jovens com ideias na cabeça e câmera na mão

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1 Jovens com idéia na cabeça e câmera na mão: Biopolítica e trabalho imaterial na produção audiovisual Alexandre Barbalho Usamos as linguagens vencedoras, aquelas que chegam até às pessoas. Não é por acaso que Hollywood vence. Esta é a sociedade da comunicação. Não podemos ignorar os códigos Luca Casarini (militante dos Centros Socais do Nordeste italiano) Um jovem se apresenta em uma tarde dominical e anuncia ao telespectador: está entrado no ar o NoAr, um programa que trata da cidade, da cultura, do conhecimento, da atenção, da pesquisa e da diversidade. Um “programa-oficina feito por jovens para mim e para você”. O enunciado do jovem inquieta o telespectador que se remexe na poltrona. Afinal, segundo Deleuze (2000), a comunicação não seria distinta da criação em tempos de biopolítica e sociedade de controle? Então como ousar um programa-oficina na TV que trate de conhecimento, pesquisa, diversidade? O que propomos é pensar essa possibilidade, acompanhando um pouco a experiência de jovens realizadores atuantes em Fortaleza na ONG Alpendre e a produção de suas criações audiovisuais. Jovem apresentador de um dos quadros do NoAR

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Artigo sobre as produções audiovisuais

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    Jovens com idia na cabea e cmera na mo:

    Biopoltica e trabalho imaterial na produo audiovisual

    Alexandre Barbalho

    Usamos as linguagens vencedoras, aquelas que chegam at s pessoas.

    No por acaso que Hollywood vence. Esta a sociedade da comunicao.

    No podemos ignorar os cdigos

    Luca Casarini (militante dos Centros Socais do Nordeste italiano)

    Um jovem se apresenta em uma tarde dominical e anuncia ao telespectador: est

    entrado no ar o NoAr, um programa que trata da cidade, da cultura, do conhecimento, da

    ateno, da pesquisa e da diversidade. Um programa-oficina feito por jovens para mim e

    para voc.

    O enunciado do jovem inquieta o telespectador que se remexe na poltrona. Afinal,

    segundo Deleuze (2000), a comunicao no seria distinta da criao em tempos de

    biopoltica e sociedade de controle? Ento como ousar um programa-oficina na TV que

    trate de conhecimento, pesquisa, diversidade?

    O que propomos pensar essa possibilidade, acompanhando um pouco a

    experincia de jovens realizadores atuantes em Fortaleza na ONG Alpendre e a produo

    de suas criaes audiovisuais.

    Jovem apresentador de um dos quadros do NoAR

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    Biopoltica na lgica da sociedade de controle

    Em fins do sculo XVIII, como informa Foucault1, comea a se esboar a

    biopoltica - tentativa do poder de se apoderar da vida em seu conjunto. Antes, nos

    sculos XVII e XVIII, a sociedade disciplinar tinha desenvolvido suas tecnologias e

    saberes que vigiam, hierarquizam, classificam, inspecionam, relatam, treinam e punem o

    homem-corpo uma antomo-poltica do corpo humano.

    As novas tecnologias que compem a biopoltica no descartam as tcnicas

    disciplinares. Muito pelo contrario, vm complet-las, usando-as como suporte para dar

    conta do corpo no mais individualizado no meio da populao, mas da populao como

    um s corpo, do homem e da mulher no como indivduos, mas como espcie, como

    homem-espcie uma biopoltica da espcie humana.

    A biopoltica no se entretm tanto com a disciplina, mas com a regulamentao,

    com a tecnologia regulamentadora, previdenciria da vida, que faz viver e deixa morrer.

    O que liga as duas instncias, o que transita entre a disciplina e a regulamentao, entre o

    corpo e a populao, a norma - poder horizontal e internalizado cuja fora e efetividade

    esto, como aponta Olivier Devillaine2, em sua imanncia. Na juno do poder

    disciplinar e do biopoder temos a sociedade normalizadora. Ou a sociedade do controle,

    como denominam alguns pensadores, entre o quais Gilles Deleuze3. Na sua avaliao, as

    sociedades contemporneas se caracterizam cada vez mais por um controle contnuo e

    aberto, interminvel, e no pelo confinamento das instituies disciplinares que esto em

    crise.

    A lgica do confinamento o molde, a do controle a modulao. A sociedade do

    controle a da informao instantnea e permanente; da comunicao, cujo modelo

    maqunico o ciberntico, as mquinas de informtica. Na sociedade de controle, os

    indivduos possuem cifras e senhas, que podem garantir o acesso informao, e no

    1 FOUCAULT, Michael. Em defesa da sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 1999. 2 DEVILLAINE, Olivier. Norme. In: LECLERCQ, S. (org.). Abcdaire de Michael Foucault. Paris: Vrin, 2004. p. 123-125 3 DELEUZE, Gilles. Conversaes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2000.

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    palavras de ordem como na sociedade disciplinar. Os indivduos se tornam dividuais,

    divisveis, e as populaes amostras de pesquisa, dados bancrios.

    Vivemos em um tempo cuja lgica maqunica hegemnica a da informao e da

    comunicao. A questo como pensar e agir de forma diferente aos modelos impostos

    pela sociedade de controle, utilizando-se de suas fissuras e brechas. Em conversa com

    Toni Negri, Deleuze afirmou que para ele e Guattari uma sociedade parecia se definir

    menos por suas contradies que por suas linhas de fuga4. Portanto, quais as linhas de

    fuga possveis j que estamos todos no interior do Imprio?

    Deleuze acreditava que talvez a fala estivesse apodrecida e que, de toda forma, a

    comunicao fosse distinta da criao. Que o importante era o desvio da fala, criar

    vacolos de no-comunicao, interruptores, para escapar ao controle.5 Mas, no ser

    possvel uma outra linha de fuga alm da no-comunicao? Um desvio da fala

    favorecendo uma contra-comunicao?

    Jovem apresentador de um dos quadros do NoAR

    Biopoltica, trabalho imaterial e afeto

    Na era da disciplina, o capital voltava-se para a produo, cujo tipo ideal era o

    fordismo. Da a necessidade de normatizar os corpos trabalhadores, garantindo maior

    produtividade. No capitalismo contemporneo, o foco desvia-se da produtividade e

    dirige-se para os servios, para as aes das bolsas. Na definio de Deleuze, trata-se do

    4 DELEUZE, Gilles. Conversaes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2000, p. 212. 5 DELEUZE, Gilles. Conversaes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2000, p. 212

  • 4

    capitalismo de sobre-produo da era ps-fordista onde a fbrica superada pela

    empresa e o marketing torna-se instrumento de controle social.

    H no capitalismo contemporneo a centralidade em torno do trabalho vivo, cada

    vez mais intelectualizado. Na empresa ps-fordista, cabe sempre mais ao trabalhador a

    necessidade de escolher entre alternativas e de assumir decises, da que o que deve ser

    organizado e comandado a sua subjetividade. Como afirmam Lazzarato e Negri,

    qualidade e quantidade do trabalho so reorganizados em torno de sua imaterialidade e

    o trabalho do operrio transforma-se em trabalho de controle, de gesto da informao,

    de capacidades de deciso que pedem o investimento da subjetividade6.

    Se o trabalho imaterial, entendido como trabalho abstrato ligado subjetividade,

    facilmente visvel nos setores de ponta da produo capitalista, no podemos correr o

    risco de v-lo como atividade restrita a poucos operrios qualificados atuantes em um

    modelo comunicacional plenamente constitudo. Como observam os autores, o trabalho

    vivo imaterial a forma de atividade de cada sujeito produtivo na sociedade ps-

    industrial7.

    Todos se tornam produtivos, mesmo aqueles que no esto lidando dia-a-dia com

    o trabalho na empresa. Se a base da produo o trabalho vivo, imaterial, este no se

    encerra apenas na produo, mas se encontra tambm na reproduo e no consumo. o

    que Negri denomina de devir-mulher do trabalho, esta produo e reproduo gerais de

    subjetividade e de vida, pois os processos de produo e de comunicao, os

    investimentos afetivos, os investimentos referentes educao e reproduo material

    dos crebros esto prestes a se tornar cada vez mais essenciais8.

    Segundo Maurizio Lazzarato, o socilogo francs Gabriel Tarde, em seu trabalho

    La psychologie conomique, prope o conceito de subjetividade como potncia e afirma

    que o conhecimento o afeto mais importante afeto entendido como potncia de agir,

    seguindo Spinoza. O que possui conseqncias econmicas, a ponto de Lazzarato propor,

    alm da teoria das riquezas, o desenvolvimento de uma teoria dos conhecimentos

    baseada na crena e uma teoria das paixes baseada no sentir, fazendo dos conhecimentos

    6 LAZZARATO, Maurizio e NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial: Formas de vida e produo de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 25. 7 LAZZARATO e NEGRI. 2001, p. 26 8 NEGRI, Antonio.Exlio: seguido de Valor e Afeto. So Paulo: Iluminuras, 2001, p. 30.

  • 5

    e das paixes foras econmicas que explicam a especificidade das economias

    modernas9.

    O conhecimento no se constitui da mesma maneira que as outras mercadorias.

    Estas valem por sua raridade e a sua produo e o seu consumo implicam alienao e

    despojamento. J o conhecimento e o afeto baseiam-se na emanao, na adio recproca

    em seu processo produtivo e de socializao. Suas fontes de valor so a inveno e a

    cooperao e no o sobre-trabalho e a utilidade.

    Porm, sendo cada crebro-corpo a fonte de valor da economia imaterial vigente,

    tambm, para o trabalhador, a fonte de uma autovalorao indita na historia do

    capitalismo. A partir desta tendncia torna-se possvel pensar na resistncia desses

    corpos-inventores ao Imprio; na constituio de uma comunidade expansiva no

    exerccio de seu trabalho imaterial, pois o poder imperial no pode ser imposto

    simplesmente de cima para baixo, pois trata com subjetividades singulares criadoras de

    sentido.

    Esses corpos, essas subjetividades singulares juntas compem a multido (e no a

    massa ou o povo onde esto abolidas as diferenas). Temos aqui a positivao do

    conceito de biopoltica. Se em Foucault significa controle sobre a populao, em

    Deleuze, Negri e outros o conceito passa a significar a fora criadora da vida humana, a

    potncia inventiva da multido - um caldo biopoltico, o magma material e imaterial,

    esse corpo-sem-rgos que precede cada individuao e cada corpo, essa potncia

    ontolgica comum que, no entanto, tende para singularizaes divergentes, diz Pelbart10.

    Essa dimenso positiva, produtiva de biopoltica, foi discutida longamente em Mil

    Plats de Deleuze e Guattari. Como situam Negri e Hardt, os pensadores franceses

    apontaram o paradoxo do biopoder: ao englobar todas as esferas da vida, perde a

    capacidade de mediar as diferentes foras sociais e propicia o surgimento de um novo

    meio (milieu) onde vigora a mxima pluralidade e a incontornvel singularizao um

    9 LAZZARATO e NEGRI. 2001, p. 62. 10 PELBART, Peter Pl. Biopoltica e biopotncia no corao do imprio. In: GADELHA, S.; LINS, D. (orgs.). Nietzsche e Deleuze: Que pode o corpo? Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2002. p.251-260 - p. 258.

  • 6

    meio do evento: As resistncias deixam de ser marginais e tornam-se ativas no centro de

    uma sociedade que se abre em redes11.

    Estamos todos dentro do regime biopoltico do Imprio. No h o fora e a poltica

    pura imanncia, tanto no seu aspecto negativo, de controle, quanto produtivo: de

    possibilidade de resistncia criativa e de desejo por dentro do regime imperial; de

    constituir o tecido biopoltico de baixo para cima; de virtualidade entendida como o

    conjunto de poderes para agir (ser, amar, transformar, criar) que reside na multido12.

    O que preciso investigar, como propem os autores, as possibilidades do

    virtual em tocar no real, em exercer presso nas bordas do possvel; como a criatividade e

    o afeto desenvolvidos pelo trabalho imaterial podem se transformar em poder

    constituinte, em poder expansivo.

    Linhas de fuga: possibilidades

    Podemos pensar nos movimentos globalizados de oposio ao Imprio como os

    encontros do Frum Social Mundial e os manifestos contra o G-8 em Gnova e Seattle13.

    Mas podemos pensar tambm nas mltiplas aes de criao, de imaginao, de desejo,

    enfim, de produo de subjetividade que atuam localmente e que, formal ou

    informalmente, articulam-se em rede. Aes que, independente da diversidade de formas

    e meios, se configuram como trabalho imaterial e, principalmente, como biopolticas (em

    seu sentido produtivo).

    Nesse contexto situa-se a atuao dos jovens reunidos em torno da ONG

    Alpendre, em Fortaleza, na produo do programa de audiovisual NoAr, veiculado na TV

    pblica do estado do Cear nas tardes de domingo. O NoAr tem uma hora de durao e

    composto de vrios curtas-metragem que exploram diversos gneros: documentrios,

    fices, vdeo-clips etc. H tambm um apresentador que vai conduzindo o telespectador

    durante o programa.

    11 HARDT; NEGRI. 2001, p. 44 12 HARDT; NEGRI.2001, p. 379 13 Ver COCCO; HOPSTEIN, 2002.

  • 7

    Vinheta de abertura do NoAR produzida pelos jovens do projeto

    O projeto NoAr se iniciou em 2003 e em sua primeira verso trabalhou com 45

    jovens entre 16 e 24 anos, todos eles vindos do Poo da Draga14. Atualmente, ele est na

    sua terceira verso, tendo passado pelo projeto mais de 100 jovens.

    Nos documentos elaborados pela instituio, o NoAr entendido como um dos

    ncleos do Alpendre, um ncleo de formao nas reas de vdeo e internet, cujo objetivo

    seria o de que criar e desenvolver projetos que ajudem a formar um circuito de pesquisa,

    reflexo e produo artstica na cidade, constituindo-se de forma a integrar adolescentes e

    jovens de comunidades em situao de risco.

    Na justificativa do projeto, observamos como os formuladores da proposta

    compreendem a sociedade contempornea como uma sociedade pautada em grande parte

    pela informao e pela comunicao e apontam a necessidade premente de fortalecer os

    processos de singularizao que escapem dos fluxos homogeneizantes da globalizao.

    Por outro lado, os coordenadores do NoAr defendem que preciso combater a

    representao simplista dos jovens agrupados em torno de gangues. Nesta forma de

    sentimento gregrio, segundo avaliam, o esprito de participao e pertencimento dos

    jovens, bloqueado em suas formas afirmativas de vida, acabam por assumir uma linha

    reativa onde a violncia funciona como catalisador no qual eu me afirmo a partir da

    anulao do outro.

    14 O Poo da Draga uma comunidade nas vizinhanas do Alpendre com mais de 60 anos de existncia e situada beira-mar, na regio do antigo porto de Fortaleza. Segundo dados da Secretaria Estadual de Infra-estrutura, em 2001, o Poo da Draga era composto por 1071 moradores, sendo que 54,79% desta populao so de jovens com at 25 anos e, entre os que j assumiam a manuteno da famlia, 59,74% recebiam at um salrio mnimo. Tais perspectivas propiciam a delinqncia juvenil, como o consumo de drogas, trfico e pequenos assaltos. Desde o incio do Alpendre, os jovens da comunidade se envolveram com os projetos desenvolvidos pela ONG, como o TV de Rua em 2000 e o Circuito Contemporneo de Artes Plsticas em 2001-2002.

  • 8

    Faz-se necessrio, continua o documento, afirmar o espao pblico como lugar do

    partilhamento e da solidariedade. E no caso especfico do NoAr, preciso trabalhar os

    meios de comunicao a partir dos processos da arte e apostar na radicalidade destes

    processos como fora de reinveno de novas formas e linguagens, trazer a comunicao

    para o jogo da vida, como um processo aberto de experimentao. Mais do que capacitar

    os jovens nas linguagens miditicas, o que se prope que eles possam reinvent-las e

    no copiar os modelos, as gramticas estabelecidas:

    Tomar nas mos as novas mdias no s uma questo de t-los ao alcance. Tomar algo para si envolver-se, apropriar-se. E isso no se faz sem um processo de vivncia e experimentao. No basta promover o acesso aos meios, preciso um processo continuado de formao e contra-informao para desmascarar os clichs do mundo da mdia e possibilitar outras formas de apropriao. Essa viso envolve, sobretudo, a (re)construo de projetos e sonhos apostando no resgate do potencial humano e criativo presente em cada um desses adolescentes, que buscam novas perspectivas de vida.

    Durante o projeto, os jovens selecionados recebem uma formao variada, com

    disciplinas tericas sobre filosofia, esttica, comunicao, cultura e outras aplicadas

    produo audiovisual como roteiro, direo, cmera, iluminao, edio, onde as lies

    so colocadas em prtica na constituio de um programa-piloto do NoAr.

    Todos os garotos e garotas participam das etapas de elaborao do vdeo, mas, ao

    longo do processo formativo, as singularidades se revelam e cada um vai, aos poucos, se

    especializando naquele trabalho que mais lhe satisfaz. Ao final, temos um coletivo de

    singularidades trabalhando, ou uma multido, para usarmos o termo spinozista

    (multitudo) de Negri15.

    Terminado o perodo de formao, para o qual recebem uma bolsa de estudos, os

    jovens podem se integrar na equipe permanente de produo do programa NoAr, que

    veiculado aos domingos. Esta produo conduzida totalmente pelos garotos e garotas,

    desde a discusso em torno dos temas a serem abordados nos vdeos passando pela

    elaborao do roteiro, produo, at a etapa da edio. Os organizadores do Alpendre s

    intervm quando solicitados, o que acontece, geralmente, na fase de produo, diante de

    15 NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem: poder e potncia em Spinoza. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.

  • 9

    dificuldades operacionais ou de recursos financeiros. Vale observar que, no atual estgio

    do projeto, alguns dos professores das turmas iniciantes so ex-alunos.

    Cenas de abertura do programa NoAR com imagens dos jovens gravando

    Em outro momento, discuti como esse espao de partilhamento e de solidariedade

    entre os jovens, defendido pelo Alpendre, propiciou que estes se agrupassem no em

    tribos ou gangues endgenas e xenfobas, mas criassem entre si uma comunidade de

    sentidos, de afetos, por meio de uma poltica de amizade, sinalizando para outras

    compreenses de poltica e de cidadania16.

    Acrescentaria aqui que as criaes miditicas, resultado desta poltica de amizade,

    so estratgias sensveis no jogo da comunicao no sentido que dado ao termo por

    Muniz Sodr: jogos de vinculao dos atos discursivos s relaes de localizao e

    afetao dos sujeitos no interior da linguagem17. Ou seja, alm de informao, o NoAr

    permite o reconhecimento entre subjetividades, no s entre os jovens que o produzem,

    mas, virtualmente, entre estes e aqueles que assistem ao programa.

    Agora, gostaria de ensaiar uma compreenso do trabalho dos jovens no Alpendre

    na lgica do trabalho imaterial.

    Primeiro, e de forma bvia, pelo tipo de atividade desenvolvida, a produo

    audiovisual est totalmente inserida na economia ps-fordista do capitalismo de sobre-

    produo. Produo que requer a subjetividade, a criatividade e o afeto como matria-

    prima.

    O trabalho vivo dos jovens est na base deste modelo comunicacional de

    capitalismo. Trabalho este que no se encerra no espao fsico do Alpendre, nem no 16 Ver BARBALHO, 2006. 17SODR, Muniz. As estratgias sensveis: afeto, mdia e poltica. Petrpolis: Vozes, 2006, p. 10

  • 10

    tempo em que os jovens l esto. Ele se estende pelo tempo restante do dia-a-dia destes

    garotos e garotas que passam, sistematicamente, a ver o mundo pela tica de suas

    atividades. Mesmo porqu, vivendo em situao de vulnerabilidade social, sem melhores

    oportunidades de lazer e ensino formal, passam a ter como principal referncia de assunto

    entre amigos, familiares e colegas, de escola e trabalho, as experincias vividas no

    Alpendre.

    Outro aspecto fundamental a forma cooperativada em que se d o trabalho, onde

    tudo discutido entre os participantes e todos tm a oportunidade de passar por cada uma

    das etapas da produo audiovisual.

    Ao participar de forma ativa do processo comunicativo, os jovens tornam-se

    consumidores crticos dos sons e imagens ofertados em profuso no mercado

    informacional ao articularem produo e consumo por meio de seu trabalho.

    Como observa Tiago Drummond18 sobre sua experincia na produo

    audiovisual, no devemos desconhecer o poder do capitalismo de sobre-produo em

    absorver diretamente ou posteriormente o trabalho vivo, a criatividade, a inveno o

    que requer, no caso especfico de que tratamos, uma anlise minuciosa do funcionamento

    das grandes corporaes miditicas, onde a economia poltica da comunicao e da

    cultura tem muito a contribuir.

    Mas devemos ter sempre em mente a contnua tenso entre potncia e poder, entre

    inveno e conservao, para perceber a constante criao de linhas de fuga s linhas de

    fora hegemnicas dos dias de hoje.

    Nessa perspectiva, o crebro-corpo-inventor dos jovens produtores do NoAr no

    s fonte de valor da economia material, mas tambm fonte de auto-valorao, e formam

    uma comunidade expansiva, constituinte, que resiste s formas da sociedade de controle,

    no por meio de vacolos de no-comunicao, ou por falas apodrecidas, mas elaborando

    falas criativas, vivas.

    18DRUMMOND, Thiago. Trabalho e produo de subjetividade. Lugar Comum, n. 19-20, Rio de Janeiro,2004, pp. 107-124.

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    Referncias bibliogrficas

    BARBALHO, Alexandre. No ar da diferena: Mdia e cultura nas mos da juventude. Comunicao e Informao, Goinia, v. 9, n.1, 2006, p. 8-15. COCCO, G.; HOPSTEIN, G. As multides e o Imprio: entre globalizao da guerra e universalizao dos direitos. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. DELEUZE, Gilles. Conversaes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2000. DEVILLAINE, Olivier. Norme. In: LECLERCQ, S. (org.). Abcdaire de Michael Foucault. Paris: Vrin, 2004. p. 123-125 DRUMMOND, Thiago. Trabalho e produo de subjetividade. Lugar Comum, n. 19-20, Rio de Janeiro,2004, pp. 107-124. FOUCAULT, Michael. Em defesa da sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 1999. HARDT, M.; NEGRI, T. Imprio. Rio de Janeiro: Record, 2001. LAZZARATO, Maurizio. Trabalho e capital na produo dos conhecimentos: uma leitura atravs da obra de Gabriel Tarde. In: GALVO, A.; SILVA, G.; COCCO, G. (orgs.). Capital cognitivo: trabalho, redes e inovao. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 61-81. ______; NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial: Formas de vida e produo de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. NEGRI, Antonio. 5 Lies sobre o Imprio. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. _____. Exlio: seguido de Valor e Afeto. So Paulo: Iluminuras, 2001. _____. A anomalia selvagem: poder e potncia em Spinoza. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. PELBART, Peter Pl. Biopoltica e biopotncia no corao do imprio. In: GADELHA, S.; LINS, D. (orgs.). Nietzsche e Deleuze: Que pode o corpo? Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2002. p.251-260. SODR, Muniz. As estratgias sensveis: afeto, mdia e poltica. Petrpolis: Vozes, 2006.