josuÉ de castro vida e obra - livraria expressão...

175
JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra

Upload: doanngoc

Post on 01-Oct-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

JOSUÉ DE CASTRO

Vida e obra

Page 2: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear
Page 3: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

JOSUÉ DE CASTRO

Vida e obra

BERNARDO MANÇANO FERNANDES

CARLOS WALTER PORTO GONÇALVES (ORGS.)

2a edição - revista e ampliada

São Paulo, 2007

EXPRESSÃOPOPULAR

Page 4: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

Copyright © 2000, by Editora Expressão Popular

Projeto gráfico, diagramação e capa: ZAP DesignImpressão: CromoseteIlustração da capa: Josué de Castro por Cândido PortinariRevisão: Miguel Cavalcanti Yoshida

Agradecemos aos familiares de Josué pela liberação dos textos e das fotospara esta publicação

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro pode ser utilizadaou reproduzida sem a autorização da editora.

2ª edição: revista e ampliada: maio de 2007

EDITORA EXPRESSÃO POPULARRua Abolição, 266 – Bela VistaCEP 01319-010 – São Paulo-SPFone/Fax: (11) 3112-0941vendas@expressaopopular.com.brwww.expressaopopular.com.br

Page 5: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

"Esta presença constante da fome sempre fora

a grande força modeladora do comportamento

moral de todos os homens desta comunidade:

dos seus sentimentos dominantes. Vê-los agir,

falar, lutar, sofrer, viver e morrer era ver a

própria fome modelando, com suas despóticas

mãos de ferro, os heróis do maior drama da

humanidade - o drama da fome".

Josué de Castro

Page 6: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear
Page 7: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

S u m á r i o

Apresentação - Josué de Castro, fome de Justiça ...........................9Bernardo Mançano Fernandes e Carlos Walter Porto Gonçalves

Biografia .......................................................................................21Maria Yedda Leite Linhares

Josué de Castro: semeador de idéias .............................................27Anna Maria de Castro

Principais obras de Josué de Castro ..............................................81

Textos escolhidos de Josué de Castro1. O ciclo do caranguejo ........................................................1032. Prefácio da primeira edição de Geografia da Fome ..............1073. A reivindicação dos mortos ................................................1254. A descoberta da fome .........................................................1415. Fome como força social: fome e paz ...................................1536. Subdesenvolvimento: causa primeira da poluição ..............165

Page 8: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear
Page 9: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

APRESENTAÇÃO *

J O S U É D E C A S T R O ,F O M E D E J U S T I Ç A

Nesta segunda edição, ampliada e revisada, reforçamos a impor-tância da obra de Josué de Castro para a compreensão da realidadebrasileira. Para melhor compreender a sua obra, incorporamos belostextos sobre a sua vida, com o apoio de Anna Maria de Castro, tor-nando o livro ainda mais interessante para conhecer o pensamento eo pensador que dedicou sua vida para compreender e explicar a ques-tão da fome.

As pessoas que se preocupam com o tema fome e em sua supera-ção, não podem deixar de conhecer as obras de Josué. As organiza-ções que lutam contra a questão fome, têm o pensador como refe-rência fundamental. Por essa razão, uma das atividades desenvolvi-das nas reuniões dos movimentos sociais é a mística. Nesses momen-tos, as pessoas realizam reflexões a respeito de seus princípios, to-mando como referências diversos pensadores e lutadores do povoque se dedicaram a pensar a sociedade e a lutar para transformá-la,objetivando torná-la mais justa, generosa e solidária.

Conhecer pessoas e pensamentos, refletir sobre atos e ações, pen-sar o futuro são procedimentos essenciais para animar a luta popular.

· Bernardo Mançano Fernandes - Geógrafo, professor e pesquisador da Universi-dade Estadual Paulista – UNESP, campus de Presidente Prudente

· Carlos Walter Porto Gonçalves - Geógrafo, professor e pesquisador da Universi-dade Federal Fluminense.

Page 10: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

10 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Os movimentos sociais que vivem intensamente suas convicções, ten-do por base as suas experiências construídas a partir do saber históri-co, avançam e se consolidam. Nesse sentido, a mística é uma experi-mentação em que se valorizam mulheres, homens e crianças, idéias epráticas na comemoração do fazer-se de cada dia.

As reflexões sobre as experiências de luta e resistência, associadasao pensamento de diferentes autores, sustentam a práxis e são ele-mentos fundamentais da mística. Essas atividades contribuem para aconsistência dos movimentos sociais. Não basta a imagem na parede,não basta repetir frases de diversos pensadores, é necessário conhecersuas idéias, criticá-las, concordar ou discordar, ou seja: é preciso pen-sar sobre o pensado, para superar e construir novos conhecimentosdesde a realidade que se transforma.

Assim, a mística é leitura da realidade e da teoria. É poesia decla-mada e cantada, quando a vida é pensada e valorizada em todas as suasdimensões. Desse modo se planta no coração e na mente as raízes daluta popular. Planta-se a rebeldia, a indignação, a irreverência, a solida-riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear a consciên-cia, cujos frutos serão colhidos nas vitórias dos movimentos sociais.

A mística é um alimento para o pensamento e para o coração,uma forma de nutrir as esperanças, porque aproxima as pessoas dehoje e de ontem. Os que fizeram e os que fazem. A mística é ummomento político e cultural em que se recupera e se mantêm namemória os pensamentos de pessoas como Josué de Castro, PauloFreire, Florestan Fernandes, Marx, Lenin entre tantos outros. Agoracom essa publicação, os lutadores do povo poderão conhecer umpouco mais da vida e da obra de Josué de Castro. Lendo mais, pode-se aprender e compreender melhor as razões da luta popular. Assim épossível superar dificuldades, construir esperanças e novas perspecti-vas, fazendo a história e a geografia, transformando realidades.

Josué de Castro foi um lutador do povo. Recuperar, conhecersuas idéias e propostas é fundamental para compreender o mundohoje. Josué foi pioneiro na luta contra a fome. Seu pensamento con-

Page 11: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 11

tinua atual, principalmente por causa do empobrecimento da maiorparte da população brasileira, com a intensificação do desempregoestrutural e da não realização da reforma agrária. Conhecer a obra deJosué de Castro é uma possibilidade de recuperarmos suas referênciasteóricas para analisarmos a realidade hoje.

O chamado globalitarismo, o fortalecimento do neoliberalismoe os processos de privatização estão aumentando a miséria na maiorparte do mundo. O desemprego na cidade e no campo, as famíliasque moram na rua, o aumento do número de sem-terra e de sem-teto são exemplos da intensificação da exclusão social.

No Brasil do começo do século 21, conforme dados do InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a parcela constituídapor 1% dos mais ricos da população detém 13,8% da renda total,enquanto os 50% mais pobres detém somente 13,5%. Ou seja, umapessoa rica ganha mais que 50 pessoas pobres. Trinta e dois milhõesde brasileiros estão abaixo da linha de pobreza e enfrentam a cada diao problema da fome. Ainda, os dados do IBGE (2006) registram que40% da população brasileira ou 72 milhões de brasileiros vivem emsituação de insegurança alimentar.

A fome é a questão central dos estudos e da luta de Josué deCastro. Por meio desse eixo principal, o autor dimensiona suas aná-lises em diversos outros temas como, por exemplo: a reforma agrária,a questão ecológica, o subdesenvolvimento e as desigualdades sociais.Afirma, explicitamente, que a fome é o problema ecológico númeroum na medida que todo ser vivo deve se alimentar para se mantervivo. O homem como ser biológico que é não foge à regra. Ele tam-bém faz parte da cadeia alimentar e deve mantê-la (e manter-se) viva(vivo). No caso dos seres humanos a questão ecológica, antecipa Josuéde Castro, incorpora a dimensão social (estrutura fundiária, por exem-plo) e a questão cultural (os regimes alimentares, por exemplo). Elevê o ambiente inteiro.

Uma leitura atenta deste livro levará o leitor a compreender asdiferentes dimensões que o conceito de fome tem para Josué de Cas-

Page 12: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

12 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

tro. Fome como resultado da exploração econômica; fome como pro-duto da dominação política; fome como conseqüência da injustiça;fome como dependência, fome física, fome espiritual, fome comoalienação. Fome como sede de lutar.

A obra de Josué de Castro é um marco no processo de compreen-são da fome. E neste sentido, o seu livro Geografia da Fome é um dosprincipais estudos dessa questão. A opção pelo método geográficopossibilitou ao autor uma análise mais ampla. Assim, analisou o fe-nômeno da fome orientado

pelos princípios fundamentais da ciência geográfica, cujo objetivo básico é

localizar com precisão, delimitar e correlacionar os fenômenos naturais e

culturais que ocorrem à superfície da terra. É dentro desses princípios geo-

gráficos, da localização, da extensão, da causalidade, da correlação e da

unidade terrestre que pretendemos encarar o fenômeno da fome. Por ou-

tras palavras, procuraremos realizar uma sondagem de natureza ecológica,

dentro desse conceito tão fecundo de “Ecologia”, ou seja, do estudo das

ações e reações dos seres vivos diante das influências do meio. Nenhum

fenômeno se presta mais para ponto de referência no estudo ecológico

destas correlações entre os grupos humanos e os quadros regionais que eles

ocupam, do que o fenômeno da alimentação – o estudo dos recursos natu-

rais que o meio fornece para subsistência das populações locais e o estudo

dos processos através dos quais essas populações se organizam para satisfa-

zer as suas necessidades fundamentais de alimentos. (Castro, 1984, pp.

34-35).

Nessa perspectiva ecológica observamos o conjunto dos conheci-mentos de Josué, que rompe com uma visão economicista ereducionista e expressa uma visão interativa entre as pessoas e o espa-ço geográfico que habitam. Ampliando seus estudos geográficos, de-pois de Geografia da Fome, este importante estudo sobre o Brasil,publicou Geopolítica da Fome, analisando a questão da fome no mun-do. Sem dúvida, Josué de Castro foi um importante geógrafo, médi-co e sociólogo, tornando-se um grande pensador brasileiro e reco-nhecido como cidadão do mundo.

Page 13: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 13

Josué de Castro cunhou conceitos importantes, como fomeepidêmica e fome endêmica. A fome epidêmica compreendida comoa fome global, a mais aguda e violenta, a verdadeira inanição, quese constitui na fome total. A fome endêmica compreendida comoa fome parcial, a fome oculta, pela falta permanente de determi-nados elementos nutritivos nos regimes alimentares, em que po-pulações inteiras morrem lentamente de fome. Com essa distin-ção Josué nos esclarece que a fome no Sertão nordestino é epidê-mica ficando restrita aos períodos de seca, enquanto na Zona daMata, onde a água é abundante, a fome é endêmica, isto é, é per-manente. Com isso nos permite superar uma imagem forteconstruída desde há muito que associa a fome à seca. Josué nãodeixa dúvidas de que é na Zona da Mata que a fome se constituinum fenômeno estrutural. Deixa claro, portanto, que o proble-ma é da cerca e não da seca.

Com os esforços do autor, a fome deixou de ser tabu e esses con-ceitos foram sendo incorporados nos estudos e políticas de diversasinstituições, como a FAO – Organização das Nações Unidas para aAgricultura e a Alimentação –, cujo Conselho, Josué presidiu nosanos de 1952-1955. Todavia, admitir a fome como questão políticanão era suficiente. Os limites da FAO para resolver o problema dafome estavam representados nos interesses dos países ricos. Assim,Josué se desiludiu com o trabalho desenvolvido, defendendo açõessobre as instituições internacionais.

Durante os quatro anos que esteve na presidência do ConselhoExecutivo da FAO, Josué de Castro lutou para implantar princípiosessenciais que desempenhassem os objetivos da organização. Toda-via, o que verificou foi que os interesses de países ricos e de gruposeconômicos impediam a proposição de políticas públicas como a re-forma agrária, a criação de reservas alimentares de emergência, bemcomo programas de segurança alimentar.

Assim, ao deixar a presidência do Conselho da FAO, fez o se-guinte pronunciamento:

Page 14: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

14 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Longe de mim menosprezar a obra realizada pela FAO mas desejo dizer

com toda a sinceridade – e peço que me perdoem por falar com uma sin-

ceridade um tanto brutal – que me sinto decepcionado diante da obra que

realizamos. Decepcionado pelo que fizemos porque, a meu ver, não elabo-

ramos até hoje uma política de alimentação realista perante às desespera-

das necessidades do mundo e aos nossos objetivos. Não fomos suficiente-

mente ousados para encarar de frente o problema e buscar as suas soluções.

Apenas afloramos a sua superfície, sem penetrar em sua essência. (Castro,

1966, p. 55).

Em 1954, Josué de Castro recebeu o Prêmio Internacional daPaz. Essa atribuição significou também o reconhecimento do empe-nho de Josué por um mundo mais justo sem fome, ou seja: um mun-do com fome de Justiça. Nesse mesmo ano foi eleito deputado fede-ral pelo Partido Trabalhista Brasileiro e reeleito em 1958 com o maiornúmero de votos do Estado de Pernambuco, até então.

Como político e cientista, Josué realizou diversos estudos e ela-borou vários projetos. Participou das primeiras pesquisas sobre ali-mentação no Brasil, realizadas no Rio de Janeiro, em São Paulo e noRecife. O que resultou na sua expulsão do Recife, acusado de subver-sivo por denunciar as condições de miséria dos trabalhadores de suacidade. Com seus estudos, o autor mostrou para as elites da épocacomo morria de fome a maior parte da população. Em 1955, apre-sentou um projeto para a criação de uma reserva alimentar na regiãoNordeste, que implicava necessariamente na realização da reformaagrária e da redistribuição de renda.

Em sua produção científica, Josué de Castro registrou as causas dafome. A concentração de renda e as desigualdades sociais estão no prin-cípio da questão. A concentração da estrutura fundiária, a expropria-ção dos trabalhadores rurais e a utilização da terra para uma agricultu-ra de exportação em detrimento da agricultura familiar também estãoentre as principais causas da fome. Igualmente analisou como os inves-timentos de enormes somas de recursos financeiros para a produçãobélica poderiam ser canalizados para eliminar a fome no mundo.

Page 15: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 15

A fome é questão presente no campo e na cidade. A exclusãosocial está crescendo e é impossível não ver a expansão desse proble-ma. De acordo com Josué de Castro não é necessária uma análiseprofunda para identificá-la. A fome é evidente nas ruas, nas beirasdas estradas, onde estão as mansões e os latifúndios.

Portanto, a luta contra a fome e sua superação é uma luta contraa concentração de riquezas e as desigualdades sociais. É fundamentaltomar consciência de que a fome é um flagelo que precisa ser supri-mido. É preciso atacar as raízes do problema em vez de elaborar po-líticas paternalistas que recriam relações de dependência e fazem osflagelados suportarem a fome. É preciso enfrentar o tabu da reformaagrária e efetivá-la.

Aliás, esse é um tema que está muito presente no conjunto de suaobra. No livro Geografia da Fome, apresenta sua compreensão do queseria uma verdadeira reforma agrária:

O tipo de reforma que julgamos um imperativo da hora presente não é um

simples expediente de desapropriação e redistribuição de terra para aten-

der às aspirações dos sem-terra. Processo simplista que não traz solução

real aos problemas da economia agrária. Concebemos a reforma agrária

como um processo de revisão das relações jurídicas e econômicas, entre os

que detêm a propriedade agrícola e os que trabalham nas atividades rurais.

Traduz, pois, a reforma agrária uma aspiração de que se realizem, através

de um estatuto legal, as necessárias limitações à exploração da propriedade

agrária, de forma a tornar seu rendimento mais elevado e principalmente

melhor distribuído em benefício de toda a coletividade rural. (Castro, 1984,

p. 300).

Por suas pesquisas, projetos sociais e campanhas políticas, ficouconhecido como o maior lutador contra a fome. Exerceu cargos po-líticos no Brasil e no exterior, tornou-se reconhecido por suas posi-ções contra as políticas imperialistas que condenavam os países po-bres ao subdesenvolvimento. Por suas ações e por suas obras, Josuéteve seus direitos cassados, juntamente como Celso Furtado entreoutros, e foi exilado em 1964.

Page 16: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

16 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Viveu em Paris, onde trabalhou em várias universidades da Fran-ça. Trabalhou também em universidades da Espanha, Bélgica, Esta-dos Unidos, Chile, Argentina, Peru e Venezuela. Em 1973, aos 65anos, no dia 23 de setembro, Josué de Castro faleceu. Tinha esperan-ça de voltar ao Brasil com vida, o que não se realizou. Antes de fale-cer disse para um de seus amigos: “não se morre só de doença, morre-se também de saudade”. Seu corpo foi trazido ao Brasil e enterradona cidade do Rio de Janeiro. Alguns jornais apresentaram notas arespeito de sua morte, mas os militares não permitiram que sequercolocassem fotos.

Muitas pessoas nunca ouviram falar de Josué de Castro. Esse fatonão é de se estranhar no Brasil, onde nos últimos 50 anos a mídiatratou de mostrar uma realidade virtual. Aos que se propõem enfren-tar a realidade e se deparam com a miséria, com o desemprego, coma inexistência da reforma agrária e com o problema da fome, comcerteza se defrontarão com a obra desse importante cientista e políti-co brasileiro.

Na tentativa de romper com essa distância entre a “realidadefantástica da mídia global” e a realidade do Brasil, selecionamosalguns textos clássicos para oferecer ao leitor uma visão da ex-pressiva obra do autor. A razão pela qual escolhemos esses textosé pela representatividade que possuem e pela atualidade que re-presentam.

Na parte biográfica, para conhecermos um pouco da vida de Josuéde Castro, utilizamos textos de Anna Maria de Castro e Maria YeddaLeite Linhares. Por meio deles, podemos compreender as dimensões davida do pensador, tanto por meio das leituras das autoras, quanto pelopróprio Josué, além de uma entrevista e depoimentos sobre sua vida.

Na parte bibliográfica, apresentamos os textos escolhidos. O pri-meiro texto é um clássico de sua obra. Em “O Ciclo do Caranguejo”,Josué defronta-se com o problema da fome e traduz para o leitor odrama dos habitantes dos mangues. Narra a situação de homens,mulheres e crianças no sofrimento em encontrar o que comer. É uma

Page 17: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 17

descrição do ciclo triste da miséria e da fome. Mas este texto tambéminspirou os jovens, como o saudoso Chico Science, com o Movi-mento Mangue Beat.

O “Ciclo do Caranguejo” é um conto literário, em que descreveos fatos sem retocá-los. O estudo desse ciclo levou o autor a umaanálise das relações entre as pessoas e o ambiente em que vivem,exploradas, espicaçadas. Esse texto nos possibilita a reflexão de atéonde as formas de miséria e as lutas pela sobrevivência humana po-dem chegar.

O texto seguinte é o prefácio da primeira edição de Geografia daFome, publicado em 1947. Nesse texto, Josué faz uma reflexão sobrea sua produção científica como contribuição para a superação doproblema da fome. É um trabalho que nos permite conhecer parteimportante de suas idéias: as definições dos conceitos de fomeendêmica e epidêmica, bem como o diálogo com seus principaisinterlocutores.

Geografia da Fome é um marco na produção literária do autor. Oprefácio apresentado contém uma linguagem radical para os escritosda época. Nesse texto, Josué demonstra sua postura crítica em rela-ção aos rumos da economia e da política brasileira e denuncia asverdadeiras causas da fome no Brasil.

O terceiro texto é o primeiro capítulo do livro Sete Palmos deTerra e um Caixão, da edição publicada em Portugal, em 1975,intitulado “A Reivindicação dos Mortos”. Neste belo capítulo dedi-cado às Ligas Camponesas, Josué analisa a formação das Ligas e odiscurso da imprensa que afirmava que as mesmas eram um perigoiminente influenciadas por China e Cuba. Critica o jornalismo ten-dencioso e sensacionalista que encobre as verdadeiras causas da misé-ria do campesinato nordestino: a secular concentração da estruturafundiária e a extrema desigualdade social e política.

Dessa forma, o autor recupera parte importante da história dainvasão do território brasileiro pelos colonizadores e da expansão docapitalismo. É um texto importante para entender a questão agrária

Page 18: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

18 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

do Nordeste. Nesse belo texto, Josué mostra como os trabalhadoresforam tomando consciência da realidade, desde suas condições devida e de fome.

Ao tratar da morte, os camponeses do Engenho Galiléia apren-deram como lutar pela vida. Como lutar pela terra, contra as injusti-ças, contra a fome. Josué de Castro admirou a organização dos traba-lhadores e viu nela uma força vigorosa para a transformação de suasrealidades na superação da miséria.

O quarto texto é o prefácio do livro Homens e caranguejos, daedição portuguesa de 1966. É outro escrito literário de beleza singu-lar. De modo sublime, Josué relata o cotidiano de sua infância e davida da população do mangue. O autor retira da geografia dessa rea-lidade a miséria do povo. E a explicita como descoberta de uma cons-ciência crítica a respeito das desigualdades presentes nos mangueslamacentos do Capibaribe.

O texto é, em certa medida, a apresentação de um retrato, deuma paisagem da miséria e da fome da população excluída, esmagadapor estruturas de poder: o latifúndio e a monocultura da cana. Josuérelata por meio da cultura popular do bumba-meu-boi a vida sofridada população faminta. Das lições retiradas das leituras dessa paisa-gem, construiu a geografia da fome, onde o autor descobriu que afome não era somente um fato presente e persistente dos mangues,mas que era parte da realidade mundial.

O quinto texto é “Fome como força social: fome e paz”, publica-do na França em 1967. Nessas páginas, Josué expressa sua crítica àpostura descomprometida dos que procuram ignorar a realidade dafome. Reforça a questão da fome como “fenômeno geograficamenteuniversal, a cuja ação nefasta nenhum continente escapa. Toda a ter-ra dos homens foi, até hoje, a terra da fome”.

O autor apresenta as conseqüências físicas da fome sobre a vidaem todas as suas dimensões, transformando e destruindo consciênciase esperanças. A fome destrói a todos e a tudo. As populações faméli-cas são destituídas de perspectivas, de modo que, por causa da fome,

Page 19: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 19

não conseguem lutar contra o flagelo e por essa razão permanecemna mesma condição.

Para a superação da fome, o autor propõe o aumento da produ-ção de alimentos e uma reestruturação política e econômica de cará-ter humanista. De acordo com a sua tese a fome é fato em todo omundo, e, portanto, é uma preocupação de todas as nações. Assim,todos os países deverão tratar da questão conjuntamente, porque emcaso contrário significa que: “desde que uma dessas partes sofra defome e esteja ameaçada de morrer e apodrecer na miséria, todo orga-nismo está ameaçado pela mesma infecção”.

O último texto é: “Subdesenvolvimento: causa primeira da po-luição”*, publicado na revista O Correio da Unesco, ano 1, nº 3, mar-ço de 1973. Nesse trabalho, Josué discute o conceito de desenvolvi-mento em todas as suas dimensões: social, econômica, política eambiental. Mostra a relação intrínseca entre os países desenvolvidose os países dependentes e critica esse modelo gerador de desigualda-des entre as nações.

Desse modo, enfatiza que o subdesenvolvimento é resultado dodesenvolvimento desigual. É resultado da exploração econômica eda dominação política dos países ricos sobre os países pobres. A de-gradação ambiental e a poluição gerada nos países subdesenvolvidossão produtos do desenvolvimento e da exploração dos países ricos.Deste ponto de vista, é um texto atualíssimo, principalmente porcausa da intensificação da exploração dos territórios dos países doTerceiro Mundo pelos Estados Unidos, União Européia e Japão.

Esses textos são referências importantes para conhecermos o pen-samento de Josué de Castro. Mas cabe ao leitor, conferir a beleza dosseus escritos e a riqueza de suas idéias. Numa época como a nossa,onde tudo parece se medir pelo critério da eficácia, do rendimento,da produtividade, da competência, enfim de uma racionalidade

* Trabalho apresentado no “Colóquio sobre o Meio”, em junho de 1972, em Esto-colmo.

Page 20: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

20 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

centrada no econômico, na quantidade, no dinheiro, não é destituí-do de sentido que os limites, as fronteiras estejam difusas e, assim, apolítica enquanto tal. É que política, desde os gregos, é a arte dedefinir limites. Afinal, polis era o nome originariamente dado ao muro,ao limite entre cidade e campo. Só depois se passou a designar polisao que estava contido nos muros, nos limites. A economia deixada asi mesma, enquanto lógica do mercado, exige o fim das fronteiras,dos limites, enfim da política que é, como vimos, a arte de definirlimites. Josué de Castro soube perceber esses nexos sutis entre as fron-teiras, isto é, a política e a ecologia, os destinos das espécies do plane-ta. Talvez por isso tenha buscado a Geografia que é exatamente a artede grafar (marcar) a terra, de lhe atribuir sentido.

Diante da grande produção de Josué de Castro, os textos selecio-nados são representativos. Quiçá esses textos sejam motivações quelevem o leitor a se interessar ainda mais pelo problema da fome, damiséria e pela participação na luta dos trabalhadores.

Page 21: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B I O G R A F I A *

Nasceu Josué Apolônio de Castro em 5 de setembro de 1908, nacidade do Recife, e faleceu em Paris, no exílio a que fora condenadopelo regime militar brasileiro, ao completar 65 anos, em 1973. Fezseu curso de Medicina na Bahia e no Rio de Janeiro onde colou grauaos 21 anos de idade. Mas foi em Recife que começou a exercer amedicina, nessa mesma cidade que havia despertado no menino po-bre que nela nascera e crescera a atenção para a realidade social deuma região marcada por profundos contrastes econômicos e huma-nos. O seu interesse pela sorte dos deserdados numa sociedade desi-gual levou-o, ainda recém-formado, a promover o primeiro inquéri-to sobre as condições de vida da classe operária em Recife, estudopioneiro no país e que serviria de modelo para investigações seme-lhantes, nos anos 1930 e 1940, em outros Estados da federação, nobojo do movimento que se desenvolvia pela fixação do salário míni-mo e pelo reconhecimento dos direitos dos trabalhadores. Em 1935,transferia-se para o Rio de Janeiro onde se vinculou à equipe de edu-cadores e cientistas que pugnavam pela transformação do ensinouniversitário. Assim, integrou-se à experiência renovadora que erarepresentada pela Universidade do Distrito Federal, na qualidade deprofessor de Antropologia Física. Interessava-lhe, sobretudo, por sua

* Texto de Maria Yedda Leite Linhares.

Page 22: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

22 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

formação cientifica e inquietação intelectual de acentuada sensibili-dade humanística, buscar na Medicina respostas concretas para oproblema da fome e da subnutrição que afligia milhões de brasilei-ros. Da sua primeira docência em Fisiologia e da sua experiênciaclínica nos bairros operários de Recife, passou a realizar, no Rio deJaneiro, pesquisas bioquímicas que constituiriam o embrião do futu-ro Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, por ele idealiza-do e concretizado. Tais estudos levaram-no, ainda, ao seu primeirocontato com a Europa, tendo estagiado, em 1938, no InstitutoBioquímico de Roma e dado cursos nas universidades de Roma,Nápoles e Gênova. Dessa experiência resultou a publicação, em 1939,do estudo Alimentazione e Acclimatazione Umana nei Tropici. De voltaao Brasil, em 1939, integrou o corpo docente da recém-criada Facul-dade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil, atualUniversidade Federal do Rio de Janeiro, tendo conquistado, por con-curso, a Cátedra de Geografia Humana, em 1947, com a tese “ACidade do Recife, Ensaio de Geografia Urbana”.

Entre 1939 e 1945, promoveu cursos sobre Alimentação e Nu-trição no Departamento Nacional de Saúde Pública e na Faculdadede Medicina da Universidade do Brasil; foi eleito, em 1942, presi-dente da Sociedade Brasileira de Nutrição; criou o Serviço de Ali-mentação da Previdência Social (Saps); foi chefe do DepartamentoTécnico de Alimentação da Coordenação da Mobilização Econômi-ca e membro, entre outras atividades não menos profícuas, da Co-missão Organizadora da Comissão do Bem-Estar Social. Distinguiu-se nos anos que se situaram entre a sua formação em Medicina e ofinal da II Guerra Mundial pela publicação de numerosos livros, des-tacando-se, além dos já mencionados estudos sobre as condições devida da classe operária no Recife, salário mínimo e alimentação nostrópicos, os seguintes: O Problema da Alimentação no Brasil, Alimen-tação e Raça, Documentário do Nordeste, A Alimentação Brasileira àLuz da Geografia Humana, Fisiologia dos Tabus. Tais trabalhos consti-tuíram a fase preparatória das duas obras que o lançariam como o

Page 23: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 23

autor mundialmente lido e admirado, a Geografia da Fome (1946) ea Geopolítica da Fome (1951), livros esses que produziram um gran-de impacto praticamente em todos os países do mundo, daí teremsido traduzidos, em edições sucessivas, em 24 idiomas. Pela primeiravez, era a opinião pública internacional alertada sobre o problema dafome, estigma do subdesenvolvimento e resíduo das estruturassocioeconômicas herdadas do colonialismo.

Além de sua extraordinária produção científica e editorial, Josuéde Castro, professor, administrador, trabalhador incansável,dinamizador de idéias, insubmisso aos dogmas e a qualquer ortodo-xia, manteve, até 1955, no Rio de Janeiro, seu consultório médico,como clínico e especialista em doenças de nutrição. Já internacional-mente conhecido por sua obra e sua luta implacável contra as desi-gualdades econômicas e a miséria dos povos que sofreram a explora-ção colonial do mundo capitalista, denunciando a fome e asubnutrição como os males sociais do subdesenvolvimento e docolonialismo, foi eleito presidente do Conselho da Organização paraa Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO), Roma(1952-1955). Em 1960, presidiu a Campanha de Defesa contra afome promovida pelas Nações Unidas, advogando como primeirodireito do homem o de não passar fome. De 1955 a 1963, exerceu,pelo Partido Trabalhista Brasileiro, o mandato de deputado federalpor Pernambuco, ao qual renunciou para assumir o posto de Embai-xador brasileiro junto aos organismos internacionais das NaçõesUnidas em Genebra (1963-1964); demitiu-se em virtude do golpemilitar de 31 de março de 1964 que lhe cassaria os direitos políticosno dia 9 de abril do mesmo ano. Criou e dinamizou a AssociaçãoInternacional de Luta contra a Fome, ao lado do Abbé Pierre e doPadre Joseph Lebret e dirigiu, até sua morte, a Associação Internacio-nal das Condições de Vida e Saúde. Foi membro participante deinúmeras associações científicas na Europa, nos Estados Unidos e naUnião Soviética. Recebeu, em 1952, a menção anual da “AmericanLibrary Association”; em 1955, o “Prêmio Franklin D. Roosevelt”

Page 24: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

24 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

da Academia Americana de Ciência Política; em 1954, o “PrêmioInternacional da Paz” do Conselho Mundial da Paz e, ainda, a Gran-de Medalha da Cidade de Paris, o grau de Oficial da Legião de Hon-ra da França, o título de Professor Honoris Causa das Universidadesde San Marcos (Peru) e Santo Domingo, a medalha do Mérito Mé-dico do Brasil, o prêmio da Associação Brasileira de Escritores, oprêmio da Academia Brasileira de Letras.

Nos últimos anos de vida, em Paris, deu continuidade à sua obra,criando o Centro Internacional de Desenvolvimento, participandoativamente do movimento intelectual europeu em defesa dos povosdo Terceiro Mundo, realizando conferências em vários países daAmérica, da Europa, da Ásia e da África, organizando congressos esimpósios internacionais, lecionando na qualidade de professeur associéa cadeira de Geografia Humana na Universidade de Paris-Vincennes.No primeiro ano de exílio, sua sensibilidade diversificada levou-o arepensar a infância passada em Recife, inspirando-lhe uma incursãona área da literatura de que resultou um romance escrito com pai-xão, Homens e Caranguejos. Traduzido em várias línguas, foi, ainda,adaptado para o teatro por Gabriele Cousin com o título Le Cycle duCrabe ou Les Aventures de Zé Luis, Maria et Leurs fils João (Gallimard,1969). Nesse mesmo período, elaborou reedições atualizadas de seusprincipais trabalhos e publicou, além de numerosos artigos na im-prensa especializada européia e americana, Sete Palmos de Terra e UmCaixão (Brasiliense, 1965) cuja tradução inglesa recebeu o título Deathin the Northesast (Random House, 1966). Participou também daedição de Où en Est la Révolution en Amérique Latine?, debate públi-co que travou com Claude Julien, Juan Arrocha e Mario Vargas Llosa(1965) com John Geressi e Irving Louis Horowitz, escreveu LatinAmerican Radicalism: a Documentary Report on Left and NationalistMovements (Random House, 1968); com vários colaboradores, pu-blicou os seguintes livros: El Hambre, Problema Universal (EditorialLa Pleyade, 1969), O Drama do Terceiro Mundo (Publicações DomQuixote, 1970), A China e o Ocidente (Cadernos do Século XXI,

Page 25: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 25

1971), América Latina y los Problemas del Desarrollo (Monte AvilaEditores, 1974).

Ao falecer em Paris, dele escreveu Le Figaro de 25 de setembro de1973: “Cheio de flama e de paixão pela grande causa a que ele servia,ajudando, por suas fórmulas marcantes, a tocar de perto as realida-des do subdesenvolvimento, a tomar consciência do círculo viciosono qual se encerrou o mundo, exerceu ele uma influência profunda eduradoura.” Mais do que no Brasil, a imprensa mundial rendeu umasentida homenagem ao brasileiro e pernambucano que dedicou suavida, sua inteligência inquieta e sua extraordinária capacidade de tra-balho a denunciar a pobreza como criação dos sistemas sociais histo-ricamente gerados e a alertar à opinião pública brasileira e do Tercei-ro Mundo contra as falácias das políticas de desenvolvimento econô-mico que enfatizavam o crescimento industrial e ignoravam a agri-cultura voltada para a produção de alimentos, bem como os angustian-tes problemas do homem do campo – o agricultor expropriado daterra e de seus instrumentos de trabalho. O dilema pão ou aço, a quealudia no final da década de 1950, e o aniquilamento progressivodos recursos naturais, sem atentar para o equilíbrio ecológico,levariam, não ao extermínio da pobreza e, sim, à ampliação da misé-ria e da desigualdade social. A atualidade de sua obra aí está, maisviva do que antes: o desnudamento, nos últimos anos, do mito daindustrialização e da urbanização a qualquer preço.

Josué de Castro deixou viúva Glauce Pinto de Castro, com quemse casara em 1934, e três filhos, Josué Fernando de Castro, econo-mista, Anna Maria de Castro, socióloga, e Sônia de Castro Durval,geógrafa.

Page 26: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear
Page 27: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

J O S U É D E C A S T R O :S E M E A D O R D E I D É I A S *

O médicoCom algum sacrifício de seus pais, Josué partiu para a faculdade

de medicina da Bahia, onde permaneceu por três anos. Concluiu ocurso no Rio de Janeiro, com 20 anos de idade.

Certa vez, diante da pergunta sobre que impressão lhe causara aFaculdade de Medicina da Bahia, assim respondeu:

A princípio uma impressão de deslumbramento e de veneração por seus

velhos muros, pela austera fachada da sua escola. Depois de desencanto no

que diz respeito ao ensino ali ministrado. Aliás, não só a Faculdade da Bahia,

mas depois a do Rio, também me desapontou por completo. Entrei com um

grande entusiasmo e saí com o interesse quase morto pela maioria dos assun-

tos, na forma em que eram apresentados. Poucos professores me entusiasma-

ram. Na Bahia, destaco o velho mestre Pirajá da Silva, figura veneranda de

homem de estudo, e o professor de Fisiologia, Aristides Novis, que me arre-

batou muitas vezes com o brilho literário de suas preleções. Virei “fisiólogo”

em dois tempos. Estudei com furor, conquistei uma distinção na cadeira e a

amizade do mestre que perdurou até a sua morte. Na Faculdade do Rio, a

grande figura que me encheu de encantamento foi a do Prof. A. Austregésilo,

sem dúvida uma das maiores vocações que teve o ensino médico brasileiro.

* Este capítulo é parte do trabalho Josué de Castro – semeador de idéias, de AnnaMaria de Castro, editado pelo Iterra em 2003.

Page 28: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

28 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Mas, devo honestamente confessar, que maior influência do que os professo-

res tiveram em minha formação, foi o convívio com alguns colegas de talen-

to. Na Bahia, influenciaram muito no rumo de meus estudos e indagações a

presença na mesma pensão em que morava, de dois colegas com os quais

muito me liguei: Arthur Ramos e Theotônio Brandão. Theotônio com mais

intimidade, Ramos com uma certa distância e reserva diante de sua maior

maturidade intelectual, do seu prestígio de veterano, com três anos de curso

na frente. Com Theotônio, discutíamos, com Ramos, ouvíamos. E ouvía-

mos coisas esmagadoras. Nomes arrevesados de venerandos sábios alemães,

teorias frescas trazidas diretamente dos centros europeus por misteriosos ca-

minhos para o sisudo discípulo de Freud na baixa do sapateiro. Ficamos de

queixo caído diante da imponência da sua cultura. Um dia ele nos fez a

revelação suprema que sairia um estudo seu sobre Augusto dos Anjos e a

Psicanálise, num dos suplementos dominicais do O Jornal. Isto na província

em 1925, meu caro, me pareceu a glória. Fomos comovidos até o Plano

Inclinado comprar o número do O Jornal, desdobramos as páginas com

unção e lá encontramos o artigo com título e nome do autor. Tudo aureolado

pela letra de forma em tipo grosso. Não me contive. Veio-me a alma uma

inveja doida de tanta glória. Fui também ao Freud – um Freud de terceira

classe, já comentado em tradução – e lancei um ensaio tremendo, meu pri-

meiro ensaio, intitulado “A Literatura Moderna e a Doutrina de Freud”, que

saiu flamejante na Revista de Pernambuco. Senti-me como um igual e no

ano seguinte passei a ir ao cinema junto com o mestre Ramos.

Quando estudante, era extremamente vaidoso, e para demons-trar erudição, saia à rua com o mais grosso de seus livros de estudo,conforme relata em seu diário. Na verdade, foi um jovem impetuosoque não via fronteiras sociais nem culturais que não pudessem serultrapassadas. Acreditava em sua inteligência e competência paraconquistar o reconhecimento de seu trabalho.

Formado, retorna ao Recife para trabalhar na Secretaria de Edu-cação do Estado de Pernambuco. Olívio Montenegro, Sílvio Rebeloe Gilberto Freyre participavam do grupo de José Maria Belo queseria governador. Por todos eles, estava reservado um cargo para Josué.

Page 29: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 29

Contudo, não houve posse e a coisa gorou. Abri, então um consultório

para fazer nutrição. Eu, na realidade queria ser psiquiatra, mas o Ulhoa

Cintra (outro médico) tinha dois aparelhos de metabolismo. Me vendeu

um e resolvi fazer nutrição. Um só livro O Tratado de Umber figurava na

biblioteca. As doenças da nutrição eram cinco, na época, obesidade, ma-

greza, diabete, gota e reumatismo. Como era coisa nova, consegui ter uma

boa clientela, apesar de minha cara de menino, que às vezes, assustava os

clientes.

Comecei, também, a trabalhar numa grande fábrica e a verificar que os

doentes não tinham uma doença definida, mas não podiam trabalhar. Eram

acusados de preguiça. No fim de algum tempo, compreendi o que se pas-

sava com os enfermos. Disse aos patrões: sei o que meus clientes têm. Mas

não posso curá-los porque sou médico e não diretor daqui. A doença desta

gente é fome. Pediram que eu me demitisse. Saí. Compreendi, então, que

o problema era social. Não era só do Mocambo, não era só do Recife, nem

só do Brasil, nem só do continente. Era um problema mundial, um drama

universal.

O escritorEu sonho sonhos distantes,

em barcos ausentes, velozes, ondeantes,

paisagens vivas, longe, diferentes.

Eu sonho sempre. Sonho…

Josué de Castro

Desde jovem, Josué foi um apaixonado pela literatura. Suas am-bições literárias se revelam no período em que estudava medicina,quando começa a publicar contos, ensaios e poemas em diversos pe-riódicos como o Diário da Manhã e a Revista de Antropofagia. Mo-dernistas como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, além deamigos, foram referências marcantes do ambiente cultural de suageração.

Através das teorias de Freud, interessou-se na possibilidade derelacionar a literatura com a medicina.

Page 30: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

30 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Em 1935, reúne contos de sua autoria no volume Documentáriodo Nordeste. Entre os contos então publicados, encontra-se o “Ciclodo caranguejo”, que só bem mais tarde desenvolveu como um ro-mance sob o título de Homens e caranguejos.

Os mangues do Capibaribe são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi

feita pro homem, com tudo para bem servi-lo, também o mangue foi

feito especialmente pro caranguejo. Tudo aí é, foi ou está para ser caran-

guejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama misturada com

urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é

caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela, vive dela. Cresce comendo

lama, engordando com as porcarias dela, fazendo com lama a carninha

branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por

outro lado, o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas,

comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo. E

com a sua carne feita de lama fazer a carne do seu corpo e a carne do

corpo de seus filhos. São cem mil indivíduos, cem mil cidadãos feitos de

carne de caranguejo. O que o organismo rejeita, volta como detrito para

a lama do mangue, para virar caranguejo outra vez.

Todos os cientistas que em seu ofício estudam as diferentes ma-nifestações da realidade, quer física, quer sociocultural, gostariamde poder descrever seu objeto de estudo como conseguem fazê-loos grandes escritores. Contudo são ofícios diversos e, se o escritornão tem pretensões de se tornar cientista ao descrever com tantaacuidade a realidade, dificilmente os cientistas conseguem se desli-gar da realidade que procuram entender para se transportar para omundo irreal do pensamento, do romance, da novela. Josué deCastro sempre admirou os escritores capazes de, melhor que os cien-tistas, com uma linguagem universal, contar dos homens e das coi-sas dos homens. Assim é que, ao escrever seu principal livro, a Geo-grafia da Fome, dedicou-o a dois escritores, Rachel de Queiroz eJosé Américo de Almeida, “romancistas da fome no Brasil”, e àmemória de Euclides da Cunha e Rodolfo Teófilo, “sociólogos dafome no Brasil.”

Page 31: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 31

O cientistaVivendo no Rio de Janeiro, Josué, a despeito do sucesso da clíni-

ca médica, resultado da viagem de estudos realizada a Roma, come-ça, paulatinamente a se afastar da medicina exercida em seu consul-tório.

Ao regressar, eu era o homem que tinha chegado da Europa. A clínica

abarrotou. Fui convidado para dirigir um departamento de nutrição. Não

pude aceitar. Ainda assim, a clínica já não me satisfazia. Faltava 15 dias em

cada 30 de trabalho, no consultório. O que eu queria era escrever a Geogra-

fia da Fome.

Durante a guerra, participou da Comissão de Mobilização Nacio-nal, escreveu uma grande quantidade de artigos sobre alimentação epesquisou o que havia sido até então publicado sobre alimentação efome.

Neste momento, Josué mostrava grande amadurecimento, nãosó quanto a seus objetivos, como também do ponto de vista científi-co. Indagado sobre se a ciência deve estar a serviço do social, assim seexpressou:

Claro que sim. A ciência e a técnica são duas outras expressões do mesmo

rosto da cultura e só significam alguma coisa como traços componentes

deste mesmo rosto. Isoladas, perdem toda a expressão. Temos uma com-

provação desta verdade no que se passou nestes últimos anos. A ciência

pura em sua expressão máxima de aparente alheamento ao mundo das

realidades sociais, – a física teórica – em suas transcendentes especulações

deu lugar a descobertas que estão subvertendo, por completo, todos os

princípios e valores de nossa civilização, com ameaças e esperanças que

abalam a consciência social do mundo inteiro. A bomba atômica derru-

bou os últimos muros que ainda podiam separar os homens de laboratório

dos homens da rua.

A Geografia da Fome: um novo método geográficoEm 1946, publicou sua obra capital, a Geografia da Fome, uma

geografia diferente. Inaugurava um método geográfico que apresen-

Page 32: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

32 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

tava um Brasil distante dos discursos oficiais. Em pleno período decrescimento, de industrialização, não havia muitos trabalhos sobrefome, um tema ainda proibido:

O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado

e perigoso que se constitui num dos tabus de nossa civilização. É realmen-

te estranho, chocante, mesmo a observação, o fato de que num mundo

como o nosso, caracterizado por tão excessiva capacidade de se escrever e

se publicar, haja até hoje tão pouca coisa escrita acerca do fenômeno da

fome, em suas diferentes manifestações.

Ao que acrescentava:Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os

interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica

de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proi-

bido ou, pelo menos, pouco aconselhável de ser abordado publicamente.

Refere-se à fome como a expressão biológica do subdesenvolvi-mento – efeito do modelo de desenvolvimento escolhido: “Ao retra-tarmos a fome no Brasil estamos evidenciando o seu subdesenvolvi-mento econômico porque fome e subdesenvolvimento são a mesmacoisa”.

Demonstrou com este importante trabalho que era possível cons-truir uma ciência que teria por objeto de estudo problemas específi-cos de países pobres e que fosse capaz de explicar a situação destespaíses sem recorrer ao mito da inferioridade racial, do fatalismo, dodeterminismo geográfico, ou até do acaso.

Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções adequadas ao

problema da alimentação dos povos reside exatamente no pouco conhe-

cimento que se tem do problema em conjunto, como um complexo de

manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais. A maior

parte dos estudos científicos sobre o assunto se limita a um de seus as-

pectos parciais, projetando uma visão unilateral do problema. São quase

sempre trabalhos de fisiólogos, de químicos ou de economistas, especia-

listas em geral, limitados por contingência profissional ao quadro de suas

especializações.

Page 33: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 33

Foi diante desta situação que resolvemos encarar o problema sob uma nova

perspectiva, de um plano mais distante, donde se possa obter uma visão

panorâmica de conjunto, visão onde alguns pequenos detalhes certamente

se apagarão, mas na qual se destacarão, de maneira compreensiva, as liga-

ções, as influências e as conexões dos múltiplos fatores que interferem nas

manifestações do fenômeno. Para tal fim pretendemos lançar mão do mé-

todo geográfico no estudo do fenômeno da fome. Único método que, a

nosso ver, permite estudar o problema em sua realidade total, sem arreben-

tar-lhe as raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras outras manifes-

tações econômicas e sociais da vida dos povos.

Utilizou o método geográfico, no estudo do fenômeno da fome.“Não o método descritivo da antiga geografia, mas o métodointerpretativo da moderna ciência geográfica”.

Neste nosso ensaio de natureza ecológica tentaremos, pois, analisar os há-

bitos alimentares dos diferentes grupos humanos, ligados a determinadas

áreas geográficas, procurando, de um lado, descobrir as causas naturais e as

causas sociais que condicionaram o seu tipo de alimentação, com suas

falhas e defeitos característicos, e, de outro lado, procurando verificar até

onde esses defeitos influenciam a estrutura econômico-social dos diferen-

tes grupos estudados.

Assim, quando indagado sobre quais os motivos que o levaramao planejamento desta obra, respondeu:

A convicção a que fomos conduzidos em nossos estudos da importância

categórica do fenômeno da fome na formação e evolução dos grupos hu-

manos, importância que cresceu tremendamente em nossos dias de tão

acirradas lutas econômicas e sociais no mundo inteiro. Temos a impressão

de que não é possível promover-se a reconstrução do mundo dividido por

blocos antagônicos, sem limpar do mundo estas terríveis manchas negras

representadas por grupos de populações subnutridas e famintas,

inferiorizadas ao máximo, pela falta permanente de uma alimentação ade-

quada. E todo plano para remediar esta angustiosa situação na qual se

encontra, segundo dados estatísticos bem apurados, mais da metade de

seres humanos só surtirá efeito se for baseado num conhecimento intensi-

Page 34: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

34 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

vo e extensivo do fenômeno da fome, em suas causas remotas e imediatas

e em seus efeitos humanos.

Para abordar seu tema, Josué precisou atacar velhas e insusten-táveis teorias, falsas interpretações, deploráveis preconceitos raciaise climáticos, bem como as doutrinas que justificavam a fome comoconseqüência do crescimento populacional (malthusianismo) pra-ticadas, ainda hoje, em detrimento das populações subdesenvolvi-das.

A sua obra permanece como grande instrumento de informaçãopara a formação de uma política voltada para problemas tão gravespara a segurança de nossa sociedade, inclusive de nossas elites diri-gentes que permaneceram surdas ao grito de alerta deste grande cien-tista brasileiro.

Seguiu-se em 1951 o livro Geopolítica da Fome, na qual o autordá continuidade a seu método, documentando a fome em âmbitomundial. Os livros Geografia da Fome e Geopolítica da Fome foramtraduzidos para mais de 20 diferentes idiomas.

O professorO exercício do magistério iniciou-se como atividade complemen-

tar ao trabalho do médico. Entretanto, ao longo do tempo, não sóJosué foi tomando gosto pelas aulas como também percebeu a im-portância das mesmas para o desenvolvimento de seus estudos. Gos-tava, também, do contato com os jovens. Assim, o magistério foiocupando um espaço cada vez maior em sua vida.

Fundou, na década de 1930, com vários companheiros, umaFaculdade de Filosofia em Recife. Neste período foi professor daFaculdade de Medicina (Fisiologia) e da de Filosofia (GeografiaHumana).

Um ensaio produzido em 1948 para o concurso de professortitular em Geografia Humana, “Fatores da localização da cidade doRecife”, demonstra sua vocação didática. Acrescente-se o livro Geo-grafia Humana voltado para o curso secundário.

Page 35: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 35

Era a atividade que melhor expressava o seu modo de ser. Come-çou e terminou a vida como professor. Orgulhava-se ao ser chamadode Professor. Sempre acreditou nos jovens, únicos capazes de trans-formar este mundo que recebemos.

Afeito a concepções globais, que não demarcavam limites para oconhecimento, lecionou, além de disciplinas ligadas à medicina, ou-tras, aparentemente distantes da área médica. Em seu currículo, assi-nalam-se:

• Professor de Geografia Humana, da Faculdade Nacional deFilosofia da Universidade do Brasil;

• Diretor do Instituto de Nutrição, da Universidade do Brasil(hoje, Instituto de Nutrição Josué de Castro, da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro);

• Professor de Alimentação e Nutrição dos cursos de pós-gra-duação da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil;

• presidente da Sociedade Brasileira de Nutrição;• Professor assistente de Fisiologia da Faculdade de Medicina

de Recife;• Professor Catedrático de Geografia Humana, da Faculdade

de Filosofia e Ciências Sociais do Recife;• Vice-diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do

Recife;• Professor de Antropologia da Universidade do Distrito Fede-

ral (hoje, Universidade do Estado do Rio de Janeiro);• Professor Visitante da Universidade de Roma e Nápoles;• Professor Estrangeiro Associado ao Centro Experimental de

Vincennes, Universidade de Paris.Criou o Curso de Nutrição da antiga Universidade do Brasil,

onde foram desenvolvidas pesquisas sobre alimentos regionais. Di-vulgou através de um Guia da Alimentação os principais conceitosligados à importância de cada um dos alimentos.

Page 36: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

36 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

ALIMENTO COMO MELHOR VACINAGuia da Alimentação organizado pelo Instituto de

Nutrição da Universidade do Brasil, sob a supervisão de

Josué de Castro. Campanha de Educação de Adultos,

Ministério da Educação e Cultura, 1947.

Todo animal precisa de alimento para poder sedesenvolver. O Homem como qualquer outro animalnão é diferente. A vida depende da alimentação.Assim, uma vaca bem alimentada e bem nutrida,produz muito mais leite do que as que não têm oque comer e muitas vezes do que beber.

O homem bem alimentado quase não fica doen-te, já que a principal causa geradora de doenças é afalta de alimentos, que gera um organismo sem for-ças para agir, quando entra em contato com algummicróbio. Muitas crianças que morrem de sarampo,na verdade, estão morrendo de fome porque nãoconseguiram reagir à ação da doença. As criançasque podem comer os alimentos que seu organismonecessita crescem mais e, sobretudo podem desen-volver seu cérebro, podem pensar e aprender me-lhor. E, quando adultos poderão trabalhar melhor econtinuar aprendendo.

Precisamos, contudo, saber que comer muito nãosignifica comer bem e estar bem alimentado. Cadaalimento tem mais ou menos as qualidades, vitami-nas, sais minerais que o homem precisa em seudesenvolvimento. Os alimentos não têm o mesmovalor. Alguns valem mais do que outros,

Os alimentos são as substâncias que comemospara viver e que farão bem ao organismo do ho-mem.

Page 37: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 37

Os alimentos servem para diferentes funções:1. formam toda a matéria do organismo – a pele,

os ossos, o sangue, os dentes, as unhas e o cabelo;2. ajudam o crescimento do organismo e dão

força para o trabalho;3. asseguram a reprodução do organismo;4. defendem o organismo contra as doenças.Existem alimentos que só servem para dar calor

ao organismo. São uma espécie de combustível, paramanter a máquina trabalhando. Assim, como umamáquina sem o combustível, ela pára.

A mesma coisa acontece ao homem quando eleusa certos alimentos, como gorduras, doces e fari-náceos, ele emagrece, perde energia e trabalhamenos.

Mas, quando não come os chamados “alimen-tos protetores”, não terá forças de lutar contra osmicróbios (doenças).

Chamamos de alimentos protetores as carnes,os peixes, os ovos, o leite, o queijo, a manteiga, asfrutas, as verduras e os legumes, porque contêmem sua composição substâncias da maior importân-cia para a saúde do homem; as proteínas, as vita-minas e os sais minerais.

Existe uma relação entre alimentação e trabalho,já que a quantidade de alimentos que uma pessoadeve comer depende de quanto necessita para reali-zar um trabalho. O esforço de um rachador de lenhaé maior que o de um cabeleireiro. Quanto mais pesa-do o trabalho, mais alimentos são necessários.

O motor do homem, para poder funcionar preci-sa de combustível. A máquina precisa de carvão, ocaminhão de óleo diesel e o trator de gasolina.

Page 38: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

38 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Quanto melhor a qualidade do combustível, melhora máquina funciona, e também dura mais. O mesmoacontece com o homem.

Além disto, existe relação direta entre a alimen-tação e o crescimento. No período da infância e daadolescência, o alimento é importante para o cres-cimento e desenvolvimento. (Ver o desenvolvimen-to do cérebro). É também neste período, que seadquire hábitos e conhecimentos que permanecemna cultura de cada um.

A criança sadia vai crescer e se desenvolver deforma sadia, se tornando um adulto com saúde. Oshábitos alimentares que lhe forem ensinados quan-do criança, serão mantidos na vida adulta. O mes-mo ocorre com os erros, que, em muitos casos, nãopoderão ser reparados.

Como a criança está crescendo, construindo seusossos, mudando os seus dentes, fortalecendo seusmúsculos, mais do que ninguém necessita de bonsalimentos.

ALIMENTAÇÃO E GRAVIDEZNormalmente, a mulher come menos que o ho-

mem, mas, quando a mulher está grávida precisacomer por ela e pelo filho que se desenvolve pornove meses em sua barriga.

Depois, quando nasce a criança, a mulher devealimentar seu filho pela amamentação. O leite ma-terno é o alimento mais completo para a criança emsua primeira idade. E, para poder alimentar seusfilhos, a mulher tem que procurar se alimentar combons alimentos. (Ver os dados sobre o leite de va-cas bem alimentadas e nutridas).

Page 39: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 39

A maioria das doenças decorre da subnutrição;a tuberculose, por exemplo. O organismo precisa deforça para resistir aos micróbios, vírus e outras açõesda natureza. O chamado organismo fraco é conse-qüência de uma alimentação defeituosa.

A PRODUÇÃO DE ALIMENTOSA terra no Brasil. A concentração na mão de pou-

cos. O latifúndio improdutivo e a monocultura. Osterrenos para plantio podem ser mais pobres ouricos. A terra precisa ser tratada para poder produzirbem e continuadamente. Precisa ser adubada emolhada. A água e o adubo são os alimentos daterra, fazem a terra viver. Precisamos saber comopreparar o terreno e os canteiros. Hoje, também éimportante saber escolher as sementes.

Além das carências alimentares, apontava para a carência em edu-cação como outro aspecto característico do subdesenvolvimento. Nolivro Estratégia do desenvolvimento, assim se manifestou:

Na minha opinião, uma das mais altas prioridades para o Terceiro Mundo

é a formação humana, a formação de homens responsáveis e capazes de

pôr em ação esta estratégia global. (…)

Nesta nova cultura, a ciência e a técnica terão certamente um grande papel

a desempenhar, mas elas não podem ser as únicas componentes desta cul-

tura. Existem muitos outros valores que são igualmente importantes. É

preciso não esquecer que ciência não é sabedoria. A ciência é o conheci-

mento. A sabedoria implica o conhecimento e o juízo. E sobre este ponto

– o do juízo dos valores – estamos muito longe de possuir uma idéia clara

das hierarquias dos fatores a serem acionados para construir uma estratégia

global do desenvolvimento que não separe o econômico do humano, mas

que, ao contrário, considere o homem, os grupos humanos, toda a huma-

nidade, como objetivo final do desenvolvimento (…) É esta nova ótica do

Page 40: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

40 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

desenvolvimento – a do ensino, da educação e da formação humana – que

deve constituir o investimento prévio e seguramente o mais rentável para

desencadear o impulso do desenvolvimento (…)

O problema mais grave dos países subdesenvolvidos continua a ser, ainda

hoje, o do baixo nível de educação dos seus habitantes…

Neste contexto, o trabalho dos educadores é decisivo, pois devepreparar pessoas capazes de participar ativamente das transforma-ções em curso:

A simples transferência de cultura – isto é, as utopias de exportação em

matéria de educação – jamais pode pôr à disposição um meio de formação

de tipos de homens de que o Terceiro Mundo tem necessidade para desen-

volver a sua economia num sentido humano que respeite as raízes culturais

destes povos. (…) Procurar encontrar o meio de integrar os valores cientí-

ficos e tecnológicos no patrimônio dos valores representativos de outras

civilizações não ocidentais – eis o único meio de desenvolver o mundo

com equilíbrio, e não sob o signo perigoso de uma dominação que provo-

ca em toda parte a revolta. Uma educação que liberte o homem, eis ao que

aspiram os povos do Terceiro Mundo. E isto supõe uma pedagogia da

liberdade que os liberte da dominação da natureza, mas também da domi-

nação de outros grupos humanos – de todo os tipos de dominação. Quer

isto dizer que é preciso educá-los para se libertarem econômica, política e

espiritualmente.

Denunciava o interesse político que orientava o tipo de ensinodas universidades do terceiro mundo, “incapaz de um impulso cria-tivo e renovador”.

Ministrar um tipo de educação popular seria desencadear um movimento

irreversível de transformação social, ao qual se oporiam as minorias domi-

nantes, hostis às idéias de reformas educacionais válidas. Os verdadeiros

reformadores dos métodos de ensino de numerosos países subdesenvolvi-

dos são vistos como elementos perigosos, subversivos da ordem estabelecida,

perigosos para a manutenção destas democracias sem povo, em que um

punhado de homens deve tudo saber e tudo dirigir, e as massas devem

tudo ignorar e obedecer sempre.

Page 41: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 41

O políticoNa década de 1950, Josué candidata-se à Câmara Federal pelo

Estado de Pernambuco. Não consegue eleger-se na primeira tentati-va. Insiste, e em 1954, consegue sua primeira eleição. Resultado quese repete em 1958.

Fui deputado duas vezes. Oito anos. Na segunda eleição, em 1958, tive a

maior votação no Estado. Só na capital, vinte e tantos mil votos. Sabe a

que devo essa vitória? Ao povo votando numa idéia, a luta contra a fome.

Assim justificou sua candidatura durante seu segundo ano demandato:

Quando me candidatei, fi-lo com a grande esperança de poder trazer ao

Parlamento Nacional a modesta experiência que tenho dos problemas de

nosso povo, das suas condições de vida, que venho estudando há 25 anos.

Aqui chegando, verifiquei a minha falta de preparo. Foi por isso que du-

rante um ano, em lugar de apresentar projetos, tratei de aprender, de estu-

dar, de observar e de me preparar para realizar, dentro de minhas modestas

possibilidades o que penso fazer este ano: apresentar uma série de projetos

interdependentes sobre os problemas agrários do Brasil.

No exercício dos mandatos pôde desenvolver sua já brilhanteoratória, reconhecida até por adversários. Entretanto, embora gos-tasse da polêmica e da provocação, que lhe proporcionavam a opor-tunidade de exibir sua oratória, não conseguia inserir-se no jogo deinteresses pessoais e às vezes mesquinhos que a vida partidária acabaexigindo. Era um idealista, um sonhador, além de um homem deciência.

Vale a pena relembrar parte de seu discurso por ocasião das co-memorações do dia panamericano:

O panamericanismo que no dia de hoje comemoramos, constitui, sem

sombra de dúvida, um movimento de ação política internacional, que, por

suas origens merece a simpatia e a consideração de todos os povos deste

continente sinceramente interessados numa política de autêntica solidarie-

dade e de ajuda mútua para superar as dificuldades continentais. Não se

pode esquecer que este movimento se originou e tomou consistência como

Page 42: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

42 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

expressão de uma política de emancipação do jugo do colonialismo. Foi a

política anticolonialista do século passado que deu origem a este senti-

mento, chamado de panamericanismo; tanto assim que, quando se busca

as raízes vamos encontrá-las fincadas na grande obra política de Bolívar, o

grande pioneiro da emancipação política e econômica das repúblicas lati-

no-americanas… (…)

Tenho esperanças de que o panamericanismo tome um rumo novo,

dentro deste sentido de admitir que a cooperação entre os povos não se

deve fazer apenas nos termos vagos daquela assistência técnica e finan-

ceira que as grandes potências dispensam aos países pobres e subdesen-

volvidos.

É desta época um curioso e importante documento elaboradopor Josué, o “Programa de 10 pontos para vencer a fome”.....

PROGRAMA DE 10 PONTOS PARA VENCER A FOME

1. Combate ao latifúndio.

2. Combate à monocultura em largas extensões sem as

correspondentes zonas de abastecimento dos grupos

humanos nela empregados.

3. Aproveitamento racional de todas as terras cultivá-

veis circunvizinhas dos grandes centros urbanos para

a agricultura de sustentação, principalmente de subs-

tâncias perecíveis como frutas, legumes e verduras

que não resistem a longos transportes, sem os recur-

sos técnicos da refrigeração.

4. Intensificação do cultivo de alimentos sob forma de

policultura nas pequenas propriedades.

5. Mecanização intensiva da lavoura, da qual dependem

os destinos produtivos de toda nossa economia agrí-

cola.

6. Financiamento bancário adequado e suficiente da agri-

cultura assim como garantia da produção pela fixa-

ção de bom preço mínimo.

Page 43: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 43

7. Progressiva diminuição até a absoluta isenção de im-

postos da terra destinada inteiramente ao cultivo dos

produtos de sustentação.

8. Amparo e fomento ao cooperativismo, que poderá

servir de alavanca impulsionadora à nossa incipiente

agricultura de produtos alimentares.

9. Intensificação dos estudos técnicos de Bromatologia

e Nutrologia no sentido de que se obtenha um co-

nhecimento mais amplo do valor real dos recursos

alimentares.

10. Planejamento de uma campanha de âmbito nacional

para a formação de bons hábitos alimentares, o qual

envolva não só o conhecimento dos princípios histó-

ricos de higiene como o amor à terra, os rudimentos

de economia agrícola e doméstica, os fundamentos

da luta técnica contra a erosão.

Seguindo os mesmos princípios, Josué apresenta à Câmara dosdeputados, o projeto de Lei nº 11, de 1959, que “define os casos dedesapropriação por interesse social e dispõe sobre sua aplicação”, umabem elaborada proposta de reforma agrária:

Com este Projeto, que define os casos de desapropriação por interesse so-

cial, visamos a tornar exeqüível no país a implantação de uma reforma das

estruturas agrárias, tornando-as mais adequadas e consentâneas com a evo-

lução econômico-social brasileira.

Há consenso acerca do arcaísmo das estruturas agrárias existentes pelo menos

em certas regiões do país as quais entravam de maneira significativa as

forças produtivas da zona rural, agravando o desnível entre as áreas indus-

triais e as agrícolas.

Urge, pois, modificar essas estruturas através de uma reforma técnica e racio-

nalmente concebida. Esta reforma deve ser planejada como um processo de

revisão das relações jurídicas e econômicas entre os que detêm a propriedade

rural e os que nela trabalham. Deve, pois, representar um estatuto legal que

Page 44: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

44 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

ponha as justas e necessárias limitações à exploração da propriedade agrária

de forma a tornar o seu rendimento mais elevado e principalmente melhor

distribuído em benefício de toda a coletividade rural.

O possível conjunto de leis que comporiam esse código deverá regular

inúmeros problemas, tais como a desapropriação das terras, os arrenda-

mentos rurais, os contratos de trabalho e vários outros aspectos comple-

mentares da herança da terra. Não se deve, pois, conceber a reforma agrá-

ria como simples expediente primário de desapropriação e redistribuição

da propriedade, mas sim como um instrumento técnico de utilização racio-

nal da terra na defesa do bem estar coletivo.

O Projeto que temos a honra de submeter ao Parlamento Nacional visa,

pois, a armar o Poder Público do necessário instrumento legal que permita

levar a efeito, nos casos indicados, a desapropriação por interesse social,

pré-requisito indispensável à concepção de uma reforma agrária no Brasil.

Outro Projeto de grande importância foi o de nº 904, tambémde 1959, que dispõe “Sobre o Ensino Superior de Nutrição, regula oexercício da profissão de dietista, e dá outras providências”, ao fimtransformado em lei. Em sua exposição de motivos, Josué, mais umavez, enfatiza a gravidade do problema da fome:

O problema da alimentação representa, no momento atual o número um

para o povo brasileiro. Todas as medidas que tendem a racionalizar e solu-

cionar este grave problema devem merecer a máxima prioridade. Na solu-

ção deste complexo assunto, inclui-se como requisito essencial a formação

de pessoal habilitado tecnicamente nos diferentes setores englobados pelo

problema.

A formação de nutricionistas e auxiliares de nutrição constitui certamente

um elemento essencial na batalha contra a subnutrição e a fome, em que

estamos todos empenhados.

Embora várias instituições brasileiras possuam em funcionamento cur-

sos de nutricionistas, faz-se necessária a sua melhor ordenação no senti-

do de encarar este aspecto do ensino superior de nutrição como funda-

mental.

Page 45: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 45

O pessoal habilitado através destes cursos deverá, por outro lado, possuir

garantias na execução de seu trabalho profissional, donde a necessidade de

uma regulamentação do exercício da profissão de dietista ou nutricionista.

Comentava-se à época que seu nome teria sido cogitado paraocupar o Ministério da Agricultura, no lugar de Mário Menegueti.Também há controvérsias sobre uma possível candidatura sua à Pre-feitura do Recife.

Embora tenha declarado, em inúmeras oportunidades, que o traba-lho no Parlamento não o encantou, sua passagem pelo Legislativo Fede-ral foi significativa para a história das políticas públicas. Graças a seuempenho como presidente da Comissão de Saúde da Câmara dos De-putados, foi implantada a Campanha Nacional de Merenda Escolar.

Nordeste, área explosivaEm seu livro Sete Palmos de terra e um caixão, Josué descreve a

ebulição dos movimentos sociais no Nordeste brasileiro:O agitador autodidata vinha agitar a própria agitação já reinante na re-

gião. Agitação levantada pela abusiva permanência de um sistema que

ofende a dignidade humana, sistema que mantém todos os poderes nas

mãos de uns poucos privilegiados. (…) Foi vendo este espetáculo que

Julião apareceu e lhe deu expressão, como, há vários séculos, Frei

Bartolomeu de Las Casas, assistindo à hecatombe dos índios, dizimados

pelos colonizadores espanhóis, passou a agitar o problema da escravidão

dos índios. Como Joaquim Nabuco, diante da escravidão do negro se fez

agitador da abolição. Como Antonio Silvino e Lampião, diante do des-

respeito aos direitos do homem impostos pela prepotência dos latifundiá-

rios do sertão, se fizeram agitadores do cangaço. Sempre o mesmo pro-

cesso: a agitação latente se exprimindo pela força consciente de uma for-

te personalidade humana. Joaquim Nabuco riscando a história com os

traços de sua pena e Lampião com os traços de sua bala. Mas para que a

História não seja falsificada é preciso colocar bem esses traços dentro das

linhas daquele tecido a que já fizemos referência: o tecido espiritual da

consciência coletiva.

Page 46: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

46 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Ao descrever a situação da propriedade rural no Nordeste, dadominação da aristocracia rural controladora da vida agrícola, cons-tata que “tratar de um assunto tão emocionalmente carregado detensão política é provocar inevitavelmente a agitação”.

O cidadão do mundoA repercussão de Geografia da Fome, tornou seu autor o nome

mais cotado para representar o Brasil em organismos internacionaisligados a questões alimentares. Ingressa na Organização para Alimen-tação e Agricultura das Nações Unidas (FAO) em 1948, como mem-bro de seu Conselho Consultivo. Em pouco tempo será eleito presi-dente do Conselho Executivo da FAO, cargo que exerce por doismandatos consecutivos, de 1952 a 1955.

Meu competidor era Lord Bruce, da Inglaterra. Eu venci por 34 a 30 vo-

tos, depois de um empate no primeiro escrutínio (…) Imagine a emoção

de me ver sentado na cadeira da Presidência, olhar um a um os represen-

tantes das grandes potências e recordar os mocambos do Recife onde se

reproduzia o ciclo do caranguejo e onde vivem outros meninos de rua

iguais ao menino que eu tinha sido.

No exercício da presidência do conselho da FAO, Josué de Cas-tro empreende uma série de trabalhos no combate à fome no mun-do, sempre buscando articular os conhecimentos técnico-científicospara a elaboração de planos de ação. Em sua concepção, qualquerprojeto de intervenção na sociedade deveria estar muito bemalicerçado em estudos previamente realizados, e esta ação deveria sermonitorada por estudos avaliativos constantes. Buscou intensificar aajuda aos países subdesenvolvidos, não só através de programas eprojetos de desenvolvimento, mas cobrando das nações desenvolvi-das suas responsabilidades frente aos desequilíbrios regionais, tradu-zidos na formação de imensos bolsões de miséria em determinadasáreas do planeta, contra as pequenas ilhas de abundância.

Na medida em que assumia a condição de porta-voz do TerceiroMundo, enfrentou forte oposição dos países desenvolvidos, especial-

Page 47: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 47

mente Estados Unidos e Inglaterra, para a concretização de suas pro-postas, dentre as quais se destacavam: a criação de uma reserva ali-mentar de emergência, o desenvolvimento de vários programas decooperação técnica para melhoria e aumento da produção agrícolanos países do Terceiro Mundo, programas de capacitação de mão-de-obra, além da batalha em se proceder a uma verdadeira reformaagrária nas áreas mais pobres do planeta e, desta forma, poderincrementar a produção de alimentos, combater a fome, gerar em-pregos e renda.

Lamentavelmente, os planos entusiasmados dos primeiros tem-pos, a despeito de todo seu empenho, não se efetivaram com a velo-cidade que Josué desejara. Assim, ao deixar a Presidência, mostravauma certa decepção frente às fraquezas operacionais do organismo:

Pode ser que quando aqui cheguei, com uma certa dose talvez exagerada

de idealismo, não tenha pensado bastante nas dificuldades, nos obstáculos

que sempre se encontram quando se quer fazer algo desinteressado, no

puro interesse da humanidade. Como eu ocupo uma função de presidente

do Conselho e a exerço de maneira independente, não representando ne-

nhum país e sim um homem que aqui veio, um homem de boa vontade…

estou um pouco decepcionado com o que foi feito até agora, pois a meu

ver ainda não elaboramos uma política realista que leve em conta ao mes-

mo tempo as necessidades do mundo e nossos propósitos.

Longe de mim, menosprezar a obra realizada pela FAO, mas desejo dizer,

com toda sinceridade – e peço que perdoem por falar com uma sincerida-

de um tanto brutal – que me sinto decepcionado diante da obra que reali-

zamos. Decepcionado pelo que fizemos porque, a meu ver, não elabora-

mos até hoje uma política de alimentação realista (…) Não fomos suficien-

temente ousados, não tivemos coragem suficiente para encarar, de frente,

o problema e buscar as suas soluções. Apenas afloramos a sua superfície,

sem penetrar em sua essência, sem querer, na verdade, resolvê-lo, por falta

de coragem de desagradar a alguns. Precisamos, a meu ver, ter a coragem

de discordar de certas opiniões para aceitarmos a imposição das circuns-

tâncias, resolvendo o problema no interesse da humanidade.

Page 48: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

48 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Ao deixar a presidência do conselho da FAO, organizou e fun-dou a Associação Mundial de Luta Contra a Fome (Ascofam), visan-do a despertar a consciência do mundo para o problema da fome eda miséria, e promover projetos demonstrativos de que a fome podeser vencida e abolida pela vontade dos homens. Tinha, entretanto,uma clara visão do alcance de uma organização desta natureza frenteà magnitude do problema:

Não estamos, pois, diante de uma moléstia a ser combatida isoladamen-

te pela ação fulminante de um remédio específico. Não existe um especí-

fico para a fome. O que existe são catalisadores capazes de apressar as

reações sociais que conduzirão o organismo social à depuração desta

impureza e não se pense que julgamos possível resolver o problema da

fome universal apenas com a criação de um organismo especializado que

viria, num passe de mágica, apagar da fisionomia da nossa civilização

este traço negro. Não somos tão ingênuos nem tão otimistas. Sabemos

que estão bem fincadas, nas estruturas econômicas do mundo, as raízes

desse problema, que só poderá ser extirpado revolvendo-se, profunda-

mente, resíduos dos tempos do feudalismo e da escravidão. É esta ação

catalisadora que julgamos indicada para o organismo cuja criação preco-

nizamos: agir como um catalisador que acelere a transformação de um

vasto conjunto ou complexo social no qual está indissoluvelmente en-

globado o fenômeno da fome. Para esta ação catalisadora, precisamos

como primeira condição que o nosso organismo possa agir com comple-

ta independência das injunções políticas de toda a ordem, que seja um

organismo capaz de pautar a sua linha de conduta e a diretriz das suas

atividades num plano acima dos interesses particulares de grupos, parti-

dos, governos e blocos de países, no interesse exclusivo da humanidade.

A forma indicada, Fundação Internacional, instituição que, sem visar a

lucros ou proveitos individuais, concentrasse e coordenasse os esforços

de um certo número de indivíduos numa força coletiva, capaz de interfe-

rir de maneira construtiva na dinâmica social do mundo. Internacional,

pelo seu campo de atuação, mas supranacional no seu comportamento, a

Associação Mundial de Luta Contra a Fome – a Ascofam – poderia as-

Page 49: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 49

sim captar o interesse e os recursos postos à disposição de personalidades

e instituições realmente preocupadas pela solução de tão grave proble-

ma, em todos os países do mundo, sem nenhuma exceção.

A Associação terá por fim promover, encorajar e organizar no mundo a

luta contra a fome, notadamente despertando, desenvolvendo, apoiando,

difundindo, preparando, supervisionando, realizando, direta ou indireta-

mente, estudos, pesquisas, iniciativas, atividades e ações de natureza a fa-

zer conhecer, diminuir ou eliminar, a fome no mundo, isto sem nenhuma

limitação. A palavra fome é tomada aqui no seu sentido mais amplo, com-

preendendo tanto a fome aguda, como a fome crônica, mesmo oculta, a

fome quantitativa como a fome energética e a fome epidêmica, como a

fome endêmica.

Para realização de suas finalidades, procurará concentrar a sua ação em

quatro setores de atividades:

1. atividades visando a sensibilizar e despertar a consciência universal acer-

ca da significação e da expressão social do problema da fome;

2. realização de pesquisas, investigações e inquéritos que permitam o co-

nhecimento integral do problema da fome, de suas causas e efeitos, em

diferentes quadros geográficos e dos meios mais eficazes para remover os

fatores que intervêm nesta calamidade;

3. formação de pessoal capacitado para as múltiplas tarefas que se impõem

aos planos de desenvolvimento das regiões subdesenvolvidas do mundo,

onde grassa a fome em massa;

4. elaboração de projetos específicos de âmbito nacional ou regional, vi-

sando a incrementar o desenvolvimento econômico e melhorar as condi-

ções de vida e de alimentação dos grupos humanos mal alimentados.

O homemCresci ouvindo falar de fome desde a mais tenra idade. A princí-

pio como mera e atenta ouvinte, depois como jovem interessada efinalmente como cientista social, fascinada pelo tema e por suas idéias.Ao longo de minha vida sempre tive grande dificuldade de escreversobre Josué de Castro, na condição de sua filha. Talvez pela formação

Page 50: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

50 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

como cientista social, que me obrigava a uma visão excessivamentetécnica sobre sua obra, ou temerosa de que, invadida pelo sentimen-to de orgulho, faltasse com a isenção. Entretanto, meu pai sempreme estimulou a escrever. Guardo com imenso carinho os termos desua carta, datada de 1964, início de seu exílio.

8 de setembro de 1964Minha filha:Li as duas cartas que você mandou para sua

mãe de 1 e de 2 de agosto. Gostei muito do tom dasmesmas. Tom de revolta certamente, mas de umarevolta consciente de tudo o que se está passando,das razões que determinam todos os atos de van-dalismo de uma reação desesperada por ter sidodesmascarada pelo processo social em marcha. Gos-tei muito de sua disposição de participar do proces-so, de pagar a sua quota pela emancipação do povocontra o clique dos seus aproveitadores, associa-dos aos parasitas militares. Gostei, também, do seuestado de espírito no que diz respeito a minha situa-ção pessoal e à situação dos meus nas circunstânciasdo momento. Estou com você, não só tudo irá pas-sar, mas capitalizaremos a única forma de capitalque deve ser acumulado ao máximo – o respeito àdignidade humana. Seremos cada vez mais respei-tados. Pelo menos no mundo, onde o respeito quenos votam compensa o desrespeito em que se vivehoje no Brasil, conspurcado e aviltado aos olhos domundo.

Recebi, também, sua carta de parabéns pelo ani-versário, a qual me deu grande alegria. Senti vocêtoda nesta carta. Nela você insiste no mesmo ponto,que a vida é para ser vivida com o bom e o mau, mas

Page 51: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 51

sempre com grandeza, nunca com mesquinhez, comcoisas pequeninas. Temos, pois, que reagir e a rea-ção se está formando contra o exército de pigmeus,este formigueiro de mediocridade que hoje morde oBrasil em toda a sua pele com um apetite e umaferocidade de formigas esfomeadas, mas que nãopassam de formigas – cegas, agitadas, inconscientesdo mal que estão fazendo ao país, ao seu povo, aomundo.

Na verdade, considero minha vida atribuladacomo um fato positivo, não cheia de glórias comovocê diz. Não as alcancei. Mas alcancei o respeitodo mundo e a consagração de algumas de minhasidéias a serviço da humanidade. E, isto já é muito.Por isso tem-se e deve-se pagar um preço. O preçoque a imbecilidade brasileira me cobra, pelo menosaté hoje, com toda a inflação da moeda e da estupi-dez militarista, não é caro. E, sobre este aspecto mesinto feliz. O que me contriste, o que me revolta sãoas notícias que leio de perseguições mesquinhas emiseráveis, onde a mediocridade recalcada se des-forra contra os homens de pensamento, de carátere de coragem que se deram ao serviço da emanci-pação econômica e social de nosso povo. O Correioda Manhã publica artigos e informações que são deestarrecer. Informações sobre os métodos de tortu-ra que os novos nazistas brasileiros estão usando eque certamente receberiam efusivas congratulaçõesde Hitler e seus seguidores. E, tudo isto feito paranada, na defesa de uma causa perdida: a doreacionarismo feudal brasileiro, apodrecido no cli-ma decadente dos seus privilégios desumanos. Éisto que me revolta. Esta agressão vergonhosa con-

Page 52: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

52 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

tra a grandeza do povo, humilhado, traído e vilipen-diado.

Não sei o que fazer à distância para ajudar estepovo. Talvez tentar mostrar ao mundo que o Brasilnão é apenas um país de vândalos, ineptos e insaciá-veis de lucros e de vinganças, mas, também, umpaís onde há homens que pensam e que sentemcomo criaturas humanas.

Tenho trabalhado muito, mas trabalho útil. OCID (Centro Internacional para o Desenvolvimento)toma forma e consistência. Esta semana, amplia-remos o seu quadro de pessoal e em outubro será oseu lançamento público com a divulgação de docu-mentos de base sobre seus objetivos e sua filosofiade ação. Como decorrência de meu encontro comRobert Oppenheimer nos Estados Unidos e de suavisita ao CID em Paris, nasceu a idéia que me pare-ce extraordinária, de fazer da cidade de Canisy, oraem construção em Deauville, a Universidade Inter-nacional do Desenvolvimento. A idéia foi aceita etrabalho ferozmente nestes planos. Será a primeiraUniversidade do Desenvolvimento no mundo e con-terá um Instituto de Generalização da Ciência e umInstituto de Técnicas da Paz, para promover areconversão psicossociológica e econômica do mun-do de sua estrutura atual de guerra para uma depaz. É qualquer coisa de grande e creio que realizá-vel. Entendi-me com Oppenheimer como com nin-guém até hoje. O seu entusiasmo pelas mesmasidéias que defendo é extraordinário. Exprime-se so-bre o meu livro com uma admiração que me como-ve. Esta semana, preparei o anteprojeto da univer-sidade e sexta-feira vou a Genève encontrá-lo para

Page 53: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 53

discutirmos sua viabilidade. Sua dedicação à causada humanidade faz com que ele se interesse viva-mente pelo que se está passando no Brasil, moven-do o Congresso da Liberdade pela Cultura para pro-testar energicamente contra as perseguições queestão sofrendo os intelectuais brasileiros. O seu pla-no neste sentido me parece extremamente válido eútil ao nosso país. Noutra carta mandarei mais de-talhes sobre os projetos para o Brasil e para o mun-do, concebidos com Oppenheimer.

Em sua carta você diz que vive sem planos esem projetos. Tem um apenas: o de vir à Europa noano que vem para estarmos juntos. Isto será bom,mas isto é muito pouco. Você precisa ao lado desteprojeto bem fácil de realizar, ter outros projetosmaiores e mais difíceis de alcançar. Se até setembrodo ano que vem não estivermos ainda aí, num paísjá libertado da bota nazista, bem antes, com o de-senvolvimento e crescimento naturais do queestamos criando na Europa, todos vocês da famíliavirão certamente para cá, para me ajudarem pelomenos por algum tempo, neste enorme projeto emexecução.

O que eu quero nesta carta é sugerir-lhe umprojeto seu. Um projeto para dar sentido à sua vidanos próximos anos. É o seguinte: lendo suas cartassinto a força que você dá a tudo o que escreve.Uma grande força afirmativa, uma violência de ex-pressão que convence. E, isto constitui qualidadesde escritor. Por que não experimentar, por que nãotentar, por que não triunfar? Aproveite estas quali-dades espontâneas, procure aperfeiçoar outras nopróprio treino de escrever e faça um plano de ser

Page 54: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

54 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

escritora (…) Para você escrever a História do Golpede Estado brasileiro, com um prefácio de Josué deCastro. (…) Mande dizer o que acha do projeto e,principalmente, quando começa seu novo trabalho.

Passei um bom aniversário. Recebi sua carta,trabalhei no CID de 9 da manhã às 8 da noite eneste dia fiz o anteprojeto da Universidade do De-senvolvimento. Dia bom e produtivo. Como você vêse nem tudo é bom, tudo é grande: em matéria deamigos, de projetos, de sonhos. A vida é isto.

Lembranças ao Célio, beijos no Márcio e umaperto de mão na futura colega escritora,

Do seu colega e paiJosué

Alimento, ainda hoje, passados muitos anos, uma profunda e sen-tida sensação de tristeza quando recordo o homem afetuoso com quemconvivi, e o cientista incansável a quem admirei em razão de suas clarase entusiasmadas explanações feitas, quase todas as noites, em torno damesa em que realizávamos nossas refeições. Discorria sobre suas desco-bertas, sobre suas propostas que poderiam solucionar, se implementadas,parte dos problemas mais agudos da sociedade. Foi por intermédio desuas palavras que pude reconhecer o quanto é difícil viver neste mun-do de homens que são capazes de criar infinitas belezas, capazes tecni-camente de controlar a natureza, capazes de cantar a paz, mas, tam-bém, diversamente de outros animais que só atacam para saciar a fome,praticar atrocidades inomináveis contra seus semelhantes. São capazesde aprisionar, torturar e escravizar outros homens, produzir alimentose não distribuí-los para todos, romper com o equilíbrio ecológico, po-luir rios e mares, destruir florestas, gerando a desigualdade, aumentan-do a pobreza, e tudo em busca de mais riqueza.

Até hoje, apesar dos anos, qualquer trabalho que realizo sobremeu pai é muito dolorido, ainda mais quando trabalho, também,

Page 55: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 55

com suas fotografias. Mas, trabalhos como este me entusiasmam,sobretudo, tendo em vista o público a que se destina. Josué de Castrosempre acreditou que era possível modificar a realidade de nosso paíse para isto semeou todas as suas idéias sobre as causas da fome, damiséria, do subdesenvolvimento e apresentou suas propostas paramodificar esta realidade tão bem retratada em seus livros.

A história da humanidade tem demonstrado que, na maioria dasvezes, os que semeiam propostas de mudança nem sempre colhem ofruto. Josué semeou o suficiente para que possamos colher os frutosde um Brasil mais justo e igualitário.

Josué de Castro morreu em um país distante, a França, em 1973.Tinha 65 anos e não podia voltar ao seu país porque não recebeu ovisto necessário. Assim eram tratados os brasileiros exilados pela di-tadura militar. Hoje, mais de 30 anos depois de sua morte, seu pen-samento continua atual. Acreditamos que ainda é possível fazer nas-cer na nossa sociedade um novo tipo de homem capaz de “ousarpensar, ousar refletir e de ousar passar à ação” e, assim, realizar seusonho de um verdadeiro desenvolvimento humano e equilibrado.

Meio ambiente – entrevista com Josué de CastroO professor Josué de Castro, conhecido principalmente como presiden-

te do Conselho da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimen-tação e a Agricultura) de 1952 a 1955, e como autor de várias obras sobreos problemas dos países em vias de desenvolvimento (Geopolítica da Fomefoi traduzido em 25 idiomas), muitas vezes afirmou suas convicçõesmundialistas. Ademais, ele foi o primeiro delegado eleito por um corpotransnacional de eleitores “cidadãos do mundo” que, assim, lançaram asbases do futuro “Congresso dos Povos”.

Nossos amigos mundialistas da equipe “Mundo Unido” o entrevis-taram algum tempo após a Conferência de Estocolmo (junho de 1972),conferência esta durante a qual os representantes dos países membrosdas Nações Unidas chegaram a um acordo sobre os problemas do meioambiente.

Page 56: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

56 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Suas respostas mostram claramente que certas tarefas que se impõemnão poderão ser levadas a bom termo se não reinventarmos ointernacionalismo. “A Conferência de Estocolmo”, diz ele, “foi a reuniãode Estados soberanos e poluidores”.

Mundo Unido – – – – – Em poucos anos, os problemas ambientais secolocaram à frente da atualidade. De todos os lados, anunciam-secatástrofes a curto prazo se o homem perseverar em sua imprevidência.Será preciso aceitar com toda seriedade esses avisos ou considerarque eles correspondem a uma nova moda?

Josué de Castro ––––– Sim, o problema está muito em moda. Há10 anos, a ecologia era apenas assunto de especialistas. Atualmente,a questão da poluição, da contaminação do ambiente natural edos seus perigos para o homem está em toda parte. Mas, se lhesdigo que a ecologia está em moda, não acreditem que considero amoda como uma coisa fútil! Imagina-se, injustamente, que elacorresponde a escolhas arbitrárias. Ao contrário, é uma manifes-tação cujas raízes são profundas e que é orientada por fenômenosfundamentais. A moda traduz o inconsciente coletivo e só se im-põe quando recebe o apoio das massas. Quanto à ecologia e aosproblemas da poluição, pode-se efetivamente constatar que a pai-xão excessiva não tem nada de superficial e que os problemas as-sumem a maior gravidade.

Por quê? Há milhões de anos, quando o primeiro ser vivo sealimentou e excretou os resíduos da sua alimentação, o ambientenatural começou a ser conspurcado: onde existe vida, sempre há po-luição. Certamente, os vegetais desempenham mais um papel de cons-trutores na natureza, porém, os animais são destruidores. E entreeles, o homem é o mais destruidor. Entretanto, quando os homenseram pouco numerosos, eles podiam dar-se ao luxo de agredir a na-tureza; eles podiam, movidos por um instinto natural, transformarseu meio ambiente para construir, arrumar, melhorar seu “nicho”,como se diz no jargão ecológico.

Page 57: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 57

Desde então, as populações têm-se multiplicado (várias vezes nodecorrer dos dois últimos séculos); elas se concentram em cidadesgigantescas, sua capacidade de consumo aumentou e se estendeu aprodutos novos, de modo que os resíduos do consumo de massa sãolançados no ambiente natural, os quais contaminam, degradam epoluem em proporções até então desconhecidas. Foi a partir da se-gunda revolução industrial que o Homem se tornou um agentepoluidor incomparável e perigoso para sua própria existência. Eletem cometido tantas agressões à natureza que desencadeou uma es-pécie de revolta da natureza contra ele. E, agora, ele está ameaçado. Éevidente que o que chamamos de ambiente natural, o meio ambiente,a biosfera, é dotado de elasticidade e tem podido suportar sem desas-tres muitas mudanças provocadas pelo homem. Contudo, a elastici-dade do ambiente natural tem limites – o que chamamos de “limitesde nocividade” – além dos quais o impacto do homem sobre a natu-reza é negativo e perigoso. Ora, as radiações atômicas, a fumaça dasusinas e dos meios de transporte, o barulho, o consumo abusivo, odesperdício de matérias-primas não renováveis, conduzem nossa ge-ração ao limiar dos prejuízos globais. Este drama é a característica deuma civilização frenética, a civilização ocidental que, em seu culto daprodução e do lucro, não tomou cuidado nem com o meio ambientenem com o homem. Na civilização do lucro, isto é, na civilizaçãomais poluidora do mundo, a poluição não tem sido levada em contaporque se admitia que a natureza seria sempre capaz de restabeleceros equilíbrios ameaçados. Atualmente sabemos que não é assim, querupturas nos ecossistemas podem acontecer e que essas rupturas po-dem ser fatais. Por exemplo, quem fala em “guerra atômica” fala emsuicídio da humanidade porque, neste caso, a natureza é incapaz derestabelecer um nível de radiação compatível com a vida humana.Tendo ultrapassado de maneira irreversível o limiar da nocividade,os homens – mesmo os que não tenham sido atingidos pelo calor oupelo impacto direto da bomba morrerão todos sob os efeitos da açãoletal das radiações atômicas. Admitindo-se que alguns sobrevivam,

Page 58: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

58 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

estes não serão mais que monstros ou, em virtude das mutações quesurgirão, pais de monstros.

É inevitável que eu apresente um quadro da situação de um pes-simismo negro. Contudo, apresso-me a acrescentar que, se o perigo ésério, a ameaça que pesa sobre nós é apenas latente. E, se afastarmosa hipótese do conflito atômico, pode-se considerar que essa elastici-dade da natureza de que lhes falei há pouco, ainda está muito longede estar totalmente ameaçada. A hipótese de um desaparecimentodo homem, da civilização, não passa de uma hipótese remota.

Mundo Unido – – – – – Devemos deduzir que o Terceiro Mundo tem depreocupar-se com coisas mais urgentes do que a poluição?

Josué de Castro ––––– A poluição é uma doença universal que interes-sa a toda humanidade, mas existem tipos de poluição diferentes nomundo inteiro. Os países ricos conhecem a poluição direta, física,material, a do ambiente natural. Os países subdesenvolvidos são pre-sas da fome, da miséria, das doenças de massa, do analfabetismo. OHomem do Terceiro Mundo conhece essa forma de poluição chama-da “subdesenvolvimento”. E devo dizer que esta é a forma mais gra-ve, mais terrível de todas.

Os países do Terceiro Mundo vivem numa economia de depen-dência. Todos eles são produtores de matérias-primas e de produtosbásicos exportados para os países industrializados. Os Estados Unidos,por exemplo, consomem 75% de toda a produção do continente lati-no-americano. Como os preços dos produtos industrializados sobemcontinuamente e o distanciamento entre esses preços e os preços irrisó-rios dos produtos básicos se acentua cada vez mais a cada dia que passa,um abismo cada vez maior separa os pobres dos ricos. A riqueza dostrabalhadores norte-americanos só existe graças à exploração dos tra-balhadores e camponeses dos países em vias de desenvolvimento, gra-ças às condições miseráveis e desumanas em que estes são mantidos. Éevidente que o estatuto colonial foi praticamente abolido em toda par-te, mas a economia do tipo colonial permanece viva.

Page 59: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 59

Insisto na necessidade de esclarecer bem esta natureza do subde-senvolvimento. Não se trata de uma simples ausência ou insuficiên-cia de desenvolvimento. Não: é um produto – um produto negativo– do próprio desenvolvimento. O desenvolvimento traz consigo, deum lado, suas riquezas, suas novas fabricações e, de outro, seus dejetos.O Terceiro Mundo está no lado dos dejetos.

Eis porque os países subdesenvolvidos estão essencialmente preo-cupados com os problemas ambientais e da poluição. Eles estão preo-cupados porque o subdesenvolvimento que sofrem é a secreção deum tipo de desenvolvimento, concebido sem respeito pela natureza eno qual o homem não passa de um instrumento da produção.

Mundo Unido ––––– O próprio Ocidente não acaba de contestar seutipo de desenvolvimento quando o “Clube de Roma” se apóia nosrelatórios do Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT) paradenunciar os malefícios do crescimento?

Josué de Castro ––––– Veja bem! Não estou totalmente de acordo comos que fazem declarações apocalípticas do gênero: “... Estamos corren-do tal perigo de morte, totalmente ameaçados pela técnica, em suma,pelo ‘desenvolvimento’, que devemos detê-lo imediatamente”. É maisou menos isto que diz o grupo de Roma, que prescreve a interrupçãodo crescimento sob pena de catástrofe. Evidentemente, o relatório doMIT sobre os limites do crescimento tem uma função ao sensibilizar aopinião. Ele teve grande sucesso, pode-se perceber isto, sobretudo de-pois da Conferência de Estocolmo sobre o meio ambiente. Populaçõesinteiras se alarmaram. Nos lugares onde a indiferença era a regra, cadaum começou a sentir-se ameaçado e, portanto, preocupado.

Isto é muito positivo. Em compensação, ao nível do seu signifi-cado global, o documento é falso. O MIT constitui um modelo ma-temático abstrato no qual cinco parâmetros foram levados em contacomo fatores fundamentais do crescimento: 1. os recursos naturais;2. a produção agrícola; 3. a produção industrial; 4. o crescimentodemográfico; 5. a poluição.

Page 60: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

60 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Alimentou-se o computador com dados sobre esses cinco fatorese sobre as relações que podiam existir sobre eles... E ele levou o MITa tirar conclusões falsas! Por quê? Porque, em toda essa pesquisa, nãose fez uma única referência às estruturas sociais, econômicas e políti-cas. Os fatores anunciados pelo MIT foram estruturados como sesuas relações e suas variações fossem indiferentes a essas estruturas.Entretanto, no momento em que estas mudam, tudo muda na evo-lução das diferentes variáveis. Por conseguinte, o MIT utilizou comotema de estudo um mundo petrificado, fossilizado. Partindo disso,ele só pode dedicar-se a projeções lineares e ingênuas, nas quais arealidade da vida em sociedade está ausente. O mundo real, este, éum mundo de fases de descontinuidades – de descontinuidades nosfatores estruturais, com todas as mudanças de ritmos delas decorren-tes em todos os domínios. O mais espantoso neste caso é a segurançacom que os criadores desse modelo artificial e falso escrevem semrodeios: “Nosso modelo é o único modelo à luz dos nossos conheci-mentos atuais”.

Modelo único é também a afirmação de uma solução única parao futuro: aí está a segunda falha que se deve assinalar. Todos nós quenos dedicamos a este exercício delicado que é a futurologia, sabemosmuito bem que não existe apenas um futuro. Existe todo um lequede possíveis futuros, entre os quais podemos apenas escolher o maisfavorável aos nossos desejos. O futuro que se imagina espontanea-mente nos Estados Unidos é o que deixa intacto o sistema de domí-nio econômico do mundo. Alhures, no Oriente, na China, por exem-plo, esse futuro poderia ser o de uma integração mais perfeita dohomem na natureza. Seja ele definido com ou sem o recurso aoscomputadores, o futuro desejado pelo homem oriental harmoniosoestará, portanto, em contradição com o futuro desejado pelo ho-mem faustiano do Ocidente.

Em suma, estou de acordo com a consideração que os tipos atuaisde desenvolvimento ameaçam a civilização, a vida do homem, o pla-neta, e se aprovo o Clube de Paris por ter posto estes problemas em

Page 61: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 61

evidência, em compensação, rejeito todas as conclusões extraídas demodelos artificiais e abstratos. Não creio que se tenha o direito deprescrever a interrupção do crescimento. Querer uma economia semexpansão, uma economia morta... para um mundo do qual dois ter-ços da população estão muito longe do mínimo necessário à vida,mas isto seria um absurdo! Ademais – vimos isso em Estocolmo – osrepresentantes do Terceiro Mundo só podem contestar violentamen-te essas prescrições. Para eles, o crescimento é, por excelência, a espe-rança de poder sair da fome e da miséria.

Mundo Unido – – – – – Por mais compreensíveis que sejam essas reaçõesdo Terceiro Mundo, não contém elas uma certa ambigüidade?

Josué de Castro – – – – – É verdade que a tomada de consciência de certonúmero de países é mais emocional do que racional e que eles agem,antes de tudo por instinto de autodefesa. Até então, eles ainda nãoestavam totalmente marginalizados: se lhes concedia uma ajuda, aliásnotoriamente insuficiente. Agora, eles temem que se lhes venha adizer “a ajuda terminou, pois vocês não precisam mais buscar o cres-cimento”. É como se se dissesse a uma criança que está crescendo:“Permaneça criança por toda a vida”. Para ela, isto seria o desespero.

De qualquer maneira, esta ordem de interromper o crescimentoé muito inquietante, pois como se poderia aplicá-la nos países emplena expansão? O desenvolvimento, onde existe, não se interrompede repente como que por um passe de mágica. Portanto, receia-seque sejam as economias já estagnadas do Terceiro Mundo, as que,bem ou mal, haviam escapado do “crescimento zero”, que mono-polizavam a operação.

Por último, é evidente que os mercados dos países em vias dedesenvolvimento estão ameaçados se os países com civilização técni-ca se puserem a desenvolver uma produção de reciclagem, isto é, dereutilização de velhos materiais. Temos, então, um impasse. E os paí-ses pobres têm razões muito sérias de se inquietarem quando se for-mulam regras para uso dos países desenvolvidos sem se preocupar

Page 62: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

62 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

com os outros, ao passo que os problemas ambientais e da poluição –expliquei isto há pouco – são realmente problemas universais.

Para enfrentar essa situação e para que cada um crie seu tipo dedesenvolvimento, que devem fazer os países do Terceiro Mundo? Elesdevem dedicar uma parte da renda nacional à pesquisa, não apenaspesquisa técnica, mas também pesquisa sociológica, a que permitiriaencontrar as estruturas sociais, econômicas e políticas que seriamimplantadas neles. Não parece que o que chamamos de “uma demo-cracia liberal” imitada dos Estados Unidos seja o que mais lhes con-vém neste momento. A democracia é uma palavra sem sentido quan-do em qualquer país do mundo, seja ele qual for, uma minoria ínfi-ma de cidadãos participa realmente da elaboração e da tomada dedecisões. No Brasil, por exemplo, essa minoria não passa de 2% dapopulação. Portanto, é preciso buscar novas formas de estruturaspolíticas, e essas pesquisas para o Terceiro Mundo só podem ser rea-lizadas por eles próprios. Se os países ricos devem contribuir com suaajuda, que não seja mais, em todo caso, pelo envio de especialistaspara os países subdesenvolvidos, mas que ignorem toda a realidadedos países pobres! É preciso que a pesquisa vise ao essencial, isto é,aos problemas humanos, e que, quanto aos fatores de produção, namaioria das vezes, volte-se primeiramente para a terra. Realmente,nada será possível, num país agrícola como o Brasil, por exemplo,enquanto 80% da terra pertencer a 5% da população.

Mundo Unido – – – – – O senhor criticou a civilização da produção fre-nética e do lucro como civilização poluidora por excelência, mas, aomesmo tempo, recusa toda a interrupção do crescimento.

Josué de Castro – – – – – Não há contradição nisso. Atualmente, o que setorna mais importante é a qualidade da vida, a qualidade do meioambiente, mas se pode aumentar a produção, contanto que seja comtécnicas não poluidoras. Até aqui elas não foram utilizadas, por ob-sessão dos lucros e dos preços competitivos. Neste aspecto, multipli-cam-se os produtos inúteis, procurou-se estimular o consumo para

Page 63: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 63

além das necessidades reais, mas, em compensação, descuidou-se dasnecessidades essenciais. Nos Estados Unidos, podemos ler à entradade um supermercado: “se você não sabe o que quer, entre, nós otemos”. Não obstante, nesse país, o mais rico do mundo, existem 20milhões de famintos e 50 milhões de subnutridos, não obstante acaridade organizada (mal organizada) pelo Estado.

Eis porque é preciso, ao mesmo tempo, rejeitar a idéia de umainterrupção do crescimento enquanto houver necessidades de satis-fazer e, ao mesmo tempo, rejeitar um tipo de desenvolvimento semobjetivo (exceto o do lucro) e modos de produção que poluem edegradam a vida e o meio ambiente.

Mundo Unido – – – – – Ouvindo-o comentar o relatório do MIT, esteponto de vista, sem se confundir com o de Sicco Mansholt, não pa-rece tão distante assim. O fracasso do controle de natalidade.

Josué de Castro – – – – – Na verdade, creio que Mansholt tem uma visãomais matizada e mais realista que os autores do documento do MITexceto num ponto: ele é dos que ficam estupefatos com o crescimen-to da população e querem detê-lo a qualquer preço. Ora, para detera explosão demográfica, a pior das soluções seria interromper a pro-dução. Ao contrário, a educação e a formação humana são os únicosmeios válidos que exigem uma economia viva, ativa.

Não é com engenhocas ou pílulas que se interromperá o cresci-mento da população no Terceiro Mundo. Não se inocula desse modo,nas civilizações tradicionais, uma característica isolada de um tipo decivilização técnica, que, por ser isolada, não serve para associar-se àscaracterísticas dessas civilizações tradicionais. O controle de natali-dade que se queria impor dessa maneira, nos lugares onde a civiliza-ção, as culturas, não podem aceitá-lo, se transformaria em qualquercoisa de abominável que revoltaria a população.

Mundo Unido – – – – – Pode-se afirmar que as tentativas de controle denatalidade têm sido ineficazes em todo o Terceiro Mundo?

Page 64: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

64 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Josué de Castro ––––– Estou convencido disso. Vejam o caso da Índia.É o país por excelência, onde se depositou suas esperanças num con-trole da natalidade e onde o governo, querendo sair de uma situaçãodramática, despendeu muito dinheiro. Com que resultado? A Sra.Indira Gandhi o anunciou na Conferência de Estocolmo declaran-do: “Não esperem a solução do problema demográfico pelo controleda natalidade”. O fracasso se deve ao fato de que os métodos empre-gados não podem ser aplicados às massas de populações enormes.Com muitos esforços, se submeteu ao controle um milhão de mu-lheres da Índia, ao passo que elas são 200 ou 250 milhões. Não sepode impor uma idéia desse modo. Seria preciso mudar a tradição, oestilo de vida, as estruturas.

Mundo Unido – Da sua viagem a Estocolmo, por ocasião daConferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e das confe-rências concomitantes realizadas por diversas organizações não go-vernamentais, o senhor observou o sentimento de que medidas efi-cazes seriam tomadas para conter a deterioração ambiental?

Josué de Castro ––––– Como a poluição é um problema universal,seria bom discuti-lo em âmbito internacional. Na verdade, as polui-ções dificilmente podem ser combatidas por regulamentações nacio-nais. Se um país tiver a coragem de aplicar sozinho toda a regula-mentação necessária, sua produção logo cessaria de escoar-se a pre-ços competitivos e ele logo iria à falência. É preciso obter uma regu-lamentação em escala mundial. Então, os delegados da conferênciade Estocolmo atacaram o problema... mas, veja bem, não o resolve-ram. E, sobre questões essenciais – a guerra e os armamentos, entreoutras – as discussões andaram em círculos, como era de se prever.Todos nós sabemos que o melhor que se pode obter de um quadroassim é uma boa recomendação que cada país, depois, tem a liberda-de de adotar ou não.

Para dominar realmente o problema do meio ambiente, seriapreciso, além de uma ampla consulta geral indispensável, a autorida-

Page 65: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 65

de de um “governo mundial”, ou, se a expressão o incomoda, de umainstância planetária soberana a ser definida. Apesar de tudo, na faltadesta, é preciso tomar medidas indispensáveis. Ou poder-se-ia frearseriamente a poluição se, neste campo, a ONU votasse uma resolu-ção que limitasse a soberania nacional. De resto, a revisão da Cartade São Francisco está na ordem do dia da próxima assembléia dasNações Unidas na qual é preciso esperar que pelo menos se reflitasobre o direito de veto das grandes potências, o que constitui umaespécie de desafio a todos os outros países.

Mundo Unido – – – – – Podemos realmente reacender a esperança devermos a ONU iniciar uma mudança, ainda que pequena, no domí-nio sacrossanto da soberania dos Estados?

Josué de Castro ––––– Acalento essa esperança. Leibnitz dizia que “nadaacontece sem razão suficiente”, mas hoje a poluição constitui essarazão suficiente para que finalmente o mundial obtenha suas primei-ras vitórias sobre o nacional.

Terre Entière – Numero Double, Spet. – 1972.(Entrevista feita por Jean Prédine e Roger Wellhoff ).

Tradução – Anna Maria de Castro.

Depoimentos

Lord John Boyd Orr(Prêmio Nobel da Paz)Ex-Reitor da Universidade de GlasgowEx-Diretor Geral da FAOFome e Política (1951)O professor Josué de Castro bem poderia ter dado ao seu livro de

alcance mundial Geopolítica da Fome, o título de “Fome e política”porque, nesta obra, surgem perspectivas políticas de primeira gran-deza. Mas, como salienta o próprio autor, sempre foi consideradopouco conveniente, entre os povos bem alimentados, discutir-se a

Page 66: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

66 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

fome dos menos afortunados – fome que nunca foi assunto muitopopular em matéria de política. E, no entanto, a fome tem sido,através dos tempos, a mais perigosa das forças políticas. Foi a fomeque precipitou a Revolução Francesa. Uma multidão de mulheresdos cortiços de Paris marchou até a sede do Parlamento, bradandopor pão. Os políticos fugiram. As mulheres, com suas hostes reforça-das pelos homens, rumaram para a Bastilha. A queda da Bastilha foio golpe de morte contra o sistema feudal na França, iniciando umanova era. Na atual crise mundial, um livro como a Geopolítica daFome é de vital importância. Se os políticos de todas as nações domundo pudessem esquecer por um momento os seus conflitos polí-ticos e lessem Geopolítica da Fome, sem idéias preconcebidas, adqui-ririam certamente uma visão mais sadia dos problemas universais eteriam, assim, maior possibilidade de salvar nossa civilização de pere-cer numa terceira guerra mundial. (…)

A palavra “fome”, usada pelo autor, precisa ser bem definida. Nopassado, empregava-se a palavra “fome” para exprimir a falta de ali-mentos para a satisfação do apetite e o número de mortos pela fomerestringia-se então aos indivíduos esquálidos que morriam por com-pleta inanição. Josué de Castro, porém, usa essa palavra no seu senti-do moderno, no sentido da falta de quaisquer dos 40 ou mais ele-mentos nutritivos indispensáveis à manutenção da saúde. A falta dequalquer deles ocasiona morte prematura, embora não acarrete, ne-cessariamente, a inanição por falta absoluta de alimento. A carênciatotal de alimento, tal como se verifica nas épocas de fome em massa,sempre constituiu uma causa importante de mortalidade. Mesmonos últimos tempos, a fome tem matado mais gente do que a própriaguerra. Mas o número dos que assim morrem ainda é pequeno, emcomparação com os que vivem num regime alimentar inadequadopara manter a saúde e que, por isso mesmo, sofrem, em maior oumenor grau, de doenças da nutrição. Dando-se à palavra “fome” essaacepção, de acordo com as estimativas feitas antes da guerra, doisterços da população do mundo vivem em regime de fome (…)

Page 67: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 67

Pode a Terra fornecer alimentos num nível satisfatório para essapopulação assim aumentada? O autor cita fatos bem comprovados,demonstrando não haver dificuldade de ordem física para dobrar-seou redobrar-se o abastecimento de alimentos do mundo.

Olívio MontenegroEscritor e crítico literárioO Sentido Humano da Obra de Josué de Castro (1958)Em Josué de Castro o escritor deu sempre o melhor relevo ao

homem de ciência que nunca deixou de ser. Geografia da Fome eGeopolítica da Fome foram, sem dúvida, nos últimos tempos, osdois livros brasileiros mais traduzidos nos países do velho e do novocontinente. Em ambos, essas obras conquistaram, quer nos Esta-dos Unidos, quer na Rússia, prêmios magníficos, que constituí-ram, para o seu autor, título de uma excepcional consagração e quetanto havia de dar um luminoso relevo aos seus 50 anos de idadecom grande parcela de trabalhos a serviço do homem, deste ou deoutros continentes. A crítica estrangeira, na sua maior parte, foi delouvor, de rasgado louvor à obra deste ainda moço cientista brasi-leiro (…)

No livro Geografia da Fome, o que sobretudo nos mostra o autoré o cemitério enorme, essa desolação infernal em que o egoísmo dohomem ameaça transformar toda a natureza física do mundo. E daí,certamente, a nova e estranha geografia, chamada da fome, que abar-ca quase todo o globo terrestre, e que vemos agora, depois de minu-ciosamente estudada por Josué de Castro, ser objeto de interesse nosquatro cantos do mundo. Um dos quadros que o autor pinta emcores de um pungente, mas justo realismo é o da vida da Amazôniano Brasil. Um quadro trágico.

Mas o autor revela-se de uma segurança admirável quando chega omomento de apontar os meios racionais, os meios práticos de reduzir aum mínimo de sacrifícios os horrores da tragédia amazônica, senãomesmo de transformar essa tragédia num maravilhoso surto de vida.

Page 68: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

68 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Não são impossíveis aos homens esses meios, ainda que requeiramum vigoroso programa: “Os melhoramentos – diz o autor – das condi-ções alimentares regionais exigem todo um programa de transforma-ções econômicas e sociais. As soluções dos aspectos parciais do proble-ma estão ligadas à solução geral de um método de colonização adequa-da. Sem alimentação suficiente, a Amazônia será sempre um desertodemográfico”. É que, na Amazônia, como bem acrescenta ainda o au-tor: “as águas e a floresta é como se tivessem feito um pacto ecológicopara se apossar de todas as riquezas da região”. Um traço simpático doslivros do Sr. Josué de Castro é o de que, embora sendo de especializa-ção, o leitor nem por isto está menos à vontade dentro deles, sempassar a todo instante, em face de nomes agressivamente técnicos, pelovexame de sentir-se mais ignorante do que convém à sua humildadecristã. Porque, em geral, um dos vícios mais comuns dos nossos livrosde ciência é serem eruditos demais, de um saber muito pesado naspalavras ainda que muito leve no espírito que os conduz, como se fosseuma ciência menos para instruir do que para “espichar” o leitor…

Nos livros de Josué de Castro negue-se o que quiser, menos, po-rém essa sensibilidade humana que os penetra como uma flama ge-nerosa, exaltando em dramática realidade o problema da fome noBrasil e no mundo.

O crítico de La revue des auteurs et des livres marca bem essa forçahumana da obra de Josué de Castro quando põe em alto relevo o quenela existe “de um humanismo superior ao humanismo da maioriados romances (caso da Geografia da Fome) por isto mesmo que setrata aqui de uma humanidade mais verdadeira”. E não é esta umaopinião isolada. Este sentido humano da obra de Josué de Castro é,da mesma maneira, exaltado por vários outros críticos franceses quese ocuparam deste escritor. Compreende-se, daí, que esses livros te-nham sido traduzidos em várias línguas – no francês, tanto como noespanhol, no polonês, no sueco. E este poder enorme de comunica-ção decerto que vem menos do temperamento científico da obra quedo temperamento humano do autor.

Page 69: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 69

Max SorreProfessor da Universidade de Sorbonne, Paris, FrançaA Fome sem o Véu Discreto da Fantasia (1953)Em seu livro Geopolítica da Fome, o professor Josué de Castro apre-

senta um dos aspectos mais prementes, e sem dúvida, o mais trágicodesta geografia da alimentação que é o capitulo inicial de toda a geo-grafia humana. Realmente, a importância de tais problemas não eradesconhecida dos entendidos do assunto. Existe muito de humanida-de profunda na obra de um E. Réclus ou de um Vidal de La Blache,para que não se tivesse deles uma clara consciência. Na verdade, nossosantigos mestres não estavam enganados a respeito dos tabus que Josuéde Castro denuncia. Todavia, ele tem muita razão quando afirma queo comum dos geógrafos, e, principalmente, o comum dos homens,preferia nada dizer a propósito desse assunto. E muitos há que lança-vam um véu discreto sobre essas feias perspectivas. Eis que, apesar dis-so, nós, civilizados, vimos levantar-se, à nossa frente, o espectro horrí-vel da fome. Coisa que não se imaginaria há 20 anos passados: temostido fome como nossos avós tiveram fome. Os quadros mais sombrios,os quais estávamos inclinados a não encontrar senão na literatura, re-tomaram, a nossos olhos, cor e realidade. Viram os médicos o apareci-mento, nos hospitais da Europa ocidental, de moléstias estranhas, cujascausas mal conheciam. Não foi preciso menos para que uma verdadeelementar se tornasse, enfim, sensível: as necessidades alimentares ja-mais foram satisfeitas de um modo permanente, senão para umapequeníssima parte da humanidade. Os demais têm vivido de maneiraprecária, à margem da subalimentação. Enquanto as grandes fomesflagelavam regiões que são como que as terras clássicas da fome, a ameaçada escassez periódica rondava em torno de numerosos grupos, e a açãoinsidiosa dos desequilíbrios dos regimes e das carências atingia profun-damente os outros em sua vitalidade. Datam apenas de ontem nossosconhecimentos sobre as moléstias de carência – o que vale dizer, sobreas formas menos espetaculares, porém não menos perigosas, duma certaespécie de fome.

Page 70: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

70 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

O livro de Josué de Castro, em que são estudadas, em seu quadrogeográfico, as insuficiências de alimentação dos grupos humanos vem,de certo modo, ao encontro de várias ordens de preocupações. Pri-meiro, uma angústia despertada em todas as almas pela lembrançade misérias recentes e pela consciência que temos, agora, de sua per-sistência em várias regiões. Depois, o sentimento de uma contradi-ção entre duas séries de fatos, o crescimento demográfico atual daespécie humana e a possibilidade de aceleração deste crescimentopela generalização das observâncias higiênicas, dum lado, e de outrolado, o balanço dos recursos alimentares. A velha fórmula de Malthusjá não é aceitável, mas a inquietação que a inspira ainda perdura.Enfim, os progressos da fisiologia da alimentação orientaram paraesses problemas todos aqueles que, a um título ou outro, se têm inte-ressado pela ecologia humana. Seja permitido dizer que este é o meucaso. O movimento natural do pensamento do ecologista o conduzpara o estudo das condições de nutrição dos grupos humanos no seuquadro geográfico, independentemente de toda preocupação de atua-lidade. A convergência destas três linhas de pensamento é sensível nolivro de Josué de Castro. Médico e geógrafo especializado, tem elecontribuído pessoalmente nas atividades da Organização das NaçõesUnidas, no setor de alimentação e agricultura (FAO), de cujo Con-selho é hoje o presidente. Sua colaboração nessa grande obra interna-cional permitiu-lhe avaliar com maior exatidão a significação uni-versal e a importância do problema da alimentação. Primaciais, doponto de vista científico, são esses problemas, de imenso alcance paraa política geral da humanidade. (…) Os neomalthusianos oferecemsoluções pessimistas do problema da alimentação. O livro de Josuéde Castro é um extenso requisitório, apaixonante e apaixonado, con-tra essas doutrinas que humilham a humanidade. Ele aponta os errosdos homens, o espírito de ganância, a imprevidência, como respon-sáveis por todo o mal. Constitui, ainda, esse livro um libelo contra osmalefícios do imperialismo e do colonialismo – libelo constantementejustificado. (…) Ter-se-á o direito de censurar Josué de Castro por

Page 71: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 71

falar tão acaloradamente sobre temas que são fundamentais para ahumanidade? Eu, por mim, julgo que ele realizou um trabalho bené-fico, insistindo, com uma força persuasiva, sobre a gravidade da situa-ção. Seja de quem for o acervo de responsabilidade e de culpas, ésalutar que nos defrontemos com esses problemas. E a própria vee-mência de Josué de Castro aproveitará o seu desígnio, que é forçar aatenção dos indiferentes sobre este paradoxo mortal: a humanidade,em sua grande massa, à margem da subalimentação, sofrendo fome,ao passo que as técnicas modernas de produção, aplicadas aos solosdisponíveis, permitiriam, não só que todos os homens tivessem oque comer, de modo suficiente, como também afastariam, por al-gum tempo, ao menos, a inquietação que traz o crescimento daspopulações. E se digo “por algum tempo” é para não prejulgar a solu-ção de um problema atualmente teórico, que, entretanto, não se su-prime com o negar. Somos homens e vivemos no tempo. É precisodesfazermo-nos de fantasmas. Urge crermos em nós mesmos e emnossa própria capacidade. Não preciso seguir toda a argumentaçãode Josué de Castro contra os neomalthusianos, para subscrever suaconclusão: “O caminho exato da sobrevivência está ainda ao alcancedo homem. Ele é marcado pela confiança que deve sentir em suaprópria força”. É a verdadeira linguagem de um homem.

Russel LordEscritor e jornalista, Nova York, Estados UnidosNão Há Necessidade de Malthusianismo (1958)O Dr. Josué de Castro, fundador do Instituto de Nutrição da

Universidade do Brasil, na sua vibrante réplica aos neomalthusianos,escolheu William Vogt, cujo Road to survival (Caminho da sobrevi-vência), foi publicado em 1948, como seu principal antagonista. Eleapresenta provas, das quais algumas são novas, para demonstrar queembora 2/3 da humanidade sofram fome, no momento atual, esteregime de fome e desnutrição não pertence à categoria dos incuráveisou inevitáveis.

Page 72: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

72 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Ao contrário: “o mundo possui à sua disposição bastante recur-sos para providenciar uma dieta adequada para cada um e em cadalugar(…) O caminho da sobrevivência não se encontra nas prescri-ções do neomalthusianismo de eliminação da população supérflua,nem no controle da natalidade. Estas concepções derrotistas edesintegradoras mostram o caminho da morte, das revoluções e dasguerras – o caminho da perdição”.

William Vogt quando escreveu seu livro estava chefiando a parteconservadora da União Panamericana. Ele advogou a ajuda, segundoo Plano Marshall, somente aos países inclinados a adotar o sistemade controle de nascimentos. No momento atual, ele está chefiando aliga da Paternidade Planejada, com sede em Nova York.

Além dos católicos, outras pessoas também vão aprovar e ler comsimpatia a réplica humanitarista com a qual o Sr. Josué de Castro rejei-ta o dogma científico dos que, com sangue frio, consideram a elevadamortalidade com calma e, talvez, com aprovação, quando a infelicida-de atinge a terceiros, pertencentes às classes menos favorecidas. É fácilpara os privilegiados dar de ombros à desesperada fome dos seus seme-lhantes e considerá-la inevitável, quando, de fato, as condições de mortee penúria estão arraigadas não no solo e no clima, mas decorrem dacolonial e exploradora política imperialista. (…)

Na sua réplica ao malthusianismo, o autor lembra um outro “in-tuitivo” profeta do passado, Thomas Doubleday, que, em 1853, de-clarou que a “verdadeira lei da população” baseia-se no fato de que amaior riqueza de filhos sai sempre da classe pobre e mal alimentada.Deste modo, não é a fome que resulta da superpopulação, esta é quese origina da fome. Desenvolvendo este argumento, o autor cita re-centes experiências realizadas para demonstrar que os ratos mantidoscom a dieta altamente protéica revelam-se com menor capacidadereprodutora do que os subalimentados. Baseado nestes ensaios, o autorestabelece analogias com o gênero humano, apresentando tabelas comíndices de natalidade em ascensão na medida do decréscimo daingestão protéica. (…)

Page 73: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 73

As suas estatísticas e observações, quanto às imensas áreas queainda podem ser utilizadas nos países superpopulosos e mal nutri-dos, impressionam muito mais. O mesmo se pode dizer dos capítu-los referentes à possibilidade produtiva dos solos atualmente ocupa-dos, porém inadequadamente aproveitados. A Geografia da Fome éum livro corajoso, escrito de uma bela e impressionante maneira,contrabalançando os lamentos e as previsões fatídicas. *

Rachel de QueirozEscritora e jornalistaFome, Ciência e Ficção (1946)Diante de certos livros é que a gente vê como é fácil e sem impor-

tância o ofício de literato. Sim, são realmente os cientistas que nosbotam complexo de inferioridade. Porque afinal de contas fazer lite-ratura não é mais do que coisa gratuita e à toa, anotar impressões,traduzir um estado de alma, ou relatar algum sucesso havido, sempredeformado. Em suma: tudo improvisação, falsificação, fingimento.

Mas escrever um livro que informe, ensine, descubra verdadesencobertas ou controvertidas, isso sim, representa, na realidade, ummundo de honestidade, esforço, labuta, rigor – além do talento na-tural que exige em grandes doses.

E é pois o sentimento da minha inidoneidade que me afeta aotentar um comentário em torno do livro do ilustre professor Josué deCastro: o Geografia da Fome.

É essa obra um estudo da fome no Brasil – aliás o primeiro volu-me de uma série de estudos do fenômeno “fome” no mundo inteiro.Assunto pouco explorado, pouco discutido, pois como diz o autorno prefácio, é tema bastante delicado, perigoso, que repugna – umdos tabus da nossa civilização. Entre gente como nós, os ditos “artis-tas da pena”, quando se fala em fome e miséria, ou carência endêmica

* O jornalista refere-se ao livro Geopolítica da Fome, inicialmente publicado nosEUA sob o título de Geography of hunger [Geografia da Fome].

Page 74: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

74 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

ou epidêmica, só nos ocorre fazer um romance bem chorado sobre oassunto, ou compilar um anedotário pitoresco, ou, no melhor doscasos, uma antologia do folclore ou da literatura da fome no Brasil.Mais não se dá.

Os estudiosos já são outra casta de gente. Vão em pessoa para olocal que interessa, levam máquinas e fichários, alugam auxiliares,colhem o material na fonte, e lá mesmo o examinam por todos oslados, sejam homens, micróbios, cereais ou caça de pena.

Ai, secos algarismos, duros nomes científicos de raízes gregas,como falais, como sabeis arrancar lágrimas! Quando Josué de Castronos conta que os caboclos amazônicos têm “déficit” protéico – issoquer dizer, senhores, panela sem carne, sem ovo e sem leite, a purafarinha d’água com algum feijão e, sem mesmo o peixe abundanteque é deixado para dia de festa. E meninos amarelos, e cabrochas dequinze anos já sem dentes, e homens cansados, e preguiça, e derrota.

Quando, em simples números, nos dá conta do índice de morta-lidade infantil nas capitais do Brasil e assinala aquelas em que esseíndice é mais alto (Aracaju com 357 por mil, Maceió com 343, Natalcom 282), a gente vê logo o morticínio desadorado das criancinhaspobres que se acabam como pinto quando dá um ar na criadeira. Afrutificação inútil das mulheres, os penosos meses da gestação sofri-dos à toa, as dores do parto, as noites de insônia com o meninodoente que chora, a caminhada sem fim para os raros ambulatóriosde socorro – e tudo isso para dar de comer à terra do cemitério. (…)

Não se pense, entretanto que num livro como este, Geografia daFome, vamos encontrar apenas magras enfiadas de números, segui-das de uma tonelada de palavrões técnicos. O autor segue a escolacriada no Brasil pelo nosso grande Gilberto Freyre: a de completar oartista o trabalho do estudioso, e dizer em linguagem bela, compree-nsível e inteligente, as suas descobertas, conclusões ou hipóteses cien-tíficas. Por isso mesmo falei acima que eles nos botam complexos,porque não nos deixam sequer o gozo exclusivo da nossa cidadela,que sempre foi a forma artística, o “verbo”. Em geral, têm prosa tão

Page 75: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 75

boa, ou melhor do que a nossa, mais bonita e de muito mais interes-se, porque enunciam fatos enquanto nós apenas bordamos divaga-ções. Que nos sobra, afinal? Que nos vale fazer como eles dizem um“romance de fome” se esses nossos rivais nos levam toda vantagem,contando autênticas histórias de fome, coisas acontecidas, medidas epesadas, e com um interesse de narrativa que a gente jamais conse-gue igualar? (…)

Engraçado é que eles nos cortejam, nos citam, nos dão impor-tância. Obra de excessiva modéstia, ou mesmo de ironia, não sei.Depois que nos esmagam profissionalmente, tornam a nos esmagarcom gentilezas. Vejam o professor Josué de Castro, por exemplo:dedica o seu livro, além de a Euclides da Cunha, a três romancistasque ele chama de “romancistas da fome” no Brasil: Rodolfo Teófilo,José Américo de Almeida e esta sua humilde criada. E fica a gente tãoradiante e honrada, que nem se apercebe do esbulho.”

Marcel NiedergangJornalista, Paris, FrançaA Fome dos Outros (1953)No começo, havia a fome. Através dos séculos, o homem se bate

com a natureza para dela arrancar a própria subsistência. Hoje, con-templa, com orgulho, o universo mecanizado que ele domesticou eno entanto, a fome permanece. Está cientificamente demonstradoque cerca de dois terços da população do mundo vivem num estadopermanente de fome, mas as classes bem nutridas e os povos saciadosnão gostam de falar acerca da fome dos outros.

Neste sentido é que vem muito a propósito o aparecimento daGeopolítica da Fome, de Josué de Castro. Nunca, na verdade, se faloutanto de paz, de justiça social e de liberdade em escala universal, mastambém nunca foi tão esquecido o fato de que essas grandes palavrasnão têm sentido para aqueles cuja única liberdade é, muitas vezes, ade morrer lentamente de fome. Felicitações calorosas devem ser da-das ao ilustre sociólogo brasileiro, ex-presidente do Conselho da

Page 76: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

76 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas,por ter relembrado, duramente, essas verdades elementares. (…)

Vê-se, desta forma, que a obra começa por um titulo que é umdesafio e continua por quadros pessimistas e por avisos que podem pare-cer a muitos um tanto desabusados. No entanto, a sua conclusão é oti-mista. A fome não é uma fatalidade e pode ser vencida. Há uma condi-ção: a cooperação internacional nesta luta pacífica pela aceleração deuma revolução autêntica na qual, como diz o sociólogo brasileiro, sejaobtido o triunfo do homem social, isto é, de uma era que se preocupemais em produzir para satisfazer as necessidades de toda a humanidade enão apenas para ver crescer o poderio econômico de alguns.

Seu leit-motiv poderia ser este: “Se quiser a paz, declare guerra àfome”. De fato, já foi dado o toque de clarim. Durante a última guer-ra, a que foi total, a Europa conheceu esta arma que não era nova, masse revelava mortífera – a fome organizada. E um dos objetivos da Cartado Atlântico, firmada em 1941, foi a luta contra a miséria.

Ao lado de milhões de mortes causadas pelas grandes fomes espe-taculares e de milhões de seres humanos degradados por umasubnutrição crônica e insidiosa, a bomba atômica aparece quase comouma arma ridícula de destruição. E todo o poder dos armamentosmodernos é ineficaz para combater esta crise desconhecida de uns emantida e desejada por outros: a imensa fome do mundo. Uma tare-fa positiva e comum se oferece às ideologias que pretendem, por ca-minhos diferentes, trazer a paz e a felicidade aos homens.

Eis a verdadeira mensagem deste panfletário humanista. Utopiade sonhador solitário, dirão alguns. Talvez, mas sem estes solitários,nós nos sentiríamos ainda mais sós…

Luís da Câmara CascudoEscritor, folclorista e jornalistaO Historiador da Fome (1947)O amor e a fome governam este mundo, dizia Schiller. Toda ativi-

dade humana ou maior percentagem dela corre para um desses pólos:

Page 77: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 77

amor e pão. A fome – assunto, tema de livro, material de estudo e desistematização – é que não tem atraído muita gente. Bibliografia pobree nomes escassos para uma indicação bibliográfica. (…)

O professor Josué de Castro enfrentou justamente esse assuntotabu, difícil, negaceado, escondido nos relatórios e coberto com osretalhos de sinônimos bonitos como mentiras. É um sentimento pri-mário que humilha a nossa cultura de raciocínio. Não humilha aconcepção instintiva de civilização, mas os elementos formadores,minando-lhes o interior com denúncia de uma desolante e diáriaverdade natural.

Certo também é que a generalização é sugestiva para o homeminteligente. A fome pode explicar o impulso inicial de todo movi-mento de progresso e de indústria como a simples curiosidade, oarrojo cristão da catequese, o próprio instinto pessoal de um líderque sacode o seu povo, seu grupo, seu clã para acima da cordilheira,procurando terra-onde-não-se-morre, independente do problema daalimentação parca ou menos suficiente.

Indiscutível é que a fome é um elemento decisivo, um dos maisfortes, irresistíveis e poderosos na dispersão humana e no processoseletivo da massa. Seletivo está aplicado num plano biológico e nãosociológico, ou, se me permitem, fora dos modelos da AntropologiaCultural. A fome mantém em nomadismo concêntrico os árabes dodeserto, como enrijou, disciplinou, secou as gorduras, enxugou osmúsculos, afilou o perfil agudo do sertanejo nordestino, sacudindo-opara o Pará, Amazonas, Acre, com um teor de alimentação que é afome endêmica, mas politicamente empurrando os limites do Brasil,espalhando o conhecimento geográfico, industrializando os méto-dos indígenas de caça e pesca, determinando mesmo uma mentali-dade sugestiva e viril que resiste até ir cedendo, devagar, aos assaltosde todas as febres que credenciam a majestade do paludismo.

Josué de Castro, com a Geografia da Fome, iniciou seu grandeestudo num plano de monumento, de extensão, de esforço continua-do. Não apenas trouxe para o estudo dos aspectos brasileiros da fome,

Page 78: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

78 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

a capitalização de leituras, viagens, observações e intuições surpreen-dentes, mas articulou todo este material em esquemas lógicos de umacampanha de inteligência e de humanismo radical.

Uma boa atitude desse livro, primeiro de uma série, é ser obje-tivo. Está voltado para o Brasil. É possível discordar, aplaudir ounegar porque o ambiente ficou ao alcance da verificação. Todas asvirtudes de análise foram mobilizadas para atender aos reclamosmais modernos na espécie. Divisão de áreas, subáreas, característi-cas alimentares, resultados, sugestões, comentários, críticas. Histó-ria, Sociologia, Folclore, Antropogeografia trazem seus afluentespara o rio imenso. O assunto, velho mas amedrontado pelo medode desentocá-lo, aparece novo e vivo, situado com as cores reais everídicas de uma constatação positiva. É um inquérito que se inicianesse depoimento, rico de notícia e de informação, exigindo o en-dosso ou a negativa.

Ninguém simpatizará, ideal e romanticamente, com esse assun-to. Estudar a fome, indicá-la, riscar no mapa do Brasil suas moradase cottages de vilegiatura, é um desaforo que devia ter sido impresso hámuitos anos para fixar o problema, colocá-lo perto dos olhos e dasresoluções sucessivas dos técnicos. O aspecto psicológico da fomecontinua sendo, em sua enunciação bem educada e palaciana, o mes-mo tabu do sexo de antes de Freud, como notou agudamente Josuéde Castro. A palavra fome é humilhante, inferior, indigna de todosos códigos da boa educação. Dizer que se tem fome, quando o almo-ço se eterniza, é um primor de deseducação. Ainda uma das atitudesde absoluto bom gosto, é fingir saciedade, displicência, recusandorepetir o prato. Médicos e protocolistas domésticos ensinam: “saiada mesa sem estar satisfeito”…

Ninguém no mundo aristocrático do Oriente tem o atrevimentode ir para a mesa em primeiro lugar. Morrendo de fome, verdes, osconvidados dos príncipes árabes empurram uns aos outros, aparen-tando indisposição, superioridade, fartura. Nenhum menino brasi-leiro do meu tempo dizia: “Mamãe, tô cum fome!”, para não levar

Page 79: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 79

um beliscão espontâneo e reprimidor do desejo que atrapalhava ocomplexus do bom comportamento.

Ainda hoje, com tanto século de marcha, a maior festa oficial édar-de-comer ao visitante, rei, barão, soldado, ladrão. A maior ho-menagem é o brinde-de-honra, no fim, de copo na mão, ao redor damesa. Ergamos as nossas taças…

Vou ficar aqui. Josué de Castro está, com um atrevimento quemerece sucesso, atravessando uma mata cheia de encanto e de misté-rio confuso. Chegando do outro lado, deixou, nas pegadas, a picadaque a marcha fará uma estrada real. Volumosa é a sua tarefa. Desejointelectual onde a imaginação pouco colabora: muito livro para ler,muito mundo para ver, muito escuro para clarear. Este é um livroque anuncia dedicação digna de um homem que ama o seu país sa-bendo a verdade.

Page 80: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear
Page 81: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

P R I N C I P A I S O B R A SD E J O S U É D E C A S T R O *

• “O problema fisiológico da alimentação no Brasil”. Tese de Livre– Docência em Fisiologia. Faculdade de Medicina do Recife, 1932.

• “Metabolismo basal e clima.” Recife: Revista Médica dePernambuco nº 2, 1932.

• O problema da alimentação no Brasil. São Paulo: Cia. EditoraNacional, 1933.

• Condições de vida das classes operárias do Recife. Recife: Departa-mento de Saúde Pública, 1935.

• Alimentação e raça. São Paulo: Civilização Brasileira, 1935.• Alimentação brasileira à luz da geografia humana. Rio de Janeiro:

Edição da Livraria Globo, 1937.• Documentário do Nordeste. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1937.• Fisiologia dos tabus. Rio de Janeiro: Edições Nestlé, 1939.• Ensaios de Geografia Humana. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1939.• Geografia da Fome. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1947.• Geopolítica da Fome. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil,

1951.• A cidade do Recife: Ensaios de Geografia Humana. Rio de Janeiro:

Casa do Estudante do Brasil, 1955.

* Muitas de suas obras foram traduzidas e editadas em 25 idiomas.

Page 82: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

82 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

• Três personagens: Einstein, Fleming, Roosevelt. Rio de Janeiro: Casado Estudante do Brasil, 1955.

• O Livro Negro da Fome. São Paulo: Brasiliense, 1957.• Ensaios de Biologia Social. São Paulo: Brasiliense, 1957.• Sete palmos de terra e um caixão. São Paulo: Brasiliense, 1964.• Ensayos sobre el Sub-Desarrollo. Buenos Aires: Siglo Veinte, 1965.• Adonde va la América Latina? Lima: Latino Americana, 1966.• Homens e caranguejos. São Paulo: Brasiliense, 1967.• Explosão demográfica e a fome no mundo. Lisboa: Editora Itaú,

1968.• El Hambre: problema universal. Buenos Aires: Editora La Pleyade,

1968.• Latin American Radicalism. Nova York: Vintagem books, 1969.• A estratégia do desenvolvimento. Lisboa: Editora Seara Nova, 1971.• Mensagens. Bogotá: Ediciones Colibri, 1980.

Algumas obras sobre Josué de CastroL’ABBATE, Solange. “Fome e desnutrição: os descaminhos da

política social” Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdadede Filosofia, Universidade de São Paulo, 1982.

ABRAMOWAY, Ricardo. “A atualidade do método de Josué deCastro e a situação alimentar mundial” Revista de Economia e Socio-logia Rural, São Paulo, v. 34, n. 3-4, pp. 81-102, jul./dez. 1996.

ACADEMIA PERNAMBUCANA DE MEDICINA. Ciclo de es-tudos sobre Josué de Castro; depoimentos. Recife: Ed. Universitária, 1983.

ANDRADE, Manuel Correia de. “Atualização do pensamentode Josué de Castro” Conjuntura Alimentos, São Paulo, v. 5, n. 2,jun. 1993.

_________. “Josué de Castro: o homem, o cientista e o seu tem-po” In: Fome: um tema proibido – últimos escritos de Josué de Castro. 3.ed. rev. aum. Recife: Companhia Editora, 1996.

ANDRADE, Manuel Correia de (et al.). Josué de Castro e o Bra-sil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.

Page 83: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 83

ARAÚJO, Tânia Bacelar de. Relendo a Geografia da fome. In:Seminário de comemoração ao cinqüentenário da Geografia da Fome.Anais. Recife: Centro Josué de Castro, 1996.

ARRUDA, Bertoldo K. Geografia da Fome: da lógica regional àuniversalidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3,p. 545-549, jul./set. 1997.

CARVALHO, Alfredo Teles de. “Josué de Castro na perspectivada geografia brasileira, 1956-1958”, dissertação (Mestrado em Geo-grafia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Fe-deral de Pernambuco, 2002.

CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil.São Paulo: EDUSP, 1983.

CASTRO, Anna Maria de. Nutrição e desenvolvimento: análise deuma política. Tese (Livre-docência em Sociologia) – Instituto deNutrição, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1977.

CASTRO, Anna Maria de (Org.). Fome: um tema proibido – úl-timos escritos de Josué de Castro. 4. ed. rev. aum. Rio de Janeiro: Civi-lização Brasileira, 2003.

COELHO, Tânia. “Fome: um combate de toda a vida”, Ecologiae Desenvolvimento, [S.l.], v. 2, n. 33, nov. 1993.

COSTA, Christiane, FRANÇA, Valdo (Org.). Alternativas con-tra a fome: soluções nutritivas, baratas e regionais para combater a fome.São Paulo: Polis, 1993.

DEMOCRACIA VIVA. Segurança alimentar. Rio de Janeiro:Ibase, maio/jun. 2003. Edição especial.

LIMA, Eronides da Silva. Mal de fome e não de raça: gênese, cons-tituição e ação política da educação alimentar – Brasil 1934-1946. Riode Janeiro: Fiocruz, 2000.

LIMA, Jamesson Ferreira. Significado cultural de Josué de Cas-tro. Anais do VII Congresso da Sociedade Brasileira de Médicos Escrito-res. [S.l.: s.n.], 15-18 fev. 1978.

_________. Josué de Castro: um mundo sem fome. Oficina deLetras, [S.l.], n. 5, mar. 1995.

Page 84: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

84 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

MANÇANO, Bernardo, WALTER, Carlos. Josué de Castro: vidae obra. São Paulo: Expressão Popular, 2000.

MENEZES, Francisco Reginaldo de Sá. Josué de Castro: por ummundo sem fome. São Paulo: Mercado Cultural, 2004 (Projeto Me-mória, 8).

MONTENEGRO, Olívio. Retratos e outros ensaios. Rio de Janei-ro: José Olympio, 1959.

NASCIMENTO, Renato Carvalheira do. “Josué de Castro: so-ciólogo da fome”, dissertação (Mesrado em Sociologia) – Departa-mento de Sociologia, Universidade de Brasília, 2002.

O drama universal da fome. Simpósio comemorativo dos 50 anosde Josué de Castro. Rio de Janeiro: Ascofam/MEC, 1958.

SILVA, Tânia Elias M. “osué de Castro: para uma poética dafome”, tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de CiênciasSociais, Pontifícia Universidade Católica (São Paulo), 1998.

TARANTO, Giuseppe A. di. Sociedade e subdesenvolvimento naobra de Josué de Castro. Belém: CEJUP, 1993.

TENDLER, Silvio. Josué de Castro: cidadão do mundo. Rio deJaneiro: Bárbaras Produções, 1995. Documentário em vídeo.

TOBELEM, Alain. Josué de Castro e a descoberta da fome. Rio deJaneiro: Leitura, 1974.

VASCONCELOS, Francisco de A. Guedes de. Do homem-ca-ranguejo ao homem-gabiru: uma interpretação da trajetória da fomeno Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, n. 44, pp. 9-13, set. 1994.

Page 85: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

C A D E R N O D E F O T O S

Page 86: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

*

Josué com 2 anos

Aos 20 anos, 1926

Page 87: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

Glauce e Josué, 1952

Page 88: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

Laboratório do Instituto de Nutrição, 1947

Faculdade Nacional de Filosofia, posse da cadeira de Geografia Humana, 1948

Page 89: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

Sede da FAO, Roma

Faculdade Nacional de Filosofia, posse da cadeira de Geografia Humana, 1948

Page 90: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

Conferência 1960/1962

Câmara dos Deputados

Page 91: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

Encarte UERJ

Com o Papa Pio XII, 1955

Page 92: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

Paris, 1955

Feira de livros em Lisboa, 1972

Page 93: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

Com o presidente Getúlio Vargas

Page 94: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

Josué, 1953

Page 95: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

Recebendo o título de professor Honoris Causa, Peru, 1954

Conferência, Bélgica

Page 96: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

União Soviética, 1954

Page 97: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

Discurso de posse do novo presidente da FAO, 1951

Campanha contra fome

Page 98: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

1960

1964

Page 99: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

1967

1969

Page 100: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear
Page 101: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

T E X T O S E S C O L H I D O S

D E J O S U É D E C A S T R O

Page 102: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear
Page 103: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

1 . O C I C L O D OC A R A N G U E J O

A família Silva mora nos “mangues” da cidade do Recife, num“mocambo” que o chefe da família fez quando chegou de cima.

A família é originária do sertão. Desceu do Cariri, na seca, perse-guida pela fome. Fez uma paradinha no brejo, para tentar o trabalhodas usinas, mas não se pode agüentar com os salários dessa zona, semter direito a plantar senão cana. Sem ter, nem ao menos o recurso doxiquexique e da macambira, como no sertão, para quando a fomeapertasse.

Nesse tempo espalharam pelo interior um boato que o governotinha criado um ministério para defender os interesses do trabalha-dor e que com os fiscais da lei, a vida na cidade estava uma beleza,trabalhador ganhando tanto que dava para comer até matar a fome.A família Silva ouviu esta história, acreditou piamente e resolveudescer para a cidade, para gozar das vantagens que o governo bomoferecia aos pobres.

Logo de chegada a família viu que a coisa era outra. Não haviadúvida que a cidade era bonita, com tanto palácio e as ruas fervilhan-do de automóvel. Mas a vida do operário, apertada como sempre.Muita coisa para os olhos, pouca coisa prá barriga.

O caboclo Zé Luis da Silva não quis desanimar. Adaptou-se:“Quem não tem remédio remediado está”. Entrou na luta da cidadecom todas as forças de que dispunha, mas as forças dele não rendiam

Page 104: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

104 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

que desse para a família viver com casa, roupa e comida. Casa só de80 mil réis para cima, para comida uns 150 e os salários sem passa-rem de 5 mil réis por dia.

Começou o arrocho. Só havia uma maneira de desapertar: eracair no mangue. No mangue não se paga casa, come-se caranguejo eanda-se quase nu. O mangue é um paraíso. Sem o cor-de-rosa e oazul do paraíso celeste, mas com as cores negras da lama, paraíso doscaranguejos.

No mangue o terreno não é de ninguém. É da maré. Quando elaenche, se estira e se espreguiça, alaga a terra toda, mas quando elabaixa e se encolhe, deixa descobertos os calombos mais altos. Numdeles, o caboclo Zé Luis levantou o seu mocambo. As paredes devaras de mangue e lama amassada. A coberta de palha, capim seco eoutros materiais que o monturo fornece. Tudo de graça encontradoali mesmo numa bruta camaradagem com a natureza. O mangue éum camaradão. Dá tudo, casa e comida: mocambo e caranguejo.

Agora, quando o caboclo sai de manhã para o trabalho, já o restoda família cai no mundo. Os meninos vão pulando do jirau, abrindoa porta e caindo no mangue. Lavam as ramelas dos olhos com a águabarrenta, fazem porcaria e pipi, ali mesmo, depois enterram os bra-ços lama a dentro para pegar caranguejos. Com as pernas e os braçosatolados na lama, a família Silva está com a vida garantida. Zé Luisvai para o trabalho sossegado, porque deixa a família dentro da pró-pria comida, atolada na lama fervilhante de caranguejos e siris.

Os mangues do Capibaribe são o paraíso do caranguejo. Se aterra foi feita para o homem, com tudo para bem servi-lo, também omangue foi feito especialmente para o caranguejo. Tudo aí, é, foi ouestá para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. Alama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a marétraz, quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nascenela, vive dela. Cresce comendo lama, engordando com as porcariasdela, fazendo com lama a carninha branca de suas patas e a geléiaesverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado o povo daí vive

Page 105: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 105

de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seuscascos até que fiquem limpos como um copo. E com a sua carne feitade lama fazer a carne do seu corpo e a carne do corpo de seus filhos.São cem mil indivíduos, cem mil cidadãos feitos de carne de caran-guejo. O que o organismo rejeita, volta como detrito, para a lama domangue, para virar caranguejo outra vez.

Nesta placidez de charco, identificada, unificada no ciclo do ca-ranguejo, a família Silva vai vivendo, com a sua vida solucionada,como uma das etapas do ciclo maravilhoso. Cada elemento da famí-lia marcha dentro desse ciclo até o fim, até o dia de sua morte.

Nesse dia os vizinhos piedosos levarão aquela lama que deixou deviver, dentro dum caixão para o cemitério de Santo Amaro, onde elaseguirá as etapas do verme e da flor. Etapas demasiado poéticas, cheiasduma poesia que o mangue não comportaria. Parte-se aparentemen-te, nesse dia, o ciclo do caranguejo, mas os parentes que ficam, derra-mam caridosos as suas lágrimas no mangue para alimentar a lamaque alimenta o ciclo do caranguejo.

Page 106: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear
Page 107: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

2 . P R E F Á C I O D A P R I M E I R AE D I Ç Ã O D E G E O G R A F I A D AF O M E

O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal pon-to delicado e perigoso que se constituiu num dos tabus de nossacivilização. É realmente estranho, chocante, mesmo à observação,o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por tãoexcessiva capacidade de escrever e de publicar, haja até hoje tãopouca coisa escrita acerca do fenômeno da fome, em suas diferen-tes manifestações.

Consultando a bibliografia mundial sobre o assunto, verifica-sea sua extrema exigüidade. Extrema e estranha quando a pomos emcontraste com a minuciosa abundância de trabalhos sobre temas ou-tros de muito menor significação. Tal pobreza bibliográfica se apre-senta ainda mais estranha e mais chocante quando meditamos acercado conteúdo do tema da fome – de sua transcendental importância ede sua categórica finalidade orgânica.

Já outros estudiosos se tinham espantado diante deste inexplicávelvazio bibliográfico: não há muito, Gregorio Marañon, recolhendomaterial para a elaboração de um trabalho sobre a regulação hormonalda fome,1 surpreendeu-se com o número insignificante de fichas queconseguiu reunir acerca deste problema fundamental.

1 Marañon, Gregorio, “La Regulación Hormonal del Hambre”, in Estudios deEndocrinología, 1938.

Page 108: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

108 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Registrando o fato, não se deu, no entanto, o escritor espanhol,interessado no momento noutra ordem de idéias, ao trabalho debuscar as razões ocultas que determinaram esta quase que abstençãode nossa cultura em abordar o tema da fome. Em examiná-lo mais afundo, não só em seu aspecto estrito de sensação – impulso e instintoque tem servido de força motriz à evolução da humanidade (Spinosa)– como em seu aspecto mais amplo da calamidade universal.

Sob este último aspecto, se fizermos um estudo comparativo dafome com as outras grandes calamidades que costumam assolar omundo – a guerra e as pestes ou epidemias – verificaremos, maisuma vez, que a menos debatida, a menos conhecida em suas causas eefeitos, é exatamente a fome. Para cada mil publicações referentesaos problemas da guerra, pode-se contar com um trabalho acerca dafome e, no entanto, os estragos produzidos por esta última calamida-de são maiores do que os das guerras e das epidemias juntas, confor-me é possível apurar, mesmo contando com as poucas referênciasexistentes sobre o assunto.2 Havendo mais, a favor deste triste prima-do da fome sobre as outras calamidades, o fato universalmente com-provado de que ela constitui a causa mais constante e efetiva dasguerras e a fase preparatória do terreno, quase que obrigatória, para aeclosão das grandes epidemias.

Quais são as causas ocultas desta verdadeira conspiração de silên-cio em torno da fome? Será por simples obra do acaso que o temanão tem atraído devidamente o interesse dos espíritos especulativos ecriadores dos nossos tempos? Não cremos. O fenômeno é tãomarcante e se apresenta com tal regularidade que, longe de traduzirobra do acaso, parece condicionado às mesmas leis gerais que regu-lam as outras manifestações sociais de nossa cultura.

Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultu-ra: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordempolítica e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tor-

2 Waldorf, Cornelius. The Famines of the World, 1878.

Page 109: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 109

naram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhávelde ser abordado publicamente. O fundamento moral que deu ori-gem a esta espécie de interdição baseia-se no fato de que o fenômenoda fome, tanto a fome de alimentos como a fome sexual, é um ins-tinto primário e por isso um tanto chocante para uma culturaracionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor opredomínio da razão sobre o dos instintos na conduta humana.

Considerando o instinto como o animal e só a razão como osocial, a nossa civilização, em sua fase decadente, vem procurandonegar sistematicamente o poder criador dos instintos, considerando-os forças desprezíveis. Aí encontramos uma das imposições da almacoletiva da cultura, que fez do sexo e da fome assuntos tabus – impu-ros e escabrosos – e por isto indignos de serem tocados.

Sobre o problema do sexo, foi mantido um silêncio opressor, atéo dia em que um homem de gênio, num gesto inconveniente e pro-videncial, afirmou, diante do fingido espanto da ciência e da moraloficiais, que o instinto sexual é uma força invencível, tão intensa queatinge à consciência e a domina inteiramente. Freud demonstroucom tal genialidade o primado do instinto, que é essencial, sobre oracional, que é acessório, no desempenho do comportamento huma-no não houve remédio senão aceitar-se, mesmo a contragosto, a suateoria e deixar-se abrir os diques com que se procurava ingenuamen-te afogar as raízes da própria vida. Desde então foi possível debater-se em altas vozes o problema do sexo.

Quanto à fome, foram necessárias duas terríveis guerras mundiaise uma tremenda revolução social – a revolução russa – na qual pere-ceram 17 milhões de criaturas, dos quais 12 milhões de fome, paraque a civilização ocidental acordasse do seu cômodo sonho e se aper-cebesse de que a fome é uma realidade demasiado gritante e extensa,para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo.

Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos dasminorias dominantes também trabalhavam para escamotear o fenô-meno da fome do panorama espiritual moderno. É que ao imperia-

Page 110: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

110 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

lismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmointeressava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtosalimentares continuassem a se processar indefinidamente como fe-nômenos exclusivamente econômicos – dirigidos e estimulados den-tro dos seus interesses econômicos – e não como fatos intimamenteligados aos interesses da saúde pública. É a dura verdade que as maisdas vezes esses interesses eram antagônicos.

Veja-se o caso da Índia, por exemplo. Segundo nos conta Réclus,3

nos últimos 30 anos do século passado morreram de inanição naque-le país mais de 20 milhões de habitantes; só no ano de 1877 perece-ram de fome cerca de quatro milhões. E, no entanto, de acordo coma sugestiva observação de Richard Temple – “enquanto tantos infeli-zes morriam de fome, o porto de Calcutá continuava a exportar parao estrangeiro quantidades consideráveis de cereais. Os famintos eramdemasiado pobres para comprar o trigo que lhes salvaria a vida”. Élógico que os grandes importadores, negociantes de Londres,Rotterdam e outras grandes praças européias, que tiravam grandesproventos de suas importações da Índia, faziam o possível para aba-far na Europa os rumores longínquos desta fome longínqua, a qual,se tomada na devida consideração, poderia atrapalhar os seus lucrati-vos negócios.

Também os governos nazistas que se haviam apoderado do po-der em vários países e de cuja política fazia parte obrigatória a propa-ganda intempestiva de prosperidades inexistentes, não podiam vercom bons olhos quaisquer tentativas que viessem mostrar, às claras,aos outros países, em que extensão a fome participava dos destinosde seus povos.

A própria ciência e a técnica ocidentais, envaidecidas por suas bri-lhantes conquistas materiais, no domínio das forças da natureza, sesentiram humilhados, confessando abertamente o seu quase absolutofracasso em melhorar as condições de vida humana no nosso planeta e,

3 Réclus, Elisée, Nouvelle Géographie Universelle, 1875-94.

Page 111: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 111

com o seu reticente silêncio sobre o assunto, faziam-se consciente ouinconscientemente cúmplices dos interesses políticos que procuravamocultar a verdadeira situação de enormes massas humanas envolvidasem caráter permanente no círculo de ferro da fome.

Hoje, tendo sido possível realizar com a aquiescência oficial4 umasérie de pesquisas bem orientadas nas mais diferentes regiões da ter-ra, acerca das condições de nutrição dos povos e tendo-se evidencia-do dentro de um critério rigorosamente científico, o fato de que cer-ca de dois terços da humanidade vivem num estado permanente defome, começa a mudar a atitude do mundo.

É claro que para essa mudança de atitude, muito tem contribuídoa pressão de fatos inexoráveis. Há a consciência universal de que atra-vessamos uma hora decisiva na qual só reconhecendo os grandes errosde nossa civilização podemos reencontrar o caminho certo e fazê-lasobreviver à catástrofe. Desses erros, um dos mais graves é, sem nenhu-ma dúvida, este de termos deixado centenas de milhões de indivíduosmorrendo à fome num mundo com capacidade quase infinita deaumento de sua produção, dispondo de recursos técnicos adequados àrealização desse aumento. Mundo capaz de produzir alimentos paracinco e meio bilhões de homens, segundo os cálculos de East, oitobilhões, segundo os de Penk, e 11 bilhões, segundo os de Kucszinski;portanto, pelo menos, para o dobro da população atual.5

A demonstração mais efetiva da mudança radical da atitude uni-versal, em face do problema, encontra-se na realização da Conferên-cia de Alimentação de Hot Springs, a primeira das conferênciasconvocadas pelas Nações Unidas para tratar de problemas funda-mentais à reconstrução do mundo de após-guerra.

4 Desde 1929 a liga das Nações inscreveu o problema da alimentação no progra-ma de seus trabalhos, fazendo realizar, sob o patrocínio de sua Organização deHigiene, estudos detalhados em diferentes países e dando publicidade a umasérie de valiosos relatórios sobre o assunto.

5 Ferenczi, Imre, L’Optimum Synthétique du Peuplement, Paris, Institut Internationalde Coopération Intelectuelle, Societé des Nations, 1938.

Page 112: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

112 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Nesta conferência, reunida em 1943, 44 nações, através dosdepoimentos de eminentes técnicos no assunto, confessaram, semconstrangimento, quais as condições reais de alimentação dos seusrespectivos povos e planejaram as medidas conjuntas a serem leva-das a efeito para que sejam apagadas ou pelo menos clareadas, nosmapas mundiais de demografia qualitativa, estas manchas negrasque representam núcleos de populações subnutridas e famintas,exteriorizando, em suas características de inferioridade antropoló-gica, em seus alarmantes índices de mortalidade e em seus quadrosnosológicos de carências alimentares – beribéri, pelagra, escorbuto,xeroftalmia, raquitismo, osteomalácia, bócios endêmicos, anemiasetc.– a penúria orgânica, a fome global ou específica de um, devários e, às vezes, de todos os elementos indispensáveis à nutriçãohumana.

Para que as medidas projetadas possam atingir o seu objetivo,faz-se, no entanto, necessário intensificar e ampliar cada vez mais osestudos sobre a alimentação no mundo inteiro; donde a obrigaçãoem que se encontram os estudiosos deste problema, de apresentaremos resultados de suas observações pessoais, como contribuições par-ciais para o levantamento do plano universal de combate à fome, deextermínio à mais aviltante das calamidades, uma vez que a fometraduz sempre um sentimento de culpa, uma prova evidente de queas organizações culturais vigentes, em satisfazer a mais fundamentaldas necessidades humanas, a necessidade de alimentos.

Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções ade-quadas ao problema da alimentação dos povos, reside exatamente nopouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, comoum complexo de manifestações simultaneamente biológicas, econô-micas e sociais. A maior parte dos estudos científicos sobre o assuntose limita a um dos seus aspectos parciais, projetando uma visão uni-lateral do problema. São quase sempre trabalhos de fisiólogos, dequímicos, de economistas, especialistas em geral limitados por con-tingência profissional ao quadro de suas especializações.

Page 113: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 113

Foi diante desta situação que resolvemos encarar o problema sobuma nova perspectiva, de um plano mais distante, donde se possaobter uma visão panorâmica de conjunto, visão em que alguns pe-quenos detalhes certamente se apagarão, mas na qual se destacarãode maneira compreensiva as ligações, as influências e as conexões dosmúltiplos fatores que interferem nas manifestações do fenômeno.

Para tal fim, pretendemos lançar mão do método geográfico, noestudo do fenômeno da fome. Único método que, a nossa ver, per-mite estudar o problema em sua realidade total, sem arrebentar-lheas raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras outras manifesta-ções econômicas e sociais da vida dos povos. Não o método descriti-vo da antiga geografia, mas o método interpretativo da moderna ciên-cia geográfica, que se corporificou dentro dos pensamentos fecundosde Ritter, Humboldt, Jean Brunhes, Vidal de La Blache, GriffithTaylor e tantos outros.

Não queremos dizer com isto que o nosso trabalho seja estrita-mente uma monografia geográfica da fome, em seu sentido maisrestrito, deixando à margem os aspectos biológicos, médicos e higiê-nicos do problema; mas que, encarando esses diferentes aspectos, ofaremos sempre, orientados pelos princípios fundamentais da ciên-cia geográfica, cujo objetivo básico é localizar com precisão, delimi-tar e correlacionar os fenômenos naturais e culturais que se passam àsuperfície da terra. É dentro desses princípios geográficos, da locali-zação, da extensão, da causalidade, da correlação e da unidade terres-tre, que pretendemos encarar o fenômeno da fome. Por outras pala-vras, procuraremos realizar uma sondagem de natureza ecológica,dentro deste conceito tão fecundo de “Ecologia”, ou seja, do estudodas ações e reações dos seres vivos diante das influências do meio.

Nenhum fenômeno se presta mais para ponto de referência noestudo ecológico destas correlações entre os grupos humanos e osquadros regionais que eles ocupam, do que o fenômeno da alimenta-ção – o estudo dos recursos naturais que o meio fornece para subsis-tência das populações locais e o estudo dos processos através dos

Page 114: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

114 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

quais essas populações se organizam para satisfazer as suas necessida-des fundamentais em alimentos. Já Vidal de La Blache havia afirma-do há muito tempo “que entre as forças que ligam o homem a umdeterminado meio, uma das mais tenazes é a que transparece quandose realiza o estudo dos recursos alimentares regionais”.6

Neste nosso ensaio de natureza ecológica tentaremos, pois, anali-sar os hábitos alimentares dos diferentes grupos humanos ligados adeterminadas áreas geográficas, procurando, de um lado, descobriras causas naturais e as causas sociais que condicionaram o seu tipo dealimentação, com suas falhas e defeitos característicos e, de outrolado, procurando verificar até onde esses defeitos influenciam a es-trutura econômico-social dos diferentes grupos estudados. Assim fa-zendo, acreditamos poder trazer alguma luz explicativa a inúmerosfenômenos de natureza social até hoje mal compreendidos, por nãoterem sido levados na devida conta os seus fundamentos biológicos.7

6 Blache, Vidal de La, Príncipes de Géographie Humaine, 1922.7 Não se pense daí, que num exagero descabido de especialista obcecado pela impor-

tância de seus problemas, iremos tentar a criação de qualquer nova teoria alimentardas civilizações, num novo broto desta Escola biossocial de inesgotável fecundidade.Estamos longe desta maneira de ver, de tentativas como a do famoso escritor e jorna-lista mexicano Francisco Bulnes, que, no fim do século passado, um tanto influenciadopelas idéias das hierarquias raciais, procurou explicar todas as diferenças entre osgrupos culturais por seus tipos de alimentação. “A humanidade, de acordo com suasevera classificação econômica deve ser dividida em três grandes raças – a raça dotrigo, a raça do milho e a raça do arroz. Qual delas é indiscutivelmente superior?”Com esta pergunta iniciava Bulnes o desenvolvimento de seu raciocínio parademostrar que só a raça do trigo é capaz de atingir as etapas da alta civilização. Noseu livro extraordinariamente interessante, se anotarmos a época do seu aparecimen-to no século passado – “El porvenir de las naciones hispano-americanas ante las con-quistas de Europa y Estados Unidos” – 1889, Bulnes revela-se um paciente investiga-dor e inteligente renovador do panorama mental americano, mas também um apai-xonado de suas próprias idéias, capaz de forçar os argumentos para demonstrar amais absurda de suas teses. No nosso ensaio não pretendemos provar nada de pare-cido. Não queremos convencer ninguém de que a fome seja a mola única da evolu-ção social, nem que sejam os alimentos a única matéria-prima para fabricação dastintas com que são coloridos os diferentes quadros culturais do mundo, mas tãosomente destacar desses quadros os traços negros da fome e da miséria que tarjamquase todos eles com um friso mais ou menos acentuado.

Page 115: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 115

Acreditamos que já é tempo de precisar bem o nosso conceito defome – conceito demasiado extenso e, portanto, suscetível de grandesconfusões. Não constitui objeto deste ensaio o estudo da fome indivi-dual, seja em seu mecanismo fisiológico, já hoje bem conhecido graçasaos magistrais trabalhos de Schiff, Lucciani, Turró, Cannon e outrosfisiólogos; seja em seu aspecto subjetivo de sensação interna, aspectoeste que tem servido de material psicológico para as magníficas cria-ções dos chamados romancistas da fome. Escritores corajosos que re-solveram violar o tabu e nos legaram páginas geniais e heróicas, comoas de um Knut Hamsun, no seu romance “Fome” – verdadeiro relató-rio minucioso e exato das diferentes, contraditórias e confusas sensa-ções que a fome produziu no espírito do autor; como as de um PanaitIstrati, vagando esfomeado nas luminosas planícies da Romênia, comoas de um Felekhov e um Alexandre Neverov, narrando com dramáticaintensidade a fome negra da Rússia em convulsão social; como as deum George Fink, sofrendo fome nos subúrbios cinzentos e sórdidos deBerlim; e como as de um John Steinbeck, contando, em Vinhas da Iraa epopéia da fome da “família Joad”, através das mais ricas regiões dopaís mais rico do mundo – os Estados Unidos da América.

Não é esse tipo excepcional de fome, simples traço melodramáti-co no emaranhado desenho da fome universal que interessa ao nossoestudo. O nosso objetivo é analisar o fenômeno da fome coletiva –da fome atingindo endêmica ou epidemicamente as grandes massashumanas. Não só a fome total, a verdadeira inanição que os povos delíngua inglesa chamam de “starvation”, fenômeno, em geral, limita-do a áreas de extrema miséria e a contingências excepcionais, massim como o fenômeno muito mais freqüente e mais grave, em suasconseqüências numéricas, da fome parcial, da chamada fome oculta,na qual pela falta permanente de determinados elementos nutritivos,em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixammorrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias.

É principalmente o estudo dessas coletivas fomes parciais, dessasfomes específicas, em sua infinita variedade, que constitui o objetivo

Page 116: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

116 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

nuclear do nosso trabalho. Com a sua publicação visamos contribuircom uma parcela infinitesimal para a construção do plano de ressur-gimento de nossa civilização, através da revalorização fisiológica dohomem.

Poderá, à primeira vista, parecer uma desmedida pretensão que oautor de um estudo de categoria tão modesta como este, atribua-lhequalquer interferência – por mínima que seja – nos destinos univer-sais da humanidade. Encontramos, porém, uma explicação e umajustificativa para esta nossa atitude, na afirmativa recente do filósofoinglês Bertrand Russell de que “nunca houve momento histórico noqual o concurso do pensamento e da consciência individuais fossetão necessário e importante para o mundo como em nossos dias”. Emais ainda “que todo homem, qualquer homem comum, poderácontribuir para a melhoria do mundo”. É com esta mesma crença naobra de cooperação de cada um, de co-participação ativa na busca deum mundo melhor, que planejamos esta obra abordando o tema dafome em sua expressão universal, mostrando com que intensidade eem que extensão o fenômeno se manifesta nas diferentes coletivida-des humanas.

De fato, o conhecimento exato da situação alimentar dos povos,dos recursos de que poderão dispor para satisfazer suas necessidadesde nutrição é absolutamente indispensável para que se leve a bomtermo a revolução social que se processa com incrível velocidade nosdias em que vivemos. Revolução que, segundo se vislumbra pelastransformações já processadas, está criando universalmente um novosistema de vida política, que poderemos chamar, como sugere JulianHuxley,8 a era do homem social, em contraposição a essa outra eraque terminou com a II Guerra Mundial, a era do homem econômi-co. O que caracteriza fundamentalmente esta nova era é uma locali-zação muito mais intensa do homem biológico como entidade con-creta e a prioridade concedida aos problemas humanos sobre os pro-

8 Huxley, Julian, On Living in a Revolution, 1944.

Page 117: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 117

blemas de categoria estritamente econômica no sentido da clássicaeconomia do lucro.

Realmente, enquanto até a última guerra, a nossa civilizaçãoocidental, em seu exagero de economismo, quase esquecera o ho-mem e seus problemas, preocupando-se morbidamente em con-quistar pela técnica todas as forças naturais, pondo todo o seu inte-resse nos problemas de exploração econômica e de produção deriqueza, o que se vê hoje por toda a parte é o sacrifício obrigatóriodos interesses econômicos aos interesses sociais. É a tentativa cadavez mais promissora de pôr o dinheiro a serviço do homem e não ohomem escravo do dinheiro. De dirigir a produção de forma a sa-tisfazer as necessidades dos grupos humanos e não deixar o homemse matando estupidamente para satisfazer os insaciáveis lucros daprodução.

Aparecendo na aurora dessa nova era social, onde a trágica noitedo fascismo ainda projeta as suas sombras, este livro pretende ser umdocumentário científico desta tragédia biológica, na qual inúmerosgrupos humanos morreram e continuam morrendo à fome, ao fina-lizar-se esta tenebrosa era do homem econômico.

Para que se compreenda bem e se possa perdoar o uso que faz oautor, em certas passagens do seu livro, de tintas um tanto negras,é bom que o leitor se lembre de que esta obra, documentário deuma era de calamidades, foi pensada e escrita sobre a influênciapsicológica da pesada atmosfera que o mundo vem respirando nosúltimos 10 anos. Atmosfera abafada pela fumaceira das bombas edos canhões, pela pressão das censuras políticas, pelos gritos de ter-ror e de revolta dos povos oprimidos e pelos gemidos dos vencidose aniquilados pela fome. Atmosfera que o sociólogo Sorokin pintacom as seguintes palavras: “vivemos e agimos numa era de grandescalamidades. A guerra, a revolução, a fome e a peste cavalgam no-vamente em nosso planeta. Novamente elas cobram seu mortíferotributo da humanidade sofredora. Novamente elas influenciam cadamomento da nossa existência: nossa mentalidade e nossa conduta,

Page 118: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

118 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

nossa vida social e nossos processos culturais.”9 Devemos confessarhonestamente que não nos foi possível fugir na elaboração do nos-so trabalho a tão dominadora influência.

Várias foram as razões que nos levaram a planejar a realizaçãodesta obra em diferentes volumes. A primeira delas é a desmedidaextensão do seu campo de observação, abrangendo todos os conti-nentes, investigando as condições de vida nos mais variados recantosda superfície da terra. Por mais impressionista que seja o retrato quetentamos pintar de cada uma das regiões estudadas, não é possívelsintetizar os seus traços característicos além de certos limites. Todatentativa de concentrar tão abundante e variado material num sóvolume seria um fracasso por despojar a realidade de toda a sua ri-queza de conteúdo vital, anulando desta forma os propósitos do es-tudo projetado.

A segunda razão se fundamenta na evidência de que um estudode tal envergadura, mesmo quando as condições são as mais favorá-veis à sua execução, leva vários anos para ser completado e a pacienteespera para publicar todo o trabalho em conjunto tornaria um tantoantiquadas certas indicações bibliográficas e certos aspectos de atua-lidade do problema em suas manifestações regionais.

Evidencia-se, assim, a vantagem em dividir didaticamente o tra-balho em vários volumes, realizando a sua publicação imediata à pro-porção que sejam ultimadas as análises das várias áreas geográficasincluídas e encadeadas dentro do plano geral da obra completa. Foieste o partido que tomamos, o de projetar a obra em cinco volumesa serem publicados separada e sucessivamente.

O primeiro deles que hoje aparece estuda as diferentes áreas defome no Brasil, as manifestações de subnutrição neste país e a suainfluência como fator biológico na formação e evolução dos nossosgrupos humanos. Estudando o fenômeno da fome no nosso meio,

9 Sorokin, Pitirim A., Man and Society in Calamity, 1942.

Page 119: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 119

daremos um balanço geral das influências de categoria biológica quetêm interferido e pesado na modelagem de nossa cultura e de nossacivilização.

Buscando essa valorização dos fatores de categoria biológica, nãoquer dizer que desprezemos a importância dos fatores de naturezacultural, fatores da categoria do latifundismo agrário-feudal que tan-to deformou o desenvolvimento da sociedade brasileira. Isto é inegá-vel. O que tentaremos mostrar é que, mesmo quando se trata dapressão modeladora de forças econômicas ou culturas, elas se fazemsentir sobre o homem e sobre o grupo humano, em última análise,através de um mecanismo biológico: é através da deficiência alimen-tar que a monocultura impõe, é através da fome que o latifúndiogera e assim por diante.

Não defenderemos, pois, nenhuma primazia na interpretação daevolução social brasileira. Nem o primado do biológico sobre o cul-tural, nem o do cultural sobre o biológico. O que pretendemos é porao alcance da análise sociológica certos elementos do mecanismo bio-lógico de ajustamento do homem brasileiro aos quadros naturais eculturais do país.10

Não temos a pretensão de investigar a fundo, numa sondagemdefinitiva, a influência de todos os fatores dessa categoria: raça, cli-ma, meio biótico etc., que constituem a base orgânica da estruturasocial dos nossos grupos humanos, mas, estudando os recursos e oshábitos alimentares de várias regiões, teremos forçosamente que le-var em consideração todos esses fatores ecológicos que participam

10 Sobre a participação do biológico no mecanismo social consulte-se a série deinteressantes estudos reunidos pelo eminente antropólogo R. Redfield, no livroLevels of Integration in Biological and Social Systems (1942). De grande valia parauma orientação firme nesse campo científico é também a obra de G. F. Gause –The Struggle for Existence (1934). Alexander Lipschütz, no seu interessante livroEl Indo-americanismo y el Problema Racial en las Américas, apresenta-nos umbom exemplo de aplicação bem orientada dos mais modernos conceitos de socio-logia, na análise do biológico e do social na organização dos diferentes grupos depopulação deste continente.

Page 120: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

120 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

ativamente na interação do elemento humano e dos quadros geográ-ficos brasileiros.

Caracterizando o tipo de alimentação e os variados tipos de fomeque tem sofrido a nossa gente, estamos certos de que faremos refletirnessas características biológicas, com maior exatidão do que atravésdo estudo de quaisquer outras manifestações de natureza ecológica,o grau de adaptação e ajustamento dos diferentes grupos regionaisde nossas populações às variadas zonas geográficas do país. E sãoexatamente as expressões dessas variadas formas de adaptação quedão relevo à fisionomia cultural de uma nação. É por isso que julga-mos ser este volume, até certo ponto, uma tentativa de interpretaçãobiológica de determinados aspectos da formação e da evolução histó-rico-sociais brasileiras.

Num segundo volume, estudaremos as manifestações de fomenas outras áreas do continente americano, tanto da América Espa-nhola, onde o fenômeno apresenta aspectos locais ainda mais alar-mantes do que no Brasil, como da América Inglesa, com suas zonasde fome bem definidas e caracterizadas – o Sul dos Estados Unidos,Porto Rico, Trinidad, Barbados etc.

Os grupos humanos da África, culturalmente tão dessemelhantes,povos sedentários do vale do Nilo, nômades do deserto saariano, agri-cultores do oásis, negritos das florestas equatoriais, caçadores e pasto-res bosquímanos – quase todos precariamente alimentados e acossadospela fome – constituirão material de estudo do terceiro volume.

No quarto volume, abordaremos o estudo da fome no Oriente:nas terras asiáticas com seus quadros de extrema miséria e de fomeendêmica, já bem estudados dentro deste mesmo critério ecológicopor investigadores penetrantes como Radhaikamal Mukerjee, queescreveu, em 1926, a primeira obra publicada no mundo sob o títulode Sociologia Regional, ou de um Walter Mallory, autor dessa ma-gistral monografia da fome no Oriente, intitulada China: Land ofFamine e nas distantes ilhas da Oceania onde a alimentação dos seusprimitivos habitantes que fora das mais equilibradas é hoje, em con-

Page 121: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 121

seqüência dos contatos e das influências culturais dos povos do Oci-dente, das mais degradas e inferiorizadas do mundo.

Guardamos para o fim, para o quanto volume, o estudo da epi-demia de fome que vem atravessando a Europa durante os últimosanos, a qual, longe de terminar com o fim da guerra, parece recru-descer em certas zonas, constituindo uma das mais sérias ameaças àpaz, tão inquietante quanto o segredo da bomba atômica.

Deixamos propositadamente este estudo para o último volume, afim de aguardar que seja possível uma visão menos confusa do proble-ma e uma interpretação mais serena dos fatores que continuam man-tendo o fenômeno da fome nesse continente. Qualquer tentativa atualde análise à distância de tão complexa situação, sob a ação dessa tre-menda carga emocional que ainda perdura na atmosfera européia, en-volveria um grande risco de que fosse deformada a realidade dos fatos.Deformação bem possível pela paixão política, pela insuficiência dedocumentação rigorosamente científica, pela impossibilidade de sele-ção dos informes e pelo exagero de tragédia e de dramaticidade queenvolve emocionalmente o fenômeno biológico e social. Deste últimovolume, fará também parte uma análise crítica do problema numatentativa de fixação dos limites em que o fenômeno da fome interferena conduta humana, com as conclusões objetivas a que sejamos leva-dos através dessa sondagem de categoria universal do problema.

Acreditamos dever ainda ao leitor, principalmente ao leitor estran-geiro, uma explicado e uma última advertência. A explicação visa aesclarecer as razões que levaram o autor a dedicar dois volumes de suaobra ao estudo de um só país, o Brasil, quando projeta concentrar emalgum dos outros volumes o estudo de continentes inteiros. Não fo-ram razões de ordem sentimental, nem de supervalorização patrióticaque nos ditaram essa conduta: foram razões de ordem didática.

O Brasil constituiu o nosso campo de observação e de experi-mentação diretas do problema. De comprovação de inúmeros aspec-tos doutrinários da questão e de ensaio e verificação de muitas hipó-teses que formulamos sob aspectos particulares nesse setor científico.

Page 122: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

122 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

O seu vasto território com diferentes categorias de climas tropi-cais, desde o equatorial superúmido da Amazônia até o tropical secoe semi-árido do sertão do Nordeste e o subtropical com seus variadostipos de organização econômica, apresenta condições excepcionaispara uma larga investigação do problema da alimentação tropical.Nenhum país do mundo se prestaria, tanto quanto o nosso, parafuncionar como um verdadeiro laboratório de pesquisa social desteproblema.

Os resultados das observações e investigações que aqui procede-mos durante 15 anos, e que são apresentados neste ensaio, poderãopermitir, pela aplicação do método comparativo, generalizações atécerto ponto válidas para inúmeras outras regiões tropicais do mundo.

Acentuar, pois, certos detalhes do caso brasileiro, nesse estudo dageografia da fome, significa procurar ilustrar com exemplos concretos,o estudo do fenômeno em diferentes áreas geográficas que apresentemcondições naturais ou culturais mais ou menos semelhantes às destepaís. Ademais, desenvolvendo neste primeiro volume certos aspectosdoutrinários da questão para sua melhor compreensão por parte dosnão iniciados na matéria, poderemos nos poupar de voltar ao assuntonos volumes seguintes, os quais, aliviados no seu conteúdo de digres-sões doutrinárias, apresentarão em forma mais densa traços e fatosobjetivos que caracterizem áreas geográficas de maior extensão.

Há no entanto um perigo em publicar separadamente esse estudodas áreas de fome no Brasil destacado das outras áreas de fome docontinente. Perigo de que por desconhecimento ou por má fé possaalguém julgar serem as condições de vida no nosso país, na hora atual,mais graves e mais difíceis do que no resto da América. Afirmativa queestá longe de ser verdadeira. Na maioria dos países da América Latina,conforme pudemos verificar em visitas locais e através de documentosestatísticos e informes científicos obtidos, as condições de vida são ouidênticas ou ainda mais precárias do que as do Brasil.

Ao publicarmos o segundo volume desta obra, apresentando asmanchas da fome da América Espanhola, o assunto ficará claramen-

Page 123: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 123

te exposto e afastado o perigo das interpretações errôneas. Até lá, seráconveniente não se tirar conclusões de qualquer paralelo entre a situa-ção do Brasil e a de outros países da América, senão tomando porbase de comparação trabalhos que apresentem um retrato fiel da rea-lidade social desses países, destacando os seus traços mais significati-vos com o mesmo realismo isento de preconceitos com que estuda-mos a situação alimentar no Brasil.

Page 124: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear
Page 125: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

3 . A R E I V I N D I C A Ç Ã OD O S M O R T O S

Em 1955, João Firmino, morador do Engenho Galiléia, fundavaa primeira das Ligas Camponesas no Nordeste brasileiro. Não foraseu objetivo principal, como muita gente pensa, o de melhorar ascondições de vida dos camponeses da região açucareira ou de defen-der os interesses desses bagaços humanos, esmagados pela roda doDestino, como a cana é esmagada pela moenda dos engenhos deaçúcar. O objetivo inicial das ligas fora o de defender os interesses eos direitos dos mortos, não os dos vivos. Os interesses dos mortos defome e de miséria: os direitos dos camponeses mortos na extremamiséria da bagaceira. E para lhes dar o direito de dispor de sete pal-mos de terra, onde descansar os seus ossos e o de fazer descer o seucorpo à sepultura dentro de um caixão de madeira de propriedadedo morto, para com ele apodrecer lentamente pela eternidade afora.Para isso é que foram fundadas as Ligas Camponesas. De início, ti-nham assim muito mais a ver com a morte do que com a vida, mes-mo porque com a vida não havia muito que fazer... Só mesmo aresignação. A resignação à fome, ao sofrimento e à humilhação. Mas,se já não havia interesse dessa gente em lutar pela vida, em lutar poruma vida melhor e mais decente, por que este obstinado empenhoem reivindicar direitos na morte? Reivindicação de mortos que nun-ca tiveram direito em vida! Por que esta desvairada aspiração de pos-suir depois de morto, sete palmos de terra, por parte de quem, na

Page 126: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

126 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

vida não dispusera, de seu, nem de uma polegada de solo, pertencen-do quase todos aos imensos batalhões dos sem-terra que povoam oNordeste brasileiro? E por que este desespero em possuir um caixãopróprio para ser enterrado, quando em vida esses deserdados da sortenunca foram proprietários de nada – nem de terra nem de casa nemmesmo do seu próprio corpo e de sua própria alma, alugados, a vidainteira, aos senhores da terra? Por que esta conduta aparentementetão estranha, tão em contradição com o conformismo, a apatia, aresignação desta pobre gente? Tudo isto só tem sentido, quando agente compreende que, para os camponeses do Nordeste, a morte éque conta; não a vida, desde que, praticamente, a vida não lhes per-tence. Dela, eles nada tiram, além do sofrimento, do trabalho estafantee da eterna incerteza do amanhã: da ameaça constante da seca, dapolícia, da fome e da doença. Para eles só a morte é uma coisa certa,segura, garantida. Um direito que ninguém lhes tira: o seu direito deescapar um dia pela porta da morte, do cerco da miséria e das injus-tiças da vida. Tudo o mais é incerto, improvável ou impossível. Daí ointeresse do camponês do Nordeste pelo cerimonial da morte, queele encara como o da sua libertação à opressão e ao sofrimento davida. “Aos pobres, em espírito, pertence os reinos dos céus”, dizem asEscrituras Sagradas. Palavras consoladoras para aqueles que há mui-to já tinham perdido toda a esperança de conquistar um lugar decen-te nos reinos da Terra.

A larga experiência de mais de quatro séculos de um regime agrá-rio de tipo feudal – ali implantado pelos colonos portugueses sob aforma do latifúndio escravocrata, produtor de açúcar1 – e a resistên-cia invencível deste regime em ceder a qualquer exigência ou reivin-dicação dos camponeses para melhorar um pouco as suas trágicascondições de vida, acabaram por dar a esta gente, o sentimento dainutilidade de qualquer esforço para sair do atoleiro de sua miséria.A poesia popular, os abecês dos cantadores, a tradição e a História

1 Prado Jr., Caio: História Econômica do Brasil, 1945.

Page 127: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 127

sempre se referiram às antigas revoltas camponesas como a “Balaiada”,“A República de Palmares”, “Canudos”, nas quais, camponeses de-sesperados lutaram inutilmente contra os senhores prepotentes.

É verdade que, para sermos justos, não podemos esquecer que osescravos descendentes dos negros trazidos da África pelos portugue-ses, tinham obtido em 1888 a sua libertação. A libertação da sua“galé perpétua” de que falava Castro Alves, o poeta da Abolição. Mas,ter-se-iam mesmo libertado os escravos, da escravidão? Ou apenas setinham libertado do opróbio de serem chamados escravos, para con-tinuarem os mesmos escravos com o nome de moradores – de servosde seus antigos senhores feudais? A verdade é que, escravos ou servos,moradores ou foreiros, o que lhes tocara até hoje era sempre a mesmacota de sacríficios, de trabalhos forçados, de fome e de miséria: amesma herança que lhes havia legado a escravidão. Deixando de serescravos de um dono para serem escravos de um sistema: escravos dolatifúndio açucareiro.

Para serem triturados como bagaço pela engrenagem deste siste-ma econômico dos mais desumanos que ainda perduram na superficieda Terra. Mas que foi, sem nenhuma dúvida, há quatro séculos, osistema que deu consistência política e base econômica ao país emformação. Que permitiu que se implantasse neste Nordeste, a pri-meira organização econômica de além-mar, que daria no século 16 àmetrópole portuguesa o monopólio da plantação da cana, da indús-tria e do comércio açucareiro. Tudo isto é feito à base do trabalhoescravo. Da total escravidão do homem e da terra, submetidos in-condicionalmente ao serviço da ambição dos grandes senhores feu-dais, de enriquecerem depressa, plantando sempre mais cana, e pro-duzindo sempre mais açúcar. E entregando-se de corpo e alma a estaaudaciosa aventura açucareira, sem medir suas consequências e sematender a qualquer sentimentalismo, obedecendo apenas ao insaciá-vel apetite do ouro e ao desadorado apetite da cana, objeto de suaadoração. Ao feroz apetite desta planta, de dispor sempre de novasterras para serem engolidas pelos canaviais e de dispor sempre de

Page 128: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

128 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

mais braços humanos para serem quebrados ou esgotados, no eito,plantando, limpando e colhendo cana ou, nas estradas, puxando eempurrando os carros de cana ou nas moendas ou na esteira dasfábricas ou nos cais, carregando e descarregando os sacos de açúcar.Se com o tempo a paisagem da região parece ter mudado um pouco– a grande fábrica moderna tomando o lugar do velho engenho deágua ou de lenha, o palacete do dono da fábrica erguendo-se no lu-gar da casa grande do engenho – a paisagem humana permaneceuquase que a mesma. Os antigos escravos que então viviam na senzala,agora espalhados pelas choças e pelos casebres no campo e nas aldeiasou amontoados nas favelas dos mocambos das cidades, verdadeirassenzalas remanescentes, fracionadas em torno das novas casas-gran-des, os palacetes dos novos senhores da terra. Nenhuma força capazde quebrar o sistema opressor do latifúndio, que vem pesando háséculos, como uma fatalidade sobre a vida do camponês.

Os cantadores de feira sempre exaltaram a coragem indômitados líderes populares, sacrificados nas ondas violentas da repressão.Mas de que serviu todo este esforço, toda esta violência? Não serviupara nada. Nem a força da bala dos cangaceiros nem a força da fé dosmísticos e dos beatos deram fim ao sofrimento e à opressão, de queaté hoje padecem camponeses. Nem Antônio Silvino e Lampião,heróis do banditismo, cantados pela poesia popular. Nem o padreCícero de Juazeiro e seus místicos adoradores, puderam mudar orumo do destino dessa pobre gente, condenada por seu destino his-tórico, a permanecer sempre no fundo do abismo. A se sentiremimpotentes, como se o carro de seus destinos se tivesse atolado até oeixo no barro mole das estradas da cana, no massapé fofo e pegajoso,onde se atolam os carros de boi. E quanto mais força se faz, mais ocarro se atola, como se o Diabo ou o Destino ou os dois juntos,agarrassem, de dentro do barro, os raios da roda do carro. Ou comose todos os companheiros de infortúnio tivessem sido empurradospelo mesmo destino, para dentro de um redemoinho, que fosse comoum inferno de água, com a força da miséria puxando sempre, como

Page 129: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 129

a correnteza, mais para o fundo. O atoleiro da vida ou redemoinhoda fatalidade são imagens populares com que a gente do Nordesteexprime, em seu linguajar simples, a sua revelação de um fenômenosocial, a que os cientistas de hoje, chamaram com Wislow “processocircular cumulativo”.2 Processo social no qual uma constelação defatores negativos atua de tal forma imbricados, que os grupos pobresficam sempre cada vez mais pobres, enquanto os ricos cada vez enri-quecem mais. É a mesma noção do chamado “círculo vicioso da po-breza” de Nurkse,3 no qual a fome e a pobreza, agindo e reagindocomo dois fatores de ação cumulativa, fazem com que os famintosnão possam comer porque não são capazes de produzir e não produ-zem porque são famintos. O homem do Nordeste ignora estas sutile-zas dos sociólogos, estes brilhantes jogos de palavras nos quais se falade fatores negativos agindo como causa e efeito, dentro do processosocial, mas sente na sua carne a realidade da miséria estagnante, e vêsempre crescer diante dos seus olhos a riqueza descomunal dos queenriquecem cada vez mais à custa de sua fome. E é esta revelação quelhe faz dizer, sem exteriorizar a sua revolta, que é assim mesmo, quea água só corre para o mar. E correndo sempre para o mar, a águadeixa na miséria a terra seca do sertão, e na angústia, a alma ressequi-da do homem do Nordeste. Tão ressequida que, de vez em quando,esta vira pedra – a alma e o coração de pedra dos cangaceiros. Na suavisão fatalista do mundo, estes seres primitivos chegam à conclusãode que não há barragens que possam estancar esta tendência inevitá-vel do Destino, que leva sempre a água para o mar, onde menos faltaela faz. Um sentimento de total impotência e da própria desvalia seapoderou da alma do camponês nordestino. Daí a sua humildade e oseu aparente conformismo, diante dessa conspiração invencível dasforças naturais e das forças sociais, associadas ambas, para o esmaga-

2 Winslow, E. A.: The Cost of Sickness and the price of Health, Genevè, 1951.3 Nurkse, Ragnar: Some aspects of Capital Accumulation in Underdeveloped Countries,

Cairo, 1952.

Page 130: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

130 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

rem em suas pretensões de obter qualquer melhoria de suas condi-ções de vida.

Não foi portanto pensando em reivindicações dos direitosexpoliados nem com o desejo de se organizar para lutar contra aexploração do regime agrário reinante, que os humildes camponesesdo Engenho Galiléia fundaram as Ligas Camponesas. Não se cha-mava o seu engenho Galiléia? O mesmo nome da Terra Santa, ondeo doce Jesus pregou pela primeira vez a doutrina da igualdade e dafraternidade humanas, doutrina revolucionária que, durante 2 milanos, ainda não conseguiu, entretanto, penetrar de verdade, na almaempedernida dos falsos cristãos que dominam uma grande parte domundo? Portanto, quem melhor armado para entender o profeta daGaliléia, do que essa pobre gente do Engenho Galiléia, nesse Nor-deste do Brasil? Pobres como os amou Cristo, que por eles se deixoucrucificar para que o reino dos céus se estabelecesse na Terra. Quemmelhor para sentir os sentimentos e as lições de amor do grande pro-feta da Galiléia, do que esta gente destituída de tudo, sem maioresambições neste Mundo? Apenas ambicionando um dia se apresenta-rem bem, diante dos olhos de Deus. E foi neste ponto que as suasaspirações pareceram um tanto excessivas aos olhos dos outros cris-tãos, os cristãos-proprietários de terras, donos de engenho, senhoresdo Nordeste. A aspiração dos associados da liga era de se prepararempara sua apresentação no juízo final, em condições que não lhe fos-sem totalmente desvantajosas, de forma a serem ouvidos pela Auto-ridade Suprema. A primeira condição seria, sem dúvida a de se apre-sentarem diante de Deus com as mãos limpas de crimes e com a almalimpa de vícios. E isto seria difícil para a maioria deles. Mas no seuentender simplista, seria também necessário apresentar-se com ummínimo de decência, numa hora de tamanha importância e de tantasolenidade: a hora do juízo final. E é ai que a sua extrema miséria nãolhe permitia este mínimo de decência. É um hábito nessas terras mi-seráveis que os pobres lavradores, no termo de suas vidas de miséria,sejam levados ao cemitério num caixão “de caridade”, que a Prefeitu-

Page 131: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 131

ra empresta, mas que tem de ser restituído na boca da cova, paraservir a outros defuntos. Ora, ser enterrado desta forma constitui ahumilhação suprema para essa pobre gente, cuja vida não passa deum rosário de humilhações. Mas esta é a maior de todas, porque éuma humilhação que passará para o outro lado da vida – uma humi-lhação que durará toda a eternidade. A liga foi criada para evitar estasuprema humilhação.

Quando, em 1960, um jornalista entrevistou um dos principaisdirigentes da liga, o velho José Francisco de Sousa, e lhe perguntou oque tinha a liga feito em benefício dos pobres camponeses, ele res-pondeu tranqüilamente: “Veja, moço. Antes da liga, quando um denós morria, o caixão era emprestado pela prefeitura. Depois que ocorpo era levado à vala comum, o caixão voltava para o depósitomunicipal. Hoje a liga paga o enterro e o caixão desce com o morto.”

Ali estava o primeiro resultado patente da iniciativa que haviamtomado João Firmino e seus companheiros do Engenho Galiléia, aofundarem, nessas terras de tanta pobreza, uma sociedade civil benefi-cente de auxílio-mútuo, para ajudar seus moradores a morrer com de-cência: com uma vela na mão, com os olhos fitos na chama desta velaque os ajudaria a orientar seus primeiros passos na escuridão do além,e com a confortadora certeza de que dispunham dos seus sete palmosde terra onde pousar o seu caixão e nele esperar tranqüilo o juízo final.Esta instituição beneficente foi denominada “Sociedade Agrícola ePecuária dos Plantadores de Pernambuco”. Mas o nome não pegou. Oque pegou foi o apelido. É que logo em seguida à sua criação, começa-ram a chamar à sociedade liga. Liga Camponesa. O apelido foi botadopara desfazer dela. Para lhe dar uma origem considerada suspeita pelosconservadores, com ocultas ligações com o movimento revolucionárioiniciado há muitos anos noutros pontos do Nordeste, sob a forma deorganizações camponesas, visando reunir os trabalhadores da cana numaespécie de sindicato que lhes desse força política suficiente para recla-mar e para reivindicar. E estas primeiras tentativas tinham sido chama-das de Ligas Camponesas, provavelmente sob a remota inspiração das

Page 132: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

132 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Ligas Camponesas da Idade Média, criadas pelo campesinato europeucomo instrumento de luta dos servos da gleba, contra a opressão into-lerável dos príncipes e dos barões feudais. Não se pode esquecer que acolonização brasileira se iniciou no Nordeste sob o signo domedievalismo feudal, no qual se inspirou Portugal, para introduzir nestasterras o regime das Capitanias Hereditárias, entregues de mão beijadaaos donos dos feudos, os barões do Novo Mundo. É que, embora nocomeço do século 16, quando o Brasil foi colonizado, já estávamos emplena Renascença européia, a Península Ibérica, desviada da sua rotahistórica por sua interminável luta com o Islã, e isolada geografica-mente do resto da Europa pela barreira dos Pirineus, continuavaencastelada no seu feudalismo agrário, caracteristicamente medieval.4

E Portugal, ainda mais do que a Espanha, separado do grande mundopor toda a espessa muralha da Meseta Castelhana. Este secular retarda-mento histórico fez com que a colonização ibérica do Novo Mundo seconstituísse como uma empresa de tipo medieval, como uma sobrevi-vência das Cruzadas, impregnada de um espírito ao mesmo temporeligioso e guerreiro, místico e de desenfreada cobiça. Sob este aspecto,bem diferente da colonização inglesa da América, mais de índole bur-guesa e de espírito moderno, pós-renascente e pós-luteriano. Dentrodo patrimônio medieval trazido pelos colonos portugueses, com seushábitos arraigados no complexo do latifúndio feudal, é bem possívelque tenham os camponeses do Nordeste, também herdado a tradiçãodas Ligas Camponesas do Medievo europeu, que um dia iria repontarcom inesperada violência no processo da evolução social do Nordeste.Como herdeiros presumíveis desta tradição secular, as 140 famílias quehabitavam as terras do Engenho Galiléia, criaram a sua liga Campone-sa e depois de eleger sua primeira diretoria, convidaram, num gesto detradicional humildade do servo para com o senhor, o próprio senhor-de-engenho para ser seu presidente de honra. E ele aceitou. E fez-se a

4 Sanches, Albornoz, Claudio: La Edad Média y la Empresa de America, La Plata,1934.

Page 133: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 133

sua posse com solenidade, com festas e com foguetes. E registrou-se oestatuto da sociedade, no qual, além da ajuda funerária, figuravamcomo objetivos mais remotos, a aquisição de sementes e de instrumen-tos agrícolas e a possível obtenção de uma ajuda governamental. Masnão durou muito esta “lua-de-mel” do senhor das terras com os seusservos, associados da liga. É que outros latifundiários da redondeza,senhores-de-engenho como ele, se apressaram em alertá-lo da loucuraque ele tinha feito em se deixar envolver por esta perigosa aventura.Em ter consentido a instalação em suas terras deste perigoso instru-mento de agitação social. Desta espécie de cavalo de Tróia, introduzi-do disfarçadamente dentro dos seus domínios de portas fechadas, paraabrir na calada da noite todas as portas ao comunismo. E o homemassombrou-se e não quis mais ser o presidente da sociedade. E exigiumesmo o seu fecho imediato. Foi aí que a história mudou de rumo. Amaioria dos camponeses resistiu ao fecho e a partir deste momento,sob a pressão dos acontecimentos, a sociedade mutualista funeráriavirou mesmo uma liga camponesa para lutar pelos direitos dos campo-neses contra a opressão dos senhores da terra. Criada para defender osdireitos dos mortos, ela iria, agora, constituir-se como instrumento dereivindicação dos direitos dos vivos. Mas não é mesmo morrendo quemelhor se aprende a viver? Pelo menos no Nordeste brasileiro. Foi tra-tando dos problemas da morte, que os componentes do EngenhoGaliléia, abriram seus olhos para a vida. E viram melhor, e melhorcompreenderam as injustiças da vida e quais eram os autores dessasinjustiças. Era a tomada de consciência da sua realidade social, fenô-meno que vem ocorrendo em nossos dias por todo o mundo chamadosubdesenvolvido – mundo escravizado e espoliado – e que naquele diase cristalizava como uma força nova na sociedade fechada e primitivados moradores do Engenho Galiléia. E com esta força eles enfrenta-ram o patrão. Não se submeteram como faziam até então com suacostumada docilidade, às suas ordens absurdas. Contam que o senhordo engenho, como revide à obstinação do grupo em não querer fechara liga, determinou a suspensão de uma ordem que tinha dado para que

Page 134: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

134 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

fosse retirada de suas matas a madeira necessária à construção de umacapela. Os camponeses protestaram contra esta suspensão e o patrãoameaçou-os com a polícia sob o pretexto de que eles pretendiam de-vastar as suas matas. Seguem-se as intimidações, as chamadas à delega-cia e as ameaças dos capangas. Mas, diante de tudo isto, aumentoucada vez mais a hostilidade dos camponeses. Surgem então os proces-sos judiciários contra os mais responsáveis, responsabilizados comoagitadores e terroristas. E, finalmente, apareceram as ações de despejo,a expulsão sumária dos camponeses da terra onde sempre viveram,feita em nome da lei. Nesta altura da luta, os camponeses fincaram opé. Não sairiam em paz da terra onde nasceram, onde sofreram todasas agruras da vida e onde esperavam ver enterrados os seus ossos. É quenenhum povo do mundo, se mostra mais enraizado à terra, mais pro-fundamente ligado ao seu solo natal, do que o povo do Nordeste. Son-dando a alma complexa e singular do povo chinês, o qual, emborasofrendo há milênios as agruras periódicas de todos os tipos de cata-clismos naturais, com que os brinda a sua terra martirizante – as secas,as inundações os terremotos, as nuvens de gafanhotos – se mostramsempre tão indissoluvelmente ligados a essa terra. Keyserling5 escreveuas seguintes palavras: “Não há outro camponês no mundo que dê talimpressão de identificação total com a terra... De participar tão inten-samente da vida da terra. Tudo na China – toda a vida e toda a morte– se desenrola na terra herdada. É o homem que pertence à terra, nãoa terra que pertence ao Homem”. Mas há. Há outro camponês nomundo, tão identificado com a terra quanto o chinês: é o camponêsdo Nordeste brasileiro, que Keyserling nunca conheceu e do qual omundo inteiro sempre teve bem pouco conhecimento, vivendo o Nor-deste à margem do mundo, relegado em sua obscuridade e em suasolidão. Mas por isso mesmo por sua solidão forçada, o homem doNordeste, abandonado do resto do país e do mundo, se voltou para asua paisagem circundante e nela fincou as raízes de sua alma. Mesmo o

5 Keyserling, Herman: Journal de Voyage d’un Philosophe, 1952.

Page 135: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 135

homem do sertão semi-árido, que vive uma vida de seminômade,escorraçado de vez em quando pelo cataclismo das secas, é extrema-mente apegado à sua terra e a ela aspira voltar, sempre que o cataclismapassa. Até os seus nomes são nomes da terra – dos lugares, das aldeias,dos povoados, onde nasceram: Antônio Pedro do Juazeiro, Juca daSerra Talhada, Manuel João da Lagoa Grande... nomes de homens e deterra, como na Idade Média, afirma com certo orgulho o escritor ser-tanejo Luiz de Câmara Cascudo.6 Este desadorado amor à terra, quesempre o fez sofrer, faz com que o homem do Nordeste a defendasempre, até o extremo limite de suas forças e tenha sempre desta terraum ciúme tão intenso, como se ela fosse uma mulher. É como se elenão pudesse viver longe dela, exilado deste amor. E se agora, no meiodesta luta intensa, queriam expulsar de suas terras, os moradores doEngenho Galiléia em nome da lei, usando contra eles os subterfúgiosda lei, que eles candidamente ignoravam era necessário, para que elespudessem defender-se e resistir, que fosse consultado um advogadoversado na lei. Mas um advogado custa muito dinheiro e a caixa da ligaestava bem pouco provida de recursos. Pressionados pelas circunstân-cias, procuram os dirigentes da liga um advogado modesto, até entãoobscuro, mas que já havia aceitado defender outras causas de campo-neses escorraçados pelos donos de latifúndio noutras terras: este advo-gado chamava-se Francisco Julião. Aceitando patrocinar a sua causa,Julião deu inicio à luta judiciária pela permanência dos camponeses naGaliléia. Seu instrumento de luta era o Código Civil, que ele cedoverificou ser uma arma de pouca serventia para defender os interessesdos pobres, tendo sido elaborado para defender os direitos do rico,enquanto o Código Penal é que fora concebido para ser aplicado aospobres.7

Perdendo terreno na arena judiciária, Julião apelou para outrocampo de luta, usando, ao lado da tribuna do Foro, a tribuna políti-

6 Cascudo, Luiz da Câmara: Viajando pelo Sertão, s.l.n.d.7 Julião, Francisco: Que São as Ligas Camponesas, Rio de Janeiro, 1962.

Page 136: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

136 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

ca, aproveitando a circunstância de dispor de um mandato de depu-tado estadual na Assembléia do Estado de Pernambuco. E foi assimque o advogado Julião se foi transformando pouco a pouco em agita-dor social. Em denunciador público dos crimes hediondos dolatifundiarismo. E foi assim que as Ligas Camponesas começaram aespalhar-se por toda a região, com a criação de novos núcleos, que seconstituíram sob a pressão das circunstâncias – da violência e da opres-são desbragadas do latifundiarismo – num instrumento de ação po-lítica libertadora, esgrimindo a ideologia, o proselitismo, a doutrina-ção. Nesta fase de acesa luta, a imprensa começou a tomar conheci-mento das escaramuças mais importantes, relatadas sempre com vio-lentos ataques aos “terroristas” na página policial dos jornais. Depoiso assunto passou para a página política, fornecendo matéria para osartigos de fundo. E as Ligas Camponesas foram assim tomando cor-po e ganhando nova alma. Começaram a assustar seriamente o Nor-deste inteiro, como se fossem uma espécie de dragão ameaçando en-golir toda a terra dos grandes proprietários do Nordeste e destruir apaz, a ordem e a riqueza de que sempre gozaram esses proprietários,tão amantes da ordem. Nessa onda de violências, de mistificações ede falsas interpretações, no choque entre as aspirações populares e asresistências conservadoras, ambas radicalizadas ao extremo, as ligasforam criando raízes, projetando a sombra de suas verdes esperançase de suas negras ameaças, pelo país inteiro. Falava-se delas como sefosse o próprio Apocalipse e de Julião, como se fosse o anticristo. Foineste momento que os Estados Unidos da América redescobriram oNordeste. E esta descoberta deve-se em grande parte ao obscuro eincipiente movimento das Ligas Camponesas. Em fins de 1960, como seu povo extremamente sensível aos perigos da revolução comunis-ta de Fidel Castro em Cuba, e a sua possível propagação para o con-tinente, a imprensa norte-americana lançou-se com um dramáticointeresse sobre o Nordeste brasileiro explosivo e ameaçador. E os Es-tados Unidos, que tinham descoberto vagamente o Nordeste brasi-leiro durante a Segunda Guerra Mundial, quando os aviões de trans-

Page 137: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 137

porte, em viagem para a África e a Europa faziam pouso na região,principalmente no aeroporto de Natal, que se transformou na épocano maior aeroporto do mundo, voltaram a descobrir, desta vez comatônita e perplexa curiosidade, essa terra ignota. Esse estranho mun-do que parecia uma nova Cuba em formação: a Cuba continental.Como Cuba, região de monocultura açucareira e de latifúndio agrá-rio. Como Cuba, possuindo um líder considerado um marxista, con-duzindo à revolução, essa massa de deserdados e fanatizados, dispos-tos a tudo, como foi mostrado em várias reportagens, publicadas nosgrandes jornais dos Estados Unidos, e mostrada em imagem de umcolorido impressionante, num filme apresentado numa grande ca-deia de televisão. Era o Nordeste na ordem do dia, como “vedete”,como uma espécie de novo far-west a acender a imaginação de mi-lhares de indivíduos que poucos dias antes ignoravam mesmo a suaexistência geográfica.8

Alfred O. Hirschman escreve o que se segue no seu interessantelivro Journal Toward Progress, publicado em 1963: “Nestes dois últi-mos anos, o Nordeste brasileiro torna-se familiar para os leitores dejornais e espectadores de televisão nos Estados Unidos, como umazona na qual 20 milhões de criaturas, quase um terço da populaçãodo Brasil, vivem numa extrema miséria e, talvez, em perigo iminentede serem levados à convulsão social pelas Ligas Camponesas de ins-piração comunista”. Um outro autor norte-americano, o economistaStefan Robock, numa obra de real valor publicada no mesmo ano,Northeast Brazil: a Developing Economy exprime-se da seguinte ma-neira: “No fim de 1960, no entanto, quando os Estados Unidos setinham tornado hipersensíveis à ameaça do Castro-comunismo atra-vés da América Latina produziu-me uma dramática “redescoberta”do Nordeste brasileiro. E, durante um certo período de 18 meses, oNordeste foi novamente projetado, como um foguetão, da obscuri-dade para a fama mundial.”

8 Hirschman, Alfred: Journey Toward Progress, New York, 1963.

Page 138: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

138 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Esta inesperada revelação de um mundo tão estranho à mentalida-de do norte-americano médio, levada pela imprensa sem a menor pre-paração ou apresentação ao seu público, criou uma grande perplexida-de e certa confusão nos Estados Unidos. De um lado, um sentimentode pânico pelos perigos desta nova explosão social tão ameaçadora, edo outro lado, um grande desejo de ajudar, de fazer alguma coisa paraevitar a explosão. Mas a falta de uma serena visão dos fatos, o desco-nhecimento total da realidade social do Nordeste e das raízes históricasque tinham dado origem a essa aberração social, tornavam bem difícilum approach razoável do problema, que não fosse o da simplificaçãoapressada e deformante, ou o da fantasmagoria histórica das manche-tes apocalípticas. E assim, o Nordeste, descoberto quando ajudava osEstados Unidos na última guerra e agora redescoberto, quando pareciaajudar os inimigos dos Estados Unidos no continente, continuou, naverdade, como um desconhecido dos Estados Unidos. E, por que nãodizer a verdade, como um desconhecido do mundo. Embora no car-taz, o que dele se apresenta por toda a parte é, em geral, uma falsaimagem do seu papel histórico, tanto no passado como no futuro.Falsa imagem tanto das suas possibilidades como das suas deficiênciase dificuldades. Do que é possível fazer-se de bem pelo Nordeste, comodo que é possível que o Nordeste venha a fazer de mal ao mundo: à suasegurança e à sua tranqüilidade.

Se dedicamos ao estudo das Ligas Camponesas o primeiro capí-tulo deste livro, foi com a premeditada intenção de mostrar, comouma iniciativa brotada das tradições do feudalismo agrário, aí rei-nante com objetivos humanitários e pacíficos, se pode transformarnum instrumento revolucionário, de explosiva agitação social, emface da cega incompreensão e da obstinada resistência da própriaestrutura feudal. E mostrar também como pode um fenômeno socialser totalmente distorcido em sua realidade pelas falsas interpretaçõesdo jornalismo tendencioso ou sensacionalista. De fato, a imagem dasLigas Camponesas difundida pela imprensa de certos países, comosendo um instrumento do comunismo internacional, fabricado em

Page 139: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 139

Moscou e implantado no Nordeste brasileiro para repetir nessa áreao episódio de Cuba e comunizar o continente inteiro, é uma imagemtotalmente falsa, que não resiste a uma análise fria dos fatos. Umaanálise que ponha em linha de conta, como estamos tentando fazer,os principais personagens e os episódios centrais das origens dessemovimento.

Criadas dentro do espírito do cristianismo primitivo que até hojeimpregna a alma coletiva da população nordestina, as Ligas Campo-nesas foram mesmo, em certa fase, mal vistas e tenazmente combati-das pelos líderes marxistas da região. E, se posteriormente se aliaramas ligas aos comunistas, na luta comum pela emancipação da massacamponesa, não quer isto dizer que sua inspiração brotara da doutri-na de Marx ou da ação política de Lenin ou de Fidel Castro, mas daexperiência vivida e sofrida por essa massa humana em sua luta desi-gual por um mínimo de aspirações, em face ao máximo de resistênciasdos seus opressores feudais. Tem toda a razão o jornalista RobertGoughlan da revista Life, quando afirma, com excepcional lucidez,que atribuir o descontentamento social da América Latina “a um‘complô’ forjado em Moscou, como fazem muitos, é ser perigosa-mente ingênuo. Suas raízes mergulham fundo no seu passado, queconta como ingredientes, a conquista, a exploração, a fome e a extre-ma miséria”.

Outra razão da prioridade dada às Ligas Camponesas no planodeste livro, deriva do fato incontestável de que foram elas que proje-taram o Nordeste na imprensa norte-americana, provocando aredescoberta desta região e determinando em parte a criação da “Alian-ça para o Progresso” como uma tentativa dos E.U.A de evitar a su-posta bolchevização do continente.

Antes de terminar este capítulo, julgamos indispensável deixarbem claro que, a nosso ver, as Ligas Camponesas nunca alcançaramuma importância política destacada: uma estruturação funcional euma liderança suficientemente vigorosa para desencadearem um ver-dadeiro processo revolucionário. Longe disso. Sempre foram, como

Page 140: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

140 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

instrumento revolucionário, uma arma quase infantil. E se esta armade brinquedo assustou tanto aos grandes senhores feudais e seus as-sociados, é que eles se encontram há muito tempo num estado depavor permanente. Pavor que os leva a ver no menor gesto ou atitudede inconformismo das massas espoliadas, um perigo tremendo paraa manutenção dos seus privilégios. O perigo das líricas Ligas Cam-ponesas sempre fora pequeno, o medo delas é que era grande e con-tinua a crescer cada vez mais.

Page 141: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

4 . A D E S C O B E R T A D AF O M E *

Nas terras pobres e famintas do Nordeste brasileiro, onde nasci, éhábito servir-se um pedacinho de carne seca com um prato bem cheiode farofa. O suficiente de carne – quase um nada – para dar gosto echeiro a toda uma montanha de farofa feita de farinha de mandioca,escaldada com sal. Foi, talvez, por força deste velho hábito da minhaterra que resolvi servir ao leitor deste livro muita farofa com pouca carne.

Sentindo que a história que vou contar é uma história magra,seca, com pouca carne de romance, resolvi servi-la com uma intro-dução explicativa que engordasse um pouco o livro e pudesse, talvez,enganar a fome do leitor – a sua insaciável fome de romance. Foi, nofundo, como uma espécie de sublimação deste complexo de um povointeiro de famintos, sempre preocupado em esconder ou, pelo me-nos, em disfarçar a sua fome eterna, que acabei fazendo uma copiosaintrodução a este magro romance que tem por personagem central odrama da fome. Assim, por força das circunstâncias, encontrará oleitor, neste livro, muita explicação e pouco romance. Pouco, mas osuficiente para dar ao livro o gosto e o cheiro fortes do drama dafome, que é, no fundo, a carne desta obra.

Mas será mesmo este livro um romance? Ou será mais um livrode memórias? Talvez, sob certos aspectos, uma autobiografia? Não

* Prefácio ao livro Homens e Caranguejos, Lisboa, 1966.

Page 142: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

142 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

sei. Tudo o que sei é que, neste livro, se conta a história de uma vidadiante do espetáculo multiforme da vida. A história da vida de ummenino pobre abrindo os olhos para o espetáculo do mundo, numapaisagem que é, toda ela, um braço de mar – um longo braço de ummar de misérias.

O tema deste livro é a história da descoberta da fome nos meusanos de infância, nos alagados da cidade do Recife, onde convivicom os afogados deste mar de miséria. Procuro mostrar neste livrode ficção que não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra univer-sidade sábia, que travei conhecimento com o fenômeno da fome.O fenômeno se revelou espontaneamente a meus olhos nos man-gues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife:Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta é que foi a minhaSorbonne: a lama dos mangues do Recife, fervilhando de caran-guejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejos,pensando e sentindo como caranguejo. Seres anfíbios – habitantesda terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados nainfância com caldo de caranguejo: este leite de lama. Seres huma-nos que se faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que apren-diam a engatinhar e a andar com os caranguejos da lama e quedepois de terem bebido na infância este leite de lama, de se teremenlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues, de se te-rem impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nuncamais se podiam libertar desta crosta de lama que os tornava tãoparecidos com os caranguejos, seus irmãos, com as suas duras cara-paças também enlambuzadas de lama.

Cedo me dei conta deste estranho mimetismo: os homens se as-semelhando em tudo aos caranguejos. Arrastando-se, acachapando-se como os caranguejos para poderem sobreviver. Parados como oscaranguejos na beira da água ou caminhando para trás como cami-nham os caranguejos.

É por isso que os habitantes dos mangues, depois de terem umdia saltado dentro da vida, nesta lama pegajosa dos mangues, dificil-

Page 143: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 143

mente conseguiam sair do ciclo do caranguejo, a não ser saltandopara a morte e, assim, afundando-se para sempre dentro da lama.

A impressão que eu tinha era que os habitantes dos mangues –homens e caranguejos nascidos à beira do rio – à medida que iamcrescendo, iam cada vez se atolando mais na lama. Parecia que a ve-getação densa dos mangues com seus troncos retorcidos, com o ema-ranhado de seus galhos rugosos e com a densa rede de suas raízesperfurantes os tinha agarrado definitivamente como um polvo, enfian-do tentáculos invisíveis dentro de sua pele, pelos olhos, pela boca,pelos ouvidos.

E, assim, ficavam todos eles afogados no mangue, agarrados pe-las ventosas com as quais os mangues insaciáveis lhes sugavam todo osuco de sua carne e da sua alma de escravos. Com uma força estra-nha, os mangues iam, assim, apoderando-se da vida de toda aquelagente, numa posse lenta, tenaz, definitiva. Estas estranhas plantasque, em eras geológicas passadas, se tinham apoderado de toda essaárea de terra – esta fossa pantanosa onde hoje assenta a cidade doRecife – estendia agora sua posse também aos seus habitantes. E tudonesta região passava a pertencer ao mangue conquistador e dominador:a Terra e o Homem.

Na verdade, foram os mangues os primeiros conquistadores des-ta terra. Foram mesmo em grande parte os seus criadores, Toda estavasta planície inundável formada de ilhas, penínsulas, alagados e pauis,fora em tempos idos uma grande fossa, uma baía em semicírculo,cercada por uma cinta de colinas. Nela vindo a desaguar, através damuralha dessas colinas, dois grandes rios – o Capibaribe e o Beberibe– foram entulhando a fossa com materiais aluvionais: com a terraarrancada de outras áreas distantes e trazida na enxurrada das suaságuas. Pouco a pouco foram surgindo, dentro da baía marinha, pe-quenas coroas lodosas, formadas através da precipitação e deposiçãodos materiais trazidos dos rios. E foi sobre estes bancos de solo aindamal consolidados, mistura incerta de terra e água, que se apressarama proliferar os mangues – esta estranha vegetação capaz de viver den-

Page 144: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

144 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

tro de água salgada, numa terra frouxa, constantemente alagada.Agarrando-se com unhas e dentes a este solo para sobreviver, atravésde um sistema de raízes que são como garras fincadas profundamen-te no lodo e amparando-se, umas nas outras, para resistirem ao ím-peto das correntezas da maré e ao sopro forte dos ventos alíseos, quearrepiam sua cabeleira verde, os mangues foram pouco a pouco en-trelaçando suas raízes e seus braços numa amorosa promiscuidade, eforam assim consolidando a sua vida e a vida do solo frouxo dascoroas de lodo donde brotaram. Com os depósitos aluvionais que seforam acumulando na trama do labirinto de raízes dos mangues edebaixo das suas copadas sombras verdes, foi progressivamente su-bindo o nível do solo e alargando sua área sob a proteção desse densoengradado vegetal. Não há, pois, a menor dúvida de que toda estaterra que hoje flutua à flor das águas, na baía entulhada do Recife, foiuma criação dos mangues.

Os mangues vieram com os rios e, com os materiais por estestrazidos, foram os mangues laboriosamente construindo seu própriosolo, batendo-se em luta constante contra o mar. Vieram como sefossem tropas de ocupação e, em contato com o mar, edificaram si-lenciosamente e progressivamente esta imensa baixada aluvional hojecortada por inúmeros braços de água dos rios e densamente povoadade homens e caranguejos, seus habitantes e seus adoradores.

Tendo os mangues realizado esta obra ciclópica, não admira que,hoje, sejam eles divinizados pelos habitantes desta área, embora nãosaibam os homens explicar como o mangue realiza este milagre decriar terra como se fosse um deus. Mas os homens vêem, até hoje,crescer diante dos seus olhos as coroas lodosas e transformarem-se,pela força construtora dos mangues, em ilhas verdejantes, fervilhantesde vida.

E vêem, assombrados, proliferarem em torno das ilhas maioresoutras pequeninas, como que saídas durante a noite do seu próprioventre, em misteriosos partos da terra que o mangue milagrosamenteajuda.

Page 145: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 145

Nasci na cidade do Recife, que é sob certos aspectos a Hong-Kong da América, com a sua miséria acumulada, empastada nestegrupo de ilhas que flutuam, sonolentas, entre os braços dos rios: oCapibaribe e o Beberibe.

A primeira sociedade com que travei conhecimento foi a socie-dade dos caranguejos. Depois, a dos homens habitantes dos man-gues, irmãos de leite dos caranguejos. Só muito depois é que vim aconhecer a outra sociedade dos homens – a grande sociedade. E devodizer com franqueza que, de tudo o que vi e aprendi na vida, obser-vando estes vários tipos de sociedade, fui levado a reservar, até hoje, amaior parcela de minha ternura para a sociedade dos mangues – asociedade dos caranguejos e dos homens, seus irmãos de leite, ambosfilhos da lama.

É a história da sociedade desses seres anfíbios que eu conto nestelivro. Desta sociedade que, economicamente, também é anfíbia, poisque vegeta nas margens ou bordas de duas estruturas econômicasque a história até hoje não costurou num mesmo tecido: a estruturaagrária feudal e a estrutura capitalista. Estruturas que persistem noNordeste do Brasil, lado a lado, sem se fundirem, sem se integrarematé hoje num mesmo tipo de civilização.

A sociedade dos mangues é uma sociedade imprensada entre es-tas duas estruturas esmagantes. É uma sociedade que, comprimidapelas outras duas, escorre como uma lama social na cuba dos alaga-dos do Recife, misturando-se com o caldo grosso da lama dos man-gues.

Nasci numa rua que tinha o nome ilustre de Joaquim Nabuco, ogrande abolicionista dos escravos, nos tempos do Império. A casa emque nasci tinha ao lado um grande viveiro de peixes, de caranguejose de siris. Se não nasci mesmo dentro do viveiro, com os caranguejos,já com dois anos estava dentro dele. Escorreguei um dia no barro desuas margens e fui retirado de dentro de suas águas meio afogado.Daí em diante, mergulhar nas águas do mangue tornou-se um hábi-to. Mudei-me depois para outro bairro mais perto do rio. Fomos

Page 146: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

146 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

morar na Madalena, numa velha casa colonial de um só andar, comseis grandes janelas de frente. Casa grande, acachapada, com sua pe-sada massa arquitetônica, montada como uma fortaleza em seus al-tos batentes, por onde subiam os caranguejos em tempo de cheia atéo terraço, os mais ousados entrando mesmo nas salas. Nas épocas decheia, a casa virava uma arca de Noé, e todo o sítio virava um mar.Quando as águas baixavam, uma lama preta ficava recobrindo du-rante dias toda a paisagem. A frente da casa era voltada para o rioporque fora construída nos velhos tempos em que todo o transporteda cidade se fazia em botes e barcaças, os homens do comércio doaçúcar indo para os seus escritórios de sobrecasaca preta e cartola,com negros de torso nu remando pelo Capibaribe acima.

O sítio era cheio de árvores e bichos. Mangueiras e sapotizeirosque davam frutos maravilhosos. Maravilhosos eram, também, os frutosde outras árvores que não existiam no nosso sítio, mas que nele apa-reciam espalhados pelo chão. Eram frutos colhidos durante a noitenos sítios vizinhos, pelos morcegos que os deixavam cair dos seusbraços, nos seus vôos apressados. Eram goiabas, jambos e araçás, to-dos meio roídos, mas que eu saboreava com gosto nos meus passeiosmatinais pelo sítio, parasitando, assim, o trabalho noturno dos mor-cegos, meus sócios circunstanciais. Havia também no sítio vacas, ca-valos, carneiros e cabras, que, durante as épocas de cheia, eram amon-toados no terraço da casa. E pássaros de toda espécie, cantando emgrandes gaiolas penduradas por toda parte. Meu pai tinha trazidopara o Recife toda a paisagem viva da sua terra, com seus bichos,com os seus pássaros. Dentro do sítio eu respirava uma paisagemtransplantada do sertão distante e em frente à casa eu contemplava apaisagem da costa – a paisagem negra do mangue.

Bem ao lado da casa começava a zona compacta dos mocambos,das choças de palha e de barro, amontoadas umas por cima das ou-tras num enovelado de ruelas, numa anarquia desesperadora. As ca-sas entrando por dentro da maré, a maré invadindo as casas. Os bra-ços do rio passando pelo meio da rua e a lama envolvendo tudo.

Page 147: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 147

Criei-me nos mangues lamacentos do Capibaribe, cujas águas,fluindo diante dos meus olhos ávidos de criança, pareciam estar sem-pre a contar-me uma longa história. O romance das longas aventurasde suas águas descendo pelas diferentes regiões do Nordeste: pelasterras cinzentas do sertão seco, onde nasceu meu pai e de onde emi-grou na seca de 1877 com toda família, e pelas terras verdes doscanaviais da zona da mata, onde nasceu minha mãe, filha de senhorde engenho. Esta era a história que me sussurava o rio com a lingua-gem doce de suas águas passando assustadas pelo mar de cinza dosertão, caudalosas pelo mar verde dos canaviais infindáveis eremansosas pelo mar de lama dos mangues, até cair nos braços domar. Eu ficava horas e horas imóvel sentado no cais, ouvindo a histó-ria do rio, fitando as suas águas correrem como se fossem uma fita decinema.

Foi o rio meu primeiro professor de história do Nordeste, dahistória desta terra quase sem história. A verdade é que a história doshomens do Nordeste me entrou muito mais pelos olhos do que pelosouvidos. Entrou-me por dentro dos meus olhos ávidos de criançasob a forma destas imagens que estavam longe de serem sempre cla-ras e risonhas.

Foi com estas sombrias imagens dos mangues e da lama que co-mecei a criar o mundo de minha infância. Nada eu via que não meprovocasse a sensação de uma verdadeira descoberta. Foi assim queeu vi e senti formigar dentro de mim a terrível descoberta da fome.Da fome de uma população inteira escravizada à angústia de encon-trar o que comer. Vi os caranguejos espumando de fome à beira daágua, à espera que a correnteza lhes trouxesse um pouco de comida,um peixe morto, uma casca de fruta, um pedaço de bosta que elesarrastariam para o seco matando a sua fome. E vi, também, os ho-mens sentados na balaustrada do velho cais murmuraremmonossílabos, com um talo de capim enfiado na boca, chupando osuco verde de capim e deixando escorrer pelo canto da boca umasaliva esverdeada que me parecia ter a mesma origem da espuma dos

Page 148: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

148 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

caranguejos: era a baba da fome. Pouco a pouco, por sua obsessivapresença, este vago desenho da fome foi ganhando relevo, foi toman-do forma e sentido em meu espírito. Fui compreendendo que toda avida dessa gente girava sempre em torno de uma só obsessão – aangústia da fome. Sua própria linguagem era uma linguagem quequase não fazia alusão a outra coisa. A sua gíria era sempre carregadade palavras evocando comidas. As comidas que desejavam com de-senfreado apetite. A propósito de tudo se dizia: é uma sopa, é umacanja, é um tomate, é uma ova, é um abacaxi, é uma batata, é pão-pão, é queijo-queijo. Era como se esta gíria fosse uma espécie decompensação mental de um povo sempre faminto. De um povo in-teiro de barriga vazia, mas com a cabeça cheia de comidas imaginárias.É que a comida lhes havia subido à cabeça, como o sexo sobe a cabe-ça dos impotentes, estes famintos de amor.

Esta presença constante da fome sempre fora a grande força mo-deradora do comportamento moral de todos os homens desta comu-nidade: dos seus sentimentos dominantes. Vê-los agir, falar, lutar,sofrer, viver e morrer era ver a própria fome modelando, com suasdespóticas mãos de ferro, os heróis do maior drama da humanidade– o drama da fome.

Foi o que viram, assustados e sem compreender bem todo o dra-ma, os meus olhos de criança. Pensei, a princípio, que a fome era umtriste privilégio desta área onde eu vivia – a área dos mangues. De-pois verifiquei que, no cenário da fome do Nordeste, os mangueseram uma verdadeira terra de promissão que atraía os homens vin-dos de outras áreas de mais fome ainda. Da área das secas e da área damonocultura da cana-de-açúcar, onde a indústria açucareira esmaga-va, com a mesma indiferença, a cana e o homem: reduzindo tudo abagaço.

Era um curso inteiro que eu fazia sobre a fome, quando ouvia,com um interesse sempre crescente, as intermináveis histórias conta-das por meu pai sobre as agruras sofridas pela nossa família, na secade 1877. Da presença da fome na zona do açúcar, tomei conheci-

Page 149: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 149

mento mais detalhado através do relato monótono de dois velhosnegros que tinham sido escravos na juventude e que desfilavam suaslembranças da época enquanto serravam grama para os cavalos demeu pai.

Mesmo quando me ia distrair, assistindo aos cantadores de feiraou ao espetáculo do bumba-meu-boi – auto popular representadona zona dos mocambos – o que encontrava diante de mim, represen-tando, falando, gesticulando, era sempre a fome em seus numerososdisfarces. Eram os violeiros cantando:

Triste vida de posseiro

junto à Alagoa Amarela.

Vinte anos sobre a terra

cavando o faltoso pão,

vinte anos de promessa

com a mesma enxada na mão,

catorze filhos no mundo

fora os que estão no caixão

Peguei na espingarda velha

como quem pega o enxadão

com a força que a fome dá

pra quem defende seu pão

E no bumba-meu-boi, o que eu via era um estranho boi deduas pernas apenas, o mais humano dos bois que eu tinha encon-trado na vida, sofrendo como um homem, chorando e revoltando-se como gente. E eu me tomava de amores por aquele boi magro eseco, tão magro e tão seco que, na verdade, era só cabeça e na cabe-ça era só chifres. Enormes chifres balançando no ar como um fan-tasma de boi. Realmente o boi era só chifres e pêlo, porque carnenão tinha, como afirmava em sua cantoria o vaqueiro que, palpandoo boi por toda parte, nunca encontrava em parte alguma sinal decarne:

Page 150: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

150 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Eu fui ver na cabeça

Eh! Bumba!

Achei ela bem lefa

Eh! Bumba!

Eu fui lá na ponta

Eh! Bumba!

Ela de mim não fez conta

Eh! Bumba!

Eu fui ver no pescoço

Eh! Bumba!

Achei ele bem torto

Eh! Bumba!

Eu fui ver nas apá

Eh! Bumba!

Não achei nada lá

Eh! Bumba!

Eu fui ver lá na mão

Eh! Bumba!

Não achei nada não

Eh! Bumba!

Eu fui ver nas costelas

Eh! Bumba!

Não achei nada nelas

Eh! Bumba!

Page 151: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 151

Eu fui ver no vazio

Eh! Bumba!

Achei o boi bem esguio

Eh! Bumba!

Eu fui ver no chambari

Eh! Bumba!

Não achei nada ali

Eh! Bumba!

Eu fui ver no cocotó

Eh! Bumba!

Achei bem ao redor

Eh! Bumba!

Eu fui ver na rabada

Eh! Bumba!

Não achei ali nada

Eh! Bumba!

O Bumba-meu-boi era apenas um pesadelo de faminto. De fa-minto sonhando com o fantasma de um boi, que cresce diante dosseus olhos compridos, mas cujas carnes desaparecem sob as apalpa-delas de suas mãos.

E foi assim que, pelas histórias dos homens e pelo roteiro do rio,fiquei sabendo que a fome não era um produto exclusivo dos man-gues. Que os mangues apenas atraíram os homens famintos do Nor-deste: os da zona da seca e os da zona da cana. Todos atraídos por estaterra de promissão, vindo se aninhar naquele ninho de lama,construído pelos dois rios e onde brota o maravilhoso ciclo do caran-guejo. E quando cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisa-gens, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser umfenômeno local, um drama do meu bairro, era um drama universal.

Page 152: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

152 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Que a paisagem humana dos mangues se reproduzia no mundo in-teiro. Que aqueles personagens da lama do Recife eram idênticos aospersonagens de inúmeras outras áreas do mundo, assoladas pela fome.Que aquela lama humana do Recife, que eu conhecera na infância,continua sujando até hoje toda a paisagem do nosso planeta comonegros borrões de miséria: as negras manchas demográficas da geo-grafia da fome.

Mas isto já mostrei noutros ensaios que escrevi sobre a fome.Ensaios de natureza científica, de análise sociológica do problema. Oque não tinha contado, até hoje, foi o meu encontro com o drama dafome. Hoje, resolvi contá-lo. Não só o encontro, como o pavor queele me provocou. Tomei conhecimento do monstro nos mangues doCapibaribe, e nunca mais me pude libertar de sua trágica fascinação.É esta fascinação e esta marca que a fome provocou na minha almade criança, que procuro hoje invocar neste romance – o romance doCiclo do Caranguejo.

Algumas das coisas que conto neste livro hoje desapareceram,mas outras – a maioria delas – permanecem intactas, tais como asviram os meus olhos de criança. É que o tempo conta pouco nasterras da miséria, nas terras subdesenvolvidas do Terceiro Mundo,onde a fome e a morte com sua presença constante estão sempre atecer o destino dos homens.

Page 153: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

5 . F O M E C O M O F O R Ç AS O C I A L : F O M E E P A Z *

Apesar do terrível esforço despendido pelos países da Europadurante a última guerra mundial e do sensível aumento do nível devida no mundo do após-guerra, os povos desenvolvidos continuamignorando o que significa, em toda sua crueza e realidade, a fomeconsiderada como fator social, agindo sobre grandes massas huma-nas. É verdade que, através de filmes documentários, assistimos acenas impressionantes de fome, tomadas em diversas regiões da ter-ra: quer imagens das regiões superpovoadas do extremo Oriente, comseus coolies descarnados ou indianos ascéticos, em luta permanentecontra o espectro da fome, quer imagens dos campos de concentra-ção na Europa, com suas figuras trágicas e angustiadas de homens,mulheres e crianças esfomeadas e amontoadas como lixo, à beira dasgrandes valas onde eram jogados seus corpos, reduzidos tão-somentea esqueletos envolvidos de pele.

Essas imagens cinematográficas, com toda a sua carga de horrore sofrimento, despertam, quando muito, na consciência dos povosbem alimentados, um sentimento de piedade e desencanto pela con-dição humana. Vista à distância e esquematizada até certo ponto, emuma série de simples imagens visuais, a tragédia da fome exprime

* Trabalho publicado na revista Pourquoi, número especial, março de 1967, Paris.

Page 154: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

154 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

apenas uma pequena parcela de sua terrível significação social e desuas repercussões econômicas e políticas.

A noção que se tem, corretamente, do que seja a fome é, assim,uma noção bem incompleta. E este desconhecimento, por parte daselites européias, da realidade social da fome no mundo e dos perigosque este fenômeno representa para a sua estabilidade social, constituiuma grave lacuna tanto para a análise dos acontecimentos políticosda atualidade, que se produzem em diversas regiões da terra, comono que se refere à atitude que os países da abundância deveriam terface aos países subdesenvolvidos, permanentemente perseguidos pelapenúria e pela miséria alimentar.

Neste ensaio, gostaríamos de tentar apresentar uma visão realistada fome enquanto calamidade social, procurando corrigir algumasidéias correntes que não correspondem à realidade dos fatos. Procu-raremos, também, demonstrar até que ponto a fome pode intervircomo força social, capaz de modificar a conduta e o comportamentodo homem, agindo, assim, em conseqüência, como um fator dedesajuste entre indivíduos, povos e nações.

Inicialmente, gostaríamos de destacar o fato relativamente poucoconhecido de que a fome não é um fenômeno de expressão puramenteregional, limitado a determinadas zonas do mundo – o extremo Orientee a África. A fome é um fenômeno geograficamente universal, a cujaação nefasta nenhum continente escapa. Toda a terra dos homens foi,até hoje, a terra da fome. As investigações científicas, realizadas emtodas as partes do mundo, constataram o fato inconcebível de que doisterços da humanidade sofre, de maneira epidêmica ou endêmica, osefeitos destruidores da fome. E que, até mesmo no continente ameri-cano – a terra prometida que atraiu, apenas no decorrer do últimoséculo, cerca de 100 milhões de imigrantes europeus, que procuravamescapar das garras da pobreza e da fome, ainda hoje existem aproxima-damente 100 milhões de indivíduos morrendo de fome.

É claro que são computados nessa cifra não apenas os casos defome total, de verdadeira inanição, mas também os casos mais fre-

Page 155: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 155

qüentes e muito mais generalizados de fome parcial, de fome ocultaou específica, resultante da carência, no regime normal, de certosprincípios nutritivos indispensáveis à vida. É que existem duas ma-neiras de morrer de fome: não comer nada e definhar de maneiravertiginosa até o fim, ou comer de maneira inadequada e entrar emum regime de carências ou deficiência específicas, capaz de provocarum estado que pode também conduzir à morte. Mais grave aindaque a fome aguda e total, devido às suas repercussões sociais e econô-micas, é o fenômeno da fome crônica ou parcial, que corrói silencio-samente inúmeras populações do mundo.

Para que se possa compreender todas as implicações da fome coleti-va, no domínio das atividades econômico-sociais, é necessário ter, antesde tudo, uma idéia objetiva de sua ação sobre a personalidade humana,tanto sobre seu corpo quanto sobre seu espírito. É possível, hoje em dia,fazer uma síntese dessa ação aniquilante da fome, com base nas observa-ções científicas realizadas nos campos de concentração da Europa du-rante a última guerra, ou nas zonas de fome que subsistem,independetemente da guerra, em países pouco desenvolvidos ou sujeitosa calamidades meteorológicas, como as secas e as inundações, ou, final-mente, a partir de experiências de laboratório realizadas por especialistas.Como exemplo deste último tipo de observações, podemos citar as dogrupo de pesquisadores da Universidade de Minnesota, dirigida peloDr. A. Keys, onde voluntários foram submetidos experimentalmente aum regime de semi-inanição durante um período de 6 meses. É verdadeque neste tipo de experiência os observadores obtêm resultados relativosno que se refere aos efeitos psicológicos da fome, porque os indivíduoscom os quais as experiências foram feitas não estavam submetidos à an-gústia e à pressão inerentes à verdadeira miséria e à impossibilidade ma-terial de obter alimentos para satisfazer sua fome, como ocorre nas zonasde fome existentes no mundo. Apesar de tudo, numerosos resultadosobservados nos laboratórios da Universidade de Minnesota coincidemcom as observações feitas na Europa e com as que pudemos recolher emcertas zonas de fome na América Latina.

Page 156: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

156 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

As conseqüências físicas da fome são, de maneira geral, bem co-nhecidas: diminuição ou parada de crescimento, perda de peso, per-da de forças, anemia etc. Não é necessário, portanto, dedicar a estaparte um estudo mais detalhado. Os aspectos psicológicos do fenô-meno, contudo, são bem mais complexos e bem mais obscuros econstituirão um dos pontos tratados neste ensaio.

Nesta análise da influência da fome e da subalimentação sobre ocomportamento humano, traremos como contribuição efetiva asobservações pessoais que fizemos em zonas de fome epidêmica noBrasil. No Nordeste deste país, em tempos normais, as populaçõeslocais têm um regime equilibrado, baseado em carne, leite, queijo emilho, produtos obtidos graças a um sistema de economia mista,agricultura e criação de gado. Mas, como se trata de uma região su-jeita a secas periódicas, quando se produz este cataclismometeorológico toda a economia regional se desorganiza e a fome agudaaparece, matando parte de sua população e expulsando a outra parte,obrigando-a a emigrar para zonas de clima mais regular. Nós tivemosoportunidade de seguir, em muitos destes episódios de seca, as trans-formações violentas que surgem na vida humana desta região.

A fome age não apenas sobre os corpos das vítimas da seca, con-sumindo sua carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em suapele, mas também age sobre seu espírito, sobre sua estrutura mental,sobre sua conduta moral. Nenhuma calamidade pode desagregar apersonalidade humana tão profundamente e num sentido tão noci-vo quanto a fome, quando atinge os limites da verdadeira inanição.Excitados pela imperiosa necessidade de se alimentar, os instintosprimários são despertados e o homem, como qualquer outro animalfaminto, demonstra uma conduta mental que pode parecer das maisdesconcertantes.

Seu comportamento se modifica como o de outros seres vivosatingidos nesta mesma zona pelo flagelo da fome: o do gado, o dosmorcegos e o das serpentes. O gado parece perder toda sensibilidadeà dor e chega a comer plantas espinhosas (como o cactus) que ferem

Page 157: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 157

sua boca a ponto de o sangue correr, misturado à sua baba. Os mor-cegos e as serpentes, que em tempos normais vivem longe das habita-ções humanas, invadem as casas no período de seca e atacam o ho-mem para acalmar sua fome desesperada.

A ação da fome, no homem, não se manifesta como uma sensa-ção contínua, mas como um fenômeno intermitente, com acessos emelhoras periódicas. No começo, a fome provoca uma excitação ner-vosa anormal, uma extrema irritabilidade e, principalmente, umaexaltação dos sentidos que se animam num elã de sensibilidade aoserviço quase exclusivo das atividades que permitem obter alimentose, portanto, satisfazer o instinto mortificado da fome. Entre os senti-dos, os que sofrem o máximo de excitação são os da visão e do olfato,os que podem melhor orientar o faminto na procura de alimento.Neste momento, o homem se apresenta, mais do que nunca, comoum verdadeiro animal de rapina, obstinado na procura de uma presaqualquer para acalmar sua fome. É nessas ocasiões que surgem, nessaregião do Brasil, seus famosos bandidos. Nesta fase desaparecem to-dos os outros desejos e interesses vitais, e o pensamento se concentraexclusivamente nas possibilidades de encontrar alimento, não im-porta por que meio nem com que riscos. É a obsessão do espíritopolarizado para um único desejo, concentrado em uma única aspira-ção: comer. A esse período de exaltação se segue um período de apa-tia, de depressão, de náusea e de extrema dificuldade de concentra-ção mental. Nesses limites, já muito perigosos para a segurança doespírito, a personalidade se desagrega, e as reações normais a todas asoutras solicitações do meio exterior sem relação com o fenômeno dafome se extinguem pouco a pouco. Nessa desintegração do eu desa-parecem as atividades de autoproteção e controle mental, e, final-mente, o indivíduo perde totalmente todos os escrúpulos e inibiçõesde ordem moral. Assim, com a consciência extinta, o conflito in-consciente prossegue, entre as forças de satisfação do instinto de nu-trição e as forças dirigidas pelos outros interesses humanos. Um dosdois grupos de elementos superará o outro, segundo o que o sociólo-

Page 158: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

158 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

go Sorokin chama de “lei de diversificação e de polarização dos efei-tos”, permitindo assim o aparecimento, em períodos de catástrofes,de bandidos e de santos. É desta forma que as secas e fomes periódi-cas contribuem para provocar a cristalização de dois tipos caracterís-ticos da vida social desta região do Brasil: os cangaceiros e os místicosfanáticos. Tipos tão característicos desta zona, que muitas vezes sãorepresentados em um mesmo indivíduo, em uma mesma personali-dade. Exemplo disso é o famoso cangaceiro e beato Bento da Cruz,originário da cidade de Juazeiro, que assassinou seu próprio pai e,com uma cruz em uma mão e um punhal na outra, fez justiça à suamaneira, nesta pequena localidade.

O cangaceiro, que emerge como uma serpente transtornada daimundície social, freqüentemente significa a vitória do instinto dafome sobre as barreiras sociais que o meio levanta.

O místico fanático traduz a vitória da exaltação moral que fazapelo às forças sobrenaturais a fim de dominar o instinto desordenadoda fome. Nos dois casos, assistimos a um uso desproporcional e ina-dequado da força – da força física ou da força mental – para lutarcontra o flagelo ou contra seus trágicos efeitos.

Além desta ação direta sobre a personalidade dos homens da re-gião, desorientando-os ou desajustando-os, as fomes periódicas agemdesorganizando ciclicamente a economia regional e criando um meiosocial extremamente receptivo às atividades tanto do banditismoquanto do misticismo. Sob esta ação desintegradora das fomes perió-dicas, esta região só progride lentamente, sob o ponto de vista sociale, no entanto, em tempos normais, o grupo humano que aí vive édisciplinado, trabalhador, industrioso e de uma honestidade a todaprova. Todas estas belas qualidades desaparecem como que por en-canto nos períodos de fome.

Tomando esta região como exemplo, queremos mostrar qual oefeito da fome como verdadeira força social. Seu primeiro efeitodesagregador reside no fato de que o grupo humano submetido à suaação periódica ou permanente perde sua capacidade criadora, mes-

Page 159: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 159

mo que os indivíduos que o compõem sejam hereditária e constitu-cionalmente capazes, mesmo que sejam intelectualmente superiores.

Investigações realizadas entre estudantes de diversas regiões doOriente e da América Latina demonstraram que as crianças possuemmuitas vezes quociente de inteligência de média elevada, mas queseu rendimento escolar é precário porque são incapazes de uma aten-ção mais prolongada ou de um esforço mental contínuo. Esta rápidafadiga e esta incapacidade de concentração são produzidos exclusiva-mente pela fome. Da mesma forma, a produção per capita dos traba-lhadores de certas zonas equatoriais e tropicais é baixa porque o regi-me de fome sob o qual eles vivem não lhes fornece energia suficientepara um trabalho intensivo. Cria-se, assim, um terrível círculo vicio-so: nas zonas de fome, a produção não aumenta, por falta de traba-lho suficiente e disciplinado, e sem aumentar a produção, a fomecontinua sabotando os planos de trabalho construtivo.

Para agravar a situação e fechar ainda mais o círculo de ferro,aparecem as doenças comumente ligadas à fome e à pobreza. A fomee o paludismo, por exemplo, são flagelos que se associam. Estima-seem 300 milhões o número de pessoas atingidas pelo paludismo e em3 milhões o número de mortes devido a esta doença, cada ano. Emdiversas regiões, o paludismo é grave e mata em grandes proporções,porque ataca pessoas famintas, sem nenhuma resistência. Além dis-to, como a produção destas regiões é terrivelmente fraca, sempre fal-tam recursos financeiros para o seu saneamento. Aviltando as popu-lações e diversos países, entravando sua produção, restringindo seupoder de compra, provocando a instabilidade política e a inquieta-ção social, a fome tornou-se, sem nenhuma dúvida, o sabotador maisativo da paz no mundo atual. Sua ação social negativa não se limitaàs regiões onde ela se vicia, mas seus efeitos vão bem mais longe erepercutem com intensidade sobre a economia e a vida política detodos as nações.

As populações cronicamente famintas, por sua fraca capacidadede produção e por seu poder de compra quase nulo, constituem massas

Page 160: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

160 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

parasitas que pesam bastante em um dos pratos da balança da econo-mia mundial. Além disto, constituem centros de agitação social con-tínua e de explosões desordenadas de revoltas improdutivas, de ver-dadeiras crises de nervos de populações neurastênicas e carentes devitaminas.

Qual deve ser o comportamento político do mundo diante desteterrível caos social? Para que nosso mundo possa sobreviver com suasinstituições e seus princípios fundamentais, somente um caminho épraticável: maximização de esforços para restringir ao mínimo essaszonas de fome. Trata-se de uma luta difícil e a longo prazo, mas per-feitamente realizável com as possibilidades naturais da terra e os atuaisconhecimentos do homem. O primeiro passo neste sentido consisteem obter um aumento progressivo da produção de alimentos nasdiferentes partes do mundo. Não existem para isso obstáculos geo-gráficos. Podemos aproveitar 52% da superfície da terra para a pro-dução de alimentos e, no entanto, até hoje só foram ativamente ex-plorados 10% deste total. Restam assim 42% do solo para ser uti-lizado visando à expansão da agricultura, à luta contra a fome. E sãoexatamente as zonas de fome que, em geral, possuem as maiores su-perfícies de terras inexploradas. Na América Latina – que é uma daszonas de fome do mundo – a extensão de terras exploradas não al-cança 5% do total do território. No Brasil, com uma grande exten-são territorial de mais de 7 milhões de km2, a superfície cultivadanão chega a 2% da superfície total.

Assim, não são os obstáculos naturais – nem o solo, nem o clima– que tornam esta tarefa difícil, como tampouco são os fatores denatureza geográfica que produzem geralmente as fomes. Em regrageral, são fatores sociais, conseqüência de estruturas econômicas de-feituosas.

O caminho para a salvação do mundo, segundo nossa opinião,deve consistir em facilitar progressivamente sua reestruturação eco-nômica e social a partir de princípios mais humanitários – princípiosque coloquem o homem como o centro do pensamento e do interes-

Page 161: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 161

se social. Desta forma, será possível utilizar recionalmente os inúme-ros recursos naturais ainda inexplorados e obter alimentos para acal-mar a fome de toda a humanidade.

A solução preconizada pelos pessimistas desencorajados, comVogt, em seu livro Road to Survival, é a de considerar preferível dei-xar morrer inúmeros indivíduos nas regiões mais pobres, como aChina, para restabelecer o equilíbrio econômico ameaçado pela rela-ção entre população e produção mundial. Contudo, esta solução nosparece ser um falso caminho para a sobrevivência, já que, nessas zo-nas de fome, quanto mais gente morre, mais gente nasce. É curiosonotar que as regiões onde a miséria alimentar é maior, os índices denatalidade também o são, como por exemplo, a Índia, o extremoOriente. As populações do mundo não se comportam estatistica-mente como as moscas de laboratório, que regulam suas curvas decrescimento demográfico segundo a quantidade de alimento que lhesé fornecida pelo pesquisador. Com os homens é bem diferente. Comose tratasse de uma forma de revolta da espécie contra a pressão dafome, o homem aumenta sua capacidade de reprodução nas regiõesonde a morte dizima com mais violência. Além disto, Vogt se enga-na, também, quando preconiza a extinção forçada destas massas hu-manas nas regiões mais atrasadas, com a intenção egoísta de defen-der as condições de vida, aprovisionamento e a segurança social doshabitantes das regiões mais civilizadas porque, deste modo, o que seconsegue é aumentar a insegurança social e as dificuldades econômi-cas do mundo inteiro. Com efeito, estas massas humanas não se dei-xam sacrificar assim passivamente, como gado dócil, ao contrário,elas se revoltam, se agitam e constituem um verdadeiro foco de ela-boração de idéias revolucionárias. Seria muito mais indicado ajudaressas populações a se nutrir melhor, para que assim pudessem tercapacidade e força para produzir melhor. Não existe perigo em se verdobrar a população do mundo, se esta população se compõe de indi-víduos capazes de uma ação social, capazes de produzir para sua sub-sistência e a dos seus. A afirmativa do grupo neomalthusianista, que

Page 162: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

162 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

admite ser necessário prescrever o controle da natalidade para salvaro mundo, não tem muito sentido, porque o mundo está longe deestar muito povoado. O que ocorre é que não existe gente suficientepara produzir e existe gente demais para comer.

O conceito de excedente de população, que serve de base aosadeptos da doutrina do controle da natalidade, é um conceito muitorelativo. Três homens em uma zona desértica, sem produção de espé-cie alguma, superpovoam esta zona. Três mil homens trabalhando nasua transformação, irrigando-a e cultivando-a de maneira adequada,podem constituir uma população ótima para esta mesma zona. Ostrês bilhões de habitantes que representam atualmente a populaçãodo mundo e assustam os neomalthusianos como se se tratasse deuma nuvem de gafanhotos ameaçando devorar toda a produção des-se pequeno pomar que só cobre um décimo da superfície terrestre,talvez, no futuro, correspondam apenas a uma pequena populaçãofacilmente alimentável, desde que o pomar se estenda pelas terrassemi-áridas dos trópicos, às zonas de floresta equatorial e mesmo àstundras geladas das regiões subpolares, graças aos métodos e técnicasde que dispõe hoje a agricultura científica. O mundo pode até dupli-car a sua população atual, desde que dê prova de bom senso e procureo caminho adequado para a sobrevivência.

A chave desse caminho se encontra na concepção fundamentalde que vivemos atualmente num mundo que é um organismo vivo,unitário, onde todas as partes estão indissoluvelmente ligadas, o quesignifica que, desde que uma dessas partes sofra de fome e estejaameaçada de morrer e apodrecer na miséria, todo organismo estáameaçado pela mesma infecção.

Uma frase pronunciada diante dos delegados da oitava reuniãoda FAO há alguns anos por Truman, então presidente dos EstadosUnidos, nos parece muito sensata e oportuna. “A fome não tem nacio-nalidade; a abundância tampouco deve tê-la”.

Acalmar a fome do mundo é a política mais sadia para aplacar afúria guerreira que sopra neste momento, como uma terrível tem-

Page 163: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 163

pestade, sobre a superfície deste mundo, ameaçando-o com um novoe terrível tipo de erosão: a erosão total da magnífica obra humanaque as sucessivas civilizações esculpiram sobre a terra.

Page 164: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear
Page 165: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

6 . S U B D E S E N V O L V I M E N T O :C A U S A P R I M E I R AD A P O L U I Ç Ã O *

Os chamados países subdesenvolvidos devem se preocupar comos problemas do meio? À primeira vista, esses problemas são muitomais graves e complexos nos países desenvolvidos, onde a industria-lização e a gigantesca concentração urbana provocam diretamenteum desequilíbrio inevitável e uma acentuada degradação do contor-no natural, isto é, do meio. Desta forma, os problemas de poluiçãoparecem se circunscrever e interessar quase exclusivamente aos paísesdo alto nível de industrialização e, em muito escassa medida, aospaíses pobres, meros fornecedores de matérias-primas.

Esta é uma análise errônea, originada da imprecisão de algunsconceitos básicos, como as acepções habituais de “meio” e “desenvol-vimento”. O meio não é apenas o conjunto de elementos materiaisque, interferindo continuamente uns nos outros, configuram osmosaicos das paisagens geográficas. O meio é algo mais do que isso.As formas das estruturas econômicas e das estruturas mentais dosgrupos humanos que habitam os diferentes espaços geográficos tam-bém são partes integrantes dele.

Considerado globalmente, o meio tanto compreende fatores de or-dem física ou material quanto fatores de ordem econômica e cultural.

* Trabalho apresentado no “Colóquio sobre o Meio”, em junho de 1972, em Estocol-mo. Publicado na revista O Correio da Unesco, ano 1, nº 3, março de 1973.

Page 166: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

166 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Uma análise correta do meio deve abarcar o impacto total dohomem e de sua cultura sobre os elementos restantes do contorno, eo impacto dos fatores ambientais sobre a vida do grupo humanoconsiderado como uma totalidade. Desse ponto de vista o meio abran-ge aspectos biológicos, fisiológicos, econômicos e culturais, todoscombinados na mesma trama de uma dinâmica ecológica em trans-formação permanente.

Esse conceito é mais amplo e mais objetivo que o resultante deuma concepção do meio como sistema de relações mútuas entre osseres vivos e o contorno natural, considerados ambos como fenôme-nos isolados.

Igualmente falso é o conceito de desenvolvimento avaliado uni-camente à base da expansão da riqueza material, do crescimento eco-nômico. O desenvolvimento implica mudanças sociais sucessivas eprofundas, que acompanham inevitavelmente as transformaçõestecnológicas do contorno natural. O conceito de desenvolvimentonão é meramente quantitativo, mas compreende os aspectos qualita-tivos dos grupos humanos a que concerne. Crescer é uma coisa; de-senvolver, outra. Crescer é, em linhas gerais, fácil. Desenvolverequilibradamente, difícil. Tão difícil que nenhum país do mundoconseguiu ainda. Desta perspectiva, o mundo todo continua maisou menos subdesenvolvido.

Atualmente está na moda falar dos defeitos nocivos que o cres-cimento econômico produz sobre o meio, sobre os componentesdo contorno natural; entretanto, costuma-se referir apenas e preci-samente aos efeitos que não são os mais ameaçadores para o futuroda humanidade. Ouvem-se gritos de alarme condenando o cresci-mento da população, a poluição do ar, dos rios e dos mares e adegradação do patrimônio animal e vegetal das regiões mais desen-volvidas do mundo; mas tudo isso revela uma visão limitada doproblema, já que o clamor se refere apenas aos efeitos diretos daexpansão econômica, enquanto deixa na sombra e reduz ao silên-cio a insidiosa ação indireta do desenvolvimento sobre a totalidade

Page 167: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 167

dos grupos humanos. E é evidente que esta ação indireta é maisdeterminante que a ação direta.

O primeiro erro grave, a primeira conclusão falsa que deriva des-ta visão parcial do problema é a afirmativa muito generalizada deque nas regiões mais ricas é que apareceram, por causa do crescimen-to econômico, os primeiros efeitos da poluição e da degradação domeio ambiente. A realidade é diferente: os primeiros e mais gravesefeitos do desenvolvimento manifestaram-se precisamente naquelasregiões que estão hoje economicamente subdesenvolvidas e que on-tem eram politicamente colônias. O subdesenvolvimento que existenessas regiões é o primeiro produto do desenvolvimento desequili-brado do mundo. O subdesenvolvimento representa um tipo de po-luição humana localizado em alguns setores abusivamente explora-dos pelas grandes potências industriais do mundo.

O subdesenvolvimento não é, como muitos pensam equivoca-damente, insuficiência ou ausência de desenvolvimento. O subde-senvolvimento é um produto ou um subproduto do desenvolvi-mento, uma derivação inevitável da exploração econômica colonialou neocolonial, que continua se exercendo sobre diversas regiõesdo planeta.

Há os que afirmam, convictos, que a problemática do meio nospaíses subdesenvolvidos é diferente da dos países ricos e industriali-zados. Assim, diz-se que nas regiões subdesenvolvidas não existe preo-cupação com os aspectos qualitativos da vida, mas apenas com a pos-sibilidade de sobreviver, isto é, com a luta contra a fome, contra asepidemias e contra a ignorância generalizada. Esta posição esqueceque estes são apenas sintomas de uma grave doença social: o subde-senvolvimento como um produto do desenvolvimento. Os paísessubdesenvolvidos que lutam pela sobrevivência devem se preocuparcom os problemas do meio e do desenvolvimento em escala mundial,para se defenderem das agressões que seu próprio meio sofre há sécu-los por parte das metrópoles colonialistas, destruidoras da condiçãohumana nas áreas subdesenvolvidas.

Page 168: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

168 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Se só ultimamente é que se vem falando com insistência dapoluição e degradação provocadas pelo crescimento econômico, issose deve a que a civilização ocidental, com seu repertório científicoetnocêntrico, sempre se negou a aceitar esta evidência: que a fomee a miséria de algumas regiões distantes fazem parte do custo socialdo seu próprio progresso, um progresso que a humanidade inteirapaga para que o desenvolvimento econômico avance no pequenonúmero de regiões dominantes política e economicamente no mun-do.

A escamoteação desta verdade provocou a implantação em escalaplanetária de uma estratégia de luta contra o subdesenvolvimentoque estava irremediavelmente fadada ao fracasso: a do Decênio parao Desenvolvimento, de 1960 a 1970. Fracasso que se tornará a pro-duzir enquanto as estruturas econômicas do mundo continuaremsustentadas pelos falsos suportes do seu edifício social: a economiade guerra, a economia do lucro máximo e a política de esmagamentoeconômico do Terceiro Mundo.

Na sua luta por emancipação e sobrevivência, os países subde-senvolvidos terão de obter a qualquer preço uma sensível diminuiçãodo impacto econômico negativo que a economia de mercado provo-ca no seu sistema de economia de dependência. Esses países vão com-bater a ação indireta e distante dos grandes pólos de concentração decapital, que alimentam por todos os meios, inclusive pela negativa àestabilidade do custo das matérias-primas, o subdesenvolvimento daperiferia econômica do mundo.

Para que não reste a menor dúvida de que o subdesenvolvimentoé, na civilização de consumo, um produto do desenvolvimento, bas-ta verificar que antes da explosão capitalista e industrial do nossoséculo não existia esta divisão entre países desenvolvidos e subdesen-volvidos, separados uns dos outros por um largo fosso econômico.Foi depois da segunda revolução industrial que se exteriorizaram asdisparidades extremas dos ritmos de crescimento e dos níveis econô-micos de ambos os grupos de países.

Page 169: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 169

Tomemos um exemplo concreto: a renda média por habitante,em dois países representativos dos dois grupos, Estados Unidos daAmérica e Índia. Antes da I Guerra Mundial, a renda média porhabitante era na Índia oito vezes inferior à dos Estados Unidos; antesda II Guerra Mundial, era 15 vezes inferior; atualmente a renda deum hindu é 50 vezes menor que a de um norte-americano.

É preciso considerar a degradação da economia dos países subde-senvolvidos como uma poluição do seu meio humano, causada pelosabusos econômicos das zonas de domínio da economia mundial; afome, a miséria, os altos índices de freqüência de enfermidades evitá-veis com um mínimo de higiene, a curta duração média da vida,tudo isto é produto da ação destruidora da exploração do mundosegundo o modelo da economia de domínio.

A fome na Índia, no Peru, em São Domingos, no Nordeste doBrasil, embora apareça como manifestação local de zonas subdesen-volvidas, exprime na verdade formas paradoxais de doenças da civili-zação, na medida em que são o produto indireto do crescimentoeconômico desequilibrado, da mesma forma que são também indi-retamente produzidas por ele as doenças cardiovasculares edegenerativas. No fundo, ambos os grupos de doenças, as da civiliza-ção e as da penúria, são causadas por um só despotismo, o da frené-tica civilização do lucro. Umas surgem ali, diretamente sobre o pró-prio terreno desse despotismo; outras, indiretamente, longe dele.

A estratégia que considerava a realidade social do Terceiro Mun-do separada do mundo como totalidade foi fatal para a melhoriadas condições do meio. Toda a biosfera é um só ecossistema com-posto de múltiplos subsistemas. O ecossistema da biosfera possuienorme plasticidade estrutural, devido ao jogo dos mecanismos decompensação utilizados para equilibrar os impactos negativos daação humana.

Mas essa plasticidade, que é um importante triunfo do homem,na medida em que permite transformar a biosfera e utilizar seus ele-mentos para satisfazer as necessidades, não pode ultrapassar certos

Page 170: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

170 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

limites fixados pelas leis dos equilíbrios naturais, sob pena de provo-car graves e, às vezes, fatais rupturas nos ecossistemas.

Os desequilíbrios extremos a que foi arrastado o Terceiro Mundoconstituem, por causa do jogo das inter-relações ecológicas, umaameaça para toda a biosfera e assim, ipso facto, para toda a espéciehumana. A fome do Terceiro Mundo pode um dia chegar a provocaruma peste generalizada, e a sublevação dos famintos pode levar omundo inteiro à guerra, se consideramos estes dois problemas: fomee guerra, como formas de um desequilíbrio dinâmico do meiosoioeconômico.

Não devemos considerar apenas a ação indireta do desenvolvi-mento sobre o Terceiro Mundo, ação que é mais econômica e cultu-ral do que puramente física ou natural; devemos nos inquietar tam-bém com a ação direta: o esbanjamento inconsiderado dos recursosnaturais não renováveis e as rupturas biológicas dos subsistemas eco-lógicos.

O Terceiro Mundo está sob a ameaça permanente de ver introdu-zidos tipos de desenvolvimento tecnológicos que, desdenhada a di-mensão ecológica, podem provocar uma desagregação total de sua es-trutura. Se levarmos em conta a relativa fragilidade de algunsecossistemas equatoriais e tropicais, onde se agrupa a maior parte dospaíses do Terceiro Mundo, este perigo adquire maior gravidade ainda.

Ninguém ignora a grande fragilidade do solo nestas regiões devi-do, sobretudo, à erosão provocada pela exploração abusiva do mantovegetal. Ninguém ignora que os transbordamentos dos rios tropicaissão controlados por diques vegetais de diversos tipos que orientam ocurso. Por conseguinte, a destruição dessa vegetação provoca inun-dações e estancamentos de águas, que acarretam graves conseqüências:da perda dos cultivos agrícolas inundados até a disseminação endêmicade algumas doenças transmitidas por insetos que proliferam nas águasestancadas.

Será que basta a constatação de que o progresso tecnológico e ocrescimento econômico atualmente destroem o meio ambiente do

Page 171: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 171

Terceiro Mundo para justificar o que alguns preconizam: a saber, ainterrupção do crescimento nestas regiões? Não acredito. É absur-do preconizar a interrupção do desenvolvimento econômico nospaíses do Terceiro Mundo, quando os povos destas regiões vêemnele a sua última esperança de sair do estado de miséria que osoprime. Não creio que os chamados “oponentes do desenvolvimen-to” tenham razão ao propugnar uma interrupção, pois o que seimpõe é uma mudança, ou melhor dito, uma reconversão do tipode desenvolvimento.

A tecnologia não é boa nem má. É a sua utilização que lhe dásentido ético. Se nos países do Terceiro Mundo a tecnologia age con-tra os povos subdesenvolvidos é porque foi utilizada unicamente paraproduzir o máximo de vantagens e lucros para os grupos da econo-mia dominante. É a exploração neocolonialista que leva estes paísesao estado de desespero em que hoje se encontram, agravado pelanova ameaça desta ordem de interromper o escasso progresso queconseguiram nos últimos decênios.

Fala-se muito do relatório que o Instituto de Tecnologia deMassachusetts (M.I.T) preparou, por inspiração do Clube de Roma,à base de trabalhos de computadores. Este relatório determina limi-tes de crescimento, avaliados levando-se em conta os efeitos nocivosda civilização tecnológica e industrial, ou seja, propõe a fixação deum ponto de estabilização da população e da economia mundiais.Ora, embora aparentemente o relatório tenha razão – pois a todosnós inquieta a poluição e a degradação do meio – a realidade é que,considerado, globalmente, torna-se inaceitável porque suas conclu-sões estão falseadas por uma metodologia pouco científica. O relató-rio considera que o modelo de desenvolvimento que apresenta, comsua imagem do mundo dentro de um século, é o único válido, oúnico possível de ser armado com os dados hoje disponíveis sobre arealidade mundial. Este exclusivismo, muito característico da cultu-ra etnocentrista dos países desenvolvidos, demonstra por si só o cará-ter pouco científico do relatório.

Page 172: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

172 J O S U É D E C A S T R O - V I D A E O B R A

Todos sabemos que não se pode prever um só tipo de modelo dofuturo. Os que estudam a ciência do porvir, a prospectiva, sabemque não é possível ater-se a um futuro único, determinado pelas dife-rentes condições que reinam no momento de realizar o estudo. Oque cabe fazer é imaginar uma série de futuros prováveis em funçãodo princípio da probabilidade, que substituiu já há tempos o antigoprincípio do determinismo, que foi a norma antes da formulação dateoria da relatividade.

Pode-se, pois, conceber vários modelos do mundo de amanhã e,com grande risco de erro, prever quais as probabilidades de cada umse transformar em realidade. De forma alguma devem-se limitar asprevisões científicas a um só modelo. Quando se fazem projeçõeslineares, como as do relatório sobre os limites do crescimento, cai-seinevitavelmente em ingênuas tentativas que não levam em conta aruptura de estruturas, normal no processo histórico de nossa época.Vivemos uma época de descontinuidade e não de continuidade.

O erro mais grave do relatório do MIT é omitir, entre os fatoresque determinam o crescimento, o problema das estruturas econômi-cas, sociais e políticas.

Na introdução do relatório, os autores levam em conta apenas cin-co fatores de desenvolvimento: a população, a produção agrícola, osrecursos naturais, a produção industrial e a poluição. Nem uma pala-vra sobre as estruturas socioeconômicas. No entanto, ninguém ignoraque o nível de produção e o nível de poluição, isto é, o desenvolvimen-to e o meio, dependem essencialmente do tipo de estruturas em jogo.

Omitindo o homem e sua cultura, o projeto torna-se alienado,porque não leva em conta as realidades do mundo atual e, por conse-guinte, o modelo do mundo de amanhã.

Se o Terceiro Mundo, na sua maior parte, recusa as conclusõesdeste relatório, é porque desconfia da prescrição sobre a interrupçãodo crescimento, interrupção apenas para as regiões pobres, pois ébem sabido que os países ricos não obedecerão a tal ordem. E o fossoque separa ambos os mundos se alargará ainda mais.

Page 173: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 173

Se isto é a verdade, todo o paternalismo caritativo do Clube deRoma para com o Terceiro Mundo transforma-se num engodo. Estetipo de medida não ajuda em nada os países do Terceiro Mundo,mas, ao contrário, prende-os definitivamente ao subdesenvolvimentoe à miséria.

Conseqüentemente, estes países devem reagir e tentar encontrarum tipo de desenvolvimento independente do desenvolvimentoneocolonial. Para isso precisarão procurar fórmulas que lhes permi-tam a aplicação de técnicas oriundas da prática e que serão as únicasválidas para desenvolvê-los de maneira racional. É indiscutível que otipo de desenvolvimento atual é um fracasso, mas é indiscutível tam-bém que se pode chegar a desenvolver o mundo com estruturassocioeconômicas e instrumentos de produção diferentes dos que seusam agora.

É imprescindível retransformar a economia de guerra em quevivemos numa economia de paz, e utilizar a enorme poupança queresultar do desarmamento parcial na obtenção de um tipo de desen-volvimento pacífico mais igualitário e não poluidor.

Page 174: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear
Page 175: JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra - Livraria Expressão …editora.expressaopopular.com.br/.../files/josue_de_castro.pdf · riedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear

B I B L I O G R A F I A

Andrade, Manuel Correia. “A atualidade do pensamento de Josué deCastro” In A questão do território no Brasil. São Paulo – Recife: Hucitec– IPESPE, 1995.

CASTRO, Anna Maria. FOME um tema proibido – os últimos escritos deJosué de Castro. Recife – CONDEPE / CEPE – 1996.

CASTRO, Josué. Documentário do Nordeste. São Paulo: Brasiliense, 1959.__________. Sete Palmos de Terra e um Caixão. Lisboa: Seara Nova, 1975.__________. Geografia da Fome. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, O Cru-

zeiro. 1946.__________. O Ciclo do Caranguejo. Porto, Brasília, 1966.DI TARANTO, Giuseppe. Sociedade e subdesenvolvimento na obra de

Josué de Castro. Belém: CEJUP, 1993.GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Geografia da Fome, em busca de

uma ciência da riqueza. Rio de Janeiro; inédito. s.d.Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Segurança Alimentar 2004.

Rio de Janeiro: IBGE, 2006.CADERNOS DO ITERRA. Josué de Castro - Semeados de Idéias. Ano

II, no 7, setembro de 2003.MAGALHÃES, Rosana. Fome: uma (re)leitura de Josué de Castro,Rio de

Janeiro: Fiocruz, 1997.PIRES, Maria Idalina da Cruz & Simões, Maria Lucilia Rodrigues. Josué

de Castro. São Paulo: Edições Paulinas, 1992.STEDILE, João Pedro. “A fome e a reforma agrária” In Revista Advir,

pp. 67-9. Rio de Janeiro: Asduerj, 1996.