genocidio dos caiçaras

47
o p r oblema do gen o cídio dos cal ç aras , ampl ia d o , é o da maioria do povo brasile i ro , esp o lia do, v ilip end i ad o, v it im ad o p el a s an ha d o s ol iga rca s que impun e m en t e tr ipu d i a m s o bre oque res t a d e e s p e r ança nes t es brasis. A i n com p e t ência admi ni str a - tiva, a venalidade política e a corrupção inst it ucionalizada tr an s - formaram o provável futuro celeiro do mundo  , em poucos decênios, no maior e mais insolvável devedor de toda a histó r i a da humanidade, com todas as indesejáveis conseqüências que tal fato acarreta: sacrifíci s cada vez maiores à popul ão c omb a lida, c aren te , miserável , desesperançada, fa mél ic a, e p ri nc ip al me nt e i nd i g nada c om o status quo , que a impede a inda de definir o seu próprio rumo . É ne s te cen rio que a a tuação de Priscila Siqueira, m a is que denún cia, s e faz sentir , r e s ga t an do a o o pr im id o, a o h um il de , ao i no ce nt e o s e le me nt ar es d ir e ito s a q ue f az j us : o de viver, o de se a sso c iar, o de se m a n i fe s tar, o de ir - e-vir e que tais . Verd a deira pa l ad in a -gu a rd d e t ais prin pios , não arredando pé e fazend o va l e r d e todos o s re curso s de que dispõe , põe-se à lut a c o m tanta e inabalada c o nvic çã o q ue a té mu lt in ac io na is j á c he ga ra m a r ec u a r em seu s pr o p ós itos , dada a contundência de s u a atu a- ç ão . Mais do que prestigi á -la, urge é colaborar c om t o d as a s no ssa s fo r ça s ness a sua luta que é, em últim a in s t â n c i a, a luta de t o dos os br asilei ro s . » JJ » (J) Os E di t o r es  r is ilo Siaueim GENOcíOIO D O S  lÇ R Pr ef ácio de D LMO D LL RI

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o

problema do genocídio dos calçaras, ampliado, é o da

maioria do povo brasil eiro, espoliado, vilipendiado, vit imado

pela sanha dos oligarcas que impunemente tripudiam sobre oque

resta de esperança nestes brasis. A incompetência administra-

tiva, a venalidade política e a corrupção institucionalizada trans-

formaram o provável futuro celeiro do mundo , em poucos

decênios, no maior e mais insolváve l devedor de toda a história

da humanidade, com todas as indesejávei s conseqüências que

tal fato acarreta: sacrifícios cada vez maiores à população já

combal ida, caren te, miserável, desesperançada, famél ica, e

principalmente indignada com o status quo , que a impede

ainda de definir o seu próprio rumo.

É

neste cenário que a atuação de Prisci la Siquei ra, mais que

denúncia, se faz sentir, resgatando ao oprimido, ao humilde, ao

inocente os elementares direitos a que faz jus: o de viver, o de se

associar, o de se manifestar, o de ir-e-vi r e que ta is. Verdadeira

paladina-guardiã de tais princípios, não arredando pé e fazendo

valer de todos os recursos de que dispõe, põe-se à luta com

tanta e inaba lada convicção que até mult inacionais jáchegaram

a recuar em seus propósitos, dada a contundênc ia de sua atua-

ção.

Mais do que prestigiá-la, urge é colaborar com todas as

nossas forças nessa sua luta que é, em última instância, a luta

de todos os brasileiros.

»

JJ

»

(J)

Os Edi tores

  r i s i l o Siaueim

GENOcíOIO

DOS   lÇ R S

Prefácio de

D LMO D LL RI

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Priscila Siqueira

GENO ÍDIO

DOS C lÇ R S

Prefácio de

DALMO

D LL RI

V

Edição

1984

Massao Ohno - Ismael Guarnelli/Editores

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PREFÁ IO

Este livro é a denúnc ia de um genocídio. Ao mesmo tempo,

seguindo a trilha do clássico  Parce iros do Rio Boni to , de

Antônio Cândido, é também o registro de uma cultura agoni-

zante. Em termos mui to atuais, pode-se dizer ainda que é um

retrato fiel da face desumana do desenvolvimento econômico.

Além disso tudo, saído da pena de uma jornalista que

sempre manteve fidelidade a seu compromisso humanista, este

livro é

O

testemunho sucinto, preciso e corajoso, de uma

agressão à humanidade. Essa agressão contínua, sem obstácu-

los e sem punições .. favoreci da pela degradação dos costumes

políticos que atingiu o Brasil nas últimas décadas e apoiada no

mito do progresso econômico necessário, que vem sacrificando

grande parte da humanidade em favor do enriquecimento de

alguns indivíduos.

O cenário deste livro é o Litoral Norte do Estado de São

Paulo e um trecho do Litoral Sul fluminense. Vivendo há

muitos anos na região, e tendo olhos para ver, Priscila Siqueira

vem testemunhando e sofrendo a deterioração física e social

daquela área. Através de reportagens publicadas nos jornais  O

Estado de São Paulo e Jornal da Tarde  tem procurado denun-

ciar os aspectos mais agudos das práticas antisociais, antiecoló-

gicas e até mesmo antibrasileiras que se têm verificado naquela

parte do litoral brasileiro. Este livro é uma continuação de seu

trabalho de jornalista.

A par do caráter de denúncia, este livro de Priscila Siqueira

é um importante registro de características e manifestações da

cultura calçara, em vias de extinção. A terra e o mar são

prolongamentos das comunidades e com ambos o caiçara vive

em verdadeira comunhão espiritual, respeitando-os como fon-

tes de vida. Sem nenhuma preocupação com a acumulação de

riquezas, o caiçara vive a  boa pobreza , que, longe de ser um

estado de privações e desânimo, é a opção pela vida simples,

espontânea e alegre. E assim, como fica demonstrado neste

livro,

°

caiçara sempre viveu feliz.

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Outro aspecto muito interessante dacultura

calçara,

regis-

trado por Priscila Siqueira, é a religiosidade, que se manifesta

de modo ingênuo e alegre, através de festanças, com muito

colorido e mui ta dança, havendo ainda os últimos sinais da

congada, com seus reis e seus guerreiros.

Curiosamente, conforme o testemunho da Autora, o

rá-

dio de pilha penetrou nesse ambiente e colocou o caiçara em

contacto permanente com o resto do mundo, prat icamente

sem agredir seus valores e tradições. Esse dado é muito interes-

sante, pois revela a possibilidade de divulgação de informações

mesmo onde é elevado o número de ana lfabe tos e sem provo-

car deformações culturais.,

Mas a vida s imples e feliz do caiçara parece destinada a um

breve desaparecimento.

É

o que nos revela este livro-denúncia

de Priscila Siqueira. A gente

calçara,

que por séculos teve o mar

corno via de acesso quase única , encont rando nisso um fator de

proteção, não conseguiu resistir aos piratas vindos da terra.

Favorecidos pe la proteção dos governos mili tares que infe-

licitaram o Brasil nos úl timos anos, chegaram os aventureiros

de várias espécies. A simulação de um  milagre econômico ,

que foi uma das muitas imoralidades impostas ao Brasil pelos

governos mil itares, foi pretexto para grandes investimentos

públicos e para que pseudo-revolucionários se valessem de

informações confidenciais e do poder arbitrário para ganhar

dinheiro na esteira desses investimentos. A estrada Rio-

Santos, embora prevista antes desse período, entrou de carnbu-

lhada nesse processo desenvolvimentista.

Políticos sem escrúpulos, especuladores imobiliários, em-

presas multinacionais e pessoas ricas à procura de  paraísos 

para recreação descobriram o Litoral Norte paulista e Sul f lumi-

nense. Foi o começo do genocídío (morte física), acompanhado

de etnocídio (morte cultural) dos caiçaras e d e a grupamentos de

índios guaranis existentes na região. Com precisão e coragem

Priscila Siqueira relata neste livro o que tem sido esse processo,

contando o milagre e o santo , na antiga expressão brasileira,

descrevendo agressões e identificando agressores. Desapossa-

mento de terras, ações de jagunços, fechamento de praias e

estradas, poluição, prostituição de meninas, tudo isso faz parte

do ritual de chegada da  civilização a essa região.

Este é um livro-testemunho, um grito de alerta e também

um repositório de dados para etnólogos, antropólogos e outros

estudiosos das sociedades humanas. Se nada for feito para

deter a voracidade dos invasores, se não houver ouvidos que

ouçam, olhos que vejam e vontade de decidir a favor da pessoa

humana, restará o registro de que um dia, numa região de

praias, florestas e montanhas, existiu

u

povo caiçara, compa-

nheiro da terra e do mar, s imples, ingênuo e feliz.

Da /m o de Abr eu Dalla ri

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ÍNDI E

5 Prefácio

 3 Milhões de mil-réis

18

Apenas uma mulher

21 Em paz na terra dos pais

26 Terror multinacional

32

Se a pesca fracassar

38

Antigos piratas e nova pirataria

42 Vomitando sangue

45

Um Brasil com mais justiça

51 O caso da pranteada velhinha

55 Subindo o morro do abrigo

59 O rio que está mais escuro

63 De coronel para coronel

69

Histórica vitória

81 Documentação fotográfica

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As epígrafes dos capítulos deste livro foram retiradas

da transcrição das congadas de São Francisco, município

de São Sebastião, e Caraguatatuba, publicada em O Fol-

clore do Litoral Norte deSãoPaulo, deRossini Tavares de

Lima e outros (Rio, 1981; MEC-SEAC-FUNARTE, Insti-

tuto Nacional do Folclore, Secretaria de Estado daCultura

de São Paulo e Universidade de Taubaté).

Segundo o apresentador do livro, Bráulio do Nasci-

mento, trata-se de uma pesquisa realizada sob a coordena-

ção do professor Rossini Tavares de Lima em 1959. Em

1968, foi lançado um volume sobre aquelas duas conga-

das, e a carência de recursos vinha impedindo a publica-

ção do restante do trabalho . Então, em

1981

foi possível

 a edição completa, num único volume, incluindo-se o

primeiro, jáesgotado . Mas as congadas de São Francisco e

Caraguatatuba já não existem mais, morreram, são coisas

do passado.

Conflitos de terras, jagunços armados, mortes e

mentiras encomendadas por um preço estipulado como

mercadoria no supermercado. Estamos acostumados a

pensar que isso tudo não passa de uma realidade longín-

qua, no Araguaia, em Rondônia, no Acre, talvez. Nunca

na zona rural do município onde moramos, aqui, no Sul.

O que presenciei ao longo de vinte anos de moradia

no litoral norte paulista e, principalmente, nos cinco anos

de trabalho como repórter regional de O Estado de S.

Paulo e Jornal da Tarde, é uma realidade completamente

diferente daquela que

à

primeira vez possamos imaginar.

Jagunços são contratados, como atestam muitos depoi-

mentos colhidos em delegacias de polícia do litoral norte

paulista e sul fluminense e muita gente posta fora de suas

terras

à

força. A marginalização social, há poucos anos

atrás ausente nesta região, é uma espécie de sombra dos

que aqui moram ou vêm veranear. E muitas vezes, sob o

nosso olhar cúmplice.

Priscila S iq ueira

11

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M ILH ÕES DE M IL RÉIS

Soberano Rei de Congo,

Eu desejava saber no nome

Desses teus queridos fidalgos

Para trazer na memória

Deste Príncipe exaltado

O secre tário

Os faróis do trator mais pareciam os olhos de Boitatá.

As crianças, que nunca tinham visto coisa igual, se enco-

lheram junto

à

saia das mães, que também olhavam o

monstro assustadas. Sob o impacto da pesada máquina,

troncos de jequitibás, perobas e massarandubas centená-

rias iam tombando um a um. Em poucas horas acontecia o

que pareceu o prenúncio do fim do mundo para os caiça-

rasoA ocupação secular de gerações não destruíra o que o

loteamento ou a estrada conseguiam em poucas horas. Eo

caiçara, que vivera isolado, com sua economia de consu-

mo, e com seus costumes e valores próprios, viu-se de

repente inserido numa outra sociedade, sem saber o que

significava e sem estar preparado para ela.

Descendente de portugueses, índios e negros, mas

também da mestiçagem aolongo dos anos de presença de

holandeses, franceses e espanhóis que surgiam por estas

costas, o caboclo do litoral é (ou era) um homem ajustado à

natureza. A região em que vivefoi uma das primeiras a ser

colonizada, sendo famosa em nossos livros escolares a

saga dos tupi-guarani que aqui viviam. Destroçadas, o que

restou dessas nações serepete emseus descendentes. Para

muitos antropólogos o caiçara é um povo em extinção.

13

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I

o

porque, se no passado o capitalismo chegou a

se-

interessar por sua mão de obra farta e barata, hoje o qUi:'

lhe cobiça são as terras valorizadas ao extremo, principal-

mente depois da aber tura da rodovia Rio-Santos.

E sem a terra , que lhe garante acesso aomar, o caiçara

não pode sobreviver. Na terra à beira-mar, o caiçara so-

brevive com o produto da pesca, sua principal fonte de

alimentação. Para ele, o oceano é tão essencia l quanto o ar

que respira. Ao lado do  peixe de cada dia , a banana, o

feijão, o milho, a cana e a mandioca, matéria prima de uma

excelente far inha. E com tudo isso, fortes e vivas manifes-

tações culturais, como a congada em honra de São Benedi-

to, o reísado, a Folia do Divino.

A cozinha caiçara é cheia de segredos. O  azul mari-

nho  - prato típico da região, na base do peixe e da banana

verde, que tem este nome pela intensa cor azulada que

adquire, não dá para ser feito apenas com uma receita

culinária.

É

preciso consertar  o peixe de véspera, saber o

ponto exato da banana - nem verde, nem madura - e

 perceber  a hora de se colocar a água. Quando o  azul-

marinho  está pronto, o  bentrecha  - parte do peixe

situada logo após sua cabeça na altura das nadadeiras - (o

ombro do peixe) é a mais disputada na mesa caiçara.

Os causes , as  lendas , os  pasquins , povoam sua

-cultura: o mundo caiçara é mágico e lá tudo pode acontecer

_ espíritos se confundem com a realidade, a poesia se

infil tra nas histórias de amor mal sucedidas - como na

lenda dos dois namorados do Pontal da Cruz, em São

Sebastião - ou o bom humor e a sátira registrando os

fatos ocorridos no cotidiano deste povo, como os  pas-

quins  de I lhabela - verdadeiros jornais falados, em ver-

sos - muitos deles recolhidos pela saudosa professora

Gioconda Mussolini.

Até os primeiros anos da década de 50, a terra onde

moravam esses caiçaras tinha pouca valia. Daí eles vive-

. rem em paz, praticamente isolados do resto do mundo. Há

quem compare o litoral entre as cidades do Rio de Janeiro e

14

Santos, até àquela época, com o vazio econômico  da

Amazônia de·antes da era Médici. E  vazio econômico é o

isolamento frente ao processo capitalista desenrolado no

restante do país.

Mas na verdade, nem sempre os habitantes deste

litoral estiveram isolados da produção da riqueza brasilei-

ra. Região antiga na colonização portuguesa , Paraty, por

exemplo, chegou a ser 'um porto famoso na exportação

oficial do ouro das Geraes para a Europa. Seus casarões

testemunham o fausto que se estende do século 19, atra-

vés da economia do ouro, cana e café. O mesmo sucedia

com outros portos como Paraty-Mírim e Ubatuba, no

li toral paul ista. Mas aqui já era o ouro contrabandeado.

Rareando o ouro das Geraes, o café, o  ouro verde , vem

tomar o seu lugar de importância econômica para o País ,

especialmente nesta região litorânea.

Interiorizando-se, a cultura do café fez entrar em

decl ínio a economia do li toral. O município de Ilhabela,

formado pelas ilhas de São Sebastião, Búzios, Vitória e

outras menores, chegou a possuir

33

engenhos de cana no

final do século passado. A inauguração da estrada de ferro

Santos-Iundiai iria ser outro fator a determinar a morte

econômica de grande parte do litoral paulista. A estagna-

ção social chegou a ser tanta que, em 1923, o então presi-

gente do Estado de São Paulo, Wáshington Luiz, visitando

o litoral norte paulista a bordo de um navio do Lloyd

Brasileiro, propõe à população dessa região que se mude

em massa para o Interior do Estado, a exemplo dos  ir-

mãos nordestinos  que imigravam e eram recebidos de

braços abertos no planalto paulista .

Com o desinteresse do capital, o caiçara pôde sobrevi-

ver em suas posses centenárias. Os seus títulos muitas

vezes datam do tempo das sesmarias e da doação de terra

às ordens religiosas, como é o caso da ilha do Montão de

Trigo, em São Sebastião, cujos títulos pertenciam aos

padres carmelitas.

15

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Na década de

60,

vários fatores vêm tirar o caiçara de

seu isolamento. As vias de acesso ao litoral norte paulista

são melhoradas, a Petrobrás se instala na região (atraindo

pessoas de outras localidades em busca de novos campos

de trabalho) e o turismo na Baixada Santista inicia seu

processo de saturação, fazendo com que pessoas de maior

poder aquisitivo busquem outras áreas de lazer. Além

disso, em 1965, um ano após a  Revolução de 64, a Rede

Globo de Televisão começa a penetrar no litoral, invadin-

do recantos distantes, difundindo outros padrões de com-

portamento e provocando exigências nunca antes imagi-

nadas.

Mas a gota d'água que determinou o interesse dos

grupos econômicos de fora foi o começoda construção da

BR

101,

a rodovia Rio-Santos. Seu trajeto havia sido um

 segredo de Estado , a fim de-quefosse evitada a especula-

ção imobiliária nesta área litorânea. Um segredo de poli-

chinelo, porque quando foi inaugurado o primeiro e único

trecho da estrada, entre Ubatuba e Rio,em

1974,

os títulos

das terras por onde a estrada passava já eram, na sua

grande maioria, de propriedade dosenhor Carlos Lacerda,

ex-governador doRioe revolucionário  de primeira hora.

A partir daí o caiçara não tem mais sossego. E na

maioria das vezes é enganado em transações comerciais

que não compreende, acostumado à troca direta, fora do

mercado, sem saber o valor real do dinheiro, vendendo

suas posses por  milhões de mil-reis . Mas quase sempre

ele as vende por se sentir enxotado, indefeso diante de um

poder que não tem como enfrentar. Há histórias tragicô-

micas que ilustram o fascínio que a cidade, com seu consu-

mo, exerceu sobre muitos desses caiçaras. Em Ilhabela, se

tornou lenda o caso· de um posseiro que vendeu suas

terras por

80

mil

réis ,

comprou um carro, mascomonão

soubesse dirigir, teve de contratar um chofer. O dinheiro

acabou, o motorista foi embora, o carro vendido por uma

bagatela e o homem, perplexo, no meio da rua sem saber

onde morar.

16

Outros casos são apenas dramáticos. Em 1979, o Juiz

de Direito da comarca de SãoSebastião, que também éjuiz

de Menores, Manoel de Lima[únior, denunciava em pleno

Ano Internacional da Criança, que a idade média das

prostitutas desta cidade variava de

12

a

16

anos. Muitas

dessas damas da noite não tinham tido sua primeira

menstruação e grande parte das adolescentes e criançasvi-

viam antes com seus familiares nas praias da região. Ago-

ra, elas não tinham mais onde morar pois as praias não

mais lhe pertenciam.

Nesses vinte anos, os caiçaras que conseguiram so-

breviver em suas terras descobriram um fenômeno novo

em sua sociedade: os que foram para a cidade receberam

dela somente o pior, a favela, a periferia infecta, a margi-

nalização. E o preconceito que o homem da cidade , o

 branco civilizado tem em relaçãoa eles. Aurélio Buarque

de Hollanda, no seu Dicionário da Língua Portuguesa,

registra o consenso capitalista sobre o caiçara. Para quem

só vê olucro e a ganância comoa grande finalidade davida,

o caiçara com sua maneira calma de ser, com sua mística e

sua visão do mundo, é mesmo vadio, preguiçoso e indo-

lente .

Essa experiência amarga e sofrida lhes ensinou uma

lição: a de que é preciso se mobilizar para enfrentar não

somente os grupos econômicos nacionais interessados em

suas terras, mas até mesmo os podesosos holdings inter-

nacionais que vêem neste litoral o paraíso do lucro.

E nessa luta dos caiçaras pela posse da terra e manu-

tenção de sua identidade cultural, o apoio que outros

setores da sociedade ,possa lhes dar é de fundamental

importância. Pois o que aconteceu com os indígenas, os

primeiros posseiros nestas terras brasileiras, se repete

com os caiçaras: genocídio.

17

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  PEN S UM M ULH ER

Com Eulália foi usado um recurso muito comum

neste l itoral de São Paulo: as pressões indiretas que fazem

com que o caiçara seja obrigado a permutar ou vender sua

posse. Tudo aparentemente muito limpo, fazendo com

que autoridades afirmem não existirem mais problemas

de terra na área. Um pouco diferente do que acontece no

litoral sul fluminense: lá, o uso da violência é uma constan-

te, às vezes acontecendo aberrações jurídicas inexplicá-

veis. O juiz de direito de Paraty, por exemplo, expulsou

famílias de caiçaras da praia de Trindade. Elas já estavam

estabelecidas em terreno com liminar de posse concedida a

um caiçara que acolhera sus parentes e amigos. Mas o

juiz se sentiu autorizado a expulsá-Ias da terra do outro.

Nessas ocasiões não vale o sagrado direito da propriedade

privada.

Em São Paulo, a pressão é mais sutil - não há expul-

sões, nem contingentes policiais que possam atrair a im-

prensa. Isto certamente daria chance à formação de uma

consciência crítica da situação por parte tanto do caiçara

violentado em seus direitos como da sociedade civil. Os

caminhos para livrar Toque- Toque da presença de seus

tradicionais habitantes foram bastante sinuosos, com

coincidências no mínimo curiosas, como o fato de o advo-

'gado na defesa dos interesses da empresa na área ser o

mesmo que devia defender os interesses do município, já

que é também funcionário da prefeitura de São Sebastião.

Ironia: São Sebastião é considerado área de segurança

nacional desde 1967, e o seu prefeito é escolhido e nomea-

do diretamente pelo Presidente da República.

Para que Eulália cedesse à proposta de troca de sua

área em frente ao mar por outra no interior da praia, o

administrador da Albuquerque- Takaoka em Toque-

Toque Pequeno, um sargento reformado da Marinha do

Brasil, conhecido na praia como Capitão, abriu também

outro bar, de propriedade da empresa. Podendo apresen-

tar preços muito mais baixos que os oferecidos por Eulália

- já que esses bares funcionam também como pequenos

19

Vai correndo Secretário

Meu pai rei avisar,

Que a frente de nossa terra

Tão quereno tomar.

a

  rí nc i p e

Eulália Lara de Oliveira, caiçara de Toque-To ue

Pequeno, na costa sul de São Sebastião, não gosta e alar

no assunto. Afinal, como ela mesmo diz, como lutar con-

tra gente tão poderosa como eles? Eu sou só uma mu-

lher , ela mesma responde.

Eulália tem hoje um pequeno bar nessa praia, mas

não mais em frente ao mar, onde sua família sempre

morou. Eulália, nos anos de 78 e 79, foi uma das poucas

pessoas moradoras em Toque- Toque Pequeno a enfren-

tar os proprietários da construtora Albuquerque Takaoka,

que transformou a praia num grande empreendimento

imobiliário e conseguiu, junto ao governo Maluf, fazer

chegar até ele o asfalto da estrada São Sebastião-Bertioga.

Eulália tinha então o barzinho em frente ao mar. Mãe

de três meninas, o marido trabalhador do DER com salário

mínimo, o fator fundamental da sobrevivência da família

era mesmo o barzinho. Um bar que estava justamente no

., terreno mais importante para os planos da Albuquerque-

Takaoka. Grande parte dos caiçaras já tinha saído de

Toque- Toque, ou cedido a frente para a praia a turistas

que construíram mansões. Eulália e o velho Silvestre Mar-

celino de Matos seriam os últimos a sair. Para que essa

corajosa mulher desistisse de sua luta, mesmo grávida foi

muitas vezes ameaçada pelos funcionários da empresa.

18

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armazéns -, Capitão também proibiu que funcionários

da empresa se abastecessem em qualquer outro estabele-

cimento que não o seu. Sem outra alternativa, Eulália

quase fecha o bar, acabando por aceitar a troca.

Hoje, o bar de Eulália não está mais em frente ao mar,

e ela nem se preocupa em recorrer ao SPU-Serviço do

Patrimônio da União reivindicando a legalização das terras

que foram de seus avós. E Toque- Toque Pequeno mais se

assemelha a uma cidade fortífícada da Idade Média, cerca-

da por altos muros de pedra que protegem valiosíssimas

propriedades numa praia em que o caiçara não tem mais

vez.

EM P Z N TERR DOS P IS

Embaixador, eu não queria assim,

Eu não queria que este reino

Fosse todo esbandalhado

O

C a ci qu e d o E m ba ix a do r

';

Eles foram os primeiros moradores deste litoral. Nem

por isso estão em segurança. As terras da comunidade dos

Índios guarani do Rio Silveiras na Barra rio Una, em São

Sebastião, desde

1981

se tornaram um cenário de disputa

, eiitré  grandes grupos econômicos e seus moradores. E5-1

tes, cerca de 70, aí cultivam banana e mandioca, além de

retirarem das matas da Serra do Mar o material para a

confecção de seu artesanato, flechas, arcos, machadinhas e

 

cestos, vendidos em toda a região.

No local onde moram esses indígenas, numa .9 ).i-

nhada de duas horas mata a dentro desde o núcleo da

Barra

d  

Una, está prevista a construção de um conjunto

habitacional de cerca de cinco mil casas de veraneio, con-

forme projeto da empresa Sapor Construtora, com sede

na capital de São Paulo. Há cerca de

40

anos o capitão da

Polícia Militar Homero dos Santos luta na Justiça com

Joaquim Feliciano Neto, na disputa pelo título de posse

dessas terras e de sua redondeza, área que nenhum dos

dois chegou jamais a ocupar. Quando a Justiça deu ganho

de causa a Joaquim Feliciano Neto, os guarani foram inti-

mados a abandonar o local sob a alegação de que teriam ido

habitar aquelas terras a convite do capitão Homero dos

21

0

I

Ir 

I

I

  •  •

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Santos, ainda na década de

60.

Além disso, o comerciante

Armando Peralta, dono de uma rede de supermercados na

Baixada Santista, também reivindica parte das terras dos

guarani, para estabelecer aí um projeto agroindustrial.

Conforme o advogado Marco A tônio Barbosa, do

Centro de Trabalho Indigenista - CTI, ue assessora a

comunidade do Rio Silveiras, a própria Constituição brasi-

leira é muito clara a respeito da posse de terras pelos

índios, no seu artigo 198:  As terras habitadas pelos índios

são inalienáveis, ficando declarada a nulidade de qualquer

ato jurídico que incida sobre território indígena . Mas é

Marco Antônio mesmo quem comenta: o que presencia-

mos nos terr itórios ocupados por indígenas em todo o País

é que normalmente esse artigo da Carta Magna brasileira

se tornou uma brincadeir inha de crianças . Para sustar a

lfa Çãoe expulsão dos guarani, Marco Antônio e sua esposa

Carla Antunha Barbosa, além do jurista Dalmo de Abreu

Dallari , entraram na Justiça com uma ação de embargo de

terceiro possuidor, tentando suspender a ação judicial

anterior.

 Os fatos ocorridos com a comunidade indígena do

Rio Silveiras jáse tornaram jurisprudência em nosso país ,

afirma Dalmo de Abreu Dallari. Foi a primeira vez em

nossa história que os próprios índios se fizeram represen-

tar naJustiça, reivindicando seus direitos, sem interrnedia-

ções da Funai, tendo conseguido a liminar de posse de suas

terras. Esse exemplo foi seguido por outras comunidades

indígenas do Rio Grande do Sul e do Amazonas.

A manutenção das terras da comunidade guarani do

Rio Silveiras, eerca de

300

alqueires, é de vital importância

para as nove comunidades guarani do Estado de São Pau-

lo. Isso porque essas comunidades indígenas do litoral e da

Capital mantêm entre si estreitas relações sociais e econô-

micas. A ameaça que paira sobre uma comunidade se

estende sobre todas as outras. Maria Inês Ladeira, educa-

dora do CTI, que desde 1978 trabalha com os índios

22

guarani do aldeamento da barragem Billings, afirma que

os guarani são os únicos índios que voltaram ao li toral, ao

contrário dos outros, que fugiram ao contato com os

branco? ernhrenhando-se para oeste do País. Os guarani

moram sempre perto das comunidades brancas mas em

locais de difícil acesso, maneira com a qual 'pretendem

proteger sua própria comunidade e sua identidade cultu-

ral.

De acordo com Maria Inês, as várias comunidades

guarani interdependem economicamente, pois a lavoura,

a caça, a pesca e a coleta de material para seu artesanato

são atividades feitas em conjunto. as matas da Serra-do

Mar abastecem de material para as cestas e colares não só

os índios do litoral mas também os da Capital . Do ponto

de vista social, essas comunidades são também dependen-

tes umas das outras, já que todas mantêm relações de

parentesco e os casamentos são sempre realizados entre

elementos dessas comunidades.

Os advogados daCTI têm em suas mãos documentos

que historiam migrações guarani para o litoral de São

Paulo já no início do século XIX..Os autores desses tex~os

citam migrações muito anteriores a essa época. Alem

disso, os tupinambás sempre ocuparam o território ime-

morial dos indígenas. Os mais velhos do Rio Silveiras

afirmam que na década de 50, quando chegaram a esta

comunidade, ela já era habitada por outros indígenas. Para

Marco Antônio Barbosa, é só estudarmos um pouco de

história do nosso País para sabermos que esse litoral foi

densamente povoado por indígenas. Agora, só falta pro-

varem que quem descobriu o Brasil foram os índios inva-

sores e que os brancos, estes sim, sempre viveram aqui .

O cacique Samuel Bento dos Santos, líder da comuni-

dade do Rio silveiras, afirma que sua gente só quer viver

em paz nas terras de seus pais.

É

aí, nessa comunidade, que

se encontra um dos únicos cemitérios guarani no Estado

de São Paulo, onde estão enterrados três caciques, um fato

 3

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.:Iegrande significado para toda a nação guarani. Samuel

lembra os tempos do cacique Gumercindo: Naquela épo-

ca nós tínhamos mais de mil alqueires e levávamos mais de

um dia para percorrer de urna ponta a outra as terras.

Quando esse nosso chefe morreu, roubaram urna parte

do nosso território e hoje só nos restam

300

alqueires de

mata. O que sobrou nós não vamos perder. Se nos obriga-

rem a sair daqui, nós nos matamos, para mostrar ao

mundo todo o que o branco faz com o seu irmão índio .

Os guarani da comunidade do Rio Silveiras também

não querem a intervenção da Funai em seu aldeamento,

porque a transformaria em reserva indígena: Índio da

Funai é corno prisioneiro. Os guarani de Peruíbe passam

fome, comendo banana com café. Eles não têm liberdade

de receberem seus próprios amigos. É pior do que bicho

enjaulado. Aqui somos livres e as crianças são fortes e

bonitas .

Por outro lado, as promessas feitas aos índios pelos

capitalistas interessados na área, no final de

82,

de dar em

troca do pedaço de terra dos guarani três casas de bloquete

mais 500 mil cruzeiros, não resolve o problema , segundo

Maria Inês Ladeira. Isso porque a divisão de terra corno é

.feita para oposseiro não funciona igualmente para o índio.

O indígena vive em contato estreito com a natureza, que

lhe é vital. Daí a configuração de posse por eles realizada

ter de ser entendida de forma diferente daquela feita pelo

branco: o índio mantém com a terra um relacionamento

religioso e sagrado, que demonstra no respeito e conser-

vação da mata onde vive e da natureza que o cerca. O índio

não devasta, preservando a área em que habita e deixando

sinais de ocupação diferentes dos nossos .

Para Maria Inês, se quisermos que a população indí-

gena aumente, é necessário que sua terra seja mantida,

pois o fato de serem urna população flutuante - caracte-

rística guarani - não significa que não seja urna população

estável. O sertão do Rio Silveiras é, sem dúvida, território

guarani .

24  

A grande reivindicação dos guarani do Rio Silveiras e

do CTI é a imediata demarcação de suas terras. Este

pedido foi feito ao Governo do Estado através da Secreta-

ria do Interior, que poderia usar os recursos da Sudelpa

nessa demarcação, já que ela conta agora com um grupo

especial de trabalho para a resolução dos problemas de

terras. Problemas que existem em todo o litoral paulista.

Já no dia

19

de abril de

83,

o secretário do Interior,

Chopin Tavares de Lima, recebeu um dossiê com o histó-

rico da comunidade guarani do Rio Silveiras. Nele se

reivindicou a demarcação das terras, seguida de seu regis-

tro no SPU corno terras indígenas.  Afinal, afirma Marco

Antônio Barbosa, a Funai alegou, no início de 83, falta de

verbas para poder demarcar todas as terras indígenas

brasileiras. Mas, para qualquer ação do governo estadual é

imprescindível que sejam respeitados os direitos dos gua-

rani decidirem sobre seu futuro. Além disso, a. relação

 

entre o Estado e a comunidade guarani deve ser interrne-

diada por profissionais com formação indigenista e com

conhecimento da realidade guarani. Sem isso, o Estado

estará agindo corno sempre fizeram os Órgãos oficiais de

proteção ao índio - SPI e a Funai - isto é, de forma

autoritária e sem respeito aos interesses e desejos dos

índios .

Enquanto tal demarcação não ocorrer, os guarani

serão fáceis vítimas de agressões. Pois agressão é a palavra

para qualificar a atividade de Armando Peralta, que de

posse de urna autorização concedida pelo ex-governador

José Maria Marin, fez com que a empresa Palmares Indús-

tria, Comércio' e Exportação Ltda. invadisse a área dos

guarani para retirar todo o palmito existente. Isso em

julho de 83. Apesar do Parque Estadual da Serra do Mar e

da decisão judicial. E depois do cacique Samuel ter dito,

num ato público realizado em março deste ano, na Paró-

quia de São Sebastião, em favor da comunidade do Rio

Silveiras, que quando os guarani acabarem no Estado de

São Paulo, o Brasil todo já terá acabado .

2S

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TERROR MULTINACIONAL

Me seja possive, príncipe,

Eu não te vejo falá,

Deixastes um Secretário

Tomar o vosso lugá.

O R ei

As 40 famílias de caiçaras que vivem em São Gon ali-

nho aprenderam a conviver com o medo. Desde há muito

que jagunços armados, montados a cavalo, patrulham esta

praia em nome da empresa S.A. White Martins que, entre

outras coisas; mantém o monopólio de oxigênio no País.

Posseiros há comprovadamente mais de cem anos, os

caiçaras de São Gonçalinho, praia do lito ai sul flu ine~-

se, deveriam estar tranqüilos em suas terras. No cartório

 deParaty

existe um inventário datado de

1845

que regis-

tra os bens do capitão-rnor Antonio José Pereira da Cruz e

de sua mulher, Ana Maria Lapa, provando que as terras

do lugar chamado São Gonçalinho foram lançadas à Fa-

zenda Nacional pela quantia de Hum conto quatrocentos

dez mil e quinhentos réis, pelo pagamento dos impostos

atrazados desse capitão. Esse documento demonstra que

a posse dos caiçaras está situada em cima de terrenos da

União.

Apesar disso, na ação de reintegração de posse movi-

da pela White Martins, a empresa se diz legít ima senhora e

possuidora da fazenda São Gonçalinho, inclusive dos

acréscimos da Marinha . Seu gerente, Júlio Cesar Cassa-

no, entrevistado, chegou a afirmar: estamos recuperando

o : ~ . •

26

o que é nosso; queremos apenas que eles (os posseiros)

saiam do local porque temos outros planos para a região .

Os caiçaras acreditam que foi o fato de a White Martins

ter uma sede de fazenda na praia vizinha de São Gonçalo

que a levou a reivindicar as posses da praia de São Gonçali-

nho. Arlindo de Souza Sobrinho,

75

anos de idade, nascido

e criado nesta praia, está desolado: A companhia proibiu

todos os que moram aqui de cuidar desuas roças. Todos os

dias, dois capatazes da fazenda passam a cavalo pela pJ;.aiae

se nos vêem fazer uma roçado ou consertar nossas casas,

ameaçam a gente. Como podemos sobreviver na terra se

não podemos cuidar de nossas plantações?

Nas declarações que Júlio Cesar Cassano faz à im-

prensa, os caiçaras aparecem como pessoas que não. têm

 amor à terra, porque a maioria, ao contrário do que

afirmam, não nasceu no local e sabe perfeitamente viver

de outra coisa . Não é o que diz Orivaldino Geraldo da

Silva, de

88

anos, o mais velho morador em São Conçali-

nho. Sua certidão de nascimento prova que ele nasceu

nesta praia, assim como todos osque lutam para aíperma-

necerem.

Para os caiçaras, a desdita começou com a construção

da estrada (BR 101), que valorizou as terras e atiçou a

ganância dos homens . São Gonçalinho fica na margem da

Rio-Santos, à altura do quilômetro 154, a 32 quilômetros

do centro urbano de Paraty.

Jair da Silva, da antiga diretoria do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Paraty e do PDS local- do qual

foi presidente - é natural de São Gonçalinho e aí foi

criado:  Meus pais contavam que a White Martins com-

prou uma 'sorte' de terras em São Gonçalo e botou aí um

armazém. Nessa época muito caiçara trocou suas terras

por um pedaço de fumo ou um pouco de querosene. A

empresa tirava madeira deste litoral para fazer alcatrão.

Mais tarde, ela pôs tanto boi nas plantações que a terra

chegou a virar areia . Num período em que a fazenda São

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Gonçalo foi desativada, os caiçaras que lámoravam conse-

guiram recuperar seus roçados e as condições de vida

começaram a melhorar, apesar da grande distância da

cidade:  A gente andava um dia inteiro para chegar a

Paraty e lá trocar a farinha de mandioca ou a banana e o

peixe salgado por alguma coisa que precisássemos .

Para Jair da Silva, com a construção da Rio-Santos o

negócio engrossou: a empresa contratou um policial re-

formado da PM carioca, entre os anos de 1972 e 1973, que

bateu e desrespeitou muita gente, até que acabou matan-

do dois posseiros, Amâncio Bonifácio da Cruz e o filho

dele, Vitório da Cruz . A empresa começou então a chamar

os caiçaras para fazer um acordo com eles, dando o que

bem entendia pelas terras . Jair afirma que a White Mar-

tins já destruiu

50

casas de posseiros para nada de útil

fazer com a terra - só guardá-Ia para especulação imobi-

liária . É ainda este membro doPDS de Paraty que assegu-

ra:  A titulação registrada em cartório pela White Martins

é de

2.500

metros quadrados, e no entanto reivindica mais

do dobro do que legalmente possui .

É espantoso o que a White Martins consegue.

Clarice Maria da Conceição é uma velha

caiçara,

mãe

de muitos filhos, nascida e criada em sua posse de São

Gonçalinho. Para sua surpresa, em meados de 83 rece-

beu uma intimação do Juiz de Direito de Paraty pondo-a a

par da ação de despejo -  rito sumaríssimo - que a

White Martins movia contra ela. Alegação da empresa:

existe entre ambas um contrato de arrendamento rural. E

na ação judicial foi mesmo anexado um contrato de arren-

damento que se destinava ao exercício de exploração agrí-

cola ou agro-industrial. Acontece que Clarice não sabe

assinar nem mesmo o seu nome -  e eu não botei o dedão

em papel nenhum, não .

O advogado que defende Clarice, Jarbas Macedo de

Camargo Penteado, do escritório de Sobral Pinto, desde

1976 vem acompanhando a luta dos caiçaras deste litoral

28

fluminense. O primeiro contato que [arbas ,teve com os

posseiros àe Paraty foi na defesa dos trindadeiros ,contra

as pretensões- do conglomerado multinacional Brascan.

que pretendia fazer de Trindade um paraíso do turismo

internacional. Os caíçaras, evidentemente, estavam atra-

palhando os planos do Brascan. [arbas atua também atra-

vés da Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro, e tem

hoje o apoio do Instituto Histórico e Artístico da Prefeitu-

ra de Paraty e d a nova diretoria do Sindicato dos Trabalha-

dores Rurais deste município, eleita em feveretro de 1983.

Examinando o contrato apresentado pelaWhite Mar-

tins, [arbas descobriu que a área arrendada e nele descrita

é de seis metros quadrados, ou seja, medindo dois por três

metros, exatamente onde se localiza o casebre de Clarice.

E mais: o contrato de arrendamento foi assinado a ro~o,

em 1975, por uma professora chamada Leci Cuedes, que

na época trabalhava em São Gonçalinho. Na Justiça, Leci

declarou que não se lembrava da área de arrendamento

no momento em que assinou o contrato, nem o total da

área arrendada, além de não se lembrar se dona Clarice

colocou ou não sobre o contrato suas impressões digitais .

Na defesa da caiçara, Jarbas sustentou que op róprio Siste-

ma Nacional de Trabalho Rural conceitua o imóvel rural,

devendo o mesmo possuir uma área mínima de dois hecta-

res, ou seja, dez mil metros quadrados.

Jarbas afirma que muitas irregularidades dessa ação

judicial exemplificam os meios usados pela White Martins

em São Conçalinho:  Como pode ser colhida a pretensão

da empresa se tal contrato fere toda a conscientização do

que se entende por arrendamento? Além disso, acresce o

fato de Dona Clarice não ter assinado nem colocado suas

impressões digitais, muito menos autorizado a professora

a assinar o documento a rogo. Mesmo porque, neste caso,

como entendem renomados tratadistas do Direito ivil,

deve ser efetuado um contrato por instrumento públi  

para que o Oficial de Cartório possa verificar se as p rt

estão manifestando sua vontade livremente .

2

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Como disse o repórter Edilson Martins numa entre-

vista com [arbas,  no dia que este país pertencer ao seu

povo, esta historinha haverá de ser narrada nas escolas

públicas como testemunha de um Brasil obscurantista e

feudal . Um obscurantismo e feudalismo que podem tam-

bém ser reproduzidos na história do relacionamento do

advogado Antonio Francisco Maia e os caiçaras de São

Gonçalinho. Esse advogado detém a maiona das ações de

defesa dos caiçaras, levadas até eles por Jair da Silva, que é

filho de São Gonçalinho,

ex-presidente

do sindicato dos

trabalhadores rurais,

ex-presidente

do PDS de Paraty e

membro da igreja evangélica Brasil para Cristo, da qual a

maioria dos moradores desta praia faz parte.

O

advogado

Antonio F. Maia também já foi advogado do sindicato dos

trabalhadores rurais quando Jair era o presidente. Coinci-

dências? Tanto Maia como seu colega Alírio Campos tam-

bém atuaram junto aos caiçaras da praia de Trindade, por

interferência de Jair da Silva, quando as ameaças de expul-

são dos posseiros começaram a ser feitas pela multinacio-

nal Adela.

Segundo os trindadeiros, os advogados prometiam

iniciar o processo de usucapião e para tanto conseguiram

as procurações dos caiçaras. Mais tarde o discurso mudou:

Campos e Maia aconselhavam os trindadeiros a venderem

suas terras,  pois contra multinacional nada se pode fa-

zer . Além disso, os advogados afirmavam que se os pos-

seiros recusassem a oferta da Adela, acabariam ficando

sem nada .

Em São Gonçalinho a história se repete. Conforme o

contrato firmado entre Maia e os posseiros (muitos deles

analfabetos e crentes nas palavras do irmão de fé ), o

advogado deverá ficar com

20 

do produto da venda de

suas posses, caso vença a ação judicial. O que Maia reco-

menda aos caiçaras de São Gonçalinho é que reivindiquem

um preço maior por suas posses, o que, evidentemente,

lhe trará maior lucro. Mas, com nenhum caiçara Maia

 

chegou a falar da possibilidade de permanecer em sua

terra, apesar de ter em mãos o documento que prova que o

título desta praia é da União. Atualmente, Maia trabalha

no IBDF, onde conseguiu financiamento a fundo perdido

para a Fazenda São Gonçalo, destinado à plantação de

eucalíptos nesta praia de propriedade da White Martins

S.A.

A ação desenvolvida pela Sociedade de Defesa do

Litoral, do Instituto Histórico da Prefeitura de Paraty -

empenhado na preservação da cultura caiçara - e pela

Pastoral da Terra da diocese de Itaquaí, da qualParaty faz

parte, fez com que os moradores de São Gonçalinho pre-

tendessem mudar de advogado. E àqueles que o procu-

ram, Maia afirma que só entregará os documentos e a

procuração mediante a quantia de dois milhões de cruzei-

ros.

I

I

t

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SE A PESCA FRACASSAR

de Bonete afirmam  que nunca nenhum deles pareceu no

oceano. O mar, companheiro de trabalho, elemento fun-

damental na vida de toda a comunidade, é respeitado e

velho conhecido de todos. Com um dia de antecedência o

caiçara sabe dizer se o tempo vai virar ou permanecerá

 firme .

Esta vila é uma das poucas comunidades ~scado-

res remanescentes no. itora au ista. A população que

ficou - localizando-se' entre a frente da praia vendida a

turistas e as terras da Serra do Mar, propriedades de

grandes plantadores de coco, como Adhemar de Barros

Filho - tem uma vida dura mas descontraída.

Os que trabalham no coco estão de volta para suas

casas no final da manhã. Ademar Alvez de Souza, 48 anos

de idade, 11filhos, é um exemplo: Além do trabalho na

fazenda, ainda planto minha roça-e pesco para a família. O

que sobra do peixe, vendo para o Malaquias .

A viola, o violão, a música caipira estão sempre pre-

sentes na vida destes caiçaras.

À

noite, sob as estrelas,

costuma sair para ():.terreiro cantando e compondo. O

futebol na praia, no. fim da tarde, também é sagrado. Mas

tanto ele como a pesca são atividades tipicamente masculi-

nas -  o s homens se distraem com o futebol, as mulheres

.com a reza na igreja , afirma uma moça casadoura.

Aqui existem três igrejas: a capela católica de Santa

Verônica, a igreja Brasil para Cristo e a Assembléia de

Deus. Por conta de divergências rel igiosas entre marido e

mulher, o primeiro desquite já foi registrado em Bonete.

A festa deSanta Verônica, a 8 de julho, é a maior

comemoração nesta praia. Para a novena da santa acorre

gente de todos os lugares da ilha de São Sebastião e até

mesmo antigos, moradores do lugar vêmde Santos e da

Capital para dela participarem. Benedito Corrêa, cantador

do martírio da santa e responsável pela festa do Divino e

pelo reisado de Bonete, acha que todas as festas não são

mais como antes . Antigamente, conta ele, as bandeiras

33

E se padeço de boa páiz

A terra da cristandade;

Assim mesmo semo em páiz

Benedito seja louvado,

O

Prim eiro Fi dalgo

O céu está ainda cheio de estrelas e Malaquias Souza

Santos, caiçara de 30 anos, já se dirige para o mar. Não deu

ainda três horas no relógio de pulso de um de seus cunha-

dos que o esperam para juntos empurrarem a c anoa para

fora da barra.

Atalaia é a maior canoa de todo o Bonete, orgulho de

Malaquias, seu proprietário. Para comprá-Ia, com todas as

redes com que trabalha, ele precisou mudar-se para San-

tos com a mulher e os dois filhos já nascidos naquela

época . Naquela cidade, Malaquias trabalhou durante qua-

tro anos como empregado ,no barco de outros. Com o

dinheiro que juntou, voltou para o lugar onde nasceu,

mandou construir nesta praia mesmo a sua canoa e se

tornou um dos maiores pescadores de Bonete.

Mas nem sempre Malaquias pode sair para o mar.

Existe no lugar um provérbio que diz que  em mês deabril

não se pode sair , que traduz a insegurança da população

de Bonete - ilha situada do lado do.mar aberto da ilha de

São Sebastião, municí ia de Ilhabela -- em relação aos

meses fri~ do ano. Quando o~?fecha nesta praia, a

maré sobe até as primeiras casas da vila e ninguém se

arrisca a sair do lugar. E.é com orgulho que os pescadores

32

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iam cantando em outras praias de Ilhabela, como a Enxo-

vas e Castelhanos, recolhendo dinheiro para as solenida-

des.

Mas não foram somente as manifestações religiosas

que mudaram, em Bonete. Os três aparelhos de televisão

instalados, e que funcionam a bateria, tiram muita gente

da viola ponteada no terreiro para acompanhar os capítu-

los das novelas que falam de realidades distantes da vida

desses caiçaras.

Antônio Aguinaldo,

85

anos de idade,

26

netos e

tantos bisnetos que perdeu a conta, a pessoa mais idosa de

todo o Bonete, é de opinião que muita coisa mudou em sua

praia:  no meu tempo não havia canoa a motor, e para ir

até São Sebastião levava um dia e meio de viagem; para ir a

Santos, quatro dias remando sem parar - a gente fundea-

va em qualquer lugar e cozinhava a bordo mesmo .

Para Santos eram levados ovos de galinha; laranja,

abacate, e lá faziam compras de sal, milho e pano para a

costura das mulheres. Antônio Aguinaldo acha que agora

os tempos são melhores:  temos uma aposentadoriasqnha

e o povo tem mais onde trabalhar, apesar de não termos

mais a terra . Os empregados em Bonete trabalham nas

fazendas de coco, na limpeza das plantações, ganhando

salário mínimo. No tempo de Antônio o fio deconfecção

das redes era comprado na cidade e os mais velhos do lugar

as teciam -  e a gente não matava o peixe para vender.

Quando sobrava o pescado, o povo salgava tudo para

alimento do lugar .

Por que tanta gente foi embora de Bonete?

O velho Antônio tem uma explicação mística: Meu

pai sempre me dizia que viria um tempo em que o povo

não ia achar um lugar bom para morar. Ia viver como

formiga de um lado para outro. Calhou que esta era já

chegou .

Mas Malaquias, homem novo, é de outra opiruao

mais realista: O pescador fica na terra quando tem condi-

ções de trabalhar e sustentar a família. Se a pesca evoluir,

34

continuo aqui e quero que meus filhos sigam o meu

caminho, pois tenho uma profissão para dar a eles. Se a

pesca fracassar, eles que sigam a vontade deles e seu

destino . .

Bela praia de 600 metros de comprimento, situada

entre dois rochedos, Bonete já teve uma população de

mais de cem famílias de caiçaras. A maioria vendeu suas

terras, conforme eles mesmos contam, às vezes em troca

de uma viagem ao continente, num dia de muita precisão ,

ou a preços irrisórios, saindo para outros lugares em busca

de novas oportunidades de trabalho. Em Bonete ficaram

cerca de 200 pessoas que compõem as 40 famílias. Estas

dizem que nãos aem daqui  por dinheiro algum do mun-

do , deste único

núcleo

mais povoado neste lado da ilha de

São-Sebastião, sendo a pesca sua principal atividade econô-

mica.

O trabalho dos pais de família começa muito cedo, ou

se dirigem ao mar durante a madrugada, voltando à praia

no-começo da tarde. Ou passam a noite em mar aberto,

retornando de manhãzinha prá casa.

Malaquias Souza Santos desempenha um papel im-

portante na comunidade, pois é o maior pescador da co-

munidade, chegando a comprar de alguns companhe.jss o

peixe apanhado que excede às necessidades de suas famí-

lias. O que fez de Malaquias uma pessoa especial em

Bonete foi o fato dele ter trazido para esta praia a geladeira

de isopor que veio mudar a economia da comunidade.

Antigamente, o peixe não consumido era salgado

para ser usado quando o mar engrossasse . Depois da

introdução da geladeira de isopor no Bonete, os pescado-

res

começaram

a guardar o pescado excedente, vendendo-

o em São Sebastião ou Ilhabela. Mesmo assim muitos são

os pescadores artesanais do lugar que desistiram da pesca,

preferindo ser empregados das fazendas situadas nde

eram antes suas terras. Pelo menos, dizem eles, temos a

segurança de um salário no fim do mês .

35

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Ao todo existem 14 canoas em Bonete. E é nelas que

os pescadores saem todos os dias para  visitar ou  correr 

as redes. Numa boa pescaria o dono do barco pode reco-

lher até 200 quilos de peixe de uma só vez. A pescaria

considerada normal gira em torno de

80

quilos. Quando

este limite não é alcançado, não compensa nem a despesa

com o combustível . O preço da mercadoria é sempre

indicado pelo comprador -  eu nunca sei quanto vão

pagar. A gente até tem medo de pegar muito cação porque

se não o preço dele vai prá quase nada , af irma Malaquias.

Más não é só com a incerteza do preço de sua merca-

doria que o pescador sente insegurança em sua prof issão.

Se o tempo engrossa ,  não dá para sair, e daí não dá

trabalho nem ganho . Mesmo trabalhando, as condições

em que o fazem são as mais inseguras. Para a pesca do

cação - um tipo de tubarão, dentes bastante afiados -

um pescador fica no remo mantendo a canoa em equilí-

brio, enquanto o outro recolhe a rede. Secair na rede um

cação o terceiro pescador está atento empunhando um

porrete. Se falhar na paulada, os três correm o risco de

perder as pernas.

 Além disso, suas redes f icam expostas a todo o tipo de

am2:;'~as,desde os grandes cardumes que podem arreben-

tá-Ias até o roubo praticado por pescadores de fora. Os

pescadores de Bonete acreditam que grande ameaça mes-

mo é a concorrência ilegal praticada pelas grandes parelhas

de pesca de Santos e Rio deJaneiro, que atuam neste li toral

impunemente. Por lei, um barco de arrastão só pode pes-

car em alto mar, cerca de dois mil metros da costa.

Edson Nobun.a Ishi, dono da peixaria que compra

quase toda a produção dos pescadores de Bonete, é quem

empresta dinheiro aos pescadores para a compra de suas

redes. O pescador artesanal não tem condições de obter

empréstimo bancário, pois a tera onde vivem é posse, não

servindo para garantia. O recolhimento de

2,5%

feito

sobre o total da venda do pescado para o Funrural  é um

36

absurdo , na.opinião de Edson:  O peixeiro desconta dessa

percentagem que não vai ser revertida em benefício do

pescador artesanal, uma vez que ele não tem nota de

produtor , Além do mais, conforme Edson, pelo menos

um dos pescadores de cada embarcação é registrado, por'

força de lei ,no INPS. Assim, alguns pescadores são tribu-

tados duplamente, muitas vezes não usufruindo dos bene-

fícios desses órgãos do governo.

A grande reivindicação dos pescadores da região é a

construção de um entreposto de pesca, onde haja abasteci-

mento de gelo e câmaras frigor íf icas para guardar o peixe,

onde seja possível a inda a venda do pescado diretamente

ao consumidor e atacadis ta e possa ser fei ta a fiscalização

do Dipoa - Departamento de Inspeção de Produtos de

Origem Animal, órgão ligado ao Ministério da Agricultu-

ra. Atualmente, essa fiscalização é feita dentro das depen-

dência da indústria Confrio, que por conta das despesas

ocorridas nessa operação, cobra uma taxa exorbi tante ,

conforme pescadores e peixeiros, pelo aluguel de suas

instalações. .

 A gente continua tentando, pois é isto que seifazer e

é no mar que me sinto bem , afirma Malaquias,  mas era

preciso que o governo desse mais apoio ao pequeno pesca-

dor: não temos mais terra para plantar, e se ficamos sem o

peixe, o que vamos ficar fazendo no Bonete ? .

 7

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  N TIG OS PIR T S E

NOVA PIRATARIA

Fazei frente, fazei frente

Fazei frente, fortemente

Para que nosso rei diga

Que sois um príncipe valente,

Que eu já vo sem tardá.

O Secretário

Não há diferença nos dias dá semana nesta ilha do

litoral aulista: Búzios município de- abela, uma conti-

OI.iaçãogeológica d~<ie São S astião a 25 milhas do

contmente. Aqui moram 60 famílias num total de 400

habitantes. Montanhosa, seu acesso é difícil e perigoso.

Em Búzios não existem praias: a ilha apresenta, em todo o

seu redor, costões onde o mar arrebenta com muita vio-

lência. Para se chegar, é preciso fazer baldeação da lancha

para uma canoa de caiçara. Esta, com o impulso dasgigan-

tescas ondas e a ajuda depessoas decócoras que esperam

sobre as pedras, aterrisa sobre

 5

trapiches improvisados

nos rochedos.

 Nossa vida depende do mar: se ele está calmo, nós

saímos; se está 'grosso', ficamos , dizem os moradores. O

pier construído pela ~l~ Superintendência de De-

senvolvimento do Litoral Paulista, ainda no governo de

Paulo EgídioMartins, nunca

é

usado porque, muito acima

do nível do mar, acaba por oferecer mais perigo do que

descer pelas pedras _. é o que dizem

 5

caiçaras.

Ép,or esse isolamento que

 5

dias se repetem sem

grandes diferenças para

 5

moradores desta ilha de sete e

meio quilômetros quadrados. Seus moradores se espa-

lham em quatro núcleos chamados Mãe [oana, Ponta das

38

Pitangueiras, Porto do Meio e Guaxuruna. A vida do

caiçara de Búzios é meio simples. Sua subsistência se

baseia no peixe, na roça de mandioca, cana, feijãoe inúme-

ras árvores frutíferas encontradas por toda a ilha,

 A gente costumava mandar canoas e canoas com

frutos para o continente, na época da manga , conta orgu-

lhosa da proeza, Iosefina Mariano deJesus, uma das mais

velhas caiçaras do lugar. Para chegar ao centro urbano de

I1habela, onde vendem seu artesanato de madeira,

 5

cai-

çaras de Búzios precisam remar por onze horas ou então

fazer uma viagem de barco a motor decerca detrês' horas.

Mas nem sempre existe dinheiro para a passagem.

Foi (ou

 

esse acesso difícil e perigoso que permitiu a

Búzios permanecer mais tempo longe da especulação imo-

biliária. Mas ela já está-se acercando da ilha:  já andou

gente por aqui dizendo que temos que vender nossas

posses a qualquer preço, por qualquer dinheiro, pois o

governo quer fazer um presídio , afirma a caiçara, filha de

pai japonês, Benedita Higa, que nasceu na ilha da Vitória.

 O

governo precisa ajudar o pessoal das ilhas, senão -es

acabam perdendo as terras, como os caiçaras de Ilhabela,

muitos deles que foram expulsos da praia onde viviam ,

diz Benedita. E, dramática: Se tirarem os caiçaras das

ilhas, eles morrem . Em Vitória, ilha adiante de Búzios,

com 16 famílias, os moradores contam que muitos

caiça-

ras já colocaram  o dedão num papel, que um senhor de

Ubatuba trouxe para a gente .

O

significado desse papel

nenhum deles sabe explicar.

E eles também não sabem explicar como vieram parar

aqui os primeiros moradores de Búzios.  Difícil de respon-

der , diz o Aristides Fernandes Teixeira, marido de[osefi-

na e tido como um dos mais antigos moradores da ilha.

Apesar da incerteza do patriarca Aristides, há muita gente

neste litoral que atribui aos piratas europeus os olhos

verdes e azuis,

 5

cabelos loiros ou vermelhos, assim como

39

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Outra alegria do buziano é a presença de um barco

pesqueiro na região, sinal de que a onerosa viagem a

Ilhabela poderá ser dispensada, pois a venda dopeixe será

feita na ilha mesmo. Eépor causa das dificuldades da pesca

que todo buziano tem a sua rocinha, apesar do terreno

pedregoso de toda a ilha. .

 Aqui não há necessidade de se sentir tristeza , diz

[osefina,  e quem enfrenta uma enxada e tem meio de

poder viver, não precisa de mais nada.

O

medo que eu

tenho é que aquele causo do presídio seja verdade mes-

 o.

a pele sardenta de muitas crianças de Búzios. Mas a apa-

rência de outras' - cabelos negros e lisos, pele morena,

olhos de jaboticaba - atesta a inçonfundível ascendência

indígena.

É

evidente que tudo issonão conta para os novos

piratas das corporações imobiliárias.

Como não conta, para os novos piratas, a festa e o

baile desta comunidade. A casa de [osefinaestá sempre

montada para uma festa. As paredes de sua casa foram

pintadas por ela mesma, e as decorou com desenhos de

flores, navios, animais e

helicópteros.

Estes se explicam

por ser elemento constante

com

a chegada das multinacio-

nais do petróleo nesta região litorânea. O cotidiano destas

pessoas é alegre e nos casamentos tem dança até o sol

nascer . A viola é seu instrumento mais popular, mas as

radiolas de pilha, sambas, chorinhos e modas caipiras fa-

zem o deleite da maioria.

O radinho de pilha é o maior elo de ligação desta

comunidade com o mundo. Por ele pode-se ficar sabendo

do roteiro dos barcos de pesca, que levam muitos de seus

parentes, geralmente os mais novos, embarcados em

busca de uma nova vida.

É

o rádio de pilha que supre

outros elementos religiosos: Todos os dias faço minhas

orações e ponho uma garrafa de água para ser benta pelo

padre que fala no rádio. confessa [osefina, que tem um

retrato do padre Donizete de Tambaú pendurado na pare-

de. Além da imagem de Nossa Senhora Aparecida, pa-

droeira dessas famílias que têm todas algum tipo de paren-

tesco entre si.

Ascomemorações de São Pedro são esperadas duran-

te o ano todo. A única capela, situada no Guaxuruna,

dedicada ao santo protetor dos pescadores, é conhecida em

Búzios como a Casa de São Pedr~. Para sua festa, no fim

de junho, acorrem famílias de buzianos que moram agora

em Santos ou no bairro de São Francisco, em São Sebas-

tião,

 

4 4

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VOMIT NDO S NGUE

Soberano meu rei Senhor

Eu parte vos venho dá

Que a guerra está muito forte

Eu nela, não posso entrá.

É

preciso dar um grito

Para ansim agrumentá

O Secretár i o f al a ao R ei

Poluição do mar, expulsão da terra, caminhos cente-

nários fechados por cancelas e guaritas. Agora é assim, na

ilha da Madeira, Itaguaí no litoral sul do Rio de Janeiro,

desde quehTI8 anos atrás a Metalúrgica Ingá se instalou

no lugar. A empresa é responsável por 50% da produção

nacional de cádmio -lançando somente por uma de suas

chaminés duas vezes mais zincoe 30vezes mais cádmio do

que o permitido por lei, conforme relatório da Feema.

Com isso, o mangue situado na área estuarina, que

era nascedouro natural de camarões, caranguejos e mexi-

lhões, é agora uma imensa lagoa de águas lamacentas e

mortas. Eos peixes, segundo os pescadores da ilha,  sódão

muito longe da praia . Com isto,  só os que têm barco

muito grande podem ir buscar os peixes .

Quado a Ingáchegou nailha daMadeira tratou muito

bem os pescadores que aí viviam. Manuel Francisco da

Silva,

74

anos, nascido na ilha, neto de madeirenses, um

dos mais velhos do lugar, lembra-se do médico japonês

que a empresa trouxe pra nós - era uma beleza. Ela

.trouxe até um caminhão de remédio .

Mas foi só o começo. Logo em seguida, a empresa

fechou a passagem de servidão, isolando as mais de mil

42

pessoas que moravam na ilha do resto da comunidade.

Atravessar a cancela da empresa, constantemente guar-

dada por homens armados, somente os funcionários e os

moradores da ilha que têm com que se identificar. Um

verdadeiro gueto, com a direção da Ingá pretendendo até a

adoção de um cartão de identificação.

A prefeitura de Itaguaí, na época da instalação daIngá

na ilha, entrou, junto com moradores do lugar, com uma

ação judicial contra o fechamento da estrada pública onde

circulava inclusive uma linha de ônibus municipal. Em

1982, o então juiz da Comarca de Itaguaí, Franklin de

Oliveira Netto, deu uma sentença afirmando que os

pescadores poderão transitar pela servidão de passagem

inclusive com seus veículos, observando as limitações im-

postas pela segurança da empresa . O último item da

sentença determinou que a estrada continuasse fechada e

que nenhuma condução pudesse transpor os limites da

guarita. Esta ficaa cerca de um e meioquilômetro da aldeia

dos pescadores, que tem agora 350 moradores porque

muitos desistiram de morar na ilha. O trecho da estrada

precisa ser percorrido a pé, mesmo quando alguém está

doente ou uma mulher está para dar à luz.

As compras feitas no centro urbano têm que ser

transportadas em carrinhos de mão, assim comoo pesca-

do, q.ue é levado aos caminhões que esperam do lado de

fora da guarita. E até o acessoda capela de Nosso Senhor

do Iguape, com mais de 100 anos de construção, continua

fechado pela empresa.

Para forçar a saída dos moradores da ilha, a Ingá

cortou a luz que fornecia aos operários que aí residiam. Já

os moradores da ilha que não trabalham na metalúrgica

estavam acostumados com a luz de lampião: a Ingá nunca

permitiu a instalação de postes da Light através de sua

cancela. Conforme Manoel Francisco, já na época da

última Copa do Mundo a empresa cortou a luz de nossas

casas, para o pessoal desanimar e sair da ilha. Mas o que

43

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oferecem por nossas _poses não dá yra gente morar em

outro lugar ,

Diante de tantos desmandos, os moradores da ilha

chegaram a fazer um abaixo-assinado enviado ao presi-

dente da República, João Figueiredo, onde expunham os

problemas que enfrentam por conta da instalação da Ingá.

Sobre algum resultado positivo nada se sabe. Do que se

tem certeza é que acabou tudo o que havia dentro do

mangue, os peixes estão fugindo do litoral , por causa da

poluição. Também os mariscos, os mexilhões são coisas do

passado:  Morreu tudo que havia de vivo por aqui  ...

As maiores denúncias, entretanto, dizem respeito à

saúde dos moradores da ilha da Madeira e aos operários da

Ingá. Os madeirenses sequeixam de que suas crianças são

constantemente atacadas debronquite e que todos sofrem

de ardência nos olhos. E são muitos os operários que

morrem com a idade de 40 anos,  vomitando sangue. E a

causa ninguém sabe.

v

44

UM BR SIL COM M IS JUSTIÇ

Quem sois vóis,

Atrevido Embaixador,

Estou a te perguntar ,

Nada tens que me falar?

O Re i

Lentamente, como uma enorme centopéia que se

arrasta pelas ruas, a manifestação dos posseiros invade

Paraty. Estes caiçaras da praia do Sono protestam contra a

expulsão de Manoel Quirino de Araújo e sua família das

terras onde os pais dos seus pais haviam nascido. Manoel

Quirino, homem respeitado por todos os moradores da

praia do Sono, um dos líderes da igreja evangélica Brasil

para Cristo, permitiu que seu filho mais velho, José Quiri-

no de Araújo - casado - construísse uma casinha em seu

terreno. E isto o industrial paulista Cilbrail Nu bileTannus

não poderia admitir. Acompanhado por oito policiais ar-

mados, eles expulsaram as famílias de Manoel e de seu

filho, gue vivem ~gora na sede à espera de uma respos-

ta da Justiça. Mas esta espera se restr inge somente ao

destino do filho, já que o velho Manoel não mais poderá

voltar para sua casa, por decisão judicial.

Os antigos caiçaras das diversas comunidades de pes-

cadores de Paraty são unânimes em afirmar que o Sono

era o lugar mais animado e onde aconteciam as melhores

festas da região: Era a praia com mais vida em toda essa

costa. Vinha gente de todo canto festejar junto com a

gente . No Sono já chegaram a morar mais de 200 famÍ-

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lias, que plantavam, construíam e criavam, pois esta é

uma terra de muita fartura . Moacir dos Santos, caiçara

nascido e criado nesta bela praia ao sul de Paraty, afirma

estar convencido de que  no Sono nunca houve dono, pois

somos uma geração de muito longe, que sempre viveu em

terras do Estado . Os moradores do Sono chegavam a

produzir dois mil cachos de banana por mês, além da

farinha de mandioca, do peixe salgado, dos ovos de gali-

nha, feijãoe milho, que eram transportados numa viagem

de mais de quatro horas a remo até o centro de Paraty.

A paz dos moradores do Sono,  todos eles criados

dentro do Evangelho , acabou em

1950,

quando Gilbrail

comprou os títulos das terras da Fazenda Santa Maria,

vizinha a esta praia. Logo no começo, Gilbrail tentou

estender seus domínios-além dos limites da fazenda, mas

foi a partir de 64 que a pressão e intimidação sobre os

caiçaras se intensificou. Segundo o industrial, a praia do

Sono, Ponta Negra, Antigo Grande e Antigo Pequeno

fazem parte de sua propriedade.  O homem comprou uma

fazenda pegou quatro praias, afirma Manoel Quirino.

Para que os posseiros do Sono deixassem suas terras,

Gilbrail chegou a oferecer em troca uma área de

400

metros quadrados num lugar chamado Mãe d'Água. Se-

gundo Maria Coralda, esposa de Manoel Quirino, é um

lugar que não dá pra viver, bate pouco sol e existe muito

mosquito .

Atualmente moram no Sono 36 famílias, num total

de mais de 200 pessoas que se comprimem em 23 casas, já

que os capangas de Gilbrail não permitem nenh uma cons-

trução na área. 05 caiçaras estão proibidos inclusive de

fazer melhorias em suas propriedades, proibição que se

estende às duas igrejas evangélicas existentes na praia,

Assembléia de Deus e Brasil para Cristo. As duas igrejas,

construções simples de terra batida que necessitam de

constante recuperação - como de resto todas as casas do

Sono - estão com as vigas quebradas, as paredes racha-

46

das e ameaçando ruir. Numa dessas igrejas vive Manoel

Quirino com as famílias de seus filhos.

O terror praticado por Gilbrail é constante. Ele che-

gou a ter no Sono uma numerosa criação de búfalos, que

comia toda a plantação dos caiçaras, até mesmo osapé que

servia de cobertura para suas moradias:  os búfalos entra-

vam na escola, punham medo nas crianças, que não que-

riam mais ir pra aula, e deixavam elas cheínhas de bernes .

Para Fausto Pires de Campos, membro fundador da

Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro - que há anos

vem acompanhando a luta dos posseiros do litoral flumi-

nense pela legalização de suas terras -,  de todas as

comunidades existentes no município de Paraty. a do

Sono foi, sem dúvida, a mais oprimida e atemorizada . À

pressão exercida sobre os posseiros chegou aser tanta que

até mesmo o presiden te do PDS locale então secretário do

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Paraty, Jair Silva

(que tem seu nome ligado, ainda que indiretamente, a

muitas transações de terra na região) reconhece, num

relatório enviado ao presidente João Figueiredo, em outu-

bro de 82, que  os moradores do Sono evitam dar qual-

quer afirmação, fugindo do contato com pessoas estra-

nhas, sendo visível a incerteza, o desânimo e a pobreza aí

existen tes ,

Dentro das histórias demedo e opressão conhecidas e

cochichadas nesta região, está a do negro André Miguel

Trindade. Ele era um nordestino que morava há 20 anos

com as famílias aqui no Sono , conta Manoel Quirino.

 A n dré

apareceu por aqui com a família em busca de um

lugar para trabalhar e foi ficando. Crente, humilde, muito

manso, era respeitado por todos pois fazia parte do conse-

lho da igreja Assembléia de Deus. A mando de Gilbrail, e

sob a alegação de ter fugido no levante de prisioneiros

ocorrido em 1952 na ilhaAnchieta, no litoral de Ubatuba,

a polícia levou o negro André para a cidade, batendo nele

para que saísse daqui. Quando foi solto, havia perdido a

47

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voz

e

estava

completamente louco, indo morar numa

caverna  onde acabou morrendo. Até hoje quem sustenta

a mulher e os filhos do negro André somos nós, o povo do

Sono . .

Esperanças? Fausto Pires de Campos afir~a que elas

existem neste povo desde que começou a ser prestada

assistência jurídica pelo advogado Jarbas Macedo. de Ca-

margo Penteado. A possibilidade de

ver

seus direitos res-

peitados trouxe alento ao cotidiano das pessoas. Para [ar-

bas,

  houve

fraude por parte de Gilbrail em relação aos

caiçaras do Sono. Desde 1950, quando comprou os títulos

da Fazenda Santa Maria, esse empresário

vem

sistemati-

camente coagindo os posseiros. Há 30 anos atrás, viviam

1500 pessoas no Sono - e a maioria acabou abandonando

as terras, por medo ou cansaço. Em 1969, Gilbrail induziu

vários caiçaras, inclusive Manoel Quirino. a colocarem

suas impressões digitais - já que são analfabetos - num

documento de escritura pública de cornodato, obrigando- .

se a dar a eles outro imóvel. Esta escritura de comodato é

ilegal, pois de legítimos proprietários pelo título de posse,

os caiçaras passam a ser considerados inquilinos da terra.

Por ou tro lado, a troca de terrenos que deveria ser realiza-

da pelo empresário até hoje não se concretizou, o que

reforça a invalidade da documentação .

Conforme testemunho dos caiçaras da praia do Sono,

suas impressões digi tai s só foram colocadas naquele docu-

mento depois que o pastor Agostinho Ignácio, que hoje

trabalha em Guaratinguetá - homem crente, que se

dizia antigo tenente expedicionário  - convenceu-os de

que com aquele papel todos eles teriam os títulos das

terras. Desde então, Gilbrail construiu uma guarita na

entrada que dá acesso ao Sono, fechando-a completamen-

te. Somente no primeiro semestre de

1983

o prefeito de

Paraty. Edson Lacerda. do PMDB, conseguiu junto à Justi-

ça que a centenária servidão de passagem fosse aberta a

toda a comunidade. Mas o industrial já tinha colocado

 10

nesta única via de acesso ao Sono um mata burro, impedin-

do assim o tráfego de animais, o que obrigava aos morado-

res a carregar nas costas o que quisessem transportar por

terra. Um desses caiçaras, Jorge Lopes Coelho, quanto

teve o braço ferido pelo machado, trabalhando na roça,

teve que andar por duas horas entre os rochedos até

chegar na praia das Laranjeiras. Aí então foi levado de

carro até a Santa Casa de Paraty a fim de ser socorrido. O

carro, estava proibido de trafegar pela estrada do Sono.

E por tudo isso que os moradores do Sono fizeram

passeata, no começo de 83, pelas ruas de Paraty, chaman-

do a atenção da população urbana para os problemas que

vivem. Nos cartazes que levavam liam-se dizeres pedindo

 terra para os que nela trabalham . Embalando sua lenta

trajetória, hinos da igreja Brasil para Cristo. Num deles, os

crentes, homens e mulheres tão sofridos da praia do Sono,

pediam  um Brasil com mais Justiça que caminha em

direção a Deus .

49

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o CASO DA PRANTEADA VELHINHA

Manda subi tua gente,

Se é que tu não me engana.

O R ei a o E mb ai xa do r

Quem trafega pela rodovia Rio-Santos não percebe a (

belez~ da praia que está lá em baixo, na altura do quilôme- .

trat12S) iraQuara de Dentro Pira u r de Ci  la. Praígha

das urnas, Praínha ou Praia do Sítio, como é mais conhe-

cida, são nomes' o mesmo lugar, 2S alqueires onde vivem

seis famílias numerosas, algumas com mais de dez fi lhos,

todas descendentes da caiçara Eurídice Matos Cunha. São

quase sessenta pessoas.

Caiçaras nascidos e criados nestas terras de nossos

pais , em pleno litoral cortado pela BR 101, no município

de Angra dos Reis, as famílias da praia do Sítio estão

aturdidas com o mandado de citação que receberam .do

Juiz de Direito da Comarca, Valter Soares. Segundo o

documento que acompanha o mandado, os caiçaras estão

proibidos de construir o que quer que seja dentro da praia,

pois esta não lhes pertence. Os vinte e cinco alqueires

extremamente valorizados desta praia particular seriam

de Iracema Ramalho de Campos, moradora em São Paulo.

No documento assinado por Caio Jordão (OAB 6770 SP),

advogado de Iracema, Eurídice Matos Cunha, mãe e avó

de todas as famílias moradoras naquela praia, transforma-

se  numa fielguardiã desta propriedade. Depois da morte

da pranteada velhinha, seus filhos, não se sabe porque,

entraram ilegalmente na área tomando posse de uma

propriedade que não lhes pertencia . Este document ita

5

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a existência de um outro, firmado no cartório de Angra

dos Reis e datado de 1918, que provaria ser Iracema a

legí tima dona da praia.

Odete de Oliveira, mãe de 13 filhos, nora da falecida

Euridíce, não sabe explicar quem é Iracema: Aqui, ela

nunca esteve, não senhora. Como é que ela foi chorar a

morte de minha sogra eu não seiexplicar , porque ela nem

conhecia a falecida . O mistér io detoda a dema-nda judicial

que ocorre com estes caiçaras está ligado à figura da

advogada Lúcia Montenegro, que trabalha no Ministério

do Trabalho, na cidade do Rio de Janeiro. Esta advoga da,

depois de defender os posseiros contra um grileiro que

Ihes queria as terras, há nove anos atrás, começou a

freqüentar a praia do Sít io, hospedando-se na casa dos

caiçaras, cat ivando a confiança de todos. Odete conta: A

moça apareceu por aqui depois da estrada ser aberta no

fundo de nossa praia . Antes , nós t ínhamos roça branca de

mandioca, milho e feijão até em cima do morro. Mas os

aterros da estrada acabaram com as nossas plantações,

pois deixaram muita pedra no lugar .

João de Matos Cunha, marido de Odete, antigo pes-

cador que agora trabalha no pát io da Usina de Fumas, não

consegue entender o que a moça Lúcia fez a eles: Nós

somos do tempo que se levava horas remando em canoa

para chegar até Paraty ou Angra dos Reis. A gente vivia

isolado, dependendo da nossa roça e do mar para comer.

Neste tempo, quando fomos criados, o que valia era a

palavra do homem, a palavra do fio de barba. Como a

advogada nos disse que ia legalizar o usucapião de nossas

terras em troca de

30

da praia para ela, nós acreditamos e

aceitamos . Lúcia Montenegro conseguiu a procuração de

todos os caiçaras da praia do Sítio, além do atestado de

óbito de Eurídice , quando esta morreu.

Há cerca de dois anos, Lúcia parou de visitar a praia.

Os caiçaras procuraram por ela nos telefones e endereços

na cidade do Rio de Janeiro. Não conseguiram localizá-Ia.

52

Em julho de 83elavoltou, propondo a compra de uma casa

que aí estava sendo construída por um casal de jovens do

lugar que iase casar. Pela casa, Lúcia daria

350

mil cruzei-

ros. Como a oferta fosse recusada, logo em seguida apare-

ceu um oficial de justiça de Angra dos Reis que a pôs

abaixo, sob a alegação de não possuir o alvará de constru-

ção da Prefeitura Municipal.

É

rotina para as prefeituras

deste litoral não exigirem documentação para as constru-

ções dos caiçaras, pois são muito modestas - em algumas

partes da construção ainda é usado o barro no lugar do

cimento.

Quando a advoga da voltou na semana seguinte, sua

proposta foi outra: ela prometeu um barraco no bairro do

Frade, vizinho da praia do Sítio, para cada um dos morado-

res , já que eles não teriam direi to a nada desta praia . João

não entendeu o que estava acontecendo. Desesperado,

correu até as casas de seus irmãos para comunicar a

terrível novidade.

Os caiçaras da praia do Sít io pediram ajuda

à

Pastoral

da Terra da diocese de I taguaí. Lúcia Helena Soares, assis-

tente social que mora juntamente com duas religiosas

numa favela do Bairro do Frade, e José Marcos Cast ilho,

ambos daquela Pastoral, procuraram assistência jurídica

na capital carioca,  já que dificilmente um advogado desta

região pega uma causa em defesa dos caiçaras, posseiros

na terra . Corino Cunha, um dos moradores da praia do

Sítio, é militante no Sindicato dos Trabalhadores Rurais

de Angra dos Reis. Para Corino.  o primeiro passo para os

caiçaras se defenderem está na sua organização dentro do

sindicato de classe. Em quase dez anos que estamos lutan-

do pela defesa de nossas ter~as, somente agora encontra-

mos um advogado honesto. E mais difíc il um advogado de

sindicato enganar o lavrador, pois o que ele faz fica sendo

conhecido de todos os trabalhadores rurais. 

A Pastoral da Terra também é de opinião que se deva

fortalecer o sindicato, para que, através de seu departa-

53

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Os migrantes começaram a chegar em São Sebastião

no início dos anos

60.

Os moradores da região, não acostu-

mados com gente de fora, olhavam paraeles desconfiados,

Eram mineiros, alguns de Teófilo Otoni ou BeloOriente,

muitos de São José do Barreiro, no fundo do Vale do

Paraíba , outros dos sertões de Paraty. Quase todos já

tinham andado por outros lados. Vinham desesperança-

dos do norte do Paraná, numa caminhada em busca de

melhores condições de vida, Sem lugar para morar, aos

poucos se reuniram no morro do Abrigo, nas encostas da

serra do mar, no bairro de São Francisco, Sua permanên-

cianessas terras não lhes causaéa problemas, pois a dire-

çãodo Abrigo Batuíra, entidade espírita beneficente. dona

dos títulos das terras, permitia que os migrantes ali se

abrigassem.

Vindos da roça, estas famílias começaram suas plan-

tações nas encostas da Serra, de onde tiram o sustento de

cada dia. A maioria dos homens trabalha na Prefeitura

Municipal de São Sebastião, ou na construção civil, mas,

conforme testemunho deles mesmos, oque ganham,  não

dá prá comer, não . O que mantém essas famílias, todas

numerosas - algumas com uma dúzia de filhos - é a roça

que as mulheres e as crianças tocam durante a semana,

55

mento jurídico, os interesses principalmente dos possei-

ros, que não têm como pagar um advogado, sejam defen-

didos. Mas Lúcia Helena acredita que na base da luta que

estamos travando é necessário que tenhamos assessoria

jurídica própria, para inclusive trabalhar juntamente com

o sindicato. Na realidade, o que acontece é que toda a

batalha travada pelos direitos do cidadão acaba sendo

travada dentro de um fórum. A luta é uma luta jurídica, e

o papel do advogado identificado com a causa do posseiro

marginalizado e oprimido, que não exija metade de sua

terra para defendê-lo, é de capital importância .

SUBINDO O MORRO DO BRIGO

Mas eu já veio sangue

Corrê pela terra,

Que ninguém tem piedade,

Mas eu mesmo vô em batalha,

Que eu inda estô em boa idade,

Já vô já sem tardá.

O R ei

54

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com a ajuda dos homens da casa nos sábados e domingos.

 Veja, dona, nossos fi lhos não comem carne nem tomam

leite, não, mas são bem Iortinhos , afirma uma posseira

orgulhosa, mostrando seus rebentos.  O pão nosso de

cada dia é mandioca ou batata, para tomar com o café que

colhemos aqui .

Feijão, mandioca, milho, mamão, banana, às vezes

café, alguns mais felizardos (com mais terra para plantar),

com arroz e até mesmo alguma verdura. A vida destas

famílias moradoras do lado sul do Morro do Abrigo, trans-

corria normalmente até que em março de 83, doze ho-

mens armados derrubaram as cercas de suas lavouras,

colocaram outras impedindo o acesso à roça; estragaram

plantações e queimaram três barracos que existiam na

área. O motivo de tanta violência era o fato de os posseiros

terem avançado em terras que não lhes pertenciam, pois

eram, do Convento de São Francisco , atualmente com o

nome de Instituto Santo Antônio.

Esta área, limitrofe às posses tranqüilas do Morro do

Abrigo, foram usucapiadas pelos franciscanos do conven-

to Nossa Senhora do Amparo, no bairro de São Francisco,

e entraram numa transação comercial realizada em 1972

entre os frades e o então proprietário das Faculdades de

Bragança Paulista e Itatiba, Miguel Cocicov.

Foi em cima destas terras assim tituladas que as 25

famílias deposseiros do morro do Abrigo formaram suas

roças de consumo. que datam de cinco adoze anos, confor-

me o caso. E foi exatamente contra estas famílias que os

jagunços investiram com violência. As mulheres começa-

ram a temer ir à roça com os filhos pequenos, mas a fome

não Ihes dava alternativa. Os jagunços ~ alguns conheci-

dos dos posseiros e por eles reconhecidos, conforme de-

núncia na Delegacia de Polícia de São Sebastião, fei ta em

julho de 83 - diziam estar na área a mando do prefeito

nomeado de São Sebastião, Décio Moreira

Calvão,

dono

de uma das maiores imobiliárias da região, e seu sócio,

Roberto Santana.

56

Todos os posseir JS ameaçados repetem esta mesma

história. Abel da Silva, um dos mais antigos no lugar,

chega a afirmar que o próprio prefeito o procurou para

que desistisse da luta e passasse para o lado do mais

forte . Abel, com o apoio de um vereador do PDS, Luiz

Carlos Betiatti, foi o primeiro a dar queixa na polícia local

contra as pressões e ameaças que estava sofrendo.

Décio Galvão sempre negou qualquer envolvimento

no episódio:  estas terras não são minhas e nem as estou

vendendo , afirmou categórico. Mas, estranhamente,

num processo de desmembramento de outro trecho des-

tas terras do Instituto Santo Antonio, Décio assina como

representante do proprietário e como prefeito de São

Sebastião. Por outro lado, na audiência realizada em se-

tembro de

83,

quando os posseiros não conseguiram a

liminar de posse (pois seu advogado Ulissesde Paula não

provou quem agira com violência e causou turbação na

área) o advogado da Prefeitura, João Batista Fernandes,

representou o prefeito e Roberto Santana. Para Ulisses de

Paula, este é um fato estranho:  se ele não tinha interesse

na área, por que veio se defender? .

Os posseiros do Morro do Abrigo também esq-a-

nham o interesse suscitado pela área em litígio, tão perto

do morro e tão longe da praia :  até agora nunca apareceu

dono disto aqui, e sempre tivemos paz. Qual o rico que vai

querer morar neste fundão?'~. Acontece que o  fundão

está encravado numa das  áreas nobres  do município de

São Sebastião, ao lado de loteamento de grande valor

imobiliário.

 Quando isto aqui era ruim, não tinha estrada, nem

luz, nem escola, deixavam a gente sossegada , se queixa

uma das lavradoras.  E agora que está melhor, a gente tem

que sair. Pobre tem até medo de coisa boa, não é para ele,

não .

O escritório regional da Sudelpa, no litoral norte

paulista, convocado por vereadores do PMDB de São

S7

1

. .

~~

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58

Luzia Balbina Borges de Jesus: quando esta caiçara

nasceu em 1932, no Rio Escuro, já há quatro anos seu pai

- Delfino Borges - trabalhava a terra deste sertão de

Ubatuba.  Sou caíçara. da roxa, fui criada com banana

verde, cresci aqui, casei em

1956

e aqui mesmo tive meus

dez filhos ... Luzia herdou do pai uma faixa de terra, quase

sete alqueires cultivados com ajuda dos filhos e de alguns

camaradas , já que o salário de seu marido - João de Jesus

- funcionário do DER, não era suf iciente para o sustento

da numerosa família. Nesta terra, além do feijão, arroz e

milho - para sua subsistência - Luzia chegou a ter mais

de três mil pés de banana, produto que era vendido para

gente de fora .

Em

1965,

o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária-

IBRA - entregou aos ocupantes das terras do Rio Escuro-

entre eles João e Luzia - os títulos de-.propriedade de

imóvel rural, passando a cobrar-lhes os impostos ter rito-

rial rural. Com isso o próprio IBRA reçonhecia que a área

do Escuro estava sendo efetivamente ocupada por estas

famílias de posseiros. Em

1975,

foi requerido o usucapião

deste território, que incompreensivelmente não foi ainda

julgado.

 Até os anos de 75 e 76, a gente viveu sossegado,

plantando e colhendo a terra; depois começou o nosso

calvário ...  desabafa Luzia, crente fervorosa de uma seita

59

i

I

{

o RIO QUE ESTÁ MAIS ESCURO

Sebastião, assumiu o caso dos posseiros do Morro do

Abrigo. Euclides Vigneron, responsável por tal escritório,

solicitou a ajuda do grupo especializado em terras, criado

dentro da Superintendência, com pessoas como Fausto .

Pires de Campos e Adriana Mattoso, que trabalharam

com os posseiros caiçaras no litoral sul fluminense. Por

isso, o prefeito nomeado, Décio Galvão, afirmou na im-

prensa da região que o problema era uma intriga política

do PMDB, que estaria querendo vê-lo fora da Prefeitura.

Ele deve ter-se esquecido que a primeira denúncia em

relação ao caso tenha partido de um político do próprio

PDS.

Pedro Vicenttini, Juiz de Direito de São Sebastião,

garante que não permitirá mais nenhuma violência contra

os posseiros do Morro do Abrigo. Continuem trabalhan-

do na terra e defendam sua posse, pois isto compete a

vocês , afirma Vicenttiniaos posseiros. Estes esperam que

a Sudelpa realize o mais rapidamente possível a demarca-

ção de suas terras para continuarem lutando por elas na

Justiça. Pois, como diz Abel. eu sou mineiro mas meus

filhos já são caiçaras nascidos nesta terra .

Príncepe, escuta i,

Sinal de guerra estão dando

O meu peito de valor

Está estranhando.

Cac iqu e ao Em ba ixa do r

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pentecostalista. o  calvário a que se refere Luzia tem

como protagonista principal a companhia imobiliária de

 Ulisses Mesquita Miguez e Outros , responsáveis pelo

loteamento das praias Dura, Domingas Dias e pela priva-

tização da praia do Lázaro, - todas vizinhas ao sertão do

. Rio Escuro. Apesar do usucapião requerido pelos possei-

ros, e sem contestá-lo, em 1976 Ulisses Miguez requereu a

integração de posse do Rio Escuro, baseando-se em acor-

dos que conseguiu fazer com quatro elementos da família

do patriarca Delfino Borges, atualmente com mais de 70

anos e ainda morador no Rio Escuro. Este acordo

constituiu-se num compromisso amigável para futura

doação de área de terra e outras avenças , como atesta o

livro 34, folha 135 do segundo Cartório de Notas de

Ubatuba. Além disto, o pedido de reintegração deposse se

baseava num compromisso firmado com Mabel Hime

Masset, residente no Rio de Janeiro, que arrematou em

alçada pública as terras do Rio Escuro em

1932 -

portanto

em data (no mesmo ano que Luzia nasceu) posterior à

ocupação dos caiçaras - sem que nunca tivesse dado

utilização a elas e sem ter entrado em contato com as

famílias que jáhá quatro anos moravam na região. Julgado

em Ubatuba, este pedido de reintegração de posse foi

negado a Ulisses Miguez.

Como a companhia imobiliária tivesse apelado, o caso

foi levado ao Tribunal de Justiça em São Paulo.  Nós

passamos por oito advogados daqui da cidade e no final

nenhum outro, em Ubatuba, quis nos defender: a força do

dinheiro de Miguez é muito forte , diz Luzia. Na capital

paulista, para espanto dos que acompanhavam essa luta

na Justiça, foi dado ganho de causa

à

companhia imobiliá-

ria. O advogado dos caiçaras - Antonio Ivo Fontes -

além da ação, perdeu também o prazo do recurso extraor-

dinário para apelar a Brasília.

Luzia Balbina é sem dúvida a grande líder na luta pela

defesa da terra na comunidade do Rio Escuro.  Eu defendo

6

as terras de meus pais, pois se sair daqui muitas outras

famílias serão expulsas do bairro. Aqui está tudo em con-

flito . No Rio Escuro existe uma escola de primeiro grau

municipal em terreno doado

à

Prefeitura por Delfino

Borges. Essa escola funciona desde 1965. Luzia se queixa

das ameaças que ela esua numerosa família vem sofrendo

por parte dos empregados de Miguez que, entre outras

arbitrariedades, quebraram a bomba de água que serve

não só à casa da família mas a toda plantação, além de

terem posto fogo nos morros que cercam a sua posse.

Pela decisão judicial obtida em São Paulo, a família dos

posseiros tem de abandonar imediatamente a terra que

ocupa há mais de meio século, deixando todos osseus bens

imóveis, suas benfeitorias, plantações, levando apenas

seus móveis, suas roupas e sua dívida para com o Banco do

Brasil, na ordem de sete milhões de cruzeiros , como

atenta José Bernardes de Almeida Gil, presidente do Mo-

vimento Ecológico Pela Vida, Pela Paz, em Defesa de

Ubatuba. Desde a metade da década de 70, os posseiros de

Rio Escuro passaram docultivo e extração da banana, para

a produção de hortifrutigranjeiros e já então pleitea-

vam, junto ao Banco do Brasil, empréstimos com esta

finalidade. As terras deJoão e Luzia, assim como de muitos

posseiros do Rio Escuro, estão hipotecadas ao Banco como

garantia do dinheiro emprestado. O próprio Banco do

Brasil reconhece, com isto, que os posseiros tem direi to à

terra. É Almeida Gil mesmo quem afirma -  O incrível,

neste caso, é que, para dar o veredito a favor da companhia

imobiliária, os desembargadores do Tribunal de Justiça se

valeram de um artigo de 1916 do Código Civil - (artigo

505) - em detrimento de leis mais atuais como a legisla-

ção do uso do solo, lei de retenção de posse, leis do Incra,

etc...

Os posseiros não se deram por vencidos e entraram

com uma ação recisória - isto é, uma ação que pode

reformar uma decisão já tomada - junto ao Tribunal de

Justiça, a qual os desembargadores Alves Barbosa e o

61

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revisor Gonçalves Santana julgaram improcedente. Isto

no dia I? de dezembro de 1983.

Na defesa dos posseiros do Rio Escuro, a população de

Ubatuba se mobilizou através do seu movimento ecológi-

co Pela Vida, Pela Paz em Defesa de Ubatuba , com o

apoio da Frente Nacional do Trabalho, da Pastoral da

Terra, da Associação dos Produtores Rurais de Ubatuba

- APRU -, Câmara dos Vereadores, Associação dos

Amigos do Sertão da Quina, Movimento em Defesa do

Menor e a própria Sudelpa com grupo de trabalho pela

legalização das terras dos posseiros.

Frente à ameaça iminente de expulsão de suas terras,

várias atitudes foram tomadas, como o manifesto público

da APRU que denuciava ser este um dos muitos casos de

posse de terra em Ubatuba em que as grandes compa-

nhias, movidas por interesses financeiros provocam pro-

blemas sociais, ignorando a importância que a agricultura

representa para o Município. para o Estado e para o País. 

Conforme José Bernardes de Almeida Gil,  com a

atual decisão da Justiça teremos mais uma vez, a aplicação

injusta de uma lei arcaica e antisocial, na repetição do que

vem ocorrendo há décadas em nosso litoral: a expulsão dos

caiçaras de suas terras e seu confinamento em favelas

impedindo que ele continue nas atividades que garantiam

o sustento da família e de toda a comunidade e a entrega

de suas terras às companhias imobiliárias, para que sejam

vendidas aos turistas que aí constroem casas de veraneio.

Estas casas permanecem fechadas a maior parte do ano. 

Frente a esta dura realidade, Sétero Borges, filho de

Luzia e, ele mesmo, também pai de família, exclama an-

gustiado,  Quem poderá nos ajudar? .. 

DE ORONEL P R ORONEL

Não te dou a minha mão,

Porque não és merecedor,

Era bem que te fizesse

Debaixo de ferro martir,

Com sepultura de sangue

De braços martirizado.

O R e i a o E mb ai xa do r

Lágrimas de alegria, r isos descontrolados que mos-

travam o medo da notícia não ser verdadeira - esta a

reação dos posseiros das fazendas Barra Grande e Taqua-

ri, no Município de Paraty, quando o prefeito Edson La-

cerda irrompeu escadas acima anunciando aos berros a

notícia - O Presidente João Figueiredo desapropriou

para fins de reforma agrária a área onde vivem os possei-

ros destas duas fazendas . Isto tudo aconteceu no dia 4 de

outubro de 1983, quando a então juíza da Comarca de

Paraty - Tereza Maria Savine - estava prestes a iniciar

uma audiência com os caiçaras e seu advogado Jarbas

Macedo Penteado, da Sociedade de Defesa do Litoral Bra-

sileiro e do escritório de Sobral Pinto. Sob o tímido olhar

do advogado da parte contrária, a comemoração começou

ali mesmo: afinal, a luta pela posse destas terras já se

arrastava. há mais de cinco anos e cerca de cem famílias que

sempre viveram neste lugar estava seriamente ameaçada

de expulsão de suas casas e roças. São dois os decretos

presidenciais que dispõem sobre áreas prioritárias para

f~ns~e reforma agrária na fazenda Barra Grande e Taqua-

ri (números

88.789 e 88.791). Na fazenda Taquari foram

desapropriados 98~ hectares, num total de quase dez mi-

lhões de metros quadrados, beneficiando

54

famílias; na

63

2

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Barra Grande, foram desapropriados

630

hectares num

total de quase 6.300.000 metros quadrados, beneficiando

56 famílias. Conforme Jarbas Penteado o objetivo de [ais

decretos éa reformulação fundiária nesta região litorânea,

condicionando o uso das terras à sua função social, para

que se promova justa e adequada distribuição da proprie-

. dade .

Os proprietários dos títulos dessas fazendas recebe-

rão seu pagamento em títulos da Dívida Agrária, que se

resgatam a partir de dois anos após sua emissão. Essa foi

uma atitude muito corajosa do general Venturini, minis-

tro dos Assuntos Fundiários , afirma Jarbas Venturini

recebeu, em janeiro deste ano, o prefeito e opresidente da

Câmara de Vereadores de Paraty, juntamente com Jarbas

Penteado, quando então foram levadas ao ministro as

provas de que os posseiros dessas duas fazendas não eram

simples parceiros da terra, nem tão pouco invasores na

área, já que as certidões de óbitos de seus antepassados e

suas certidões de nascimento mostravam que eles sempre

viveram ali. Cabe agora ao INCRA requerer judicialmen-

te a emissão de posse das terras desapropriadas.

O ofício que estas famílias enviaram ao coordenador

do INCRA no Rio de Janeiro, em

1981,

relata sua luta: -

Muito tempo atrás, no fim do século passado, tinha na

fazenda Barra Grande um coronel chamado Honório Li-

ma, que dizia ser o dono destas terras. Aí moravam quase

cem famílias de trabalhadores, aproximadamente seis pes-

soas por família. Todos trabalhavam na terra e suas casas

foram construídas por eles próprios. Viveram mais de

trinta anos sem nada cobrarem deles. Depois esta fazenda

t

foi vendida para o senhor Joaquim Flores dos Santos

Callado que a teve por

25

anos, quando todos os traba-

lhaodores viveram livres com toda a liberdade para traba-

lhar. Criaram seus filhos e vieram os netos (...)

As dívidas contraídas por Joaquim Callado fizeram

com que vendesse a fazenda para Albino Gonçalves. Foi

64

I r

 

então que o filho de Albino, Nestor Gonçalves -  conhe-

cido grileiro em Angra dos Reis , segundo o relatório ~

recebeu a fazenda de herança do pai. Na época da Segunda

Grande Guerra, ele soltou gado nas lavouras dos possei-

ros, destruindo toda a plantação e provocando a retirada

de muitos deles sem que recebessem qualquer indeniza-

ção.

Por volta de

1949,

um grupo de italianos, liderado

pelo então novo proprietário dos títulos da fazenda -

Guiseppe Cambarell i - exigiu dos posseiros o pagamento

de um terço de sua produção agrícola,  33%de cada produ-

ção que eles obtinham sem o auxílio de ninguém, a não ser

da terra . Esse tipo de pagamento foi feito, no início, sem

recibo. A partir de

1964,

as fazendas contrataram para

administrá-Ias um indivíduo chamado José Garcia, que se

dizia sargento do Exército. Ele, juntamente com diversos

capangas armados, atemorizaram e coagiram os caiçaras

na cobrança do terço dos senhores feudais. Em troca, a

administração se comprometeu a fornecer condução para

que os trabalhadores se locomovessem até suas roças,

além de oferecer condições de armazenamento e escoa-

mento da produção de banana - ítens que, sem surpreen-

der ninguém, nunca foram cumpridos.

Depois da morte de Guiseppe Cambarel li, as fazen-

das passaram a ser administradas pela viúva Iolle Fabri

Cambarelli. E com novos capatazes ela começou a proibir

os lavradores de trabalhar em novas plantações e de con-

sertarem suas casas, para no futuro poder acusar os pos-

seiros de não trabalharem direito na lavoura . Em 1976, os

moradores foram obrigados a assinar um contrato de

parceria -  fomos ameaçados por um delegado de polícia

que acompanhou o administrador que ia entrando de casa

em casa . Muitos dos caiçaras, porém, não ~ssinaram o

contrato apesar da intimidação ostensiva. Aqueles que

aceitaram o contrato foi-lhes prometido que a  contribui-

ção voluntária  dada

à

fazenda cairia em

20%

e até mesmo

10% da produção que tivessem na terra.

l

:

I

65

j

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http://slidepdf.com/reader/full/genocidio-dos-caicaras 34/47

o relatório dos posseiros conta ainda que  como a

dona das fazendas não conseguiu seus objetivos, elaentão

ligou-se a grupos financeiros, cujo gerente, coronel Casi-

mir Vieira, passou a perseguir os trabalhadores. Elesvem

forçando os moradores que se acham em dificuldade de

sobrevivência e de produzir, mesmo os moradores na

terra há mais de

70

anos . Somente as

80

famílias da

Fazenda Barra Grande e as 50 famílias que moram na

Fazenda Taquari têm alguma coisa plantada num total de

1300

hectares -  é desta área que a administração quer

despejar o pessoal . As fazendas têm o título deproprieda-

de de 20 mil hectares ... Iollecedeu metade dos títulos de

propriedades destas fazendas ao Grupo Morada - que

atua com cadernetas de Poupança e cujoproprietário é Rui

Barreto presidente da Associação Comercial do Rio de

Janeiro. E Rui Barreto quem detém o poder dedecisão nas

Empresas Reunidas Agró-Industrial Mickael S.A. resul-

tantes da sociedade entre ele e Iolle.

A luta dos posseiros de Barra Grande e Taquari foi

assessorada e apoiada pela Sociedade de Defesa do Litoral

Brasileiro do Instituto Histórico e Artístico de Paraty, da

atual direção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da-

quele município e da Pastoral da Terra da Díocese de

Itaguaí, da qual Paraty faz parte. As arquiteturas Marcia

de Souza Carvalho e Maria Ignez Maricondi, integrantes

da Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro,' fizeram o

levantamento de toda a área ocupada pelos posseiros, com

os respectivos mapas de sua localização, cuja função é de

instruir qualquer tipo de processo jurídico na defesa dos

caiçaras. Conforme o advogado Jarbas Macedo Soares,

 era uma contradição o fato de a empresa dizer existir para

a área um grande projeto agropecuário se, por outro lado,

ela tentou despejar em massa aqueles que produzem no

imóvel. Como acreditar na criação de agrovilas ou de

qualquer tipo de proteção ao homem do campo sede uma

hora para outra a empresa investe contra os caiçaras,

despejando-os sumariamente?

66

Para [arbas,  é fato notório, não só em Paraty como

em outras regiões onde houve supervalorização de imó-

veis em decorrencia da abertura da Rio-Santos, que aque-

les que tinham títulos de propriedade começaram a se

valer de diferentes recursos para expulsar o homem do

campo.

Um desses recursos foi denunciado pela diretoria do

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Paraty, no relatá-

rio ao presidente João Figueiredo:  O sindicato tenta de-

fender os posseiros mas encontra muitas dificuldades de

razões econômicas e de influência; isto porque, entre os

advogados que trabalham para as empresas ligadas ao

grupo Cambarelli, há um que épromotor nacidadedoRio

de Janeiro e outro que é procurador do Estado.

Para Miguel Pressburguer, da Pastoral da Terra e

atual advogado desse sindicato,  não importa a indeniza-

ção que as empresas queiram dar aos posseiros como meio

e recurso de tirá-los da terra onde nasceram e moram. O

dinheiro perde cada vez mais o seu valor e oque importa é

fixar o homem à sua terra para que ele e sua família não

vão engrossar o contingente de favelados na região . Mas

os meios e recursos utilizados pelas empresas não páram

aí - em reuniões com seus advogados, os posseiros conta-

ram que asempresas pagariam de cinco a oito milcruzei-

ros a qualquer um dos posseiros que quizesse depor a

favor delas, contra os companheiros. Eno dia daaudiência

na cidade, elas se ofereceram até para pagar o almoço do

pessoal . Os posseiros reconhecem que osque aceitaram a

oferta o fizeram na esperança de que, agrandado aos

donos das fazendas, ficassem em suas terras - mal

sabem elesque senós caimos fora, eles também não terão

condições de ficar, pois nossa força é a nossa união .

Essa união se revela concretamente na associaçãoque

os posseiros organizaram, visando a defesa de seus inte-

resses e dodireito à terra. A associação reivindica à prefei-

tura local infra-estrutura sanitária, posto de saúde, esco-

67

I  

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Ias, transporte e luz elétrica - mas todos esses benefícios

ainda não foram conseguidos, dizem oscaiçaras das fazen-

das Barra Grande e Taquari,  por causa das pressões da

administração das fazendas, que faziam tudo para que a

gente desista de continuar na terra dos nossos pais .

O lavrador Assir Soares, presidente do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Paraty, considera esta desapro-

priação uma vitória conjunta dos posseiros e de todos os

setores da sociedade que ficaram ao seu lado. Uma vitória

do povo de Barra Grande e Taquari que entendeu a neces-

sidade de se organizar pela luta de seus direitos ... 

68

HISTÓRI VITÓRI

Glorioso Benedito

Glorioso Benedito

Santô que não tem vexame

Santô que não tem vexame

Bençoado que nos livre

Bençoado que nos livre

Dos castigos deste mundo

Dos castigos deste mundo

Do ca nto C hibá

Uma solução considerada única na luta de terras no

país foi alcançada em

5

de novembro de

1981,

quando

71

famílias caiçaras moradoras em Trindade, praia situada a

28

quilômetros ao sul do centro urbano de Paraty, assina-

ram o título definitivo de sua propriedade. A assinatura do

documento foi feita numa das salas da escola isolada de

Trindade, na presença de posseiros, de seu advogado [ar-

bas Macedo Penteado e deJosé Pascowitch Neto, dono da

Cobrasinco, acompanhado de seus advogados.

A Cobrasinco é uma empresa de capital nacional,

especializada em construções, que em junho de

1981

com-

prou por três milhões de dólares os títulos das terras da

praia de Trindade, da ADELA - Atlantic Development

Group for Latin America, holding composto por

227

em-

presas multinacionais, com sede em Luxemburgo. Duran-

te mais de nove anos os caiçaras de Trindade resistiram a

esta poderosa Holding, testemunhando uma das mai

belas histórias de luta dos oprimidos por seus direitos, pela

posse de suas terras ~por sua dignidade de pessoas huma-

nas.

69

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 Se tenho de morrer, que seja em minha terra , afir-

mava Antônio de Jesus, pai de sete filhos que por três

vezes foi expulso dosbarracos que construía em Trindade.

Durante muito tempo, Antônio, um dos líderes na luta de

resistência dos caiçaras nesta praia, morou à beira de

estradas, na praia e nas matas da Serra do Mar, recusan-

do-se a abandonar as terras em que seus pais sempre

plantavam. A luta de Antônio foi igual a de muitas outras

famílias que, expulsas de suas casas, se embrenharam na

mata, passando a viver em cavernas e cabanas improvi-

sadas.

Nem sempre o cotidiano dos trindadeiros foi de sofri-

mento. Quando a especulação imobiliária não havia che-

gado a este litoral, a vida era' outrapara estes posseiros de

mais de 200 anos, comoatestam osdocumentos doCartó-

rio de Paraty. Os mais velhos testemunham:

 

A gente

não

carecia de dinheiro, não, com um dia decaminhada agente

chegava a Paraty, onde trocava a farinha e a banana por

querosene ou pelo que precisasse, às vezes um pano pra

mulher fazer vestido .

A população de Trindade, onde existem muitos loiros

?e olhos azuis ou verdes, é toda protestante, pertencentes

as .seitas pentecostais Assembléia de Deus, Brasil para

Cnsto e Adventista, cujas sedes foram construídas em

regime de mutirão por todos os habitantes da praia. Uma

das explicações para a ausência da Igreja católica na

comunidade seria o seu difícil acesso; impedindo um con-

tato mais constante com O padre católico.

A mudança radical na vida destes protestantes come-

ça em 1972 quando os títulos de propriedade da Fazenda

Laranjeiras, com uma área de 1403 hectares, foi adquirida

pela Companhia Paraty Desenvolvimento Turístico S.A.

A companhia, cujo presidente era o general Candau da

~onse~a, que havia sido presidente da Petrobrás, pertencia

a holding Adela. A fazenda Laranjeiras foi vendida por um

milhão de dólares, conforme atesta a escritura lavrada no

17.

 

Ofício de Notas do Rio de Janeiro, das mãos do

ex-governador Carlos Lacerda, do antigo Estado da Gua-

nabara. Esta fazenda englobava as praias deLaranjeiras,

Picinguaba (em Ubatuba, no Estado de São Paulo), Sobra-

do, Vermelha, Galhetas, Brava, De Fora e Cachadaço.

Por que estas terras, antes só ocupadas por caiçaras,

começam a se tornar tão importantes para os poderosos

grupos econômicos? A socióloga Maria Christina de AI-

meida Braga, que conviveu muitos anos com os caiçaras de

Trindade e sobre eles elaborou vários estudos, tem uma

resposta clara -  Baseada no projeto Turis e em muitos

outros trabalhos científicos realizados sobre esta praia,

podemos dizer que a estrada Rio-Santos, a BR-10l -

planejada no governo de Castelo Branco, em 1967 - foi

concebida para atender àsnecessidades doescoamento das

áreas metropolitanas doRiode Janeiro e São Paulo. Sendo

uma alternativa de ligação rodoviária entre estes doispalas

econômicos, satisfaria às necessidades docapital já instala-

do na região: o Parque Industrial de Santa Cruz, porto de

Sepetiba, Estaleiros Verolme, Usina Nuclear Angra e os

terminais petrolíferos de Angra dos Reis e São Sebastião .

Como a segunda fase da BR-101, no seu trecho entre

Ubatuba e Santos, nunca foi concluído, a grande realiza-

ção do então Ministro dos Transportes, Mário Ándreazza,

serviu apenas ao segundo propósito dos planejadores da

estrada, a que Maria Christina se refere: A BR-101possi-

bilita, aomesmo tempo, a exploração turística de uma das

regiões mais bonitas do país e abre perspectivas para os

investimentos dos grupos empresariais. Conseqüente-

mente, há uma redefinição do uso da terra, transformada

em mercadoria e extremamente valorizada , Tal é

formulado por Carlos Lacerda, em sua entrevista ao jornal

 O Estado de São Paulo , de sde outubro de 1972, em uma

materia intitulada  Imobiliários gananciosos e imobilistas

gananciosos : A essa valorização corresponde ovalor que

se faz com ela (terra) ...onde a terra passa a valer mais do

que a banana permite, o desejável não é plantar bananas e

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/

mais diversos recursos. Em 1977; numa declaração

à

Im-

prensa, John Sillers. então representante da empresa na

praia, afirmava que  a vastidão da área propiciava a ação de

grileiros , Devido a isto foram envidados homens arma-

dos a Trindade, armamento convencional, como revólve-

res, fuzis, rifles e metralhadoras . Sillers dizia ter procura-

do acordo com os trindadeiros, mas não admitia a

presença de terceiros nas posses . Um dos terceiros a que

Sillers se referia é o atual senador de São Paulo, Severo

Fagundes Gomes, que em 1973, através de Ivete Maciel,

conhecida neste litoral pela alcunha de Loba do Mar ,

adquire as praias de Baixo, Cepilho, De Fora e Canhadaço,

revendendo-as posteriormente.

Trindade, como outras praias ao longo da Rio-Santos,

foi catalogada como sendode dasse A , pelo projeto Turis

da Embratur Este projeto data dos anos 72 e 73 e foi

inspirado no modelo francês de desenvolvimento turístico

da região costeira. Sob a pretensão de desenvolver turis-

mo de massa - compreendido como a classe média mo-

torizada a procura de lazer - as praias deste litoral foram

classificadas em três categoriais: A, B e C. As praias consi-

deradas classe A, como Trindade, seriam reservadas para

as classes sociais de maior renda. O projeto Turis foi

elaborado na época em que Severo Gomes era Ministro da

Indústria e Comércio, ao qual a Embratur está ligada.

Na via crucis dos caiçaras de Trindade, estavam

envolvidos os advogados do Sindicato dos Trabalhadores

Rurais de Paraty-Alírio Campo e José Maia, enviados a

esta praia por Jair Alves, então trindadeiros para iniciarem

um processo de usucapião de 'suas posses que, segundo

Jarbas Macedo Pen teado - advogado que posteriormen te

defende os caiçaras - estava muito bem montado. Para

[arbas, este dado é mais um indício da má intenção destes

dois profissionais que, mais tarde, retornam a Trindade

para propor uma acordo aos caiçaras, pois contra a com-

panhia nada se pode fazer . Alguns trindadeiros se nega-

73

sim instalar algo mais compatível com a valorização ...

Cidades, turismo, são mais valiosos que bananas ...

Para preservar a região da expansão dos interesses

econômicos sobre ela, o Estado toma uma série de medi-

das, como o decreto do IBDF n? 68172 de'~ de fevereiro de

1971, cria ndo o Parque Nacional da Serra da Bocaina, com

a área total de 136 mil hectares. Durante o governo Médi-

ci, os municípios de Paraty e Angra dos Reis são considera-

dos áreas prioritárias para reforma agrária. Entretanto, o

crescente interesse por parte das empresas privadas, nesta

região, quando se inicia a construção da BR-101, faz com

que o Estado disponha destas áreas em benefício docapital

privado ou do poder público. O Parque Nacional da Serra

da Bocaina é desmembrado através do decreto n? 70694,

no mesmo dia que o grupo multinacional Brascan-Adela

torna-se cessionário dos 34 mil hectares desmembrados

da área original, que compreendia justamente a região de

Trindade.

É

Maria Christina quem afirma - Decretos

governamentais referentes

à

desapropriação de terras

com objetivos sociais, como do ex-governador Roberto

Silveira (decreto n? 6897 de 13 dejaneiro de 1960) foram

então revogados. Os fins turísticos transformam-se em

prioridade para estas áreas, fazendo com que elas pudes-

sem ser negociáveis a grupos privados. Esta confluência de

interesses entre o Estado e as empresas particulares per-

mite a aferição de enormes lucros principalmente para

aqueles que tem acesso aos planos 'governamentais. Um

exemplo claro é o do ex-governador táI:l?5.L~cerda, que

adquire a área da Fazenda Laranjejrâs'paj-a depois

revendê-Ia a um preço bastante superior. Assim',Jl1esmo

antes da abertura da BR-I01, a especulação imobiliária

reina no litoral fluminense .

Para se manter na praia, a  comparthia  - como era

conhecida pelos caiçaras - a Paraty Desenvolvimento

Turístico S.A., que posteriormente muda seu nome para

Trindade Desenvolvimento Territorial S.A. - usa dos

72

 

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. iI •• _ ••• ~~

ram a qualquer entendimento com a companhia. Outros,

intimidados, trocaram suas posses de moradia em frente

ao mar por casas construídas nas periferias de Paraty e Ubatu-

ba. Mas todos os que fizeram a troca, deixaram suas

posses na Serra do Mar, usadas já por seus antepassados

para a roça de consumo.

A maioria dos caiçaras que se mudou para o Parque

Paris, na periferia de Ubatuba, voltou para Trindade. A

companhia não lhes forneceu a escritura definitiva de suas

casas e muitas delas apresentaram péssimas condições,

desde o início da construção. De volta à terra de seus pais,

os trindadeiros se estabeleceram nas posses das roças de

consumo. Uma cláusula, inexplicavelmente inserida à

máquina nos documentos mimeografados de compra de

posse, entre a companhia e os trindadeiros - afirmava

terem eles vendido todas as benfeitorias da área e não só

o terreno em frente ao mar. A rasura não foi levada em

conta pelo então Juiz de Direito da Comarca de Paraty,

José Seltti Rangel, que determinou não mais haver lugar

para o caiçaras em Trindade.

As arbitrariedades cometidas a nível jurídico, na saga

dos trindadeiros, foram tão numerosas e terríveis, que se

chegou ao ponto de proibir Isael Mariano dos Santos -

caiçara que havia ganho uma liminar de posse de três

alqueires, na praia do Cepílho, de acolher outros parentes

e amigos em sua terra. Uma proibição determinada pelo

então juiz de Direito de Paraty, Ulisses Monteiro Ferreira.

Conforme o padre João Bernardo Peters, da Pastoral da

Terra da paróquia de Paraty,  que direito tem a Justiça de

proibir quem quer que seja em receber alguém em sua

legít ima propriedade? . A alegação do juiz Monteiro Fer-

reira era a de não conhecer os limites da posse de Isael.

Mas como uma liminar deposse foiassegurada sem serem

conhecidos os direitos da mesma posse? Para o caiçara

não conta o direito sagrado da propriedade privada? ,

questiona padre Peters.

74

Se na disputa jurídica asarbitrariedades foram tantas,

a nível humano as violências foram inolvidáveis. Nos fe-

riados da Páscoa de

1978,

duas jovens professoras do

Estado do Rio, que não se haviam intimidado com as

ameaças dos jagunços da Companhia e insistiram em

permanecer em Trindade lecionando para as

70

crianças

que aí viviam, foram violentadas por esses mesmos jagun-

ços. Somente quatro meses após o incidente - não divul-

gado pela Imprensa, certamente por respeito às duas

jovens, já que em nossa sociedade é a mulher violentada

quem ainda passa vergonha - um rapaz de Paraty, Pedro

Millíet, da Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro, mes-

mo não sendo professor formado se dispôs a ensinar

àquelas crianças.

Nessa hora de tanto sofrimento, a ação de uns jo-

vens maconheiros , como afirmavam os representantes

da Companhia, foi fundamental na luta dos caiçaras. Ra-

pazes e moças que costumavam acampar em Trindade,

decidiram tomar posição frente ao problema. Formaram a

Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro sob a liderança

de RicciMartinelli , o Bienga , que passou a conviver com

os caiçaras em Trindade. A SDLB logo obteve apoio de

outras entidades da sociedade civil. Palestras, denúncias,

foram feiras no circuito Rio-São Paulo. A Sociedade pro-

curou o jurista Sobral Pinto, famoso por suas defesas dos

direitos do cidadão numa época de perseguição e sufoco.

Sobral liberou o advogado [arbas Macedó Penteado, de

seu escritório, para acompanhar a causa.

O papel que a Imprensa desempenhou, solidarizan

do-se com os caiçaras e denunciando as arbitrari dad

que eles estavam sofrendo, foi de fundamental imp rtân-

cia neste episódio. Praticamente todos os jornais d ix

Rio-São Paulo passam a noticiar os acontecim nt S ) or-

ridos em Trindade. A repercussão dessas notí ia hogou

ao estrangeiro, a ponto da Igreja Reformada da H landa

pedir um relatório por parte dos posseir dr mpa-

75

,t

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nhia, para se inteirar do que se passava nesta praia do

litoral

flumínense.

A Igreja Holandesa queria saber como

eram obtidos os lucros das cadernetas de poupança de seus

adeptos religiosos. Como eram obtidos inocentes lucros

para os cristãos do Primeiro Mundo.

A Trindade Desenvolvimento Territorial S/A nunca

realizou seu relatório. Mas os posseiros fizeram um deta-

lhado histórico de sua luta que foi redigido, por escolha e

votação dire ta, pe lo advogado Miguel Pressburguer, da

Pastoral da Terra e pelo arquiteto Abídio Alapenha, tam-

bém da mesma Pastoral. As pressões contra a Adela foram

se avolumando de tal forma que, em 1981, não tendo

condições de reverter o imenso capital empatado em Trin-

dade, a empresa holding decide vender os títulos de terras

da praia à Empresa Nacional Cobrasinco.

Para os que acompanharam a luta dos caiçaras de

Trindade, os novos fatos ocorridos com a assinatura dos

títulos de terra por parte dos posseiros, devem ser enqua-

drados por diversos ângulos. Segundo Jarbas Penteado, o

título assinado pelos caiçaras é um condomínio pró-

indivísuo , isto é, que apesar de estarem de posse do

documento de suas terras, cada trindadeiro só poderá

vendê-Ia para outro caiçara que more no mesmo condomí-

nio. Esse tipo de titulação, aceita pelos caiçaras, foi, confor-

me [arbas, uma maneira jurídica de defender os posseiros

do assédio dei turismo que chega a Trindade. Pelo acordo

assinado ent re a Cobrasinco e os trindadeiros, estes terão

uma área de 147 mil metros quadrados que será dividida

entre eles em lotes de moradia. Terão também uma outra

área de

620

mil metros quadrados destinada a roças de

consumo. Conforme consta do documento, a empresa se

compromete a dar total liberdade de pesca aos caiçaras,

·e manter reservada área para abrigos de barcos num dos

cantos da pra ia, permitir o livre acesso ao Parque Nacional

da Bocaina, não mexer na praia do Cachadaço - que se

encontra dentro desse Parque - além de preservar rios,

76

1

córregos e cachoeiras do lugar. A Cobrasinco também se

dispôs a construir duas igrejas em Trindade, já que uma

delas, a Assembléia de Deus, havia sido vendida

à

compa-

nhia, que a transformara em escritório de suas operações.

E o pastor fugiu com o produto da venda.

Sem dúvida alguma, no cenário nacional, em que os

que não têm capital não têm chance de vencer, Trindade

foi uma vitória do povo, comemorada com júbilo. A con-

cessões da Cobrasinco não foram frutos de um coração

bondoso. A empresa compreendeu, melhor que a

ho ldi ng

multinacional, que não valia a pena brigar com os calçaras,

pois estes estavam organizados. Marco Antonio Barbosa,

advogado do Centro de Trabalho Indigenista - CTI, com-

para a saga dos trindadeiros à dos guaranis:  Em todo o

Estado de São Paulo só existem

400

guaranis. Que é que

isso signif ica em termos de número? Nada. Mas na medi-

da em que se reúnem, eles sobrevivem a toda opressão. E o

índio sobreviveu a

500

anos de opressão porque, por sua

cultura, ele se organiza socialmente. Os caiçaras e todo o

povo oprimido de nosso país tem muito a aprender com

nossos irmãos indígenas - só nos organizando podere-

mos sobreviver.  As congadas de Caraguatatuba e do

Bairro de São Francisco não existem mais, mas as rezas

guaranis existem. 

Jair da Anunciação e Antônio de Jesus, os dois gran-

des líderes caiçaras de Trindade, nos dão maior esperança

no futuro de nosso sofrido povo quando afirmam, convic-

tos e emocionados: Temos de levar nossa luta aos caiçaras

de outras praias, para mostrar que só permanecendo uni-

dos teremos nossos d irei tos prese rvados. 

Antônio de Jesus sintetizou todo o pensament d

povo de Trindade ao dar seu depoimento em outubr d

81,

à Adriana Mattoso realizadora do documentário V n-

to Contra :  Acho que minha família é quas Br il

inteiro; então a gente tem que lutar porqu S 11 n L já

esteve perto do fogo e saiu e não s:e queimou, g nt

77

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tirar o amigo do fogo também, para que ele não se quei-

me ... O que o caiçara vai fazer na cidade? Favela? Favela já

chega o que está na cidade. Eu acho que aumentar mais

favelas não dá. O cara tem de ter a liberdade dele na terra

em que nasceu. 

78

Os congos do Bairro de Francisco se afastavam, com

as espadas levantadas. Depois as colocavam na bainha e

acenavam com um lenço, sempre cantando:

Fica- te em p az,

Q ue eu vo u-m e embora ,

F ica- te em pa z,

Q ue eu vou-m e embora .

Assim terminava. E os últimos versos da Congada de

Caraguatatuba eram:

Que sau dosa des pedida

M eus congo viera m dá ,

Vã o cantan do e vão marchando

Cad a um p ra se u

lu g á

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Documentação fotográfica de:

Adriana Mattoso

Agência Estado

Araquém Alcântara

Fausto Pires de Campos

Inês Ladeira

Sidney Corallo

Stella Martinelli

I

j

Despejo da igreja em Trindade  fo to A dr iana Mat toso).

Posseiros debatendo a situação em Trindade

  foto F au sfo

  i  

Campos ).

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A família de Jair da Anunciação, despejada em Trindade

 f o to Adr iana M aftoso).

Família despejada em Trindade  fo to A dr iana M aftoso) .

Casa lacrada em Trindade   fot o Ad r ia na M a ftoso) .

Casa derrubada em Trindade

 fo to Adr iana M aft oso).

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A queima de casas em Trindade  foto / sdr iana Maiíoso) .

Uma caverna na serra: a nova casa de Antonio de Jesus

 f ot o A d ri an a M a ilo so }.

A destruição na praia de Trindade  f ot o A d ri an a M a tl os o) .

Ação do trator em Trindade  f o to S t e ll a Muninelli}.

\ f

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Caravana ecológica em Trindade  f ot o A gê ncia E stado, por

Sidney Corall o} .

Os jagunços armados da Casa do Alemão  f o to S i dn ey C or all o} .

\ ~,

Praia do Sono: fechada pela porteira

  fot o Ad rianaMat toso).

São Gonçalinho: os caiçaras debatendo seus problemas

 foto

F au sto Cam pos) .

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  interior de uma casa caiçara  f ot o A ra q ué m A lc ân ta ra ) .

Dona Condica  f o t o A r a q ué m A lc ân ta ra ).

  velha e o cachorro tranqüilidade ameaçada

 fo to .Araquém

Alcântara) .

  velha caiçara ea estrada

 f ot o A ra q ué m A lc ân ta ra ).

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Desolação

 foto Araquém Alcâ ntara ).

O velho

e o

pito um gesto habitual

  fo to Araquém Alcântara).

Enterro caiçara

 foto Araq ué m Alcâ nt a ra ).

  ldeia do Silveira o

falecido cacique Gumercindo

e

esposa com visitantes

 fo to In ês L ad eira) .

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Acabou-se de imprimir

aos 2 de maio de

1984

sob orientação de

Oficina Gráfica

Fotocomposição: Studio Artgraph

Edição a cargo de

Massao Ohno - Ismael Guarnelli/Editores

Caixa Postal 62673 - CEP

OllSO

São Paulo - Brasil

  ldeia do Silveira família guarani  foto Inês L ade ira ).