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1 JOVENS CAIÇARAS: DILEMAS NA CONSTRUÇÃO DE SUA IDENTIDADE NA PRAINHA BRANCA (GUARUJÁ-SP) 1 André Luis Buzzulini 2 Júlio César Suzuki 3 Resumo As populações tradicionais caiçaras têm tido, cada vez mais, seu modo de vida e seu sistema de valores metamorfoseados e moldados pela moderna e capitalista dinâmica urbano-industrial. Irreversivelmente submetidos ao contato e à exposição direta com uma cultura diversa que se sobrepõe cada vez mais à sua, os jovens caiçaras são os mais vulneráveis a incorporar o que os meios de comunicação, turistas e moradores de áreas urbanas colocam como padrão de práticas culturais e sociais. Fundados, então, em trabalho de campo, no qual se realizaram entrevistas, tendo como foco a recomposição de histórias de vida, objetivamos analisar analisar o impacto das práticas e valores modernos entre os jovens caiçaras da Prainha Branca (municipio do Guarujá-SP), tendo em vista a vulnerabilidade cultural em que se encontram, sobretodo no que se refere à manutenção de sua identidade caiçara. Na comunidade caiçara da Prainha Branca, localizada no município do Guarujá, em São Paulo, a realidade é essa: milhares de turistas todos os anos, contato diário de muitos moradores com áreas urbanas (por meio de estudo e trabalho), rádio e televisão presentes desde a chegada da energia elétrica, em 1982. Diante da modernidade, sua cultura, suas práticas, costumes, valores e seu modo de vida tradicional, acabam sendo subjugados até mesmo por seus jovens locais, entre os quais alguns nem sequer se reconhecem como caiçaras. Como agravante dessa situação de metamorfose de sua identidade, que relega diversos aspectos de sua cultura à memória, e que deixam de existir na prática, destacamos o perigo que essa população corre de perder suas terras caso essa identidade seja diluída, num contexto em que autoridades poderiam, futuramente, deixar de reconhecê-los como caiçaras, já que parte considerável dos jovens locais está migrando para as cidades e/ou não se auto-identifica como caiçara, sobretudo em situação em que a identidade deveria ser ainda mais presente, revelando-se como resistencia à especulação imobiliária presente nessa área do litoral paulista da qual se apropriaram como terra de vida. Palavras-chave Jovens, Caiçaras, Prainha Branca, População Tradicional 1 Este texto insere-se no Projeto “Geografia da oralidade - Uma recuperação da história oral de populações tradicionais no estado de São Paulo”, apoiado pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão/USP, junto ao programa Aprender com Cultura e Extensão. 2 Graduação em Geografia/FFLCH/USP; e-mail: [email protected]. 'Olhares sobre o processo investigativo'

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JOVENS CAIÇARAS: DILEMAS NA CONSTRUÇÃO DE SUAIDENTIDADE NA PRAINHA BRANCA (GUARUJÁ-SP)1

André Luis Buzzulini2

Júlio César Suzuki3

Resumo

As populações tradicionais caiçaras têm tido, cada vez mais, seu modo de vida eseu sistema de valores metamorfoseados e moldados pela moderna e capitalistadinâmica urbano-industrial. Irreversivelmente submetidos ao contato e à exposiçãodireta com uma cultura diversa que se sobrepõe cada vez mais à sua, os jovens caiçarassão os mais vulneráveis a incorporar o que os meios de comunicação, turistas emoradores de áreas urbanas colocam como padrão de práticas culturais e sociais.

Fundados, então, em trabalho de campo, no qual se realizaram entrevistas, tendocomo foco a recomposição de histórias de vida, objetivamos analisar analisar o impactodas práticas e valores modernos entre os jovens caiçaras da Prainha Branca (municipiodo Guarujá-SP), tendo em vista a vulnerabilidade cultural em que se encontram,sobretodo no que se refere à manutenção de sua identidade caiçara.

Na comunidade caiçara da Prainha Branca, localizada no município do Guarujá,em São Paulo, a realidade é essa: milhares de turistas todos os anos, contato diário demuitos moradores com áreas urbanas (por meio de estudo e trabalho), rádio e televisãopresentes desde a chegada da energia elétrica, em 1982. Diante da modernidade, suacultura, suas práticas, costumes, valores e seu modo de vida tradicional, acabam sendosubjugados até mesmo por seus jovens locais, entre os quais alguns nem sequer sereconhecem como caiçaras.

Como agravante dessa situação de metamorfose de sua identidade, que relegadiversos aspectos de sua cultura à memória, e que deixam de existir na prática,destacamos o perigo que essa população corre de perder suas terras caso essa identidadeseja diluída, num contexto em que autoridades poderiam, futuramente, deixar dereconhecê-los como caiçaras, já que parte considerável dos jovens locais está migrandopara as cidades e/ou não se auto-identifica como caiçara, sobretudo em situação em quea identidade deveria ser ainda mais presente, revelando-se como resistencia àespeculação imobiliária presente nessa área do litoral paulista da qual se apropriaramcomo terra de vida.

Palavras-chave

Jovens, Caiçaras, Prainha Branca, População Tradicional

1 Este texto insere-se no Projeto “Geografia da oralidade - Uma recuperação da história oral depopulações tradicionais no estado de São Paulo”, apoiado pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão/USP,junto ao programa Aprender com Cultura e Extensão.2 Graduação em Geografia/FFLCH/USP; e-mail: [email protected].

'Olhares sobre o processo investigativo'

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Introdução

A mudança do modo da vida e da cultura caiçara se dá em praticamente todas as

comunidades compostas por essas populações. Algumas tiveram seus valores e práticas

bastante transformados pela dinâmica urbano-industrial. Outras, como a que tomamos

como centro de nossa interlocução, ainda buscam conservar o que é possível,

especialmente por meio da oralidade, mas os impactos são irreversíveis: tais

comunidades já se encontram com um quadro bastante avançado de metamorfose tanto

de sua cultura como de seu modo de vida.

Assim, fundados em entrevistas realizadas em trabalho de campo, o presente

trabalho, focando-se no dilema da manutenção identitária, tem como objetivo analisar o

impacto das práticas e valores modernos entre os jovens caiçaras da Prainha Branca4

(municipio do Guarujá-SP), tendo em vista a vulnerabilidade cultural em que se

encontram, sobretodo no que se refere à manutenção de sua identidade caiçara.

Quando nos referimos a um “mundo moderno”, trabalhamos essencialmente

com a introdução de elementos largamente difundidos em áreas urbanas, suscetíveis às

mais variadas interferências externas, a partir das quais destacamos dois grandes meios

de influência sobre o jovem caiçara: a chegada da eletricidade à comunidade, que por

intermédio da televisão, desempenhou importante papel na transformação e

incorporação de determinados valores típicos de um Brasil em que a maioria de sua

população vive em cidades e, em segundo lugar, o contato direto, e diário, dessa

população com a de localidades urbanas, por meio do turismo na praia (que inclusive é

responsável por importante parte dos ingressos dos habitantes locais) e de seu dia-a-dia

ligado a cidades muito próximas, de fácil acesso.

Com o fim da pesca como principal atividade de sustento dos habitantes da

Prainha Branca, buscamos pontos que continuem identificando essa população como

caiçara, especialmente no contexto de uma comunidade cada vez mais integrada aos

valores urbanos que caracterizam nossa sociedade atual. A resposta poderia ser seu

3 Departamento de Geografia/FFLCH/USP; e-mail: [email protected].

'Olhares sobre o processo investigativo'

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vínculo com o mar, de caráter fundamentalmente simbólico, e a manutenção de certos

elementos culturais próprios – como suas festas, lendas, músicas e artesanatos

tradicionais, a prática do mutirão, as decisões comunitárias etc. –, mas acreditamos que

tal resposta, sozinha, indicaria o completo desgaste dessa identidade, já que qualquer

habitante que resida tão próximo ao mar sempre terá algum vínculo com o mesmo. Um

dos pontos de unidade da população da Prainha Branca, além de certos elementos

culturais e sociais próprios – cada vez mais relegado ao passado –, é a luta pelo direito

sobre suas terras, das quais se apossaram há muito tempo. Vemos a incorporação de

alguns valores modernos como algo bastante arriscado para a manutenção de tal luta,

em especial no que tange ao elemento central de nossa pesquisa: os jovens5, pois nos

questionamos qual terra irão manter se os mesmos estão se mudando para as cidades

devido à – entre outros agravantes – falta de espaço no local para abrigar novas

gerações.

Os caiçaras: o que os define como tal?

Basicamente, a definição tradicional do caiçara se dá pela combinação do fator

geográfico, pois essas populações tradicionais vivem em regiões costeiras do Paraná,

São Paulo e Rio de Janeiro, e de suas atividades de subsistência e/ou comércio

relacionadas à roça e – especialmente – à pesca, além de uma cultura própria. Ao aceitar

estes pontos como essenciais na definição dessa identidade própria, chegamos à

problemática deste trabalho: a comunidade caiçara da Prainha Branca, que conta

atualmente com aproximadamente 540 habitantes, possui – segundo relatos de

entrevistados – apenas uma ou duas famílias que ainda contam com a pesca como uma

de suas fontes de subsistência. A pesca, assim como a roça e o cultivo, mostra clara

tendência de rápido desaparecimento como atividade de subsistência e/ou

complementação de renda, o que nos leva a refletir sobre até que ponto, essa situação,

aliada a uma juventude exposta e vulnerável aos valores de nossa sociedade capitalista,

ameaça a definição dessa população, em sua essência, como caiçara, e os riscos que a

4 Vide figura 1 ao final do texto.5 Em relação à leitura da situação em que se inserem os jovens na Prainha Branca, valemo-nos,

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mesma corre, como tal, de desaparecer num futuro próximo, junto às suas tradições.

Apesar da tradição não ser entendida como algo imutável, a intensidade da

incorporação de elementos da cultura urbano-industrial em comunidades de populações

tradicionais, como a da Prainha Branca, tem se dado de maneira radical e,

aparentemente, irreversível, resultando numa verdadeira ameaça aos elementos que,

originalmente, sempre os diferenciaram da sociedade chamada moderna. Como já

citado, a tradição não é estática, mas apesar de seu dinamismo, não é claro o limite até o

qual a identidade dessa população caiçara continuaria existindo caso nos baseassemos

na conservação dessas tradições, e a partir de que momento teria se transformado

completamente, incorporando valores urbanos em detrimento de seus próprios. Essa

complexidade na definição dos critérios de definição do que seja o caiçara, em

transformação, é um ponto importante, que nos demonstra a tênue linha que existe ao se

falar de tradições e identidade caiçaras atualmente.

O fato de serem sociedades em que, tradicionalmente, o conhecimento é gerado

e transmitido pela oralidade, sem registros escritos, agrava, de maneira significativa, a

propensão dos jovens absorverem o que aprendem na escola, com os turistas, no

trabalho e na cidade, e de incorporarem costumes e valores que se sobreponham aos

que lhes são passados oralmente em sua comunidade, fazendo com que estes lhes

pareçam distantes, tomando contornos folclóricos e do tempo dos antepassados, e

deixando-lhes a sensação de que são parte de uma geração totalmente voltada às

práticas da cidade.

Questionados acerca da preferência pela vida na cidade ou na comunidade, os

depoentes tiveram diferentes respostas, e alguns destacaram as qualidades de cada um

desses locais: a cidade aparecendo como um lugar cheio de oportunidades – porém

cheio de perigos e vícios – e a comunidade como um lugar tranquilo, como um lindo

paraíso, apesar da falta de certas comodidades que a vida em uma área urbana

proporciona.

Vale ressaltar que, sempre, todos os entrevistados jovens, ao serem perguntados

sobre a pesca e a roça, identificaram tais atividades como algo realizado por seus

antepassados (no caso dos mais velhos, tais atividade são citadas como algo que

densamente, das reflexões já realizadas por Júlio César Suzuki e Alberto Pereira Lopes (2009).

'Olhares sobre o processo investigativo'

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realizavam antigamente) que negociavam seu pouco excedente com outras regiões, o

que os inseria naquilo que José de Souza Martins (1975 e 1997) definiu como economia

do excedente.

A pesca é vista como algo prazeroso, como lazer para muitos jovens, mas já não

como uma atividade comercial ou de subsistência, seja devido à pesca predatória,

realizada já há algumas décadas por barcos vindos de outros locais, ou graças à sua

baixa rentabilidade, onde postos de serviço na cidade mostram-se mais vantajosos.

A incorporação histórica do mar, nas comunidades caiçaras, resulta num estreito

vínculo entre o mesmo e a essência do que é ser caiçara, não restam dúvidas. Porém,

sem a pesca, qual seria o ponto de conexão entre o mar e o caiçara? A sua incorporação

como algo simbólico, poderíamos responder. Mas pode-se considerar que o mar torna-

se simbólico para qualquer sociedade que viva em uma área imediatamente costeira.

Portanto, ao nosso ver, esses pequenos núcleos de populações esparsas, como a Prainha

Branca, já haveriam tido esse vínculo específico e direto com o mar, que a pesca para

subsistência e/ou comércio representava, metamorfoseada. Sua conexão com o mar, um

pouco mais além de simbólica, haveria integrado a dimensão do turismo como uma de

suas mediações, intermediada pelo turista.

O caiçara da comunidade da Prainha Branca, assim, incorpora o mar numa

relação maior do que o seu significado simbólico, já que é com a realização da

atividade turística que muitas das famílias alcançam sua principal fonte de renda.

A pesca, além de fundamento à subsistência, complementada pela pequena

lavoura (esta raramente destinada ao comércio), entre os caiçaras mais antigos, já há

algumas décadas, segundo relatos de entrevistados, o deixou de ser, assim como as

atividades agrícolas quase não são mais práticadas na comunidade. Com a facilidade de

acesso à comunidade, e visando a apropriação de suas terras, algumas pessoas passaram

a questionar a legalidade das mesmas, inclusive com tentativas de despejá-los de suas

terras pela grilagem ou coerção. Ao mesmo tempo, órgãos ambientais passaram a

monitorar o desmatamento na área, o que inibiu a produção agrícola dessas populações,

que costumavam roçar áreas para o cultivo. Ao nosso ver, esse foi o primeiro grande

fator da inserção da população caiçara no mercado de trabalho da sociedade urbano-

industrial e sua consequente proletarização, pois viram-se obrigados a buscar outro

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modo para sustentar-se já que a produção para a subsistência não poderia ser ampliada

futuramente, e muito menos produzir algum excedente, pois estariam colocando em

risco, ainda maior, a já questionada posse de suas terras.

Em relação à pesca, segundo Diegues (2004:33), “nas primeiras décadas do

século XX intensifica-se a pesca comercial e aparece maior especialização nas

atividades pesqueiras à medida que a lavoura passa para segundo plano (...). Hoje se

pode dizer que, com o abandono quase completo da agricultura na maioria das áreas

caiçaras, a pesca é sua principal atividade econômica, à qual se juntam o turismo, os

serviços e o artesanato”. Tal afirmação, em relação ao que se refere aos dias atuais, não

se aplicaria à Prainha Branca, exceto ao indicar que o turismo e os serviços

correspondem a atividades econômicas presentes entre os caiçaras, o que demonstra

que, para efeitos de comparação, a comunidade estudada encontra-se em uma etapa

bastante acelerada da perda da pesca como referência e como elemento importante da

identidade local e, paralelamente, também da rápida absorção e inserção daquilo que é

urbano, desde seus valores até a sua atividade econômica principal, voltada às pessoas

da cidade que buscam o mar.

Enquanto no trecho supracitado, Antônio Carlos Diegues afirma que algumas

comunidades ainda possuem a pesca como principal atividade econômica, na Prainha

Branca até mesmo entrevistados nascidos na década de 1960 dizem que essa atividade

era mais comum quando eram muito pequenos, o que, em outras palavras, significa que,

atualmente, a prática da pesca já seria algo “distante” para duas gerações da

comunidade. Gerações essas que cresceram e crescerão sabendo que a pesca um dia já

foi importante em relatos de seus antepassados, mas que não a vivenciarão e que nunca

a identificarão como algo que faça parte de sua definição como sujeito, ou seja, de

identidade contemporânea.

O caiçara do início do século é sintetizado por Almeida (1945:70) como aquele

que vive entre as atividades pesqueira e agrícola: “Nessa luta terrível, ora para a terra

ora para o mar, consomem toda a energia, julgando-se felizes quando conseguem

algumas roças de mandioca e os apetrechos principais para a pesca”. Aqui voltamos à

questão inicial: então o que define tais sujeitos como caiçaras? Ou melhor, o que os

continua definindo como tal? O autor citado ressalta a pesca e a agricultura

'Olhares sobre o processo investigativo'

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combinadas. Mas se fosse apenas isso, a comunidade da Prainha Branca, portanto, teria

um passado com raízes caiçaras, mas já não poderia ser definida, hoje, como

mantenedora das mesmas características que a formaram. Por isso, insistimos nesse

debate e em vincular essa população estudada, mais do que nada, ao mar e à sua auto-

identificação como caiçara. Porém, mais do que isso, existem alguns valores que

continuam sendo passados por meio da oralidade, ainda que muito sutis diante de todo o

sistema de valores que o mundo urbano lhes firmam em seu dia-a-dia, e do vínculo

comunitário existente entre eles, em que a grande maioria são parentes entre si e se

ajudam mutualmente, seja por causas particulares ou de interesse comum, como cita o

entrevistado Silvano Neves Toledo, conhecido na comunidade como Passarinho:

É todo mundo da mesma família: se uma pessoa lá nocantão tiver com algum problema, o pessoal vai lá ajudarele, se uma pessoa lá do outro lado tiver com problema, agente ajuda ele e vai lá visitar, levar alguma coisa.Sempre tem um, a gente é como irmão mesmo. Mesmo quetenha conflito, por exemplo, eu tenho conflito com você eele não tem, então através dele a gente chega em você.Então, tem esse... toda comunidade tem, sabe, tem irmãoque briga com irmão, então nada mais correto do queacontecer uma intriga dentro de uma comunidade. Existe,isso existe, mas é coisa leve, não existe arma, não existe,sabe, essa coisa de querer se vingar, não existe isso. Émais um conflito de comunidade mesmo. (Entrevistarealizada, por Márcio e Denise, em 13/09/2008, comSilvano Neves Toledo).

Dentre as causas pelas quais lutam por algo em comum, destacamos a defesa de

suas terras: sendo uma população tradicional que se apossou dessas terras há séculos,

defende seu direto sobre as mesmas daqueles que, de alguma maneira, tentam retirar os

seus moradores por variados interesses, ligados, sobremaneira, à especulação

imobiliária. Aqui, vemos outro elemento coletivo importante da comunidade da Prainha

Branca que os diferencia da sociedade urbana, e que embora não seja exclusivo de

populações caiçaras, ao menos os une em torno de algo comum bastante forte. É

justamente nesse aspecto que enxergamos uma das maiores ameaças ao futuro da

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comunidade: com a debandada dos jovens à cidade, quem defenderá essas causas no

futuro próximo? Essa conexão existente entre os habitantes da comunidade e sua terra

apossada há séculos existirá entre uma população jovem cada vez mais marcada pelos

hábitos urbanos? E além da indagação a respeito do futuro das terras, poderão esses

mesmos jovens manter vivas tradições, costumes e uma identidade especialmente

caiçara nesse mesmo futuro próximo?

Com o paredão da Serra do Mar de um lado e o mar do outro, a maioria das

comunidades caiçaras viveu distanciada da sociedade moderna por muito tempo,

podendo conservar suas lendas, tradições, usos e costumes e combinando pesca,

agricultura, artesanato e outras atividades com o uso de formas de ajuda mútua por

séculos. Apesar de considerarmos errôneo considerar a cultura caiçara como algo

estático, já que tais comunidades nasceram e se reproduzem associadas a amplas

transformações econômicas, dependendo de vilas e cidades, que também sofreram

radicais mudanças ao longo de sua história.

Atualmente, pode-se dizer que as comunidades tradicionais se encontram

completamente integradas à dinâmica capitalista, embora ainda apresentando elementos

particulares de sua cultura. Na comunidade da Prainha Branca, o modo de vida e a

cultura tradicionalmente caiçara passaram a fazer parte da memória, mas uma nova

identidade surgiu, fruto de embates contra interesses particulares, contra a especulação

imobiliária e contra sua expulsão de terras protegidas da Mata Atlântica.

O papel dos jovens diante dessa situação de resistência é fundamental para o

futuro da comunidade e de sua definição como caiçara. Para tanto, é de suma

importância que esses jovens tenham um modo de viver, sentir, pensar e expressar a

vida assumindo-se, identificando-se como caiçara, pois consideramos a auto-

identificação o fator-chave, determinante, para a manutenção de qualquer elemento –

seja ele cultural ou material – tradicional da comunidade.

No en tanto, não é incomum a perda da identidade caiçara entre alguns jovens,

os quais não se reconhecem como tal. É o que vem ocorrendo entre alguns jovens,

como descreve um de nossos entrevistados:

Hoje eu me sinto assim caiçara, mas não são todos osjovens que sente caiçara entendeu? Eu acho

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porque...como se fala? É, nasceu no pronto-socorro,aínão se acha, mais o jovem hoje em dia tem que seconsiderar com caiçara, todo mundo né? (Entrevista comjovem caiçara6 da Prainha Branca, 09/ 2008).

O turismo, a especulação imobiliária e a expansão de áreas protegidas

Com a abertura das Rodovias Ariovaldo de Almeida Viana e Padre Manuel da

Nóbrega, nos anos 1970, o acesso à Prainha Branca foi facilitado e o turismo passou a

crescer vertiginosamente. Enquanto outras comunidades caiçaras já vinham, desde os

anos 1950, enfrentando perdas de suas terras e praias, a comunidade da Prainha Branca

passou a sofrer com esse tipo de ameaça especialmente a partir da chegada de

veranistas e turistas dos grandes centros, pois terceiros passam a ver a construção de um

balneário no local como um atrativo. Os especuladores, considerando os caiçaras como

simples posseiros, passam a questionar a legalidade não só das terras, como dos

terrenos onde se encontram as casas.

Em decorrência da abertura dessas estradas e da intensificação da especulação

imobiliária, segundo relatos, habitantes da Prainha Branca passam a sofrer com a

grilagem atuando em beneficio de empresas e de terceiros. O morador local Silvano,

comenta que, em 1985, começam essas ações, 3 anos depois da chegada da energia

elétrica à comunidade:

Os caras chegaram aqui em 85 dizendo que isso aqui édeles, entendeu? só que eles não compraram nada aqui,eles não compraram nada! Se eles têm algum documentodizendo que aqui foi comprado, esse documento foigrilado, é grilagem! É coisa de dinheiro! O juiz foicomprado para assinar embaixo, alguma coisa, porqueisso tem mesmo! (Entrevista realizada, por Márcio eDenise, em 13/09/2008, com Silvano Neves Toledo).

6 Por conta da possibilidade de constrangimento que a identificação do entrevistado pode causar, nãomencionarermos seu nome.

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O morador também mostrou, na mesma entrevista, documentos provando que a

empresa BPEA Belval Predial e Agricultura Ltda., por meio de Jorge Correa Porto,

Manoel Correa Porto e Marcelo Gomes, pede a devolução de 38 mil m2 que nunca lhe

pertenceram, segundo ele, para a construção de um condomínio. De acordo com o

morador da comunidade, eles teriam prometido a construção de um balneário no local,

mas nunca chegaram a concretizá-lo. Outro caso de grilagem bastante conhecido na

Prainha Grande, é o da chegada, nos anos 1970, do ex-deputado e advogado Evandro

Mesquita (PMDB), residente em São Paulo, que tomou terras dos caiçaras, construiu

uma casa de veraneio, cercou toda a propriedade e fechou o acesso da comunidade à

Rodovia Ariovaldo de Almeida Viana com a abertura de uma estrada particular, tendo

entrado com um pedido de ação possessória na justiça e, segundo relatos, praticado

crimes ambientais no local.

A transformação de parte importante do território caiçara em unidades de

conservação ambiental também teve consequências graves sobre o modo de vida dessa

população, com o impedimento de se fazer roça, tirar madeira, construir novas moradias

etc., forçando-os, uma vez mais, a recorrer à cidade para buscar emprego e moradia.

Hoje, ONGs que atuam na área de preservação ambiental ministram cursos e procuram

dar apoio e instrução à comunidade, com o intuito de que possam adaptar-se e conviver

o mais harmoniosamente possível com as leis de uma área de preservação, evitando que

uma política ambiental equivocada os julgue como um problema para o ambiente e os

expulse da área.

Diante da expansão da atividade turística, os caiçaras da Prainha Branca

passaram a enfrentar uma nova situação, marcada pela tentativa de convivência com os

turistas, podendo ser verificada, na comunidade, a incorporação de valores da sociedade

urbano-industrial em parte devido à essa nova atividade que ali se desenvolveu, em que

mesmo os habitantes que não possuiam um contato diário com a sociedade urbana,

passaram a tê-lo (ao menos no verão, quando a comunidade recebe milhares de turistas

por dia).

As férias de verão do meio urbano passaram a constituir uma época de contato

direto com milhares de pessoas vindas de diferentes cidades todos os dias,

transformando-se na principal atividade econômica do lugar, com a oferta de serviços

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de hospedagem (pousadas familiares, quartos e camping – apesar do último estar

oficialmente proibido) e alimentação para os turistas. Os moradores têm opiniões

divergentes sobre os visitantes e sua influência sobre o lugar: alguns consideram que

boa parte sequer dá algum retorno financeiro para o lugar, pois chegam e vão embora

no mesmo dia, além de trazer problemas ao local: lixo, abuso de bebidas alcoólicas,

drogas, desrespeito com o ambiente, e inclusive violência; algo que, segundo

moradores, não existe, corriqueiramente, na comunidade, fazendo-se necessário, às

vezes, que a polícia seja chamada devido a algum turista exaltado.

Os impactos mais visíveis do turismo nos valores dessa sociedade se dão, sem

dúvidas, entre os jovens locais, que se integram aos turistas, e que têm seus costumes

influenciados pelos de uma sociedade pautada no consumo. Esses jovens, mais

suscetíveis a buscar e experimentar o que é novidade, incorporam valores modernos em

detrimento de valores tradicionais de sua população, além da introdução de drogas e

bebidas alcoólicas que, há duas décadas, não existiam no local, hoje, conhecido e

procurado por alguns turistas devido à sua fama relacionada às drogas: principalmente

maconha. Um jovem local descreve a gravidade da situação:

Isso é muito comum, o pessoal conhece a Prainha comopraia de drogado. Falaram pra nós assim, que em SãoPaulo tinha uma faixa falando assim da Prainha Branca,falando que era um lugar de droga, entendeu? Isso écomum pra gente, o pessoal vem mesmo pra fumarmaconha, pra beber, entendeu? Eu acho que isso aí écomum, mais acho que eles poderiam ter mais respeito,porque aqui é uma comunidade, e no mais todo mundo éfamília, né. E tem aqui na Prainha, eu vou falar que aquialguns num fumam, não todos, tô falando, a metade, usamdrogas, bebem, entendeu? Acho que a maioria bebe e amaioria fuma, dos moradores daqui. Alguns usam tambémdroga, acho que eles mesmo poderiam dar o respeito, proturista, entende?. Porque o turista ver, e sabe que é o caraque é da comunidade, ver e fuma ali, não tem comochamar atenção, entendeu? Eu acho que é isso, acomunidade poderia dar mais respeito pro turista,entendeu, por que o turista não tem respeito a nós porquea comunidade não dar, entendeu. Se usa na frente dele, elevai querer usar também. É... pô, como você pode chamarminha atenção se você também usa. Então eu acho assim

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(...) (Entrevista com jovem caiçara7 da Prainha Branca,09/ 2008).

Os impactos da urbanização e da migração para áreas urbanas

A partir da década de 1960, com a crescente expulsão de suas terras e com o

declínio da agricultura, diversas comunidades caiçaras passaram a sofrer forte êxodo

em direção às áreas urbanas – faveladas, em muitos dos casos –, o que contribuiu para a

crescente desorganização do modo de vida tradicional dessa população, pelo contato

permanente com os padrões da cultura urbana, da dificuldade de exercer atividades

pesqueiras, da influência de igrejas evangélicas etc. Tratando-se especificamente do

caso da Prainha Branca, não ocorreu uma expulsão direta – e total – de sua população, a

exemplo do que ocorreu em outras comunidades caiçaras, porém, como já citamos,

outros fatores impediram o crescimento no número de seus moradores, obrigando seus

jovens a buscar residência em áreas urbanas.

Neste processo, a cidade passa a ter sentido diferente para uns e para outros,

deixando de ser vista como entreposto comercial para dar lugar às suas contradições:

terra de festas, vícios, violência, segregação, oportunidades etc. Ao voltar à

comunidade, tais vivências são, assim como o contato com os turistas, uma das

principais portas de entrada de elementos da sociedade urbano-industrial no local,

trazendo junto de si, práticas urbanas que influenciarão, em menor ou maior nível,

todos aqueles que mantiverem uma relação social mais próxima de alguém que passou

por tal situação, seja rechaçando a vida perigosa na cidade, ou idealizando,

especialmente entre os jovens, os prazeres e oportunidades que a cidade lhes pode

proporcionar.

A migração, em décadas mais recentes, apresenta um aspecto geral que constitui

um dos pilares de nossa problemática: o não-retorno ao lugar de origem, associado à

atração pelo que a vida urbana oferece e/ou pela impossibilidade de constituir família

ou ter sua moradia na comunidade.

7 Por conta da possibilidade de constrangimento que a identificação do entrevistado pode causar, nãomencionarermos seu nome.

'Olhares sobre o processo investigativo'

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Ao ser indagado a respeito do interesse dos jovens em continuar vivendo na

comunidade, o sr. Silvano comenta:

A maioria dos jovens vive aqui. É que na verdade eles sósaem para morar com os pais que estão em Bertioga e tal,mais por problema de estudo, por trabalho. Às vezes paraa pessoa querer trabalhar em lugar distante, sair daqui daPrainha, para trabalhar em Santos, por exemplo, é muitolonge. Tem gente daqui que trabalha em Santos, vai tododia de manhã e volta de noite. Mas os jovens já preferemficar lá perto. (Entrevista realizada, por Márcio e Denise,em 13/09/2008, com Silvano Neves Toledo).

Já Fábio, um jovem de 25 anos que vivia em São Paulo e mudou-se para a

comunidade da Prainha Branca, diz:

Eu acho que os jovens, a grande maioria, quer ir pra fora.Trabalhar fora, estudar... Tem bastante gente que, meu... agrande maioria mesmo quer ir pra fora. (Entrevistarealizada, por Felipe Garcia Passos, Marcos AlbertoStanischesk Molnar, Sandro e Naiara, em 16/05/2009,com Fábio).

Sem pretender qualquer julgamento moral e social, porém inserindo a realidade

dos jovens da comunidade diante da problemática levantada, é exatamente neste ponto

que enxergamos o maior risco que a mesma corre de, num futuro próximo, não ter

quem lute pelo direito às suas terras e quem mantenha viva a identidade local, por meio

da oralidade, das tradições, dos costumes, dos valores etc.

Um exemplo claro de como as tradições e costumes já estão fortemente

transformados devido à incorporação de práticas urbanas são as festas, nas quais os

jovens procuram organizar algo parecido com o que conhecem da cidade, sem traços

das festas tradicionais que, embora tenham sido mantidas vivas, especialmente entre os

mais velhos – que buscam passar ao jovens práticas tradicionais –, não são as preferidas

dos jovens, que, em sua maioria, preferem as festas como as da cidade. Moradores mais

'Olhares sobre o processo investigativo'

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antigos como o sr. Silvano relatam a organização de festas locais durante todo o ano:

A Fogueira de Reis é em fevereiro e nós temos o nossocarnaval, o carnaval do nosso tipo. Carnaval é amolecadinha se fantasiar de monstrinho pela ruaassustando os outros. A gente faz bloco, o pessoalzinhotomando vinho e batucando pelo caminho e tal; em marçonós temos as festividades e a gente faz uma festa do tipo afesta do chope, festa havaiana, sabe. No fim do verão agente sempre tá fazendo alguma coisa para não ter umadata definitiva em março assim, e em abril também; masem maio nos já temos o festival de futebol, que todo anotem; em junho nos temos a festinha junina, que é aquadrilha; em julho nos também fazemos a quadrilha e afesta comunitária no centro, que é o encerramento daquadrilha, e a festa comunitária, que é as comidas típicase tudo; em agosto nós temos a festa folclórica; emsetembro nos temos o desfile da primavera; em outubronós temos festa das crianças, da Nossa Senhora daAparecida também faz aqui; novembro também a festa dochop, a festa havaiana. Sempre tem uma festa de começode verão; e em dezembro nos temos a festa da santa que éa padroeira do lugar, que é a Nossa Senhora daConceição, que é dia 8 de dezembro, e a gente tem a festada padroeira, e tem Natal e Ano Novo, que isso aí émundial, né!?(Entrevista realizada, por Márcio e Denise,em 13/09/2008, com Silvano Neves Toledo).

Além da influência provocada pela mudança de parte considerável da população

para as cidades, há de se considerar também a migração pendular da comunidade em

direção às aglomerações: são aqueles que estudam e trabalham todos os dias em áreas

urbanas, mas que continuam vivendo na Prainha Branca. Boa parte da população local

trabalha em cidades litorâneas próximas e as crianças, já na 5a série – a comunidade

possui pré-escola, mantida pela prefeitura do município do Guarujá, e ensino de 1a a 4a

série estadual – precisam deslocar-se até Bertioga ou Guarujá para estudar. No caso

dessas crianças, certamente a carga cultural que lhes é transmitida influenciará sua

visão dos costumes e tradições de sua comunidade de alguma forma, assim como

influenciará a maneira como enxergam a própria cidade, sobretudo, lembrando que a

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escola não é pensada para eles, mas para os estudantes que vivem as dimensões do

urbano.

A urbanização – considerada também no sentido de expansão e influência da

cultura urbano-industrial –, como mostrado, tem efeitos visíveis sobre o modo de vida

dos caiçaras da Prainha Branca. A educação primária, por exemplo, é ensinada com

manuais que são produzidos para uso em áreas urbanas e por professores vindos de

cidades (com exceção de uma professora da própria comunidade, que já lecionou ali).

Aqueles que não trabalham ou estudam na cidade, também, ficam vulneráveis à essa

exposição, por meio do contato social com aqueles que o fazem, já que, direta ou

indiretamente, os que se deslocam transmitem sua visão da cidade, positiva ou negativa,

gerando reações que variam desde o rechaço até a idealização da vida urbana – sendo

esta última posição, como já dito, mais aplicável aos jovens, naturalmente mais

dispostos a experimentar o novo e a inserir-se num grupo social considerado moderno –

, em detrimento da tradição, dos costumes e dos valores que são um dos pilares que

ainda podem defini-los como caiçaras.

Outros meios de incorporação de elementos da sociedade urbano-industrial

Não restam dúvidas: o turismo na Prainha Branca e o contato direto com o meio

urbano constituem os maiores agentes transformadores da cultura e da identidade de sua

população, tornando-a cada vez mais pasteurizada diante da sociedade moderna. Mas

além desses fatores, há outro importantíssimo que não poderia deixar de ser citado: a

disseminação do rádio e da televisão, responsáveis não só pela crescente uniformização

da linguagem, como também por grande parte da introdução dos valores e costumes

provenientes da cidade.

De acordo com o seguinte depoimento do sr. Silvano, a eletricidade teria

chegado na comunidade em 1982:

A luz elétrica veio em 82 para cá, 82. E a luz elétrica sabeque ela trás benefícios né!? Tem geladeira, por exemplo. Agente precisa de uma geladeira. É claro que se não tivesse

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a gente tava vivo, com certeza, não ia morrer por causadisso, mas ajuda bastante para você ter um aparelhoeletrônico em casa, uma musiquinha, uma televisão paradistrair e tal. Então é uma coisa necessária, luz é umacoisa necessária. Quer dizer, não é obrigado ter luzelétrica na verdade, mas é uma coisa necessária. Já quetem, vamos usufruir. (Entrevista realizada, por Márcio eDenise, em 13/09/2008, com Silvano Neves Toledo).

A televisão induz a padrões de comportamento e consumo que dificilmente

poderão ser revertidos. Isso significa que ao menos duas gerações – considerando-se os

nascidos durante a década de 1960, que ao terem acesso à televisão, ainda eram

bastante jovens – já estiveram, e ainda estão, sob a influência desses meios de

comunicação que podem formar e manipular opiniões, além de impôr o que está na

moda, o que é moderno, o que consumir, como ser aceito etc., o que pode ocasionar

uma enorme distorção da realidade vivida em uma comunidade tradicional.

Fábio, ao ser indagado se a maneira como a população da comunidade vive e

como vê as coisas em geral, inclusive, arrisca a dizer que os objetivos dos seus

moradores são exatamente os mesmos da população da cidade de São Paulo:

As pessoas moradoras daqui pelo menos, não os maisvelhos, mas possamos se dizer que a geração de pessoasdaqui da década de 50, 40 já... O pessoal que trabalhados comércio, não é diferente, não tem diferença nenhumade São Paulo, todos tem o mesmo objetivo justamente.(Entrevista realizada, por Felipe Garcia Passos, MarcosAlberto Stanischesk Molnar, Sandro e Naiara, em16/05/2009, com Fábio).

Leandro, natural de São Paulo, vive há 3 anos no local e opina que o papel da

televisão é tão relevante que não seria necessário nem mesmo o contato direto entre a

população de áreas urbanas e os caiçaras para que os mesmos incorporassem a cultura

urbano-industrial:

Isso aí os paulistanos nem precisam vir aqui, isso aí a

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televisão já faz esse papel. Assim, o caiçara tem suaprópria cultura, seu próprio valor, está incluso dentrodeles o que eles vêem dos pais deles, mas eu acho quepouco a pouco isso está se perdendo. Isso infelizmente énormal. (Entrevista realizada, por Felipe Garcia Passos,Marcos Alberto Stanischesk Molnar, Sandro e Naiara, em16/05/2009, com Leandro).

Definitivamente, não faltam meios que conduzam a cultura caiçara, cada vez

mais, à homogeneização diante da cultura de nossa sociedade capitalista. A tríade

composta pelo contato com o turismo, com a urbanização e com os meios de

comunicação de massa, mostra-se bastante eficiente ao influenciar os jovens a

valorizarem o que é moderno em detrimento do que é posto em nossa sociedade como

tradicional.

Considerações finais

O futuro da manutenção da identidade e da posse das terras na Prainha Branca

depende diretamente do comprometimento dos jovens com tais temas. Alguns

integrantes da comunidade, como o sr. Silvano, acreditam, que assim como ele não

deixou a cultura caiçara morrer, os jovens de hoje também não deixarão que isso

aconteça. Outros opinam que a maioria dos jovens prefere viver a cidade e, portanto,

integrar-se à sua sociedade, por meio de seus valores e costumes, que em quase nada

lembram os valores tradicionais dessa população.

Há, no entanto, alguns poucos jovens que continuam assumindo-se como

caiçaras frente a sociedade moderna, comprometidos com a manutenção das tradições

de sua comunidade, perante uma maioria que prefere identificar-se como parte da

população urbana – e não como parte de uma população tradicional – e viver seguindo

práticas e dimensões semelhantes às dos citadinos, o que se evidencia nos casos

daqueles que desejam migrar para os aglomerados médios ou grandes. E se já não fosse

suficiente o anseio por viver na cidade, outros fatores, como o esgotamento do espaço

físico do local aliado ao status de área de preservação ambiental, também, contribuem,

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cada vez mais, para um êxodo em direção à cidade.

Na Prainha Branca, notamos que parte da população que reside e trabalha na

comunidade, com estabelecimentos voltados ao turismo, já é composta de não-nativos,

vindos de áreas urbanas. Caso essa tendência se acentue nos próximos anos, a

população originalmente caiçara ficará muito reduzida – aliada ao fato de que os jovens

têm desenvolvido grande parte de suas atividades, bem como formado familia, nas

cidades, resultando na indagação de até que ponto podem ser considerados caiçaras ou

não –, e acreditamos que haverá um endurecimento por parte das autoridades e da

justiça ao tratar de temas referentes às suas terras, pois sua apropriação de tempos

longínquos seria contestada a partir do momento em que a maioria de seus habitantes

estivesse mais integrado à cidade do que à comunidade, momento em que nem sequer

os valores e tradições que sempre sustentaram a identidade caiçara estivessem

relevantemente presentes.

As terras da comunidade caiçara da Prainha Branca são, indubitavelmente,

muito cobiçadas: empresas, indivíduos, deputados. Todos sabem da oportunidade que a

praia mais isolada do Guarujá lhes oferece para multiplicar seus recursos com a

construção de um condomínio ou de um resort turístico. Até o presente momento, os

caiçaras perderam algumas batalhas, mas continuam em suas terras e contam com o

apoio de ONG's e de instituições como a USP. Ficou reservado aos jovens locais o

difícil futuro da comunidade. O capitalismo, pouco a pouco, faz, na comunidade caiçara

da Prainha Branca, o que tem feito no mundo inteiro: obriga – e por vezes seduz – o

jovem a buscar a solução da reprodução material na cidade, pois se se ganha mal, pelo

menos se ganha algo. Portanto, aconteça o que acontecer, que esses jovens não sejam

considerados os culpados pelo resultado do que a dinâmica capitalista, historicamente, é

capaz de fazer.

Referências

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ALMEIDA, Paulino. Usos e costumes praianos. Revista do Arquivo Municipal, anoXII, vol. CLC, agosto/setembro de 1945.

BRANCO, Alice. Cultura caiçara: resgate de um povo. Peruíbe: Oficina do Livro eCultura, 2005.

DIEGUES, Antonio Carlos. Enciclopédia Caiçara, volume 1. São Paulo: EditoraHucitec Nupaub/CEC, 2004.

____________, Enciclopédia Caiçara, volume 4. São Paulo: Editora HucitecNupaub/CEC, 2005.

MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara: terra e população. São Paulo: EDUSP, 2006.

MARTINS, José de Souza. Capitalismo e tradicionalismo. São Paulo: Pioneira, 1975.

MARTINS, José de Souza. Fronteira; A degradação do Outro nos confins do humano.São Paulo: Hucitec, 1997.

SILVA, Simone Rezende da. Questão agrária em Camburi: território, modo de vida eproblemas fundiários. In: GIARRACA, Norma; LEVY, Bettina (orgs.). Ruralidadeslatinoamericanas; Identidades y luchas sociales. 1.ed. Buenos Aires: CLACSO, 2004.p.117-62.

SUZUKI, Júlio César; LOPES, Alberto Pereira. Vida do jovem caiçara na PrainhaBranca: modo de vida e representações sociais. Trabalho apresentado no XII EGAL, emMontevidéu, 2009.

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Figura 1 - Localização da Prainha Branca (Guarujá-SP)

Fonte: Google Earth, acessado em 03/07/09, por André Luis Buzzulini.

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