jostein gaarder - a vida breve

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    JOSTEIN GAARDER

    A VIDA E BREVECarta de Flria Emlia a Aurlio Agostinho

    Traduo de Maria Lusa Ringstad

    FICHA TCNICA Ttulo original:Vita Brevis Autor: Jostein Gaarder Traduo: Maria Lusa Ringstad Fotografia:Getty Images/Image One Capa:Vera Espinha Fotocomposio, impresso e acabamento: Multitipo Artes Grficas, Lda. 1.a edio, Lisboa, Dezembro, 19982.a edio, Lisboa, Junho, 19993.a edio, Lisboa, Maro, 20004.a edio, Lisboa, Maro, 20015.a edio, Lisboa, Julho, 2006

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    Quando visitei a Feira do Livro de Buenos Aires

    Primavera de 1995, recomendaram-me vivamente que rse uma manh para a famosa feira da ladra de San Teim Aps algumas horas de arrebatamento diante das

    cadas ao ar livre, acabei por me refugiar num pequeno bista. Entre uma modesta seleo de manuscritos antimeus olhos foram atrados por uma caixa vermelha quuma etiqueta onde se lia: Codex Floriae. Algo despertou omeu interesse e abri a caixa cautelosamente. L dentro um mao de folhas manuscritas que pareciam antigasantigas, e verifiquei rapidamente que o texto era em lati

    Numa linha parte, havia uma saudao inicial eta em maisculas: Flria Aemilia Aurelio Augustino copo Hipponiensi Salutem. Flria Emlia sada Aurl gostinho, bispo de Hipona... Devia tratar-se de uma cartseria realmente uma carta endereada a esse telogo e Igreja que, a partir de meados do sculo IV, passou a

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    parte da sua vida no Norte de frica? E teria essa cartaenviada por uma mulher chamada Flria?

    Eu conhecia bem a biografia de Agostinho. Nenh

    outra figura mostra com tanta clareza a profunda mucultural que teve lugar na transio da antiga cultura romana para a cultura crist, que viria a caracterizar a E pa at aos nossos dias. A melhor fonte para conhecer a Agostinho , naturalmente, ele prprio. As suas Confisses(Confessiones,escritas por volta do ano 400) proporcion

    uma viso nica do agitado sculo IV, assim como do prprios conflitos espirituais, relacionados com a f e Agostinho , talvez, o indivduo anterior Renascenmais prximo de ns est.

    Mas que mulher lhe poderia ter escrito uma cartextensa? Na caixa havia pelo menos setenta ou oitenta Eu nunca ouvira falar de um tal documento.

    Tentei traduzir uma outra frase: Como estranhde te saudar nestes termos! Em tempos que j l vo, terto apenas "para o meu pequeno e divertido Aurlio".estava muito certo da traduo, mas no restavam dvque esta carta evidenciava um tom muito pessoal.

    De repente ocorreu-me um pensamento: poderia eta ser daquela mulher que fora a concubina de Agostinrante anos; isto , da mulher que ele prprio conta ter tdeixar por ter escolhido abster-se para o resto da vida damor sensual? Senti um calafrio porque sabia bem que coisa que se conhece da tradio agostiniana sobre essmulher ou sobre a sua longa convivncia com Agostinho

    ele prprio escreve nas suas Confisses.Passados alguns momentos o alfarrabista aproxime apontou para a caixa. Eu estava ainda petrificado pel portncia do manuscrito que estava a tentar avaliar.

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    Uma maravilha! disse o homem. Sim, penso que sim... Eu j tinha dado algumas entrevistas aos jornais e

    leviso por ocasio da Feira do Livro e o homem reconh El Mundo de Sofia?Confirmei com a cabea. Ento o alfarrabista incl

    do-se sobre a caixa, abriu-a e colocou-a em cima de ummonte de outros manuscritos como se quisesse dar a que no estava muito interessado em vender aquele. Ta

    tenha ficado um pouco mais receoso depois de se ter ade quem eu era. Uma carta a Santo Agostinho? perguntei. O

    seu sorriso denotava inquietao. Acha que esta carta autentica? No impossvel disse ele. Chegou-me s

    mos h poucas horas, mas se eu tivesse percebido queva do manuscrito que realmente parece ser, no estaria a

    Como que arranjou isto? O alfarrabista riu-se Se eu no soubesse proteger os meus clientes,

    fora deste ramo h muitos anos. Uma imensa curiosidade apoderou-se de mim. Quanto pede por isto? perguntei. Quinze mil pesos. Quinze mil pesos pareceu-me um exagero por um

    nuscrito que, embora parecesse ser uma carta da concu Agostinho, tinha provavelmente apenas alguns sculos.lhor das hipteses, podia tratar-se da reproduo de umat agora desconhecida, para o padre da Igreja ou, mais

    velmente, da cpia de outra reproduo ainda mais antigse podia excluir a hiptese de ter sido escrita em algumlatino-americano durante o sculo XVII ou XVIII. Verseja dita, at mesmo nesse caso era uma coisa que valia

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    levar para a Europa. Ouvi dizer que em certas comunreligiosas os Santos Catlicos escreviam ou recebiam, dquando, este tipo de carta apcrifa.

    Visto que o alfarrabista ia fechar a loja, apressei-apresentar-lhe o carto Visa. Doze mil pesos disse eu. Ofereci-lhe quase cem mil coroas norueguesas p

    coisa que, provavelmente, no tinha qualquer valor com gidade. Mas eu sentia uma grande curiosidade pelo ma

    e no era, com certeza, a primeira pessoa que pagava csua curiosidade. Quando li as Confissesde Santo Agosti- nho pela primeira vez, muitos anos antes, tentei colocasituao desta concubina. A viso que Agostinho tinhamor entre homem e mulher impressionou-me profundam

    O livreiro aceitou a oferta, dizendo: Acho que devemos considerar esta compra e

    como uma espcie de risco partilhado. Mostrei-me surpreendido, porque no compreend

    o homem pretendia dizer com aquilo. Ento explicou-m Ou estou a fazer um negcio estupendo ou o s

    quem est a fazer uma compra ainda melhor. Registrou o carto de crdito e disse com um ar so Nem tive tempo de ler o manuscrito. Dentro das, o preo subiria consideravelmente ou eu mesmo atir

    caixa vermelha para o caixote do lixo que v ali em fren O cesto que indicava estava repleto de livros de b

    lhos, e tinha um cartaz onde se lia: 2 pesos. Fui eu quem fez o melhor negcio. OCodex Floriae

    efetivamente dos finais do sculo XVI e foi, muito provte, escrito na Argentina. A grande dvida se existiu, rete, um pergaminho antigo a partir do qual foi reproduCodex Floriae.

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    Mas estou absolutamente certo de que se trata decarta autntica, escrita por aquela que foi a amante de Anho durante muitos anos. No me parece possvel que

    sido falsificada na Argentina nos finais do sculo XVmais natural aceitar que o original provm da poca de Agostinho. Tanto a sintaxe como o vocabulrio usadoscumento apresentam a marca inconfundvel da antigimesmo acontece com a mistura de sensualidade e reflexosa quase desesperada que Flria deixa transparecer.

    No Outono de 1995 levei o manuscrito BiblioteVaticano, em Roma, com o propsito de conseguir umamais exata. Porm, ali pouco me ajudaram. Antes pelo rio: o Vaticano negou veementemente ter recebido qCodex Floriae.O fato no me surpreendeu, embora no psa presumir, de nimo leve, que a carta de Flria pertIgreja Catlica.

    Guardei, naturalmente, uma cpia do manuscrito Primavera de 1996, tentei dar-lhe forma em noruegus.do na carta h citaes das Confissesde Santo Agostinho,sigo a excelente traduo norueguesa dos dez primeir feita por Oddmund Hjeldes.

    O trabalho de traduo foi um quebra-cabeas semcedentes, entre outras coisas, porque o manuscrito n paginado. Mas ao mesmo tempo foi imensamente estter tido esta oportunidade para refrescar antigos conhede latim que adquiri h muito no Instituto da

    Catedral de Oslo (1968-1971). Voltei a recordar c gratido o meu velho professor de Latim, Oskar Fjeld.

    nante verificar como as velhas conjugaes e declinaam gravadas na minha memria. Mesmo assim, sem a pajuda de Oivind Andersen, esta traduo no teria sidovel. Gostaria tambm de agradecer a Trond Berg Erikse

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    Kraggerud, Oivind Norderval e Kari Vogt pelas palavrarajadoras e pelos bons conselhos.

    Ficaria muito satisfeito se esta publicao doCodexFloriaeviesse a despertar o interesse pela lngua latina cultura clssica em geral.

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    FLRIA EMLIA SADA AURLIO AGOSTINHO, BISPO DE HIPONA

    Como estranho ter de saudar-te nestes ter-mos! H muito, muito tempo, teria escrito apenas pa-ra o meu pequeno e divertido Aurlio. Mas passaramj mais de dez anos desde a ltima vez que me abra-aste e, entretanto, muitas coisas mudaram.

    Escrevo-te porque o sacerdote de Cartago deu-

    me a ler as tuas confisses. Deve ter pensado que osteus livros seriam uma leitura construtiva para umamulher como eu. Na qualidade de catecmena,1 h jmuitos anos que estou ligada a esta comunidade, masno desejo ser batizada, Aurlio. No o Nazarenoque me impede de dar tal passo, nem to-pouco os

    quatro Evangelhos. Pura e simplesmente no queroser batizada.1 i.e., ouvinte. Flria usa a palavra latina auditor.

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    No teu Livro VI escreves: Afastaram de mim,

    como impedimento para o matrimnio, aquela comquem eu partilhava o leito. O meu corao, to presoa ela, ficou destroado e ferido at sangrar. Voltoupara frica, fazendo-Vos2 voto de jamais convivercom outro homem e deixando-me o filho natural quetivemos.3

    2 i.e., Deus. Confessiones escrita sob a forma de confissesde Santo Agostinho a Deus.

    3 Conf.VI, 15.

    bom verificar que ainda recordas os laosfortes que um dia nos uniram. Sabes perfeitamenteque a nossa unio foi mais do que uma relao fugaz,to freqente antes de os homens casarem. Fomosfiis um ao outro durante mais de doze anos e tive-mos um filho juntos. Muitas vezes acontecia que pes-soas que nos encontravam, nos tomavam por marido

    e mulher segundo o preceito legal. Tu apreciavas isso, Aurlio. Creio mesmo que tinhas orgulho nisso, en-quanto muitos homens tm vergonha das suas mulhe-res. Lembras-te daquela vez em que atravessamos orio Arno? De repente, fizeste-me parar e, pousando atua mo sobre o meu ombro, disseste algo. Lembras-te desse episdio?

    Escreves freqentemente que omites muitascoisas e que de outras j no te lembras. Desculpa-me,mas vou refrescar-te a memria sobre alguns pontos

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    fundamentais.E verdade que prometi no voltar a conhecer

    outro homem. Porm, essa promessa no foi feita aDeus. No foste tu, por acaso, quem me fez prometerisso? Tenho a certeza de que foi assim, pois foi o meunico consolo quando parti de Milo e regressei a casasozinha.4 Ainda te preocupavas comigo, pelo menosum pouco. Pensei que Mnica5 iria reconsiderar e vol-tssemos a viver juntos um dia. Ningum pede fideli-

    dade a outra pessoa, se a rejeita com dio ou ira. Es-creves mais adiante: A chaga que me causou o fim darelao com a mulher com quem vivi ainda no sarou. A princpio inflamou e era terrivelmente dolorosa,mas depois gangrenou e tornei-me menos sensvel dor.6 Mais adiante voltarei a falar na sensibilidade ena gangrena.4 Flria usa o nome latino Mediolanum.

    5 A me de Agostinho.

    6 Conf.VI, 15.

    Ambos sabemos que a nossa separao no sedeveu unicamente ao fato de Mnica ter encontrado amulher adequada para ti. claro que a sua idia eraessa, pois pensava no futuro da famlia. No teria elacimes de mim? Muitas vezes me interroguei sobreisso. Jamais esquecerei aquela Primavera em que elachegou a Milo decidida a interpor-se entre ns.

    Mas foram os dois, tu e a tua me, que memandaram embora, e para ti a razo principal no foi

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    o casamento que estava planejado, foi tambm umaoutra razo. Afirmaste que me repudiavas porque meamavas demasiado. O normal permanecer junto dapessoa que se ama, mas procedeste assim porque co-meavas a sentir desprezo pelo amor carnal entre ho-mem e mulher. Achaste que eu te prendia ao mundodos sentidos e que no tinhas paz nem tranqilidadepara te concentrares na salvao da tua alma. Foitambm por isso que o teu casamento nunca se reali-

    zou. Escreves que Deus deseja, acima de tudo, que oshomens pratiquem o celibato. Nesse Deus no creioeu.

    Mas que infidelidade, Aurlio! Mas que traiocometeste ao repudiar-me! O teu corao rasgou-seonde mais preso estava a mim e ficou to ferido quesangrou. Comigo passou-se o mesmo, se isso significaalgo para ti. ramos duas almas que foram apartadas violentamente, dois corpos, se preferires, ou, melhorainda, duas almas num mesmo corpo. A tua feridano sarava porque inflamou, ardia violentamente e,tendo gangrenado, tornou-te mais resistente dor. Efoi assim porque a salvao da tua alma estava acimado amor que sentias por mim. tempos, respeitvelbispo, costumes!7 7 O tmpora, o mores! ( tempos, costumes!) Ccero utili-za esta expresso vrias vezes nos seus discursos. As cons-tantes aluses de Flria aos escritores e filsofos romanospodem significar que ela pretende mostrar que agora umamulher culta.

    Acaso nunca refletiste que as coisas se passa-

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    ram assim? Lendo as tuas confisses no me pareceque o tenhas feito. No uma forma mais grave deadultrio abandonar a pessoa amada por causa da sal- vao da prpria alma? No seria mais fcil para umamulher aceitar que o homem a abandonasse para con-trair matrimnio com outra ou troc-la por outra a-mante? Mas na tua vida no havia outra mulher. Tusimplesmente amavas a salvao da tua alma mais doque me amavas a mim. Querias salvar a tua alma, Au-

    rlio, essa alma que um dia encontrara amparo emmim. Disseste que no desejavas casar-te, enquantome tivesses. O matrimnio no era outra coisa senoum dever filial. E nunca casaste. A tua eleita no eradeste mundo.

    E havia um filho. E Deus minha testemunha:assim como eu era a me de Adeodato, tambm tueras o seu pai verdadeiro. Fui eu quem o trouxe no ventre e o amamentou, porque no tnhamos umaama. Depois abandonei-o aos teus cuidados, escreves.Nenhuma me abandona de livre vontade o seu nicofilho sem que isso lhe cause a mais pungente das do-res. Mas que podia eu exigir sem ti a meu lado e des-provida de bens? No foi por essa razo que Mnicaquis casar-te com uma pessoa de posio mais eleva-da? Creio que foi um grego que disse um dia: a justi-a s possvel entre iguais.8 8 No consegui apurar o nome do escritor romano a que

    Flria se refere.

    No Livro IX imploras a Deus que aceite as tuasconfisses, incluindo os muitos fatos sobre os quais

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    guardas silncio. Entre essas omisses est o nossoltimo encontro. Deve ser certamente a ele que te re-feres, visto que nem uma palavra dedicas ao que fizes-te durante um ano inteiro em Roma, antes de voltaresa frica. Omitires este fato, quando fizeste um esfor-o to grande para escreveres as tuas confisses, pare-ce-me quase infame.

    O que que pensas agora sobre o que aconte-ceu em Roma? Como que pode ter acontecido co-

    nosco, Aurlio? Talvez a tua busca espiritual da almatenha realmente comeado naquele quarto miservelno Aventino. Tenho a certeza de que algum te con-tou que eu conseguira chegar bem a Ostia. Embarqueiimediatamente e, apesar das circunstncias, a travessiado mar decorreu sem incidentes, e por fim cheguei aCartago. Tambm desta vez tornaste conta do meutransporte. Era a segunda vez que me fazias regressara frica, quase como uma mercadoria. Foi j h muitotempo e as feridas sararam.

    Desde que voltei de Milo, h quase quinze a-nos, tenho acompanhado sempre os teus passos. Seriamais correto dizer que voltei a percorrer as nossas velhas veredas de Cartago. Primeiro li tudo o que foipossvel sobre filosofia com o intuito de descobrir oque haveria nesta disciplina capaz de separar duas pes-soas que se amavam. Se te tivesses entregue a outramulher, provvel que eu quisesse conhec-la. Mas aminha rival no era uma outra mulher que eu pudesse

    ver com os meus olhos; era sim um princpio filosfi-co. Por isso, para te compreender melhor, tive de tri-lhar parte do caminho que tu prprio um dia percor-reras. Comecei a ler filosofia.

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    A minha rival no era apenasminha rival. Era arival de todas as mulheres; era o anjo da morte doprprio amor.9 Tu chamas-lhe Abstinncia. No Livro VIII, escreves: Ento podia ver diante de mim a Abs-tinncia na sua pura beleza, serena e alegre, mas semfrivolidade na sua alegria. Seduzia-me com brandurapara que me entregasse sem receio. Estendia-me assuas mos piedosas para me receber e abraar.10 9 Obitus veneris, i.e., a destruio do amor.

    10 Conf.VIII, 11.

    Nestas linhas dizes muito com poucas pala- vras.11 Nem sequer tentas ocultar como te deixasteseduzir. No posso negar que o meu corao ardeu decime quando li estas palavras. Pois no foi exatamen-te com essa mesma intensidade que te entregaste amim quando ramos jovens? No foi com branduraque tentei abraar-te? Sinto-me tentada a dizer comoHorcio: quando os tolos querem evitar um erro, fa-zem precisamente o oposto.12

    Comecei, exatamente como tu, por ler Ccero.13

    Noteu Livro III escreves sobre ele: Havia uma coisa naexortao de Ccero que me deleitava em particular:ela no me estimulava a procurar esta ou aquela dire-o filosfica, mas sim a amar, a buscar e a conquistara verdade...14 Essa sabedoria, Aurlio, a mesma que

    me levou a ler os filsofos e os grandes poetas. Litambm os quatro Evangelhos. Desde que nos sepa-rmos, dediquei a minha vida inteiramente Verda-de,15 do mesmo modo que tu te entregaste Absti-

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    nncia. Continuo a estimar-te, mas devo acrescentarque atualmente ainda estimo mais a Verdade.16 Consi-deram-me uma mulher culta aqui em Cartago e douaulas particulares. No achas curioso que eu ensineRetrica agora? Ou tambm perdeste o teu sentido dehumor, Aurlio? No h lugar para o humor nas tuasconfisses. Era diferente quando estvamos juntos.Nesse tempo gracejvamos e ramos do levantar aopr do Sol. Hoje dizes, provavelmente, que o humor

    o mesmo que a paixo sensual ou o comodismo.11 Multa paucis.

    12 Dum vitant stulti vitia in contraria currunt.

    13 Ccero (106-143 a. C), estadista, orador e filsofo romano;

    contribuiu significativamente para a divulgao da filosofiagrega em Roma. Como filsofo pode ser considerado umecltico, pois tentou fundir as diferentes correntes filosfi-cas numa nica. O texto a que Santo Agostinho se referenas Confessiones Hortensius, texto esse que se consideraperdido.

    14 Conf.111,4.

    15 Flria faz aluso a uma expresso extrada das stiras deJuvenal: Vitam impendere vero.

    16 Uma aluso frase Amicus Plato, sed magis amica veritas(Estimo Plato, mas estimo ainda mais a verdade), atribudaa Aristteles.

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    De qualquer maneira, agradeo-te pelos teus li- vros. Nenhuma outra obra17 me ajudou a entendermelhor por que que, primeiro, querias deixar-mepara ficares espera que uma donzela de onze anosalcanasse a idade suficiente para casar contigo. Po-rm, logo depois decidiste adorar a deusa a que cha-mas Abstinncia. Agradeo a tua sinceridade. O queme leva a escrever so os teus lapsos de memria a-cerca de uma coisa bem diferente. Tcito disse que

    mulher convm chorar as perdas, ao homem, record-las.18 Mas Aurlio, tu nem sequer te lembras!17 Creio que Flria se refere aqui a obras sobre filosofia deoutros autores.

    18 Feminis lugere honestum est. viris meminisse.

    Tenho trs cartas tuas diante de mim. Uma foienviada de Milo quando decidiste cancelar o casa-mento, poucos meses aps a minha partida. A segun-da veio de Ostia quando a tua me morreu. Mas quecomovente teres deixado Adeodato escrever umas

    palavras sua prpria me! Da a dois anos, quando amorte arrebatou o pobre menino, voltei a receber no-tcias tuas. Algum te viu chorar ento? Espero since-ramente que no penses que o menino adoeceu emorreu por ter sido concebido em pecado. Esta mi-nha dvida surgiu ao ler o teu Livro IX, onde descre- ves Adeodato como o fruto do meu pecado. Imedi-atamente a seguir escreves que Deus poderoso acorrigir as nossas deformidades.19 E acrescentas que, exceo do teu pecado, no tinhas outra parte nesse

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    rapaz. Tu, Aurlio, que lhe deste o nome de Adeoda-to20devias envergonhar-te. Certamente no crs que oSenhor o afastou do teu caminho para benefcio datua carreira sacerdotal e episcopal. Que Deus tenhacompaixo dos teus erros!19 Conf.IX, 6.

    20 Aquele que uma ddiva de Deus.

    O nosso filho morreu, Aurlio! Devias ter vin-do at mim e teramos chorado juntos. Ainda no ti-nhas sido ordenado sacerdote, no estavas compro-metido e Adeodato era o nosso nico filho. Terias vergonha do que se passou em Roma e por isso notiveste coragem de te encontrares comigo? Ou teriasreceio que voltasse a acontecer o mesmo?

    No consigo compreender porque custa tantochorar. O Livro IX, Aurlio! Ser demasiado carnalmanifestar dor? Nem sequer permitiste que o teu ni-co filho derramasse lgrimas ao despedir-se da avpaterna! mais carnal reprimir o choro porque a dor

    fica retida dentro de ns como um fardo pesado. Queo menino descanse em paz!

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    Aqui em Cartago foi o sacerdote quem me em-prestou as tuas confisses. Perdoa-me, mas vou trans-crever algumas passagens que gostaria de comentarcom mais pormenor. Espero que tenhas pacinciapara ler as minhas reflexes de esprito aberto. So asminhas confisses, se assim preferires, pois consideroesta minha carta mais do que uma saudao pessoal: tambm uma saudao ao bispo de Hipona Regia. Osanos passaram e muitas coisas se modificaram desde a

    ltima vez que nos abraamos. A minha carta podeconsiderar-se tambm uma carta para toda a IgrejaCrist, tendo em conta que agora s um homem degrande influncia.

    Devo confessar que este pensamento me in-funde receio, mas rezo a Deus para que a voz de umamulher tambm seja escutada pelos homens da Igreja. Talvez ainda te recordes do que te disse naquela ma-nh em que passevamos pelo Frum Romano e con-templvamos a fina camada de neve que pousara so-

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    bre o Palatino. Falei-te ento da tragdia Media,deSneca, que eu tinha acabado de ler. Nessa obra diz-seque a outra parte deve ser ouvida tambm; e aqui aoutra parte sou eu.

    21

    21 Sneca diz que uma parte deve ouvir a outra, mas Flriafez uma interpretao diferente na sua carta. Este princpiodialtico foi formulado aqui exatamente como aparece noopsculo de Santo Agostinho De duabus animabus, datadode 391: Audiatur et altera pars. provvel que Flria co-nhecesse este opsculo, mas eu prefiro imaginar que San-to Agostinho quem, em Duabus animabus, reproduz as pa-lavras que Flria lhe disse no Frum Romano, no Inverno de388.

    O teu Livro I tem uma introduo prometedo-

    ra e louvas Deus pela Sua sabedoria e magnificncia.Para quem, atravs de quem e em quem todas as coi-sas subsistem, escreves.22 Depois falas da tua infn-cia; creio, porm, que muitas dessas reflexes se ba-seiam na tua observao dos primeiros anos de vidade Adeodato. Pouco a pouco vo j surgindo os aressombrios que percorrem todos os teus livros comoum fio vermelho: Ningum h, diante de Vs, queseja puro, nem mesmo o recm-nascido que vive ums dia na Terra... Os frgeis membros da criana soinocentes, mas a sua alma no. E porqu? Porque viste a expresso vida e irada de um rapazinho queolhava para o irmo que tambm queria ser amamen-tado. Pobre Aurlio! O fato de esse rapaz querer seramamentado no significa que tenha maldade. Dizestambm que Deus dotou o corpo de sentidos emembros, adornado com uma forma bela e implantou

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    nele o instinto natural de defesa para assegurar a suaintegridade e conservao.23 Mas tu no vs isto co-mo sendo algo de belo e bom, porque voltas a lamen-tar-te que nasceste em iniqidade e que foste concebi-do em pecado. Em amor, respeitvel Bispo, a criana concebida em amor; Deus organizou este mundo deuma forma to bela e sbia que no permitiu a con-cepo por germinao como as plantas.22 Conf.I, 2, Cf. Rom. 11, 36.

    23 Conf.I, 7.

    Pretendes, inclusive, atribuir um significadomais profundo ao fato de Mnica no te ter batizadoem criana: Na verdade, as manchas do pecado, de-pois do banho do batismo, implicam um sentido deculpa mais intenso e perigoso.24 Pecado e culpa, por-que Deus nos criou homem e mulher com uma pro-fuso de sentidos e necessidades? Talvez instintos, ou,se preferires, apetites excitveis, Aurlio, digo-te istosem quaisquer rodeios, porque foste outrora o meu

    companheiro de leito. Na lista dos teus pecados atincluste a histria de Dido e Enias que tanto adoras-te na juventude.24 Conf.I, 11.

    Escreves insistentemente nos teus livros sobreo desejo dos sentidos e os desejos pecaminosos. Jte ocorreu por acaso que s tu quem est a menospre-zar os dons de Deus? Sou levada a crer que o teu des-

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    dm pelo mundo dos sentidos tem mais a ver com osmaniquestas25 e platnicos do que com o Nazareno.25

    O maniquesmo foi um movimento religioso de grandeinfluncia no tempo de Agostinho. Era uma doutrina de sal-vao, em parte religiosa, em parte filosfica. Baseava-se naidia dualista de que o mundo est dividido entre o mal e obem, a luz e as trevas, o esprito e a matria. Com a ajudado esprito, o ser humano poderia sobrepor-se ao mundomaterial e assim salvar a alma.

    No teu Livro X vais ainda mais longe. Deixastransparecer desdm no apenas pelo mundo dos sen-tidos, que faz parte da obra de Criao de Deus, masat pelos prprios sentidos que convm no esquecer,tambm pertencem Sua obra!26 No me inquieto

    demasiado com as tentaes do sentido do olfato.Quando esto ausentes, no as procuro. Quando es-to presentes, no as desdenho, mas tambm estoupreparado para viver sem elas. De vez em quandosentes vergonha do prazer que a comida te d. MasDeus ensinou-te a usar os alimentos como se fossem

    remdio. Felicito-te,27

    embora o simples fato de pen-sar nessa idia me cause nuseas. Escreves a seguir:mesmo quando comemos para o bem da nossa sadeh uma perigosa sensao de bem-estar. Muitas vezesafirmas: no se percebe muito bem se so os cuida-dos com o nosso corpo ou se o desejo enganador deprazer que exige ser servido.28 Meu respeitvel Bispo,imagina outra coisa que seja deliciosa ao paladar e aomesmo tempo saudvel para o corpo! Prefiro usar opensamento simples de Horcio: agradvel perder o

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    juzo na ocasio adequada.29 Assim mantenho a cons-cincia tranqila.26

    Conf.X, 32.27 Plaudite!; i.e., felicitaes!

    28Conf. X,31.

    29 Dulce est desipere in loco.

    preciso comer, Aurlio. Tens direito a des-frutar os alimentos. Espero tambm que no descuresa higiene. Quando vs uma flor bonita, podes cheir-la, apesar de agora entenderes isso como concupis-cncia. Devias sentir vergonha. Ccero disse que nada

    to absurdo que no possa ser dito por um filso-fo.30 O mesmo poderia dizer-se dos telogos. Lem-bras-te de quando amos a atravessar o rio Arno e medetiveste de repente para me cheirares o cabelo? Foiacaso a concupiscncia que se revelou nesse mo-mento? No, no creio. Estou convencida de que um

    dia conheceste o verdadeiro amor, mas j te esqueces-te.30 Nihil tam absurdum dici potest ut non dicatur a philoso- pho.

    No teu Livro II escreves sobre a tua juventudeem Tagaste e a alma corrompida pelo prazer sensu-al.31Dizes: a coisa que mais me deleitava era amar eser amado... Mas a lama da concupiscncia da minhacarne e do vigor da juventude exalava vapores que

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    enevoavam e ofuscavam o meu corao, a ponto deeu no conseguir distinguir o amor puro do prazerlascivo. Ambos ardiam confusamente dentro de mime me arrastavam para um abismo de paixes e v-cios.32 31 Conf.II, 1.

    32 Conf.II, 2.

    Ests a exagerar um pouco, Aurlio. Tu, comotodos os adolescentes, tinhas uma imaginao muito viva, mas aquele rapaz que conheci uns anos mais tar-de e com quem compartilhei o leito era um jovemhesitante e inexperiente. Dizes ainda que te envergo-nhavas de no ter a experincia que os teus compa-nheiros diziam ter. Falas dos vcios vergonhososque eles deixavam transparecer, mas tu fizeste omesmo. Sim, isso ingnuo, mas ser correto chamar-lhe vergonhoso? Vergonhoso essas infantilidadescontinuarem a ocupar a mente do Bispo de HiponaRegia. Tenncio disse que nenhuma manifestao

    humana deveria ser estranha a um bispo.33

    A juventu-de e ser sempre a juventude. At mencionas o ter-rvel delito que cometeste com dezesseis anos quan-do furtaste umas mas de uma rvore na companhiade outros rapazes.34 33 Faz aluso famosa citao de Terncio: Homo sum; nihil humanum a me alienum puto (Sou um homem e consideroque nada do que humano me alheio).

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    34 Conf.II, 6.

    De repente, ficas mais srio. Comeas por refe-

    rir as seguintes palavras de Paulo: bom para o ho-mem no tocar em mulher alguma.35 Mas, meu caro Aurlio, porque mencionas apenas esse versculo?Continuo a pensar que isso influncia dos manique-stas. No aprendeste na Escola de Retrica que pe-rigoso destacar uma frase do seu contexto? Paulo diz

    que bom que um homem no toque numa mulher,mas esclarece depois que, para evitar a luxria, cadahomem deve ter a sua prpria mulher e cada mulher oseu prprio homem. Alm disso acentua que a mulhere o homem sero um corpo nico. Devem entregar-seum ao outro para que no sejam induzidos infideli-dade pelo fato de no conseguirem manter a Absti-nncia.36 35 Conf.II, 2.

    36 de compreender a indignao de Flria ao ver que Agos-tinho separou um verso do seu contexto. Vide tambm 1,

    Corntios 7, 1-7.

    O fulcro da questo saber se uma pessoa po-der redimir-se dos apetites pecaminosos ao decidir-se pela Abstinncia. Sinceramente: apesar de j teremdecorrido quinze anos desde que te lanaste nos bra-os da Me Abstinncia, a tua obsesso a este respeitopersiste mais intensa do que normal nos homens datua idade. Na verdade fizeste um grande recuo. Rejei-tas a ordem natural das coisas, mas ela voltar a esta-

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    belecer-se, diz Horcio.37 A no ser que tomes umaposio mais radical, claro. Sugeres que seria melhorteres recorrido castrao na juventude para entrarno reino dos Cus.

    38

    Assim serias mais feliz enquantoaguardavas o abrao de Deus. Pobre Aurlio! Sentes vergonha de seres um homem. Precisamente tu quefoste to voluptuoso a meu lado. Mesmo agora, anosaps teres eleito a Abstinncia, ainda lamentas peranteDeus a falta de uma mulher a teu lado. No teu Livro

    X, meu respeitvel Bispo, escreves: Mas na minhamemria, de que j tanto falei, vivem ainda as imagensdessas coisas que o hbito fixou. Quando estou acor-dado, embora pouco vivas, certo, vm-me mente.Porm, durante o sono, elas arrastam-me no s atao deleite, mas at simulao da ao.39

    37 Naturam expellas furca, tamen usque recurret.

    38 Conf. II,2. Vide tambm Mateus 19, 12. Este versculo deMateus inspirou alguns dos primeiros cristos a deixarem-secastrar, entre os quais Orgenes (185-254), padre da Igreja.Na Vulgata, a traduo latina da Bblia que Santo Agostinhoutilizou, o versculo foi traduzido da seguinte forma: Sunt enim eunuchi qui de matris utero sic nati sunt; et sunt eunu-chi qui facti sunt ab hominibus; et sunt eunuchi qui se ipsoscastraverunt propter regnum caelorum; qui potest caperecapiat.

    39 Conf.X, 30.

    Baseada nesta confisso concluo que ainda note deixaste castrar. Sentes a minha falta de vez emquando? No sero as minhas recordaes e os nos-

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    sos antigos hbitos que te visitam nos sonhos? Es-pero que no te tenhas deixado castrar ainda, Aurlio,tu que fostes outrora to vigoroso no meu leito. Podi-as ter arrancado os olhos, como fez dipo

    40

    ou corta-do a lngua, se no o fizeste at agora, porque aindadesejas os meus beijos.40 Da tragdia Rei dipo, de Sfocles. dipo arrancou osprprios olhos com um alfinete que Jocasta usava no cabe-lo, quando compreendeu que tinha morto o pai (Laio) edesposado a me (Jocasta).

    O teu sexo era tambm um rgo sensual. Ouestarei enganada, Aurlio? Falas constantemente doprazer sensual mesmo quando te referes ao deleitedo amor. Crs tu por acaso que os teus olhos ou osteus ouvidos so uma criao divina superior ao teusexo? Pensas a srio que algumas partes do corpohumano so, perante Deus, menos dignas que outras?Ser o teu dedo mdio mais respeitvel do que a tualngua? No te esqueas de que o usaste tambm!

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    No Livro III escreves sobre a poca em quechegaste a Cartago como jovem estudante: Vim paraCartago. O erotismo perverso fervilhava em todos oslados minha volta. Ainda no amava e j gostava deamar. Escondia os meus desejos e enraivecia-me con-tra mim mesmo por no me sentir mais faminto deamor. A minha sede de amar levava-me a procuraralgo que pudesse amar.41 41

    Conf.III, 1.

    Ento encontraste-me. Estavas na cidade hum ano quando nos conhecemos. Eu tinha nascidoaqui. Tnhamos cerca de dezenove anos. Lembro-meque estava sentada debaixo de uma figueira na com-panhia de trs ou quatro estudantes. Tu conhecias umdeles e aproximaste-te. Encandeada pelo sol, olheipara ti. Cativei-te de imediato, porque olhaste-me fi-xamente e, perturbado, dirigiste o teu olhar para o

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    cho uma ou duas vezes, antes de voltares a procuraro meu olhar. Era como se j tivssemos vivido juntose soube imediatamente que viria a amar-te de corpo ealma. O que no receara nem sonhara que isso viriaa acontecer nessa mesma noite. Se tivesse imaginado,teria temido e sonhado ao mesmo tempo.

    No era estranho que eu estivesse acompanha-da de outros estudantes, mas a maneira como partici-pava na conversa com eles deixou-te estupefato. Foi

    disso que falamos quando ficamos a ss. O grupo ti-nha discutido a concepo de Virglio sobre a vida e oamor em geral. Se bem me recordo, registraste comcerta surpresa como eu defendia a proeza amorosa deDido.42 Era como se me perguntasses se uma mulherpoderia amar tanto um homem a ponto de rejeitar aprpria vida quando soubesse que fora abandonada.42 Da Eneida, de Virglio. Enias alcana Cartago depois donaufrgio e apaixona-se loucamente por Dido, rainha deCartago. Mas Enias que tem um grande projeto em pers-pectiva, liberta-se das amarras de Dido e dirige-se para Itliapara fundar um reino poderoso, a futura Roma, sem revelar

    qualquer compaixo pelo destino trgico de Dido. Com ocorao despedaado, Dido suicida-se.

    Falamos de Dido e Enias e, talvez por isso, tuperguntaste-me de repente se eu tinha estado alguma vez em Roma. Estranhei a tua pergunta. Achei-amesmo muito estranha. Mal nos conhecamos e jquerias saber se eu tinha estado naquela cidade. Con-siderei essa atitude uma tentativa de aproximao,porque logo acrescentaste que nunca l tinhas estado

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    mas tencionavas faz-lo um dia. Acabramos de falarem Dido e, ao ouvir essa pergunta, fiquei com a im-presso de que me querias coroar rainha de Cartago.Foi com tanto fervor que defendi essa rainha mticaque foi como se quisesses que eu fosse contigo a Ro-ma para que eu nunca viesse a ter o destino dela. En-to, no fazia idia de que, anos mais tarde, iria conti-go a Roma. Era como se tudo tivesse comeado coma partida de Enias de Cartago. Devo tambm dizer

    que tudo acabou ali. Tal como Enias, tu tambm ti-nhas uma misso superior e mais importante que oamor, em Cartago.

    Antes de ficarmos ss debaixo da figueira, algose deve ter passado entre ns que desconcertou osoutros, alguma coisa forte e intensa como uma cum-plicidade invisvel. Mais tarde acompanhaste-me a ca-sa e, nos meus aposentos humildes, passaste a noite.Um ano e meio mais tarde, nasceu o nosso queridofilho. Permanecemos sempre juntos at que Mnica ea Abstinncia nos separaram pela fora, deixando aambos destroados.

    A nossa vida em comum desenrolou-se desde oprimeiro momento num clima intensamente sensual,pois ambos venervamos Vnus. Em certas pocasramos irrefreveis. No entanto, ao ler hoje as tuasconfisses, tive a triste sensao de que aquilo a queagora chamas prazeres da carne era a nica coisaque nos unia. Por vezes, parece que h em ti um arre-

    pendimento exagerado pela tua vida passada e, por-tanto, pelo tempo que precedeu tua entrega total Abstinncia. No sei se Deus ou a tua prpria dvi-da e arrependimento que pretendes exorcizar.

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    Pareces envergonhar-te sobretudo da nossa a-mizade profunda. Muitos homens envergonham-semais de cultivar a amizade com uma mulher do quepraticar com ela o amor carnal. Depois culpam o a-mor carnal de impedir a amizade sincera com umamulher. lamentvel que isto seja tanto mais freqen-te acontecer nos homens quanto mais instrudos filo-soficamente. Eu, por meu lado, atribuo grande partedesta culpa aos maniquestas e aos platnicos. Depois

    de leres oFdon,43

    senti que comeaste a olhar-me deforma diferente, e foi ainda pior quando acabaste deler Porfrio.44 Quantas as cabeas, tantas as maneirasde pensar, Aurlio!45 Os meus temores s foram ver-dadeiramente confirmados quando comeaste a cha-mar-me Eva, aps a nossa chegada a Milo. Foi quan-do comeaste a fazer tudo para entrares no crculo de Ambrsio.46 43 Fdon, dilogo de Plato, em que Scrates procura esta-belecer a imortalidade da alma.

    44 Porfrio (232-304), filsofo neoplatnico, discpulo de Plo-

    tino.45 Horcio:Quot capita, tot sensus.

    46 Ambrsio (339-397) exercia uma posio elevada no Es-tado, antes de ser nomeado bispo de Milo.

    Escreves que a tua alma no gozava de sadenessa altura e que ulcerosa ela se lanava para fora,para o pecado, vida por se roar nos prazeres sensu-ais. Mas mesmo estes no eram totalmente desprovi-

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    Fomos criados seres humanos, Aurlio. E fo-mos criados como homem e mulher. No seu tratadosobre a velhice, Ccero argumenta que o jovem nodeseja possuir a fora do leo ou do elefante. No de- vemos tentar viver como algo que no somos. Noseria isso escarnecer de Deus? Somos seres humanos, Aurlio. Devemos viver primeiro e s depois filoso-far.48 48 Primum esse, tum philosophari.

    No me venhas tu agora dizer que eu era ape-nas um corpo de mulher. Como consegues diferenciaro corpo da alma? No ser isso desaproveitar a obrade Criao de Deus? Oh!, sim, claro que , meu tigredesleal! Quando me arranhavas com as tuas ferozescarcias, tambm rasgavas a minha alma.

    Descreves no teu Livro IV a amizade de umaforma muito bela. Mas claro que apenas te referes amizade entre homens: Conversvamos e ramos,ramos amveis uns com os outros, lamos em con-junto livros bem escritos, gracejvamos, respeitva-mo-nos mutuamente, discordvamos de tempos atempos sem animosidade como um homem discordade si mesmo. Mas atravs dessa rara diferena de opi-nio, consolidava-se a harmonia. Ensinvamos ou a-prendamos uns com os outros. Sentamos saudadesdos ausentes e acolhamo-los com alegria quando re-

    gressavam. Com estes e outros sinais semelhantes, oamor dos amigos pode passar de corao em coraoatravs da expresso do rosto, palavras, olhares e milgestos de amizade. So como fascas que incendeiam a

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    nossa alma e fundem o mltiplo num s.49 49 Conf.IV, 8.

    Ao ler este captulo senti-me quase como se ti- vesse sido devorada, ou melhor, devorada e regurgita-da ao mesmo tempo. No achas que estas palavras sereferem tambm nossa amizade? Conversvamosum com o outro e ramos juntos, tnhamos atenes

    um para o outro do nascer ao pr do Sol e emanva-mos sinais secretos, sinais esses que eram de coraoem corao atravs da expresso do rosto, palavras,olhares e mil gestos de amizade. A extrair o melhorda nossa vida comum e guard-lo na memria paradepois teres a ousadia de destac-lo como se perten-cesse amizade entre homens. Quando nos conhe-cemos debaixo da figueira no eras assim to mesqui-nho. E certo que tinhas muitos amigos j nesse tem-po, diria mesmo muitssimos. Mas o amor que sent-amos um pelo outro era diferente e nunca senti ci-mes da amizade que dedicavas aos teus amigos. Ascentelhas que entre ns brotavam incendiavam asnossas almas e inflamavam os nossos corpos.No evitas confessar o teu arrependimento pe-lo amor sensual que existia entre ns. At a tudobem. Mas no te esqueas que eu era sobretudo a tuamelhor amiga. Insinuas que te atolaste tanto na lamado pecado ao ponto de manter a amizade com uma

    mulher. Mas eu no era apenas carne.50

    O teu maiordelito51 dessa poca no foi amares a carne de umamulher, e nisso no eras diferente dos outros. O teupecado52 mais infame foi teres amado tambm a alma

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    de Eva.50 Scortum (pele, couro) a palavra pode significar tambm

    prostituta, puta.51 Delictum.

    52 Peccatum.

    Se no implorasses to encarecidamente a Deuspara sondar a tua alma, jamais te faria recordar estascoisas, visto que j passou muito tempo desde quenos abraamos pela ltima vez. A verdade desliza pe-las tuas confisses como um potro indmito. Deixa-ogalopar, Aurlio, deixa-o voltar para mim: em mimencontrar o repouso, porque s eu o conheo.

    Talvez exista um Deus que nos conhece. Estouconvencida de que Ele registrou todas as coisas boasque demos um ao outro. Se Ele no existe, minha ve-lha alma gmea, ento nenhuma outra pessoa se co-nhece melhor uma outra do que ns os dois. Entre-gaste-me o teu corpo e a tua alma e eu ofereci-te o

    meu corpo e a minha alma. Onde tu estavas, estava eue onde eu estava, querias tambm estar.53 Entre nsinterpuseram-se, primeiro, uma me, depois, os mani-questas e os platnicos e, por ltimo, tu prprio in-terpuseste os telogos e a Abstinncia. Distanciaste-teainda mais de mim do que Enias se distanciou deDido. Que Deus tenha piedade dos teus erros!53 Flria faz a parfrase das palavras de um antigo rito decasamento romano.

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    No ramos ns dois corpos fundidos num -

    nico, do mesmo modo que uma ponte une as duasmargens? De repente, do rio emergiu uma divindadepoderosa ou uma idia abstrata chamada Abstinnciae cortou a ligao entre as duas margens. No, respei-tvel Bispo, no creio num Deus assim. Tenho discu-tido este assunto amide com o sacerdote de Cartago.Ele sabe que vivi com um homem, mas no suspeita

    que foste tu. No irnico que um belo dia ele tenha vindo ter comigo para me entregar as tuas confisses?Ou terias sido tu quem o incitou a faz-lo?

    Espero que ainda te recordes de como, sob astuas carcias o meu corpo se enchia de botes viososcomo antes de florirem. Como gostaste um dia decolher as minhas flores, deixando-te embriagar comos aromas que elas exalavam! Alimentavas-te do meusuco e acabaste por vender-me em troca da salvaoda tua alma. Mas que traio, Aurlio, mas que traio!No, eu no creio num Deus que exige sacrifcioshumanos. No creio num Deus que destri a vida deuma mulher para salvar a alma de um homem.

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    Quando o nosso filho fez dois anos, fomos pa-ra Tagaste, a tua cidade natal, onde comeaste a ensi-nar Retrica. Quase no fim do Livro III, escreves:Como tenho pressa de Vos confessar o que demaior urgncia, no refiro muitas coisas. De muitasoutras, j no me recordo.54 54 Conf.III, 12.

    Mas ser que te esqueceste das objees queMnica levantou a que vivesses em sua casa comigo ecom Adeodato? J nesse tempo, fiquei com a impres-so de que vos uniam laos que no so naturais entreme e filho. Tambm tinha as minhas idias sobre ossonhos de Mnica. Um dia, contaste, ela sonhou queestava de p sobre um tronco de rvore. Um jovemairoso e alegre dirigiu-se-lhe sorrindo. Ela sentia-setriste e amargurada. Ele perguntou-lhe porque estavatriste e chorava todos os dias o rapaz f-lo por so-

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    lidariedade, no por curiosidade e ela respondeuque chorava porque me perdera. Ento ele pediu-lheque no se afligisse, que prestasse ateno e assim ve-ria que onde quer que ela se encontrasse, estaria eutambm.55 E quando ela olhou, viu-me junto de si, dep, no mesmo tronco.56 55 i.e., Santo Agostinho.

    56 Conf.III, 11.

    Repetes isto, Aurlio, como se quisesses escla-recer bem o que pretendes dizer com isto: Onde elaest, ests tu tambm.57 Mnica e tu, portanto me efilho, sobre o mesmo tronco de rvore. Talvez sejauma aluso religio, mas parece agora que tu queresatribuir-lhe um outro significado. natural um filhodeixar os pais para conviver com uma mulher e am-bos formaro uma s carne. Mas ela interps-se entrens e acabou por vencer o duelo. Era sem dvida umamulher poderosa e com grandes ambies para siprpria e para o seu filho.57 Cf. nota de rodap 53. A expresso que Santo Agostinhousa onde estavas tu, estava eu, deve ter tido, para muitaspessoas da sua era, conotaes com a relao homem-mulher no matrimnio.

    Passemos ao Livro IX. Contas que sofrestecom a morte de Mnica em Ostia: ...a minha vidaformada pela fuso da sua, despedaou-se.58 Vejo queno sentes vergonha; deves ter esquecido a histria de

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    dipo e Jocasta, a sua me.59 dipo arrancou os seusprprios olhos, enquanto tu terias preferido a castra-o, o que vai dar ao mesmo. Mas que exaltao po-tica, Aurlio!

    60

    s vezes tentador dizer a verdadecom humor.61 58 Conf.IX, 12.

    59 Cf nota de rodap 40. Ignorando o que fazia, dipo des-posou a me (Jocasta) de quem teve quatro filhos.

    60 Furor poeticus, i.e., furor potico.

    61 Ridendo dicere verum,das stiras de Horcio.

    Como acontecera comigo, tambm tu Sentiste

    um vazio na tua vida e chamaste-me para junto de ti.Mas o lugar da tua me, depressa foi preenchido porDeus. Ele era a nica coisa que restava depois de elapartir, uma nova me. Primeiro Mnica ocupou o lu-gar de Deus e, aps a sua morte, os papis inverte-ram-se. Primeiro, ela interps-se entre ns e, mais tar-de, o Deus dos Nazarenos ocupou o lugar dela.

    Perguntei-me vrias vezes se a tua prpria meno te teria tirado a vontade de amar uma mulher.No foi por me amares que Mnica se recusou a viverna mesma casa e a comer mesma mesa que tu?Lembra-te do teu Livro III, Aurlio! No foi tambmpor isso que ela foi a Milo e se apressou a arranjar oteu casamento com uma outra mulher? Recorda-te doteu livro VI! E no verdade que optaste pela Absti-nncia quando soubeste que esse casamento nunca se

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    realizaria?Quando atravessmos o rio Arno detiveste-me

    e, colocando carinhosamente a tua mo sobre o meuombro, perguntaste-me se podias cheirar o meu cabe-lo. A vida to breve!, disseste.62 Por que que dis-seste isso, Aurlio? E porque cheiraste o meu cabelo?Querias selar alguma coisa?62 Vita brevis.

    Mencionas-me pela primeira vez no incio doLivro IV. Dizes por esses anos tinha na minha com-panhia uma mulher, mas no celebramos um matri-mnio legtimo. Ela foi a presa dessa inquieta, des-temperada paixo. Mas tive s essa mulher e guarda- va-lhe a fidelidade do leito.63 63 A citao continua assim em Conf. IV, 2: Aprendi com anossa prpria experincia, a ver a diferena entre um casa-mento baseado na idia de ter filhos e numa relao moti-vada apenas pelo amor sensual, de tal modo que os nasci-dos dessa relao no so desejados, embora os pais sevejam obrigados a am-los. Flria no se deixou impres-sionar por esta passagem e nem sequer a comentou. D simnfase experincia de terem vivido juntos como cnjuges.

    Ao ler que fui presa da tua paixo cega e im-prudente, ri-me porque a tua paixo por mim eraconstante e consciente, embora a chama por vezesfosse menos intensa. Alm disso, eu no era umapresa espera de ser caada. Como tu prprio insi-nuas, vivamos como cnjuges; a nica diferena que nos declaramos um ao outro de livre vontade,

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    de que pudesse salvar a tua alma de tudo o que pere-ce. Dizia-te: abraa-me, a vida muito breve e nin-gum sabe se existe uma eternidade para as nossasalmas frgeis, talvez s tenhamos esta vida. Mas tuno podias admitir tal coisa, Aurlio! Procuravas in-cansavelmente a eternidade para a tua alma. Davasmais importncia salvao da tua alma do que per-dio da minha.

    De Tagaste regressmos para Cartago. Sentia-

    me muito feliz, pois viver sob o mesmo teto que M-nica no era agradvel para nenhum de ns. Escreves:Os dias vinham, os dias passavam e cada dia que pas-sava inspirava-me novas esperanas e novas idias.Pouco a pouco reencontrava-me nos antigos praze-res.67 Mas a semente fora lanada terra e uma novacolheita tomava conta de ti.67 Conf.IV, 8.

    estranho que escrevas to pouco sobre Ade-odato. Embora talvez tambm o incluas a ele na listados teus antigos prazeres.

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    No livro V descreves a viagem de Cartago paraRoma: ... a minha me chorou amargamente a minhapartida e seguiu-me at ao mar. Agarrou-me com for-a para me fazer voltar ou ir comigo.68 Mas conse-guimos engan-la, Aurlio. Levaste-a a pernoitar na-quele templo de Cipriano. Aproveitando a escurido,fugimos para o mar com Adeodato que nesse tempotinha onze anos. Disseste gracejando que, nessa noite,a Rainha de Cartago partia com Enias para Roma.

    Ao deixar Cartago, senti-me na verdade uma orgulho-sa Dido. Veio-me ento mente que, dez anos antes,me tinhas perguntado se j tinha estado em Roma.Estava certa de que agramos corretamente. ramosforados a libertar-nos de Mnica para podermos fa-zer uma vida em comum.68 Conf.V, 8.

    Quando adoeceste com febre, cuidei de ti e re-

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    zei por ti. Lembro-me do medo que tinhas de morrer.No paravas de perguntar se estavas perdido. Notinhas encontrado ainda a salvao da tua alma. Es-creves: A febre subiu e eu estava prestes a partir e aperecer. Para onde iria, se morresse, seno para o fogoe tormentos que eu merecia? segundo as Vossas cor-retas disposies.69Em nome de Hades, Aurlio! Masque nova mitologia esta? Tu que escarnecias daslendas dos antigos deuses, acreditas agora na ira de

    um Deus que castiga e tortura eternamente os sereshumanos pelos seus atos? Ainda bem que no pensa- vas assim quando a febre te atacou num humildequarto em Roma. S te preocupavas com a perdioda tua alma.70 Fui eu quem mitigou a tua angstia compalavras de consolo extradas da filosofia dos esti-cos.71 Falmos tambm do Nazareno e da esperanacrist. Mas nenhum de ns acreditava nessas palavrassobre o fogo e os tormentos eternos. ramos demasi-ado cultos para tal. Como que um respeitado reitorimperial pode acreditar hoje em tal coisa? Acaso pen-sar o Bispo de Hipona Regia que dentro de anos es-tar a gozar o santo paraso de Deus, enquanto FlriaEmlia ficar sujeita ao fogo e aos tormentos eternosporque se negou a receber o batismo? No, piedosoBispo, essas teorias devem ser revistas quanto antesou ficarei seriamente preocupada com o fato de maisgente se deixar batizar e da Igreja de Roma vir a ex-pandir-se cada vez mais. Ambos conhecemos a deca-

    dncia poltica que a nossa sociedade est agora a a-travessar! Ser pois de estranhar que os costumes e ascrenas estejam a atravessar tambm uma decadnciasemelhante?

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    fessor imperial de Retrica, em Milo. A viagem at lfoi uma experincia notvel, provavelmente porqueessa foi uma das melhores pocas que passamos jun-tos. Recordas-te certamente daquele magnfico dia deOutono quando passevamos pela Via Cassia emcompanhia de Adeodato, dois amigos e algumas pes-soas que ainda no conhecamos. O grupo era grande.

    Mais tarde chegmos antiga cidade fortificadade Florentia,73 na margem do rio Arno. No te lem-

    bras de termos contemplado extasiados as colinas co-bertas de neve que se avistavam por detrs das rvo-res? Fico com a impresso de que te lembras apenasde idias ou pensamentos, mas no sers capaz detrazer memria experincias relacionadas com ossentidos? Estvamos a atravessar a ponte sobre o rio.Repentinamente deixaste as pessoas com quem con- versavas e vieste ter comigo. Abraaste-me com ter-nura e, num sussurro, disseste: A vida to breve,Flria.73 Florena.

    Pegaste na minha mo e apertaste-a na tua,como se tivesses decidido jamais esquecer esse mo-mento. Foi ento que me Perguntaste se podias chei-rar o meu cabelo. Enquanto soltavas os meus cabelose aspiravas o seu perfume, senti a tua respirao nomeu pescoo. Era como se me quisesses puxar toda

    para dentro de ti, como se o meu espao fosse dentrode ti. Com esse ato, julguei que exprimias o teu desejode continuarmos juntos para sempre porque as nossasalmas estavam fundidas. Aconteceu antes de Mnica

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    chegar a Milo, antes dos planos do teu casamento edo teu encontro com os telogos.

    No me venhas agora dizer que o episdio so-bre o Arno foi prazer sensual ou concupiscncia,respeitvel Bispo. Muitas pessoas estavam a olhar parans, naquele momento, e talvez por isso que o re-cordo to nitidamente. Ali, na ponte, fizeste algo quesabias que tinha um imenso valor para mim. Aquelegesto, para comigo, era a expresso do teu profundo

    reconhecimento de que eu era a tua eleita, ainda queno fosse tua mulher perante a lei. Foi igualmente aexpresso de um sentimento de liberdade porque, en-fim, podamos agir livremente num pas longe de M-nica. De certa forma, ramos dois fugitivos.

    Os anos foram passando e muitas coisas acon-teceram desde que fomos viver para Itlia. Porm,acho incrvel que o teu Deus condene o prazer queSentiste ao cheirar os meus cabelos e, para redimirpecados de to baixa ndole, tivesse enviado o Seunico filho para o calvrio. Na viagem acompanhava-nos um filho que saltitava e corria em redor dos seuspais. Gostarias tu de v-lo pregado na cruz em nomedo amor? Pela salvao da tua alma, espero que o teuDeus tenha um sentido de humor to desenvolvidocomo o teu antes de teres encontrado telogos. Claroque o Seu sentido de humor pode ser ainda mais ma-cabro que o teu e achar que a tua alma se deterioroutanto desde o dia em que atravessmos o rio juntos

    que agora j no possvel salv-la. Onde h muitainteligncia, respeitvel Bispo, h pouco amor!74 Tenho um bonito camafeu,75 que agora seguro

    na minha mo. Compraste-o a uns vendedores que

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    estavam no outro lado da ponte. Que Deus me per-doe por ocupar-me de uma coisa to material, mas tudo o que tenho. Nunca vi qualquer resplendor coma minha viso interior, nunca fui visitada por apari-es nem nunca ouvi vozes; nesse aspecto ainda souuma mulher simples. No te desejo seno bem para asalvao da tua alma.76 Mas a vida breve e eu seimuito pouco. Imagina, Aurlio, que no havia cusobre ns; imagina que fomos criados para viver ape-

    nas esta vida. Nesse caso, oxal que as nossas almas voem eternamente sobre o Arno. Foi em Florentiaque Flria floresceu77 e foi tambm no Arno, numatarde de sol dourado, que a tua testa, Aurlio, brilhoucomo se fosse de ouro.78 74 Provavelmente parfrase do adgio: Ubi mens plurima, ibi mnima fortuna (onde h muita inteligncia, h pouca felici-dade).

    75 Pedra preciosa, concha ou outro material trabalhado emrelevo. Uma arte muito popular neste perodo.

    76 Nil nisi bene. Deve derivar da frase: De mortuis nil nisi bem. Se assim for, deve ser interpretado como uma insinua-o de que a alma de Aurlio uma alma morta.

    77 In Florentia Flria floruit.

    78 Auro (ureo). O jogo de palavras perde-se em certa medi-

    da na traduo.

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    Ento, conheceste o bispo Ambrsio em Mi-lo. Escreves que o achavas um homem feliz e con-siderado pelos homens poderosos.79 S a sua vida decelibato te perturbava e tu irias sofrer grandes tormen-tos porque cada vez mais te convencias de que tinhasde renunciar ao amor por causa da salvao da tuaalma.79 Conf.VI, 3.

    No final da Primavera, chegou Mnica. Seguiupor terra e por mar, relatas. Colocou-se diante de ti, virando-me as costas, apesar de saber que tu e eu -ramos apenas um. Vinha com dois propsitos: umdeles era que recebesses o batismo e o outro que des-posasses uma rapariga de posio elevada. Penso queeste segundo motivo era o mais importante. Estavascompletamente confuso, mas resolveste fazer-te ca-tecmeno na Igreja Catlica, como os meus pais me

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    tinham aconselhado, at surgir uma luz que me eluci-dasse sobre o caminho a seguir.80 No Livro VI ex-clamas: grandes homens da Academia! Poderemosencontrar alguma certeza sobre a qual construir a nos-sa vida?81 80 Conf.V, 14.

    81 Conf.VI, 11. Cf. nota de rodap 72.

    Desculpa-me a longa transcrio que se segue,mas, ao menos aqui, pareces ter refletido: E se amorte eliminar a agonia da alma no momento em queextingue a conscincia? Esta , com efeito, uma ques-to para ponderar. Mas longe de mim afirmar que talsuceda! No sem uma forte razo que a f crist seencontra to difundida por todo o mundo, to gran-diosa e to elevada que ! Nunca o poder divino teriacriado coisas to magnnimes e notveis para o nossoproveito, se a morte do corpo significasse tambm ada alma. Porque tardamos, pois, em abandonar as as-piraes mundanas, para nos dedicarmos totalmente

    busca de Deus e da bem-aventurana? Mas esperai! Afinal tambm h alegrias neste mundo, e tm os seusencantos, o que no pouco. No devemos, por isso,desviar deles a nossa inclinao com excessiva pressa,pois seria imprprio voltar de novo a esses bens maistarde. No bom alcanar um cargo honroso? Que

    mais posso desejar? Tenho muitos amigos poderosos.Poderia ter pelo menos um lugar no governo parano dizer um cargo ainda mais importante. Depoiscasar-me com uma rapariga que possusse alguma for-

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    tuna, para ela no sobrecarregar os meus gastos. Seriaeste o limite daquilo que eu posso desejar. Muitoshomens importantes, dignos de serem consideradosmodelos, entregaram-se, apesar de casados, ao estudoda sabedoria. Era assim que eu costumava falar, en-quanto os ventos mudavam e impeliam o meu cora-o de um lado para o outro. Entretanto o tempo pas-sava e eu tardava em converter-me ao Senhor. De diapara dia adiava viver em Vs, mas no impedia que a

    morte me afetasse todos os dias.82

    82 Conf.VI, 11.

    vida chamas aqui morte, precisamente tu queum dia te inclinaste para aspirar o perfume do meucabelo quando atravessvamos a ponte sobre o Arno.Depois dizes: Desejava a verdadeira felicidade da vida, mas temia ir busc-la aonde ela estava. Procura- va-a, fugindo-lhe! Pensava que seria profundamenteinfeliz, se me privasse dos braos de uma mulher.83 83 Ibid.

    Temias privar-te dosmeus braos, Aurlio,quantas vezes falmos sobre isso. No escreveste omeu nome, porque tinhas de ser prudente.84 84 Nomina sunt odiosa, i.e., os nomes so inoportunos.Esta frase deve pertencer ao discurso de Ccero a Roscius.

    Falaste muito a este respeito com Alpio:85 Anenhum de ns dois interessava em particular aquilo

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    que faz do casamento algo de belo, ou seja, construirum lar e criar filhos. A principal preocupao era queeu estava habituado a satisfazer o meu insacivel ape-tite sexual, que me tornava cativo e me atormentava violentamente.86 85 Alpio, amigo e ex-discpulo de Santo Agostinho, naturalde Tagaste, terra natal de Santo Agostinho, chegou a Romaantes dele para estudar Direito. Juntos visitaram Milo(Conf.VI, 7-10).

    86 Conf.VI, 12.

    O que te atormentava, Aurlio, era que, para tecasares com uma mulher com fortuna, terias de aban-donar-me. Pois no ramos almas gmeas? No esta-

    ramos ns to unidos de corpo e alma, de tal modoque a nossa separao era mais uma tarefa para umcirurgio do que para uma me procura de esposapara o filho? No devamos ter pensado em Adeodatoque nesse tempo tinha doze anos?87 87 Parece que Santo Agostinho se debateu com srios pro-blemas de conscincia por ter abandonado Flria, a suacompanheira, embora sobre isso nada conste das suas Con- fessiones nem dedique um nico pensamento s feridas quelhe causou. No opsculo De bono coniugali (Os Benefcios doMatrimnio, 401), escrito numa poca em que j devia terlido a carta de Flria, Santo Agostinho sublinha que um ho-

    mem que abandona uma companheira fiel para desposaroutra mulher, comete o pecado da infidelidade. Nem todosos cristos da sua poca partilhavam a mesma opinio. Atmeados da Idade Mdia, era comum um homem ter uma

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    concubina antes do casamento. O bispo Leo de Roma de-clarou, em meados do sculo V, que era perfeitamente acei-tvel um cristo deixar uma concubina para contrair matri-

    mnio. Isto no era considerado divrcio nem to-poucobigamia, era antes encarado como um aperfeioamentomoral, idia que, como sabemos, Santo Agostinho rejeitou.Um homem que tivesse uma relao com uma concubina,devia manter-se fiel sua companheira e no casar-se. Achointeressante colocar a seguinte questo: teria Santo Agosti-nho passado a defender o estado de casada para a concubi-

    na bem como os seus direitos, se no tivesse lido a carta deFlria depois de ter escrito as suas Confessiones? Flria terento tido razo, ao afirmar que a sua carta era uma cartapara toda a Igreja Crist. Em tempos mais recentes, em1930, o Papa citou frases do opsculo Os Benefcios do Ma-trimnio e, sem se dar conta, pode ter sido influenciadopela carta de Flria. No entanto, tenho razes para crer quetanto esse papa como os que o precederam sabiam da exis-tncia do Codex Flriae.

    Escreves: Entretanto insistiam incessantemen-te para que me casasse. Fiz o pedido de casamento efui aceite, ajudado sobretudo por minha me, que tan-

    to se empenhou para me ver regenerado, depois domatrimnio, na gua redentora do batismo.88 88 Conf.VI, 13.

    Mnica entrou no meu quarto. Jamais podereiesquecer aquela manh em que ela apareceu enquantoeu cuidava da minha higiene diria. Tinhas acabado desair para a Escola de Retrica onde irias passar todo odia. Ela ordenou-me que partisse. Tudo estava desti-

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    nado e organizado para o meu regresso a frica nessamesma tarde com um grupo de viajantes. Tinhas pe-dido uma rapariga em casamento e ela aceitara. Osseus pais tinham imposto que eu partisse imediata-mente.

    Mnica vingava-se da noite em que a abando-namos em Cartago. Era a sua vez de demonstrar qualdas duas era a mais forte. Disse-me que desejavas queeu partisse; no o fazias tu prprio porque te faltava a

    coragem, qual pastor que no tem coragem de mataros seus cordeiros. Eu acreditei nela; foi esse o meutrgico erro.89 Suponho que deves ter pensado que euera uma dessas personagens trgicas, extradas da togade Eurpedes.90 Fui abandonada pelo meu prprioesposo por causa do seu amor divino! Foi assim quese passou, Aurlio, nem mais nem menos!91 89 Peccatum, ofensa ou pecado. Cf. grego hamartia, termoque designa o erro que posteriormente conduz queda doheri trgico. Este gnero de erro fatal quase sempre co-metido sem qualquer m inteno, o que precisamentecaracterstico da tragdia.

    90 Os Gregos usavam o nome himation. Flria usa a palavralatina toga que significa vestimenta tradicional romana.

    91 Sic, Aureli! Sic!

    Acreditei que desejavas o meu regresso a Car-tago, onde nos conhecramos anos antes, debaixo deuma figueira. Quando nos voltamos a encontrar emRoma mais tarde, juraste que framos separados semo teu consentimento.

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    Mnica disse-me ainda que querias que euprometesse nunca vir a conhecer outro homem. In-terpretei isso como um sinal de hesitao da tua partee pensei que um dia voltaramos a viver juntos. Nodeixa de ser um grande mistrio para mim que Mnicatenha dito tal coisa, quando o seu nico objetivo era aminha partida. Ter ela dito isso para que eu no meopusesse partida? Mnica pode ter pensado que eureceberia mais facilmente o batismo se no vivesse

    com outro homem. A verdade que recebi logo umacarta tua em que me imploravas que no me entregas-se a outro homem. Dizias tambm que provavelmenteno casarias. Mas a parte mais importante da cartaestava no fim: Tenho tantas saudades tuas, Flria.

    Adeodato acompanhou-te nesse dia Escolade Retrica e eu no o abracei pela derradeira vez,antes de recolher as minhas coisas e me afastar de ti edele. Levei tudo comigo.92 92 Deve pertencer a uma pea sobre Ccero que dirige a fra-se Omnia mea mecum porto ao filsofo grego Bias, o qualfoi obrigado a fugir do inimigo sem levar nada consigo. Ape-

    sar de tudo levou o essencial: a sua sabedoria e experincia.

    No fiz como Dido, Aurlio. Talvez tenhaprometido demasiado aquela vez, debaixo da figueira.Se Adeodato estivesse comigo, no teria feito comoMedia.93 Simplesmente parti.

    93 Da tragdia Media, de Eurpedes. Media assassinou osseus prprios filhos para se vingar do marido (Jaso) que atrara. O dio que sentia por Jaso era mais intenso que o

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    amor pelos filhos que ambos tiveram. Na sua paixo devas-tadora, Dido e Media so abissalmente diferentes.

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    Falas do entusiasmo com que Mnica preparouo teu casamento com a jovem: Faltava-lhe, porm,quase dois anos para atingir a idade para se poder ca-sar. Mas, como gostava dela, no me importava deesperar.94 Creio que seria prefervel teres escrito quete convinha esperar...94 Conf. VI, 13. A idade normal para o casamento era 12-13anos. Segundo Flria, a jovem devia ter uns onze anos ape-

    nas.

    Decepciona-me que no dediques uma ou duasfrases quilo que pensaste quando soubeste que a tuame me separara de ti e de Adeodato, sem o teu con-sentimento. Voltaste a uma casa vazia. Eu, que te a-companhara durante todo aquele longo percurso des-de frica, j ali no me encontrava. Eu, Aurlio, quetinha atravessado contigo o rio Arno, j no estavamais ali. Escreves apenas: Afastaram de mim, como

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    impedimento para o matrimnio, aquela com quemeu partilhava o leito. O meu corao, to preso a ela,ficou destroado e ferido at sangrar. Voltou para -frica, fazendo-Vos voto de jamais conviver com outrohomem e deixando-me o filho natural que tivemos. Eeu, miservel, no segui o exemplo dessa mulher!Quando me apercebi que faltavam ainda dois anospara receber a rapariga que pedira em casamento notive pacincia para esperar, porque, embora no desse

    muita importncia ao casamento, era um escravo doprazer. Procurei outra mulher mas no esposa eassim mantive intacta ou ainda mais agravada, a doen-a da minha alma, enquanto esperava pelo matrim-nio, apoiado pelo velho hbito.95 95 Conf.VI, 15.

    Desconhecia por completo a existncia destamulher at ler as tuas confisses. Mas que vergonhaters sentido quando soubeste que eu nunca me en-tregara a outro homem! Estas palavras so importan-tes para mim porque admites que o motivo da nossaseparao no foi o teu casamento. Devamos ter con-tinuado juntos at que essa pobre rapariga alcanassea idade para o matrimnio. Mas tu nunca tiveste a in-teno de casar! Querias salvar a tua alma da perdioeterna e voltaste a cair na tentao da carne. Coisasque acontecem! Pobre Aurlio, s agora comeo a

    compreender essa necessidade profunda de te confes-sares. Digo sinceramente: no me agrada nada a formacomo te confessas.

    Suponho que Mnica no desaprovou a tua

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    nova vtima. Tinha conseguido que rompesses umarelao de muitos anos com uma mulher que amavasde corpo e alma. Mnica deve ter ficado contentecom essa nova mulher que no satisfaria seno a tuapaixo carnal. A tua me era uma mulher generosa,respeitvel Bispo, e dos mortos no se fala. Acaboupor se vingar do que sucedeu quando fugimos de -frica.

    Volto a reproduzir o que escreveste: A chaga

    que me causou o fim da relao com aquela mulhercom quem vivi ainda no sarou. A princpio inflamoue era terrivelmente dolorosa, mas depois gangrenou etornei-me menos sensvel dor, mas mais desespera-do.96 E continuas: S o temor da morte e do Vossojuzo, que nunca deixou de me atormentar, apesar deeu ter mudado de opinio, me afastava do abismo toprofundo dos prazeres carnais... Epicuro, na minhaperspectiva, teria recebido a palma,97 se eu no acredi-tasse que a vida da alma continua para alm da mortee que h reconhecimento por aquilo que fizemos. E-picuro negou isso. Eu queria saber por que no ra-mos felizes ou que mais buscaramos, se fssemosimortais e pudssemos viver em eterno gozo sensual,sem receio algum de o perder!98 96 Ibid.

    97 Epicuro (341-270 a. C), filsofo grego, que vivia em Ate-nas. Epicuro aceitava o atomismo de Demcrito e acredita-va que a filosofia materialista podia atenuar o receio que osseres humanos sentem pela morte e punio divina. Amorte no nos diz respeito, argumentava. Enquanto exis-

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    timos, a morte est ausente. Quando a morte chega, j noexistimos. A sua filosofia libertadora resumia-se quilo quechamava as quatro ervas da cura: No ter medo dos

    deuses. No se preocupar com a morte. O bem de curtoalcance. O pavor suporta-se facilmente.

    98 Conf.VI, 16.

    Mas por que que desejavas mais? Quero di-zer: que propsito serve procurar uma coisa que tal- vez no exista? Fazes-me lembrar aquele grego queganhou umas moedas de ouro no jogo e, porque que-ria ganhar ainda mais, acabou por perder toda a suafortuna.99 99 No consegui apurar a que grego Flria se refere.

    Imagina uma paisagem frondosa com pessoas eanimais, flores, crianas, vinho e mel. Nessa paisagemexiste tambm um labirinto medonho. Imagina-te,santo Bispo, meu antigo companheiro de leito, perdi-do nesse labirinto profundo, sem o fio de Ariadne,100 que te possa guiar pelos caminhos tenebrosos de re-gresso ao paraso em que um dia viveste. No fundodesse labirinto reinam os telogos e os platnicos e,de cada vez que um novo homem entra naquele espa-o, aumenta o nmero dos presentes. Cada um deles levado a acreditar que tudo o que existe fora do labi-rinto obra do Diabo. Uma vez persuadido, tambmtu j no queres sair da escurido profunda do labirin-to.101 Ou deveria chamar-vos pescadores de ho-mens?102 Nunca esqueceste a mulher que amaste; no

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    entanto ds graas a Deus por estares separado dela,evitando assim que ela te alicie. Apenas nos teus so-nhos vivem ainda imagens de coisas que o hbitoinveterado l fixou.

    103

    100 Ariadne deu a Teseu o fio com o qual ele conseguiu sairdo labirinto de Creta (Cnossos) depois de matar o monstroMinotauro, que exigia que todos os anos lhe fossem entre-gues sete raparigas e sete rapazes atenienses.

    101 Cf. nota de rodap anterior.

    102 Piscator hominum. Da Vulgata, a traduo latina da B-blia, que Flria pressupostamente utilizou. Vide Marcos 1,17: Es dixit eis lesus venite post me et fadam vos fieri pisca-tores hominum. Cf. Mateus 4, 19.

    103 Conf. X, 30. Tenho pensado se esta comparao teriasido uma tentativa consciente de Flria para evidenciar ocontraste com a cave de Plato, que ela certamente deveriaconhecer.

    Que Deus te perdoe. Deus pode estar sentadoalgures a observar como repudias as suas criaes.Nas tuas confisses dizes vrias vezes que, na tua vidaanterior, estavas onde Deus no se encontrava. Masagora que deves andar perdido. dipo julgava tam-bm que estava no caminho certo quando foi de Del-fos para Tebas e esse foi o seu erro trgico. Teria sido

    prefervel que ele tivesse regressado a casa dos seuspais adotivos, em Corinto. Para ti, Aurlio, teria sidotambm muito melhor se tivesses voltado a Cartago. Aqui continuamos a sentir o amor de Deus nas flores,

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    nas rvores e em Vnus, Aurlio! Aproveito para citar as seguintes palavras de

    Horcio: Pensa que cada dia que amanhece o teultimo dia.

    104

    No quero dizer que vai ser o teu lti-mo dia, mas h uma hiptese de que tal possa vir aacontecer. Ningum sabe se a esta suceder outra vidapara as nossas almas. Essa possibilidade existe, velhoreitor, e gostaria que meditasses nela. E se o Bispo deHipona Regia se enganou?104 Omnen crede diem tibi diluxisse suprernum.

    A vida breve, demasiado breve. Talvez viva-mos esta nica vez, aqui e agora. Se assim for no te-rs voltado as costas a estes dias luminosos, quando teperdeste no labirinto dos pensamentos obscuros esinistros de onde no consigo libertar-te.

    No vivemos eternamente, Aurlio! Devemosaproveitar os dias que nos so concedidos.

    Quase no final do teu Livro VI escreves sobrea alma que amas acima de tudo: Quer se vire paratrs, para o lado ou para diante, tudo lhe duro. Sem vs ela descansa.105 105 Conf.VI, 16. Vs, i.e., Deus.

    De novo, fazes-me pensar nos dias e nas noitesque passamos juntos em Cartago, onde ambos encon-

    tramos descanso profundo. Dizias-me ento que ondeeu estivesse, estarias tu tambm. Mas no cumpriste atua promessa. Fugiste de mim como um ladro e pe-netraste nos caminhos complexos da teologia, sem

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    levar o meu fio como guia.106 106 Videnota de rodap 100.

    Inicias o Livro VII com estas palavras: A mi-nha adolescncia m e pecadora j tinha passado eentrei na idade adulta, mas quanto mais velho ficava,mais envergonhado me sentia da minha frivolida-de.107 O que o pecado, a maldade e a frivolidade,

    respeitvel Bispo? No ser tudo o que nos separa deDeus?107 Conf.VII, 1.

    E prossegues: No podia imaginar outra reali-dade seno a que os nossos olhos normalmente v-em.108 Mas supe que no existe outra realidade. Seassim for, ento afastaste-te da luz em vez de te teres virado para ela.108 Ibid.

    No vs as florestas verdejantes, Aurlio?109

    No s capaz de ver o mundo tua volta? Se o que vs com os olhos terrenos no te agrada, devias arran-c-los apesar de isso me parecer uma blasfmia.109 Frondem in silvis non cernis? Equivalente a: No conse-gues ver a floresta para alm das rvores?

    Mais adiante dizes que agora vs as coisas maisnitidamente e ests certo de que aquilo que se pode

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    corromper inferior ao incorruptvel.110 Devo admi-tir que isto parece bastante sensato e refletido. Masexistir realmente algo incorruptvel a que as nossasalmas se possam agarrar? No entanto, se o incorrupt- vel no existe, acho mais insensato procurar uma coi-sa que no corruptvel do que algo susceptvel decorromper-se, partindo do princpio que o Bispo deHipona ainda no arrancou os olhos nem se deixoucastrar por causa do reino dos cus. Lamento falar-te

    assim, Aurlio, mas sou levada pela minha prpriaexaltao ao escrever sobre estas coisas!110 Conf.VII, 1.

    Divagas sobre o que a tua viso interior viu esobre o amor que sentes por aquilo que no tem cor-po. Sinto calafrios. Imagina que algum mandava calaro canto dos pssaros porque o ouvido interior dessapessoa tinha ouvido uma melodia mais bela! Ou quemandava murchar as flores e as rvores porque o seuolfato interior descobrira um aroma mais maravilhosoque os aromas da prpria natureza! Imagina, final-mente, que algum destrua a arquitetura e os objetosde arte porque se apaixonara pelas coisas impalpveis!

    Para mim, os pssaros j no cantam, as floresno tm as mesmas cores e ningum cheira o meucabelo. To-pouco tenho quem me abrace. Partilhei odestino de Dido. Apesar de tudo, jamais lanarei fora

    o camafeu que neste momento aperto na minha mo.

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    vos, incluindo mulheres e crianas. As concluses quetiras da tua f continuam a ser um mistrio para mim.

    Desagradava-me a vida que eu levava nomundo. Era um enorme fardo sobre mim.

    113

    E expli-cas o significado de vida no mundo: Ainda estavafortemente ligado mulher. O Apstolo no me pro-ibia de casar, mas exortava-me a um estado melhor,porque preferia que todos os homens o imitassem.Porm, demasiado fraco, como eu era, escolhi o lugar

    onde me sentia melhor. Era s por isso que me con-frontava com hesitaes em tudo o mais. Enfraqueci,minado por preocupaes que me consumiam...114 Um pouco mais frente, acrescentas: Assim, haviaduas vontades, uma concupiscente, outra dominada,uma carnal e outra espiritual, que se digladiavam den-tro de mim. E neste conflito permanente, dilacera- vam-me a alma.115 113 Ibid.

    114 Ibid.

    115

    Conf.VIII, 5.

    Na carta que recebi nesse perodo dizias quesentias muito a falta dos nossos abraos. No te in-quietes que eu no mostrarei essa carta ao sacerdote!

    As tuas confisses no cessam a: Sentia-meagradavelmente oprimido pelo peso do mundo maisdo que quando se dorme. E os pensamentos que eutinha de Vs pareciam-se com os esforos daquelesque desejam despertar, mas que, vencidos pela pro-

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    que extinguir. Nem queria nem deixava de querer.118 118 Conf.VIII, 7 e VIII, 10.

    A tua nova amada acabou por vir ao teu encon-tro, abraando-te serena, alegre, mas sem frivolidadena sua alegria.119 119 Conf.VIII, 11.

    Sinto vontade de felicitar-te, porque quasecomo se tivesses contrado matrimnio. Apesar de anoiva ser invisvel, era ela a rainha que desejavas. Ca-saste e no precisaste de lev-la para a casa de tuame. Mnica deve ter ficado contente porque alcan-ou os seus propsitos e isso no ocultas tu. Conse-guiu que casasses e recebesses o batismo ao mesmotempo.

    Relatas a grande emoo que Sentiste pela tuaconverso; a esse ato eu preferia chamar-lhe bodas:Levantou-se uma enorme tempestade trazendo con-sigo uma torrente de lgrimas. Para as derramar li-

    vremente, afastei-me de Alpio. Se eu tinha de chorar,achava mais indicado chorar sozinho. Afastei-me osuficiente para que a sua presena no me perturbasse.Era este o estado em que me encontrava! Alpio per-cebeu, porque eu lhe disse, julgo, qualquer coisa emque deixava transparecer o tom que o choro imprimia

    ao timbre da minha voz. Ento ergui-me. Alpio, es-tarrecido, deixou-se ficar imvel no stio onde estava. Atirei-me no sei como, para debaixo de uma figueira,e deixei as lgrimas correrem. As torrentes de lgrimas

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    que saam dos meus olhos eram um sacrifcio agrad- vel para Vs.120 120

    Conf.VIII, 12.

    Voltaste, portanto, a procurar abrigo debaixode uma figueira fechando assim o crculo. No podester deixado de pensar na nossa figueira em Cartago. Ali perguntaste-me um dia se eu j tinha estado em

    Roma. Ao pensar nesse episdio que, luz das tuasconfisses, se tornou quase proftico, sinto calafrios. Teriam algumas das tuas lgrimas sido derramadas pormim?

    Depois de sucumbires debaixo de uma figueira,em Milo, encontrou Enias a terra prometida. Estavafinalmente consumado: tudo vencera o amor!121 121 Omnia vicerant amorem. Creio que uma inverso dafrase de Virglio: O amor vence tudo (omnia vincit amor).Enias era filho de Afrodite, a deusa do amor (Vnus).

    Escreves: Fomos ter em seguida com minha

    me. Eu e Alpio, contamos-lhe o sucedido. Ela reju-bilou...! De tal forma me converteste a Vs que agoraj no desejo uma esposa, nem nada mais que me faadeste mundo. Agora permanecia firme naquele troncode rvore de f aonde anos antes, Vs tnheis trazidominha Me para ela me ver numa viso. Transformas-tes a sua tristeza numa alegria muito mais rica do queela desejaria, e muito mais preciosa e casta do que aque podia esperar do neto nascido da minha carne.122

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    122 Conf.VIII, 12.

    No achas que foste um pouco precipitado, ao

    excluir o potencial de Adeodato, nesta questo? Nessetempo era ainda impossvel antever o seu destino infe-liz. Teria o pobre rapaz vindo um dia a abraar a Abs-tinncia como tu? No o consideravas teu filho? Con-cordo que era um filho bastardo, mas ainda no che-gmos ao ltimo ato da tragdia...

    No Livro IX escreves sobre a viagem de re-gresso da quinta de Verecundo, na companhia de Al-pio: Trazamos conosco Adeodato, o filho carnal domeu pecado, que tnheis dotado de grandes qualida-des. Com quinze anos incompletos, o seu talento ul-trapassava j o de muitos homens ilustres e doutos.Louvo-Vos por estes Vossos dons, Senhor meu Deus,Criador de todas as coisas e to poderoso para corrigiros nossos erros, porque nada de meu havia nesse jo- vem, alm do pecado. A disciplina com que o crimosdesde a infncia foi somente inspirada por Vs. Lou- vo-Vos, pois, por estes Vossos dons.123 123

    Conf.IX, 6.

    Logo acrescentas: H um livro meu que se in-titulaO Mestre (De magistro)onde ele dialoga comigo.Sabeis que todos os pensamentos, atribudos ao meuinterlocutor, eram os dele quando tinha dezesseis a-

    nos? Ouvi dele coisas ainda mais prodigiosas. A suainteligncia causava-me calafrios de admirao. Quemmais seno Vs, poderia ser o autor de tais maravi-lhas? Depressa o levastes da Terra. com a maior

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    tranqilidade que eu o recordo, sem qualquer ansie-dade pela sua infncia, adolescncia, ou no decurso dasua vida.124 124 Ibid.

    No posso ocultar a dor que estas linhas mecausaram. E se me arrepio tambm por uma razomuito diferente. No sei se foi Deus quem arrancou

    Adeodato deste mundo. O que sei que tu o arran-caste da sua me. Adeodato era o meu nico filho,respeitvel Bispo. No foi sob a tua custdia que eledefinhou e acabou por morrer, deixando-nos ambosss?

    Agora, que nenhuma mulher caprichosa podeseduzir Adeodato debaixo de uma figueira, deves sen-tir um grande alvio! Por meu lado, ficaria seriamentepreocupada se um dia ele se rendesse Abstinnciacomo seu escravo e joguete.125 125 A expresso toffelhelt (um joguete, um banana)apareceu na Antigidade. Vide o livro Romersk kultur (A

    Cultura Romana), Fredrik Bie, publicado pela Editorial Gyl-dendal Norsk Forlag, em 1958, p. 59. No entanto no encon-trei essa palavra em dicionrios nem em textos da Antigi-dade.

    Flria usa a expresso crepundia que deve ser tradu-zida por chocalho ou penduricalho. A palavra deriva decrepo que significa chocalhar, farfalhar, tropear.

    Crepida, sandlia grega, deriva do mesmo verbo.Se fizermos uma traduo letra, Flria chama pen-

    duricalho Abstinncia. Eu preferi uma traduo mais livre.Fredrik Bie deve ter tido em mente crepundia, quan-

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    do utilizou a palavra toffelhelt. No contexto presente signifi-ca um homem fraco, um brinquedo nas mos da esposa.Mas o mais provvel ainda, Bie ter pensado no adjetivo

    uxorius um homem dominado pela mulher, um escravo damulher. Virglio e Horcio usam uxorius neste sentido. [Natraduo portuguesa preferiu-se o termo joguete.]

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    Agora a minha vez de imitar-te: omitirei cer-tas coisas para chegar depressa ao essencial. Alm dis-so, gastei metade da minha fortuna em pergaminho erestam-me poucas folhas para escrever.

    Chegaste a Ostia, junto ao Tibre, vindo de -frica. Foi ali que tu e Mnica falaram a ss, com sen-tido muito professoral e tentaram descobrir qual seriaa vida eterna dos santos. Foi ento que chegaste concluso de que por maior que seja, o prazer, na

    mais radiosa glria terrestre, no digno de compara-o com a alegria da eternidade, nem merece que delase faa meno.126 126 Conf.IX, 10.

    Tens de perdoar-me, distinto Bispo, mas agorasou uma mulher erudita. Com a humildade devida,sinto-me obrigada a insinuar que tudo isto parece umaconjura. Imagina que te enganaste num ponto crucial

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    como este. Nesse caso ters de dar crdito a Epicuro,como um dia, enquanto ainda estvamos juntos, modisseste. Continuo a pensar que tu e Adeodato teriam voltado a Cartago imediatamente. Se tivesses vindo,no terias escolha, terias de viver como qualquer ou-tro ser humano, aqui e agora, e o teu amor terrenoteria sido suficiente para partilhar comigo e com osoutros.

    Esta vida to breve! No podemos ter a ve-

    leidade de emitir qualquer condenao sobre o amor.Devemos viver primeiro, Aurlio, e filosofar depois.Mas no nos esqueamos de Mnica. Em Osti-

    a, recolheu ao leito com febre. Mais tarde ouviste queela com confiana maternal tinha falado a algunsdos teus amigos acerca do desprezo desta vida e dafelicidade da morte.127Sic!127 Conf.IX, 11.

    Mnica era uma pessoa piedosa, que soubedesprezar esta vida. Mas devo acrescentar que istodeve equivaler a desprezar a obra da Criao divina,porque no sabemos se Deus criou um outro mundo.Dou-me agora conta de que estou a repetir-me. Astuas confisses devem ter-me contagiado, respeitvelBispo. Considero pura arrogncia desprezarmos esta vida e todos os seus prazeres terrenos para nos dedi-carmos a uma existncia que possivelmente no passa

    de abstrao. Espero que no tenhas esquecido a crti-ca de Aristteles acerca do Mundo das Idias. A vida to breve, Aurlio! Temos o direito de

    alimentar a esperana de uma vida para alm desta.

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    Maltratar os outros no deve ser um meio para alcan-ar uma existncia que desconhecemos. Existe aindauma outra questo que no contemplas em nenhumdos teus Livros. Tendo em conta a tua posio de rei-tor imperial e porque para ti tudo um dado adquiri-do, devias ter considerado a hiptese da existncia deuma vida eterna para as almas, mas com base em cri-trios de salvao diferentes daqueles que tomas porgarantidos. Em meu entender, o amor carnal pela mu-

    lher amada no necessariamente um pecado maisgrave que separar essa mulher do seu nico filho. Sin-to prazer em pensar que esse Deus que criou o Cu ea Terra o mesmo que criou Vnus. Lembras-tequando estava espera do nosso filho e do perodoem que o amamentei? Mesmo ento ousavas tocar-me, e nunca procuraste outra.

    Distanciaste-te de Deus por isso?No pretendo afirmar que sei tudo. S quero

    dizer que no sei. Nem sequer quero dizer que nocreio no julgamento de Deus. Apenas quero dizer quetalvez tambm acredite em virar as costas aos praze-res, ao calor e a toda essa ternura que o Bispo de Hi-pona agora repudia. Estas so as confisses de Flria!Mnica morreu no nono dia da doena, aoscinqenta e seis anos de idade, no trigsimo terceiroano da minha vida, Aurlio. Ento aquela alma pie-dosa e santa libertou-se do corpo.128 Depois continu-as: Quando ela exalou o ltimo suspiro, Adeodato, o

    meu filho, chorou amarguradamente. Mas parecia-teque no ficava bem celebrar-lhe os funerais compranto e lamentaes porque essas demonstraesservem habitualmente para deplorar a infelicidade dos

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    mortos ou o seu completo desaparecimento. A mortede minha me, pelo contrrio, no foi uma infelicida-de. De fato, no foi uma morte.129 128 Ibid.

    129 Conf.IX, 12.

    Que Mnica descanse em paz, Bispo! No o-cultas que tambm sofreste; sofreste muito e chorastequando ficaste s. Envergonhavas-te de chorar pelatua me, porque isso poderia ser interpretado como setu albergasses em ti ainda sentimentos terrenos.

    Lembras-te de uma vez termos falado da arro-gncia dos heris gregos?130 Parece-me oportuno re-cordar-te agora que no s outra coisa seno um serhumano.131 Por quanto tempo vais abusar da minhapacincia, Aurlio?132 Ds as voltas que deres, conti-nuars a ter sentimentos terrenos. Se te