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213 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):213-217, jan-mar, 1998 RESENHAS REVIEWS FOME: UMA (RE)LEITURA DE JOSUÉ DE CAS- TRO. Rosana Magalhães. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1997. 92 pp. Em 1929, após concluir o curso de Medicina da Uni- versidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), o jovem pernambucano Josué de Cas- tro retornou à cidade do Recife para dar início a uma consagrada trajetória político-intelectual, dedicada, particularmente, à complexa e paradoxal problemáti- ca da gênese e reprodução da fome e suas formas de enfrentamento. Entre 1930 a 1935, dividiu-se entre o exercício da Medicina (Endocrinologia e doenças da nutrição), a docência de Fisiologia na Faculdade de Medicina de Recife e a publicação dos seus primeiros escritos. As- sim, em 1932, sob a influência do médico-nutrólogo argentino Pedro Escudero, considerado o pai-funda- dor do campo da Nutrição na América Latina, reali- zou a pesquisa: As condições de vida das classes ope- rárias no Recife, uma investigação baseada na meto- dologia de orçamento e padrão de consumo alimen- tar entre quinhentas famílias de bairros operários desta cidade. Os resultados deste estudo, considera- do o primeiro inquérito dietético-nutricional do País, tiveram ampla divulgação nacional, provocando a realização de estudos similares, inclusive daquele que serviu de base para a regulamentação da lei do salário mínimo e da formulação da chamada “ração essencial mínima”, estabelecida por intermédio do Decreto-Lei 399, de 30 de abril de 1938. Em 1935, transferiu-se para o Rio de Janeiro, on- de sua atuação localizou-se ora nos espaços acadê- mico-científicos, ora nos da tecnoburocracia estatal e/ou no âmbito de distintas organizações e entidades civis, destacando-se: a idealização do Serviço de Ali- mentação da Previdência Social (Saps) em 1940; a criação e direção do Serviço Técnico de Alimentação (Stan) no período de 1942 a 1944; a criação da Comis- são Nacional de Alimentação (CNA), em 1945; a cria- ção e direção do Instituto de Nutrição da Universida- de do Brasil no período de 1946 a 1954; a criação e di- reção do periódico científico Arquivos Brasileiros de Nutrição no período de 1944 a 1954; a fundação da Sociedade Brasileira de Nutrição (SBN) em 1942; a presidência do conselho da Organização para a Ali- mentação e Agricultura das Nações Unidas (Fao) en- tre 1952 a 1955; a fundação, em 1957, da Associação Internacional de Luta contra a Fome (Ascofam); a presidência do I Congresso Camponês de Pernambu- co, realizado em setembro de 1955, no Recife, onde foi criada a estrutura orgânica e eleita a primeira di- retoria do movimento das Ligas Camponesas; o cargo de deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasilei- ro (PTB) pelo Estado de Pernambuco, no período de 1955 a 1963, e o cargo de embaixador brasileiro junto às Nações Unidas, no período de 1963 a março de 1964. Em abril de 1964 teve seus direitos políticos cassados. Exilou-se em Paris, onde morreu em 1973, aos 65 anos de idade. Em sua trajetória de vida, dos mangues escuros do Capibaribe às margens luminosas do Sena, Josué de Castro nos ensina que não existem fronteiras para a circulação dos homens e de suas idéias, que o mun- do é apenas uma ‘aldeia global’. A sua vastíssima pro- dução intelectual, construída ao longo de 1930-1973, de abrangência internacional, é composta por mais de duzentos títulos, entre estes, destacamos a edição dos livros: O Problema da Alimentação no Brasil (1934); Alimentação e Raça (1936); Documentário do Nordes- te (1937); Alimentação Brasileira à Luz da Geografia Humana (1937); Fisiologia dos Tabus (1938); Geogra- fia Humana (1939); Geografia da Fome (1946); Geopo- lítica da Fome (1951); Ensaios de Biologia Social (1957); O Livro Negro da Fome (1957); Sete Palmos de Terra e um Caixão (1965) e Homens e Caranguejos (1967). Como interpretar a fome no pensamento de Jo- sué de Castro? Como proceder à periodização e re- corte da sua obra? Foram estas as principais questões explícitas do dilema metodológico que a nutricionis- ta Rosana Magalhães enfrentou no delineamento da investigação que lhe valeu o título de mestre em Saú- de Pública pela Ensp/Fiocruz. Seguindo as trilhas deixadas por interpretações anteriores, a autora de Fome: Uma Re(leitura) de Josué de Castro avança por um novo caminho de análise, focalizando seu olhar contemporâneo sobre os textos que marcaram o pro- cesso de construção-reconstrução do conceito de fo- me na obra deste autor. Para garantir inteligibilidade a sua reflexão, o que também lhe confere originalida- de, ela estabelece dois recortes na análise da trajetó- ria intelectual do autor, o primeiro correspondente aos anos 30/40 e o segundo ao final dos anos 40 até início dos anos 70, tendo como divisor de águas (me- lhor dizendo, de idéias) o clássico Geografia da Fome, publicado em 1946. Ao longo deste percurso, a autora quebra a obra de Josué de Castro em pedaços e a re- constrói a sua maneira, reforçando a idéia das “várias alternativas possíveis” ou de que há mais de uma for- ma de se interpretar uma obra. Na análise dos primeiros escritos de Josué de Castro (anos 30/40), a autora destaca a formulação da tese do “mal de fome e não de raça” – forma de in- terlocução do autor com os cientistas de outros cam- pos disciplinares que, à época, procuravam desfocar da questão genética para a questão cultural o precon- ceito de ‘meio’ e de ‘raça’ que se tinha sobre o povo brasileiro. Assim, para o autor, por meio do valor eu- gênico da alimentação racional seria possível cons- truir o homem brasileiro e forjar a nação, tese esta que, a meu ver, tornou-se a principal base para a legi- timidade do processo de constituição do campo da Nutrição no Brasil, seja enquanto disciplina, como política social e/ou enquanto profissão. Na análise dos escritos da segunda fase (anos 50/60), a autora identifica no diálogo entre Josué de

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Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):213-217, jan-mar, 1998

RESENHAS REVIEWS

FOME: UMA (RE)LEITURA DE JOSUÉ DE CAS-TRO. Rosana Magalhães. Rio de Janeiro: EditoraFiocruz, 1997. 92 pp.

Em 1929, após concluir o curso de Medicina da Uni-versidade do Brasil (atual Universidade Federal doRio de Janeiro), o jovem pernambucano Josué de Cas-tro retornou à cidade do Recife para dar início a umaconsagrada trajetória político-intelectual, dedicada,particularmente, à complexa e paradoxal problemáti-ca da gênese e reprodução da fome e suas formas deenfrentamento.

Entre 1930 a 1935, dividiu-se entre o exercício daMedicina (Endocrinologia e doenças da nutrição), adocência de Fisiologia na Faculdade de Medicina deRecife e a publicação dos seus primeiros escritos. As-sim, em 1932, sob a influência do médico-nutrólogoargentino Pedro Escudero, considerado o pai-funda-dor do campo da Nutrição na América Latina, reali-zou a pesquisa: As condições de vida das classes ope-rárias no Recife, uma investigação baseada na meto-dologia de orçamento e padrão de consumo alimen-tar entre quinhentas famílias de bairros operáriosdesta cidade. Os resultados deste estudo, considera-do o primeiro inquérito dietético-nutricional do País,tiveram ampla divulgação nacional, provocando arealização de estudos similares, inclusive daqueleque serviu de base para a regulamentação da lei dosalário mínimo e da formulação da chamada “raçãoessencial mínima”, estabelecida por intermédio doDecreto-Lei 399, de 30 de abril de 1938.

Em 1935, transferiu-se para o Rio de Janeiro, on-de sua atuação localizou-se ora nos espaços acadê-mico-científicos, ora nos da tecnoburocracia estatale/ou no âmbito de distintas organizações e entidadescivis, destacando-se: a idealização do Serviço de Ali-mentação da Previdência Social (Saps) em 1940; acriação e direção do Serviço Técnico de Alimentação(Stan) no período de 1942 a 1944; a criação da Comis-são Nacional de Alimentação (CNA), em 1945; a cria-ção e direção do Instituto de Nutrição da Universida-de do Brasil no período de 1946 a 1954; a criação e di-reção do periódico científico Arquivos Brasileiros deNutrição no período de 1944 a 1954; a fundação daSociedade Brasileira de Nutrição (SBN) em 1942; apresidência do conselho da Organização para a Ali-mentação e Agricultura das Nações Unidas (Fao) en-tre 1952 a 1955; a fundação, em 1957, da AssociaçãoInternacional de Luta contra a Fome (Ascofam); apresidência do I Congresso Camponês de Pernambu-co, realizado em setembro de 1955, no Recife, ondefoi criada a estrutura orgânica e eleita a primeira di-retoria do movimento das Ligas Camponesas; o cargode deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasilei-ro (PTB) pelo Estado de Pernambuco, no período de1955 a 1963, e o cargo de embaixador brasileiro juntoàs Nações Unidas, no período de 1963 a março de1964. Em abril de 1964 teve seus direitos políticos

cassados. Exilou-se em Paris, onde morreu em 1973,aos 65 anos de idade.

Em sua trajetória de vida, dos mangues escurosdo Capibaribe às margens luminosas do Sena, Josuéde Castro nos ensina que não existem fronteiras paraa circulação dos homens e de suas idéias, que o mun-do é apenas uma ‘aldeia global’. A sua vastíssima pro-dução intelectual, construída ao longo de 1930-1973,de abrangência internacional, é composta por mais deduzentos títulos, entre estes, destacamos a edição doslivros: O Problema da Alimentação no Brasil (1934);Alimentação e Raça (1936); Documentário do Nordes-te (1937); Alimentação Brasileira à Luz da GeografiaHumana (1937); Fisiologia dos Tabus (1938); Geogra-fia Humana (1939); Geografia da Fome (1946); Geopo-lítica da Fome (1951); Ensaios de Biologia Social (1957);O Livro Negro da Fome (1957); Sete Palmos de Terra eum Caixão (1965) e Homens e Caranguejos (1967).

Como interpretar a fome no pensamento de Jo-sué de Castro? Como proceder à periodização e re-corte da sua obra? Foram estas as principais questõesexplícitas do dilema metodológico que a nutricionis-ta Rosana Magalhães enfrentou no delineamento dainvestigação que lhe valeu o título de mestre em Saú-de Pública pela Ensp/Fiocruz. Seguindo as trilhasdeixadas por interpretações anteriores, a autora deFome: Uma Re(leitura) de Josué de Castro avança porum novo caminho de análise, focalizando seu olharcontemporâneo sobre os textos que marcaram o pro-cesso de construção-reconstrução do conceito de fo-me na obra deste autor. Para garantir inteligibilidadea sua reflexão, o que também lhe confere originalida-de, ela estabelece dois recortes na análise da trajetó-ria intelectual do autor, o primeiro correspondenteaos anos 30/40 e o segundo ao final dos anos 40 atéinício dos anos 70, tendo como divisor de águas (me-lhor dizendo, de idéias) o clássico Geografia da Fome,publicado em 1946. Ao longo deste percurso, a autoraquebra a obra de Josué de Castro em pedaços e a re-constrói a sua maneira, reforçando a idéia das “váriasalternativas possíveis” ou de que há mais de uma for-ma de se interpretar uma obra.

Na análise dos primeiros escritos de Josué deCastro (anos 30/40), a autora destaca a formulaçãoda tese do “mal de fome e não de raça” – forma de in-terlocução do autor com os cientistas de outros cam-pos disciplinares que, à época, procuravam desfocarda questão genética para a questão cultural o precon-ceito de ‘meio’ e de ‘raça’ que se tinha sobre o povobrasileiro. Assim, para o autor, por meio do valor eu-gênico da alimentação racional seria possível cons-truir o homem brasileiro e forjar a nação, tese estaque, a meu ver, tornou-se a principal base para a legi-timidade do processo de constituição do campo daNutrição no Brasil, seja enquanto disciplina, comopolítica social e/ou enquanto profissão.

Na análise dos escritos da segunda fase (anos50/60), a autora identifica no diálogo entre Josué de

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Castro e os teóricos do subdesenvolvimento-desen-volvimento a tese da “fome como expressão do subde-senvolvimento” ou da “fome como obstáculo ao desen-volvimento nacional”. Ao longo de sua re(leitura), aautora vai mapeando as influências teóricas que fo-ram marcando os escritos de Josué de Castro em suatrajetória político-intelectual, particularmente o po-sitivismo de Comte, a teoria do círculo vicioso da po-breza, a nutrologia de Pedro Escudero, a GeografiaLablachiana, as teorias do subdesenvolvimento, aideologia do nacional-desenvolvimentismo e algunsconceitos do marxismo e do chamado catolicismosocial. Diante deste quadro de pluralidade de orien-tações teóricas, a autora também alerta para a dialé-tica de continuidades e de rupturas que foi delinean-do o pensamento do autor em sua trajetória de vida.

Por outro lado, observamos que o livro quase queatropela certas questões contraditórias inerentes à vi-da do autor enquanto homem público; à distânciaentre a obra intelectual e a sua prática político-pro-fissional e, portanto, ao processo de construção/des-construção do mito Josué de Castro. Por exemplo, po-demos apontar a questão da organicidade intelectualdo autor com a ditadura do Estado Novo e com o po-pulismo do segundo Governo Vargas (dois momentosde ‘auge’ de sua trajetória). Outro exemplo é a ques-tão do “deslocamento para a esquerda” ou da “tonali-dade vermelha” que a prática política do autor assu-me ao final dos anos 50 (sua aproximação com o mo-vimento camponês e com as propostas nacional-re-formistas), o que gerou a cassação dos seus direitospolíticos e exílio do País. Estas são algumas das ques-tões ‘obscuras’ da trajetória do autor que o texto deRosana Magalhães apenas tangencia e que, a meuver, possibilitam outras abordagens da obra.

Nesta re(leitura) bastante sucinta e não menosprofunda que a autora faz da obra de Josué de Castro,identificamos, ainda, o seu esforço em procurar fugirdo tratamento frio que quase sempre a academia re-serva aos temas polêmicos como fome, miséria e sub-desenvolvimento. Apesar da linguagem clara e direta,o texto acaba tropeçando em outras das armadilhasacadêmicas. Neste sentido, apontamos a falta de umarevisão mais apurada em algumas passagens, parti-cularmente, em relação às referências bibliográficas.

Enfim, nesta (re)leitura apaixonada (e apaixo-nante), criador e criaturas se (re)encontram neste fi-nal do século, quando foi constituído o campo daNutrição no Brasil, ou, como diz Rosana Magalhães,quando foi instituído o saber sobre fome no País. Eem vez de geografia da fome, Josué de Castro falariade globalização da fome, este processo de uniformi-zação planetária dos hábitos e práticas alimentares,em que a produção e a circulação da mercadoria ali-mento permanece atrelada às necessidades de acu-mulação do capital e não às necessidades nutricio-nais humanas.

Francisco de Assis Guedes de VasconcelosDepartamento de Nutrição, Centro de Ciências da SaúdeUniversidade Federal de Santa CatarinaFlorianópolis, Santa Catarina

A MIRAGEM DA PÓS-MODERNIDADE: DEMO-CRACIA E POLÍTICA SOCIAIS NO CONTEXTODA GLOBALIZAÇÃO. Organizadores: Sílvia Gers-chman & Maria Lúcia Werneck Vianna. Rio de Ja-neiro: Editora Fiocruz, 1997. 226 pp.

A Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Os-waldo Cruz, realizou no mês de julho de 1995 o semi-nário Globalização, Democracia e Reforma do Esta-do: Dilemas e Perspectivas das Políticas Públicas deSaúde, objetivando aprofundar discussões e análisesdo processo de globalização e produzir reflexõesquanto às conseqüências das transformações nas po-líticas públicas sociais, tanto no âmbito internacio-nal, como no nacional. Esse evento teve a participa-ção ativa de professores e pesquisadores de diferen-tes universidades e instituições de pesquisa. O pro-duto desse seminário se transformou no livro A Mi-ragem da Pós-Modernidade, objeto dessa resenha,coordenado e organizado por Sílvia Gerschman &Maria Lúcia Werneck Vianna. O livro compõe-se deapresentação, introdução e um conjunto de 12 textosapresentados, discutidos e analisados no decorrer doevento. Enquanto a apresentação expõe o objetivo dapublicação, a introdução é um texto amplo que con-textualiza e tematiza as profundas mudanças em cur-so no planeta terra, resgatando e buscando reconcei-tuações de democracia, em face do processo de glo-balização, costuradas em reflexões sobre incertezas,contingências e consenso. O conteúdo é ainda enri-quecido pelas discussões engendradas na “naturezadesse novo sistema internacional ...”, resgatando aná-lises sobre a situação da Europa Oriental, assim co-mo a dimensão política da atuação das organizaçõesnão governamentais. É ainda sinalizado, como rele-vante, o papel “da revolução tecnológica dos meios decomunicação e, principalmente a informática”, consi-derando os cenários da centralização e massificaçãodas redes interativas (infovias) e televisivas.

Os 12 artigos que seguem depois da introduçãoestão agregados em três partes:

Parte I – Globalização, democracia e questãosocial

Compõem a primeira parte quatro artigos cujos con-teúdos procuramos sintetizar abaixo.

1) Perspectivas da Democracia no Mundo Contem-porâneo: Mais Liberal, Pré-Liberal ou Pós-Liberal?Philippe Schmitter (Departamento de Ciências Políti-cas/Universidade de Stanford – Califórnia, USA).

Neste artigo, Schmitter centraliza o debate na discus-são de diferentes concepções e práticas de democra-cia no mundo. O autor sinaliza que nas próximas dé-cadas “a democracia terá que enfrentar desafios im-precedentes ...” e que seu futuro “será incrivelmentetumultuado, incerto e muito acidentado”. Explica tam-bém que a maioria desses desafios virá das democra-cias liberais consolidadas (DLCs) e não das democra-cias recentes (NDRs), ressaltando que estas “enfren-tarão uma boa parcela de desencanto ...” diante dasrealizações não correspondidas. Conclui que todas“as alternativas à democracia liberal são atormenta-das por um sério problema de agência (...) não impor-

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tando o quão intelectualmente atraentes sejam ...”. Oautor destaca ainda que “a transição nas DLCs é mui-to mais difícil do que nas NDR’s”, pois existem inimi-gos não declarados “que atualmente sabotam o de-sempenho e eventualmente a viabilidade”, e ainda im-puta aos extremistas de direita e de esquerda os im-perramentos das tarefas da reformas necessárias nomundo contemporâneo.

2) O Nacional e o Social em Tempos Globais. FábioWanderley Reis (Departamento de Ciências Políti-cas/Universidade Federal de Minas Gerais).

Sucintamente, Reis descreve seu artigo sob uma pers-pectiva pessimista e fatalista, destacando a pressãopara a redução do Estado Nacional, norteada pelaideologia neoliberal, por meio de forças tendenciosasdo processo de globalização do mundo. O autor põeem pauta a questão da governabilidade e ingoverna-bilidade, estado e projeto nacional, nacionalismo eantinacionalismo, resgatando criticamente o ideáriodo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb).Articulando a questão de desenvolvimento nacionale projeto social, pontua também a problemática datensão “entre eficiência e democracia”, quando esta setorna a força maior que dá sentido ao projeto nacio-nal como sinônimo de projeto social.

3) Democracia, Políticas Sociais e Globalização: Rela-ções em Revisão. Sílvia Gerschman (Departamentode Administração e Planejamento em Saúde/EscolaNacional de Saúde Pública – Fiocruz-RJ).

Gerschman retoma a discussão sobre democracia eglobalização, inserindo-a no contexto de países daEuropa Ocidental conduzidos pela social democra-cia, no Japão, nos Estados Unidos, assim como naAmérica Latina, principalmente no Brasil, na Argen-tina e no México. As suas análises mostram que “paratentar repensar e recriar a democracia” é “necessáriodespojar-nos da ideologia global” e ressaltam que jávivemos em um mundo globalizado que retira a so-berania e a identidade dos Estados, reforçando a ex-clusão social e dicotomizando-a entre duas catego-rias: aqueles que são consumidores e os que não sãoconsumidores. A autora destaca também que os de-safios à democracia diante do processo de globaliza-ção são de grande complexidade, tanto para os paísesde democracia recente, como para aqueles de longaexistência, os quais podem se transformar em demo-cracias formais de caráter meramente eletivo. Por ou-tro lado, destaca ainda o fato de que os movimentossociais, no seu conjunto, não têm cooperado de for-ma significativa e impactante no tensionamento dascrises em curso.

4) Reflexões sobre as Dimensões da Globalização, asNovas Forças Sócio-Políticas Transnacionais e a Re-definição do Horizonte da Democracia. Eduardo Vio-la (Departamento de Relações Internacionais/Uni-versidade de Brasília).

O artigo de Viola é complexo, porém bastante provo-cativo e estimulante ao debate, pela abordagem ana-lítica multifacetada e multidimensional no processode globalização. Ele descreve e analisa as principaiscaracterísticas e dimensões deste processo, em rela-

ção à natureza da realidade social, das forças sociopo-líticas transnacionais, e a erosão da democracia comoideário do sistema nacional em face das perspectivasde governabilidade global. Conclui o trabalho elabo-rando quatro cenários alternativos dessa governabili-dade com probabilidades de médio e longo prazos.

Parte II – Ajuste e reforma do Estado

Os artigos que compõem a segunda parte e que tra-tam de reformas e ajustamentos do Estado têm comoobjetivo maior a questão de políticas públicas, sendonovamente a democracia o fio condutor das discus-sões.

5) Ajuste Estrutural, Governabilidade e Democracia.Maria Alícia Dominguez Ugá (Ensp/Fiocruz).

A autora inicia seu texto elaborando fundamentosteóricos sobre políticas de ajuste em face das refor-mas, alicerçados em teses que dão base ao pensa-mento neoliberal, provenientes das escolas da Áus-tria, de Chicago, e da Public Choice. Ao analisar as po-líticas do ajuste neoliberal, retoma os anos 80 comoponto de partida da “disseminação do paradigmaneoliberal ...”, pontuando as rupturas ocorridas emrelação ao modo de produção, organização e divisãodo trabalho, cujos resultados refletem na redistribui-ção de renda e do emprego e nas relações de classe.Nesse plano, analisa criticamente o modelo do Bem-Estar Social, diante do saneamento de finanças pú-blicas, e as contradições e descompassos. A questãoda governabilidade vista no contexto de ajuste estru-tural do neoliberalismo é analisada pela autora to-mando como base de apoio principalmente o artigode Acuña & Smith (Latin American Political Economyin the Age of Neoliberal Reform: Theoretical and Com-parative Perpectives for the 1990’s. New Bruswick:Transation Publishers, 1994).

6) Notas sobre Estado, Políticas Públicas e Saúde.Amélia Cohn (Centro de Estudos Contemporâneos eDepartamento de Medicina Preventiva/Universidadede São Paulo).

Cohn, ao puxar o debate sobre o Estado e finançaspúblicas, procura dar “uma dimensão mais imediata”no que “diz respeito à pluralidade e abrangência dasações do Estado e padrões de bem-estar social” e à ar-ticulação por ele geridas na atual conjuntura históri-ca. Com esse objetivo, analisa diversos autores, cujasteses estão principalmente centradas no contexto la-tino-americano e fazem seu percurso discursivo ali-nhavando democracia, reformas e os ajustes neces-sários às novas regulamentações do Estado. Finalizaexplicitando textualmente que “se a busca da moder-nidade não exclui, ao contrário pressupõe a presençaativa do Estado, de um estado democrático que incor-pore os cidadãos, ela pressupõe também uma políticacientífica e tecnológica na área de saúde que se assentesimultaneamente no pilar da regulação e no pilar daemancipação, pilares fundamentais do projeto socio-cultural da modernidade”.

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7) Crise, Governabilidade e Reforma do Estado: EmBusca de um Novo Paradigma. Eli Diniz (InstitutoUniversitário de Pesquisas/Rio de Janeiro).

O texto de Diniz, escrito de forma bem didática, de-bate a crise internacional de 80 e seu impacto sobre aAmérica Latina, centralizando, no entanto, como es-tudo de caso o Brasil. Crise, reforma, governabilidadee nova ordem mundial são tratados em razão de fato-res determinantes externos e internos. A autoraaponta o descompasso de Estado e sociedade civil,imputando-o, em parte, ao crescimento da organiza-ção social, que expõe as mazelas da ineficácia, assimcomo outras adjetivações, do poder público em crise.Ao concluir, sugere que “... estratégias de enfrenta-mentos de crises desta natureza, ... não podem perderde vista a meta da consolidação democrática”. Por ou-tro lado, salienta que a necessidade de reforma do Es-tado é patente e deve ser caracterizada na sua dimen-são política e técnica, e também conduzida mediante“acordos e alianças, articulando arenas de negocia-ção ...”. O artigo é concluído com a proposta de umnovo paradigma, “com enfoques tecnocrático e neoli-beral, ... como também do modelo de gestão públicaassociado àquele conceito”.

8) O Mito de Descentralização como Indutor deMaior Democratização e Eficiência das Políticas Pú-blicas. Martha Arretche (Núcleo de Estudos e Políti-cas Públicas/Universidade de Campinas).

Arretche também retoma no seu artigo a década de80, para o ponto de partida de seu objetivo maior deestudo – descentralização da reforma do Estado, con-siderando-a como “instrumento necessário de demo-cratização das relações políticas ...” e explicitando queessa “nova forma de gestão dos assuntos do Estado, édefendida tanto por aqueles que acreditam nos velhospreceitos liberais, como também por aqueles que acre-ditam ainda no ideário libertário”. A autora faz umaanálise geral, aprofundando e problematizando o as-sunto, descentralização e democracia, em relação àsituação da França, Espanha e principalmente doBrasil, por meio de três argumentos básicos: descen-tralização como condição necessária à democratiza-ção do processo decisório; expectativa de esvazia-mento das funções do governo central e a redução doclientelismo, mediante formas de controle que impli-quem a redução do emprego de recursos públicos.

Parte III – O Estado de Bem-Estar no contextoatual

Esta última parte é composta por quatro artigos, queprocuraram analisar o sistema do Bem-Estar Social esuas reformas e transformações, sob o impacto doneoliberalismo em curso.

9) Política versus Economia: Notas (Menos Pessi-mistas) sobre Globalização e Estado de Bem-Estar.Maria Lucia Werneck Vianna (Instituto de Economiada Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Vianna analisa e discute várias referências bibliográ-ficas, principalmente sobre a Grã-Bretanha, França,Alemanha, Suécia e Dinamarca, voltadas para análi-

ses de políticas sociais e o Estado de Bem-Estar, con-siderando tanto os elementos político-econômicos esuas performances impactantes, quanto o papel dosatores sociais e das instituições públicas. Defendeque emergência, expansão e crise das políticas deBem-Estar, são mais bem espelhadas e explicitadas,por intermédio de fatores políticos, embora estes de-vam ser cruzados obviamente, com fatores econômi-cos. A autora chama atenção para o fato de que “os da-dos fornecidos por organismos internacionais abali-zados não autorizam os vaticínios alarmantes...”, dodesmonte do Bem-Estar. Finalizando o artigo combreve comentário sobre o Brasil e seu incipiente eimaturo contexto do sistema de proteção social, Vian-na conclui que, embora na constituição brasileira es-tejam contidos princípios para as políticas sociais, deconcepção semelhante à dos países de Bem-Estar, omodelo que vem sendo assumido, no entanto, é maisde concepção americana.

10) Crise Econômica, Crise Welfare State e ReformaSanitária. Célia Almeida (Departamento de Adminis-tração/Ensp/Fiocruz).

Almeida introduz seu artigo resgatando, à exemplode Vianna, a discussão da crise geral e o Estado deBem-Estar a partir da década de 80. Centraliza suaanálise na reforma sanitária, abordando cinco di-mensões: a hegemonia americana e a expansão dossistemas de assistência médica; a natureza e dimen-são da crise sanitária dos anos 60-70; o diagnósticoneoliberal da problemática setorial com as propostasde reformas nos anos 80; os principais resultadosdessas reformas e o movimento das tendências dasreformas sanitárias nos países centrais. Conclui que,em todos os processos das reformas sanitárias, houvea introdução de “mudanças gerenciais e de mecanis-mos de mercado, dirigidas especificamente à busca demaior eficiência na produção de serviços através darecomposição do setor, seja a nível público ou priva-do”. Chama atenção para o paradoxo da presença deum estado regulador e a intervenção nas políticas so-ciais neoliberais, destacando a grande distância “en-tre o discurso reformista (teórico e ideológico) e as po-líticas implementadas”, embora os desmontes “quevêm sendo realizados” estejam colaborando para dis-seminar a idéia da ineficiência do setor público “fa-bricando a insatisfação do usuário e fortalecendo aspropostas privatizadoras”. A posição da autora, prin-cipalmente no último parágrafo do artigo, expõe aná-lises otimistas em relação ao setor saúde e o paradig-ma neoliberal, destacando que é preciso levar emconsideração o fato de que há especificidades pró-prias e distintas neste setor, que são peculiares a ca-da sociedade.

11) As Políticas Sociais e as Políticas de Saúde noContexto do Processo de Globalização. Ana Luíza Via-na (Instituto de Medicina Social/Universidade Esta-dual do Rio de Janeiro).

Viana faz seu caminho discursivo e analítico, na linhado trabalho das duas autoras anteriores, isto é, resga-tando a história dinâmica do Estado de Bem-Estar,até o início dos anos 90. Especificamente, no que dizrespeito ao setor saúde e suas políticas, a autora tri-lha por discussões sobre os Estados Unidos da Amé-

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RESENHAS REVIEWS

rica e a Inglaterra, países que considerou como “sím-bolos da aplicação das políticas neoliberais...”. Enfati-za, ao finalizar, que: “Qualquer movimento que desa-güe em propostas exclusivamente locais para a saúde,é passível de imensas distorções, irracionalidades edesperdícios de recursos, como bem demonstram tra-balhos recentes de análises do processo de descentrali-zação das políticas de saúde na América Latina (casoschileno, argentino e brasileiro)”.

12) A Proteção Social e as Transformações do Mundodo Trabalho: Garantia de Mínimos ou Direito de Ci-dadania. Rosa Maria Marques (Departamento deEconomia da Pontifícia Universidade Católica de SãoPaulo).

Marques direciona seu texto “sobre a incompatibili-dade crescente entre o modelo de proteção social cons-truído particularmente após a Segunda Guerra Mun-dial e o atual projeto de acumulação...”, procurandoanalisar quatro aspectos básicos: sistemas de prote-ção aos trabalhadores do mercado formal; processosde universalização e integração à gestão do trabalho(anos 50-60); crise do Welfare State e os impactos so-bre a proteção social; e as alterações ocorridas nomundo do trabalho e as possibilidades de transfor-mações dos atuais modelos de proteção social. Nodecorrer das análises sobre os caminhos da constru-ção do Welfare State, Marques discute a relevância dopapel de atuação que tiveram os sindicatos e parti-dos da classe trabalhadora, reconhecidos estes, querpelo Estado, quer pelos representantes do capital, co-mo os canais de competência e legitimação, nos pro-cessos de negociações. Problematiza, por outro lado,a questão de custo financeiro da proteção social uni-versalizada, levando em consideração fatores diver-sos a exemplo de: ampliação de cobertura e crescen-te demanda; a aposentadoria e envelhecimento dapopulação; gastos com o setor saúde e seguro-de-semprego e a diminuição das contribuições financei-ras de empregados e empregadores. A esse conjuntode fatores é imputada a fragilização do sistema doWelfare State no que se refere ao financiamento daproteção e políticas sociais. A questão do desempre-go é inserida no artigo, tendo como pano de fundo aadoção de novas tecnologias pelo sistema produtivo,que desenham uma nova facie de modernização ereorganização racionalizada no campo gerencial e deprodução, promovendo a segmentação da classe tra-balhadora entre aqueles “...que têm emprego ...” e osdesempregados que vicejam “...totalmente à parte dasociedade”.

Dalva A. Mello Núcleo de Estudos de Saúde PúblicaCEAM, Universidade de BrasíliaBrasília