp. 67-68. 106 O maior destaque era dado à literatura, mas, de forma mais modesta, poderia aparecer em outros campos. Alberdi era também um aclamado pianista. KATRA, op. cit., p. 73. 107 SARMIENTO, op. cit., p. 231. 108 Ibid., p. 236.

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blancos não ignoram esta argumentação unitária, e não abdicam da tentativa de

enfraquecê-la. Vejamos como Berro descreve um romântico, em geral visto como

colorado ou unitário:

Observemos a un romántico. Va por la calle, es decir, por un paraje público: lleva la vista baja, distraída y lánguida; sus pasos son flojos, su andar lento, su cuerpo caído y como abandonado a sí mismo; el sombrero echado para atrás tapando bien la nuca y descubriendo la frente vaporosa y ancha; el pelo partido y arrojado hacia abajo por entrambas sienes, bien alisado, bien largo y pendiente a manera de sauce llorón y en la punta doblado para adentro contra lo natural, y contra la hermosura, una buena barba unida, y espesa, bigotes y pera, el cuello de la camisa también doblado para abajo; el traje bien escurrido; todo manifestando un abandono, un desaliño, una melancolía mística que da lástima. Y bien, este romántico será algún profundo varón, algún nuevo Rousseau, algún nuevo Young. Pues, no, señor, es un mozalbete en cuya alma rebosa la travesura y la vivacidad, es un estudiante desaplicado y botafuego que va a una diligencia de prisa; pero es preciso afectar ese exterior de negligencia, esa falta de compostura y arte, aunque bien sabe él que esa afectación es toda puro arte, y pura compostura. Finge pues, lo que no es; y he aquí el principio de la hipocresía.109

O movimento literário romântico tinha como tarefa demolir a “decrépita”

tradição espanhola. A luta entre romantismo e o classicismo eram uma continuação do

movimento de independência. Seus integrantes defendiam o romantismo como o

liberalismo na literatura e, por este motivo, costumavam denominar-se ‘liberales’.

Seus projetos literários e políticos andavam juntos e se confundiam. A Crítica de

Buenos Aires os chamava de ‘romanticistas’, mas eles preferiam reconhecer-se por

‘socialistas’ ou ‘ecléticos’.110 Sua maior influência era a França, mas após as

revoluções de 1848, não apenas abandonaram a palavra “socialismo”, como ainda

defendiam uma limitação dos exageros literários e do pensamento político do início da

Revolução Francesa. Desta forma, a referência principal também é transferida da

França para o modelo Norte-Americano.

Esteban Echeverría publicou sua primeira obra, Elvira o la novia del Plata em

1832. Dois anos depois, lançaria a primeira poesia de clara orientação romântica da

109 BERRO, B. P. Escritos selectos. Montevidéu : Ministério de Instrucción Pública y Previsión Social, 1966. p. 82. 110 KATRA, op. cit., p. 102.

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região: Los consuelos. Bartolomé Mitre, que igualmente se destacava como poeta,

afirmava que a obra de Echeverría representava uma “Revolução Literária”.111

Echeverría, introdutor do romantismo no Prata, também recebia uma descrição

estereotipada dos demais:

Contrastando con esta imagen de cantor para los gauchos estaba la perspectiva opuesta de Echeverría como un poeta refinado y melancólico con un marcado sentimiento de superioridad y aun de esnobismo. Los observadores contemporáneos lo calificaban de meditabundo y altanero. Esta actitud derivaba en parte de los malestares físicos que lo debilitaban y de sus tendencias neurasténicas. Según la amable descripción de Gutiérrez, Echeverría proyectaba una imagen refinada de sí mismo, por su elegante vestimenta, traída de París, y por su reiterado gesto de colocarse un monóculo sobre el ojo para reconocer a las personas con quienes se cruzaba por la calle. En muchos aspectos era el poeta latinoamericano paradigmático cuyos gustos refinados y modos de ser sensitivos chocaban contra un entorno subdesarrollado.112

Ao contrário de Buenos Aires, Montevidéu parecia ser o lugar ideal para a

poesia, e, incentivando sua produção, ali foram organizados dois importantes

concursos que mobilizaram boa parte da intelectualidade desta cidade em 1841 e

1844.113 Um dos jurados destes concursos foi Florencio Varela que, membro de uma

geração anterior de unitários, ainda se apegava à estética neo-classicista. Mais do que

isso, Varela se declarava anti-romântico, julgando o valor das poesias mais por seu

conteúdo político militante do que por regras estéticas para ele um tanto duvidosas.114

Isto explica uma certa aproximação literária entre o unitário Varela e o blanco-federal

Berro. Este último escreve uma poesia especialmente dirigida ao amigo. Sua intenção

seria alertar Varela contra os perigos das idéias unitárias, e, para isto, recorre ao estilo

neoclássico para se expressar. A resposta não apenas contém uma reafirmação destas

idéias, como ainda vem acompanhada de sugestões ou reparos estéticos à poesia do

colega.115

111 Ibid., p. 53. 112 Ibid., p. 61. 113 Ibid., pp. 110-111. 114 Ibid., p. 110. 115 BERRO, op. cit., pp. 7-27/341-345.

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Como foi exposto anteriormente, Varela representava um tipo de unitário que

a Geração de ’37 pretendia suplantar. O unitarismo não era originalmente apegado ao

romantismo, ingrediente apenas adicionado durante a segunda metade da década de

1830. Querendo romper com esta figura ultrapassada, Sarmiento também descreve um

destes típicos unitários antigos: Tiene tal fe en la superioridad de su causa, y tanta constancia y abnegación para consagrarle su vida, que el destierro, la pobreza ni el lapso de los años entibiarán en un ápice su ardor. En cuanto a temple de alma y energía, son infinitamente superiores a la generación que les ha sucedido. Sobre todo, lo que más les distingue de nosotros son los modales finos, su política ceremoniosa y sus ademanes pomposamente cultos. En los estrados no tienen rival y no obstante que ya están desmontados por la edad son más galanes, más bulliciosos y alegres con las damas que sus hijos.116

Em Santiago, Sarmiento se envolveu em uma disputa estética nos periódicos

locais, uma acalorada discussão pela defesa do movimento romântico contra o

neoclassicismo do venezuelano Andrés Bello, então morador desta cidade.117 Este

enfrentamento misturava constantemente a arte com a política. Mas ainda em 1837,

Echeverría já tentava internalizar sua sede romântica

por el enfrentamiento y compartían el idealismo en su disposición a desafiar a cualquier aspecto de la realidad que no se elevara a la altura de sus altas expectativas. Compartían su conciencia de que ellos, la juventud enérgica del país, tenían la obligación de rebelarse contra los esquemas arcaicos. En pocas palabras, Echeverría había logrado instilar en ellos la indignación frente a las injusticias y el compromiso de luchar a favor del cambio social, económico y político.118

Invertendo mais uma vez a versão colorada, Berro atribui ao romantismo um

germe de manutenção do caudilhismo. Ainda em 1838, já alertava seu irmão Adolfo

sobre a adoção das “exterioridades del romantismo” pelos “escritores y trompeteros”

colorados.119 “¿Qué extraño es pues que propendiendo a la anarquía literaria, se

116 SARMIENTO, op. cit., p. 122. 117 KATRA, op. cit., p. 118. 118 Ibid., p. 64. 119 BERRO, op. cit., p. 68

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convierta ahora a la [anarquia] política?”120 A versão do “herói romântico” estaria,

para Berro, alimentando o poder carismático do caudilho, sendo muy propia para deleitar la imaginación y cautivar la voluntad de los que suspiran por los extremos, que en todo buscan la hipérbole; de los que desechan el análisis, para regirse por las impresiones, que creen en las misiones, en los profetas, que se abstraen, se remontan y abren tamaños ojos para saciarse en la contemplación de las grandezas materiales y espirituales, sean buenas o sean malas. La gloria, la brillantez, las dimensiones colosales de un hombre de esa especia; la grandeza de sus hechos, por la extensión que abarcan, puede arrebatar la mente de muchos jóvenes, e inducirlos a pretender figurar en el grande espectáculo que los deslumbra. Un hombre como Rivera, (...) que se rodea Del aparato de un misionero regenerador, un hombre así, puede muy bien ser el ídolo de un romántico.121

Se os colorados têm na Europa um modelo de arte, civilização e revolução,

nada melhor do que tê-los ao seu lado lutando em Montevidéu. Não é à toa que

Sarmiento considera os unitários e colorados como membros de um “partido

europeu”, pois estes se sentem condutores de uma civilização e de uma revolução

européia na América. Mas esta aliança entre americanos e europeus tem outros

desdobramentos. O já citado blanco Antuña denuncia em seu diário os métodos de

arrecadação de fundos do ‘Governo de la Defensa’, vendendo ou arrendando

propriedades ou permissões de exploração aos imigrantes europeus: El Gobierno este, vendió últimamente el Fuerte á D. Francisco Hocquard (ingles) en ochenta mil pesos, (...) Está de antes vendida la Aduana a Lafone en sesenta mil pesos plata y 150 pesos creditos contra el Gobierno (corren hasta el 5 y 6 p%) con parte de retrovendendo en dos anõs... Nose quanto se pagará de alquiler á Mr. Purvis por el alquiler del antiguo Parque de Ings. Donde está Policia y por el de la plazoleta que alguna renta há de producir. El hospital del Rey lo compraron unos panaderos franceses; y és notable que estos y Pernin, panadero tambien, fueron los que mas hicieron por el armamiento de los franceses; acaso por que lo que habían de entregar á plazos les hacía mas cuenta pagarlo en el pan de raciones para sus paisanos, pues aquellos son los proveedores. El teatro lo vendió el Gobierno á Domº Correa (oriental) y al portugues Figueira, que revendieron á unos franceses. La plaza no se ha vendido todavía; pues dicen que Lafone que remató la Isla de Lobos por quince años y el Mercado, ó los Mercados, por el mismo tiempo, ó poco menos, compró la Isla de Gorriti en... doscientos patacones!!! 122

120 Id. 121 Ibid., pp. 70-71. 122 ANTUÑA, op. cit., p. 492. Grifo do original.

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127

Assim, se acreditarmos na descrição blanca, temos um ‘Governo de la

Defensa’ sustentado economicamente por estrangeiros. A isto somamos não somente

os batalhões armados de franceses, mas a crença unitária e colorada de representarem

na América a revolução e a civilização européia: “¡La sola manía en que tantos dieron

de modelar nuestra revolución emancipadora por la revolución francesa, adoptando sus

principios impíos y antisociales, cuando tanto bueno había que imitar en la patria

americana de Washington!”.123

Em oposição ao “partido europeu”, o “partido americano” buscava

legitimação em um certo “americanismo” cujos traços farão, mais tarde, a alegria dos

historiadores revisionistas platinos.124 Berro acredita que os estados europeus abusam

da civilização, escondendo nesta palavra uma série de preconceitos contra os países

latino-americanos.125 Num curioso “anti-imperialismo” da primeira metade do século

XIX, este blanco pergunta: “¿Ignoraría sobre todo que la civilización y el cristianismo

en manos de poderes ambiciosos, se han convertido siempre en medios humanos de

conquista y opresión? No, la India y el África, la Oceanía y la América le han de haber

mostrado precisamente cómo se ha hecho servir a la civilización y al cristianismo de

instrumentos de iniquidad, y de vehículos de esclavitud”.126 A “influencia civilizadora

de los cañones europeos”127 é colocada contra uma resistência americana a ser

valorizada pelos revisionistas, momento em que se faz um reposicionamento das

figuras de Rosas, Oribe, Artigas, entre outros caudilhos, até então consagradas

negativamente por uma espécie de “história oficial” mitrista e sarmientiana que se

consolidara nas últimas décadas do XIX.128

123 HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., p. 119. 124 CHIARAMONTE, J. C. En torno a los orígenes del revisionismo histórico argentino. In: FREGA, Ana e ISLAS, Ariadna. Nuevas miradas en torno al artiguismo. Montevidéu : Universidad de la República, 2001. p. 29-61. 125 HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., pp. 110-111. 126 Ibid., p. 116. Grifo do original. 127 Ibid., p. 118. 128 CHIARAMONTE, op. cit.

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Após matizar a oposição entre civilização e barbárie, Berro continua sua

argumentação tentando demonstrar como a separação extrema entre a campaña e a

cidade é uma premissa falsa. Ao contrário do que poderiam representar os cercos a

Montevidéu, Berro encontraria uma permeável fronteira entre esses dois modelos

opostos:

Es tanta la relación y la mezcla entre campo y ciudad, que muchas veces una misma familia abraza hombres de una y otra clase, viéndose con frecuencia abrazarse al hermano de poncho y chiripá con el hermano de frac y corbatín; ni es raro sino muy común también que un mismo individuo aparezca ejerciendo ambas profesiones, y siguiendo ambas vidas; viéndosele ya con el lazo en la mano y en traje de ganadero, correr tras el animal que quiere sujetar, ya en medio de los círculos más cultos de la sociedad presentarse vestido con elegancia cortesana, y mostrar unas maneras y una expresión propias de un fino trato de gente y de un entendimiento bien cultivado por la educación y el estudio.129

Com isto, Berro nos traz algumas imagens da diversidade de opções que uma

mesma família poderia ter naquela sociedade, ou como seus laços de aliança

ultrapassavam a divisão construída entre os modelos civilizado e bárbaro. Entretanto,

isso não se dava apenas na fluidez dos grupos humanos, o indivíduo também recebia

seu destaque ao ser mostrado como um hábil transgressor de fronteiras. Nas palavras

do seu adversario, Manuel Herrera y Obes, Rivera era o “mejor jinete de la República

(...) el mejor baqueano (...) el de más sangre fría en la pelea, (...) el más generoso y el

mejor patriota”.130 O caudilho, perante os homens do campo, aparece como o “melhor

gaúcho”. Mas, reservando a etiqueta e as boas maneiras a determinados interlocutores,

Rivera também conseguia ser “de buen personal, carirredondo y de bastante

desembarazo y urbanidad (...)”.131 No exemplo de Artigas,132 os “contrabandistas de

129 HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., pp. 137-138. 130 Ibid., p. 38. 131 LARRAÑAGA, D. A. Diario del Viaje de Montevideo a Paysandú. Montevidéu : Ministerio de Transporte y Obras Publicas e Instituto Nacional del Libro, 1994. p. 84. 132 Artigas “conoce mucho el corazón humano, principalmente el de nuestros paisanos, y así no hay quien le iguale en el arte de manejarlos”. Ibid., p. 78.

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129

culturas” eram os capazes de construir gestos e discursos diferentes de acordo com o

público que os ouvia.133

Por fim, Berro conclui que seus rivais pretendem tomar para si o papel de

revolucionários. Neste projeto civilizador unitário e colorado estão a arte, a revolução

e a Europa:

Los salvajes unitarios al instante formalizan su programa. El 25 de mayo es convertido en una deidad a la que dan atributos de su invención. Esa deidad es menospreciada, injuriada por los federales. Ellos son los sacerdotes de su culto, sus fieles servidores y los encargados de vengarla. La poesía y la prosa se encargan de embellecer esta ficción. El lábaro sagrado de Mayo tremola por los aires, y bajo el pabellón dominante del extranjero que invade el suelo americano, va a estimular con su vista las hazañas de los auxiliares de la Francia.134

2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, foram acima brevemente expostas algumas idéias dos Estudios sobre la

situación de Manuel Herrera y Obes vindos das páginas do El Conservador,

relacionando suas idéias com outros autores em suas preocupações em comum. Como

resposta, estivemos com o blanco Bernardo Prudencio Berro e seu texto de réplica

encontrado no El Defensor de la Independencia Americana. Do conflito de idéias entre

estes dois indivíduos representativos dos grupos políticos que integram, foram

apresentadas interpretações opostas dedicadas à Civilização e ao conseqüente papel

adquirido nesta pela Revolução, dando uma amostra de como estas poderiam ser

entendidas naquele contexto.

Manuel Herrera y Obes se encontrava mais alinhado à tendência neo-unitária de

Sarmiento. Distanciando-se da tendência de Alberdi de fusão partidária, atacou

blancos e federais como reacionários, entendendo-os como caudilhos que perpetuavam

a cultura nefasta do antigo-regime espanhol. A essência do movimento de

133 DE TORRES, M. I. Discursos fundacionales: nación y ciudadania. In: ACHUGAR, H.; MORAÑA, M. (org). Uruguay: imaginarios culturales. Montevidéu : Editora Trilce, 1998. p. 133. 134 HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., pp. 85-86.

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independência se encontraria na Revolução, algo inacabado e reivindicado por

unitários e colorados. Berro, ao contrário, procurou alertar seus leitores contra o

pouco apego à Razão contida no texto colorado, enquadrando-o em uma corrente

“afetada” do romantismo. Contrariando a afirmação de Herrera y Obes que relacionava

o Partido Blanco ao caudilhismo e à desordem, Berro respondeu com a idéia de que os

blancos também buscavam a paz e a ordem, mas uma ordem diversa da colorada. Os

‘Defensores de las leyes’ não cogitavam um retorno ao período colonial, mas não

construíam uma ruptura tão drástica quanto a desenvolvida por seus rivais.

A aliança entre federais e blancos seria desfeita a partir do reaquecimento dos

conflitos internos argentinos que resultaram no enfraquecimento do governador Rosas,

posteriormente derrubado por Justo José de Urquiza em 1852. Nesta data, Urquiza

aparecera com uma proposta, depois fracassada, de união entre os partidos. E, ainda no

ano anterior e com a paz já celebrada na Banda Oriental, blancos e colorados já se

esforçavam por arquitetar a chamada ‘Política da Fusão’, uma tentativa que tinha

como objetivo apaziguar as desavenças das décadas anteriores, propondo uma

reorganização da política para o Uruguai. Berro seria um dos principais articuladores

deste movimento, chegando até mesmo a propor a extinção dos partidos e a proibição

do uso das suas divisas.

“O que é nossa grande revolução, quanto a idéias, senão uma face da revolução

da França?”135 Não foi o objetivo deste capítulo determinar a exatidão da frase anterior

de Alberdi, mas apenas enquadrá-la no interior de um discurso legitimador vinculado a

um contexto de conflitos civis, observando como estas discussões ocuparam um

destacado espaço na imprensa daquele período. Porém, para desgosto blanco, a versão

colorada se consolidará na segunda metade do século XIX. Após uma série de vitórias

decisivas do partido colorado, os blancos serão rebaixados a um segundo plano de

política local. Este partido apenas reassumirá a presidência da república em 1958, já

convivendo com o chamado revisionismo historiográfico platino. Assim como 135 ALBERDI, Fundamentos... op. cit., p. 70.

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ocorrerá na vizinha Argentina em relação aos unitários, a disciplina História estará

inicialmente tomada por membros do Partido Colorado, cuja versão predominará até

meados do século XX.

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3 ENCONTROS DE (E COM) JOSÉ ENCARNACIÓN DE ZÁS E FRANCISCO

SOLANO ANTUÑA

Este terceiro capítulo trabalha, principalmente, duas fontes, os Apuntes

curiosos para mis hijos do colorado José Encarnación de Zás, e o diário do sítio a

Montevidéu escrito pelo blanco Francisco Solano Antunã. Doutor em direito pela

Universidade de Buenos Aires e Senador no Uruguai, este último teve participação

política ativa e influente, mas, assim como para a fonte em que encontramos Zás, seu

texto não pretendia participar do campo de discussão que foi explorado no capítulo

anterior. Assim sendo, o tipo de informação que dele se extrai acaba gerando um outro

tipo de abordagem, em que se encontram menos idéias ou propostas, mas encontros

entre indivíduos que expõe ou contradizem muito do que fora escrito anteriormente

por Herrera y Obes. Não é o caso de encontrar naqueles dois indivíduos exemplos

planos de uma mentalidade platina, mas entendê-los como pessoas que

compartilhavam certos elementos culturais que circulavam no Prata, construindo em si

versões particulares de interpretação. E enquanto Herrera y Obes interpretava a

história platina da Revolução de Maio até a expulsão de Rivera do Partido Colorado

durante a ‘Guerra Grande’, Zás, que escreveu suas memórias em 1851, narra alguns

eventos do artiguismo e do início das lutas partidárias a partir da sua própria

experiência, destacando seu envolvimento em acontecimentos que considerou

importantes. São textos diferentes, mas que dialogam com uma mesma conjuntura

histórica. Entretanto, Antuña está diretamente envolvido com o cerco a Montevidéu

que se iniciou em 16 de fevereiro de 1843. Ao longo de mais de quatro anos de

registro, este doctor blanco se empenha em apresentar o que considerava importante

em cada um dos seus dias vividos em torno à ‘Guerra Grande’, da qual se extrai a

construção de uma imagem de Fructuoso Rivera não muito diferente da apresentada

por Herrera y Obes. Antuña também nos proporciona uma versão do próprio sítio à

capital uruguaia, nem tão rígido quanto se poderia supor à primeira vista.

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3.1 – A TRAJETÓRIA DE JOSÉ ENCARNACIÓN DE ZÁS

Por volta de 1851, José Encarnación de Zás concluiu seus Apuntes Curiosos

para mis Hijos, texto em que narra alguns acontecimentos que acreditava

interessantes, ocorridos desde suas memórias de infância até seus últimos anos de

serviços prestados ao Estado uruguaio. Nascido em 30 de maio de 1797, José

Encarnación de Zás foi batizado em Las Piedras, pouco ao norte de Montevidéu, no

atual departamento de Canelones, Republica Oriental del Uruguay. Era ainda criança

quando os ingleses desembarcaram pelo porto do Buceo (1807) em uma das duas

tentativas de controlar o estuário do Prata. Desde então, parece não ter se esquivado

dos desdobramentos políticos e militares que resultaram na independência do Uruguai

em 1828. Viveu as intensas disputas que se seguiram entre blancos e colorados, assim

como o prolongamento da rivalidade entre federais e unitários. Dentre os muitos com

quem cruzou, esteve com Artigas, Lavalleja, Rivera e Oribe.

Nos Apuntes existe um intervalo considerável de tempo entre os eventos

narrados e a escrita do texto. A interpretação de 1851 tende a prevalecer frente ao

vivido nas décadas anteriores. Nas suas memórias, Zás analisa condutas passadas

segundo valores construídos através de uma trajetória de vida narrada e revista. Esta

fonte nos permite discutir alguns dos elementos de que ele dispunha na avaliação

hierárquica dos demais e de si mesmo, atendendo, principalmente, àqueles

relacionados à sua participação e compreensão acerca de instâncias estatais e da

dinâmica da guerra em alguns momentos da história da Banda Oriental, transitando

entre os anos que se desenvolveram entre o artiguismo e o fim da ‘Guerra Grande’.

Ainda que este contexto inclinasse a população local a uma crescente divisão entre

facções políticas, sua narrativa escapa da propaganda abertamente partidária,

contrastando com a que fora anteriormente publicada por Manuel Herrera y Obes.

Assim como este, Zás também era colorado, e manteve-se fiel ao seu partido durante a

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guerra civil. Porém, seu texto era dedicado a seus filhos, e não a uma publicação

qualquer. Desta forma, apesar de ambos tratarem de espaços temporais semelhantes,

do início do processo de independência até o contexto da ‘Guerra Grande’, Zás oferece

uma oportunidade diferenciada de abordagem.

Filho de pai e mãe espanhóis que desembarcaram na América vindos da Galícia

em 1794, José era o mais novo de sete filhos, o único nascido na América. Sua irmã

Manuela morreu ainda jovem antes do pai, mas as outras duas filhas contraíram

matrimônio. Maria Antonia casou-se com um espanhol proprietário de uma olaria em

1805, enquanto que Josefa o faz com um brasileiro durante a ocupação portuguesa na

Província Cisplatina em 1822. Felipe tornou-se frade franciscano, enquanto que

Gabriel e Francisco constituíram novos ramos familiares com outros imigrantes e

descendentes da Galícia. Francisco, o mais velho, morreu sem filhos herdeiros apenas

três meses após o falecimento de Buenaventura, seu pai, deixando sua parte para seu

irmão mais novo José.1

Em 1807, José passou a estudar gramática latina. Três anos depois, foi admitido

por um curso de filosofia oferecido por uma ordem religiosa, caminho que abandonou

para tornar-se soldado nas lutas de 1811. Por orientação de seus irmãos e de seu pai,

largou as armas e tratou de aprender algum oficio, sendo aprendiz de Carpinteiro “de

fino” por nove meses.2 Logo retomou as armas e serviu como Auxiliar de Artilharia.

Posteriormente, aderindo ao esforço de guerra artiguista, conseguiu o que ele próprio

chamou de "primeiro emprego" em 1814, sendo responsável pela arrecadação de

impostos sobre as reses que entravam no mercado. Após onze meses nesta ocupação,

passou a desempenhar outras funções provisoriamente até que pela primeira vez se

ausentou da capital ao apresentar-se como voluntário ao destacamento de Colônia do

1 GALDARACENA, R. El libro de los linajes. Montevidéu : Editora Arca, 1978. 2 Para todos os trechos citados da fonte, manteve-se a grafia segundo a edição da Revista del Museo de Montevideo. “De fino” indica um serviço de carpintaria mais requintado, provavelmente para artigos de luxo. ZÁS, J. E. Memória autobiográfica de José Encarnación de Zás. Revista Histórica, publicación del Museo Historico Nacional:, Montevidéu : A. Monteverde & Cia, 1951. p. 125.

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Sacramento, porém continuou lidando com tarefas de arrecadação e envio de fundos e

rendas, desempenhando as funções de terra e do porto. Tornou-se Oficial da Aduana

(espécie de secretário) em Colônia e, já na época da invasão portuguesa desencadeada

pelo exilado D. João VI, ocupou-se em combater o contrabando. Foi demitido em

1817. Contando com apoio de amigos, tratou de unir-se às forças de Rivera que

estavam em luta contra os portugueses ainda sob o comando de Artigas. Foi designado

Administrador de Aduana em Maldonado, na costa leste, de onde foi novamente

deposto em dezembro de 1818 após a efetivação do controle português na região.

Desiludido, emigrou para Buenos Aires em 1819. Após pouco mais de oito meses,

retornou primeiramente à Colônia e, depois, rumou para Maldonado, onde iniciou uma

sociedade que estabeleceu uma loja de pulperia (espécie de mercearia) e um Cafe y

Cancha de Bochas, negócio que declinou após a retirada das tropas portuguesas e um

sucessível enfraquecimento das vendas. Com a independência brasileira, uniu-se aos

que viam neste episódio mais uma oportunidade de independência local. Ocupou

cargos na administração até março de 1824, mês da "entrada de los Ymperiales",

momento em que foi novamente afastado por ser "patriota", ou na sua pessoal

definição, um defensor da autonomia. Quatro meses depois, voltou a ser admitido,

retomando um combate ao contrabando. Com a passagem dos Treinta y Tres

Orientales, mais uma vez incorporou-se aos esforços de guerra. Desde esse

acontecimento, seguiu prestando serviços ao Estado até sua jubilación. Neste período

que se estende de 1825 até 1839, tomou parte das rivalidades entre Rivera, Lavalleja e

Oribe, e das lutas internas que ocorreram nas primeiras décadas desde a

independência. Sofreu represálias administrativas de uns e favores de outros,

dependendo de quem está no governo e de quem apóia. No interior destas disputas,

teve certa ascendência administrativa, foi chefe dos arquivos do Estado, mencionando

a existência de subordinados seus. Durante a presidência republicana ocupada pelos

blancos, estes não esquecem o vigor das alianças partidárias, e perseguem Zás

administrativamente. Se por um lado temos um homem inserido nas políticas

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partidárias e na hierarquia de alianças dos caudilhos, existe a construção da figura do

empleado, um tipo de burocrata, à qual Zás demonstra apegar-se no decorrer do texto,

chegando a mesmo a defender-se como um indivíduo fiel às suas funções, isento de

opções políticas que desvirtuariam seus serviços ao Estado. Defende-se dos que o

acusam de partidário colorado, mas ele mesmo desarma este seu argumento ao

defender Montevidéu do cerco contra os blancos durante a ‘Guerra Grande’ na década

de 1840.

José Encarnación de Zás segue ocupando-se de atividades públicas, mas, a

partir da sua jubilación3 de 1839, passa a ser menos detalhista, apenas citando outros

cargos que ocupou. Permaneceu ao lado dos colorados na Montevidéu sitiada da

‘Guerra Grande’. Foi Alcalde, primeiro como suplente e depois eleito em 1842, na

seqüência nomeado suplente de Representante pelo seu departamento, cargo que

ocupou em 1843 devido ao falecimento do titular. Seus relatos terminam em 1851.

Família, religião e tantos outros aspectos que consideramos cotidianos são raramente

citados, direcionando sempre seu texto a atos públicos. Casou-se em 27 de setembro

de 1826, morando dez meses em casa emprestada por um amigo. Sua primeira filha

morreu com apenas sete dias, e apenas outra é citada nas suas memórias.

Nas últimas páginas dos Apuntes, Zás faz um resumo da sua vida pública,

enumerando tanto os cargos quanto os valores por ele manejados que pertenceriam ao

que chama de Estado, no qual enfatiza um caráter público. Este “Resumen de mi vida

publica” parece ter sido retirado de algum documento anterior, pois indica que as

anotações acerca dos valores têm origem na sua documentação para a jubilación que

solicitou em 1839.4 O interessante é que, para este pedido, não um direito adquirido,

mas uma mercê requerida por serviços prestados, Zás reclama ao Estado uruguaio uma

3 Esta palavra em espanhol pode ser atualmente traduzida para aposentadoria, sendo utilizada com este sentido no Uruguai. Todavia, no momento em que está fora requerida por Zás, não carregava o sentido de seguridade social que recebe agora, mantendo, assim, um relacionamento maior com a idéia de ‘graça’ ou ‘recompensa’ de Antigo Regime. 4 ZÁS. op. cit., pp. 172-173.

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recompensa por uma atuação “pública” que se transcorrera a partir de 1827. Toda sua

atuação entre 1814 e 1818, sob o comando de Artigas, também esta incluída em sua

carreira de serviço público, mas o Estado criado em 1828 não teria o dever de

recompensá-lo por seus esforços realizados durante os governos anteriores à entrada

de Lavalleja e dos Treinta y Tres Orientales. Zás igualmente exclui desta sua lista suas

efêmeras empresas comerciais em Buenos Aires, quando alugava barcos para o

transporte e venda de lenha. Também omite os artigos que uma vez importou desde a

capital portenha para a venda na Banda Oriental, e assim o faz em relação à sociedade

que montou para erguer a pulpería de Maldonado. Estas omissões tendem a enfatizar o

caráter público da sua relação, destacando o que Zás entendia por empleado de

instâncias Estatais, o que, ao mesmo tempo, demonstra uma certa continuidade de

costumes patrimonialistas que carregam consigo noções de privilégios e recompensas

por serviços prestados.

Na seqüência, Zás será uma porta de entrada para compreender melhor como

um indivíduo poderia atuar no interior de instâncias burocráticas que pretendiam se

revestir de uma legitimação institucional. Será possível cruzar sua versão particular de

caudilho com a de Estado, relacionando-o com a tradição historiográfica apresentada

durante o primeiro capítulo e com o manifesto colorado de Herrera y Obes exposto no

segundo.

3.1.1 – ENCONTROS COM UM EMPLEADO

Em dezembro de 1815, José Encarnación de Zás se ausentava pela primeira

vez da capital. Como voluntário, ocuparia uma das duas vagas disponíveis no

destacamento de Colônia do Sacramento. Ao passo que crescia a admiração e

confiança do Administrador pelo trabalho de Zás, que era “bastante activo”, este

recebeu algumas missões consideradas arriscadas, como transporte de prisioneiros e

valores. Após três trimestres de atividades, seu superior lhe perguntou se poderia

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arrecadar os direitos de “alcavala de pulperías y de cabezon que pagava las tiendas”

pela região daquele departamento de Colônia e Soriano, ao longo da costa do Rio

Uruguai. Zás aceitou o desafio, apesar dos avisos do Administrador sobre o mulato

Encarnación, que lhe “opondría obstaculos para aquel fin”. Ao partir, Zás estará

tomando parte em uma luta desenvolvida no interior do movimento artiguista entre a

Aduana de Colônia e o caudilho Encarnación pelo direito de coleta de impostos pela

região. Fragmento de suas memórias que será abordado logo mais, este encontro entre

um empleado e um caudilho opõe duas formas de arrecadação, assim como alguns dos

dualismos tão freqüentemente colocados pela historiografia platina desde as primeiras

formulações da Geração de ’37. Uma das principais características do caudilhismo,

que se poderia encontrar em indivíduos como o mulato Encarnación, está justamente

nesta competição entre poder pessoal e poder institucional. Se compararmos esta

interação entre Zás e o mulato Encarnación ao modelo clássico de caudilhismo e suas

revisões apresentadas ao longo do primeiro capítulo desta dissertação, encontraremos

o caudilhismo menos como um tipo social do que como um caminho estratégico de

acumulação de poder, seja de acumulação de capital material ou humano.

Em carta a Andrés Lamas de 13 de julho 1844, um dos líderes da Montevidéu

sitiada, Zás se declara “puro patriota, y sobre todo colorado”.5 Seria de se esperar que

defendesse boa parte das idéias tidas como coloradas, como as propostas por Herrera y

Obes que, contando também com Lamas, faria parte da facção “porteña” dos

colorados, ou seja, os que se afastavam de Rivera na medida em que se aproximavam

dos emigrados argentinos. Porém, de uma geração anterior e com uma trajetória de

participação que se iniciara ainda com o movimento artiguista em pleno

funcionamento, seu ponto de vista difere substancialmente daquele proposto por

Herrera y Obes que, vale lembrar, apenas representava a voz de uma das facções

5 Carta de José Encarnación de Zás para Andrés Lamas. Grifo meu. Nas suas memórias, terminadas em 1851, é possível perceber que Zás é colorado, mas em nenhum momento ele se declara de tal forma, talvez influenciado pelo clima de “fusão” que pairava sobre a Banda Oriental com o término da ‘Guerra Grande’.

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coloradas, a mais articulada com os valores unitários, cujos principais representantes

seriam Santiago Vázquez, Melchor Pacheco y Obes, Andrés Lamas e o próprio

Herrera y Obes.6 Uma primeira diferença importante, é que Zás manteve uma certa

admiração e gratidão por Rivera. Ainda que visto como caudilho, o discurso anti-

barbárie erguido por Herrera y Obes não chega a anular o sentimento de Zás pelo

fundador do Partido Colorado: (...) á los balcones dela Sala de Representantes, de donde tuvimos el gozo de presenciar la gran parada de dos mil hombres regimentados bien vestidos y armados que desfilavan á nuestro frente en buenos y escogidos caballos de un pelo cada Cuerpo – Nos parecía obra de encanto; pero es uno de los tantos hechos que la historia encomiará en honor del referido Gral [Rivera].7

Andrés Lamas nasceu em 10 de novembro de 1817, entrou como auxiliar no

Ministério de Relações Exteriores em 1834, sua primeira função política. Melchor

Pacheco y Obes nasceu em 1809, iniciando sua carreira apenas em 1825 com a adesão

aos Treinta y Tres Orientales de Lavalleja. Manuel Herrera y Obes, o mais velho,

nascido em 1806, era pelo menos nove anos mais novo do que Zás, e, até a década de

1840, esteve mais dedicado aos estudos do que à atividade política. Ao contrário de

Zás, nenhum dos colorados acima citados, que constituíam uma facção em particular

que assumiria o poder de Montevidéu a partir do segundo semestre de 1847, teve

participação ativa durante o artiguismo. A ascensão deste grupo coincide com o

amadurecimento das idéias da Geração de ’37, contribuindo para a divulgação de um

projeto político civilizador descolado da trajetória daqueles que viveram o início do

processo de independência desencadeado pela Revolução de 25 de maio de 1810. Não

é uma simples diferença de idade, mas de trajetórias entre aqueles que acenderam

politicamente durante a ‘Guerra Grande’ e Zás, cuja experiência de guerra se

desenvolve desde suas recordações das invasões inglesas, até sua participação durante

6 PIVEL DEVOTO, J. Introducción: Memoria del General Melchor Pacheco y Obes sobre su actuación en la Defensa de Montevideo durante los años 1843-1846. In: Revista Histórica. Montevidéu. N. 148-150, ano LXXI. Dez. 1977. Monteverde y Cia. S. A. 7 ZÁS. op. cit., p. 160.

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o artiguismo. Apesar de ser finalizado em 1851, é importante salientar que os Apuntes

curiosos para mis hijos dão um destaque muito maior ao serviço de empleado de Zás

em instâncias estatais que existiram entre a segunda metade da década de 1810 e 1840,

dando uma atenção menor à ‘Guerra Grande’ que se iniciou em 1839.

Embora tivesse presenciado diversas batalhas, Zás não se considerava um

militar. Em suas palavras, entende-se por empleado8 de uma máquina administrativa

relativamente precária que se organiza em torno de um conjunto de milícias locais que

alternadamente combate espanhóis, portugueses, brasileiros e rivais regionais. Se

acuado por uma situação de improviso, pode pegar em armas, mas não é esse o tipo de

função que costumava exercer, uma vez que “esta de infanteria no es la mia”.9 E,

decepcionado com os homens da guerra, reclama da falta de reconhecimento que

recebe, e o faz separando nitidamente os militares dos empleados: “Tal impresión

desfavorable recibi, que áno ser tanta mi decisión por la causa, me huviera pesado mi

ligeresa, mas lo atribuy al motivo unico que después la esperiencia me ha enseñado.

Este, es, que los militares, conpocas escepciones, [no]10 savem apreciar los servicios

delos empleados, aun en campaña, nivalorarlos por nada”.11

Este desabafo em especial foi direcionado a Manuel Oribe, pois seu

recivimiento fue sumamente serio, jamas lo hé podido disculpar – Dos jovenes decentes que ardiendo en patriotismo abandonavan su empleo, familia y comodidades, por ser útiles á la causa de su Patria, asi, pero tan á los principios de un grito sin eco, y de una empresa, hasta entonces muy aventurada; merecian de cierto, que cada un de aquellos caudillos se

8 Como veremos, Zás utiliza a palavra empleados, referindo-se aos empregados do Estado ou aos que acompanham administrativamente as milícias mobilizadas para a guerra. A idéia de funcionário público é perigosa, e mais adequado seria tratá-lo como um burocrata cujos interesses chegam até mesmo a uma defesa corporativa da sua função, pregando uma suposta imparcialidade de desempenho administrativo. 9 ZÁS. op. cit., p. 128. 10 Esta palavra incluída pode dar a impressão de uma inversão de sentido. Porém, atendendo ao contexto e à seqüência das frases, acreditamos que ela corrige um erro do autor ou, talvez, uma falha na transcrição do documento. O final “nivalorarlos por nada” (nem valorizá-los por nada) denuncia uma incoerência de sentido provocada pela ausência da palavra “no”. 11 ZÁS. op. cit., p. 141.

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mostrasen tan obscequiosos, como correspondia á ganar proselitos. Tanto mas, cuanto que Oribe era sabedor de anteriores servicios prestados por mi.12

Neste trecho, ao invés de militares, Zás os chama de caudilhos. Caudilho é

uma palavra não apenas descritiva de um tipo social, mas traz um juízo de valor. Do

ponto de vista de Zás e dos doctores da ‘Defesa de Montevidéu’ mobilizada contra os

blancos durante o sítio a esta cidade na ‘Guerra Grande’ (1843-1851), a palavra

caudilho carrega um estigma: um valor negativo sobre um tipo de pessoa, um tipo de

política, uma forma de arregimentar seguidores, assim como uma forma de

organização da sociedade e do Estado. A palavra caudilho é saturada de barbárie.

Classificado de caudilho, Oribe recebeu de Zás não apenas uma avaliação severa em

relação ao seu comportamento “sério”, mas uma significativa diminuição da sua

capacidade de governar, seja governar um exército ou um Estado. Neste sentido, Zás

“veia que la animosidad que existia arraigada en ambos [Rivera e Oribe] con tan

hondas raices fuese capaz de posponerse por la Patria y conservacion del orden

publico”.13 Assim, vemos como o empleado observava a interferência das rivalidades e

personalidades caudilhescas nos assuntos de Estado.

Contudo, para além dos caudilhos que disputavam a presidência da república,

Zás sentirá na própria pele o tão alardeado barbarismo da campaña. Por volta de 1817,

desde a Aduana de Colônia do Sacramento e apoiando a resistência de Artigas contra

os portugueses e rivais portenhos que já haviam declarado traidor o líder da ‘Liga

Federal’, Zás partiu para cobrar alguns impostos pelo departamento de Colônia e

Soriano, no qual “infestava con su divición de 300 hombres el mulato Encarnación”.14

Zás já fora avisado pelo seu superior, o Administrador da Aduana, que seu “tocayo

Encarnacion se decia dueño de vidas y haciendas, y creia queme opondría obstaculos

para aquelfin, quien savia de cuanto era capaz, ese mulato asesino”,15 mas não

12 Ibid., p. 140. 13 ZÁS. op. cit., p. 162. 14 Ibid., p. 126. 15 Ibid., p. 127.

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encontrou grandes obstáculos nas primeiras vilas que visitou. Em Las Víboras e Las

Vacas, os pulperos lhe apresentaram “recibos de un Comisionado de Encarnación que

havia cobrado el 1er trimestre y que tuve que respetar segúnmis instrucciones”.16

Todavia, ao partir da Vila de San Salvador, “uno que era sobrino de d Joaquin Fuentes Secretario del referido Encarnacion, le mando un aviso de que se estavan usurpando sus derechos por mi pues me nombró, (...) A esto contestó enviando tres partidas de cinco hombres cada una mandada por un cabo delos mas asesinos para que me tomasen vivo ó muerto y le diesen cuenta”.17

Zás fora avisado do perigo que corria e, assim que possível, retornou à

Colônia. Nesta cidade, dois meses depois, o mulato Encarnación entregou ao

Administrador um “Oficio que dió á leer, pues el no savia”, em reclamação à suposta

usurpação dos seus direitos de cobrança18: Que con arreglo á instrucciones que el [Encarnación] no presentó tomase todas y cualesqª medidas, que con presencia de las circunstan[cias] y de otras comunicaciones, que tampoco mostró, se le tenia recomendado y de lo que le dictase y su celo y patriotismo; tuviese ábien adoptar en vien de la causa que sostenian los pueblos libres dela provincia, para sacudir el yugo del invasor Lucitano, de muchos intrigantes porteños y godos solapados, que abundavan en aquella costa del Uruguay, desde Paysandú, hasta la Colonia.19

O caudilho argumentou que “estava plenamente autorizado por el Capitan

Gral [Artigas] como Preboste de toda aquella Costa”20. Ao ver negada sua

reivindicação, Encarnación “dió una carcajada levantandose en seguida manifesto, a

sumodo las medidas que le havian crusado entre las que apuntó, recaudacion que yo

havia hecho, & y despues pegando una patada en el suelo y unpuñetaso enla mesa que

desvarató cuanto haviaen élla dijo: pues bien hágalo yo [Zás] y que lo desagael

Diablo”.21

16 Id. 17 Grifo da Revista. Ibid., p. 128. 18 Id. 19 Id. 20 Id. 21 Id.

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Por “a sumodo” podemos entender um conjunto de atitudes e defeitos

atribuídos por Zás àquele “mulato asesino”. O murro na mesa e o modo de falar são

lembrados para distanciar os dois homens, uma distância já bem assentada no aviso de

Zás sobre o analfabetismo do caudilho. Mas suas diferenças vão além da etiqueta que

separaria o civilizado urbano da brutalidade rural. A palavra caudilho não é apenas

colocada na direção do “bruto do campo”, mas indica toda uma forma de organização

política. Na mesma medida em que legitima o seu posto e missão de arrecadar

impostos, desqualifica as funções neste sentido exercidas por Encarnación. Porém, os

gestos agressivos e a violência das palavras do caudilho sublinham os valores tidos

como civilizados pertencentes ao Zás que escreve em 1851. A brutalidade das suas

maneiras e a violência do que reclama, um direito privado que de alguma forma seria

uma usurpação de um dever e de um direito da Aduana, fazem parte da descrição que

diminui o status do caudilho. A marcação oral dos encontros entre indivíduos aparece

na escolha do que e como pode ou não ser dito em determinadas situações e com

determinadas pessoas22. As gargalhadas, assim como os gestos burlescos ou violentos,

típicos de um momento bárbaro, eram impróprias para os homens respeitáveis,

civilizados e aptos a desempenhar a correta gestão do Estado, ainda que isto possa ser

ampliado à administração de praticamente todas as instituições, incluindo a família23.

O caudilho Encarnación não apresentava um padrão de conduta compatível com

funções que poderiam ser melhor administradas pela instituição da Aduana. O mulato

Encarnación, ao apresentar-se em Colônia, teria demonstrado a Zás uma não

capacidade para assumir responsabilidades tão importantes como as que estavam em

querela. 22 Em outro exemplo, no Cabildo pós-independência, foi estabelecida uma norma que proibia seus integrantes de gritar e levantarem-se da cadeira: “(...) estando los Capitulares en esta Sala en sus asientos, cuando se ofreciere votar o dar cada uno su parecer lo hagan sin altercar voces ni levantarse de sus asientos, pena de diez pesos a cada cual que lo contrario hiciese por cada vez”. Apud MILÁN J. G. “Letra “oscura” contra habla “transparente”: los valores de la palabra oral y la palabra escrita en el Montevideo colonial”. In: ACHUGAR, H.; MORAÑA, M. (org). Uruguay: imaginarios culturales. Montevidéu : Editora Trilce, 1998. p. 82. 23 BARRÁN, J. P. (s/d).

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A Aduana, por intermédio de seu Administrador e Lavalleja, disputa

diretamente o recolhimento dos impostos daquela região com Encarnación. No

enfrentamento daquela mobilização contra os portugueses (ou luso-brasileiros), existe

também uma disputa por poder no interior do artiguismo. A mobilização oriental para

a guerra, na qual se encontrava Zás, mostrava-se incapaz de levar sua administração a

todos os pontos do território uruguaio sem o auxílio de lideranças regionais. Desta

forma, estas duas instâncias construíram pactos em que o direito de cobrar impostos

era delegado, vendido ou arrendado pela instituição central a poderes locais. Ao que

tudo indica, a missão de Zás faria parte de um esforço da Aduana de retomar esses

direitos para si. É significativo salientar que Zás fora instruído para não cobrar duas

vezes o mesmo imposto caso algum enviado do mulato Encarnación já o tivesse

arrecadado. Apenas para o caso do pulpero não apresentar algum recibo (documento

que, de fato, apareceu), Zás deveria efetuar a cobrança, oferecendo um recibo próprio

da Aduana. Este respeito à cobrança anterior não pode ser somente interpretado como

um receio contra a revolta da população local sobre uma dupla taxação, mas também

por um certo reconhecimento de algumas práticas que, aparentemente, já se haviam

tornado comuns na região. Não é à toa que Encarnación saiu livremente de Colônia.

Deste modo, divergências práticas, como o método de recolher impostos,

desdobram-se, aos olhos do Zás de 1851, em classificações mais amplas de indivíduos.

Cada uma dessas forças tem seus próprios mecanismos de acumulação de poder, e

Encarnación traz consigo seus homens, e, de certa forma, suas terras até Colônia, onde

encontra uma outra fonte de poder, a Aduana. Dá-se, a partir de um conflito que

corresponde à clássica noção de monopólio da tributação do Estado, um confronto

entre a violência declaradamente física de Encarnación e a violência “intelectual”,

mais impessoal e escondida pela instituição.

Nos Apuntes de Zás, a associação entre caudilhos, violência e desordem

continua, pois “se havian cometido siete asecinatos en aquella Ciudad por la gente de

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Encarnación y asi lo publicaron aquellos periódicos”.24 Da mesma forma, persiste a

avaliação das relações profundamente personalizadas, uma vez que Encarnación

“quiso conocerme por el viage de S. Salvador y haver visto como me le escapé

teniendo presente que yo tambien llevava su segundo nombre, por los recivos que le

havían leído, me dijo ‘quehavia handado vivo, que sino, huviera cahido que por serlo

me regalava un caballo’ que nunca, y que contase con su amistad”.25 Este último

trecho nos revela duas surpresas. Na primeira, apesar da tentativa de homicídio,

Encarnación saiu livremente de Colônia; na segunda, a tentativa de ganhar a amizade e

o favorecimento de Zás. Este não nos indica o destino do presente, se o recebeu ou

não, mas o decisivo está, mais uma vez, no personalismo do caudilho sempre

carregado pelo estigma da barbárie. E, como podemos observar, as diferenças de renda

econômica não são as únicas que separam Encarnación e Zás. É o caudilho quem o

trata de subornar. É o “inferior” abastado quem oferece o presente de valor econômico.

Para cada encontro entre dois homens, existe uma relação específica, que é

uma combinação particular dos elementos socialmente relevantes de cada indivíduo.

Uma vez que Encarnación pode ser ao mesmo tempo caudilho, mulato, bruto e homem

do campo, enfim uma soma de qualidades que o inclui entre os bárbaros, Zás, o branco

civilizado, o classificará socialmente segundo os conceitos com que está familiarizado.

Certas crenças fazem com que o indivíduo desenvolva um julgamento ao mesmo

tempo coercitivo e repressor de si mesmo e dos outros. De acordo com seus valores, o

indivíduo cria um repertório de palavras e movimentos adequados para cada ocasião e

pessoa com quem tem que se comunicar. Assim sendo, observando o outro, os

indivíduos se reconhecem, classificam, hierarquizam e se definem. Ao invés de

entender que o indivíduo tem relações, mais do que isso, ele pode ser encontrado na

própria relação, pois a definição de “quem sou eu e quem é a outra pessoa”, revestida

por uma névoa de verdade, é exteriorizada justamente nesse momento de mútua

24 ZÁS, op. cit., p. 129. 25 Id.

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avaliação de gestos e palavras.26 Cada indivíduo se torna uma espécie de policial da

boa conduta, o que não o exclui como provável alvo da observação dos demais.

Métodos coercitivos são comumente expressados em estratégias de dominação

entre dois indivíduos ou grupos. A posição de um indivíduo ou grupo que detém

condições para exercer preponderância sobre outros na defesa de seus interesses

expressa a idéia de dominação. Entretanto, a dominação pode dar a falsa impressão de

supremo livre-arbítrio para uma das partes, escondendo uma relação entre poder e

resistência, ou ainda uma relação de forças relativas, na qual podemos encontrar uma

incessante negociação e ajuste de condições.27 Para Ricardo Salvatore, a formação de

uma “cultura de mercado”, caracterizada por negociações entre empregador e

empregado, estabelece uma série de condições que limitam o exercício da violência.28

Em casos em que a diferenciação social não é tão óbvia, como no interior de uma

mesma classe social, o ajuste de poderes é igualmente observável. Dois membros da

elite, enquanto se cumprimentam e trocam palavras de polidez, estão avaliando um ao

outro no correto controle de gestos e palavras. A falta e o erro comprometem o status

dos envolvidos, hierarquizados não somente por suas posições econômicas e sociais ou

pelo poder físico que dispõem na coerção dos demais, mas também pelo domínio que

detêm do próprio corpo.

Fisicamente, as opções coercitivas são muitas,29 porém, o controle do

“espírito”, nas palavras de José Pedro Barrán, costuma ser mais efetivo30. Em um texto

26 DUMONT, Louis. La civilizaçción índia y nosotros. Madrid : Alianza Editorial, 1989. p. 29. 27 ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa : Edições 70, 1980. Relação de forças relativas: a força de um indivíduo somente pode ser medida comparativamente em relação à força do seu opositor. 28 SALVATORE, Ricardo D., op. cit., A escassa mão-de-obra associada ao predomínio do trabalho assalariado, assim como a grande mobilidade espacial e o precário alcance territorial do controle estatal, entre outras razões, tornam possível ao trabalhador o estabelecimento de algumas condições para seu emprego. Sua abordagem também valoriza as inter-relações como “produtoras” de uma sociedade. 29 Id. Para coerção física, Ricardo Salvatore emprega o termo “repertoires of coercion” para ordenar as complexas formas do seu emprego. 30 BARRÁN, J. P. Historia de la sensibilidad en el Uruguay. Tomo 1: La cultura “bárbara” (1800-1860). Montevidéu : Banda Oriental, s/d.

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marcado pela abundância de fontes e extensa pesquisa, este autor descreveu a transição

entre dois momentos distintos de coerção social separados simbolicamente pelo ano de

1860. Nesta data, o caso uruguaio já apontava para o predomínio da incursão dos

ideais civilizados de coerção e autocoerção nos indivíduos, resultando também na

crescente condenação de determinadas formas de violência, decididamente das não

aplicadas pela ação “racional” do Estado, mas por poderes privados31. Barrán constrói

seu texto enfatizando a dominação de classe que pressiona os extratos inferiores da

sociedade uruguaia para um disciplinamento mental e corporal que poderíamos colocar

como hegemonicamente burguês. A pressão econômica de uma classe contra a outra,

além da coerção empregada por intermédio do Estado, com suas leis, polícia e

exército, são alguns dos instrumentos utilizados nesse disciplinamento da população.

Este tipo de abordagem ressalta as relações de classe no movimento de crescente

desuso da violência física, identificada pelos contemporâneos como bárbara. Ao

contrário de Ricardo Salvatore, esse enfoque se arrisca amorter a contribuição e o

poder de negociação dos estratos subalternos na construção de valores que repudiam

certos tipos de violência. Barrán reconhece que a grande reedição de leis que limitam a

barbárie torna-se necessária justamente porque seu cumprimento é limitado.

Entretanto, as relações de classe não são o único lugar em que a oposição entre

civilização e barbárie é encontrada. Uma vez que a civilização é parte da auto-imagem

de certos indivíduos (para o sentido utilizado por Elias), eles a colocam em todas e

quaisquer situações em que se relacionam com outras pessoas. As situações em que a

civilização é contraposta à barbárie vão muito além das de trabalho, em cujo objetivo

residiria a necessidade de disciplinar a mão-de-obra adequando-a a um regime burguês

mais “racionalizado” de trabalho industrial (com as ressalvas que o termo industrial

pode ter para o Uruguai do século XIX). A civilização aparece também no estilo da

fala, na exploração ou não exploração do recurso da violência em todos os momentos 31 Além da legitimação do monopólio da violência pelo Estado, o seu emprego tende a se tornar menos “espetacular”. As execuções públicas por enforcamento, assim como a degola dos inimigos vencidos nas batalhas civis, foram lentamente substituídas por fuzilamentos.

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em que ela seria possível. Assim, não é apenas a dominação de classe que pressiona o

bárbaro a civilizar-se, pois entre pessoas de uma mesma classe encontramos também

esta expressão de coerção social.

Os ideais de civilização são mais fortes quando interiorizados. A repressão

exterior, bater no filho, por exemplo, diminui gradualmente na mesma medida em que

a repressão interior é passível de absorção, ou seja, tão logo a vítima acredite em

determinados valores. Não é um desenvolvimento por etapas, como se a repressão

exterior ocorresse antes e a interior depois. O controle dos atos violentos não é

somente dado pelas relações de poder mais óbvias, como a de pai para filho e esposa

ou a de estancieiro para peões e escravos, mas entre todas as relações humanas. No

contato com qualquer indivíduo, mesmo entre os da mesma classe, a civilização e seu

poder coercitivo aparecem moldando os possíveis atos a serem praticados, que variam

de acordo com as partes envolvidas e situação em que se encontram. A civilização é

interiorizada por observação das atitudes dos demais, não necessariamente em

declarada repressão, mas no entendimento do próprio indivíduo da importância de

determinadas atitudes características que todos deveriam obedecer e que são

indispensáveis para uma auto-imagem, o que abre um importante espaço para

pensarmos também em apropriação destes valores em conjunção às já tão estudadas

tentativas forçadas de introdução. A observação dos demais e o sentimento de ser

observado são acompanhados de permanente avaliação de status dos outros e de si

próprio. Este julgamento de valores é tão ou mais importante do que o perigo de

infringir uma lei escrita ou de sofrer uma pena corporal (em alguns casos, infringir a

lei é até um estímulo).

Mas os valores civilizadores não estão uniformemente distribuídos em todo o

território da Banda Oriental, e nem por todos seus indivíduos, variando de acordo com

a posição de cada um no espaço social estudado. Por outro lado, organizada a

civilização menos como um processo do que como projeto, constituindo, assim, uma

arma de discurso político, estes valores podem ou não ser encontrados em alguém de

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acordo com quem é o enunciador. Na conjuntura platina da primeira metade do século

XIX, o território do atual Uruguai está envolvido em uma série de disputas regionais

de poder, marcado por guerras entre “Estados competidores” blancos e colorados,

sendo que suas instituições estiveram subordinadas às estratégias daqueles partidos

políticos. Após a independência de 1828, grupamentos rivais passaram a lutar na

medida em que buscavam reorganizar aquela sociedade. Segundo consta no artigo de

David Rock e Lóez-Alvez, os agentes desses partidos formavam uma rede de alianças,

mediando trocas e ligações, servindo mesmo como agências de coleta de impostos e

burocracia informal. Ambos os partidos tornaram-se órgãos governamentais, forçados

a negociar um com o outro na participação política e na exploração dos recursos. Deste

sistema de rivalidades, e apesar do seu tamanho territorial limitado, resultaram

ligações inter-regionais fracas, assim como se tornaram tênues as comunicações entre

Montevidéu e a campaña.32 O caráter governamental destes partidos, principalmente

para o intervalo em que coexistiram o ‘Governo de la Defensa’ e o ‘Governo del

Cerrito’, cresceu a ponto de ambos se considerarem os legítimos representantes do

Estado uruguaio. Porém, a idéia de “burocracia informal” aparece de uma forma um

tanto contraditória. Rock e Lóez-Alvez defendem que o Uruguai apenas conseguiu

construir um Estado forte e central na segunda metade do século XIX. Porém, o que

chamo de instâncias estatais, ainda que não tivessem um efetivo controle nem sobre o

território nem sobre o total da população, apoiavam-se em organizações burocráticas

que, para seus agentes, certamente possuíam alguma formalidade. Do contrário, não

seriam levadas em conta.

Negociando com esses grupos, cada ator envolvido por aquele contexto

buscou legitimar ou denegrir algumas estratégias e caminhos possíveis. Pregando a

civilização, alguns indivíduos elaboraram um julgamento sobre quais seriam as formas

corretas ou não de construção do Estado, resultando em visões alternativas do uso da

32 ROCK, D.; LÓEZ-ALVEZ, F. “State-building and political systems in nineteenth-century Argentina and Uruguay”. Past & Present, 2000, nº. 167, pp. 176-202.

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violência e tributação. Esta oposição entre campo bárbaro e cidade civilizada não foi

criada por um indivíduo, mas transmite uma imagem que se encontraria difundida pelo

território platino. Com habilidade, Domingo Faustino Sarmiento filtrou alguns

fragmentos desse pensamento coletivo que, redigidos através de uma interpretação

individual, resultaram na obra Facundo, Civilización y Barbárie33. A oposição

civilização-barbárie não é exclusivamente sarmientiana, mas corresponde a uma auto-

imagem ocidental, ainda que revestida por sentidos diversos dependendo do momento

e lugar em que é reformulada. Sarmiento dá voz a um sentido local e adaptado, mas

em muito ainda unido a um conceito “genérico” de civilização cuja origem é

européia34. Por este motivo, enfatizamos não a invenção, mas a circulação de idéias.

Ressalte-se, entretanto, que a palavra civilização não obteve total consenso

quanto ao seu significado. Assim como Rosas disputou aos unitários a autoridade de

afirmar qual partido seria o verdadeiro selvagem, Bernardo Berro e Manuel Herrera y

Obes35, Alberdi36 e Sarmiento, entre outros, lutaram pelo poder de decidir quem e

como seria o homem civilizado. Porém, podemos dizer que, em geral, unitários e

colorados concordavam em afirmar que a civilização era a Europa do século XIX

(industrial, comercial, branca, com grandes centros urbanos, educada nos “bons

constumes”), e a barbárie era a América pré-colombiana (selvagem e indígena)37.

Ainda que o argumento central de diferenciação entre os povos europeus e americanos

se localizasse, conforme a época, vagando entre a oposição entre cristãos e pagãos e,

mais tarde, na de industrialmente e comercialmente adiantados ou atrasados, e mais

além até acrescentada de elementos evolucionistas e raciais de explicação, as

referências européias, trazidas pelos conquistadores e povoadores, foram consideradas 33 SARMIENTO, D. F. Facundo, civilización y barbárie. Buenos Aires : COLIHUE, 1990. 34 ELIAS, N. O processo civilizador. Vol 1. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1994. 35 HERRERA Y OBES, Manuel; BERRO, Bernardo Prudencio. El caudillismo y la revolución americana. Montevidéu : Ministerio de Instrucción Pública y Previsión Social, 1966. 36 ALBERDI, Juan Bautista. Fundamentos da organização política da Argentina. Campinas : Unicamp, 1994. e ALBERDI, J. B. Proceso a Sarmiento. Buenos Aires : Ediciones Caldén, 1967. 37 Ou a Córdoba de herança colonial.

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superiores aos elementos encontrados na América. Por outro lado, blancos e federais

valorizaram um “americanismo” que incluía gaúchos e seus costumes, desde que

enquadrados a uma disciplina de trabalho e de serviços ao Estado.

Como foi possível observar no segundo capítulo desta dissertação, o conceito

de ‘civilização’ empregado por unitários e colorados tem alguns elementos em

comum com o estudado por Norbert Elias para o antigo-regime europeu, mas sua

utilização e significado sofreram importantes alterações de sentido nestes americanos

do pós-independência. O principal diferenciador poderia ser colocado no ideal de

progresso que se fortalece durante do século XIX. Para a aristocracia francesa, os

manuais de etiqueta não tinham como objetivo a melhoria da sociedade como um todo,

mas garantir à nobreza um padrão de comportamento tido como superior que

legitimasse sua posição na hierarquia social. O “processo civilizador” ocorreria na

medida em que a competição por status impelisse os indivíduos daquela configuração

a uma exigência cada vez maior de civilidade. Ao que tudo indica, no início do

processo revolucionário, alguns indivíduos mais radicais chegaram a defender uma

ruptura mais abrupta em relação aos costumes aristocráticos. Mesmo o nada radical

San Martín, em recomendações à sua filha, sugeriria o “amor ao asseio e o desprezo ao

luxo”, mas também deixava clara a importância de se falar o “pouco e o necessário”,

além de atentar para a formalidade à mesa.38 Sarmiento colocaria na educação um

decisivo caminho para o progresso civilizador, mas Alberdi entendia esta educação

não como a dos ilustrados, poetas ou pensadores, mas a das artes “práticas” ou

“técnicas” que seriam as exigidas por um tipo de sociedade diverso daquele dos salões,

das festas ou recepções. Ao longo do século XIX, o ideal de civilização se torna cada

vez mais “burguês” e “liberal”, um progresso social que se determinaria pela ciência

da economia. Mas persistirá uma dúvida, para ficar no exemplo de Alberdi, entre a

possibilidade do Estado intervir (seja diretamente na população “trocando-a” por

imigrantes europeus anglo-saxões, seja por “omissão”, retirando os entraves 38 MARTÍN, S. Escritos políticos. Petrópolis : Vozes, 1990.

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comerciais que impediriam o curso natural que o progresso teria para a doutrina

liberal) ou na ação “natural” da própria sociedade que, através do contato com

indivíduos “superiores” do norte europeu, educa-se nas práticas do empreendorismo

liberal para que ela mesma seja uma agente do desenvolvimento.

A descrição que Zás desenvolve sobre seu rival Encarnación pode conduzir a

conclusões precipitadas em relação à questão do autocontrole, tão vital para o

entendimento do Processo Civilizador de Norbert Elias. Seria uma conclusão

apressada e duvidosa. A atitude rude e violenta do caudilho poderia ser colocada como

uma falha em seu autocontrole, mas este entendimento esconderia outras

interpretações possíveis para esta ação social. Ao invés de entendê-la como um

exemplo de descontrole, ela poderia representar uma outra conformação de

autocontrole que permitiria esse estilo de explícito caudilhismo. Mais do que isso, ela

pode ser vista como uma estratégia, não necessariamente deliberada ou racionalizada,

mas, por que não, um tipo de ação social recheada de finalidade. Encarnación estaria

estabelecendo um tipo de negociação sobre sua inserção social no artiguismo. Na

melhor das hipóteses, Encarnación sairia da Aduana com seus direitos de arrecadação

recuperados, mas, não atingindo este fim, ao menos teve a oportunidade de montar no

palco de Colônia e da Aduana uma cena em que reafirmou sua posição na conjuntura

local. Neste caso, todo o evento aparece como uma demonstração para o caudilho.

Leva consigo seus homens e praticamente "ocupa" a cidade por dois dias. Faz sua

encenação na Aduana, sai livremente, dono de si, e, apesar de tudo o que fez e disse

sobre Zás, em uma viajem de barco acaba trocando com este algumas palavras

amistosas, tratando de construir algum laço social de cooperação.

Escapando da armadilha Sarmientiana, o caudilho bárbaro seria muito mais

astuto e muito menos ingênuo do que os intelectuais da Geração de ’37 costumavam

defender. Seguindo este mesmo raciocínio, não seria adequado pensar no caudilho

como alguém incapaz se governar (nos termos de Foucault)39, mas apenas que 39 FOUCAULT, M. A governamentalidade. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Graal, 1979.

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condensa uma capacidade de governo diversa daquela esperada pelo Zás que escreve

em 1851. Neste caso, a questão que se apresenta não é a do autocontrole, mas de

estilos diferentes e rivais (e não falhas) de autogoverno que subentendem contornos

distintos de governo, agência e prestação de serviços ao Estado. Zás estaria, então,

diferenciando-se de Encarnación, legitimando-se e deslegitimando o caudilho. Esta

falta de legitimidade passa não por sua capacidade de governar, mas pela incapacidade

de governar de uma forma tida como correta e esperada por Zás para seus colegas e

superiores. O governo ou a atuação atribuída ao caudilho seria inadequada, e deveria

ser substituída por outra forma de atuação, ou de prestação de serviços, justamente a

de Zás e a da Aduana.

Uma outra questão deve ser sublinhada. Encarnación não é o único caudilho

que participa do evento da Aduana de Colônia. Lavalleja ali estava ouvindo as

reclamações do mulato ao lado do Administrador, com quem se posicionava na defesa

daquela instituição aduaneira. Além disso, a Aduana estava sob comando de um

“caudilho de caudilhos”. Em um movimento liderado por Artigas, tido como inventor

da montonera e do caudilhismo típico do pós-independência, encontrava-se uma

instituição alfandegária, a Aduana, que já existia desde o período colonial, mas que

fora mantida pela necessidade de obter fundos para o esforço de guerra. A visão

clássica do caudilho entra em contradição com um Artigas muito mais permeável,

podendo transitar entre métodos de arrecadação tidos como opostos, como aquele

delegado ao caudilho local Encarnación e a própria Aduana, revestida por uma

legitimidade tradicional e institucional. A própria exigência por parte do

Administrador para que seu rival apresentasse “las instrucciones”, ou mesmo os

recibos que tanto Encarnación quanto Zás entregavam aos pulperos, são uma amostra

de uma certa “legalidade burocrática” que, apesar de simples, fazia-se necessária,

contradizendo a suposta informalidade atribuída por Rock e Lóez-Alvez.40 Muito já se

tem avançado neste sentido, demonstrando como Artigas pretendia construir uma base 40 ZÁS. op. cit., pp. 128-129.

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de apoio muito mais ampla do que os limites da campaña poderiam proporcionar.

Ainda que sua relação com a elite de Montevidéu tenha sido permanentemente tensa e

volúvel, Artigas não abandonou a esperança de contar com seu apoio. Mesmo o

Reglamento Provisorio de 1815 teve sua aplicação praticamente limitada aos inimigos

da Revolução, conservando as propriedades daqueles que a apoiavam. A conduta do

“nuevo Atila”¸ alcunha que recebeu em 1818, recebeu da historiografia tradicional uma

impossibilidade de conciliação com Montevidéu. Visto como mais um exemplo de

oposição entre o campo e a cidade, entre poder pessoal e institucional, sua atuação

parecia caricaturada por um modelo pré-fabricado de caudilho. Suas relações com o

núcleo da elite portuária da capital tiveram um início difícil, no qual se inclui um cerco

à cidade, mas logo passaria a “recibir delegados, aceptar intermediaciones familiares y

aún introducir afinidades de carácter personal (...)”.41 Ao final, esta aproximação

esteve longe de ser um sucesso. Se o sentimento antibonaerense que compartilhavam

fora motivo para algumas conversações, suas diferenças foram mais fortes, e boa parte

da elite montevideana não teria dificuldades em conviver com os vitoriosos

portugueses que ali se assentaram a partir de 1817. Por outro lado, o exemplo de

conflito entre o caudilho e a Aduana de Colônia demonstra a existência de outras

divisões internas para além da clássica “cidade” em oposição ao “campo”.

Tanto Artigas quanto Lavalleja e Encarnación são vistos como caudilhos.

Todavia, eles não estão unificados em suas posições acerca da disputa pelos impostos

de Colônia e Soriano. Ao invés de pensarmos em caudilhos tipificados, como se suas

ações estivessem rigorosamente tendendo a uma adequação a um modelo pré-

determinado de caudilho, seria mais interessante entender o caudilhismo como uma

opção estratégica de acumulação de poder. Não configurando a única forma de

acumulação, convivendo com outras como a intelectual ou a legal (legitimada por

instituições burocráticas), cada uma destas estratégias possíveis renderiam ao 41 BENTANCUR, A. A. En busca del personaje histórico José Artigas: breve análisis de su relacionamento con el núcleo español de Montevideo. In : FREGA, A,; ISLAS, A. Nuevas miradas en torno al artiguismo. Montevidéu : Universidad de la República, 2001. p. 253.

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indivíduo o alcance a um determinado público. Portanto, sua diversificação poderia

implicar em uma base de poder mais abrangente e sólida (ou em uma série de

contradições internas). Como nem todos os caudilhos eram iguais, as opções de

Artigas teriam sido muito mais vastas do que as do mulato Encarnación, ampliando

suas possibilidades de atuação para o cenário da Banda Oriental em guerra.

3.1.2 INSTÂNCIAS ESTATAIS EM UM DE SEUS EMPLEADOS

No que se refere ao modelo de Estado pré-independência, até fins do século

XVIII, o Antigo Regime ainda recorria ao monopólio colonial, ao patriarcalismo

político e ao patrimonialismo dos cargos públicos. Este quadro foi gradativamente

combinado com um novo modelo administrativo desde a ascensão da casa dos

Bourbons ao trono espanhol que se corporificou no território do atual Uruguai pela

constituição do vice-reinado do Prata. Neste período, não só reconhecemos um

direcionamento intelectual que distanciou o Estado da influência religiosa, como

também uma crescente burocratização e expansão do governo secular que se mostrou

ainda mais atuante, o que por vezes significou maior controle e fiscalização.42

O ensino e língua escrita são desejados para a formação do corpo de

funcionários do Estado Burocrático moderno que vem sendo construído.43 Em muitos

casos, os agentes do Estado passam a constituir o maior corpo de empregos que

requeriam educação. A máquina administrativa composta por um numeroso corpo de

agentes passa a permitir e mesmo a buscar servidores e agentes entre letrados que eram

até então excluídos pelo patrimonialismo e distribuição de privilégios derivados do 42 RUIBAL, B. C. Cultura y política em uma sociedad de Antiguo Régimen. In: TANDER, E. (org.). Nueva historia argentina: la sociedad colonial. Tomo II. Buenos Aires : Editorial Sudamericana, 2000. 43 Antes da alfabetização em massa, a língua na forma literária padronizada interessava preferencialmente a uma elite minoritária como um meio prático de comunicação administrativa e intelectual. Com a formação do Estado moderno, a abrangência desta elite e seu idioma terminariam por coincidir com uma área territorial pré-determinada. No território repousaria o limite imposto ao desempenho das funções do Estado, estando todos os habitantes sujeitos às suas leis e ordem.

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arranjo social ou da recompensa a serviços prestados à coroa. Os altos cargos do

regime colonial estavam reservados quase que exclusivamente aos godos e enviados

do rei, deixando aos hispano-americanos algumas posições menores, mas, após a

formação das juntas, a possibilidade de ocupar as responsabilidades do Estado

conduziu os criollos de posição social e educação privilegiada ao alcance de posições

de maior influência.

O Estado tornou suas intervenções cada vez mais universais e rotinizadas.

Cada vez mais este possui informações sobre cada um dos indivíduos e cidadãos, o

que se revela no grande interesse pelos censos. “Como nunca até então, o governo e os

indivíduos e cidadãos estavam inevitavelmente ligados por laços diários”44. O Estado é

visto, no século XIX, como o instrumento da racionalização. A administração racional

se baseia em regulamentos explícitos que lhe permitem intervir nos domínios mais

diversos, desde educação até saúde, economia e cultura, e dispõe da força de polícia e

militar em forma permanente. A sustentação do racional está no domínio legal que se

justifica por um procedimento que constitui regras de um mundo abstrato de normas.

A justiça consiste na aplicação dessas regras aos casos particulares, protegendo através

dos órgãos para tal fim instituídos os interesses nos limites das regras estabelecidas.

A aplicação desses inúmeros regulamentos exige uma equipe de agentes

qualificados, que não são donos dos seus cargos, nem tampouco dos meios da

administração, mas são protegidos em suas funções pelas regras do Estado. Tudo o que

decidem ou fazem os agentes o deveriam fazer por escrito, arquivando e

documentando. Surge então a idéia de burocracia. A burocracia tem serviços definidos

e competências rigorosamente determinadas pelas leis. Existem poderes de decisão

definidos na execução das tarefas correspondentes e uma proteção aos agentes no

exercício das funções. A hierarquia é fortemente estruturada em serviços subalternos e

em cargos de direção, com possibilidade de recurso da instância inferior à instância 44 HOBSBAWM, E. J. Nações e Nacionalismos deste 1780. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1990. p. 102. Ver também BOURDIEU, P. Razões práticas para a teoria da ação. Campinas : Papirus Editora, 1996.

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superior, o que conduz à tendência de centralização. A remuneração seria regular sob

forma de um salário fixo e, principalmente a partir do século XX, de uma

aposentadoria quando deixasse o serviço. Os tratamentos são hierarquizados em

função das categorias internas da administração e das responsabilidades exercidas. As

autoridades têm direito a alguma comissão de disciplina para seus subordinados.

Existe ainda uma tendência à separação completa entre a função e o homem que a

ocupa, pois nenhum funcionário poderia ser dono de seu cargo ou dos meios da

administração. A burocracia deveria ser impessoal, ou seja, racional pela função do

cargo, técnica e esclarecida.

Apesar de uma certa antecipação da secularização e centralização pelos

movimentos dos séculos XVI e XVII e posteriores reformas dos Bourbons para o caso

espanhol, o Estado moderno pós-revolução francesa era uma novidade em muitos

aspectos45. No sentido mais idealizado, deveria possuir um território definido,

preferencialmente contínuo e inteiro, dominando a totalidade de seus habitantes e

conduzindo a intervenção estatal aos mais diversos domínios da atividade humana.

Politicamente, o domínio e a administração do Estado ideal sobre os habitantes seriam

exercidos diretamente e não através de sistemas intermediários de dominação.

Porém, a burocracia não é exclusiva do Estado moderno. A burocracia

moderna desenvolveu-se sob a proteção do absolutismo real desde o começo da era

moderna. Aos Bourbons já interessava incrementar a fiscalização e controle,

ampliando a burocracia como forma de dominação e eliminando a concorrência

interna pelo poder. As antigas burocracias tendiam ao patrimonial, ou seja, os

funcionários não tinham garantias de estatuto legal, mas suas funções estavam

definidas pela tradição.

Para o patrimonial, não existe distinção entre a pessoa e o cargo. A distinção

entre público e o privado não faz sentido quando a função exercida faz parte da

propriedade individual ou familiar. O cargo pode ser herdado, vendido ou arrendado 45 Ibid., p. 101.

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de acordo com a conveniência do seu proprietário e no limite da tradição. Também o

tesouro pessoal, investimentos, perdas e lucros se confundem aos da atividade

exercida. Essas características tanto faziam parte da tradição e da conveniência em

formar alianças na hierarquia social, como eram necessárias em vista da dificuldade do

Estado em alcançar fisicamente todo seu território se não por meios intermediários e

delegações de poder. Também a dificuldade em reunir fundos suficientes sujeitou os

governos ao auxílio de setores capazes de reunir investimentos e fazer cumprir os

interesses do Estado. Desta forma, recebem uma série de privilégios que os incentiva a

trabalhar em atividades que ao governo central se apresentariam inviáveis.

O consentimento prático que esta forma de dominação requer depende da

aceitação de uma tradição que poderia ser justificada pela antiguidade do costume. No

domínio tradicional, a autoridade não é escolhida pelos cidadãos, mas por algum

costume como a primogenitura, ou o mais antigo membro de uma família. Os

governados não são cidadãos, mas sim pares ou súditos que obedecem a uma tradição.

Segundo o estado de espírito do monarca, podem conseguir favores ou desgraça. Mas

as decisões estão fundamentadas na sabedoria e não no livre arbítrio, pois isto poderia

causar uma desordem no sistema.

O patrimonialismo, assim como a dominação legal, também é durável e

contínuo na recusa o excepcional. Baseia-se num costume considerado inviolável em

razão da santidade de ter sempre sido assim, no soberano que representa o “eterno

ontem”. A autoridade, nesse caso, é altamente pessoal. O soberano recruta seus

auxiliares entre seus servidores, não racionalmente por qualidades técnicas, mas por

fidelidade. Eram proprietários dos cargos e o exerciam em nome do rei. Não existe

separação entre esfera privada e pública ou oficial. Não há distinção entre os interesses

pessoais do administrador e os interesses públicos ligados ao cargo. O critério para

seleção é a confiança. Muitas vezes a administração não era mantida às custas de um

dinheiro público, mas de um tesouro particular e, assim como o direito, era dirigido

pelo costume.

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Na América espanhola, ocorre uma crise na legitimação da dominação

tradicional do trono espanhol. Assim que Fernando VII é deposto em favor do irmão

de Napoleão Bonaparte, a tradição projetada no monarca sofre um severo revés. É

nessa crise que se desenvolvem as independências na América. É um conflito que

conduz ao Estado grupos que não poderiam legitimar seu poder pelo mesmo padrão do

rei espanhol, devendo encontrar outras opções. A substituição dos godos e da

dominação espanhola provocou uma intensa reforma no sistema de legitimação do

poder e modelo de Estado. No vice-reinado do Prata, a elite da revolução de 1810 era

composta por comerciantes e burocratas. Mas a crise criou revolucionários de carreira,

políticos profissionais, funcionários do governo e um novo grupo militar, homens que

viviam do serviço ao Estado e das rendas governamentais. Para o Uruguai, o

direcionamento do Estado colonial patrimonialista para o independente burocratizado

e racionalizado não poderia ocorrer de imediato, visto que tal fenômeno é gradual, e

vinha em desenvolvimento desde os séculos anteriores. A historiografia tem indicado a

coexistência de ambos os estilos de administração para a inconstante primeira metade

do século XIX, caracterizando uma forma particular de organização do poder.

Sustentado na instabilidade, surge um Estado híbrido pela oscilação entre as

obrigações e acertos partidários e individuais e a intenção de alguns em construir um

governo central. Conforme aponta Halperín Donghi em seu livro Revolución y Guerra,

a racionalização e a burocratização do Prata não foram somente produtos de um

projeto das elites revolucionárias para o Estado, chamando a atenção para o papel

fundador da dinâmica da guerra, tanto constituindo novas elites (ou reformando as

antigas), mas também dando um desenvolvimento particular às instituições

administrativas.46 Juan Carlos Garavaglia também reforça esta percepção ao estudar o

Estado Rosista para a província de Buenos Aires, encontrando no esforço de guerra

46 HALPERÍN DONGUI, T. Revolución y guerra. Buenos Aires : Siglo XXI, 1994.

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uma correspondente necessidade de incremento fiscal e administrativo que provocou

um considerável crescimento ao ‘Leviatã’.47

Com este processo de combinação de estilos administrativos, passamos a

identificar uma gradativa transformação na figura dos agentes do Estado, cuja

instrução e educação os permitiram interferir ativamente nas relações sociais e na vida

pública. Direcionando-se para as formas mais burocratizadas, lentamente prevalece

uma intenção de racionalização. Entretanto, isto não significa que as antigas tradições

foram totalmente eliminadas, pois um Estado instável não tem condições de impor

uma normal legal a todos, reservando boa parte das decisões ao costume que, em

grande parte, ainda está relacionado à ordem anterior.

Um exemplo que, melhor do que de coexistência seria de adaptação aos

rigores da guerra, está no já tratado encontro entre Zás e o caudilho Encarnación. O

pensamento que, a partir da Geração de ’37, predominou pelo século XIX, é o que

entende o caudilho e seu sistema (relacionado à causa federal) como inimigos da

construção de um Estado central, racional, burocratizado, constitucional e moderno.

Mas é importante colocar que a atuação do mulato Encarnación não deve ser entendida

como uma simples resistência de costumes tradicionais frente ao avanço do Estado. Ao

contrário, o papel adquirido pelos caudilhos a partir dos movimentos de independência

são muito mais “novidade” do que a Aduana, já que fora a guerra a responsável pelas

condições de ação para esse tipo de caudilho, oferecendo-lhe oportunidade de

ascensão. Freqüentemente funcionando mediante mecanismos de arrematação, ou seja,

de arrendamento da cobrança de tributos a comerciantes particulares, a Aduana era um

estabelecimento que já existia no período colonial, enquanto que o caudilho e sua

ascensão política e militar representavam um ator social que, apesar de presente

durante a colônia, ganhava um novo significado. A apropriação ou intermediação de

arrecadação das rendas também pode ser vista como uma estratégia a mais de

47 GARAVAGLIA, Juan Carlos. La apoteósis del Leviathán: el estado en Buenos Aires durante la primera mitad del siglo XIX. Latin American Research Review, v. 38. n. 1, fev. 2003.

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acumulação de poder. Neste sentido, um Zás "burocrático ou funcionário de tipo novo"

também desaparece, revestindo-se mais do papel de um burocrata agente de um

Estado, ou instituição da Aduana, ligada mais ao Antigo Regime do que a um modelo

de Estado defendido pelos movimento romântico e desenvolvido como projeto quase

três décadas depois. Seguramente, a oposição entre Zás e Encarnación não é aquela

entre o funcionário público moderno e o caudilho bárbaro de Sarmiento, mas entre um

caudilho que representa uma novidade da revolução, ou pelo menos o

reposicionamento social de um tipo de liderança, frente a um tipo de burocracia e

instituição de Antigo Regime, esta também sob domínio de um outro caudilho, o

General Artigas (remeto-me à idéia de diversidade estratégica e não à tipificação de

indivíduos). Porém, não se pode abandonar a constatação de que Zás está escrevendo

em 1851, momento que a avaliação da figura do caudilho já conta com a

estigmatização desenvolvida pela Geração de ’37. É provável que Zás esteja

combinando percepções carregadas consigo ao longo da sua trajetória, misturando a

rivalidade de instituição burocrática de Antigo Regime com a novidade do caudilho

trazida pela revolução, mas atribuindo ao seu rival o estigma já elaborado por seus

colegas do partido colorado em união aos emigrados unitários.

Ao finalizar seu texto, em um breve trecho intitulado de “Resumen de mi vida

publica”, Zás considera seu trabalho durante o período artiguista como um “serviço

público”.48 Em destaque, atribui à sua posição de voluntário no primeiro sítio de 1811

a denominação de “empleado de la patria”. Sua atuação em instâncias burocráticas

artiguistas é vista com o início de uma carreira de empleado que se concluiria nessa

data de requisição aos 26 anos e meio de vida pública49. Enquanto o pensamento da

Geração de ’37, refletido no Uruguai pelo texto de Manuel Herrera y Obres, constrói

uma forte oposição entre Estado e Caudilho, Zás, também colorado, não entende o

artiguismo desta mesma forma, elaborando uma continuidade entre seu serviço de

48 ZÁS. op. cit., p. 172. 49 Ibid., pp.167-168.

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empleado de instâncias burocráticas e estatais ao longo destes diferentes momentos da

história local. É a trajetória de um empleado que se insere em uma trajetória de

prestações de serviços a estas instâncias estatais.

A forma como Zás entende a categoria de empleado revela uma transição entre

dois modelos de atuação do Estado, caracterizados por dois modos de dominação

diferentes, o tradicional (patrimonial) e o legal (burocrático). Além dos salários, ele

menciona a persistência de ‘comissões’ para algumas tarefas, como na arrecadação de

impostos, apreensão de mercadorias contrabandeadas ou “venta de papel sellado”

como “Ynterventor de Correos”.50 Em 1851, Zás mantém em suas memórias a idéia de

que as comissões não eram seu principal incentivo, chegando a ceder parte das suas

cotas “áfavor del Estado” na apreensão da carga ilegal de contrabando de um barco no

Rio Uruguai.51

Zás parecia já se sentir empleado e com merecimento a alguma estabilidade

durante os mandatos dos primeiros dois presidentes, Rivera e Oribe.52 Ao segundo ano

da presidência de Oribe, o recém empossado ministro “D. Juan B. Blanco havía dicho

que yo no permaneceria, pues seria separado por que savia mis opiniones”.53 Mas um

amigo em comum conseguiu convencer o ministro de que as aptidões de Zás eram bem

conhecidas e que tinha a vantagem de ser “un archivo ambulante (...) Que á demas era

muy lavorioso, y le constava que yo havía formado á ratos desocupados todos los

Yndices de aquel archivo, trabajo que era impagable.”54 De fato, Zás se manteve no

emprego, mas, ainda em 1836, Rivera declarou-se hostil ao presidente Oribe, que já

havia extinto o cargo da Comandancia General de la Campaña. Com isso, Zás foi mas y mas malmirado por elGral Presidente – A punto deque creada una guardiallamadadehonor pª custodia desu persona; no obstante que fueron llamados á

50 Ibid., pp. 127/130/150. 51 Ibid., p.131. 52 É importante ressaltar a idéia de merecimento e não a de direito, visto que não se tratam de direitos formalmente garantidos pelo Estado. 53 ZÁS. op. cit., p.164. 54 Id.

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èllatodos los empleados de los otros Ministérios á mi y mis subalternos, no se nos quiso incorporar, por sospechosos. Asi fuy pasando ratos y desaires muy amargos; sin embargo deno haver dado jamas la mas leve causa para éllo – Nunca cometi falta de fidelidad de respeto, ni dellenarmi dever; mas la animosidad contra mi persona crecío tanto que se vigilava mi casa y mis pasos, aun los mas insignificantes. 55

Em seu texto, Zás garante que se manteve fiel ao Estado, apesar de suas

simpatias por Rivera e críticas negativas a Oribe. Ainda sim, com o já presente conflito

entre os dois caudilhos, sua má fama de suspeito foi acompanhada por um tratamento

severo por parte do líder blanco, que pessoalmente o ameaçou de ser jogado ao fosso

das muralhas de Montevidéu caso faltasse a algum dia de serviço.56

Com a renúncia forçada de Manuel Oribe, “el Gral Rivera traíaconsigo unos

predilectos paraocupar las mayorias de los Ministérios”. Apesar disso, Zás foi mantido

como empleado no Arquivo, no que se pode observar alguma merecida estabilidade

para um emprego que não se perde ao longo da troca de governos entre dois partidos

que se alternam no poder pela via da guerra.57 Poucos dias depois, Zás foi chamado ao

encontro de Rivera. Este estava distribuindo prêmios a alguns subordinados, “catorce

mil pesos áfavor de cadauno de sus Secretaríos, Vazquez, y Martinez”.58

Especificamente para Zás, o general teria dito que Hoy estoy para dispensar gracia á los buenos y antíguos servidores dela Pátria – Usted es uno de éllos y quiero, por que hoy lo puedo, demonstrarselo – Conosco deoidas, de mucho tiempo á V. De cerca desde que fuy presidente Y me consta que su constancia además por la causa delorden y Autoridad legal, hásido siempre-una misma Pidame pues con sinceridad deceo servirle.59

55 Ibid., p. 165. 56 Id. 57 Esta estabilidade é informal. Não existe uma carreira estável de empleado. 58 ZÁS. op. cit., p. 166. Ver também Archivo General de la Nación. REGISTRO RIVERA. Montevidéu, 1941. pp. 55-56. Zás se equivocou no valor, que seria um pouco maior: “Señalo á mis Secretarios D. Santiago Vázquez, y Brigadier Gral D. Enrique Martinez á nombre de la República y del mio, como una indemnizacion de sus quebrantos, la suma de diez y seis mil pesos á cada uno”. 59 ZÁS. op. cit., p.165.

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É possível observar como Rivera também vê uma continuidade entre o

processo de independência e o da organização estatal do Uruguai independente. A

palavra Pátria é aplicada para todos esses momentos, mas, como já foi colocado

anteriormente, não pode ser confundida com um sentimento nacionalista. Ainda sim, a

continuidade de uma Pátria, cujo sentido pode ter sido alterado no decorrer do tempo,

e a continuidade de uma carreira de empleado em instâncias estatais é valorizada,

principalmente para aquele que sempre foi fiel em seus serviços ao Estado e à ordem

legal.

Este encontro com Rivera resultou no primeiro pedido de jubilación60 de Zás,

mas não fora a primeira vez que pedia algum reconhecimento frente ao Estado. Ainda

com Manuel Oribe na presidência, Zás assinou um pedido coletivo de recompensa por

serviços prestados para os “Empleados que haviamos estado en campaña durante la

guerra de la Yndependencia.” A resposta do Ministro responsável Llambi foi más ó menos en los términos Sigtes: ‘Vistas por el Gobno las razones en que se fundan los empleados en campaña durante la ultima guerra nacional (...), há acordado se les diga: - Que el P.E. [Poder Executivo] no las considera por bastantes, desde que todos hansidocompensados consus respectivos sueldos: que en la actualidad están empleados los mas y si alguno no lo está, es por haber hecho renuncia de sudestino Y últimamente que depremiarse á éstos empleados; sería necesario hacer lo mismo con todas las milicias departamentales que han estado frente al enemigo y hallándose en todos los convates á quienes no obstante ni las gracias se les ha dado, al tiempo de retirarlas Hágaselesaver y archivese’.61

O encontro anteriormente descrito com Rivera deu a Zás mais uma

oportunidade de ter recompensados seus serviços desempenhados durante a guerra de

independência, esta que, neste momento, parece estar entendida apenas como a

empresa dos Treinta y Tres Orientales, desencadeada pela liderança de Lavalleja em

1825.62 Ainda sim, a continuidade entre a carreira de empleado de instâncias estatais

60 Ver nota de rodapé número 03 deste capítulo. 61 ZÁS. op. cit., p. 163. 62 Ibid., p. 164.

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desde o artiguismo aparece durante o já citado resumo da sua vida pública. De

qualquer forma, três dias depois da conversa com Rivera, Zás apresentou un memorial corto solicitanto mi juvilación y retiro del Empleo que havia desempeñado por el espacio de diez y siete años contados los tres de la guerra dobles – Oficial 1º efectivo y hecho las veces de mor.1º acompañando al Sr. Gobernador Suarez en el año 27 á campaña = 2º desde Enero del 29 hasta Abril en la Aguada (...) 3ª desde Setiembre delmismo año en que Araucho y [Francisco Solano] Antuña sefueron á sus casas (...)

e assim segue a enumeração dos cargos pelos quais pretendia ser

recompensado até a data de “8 de Febrero del 39 en que presente la referida solicitud”.

Para este caso, a continuidade entre os empleos parece estar cortada, uma vez que a

solicitação somente incluiu os serviços prestados a partir da entrada dos Treinta y Tres.

Assim, existe uma diferença importante entre a continuidade da prestação de serviços

e a do Estado propriamente dito, como se as instâncias burocráticas e estatais de

Artigas não lhe garantissem prêmios ou compensações frente à nova República

fundada pelo acordo de paz de 1828. Na sua trajetória individual, seu “primer empleo”

é colocado para Agosto de 1814, “Recaudador del impuesto de 2 r.s por res del abasto

á las ordenenes del Fiel Egecutor (...)”63, mas o pedido de aposentadoria somente se

refere aos trabalhos desempenhados a partir de 1827.

Ao tomar conhecimento da solicitação de jubilación, o General Rivera, a

aceitou com desagrado, mas o Ministro encarregado do assunto “se opuso

grandemente á ella dijo que era estemporanea, é ilegal (...) por que yo no me havia

invalidado en elservicio, no se suprimia laplaza, como lo exigia la Ley – A lo que

constesté que por (eso) lo pedia por gracia (...)”, o que foi aceito após a notícia de que

o próprio Rivera o havia consentido.64 Em uma graça praticamente exclusiva para

funcionários do Estado65, Zás passou a receber 75 pesos mensais. 63 Ibid., p. 172. 64 Ibid., p. 168. A lei de jubilación de 2 de janeiro de 1839: “El General en Gefe del Ejército Constitucional. Siendo indispensable reglamentar la ley de retiro, jubilación y montepio de empleados civiles, p.ª que haya orden y uniformidad en las pretensiones que se entablen p.ª optar á los goces que ella les designa, he venido en acordar y decreto: Art.º 1º Para solicitar cualquiera empleado civil, el retiro de la Ley, se necesita: 1º que se suprima la Plaza efectiva que estuviese desempeñando. 2º: que

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Neste exemplo, existe uma descontinuidade entre instâncias burocráticas

(artiguismo e República Oriental do Uruguai) e continuidade entre Pátria e carreira de

empleado (trajetória individual de prestação de serviços a algum Estado). Como já

apontou Chiaramonte, a idéia de Pátria está desligada da de Estado-Nação. Em Zás, a

palavra ‘pátria’ é usada para a Banda Oriental, seja artiguista ou independente, seja

ligada às demais províncias do antigo vice-reinado, seja a de um Estado totalmente

autônomo – a organização do Estado ocorre em separado da noção de pátria. Em sua

curta carreira de soldado, antes do “primeiro emprego” e recém iniciada a campanha

artiguista, seu comandante lhe perguntava “si era patriota como se me conceptuava”.66

Patriotismo que também impulsionaria o mulato Encarnación, segundo suas

instrucciones.67 Zás também afirma que não podia “soportar lavista delos Portugueses

como dueños de mi Patria”.68 Mesmo o 25 de Maio de 1810, revolução tida como

portenha, elevou o entusiasmo de Zás “al ver alguna de aquélla gente en el Cerrito con

el pabellon de la Pátria enarbolado”. Em 1825, o governo provisório dos Treita y Tres

Orientales em Florida representava a esperança pelo “voto libre y espreso de los

Pueblos”, uma passo “esencialmente patriotico” desta autoridade recém constituída.69

Zás colocou a palavra ‘pátria’ para acontecimentos distantes em até 15 anos, porém,

relembrados em 1851, momento em que esta palavra parece ter conservado seu

tenga diez años, al menos, cumplidos de servicio. 3º que no sea de los empleados amovibles á la voluntad del P. E. 4º que su separación, aun cuando se suprima el empleo, no se funde en su ineptitud, omisión ó delito. (...)” Archivo General de la Nación. REGISTRO RIVERA. Montevidéu, 1941. pp 59-61. 65 SALA DE TOURON, L.; ALONSO ELOY, R. El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco. Tomo II: Sociedad, política e ideología. Montevidéu : Banda Oriental, 1991. p. 79. Estas autoras ainda ressaltam o hábito tido como caudilhesco, mas comum em se tratando de um costume de Antigo Regime, de “dispensar gracias”: “Era costumbre inveterada de Rivera compensar los suyos, y como éstos y otros políticos y militares estaban en los niveles más elevados para su gratitud en el momento, recibían donaciones de monto significativo, el cual se reducía hasta llegar en el caso de las gentes comunes, a la aceptación de amparos de poco monto tal vez, pero no para quienes la recibían. 66 ZÁS. op. cit., p. 125. 67 Ibid., p. 128. 68 Ibid., p. 136. 69 Ibid., p. 141.

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significado.70 Contudo, como visto acima, serviços prestados à ‘Pátria’ durante o

artiguismo não garantiam compensações frente ao Estado já independente em 1839,

distanciando estas duas categorias de uma pretensa unidade.

Semelhante descontinuidade ocorre em relação aos títulos de propriedade dos

donatários artiguistas do Reglamento de 1815. No interesse do governo da já

independente república em organizar o confuso sistema de propriedades, “se excluían

especificamente a los donatarios artiguistas”.71 Isto não significou uma expulsão

imediata, já que a antiguidade das suas ocupações tinha certo reconhecimento, mas não

foram legalmente aceitos como proprietários, vistos apenas como ocupantes

(poseedores). A estes foi igualmente imposta a necessidade de pleitear e disputar suas

terras contra outros interessados ou antigos proprietários desapropriados por Artigas.

3.2 – FRANCISCO SOLANO ANTUÑA, BLANCO Y DOCTOR

José Encarnación de Zás se casou em 1826, teve como padrinho de casamento

a Francisco Solano Antuña. Nascido em 23 de julho de 1793, Antuña elaborou um

extenso diário descrevendo os anos em que esteve sitiada Montevidéu. Entre 1843 e

1850, diariamente, registrou os acontecimentos que julgou importantes para aquele

período em que o Uruguai esteve dividido por dois governos inimigos que se

consideravam os legítimos da República, um limitado a Montevidéu, outro governando

o interior. Em conjunto a alguns panfletos políticos e a um diário de foro íntimo e

familiar, este esporadicamente escrito entre 1818 e 1858, o Museu Histórico Nacional

publicou os escritos de Antuña entre 1974 e 1977. Pela natureza diversa do seu texto, o 70 Zás não constrói um significado explícito para a palavra ‘Pátria’, mas nela é possível observar que se incluem noções um tanto quanto vagas de apego a um determinado território que, para a Banda Oriental, era chamada naquele contexto de ‘Pátria Chica’, mas também existia a ‘Pátria Grande’, englobando o antigo Vice-Reiando. 71 SALA DE TOURON, L.; ALONSO ELOY, R. op. cit., pp. 144/210. Outra descontinuidade está na diferença entre patriotas e cidadãos, sendo a primeira categoria muito mais utilizada nas palavras de ordem que pretendiam mobilizar a população à guerra. Era uma palavra que encontrava um número maior de ouvintes, uma vez que era mais abrangente do que a de cidadãos.

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blanco Antuña nos deixa registros abertamente partidários. Seus Apuntes y reflexiones

sobre los sucesos del Rio de la Plata ocurridos desde 1826 hasta 1842 atacam

vigorosamente os unitários argentinos e procura ridicularizar o general Rivera,

apontado de “prostituta traidora”.

Os volumes que contribuíram documentalmente com os escritos de Antuña

vêm acompanhados de uma breve biografia que resume sua trajetória pública e

familiar. Escrita por Elisa Silva Cazet, esteve respaldada por outras fontes não

publicadas do Museu Histórico Nacional, mas guiada principalmente pelas Memórias

Domésticas de Antuña, deixando “a quien los lea y estudie con sereno espíritu crítico”

a tarefa de “extraer de ellos cuanto contienen como elemento de juicio valedero para

escribir la historia del Uruguay”72.

Sua primeira publicação na Revista Histórica é a “Memoria domestica escrita

por el Dr. Francisco Solano Antuña”, feita entre 7 de janeiro de 1818 e 3 de março de

1858. Nesta, apenas os nascimentos, batismos e casamentos dos seus filhos, netos e

escravos, além de algumas mudanças de emprego e função, são mencionados. A

próxima foi o “Borrador de una memoria pedida desde Buenos Aires por unos jovenes

orientales y que los sucesos dela guerra impidieron de continuarlo – sitio de

Montevideo”, um texto político contra unitários e riveristas. O terceiro é o “Diário

llevado por el Dr. Francisco Solano Antuña sobre los sucesos ocurridos en la

República durante el año 1843”. O último é o “Diário llevado por el Dr. Francisco

Solano Antuña en el campo sitiador”. Este é o mais longo, estendendo-se desde 4 de

novembro de 1844 até 25 de agosto de 1850, e, assim como os dois anteriores, trata do

sítio de Montevidéu durante a “Guerra Grande”.

As trajetórias pessoais de Zás e Antuña têm alguns pontos em comum, como o

serviço às armas enquanto jovens. Ambos são nascidos na América e filhos de

espanhóis. A família Zás vem da Galícia e a Antuña, de Astúrias. Desde os treze anos, 72 CAZET, E. S. Escritos Históricos, Políticos y Jurídicos del Dr. Francisco Solano Antuña, In: Revista Histórica, publicación Del Museo Historico Nacional. Montevidéu : A. Monteverde & Cia., 1974. p. 421.

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Antuña prestava serviços de escribiente de numero a uma divisão de Artilharia. Em

1815, já servia de escrivão do governo em Montevidéu, transferindo-se para o

secretariado do Cabildo em 1817. Divergindo da opção de Zás quanto ao apoio a

Artigas, Antuña, então pró Buenos Aires, o considera um “caudilho anarquista”.

Porém, ambos apoiaram o retorno de Lavalleja à Banda Oriental em 1825, movimento

que resultou na independência de 1828. Entretanto, pretendendo fugir da “anarquia”

causada pelo general Lavalleja, que dissolvera o poder legislativo provisório instalado

em Florida, Antuña deixou a Banda Oriental em 1827, retornando dois anos depois.

Ele chega a trabalhar no Estado que se organizava na capital vizinha e está entre os

enviados de Buenos Aires para as negociações de Paz entre o Império do Brasil e as

Províncias Unidas, mediadas pela Inglaterra, em 1828. Anos mais tarde, durante o sítio

de Montevidéu da ‘Guerra Grande’, esteve mais uma vez separado de Zás. Enquanto

este permaneceu junto ao “Governo da Defesa” colorado na capital, Antuña

abandonou a cidade para unir-se ao exército sitiador comandando por Manuel Oribe.

Antuña também fez carreira no serviço público, intercalando-a ao trabalho de

advogado, atividade que lhe rendeu título de Doutor ao defender sua tese na

Universidade de Buenos Aires em 183473. Além disso, fez parte da Assembléia

Constituinte de 1830, e, posteriormente, foi Senador. Abandonou as atividades

públicas em 1855 para confinar-se ao serviço jurídico privado.

A principal finalidade da sua escrita é a de apontar o que ocorria de relevante

no desenvolvimento diário da ‘Guerra Grande’. Pouquíssimas questões não

relacionadas à guerra são mencionadas, atendo-se, principalmente, aos movimentos

bélicos e diplomáticos dos grupos políticos que se enfrentavam. Na primeira e mais

curta parte do diário, está ainda na Montevidéu controlada pelo ‘Governo da Defesa’

73 Antuña leva a sério seu título..... “(...) Min.º plenipotenciario salvage unit.º D.or (q.e no lo és) José Ellauri (...)”. ANTUÑA, F. S. Escritos históricos, políticos y jurídicos del Dr. Francisco Solano Antuña: Nº 3 – Diario llevado por el Dr. Francisco Solano Antuña sobre los sucesos ocurridos en la República durante el año 1843. Revista Histórica. Montevidéu : v. XLV–XLIX, n.133-147. Publicación del Museo Nacional, 1974-1977. p. 436. Para este e todos os demais trechos de Antuña, é mantida a grafia original, com a exceção de algumas abreviações.

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colorado. A partir de novembro 1844, passa a escrever junto ao exército do campo

sitiador, já entre seus colegas blancos. Com a exceção do intervalo que marcou sua

fuga da capital, mantém seu diário com rigorosidade, e, mesmo que nada tenha a

escrever, informa o leitor da sua falta de novidades. Infelizmente, em vista das funções

que exerceu, não tinha acesso a todos os níveis de informação, em geral, reservadas

aos militares.74 Boa parte do que noticia em suas anotações decorre de leituras de

periódicos, simples boatos, ou ainda de deduções acerca do estado de humor do – para

os blancos – Presidente Manuel Oribe e seus subordinados mais próximos, de modo

que sorrisos significariam futuras boas novas, enquanto que uma expressão fechada do

seu rosto, uma possível aflição.

Assim como Zás, Antuña parece atribuir ao seu contexto um significado

histórico de grande importância, e merecedor de um registro atento e dedicado. Porém,

em vista do marasmo em que por vezes se sentiu, chegou a duvidar da utilidade desta

sua atividade: [27/06/1845] – Hay hombres que son consecuentes consigo mismos hasta en los propósitos mas insignificantes, y á esto se debe que se continue todavia este diário estéril y que para maldita la cosa puede servir, sino para recrearse el autor leyendolo, quando llegue un dia á ver libre y feliz á su Pátria – y esto por que pasados los dias dela adversidad, se goza de un Consuelo, de un cierto genero de placer recordandolos.75

[04/09/1847] – Así vamos viviendo, envejeciendo y muriendonos, sin hacer nada de nuebo, sin movernos y naturalmente resfriandonos; por que nada debemos esperar de Europa, y por que nada hacemos, ni pensamos para poner termino á este maldito modo de ser y de consumirnos.76

Contudo, são raras as reflexões mais demoradas sobre o significado global do

seu contexto. Pela própria natureza do seu diário, dificilmente se atém a comentários

mais extensos do que o que se segue logo abaixo: [16/02/1847] - ¡Cuatro años se cumplen hoy de sitio á Montevideo! Y los que allí se apoderaron del mando lo celebraron con salva general, como si tan prolongada resistencia á

74 Assim como Zás, também se difere dos militares: [24/04/1847] – (...) nosotros los no militares (...) Ibid., p. 324. 75 Ibid., p. 452 76 Ibid., p. 370.

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la voluntad nacional fuese un efecto dela constancia del miserable grupo de americanos traydores, que encierran aquellos traydores!... Es la Inglaterra, és la Francia con sus esquadras, sus soldados, sus armamentos y su dinero, que conservan aquella Ciudad en que dominan, bajo el nombre de Gobierno oriental que les prestan quatro malvados. Sus soldados son los negros que fueron nuestros esclavos, que ellos nos arrebataron, y toda la canalla que la Policia francesa arrojo de diversos Departamentos dela Francia, así como los lanzaron itália, la chusma mas pobre y degradada dela pobre Cerdeña; y en fin los hombres de todas las Naciones, que aborreciendo el trabajo estan siempre prontos para hacer el corso en nuestros rios, y para depradar nuestras costas, matando sin piedad á todos nuestros compatriotas, sin distincion de sexo, ni edad. Esa és la obra humanitária y civilizadora de los Ministros y Comodoros de las dos mas grandes Naciones del Universo. Esto és lo que celebran los execrables que todavia no se avergüenzan en Montevideo de llamarse orientales y argentinos. ¡Maldicion sobre ellos!77

Mas este “resumo” já nos indica um tipo de interpretação que poderá ser

encontrada em outros trechos. Seus inimigos são classificados: os traidores, também

uruguaios; os estrangeiros, ingleses, franceses e italianos. Seus soldados são o que de

pior existe em ambos continentes: negros que foram seus escravos em território

americano, ladrões e canalhas repudiados pela Europa, indivíduos de todas as

Naciones que por não quererem trabalhar, dedicam-se ao roubo, à depredação e ao

assassinato. E, além disso, todos estes oponentes estão em Montevidéu, legitimando-se

por uma missão civilizadora e humanitária. A deslegitimação que este elabora em

relação aos seus oponentes é pensada no terreno das atitudes e comportamentos,

incluindo o fenômeno do corso tão empregado pelo “pirata” Garibaldi. Importante é

idéia de “vontade nacional” (bastante diferente da imagem de poder pessoal

caudilhesco) atribuída ao seu lado da disputa, o que curiosamente revela uma visão

hierarquizada de uma sociedade ao colocar os negros libertos no lado oposto, no dos

“não nacionais”, traidores e criminosos comuns.

Em Antuña, poderemos encontrar algumas das questões já levantadas nos

capítulos anteriores e na análise das memórias de José Encarnación de Zás. A

civilização e a barbárie estão distribuídas pelo diário de Francisco Solano Antuña de

um modo bastante particular se o compararmos com as fontes trabalhadas

anteriormente. Será possível encontrar também mais um exemplo de concessão dos 77 Ibid., p. 302.

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direitos de Aduana, desta vez cedida em Montevidéu aos estrangeiros inimigos dos

blancos. Na relativa permeabilidade de um sítio não muito eficaz, encontrar-se-ão uma

variabilidade de penas criminais, dependentes não só da tipificação da infração, mas

igualmente do indivíduo infrator, resultando em castigos diferentes para negros,

brancos, estrangeiros, jovens, adultos e mulheres. Além disso, um encontro muito

diferente daquele entre Zás e Encarnación se dará entre Antuña e Andrés Lamas. Já

não será um caudilho contra um civilizado, mas dois doctores de partidos rivais e em

guerra, resultando em uma interação específica entre esses dois indivíduos.

3.2.1 – Encontro com um doctor e a necessidade de abandonar Montevidéu

Quando o sítio a Montevidéu se tornou efetivo em 16/02/1843, Antuña optou

por permanecer na cidade, ainda que junto aos seus desafetos. Ao que tudo indica, sua

esperança era de que aquela conjuntura seria de rápida resolução. Afastou-se o quanto

pôde do governo colorado, não exercendo nenhuma função pública, e resistiu com

relativa prudência a todas as contribuições, espontâneas ou não, requeridas à

população da capital para o esforço de guerra (Método pouco formal e menos violento

do que o de Rosas para “purificar politicamente” uma cidade).

Em abril daquele primeiro ano, Antuña recebeu um “convite”, vindo de Andrés

Lamas (colorado dos mais próximos aos emigrados unitários) para uma contribuição

ou ajuda à compra de armas: [26/04/1843] - Recibí una invitación del Gefe de Policia Andrés Lamas para que me suscribiera á la compra de un armamento que deseaba ofrecer al Gobierno. [27/04/1843] – Conteste á la invitación de Lamas, que no teia que donar; pero que aun quando tuviese jamas contribuiría a poner armas en las manos de los europeos para que derramasen sangre americana.78

Sua recusa, ainda que não abertamente contrária à causa colorada, apelando

apenas a algum comprometimento de não colaboração a um conflito fratricida, não foi 78 Ibid., p. 457.

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entendida como uma declinação qualquer. O prestígio de Antuña é comprovado pelo

interesse de Lamas em visitá-lo e, como se vê abaixo, de protegê-lo. [08/05/1843] – Recibi una carta del Gefe político D. Andrés Lamas en que me avisa que a las 9 de esta noche vendrá á contestar verbalmente mi carta del 27 – venga enhorabuena – oirá lo que no habrá oido hasta ahora ni cosa parecida. Vino S S á las 9 y conferenciamos hasta las 11:30 – Empezó aplaudiendo los sentimientos de mi carta y devolviéndomela como peligrosa: me reí interiormente de esta abertura protectora, quando creía no equivocarme en el obgeto de la visita. En resumen quiso averiguar que datos tenía yo para esperar que el General Oribe ajustára una transacción prescindiendo de Rosas, ó mas bien asegurando la independencia dela República y sus instituciones. Me atrevi á decirle, que no creía yo que el Señor Lamas huviera dudado de alcanzar sus deseos; pero que si en efecto la duda, ó la desesperación había sido la razon para que habia hecho causa comun con los abyectos Riberistas, ó imprudentes ladrones, yo contaba con el patriotismo de Oribe, que hacia alarde de conocer, y con el inters que el tendría hoy de evitar efusión de sangre y de mostrarse oriental virtuoso y no asesino y sanguinario, como lo habian pintado años antes sus encarnizados enemigos. Me confesó Lamas los desmanes de los franceses armados; me confeso que el Ministro Pacheco había aborrecido siempre este armamento; y concluyó ofreciéndome que iba á trabajar empeñosamente por la paz. Yo lo creo; mas no por nada delo que él dijo, sino por que el Cónsul y Vicealmirante frances han exigido de este que se llama Gobierno (y que no lo és como lo probé á Lamas) que para el 10 del corriente recoja todas las papeletas que acreditaban la ciudadanía de los franceses hoy armados: Por que estos han significado con otro motibo al Ministro Vasquez que sino son necesarios sus servicios, renunciarán las raciones y demas; pero que no dejarán las armas – por que no aprobándose el convenio ajustado entre el Comodro ingles y Almirante Brown, naturalmente el inglés será neutral en adelante – y lo creo últimamente por que verdaderamente Rivera Fue batido cerca de San José estos dias. Veremos: no parece que vamos mal.79

Estas duas horas e meia de conferência, seguramente, estenderam-se para além

do que o trecho acima enuncia. Uma frase que chama muito a atenção é a que indica

um Antuña discutindo a legitimidade “de este que se llama Gobierno”, “y que nó lo és

como lo probé á Lamas”. E se acreditarmos que Antuña “venceu” esta discussão,

como ele dá a entender com o uso do verbo “probar”, observamos um Lamas bastante

propenso a escutar as lamentações do seu interlocutor, o que se reforça pelas primeiras

palavras deste encontro, com a devolução da carta “perigosa” e os cumprimentos pelos

nobres sentimentos compartilhados quanto à vida dos compatriotas americanos. Esta

“abertura protectora” do chefe colorado deu confiança ao doctor blanco,

79 Ibid., p. 464.

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proporcionando-lhe uma ocasião para expor suas opiniões frente a um adversário

político, algo possível somente em vista do carácter não público desta entrevista. Mais

do que esta compreensão, Andrés Lamas trata de se aproximar de Antuña, apontando

um relacionamento tenso entre ele e Rivera (o que se tornaria conflito aberto em 1847

– ver publicação de Herrera y Obes). O próprio Antuña coloca Lamas em um grupo

distinto ao dos “Riberistas”, com o qual viera a se aliar. Esta diferenciação entre

categorias de inimigos, de certa forma, constrói uma aproximação entre os dois.80 São

dois homens das letras que, por motivações opostas, aliaram-se a grupos políticos

contrários: “Y cuidado que este caballerete és de las principales piezas liberales,

romanticas, y bases del porvenir”81. Contudo, apesar do suposto interesse de Lamas

em acertar a paz o mais rápido possível, Antuña termina seu texto demonstrando maior

confiança na força das armas blancas do que no compromisso da sua visita colorada –

nem tão visita, estando mais para um estudo ou inspeção colorada frente a um blanco.

Não resta dúvida de que a posição social de Antuña lhe garantiu esta proteção

oferecida por Lamas. Mas, mesmo para uma figura respeitada, existiriam limites.

Apenas sete dias após esse encontro, a casa de Antuña recebeu mais uma carta com

requisições do governo colorado: [15/5/1843] – Este Gobierno ha pasado nuebas circulares apelando, dice, al patriotismo para reclutar gente para las cañoneras (...). También apelo á las Señoras diciendoles en carta el Ministro Pacheco que há tenido que imponerles la obligacion de coser ponchos de Oficiales poniendo la costurera los avíos. A casa vinieron ocho ponchos con la carta y fue preciso recibirlos, por que camas y dinero todo se habia negado hasta ahora y no era prudente tentar otra vez la delicadeza de S. E.82

Desta vez, os ponchos foram aceitos, mas este tipo de requerimento veio a se

repetir no mês seguinte, quando, 80 Ao longo do seu diário, Antuña sabe algo do que acontece entre os colorados em Montevidéu, e consegue acompanhar um pouco das richas intrapartidárias do Governo da Defesa. Ele separa nitidamente os que ele chama de Riberistas dos do partido “porteño”, estes os mais ligados aos unitários emigrados. 81 [27/07/1843] Além de “caballerete”, Antuña também o chama pelo diminutivo “Lamitas” em outros trechos, provavelmente em vista da diferença de idade entre os dois. Ibid., p. 516. 82 Ibid., p. 467.

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[18/06/1843] – Para completar el dia se presentó en mi casa un oficial con un papel simple sin firma ni sobre con membrete del Ministerio dela guerra á efecto que se cosieran gratis quatro ponchos que traía un soldado. Le contestaron las niñas que estaba la Madre ausente y era verdad; pero que no recibian los ponchos por que no podían coserlos estando la familia enferma, y por que no podian pagar á quien los cosiese fuerra de casa. Inmediatamente volvío el Oficial con su soldado y los ponchos diciendo que traía ordenes del Minstro Pacheco para dejarlos tirados en la puerta de la calle. Una niña le contestó que ignoraba que S. E. pudiera hacerlas trabajar á la fuerza. ¡Y creerá este picaro muñeco que mi familia és su esclava! Y creerá que se le han de devolver los ponchos! Miserable! Que equivocado está si piensa que no hay todavía dentro de sus trincheras mas que seres degradados; ciudadanos indignos de serlo... ¡Ojalá viniese el solo á buscar sus ponchos, ó reconvenirme. Bien puede esperar para este invierno estos ponchos, sin taparse con otros!83

Enquanto a alguns habitantes seria exigido o serviço militar, a outros, as

contribuições teriam outra natureza. No caso, às mulheres são reclamados serviços

entendidos como típicos de atividades femininas, porém escusados por Pilar Antuña na

alegação de enfermidade da família. Para os detentores de maiores fortunas, as

demandas poderiam adquirir a forma de contribuições financeiras ou de suprimentos: [08/06/1843] – El Ministro Pacheco vuelve á ejercer las violencias con que señaló el principio de su Ministério: siempre continuó mandando con el major despotismo; pero ahora de nuebo lo ha redoblado de diversos modos. Por ejemplo despues de varias esacciones á D. Manuel Ocampo, le exigió recientemente treinta pipas de aguardiente, y acto continuo lo puso en el conflicto de aceptar um vale por siete mil patacones ó marchar de soldado á la línea. Por supuesto, eligió el primer medio.84

Seguindo uma prática relativamente comum daquele contexto, e até mesmo

abordada por Antuña em sua tese de doutorado, os ausentes da cidade,

presumidamente aliados com o inimigo, tinham suas propriedades apreendidas.

Antuña menciona, por exemplo, dois armazéns apreendidos, cujos produtos mais

valiosos foram carregados em carretas e levados pela Polícia, enquanto que aos

83 (486-487) Mais sobre as roupas: 22/6/1843 – Ayer no ha comido la guarda nacional dela trinchera, como otras varias veces le ha sucedido; por que á esta gente de la tierra, aunque los mas son españoles se le trata con el mayor desprecio, y tanto que habiéndose vestido de pies á cabeza á los negros, los franceses y los italianos, para los nacionales se ha adoptado el arbitrio de mandar á los Tenientes Alcaldes que andan de casa en casa pidiendo ropa de desecho con que vestirlos. Ibid., pp. 486-487/489-490. 84 Ibid., p. 481.

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“objetos pequeños lo puso á discreción de los muchachos, negros y changadores, de

manera que el pillaje presentó ál Pueblo el espectáculo mas inmoral y repugnante”.85

Mas a família de Antuña ainda não estava livre de receber mais algumas

camisetas para costura: [29/06/1843] – Amedio dia se presentó en casa un militar trayendo tres veces seis camisetas cortadas para oficiales, y tres papeletas sin firma con membrete del Ministério dela Guerra y entre pidiendo y mandando que cosiese cada una su media docena. Mi hija Pilar, la mas resuelta de todas puso en el acto debajo del papel que la nombraba. “Si este simple papel és del Señor Ministro dela Guerra, Pilar Antuña responde por si y sus hermanas, que estando su familia en indigencia tienen que trabajar para ganar el sustento; y que por esto no podía coser las camisetas que devolvia; y firmó. Bien poco después vino otro oficial argentino tuerto, ó vizco (que yo no lo vi) y en la puerta de la sala á presencia de D. Manuel Frias preguntó por Doña Pilar Antuña. Respondió esta – Servidora de V. - ¿Escribió V. este papel? Si Señor. “Pues el Señor ministro manda decir á V. que se apronte para salir con todos sus muebles fuera de lineas mañana á las diez; por que no debe vivir entre los libres quien se niega á coser ropa para los defensores de la Patria”. Pilar corrida, ó mas bien asustada, pudo apenas decirle – espere V. voy á contestarle; por que el oficial le replicó no tengo que esperarme; dio la espalda y marchó; bien que sin que dexase de decirle Dolores mi hija casada, “diga V. al Señor Ministro, que está bien, que se cumplirá su orden y con mucho gusto” Y aquí dío fin al saynete, pudonaid &.86

Estes conflitos acerca das costuras não foram privilégio das filhas de Antuña,

e este escreve que também outras famílias teriam recebido as mesmas ameaças. À

família Platero: [08/07/1843] – Ya no fue á mi Pilar sola que intimaron la salida – Dicen que la Señora de Platero dijo tambien muy suelta de curpo, que no cosía camisetas, por que no sabía, ó no podiá – Que le dixeron pues afuera todas las Plateros, y que dixo Maria Luisa , pues que me dén las camisas: Hízolas, las hicieron ellas (mis hijas); y las hará el gran demonio que no tenga gusto de írse al campo y abandonar su casa para que se la robe [o Ministro] Pacheco.87

85 [30/06/1843] Ibid., p. 496. 86 Ibid., p. 494. 87 Outra passagem sobreo mesmo assunto: [14/7/1843] – Anuncia el Diario de hoy una revista general muy lucida, por que todas las tropas, que es decir todos los habitantes americanos, ó españoles, irán de uniforme nuevo. Aplaude por esto el diarista el zelo y actividad del Ministerio de la Guerra; y por cierto que nada tiene de meritorio el que se saquen piezas de paño y de bayetas á los tenderos, el que se hagan cortar gratis los uniformes, y que se obligue á las familias á coserlos y poder los avíos. Ibid., p. 501/507.

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A pressão do ‘Governo da Defesa’ cresceu ainda mais durante os dias que se

seguiram à “rebeldia das costureiras”. Em uma ação que atingiu mais uma vez a

família Platero, e desta vez sob ordem direta do Chefe da Polícia Andrés Lamas,

oficiais executaram buscas e apreensões em domicílios considerados suspeitos,

abrindo “comodas, ó papeleras, y substrajeron todos los papeles. Lo mismo se hizo en

la casa de Furriol; y, quien sabe, si en otras partes. Viva la libertad y sus defensores de

aquí”.88 Não se deve desprezar a proteção de Lamas a Antuña este ocorrido, visto que

ele mesmo poderia ter enviado oficiais à sua casa, e teria mais do que suspeitas para

agir neste sentido.

Ainda em julho, desta vez por iniciativa de um famoso unitário argentino

exilado, recebeu “una carta en que el General Paz me citaba para hoy á su Cuartel

general, adonde iba á tratar de crear una sociedad de hombres que asistiese y por

supuesto pagase la cura de los heridos. Le respondí hoy atentamente que estaba

enfermo”.89 Por quantas vezes mais algum membro da família Antuña poderia se

eximir de suas obrigações pela alegação de enfermidade? Com um pouco de bom-

senso, Antuña certamente perceberia que esta desculpa já não teria o mesmo efeito, o

logo se decidiu por sequer responder às cartas que recebia vindas do governo.

Mas a situação se tornou ainda mais crítica com a publicação de um

alistamento compulsório de “todos los empleados de la Nación, á los Medicos,

Abogados, Procuradores y panaderos”90 com prazo de apresentação dos convocados

para o dia 26, apenas seis dias após a publicação. Chegada esta data, Antuña escreveu:

“Yo no fui ¿qué vendrá?”91

Cada vez mais, o cerco se fechava ao redor de Antuña. Sentindo-se cada vez

mais ameaçado, uma vez que “Todo, todo, todo se invade y atropella ningun respeto

88 [12/7/1843] Ibid., p. 505. 89 [20/7/1843] Ibid., p. 512. 90 [22/7/1843] Ibid., p. 512. 91 [26/07/1843] – Antuña também inclui depois aos “boticarios, empleados, Profesores (...) para a convocação. Outro caso de recrutamento obrigatório: [04/08/1843] – “Hoy se presentan todos los hombres de color en la Policia”. Ibid., p. 515.

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humano contiene ya á esta gente”, concluiu que “és indispensable huirla.”92 Em seu

diário, não aponta como fez para abandonar Montevidéu, apenas fica registrado que

seu último dia de anotação foi 12 de agosto de 1843, somente retornando às suas

anotações diárias mais de um ano depois, no dia 4 de novembro de 1844, já presente

junto aos colegas blancos no “campo sitiador”.

O número de “pasados”, indivíduos que conseguiam passar de um lado a outro

das linhas de combate, parece ter sido consideravelmente alto. Seria uma empresa

arriscada, mas perfeitamente possível e comum, já que Antuña os menciona com

grande freqüência. Em geral, estes “pasados” não eram aprisionados pelo outro lado,

já que os viam como desertores do inimigo. Antuña não menciona a existência de

homens expulsos, mas apenas mulheres, recebendo estas penas mais “humanitárias” do

que a morte ou a prisão. Dois anos transcorridos desde a ameaça sofrida por sua filha

Pilar, Antuña menciona outros casos, como as das “ocho mugeres echadas dela Plaza”

de Montevidéu em agosto de 1845.93

O ‘Governo da Defesa’ de Montevidéu empreendeu um esforço pela limpeza

política da cidade. Através de um método muito menos deliberado e sangrento que o

de Rosas, os colorados-unitários da capital sitiada conseguiram se livrar de algumas

figuras incômodas contra as quais não podiam simplesmente enviar soldados, porque

não teriam provas ou argumentos suficientes para encarceramento ou julgamento

público. Os excessos de que reclama Antuña não eram os da aberta violência física

(castigos corporais ou prisão), e para o caso do alistamento de advogados, que o

incluía, ninguém apareceu em sua casa para perguntar o porquê do seu não

comparecimento. Mas seria prudente não abusar da boa vontade de indivíduos como

Andrés Lamas. Antuña abandonou Montevidéu, mas não sem levar consigo uma forte

amargura contra os que o teriam desrespeitado e abusado:

92 [03/08/1843] Ibid., p. 519. 93 [11/07/1845] Ibid., p. 455.

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[24/07/1843] - ¡Malvado tirano, desvergonzado ladron [Ministro Pacheco]! Como abusa de su posición tiranica, porque sabe que nadie le ha de observar, ni nadie tendría valor de imprimir estas solas preguntas. ¿De adonde sacaste los paños y bayetas, sino de las tiendas de los Americanos y españoles por medio dela fuerza y la amenaza? Quien te cortó esos uniformes, sino vecinos que lo hacen por tu mandado y voluntariamente, á trueque de no tomar un fusil para defenderte á ti? ¿Quién ha cosido esos vestuarios, sino las desgraciadas familias á la fuerza, puesto que á las que lo resisten, les doblan la cantidad de costuras como á la de Platero, y á la de Piñeyro Mesao – frio, ó las mandas salir de la Plaza [Montevidéu], como á la niña Pilar Antuña, dando para ello un recado atrevido, insolente, é impúdico, delante de diez, ó doce miserables oficiales tuyos, por el que no ha de faltar canalla quien te arranque la lengua? Ah! Testa és esta que no puedo tocar...94

3.2.2 A permeabilidade relativa do cerco / Crimes e punições

O sítio à cidade alternou-se entre períodos de maior ou menor intensidade.

Diante da possibilidade de um acordo de paz em agosto de 1846, por exemplo,

chegou-se a um armistício informal, no qual soldados de ambos os lados

confraternizavam ao longo das linhas de defesa, conversando e trocando algumas

gentilezas. O fluxo de mulheres e crianças também existiu durante boa parte do cerco.

Autorizadas por passaportes, obtinham permissão para visitar familiares que

estivessem do outro lado do conflito. Apesar das tentativas de bloqueio, o comércio

entre Montevidéu e o resto do Uruguai pôde ser mantido, e o mesmo pode ser dito em

relação ao comércio exterior.

Antuña descreve os dias de armistício que se iniciaram ao final de agosto de

1846, emocionando-se com o reencontro de familiares e amigos: [26/08/1846] – Es verdaderamente tierno el ver la confianza con que desarmados, se vienen los Americanos dela Plaza á abrazarse con nuestros Guardas Nacionales. Tambien se acercan con confianza los extrangeros; y és notable, que por mas bien que los reciban los nuestros, estos jamas aceptan el aguardiente y otras cosas con que les brindan los extrangeros. Malo es que la lluvia dificultará la concurrencia delas famílias á la linea. En las circunstancias, esta comunicacion necesariamente ha de traernos bien, sin exponermos á ningun mal – Hoy se fueron para la Plaza las Senhoras de D Xavier Alvez y D Agn Viana – las aconpaño nuestro Presidente hasta el Puerto de Seco, muy cerca de los salvajes; y mando decir á estos por las Senhoras que no volvieran á dejarse engañar por los unitários; y que contansen con que aqui

94 Ibid., p. 514.

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entre nosotros, no hallarían mas que Orientales, amigos, hermanos, olvidados de todo lo pasado & &.95

[27/08/1846] – Los Gefes delos Cantones y sus Ayudantes no podían regularizar la comunicacion; por que los de adentro se adelantaban corriendo á abrazar los conocidos suyos que distinguian muy aca; y nuestros Guardas Nacionales hacían lo mismo y del brazo se iban á la Plaza.

Como é possível observar no trecho anterior, mesmo soldados blancos

chegaram a entrar livremente em Montevidéu durante estes breves dias de trégua. E até

mesmo Rivera arriscou-se a vistoriar as tropas, ainda que escoltado por legionários

franceses: [29/08/1846] – Hoy fue la comunicación por la Figurita, (el Puerto Seco): la afluencia de gente dela Plaza y de la del campo sitiador, fué inmensa – el quadro era sorprendente, admirable, indescritible. Millares de almas se cruzaban mezcladas, alegres, abrazandose – universal era el sentimiento fraternal. Todo no obstante tuvimos disgustos – el Pardejon [Rivera] sentado al pie dela trinchera nos insultaba con su presencia. Centenares de franceses, con armas cargadas lo escoltaban, y muchos guardas nacionales delos nuestros los miraban pintando en sus semblantes la rabia de la impotencia; la rabia de la fuerza del deber. ¡Quanto ansiaban por arrojarse sobre aquel foragido, mil veces traydor, para despedazarlo! Pero estabamos en armistício; y aunque no era escrito, ni publicado, todo el mundo estaba dispuesto á no violar sus reglas, y dar así, como en realidad estamos dando la prueba más elocuente de nuestra civilización á la culta y vieja Europa. (...). Hasta três léguas adentro de nuestro campo han penetrado indefensos los soldados enemigos con sus divisas – y en la Plaza, no se dejó hoy entrar á ningun hombre con divisa blanca.96

Este armistício foi de pouca duração. Aos poucos dias, a comunicação entre as

duas partes foi proibida novamente, e todos se apressavam em retornar. E em todo este

evento, Antuña trata de ressaltar a “civilização” dos uruguaios, tão questionada por

seus inimigos: [31/08/1846] – Como se dijo ayer há cesado desde hoy la comunicacion dela Plaza, y se permite solamente el regreso de las personas de adentro, sin distincion de hombres, mugeres y edades, así como Allá se permite la vuelta de todos los nuestros. Hasta oficiales se habían quedado á dormir en la Plaza, y son muchos los guardas nacionales, vascos y extrangeros que están volviendo.97

[01/09/1846] – Los guardas nacionales, unos de ellos oficiales, (Bruno Garcia) que se decía haber sido muertos enla Plaza, han regresado anoche á nuestro campo. Es muy notable que

95 Ibid., p. 299. 96 Ibid., p. 301. 97 Ibid., p. 302.

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habiendose medito Allá innumerables orientales y argentinos, todas han regresado; y lo és aún mas, que los prisioneros del Paso del Molino en Maldonado, que sirven en la Guarda Nacional, han estado tambien en la Plaza, y han vuelto todos, sin faltar ninguno. Admirables cosas hemos visto estos dias, que dan testimonio de nuestra grande civilizacion.98

Com a esperança de paz rapidamente desaparecendo, finalmente, no dia 15 de

setembro, Manuel Oribe reafirma a proibição de trânsito entre a Plaza e o campo

sitiador.99 Todavia, isto não significou um total isolamento entre os dois lados. Além

das missões diplomáticas, mulheres e crianças ainda conseguiam ultrapassar o sistema

de trincheiras, desde que devidamente autorizadas por uma licença especial.

Anteriormente ao armistício, Antuña aponta alguns exemplos destes ocorridos, em um

dos quais, elas não passariam impunemente pelos soldados estrangeiros: [25/01/1846] – S.E. el Sr Presidente recibió con ternura paternal á algunas mugeres de Montevideo, madres de prisioneros – les dió licencia para que fueran á verlos á Pando, pues parece que de allí los llevarán al Durazno; y mando decir á aquellos, que escriban á sus famílias, todos, si lo desean.100

[06/06/1846] – En Montevideo hay suma dificultad para conceder pasaportes á las mujeres que fueron de aca. A todas las insultan groseramente los extrangeros armados, y á muchas las han saqueado al pasar la línea. Sabido és allí, que quando estan los extrangeros de línea, no se obedece absolutamente al gobierno, contra el que vomitan injurias – se desprecia el pasaporte, no se deja pasar las mujeres, y si se les permiete venir, és despues de haberles quitado quantos gerenos traen. Así que ya se cuidan de hacer uso del páse el dia que estén de servicio los negros.101

Parece existir algum acordo tácito entre os dois governos, já que os

passaportes são (relativamente) aceitos por ambos. E essa permeabilidade se estende

ainda ao pequeno comércio, no que, inusitadamente, Antuña escreve a respeito de

mulheres partindo de fora do cerco em direção à cidade para comprar algumas roupas,

“cerca de doscientas que han ido sucesivamente á la Plaza á comprar ropa. Les costó

98 Ibid., p. 303. Antuña não chega a desenvolver ou apresentar a civilização como uma categoria, mas ela está seguramente colocada como oposta a um tipo de violência bárbara e de desordem social aos blancos atribuídas por seus inimigos de Montevidéu. 99 [15/09/1846] – El Presidente que había prohibido absolutamente pasar á la Plaza, hoy dicen que las concede á todas las famílias que la piden – otros dicen, que es solamente para las que son de adentro y regresan. Notase que desde ayer parece el Presidente muy contento. Ibid., p. 309. 100 Ibid., p. 219. 101 Ibid., p. 270.

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ocho patacones á cada una su pasaporte (...)”.102 Além de ter a permissão de entrar em

Montevidéu, os comerciantes da capital deveriam ter também a permissão de atender a

este tipo de necessidade dos que habitavam o exterior das trincheiras.103 Antuña

lamenta esse tipo de situação, que um ano após o armistício, insistia em prosseguir. [12/09/1847] – Es un furor el que há entrado aqui en las famílias de ir y venir. Por supuesto, todas lo hacen con necesidad de proveerse á bajos precios delo que necesitan – todas llevan con licencia aves y huevos – y muchas venden estos articulos para comprar lo que les hace falta. Es un escandalo y no puede evitarse. ¿Como negar el Presidente permiso á un Guardia nacional para que su muger vaya á ver la madre, el Padre, la hermana? Como negarle el que á obgetos tan queridos se les lleve aves para puchero, si están enfermos &&? Entretanto, el enemigo gana – el sistema nacional se relaja (...)”.104

Em um outro ocorrido, após a tomada de Maldonado pelas tropas coloradas,

familiares de prisioneiros foram conduzidos até Montevidéu, para, depois, serem

libertados. Vindas “por tiera algunas mugeres, hasta el numero de 20. Todas, ó las mas

son famílias delas sacadas violentamente de Maldonado por los salvajes unitários.”105

Uma rápida conclusão a se tomar é a de que o tratamento dado aos homens diferia

muito do oferecido às mulheres e crianças. Uma outra questão, relembrando o

desrespeito dos estrangeiros às mulheres que passavam pelas linhas de defesa de uma

citação anterior, está no amparo à família e na preservação de hierarquias sociais. O

tratamento reservado às mulheres corresponde à sua posição no interior do campo

social, uma posição considerada inferior, não diretamente envolvida com as armas,

menos perigosa e, por este motivo, receptora de um tipo específico de tratamento e

controle.106

102 [24/05/1846] Ibid., p. 266. 103 Além desses casos, os estrangeiros, desde que não envolvidos na guerra, tinham trânsito bastante facilitado. [11/04/1846] – Tenemos Allá algunas señoras extrangeras, que tienen aquí sus maridos y sus hijos; y creemos, que quando no pueden regresar, los enemigos tienen algun grande interes en incomunicarnos.103

104 Ibid., p. 372. 105 [20/02/1846] – Ibid., p. 230. 106 SALA DE TOURON, nestas autoras, as mulheres também participam da política, mas como conspiradoras, ou em arranjos políticos de bastidores. Ibid., pp. 94-100.

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As penas e castigos aos criminosos e prisioneiros de guerra poderiam variar de

acordo com a posição social e o tipo do delito. O mais grave seria a traição, mas

simples tentativas de deserção também podiam ser duramente castigadas,

principalmente se nestas o implicado escapasse em direção ao inimigo. Antuña narra

diversos exemplos de penas para os traydores, fusilamentos e degolas eram seus fins

mais comuns: [25/01/1845] – Fueron fusilados dos oficiales hoy, pasados de los salvages y que trataban de volverse á la Plaza.107

[10/12/1847] – (...) ayer fué fusilado el Oficial oriental Rufino Gonzáles, que estaba proveyendo de ganado á la Plaza por la costa del Uruguay, había introducido ya sobre mil reses – los soldados que lo servían, presenciaron la ejecucion.108

[02/08/1847] – Gran cañoneo huvo esta mañana por parte delos viscaynos y los de la Plaza, que nos tiraron granadas – de ellos se vieron caer quatro hombres y anoche, fué decapitado un Vasco que habia servido aqui, pasandose y siendo oficial delos vascos franceses dela Plaza. Vino ayer pasado con nombre supuesto y fué naturalmente conocido, confesando despues que venia en comision traydora.109

[12/01/1847] – Dícese que el bandido Tabares y otros pirioneros mas hasta veinte fueron degollados anoche en represália de los nuestros degollados por el Pardejon despues de rendidos bajo de capitulacion. ¡Venganza horrible; é inútil, haciendose en secreto! Si los muertos son como Tabares, habrá sido justa la pena; pero las penas son para escarmiento, y esto no puede esperarse sin formas y sin publicidad!110

[13/01/1847] – (...) Reprobamos el modo (...) [das execuções do dia anterior]. [09/02/1845] – En efecto llegó Tabares, y és probable que esta noche sea ejecutado, muy merecidamente, no tan solo por traydor, sino por los muchos asesinatos que hizo y que ordeno, quando fué Comandante de San José.111

[18/10/1846] – Anoche iban pasandose á la Plaza quatro ingleses del Batallon Libd argentino, un Teniente y tres soldados – fueron tomados por denuncia de un argentino que habla ingles y á quien aquellos trataron de seducir para que los acompañase – los quatro fueron ejecutados, degollados, al instante.112

[09/06/1846] – Diez negros infantes habían caído prisioneros del Pardejon [Rivera] – los pusieron aquella noche en cepo de lazo, y como los salvages victoriosos se embriagaron, aprovecharon de su descuido los prisioneros, sirviendo del cuchillo que tenia uno de ellos y todos regresaron á nuestro campo.113

107 Ibid., p. 432. 108 Ibid., p. 400. 109 Ibid., p. 361. 110 Ibid., p. 282. 111 Ibid., p. 437. 112 Ibid., p. 331. Nem todos os ingleses eram pró-colorados. 113 Outros tipos de crimes e penas, mas dentro da cidade: [26/09/1846] – Cuenta este hombre [Faustino Mendez] que un guarda nacional Calo, que se introdujo en la Plaza por negocio particular y con

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Nesta última citação, Antuña comenta castigos dados pelos colorados,

específicos para prisioneiros negros. Ele não informa se estes eram libertos ou

escravos alistados, mas, de qualquer forma, por parte de Rivera e seus homens,

receberam um tipo de castigo considerado adequado à sua posição no interior da

hierarquia social uruguaia, um tipo de tortura com menores chances de aplicação para

cativos brancos. Este caso ressalta uma hierarquização social muito diversa da

moderna idéia de igualdade republicana. Porém, estes não eram criminosos ou

traydores, mas prisioneiros de guerra. Aos quatro ingleses denunciados no trecho

anterior, a degola foi “al instante”, o que nos conduz a pensar que nem a um

julgamento tiveram direito. Antuña coloca outras ocasiões em que não somente as

penas, mas também os perdões eram concedidos não pelo cumprimento da lei, mas

pela graça de Manuel Oribe (um retorno ao personalismo de um líder, e não um

cumprimento legal): “Algunos jovencitos de 14 á 16 años, que lo son los mas de esos

prisioneros llamados Guardias Nacionales salvajes unitarios, los ha puesto el

Presidente en libertad á peticion de sus deudos, que sirven aqui.”114 Em outra duas

datas, alguns inimigos são libertados. Na primeira, Manuel Oribe perdoa todos os

crimes de um jovem prisioneiro; na segunda, coube ao Coronel Barrios dar a liberdade

a alguns detentos (Antuña não tem certeza se seriam 25 ou 76 ou libertados): [30/01/1847] – A un joven, Falson, oficial dela escolta del Pardejon que cayó prisionero enla Sierra, herido, el Presidente en contemplacion del patriotismo del difunto Padre de aquel, lo mando asistir cuidadosamente en el hospital, y que quedeara en libertad completa. Mucho celebramos este rasgo de generosidad, por que los antecedentes de aquel joven nos hacían creer, que sería ejecutado.115

[29/01/1847] – Llegaron hoy los prisioneros dela Sierra delas Animas – son 101, y el Coronel Barrios dió libertad, ó retuvo 25 – Entre aquellos viene un tapecito, pasado de aquí, que se llama Mensada, y fué el que degolló al Sargento encargado dela caballada de

licencia, fué conocido no obstante su disfraz, preso y puesto en grillos por atribuirsele que llevó el obgeto de asesinar al Pardejón. Ridícula y miserable invencion! [10/02/1846] – Llegó esta tarde de Mont.o Mr Goddefroy, qe habia estado preso muchos dias por comunicarse con nosotros. Creese, q e vendrá echado, ó profugo. Ibid., p. 225/314. 114 [29/01/1846] Ibid., p. 221. 115 Ibid., p. 294.

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Piñeyrua. Preguntado por el Presidente, por que se había pasado á la Plaza y muerto áquel hombre á sangre fria, respondío – que había degollado al Sargento, por que la habia dado la gana y por que se lo mandaron. Es probable que este desventurado muera hoy con dos mas muy recomendados por sus proezas anteriores. Entre estos prisioneros venían como treinta de los nuestros, que lo habían sido del Pardejon – fueron libertados, vestidos y socorridos.116

Antuña, em nenhum desses casos, escreve sobre leis ou julgamentos, uma

ausência que não deve ser desprezada, pois ele mesmo exercia a carreira jurídica como

advogado. Acompanhando a citação anterior, o mais próximo de julgamento que o

pequeno indígena recebeu foi uma conversa com o Presidente Oribe (provavelmente

uma espécie de última instância ou recurso). Em prevenção a roubos “en a huertas, ó

caballos y otros obgetos”, ele escreve sobre uma “ordem general”, uma espécie de

determinação vinda do comando do ‘Governo do Cerrito’, algo que substituiria um

código ou decreto de lei, ameaçando seus infratores de “severisimas penas a la tropa

que robe.”117

Assaltos a recursos inimigos não eram, evidentemente, castigados. O roubo de

cavalos, vacas, alimentos e armamentos não eram incomuns. Até mesmo verduras e

utensílios para o preparo do chimarrão eram apreendidos, e Antuña não os esquece de

mencionar: [22/04/1847] – Anoche entró una compañia de vascos y corrió las escuchas y abanzadas enemigas, trayendoles sus muebles, calderas, mates y mucha verdura.118

[17/03/1846] – Los de Maza arrebataron á los enemigos 25 bacas lecheras; pero no pudieron arrearlas, sin las crias que dejaban, trajeron solamente dos.119

[30/06/1846] – (...) llevaronse 15 caballos y una Baca (...)120

[01/08/1846] – Anoche pusieron los nuestros una emboscada en el Cerro – sacaron del corral delos salvajes 43 caballos – 13 mulas y 2 carretas (...).121

[14/06/1845] – Nada se sabe del vivisimo fuego de anoche mas que se han destruído en mucha parte las huertas delos salvages, delas que trageron los Guadias nacionales viscainos mucha verdura.122

116 Ibid., p. 293. 117 [17/02/1846] Ibid., p. 228. 118 Ibid., p. 323. 119 Ibid., p. 238. 120 Ibid., p. 281. 121 Ibid., p. 291. 122 Ibid., p. 449.

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Sitiada, Montevidéu enfrentava problemas de abastecimento, mas a área que

dominava, ainda que predominantemente urbana, reservava algum espaço para hortas e

currais na criação de vacas e cavalos, o que seria freqüentemente incrementado com o

desembarque de gado e carne pelo porto da cidade e, como citado acima, por um

pequeno comércio conduzidos pelas mulheres que recebiam seus respectivos

passaportes.

Esta relativa permeabilidade do sistema de trincheiras deve ser entendida em

um conflito muito diverso da experiência posterior do século XX de “Guerra Total”, a

exemplo das duas Guerras Mundiais. O esforço de guerra, que nestes conflitos

europeus mais recentes pretendiam mobilizar a totalidade da população, não seria tão

intenso para a experiência da ‘Guerra Grande’. A indecisão blanca sobre assaltar ou

não a cidade, aliada a uma permanente esperança pela paz, assim como pela

incapacidade colorada de romper o cerco, estenderam o conflito por longos anos que,

como já foi visto em Antuña, provocaram um entediante cotidiano de pequenas

escaramuças e bombardeios pouco produtivos. As principais batalhas não eram

travadas no campo sitiador, mas na campaña, onde se enfrentavam Rivera e seus

seguidores contra generais blancos, como Ignácio Oribe (irmão de Manuel Oribe), e

generais federais argentinos, como Urquiza, vencedor de India Muerta, palco de uma

importante derrota para os colorados. Além disso, ocasionalmente auxiliados por

embarcações interventoras inglesas e francesas, os colorados conseguiam atacar

alguns povoados do litoral, como Colônia e Maldonado.

A área urbana de Montevidéu havia crescido para além das muralhas coloniais

mesmo antes de instalado o cerco de Oribe. A ‘Ciudadela’ colonial já não atendia às

necessidades de defesa da capital, de modo que uma linha de trincheiras foi construída

com o objetivo de ocupar totalmente a extensão da península em que se encontrava

Montevidéu. As tropas da defesa, incluindo as locais e as legiões estrangeiras,

montaram seus acampamentos entre estas duas linhas, a da ‘Ciudadela’ e a das

trincheiras. O ‘Governo da Defesa’ contava uma superior infraestrutura portuária e

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edilícia, mas aos sitiadores restou a tarefa de montar um outro governo, duplicando

boa parte das instituições e seus respectivos espaços de instalação. Seus limites com

Montevidéu estavam também assentados por uma linha de trincheiras, ante as quais

ergueram novas edificações, como as que serviam ao Porto do Buceo, organizado

pouco ao leste da península. Ali são construídas uma nova Aduana, barracas de

armazenamento, um edifício para o Tribunal do Comércio e um cais de embarque e

desembarque.123

Para os diretamente envolvidos com o sítio, o principal embate foi o de

recursos. Neste caso, os blancos não foram capazes de isolar a capital. Sua maior

fraqueza residia na dificuldade em bloquear o porto de Montevidéu, ainda que com o

apoio vindo de Buenos Aires. Mas foram as intervenções anglo-francesas as

responsáveis por seu total fracasso, pois, além de fecharem o acesso aos portos

portenho e do Buceo, ainda garantiram o livre comércio para Montevidéu, tornado-se

esta uma praça bastante lucrativa para especuladores que ganhavam com o privilégio

de se encontrarem com o monopólio temporário e afiançado do único porto aberto do

Rio da Prata.

3.2.3 – Pátria, nação e apropriação da história / Civilização e barbárie

As datas comemorativas relacionadas por Antuña são, em geral, as que contam

os anos de eventos relacionados às independências e organização republicana do

Uruguai. Vitórias em batalhas importantes, incluindo tanto as da independência quanto

as civis entre orientais, são igualmente relembradas e, por vezes, acompanhadas por

bailes, salvas de tiro e enfeites pela cidade124. Dois dos aniversários mais valorizados

123 ALTEZOR, C.; BARACCHINI, H. Historia urbanística y edilícia de la ciudadde Montevideo. Montevidéu : Junta departamental, 1971. pp. 79-83. 124 [16/02/1846] – Aniversario del sitio actual de Montevideo. Los salvajes unitarios que tiene dentro celebraron como un triunfo la duración extraordinaria de este sitio, é hicieron bien en poner sobre sus trincheras las banderas francesa é inglesa (esta era la mas elevada) al lado de la oriental, puesto que és

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por Antuña correspondem à ‘Pátria Grande’, o 25 de maio de 1810, Revolução de

Maio em Buenos Aires (Dia en que lució la Aurora dela Liberdad en 1810 – Dia de

gloriosos recuerdos – dia delos Libres, cuyo Sol inflama todo corazon verdaderamente

Americano!),125 e 9 de julho de 1816, declaração da Independência em Tucumán

(Gloria honor sempiterno a la memoria delos ilustres varones, que quando en mas

peligro estaba la Patria hicieron invocando á Dios aquella proclamación, que admiró al

mundo, y enardeció el entusiasmo y ardor patriótico desus hijos hasta triunfar en todas

partes y finalmente en Ayacucho).126 Mas também são lembrados os movimentos

posteriores aos dos Treinta y Tres Orientales de 1825, como, por exemplo, o tratado

de paz de 1828 e a promulgação da Constituição de 1830. Em geral, tanto blancos

quanto colorados mantinham o costume de exaltar todas essas datas: [09/07/1843] – Salva general por el aniversario de la declaración de nuestra Independencia en Tucuman el año de 1816 – Salvas lo sitiados, el Cerro y la Isla de Ratas, asi como las cañoneras de Garibaldi y salvas en el campo sitiador, adonde ademas se veían cubiertos de banderas los quarteles. [09/07/1846] – Aniversario de nuestra Declaración de Independencia – los salvajes unitarios ni banderas pusieron hoy, y han hecho bien – debe ser consecuentes con sus actos.127

Para Antuña, a declaração de Tucumán era “nuestra”, ou seja, também incluía

os uruguaios. Mas nem todos poderiam orgulhar-se dela em 1846, e seriam

“consecuentes con sus actos” os “salvajes unitarios” (no qual se incluem os colorados,

para Antuña) ao não enfeitarem Montevidéu para esta data. O que este blanco quer

dizer é que o seu partido, em união aos federais, é o que estaria honrando o Congresso

de 1816, defendendo os princípios republicanos frente à intervenção anglo-francesa.

y fue por el poderoso ausilio, ó mejor dicho, alianza de aquellas dos potencias. ANTUÑA. op. cit. p. 228. 125 [25/05/1847] Ibid., p. 330. 126 [09/07/1847] – Aniversario de nuestra Independencia. Ibid., p. 348. 127 Ibid., p. 285. Outra data: [09/07/1845] – Aniversario dela Independencia de las Provincias Unidas del Río dela Plata declarada en 1816 en Tucuman – Los ingleses y franceses saludaron este dia, enmendando así el desayre que hicieron en 25 de mayo. Ibid., p. 454.

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Em referência ao 25 de maio, Antuña também indica uma tentativa de

apropriação de uma data comemorativa, desta vez, porém, por parte dos colorados,

apesar do esforço blanco em festejá-lo: [25/05/1845] – El bayle estuvo magnifico á pesar del tiempo – habia 142 damas de bayle extra matronas, buena musica, iluminación y lindos adornos en el salon de 35 varas de largo y de 20 de ancho. No huvo la menor perdida, ni el menor desorden.128

[25/05/1846] – Aniversario trigésimo sexto de nuestra gloriosa revolución. (...) No hizo salva nuestra fortaleza, no sabemos porque – la hicieron á nuestro pabellón todos los buques de guerra que en Montevideo estuvieron empavesados todo el dia, menos la fragata española, y... con razon. Lo mismo que esta hizo la corveta brasilera (...) ó por que no considera digna de festejo la libertad que en parte nos han quitado la intervención anglo-francesa, ó por que está indispuesto el Brasil con el Gobierno salvaje unitario; pues que efectivamente és á él á quien las Naciones extranjeras cumplimentaron y no á nosotros.129

Mais uma vez, Antuña escreve sobre uma “nuestra” revolução, tomando posse

de um evento que, atualmente, seria visto como propriamente “argentino”.

Esquivando-se os brasileiros e espanhóis,130 as salvas vindas dos demais barcos

estrangeiros ancorados em Montevidéu foram dirigidas ao ‘Governo da Defesa’,

legitimando-os, assim, como verdadeiros representantes da República e da Revolução

de 1810.

Enquanto Artigas era desprezado pela facção colorada de Herrera y Obes e

Lamas, entre os blancos, as vitórias deste “inventor das montoneras” eram erguidas ao

rol de conquistas da “Pátria”. Além de possuírem uma bateria de artilharia batizada de

“Artigas”, os blancos relembravam o primeiro cerco à Montevidéu realista, com o 128 Ibid., p. 443. 129 Ibid., p. 267. 130 Os espanhóis não apreciavam muito estes festejos republicanos. E algumas vezes eram provocados pelos locais: [07/10/1845] – Hemos sabido con certidumbre, que el fuego de anoche lo causo un motín de los españoles; por que en la gran fiesta cívica, que és de lo que se ocupan estos dias los salvages, pusieron una bandera española, que contenia un leon, rendido y pisado por un indio – que los españoles manifestaron desde días atrás su disgusto; y que menospreciados, se reunieron muchos y armados de puñales y pistolas cercaron la pirámide, y en medio dela fista, arrancaron todas las banderas de la Pirámide y quantas habia en la Plaza – que esto produjo un gran desorden entre mas de cinco mil espectadores, y muchas resistencias, que dieron lugar á que fuera el General Flores con trescientos hombres y acabára todo á balazos, causando algunas mueros. En otro tiempo, esto produciría grandes resultados; pero ahora alli todo lo arregla y concentra el poder europeo. Ibid., p. 476.

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qual poderiam facilmente comparar-se, uma vez que também fora organizado por

forças conjuntas de porteños e orientais: [18/05/1847] – Anniversario de la primera gloria americana en est[...] Oriental del Uruguay – y aniversario del ataque y vencimi[ento] de una Division española de las tres armas por los Orientales in[depen]dientes al mando de D José Artigas en las Piedras el a[ño] 1811 – Viva, viva, viva la Patria! Viva la Libertad [In]dependencia Americana – Vivan los Defensores delas Leyes Viva el ilustre y grande americano D. Juan Manuel de Rosas, el valiente General D Manuel Oribe.131

[01/06/1847] – En 23 de este mes de 1814 ocuparon la Plaza de Montevideo las armas dela Patria vencedoras de los españoles.132

Esta associação entre passado e presente, na qual argentinos e orientais se

unem frente ao inimigo, persiste em outras passagens, como as que celebram as

vitórias dos Treinta y Tres Orientales, tanto as que ainda ambicionavam o retorno da

Banda Oriental à união com as demais províncias, quanto às relacionadas ao acordo de

paz de 1828 entre o Império de Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata: [20/02/1846] – Aniversario dela gloriosa batalla de orientales y argentinos contra el ejercito imperial en Ituzaingó, el año de 1827.133

[04/10/1847] – Aniversario del cange dela ratificacion dela paz con el Brasil en 1828 – Es dia de gran fiesta cívica – embanderamiento gral – y no sabemos, por que tanta importancia á este dia, en el qual tuve mi parte como Secretario (especie de Asesor, directo del decrepito General Azcuenaga, á quien el Sr Gobernador Dorrego quiso honrar con esta misión). Por parte del Emperador fue comisionado o Barao do Rio da Prata, europeo General de la Marina brasilera, y.... maldita la cosa que tiene q.e ver esto con la toma de razon de los rumores del dia.134

Não é difícil perceber a classificação hierárquica elaborada por Antuña para

estes acontecimentos, colocando a ratificação do tratado de 1828 como um evento

menor se comparado ao 25 de maio ou ao Congresso de Tucumán. Contudo, as

relações “cívicas” com Buenos Aires seguem adiante, e datas relativas ao conflito

131 Ibid., p. 327. 132 Ibid., p. 332. 133 Ibid., p. 230. 134 [04/10/1846] – Anniversario del canje de las ratificaciones dela Paz entre el Brasil y la Republica Argentina en 1828 – fuimos actores con el finado General Azcuenaga; y por extremada modestia dejamos de firmar aquel acto los dos secretarios imperial y argentino. Ibid., p. 318.

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entre federais e unitarios, ou simplesmente atribuídas a Rosas, ganham destaque em

seu diário: [30/03/1847] – Aniversario del nacimiento del grande é ilustre Americano D. Juan Manuel de Rosas.135

[19/09/1847] – Aniversario dela batalla del Montegrande en Tucuman ganada por el Presidente Oribe al mando de argentinos y orientales contra Lavalle. [05/10/1847] – Enbanderamiento como ayer – y és por que el año 20 destruyó el Sr Rosas la anarquia en Buenos aires.136

[01/12/1847] – Aniversario de la sublevación de los unitarios contra el Gobierno legal de Buenos aires que ejercía el Coronel D. Manuel Dorrego – principio de la larga y sangrienta guerra civil, que aún nos aniquila y consume.137

[13/12/1844] – Aniversario del fusilamiento de Dorrego – todo el ejercito trae hoy lazo de luto en el brazo.138

[17/01/1846] – (...) al grito de Viva Rosas, que armonizaba con el nuestro de Viva Oribe.139

[12/10/1845] – (...) principio americano (...) [princípio presente no discurso rosista].140

[24/06/1847] – (...) confiando en que el Gobernador Rosas se expidiría representándonos, mejor que ningun otro.141

“Mejor que ningun otro”, Rosas representaria os interesses da aliança apoiada

por Antuña entre argentinos federais e orientais blancos (o que, na interpretação

colorada, aparecia como invasão portenha ao Uruguai).142 É compreensível seu apego

ao Governador Dorrego, uma vez que Antuña estava a serviço da Província de Buenos

Aires durante seu mandato, mas deve-se destacar o comprometimento de todos os

blancos ao usar uma marca de luto em suas vestimentas. É igualmente notável a

extensão da popularidade de Rosas, alcançando a margem leste do Prata; seu

nascimento e suas conquistas federais não poderiam passar em branco entre seus

135 Ibid., p. 318. 136 Ibid., p. 380. 137 Ibid., p. 398. 138 [13/12/1845] – Aniversario de la indigna muerte Del Gobernador de Buenos aires Coronel Dorrego. Ibid., p. 493. 139 Ibid., p. 216. 140 Ibid., p. 477. Linguagem rosista. 141 Ibid., p. 339. 142 Para franceses e colorados, Oribe aparecia como um marionete nas mãos de Rosas[04/08/1847] – el Conde [Francês] se había certificado de que Oribe fueran un Teniente de Rosas: y que si á su llegada á Francia estuviese quebrada la inteligencia cordial con la Inglaterra, era de esperar que vinieran veinte mil franceses á enderezarnos. Ibid., p. 362.

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aliados uruguaios.143 Além da divisa blanca, Antuña chega a mencionar uma

obrigatoriedade para o uso da divisa punzó, símbolo do Partido Federal em um trecho

em que “El comandante D Francisco Oribe lo insulto publicamente, por que no llevaba

la divisa punzó al pecho (...)”.144 A melhor constatação acerca do entrevero das

rivalidades de ambos Estados está no fato de Antuña muito raramente dirigir-se aos

seus inimigos pela cor do seu partido. Ao invés de colorados, ele os prefere chamar

pelo nome completo de “selvajes unitarios”, ocasionalmente acompanhados de outros

elogios, como “imundos” ou “locos”.145 As qualidades que Antuña atribui aos seus

desafetos são muito variadas, algumas apelando a questões étnicas, patriotas, políticas

ou até mesmo morais: [26/12/1844] – El mulatillo engreido salvage Venancio Flores.146

[29/12/1844] – [O] mulato Flores, pater del mulato Luna, y filius del mulato ladron Rivera.147

[06/01/1845] – Pícaro mulato traydor – Rivera.148

[03/09/1846] – (...) oriental godo [realista, resistente à independência]; imperial, traydor, salvaje unitário, y por añadidura ciudadano brasilero; calidad esta ultima que sola, en un hijo del País, basta para darlo á conocer, así como el grado de certidumbre en que pueden apreciarse sus noticias [de que uma suposta expedição brasileira partiria do Rio de Janeiro em direção ao Prata em apoio aos unitários e colorados].149

[09/10/1847] – (...) el celebre salvaje unitário loco y ladron Melchor Pacheco y Obes (...).150

[19/10/1847] – (...) Gobierno salvaje unitario, traydor, abyecto, ruin, y malo, infernalmente malo (...).151

[07/09/1845] – [Garibaldi], Gefe digníssimo de aquella anglo-galo-salvage expedicion.

Em especial, Fructuoso Rivera é praticamento um anti-cristo que assombra o

Prata. Muito do que é atribuído ao caudilho tipificado construído pela Geração de ’37

143 Um exemplo de apoio, para além do envio de tropas: [16/02/1846] – Siete balleneras llegaron de Bs as con vestuarios para el Ejercito. Ibid., p. 228. 144 [21/11/1847] Ibid., pp. 394-395. 145 Fala de colorados, mas apenas enquanto está em Montevidéu: [02/08/1843] – “los colorados” Ibid., p. 518. [07/08/1843] – “colorado”. Ibid., p. 523. 146 Ibid., p. 423. 147 Ibid., p. 424. 148 Ibid., p. 426. 149 Ibid., p. 306. 150 Ibid., p. 383. 151 Ibid., p. 385.

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está presente nas considerações de Antuña sobre o líder colorado. As opiniões

publicadas por Herrera y Obes acerca de Rivera não diferem muito do que escreve

Antuña. Em Facundo, Sarmiento tem em Rivera um exemplo tanto de caudilho como

de gaúcho; além do tipo idealizado de ‘gaucho malo’, também o ‘baqueano’ de

Sarmiento está presente em Rivera no diário de Antuña, este que raramente cita o

nome do caudilho, dirigindo-se a ele diretamente como “Pardejon”. A animosidade

entre os dois era antiga, em 1838, cinco anos antes do início do sítio, “Dn. Frutos

Rivera me maltrato de palabra llamandome de insultos, por que me conoce inflexible y

por que le respondí con la energía á que no está acostumbrado”.152 Mas a presença de

Rivera seria uma ameaça à população oriental como um todo, uma vez que [01/09/1846] – No hay uno entre nosotros que no haya sufrido directa, ó indirectamente de aquel hombre malvado [Rivera], ladron y eterno traydor – no hay uno que ignore, que van cumplidos diez años que aquel hombre funesto está arruinando el País, y haciendo derramar la sangre de sus hijos por manos extrangeras; y sin embargo no huvo uno que le disparase un fusil, ó una pistola para libarnos de tal monstruo!153

Fructuoso Rivera, “como prototipo dela picardia y la vileza”,154 teria como

principal espaço para o exercício do poder a campaña, para onde freqüentemente se

dirigia a “saquear los Pueblos indefensos é incendiar de nuebo todo el País”155. Mesmo

entre os blancos (como o era também entre os colorados e unitários), o ‘Pardejon’

construiu a fama de homem forte da campaña, hábil gaúcho, que em Antuña aparece

como “empreendedor y baqueano como el que mas, sagas astuto, perno no valiente;

pues que nuncapelea él, y siempre el primero que huye (...)”.156 A idéia de um caudilho

clientelista está nas críticas que recebe sobre suas relações com os indígenas e suas

tentativas de organizar colônias para estes ao norte do Uruguai, pois

152 [19/11/1838] Ibid., p. 437. 153 [03/10/1846] – A Assembléia de Notáveis de Montevidéu nomeou Rivera “Gran Mariscal”, “(...) y acabaron haciendolo Mariscal con el mismo poder con que pudieron hacerlo Sumo Pontífice”. Ibid., pp. 304/317. 154 [28/07/1846] Ibid., p. 291. 155 [02/01/1847] Ibid., p. 276. 156 [24/01/1847] Ibid., p. 288.

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“(...) verdad es que necesitábamos brazos, pobladores industriosos, ó agricultores; pero no indios semi-salvages como aquellos, por que no eran ni fueron nunca utiles para nadie mas que para Rivera, por que á pretesto de poblarlos y mantenerlos, nos robó inmensas sumas del tesoro nacional; y después por que haciendo soldados suyos á todos los varones aptos para las armas, conduce constantemente con ellos á sus mugeres é hijos conservando aí un semillero exclusivamente suyo, que forma la base principal desu poder, que le ha servido en todos tiempos para imponer á la Autoridad y que será mientras no se extinga [os índios] una verdadera plaga de los estancieros Orientales.”157

Assim como em Sarmiento, o indígena é um bárbaro (ou quase, um ‘semi-

selvagem’). Rivera constrói uma base de apoio, neste caso não com seus peões e

dependentes de estâncias, mas através da construção de pequenos povoados indígenas,

obtendo, assim, uma fonte importante de homens e de poder.

Antuña ressalta ainda mais as aptidões campeiras de Rivera ao questionar o

porquê das tentativas da facção unitário-colorada de expulsá-lo do país: [26/03/1846] – Ningun caudillo delos dela rebelion és mas importante – ninguno pudiera servirles mejor en la campaña por el prestigio que todavia conserva entre sus antiguos partidarios, por su vaquia enla campaña y por sus aptitudes innegables para conservar por años la anarquia, y regularizar las montoneras. No és el temor de que se volviese contra ellos el que puede detener á los Ministros extrangeros; por que deben saber el precio en que el Portugal y el Brasil compraron sucesibamente á aquel traydor – mas plata, mas encomiendas lo harían sin Duda para toda su vida el esclavo mas fiel dela Inglaterra y la Francia ¿por que no lo acojen, por que lo rechazan y lo expulsan, quando no hay caudillo alguno del Pais, que pudiera servirles, ni la mitad que aquel? Es que no estarán resueltos á dominar en nuestra campaña? Así és de presumirse.158

O ‘caudilho’ e a ‘montonera’ são totalmente atribuídos a Rivera, deixando

Oribe e Rosas em imunidade de tais qualidades. E não apenas seu líder, mas

seguidores e aliados (até mesmo ingleses) recebem também esta classificação. São os

blancos, ‘Defensores de las Leyes’ e da Ordem os que invertem a construção colorada

de Herrera y Obes. [20/05/1843] – (...) Faustino Lopez caudillo delos de Rivera (...).159

[25/11/1844] – (...) salvage caudillo J.º Ant.º Mendes (...).

157 Ibid., p. 448. 158 Ibid., p. 242. 159 Ibid., p. 470.

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[03/03/1845] – Que en Corrientes hay montoneras, desorden, anarquia y muy poca fuerza efectiva.160

[03/03/1846] – Un picaro ingles llamado Mundell, que de estanciero se ha convertido en caudillo bajo el estandarte anglo-frances, ha sido batido en la costa del Uruguay, matandosele 24 hombres, por el Comandante Bergara.161

[06/06/1846] – (...) en todos los Departamentos (...) á cada instante aparecen y desaparecn montoneros que cometen las mas inauditas crueldades. El Defensor del 4 refiere algunas verdaderamente horrorosas, y por desgracia ciertísimas.162

[01/08/1846] – “montoneras salvajes”.163

E não seria apenas no estilo caudilhesco do manejo do político que Rivera

emerge em Antuña, mas em sua própria personalidade, associada à imoralidade, à

bebida e ao jogo. Este tipo de comentário, boato ou não, deve ser entendido como uma

circulação política de informações ou contra-informações. [03/04/1847] – De Maldonado aseguran, que el Pardejon se está comiendo los caballos – que no podrá salir, ni para embarcarse – que se han pasado nuebe delos sitiados, y que uno que era sirviente del Pardejon afirma, que se ha dado su Señoria á la bebida – que está lo mas del tiempo embriagado.164

Rivera metido como siempre en el Durazno, por que és hombre que no vive á gusto sino en el campo jugando, mintiendo y prostituyendo, seguía en sus robos y sucios manejos, vendiendo á dos, ó tres á la vez terrenos del Estado, ó de particulares que se había encargado de desalojar los intrusos, por precio (...).165

Infelizmente, Antuña não comenta nada sobre as publicações analisadas no

segundo capítulo desta dissertação. Entretanto, escreve sobre um texto anterior,

também de Manuel Herrera y Obes, que, intitulado Breve explicación, apareceu em

cópia no periódico blanco ‘El Defensor de la Independencia Americana’, do qual

Antuña era assíduo leitor. Este anterior ataque de Herrera y Obes a Fructuoso Rivera

160 Ibid., p. 445. 161 Ibid., p. 232. 162 Ibid., p. 270. 163 Ibid., p. 291. 164 Ibid., p. 320. Outro caso parecido: [21/09/1846] – Sobre Ignácio Oribe, General e irmão de Manuel Oribe: “(...) nos dicen al oído, que este Gefe tan valiente y tan Caballero como és, está actualmente entregado á los vícios – la embriaguez, el juego &.!! Ibid., p. 312. / Um inglês: [28/06/1846] – Ahora de dice tambien que los oficiales delos Regimentos ingleses en Montevideo, están pronunciados contra la Intervencion – que murmuran altamente que Ousley, cuya casa dicen que es un burdel, un garito adonde diariamente se pierden muchas fortunas. Ibid., p. 280. 165 Ibid., p. 451.

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mostra uma empreitada da ala unitária dos colorados em expulsar o incômodo

caudilho. O texto trabalhado no segundo capítulo, juntamente ao de Bernardo Berro,

não fora um caso isolado, mas integrante desta tentativa de legitimar a substituição do

comando colorado por seu grupo. [21/10/1847] – Se enojaron los compadres – se dijeron las verdades. El Defensor de hoy contiene un compendio histórico de la inmunda vida del incendiário Fructuoso Rivera, que bajo el nombre de Breve explicacion redactó (y firmo) Manuel Herrera y Obes Ministro de Gobierno y Relaciones exteriores del que se llama Gobierno en Montevideo, al dar cuenta á la Asamblea de Notables dela destitucion y destierro de aquel bribon. Este mozo, para quien era Rivera un ídolo antes y especialmente quando despues de su quiebra, e dió – tel tesoro publico, por supuesto, cincuenta mil pesos por via de socorro – pinta al natural al Pardejon, calificandolo de rebelde, tirano y ladron; y no como cosas de ahora, sino como vícios dominantes en Rivera de treinta años atrás. Este salvaje unitário, que poco le habrá costado vencer la repugnancia que pudo haber mostrado el tilingo Joaquin Suarez, compadre del Pardejon, nos há hecho un gran servicio nos há ahorrado el trabajo de manifestar á Rivera qual és ante todo el mundo: y lo que és mas, nos há relevado de toda prueba, por que ademas de ser la suya autentica, como oficial, robustece la testimonial que voluntariamente dieron Francisco J. Muñoz, y el ingles Mundell. Muy poco talento acaba de demostrar Herrera vendiendo así su causa, exponiendola en toda su horrible fealdad – El pretesto és justificar la medida tomada con Rivera – el obgeto puede ser calmar los espíritus; y si tan agitados é inquietos están, como algunos lo pretenden, y prometiendose resultados, que absolutamente esperamos – grande debe ser el miedo de Herrera Obes – Herrera – D Nicolas, y Obes, D Lucas, padre y tio de nuestro historiógrafo, fueron muchas veces traydores á la Pátria; ¿como no habrá de serlo Manuelito á la Pátria, y á la amistad?166

[22/10/1847] – De nada se habla hoy mas que dela breve esposicion relativa al Pardejon.167

Por pelo menos dois dias, o principal assunto entre os que estavam no campo

sitiador foi o relativo ao ‘Pardejon’. O texto do “historiógrafo” Herrera y Obes deve

ter causado um grande impacto entre ambos os partidos. Antuña não questiona seu

conteúdo, o qual diz ter poupado aos blancos a necessidade de provar tais acusações,

mas duvida das intenções de “Manuelito”, que, até poucos anos antes, teria no líder

colorado um ídolo, cujos defeitos teriam sido sempre os mesmos, desde o princípio.

Não somente Herrera y Obes, mas a todos os uruguaios competira o dever de destruir a

influência de Rivera na sociedade uruguaia: “Execracion eterna al Pardejon

166 Ibid., pp. 386-387. 167 Ibid., p. 387.

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incendiário, y a la canalla europea que lo acompaña! (...) Maldicion al americano que

olvide tantos agravios!”168

Após o exílio forçado de Rivera, e com o ‘Governo da Defesa’ controlado

pelos “Pachequistas, ó partidários dela emigracion argentina”,169 a legitimidade na

qual se baseavam os defensores de Montevidéu foi conduzida a uma aproximação dos

ideais da Geração de ’37. Antuña demonstra em seu texto uma preocupação em

relação ao modelo de ‘Civilização e Barbárie’ composto por seus rivais. Não que ele

se detenha a desmistificá-lo em profundidade, mas se utiliza desses termos com o

objetivo de comprovar que a civilização prevaleceria entre os orientais na mesma

medida em que denuncia barbarismos provocados pela intervenção anglo-francesa e

pela aliança unitário-colorada. A política “civilizadora” francesa e inglesa, “sino es

original, és filantropa y humanitária como si la dictaran y ejecutaran los demonios”.170

“Y viva la civilizacion de los salvages unitários”,171 que, em boatos ou não (...se

dice...), aparecem cometendo crimes comumente associados aos bárbaros gaúchos e

caudilhos: [08/01/1847] – Se dice que los estragos hechos en los edifícios y la poblacion de [Pay]Sandú son horrorosos, e innumerables las mutilaciones en niños, mujeres y ancianos. ¡Gloria al

168 [03/01/1847] Ibid., p. 277. 169 [06/07/1847] Ibid., p. 346. – Pachequistas: grupo de Melchor Pacheco y Obes (o mesmo do episódio das costureiras). Emigracion Argentina: unitários exilados. Outras citações: [12/08/1847] – Dicen que renuncio G. Per.ª y Barreyro – y que el Ministério se compone ahora de Manuel Herrera de Gobierno – Bejar de Hacienda y (risum teneatis) Lorenzo Batlle de Guerra - ¡Que cosas se vén! Por supuesto el partido vencido en abril de 1846 se há sobrepuesto, ¿Y que hará Flores? Ibid., p. 365. [13/08/1847] – Se dá por renovado el Ministério salvaje unitário con Manuel Herrera Obes de Gobierno – Bejar de Hacienda y Lorenzo Batlle de Guerra – No hay Duda de que se sobrepuso el partido salvaje unitario argentino derrotado en abril del año pasado. Id. [10/10/1847] – Verdad es que ahora está en boga su partido, llamado porteño, por que lo compenen los mas encarnizados enemigos del enjaulado Pardejon Rivera. Ibid., p. 383. 170 [13/09/1845] – Os soldados também não gostavam muito dos estrangeiros: [10/08/1845] – Los soldados nuestros se divierten con los salvages llamandolos Misters, Monsieurs, y hablandoles en ambos idiomas. Se nota que esto les causa grande indignacion. Ibid., pp. 463/471. 171 [13/12/1844] Ibid., p. 419.

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pabellon frances! La hazaña há de ocupar un lugar en la historia para vergüenza é infamia eterna (...).172

[11/01/1847] – (...) se dice, que los franceses legionarios jugaban en la Plaza con seis cabezas de Gefes muertos (...).173

[19/03/1846] – La Europa parece que ha traducido mal nuestra moderacion – ha confundido, ha equivocado nuestra prudencia con el miedo – y quando se desengañe, ha de extremecerse – ha de pesarle habernos provocado, y nos há de proclamar por todo el Universo – Barbaros.174

[21/08/1846] – Pícaros y bajos son estos caballeros de la cultísima Europa.175

[29/03/1847] – ¡Pobres Americanos! Con que desprecio con que calma, con que iniquidad, se ocupa de nosotros la cultisima Europa! Oh! Se rien de nosotros – no podemos aspirar a su magnitud – pero podemos aguardar y aguardamos, que nos há de llegar el turno de reírnos de ella, y mofarnos de sus lamentaciones, quando por efecto de su propia ambicion y desus errores adolecera de los mismos males, que hoy nos infiere.176

Por vezes, não é a ambição dos Estados europeus, ou sua missão civilizadora,

o que impulsionaria a intervenção estrangeira, mas sim os interesses individuais de

seus cidadãos que ali fazem seus negócios. Antuña constrói em seu diário uma teia de

interesses que enlaça o Estado colorado a comerciantes ingleses e franceses.

Principalmente em relação à Aduana e ao porto de Montevidéu, os negócios dos

estrangeiros estão intimamente ligados ao governo que os apóia, tornando-os, assim,

dependentes à dinâmica da guerra e seu possível fim. Sustentada a capital por

“extrangeros y agiotistas”,177 Antuña não enxerga nesta interdependência política e

comercial um elemento normal da guerra, encarando-a como um ataque contra a

própria independência da Banda Oriental. Ainda em Montevidéu, Antuña acompanha

atentamente o arremate dos direitos da Aduana: [04/08/1843] – Se omitió hacer constar en el dia de ayer dos cosas – 1ª que en la reunion de accionistas forzados para el remate delos derechos de Aduana, propuso [Samuel] Lafone y

172 Ibid., pp. 280-281. Como era de se esperar, a acusação contrária também existia: [24/05/1843] – A la noche (...) se dice, que en efecto fue ahora ha tres dias corrido hasta Santa Lucia y acuchillado Rivera, degollandole (jamas omiten los enemigos de Oribe esta expresión) discientos hombres y tomándole algunos prisioneros. (...) “Muera el Corta cabezas Oribe – muera el tirano Rosas...” Ibid., p. 472. 173 Ibid., p. 281. 174 Ibid., p. 239. 175 Ibid., p. 297. 176 Ibid., p. 325. 177 [17/07/1847] Ibid., p. 353.

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D. Juan Zufriategui que se firmaran ya los vales por el valor de las acciones. Los resistió como prematuro el famoso canonigo D.r Vidal y lo siguieron los mas, ó sean los no ingleses – 2ª Que el diario de ayer tarde pondera y aplaude la voluntad y patriotismo con que todo el vecindario corrió á subscribirse á aquel remate para salvar la Patria!... Es hasta donde puede llevarse la desvergonzada audacia! Robar y decirle en sus barbas al robado que era meritorio por su desapropiación voluntaria, és lo no sé que se haya visto en Gobierno alguno republicano.178

Sala de Touron e Alonso Eloy dão maiores detalhes a este arrendamento.

Samuel Lafone, “poderoso mercader británico”, fora também dono de Saladeros e

participou em contratos com o Estado para a promoção da imigração. Este também

fora sócio do Comodoro Purvis, representante da coroa inglesa a quem muito

interessava impedir um bloqueio rosista a Montevidéu. “Al iniciarse el Sitio de

Montevideo, comerciantes-prestamistas dominaban ya en gran medida el tráfico y las

finanzas”. As dificuldades financeiras do governo da capital obrigaram seus

administradores a “entregar la administración de la Aduana a los prestamistas”. Em

1843, tomou forma a “Sociedad compradora de los derechos de Aduana”, composta

por 86 acionistas franceses; 76 ingleses; 64 espanhóis; 35 alemães e 89 orientais.179

Aos poucos meses de iniciado o sítio, a Aduana já se encontrava entre as

ofertas do ‘Governo da Defesa’, ao que o ‘Governo do Cerrito’ respondeu com a

habilitação do Porto do Buceo. Com a intervenção anglo-francesa, este porto fora

bloqueado, mas, curiosamente, aos produtos e comerciantes de fora do sítio estavam

sendo permitidos negócios e embarques via porto de Montevidéu, ou seja, pagando

impostos aos detentores dos direitos alfandegários, engordando os cofres da capital

colorada. A idéia inicial da aliança seria a de fazer justamente o contrário, bloqueando

Montevidéu com o auxílio da esquadra de Rosas, mas o apoio das potências européias

inverteu a relação de forças nesta questão comercial e de acesso a suprimentos. [19/07/1847] – los rematadores de la Aduana – bloqueo dicho redundaba en beneficio de algunos comerciantes.180

178 Ibid., p. 521. 179 SALA; ALONSO. op. cit. pp. 12/15/35. 180 ANTUÑA. op. cit. p. 355.

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[30/07/1847] – En el Buceo corrió que era de esperar estos dias el bloqueo mas riguroso – voces que pueden ser de los introductores interesados en hacer buenos negócios.181 [03/09/1847] – Solamente en América podrán las Naciones tolerar tal abuso, tal desvergüenza; pues que siendo formalmente notificado y establecido el bloqueo dela Francia á este Puerto y los argentinos, no és para outro fin que el de impedir que los buques de ultramar dejen de entrar en Montevideo – todos sus cargamentos viniendo de allí, pagando allí derechos, podemos llibremente recibirlos así como retornar nuestros frutos por aquella via para que paguen igualmente los derechos – és absolutamente forzarnos, no á sufir los efectos las privaciones de un bloqueo, sino á proporcionar á los extrangeros compradores (de los Derechos) de Aduana fondos que embolsar, y con que seguir costeando los gastos dela guerra. No puede verse, ni imagirnarse mas desvergonzada audacia.182

[18/09/1847] – (...) al mismo tiempo que los Periódicos salvajes unitários ponderan las ventajas que tienen de comerciar con nosotros – ventajas que figuran en grande escala para las Provincias argentinas, para excitarlas á resistir la medida de cerrarse aquellos puertos y los nuestros á la compa.ª estrangera dueña delas rentas publicas de Montevideo.

Antuña entende que o bloqueio estrangeiro não tinha como objetivo atingir o

comércio blanco, mas obrigá-lo a passar por Montevidéu, uma vez que o comércio

entre as duas partes estaria sendo relativamente permitido. Muito já se escreveu sobre

os graves prejuízos que as guerras trouxeram à Banda Oriental, mas deve-se prestar

atenção a alguns indivíduos que, ocupando posições privilegiadas, conseguem lucrar

com a especulação e o monopólio relativo que situações de conflito podem oferecer.

Além disso, é possível comparar esta venda dos direitos da Aduana de

Montevidéu com o conflito entre a Aduana de Colônia do Sacramento e Encarnación

narrada por José Encarnación de Zás. Ambos estão em contextos de conflito armado,

empenhados pela necessidade de reunir fundos para a manutenção da guerra – Zás ao

lado de Artigas contra os invasores luso-brasileiros; Antuña apontando a aliança entre

colorados e estrangeiros. Este tipo de intermediação, que no caso do caudilho mulato

Encarnación estava sendo contestada, é geralmente vista como uma limitação de um

Estado ainda fraco ou embrionário, impossibilitado de alcançar a todo seu território

sem a assistência destas forças auxiliares. Desta forma, um Estado fraco que delega,

vende ou arrenda suas funções pode ser atribuído a uma situação “bárbara” de

dependência das forças irregulares dos caudilhos. Contudo, para o exemplo de Antuña

181 Ibid., p. 359. 182 Ibid., p. 370.

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e Montevidéu, são os europeus civilizados e seus “discípulos” unitários e colorados os

que se utilizam destes recursos para o esforço de guerra não apenas como uma forma a

mais de conseguir dinheiro, mas igualmente com o resultado de aproximar os

interesses comerciais destes estrangeiros aos políticos do ‘Governo da Defesa’.

Durante as várias negociações de paz, tanto o Estado colorado quanto as missões

diplomáticas européias tiveram como exigência o respeito aos acordos realizados entre

seus súditos e o governo de Montevidéu.183

[07/07/1846] – Recordamos, que huvo un tiempo en que reflexionando sobre la compra que los extrangeros hicieron á los salvajes delos Derechos de Aduana de Montevideo, se decía, que en tal caso, y hecha la paz, habilitaríamos el Buceo, prohibiendo la entrada delos frutos del Pais á la Plaza.184

[29/08/1846] – (...) el circulo traydor de Varela, anglo-frances unitário, se empeña en prolongar la situacion para realizar negociospendientes – apropiarse mas derechos de Aduana &.185

[16/08/1845] – Y el comercio que hacía toda la Europa con nosotros está paralizado!.. Y lo está por que Lafone y otros ingleses y franceses de Montevideo se han apropiado todos los bienes y rentas publicas, y se quiere que las conserven!! Esto és lo que se llama Civilización – humanidad!!!

Encontrado na Colônia do Sacramento artiguista e na Montevidéu da Defesa,

este tipo de remate não fora uma solução exclusiva para a guerra. Apesar do temor

causado pela ameaça de Lavalleja, o período da presidência anterior de Rivera não

sofrera nada parecido ao ‘Sitio Grande’. Contudo, em uma permanente dificuldade

orçamentária, se não foram diretamente vendidos determinados direitos de

arrecadação, foi comum sua colocação como garantia ao pagamento de

empréstimos.186 Além das Aduanas, eram também arrematados os direitos ao

“reconhecimento de couros”, ao que Samuel Lafone fora acusado pela imprensa local

183 Muito do que os colorados arrecadavam acabava voltando aos estrangeiros, principalmente aos legionários franceses. [21/09/1847] – Vimos el Comercio de Varela y en él el presupuesto de solo el Ministerio dela guerra salvaje unitario (el celebre Batlle) que asciende mensualmente á 159494 – ps 1 r.l – Las raciones de la Legión francesa, vascos franceses é italianos (allí todo tiene su verdadero nombre) importa cada mes sesenta mil pesos sin incluir vestuario ní calzado. Ibid., p. 374. 184 Ibid., p. 284. 185 Ibid., p. 301. 186 SALA; ALONSO. op. cit. pp. 184-189.

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de monopólio deste comércio.187 Este costume de Antigo Regime, tão (mas não

exclusivamente) ibérico, era praticado por aqueles se colocavam como inimigos dos

costumes coloniais de economia e sociedade.

Porém, após quatro anos de sítio, Antuña começa a duvidar das intenções

blancas. Com a confiscação de propriedades inimigas, alguns estariam enriquecendo

às custas da situação, e a paz poderia significar uma restituição aos colorados

perdoados. Em 1845, “(...) la campaña fue ‘blanqueada’ con la entrega de tierras

embargadas a los ‘colorados’, a la vez que el gobierno de Montevideo vendía

supuestos derechos, lo que daría lugar posteriormente a los pleitos por reivindicación

de tierras que no habían finalizado cuando la invasión de Flores en 1863”.188

[11/09/1847] – De temer és, aunque no nos atrevamos á creerlo, que el interes personal, pese mucho en la balanza del juicio de los Senhores Ministros & Agregase á esto, que todos los Gefes de línea, ganan con la guerra – lucran – se enriquecen, si és cierto, lo que todos afirman - ¿Como han de aconsejar medios eficaces de terminar la guerra?189

[14/09/1847] – Vimos hoy al Presidente [Oribe], cuyo semblante revela estar gravemente enfermo. Dice él que estuvo malo, pero que ya está mejor. Nunca lo hemos visto mas debil i con mas señales de estar sufriendo mucho. El desenlace de la ultima misión europea lo afectó en extremo; y se cree, que esta enfermedad moral se la agravan diariamente unos intandole á que ataque la Plaza – otros á que lo difiera. Estos obedeciendo á los preceptos de su conveniencia, desu bien estar – de la seguridad de aumentar su fortuna – aquellos por que están mal, y por que oyen los lamentos, las quejas de tantos centenares de vecinos que están fuera de sus casas, sin sus familias, ó con ellas, y en la major necesidad, sin poder trabajar, por que el fusil y la linea absorven toda su atención.190

[25/09/1847] – No hay un ciudadano de buen juicio que haya aprobado la repartición delas propiedades delos salvajes unitarios, sin la previa sancion de una Ley, su publicación y conminacion; y presentemente sigue el Presidente haciendo estas donaciones, y esto después de haber hecho entender á todo el mundo, que devolverá sus bienes á todos los salvajes unitarios que se sometan. (...) y aprovechándose dela major parte muchos que la guerra enriquece (...) Gefes con sus soldados se ocupan en correr y faenar aquellas aciendas con notorio escandalo.191

[19/10/1847] – Nuestro Presidente, se vá haciendo cada dia mas absoluto – no guarda ningun respecto á los antiguos y buenos patriotas (...). Ni audiencia dá; y esto és... tiranico. Asi se llama.192

187 Ibid., pp. 36/158. 188 Ibid., p. 39. 189 ANTUÑA. op. cit. p. 371. 190 Ibid., p. 372. 191 Ibid., p. 376. 192 Ibid., p. 385.

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[31/12/1847] – No hay remedio, sino se quiere algo malo, és menester confesar, que el Presidente y los que lo rodean son muy rudos – Quien sabe? Muchos de ellos tienen estancias de salvajes que han de devolver, y cuyos ganados se apuran en llevarlo al Brasil. Vamos á quedar arruinados y tiranizados, sin plata sin juventud y sin libertad, si Dios no lo remedia.193

O título da tese de doutorado de Antuña, de 1834, era Confiscación de los

bienes en los crímenes de lesa-patria, o que reafirma seu interesse pelas doações de

propriedades “salvajes” realizadas por Manuel Oribe. É também mencionado um

subterfúgio que procurava evitar a total devolução do que fora confiscado com a

denúncia de transporte do gado ao Brasil. Para o Presidente blanco, estas doações não

juridicamente regulamentadas - mais uma vez, uma ‘graça’ de um governante aos seus

seguidores - eram um caminho de fortalecimento das suas alianças ao também

entrelaçar a questão econômica à política. Contudo, isto não significa que os “partidos

de princípios”, como argumentava Pivel Devoto, tenham perdido seus ideais,

tornando-se apenas instrumentos de poder em apoio a interesses individuais. Estas

questões de comércio e propriedades de ambos os partidos devem ser entendidas como

uma estratégia de acumulação e construção de alianças que, em comunhão aos

discursos legitimadores, como o da continuidade da Revolução ou o da restauração e

defesa da lei e da ordem, ampliam o capital de poder de cada uma das facções rivais.

Estas estratégias se tornavam mais confiáveis na medida em que multiplicavam suas

bases de poder, estas assentadas tanto em questões de ideais como nas materiais.

3.3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos “encontros” discutidos de Zás e Antuña, estes se defrontam com sujeitos

provenientes de distintas posições do espaço social, unidos em confronto ao inimigo

externo luso-brasileiro ou separados pela guerra civil entre os partidos uruguaios. As

categorias ‘civilização’ e ‘barbárie’ estiveram rodeadas nestes dois indivíduos por

questões relacionadas à política, aos atores políticos (caudillos ou doctores), ao Estado 193 Ibid., p. 408.

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e suas instituições, e também presentes em suas relações interpessoais e na visão que

possuíam a respeito do Prata e do Uruguai.

A comparação desenvolvida entre as questões relacionadas às duas Aduanas,

se associada à distância entre as datas de efetivação e legitimação das alianças entre

colorados e estrangeiros, demonstra como a dinâmica da guerra orientou os principais

passos de cada partido ou facção em guerra. A questão da legitimação, que em Herrera

y Obes está afastada em quase cinco anos da formação da Legião Francesa de

Montevidéu, seria um esforço posterior. Além disso, a este esforço foi necessária uma

reformulação em vista das alterações provocadas pela expulsão de Rivera do Partido

Colorado (partido que ele mesmo havia liderado e ajudado a formar).

Antes do início da ‘Guerra Grande’, Zás e Antuña não foram inimigos. O

segundo foi padrinho de casamento do primeiro em 1826, e também estiveram

próximos em seus serviços ao Estado nesse mesmo ano, quando foram demitidos

juntos por um decreto “Araucho, Antuña, los dos Marariños, Berro-Gonzales y yo”.194

Durante as revoltas promovidas por Lavalleja a partir de 1832, Zás e Antuña foram

nomeados a uma comissão que tinha por objetivo mediar o fim dos conflitos entre

algumas forças inimigas em Montevidéu.195 Anteriormente à existência dos partidos

blanco e colorado, construíram laços entre suas famílias e ainda laços de amizade no

interior do Estado. Infelizmente, não é possível afirmar o alcance da separação que

ocorreu a partir de 1836, quando tomaram caminhos opostos em relação a Rivera e

Oribe, a mesma dúvida aparece para alguma reaproximação após o acordo de paz de

1851.

Para um outro caso, Antuña menciona em seu diário um parente próximo que

havia escolhido lutar por seus inimigos. Ele não indica com precisão qual relação

194 “Se corrieronlas proclamas y siendo nuestros Padrinos el Doctor Antuña y la Esposa de [Francisco] Araucho por tener aquel la suya en Santa Lucía nos desposo á las cinco de lamañana el dia 27 de Setiembre de 1826 – D-Lorenzo Fernandez, hoy Vicaria Apostolico gral.” ZÁS. op. cit. pp. 146-147. Para a fonte de Antuña, infelizmente, não existe qualquer menção a Zás. 195 “Fuymos nombrados para componerla, el Oficial mor dehacienda entoces d. Francisco Antuña, el Ynspector del Resguardo d. Carlos S. Vicente y yo (...)” Ibid., p. 152.

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familiar existe entre os dois, mas, não apenas pelo tratamento que lhe dá, mas

igualmente pelo sobrenome ‘Labandera’, o mesmo da família de sua esposa,

percebemos até mesmo um certo temor de Antuña pela vida deste seu ‘parente

inimigo’: [06/01/1847] – Asegurase que uno de los muertos delos salvajes unitarios en Paysandú fue el Coronel Sant.º Labandera. Este és el fin infame que debía tener este mozo valiente y honrado por haber dado oídos en mucho tiempo atrás al Traydor Fructuoso Rivera, antes que á sus Parientes que lo formaron y pusieron en carrera honorable.196

Além de possuírem amigos e parentes em ambos os lados da guerra, observa-

se que as categorias utilizadas por Zás e Antuña não contêm um conteúdo

profundamente diferente entre si, como o encontrado na comparação que se faz entre

os textos de Herrera y Obes e Berro. Principalmente em Zás, a utilização da palavra

‘caudilho’ obedece muito mais a um senso comum não tão partidário quando colocada

ao lado do sentido instrumentalizado por seu colega colorado Herrera y Obes. Por

outro lado, enquanto em Antuña a categoria ‘civilização’ aparece como um ingrediente

para suas ironias, a idéia de caudilho também não difere muito da apresentada pelos

textos dos demais. É somente em Berro que se encontra uma proposta rival de

‘civilização e barbárie’.

Não apenas a venda dos direitos da Aduana de Montevidéu serve como

exemplo de continuidade para um estilo de administração estatal de Antigo Regime,

mas o mesmo pode ser encontrado nas ‘graças’ concedidas a Zás em sua jubilación e

em alguns criminosos ou prisioneiros libertados por Oribe citados por Antuña. Estas

‘graças’ concedidas por um poder pessoal não são exclusivas do caudilhismo, mas

próprias de costumes que remontam ao período colonial. A legitimação institucional

de Manuel Oribe ao colocar-se como defensor das leis e da Constituição é combinada

ao exercício de um poder personalizado, na concessão de graças ou privilégios aos

seus subordinados que receberam a permissão de uso de propriedades confiscadas de

196 Ibid., p. 279.

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colorados, garantindo-lhe uma abrangência maior na construção de alianças e na

acumulação de capitais simbólicos e materiais.

Para o caso da distribuição de terras confiscadas, Antuña reclama da falta de

uma legislação e de um processo jurídico formal para sua efetivação. Para a requisição

de jubilaciónes, existia um decreto de regulamentação formulado pelo próprio Rivera,

a quem caberia o descumprimento dessa mesma norma na concessão da graça ao

requerente Zás. Assim como Oribe, Rivera percorreria o mesmo caminho estratégico

de diversificação das fontes de legitimação e construção de laços de aliança.

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4 CONCLUSÃO

Ao longo desta dissertação, foi possível revisar a construção da categoria

caudilho e observar como sua imagem se transforma e perde sua homogeneidade

“clássica”. Atendo-se às formas ideais de dominação weberianas, a legal, a tradicional

e a carismática estavam disponíveis ao repertório de possíveis estratégias dos atores

sociais platinos, contudo, não uniformemente distribuídas, estando mais ou menos

disponíveis de acordo com a posição e formação social de cada um. Para alguns, como

para o analfabeto e mulato Encarnación, o caudilhismo seria uma opção viável de

acumulação de poder. Para Rivera ou Artigas, o caudilhismo seria apenas uma opção a

mais; talvez a mais importante, mas seguramente não a única. Para Antuña, seu pouco

contato com a “massa de manobra” gauchesca seria substituído por sua bagagem

intelectual, por seu título de doutor em direito e por sua carreira política não

caudilhesca.1 Desta forma, apresentam-se aos contemporâneos de Zás e Antuña um

vasto repertório de opções estratégicas que se mantém em instituições ou costumes de

Antigo Regime, passando por alternativas criadas pela própria dinâmica da guerra, ou

ainda relacionadas a uma legitimação intelectual “moderna” do pós-revolução

francesa. Em seu conjunto, estas legitimações pretendiam alcançar praticamente todos

os indivíduos que de alguma forma poderiam ser mobilizados, de gaúchos a empleados

e doctores, ao longo de toda a cadeia hierárquica platina.

A oposição tradicional entre caudilhismo e construção estatal não tem apenas

como fundamento uma determinada concepção de caudilho, mas também constrói um

modelo de Estado intimamente ligado à idéia de Estado-Nação. Partindo do princípio

de que somente o altamente centralizado e interventor corresponderia a uma

“unificação do nacional”, ou ainda de que somente neste modelo se encontraria um

Estado “moderno”, os Estados provinciais e suas instituições, comumente ligadas à

1 Estando limitada a cidadania a alguns poucos, o suporte das “massas” tinha pouco impacto em resultados eleitorais.

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noção de federalismo e autonomia local, aparecem ou como desvirtuamentos de uma

ordem “natural” de um progresso social (ou civilizador), ou como meros momentos de

transição entre dois sistemas propriamente ditos de sociedade, o da ordem colonial e o

que se constituiria ao final do século XIX com o definitivo fortalecimento estatal.2

Uma concepção mais flexível acerca da experiência estatal e política daquela primeira

metade do século XIX colocaria as estratégias e escolhas dos seus contemporâneos

como alternativas possíveis de aplicação para aquele período. Em um misto de

necessidades práticas e concepções de construção e legitimação de Estados e

hierarquias sociais, os atores sociais daquele contexto interagiam apoiando-se em

idéias e experiências compartilhadas entre a ordem colonial e a dinâmica dos

movimentos de independência e formação de novas instituições.

Desta forma, o caudilho não surge como uma patologia social, mas como uma

posição possível de legitimação e acumulação de poder a ser amparada por certos

setores sociais e que pode ser combinada ou contraposta a outras estratégias de

dominação. O caudilho não seria um tipo social, rígido e invariável, mas uma posição

social passível de ocupação para alguns indivíduos. Como em outras sociedades, a

platina oferecia aos seus indivíduos vários caminhos possíveis de legitimação e

acumulação, alguns mais eficientes que outros, porém não necessariamente

excludentes entre si, podendo um mesmo indivíduo ocupar duas ou mais posições com

o objetivo de ampliar sua base de poder, o que pôde ser observado nos capítulos

anteriores em Artigas, Rivera e Oribe.

Não é incomum encontrar textos que apresentam uma sociedade de baixa

diferenciação social para o Uruguai3. Por outro lado, é coerente ressaltar que a

2 Em Sala de Touron, entre pré-capitalistas e capitalistas. SALA DE TOURON, L; ALONSO ELOY, R. El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco. Tomo II: Sociedad, política e ideología. Montevidéu : Banda Oriental, 1991. 3 BARRÁN, J. P. Historia de la sensibilidad en el Uruguay. 2 v. Montevidéu : Banda Oriental, s/d.. Em geral, essa igualdade é projetada apenas para as relações entre os homens da campaña, e não para a sociedade como um todo. Ainda sim, alguns autores costumam atribuir aos orientais daquela época

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exteriorização de alguns signos de poder daquela sociedade recém independente não

era tão evidente entre algumas parcelas da população, pois o sotaque, maneiras e

hábitos eram elementos que tendiam a uniformizar. Por este motivo, Rivera e seus

oficiais, segundo Damaso Antonio Larrañaga, “en todo guardan una perfecta igualdad

(...), y solo se distinguen por la grandeza de sus acciones, y por las que solamente se

hacen respetar de sus subalternos. Detestan todo lujo, y todo cuanto pueda

afeminarlos”4. E no olhar de um visitante inglês, “el dueño de muchas leguas de tierras

y de innumerables ganados se sienta a hablar con el pastor a sueldo, un pobre tipo

descalzo, en su rancho lleno de humo, y ninguna diferencia de casta o de clase los

separa”.5 Essa aparência externa pode aproximar alguns indivíduos reunidos em uma

pequena população se seus costumes não se diferenciarem muito, mas ela esconde

outras formas de hierarquização, como a ocupação de importantes cargos militares e

burocráticos, assim como o acúmulo de riquezas, pois ser “dueño de muchas tierras” já

é um distanciamento considerável de quem tem pouca ou nenhuma. O protagonista e

viajante inglês da ficção de William Hudson estava acostumado a uma diferenciação

externa mais óbvia segundo os moldes europeus. Porém, signos exteriores de

diferenciação poderiam ser encontrados em eventos públicos, seguindo regras de

cerimonial religioso ou cívico.6 Entretanto, na medida em que alguns autores

distanciam o urbano e o rural como ambientes antagônicos de populações

um sentimento de igualdade que deve ser matizado. Isto, antes de tudo, por ser uma igualdade pensada apenas em oposição a divisões de classe e, como podemos observar, existem outras formas de hierarquização social. Os contemporâneos de Zás tinham como referência de estratificação social o antigo regime europeu. A consciência de que o “terceiro estado” pode ser dividido entre burgueses e proletários apenas ganha força para o Uruguai das últimas décadas do século XIX, principalmente com a chegada dos imigrantes e dos ideais socialistas. 4 LARRAÑAGA, D. A. Diario del viaje de Montevideo a Paysandú. Montevidéu : Ministerio de transporte y obras publicas, Instituto Nacional del Libro, 1994. p. 64. O texto original data de 1815. 5 HUDSON, W.A. La tierra purpurea. Montevidéu : Banda Oriental, 1992. p. 191. Esta obra foi publicada na Inglaterra pela primeira vez em 1885, mas sua história teve como cenário os conflitos partidários que ainda existiam na década de 1860. 6 IRIGOYEN. E. “La ciudad como escenario. Poder y representación hasta 1830”. In: ACHUGAR, H.; MORAÑA, M. (org). Uruguay: imaginarios culturales. Montevidéu : Editora Trilce, 1998.

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“psicologicamente” diferentes, reforçam o afastamento simbólico entre o chiripá e o

fraque, entre os costumes “civis” da cidade e os “bárbaros” do campo.

Todavia, a etiqueta não era uma qualidade que todos deveriam possuir e

demonstrar. E mesmo aquele que se constrangia a dominá-la, nem sempre a

necessitava, assim como não era obrigatória ou tão significativa de demonstração para

alguns setores. No caso dos caudilhos, sua superioridade simbólica frente aos gaúchos

poderia ser comprovada por outros caminhos. Muitos tinham uma formação

intelectual, mas seu método de dominação e mobilização da campaña seguia por outra

direção: o caudilho seria o “melhor gaúcho”. Com os gaúchos, eles se portavam

exteriormente como gaúchos; com as elites, muitos conseguiam agir como elite, ou

seja, as “boas maneiras” são reservadas a determinados interlocutores7.

O mundo das letras, suporte legitimador dos doctores da ‘Política da Fusão’

que se organizaria ao fim da ‘Guerra Grande’ não encontraria grande respaldo durante

o predomínio da comunicação oral que, apenas progressivamente, cederá espaço à

escrita (tendência de fortalecimento do arquivo em detrimento da memória). Mas a

posição dos doctores é de confronto a essas formas de legitimação e acumulação de

poder dos caudilhos. Nas críticas que se apresentam, desenvolve-se uma

estigmatização da figura caudilhesca, homogeneizada em torno de uma série de pré-

conceitos a eles atribuídos pelos doctores. Incapazes estes de mobilizar forças

semelhantes àquelas dos caudilhos, organizaram a ‘política da fusão’ na tentativa de os

excluir do controle do Estado. Desta forma, sustentavam suas ambições na

legitimidade intelectual e em um Estado reformado e adaptado a um estilo de

dominação que os favorecesse.

Estando a barbárie projetada nos caudilhos, rivais não apenas políticos, mas de

um “estilo de vida”, contra estes existirá um incremento gradual de repúdio durante o

século XIX. Após 1860, data simbólica fixada por Barrán, mas com maior ênfase para 7 Ainda que por fontes dúbias, Sarmiento conta como Facundo Quiroga propositadamente rejeitava o uso de roupas e modos urbanos com o objetivo de afrontar homens civilizados (uma ação social). SARMIENTO, D. F. Facundo, civilización y barbarie. Buenos Aires : COLIHUE, 1990. p. 110.

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a década de 1870, os caudilhos serão atingidos pelo crescimento do Estado. O que não

quer dizer que eles tenham desaparecido, pois, como Rosas8, foram capazes de

contribuir na constituição do Estado. Muitos foram capazes de se ajustar ao novo

modelo burocrático, trocando o chiripá pelo fraque, e os doctores da ‘fusão’ logo

descobririam que os caudilhos também saberiam desfrutar das vantagens de um Estado

forte e centralizado.

8 GARAVAGLIA, J. C. “La apoteósis del Leviathán: el estado en Buenos Aires durante la primera mitad del siglo XIX”. Latin American Research Review, 2003, v. 38. n.1, pp. 135-168.

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Anexo 1: Trechos das Memórias do General Melchor Pacheco y Obes que tratam de Francisco Solano Antuña e comentam o caso da “revolta das costureiras” abordado no

item 3.2.1 Propuso el ministerio de gobierno arrojar de Montevideo algunas mugeres conocidas por inquietas; me opuse á ello con exaltacion por que no creía conveniente la medida, y sin embargo fue adoptada. Propuso el mismo arrojar todo lo que se llamaba Blanquillo.1

Creo poder recordar las personas á quienes de lo alto de mi posición dirijí palabras acervas – Son D. José Costa, la familia de Antuña, (...).2

A las Señoras de Antuña mandé un recado fuerte y despotico: era cuando se empezaban á repartir costuras para el egército; esas Señoras no recibieron las que le envié, y yo procedí asi para que sabido eso en la ciudad no se me devolviesen otras costuras, pues si cedía un ocacion era claro que ese recurso me fallaba, no teniendo yo otro medio de confeccionar la ropa de los que defendían a la Patria – Ahora bien, cuando se exijia del hombre el morir al frente de la trinchera, ¿habia injusticia en pedir á la muger algunas horas de trabajo en pró de la defensa? Yo me resolví esta cuestion por la negativa; y procedí en consecuencia, tanto mas cuanto que creía y creo que una ves desobedecido el prestigio de mi autoridad se quebraba, y los prodigios realizados en los primeros tiempos del sitio de Montevideo eran imposibles.3

Los coroneles Antuña, Velasco (D. Gabriel), y Quinteros se ostentaban (en) pugna con el general Paz y sus amigos: mandando la principal fuerza de la capital, contrariaban toda medida de defensa, y se mostraban por todos sus actos de acuerdo con el enemigo. El pueblo lo creia asi, y los sucesos que vinieron después no lo desmienten. Antuña, dos tenientes coroneles, y la mayor parte de la legión de policia á sus ordenes se fueron al enemigo (...).4

1 PACHECO Y OBES, M. Memoria del General Melchor.Pacheco y Obes sobre su actuación en la Defensa de Montevideo durante los anõs 1843-1846. Revista Histórica. Montevidéu: v. XLIX, n. 148-150, 1977. p. 771. 2 Ibid., p. 773. 3 Ibid., pp. 773-774. 4 Ibid., pp. 790-791.

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Anexo 2: Breve biografia de algumas personalidades platinas. Alberdi, Juan B. (1810/1884) Nascido em Tucumán, noroeste argentino, ainda jovem, chegou a Buenos Aires para estudar. Fez parte do movimento que deu origem à Geração de 1837. Exilado em Montevidéu, nesta cidade terminou seus estudos de direito em 1840. Após uma viagem pela Europa, estabeleceu-se no Chile. Posteriormente à queda de Rosas, foi nomeado conselheiro do governo de Justo José de Urquiza em 1855 e, depois, representante argentino na França. Após a derrota de Urquiza frente a Mitre em 1861, viu-se obrigado a permanecer em Paris. Esteve na Argentina mais uma vez, mas logo retornou à França, onde viria a falecer. Artigas, José G. (1764/1850) Discute-se se nasceu em Montevidéu ou na Villa del Sauce (Canelones). Em 1797, ingressou no Corpo de Blandengues para policiar a campaña. Aderiu à Revolução de 25 Maio em 1811, quando partiu para Buenos Aires. Retornando à Banda Oriental, derrotou uma força espanhola em Las Piedras e iniciou um sítio a Montevidéu em 21 de maio de 1811, levantado logo em seguida. Um segundo sítio foi iniciado em fins de 1812 sob comando de José Rondeau com as forças expedicionárias do Segundo Triunvirato de Buenos Aires. Artigas abandonou este segundo sítio em 1814, rumando para o Litoral argentino. Com o abandono de Montevidéu por parte do Diretório revolucionário, Artigas recebeu o comando de toda a Banda Oriental. Formou a Liga Federal, uma união entre a atual República Oriental del Uruguay, Entre Rios, Corrientes, Santa Fé e, por algum tempo, Córdoba. Em 1816, tropas portuguesas invadiram a Banda Oriental, derrotando a Artigas em 1820. Dorrego, Manuel. (1787/1828) Federal nascido em Buenos Aires, assumiu o cargo de Governador da Província de Buenos Aires após a deposição de Rivadavia e o desaparecimento do cargo de Presidente da República em 1827. Foi deposto em 1828 por um golpe unitário. Foi preso por Juan Lavalle e condenado à morte por fuzilamento naquele mesmo ano. Este evento pode ser considerado como o principal estopim das guerras que se seguiram entre os partidos unitário e federalista. Lavalle, Juan. (1797/1841) Combateu durante o movimento de independência argentino no exército dos Andes de San Martin entre 1817 e 1822, e na guerra contra o Brasil entre 1825 e 1828. Em 1828, dirigiu o levante unitário que derrubou e executou o Governador Dorrego, sendo vencido pelo federal Estanislao López em 1829. Em 1841, partindo de Montevidéu, onde apoiava o Partido Colorado, sublevou-se contra Rosas, morrendo em combate. Lavalleja, Juan A. (1784/1853) Nascido em Minas, Banda Oriental. Uniu-se ao movimento artiguista desde seu início até 1818, quando foi feito prisioneiro pelas tropas luso-brasileiras e enviado como prisioneiro para o Rio de Janeiro, de onde saiu em 1821. A partir de Buenos Aires, retornou à Banda Oriental em 1825 em um movimento que ficou conhecido como o dos Treinta y Tres Orientales. Após a independência do Uruguai, não conseguiu se eleger presidente, iniciando uma revolta contra Fructuoso Rivera em 1832. Derrotado, exilou-se em Buenos Aires, onde combateu junto aos federais. Apoiou o Partido Blanco de Manuel Oribe, mas faleceu logo depois de acabada a ‘Guerra Grande’.

Paz, José Maria. (1791/1854) Nascido em Córdoba, lutou durante as campanhas da independência e contra o Brasil. De tendência unitária, lutou ao lado de Lavalle contra Rosas e os federais. Defendeu Montevidéu durante a ‘Guerra Grande’.

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Oribe, Manuel. (1892/1857) Nascido em Montevidéu, foi o segundo Presidente do Uruguai independente, em 1835. Em 1836, fundou o Partido Blanco, na guerra contra a revolta de Rivera. Foi deposto em 1838, exilando-se em Buenos Aires, onde comandou os exércitos de federais de Rosas e derrotou os unitários da Liga do Norte e na Entre Rios ocupada por Lavalle. Retornou à Banda Oriental em 1843, quando iniciou o “Sítio Grande” a Montevidéu. Exilou-se em Barcelona, Espanha, em 1853, retornando ao Uruguai em 1855. Rivadavia, Bernardino. (1780/1845) Nascido em Buenos Aires, assumiu a Presidência da Argentina em 1826, deposto no ano seguinte. Reconhecido como um dos principais indivíduos da primeira geração de unitários. Sentenciado ao exílio em 1834, faleceu em Cádiz, Espanha. Rivera, José Fructuoso. (1786/1854) Lutou ao lado de Artigas, mas, após a derrota do caudilho oriental, colaborou com a ocupação luso-brasileira. Com a entrada dos Treinta y Tres Orientales, uniu-se a Lavalleja até a independência em 1828. Foi eleito primeiro Presidente da República, mas, em 1836, levantou-se contra Manuel Oribe, fundando o Partido Colorado. Foi expulso deste em 1847 pelos dirigentes da defesa de Montevidéu. Tratou de retornar à política, mas faleceu pouco após o fim da ‘Guerra Grande’. Rosas, Juan M. (1793/1877) Federal nascido em Buenos Aires. Iniciou seu primeiro mandato de Governador de Buenos Aires em 6 de dezembro de 1829, mas abandonou o cargo em 1832, para retornar em 1835, sob a condição de obter da Câmara de Representantes da capital as “Faculdades Extraordinárias”. Foi derrotado em 1852 por Urquiza em Monte Caseros, partindo para a Inglaterra em exílio, onde veio a falecer. Sarmiento, Domingo F. (1811/1888) Nascido em San Juan, no Cuyo argentino. Inimigos dos federais Rosas e Facundo Quiroga, exilou-se no Chile. Combateu o governo Rosas e o sistema federal através de diversas publicações. Retornou à Argentina em 1851 como “correspondente de guerra”, seguindo ao exército de Urquiza, que viria a vencer Rosas logo em seguida. Foi eleito Presidente da República em 1868, deixando o cargo em 1874. Durante seu mandato, foi concluída a Guerra do Paraguai. Urquiza, Justo J. de. (1801/1870) Nascido em Concepción. Federal, lutou ao lado de Rosas até 1851, quando se declarou hostil ao seu antigo líder, derrotando-o em 1852. Aos quarenta anos de idade, foi Governador de Entre Rios. Em 1853, foi eleito Presidente da Confederação Argentina. Derrotado por Bartolomé Mitre na batalha de Pavón em 1862, foi gradualmente retirando-se da cena política.