jose savio da costa maia - a florestania e o desenvolvimento insustentável - o caso dos...

352
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA JOSÉ SÁVIO DA COSTA MAIA A FLORESTANIA, O DENVOLVIMENTO (IN)SUSTENTÁVEL E AS NOVAS FRONTEIRAS DA SÓCIODIVERSIDADE NO VALE DO RIO ACRE NA VIRADA DO SÉCULO XX: O CASO DOS TRABALHADORES EXTRATIVISTAS. Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em História. ORIENTADORA: PROF.ª. Drª. CLAUDIA WASSERMAN PORTO ALEGRE -2009

Upload: eduardo-de-araujo-carneiro

Post on 28-Jul-2015

1.192 views

Category:

Documents


8 download

TRANSCRIPT

Page 1: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

JOSÉ SÁVIO DA COSTA MAIA

A FLORESTANIA, O DENVOLVIMENTO (IN)SUSTENTÁVEL E AS NOVAS

FRONTEIRAS DA SÓCIODIVERSIDADE NO VALE DO RIO ACRE NA VIRADA DO

SÉCULO XX: O CASO DOS TRABALHADORES EXTRATIVISTAS.

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em História da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul como

requisito parcial para a obtenção do

título de Doutor em História.

ORIENTADORA: PROF.ª. Drª. CLAUDIA WASSERMAN

PORTO ALEGRE -2009

Page 2: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

A FLORESTANIA, O DENVOLVIMENTO (IN)SUSTENTÁVEL E AS NOVAS

FRONTEIRAS DA SÓCIODIVERSIDADE NO VALE DO RIO ACRE NA VIRADA DO

SÉCULO XX: O CASO DOS TRABALHADORES EXTRATIVISTAS.

JOSÉ SÁVIO DA COSTA MAIA

PORTO ALEGRE – 2009

Page 3: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas
Page 4: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

Aos meus pais José Augusto Maia (em

memória) e Anézia Rodrigues da Costa Maia,

um cearense e uma acreana nascidos na

segunda década do século XX e que, singrando

rios, atravessando florestas, vencendo tempos e

percalços, constituíram uma família numerosa,

da qual seus filhos e netos certamente se

orgulham.

Page 5: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

AGRADECIMENTOS:

- Aos meus pais, José Augusto Maia (em memória) e Anézia Rodrigues da Costa Maia;

meus irmãos e irmãs (os vivos e os que partiram antes), sobrinhos e sobrinhas, primos e

primas, pois cada um, do seu modo, prestou inestimável contribuição e me apoiou em todos

os momentos;

- A professora Claudia Wasserman que não só recebeu um “estrangeiro” como orientando,

mas que, ao longo desse contato, demonstrou muita competência e paciência, além de

grande respeito e confiança de que o trabalho seria realizado;

- Ao CNPq e a UFAC, o primeiro pela bolsa que favoreceu minhas idas e vindas e estadia

em Porto Alegre e a UFAC por ter propiciado meu afastamento para dedicação a este

trabalho;

- Aos funcionários dos órgãos do Governo do Estado do Acre e da Assembléia Legislativa,

que propiciaram acesso a diversos documentos, necessários à pesquisa;

- Aos funcionários do Museu da Borracha que permitiram acesso à coleção de jornais

daquela Instituição;

- Aos professores e colegas do mestrado e doutorado em História da UFRGS que, através

das leituras e conversas, me propiciaram novos instrumentos de análise e novas formas de

ver o mundo;

- Aos sobrinhos João Paulo Maia Guilherme e Ricardo Augusto Maia Guilherme pela

colaboração na coleta de materiais e um agradecimento especial a também sobrinha Maria

José Maia Nascimento pela dedicada correção do texto final.

Page 6: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

RESUMO:

Entre os anos finais do século XX e iniciais do XXI, o Estado do Acre viveu

processos de aceleradas mudanças. A emergência de políticas desenvolvimentistas,

promovidas pelos governos militares e seus aliados civis, marcadas pela violência em todos

os níveis, desencadearam reações que se iniciaram dentro dos seringais, realizadas pelos

seringueiros, caracterizadas principalmente pelos empates, que depois ganharam dimensões

nacionais e internacionais, invertendo as idéias de desenvolvimento e fronteiras que

orientavam as ações militares.

A organização de sindicato de trabalhadores rurais, em meados da década de

setenta, seguida pelas ações da Igreja Católica, por meio de suas Comunidades Eclesiais de

Base e Comissão Pastoral da Terra, da chegada da CONTAG, dos militantes políticos de

esquerda e, mais tarde, das ONGs, projetaram para fora dos seringais as lutas pela terra,

transformando-as em lutas políticas contra as formas predatórias de desenvolvimento, até

então apresentadas, para em seguida dar-lhe contornos de luta ambiental.

Desse modo, os seringueiros do Acre e da Amazônia que viviam encobertos pelo

imenso chapéu verde da floresta tornaram-se protagonistas dessas mudanças. De

representação do bárbaro, do não-civilizado, do atraso econômico, passaram a

representação do “guardião” das florestas, do ecológico e ambientalmente desejável.

Esse protagonismo dos seringueiros, contudo, foi mudando de eixo e grande parte

de sua capacidade de representação foi transferida para o Governo do Estado e para outras

estruturas representativas, tais como o CNS, as ONGs e outros órgãos governamentais,

principalmente a legislação ambiental, que a partir da criação do IBAMA e do MMA

passaram a exercer forte influência nos ativos ambientais.

O balanço possível desses eventos é a nova configuração política, social e

econômica das populações do Estado do Acre, envolvida pelos conceitos da florestania e do

desenvolvimento sustentável, oriundas de um Governo que se diz herdeiro das tradições

seringueiras e respeitador do meio ambiente e o quadro de instabilidade que teima em

repetir conflitos e a manter desigualdades.

PALAVRAS-CHAVE: Extrativismo. Desenvolvimento Sustentável. Florestania.

Sociodiversidade. Políticas Públicas.

Page 7: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

ABSTRACT:

Among the final years of the XX century and early of XXI, the State of Acre lived

process of accelerated change. The emergence of development politics, promoted by

government military and their allies civilians, marked by violence at all levels, triggered

reactions that were initiated within the rubber, made by the rubber tappers, characterized

mainly by the draws (deadlock), which later gained national and international dimensions,

reversing borders of the ideas that guided the military actions.

The organization of rural workers union in the mid-seventies, followed by the

actions of the Catholic Church, through its Base Ecclesial Communities the Pastoral Land

Commission, the arrival of CONTAG, the left-wing political activists, and more afternoon

NGOs, designed out of rubber struggles for land, turning them into political struggles

against predatory forms of development, so far presented, then give it to fight

environmental contours.

Thus the rubber tappers of Acre and the Amazon living hidden by huge green hat

forest have become protagonists of these changes. The representative of the barbarian, no-

civilized, the economic backwardness, came to represent the "guardian" of forests, the

ecological and environmentally desirable.

The role of rubber tappers, however, changed in priority and much of its capacity of

representation was transferred to the State Government and other representative structures,

such as the Council National of the Rubber Tappers (CNS), NGOs and other government

bodies, particularly the environmental legislation that the creation of IBAMA and the

MMA began to exert strong influence on environmental assets.

The balance of these events is a possible new configuration political, social and

economic of the people of the state of Acre, involved the concepts of Florestan

(Florestania) and sustainable development, from a government that says rubber heir

traditions and respectful of the environment and context of instability keep on repeating

that conflicts and maintain inequalities.

KEY WORDS: Extrativism. Sustainable Development. Florestans. Sociodiversity. Public

Policy.

Page 8: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

LISTA DE SIGLAS:

ABONG - Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais.

AMOREB - Associação dos Moradores da Reserva Extrativista de Brasiléia.

APA - Associação de Prefeitos do Acre.

BANACRE - Banco do Estado do Acre.

BASA - Banco da Amazônia S/A.

BEC - Batalhão de Engenharia e Construção.

BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento.

BIRD - Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento.

BIS - Batalhão de Infantaria e Selva.

CDDH - Centro de Defesa dos Direitos Humanos.

CDRFS - Conselho de Desenvolvimento Rural Florestal Sustentável.

CEA - Casa do Estudante Acreano.

CEAA/BID - Comissão Estadual de Acompanhamento e Avaliação do Programa de

Desenvolvimento Sustentável do Estado do Acre

CEB - Comunidade Eclesial de Base.

CEDI - Centro de Estudos de Direito Internacional.

CELAM - Comissão Episcopal Latino Americana.

CEMACT - Conselho Estadual de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia.

CEPAMI - Centro de Estudos e de Pastoral dos Migrantes.

CFE - Conselho Florestal Estadual.

CGT - Central Geral dos Trabalhadores.

CIMI - Conselho Indigenista Missionário.

CNS - Conselho Nacional dos Seringueiros.

COLONACRE - Companhia de Desenvolvimento Agrário e Colonização do Estado do

Acre.

CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura.

CPI - Comissão Pró-Índio.

CPT - Comissão Pastoral da Terra.

CSC - Corrente Sindical Classista.

Page 9: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

CTA - Centro dos Trabalhadores da Amazônia.

CUT - Central Única dos Trabalhadores.

DCE - Diretório Central dos Estudantes - UFAC.

EIA/RIMA - Estudos de Impactos Ambientais e Relatório de Impactos Ambientais.

FETACRE - Federação de Trabalhadores na Agricultura do Acre.

FPE - Fundo de Participação dos Estados.

FSC - Forest Stewardship Council.

FSE - Fundo Social de Emergência.

FUNAI - Fundação Nacional do Índio.

GTA - Grupo de Trabalho Amazônico.

GTZ - Cooperação Técnica Alemã.

IBAMA - Instituto de Meio Ambiente do Acre.

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

INESC - Instituto de Estudos Sócio-Econômicos.

INPA - Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.

INPE - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.

ISA - Instituto Sócio-Ambiental.

ITTO - International Tropical Timber Organization.

MAP - Madre de Dios, Acre, Pando (refere-se ao fórum que leva esse nome).

MMA - Ministério do Meio Ambiente.

ONG - Organização Não Governamental.

ONU - Organização das Nações Unidas.

OXFAN - Comitê de Oxford para o Combate a Fome.

PAE - Programa de Ajuste Estrutural e Programa de Assentamento Agro-Extrativista.

PIN - Programa de Integração Nacional.

PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

PPG7 - Programa Piloto para Conservação das Florestas Tropicais no Brasil.

PROBOR - Programa da Borracha.

PUC - Pontifícia Universidade Católica.

RESEX - Reserva Extrativista.

Page 10: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

STR - Sindicato de Trabalhadores Rurais.

SUDAM - Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia.

SUDHEVEA - Superintendência do Desenvolvimento da Hévea. (borracha).

UDR - União Democrática Ruralista.

UFAC - Universidade Federal do Acre.

UFRJ/CPDA - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Centro de Pesquisa do

Desenvolvimento Agrário.

USP - Universidade de São Paulo.

WWF - World Wildlife Fund.

ZEE - Zoneamento Ecológico Econômico.

Page 11: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

LISTA DE SIGLAS PARTIDÁRIAS:

ARENA - Aliança Renovadora Nacional.

FPA - Frente Popular do Acre.

MDB - Movimento Democrático Brasileiro.

PC do B - Partido Comunista do Brasil.

PCB - Partido Comunista Brasileiro.

PDC - Partido Democrata Cristão.

PDT - Partido Democrático Trabalhista.

PFL - Partido da Frente Liberal.

PL - Partido Liberal.

PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro.

PMN - Partido da Mobilização Nacional.

PPB - Partido Progressista Brasileiro.

PPR - Partido Progressista Republicano.

PPS - Partido Progressista Socialista.

PRC - Partido Revolucionário Comunista.

PRN - Partido da Reconstrução Nacional.

PRONA - Partido da Reedificação da Ordem Nacional.

PSB - Partido Socialista Brasileiro.

PSD - Partido Social Democrático.

PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira.

PSL - Partido Social Liberal.

PT - Partido dos Trabalhadores.

PT do B - Partido Trabalhista do Brasil.

PTB - Partido Trabalhista Brasileiro.

PTR - Partido Trabalhista Renovador.

PV - Partido Verde.

RDA - Renovação Democrática do Acre.

UDN - União Democrática Nacional.

Page 12: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

INDÍCE DE FIGURAS:

Figura 01...............................................................................................................................47

Figura 02...............................................................................................................................48

Figura 03...............................................................................................................................66

Figura 04...............................................................................................................................67

Figura 05...............................................................................................................................68

Figura 06...............................................................................................................................70

Figura 07...............................................................................................................................72

Figura 08.............................................................................................................................148

Figura 09.............................................................................................................................166

Figura 10.............................................................................................................................166

Figura 11.............................................................................................................................166

Figura 12.............................................................................................................................166

Figura 13.............................................................................................................................167

Figura 14.............................................................................................................................167

Figura 15.............................................................................................................................168

Figura 16.............................................................................................................................168

Page 13: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

SUMÁRIO:

INTRUDUÇÃO:..................................................................................................................16

CAPÍTULO I: O ACRE NO CONTEXTO DO BRASIL MILITARIZADO......................46

1.1 Os “grandes projetos” dos militares para a Amazônia e seus efeitos para as populações

tradicionais...........................................................................................................................47

1.2 O Acre como fim do Brasil ou porta de chegada/saída para o Pacífico: as estradas como

redenção................................................................................................................................64

1.3 Desmatar é desenvolver: estradas e pecuária para um novo Acre.................................79

CAPÍTULO II: AS NOVAS FORMAS DE APRISIONAMENTO DA TERRA E AS

MUDANÇAS NA ESTRUTURA PRODUTIVA................................................................90

2.1 Dos seringais às fazendas de gado; das “colocações” às posses: os patrões, os

fazendeiros, os colonos e os extrativistas disputando territórios e

espaços..................................................................................................................................91

2.2 Os estranhamentos e a violência entram em cena: as convulsões sociais no Vale do Rio

Acre....................................................................................................................................107

2.3 As diversas reações dos moradores da floresta, dos colonos e dos fazendeiros:

sindicatos, empates e associações......................................................................................122

CAPÍTULO III: OS ESCUDOS DOS EXTRATIVISTAS: O CORPO, A IGREJA, OS

PARTIDOS, OS SINDICATOS E AS ONGs....................................................................139

3.1 Da fragmentação à organização: “a floresta era uma coisa sem fim”..........................140

3.2 Os aliados urbanos dos seringueiros: o papel da Igreja Católica................................155

3.3 Outros aliados urbanos: partidos de esquerda, confederações de trabalhadores e centrais

sindicais..............................................................................................................................177

3.4 As representações sindicais..........................................................................................194

3.5 As ONGs: aliadas de outras causas..............................................................................206

Page 14: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

CAPÍTULO IV: AS NOVAS FORÇAS POLÍTICAS NO ESTADO DO ACRE E AS

TESES DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E DA FLORESTANIA COMO

POLÍTICA DE GOVERNO...............................................................................................225

4.1 Fincando uma cunha no bi-partidarismo: a formação da Frente Popular do Acre

(FPA)..................................................................................................................................227

4.2 O Desenvolvimento Sustentável: origens do ambientalismo/ecologismo que nortearam

as políticas da FPA.............................................................................................................248

4.3 O surgimento da Florestania: novos lugares, novos espaços e novos sentidos para as

lutas dos povos da floresta..................................................................................................274

4.3.1 O neoextrativismo e os produtos florestais não-madeireiros....................................288

4.4 Políticas públicas e mecanismos de inclusão voltados para os povos da floresta........304

CONCLUSÃO:..................................................................................................................323

REFERÊNCIAS:................................................................................................................341

Page 15: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

16

INTRODUÇÃO:

A perspectiva desta tese é construir uma análise da história do movimento dos

trabalhadores extrativistas das florestas (seringueiros1) do Vale do Rio Acre, e suas

interconexões com os espaços urbanos, no último quartel do século XX e início do XXI. O

que objetivamos analisar são as inter-relações que foram sendo moldadas a partir do

momento em que se encontraram, nos mesmos lugares e espaços2, setores representantes do

Estado, empreendedores (fazendeiros, madeireiros, especuladores de terras, grileiros, etc.),

trabalhadores extrativistas, colonos vindos de outras regiões do país, pequenos proprietários

locais, ecologistas/ambientalistas, religiosos, entidades sindicais (classistas), Organizações

Não Governamentais (ONGs) e partidos políticos, destacando o forte papel do Estado numa

ponta e dos trabalhadores extrativistas na outra, que através de intensos conflitos

engendraram um re-ordenamento não só agrário, mas também social, político, econômico e

cultural, gerando a organização de novos modos de vida, estabelecendo novas fronteiras

para a sociodiversidade e criando novas referências nas relações homem-natureza neste

espaço território-temporal.

Na análise dessas inter-relações, há que se destinar especial atenção para a

substituição do conflito agrário, pela emergência da luta ambiental. O conflito agrário,

matriz principal das mobilizações dos trabalhadores extrativistas inicialmente, foi,

paulatinamente, se deslocando do discurso sindical, cedendo espaço para os novos

componentes e as novas abordagens que cercam os conceitos de desenvolvimento

sustentável e da florestania3. Estes conceitos, de certa forma, contribuíram para engendrar

1 - Desde o início da exploração da borracha na Amazônia, em meados do século XIX, a designação de

seringueiro abrangia todos os trabalhadores no extrativismo, mesmo os que só trabalhavam com a coleta da

castanha, por exemplo. Servia também para os mateiros, caçadores, ribeirinhos, pescadores, coletores de

outras drogas do sertão, etc. A referência era morar na floresta. Isso se dá devido à importância que a

produção gomífera desempenhou ao longo dos anos na região, ou seja, tudo circundava a produção de

borracha. A partir da década de setenta, a tendência é de denominar esses trabalhadores como extrativistas e,

desde meados dos anos oitenta, como povos da floresta, incluindo-se os povos indígenas.

2 - Lugares e espaços - A compreensão de lugar se diferencia de espaço pela maior abstração do segundo. O

lugar é visto como elemento topográfico, mentalmente conhecido, delimitado, enquanto o espaço deve ser

entendido como mais abrangente, envolvendo as articulações, as relações humanas, as relações com o

ambiente que se desenrolam sobre o lugar. (CARLOS, 1996)

3 - Os conceitos de desenvolvimento sustentável e de florestania serão apresentados no capítulo IV, contudo,

destacamos antecipadamente que tanto um quanto o outro, não são conceitos com formulações precisas, haja

Page 16: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

17

uma espécie de encobrimento, ou agiram no sentido de atenuar a radicalidade da luta pela

terra.

Todas essas mudanças (econômicas, políticas, sócio-ambientais e sócio-culturais)

estão no centro do processo de transição da antiga forma de propriedade da terra, o seringal,

para as novas modalidades as fazendas e, de certa maneira, para as reservas extrativistas, as

unidades de conservação e os projetos de assentamento/colonização. Processos que diferem

da forma anterior, mas que provocam uma incômoda sensação de permanência, como

veremos, adiante.

A operacionalização de mudanças no setor produtivo, promovida pelo Estado e por

setores civis parceiros deste, ou seja, a substituição do sistema extrativista baseado na

borracha e na castanha por investimentos em pecuária e indústria (exploração) madeireira,

seguida de alguns projetos de assentamento/colonização com vistas à produção agrícola

foram articulados nos espaços urbanos, sem considerar as populações que viviam sob a

proteção do imenso chapéu verde da floresta. Esta mudança da matriz produtiva estava, por

conseqüência, inteiramente ligada ao projeto de substituição do sistema de transportes

projetado pelos militares para a Amazônia, isto é, a substituição dos rios, igarapés, paranás

e lagos (caminhos naturais e lentos) pelas estradas (caminhos artificiais e rápidos),

necessários para complementar à concepção geopolítica de defesa e integração regional.

Entre o final dos anos oitenta, início dos anos noventa e seguintes, houve uma

retomada, um retorno ao extrativismo, desta feita, qualificado como neo-extrativismo,

também articulado nos espaços urbanos, ou, no mínimo, fortemente influenciado por

segmentos urbanos, que tem buscado estimular práticas de mercado aos produtos oriundos

da floresta. (trataremos desta questão no Capítulo IV).

O que motivou a proposta dos militares e dos setores civis que os apoiavam foi à

visão de incorporação e integração da Amazônia ao que eles consideravam o centro do país

(Sudeste, Sul e de alguma forma, partes do Centro-Oeste e do Nordeste). Por conseqüência,

a base desta proposta estava assentada numa concepção de que a Amazônia era a última

vista a grande quantidade de posicionamentos divergentes sobre os dois termos, mormente o segundo, pois

seu caráter de neologismo o posicionava inicialmente como uma situação contrária à cidadania, o que foi

sendo negado posteriormente por seus formuladores, indicando-o como sendo mais próximo de um novo

modo de vida do que a um estado meramente demarcatório com outra situação posta. O querer morar na

floresta, o querer preservar modos de vida construídos na floresta e as novas formas de apreensão do

relacionamento homem-natureza, aliados às necessidades contemporâneas, talvez indiquem melhor a

interrelação que confere estatuto articulador entre os dois termos.

Page 17: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

18

fronteira a ser incorporada, a ser explorada, a ser civilizada pelo “centro” que eles

representavam. Neste sentido, a natureza que servia de morada e de meio de vida para as

populações tradicionais, os posteriormente denominados “povos da floresta” (índios e

extrativistas), era vista como principal inimigo a ser vencido na guerra que se desencadearia

nesse processo de incorporação, integração, exploração e civilização da Amazônia.

As ações dos setores governamentais, incluindo a União, o Estado e os Municípios,

na articulação das mudanças no sistema produtivo, incluindo os transportes, marcaram

profundamente os modos de vida que haviam se constituído na região do Vale do Rio Acre

no período pós Segunda Guerra, imprimindo novas formas de colonialidade4 e criando um

novo modelo de organização política e sócio-econômica com vistas à manutenção da

subalternidade que oprimia os trabalhadores extrativistas. Mas essas ações do poder

instituído, serviram também de motivo para a gestação de outro movimento que, por sua

vez, produziu outro modelo de trajetória fronteiriça.

No entanto, essas fronteiras atravessadas pelo movimento de trabalhadores

extrativistas, não estão limitadas aos aspectos físicos ou políticos, elas buscam antes a

angulação do relacionamento homem-natureza, saberes-conhecimento, experiência-

tecnologia e, depois, outros limites antrópicos, marcados por encontros e desencontros com

o outro. É uma fronteira porosa e flexível, que permitiu o encontro/desencontro com o

ambiente modificado, com o outro (estranhos e mesmo estrangeiros), bem como com seus

semelhantes.

O espaço fronteiriço aqui compreendido é portador de ambivalências humanas, de

transições geográficas, de transições interior e exterior, no sentido nacional e transição dos

fluxos e dos fixos, dos espaços internos e externos, no sentido da história. Milton Santos,

comentando essa relação espaço/movimento, assinala que:

A história é sem fim, está sempre se refazendo. O que hoje aparece como resultado é também um

processo; um resultado hoje é também um processo que amanhã vai tornar-se outra situação. O

processo é o permanente devir. Somente se pudéssemos parar a história é que teríamos um estado

uma situação permanente. (...) Toda situação é do ponto de vista estático um resultado, e do ponto de

vista dinâmico, um processo. Numa situação em movimento, os atores não têm o mesmo ritmo,

4 - Colonialidade é uma expressão utilizada por Boaventura de Sousa Santos (2005) que, além da

característica de subalternidade inerente ao termo, serve também para caracterizar os “epistemicídios”, isto é,

a morte dos conhecimentos locais, perpetradas pela emergência e expansão da ciência ocidental moderna. A

utilização neste caso, serve para demonstrar como os projetos exógenos para ocupação da Amazônia,

descuraram da importância dos conhecimentos adquiridos e praticados pelas populações que aqui viviam.

Page 18: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

19

movem-se segundo ritmos adversos. Portanto, se tomarmos apenas o momento, perdemos a noção do

todo em movimento. (...) Os cortes do tempo nos dão situações em um determinado momento. Não

captam o movimento, são, apenas, uma fotografia. Já o movimento é diacrônico, e sem isso não há

história. Não haveria dialética se o movimento dos elementos se desse de maneira sincrônica.

(SANTOS, 1997, p. 95)

Nesse sentido, as fronteiras ultrapassadas (ou a ultrapassar) pelos trabalhadores

extrativistas adquirem já no princípio, novas conformações, não obstante, à compreensão

comum de que as fronteiras estão nas bordas, vêm do civilizado para o selvagem (como

pensavam os militares, por exemplo), neste caso elas parecem ter sentido inverso. Elas

iniciam também dentro das colocações5 no meio da mata, e vão paulatinamente se

espalhando de dentro dos seringais rumo às cidades, até ganhar contornos nacionais e

internacionais. Falamos em sentido inverso porque numa colocação o horizonte é estreito, a

visão é limitada pela floresta e pelas estruturas sociometabólicas, em todos os sentidos.

Porém, através dos ramais e varadouros, pés descalços e ligeiros e vozes compassadas e

graves vão estabelecendo vias de comunicação, vão alargando horizontes, principalmente

quando se direcionam para as “margens” dos rios ou da rodagem (estrada) e, destes espaços

para as cidades e das cidades para outros limites não imaginados.

O tema escolhido, com boa dose de intencionalidade, tem relação direta e pessoal

com o nascimento dentro de uma colocação, num longínquo seringal do alto Rio Tarauacá e

o percurso acompanhado dessa transição da vida nas florestas para as novas fronteiras

(cidades, fazendas, neo-extrativismo, Bolívia, empates, Igreja, ONGs, sindicatos, reservas

extrativistas, florestania, etc.), que foram sendo construídas num período que, de algum

modo fomos contemporâneos. As mudanças pelas quais passamos foram, em alguma

5 - Colocações é o nome que se dá aos lugares onde estavam dispostas e localizadas as estradas de seringa e,

conseqüentemente, onde se estabelecia o seringueiro. Esses lugares não têm contornos definidos de forma

linear, mas sim acompanhando a distribuição natural das madeiras de seringa, previamente identificadas por

um mateiro e reconhecidas no padrão conceitual da estrutura do seringal. Por se situarem distante das margens

dos rios e bem no meio da mata, eram também denominadas “centro” em oposição à “margem”, que no caso

era à margem do rio. (Essa concepção é oposta aos sentidos que vigoram nas cidades, no seringal a “margem”

equivale ao que é centro nas cidades). O formato da colocação, além da disposição desigual das seringueiras,

consistia de uma reduzida clareira onde se erguia a “barraca” – habitação tosca, comumente um vão cercado

de paxiúba e coberto de palha. Na mesma clareira, bem próxima da “barraca”, estava o defumador, uma

construção ainda menor, só com uma cobertura de duas águas, onde era coagulado o látex, dando-lhe o

formato de uma bola de borracha, a “péla”. Embora sejam denominadas estradas de seringa, nada nessa

estrutura pode ser comparada ao que conhecemos como estrada. A “estrada de seringa”, consiste mesmo em

uma estreitíssima picada no meio da mata ligando uma árvore a outra, comumente formado duas voltas

oitavadas, o que facilita o processo de corte e recolha das tigelas com o látex, permitindo que o seringueiro

volte para o local de início quando termina a tarefa do dia.

Page 19: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

20

medida, compartilhadas (sentidas) por mais de setenta por cento da população do Estado do

Acre a partir da década de setenta do século passado.

Os caminhos não foram lineares, é certo, os caminhantes eram diversos e os

percursos e percalços imprimiram graus diferentes de rotação, ao ponto de muitos

retornarem ao ponto inicial, onde, embora mudados, permanece(ra)m.

No caso particular, por exemplo, chegar à única universidade do Estado, nos

meados dos anos oitenta, que embora se chamasse Universidade Federal do Acre, só

funcionava na capital (Rio Branco), vindo de uma cidade do interior, que exceto por via

aérea ou fluvial, continuava (continua) tão isolada quanto era no início do século XX

quando foi fundada, era passar por um funil com bico dosador e filtro extrafino. Mas esse

funil me mostrou um mundo mais claro, uma espécie de campo aberto, onde a grande

disponibilidade de lentes favoreciam olhares diversos.

O momento da chegada à universidade e, portanto, à capital (segunda metade da

década de oitenta), foi também o período em que os conflitos que marcam as novas

fronteiras para as populações extrativistas estavam mais agudos. Os assassinatos de

lideranças dos trabalhadores extrativistas, de capatazes de fazendeiros, a movimentação dos

“empates”6, os movimentos pela democratização do país, a atuação dos sindicatos urbanos

e rurais, a presença da Igreja Católica com uma ala que operava ao lado dos pobres, à volta

a legalidade de alguns partidos e a fundação de outros, os movimentos estudantis

retornando de seu mergulho imposto pela ditadura, ou seja, na capital fomos apresentados a

um mundo desconhecido, efervescente, desafiador, cheio de siglas e símbolos, um

verdadeiro caldeirão de novidades, considerando que nesse período a polícia ainda agia sob

condição “especial”, isto é, tinha mais matiz de polícia política.

6 - Empate foi o termo utilizado pelos seringueiros de Xapuri e Brasiléia para identificar o ato de impedir (na

linguagem local, empatar), os desmatamentos e as queimadas, promovidos pelos “paulistas” que queriam

expulsá-los de suas colocações para transformar as matas em pastos para seus bois. O empate é uma

manifestação coletiva, com sentido solidário, que marcou o início da organização dos seringueiros no Acre. O

movimento provocou forte impacto social, político, econômico e cultural a partir de meados da década de

setenta, principalmente, nas regiões do vale do Acre e sul do Amazonas. A ação se constituía com a reunião

de vários moradores, incluindo mulheres e crianças, que marchavam para os locais onde estavam ocorrendo

derrubadas e formavam uma barreira humana entre as árvores e os peões encarregados pelas derrubadas. Os

líderes sempre tentavam convencer os chefes das derrubadas alegando que o corte das árvores afetava suas

possibilidades de sobrevivência. Enfatizavam que o movimento era pacífico, mas todos portavam espingardas,

facões e, alguns, revólveres.

Page 20: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

21

Desde o primeiro ano de faculdade (1986), o envolvimento com o movimento

estudantil e depois com o sindical e partidário, permitiram o contato com os acontecimentos

que se desenvolviam paralelos ao mundo anterior, aquele da vida isolada no interior.

Obviamente não houve uma percepção imediata de todos os seus significados, mas

paulatinamente fui através das reuniões, das leituras e das trocas de opiniões com

segmentos muito diferentes da composição social que interagiam naqueles espaços,

aprendendo a mediar os motivos das lutas presentes, seus discursos e reivindicações, com

as respectivas alterações nos modos de vida que estavam em processo.

Mesmo considerando que o envolvimento com lutas políticas em momentos de

conflitos comumente são alimentadas por paixões, entendemos que elas foram

fundamentais para maturar uma condição de distinção entre sujeito e objeto, que vão mais

tarde permitir a separação entre o conjuntural e o estrutural, requisito importante para a

inserção na produção do conhecimento.

Nessa perspectiva é que almejamos distinguir os tempos diversos, porém, não

desconexos, de saída da condição de participante, para a de historiador/narrador desse

enredo. Condição que vai se constituindo a partir da apreensão da necessidade de sempre

primar por um tratamento adequado das fontes, conferindo-lhes um rigor crítico, capaz de

diferenciá-las entre questões conjunturais, interesses imediatos e o estabelecimento de seus

vínculos com as questões que apresentam tendências mais perenes, sejam elas apreendidas

através de entrevistas, discursos, relatos de vida, jornais, atas de assembléias de sindicatos,

documentos produzidos pelas diversas áreas do governo, das ONGs, etc., desde que seja

possível perceber as tendências políticas, econômicas e sociais que elas representam. Hardt

e Negri comentando a concepção de tendência, em Marx, escreveram:

Na idéia de tendência está implícita a idéia de periodização histórica. A cada dia que passa ocorrem

efetivamente mudanças infinitesimais na história, mas também existem grandes paradigmas que por

longos períodos definem nossos modos de pensamento, nossas estruturas de conhecimento, o que

parece normal e anormal, o que é evidente e obscuro, e até mesmo o que é imaginável ou não e que a

certa altura mudam drasticamente para constituir novos paradigmas. A passagem entre os períodos é

a mudança de uma tendência para outra. A produção capitalista contemporânea é caracterizada por

uma série de passagens que dão nome às diferentes faces da mesma mudança: da hegemonia do

trabalho industrial à do trabalho imaterial, do fordismo ao pós-fordismo e do moderno ao pós-

moderno. A periodização enquadra o movimento da história em termos da passagem de um

paradigma relativamente estável a outro. Cada período é caracterizado por uma ou várias formas

comuns que estruturam os diferentes elementos da realidade social e do pensamento. (...). (HARDT e

NEGRI, 2005, p.190, 191)

Page 21: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

22

Nesse sentido é que consideramos fundamental, no caso desta pesquisa, a

investigação sobre a evolução da questão da propriedade da terra e sua transição dos

seringais para as fazendas, projetos de colonização, depois para as reservas extrativistas e

outras modalidades de uso, haja vista que essa transição é notadamente caracterizada pela

permanência da grande propriedade e onde o seringueiro/extrativista/posseiro/colono

permaneceu sem títulos de propriedade, embora tivesse em alguns casos, autorização para

habitar certas localidades, como permissionário. Os exemplos dos seringais e das reservas

extrativistas são eloqüentes e emblemáticos para analisarmos essa condição de não

proprietários de terras dos trabalhadores extrativistas, mesmo considerando que a existência

das reservas extrativistas são resultados de reivindicações e lutas empreendidas pelos

sindicatos e outros agentes que representavam os seringueiros.

Esses acontecimentos, vale lembrar, mobilizaram outros setores da sociedade como

as Organizações Não Governamentais (ONGs), setores da Igreja Católica, especialmente os

ligados à Teologia da Libertação, ecologistas, ambientalistas e estudiosos das ciências

sociais que ingressaram nesse espaço, alguns somando esforços ao lado dos trabalhadores

extrativistas, no sentido de lhes dar garantias de ação na busca pela manutenção dos seus

modos de vida, outros para praticarem a biopirataria e, ainda, os que aqui vieram para

defender interesses, nem sempre explícitos, mas, comumente, conectados com idéias

apaziguadoras de conflitos, atuando sempre no sentido de desconstruir, ou desmotivar as

ações mais agudas que levavam à radicalização da luta para posições políticas de cunho

revolucionárias.

Enquadram-se nesse campo, representantes de muitas ONGs, da Confederação de

Trabalhadores na Agricultura - CONTAG, de Centrais de Trabalhadores como a CUT,

representantes de alguns segmentos religiosos e, mesmo partidários, como setores do PT e

do PMDB, que faziam oposição ao regime militar, mas não tinham perspectivas de

mudanças estruturais no campo da propriedade privada, por exemplo. Ou seja, estavam ao

lado dos trabalhadores contra algumas arbitrariedades cometidas por patrões, fazendeiros,

policiais e outras autoridades do Estado, especialmente, as que estavam ligadas à violência

física, mas tinham um limite para suas intervenções políticas. (Comumente respeitam a

propriedade, sem investigar a forma como ela se constituiu).

Page 22: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

23

A reação dos trabalhadores extrativistas (seringueiros) contra a destruição de seus

modos de vida ajudou a remodelar os planos do Governo do Estado, da União, dos

fazendeiros, dos compradores de terras e dos especuladores e grileiros que “invadiram” o

Acre nesse período. Serviu também para produzir uma série de interpretações

historiográficas que no dizer de Gerson Albuquerque, priorizaram as análises estrutural-

conjunturais, como:

“Ascensão capitalista na Amazônia”, “integração amazônica”, “formação e movimentos de capitais

na Amazônia”, “fronteira do capitalismo”, “ocupação das terras acreanas pelo grande capital”,

“acumulação de capitais”, “luta entre capital e trabalho”, “seringueiros e índios como mão-de-

obra explorada pelo capitalismo mundial”, e outros dessa natureza, que pouca ou nenhuma atenção

dão aos trabalhadores rurais enquanto sujeitos com uma visão própria da forma como viram e/ou

viveram esse e outros processos. (ALBUQUERQUE, 2001, p.17)7 (grifos do autor).

Nossa proposição é, portanto, percorrer um caminho que me permita analisar esse

período, buscando não reproduzir a visão de que todos os movimentos sociais aqui

realizados tinham suas ações determinadas pelos movimentos do capitalismo, mas também

não me afastando do entrecruzamento de interesses antagônicos que mobilizaram

trabalhadores e empreendedores para, e no Estado do Acre, desde meados do século XIX e

ao longo do século XX, como também sem me afastar dos axiomas que apontam para uma

sociedade que tinha se estruturado hierarquicamente, sob uma forma extremamente rígida,

com poucas possibilidades de mobilidade para fora de suas redes de opressão

interconectadas, tanto nos espaços urbanos, como florestais - extrativistas8.

7 - Destacado militante estudantil (secundarista e universitário), ex-dirigente do Partido Comunista do Brasil

no Acre, o hoje professor da UFAC. Acompanhou de perto os movimentos dos trabalhadores rurais e urbanos

na organização de seus sindicatos, primeiro como participante e, depois, como pesquisador, passou a criticar

as análises generalistas que se fazia desses movimentos. Quando desenvolveu sua tese de doutoramento

intitulada Espaço, cultura, trabalho e violência no vale do Juruá, no Programa de Pós-Graduação em História -

Mestrado e Doutorado - PUC-SP, 2001, ele destacou as relações sociais que se desenvolviam no seio das

comunidades, na perspectiva de “deixar” essas comunidades falarem, ao invés de falar sobre elas.

8 - A recorrência em denominar os seringueiros como “trabalhadores extrativistas”, ao invés de trabalhadores

rurais, se faz necessária porque falar de zona rural no Acre, bem como em grande parte da Amazônia Legal,

até a década de setenta, aproximadamente, é estar usando uma referência com significado bastante distintos

dos sentidos que ela se nos apresenta em outras regiões do País. Por trabalhadores extrativistas naquela época

entende-se um conjunto de habitantes espalhados pelas florestas, com acesso aos modestos centros urbanos

apenas por via fluvial, após percorrer vários dias de viagem a pé, atravessando estreitos ramais e varadouros,

até chegar às margens do rio mais próximo para, depois, através de uma embarcação nem sempre movida a

motor, deslocar-se até a cidade. Há muitas pessoas que nasceram e morreram nos seringais sem nunca terem

feito esse trajeto até uma cidade, ou seja, nunca tiveram nenhum contato com o significado de “mundo

Page 23: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

24

Quando dizemos que não queremos reproduzir uma visão de que os conflitos aqui

localizados, obedeceram a uma determinação a priori do capital, referimo-nos a

compreensão de uma definição rígida para a existência da luta de classes, isto é, que a mera

presença do capital já escala do outro lado seus oponentes, os trabalhadores (proletários).

Entendendo que os conflitos com características classistas não se estabeleceram de forma

mecânica a partir da separação dos interesses entre patrões (seringalistas, fazendeiros, etc.)

de um lado, e seringueiros, posseiros, colonos, etc., do outro.

Nesse sentido, faz-se valiosa a utilização dos conceitos de E. P. Thompson (1987),

quando ele demonstra a necessidade da classe construir-se e constituir-se no processo de

lutas em que ela se enreda, como ele registra no prefácio de A formação da classe operária

inglesa:

A classe operária não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu

próprio fazer-se. (...) por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de

acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência

como da consciência9. (THOMPSON, 1987: 09).

A história desses brasileiros invisíveis, ou não visíveis, que viviam embrenhados na

floresta só foi revelada quando, na contramão da proposta de desenvolvimento encabeçada

pelos Governos da União, Estadual e Municipais, construíram uma forma de se mostrar, de

se tornarem visíveis diante dos novos mecanismos de extermínio de seus modos de vida

que estavam em curso. O que os uniu foi uma luta por terras, pela sobrevivência, pela

manutenção do seu modo de vida, mas esse objetivo sofrerá no seu percurso modificações,

incorporações e adaptações às novas configurações que o processo recheado de novos

agentes foi exigindo. Quando iniciamos esta proposta de pesquisa, pensamos na realização

de um grande levantamento com base em entrevistas e relatos de vida do maior número

possível de seringueiros, imaginando que assim estaríamos fugindo da “obrigação” de

moderno”, diferentemente dos trabalhadores rurais das Regiões Sul e Sudeste, por exemplo, que comumente

tem seu pequeno lote e praticam a agricultura, com o objetivo de venda nas cidades.

9 - Nesse livro (Thompson, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.) o

autor desenvolve importante contribuição historiográfica sobre o conceito de classes, sendo inclusive

considerado como um marco da historiografia marxista do século XX.

Page 24: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

25

“fazer” uma história a partir dos registros oficiais, que estaríamos de fato fazendo uma

“history from below”10

.

Porém, depois de algumas reflexões sobre as conversas que tivemos com muitos

desses seringueiros, observamos que eles sempre mencionavam, além de sua união, a

importância de agentes externos no desenrolar de suas mudanças de condições de vida. A

forma como entendiam a participação da Igreja, dos ambientalistas, dos sindicatos, do

próprio governo e fazendeiros, nos alertaram para as interconexões existentes nesses modos

de vida e suas articulações, mesmo que as entendamos como involuntárias, com esses

segmentos externos.

Foi então que passamos a buscar outras fontes, onde pudéssemos absorver melhor

compreensão acerca dos acontecimentos que contribuíram para as agitações sociais que

movimentaram o Acre, principalmente nas duas últimas décadas do século XX. Dessa

forma, lembramos da minha fase de vendedor do jornal “Varadouro”, quando ainda morava

em Tarauacá e os comentários, as caras de aprovação, ou de repúdio, de raiva mesmo, que

ouvia e via a respeito daquele jornal.

Voltando-nos para as matérias publicadas pelo jornal, que há época não havia

motivos para destinar muita atenção, a não ser faturar alguns trocados com a venda,

compreendemos a riqueza de informações e interpretações sobre as áreas de tensões que o

Acre tinha atravessado, então resolvemos incluir como fonte de pesquisa, não só o jornal

Varadouro, como também os jornais Gazeta do Acre (posteriormente denominado A

Gazeta), Página 20 e o jornal da Prelazia do Acre – Purus, “Nós Irmãos”, na busca de

identificar como esses meios de comunicação abordaram os acontecimentos e como

influenciaram as diversas tendências que se engalfinhavam na busca de aliados para suas

concepções de mundo.

Deixamos de fora outros jornais que circularam no Estado porque a quantidade de

matérias encontradas nos pesquisados já nos colocaram diante de um conjunto de

informações bastante satisfatório para o uso pretendido, mas os relacionamos para efeito de

uso por outros interessados por este tipo de fontes. Circularam também nesse período os

10

- History from below, numa tradução livre, a história vista de baixo, ou a história a partir de baixo é uma

expressão que segundo Hobsbawm (1998, 216), tem como um dos formuladores pioneiros, George Rude e

significa a história da gente comum, dos movimentos populares, uma espécie de contraponto a história escrita

para glorificação de governantes e outras figuras poderosas.

Page 25: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

26

jornais O Rio Branco, um dos mais antigos e ainda em circulação, A Tribuna, O Estado (os

dois mais recentes) e Folha do Acre, este último já fora de circulação, a não utilização

desses jornais neste trabalho não desmerece a quantidade de informações e de pontos de

vista que eles representam.

A perspectiva de incluir os jornais e, obviamente, os pontos de vista ali externados

serviram também como elemento qualificador, no sentido de ampliar os pontos de apoio, da

crítica às informações obtidas de alguns interlocutores (seringueiros, sindicalistas,

religiosos, políticos, ou ambientalistas), que poderiam aparecer como privilegiados neste

contexto, como portadores de uma história consolidada e sem outras possibilidades.

O desenrolar dessa mobilização dos trabalhadores extrativistas contribuiu para que

entre os anos finais do século XX e os iniciais do XXI, o Estado do Acre venha sendo

apontado, em alguns meios de comunicação e por algumas Instituições, entidades e

Organizações Não Governamentais (ONGs), como referência no que diz respeito à

preservação/conservação ambiental, bem como vem apresentando alternativas de

desenvolvimento sustentável, que são representadas pelas técnicas de manejo florestal,

pela demarcação das reservas extrativistas, na demarcação de áreas de conservação, no

estabelecimento de corredores ecológico-biológicos, na criação de pólos agro-florestais,

etc. e criando outros referenciais como, por exemplo, o conceito de florestania, neologismo

que expressa uma idéia de vocação para a garantia de direitos e de respeito às populações

que habitam as áreas de florestas, ou que serve mesmo para expressar um novo modo de

vida (como propõe o jornalista Antônio Alves, um dos principais entusiastas do termo).

Estas referências são acolhidas em amplos espaços e setores dentro do Estado,

como também no âmbito de fóruns ligados à ecologia, ao ambientalismo, ONGs e de alguns

organismos multilaterais internacionais (ONU, BID e BIRD) e federais (IBAMA, MMA)

que costumam ressoar manifestos em defesa da natureza.

Uma breve idéia dessa formulação sobre as “peculiaridades” do Acre pode ser

encontrada no documento final do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), onde na sua

parte introdutória, denominada Trajetórias Acreanas, assim descreve, ou prescreve sua

concepção de importância do Estado no contexto amazônico:

Page 26: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

27

O estado do Acre desempenhou um papel relevante na história da região Amazônica durante a

expansão da economia da borracha no final do século XIX pelo potencial de riqueza natural dos rios

acreanos e pela qualidade e produtividade dos seringais existentes em seu território. O Acre foi

cenário do surgimento de organizações sociais e políticas inovadoras nas últimas décadas do século

vinte baseadas na defesa do valor econômico dos recursos naturais. E hoje, tendo optado por um

modelo de desenvolvimento que busca conciliar o uso econômico das riquezas da floresta com a

modernização de atividades que impactam o meio ambiente, resume a importância estratégica

no futuro da Amazônia. O Acre vem mostrando que é possível crescer com inclusão social e

proteção do meio ambiente. (ZEE, 2006, p. 1) (grifamos).

Mas, o que há de diferente no Acre, que vai além de sua representação como o

Estado longínquo, incrustado nos limites ocidentais do Brasil, fruto de uma disputa

territorial com a Bolívia? O que há de diferente daquele Estado que antes era apresentado e

percebido pelos outros brasileiros apenas pela sua representação estilizada dos seringueiros

ou, dos coronéis da borracha, que agora chama a atenção de setores urbanos, nacionais e

internacionais? Como foi possível inscrever, na última passagem de século, um seringueiro

como herói, no livro dos Heróis do Brasil, sendo que há muito os seringais haviam falido?

Ou, mais, o que levou esse seringueiro a ser reconhecido mundialmente como símbolo da

luta ecológica? Será mesmo o Acre o resumo das possibilidades de desenvolvimento para

toda a Amazônia? Como estão vivendo os seringueiros remanescentes do extrativismo

tradicional? São eles os “guardiões das florestas”? Quais são as bases da sustentabilidade

pretendida como modelo e exemplo para outras regiões? E o que pensar das opiniões que

colocam os seringueiros como exemplos de modernidade ecológica?

A busca de resposta para essas questões partirá, então, da análise das inter-relações

que foram sendo moldadas a partir do momento em que se encontram, nos mesmos lugares

e nos mesmos espaços, alguns setores representantes do Estado, setores empreendedores

(fazendeiros, especuladores, grileiros), trabalhadores extrativistas, colonos vindos de outras

regiões do país, pequenos proprietários locais, ecologistas, ambientalistas, religiosos,

entidades classistas, etc., e os novos modos de vida que foram engendrados a partir dos

encontros/desencontros desses diferentes segmentos sociais no espaço territorial do Acre,

especialmente as zonas mais conflituosas, partindo da capital do Estado, Rio Branco, até

Brasiléia, município que faz fronteira com Cobija, capital do Departamento de Pando,

Bolívia e Assis Brasil, que faz fronteira com Iñapari, município do Departamiento de

Madre de Dios, no Peru, passando pelo município de Xapuri, também fronteiriço com a

Page 27: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

28

Bolívia, numa distância de trezentos e trinta quilômetros, aproximadamente, ao longo da

BR - 317.

A forma para encontrar essas respostas será centralizada na pesquisa e na análise

dos fatos e na maneira como eles foram tratados pelos diversos agentes envolvidos, ou seja,

como e onde eles registraram suas ações no processo. Para alcançar esse objetivo

lançaremos mão da utilização de jornais, entrevistas e a leitura de documentos produzidos

por sindicatos, ONGs, governo e estruturas governamentais, como o IBGE, o INCRA, o

IBAMA, ou do Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Acre (ZEE), bem como

das teses e dissertações produzidas por docentes da UFAC, abordando o tema, além de

livros publicados por outros pesquisadores que trataram o assunto. A utilização desses

materiais permitiu a sistematização e apreensão das novas linguagens que foram

introduzidas no contexto histórico que marcaram essa transição e formataram o novo

desenho sóciometabólico desta região do Estado do Acre.

As fontes utilizadas (jornais, entrevistas, documentos produzidos pelo Governo

como o ZEE, as tese e dissertações, os dados do IBGE, do IBAMA, do INCRA, ou

documentos dos sindicatos ou ONGs) certamente não trarão respostas prontas para todas as

questões propostas, mas serviram como roteiro para a proposição de situar historicamente

esses acontecimentos. O que estamos considerando situar os acontecimentos significa que

não queremos tratar, exclusivamente, as formas como os seringueiros viram as mudanças

que estavam em processo e que os afetava diretamente, pois um dos objetivos da pesquisa é

estender a percepção sobre as formulações do Estado e dos “empreendedores” que também

foram protagonistas desse roteiro, no sentido de compreender os conflitos, também na

relação de utilização da natureza, que vai dominar a cena que substituiu (encobriu) o

conflito agrário, localizando-o no eixo de conflito ambiental.

Há muitas evidências de que houve profundas mudanças nas relações tradicionais

que marcaram a sociedade acreana, de sua formação até os dias atuais. Da inclusão do Acre

como território brasileiro, no início do século XX, até a década de setenta desse mesmo

século, não há como negar que a organização sócio-econômica e política girava em torno

da produção de borracha e da coleta de castanha e esses eram os dois principais produtos

garantidores da sustentação do Estado, mesmo considerando que essa produção conviveu

Page 28: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

29

com crises bem delineadas e sua importância esteve vinculada às oscilações do mercado e

da conjuntura política internacional.

A expansão populacional brasileira em direção ao Centro-Oeste e a Amazônia, a

partir da segunda metade do século XIX e durante o século XX, é uma prodigiosa

demonstração da relação homem-natureza, no sentido de fronteira a ser conquistada, de

aproveitamento predatório dos recursos naturais mais acessíveis e que proporcionavam

lucros imediatos. Das “drogas do sertão”11

aos minérios, ou ao “agribusiness”, tudo o que

podia ser extraído da natureza era motivo para o deslocamento. A relação homem-natureza

era moldada pela prática do uso/esgotamento/descarte/avanço.

A submissão do seringueiro aos mecanismos da dívida contraída junto ao barracão,

ou noutra forma de ver, instituída por este, atravessaram o século XX, como modelo mais

perceptível da desigualdade dessa modalidade produtiva. Euclides da Cunha alertou que o

seringal é a mais imperfeita organização de trabalho que engendrou o egoísmo humano. “O

sertanejo realiza ali, uma anomalia a qual nunca é demasiado insistir: é o homem que

trabalha para escravizar-se”12

.

Após a década de setenta, contudo, essa base econômica vai sofrer uma interferência

por parte do Governo do Estado, instruída, organizada mesmo pelo Governo Federal. O

Estado se apresentará propondo novos investimentos em outros segmentos econômicos,

sem deixar de lado a lógica predatória de uso/descarte, como forma de incrementar a

economia que se encontrava em ruínas desde a segunda falência dos seringais nativos no

pós Segunda Guerra (a primeira ocorreu após a entrada da produção dos seringais de

cultivo do Leste asiático, no início do século XX). A opção do Governo do Estado em

financiar a agropecuária e as conseqüências dessa ação é que vão conduzir as mudanças

sociais que levaram ao surgimento dos movimentos de trabalhadores extrativistas. Serão

esses movimentos que, de alguma forma, estarão no centro dos debates que conduziram o

Estado do Acre à condição de centro das atenções, tanto devido aos conflitos sociais, como

pela emergente discussão sobre as questões ambientais.

11

- Por “drogas do sertão” entende-se o conjunto de especiarias que eram levadas para a Europa e para os

centros urbanos das colônias. Eram plantas, sementes, flores, frutas tidas como exóticas e que ganharam

destaque na indústria e na culinária dos estratos sociais mais elevados. As principais especiarias são: pimenta-

do-reino, castanha-do-pará, urucum, baunilha, âmbar, canela, anil, pau-brasil, cacau, cravo, etc.

12

- CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Cultrix, Brasília: Instituto Nacional do Livro,

1975, p. 35.

Page 29: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

30

Porém, num mundo em que os meios de comunicação fazem questão de ressaltar a

modernidade das cidades, representadas por suas largas avenidas e por onde circulam

potentes automóveis, seus aeroportos, supermercados, shoppings centers, túneis e linhas de

metrôs, aonde a modernidade tecnológica ganha destaque nos lançamentos de naves

espaciais que vão da terra até estações orbitais e voltam, com a precisão de um vôo de

colibri em torno do núcleo de uma flor, ainda somos surpreendidos pela existência de

movimentos que reivindicam a vida no meio da floresta.

Num mundo em que as novas tecnologias, a globalização econômica, a interligação

do planeta pelas vias da rede mundial de computadores fazem parte de um cotidiano veloz,

que tudo aproxima, pode parecer estranho apresentar um tema que aborda um assunto

ligado a trabalhadores extrativistas, que tecem sua existência, mergulhados num outro

modo de vida, onde as distâncias ainda são medidas em dias de caminhada ou navegação e

os alimentos, por exemplo, precisam ser pescados em rios, igarapés, lagos, igapós, caçados

nas matas ou, cultivados em roças que ainda utilizam à coivara como técnica de adubação e

preparo do terreno, ao invés de serem adquiridos nas sempre bem abastecidas e regulares

gôndolas dos supermercados. Ainda bem que, para atenuar esse predomínio das esferas

urbano/indústria/tecnologia, Henrique Leff (1998), escreveu que vivemos em:

Tiempos de la hibridación del mundo – la tecnologización de la vida y la economización de la

naturaleza -, de mestizaje de culturas, de diálogos de saberes, de dispersión de subjetividades, donde

se está desconstruyendo y reconstruyendo el mundo, donde se están resignificando identidades y

sentidos existenciales a contracorriente con el proyecto unitario e homogeneizante de la modernidad.

Tiempos donde emergen nuevos valores y racionalidades que reconducen la construcción del mundo.

Tiempos en que los que se descongelan, se decantan, se precipitan y se reciclan los tiempos

históricos pasados; donde hoy se reenlazan sus historias diferenciadas y se relanza la historia hacia

nuevos horizontes. (LEFF, 1998: 9).

Então, pensando exatamente nas assimetrias e hibridizações do mundo

contemporâneo é que percebemos as possibilidades de diversificar as interpretações sobre

os fenômenos ditos globais, mormente os que pretendem enclausurar todas as sociedades

no mesmo lastro interpretativo, ou seja, queremos nos posicionar numa angulação diferente

daquelas correntes de pensadores13

que projetam o mundo a partir do cotidiano veloz de

alguns setores da vida urbana.

13 -

Francis Fukuyama, com seu livro O Fim da História e o Último Homem, de 1992, é um dos articuladores

dessa idéia. Ele entende que o setor produtivo industrial, auxiliados pelas novas tecnologias, pela informática

Page 30: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

31

Contrariando essa perspectiva, insistimos que é possível diferenciar-se dos que

olham para uma parte e vêem o todo e, mesmo não querendo discutir a validade das

interpretações de tendências observáveis, tipo alguns aspectos da globalização, como a

informática, os transportes, as comunicações, o comércio, a moda, etc., que aparentam certa

padronização14

(homogeneidade) e que norteiam as convicções de muitos pesquisadores nas

diversas áreas das ciências, entendemos que sem a observância das singularidades, todas as

interpretações sobre temas amplos, como o estudo das relações humanas, por exemplo,

estão fadadas à generalização e/ou à exclusão de aspectos dos modos de vida que se

materializam a partir da construção e reconstrução de fazeres cotidianos de outros homens,

mulheres e crianças diferentes, que articulam sua sobrevivência em lugares também

diferentes, muitas vezes, indiferentes às manifestações dos aspectos sustentados como

globais.

Quando manifestamos posição contrária à homogeneização, a leitura de mundo

como linear, não estamos, com efeito, pensando na tese de que a vida de cada homem,

fragmentariamente apreendida daria uma história, pois como escreve Costa Lima (2006,

324), falando da literatura: “Que eu saiba, nunca ninguém se questionara se cada vida

seria um poema, pois o poema não era pensável como algo independente da linguagem que

o compõe.”, pensamos, portanto, nos diferentes corpus e, principalmente, nas redes que os

conectam aos seus lugares e espaços, ou no tempo saturado de agoras, de Walter

Benjamin.

Mais ainda, em se tratando de movimentos sociais, as formulações marxianas de

que as classes existem, independentemente da consciência que se tenha delas e

thompsiniana de que classes sociais existem e que elas podem ser entendidas como um

fenômeno histórico, “que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente

e pela inovação, teria atingido um nível que ultrapassaria a necessidade da existência do trabalhador,

promovendo a melhor organização sócio-econômica engendrada pelo homem. Já Paul Virilio, 1997, fala de

fim da geografia, fundado na idéia de que as distâncias já não importam, ao passo que a idéia de uma fronteira

geográfica é cada vez mais difícil de sustentar no mundo real. Também Immanuel Wallenstein, 1999, entende

que a economia-mundo (leia-se capitalismo), se desenvolve com tanto sucesso que destrói, desintegra as

condições sociais em todas as partes. Porém, Wallenstein, ao contrário de Fukuyama, não nega a existência de

alternativas fora do capitalismo.

14

- Referimo-nos as idéias de que o mundo atual seria impossível sem a existência dos aviões, dos telefones

celulares, dos microcomputadores, da internet, etc., divulgadas nos diversos meios de comunicação, como se

toda a humanidade dispusesse dessas condições ou usasse esses aparelhos e seus recursos.

Page 31: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

32

desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como da consciência”

(THOMPSON, 1987), é que optamos pela proposição de que o mundo não corresponde à

teimosa tentativa de homogeneidade, principalmente na raia das divergências de interesses

entre empregados e empregadores.

Thompson (1987) mesmo reforça essa questão quando assevera que:

“A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou

partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens

cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus”. (THOMPSON, 1987: 09, 10).

Na observação da convivência contraditória entre o que se considera contemporâneo

e o que se considera arcaico é que poderemos perceber as novas fronteiras em que a

sociodiversidade acreana, principalmente no caso em estudo, uma parte dos chamados

“povos da floresta” se imbrica, no sentido de permanecer nos seus limites, ou atravessá-los,

para reorientar suas possibilidades de sobrevivência, nos, cada vez mais raros, lugares que

eles podem usar para esse fim. Até porque não estamos pensando apenas na fronteira física,

que envolve a luta pela terra, por exemplo, mas sim pensando também na luta travada para

acompanhar os novos significados das mudanças em que estão enredados, as novas

possibilidades de relacionamentos com os outros espaços que vão se formando ao seu

redor, ou seja, uma espécie de fronteira cultural, no sentido empreendido por Peter Burke,

pois, mesmo considerando os ambientes diferentes a que ele se refere, podemos entender

que:

A idéia de fronteira cultural é um conceito atraente. O problema é que a idéia é atraente demais, de

modo semelhante à própria idéia de "cultura", já que significa coisas diferentes para pessoas

diferentes. Usar o conceito representa um perigo constante de passar do sentido literal da expressão

para um sentido metafórico, de fronteiras lingüísticas, tais como aquela que separa o francês do

alemão na Alsácia, por exemplo, para as ''fronteiras" entre classes sociais, entre o sacro e o profano,

entre o sério e o cômico, entre a história e a ficção15

. (BURKE, 2007: 03).

Estendendo o conceito de fronteira para além do físico e do político, podemos dizer

que da mesma maneira em que há uma visão de um mundo globalizado, homogêneo, há

também o de uma Amazônia homogênea. Construiu-se com relação à Amazônia, uma

configuração que dilui as singularidades dos Estados que a compõe, onde a afirmação dos

15

- BURKE, Peter. Revista Cult – Fronteiras Culturais (formato eletrônico), publicado no site:

www.revistacult.uol.com.br. Acesso realizado em 23.04.2007.

Page 32: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

33

potenciais econômicos, das riquezas minerais e biogenéticas, sua biodiversidade enfim, são

suas únicas formas de visibilidade. Não se pode perder de vista que há realmente uma

variedade de categorizações para a Amazônia, isto é, que há uma eleição complexa de

significados que potencializam essas visões de grandiosidade extrema: ela já foi

apresentada como o paraíso verde e o inferno verde, o continente perdido e a selva habitada

por índios exóticos, o deserto amazônico, o reino das águas e o pulmão do mundo, uma

província mineral e a terra pobre e sem recursos, ou seja, sempre informada ou conformada

como representação ou expressão de um gigantismo ambivalente e ambíguo, fronteiriço,

proporcional a sua extensão territorial16

.

Contudo, a Amazônia, na contracorrente do simbólico, é marcada pela

heterogeneidade, tanto humana, como ecológica e, no meio desses enfoques interpretativos,

encontramos homens fincados em lugares, ou buscando um, em que possam se estabelecer

e, nessa busca, obviamente, deixando pistas para outras interpretações acerca de sua

interação com os outros mundos que vão encontrando em seus percursos.

Note-se que, mesmo tendo uma matriz comum no seu processo de

ocupação/formação, os estados que compõem a Região Amazônica guardam hoje fortes

traços diferenciais, que vão desde a composição étnico-social até as características

geofísicas, que implicam modos particulares do relacionamento homem-natureza

(moradores de terras-firmes e moradores de áreas alagadiças, áreas de mineração e reservas

extrativistas ou indígenas, por exemplo). Também é necessário destacar que, nos últimos

trinta anos do século passado, houve uma inversão na ordem da distribuição populacional

na casa de setenta por cento, ou seja, de uma população que vivia majoritariamente nas

florestas, hoje temos essa proporção concentrada em núcleos urbanos17

.

Porém, por mais contraditório que possa parecer, nessa construção/reconstrução de

modos de vida, de significados e re-significados para e na Amazônia, houve a penetração

16

- Penso, dentre outras, nas seguintes obras: GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco

Zero, 1994; CUNHA, Euclides da. Um Paraíso Perdido; ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a

Amazônia. Org. LEANDRO, Tocantins. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1994; MARINS, Francisco. Território

de Bravos. São Paulo: Melhoramentos, 1976; SOUZA, Márcio. Breve História da Amazônia. São Paulo:

Melhoramentos, 1994; TOCANTINS, Leandro. Amazônia: natureza, homem e o tempo: uma planificação

ecológica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

17

- Manaus (AM), por exemplo, com toda a extensão territorial do Estado, concentra quase cinqüenta por

cento de sua população, do mesmo modo Rio Branco, capital do Estado do Acre, concentra quase a metade da

população absoluta deste Estado. (Dados publicados pelo IBGE, 2005 – www.ibge.gov.br).

Page 33: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

34

de fatores exógenos que interferiram nos processos dos rearranjos econômicos, políticos e

sócio-culturais das populações entendidas como tradicionais da e na região: são as novas

fronteiras que se interpõem para incluir ou excluir as pessoas em seu processo contínuo de

disputas entre as posições defendidas pela modernidade, representadas na tecnologização,

no iluminismo e no conhecimento científico, contra (ou com) as formas caracterizadas

pelos saberes e pelas experiências adquiridas ao longo da presença e dos relacionamentos

estabelecidos pelos homens nesta biota.

No curso do debate que envolve as diversas concepções de desenvolvimento para a

Amazônia, a forma como o Estado do Acre vem sendo apresentando, tem favorecido a

apreensão, por alguns segmentos do mundo globalizado, como sendo elaborador de uma

forma diferenciada de abordar a temática. Os dois últimos governos, bem como o atual, em

curso (2007/10), oriundos da mesma força política têm afirmado serem defensores de um

modelo de desenvolvimento que adota a idéia de sustentabilidade como requisito fundante.

Pensando nessa perspectiva, cabe re-posicionarmos a pergunta: qual é o impacto

dessa adoção? Qual é a necessidade de sua afirmação e a que se contrapõe?

Estudando a literatura a respeito do tema18

, encontramos uma resposta

aparentemente convincente, ou seja, que essa concepção política surge como uma reação

aos projetos militares iniciados nas décadas de sessenta e setenta, já que eles (os militares)

viam a questão do desenvolvimento numa perspectiva hierarquizada, onde o crescimento

econômico baseado na indústria e na agropecuária, por si, comandaria todas as

possibilidades desse modelo, sem demandar preocupações com as questões sócio-

ambientais, por exemplo. Mas será que essa explicação é bastante?

A cunhagem do termo florestania e a montagem do escudo desenvolvimento

sustentável representam bem essa re-significação das concepções socioeconômicas e

políticas para o Acre, pois tentam integrar os sujeitos não reconhecidos, não cidadãos,

marginais e marginalizados, tidos por muito tempo como redundantes19

, ou seja, com a

18

- IANNI, Octávio. Colonização e Contra-Reforma Agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979;

HAGEMANN, Helmut. Bancos, incendiários e florestas tropicais: o papel da cooperação para o

desenvolvimento na destruição das florestas tropicais brasileiras. Rio de Janeiro: FASE, IBASE e ISA, 1976;

BECKER, Berta K. Síntese do processo de ocupação da Amazônia. Brasília: MMA, 2001; COSTA

SOBRINHO, Pedro Vicente. Capital e trabalho na Amazônia. São Paulo: Cortez, Rio Branco: UFAC, 1992.

19 -

É um termo usado por Zygmunt Bauman (2005), para identificar pessoas que ultrapassaram a condição de

desempregados, pois para ele as palavras desigualdade e despropósito que também usam o prefixo (des)

Page 34: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

35

florestania haveria o reagrupamento desses agentes que representavam o atraso e o anti-

crescimento econômico, integrando-os na nova concepção sóciometabólica promovida pelo

Estado. Esta adoção tenta afastar esses agentes da condição subalterna, imposta pelos

segmentos proprietários, estatais e de outros setores urbanos ligados ao comércio e a

indústria, que eram aliados dos militares.

Mesmo assim, além da novidade (florestania), o Estado não perde de vista o

charmoso e atraente discurso do desenvolvimento, que agora seguido pela adjetivação

sustentável ou sustentado, permanece incólume e invulnerável na sua marcha para o

“progresso”. Então, percebemos que o Estado continua sendo propositor do

“desenvolvimento”. Qual é a novidade dessa concepção? Terá o Estado do Acre

conseguido elaborar, de fato, um modelo que consegue conciliar o crescimento econômico,

a inclusão social e o respeito à natureza que o coloca como vanguarda mundial?

Não acreditamos que possamos nos livrar facilmente do enredo para esse quadro

híbrido e assimétrico do sociometabolismo acreano que tem como referência o advento do

Governo Militar. É que, para dar lastro às suas concepções de desenvolvimento, a sua

concepção geopolítica e, principalmente, a seus compromissos com o capital interno e

externo, os militares esquadrinharam a Amazônia, reservando ao Acre o papel de fronteira

agropecuária praticada em latifúndios. Esse é um aspecto bem sentido pela população do

Estado, pois seus impactos foram marcantes. Entretanto, uma última pergunta, será o

projeto dos militares a causa única para a organização de outra base para o

desenvolvimento?

No período de implementação do projeto dos militares e da base civil que os

acompanhavam, as referências ao crescimento e ao desenvolvimento se davam pela

quantidade de hectares desmatados e queimados20

. Os conflitos sociais, causados por esses

costumavam indicar um afastamento da norma. O redundante não anuncia nenhuma situação de anormalidade

ou anomalia, nenhum indício de doença ou lapso momentâneo. Redundância sugere permanência e aponta

para a regularidade da condição. Nomeia uma condição sem oferecer um antônimo prontamente disponível.

Sugere uma nova forma de normalidade geral, e o formato das coisas que são imanentes e que tendem a

permanecer como são.

20

- A esse procedimento de derrubadas e queima da vegetação nativa (florestas) dava se o nome de

“benfeitoria”, ou seja, o simples fato de se produzir qualquer tipo de trabalho em determinada área, mesmo

que fosse um trabalho de atear fogo na vegetação, já era considerado pela legislação agrária como sendo uma

benfeitoria. Essa denominação ainda é encontrada na legislação agrária atual. Isto facilitava enormemente a

vida dos novos compradores de terras no Acre, pois, na maioria dos casos, os antigos moradores só

praticavam agricultura de subsistência, praticamente não desmatavam, enquanto os novos compradores de

Page 35: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

36

desmatamentos e queimadas, eram tratados como casos de polícia e suas vítimas retratadas

como subversivas que estavam a serviço do comunismo internacional e que concorriam

para atravancar o desenvolvimento do País.

Naquele momento, todas as ações dos militares eram realizadas sob a égide de um

nacionalismo exacerbado, quase maniqueísta, obedecendo aos princípios da Doutrina de

Segurança Nacional, das formulações contra-insurgentes que também orientavam os países

ligados a OTAN, sob liderança dos EUA. Portanto, o “inimigo interno” deveria ser

combatido com a mesma intensidade com que se combatiam os inimigos externos, ou seja,

adotou-se internamente um discurso que era originário da “guerra-fria”21

.

Logo visualizamos que esse projeto se desenvolveu a revelia das populações locais

e, mais ainda, dos movimentos de resistência, que foram se articulando ao longo das

disputas travadas entre extrativistas/posseiros e os novos proprietários, tanto nas lutas por

terras, como pela manutenção de um modo de vida ligado ao extrativismo que havia se

organizado na região após a falência dos seringais nativos, no pós Segunda Guerra. O

autoritarismo e a extemporaneidade dos militares, de certa forma, marca a entrada do

Estado como controlador de mudanças, não só na estrutura produtiva, como também nos

aspectos sócio-políticos nesta região do País.

As denúncias contra os desmatamentos, que contribuíam para desarticular os modos

de vida tradicionais e imprimiam reveses ecológicos, só vão surtir efeito quase vinte anos

depois, já nos anos finais da década de oitenta e início da década de noventa, quando se

tentou reverter a lógica desenvolvimentista dos militares. Foi nesse período, também, que

foram fundados no Acre os princípios da florestania e do desenvolvimento sustentável,

amparados numa vertente neo-extrativista e ecológico-ambientalista, que se diz

respeitadora da natureza e reconhecedora da importância dos seringueiros e pequenos

produtores. Essa reação foi resultado de uma articulação de segmentos urbanos e dos

“povos da floresta”, que inauguraram uma nova maneira de relacionamento entre o mundo

da floresta e o mundo urbano.

terras, os pretensos fazendeiros, já chegavam desmatando e ateando fogo em milhares de hectares, portanto se

transformavam, pela legislação em “benfeitores”, isto é, proprietários.

21

- IANNI, Octávio. Imperialismo na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.

BANDEIRA, Moniz. Relações Brasil-EUA no contexto da globalização. Rio de Janeiro: Senac, 1997.

CHOMSKI, Noam. Novas e Velhas Ordens Mundiais. São Paulo. Scritta, 1996. CHOMSKI, Noam. O que o

tio Sam realmente quer. Brasília: Editora da UNB, 1992.

Page 36: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

37

Essa nova forma de compreender a relação homem-natureza não surgiu de uma

idéia original, nem estava desvinculada dos acontecimentos no cenário das crises do

capitalismo, bem como não perde sua característica mais marcante, que é a de transformar a

natureza em mercadoria, mas, por sua vez, tenta racionalizar a ordem capitalista, predatória

de uso e descarte, mantendo, por parte do Estado, uma forte perspectiva de controle social.

István Mészáros (2002), referindo-se a outro ambiente, mas focando esse flerte do capital

com a ecologia, escreveu:

Há dez anos a ecologia podia ser tranquilamente ignorada ou desqualificada como totalmente

irrelevante. Atualmente, ela é obrigada a ser grotescamente desfigurada e exagerada unilateralmente

para que as pessoas – suficientemente impressionadas com o tom cataclísmico dos sermões

ecológicos – possam ser, com sucesso, desviadas dos candentes problemas sociais e políticos.

Africanos, asiáticos e latino-americanos (especialmente estes últimos) não devem se multiplicar

como lhes aprouver – nem mesmo de acordo com a vontade de Deus, caso sejam católicos

apostólicos romanos -, dado que o desequilíbrio demográfico poderia resultar em “tensões ecológicas

intoleráveis”. Em termos claros, poderia até pôr em perigo a relação social de forças prevalecente.

Analogamente, as pessoas deveriam esquecer tudo sobre cifras astronômicas despendidas em

armamentos e aceitar cortes consideráveis em seu padrão de vida, de modo a viabilizar os custos da

“recuperação do meio ambiente”: isto é, em palavras simples, os custos necessários à manutenção do

atual sistema de expansão da produção de supérfluos. Para não mencionar a vantagem adicional que

constitui o fato de se compelir a população em geral a custear, sob pretexto da “sobrevivência da

espécie humana”, na sobrevivência de um sistema socioeconômico que se defronta com deficiências

derivadas da crescente competição internacional e de uma mudança crescente na própria estrutura de

produção, em favor dos setores parasitários. (MÉSZÁROS: 2002, p. 987).

Os mecanismos do controle social, usados pelo Estado para influenciar na

remodelagem das relações econômicas e, mesmo das relações homem-natureza no Acre,

estão inseridos, também, no contexto da adoção de uma espécie de padrão mundial de

preocupação com o meio ambiente e com a preservação/conservação de recursos naturais,

expandidos a partir da Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, denominada Eco-72,

acontecida em Estocolmo na Suécia, no ano de 1972.

Nesta Conferência realizou-se uma forte denúncia contra os padrões de alto

consumo e sua relação com a destruição dos recursos naturais, bem como se denunciou a

precarização da vida no planeta, causada pela adoção do padrão de consumo em massa de

supérfluos, principalmente o praticado nos Estados Unidos e na própria Europa Ocidental.

Mészáros (2002), fazendo uma severa crítica a pouca atenção dispensada pelos países ditos

desenvolvidos e sua relação com as questões ambientais, asseverou:

Afinal, naqueles dias, os figurões políticos e seus assessores não viajavam no carro-chefe da

ecologia, mas nas cápsulas espaciais esterilizadas da fantasia astronáutica e militar. Aqueles dias em

Page 37: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

38

que nada parecia demasiado grande, demasiado distante ou demasiado difícil para os que

acreditavam – na religião da onipotência tecnológica e de uma Odisséia no Espaço na virada da

esquina. (MÉSZÁROS: 2002, p. 987).

No caso do Acre, a virada crítica não se deu em cima do padrão de consumo, que é

diametralmente oposto ao dos EUA e Europa Ocidental, mas sim, em torno da questão

ecológica. Partiu de uma forte denúncia contra as queimadas e os desmatamentos que

embasavam o tipo de desenvolvimento que havia sido proposto e executado pelos governos

militares e seus representantes no Estado, ou seja, naquela prática já referida, de uma

economia baseada na pecuária extensiva, que havia no início da década de setenta,

devastado grandes áreas das florestas desta região da Amazônia para transformá-las em

pastos.

Um dos fatores mais marcantes dessa virada no sistema produtivo do Acre, isto é, o

abandono do extrativismo tradicional, para dar marcha à produção agropecuária extensiva e

depois seu retorno a uma perspectiva extrativista, nesta nova fase polissêmica que atende

por neo-extrativismo, desenvolvimento sustentável ou, florestania, foi o papel do Estado na

promoção, organização, financiamento e sustentação desses projetos, coordenando ou, no

mínimo, fortemente influenciando os interesses diversos que disputavam politicamente,

posições e privilégios em seus investimentos e demandas. Essa afirmação parece ser

contraditória com a tese de que os movimentos populares no Acre, principalmente o dos

seringueiros, foram participantes privilegiados na construção de uma nova configuração

social a partir das organizações sindicais que através dos empates, nortearam as mudanças

em curso.

Em todo caso o elo não se perde, pois o que queremos destacar é que o Estado

também se aproveitou das mobilizações dos trabalhadores extrativistas, mesmo estando

sujeito às contradições, ambivalências, controvérsias e tensões que esse relacionamento

demandava, mas sempre atuando no sentido de controlar os processos conflitivos,

reprimindo os trabalhadores, considerados sem direito a terra, por não terem documentação

comprobatória de suas posses, por outro lado, se colocando como agente participante,

prometendo a conclusão de estradas, ramais e o assentamento em outras localidades com

acesso a escolas, postos de saúde, etc., que faziam parte das reivindicações dos

trabalhadores mobilizados.

Page 38: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

39

Esse enfoque no papel do Estado tem sido recorrente porque há significativas

evidências do quanto era limitada sua intervenção no sistema extrativista tradicional,

representado pelo sistema de aviamento que regia a empresa seringal, onde o patronato e o

coronelismo eram responsáveis pela ordem econômica e política em seus domínios22

.

Porém, o Estado, na sua forma de representação pela via de reconhecimento

republicano (Executivo, Legislativo e Judiciário), não atuou sozinho nesse processo de

montagem/desmontagem da configuração sociometabólica acreana. Outros agentes

colaboradores da ordem instituída participaram ativamente dessa remodelagem. Algo

parecido com a idéia foucaultiana de formas de poder, ou seja, para ele, força nunca está no

singular e tem como característica essencial o relacionamento com outras forças23

. A Igreja

Católica, os partidos políticos, a confederação dos trabalhadores na agricultura (CONTAG),

as centrais sindicais (CUT e CGT) formadas na transição do regime autoritário, os

sindicatos de trabalhadores rurais (STRs) e as organizações não governamentais (ONGs),

são exemplos destes outros atores que ajudaram nessa travessia inconclusa da recente

história do Acre.

Esse conjunto diverso foi ao longo do tempo produzindo marcas também diversas

de suas participações nos processos dessas travessias que embalaram as disputas entre os

movimentos sociais e as forças opressoras ligadas às elites e articuladas pelo, ou com, os

Governos dos municípios, do Estado e da União.

Para identificar o registro dessas participações, recorremos a alguns tipos de fontes

que foram constituídas a partir de interesses diferentes e muitas vezes divergentes, mas que,

revisitadas a partir de indagações do presente, servem de instrumento orientador para as

considerações relativas à tessitura da narrativa a que nos propomos. Então, além dos dados

fornecidos por órgãos governamentais, como INCRA, IBGE e IBAMA, que trataram ao

22

- Trataram sobre esse assunto, dentre outros: CUNHA, Euclides da. À margem da História. Lisboa: Livraria

Lello & Irmãos, 1946; COSTA, João Craveiro. A Conquista do Deserto Ocidental: subsídios para a História

do Território do Acre. São Paulo: Editora Nacional, Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973; RANZI,

Cleuza D. Raízes do Acre: 1870/19. Rio Branco: UFAC, 1988; TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica

do Acre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979 (vol. I e II); MARTINELLO, Pedro. A “Batalha da

Borracha” na Segunda Guerra Mundial e suas conseqüências para o vale amazônico. Rio Branco, UFAC,

1988.

23

- FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977. Nessa obra ele aborda a composição do

poder e sua forma de exercício, a violência, mostrando que a força por si não tem objeto nem sujeito a não ser

a própria força. O exercício da força já é demonstração de poder e a força não se exerce de uma única direção.

Page 39: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

40

longo dos anos, dos conflitos agrários, das questões estatísticas, tanto econômicas, quanto

populacionais e das questões ecológicas, respectivamente, serviram-nos também as páginas

de três jornais laicos (Varadouro, A Gazeta e Página 20), que circularam e veicularam

informações sobre os conflitos em tela e, do jornal confessional, da Igreja Católica, “Nós

Irmãos”, editado pela Prelazia do Acre-Purus, que também tratou dessas questões em suas

edições.

Para identificar outras opiniões, principalmente daqueles que não tiveram a

oportunidade de serem ouvidos por órgãos do governo ou por representantes dos meios de

comunicação, ditos de massa, recorremos ao mecanismo das entrevistas com alguns

seringueiros, selecionando os que militaram ou militam em sindicatos ou, associações e os

que não desenvolviam relações diretas com estes, na perspectiva de obter pontos de vistas

diferentes, num ambiente com características que apontam para as semelhanças, tanto nos

problemas quanto nas soluções buscadas e/ou encontradas. Utilizamos, ainda, o acervo de

teses e dissertações da Universidade Federal do Acre, onde encontramos o registro de trinta

e sete trabalhos que tratam diretamente dos temas ligados ao desenvolvimento sustentável,

às questões ambientais e aos movimentos sindicais de trabalhadores rurais no Estado. Esses

trabalhos adquirem um caráter diferenciado, pois suas abordagens são mais voltadas para

estudos de alguns efeitos desse processo, apresentando perspectivas mais ou menos

engajadas em relação às políticas que permeiam os eventos. O certo é que elas estão

presentes, combatendo ou apoiando as concepções de desenvolvimento econômico, as

relações sociais e ambientais ou descrevendo as novas situações que foram passíveis de

apreensão por seus autores. No geral, aparecem como enriquecedoras das possibilidades de

novas interpretações e/ou variações sobre esse tema.

Na pesquisa realizada nos jornais, delimitamos a atenção para os editoriais, as

manchetes, as reportagens, as notas, os artigos, e outras abordagens que fizessem menção

aos seguintes assuntos: ações ligadas à reforma agrária, desenvolvimento sustentável, neo-

extrativismo, florestania, reservas extrativistas, sindicatos de trabalhadores rurais, empates,

luta pela terra, colonização/assentamento, conflitos envolvendo seringueiros, posseiros,

colonos, patrões e fazendeiros.

Dos três jornais pesquisados o jornal Gazeta do Acre, que em 1989 passa a se

denominar somente A Gazeta, é o de maior longevidade e o que contém o maior número de

Page 40: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

41

incidências de notícias sobre os temas pesquisados. Este jornal circula principalmente na

capital (no interior a circulação é reduzida e irregular), de terça a domingo com

regularidade (deixa de circular nos feriados).

Embora seus dirigentes tenham uma longa história de ligação com o PMDB, alguns

deles são oriundos do jornal Varadouro e, talvez por isso, tenham mantido em seus quadros

muitos jornalistas que tinham vínculos com partidos mais à esquerda como o PC do B e o

PT. Como o PMDB no Estado tinha um viés de oposição, mesmo que um de seus principais

dirigentes (dono?), tenha sido Prefeito Biônico da capital e depois Governador, Senador,

novamente Prefeito e depois Deputado Federal, os editores tentaram fazer um tipo de jornal

que funcionasse com desenvoltura comercial, portanto, destacando em seus editoriais uma

característica de independência, onde seria priorizada a cobertura dos “fatos como eles

são”, ou seja, seria um jornal no padrão clássico, isto é, que se apresenta como sendo

isento, apolítico e apartidário.

Pesquisamos nesse jornal o período compreendido entre os anos 1980 a 2000 e

encontramos mais de duas mil e quinhentas incidências sobre os temas relacionados, tendo

fotografado mais de mil e quinhentas, selecionando as que mais nos interessavam para a

abordagem dos temas relacionados24

Já o jornal Nós Irmãos, que circulava até recentemente em formato de papel ofício

grampeado e rodado em mimeógrafo com stencil (atualmente já é diagramado

eletronicamente e impresso em formato tablóide), publicado pela Diocese do Acre-Purus e

tem circulação mensal e algumas vezes bimensal, apresenta-se como tendo a função

principal de fazer circular informações entre as paróquias ligadas à Diocese, com sua

mensagem evangelizadora, mas independente de sua característica religiosa, representou

durante algum tempo o único veículo que abordava a questão da violência praticada contra

os seringueiros, posseiros e colonos, tomando posição de defesa destes.

Embora o arquivo da Diocese não tenha preservado todos os exemplares,

manuseamos boa parte das edições relativas aos anos compreendidos entre 1980 e 1990,

também tendo realizado registro fotográfico de mais de cem matérias relativas à temática.

24

- A seleção se faz necessária porque muitas vezes um mesmo fato é tratado em muitas edições sem

adicionar elementos que mudem o curso do processo abordado. Como estava trabalhando com fotografia, já

que a maioria dos arquivos não permite mais os processos de fotocópias (xérox), e embora isso não implique

em custos financeiros significativos, o volume de fotos interfere no uso do programa escolhido no

computador, por isso a seleção.

Page 41: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

42

Neste jornal, a coluna sob responsabilidade da Comissão Pastoral da Terra (CPT)

mensalmente estava enfocando aspectos da violência contra os seringueiros e populações

dos bairros periféricos constituídos em sua maioria por ex-seringueiros e, denunciando os

fazendeiros, capatazes e policiais responsáveis por essas práticas. Essas denúncias também

eram enfatizadas na coluna reservada à mensagem do Bispo da Prelazia, que entre os

comentários evangelizadores, cunhava críticas e clamores contra o desamparo das

populações que viviam nas florestas e nas periferias de Rio Branco e cidades próximas.

No jornal Varadouro, que circulou de forma irregular no período compreendido

entre maio de 1977 e setembro de 1981, perfazendo ao todo vinte e quatro exemplares, se

autodenominou, o “Jornal das Selvas”, é considerado tanto por intelectuais acreanos como

de outros Estados, uma das melhores documentações sobre a situação indígena, dos

seringueiros, colonos e das lutas travadas por eles contra os desmatamentos, os patrões,

fazendeiros, grileiros e arbitrariedades cometidas pelo Estado nesse período. Articulado por

antropólogos, jornalistas, sociólogos, advogados e outros, circulava sempre com denúncias

bem fundamentadas contra os fazendeiros, grileiros especuladores, policiais e outros setores

governamentais, bem como manejava com maestria suas tintas na crítica ao regime militar

e suas políticas de desenvolvimento. O que causa espécie neste jornal é o período em que

circulou, considerado pela historiografia recente como, ainda, de forte repressão, bem como

de ação ainda intensa dos serviços de inteligência do Governo Militar.

O outro jornal pesquisado, o Página 20, foi criado em 1995, quando boa parte dos

conflitos por terras já havia amainado (mas não resolvido), e as questões ligadas à ecologia

ganhavam maior destaque. Esse jornal já nasceu sob forte influência das forças políticas

que faziam oposição aos governos conservadores oriundos do bipartidarismo herdado da

ditadura militar. Alguns setores petistas, principalmente após as eleições municipais de

1992, que levaram a coligação denominada Frente Popular do Acre (FPA – PT, PC do B,

PSDB, PDT, PV e PSB), a conquistar a Prefeitura da capital, detinham influência direta na

linha editorial do jornal, que iniciou sua circulação como semanário, tendo se transformado

em diário cinco anos depois.

Por efeito dessa relação política (não assumida, mas bastante perceptível) esse

jornal voltava suas críticas, diretamente para o modelo de desenvolvimento em curso e para

Page 42: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

43

os governantes do Estado, que eram apontados como insustentáveis, pois eram responsáveis

pela destruição da natureza e dos modos de vida tradicionais ali inseridos25

.

Outros documentos importantes, utilizados para dar suporte a determinadas

temáticas, foram os produzidos pelo Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Acre

(ZEE - AC), composto por três volumes, em sua primeira fase e um volume resumo na sua

segunda fase, esta acompanhada por um conjunto de mapas na escala 1:250.000 que, de

acordo com seus formuladores, se constitui como o melhor estudo já realizado no Brasil,

sobre as configurações geomorfológicas, geopolíticas e econômicas de uma região.

Utilizamos, ainda e as cartas (atas), dos encontros denominados MAP (Madre de Dios - PE,

Acre - BR, Pando - BO), que são encontros realizados desde 1998 com o intuito de discutir

propostas de melhorar a integração e o relacionamento econômico, político, social e

cultural da região da fronteira dos três países. O fórum é composto, em sua grande maioria,

por entidades ambientalistas, sindicais, associativas, mas conta também com militantes de

partidos políticos e algumas representações institucionais, sejam ligadas as universidades,

sejam aos governos dos Departamentos e Estado, envolvidos.

A leitura das matérias encontradas nos jornais, os dados fornecidos pelo IBGE,

INCRA, IBAMA, IMAC, ZEE, as teses e dissertações, as atas das reuniões do MAP, as

entrevistas, os documentos publicados pelos sindicatos e ONGs, todas essas fontes nos

permitem entrever que os últimos anos do século passado foram marcados por intensas

convulsões nas estruturas econômicas, políticas, sociais e culturais no Estado do Acre.

Hoje, fala-se de uma nova cultura, de um novo pensamento, de novas relações que

permeiam a sociedade acreana. Diz-se que ela perdeu a rigidez do sistema de aviamento do

antigo seringal, e que agora é mais plural, mais híbrida, mais flexível e que procura enlaçar

os conhecimentos tradicionais com as inovações tecnológicas.

Entretanto, conforme as considerações precedentes, vamos constatar que sobre a

Amazônia e, particularmente, sobre o Acre, construiu-se uma representação simbólica, uma

25

- Sobre os jornais que circularam e que circulam no Acre desde a década de setenta, exceto o jornal da

Igreja Católica, todos os outros nasceram ligados às forças políticas que atuavam no Estado. Nenhum tinha

autonomia financeira, isto é, não conseguiriam funcionar sem os contratos de publicidade com o governo ou

com a prefeitura da capital. Até hoje, todos os jornais recebem e publicam os realeses feitos pela Assessoria

de Comunicação do Governo ou da Prefeitura, diariamente. As mudanças de governo produzem alterações

também nas linhas editoriais ou impõem situação falimentar em jornais de oposição. Quando aconteciam

situações em que o Governo do Estado estava nas mãos de uma força política e a Prefeitura da Capital em

outra, as “afinidades” determinavam à ordem de distribuição dos recursos de cada órgão, mas quando

Governo do Estado e Prefeitura estavam com a mesma força política, havia a necessidade de adaptação.

Page 43: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

44

espécie de imaginário que na, nossa forma de ver, não corresponde às relações sociais

existentes na região, ou seja, há uma diferença muito grande entre a configuração do

discurso de sustentabilidade e florestania e as condições de vida reais da população, ou

mesmo o discurso sobre as reais condições de vida dos trabalhadores extrativistas,

ribeirinhos e até de colonos assentados pelo INCRA, que sofrem influência das construções

imaginárias. Então, coloca-se como premente o papel do investigador/historiador para

avaliar criticamente essas construções tão diversas.

Então, frente à complexidade e a diversidade de construções constatadas, não seria

inoportuno perguntar: diante da plêiade de significados do vocábulo “sustentável”, o que

significou a sustentabilidade para os milhares de seringueiros que perderam suas terras e,

conseqüentemente tiveram que modificar seus modos de vida? Conseguiu o Estado, ao

apostar na agropecuária, se tornar “independente” na sua relação de “dependência”

econômica com a União? Terá a concepção de florestania contribuído para reduzir as

assimetrias da disposição campo-(floresta)-cidade, incluindo os povos da floresta nos

benefícios fornecidos aos moradores das cidades?

Entendendo que respostas para essas questões cairiam fatalmente no campo da

relatividade, primamos por percorrer trilhas que apontem para a investigação dos

significados dos novos modos de vida que se formaram nesse percurso em que estão

inseridos os trabalhadores extrativistas. Percorrendo as notícias sobre sua existência,

procuramos expressar, no âmbito das novas fronteiras, suas contradições, controvérsias,

assimilações, consentimentos, perspectivas e disposição de sempre querer seguir adiante.

Partimos, no primeiro capítulo, analisando os efeitos da virada econômica proposta,

pelos militares, ou seja, a de situar a Amazônia e, por conseqüência, o Acre no contexto do

Brasil militarizado, enfocando os aspectos da geopolítica e das perspectivas de “conquista”,

integração, civilização e defesa da Amazônia concebida por eles. A transformação do Acre,

no contexto dos chamados “grandes projetos”, que apresentaram para este Estado a

construção de estradas e a pecuária como única alternativa ao extrativismo e o efeito dos

desmatamentos e queimadas para as populações locais, impostos por um modelo de

desenvolvimento fundado na concepção de que desmatar significava desenvolver.

No segundo capítulo destacamos a mudança no status da propriedade da terra, ou

seja, a transição dos seringais para as fazendas, das colocações para os lotes e as

Page 44: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

45

incompatibilidades das novas práticas com os modos de vida tradicionais, enfocando como

o Governo do Estado, instruído pelo Governo da União foi propositor, organizador e

financiador do empreendimento pecuário, facilitando a venda das terras e dando garantias e

incentivos fiscais, além de salvaguardas jurídicas a cerca da propriedade das terras em

litígio e fornecendo o aparato policial que assegurava os investidores contra a reação de

posseiros e pequenos proprietários, até a eclosão do “Empates”.

No terceiro capítulo examinamos a participação de outros segmentos que deram

apoio à luta dos trabalhadores extrativistas, como as CEBs (Igreja Católica), A CONTAG

(depois a CUT), as ONGs, alguns partidos políticos (clandestinos inicialmente, depois

legais) e, ainda, como algumas dessas entidades e instituições atuaram no sentido de

atenuar os impactos das mudanças patrocinadas pelo Estado contra esses trabalhadores.

Analisamos os fatores que permitiram a saída da condição fragmentária em que se

encontravam para a aglutinação bem como a organização em sindicatos, associações e,

posteriormente, suas alianças com segmentos ambientalistas, que contribuíram para a

substituição das lutas pela terra por lutas ambientais.

No quarto capítulo nos dedicamos à descrição do surgimento das novas forças

políticas no Estado e os novos modelos de ocupação da terra propostos por esses agentes,

principalmente os que dizem respeito ao neo-extrativismo, ao desenvolvimento sustentável

e a concepção de florestania, avaliando os efeitos da implantação das reservas extrativistas,

das unidades de conservação, dos pólos agro-florestais, dos arrendamentos de terras do

Estado e os novos modelos de propriedade que eles comportam. Investigamos, também, a

tentativa de sistematização e controle de todas as atividades econômicas do Estado, através

do mecanismo do Zoneamento Ecológico-Econômico. Enfocamos, por fim, o debate que

confronta as idéias de sustentabilidade e insustentabilidade da fusão entre economia,

ecologia e ambientalismo, tentando apreender os efeitos desse debate entre os habitantes

dos espaços urbanos e das florestas.

Page 45: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

46

CAPÍTULO I – O ACRE NO CONTEXTO DO BRASIL PÓS-GOLPE MILITAR DE

1964.

Neste capítulo apresentaremos o viés da integração proposta pelos militares para o

Acre, principalmente a idéia de integração pela via do povoamento, através dos projetos de

colonização e da construção de estradas. Enfocaremos as características predominantes na

compreensão dos militares a respeito da grandiosidade (ufanismo) da tarefa para qual

estavam se propondo, bem como sua inépcia para tal realização, demonstradas pelo

fracasso dos projetos de interligação pelas estradas e falência dos projetos de assentamento.

O outro enfoque é para a proposta do governo local, de sua tentativa de mudança da

estrutura produtiva do Estado, acompanhando o governo federal, num projeto de larga

escala para transformar o Acre em campo especial para investimento na pecuária.

Destacaremos, ainda, os conflitos que essas ações desencadearam no Acre a partir da

década de setenta, por desconhecimento da existência e das condições de vida das

populações extrativistas.

Faremos uso de material bibliográfico, documentos do governo (Planos de

Governo), dados do IBGE, matérias de jornais e entrevistas para construirmos a narrativa

proposta.

Page 46: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

47

1.1 – OS „GRANDES PROJETOS‟ DOS MILITARES PARA A AMAZÔNIA E SEUS

EFEITOS PARA AS POPULAÇÕES TRADICIONAIS.

Localização do Acre no mapa da America do Sul.

Figura 01

A linha escura demarca uma parte do percurso da BR-364 (Porto Velho – Rio Branco) e dentro do Acre parte

da BR-317, até as fronteiras com a Bolívia e o Peru, área do Vale do Rio Acre, onde se desenrolaram os

principais conflitos pela terra entre seringueiros e fazendeiros. Em outro mapa na página 67, está indicado o

roteiro seguido pela BR-364, que projeta alcançar os mesmos portos peruanos partindo de Cruzeiro do Sul, na

parte mais ocidental do Estado. (Foto: ZEE, 2006).

Page 47: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

48

O Estado do Acre está localizado no cantão mais ocidental do território brasileiro e

geograficamente está situado entre as latitudes de -7º06‟56 N e -11º08‟41 S, e as longitudes

de 68º42‟59 W e 73º48‟05 WGr. Sua superfície é de 164.221,36Km2, o que corresponde a

4,26% da área amazônica e a 1,92% do território nacional (IBGE, 2007). Sua extensão

territorial é de 445 km no sentido Norte-Sul e 809 km entre seus extremos Leste-Oeste,

fazendo fronteiras internacionais com o Peru e a Bolívia e nacionais com os Estados do

Amazonas e Rondônia.

Em termos de fronteiras com os vizinhos latino-americanos, temos a seguinte

situação, vizualizada no mapa abaixo, onde se destacam os Departamientos e cidades

vizinhas, bem como uma das almejadas rotas de “saída” para o Oceano Pacífico, através

dos portos de Ilo e Matarani no Peru:

Figura 02

Imagem capturada a partir dos documentos-resumos da reunião MAP IV. Sem dados de autoria.

Suas características gerais estão assim descritas no Zoneamento Ecológico

Econômico - ZEE, do Estado do Acre:

Page 48: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

49

O relevo é composto, predominantemente, por rochas sedimentares, que formam uma plataforma

regular que desce suavemente em cotas da ordem de 300m nas fronteiras internacionais, para pouco

mais de 110m nos limites com o Estado do Amazonas. No extremo ocidental situa-se o ponto

culminante do Estado, onde a estrutura do relevo se modifica com a presença da Serra do Divisor,

uma ramificação da Serra Peruana de Contamana, apresentando uma altura máxima de 734m. Os

solos acreanos, de origem sedimentar abrigam uma vegetação natural composta basicamente de

florestas, divididas em dois tipos: Tropical Densa e Tropical Aberta, que se caracterizam por sua

heterogeneidade florística, constituindo-se em grande valor econômico para o Estado. O clima é do

tipo equatorial quente e úmido, caracterizado por altas temperaturas, elevados índices de precipitação

pluviométrica e alta umidade relativa do ar. A temperatura média anual está em torno de 24º C,

enquanto que a temperatura máxima fica em torno de 32º C, aproximadamente uniforme para todo o

Estado. Sua hidrografia é bastante complexa e sua drenagem é bem distribuída. É formada pelas

bacias hidrográficas do Juruá e do Purus, afluentes da margem direita do Rio Solimões. (ZEE: 2006,

24).

Desde sua incorporação ao Brasil, com a assinatura do Tratado de Petrópolis em 17

de novembro de 1903, sua administração foi exercida no status de Território Federal, por

governadores nomeados pela Presidência da República. Em 15 de junho de 1962 é elevado

à condição de Estado e no mesmo ano elege seu primeiro governador na modalidade de

voto direto. Porém, com pouco mais de um ano de mandato, o então governador, José

Augusto de Araújo, foi deposto em 07 de maio de 1964, (alguns textos falam em

“renúncia” (sic), mas na verdade o ultimato foi dado pelo Capitão do Exército, Edgard

Pedreira Cerqueira Filho, que assumiu o poder na seqüência) pelo Marechal Castelo

Branco, que assumira a Presidência da República em nome dos militares golpistas que

tomaram o poder em março de 1964.

De 1964 a 1982, foi administrado, também, por governadores “eleitos” em eleições

indiretas. Um deles, Francisco Wanderley Dantas, indicado para o período de 1970-75, vai

ser o responsável pela implementação de uma mudança significativa no setor produtivo do

Estado, movimentando estruturas que haviam se configurado desde a ocupação dessas

terras pelos empreendimentos gomíferos, iniciados na segunda metade do século XIX.

As mudanças que ocorreram nesse período, contudo, são resultantes de muitos

outros fatores que foram sendo articulados para sua consecução. Ruy Mauro Marini26

(1977, 76-84) escreveu: “o Estado capitalista adota relações mais ou menos combinadas

com os ambientes onde está inserido, por exemplo, quando está inserido numa sociedade

26

- MARINI, Ruy Mauro. Estado y Crisis en Brasil. In Cuadernos Políticos, número 13, Ediciones Era,

México, julio-septiembre de 1977, pp. 76-84. Disponível em www.marini-escritos.unam.mx – consultado em

23.03.2006.

Page 49: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

50

dependente é considerável o grau de autonomia relativa que goza”. Para Marini, isso é um

fundamento que deriva de uma lei geral da sociedade capitalista, segundo a qual essa

autonomia relativa do Estado está em razão inversa da capacidade da burguesia para levar a

cabo sua dominação de classe, dito de outra forma, um Estado capitalista forte é sempre a

contrapartida de uma burguesia débil.

No caso do Estado do Acre, podemos observar que de sua formação até a falência

dos seringais, principalmente sua crise geral, no período posterior à Segunda Guerra

Mundial, as determinações políticas e econômicas estavam sob responsabilidade dos

seringalistas. Eram eles que dirigiam todo o ordenamento produtivo e organizacional de

suas propriedades. Os governantes do estado e dos municípios tinham funções secundárias

e muito restritas, competindo tão somente à organização de certos serviços públicos nos

débeis espaços urbanos existentes.

Como até a década de setenta algo em torno de 72% da população do Estado vivia,

predominantemente, nos seringais, conforme dados do Censo do IBGE de 1970, os

seringalistas e grandes proprietários, de certa forma, comandavam boa parte dessa

população, isto é, não havia necessidade de um Estado forte e presente, pois o setor privado

se responsabilizava pela garantia da ordem e da produção. Isso quer dizer que serviços

típicos da responsabilidade do Estado, tais como escolas, postos de saúde, transportes

coletivos, saneamento, iluminação elétrica, segurança, etc., não estavam à disposição dessas

populações, capitaneadas pelos seringalistas.

Qualquer afastamento dos centros urbanos, por menor que fosse, era também o

afastamento desses serviços que, mesmo nos espaços urbanos eram precários. Para

exemplificar melhor, em 2002, o Governo do Acre anunciava com pompas a implantação

do ensino médio em “várias” sedes municipais, haja vista que até aquela data, naquelas

localidades (municípios), não havia essa modalidade de ensino.

Na mensagem governamental de abertura da 1ª Sessão Solene Deliberativa da 4ª

Sessão Legislativa da 10ª Legislatura da Assembléia Legislativa do Estado do Acre, o então

Secretário de Administração Evaristo de Luca, representando o Governador Jorge Viana,

destacou:

Page 50: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

51

Na educação infantil o Estado era praticamente omisso, mesmo sendo obrigação constitucional dos

municípios, o Estado investiu, construindo e colocando para funcionar mais de 10 escolas infantis só

em Rio Branco. A rede de ensino, de um modo geral estava sucateada. Na sua recuperação o governo

investiu em torno de 50 milhões de reais em reformas e construção de novas escolas. Outra parte

significativa de recursos foi gasta em equipamentos escolares. Antes de assumirmos o governo,

vários municípios não tinham implantado o 2º grau. Em 2 anos de Governo implantamos o 2º grau

em todos os municípios do Acre. (...) Hoje a educação é motivo de orgulho e é o setor básico e

estratégico da nossa proposta de desenvolvimento para o Acre. (Diário Oficial do Poder Legislativo,

15/02/2002).

Porém, antes, vamos considerar os antecedentes, analisando os fatos decorrentes do

enfraquecimento do principal produto de exportação, a borracha, e o conseqüente

afastamento dos seringalistas dos empreendimentos gomíferos, pois foi a partir de então

que houve a necessidade de entrada de outro ente organizacional para ordenar o território e

suas articulações antrópicas, passando o Estado, na sua forma Governo, a ser um dos

protagonistas dessa nova tarefa. Octávio Ianni (1988), apontando o Estado como centro de

decisão, sintetiza:

A participação do aparelho estatal nas atividades econômicas em geral está intimamente relacionada

com as flutuações do desenvolvimento econômico no Brasil. Na base desse fenômeno está o

predomínio do setor secundário, em substituição à supremacia do setor primário, com suas

implicações sociais e políticas. Naturalmente (como se verá adiante) o próprio contexto social e

político do sistema joga um papel decisivo nas oscilações da atividade estatal. Todavia, convém fixar

desde já a existência de uma conexão permanente entre o ritmo e as tendências das atividades

econômicas e as atuações do Estado. Ao examinar as manifestações mais notáveis deste século,

verificamos que há épocas em que a atuação do governo é de natureza assistencial, protetora,

enquanto que em outras oportunidades ele orienta, incentiva e dinamiza as atividades produtivas. De

conformidade com os estímulos recebidos dos diferentes setores da produção (e note-se que alguns

possuem interesses ou vinculações que ultrapassam as fronteiras do país), ou segundo as orientações

das tensões sociais geradas com o agravamento dos desníveis nas rendas, o Estado responde sempre

com medidas de alcance variável, tornando-se uma presença constante e crescente em determinadas

esferas da vida econômica. (IANNI, 1988, p 36-37)

Nos primeiros sintomas apresentados de quebra dos seringais, o Estado serviu como

amparo para os seringalistas que se encontravam nessa situação falimentar, articulando

financiamentos nos bancos estatais e incentivando novos investimentos em outros setores

econômicos, destacadamente na pecuária e nos seringais de cultivo27

.

27

- Foi o período áureo da Superintendência de Desenvolvimento da Hévea (SUDHEVEA), dos Programas da

Borracha (PROBOR I e II), e do incentivo para os seringais de cultivo, marcas do final da década de setenta e

início dos anos 80, que distribuíram dinheiro para os desmatamentos e para os investimentos de muitos

fazendeiros em ampliação de seus rebanhos e pouco, muito pouco, na verdadeira finalidade que era o seringal

de cultivo.

Page 51: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

52

O outro lado, ou seja, os seringueiros permaneceram isolados e sem nenhum tipo de

ajuda para aliviar a situação de abandono em que se encontravam.

Nessa condição desenvolveram formas alternativas de sobrevivência nas matas ou

buscaram outras condições nas cidades ou, ainda, atravessaram a fronteira para os países

vizinhos Peru e Bolívia, especialmente este último, onde as condições de trabalho no

extrativismo ainda eram compensadoras e lá, não sofreriam as perseguições e violências

dos novos proprietários de terras, como vinha ocorrendo no Acre.

Então, quando os militares tomam pra si a responsabilidade de reordenar os

territórios e espaços na Amazônia, seus conhecimentos sobre a Região eram precários,

limitados e principalmente, distanciados. Uma das concepções dos militares sobre a

Amazônia estava refletida nas publicações do general Golbery do Couto e Silva, que já na

década de cinqüenta, mais precisamente em1957, havia publicado um livro intitulado

Geopolítica do Brasil, reeditado com pompas em 1967, onde segundo Marini (1991),

Golbery:

Toma como elementos centrais de sua análise a questão da integração nacional e a aliança do Brasil

com os Estados Unidos. A obra reflete a problemática nacional dos anos 50, quando o país recém

ascendia à posição de primeira potência sul-americana, graças à colaboração com os Estados Unidos

na guerra e ao afluxo de investimentos estrangeiros, principalmente norte-americanos, e era ainda

assombrado pelos fantasmas que o obsecavam desde o século XIX: a rivalidade com a Argentina e a

cobiça estrangeira pela Amazônia. É nessa perspectiva que o autor exalta o papel unificador do

planalto central brasileiro, frente às tensões dissociativas criadas pelo rio Amazonas, ao norte, e pelo

rio da Prata, ao sul, e preconiza uma estreita aliança com os Estados Unidos, no contexto da guerra

fria, em troca do reconhecimento por estes da importância do Brasil no Atlântico Sul28

.

Referindo-se a mesma obra de Golbery, José Fernandes do Rêgo (1992) assevera

que a questão geopolítica no Brasil assumiu uma feição ideológica de justificativa da

integração do Estado Brasileiro na chamada “Guerra Fria”, concebida pelos geopolíticos da

Escola Superior de Guerra (ESG), como um componente da guerra total e absoluta entre os

blocos de países que à época rivalizavam sob as bandeiras do capitalismo ocidental contra o

socialismo que era formado pelo bloco oriental.

Nesse sentido, Golbery já postulava essa ação preventiva na Amazônia, nos

seguintes termos:

28

- MARINI, Ruy Mauro. Brasil: da Ditadura à Democracia, 1964-1990. Fuente: Archivo de Ruy Mauro

Marini con la anotación “Este texto foi preparado, entre fins de 1990 e março de 1991, para uma enciclopédia

italiana”. Disponível em www.marini-escritos.unam.mx - consultado em 12.03.2006.

Page 52: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

53

Mas por outro lado, a penetração mais ou menos dissimulada, a coberto de nosso indiferentismo e do

abandono em que deixamos aquelas paragens (Amazônia), é coisa que bem se pode admitir para

breve, que já está mesmo acontecendo segundo notícias que nos chegam daqui e dali, e que poderá

acarretar no futuro conseqüências desastrosas... Mas o que mais vale é antes evitar que remediar,

sobretudo quando só se poderá remediar com processos drásticos e sangrentos. O Tamponamento

efetivo dos caminhos naturais de penetração, que de além-fronteiras conduzem à Amazônia, é

medida que se impõe com urgência, para que como dissemos, possamos levar a cabo, quando

oportuno, tranqüila e metodicamente, um plano de integração e valorização daquele imenso

mundo ainda perdido29

. (COUTO e SILVA, 1967: 55)

Nesta posição dos militares com relação à Amazônia, que Golbery entende como

“Inundar de civilização a Hiléia Amazônica”, os seringueiros do Acre não contavam nas

estatísticas, nem como favorecidos, nem como entraves.

Formavam, portanto, um contingente de desconhecidos pelo poder público, tanto é

que eles, os militares, viam esse imenso território quase da mesma forma que espanhóis e

portugueses na época da colonização. Se aqueles tinham a região como “tierras no

descubiertas”, os militares a viam como “uma terra sem gente para acomodar uma gente

sem terras”, referindo-se aos sem-terra das regiões Sul, Sudeste e Nordeste que deveriam

ser deslocados para os projetos de assentamento que seriam organizados visando “integrar

para não entregar” a Amazônia. O próprio Estatuto da Terra, criado pela Lei nº. 4.504, de

30/11/1964, propunha uma colonização, “sobretudo com vistas à necessidade de expansão

da nossa fronteira agrícola e à ocupação dos vazios geográficos que a vastidão do nosso

território ainda está apresentando”30

.

Na proposta de incorporação da Amazônia que se enquadrava no que a

historiografia denominou Grandes Projetos, estavam intuídas concepções marcadamente

geopolíticas e industrializantes, representadas no trinômio „desenvolvimento, integração e

segurança‟ e, suas principais manifestações se deram através dos seguintes instrumentos de

intervenção:

1) “Operação Amazônia”, lançada pelo Presidente Castelo Branco, em 1º de

setembro de 1966, visando através de uma nova e abrangente ação do Estado, modernizar a

economia regional de acordo com relações tipicamente capitalistas, procurando

29

- RÊGO, José Fernandes do. Amazônia: do extrativismo ao neoextrativismo. 1992. Dissertação (Programa

de Pós-Graduação em Economia – Mestrado e Doutorado) UFPB, João Pessoa, 1992. Mimeo. Faz uma

análise das intervenções dos militares nas políticas públicas determinadas para a Amazônia.

30

- Mensagem do Presidente Castelo Branco ao Congresso Nacional encaminhando o Estatuto da Terra.

(Mensagem nº. 33, de 1964) In. CONTAG. Questões Agrárias – Estatuto da Terra e Decretos reguladores.

Brasília, 1973, p. 10.

Page 53: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

54

inicialmente, como já se fizera no Nordeste, o caminho da substituição de importações de

bens industriais, porém concentrando-se depois na agropecuária e agroindústria;

2) Programa de Integração Nacional (PIN), que tinha o objetivo de dar

operacionalidade aos incentivos fiscais reorientando-os para a agropecuária e a

agroindústria, com vistas à ocupação econômica e a absorção dos fluxos migratórios para

atenuar os conflitos no Nordeste e Centro-Sul, promovendo a ocupação demográfica da

Amazônia. Este programa foi criado pelo Decreto-Lei nº. 1.106, em 16 de junho de 1970;

3) Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e

do Nordeste (PROTERRA) tinha como objetivo criar condições de acesso à terra aos

trabalhadores rurais e pequenos proprietários minifundiários, melhorar as condições de

emprego e de trabalho rurais e promover a agroindústria no Nordeste e na Amazônia;

4) Programa de Pólos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia

(POLAMAZÔNIA), criado com a finalidade de promover o aproveitamento integrado das

potencialidades agropecuárias, agroindustriais, florestais e minerais em áreas prioritárias da

Amazônia, com investimentos públicos orientados para viabilizar a implementação de

atividades produtivas de responsabilidade da iniciativa privada;

5) Programa de Desenvolvimento Integrado da Região Noroeste

(POLONOROESTE), programa que visava apoiar a colonização oficial que se desenvolvia

na década de setenta ao longo da rodovia Cuiabá - Porto Velho;

6) Zona Franca de Manaus (ZFM), mecanismo que criava incentivos com vistas à

industrialização, via criação de um Distrito Industrial em Manaus. A Zona Franca teve sua

abrangência ampliada com a criação da Superintendência da Zona Franca de Manaus

(SUFRAMA), que estendeu suas ações para toda a Amazônia Ocidental;

7) Programa Grande Carajás (PGC), gigantesco projeto integrado de

desenvolvimento (sic), abrangendo uma área de 900.000 Km2, (área muito maior do que a

de grande parte dos Estados brasileiros), criado com vistas à mineração, a agropecuária e a

exploração madeireiras para exportação. Dentre seus principais objetivos consta o de:

“aumentar nossa capacidade de pagamentos externos, mediante a venda de minérios de

Page 54: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

55

ferro, minerais não ferrosos, produtos siderúrgicos, florestais, rurais e agroindustriais,

agregando o máximo possível de elaboração com vistas a proteger o trabalho nacional”31

.

No contexto da “Operação Amazônia”, implantada em 1966, foram criadas: a

Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM, o Banco da Amazônia S/A

- BASA, a Superintendência da Zona Franca de Manaus - SUFRAMA e o Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, este último com abrangência

nacional, mas os outros três organismos criados exclusivamente para dar suporte e garantias

aos empresários e aos Estados da região, com recursos para aplicar no processo de

desenvolvimento que os militares tinham como imprescindíveis para a manutenção da

soberania sobre o território.

Com a apresentação dessa estrutura funcional e as conseqüentes linhas de

financiamentos, foram se destacando duas vias de atuação para os incentivos dotados pelos

militares: os grandes projetos privados e as grandes obras públicas. Os projetos privados

objetivavam sua inserção nos campos sídero-mínero-metalúrgicos, industriais,

agropecuários e madeireiros como demonstram o Projeto Grande Carajás, o Complexo

Albrás-Alunorte, o Complexo Alcoa e o Distrito Industrial de Manaus com a sua Zona

Franca, além dos incentivos e financiamentos para projetos agropecuários, como os dos

Grupos Bordon, Bradesco, Paranacre, Alcobrás e madeireiras instaladas principalmente em

Belém e Manaus com vistas à exportação. Na ação dos grupos particulares, das agências

financiadoras e dos militares, podemos observar as tendências modernizadoras que

emulavam suas idéias. Sant‟Ana Jr. (2004), assim descreve:

Novamente, podemos aqui, pensar todo este grande movimento de ocupação da região amazônica,

desencadeado a partir das políticas implementadas pelos governos militares, como iniciativas

modernizadoras que, calcadas em uma dada significação imaginária da modernidade, procuram

domar, dominar e explorar a floresta amazônica, nem que para isso fosse necessário destruí-la. Estas

iniciativas sustentadas por sucessivos governos federais, agências financiadoras internacionais ou

grandes empresas capitalistas e implementadas por grupos econômicos, em grande parte, sediados

fora da Amazônia, podem ser aproximadas, com alguma adaptação, do conceito de Wagner de

“ofensivas modernizadoras vindas de cima”. (SANT‟ANA Jr., 2004, p. 122).

31

- Esta relação de instrumentos citadas estão bem desenvolvidas na dissertação de mestrado intitulada

Amazônia: do extrativismo ao neoextrativismo, produzida por José Fernandes do Rego. João Pessoa, UFPB,

1992. Mimeo e no livro Estado e Políticas Públicas: a reocupação econômica da Amazônia durante o regime

militar. São Luis: EDUFMA, Rio Branco: UFAC, 2002.

Page 55: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

56

No campo das obras públicas os destaques ficam com a construção das usinas

hidrelétricas de Tucuruí, Balbina e Samuel que deveriam dar suporte as grandes

necessidades de energia demandadas pelo setor sídero-mínero-metalúrgico e industrial, bem

como da construção das grandes rotas rodoviárias que interligariam esses complexos às

regiões consumidoras e exportadoras desses produtos. Nasciam no seio desse rearranjo, as

necessidades de construção da Transamazônica, da Perimetral Norte e, conclusão da BR-

364, que havia sido iniciada ainda no governo de Juscelino Kubitscheck.

Como os próprios nomes deixam entrever essas estradas tinham significados

geopolíticos: a Perimetral Norte sairia da confluência do Brasil com as Guianas ao Norte e

faria uma espécie de arco beirando as fronteiras até o Sul da Amazônia, na confluência com

a Bolívia; a Transamazônica, que atravessaria (pelo meio, partindo de João Pessoa, na

Paraíba e de Recife, em Pernambuco e se encontrando em Picos, no Piauí), no sentido Leste

– Oeste, quase toda a região e; a BR 364 seria um braço desta, fazendo a ligação direta

entre Cuiabá (MT), Porto Velho (RO) e Rio Branco (AC), chegando até Cruzeiro do Sul, no

Acre (fronteira com o Peru), na época a cidade mais ocidental do Brasil, ou ainda, o

percurso total da Transamazônica, que no projeto inicial deveria sair de João Pessoa na

Paraíba e atravessar toda a Região norte, no sentido Leste-Oeste, tendo como base dentro

da Amazônia, o município de Marabá, no Pará.

Como para os militares esses espaços estavam desocupados, eles imaginaram os

grandes projetos de assentamento na Amazônia, acompanhando os estirões de estradas que

estavam construindo. Esses projetos resolveriam ou, no mínimo, atenuariam os problemas

fundiários, principalmente das regiões Sul, Sudeste e Nordeste, que vinham preocupando as

autoridades federais naquele período. Ianni (1979), registra que:

A migração de trabalhadores rurais e seus familiares para a região amazônica intensificou-se bastante

desde 1970. Ela já ocorria em escala notável antes dessa data, se tomarmos, por exemplo, o que

vinha ocorrendo no Sul do Pará, desde a construção da rodovia Belém – Brasília nos anos de 1956 –

60. Ao construir-se essa rodovia e estabelecer-se uma ligação, por terra, entre Guaraí, que se acha

sobre essa rodovia, e Couto Magalhães, a margem do rio Araguaia, começou a crescer o afluxo de

populações de origem rural para as terras indígenas e devolutas do Pará. Foi assim que em 1960 –

1970, já estava crescendo bastante a chegada de migrantes nas terras situadas em torno de Conceição

do Araguaia, Santana do Araguaia, São Geraldo do Araguaia, Marabá e algumas outras. (IANNI,

1979, p. 11).

Page 56: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

57

Nesse afluxo de migrantes do Nordeste e do Centro – Sul para a Amazônia, Octávio

Ianni (1979), identifica a conveniência dos militares em aproveitar esse canal para excluir a

reforma agrária como solução para as tensões provocadas pelos excedentes de força de

trabalho (resultantes das modificações capitalistas), perante a concentrada estrutura

fundiária. A migração contribuía para conservar, de um lado, o latifúndio e, de outro, a

modernização com concentração fundiária da agroindústria açucareira no Nordeste e da

agricultura empresarial de exportação no Sul do País, toda ela de base monocultora.

A proposta dos militares para ocupação da Amazônia foi, portanto, toda pensada em

termos de uma perspectiva modernizante. Para eles, o desenvolvimento significava abrir

estradas e povoar suas margens, desmatando imensas áreas e tornando “produtivas” as

terras, até então, tidas como improdutivas. Sant‟Ana Jr. (2004), a esse respeito escreveu:

As políticas de desenvolvimento implementadas pelos governos militares, a partir de 1964, foram

elaboradas lançando mão de um discurso justificador claramente modernizante. Os militares,

concebendo o Brasil como o “país do futuro”, capitanearam um modelo de ofensiva modernizadora

vinda de cima que se caracterizava por forte controle do Estado sobre a economia, num processo

imposto de cima, sem participação popular e excludente tanto em termos de classe e grupos sociais,

quanto em termos regionais. Esta ofensiva desencadeou um processo de industrialização acelerada

que efetivamente consolidou a formação de um grande e moderno parque industrial, e alçou o Brasil

para o rol das dez maiores economias mundiais. Tudo isso sem alterar, ou melhor, até mesmo

aprofundando, as seculares desigualdades econômicas, sociais e regionais que caracterizam o país.

(SANT‟ANA Jr., 2004, p. 110).

No caso da Amazônia, Sant‟Ana Jr. (2004) evoca ainda o sentido faústico usado por

Marshall Berman (1986), em sua obra “Tudo que é sólido desmancha no ar”, por causa das

suas dimensões. Para ele, uma ação grandiosa de confronto com a natureza resistente,

entendida como entrave à plena realização humana e objeto de controle e sujeição era a

tônica dominante, usando a Transamazônica e a Usina Hidrelétrica de Tucuruí como

exemplos contundentes desse espírito que dominou os governos militares da época.

A noção geopolítica que os impulsionava destacava o papel do Estado no domínio e

ocupação, bem como na responsabilidade pelo desenvolvimento da região. Como a

Amazônia era vista como um imenso território selvagem, despovoado, rico e com grandes

potencialidades econômicas, os militares colocaram em prática a idéia de fronteira que

deveria ser conquistada. Na sua lógica não iriam enfrentar outros inimigos militares, mas

mesmo assim travar uma guerra, embora fosse contra as forças da natureza.

Page 57: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

58

A concepção da natureza como um entrave, como um inimigo que deveria ser

derrotado, é que dava a dimensão da tarefa que os soldados teriam de enfrentar e que

preparava os espíritos para a mudança na paisagem que a ação de implementação dos

“Grandes Projetos” iria trazer como conseqüência.

O Acre não foi afetado diretamente pelos grandes empreendimentos sídero-mínero-

metalúrgicos e nem pela construção das grandes usinas hidrelétricas, pois seu território

havia sido considerado de fraco potencial nessas áreas produtivas. Esses investimentos

foram priorizados para os Estados do Pará, Amazonas e os, até aquela época, Territórios do

Amapá, Roraima e Rondônia32

. As maiores implicações em seu ordenamento se deram na

intervenção direta dos militares na construção da BR -364, iniciada na década de sessenta e

na organização de projetos de assentamento que se estabeleceram a partir da década de

setenta.

O que se pretende enfatizar sobre essa questão é o seu caráter centralizado, onde as

políticas públicas, longe de estabelecer vínculos com as populações tradicionais das áreas

afetadas pelos grandes projetos, atuavam com convicção na perspectiva de que suas ações

eram portadoras do desenvolvimento. O Estado, no seu sentido de governo, funcionava

como idealizador, como provedor e como único mediador das propostas executadas para

integrar a Amazônia.

Não se pode negar que esses Grandes Projetos acarretaram uma série de mudanças,

principalmente no que diz respeito à paisagem, pois a abertura de estradas, a mineração, a

exploração madeireira, a agropecuária e a construção de usinas hidrelétricas são, por

excelência, modificadores de paisagens. No caso das estradas, as clareiras que se seguiram

às linhas traçadas por estas foram não só modificando os territórios, como servindo de

realocação para muitos dos desalojados por força dos imensos lagos que se formaram com

as barragens construídas pelas hidrelétricas em outras regiões.

Quando se pensa na perspectiva de resolução de alguns problemas urbanos gerados

pelo êxodo dos seringais, como o grande contingente de mão-de-obra à disposição, mesmo

que fosse de difícil absorção, por ser desqualificada para as novas modalidades de trabalho

que se apresentavam, esses grandes empreendimentos também serviam como justificativa

32

- Os Territórios Federais do Amapá e Roraima passaram à condição de Estados com a promulgação da

Constituição Federal de 1988. Enquanto que Rondônia havia conquistado essa condição um pouco antes, em

dezembro de 1981, tendo sido instalado oficialmente como estado, em 04 de janeiro de 1982.

Page 58: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

59

usada pelos governantes para anunciar novos postos de trabalho, no sentido de absorver

essa mão–de–obra, excedente. Nesse momento, o Estado se apresenta como organizador da

mão-de-obra e dos empreendimentos econômicos, inclusive se responsabilizando pelo

emprego e desemprego.

Essa nova modalidade de presença do Estado na Amazônia, confronta-se com as

formas anteriores de organização do trabalho. Na modalidade anterior, isto é, na unidade

seringal, comandada pelo patrão, a exploração extrativista do látex e da castanha, por

exemplo, tinha uma limitação muito grande no sentido da mudança da paisagem, já que os

produtos de interesse pressupunham a existência e a permanência das árvores produtoras,

havendo inclusive punição para o seringueiro que, no processo de extração do látex ferisse

muito fundo a casca da seringueira, o que conseqüentemente a levaria a morte, só que nesse

caso, a punição era feita pelo próprio patrão do seringal. Na outra modalidade extrativista, a

coleta da castanha, o trabalho consiste em recolher o ouriço no chão quando ele se

desprende naturalmente da árvore, não havendo necessidade de contato direto com a árvore

produtora, ou seja, nas duas modalidades extrativistas, são poucas as alterações de

paisagem e espaço, favorecendo o controle do trabalho e do trabalhador.

Não estamos afirmando com esses exemplos que os seringueiros estavam isentos de

interferências nocivas ao meio-ambiente, que eram „guardiões da floresta‟33

, haja vista que

boa parte da fauna que habitava as florestas tropicais úmidas foram extintas ou ficaram

seriamente comprometidas no processo de caça para obtenção de couro para

comercialização. Muitos animais, principalmente os felídeos, foram severamente caçados

para obtenção, exclusivamente da pele, que era bem valorizada no mercado e podia ser

negociada com os marreteiros, fugindo da fiscalização do patrão, ou mesmo sendo

negociadas com eles.

Os grandes projetos, pensados desde fora do contexto amazônico, cometeram pelo

menos dois erros clássicos de avaliação: primeiro, não avaliando os impactos ambientais

dessas ações, impondo uma onda de desmatamento jamais vista na região até aquela época.

Inundaram áreas extensas, também sem avaliação dos impactos ambientais, pois

33

- A expressão é utilizada por Esteves na sua tese de doutorado, descrevendo algumas das mutações dos

trabalhadores extrativistas. ESTEVES, B. M. Gomes. Do “manso” ao guardião da floresta. Estudo do

processo de transformação social do sistema seringal, a partir do caso da Reserva Extrativista Chico Mendes.

1999. Tese de Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrário – Mestrado e

Doutorado) - UFRJ/CPDA. Rio de Janeiro, 1999.

Page 59: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

60

construíram imensas barragens em locais com relevo caracterizados como planícies,

determinando a eliminação de vasta flora e envenenando a fauna aquática com a

decomposição de plantas nos espaços alagados e, por último; esterilizaram outras áreas com

práticas predatórias e arcaicas de mineração, como as praticadas em Serra Pelada (PA), na

Serra do Navio (AP) e, no Rio Madeira e seus afluentes (RO), esses tendo suas águas e

peixes contaminados pelo mercúrio usado no amálgama do ouro34

; segundo, demonstraram

um desconhecimento elementar, tanto da geografia e do clima, como dos costumes e

tradições das populações já residentes na Amazônia.

Ao desconsiderarem as condições climáticas, principalmente o regime das chuvas e

seus impactos na região, condenaram a viabilização dos projetos de assentamento, que

tinham como fundamento a produção agrícola. Mas, cometeram enganos também ao não

avaliarem criteriosamente os solos e as bacias hidrográficas, o que contribuiu para que as

estradas e os ramais previstos para dar escoamento à produção dos novos assentados, não

garantissem trafegabilidade, nem perspectivas de manutenção. Basta lembrar que até então,

todo o sistema de abastecimento e transportes estava baseado nas vias fluviais. As estradas

de rodagem ainda não haviam sido testadas e, principalmente no caso do Acre e das áreas

de várzea do Amazonas, onde praticamente não existem pedras, sua construção se mostrou

mais complexa do que se havia planejado.

No início da década de setenta, durante o governo Médici, a “Operação Amazônia”

ganhou um reforço com a instituição do PIN (Programa de Integração Nacional). Esse novo

conjunto de medidas, contudo, tinha efeito mais propagandístico do que efetivo, pois a

Amazônia já havia sido incorporada ao contexto nacional, tanto como uma fronteira a ser

explorada, como também, uma região que poderia absorver parte dos indesejáveis conflitos

pela posse da terra, como vinha se verificando nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, como

34

- O mercúrio é utilizado nos garimpos para facilitar a extração do material lavado na fase de pré-

concentração e na fase de amalgamação do ouro, quando a liga mercúrio/ouro é “queimada” para separar o

ouro e dar-lhe forma. Nas duas fases ele chega ao meio ambiente. Na primeira, vai na forma metálica pelas

águas drenadas do instrumental do garimpo diretamente às águas e ao solo. Nestes ambientes, passa da forma

inorgânica para a forma orgânica, formando dimetil-mercúrio ou metilmercúrio, material de efeitos tóxicos

elevados, principalmente nesta segunda forma. Na segunda forma de utilização, a amalgamação, o mercúrio

queimado de forma rudimentar ao ar livre polui a atmosfera, e seus vapores são respirados pelos garimpeiros,

intoxicando-os inevitavelmente. A parte que vai para a atmosfera retorna à superfície por meio das águas das

chuvas e atingem os rios e o solo, contaminando, como na primeira forma de utilização, peixes, vegetais e

animais, que acabam por contaminar o homem que deles se alimenta. KOWARICK, Marcos.

Amazônia/Carajás: na trilha do saque. São Paulo: Ed. Anita Garibaldi, 1995. (239).

Page 60: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

61

demonstra o grau de importância que foi conferido ao INCRA, um dos órgãos mais

valorizados nesta fase, tendo sido encarregado de “povoar” as margens das rodovias que os

militares vinham construindo na região.

Em 1974, a iniciativa privada ganha um programa específico para implementar

políticas de colonização e exploração mineral na região, o Programa de Pólos de

Desenvolvimento Agropecuário e Agromineral da Amazônia (POLAMAZÔNIA). Esse

programa foi uma espécie de transição das ações do INCRA, para a colonização particular,

já que o governo vinha sendo criticado pelos colonos assentados, que denunciavam a

inoperância do órgão federal e a situação de abandono em que se encontravam e, por outro

lado, os empresários exigiam recursos para seus projetos de concentração da terra.

Porém, todas as iniciativas militares e mesmo civis esbarraram nas condições

climáticas e ambientais. Trabalhadores de diferentes regiões do país, como os do sertão

nordestino, foram assentados próximos aos trabalhadores oriundos do Paraná, do Rio

Grande do Sul, de Santa Catarina, do Espírito Santo, todos eles estranhos entre si e,

principalmente estranhos para e ao ambiente. O resultado foi o expressivo abandono das

terras por parte dos colonos. José Porfiro da Silva (1998) descreveu assim essa situação:

Na fronteira amazônica, à medida que se aprofundavam os problemas nas áreas de fronteiras,

abrangidas pelos projetos de colonização de Mato Grosso e Rondônia, por exemplo, os migrantes,

sem o apoio necessário do poder público, não conseguiam se fixar em suas parcelas de terras. Em

cada empreitada mal sucedida, buscavam novas áreas para começar uma „nova aventura‟.

Novamente, sem a certeza que encontrariam amparo governamental. Neste contexto, a migração não

reflete um processo de deslocamento espontâneo dos segmentos sociais, e sim a caracterização de

uma dinâmica de „mobilidade forçada‟ que vai ao encontro dos interesses da expansão do

capitalismo nacional (formação de mão-de-obra) e atende ao projeto do governo de povoar a

fronteira, esvaziando as pressões políticas e demográficas nas áreas de transformação onde o

processo de modernização da agricultura se deu de forma acelerada35

. (SILVA, 1998, p.15-16).

Essa situação de deslocamento de trabalhadores ocorreu em dois sentidos. O

primeiro e mais viável era buscar novas áreas, penetrando ainda mais nas linhas de

fronteiras, onde as disputas por terras eram menos freqüentes. A segunda estava relacionada

a uma tentativa de retorno aos locais de onde tinham partido, mas com a certeza de que não

iriam encontrar nenhuma facilidade para se reassentar. Esses trabalhadores que retornaram

35

- SILVA, J. Porfiro da. Preservação e sutileza: a política de desenvolvimento do Governo do Acre

(1984/1990). Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrário – Mestrado e

Doutorado) CPDA/UFRJ. Rio de Janeiro, 1998.

Page 61: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

62

a seus locais de origem reproduzem o que José Vicente Tavares dos Santos (1985) chama

de gestação da recusa. Para o referido autor:

(...) os colonos retornados dos projetos de colonização da Amazônia Legal constituem personagem

pleno de significados sociais e políticos para a sociedade agrária do Sul. Por um lado, é a

manutenção da produção camponesa nesta região que permite aos colonos regressarem a suas áreas

de origem – não excluindo que muitos sigam adiante, para as frentes agrícolas de Rondônia, Acre,

Amazonas ou Roraima – onde têm sido acolhidos na teia de relações de parentesco e de vizinhança

que lhes oferecem oportunidades de ganhar a vida, mesmo que precárias e instáveis. Reinseridos em

sua base social, os colonos retornados não só têm possibilidades de participar como de realimentar,

pelo relato de suas experiências, os movimentos dos camponeses meridionais. Ao passarem a recusar

a opção estatal de reassentamento em projetos de colonização na Amazônia Legal, esses movimentos

sociais acentuam a crise de legitimidade das propostas do Estado brasileiro para a questão agrária36

.

(TAVARES dos SANTOS, 1985 p. 167, 168).

Os constantes deslocamentos e as constantes rearticulações por parte dos colonos

são as características conflitantes com as expectativas dos militares. Em sua estratégia eles

haviam planejado uma reforma agrária organizada em lotes simétricos e bem distribuídos

ao longo dos ramais e esses, por sua vez, teriam como pontos de confluência, as estradas

que ligariam os produtores aos centros consumidores. Tudo combinado com o sistema de

controle desses trabalhadores, o que sustentava o princípio da „segurança‟, pois os ramais

tinham saída única e de, pensavam eles, fácil fiscalização.

Não consideraram a ocupação anterior e as experiências das populações tradicionais

que tinham outro modelo de utilização do território, baseado em lotes assimétricos e

respeitando, principalmente os cursos d‟água, abundantes na região, ou outros acidentes

naturais (lagos). Outro elemento desconsiderado foi a questão ambiental, não que ela

representasse já preocupação com uma legislação que objetivasse a proteção do meio

ambiente. Neste caso, estamos nos referindo à adaptação de trabalhadores de outras regiões,

onde clima, relevo, flora, fauna, bacias hidrográficas e culturas eram diferentes e suas

dificuldades de interação com o novo ambiente no qual estavam buscando inserção.

A recorrência a essa questão se dá para ressaltar que, nos aspectos ambientais e

culturais, os Grandes Projetos dos militares para integrar a Amazônia não pouparam a

natureza e as culturas dos povos que viviam nas florestas e os que foram deslocados para lá.

Tanto os projetos governamentais como os da iniciativa privada causaram grandes

36

- SANTOS, J. Vicente Tavares dos. A gestação da recusa: o “colono retornado” dos projetos de colonização

da Amazônia. In. SANTOS, J. V. Tavares dos. (Org.) Revoluções camponesas na América Latina. São Paulo:

Ícone, 1985.

Page 62: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

63

desmatamentos, alagamento de extensas áreas, poluição de mananciais, com a prática de

um tipo de mineração predatória e arcaica e, principalmente, deslocamentos populacionais,

com consideráveis alterações dos espaços naturais e antrópicos.

A tendência dos estudos que analisam os efeitos dos chamados Grandes Projetos

dos militares para a Amazônia, nesse período é, portanto, apontar para os malefícios

causados ao ambiente e as populações tradicionais e chegantes à Região, principalmente a

partir dos anos oitenta, quando os conflitos por terras, também atingiam a Amazônia e,

quando as questões ambientais tornaram-se mais agudas, mas que também, já o regime

militar se encontrava enfraquecido e as possibilidades de críticas, já começavam a se tornar

„toleradas‟.

Page 63: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

64

1.2 O ACRE COMO FIM DO BRASIL OU PORTA DE CHEGADA PELO PACÍFICO:

AS ESTRADAS COMO REDENÇÃO.

O processo da produção extrativista, durante os dois surtos da borracha no Acre,

engendrou uma simbiose espaço-tempo-clima-homem, que está bem representada na

frase/título de um livro de Leandro Tocantins (1982): „O rio comanda a vida‟. Foi assim por

quase cento e cinqüenta anos: os rios, os igarapés, os paranás e os lagos como únicas

(principais) vias de acesso. Desde as primeiras incursões de portugueses, espanhóis, turcos,

sírios, libaneses, depois nordestinos etc., que, a partir de meados do século XIX, vinham

singrando os rios e estabelecendo entrepostos produtivos e comerciais, no que mais tarde

viria a ser o Estado do Acre, que o acesso à região se dava, exclusivamente, pelas

inumeráveis vias fluviais.

Os primeiros a se aventurarem por essas plagas o fizeram em atos heróicos, subindo

os rios em barcos impulsionados por tração humana, uma tarefa das mais penosas, pois

sabemos que, pela condição desses cursos d‟água no tocante à profundidade, correnteza e

características das margens que, comumente estão em processo de erosão por conta de

serem rios recentes e em processo de formação e, principalmente, pela ausência de pedras,

que seus leitos e suas margens acumulam, principalmente na estação chuvosa, uma vasta

camada de lama, o que dificulta sobremaneira operações de impulsão a partir da utilização

de varejões, ou arrasto a partir de suas margens, até então, praticamente intransponíveis,

devido à densa vegetação que as recobria.

Mesmo representando sérias dificuldades para a navegação, foram os rios as únicas

vias de comunicação entre os empreendimentos gomíferos (seringais) e o mundo urbano,

que a partir da segunda metade do século XIX, necessitava de borracha. A invenção e

utilização dos motores a vapor e, posteriormente, os motores à explosão ajudaram a

amenizar o sofrimento dos remadores e varejadores, bem como serviram também para

reduzir o tempo para realização de uma viagem, entre Manaus e Tarauacá, por exemplo,

que durava até seis meses, para algo em torno de quarenta e cinco dias a um mês. Porém,

essa relação com os rios também contribuiu para forjar uma identidade com as águas. Se os

primeiros que chegavam a essa região vinham da Serra do Baturité, da Serra da Ibiapaba,

ou do sertão de Caruaru, da Região do Cariri, da Serra da Borborema, depois de algumas

Page 64: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

65

gerações as terras tinham perdido o valor da referência. Samuel Benchimol ponderou que

na Amazônia:

A Pátria do homem não é a terra, mas o rio. Quase não se vê ninguém dizer “sou filho de Porto

Velho, de Lábrea ou Santa Isabel”. A terra não tem expressão humana. O homem vive para o rio. Ele

diz, portanto: “Sou filho do (rio) Madeira”, “Nasci no (rio) Purus”, “Vim do (rio) Negro”. A própria

borracha é do rio. O seringal não é rico. O rio é que é “bom de leite”. Os acontecimentos sociais de

significação na vida regional são filhos do rio, nunca da terra ou cidade. O caboclo não a utiliza

quase em sua linguagem: “Casei-me no (rio) Madeira”, “batizei-me no (rio) Solimões”, “Ele morreu

no (rio) Juruá”. Essas é que são expressões legitimamente amazônicas. Explica-se. A terra não

oferece para a memória ou para o coração nenhuma lembrança. Ele é que marca o regime da vida, é a

bem dizer a estação na economia do caboclo. (BENCHIMOL, 1946: 244).

Essa forma de identidade foi se construindo num processo de relações diretas entre

o homem e a natureza. Suas relações de dependência, desde a questão alimentar, auxiliada

pela caça e a pesca, até a questão do tratamento de saúde, utilizando sua „montaria‟37

(canoa) para se deslocar até o barracão ou, uma cidade estava condicionada pelo regime do

rio que os ligava ao outro ponto (porto). A saudade da terra natal, da namorada que morava

rio abaixo ou rio acima, ou a espera de uma carta de um parente distante, tudo isso ganhava

relevo na memória ao olhar as águas do rio. Era por ele que chegaria, ou não, boa parte dos

desejos, alegrias ou tristezas do homem amazônico.

No caso do Acre, os rios que formam as duas bacias hidrográficas mais importantes,

a Bacia do Rio Juruá e a Bacia do Rio Purus, pela sua característica geográfica, nascem no

lado Leste da Cordilheira dos Andes e correm de Sudoeste para Nordeste, desaguando no

Rio Amazonas, são rios paralelos, isto é, atravessam o Estado sem comunicação entre si. A

outra bacia importante, a do Rio Acre é tributária da Bacia do Purus. Mesmo assim, o que

ressalta, o que sobressai na sua distribuição é o paralelismo comum aos rios da Região.

37

- Castelo Branco, escrevendo sobre a importância dos rios na vida dos acreanos, disse: O homem particular

nos seu negócios, passeios e visitas só conhecia o rio, tendo amarrada à soleira da porta, nas enchentes, ou

acorrentada num toco fincado no barranco ou na praia, na estiagem a sua “montaria”, verdadeiro cavalo da

região. Quem não possui, o que é raro, anda a pé, num círculo limitadíssimo, ou quando deseja ir mais longe

recorre a um vizinho que a tem. É certo que com o progresso dos seringais, a vereda, o varadouro, a estrada

foram tomando vulto e prestam grandes serviços à condução de gêneros para os seringueiros e a de seus

produtos, por meio de pedestres, muares e carro de boi. O caminhão a gasolina chegou a ser tentado sem

resultado. Mas isso não diminuiu o valor das correntes fluviais porque, mesmo nos seringais no seu

movimento interno, muitos seringueiros por elas trafegam”. (Apud. GUERRA, 2004: 119).

Page 65: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

66

Representação do paralelismo dos rios que cortam o Estado do Acre.

Figura 3

Os rios em destaque no mapa são: Juruá, na parte esquerda que tem o município de Cruzeiro do Sul, como

principal núcleo urbano. Os Rios Tarauacá e Envira (afluentes do Juruá), na parte centro-esquerda do mapa,

que tem os municípios de Tarauacá e Feijó, como principais núcleos urbanos. O Rio Purus, na parte centro-

direita do mapa, que tem os municípios de Manuel Urbano e Sena Madureira, como principais núcleos

urbanos e, finalmente, o Rio Acre, na parte mais a direita do mapa, afluente do Purus, que tem nos municípios

de Brasiléia, Epitaciolândia, Xapuri e Rio Branco, seus principais núcleos urbanos.

O fator paralelismo, por si, já representava uma característica forte na distribuição

populacional. Muitos parentes que saíram juntos do Nordeste, por exemplo, foram

separados ao serem escolhidos por patrões diferentes, de rios diferentes, quando eram

contratados nos portos de Manaus ou Belém. Advém desse aspecto a lembrança que o

parente foi para o rio X, ficando registrada como única referencia que os ligava a uma

perspectiva de encontro futuro.

Contudo essa não era a única característica dos rios que significavam separação e

possibilidades de encontros. Os rios principais apresentam formas meândricas, com

pequenos trechos retilíneos. Esta característica, acrescida pelos desmatamentos em suas

margens, leva à formação de bancos de areia no leito aumentando as dificuldades de

Page 66: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

67

navegação, bem como as distâncias, haja vista a sinuosidade. Todavia, mesmo com todas

essas peculiaridades, foram e na maior parte do Estado continuam a ser as principais vias de

deslocamento de populações, produtos extrativistas e mercadorias, sentimentos de

saudades, alegrias e tristezas, em geral.

Figura 4

Representação da característica meândrica (sinuosidade) do Rio Juruá (foto aérea).

Cópia a partir do Blog do Edvaldo. (In.www.aleac.ac.gov.br/aleac.edvaldomagalhaes/).

Page 67: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

68

Rio Iaco, este na bacia do Purus.

Figura 5

Vista parcial dos meandros do Rio Iaco – Bacia do Purus. Fonte: ZEE – 1999

O posicionamento geográfico dos rios acreanos, cujo acesso se dá partindo do litoral

atlântico e subindo o Rio Amazonas e, a partir dele penetrando nos seus inumeráveis

afluentes, é que traduziu a idéia de que os rios que foram sendo conhecidos por último, no

processo de expansão das fronteiras, os de mais difícil acesso, representavam o fim do

Brasil. Como os rios que formam as bacias hidrográficas do Acre ocuparam essa posição

temporal de descobrimento, as outras regiões olhavam-na com o referencial do fim, pois

como eles nascem nas bordas Leste da Cordilheira dos Andes, no Peru, enquadram-se na

idéia de que onde eles começam, termina as possibilidades de habitação humana, haja vista,

às condições adversas apresentadas pelas altitudes e condições climáticas da cordilheira e

da selva que a antecedia e margeavam esses rios.

Page 68: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

69

Essa estrutura de transporte (fluvial), em que pese todas as dificuldades que

apresenta, foi compatível com o ritmo da produção gomífera, que se dá por safra anual e o

produto, a borracha, não é perecível, podendo ser estocado a céu aberto. O mesmo

acontecendo com a castanha que tem safra, também anual e a rusticidade do invólucro das

amêndoas garante-lhe boa proteção, não necessitando também de muitos cuidados na

armazenagem. (considerando os padrões sanitários da época).

Mesmo após a falência dos seringais essa matriz se manteve, tanto para o transporte

de pessoas, como de mercadorias que abasteciam a região. As novas necessidades, contudo,

foram impondo transformações no estilo das embarcações. No lugar dos navios, dos gaiolas

e das „Chatas‟, vieram os rebocadores, empurrando balsas metálicas, mais largas e mais

rasas, com maior capacidade de cargas e mais adaptadas a vencer os inúmeros bancos de

areia e tronqueiras que prejudicavam a passagem dos barcos de maior calado. Porém, essas

novas modalidades de embarcações não resolveram o problema do tempo, que permanece

ainda em torno de trinta dias para uma viagem de subida de Manaus até a cidade de

Tarauacá, como no exemplo já citado e, dependem do regime das chuvas, pois mesmo essas

balsas projetadas para navegar em lâminas de água mais finas, só podem fazer esse trajeto

na época das cheias dos rios menores. (todos os que cortam o Acre se incluem nesta

condição).

Page 69: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

70

Figura 6

Vista aérea de uma “volta” do Rio Tarauacá em época de verão Amazônico (vê-se parte do Bairro da Praia,

no município que tem o mesmo nome do Rio). Neste, como em outros rios da Região, formam-se muitas

praias e bancos de areia no meio do rio. Esta foto foi capturada na internet sem identificação de autoria.

O tempo e a integração foram os fatores mais utilizados pelos militares para

justificarem sua opção pela mudança da matriz de transportes na Amazônia. As novas

tendências apresentadas como alternativa para o desenvolvimento da Região, tais como a

pecuária, a mineração, a agricultura e a indústria eram incompatíveis com um tipo de

transporte tão lento. Então, foi lançada a proposta de se construir estradas para substituir

essa matriz e acelerar os processos de transportes.

Obviamente, há muitos motivos para se perguntar: por que não se pensou em outras

modalidades, como otimizar a navegação com o aprofundamento do leito dos rios através

da dragagem, a canalização, a construção de barragens e compotas, ou a construção de

ferrovias, que comprovadamente são mais compatíveis para o transporte de grandes

volumes de cargas, como os movimentados pelos setores industrial, agrícola e minero-

metalúrgicos, propostos para o desenvolvimento da Amazônia?

Page 70: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

71

As respostas a essas perguntas devem ser buscadas nos outros interesses que

moviam os militares, ou seja, no complemento do triplo sentido da ação dos militares na

Amazônia: o quesito segurança. É, vale lembrar, com base nessa estratégia, que abarcava as

noções de desenvolvimento, integração e segurança, do Programa de Integração Nacional

(PIN), que em 1973, cria-se o Plano de Viação Nacional. Nesse plano constavam algumas

das estradas que fariam a integração de boa parte da Região Norte e, do Acre, eis algumas

delas:

Perimetral Norte, com 2.450 km, ligando Macapá (AP) – Caracaraí - Içana-Mitú

(na fronteira com a Colômbia e a Venezuela) e Benjamin Constant (AM), até

Cruzeiro do Sul no Acre; (Fronteira com o Peru);

Manaus – Humaitá (AM) - Porto Velho (RO), com 760 km;

Abunã (RO) - Guajará-Mirim (RO), com 130 km;

Porto Velho – Abunã - Rio Branco – Sena Madureira – Manoel Urbano - Feijó –

Tarauacá - Cruzeiro do Sul, com pouco mais de 1.300 km; (prosseguimento da

BR -364);

Humaitá – Lábrea, uma extensão da Transamazônica, com 230 km;

Lábrea – Boca do Acre – Rio Branco – Xapuri -, BR – 317, com 880 km (Essa

estrada vai, na verdade até Brasiléia-Epitaciolândia (AC), na fronteira com

Cobija, capital do Departamento de Pando, na Bolívia e se estende até Assis

Brasil, na fronteira do Estado com o município de Iñapari que pertence ao

Departamiento de Madre de Dios, no Peru).

Cruzeiro do Sul (AC) – Benjamin Constant (AM) – Içana - Cucuí, nas fronteiras

com a Colômbia e a Venezuela, respectivamente38

.

38

- É importante considerar que entre os grandes fracassos dos militares na Amazônia, consta o da não

conclusão das estradas projetadas. No caso do Acre, a ligação asfáltica com Porto Velho, por exemplo, que é

a capital de Estado mais próxima, só foi concluída em 1992. E, Cruzeiro do Sul, que era o outro ponto de

referência, por ser o segundo maior município acreano e fazer fronteira com o Peru, até os dias atuais ainda

não tem ligação asfáltica, nem com a capital, nem com a extensão da Perimetral Norte que ligaria esta cidade

a outros centros da Região Norte, partindo de Macapá. Outro fiasco foi a construção da estrada Manaus-Porto

Velho que, construída em terreno alagadiço, não durou cinco anos e está desativada há mais de vinte anos.

Page 71: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

72

Figura 7

Proposta inicial de construção da Transamazônica.

Fonte: MORAIS, F; GONTIJO, R; CAMPOS, R. de Oliveira. Transamazônica, Brasiliense, 1970.

O que se pode notar na projeção dessas estradas é que as preocupações com a

viabilização dos transportes tinham como características mais acentuadas a busca por

chegar até as fronteiras do Brasil com seus vizinhos e otimizar as possibilidades de controle

interno.

Iniciando com a Perimetral Norte, que faz um arco desde as fronteiras com as

Guianas, passando pelas fronteiras com Venezuela, Colômbia, Peru chegando à fronteira

com a Bolívia, mais ao Sul, até as estradas que cortavam por dentro o território brasileiro,

indo direto na direção das fronteiras, como vias rápidas para rápidas ações, caso fossem

necessárias, ou seja, os efeitos das „Doutrina de Segurança Nacional‟ e da Doutrina da

Contra-Insurgência, processos insuflados pela Escola das Américas e „Aliança para o

Progresso‟, em verdade, relações mantidas com os Estados Unidos, orientando nossas

necessidades.

Com a construção dessas estradas os militares agiram de forma prática na

perspectiva do controle interno. Federalizaram algo em torno de 396.000 Km2 de terras na

Page 72: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

73

Amazônia, pois estabeleceram que, para dar condições de funcionamento aos projetos de

colonização que estavam previstos para seqüenciarem o eixo das estradas, cada uma de suas

margens, numa faixa de 100 km de cada lado, seriam destinadas para esse fim, tornando-se,

portanto, posse da União. Ianni (1981) descreve essa questão nos seguintes termos:

“...o governo do general Médici (1969 – 1974) decide criar e forçar as condições para que os

excedentes populacionais do Nordeste sejam encaminhados para a Amazônia. Ao mesmo tempo, ao

descobrir que a luta dos posseiros pela terra poderia ser base de movimentos políticos organizados,

fortes e combativos, trata de reprimir os focos guerrilheiros nascentes e desenvolver uma política de

regularização das ocupações ou posses. Nesse espírito, a política de terras do Governo Federal (que

deve ser obedecida pelo governo dos estados, territórios e municípios) passa a ser concebida em

termos de segurança interna. O problema principal, nessa orientação, é encaminhar a resolução da

questão da terra para eliminar, reduzir ou controlar as condições econômicas e políticas que

poderiam propiciar o desenvolvimento e a resolução das contradições sociais ligadas à luta pela terra.

Essa preeminência da segurança interna torna-se, ainda mais explícita, no Decreto-Lei Nº. 1.164, de

1º de abril de 1971, que declara indispensáveis à segurança e desenvolvimento nacional as terras

devolutas situadas na faixa de 100 km de largura em cada lado do eixo das rodovias da Amazônia

Legal. A essa época já estava concretizado o antagonismo de posseiros (antigos e recentes) com os

latifundiários e empresários que reavivam seu interesse pela terra, devido aos estímulos, favores e

proteções do poder estatal, canalizados através da SUDAM, BASA e outros órgãos federais”.

(IANNI, 1981).

Essa é uma variável de resposta à pergunta, “por que estradas?”, ao invés de outros

meios de transportes e viação. Kowarick (1995, p. 41) explica que foi essa necessidade de

controlar, dirigir, dominar a população e a idéia de ocupação da Amazônia, que levaram os

militares a desenvolver esses inúmeros projetos que, em sua opinião, na maioria

fracassaram, de integração da Amazônia.

Num viés mais crítico José de Souza Martins (1986), liga a questão ao sentido

autoritário dos governos militares, pois para ele, cada uma das ditaduras conhecidas pela

sociedade brasileira, passando pelos proclamadores da República, pela ditadura Vargas e a

dos militares, esse autoritarismo sempre se ergue contra a sociedade civil e mais, a tradição

autoritária tem sido centralizadora e antiliberal, pois:

...o autoritarismo brasileiro vem da tradição do absolutismo monárquico – o rei, senhor de

monopólios econômicos, contra câmaras municipais, contra a liberdade plena e republicana dos

homens bons e livres. Esse autoritarismo tem sido a base do Estado brasileiro, com intervalos

„democráticos‟, isto é, de abertura política em favor das oligarquias regionais e locais e sua tradição

mercantil agrária, em favor do poder pessoal. Com o desaparecimento da figura do monarca, o

absolutismo monárquico foi herdado pelo Exército que, como corporação, tem personificado a

tradição autoritária absolutista, desenvolvimentista e modernizadora. Basicamente porque as rupturas

representadas pelo desenvolvimento e pela modernização têm sido impostas pela força contra as

oligarquias. (MARTINS, 1986, p. 81)

Page 73: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

74

Porém, em que pese os vieses autoritários dos militares, eles conseguiram

conquistar a maior parte das populações amazônicas, incluindo as populações tradicionais

(extrativistas), os índios e as chegantes (pecuaristas, mineradoras, colonos, garimpeiros,

grileiros e especuladores em geral), acerca da necessidade de construção de estradas. O

discurso prático e ideologicamente competente converteu os diversos setores sociais em

defensores engajados da construção das estradas.

As argumentações dos militares iam muito além das questões meramente

geopolíticas. Para seduzir as populações eles usaram o discurso modernizador e envolvente

da criação de condições favoráveis de exportação pelos portos do pacífico que, do ponto de

vista geográfico, são bastante atraentes para as agroindústrias e criadores de gado dessa

parte do território brasileiro, haja vista as distâncias em relação aos portos atlânticos que

distam o triplo, em relação aos do Pacífico, via portos peruanos de Ilo e Matarani.

Outro fator atrativo, alegado pelos militares, era o crescimento das cidades, que

demandavam cada vez mais cereais, frutas, hortaliças, leite, ovos, carnes (suínos, ovinos,

bovinos, avicultura, etc.). Tudo isso tinha relação direta com a construção de estradas,

ramais e o assentamento de produtores rurais. As idéias de crescimento, de progresso, de

integração, de melhorias nas condições de vida soavam como boas novas, nas cabeças dos

trabalhadores.

A construção de estradas era apresentada como remédio para todos os males,

inclusive para a ausência crônica do Estado que, até então, faltara ao encontro com essas

populações. Com as estradas o Estado poderia abrir escolas, postos de saúde, enviar

técnicos para auxiliar os produtores, atender as necessidades de escoamento dos produtos,

etc., tudo que se pudesse pensar em perspectiva de benefícios estariam ao alcance desses

trabalhadores, inclusive, no caso dos “Soldados da Borracha”, reencontrar os parentes que

haviam sido separados quando da chegada, pois as estradas fariam à integração das bacias

hidrográficas.

Para os estrategistas do governo, vigia a concepção genérica de que: “Meios de

transportes favoráveis são fator chave para a exploração comercial de riquezas naturais.

Não se pode explorar novos potenciais econômicos onde não há infra-estrutura”

(HAGEMANN, 1996, p. 35).

Page 74: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

75

Não foram avaliadas as novas tensões que emergiram provocadas pelo re-

ordenamento da questão fundiária, da revalorização da terra e das expectativas criadas nos

donos e ex-donos de seringais que viam no processo possibilidades de valorização de „suas‟

propriedades. Os arranjos conservadores, que opunham interesses entre posseiros e

proprietários não foram mediados: o exército, o INCRA, a polícia, os patrões (grandes

proprietários), as autoridades do estado e dos municípios, todos respeitavam as leis e essas

asseguravam „direitos para quem os tem‟. Para Martins (1986), os posseiros não se

enquadravam nesse conjunto, pois:

A política de incentivos fiscais, para que as empresas do Sudeste e do Sul fizessem investimentos

subsidiados na região amazônica, foi detonador de todo esse processo, por meio do qual, ao invés de

suprimir os entraves representados pela propriedade da terra ao desenvolvimento capitalista, o Estado

militarizado optou pelo subsídio ao capital e pela preservação política da renda fundiária. Forçou,

assim, a associação entre a propriedade da terra e o capital, convertendo o capital em proprietário de

terra, inteiramente fora do padrão clássico. Nesse sentido, o Estado Militar, coerente com a tradição

do autoritarismo centralizador, iniciou um amplo processo de destruição do regionalismo oligárquico

e minou mais ou menos profundamente as bases da ordem política centrada no poder pessoal dos

proprietários de terra, da ordem privada que se sobrepunha à ordem pública. (MARTINS, 1986,

p.86).

Os resultados desse complexo quadro de mudanças na estrutura produtiva e a

tentativa de inclusão do Estado do Acre ao Brasil, pela via anexionista e conservadora dos

militares, provocou o agravamento dos conflitos pela posse da terra nesta região, ampliando

os rastros de violência que acompanham essas disputas em todo o território nacional.

Em suas ações, os militares abriram picadas na densa floresta, assentaram colonos e,

em seguida, os grileiros e ricos empresários de outras regiões aproveitaram os incentivos

fiscais e os recursos abundantes, oferecidos pelas agências de fomento, para comprarem

terras baratas e comandarem o re-ordenamento das propriedades no Estado. Saiam de cena

os grandes seringais e emergiam as grandes fazendas. A proposta de abertura de estradas no

Acre foi acompanhada, portanto, de altos impactos no rearranjo agrário, econômico,

político e social que se forjou a partir da ação do Governo Federal e sua proposta de

integração.

Muitas das estradas planejadas pelos militares não chegaram a ser concluídas, mas

os efeitos causados pela parte construída e pela perspectiva de seu prosseguimento

marcaram de forma irreparável, o ambiente e as populações tradicionais e, mesmo as

chegantes, com destaque para os danos causados às populações indígenas, afetados por

Page 75: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

76

doenças trazidas pelos colonos, exploração de suas áreas de habitação e destruição ou

contaminação dos seus recursos naturais pelas mineradoras e garimpos oficiais e

clandestinos.

Por outro lado, as populações oriundas do Sul do Brasil, também sofreram

percalços. Situados numa relação oposta à dos indígenas, que morriam com as doenças

trazidas pelos colonos, contra as quais eles não tinham defesas, os colonos sofreram com as

doenças endêmicas da floresta, contra as quais também não tinham imunidade. Dessa

forma, além da violência, muitos sucumbiram diante das intempéries e doenças das regiões

tropicais.

No caso das populações do Sul, as hepatites, a malária, a febre amarela, a

leishmaniose, dentre outras, transformaram alguns projetos de assentamento em

verdadeiros cemitérios. Sem poderem sair para as cidades em busca de socorro, e sem

poderem retornar às suas regiões de origem enquanto não passasse o período invernoso, os

colonos internados na floresta definhavam a mercê da própria sorte.

É nesse sentido que as idéias dos militares e suas perspectivas de um

desenvolvimento rápido para a Amazônia, centrado na lógica de investimentos na abertura

de estradas e seu povoamento com colonos e empreendimentos privados de grande

envergadura, redundou em desânimo e frustração para grandes contingentes de colonos que

vieram espontaneamente, ou que foram deslocados para cá, por força das condições nos

seus locais de origem e; na outra ponta, endividamento para o Estado, pois no geral a

década de oitenta, conhecida no Brasil como a „década perdida‟, foi também para o Estado

brasileiro um momento de forte debilidade econômica, política e social39

.

39

- Atílio Boron (2003) diz que: Los ochenta y noventa fueron décadas en las cuales los países de la región se

embarcaron en programas de “reformas del estado”. La puesta em práctica de estas “reformas del estado” en

América Latina y el Caribe giraron en torno a tres ejes: a) Desmantelamiento del sector público, o recortes

salvejes del presupesto fiscal acompañados por un costoso programa de despidos masivos. Tendencia que no

solo va en dirección contraria a las tendências predominantes en los países del “Primer Mundo” sino que

además, y por comparación com los vigorosos estados de los países de la OECD, hace que los estados

latinoamericanos aparezcan como enanos deformes y viciosos, cuantitativamente pequeños y grotescamente

desproporcionados y, para colmo de males ineficientes y corruptos, aunque en grados variables según los

países. b) Crecientes grados de “debilidad estatal” definida por la dificuldad cada vez mayor que presentan

estas instituciones a la hora de disciplinar a empresas y mercados, beneficiados por una liberalización y

desregulación sin precedentes y resistir las presiones de otros estado más poderosos. c) Fenomenal deterioro

de la noción de “responsabilidad estatal”. Los estados latinoamericanos han desertado de sus

responsabilidades fundamentales en ciertas áreas críticas de su gestión tales como el bienestar general, el

desarrollo econômico, la seguridad y la administración de justicia substituyendo estos viejos objetivos, por

una meta suprema: la conquista y preservación de la “confianza de los mercados”. Los viejos derechos se

Page 76: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

77

A promessa de transformar o Acre, de mudar seu status de dependência crônica (que

se estabeleceu com a falência da borracha) com relação à União, a partir de uma

diversificação da produção, de uma mudança na sua base produtiva e da sua estruturação

viária, não foi conseguida pelos dirigentes nacionais e locais.

Porém, criou-se com essas ações uma „esperança‟ de que dias melhores viriam com

a construção dessas estradas. Esse argumento vem servindo nos últimos trinta anos como

bandeira eleitoral de todos os partidos que compõem o quadro político do Estado. Todos

prometem retomar a construção das estradas projetadas pelos militares e os eleitores

avaliam qual promete melhor, para ungir como novo empreendedor, ou como o novo

gerente dos rentáveis negócios de construção das estradas que interligariam os municípios

acreanos.

No discurso, o Acre deixou de ser o „fim‟ do Brasil e se transformou em rota de

passagem, em porta aberta para o escoamento da produção agropecuária para a Ásia, via

portos do Pacífico, como bem sintetizava um dos slogans da campanha levada a cabo pelo

Governador Francisco Wanderley Dantas (1971 – 75), no intuito de atrair investidores para

o Estado: “Investir no Acre, produzir no Acre e exportar pelo Pacífico”. A autonomia

econômica e a redenção social ainda não chegaram, mas a consolidação de uma concepção

formatada no “desenvolvimento” está galvanizada nas mentes dos variados estratos sociais.

Até os ecologistas mais engajados titubeiam ou sucumbem diante da „solidez‟ dos

argumentos articulados em torno da necessidade da construção de estradas, mesmo sabendo

que elas resultam em desastres ecológicos incomensuráveis, pois desde o pequeno produtor,

o extrativista, os colonos chegantes, até as populações carentes dos diversos municípios

isolados, passando por ricos fazendeiros e governantes em geral, todos defendem que o

desenvolvimento só será possível com a construção de estradas.

Há mais de trinta anos os mesmos discursos ressoam em época de eleições e as

bandeiras da redenção se erguem outra vez, embriagando as mentes acostumadas a pensar

na idéia de progresso e desenvolvimento, de melhoria de vida a partir de uma ação do

Estado.

convierteron en mercancías cuyo disfrute lejos de ser una responsabilidad de los gobiernos pasó a depender,

gracias a las desregulaciones y privatizaciones de áreas enteras de gestión gubernamental, de los bolsillos de

los ciudadanos. (BORON, 2003: 42, 43).

Page 77: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

78

As frustrações também se renovam em cada fim de mandato sem a realização do

sonho sonhado, mas a permanência da esperança supera as desilusões e, afinal, „sonhar não

custa nada‟, mesmo que até agora não se tenha chegado à realização do sonho ou, a uma

conclusão sobre a situação do Acre após a ação dos militares e seus apoiadores civis. Será

mesmo o fim do Brasil, ou um dia será rota de passagem para o Pacífico?

Page 78: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

79

1.3 DESMATAR É DESENVOLVER: ESTRADAS E PECUÁRIA PARA UM NOVO

ACRE.

A crença numa única perspectiva de desenvolvimento, ou seja, um tipo único de

desenvolvimento40

vinculado à questão econômica, foi à base para a tentativa de inclusão

tanto do Acre, como da Amazônia em geral, ao núcleo considerado mais consolidado do

país, isto é, o Nordeste e o Centro-Sul do Brasil.

Para quem via o Acre a partir do Centro-Sul do país, sua característica de

incorporação tardia ao território nacional e, principalmente, suas características ambientais

como: densa vegetação, fauna diversificada e abundante, clima quente e úmido com longa

estação chuvosa, distância, isolamento, etc., tudo isso conjugado revelava sem grandes

dificuldades ao observador, a noção de fronteira, a visão do inexplorado, de algo que estava

à espera para ser (des)envolvido. Aquilo que estava envolvido pela floresta, que não tinha

semelhanças com o mundo urbano, aquilo que se mantinha quase em estado natural,

precisava ser civilizado, emergir para o progresso, fazer parte da Nação.

Uma Nação que na década de setenta, no entendimento de seus dirigentes, estava

unida no sentimento de construir um „Brasil Gigante‟, onde o Estado tinha a

responsabilidade por esse crescimento e, precisava achar a solução para essa inclusão.

Nesse contexto, a década de oitenta se inicia sem nenhuma novidade, se nos referenciarmos

no pensamento do Governo Federal para a Amazônia. Os ideais do governo Figueiredo não

eram diferentes dos ideais dos governos anteriores. No caso da Amazônia eles foram

revelados numa mensagem enviada ao Congresso Nacional, em 1980, pelo então Ministro

do Interior, Mário Andreazza onde ele repetia a ladainha entoada na década anterior e

propunha que a "exploração" da região se desse com base no desmatamento, mas que fosse:

40

- O conceito de desenvolvimento é polissêmico e, embora a maioria das referências que se faz ao termo

destaque o aspecto do „crescimento econômico‟ (outro conceito não menos problemático), há autores, como é

o caso de Amartya Sen (2001) que destaca outros aspectos e vincula o desenvolvimento às liberdades. Para

Sen não é possível falar em desenvolvimento sem liberdade, concebendo liberdade como possibilidade de

escolha. Para ele, portanto, o conceito de desenvolvimento está deslocado da questão geográfica, nacional,

política e mesmo da situação econômica dos países, pois de nada vale um país ter um grande PNB, se seus

habitantes não dispõem de condições mínimas de escolha, entendendo escolha como conceito expandido para

além da possibilidade de votar, ou de ir e vir. Pois, escolha, é antes uma condição individual e coletiva que se

realiza na liberdade de ter e fazer escolhas (Agency Achievement), ou seja, a mobilidade social baseada na

condição e na possibilidade de escolha é que deve articular todos os outros setores para garantir o

desenvolvimento.

Page 79: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

80

“um desmatamento menos predatório e que mantivesse o equilíbrio ecológico da região”. A

essa forma de “exploração” ele denominava „política florestal‟.

No entanto essa idéia de política florestal, embora vista como fadada ao erro, foi

recebida pelos governos e também por alguns jornalistas da região, como um “mal

necessário” para o desenvolvimento. Numa matéria publicada no jornal Gazeta do Acre,

podemos entender o caráter da “grandeza” que o Estado Militar devotava à questão da

Amazônia. Observemos o que diz a matéria:

Nunca antes em nossa história propôs-se a uma geração tamanha tarefa. Ela pode ser definida:

ocupação e colonização de outro País confiado à soberania do Brasil em desenvolvimento. A

Amazônia tem as dimensões de um país inexplorado. É algo assim como nos desafiarem a

desenvolver outro país de dimensões igual à do Brasil. Estamos capacitados para isso depois de

termos repetido fracassos no Nordeste? Embora a resposta seja negativa, a realidade apresenta o

problema amazônico sob a pressão de interesses econômicos extrativistas, madeireiros e

agropecuários. Não há como fugir à questão. E esta, tal como se verifica no projeto de política

florestal para a Amazônia, exige de nós a conciliação sábia entre a utilização das potencialidades

econômicas da região e a preservação de seus recursos naturais. (Política Amazônica. Jornal Gazeta

do Acre. Rio Branco, março de 1980, p. 03).

Essa idéia de gigantismo que os militares tinham dos recursos naturais brasileiros é

também percebida por Luis Fernando Cerri (2000), que ao estudar o sentido da propaganda

do período em que os militares ocuparam o poder, elaborou uma forte crítica ao projeto.

Escreveu ele:

Se pensarmos o regime militar como o momento em que a educação praticamente se generaliza para

a população, tanto no sistema escolar quanto através dos meios de comunicação de massa, é possível

afirmar que as falas desse período sobre o gigantismo e as virtudes do espaço ocupado pela nação

tiveram um papel bastante relevante na constituição dos padrões de identidade nacional que

perduram até hoje. Já se mencionou uma das linhas dessas falas, que é a questão do mar territorial.

Outra, com um apelo igualmente poderoso, é a fala que se refere à Amazônia e sua integração.

Assim, não só nos discurso e na propaganda política, mas também nos grandes planejamentos e na

ação governamental cotidiana, a ditadura do período em estudo ataca a temática do componente

espacial da identidade nacional: o mapa é vivenciado e internalizado pelo noticiário que coloca em

foco, dia a dia, as ações em torno do mar territorial de 200 milhas e do desbravamento da Amazônia,

posta como grande desafio, como última fronteira a ser integrada à nação. Não por acaso, o mar e a

floresta são dois importantes símbolos de massa. Ambos são compostos por pequenas unidades que,

sozinhas, pouco significam, mas reunidas às suas semelhantes, formam massas gigantescas, na exata

dimensão do gigantismo que se propõe para o sujeito coletivo da identidade brasileira41

. (CERRI,

2000, p.12).

41

- CERRI, Luis Fernando. Espaço e Nação na Propaganda Política do “Milagre Econômico”. Ponta Grossa:

UEPG - Revista de História Regional, 2000. Vol. 05, Nº. 02. Disponível em www.rhr.uepg.br – consulta

realizada em 12/03/2006. As referências seguintes ao autor fazem parte deste mesmo trabalho, também

publicado na Revista Brasileira de História Nº. 43, em 2002.

Page 80: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

81

O sentido da inclusão, contudo, revela que os projetos pensados cumpriam funções

meramente econômicas ou de segurança. O olhar era voltado para as possibilidades de

exploração de alguma riqueza que viesse ser encontrada, tais como minérios, madeiras,

alguns outros produtos florestais ou, em último caso, trazendo para cá colonos que, além de

povoar deveriam fazer produtiva a região através da pecuária e da agricultura, assim como

o mar era visto também, como plataforma de defesa e de exploração pesqueira, mineral e

energética.

Como no Acre não foi encontrado nenhum tipo de riqueza mineral, nos primeiros

momentos, a exploração madeireira e os projetos de colonização visando à agricultura e a

pecuária foram priorizados. A montagem e a organização dos empreendimentos, sempre

consideravam a região como despovoada e as terras como livres para ocupação e titulação,

era um „outro Brasil‟.

É com base nesta concepção que os governos militares haviam montado sua

estratégia, bem como haviam motivado seus exércitos para cumprirem tal esforço. Se não

havia outro exército a ser vencido, havia a natureza. Desbravar era a palavra de ordem dos

comandantes para suas tropas. Cerri (2000) diz que, para a propaganda militar:

O papel da estrada é central: ela quebra a monotonia das árvores entrelaçadas, rompe o seu denso

tecido, e faz presente a ação do coletivo nacional sobre a floresta inimiga, como um adversário que é

cortado de feridas por onde esvai a sua força, o que permite subjugá-lo. Para esse imaginário, a

floresta amazônica não tem serventia como está: só presta pelas suas riquezas, e para fazê-las vir à

tona é preciso destruir – ou ao menos subjugar – a imponente arrogância e indiferença com a qual a

floresta nos olha. (CERRI, 2000 p. 13).

Para os filósofos fardados, a floresta é entificada e qualificada: “é imponente,

arrogante e nos olha de forma indiferente”. Para esses estrategistas militares e civis,

incumbidos de desbravar a Amazônia, tudo o que era floresta era visto como representação

do atraso, do feio, do selvagem, do não civilizado. Era inimigo a ser derrotado, a ser

vencido, ser subjugado, ser dominado, pois incorporar e integrar a Amazônia se tratava de

uma guerra e a Nação não poderia perder nenhuma batalha.

É nesse contexto que se urde um estilo de propaganda bem colocado, calcado nos

conceitos múltiplos e polissêmicos de desenvolvimento, modernização, civilização, avanço,

da „Ordem e do Progresso‟, para fazer o “país caminhar em passos largos para o

desenvolvimento”, tão bem representados nas musiquetas encomendas como: “Esse é um

Page 81: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

82

país que vai pra frente...”, ou “As praias do Brasil ensolaradas...” no estilo Dom e Ravel; ou

das vozes guturais dos locutores oficiais, falando de uma Amazônia gigante que “acordava

de sono profundo, para se mirar nos efeitos do progresso que começava a chegar com as

estradas”; que: “cortando o coração da floresta estavam homens destemidos lutando por

uma pátria unida e forte”.

Uma espécie de rádio-dramaturgia tomou conta da região, através da Rádio

Nacional de Brasília e essa propaganda bem colocada surtiu o efeito desejado. Até mesmo

os habitantes tradicionais das florestas tiveram nos primeiros momentos e muitos mantém

até hoje certa sensação de satisfação, causada pelas propagandas das mudanças anunciadas,

ou ainda frustração pela saída dos militares do poder, pois só eles teriam concluído as

estradas. A perspectiva de deslocamentos rápidos para as cidades, de escolas para seus

filhos e netos, de assistência médica, etc., chegou a animá-los. Mas, para seu desencanto,

Luis Fernando Cerri (2000), adverte que:

Os índios e sertanejos que viviam embrenhados nas entranhas do inimigo (a floresta) não eram

homens, ou pelo menos não eram homens "como nós", no mesmo patamar de humanidade, portanto,

logo iriam perceber que os possíveis beneficiados com a construção de estradas não seriam eles.

Para Cerri, há uma flagrante contradição na propaganda do governo Médici, por

exemplo, quando projetava benefícios para as populações pobres da Amazônia, ao mesmo

tempo em que usava imagens de pobres de outras regiões que deveriam ser enviados para

povoarem os „espaços vazios‟, ou seja, por que não visualizava os próprios pobres da

região?

Os próprios governos locais, nomeados pelos militares instalados no Planalto

Central, percebiam a situação contraditória nas propostas a serem executadas. Num trecho

extraído do documento denominado “Plano de Ação do Governo do Acre”, de 1980, no

item que trata sobre organização agrária, sob o título “Dez mil sem a terra”, publicado no

jornal Gazeta do Acre, lemos:

A existência de um grande contingente de trabalhadores rurais, caracterizados como posseiros, sem

domínio sobre a terra, o desemprego e o subemprego da parcela significativa da população periférica

dos centros urbanos, principalmente Rio Branco, bem como a perspectiva de ocorrência de intenso

fluxo migratório vindo do Sul e Centro-Sul do país são fatores que vêm determinando ou tendem a

determinar uma demanda crescente por terra nos próximo quatro anos. Assim, pode-se esperar que

um contingente não inferior a dez mil famílias pressionará fortemente por acesso à terra no longo

Page 82: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

83

desses quatro anos, aspiração que deve ser basicamente atendida pela ação do Poder Público, em

vista da confusa situação fundiária não oferecer condições de operação para colonização particular. O

Incra deveria assentar, no período, 4.500 famílias em Rio Branco e Sena Madureira o que ainda

deixaria uma demanda não satisfeita de 5.500 famílias a serem atendidas pelo Governo do Estado via

Colonacre. Uma limitação crucial tem sido a falta de domínio do Estado sobre a terra em face da

indefinida situação fundiária. Na verdade o Governo do Estado não dispõe de terras que possam ser

destinadas a colonização. (Dez mil sem a terra. Gazeta do Acre. Rio Branco: 05.03.1980, p. 3).

Como podemos perceber, esta passagem de um documento do Governo do Estado

contrasta com os planos do Governo Federal, no sentido de que já detectava aqui,

problemas com a questão agrária, ou seja, já identificava um número significativo de

trabalhadores rurais sem acesso a terra, mas principalmente, indicava uma impotência do

Estado em resolver essa questão por causa dos problemas jurídicos então existentes,

gerados pela falta de definição da propriedade da terra no Estado, questão esta que se

desenrolava nos meios judiciários desde que o Acre foi incorporado ao Brasil pela via do

Tratado de Petrópolis, assinado com a Bolívia, em 17 de novembro de 190342

.

O aspecto contrastante reside fundamentalmente na perspectiva do Governo Federal

em ver a região como um vazio demográfico a ser preenchido e o Governo Estadual já estar

às voltas com a existência de trabalhadores extrativistas, sendo expulsos de suas posses

pelos „legítimos‟ proprietários, isto é, os que tinham obtido titulação dessas mesmas terras.

A opção de desenvolvimento pela via da agricultura e da pecuária extensivas serviu

também com estopim para a eclosão desses problemas fundiários e dos conseqüentes

problemas sociais, que vinham sendo tratados como casos de polícia ou, simplesmente,

sendo executados com requintes de crueldade e violência por pistoleiros contratados pelos

pretensos donos para fazerem à “limpeza” das áreas adquiridas. Muita dessa violência nem

chegava ao conhecimento do público urbano ou mesmo de outros seringais, pois eram

praticados em locais de difícil acesso e comumente sob a proteção de autoridades que

concordavam com essas ações.

A limpeza humana e o seu significado de retirada do homem de seu ambiente e a

limpeza do ambiente, no sentido de devastação da natureza, sintetizam os dois processos

mais agudos da ação de incorporação/integração do Acre ao Brasil. Nesse contexto os

42

- No Acre muitos proprietários (herdeiros) de terras apresentam títulos que foram concedidos pelo Governo

boliviano, antes da “Revolução Acreana”, sendo que grande parte desses títulos haviam sido reconhecidos

como legítimos pelo governo brasileiro, através de cartórios dominados pelos agentes que tinham interesses

na manutenção dos latifúndios representados pelos seringalistas.

Page 83: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

84

seringueiros também passaram por situações contraditórias, pois funcionaram como mão-

de-obra para os serviços de desmatamento, tornando-se peões de derrubadas e, ao mesmo

tempo em que estavam empregados, contribuíam para a destruição de seu modo de vida

tradicional.

A abertura das estradas que, em tese, serviriam para sua melhor mobilidade, para

dar acesso aos serviços públicos prestados aos moradores das cidades, também serviram

para trazer os novos ocupantes que disputariam terras com eles. Foi necessário um

determinado lapso de tempo para que percebessem a armadilha em que estavam enredados.

Martinello (1991) descreveu assim essa situação:

Desencadeava se assim uma nova fase da história econômica do Estado, bem como uma área de

tensões sociais que surgirão no bojo do choque entre os ocupantes das terras que já as trabalhavam e

os novos pretensos donos. Na verdade, uma das conseqüências mais calamitosas que a venda das

terras acreanas aos „sulistas‟ acarretou, foi à expulsão de um grande número de famílias que

dependiam da floresta e do extrativismo para sua subsistência. Com a progressiva desarticulação dos

seringais e a falência do aviamento, a maior parte deste contingente populacional começou a migrar

para os centros urbanos, mormente Rio Branco. Os que teimavam em permanecer em suas terras em

regime de subsistência, sofreram toda sorte de arbitrariedades e violências. (MARTINELLO, 1991,

p. 15).

A versão mais comum, após a venda das terras para os “sulistas” ou “paulistas”, é

de que aos seringueiros só restavam duas alternativas: fugirem rapidamente para a periferia

das cidades ou, deslocarem-se para os seringais bolivianos que na época estavam

desocupados e apresentavam boa capacidade produtiva. Porém, ainda na década de setenta,

surge uma terceira alternativa, que vai estar ligada diretamente à presença da Igreja

Católica (Prelazia do Acre-Purus que tinha uma linha progressista identificada com a

Teologia da Libertação), das ONGs, da CONTAG, de um certo embrião de partidos de

esquerda (PC do B, PRC e depois PT) e, ao surgimento do movimento sindical rural na

região. Essa terceira vertente defende a permanência e a luta de resistência pelos espaços

tradicionalmente ocupados.

A saída das áreas ocupada anteriormente se dava pela necessidade de preservação de

suas vidas e de seus familiares, já que no processo de limpeza humana dos territórios

adquiridos, os capangas contratados para o serviço, estavam instruídos para a intimidação e

para a promoção da violência física, econômica e psicológica, contra os moradores. Essa

Page 84: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

85

violência era sistematicamente tolerada pelo Estado, já que este havia dado garantias aos

compradores. Esse “clima” de impunidade e de acobertamento por parte do poder político

estatal, contudo, não era novidade para os seringueiros, pois eles já vinham sendo

molestados ao longo dos anos pela aliança entre patrões e detentores de cargos nessa

estrutura.

Nesse processo de limpeza humana, as práticas mais comuns foram: incêndio das

plantações, abatimento das criações por alvejamento com armas de fogo de grosso calibre,

espancamentos de seringueiros e seus familiares e, demolição seguida de incêndio das

moradias dos seringueiros, além das ameaças que eram constantemente repetidas, pelos

porta-vozes dos “novos proprietários”. O senhor Bartolomeu Moreira da Silva, que morou

mais de vinte anos na Bolívia, após sua saída do Acre, nos conta:

Eu trabalhava nessa rodagem que vai pra Rio Branco, lá perto do Araxá, mas quando chegou esses

paulistas, esses pessoal, esses paranaenses, que eles compraram lá, lá era dos Vilelas, não é? Ai quem

não saísse eles tocava fogo na casa, ai o cara corria. Eu morava na beira da rodagem, era cinco

minutos pra rodagem. Ai eu digo eu não sou disso, porque um homem tocar fogo na minha casa

comigo dentro, isso não vai dar certo, ai eu digo eu vou m‟embora, ai encontrei um doido que era

mais doido do que eu, e vendi por setecentos cruzeiros, ai fui m‟embora. (BARTOLOMEU

MOREIRA DA SILVA. Entrevista concedida ao autor em junho de 2001).

Atingidos por essa forma implacável de violência, boa parte desses trabalhadores

vai deslocar-se para as cidades próximas ou para o espaço territorial boliviano, promovendo

uma travessia que imprimiria mudanças significativas no seu relacionamento sócio-

ambiental e sociocultural. Comentando a questão agrária do Acre no final da década de

setenta, o bispo da Diocese do Acre-Purus, Dom Moacyr Grechi, alertava:

“Além destas irregularidades (prática da “grilagem”, falsificação de títulos, “esticamentos”), bastante

generalizadas, agravam-se os problemas sociais a partir do momento em que começam as derrubadas

nas áreas adquiridas pelas empresas para formar pastagens. Sendo que a terra geralmente é ocupada

por famílias de seringueiros ou agricultores um dos primeiros objetivos dos fazendeiros é o de

“limpar a área”, isto é, tirar das terras os moradores que nela trabalham 5, 10, 20 ou 40 anos, sem o

menor respeito pelos direitos dessa gente. Aproveitando-se do fato de os seringueiros e colonos não

conhecerem as leis agrárias e os direitos que elas garantem ou por não ter como fazê-los respeitar, é

comum a prática de expulsar posseiros através de métodos como: a) não fornecimento de

mercadorias para os seringueiros, obstrução de varadouros, proibição de desmatar e fazer roçados; b)

destruição de plantações, invasão de posses, derrubadas até perto das casas dos posseiros, deixando-

os sem ou quase sem terra para trabalhar; c) compra de posse e benfeitorias por preços irrisórios ou,

quando muito, em troca de uma área muito inferior ao módulo, o que não permitirá ao posseiro e

família trabalhar e progredir; d) atuação de pistoleiros que amedrontam os posseiros numa guerra

psicológica através de ameaças ou mesmo com espancamentos e outras violências; e) ameaças feitas

por policiais a serviço dos proprietários, prisões de posseiros por questões de terra sem ordem

Page 85: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

86

judicial, ou por ordem judicial sem que tenha sido movida ação competente. (...) Esta nova conquista

das terras acreanas que, sem dúvida, se situa dentro da lógica das empresas com capital acumulado

em outras regiões do País, veio encontrar apoio na política oficial que defende a “mentalidade

empresarial”, que vê na grande empresa agropecuária a única forma de integrar a Amazônia à

economia do País e que viabiliza esta política através dos “incentivos fiscais”. (“Como expulsar

posseiro”). Jornal Varadouro. Rio Branco, dezembro de 1979. (Entrevista com Dom Moacyr Grechi,

Bispo do Acre e Purus, p. 14).

A expressão “fui m‟embora”, é recorrente no linguajar dos seringueiros e pequenos

produtores que habitavam o espaço fronteiriço do Brasil com a Bolívia, nos municípios de

Brasiléia, Xapuri e Assis Brasil. Tanto pode ser um “fui m‟embora” para as cidades mais

próximas (Xapuri e Brasiléia), ou para Rio Branco, como pode também, ser para outro

seringal no país vizinho.

Neste mesmo contexto há os trabalhadores que permaneceram nos espaços onde,

tradicionalmente, articulavam sua sobrevivência e serão esses que irão se destacar na

recente história acreana, pela introdução de um mecanismo de resistência que ficará

conhecido como “empate”. No momento enfocaremos a situação dos que deixaram suas

antigas posses, deslocando-se para outros espaços motivados pelas imposições do processo

de desenvolvimento articulado à sua revelia.

Nesse sentido, é importante destacar que os que vieram para as cidades não

encontraram no ambiente urbano um espaço receptivo. As agruras das matas vão se repetir,

de forma ampliada, no novo espaço. De uma vida onde a moeda era praticamente

dispensável, para uma vida onde tudo dependia dela. De uma vida onde as letras não

haviam sido apresentadas, para uma onde elas se tornavam indispensáveis para a

articulação com o novo meio. Do abandono dos símbolos de referência na mata, para os

sinais de trânsito. Dos ramais e varadouros estreitos, onde necessariamente se anda bem

pelo meio, para evitar os galhos, cipós e espinhais, às largas ruas, onde se tem que andar

pelas beiradas para ceder lugar aos automóveis, motocicletas, bicicletas e carroças. Do

isolamento por falta de gente para conversar, para um isolamento por não saber falar no

meio de tanta gente. Do local de um só patrão, para um local de muitos patrões. Da

passagem de uma atividade que se repetia ano após ano, para atividades diferentes a cada

dia.

O que podemos perceber é que a abertura das picadas que serviriam para a

construção das estradas que não chegaram a ser concluídas, em que pese todos os seus

Page 86: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

87

percalços e equívocos, contribuíram para promover mudanças significativas, se não na

economia, mas pelo menos no modo de vida das populações tradicionais, especialmente os

seringueiros e castanheiros, que viviam do extrativismo e das pequenas roças. Os grandes

desmatamentos, seguidos das queimadas e a expulsão desses trabalhadores de suas antigas

posses, movimentaram governos, empresários e trabalhadores rurais (florestais) em geral.

Será necessário ainda um grande esforço para podermos expressar o significado dos

grandes desmatamentos e a construção das grandes fazendas para criação de gado e seus

impactos nos setores sócio-econômicos do Estado, bem como para identificarmos o

significado do „desenvolvimento‟, ocorrido a partir desses empreendimentos. Algumas

pistas nos são acessíveis a partir de depoimentos como o do senhor Antônio Pedro da Silva,

ex-seringueiro que em 2001, aos sessenta e oito anos e naquela data, morando no Bairro da

Bahia, em Rio Branco, falando sobre sua vida, nos disse:

Eu gostaria de tá cortando seringa, né? Porque é o seguinte, lá dentro do seringal, nós que é

acostumado dentro do seringal, sabe? Nós que temos aquele costume dentro do seringal, num dia de

domingo, por exemplo, que nem hoje, a gente pega a espingarda, põe no ombro e se põe na mata,

mata um veado, mata um porco, mata uma paca, um quatipuru, qualquer coisa, né? Só sei que no

outro dia a gente tem aquela carne pra dar de comer aos filhos e pra gente também. E assim a gente

vai levando, agora aqui é tudo mais difícil, num tem caça, num se pode mariscar que os fiscais

tomam tudo, eu sei que é assim, mais difícil. (ANTÔNIO PEDRO DA SILVA, entrevista concedida

ao autor em julho de 2001).

Os impactos mais visíveis, contudo, são os da mudança da paisagem e dos modos de

vida dos retirados (expulsos). Os grandes desmatamentos que acompanham os eixos

traçados para a construção das estradas causaram as mais diversas reações: nos primeiros

momentos, reações favoráveis, pois estavam ligadas às perspectivas dos investidores e dos

governos que viam na devastação o embrião do desenvolvimento. Era o homem “domando

a natureza”.

Posteriormente, os impactos ambientais, a fumaça das queimadas, o assoreamento

de rios e igarapés, a secagem de lagos, a redução acentuada do pescado e das caças e os

conflitos sociais provocados pela expulsão dos seringueiros de suas colocações gerariam

reações contrárias ao modelo de desenvolvimento praticado. Por outro lado, as populações

urbanas que não tinham acesso às carnes dos animais silvestres que eram caçados pelos

seringueiros, sentiram com o advento da pecuária uma melhora no acesso à carne bovina,

que até a década de oitenta era rara nos mercados das cidades menores e mesmo da capital.

Page 87: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

88

Portanto, se formos comparar quesitos geradores de bem-estar para os diversos

setores populacionais do Estado, entraríamos num debate perigoso e relativista, pois o

entendimento do conceito de segurança alimentar está vinculado também ao acesso da

população às fontes energéticas necessárias para seus organismos. A oferta de mais carne

nos mercados públicos, alegadas pelo governo e fazendeiros como símbolo de

desenvolvimento43

não significaram, por outro ângulo, melhoria das possibilidades de

ingestão desse alimento por segmentos que não dispunham de rendas para tal, enquanto que

nos seringais esse acesso estava mais ligado às habilidades do seringueiro, tanto no manejo

da espingarda, como no dos equipamentos de pesca, ou ainda, para se livrar de uma

“panema”, para esse acesso.

A referência do senhor Antônio Pedro da Silva de que no seringal seria melhor

porque lá ele tinha mais liberdade para acessar os alimentos que a mata disponibilizava, nos

revela também uma contradição com a noção de que a cidade representa, desde a Idade

Média, a realização da liberdade (Huberman, 1979). Para os seringueiros deslocados das

florestas para as cidades, o urbano e seus mecanismos de organização eram vistos como

obstáculos. Desde as condições de moradia, com muitos casebres amontoados em pequenos

espaços (na mata estão eles e o mundo para encontrar outro vivente), os transportes, os

tipos de trabalhos e, principalmente, a presença do Estado que tudo regula (no caso ele

reclama do IBAMA que não permite a pesca em determinadas situações), tudo aparecia

como limitador.

Deslocamentos e limitações sociais, são as definições que opõem as perspectivas de

desenvolvimento pensado e implementado pelas elites civis e militares para a inclusão do

Acre ao Brasil. No lugar de facilidade de acesso, as estradas abriram uma mão-única para a

expulsão de antigos moradores de suas posses. No lugar do crescimento econômico se

praticou uma exploração e destruição de parte significativa do ambiente natural causando

um desastre ecológico de proporções ainda não avaliadas. No lugar das populações

tradicionais, vieram os colonos que grosso modo foram abandonados à própria sorte com a

falência dos projetos de assentamentos.

43

- No Acre virou moda um adesivo usado por fazendeiros em suas camionetes, com a frase: “Você já comeu

carne hoje? Agradeça a um fazendeiro”. A idéia era expressar a importância dos fazendeiros para o

“desenvolvimento” do Estado, muitas vezes questionadas pelas ONGs ligadas ao ambientalismo e, mesmo por

sindicatos de trabalhadores urbanos, preocupados com os impactos ambientais causados pelos

desmatamentos.

Page 88: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

89

Os múltiplos objetivos dos militares, povoar e desenvolver, para integrar e defender

a Amazônia padeceu de um mal crônico que acomete as elites, ou seja, elas pensam e

executam projetos que são voltados para satisfação imediata de lucros e nunca consideram

as camadas menos aquinhoadas que teimam em viver nos espaços solicitados por essas

elites para a realização de suas pretensões. A exclusão social e o tratamento

providencialista promovido pelas elites militares e civis são os resultados visíveis dessas

ações. Primeiro provocam os desastres sócio-econômicos e ambientais, com o apoio do

governo, depois exigem que esse mesmo governo resolva os problemas sociais e ainda os

ajude a vencer as crises econômicas em que se enredaram.

A abertura das intrafegáveis estradas projetadas pelos Governos Militares, a

implantação da pecuária extensiva, e a organização de projetos de assentamento no Acre,

causaram impactos naturais e sociais que mudaram a paisagem da região. Os grandes

desmatamentos, seguidos das grandes queimadas, que foram apresentados inicialmente

como ações para o progresso, não cumpriram suas promessas, pois o Estado continua com

forte tendência extrativista, embora a borracha e a castanha tenha perdido espaço para a

exploração madeireira e a pecuária. Porém, como um tiro que sai pela culatra, os

desmatamentos e a abertura das estradas, revelaram segmentos sociais que estavam

escondidos sob o imenso chapéu verde da floresta. O (des)envolvimento da floresta acabou

envolvendo parte de seus habitantes, num processo de contestação que também passara a

fazer parte da história, como protagonistas: os desflorestamentos (des)envolveram os

„povos da floresta‟.

Page 89: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

90

CAPÍTULO II: AS NOVAS FORMAS DE APRISIONAMENTO DA TERRA E AS

MUDANÇAS NA ESTRUTURA PRODUTIVA.

Este capítulo destina-se a apresentar os efeitos mais diretos da implementação das

políticas dos governos militares, em nível nacional e civil no nível local, sobre os

trabalhadores extrativistas, principalmente o que diz respeito à nova condição de uso da

terra.

Destacaremos também a entrada em cena de novos agentes sociais (os colonos, os

fazendeiros e os grileiros) vindos de outras regiões e suas interações com o novo ambiente

e as populações locais.

No item destinado ao estudo das convulsões sociais geradas por esses

encontros/desencontros, enfocaremos a questão das diversas formas de violência, geradas

pelos estranhamentos entre os agentes locais e os chegantes, mas também, buscando

compreender a violência no contexto da própria ocupação mais tradicional desse território.

Utilizaremos como fontes, na questão da terra, os dados estatísticos produzidos pelo

INCRA, pelo ZEE, matérias publicadas em jornais, Planos de Governo e materiais

produzidos por entidades de classe, além de material bibliográfico.

Page 90: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

91

2.1 DOS SERINGAIS ÀS FAZENDAS DE GADO; DAS COLOCAÇÕES ÀS POSSES:

OS PATRÕES, OS FAZENDEIROS, OS COLONOS E OS EXTRATIVISTAS

DISPUTANDO TERRITÓRIOS E ESPAÇOS.

O processo inicial de ocupação das terras do Acre por não índios foi um movimento

aleatório, no sentido de que não houve uma divisão prévia para donatários, arrendatários,

sesmarias etc. A busca pelas „drogas do sertão‟ e, posteriormente, pelo „ouro negro‟ – a

borracha - determinou o ritmo dessa ocupação, sempre seguindo o curso dos rios. O escritor

Leandro Tocantins (1982) chega a considerar que o Acre foi uma realização brasileira do

século XIX pois, para ele, após a descoberta da vulcanização da borracha, por Thomas

Hancock, na Inglaterra e por Charles Goodyear nos Estados Unidos, em 1844, abriu-se um

vasto campo para a utilização desse produto que era exclusivo da região, principalmente

para a indústria de pneumáticos, após as experiências de John Boyd Dunlop, que resultaram

na invenção do pneu, em 1888.

De acordo com Martinello (1988), os primeiros seringais foram organizados no

Estado do Pará, mais precisamente na região das ilhas, inclusive na grande ilha de Marajó.

Porém, a intensa procura pelo produto fez com que alguns problemas fossem revelados,

dentre eles a escassez de mão-de-obra e a baixa produtividade naquela região. Esses fatores

desencadearam ações que visavam recrutar mais mão-de-obra, bem como expandir as áreas

produtoras, para atender a demanda e ampliar as oportunidades de negócios. Logo se

descobriu que para além do Pará, Amazonas e Rondônia, na direção Oeste, seguindo a

calha de alguns rios, havia abundância de hévea brasiliensis (a seringueira), era a

„descoberta‟ do Acre como grande produtor de borracha.

É nesse contexto que se aliam os problemas fundiários do Nordeste, com os efeitos

da seca de 1877 e a expectativa de enriquecimento fácil na Amazônia, anunciado pelos

recrutadores de mão-de-obra, que repetiam a tese do Eldorado na Amazônia.

Embora exista uma corrente historiográfica que defende a noção de que a grande

seca de 1877, no Nordeste, tenha sido a principal causa da vinda de milhares de nordestinos

para o Acre, há também que se pensar que o povoamento da região se deu de forma mais

acelerada, justamente cerca de dez anos após essa seca, ou seja, por volta de 1888, o que

contradita com a tese da seca como fator determinante. A esse respeito, Roberto Santos

Page 91: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

92

(1980), já havia destacado vários outros pontos que serviam de “atrativo” para que o

nordestino viesse para a Amazônia, dentre eles: o preconceito que eles tinham em se dirigir

para os cafezais do sudeste, pois consideravam o trabalho naquela lavoura como coisa de

escravos; a ânsia de enriquecimento fácil propiciado pelo boom da borracha; a perspectiva

de apropriação de terras, etc. No texto sobre o processo de ocupação territorial do Acre, do

Zoneamento Ecológico Econômico do Estado, lemos:

A migração não se realizava só em função das secas periódicas que a região atravessava, mas pelo

pensamento do nordestino, que, por causa da intensa propaganda, sonhava com o eldorado

amazônico como uma nova opção de vida, num contexto em que a borracha era tida como a salvação

para seus problemas de sobrevivência. Uma rápida análise para a compreensão desse nordestino

como força de trabalho pode captar o seu direcionamento para a extração do látex, tendo em vista

que existia uma carência para essa atividade econômica. Dessa forma influenciado por nações

estrangeiras, preocupadas com o lucro extraído da atividade gomífera, houve a preocupação, por

parte do governo brasileiro, de incentivar a ida desses imigrantes para a Amazônia. É evidente que

nesse panorama, estava embutida no imaginário do imigrante a idéia de “paraíso perfeito”. Mero

engano, pois o que, em princípio, era “paraíso”, tornou-se um temível “inferno”, e o tão sonhado

enriquecimento fácil transferiu-se para outros setores que não o seu. (ZEE, 2000, v. II p. 19).

Como se pode ver nesse fragmento, o empreendimento gomífero não resulta apenas

de uma iniciativa de nordestinos pobres, desamparados e expropriados. Antes, há toda uma

articulação de setores governamentais e privados, que financiavam e organizavam a

empresa. A aleatoriedade, comentada acima, só se deu no processo de ocupação das terras,

por parte dos organizadores, pois cada empreendedor subia os rios com uma leva de

trabalhadores e após definir uma região como propícia, desembarcavam e iniciavam os

procedimentos para estabelecimento da unidade de produção, ou seja, a localização das

seringueiras para, posteriormente se fazer às estradas de seringa e construir a sede do

seringal, região da qual se apropriava e passava a defender de outros empreendedores.

Nessa fase, funcionava o princípio da posse por ocupação e os limites das áreas

eram imprecisos, comumente acompanhavam a distribuição das madeiras identificadas nas

colocações, ou seja, basicamente, formava uma propriedade aquilo que um „patrão‟

conseguia ocupar e defender, uma espécie de “uti posidetis”. Por outro lado, não foi um

processo individualizado, atomizado, foi antes um empreendimento que contava com redes

articuladas de indivíduos detentores de muitos recursos (capitais), para dar inicio ao

recrutamento de homens e aquisição de equipamentos que seriam necessários para o êxito

do negócio, isto é, havia gente de fora que “apostava”, que investia na empresa.

Page 92: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

93

O seringal foi por excelência uma construção social, onde desde o seringueiro mais

distante até as casas aviadoras e exportadoras, tudo tinha que funcionar dentro de um

sistema que o tornava produtivo. Porém, essa construção social tinha uma formatação que

anulava as possibilidades de ganhos por parte dos seringueiros, funcionando rigidamente

em benefício dos seringalistas e das casas aviadoras e exportadoras. O seringal construído

por muitos, pertencia a um patrão, tinha a função de lhe garantir lucros.

Quando verificamos a questão de posse e propriedade nos seringais identificamos

que as constantes disputas entre patrões sob a alegação de invasão de propriedade do outro,

é que vai desencadear a necessidade de titulação das terras por „eles desbravadas‟.

No caso do Acre, como legalmente o território ocupado pertencia à Bolívia, as

autoridades brasileiras não podiam interferir, o que fez com que muitos „proprietários‟

conseguissem títulos com autoridades bolivianas, peruanas e mesmo o Estado do

Amazonas se arvorava como autoridade para conceder títulos de áreas que não estavam sob

sua jurisdição, o que originou uma forte indefinição fundiária quando o Acre passou a fazer

parte do território nacional brasileiro. As irregularidades eram tantas que, na década de

sessenta, com a reorientação econômica da região, proposta pelos governos militares,

surgiu nova necessidade de demarcação e titulação. Num texto do Zoneamento Ecológico-

Econômico, que apresenta a estrutura fundiária do Estado do Acre, lemos:

A irregularidade das pretensas propriedades só emergiu quando o Governo Federal estimulou a

reorganização do espaço econômico. Com o propósito de “modernização” e efetiva integração da

Amazônia ao território nacional, o Governo Federal cria, então, mecanismos de atração de capitais

do centro-sul do país. Na nova situação, a terra assume efetivamente o caráter de mercadoria. O

processo de reorientação da economia amazônica, particularmente acreana, contou, de um lado, com

a retirada de apoio financeiro aos seringalistas, e, de outro com incentivos fiscais, financiamentos e

propaganda junto aos potenciais investidores. Com o extrativismo gomífero em crise no mercado,

sem apoio creditício, os seringalistas são induzidos a vender suas terras, que apresentam, nesse

contexto, preços extremamente atrativos. O Acre foi incorporado marginalmente nesse processo, pois

seu isolamento não o tornava particularmente atrativo aos investimentos. Assim, o que parece ter

contado mais, foi a junção da crise dos seringais com a campanha empreendida pelo então

Governador Francisco Wanderley Dantas, buscando atrair investimentos externos, como forma de se

incorporar à “modernização” amazônica. O esforço foi bem sucedido. Segundo estudo do

CEDEPLAR (1979), entre 1972 e 1974, a valorização das terras não foi menor que 1000%, tendo

sido maior nas áreas já servidas por rodovias, onde teria chegado a 2000%. (ZEE, 2000, p. 31 e

conforme cadastro do INCRA, 1999).

Fato que para a população comum, essa titulação não era acessível. Apenas os

“homens influentes”, os seringalistas, tinham algum tipo de título de propriedade. Essa

Page 93: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

94

situação perdurou até a década de setenta do século XX, quando se iniciaram os esforços do

Governo Estadual e do Governo Federal, no sentido de montar outra estrutura produtiva,

em substituição ao extrativismo. No processo de venda dos antigos seringais para os novos

empreendedores do Centro-Sul, realizou-se uma nova tentativa de garantia de posse por

parte dos adquirentes, das áreas alegadas pelos seringalistas (vendedores) como sendo suas,

pois na verdade, antes da chegada dos “paulistas”, a terra titulada estava nas mãos de

poucos, embora para seus donos elas estivessem improdutivas, ou servissem apenas para

cobrança de renda dos extrativistas que se mantinham em suas antigas colocações, mesmo

após a falência dos seringais.

Com a aquisição dessas terras pelos “paulistas”, em quase nada mudou a situação

fundiária. A terra manteve-se na mesma ordem de concentração, ou seja, se 98,4% das

terras pertencia a menos de 01% da população, ela apenas se concentrou um pouco mais,

pois alguns dos novos empreendedores compraram vários seringais contíguos. No jornal

Varadouro, encontramos a seguinte descrição:

Antes da chegada dos grupos econômicos do Centro-Sul do País, as terras já estavam nas mãos de

poucos, embora improdutivas devido à decadência dos seringais nativos. Por volta de 1970, nada

menos do que 98,4% das propriedades existentes tinham áreas acima dos mil hectares, colocando o

Estado nos primeiros postos em termos de concentração da propriedade. Com essa concentração,

cerca de 85,3% das famílias que viviam no campo eram de não proprietários. A partir de 1970, com a

venda (ou “grilagem”) dos seringais a situação permaneceu inalterada: dos 4.280 mil hectares

vendidos a proprietários de fora, no período de 1970 a 1974, mais de 30% passou ao poder de apenas

quatro proprietários. No Acre, aconteceram desses fatos dificilmente repetíveis em qualquer outra

parte: as fazendas Novo Oeste, do grupo Atlântica Boa Vista, e a Califórnia, do Grupo Atalla

(Copersúcar), ocupam nada menos do que uma área 1,9 milhões de hectares. (A terra nas mãos de

poucos. Jornal Varadouro, nº. 07, novembro de 1978)

A aquisição dessas grandes porções de terras por parte dos grupos econômicos

forâneos, cumpria parte do projeto dos governos Estadual e Federal de atrair grandes

grupos econômicos para o Estado, mas estava longe de garantir o desenvolvimento que eles

planejaram. Alguns dos grupos que adquiriram terras enviavam apenas uns poucos

administradores para efetuar os processos de limpeza humana das áreas, promovendo o que

o jornalista Lúcio Flávio Pinto (Varadouro, nº. 07, nov. 1978) denominou “um mero

negócio imobiliário, uma alta jogada financeira, um procedimento especulativo”.

Apontando que de 1970 a 1977, essas terras tiveram uma valorização de até 2.000%. O

mesmo jornalista diz que: “Nos principais hotéis de Rio Branco e de alguns municípios

Page 94: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

95

hospedam-se permanentemente verdadeiras “gangs” especializadas em repassar terras

adquiridas já de terceiros”. Ou seja, as terras do Acre tornaram-se nesse período, objeto de

nova apropriação, de nova definição de seu perfil fundiário. Lúcio Flávio assinala ainda

que: “aqui se identifica à figura do bandido remetido pelo mocinho”, isto é, os grileiros

atuando impunemente, em nome de grandes investidores.

A transição do sistema seringal para o sistema fazendas agropecuárias aconteceu em

ajustes feitos pelo alto, ou seja, entre os antigos patrões seringalistas e os novos patrões

fazendeiros, com plena concordância das estruturas estatais. O resultado, após dez anos de

inicio do processo, estava expresso na seguinte configuração: 78% dos imóveis rurais do

Estado são minifúndios que ocupam menos de 2% da área total cadastrada. Os latifúndios

representam 20% do número de imóveis, detendo 94% da área total. O restante de imóveis,

2,5%, é de empresas rurais, ocupando 4% da área total. (Terra nas mãos de poucos. Jornal

Varadouro. Rio Branco: edição nº. 07, de nov. de 1978).

Em 1980, uma acirrada discussão entre os advogados Jersey Pacheco e João Tezza

(defensores de seringalistas e fazendeiros, respectivamente) de um lado e, Océlio de

Medeiros (defendendo desapropriações com base no Decreto-Lei Nº. 6.739), de outro,

tomou conta das páginas do jornal Gazeta do Acre. A polêmica foi levantada por Océlio de

Medeiros que citou alguns seringais como o Carmem, em Brasiléia e o Valle del Rio

Chandless, em Sena Madureira, como exemplos de áreas que poderiam ser desapropriadas

pelo governo, sob a vigência do Decreto-Lei nº. 6.739, de 05 de dezembro de 1979,

denominado Decreto Contra Grilagem, ao que foi interpelado pelo advogado Jersey

Pacheco que defendia os proprietários do último, de que o seringal era totalmente

documentado, registrando assim sua defesa:

1) O Título de Concessão da região gomífera “VALLE DEL RIO CHANDLESS”, foi expedido à

Frederico Carlos Jãna, pelo doutor Andrés S. Muñoz, Delegado Nacional do Supremo Governo

Boliviano nos Territórios de Aquiry e Alto Purus, em Puerto Alonso, a 2 de dezembro de 1899,

conforme publicou o jornal “EL ACRE”, na mesma data e local, consoante o concessionário ter

efetuado o pagamento de dezesseis anuidades correspondentes ao valor da gleba, conforme recibo

expedido pela Dirección del Tesouro Nacional Boliviano; 2) O referido Título foi transcrito a 5 de

dezembro de 1899 no “Notário Especial del Território del Aquiry y Alto Purus, em Puerto Alonso,

acompanhado do Mapa Plano Topográfico, expedido pelo Ministério do Governo e Fomento da

Seção de Topografia da Bolívia; 3) Em data de 1º de outubro de 1933, Manoel Meireles de Queiróz,

adquiriu de Frederico Carlos Jãna e sua mulher Carolina Jãna o Imóvel “VALLE DEL RIO

CHANDLESS” por 100.000 pesos bolivianos, através de Escritura Pública de Compra e Venda

lavrada no 3º Ofício de Notas de Cobija, Departamento de Pando – Bolívia; 4) O mesmo foi

cadastrado na Prefeitura Municipal de Sena Madureira, conforme certidão expedida a 3 de janeiro de

Page 95: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

96

1944, sua Escritura de compra e venda transcrita às fls. 139/140 do Livro nº. 3 do Registro Geral de

Imóveis e com os demais documentos registrados às fls. 55 do Livro nº. 2, da Comarca de Sena

Madureira; 5) No INCRA, foi cadastrado à 9 de fevereiro de 1974 e recadastrado à 9 de agosto de

1878. (NUNES, Jersey P. Títulos se perdem na história. Jornal Gazeta do Acre, trecho de carta

publicada na edição de 5 de fevereiro de 1980).

O advogado Jersey Pacheco ainda argumenta que toda a transação está respaldada

pelo texto do Tratado de Petrópolis, que assegura legitimidade aos atos das autoridades

bolivianas, que tratavam da concessão de terras, praticados antes desse Tratado, bem como

teve sua legitimidade, reforçada pelo texto da Exposição de Motivos Nº. 77/78, de 10 de

outubro de 1978. Conforme ele alega, estar escrito na alínea “c": “Os expedidos pelos

Governos da Bolívia, do Peru, do Estado do Amazonas e do ex- Estado Independente do

Acre, em data anterior a sete de abril de 1904 e concernentes a terras rurais acreanas,

observados, sempre que possível, os requisitos de morada habitual e cultura efetiva”.

(Idem).

Já o advogado dos fazendeiros e também fazendeiro João Tezza se insurge mesmo é

contra o Decreto-Lei, que segundo ele coloca em dúvida a propriedade de todas as terras do

Acre:

“Essa lei terá compulsoriamente, quando aplicada, a argüição do princípio da constitucionalidade,

porque ela nega um dos mais antigos direitos constitucionais adquiridos, o princípio do contraditório.

Por esse princípio, qualquer ato jurídico para ter sobre ele uma sentença destruindo-o necessita que a

parte prejudicada seja ouvida em processo regular, para poder aduzir suas razões. Essa lei é arbitrária

e violenta, própria de um regime de exceção que ainda vivemos”. (Titulação: agora, críticas ao

regime. Jornal Gazeta do Acre. Entrevista com o advogado João Tezza, publicada na edição de 25 de

janeiro de 1980).

As reações dos „proprietários‟ e seus representantes, nos dão uma dimensão da

fragilidade em que estavam montadas suas titulações. No caso das argumentações do

advogado Jersey Pacheco Nunes, notamos que a base da documentação foi montada a partir

da concessão por autoridades bolivianas, inclusive com os registros cartoriais tendo sido

expedidos em cartórios de cidades bolivianas. Esse parece um fato lógico, já que não se

poderia efetuar o registro em cidades brasileiras, por estar a área pretendida, dentro das

fronteiras bolivianas àquela época. O único porém, é que em 1898-9, não havia a menor

possibilidade das autoridades bolivianas, que acabavam de chegar à região, ter domínio

topográfico, por exemplo, da área onde hoje estão localizados os municípios de Sena

Madureira ou, mesmo de Brasiléia, já que quando chegaram à região, aportaram numa base

Page 96: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

97

no rio Acre, que denominaram Puerto Alonso (atual Porto Acre), local que é relativamente

distante da cidade de Sena Madureira e, mais distante ainda da cidade de Cobija, a capital

do Departamento de Pando. Fato que por si os impossibilitava de condições e agilidade

para delimitação precisa das áreas dadas como registradas, conforme alega o advogado.

Outro aspecto que corrobora com a tese de que os tratados assinados em época

posterior à tomada do Acre da Bolívia, respaldam a propriedade dos seringalistas, reside

exatamente no fato de que a guerra (e a História), da tomada desse território foi feita pelos

próprios seringalistas, que ajudados pelos seringueiros e alguns agentes que se envolveram

na disputa, movidos por interesses diversos, mantiveram a propriedade e posse das áreas

em litígio. Neste caso, nada mais elementar que as autoridades brasileiras, através de sua

diplomacia, também tratassem de forma diferenciada esses seringalistas, concedendo-lhes

as terras reivindicadas, em mais um ajuste pelo alto, visando não complicar as relações

entre as elites.

Já na argumentação do advogado João Tezza, a inconstitucionalidade do Decreto-

Lei e a argüição de arbitrariedade e violência, são antepostas à possibilidade do Governo

Federal ou Estadual intervir no sentido de desapropriação das áreas onde a titulação não

tinha a devida comprovação. O fato de se ter usado da violência para aquisição das terras,

ou expedientes, no mínimo, suspeitos para titulá-las, não constitui ilegalidade, pois, por seu

prisma, ela só pode ser argüida quando se coloca contra a manutenção de pretenso direito à

propriedade.

A explicação para as paixões em defesa da grande propriedade no Acre, deve ser

buscada no resultado do seu processo de ocupação. Alberto Passos Guimarães, em sua

importante obra Quatro Séculos de Latifúndio (1977), mostra que, exatamente o Acre,

pelos dados do Censo de 1960, era o Estado brasileiro onde o grau de concentração da

propriedade era o mais elevado. Em outros termos, isso significava que nesse Estado o

número de propriedades com mais de 1.000 hectares ocupavam aproximadamente 94 por

cento do total das propriedades cadastradas. José Fernandes do Rêgo, que em 1980, era

Secretário de Fomento do Estado do Acre, em depoimento a CPI da Terra, da Câmara

Federal, afirmou que:

Page 97: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

98

“Se compararmos o Acre com um Estado de idênticas proporções na extensão, como é o caso do

Ceará, veremos como é grave a nossa posição, pois, enquanto os estabelecimentos agrícolas de mais

de 1.000 hectares somam 98,4 por cento do total em meu Estado, no Ceará, esta proporção é de

apenas 28 por cento”. (RÊGO, José Fernandes do. Como encurtar o latifúndio. Jornal Varadouro. Rio

Branco: Edição de dezembro de 1979, p. 14).

A propriedade da terra no Acre evoluiu a partir dessa imprecisão topográfica do

seringal para um quadro de preservação hereditária dessas propriedades, gerando uma

concentração extremamente injusta e desproporcional. Os dados de 1960, apontados por

Alberto Passos Guimarães, referentes à concentração, como algo em torno de 94%, estão

muito próximos dos apresentados por Lúcio Flávio Pinto, para os anos 70, de José

Fernandes do Rêgo, para os anos 80 e, mantendo-se quase no mesmo nível de concentração

em 1999, de acordo com o INCRA, ou seja, as mudanças de donos e de propósitos na

utilização das terras passaram longe da resolução da questão fundiária, embora nesse

ínterim, a União tenha tomado posse de muitas terras, com o intuito de organizar projetos

de assentamento.

Usando dados do INCRA, da FUNAI e do IBAMA, relativos à situação das terras

do Estado do Acre para o ano de 1999, os organizadores do Zoneamento Ecológico-

Econômico, apontavam que após a intervenção do Estado na regularização da propriedade

das terras, elas adquiriram a seguinte configuração: terras destinadas ao Poder público

correspondiam a 49,04% das terras do Estado. Estas estavam distribuídas entre projetos de

assentamento e colonização (9,00%), projetos de assentamento agroextrativista – PAE

(1,27%), reservas extrativistas (9,68%), terras indígenas (14,20%), florestas nacional e

estadual (1,56%), unidades de conservação (6,00%), terras públicas (áreas arrecadadas pelo

INCRA, não destinadas 7,37%). (ZEE, 2000. Vol. II, p. 35)44

.

No caso das terras particulares ou reivindicadas por particulares, temos o total de

48,08%, da área total do Estado, sendo que apenas 25,99%, são discriminadas pelo INCRA,

permanecendo um total de 22,09% de terras reivindicadas por particulares sem

discriminação. Os outros 2,84% das terras pertencem às áreas urbanas, militares, estaduais,

etc., ou seja, como o Acre tem um total de 15.314.990 hectares, quase metade dessa área

está nas mãos de particulares, obedecendo a uma distribuição exageradamente desigual,

como já tratado, acima. (Idem).

44

- Na segunda fase do ZEE, publicado em 2006 esses números já estão mais atualizados e apontam um

domínio das terras do Estado como sendo de 55,65%.

Page 98: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

99

Há casos em que os herdeiros – proprietários nunca chegaram a colocar os pés na

área reivindicada, mesmo assim alegavam à propriedade da terra, apresentando como

justificativa os títulos conseguidos através de manobras cartoriais. Muitas vezes foram

esses “herdeiros” que atuaram na venda dessas terras para os paulistas. A transição de

donos de seringais para donos de fazendas obedeceu a um protocolo cartorial. Na década de

setenta, década da transição, alguns „investidores‟ (podemos ler também, alguns grileiros e

especuladores) denominados na região como paulistas, chegaram a comprar terras por

estimativa. Como o hectare era muito barato, em torno de Cr$ 2,00 (dois cruzeiros), os

novos compradores fechavam o negócio sem ter a devida delimitação topográfica das áreas,

para depois fazer a medição. O processo de „esticamento‟ fazia a complementação da

transação. Em matéria publicada no jornal Varadouro, lemos:

Eles começaram a chegar em 1972. Prepostos de grupos nacionais ou estrangeiros, especuladores de

terras, grileiros ou simples aventureiros. Vinham de braços dados com seus jagunços, e aqui

encontravam outros aliados: o então governador Wanderley Dantas, os chefes de cartórios, alguns

juízes e a polícia. Em pouco tempo, dois ou três anos, compraram a maior parte dos 15 milhões de

hectares que o Acre possui, e desarrumaram a vida de 40 mil famílias de seringueiros. A nova ordem

econômica decretada ou estimulada pelo governo federal era a pecuária em vez da borracha. O boi no

lugar do homem. (“Os novos donos do Acre”. Jornal Varadouro. Rio Branco, 1980. Nº. 19, edição

publicada em maio de 1980, p. 8).

Nesse processo de transferência das terras, foi fundamental o apoio institucional,

tanto do Governo Federal, com os financiamentos e incentivos fiscais, como o apoio

coercitivo da polícia e do judiciário, em nível Estadual. Em outro trecho da matéria, citada

acima, destaca-se essa importância:

Os incentivos fiscais, os financiamentos fartos da Sudam, Basa e Sudhévea, que eram

vergonhosamente liberados, operavam o milagre de transformar grileiros e jagunços em

“empresários de boa fé”. Ainda que eles queimassem barracos de seringueiros, fizessem

desmatamentos não autorizados, se apossassem de terras indígenas e confinassem peões nas

fazendas, em trabalhos escravos, continuavam sendo de “boa fé” para o governo e os órgãos de

“desenvolvimento”. Ainda que demonstrassem o interesse puramente especulativo com relação às

áreas adquiridas, que eram retalhadas e revendidas, e que desviassem os recursos oficiais para fins

não previstos (como adquirir mais terras ou aplicar em open-marketing), não perdiam a idoneidade.

(Idem).

Eis a representação de outra das grandes contradições dos projetos de

desenvolvimento pensados e implementados pelas elites civis e militares para desenvolver

o Acre: Ao mesmo tempo em que criavam o INCRA, com a incumbência de resolver as

Page 99: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

100

questões fundiárias do país, criavam também, através das chamadas agências de

desenvolvimento regional (SUDAM, BASA, SUFRAMA, SUDHÉVEA e outras), os

recursos e incentivos que possibilitavam a concentração de terras em proporções nunca

imaginadas pelos especuladores mais bem articulados. O Estado, através dessas agências

foi o principal protagonista da reconfiguração (reconcentração) da propriedade da terra no

Acre. Em primeira instância, financiou e deu suporte logístico para o estabelecimento

duradouro do latifúndio e da especulação fundiária dos „novos donos do Acre‟.

A atuação do Estado no financiamento da aquisição de terras e dos especuladores

nos „esticamentos‟ proporcionaram situações tão esdrúxulas, ao ponto de alguns municípios

terem áreas de terras cadastradas que extrapolavam em mais de 80%, sua área total, como é

o caso de Sena Madureira, com área cadastrada correspondendo a 185,3%, Brasiléia, com

164,4%, Manoel Urbano, com 123,0%, Rio Branco, com 118,6%, Xapuri, com 108,0% e

assim prossegue para outros municípios. No geral, o Estado do Acre, mantém ainda hoje,

uma situação fundiária indefinida, haja vista, que muitos processos de reconhecimento de

titulação se arrastam na justiça há décadas e o INCRA não conseguiu fazer a delimitação

das propriedades particulares45

.

Tendo localizado os atores ditos proprietários, ou seja, seringalistas e fazendeiros,

apresentaremos as outras pontas das disputas de terras no Acre, qual sejam, seringueiros e

castanheiros (extrativistas), ribeirinhos, pequenos proprietários e colonos assentados vindos

de outras regiões.

Os primeiros a sofrerem as conseqüências de não possuírem titulação das terras

foram os trabalhadores extrativistas, mais propriamente os ribeirinhos, os seringueiros e os

castanheiros, que desde o início do processo de ocupação dos seringais, foram internados

nas colocações e enredados num sistema de trabalho que lhes aprisionava numa rede de

endividamento junto ao barracão (patrão) de onde era praticamente impossível se

desvencilhar da dependência, imposta através dessa dívida perene.

Toda a estrutura do seringal estava montada na permanência do extrativista na

colocação, tanto para manter o ritmo de produção estabelecido pelo patrão, como também

para garantir o lucro do setor mercantil ligado ao sistema produtivo. Esse sistema mercantil

45

- Esses dados foram coletados no texto sobre Estrutura Fundiária do Estado do Acre, no livro II do

Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), publicado em 2000 (p. 32), estando também disponível no

cadastro do INCRA, disponibilizado em 1999.

Page 100: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

101

servia a duas funções bem articuladas: 1) complementava o lucro do patrão, ao mesmo

tempo em que garantia a subsistência dos trabalhadores e; 2) aprofundava a dependência

dos extrativistas, que compravam no barracão todos os víveres e bens necessários para a

vida na mata.

A colocação, local em que estava inserida a unidade de produção do extrativista,

pertencia ao dono do seringal e não ao trabalhador lá colocado. A benfeitoria, ou seja, a

estrada de seringa e as castanheiras existentes, também pertenciam ao patrão. O que

importava na estrutura do seringal era o número de madeiras de seringa e castanheira, que

naquela época representavam à riqueza. Naquele período, a terra praticamente não tinha

valor. Ao extrativista competia simplesmente extrair o látex e preparar a péla de borracha e

coletar a castanha no período da safra, para posteriormente entregá-la ao patrão como

pagamento dos víveres e outros produtos adquiridos junto ao barracão.

Com a falência do sistema de aviamento, causada pela queda no preço da borracha

nativa, que ficou desvalorizada diante da concorrência com a borracha oriunda dos

seringais de cultivo da Ásia, no início do século XX, os patrões em sua grande maioria,

abandonaram os seringais, deixando em seu lugar um gerente. Mantiveram apenas um

reduzido estoque de mercadorias que não se destinava mais ao aviamento, mas sim à venda

direta aos seringueiros em troca de sua produção. Nesse período se fortalece a figura do

regatão, que ganhou mais liberdade para navegar pelos rios, bem como para realizar

negócios diretos com os seringueiros e ribeirinhos.

A reativação dos seringais se dá durante a Segunda Guerra Mundial, especialmente

após os ataques japoneses a Pearl Habour, quando foi cortado o suprimento de borracha

para o Ocidente. Numa ação rápida em busca do produto, se firmam os “Acordos de

Washington”, onde o Brasil faria um esforço de guerra para abastecer os Aliados com esse

produto, que havia se tornado matéria estratégica para sua força bélica. A mobilização de

centenas de milhares de, novamente, nordestinos para a Amazônia, agora como “soldados

da borracha”, reanima os donos dos seringais, que diante dos fartos financiamentos dos

Aliados e do Governo brasileiro retornam aos postos de comando de seus seringais para

novamente colherem os lucros com o aumento da produção devido à mão-de-obra

abundante, fruto do sucesso da mobilização promovida pelo governo brasileiro e os agentes

Page 101: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

102

estrangeiros, principalmente estadunidenses, na consecução do esforço de guerra.

(MARTINELLO, 1988).

Esse novo surto durou até o fim da Segunda Guerra, quando os “Aliados”

recuperaram o acesso ao produto gomífero dos seringais de cultivo asiático, rompendo

praticamente todas as cláusulas dos “Acordos de Washington” e deixando novamente a

empresa seringal sem aportes de recursos para sua manutenção. Novamente os seringalistas

se retiram e, desta vez, muitos não deixam sequer um gerente para tomar conta do seringal.

Alguns chegam a arrendar os seringais para não perderem totalmente a possibilidade de

manter algum lucro com aquelas terras, outros deixam “ao Deus dará”.

Foi nesse ínterim que os seringueiros, não tendo mais o barracão como fornecedor

de víveres, passaram a utilizar suas antigas colocações para produzirem seu sustento,

através da construção de roçados, retomando a prática da coivara, que era comum no

Nordeste e adaptando-a a Amazônia. Mesmo assim, mantiveram as atividades extrativistas

como prática complementar.

Dessa situação surge o seringueiro autônomo, ou semi-autônomo, ou seja, um

seringueiro que não dependia mais do aviamento (inexistente) do barracão para sua

subsistência, mas que permanecia sob constante ameaça dos patrões, por não deterem a

propriedade da terra. Por sua vez, para continuar obtendo lucro com “suas” terras os patrões

(donos dos seringais), mantinham a cobrança da taxa, denominada “renda”, sobre a

produção dos seringueiros para que eles pudessem permanecer em “suas” propriedades,

mesmo que eles não estivessem mais abastecendo os seringais com mercadorias, nem

desenvolvendo qualquer tipo de assistência àqueles produtores.

Independente desses percalços, muitos seringueiros que vieram nas primeiras levas

para desbravarem as matas e transformarem essas áreas de selva em seringais foram

deixando suas colocações para seus filhos. Algumas dessas famílias já estavam há mais de

cinqüenta anos morando na mesma colocação e, ainda que isso representasse toda uma

vida, nunca adquiriram direito à propriedade de suas posses, mas com toda a adversidade,

vinham permanecendo nessas áreas. Em alguns seringais as redes de familiares, que foram

se estabelecendo e se constituindo ao longo dos anos, ajudaram na articulação dessa

permanência na terra. Às vezes, as relações de compadrio com os patrões, ou mesmo as

trocas de favores, ajudavam nessa permanência.

Page 102: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

103

O arrendamento dos seringais, prática usual no período pós–Segunda Guerra, que

era feita pelo dono, para outro indivíduo explorar „seu‟ seringal, quebrava a relação

paternalista que alguns patrões haviam desenvolvido com os seringueiros. O arrendamento

colocava diante dos seringueiros (posseiros), um novo patrão que vinha disposto a fazer

valer o estilo tradicional de exploração. Essa relação conflituosa marcava a vida dos

seringueiros do período pós–Segunda Guerra até a década de setenta, quando, ao invés do

simples arrendamento, os seringais foram vendidos e seus compradores pretendiam utilizá-

los para uma finalidade, onde as seringueiras e castanheiras perdiam sua utilidade.

Essa nova situação é que vai ensejar os conflitos agrários no Estado do Acre a partir

da década de setenta. A transição da propriedade e a nova finalidade, isto é, a saída do

extrativismo como atividade principal e a entrada da agropecuária como nova possibilidade

de realização econômica, colaboraram para promover uma valorização da terra, invertendo

a unidade de valor anterior, que era exatamente o que estava sobre a terra, ou seja, as

seringueiras, as castanheiras e os homens que as trabalhavam.

Outros membros da estrutura dos seringais, como comboieiros, caçadores,

pescadores, mateiros e até guarda-livros, também buscaram alternativas para sobreviverem,

iniciando em áreas próximas as sedes dos seringais algum tipo de atividade produtiva, seja

ligada a agricultura, seja a pecuária de subsistência e em alguns casos de guarda-livros e

outros ajudantes diretos do patrão, que por disporem de alguns recursos a mais, investiram

em um pequeno comércio que visava suprir a carência (ausência) do barracão, obviamente,

mantendo a prática dos preços extorsivos e adulterações de pesos e medidas, inspirados

naquela estrutura.

É essa articulação que vai permitir que muitos moradores dos seringais permaneçam

nas áreas, mesmo após a falência e o abandono da unidade pelos patrões, sem significar que

mudasse substancialmente seu status, pois conviveria sempre com a insegurança a respeito

da questão alimentar e da propriedade da terra.

Mas é inegável que a ausência da força coercitiva do patrão e da estrutura do

seringal, possibilitou novas experiências, ou seja, novas fronteiras foram estabelecidas para

os trabalhadores extrativistas, ribeirinhos, ou povos da floresta em geral, como mais tarde

foram denominados.

Page 103: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

104

Os outros moradores da floresta, no caso, os colonos que chegaram para povoar a

Amazônia, trazidos para os projetos de assentamento e oriundos das várias regiões do País,

constituem o outro ator da diversa configuração social que hoje forma a população acreana.

Incentivados pelo Governo Federal, milhares de pessoas saíram do Espírito Santo,

do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul, de Mato Grosso do Sul, de Goiás, de

Mato Grosso e vieram ocupar lotes franqueados em projetos de assentamento pelo

Governo, às margens da recém aberta Rodovia 364, estrada que liga Cuiabá (MT) a Porto

Velho (RO) e Rio Branco (AC) e, dentro do Acre, indo até Cruzeiro do Sul, extremo Oeste

do Estado.

Como a maior parte dessas terras já estava ocupada por extrativistas (e comunidades

indígenas), a simples ação de reorganização das áreas (100 km de cada lado do eixo da

estrada) reivindicadas (retomada), pelo Governo para implementar os projetos de

assentamento, causou grande impacto nessas populações residentes. Porém, feitos os

loteamentos e assentados os novos colonos, o descumprimento das promessas de

construção das agrovilas, estradas vicinais, escolas, postos de saúde, sementes e etc.,

aliados a não titulação das terras, por parte do Governo, em nome dos colonos, o que os

impedia de ter acesso aos financiamentos bancários para iniciar a produção, a situação foi

se agravando.

Nesse período, eram freqüentes as notícias de jornais veiculando a situação de

abandono em que se encontravam os assentados. No jornal Gazeta do Acre, entre os anos

1980 e 1990, encontramos diversas matérias enfocando o descontentamento dos parceleiros

assentados nos lotes distribuídos pelo INCRA. As reclamações mais constantes são as da

falta de estradas e da falta de escolas. Numa matéria publicada no jornal Gazeta do Acre,

lemos:

José Pereira, colono paranaense de Itaipu transferido juntamente com a família e outros agricultores

para as margens da BR 317, afirmou que não terão condições de enfrentar mais um período

invernoso, sem estradas trafegáveis e apoio do Governo. É necessário uma atenção do Governo,

acrescentou, para solucionar os problemas de transportes, pois se repetir o quadro atual por mais um

ano, muitos paranaenses abandonarão os lotes. Uma agricultora, de origem alemã, garantiu que neste

próximo verão, quando as estradas melhorarem vai se mudar para o Estado do Mato Grosso, onde

mora uma filha: “Aqui, nessas condições não dá pra ficar”. Segundo declarações de outros

produtores, o Incra teria prometido colocar à disposição dos parceleiros paranaenses um veículo que

ficaria sediado no km 62, mas até o momento esse veículo não apareceu. (“Paranaenses não

agüentam outro inverno”. Jornal Gazeta do Acre. Rio Branco, 1982. Publicado em, 24/03/82).

Page 104: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

105

Outra matéria, também publicada no jornal Gazeta do Acre, conta a história de outro

colono que desanca o INCRA, por se achar enganado por esse órgão público, nos seguintes

termos:

O colono Herbert Martins Kerger, que no final de agosto chegou com toda a família e pertences ao

Acre, depois de viajar durante 22 dias pela BR 364, está retornando a São Paulo, para se empregar

numa fazenda, depois de enfrentar sérios problemas no Projeto Pedro Peixoto. Herbert era mecânico

em São Paulo. No início deste ano vendeu tudo o que tinha para vir em busca de um pedaço de terra

onde pudesse trabalhar. Logo foi assentado numa gleba no (Projeto de Assentamento Dirigido) PAD

Pedro Peixoto, onde fez derrubadas e preparava-se para iniciar o plantio, quando foi obrigado a

deixá-la, porque a área estava sendo reivindicada por um posseiro. Semanas depois o Incra deu um

novo lote ao agricultor este, porém, situado num local de “mata bruta”, sem condições de fazer

qualquer plantio para a próxima safra, por já haver passado a época de preparo do terreno. (...)

Herbert diz que “o Incra lá no sul ilude o pessoal pra vir para o Acre e depois quando o agricultor

chega é abandonado à própria sorte, enfrentando sérias dificuldades para sobreviver”. Diz que “está

voltando numa pior, por ter sido jogado no mato que nem bicho”. (“Os sonhos e esperanças de um

sulista morrem no Acre”. Jornal Gazeta do Acre. Rio Branco, 1982. Edição de 04/11/82).

As notícias nos jornais relatando a agruras sofridas pelos colonos chegantes nos dão

uma dimensão das necessidades e dificuldades que eles enfrentavam. As chamadas das

matérias sempre demonstram algum tipo de reivindicação nesse sentido, tipo:

“Colonos reclamam de estradas „péssimas‟”, “Colonos da Cooperativa já não acreditam mais que

escola saia”, “Agricultores estão sem estradas”, “Sessenta colonos sem estradas”, “Paranaenses que

chegaram ao Acre estão preocupados”, “Governo promete saída à produção”, “Colonos pressionam

prefeito”, “Em Plácido, restrições ao crédito provoca revolta”, “Colonos malham Colonacre e

querem título de terra”, “Colonos estão com cereais apodrecendo por falta de estradas”, “Colonos

cobram promessas”. (Títulos publicados no Jornal Gazeta do Acre).

Todas essas são matérias que com poucas modificações nos títulos, vão se repetindo

ao longo dos anos, desde meados da década de setenta.

Os desenganos dos colonos chegantes e suas desavenças e reclamações com o

INCRA e com os Governos nas três esferas, contudo, não foram suficientes para encobrir o

foco principal do conflito de terras no Acre. Basta dizer que das mais de mil inserções

tratando da questão fundiária, encontradas no jornal Gazeta do Acre, no período de 1980 a

1990, algo em torno de oitenta por cento tratava da questão que envolvia os seringueiros e

os posseiros da própria região e não os colonos e parceleiros do INCRA, como eram

designados os chegantes.

O aparecimento de colonos (parceleiros), peões de fazendas e fazendeiros, num

ambiente onde tradicionalmente existia o patrão, os seringueiros e os ribeirinhos, imprime

Page 105: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

106

uma nova configuração dos conflitos e possibilidades econômicas, sociais, políticas e

culturais desse espaço amazônico que compreende o Estado do Acre. As formas de

organização, através das cooperativas, dos sindicatos de classe, e das associações de

criadores (nome genérico da União Democrática Ruralista - UDR) e seus relacionamentos

com o Estado, serão os ingredientes basilares para a reconfiguração das lutas e organização

dos novos modos de vida que emergiram no bojo da mudança na estrutura produtiva e

relacional desse espaço territorial e antrópico.

A luta pela propriedade e posse da terra vai marcar o ambiente dos novos

relacionamentos que se foram constituindo. Os novos agentes e suas ações impactantes no

que se refere às mudanças impressas na paisagem e nos relacionamentos sócio-econômicos

forçaram os seringueiros e outros agentes sociais nas matas e nas cidades a buscarem

alternativas para a manutenção de modos de vida que estavam fadados à extinção pela ação

governamental.

Page 106: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

107

2.2 OS ESTRANHAMENTOS E A VIOLÊNCIA ENTRAM EM CENA: AS

CONVULSÕES SOCIAIS NO VALE DO ACRE.

A violência é uma componente muito presente na história do Acre. Portanto, não

vamos tratar os eventos ocorridos a partir da década de setenta como episódios

extemporâneos, ou inéditos dessa trajetória. A perspectiva, então, é apresentar os novos

agentes das contendas, situando-os no contexto histórico que os fez emergir para a cena,

como protagonistas nesta fase. Os estranhamentos e a violência foram localizados, mas não

foram produzidos exclusivamente no local ou nos espaços das contendas. Suas origens são

inter-relacionadas, envolvem estruturas endógenas e exógenas, que marcam o curso da

“conquista de fronteiras” e do avanço do capitalismo.

Estudando as mais diversas formas de violência que atravessaram o século XX e

penetraram no XXI, Octávio Ianni (2004), atribui as também diversas mutações do

capitalismo, essa capacidade de manter-se sempre remodelando e assustando o mundo:

O capitalismo pode ser visto como um vasto, complexo e sempre expansivo processo histórico-

social. Nasce e transforma-se com os tempos modernos, compreendendo o mercantilismo, o

colonialismo, o imperialismo e o globalismo, nos quais se inserem nacionalismo e tribalismo. Pode

ser definido como um modo de produção e processo civilizatório, pelas contínuas e reiteradas

mudanças que provoca em outros modos de produção e civilizações. Caracteriza-se pelo

desenvolvimento intensivo e extensivo das “forças produtivas”, isto é, capital, tecnologia, força de

trabalho, divisão do trabalho social, planejamento e violência; simultaneamente ao desenvolvimento

das “relações de produção”, compreendendo os princípios jurídicos-políticos da liberdade, igualdade

e propriedade, organizados no contrato e codificados em instituições tais como a empresa, a

corporação e o conglomerado, o mercado e o Estado; bem como em outros institutos codificados em

termos jurídicos-políticos, entre os quais estão aqueles relativos ao ensino, saúde, previdência,

trabalho sindicato, partido e outros. Cabe ressaltar, no entanto, que o capitalismo é um vasto,

complexo e sempre expansivo processo político-econômico e sociocultural que leva consigo a

vocação de produzir e reproduzir, criar e recriar, inovar e substituir, engendrar e destruir. Há como

que uma voragem persistente, contínua e insistente no âmago desse processo, de tal modo que, para

expandir-se e renovar-se está sempre a destruir. (IANNI, 2004, p. 143, 144).

Situando nesse percurso a História do Acre, identificaremos que a começar pelos

chamados desbravadores, a violência cercava o empreendimento. Reconhecidamente, os

desbravadores, não eram homens gentis, que resolviam seus problemas com base no

diálogo, como pressupõe a idéia de civilidade. A idéia de civilização/civilidade, tão cara

aos iluministas, aqui ganhava outros significados. Na própria organização das primeiras

Page 107: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

108

“expedições”46

a disciplina e a hierarquia eram bem estabelecidas. A hierarquização se

impunha a partir de um tipo de violência mais sutil: a condição de mando, a condição de

organizador, a quantidade de homens sob ordem, a violência psicológica, ou mesmo, a

violência econômica que submete pela necessidade. Ao ingressarem numa expedição, cada

membro sabia (ou aprenderia rapidamente) sua posição no grupo. Por seu turno, a

disciplina era mantida pela aplicação da violência física, dos castigos e das punições, que

impõem privações do próprio ser.

O encontro dos “desbravadores” com as populações indígenas também foram

marcados pelos complexos e diversos tipos de violência, com destaque para a violência

física e psicológica. As diversas etnias que habitavam ao longo dos rios eram tratadas como

empecilhos a serem removidos, como seres inferiores ou, em alguns casos, incorporados

como trabalhadores subalternos, ou escravos. Sobre este tipo de violência Ianni, escreveu:

A história do Mundo Moderno, desde o descobrimento e a conquista do Novo Mundo,

compreendendo também a colonização da África, Ásia e Oceania, é uma história dos mais prosaicos

e sofisticados meios e modos de violência, com os quais se forja e mutila a modernidade. (2004, p.

170).

Também Hobsbawm (1998), vê o século XX como um período em que a barbárie

esteve em crescimento. Desde a Primeira Guerra Mundial até as guerras da Iugoslávia

(Kosovo, Bósnia), passando pela Guerra Fria, Vietnam e Guerras de Libertação na África.

Para ele, o que se registra são violações cruéis aos próprios princípios liberais da Igualdade,

Liberdade e Fraternidade, seguidos de exaltações a pretensos direitos naturais de

determinados povos sobre outros inferiorizados e subalternizados por suas diferenças. Por

sua vez, Mauro Leonel descreve esse processo como sendo de uma violência endocolonial e

que ele trás dos processos coloniais a violência que lhes é característica:

Na fronteira econômica devem ser considerados estes fenômenos semelhantes à “acumulação

primitiva” e à Revolução Industrial. À semelhança de processos anteriores, vê-se que, embora o

empobrecimento e a perda de solidariedade comunitária sejam generalizadas, manifestam-se

diferentemente a cada condição social, por exemplo, aos índios, aos seringueiros, aos ribeirinhos, aos

pescadores das periferias, aos colonos recém-chegados, aos barrageiros, peões de madeireiras e aos

garimpeiros. O trabalho repetitivo, alienado, coincidindo com a perda dos laços comunitários, a

perda da autonomia, como na Revolução Industrial européia, igualmente tão violenta e

desagregadora quanto à doença ou a miséria, às quais se soma. (LEONEL, 1998, p. 230).

46

- Expedição: era o nome que se dava às viagens organizadas para reconhecimento de um rio. Comumente

elas eram financiadas por um governo de província com o intuito de alargar seus domínios e descobrir novas

riquezas a serem exploradas. Algumas delas foram organizadas por indivíduos endinheirados em busca de

expansão de seus negócios.

Page 108: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

109

No período de instalação dos seringais, além da violência que cercava a montagem

do empreendimento em si, houve essa vertente, com características mais sofisticadas, que

foi o confronto com os elementos indígenas. Nesse caso, os seringalistas conseguiam

convencer os seringueiros da “justeza” de lutar contra os índios, colocando a questão da

sobrevivência como elemento mobilizador. O princípio era questionável na elaboração, mas

tinha como respaldo a unilateralidade da voz da autoridade do patrão, pois, para ele, ou os

seringueiros ajudavam a dizimar os índios ou seriam dizimados por eles. Uma lógica

perversa, sem dúvidas, mas eficiente em seu propósito.

A prática para extermínio das populações indígenas ficou conhecida como

“correrias”47

. As correrias consistiam na organização de grupos bem armados, que

liderados por homens que tinham conhecimento da região e de alguns hábitos das tribos da

localidade, promoviam ataques surpresa, causando o maior número de baixas possíveis

naquela tribo. Os alvos preferidos eram velhos, mulheres e crianças, pois além do

extermínio físico, abatiam também psicologicamente os indígenas adultos, que certamente

não entendiam os motivos para tais atos. Enfraquecidos pela quebra de suas condições de

vida, muitos adultos, quando não eram mortos em combates desiguais, eram capturados, ou

se colocavam à disposição, para servirem como escravos nos serviços dos barracões.

Muitos donos de seringal também premiavam seus seringueiros para que eles em

ação isolada abatessem índios. A prática de abater índios, bem como as recompensas

recebidas pelos seringueiros por tais atos, criava um sentimento de prestígio deste para com

o patrão, bem como uma “fama” de “valentia” para o seringueiro que a praticava.

Os massacres contra as diversas etnias indígenas, contudo, não são características

apenas dos períodos dos dois surtos da borracha. No período da ditadura militar, com a

abertura das estradas na Amazônia essa prática retornou com muita força. Nos Estados do

Pará, Rondônia, Amapá, Roraima, Amazonas, Mato Grosso e Acre, fosse pela implantação

de fazendas, fosse pela exploração de garimpos, construção de hidrelétricas, abertura de

ramais para projetos de assentamento, etc., ocorreram massacres e tribos inteiras foram

47

- As “correrias”, as matanças indiscriminadas de indígenas são aspectos marcantes das ditas “conquistas”

em toda a América desde as áreas árticas até as antárticas. Neste caso específico para a Amazônia e o Acre,

sobre as correrias, consultei especialmente: TAUSSIG, M. Xamanismo, colonialismo e homem selvagem. Um

estudo sobre o terror e a cura. São Paulo: Paz e Terra, 1993; MARTINS, E. Nossos índios, nossos mortos. Rio

de Janeiro: Codecri, 1978; IGLESIAS, M. Piedrafitas & AQUINO, T. Vale. Kaxinawá do Rio Jordão –

História, território, economia e desenvolvimento sustentado. Rio Branco: CPI, 1994.

Page 109: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

110

dizimadas pela força das armas, ou pelas doenças trazidas pelos “brancos”. (MARTINS,

1991). Entramos no século XXI e os conflitos persistem, perduram.

No entanto a violência nessa característica de uma ação contra o outro, não ficou

restrita à luta contra os indígenas, muitas vezes ela alcançou o âmbito da simples “briga” de

um seringueiro contra um patrão, na maior parte das vezes motivadas por reação de um

seringueiro contra a exploração, contra o aumento de sua dívida por meios espúrios, que as

tornava impagáveis e, ainda, a modalidade de violência entre os próprios seringueiros, por

causa de mulheres, ou por motivos fúteis, como bebedeiras, etc., que acabavam por

envolver familiares e se prolongava em ações de vinganças de ambos os lados.

O fato é que a “fama” de ser “respeitado”, que significava também ser temido, era

importante na vida do seringal. A possibilidade de se impor perante o outro era almejada,

era desejada. Os patrões que dificilmente iam para o confronto direto com o seringueiro,

tinham mais facilidade no exercício do poder, pois sempre usavam o corpo do capataz e

seus jagunços como agente de sua autoridade. Já os seringueiros conseguiam-na ou

perdiam-na, usando o próprio corpo, portanto em desvantagem dentro da estrutura

hierarquizada do seringal48

. Outro fator que é marcante no período de auge dos seringais é

que são poucas, ou pouco conhecidas as manifestações coletivas de seringueiros contra

patrões, temos notícias de poucos episódios de revoltas de seringueiros.

Todavia como já dissemos anteriormente, a violência não é uma questão endêmica

do Acre ou dos processos fronteiriços:

Sob vários aspectos, a violência é um evento heurístico de excepcional significação. Revela o visível

e o invisível, o objetivo e o subjetivo, no que se refere ao social, econômico, político e cultural,

compreendendo o individual e o coletivo, a biografia e a história. Desdobra-se pervasivamente pelos

poros da sociedade e do indivíduo. É um evento heurístico de excepcional significação, porque

modifica as suas formas e técnicas, razões e convicções de conformidade com as configurações e os

movimentos da sociedade, em escala nacional e mundial. Explicita nexos insondáveis da

subjetividade de agentes e vítimas, em suas ilusões e obsessões, ao mesmo tempo que explicita

modalidades inimagináveis e verdadeiros paroxismos de processos e estruturas de dominação e

subordinação. Revela a alucinação escondida na alienação de indivíduos e coletividades. Nasce como

técnica de poder, exercita-se também como modo de preservar, ampliar ou conquistar a propriedade,

48

- Lembro que na minha infância, antes de sair do seringal, comumente nos finais das tarde de domingo,

quando se reuniam alguns jovens no seringal, sempre se organizavam para “jogar uns pontinhos na praia”.

Essa brincadeira consistia numa espécie de “queda-de-corpo”, onde o vencedor era aquele que conseguia

derrubar o maior número de adversários. Obviamente naquela “brincadeira” estava embutida uma idéia de

predomínio sobre os demais, era mesmo um momento de afirmação ou reafirmação de uma condição de força

adquirida. Outro caso bem corriqueiro era o da véspera de uma festa, quando os rapazes passavam boa parte

da tarde “amolando” (afiando) sua faca, como preparação para o evento. A resolução dos desentendimentos

pela violência estava sempre presente, havia mesmo uma preparação para a “eventualidade”.

Page 110: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

111

adquire desdobramentos psicológicos surpreendentes no que se refere aos agentes e as vítimas. Entra

como elemento importante da cultura política com a qual se ordenam, modificam ou transformam as

relações entre os donos do poder e os setores sociais subalternos, os governantes e a população, as

elites e as massas. Sob vários aspectos os atos de violência revelam aspectos recônditos,

insuspeitados e fundamentais de como se formam e transformam os jogos das forças sociais, as

tramas das formas de sociabilidade, levando indivíduos e coletividades como em um vendaval em

fúria. (IANNI, 2004, p. 169).

Quando ocorreu a segunda desmontagem da empresa seringal, no período pós-

Segunda Guerra, houve uma redução dos conflitos nas áreas dos seringais diante do grande

esvaziamento, haja vista, o abandono destes por parte dos seringalistas e os deslocamentos

de muitos seringueiros para as cidades. Algumas escaramuças persistiram entre os

remanescentes, ou seja, alguns gerentes que permaneceram representando os donos, os

arrendatários chegantes e os seringueiros que decidiram ficar em suas colocações. Esses

conflitos, no entanto, passaram a ter outro foco, comumente se davam por causa da

cobrança da renda, mas, num certo sentido, o gerente ou o arrendatário mantinham um

nível de pressão dentro do tolerável para não obrigar o seringueiro a abandonar de vez a

colocação, o que redundaria em perda total de qualquer possibilidade de negócio e,

obviamente, obtenção de lucro com o principal agente produtor do seringal.

Com a venda das terras dos antigos seringais para os “paulistas”, a partir do início

da década de setenta, recrudesce a violência, pois a proposta de transformar os antigos

seringais em fazendas para criação de gado implicava em dois tipos de limpeza: 1) a dos

territórios adquiridos, que consistia na limpeza da cobertura vegetal, ou seja, a derrubada e

queimada das árvores para o plantio do capim (provocando um desastre ecológico ainda

não avaliado) e; 2) a limpeza humana, ou seja, a retirada de seringueiros, colonheiros49

,

posseiros, antigos moradores, todos os que pudessem trazer algum tipo de complicação para

o empreendimento modernizador em curso.

O tipo de violência empregado pelos paulistas para fazer a limpeza da terra tinha

característica bem diferente da violência praticada pelos patrões dos seringais. Podemos

dizer que era oposta, no sentido de que nos seringais a violência era aplicada para manter o

49

- Esse deslocamento de seringueiros e ex-seringueiros para as cidades foi usado durante muito tempo como

explicação única para o crescimento da violência nos ambientes urbanos, embora eu não conheça nenhum

estudo mais profundo que comprove essa afirmação. Mesmo assim os jornais não faziam cerimônia em

apresentar como verdadeira essa elaboração. Situação muito parecida com a que ocorreu após a abolição da

escravidão no Brasil que também foi apontada como causa do aumento da violência nas cidades para onde os

ex-escravos se deslocaram, ou seja, os controladores das informações sempre atribuem aos “estranhos” das

classes mais baixas, as responsabilidades pelos conflitos sociais.

Page 111: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

112

seringueiro preso ao sistema, enquanto que no caso dos fazendeiros e grileiros, a violência

era exercida exatamente para o oposto, isto é, para expulsá-los.

Nos primeiros momentos, os paulistas tentaram uma tática de expulsão mais

simples, que estava baseada no desconhecimento, na não visualização, ou no ocultamento

do outro. Chegaram e passaram a agir como se tivessem comprado somente terras. Então

ordenaram os desmatamentos e as queimadas como prática natural. Logo esses

desmatamentos foram encontrando as casas e as pequenas plantações dos trabalhadores que

habitavam essas áreas, então, diante da resistência demonstrada por alguns em

desocuparem “suas” terras, os novos proprietários, iniciaram a outra fase, a fase da

expulsão.

Como os antigos moradores eram apenas “posseiros” e não proprietários, nem

podemos sequer, etimologicamente, falar em expropriação, pois mesmo que esses

moradores tivessem construído suas casinhas e cultivado suas roças nesses locais, não

dispunham de nenhuma comprovação documental de que a terra lhes pertencia, ou seja, não

eram proprietários na visão dos “tomadores de decisão”. A ordem era para desocuparem a

área e a punição para o não cumprimento era a retirada à força, fosse esta exercida pela

polícia ou pelos jagunços do próprio “novo” dono da área.

Obviamente que para os novos compradores de terra e, principalmente, para seus

advogados, a expulsão desses antigos moradores das áreas adquiridas era a realização do

pleno exercício de cidadãos imbuídos dos mais nobres propósitos de tornar produtivas áreas

tão selvagens, afinal os “investidores” estavam ali atendendo a um convite do próprio

Estado.

Porém, para quem estuda essas práticas de expansão de negócios nos moldes do que

vinha ocorrendo, o que estava acontecendo não era apenas um fato superficial de aquisição

de terras. Martins (1991) entende que o que estava acontecendo no Acre, bem como em

outras áreas Amazônicas era, não uma simples expansão da fronteira, mas sim, uma

expansão do capitalismo. Para ele a expropriação e a exploração capitalistas, que na história

clássica do capitalismo se deu em fases diferentes, no Brasil, conseguiu articular ao mesmo

tempo as duas fases, pois:

Page 112: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

113

O mesmo grupo econômico, nacional ou multinacional que utiliza técnicas sofisticadas e contratuais

na exploração do trabalho operário em São Paulo ou nas grandes capitais européias, utiliza a

violência do jagunço, sobrepõe o poder privado ao poder público, para expropriar o posseiro na

Amazônia, e até mesmo emprega o trabalho escravo para abrir fazendas. (...) Não se trata, portanto,

de encarar expropriação e exploração como dois momentos históricos que se sucedem. No caso de

nossa sociedade, são processos que estão ocorrendo simultaneamente, articulados pelo mesmo

agente, que é o capital. Seria extremada inocência supor que em São Paulo determinada

multinacional é capitalista e na Amazônia a mesma multinacional é feudal. (MARTINS, 1991, p. 17,

18).

Para uma boa demonstração de que esta tese tem fundamento, basta lembrar que

entre os principais compradores de terras no Acre constam, dentre outros, o Banco

Bradesco, o Banco Itaú, a fábrica de conservas Swift, a Bordon, o Grupo Atalla-

Copersucar, a seguradora Atlântica Boa Vista, a Coloama, a Manasa, a Viação Garcia, a

Varig, o Café Cacique, todos, grupos nacionalmente conhecidos com atuação em áreas

diversas dos sistemas produtivos e de serviços. Robert Kurz (1993) denomina essas

situações que estavam ocorrendo no final do século XX, em países “atrasados”, de

“processos recuperadores da acumulação primitiva”.

Mesmo sendo marcas conhecidas que costumavam aparecer no cenário midiático

nacional como empresas relevantes para o crescimento do país, suas atuações na Amazônia,

especialmente no acre, no que diz respeito a compras de terras e os tratamentos dispensados

às comunidades locais, foram processos marcados pela crueldade humana e pela

depredação ambiental. Nesta matéria, temos um exemplo dessas ações:

As 50 famílias de posseiros que vivem na Fazenda Baixa Verde localizada no km 38 da BR-317

estão sendo ameaçadas de expulsão pelo representante da PLANCAP – proprietária da fazenda -

Jiácomo Trento, como denunciaram ontem 36 posseiros da área. Ontem pela manhã posseiros e o

representante da multinacional se reuniram na sede do Mirad onde nada ficou decidido. “Tanto o

Mirad como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais aconselharam a gente a deixar a área. Eles estão

comprados” dizem os posseiros. A fazenda com mais de 150 mil hectares pertence ao Grupo

PLANCAP, cuja sede está localizada em Vitória no Espírito Santo e é filial da multinacional

holandesa MICHELIN. A propriedade está sob hipoteca e penhorada para a SUDAM; Banco do

Brasil e Iapas, aos quais deve mais de Cz$ 20 milhões pelo não pagamento de impostos, encargos

sociais e falsa aplicação de recursos sacados nessas entidades financeiras. Ezimar Fidelis Maia, pai

de quatro filhos e natural do Acre é um dos posseiros e disse que “nós não vamos sair de lá. Podem

mandar até a polícia mais a gente não sai. Os proprietários da terra vivem lá no Espírito Santo. Isto é

grilagem”. (Conflito de terra ameaça posseiros da Baixa Verde. Jornal Gazeta do Acre. Rio Branco,

abril de 1988).

Page 113: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

114

As ameaças e a violência contra os seringueiros e “posseiros” eram desencadeadas

em múltiplas frentes, que partiam dos jagunços, passando por policiais, inclusive

delegados, funcionários públicos, políticos (senadores, deputados, vereadores, prefeitos,

governadores), até os juízes. Os atos começavam com os recados enviados pelos “donos”,

que tinham como porta-vozes jagunços ou policiais armados para que as famílias saíssem

das áreas. Em seguida, a ação de desocupação que poderia ser feita também por policiais ou

por jagunços, já usando métodos baseados na violência física, como derrubada das casas

usando motos-serras ou mesmo incendiando as casas, que comumente eram construídas em

madeiras ou paxiúbas e recobertas por palhas, o que significava rápida combustão e

nenhuma possibilidade de salvar o que tinha dentro delas.

O ato seguinte da violência se dava quando o posseiro procurava as autoridades do

Estado para reclamar de sua situação e buscar reparação para os prejuízos causados pelos

jagunços e/ou policiais. Primeiro, que como haviam perdido sua referência no mundo,

tinham ficado sem lugar para abrigar-se e à sua família, o posseiro já vinha para a cidade

numa condição de extrema penúria, sem a possibilidade de abrigar-se, sem acesso a

alimentação, vestimentas, etc. Segundo, que para ser recebido por uma autoridade teria que

esperar por vários dias e o resultado era, comumente, a sentença de que ele não teria

“direito” porque o fazendeiro havia comprados às terras e tinha a documentação. Esse

caminho foi percorrido por muitos e os resultados contribuíram para sua recusa em buscar

os chamados meios legais.

A situação chegava a ser tão esdrúxula que até o Superintendente da Polícia Federal,

no caso falamos de Mauro Spósito, que em tese, não deveria se envolver em conflitos

localizados, “batia boca”, através dos jornais locais, com dirigentes dos Sindicatos de

Trabalhadores Rurais por ser acusado por eles de manter ligação com fazendeiros e

proteger assassinos. Num desses episódios, ocorrido em 1988, o sindicalista Chico Mendes

(à véspera de seu assassinato), acusou o delegado da Polícia Federal, Mauro Spósito de

proteger e passar informações ao fazendeiro (posteriormente condenado pelo assassinato do

próprio Chico Mendes), Darli Alves da Silva, que vinha sendo procurado pela polícia do

Paraná, acusado de assassinato naquele Estado, ao que foi respondido também via imprensa

local, pelo delegado Spósito, de que Chico Mendes seria colaborador da Polícia Federal.

Numa das matérias que trataram publicamente as discussões, lemos:

Page 114: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

115

Continuam tensas as relações entre o superintendente da Polícia Federal Mauro Spósito e o

presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, Chico Mendes. Depois de ser acusado

pelo sindicalista de ter facilitado a fuga de Xapuri do fazendeiro Darli Alves, acusado de assassinato,

o delegado Spósito tomou a ofensiva e divulgou um dossiê acusando Chico Mendes de ser

colaborador da Polícia Federal desde 1980 e de ter, neste período, delatado vários companheiros por

“formação de partido clandestino”. Ele afirma também que Chico Mendes estaria “sendo

subvencionado por entidade alienígena multinacional”, no caso da Fundação Ford, entidade

americana que apóia vários programas de educação e meio ambiente em todo o mundo. Chico

Mendes refuta todas as acusações e diz que elas são fruto do desespero e do despreparo do

superintendente da federal que não tem como se esquivar ou se explicar em relação às declarações

dos pistoleiros de Xapuri que afirmam ter a cobertura da PF para seus atos. (...) (Esquenta a briga de

Chico Mendes e Mauro Spósito. Jornal Gazeta do Acre. Rio Branco, dezembro de 1988).

No mesmo sentido encontramos nos jornais notícias de que grupos de fazendeiros

buscavam o apoio dos comandantes militares para combater as lutas dos sindicalistas, que

eles identificavam como subversivos, ou seja, quando os jagunços assassinavam

trabalhadores e líderes sindicais, não era subversão, no entanto quando os trabalhadores

revidavam a uma agressão a situação virava caso de intervenção militar:

Cerca de 20 pecuaristas foram ontem de manhã ao 4º Batalhão Especial de Fronteiras pedir garantias

de vida e trabalho, já que alguns deles estão temerosos de ir até suas fazendas no município de

Brasiléia, onde, na semana passada foi morto o Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais,

Wilson de Souza pinheiro e, na última segunda feira, o gerente da fazenda Nova Promissão II, Nilo

Sérgio de Oliveira. Os pecuaristas entregaram também ao comandante do 4º BEF, coronel Gondim,

uma fita gravada com os discursos pronunciados por líderes sindicais e outras entidades, domingo

último, em Brasiléia, quando do ato público em homenagem aos trabalhadores rurais daquele

município. O comandante do 4º BEF não quis fazer comentários a respeito da entrevista que teve

com os pecuaristas, mas o Presidente da Federação da Agricultura, Francisco Diórgenes de Araújo,

garantiu que ele havia prometido “tomar a frente das investigações”. Os pecuaristas, segundo

Diórgenes Araújo, contaram ao comandante do 4º BEF que em Brasiléia “existem grupos fortemente

armados de trabalhadores”. Por sua vez, o advogado e pecuarista Antônio Luciano, membro do

sindicato patronal rural de Rio Branco disse que se recorrem aos órgãos federais por acharem que “o

governo do Estado se mostra impotente para contornar situações de conflitos que se agravou nestes

últimos dias”. A Polícia Federal, o Governador e a Secretaria de Segurança Pública, deverão receber,

hoje, documento sobre a questão fundiária. (...). (Pecuaristas recorrem ao Exército: há nota e;

Pecuaristas pedem garantias ao 4º BESF. Jornal Gazeta do Acre. Rio Branco, julho de 1980).

O clima de conflagração era tão intenso que alguns políticos e pessoas influentes

nos municípios de Rio Branco, Brasiléia e Xapuri, chegavam mesmo a defender, através

dos meios de comunicação, que a solução para os problemas criados pelos sindicatos de

trabalhadores rurais só se daria com a morte de seus líderes, vejamos um caso:

Page 115: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

116

O Secretário da Prefeitura Municipal de Xapuri, seringalista Guilherme Lopes, afirmou, na reunião

que a Sudhévea realizou dia 17 passado naquela cidade, que “a única maneira de resolver os

problemas de terras que estão surgindo aqui é matar o Presidente do Sindicato dos Trabalhadores

rurais, o Delegado da Contag e os padres que vivem instigando os seringueiros”. Essas declarações

do Secretário Guilherme Lopes foram ouvidas por autoridades de vários órgãos governamentais que

estavam presentes ao encontro, e foram transmitidas pelos microfones da Rádio Seis de Agosto, do

município, que cobriu o encontro. Além do Presidente e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Luiz

Damião, que fora convidado para a reunião, também estavam no recinto o diretor da Sudhévea, José

Cezário, o prefeito Jorge Haddad, gerentes de bancos, representantes do Incra, seringalistas,

fazendeiros e convidados. As afirmações de Guilherme Lopes foram apoiadas pelo seringalista

Lamberto Ribeiro e por outros fazendeiros, que também pediram a cabeça de alguns delegados

sindicais e do vereador Francisco Mendes (Chico Mendes), recentemente escolhido presidente da

Comissão Regional Provisória do Partido dos Trabalhadores, no Acre. (Seringalista sugere matar

para resolver o problema fundiário. Jornal Gazeta do Acre. Rio Branco, junho de 1980).

Em outra matéria sobre reunião de “homens importantes”, esta realizada em Rio

Branco, tendo como público rotarianos e maçons, lemos:

O assassinato de Wilson Pinheiro de Souza do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia foi

discutido, na noite de quarta-feira, em reunião do Rotary Clube de Rio Branco ocasião em que o

grão-mestre da maçonaria no Estado, Ocírodo de Oliveira pediu ao general Moreno Maia, do Incra,

providências “porque estão pregando a subversão no Acre”. Em resposta o general declarou que “nós

não vivemos mais em 1.800 e o homem do campo, hoje, conversa de igual pra igual com qualquer

um da cidade e conhece o Estatuto da Terra”. O encontro dos rotarianos tinha como tema central a

discussão do projeto Redenção, mas Ocírodo de Oliveira, em certo momento interviu para afirmar

que “a subversão está ai e nós estamos de braços cruzados”, sendo aplaudido pelos sócios do Clube.

Ocírodo afirmou então: “General do nosso glorioso exército, é preciso que se tome providências

senão isso aqui viverá um só caos”. O chefe da maçonaria defendeu a colonização do Acre através de

trabalhadores de outros Estados. Por sua vez o general Moreno Maia – hoje na reserva – declarou

que “o homem do campo não é mais bobo. Ele não acredita mais em promessas, não acredita mais

em nós. Se confia, não é uma confiança total”. (“O colono não é mais bobo”, diz o general. Jornal

Gazeta do Acre. Rio Branco, julho de 1980).

A articulação de vários segmentos ligados aos fazendeiros e seringalistas nas

cidades, envolvendo as Associações de Criadores de gado, Associações Comerciais,

rotarianos, leoninos, maçons, clubes fazendários, etc., criava um clima de hostilidade de

muitos segmentos urbanos, contra os trabalhadores rurais. Essa perversa situação de

desamparo e falta de apoio à suas reivindicações individuais foram pedagógicas para que

essas populações percebessem que agindo sozinhas não conseguiriam manter-se em suas

colocações. Foi nesse processo conturbado que os seringueiros, que sempre tiveram um

estilo de vida com pouca sociabilidade, devido às distâncias e as imposições da labuta

diária, sentiram a necessidade de juntar-se para defender-se.

Page 116: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

117

Para consecução desse fato receberam apoio da Confederação Nacional dos

Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), que passou a atuar no Acre em 1975 e,

principalmente das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Igreja Católica, que já

vinham atuando desde o início desta década e tinham passado a agir na defesa dos mais

pobres, iniciando um processo de orientação sobre a questão da terra, informando sobre o

usucapião, por exemplo, que mesmo tendo sido regulamentado em 1964, com o Estatuto da

Terra, era praticamente desconhecido nessas áreas onde predominava o analfabetismo e a

ausência de qualquer tipo de resguardo à lei.

O jornal Nós Irmãos, foi um instrumento importante da divulgação dos direitos dos

posseiros e da legislação agrária. Não que os posseiros soubessem ler e tivessem acesso

fácil a qualquer publicação impressa, mas principalmente porque auxiliava os agentes das

CEBs no entendimento e na melhor forma de abordar o assunto junto aos trabalhadores. O

jornal publicava sob forma de cartilha os principais pontos sobre os direitos dos posseiros.

O fato de ter em mãos a posse do jornal da Igreja tornava o agente pastoral mais

interessante, mais prestigiado aos olhos dos trabalhadores extrativistas. Paradoxalmente,

havia entre eles uma espécie de maior crença no que estava escrito, embora a maioria não

soubesse ler, ficavam mais atentos quando o interlocutor ao invés de usar unicamente a

fala, passava a ler sobre seus direitos.

O processo de construção dessa união entre os seringueiros era, inicialmente,

desprovido de elaborações e reivindicações mais apurados. Comumente, diante da ameaça

de jagunços efetuarem uma derrubada que afetasse uma residência de um morador da área,

reuniam-se os vizinhos naquela casa e tentavam impedir o desmatamento, ou juntavam-se

todos para irem até a cidade pressionar as autoridades para que resolvessem o problema.

Ilustrando essa situação, transcrevemos a seguinte matéria, publicada no jornal

Gazeta do Acre em pleno ano de 1988:

Mais de trezentas famílias de posseiros que foram expulsas das terras do empresário Tufic Assmar

encontram-se acampadas há quatro dias na sede do MIRAD onde exigem uma solução para o

problema. Eles denunciam que mais de trezentas casas já foram destruídas e queimadas por quatro

operadores de motos-serras e outros quatro empregados do empresário que acompanhados de 50

PMs, cinco policiais civis e um oficial de justiça serram os barrotes das palhoças e ateia fogo a tudo.

(...) (Colonos resistem a jagunços. Gazeta do Acre. Rio Branco, setembro de 1988).

Page 117: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

118

Como se pode perceber nesta notícia, o contingente de policiais e os equipamentos

usados pelos jagunços tinham grande poder de destruição e, dificilmente, seriam derrotados

em suas ações de desocupação ou, derrubada de um barraco. Diante de tamanha força era

melhor evitar o enfrentamento e dirigir-se a cidade para buscar outros meios de impedir sua

expulsão, neste caso os trabalhadores expulsos, acamparam na sede do Ministério da

Reforma Agrária e Desenvolvimento (MIRAD), mas em outras situações, vinham

conjuntamente em busca de apoio do Governo do Estado, como demonstra essa outra

matéria:

Cerca de quarenta agricultores e seringueiros do seringal São João do Balanceio, km 124 da BR –

364, vieram à cidade sexta-feira denunciar ao governador Joaquim Macedo e ao coordenador do

INCRA ameaças de expulsão de suas posses que estão sendo feitas por alguns indivíduos que eles

conhecem por “paulistas”. Os agricultores contam que esses indivíduos têm feito espalhar pelo

seringal que todos os agricultores serão expulsos porque eles adquiriram o seringal. Na sede da

CONTAG (Confederação Nacional dos trabalhadores), os agricultores receberam um funcionário do

Incra que informou que o seringal São João do Balanceio ainda não foi discriminado e por isso não

se sabe se pertence à União ou a particulares. (...). Os colonos que também estiveram reunidos no

Palácio Rio Branco com o Governador Joaquim Macedo a quem queixaram-se das péssimas

condições de tráfego que oferece a BR-364. Contaram que para vir a cidade tiveram que percorrer

cerca de 60 km a pé quando então puderam tomar um ônibus. (...) (Agricultores denunciam ação de

grileiros. Jornal Gazeta do Acre. Rio Branco, 09 de março de 1982).

Algumas vezes, os seringueiros e colonos, diante da dificuldade de acesso às

autoridades, denunciavam diretamente a um jornal, na perspectiva de que daquela forma

chamasse atenção, não só de autoridades, mas também da sociedade, para sua situação

como nesse caso:

Os colonos que cultivam uma faixa de terra do Seringal Campo Esperança, localizado no km 31 da

estrada de Xapuri, o qual pertence a José Francisco Ribeiro, conhecido com “Zé Português”,

denunciaram à GAZETA DO ACRE a intimidação policial de que foram vítimas dois colonos, um

deles, um velho de 61 anos, quando no último sábado trabalhavam em suas terras. Antônio Léo e

Raimundo Gomes encontravam-se nas colônias que exploram há cerca de um ano, quando dois

policiais da PM, acompanhados de dois civis chegaram ao local e intimaram os agricultores a

acompanhá-los até a secretaria de Segurança em Rio Branco. De acordo com os colonos “os policiais

até revólver botaram” e não permitiram que eles sequer tomassem banho ou almoçassem, obrigando-

os a acompanhá-los imediatamente. Ao chegar a Rio Branco, porém, os policiais alegaram que já era

muito tarde e que não haveria mais tempo de irem até a Secretaria de Segurança, o que só poderia ser

feito na segunda-feira. Por essa razão disseram que iriam soltá-los na rua, o que de fato foi feito,

tendo os colonos que retornar ao Quinari. Para os colonos esse fato é uma forma encontrada pelo

proprietário da fazenda para ameaçá-los porque um dos civis que acompanhava os policiais, era um

seringueiro conhecido por Chico Noêmio, o qual é testemunha de Zé Português no processo que este

move contra os colonos. (Colonos dizem que foram intimados pela polícia. Jornal Gazeta do Acre.

Rio Branco, abril de 1982).

Page 118: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

119

A presença da polícia em conflitos pela posse da terra, sempre defendendo o lado

dos grandes proprietários e fazendeiros, esteve bem evidenciada nos jornais por mim

pesquisados. Em muitos casos não estavam obedecendo a uma ordem superior, mas sim,

agindo de forma autônoma, valendo-se do cargo público para auferir dividendos, ou

prestígio junto a um fazendeiro ou grande proprietário, nessa matéria, lemos:

Interessante! Durante os últimos sete, oito anos, os seringueiros e posseiros do Acre quase sempre

levaram a pior no confronto com grileiros, jagunços, empresários e grupos econômicos que se

apoderaram de 1/3 das terras do Estado. Milhares de seringueiros foram expulsos a bala dos

seringais, centenas de posseiros tiveram suas casas destruídas, suas plantações pisoteadas pelo gado,

muitos foram espancados, humilhados e roubados nos seus mais elementares direitos. A ação das

autoridades locais ou federais, civis ou militares, em favor dos trabalhadores foi praticamente inócua;

quando muito os trabalhadores recebiam a invariável promessa de “estamos investigando, estamos

investigando”, “vamos tomar providências” e outras evasivas do gênero. Pois bem, depois de

apanhar bastante e sofrer todas as conseqüências possíveis e imagináveis do capitalismo selvagem

que se esparramou sobre este lado da Amazônia, os seringueiros e posseiros, tendo aprendido a lição

de organização em seus sindicatos, começaram a reagir, numa ação legitima de defesa dos interesses

da classe, contra uma nova investida dos “paulistas” que está se esboçando. E o que está acontecendo

agora? Essas mesmas autoridades já se mostram irritadas, indignadas com a ação dos trabalhadores e

algumas até estão proferindo ameaças surdas e arrasadoras. Depois não querem admitir ou tentam

escamotear, quando são acusadas de estarem fazendo o jogo de interesses do capital, dos poderosos e

dos opressores! Esta hipocrisia, no entanto, não está passando desapercebida dos trabalhadores e, no

momento mais oportuno, eles saberão desmascará-las. (De que lado estão as autoridades. Jornal

Varadouro. Rio Branco, outubro de 1979).

Este tipo de ação policial não deixava registros. Eram ações “autônomas”, ou seja,

os policiais muitas vezes agiam por conta própria ou com a conivência de outras

autoridades, mas para quem viveu em municípios pequenos, como eu, não raro fomos

testemunhas de como se colocavam em prática métodos muito eficientes, usados pelos

fazendeiros para manterem policiais e outras autoridades como seus aliados. Por exemplo, o

fazendeiro que encontra o policial na rua e comenta “rapaz quando é que tu vai olhar o

novilho que separei pro teu filho” ou, “tenho um carneiro pra você assar no Natal, é só ir

pegar lá na fazenda”. Outra forma é manter as autoridades em seu circulo de influência,

convidando-as para um churrasco, ou de vez em quando dando um “agrado”, ou seja,

distribuindo algum dinheiro para ajudar o “amigo” com as despesas.

Esses “agrados” eram (são) distribuídos conforme a importância do cargo. Outras

autoridades, como políticos do executivo, do legislativo e membros do judiciário, também

vão recebendo os seus “agrados” conforme o “favor” ou “serviço” prestado. O fato é que ao

ser avistado na companhia de uma autoridade, ou receber a visita de uma autoridade em sua

fazenda, garantia ao fazendeiro uma aura de poder e dava uma demonstração de que

Page 119: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

120

aquelas autoridades estavam ao seu lado. Na prática articulava-se um círculo de amizade

que interferia na aplicação (pretensamente) equânime da lei.

Porém, o grande paradoxo dessa reestruturação agrária e produtiva ocorrida no Acre

a partir da década de setenta foi à condição de colocar em choque os próprios trabalhadores

extrativistas. Não os que permaneceram nas áreas de floresta, mas esses, contra os que ao

serem expulsos, deslocaram-se para as cidades e depois foram contratados como peões de

derrubadas, ou peões de fazendas, capatazes, etc., que voltavam à floresta, nessa condição

para fazer o trabalho de desmatamento e/ou desocupação que desalojaria seus ex-

semelhantes.

Os estranhamentos e os conflitos dificilmente colocavam frente a frente os

extrativistas e os fazendeiros. As artimanhas do capital se encarregavam de criar as

condições onde os próprios trabalhadores entravam em rota de colisão, promovendo seu

encontro/desencontro nessa condição de estranhos.

As situações reais de um “encontro” entre peões de derrubada e trabalhadores

extrativistas numa ação de “empate”, por exemplo, criam vários ambientes de

“desencontros”, onde as animosidades entre indivíduos ganham conotações diversas. O fato

de um olhar, um empurrão uma palavra que desagrada o outro, vira motivo para uma “rixa”

que envolverá familiares, amigos e será sempre aproveitada pelo capataz ou fazendeiro para

ajudar na resolução de seu problema, usando outros corpos e outros motivos. O mesmo se

dá com os policiais menos graduados, que comumente são originários das camadas menos

abastadas e, também, são insuflados contra os trabalhadores, motivados por questões sem

conotação de classe, mas suficientes para motivá-los à prática de uma ação violenta.

Dessa forma, o cenário da vida na floresta a partir da chegada dos “paulistas”

passou a apresentar um clima persistente de uso da força física para disciplinar a limpeza

do território pretendido: incêndio de casas e plantações, matança indiscriminada de animais

pertencentes aos extrativistas e posseiros, prisões ilegais, ameaças de morte, assassinatos

anunciados e executados, listas de condenados a morte circulando nas cidades,

espancamentos de trabalhadores, truculência policial, porte ostensivo de armas de fogo por

parte dos jagunços, devastação da floresta através de derrubadas e queimadas, tudo isso

contribuindo para ampliar o clima de tensão que se estabeleceu no Acre a partir da

execução do plano de mudança na estrutura produtiva. Uma espécie de Far West (faroeste)

Page 120: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

121

se estabeleceu em plena véspera do século XXI. Homens montados em cavalos, com seus

chapéus, botas com esporas e cinturões com fivelas enormes estilo cowboy, alguns

portando ostensivamente suas armas, passeavam pelas ruas de Xapuri, Brasiléia e mesmo

Rio Branco, capital do Estado.

Se considerarmos que foi violento o planejamento da mudança no sistema produtivo

no Estado do Acre, por não ter incluído os segmentos sociais que viviam do extrativismo

no processo de “alavancagem para o progresso”, constatamos que mais violento ainda foi a

sua execução, exatamente por ter ido além da simples exclusão dos trabalhadores

extrativistas. A mudança no sistema de propriedade da terra, bem como a mudança na sua

utilização, isto é, o abandono do extrativismo em benefício da pecuária extensiva, não se

realizava só com a exclusão das populações tradicionais, ela necessitava de sua eliminação.

Foi no cenário de violência que se construiu também a reação, que se abriram novas

fronteiras para os trabalhadores extrativistas. A fronteira para os “paulistas”, ou seja, o que

eles entediam e viam como a terra bruta, já era uma terra que acolhia os modos de vida dos

posseiros e extrativistas. Mas, a mudança na paisagem vai obrigar os trabalhadores a

reelaborarem seus relacionamentos não só com a natureza, mas também com seus

semelhantes. Os estranhamentos e a violência fizeram amanhecer a organização e a

resistência, abriram também novas fronteiras.

Page 121: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

122

2.3 AS DIVERSAS REAÇÕES DOS MORADORES DA FLORESTA, DOS COLONOS

E DOS FAZENDEIROS: SINDICATOS, EMPATES, ASSOCIAÇÕES.

Os investimentos dos governos militares e seus aliados civis na Amazônia

trouxeram para a cena da vida na floresta, novos atores, entre eles, no caso do Acre,

destacaram-se os colonos, que vieram para ocupar os lotes de terras distribuídos pelo

Governo nos projetos de assentamento que margeavam as novas estradas que estavam

sendo construídas e, os fazendeiros, que adquiriram terras e foram agraciados com

financiamentos e incentivos fiscais para investirem nesta região. Acompanhando esses dois

grupos distintos, vieram também levas de grileiros, especuladores e aventureiros em busca

de enriquecimento fácil. (DUARTE, 1987)

Os colonos formavam uma massa plural, pois eram grupos diversos e provenientes

de regiões também diversas, com destaque para os sulistas (catarinenses, paranaenses, sul-

rio-grandenses) e capixabas, mas vieram também, mineiros, goianos, paulistas, etc. Entre

eles figuravam sem-terras, desalojados por barragens e pequenos produtores que, com

pouca terra para sustentar suas famílias em suas regiões de origem, buscavam novas áreas

onde pudessem dispor de melhores condições de vida.

O segundo grupo, embora tenha recebido a denominação de “paulistas”, também era

plural em sua composição, mas basicamente formado por paulistas, goianos, paranaenses,

mato-grossenses, gaúchos, mineiros e sul-mato-grossenses.

O terceiro grupo, o dos grileiros e especuladores, também, em sua maioria, era

proveniente dos mesmos Estados dos fazendeiros, algumas vezes, trazidos ou enviados por

eles para fazerem o papel de “laranja”, ou de “testas-de-ferro” desses grandes empresários,

e sua função era fundamental para não manchar o nome das empresas de seus patrões.

Costa Sobrinho descreve assim esse momento:

O movimento em direção ao Acre mobilizou grandes, médios e até pequenos proprietários do

Centro-Sul. Os pequenos e médios proprietários foram atraídos pela possibilidade de se tornarem

fazendeiros prósperos e bem-sucedidos, já que a venda de suas propriedades de dimensões menores

no lugar de origem, permitiria adquirir glebas de terra que variavam de 100, 500 a 1000 hectares. Os

grandes empresários, por sua vez, não vieram tão-somente interessados em implantar grandes

projetos de pecuária extensiva de corte, motivados pelos incentivos fiscais e crédito fácil e

subsidiados, mas também pela utilização da terra como “reserva de valor” e mais precisamente para

especular com terras. A alienação de grandes áreas de terra, que vinha ocorrendo com a venda dos

seringais nos últimos anos da década de 1960 e começo dos anos de 1970, foi fortemente acelerada a

Page 122: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

123

partir de 1972, evoluindo progressivamente até 1976 quando daí por diante, obstáculos foram sendo

antepostos à especulação, grilagem e ação predatória dos novos colonizadores. (COSTA

SOBRINHO, 1992, p. 145).

Esses três grupos se encontraram e desencontraram com os outros dois grupos

residentes, formados na região e compostos por seringueiros e posseiros (colonheiros). Os

desencontros aconteceram porque as visões de mundo dos grupos chegantes eram muito

diferentes das formas de ver, pensar e agir dos grupos residentes. Os grupos chegantes,

mesmo com as grandes diferenças existentes entre colonos, fazendeiros e grileiros, traziam

uma noção de produção para o mercado, de valorização da terra como fundamento para

obtenção de meios de vida e de lucro, respectivamente. Podemos mesmo dizer que traziam

uma noção maior de valorização da propriedade da terra. Os colonos por já terem

vivenciado conflitos e situações de deslocamentos por causa ou por falta de terras. E os

fazendeiros e grileiros, porque sabiam muito bem da importância de titulação para a posse

real das terras adquiridas e para realizarem suas operações lucrativas.

A situação dos seringueiros e dos posseiros (colonheiros) da região era bem

diferente. Não haviam enfrentado, ainda, graves problemas de disputas por terras, haja vista

que a exploração extrativista estava montada na existência e na permanência de homens na

terra (seringal), ou seja, o que era valorizado pelo seringalista não era a quantidade de terras

de que dispunha, mas sim, a quantidade de seringueiros que estavam “colocados” em seus

seringais. A produção gomífera dependia do número de árvores de seringa e da quantidade

de braços para fazer o corte, a coleta e a defumação do látex.

Os conflitos desses grupos com os proprietários dos seringais existiam, mas eram de

outra natureza. Eram muito mais combates contra a exploração do trabalho, contra a

majoração exorbitante dos preços dos aviamentos, contra a cobrança de renda, contra a

elevação aleatória das dívidas do seringueiro, contra a “quebra” e a “tara”50

etc., do que luta

por um pedaço de terra.

50

- Quebra e tara são dois mecanismos usados pelos patrões para aumentar seus lucros nas relações com os

seringueiros. A quebra consiste numa avaliação unilateral, feita pelo patrão ou gerente do seringal, que

“avalia”, quanto cada péla de borracha vai perder de água. Esse procedimento acontece porque logo que o

processo de coagulação é concluído considera-se que a péla está “verde” e no processo de armazenagem ela

vai perdendo líquidos residuais do processo de fabricação e, embora o seringueiro tenha consciência que ela

“quebra” de fato, sempre o patrão ou gerente, avaliam para cima a possibilidade dessa quebra. A tara da

balança (norma técnico-formal de aferição das balanças) é outro mecanismo muito usado para adulterar o

peso real da péla. Através de artifício fraudulento, muda-se a configuração real da balança para reduzir o peso

da borracha.

Page 123: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

124

Além desses aspectos quando os donos dos seringais deixaram de aviar os barracões

e, por conseqüência, os seringueiros, de certa forma afrouxaram o controle sobres estes,

permitindo a formatação dos modos de vida que evoluíram para o que se passou a

considerar “seringueiros autônomos”, ou seja, os modos de vida que conjugavam as

práticas extrativistas com o cultivo de alguns cereais, leguminosas, tubérculos e frutas, o

que junto com a criação de pequenos animais (galinhas e porcos eram os mais comuns), a

caça e a pesca, dependendo da localidade, auxiliava o sustento dessas famílias.

Porém, com a mudança de donos da terra e as modificações na paisagem causadas

pelas novas modalidades produtivas, os choques dos antigos moradores da Amazônia e os

chegantes, começaram a eclodir. Os processos sumários de expulsão promovidos por

fazendeiros e grileiros, contra os extrativistas e posseiros, desencadearam reações e

revelaram processos que vinham se desenvolvendo no meio da floresta e que não estavam

visíveis aos governantes e empreendedores. Este modo de vida relativamente autônomo,

desenvolvido pelos seringueiros, está assim configurado nesta descrição feita por Márcio de

Souza:

Chico Mendes e seus amigos, Wilson Pinheiro e Raimundo Barros, nasceram e se criaram ali nos

seringais do Acre. Suas famílias viviam por lá havia pelo menos cinqüenta anos, tirando o sustento

da extração da borracha, da castanha e das lavouras. (...). Todos eles se lembravam de outros tempos

menos amargos, tempos de pobreza e isolamento, mas sem as angústias desses dias. Quando eram

jovens, os meses de chuva era o tempo de plantar, nas terras firmes, mandioca, pés de cana e banana.

Era o tempo de reparar as mudas de seringueira, semear as sementes ou fazer canteiros com galhos

ou estacas, porque era preciso repor as árvores que se esgotavam ou morriam atacadas por parasitas.

Como as chuvas impediam os seringueiros de trabalhar, porque a água entrava no tronco e estragava

o leite da seringueira, todo mundo procurava outra ocupação: rachar lenha, plantar na terra firme ou

juntar as sementes das seringueiras, que caíam de maduras. (SOUZA, 2005, p. 9).

Note-se que Márcio de Souza expressa que esses seringueiros “se lembravam de

tempos menos amargos, tempos de pobreza e isolamento, mas sem as angústias desses

dias”, ou seja, diz que a vida não era fácil, mas que a chegada do “progresso” e do

“desenvolvimento”, transformava suas vidas de maneira não desejada. Estabelece-se ai um

dos motivos para a decisão de lutar contra essa mudança de condição, imposta pelos

chegantes.

Para os governantes e fazendeiros foi assustador, quando de repente viram surgir

essa população que estava espalhada no meio da floresta e que vivia do extrativismo e das

pequenas roças, sem grandes demandas ao poder público e sem grande dependência das

Page 124: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

125

cidades. Muitos não eram sequer contabilizados pelos censos do IBGE, haja vista as

distâncias e o isolamento a que haviam se submetido. Porém, mais assustador, ainda, foi

perceber que alguns desses trabalhadores não queriam obedecer passivamente às ordens de

desocupação das áreas reivindicadas pelos novos proprietários. O desencadeamento das

resistências individuais foi seguido pela resistência familiar e depois, da resistência mais

difusa, uma resistência coletiva que foi denominada “empate”. Essas ações deram início aos

conflitos por terras nessa fase de transição do setor produtivo no Estado do Acre. Chico

Mendes descreve assim, os empates:

Os Empates são feitos através de mutirões dos seringueiros. À medida que os seringueiros tomam

conhecimento de que têm companheiros ameaçados pelo desmatamento dos fazendeiros, se reúnem

várias comunidades, principalmente a comunidade afetada, organizam-se assembléias no meio da

mata mesmo e tiram-se grupos de resistência que vão se colocar diante das foices e das motos-serras

de maneira pacífica, mas organizada51

.

Também, analisando a situação José de Souza Martins entende que o tipo de

resistência adotado pelos seringueiros foi uma das ações mais criativas, pois:

Os trabalhadores desencadearam um movimento de resistência que ficou conhecido como “empate”,

isto é, criação de obstáculos para impedir a derrubada da mata e a abertura das fazendas de gado.

Trata-se de resistência pacífica, pela qual os seringueiros identificam os lugares em que estão sendo

iniciados desmatamentos, ocupam os acampamentos, expulsam feitores e peões, depois de explicar-

lhes o que significa seu gesto e quais as implicações da devastação, e bloqueiam pistas de pouso de

aviões, abertas no meio da floresta para abastecimento dos desmatadores. Foram realizados 40

empates, dos quais apenas 15 resultaram em desapropriações de terras para fins de reforma agrária

por parte do governo federal. A resistência pacífica dos seringueiros do Acre teve, entre outras, duas

vítimas, cuja morte representa uma clara tentativa de impedir a continuidade de sua luta: em 1980,

foi assassinado Wilson de Souza Pinheiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de

Brasiléia, na própria sede do Sindicato; no final de 1988, foi morto Chico Mendes, presidente do

Sindicato de Trabalhadores Rurais de Xapuri, em sua própria casa. No caso de Wilson Pinheiro,

trabalhadores é que foram processados por terem denunciado o crime e protestado contra a

impunidade dos criminosos. (MARTINS, 1991, p. 172).

O processo de devastação da floresta promovido pelos fazendeiros, além da

característica de violência e desigualdade, serviu também para revelar outro fato que ainda

não havia sido percebido, qual seja, a mudança de relacionamento dos trabalhadores

extrativistas com a natureza. No capitulo anterior dissemos, com base nos estudos

realizados por Tocantins, Benchimol, Cunha e outros, que toda a vida do seringal estava

vinculada ao rio, “o rio comandava a vida”, nas palavras de Leandro Tocantins.

51

- SOUZA, Carlos Alberto Alves de. “Varadouros da Liberdade: Empates no Modo de Vida dos

Seringueiros de Brasiléia – Acre. São Paulo: PUC, 1996. p. 38 - Tese de Doutorado.

Page 125: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

126

Contudo, a partir da falência do sistema de aviamento e do início da reestruturação

produtiva, com os desmatamentos e a reação dos trabalhadores extrativistas, foi-se

percebendo que muito daquela relação “margem-centro”, aviador-patrão-marreteiro-

seringueiro, produção de borracha-obtenção de mantimentos, tinha sido desmantelada e os

seringueiros haviam desenvolvido uma relação muito diferente e muito maior com a própria

floresta. Tinham se tornado mais independentes em relação aos espaços urbanos e seus

intermediadores (patrões e regatões) e, aprendido, com o tempo e com as experiências

ancestrais, a ir tirando da floresta a base do seu sustento, desde a alimentação até sua

medicação, utilizando as propriedades das plantas e articulando modos de vida mais

cooperativos. Márcio de Souza descreve assim, o trauma vivido pelos trabalhadores

extrativistas, quando começaram a sentir os efeitos dos desmatamentos:

Mas um dia chegaram os fazendeiros com tratores e as motos-serras. De repente, não era só a

borracha que não valia mais nada. Era a árvore da seringa, era o próprio seringal, era a posse dos

seringueiros expulsos sob a mira dos jagunços. Ficou difícil entender o que estava acontecendo.

Através da Rádio Nacional, com o apoio do órgão oficial de fomento à borracha, o governo dizia

para os seringueiros preservarem os seringais e aumentarem a produção. Mas, do outro lado

oferecendo generosos incentivos fiscais e linhas de crédito oficiais, o governo favorecia grandes

grupos econômicos, atraindo-os para a exploração da madeira e para implantação de enormes áreas

de criação de gado. A devastação indiscriminada da selva abocanhava as posses dos seringueiros.

(SOUZA, 2005, p. 10).

A realização do modo de vida, relativamente independente, que haviam

desenvolvido foi um dos principais motivos para a organização da resistência desses

trabalhadores contra os desmatamentos. A garantia para sua sobrevivência estava na

manutenção da floresta, isto eles perceberam desde cedo, quando começaram a abertura das

estradas e o ronco dos tratores espantava as caças e facilitava a vinda de gente das cidades

para praticarem a caça predatória, o que deixava mais precária sua estrutura alimentar. Com

a chegada dos fazendeiros e o início das derrubadas e das queimadas, então, tudo virou

certeza: aquele tipo de “progresso”, aquele tipo de “desenvolvimento”, definitivamente, não

os interessava.

E. P. Thompson (1987), referindo-se ao progresso técnico do século XVIII e,

Amartya Sen (2000 e 2002), referindo-se ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), do

século XX, escreveram sobre o conceito de qualidade de vida e as relações de padrão de

vida, envolvendo a questão de qualidade de vida e da satisfação, no sentido de que a

Page 126: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

127

qualidade “está associada a um tipo diferenciado de comunidade, com um modo de vida

característico” (THOMPSON, 1987, 343) e, no caso de Sen, onde a qualidade só pode ser

medida quando ela envolve os conceitos de liberdade e condição de escolha. Os dois,

mesmo que Thompson esteja referindo-se a sociedades bastante diferentes, acabaram por

descrever, guardada as diferenças temporais, históricas e culturais em que se referenciavam,

a situação dos seringueiros do Acre.

Não queremos com isso dizer que esses “povos da floresta” tinham alcançado um

padrão de vida que causasse inveja ou que servisse de modelo a ser adotado, Thompson e

Sen também não desenvolveram teses passadistas, longe disso, estamos apenas sugerindo

que os seringueiros, mesmo que ainda não fosse de forma coletiva, tinham consciência de

que uma mudança para as cidades e/ou as opções de sobrevivência naqueles espaços, lhes

eram desfavoráveis, em relação ao padrão de vida que haviam alcançado com as condições

desenvolvidas na floresta. Isto por si, justificava a recusa, pois o que significava o

“progresso” e o “desenvolvimento” para as elites militares e civis, responsáveis pelos

“investimentos” no Acre, para aqueles “povos da floresta”, estava implicando em redução

da sua qualidade de vida. Estava mesmo implicando em redução de sua segurança

alimentar, em sua condição de trabalhar, em sua capacidade de abrigar-se e à sua família.

É por isso que essa grande movimentação populacional, promovida em nome do

avanço, do desenvolvimento e do progresso, não foi bem recebida pelos grupos que

habitavam e mantinham relação com a floresta, ou seja, nem todos os antigos moradores da

floresta foram convencidos a ver com bons olhos essas mudanças, mesmo diante da forte

propaganda governamental que os convidava a fazer parte desse progresso (ainda que sua

participação fosse simplesmente desocupando as áreas, onde ele, o progresso, vicejaria).

Aceitar esse “convite” para sair de suas colocações e posses e contribuir com o

“progresso”, os colocava na contramão do que eles tinham construído. Os caminhos e as

possibilidades de escolhas para eles estavam, na verdade, sendo reduzidas, podemos mesmo

dizer que estavam, praticamente sendo anuladas e que, definitivamente, não eram

desejadas. A alternativa de deslocamento para as cidades, que era colocada como opção, já

estava aberta desde a segunda falência dos seringais, não era novidade e, mais, eles sabiam

que a vida nas cidades não era mais fácil do que na mata e, comumente recusavam essa

“alternativa”, embora muitos desejassem a obtenção de alguns benefícios oferecidos nas

Page 127: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

128

cidades, como acesso a educação e medicamentos, mas que esses benefícios fossem

oferecidos na sua localidade.

Muitos viram na travessia para os seringais da Bolívia ou, para os seringais do Peru,

uma saída para se livrar da violência dos fazendeiros e do Estado, bem como, para não

serem obrigados à mudança para uma das cidades próximas. Por isso, seguiram para buscar

(arrumar) “colocações” nestes países. Mas essa também não era uma mudança que lhes

agradasse, pois perderiam tudo o que haviam construído em suas colocações, que embora

não fosse muito, era o necessário, o suficiente para satisfazer suas pretensões de vida. A

travessia temporária e espontânea para a Bolívia52

, muitos já haviam feito. Eles também já

conheciam essa opção, mas essa travessia permanente e compulsória não os agradava.

Note-se nesta narração do diálogo de um jornalista com um emigrante, a recusa persistente

a qualquer opção que representasse sua desvinculação com a mata:

“(...) Ir para um lugar estranho, um país diferente, pouco importa para Francisco Bonifácio. Ele tem

consciência de que não lhe sobram muitas alternativas. Além disso, o futuro parece que não o

perturba. “A gente que é pobre não tem escolha “seu” menino. Vou tentar a sorte por lá. Tenho fé em

Deus...”. Diz ele, tirando o chapéu, invariavelmente, quando pronuncia o nome de Deus. Haveria

sim, a rigor, algumas escolhas. Uma delas poderia ser a cidade. Francisco Bonifácio é ainda bastante

novo, forte, acostumado ao trabalho duro. Poderia ser ajudante de pedreiro ou qualquer outra

categoria braçal. Mas... ”Não dá, não, “seu” menino. A gente viveu na mata a vida inteira. Minha

mulher, os filhos, somo tudo sem letra...”. E que tal se empregar como “peão” numa das fazendas

que estão se implantando, ali mesmo pela região de Tarauacá: a Cinco Estrelas ou a Paranacre, por

exemplo: “Também nois não quer. Lá nos altos corre uma zoeira muito feia dos “paulistas”. Nunca

encrenquei com ninguém e ninguém encrencou comigo. Não quero me meter em confusão, “seu”

menino”. Sim, haveria outras alternativas que não fosse a Bolívia para o seringueiro Francisco

Bonifácio e tantos outros, cerca de 85% que não possuem terras no Acre. Uma delas seria a Reforma

Agrária (...). (Rumo à Bolívia. Jornal Varadouro. Rio Branco, maio de 1979.

A mudança compulsória de colocação e de país era também uma resignação em não

aderir aos métodos violentos dos seus opositores. Quando o senhor Francisco Bonifácio diz

que “nunca encrencou com ninguém” e “que já ouviu muita coisa feia dos paulistas”, está

expressando um sentimento de impotência e recusando trabalhar em condições piores do

que a insegurança que envolve um processo de mudança para um local desconhecido e de

52

- Até a década de setenta era comum entre as famílias de seringueiros que habitavam as áreas de fronteiras

o deslocamento de alguns de seus membros para algum seringal na Bolívia, onde trabalhariam nos períodos

de safra do látex e da coleta de castanha, retornando logo depois para sua colocação de origem no lado

brasileiro, era um movimento espontâneo, sazonal, para aproveitar a boa produção de látex e de castanha no

lado boliviano.

Page 128: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

129

toda uma tentativa de recomeçar a vida nos seringais de outro país. Mas ele sabe que a

violência dos “paulistas” é muito cruel, decididamente, não quer se submeter.

É desta insatisfação com a perda de sua posse, da revolta contra essa condição de

não poder opinar a cerca de sua condição de vida, de suas preferências, que muitos se

recusaram a seguir qualquer uma dessas “alternativas” (ir para a cidade ou para outro país)

e iniciaram a luta para permanecer nos “seus” lugares e espaços. O seringueiro e ex-

sindicalista Osmarino Amâncio, falando no II Simpósio Nacional de Geografia Agrária

realizado pelo Departamento de Geografia da USP, em 2003, referindo-se a organização

dos sindicatos e dos empates, disse:

(...) Às vezes, a gente achava impossível vencer, por isso muitos companheiros desistiram no meio

do caminho; outros saíram para a Bolívia, foram pra periferia das cidades. O latifúndio conseguiu

expulsar mais de 40 mil pessoas para a Bolívia. Queimaram quase 4 mil casas no meio da floresta e

expulsaram muita gente. Mas um grupo de seringueiros começou a fazer a trincheira e segurou, e os

outros foram vendo. E, quando eles começaram a assassinar os nossos companheiros, ai foi criando

um certo levante de revolta e foi ai que o movimento se fortaleceu, porque a gente não tinha tradição

de coletividade, pela forma como a gente vivia na floresta: isolado, cada um tinha que fazer as suas

próprias leis, cada um tinha que criar sua própria cultura, criar costumes, que eram muito difíceis,

porque era muito longe e era difícil o acesso. Então, a gente viveu esse processo muito difícil53

.

Da valentia individual, que é bem representada pela frase “daqui só saio morto”, da

vontade de continuar vivendo nos lugares e espaços em que tinham construído suas vidas e,

principalmente, após receber o apoio da Igreja Católica, da CONTAG e de alguns

militantes de partidos de esquerda que ajudaram a respaldar e organizar essa “rebeldia”,

nasceu à possibilidade de se materializar uma resistência coletiva. Primeiro, com a

organização dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs), entre os anos de 1975 e 1977

e, depois, com a realização dos empates54

e os novos significados que posteriormente foram

sendo agregados a esse movimento, como a luta ecológica e as reivindicações por

cidadania, por exemplo.

53

- AMÂNCIO, Osmarino. Os seringueiros do Acre e os impasses na Exploração da floresta. In. OLIVEIRA,

Ariovaldo Umbelino de. & MARQUES, Marta Inez M. (Orgs.) O campo no século XXI: território de vida, de

luta e de construção da justiça social. São Paulo. Casa Amarela e Paz e Terra, 2004.

54

- O Primeiro empate que se tem notícia aconteceu em 1976, no município de Brasiléia, no seringal

Carmem, já sob a liderança do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasiléia, que havia sido fundado em

dezembro de 1975 e tinha como líder (organizador) Wilson de Souza Pinheiro, que viria a ser assassinado em

julho de 1980, iniciando uma série de assassinatos de líderes sindicais que culminaria no assassinato de Chico

Mendes, em dezembro de 1988.

Page 129: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

130

Referindo-se à transição da resistência individual para a resistência coletiva, Costa

Sobrinho escreveu:

O clima de terror durava quase dois anos; esgotada a resistência individual e os apelos às

autoridades, os posseiros resolveram agir coletivamente. Após alguns encontros, nos quais definiram

o que fazer, 96 posseiros armados com suas espingardas se dirigiram ao acampamento dos peões, que

estava instalado numa localidade, nas imediações da BR-364, denominada “quatro bocas”, cercaram

e ocuparam a área. O objetivo do cerco era ajustar contas com os fulanos Valdevino, Osório e outros

jagunços, e expulsar os peões que faziam as derrubadas. (COSTA SOBRINHO, 1991, p. 155).

É este tipo de ação coletiva que inaugura a nova modalidade de resistência. Além da

oposição à presença dos paulistas que ela representava, era também um indicativo de que os

seringueiros e posseiros queriam manter seus ritmos de vida, ou seja, queriam voltar a seus

trabalhos cotidianos, colher o látex, coletar castanhas e botar seus roçados, práticas que

estavam sendo proibidas pelos novos proprietários.

É nesse ambiente de negação das alternativas de mão única, representadas pelo

abandono da área e ir para a cidade, ou atravessar a fronteira e ir para outro país (desde que

a área pretendida pelo fazendeiro ou grileiro ficasse “limpa”), que surge a via da

permanência, a via da organização, da união para manter seus modos de vida. Os empates

são, portanto, as marcas mais significativas desse período, que vai de 1976 a 1990, no

sentido da organização dos trabalhadores extrativistas e da negação de uma ordem oriunda

das elites que dominavam a cena socioeconômica, política e cultural do e no Estado.

A organização dos empates foi a grande novidade no curso “natural” do processo de

reorganização do modelo econômico do Acre. Seus significados, no entanto, são muito

diferentes para as categorias sociais que figuravam no núcleo do conflito. Para os

fazendeiros, representava um obstáculo ao seu empreendimento (era uma questão

econômica). Para o Estado, uma questão jurídica, talvez um caso de polícia. Para os

seringueiros e posseiros, a própria sobrevivência. Para os grileiros e especuladores,

oportunidades de negócios.

Mas os empates ganharam contornos que extrapolaram as concepções específicas de

cada setor envolvido. O simples fato de juntar trabalhadores, que até então, sofriam com a

exploração dos patrões, mas nunca tinham reagido coletivamente e de forma tão

organizada, definitivamente, rompia todo um ciclo de resignação e subalternidade à que

estiveram relegados durante anos.

Page 130: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

131

Juntar gente pobre e analfabeta, que tinha pouco acesso às informações e,

principalmente, sobre os significados do que estava acontecendo com o País, ou mesmo

com seu Estado, para se opor às forças bem informadas e articuladas, como as que haviam

adquirido terras no Acre, não era um ato corriqueiro nem um fato de fácil compreensão.

Mas, ainda assim, o empate adquire mesmo uma característica paradoxal: de um

lado colocava homens, mulheres e crianças pobres e, em sua maioria, analfabetas, que se

reuniam e marchavam para determinados locais, algumas vezes em silêncio, em outras,

entoando cânticos religiosos ou trechos do Hino Nacional e que, se abraçando as árvores,

tentavam explicar seus gestos através do diálogo, no intuito de convencer seus oponentes

que aquela ação representava sua sobrevivência, enquanto do outro lado, postava os peões e

suas motos-serras, policiais e capatazes armados ameaçando-os, oficiais de justiça portando

ordens judiciais autorizando os desmatamentos e a desocupação das áreas.

Formava-se, afinal, um quadro, uma imagem monocromática. Eram trabalhadores

contra trabalhadores. Os “paulistas”, a outra parte, a parte de fato opositora, ficava distante,

comandando seus negócios e pouco se importando com os conflitos entre iguais que se

desencadeavam no meio da mata, para eles importava simplesmente, a “limpeza” do

território.

Ficavam ali no meio da floresta frente a frente, homens basicamente com a mesma

origem, ou seja, peões de derrubada, capatazes e soldados que em sua maioria, eram

oriundos de famílias que haviam saído dos seringais e eram quase tão pobres quanto

àqueles a que ora se opunham, seringueiros e posseiros. Porém, ali naquele lugar e naquele

espaço, representavam concepções de mundo muito diferentes: era a representação do

“desenvolvimento” contra a manutenção de formas de vida “arcaicas”.

Não era um diálogo fácil o que se estabelecia, pois os seringueiros e posseiros, que

eram vistos nos espaços urbanos como os símbolos do atraso, da improdutividade, estavam

ali, buscando convencer pela palavra, que aquelas ações tidas como necessárias para o

desenvolvimento, significavam para eles, a população residente, rebaixamento das

condições de vida.

Para Teixeira, há uma explicação para essa resistência, pois:

Page 131: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

132

Esse agrupamento originalmente nordestino estabeleceu com a mata vínculos tão profundos que só às

sociedades indígenas foram dados a conhecer. Eles conhecem a mata em minúcias, desde os lugares

mais discretos onde sabem encontrar um certo tipo de cipó que lhes sacia a sede até aqueles mais

recônditos, onde nesses tempos difíceis de desmatamento sabem encontrar caça que lhes dá alimento.

É a mata, portanto, e não o rio, o elemento pelo qual o seringueiro articula a sua linguagem e elabora

as categorias do seu pensamento. (TEIXEIRA, 1997, p. 55).

O empate, portanto, ganhava contornos que iam além da oposição entre

desenvolvimento e manutenção de modos de vida. Para muitos seringueiros defender a

floresta, principalmente as árvores das seringueiras e das castanheiras, era como se

estivessem defendendo suas “mães”, vejamos como este seringueiro se refere às árvores:

“O que se está fazendo com a castanheira e com a seringueira é um verdadeiro crime. É um crime

derrubar uma árvore como esta. A castanheira, a seringueira são como se fosse nossas mães, pois

quando nossos pais vieram do nordeste para cá, tiraram delas o sustento. Foi com leite de castanha

que nos criaram. Foi com leite de seringa que nos vestiram”. (“Mãe”, para os acreanos, “Vaca

Sagrada”55

, para os paulistas. Jornal Varadouro. Rio Branco, junho de 1978. Depoimento de

Francisco Vieira de Azevedo).

Para o trabalhador extrativista, portanto, não era apenas a terra que lhe interessava,

ela (a terra) sem seus recursos naturais, não lhes tinha muita serventia.

O aparentemente simples fato de reunir trabalhadores para organizar lutas de

resistência, ou lutas reivindicatórias, que sabemos não é cena inédita na história humana,

pois em outras partes do mundo outros trabalhadores pobres já se juntaram e se

manifestaram pelos mais diversos motivos, neste caso, há as peculiaridades da forma e dos

significados objetivos e subjetivos que os juntaram.

Para aqueles homens, mulheres e crianças isolados pela natureza e, principalmente,

por se tratar dessa região que havia entrado na cena nacional como área fronteiriça, onde a

subalternidade e a desigualdade social estavam engessadas pelo sociometabolismo

constituído por uma estrutura de poder unilateral, onde o patrão detinha o monopólio da

ordem, qualquer tipo de reação vinda dos “de baixo”, era não só inesperada, como

representava um acontecimento singular.

55

- Os “paulistas”, diante das leis de proteção das seringueiras (Lei sancionada em 1942 – que não permitia a

derrubada dessa árvore) e das castanheiras (protegidas desde 1967), que eram argüidas pelos seringueiros,

tentando pressionar o governo para que este interviesse contra os desmatamentos e as queimadas, chamavam

essas árvores de “vacas sagradas”, numa alusão a situação das vacas na Índia.

Page 132: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

133

De repente, as elites se viram diante de uma força desconhecida, que não acatava

passivamente o re-ordenamento socioeconômico proposto e mais, que estava mesmo

disposta a desobedecer à ordem. Aqueles seringueiros, até então, subalternos, pacatos, não

visíveis e excluídos do projeto de Estado pretendido pelas elites, estavam ali, se fazendo

visíveis e dispostos a iniciar todo um processo de negação de uma lógica expansionista,

exploratória e excludente, articuladas contra eles.

Para as elites militares e civis, uma ruptura nos seus projetos sociopolíticos,

econômicos e culturais, era algo que podia acontecer de forma “natural”, faz parte dos

riscos imanentes aos “negócios”. Planejavam os novos empreendimentos e manejavam seus

instrumentos para sua consecução. Ancoravam-se na oportunidade de realização. Tinham

em seu favor a capacidade de tomar as decisões, bem como as condições de mobilidade

territorial. Administravam negócios e interesses em várias partes do país, alguns em várias

partes do mundo, e não se envolviam diretamente com os atingidos por suas decisões.

Mas não perdiam (não perdem) investimentos de forma tranqüila. Também se

organizavam e agiam coletivamente. Logo após sua chegada ao Acre, os fazendeiros

criavam em cada município o “Clube dos Fazendários”, todos com características sociais,

no intuito de atrair a “elite” urbana para festas e celebrações, tentando demonstrar com

esses gestos de aproximação com a população, que um novo tempo estava chegando para a

região. A finalidade precípua, contudo, era reunir as pessoas “importantes” da cidade em

que se estabeleciam, para formarem o escudo de proteção contra as ações contestatórias

oriundas de suas ações contra os seringueiros e posseiros.

Fundaram também as “Associações de Criadores” e os Sindicatos Patronais, que na

década de oitenta deram base para a sustentação da União Democrática Ruralista, a UDR,

que servia, entre outras finalidades, para “enquadrar” as autoridades, pressionar

politicamente os governantes e influenciar na vida política nacional, através da conquista de

cadeiras nos diversos níveis do parlamento, prefeituras, governos estaduais, chegando

mesmo a disputar com candidato próprio à Presidência da República, no final da década de

oitenta, quando ocorreu a transição do regime militar para o regime civil e foram realizadas

as eleições diretas em 1989.

Page 133: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

134

Dentre outras finalidades da UDR, estava a de financiar grupos de jagunços para

eliminar lideranças populares e sindicais que eram identificadas como prejudiciais às ações

dos fazendeiros em diversas regiões do país. Esta, inclusive, é uma característica que

persiste neste início de século XXI. Os grandes proprietários, sejam fazendeiros ou

madeireiros, continuam usando o expediente dos jagunços e pistoleiros para eliminarem

seletivamente, lideranças sindicais ou ecológicas que no seu entender, perturbam seus

negócios.

Em 2003, o então presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Dom Tomás

Balduíno, comentando o aumento das mortes em conflitos rurais no campo, chega mesmo a

falar que neste início de século se “criaram novas articulações de defesa da propriedade e

reanimaram outras tidas como extintas, inclusive a defunta UDR – União Democrática

Ruralista. Isso veio naturalmente acompanhado de recrutamento de milícias privadas, bem

armadas, e muita falação grossa na mídia”. (OLIVEIRA e MARQUES (Orgs.), 2004, p. 20)

Mas suas ações não se restringiam a pratica de violência contra trabalhadores pobres

e desamparados, no Acre, por exemplo, sua influência era tão grande que eles desafiavam

até os governantes locais, quando seus interesses encontravam algum tipo de obstáculo,

vejamos o tom usado nesta matéria:

Governo Estadual e Federal, Incra, Igreja e a Contag, foram criticados, duramente, por empresários

rurais do Acre que estiveram reunidos anteontem à noite, na sede da Codisacre, com o presidente da

Confederação da Agricultura, Flávio Brito da Costa. A grande maioria dos empresários que foi ao

encontro com Flávio Brito era formada pelos investidores que não se conformam com as recentes

desapropriações de suas terras e temem que o Governo Federal venha declarar novas áreas como de

interesse para desapropriação. (...). Flávio Brito ia aumentando o tom de sua voz, à medida que

discorria sobre as dificuldades dos empresários, quando falou da Igreja e do governo já mostrava

muita irritação. “Eu estou cansado de ir à missa e não ter sermão que não seja contra o empresário.

Outro dia em Brasília, um padre chegou a dizer, durante o sermão, que o pobre não precisava jejuar,

porque isso ele faz o ano inteiro...”. Do governo, o presidente da Confederação disse que ele, em

todas as solenidades, só fala dos trabalhadores “e isso eu não posso aceitar; o mal do empresário é

produzir. E se isso for crime...”. (Pecuaristas não pouparam ninguém. Jornal Gazeta do Acre. Rio

Branco, outubro de 1980).

Na década de oitenta, principalmente no período de elaboração da Nova

Constituição Federal, a União Democrática Ruralista estava bem articulada em âmbito

nacional.

Segundo matéria publicada no jornal “Nós Irmãos”, essa organização:

Page 134: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

135

Segundo uma pesquisa, no Congresso Constituinte encontram-se pelo menos 56 deputados e

senadores ligados à UDR (União Democrática Ruralista). Ronaldo Caiado, presidente da entidade,

diz que o número é de 60 a 70. Caiado, afirma que, se preciso for, os latifundiários ligados à UDR,

estão dispostos a vender até 10% de suas propriedades e usar este dinheiro para pressionar os

constituintes contra a Reforma Agrária. Já fora distribuído um documento em todo o país, onde a

UDR ataca violentamente a CNBB, a CPT, a CUT e o PT. Ensina como evitar a desapropriação de

fazendas e também recomenda aos fazendeiros a contratação de “vigilantes” – pistoleiros. Esta

entidade, apesar de ser contrária aos anseios do povo brasileiro, especialmente dos pequenos

produtores rurais, tem livre acesso aos órgãos federais. A UDR investiu e investe muito dinheiro no

Congresso Constituinte e tem sido a responsável por muita violência e mortes no campo, na maioria

das vezes com a colaboração da “justiça” e do governo. No ano de 1985 cerca de 320 pessoas

morreram em conflitos entre trabalhadores rurais e latifundiários; em 1986, cerca de 220 e em 1987

já aconteceram mais de 50 mortes, além de 120 casos de ameaças de morte, especialmente bispos,

agentes de pastoral e sindicalistas. (Reforma Agrária já era: UDR no governo. Jornal “Nós Irmãos”.

Rio Branco, dezembro de 1987).

Os “empresários” rurais, embora viessem recebendo todo tipo de apoio das diversas

estruturas do governo para seus “investimentos”, como créditos, subsídios, isenções,

segurança policial e judicial para defender “suas” propriedades, não descuidavam da

manutenção de rigorosa vigilância sobre esta Instituição. A pressão era constante, para

ampliar os níveis de “benefícios”.

“Os governos da Federação e do Estado não tem competência para fazer colonização neste país”, foi

o que disse ontem, o empresário “paulista”, João Batista Tezza, a respeito da desapropriação de sete

seringais no Estado. Segundo Tezza, o “máximo” que o Governo pode fazer, pelo seu imobilismo

total, é não atrapalhar o desenvolvimento. (Pecuarista afirma que os governos são incompetentes.

Jornal Gazeta do Acre. Rio Branco, agosto de 1980).

Agindo dessa forma, os “empreendedores”, mantinham uma permanente vigilância

sobre setores do governo que já eram seus aliados, mas que também precisavam ser

tratados sob pressão para garantirem a colaboração, não só nas concessões de subsídios,

incentivos e isenções fiscais, mas acima de tudo, para garantirem adesão ao seu modo de

enxergar a sociedade, ou seja, queriam também o apoio ideológico.

Os resultados dessas pressões foram as consignações para estruturação dos projetos

de colonização privados, que tiveram mais sucesso no Mato Grosso e Rondônia e a

concentração de terras nas regiões Centro-Oeste e Norte, que se consolidaram na década de

noventa como o “paraíso do latifúndio” no Brasil. (OLIVEIRA, 1994)

O fato é que nesse percurso de trinta anos, as lutas pela terra, pela manutenção de

modos de vida e a luta ecológico-ambiental, articularam formas de resistência que em

alguma medida serviram para reorientar os níveis de conflito entre as elites e as populações

Page 135: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

136

tradicionais no Acre, compreendendo os empates como os exemplos mais bem elaborados

dessa resistência.

Por outro lado, também contribuíram para aprimorar os níveis de organização dos

grupos de elite. Seus mecanismos de defesa e ataque foram se adaptando às novas

condições, sofisticando suas ações e mantendo, no uso da violência, mesmo que uma

violência mais seletiva (eliminação das lideranças sindicais e ecológicas), seu campo de

afirmação.

No âmbito das disputas entre seringueiros e posseiros contra os grupos chegantes

(fazendeiros, grileiros e colonos), os colonos que vieram para os projetos de assentamento

foram os que menos se envolveram em confrontos diretos pela posse da terra, pois seus

problemas foram de outra natureza, comumente associados às péssimas condições de

produção e deslocamento em que foram confinados os lotes que receberam. Suas ações de

contestação geralmente se dirigiam ao órgão responsável pelo seu assentamento (INCRA) e

para as autoridades do Governo. E suas reivindicações giravam em torno das cobranças por

melhoria nos ramais e estradas, funcionamento das agrovilas, estabelecimento de escolas e

postos de saúde e transportes, que lhes havia sido prometido pelos órgãos responsáveis no

processo de atração desses colonos em seus Estados de origem.

Depois de alguns anos de muitas lutas individuais, esses colonos também

organizaram suas associações, mas mantiveram seus objetivos mais voltados para a

cobrança de promessas feitas pelos diversos governos no sentido de melhorar as condições

de transportes, tanto de pessoas como da produção, educação, saúde, financiamentos e

subsídios. Essas associações de colonos assentados constituíram também forte instrumento

de pressão social, principalmente contra os governos que só priorizavam os grandes

latifundiários, mas raramente entraram no conflito que envolvia os fazendeiros e os

extrativistas e posseiros.

Essa situação de eqüidistância do foco do conflito se deve ao fato deles terem sido

assentados em áreas previamente estabelecidas pelo Governo, ou seja, em terras já

demarcadas e devidamente desapropriadas e, embora não dispusessem de titulação

imediatamente após o assentamento, viviam sempre com a promessa de que os títulos logo

chegariam.

Page 136: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

137

Mesmo assim, passaram-se muitos anos para que alguns recebessem os títulos

definitivos de posse das terras e, outros, estão há mais de trinta anos a espera desses

documentos. A partir dos anos noventa, essa base colona, já estava mais integrada às lutas

gerais dos seringueiros e muitos ingressaram nos sindicatos de trabalhadores rurais, até

porque muitas de suas reivindicações passaram a convergir com a dos seringueiros e

posseiros.

Enfim, desse entrelaçamento das políticas públicas para modernizar o Acre, da ação

dos fazendeiros e grileiros, dos extrativistas e posseiros e, dos colonos vindos para os

projetos de assentamento, nasceram os sindicatos, as associações, isto é, os movimentos

sociais que desencadearam novas modalidades de participação nas relações

socioeconômicas, sociopolíticas, socioculturais e sócio-ambientais neste Estado nos últimos

anos do século XX e início do século XXI.

O quadro complexo que se formou a partir dos embates teóricos sobre conceitos de

desenvolvimento, das lutas práticas contra os desmatamentos e as queimadas, dos conflitos

pela posse da terra e das acirradas lutas para influenciar interna e externamente os

governos, os sindicatos e associações patronais e de trabalhadores, sobre as questões

fundiárias e ambientais, não nos permite apontar vencedores, há apenas indícios, pistas que

podem ser seguidas para melhor compreensão dos fatos que movimentaram esses grupos

sociais heterogêneos e sua também heterogênea forma de relacionamento com os territórios

e espaços nesse cantão da Amazônia.

Porém, podemos apontar que esses diversos conflitos serviram para trincar as

estruturas monolíticas do poder no Estado. Não acabaram com os latifúndios, nem

conseguiram barrar completamente os desmatamentos e as queimadas, mas por outro lado,

principalmente, os organizadores dos empates e dos partidos políticos que faziam oposição

ao regime militar, conseguiram emergir para a cena política como protagonistas. A cena

política do Estado hoje é dominada por fazendeiros, ex-sindicalistas, ambientalistas,

representantes de ONGs, sendo que os dois últimos representantes dos seringalistas e das

velhas estruturas bipartidárias dos tempos dos militares, foram aposentados pelas urnas no

início da década de noventa, restam poucos em atividade.

A organização dos empates, em meados da década de setenta, em conjunto com a

organização de sindicatos e associações de trabalhadores na floresta e nas cidades, ajudou a

Page 137: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

138

reconfigurar a ordem política e, sem dúvidas, complicaram os projetos econômicos

articulados pelo Estado e parte das elites civis que viam na exploração (devastação) das

florestas o único meio para o desenvolvimento do Estado.

Há controvérsias, mesmo quando nos referimos as mudanças nos estratos políticos.

Há quem diga que mudaram os nomes, mas que as orientações permanecem, que

permanecem as grandes fazendas com sua produção pecuária e a exploração madeireira

também persiste, influenciando diretamente as ações do governo, mesmo que esse se

autodenomine “governo da floresta”.

Contudo, podemos indicar uma diferença com relação ao monolitismo dos períodos

anteriores, isto é, do período de predomínio dos seringalistas e do período de predomínio

dos militares: após a organização dos empates e dos sindicatos, os trabalhadores que eram

calados e dispersos, passaram a ter voz e se juntaram, isto significou uma ruptura com o

passado de subalternidade, sem reação organizada, que caracterizou, nesse espaço, essas

populações. No mínimo, podemos identificar que o Acre após os empates viu emergir para

a cena das disputas novos interlocutores: a política deixou de ser monocórdia.

Page 138: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

139

CAPÍTULO III – OS ESCUDOS DOS EXTRATIVISTAS: A IGREJA CATÓLICA, OS

PARTIDOS DE ESQUERDA, A CONTAG, OS SINDICATOS E AS ONGs.

Neste capítulo apresentaremos uma caracterização dos principais aliados dos

trabalhadores extrativistas: a Igreja Católica, neste caso representada pela Prelazia do Acre-

Purus; os partidos de esquerda; as Confederações e os Sindicatos de Trabalhadores Rurais

e, por último, as Organizações não Governamentais.

Nesta caracterização, procuramos demonstrar como cada um desses aliados foi se

inserindo no universo dos seringueiros e quais as manifestações impactantes de cada um

nos processos que se desencadearam a partir de suas intervenções.

A questão que pretendemos analisar é em que medida cada uma dessas intervenções

serviu para a construção de novos modos de vida ou dos novos arranjos sócio-econômicos e

sócio-políticos que foram se construindo nesses momentos de resistência dos trabalhadores

extrativistas. Analisaremos ainda o fato de que, em alguns casos, mais evidentes nos casos

das ONGs e dos partidos, essa participação passou também pela afirmação/reafirmação

destas estruturas que se colocaram como “escudos” destes trabalhadores.

Utilizamos como fontes, predominantemente, os recortes de jornais que, de

maneiras diferentes, foram cobrindo esses eventos, mas em alguns casos faremos uso

também de documentos produzidos por essas próprias organizações, como no caso da

Igreja o jornal próprio desta Prelazia, ou no caso das ONGs, suas próprias publicações e

sites na internet, onde costumeiramente publicam seus “produtos” e outros dados. No caso

dos partidos, confederações e sindicatos, além dos documentos publicados por estes,

também nos valemos de teses e dissertações que trataram suas participações, além de

entrevistas realizadas pelo autor ou, realizadas por outros pesquisadores, com seus

principais interlocutores.

Page 139: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

140

3.1 DA FRAGMENTAÇÃO À ORGANIZAÇÃO: A FLORESTA “ERA UMA COISA

SEM FIM”.

Em um Simpósio de Geografia Agrária, organizado pela USP em 2003, o

seringueiro/sindicalista Osmarino Amâncio (2004, p. 308), pronunciou uma frase

emblemática. Nessa frase ele expressa uma concepção que estava presente na cabeça de

muitos trabalhadores extrativistas do Acre, antes da intervenção de setores do Estado e

elites empresariais que colocou em lados opostos: a existência da floresta versus

progresso/desenvolvimento. Falando sobre as lutas que esses trabalhadores tiveram que

travar contra os desmatamentos e sua expulsão da floresta, ele disse: “a gente nunca

imaginava que ia ser ameaçado numa floresta que, para nós, era uma coisa sem fim”.

Para os seringueiros era mesmo assim, isto é, foi assim por mais de um século. Até a

década de setenta, não só o Acre, como praticamente toda a Amazônia, mantinha-se na

condição de relativamente povoada, mas, ao mesmo tempo, preservada. No entanto, para os

seringueiros “autônomos”, sempre havia a possibilidade de mudança ou, mesmo de, em se

mantendo na mesma colocação, fazer um novo roçado abrindo uma pequena clareira na

mata, haja vista, que sua produção era de subsistência e, nessa modalidade, os impactos

desses desmatamentos não eram significativos, pois, além de serem descontínuos, havia

inclusive, a possibilidade de regeneração (secundária) das clareiras abertas e abandonadas.

Ademais, sabemos que a dispersão/concentração populacional da/na Amazônia,

causada pela forma de ocupação e pela atividade econômica que mobilizou, inicialmente,

milhares de nordestinos para os mais recônditos lugares onde os rios permitiam chegar, é

uma característica das relações antrópicas na região. Por exemplo, enquanto o seringal

promovia a dispersão, o garimpo ao contrário, promovia a concentração. Além disso, os

fluxos populacionais mais duradouros estiveram sempre ligados à demanda do produto

borracha nos mercados internacionais e, obviamente, a distribuição natural das árvores de

seringa. Já as mobilizações ocorridas em torno dos garimpos são temporárias e mais

localizadas, exceto as atividades de mineração, que trabalha com minerais não-nobres, que

tem caráter mais duradouro. Na modalidade garimpo, há que se registrar, os impactos

ambientais que são devastadores e, dependendo do minério e da forma de extração, os

resíduos contaminam grandes áreas.

Page 140: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

141

As últimas levas de chegantes, no início da década de setenta, que marcam outra

etapa no modelo de ocupação, foram mais diversas e incluíram populações de outras

regiões, tais como Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Porém, os motivos, para a grande maioria

dos recém chegados, continuavam a ser os mesmos que mobilizaram os nordestinos nas

etapas anteriores, ou seja, a busca de melhores condições de vida. Neste último caso,

contudo, o foco central era melhorar as condições de vida, adquirindo terras. Só que,

concomitante aos colonos e pequenos investidores, chegaram também grandes grupos

empresariais, especuladores e grileiros de “grande experiência” nos “negócios” com terras

em outras regiões. Seus objetivos na obtenção de terras eram, portanto, muito diferentes.

Aqui começa a desconstrução da idéia de “florestas sem fim”.

As terras colocadas à disposição desses chegantes eram as terras arrecadadas pelo

Governo Federal (cem quilômetros de cada lado das rodovias) ao longo das rotas

demarcadas para a construção das estradas que, no planejamento dos militares,

interligariam a Amazônia ao “centro do Brasil”; as terras dos antigos seringais, colocadas à

venda por seus “proprietários”, e por fim; terras devolutas, não discriminadas e não

demarcadas. Esse avanço em busca de terras, mais uma vez, iria influenciar fortemente a

distribuição populacional.

Entendemos, no entanto, que o avanço sobre essas terras não constituem um caso

típico de “acumulação primitiva”, assim como Marx e Engels descreveram os

“cercamentos” no livro I do Capital, parece mais com outro tipo de acumulação,

denominado por Paul Sweezy (1984), como “regime de acumulação financeirizada

mundial”. Com essa denominação um tanto complexa, o referido autor quer demonstrar o

caráter exarcebadamente rentista dessa operação, ou seja, os compradores de terras não as

adquiriam na perspectiva de tê-las como fonte produtiva imediata. Não se apossariam

rapidamente de nenhuma renda com a produção sobre a terra, mas sim, alimentavam a

perspectiva de uma renda futura, que viria com a valorização destas. Na verdade, estava em

processo um tipo de investimento onde a terra era adquirida como uma mercadoria, como

uma reserva de valor que se valorizaria por si. Não necessitava, objetivamente, passar pelo

circuito produtivo para gerar renda (lucro) aos seus compradores.

Page 141: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

142

Mas, permaneçamos no campo dos impactos imediatos. Daqueles impactos que

implicavam em fragmentação/deslocamento/concentração populacional no Acre, para

sermos mais específicos nesse estudo.

Interessante anotar, antes de prosseguirmos, que a castanha, outro produto de grande

importância econômica desde a primeira fase extrativista, sempre foi tida como atividade

complementar e não motivou grandes movimentações populacionais, pelo menos, não na

região acreana. Porém, não podemos dizer o mesmo quando se trata da castanheira, a

árvore em si, responsável por uma madeira de excelente qualidade. Esta sim, embora

proibida sua derrubada desde o ano de 196756

, provocou fortes mobilizações de madeireiros

e peões de derrubada.

Mas, tratando especificamente da questão fragmentação/concentração e a título de

reforço do poder de mobilização que os ativos econômicos representam, apresentamos

outro exemplo clássico de fluxo e refluxo populacional na Amazônia, que são as áreas de

garimpo, onde o de Serra Pelada, próximo ao município de Marabá, no Pará, talvez se

apresente como um dos mais extraordinários. Esta área, num transcurso de dez anos (1980

– 1990) sofreu uma variação populacional geométrica, saindo de um contingente em torno

de trezentos habitantes para mais de trinta mil (estima-se que passaram pelo garimpo mais

de trezentas mil pessoas nesse curto prazo), sendo que o refluxo também se deu de forma

espetacular, deixando a área como se fosse um deserto. Uma reedição caricaturada e mais

breve dos desastres representados pela exploração das minas de prata de Potosi, na Bolívia

no século XVII, áreas classificadas como sendo um cemitério a céu aberto, durante e após

seu período de atividades.

Podemos, ainda, apresentar como exemplo, bastante ilustrativo, a criação da Zona

Franca de Manaus, que com seu Distrito Industrial atraiu não só pessoas do entorno, como

também, de várias outras regiões do país para aquela capital. Esse afluxo promoveu um

inchaço populacional repentino e configurou aquela cidade como concentradora de quase

56

- A legislação que proibia o corte das castanheiras está regulamentada pela Portaria/Decreto Nº 10, de 20 de

junho de 1975, de acordo com a Lei Nº 4771, de 15 de setembro de 1965 e com o Código Florestal Nº 289, de

28 de fevereiro de 1967.

Page 142: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

143

sessenta por cento da população do Estado do Amazonas57

, situação que permanece com

percentuais muito aproximados, mesmo passados trinta anos de sua criação.

A ocupação assimétrica da Amazônia, por mais que queiramos evitar

determinismos, tem como fator preponderante o avanço das fronteiras econômicas. Foi com

a abertura de possibilidades de realizações lucrativas que se moveram e, continuam

movendo-se, determinados contingentes populacionais, tanto inter, como intra-regional.

Não foram fatores ecológicos, políticos, sociais e culturais que mobilizaram e

estabeleceram as populações não índias para algumas áreas específicas desta região,

embora estes aspectos de alguma forma se articulem, se entrecruzem.

Esta dispersão/concentração populacional, com efeito, também não tem uma ligação

direta com a fragmentação/flexibilização do trabalho na forma em que a conhecemos hoje,

isto é, após a substituição dos modelos “fordista/taylorista” (produção em série e em

massa), pelos modelos “toyotista”, “just in time”, “kan ban”, “small is beautiful” (produção

fragmentada e em pequenas e eficientes empresas, produção sob encomenda, produção no

tempo certo, etc.), registradas também no último quartel do século XX e início do XXI,

comandadas pela indústria capitalista. Isto não significa, contudo, que não tenha de algum

modo sido influenciada por ela. Para isto, basta considerarmos, por exemplo, a forma como

Imannuel Wallerstein (2000) concebe o capitalismo, ou seja, como sistema-mundo, tendo

se iniciado a partir do século XVI na Europa Ocidental e se espraiado paulatinamente pelo

planeta. Mas, consideremos a distância temporal e os objetivos em cada época. Como

argumentou Aziz Ab‟Sáber, escrevendo sobre a Região Amazônica:

Uma visão concreta da Amazônia, como espaço descontínuo de homens e comunidades, projetados

interferentemente sobre as heranças da natureza, é imprescindível para quem queira entender as

especificidades da área de máxima biodiversidade preservada in situ, na face do planeta terra,

sobretudo para quem queira se atrever a fazer proposições de melhoria (AB‟SABER, 1994).

A análise de Ab‟Sáber, apontando a questão da descontinuidade na distribuição

populacional, nos leva a refletir também, sobre o período em que se efetuou a transferência

de terras dos antigos seringais para os “paulistas”, considerando o fato de sabermos, hoje,

57

- Mesmo atualmente, depois de muito esforço dos governos para tornar os outros municípios mais atraentes,

Manaus ainda mantém uma população acima dos 50% da população do Estado do Amazonas. Segundo a

estimativa populacional do IBGE, com base em 2007, O Estado do Amazonas conta com uma população

aproximada de 3.220.000 habitantes, enquanto a cidade de Manaus perfila algo em torno dos 1. 670.000

habitantes.

Page 143: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

144

que naquela época estava em processo, uma fase de alteração sociodemográfica

relativamente espontânea, ou seja, sem o comando direto de um poder centralizado, fosse

ele um “patrão” ou, o Estado.

Essa mudança se processava em pelo menos três direções, isto é, tanto dentro dos

próprios seringais, quanto para fora ou paralelos a eles, da seguinte forma:

1) A mudança interna estava centrada, principalmente, na concentração de famílias

que buscavam colocações próximas de seus parentes num mesmo seringal;

2) As mudanças paralelas, que consistia na mudança de familiares e amigos de

seringais diversos para um único seringal ou, para colônias próximas as cidades e, por fim;

3) A mudança para fora, era representada pela procura de espaço nas cidades mais

próximas ou, na Bolívia e/ou Peru, o que produziu o rápido crescimento de algumas

cidades, especialmente as capitais. Este último fator contribuiu significativamente para a

alteração na distribuição populacional, reduzindo demograficamente algumas áreas e,

invertendo a tendência secular de maior concentração populacional nas áreas de florestas.

Porém, foi mais uma vez, a mudança na matriz econômica, comandada pelo Estado

e por agentes privados de outras regiões que, contraditoriamente, não só estancaram essa

movimentação espontânea, como também, vão influenciar na organização dos

trabalhadores extrativistas. Portanto, podemos considerar que:

1) a reação e a busca de organização por parte destes trabalhadores obedeceu à

lógica de responder de forma prática a uma situação não desejada e;

2) A idéia de juntarem-se para resolver situações para as quais sozinhos não

conseguiam respostas satisfatórias, se deu, objetivamente, por uma questão prática e de

observação dos efeitos das lutas individuais e coletivas.

Insistimos na afirmação de que o fato de buscar o estabelecimento de uma

organização, por parte dos trabalhadores extrativistas, é um fato singular, pois sabemos que

esses extrativistas-seringueiros tinham uma tradição de vida isolada e, podemos considerar

até mesmo competitiva. Não queremos com isso negar ou, fazer tábula rasa da

característica que os ancestrais dos seringueiros, principalmente os nordestinos, haviam

desenvolvido, do conhecimento de práticas de trabalhos comunitários, especialmente no

âmbito familiar, em suas regiões de origem. Porém, queremos ressaltar o aspecto de que os

nordestinos que vieram para a Amazônia, em sua grande maioria eram jovens, vieram

Page 144: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

145

sozinhos e, mais, no ambiente do seringal o estilo de vida articulado pelo patrão, impôs o

isolamento e o individualismo.

Durante muito tempo vigorou a lógica de que o bom seringueiro era aquele homem

solteiro, “que gostava de trabalhar”, que não andava em festas, que não se metia em

confusão, que produzia mais de mil quilos de borracha por ano e, principalmente, que tinha

saldo na mão do patrão. Ou seja, havia uma espécie de estatuto social que privilegiava o

individualismo, embora esse “estatuto” fosse contrário à natureza dos jovens que andavam

quilômetros e quilômetros para participar de uma festa ou, para se “perder”, em uma caçada

e “sair” na casa de outro seringueiro onde morasse uma moça solteira.

Por ser a produção extrativista assim caracterizada, o fato de, a partir da década de

setenta, esses mesmos seringueiros buscarem cooperação em seus afazeres e em seus

modos de vida, merece maior atenção.

Uma das pistas que podemos seguir localiza-se no fato de que em boa parte dos

seringa is, a partir da década de sessenta, havia se estabelecido certo lapso de poder

centralizado, motivado pela crise da borracha que se agravara no pós Segunda Guerra e,

conseqüentemente, o deslocamento de investimentos dos “empreendedores” seringalistas

para outros setores da economia, como montar lojas nas cidades, ou investir em pequenas

fazendas, também nos arredores das cidades. Esses fatos, por si, contribuíram também para

essa maior movimentação dos seringueiros. O antropólogo Mauro Almeida, escrevendo

sobre esse período de transição, com base em Schmink e Wood (1992), destaca que:

O relativo êxito do movimento dos seringueiros, apontaram para o fato de que a complexidade da

conjuntura mundial criou novas oportunidades para que os grupos locais conquistassem vitórias,

imprevistas por uma visão determinista da história. Com efeito, em um contexto de expansão

agressiva do capitalismo não é possível prever o que ocorrerá em um local particular, em uma luta

particular que envolva um sujeito histórico específico. Surgem, assim, espaços de relativa liberdade

para conduzir conflitos em direções historicamente criativas, construídas como resultado de

discussões e choques entre vozes, representadas por grupos de explorados e poderes externos. Em

conseqüência, ocorreram eventos inesperados que apenas em retrospecto, parecem ser evidentes e

previsíveis. (ALMEIDA, 2004 p. 03).

A situação que se pôde observar em pleno final do século XX é que aqui ainda se

realizava parte do problema apontado por Marx acerca das formações econômico-sociais,

principalmente, aquelas típicas das discussões entre correntes marxistas, sobre a questão

das sociedades pré-capitalistas. Sobremaneira, o seu processo de evolução, no tocante às

Page 145: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

146

tendências que se engalfinhavam no debate, nem sempre amistoso, entre os que defendiam

a tese de evolução em escala e os que, omitindo o “modo de produção asiático”, pregavam

uma evolução “universal” e unilinear58

. Articulando a situação dos seringueiros no contexto

dos anos setenta com o pensamento de expansão do capitalismo de Marx, Almeida,

argumenta:

A Amazônia, na década de 1970, parecia seguir um curso histórico terrivelmente previsível: o

caminho da modernização capitalista orientado para ocupar espaços vazios sob a direção de um bloco

formado pela ditadura militar e por classes dominantes ansiosas por lucros rápidos na fronteira.

Numa economia em rápida expansão, financiada pelo capital financeiro internacional, com uma

geografia política dividida entre terras monopolizadas pelo grande capital e terras livres ocupadas por

índios e caboclos, o cenário da acumulação primitiva parecia irreversível, no sentido dado a esse

termo por Marx, qual seja, o da separação entre comunidades e a natureza, seguida do surgimento

simultâneo de uma classe de proletários sem terra e da terra como meio de produção. (ALMEIDA,

2004, P. 3).

Essa compreensão nos permite ir identificando os motivos que levaram os

trabalhadores extrativistas a iniciar um processo de organização para resistir ao processo de

mudança comandado pelo “alto”: primeiro, a perspectiva de privação de um meio

imprescindível para sua sobrevivência: a terra; segundo, eles perceberam que mesmo que

recebessem outros lotes em outras áreas, os processos de destruição causados pelos

desmatamentos, estavam comprometendo de forma irremediável seus modos de vida

baseados na combinação extrativismo, roça, caça e pesca.

Outro fato destacável, nesse caso dos seringueiros do Acre e, de boa parte das

regiões gomíferas da Amazônia, é que houve um rearranjo da distribuição populacional

entre a cidade e a floresta, de forma que os que permaneciam na floresta buscavam

aglutinar familiares e “conhecidos”, numa perspectiva de trabalho cooperativo. A idéia era

mesmo muito primitiva de defesa e segurança alimentar e contra interesses exteriores, isto

é, visavam com essa aglutinação estabelecer garantias de permanência e sobrevivência

naqueles territórios/espaços. Revelando essa alternativa, Almeida escreveu:

Mas o caso do movimento dos seringueiros, que se auto-organizou a partir de planos desconectados,

realizados em diferentes escalas, que só depois se combinaram para adquirir um lugar de destaque no

cenário político-ambiental, se torna mais compreensível como ilustração do potencial criativo de

processos que nascem de situações de desordem, e em que, como resultado, uma periferia

aparentemente passiva se afirma como fronteira ativa. (ALMEIDA, 2004, p. 3).

58

- Esses conceitos podem ser encontrados em Hobsbawm – Marx, 1985; Sweezy ,1983 e 1985; Dobb, 1986;

Hill, 1988; Wallerstein , 2000 e 2002.

Page 146: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

147

É nesse contexto de certa “desordem”, que boa parte das populações remanescentes

que viviam em áreas descontínuas, sem definições precisas e que praticavam suas

atividades conforme permitiam os recursos de mão-de-obra e equipamentos, reataram laços

sociais, praticamente impossíveis quando havia o domínio de um patrão e do sistema de

aviamento, haja vista, que um dos únicos locais de sociabilidade do seringueiro era

justamente o “barracão” que estava permanentemente sob a vista do patrão e/ou de seus

capatazes. Para agravar mais ainda essa situação, um seringueiro só poderia sair de sua

colocação em casos extremos de doença ou, por falta de mantimentos ou equipamentos

necessários à produção, ocasionado por algum contratempo que o impedisse de esperar o

próximo comboio.

Já como seringueiro “autônomo”, ele adquiriu possibilidade de desenvolver outros

meios de sociabilidade. Os encontros entre iguais, sem a severa vigilância dos patrões,

fundamentaram outras bases, outras possibilidades de reação: a mobilidade e a condição de

mobilização.

O efeito desta “luta”, desencadeada pelos seringueiros em busca de sua

sobrevivência, repercutiu em alguns setores políticos da sociedade que tinham militância

meramente urbana. Na verdade, alguns setores políticos urbanos, ligados à esquerda, viram

nos seringueiros os “agentes históricos” que realizariam as “tarefas” emancipatórias da

sociedade, ou seja, como no Acre não havia indústrias, portanto, não havia operários, os

trabalhadores extrativistas assumiam o papel daqueles ou, no mínimo, atuariam no combate

ao regime militar.

Por outro lado, os seringueiros, que não tinham nenhum apoio institucional nas

cidades, viram nessa relação à possibilidade de fortalecer suas lutas. Foi dessa troca de

interesses políticos que se gerou uma intrincada e duradoura relação entre setores políticos

de esquerda, antes com atuação meramente urbana, e os trabalhadores extrativistas,

moradores típicos das florestas. Vejamos a capa do Jornal Varadouro, de outubro de 1979.

Nesta capa, de um jornal que circulava preferencialmente nas cidades, podemos

dimensionar o impacto desta manchete, tanto para os trabalhadores extrativistas, no sentido

de que estavam se tornando visíveis as suas lutas, como por outro lado, no setor dos

“investidores” e das autoridades encarregadas de manter a lei e a ordem.

Page 147: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

148

Figura 8

Foto da capa do Jornal Varadouro, de outubro de 1979: Arquivo pessoal.

Não é que existisse uma tendência de esquerda entre os trabalhadores extrativistas,

longe de terem essa compreensão estratégica, de elucubração teórica sobre esquerda e

direita. Porém, o relacionamento desses trabalhadores com seus antigos patrões e com as

autoridades da cidade, sempre se reproduziam por um viés autoritário, onde o patrão e seus

congêneres urbanos sempre apareciam como superiores em relação aos moradores das

florestas.

Por outro lado, com os militantes da esquerda e até da Igreja Católica, após a década

de setenta, o relacionamento era mais equânime. Na verdade, para alguns setores da

esquerda os seringueiros eram vistos como vanguarda, como agentes que viabilizariam as

Page 148: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

149

lutas que os intelectuais das cidades presumiam como fundamentais para o

desencadeamento revolucionário.

Relacionando os efeitos da militância política urbana com o movimento de

trabalhadores extrativistas, Francisco Afonso Nepomuceno (o Carioca), líder estudantil

universitário no início da década de oitenta e que, na época, era militante do Partido

Revolucionário Comunista – PRC, em entrevista concedida no ano 2000, já como militante

petista e Assessor Político do Governo do Acre, disse:

“O PRC fez uma leitura de que no Acre teria que ter uma relação direta com a classe trabalhadora,

aquilo que se vinculava diretamente com a economia do Acre, o extrativismo e os seringueiros.

Tinha, portanto, uma relação direta com a intelectualidade acadêmica, via movimento estudantil, e o

outro pé estava fincado na base. Por isso, foi eleito (o município de) Xapuri que começava ter uma

resistência, através dos empates, ao modelo pecuário-madeireiro implementado a partir da década de

70. Assim, o movimento estudantil, via PRC, mantinha essa relação porque o partido estava

organizado nos dois setores. As atitudes dos militantes do PRC era presidida pela utopia da luta de

classes e os seringueiros vistos como a classe revolucionária, pois questionavam o status quo, através

da disputa pela terra, dos empates, do enfrentamento com o Estado e dos setores que representava o

Capital” (Entrevista realizada em 24/11/2000. In. Sant‟Ana Júnior, 2004, p.206-207).

No caso dos seringueiros, esse relacionamento tinha outro significado na sua

construção política estratégica, o que estava em questão era assegurar apoios as suas

reivindicações. Então, qualquer apoio oriundo da cidade representava muito para eles,

principalmente quando incluía a intervenção religiosa, que tinha efeito aglutinador. Num

trecho de uma entrevista concedida no ano de 1999, o seringueiro e sindicalista Osmarino

Amâncio relata:

Realmente aqui a gente começava a reunião do PT e terminava com as orações dos fiéis, o Pai Nosso

era o que fechava. Isso tem um sentido, um porque disso. Primeiro que a Igreja aqui deu muito apoio

a certos líderes que militavam na clandestinidade e quando surgiu o PT, aqui o berço do PT foi a

Igreja Católica. Foi através dos sociólogos da Igreja ligada às Comunidades de Base, através dos

teólogos, dos padres e freiras. E devido aos conflitos, porque estava todo mundo envolvido nos

conflitos. Então, tanto fazia ser do PT, como ser do sindicato, na hora de discutir estavam ali as

mesmas pessoas. Então, quando fazia uma reunião, para não perder tempo, fazia logo as reuniões do

sindicato, do partido e da Igreja. Pegava um domingo, que era o dia das reuniões, e que vinha todo

mundo. Para não perder muito tempo, fazia a reunião das Comunidades de Base da Igreja, depois

fazia a discussão do sindicato e fechava com a discussão do PT. No final dava o sermão, rezava o Pai

Nosso e ia todo mundo pra casa. E cada um pegava aquilo na mente que mais lhe interessava, porque

alguns ficavam para assistir a reunião do PT, outros ficavam para assistir a reunião das comunidades

de base e outros ficavam porque estavam interessados na discussão sindical. (Entrevista realizada em

04/08/1999 – In. Sant‟Ana Júnior, 2004, p.204).

Page 149: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

150

Outro aspecto muito complexo nessa relação de resistência dos trabalhadores

extrativistas foi o surgimento entre eles de “lideranças”. Calaça (1993), Cardia (2004),

Souza (1996), Esteves (1999), Montysuma (2003), Andrade de Paula (2003), Simione

(2005), são alguns dos autores que destacaram o papel dessas lideranças na articulação da

resistência, nos primeiros momentos dos embates com os paulistas, mas que também

interagiram no processo de internalização das questões ambientais num momento posterior.

O fato de pessoas analfabetas e/ou semi-analfabetas terem ganhado importância que

extrapolava o ambiente local, constitui aspecto de grande complexidade, pois sabemos que

numa segunda etapa dos enfrentamentos eles receberam influências externas, mas as idéias

iniciais de se juntarem, primeiramente num núcleo familiar, depois numa articulação mais

difusa, com intuito de defenderem seus modos de vida, não foi uma atitude sugerida desde

fora. Chico Mendes, em entrevista concedida à Secretaria de Meio Ambiente da CUT, em

setembro de 1988 e publicada por Edilson Martins em 1998, explica assim um desses

momentos de organização:

Foi um trabalho difícil, tivemos que enfrentar jagunços e polícia. Começamos a reocupar essas áreas

criando comunidades. Na medida em que criávamos uma comunidade organizada, ela ia trazendo

famílias e colocando nas áreas desocupadas. Quando havia uma ação policial de despejo, a

comunidade se organizava muito bem e reocupava. E conseguimos, com todas as limitações do

Estatuto da Terra, defender as áreas, baseados no decreto 4504 – que diz que o posseiro não pode ser

despejado de sua terra. Conseguimos também eliminar o desconto que o patrão fazia, até 1970, de

10% do peso da borracha do seringueiro, além de 30% de aluguel que era obrigado a pagar. Fizemos

um trabalho para evitar que o seringueiro pagasse renda, para que ele começasse a construir sua

autonomia. (MARTINS, E. 1998: 82-3).

Além desse fator, convém lembrar que a conjuntura política do país em meados da

década de setenta, não favorecia nenhum tipo de articulação popular que tivesse

características políticas. Aqui mesmo na Amazônia/Centro-Oeste, isto é, no Sul do Estado

do Pará e no Norte de Goiás, no início da década de setenta, os militares então no poder,

haviam mobilizado imensos contingentes de tropas para aniquilar um grupo guerrilheiro,

formado por pouco mais de 70 militantes do PC do B, no episódio conhecido como

“Guerrilha do Araguaia”.

O fator organizativo dos trabalhadores não chamava a atenção apenas dos órgãos

repressivos dos militares, havia uma boa articulação civil das elites que também combatia

os “desvios” políticos dos trabalhadores.

Page 150: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

151

O bispo da prelazia do Acre Purus D. Moacyr Grechi, respondendo ao jornalista

Edilson Martins sobre as repercussões da morte de Chico Mendes comentava que:

Eu sempre vejo a morte de Chico dentro de um contexto. Ele foi o octagésimo-quarto homem ligado

ao campo, à floresta, à terra, assassinado no ano de 1988. E até o final desse ano o número chegaria a

96, segundo os dados apurados pela CNBB. Trata-se de um processo de extermínio de lideranças. A

maioria são sindicalistas, posseiros, religiosos ligados ao problema da terra, advogados. No caso do

campo, o movimento é ainda fraco. Quando se eliminam as lideranças fica mais fácil, porque até

haver a reestruturação do movimento leva-se um tempo. (...) A Igreja abriu suas portas e assumiu os

riscos. Acho que se nós, padres, não assumíssemos a luta dos colonos e dos seringueiros, estaríamos

traindo a fé. Nessa época as lideranças dos sindicatos vinham da Igreja. (...) Na época da morte do

Wilson Pinheiro (1980), por exemplo, houve um período de repressão muito grande, violento. Foi

um período assustador. O exército torturou oito homens que nada tinham a ver com o movimento.

Um desses homens teve a unha perfurada a canivete e logo depois perdeu o dedo por apodrecimento.

Eu achava que naquele ano o movimento seria liquidado. (MARTINS, E. 1998: 42-3).

Embora os primeiros “empates” só tenham ocorrido na segunda metade da década

de setenta, a construção, isto é, seu engendramento foi se elaborando durante toda essa

década. Considerando que havia forças dominantes apontando para um modelo de

ocupação da Amazônia, em bases que excluíam esses trabalhadores extrativistas, convém

saber o que os levou a adotar essa atitude de resistência e enfrentamento. Quem ou, o que,

os conduziu a essa situação?

Já apontamos, anteriormente, que muitas famílias de seringueiros e ex-seringueiros

haviam conseguido juntar os parentes mais próximos e também que haviam construído

comunidades que se ajudavam mutuamente nesse processo de sobrevivência. Identificamos,

portanto, nessa união para articular os interesses comuns de sobrevivência, a célula

matricial para organização da resistência.

A materialização dessa união para construir modos de vida mais eficientes, isto é,

mais vantajosos, foi fundamental para orientar as ações dos trabalhadores extrativistas na

hora em que precisaram se defender das forças externas que visavam expulsá-los de suas

colocações. Suas experiências de tentarem resistir sozinhos ou, de “buscarem ajuda” junto

as autoridades localizadas nas cidades haviam sido frustrantes, mas, contraditoriamente,

educativas no sentido de que elas contribuíram para a união entre iguais e fortaleceram

suas próprias defesas.

A história de D. Valdízia, relatada em matéria publicada no jornal Varadouro é

bastante ilustrativa:

Page 151: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

152

“Bolando nesses seringais – diz ela – fomos morar, eu, meu marido e meus filhos no seringal

“Sacado”, que pertencia ao seringalista Zeca Paixão. Meu marido e eu fizemos estrada de corte, um

pequeno campo e estávamos começando a levantar uma casa quando as terras foram vendidas para

uns paulistas. Eles começaram a derrubada da mata, iam derrubando e tomando devagarzinho as

colocações. Ai a seringueirada ficou revoltada, porque procurava seus direitos e não encontrava”. (...)

Procurar direitos foi exatamente o que Valdízia fez de melhor que os outros. Depois que os sulistas

foram à sua colocação dizer que não devia plantar mais nada e aguardasse uma indenização para

abandonar as terras não sossegou mais. Primeiro tentou reunir 10 seringueiros para vir a Rio Branco

procurar as autoridades, mas só encontrou “esmorecimento”. Depois decidiu sair sozinha para expor

a situação ao Incra. “Uma doutora que me atendeu virou pra mim e disse que, o que o Castelo Branco

tinha assinado e Médici confirmado não tinha mais valor nenhum”. Coincidiu com a fase aflitiva de

dona Valdízia a instalação em Rio Branco da delegacia regional da Confederação Nacional dos

Trabalhadores na Agricultura (Contag), órgão de defesa do homem do campo, que a partir de

novembro de 1975 criaria sindicatos de trabalhadores rurais no Acre. O delegado da Contag

prometeu ir a sua “colocação” reunir com os posseiros, e Valdízia voltou ao seringal para fazer a

arregimentação do pessoal. Ela recorda: A seringueirada toda reunida, foi aquela animação. Uns

ainda tinham dúvida de que alguém vinha fazer alguma coisa por eles. A não ser o padre, nunca

ninguém tinha entrado naquelas terras para falar com seringueiro. (...). (A Mulher do Sindicato.

Jornal Varadouro, Nº 07, fevereiro de 1978).

Esse é um percurso que, com pequenas variações, ocorreu na trajetória de

organização e lutas dos trabalhadores extrativistas. As pequenas variações residem no

aspecto de saber quem apoiaria uma reivindicação desses trabalhadores na cidade, pois para

eles estava claro que, com as ditas autoridades constituídas, não teriam muitas chances de

atendimento.

Nesse sentido, sabemos que uma das precursoras dessa “ajuda” foi a Igreja Católica

do vale do Rio Acre, liderada inicialmente pelo bispo Dom Giocondo Maria Grotti e depois

pelo bispo D. Moacyr Grechi. Em seguida, foi vez da CONTAG, dos partidos de esquerda e

só mais tarde, alguns segmentos da Universidade Federal do Acre e as Organizações Não

Governamentais respectivamente, entrariam nessa base de apoio.

Mas, o forte dessa resistência, foi mesmo a obstinação de alguns seringueiros que

não só se posicionaram contra os desmatamentos que destruíam suas colocações, como sua

capacidade de elaborar e convencer os outros de que era possível enfrentar os “poderosos”.

A partir desse “convencimento pessoal”, começaram a percorrer suas áreas tentando

convencer os outros de que era possível. Foi nesse ínterim que os varadouros deixaram de

servir apenas para escoar a produção e passaram a servir como corredor de mensagens e

idéias.

A solidariedade e a união não constituíam aqui, naquele momento, elementos de

retórica. Na verdade, foi à prática desses conceitos, representadas no “vamos se juntar”, que

garantiram o êxito dos empates e serviu de base para a construção dos sindicatos. As

Page 152: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

153

andanças de muitos pais e mães de família pelos varadouros convidando seus pares para “se

juntar”, foram tecendo uma rede de agentes que estavam dispersos e frágeis em sua vontade

de resistir.

A resistência, contudo, não podia ficar restrita ao seu ambiente, pois esses

trabalhadores tinham conhecimento que o processo de mudança que os estava afetando,

tinha origem nas cidades.

Desde cedo eles sabiam que, mesmo que as idéias de organização ganhassem força

com a sua união no âmbito da floresta, suas principais reivindicações estavam fatalmente

relacionadas com estruturas urbanas. Os problemas fundiários passavam pelo crivo do

INCRA e da Secretaria de Desenvolvimento Agrário do Estado, sem estender para as

perspectivas empresariais civis. As próprias atitudes de mudança na estrutura produtiva do

Estado tinham sido bancadas fundamentalmente pelos financiamentos, incentivos e

isenções patrocinadas pelos Governos Estadual e Federal, então, não podiam esperar nada

deles.

A cidade, até então distante e fora de seus planos de relacionamento, ia se forjando

como elemento distinto para a resolução de seus problemas, mesmo que eles estivessem

localizados nas florestas. Essa é uma mudança fundamental no relacionamento urbano –

rural – florestal desse período.

Porém, a passagem dessa nucleação familiar para uma organização de cunho mais

classista, no sentido de que a reunião de trabalhadores para lutar por objetivos comuns,

pôde corroborar com essa formação, foi o grande evento na relação organizativa dos

trabalhadores extrativistas dessa região. Nesse sentido, o antropólogo Mauro Almeida

reitera:

Os seringueiros amazônicos eram invisíveis no cenário nacional nos anos de 1970. Começaram a se

articular como um movimento agrário no início dos anos de 1980, e na década seguinte conseguiram

reconhecimento nacional, obtendo a implantação das primeiras reservas extrativas após o assassinato

de Chico Mendes. Assim, em vinte anos, os camponeses da floresta passaram da invisibilidade à

posição de paradigma de desenvolvimento sustentável com participação popular. (ALMEIDA, 2004:

12)

Alcançar essa posição de paradigma de desenvolvimento sustentável foi, de fato,

uma construção bastante significativa. Principalmente se considerarmos que o estereótipo

do seringueiro nas cidades amazônicas, era de um posicionamento muito abaixo do “jeca

Page 153: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

154

tatu”, do caipira de outras regiões. Portanto, sair da invisibilidade e se constituir como

modelo, como exemplo, foi a tessitura de uma rede com muitos pontos, mas a linha, ou

seja, a matéria prima, a amarração dos pontos, foi mesmo a seringueirada.

Nem a floresta “era sem fim”, nem eles estavam tão isolados, tão fragmentados

como todos imaginavam. Nas contradições do sistema hegemônico, aqueles que

aparentemente eram os elos mais fracos, demonstraram que era possível causar reveses aos

planos unilaterais das elites dominantes. Desmontar integralmente esses planos, ai já é outra

história.

Entendemos que a percepção de “finitude” da floresta e a reestruturação territorial,

que revelaram as possibilidades de união dos trabalhadores extrativistas,

contraditoriamente, ao uní-los, engendrou outros mecanismos para sua paulatina extinção.

Agindo na contramão de suas lutas por terras e manutenção de seus modos de vida

tradicionais, muitos de seus “escudos” (aliados), revelaram-se como verdadeiros “cavalos

de tróia”, infestando essas organizações com idéias que inibiam ou até excluíam possíveis

avanços no sentido classista dos sindicatos e associações desses trabalhadores.

As ambivalências, contradições e contraditoriedades são, portanto, características

marcantes, nessa trajetória. Os eventos que levaram os seringueiros a se reconhecerem e

serem reconhecidos como “povos da floresta”, os impeliu ao mesmo tempo, a conviver com

a redução da floresta e a rede(in)finição da propriedade da terra, isto se pensarmos a terra

como Marx, por exemplo, quando ele diz que: “É somente através do trabalho, da

agricultura, que a terra existe para o homem”.

Vejamos, então, como os diversos “aliados” dos seringueiros agiram na

construção/desconstrução de seus modos de vida e/ou contribuíram para o avanço/retração

de suas lutas, de seus objetivos.

Page 154: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

155

3.2 OS ALIADOS URBANOS DOS SERINGUEIROS: O PAPEL DA IGREJA

CATÓLICA.

A re-estilização dos modos de vida dos trabalhadores extrativistas do Vale do Rio

Acre, na década de setenta, foi operacionalizada num processo em que movimentos

paralelos agitavam diversos segmentos sociais tanto nas cidades como nas florestas. Por um

lado, agiam alguns segmentos urbanos, como funcionários públicos, principalmente

professores e bancários (especialmente quando, ainda havia o Banco do Estado do Acre -

BANACRE), lavadeiras, moradores dos novos bairros formando suas associações e, por

outro, os governos e seus aliados civis, não só comandando a repressão, como também

investindo em suas organizações sindicais patronais e seus clubes, passando pelos “clubes

dos fazendários” (mais tarde unidades da UDR), maçonarias, até os Lions, e Rotarys, que

no Acre serviam para reunir os ricos e influentes das cidades.

Mesmo setores tradicionalmente conservadores, como a Igreja Católica, também

passavam pelo crivo de reavaliações e de novas interpretações de suas práticas

evangelizadoras e dos impactos sociais que elas causavam nas diversas populações. Gómez

de Souza (2004), escrevendo sobre as várias faces da Igreja Católica no Brasil, aponta para

o marco do Concílio Vaticano II, num âmbito mais geral e, para duas Conferências

Episcopais da América Latina (CELAM), a de Medellín, na Colômbia realizada em 1968 e

a de Puebla, no México, em 1979, como bases para essa virada de importantes setores da

Igreja na direção dos trabalhadores rurais e da educação popular.

Para Gómez de Souza, desde a criação da Ação Católica, na década de trinta, já era

possível identificar divergências no seio dos movimentos católicos no Brasil. Na sua

avaliação:

De 1930 a 1945, podemos detectar duas presenças significativas: D. Leme no episcopado, Amoroso

Lima no laicato. Mas em 1943 faleceu D. Leme e, logo depois, Amoroso Lima abandonou a direção

da Ação Católica, por incompatibilidade com o novo arcebispo do Rio de Janeiro, D. Jayme de

Barros Câmara. Vai surgindo nesse momento outra figura, que será central na Igreja dos próximos

anos, o então sacerdote Hélder Câmara. Chegou ao Rio de Janeiro vindo de Fortaleza, onde

participara da Ação Integralista, da qual também se afastou. Em 1947, foi nomeado Assistente

Nacional da Ação Católica. Esta, que nascera calcada na Ação Católica italiana criada pelo Papa Pio

XI, evoluiu a partir da influência francesa, belga e canadense, para a Ação Católica especializada,

com seus setores, principalmente de jovens, do mundo rural (JAC), estudantil (JEC), independente,

isto é, de classes médias (JIC), operário (JOC) e universitário (JUC). Essa Ação Católica, na década

de 1950 e início da de 1960, foi responsável por um forte dinamismo da Igreja e por sua presença na

Page 155: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

156

sociedade mais ampla. Um movimento teria uma influência particular, a Juventude Universitária

Católica (JUC), entre 1959 e 1965, quando lançou a idéia de procurar um “ideal histórico” para o

Brasil (1960), participando intensamente da política universitária e fornecendo quadros dinâmicos

para a educação popular. Atacada por setores tradicionais, foi defendida por D. Hélder Câmara em

1960, em documento que enviou aos bispos: “A JUC [...] está vivendo uma hora plena e merece o

apoio e o estímulo do exmo. episcopado”. A partir da JUC, e já como um movimento não ligado à

Igreja, surgiu, em 1962, com a presença de cristãos e não-cristãos, a Ação Popular, grupo político de

orientação socialista democrática, nesse momento. (GÓMEZ DE SOUSA In. ESTUDOS

AVANÇADOS Nº 18, 2004 p. 78/79).

Para a questão da vinculação com os trabalhadores rurais, contudo, o autor em

referência credita que o papel principal está na CELAM e nas dificuldades criadas para a

ação pastoral pelo regime militar. Nesse contexto, escreve:

Porém, nos vinte anos seguintes do regime militar (1964-1985), quando se fecharam no país lugares

de articulação política, sindical e social, a Igreja foi um espaço de relativa liberdade de organização e

de ação. A CNBB e alguns bispos foram, o que se chamou depois, “a voz dos sem voz”. Nesses anos

surgiram a Comissão da Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e se

desenvolveram a pastoral operária e as pastorais de juventude. Mas a presença decisiva foi das

Comunidades Eclesiais de Base (as CEBs), que foram brotando em diferentes igrejas locais (Vitória,

Goiás, Crateús e, logo depois, na periferia de São Paulo). Eram pequenos grupos de cristãos de

setores populares que se reuniam para momentos de oração e de celebração de sua fé, mas também

de reflexão sobre seus problemas concretos de trabalho, saúde, educação, direitos humanos etc.

Havia uma ligação muito profunda entre fé e vida concreta, que estaria na base da reflexão latino-

americana desses anos, em torno à Teologia da Libertação. (GÓMEZ DE SOUSA In. ESTUDOS

AVANÇADOS 18, 2004 p. 81).

No caso do Estado do Acre, esse papel da Igreja vai ser facilmente distinguido. Há

duas prelazias/dioceses: uma no Vale do Rio Juruá, com abrangência para os Rios Tarauacá

e Envira e, outra; no Vale dos Rios Acre e Purus. A primeira é conduzida por um bispo da

Congregação do Espírito Santo (Espiritanos), sob influência alemã, e tem como

característica principal o conservadorismo. Essa corrente não investiu numa ligação mais

ampla com o povo, ou seja, não estimulou a formação das CEBs e pastorais, por exemplo.

A segunda é conduzida por um bispo da Congregação dos Servos de Maria

(Marianos), comumente de origem italiana e, a partir do final da década de sessenta, vem

incorporando a corrente de vertente dita progressista e, não só estimulou a organização das

CEBs e pastorais, como se engajou no combate ao que considerava causas da pobreza,

abraçando as teses ligadas à Teologia da Libertação. Registremos que internamente cada

Prelazia/Diocese convive com dissidências, mas no conjunto maior, cada uma segue seu

líder, ou seja, seu bispo.

Page 156: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

157

Assim, a posição da Igreja Católica no vale do Rio Acre, local onde ocorreram os

maiores conflitos entre seringueiros, “fazendeiros” e agentes do Estado, foi uma posição

decidida, de defesa dos mais fracos nas contendas. Na verdade, essa defesa dos

trabalhadores extrativistas, constituía mais um viés da tomada de atitude deste setor da

Igreja, a exemplo do que vinham fazendo ao longo da ditadura militar, o bispo, os padres,

as freiras e os evangelizadores leigos (agentes pastorais), na crítica e no combate as

atrocidades cometidas pelos militares e seus apoiadores.

Seguindo a orientação do Concílio Vaticano II e das Conferências Episcopais de

Medelín, na Colômbia e Puebla, no México que incentivavam a Igreja a buscar uma

conciliação entre os evangelhos e a vida das pessoas, a Prelazia do Acre-Purus iniciou em

1971 a organização das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, no Acre, que incluíam os

agentes leigos como importantes na evangelização e, principalmente, adotou os preceitos da

“opção preferencial pelos pobres”, preconizados pela Teologia da Libertação.

Mas nem sempre foi assim. No tempo mais largo da vida da Igreja no Acre, ela,

com raríssimas exceções, havia sempre se posicionado ao lado dos mais fortes. Nos tempos

áureos dos seringais, quando um padre subia em “desobriga” pelos rios, comumente

hospedava-se na casa dos patrões dos seringais, criando uma espécie de vínculo que os

afastava dos fiéis, pois o “barracão”, como era conhecida a casa de morada do patrão, não

podia ser freqüentado por seringueiros. Muitos padres, inclusive, advertiam, admoestavam,

repreendiam mesmo, seringueiros que ousavam reclamar dos patrões. Por outro lado,

também havia alguns padres que preferiam ficar em suas canoas, para não se submeterem à

“hospedagem” de alguns patrões, que reconhecidamente tinham fama de maltratar seus

trabalhadores, bem como para “fugir” das vinculações com essas estruturas de poder. Mas

eram poucos os que adotavam essas posturas. O senhor Piauí, ex-seringueiro e que no início

da década de setenta era morador da antiga “Vila Quinari”, hoje município de Senador

Guiomard, que veio a ser membro de uma CEB, comentando para um jornal a mudança na

postura dos padres, disse:

Antes os padres, quando iam fazer uma desobriga nos seringais, iam pra dentro da casa do

patrão. O seringalista era quem convidava os seringueiros para comparecerem em sua casa,

quando o padre passava. Os padres não falavam em posse de terra, só davam razão e

elogiavam os patrões. (COMUNIDADES...VARADOURO, Rio Branco, 1981, AGO/SET.

Nº 23, p. 9).

Page 157: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

158

Mas, tratando prioritariamente da Igreja ligada a Prelazia do Acre-Purus, que foi a

Igreja que se destacou nessa iniciativa de ser a “voz dos sem voz”, vamos identificar como

principais articuladores dessas idéias de vinculação popular e “opção preferencial pelos

pobres”, dois bispos, são eles: D. Giocondo Maria Grotti (morto em 1971, em um acidente

aéreo) e seu sucessor, o bispo D. Moacyr Grechi (atualmente bispo diocesano de Porto

Velho – RO). Não queremos, ao nominá-los, diminuir a importância dos padres, freiras e

evangelizadores leigos que partilharam essas idéias e experiências. Apenas o fazemos,

preservando a ordem hierárquica que preside essa instituição, pois sabemos que sem as

bênçãos, digamos, sem a autorização destes, nenhum processo desse porte se desenvolveria,

bem como suas “vontades” também não obteriam êxito, caso não houvesse um conjunto de

outros agentes conscientes e convencidos da importância da tarefa.

Para ilustrar essa importância de outros nomes na organização das CEBs,

recorremos a essa matéria do jornal Varadouro, cobrindo o aniversário de dez anos do

nascimento das CEBs no Acre, onde se pode ler:

Maria de São Pedro, Faustino, Virgínia, (Pe.) Pacífico, Amâncio, Nilson, (Pe.) Asfuri, no bairro da

Estação Experimental. Piauí, Guilherme, Isa, Silvana, Neusa, no Quinarí. Luisina, Stéfano, Carlos,

João, no bairro Seis de Agosto. E Dom Giocondo Grotti. A história de dez anos das Comunidades

Eclesiais de Base da Prelazia do Acre e Purus começa com esta gente, em 1971.

(COMUNIDADES... Jornal VARADOURO, Rio Branco, ago/set. 1981).

Em 1997, Nilson Mourão, um dos agentes pastorais leigos do grupo que compõe o

núcleo considerado como “fundadores” das CEBs em Rio Branco, concedeu um

depoimento/entrevista ao pesquisador Sílvio Simione da Silva, onde entre outras

informações, traça um roteiro de sua trajetória nesse campo. Nesse sentido, o entrevistado

ponderou:

Na década de setenta no Acre nós vivemos uma situação inteiramente inusitada. A base econômica

fundamental, de organização da produção, foi inteiramente desestruturada, com os seringais

desativados, milhares de pessoas chegavam em Rio Branco. Eu estava despertando para a vida da

Igreja, fui fundamentalmente incentivado a participar desse processo através do então Pe. Pacífico

que havia chegado de Roma recentemente, onde havia se ordenado e trazia as idéias renovadoras do

Concílio Vaticano II. Nós decidimos, o então Pe. Pacífico, junto comigo e com o atual Pe. Leôncio

Asfuri, com permissão do bispo, naturalmente, iniciar uma experiência nova na Igreja. Nos inserimos

no bairro da Estação Experimental, compramos uma casa e começamos a desenvolver um trabalho

popular, visitando famílias, conversando com elas e trazendo-as para participar da vida da Igreja.

Líamos o Evangelho, comentávamos o Evangelho e a partir daí ligávamos o Evangelho com a vida.

Esse era, fundamentalmente, o método. (...) O povo gosta muito de debater sobre religião, é uma

Page 158: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

159

coisa extraordinária como o povo gosta de se apropriar dos textos sagrados (...) inclusive entra em

detalhes impressionantes. Nós propiciávamos esse debate com a orientação clara: formar lideranças

populares, com uma visão renovada da Igreja e com uma orientação na “Teologia da Libertação”.

(In. SIMIONE da SILVA. Entrevista realizada em Rio Branco, 1997).

Porém, mais que permitir que outros agentes atuassem no campo da evangelização,

os bispos que dirigiram essas prelazias nesses momentos turbulentos, não ficavam dentro

das suas cúrias. Decididamente, não ficavam apenas coordenando o trabalho de “seus

subordinados”. Antes, eles eram os próprios exemplos de dedicação, estavam à frente das

ações e se expunham com despreendimento no combate ao que consideravam injustiça. Em

outra entrevista concedida ao pesquisador citado, acima, em 1998, D. Moacyr comenta:

(...) É nesse período, o período da ditadura, então, que a Igreja, além de ter fornecido um clima, uma

convicção de que o cristão tem que se engajar na luta pela justiça; além de ter fornecido os primeiros

líderes, era também um ambiente de segurança. As reuniões, os cursos eram feitos nos ambientes da

Igreja, mas tivemos repressão da polícia e do exército, que numa reunião em Xapuri invadiram tudo,

tomaram aparelhos, que até hoje, ainda não devolveram. Tentavam gravar as reuniões. Eu creio que

sem a Igreja os sindicatos não teriam resistido nos momentos, principalmente, de violência como por

ocasião da morte do Wilson Pinheiro e do Nilo. Então, ai a repressão abateu violentamente sem

nenhuma resistência, foi só a Igreja que resistiu para que não houvesse um massacre e, houve mesmo

assim; houve tortura e prisões arbitrárias de pessoas que não tinham nada a ver com o assassinato,

por vingança. Então, eu creio que nisso a Igreja estava extremamente unida; estava na raiz e era

solidária a essa luta. Pouco a pouco, os sindicatos tomaram maior autonomia e, embora tenha havido

sempre um relacionamento de colaboração e respeito, a mística da Igreja servia também para a

continuidade da luta. (In. SIMIONE da SILVA, 2005: 305).

Foi assim, usando a “mística” da Igreja, que os agentes pastorais conseguiram se

aproximar das comunidades. Primeiramente, se aproximaram das dezenas de milhares de

pessoas que se aglomeravam nas periferias das cidades, principalmente Rio Branco,

ajudando-os a superar a mudança de seu modo de vida e organizando as associações de

moradores, no sentido de fortalecer aqueles desvalidos em suas lutas cotidianas para

sobreviver nesses novos espaços.

Depois, num esforço ainda maior, começaram a percorrer os seringais, para ajudar

os que ainda não haviam saído, a permanecer em “seus” lugares. Baseados no exemplo de

miséria em que se encontravam os que haviam sido expulsos de suas colocações, ou

mesmo, os que haviam sido pressionados a abandoná-las, para evitar a violência; os

monitores e líderes das comunidades saíram pelos seringais e colônias, reunindo esses

trabalhadores estimulando-os a resistir, a lutar pelo que, pela primeira vez, alguém vinha

dizer que era seu: o pedaço de terra em que viveram por toda a vida.

Page 159: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

160

Essa incursão dos membros da Igreja, não só pelos bairros, como também pelos

seringais e colônias é que vai caracterizar essa nova fase, essa nova concepção de ver e

estar no mundo dos pobres. Ressaltamos isso porque os indivíduos que se envolveram

nessas práticas eram jovens padres, freiras e evangelizadores leigos que tinham vindo da

Itália ou de algum Estado do Sul, ou ainda, eram jovens seminaristas nascidos nas cidades

acreanas mesmo, mas, quase todos sem o devido conhecimento da vida nos seringais.

A tarefa de andar pelos seringais não é um exercício fácil. Subir e descer os rios ou,

se aventurar por estradas enlameadas, atoleiros, ramais e depois varadouros e picadas

estreitas é tarefa para quem tem muita coragem e força de vontade. Esse mérito tem que ser

creditado na conta não só dos bispos, mas dos padres, das freiras, dos agentes pastorais

leigos, que não mediam esforços para alcançar os seringueiros mais isolados e levar até eles

a mensagem do evangelho e da organização, da unidade que eles precisavam para enfrentar

os inimigos que os ameaçavam. Uma matéria do jornal Gazeta do Acre registra assim, um

desses momentos da vida do bispo D. Moacyr Grechi:

“ENTRE UM TOMBO E UM ESCORREGÃO SE CHEGA ATÉ ELES”. Na proa do batelão o

bispo arregaça as calças, equilibra-se medindo com os olhos a distância do pulo e diz com voz

solene: agora, um passo seguro e equilibrado. Vem o pulo e ele chafurda sua excelência até os

joelhos na lama mole do Purus. As águas haviam baixado vários metros, deixando praias no meio do

rio e o lamaçal onde antes elas corriam tranqüilas, fazendo com que o passo medido e calculado do

bispo se transformasse em uma cena de filme de pastelão. Minutos depois o grupo de viajantes está

matando a fome em goiabeiras carregadas e D. Moacyr Grechi, bispo do Acre e Purus, presidente da

Comissão Pastoral da Terra da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, está lembrando, bem

humorado de um livro de uma pesquisadora amazonense onde ela fala com entusiasmo daquela lama

onde antes ele atolou. Aquilo, diz a escritora, é fertilíssimo, puro humos, mal aproveitado pelos

ribeirinhos na estiagem. Mais do que como ex-aluno de D. Moacyr, o jornalista acompanhou-o nesta

viagem exatamente para testemunhar as transformações por que passou seu antigo mestre. E, ali está

ele, costeletas já brancas aos 44 anos, mochila ou sacola nas costas, novamente chafurdando no

lamaçal, agora na outra margem do rio, entre escorregões, segurando em touceiras de capim,

buscando o caminho melhor para atingir o chão firme do barranco. (...) (Entre... Jornal Gazeta do

Acre. Rio Branco, 07.01.1981).

É esse o despreendimento a que nos referimos anteriormente. Mas, só

despreendimento não era muito, pois as dificuldades não residiam apenas nos percalços dos

rios e dos caminhos, das adversidades físicas e geográficas amazônicas. Ao mesmo tempo

em que se deparavam com esses problemas cotidianos, em que precisavam confrontar-se

com os poderes instituídos, tais como polícia, exército, juízes, prefeitos, governadores e

congêneres, os bispos, padres, freiras e agentes pastorais leigos, também tinham que lutar

Page 160: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

161

contra outros desafios: enfrentar seus fiéis influentes e seus próprios pares. Aqui mesmo

pertinho deles, na outra prelazia, a do Juruá, outro bispo, D. Luis Herbst fazia aliança com

os seringalistas e grandes empresários de sua base territorial, para impedir que os

seringueiros daquela região pudessem usar a rádio “Verdes Florestas”, pertencente à Igreja,

para enviar suas mensagens.

Essa atitude do bispo da Prelazia do Juruá, um caso tópico, à guisa de ilustração,

havia sido tomada cedendo à pressão exercida por um dos maiores empresários do Acre,

que mais tarde viria a ser Governador do Estado, Orleir Cameli. Tudo para fazer oposição à

organização de uma cooperativa de seringueiros, que queria viver sem vínculos com

patrões e regatões, vendendo sua produção e comprando seus aviamentos sem

intermediários e, obviamente, sem pagar a “renda”.

Para que essa questão não pareça extemporânea, um caso de somenos importância,

registramos que, no Acre, as emissoras de rádio constituíam/constituem o melhor meio de

comunicação entre as populações que vivem nas florestas, nas áreas ribeirinhas, nos

seringais, nas colônias e projetos de assentamento. Ouvir o rádio nas horas dos programas

de mensagens fazia parte de um ritual quase sagrado. Os seringueiros realizavam grandes

esforços para adquirir as pilhas, que eram caras, mas, na concepção deles necessárias para

seu modo de vida. Os programas de mensagens eram, de longe, os de maior audiência das

rádios acreanas e, até nos dias atuais, as populações de ex-seringueiros que “se mudaram”

para as periferias das cidades mantém o costume. Tão arraigada era a prática nas matas,

que continuam não só a ouvir, mas se comunicar com parentes e amigos que moram em

outros bairros ou, outros municípios via mensagens enviadas através do rádio.

No caso da proibição de uso da rádio “Verdes Florestas” em Cruzeiro do Sul, havia

não só o impedimento das comunicações entre as diversas comunidades que faziam parte

de uma cooperativa. Representava, antes, o cerceamento do fluxo de informação sobre a

compra e a venda dos produtos, como também, da própria mobilização e organização dos

seringueiros para as reuniões dos seus sindicatos e associações.

Com muito cuidado, para não criar maiores desavenças, mas muito contundente na

defesa dos seringueiros, D. Moacyr, assim comentava a decisão de seu par, conforme

matéria publicada no jornal A GAZETA:

Page 161: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

162

“O bispo da Diocese de Cruzeiro do Sul ao proibir os seringueiros do Alto Juruá através do Conselho

Nacional dos Seringueiros, de divulgar mensagens de apoio ao não pagamento de renda, diverge e

nega o que preconiza a Campanha da Fraternidade de 89, que tem como tema “Comunicação para a

verdade e a Paz””. D. Moacyr disse que respeita a postura de seu colega do Juruá, mas que a função

da rádio católica deveria ser “a conscientização do povo sobre seus direitos”. (D. Moacyr dá apoio a

seringueiros do Juruá. Jornal A GAZETA. Rio Branco, 1989).

Foram muitas as frentes que esses setores da Igreja comprometidos com a defesa

dos mais pobres, tiveram que atuar ao longo desses últimos trinta anos do século XX.

Numa carta dirigida ao Presidente da República Gal. João Baptista de Figueiredo, em abril

de 1981, quando de sua visita ao Estado do Acre, o bispo D. Moacyr denunciava,

corajosamente a utilização da Lei de Segurança Nacional, contra trabalhadores extrativistas

e seus aliados. Na carta ele dizia:

(...) Mesmo considerando o acerto das desapropriações de terra em nosso Estado e o esforço de

alguns órgãos para regularizar a situação fundiária, é forçoso reconhecer que em muitas áreas ainda

vigoram o abuso, a violência e o desrespeito ao trabalhador rural. São de nosso conhecimento casos

recentes de posseiros expulsos de suas terras pelo uso da violência, de casas queimadas, de

indenizações fraudulentas feitas sob coerção, contrariando frontalmente até mesmo as determinações

assumidas pela comissão de “alto nível” formada pelo Governo. É preciso reconhecer também que,

devido o avanço do latifúndio em nosso Estado, estimamos que existem pelo menos 30.000

brasileiros morando na Bolívia. Aos poucos esses trabalhadores, contra a sua própria vontade, vão

sendo obrigados a assumir a cidadania boliviana, ou são levados a mentir e enganar as autoridades

daquele país, ficando assim expostos aos rigores da lei, enquanto, ansiosos, alimentam a esperança

de conseguir terra e condições de trabalho na própria pátria. (...) Sr. Presidente, sentimo-nos

profundamente amargurados quando vemos que irmãos nossos, como Francisco Alves Mendes Filho

(Chico Mendes) e João Maia, homens honestos, inteiramente dedicados aos serviços do bem-estar e

da promoção do trabalhador rural estão indiciados na Lei de segurança Nacional, e hoje, no mesmo

dia em que V. Excia., chega ao nosso Estado, estes amigos, junto com outros companheiros do Sul

(Lula), estão sendo interrogados pela justiça militar. Não podemos aceitar que esses irmãos sejam

injustamente enquadrados na Lei de Segurança Nacional, sem terem cometido crime algum. Doutra

parte, a experiência tem mostrado que a Lei de Segurança Nacional, ao invés de oferecer segurança

para o povo, o expõe constantemente ao arbítrio e ao abuso de poder. (...) De fato, enquanto líderes

populares são enquadrados na Lei de Segurança Nacional, assassinos de líderes sindicais e de

populares, permanecem soltos e impunes, sem que se perceba empenho das autoridades para

esclarecer os crimes e punir os culpados. (...). (D. Moacyr escreve ao Presidente. Jornal Nós Irmãos.

Rio Branco, maio de 1981).

Mas o foco principal da atuação não era um confronto contra a ditadura militar. Ela

também era alvo da crítica desse setor da Igreja, porém os esforços convergiam mesmo era

para a organização dos povos das periferias e das matas. No momento em que se

agravavam os conflitos entre os antigos posseiros das áreas dos seringais e seus novos

donos, a igreja “apareceu” imprimindo a idéia de resistência pela permanência na terra. Em

1974, lançou, no 1º Encontro do Vicariato do Acre, no município de Xapuri, um documento

Page 162: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

163

oficial, tratando da questão fundiária e conclamando seus agentes pastorais a se

mobilizarem em defesa do trabalhador rural, do seringueiro, do posseiro e do colono.

As orientações da Igreja foram publicadas no boletim “Nós Irmãos” e, entre os

diversos exemplares que trataram o assunto, encontramos um destacava na chamada de

capa o seguinte título: ORIENTAÇÃO DA IGREJA DO ACRE E PURUS SOBRE O

PROBLEMA DA TERRA. As indicações contidas são claras, no sentido de garantir a

defesa dos trabalhadores que estavam sendo expulsos de suas áreas, vejamos os termos do

manifesto, que embora seja longo, entendemos como necessária sua transcrição para

melhor compreensão do forte papel desempenhado por essa ala da Igreja Católica na

contenda:

Em face da grave situação criada pelo problema no Estado do Acre e em particular no território desta

Prelazia, a igreja acre-puruense não entrando no lado técnico deste problema, mas inspirada no

Evangelho de Cristo faz questão de dar a esse respeito suas diretrizes para todo o povo de Deus.

A problemática das terras preocupa em especial os posseiros, colonos e seringueiros que vivem na

maioria das vezes há vários anos no interior de nossos seringais e colônias sobre quem pesa a ameaça

de deixarem suas posses sem perspectiva alguma de sobrevivência. Na realidade, com o passar dos

dias, multiplicam-se os casos de posseiros, colonos e seringueiros que de maneira mais arbitrária e

mesmo violenta vem sendo expulsos de suas posses sem o menor respeito a dignidade da pessoa e

mesmo a lei vigente. Igualmente essa problemática vem preocupar os investidores do Sul, em

especial aqueles que com toda vontade vieram investir seus capitais num Estado onde os títulos de

terras em geral não se encontram devidamente legalizados e daí o fato de inúmeras vendas de terras

se processarem de forma irregular.

A orientação da igreja no que diz respeito aos posseiros é a seguinte:

a. Conscientizar os posseiros de seus direitos segundo as orientações do INCRA, sobre a posse da

terra;

b. Urgir junto aos órgãos competentes a necessária documentação dos trabalhadores em

consonância com a legislação trabalhista;

c. Denunciar aos órgãos competentes: INCRA, 4ª Cia., Polícia Federal, Polícia Militar, Secretaria

de Segurança as arbitrariedades cometidas contra estes trabalhadores;

d. Defender mesmo na justiça, indivíduos ou grupos, quando nenhuma outra providência for

tomada pelos órgãos de direito;

e. Sugerir ao Governo do Estado e ao próprio INCRA, levando em conta o futuro destes

trabalhadores, o enquadramento dos mesmos num plano geral de colonização do Estado.

A orientação da igreja no que diz respeito aos investidores é a seguinte:

a. Esclarecer no diálogo aberto com os investidores a real situação das terras no que diz respeito

aos títulos em conseqüência com as diretrizes do INCRA;

b. Fazer sentir ao Governo e aos compradores o problema do futuro dos colonos e seringueiros, que

passado o ciclo das derrubadas e tiradas as possibilidades de subsistência ficarão totalmente

marginalizados sem perspectivas;

c. Fazer ver um diálogo com o governo do Estado a situação atual das terras que vem gerando

preocupações, não só aos colonos mas também aos próprios compradores;

d. Manter um contato constante com o INCRA, 4ª Companhia, Polícia Militar, secretaria de

Segurança, Polícia Federal e justiça em vista do encaminhamento adequado desta problemática.

Page 163: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

164

Estas orientações, dirigidas a todo o povo de Deus desta Prelazia, tem por finalidade a ação o mais

rápido possível de todos os seus agentes pastorais em face de tão delicado problema ficando as

posições públicas sobre o conjunto da igreja de competência exclusiva do Bispo e do Conselho

Presbiteral. (Nós Irmãos. Rio Branco: junho, 1974).

Este documento foi assinado por Dom Moacyr Grechi, bispo da Prelazia do Acre e

Purus, pelo padre Francisco Carmineo, providencial da Ordem dos Servos de Maria –

Província do Brasil e mais onze padres, de vários municípios acreanos. Naquele momento,

representava uma atitude de envergadura e, principalmente, de coragem, haja vista a

situação do país à época, quando defender trabalhadores significava, no mínimo, receber o

rótulo de subversivo. No caso do Acre, foi ainda mais emblemático, devido à tradição

autoritária, entremeada nas bases fundadoras dessa sociedade, onde o coronelismo tinha

deixado muitos herdeiros e adeptos ávidos de uma possibilidade de exercício do seu poder.

Paralelo a este documento a Prelazia, acima retratada, também passou a reconhecer

outro, anteriormente distribuído, pelos agentes pastorais, de autoria do padre do município

de Sena Madureira, Paulino Baldassari, mas que não tinha recebido a chancela da Prelazia

respectiva. Trata-se do CATECISMO DA TERRA, que ensinava aos seringueiros, colonos

e posseiros a existência de alguns direitos e, principalmente, nomeava os órgãos

responsáveis pela aplicação desses direitos. De forma bem didática, o CATECISMO DA

TERRA procurava ensinar, especialmente aos seringueiros, a maneira de preservar o seu

direito sobre a terra, já que tradicionalmente, estes não trabalhavam com a agricultura e por

isso não produzia “benfeitorias” sobre as áreas ocupadas e usadas na extração do látex e

coleta de castanhas.

Uma das principais preocupações do CATECISMO DA TERRA era explicar aos

seringueiros, ribeirinhos e pequenos produtores rurais as diversas modalidades de

usucapião. Pois, no processo de limpeza das terras os “novos” proprietários não

respeitavam nem mesmo as famílias que viviam há mais de duas gerações na mesma terra.

Por vezes foram expulsas famílias que viviam há mais de cinqüenta anos na mesma

localidade. Para Costa Sobrinho:

O documento significou um punhado de areia nos olhos dos “paulistas”. A pretensa arrogância (sic)

dos supostos donos da terra agora era contestada por uma instituição de verdade e prestígio no seio

dos humildes. A profunda desconfiança nas autoridades estaduais estava explícita no documento, ao

orientar os trabalhadores a procurar instituições federais. (COSTA SOBRINHO, 1992: 163).

Page 164: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

165

Costa Sobrinho traduz dessa forma a importância dessa participação da Igreja no

meio desses trabalhadores extrativistas e o impacto que essa presença causava aos

“paulistas”. Note-se que ele deixa patente a confiança que essas populações devotavam a

Instituição Igreja.

A ativa participação da Igreja nesse período que vai do início da década de setenta

até a virada do século, pode ser aferida com a leitura do boletim Nós Irmãos, criado em

1971. Neste boletim, as várias colunas se articulavam numa sincronia invejável nas formas

de abordar os assuntos ligados ao problema da terra, da evangelização, do combate às

arbitrariedades cometidas por “autoridades” do Estado, principalmente aos desmandos

cometidos pelas polícias, fosse ela federal, militar, civil ou dos comandos militares.

No boletim “Nós Irmãos”, a coluna “O Bispo Fala” e a coluna “Dos Setores”, são as

mais articuladas nas denúncias. A coluna “Dos Setores”, trazia os informes das diversas

áreas de atuação da Igreja, com destaque para a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que

divulgava todos os eventos e informações pertinentes à defesa da posse aos trabalhadores

extrativistas; o Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), que denunciava às

diversas formas de violência contra os trabalhadores e populações pobres dos bairros e

seringais, além da violência política cometida pela ditadura militar; o Setor de

Comunicação, que articulava notícias políticas internacionais e nacionais com a realidade

local; do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que apresentava os informes sobre a

situação indígena e; das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que noticiava os eventos

que aconteciam nas diversas comunidades, incluindo as das áreas urbanas e rurais, que iam

das dificuldades de acesso aos locais de moradia dos seringueiros, até os problemas do dia-

a-dia enfrentados por eles, como a carestia, a falta de escolas, a violência policial e a

dependência dos marreteiros e atravessadores.

Outra característica bem marcante no boletim “Nós Irmãos” é que sua profunda

crítica às desigualdades sociais estava articulada às idéias de combate ao capitalismo, em

alguns momentos defendendo mesmo teses revolucionárias. Muitas charges e até mesmo

capas do jornal expunham essas referências, vejamos alguns exemplos:

Page 165: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

166

Figura 9 Figura 10

Na original (foto ampliada), lê-se na bandeira: “Eu os

plantarei em sua terra e não serão mais arrancados da

terra que eu lhes dei, disse Deus”. (Amós 9,15)

Figura 11 Figura 12

Dos desenhos acima extraímos que, em se tratando de um boletim da Igreja

Católica, as representações, as expressões das pessoas, demonstram muita animosidade.

Em quase todas as edições há charges, caricaturas e desenhos opondo “gordos”

proprietários e esquálidos trabalhadores ou, trabalhadores rurais apresentados como

Page 166: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

167

“decididos” e organizados, contra os “gordos” proprietários, representação típica dos

fazendeiros, seringalistas ou, políticos de direita, encontradas no boletim. Vemos também,

muitas representações de trabalhadores diante de cercas, trabalhadores reunidos para

debater temas atinentes a seus afazeres, opondo-se a desenhos e representações de

desmatamentos, caminhões carregados de toras de madeiras, tais como:

Figura 13 Figura 14

Page 167: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

168

Figura 15 Figura 16

Aliando traços de desenhos rústicos, feitos a lápis ou, no máximo, usando nanquim,

quando havia necessidade de melhor traço, o boletim usava linguagem simples, em muitas

colunas seguia o ritmo das mensagens utilizadas no rádio, pois se sabia que o público leitor

ou ouvinte, não tinha muita intimidade com a escrita, muito menos uma escrita que usasse

vocabulário rebuscado, aliado ao fato de que muitos líderes comunitários eram pessoas sem

muitos conhecimentos formais da língua portuguesa.

Podemos inferir, portanto, que essa disposição quase maniqueísta de representação

dos conflitos sociais expressa no jornal emanavam, em parte, dos conhecimentos trazidos e

traduzidos para a realidade do Acre, por jovens padres, freiras e agentes pastorais leigos

provenientes da Itália ou sul do Brasil. No caso dos italianos, embora alguns tenham vindo

muito cedo para o Brasil, vários deles tinham fortes ligações com a esquerda italiana ou, no

mínimo, tinham noção da divisão política característica daquele país (Esquerda X Direita X

Democracia Cristã), onde os partidos que representam os socialistas/comunistas sempre

tiveram uma forte representação parlamentar e sindical.

Nesse sentido, não é de se estranhar que alguns desses membros da Igreja

desenvolvessem vínculos organizativos com setores partidários, mesmo que clandestinos,

da esquerda acreana e tivessem como meta a formação dos sindicatos. Essa vinculação foi

fundamental para a organização dos sindicatos de trabalhadores rurais na década de setenta

Page 168: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

169

e corroborou nos anos oitenta para uma forte influência na fundação do PT no Acre,

rompendo, de certa forma, com os outros partidos com viés mais classista.

Em sua dissertação de mestrado, Nilson Mourão (1988), um dos fundadores das

CEBs e depois do PT, no Acre, comenta como foi se dando essa transição da vida religiosa

para uma convergência com a vida partidária. Para Mourão, “esse momento de transição foi

acontecendo quase naturalmente”. Quando se comemorava os dez anos de CEBs no Acre,

em 1981, coincidentemente, estava se dando também o nascimento do PT em níveis local e

nacional. Então as reflexões sobre esses dez anos exigiam novas diretrizes, novas

orientações para a ação. Não foi difícil, a partir dessa conjuntura, entrelaçar os elos, formar

a corrente.

As orientações para as Comunidades Eclesiais de Base e, principalmente, para seus

dirigentes, apontavam para a necessidade de uma vinculação partidária, fosse pelo voto,

pela militância, pela filiação, ou até pela candidatura à representação, ou seja, para a Igreja

que comandava as CEBs naquele momento, não havia incongruência na sua ação, com a

ação político-partidária, desde que os membros das comunidades orientassem essa

participação para:

Partidos que sejam populares, mesmo, isto é, que dêem oportunidade ao povo de participar de forma

crescente até nos postos de liderança; que defenda os direitos dos oprimidos; que visem à mudança

social e não a sua própria manutenção; que combatam a ditadura e todo poder opressor; que lutem

contra a dependência econômica do Brasil; que tenham uma orientação socialista, isto é, que visem

colocar o poder e a economia nas mãos do povo organizado. (MOURÃO, 1988: 226/7).

Na verdade, pela interação dos itens com o programa do PT, só faltaria acrescentar

que fosse voto, militância, filiação ao PT, haja vista serem as indicações inteiramente

vinculadas às propostas desse partido em seu nascedouro.

O bispo D. Moacyr, contudo, não concorda que as CEBs tenham “assumido”

integralmente as propostas do PT, para ele as CEBs são anteriores e já vinham defendendo

essas teses de que era preciso organizar as populações mais pobres, que era preciso evoluir

para ações que fortalecessem os sindicatos, porque eles eram mais amplos e abrigavam

pessoas de outras crenças, mas que se irmanavam na defesa de seu direito a vida:

“Nós queríamos então que o povo conhecesse o Evangelho, confrontasse com a própria vida e

fizesse as mudanças necessárias e, onde se valorizasse o leigo e que ele assumisse a animação da

Page 169: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

170

comunidade, enfim que assumissem as tarefas. É o primeiro momento, então, as comunidades se

expandem e atingem os seringais, colônias e projetos que estavam começando. Esse aspecto de

liderança de leigo, essa ligação entre Evangelho e vida, leva então a organização sindical. A

comunidade é mais para os que têm fé, são católicos; depois os sindicatos já é expressão do amor de

alguém que participa da comunidade, mas se une também a membros de outras Igrejas e pessoas que

não tem opção de fé, pelos direitos do trabalhador”. (Apud. Simeone da Silva. 1998: 305).

Se considerarmos a evolução da doutrina social da Igreja, como faz Enrique Dussel

(1996), veremos que D. Moacyr tem razão, pois a Igreja já havia aderido ao método

marxista, antes do surgimento do PT, enquanto partido que se reivindicava também,

marxista. Para Dussel:

Na verdade, historicamente, antes da teologia existiu a práxis cristã e a fé da Igreja, de grupos

cristãos e dos futuros teólogos. As questões que a teologia latino-americana nascente devia expor,

justificar, para servir aos militantes cristãos, foram razões teológicas que deram conta do sentido do

“compromisso político” desses cristãos. Mas por que comprometer-se politicamente? Para efetuar

uma mudança social, econômica e política, que permitisse que as classes exploradas (primeiro), os

pobres (mais teologicamente) e o povo latino-americano (por último) alcançassem uma vida justa,

humana, realizada. A dupla exigência de pensar teologicamente o “compromisso político” para servir

aos oprimidos, aos “pobres”, ao povo exigia que a nascente teologia usasse outros instrumentos

analíticos interpretativos, que não eram os mesmos utilizados pela tradição teológica anterior. Ante a

ausência de uma filosofia adequada constituída, era preciso utilizar as ciências sociais críticas

latino-americanas. Não só ciências sociais (como a sociologia e a economia etc.), mas ciências

sociais “críticas” (porque se tratava de descobrir e situar a realidade da injustiça) e “latino-

americanas” (porque nosso continente tinha questões “próprias” para resolver). Assim, não foi uma

decisão a priori, dogmática ou epistemológica. A partir da práxis e da fé cristãs, e por critérios

fundamentalmente espirituais e pastorais (o “fato” de que os cristãos comprometiam-se

politicamente a lutar contra a injustiça, tal como exigia a doutrina social da Igreja), era necessário

que houvesse categorias de análise. (DUSSEL, E. Teologia da libertação e marxismo. 1999: 491/2

In. LOWI, M. O marxismo na América Latina. São Paulo. Ed. Fundação Perseu Abramo, 1999).

Mais ainda, na concepção de Dussel (1999), esse foi o caminho que levou a Igreja

a adotar, no nascimento da teologia da libertação, alguns instrumentos e categorias

marxistas. Considerando que esse procedimento pode, inclusive, ser classificado como uma

“revolução epistemológica” na história mundial da teologia cristã, pois foi a primeira vez

em que se usou “ciências sociais críticas” e, mesmo considerando que houve uma filtragem

muito eficiente dentro do pensamento marxista, para separar pontos mais conflituosos, a

adoção dessas categorias ainda assim, provocou áreas de tensão, crises mesmo, dentro do

corpo doutrinário cristão.

A filtragem realizada pelos teólogos cristãos sobre que categorias marxistas

adotariam, explicava-se diante de uma realidade onde a injustiça condenada, a pobreza e

suas causas, eram também efeitos de ações, em muitos pontos, coadjuvadas pela própria

Page 170: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

171

Instituição. Dussel localiza as principais vertentes categoriais marxistas adotadas pela nova

teologia cristã na seguinte passagem:

Entre os marxismos possíveis existe uma negação unânime do “materialismo dialético”. Nenhum

dos teólogos da libertação aceita o materialismo de Engels na Dialética da natureza, nem o de Lênin,

Bukarin ou Stalin, como “filosofia”, ao estilo de Konstantinov. Marx é aceito e adotado como crítico

social. O próprio acesso a Marx é duplo; por um lado, pelas leituras secundárias (como Yves Calvez,

na França, ou Welte, na Alemanha); por outro, principalmente no início, por meio do “jovem” Marx

(até o Manifesto de 1948). Na primeira geração de teólogos (de Juan Luis Segundo a Coblim,

Gustavo Gutiérrez, ou em minha posição ao início da década de 1960), a influência francesa foi

determinante. De J. Maritain passou-se a E. Mounier, e daí ao pensamento de Lebret, em Economia e

humanismo. Teilhard de Chardin também inspirou o pensamento dessa época. Mas Marx chega por

meio da Revolução Cubana (1959), e por isso a leitura é simultânea: o jovem Marx, obras de Che

Guevera, Gramsci e Lukacs. (...) Isto é, um Marx “humanista” – de acordo com a denominação da

época – não dogmático, nem economicista, nem materialista ingênuo. Os padres Cardonel e

Blanquart, franceses, também influem na primeira “recepção” do marxismo na futura teologia da

libertação. Não houve acesso direto ao Marx “definitivo” ( a partir de 1857; e, como veremos, será

pouco freqüente até hoje). (Idem. P. 492/3).

Nesse mesmo sentido, Frei Betto, um dos principais “teólogos da libertação”,

escrevendo sobre Cristianismo e marxismo, asseverou que:

O marxismo é, sobretudo, uma teoria da práxis revolucionária. Isso não impede que certos marxistas

queiram transformá-lo numa espécie de religião com seus dogmas, fundada na leitura

fundamentalista que faz das obras de Marx, Engels e Lênin uma nova bíblia. Afinal, o marxismo,

como qualquer obra teórica, jamais poderá ter uma única leitura. O processo epistemológico ensina

que um texto é sempre lido a partir do contexto do leitor. Esses “óculos” da realidade determinam a

interpretação da teoria. Assim, a obra de Marx pode ser lida pela ótica do materialismo positivista de

Kautsky, do neokantismo de M. Adler, do hegelianismo voluntarista de Gramsci ou objetivista de

Lukacs, do existencialismo de Sartre, do estruturalismo de Althusser, bem como à luz da luta

camponesa de Mao Tsé-Tung, da guerrilha cubana, da realidade peruana de José Carlos Mariátegui

ou da insurreição popular sandinista. (BETT0, 1999: 486. In. LOWI, M. 1999).

Tanto para Frei Betto, como para Enrique Dussel, o que parece adquirir mais

importância é o fato de se usar um instrumento, no caso o marxismo, como um referencial

que possa se compatibilizar com o cristianismo. Nesse caso, os dois vêem o marxismo

como ferramenta de libertação dos povos oprimidos e, assim sendo, compatível com as

novas proposições que a Igreja almejava para sua também nova visão da prática cristã, ou

seja, a luta contra a injustiça, contra a pobreza, contra as desigualdades econômico-sociais.

Nesse sentido, a utilização de categorias marxistas como ferramentas de libertação,

vai implicar também uma releitura do próprio marxismo no seio de boa parte da militância

Page 171: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

172

comunista e socialista que há época também viviam um processo de reavaliação da

utilização do marxismo como “religião”. Para Frei Betto:

(...) o marxismo e os marxistas não podem ignorar o novo papel do cristianismo como fermento de

libertação das massas oprimidas da América Latina. Contudo, para apreender esse potencial

revolucionário do cristianismo, o marxismo deverá romper a camisa-de-força de sua ótica objetivista

e reconhecer o papel da subjetividade humana na história. Isso implica a superação da tendência

economicista e, nos regimes socialistas, de uma certa “metafísica do Estado”, para se admitir a

autonomia relativa das superestruturas. A prática revolucionária extrapola o conceito e não se esgota

em análises estritamente científicas, pois encerra necessariamente dimensões éticas, místicas e

utópicas. O progresso alcançado pelos países socialistas e a ideologia encarnada pelo partido são

insuficientes para equacionar todos os aspectos da relação interpessoal e suas conseqüências sociais

e políticas. (BETT0, 1999: 486. In. LOWI, M. 1999).

Inegavelmente, a interseção do pensamento marxista com o cristianismo de certos

setores da Igreja criou uma realidade impar no contexto da América Latina, com

implicações em diversos ambientes de atuação desses dois segmentos. Afinal, a luta contra

as injustiças sociais, pela reforma agrária e, até contra a ditadura militar, empreendida por

esses setores ditos progressistas da Igreja, constituía a mesma argamassa dos comunistas e

socialistas que militavam no país, mesmo considerando as variegadas interpretações de

cada corrente. Diante dessa heterogeneidade, tanto no seio da Igreja, como dos diversos

partidos que se reivindicavam comunistas ou socialistas, tendemos a concordar mais uma

vez com Gómez de Souza, quando ele pondera que:

Não é fácil escrever sobre uma instituição tão complexa e heterogênea como a Igreja Católica, com

suas divisões e tensões internas. Para Émile Poulat é um típico caso de conflito no consenso ou de

consenso no conflito. Nela se cruzam diferentes tendências que têm a ver com a diversidade social,

política, cultural e claro está, espiritual da sociedade mais ampla onde ela se insere. Assim, alguém

que faz parte de uma pastoral comprometida com lutas sociais, como a Comissão da Pastoral da

Terra (CPT) tem uma prática e opções diferentes de um membro de Opus Dei. Mas além disso,

temos de distinguir entre a Igreja Católica como instituição, com suas estruturas de poder

eclesiástico e como comunidade de fiéis, ou povo de Deus, para empregar uma expressão do

Concílio Vaticano II. No caso brasileiro, é bom levar em conta ainda, a Igreja é um ator importante

na vida social, política e cultural do país. (GÓMEZ de SOUZA, 2004. p 77).

De outra face, também não é fácil escrever sobre as diversas correntes de

interpretação marxista que dominava os partidos, pois como observou Frei Betto: “A

riqueza e a originalidade da teoria marxista reside justamente em estar vinculada à

prática revolucionária que, em sua dinâmica, confere e contesta a teoria que a inspira”.

Page 172: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

173

Valemo-nos dessas passagens de Dussel, Gómez de Souza e Frei Betto, não para

reduzir o debate do marxismo sobre objetividade e subjetividade, nem sobre o que é

dialético e revolucionário nas práticas da Igreja, mas sim, para aproximar parte de um

debate teórico que ocorria no âmbito da igreja enquanto instituição e as diversas realidades

cotidianas que seus agentes participavam.

Nessas décadas de setenta e oitenta são vários os exemplos de bispos, padres, freiras

e agentes pastorais leigos que se envolveram em lutas revolucionárias, inclusive luta

armada, como nos casos da Nicarágua e El Salvador, ou em outras lutas como a luta pela

reforma agrária no Brasil. No mesmo período, tivemos a ação de outros bispos, padres,

freiras e agentes leigos que militavam juntos em organizações como a Tradição, Família e

Propriedade (TFP), em direção oposta, mas não menos radical de militância que também

tinham vinculações sociais, mesmo que as consideremos como ações conservadoras e

reacionárias.

Percebemos, portanto, que o aspecto de uma militância engajada, fosse de direita ou

de esquerda, unia e separava segmentos clericais e marxistas no desenrolar dos conflitos,

tanto no ambiente interno da igreja, como entre igreja e partidos políticos mais

“dogmáticos”, no plano externo.

Sem contar que há, ainda, casos emblemáticos do pensamento marxista latino-

americano, como é o caso de José Carlos Mariátegui (2008), que no início do século XX,

ao observar a devoção e o fervor com que os indígenas peruanos participavam das

procissões e rituais cristãos, ao mesmo tempo em que mantinham seus rituais milenaristas,

asseverou que uma revolução no Peru, teria que passar por uma forte análise das

influências religiosas no seio do povo. Alerta que ele fazia também aos partidos

comunistas, indicando que os povos Incas representavam um grande exemplo de

comunismo primitivo na América, que não havia sido objeto de estudo pelos formuladores

das teorias marxistas européias.

Não podemos perder de vista, também, que ao longo da história da América, tanto

hispânica, quanto portuguesa, vários nomes ligados a Igreja, desempenharam importantes

papéis ao abraçarem causas populares ou se posicionarem na defesa de indígenas e das

classes populares subalternas, como é o caso de Bartolomé de Las Casas, na América

Central, os padres Hidalgo e Morelos, no México, o Padre Antônio Vieira e Frei Caneca,

Page 173: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

174

no Brasil, o bispo Oscar Romero, em El Salvador, entre tantos outros que, no mínimo,

podem ser considerados como verdadeiros expoentes no desencadeamento de lutas

populares e algumas vezes, até mesmo revolucionárias, pela forma engajada com que se

incluíam na realidade do seu tempo.

Ou seja, a igreja no Acre estava envolvida numa discussão que não era nova em

âmbito latino-americano, mas ao mesmo tempo era inédita nessa região e, principalmente,

para população à qual estava engendrada.

Passados, portanto, pouco mais de trinta anos dessa intervenção e ainda vivendo no

curso de uma mesma geração, da qual somos contemporâneos, observamos que as

contendas persistem e vão ganhando dimensões para além da subjetividade.

Mas, à guisa de conclusão sobre o papel da Igreja nesse processo, é possível

interpretar que as contradições, contraditoriedades, ambigüidades e ambivalências

existentes no nível interno da Igreja acerca do tipo de marxismo a ser adotado e,

principalmente, do nível de radicalidade em que as lutas deviam ser travadas, serviram de

alavanca nas mobilizações e organização dos trabalhadores em alguns momentos, ao tempo

em que no momento subseqüente, servia de atravancamento para outras possibilidades de

resolução dessa mesma luta.

Há, contudo, um grande mérito podemos até dizer, um mérito inquestionável, na

ação Católica para os seringueiros do Vale do Acre, para os índios, os ribeirinhos e as

populações pobres das periferias das cidades acreanas, principalmente de Rio Branco,

Brasiléia e Xapuri, nesse período que vai do início da década de setenta até a virada do

século. É o mérito de ter sido a precursora dentre as instituições urbanas a tomar sua

defesa, a acolhê-los, quando em muitos casos não restava mais nem o “bispo a quem

reclamar”, a quem recorrer.

Quando relacionamos os índios entre os povos beneficiados, não estamos nos

referindo a nenhum tipo de missão evangelizadora, catequética daqueles, mas sim, a defesa

pela demarcação de suas terras e, nesse caso, até mesmo a exigência de que fossem

respeitados em sua identidade, como é característico da ação do Conselho Indigenista

Missionário, o CIMI.

Esse mérito reside ainda no fato de que a “ajuda”, o acolhimento, não se dava

apenas quando os seringueiros chegavam à cidade de “mudança” ou, vinham à cidade em

Page 174: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

175

busca de “seus direitos”, mas dava-se, principalmente, no fato de ir até eles, se embrenhar

nas matas e falar de “seus direitos”, lá onde outras “autoridades” não colocavam os pés, a

não ser quando enviavam policiais para defenderem os “direitos de quem os tinha”,

obviamente estamos falando dos “donos” das terras.

Por outro lado, as divergências, as confrontações internas, também serviam como

“freio”. Partes dos ativistas religiosos eram pressionados por seus “fiéis” da cidade a não

pregarem, a não aderirem ao “comunismo”. As acusações feitas pelos fazendeiros e pelos

políticos de direita de que a Igreja estava apoiando os comunistas, ou mesmo de que alguns

padres eram comunistas, não eram pouco importantes. Afinal, a Igreja até aquela data

também tinha sua base quase que totalmente vinculada às cidades. A não ser nas

“desobrigas”, os contatos com os “povos da floresta” eram insignificantes. Como os bispos

e padres faziam parte do conjunto de “autoridades” das cidades, suas situações eram

questionadas por alguns pares e por alguns fiéis, que não entendiam, ou não aceitavam

aquela “virada” da Igreja.

Em meio a essas pressões externas e mergulhados em suas próprias contradições

internas, alguns setores da Igreja, foram no decurso dos anos, formatando uma tez mais

conservadora, introduzindo uma noção de limites para suas ações e de seus pares.

A visão “humanista” era sempre argüida para estabelecer esses limites. Quando, por

exemplo, alguns líderes sindicais tentavam introduzir as idéias de vingar os sindicalistas e

seringueiros mortos pelos jagunços ou fazendeiros, esses setores cuidavam de desarticular

as idéias. Para eles a existência do sindicato já era um fator equacionador das questões, que

“dava voz a quem não tinha”, e a voz e a fé já eram suficientes para mudar o rumo das

coisas.

É nesse sentido que a fundação do PT, junto com a arregimentação de grande parte

das lideranças das Comunidades Eclesiais de Base para esse partido, vai deslocar o foco

das lutas diretas contra os fazendeiros e contra as estruturas do Estado, para o chamado

campo institucional. Muitas lideranças são chamadas a participar como candidatos nas

eleições municipais, partidarizando (aparelhando) os sindicatos e desconfigurando a

radicalidade política de sua configuração original.

Como não podemos reconstruir o passado em outras bases que não sejam as

apontadas pelos fatos históricos, para testarmos as alternativas hipotéticas, por exemplo,

Page 175: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

176

saber que rumo teria sido dado para as lutas sindicais na configuração proposta por alguns

líderes, para responder a morte de cada seringueiro, de cada posseiro, com a morte de um

fazendeiro, temos que percorrer os caminhos realmente trilhados, ou seja, na luta dos

seringueiros, entre muitos caminhos possíveis, eles seguiram também o da pacificação,

proposto pela sua aliada de primeira grandeza, a Igreja.

Page 176: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

177

3.3 OUTROS ALIADOS URBANOS: PARTIDOS, CONFEDERAÇÕES E CENTRAIS

SINDICAIS.

Embora tenhamos destacado como um tópico diferente, a história desses outros

aliados urbanos dos trabalhadores extrativistas, está ligada à ação da Igreja Católica,

conforme perceberemos na articulação dos temas. Dizemos isso porque, no início da década

de setenta, quando começaram os conflitos entre seringueiros e fazendeiros, foi também

uma época coincidente com uma das fases “duras” do regime militar. Se considerarmos a

situação partidária, por exemplo, veremos que no Acre vigorava aquele bipartidarismo

“tradicional”, instituído pelos militares (ARENA X MDB), ou seja, era uma existência

partidária consentida pelos militares e que abarcava apenas setores muito restritos da

sociedade, na linguagem dos economistas, “os homens que contam”, isto é, aqueles

“endinheirados”, que ocupavam postos de comando, tanto na economia como na política, o

que “coincidentemente”, recaia sobre os mesmos nomes.

Ademais esses partidos tinham vida prioritariamente urbana e, mesmo nesse espaço,

sua ligação com a população era pequena. Como o Acre era até 1962 Território Federal e

todos os seus sete municípios, existentes até então, estavam circunscritos no que se

denominam áreas de fronteira, a população não tinha mesmo muita identificação com

processos eleitorais, já que os cargos de governador e prefeitos eram nomeados pela

Presidência da República. Após o Golpe Militar de 1964, a situação não mudou, pois logo

após a destituição de José Augusto de Araújo, primeiro Governador eleito pelo voto

popular, em 1962, o general de plantão voltou a nomear governador e prefeitos.

Se a população urbana não tinha intimidade com eleições, tinha muito menos com

os partidos, que desde sempre eram coisa de “gente grande”, isto é, de patrões seringalistas,

anteriormente e, depois de comerciantes, fazendeiros e madeireiros. Portanto, se a maioria

da população urbana não tinha participação política diretiva, muito menos tinha a

população dos altos rios, dos seringais.

Em se tratando de movimento sindical, o distanciamento também era considerável.

Só nas cidades se tinha algum embrião de vida organizada de trabalhadores, especialmente

servidores públicos, mais com viés associativista, recreativo, do que propriamente sindical.

Page 177: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

178

Essa situação de distanciamento da população, não só dos partidos, mas da vida

política que identificamos no Acre, contudo, não era (é) uma situação episódica, regional.

O distanciamento político de grandes parcelas da população, dos centros de poder, sejam

eles políticos ou econômicos, é uma característica que percorre todo o Brasil, na verdade,

essa é uma condição que com raríssimas exceções, podemos estender para toda a América

Latina.

Basta lembrarmos os “quatelazos”, “bogotazos”, “pinochetazos” “revoluções”,

golpes e contragolpes em que estão enredados os comandos militares dos países latino-

americanos e as elites conservadoras ou liberais que os acompanham. Mesmo sabendo que

quando amanhecia a década de oitenta do século XX, quase todos os países do cone Sul

estavam vivendo o que Guilhermo O'Donnel (1984), classificou como a “transição dos

regimes autoritários”, isto é, estavam vivendo a transição para a “democracia”, entendida

neste contexto como sinônimo de eleição, ou retorno de um civil à Presidência da

República. Mesmo tendo atravessado esse século marcado pelo autoritarismo, pelo

militarismo, há quem afirme que o século XX, com todos os percalços, consolidou a

democracia no nosso continente. Homero Costa, por exemplo, escrevendo sobre

“democracia, eleições e partidos políticos”, afirma:

A democracia moderna, consolidada no século XX, especialmente nos países desenvolvidos, é

produto de um lado, da criação e o aperfeiçoamento de instituições políticas que regulam os conflitos

sociais através da competição política, e por outro lado, da implantação do sufrágio universal, como

forma privilegiada de participação política. A democracia tem como fundamento à competição

política, que supõe, como condição essencial, sistemas políticos competitivos, com partidos políticos

organizados e na qual as eleições são fundamentais como fonte de legitimação (COSTA, 2004: 01).

A concepção de Costa, respeitada a ressalva aos países desenvolvidos, é pertinente

para o nosso continente, desde que admitamos que ele expressa a compreensão de que,

embora vivêssemos numa América Latina que apresentava conjunturas manifestadamente

autoritárias e excludentes, alguns partidos, e isso é inegável, se mantiveram ao longo do

século XX, como partidos “consolidados”, sem levarmos em consideração, obviamente, os

métodos que usaram para se manterem ou, para se sagrarem vencedores dos processos

eleitorais. Basta lembramos o Partido Revolucionário Institucional (PRI), no México, que

passou mais de setenta anos no poder, ou o Partido Colorado, no Paraguai, que também

ficou mais de meio século no poder (só perderam sua hegemonia no início do século XXI),

Page 178: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

179

os dois sendo acusados de serem especialistas em fraudes eleitorais, mas fraudes estas que

aconteciam exatamente para derrotar o(s) adversário(s), o que demonstra a existência de

competitividade. No Brasil, embora mudando de siglas, há uma permanência de

revezamento entre um partido conservador e um liberal no poder e, desde 1922, uma

incômoda presença de um ou mais partido comunista (legal ou clandestino) e, um ou outro

dito “Trabalhista”, fincando bandeiras de oposição e tentando organizar a classe “operária”,

da qual eles se colocam como representantes.

Devemos considerar ainda que no Brasil, há um campo fértil para a caricaturagem

partidária, a exemplo do que foram as eleições de Jânio Quadros para presidente pelo PDC,

de Fernando Collor pelo PRN, ou mesmo do vice-presidente dos dois governos de Luis

Inácio Lula da Silva, o empresário José de Alencar no primeiro mandato pelo PL e no

segundo pelo PRB, todos eles construíram novas siglas para acomodar suas candidaturas,

ou seja, fica demonstrado que os indivíduos conseguem serem maiores dos que os próprios

partidos.

No Brasil pós Regime Militar, especialmente após a promulgação da Constituição

de 1988, o quadro havia se mantido quase inalterado, exceto pela volta à legalidade dos

partidos comunistas e a criação de uma série de outros que orbitavam nos espectros do

centro, da direita e da esquerda. José Gomes da Silva (2004), escrevendo sobre os partidos

políticos na década de oitenta, assegura que:

A frágil e recente organização partidária brasileira ainda pode ser tipificada pela classificação

simplista de “esquerda e direita”. Assim mesmo, nos marcos do atual presidencialismo-imperial (que

a Nova Constituição não conseguiu eliminar), mesmo esse discutível matiz ideológico é anulado por

práticas primitivas como o fisiologismo, regionalismo, clientelismo populismo e caudilhismo, todos

embrulhados num imenso manto de pobreza que impede ou dificulta o exercício de virtudes maiores

como as do civismo, cidadania, coerência ideológica etc. Sem embargo, exatamente na questão da

Reforma Agrária tem sido possível diferenciar as posições esquerda-direita de forma mais nítida.

(GOMES da SILVA, 2004: 169- 170).

Ou seja, para Gomes da Silva são temas específicos e conjunturais e não projetos

políticos das organizações partidárias, que permitem definir os perfis dos partidos no

Brasil. No caso em análise ele identifica essas posições pela aproximação com o tema da

Reforma Agrária na Constituinte de 1987/88, detectando que as oscilações dos blocos

conservadores, são tão marcantes que no processo Constituinte eles chegaram a fundar o

“Centrão”, que reunia parlamentares de praticamente todos os partidos para tomada de

Page 179: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

180

decisão de certos temas, orientados que eram esses parlamentares, por seus interesses

regionais, pelo clientelismo, pelo fisiologismo, ou mesmo por critérios ideológicos.

É nesse contexto de uma América Latina e de um Brasil em que a existência

partidária sempre esteve vinculada a ambigüidades, contradições e transições, que vamos

encontrar no Estado do Acre, os partidos permitidos pelo regime militar na busca de um

ajuste que o integrasse ao País pelas vias de uma mudança econômica, política e social,

moldada numa formulação positivista de ordem, desenvolvimento e progresso.

Nos anos iniciais do último quartel do século XX, o Estado do Acre vai apresentar

um quadro político muito parecido com um resumo da situação da América Latina, ou seja,

constituía-se, ainda, como um cenário transitório, uma espécie de palco fronteiriço, onde os

atores procuravam seus papeis em meio a conjunturas voláteis, imprecisas. Nas duas

décadas anteriores (50-60), pelo menos, havia o movimento autonomista, que defendia a

passagem do Acre à condição de Estado, que servia de divisor de posições, de fermento

para as disputas e para expressar as diferenças entre os partidos, mas com a passagem do

Território Federal a Estado, em 1962, essa bandeira, desbotou, desfiou. A partir de então,

os partidos passaram a disputar sobre quem era mais “amigo”, ou menos “amigo”, do poder

central, para se credenciar como interlocutor daquele, já que o Estado, desde a falência da

borracha, sobrevivia (sobrevive) dos repasses de recursos federais, garantidos na rubrica do

Fundo de Participação dos Estados (FPE).

A única instituição mais permanente, no sentido de manter uma maior influência

sobre a população, era exatamente a Igreja Católica que, como já vimos anteriormente,

desde o início da década de sessenta, também estava abalada por movimentos reformistas.

Mas, será esta instituição, especialmente o setor ligado a Teologia da Libertação, que de

fato, vai estar presente nas articulações políticas que envolveram esses outros atores, fora

do palco dos dois partidos conservadores. Então, vejamos qual era mesmo essa conjuntura

a qual nos referimos como sendo um resumo da situação de transição que caracterizava a

América Latina naquele momento.

Como já referimo-nos, os partidos políticos tradicionais (conservadores e/ou

liberais), nunca atuaram no sentido de romper com a dependência sistêmica oriunda do

período colonial, salvo os combates individuais de alguns membros desses partidos nas

lutas pela independência, nos discursos nacionalistas, ou desenvolvimentistas, mas, uma

Page 180: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

181

tomada de posição enquanto partido mesmo, pragmática, orgânica, com uma avaliação

forjada desde dentro, isso não vamos encontrar.

No campo da esquerda, também convivemos com indefinições estruturais. Marta

Harnecker (2000) nos fala de uma tripla origem para a crise teórica que vive a esquerda na

América Latina, nos seguintes termos:

Em primeiro lugar, a sua incapacidade histórica de elaborar um pensamento próprio, que parta da

análise da realidade do subcontinente e de cada país, das suas tradições de luta e das suas

potencialidades de mudança. Salvo escassos esforços que se fizeram nesse sentido (destaca

Mariátegui nos anos 20; os esforços inconcluídos de Che Guevara e de alguns teóricos da

dependência nos anos 60; além das contribuições de Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, entre

outros) a tendência foi antes de extrapolar esquemas de análise próprios de outras latitudes.

Analisava-se a realidade com parâmetros europeus: por exemplo, considerava-se a América Latina

como uma formação feudal quando era capitalista dependente, ou aplicava-se o esquema de análise

classista europeu a países que tinham uma população majoritariamente indígena, o que levava a

desconhecer a importância do fator étnico-cultural (destaca o estudo de José Aricó, 1988 que aponta

essas tendências). Em segundo lugar, ela não foi capaz de realizar um estudo rigoroso das

experiências socialistas – tanto de seus êxitos como dos seus fracassos - , e isto tem em parte a ver

com a escassa ou nula divulgação científica que delas se fez (destaca os trabalhos do francês Charles

Bettelheim, como exceção); e também não realizou uma análise séria das causas das suas derrotas.

(HARNECKER, 2000: 319).

Podemos, em termos gerais, considerar que era assim que o Acre se encontrava: por

um lado, os partidos permitidos pelo regime militar se esforçando para agradar o poder

central, buscando aqui reproduzir políticas que estivessem sincronizadas com o pensamento

daqueles, principalmente reproduzindo suas concepções de progresso/desenvolvimento e

segurança, por outro, os partidos de esquerda, respeitadas as limitações da clandestinidade

e depois, na década de oitenta das incipientes organização/reorganização, que permitiram

suas “legalizações”, também reproduzindo análises onde a realidade local era amoldada aos

receituários produzidos em outros parâmetros, por exemplo, ver os seringueiros como

camponeses (estilo europeu) e os funcionários públicos como as classes operárias

industriais.

Contudo, em que pese os equívocos de análise conjuntural, a existência desses

partidos de esquerda serviram de caixa de ressonância para os problemas sociais que as

políticas institucionais vinham acarretando contra os trabalhadores extrativistas. Dizendo de

outro modo, a presença de militantes partidários (comunistas e socialistas) nos meios

religiosos, estudantis e de categorias de servidores públicos, contribuiu para estabelecer

linhas de enfretamento, de contestação e de organização desses trabalhadores em suas

diversas formas de luta, fosse na radicalidade com que aderiram à idéia dos empates,

Page 181: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

182

fazendo-se caixa de ressonância nos espaços urbanos dessas lutas dos trabalhadores

extrativistas, fosse na força das reivindicações que sugeriam, que apresentavam para os

sindicatos, inserindo novas reivindicações à monotemática questão da terra.

O fato dos militantes da esquerda no Acre terem abraçado as causas dos

seringueiros nas suas lutas pela terra, misturando sua militância contra a ditadura, com uma

causa de raiz local, também serviram para orientar a militância no sentido de um

envolvimento fora do tradicional ambiente dos comunistas no Brasil, que era a classe média

urbana e alguns segmentos intelectuais, dentro e fora das universidades. Isso significa que

houve uma troca de interesses entre os militantes partidários e os trabalhadores

extrativistas. Essa complexa aproximação vai dar sustentação para a construção de uma

força partidária que toma corpo no final da década de oitenta e vai se tornar muito forte

durante a década de noventa, tornando-se hegemônica na primeira metade da década que

iniciou o terceiro milênio. Esses desdobramentos serão tratados no próximo capítulo.

Duas novidades marcam também esse cenário pós-Golpe Militar de 64, que de

alguma forma influenciariam as relações políticas futuras no Estado a partir de então,

principalmente na capital, Rio Branco. A primeira foi a fundação da Universidade Federal

do Acre, mais especificamente a criação dos cursos de Direito, em 1964; de Economia em

1968 e a de mais cinco cursos em 1970; resultando na formação de um Centro Universitário

que redundaria na criação da UFAC, em 1974 e; segunda, a chegada de várias unidades das

Forças Armadas (Batalhão de Engenharia e Construção - BEC, Batalhão de Infantaria e

Selva - BIS, etc.), essas no início da década de setenta, com o intuito de “resguardar as

fronteiras” (BIS) e atuar na construção das estradas (BEC) (BR-364, BR-317), que faziam

parte da estratégia de integração projetada pelos militares e elites civis que comandavam o

país.

Não seria demasiado repetir que o movimento autonomista, a recente transformação

do Território Federal em Estado, a eleição do primeiro Governador do novo Estado pelo

voto direto e, em seguida sua destituição pelo regime militar, junto com a chegada da

Universidade, das unidades do exército, das levas de compradores de terras (paulistas), das

levas de colonos para os projetos de assentamento, agravados pelos deslocamentos

(expulsões e êxodos forçados) das populações tradicionais, dentre outras mudanças, a

situação do Estado era, no mínimo, muito agitada.

Page 182: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

183

Consideremos ainda, as alterações que provocavam em cidades pequenas, a chegada

de quinhentos, mil, ou mais soldados de uma só vez, que além das bebedeiras e “agitos”

próprios da faixa etária dos recrutas, do impacto econômico, pela movimentação dos

diversos ramos do comércio, tais como: alimentício, imobiliário, hoteleiro, vestuário,

comércio de bebidas, etc., causavam também um frisson entre as mulheres de todas as

faixas sociais. Era uma profusão de casamentos, namoros e, também incremento da

prostituição, bastante significativos. Adicione-se que além dos soldados e patentes mais

elevadas da carreira militar, vinham também outras levas de civis: operadores de máquinas

pesadas, engenheiros, topógrafos, etc., que incrementavam essa leva de “solteiros” nas

cidades, deixando os jovens nativos numa situação de desigualdade na competição por uma

namorada, uma futura esposa.

A chegada dos soldados, do exército em si, causava espécie por toda a sua

indumentária instrumental, especialmente a figura do “comandante” e das patentes mais

elevadas, que literalmente “mandavam e desmandavam” nessas localidades, com destaque

também para seus outros significados: fardas, máquinas pesadas, caminhões, carros, aviões,

helicópteros e, principalmente, as promessas de construção das estradas e os anúncios do

progresso, que mexiam com a imaginação e o imaginário das pessoas. Para aquelas

pequenas cidades em que o ritmo era marcado pela lentidão dos transportes fluviais, em que

as novidades eram raras, inclusive, eram raras as pessoas diferentes que se aventuravam por

aquelas plagas, esse novo momento, esse conjunto de acontecimentos não passavam sem

significação.

O outro acontecimento importante, a instalação da Universidade, ficou mais restrito

à capital. Sua repercussão nos movimentos sociais e partidários que compõem esse quadro

de mudanças só vai ser mais visível a partir do final da década de setenta, quando alguns

professores e estudantes começam a ter uma vida política mais ativa, no sentido de

demonstrar preocupações com a falta de democracia e com a situação social dos

trabalhadores rurais.

O que queremos explicitar é que, de todo esse conjunto “novidadeiro”, que gerava

expectativas e oportunidades para poucos, tinha contornos, especialmente contornos

sociais, definidos. As idéias de ordem, desenvolvimento, integração e progresso, dentre

Page 183: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

184

outras, não eram por excelência, inclusivas, longe disso e pelo contrário, eram arquiteturas

sociais excludentes e repressoras.

As imagens dos desmatamentos, seguidas pelo ateamento de fogo, deixava entrever

uma paisagem diferente, não só no aspecto da mudança física, mas também pelo vazio

humano que provocava. Eram extensas áreas desmatadas e queimadas que ficavam vazias

por muito tempo, já que os critérios dos órgãos financiadores qualificavam como

benfeitoria o simples fato do desmatamento, ou seja, o gado só chegaria bem mais tarde,

mas os financiamentos eram consignados como se já houvesse uma produção que serviria

de aval. Segundo Paula (2002), até mesmo os castanhais (naturais) e as pequenas roças dos

seringueiros e posseiros, eram consideradas como “benfeitorias” dos pretensos donos das

terras, para efeito de consignação de financiamentos.

Como suas ações eram voltadas para alterar a paisagem típica das florestas, através

dos desmatamentos para estabelecimento das fazendas para criação de gado e da construção

das estradas, incluindo-se os projetos de assentamentos, que traziam populações de outras

regiões (colonos) para o Estado, o que ocorreu foi uma modificação extraordinária nos

modos de vida das populações tradicionais, daí a necessidade do surgimento de “aliados

urbanos”, para essas populações tradicionais que estavam sendo desalojadas de suas terras e

sendo obrigadas a mudar completamente seus modos de vidas.

Já dissemos anteriormente que o processo de destruição, provocado pelas ações de

“desenvolvimento”, foi avassalador, para as populações tradicionais das florestas, bem

como dissemos também que alguns setores da Igreja Católica, foram os primeiros a tomar

uma atitude de defesa dos segmentos mais afetados por essas ações, mas, no curso dos

acontecimentos surgiram outros atores que somaram na defesa desses trabalhadores, dentre

eles: os partidos políticos de esquerda e as confederações de trabalhadores e centrais

sindicais, além das ONGs, que trataremos à parte.

É esse ambiente que será apreendido pelos partidos de esquerda para se colocarem

como articuladores de outra concepção de sociedade, outra concepção de progresso, de

desenvolvimento. As alianças que estabeleceram com os servidores públicos e com os

trabalhadores extrativistas, especialmente, que eles viam como representação real do

fracasso das políticas dos governantes representantes dos militares, dos velhos patrões

seringalistas e dos novos patrões fazendeiros e madeireiros, que serviram de argumentação

Page 184: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

185

para construção das idéias aglutinadoras desses grupos, que embora majoritários, eram

excluídos dos processos em curso.

No caso do Acre, os principais partidos de esquerda que atuaram inicialmente na

defesa dos trabalhadores extrativistas, foram: O Partido Revolucionário Comunista (PRC),

o Partido Comunista do Brasil (PC do B), esses dois com atuação desde meados da década

de setenta, ainda clandestinos e mais tarde, no início da década de oitenta foi criado o

Partido dos Trabalhadores (PT) e, no final da década de oitenta, surgiram também o Partido

Verde (PV) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB). De maneira muito discreta, durante a

década de oitenta, atuaram, ainda alguns militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB),

numa pequena base dentro da universidade, mas no final desta década, nos efeitos residuais

dos estragos causados pelos “ventos do Leste Europeu”, esse grupo foi desaparecendo da

cena, até se tornar uma sigla cartorial na década de noventa.

No início, a busca de inserção dos partidos comunistas na luta desses trabalhadores

extrativista se devia basicamente a duas situações de interpretação da realidade acreana: 1)

a difícil condição de militância na zona urbana, tanto por estarem na clandestinidade, como

por falta de condições objetivas de atuação em espaços tão vigiados (pequenas cidades

cheias de militares, inclusive do serviço de inteligência do exército) e por dificuldade

mesmo de falar de comunismo num ambiente dominado pela propaganda anticomunista,

característica desse período, também conhecido mundialmente como Guerra-Fria, e; 2) uma

leitura marxista de base maoísta, que os impulsionava para buscar no campo aliados que

colaborassem para consolidação do “cercamento” das cidades, ou no mínimo, que

favorecesse uma aliança campo-cidade, defendida em vários manuais como fundamentais

para a luta revolucionária.

A percepção da capacidade de mobilização dos trabalhadores extrativistas,

demonstradas após a realização dos primeiros empates, animou aqueles militantes

comunistas de que era possível integrar seus pressupostos teóricos com a luta prática

daqueles grupos de trabalhadores.

Com essa perspectiva, passaram a buscar contatos com as principais lideranças

sindicais que estava despontando, principalmente nos municípios de Brasiléia e Xapuri,

onde já se projetavam na cena sindical os nomes de Wilson Pinheiro, Raimundo Barros,

Page 185: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

186

Chico Mendes, Elias Rosendo, Osmarino Amâncio, Osmar Facundo, João Bronzeado,

dentre outros.

As adesões desses militantes sindicais a esses partidos não foram significativas, pois

essas lideranças estavam também sob a área de influência das CEBs e da CONTAG, que

moderavam os limites da atuação sindical com a atuação partidária. Só na década de

oitenta, com a fundação do Partido dos Trabalhadores, essa adesão de trabalhadores

extrativistas para dentro dos partidos, no caso o PT, vai se dar de forma mais significativa,

até porque este novo partido contava com o apoio não só da Igreja, como também da

CONTAG.

Esse processo de “intermediação” da Igreja e da CONTAG, sobre a participação

partidária de seus líderes, não gerava um conflito aberto com os militantes comunistas, pois

esses eram muito discretos nas suas intervenções, para não chamar a atenção dos órgãos de

repressão e porque não tinham força mesmo para enfrentar as estruturas dessas duas

“parceiras” dos trabalhadores extrativistas. As divergências só se tornaram mais efetivas

quando esses partidos adquiriram a legalidade, em meados da década de oitenta.

No Acre, especialmente o PC do B, rivalizaria com o PT durante alguns anos na

disputa pela hegemonia da esquerda, numa concorrência muito acirrada pelo controle dos

sindicatos, sendo que o PC do B predominava nos espaços sindicais urbanos e o PT nos

espaços sindicais rurais59

.

Com a realização das eleições presidenciais de 1989, contudo, forma-se em nível

nacional a Frente Brasil Popular (FBP), que reuniu o PT, o PC do B e o PSB, no apoio a

candidatura de Lula à Presidência da República, esse fato vai de alguma forma reorientar as

disputas entre esses dois partidos (na época o PSB não estava organizado no Acre), fazendo

com que, a partir da década de noventa estas siglas atenuem as suas disputas que eram

desgastantes para ambas, encaminhando a construção de uma aliança, que só se desfez nas

eleições municipais de 1996, mas que foi reatada em 1998, mantendo-se até esta data.

59

- O PRC acabou fundindo-se com o PT e depois da criação deste partido, virou uma tendência e com o

tempo desapareceu no Acre, seus militantes se espalharam por diversas correntes petistas, dentre elas O

Trabalho, Tendência Marxista e até mesmo na Articulação, corrente majoritária do PT e da CUT, ligada a

Igreja.

Page 186: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

187

Durante todo esse período, contudo, manteve-se no campo sindical um

enfrentamento bastante acirrado entre os dois partidos (PT versus PC do B), cada um

investindo mais na conquista de bases tanto nos espaços urbanos, como nos espaços rurais,

já que os partidos considerados de direita (PMDB, PFL, PDS e suas variações, etc.). No

Acre o PSDB, não tinha muita organicidade e esteve por alguns anos na coligação dirigida

pelo PT/PC do B, inclusive uma militante desse partido (Regina Lino), ocupou o cargo de

vice-prefeita da capital, quando essa frente ganhou a eleição em Rio Branco em 1992, com

Jorge Viana do PT, sendo eleito prefeito e, outro (Edson Cadaxo), foi eleito vice-

governador, no primeiro mandato de Jorge Viana, quando este se elegeu governador,

durante muito tempo, não deram importância as estruturas sindicais urbanas, exceto o

PMDB que atuava no sindicalismo rural desde a chegada de João Maia ao seu quadro

militante no início da década de oitenta.

A partir do final da década de noventa, esses partidos também começaram a

concorrer às eleições do DCE-UFAC e de alguns sindicatos. Sendo que o PMDB vem

desde o final da década de oitenta, dirigindo a Casa do Estudante Acreano - CEA, que é a

representação estudantil secundarista no Estado e o Sindicato dos Servidores Municipais de

Rio Branco (SSMRB).

Além do movimento sindical urbano e rural, PC do B e PT disputavam também a

hegemonia no movimento estudantil universitário, tendo como palco exclusivamente a

Universidade Federal do Acre, que era a única instituição de ensino superior, até o final da

década de noventa, quando surgiram algumas faculdades particulares. Nesse ambiente o PC

do B levava vantagem sobre o PT, tendo dirigido o DCE-UFAC por muitas gestões,

entrecortado por uma ou outra gestão petista. Desde a metade da primeira década do novo

século, contudo, a exemplo de muitos sindicatos, o movimento estudantil universitário

entrou em refluxo, tendo não só diminuído sua intervenção no âmbito universitário, como

também junto à sociedade. Igualmente, a aliança eleitoral entre os principais partidos do

campo da esquerda atuantes no Movimento Estudantil, tanto em nível nacional, como

estadual e municipal, atenuou as disputas ocasionando em alguns momentos a articulação

de alianças dessas forças outrora divergentes.

Page 187: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

188

Mesmo diante de todas essas disputas anteriores nos campos eleitorais, nos

movimentos sindicais, estudantis, etc., esses partidos estabeleceram uma ligação duradoura

com os trabalhadores extrativistas, especialmente no Vale do Rio Acre, inicialmente, mas

que na segunda metade da década de oitenta já fincavam raízes também no Vale do Rio

Juruá. É desse ambiente que vai se erguer toda a arquitetura política de uma estratégia que

abrange a luta pela terra, passando pela luta ambiental e chegando as teses do

desenvolvimento sustentável e da florestania.

A defesa desses trabalhadores não foi construída exclusivamente sob o argumento

da “terra para quem nela vive e trabalha” da Cartilha da Pastoral da Terra, foi antes,

reforçada por toda uma construção de cunho ambientalista e devidamente lubrificada pelo

conceito de Inclusão Social, do Desenvolvimento Sustentável, do Equilíbrio Ambiental e

do Respeito à Pluralidade.

Para defenderem os trabalhadores extrativistas, os partidos de esquerda que atuavam

em seu meio, foram ao longo do tempo moldando uma proposta de inserção política desses

trabalhadores, na perspectiva de construir uma alternativa de poder em âmbito Estadual,

que levava em consideração alguns aspectos de inclusão das suas reivindicações, como

manutenção de suas terras, ou defesa contra os desmatamentos, bem como foram

construindo outras, que consideravam como sendo benéficas para eles, comumente

propostas com cunho ambientalista, contrárias ao entendimento de desenvolvimento

construído pelos militares e elites civis.

Fundou-se assim, o mito de origem, na compreensão utilizada por José Murilo de

Carvalho (2005), ou inventou-se uma tradição, como Hobsbawm e Ranger (1997)

conceituaram.

De fato, o momento era de crise e não havia outra saída para enfrentar o mito da

modernidade/modernização. A construção da idéia de que os modos de vida dos

seringueiros eram mais avançados do que as propostas de modernização/modernidade dos

militares e governos civis que os acompanhavam, foi uma criação desse conjunto de aliados

políticos de primeiro momento (Igreja, CONTAG, partidos políticos, CUT), incrementados

pela chegada das ONGs.

Vejamos como Carvalho descreve esses momentos:

Page 188: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

189

Em situações de confrontos sociais e disputas de projetos políticos, os grupos envolvidos buscam um

mito de origem, com freqüência disfarçado de historiografia, ou talvez indissoluvelmente nela

enredado. O mito, ao procurar estabelecer uma versão dos fatos real ou imaginada, visa ser um

instrumento de dotação de sentido e legitimidade às forças em disputa. No caso de uma solução,

mesmo que temporária, para o conflito, o mito estabelecerá a verdade dos vencedores contra as

forças do passado ou da oposição. Se não são abertamente distorcidos, os fatos adquirirão, na versão

mitificada, dimensões apropriadas à transmissão da idéia de desejabilidade e de superioridade da

nova situação. A mesma distorção sofrerão as personagens envolvidas, sendo relegadas a um plano

secundário ou ao esquecimento ou, ainda, à categoria de heróis, constituindo um novo panteão.

(CARVALHO, 2005: 13-14).

Esta relação (partidos de esquerda - trabalhadores extrativistas) como podemos

perceber, tinha mão-dupla. Os partidos buscavam consolidar uma base de apoio que

sustentasse suas pretensões de disputas políticas, isto é, os partidos que iniciaram esse

processo tinham intenções de ter uma base para suas pretensões revolucionárias, como é o

caso do PRC e do PC do B, que no momento posterior, foi substituída pelas pretensões de

manutenção de uma base para seus projetos eleitorais, incluindo nessa segunda fase o PT e

mais tarde o PSB e o PV.

Desse quadro nasce uma terceira força política no Acre. Uma força que não tinha

base nos velhos caciques da política que eram os seringalistas, ex-seringalistas e seus

aliados comerciantes e fazendeiros das cidades. Se durante toda a década de oitenta, quando

participavam isolados e disputando entre si essas bases de trabalhadores, as tentativas

desses partidos de esquerda não atingiram muito êxito nas eleições disputadas (elegendo

um deputado em 1982 (Ivan Melo) pela legenda do PT e outro (Manoel Pacífico) do PC do

B usando a legenda do PMDB, e alguns vereadores nas eleições municipais seguintes), no

início da década de noventa, os resultados começaram a se concretizar enquanto ocupação

de cargos nos legislativos (Câmaras Municipais e Assembléia Legislativa), nas prefeituras e

no final da década (1998), com a eleição do Governador do Estado, uma Senadora e

Deputados Federais. Depois das eleições de 2002, essa força política torna-se hegemônica

no Estado, mantendo maioria na Assembléia Legislativa, Câmara Federal e Senado,

chegando em alguns momentos a deter os três cargos de Senador sob suas legendas60

.

60

- Na verdade os três senadores com mandato na atualidade, Marina Silva, Tião Viana e Geraldo Mesquita

Jr., todos foram eleitos pela Frente Popular do Acre, os dois primeiros filiados ao PT e o terceiro que era

filiado ao PSB (partido que compõe a Frente Popular do Acre), desligou-se deste partido e, depois de passar

por vários outros, agora está filiado ao PMDB, partido que mesmo sendo da base de apoio de Lula, em nível

nacional, no Acre é oposição à Frente Popular.

Page 189: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

190

Porém, o aspecto mais importante, intuímos assim, é o da construção da relação

representante/representado, que se estabeleceu entre os trabalhadores extrativistas,

principalmente no Vale do Acre, e os partidos de esquerda, com destaque para o PT, que

conseguiu maior inserção nesse campo, não só porque tinha alguns de seus filiados

dirigindo os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, o Conselho Nacional dos Seringueiros, as

Associações de Moradores das Reservas Extrativistas, como também por ter atraído para

seus quadros, as principais lideranças desses setores.

Essa relação que se estabeleceu nesse percurso, contudo, não obedecia a uma ordem

hierárquica, onde os membros da cidade tinham maior influência do que os das matas. A

organização partidária de esquerda, especialmente o PT, nesse período priorizava a

valorização das lideranças que haviam se forjado nas lutas pelos direitos desses

trabalhadores, nesse sentido a importância de Chico Mendes, Raimundo Barros, Wilson

Pinheiro, líderes seringueiros, eram da mesma grandeza de Marina Silva, Júlia Feitoza,

Nilson Mourão, entre outros, que eram oriundos do movimento estudantil universitário, ou

das CEBs, dentro das instâncias deliberativas do PT, pelo menos no início da vida

organizada desse partido no Estado.

No PC do B, a direção do partido desde sua volta a legalidade em 1985, até o final

da década de noventa, foi prioritariamente formada por sindicalistas urbanos (bancários,

professores e urbanitários e, por estudantes universitários e secundaristas) e a partir do final

da década de noventa, vem sendo introduzida a participação de trabalhadores extrativistas,

principalmente do Vale do Juruá, incrementada pela participação indígena, segmento onde

esse partido tem boa penetração. Esses indígenas também são provenientes, em sua

maioria, do Vale do Juruá, que é a região que concentra sua maior população no Estado e

do alto Purus, especificamente no município de Santa Rosa do Purus, também área de

grande concentração indígena.

No PV e no PSB, dois partidos mais constantes na formação da Frente Popular do

Acre (FPA), as direções também são prioritariamente compostas por profissionais liberais,

sindicalistas urbanos e estudantes. Mesmo o PV que por sua característica inicial de ser um

partido ligado à defesa do meio ambiente, não conseguiu no Acre, ter uma boa inserção

entre as lideranças de trabalhadores extrativistas.

Page 190: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

191

Nos processos eleitorais, contudo, essa representação não conseguia reproduzir, nas

urnas a importância das lideranças seringueiras e indígenas, exceto nas Câmaras

Municipais, onde se conseguia eleger alguns líderes como vereador e até prefeito, nas

pequenas cidades. Na Assembléia Legislativa, apenas o sindicalista Osmarino Amâncio

ocupou durante um período o mandato de Deputado Estadual (era suplente) e depois, só no

novo século (XXI) outro trabalhador rural, oriundo dos movimentos de seringueiros (Juarez

Leitão), voltou a ocupar uma cadeira de Deputado. (Há dois municípios, Jordão e Santa

Rosa do Purus, onde se registra exceções, no aspecto de eleição de indígenas para vice-

prefeitos e vereadores, pois nesses municípios suas populações são majoritárias). No geral,

quase todos os políticos que se destacaram a partir da década de oitenta e seguintes, nesse

campo da esquerda, eram oriundos do movimento sindical urbano ou rural.

Os nomes de Marina Silva, Sérgio Taboada, Nilson Mourão, Ronald Polanco, Zico

Bronzeado, Marcos Afonso, Jorge Viana, Naluh Gouveia, Edvaldo Magalhães, Maria

Antônia, Moisés Diniz, Júlio Barbosa, Osmarino Amâncio, Manoel Pacífico, Raimundo

Barros, Márcio Batista, Perpétua Almeida, Binho Marques, Henrique Afonso, Ériton

Macedo, Zequinha, Chagas Batista, Luis Meleiros, Sibá Machado, dentre outros,

representam bem essa fase. (Os médicos, Júlio Eduardo, Tião Viana e Eduardo Farias, que

exerceram ou exercem mandatos em diferentes estruturas, também militaram em seus

sindicatos, mas suas trajetórias são mais marcadas pelas atuações nos seus campos

profissionais). Outra exceção é o índio Antônio Apurinã, do PC do B que foi eleito 2º

suplente de senador na chapa de Marina Silva, mas mesmo ela tendo passado cinco anos

como Ministra do Meio Ambiente, seu primeiro suplente Sibá Machado, exerceu o mandato

integralmente.

A formação partidária com característica de esquerda no Acre seria estruturada,

portanto, no mesmo ambiente em que se trançou a luta pela terra, as lutas estudantis e lutas

sindicais, por exemplo, mas ela adquiriu maior complexidade no sentido de que passou a

ser um pólo que se constituiu como força de oposição a todas as práticas políticas então

estabelecidas.

Nas cidades, especialmente em Rio Branco, as associações/sindicatos de servidores

públicos (professores, bancários, saúde, urbanitários, entre outros), faziam passeatas e se

colocavam contra a corrupção, lutavam por melhores salários, denunciavam o descaso dos

Page 191: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

192

governos com a educação pública; os estudantes universitários e secundaristas, protestavam

contra os aumentos das passagens de ônibus e exigiam “passe livre” ou “meia-passagem”,

queriam votar pra reitor, queriam mais vagas nas universidades, mais professores, creches,

restaurante universitário, abolição de taxas, combatiam a privatização das universidades, ou

seja, agiam de forma radicalmente contrária aos políticos tradicionais. Expunham-se nas

ruas e se reivindicavam como os reais representantes dos trabalhadores, sempre apontando

os políticos dos partidos tradicionais como responsáveis pela miséria, pela corrupção e

pelos desmandos administrativos que sucateavam os serviços públicos essenciais, como

educação, saúde, falta de saneamento básico, iluminação, desabastecimento, etc.

No campo, os sindicatos passavam a reivindicar, além da terra, os títulos de posse, a

construção de ramais, de escolas, de postos de saúde, de financiamentos, de assistência

técnica, o direito a aposentadoria; os “soldados da borracha” começavam a, também, se

organizar e cobravam seus “direitos”, ou seja, as pautas de reivindicações foram agregando

itens que colocavam essas categorias em oposição aos setores administrativos

estabelecidos.

A sincronização das reivindicações dos trabalhadores urbanos e trabalhadores rurais

se davam na medida em que muitas das lideranças das associações de servidores públicos e

sindicatos eram oriundas da mesma base de sustentação, ou seja, tanto eram da Igreja,

como dos partidos políticos de esquerda, líderes do movimento estudantil, das associações

de moradores, transitavam nas mesmas instâncias, não só de construção das idéias, como de

atuação prática.

O grande mérito dos líderes partidários, principalmente os comunistas e socialistas,

que atuavam nesse meio, foi adaptar os discursos à realidade local. Não combatiam

diretamente o capitalismo, mas sim, os governos que o representavam, ou seja, taticamente

combatiam os efeitos do capitalismo ao mesmo tempo em que difundiam as idéias de que

com aqueles governos não era possível se processar nenhum tipo de mudança. E qual seria

essa mudança?

Na busca de resposta para essa questão é que vamos encontrar a construção de uma

posição política que se mostrava não como alternativa dentro do mesmo processo, como era

comum aos partidos tradicionais. Essas novas forças políticas se colocavam como oposição

a tudo o que vinha sendo construído desde o início dos governos militares. Essa oposição

Page 192: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

193

estava centrada na concepção de que a proposta dos governos locais, que era imposta desde

fora, não servia para o conjunto da população acreana. Os efeitos dessas políticas estavam

visíveis na pobreza que imperava nas periferias e; nas matas com o surgimento da violência

no campo, ocasionada pelos desmatamentos e a expulsão dos seus moradores e; nas cidades

com o descaso com a educação, com a saúde, com o saneamento básico, com as condições

de vida dos servidores públicos, com a carestia, contrastando com os baixos salários.

Todas essas condições serviram, inicialmente, de base para a montagem dessas

novas forças políticas. Os partidos que se originaram, ou que se reorganizaram a partir

desse campo oposicionista, foram moldando um discurso de inclusão social, de busca de

outros referenciais.

Dessa forma, foi se construindo não só um novo ambiente político, mas também

uma idealização de que ali estava se forjando uma concepção nova de organização

partidária, onde o foco da diferença consistia na inclusão de uma base social que havia sido

descartada do processo pelos outros modelos políticos. Então, a participação dos

trabalhadores, tanto urbanos, como rurais (florestais/extrativistas), nas instâncias

deliberativas desses partidos já representava essa diferença.

Porém, antes e/ou concomitante a organização/reorganização dos partidos de

esquerda, houve a atuação de outros componentes diretivos importantes nesse contexto

conturbado das mudanças socioambientais, econômicas, políticas e culturais no Estado, que

de certa forma permitiram a existência daqueles. Referimos-nos especialmente a CONTAG,

a CUT, aos STRs e ao CNS.

Page 193: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

194

3.4 AS REPRESENTAÇÕES SINDICAIS

No campo sindical inicialmente, foi com a presença de um delegado da

Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), a partir de 1975 e, no início

da década de oitenta com a atuação discreta da Central Geral dos Trabalhadores (CGT) e da

Central Única dos Trabalhadores (CUT), que esse apoio aos trabalhadores extrativistas vai

se iniciar, sendo que a partir da década de noventa a CUT, mesmo dividida em várias

correntes, junto com a Corrente Sindical Classista (CSC) vão ser as principais

representantes tanto de trabalhadores rurais, como urbanos no Estado. Não é de se estranhar

que a corrente predominante da CUT no Acre, desde a sua fundação, seja exatamente a

corrente denominada “Articulação”, que é oriunda das Comunidades Eclesiais de Base, e

recebia apoio direto de membros dirigentes da Diocese do Acre-Purus.

A chegada da CONTAG, ainda na década de setenta, representa segundo pesquisa

realizada por Costa Sobrinho (1992: 169), uma iniciativa quase espontânea, empreendida

pela Presidência Nacional da Confederação, através de seu presidente, a época, José

Francisco da Silva. Uma ação que se dava dentro de um contexto de expansão das ações da

Confederação para todos os Estados e como essa área do Acre-Rondônia (Rondônia a

época ainda era Território Federal) estava “descoberta”, resolveu deslocar o sindicalista

João Maia para o Acre e contratar o advogado Pedro Marques, com a finalidade de

organizar a Confederação por aqui, ressaltando que o fazia também, por entender que essa

era uma área onde se estava presenciando muitos conflitos.

De acordo com Paula (2002), a escolha de João Maia, que havia sido seminarista

por dez anos e tinha se graduado em Filosofia e pós-graduado em Ciências Sociais Rurais,

para cumprimento dessa tarefa no Acre se deu porque o Presidente da Confederação, José

Francisco da Silva, admirava as qualidades dele no sentido da habilidade que tinha para

lidar com os setores da Igreja e com os órgãos governamentais, como ele já havia

demonstrado em seis anos de atuação junto a Cooperativa de Tiriri, em Pernambuco. Mas,

ainda de acordo com Costa Sobrinho, no Acre suas habilidades para lidar com os órgãos

governamentais não renderam muito, pois as primeiras atividades da CONTAG:

Page 194: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

195

Foram marcadas por algumas ações na justiça. Logo foi percebido que por ai o caminho era difícil,

além da natureza conservadora dos juízes, havia também a própria ineficiência do poder judiciário.

Logo nos primeiros dias de instalação, ainda em julho de 1975, a Delegacia foi chamada a intervir no

caso do seringal Porvir, em Xapuri. A orientação da CONTAG foi a permanência na terra, pois havia

lei que protegia, e que os posseiros teriam advogados para defendê-los na justiça. Ao mesmo tempo

se falava na necessidade de organizar o sindicato para que o trabalhador tomasse consciência de que

ele era o principal defensor de si mesmo. (COSTA SOBRINHO, 1992: 169).

Essa perspectiva de resolução de problemas pela via institucional era uma

característica da CONTAG em nível nacional, porém as decepções sofridas pelos seus

agentes no Acre, logo de início, serviram de experiência de que no Acre eles estariam

lidando com uma realidade diferenciada. A percepção rápida dessa diferença regional, o

que demonstra uma das qualidades desses dirigentes da CONTAG, fica bem dimensionada

no perfil de João Maia, traçado por Paula (2003), nos seguintes termos:

Na condição de representante da Delegacia Regional da Contag, João Maia revelou desde o início

raro domínio de quatro habilidades essenciais naquele tipo de conjuntura: 1) Apesar de ser um

estranho, conseguiu rapidamente “mergulhar” naquele universo social e em pouco tempo adquiriu

enorme confiança e respeito tanto das bases como das lideranças sindicais que foram se formando; 2)

impressionante capacidade de articulação na esfera da “sociedade política”, onde era igualmente

respeitado e, não raro, admirado; 3) dominava o conteúdo do Estatuto da Terra e tinha boa formação

teórica sobre a questão agrária em geral; 4) coragem para enfrentar as pressões do latifúndio –

escapou de várias tocaias – e muita disposição física para percorrer aquela imensa floresta. Além de

reunir essas qualidades, João Maia contava com grande apoio da direção da Contag e de setores da

Igreja Católica ligados a Teologia da Libertação. (PAULA, 2003:103,104).

Nesse sentido, a CONTAG centrará esforços na organização dos sindicatos, campo

onde contará com o apoio das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja, que já vinham

atuando com esse intuito, mesmo assim, essa não seria uma tarefa fácil. A reação dos

seringalistas e dos fazendeiros à presença da CONTAG se fazia sentir pela proibição de

entrada do delegado em determinados seringais, pelas ameaças de morte e pela articulação

mesmo de um processo de desmoralização das ações da entidade tanto na cidade, como no

campo (seringais).

As diversas tentativas de enquadramento de João Maia e Chico Mendes, por

exemplo, na Lei de Segurança Nacional, ou de qualificá-los como “baderneiros”,

“agitadores”, “subversivos”, “organizadores de guerrilhas”, etc., funcionavam como

mecanismos de desestabilização e de inibição não só dos líderes dos movimentos de

seringueiros, mas também como elemento desmobilizador de todo o esforço de fundação

dos sindicatos. Em 1980 o jornalista Antônio Dias, fez uma avaliação da atuação da

CONTAG onde ele relata essas dificuldades enfrentadas pelos dirigentes sindicais no Acre:

Page 195: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

196

Inicialmente a Delegacia da CONTAG procurou manter contato com autoridades, Igreja local e

outros setores diretamente ligados ao meio rural, para inteirar-se melhor da situação e mesmo para

explicar os propósitos do trabalho que pretendia desenvolver. Nem por isso o trabalho da Delegacia

da CONTAG teve facilitada a sua atuação do lado do Poder. Em certo momento do governo Geisel,

o da distensão, por ordem do Ministro da Justiça de então, Armando Falcão, a Polícia Federal

compareceu à sede da Delegacia da CONTAG, em Rio Branco, para efetuar apreensão de livretos

destinados a difundir a legislação de terras em linguagem popular, por julgá-los perigosos à

Segurança Nacional. (Sindicato e Resistência. Gazeta do Acre: Rio Branco, junho, 1980).

E conclui o jornalista:

Com destemor, a Delegacia da CONTAG partia sempre dos conflitos emergentes. Foram

promovidas reuniões para se esclarecer a legislação aos posseiros e, simultaneamente, se lançava a

idéia de criação do Sindicato como instrumento capaz de favorecer-lhes a luta pela permanência na

posse das terras que ocupavam, obstando as expulsões iminentes. Como a situação já era de há muito

conflituada, logo os Sindicatos se expandiram por todo o Estado. Dada a acentuada dispersão

demográfica e as grandes distâncias, sem meios fáceis para vencê-las, a Delegacia Sindical de Base

foi instrumento eficaz utilizado na organização dos associados dos Sindicatos. (idem).

De fato, a estratégia da CONTAG foi bastante eficiente no sentido da formação de

uma rede de contatos baseados nos Delegados Sindicais. Reunindo os seringueiros em

várias comunidades, elegia aquele com maior capacidade de representação, com maior

capacidade de mobilização e o encarregava de municiar a Delegacia Central da CONTAG,

sediada em Rio Branco, com informações sobre sua área.

Dessa forma, ia também criando uma vinculação daqueles trabalhadores, tanto entre

eles, como entre eles e uma representação sindical urbana, ou seja, quando uma

comunidade sofria algum tipo de pressão advinda de fazendeiros ou policiais em nome

daqueles, já sabiam que podiam recorrer à sede de sua representação na cidade.

A presença de uma estrutura que comportava advogados, por exemplo, deixava os

seringueiros mais a vontade, isto é, mais encorajados, para buscar “seus direitos”, situação

que até então era impensável, diante das impossibilidades de mobilização de qualquer

órgão público governamental em sua defesa. Para os seringueiros, o advogado da

CONTAG representava um semideus, uma espécie de escudo com o qual eles se tornavam

mais aptos a enfrentar os combates para os quais estavam escalados.

Essa situação se justifica na medida em que se observa a realidade na qual estavam

inseridos esses trabalhadores. Durante a maior parte de suas vidas viveram sem relações

diretas com o mundo urbano e, principalmente, distanciados dos espaços consignados ao

mundo jurídico, ou seja, não sabiam que tinham direitos e esses direitos nunca lhes haviam

sido apresentados. O mundo das letras era uma realidade muito distante do mundo das

Page 196: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

197

matas. Para se ter melhor noção da situação, um levantamento realizado pela Diocese de

Rio Branco, em parceria com o Centro de Estudos e de Pastoral do Migrante (CEPAMI) de

Ji-Paraná (RO) e o Vicariato de Pando-BO, nessa área de fronteira dos Estados do Acre,

Rondônia e o Departamento de Pando, envolvendo 470, num total estimado de 2.500

famílias, realizado entre o final de 1990 e início de 1991 e publicado em junho de 1991,

demonstrava que, entre os moradores dos seringais percorridos pelos pesquisadores, algo

em torno de 66% dessas populações permaneciam analfabetas, 46% não possuíam nenhum

tipo de documento e 97,90% não tinham acesso a hospitais ou postos de saúde.

Porém, o dado mais relevante, em se tratando do aspecto comunitário se dá quando

foram perguntados sobre participação em atividades comunitárias, tipo sindicatos,

associações, cooperativas, igrejas e partidos, quando 78,80% responderam que não

participavam de nenhumas dessas instâncias, contra 10,68% que responderam participar de

alguma atividade e outros 10,52% que preferiram não responder. Note-se por esses dados

que mesmo considerando todo o esforço das instituições e entidades envolvidas nessa tarefa

de organizar os trabalhadores, as distâncias e o isolamento ainda persistiam e, a inclusão

mesmo no sindicato, na igreja, etc., era também uma tarefa por realizar, já que esses dados

foram coletados no final de 1990 e início de 1991, ou seja, vinte anos depois da chegada

das CEBs, quinze depois da chegada da CONTAG e, sete anos depois da chegada da CUT.

Essas situações de isolamento demonstram que, além dos problemas com as

autoridades no nível urbano, os dirigentes sindicais tinham outras não menos importantes

nas suas próprias áreas de atuação, ou seja, as distâncias e o isolamento decorrentes das

dimensões da região, agravados pelas crônicas deficiências de transportes, deixavam de

fora da rede de interligação dos sindicatos boa parte das populações afetadas pelas

investidas das elites modernizadoras.

Em que pese estes altos índices de pessoas fora de qualquer tipo de atividades

comunitárias, o número de sindicalizados desde o período inicial das atividades da

CONTAG e das CEBS, cresceu de forma vigorosa. Segundo Paula:

Em 1976, um ano após a sua instalação no Acre, a Delegacia Regional da Contag já havia fundado

quatro sindicatos, que já contavam com 6.090 filiados (Contag, 1976). Em 1977, os sete municípios

existentes no estado até 1976 contavam com sindicatos organizados. Aproximadamente 20 mil

trabalhadores filiaram-se a essas organizações até meados dos anos 80. (PAULA, 2003: 103).

Page 197: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

198

Mas o papel da CONTAG na fase inicial dos conflitos foi muito mais importante. O

destaque vai para a organização de sindicatos de trabalhadores rurais nos sete municípios

acreanos num curto espaço de tempo. Não que esses sindicatos representassem de uma hora

para outra, uma fortaleza ideológica, mas principalmente porque na dureza das derrotas que

vinham sendo perpetradas contra os trabalhadores extrativistas, eles (os sindicatos)

serviram de contenção nos primeiros momentos e, depois, de trincheira de onde partiu a

reação ao que foi denominado como “modernização conservadora”, ou seja, a chegada da

CONTAG a esse cenário assimétrico de disputas que era o Acre, antes da organização

sindical, representou a possibilidade de sobrevivência e permanência de muitos

seringueiros e posseiros em suas áreas de terra.

A organização sindical proposta pela CONTAG no início de sua atuação no Estado

do Acre, no intuito de atrair os trabalhadores extrativistas, partiu de uma avaliação

estratégica extremamente simples, isto é, canalizou sua atuação para resolver a questão da

terra no seu sentido mais emergente, que era a permanência dos extrativistas em seus

tradicionais locais de moradia, mostrando para eles que havia uma legislação que os

amparava. Praticamente toda a ação da CONTAG nesses primeiros momentos de sua

atuação no Acre, se deu distribuindo panfletos (livretos) contendo informações sobre a Lei

do Usucapião, sobre o Estatuto da Terra e palestrando sobre os direitos dos posseiros, coisa

que a Igreja também já vinha fazendo.

Aqui, inicialmente, não se discutiam propostas de reforma agrária, de previdência

social, de financiamento para produtores, de construção de escolas, ramais, postos de saúde

e outras reivindicações típicas das lutas sindicais rurais. A questão mais imediata era a

permanência na terra, e foi esse o elemento mobilizador que ajudou a CONTAG no

processo de organização e união desses trabalhadores.

Todas essas reivindicações, elencadas acima, vão ser incorporadas, um pouco mais

tarde, no que consideramos processo de complexificação das pautas de reivindicação dos

sindicatos de trabalhadores rurais do Acre (STRs). Não é que o vocábulo reforma agrária,

por exemplo, não estivesse presente, não fosse conhecido pelos dirigentes. O problema é

que ele era desconhecido da maioria dessa população seringueira, portanto a ênfase na

permanência na terra funcionava como uma mensagem mais fácil de ser assimilada. Em

Rio Branco algumas associações de servidores públicos, como a associação dos Professores

Page 198: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

199

do Acre (ASPAC), ou mesmo o boletim Nós Irmãos, por exemplo, já ousavam escrever em

seus informativos sobre a necessidade da reforma agrária, mas era uma mensagem que

ficava restrita à cidade, não chegava às áreas das florestas e a seus moradores.

É neste aspecto que, esta mensagem simples, de permanência na terra, aparece como

suficiente para a mobilização desses trabalhadores rumo à organização dos sindicatos. Foi

assim que eles foram ganhando mais e mais adesões, mesmo considerando as dificuldades

de cobrir às distâncias e os obstáculos que os separavam.

O saldo positivo para a CONTAG é que após dez anos de atuação, quando ela vai,

em meados dos anos oitenta, perder espaço para o Conselho Nacional dos Seringueiros

(CNS) e para a CUT, por exemplo, ela, juntamente com a Igreja, haviam deixado uma base

de sindicatos organizados em todos os municípios acreanos. Ou seja, não seria honesto por

parte de qualquer historiador, por razões ideológicas ou filiações programáticas, partidárias

ou sindicais, tentar diminuir o relevante papel da CONTAG, enquanto representação

política, ou de seu principal dirigente no Acre, o ex-sindicalista João Maia, pelos rumos

posteriores que deram às suas trajetórias, enquanto entidade e indivíduo.

A influência da CONTAG nesse meio vai perdendo força desde o início da década

de oitenta e se intensifica após o movimento das diretas, principalmente, durante o Governo

Sarney, quando em nível nacional ela encampa a proposta de reforma agrária apresentada

por aquele governo, que por sua vez, recebia a oposição da CUT e do recém fundado

Partido dos Trabalhadores. Nesse sentido, os sindicalistas cutistas passaram a fazer a

“denúncia” de que a CONTAG estava atrelada ao PMDB e ao governo Sarney, criando um

cisma, entre os até então aliados. (muito já se escreveu sobre a natureza da CONTAG,

especialmente sobre sua ambivalência, ou seja, o fato de representar os trabalhadores rurais,

que é incontestável, mas a crítica por ela ser uma Confederação “tipo institucional”, isto é,

permitida pelo governo e não criada diretamente pelos trabalhadores. Ver, por ex. Paula

1991; Gonçalves 1999; Grzybowski, 1994).

Como no Acre a CONTAG havia recebido amplo apoio dos setores da Igreja,

especialmente das CEBs, no processo de formação dos sindicatos, e como esses setores

corroboraram para a fundação do PT no Estado e quase todos estavam ligados à fundação

da CUT, as divergências sobre o apoio ao governo Sarney e sua proposta de reforma

Page 199: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

200

agrária, foi cindindo a aliança desses dois segmentos. Sobre essa cisão, Sant'Ana Júnior

escreveu:

Em agosto de 1984, é fundada a CUT-AC (Central Única dos Trabalhadores do Acre). Neste

período, houve uma cisão nacional no movimento sindical de trabalhadores rurais. A CONTAG

orientava seus sindicatos a não se envolverem na criação da CUT. No Acre, os STRs de Xapuri e

Plácido de Castro desobedeceram esta orientação e em Brasiléia, Rio Branco e Sena Madureira

foram criadas oposições sindicais que participaram ativamente da fundação da CUT/AC.

(SANT'ANA JÚNIOR, 2004: 214).

Essa postura da CONTAG se justifica porque em nível nacional seus principais

dirigentes mantinham ligações com as políticas do PMDB e, em nível estadual seu

principal dirigente, João Maia, que havia sido um dos signatários da criação do PT, com a

vitória de Nabor Júnior, do PMDB, para o Governo do Estado nas eleições de 1982,

desfiliou-se do PT e passou a fazer parte dos quadros do partido governista, levando

consigo parte considerável dos dirigentes e militantes dos sindicatos de trabalhadores rurais

para essa posição.

Em 1983, João Maia funda a Federação dos Trabalhadores Rurais do Acre

(FETACRE), contando com o apoio da CONTAG em nível nacional e do PMDB local.

Essa medida aprofunda as divergências no seio do sindicalismo rural acreano,

especialmente na área que envolve o eixo que vai de Rio Branco na direção de Xapuri,

Brasiléia/Epitaciolândia e Assis Brasil, onde os conflitos por terras eram mais agudos.

A partir de 1985, a CONTAG perde cada vez mais influência emergindo em seu

lugar o modelo de sindicalismo cutista, que diante da conjuntura política do país, vai dar

novo conteúdo para as pautas de reivindicações dos STRs, marcadamente reforçando a luta

pela reforma agrária. As bandeiras de luta da reforma agrária pleiteada pela CUT incluíam

o estabelecimento de limites às propriedades, bem como a desapropriação de áreas

improdutivas e de terras cuja titulação fosse passível de questionamento, ou seja, se

diferenciava da posição da CONTAG no sentido da radicalidade, pois iam além do mero

cumprimento do que prescrevia a lei. A CUT pleiteava não só a celeridade na aplicação do

que era já legal, como também, a mudança da lei para ampliar os benefícios e o alcance de

outras terras por parte dos trabalhadores sem terras.

Essa tomada de posição, considerada mais avançada do que os mecanismos de luta

da CONTAG, vão se dar também por causa dos resultados, considerados fracos, das

respostas obtidas nos diversos processos movidos na justiça sobre as demandas dos

Page 200: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

201

trabalhadores a respeito da posse da terra. Como a CONTAG, privilegiava a “luta

institucional” e a legislação favorecia os grandes proprietários, toda a mobilização dos

sindicatos acabava esbarrando nesses obstáculos legais, isto é, nos trâmites jurídicos.

A mudança de rumos, contudo, não se resumem à CONTAG e aos sindicatos, Paula

(2003: 131) indica que desde o início dos anos oitenta, não só as mudanças em nível

Nacional, mas também em nível Estadual, com a eleição de um governador pelo voto direto

em 1982 e toda a reestruturação por que havia passado o INCRA, por exemplo, impeliam

os sindicatos à outra tomada de posição, representada na “busca pela aplicação da lei e pela

mudança da lei”. A mudança da lei com o claro objetivo de resgatar terras da União que

haviam sido apropriadas por grandes proprietários e grileiros, com a falsificação de

documentos, bem como, de garantir a desapropriação para fins sociais.

No mais, os reflexos das greves no ABC paulista nos finais dos anos setenta e início

dos oitenta, aliados a fundação do PT, impulsionavam os trabalhadores para outras lutas

que iam além das reivindicações tradicionais por melhores salários, melhores condições de

trabalho, etc., nesse novo momento os sindicatos se apresentavam como:

Portador de um projeto de sociedade voltado para os interesses das classes subalternas,

genericamente definido como socialista. Nesse sentido, a luta pela terra passa a ser tratada como

parte integrante de uma estratégia de ascensão das classes subalternas ao poder político. Pode-se

imaginar a reação dos “donos do poder” a essa nova iniciativa das lideranças dos trabalhadores. Se

nos anos 70 um setor das oligarquias percebia nos “paulistas” a principal ameaça ao monopólio do

poder político, nos 80 o sindicalismo rural e o PT passam a representar outra ameaça potencial, um

novo concorrente a ser combatido, uma vez que os trabalhadores queriam mais que a posse da terra,

pretendiam, também, disputar o poder político. (PAULA, 2003: 128).

Nesse sentido, a metodologia indicada de luta pelos meios jurídicos tradicionais

estava esgotada. Era preciso avançar para outras metodologias que apresentassem

alternativas com possibilidade de melhores resultado, é ai que surge a CUT com sua

bandeira de “reforma agrária sob controle dos trabalhadores”.

Embora a luta pela reforma agrária da CUT se diferenciasse da modelagem adotada

pela CONTAG, por, como diz Paula (2003: 151) “se esforçar pela aplicação da lei e pela

mudança da lei”, o efeito de uma “reforma agrária sob controle dos trabalhadores”, tinha

suas limitações. Ela tentava mediar relações diferentes, em diferentes regiões do país, onde

as demandas eram também muito diferentes. Em algumas regiões já não se colocava mais

Page 201: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

202

uma luta unicamente pela posse da terra, mas sim, uma luta de colonos, já proprietários,

que queriam melhorar suas condições de produção, que exigiam financiamentos, preços

mínimos para seus produtos, condições de escoamento, etc., enquanto no Acre, a luta ainda

era por manutenção da posse e, principalmente de um tipo de posse diferente, que não era o

lote simétrico dos projetos do INCRA, mas sim, a manutenção da área da colocação,

preservada, com seu padrão ecológico, que permitia a reprodução do modo de vida do

seringueiro.

Como a concepção de reforma agrária encampada pela CUT era baseada num

modelo que privilegiava os lotes simétricos, em áreas contíguas, ficava difícil para os

seringueiros entenderem e defenderem essa proposta. No seu caso, reforma agrária desse

modo, também não lhes servia, porque desestruturava a lógica das suas colocações

tradicionais. Foi assim que nasceu a idéia de outro tipo de representação que fosse

caudatário das lutas específicas dos seringueiros, já que os sindicatos, ligados as suas

federações, confederações ou centrais, pela natureza de suas instâncias deliberativas, não

estavam conseguindo entender.

É nesse contexto que nasce o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), em 1985,

numa reunião realizada em Brasília, no ambiente propiciado pelo I Encontro Nacional dos

Seringueiros, evento que reuniu um número em torno de 130 seringueiros representando os

estados do Acre, Rondônia, Amazonas e Pará, cujo objetivo era demonstrar que havia uma

especificidade no modo de vida dos seringueiros, que os sindicatos, as federações,

confederações e centrais, não conseguiam representar. O Jornal “Nós Irmãos”, noticiou

assim, a realização do Encontro:

Nos dias 11 a 17 de outubro de 1985 realizou-se em Brasília o primeiro Encontro Nacional de

Seringueiros no qual participaram cerca de 170 seringueiros dos estados de Rondônia, Acre, Pará e

Amazonas. Foi um acontecimento histórico para os Seringueiros pois pela primeira vez

representantes de diversos Estados se reuniram para discutir juntos os problemas que enfrentam e

apresentar às autoridades competentes diversas reivindicações à respeito de: Reforma Agrária;

Desenvolvimento da Amazônia; Política para a Borracha; Política de Abastecimento; Saúde;

Educação e Cultura; Aposentadoria e Assistência Social. (Encontro Nacional de Seringueiros da

Amazônia. Jornal Nós Irmãos. Rio Branco, 1985).

Nesse evento e, principalmente, nas reuniões preparatórias, os líderes sindicais

destes Estados vinham avaliando os resultados das lutas sindicais e os reflexos em suas

necessidades cotidianas. Os diagnósticos apontavam os êxitos e a importância dos

Page 202: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

203

sindicatos, mas algumas questões específicas dos moradores das florestas não estavam

sendo contempladas, por exemplo, a proposta de reforma agrária defendida pela CUT, que

tinha como base os lotes simétricos, de aproximadamente cinqüenta hectares, não permitia

a reprodução dos modos de vida dos seringueiros, pois não respeitava as estradas de

seringa, os igarapés, nascentes de águas, territórios de caça, etc., foi a partir desta análise

que se discutiu a necessidade de criar uma entidade representativa dos seringueiros que não

estivesse vinculada a estrutura vertical dos sindicatos e de suas centrais.

Na experiência de vida orgânica dos sindicatos, os seringueiros que haviam

participado na criação dos sindicatos de trabalhadores rurais no Acre, vinham tendo

dificuldade para explicar suas teses de uma reforma agrária diferente na Amazônia, haja

vista que as decisões nos ambientes diretivos das Federações, Confederações e Centrais, se

dão por votação majoritária, em congressos onde o número de delegados de determinadas

categorias, devido a seu tipo de organização, podem se sobrepor ao de outras, por seus

critérios de participação.

Em entrevista publicada por Cândido Grzybowski (1989: 26), Chico Mendes, um

dos articuladores da criação do Conselho Nacional dos Seringueiros, argumenta que o CNS

“não pretendia ser um sindicato paralelo, mas uma entidade de seringueiros, porque os

seringueiros nunca foram reconhecidos como classe”. Ou seja, o próprio Chico Mendes,

um dos criadores dos STRs no Acre, distinguia que havia diferenças entre o ser sindical de

outras categorias e o ser sindical dos seringueiros, mesmo avaliando que os sindicatos

cumpriam importante papel, mas, no seu entender, não conseguiam representar as

peculiaridades dos seringueiros.

Em 1985, já estavam chegando ao Acre os outros aliados urbanos dos seringueiros,

pesquisadores de grandes universidades, especialmente do Sudeste e as Organizações Não

Governamentais - ONGs, fato que “ajudou” os seringueiros a se situarem em posição

diferenciada em relação aos outros trabalhadores rurais do país, não só em relação à

reforma agrária, mas também pela indução, sugestão, orientação, percepção, de que eles

eram portadores de outras responsabilidades, por exemplo, a defesa da Amazônia, a defesa

do meio ambiente, a defesa da biodiversidade.

Page 203: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

204

Sobre a criação e ações iniciais do CNS, Elder Andrade de Paula, escreveu:

Inicialmente em Xapuri e posteriormente no Sudeste do Pará e Maranhão, o CNS apoiou-se no

sindicalismo mais mobilizado. Em alguns municípios com Brasiléia, Sena Madureira, etc., articulou-

se com as oposições sindicais e estabeleceu como meta conquistar as direções dos respectivos

sindicatos. Em regiões onde não havia organização sindical (como Rondônia) ou a sua presença era

pouco expressiva (Vale do Juruá, Acre) procurou estruturar outras formas organizativas como

associações de seringueiros e comissões (municipais e regionais) do CNS. (PAULA, 2003: 155).

Não nos é possível avaliar o tamanho da influência desses segmentos acadêmicos,

vindos de outras regiões, na formulação do novo quadro reivindicatório dos seringueiros

acreanos, pois sabemos também que esses dirigentes sindicais, embora com pouca

instrução acadêmica formal, tinham uma capacidade intelectual extraordinária na

compreensão de sua singularidade em relação ao mundo.

Esse aspecto da diferenciação subjetiva de alguns líderes sindicais no processo de

luta pela manutenção da terra, nos primeiros momentos, e depois pela manutenção de seu

modo de vida e envolvimento nas lutas ambientais, é uma característica que vai além dos

relacionamentos externos ou, dizendo de outra maneira, essa clarividência, essa

sensibilidade para aspectos tangenciais para os outros seringueiros, era uma característica

que já estava presente nesses líderes, que de certa forma se desenvolveu antes da chegada

dos “intelectuais” vindos das universidades, ou mesmo das ONGs. A própria Igreja e os

partidos de esquerda já vinham ajudando e sendo ajudados por essas lideranças.

Lideranças seringueiras como Wilson Pinheiro, Raimundo Barros, Chico Mendes,

Júlio Barbosa, Ivair Higino, Dona Derci Teles, João de Deus, Osmarino Amâncio, Osmar

Facundo, João Bronzeado, Chicão, Leide, Dona Valdízia, e outros, nessa parte do Vale do

Rio Acre; e Raimundo Lino (o Trovoada), Manoel Caxinauwá, Antônio Macedo, “Txai”

Suero, João Claudino, Chico Ginú, entre outros, no Vale do Juruá, escreveram seus nomes

nas páginas recentes da História do Acre, por suas capacidades não só de liderança, mas,

especialmente, pelos exemplos dados, expondo suas próprias vidas, algumas dessas

ceifadas por seus oponentes que não conseguiam com argumentos derrotá-los.

O que queremos demonstrar com esses exemplos é que, obviamente, houve

influência, indução de “intelectuais” vindos de fora para a complexificação das bandeiras

de luta dos trabalhadores extrativistas, mas antes de suas chegadas, já havia elaboração por

parte de membros da própria comunidade que buscavam alternativas para manutenção de

seus modos de vida, rompendo com a estrutura hierárquica aqui vigente.

Page 204: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

205

Essa busca de rompimento com a hierarquia vem desde os movimentos contra o

pagamento da renda e passa pelos empates, como símbolo mais concreto de uma

organização, de uma atitude, que vem de baixo.

Pensando nessa perspectiva é que situamos a criação do Conselho Nacional dos

Seringueiros como uma ação que representa bem essa busca de autonomia dos seringueiros,

baseados numa análise realizada por eles que os colocavam numa posição diferente dos

outros trabalhadores rurais do Brasil.

Por outro lado, está evidente que não bastava essa capacidade de compreensão da

realidade, destacada em alguns dos líderes do movimento dos seringueiros, para

entendermos que por si, essas características os teriam levado tão longe, não só na

elaboração de políticas, como também na complexificação de suas pautas de

reivindicações, ou mesmo de sua organização.

Desde o início vimos destacando que uma das maiores dificuldades de organização

da resistência dos trabalhadores extrativistas, residia exatamente, na sua pouca condição de

mobilidade. Como explicar então que esses trabalhadores tivessem condições de organizar

um evento em Brasília, permitindo a presença de 130 seringueiros representando outros

seringueiros de quatro Estados? Como explicar os deslocamentos de lideranças dos

seringueiros para outros Estados e até para outros países, quando sabemos que a

arrecadação das contribuições sindicais não permitia fazer frente a essas despesas? A

resposta a essas e outras questões abordaremos no tópico seguinte, destinado a estudar as

relações das Organizações Não Governamentais (ONGs), com o movimento dos

trabalhadores extrativistas.

Page 205: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

206

3.5 AS ONGs: ALIADAS DE OUTRAS CAUSAS

A luta dos trabalhadores extrativistas vai inscrever entre seus principais

colaboradores, especialmente a partir de meados da década de oitenta, as Organizações Não

Governamentais (ONGs). A chegada das ONGs ao meio do movimento de trabalhadores

extrativistas foi bem articulada. Seus representantes foram chegando aos poucos, como

observadores ou estudiosos dos movimentos sociais e, logo depois, iniciaram os processos

de colaboração, passando a assessorar com informações sobre os direitos desses

trabalhadores para em seguida, iniciarem os procedimentos mais entrelaçados, mais

intensos de financiamento e gerenciamento dos movimentos, obviamente, reorientando as

lutas desses trabalhadores para a equalização com os interesses das ONGs que

representavam. Um recorte do jornal A Gazeta, nos remete ao pensamento de um

“executivo” de uma ONG Internacional, a Cultural Survival, que estava chegando para

atuar no Acre. Com o título de “Dólares para os povos da floresta”, a matéria registra essa

passagem:

A Cultural Survival é dirigida pelo antropólogo da Universidade de Harvard David Maybury-Lewis,

que nos anos 50 a 80 por períodos morou no Brasil, onde trabalhou no Museu Goeldi, em Belém, e

na Fundação Ford, como orientador no programa de pós-graduação em Ciências Sociais. Nos países

das Américas, a Survival trabalha com índios e em outras partes do mundo ajuda tribos e

grupos étnicos com financiamento de pequenos projetos no valor de US$ 500 a 10 mil dólares.

Como metodologia de trabalho a entidade dispensa assessoria técnica “de fora” nos projetos que

financia. “Achamos que quem recebe muito dinheiro, fica dependente do dinheiro e idéias. Mas se

for pouco há mais interesse em fazer os projetos irem para a frente”. Comentou James Clay, atual

representante desta ONG no Brasil. (Jornal A Gazeta. Rio Branco, março de 1989). (destaque nosso).

Em outra matéria com título: “Seringueiros vão exportar: Xapuri busca o mercado

dos EUA com ecologista”, o mesmo James Clay, deixa mais algumas pistas de suas

intenções:

O representante da Cultural Survival, entidade norte-americana de apoio ao movimento

popular, James Clay, viajou ontem para Xapuri a fim de fechar contrato com a cooperativa de

seringueiros do Sindicato de Trabalhadores Rurais. Ele pretende manter contatos também com o

Conselho Nacional dos Seringueiros para acertar a aquisição de 80 toneladas de castanha este ano,

fornecidas pelas cooperativas de Reservas Extrativistas, como meio de apoiar a preservação da

floresta. James Clay informou que já obteve na Fundação de Tecnologia do Acre (FUNTAC),

amostras de 13 produtos para levar à indústria de sorvetes Ben & Jerry‟s, para futura ampliação das

compras da produção dos seringueiros, por parte de empresas ligadas ao movimento ambientalista

nos Estados Unidos. (...) “Vou falar nos Estado Unidos sobre como fazer para crescer esse

mercado. Tenho certeza de que vamos ganhar dinheiro com os produtos da floresta. E podemos

dar parte do dinheiro na frente, pagando preços que vão ser, no mínimo, o dobro do que eles recebem

Page 206: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

207

agora. Há um interesse aqui e lá, onde o mercado dos ambientalistas tem cerca de dez milhões de

membros”. Afirmou. (Jornal A Gazeta. Rio Branco, março de 1989). (grifamos).

Como se pode perceber em quatro passagens, destacadas, dessas matérias, estão

registradas algumas características desta ONG, que podemos reputar como sendo a de

muitas outras que, no decorrer dos anos, principalmente depois da morte de Chico Mendes,

em 1988, foram chegando ao território acreano. No primeiro trecho a definição de um

campo de atuação: tribos indígenas e grupos étnicos; no segundo, fala-se de atuação junto

aos movimentos populares, depois a defesa da floresta, mas destaca-se também, a definição

da ONG como facilitadora da realização de negócios. Seguindo essas pegadas, vejamos

outros aspectos da chegada desse novo aliado dos trabalhadores extrativistas do Acre.

Na sua estratégia de aproximação, inicialmente, os agentes das ONGs não entraram

em confronto com os agentes pastorais das CEBs, nem com os da CONTAG, CUT, que já

atuavam junto aqueles trabalhadores, pelo contrário, sempre se mostravam solícitos e

dispostos a colaborar também com essas entidades. Mantinham distanciamento relativo

com os partidos, especialmente com os comunistas PRC e PC do B, mas não se negavam a

contribuir com o PT. O afastamento das ONGs com relação aos partidos comunistas se

dava porque a maioria dos militantes comunistas no Acre eram oriundos do movimento

estudantil universitário, onde as questões ligadas ao imperialismo eram relativamente bem

debatidas, principalmente as relações estrangeiras do Brasil com os países considerados

“imperialistas”.

Um exemplo clássico era a oposição/denúncia que a União Nacional dos Estudantes

(UNE) e, por conseqüência, o Diretório Central dos Estudantes (DCE-UFAC) travavam

contra os “acordos MEC-USAID e, como a maioria das ONGs eram estrangeiras, havia

também por parte desses partidos, muitas restrições a suas interferências na vida dos

trabalhadores locais. Essas “interferências” comumente eram entendidas como intervenção

estrangeira, por esses militantes61

.

A grande vantagem das ONGs em relação às outras instituições e entidades que

atuavam junto aos trabalhadores extrativistas, se dava pela capacidade de financiamento de

algumas atividades necessárias a organização desses trabalhadores, tais como: manutenção

61

- Esse fato talvez tenha sido detectado naquele momento, o que fez com que muitas ONGs estrangeiras

estimulassem a criação de seções nacionais de suas matrizes, ou até mesmo apoiassem a criação de ONGs

nacionais ou locais com as mesmas idéias daquelas.

Page 207: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

208

de uma sede, recursos financeiros para transportes, alimentação e outras doações, que as

outras parceiras dos seringueiros não dispunham. Enquanto a Igreja, a CONTAG, a CUT e

os partidos de esquerda amargavam perpétua soçobra financeira, as ONGs já chegaram ao

Acre com recursos suficientes para atraírem a atenção desses trabalhadores.

A existência dos sindicatos de trabalhadores rurais no Acre sempre foi marcada pela

carência de recursos financeiros, pois embora houvesse um bom número de filiados, o

pagamento da contribuição sindical não rendia o suficiente, sequer para a manutenção de

uma sede, pois entre os sindicalizados poucos detinham a condição de garantir regularidade

no pagamento de sua contribuição sindical.

As primeiras ONGs que se destacaram na atuação junto aos trabalhadores

extrativistas do Vale do Acre, no sentido de financiamento e orientação de políticas a serem

adotadas foram a Fundação Ford e a OXFAN que juntas com o Centro de Estudos de

Direito Internacional - CEDI-SP, o Instituto de Estudos Sócio-Econômicos – INESC (essas

duas últimas ONGs brasileiras) e alguns professores das Universidades de Brasília,

Unicamp e USP, participaram como observadores do I Congresso dos trabalhadores rurais

de Xapuri, em 1984, Congresso esse que serviria de base para a organização do I Encontro

Nacional de Seringueiros que se realizaria em Brasília em 1985 e que fundaria o Conselho

Nacional dos Seringueiros - CNS. Esse Congresso dos Seringueiros em Brasília, por

exemplo, só foi possível com os recursos provenientes dessas organizações não

governamentais.

A participação da Fundação Ford e da OXFAN, junto com a Fundação Pró-

Memória, órgão do Governo Federal, que financiaram esse I Encontro Nacional de

Seringueiros, foram fundamentais na articulação de contatos que “abriram as portas do

mundo” para algumas lideranças dos trabalhadores extrativistas. Vejamos o que diz Costa

(1997), sobre essa relação ONG/Trabalhadores Extrativistas:

Quanto ao mito Chico Mendes, basta mencionar que foi criado graças a atuação da antropóloga Mary

Allegretti, que teve como primeiro “mentor” na rede ambientalista o inglês Toni Gross, representante

da ONG britânica Oxfan no Brasil, cuja principal área de ação era a região Amazônica. Em 1985,

Allegretti foi trabalhar como especialista em direito indígena no Instituto de Estudos Sociais e

Econômicos (INESC), ONG de Brasília que representa um dos principais enlaces brasileiros com o

aparato ambientalista internacional. No mesmo ano, organizou um Encontro Nacional de

Seringueiros, a partir do qual Chico Mendes seria lançado em sua meteórica carreira de campeão das

causas ambientais. Para tanto, Allegretti contou com a preciosa colaboração de ONGs situadas no

alto escalão da rede ambientalista internacional, como Environmental Defense Fund (EDF), cujo

Page 208: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

209

principal agente no Brasil, o antropólogo Stephan Schwartzman, levou Chico Mendes duas vezes a

Washington. Como conseqüência, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) foi

pressionado para suspender empréstimos para a construção, por razões alegadamente ambientais, da

rodovia BR-364 – contra a qual Allegretti chegou a depor no Congresso dos EUA – artéria crucial

para o desenvolvimento econômico do Acre, pois ligaria a região ao Pacífico. (Costa Nilder, 1997.

In. www.alerta.inf.br. Acesso realizado em 18. 10.07).

Os contatos com os agentes das ONGs e com alguns professores/pesquisadores de

universidades do Centro-Sul do país, entre outras questões, foram moldando as novas

pautas no organograma de lutas desses trabalhadores. Mas, Zhouri (2006), credita ao

advento da internet, a melhora na possibilidade de articulação entre as ONGs nacionais e as

internacionais, especialmente européias e estadunidenses, que projetaram uma atuação em

rede. Esse modelo de atuação permitiu com que:

Nesse processo, atores praticamente desconhecidos no cenário político nacional, fossem projetados

na arena global, onde passaram a assumir papéis e significados diversos dos que tinham no contexto

doméstico. Um exemplo clássico é Chico Mendes: de liderança local entre seringueiros e

sindicalistas, ele foi projetado internacionalmente como ambientalista. De forma análoga, várias

lideranças indígenas foram igualmente deslocadas dos contextos e agendas locais (conflitos com

fazendeiros e agentes da Funai, por exemplo) e lançados no espaço global para apresentações

públicas e reuniões com políticos em Washington, em Londres e demais cidades européias. As

lideranças indígenas atuavam, inclusive, como símbolo para muitas organizações nos EUA e na

Europa. (ZHOURI, 2006: 144-5 – Revista Horizontes Antropológicos, POA, ano 12, n. 25, p. 139-

169, jan/jun. 2006).

Com as duas citações acima (Costa e Zhouri), não quero defender a tese de que

Chico Mendes, bem como outras lideranças indígenas, foram ou são meros joguetes nas

mãos dos representantes de ONGs, pois seguindo essa tese qualquer um poderia ter sido o

escolhido. Obviamente os escolhidos não o foram também, por acaso, houve troca nas

relações estabelecidas. Chico tinha um perfil diferenciado no meio dos seringueiros que ele

já representava. Além de ser alfabetizado, coisa rara entre os seringueiros, tinha recebido

algumas noções políticas de um velho comunista62

que havia se auto-exilado nas florestas

acreanas, fugindo das ditaduras no Brasil e na Bolívia onde também havia militado.

62

- O “velho comunista” a que nos referimos é Euclídes Fernandes Távora – antigo “tenente” aliado de

Prestes, que havia fugido de Fernando de Noronha onde cumpria prisão. Após sua fuga veio para a Bolívia,

tendo militado junto aos movimentos populares naquele País e de onde, também perseguido, fugiu para o

Acre, tendo fixado moradia próximo a colocação onde morava a família de Chico Mendes.

Page 209: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

210

O que as ONGs faziam com maestria era escolher bem os seus parceiros, no sentido de

garantir boa penetração de suas idéias, pois não era fácil redirecionar uma luta que estava

enraizada, como é o caso da luta pela terra, no caso dos seringueiros, para a luta ambiental

como propunham as ONGs, além do mais, seus representantes, por mais recursos que

dispusessem, não conseguiriam fazer o trabalho de base que os sindicatos, a CONTAG, a

Igreja e os partidos de esquerda vinham fazendo. A estratégia correta era estabelecer um

relacionamento engajado com as lideranças que já circulavam bem nos ambientes

escolhidos para sua atuação.

Antes de seguirmos adiante na descrição do envolvimento das ONGs com os

trabalhadores extrativistas no Vale do Rio Acre, porém, vamos destacar algumas formas de

apreensão sobre o surgimento das ONGs e seus objetivos, para podermos caminhar melhor

nesse entrelaçado mundo onde as aparências comumente se confundem com a realidade.

Não há como precisar uma data de nascimento para as ONGs, pois organizações

com essas características multissetoriais, podem ser encontradas desde tempos remotos na

história. Se pensarmos, por exemplo, que sua tipificação se dá pelo caráter “não-

governamental”, poderíamos incluir clubes, associações de bairros, igrejas e até alguns

tipos de sindicatos, o que redundaria num conceito muito amplo.

Entendemos que as diferenças residem, portanto, na sua forma de organização, que

é formatada em articulação com o objetivo traçado pelos criadores da ONG, sem o devido

lastro social na composição, que é como se formam os sindicatos, associações e clubes, por

exemplo. As ONGs são formadas para, segundo elas “ajudarem” o social, enquanto que

sindicatos e associações são formados por e pelo segmento social propriamente dito.

Em termos de Brasil, o conceito de ONG passou a ser utilizado com mais

intensidade a partir dos anos 80 e provém do inglês Non-Governmental Organizations

(NGO), na mesma acepção que vem sendo usado pela ONU desde 1950, para caracterizar

organizações internacionais que não haviam se estabelecido a partir de acordos

governamentais63

. No seu nascimento, suas características principais eram o apoio a grupos

étnicos e movimentos populares, no sentido mais caritativo, ou ainda, na defesa dos direitos

humanos, depois foram ampliando seu leque de ação para o campo ambiental até se

63

- GONÇALVES, Hebe Signorini (Org.). Organizações Não Governamentais: Solução ou Problema. São

Paulo: Estação Liberdade, 1996. Nessa obra há vários textos que tratam sobre o surgimento, indicações e

perfil das ONGs.

Page 210: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

211

transformarem em grupos de pressão, com forte matiz política, atuando nos mais diversos

setores.

Porém as ONGs que combinam as características de defesa da biodiversidade com

justiça social, como as que estamos estudando, possuem um “DNA” já mapeado. Segundo

Gilberto Montibeller Filho (2004) houve uma evolução rastreável do movimento

ambientalista que dá lastro as ONGs, desde o seu surgimento até constituir-se em global.

Com base em estudos publicados por Leis e D‟Amato (1995), Montibeller traça o seguinte

roteiro:

Assim, os anos 50 são vistos como os do ambientalismo dos cientistas, pois é pela via da ciência que

emerge a preocupação ecológica em âmbito mundial. A década de 1960 é descrita pelos autores,

como a das organizações não governamentais: diversos grupos e organizações aparecem de forma

exponencial nesse período. A seguinte, anos 70, é a da institucionalização do ambientalismo. Foi

marcada pela Conferência de Estocolmo-72 sobre meio ambiente, a qual evidenciou a preocupação

do sistema político – governos e partidos – e da própria Igreja Católica, com a questão. Surgem no

período, diversas agencias estatais vinculadas ao meio ambiente. Os anos 80 são marcados pela

Comissão Brundtland e pela proeminência dos partidos verdes que haviam surgido na década

anterior. A Comissão iniciou seus trabalhos em 1983 e quatro anos depois publicou seu famoso

Relatório, no qual sintetiza o conceito de desenvolvimento sustentável.(...) No Brasil, a constituição

do ambientalismo deve ser situada nos anos 70, “quando começam a configurar-se propostas

provenientes tanto do Estado quanto da sociedade civil”. (MONTIBELLER FILHO, 2004: 38-9).

Lino et al. (2005), tratando o tema em nível internacional, destacaram que:

Embora as ONGs tenham recebido tal denominação e status internacional no âmbito da Organização

das Nações Unidas (ONU), no período do pós-guerra, a sua rápida propagação institucional ocorreu

como parte da reestruturação da entidade mundial levada a cabo pelo então secretário-geral Boutros

Boutros-Ghali, na década passada. Porém, já na década de 1960, a Fundação da Comunidade

Britânica se empenhava em fomentar o crescimento de tais organismos como células de subversão

contra os Estados nacionais, vendo nelas perfeitas portadoras de uma cultura de relativismo

promovida pelos círculos hegemônicos encabeçados pela oligarquia anglo-americana, que

facilitariam as tarefas do desmonte dos Estados nacionais e, em muitos casos, os valores cristãos

associados a eles. Em suma, as ONGs deveriam funcionar como veículos para a aceitação da cultura

da “Nova Era” – indigenismo, ambientalismo, malthusianismo etc. -, como meios de subversão dos

valores, tanto da razão como da fé. (LINO et. al. 2005: 240).

Já Michel Chossudovsky (1999) assegura que a proliferação de ONGs, tanto no

Brasil quanto na América Latina e no terceiro mundo em geral, se deu nos anos oitenta,

como resultado de políticas estimuladas por organismos multilaterais, especialmente o

Fundo Monetário Internacional - FMI, o Banco Mundial – BIRD, o Banco Interamericano

de Desenvolvimento – BID, e alguns organismos da Organização das Nações Unidas –

ONU, como o PNUD, a FAO, a UNESCO e o UNICEF, diante do que esses organismos

Page 211: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

212

estabeleceram como condicionalidades, ou seja, regras impostas por essas agências para

liberar recursos para esses países, principalmente os recursos do Fundo Social de

Emergência – FSE. Essas condicionalidades significam que, para um país pobre fazer jus

ao FSE, precisa se “ajustar”, precisa trabalhar para “redução da pobreza” em critérios

definidos pelo Banco Mundial. Para Chossudovsky:

O FSE exige uma abordagem de “engenharia social”, um esquema político para “administrar a

pobreza” e aliviar a inquietação social a um custo mínimo para os credores. Os chamados

“programas com metas estabelecidas” destinados a “ajudar os pobres”, combinados com a

“recuperação dos custos” e a “privatização” dos serviços de saúde e educação, são considerados um

meio “mais eficiente” de liberar programas sociais. O Estado retira-se e muitos programas sob a

jurisdição de ministérios alinhados serão, daí em diante, administrados por organizações da

sociedade civil sob patrocínio do FSE. Este também financia, sob os auspícios da “rede de

seguridade social”, pagamentos de indenização por demissão e/ou projetos de “mínimo emprego”

destinados aos funcionários públicos demitidos em conseqüência do programa de ajuste. O FSE

sanciona oficialmente a retirada do Estado dos setores sociais e a “administração da pobreza” (no

âmbito microssocial) por meio de estruturas organizacionais separadas e paralelas. Várias

organizações não governamentais (ONGs) financiadas por “programas de ajuda” internacionais têm

absorvido gradualmente muitas das funções do governo de cada país. Produção em pequena escala e

projetos de produção artesanal, subcontratação por firmas de exportação, treinamento com base

comunitária e programas de emprego, etc., são organizados sob os auspícios da “rede de seguridade

social”. Assegura-se, desse modo, uma precária sobrevivência para as comunidades locais, ao

mesmo tempo em que se diminui o risco de sublevação social. (Chossudovsky, 1999: 58-9).

Só não concordamos integralmente com as ponderações de Chossudovsky, porque

no caso dos seringueiros do Vale do Rio Acre, na verdade podemos considerar toda a

extensão desta Unidade Federativa, não houve uma substituição do Estado por essas

organizações da sociedade civil. O caso do Acre é singular porque desde seu debut na cena

do Estado brasileiro, a iniciativa privada sempre comandou a vida nos seringais.

Todo o ordenamento nos seringais obedeceu à lógica da empresa privada, então,

nesse caso as ONGs entraram num espaço onde já se registrava um vazio de Estado, ou

melhor, entraram em ação contra as políticas do Estado que, por sua vez, eram contra

aqueles trabalhadores e não em substituição as suas ações, mas, em todo caso, sua base de

atuação também foi a de investir em projetos de pequena escala, em ancorar a produção dos

trabalhadores extrativistas em modelos artesanais, introduzindo as preocupações

ambientais. Movendo todas as suas ações para responder as demandas dos organismos

multilaterais citados por Chossudovsky.

Page 212: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

213

Andréa Zhouri (2006), outra estudiosa do papel da ONGs e do ativismo

internacional, aponta a década de setenta como a época que marcou maior enlevo com as

preocupações ambientais, destacadamente a eleição da Amazônia como área privilegiada

desse “ativismo além-fronteiras”. Zhouri escreveu que:

Os enormes impactos socioambientais decorrentes dos projetos de “desenvolvimento” financiados

pelos bancos multilaterais mobilizaram, sobretudo durante os anos 1980, ambientalistas do Norte e

do Sul em defesa da floresta amazônica. Se as queimadas simbolizaram à época o processo de

destruição, a partir dos anos 1990 foram as imagens das toras de madeira empilhada nas carrocerias

dos caminhões, nos pátios das serrarias ou mesmo nos rios que passaram a galvanizar as diversas

preocupações. (...) Nesse contexto é que as principais organizações não-governamentais (ONGs),

entre elas o Greenpeace, o Fundo Mundial para a Natureza (WWF) e a Amigos da Terra (Friends of

the Earth), associaram-se aos empresários do setor madeireiro para desenvolverem um esquema de

certificação florestal conhecido como Forest Stewardship Council – FSC, ou Conselho de Manejo

Florestal, destinado a melhorar as práticas florestais mundo afora.

Para Zhouri, as peculiaridades da Amazônia também serviram para modelar os tipos

de ONGs que passaram a atuar na região. Ela indica que se podem delinear três tipos de

tendências: as que lidam com árvores, as que lidam com gente e as que lidam com árvores

e gente, ou seja, entre as próprias ONGs, há diferenças sobre o campo de atuação, mas

quase todas elas concorrem para o canal denominado “desenvolvimento sustentável”, nos

moldes como esse conceito foi indicado pelo Relatório Brundtland em 1987, documento

que passou a orientar determinadas políticas públicas, bem como a reforçar necessidades de

defesa do meio ambiente, por isso também ficou conhecido como Nosso Futuro Comum.

Mas, há autores que destacam outros aspectos, que conferem outros papéis a

presença das ONGs, por exemplo, James Petras (1999), pondera que:

No início da década de oitenta, os setores mais perceptivos das classes dirigentes neoliberais

perceberam que suas políticas estavam polarizando a sociedade e provocando um descontentamento

social de grandes proporções. Os políticos neoliberais começaram a financiar e a promover uma

estratégia paralela “de baixo”, a promoção de organizações “comunitárias de base” (“Grass roots”)

com uma ideologia antiestatal para intervir nas classes potencialmente conflitivas, para criar um

“amortecedor social”. Tais organizações dependiam financeiramente das fontes neoliberais e

disputavam diretamente com os movimentos sociopolíticos pelo engajamento e fidelidade dos líderes

locais e das comunidades militantes. Na década de 1990 havia milhares dessas organizações descritas

como sendo “não-governamentais”, as quais recebiam por volta de 4 bilhões de dólares do mundo

todo. (PETRAS, 1999: 44).

Sobre o caráter benfazejo das organizações não governamentais, Petras destaca que:

Page 213: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

214

A confusão existente com relação ao caráter político das ONGs originou-se na década de 1970,

durante os tempos da ditadura. Nessa época, elas eram ativas prestando apoio humanitário às vítimas

das ditaduras militares e denunciando violações dos direitos humanos. As ONGs apoiaram “sopões

dos pobres” que permitiam que famílias sobrevivessem à primeira onda dos tratamentos de choque

administrados pelas ditaduras neoliberais. Esse período gerou uma imagem favorável das ONGs, até

mesmo entre setores de Esquerda. Elas eram consideradas como sendo parte do “acampamento

progressista”. Mesmo naquela época, contudo, a limitação das ONGs era evidente. Enquanto elas

atacavam as violações dos direitos humanos das ditaduras locais, raramente denunciavam os seus

patrocinadores norte-americanos e europeus que os financiavam e aconselhavam. Nem havia um

esforço sério para ligar as políticas econômicas neoliberais e as violações dos direitos humanos à

nova volta do sistema imperialista. Obviamente, as fontes externas de financiamento limitavam a

esfera da crítica e das ações em prol dos direitos humanos. (idem)

No Brasil, um dos quadros que mais se encaixam nesse perfil traçado por Petras

para a atuação das ONGs, talvez seja a forma com Herbert de Souza, o Betinho, concebia a

participação das ONGs na vida nacional. Para Betinho (1992) as ONGs, especialmente as

do primeiro mundo foram mais solidárias e universalistas do que as instituições oficiais.

Betinho evidencia que:

O não-governamental não veio por acaso. De alguma forma, as ONGs constituem a crítica moderna

aos fracassos e descaminhos do Estado e as deficiências de instituições clássicas como os partidos,

sindicatos, empresas, universidades, que se submeteram ou se acomodaram à dinâmica do mundo

oficial, entrando na órbita do capital e do Estado. (...) As ONGs do primeiro mundo foram mais

solidárias e universalistas que as instituições oficiais. (...) Ao serem capazes de verem a cara humana

ou desumana do desenvolvimento, foram capazes de também ver suas conseqüências. (...) No

chamado terceiro mundo, as ONGs – vivendo as conseqüências do capitalismo e o social-liberalismo,

e sua forma primária no terceiro mundo, como as ditaduras militares e os autoritarismos de todo o

tipo – foram mais contra-governamentais que não-governamentais. Tiveram que viver na margem,

contra o rumo da ordem64

.

Essa concepção de Betinho a respeito das ONGs, principalmente o fato dele achar

que elas são suprapartidárias, supra-religiosas, que não tem fins lucrativos, que não se

ligam ao mercado e não se submetem a lógica de nenhum poder ou hierarquia, como

expressa no artigo supracitado, não é uma posição consensual, James Petras, por exemplo,

ao contrário de Betinho, pensa que as ONGs, em sua maioria, são bem articuladas

ideologicamente e que para ele:

As ONGs tornaram-se a “face da comunidade” do neoliberalismo, intimamente relacionadas aqueles

no topo e complementando o seu trabalho nocivo aos projetos locais. Efetivamente, os neoliberais

organizaram uma operação “pinça” ou uma estratégia dupla. Infelizmente, muitos da esquerda

concentraram-se somente no “Neoliberalismo” de cima e de fora (FMI, Banco Mundial) ao invés de

64

- SOUZA. Herbert. O Papel das ONGs e da Sociedade Civil em Relação ao Meio Ambiente. In.

Planejamento e Políticas Públicas, revista editada pelo IPEA, nº 7, junho de 1992.

Page 214: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

215

se concentrarem no neoliberalismo de baixo (ONGs, microempresas). Uma das principais razões

para que esse fato tenha sido passado por alto foi a conversão de diversos ex-marxistas à formula e

prática das ONGs. O pós-marxismo foi o passe ideológico da política de classe para o

“desenvolvimento comunitário”, do Marxismo às ONGs. (PETRAS, 1999 p. 45-46).

Também para a pesquisadora do Museu Emílio Goeldi, Rosineide Bentes (2005), o

início dos anos de 1980, com a ascensão de governos neoliberais, especialmente em países

do G-7, marcam uma reorientação da atuação dos organismos multilaterais em todo o

mundo, no sentido de que:

Os líderes neoliberais que ascenderam ao poder, em particular na Inglaterra e nos Estados Unidos,

elegeram como organizações internacionais apropriadas para lidar com questões econômicas e de

desenvolvimento somente as organizações nas quais o G-7 tem maior controle político, relegando a

ONU, que passou a enfrentar problemas financeiros. Em Stormy Weather, Guy Dauncey e Patrick

Mazza mostram que, no Banco Mundial e no FMI, em vez de democracia, vigora um sistema no qual

cada membro tem direito ao mesmo número de votos mais um voto para cada cem mil dólares de

contribuição. As nações que compõem o G-7 contribuem com mais dinheiro, portanto, elas decidem

sobre como os fundos do Banco Mundial serão usados. Os países “subdesenvolvidos” e “em

desenvolvimento” somam 83% das nações do mundo, mas controlam só 39% dos votos. Essas

instituições financeiras priorizam os financiamentos de projetos que beneficiam as corporações

econômicas de países do G-7. (BENTES, 2005: 227).

Para Bentes, esse “descredenciamento” da ONU e a ascensão do Banco Mundial e

FMI para o papel de interlocutores privilegiados, vai redirecionar também o papel das

principais ONGs, que adotaram uma postura mais conservacionista, priorizando a defesa da

floresta, ao invés de manterem sua política ambiental, que era mais voltada para a qualidade

de vida dos seres humanos.

Essa mudança se deu porque os projetos financiados pelo Banco Mundial,

especialmente, favoreciam as grandes empresas dos países do G-7, que estavam associadas

à exploração do petróleo e outros minérios extremamente poluentes, mas que por sua vez,

garantem o lucro dessas empresas e o status e a qualidade de vida das populações naqueles

países, acrescente-se ainda que essas populações beneficiadas com os lucros daquelas

empresas, são os principais financiadores dessas ONGs, então, seria contraditório,

incongruente mesmo, para estas organizações manterem a defesa de uma política ambiental

que era frontalmente contrária aos interesses de seus financiadores

Porém, nesse contexto de avaliação do papel das ONGs, há autores que vêem, ainda,

na sua atuação a intervenção estrangeira modelando uma nova forma de colonialismo. Lino

et. al., argumentam a existência de um engendramento ideológico: “habilmente planejado,

Page 215: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

216

criado e mantido por poderosos grupos hegemônicos internacionalistas, com o propósito de

conter a expansão dos benefícios da sociedade industrial-tecnológica a todos os povos e

países do planeta e manter o processo de desenvolvimento sob o seu controle”. (LINO et al.

2005: 11).

Situando essa construção no pós Guerra, como uma herança do New Deal e da

orientação anticolonialista do presidente Franklin D. Roosevelt, os autores (op. cit. 13),

argumentam sobre a existência de um colonialismo de novo tipo, onde se “força os

indivíduos subjugados a organizar-se contra os interesses da própria nação, bastando ao

novo poder colonial difundir e canalizar os conceitos e crenças que alimentam as mentes

colonizadas”. Nesse sentido, ressaltam que:

Para catalisar as percepções e ações das massas de indivíduos submetidos a semelhante cativeiro

mental, os poderes oligárquicos, especialmente o seu componente anglo-americano, criaram uma

pletora de ONGs, muitas das quais com atuação em dezenas de países, que atuam como um

verdadeiro exército irregular de intervenção. De fato, alguns especialistas têm proposto o conceito de

“guerra de quarta geração” para o tipo de estratégia protagonizada pelas ONGs ambientalistas-

indigenistas internacionais que atuam em países como o Brasil, em que o Estado nacional sofre o

fustigamento de agentes não-estatais, que podem ou não estar a serviço de potências estrangeiras. Em

certo sentido, estamos em presença de um novo tipo de pirataria, na qual interesses externos

impossibilitados de atuar ostensivamente impõem suas políticas por intermédio de “patentes de

corso” modernas, implementadas por ONGs internacionais. A proliferação dos chamados “selos

verdes” se enquadra nessa categoria. (LINO et. al. 2005: 16).

Para esses autores:

Os propósitos dessa nova forma de colonialismo são os mesmos de antes: manter o controle de fontes

de recursos naturais estratégicos, como minerais, fontes de energia e alimentos, e o bloqueio do

crescimento populacional e do desenvolvimento dos povos submetidos ao processo, impedindo-os de

competir pelo uso de seus próprios recursos naturais limitados, dentro do conceito malthusiano de

escassez, que está na raiz do ambientalismo. Uma das formas de se fazer isso é o estabelecimento de

reservas naturais e indígenas de grandes dimensões, que dificultam ou impossibilitam, tanto a

exploração dos recursos naturais nelas existentes, como a implementação de projetos de infra-

estrutura, principalmente energéticos e viários. Com isso, logra-se um controle geopolítico sobre

vastos territórios que, embora permaneçam formalmente sob a soberania dos Estados nos quais se

situam, na prática, seu destino fica atrelado a desígnios exógenos de entidades supranacionais. (idem.

p. 16, 17).

As linhas de percepção do papel das ONGs parecem tão diversas quanto a sua

quantidade e a variedade de temas que elas elegem como área de atuação. Touraine (1997),

por exemplo, chega a considerar as ONGs como movimentos sociais. Entre os que

defendem sua atuação e os que são contrários, há ainda uma série de outras opiniões que

Page 216: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

217

divergem sob seu caráter alienígena, ou da inexistência de controle por parte das

autoridades governamentais.

Porém, independente do juízo que se possa fazer a posteriori, o fato é que no Acre,

as ONGs se integraram aos movimentos dos trabalhadores extrativistas e passaram a fazer

parte do conjunto de forças políticas que desde o início dos anos 1990, vem se

apresentando, especialmente no Acre, como portador de um modelo de desenvolvimento

que tem como base a sustentabilidade. Corroborando com essa idéia de deslocamento das

ações das ONGs, Porto Gonçalves escreveu:

Desde a segunda metade dos anos 1990 há um deslocamento da atuação de algumas grandes

organizações não-governamentais, não só com relação ao mercado como também em relação à ação

das corporações multinacionais e do próprio Banco Mundial, quando muitas delas passam a pôr em

prática uma visão acerca dessas instituições muito diferentes daquela que a maior parte das

organizações populares vinham mantendo até então. Observemos que no universo discursivo do

mundo das ONGs cada vez mais se fala de profissionalismo, competência e agenda positiva, e menos

em militância, amadorismo e contestação. (PORTO GONÇALVES, 2004: 141).

O autor em destaque chega mesmo a alertar que em alguns casos o afastamento é

tão gritante que algumas ONGs em nome do “uso racional dos recursos naturais”, negam a

primazia das populações tradicionais na gestão de seus próprios recursos naturais, o que

passaria a ser feito por empresas. Para ele, isso configura um forte etnocentrismo, que

marca ainda mais a colonialidade do saber e do poder, pois considera racional apenas

aquele tipo de uso que se faz “com base no saber técnico-científico convencional”.

No Acre a atuação das ONGs de grife (Greenpeace, WWF, Friends of the Earth,

The Nature Consevancy - TNC, etc.), chegou um pouco mais tarde, ou apenas

estabeleceram contato e ajudaram outras ONGs da e na região. As que tiveram atuação

mais destacada desde os primeiros momentos, dentro do contexto do que consideramos

grandes ONGs ou ONGs de grife internacionais, foram a OXFAN65

, a Fundação Ford, a

Cooperação Técnica Alemã66

(cuja sigla em alemão é GTZ,), a Cultural Survival, a

Survival International, o Enviromental Defense Fund (EDF), o Serviço Alemão de

65

- OXFAN: é uma ONG fundada na Inglaterra em 1942, cuja sigla significa Comitê de Oxford para ajuda

contra a fome, teve sua atuação inicial voltada para amenizar os sofrimentos causados pela Segunda Guerra,

depois incorporou outros países e fundou a Oxfan International - OI, diz em seu site que trabalha para gente

pobre, influenciando gente importante.

66

- Cooperação Técnica Alemã - GTZ - é um organismo que se define como empresa pública de direito

privado ligada ao Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha. No Brasil,

atua como se fosse uma ONG.

Page 217: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

218

Cooperação Técnica e Social (Deutscher Entwicklungsdienst - DED), o Instituto Sócio

Ambiental (ISA), o Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais - PPG7.

Dentre as ONGs nacionais, destacamos: o Centro Ecumênico de Documentação e

Informação - CEDI, que mais tarde foi incorporado pelo Instituto Socioambiental (ISA),

que se classifica como uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP),

o Instituto de Estudos Sócio-Econômicos - INESC, o Grupo de Trabalho Amazônico -

GTA, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), o Centro dos Trabalhadores

da Amazônia - CTA, o Comitê Chico Mendes e, o próprio Conselho Nacional dos

Seringueiros - CNS, SOS - Amazônia e o Grupo de Pesquisa e Extensão em Sistemas

Agro-Florestais do Acre - PESACRE.

Há grandes diferenças, contudo, na atuação das ONGs. Há as ONGs, como vimos

denominando, de “grife”, que se especializaram na busca de espaços nos grandes canais de

comunicação para divulgar “suas” idéias e as que atuam mais dentro, ou mais próximas as

comunidades, que querem passar despercebidas, pois “suas” idéias são menos nobres, como

as que praticam a biopirataria, por exemplo. Nesse sentido temos as que têm bons

propósitos e as que nem tanto.

Os bons propósitos de uma atuação prática, como contribuir para a alfabetização,

para melhoras na qualidade da alimentação ou na saúde, entretanto, não as absolve de, por

seu turno, atuarem ideologicamente contra, no sentido de desarticularem movimentos mais

políticos, como a participação nos sindicatos ou em partidos mais “radicais” no combate ao

capitalismo. E há aquelas como escreveu Zhouri (2004), que trabalham com árvores, as que

trabalham com gente e as que trabalham com árvores e gente. Vamos apresentar, então, do

ponto de vista da nossa observação um exemplo de cada uma delas no contexto da história

dos trabalhadores extrativistas do Acre.

Iniciamos com uma que pelo seu perfil, identificamos como uma ONG que trabalha

com gente. Trata-se do Centro dos Trabalhadores da Amazônia - CTA. Essa ONG surgiu

em 1983 em Rio Branco, mas com área de atuação voltada para os seringais situados entre

os municípios de Xapuri e Brasiléia e teve entre seus dirigentes, as principais lideranças

políticas do Estado, passando por Chico Mendes, liderança dos seringueiros, até chegar as

lideranças urbanas, que se destacaram mais por atuarem nas estruturas do governo, fossem

nas instâncias parlamentares, fossem nas executivas, como Marina Silva (Senadora e ex-

Page 218: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

219

Ministra do Meio Ambiente), Jorge Viana (ex-Prefeito da capital e ex-governador por dois

mandatos) e o atual Governador do Estado Arnóbio Marques, além de um número bastante

significativo de outros dirigentes intermediários que se revezam em cargos públicos e nas

diretorias desta ONG.

Esta ONG, a partir de suas parcerias internacionais, que financiavam seus projetos,

elaborou formas de inserção junto às comunidades extrativistas, dando “suporte técnico-

institucional ao movimento dos seringueiros” e suas ações foram pioneiras não só na

metodologia, como também no ineditismo das propostas. Suas ações no campo da

educação, com o projeto “Educação na Floresta” que, pela primeira vez, levou uma escola

aquelas localidades, apresentando desde o início uma proposta pedagógica diferenciada,

com base no método Paulo Freire, ganhavam tanto a adesão das comunidades, como iam

tornando-se referência, pelo fato simples de estarem presentes, aonde as estruturas formais

(estatais), não chegavam. Na área da saúde, o pioneirismo se dava também por uma

estratégia de respeito aos saberes locais, observando o uso das plantas medicinais e do

conhecimento tradicional. No histórico de apresentação do CTA, lemos:

A idéia central era o desenvolvimento de uma proposta pedagógica adaptada a lógica e a linguagem

das populações extrativistas. A partir daí com o envolvimento direto do movimento social da época e

das comunidades fora possível, sem a presença do estado, a implementação da primeira escola

formal e o primeiro posto de saúde nas florestas do Estado do Acre. Com o objetivo de melhorar as

condições de saúde nas reservas extrativistas, áreas onde a população não tinha acesso aos serviços

básicos de saúde, o CTA estruturou o Programa de Saúde da Floresta, voltado para a formação de

agentes de saúde locais e de professores, que garantiu permanência das pessoas na área, além de

gerar empregos nas reservas. No início da década de 1990, o CTA já era responsável pelo

acompanhamento de 51 escolas e mais de mil crianças matriculadas por ano. Neste mesmo período

também acompanhava 32 postos de saúde. (In. www.cta-acre.org, página de apresentação. Acesso

realizado em 27/10/2007).

Os “parceiros” que financiam o CTA são os mais diversos, passando por estruturas

dos poderes municipais, estadual e nacional, tipo Fundo Nacional de Desenvolvimento

Econômico - FNDE, Secretarias de Governo e prefeituras, Petrobrás, até as internacionais,

como USAID, ITTO, Fundação MOORE, WWF, etc., nesse contexto, o CTA também foi

redefinindo suas áreas de atuação, colocando-se hoje como uma organização que ao

compreender as mudanças por que passaram os trabalhadores extrativistas, foi se moldando

para atuar com comunidades florestais, saúde e educação, políticas públicas e gestão de

projetos, se auto-definindo assim:

Page 219: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

220

Desta forma, para buscar alternativas produtivas que viabilizassem economicamente as reservas

extrativistas e projetos agroextrativistas, conciliando o uso sustentável dos recursos florestais com a

autogestão e melhoria da qualidade de vida das populações extrativistas, surgiu o Programa

“Florestas Sustentáveis”, do Cta. Que a partir de processos educativos estimula a adoção de práticas

sustentáveis do uso dos recursos florestais e o fortalecimento das comunidades extrativistas. (...)

Através de ações de assessoria técnica, política e de formação visando a defesa de seus direitos e

garantias, assim como na estruturação de alternativas econômicas que garantam o desenvolvimento

social, econômico e cultural dessas populações dentro de um conceito de uso sustentável dos

recursos naturais, através de processos de experimentação participativa e aprendizagem. (idem).

Como podemos perceber, a articulação básica do discurso de apresentação desta

ONG, se baseia na qualidade de vida da população da área de atuação escolhida,

obviamente não deixa de ter um conteúdo ambiental, pois essa é a carta de apresentação

para qualquer ONG que atua na região, conseguir parcerias internacionais ou subsidiárias

nacionais que financiem seus projetos.

Outra ONG com razoável interferência na vida das populações extrativistas do Acre

e que, podemos classificar como uma ONG que se preocupa com árvores, é a SOS

AMAZÔNIA, que como diz em seu informativo de apresentação:

Fundada em 30 de setembro de 1988, a Associação SOS AMAZÔNIA foi criada com o objetivo de

denunciar as agressões à floresta Amazônica, apoiar o movimento de resistência dos seringueiros aos

desmatamentos das florestas no Acre e colaborar com a formação de uma opinião pública que

valorizasse a conservação e a preservação ambiental. Na assembléia de criação participaram

professores da Universidade Federal do Acre, servidores públicos e líderes do movimento social,

destacando-se Chico Mendes.

Esta ONG, tem se especializado em participar dos processos de elaboração de

Relatório de Impacto no Meio Ambiente - RIMA e Estudos de Impactos Ambientais - EIA,

das principais obras propostas pelo governo no sentido da construção de infra-estrutura no

Estado, especialmente estradas e demarcação de reservas indígenas, reservas extrativistas,

parques nacionais, florestas nacionais, áreas protegidas, etc. defendendo uma concepção

aproximada dos conceitos preservacionistas e, em alguns momentos, se voltando contra a

presença até mesmo de populações tradicionais em áreas que ela entende dever ser

preservada in situ. A atuação desta ONG é bastante significativa na divulgação de

campanhas sobre os efeitos das mudanças climáticas, enfocando o caráter alarmista

incorporado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e pelo

Protocolo de Kyoto.

Page 220: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

221

Embora esteja escrito na sua “apresentação” de que ela estaria também apoiando as

lutas dos seringueiros, seu perfil está mesmo, mais voltado para “denunciar as agressões

sofridas pela floresta Amazônica”. Colocando-se como disposta “a colaborar com a

formação de uma opinião pública que valorize a conservação e a preservação ambiental”,

ou seja, nas entrelinhas permite que se leia uma tendência a privilegiar a tese

preservacionista, que é exatamente a corrente entre os ambientalistas que defende a

manutenção de determinados locais sem a presença humana.

A SOS AMAZÔNIA relaciona entre suas linhas de trabalho consolidar uma posição

para:

Influenciar a política ambiental do Acre e da região, através do acompanhamento e de

posicionamentos junto ao conselho de Meio Ambiente do Estado, ao Conselho Nacional de Meio

Ambiente (CONAMA), ao Programa de Ação Ambiental Integrada e do Zoneamento do Estado e,

junto a Assembléia Legislativa e Câmaras Municipais, buscando sempre agir em articulação com

outras entidades e colegiados que agrupam as ong‟s acreanas (Comitê Chico Mendes, GTA). (In.

www.chicomendes.org/comitechicomendes_sosamaz.php, consultado em 11/02/07).

Embora os espectros dos objetivos de ação da SOS AMAZÔNIA sejam bastante

amplos, também não são pequenos os recursos que eles utilizam para divulgarem suas

idéias. Apostam numa formação de jovens estudantes e investem em recursos audiovisuais

que lhes servem de suporte para palestras em escolas e centros que juntam pessoas, como

associações de moradores e centros comunitários, articulando parcerias com professores e

pais na orientação dos mais jovens para os “problemas” ambientais, mas o foco das ações

está mesmo na manutenção de um corpo técnico qualificado para atuar junto as estruturas

do governo no sentido de influenciar suas decisões.

Não teríamos aqui como medir o nível de influência que esta ONG já atingiu junto a

sociedade de forma mais ampla, contudo, junto ao governo, principalmente no que diz

respeito às obras de construção de estradas e outras obras de infra-estrutura, já podemos

avaliar que seus impactos são importantes, não ainda no sentido de impedir a realização de

algumas delas, como por vezes ela reivindica, mas pelo menos no caráter protelatório têm

sido grande os efeitos de sua pressão.

Por último, como representante de uma ONG que se “preocupa com árvores e

gente”, poderíamos nomear o Comitê Chico Mendes, que é uma ONG criada na noite da

morte do sindicalista/ecologista Chico Mendes e que se autodefine como “uma articulação

Page 221: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

222

de entidades não governamentais, sindicais e de estudantes”, de acordo com as informações

contidas no seu site:

O Comitê foi criado na noite de 22 de dezembro de 1988. As pessoas do movimento social e político

de esquerda do Acre ao tomarem conhecimento da morte do Chico, dirigiram-se para o centro da

cidade na busca do encontro mútuo como que querendo arrancar do peito a bala que de alguma

maneira atingiu a todos. O encontro se deu na casa do Bispo (Diocese de Rio Branco) onde foi criado

o Comitê Chico Mendes que permanece até hoje. (In.

www.chicomendes.org/comitechicomendes.php, pesquisa realizada em 12/03/2007).

Na definição de seus objetivos o Comitê Chico Mendes revela uma preocupação

com a punição dos culpados pela morte do sindicalista, mas vai além, acrescentando a

responsabilização do “latifúndio, da devastação antiecológica”, articulados pelas

autoridades locais que geravam o quadro propício para o cometimento de tais crimes. Com

a punição dos executores de Chico Mendes, mesmo que não houvesse a punição dos

mandantes, o Comitê expandiu seus objetivos, acrescentando entre eles os de “acompanhar

e apoiar juridicamente na justiça casos de trabalhadores que os sindicatos não consigam

resolver sozinhos”, além de ter passado a assessorar juridicamente líderes sindicais e

cooperativas de trabalhadores o Comitê passou a organizar toda a memória da vida de

Chico Mendes e também passou a realizar anualmente a Semana Chico Mendes, que vai da

data de seu aniversário (15) até o dia do seu assassinato em 22 de dezembro.

Relacionar essas três ONGs serve somente como exemplo, como forma de revelar

que os motivos são variados para a criação de uma organização não governamental e como

elas se diferenciam mesmo quando querem tratar do mesmo assunto.

O que nos leva a esta afirmação é o fato de que segundo informações da Associação

Brasileira de Organizações Não Governamentais – ABONG, há hoje no Brasil algo em

torno de duzentas e setenta mil ONGs em atuação nos diversos campos em que elas

orbitam. Na Amazônia, de acordo com o que vem denunciando o Comando Militar da

Região, especialmente o General Augusto Heleno Ribeiro Pereira, mais de seis mil ONGs

atuam por aqui, quase todas elas mantendo em seu perfil motivos que inserem a

problemática da natureza, do ambiente, das comunidades indígenas, ribeirinhas ou

extrativistas, como objeto de sua atuação, ou seja, se pensarmos que a maioria das ONGs

tem atuação restrita, poderíamos incorrer no erro de destinar pouca importância ao seu

papel. Todavia, como quase todas elas atuam articuladas pelos mesmos temas, e mais,

Page 222: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

223

como muitas delas têm como financiadoras as mesmas fontes em nível internacional e,

considerando também que essas fontes comumente determinam como deve ser seu nível de

intervenção, mudaríamos completamente nossa noção do seu poder de interferência nas

diversas áreas de suas atuações.

Mas é assim, atuando em várias frentes que as ONGs se fazem presentes no meio

das comunidades amazônidas. Da assessoria técnica para extração de um óleo de uma

árvore; do manejo de uma espécie, animal ou vegetal; da coordenação de uma cooperativa,

da articulação de comércio para determinado produto; da educação; da saúde; da assessoria

jurídica, seja para demarcação de terras, seja para defesa contra a impunidade de mandantes

de assassinatos; até a realização de protestos; a articulação de contatos intra e inter regional,

nacional e internacional; enfim, onde se pode imaginar, sempre há uma ONG se colocando

à disposição, ou se colocando como representante dos interesses de determinados conjuntos

populacionais.

No decorrer dos últimos trinta anos elas estão a cada dia, mais presentes. Como

nossa proposta não é fazer um julgamento a respeito, mas sim apresentar os atores que

participaram das lutas dos trabalhadores extrativistas no seu processo de resistência,

podemos afirmar tranquilamente que as ONGs tem seu lugar destacado, nesse conjunto de

forças que se articularam para fazer emergir o “guardião da floresta”, o neoextrativista, um

seringueiro que deixou para trás o rótulo de símbolo do atraso para se transformar num

outro símbolo (fico tentado a denominar de pós-moderno), o do homem que consegue

sincronizar seu modo de vida com a defesa do meio ambiente.

A simples existência dos seringueiros e dos indígenas, por exemplo, nos permitem

entender outros relacionamentos do homem com a natureza, pois como se referiu Lobato

Martins:

É necessário perceber que, para numerosas sociedades e grupos sociais, a natureza é mais do que

mero meio de subsistência. Ela está diretamente ligada ao sistema de crenças e de conhecimento, de

maneira que ela é um recurso sociocultural. Para diversos povos, na natureza estão inscritas as mais

básicas noções de autodeterminação, de articulação social, de vivência e crenças religiosas, para não

falar na existência física da sociedade. Outro preconceito a ser extirpado com a ajuda da antropologia

é a insistência dos modernos ocidentais em qualificar como irracionais os usos que outros povos

fazem dos recursos naturais existentes em seus ambientes, uma vez que estes usos não estão

subordinados ao princípio da maximização dos rendimentos e das quantidades acumuladas. Então

esses povos “irracionais” são chamados de pobres e/ou atrasados pelos modernos ocidentais, que os

enxergam como seres constantemente oprimidos pela penúria. (LOBATO MARTINS, 2007: 35).

Page 223: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

224

Considerando que esses povos não tinham articulação suficiente para realizarem

uma amostragem dos seus próprios valores, para demonstrarem que seus relacionamentos

com a natureza representavam mais do que uma combinação de falta de tecnologia para

maior destruição com ausência de mercado para seus produtos, as ONGs, contribuíram não

só para esta articulação, como em muitos casos assumiram a responsabilidade pelo

desenvolvimento de políticas que influenciaram governos locais, nacionais e internacionais,

bem como organismos multilaterais internacionais para a tomada de consciência da

importância desses trabalhadores para a conservação de determinados ecossistemas. Há

muitos casos em que a atuação das ONGs foram fundamentais, até mesmo para a

preservação das vidas de muitos desses trabalhadores extrativistas, não no sentido

econômico, mas sim no sentido de denúncia de violência praticadas contra eles, muitas

vezes oriundas das próprias estruturas estatais.

À guisa de conclusão deste capítulo, podemos considerar que desse relacionamento

entre seringueiros, Igreja Católica, através das CEBs, da CPT e dos outros aliados como

CONTAG/sindicatos, partidos políticos de esquerda e ONGs, elaborou-se uma nova

composição político-social, que vem tentando remodelar as bases econômicas e culturais da

população acreana. O meio ambiente foi sem dúvidas o tema que articulou boa parte dessas

forças sociais que entraram em cooperação e confronto. Não que a natureza em si tenha

necessidade de mover forças sociais, mas uma parte da sociedade, sim, foi tomando

consciência que sua existência depende de como se relaciona com ela.

Nesse sentido, as lutas dos seringueiros pela sua sobrevivência, serviram como

elementos mobilizadores, para a identificação de que a ação humana interage com a

natureza e que os impactos dessas ações podem potencializar catástrofes que põem em risco

os arranjos naturais que permitem a vida no planeta. Obviamente que esta não é uma

constatação original, mas sim, um elo na instrumentalização de um complexo jogo de

variantes que interpõem conjunturas que perpassam a geopolítica, o neocolonialismo e a

expansão/refração do capitalismo.

No próximo capítulo faremos um balanço entre essas ações dos aliados dos

seringueiros, os próprios seringueiros e seus representantes nos espaços da política, nas

novas percepções deles, tanto para dentro quanto para fora dos seringais nos

entrecruzamentos do urbano e do florestal.

Page 224: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

225

CAPÍTULO IV: AS NOVAS FORÇAS POLÍTICAS NO ESTADO E AS TESES DO

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E DA FLORESTANIA COMO POLÍTICAS

DE GOVERNO.

Neste capítulo objetivamos apresentar alguns aspectos da transição pela qual passou

o Estado do Acre, especialmente, na virada do século/milênio, enfocando os aspectos

políticos, econômicos, sociais e ecológico-ambientais que movimentaram os diversos

integrantes das contendas ocorridas nas décadas anteriores.

A morte de Chico Mendes, no final do ano de 1988, passou a funcionar como marco

decisivo nas mudanças vividas no Estado, sobremaneira os impactos causados pela

delimitação das Reservas Extrativistas, que aconteceram já no ano seguinte ao da sua

morte, que não só atenuaram os conflitos pela posse da terra em algumas regiões

conflituosas do Estado, como também ajudaram na articulação desses fatos com outros

movimentos, sindicais e sociais, que ocorriam nos espaços urbanos. Essas articulações

contribuíram para projetar as forças ligadas ao ambientalismo e as esquerdas para

patamares importantes na cena política do Estado, culminando com a eleição de Jorge

Viana, do Partido dos Trabalhadores (Frente Popular do Acre) para o Governo, em 1998.

Dez anos após a morte do líder seringueiro, forças políticas que se apresentavam

como herdeiras desta tradição sindical e ecológico–ambiental, chegavam à direção do

Estado, não podemos dizer, contudo, que chegaram ao poder, mas sim, que se acercaram

dele.

Buscaremos, portanto, destacar o novo papel do Governo na implementação de

políticas públicas diferenciadas, tanto no âmbito do atendimento às necessidades dos ditos

povos da floresta, quanto nas diversas visões de ecologia e ambientalismo que passaram a

influenciar essas políticas nos espaços locais, tendo os termos desenvolvimento sustentável

e florestania a incumbência de representar essas mudanças.

A marca mais distinta do Governo da Frente Popular do Acre é a de tentar

desenvolver uma economia com lastro na sustentabilidade, na perspectiva de fundar uma

nova condição social, uma nova forma de relacionamento homem-natureza. Vamos,

portanto, apresentar algumas das alternativas utilizadas para tal e demonstrar alguns

resultados dessa nova fase.

Page 225: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

226

Utilizaremos como fontes os documentos dos governos, tais como, Planos

Plurianuais, Planos de Gestão, discursos publicados no Diário Oficial da Assembléia

Legislativa, teses acadêmicas que trabalharam essa transição, documentos das ONGs e

documentos de partidos políticos, além de fontes bibliográficas que abordam os temas

ecológicos – ambientais.

Page 226: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

227

4.1 FINCANDO UMA CUNHA NO BI-PARTIDARISMO: A FORMAÇÃO DA FRENTE

POPULAR DO ACRE - FPA.

Desde que os militares tiraram do poder o primeiro governador constitucional eleito

pelo voto popular do Estado José Augusto de Araújo, em oito de maio de 1964, até quinze

de março de 1983, quando tomou posse Nabor Telles da Rocha Júnior, também eleito pelo

voto popular, nas eleições de quinze de novembro de 1982, que o Estado vinha sendo

governado por governadores da Aliança Renovadora Nacional - ARENA, partido que dava

sustentação aos militares no poder. Com a eleição de Nabor Júnior em 1982, inicia-se o

período de governança do PMDB, que tem seqüência com a eleição de Flaviano Flávio

Batista de Melo, em 1986, para em seguida voltar a ARENA, agora sob a denominação de

Partido Democrático Social - PDS com a eleição de Edmundo Pinto em 1990 e de Orleir

Cameli, em 1994 pelo PPR. Em se tratando de eleições para governador esse quadro só se

alteraria em 1998, com a eleição de Jorge Viana, do Partido dos Trabalhadores (PT), dentro

da Frente Popular do Acre (FPA), sua reeleição, em 2002 e a eleição de Arnóbio (Binho)

Marques, também do PT, na mesma Frente Popular, em 2006.

Porém, a construção do ambiente que permitiu a eleição de Jorge Viana para o

governo do Estado, em 1998 e os mandatos subseqüentes da FPA, com a reeleição de Jorge

Viana (2002) e a eleição de Arnóbio (Binho) Marques (2006), não surgiu de uma hora para

outra. Foram necessários longos anos e muito esforço e perseverança da militância dos

partidos que compunham esse campo, para que essa possibilidade fosse concretizada.

As vitórias do PMDB nas eleições de 1982 e 1986, tanto nos níveis executivos,

como legislativos no Acre, seguiam uma tendência nacional de vitórias desse partido, no

bojo das mobilizações pela democracia, pelas eleições diretas para presidente, levadas a

cabo pelo movimento conhecido como “Diretas Já” e dos movimentos que defendiam o fim

da ditadura militar, dos quais o MDB/PMDB era, institucionalmente, o partido da oposição.

Num país que estava mergulhado no obscurantismo orquestrado pelos militares e

civis que os apoiavam, onde seus principais dirigentes agiam “fazendo” suas próprias leis,

as bandeiras da democracia, das garantias e direitos individuais eram tão importantes

quanto às propostas de mudanças nas estruturas econômicas. Consideramos, portanto, que

havia um cunho mais moral do que econômico, nos discursos que diferenciavam os

Page 227: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

228

candidatos do PMDB e da ARENA naqueles anos. A questão da transparência

administrativa, da democratização da vida pública, entre outras, ressoavam com apelo

significativo em setores médios da população que havia sucumbido, perdido a liberdade

mesmo, diante da barbárie dos tempos arbitrários do AI-5, das torturas, dos toques de

recolher e das prisões sem mandados judiciais.

O slogan do governo de Nabor Júnior, por exemplo, era “Participação e Mudança” e

tinha como diretrizes principais:

1) Promoção do crescimento, da renda e do emprego;

2) Redução do nível de preços dos bens essenciais;

3) Reorganização da agricultura;

4) Estabelecimento de maior funcionalidade da economia acreana e;

5) Incentivo à participação comunitária. (Plano de Governo, 1983-86).

Percorrendo esses itens percebemos que quatro, das cinco metas estabelecidas, se

referem à economia, porém, todas elas funcionam como recurso retórico, eram mais

intenções de rearranjos dentro do que estava ocorrendo, ou seja, não havia uma proposta de

modificação na base da economia pecuário-madeireira predatória que havia se estabelecido

no Estado durante os governos abençoados pelos militares.

Quando dizemos que os quatro pontos que se referem à economia são recursos

retóricos, não estamos fazendo uma ilação, posto que, entendemos como muito suspeito se

falar em “reorganização da agricultura”, do item três, por exemplo, quando não se tinha

uma agricultura operante e muito menos, terras que possibilitassem essa “reorganização”, já

que em 1982, as terras do estado estavam nas mãos de poucos proprietários que as haviam

adquirido em operações variadas, passando pela compra e pela grilagem. Ou, o que

significava “estabelecimento de maior funcionalidade da economia acreana”, do item

quatro, se o que estava em evidência eram os desmatamentos e as queimadas para a

construção de fazendas para criação de gado, que sabidamente tinham concentrado ainda

mais as terras e geram poucos empregos? E, o que dizer da extração de madeiras para

exportação, que também não geram muitos empregos na área de extração, haja vista, não

serem beneficiadas nestes locais?

Os itens um e dois são mesmo manifestações de boa vontade, pois geração de

empregos e aumento da renda podem sim ser atribuições do Estado, mas não um Estado

Page 228: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

229

falido e totalmente dependente dos repasses do FPE, como era o caso do Acre no início da

década de oitenta. Já a questão do controle de preços, sabemos que as várias tentativas dos

governos, até mesmo do Governo Federal, tem redundado em fracasso, haja vista, nossa

inserção no mundo globalizado a partir de uma economia dependente e os próprios

mecanismos internos de uma economia capitalista que subordina/limita as ações do poder

público.

Salvo o item cinco, das Diretrizes do Governo, que dizia respeito ao “Incentivo a

participação comunitária‟, que de fato, manteve alguns mecanismos de inclusão através das

secretárias de fomento agrário e das políticas sociais levadas a cabo, ou ainda, da própria

reorientação das polícias no tratamento dispensado aos movimentos populares organizados,

que surtiram efeitos no sentido de fortalecimento desses movimentos, nada mais se operou

de substancial durante esse governo.

É nesse sentido que entendemos que as mudanças de partidos e dos processos de

escolha dos novos governantes e legisladores, por meio de eleições diretas, não apontavam

substancialmente um novo engendramento econômico para o Acre, mas sim, corroborava

com uma reestruturação das configurações político-administrativas, o que de fato

aconteceu. A partir de 1982, os processos de organização social se intensificaram e tiveram

mais liberdade para atuar, principalmente as representações dos trabalhadores rurais, dos

servidores públicos, das associações de bairros e das entidades estudantis.

Esse ambiente de mais liberdade, inclusive, pode ser elencado como instrumento

que ajudará a questionar a validade da mudança de governo, exatamente, porque essa

mudança não refletia os anseios dos diversos segmentos sociais que haviam se

movimentado contra a ditadura e, principalmente, que haviam se mobilizado contra a

arquitetura econômica e social que os governos apoiados pelos militares haviam

implementado nesta região.

Seguindo essa compreensão, a derrota eleitoral do PMDB no governo do Acre, em

1990, não se deu também porque surgiu uma proposta nova que se diferenciasse

substancialmente das concepções de desenvolvimento vigentes até então. Essa proposta

existia e até disputou as eleições naquele ano, já organizada como Frente Popular do Acre

(FPA), sem, contudo, obter êxito eleitoral. Porém, podemos creditar boa parte da derrota do

Page 229: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

230

PMDB, a muito empenho dos militantes da esquerda acreana, especialmente os militantes

do Sindicato dos Bancários do Acre, à época liderados por militantes do PC do B.

Dentre esses militantes, destacamos Sérgio Taboada, João Roberto Brãna, João

Taboada, Perpétua Almeida, Maria Antônia, João Guimarães, Marcão, Façanha,

Mariquinha, etc., e petistas, como Mário Evangelista, Raimundo, Elmira, Haroldo, Vanda,

Jorge Nichelli e; do Sindicato dos Trabalhadores em Educação, que tinha à frente Edvaldo

Magalhães, Vilminha, Valdomiro Andrade, Rita Batista, Moisés Diniz, Henrique Afonso,

Almerinda Cunha, Naluh Gouveia, Rosângela Castro, Luzanira, Eriton Macedo, Cláudio

Ezequiel, Raimunda Bezerra, Cleonice Duarte, Marília Vilas-Boas, Nádia França, Mark

Clark, Olindina Pereira, Zé Maria, Moisés Diniz; do Sindicato das Empresas da

Administração Indireta, liderados por Jair Santos e Gilson; do Sindicato dos Trabalhadores

na Saúde, liderados por Chico Pereira, Costa e Zilmar Cândido; do Sindicato dos

Urbanitários, tendo a frente Frank Batista, Evinaldo Barbosa e Doriane Brito; do Diretório

Central dos Estudantes - DCE-UFAC, tendo a frente Gerson Albuquerque, Neiva Chemith,

Sávio Maia, Sérgio Roberto, Ormifran Pessoa, Fábio Vaz, Francisco Feitosa (Fran), Hildo

Montysuma, Márcio Batista, Wlisses James, Sanderson Moura, Mídia Maciel e vários

outros, que passaram a denunciar ativamente os desmandos e a corrupção identificados

naquele governo e nos direitistas que o seguiram.

O Governador Flaviano Melo e Deusdeth Nogueira, Secretário de Estado da

Fazenda, criaram, durante sua gestão, a conta fantasma denominada Flávio Nogueira, onde

aplicavam os recursos do Fundo de Participação do Estado, atrasavam os pagamentos,

inclusive dos servidores do Estado e ficavam com todos os recursos ganhos nas transações.

Isso num tempo de inflação em alta foi responsável por uma acumulação estimada em

centenas de milhares de dólares (nunca se chegou a um número fixo, mas as estimativas

sempre apontavam para a casa dos milhões, na moeda estadunidense).

Porém, o governo de Edmundo Pinto (PDS) que se elegera aproveitando-se dessa

onda moralizante contra o PMDB, levada a cabo por movimentos que compunham a base

da FPA, não tinha e não representava uma proposta diferente das concepções de

desenvolvimento defendidas pelo PMDB, na verdade, a bandeira da campanha era o

combate à corrupção, seguida por um “acreanismo” que se apoiava nas classes mais

abastadas, como responsáveis pela criação de um modo de vida desejável por todos. Indene

Page 230: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

231

a estas questões, desde o início, o “novo” governo do PDS logo demonstrou que seguiria o

mesmo curso do governo anterior. O envolvimento de alguns secretários desse “novo”

governo com agentes de empreiteiras e desvios de recursos levaram ao assassinato do

próprio Governador. Fato ocorrido num hotel na cidade de São Paulo, às vésperas de um

depoimento que ele prestaria a uma CPI da Câmara Federal, que investigava possíveis

desvios de recursos em obras que envolviam algumas das maiores empreiteiras do país,

dentre as quais a Odebrecht, à época responsável pelas obras do canal da maternidade em

Rio Branco67

.

Com a sua morte assumiu o governo seu vice-governador, Romildo Magalhães, ex-

deputado estadual pelo PDS e antigo militante arenista no seu município de origem, Feijó,

onde havia iniciado a sua “carreira” política como vereador. Homem de pouca escolaridade

e acostumado a conquistar mandatos à base do clientelismo, transformou o governo numa

repartição privada para benefícios próprios, enriquecendo rapidamente e dividindo as

verbas de investimentos do Estado com os empresários aliados. O fato de ter deixado o

Estado em franca decadência abriu espaço para o desejo popular de um “salvador da

pátria”. E ele surgiu.

Em 1994, elege-se governador um dos maiores seringalistas/empresários da

Amazônia, Orleir Cameli, disputando a eleição pelo Partido Progressista Republicano–

PPR, que nada mais era do que a velha ARENA/PDS travestida em mais uma sigla, dentre

tantas outras em que viria a se transfigurar no decorrer dos anos seguintes. Nessas eleições

ele venceu um dos caciques do PMDB, Flaviano Melo, outra vez candidato ao governo, e o

médico infectologista Sebastião Viana, o Tião Viana, irmão de Jorge Viana, que disputava

pela Frente Popular do Acre – FPA. Essa foi a primeira vez que ele concorria em uma

eleição.

A vitória de Orleir Cameli, era a resposta popular à chance que ela tinha dado aos

“novos”, quando levou Edmundo Pinto e Jorge Viana para o segundo turno, na eleição

anterior e, ao eleger o jovem Edmundo Pinto, ela tinha depositado sua esperança na

mudança.

67

- Oficialmente, a morte do governador Edmundo Pinto, que aconteceu dentro de um quarto do Hotel De La

Volpe, na cidade de São Paulo, está configurada nos meandros policiais como sendo um latrocínio, porém há

investigações paralelas (não oficiais), que apontam para crime encomendado. Há inclusive depoimentos de

alguns participantes apontando para “contratantes”. Posteriormente ocorreu, inclusive, a morte de alguns dos

participantes dentro de penitenciárias, que teria sido “queima de arquivo”.

Page 231: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

232

Agora era a hora de dar a vez a um empresário bem sucedido, que no dizer dos

marqueteiros e dos mais pobres (convencidos por aqueles) “não precisava roubar” porque já

tinha o suficiente e, principalmente, porque era um bom administrador, como já havia

demonstrado nos negócios particulares, que o transformaram em um dos maiores

empresários da Amazônia.

Infelizmente, nem os marqueteiros e nem a população estavam certos. A governança

de Orleir Cameli se fez pelo viés da ausência de democracia e pela utilização dos recursos

públicos como se fossem seus, utilizou inclusive, os recursos do Instituto de Previdência do

Estado, deixando a descoberto os aposentados e pensionistas, além de ter deixado sem

salários os servidores públicos e, sem pagamento, os fornecedores do Estado.

Os escândalos envolvendo a compra de um Boeing e a acusação de contrabando, o

escândalo dos CPFs, a atuação do esquadrão da morte, além dos atrasos no pagamento dos

servidores públicos, dentre uma série de outros desvios de conduta, fizeram do governo

Orleir Cameli uma sucessão de desmandos que insultavam até os mais alienados. Esse caos

vai suscitar na população novamente o desejo de mudança68

.

Antes de passarmos à frente, porém, vale destacar outros fatos nessas eleições de

1994, dentre os quais, a vitória de Marina Silva (PT-FPA), para o Senado, ficando a

segunda vaga para o quase “eterno” cacique Nabor Júnior (PMDB) e; a performance geral

da FPA que por pouco mais de 2%, não foi para o segundo turno, mesmo concorrendo com

um candidato neófito (Tião Viana). Esse quadro ajudou a consolidar a presença da Frente

Popular na política acreana, pois estava ficando patente que independente do nome lançado,

essa Frente conseguia manter um razoável patamar de aceitação popular, quebrando o

estigma de que os “meninos do PT” estavam ali apenas pra competir.

Aliado ao desastroso Governo de Orleir Cameli, outro desastre administrativo

acontecia na prefeitura da capital, onde a gestão de Maury Sérgio (PMDB), praticamente,

desmontava um pouco da “arrumação” que Jorge Viana havia feito naquela casa (e na

68

- Entre os anos de 1995 e 1998 o Governador do Acre virou notícia recorrente nos grandes meios de

comunicação nacional, pelos escândalos em que se envolvia. Os mais noticiados foram o da compra de um

Boeing para uso pessoal, que veio carregado com produtos importados não-declarados à Receita Federal e a

denúncia, também feita pela Receita acerca do elevado número de CPFs, registrados em nome do Governador

(em torno de dez). Além dos escândalos pessoais do Governador, o Acre figurava também nos noticiários

nacionais pelos crimes do “esquadrão da morte”, liderado pelo ex-comandante da Polícia Militar, e à época

Deputado Federal, Hildebrando Pascoal.

Page 232: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

233

cidade), durante seu mandato (1992-96). A conjugação desses fatores ajudou muito a

consolidação do quadro que levaria às eleições de 1998.

O ano de 1998 marca também a reunificação dos partidos fundadores da Frente

Popular do Acre (PT e PC do B), bem como a eleição de Jorge Viana como governador por

essa FPA, iniciando o período de predomínio das forças políticas que se apresentavam

como oriundas dos movimentos populares e sindicais, das lutas dos seringueiros e dos

povos da floresta. Nessas eleições, a Frente Popular do Acre já tinha adquirido uma

configuração bem mais ampla, pois havia incluído o Partido Democrático Trabalhista –

PDT, o Partido Social Democrata Brasileiro – PSDB, o Partido da Mobilização Nacional –

PMN, o Partido Liberal – PL, o Partido Popular Socialista – PPS, o Partido Verde – PV, o

Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, O Partido dos Trabalhadores do Brasil – PT do B, o

Partido Socialista Brasileiro – PSB, além, é claro, de PT e PC do B, que haviam iniciado a

construção dessa Frente desde 1989. No total a coligação contava com doze partidos, seis a

mais do que a coligação que havia se formado na disputa da prefeitura da capital, em que o

mesmo Jorge Viana se elegeu prefeito. Tanto nas eleições municipais de 1992, como nas

eleições estaduais de 1998, o candidato a vice, saíram dos quadros do PSDB. Regina Lino

foi a vice-prefeita e Edson Cadaxo o vice-governador.

Esta composição tão ampla se justificava a medida que os dirigentes e marqueteiros

da FPA iam conseguindo imprimir uma concepção maniqueísta nos processos eleitorais,

onde se consagrava a idéia de que havia um lado bom e um lado ruim na política acreana, e

cabia aos partidos e a população escolherem de que lado ficar. O lado bom, obviamente, era

o da FPA. Essa ampliação, contudo, gerava insegurança nos setores mais à esquerda dentro

da própria FPA, que temiam por uma “contaminação”, já que muitos desses partidos que

foram se incorporando à Frente, haviam se formado exatamente por dissidentes do PMDB e

do PDS, além do que muitos desses políticos estavam ingressando também no PT.

Importante salientar que no início da década de noventa (1992), a força da Frente

Popular já havia se manifestado nas eleições municipais, quando ocorreu a eleição de Jorge

Viana para prefeito da capital, tendo como vice Regina Lino do PSDB e de alguns

vereadores da mesma coligação para a Câmara Municipal, com destaque para Francisca

Marinheiro do PT, que era oriunda das CEBs, Marcos Afonso do PC do B, oriundo do

movimento estudantil e sindical e o médico Júlio Eduardo do PV, com entrada em setores

Page 233: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

234

médios da população da capital. Porém, esse parlamento não recebeu a mesma votação do

candidato majoritário, deixando o prefeito em minoria naquela casa legislativa.

O mandato conquistado pela Frente Popular em Rio Branco para o cargo de

prefeito, com a eleição de Jorge Viana, marca também uma nova fase no relacionamento

dos partidos que compunham a frente com os setores mais abastados da população acreana,

bem como uma nova forma de dirigir os partidos dessa base, onde a “importância” de quem

exercia os mandatos começava a suplantar as formas tradicionais das direções partidárias.

Obviamente, identificamos nessa mudança o resultado de processos subjetivos, onde os

detentores de cargos, se faziam “respeitar”, algumas vezes pela sua própria capacidade de

convencimento, outras, pelo poder conferido pelo cargo.

Jorge Viana, por exemplo, que havia ingressado no PT para disputar as eleições de

1990, demonstrou grande desenvoltura naquele processo e se transformou num quadro

político muito respeitado em curto espaço de tempo. O novo tipo de relacionamento

estabelecido com os setores mais abastados permitiu que nas eleições seguintes, as

“facilidades” começassem a aparecer, tipo doações de campanha, que nas disputas

anteriores eram impensáveis, “profissionalização das campanhas” com a contratação de

marqueteiros, cabos eleitorais, etc. Tudo isso sendo apoiado pelo número crescente de

assessores, que ao ocuparem cargos nas estruturas administrativas, passavam a “obedecer”

mais a quem instituía, a quem nomeava, do que as estruturas partidárias tradicionais.

Desde a primeira experiência administrativa da Frente Popular foi estabelecendo-se

também uma disputa entre os militantes tradicionais, formados no calor das lutas para

organizar sindicatos, para organizar os empates, para enfrentar governos corruptos, contra

os novos e pragmáticos “militantes” que cercavam os postos administrativos. Esse fato vai

afastar muitos dos antigos militantes e “empurrar” a Frente Popular para uma

“profissionalização da militância”, ou seja, uma “profissionalização” que se parece mais

com um eufemismo para a atualização dos “velhos” cabos eleitorais.

O processo de ascensão da Frente Popular aos postos de mando nas estruturas

político-administrativas do Estado vai, contraditoriamente, formar dois pólos de oposição:

um proveniente das antigas forças políticas do Estado, que em alguns momentos

conseguiram se unificar e; outro, entre setores dos próprios fundadores dessa frente, que

enxergam nas políticas traçadas, uma negação dos seus princípios fundadores. Nesse campo

Page 234: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

235

militam principalmente os que entendem como insustentáveis, ou insuficientes as políticas

desenvolvidas pelos governos da Frente, no sentido da inclusão social e da defesa do meio

ambiente.

No âmbito da própria Frente Popular, nem sempre as coisas foram fáceis. Nas

eleições municipais de 1996, a “Frente” na capital perdeu sua composição inicial,

principalmente por disputas entre o PT e o PC do B. O fato conflitante que levou ao

rompimento se deu em torno da saída do vereador Marcos Afonso, do PC do B, partido do

qual era dirigente e havia sido eleito, para ingressar, logo em seguida, no PT. Como o PT o

indicou como candidato a prefeito da capital, o PC do B se recusou a apoiá-lo, resultando

num rompimento entre os dois partidos responsáveis pela formação da Frente Popular no

Estado. Com esse “racha”, o PC do B saiu com candidatura própria, indicando o

sindicalista e Deputado Estadual Sérgio Taboada, como candidato a prefeito. Essa divisão,

mesmo que a população reconhecesse a boa administração da Frente, favoreceu a oposição,

que ganhou as eleições com o candidato Maury Sérgio, do PMDB.

O consolo nessas eleições veio do interior, onde pela primeira vez a “Frente”, que

havia se mantido em alguns municípios, elegia prefeitos, um dos quais, Júlio Barbosa do

PT - FPX, no município de Xapuri que era oriundo do movimento dos sindicatos de

trabalhadores rurais e líder dos seringueiros dessa região conflagrada. Em outro município,

Tarauacá, ganhou o médico Jasone Silva do PT - FPT, tendo como vice Moisés Diniz do

PC do B, também oriundo do movimento sindical. O outro prefeito eleito nesse pleito,

Jorge Almeida, do PT - FPMU, no município de Manuel Urbano, não tinha ligações

sindicais.

Mesmo após a esmagadora vitória de Jorge Viana para o governo do Estado em

1998, a Frente Popular não conseguiu eleger o prefeito da capital em 2000. Disputando com

o professor Raimundo Angelim (PT-FPRB), candidato pela primeira vez, a Frente Popular

de Rio Branco perdeu para o ex-prefeito, ex-governador e ex-senador Flaviano Melo do

PMDB. Independente do revés sofrido na capital nessas eleições, o PT e os partidos aliados

conseguiram ampliar suas participações nos legislativos municipais e ganharam dez

prefeituras das vinte e duas em disputa, mas, as duas maiores (Rio Branco e Cruzeiro do

Sul) ainda permaneceram sob o domínio dos partidos tradicionais.

Page 235: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

236

Em 2002, Jorge Viana é reeleito governador, dessa vez com um vice do próprio PT,

o professor Arnóbio (Binho) Marques e, junto com ele, houve a reeleição de Marina Silva -

PT senadora e a eleição de Geraldo Júnior como senador, esse na sigla do PSB, também na

Frente Popular. Nessas eleições as bancadas da Câmara Federal e da Assembléia

Legislativa, também foram amplamente favoráveis aos quadros da Frente Popular,

garantindo maioria a essa força política. Outro fato relevante que marcou essas eleições foi

a derrota de Nabor Júnior para o senado, visto que ele representava um dos últimos

remanescentes do poderio dos ex-seringalistas como mandatários da política acreana69

.

Um fato que chama bastante a atenção nesse processo de crescimento da força da

Frente Popular do Acre é que a grande aceitação popular tem se dado mais a partir de um

reconhecimento da competência administrativa, da organização da estrutura e prestação dos

serviços sob encargo do Estado, do que a própria proposta de mudança na estrutura

econômica que é a principal carta de apresentação dessa força política. Mesmo que, desde o

primeiro mandato como Governador, Jorge Viana tenha batizado seu governo como

“Governo da Floresta” e tenha adotado uma árvore estilizada como símbolo do governo, a

sua visibilidade tem sido mais destacada em virtude da “arrumação” do Estado.

Este fato se explica: desde o governo Nabor Júnior até o governo Orleir, o estado

vinha paulatinamente sendo sucateado, não só os espaços públicos, como também os

meandros da administração, que eram caracterizados pela corrupção, sendo que os

governos de Flaviano Melo e Orleir Cameli ganharam mais destaque neste quesito, pois

seus escândalos ocuparam mais espaços nas diversas mídias, inclusive nacional.

Esse ritmo de crescimento também aconteceu nas eleições municipais de 2004, onde

o agora deputado estadual Raimundo Angelim (PT – FPRB), ganhou as eleições para

prefeito da capital e a bancada de vereadores eleitos pela Frente, também foi vencedora,

garantindo maioria naquele parlamento. No restante do Estado, os partidos que compõem a

Frente, conseguiram eleger a maioria dos prefeitos e ampliar suas bancadas nas Câmaras

municipais.

69

- Desses considerados políticos tradicionais, só resta Flaviano Melo em atividade, haja vista sua recente

eleição em 2006 para a Câmara Federal. Pelo lado do antigo PDS, os remanescentes agora agregados no

Partido Progressista – PP, atualmente fazem parte da Frente Popular do Acre. Seu último grande cargo foi

exercido pelo ex-governador, ex-senador biônico Jorge Kalume, como prefeito da capital, em 1988 e, pelo

“novato” Orleir Cameli, em 1994, mas este não era um político profissional, embora seja um velho “coronel”,

no sentido do poder econômico que representava desde os tempos dos seringais.

Page 236: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

237

Como resultado desse processo de crescimento, nas eleições de 2006, Arnóbio

(Binho) Marques que era vice-governador e nunca tinha disputado uma eleição diretamente,

foi eleito governador, no primeiro turno. Tião Viana foi reconduzido tranquilamente ao

senado e as bancadas de deputados federais e estaduais se ampliaram.

Essa retrospectiva eleitoral, aqui apresentada, nos serve para dimensionar como essa

nova força política foi conquistando, paulatinamente, os espaços institucionais dentro do

Estado, fincando uma cunha no bi-partidarismo e elegendo outros conceitos norteadores do

desenvolvimento como políticas públicas. Vejamos então, que outros fatores foram sendo

articulados para que essa cunha fosse sendo cravada na bipolaridade reinante na política

acreana até o início da década de noventa.

Durante a década de oitenta as diversas forças políticas que coexistiam no Estado,

situadas no campo da esquerda, embora com boas vinculações nos movimentos sociais, não

conseguiam reproduzir suas influências nas urnas. Disputavam as eleições majoritárias e

proporcionais sem causar grandes sustos as duas forças que dominavam a cena política, ou

seja, PDS e PMDB.

Em 1982, o PT chegou a disputar as eleições para governador tendo como candidato

Nilson Mourão e como candidato a vice-governador Elias Rozendo, o primeiro, oriundo das

Comunidades Eclesiais de Base e o segundo, oriundo do movimento sindical dos

trabalhadores rurais. Nessas eleições o PT consegue eleger um deputado estadual, José

Melo, o que foi considerado uma surpresa, pois o mesmo provinha do município de

Cruzeiro do Sul, que embora seja o segundo maior município do Estado, em termos

populacionais, era também, o mais distante da capital e onde o PT tinha pouquíssima

influência. Fato que logo depois de eleito José Melo, por não ter nenhuma ligação,

nenhuma afinidade ideológica e, pouquíssimo conhecimento das propostas do PT, foi se

incompatibilizando com estas e acabou expulso do partido. O outro partido de esquerda o

PC do B, ainda na clandestinidade, incluiu dois de seus militantes entre os candidatos do

PMDB, na chamada “tendência popular”, conseguindo suas eleições, tratava-se do ex-

padre, Manoel Pacífico, eleito deputado estadual e de Airton Rocha, eleito vereador na

capital.

Page 237: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

238

Nas eleições de 1986, o PT lança novamente candidatos às eleições majoritárias,

dessa feita com o agrônomo Hélio Pimenta tendo como vice o professor e sindicalista

Antônio Manuel. Nessas eleições lançou também o ex-seringueiro José Mathias para o

senado, Marina Silva para deputada constituinte e Chico Mendes para deputado estadual,

nenhum obteve êxito. O PC do B já disputando pela sua própria sigla lançou seu deputado

estadual, Manoel Pacífico para disputar uma cadeira de deputado constituinte e o professor

e sindicalista, Paschoal Torres Muniz para a Assembléia Legislativa, também não obtendo

êxito. Nessas eleições o PMDB não só elegeu o governador (Flaviano Melo), como também

as duas vagas de senador que estavam em disputa com Nabor Júnior e Aluisio Bezerra,

além de cinco das oito cadeiras de deputados federais, as outras três, obviamente ficaram

com o PDS.

Em 1988, nas eleições municipais essas forças políticas ligadas aos trabalhadores

extrativistas e aos sindicatos urbanos, começam a galgar alguns degraus na escalada da

política acreana. O PT concorre mais uma vez com candidatura própria para os cargos

majoritários (prefeito e vice) com Nilson Mourão e Raulino Saraiva, nesse pleito contou

com o apoio do Partido Verde (PV) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB), não obtendo

êxito, mas Marina Silva foi eleita vereadora pelo PT na capital como campeã de votos. No

interior do Estado o PT consegue eleger também alguns vereadores, principalmente em

Xapuri e em Brasiléia, focos dos conflitos de terras e berços dos empates, onde elege três e

dois vereadores respectivamente. O PC do B concorre à prefeitura pela primeira vez sob

sua própria legenda, com Luis Marques, que teve fraco desempenho, o mesmo acontecendo

com seus candidatos a vereador. Nessas eleições sagrou-se prefeito o ex-governador e ex-

senador (biônico) Jorge Kalume do PDS.

Durante toda a década de oitenta, além das frágeis participações nas eleições, as

forças de esquerda ainda tinham que garantir energias para os embates internos e entre si.

PT e PC do B, particularmente, se engalfinhavam em infindáveis disputas para saber quem

era o responsável pelo “colégio eleitoral”, pela “eleição” de Sarney, e depois, pelo fracasso

do socialismo na ex-URSS, pelos “assassinatos” na Praça da Paz Celestial na China, pelos

crimes de Stálin e, obviamente, as disputas pelos sindicatos urbanos e rurais e organizações

estudantis.

Page 238: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

239

Mesmo assim, algumas personalidades oriundas dos movimentos sindicais rurais e

urbanos e das comunidades eclesiais de base vinham consolidando suas presenças nos

espaços da política tanto local como internacional, Chico Mendes é o caso mais relevante.

O reconhecimento dessas lideranças em nível nacional, inusitadamente, se deu depois que

elas estavam já bastante conhecidas em algumas esferas do poder em nível internacional.

Berta Becker (2004: 107), por exemplo, refere-se à criação do Conselho Nacional dos

Seringueiros (CNS), em 1985, como um marco histórico, um modelo inovador de

representatividade, que junto com a criação das reservas extrativistas, redirecionaram as

políticas públicas na Amazônia, fato que no Acre era, de pouca importância, principalmente

para as estruturas governamentais. Para Becker, no entanto:

Dois processos opostos têm como marco o ano de 1985. Por um lado, o esgotamento do nacional

desenvolvimentismo inaugurado na era Vargas com a intervenção do Estado na economia e no

território, cujo último grande projeto na Amazônia é o Calha Norte. Por outro lado, neste mesmo

ano, um novo processo tem início com a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros,

simbolizando um movimento de resistência das populações locais – autóctones e migrantes – à

expropriação da terra. À crise do Estado e à resistência social, somou-se a pressão ambientalista

internacional e nacional para gerar um vetor tecno-ecológico (VTE) na dinâmica regional que,

predominando entre 1985-1996, configurou na Amazônia uma fronteira socioambiental. (BECKER,

2004: 27). (destacamos).

No final desta década, contudo, a conjuntura local e nacional vão se cruzar por dois

acontecimentos importantes, que terão impactos bem profundos no Acre. Primeiro o

assassinato de Chico Mendes no final do ano de 1988 e toda a repercussão internacional

ocasionada por este fato. Segundo a formação da Frente Brasil Popular (FBP), que juntou o

PT, o PC do B e o PSB, em nível nacional no apoio à candidatura de Luis Ignácio Lula da

Silva à presidência da República, em 1989. Essa coligação em nível nacional ajudou a

juntar no Estado essas forças que teimavam em priorizar as disputas entre si, em detrimento

do enfrentamento com as forças mais conservadoras.

A campanha de Lula levada a cabo pela Frente Brasil Popular inaugurou a unidade

das principais forças de esquerda no Acre, juntando as militâncias do PT e do PC do B,

mais tarde reforçada pelo PV e PSB, que mudaram os rumos das campanhas políticas no

Estado. Pela primeira vez saiam às ruas estudantes universitários e secundaristas,

professores, sindicalistas urbanos e rurais, agentes pastorais das CEBs e moradores dos

bairros mais diversos para, espontaneamente, fazer campanha política de casa em casa, bem

Page 239: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

240

como para participar de comícios, bandeiraços e panfletagens. Os estudantes,

especialmente, se encarregavam de cantar palavras de ordem e de transformar as reuniões

em animadas festas. Na verdade houve uma substituição do velho “cabo eleitoral”, pelo

militante político e ideologicamente engajado.

Essas manifestações populares ajudaram a mudar o curso das campanhas políticas

no Estado, haja vista que elas estavam engessadas no modelo dos comícios, onde

comumente os partido tradicionais traziam um cantor de sucesso para servir como atração

da população para seus eventos, onde as bandeiras eram agitadas por “cabos eleitorais” e os

discursos eram rebuscados no sentido de projetar o candidato para a condição de grande

debatedor, grande conhecedor dos problemas da população e, obviamente, o único capaz de

resolvê-los. O comício como uma pantomima, que priorizava a forma e descartava o

conteúdo.

A entrada em cena da militância partidária, sindical, estudantil e popular foi

mudando essa situação por introduzir conteúdo diferenciado aos “arrastões” e panfletagens,

quando buscava convencer os eleitores através de explicações sobre os processos que

estavam em curso no Estado, principalmente com a contestação do modelo pecuário-

madeireiro e a apresentação de uma visão de mundo ancorada no ambientalismo, no

respeito a natureza e na diversidade, tanto cultural, como econômica. Becker, mais uma vez

nos ajuda no reforço desse entendimento quando, projeta em termos mais amplos essas

mudanças que estavam ocorrendo na Amazônia, na perspectiva de que:

Os conflitos das décadas de 1970 e 1980 transfiguraram-se, organizando suas demandas em

diferentes projetos de desenvolvimento alternativos, conservacionistas, elaborados a partir de baixo.

Para sua sobrevivência, graças às redes transnacionais, contam com parceiros externos, tais como

ONGs, organizações religiosas, agências de desenvolvimento, partidos políticos, governos. Trata-se

de novas territorialidades que resistem à exploração de experimentos associados à bio-

sociodiversidade. Cada um desses experimentos se desenvolve em um dado ecossistema, com

populações de origem étnica e/ou geográfica diferente, estrutura socioeconômica e política, técnicas

e parcerias diversas. Enfim, a estratégia básica desses grupos é a utilização das redes de comunicação

que lhes permitem se articular com atores em várias escalas geográficas. (BECKER, 2004: 28).

Assim como Becker, compreendemos os conflitos como geradores de novas

possibilidades, de construções endógenas e exógenas, que influenciaram setores da

população na articulação de novas fronteiras para o reposicionamento de seus modos de

vida, mormente o que incluía a componente ecológico-ambiental como “fundamental

Page 240: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

241

potencialidade”, não só para as populações diretamente envolvidas como também, para

incluir outros setores que se viam afetados pelas políticas predatórias.

Esta compreensão de Berta Becker está bem demonstrada numa fala de Jorge Viana,

proferida numa mesa-redonda comemorativa da Semana do Meio Ambiente, que tinha

como tema o “Desenvolvimento Sustentável: novos paradigmas X novas perspectivas para

o Acre, conforme matéria do jornal A Gazeta:

A palestra contou com a participação do governador Jorge Viana (PT). Ele fez a abertura do evento

ressaltando que a importância de se compreender e de se praticar o desenvolvimento auto-sustentável

no Estado. Viana afirmou que o seu governo está trabalhando no sentido de estruturar esse

desenvolvimento. Ele citou o lançamento da logomarca do seu governo como intenção deste

propósito. A logomarca tem uma composição simples: uma árvore tipo seringueira. Viana explicou

que a simplicidade da logomarca tem o significado do primeiro passo do estado para a valorização do

desenvolvimento auto-sustentável. “Neste primeiro ano, lançamos uma árvore. No segundo,

podemos lançar duas. No terceiro, três e, quem sabe no quarto uma floresta”, disse o governador.

(Desenvolvimento sustentável é tema de palestra. Jornal A Gazeta. Rio Branco, 05/06/1999).

No ano de 1990, quando ocorreram as eleições estaduais, a esquerda manteve-se

unida, formando a Frente Popular do Acre – FPA, que reuniu o PT, O PC do B, o PDT, o

PCB e o PV, apresentando a candidatura do jovem engenheiro florestal Jorge Viana (PT)

para o cargo de Governador e do médico comunista José Alberto (PC do B) para vice. Jorge

Viana enfrentou no primeiro turno as candidaturas de Osmir Lima, pelo PMDB; Rubem

Branquinho, pelo PFL, cuja candidatura estava ligada a UDR; Edmundo Pinto, pelo PDS e;

Réssine Jarude, pelo PSDB, tendo Edmundo Pinto e Jorge Viana passado ao segundo turno

com uma diferença de apenas 360 votos em favor do primeiro. No segundo turno, Edmundo

Pinto venceu as eleições por pequena margem de votos, contando com o apoio dos outros

concorrentes, exceto Réssine Jarude do PSDB e alguns setores do PMDB que apoiaram

Jorge Viana.

O marco nessas eleições é que pela primeira vez os “inimigos” históricos PDS e

setores do PMDB, figuravam juntos no mesmo palanque (2º turno), contra uma força até

então “impensável”, do que era consagrado na imprensa acreana como “os meninos do PT”.

Essa expressão era usada também, em tom jocoso, pelo candidato Edmundo Pinto (que

embora também fosse jovem, já era “antigo” na política, pois começou a exercer mandatos

muito cedo, primeiro como vereador depois como deputado estadual), no sentido de

Page 241: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

242

desqualificar os candidatos da Frente Popular do Acre, por serem todos neófitos na política,

ou por nunca terem exercido mandatos.

Mesmo com a derrota, a candidatura de Jorge Viana inaugurou uma nova fase na

política acreana onde, pela primeira vez na sua história, uma força política que não era

oriunda do bi-partidarismo tradicional, disputava com chance de vitória uma eleição

majoritária. Mas o fato diferenciador mesmo foi a manutenção de um ritmo de campanha

espontânea, militante, que costurava bandeiras, fazia pinturas em muros, pintava camisetas

e confeccionava o próprio material de campanha e usava orgulhosamente o adesivo do

candidato no peito. Dessas lutas surgiram os militantes da Frente Popular do Acre.

Nessas eleições de 1990, pela primeira vez também, foram eleitos parlamentares

para a Assembléia Legislativa pela legenda da Frente Popular do Acre, oriundos do

movimento sindical e das CEBs, sendo dois pelo PT (Marina Silva e Nilson Mourão) e um

pelo PC do B (o sindicalista Sérgio Taboada), pelo PC do B ainda, embora tenha sido um

dos mais bem votados, o professor e Jornalista Marcos Afonso não conseguiu legenda para

a Câmara Federal. O PMDB ficou com cinco cadeiras e o PDS com três, das oito que o

Estado ocupa naquela Câmara e a cadeira de senador em disputa, com Flaviano Melo do

PMDB.

Outro elemento diferenciador nessas eleições de 1990 foi a introdução de um novo

discurso. Um discurso que ia além das pautas corriqueiras de melhorias na saúde, educação,

na segurança, do combate a corrupção, etc. Os dois candidatos que foram ao segundo turno

apresentavam perfil distinto, não só pela idade, os dois eram muito jovens, mas também

pela introdução de uma espécie de acreanismo, que no primeiro turno justificava-se, tendo

em vista que as pesquisas apontavam para a vitória de Rubem Branquinho, que além de não

ser natural do Acre, representava os grupos dos fazendeiros e madeireiros. Porém, o

acreanismo da Frente Popular do Acre tinha outros ingredientes: a defesa do meio

ambiente, numa clara oposição ao modelo pecuário-madeireiro que havia se instalado no

Estado e a representação dos povos da floresta, que eram apresentados como a verdadeira

“cara” do Acre. Nesse sentido, se diferenciava da candidatura de Edmundo Pinto, que

também fazia um discurso acreanista, mas era assessorado por “estrangeiros” e seu viés era

apenas bairrista, anti-Rubem Branquinho.

Page 242: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

243

A vertente “ambientalista” da Frente Popular não se dava porque o candidato Jorge

Viana era um engenheiro florestal, antes, se dava porque estava casada com a luta dos

trabalhadores extrativistas, principalmente, relacionada com toda a trajetória iniciada com

os empates. Nesse sentido, a morte de Chico Mendes e toda a repercussão que ela causou,

por sua vez, alertaram alguns setores da sociedade para a importância que os temas

ambientais estavam ganhando em nível internacional e projetou possibilidades de alianças

com setores que poderiam contribuir para melhorar as propostas de um novo tipo de

governo, que se julgava, era necessário para reorganizar o Estado e promover as mudanças

no curso destruidor em que ele estava mergulhado.

Juntando tudo isso ao fato de uma nova força política ter surgido no Estado,

causando perplexidade aos “velhos coronéis” remanescentes do poderio dos seringalistas,

aos grandes comerciantes e pecuaristas, estas eleições marcaram também a introdução do

discurso ambientalista como orientador dos debates políticos que ganharam corpo ao longo

daquela década, revertendo a bi-polaridade política e expondo de forma mais precisa os

novos contornos dos segmentos sociais no Estado, especialmente a nova visibilidade dos

seringueiros.

Estamos cientes de que as lutas ambientais como assunto de Estado, não se

originaram na campanha de 1990, elas já tinham ganhado importância desde pelo menos o

início da década de oitenta, mesmo que consideremos que as lutas dos trabalhadores

extrativistas até o início daquela década, se concentravam na questão da terra. Mas, é

importante salientar que, desde o governo de Geraldo Mesquita (1975–1979), sucessor

imediato de Wanderley Dantas, que a questão dos desmatamentos e da violência nos

seringais vinha ganhando relevo na preocupação dos governantes, não ainda como política

de governo, ou por preocupações ambientais, mas por causa dos “estragos” e conflitos

sociais que vinham provocando.

Porém, foi durante o governo de Flaviano Melo, iniciado em 1987, que fruto das

pressões do PPG7 e das agências de financiamento BID e BIRD, principalmente, por conta

da liberação de recursos para o asfaltamento da BR-364, no trecho Porto Velho (RO) – Rio

Branco (AC), que elas vão paulatinamente se fazendo mais presentes na ordem do dia, mas,

ainda não eram questões que constassem como pauta dos programas de governo. Sua

existência estava restrita à adaptação de condições impostas pelos financiadores, ou seja,

Page 243: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

244

para esses governos as preocupações ambientais entravam na pauta como transversalidades

ou, como obrigações por conta das imposições para acesso a financiamentos,

principalmente.

Para termos uma imagem mais próxima, de como os organismos multilaterais foram

ajudando a pautar as questões ambientais no Acre, identificamos essa matéria publicada no

jornal Gazeta do Acre, em que o BID, segundo seu Gerente de Operações no Brasil a

época, William Brisbane, informava que desde 1983, havia incluído nas suas exigências

para concessão de financiamentos, preocupações ambientais e para fazer valer esse quesito

o Banco criara um “Comitê de Meio Ambiente”, cuja função era informar a direção do

mesmo sobre os impactos causados pela utilização dos recursos oriundos de seus

empréstimos. Vejamos parte da matéria, cujo título é: BID tem US$ 1,5 milhão para

extrativismo:

O gerente de Operações do BID no Brasil acrescentou que nos próximos seis meses a missão do

Banco no Rio de Janeiro, com vinte técnicos, receberá um técnico habilitado para trabalhar com a

classificação de projetos de Aspecto Ambiental Significativo – o primeiro a ser enviado para um dos

escritórios do Banco no Mundo. Segundo ele, o BID trabalha com a questão do meio ambiente em

dois tipos de projetos: para atenuar os impactos de iniciativas como no PMACI, e para melhorar o

índice de contaminação ambiental, como na poluição ambiental de Cubatão. Na mudança de filosofia

do Banco, disse Brisbane, “os ecologistas tiveram a contribuição de ajudar na conscientização muito

positiva. Hoje qualquer organismo financeiro internacional não pode mais financiar projeto só pelo

aspecto produtivo, mas de forma equilibrada com os aspectos sociais e ambientais. Impossível

separar os dois fatores. Os ecologistas brasileiros nem do exterior vão deixar”. (BID tem... Jornal

Gazeta do Acre. Rio Branco, 1988).

Nessa mesma matéria é possível perceber o papel dos ambientalistas internacionais

participando ativamente das operações de liberação de recursos desse banco e das

orientações para seu uso, vejamos outro trecho da matéria:

O gerente de Operações do Banco Interamericano de Desenvolvimento no Brasil, sediado no Rio de

Janeiro, William D. Brisbane, disse ontem no SENAC, durante o seminário sobre meio ambiente na

Amazônia, que a instituição financeira que representa, fixou um limite entre US$ 1 milhão e US$ 1,5

milhão de dólares para a implementação de uma reserva extrativista no Acre. O projeto, segundo ele,

não incluía a compra de terras, - um problema a ser resolvido pelo governo do Estado – mas

destinará recursos para criação de escolas, postos de saúde, crédito para reativar mini-usinas, e para a

comercialização de produto final. William Brisbane ressaltou que não se trata de empréstimo, mas de

doação a fundo perdido, e que com a colaboração da economista Susanna Hecht e do antropólogo

Steve Schwartzman, o projeto já existente será atualizado para ser apresentado no BID no prazo de

dois a três meses. O gerente de operações do BID no Brasil, quinta feira à noite, apresentou a

proposta ao governador Flaviano Melo, que, segundo ele, demonstrou interesse na sua viabilização.

(idem).

Page 244: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

245

Schwartzman, Hecht, Brisbane, Clay, Watson, Gross, são alguns dos sobrenomes

estrangeiros de representantes de ONGs e organismos multilaterais que atuaram na

Amazônia, dentre tantos outros, no sentido de cristalizar as temáticas ambientais como

políticas de governo. Nesse sentido, as forças de esquerda no Acre, não só assumiram o

discurso ambiental, como se fizeram aliados das corporações, ONGs e organismos

multilaterais que apregoavam esse credo, com relativo sucesso, principalmente depois que

começaram, na política partidária, a assumir os postos chaves do comando das cidades e do

Estado.

A década de oitenta, portanto, que é considerada em nível nacional como a “década

perdida”, pelo fato do Estado brasileiro ter perdido sua condição de investimento,

principalmente em “grandes projetos estruturantes” (o último na Amazônia havia sido o

Calha Norte, natimorto devido a falta de recursos), permitiu que no vácuo de políticas do

Estado (Governo) surgisse outra força, inicialmente paralela, depois superposta aquele, com

caráter mais difuso, visto que a proposta de um novo tipo de desenvolvimento, que

considerava as questões ambientais como determinantes, não tinha um único defensor,

embora possa ter uma única origem.

De qualquer forma, essa força foi ganhando espaço, não só entre os partidos de

esquerda, mas também entre os órgãos institucionais e outros organismos multilaterais, bem

como entre alguns segmentos sociais que não se enquadravam nessas estruturas. O próprio

governador Flaviano Melo, que tinha dificuldade de lidar com os problemas ambientais,

após viagem aos Estados Unidos para negociar com técnicos do BID e entidades ambientais

a aprovação do Programa de Proteção ao Meio Ambiente e Comunidades Indígenas

(PMACI), comentou:

“Os americanos e a Europa querem a preservação do meio ambiente. Então, devem ajudar nosso

governo a fazer isso. Nós, acreanos, temos outra visão, pois queremos desenvolver o Estado e

preservar o meio ambiente ao mesmo tempo, para sairmos dessa situação de miséria em que vive

parte da população atualmente”. (...) “Os americanos e soviéticos sabem muito bem que, se

continuarem pressionando apenas através de palavras, outras devastações iguais a Rondônia

continuarão acontecendo. Precisam dar uma proteção real, ou seja, uma opção de desenvolvimento

preservacionista que só pode ser conseguido através de financiamentos. Fora disso, não há nada”.

(Flaviano: BID apóia o Plano de Desenvolvimento. Jornal A Gazeta. Rio Branco, 1989).

Na mesma matéria o embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Marcilio Moreira de

Matos, em conversa com o governador afirmou:

Page 245: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

246

“O ambientalismo veio para ficar! O Brasil serve apenas no momento, como bode expiatório na

questão como foco das atenções mundiais. Dependendo das respostas que o país apresente, a

exemplo desse projeto, tudo voltará à calma dentro de poucos anos”. Ele afirmou ainda que

naquela semana uma equipe americana e outra da União Soviética estavam em Washington

decidindo que tipo de pressão passarão a exercer sobre os demais países do mundo para que

preservem o meio ambiente. (idem). (grifamos).

Nem Flaviano Melo, nem Marcílio Moreira estavam certos em suas previsões, pois

os Estados Unidos e a Europa continuaram sim, a pressionar os governos estaduais e

federal à respeito das questões ambientais e, mais, não disponibilizaram recursos para tal

empreendimento, nem em seus próprios territórios, nem nos dos demais países, na medida

em que eles queriam, ou necessitavam. As derrocadas da ex-União Soviética e do leste

europeu no final da década de oitenta e as crises do neoliberalismo a partir da década de

1990, deslocaram as atenções dos governos centrais para outros temas, ou melhor, para

outros negócios. O que não significou que as entidades ambientais, especialmente as ONGs

originárias daqueles países não continuassem pressionando sobre o tema.

A proposta de planejamento, de valorização dos ativos ambientais, portanto, vai ser

articulada quase que totalmente fora do organograma institucional do Estado. No caso do

Acre, os vocábulos e conceitos que sustentam o ambientalismo, o desenvolvimento

sustentável, e depois a florestania, vão fazer parte de um debate que opunha concepções de

desenvolvimento, tendo como palco as campanhas eleitorais, as mobilizações sociais, os

debates acadêmicos, de forma que sua presença não podia mais simplesmente ser ignorada.

Com a ascensão ao poder da Frente Popular, não só estava fincada uma cunha no

velho bi-partidarismo, como a própria natureza dos debates, estava sendo também

modificada. Uma modificação tão profunda que “empurrou”, inclusive, os partidos de

esquerda para essas “novas” temáticas. A cunha fincada separou conceitos e reorientou as

lutas políticas. A fronteira socioambiental emoldurou outros territórios de atuação, incluiu

alguns segmentos sociais subalternos, marginalizados, redundantes e elevou seu grau de

importância para um grau que extrapolou, que transcendeu mesmo, as populações do

entorno.

Mas, como não poderia fugir do âmbito da política, a fronteira ambiental gerou um

conflito de interesses que colocou de lados opostos os conservacionistas/preservacionistas e

sustentabilistas, contra os “desenvolvimentistas”. Esse processo foi também,

paulatinamente, separando interlocutores. Se no início da década de setenta os militares e

Page 246: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

247

seus aliados civis falavam em desenvolver a Amazônia, a partir dos meados desta mesma

década, os seringueiros se organizavam para “empatar” aquele tipo de desenvolvimento.

Naquele momento, eles “falaram” com suas ações. Porém, passadas pouco mais de duas

décadas, mudaram praticamente todos os interlocutores, elegeram-se novos representantes e

as palavras já não estão mais só com os representados, também extrapolaram seus

ambientes.

As bordas, as fronteiras dos conceitos de desenvolvimento colocados em oposição,

não são pacíficas. As disputas eleitorais se elastizaram, isto é, se expandiram para disputas

econômicas, sociais e culturais, ao ponto de gerarem processos agressivos, ameaçadores

mesmo para seus defensores. Marina Silva, por exemplo, mesmo depois de eleita Senadora

da República era “proibida” de descer em alguns aeroportos do Estado, acusada que era por

políticos daqueles municípios de ser contra o asfaltamento da BR-364. Diferente dela, que

era respaldada por um mandato popular, muitos militantes sem as mesmas prerrogativas,

sofriam ataques e intimidações nos mais diversos rincões do Estado, por se posicionarem

politicamente contra o modelo predatório de “desenvolvimento” defendido pelas forças

políticas, até então, fortes no sentido eleitoral e econômico.

A cunha que separou partidos políticos, que abriu espaço para outras forças,

também contribuiu para separar segmentos sociais, à medida que as pessoas iam se

posicionando contra e/ou em favor de determinadas opções, não só as da política partidária

em si, mas também a dos projetos que cada uma representava. O espaço aberto pela cunha

partidária trouxe consigo uma separação temática, constitutiva de novos modos de ver o

mundo e se posicionar em relação a ele. No Acre, a temática ambiental, desde então, não é

assunto apenas de seminários acadêmicos, pois a partir de dentro da mata, ela pauta

debates, comportamentos e compromissos.

Visto nesta perspectiva, está na hora de identificarmos quais são as bases do novo

desenvolvimento, o desenvolvimento sustentável, proposto pelos novos representantes

daqueles velhos lutadores de antão.

Page 247: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

248

4.2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: ORIGENS DO

AMBIENTALISMO/ECOLOGISMO QUE NORTEARAM AS POLÍTICAS DA FRENTE

POPULAR DO ACRE.

A concretização de uma nova força política no Acre, a partir do final década de

oitenta do século passado, além da novidade que representou a junção das militâncias dos

partidos de esquerda, especialmente do PC do B e do PT, foi também marcada pela forte

influência exercida por dois movimentos que, desde a década anterior, ganhavam força no

mundo inteiro: o ambientalista e o ecológico. Essa influência partia, principalmente, dos

espaços mais diretamente controlados pelos meios de comunicação ligados aos países mais

desenvolvidos e de algumas estruturas governamentais e não governamentais desses países,

que passaram a falar de desenvolvimento sustentável, pautando os governos locais.

As preocupações ambientais e sociais evidenciadas pela poluição dos rios, dos solos

e do ar, os desastres ecológicos causados pelos grandes desmatamentos e seus impactos na

flora e na fauna e, os altos índices de pobreza registrados, principalmente nos países ditos

de terceiro mundo (subdesenvolvidos) e, incluídos os denominados emergentes, passaram a

mobilizar determinados setores dos países considerados desenvolvidos, influenciando ações

de organismos multilaterais, como a ONU, o BID, o BIRD e o FMI. De acordo com Chaves

e Rodrigues:

Nas últimas três décadas a discussão em torno da relação Estado-sociedade-natureza tem sido

intensificada, tanto em níveis internacionais quanto nacionais, podendo ser identificados neste

processo diferentes tendências de análise e interpretação, entre elas encontra-se a proposta de

desenvolvimento sustentável. (...) Nessa forma de abordagem, considerada crítica e pragmática

quanto a forma de desenvolvimento dominante proposto no pós-guerra, sua concretização se deu por

meio de projetos, de níveis experimentais ou demonstrativos, buscando apoio em iniciativas de

organizações populares locais, de militantes ou independentes, com apoio de organizações

internacionais ou de agências públicas. Encontra limitações no aspecto econômico e político, tendo

em vista sua proposta, que apresentava como necessidade para se discutir o ecodesenvolvimento, a

necessidade de mudanças políticas nacionais e uma reestruturação das relações econômicas Norte-

Sul. (CHAVES e RODRIGUES. Desenvolvimento Sustentável: limites e perspectivas no debate

contemporâneo. In. INTERAÇÕES – Revista Internacional de Desenvolvimento Local. Vol. 8, N.

13, p. 99-106, Set. 2006).

Na mesma direção, Coelho (1994), assegura que as idéias de desenvolvimento

sustentável, ou de ecodesenvolvimento, tem origens diversas, pois:

Page 248: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

249

O ecodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentável surge da exigência de compatibilizar

desenvolvimento com a não-agressão ao meio ambiente no final da década de 60. Busca-se com essa

abordagem acrescentar à condição de sustentabilidade, entendida como auto-manutenção,

estabilidade (equilíbrio) e durabilidade do desenvolvimento, pelo menos três dimensões consideradas

fundamentais, quais sejam, a social, a ecológica e a econômica. As raízes históricas desta corrente

encontram-se em diferentes vertentes do pensamento econômico e filosófico que têm em comum a

busca permanente de equilíbrio ecológico. Esta linha de pensamento é, principalmente, fortemente

influenciada pelo anarquismo, pelas idéias de Malthus, pelos filósofos orientais, pelos defensores do

atendimento às necessidades básicas da população e pelos críticos das idéias de progresso

dominantes no mundo ocidental. (COELHO, 1994: 381/382).

Numa análise mais contundente, que explicita mesmo o equívoco da montagem

econômico-social recomendada no pós Segunda Guerra e, por conseqüência, da depredação

ambiental e do crescimento das desigualdades do mundo na atualidade, provocado pelas

políticas que prevêem um crescimento sem limites, Enrique Leff escreveu:

La degradación ambiental, el riesgo de colapso ecológico y el avance de la desigualdad y la pobreza

son signos elocuentes de la crisis del mundo globalizado. La sustentabilidad es el significante de una

falla fundamental en la historia de la humanidad; crisis de civilización que alcanza su momento

culminante en la modernidad, pero cuyos orígenes remiten a la concepción del mundo que funda a la

civilización occidental. La sustentabilidad es el tema de nuestro tiempo, del fin del siglo XX y del

passo al tercer milenio, de la transición de la modernidad truncada e inacabada hacia una pos-

modernidad incierta, marcada por la diferencia, la diversidad, la democracia y la autonomia. (...) El

principio de sustentabilidad emerge en el contexto de la globalización como la marca de un limite y

el signo que reorienta el proceso civilizatorio de la humanidad. La crisis ambiental vino a cuestionar

la racionalidad y los paradigmas teóricos que han impulsado y legitimado el crecimiento económico,

negando a la naturaleza. La sustentabilidad ecológica aparece así como un criterio normativo para la

reconstucción del orden económico, como una condición para la sobrevivencia humana y un suporte

para lograr un desarrollo durable, problematizando las bases mismas de la producción. (LEFF, 1998,

9 e 15).

No Acre, assuntos como a luta pela terra, que moveram os trabalhadores

extrativistas nos primeiros momentos de sua organização, foram paulatinamente sendo

permeados por temas ambientais, ecológicos e que visavam o desenvolvimento sustentável,

ou seja, elegeu-se uma modalidade de desenvolvimento que sofria adjetivação, embora essa

adjetivação, a sustentabilidade, não tivesse um significado rígido, tampouco, consensual.

Aproveitando-se das organizações dos trabalhadores extrativistas, agentes

governamentais e não governamentais estrangeiros e/ou nacionais, iniciaram os processos

de contato com esses trabalhadores que teria seqüência na orientação de atividades

experimentais, planos pilotos de introdução em outras culturas produtivas, diversificação da

produção e experiências educativas e em saúde. Numa matéria comentando a palestra de

Page 249: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

250

um diretor do INPA, Warwick Estevan Kerr, ministrada na UFAC, em 1977, o redator do

jornal Varadouro escreveu:

O debate em torno da ecologia de modo geral tem sido esvaziado e até de certo ponto desmoralizado

por ter se tornado uma prática diletantista, um quase modismo. No entanto, ele ganha seu pleno

sentido a partir do momento em que os debatedores estejam dispostos a fazer perguntas objetivas. No

caso do Acre da Amazônia em geral é de se perguntar, antes de tudo, sobre “quem sai lucrando com

a devastação das florestas e a exploração do seu potencial mineral e vegetal”. O próprio diretor do

INPA teve uma expressão adequada para responder esta questão: “Não devemos permitir – disse ele

– que gaúchos, paulistas e outros venham acabar com as florestas da Amazônia. Eles chegam aqui:

criam o boi; mandam a carne para a Alemanha e outros países; o dinheiro fica por lá e o homem da

Amazônia fica apenas com o “berro do boi”. Em outras palavras, o cientista condena aqueles que

preconizam e defendem uma política de ocupação da Amazônia baseada apenas em projetos

agropecuários, na “bovinização”, e em vista das exportações, sem levar em conta o desenvolvimento

harmônico e em proveito da população local. Ficar com “o berro do boi” significa exatamente isso:

que o homem da Amazônia, mais uma vez, como aconteceu com o ciclo da borracha, não se

beneficiará dos frutos do propalado desenvolvimento feito às custas de suas terras e sua mão-de-obra.

(As moto-serras voltam ao trabalho. Jornal Varadouro. Rio Branco, maio de 1977: 05).

As análises nessa perspectiva já apontavam para um divisor de águas no debate, por

um lado os cientistas que começavam a se aproximar das populações tradicionais e, por

outro os agentes do “desenvolvimento”, que indicavam suas ações como necessárias para

“trazer” o progresso para a região. O Acre foi palco dessa disputa entre a nova onda

messiânica e redentora, dos investidores do Centro-Sul e Sul, de um lado, e os cientistas e

ambientalistas de outro. Algumas áreas viraram laboratórios de iniciativas, experimentos,

novos procedimentos, novas técnicas, etc., que foram sendo apresentadas às comunidades

como sendo respostas aos problemas que elas vivenciavam. As temáticas ambientais

perenizavam as questões econômicas e se sobrepunham mesmo às questões políticas e

sociais.

Esses contatos iniciais dos agentes não governamentais, ligados as questões

ambientais e ecológicas foram fundamentais para ir engendrando, tanto entre os

trabalhadores extrativistas, como entre as suas bases de apoio nas cidades, uma nova forma

de ver e se ver no mundo. As idéias de uma nova forma de ver o mundo a partir de

referenciais ecológico-ambientais também se fizeram presente entre os sindicalizados e os

não sindicalizados, entre os militantes partidários e os que não faziam parte dos partidos,

que viam nessas “novas alternativas”, perspectivas de modificarem as relações de trabalho,

bem como projetavam sua inserção nos ambientes que estavam sofrendo um acelerado

processo de transformação.

Page 250: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

251

Para as forças políticas em construção, especialmente as do campo da esquerda, que

não tinha vínculos com as forças dominantes nem em nível estadual, nem em nível federal,

a possibilidade de interferir nessas comunidades, sem a necessidade de uso da máquina

estatal, criava condições de diferenciação nos campos das disputas. A possibilidade de se

mostrar como alternativa às políticas tradicionais não era desprezível, mesmo que não

houvesse consenso na aceitação e aplicabilidade das propostas de resolução dos problemas

dos trabalhadores por essa via. Lembremos que boa parte da militância de esquerda

provinha de partidos ou tendências com fortes traços “revolucionários” e, convergiam no

sentido de que a classe trabalhadora era um conjunto homogêneo e que sua transformação

também seria em bloco.

Nesse sentido, trabalhar com alternativas, localizadas, que diferenciavam

trabalhadores, podia aparecer como um “desvio ideológico”. Sabe-se, também, que os

seringueiros não podiam nem ser classificados como camponeses nem como classe

operária, devido a sua inserção produtiva. Na sua fase “autônoma”, os seringueiros

assemelhavam-se mais ao lúpem-proletariado, para os quais os comunistas não tinham

políticas.

Por outro lado, havia ainda uma parte significativa de militantes que há muito tempo

tinham abandonado as teses revolucionárias e viam na militância ambiental uma “boa

causa” para seu novo engajamento, ou seja, a fusão de militância de esquerda com

militância ecológico-ambiental também era marcada pela pluralidade de interesses e

perspectivas.

Seguindo a compreensão de que há vários significados cercando o conceito de

sustentabilidade, vamos tentar identificar alguns deles e as influências que exerceram na

elaboração das novas políticas que formaram a base da oposição aos governos oriundos do

bi-partidarismo (ARENA x MDB), herdeiros do desenvolvimentismo dos militares que

protagonizaram o Golpe de 1964.

Principiamos nossa análise a partir do pressuposto de que, embora exista uma

relação aproximativa entre a ecologia e o ambientalismo, esses dois eixos têm gravitações

próprias. Primeiro porque a ecologia é um ramo da ciência cujo objetivo precípuo é estudar

“as relações através das quais as populações das várias espécies afetam e são afetadas pelo

Page 251: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

252

ambiente físico em que vivem”. (JOHNSON, 1997: 78). Isso implica que a ecologia, em si,

pode “separar” um determinado território em vários campos de estudos, ou seja:

Do ponto de vida ecológico, a vida é organizada em ecossistemas, que consistem de todas as formas

vivas que coexistem em relações recíprocas em um dado ambiente físico. A maneira como o

ambiente físico é definido depende inteiramente dos interesses de quem o define. Pode ser tão

pequeno como a gota d‟água de um tanque, por exemplo, tão grande como uma cidade ou país, ou

incluir todo o universo. Na ecologia humana, os ecossistemas são sempre definidos em relação às

populações humanas. (JOHNSON, 1997: 78).

Diante desta conceituação, entendemos que os estudos ecológicos podem sim,

influenciar o ambientalismo, mas esse tem uma natureza mais política ao ponto de Lino

considerar que:

O movimento ambientalista não é um fenômeno sociológico espontâneo, decorrente de uma

conscientização sobre as necessidades reais de compatibilização das atividades humanas com certos

requisitos de respeito ao meio ambiente no qual elas se inserem. Na verdade, trata-se de um engendro

ideológico e político, específica e habilmente planejado, criado e mantido por poderosos grupos

hegemônicos internacionalistas, com propósito de conter a expansão dos benefícios da sociedade

industrial-tecnológica a todos os povos e países do planeta e manter o processo sob seu controle.

(LINO et al. 2005: 11).

Consideramos, portanto, que o processo de mudança política que ocorreu no Acre a

partir dos movimentos de resistência dos trabalhadores extrativistas, situou-se também,

nesse cruzamento entre ecologia e ambientalismo, misturando ciência, ideologia, economia,

política, impactos culturais e sociais, numa crescente exponencial que, operando com a

realidade e a fantasia, com a certeza e a incerteza, com a segurança e o medo, de alguma

forma influenciou comportamentos e estimulou atitudes dentro e fora de seu campo de

atuação.

Se, por um lado, os seringueiros organizavam os empates contra os desmatamentos,

por perceberem na prática como esses desmatamentos os prejudicavam, numa

demonstração de que conseguiam entender os acontecimentos locais, por outro, vamos

encontrar cientistas e ambientalistas que, mesmo não sendo moradores, mesmo não estando

diretamente ligados à região, também militavam contra os desmatamentos por terem

chegado a outras conclusões que no final se cruzavam, por exemplo, a de que os

desmatamentos na Amazônia afetavam a vida de outras populações do planeta e

influenciavam na alteração do clima, no aquecimento global, no regime de desertificação,

Page 252: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

253

etc. Havia um desejo comum, o combate ao desmatamento, constituído através de uma rede

de interesses estranhos, diversos e desterritorializados.

Ou, analisando por outro prisma, poderíamos pensar também nas disputas entre as

madeireiras asiáticas, européias, canadenses e estadunidenses que, a exemplo das disputas

por petróleo, influenciam nas decisões a serem tomadas nos mais diversos países. Podendo

decorrer daí formulações que encaminham os procedimentos de utilização dos recursos

naturais nesses outros países, concorrendo para garantir canais de exploração por meios não

explícitos.

O certo é que desde a década de setenta a agenda ecológico-ambiental passou a

fazer parte da agenda econômica-política de forma mais efetiva, tanto para ser acatada,

como para ser refutada. Nesse sentido, foram vários os cientistas a fazerem prognósticos de

que, mantidos determinados ritmos de desmatamento, o Acre estaria totalmente devastado

em determinada data, ou seja, usavam alguns dados técnico-científicos para “advertir”

sobre possíveis acontecimentos irreversíveis. Warwick Kerr, em 1976, quando a época era

diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA, por exemplo, em palestra

proferida na Universidade Federal do Acre, prognosticou que mantido o ritmo de

desmatamento que se verificava no ano de 1976, em 33 anos todo o Estado estaria

desmatado, conforme noticiou o jornal Varadouro em sua edição de número 01, publicado

em maio de 1977, nos seguintes termos:

Na segunda semana de dezembro do ano passado, o diretor do Instituto de Pesquisa da Amazônia

(INPA), Warwick Estevan Kerr, revelava, em palestra proferida na Universidade local, que em 1974

o desmatamento no Acre era inferior a um por cento de toda a sua área florestal. Já no ano seguinte,

porém, esse percentual havia duplicado: atingiu 1,8 por cento da área coberta. E no ano passado a

devastação destruiu 3,5 por cento da floresta acreana. Se esse ritmo, se essa tendência se mantiver

inalterada, afirmava desanimado o cientista, em menos de 33 anos todas as reservas florestais do

Acre estarão completamente destruídas. Em linguagem mais simples ainda: não mais haverá mata no

Acre! (As moto-serras voltam ao trabalho. Varadouro. Rio Branco, Maio de 1977: 5).

Dez anos mais tarde em 1987, o geógrafo Orlando Valverde também prognosticou

que em 1995, o Estado estaria totalmente devastado caso fosse mantido o ritmo de

desmatamento que se verificava na década anterior. O jornal Gazeta do Acre, assim

informou a previsão de Valverde:

Page 253: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

254

O geógrafo Orlando Valverde, presidente da Campanha Nacional de Defesa e pelo Desenvolvimento

da Amazônia, na manhã de ontem, durante o Seminário sobre o Meio Ambiente do Estado do Acre,

no auditório da Eletroacre, disse que a extinção da floresta no Acre, a continuar o ritmo de

desmatamento registrado no último decênio, poderá ocorrer em 1995. A informação foi extraída de

uma pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA) com base em medições de

satélite, extrapoladas (estipuladas?) em cálculos de computação. Pela mesma pesquisa, o Estado

brasileiro onde a floresta amazônica permanecerá em vida mais prolongada é o Amapá, que seria

devastado no ano de 2.003, o Amazonas somente em 2.002, o Acre em 1995, o Pará em 1991, o

Maranhão em 1990, o Mato Grosso em 1989 e Rondônia em 1988. (Geógrafo prevê que o Acre

poderá estar completamente desmatado até 1995. Gazeta do Acre. Rio Branco, 1987: 2).

Os ritmos de desmatamento não seguiram nas mesmas proporção projetadas pelos

especialistas e, felizmente, os prognósticos dos cientistas não se concretizaram, pois em

2005, portanto, vinte anos após a data indicada por Warwick Kerr e dez anos após a data

indicada na previsão de Valverde, o desmatamento no Estado havia atingido o total de

19.243 Km², perfazendo um índice pouco maior que 12% da área total que é de 164.220

Km². (INPE, ZEE, 2006: 67).

Ainda assim, as teses “científicas” continuam sendo anunciadas e as “ameaças”

atualizadas, os ambientalistas estão cada vez mais fortes e os seringueiros ainda lutam para

encontrar seus lugares, seus espaços em meio às mudanças que não cansam de apontar

outros rumos. Concomitante aos debates, os fazendeiros o os madeireiros continuam seu

processo de exploração, embora estes últimos tenham se especializado em retirar somente

as madeiras mais nobres, a exemplo do mogno, que rende mais com menos investimentos.

Referimo-nos às opiniões dos reconhecidos cientistas, acima citados, para ressaltar

as características multipolares que permeiam os meandros da ciência, da militância

ambiental e, dos negócios/mercados. Elas servem também para nos indicar que a

importância da ecologia como ciência, foi evidenciar impactos profundos provocados pelos

homens nos mais diversos ecossistemas, mas, ao mesmo tempo muitos dos estudos

ecológicos são usados pelos ambientalistas para estabelecer um clima de medo, para

defender interesses políticos e econômicos, ou ainda, para bloquear ações tecno-industriais

ou de infra-estrutura sob encargo do Estado, que implicariam em melhoria nas condições de

vida de imensos contingentes populacionais, direcionando o nível dos debates para um

plano onde Lino reitera que:

Page 254: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

255

O fácil apelo popular do ambientalismo, com o discurso de uma alegada “proteção” da natureza

contra os excessos das atividades humanas, o converte em um dos mais influentes fatores indutores

da crise civilizatória em curso, ao lado da hegemonia conferida aos “mercados” na determinação das

políticas econômicas. Em seu cerne, a ideologia ambientalista, baseada no conceito do biocentrismo,

considera o ser humano como apenas mais uma entre as milhões de espécies da biosfera terrestre, ou

seja, o rebaixa ao nível dos demais seres vivos e lhe nega qualquer primazia de um papel

protagonista no presente estágio da evolução universal. Com isso, em uma insidiosa inversão de

valores, o ambientalismo transforma o meio ambiente em uma entidade de direito próprio e

condiciona o progresso e o bem-estar das comunidades humanas a um conjunto de requisitos para a

“proteção” do mesmo, geralmente definidos com escasso rigor científico, quando deveria ser o

contrário. O corolário é a falaciosa, cientificamente insustentável e moralmente inaceitável idéia que

está no centro da agenda ambientalista: a de que as limitações de recursos naturais e da “capacidade

de suporte” do planeta impediriam a plena extensão dos benefícios da sociedade industrial a todos os

povos e países do mundo. (LINO et. al. 2005: 23).

Na década de setenta, no Acre, o apelo ambientalista não surtia muito efeito, pois

como vimos nos números apresentados por Warwick Kerr, os índices de desmatamento

estavam na casa de 1% do território total. Naquela época, ninguém via os desmatamentos

como crimes ambientais, muito pelo contrário, quanto mais se desmatava mais se concebia

esse ato como desenvolvimento, como progresso. As imagens de grandes quantidades de

terras sendo desnudadas eram vistas como bonitas, benéficas (a legislação agrária até hoje

denomina como “benfeitoria” qualquer modificação no ambiente natural feita pelo homem)

e promissoras.

No final daquela década, contudo, os impactos desses desmatamentos já não eram

apenas sociais, já não eram apenas os seringueiros, ribeirinhos e pequenos produtores que

reclamavam daquele processo, por terem sido desalojados de seus espaços. A grande

cortina de fumaça que se erguia das queimadas, especialmente entre os meses de julho e

setembro, começava a incomodar os moradores das cidades, pois a poluição do ar

prejudicava a saúde dessa população, fechava aeroportos e os empregos prometidos por

aqueles investimentos não apareciam. Sem contar as inúmeras espécies animais e vegetais

que foram destruídas sem a devida catalogação.

Também no final da década começaram a surgir com mais intensidade os

questionamentos com relação aos impactos ambientais. O aparecimento do jornal

Varadouro foi um marco dessa nova fase. Suas denúncias acerca da violência, dos impactos

dos desmatamentos e queimadas, da corrupção dos “velhos” políticos e das suas propostas

unilaterais de desenvolvimento e, principalmente, sua persistência em apresentar

preocupações sobre a necessidade de realização de um debate público que buscasse

Page 255: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

256

soluções, que apontasse para outro tipo de desenvolvimento, um desenvolvimento que

abarcasse todos os setores da sociedade, especialmente sua preocupação com os

seringueiros e ex-seringueiros que haviam se mudado para as cidades, merecem destaque.

Esse é o cenário de onde emergem as diferenças e as divergências sobre os

conceitos de desenvolvimento e a organização de uma nova força política. Por um lado, a

ação concreta dos fazendeiros e madeireiros e seus representantes políticos investindo na

ampliação de seus campos e de suas serrarias, entendendo que seu enriquecimento era o

gerador do progresso e, por outro, os seringueiros e seus aliados urbanos (locais, nacionais

e internacionais) questionando aquele tipo de progresso e apresentando algumas

formulações, ainda que apenas como perspectivas, como projetos experimentais,

fragmentados, de estabelecimento de outro tipo de relacionamento homem-natureza, de

modificação mesmo, da relação de convivência do homem no meio ambiente.

O grande esforço dos articuladores da nova força política foi concatenar as

preocupações ambientais com a realidade econômica, política e social, já que seus

principais defensores em nível local pertenciam aos extratos mais baixos da divisão de

classes, ou seja, eram pessoas que não dispunham da “autoridade” para projetar seus

discursos, que não tinham “legitimidade” para propor soluções ou alternativas, pois eram

desprovidos de “condições institucionais” para tal. Chico Mendes é talvez, o caso que mais

chama a atenção, pois primeiro teve seu “reconhecimento” internacional, para depois se

tornar conhecido nacionalmente, antes dessa projeção, nunca foi ouvido, nunca foi levado a

sério, pelos governantes locais.

Os cientistas e os jornalistas ligados às questões ambientais, aos quais se juntaram

depois os políticos de esquerda que nutriam algum tipo de preocupação socioambiental,

foram importantes nesse contexto, haja vista que, até então, não eram muito próximas as

ligações entre os militantes políticos e as questões ecológico-ambientais. Até mesmo a

separação entre ambientalistas e ecologistas não é consensual, havendo os que consideram

que são sinônimos e os que a vêem de forma separada.

Porto Gonçalves, assumindo-se como um ecologista, no sentido militante

ambientalista, por exemplo, assegura que:

Page 256: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

257

De fato, parece não haver campo do agir humano com o qual os ecologistas não se envolvam:

preocupam-nos questões que vão desde a extinção de espécies como as baleias e os micos-leões, a

explosão demográfica, a corrida armamentista, a urbanização desenfreada, a contaminação dos

alimentos, a devastação das florestas, o efeito estufa, as técnicas centralizadoras até as injunções do

poder político que nos oprime e explora. (PORTO GONÇALVES, 2004: 7).

Porto Gonçalves admite que sua reflexão “invade” campos diferentes e emprega

deliberadamente um estilo que “transita entre o rigor científico-filosófico e o manifesto

político”. Para ele:

O discurso do ecodesenvolvimento tem sido diluído e, por meio de verdadeiras voltas à razão, se tem

procurado ajustar as propostas ecologistas aos desígnios de uma racionalidade econômica

crematística. Da crítica à própria idéia de desenvolvimento, tal como os ambientalistas a haviam

formulado nos anos 1960-1970, se passou ao ecodesenvolvimento e, depois, ao desenvolvimento

sustentável e, por esses tortuosos caminhos, a própria idéia de desenvolvimento foi ressuscitada e,

passados trinta anos da Conferência de Estocolmo e dez da Conferência do Rio de Janeiro, não só se

têm intensificado os ritmos de exploração e transformação dos recursos, como têm surgido novas

estratégias de intervenção na natureza, assim como novas manifestações de seus impactos e riscos

ecológicos. Tanto no senso comum como na retórica oficial, manejam-se conceitos antes reservados

aos meios científicos acadêmicos, terminologia esta que se inscreve em novas estratégias

epistemológicas que alimentam uma ecologia política e políticas ambientais, nas quais se expressam

e se manifestam interpretações controversas e conflitos de interesses, assim como princípios e formas

diferenciadas de reapropriação da natureza. (PORTO GONÇALVES, 2004: 162-3).

No entanto, Coelho (1994) vai um pouco além, no sentido de entender que o debate

sobre o desenvolvimento sustentável, ou ecodesenvolvimento, sofre influências de outras

bases filosóficas, inclusive místicas:

Alguns mentores do ecodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentável criticam os valores,

atitudes e comportamentos ocidentais, buscando inspirações na análise dos valores das culturas

orientais, principalmente do sul asiático (culturas hindus, budistas e taoista) que apregoam a

harmonia entre seres humanos e a natureza, e dos seres humanos entre si. Este é exemplo de

Schumacker (1973) com a economia budista (Buddhist Economics). Alguns autores, nos quais os

ecologistas têm buscado inspiração, assumem inclusive uma postura mística, como pode ser

verificada, por exemplo, em Fritjof Capra (1982) que fala em Tao e Buda. (COELHO, 1994:

382/383).

Numa direção, fundamentalmente diferente, por buscar centrar esse debate numa

base materialista de avanço do capitalismo, Michael Löwi, em ensaio que versa sobre o

socialismo e a ecologia, identifica uma série de fatores que envolvem o ambientalismo e o

ecologismo, como fenômenos que se articulam no mesmo eixo, nos seguintes termos:

Crescimento exponencial da poluição do ar nas grandes cidades, da água potável e do meio ambiente

em geral; aquecimento do planeta, começo da fusão das geleiras polares, multiplicação das

catástrofes “naturais”; início da destruição da camada de ozônio; destruição, numa velocidade cada

vez maior, das florestas tropicais e rápida redução da biodiversidade pela extinção de milhares de

Page 257: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

258

espécies; esgotamento dos solos, desertificação; acumulação de resíduos, notadamente nucleares,

impossíveis de controlar; multiplicação dos acidentes nucleares e ameaça de um novo Chernobyl;

poluição alimentar, manipulações genéticas, “vaca louca”, gado com hormônios. Todos os faróis

estão no vermelho: é evidente que a corrida louca atrás do lucro, a lógica produtivista e mercantil da

civilização capitalista/industrial nos leva a um desastre ecológico de proporções incalculáveis. Não

se trata de ceder ao “catastrofismo” constatar que a dinâmica do “crescimento” infinito induzido pela

expansão capitalista ameaça destruir os fundamentos naturais da vida humana no planeta. (LÖWI,

2005: 41, 42).

Partindo sempre de construções muito amplas como a de Michael Löwi, retro, ou de

um único aspecto como o desmatamento, assunto preferencial do biólogo estadunidense

Thomas Lovejoy, encontramos autores que conceituam ecologia e ambientalismo, sempre a

partir dos mesmos referenciais, os impactos das ações humanas no meio ambiente, na

maioria das vezes responsabilizando, de forma generalizada, prejuízos que foram causados

por empresas ou indivíduos. Montibeller Filho, corroborando em mais uma conceituação

que segue essa direção, diz que:

Ambientalismo é o conjunto de ações teóricas e práticas visando à preservação do meio ambiente.

Em sentido amplo, o meio ambiente compõe-se dos elementos físicos, químicos, biológicos, sociais,

humanos e outros que envolvem um ser ou objeto. Em sua forma restrita, o conceito de meio

ambiente refere-se aos aspectos físicos da natureza que interagem com o humano. (MONTIBELLER,

2004: 31).

A pluralidade de interpretações acerca dos temas desenvolvimento sustentável,

ecologia e ambientalismo nos remetem a terrenos porosos, movediços, no sentido de que o

engajamento com essas causas, por exemplo, pode fazer baixar um nevoeiro, uma cerração

que nos impeçam enxergar pontos de referência, que nos permitam seguir com segurança

pelos caminhos que se apresentam, ao ponto de Enrique Leff sustentar que:

En este proceso, la noción de sostenibilidad se há ido divulgando y vulgarizando hasta formar parte

del discurso oficial y del lenguaje común. Empero, más allá del mimetismo discursivo que há

generado el uso retórico del concepto, no há definido un sentido teórico y praxeológico capaz de

unificar las vias de transición hacia la sostentabilidad. En este sentido, surgen los disensos y

contradicciones del discurso del desarrollo sostenible; sus sentidos diferenciados y los intereses

contrapuestos en la apropriación de la naturaleza. Dichos intereses manifestaron en las dificuldades

para alcanzar acuerdos internacionales sobre los instrumentos jurídicos para guiar el tránsito hacia la

sustentabilidad. En este sentido, algunos países del Norte se opusieran a la firma de una declaración

com fuerza jurídica obligatoria sobre la conservación y desarrollo sostenible de los bosques, y han

manifestado sus resistencias y intereses desde la aprobación, ratificación y protocolización de la

conservación sobre la diversidad biológica. En el trasfondo de estos acuerdos están en juego las

estratégias y derechos de apropriación de la naturaleza. En estas negociaciones, los países del Norte

defienden los intereses de las empresas transnacionales de biotecnología por apropiarse los recursos

genéticos localizados en el tercer mundo a través de los derechos de propriedad intelectual. Al mismo

tiempo, grupos indígenas y campesinos defienden su diversidad biológica y étnica, es decir, su

Page 258: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

259

derecho a apropriarse su patrimonio histórico de recursos naturales y culturales. (LEFF, 1998: 19,

20).

A pluralidade sobre os conceitos de sustentabilidade, ambientalismo e ecologia

fazem parte de um campo comum e estão mesmo, permeados de contradições e

controvérsias. Porém, não há dúvidas que se podem delimitar áreas e possibilidades de

estudos, por isso, queremos nos manter sempre na perspectiva de que há alguns parâmetros

a serem sempre lembrados, dentre eles os conceitos que são considerados “divisores de

águas”, tais como as concepções “produtivistas”, as “santuaristas” e as “sustentabilistas”.

Para melhor compreensão, vamos referenciar as três concepções angulares, sabendo

que todas elas de alguma forma, influenciaram na construção do eixo em que se movem os

novos agentes políticos no Acre.

A concepção produtivista é a que se apóia nos princípios capitalistas

(liberais/neoliberais), onde o planeta, a natureza em primeiro plano, é vista como meio para

a realização do lucro. De acordo com o professor da Universidade Federal do Amazonas -

UFAM, Eron Bezerra (2008) para os defensores dessa concepção:

O que importa é o crescimento econômico, sem nenhuma preocupação ambiental. Foi o que os países

ditos de capitalismo avançado fizeram e, por isso mesmo, hoje se vêem às voltas com dificuldades

objetivas de reduzirem a poluição, a degradação ambiental e até mesmo de disporem de recursos

naturais adequados para o seu processo produtivo. (BEZERRA, E. Anotações sobre a Amazônia: a

cobiça. In. www.vermelho.org.br – Consultado em 24/06/2008).

Os defensores dessa concepção são os herdeiros diretos e diletos dos colonizadores

europeus e suas versões modernas, tanto do velho como do novo mundo, que vêm se

atualizado ao longo dos anos: os descobridores/colonizadores/exploradores agora são

industriais ligados ao agribusiness, que utilizando os recursos tecnológicos/informacionais,

tudo patenteiam, de tudo se apropriam, ou tudo destroem/descartam/abandonam quando

não mais lhes interessa; os bandeirantes de antão, agora são os biopiratas, que açambarcam,

que roubam, saqueiam e contrabandeiam impondo severos prejuízos às populações nativas

e autóctones; os “investidores” capitalistas liberais, agora são os neoliberais,

desterritorializados, extraterritorializados, enfim, são os defensores do “progresso”, que só

entendem o progresso como crescimento econômico sem responsabilidades cultural ou

ecológico-social.

Page 259: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

260

Na base dessa concepção produtivista ergue-se o Estado, na sua forma governo,

como responsável pela infra-estrutura, pela segurança, pelo fomento e pelo ordenamento

político em geral, mesmo que o Estado em si, seja negado pelos neoliberais. Assim como

agiram os militares após o Golpe de 1964, com relação à Amazônia, quando passaram a

investir na construção de estradas, hidrelétricas, parques industriais, mineração, aeroportos,

etc. sem se preocupar com os desmatamentos, os alagamentos causados pela barragem dos

rios, a contaminação provocada pelas mineradoras e os impactos que causavam em

populações autóctones, nativas e populações migrantes que haviam há muito ocupado

partes da região. Mas, consideremos que o Estado também é um campo de disputa e sua

direção também é objeto dessas contendas.

Em oposição à concepção “produtivista”, que excluía e destruía homens e a

natureza, surgiram duas outras vertentes, que de acordo com seus preceitos, são

caracterizadas como “santuarista” e “sustentabilista”.

A visão dos “santuaristas” está focada no biocentrismo, ou seja, no entendimento de

que o homem é apenas mais uma entre todas as espécies e que todas têm importância

equivalente e, assim sendo, deve-se preservar todos os ecossistemas que ainda não tenham

sofrido ação humana, até porque, segundo essa perspectiva, como adverte Foster (2005:

30): “nós deveríamos ter muita cautela ao fazer mudanças ecológicas fundamentais,

reconhecendo que, se introduzirmos no meio ambiente substâncias químicas novas,

sintéticas, que não sejam produto de uma longa evolução, estaremos brincando com fogo”.

Indo um pouco além no exarcebamento, Lino faz uma irônica crítica ao

misantropismo que impera em alguns setores ambientalistas, principalmente o que diz

respeito ao conteúdo de um documento lançado na Rio-92, denominado Declaração de

Morélia, assinado por 41 ambientalistas, cientistas, ativistas políticos e intelectuais de 20

países e, posteriormente endossado por quase 900 participantes da Conferência, onde eles

argumentam que:

Se a metade final do século XX ficou marcada por movimentos de libertação humana, a década final

do milênio será caracterizada por movimentos de libertação entre espécies, de modo que algum dia

possamos atingir uma igualdade genuína entre todas as coisas vivas. (LINO et. al. 2005: 25).

Page 260: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

261

Essa visão, de acordo com Lino, subscrita por alguns destacados cientistas, como os

físicos F. Sherwood Rowland, que recebeu o prêmio Nobel em 1997, Amory B. Lowins,

criador do conceito de “capitalismo ecológico”, o biólogo Thomas Lovejoy, conhecido

pelas denúncias sobre o desmatamento da Amazônia e o agrônomo Lester R. Brown, que é

fundador e presidente do mais importante centro ambientalista dos Estado Unidos, o

Worldwatch Institute, contribuem para o aparecimento de teorias como a Hipótese Gaia,

que é uma:

Teoria pseudocientífica elaborada pelo biólogo inglês James Lovelock e sua colega estadunidense

Lynn Margullis. Batizada com o nome da antiga deusa grega que representava a terra, a Hipótese

Gaia determina que nosso planeta é um ser vivo de direito próprio e presciente, dotado de

mecanismos de auto-regulagem das condições físico-químicas favoráveis à sobrevivência dos

organismos da biosfera, inclusive o homem. Assim, este último teria que se adaptar aos desígnios do

superorganismo, condicionando as suas aspirações de progresso aos rígidos limites impostos por

Gaia, sob o risco de ser implacavelmente eliminado como se fosse um vírus letal. (LINO. et al. 2005:

25).

No caso da Amazônia, muitos segmentos ligados a essa vertente, defendem a tese de

que ela deve ser mantida intacta e, mais, deve ser considerada como patrimônio da

humanidade, portanto, suas florestas, sua fauna e riquezas minerais não devem ser mexidas,

não podem ser tocadas.

Os defensores dessa concepção parecem não querer ver que a Amazônia, já não é

mais um território intocado e que há muito, foi ocupada por diversos tipos de populações,

passando por autóctones e chegando aos ditos civilizados e, sabemos que cada uma dessas

levas de ocupantes, de uma forma ou de outra alteraram a paisagem natural, obviamente

provocando diferentes formas de impactos nesse ambiente. Uns mais, outros menos, mas

nenhum tanto quanto as últimas levas, principalmente após a década de setenta, quando ao

invés de buscarem uma relação mais integrada com o ambiente, introduziram modificações,

como semeadura de outras espécies, enxertia, adubação química, uso de defensivos,

fertilizantes, etc., além do que, passaram a destruir a vegetação e alterar profundamente o

curso dos rios e outros acidentes naturais, provocando profundas mudanças neste meio.

Se não for por ingenuidade e, presumimos que não seja, esse tipo de comportamento

é pior ainda, pois os defensores dessa concepção entendem que a Amazônia deve ser

“elevada” a categoria de “patrimônio da humanidade”, como se “toda a humanidade”

pudesse ser entendida como um corpo homogêneo, como se não houvesse diferença entre

Page 261: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

262

um executivo estadunidense e um “primitivo” da Nigéria, ou um camponês do altiplano

boliviano e um indígena não contatado que ainda percorrem regiões de floresta no Estado

do Acre. Sem falar nos interesses de alguns estados nacionais e das grandes corporações

que fazem guerras de todo porte para se apoderar de territórios e riquezas que não estão sob

seu controle, descuidando dos conceitos de soberania nacional, que, bem ou mal, tem

resguardado determinados direitos em nível internacional.

A outra vertente de oposição aos “produtivistas” é a que se define como

“sustentabilista”. Essa é a corrente que mais atrai adeptos, não só na Amazônia, mas em

todo o mundo, pois se articula em torno de um preceito filosófico de que a humanidade

precisa e pode se desenvolver respeitando a natureza. Para Eron Bezerra:

Hoje, a rigor, não se encontra ninguém que se assuma abertamente como “santuarista” ou

“produtivista”. Todos se proclamam “sustentabilistas”, quando na verdade, há muitos “produtivistas”

e “santuaristas” que apenas se disfarçam de sustentabilistas para continuarem disseminando suas

torpes idéias. (BEZERRA In. www.vermelho.org.br – Consultado em 24/06/2008).

O apelo de considerar as questões ecológicas e sociais como requisitos para o

crescimento econômico, que cercam os defensores das teses sustentabilistas, que se

traduzem como questões humanitárias de respeito a vida natural, há muito vêm servindo

para ancorar os argumentos de que é possível um desenvolvimento sustentável dentro dos

marcos do capitalismo. Esse debate não é novo e remete ao materialismo de Marx, quando

se tenta apresentar o autor alemão como um dos principais representantes do humanismo

“especiesista”, ou seja, Marx como representante de um humanismo que dissocia

radicalmente o homem dos outros animais, elegendo o antropocentrismo utilitário como seu

principal ofício. (FOSTER, 2005: 25).

Tratando as questões dessa forma identificamos uma arquitetura dual, conflituosa

entre uma perspectiva antropocêntrica, baseada na ciência, na mecânica, na tecnologia, na

informação e; outra ecocêntrica/biocêntrica, baseada no respeito à natureza ou, melhor, na

sua entificação mesmo, creditando a esta última um vitalismo idealista que deve convergir

para a resolução dos problemas dos seres vivos do planeta.

O debate acerca das questões que envolvem os conceitos de desenvolvimento

sustentável, ecologia e ambientalismo que influenciaram as forças políticas de esquerda no

Acre, principalmente após a década de oitenta, como visto, não tem uma origem

Page 262: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

263

consensual, embora encontremos muitos estudos como os de Ignacy Sachs (2002), Olivier

Godard (2004), Rosineide Bentes (2005), Porto Gonçalves (2004), entre outros que situam

a eclosão desses movimentos no pós-Segunda Guerra, especialmente entre o fim da década

de sessenta e o início da década de setenta. Há outros estudiosos que buscam referências

mais distantes, como é o caso de Michael Löwi e John Bellamy Foster (2005), que situam o

debate a partir de estudos sobre a obra de Marx. Foster, por exemplo, diz que se baseia:

Numa premissa muito simples: a de que, a fim de entender as origens da ecologia, é necessário

compreender as novas visões da natureza que surgiram do século XVII ao século XIX com o

desenvolvimento do materialismo e da ciência. Além do mais, em vez de simplesmente retratar o

materialismo e a ciência como inimigos de concepções prévias e supostamente preferíveis de

natureza, como é comum na Teoria Verde contemporânea, a ênfase aqui está em como o

desenvolvimento tanto do materialismo quanto da ciência promoveu – a rigor, possibilitou – modos

ecológicos de pensar. (FOSTER, 2005: 13).

Focando sua lente para as obras de Darwin e Marx, Bellamy Foster desenvolve uma

visão que associa a transformação social com a transformação da relação humana com a

natureza, seguindo a trilha do que hoje, considera-se ecológico/ambiental. Priorizando

Marx, por seu pensamento a respeito do materialismo e da liberdade, esboçado desde seus

primeiros escritos, como em sua tese de doutoramento, onde grande parte desse trabalho se

inspirou em Epicuro, Foster relaciona a evolução do pensamento materialista filosófico de

Marx, relatando sua concepção materialista da história e os caminhos que ele percorreu até

entrelaçá-lo com o materialismo ontológico e epistemológico. Para Foster uma das boas

lições que Marx aprendeu com o estudo sobre Epicuro, foi que:

O materialismo epicurista enfatizava a mortalidade do mundo, o caráter transitório de toda a vida e

existência. Os seus princípios mais fundamentais eram de que nada vem do nada e nada sendo

destruído pode ser reduzido ao nada. Toda a existência material era interdependente, emanando dos

átomos (e revertendo a eles) – organizada em padrões infindáveis para produzir novas realidades. A

profundidade do materialismo de Epicuro, para Marx, revelava-se pelo fato de que dentro desta

filosofia – e no conceito do próprio átomo – “a morte da natureza” (...) tornou-se a sua substância

imortal. (...) Daí na filosofia de Epicuro não haver necessidade das causais finais aristotélicas; em

vez disso, a ênfase recaía nos arranjos em constante mudança na natureza em si, concebida como

mortal e transitória (mors immortalis). (FOSTER, 2005: 19).

Foster considera fato incontestável que há uma longa história de denúncias contra

Marx, no que diz respeito a uma possível falta de preocupação com a ecologia ao longo de

sua obra, porém, ele a contesta veementemente. Nesse sentido, concorda com o geógrafo

Page 263: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

264

italiano Massimo Quaini quando este pondera que “Marx... denunciou a espoliação da

natureza antes do nascimento de uma moderna consciência ecológica burguesa”. Foster

considera, ainda, que nos últimos anos, até os mais ferrenhos críticos de Marx vêm

admitindo numerosos e notáveis insights ecológicos em sua obra, mesmo assim não deixam

de recorrer a seis argumentos intimamente conectados que servem para manter uma visão

negativa do autor alemão com relação à ecologia, são eles:

O primeiro é de que as afirmações ecológicas de Marx são desconectadas como “apartes

iluminadores” sem nenhuma correlação sistemática com o corpo principal de sua obra. O segundo é

que consta que estes insights ecológicos emanam de modo desproporcionado da sua crítica inicial da

alienação, e são muito menos evidentes em sua obra mais tardia. O terceiro é que Marx, segundo

consta, não conseguiu em última instância lidar com a exploração da natureza (deixando de

incorporá-la na sua noção de valor), tendo em vez disso adotado uma visão “prometéica” (pró-

tecnológica, antiecológica). O quarto é que, como corolário ao argumento “prometéico”, afirma-se

que, na visão de Marx, a tecnologia capitalista e o desenvolvimento econômico haviam resolvido

todos os problemas dos limites ecológicos, e que a futura sociedade de produtores associados

existiria sob condições de abundância. (...) O quinto é que Marx, alega-se, tinha pouco interesse pelas

questões da ciência ou pelos efeitos da tecnologia sobre o meio ambiente, faltando-lhe pois base

científica para análise de questões ecológicas. (...) O sexto é que Marx, diz-se, era “especiesista”,

dissociando radicalmente os seres humanos dos animais e tomando partido daqueles em detrimento

destes. (FOSTER, 2005: 24).

Michael Löwi também argüindo uma necessária atualização do marxismo quanto à

questão ecológica, diz que:

A questão ecológica é, na minha visão, o grande desafio para uma renovação do pensamento

marxista no início do século XXI. Ela exige dos marxistas uma ruptura radical com a ideologia do

progresso linear e com o paradigma tecnológico econômico da civilização industrial moderna.

Certamente, não se trata – isto é evidente – de colocar em questão a necessidade do progresso

científico e técnico e da elevação da produtividade do trabalho: estas são duas condições

incontornáveis para dois objetivos essenciais do socialismo: a satisfação das necessidades sociais e a

redução da jornada de trabalho. O desafio é reorientar o progresso de maneira a torná-lo compatível

com a preservação do equilíbrio ecológico do planeta. (LÖWI, 2005, 38-39).

Tanto Bellamy Foster como Michael Löwi abordam de forma categórica, uma

questão que permeia o campo político que adotou, no Acre, os preceitos do

ecodesenvolvimento, do desenvolvimento sustentável como referência para suas ações.

Qual o caminho a seguir para organizar a sociedade sem a forte influência das empresas

capitalistas, ou mesmo do pensamento capitalista? A resposta a essa questão é um dos

gargalos que enredou os militantes de esquerda das diversas tendências que se uniram em

torno da Frente Popular do Acre, força política que hegemonizada pelo PT e PC do B,

Page 264: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

265

assumiu a vanguarda do poder estatal no final da década de noventa e que vem se mantendo

como representante dos trabalhadores extrativistas nesta primeira década do novo milênio.

O fato das grandes corporações, principais responsáveis pela poluição do planeta,

realizarem seminários, patrocinarem conferências, financiarem pesquisas em institutos e

universidades, articularem a formação de ONGs, buscarem os “selos verdes”, se auto-

promoverem como ambiental e ecologicamente corretas, sustentáveis, etc., não as isenta

dos grandes impactos causados por suas atividades poluidoras, mesmo assim, há quem,

dentro do Governo do Estado, acredite e divulgue que com essa forma de agir elas estão se

enquadrando nos princípios de respeito ao meio ambiente e a sustentabilidade. Esse quadro

vai servir para revelar as divergências entre os campos “santuaristas” e “sustentabilistas”

entre membros do próprio governo.

Mesmo assim, esse debate acerca do relacionamento homem-natureza, empresa-

ecologia-ambientalismo, desenvolvimento-exploração, está também, na matriz do

arcabouço conceitual que projetou para os postos de mando no Estado do Acre, além das

esquerdas e suas tendências, militantes e ex-militantes sindicais, estudantis, ambientalistas,

tendências religiosas e militantes de movimentos populares.

A organização e a convergência de diversas militâncias do campo das esquerdas,

dos movimentos sindicais e populares, religiosos e dos ambientalistas para o eixo

ambiental/ecológico/ “sustentabilista” e/ou “santuarista”, que polarizou as disputas com os

defensores do “produtivismo”, que era representado pelos fazendeiros, seringalistas e ex-

seringalistas, comerciantes e alguns membros do staff governamental, até então

estabelecido, durante algum tempo, também serviu para atenuar as divergências entre

“santuaristas” e “sustentabilistas” que militavam no mesmo campo.

Chegando a este ponto, nos perguntamos. Qual é então a matriz da idéia de

sustentabilidade que domina a política acreana após ascensão da Frente Popular do Acre?

Jorge Viana, ex-prefeito da capital e ex-governador por dois mandatos no Estado do

Acre, num texto intitulado “O mapa do sonho”, publicado como apresentação do

Zoneamento Ecológico-Econômico em 2006, revela que o pensamento da Frente Popular

vai além das questões ambientais, e se desloca na direção de outro tipo de formação social,

pois para ele, há uma história do povo acreano que remonta uma certa tradição, um avanço

natural que corrobora para a formatação da conjuntura como ela se apresenta no presente:

Page 265: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

266

Simplesmente constatamos que, ao longo de um século, nas lutas, nos ciclos e fases da economia, nas

migrações, nas enchentes e vazantes dos rios, na abertura de estradas, nas aldeias, vilas e cidades, o

Acre foi se fazendo o que hoje é. A população foi se distribuindo e se concentrando, as regiões foram

descobrindo potencialidades e vocações, cada um foi lutando e conquistando seu espaço. Esse é o

Zoneamento real, feito pela vida. (VIANA. O Mapa do Sonho. In. ZEE, 2006: 14).

Essas palavras, escritas por um dos principais dirigentes do PT e da Frente Popular

do Acre, não representam apenas um manifesto, mas sim, uma compreensão abraçada por

muitos que compõem os altos escalões do Estado e dos partidos que participam da Frente.

Nesse sentido, a construção de toda a arquitetura política que se ergueu contra o

modelo desenvolvimentista (produtivista), para além das raízes ecológico-ambientais, o

modelo sustentabilista da FPA também se apoiava numa busca de envolver os trabalhadores

que “fizeram” o Acre. Seringueiros, indígenas, soldados da borracha, ribeirinhos, colonos,

pequenos produtores, funcionários públicos, sindicalistas, etc., passaram a fazer parte do

conjunto das atenções, no sentido de promover políticas que os contemplassem, isto é, na

perspectiva de tê-los como referências na sua aplicação e como co-participantes na sua

elaboração.

O fato diferenciador na matriz ecológico/ambiental, sustentabilista/santuarista no

Estado do Acre é que ela se articulou diretamente ou, a partir das comunidades que

representavam modos de vida vinculados aos recursos naturais in situ. O mérito das forças

políticas de esquerda foi se ligar a esses agentes sociais e, conjuntamente, elaborar um

discurso prático e ao mesmo tempo ideológico que em certa medida traduzia, ou inventava

uma tradição heróica para os seringueiros, para o “povo” acreano, que se “fez brasileiro por

opção”.

A mistura da trajetória de vida dos seringueiros com os aspectos

ecológicos/ambientais que gestaram as teses do desenvolvimento sustentável, foram

marcadas por lutas reais pela sobrevivência, por terras, contra os desmatamentos, por

direito de se organizar, conectadas a uma larga tradição esquerdo-marxista que, aqui,

começava a assimilar temas, que até então, não eram considerados como importantes no

âmbito do espectro teórico dessa corrente de pensamento, como a questão ambiental, por

exemplo.

A projeção do seringueiro para a condição de herói da Revolução Acreana, depois

para a de protetor (guardião) das florestas e o destaque de seu modo de vida como condição

Page 266: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

267

sine qua non para a manutenção das mesmas, configuram momentos importantes dessa

construção.

Essa “mistura” de temáticas ecológico-ambientais com uma dose de história

heróica, de uma espécie de saga do acreano comum, levou a formulações como esta,

encontrada no documento que compõe a introdução do Plano Plurianual 2004/2007 do

Governo do Estado do Acre, diz o texto:

Por quase duas décadas o desenvolvimento econômico do Acre foi interrompido e a qualidade de

vida do povo deteriorou-se continuamente. A principal razão disto foi uma seqüência de governos

sem um plano de desenvolvimento adequado e muitas vezes marcados pela corrupção. Sem o apoio

nas políticas públicas, enfrentando sozinho a exploração econômica e a devastação ambiental, o povo

acreano viveu alguns dos piores momentos de sua história. (...) Em outubro de 1998, a população

acreana começou a mudar essa história. Experimentou apoiar novas idéias e propostas e realizou a

maior mudança já vista na política, que teve como resultado uma reorientação completa na economia

e em todos os aspectos da vida social. A história dessa mudança é, ao mesmo tempo, a história da

construção de um plano de desenvolvimento. O Governo do Estado acumulou, ao longo dos anos de

sua formação, várias idéias: as propostas dos índios e seringueiros liderados por Chico Mendes para

valorização da floresta, as reivindicações dos sindicatos e movimentos sociais, a experiência das

ONGs em projetos econômicos e sociais, além das experiências de administrações populares em

outros estados do país. (PPA 2004/2007 – Anexo I, 05).

No mesmo documento do Plano Plurianual, encontramos na seqüência, outra

formulação que aponta para uma construção histórica fundadora de uma “nova” etapa da

política acreana, compreensão esta que nos revela uma das bases do pensamento de alguns

dos militantes de esquerda que chegaram ao poder, vejamos:

Dessa forma, quando o Governo do Estado apresentou um plano para o Acre, em 1999, colocou nele

alguns sonhos históricos do povo acreano, reivindicações antigas, promessas nunca atendidas. Mas,

além de renovar os sonhos, o que o plano fazia era mudar a maneira de sonhar. Ao invés de uma lista

de promessas, apresentava uma análise da situação do Acre e definia objetivos ousados para uma

grande mudança. Mais ainda: propunha que se adotasse um novo conceito de desenvolvimento,

diferente da idéia de “progresso” que até então predominara. O novo desenvolvimento deveria ser

sustentável, ou seja, deveria modernizar e dinamizar a economia e corrigir as injustiças sociais e, ao

mesmo tempo, conservar as florestas e respeitar as culturas dos vários povos que compõem o povo

acreano. (PPA 2004/2007 – Anexo I: 05, 06).

Na mensagem de abertura da 1º sessão solene, da 1º sessão legislativa da 10º

legislatura, da Assembléia Legislativa do Estado do Acre, realizada em 22 de fevereiro de

1999, portanto no primeiro ano de seu primeiro mandato como Governador do Estado,

Jorge Viana, discursando sobre o que ele concebia como mudanças estruturais que

deveriam ser implementadas, disse:

Page 267: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

268

(...) Para atingirmos a situação que desejamos, é preciso promover mudanças estruturais profundas.

A começar pela implementação de um novo e revolucionário plano de desenvolvimento. Um plano

concreto e consistente, baseado na exploração inteligente e harmônica dos recursos naturais de que

dispomos, vamos utilizar com sabedoria e da forma mais variada possível a riqueza de nossa floresta

em benefício do homem. Mas vamos fazê-lo de forma sustentável, pensando na sobrevivência das

futuras gerações. Faz muito tempo que o Acre não tem um plano de desenvolvimento, um rumo

definido para criar oportunidade para as pessoas e fortalecer a sua economia. Os modelos utilizados

nas últimas décadas estão falidos porque eram inadequados à região. O predomínio de uma

mentalidade acomodada e pouco empreendedora de governos passados agravou ainda mais esta

situação. O desejável, senhor presidente, senhores deputados, é considerar a floresta como a base

para uma definição de rumo do desenvolvimento econômico. Os produtos florestais são a marca

diferencial com o qual o Acre pode competir nos mercados nacional e internacional. Mas, além dos

produtos materiais, temos também a cultura, o turismo e outras formas de produção que podem ter

participação significativa nesse processo. (...). (Diário Oficial do Poder Legislativo, Nº 2.833, de

fevereiro de 1999).

Esses trechos do Plano Plurianual e do discurso do já então governador Jorge Viana

na abertura dos trabalhos legislativos, em 1999, revelam algumas das características que

foram, ao longo dos debates iniciados na década de setenta, se consolidando como

“pensamento” do PT, podemos dizer, da Frente Popular do Acre, principalmente os

aspectos de se apresentar como representantes das lutas dos índios e seringueiros e de um

modelo de desenvolvimento diferente, que respeitava a floresta e suas populações.

O que não se pode deixar de observar, contudo, é que esse discurso não perde a

perspectiva da ter a floresta como um ativo econômico, visando sua inserção na economia

de mercado.

Porém, pistas mais reveladoras dessa “nova” compreensão política, dessa “nova”

base de pensamento, que vão além das alianças com os trabalhadores extrativistas,

encontramos num relato escrito pelo jornalista Antônio Alves e pelo então candidato a

governador, derrotado nas eleições de 1990, Jorge Viana, encaminhado à Direção Nacional

do Partido dos Trabalhadores e publicado na revista Teoria e Debate com o título “A

República do Acre”.

Neste artigo, o jornalista e o ex-candidato analisam o fato de naquele ano eleitoral

apenas em dois Estados Amazônicos, o Acre e o Amapá, o PT ter conseguido passar para o

segundo turno e conclamam o partido a “renovar” suas idéias a respeito de alianças

internacionais, pois nas suas opiniões, o debate internacional sobre a Amazônia, não estava

bem estudado pela direção nacional do partido. Na conclusão do artigo, escreveram:

Page 268: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

269

Da experiência desse período podemos extrair os temas que se impõem à reflexão no interior do

partido. Entendemos que o PT deve conhecer e compreender o debate internacional sobre a

Amazônia. Não pagar a Dívida Externa, por exemplo, não seria um dogma que nos impede de

conhecer as propostas de conversão da dívida em projetos de proteção ambiental? Quem poderá fazê-

lo, sem participar do debate de alternativas atualmente apresentadas, no qual estão se construindo

novas relações internacionais? Os interlocutores deste debate, além de governos e bancos, são

organismos que trabalham com programas de cooperação em desenvolvimento econômico, meio

ambiente, ciência e tecnologia. Estabelecem relações capazes de criar novas linhas de comércio,

mercados para novos produtos, recuperação de áreas degradadas, apoio a populações marginalizadas,

enfim, elementos de uma nova ordem internacional, cujo nascimento deve interessar a quem tenha

pretensão de governar o Brasil. Ampliar a compreensão das relações em que se constrói um novo

internacionalismo, exige, em contrapartida, a ampliação do número de interlocutores nacionais.

(ALVES, Antônio e VIANA, Jorge. A República do Acre. In. ALVES, Antônio. Artigos em geral.

Rio Branco s/d).

Quando propunham que a direção nacional do PT devesse buscar uma “nova”

compreensão sobre os problemas da Amazônia, com base em arranjos internacionais

corroborados por organismos multilaterais, Alves e Viana davam as dicas de que, os

caminhos que se apresentavam e, que eles pretendiam percorrer, se distanciavam das

concepções marxistas, que embalavam os partidos aos quais eles eram filiados,

principalmente as que dizem respeito à relação capitalismo-natureza, onde Marx, por

exemplo, via o seu avanço para além da exploração social, também como instrumento de

decomposição ambiental.

Por seu turno se distanciavam ainda do sentido de imperialismo, especialmente na

forma apresentada por Lênin no seu livro Imperialismo: etapa superior do capitalismo, onde

ele projetava as novas formas de colonialismo, marcadamente a exercida após a fusão do

capital industrial e bancário. Como os dois não são neófitos na leitura do marxismo,

especialmente o jornalista Antônio Alves, que é um quadro respeitável de grande qualidade

na compreensão e formulação teórica, fica patenteado que eles concebiam que, naquela

altura, isto é, na entrada da última década do século XX, estavam em curso mudanças

estruturais também nos marcos do capitalismo mundial, que permitiriam outras formas de

relacionamento, onde interesses opostos seriam respeitados.

O fato mesmo de pensarem em políticas de desenvolvimento que buscavam o

mercado interno e externo como solução para a fragilidade econômica em que se

encontrava o Estado, nos sugere que, no mínimo, havia uma leitura idiossincrática da

conjuntura internacional, que naquela década estava envolvida por uma bem orquestrada

Page 269: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

270

política de implementação do “Consenso de Washington” e, dos credos neoliberais,

oriundos do Reaganismo-Tatcherismo da década anterior.

A busca de cooperação internacional, tendo como interlocutores os diretores do

BID, do BIRD, do FMI e de ONGs, é uma das marcas dos governos liderados por Jorge

Viana a partir do final da década de 90. Os elos articuladores dessas cooperações sempre

foram a busca do desenvolvimento sustentável. O envolvimento das comunidades

extrativistas e indígenas, que a princípio eram tidas como fundamentos do novo governo

foram passando, ao longo do tempo, a ser vistas mais como objeto de aplicação das

políticas que se planejava nos fóruns administrativos, do que como propositoras de políticas

que espelhassem suas próprias realidades.

Essa variação do diálogo entre a estrutura governamental com os organismos

multilaterais ligados ao núcleo do capitalismo mundial, as ONGs e as comunidades

tradicionais dessa região, entrelaçaram os diversos interesses de cada um desses setores e

formaram a base da concepção ambientalista, ecológica e sustentabilista/santuarista que

emergiram das lutas dos trabalhadores extrativistas e sua posterior aliança com os povos

indígenas.

Obviamente que a força política que chegou ao governo no final da década de

noventa não agiu só a partir desse eixo. Antes teve que dar respostas para as questões

administrativas próprias do Estado, mas não menos influenciadas por “políticas globais”,

liberais e neoliberais, tais como ajustar as contas, zerar os déficits, ou seja, tornar o Estado

rentável para os investidores.

Como o Estado do Acre vinha passando por administrações cujos governantes

haviam se notabilizado pela incompetência gerencial e se envolvido no enredo tradicional

das corrupções mais desbragadas, da violência cometida pelo esquadrão da morte que tinha

raízes no oficialato da própria Polícia Militar, o novo governo se destacou por resolver o

caos administrativo e desmontar parte do crime organizado, o que o projetou para índices

importantes de apoio até mesmo entre as forças que o combatiam anteriormente, tais como

fazendeiros, comerciantes e setores dos poderes judiciário e legislativo, antes arredios com

as esquerdas em geral.

Page 270: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

271

O alinhamento com determinadas políticas internacionais, somada a um bom

gerenciamento interno das contas públicas e de algumas políticas necessárias, tais como

investimentos nos setores de educação, saúde e infra-estrutura urbana, tendo como exemplo

mais visível o calçamento/asfaltamento de ruas, a reconstrução dos prédios públicos, o

pagamento em dias dos salários do funcionalismo, etc., vêm garantindo a aprovação

popular dos governos da Frente Popular do Acre. No Plano Plurianual 2004/2007, por

exemplo, em sua introdução encontramos como destaque a seguinte passagem:

O novo plano se inicia apoiado em dois grandes projetos. O primeiro, que já está em pleno

andamento, é destinado a completar as obras de infraestrutura urbana e conta com 40 milhões de

reais financiados pelo BNDES. O segundo é voltado para a criação de uma economia rural e florestal

moderna e tem financiamento (1ª etapa) de 108 milhões de dólares pelo BID, já contratados, e para a

2ª etapa, mais 132 milhões de dólares. Mas existe, tanto para estes grandes projetos como para todas

as demais ações do futuro governo, uma orientação segura para o desenvolvimento sustentável.

Trata-se do Zoneamento Ecológico-Econômico, que teve sua primeira etapa executada na atual

administração e conta com financiamento garantido para a segunda etapa. Nesta primeira fase, o ZEE

produziu mapas com a situação, as riquezas e o potencial futuro de todas as regiões do Estado. Na

segunda fase, essas regiões serão detalhadas em novos estudos, de modo que cada comunidade

poderá planejar seu futuro com segurança. Também os empresários, as cooperativas, os governos

municipais, todas as forças econômicas e sociais poderão contar com as informações do ZEE. Assim,

serão definidas as áreas mais adequadas para a atividade madeireira ou pecuária, tipo de agricultura

mais adaptado a cada região, as áreas de proteção ambiental, etc. (PPA 2004/2007: 06, 07).

Ou seja, o governo se estabeleceu como representante dos povos da floresta, mas

ampliou significativamente suas perspectivas gerenciais, incluindo pecuaristas, madeireiros,

e outros empresários no projeto que desenvolveria para o Estado. Se antes a existência dos

empreendimentos pecuário/madeireiros eram vistos como incompatíveis e até mesmo

opostos à manutenção das florestas e suas comunidades tradicionais, nada que um bom

planejamento, um bom zoneamento ecológico-econômico não pudesse resolver.

A visão político-ideológica, nascida da luta dos seringueiros, que pregava a

incompatibilidade entre preservação e economia pecuário/madeireira, estava sendo

substituída por uma outra concepção, mais pragmática, mais abrangente, onde o ponto

chave seria o desenvolvimento de uma capacidade técnica e gerencial (o manejo florestal

sustentável). Os aspectos políticos podiam continuar orientando os discursos, mas era

preciso agir e a “ação não podia ser tolhida pelas ideologias”.

Nos aspectos mais ligados aos setores extrativistas as ações são menos visíveis que

nas cidades, mas o fato de se criar uma Secretaria de Estado de Extrativismo e Produção

Page 271: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

272

Familiar (SEPROF), uma Secretaria de Floresta (SEF) e uma Secretaria Extraordinária dos

Povos Indígenas, trazendo uma liderança indígena para o corpo do secretariado do governo,

além da Secretaria de Estado de Planejamento e Desenvolvimento Sustentável

(SEPLANDS), são sem dúvidas, demonstrações de manutenção de alguns elos com os

povos da floresta, sem entrarmos no mérito de submeter a juízos a questão da materialidade

de uma representação efetiva de suas necessidades e valoração política de sua participação.

Fato que o “Governo da Floresta”, como se autodenominou o primeiro governo da

Frente Popular do Acre, conseguiu atrair para seu seio os principais contendores das fases

iniciais dos conflitos pela posse da terra no Acre. Os que, a partir da década de setenta

disputavam terras, florestas e modelos diferentes de desenvolvimento e modos de vida, isto

é, fazendeiros, madeireiros, extrativistas e indígenas, passaram a ter um representante, o

Estado (Governo), como base aglutinadora e de contenção de tensões. Indene de dúvidas,

constitui caso raro a montagem de um secretariado que comporta fazendeiros, empresários

da construção civil, sindicalistas e indígenas, embora seja mais difícil, talvez, conciliar

interesses tão distintos do que mantê-los em cargos políticos.

Argüindo com freqüência a tese de ser o legítimo representante dos trabalhadores

extrativistas e, principalmente, postulando a necessidade de compatibilizar os modos de

vida tradicionais, a heróica saga dos acreanos, com a modernidade das fazendas, da

indústria madeireira, dos grandes negócios da construção civil, em verdade, um grande

gerente de “todos e para todos”, o governo da Frente Popular do Acre, vêm tecendo uma

rede de relacionamento que o projeta para a condição de preceptor de uma nova base de

construção político-social, ancorada na articulação de uma economia florestal ponderada e

sustentável, ou seja, o governo do Acre se coloca como responsável pela elaboração de uma

política que concilia interesses e debela conflitos, além é claro, de fazer tudo isso

“respeitando o meio ambiente”.

Em linhas gerais, as bases que sustentam as políticas dos governos da Frente

Popular do Acre, não são inéditas, a não ser o fato de ter uma ligação mais direta com os

trabalhadores extrativistas, indígenas e sindicalistas, do que outros governos, ou ainda, de

ter incorporado as questões ecológico-ambientais como elementos importantes na

articulação das perspectivas de desenvolvimento. Por outro lado, a idéia de sustentabilidade

não consegue fugir das estruturas, das fronteiras delimitadas pelo mercado, no sentido de

Page 272: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

273

que toda a produção e toda a formatação dos modos de vida propostos pelas “novas

políticas” são fortemente influenciadas pelas perspectivas de ampliar as margens de

possibilidades de consumo e incorporação do modo de vida da sociedade capitalista.

O projeto de governabilidade da Frente Popular do Acre se fez herdeiro de duas

“tradições” recentes: por um lado, a luta dos trabalhadores extrativistas e populações

indígenas que ao se organizarem para defender seus modos de vida, deram um exemplo de

força coletiva e; por outro, do forte discurso ambientalista internacional, que nas últimas

décadas do século XX e anos iniciais do século XXI vêm substituindo outros mecanismos

dos países ditos centrais na emanação de políticas cerceantes e controladoras contra os

outros países do mundo. Porém, ou por causa dessa vinculação com o segundo item, o

governo não conseguiu ampliar os processos de inclusão dos trabalhadores extrativistas e

mesmo de outros setores da economia para dentro dos postos de comando do Estado, ou

seja, o que se imagina como uma política pragmática, possível de ser realizada, impede a

possibilidade de ousar no sentido de romper, ou pelo menos limitar, as bases de articulação

do capitalismo e sua experiente e, como já demonstrou em várias ocasiões, grande

capacidade de se apropriar do Estado para exercício de suas prerrogativas.

Page 273: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

274

4.3 O SURGIMENTO DA FLORESTANIA: NOVOS LUGARES, NOVOS ESPAÇOS E

NOVOS SENTIDOS PARA AS LUTAS DOS POVOS DA FLORESTA.

Uma das mais importantes conquistas dos trabalhadores extrativistas, após a sua

organização enquanto sindicato e da realização dos empates, foi o estabelecimento das

Reservas Extrativistas. Além do significado de que era possível outro modelo de reforma

agrária, as RESEXs simbolizam a capacidade de elaboração teórica dessa parcela da

população, numa demonstração criativa e reafirmadora de sua disposição de continuar

vivendo de acordo com seu modo de vida tradicional. Essa atitude criativa e reafirmadora

estão na base, também, da criação da florestania.

Podemos creditar a esses eventos (organização dos sindicatos, empates, criação do

Conselho Nacional dos Seringueiros, lutas pela criação das RESEXs, militância política e

capacidade de encontrar parceiros de fora dos seringais) como aspectos marcantes da

construção da florestania, embora ainda não existisse o vocábulo, a linguagem que

representasse esse movimento crescente, que daria visibilidade a essas populações não-

visíveis anteriormente.

Fazemos essa afirmação inicial para negar a primazia de alguns setores

governamentais que se posicionam historicamente como “pais” da florestania. Embora o

termo tenha sido criado num momento em que se consolidava a Frente Popular do Acre,

força política que se coloca na cena do Estado como herdeira e continuadora das lutas dos

trabalhadores extrativistas, localizam-se no seio dessas lutas anteriores e não externamente,

as ações concretas que permitiram o seu surgimento, como catalizadora, como significante

mesmo de um modo de vida específico.

Melhor dizendo, não se criou o conceito primeiro, para depois se articularem ações

que o sustentariam, pelo contrário, foram as ações práticas, as lutas dos trabalhadores

extrativistas, dos sindicalistas, dos militantes políticos, dos agentes pastorais, dos agentes

das ONGs, etc., que deram as bases para seu surgimento.

Mais tarde, com efeito, o Governo administrado pela Frente Popular do Acre, vai se

colocar como principal executor dos mecanismos que ajudariam na consolidação do

conceito de florestania. Isto porque as lutas dos trabalhadores extrativistas, por si, não

foram suficientes para modificar de forma estrutural nem o modelo econômico, nem a

Page 274: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

275

forma clássica de propriedade da terra no Acre. Embora saibamos também que elas

constituem parte importante das operações que influenciaram outros tipos de re-

ordenamentos. Referimo-nos, especialmente, as lutas de resistência que contribuíram para a

formação das Reservas Extrativistas, num primeiro momento e, depois, para o contexto que

serve de base para a tese do “desenvolvimento sustentável” e, por fim, da construção do

termo florestania e dos seus diversos significados.

Não obstante a luta dos seringueiros, castanheiros, ribeirinhos e pequenos

produtores, o termo florestania não será exclusividade destes. Outros segmentos sociais,

inclusive urbanos, também vão se apropriar dos conceitos que o cercam e expandir suas

possibilidades de atenção e atuação.

No âmbito do Estado, desde a invenção do termo florestania, na década de noventa,

no sentido da criação do vocábulo, até os dias atuais, o termo vem sofrendo adições e re-

significações. Inicialmente, tinha a conotação de levar a “cidadania” aos povos da floresta,

ou seja, não nasceu como oposição ao termo cidadania, pelo contrário, seria a construção de

mecanismos de chegada do Estado até essas populações desassistidas. Com a florestania, o

que se pretendia era levar escolas, atendimento médico, construir ramais, prestar assistência

técnica à produção, e ainda resolver os problemas que atingiam os grandes contingentes de

seringueiros que haviam migrado para as cidades, ou seja, mesmo na sua construção inicial,

o termo florestania, na forma adotada pelo Estado, não se referia exclusivamente, às

populações das áreas de floresta.

Depois, o termo foi se constituindo como “a nova cara do Governo do Acre” e

paulatinamente, foi sendo reconstruído, passando a significar um modo de vida, uma forma

diferente de se relacionar com a natureza, onde as experiências dos povos da floresta

precisavam ser valorizadas e reconhecidas nos espaços urbanos, transversalizando saberes e

conhecimento, técnicas e empiria para se chegar a inovações recíprocas. Com efeito, essa

transversalidade pretendia criar um “novo homem” no Acre, pois a concepção de

florestania pensava na inclusão de toda a população do Estado, moldando sua vida em

parâmetros referenciados no respeito à biodiversidade, a sóciodiversidade e em processos

econômicos sustentáveis.

Antônio Alves, jornalista e ex-secretário municipal, estadual e assessor do governo,

narra assim, de forma sintética, como a idéia de florestania foi sendo modificada:

Page 275: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

276

“Cidadania? Isso é coisa de gente da cidade. Aqui na Amazônia o que nós precisamos é de

Florestania”. Foi assim, numa brincadeira que a palavra apareceu, na metade da última década do

século XX. Havíamos passado quinze anos andando pela floresta, acompanhando a luta de índios e

seringueiros, trabalhando em organizações não-governamentais com projetos de saúde, educação,

cooperativas etc. A novidade, naquele momento, é que alguns de nós tinham sido chamados a

participar da nova administração da Prefeitura de Rio Branco, capital do Acre. Uma cidade com

trezentos mil habitantes, inchada, caótica, cheia de problemas. E com uma particularidade: a maioria

da população havia migrado para a cidade há pouco tempo e ainda mantinha fortes traços culturais

adquiridos em um século de vida na floresta. A cidadania a ser construída, portanto, deveria ser um

pouco diferente. Em 98, a mesma equipe assumiu o governo do estado. O termo “florestania” revelou

então, inúmeras possibilidades práticas na hora de elaborar políticas públicas para as áreas rurais.

Deixou de ser uma palavra e passou a expressar um conjunto de idéias, propostas, maneiras de

abordar os problemas do desenvolvimento numa parte significativa da Amazônia. Muitas pessoas

entraram no debate, desenvolveram novos conceitos, fundamentaram com eles seus projetos que se

transformaram em financiamento, produtos, serviços, ações. E o que começou como uma brincadeira

virou um assunto muito sério. (ALVES, 2003: 129).

A síntese apresentada por Antônio Alves é reveladora de que, embora o termo seja

um neologismo, as idéias que o projetaram não eram tão estranhas aos agentes que as

manejavam, por exemplo, quando ele responde, no mesmo texto, à pergunta, “Mas o que é,

afinal, essa tal de florestania?”, vai revelando outras faces do conceito, onde podemos

perceber as vinculações com o pensamento de algumas ONGs que atuavam na Amazônia e

que financiavam projetos voltados para a consolidação das idéias que cercam esse

pensamento, pois, para Alves:

Além de um conjunto de relações sociais, direitos, deveres, leis e conquistas, a florestania é um

sentimento que pode ser expresso da seguinte forma: a floresta não nos pertence, nós é que

pertencemos a ela. Esse sentimento nos induz a estabelecer não apenas um novo pacto social, mas

um novo pacto natural baseado no equilíbrio de nossas ações e relações no ambiente em que

vivemos. É um sentimento orientador para nossas escolhas econômicas, políticas e sociais – e por

isso inclui a cidadania – mas orienta também nossas escolas ambientais e culturais – e por isso a

transcende. O ser humano tem se considerado, nos últimos séculos, o centro do mundo. Ao mesmo

tempo, pensa que seu próprio centro é o “eu” consciente. O resultado desse pensamento é a

exploração devastadora da natureza e das culturas humanas a ela associadas, consideradas

inconscientes e primitivas. Assim, atende-se às vontades econômicas e políticas não da humanidade

mas de uma parcela muito pequena dela. O sentimento de florestania nos dirige à superação do

antropocentrismo e do etnocentrismo que lhe é inerente. Há muitas riquezas neste planeta, a vida é a

principal delas. Todos são herdeiros destas riquezas: os povos que nela habitam, as gerações que

ainda virão habitá-lo, os animais, as árvores, a luz, a água e até as pedras. (ALVES, 2003: 129/130).

Como podemos ver, a noção de florestania, nesse campo intelectual, está fortemente

influenciada por movimentos internacionalistas como já citamos, a exemplo da “Declaração

de Morélia” que, ao ser apresentada na Rio - 92, surtiu impacto considerável entre os

ambientalistas, onde se coloca esse princípio de entificação da natureza, na mesmo linha

dos argüidos por Antônio Alves, tais como, “a floresta não nos pertence, nós pertencemos a

Page 276: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

277

ela”, de “superação do antropocentrismo e do etnocentrismo”, chegando ao ponto de

afirmar que:

O ponto inicial da florestania é, portanto, o respeito reverente pelos ecossistemas. O equilíbrio

dinâmico dos ambientes, os ciclos da natureza como acontecem em cada lugar, as relações entre os

seres e elementos que levaram milhões de anos para chegar à forma que hoje têm, essas são coisas

que constituem um “terreno sagrado” em que devemos tirar as sandálias para entrar. O mínimo de

impacto e alteração deve ser buscado. E há lugares em que esse mínimo é zero: áreas intocáveis,

santuários, partes íntimas da natureza nas quais a soberania absoluta do não-humano deve ser

reconhecida. O segundo ponto é o respeito – não menos reverente – pelos povos indígenas e as

populações tradicionais, cujas culturas tendem a evoluir lentamente mantendo relações equilibradas

com o ambiente do qual extraem sustento e sabedoria. E não se trata de uma atitude utilitarista, que

prega a proteção aos povos indígenas porque “eles podem nos ensinar os segredos da natureza”

economizando anos de pesquisa, por exemplo, na fabricação de medicamentos. Trata-se de

reconhecer que esses povos são valiosos não apenas para “nós”, mas para si mesmos. (ALVES,

2003: 130).

Indene a essa discussão mais filosófica, a partir do referencial florestania, o

Governo também tem agido na perspectiva de estabelecer resultados práticos para melhorar

as condições de vida dos povos da floresta, seja no re-ordenamento de terras, seja no

combate aos desmatamentos, ou na aplicação de políticas públicas voltadas para essas

populações.

Desde 1985, data da realização do I Encontro Nacional dos Seringueiros, ocorrido

em Brasília, de onde emergiram as idéias de Reservas Extrativistas, até a aprovação e

publicação do Zoneamento Ecológico Econômico, pelo Governo do Estado do Acre, em

2007, quando se dá estatuto técnico-científico para a utilização e redistribuição de terras no

Estado se passaram pouco mais de vinte anos, porém, muitas alterações se processaram

neste intercurso.

Do conflito aberto entre fazendeiros e seringueiros iniciados na década de setenta,

restam poucos focos, o que não quer dizer que a questão agrária tenha sido resolvida,

porém o Estado tem se interposto, isto é, tem se colocado na perspectiva de solucionar os

conflitos diretos, tentando dirimir os estranhamentos, operacionalizando novos

instrumentos não disponíveis nas décadas anteriores. Um dos recursos mais utilizados vem

sendo a nova legislação ambiental que serve para disciplinar os desmatamentos e penalizar

os infratores. A reconfiguração da utilização da terra, contudo, é feita em bases bem

diferentes daquela do início da década de setenta, ao ponto de um dos principais dirigentes

Page 277: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

278

do STR de Xapuri e organizador dos empates, Raimundo Barros, falando, em 2003, sobre o

significado da conquista das Reservas Extrativistas, afirmar que:

Primeiro, eu tenho de dizer que a partir daí acabou-se o conflito pela terra graças a Deus, hoje não só

Xapuri, mas nessa região do Vale do Acre. Eu também não ouço nenhum comentário da região do

Juruá que ainda haja conflito pela terra. Aqui no nosso Estado, devido esta grande luta o latifúndio e

alguns patrões que ainda tinha, tiveram que aprender a respeitar a nossa pessoa e também aos nossos

direitos. (Apud. SIMIONE da SILVA, 2006: 52/53).

O que se pode depreender da fala de Raimundo Barros é que ele passou a ver os

novos modelos de conflito por outras lentes, a enxergar outras fronteiras. Como já dissemos

anteriormente, a criação das RESEXs, bem como a discriminação de terras levada a cabo

pelo INCRA, atenuaram os conflitos pela terra, principalmente nessas áreas onde se

vivenciou conflitos mais agudos, o que não quer dizer que eles tenham sido abolidos, pois

os conflitos continuaram em outras esferas e em outras áreas. Porém, tanto a questão da

terra, como os níveis de conflito, modificaram-se tanto nesses vinte anos que não podemos

estranhar a sua não visualização por parte do sindicalista.

Se antes nós visualizávamos apenas a divisão entre proprietários e não-proprietários,

ou seja, seringalistas e seringueiros, ou depois, fazendeiros e “posseiros”, após as lutas

desencadeadas pelos trabalhadores extrativistas e as intervenções do governo, esse quadro

sofreu alterações.

No ZEE, por exemplo, encontramos um quadro completo e complexo das novas

modalidades de configuração das terras no Estado, vejamos algumas das denominações e

significados para melhor entendermos os embaraços deste e de outros sindicalistas para

decifrar essa nova situação. As terras públicas, por exemplo, estão assim distribuídas:

1) Projetos de Assentamento;

2) Unidades de Conservação de Proteção Integral;

3) Unidades de Conservação de Uso Sustentável (inclui as RESEX);

4) Terras Indígenas;

5) Terras em Discriminação (sub judice);

6) Terras Públicas não destinadas;

7) Terras Dominiciais Estaduais (lotes titulados e a titular);

8) Áreas a serem discriminadas.

Page 278: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

279

Cada uma dessas denominações ainda se subdivide em outras modalidades, por

exemplo, o Projeto de Assentamento, que em sua concepção original se destinava a ser um

mecanismo do INCRA como “um conjunto de ações, em áreas destinadas a reforma

agrária, planejada de natureza disciplinar e multisetorial integradas ao desenvolvimento

territorial e regional”, hoje se subdivide em várias outras denominações que servem para

selecionar o tipo de morador daquela área. Vejamos algumas dessas modalidades, assim

descritas no ZEE:

Atualmente cerca de 9,81% das terras do Estado do Acre estão ocupadas por assentamentos de

reforma agrária, nas modalidades de Projetos de Assentamento Dirigido (PAD), Projeto de

Desenvolvimento Sustentável (PDS), Projeto de Assentamento Florestal (PAF) e Projeto Estadual

Pólo Agroflorestal (PE). Além destes, existe o Projeto Casulo (PCA), que é descentralizado dos

demais tipos de assentamento70

. (ZEE, 2006: 100).

Na mesma linha, as Unidades de Conservação (UCs) também se subdividem dentro

de cada uma das grandes áreas, ou seja, a Unidade de Conservação de Proteção Integral,

que perfaz um total de 1.563.769 ha., se subdivide em: Parques Nacionais (PARNAS),

como é o caso do Parque Nacional da Serra do Divisor; Estação Ecológica (ESECs), como

é o caso da Estação Ecológica do Rio Acre e; Parques Estaduais (PEs), como é o caso do

Parque Estadual do Rio Chandless. Já a Unidade de Proteção de Uso Sustentável, que

perfaz um total de 3.544.067 ha., se subdivide em: Áreas de Proteção Ambiental (APA);

Reservas Extrativistas (RESEX); Florestas Nacionais (FLONAS) e ; Florestas Estaduais

(FLOES).

Compõem ainda esse quadro de terras públicas, com razoáveis extensões, as terras

indígenas (TIs), que perfazem um total de 34, com uma área de 2.390.112,26 ha., sendo que

destas “24 já se encontram registradas na Secretaria de Patrimônio da União e nos cartórios

de Registros de Imóveis dos respectivos municípios de localização” (ZEE:2006, 99).

Juntando todas as terras consideradas públicas, o Estado se apresenta como

responsável por pouco mais da metade de todo o conjunto de terras da unidade federativa, o

que promove uma sensação de “questão resolvida”, se considerássemos a situação anterior,

70

- O projeto casulo “é uma modalidade descentralizada de assentamento, implementado por meio de

convênio do INCRA com Prefeituras Municipais. Destina-se à exploração agropecuária, instalado em áreas de

transição, no entorno de núcleos urbanos”.(ZEE, 2006: 103). Essa é uma modalidade mais recente, criado em

1997, já para tentar dar maior capacidade econômica para áreas já desmatadas, colocadas sob posse de

pequenos produtores.

Page 279: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

280

principalmente, a do início da década de setenta até final da de oitenta, quando a quase

totalidade dessas terras era apropriada ou reivindicada pelo setor privado. É nesse sentido

que os conflitos parecem ter sido debelados, pois para os extrativistas que estiveram no

olho do furacão, como é o caso de Raimundo Barros, a criação das Reservas Extrativistas

lhes dá as garantias desejadas, pois na RESEX, os extrativistas permaneceram com direito

as suas colocações, reivindicação que ajudou a consolidar o Conselho Nacional dos

Seringueiros (CNS) e, por conseqüência, a formatar as próprias Reservas Extrativistas

como uma nova modalidade de reforma agrária.

A nova condição de domínio do Estado sobre grandes quantidades de terras, às

quais passa a distribuir como concessões de uso, mais ou menos dentro dos padrões

reivindicados pelos trabalhadores extrativistas organizados, está na base da construção da

idéia de desenvolvimento sustentável e florestania, que seria articulada no final da década

de noventa pelo governo da Frente Popular do Acre (FPA).

Essa tendência do Estado em se colocar como principal articulador do

desenvolvimento do Acre, contudo, não constitui uma novidade nem aqui, nem na

Amazônia como um todo, o que é novo nesse procedimento são os parâmetros utilizados,

isto é, a nova forma e os novos objetivos da intervenção. No texto do Plano Amazônia

Sustentável (PAS), aprovado e assinado por todos os governadores da região e pela

Presidência da República, no início de 2008, temos uma perspectiva de ruptura com os

modelos anteriores nos seguintes termos:

A visão que influenciou o planejamento regional no Brasil desde os anos 1950, que se manteve

durante o regime militar, e ainda remanesceu até a década de 1990 acentuou a existência de

desigualdades regionais. Sabe-se, porém, que o livre funcionamento das forças de mercado não

apenas é incapaz de reverter tal tendência, como inclusive a agrava. Entende-se que cabe

essencialmente ao Estado induzir o crescimento econômico das regiões menos dinâmicas, em geral

por meio do fomento às atividades econômicas motrizes. Tais políticas, contudo, não previam

mecanismos para evitar efeitos perversos como a concentração de renda, o agravamento da

exclusão social e um padrão de crescimento econômico predatório de suas próprias bases

naturais. As estratégias preconizadas pelo PAS ressaltam o papel do Estado, enfatizando,

inclusive, a ampliação de sua presença na região em todos os níveis. Notadamente, esta presença

se faz por meio de ações dos governos federal e estaduais destinadas a garantir uma maior

governabilidade sobre os movimentos de ocupação e transformação socioeconômica em

determinadas áreas; orientar o uso do território e de seus recursos; induzir a ampliação e

modernização da base produtiva; além de assegurar adequada previsão de serviços públicos

essenciais, como educação, segurança, saúde, habitação, assistência técnica, regularização fundiária e

justiça. (PAS, 2008: 80). (grifamos).

Page 280: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

281

Não são pequenas, portanto, as perspectivas de intervenção do Estado na Amazônia

a partir da elaboração do PAS, além do que ela se projeta para uma oposição político-

ideológica de grande envergadura, haja vista o documento ter sido assinado nestes termos

por todos os governadores da região, onde nem todos são de partidos da base de sustentação

do governo federal, mesmo assim seguiu mantendo um texto claro de rompimento com as

políticas liberais/neoliberais, quando afirma que “o livre funcionamento das forças de

mercado não apenas é incapaz de reverter tal tendência, como inclusive a agrava”.

É inquestionável a forte tendência, tanto do governo federal, como dos estaduais,

em tentar materializar um novo ordenamento territorial, destacando-se a questão da

proteção dos ecossistemas, ao mesmo tempo em que procuram conciliar essa proteção com

outros investimentos em infra-estrutura, como bem demonstram os casos dos investimentos

em estradas de rodagem, financiamento do “agribusiness”, construção de novas

hidrelétricas, novos aeroportos e portos. Porém, não conseguem se esquivar de uma

contradição: toda a investida do Estado sobre o ordenamento socioeconômico, visando o

tão almejado desenvolvimento sustentável, vem sendo negado, na prática, pela perspectiva

de estabelecer a concessão de florestas públicas à iniciativa privada para fins de manejo

florestal, ou ainda, pela entrega de volumosos recursos às empreiteiras “licitadas” para a

construção das obras de infra-estrutura.

Por mais que possa parecer fora da lógica, partes significativas dos movimentos

sociais, incluindo sindicalistas, religiosos e integrantes de ONGs, que atuaram para realizar

os combates, os enfrentamentos com os ordenadores das políticas anteriores, consideradas

predatórias pelos documentos dos governos atuais, ditos sustentáveis, agora voltem a se

mobilizar para “empatar” algumas ações destes governos que, na análise feita por esses

setores, aparecem como antagônicas aos seus interesses, principalmente as que se referem à

construção de estradas, hidrelétricas e concessão de florestas públicas para atividades de

manejo madeireiro. Isso não impede que ao mesmo tempo, outros sindicalistas, religiosos e

ativistas de ONGs, que também faziam parte daquele ajuntamento crítico às políticas do

regime militar, atualmente emprestem apoio aos governos para realização dessas políticas

consideradas como sustentáveis, inclusive, em alguns casos, fazendo parte das equipes do

governo, tanto em nível local como nacional.

Page 281: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

282

O projeto de sustentabilidade emanado dos governos, portanto, não parece ser

consensual, pois consegue “dividir” parte dos movimentos sociais que em etapas anteriores

estavam reunidos nos mesmos propósitos. As divergências podem ser pontuais em alguns

casos (obras de infra-estrutura e concessão de florestas, por exemplo), mas em outros são

também, políticas, de visão estratégica.

O professor da Universidade Federal do Acre e ex-assessor do Conselho Nacional

dos Seringueiros (CNS), Elder Andrade de Paula, um crítico da forma de sustentabilidade

empreendida pelo governo, chega mesmo a dizer que as políticas de terras do governo do

Acre, por exemplo, faz parte de uma estratégia de re-privatização do público que obedece à

lógica de expansão do capitalismo:

Quanto à reprivatização, ela ocorre naquelas áreas que resultam da conjugação de terras arrecadadas

e terras desapropriadas e passaram a constituir-se em propriedades do Estado, como as Florestas

Nacionais, Florestas Estaduais, Projetos de Assentamento Agroextrativista etc. Essa reprivatização

ocorre de duas formas: 1) desregulamenta os planos de uso dessas áreas a fim de liberar a extração de

madeiras para fins comerciais. Através dos chamados “manejos sustentáveis” o setor madeireiro

obtém “salvo conduto” para praticar o saque de terras públicas; 2) criação de leis – como Lei

Estadual Nº 1.427, sancionada em dezembro de 2001 pelo governador do Acre – que facultam ao

poder executivo estadual firmar contratos de concessão de uso com a indústria madeireira em terras

públicas. A generosidade do poder público não se resume a essa oferta, ela prevê ainda a adoção de

uma série de isenções fiscais e outros incentivos para “atrair” as indústrias de grande porte para a

região. (PAULA, 2004: 14). (In. www.ces.uc.pt/LAB2004)

Essa é uma parte da contradição, por um lado, o Estado agindo no sentido de

controlador e fomentador de modelos de desenvolvimento, que são marcados por essas

ambigüidades típicas de uma leitura política conciliadora, por outro lado, pregando a

necessidade de rompimento com as políticas predatórias dos regimes anteriores e; numa

terceira vertente, se colocando como organizador do desenvolvimento sustentável e, indo

além, se colocando como garantidor de um novo modo de vida, a florestania, que no fim,

realoca as questões agrárias e ambientais para o contexto do desenvolvimento sustentável.

Esta é a complexa formulação que resolve ou, melhor, que envolve todos os interesses

possíveis. No tópico denominado “Florestania”, do Plano Plurianual 2004/2007, por

exemplo, está escrito:

O plano estratégico está pronto. As metas estão estabelecidas. As oportunidades foram mapeadas e

os parceiros escolhidos. O Acre conquistou o respeito e a credibilidade das autoridades nacionais e

internacionais na área florestal. A população defende a opção pela floresta e avaliza o rumo apontado

pela administração atual. Para este período, as metas são as seguintes: Fortalecer os programas de

incentivo para elevar a produção e a industrialização de madeira com selo verde internacional. Com

Page 282: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

283

esse incremento, milhares de empregos diretos e indiretos serão criados, injetando milhões de reais

na economia anualmente; Ampliar os programas de apoio às comunidades extrativistas para

modernização e diversificação da produção extrativista, através do fortalecimento das organizações

produtivas comunitárias, incorporação de tecnologias destinadas ao manejo e beneficiamento de

produtos florestais e apoio à comercialização. (PPA, 2003: 98)

Os fatos que revelam as contradições nas novas políticas do governo oriundo dos

movimentos sociais estão centrados na concepção política que o envolve. Não pode se

esquivar dos compromissos com as exigências do mercado, tais como investimentos em

infra-estrutura tipo, construção de estradas, investimentos em energia e financiamento dos

ditos empreendimentos produtivos e das cadeias produtivas, no caso do Acre, mais visíveis

no setor madeireiro, pecuário e, por último, agricultura de exportação (cana-de-açúcar), que

requerem tratamento fiscal diferenciado, financiamentos e isenções, dentre outras benesses

tradicionais que propiciam a transferência de recursos públicos para o setor privado e, por

outro lado, não pode romper com as forças que o projetaram para a condição de comando.

Desta situação deriva o olhar preferencial, seletivo mesmo, para determinadas áreas de

atuação, senão vejamos o que diz o tópico “A indústria da floresta” no Plano Plurianual:

A política industrial do Governo do Estado é pautada pelo objetivo central de gerar empregos,

orientou-se para a agregação de valor à matéria-prima regional. Para gerar e manter empregos é

necessário desenvolver uma indústria que não exporte capital, ou seja, que tenha o máximo possível

de insumos no próprio Estado. É necessário, portanto, implementar políticas públicas capazes de

aumentar a oferta de produtos de qualidade no setor primário, ampliar o mercado interno e atrair

investidores locais e externos. Os resultados das ações do governo na área social, infraestrutura e

fomento ao setor produtivo, realizados nesta primeira etapa da gestão, tornaram o Acre um estado

mais atraente ao investidor. Algumas empresas se estabeleceram aqui e muitas se fortaleceram.

Torna-se necessário, daqui por diante, ampliar o acesso aos benefícios instituídos e criar novos

mecanismos de estímulo. (PPA, 2003: 99).

E o Estado não se negou na sua “tarefa” de criar condições melhores para atrair

“investidores”, no tópico denominado “Estabelecendo as Bases” se vangloria da:

Criação do pacote de incentivos governamentais, através de um conjunto de leis instituídas para

oferecer ao setor industrial vantagens fiscais e infraestruturais, dentre outras, cuja gestão está a cargo

da Comissão de Política de Incentivo às Atividades Industriais no Estado. (...) Ampliação e

recuperação do Distrito Industrial de Rio Branco; Apoio à instalação de várias empresas no Estado;

Instalação e estruturação de um setor responsável para desenvolver as atividades do Instituto

Nacional de Propriedade Industrial no Estado. (PPA: 2003: 99/100).

Os documentos do Plano Plurianual são auto-explicativos, mas a tentação para

comentar é grande, pois é um plano que quer estabelecer as bases da florestania, no sentido

Page 283: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

284

de inclusão dos povos da floresta nos planos de desenvolvimento sustentável, mas se

esmera em apresentar o Estado (Governo) como um propiciador de condições favoráveis

para a instalação de indústrias, criando oportunidades de financiamentos, criando “agências

de negócios”, etc., ou seja, será que esses investimentos têm repercussão na vida dos

“povos da floresta”? Ou será que aqui temos estabelecida a dúvida que Alier (1998),

levanta acerca dos termos livelihood (meio de vida, subsistência) ou quality of live

(qualidade de vida)? Onde para ele as populações pobres pensam em (livelihood), enquanto

as classes médias e ricas estão sempre preocupadas com (quality of live).

Será que a apropriação do conceito de florestania por parte do Estado (Governo)

mantém sincronia com as reivindicações dos trabalhadores extrativistas? Será que eles

querem se transformar em empregados das indústrias e/ou outras oportunidades que

venham a surgir a partir dos investimentos do Governo, ou só querem manter seus meios de

vida tradicionais?

As indagações nascidas da leitura dos Planos Plurianuais 2000/2003 e 2004/2007,

do Planejamento Estratégico 2007/2010, ou mesmo da leitura do ZEE, não constituem uma

desconfiança dos propósitos da Frente Popular, dos governantes do Acre, mas a persistência

em tentarem credenciar o Estado (Governo) como pólo aglutinador de investidores nos

instiga a refletir sobre as bases desse pensamento, até porque ele não é inédito, não

constitui uma novidade, como é afirmado no texto introdutório do ZEE ou, refazendo a

pergunta, onde está o ineditismo? Não era com esses mesmos propósitos que os militares

desenvolveram seus projetos para a Amazônia? Não queriam os militares dotar a região de

infra-estrutura necessária para atrair investidores e povoadores que tornariam a Amazônia

integrada ao “território nacional”?

Os que elaboraram o texto poderiam argüir que há semelhanças em alguns aspectos

das ações, mas os propósitos são outros, pois na fase atual a base que estimula o governo é

uma base originária da sociedade civil organizada, mais ainda, são aqueles que eram

invisíveis pelos militares os que o Estado agora quer beneficiar. Não duvidamos, como já

dissemos, dos propósitos e das ações do “governo da floresta”, como também não

desconhecemos que houve uma modificação significativa no tratamento que o Estado

passou a dispensar a alguns setores das classes trabalhadoras, especialmente aos que

fizeram parte do agrupamento que resistiu, através dos empates, a corrida pelas terras e

Page 284: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

285

contra os desmatamento a partir da década de setenta, porém, devemos considerar que o

volume do campo dos trabalhadores e dos que não tem trabalho, se ampliou e outros

segmentos apareceram na cena do Estado, sem manter vínculos orgânicos com a parcela

dos extrativistas sindicalizados e, para estes, a situação não tem sido favorável.

Podemos até distinguir que há três campos mais nítidos desse tratamento

diferenciado destinado pelo Estado. Dois desses campos ligados aos trabalhadores, assim

distribuídos:

1) os funcionários públicos nos espaços urbanos, devido à organização de seus

sindicatos e a base de apoio que representa em disputas eleitorais;

2) os trabalhadores extrativistas, especialmente os que estiveram nas frentes de lutas

pelos empates e para criação das Reservas Extrativistas e permaneceram em suas áreas ou

arranjaram colocação em alguma das Reservas constituídas. Para estes últimos estão mais

voltadas às políticas que visam concretizar as idéias do conceito de florestania e;

3) A terceira categoria é a que agrupa os empresários, principalmente os das grandes

madeireiras, os fazendeiros e os ligados ao agribusiness, que começam a chegar ao Estado.

Esses empresários (agropecuários e madeireiros), nunca foram “esquecidos” pelo

Governo, mesmo que eles vivam reclamando das legislações ambientais, tachando-as de

restritivas às suas ações produtivas.

Os outros segmentos sociais que não fazem parte dessa base tripolar, passaram a

figurar como entraves, são os novos “baderneiros”, “agitadores”, “agentes manipulados

pela oposição” que querem desestabilizar o governo, etc. Linguagem muito parecida com a

usada pelos militares e autoridades civis, contra os próprios extrativistas nos momentos

iniciais de sua organização.

Como já apontamos, além dos trabalhadores extrativistas que participaram da

organização dos sindicatos e dos empates, um número, também bastante considerável,

deixou os seringais para vir para as cidades ou seu entorno, enquanto outros foram para a

Bolívia ou Peru, estes últimos tendo iniciado uma marcha de retorno, principalmente no

final da década de noventa. Este contingente, acrescido de outros pequenos produtores que

ao longo dos anos se viram obrigados a “vender” suas terras para os grandes fazendeiros,

vem ampliando essa camada de novos problemas para o governo, que não conseguiu incluí-

los em seus planos de sustentabilidade e de florestania, ou, para não sermos injustos, tenta

Page 285: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

286

incluí-los nos lastros dos “grandes investimentos” privados que em tese gerariam empregos

e renda para essas camadas desempregadas.

O resultado desse tipo de acomodação conciliadora, proposta pelo Estado, que já

havia acontecido no período anterior e durante o regime militar, foi explicada por Rêgo nos

seguintes termos:

A história recente da relação entre Estado e Extrativismo na Amazônia mostra que o Estado

democrático prescreve políticas liberais, enquanto a ditadura militar típica adota políticas

protecionistas para a borracha natural. Essa oscilação explica-se pela necessidade de organização da

hegemonia da burguesia monopolista no bloco no poder e na sociedade e a forma como o Estado a

realiza. O modo flexível pelo qual o Estado democrático unifica os interesses burgueses e os

transforma em interesses da nação, permite que a fração burguesa do setor de artefatos de borracha

consiga expressar o essencial de seus interesses na política estatal. O Estado de exceção estrito, ao

instituir o projeto de ocupação da Amazônia pelo grande capital suscita uma reação dos seringueiros,

posseiros e burguesia mercantil extrativista à aceleração da desestruturação das relações de produção

tradicionais do extrativismo. A multiplicação das tensões sociais no campo criava uma situação de

instabilidade social na região que afetava o processo de hegemonização. Era necessário acalmar a

inquietação social que repercutia necessariamente no aparelho de Estado local. Não dispondo dos

instrumentos flexíveis de organização de interesses, próprios da democracia formal, o Estado de

exceção estrito age com um elevado grau de autonomia em relação às diferentes frações burguesas

no bloco do poder. É por isso que, para fazer passar o projeto de ocupação econômica da Amazônia

como do interesse da nação, o Estado de exceção se propõe a atender certas demandas dos

trabalhadores rurais e da burguesia extrativista. (RÊGO, 2002: 406/407).

A análise de Rêgo é muito oportuna no sentido de nos permitir uma reflexão mais

de fundo, acerca das reais condições de ação do Estado no processo de transição dos

governos militares para os governos civis. O destaque que ele faz entre a adoção de

políticas liberais e protecionistas é revelador, ou seja, não deixa margem para outras ações

fora da estreita margem delimitada pelo mercado, pela propriedade privada, pelo

ordenamento jurídico, enfim, pelo capitalismo.

Noutro sentido, demonstra também que as contradições dentro do próprio

capitalismo permitem movimentos não previstos. Os níveis variados de disputas dentro dos

espaços criados pelo Estado (Governo), no Acre, nos remetem a um quadro onde podemos

observar fazendeiros, madeireiros e agro-investidores competindo com seringueiros,

castanheiros, ribeirinhos e pequenos produtores, não só pela direção do Estado (Governo),

mas também, pelos recursos que este detém.

No quadro de desembolso do PPA 2004/2007, por exemplo, a área de atuação

denominada Gestão e Desenvolvimento Econômico Sustentável, que inclui vários

programas que envolvem os trabalhadores extrativistas e os temas de proteção ambiental

Page 286: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

287

são majoritários, entre eles se destacam os programas Florestas Sustentáveis; Promoção da

Produção Vegetal; Proteção ao Meio Ambiente; Proteção Indígena, etc. obviamente, num

cenário de disputa por recursos e investimentos, os empresário ligados aos setores

agropecuários e madeireiros se ressentem por ter que dividir com um setor que antes não

aparecia nessa distribuição.

Outro indício dessa nova disputa está bem representado nos “Gritos da Terra”,

eventos anuais comumente realizados no primeiro de maio, onde os trabalhadores rurais

ocupam as principais praças das cidades para denunciarem a questão agrária e

reivindicarem atenção para suas necessidades. Nos últimos anos, esses eventos têm sido

marcados pela ocupação da frente dos bancos (BASA e Banco do Brasil), responsáveis

pelos recursos do FNO (Fundo Constitucional do Norte), para que se tornem acessíveis

também aos produtores extrativistas e pequenos produtores, já que anteriormente só os

grandes investidores tinham acesso a esses recursos. Essas disputas nos revelam alguns dos

fios que podem nos ajudar a “andar” pelo labirinto formado pelas novas configurações

econômico-políticas do Estado do Acre.

Como os representantes políticos dos grandes empresários não obtiveram êxito

eleitoral nos últimos pleitos para os cargos majoritários, foi necessário que eles se

aproximassem dos atuais governantes, no sentido de não perderem de vez as possibilidades

geradas pelos “negócios” com o Governo. Então, em pleno campo de disputas, tiveram que

flexionar posicionamentos e adotar outras perspectivas.

Muitos empresários passaram a reconhecer a necessidade de melhorar seu sistema

produtivo e seu relacionamento com as políticas ambientais, adotando algumas

recomendações oriundas de ONGs e do próprio Governo, no sentido de se tornarem

também, “social e ambientalmente sustentáveis”.

O campo de construção da florestania e do desenvolvimento sustentável, portanto,

não é um espaço sem conflitos. Mesmo a disputa pelo modelo econômico a ser seguido,

ainda não é consensual, embora todos os segmentos que compões os diferentes lados da

disputa aleguem serem seguidores das diretrizes da sustentabilidade, negando as visões

produtivistas e santuaristas. Em contexto tão complexo, somos levados a considerar que as

práticas nem sempre correspondem ao debate teórico.

Page 287: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

288

Por seu turno, o governo tenta influenciar os setores extrativistas na perspectiva de

torná-los mais próximos de práticas produtivas consideradas mais apropriadas para seu

“desenvolvimento”, como veremos a seguir.

4.3.1 O neoextrativismo e os produtos florestais não-madeireiros.

Uma das elaborações mais rebuscadas por parte do governo para resolver a questão

da pouca produtividade dos povos da floresta, visando melhorar suas condições de vida e

sua inclusão nos projetos de desenvolvimento sustentável e florestania, pode ser encontrada

na introdução e no fomento de novas práticas extrativistas que tiveram como base, tanto o

subsídio para os produtos tradicionais do extrativismo (borracha e castanha), como para o

incentivo dado aos produtores, na perspectiva de que inserissem outros produtos na sua

cesta de coletas tradicionais, visando aumentar suas rendas.

Desde a consolidação da primeira Reserva Extrativista, em 1989, até 1999, ano em

que tomou posse o primeiro governo da Frente Popular, os encargos de divulgar e

incentivar a diversificação da coleta de outros produtos da floresta ficaram sob a

responsabilidade dos STRs, das Centrais Sindicais, de órgãos dos governos federal e

estadual, das ONGs, da CPT, das CEBs e dos partidos políticos de esquerda que tinham

ligações com os trabalhadores extrativistas. A idéia central era que se aproveitasse o

máximo outros produtos florestais não-madeireiros para demonstrar a viabilidade das

RESEXs e, principalmente, consolidar a idéia de que a floresta em pé, renderia mais que

sua devastação para extração madeireira e atividades ligadas à pecuária.

A partir desse período, as idéias de desenvolvimento sustentável, de manejo

florestal, de florestania, etc. passaram a fazer parte da pauta dos governos e da linguagem

de seus interlocutores nos ambientes florestais, especialmente das reservas extrativistas. Da

posse de Jorge Viana em diante, dificilmente se abre qualquer um dos jornais do Acre que

não se tenha uma matéria enfocando uma questão ligada aos temas da sustentabilidade,

tanto econômica, quanto ecológico/ambiental. Em muitas matérias que encontramos nos

jornais pesquisados sobre o assunto, notamos uma tendência a fixar determinadas idéias,

como se elas representassem também uma necessidade de auto-afirmação. Nesta, por

exemplo, lemos:

Page 288: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

289

O manejo florestal sustentado é a aplicação de um conjunto de técnicas para explorar a madeira e

outros produtos da floresta de maneira permanente (passando de pai para filho, de filho para neto, e

assim por diante), sem que ela se esgote. Para que a floresta nunca perca sua capacidade de produzir,

deve-se retirar dela somente a quantidade que é capaz de repor pelo crescimento das árvores. De

maneira simplificada, o manejo florestal consiste em dividir a área de florestas em várias partes de

igual tamanho, onde explora-se uma dessas partes a cada ano. Com o auxílio de algumas técnicas

(corte de cipós, eliminação de árvores sem valor comercial, plantio de mudas de espécies valiosas), a

parte que foi explorada fica se recompondo e só será novamente explorada depois que todas as outras

tiverem sido. Desta maneira é possível explorar a floresta continuamente sem que se esgote. (Manejo

sustentado é conjunto de técnicas. Jornal A Gazeta. Rio Branco, 1999).

As perspectivas de utilização das práticas de manejo, comumente eram

apresentadas, não só como uma inovação metodológica, mas sempre com uma conotação

de valorização econômica dos ativos florestais. Nesta outra matéria que “explica” os

objetivos do manejo sustentável, verificamos:

O manejo florestal é um método que se propõe, por meio de técnicas, a utilização dos recursos da

floresta tropical – é o caso do Acre – de modo sustentável, de maneira contínua, e que beneficia

muitas gerações. O projeto-piloto de manejo da Embrapa Acre busca, em primeiro lugar, a formação

de produtores florestais. Através do repasse das técnicas, os produtores têm agora condições de

dirigir projetos de manejo florestal. A idéia do modelo praticado pela Embrapa, que já desperta

interesse em algumas regiões do país, foi concebida, pioneiramente, na Floresta Estadual do

Antimary. A experiência foi batizada como Plano de Manejo Florestal de Uso Múltiplo da Floresta

Estadual do Antimary. Desenvolvido pela Fundação de Tecnologia do Acre (Funtac), em parceria

com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o plano foi financiado pela

Organização Internacional de Madeiras Tropicais (ITTO). O manejo tem como objetivo principal a

viabilidade de um rendimento econômico anual e sustentável. Além disso, o manejo florestal procura

valorizar as áreas de florestas que se constituem em reserva legal. Esse fato tem despertado, nos

pequenos produtores, o interesse na conservação dos recursos naturais. Pelos métodos tradicionais,

os produtores – é o caso da madeira – somam grandes prejuízos em função do alto nível de

desperdício; baixa produtividade e agregação de valores que, além de não garantir sustentabilidade,

são degradadores dos recursos naturais florestais. (Manejo utiliza técnicas da floresta tropical. Jornal

A Gazeta: Rio Branco, 09/07/1998).

Nesse sentido, várias opções foram sendo apresentadas aos extrativistas, tais como,

exploração de óleos vegetais, como o da copaíba, da andiroba, da pimenta longa e outros

que servissem para fabricar amaciantes, corantes, repelentes para insetos, perfumes, sabão,

etc.; exploração de sementes ou fibras, para confecção de artesanato; frutos para indústria

alimentícia e outros produtos como o urucum ou côcos que servissem de bases para

cosméticos; ou ainda, explorar plantas medicinais, ou seja, tudo o que pudesse ser extraído

sem precisar derrubar árvores e sem prejudicar a natureza. Os modismos contagiavam

vários setores sociais, um caso bem característico foi o da pimenta longa, vejamos essa

matéria publicada no jornal A Gazeta com o título “Acre deverá produzir óleo da pimenta

longa”:

Page 289: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

290

A produção do safrol, óleo extraído da pimenta longa e que pode ser usado na fabricação de

inseticidas biodegradáveis, cosméticos e produtos farmacêuticos, deve começar, ainda este ano, na

Vila Extrema (RO). Uma destilaria será instalada na área para extrair o safrol. O anúncio é do chefe

da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária no Acre (Embrapa), Judson Ferreira Valentin. No

mundo, o consumo de safrol é estimado em 2 mil toneladas. O Brasil já foi o maior produtor de

safrol do mundo. Para instalar a destilaria, segundo Judson, depende apenas de a Overseas

Development Administration (ODA), a agência de fomento britânica, liberar os recursos. São 750

mil libras – cerca de R$ 1 milhão – para dois projetos com pimenta longa – um no Acre e outro no

Pará. Em Extrema, segundo Valentin, a primeira coleta deve ser em novembro. Devem ser coletadas

5 toneladas de galhos e folhas para transformação em safrol. A descoberta de que o safrol pode ser

extraído da pimenta longa, comum no Estado do Acre, foi feita por pesquisadores do Museu

Paraense Emílio Goeldi. Eles descobriram também que o safrol se concentra nos galhos finos e

folhas da pimenta longa. Em cultivos racionais, em oito meses já é possível realizar a primeira poda e

após seis meses a planta está apta para novo corte. Estão sendo realizados mais estudos a fim de

recomendar um sistema de produção economicamente adequado para exploração da pimenta longa.

Em função disso, o Brasil poderá se tornar novamente o maior exportador mundial de safrol pois a

Embrapa pretende repassar, em curto espaço de tempo, aos pequenos produtores, tecnologias de

produção e formas de beneficiamento industrial. (Acre... Jornal A Gazeta: Rio Branco, 1998).

Tecnicamente, tudo muito bem pesquisado, muito bem explicado, financiamentos

externos contatados, mas se alguém procurar os resultados desses empreendimentos dez

anos depois não vai encontrá-los.

Em outra matéria do mesmo jornal, com o título “Reservas exportam essências

medicinais para americanos, a jornalista Kátia Chaves expõe:

Um negócio que pode representar uma renda de até R$ 300 para os produtores que vivem nas

reservas extrativistas Chico Mendes e Alto Juruá pode ser fechado ainda este mês pelo Centro

Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais CNPT/Ibama e indústrias

americanas. Uma das maiores empresas de produtos fitoterápicos do mundo, a Ray Tree, com sede

no Texas (EUA) se propõe a comprar inicialmente 40 toneladas por mês de essências de espécies de

reconhecido poder medicinal. O negócio será fiscalizado pelo governo federal. A produção receberá

o selo de reserva extrativista do Acre. (...) Está sendo esperado para o próximo mês de abril a

chegada da primeira equipe de técnicos da Ray Tree Nutrition para uma visita as reservas

extrativistas. A indústria se propõe ainda a financiar projetos na área de manejo e investir na

montagem e treinamento para manufaturar os produtos. O interesse é que o produto seja desidratado

e seco na localidade. A indústria deve montar a base de beneficiamento. (...) Os produtores que serão

cadastrados devem começar a exportar cinco espécies – casca de jatobá, casca de ipê roxo, folha de

pata da vaca, cipó da unha de gato, casca de canelão e de catuaba. (...) A proposta da Ray Tree é

comprar essências de 33 das 105 espécies medicinais. A indústria já gasta 60 milhões por ano em

Manaus e Belém. “A linha da indústria americana é promover o desenvolvimento sustentável das

populações tradicionais. A Ray Tree afirmou que vai gastar R$ 10 milhões com o marketing dos

produtos”. (Reservas exportam essências medicinais para americanos. Jornal A Gazeta: Rio Branco,

1999).

Para dar esse caráter de cientificidade às ações e empreendimentos, alguns órgãos

do governo, que antes tinham funções específicas, passaram a incluir em seus objetivos o

desenvolvimento de políticas voltadas para os produtos florestais, principalmente, após a

eleição de Jorge Viana para o governo do estado, em 1998. A Fundação de Tecnologia do

Page 290: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

291

Acre (FUNTAC), por exemplo, foi um desses órgãos que passou a desenvolver projetos

nessa linha. Na seção de economia do Jornal A Gazeta, encontramos a seguinte notícia:

Moradores da floresta estadual de Antimari receberão, em breve, orientações técnicas para explorar

produtos não madeireiros naquela região. Essa pauta de trabalho faz parte do Projeto 94/90, que a

Fundação de Tecnologia do Acre (Funtac) mantém junto à ITTO (International Tropical Timber

Organization – Organização Internacional de Madeiras Tropicais). Este projeto esteve parado por

quase dez anos e foi reestudado e aprovado recentemente pela instituição japonesa. A Funtac deverá

receber nos próximos dias a primeira parcela de liberação de recursos do ITTO para a floresta do

Antimari. Para iniciar a aplicação desta verba, técnicos da fundação e de outras instituições se

reunirão hoje e amanhã, no auditório da Funtac para participarem do workshop “Estratégias de

Mercado para Produtos Não madeireiros”. A preocupação dos técnicos da Funtac é obter as

informações sobre o mercado e a comercialização de plantas medicinais e sementes florestais. A

pesquisadora da Funtac, bióloga Lucimar Araújo Ferreira, especialista em ecologia e manejo de

florestas tropicais, explicou a comercialização de produtos como o óleo de copaíba, artefatos em

jarina, borracha e bambu não são problemas para o projeto, mas o aproveitamento de plantas

medicinais e sementes da floresta ainda guardam mistérios quanto à exploração, coleta,

processamento e comercialização. (Produtos da floresta são pauta na Funtac. Jornal A Gazeta: Rio

Branco, 25/05/1999).

Essas idéias de exportar produtos florestais não madeireiros, que em sua maioria

não prosperaram, são oriundas do movimento ambientalista internacional, difundidas em

nível local pelas suas diversas ONGs espalhadas pelos cantões da Amazônia, ou mesmo de

grandes empresas, interessadas em manter relações amistosas com governos e entidades

ligadas aos povos da floresta. Darrell Posey (1994) relata que em maio de 1990, ocorrera

uma série de reuniões em Londres, denominadas “The Rainforest Harvest” (A Safra da

Floresta), patrocinadas pela Sociedade Real de Geografia, pela Agência Britânica de

Desenvolvimento Internacional (ODA) e pelo “The Body Shop”, que tinham como objetivo

“estabelecer um caminho “mais verde” no sentido de salvar o planeta”. Posey escreveu:

O acontecimento parecia uma estranha mistura de ciência, governo e empreendimentos privados; os

participantes representavam uma mistura mais estranha ainda de líderes indígenas da Amazônia,

etnobiólogos, defensores dos direitos humanos, ambientalistas, membros do parlamento, pensadores,

advogados internacionais, homens de negócios e realeza. As reuniões tentaram mostrar que a floresta

viva e seus vivos habitantes guardam inúmeros segredos sobre produtos novos, naturais e produzidos

de maneira sustentável, que estão praticamente saltando das árvores para alcançarem consumidores

iluminados e preocupados no “Primeiro Mundo”. (...) Assim, consumidores mundiais poderiam unir-

se para “votar”, através de seu consumo individual, pela maneira que eles desejassem o futuro do

planeta. Uma “democracia consumidora” internacional parece ser a melhor resposta a nova ordem

mundial que dependeria mais de laços econômicos internacionais do que alianças geopolíticas.

(1994: 345).

Page 291: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

292

Encontros desse porte em nível internacional e financiamento de atividades que

visavam suas aplicações em nível local, além de uma infinidade de “workshops”, foram

constantes nas duas últimas décadas do século passado. Porém, mesmo não questionando a

validade dessas ações e a legitimidade dos que as organizavam, o que entendemos como de

difícil aplicação eram os benefícios diretos aos extrativistas e aos que, na maior parte da

Amazônia, estavam fora do alcance dessas ações.

Basta imaginarmos a pesadíssima legislação sanitária dos países ditos desenvolvidos

para ingresso de produtos oriundos de outras regiões, ainda mais produzidos em escala

artesanal, sem as devidas regulamentações industriais, para termos uma idéia de quão

distantes da realidade estavam essas propostas.

Por outro lado, o que é uma vantagem, estes tipos de reuniões ajudaram a pressionar

os Estados (Governos), no sentido de combater suas práticas usuais de financiar

exclusivamente a monocultura. No Acre, o Governo passou, pressionado por suas relações

internacionais, a ser um dos agentes difusores dessas novas práticas de relacionamento

ambiental e econômico para os trabalhadores extrativistas, embora, como já demonstramos,

sem muita eficácia no sentido geral de inclusão de outros trabalhadores e não-

trabalhadores.

Mas não sejamos ingênuos de pensar que os governos e as grandes empresas dos

países ditos desenvolvidos desistiram de acessar os produtos madeireiros, oferecidos pela

floresta Amazônica. Nos mesmos jornais que noticiavam os investimentos em projetos de

manejo sustentável de produtos não-madeireiros, encontramos, também, a oferta de

vultosos recursos para “manejar” produtos madeireiros, vejamos uma dessas matérias a

título de ilustração:

Os Ministérios do Meio Ambiente e da Fazenda, o Ibama, o Banco do Brasil e o governo alemão

assinaram mês passado contrato de contribuição financeira no valor de 20 milhões de marcos

alemães, a fundo perdido, que vai financiar 20 projetos de Apoio ao Manejo Sustentável na

Amazônia (Promanejo). O Promanejo, que conta também com a cooperação técnica do governo

britânico, será implementado durante o período de cinco anos, no âmbito do Subprograma de

Unidades de Conservação e Manejo de Recursos Naturais Renováveis do Programa Piloto para

Proteção das Florestas Tropicais do Brasil – PPG-7, e tem como objetivo apoiar o desenvolvimento e

a adoção de sistemas de manejo florestal na Amazônia, com ênfase na produção sustentável de

produtos madeireiros, por meio de ações estratégicas e experiências piloto em áreas prioritárias. O

projeto conta ainda com participação dos governos estaduais, do setor acadêmico e do setor

empresarial, será coordenado pelo Ibama através da Superintendência estadual do Amazonas.

(Amazônia terá R$ 20 mi para manejo. Jornal A Gazeta: Rio Branco, 06/06/1998).

Page 292: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

293

A esse movimento que tentava envolver os povos da floresta, para direcionar suas

práticas econômicas, deu-se o nome, também, de neoextrativismo. José Fernandes do Rêgo

descreveu essa nova modalidade produtiva nos seguintes termos:

Esse novo conceito de extrativismo transcende o nível econômico. Na verdade, a mudança conceitual

corresponde às alterações ocorridas no bioextrativismo real. Este é, na Amazônia, cada vez mais uma

atividade econômica de produtores “autônomos” e de organização comunitária. A produção adquire

uma lógica, diversifica-se, mas se subordina sempre ao universo cultural e singular da população

extrativista. É a consideração desse bioextrativismo concreto, de sentido mais amplo, que dá origem

e pertinência ao conceito de neoextrativismo, entendido como um ambiente social específico, em

simbiose e equilíbrio com a natureza e mais determinado pelo universo cultural do que pelas demais

instâncias da vida social. A cultura das populações tradicionais é o cimento que dá unidade ao

ambiente social extrativista. (RÊGO, 2002: 405).

Na explanação acima, encontramos uma formulação de difícil entendimento, que

envolve os conceitos de neoextrativismo e, por conseqüência, de florestania, mas não como

uma relação determinante. Quando o autor diz que há na Amazônia “cada vez mais uma

atividade de produtores autônomos” e de “organização comunitária”, ele está reafirmando a

natureza diferenciada dos trabalhadores extrativistas, o que é a base para a construção da

florestania, ou seja, a atitude e as atividades práticas compõem o quadro interativo política,

economia e elementos culturais. Para Rêgo (2002), as bases do neoextrativismo

contemplam os componentes do “agro” e do “florestal”, além do extrativismo “puro”, ou

seja, praticamente todos os elementos que compõem o quadro econômico do Estado do

Acre, podem aparecer também como integrantes do campo econômico que lastreia as

atividades predatórias da agropecuária extensiva e da exploração madeireira. O que não

parece ser muito usual, pois há correntes que entendem que o desenvolvimento sustentável

não inclui a opção agrícola.

Referimo-nos aos defensores da tese que Becker (1993), denomina como opção

ecológica radical, que acham possível a sustentabilidade do desenvolvimento regional sem

o uso da terra. Seria uma espécie de desenvolvimento a partir de bens e serviços gerados

pela própria floresta, tais como, “clima, serviços para a agricultura, medicina, indústria e

ambientais decorrentes da mera existência dos ecossistemas florestais”. (BECKER, 1993:

130). Embora, para Rêgo esteja muito claro que o neoextrativismo ao qual ele se refere, não

inclui: a “agropecuária e a silvicultura modernas, baseadas na revolução verde que acelerou

a modernização agrícola, a especialização e o uso de fertilizantes e biocidas no Sudeste e no

Sul”. Convencido de que é possível uma diversificação produtiva racional, ressalta:

Page 293: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

294

Ao contrário, o agroflorestal do neoextrativismo envolve diversificação, consórcio de espécies,

imitação da estrutura da floresta e uso de técnicas desenvolvidas pela pesquisa a partir dos saberes e

práticas tradicionais, do conhecimento dos ecossistemas e das condições ecológicas regionais. Essa

agricultura e essa silvicultura novas, fundadas nas necessidades, no conhecimento e nas pesquisas

regionais, estão integradas às peculiaridades dos ecossistemas amazônicos e ao universo cultural dos

povos tradicionais da região – seringueiros, índios, castanheiros, ribeirinhos e pequenos produtores

agrícolas. (RÊGO, 2002: 406).

Esse seria, portanto, o principal mecanismo de expansão da florestania. Conseguir

que, na prática, os trabalhadores extrativistas introduzissem em seus modos de vida

tradicionais, as técnicas de diversificação de uso do solo e da floresta para ampliar suas

possibilidades econômicas. Não se previa, por exemplo, que os extrativistas, diante da

possibilidade de criar gado, fossem abdicar dessa condição em nome de um projeto de vida

que é modelado em outra situação, em outra conjuntura.

O apelo comercial de seus produtos residiria exatamente na forma de cultivo,

criação e coleta dos produtos da floresta, respondendo às necessidades locais e,

principalmente, credenciando seus produtos para um mercado externo “ávido em consumi-

los, por serem ambientalmente corretos”. Esta idéia está ligada a perspectiva de surgimento

de um consumidor “verde”, que em tese, “salvaria” os produtores tradicionais, por valorizar

ativos ecologicamente sustentáveis.

O papel do governo nesse processo envolveria a questão de redemocratização das

terras, o que até já vinha sendo feito pela própria luta dos extrativistas quando defendiam a

delimitação das RESEXs e, agindo também para colocar fim aos desmatamentos, além de

dar suporte técnico para essa diversificação da produção.

O que acaba atrapalhando a execução dos procedimentos é que há outra contradição

entre as percepções dos modos de vida tradicionais e as perspectivas de inserção desses

trabalhadores numa ordem capitalista. Rêgo (2002) compreende que esse novo

extrativismo, por exemplo, tem uma matriz que transcende o nível econômico, já que para

ele “a cultura das populações tradicionais é o cimento que dá unidade ao ambiente social

extrativista”.

Por outro lado, as ações do Estado sempre buscaram algum tipo de envolvimento

dos produtores no sentido de ter algo para aumentar a renda. Assim, as considerações de

Rêgo de que:

Page 294: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

295

Essa cultura distingue-se pelo modo de vida particular e pela identidade ou auto-reconhecimento do

grupo. O modo de vida tem sua matriz na dependência e simbiose com a natureza, no conhecimento

empírico e simbólico dos ciclos e recursos naturais, e tal saber é a base dos sistemas de manejo de

baixo impacto praticados. A produção apóia-se no trabalho familiar ou comunitário, depende do uso

imediato dos recursos, subordina-se aos ciclos naturais e tem como racionalidade não o lucro, mas a

reprodução social e cultural. Saliente-se, para prevenir reducionismos, que apesar da matriz comum,

cada grupo tradicional (seringueiros, ribeirinhos, índios, etc.) tem características culturais próprias.

Dentro dessa lógica de sobredeterminação cultural, o conceito de neoextrativismo abrange todo o uso

econômico dos recursos naturais não conflitante com o modo de vida e a cultura extrativistas. No

sentido econômico, neoextrativismo é a combinação de atividades estritamente extrativas, com

técnicas de cultivo, criação e beneficiamento imersas no ambiente social dominado por essa cultura

singular. (RÊGO, 2002: 405, 406).

A idéia de alavancar, de melhorar o nível de subsistência dos trabalhadores

extrativistas, incentivando-os à diversificação da extração, também produziu um

rompimento com os aspectos que norteavam o extrativismo tradicional. Aliás, a nova

convivência dos extrativistas com os fazendeiros, foi modificando também suas percepções

dos detalhes que separam os conceitos de subsistência (livelihood) e qualidade de vida

(quality of live).

Como as relações mercadológicas dos produtos extrativistas não respondiam, com a

velocidade necessária, as perspectivas dos extrativistas, eles buscaram referência nos

exemplos mais próximos e mais práticos. Nesse sentido, as fazendas de criação de gado,

com as quais eles passaram a conviver nas fronteiras com suas concessões (colocações), são

bem mais atrativas, isto é, bem mais rentáveis, o que foi levando paulatinamente, os

extrativistas a “investirem” cada vez mais na criação de gado, ou seja, a investirem num

produto não-madeireiro, mas não exatamente em um produto retirado da floresta.

Nesse sentido, a lógica anterior que referenciava o modo de vida dos extrativistas,

qual seja, sobreviver do que a floresta lhes oferecia, foi perdendo espaço para uma nova

forma, para uma nova modalidade de produção, que introduz a criação de gado como

elemento fundamental para a melhoria de sua condição de vida, situação essa contrária a

idéia inicial, pois nessa modalidade retira-se a floresta e não da floresta as condições para o

seu sustento. Mesmo dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes, que é a reserva símbolo

do êxito da luta dos seringueiros e suas organizações, por estar dentro da área que

funcionou como centro dos conflitos que levaram a morte do líder que lhe dá nome, essa

Page 295: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

296

nova modalidade vem sendo amplamente praticada. Valério Gomes71

que há mais de dez

anos estuda o fenômeno da expansão da pecuária na Reserva Extrativista Chico Mendes,

alerta para o desvio de função do conceito de Reservas Extrativistas, pela falta de

regulamentação das atividades que podem ser realizadas em seu âmbito.

Na mesma linha, Mary Allegretti, escreveu que as reservas extrativistas estão

passando por uma crise conceitual, pois para ela:

As reservas extrativistas não são somente um tipo de unidade de conservação com gente dentro que

precisa ser ouvida quando se trata de fazer um plano de manejo ou criar um conselho consultivo. As

reservas extrativistas são unidades criadas como solução a um conflito fundiário, pela iniciativa e

vontade das comunidades que vivem na área, para reconhecer direitos e assegurar que os recursos

naturais – dos quais essas pessoas dependem para viver e que se encontram ameaçados – continuem

sendo utilizados e protegidos, em benefícios dela e da sociedade. Os direitos fundiários são

reconhecidos na forma de unidade de conservação por uma opção destas comunidades e em

benéfico público. (...) A crise conceitual deriva do fato de que, depois de criadas, as reservas

extrativistas passam a ser entendidas como unidades de conservação de propriedade do governo e as

comunidades como mero detalhe, ou seja, moradores a serem tolerados, ensinados, educados,

moldados à burocracia. E deveria ser, no mínimo, uma relação entre iguais: as comunidades optam

por uma unidade de conservação e o Estado fornece a elas os meios para desempenhar essa função.

(In. www.reservasextrativistas.blogspot.com em 09/07/2008).

Entendemos que os problemas por que passam os moradores das reservas

extrativistas, vão além da definição do estatuto da concessão da terra e o seu caráter de

benefício público, pois para se chegar a esse estatuto, muitos fatores se combinaram. Não

foi resultado somente da pressão exercida pelos trabalhadores extrativistas, mas tendemos a

concordar com a autora no aspecto de que se perdeu a interlocução governo-comunidade,

até porque de alguma forma, os mecanismos de representatividade dos trabalhadores

extrativistas também sofreram modificações.

A perda de representatividade dos sindicatos, por exemplo, e a ascensão do

Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) e de outras entidades que passaram a fazer

interlocução em nome desses trabalhadores, tais como as ONGs, contribuíram para diluir

algumas reivindicações mais pontuais, elegendo em seu lugar pautas mais elaboradas e

mais difíceis de serem contempladas. No Caso das RESEXs, por exemplo, o cumprimento

do princípio administrativo das reservas (Conselho Deliberativo), que condiciona a criação

de uma Associação de Moradores da reserva, já favorece o surgimento de outra modalidade

71

- As posições de Valério Gomes sobre a pecuarização das reservas extrativistas estão expostas em sua tese

de doutorado, mas atualizadas no blog que ele coordena, acessado pelo endereço eletrônico

www.reservasextrativistas.blogspot.com

Page 296: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

297

de representação, que em muitos casos, confronta com o Sindicato de Trabalhadores Rurais

que já existia na área.

A criação de gado, por exemplo, não está prevista na legislação que criou o Sistema

Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), de junho de 2000, legislação esta que dá as

diretrizes para o funcionamento das RESEXs. Porém, se formos seguir a tradição, pelo

menos dos seringueiros autônomos, não é de se estranhar que queiram incluir a criação de

algumas cabeças de gado em suas colocações, pois essa prática já existia antes da criação

das reservas e, mais, porque isso significava melhora na condição de vida, alegada por

muitos extrativistas, como recurso necessário para criar os filhos.

Bettina Barros, tratando da questão da expansão da criação de gado nas Reservas

Extrativistas escreveu, no Jornal Valor Econômico de 09/07/2008, um texto onde aponta

dados relevantes sobre as crises provocadas por essa nova atividade, diz ela:

Símbolo do desenvolvimento sustentável na Amazônia, as reservas extrativistas personificadas pelo

seringueiro Chico Mendes estão cedendo à pressão da pecuária de corte. Em algumas, sobretudo no

Acre e Rondônia, o número de cabeças de gado já se iguala ou ultrapassa a de habitantes. Segundo o

governo, que ainda vê passivamente o problema, as estimativas apontam para a existência de até 40

mil cabeças nas principais reservas do bioma Amazônia, criadas nos anos 80 justamente para impedir

a substituição da floresta por pasto. “Podemos falar em uma cabeça por habitante”, diz Alexandre

Cordeiro, coordenador-geral de Reservas Extrativistas e Desenvolvimento Sustentável do Instituto

Chico Mendes, órgão (cindido do Ibama) que cuida das unidades de conservação do país. É o

desdobramento irônico - e perverso – do conceito que tenta viabilizar as populações tradicionais da

Amazônia, assegurando o uso sustentável dos recursos naturais. Mas a falta de alternativas motivou o

processo conhecido como “pecuarização” das reservas. “O boi virou uma alternativa porque tem bom

preço e liquidez. É a poupança para momentos de dificuldade dessas populações, não dá para

competir com os preços em queda da borracha e da castanha” explica Paulo Amaral, do Instituto do

Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), de Belém. (IN. www.valoronline.com.br –

Consultado em 12/07/2008).

Achamos precipitado falar de uma falência no sistema reserva extrativista, mas

também não se pode falar de êxito somente. Há êxito, se considerarmos o freio que as

reservas representaram nos conflitos pela terra em algumas áreas e, no combate aos

desmatamentos mais acentuados promovidos pelos fazendeiros. Há êxito também em

alguns programas de manejo que em algumas áreas conseguiu harmonizar interesses de

diversos moradores, que trabalhando de forma cooperativa, desenvolveram sistemas de

adensamentos, incluindo flora, fauna e até produtos madeireiros.

Page 297: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

298

Por outro lado, a criação de gado e a venda ilegal de madeira, praticada por outros

tantos moradores das reservas, acendem um sinal de alerta sobre os mecanismos utilizados

até então. Nesse sentido é que surgem propostas alternativas para melhorar a renda dos

moradores das reservas, a principal delas é a que defende o pagamento de renda pela

preservação, tanto a baseada no fato dos extrativistas estarem contribuindo com a

manutenção das florestas, como a perspectiva de que esse fato contribui com outros ativos

importantes para a preservação da qualidade de vida do planeta em outras regiões, a

exemplo das equações que medem a redução do carbono na atmosfera, chamada de

seqüestro de carbono.

Essa tese de que o poluidor deve pagar os custos ambientais não é nova, segundo

Montibeller (2004: 89), já vinha sendo discutida desde a década de 20 do século passado,

dentro do contexto do que se considera economia neoclássica. A idéia de internalizar as

externalidades, ou seja, incluir os custos ambientais ao sistema produtivo, através de taxas,

multas e compensações, no entanto, nunca foi consensual. Nos últimos anos do século XX,

uma boa demonstração foi dada pelo governo dos Estados Unidos quando o mesmo se

negou a assinar o Tratado de Kyoto, que previa a redução das emissões de poluentes por

parte das grandes empresas (multinacionais, transnacionais).

Outro exemplo, talvez mais ilustrativo dessa “consciência” internacional, reside no

fato de grandes corporações, tipo Monsanto, Simens, Bayer, etc. proibidas de produzir

determinadas substâncias em seus países de origem, mudassem seus parques industriais

para países “emergentes” e continuassem a produzir e distribuir essas substâncias em várias

partes do mundo, sobremaneira, nos países ditos pobres. Embora muitas destas empresas,

de forma particular, tenham assumido compromissos no sentido da preservação ambiental e

do respeito as comunidades tradicionais, buscando assegurar os certificados de garantia de

empresas ecológica e socialmente sustentáveis, que lhes renderia preferência entre os

consumidores que se consideram responsáveis com o planeta, nenhuma delas, na prática,

abdica de seus lucros em nome da natureza.

Os cálculos para definir as reduções e/ou compensações, antes de tudo, são

extremamente difíceis de serem aceitos pelas grandes empresas, que por sua vez,

pressionam os governos para que assumam o ônus dessas operações, investindo em

melhoria da qualidade do saneamento, reduzindo a carga de impostos, etc. o velho discurso

Page 298: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

299

dos grandes empresários de responsabilizar sempre os governos pelos fracassos da

iniciativa privada, ou seja, socializar os prejuízos e privatizar os lucros.

Outro grave problema que atinge os moradores das reservas extrativistas está na

questão do “direito de propriedade”, ou “propriedade intelectual”. Vários produtos,

comprovadamente manipulados pelos extrativistas, durante gerações, foram patenteados

pelas grandes empresas, muitas delas estrangeiras, de locais onde estes produtos sequer são

cultivados.

Exemplos clássicos dessas atitudes foram os processos de patenteamento do

guaraná, do cupuaçu, do açaí, frutos reconhecidamente amazônicos que tiveram seus

princípios ativos patenteados por empresas do setor alimentício, processos esses que a ação

do governo brasileiro conseguiu, nos fóruns internacionais, reverter algumas dessas

patentes, mas no campo dos fármacos há muitos outros exemplos de essências amazônicas

que foram patenteadas, tais como a quina-quina, o quebra-pedras, o cipó unha de gato, etc.

e, mais, seus principais descobridores, portanto, seus “proprietários intelectuais” nunca

foram sequer consultados ou informados desses atos.

Somando-se a esses fatos, encontramos uma série de empresas como a Natura, O

Boticário e a Avon, por exemplo, que passaram a “vender a Amazônia” em seus produtos,

apresentando-os como resultado de uma relação ecológica e ambientalmente sustentável

com os povos da floresta. E os exemplos são muitos, de empresas que vendem madeiras ou

móveis com “selos verdes”, “comprovando” que mantém relações sociais e ambientais

sustentáveis com as sociedades tradicionais. Até as fazendas de criação de gado, aderiram a

onda propagandeando e vendendo o “boi verde”72

, não que esse caso seja uma relação de

sustentabilidade, mas não deixa de se aproveitar mercadologicamente desse filão

denominado “Amazônia”.

Fato bastante significativo é que, nas condições atuais, os trabalhadores extrativistas

não conseguem sobreviver apenas da coleta do látex e da castanha e, mais, as propostas de

diversificação extrativista e de manejo pensadas até agora, não surtiram os efeitos

econômicos desejados, empurrando esses trabalhadores para a busca de alternativas mais

72

- O “boi verde” seria para os produtores, aquele animal criado em campos extensivos, sem o acréscimo de

outros elementos químicos à ração, ou seja, um animal alimentado exclusivamente de capim, diferente dos

animais criados em fazendas de produção intensiva, onde a alimentação tem como base farelos (inclusive de

produtos transgênicos, ou de origem animal) e outros compostos processados em laboratórios.

Page 299: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

300

rentáveis, tendo a exploração madeireira predatória e a criação de gado surgido em seus

horizontes como respostas mais viáveis.

Em suma, essas assincronias entre o que se projeta como um desenvolvimento

sustentável, uma ecopolítica ou economia política do meio ambiente, com as chamadas

economias “lineares” de crescimento, não vem se constituindo tarefa fácil, mesmo quando

os atores são, pelo menos pretensamente, qualificados como ecologicamente corretos, como

é o caso dos trabalhadores extrativistas do Acre, que anteriormente haviam se envolvido em

lutas contra os desmatamentos e, posteriormente, foram retratados como os “guardiões da

floresta”.

As políticas que tentaram ativar uma maior diversificação extrativista foram

esbarrando numa situação contrastante. Por um lado, as alegações recorrentes acerca das

riquezas e dos potenciais da diversidade biológica da Amazônia e, por outro, essa riqueza e

esse potencial não se conformando aos moldes das estratégias traçadas para incorporar

esses ativos ambientais às necessidades econômicas mais prementes das populações

envolvidas. A não ser, é claro, o extrativismo madeireiro, praticado por grandes empresas,

ou os empreendimentos garimpo/mineradores que também lucram bastante com a

exploração a que se propõem. Como constatou Alex Fiuza de Mello:

A Amazônia, cenário de grandes investimentos infra-estruturais e industriais nas décadas de 70/80,

considerada uma das últimas fronteiras de expansão capitalista, “celeiro do mundo”, almoxarifado de

matérias-primas estratégicas para o desenvolvimento nacional e internacional, “espaço vazio”

disponível para ser ocupado pelos empreendimentos “racionais” de exploração econômica, rompe os

anos 90 e caminha para a virada do milênio sob enfoque invertido daquele outrora predominante. Os

mesmos interesses que até recentemente defendiam a exploração intensiva e em larga escala de seus

recursos naturais, em nome da ecologia e do chamado “desenvolvimento sustentável” passaram hoje

a manifestar preocupações quanto à destruição do ecossistema nativo, cuja diversidade biológica

alcançou notório reconhecimento científico internacional. (MELLO, 1994: 473).

O que vem ocorrendo, portanto, é que o governo passou a ter uma ação dual nesse

processo de ter que investir em dois setores que são diametralmente opostos nas suas

concepções de vida, por um lado, continuar investindo na “modernização”, industrial,

energética, sidero-minero-metalúrgica e, por outro, nesse novo ator, isto é, nas

comunidades tradicionais, que a partir de suas lutas e de suas alianças se fizeram visíveis e,

incômodas, nos processos de expansão capitalista.

Page 300: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

301

No ponto nodal, que é a inclusão das populações tradicionais, parece faltar uma

competência concorrencial no sentido de fazer valer direitos internacionais na cobrança de

royalties, referentes aos princípios ativos das plantas amazônicas que servem de base para a

indústria dos fármacos, além de competência técnica, para fazer valer essa riqueza da

biodiversidade, tão propagandeada, em benefício dessas populações.

A alegação aqui está centrada, não na equação proposta pelos ecologistas, que se

baseia na cobrança de ativos ambientais, numa ética ambiental, ainda não ponderáveis

(tangíveis) de serem calculados, de serem cobrados, mais sim de uma posição política de

cobrança de royalties que é uma operação técnica já realizada secularmente nos meandros

da economia política. Fazendo uma crítica das “boas intenções” da indústria capitalista,

contra as populações tradicionais, Boaventura de Sousa Santos escreveu:

O valor da biodiversidade como fonte de matéria-prima para a biotecnologia e a indústria

farmacêutica aparece, contudo, como vertente mais visível da relação entre biodiversidade e

atividade econômica. De fato, um dos elementos centrais da retórica global ambientalista sobre a

preservação das florestas assenta no valor das mesmas como material potencial para elementos

medicinais para a ciência moderna. O conhecimento indígena surge como a chave para a descoberta

dessas formas medicinais. Mas esse fato atinge de ricochete a comunidade, pois as plantas têm vindo

a desaparecer a uma velocidade-relâmpago devido ao consumo excessivo, assunto que até

recentemente pouco interesse suscitava. Para a ciência moderna, a profundidade do conhecimento

local das plantas é avaliada pela utilidade destas, com especial destaque para as plantas medicinais. O

que realmente se verifica é que a discussão sobre os conhecimentos medicinais tradicionais é um

lócus à volta do qual é possível agregar ambientalistas e comunidades, atribuindo-se a este

conhecimento prático local um estatuto de importância relativa, que apenas pode ter significado se

apropriado e transformado pelo saber científico. Tal como para o caso do ecoturismo, manter ou

preservar algo equivale a dizer que, no espírito do atual desenvolvimento capitalista, é necessário

atribuir-lhe um valor comercializável, seja ele estético ou conhecimento científico. Mas dotado de

valor, o objeto, o saber, transforma-se em mercadoria, i.e., passa a pertencer a uma outra categoria do

conhecimento moderno, podendo ser privatizado. (SOUSA SANTOS, 2005: 67).

A diversificação extrativista e os ativos florestais não-madeireiros não são

alternativas a serem desprezadas, a priori, por não ter rendido no curto prazo os dividendos

necessários para mudar as condições de vida das populações tradicionais, porém, a persistir

os modelos que fazem crescer as diferenças estabelecidas entre os conceitos de “meios de

subsistência” (livelihood) e “qualidade de vida” (quality of live), ou ainda, as diferenças

que se estabelecem entre os conhecimentos práticos locais e o saber científico, certamente

os recursos naturais oferecidos pela floresta não serão suficientes para atender esse tipo de

demanda.

Page 301: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

302

Os exemplos dos níveis de consumo dos grandes fazendeiros que vivem nas

fronteiras com as reservas extrativistas, com os pólos agro-florestais, com os projetos de

assentamento, são deseducativos no sentido dos abismos sociais que representam. A

permanência de desigualdades tão gritantes, tão próximas, não estimula a busca de soluções

para os conflitos que há tão pouco tempo produzia a violência que ceifava a vida,

principalmente dos trabalhadores extrativistas.

A existência da grande propriedade e o que ela representa em termos de modelo

inibe as práticas mais lúdicas de convivência harmoniosa com a natureza. Para que os

projetos de sobrevivência a partir dos recursos não-madeireiros sejam compreendidos e

abraçados pelas populações tradicionais, precisa que se combata as desigualdades de renda

e de manutenção da grande propriedade. De outra forma, a permanecerem os níveis de

desigualdades, as diferenças entre os modelos de “desenvolvimento”, hoje registrados,

dificilmente os projetos de sustentabilidade e de ampliação dos conceitos de florestania

atingirão níveis mais satisfatórios.

Os esforços realizados para credenciar os ativos florestais, especialmente os

produtos florestais não madeireiros, como fonte de renda e melhora nas condições de vida

das populações tradicionais, têm sido freqüentemente inibidos pelas dificuldades de

materialização mercadológica desses produtos, seja pela condições de extração, de

beneficiamento, armazenamento, de escoamento, seja pelas dificuldades de encontrar

parcerias que rompam as barreiras interpostas pelas condicionantes do capital, ou da

barreiras sanitárias e protecionistas erguidas pelos mercados internos e internacionais.

Essa não realização, contudo, não anula os esforços que vêm sendo empreendidos

nesse sentido, bem como não invalida algumas experiências relativamente bem sucedidas,

mesmo que sejam limitadas e de pouca abrangência em termos populacionais, de

aproveitamento dos recursos não madeireiros disponibilizados pela floresta.

O que não se pode é tentar convencer os trabalhadores extrativistas a continuarem

gastando suas energias em práticas laborais com produtos não-madeireiros, em experiências

ecologicamente corretas, mas de pouca rentabilidade econômica, enquanto nas bordas de

suas áreas de terras, a indústria madeireira e as grandes fazendas “prosperam” e pressionam

os governos para permitirem mais desmatamento e mais “autonomia” para suas iniciativas.

Page 302: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

303

As lutas entre as diversas correntes de pensamento, principalmente as que opõem os

“desenvolvimentistas”, os “santuaristas” e os “sustentabilistas”, não se esgotaram com as

eleições. Os que pensavam que esses processos se resolveriam apenas pela via das ações

governamentais, cometeram um equívoco em sua análise. As mudanças que se anunciam

nos planos de governo, os projetos pensados, as ações concretas junto às comunidades, tudo

isso sofre alterações nos processos reais que se desencadeiam nas disputas pelas bases de

poder não só da política, mas principalmente da economia. Assim as questões

ecológico/ambientais vão se caracterizando como importantes elementos de mediação entre

esses contendores, mas ainda não constituem, nem para os desenvolvimentistas, nem para

os sustentabilistas, condições preponderantes para suas ações.

Page 303: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

304

4.4 POLÍTICAS PÚBLICAS E MECANISMOS DE INCLUSÃO VOLTADOS PARA OS

POVOS DA FLORESTA.

Um dos efeitos mais visíveis provocados pela chegada da Frente Popular do Acre

(FPA) ao Governo do Estado foi a criação de uma série de órgãos, voltados não só para a

elaboração de políticas públicas, objetivando maior inserção das comunidades tradicionais

para os ambientes de tomada de decisão, como também para tentar fazer o Estado chegar de

forma mais concreta, no sentido de beneficiar essas comunidades ou de atraí-las para a base

de apoio de suas políticas.

Tanto nos discursos que marcaram o início do governo da Frente Popular do Acre,

em 1999, como nos planos de governo que seqüenciaram os mandatos, vamos encontrar

uma linguagem bem específica, relacionando diretamente toda a estrutura do governo para

as questões que tinham ligação com a floresta e suas populações, enfocando que o acreano

deveria desenvolver outra forma de se relacionar com o país e com o mundo. Para Jorge

Viana:

O Acre sofreu, nas últimas décadas, um massacre cultural. Nosso povo foi desprezado e humilhado.

Nossas tradições foram abandonadas para que se promovessem linguagens e valores que nos eram

estranhos. Fomos coagidos a desvalorizar a floresta e os produtos regionais. Fomos forçados a aceitar

uma falsa superioridade dos produtos importados e do ambiente urbano. Agora é hora de inverter

essa tendência. É chegada a hora de dar valor ao que é nosso, às nossas tradições, à nossa história,

aos conhecimentos já acumulados nesta terra que foi conquistada por nossos antepassados. É hora de

darmos valor a nós mesmos, de conhecermos nosso passado, fortalecer nosso presente para melhor

projetar nosso futuro, ao invés de ficarmos dando atenção a qualquer novidade trazida de fora.

(Diário Oficial do Poder Legislativo. Rio Branco, 22 de fevereiro de 1999).

O distanciamento do Estado em relação às comunidades tradicionais, aos moradores

das florestas, era uma característica bem distinta na história no Acre. Essa característica se

forjou devido, fundamentalmente, ao processo de organização econômico-social desse

espaço territorial, sua forma de ocupação, suas atividades econômicas e seus antecedentes

sócio-políticos, marcados pela rígida estrutura hierárquica que comandava a empresa

seringal. Algo próximo ao que Cláudio de Araújo Lima (1970) e Márcio de Souza (1987)

caracterizaram como “os tempos dos coronéis de barranco”. Os governantes permitidos

pelo regime militar, pós–64, comportavam-se também como “coronéis”: somente algumas

características pessoais diferenciavam uns dos outros, pois em termos de políticas seguiam

os mesmos ritmos dos diversos generais que se revezavam na Presidência da República. Os

Page 304: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

305

pobres, os sindicalistas ou militantes políticos de esquerda, principalmente os comunistas,

eram inimigos a serem combatidos.

No período de transição para os governos civis, eleitos pelo voto popular, tivemos

no Acre duas tentativas, anteriores a Frente Popular, de rompimento com essa forma

autoritária de governo, que são representadas pelas gestões do PMDB, primeiro com a

eleição de Nabor Júnior, em 1982 e depois com a de Flaviano Melo, em 1986, embora esses

dois mandatos sejam alvo de muitas críticas, especialmente o segundo, por denúncias de

corrupção, nesses dois governos as idéias de participação popular foram de alguma forma

defendidas. O Governador Flaviano Melo, por exemplo, em seu discurso de inauguração do

período legislativo de 1988, disse:

O atual estágio de desenvolvimento sociopolítico-econômico do nosso Estado não recomenda mais a

administração de gabinete. Não se pode mais legislar ou governar sem levar em conta a voz do povo,

as suas idéias e suas inquietações. Consciente da realidade atual e convicto de que o desenvolvimento

requer a mobilização de forças sociais é que meu governo tem se pautado pelo respeito à participação

popular organizada. Iniciei recentemente um programa de contato direto com o povo, através de

visitas sistemáticas aos bairros e as comunidades rurais, atento as reivindicações e tratando de

incorporá-las às ações do governo. (Diário Oficial do Poder Legislativo. Rio Branco 01/03/1988).

Durante os governos do PMDB (1982–1990), não pudemos verificar uma ação

concreta de inclusão dos trabalhadores para postos de comando do Estado, embora o

governo de Nabor Júnior tenha atraído para seu grupo de secretários um dos principais

organizadores dos sindicatos de trabalhadores rurais do Acre, o representante da CONTAG,

João Maia. Suas ações concorriam para fazer políticas públicas que “beneficiassem” essas

populações, não que permitisse que as populações opinassem, que participassem dessas

elaborações. Foi assim também no governo de Flaviano Melo, que até tentou atrair alguns

sindicalistas e associações de moradores para seu núcleo de governo, mas sempre no

sentido de interferir nas políticas que deveriam ser aplicadas para a população e não

elaboradas com essa população.

No geral, em que pese os percalços e as formas enviesadas de entenderem os

conceitos de participação, essas duas administrações contribuíram para o avanço das

organizações populares e sindicais no Estado, bem como “toleraram” as organizações

sociais e sindicais que se iniciavam na cena política, oriundas dos partidos de esquerda, que

também naquele momento davam seus passos iniciais nos processos de reorganização, caso

do PC do B e PCB ou mesmo de criação, como é o caso do PT.

Page 305: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

306

Os governos seguintes, de Edmundo Pinto, seguido pela administração de seu vice –

Romildo Magalhães (após o assassinato do titular) e depois o governo de Orleir Cameli,

representam uma espécie de retorno aos tempos dos militares. Edmundo Pinto, inobstante a

sua arrogância clássica, pelo menos tinha uma característica de querer aproximação com o

povo, mesmo que fosse só para ser elogiado.

Já seu sucessor Romildo Magalhães e depois o governo de Orleir Cameli se

consagraram pela brutalidade contra os movimentos social e sindical e pelos métodos

truculentos de impor suas vontades. Esses buscavam realmente passar longe do povo. Orleir

Cameli, até para chegar de suas constantes viagens, o fazia de forma “secreta”, raramente a

população sabia se ele estava ou não na capital, ou mesmo no Estado.

Os governos da Frente Popular tentaram, de toda maneira, se afastar dessas

características, investindo numa outra forma de fazer política que, na sua visão, respondia

aos anseios da grande maioria da população, mormente as populações das florestas,

“vítimas principais das políticas anteriores”.

No discurso proferido na abertura dos trabalhos legislativos de 2002, o Secretário de

Administração, Evaristo de Luca, representando o Governador Jorge Viana, declarou:

O nosso governo, portanto, está fazendo um grande investimento para que haja uma mudança de

paradigma. Somos ainda um Estado pobre, que até recentemente esteve completamente esquecido

pelos diversos governos que passaram pelo comando do País. Hoje, mudamos efetivamente essa

posição. O Acre é o estado da Região Norte que mais tem atraído recursos federais e, agora, recursos

internacionais, para sustentar uma política de desenvolvimento diferenciada. No Brasil e no mundo

temos uma marca – Governo da Floresta – que não é só um slogan. Tem significado, substância,

consistência. Traduz compromisso em pôr à disposição do povo do Acre a nossa maior riqueza

que é a floresta. (...) A nossa marca – Governo da Floresta – traduz também o nosso

compromisso básico com o que temos de mais precioso, as nossas raízes, a nossa cultura e a

nossa história, que estamos resgatando, com orgulho justamente no ano em que comemoramos

100 anos da Revolução Acreana. Temos consciência de que estamos fazendo uma nova

revolução, desta vez contra um inimigo muito mais poderoso, que é o atraso, a miséria, o

pessimismo, a ganância, a intolerância e a dominação política, a violência gerada pela

impunidade, pelo banditismo. Temos sofrido agressões, ações dirigidas tentando dificultar o nosso

trabalho. Lamentamos, mas temos que reconhecer que alguns teimam em continuar puxando o Acre

para trás. (Diário Oficial do Poder Legislativo. Rio Branco, 15 de fevereiro de 2002). (grifamos).

Na mesma linha, no discurso inaugural do período legislativo de 2008, o

Governador Arnóbio (Binho) Marques disse:

Page 306: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

307

(...) A razão principal dos êxitos do nosso Governo tem sido a capacidade do povo acreano

reconhecer o que é interesse público e se unir em favor do bem coletivo. Esta é uma boa prática

iniciada com o ex-governador Jorge Viana e que nós devemos ter sabedoria para institucionalizar

como uma qualidade dos políticos, autoridades públicas, militantes sociais e cidadãos do Acre. É esta

capacidade de união que dá ao nosso Estado a credibilidade externa para captar recursos e a condição

interna para trabalhar o desenvolvimento com a participação de todos. (...). (Diário Oficial do Poder

Legislativo. Rio Branco 12/02/2008).

Os governos da Frente Popular, tentaram inicialmente fundar um marco, ou seja,

definir sua primeira eleição como ponto de referência para todo o processo de mudança que

estava acontecendo. Depois buscaram inverter o eixo da governança, isto é, se os governos

anteriores “governavam para os de fora” (fazendeiros, madeireiros, empresários, etc.), os

governos da Frente Popular prometiam governar para os povos da floresta, para aqueles que

haviam sido “esquecidos” pelos governos anteriores e mais, queriam governar com eles, daí

a idéia de orçamento participativo e criação de secretarias específicas para atender as

demandas dessas populações, tais como as Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento

Sustentável, Secretaria de Extrativismo e Produção Familiar, Secretaria de Floresta,

Secretaria Extraordinária de Povos Indígenas, etc.

Na transição dos governos autoritários para os governos eleitos e na transição dos

eleitos para governos de esquerda, que passaram a representar muitos dos movimentos

sociais que se organizaram e conquistaram espaços em lutas renhidas, travadas contra as

hierarquias aqui estabelecidas, houve a transposição de muitos ideais, de acomodação das

reivindicações dessas categorias, até então não representadas, para dentro das estruturas

governamentais. No PPA 2000 – 2003, onde apresentou as diretrizes gerais do seu primeiro

governo, Jorge Viana destacou:

A matriz econômica e o desenvolvimento social do Estado do Acre, está fortemente baseada na

floresta. Por essa razão, o Estado foi duramente penalizado nos últimos anos por políticas que

desconsiderava a vocação florestal do Acre, promovendo o fechamento ou desativando setores

tradicionais da economia, aumentando o êxodo rural e conseqüentemente provocando crescimento

nos índices de desemprego. Com o firme propósito de reverter este cenário, a nova Administração

está buscando reestruturar o Estado. (...) Atualmente, o pensamento está centrado na defesa de que a

floresta é a base para o desenvolvimento. Os produtos florestais são a marca diferencial com o qual o

Acre pode competir no mercado. (PPA 2000 – 2003: 03).

Nesse campo de atuação, o governo da Frente Popular sempre buscava traduzir as

lutas dos trabalhadores extrativistas como sendo lutas ligadas as questões ecológico-

ambientais, por isso, sempre procurou desenvolver mecanismos de inclusão desses temas,

Page 307: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

308

como sendo respostas às questões gerais que afetavam a vida dos trabalhadores

extrativistas. Embora muitos outros aspectos também pudessem ser elencados como

problemas diretamente ligados a esses trabalhadores, tais como a manutenção dos

latifúndios, da violência, etc., as orientações, os discursos e as ações sempre tiveram a

ecologia e o ambientalismo como norteadores. O homem, o trabalhador extrativista era

focado a partir de sua relação com a natureza, sempre na perspectiva de desenvolver novas

técnicas de produção que ampliassem as condições de visibilidade dos projetos ecológico-

ambientais.

Entre as políticas elaboradas pelos governos da Frente Popular e apresentadas às

populações tradicionais, além da construção de escolas e manutenção de professores, de

algum tipo de investimento em saúde, principalmente itinerante, os objetivos eram

direcionados para as questões mais ligadas ao extrativismo, a saber: orientações técnicas

para a coleta de óleos vegetais, coleta e armazenamentos da castanha, ou nesse caso

incentivo e financiamento para a construção de usinas de beneficiamento, estabelecimento

de programas de subsídios à borracha e a castanha e, principalmente, assistência técnica

para processos de manejo florestal de produtos não madeireiros, mas inclusive, também

para produtos madeireiros. Aliados a esses investimentos, podemos também considerar

como políticas públicas nessa área a construção de ramais que facilitavam o transporte

desses materiais e a aquisição de caminhões e canoas que faziam viagens por conta do

governo para ajudar no escoamento da produção, dentre outras atividades73

.

O governo da Frente Popular foi imprimindo uma espécie de rótulo nos

trabalhadores extrativistas, qual seja, o de que qualquer política que os beneficiasse tinha

que ter um vínculo ecológico-ambiental, mas não o fazia de forma autoritária, no sentido

governo-população, pelo contrário, a forma de apresentação era exatamente o oposto:

funcionava como se todas essas demandas viessem da base para o governo.

73

- Neste ponto fizemos uma redução do que o governo considera ações de políticas públicas voltadas para os

trabalhadores extrativistas e políticas florestais como um todo. No seu Plano Plurianual 2004/2007, por

exemplo, na Área de Atuação denominada “Gestão e Desenvolvimento Econômico Sustentável”, são

exatamente vinte páginas descrevendo ações, projetos, atividades e objetivos, dentro dos diversos programas

ali estabelecidos, passando pelos de Florestas Sustentáveis, Promoção da Produção Vegetal, Desenvolvimento

Regional, Proteção ao Meio Ambiente, Convênios Internacionais, etc.

Page 308: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

309

Ao se colocar como herdeiro das lutas dos trabalhadores extrativistas, dos

movimentos sindicais e das organizações não governamentais, por exemplo, o governo de

forma quase automática, legitimava suas políticas. Um exemplo clássico dessa concepção

pode ser observado quando, em 15 de fevereiro de 2003, ano em que iniciava seu segundo

mandato como Governador, Jorge Viana, em discurso proferido na abertura dos trabalhos

legislativos daquele ano, ressaltou:

Dediquei os últimos quatro anos da minha vida ao trabalho de governar o Acre. E, com a

competência e o esforço da equipe e a colaboração de muitos, consolidamos a nossa idéia de governo

da floresta. Com a ajuda de todos, ao lado da equipe de governo, pretendo dedicar os próximos

quatro anos à consolidação do nosso trabalho. Agora é a hora de consolidarmos a economia da

floresta. É a hora de construímos a florestania, de fortalecermos cada vez mais a identidade histórica

e cultural do povo acreano. Para isso, aprovamos recentemente, com o apoio desta casa, uma

organização do governo. Dividimos o governo em áreas prioritárias. Área da Produção e Negócios

Sustentáveis, que tem como interlocutor o secretário Gilberto Siqueira; Gestão e Finanças Públicas,

com o secretário Mâncio Cordeiro; Integração e Infraestrutura, com o secretário Sérgio Nakamura; e

Desenvolvimento Humano e Inclusão Social, que tem como responsável o vice-governador e

secretário de Educação Arnóbio Marques. Tivemos a ousadia de inovar no governo, criando as

secretarias das Cidades, Esportes, Turismo, Juventude, Mulher e de Assuntos Indígenas. Estamos

cada vez mais convencidos de que a melhor maneira de se fazer inclusão social é sendo governo.

Mas o governo tem que ser eficiente. É por isso que estamos dedicando uma atenção especial para o

planejamento estratégico e para o processo de gestão do nosso governo. Desde a transição temos

buscado a participação dos mais diferentes segmentos da sociedade. Até abril, o trabalho de

planejamento, de consulta, estará concluído. Se todos colaborarem, estou certo de que teremos êxito.

Vamos assumir novos desafios e estabelecer resultados e indicadores a serem alcançados. (...).

(Diário Oficial do Poder Legislativo. Rio Branco, 15/02/2003).

Esta criação de secretarias, de pastas específicas para cuidar das questões do

desenvolvimento sustentável, das populações indígenas, além das secretarias de Floresta e

da Secretaria de Extrativismo e Produção Familiar, criadas no primeiro governo, indicava a

perspectiva desse governo em trilhar um caminho que aproximasse o Estado das

populações tradicionais, mas será através dos diversos conselhos que essa participação se

tornará mais evidente.

Não vamos aqui pormenorizar os mecanismos de participação criados pela

Constituição de 1988, assim como os conselhos gestores de políticas públicas, também

denominados conselhos setoriais, tais como os conselhos de educação, de saúde, de

previdência pública, pois são muito abrangentes e fogem do campo de nossa pesquisa.

Citamos alguns apenas para explicitarmos que nesse contexto de mudanças que estavam

acontecendo no Acre, também em nível nacional, havia um questionamento sobre os

Page 309: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

310

conceitos de democracia, opondo ou evidenciando, as concepções de democracia

representativa e democracia participativa.

No caso do Acre, especialmente após a posse de Jorge Viana para o seu primeiro

mandato como governador, em 1999, houve uma maior ação no sentido de criação de

mecanismos de participação das comunidades tradicionais nas instâncias consultivas e, em

alguns casos, até mesmo normativas e deliberativas das políticas públicas, nomeadamente,

ressaltamos as que dizem respeito às questões ecológico-ambientais.

Como exemplos destas instâncias, podemos nomear: o Conselho Florestal Estadual

(CFE), o Conselho de Desenvolvimento Rural Florestal Sustentável (CDRFS), o Conselho

de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia (CEMACT), a Comissão Estadual de

Acompanhamento e Avaliação do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Estado do

Acre (CEAA-BID), e a Comissão Estadual do Zoneamento Ecológico-Econômico

(CEZEE). De acordo com Meneses Filho, os marcos legais, finalidades e estrutura de

espaços desses conselhos estão assim definidas:

O Conselho Estadual de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia – CEMACT, criado através da Lei nº

1.022/92, é um órgão colegiado, deliberativo e normativo que integra o Sistema Estadual de Meio

Ambiente, Ciência e Tecnologia – SISMACT, na condição de Órgão Superior. Sua finalidade é

racionalizar as ações de ciência, tecnologia e meio ambiente, de forma mais participativa, adequada

às realidades locais, e propiciadoras de desenvolvimento econômico e sustentável. CEZEE –

Comissão Estadual do Zoneamento Ecológico Econômico. A Comissão Estadual do Zoneamento

Ecológico e Econômico foi instituída pelo Decreto 503 de 6/04/1999 com a finalidade de coordenar,

acompanhar e avaliar a elaboração e implementação do Zoneamento Ecológico e Econômico do

Estado. CDRFS – Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural e Florestal Sustentável. O

Decreto 2544 de 21 de agosto de 2000 cria a primeira configuração do então chamado Conselho

Estadual de Desenvolvimento Rural Sustentável – CEDERS. Em 11 de agosto de 2003, o Decreto

8423 revoga o decreto anterior e cria o Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural e Florestal

Sustentável – CDRFS. A finalidade deste conselho é de deliberar sobre o Plano Estadual de

Desenvolvimento Rural Sustentável – PDRFS, o Programa Estadual de Reforma Agrária e ações do

Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF no Estado do Acre, com

ênfase na produção agroflorestal, florestal e no extrativismo vegetal. CFE – Conselho Florestal

Estadual. A Lei nº 1.426 de 27 de dezembro de 2001 dispõe sobre a preservação e conservação das

florestas do Estado, institui o Sistema Estadual de Áreas Naturais Protegidas, cria o Conselho

Florestal Estadual e o Fundo Estadual de Florestas. O Conselho Florestal é o órgão superior de

Page 310: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

311

caráter colegiado, normativo e deliberativo, responsável pela definição política, dos planos e das

estratégias florestais do Estado. (MENESES FILHO, 2008: 11, 12).

Notemos que, dos conselhos elencados, apenas o Conselho Estadual de Meio

Ambiente, Ciência e Tecnologia – CEMACT, criado em 1992, é anterior ao governo da

Frente Popular do Acre, todos os outros foram criados após a ascensão do governo dessa

força política. Isso não isenta o fato de que alguns desses conselhos tenham sido criados a

partir de demandas de órgãos de financiadores, a exemplo do BID, que coloca como

exigência para concessão de financiamentos a existência de um conselho com participação

das comunidades afetadas pelos investimentos previstos em seus empréstimos. Porém, os

outros são mesmo manifestações de abertura e de estabelecimento de canais de

participação, criados na perspectiva de legitimar as políticas propostas.

As composições desses conselhos, de acordo com Meneses Filho (2008), são

bastante abrangentes, mas em nenhum deles a participação do governo é menor do que 43%

e, em alguns casos, como exemplo, o CEMACT, chegando a 58%. A chamada sociedade

civil, onde estariam incluídas as comunidades tradicionais, estão representadas em um

contexto que abrange ONGs, representações sindicais, ou outras entidades representativas

das comunidades, tais como as organizações indígenas, chegando, no máximo, a 36% da

representatividade de um conselho, taxa alcançada no CDRFS, por exemplo. Os outros

componentes que completam os conselhos variam entre bancos, instituições de pesquisa,

conselhos profissionais, empresas e cooperativas, dependendo da natureza para a qual foi

criado.

Meneses Filho (2008) estudou a periodicidade de realização das reuniões e a

assiduidades da sociedade civil nesses diversos conselhos, no período compreendido entre

2003 e 2007 e como é ligado a uma ONG, aponta com satisfação o percentual de

participação sempre acima de 70% das ONGs, e com pesar, o baixo comparecimento das

entidades representativas dos trabalhadores extrativistas, indígenas e sindicais, que se

situam sempre abaixo dos 40%, o que cria uma dificuldade na defesa das teses defendidas

pelas ONGs, que buscam aliança com esses trabalhadores nas propostas em que divergem

com o Estado, ou com os empresários e pecuaristas. Obviamente, a presença dos

representantes do Estado se registra com índices mais altos, exatamente por serem

participantes de ofício.

Page 311: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

312

Outro fator importante, detectado por Meneses Filho (2008), é o fato de que as

representações de empresários e pecuaristas também registrem índices altos de

comparecimento as reuniões e mais, são apontados pelos membros dos diversos conselhos

como os mais preparados, em termos de estudarem com antecedência os assuntos pautados

e, por sempre votarem em bloco, ou seja, são sistemáticos e organizados.

Entre os diversos fatores que inibem uma participação mais efetiva dos membros da

sociedade civil, isto é, daqueles diretamente ligados aos trabalhadores extrativistas e povos

indígenas, por exemplo, estão os que se relacionam com as convocações extraordinárias, as

distâncias que esses membros têm que percorrer para participar dessas reuniões e com a

pequena quantidade de membros que estão credenciados e/ou qualificados para essas

representações. Relacionamos ainda como elemento inibidor da participação das

comunidades tradicionais, a dificuldade que muitos representantes apresentam em

compreender a complexidade de alguns projetos, principalmente no que diz respeito aos

financiamentos e comprometimentos do Estado, sobremaneira no seu nível de

endividamento externo e compromissos assumidos com os organismos financiadores.

Em meio a essas circunstâncias, os sindicatos e associações que têm membros

representantes nesses conselhos até tentam melhorar seu nível de participação, promovendo

cursos e seminários que abordam esses temas. A Central Única dos Trabalhadores –

CUT/AC, através de sua Escola de Formação Sindical, o Conselho Nacional dos

Seringueiros – CNS, a Federação de Trabalhadores na Agricultura do Acre – FETACRE e

outros sindicatos rurais e urbanos já realizaram cursos de “tomadores de decisão”, de

gerenciamento de projetos, de formação política e similares na tentativa de melhorar sua

participação nesses conselhos, ainda assim não tem conseguido manter regularidade e

eficiência em suas participações.

Outros aspectos, como mudanças de diretorias e de representantes, além dos baixos

níveis de escolaridade de alguns desses representantes, também contribuem para

“desqualificar” essas participações. Aliado a esses fatores, sabemos que muitos membros

do atual governo já foram militantes sindicais, o que os coloca, em termos relativos, não só

com certa ascendência sobre seus ex-companheiros, mas como se fossem também,

representantes dos interesses maiores da sociedade, dos quais os sindicatos e as

representações indígenas, do mesmo modo, se colocam como responsáveis.

Page 312: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

313

O próprio Governo do Estado fala muito em “empoderamento” das comunidades,

no desenvolvimento local, nas cadeias produtivas solidárias, na economia solidária, no

associativismo, etc., no seu discurso de abertura dos trabalhos legislativos da 1ª Sessão

Solene da 2ª Sessão Legislativa da 12ª Legislatura, o Governador Arnóbio (Binho)

Marques, disse:

(...) Senhoras Deputadas e Senhores Deputados, priorizando a inclusão social, nosso Governo tem

três grandes objetivos estratégicos: 1) Garantir Serviços Públicos Básicos com qualidade para todos;

2) Fortalecer o Setor Privado para consolidar uma economia limpa, justa e competitiva sob forte base

florestal e; 3) Promover o empoderamento das comunidades. Todos os programas e iniciativas que

falamos aqui estão, de alguma forma, articuladas com estes objetivos estratégicos. (...). (D. O. P. L.

Ata da 1ª Sessão Solene da 2ª Sessão Legislativa da 12ª Legislatura. Rio Branco, 12 de fevereiro de

2008: 04, 05).

O vocábulo “participação” é um dos mais encontrados nos discursos dos governos

desde a eleição de Nabor Júnior do PMDB, em 1982, que à época se autodenominou

“Governo de Participação”, com exceção, como já dissemos dos governos Edmundo

Pinto/Romildo Magalhães e Orleir Cameli. Indene ao desgaste do termo, nos governos da

Frente Popular, a partir de 1999, esse vocábulo foi sendo re-significado e coadjuvado por

uma série de outros, como o “orçamento participativo”, o “empoderamento”, o

cooperativismo, a gestão participativa, etc., todos referenciados numa perspectiva de que se

está sempre vivendo um momento crucial, diferente do anterior e que de fato, se está

representando os interesses da maioria.

Porém, nos últimos tempos, o binômio inclusão/exclusão, vem substituindo

paulatinamente o termo participação, mesmo que os dois termos também não sejam novos

no contexto das teorias histórico-sociológicas, pois os encontramos na historiografia

marxista, por exemplo, em abundância. Nos Grundrisse 1857-1858, o próprio Marx já fazia

referência aos excluídos, ao que ele denominou pauper (pobre), como sendo aquelas

pessoas, cujas forças de trabalho já não interessavam mais ao capital. Situação a qual

Bauman (2005) também se referiu, classificando-os como redundantes. No caso do termo

inclusão, José de Souza Martins (1997) classifica como sendo um paliativo criado pelo

próprio capitalismo, pois para ele a exclusão é gerada por este, no sentido de que a

“sociedade capitalista desenraiza, exclui, para incluir, incluir de outro modo, segundo suas

próprias regras, segundo sua própria lógica” (MARTINS, 1997: 32).

Page 313: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

314

Mas, mesmo para os governos da Frente Popular, que têm seus núcleos dirigentes

formados na escola das esquerdas socialistas, esse debate sobre a natureza da

exclusão/inclusão não está posto, na maneira de que deva ser analisado como faces do

capitalismo. O que importa é estabelecer um nível de gerenciamento do Estado (Governo)

que aparente eficiência e crie a sensação (ilusão) de que se está buscando um novo modelo

de gestão.

Se examinarmos com acuidade os eixos do Planejamento Estratégico do governo de

Arnóbio (Binho) Marques, o que ele estabeleceu como “programas estruturantes” para seu

Plano de Gestão 2007 – 2010 notaremos que a linguagem pouco mudou nesta última

década, preponderando elementos de uma economia que, só não pode ser classificada como

capitalista clássica, ou neoliberal, pela adição de algumas preocupações ecológico-

ambientais e pelos aspectos diferenciais locais. Vejamos o que propõem os Programas

Estruturantes no item Desenvolvimento Econômico e Infra-estrutura do seu Planejamento

Estratégico:

1 – Implementação e Consolidação de Parques Industriais Baseados na Cadeia Produtiva Florestal; 2)

Programa Integrado de Manejo Florestal de Uso Múltiplo; 3) Fomento e Modernização da Produção

Agroindustrial; 4) Preservação e Conservação do Ativo Ambiental com Implementação do ZEE; 5)

Turismo Gerador de Riquezas e Trabalho com Valorização Cultural; 6) Compras Governamentais

Elevando a Renda do Produtor Rural e Fortalecendo as Micro e Pequenas Empresas; 7) Ciência,

Tecnologia e Inovação como Fatores de Desenvolvimento Sustentável; 8) Infra-estrutura como

Suporte ao Desenvolvimento Sustentável (Rodovias, Hidrovias, Aerovias, Energia e Comunicações);

9) Ações Transversais (Qualificação Profissional e Sistema de Defesa Animal e Vegetal). (Governo

do Estado do Acre. Planejamento Estratégico. Gestão 2007 – 2010. Rio Branco, 2007).

No item que se refere aos programas de inclusão social do Planejamento Estratégico

do Governo do Acre para a Gestão 2007 – 2010 destacam-se quatro pontos, assim

distribuídos:

1) Programa Especial de Superação da Pobreza;

2) Programa Integrado de Saneamento Ambiental;

3) Programa de Habitação de Interesse Social (Parceria Iniciativa Privada);

4) Programa de Investimento em Obras Públicas.

Esses pontos se articulam com os Objetivos Estratégicos do Governo, que são:

1) Garantir Serviços Públicos Básicos de Qualidade Para Todos;

2) Fortalecer o Setor Privado para Consolidar uma Economia Limpa, Justa e

Competitiva, em Forte Base Florestal e;

Page 314: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

315

3) Promover o Empoderamento das Comunidades”.

Articulando todos esses eixos está a proposta do atual governo de tornar o Estado do

Acre “o melhor lugar para se viver na Amazônia”, que é a sua principal promessa

apresentada à população desde sua campanha.

O que percebemos nesse complexo quadro apresentado pelo governo do Acre,

envolvendo suas perspectivas estratégicas, seus objetivos e seus programas é uma

ambigüidade latente. Por um lado, é possível captar as intenções de sair, de deixar de lado

as formas tradicionais das orientações capitalistas, se apegando às formulações que

interpõem políticas de inclusão social e que respeitam a natureza e, por outro, uma

vexatória necessidade de manter garantias para a iniciativa privada, que claramente se

impõe, sem subterfúgios semânticos, exigindo compromissos por parte do Estado, que em

última instância, inibem qualquer passo rumo a alternativas afirmadoras dos conceitos de

reciprocidade, redistribuição e solidariedade.

Na leitura das propostas de gestão, dos arranjos administrativos dos governos da

Frente Popular, entendemos que há uma angústia e uma sensação de incapacidade por parte

dos dirigentes, por saberem, que nos meandros do capitalismo, não conseguirão responder

às necessidades básicas a que se propõem, ao mesmo tempo em que não agem para superar

essas angústias e incapacidades.

Os arranjos produtivos propostos, em que pese a linguagem ecológico-ambiental

que as cerca, são também formulações que reforçam um modo de vida comandado pelo

mercado, isto é, pelo viés do capitalismo. Nesse sentido, nem mesmo as questões

ecológico-ambientais vêm sendo equacionadas, pois não faz parte da natureza do

capitalismo sentimentos de comiseração, nem com o homem, nem com o ambiente em que

se desenvolve.

Numa perspectiva bastante atual, de crítica ao sistema capitalista que impregna as

sociedades contemporâneas e que podem ser comparadas as situações vivenciadas nas

políticas públicas planejadas e executadas no Acre, Cattani escreveu:

Atualmente, o sistema capitalista domina o planeta e essa dominação é responsável, entre outros, por

três gravíssimos problemas. O primeiro é decorrente da intensificação da sua natureza profunda:

acumular e acumular, sempre e mais, disciplinando a criatividade humana em processos de trabalho

que resultam na espoliação e na alienação do trabalhador. A organização da produção está baseada

no princípio da fungibilidade física e intelectual do trabalho vivo. Sua ampliação ou sofisticação

contemporâneas redefinem forças variadas de trabalho, mas não alteram a lógica de funcionamento.

Page 315: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

316

Para grande parte da humanidade, o trabalho é desenvolvido de forma desinteressante e estressante,

assegurando a inserção subordinada na esfera social e garantindo acesso à sociedade de consumo

alienado. O paradigma da “especialização flexível” e a intensificação da automação proporcionam

vantagens para uma minoria, atemorizando, ao mesmo tempo, os demais com ameaças de exclusão

ou de precarização. O segundo problema, conseqüência do primeiro, diz respeito à agravação das

desigualdades. Nunca na história da humanidade foram produzidos tantos bens e serviços de

interesse coletivo, mas nunca houve tamanha injustiça no seu acesso e fruição. (...) Os riscos ligados

à sobrevivência física do planeta e da sua população correspondem ao terceiro problema decorrente

da expansão do “capitalismo turbinado”. Depois de explorar as riquezas naturais de maneira

predatória, a expansão industrial ameaça hoje o ar, a água, a vida enfim. Como a natureza não se

vinga, mas revida, catástrofes constantes decorrentes de desequilíbrios ecológicos abalam regiões do

mundo inteiro. (CATTANI (Org.), 2003: 09, 10).

A análise de Cattani se aplica ao contexto de execução das políticas públicas dos

governos da Frente Popular do Acre, no sentido de que, mesmo com as boas intenções

explicitadas nos projetos que, em muitos casos, visam criar condições de participação de

setores historicamente excluídos, elas não têm se voltado para o combate à concorrência

fratricida, nem para o combate à acumulação e concentração irracionais de riquezas,

mantidas por alguns segmentos sociais.

No caso do Acre, especialmente os fazendeiros e madeireiros, como relatamos

anteriormente, contribuem para criar desigualdades sociais mais agudas do que as

verificadas entre seringalistas e seringueiros da modalidade econômica predominante no

Estado, anteriormente, em termos de riquezas acumuladas e em capacidade de excluir

maiores parcelas da população de seu ambiente de trabalho.

Um exemplo bem concreto das dificuldades do governo no Acre em mudar os

paradigmas econômicos reside no aspecto de combate as queimadas. Como é um governo

que se apresenta publicamente como o “governo da floresta” e que ressalta sua

característica de praticar uma modalidade de desenvolvimento considerado sustentável,

seria razoável que não apresentasse problemas com essa questão. Porém, o que se vê a cada

ano é uma luta colossal, não só para combater as queimadas em si, mas também seus efeitos

negativos, não só para a natureza, como para seus apoiadores externos, que exigem

contrapartida ecológica para manter suas parcerias.

Nesse aspecto, até mesmo os trabalhadores extrativistas que, em tese, seriam aliados

incondicionais do governo no combate às queimadas, funcionam de forma inversa, pois

destituídos de condições de praticarem atividades econômicas mais rentáveis, vêm

paulatinamente abandonando o extrativismo ou mantendo-o apenas como atividade

secundária e se ocupando com a pecuária que, mesmo de pequeno porte, necessita de

Page 316: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

317

desmatamento e, conseqüentemente de queimadas para expandir os campos para suas

criações, quando não praticam o corte clandestino de madeiras dentro das áreas das reservas

extrativistas, onde mantêm suas colocações74

.

O fato é que, embora o governo tenha investido em criar políticas públicas

diferentes, voltadas para essas camadas anteriormente excluídas, elas não foram precedidas,

ou mesmo acompanhadas de um aparato teórico que ajudasse a convencer essas populações

de que é possível outro modo de vida fora dos meandros do mercado. Elder Andrade de

Paula (2008) e Silvio Simione da Silva (2008), entendem que com a eleição da Frente

Popular do Acre, em 1998, o que ocorreu de fato foi uma captura do Estado por parte dos

organismos multilaterais, principalmente o BID e o BIRD, para ser usado na execução de

suas políticas de novo colonialismo, através do artifício denominado “Desenvolvimento

Sustentável”. Escrevendo sobre as diversas utilizações do nome de Chico Mendes, muitas

das quais para desconstruir suas principais bandeiras, disseram:

Esse movimento de cooptação ganha maior fôlego com a vitória da “Frente Popular” no estado do

Acre nas eleições para o executivo estadual em 1998. Liderada pelo Partido dos Trabalhadores, essa

coalizão de 13 partidos, a maioria de centro-direita, na figura de seus principais dirigentes, Jorge

Viana (governador) e Marina Silva (senadora), aprofunda em nível a adoção das diretrizes do modelo

de “desenvolvimento sustentável” imposta pelo Banco Mundial e Banco Interamericano de

Desenvolvimento. A imagem de Chico Mendes, que já vinha sendo “destilada” de seu conteúdo

passa a ser re-significada de forma mais ousada para fins de legitimação do grupo governante e,

obviamente, abre passagem para um tipo de espoliação consentida pelos “de baixo” e aplaudida

pelos de “cima”. Sob a insígnia do “desenvolvimento sustentável” foram tomadas diversas iniciativas

– envolvendo empresas, governo, ONGs e organizações comunitárias – voltadas para a satisfação dos

interesses das grandes corporações, do agronegócio, especialmente da madeira e pecuária.

Instrumentos como a concessão de florestas públicas para exploração de madeiras por empresas

privadas, instituídas através de legislação estadual e federal (Lei estadual 1427, aprovada na

Assembléia Legislativa do Acre em 2001, lei 11284, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada

pelo presidente Lula em março de 2006), desregulamentação do uso das unidades de conservação

como as Resex, para fins de exploração madeireira, legalização da grilagem de terras (MP 422/2008)

linhas de crédito para a expansão da pecuária, denotam uma pequena amostra dessa monumental

74

- Há uma grande diferença de visão entre os trabalhadores extrativistas que compõem os quadros dos

diversos movimentos sociais e a apreensão que fazem deles os historiadores, os antropólogos, os sociólogos,

os cientistas sociais e principalmente os políticos que comandam as ações do Estado, através de políticas

públicas preparadas para eles. De acordo com Lúcia da Costa Ferreira (2001), nesse aspecto das políticas

públicas que têm como referência as questões ambientais: “há basicamente duas opções, cabendo à grande

variedade de abordagens o papel de variações sobre os mesmos temas. De um lado, a linha estruturalista

compreende o desenvolvimento de ações coletivas ou movimentos sociais como resultado de mudanças

sociais e econômicas nas formações sociais contemporâneas. De outro, a tradição culturalista compreende-o

como resultado de alterações culturais e de mudanças de valores. Nesta linha estão aqueles atores

preocupados com novos estilos de vida baseados em valores não materiais, possíveis graças à satisfação das

necessidades básicas em sociedades pós-industriais”. Só esquecem de consultar os próprios trabalhadores, que

tem suas maneiras de ver o mundo em que estão inseridos, muito mais pela lógica das possibilidades

concretas que lhes estão postas.

Page 317: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

318

ofensiva nessa nova escalada da mercantilização da natureza em território amazônico. (PAULA e

SILVA, 2008).

Embora não concordemos integralmente com o raciocínio desses autores75

, neste

trecho acima, entendemos, como eles, que as modalidades de políticas públicas adotadas

pelos “governos da floresta” vêm sendo insuficientes ou, no mínimo, impactando menos do

que o esperado, na melhoria da qualidade de vida das populações tradicionais e, mais, não

tem sido nem um pouco eficazes no sentido da inclusão participativa, no sentido da

formulação política.

Exemplos de que há possibilidades e alternativas diferentes não são comuns, mas

também não são desconhecidos. O Movimento dos Trabalhadores Sem Terras e a Via -

campesina vêm operacionalizando em algumas de suas áreas de assentamento e até mesmo

em acampamentos, alguns processos de educação e de economia solidária, baseadas na

redistribuição e na reciprocidade, que se situam na contracorrente do sistema e da ideologia

capitalistas.

A prática de uma economia solidária, cooperativa, aliada a processos educacionais

voltados para uma aprendizagem que prioriza não só a idéia de consumo solidário, como

também de atitude racional e de aproveitamento dos recursos naturais, representam bem

essas possibilidades, pois são elaboradas e executadas a partir de debates e reflexões

coletivas, ou seja, os mesmos que elaboram, que formulam, são os que as praticam.

Mas, para atingir esse grau de organização foi preciso um esforço muito abnegado

de militantes políticos que se doaram para o movimento, passando de fato a conviver, a

pensar, a elaborar conjuntamente. Diferente dos assessores do governo, que elaboram, mas

só cumprem a função de divulgar, ou tentar impor suas teses, não testam na prática suas

elaborações.

Muitos dos ex-militantes sindicais que vêm participando dos governos da Frente

Popular, de fato, se acomodaram com a nova situação “permitida” pelo Estado e “não

querem mais o impossível”, como pregava o lema dos tempos em que eram oposição ao

75

- A discordância reside apenas no sentido de que o resultado das eleições foi algo programado desde fora.

Entendemos que há influência patente desses organismos multilaterais, porém devemos também considerar

um movimento interno, oriundo das bases sindicais, tanto urbanas quanto rurais (florestais), que se engajaram

desde o início dos anos 80 nos processos eleitorais e que tinham objetivos claros, de disputar esses eixos do

poder no Estado, ou seja, há uma legítima participação popular nesses processos, que não estavam (estão)

passíveis dessa “manipulação” externa.

Page 318: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

319

governo, isto é, no tempo em que tinham vinculações mais diretas com as classes

trabalhadoras.

O Governador Arnóbio (Binho) Marques anunciou no início de seu mandato, que

havia chegado a hora de mudar a idéia dos projetos experimentais, dos projetos piloto e que

a partir de seu governo seriam implementadas políticas mais “universalizantes”, mais

enraizadas na vida da sociedade.

Nos dois primeiros mandatos da Frente Popular, foi criada a base para o desenvolvimento, com

grandes obras de infra-estrutura econômica. Agora, o desafio é dar continuidade a este processo de

desenvolvimento, fazendo com que ele chegue mais forte às comunidades, para intensificar a

participação e a inclusão social. (...) Nosso governo vai ser marcado pela descentralização e pela

autonomia, para que tenhamos uma sociedade fortalecida, com o envolvimento direto dos atores

sociais, das igrejas, dos sindicatos e das comunidades. (...) Depois de oito anos no Governo é

momento de reduzir os programas pilotos e centrar todos os nossos esforços e recursos em programas

básicos e universalizantes. É momento de democratizar nossas vitórias. (Diário Oficial do Poder

Legislativo, 2007).

O uso dessa linguagem, de que se está trabalhando para vencer a exclusão social, de

que se está fortalecendo a sociedade, de que se está promovendo a inclusão social tem se

articulado com a prática de administrações que demonstram grande capacidade de veicular

sua mensagem de competência gerencial, que entre outros atributos, conseguiu definir um

marco entre o antes e o depois da Frente Popular. Porém, ao mesmo tempo, esse discurso

fortalece a posição do Governo como provedor, como único responsável pela condição de

articular mudanças de paradigmas.

Por outro lado, o governo e seus mecanismos de propaganda têm sido muito

eficientes, pois mesmo não conseguindo resolver os problemas sociais mais evidentes,

mantêm-se com altos índices de credibilidade frente à sociedade. Um aspecto que foi se

caracterizando desde as primeiras tentativas de se chegar ao governo, a partir da formação

da Frente Popular do Acre, em 1990, foi a de recontar a história do Acre, com referência na

luta dos seringueiros, reativando a memória de Luiz Galvez, de Plácido de Castro, para se

chegar a Chico Mendes, como líderes populares, conectando esses heróis à base popular e

não mais aos seringalistas, como era feito anteriormente, com os dois primeiros.

Os efeitos desse novo acreanismo de base popular, junto com a conquista das

reservas extrativistas e com a sensível melhoria das condições estruturais das cidades em

termos de urbanização e, dos serviços públicos com a construção e reconstrução de prédios,

aparelhamento dos órgãos públicos, principalmente saúde e educação, além das obras de

Page 319: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

320

infraestrutura, tais como as rodoviárias e aeroportuárias, vêm servindo para manter alta a

popularidade dos governos da Frente Popular.

O “senão” que se pode agregar a essas questões pode ser mais bem entendido a

partir do que Cattani coloca como necessário para a fundação da “outra economia”, ou seja,

uma economia para o “depois” do capitalismo, pois para ele:

Não basta ter orçamento participativo, empoderamento da associação de bairro, uma intensa vida

cultural emancipadora e continuar submetido ao trabalho repetitivo, desprovido de sentido, alienado,

explorado, seja ele executado na empresa capitalista padrão ou nas formas institucionais alternativas.

Da mesma forma, o fato das cooperativas e das empresas autogestionárias não constituírem um

universo apartado da economia capitalista pode levar à internalização dos mesmos princípios

concorrenciais, à intensificação do trabalho executado sob regras hierárquicas e autoritárias, enfim, à

auto-exploração. (CATTANI (Org.), 2003: 12).

A relativização das questões econômicas de fundo, isto é, do grau de dependência e

colonialismo a que fomos (e estamos) submetidos, além do liberalismo e neoliberalismo

praticados nessa época de globalização, a relativização da característica de economia de

fronteira, aliada a essa recente polarização ecológico-ambiental, levaram os governos e até

mesmo grande parte dos partidos que o compunham, mesmo os com tez de esquerda

socialista, a privilegiarem análises conjunturais que desfocavam as causas originárias das

desigualdades econômico-sociais estabelecidas nessas bordas fronteiriças. É como se

tivéssemos retornado aos tempos dos debates que Marx e Engels travaram contra o

idealismo filosófico alemão, expostos no seu trabalho, A Ideologia Alemã.

Ver o mundo real pelas lentes focadas para um único ponto, nesse caso a questão

ambiental, mesmo que consideremos a brutal força midiática desse movimento em nível

internacional, com forte impacto em países como o Brasil, em nossa opinião, tem

enfraquecido a possibilidade de desenvolvimento de políticas públicas que sejam capazes

de se realizar, como diz Cattani (2003: 13): “em padrão social, ecológico, político e,

também, tecnológico, superiores ao capitalismo convencional”.

A perda das referências que separam o mundo do trabalho tem contribuído para

direcionar as políticas públicas no sentido convencional, que tem o Estado como guardião

da acumulação e concentração de renda, de manutenção de propriedades, inclusive as

improdutivas, em um país onde milhares de seres humanos são confinados em

acampamentos por não terem terras, ou ainda, de resguardarem todo o aparato tecnológico,

Page 320: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

321

fruto do esforço de grandes parcelas da humanidade, apenas para aqueles que podem

manter “seus direitos de propriedade” como “legítimos”.

A nossa constatação é que, a partir da inversão dos índices populacionais floresta-

cidade, uma inversão que atingiu escala superior a setenta por cento nesses últimos trinta

anos, logicamente que iria diminuir os conflitos sociais nas áreas de floresta. Porém,

constatamos também que muitos desses conflitos se transferiram para as cidades, onde os

índices de violência, mesmo que no governo da Frente Popular se tenha desmontado parte

do “esquadrão da morte”, mantêm-se um tipo de violência “no varejo”, que vai desde a

violência familiar, à violência contra a mulher, até os chamados crimes contra o patrimônio

(roubos e furtos).

Isto, por si, demonstra que, ao mesmo tempo em que se propõem políticas públicas

voltadas para os povos que continuaram morando nas florestas, especialmente os que

passaram a ocupar as áreas das reservas extrativistas, na mesma medida os governos

precisariam se preocupar com os que vivem nas cidades ou foram obrigados a migrarem

para essas áreas devido aos conflitos anteriores, ou seja, sem uma diversificação de sua

capacidade produtiva, nem mesmo as promessas tradicionais dos capitalistas liberais, de

que o crescimento econômico gera trabalho e renda, resolveriam a situação de desemprego

que assola(va) as cidades acreanas.

O mais grave dessa equação que movimenta os fatores da economia, sociedade,

ecologia, ambientalismo, política e cultura, sem dúvidas, é a indefinição de rumos. Por um

lado, temos o Estado preenchido ou pressionado por ONGs, organismos multilaterais,

fazendeiros, empresários dos “agribusiness”, que intensificam ações para manutenção do

status quo. Por outro, militantes políticos, sindicalistas e alguns setores da sociedade

também manifestam insatisfação com a manutenção dessa orientação mercadológica para a

elaboração de políticas públicas e, sugerem deslocamentos para posições de enfrentamento

com essas forças que entravam as lutas por uma sociedade mais igualitária e mais justa.

No meio, temos um Governo comandado por pessoas, muitas das quais divididas

entre essas concepções, por não terem capacidade ou não quererem realmente se portar

como agentes das mudanças necessárias para ultrapassar o estágio conflituoso do momento.

Page 321: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

322

O projeto de tornar o Acre o melhor lugar de se viver na Amazônia está em curso.

Suas características, contudo, marcadas pelas ambigüidades, controvérsias e contradições

não nos permitem nomear “para quem?”

Page 322: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

323

CONCLUSÃO:

O percurso temporal percorrido neste trabalho é muito breve, se o considerarmos em

termos históricos, porém, as mudanças que se desenvolveram nesse curto espaço de tempo

formataram várias configurações sociais, algumas delas diametralmente opostas ao que

representavam no início da década de setenta, período que estabelecemos como marco

inicial das mudanças aqui tratadas. O breve tempo, vale lembrar, não foi obstáculo para as

rápidas mudanças que se sucederam nesse interregno.

A sociodiversidade acreana (seringueiros, castanheiros, ribeirinhos, caçadores,

mateiros, pescadores, colonheiros, seringalistas, comerciantes, regatões, caixeiros, etc.) foi

ampliada no curso desses anos, passando a conviver com militares, fazendeiros e seus

capatazes, madeireiros, grileiros, colonos assentados, além das populações indígenas, que

emergiram das matas profundas em busca de inserção no “novo mundo” que se

erguia/destruía com a devastação da floresta e, juntaram-se aos novos personagens, tais

como: agentes religiosos (pastorais católicas), militantes sindicais, militantes políticos,

agentes de Organizações Não Governamentais (ONGs), ambientalistas, agentes de

organismos multilaterais, agentes governamentais, ou seja, o processo de incorporação do

Acre ao Brasil, iniciado pelos militares golpistas de 64, continuou após a transição para os

governos civis e se prolonga até os dias atuais, envolvendo cada vez mais novos agentes

que, de uma forma ou de outra, passaram a compor esse movimento plural nas idéias e

diverso nas suas estruturas social, econômica, política e cultural.

Nesse sentido, nosso objetivo inicial, que era analisar as trajetórias dos

trabalhadores extrativistas e seus relacionamentos internos e externos, não só na direção

floresta-cidade, mas também no seu inverso, foi se desenrolando para incluir as temáticas

transversais76

que se avolumaram e passaram a influenciar atitudes e decisões, não só nos

lugares de moradia, bem como nos espaços articulados por esses trabalhadores dentro e fora

da floresta.

76

- O que denominamos como temáticas transversais são aquelas que dizem respeito à organização de

sindicatos, de federações e confederações de trabalhadores, de centrais sindicais, de entidades não sindicais

como o Conselho Nacional dos Seringueiros – CNS, as questões ecológico-ambientais, tais como as idéias de

desenvolvimento sustentável, florestania e todas as novas opções de uso e manejo da floresta que foram sendo

introduzidas na vida das comunidades extrativistas, além das ONGs, que através dos seus diversos interesses,

pautaram muitas ações tanto dos trabalhadores extrativistas, como do próprio Estado.

Page 323: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

324

Partimos dos eventos que cercam a falência dos seringais nativos, agravados no

período considerado “segundo surto da borracha”, no pós Segunda Guerra Mundial, época

que marca a maior intensificação da transição dos seringueiros para a condição de

seringueiros autônomos. Passamos pelas intervenções dos militares na década de setenta,

quando eles defendiam a tese de integrar a Amazônia ao Brasil, pela via de uma anexação

fronteiriça, estruturada numa extravagante idéia de combate à natureza e na expectativa de

exploração de recursos naturais, até chegarmos à virada do século/milênio com outra

inversão nos conceitos desse relacionamento homem-natureza, inclusive com uma

remodelagem das próprias instituições governamentais.

Se no início da década de setenta, a modernização, a integração e a civilização

estavam representadas pelos desmatamentos, pela transformação da floresta em pastos ou

plantações, já na década seguinte, essa tese recebia suas mais fortes contestações, tanto

internas como externas e, nas décadas subseqüentes, uma verdadeira inversão. Na última

década do século XX, ao contrário do que pensavam os militares e seus colaboradores e

seguidores civis, a manutenção das florestas é que passou a ser símbolo de um mundo

“civilizado”. Ressaltemos que essa idéia, contudo, não é consensual, tendo como foco de

resistência os grandes latifundiários, em especial os criadores de gado, no caso da Acre.

As idéias de modernidade/modernização, no nível local, também foram re-

configuradas e o conceito de desenvolvimento, que as articulava, passou a ser adjetivado

pela partícula sustentável. As tecnologias precisaram ser ajustadas ao novo formato, isto é,

passamos a ser contemporâneas de um mundo que se preocupava com as condições de

salubridade, presente e futura do planeta77

. Até as populações que viviam nas florestas

foram re-paginadas, deixando para trás a condição de representantes do atraso econômico,

do primitivismo, do feio, etc., passaram a representação simbólica da preservação

ambiental (guardiões da floresta) e a ter seus valores e seus “saberes”, aprovados como

importantes, como avançados e desejáveis. Muitas vezes, até mesmo as lutas que esses

trabalhadores extrativistas e indígenas travaram para se tornarem visíveis e se manterem

77

- A linguagem encontrada nos textos das ONGs e outras entidades ambientais (o próprio Relatório da

comissão Brundtland e mais recentemente do IPCC – Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas),

se esmeram em reforçar os conceitos de que a responsabilidade com o planeta é de todos, da mesma forma

como condena a todos, julgando de forma genérica a população mundial como responsável pela degradação,

pela poluição, pela contaminação e destruição dos ambientes naturais. Uma generalização, no mínimo,

irresponsável, pois a contaminação, poluição e degradação do planeta têm diferenças marcantes no nível de

responsabilidades, tanto em nível de países, como de empresas e, principalmente, de indivíduos.

Page 324: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

325

nesses lugares, foram “esquecidas”, retiradas de cena, em nome do que se passou a pensar

que eles deviam ser e, não necessariamente, do que eles eram78

.

Todas essas mudanças nos levaram, ao longo da escrita, a formular questionamentos

acerca dos interesses das populações afetadas, mormente as que se referiam à questão

agrária e as que implicavam na mudança de tradições, tais como o uso de queimadas para

fazer o roçado, a introdução de novas técnicas de manejo, o neoextrativismo, os limites

legais para utilização do território, as organizações sindicais e outras entidades (ONGs, por

exemplo), que foram sendo introduzidas no seu dia-a-dia, no sentido de mediar as

interações com esses novos fazeres, com esses novos agentes.

Na verdade, temos clareza de que não elaboramos respostas prontas e acabadas para

as situações que fomos identificando nesse contexto. O que consideramos relevante são as

conexões que estabelecemos entre os diversos agentes que atuaram nos processos iniciados,

tantos pelos seringueiros, quando ainda buscavam sua “autonomia”, quanto pelos militares

e seus projetos de anexação, ou pelos outros diversos agentes (governos estaduais,

religiosos, políticos de esquerda, “ongueiros” (onguistas), sindicalistas, ambientalistas, etc.)

que foram agregando novas possibilidades de viver na Amazônia, mas também de

interpretar a Amazônia e seus desafios contemporâneos.

Na trajetória dos seringueiros, mesmo antes das intervenções militares na

Amazônia, eles já vinham reorganizando suas unidades produtivas, não só com a

introdução de cultivos de roçados, onde passaram a plantar o arroz, o milho, o feijão, a

cana-de-açúcar e, principalmente, a mandioca para produzirem a farinha, elemento

importantíssimo de sua alimentação, bem como, vinham buscando reunir os parentes em

78

- A preponderância da idéia de que os seringueiros, por sua condição de vida, representavam ser

“guardiões” da floresta por excelência, mascara a realidade dos problemas vividos atualmente pelos governos

para controlar a “pecuarização” das reservas extrativistas, por exemplo, praticadas pelos próprios moradores

dessas reservas. Desde o início da vida nos seringais a perspectiva do enriquecimento sempre acompanhou as

mobilizações de trabalhadores, principalmente dos nordestinos e seus descendentes, que compõem a maioria

da população do Acre. Quando ocorreu a falência do sistema de aviamento, que inibia essa possibilidade, os

seringueiros começaram a articular seus modos de vida autônomos, sempre mantendo a perspectiva de

“melhorar” de vida, eufemismo para buscar o enriquecimento. É nesta perspectiva que ponderamos a

presença, também constante, no meio desses trabalhadores de uma esperança de “desenvolvimento” que nem

sempre estava cercada pelos criteriosos preceitos da sustentabilidade. Essa situação contrasta com alguns

tipos de apreensão onde se concebe os moradores das florestas como homogeneamente preocupados com as

questões ecológico-ambientais, ou com a descrição encontrada em alguns documentos do governo que

apresentam a população do Estado como sendo “diferente”, isto é, mais preocupada com a questão ambiental

do que a de outros lugares.

Page 325: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

326

colocações próximas, o que representava a agregação de organicidade na resistência, de

melhor produtividade econômica e convivência social dessas comunidades.

Concomitantemente, vinham também melhorando seus relacionamentos com as

populações indígenas das áreas próximas e trocando com elas experiências nos seus

relacionamentos com a natureza, aproveitando melhor as potencialidades da floresta na

alimentação, na saúde e na sua referência cultural.

Registramos que essa mobilização dos seringueiros, no sentido da sua concentração,

estava promovendo uma reorganização “natural” dos seringais79

, se considerarmos que as

áreas mais remotas, paulatinamente estavam sendo desocupadas e as novas concentrações

se realocavam em áreas mais próximas dos rios, que representavam vias naturais de

transporte, ou mais próximas das cidades, também consideradas pólos de atração, no

sentido de escoamento da produção extrativista e agrícola e, por outro lado, por servirem

como entrepostos de abastecimento, ou seja, onde os seringueiros poderiam adquirir alguns

gêneros básicos, como a munição, o sal, a banha, às vezes, o querosene, ou “combustol” e,

até mesmo para tratamento de problemas de doenças. No entanto, as cidades também

tinham virado foco de atração para famílias que buscavam “educar” os filhos, haja vista que

para os seringueiros que moravam nas colocações o acesso a escolas era impossível80

.

Nessa nova forma de organização dos seringais, sem a presença ostensiva do dono,

isto é, do seringalista, os relacionamentos em geral foram intensificados, tanto entre os

próprios seringueiros, como com os regatões, o que não significa, neste último caso, que

tenham sido mais favoráveis aos seringueiros. Ao mesmo tempo, os arrendatários ou os

prepostos dos seringalistas (gerentes), mesmo sem manterem o sistema de abastecimento

anterior (o aviamento), pretendiam manter os mesmos níveis de cobrança contra os

79

- O que referenciamos como “natural”, talvez não seja a idéia mais adequada, pois essa condição só se

tornara possível exatamente pela inexistência de forças coercitivas do Estado ampliado, isto é, nesses

momentos nem o governo nem os empresários detinham condições de investimentos nessas áreas, o que

tornou possível essa reestruturação, o que convenhamos, não é uma condição “natural” para uma área que se

apresentava para o país como sendo uma área de fronteira. Nesse caso, podemos considerar também essa re-

organização dos trabalhadores extrativistas como atípica.

80

- Fazemos o destaque para os seringueiros que moravam em colocações, pois há registro de que em

algumas sedes de seringais, havia seringalistas que permitiam a presença de uma professora, que comumente

ministrava aulas de alfabetização e ensinava a tabuada (operações básicas), mas esses casos além de raros,

atingiam apenas as pessoas que moravam nas proximidades, o que em termos de seringais significa algo em

torno de, até três horas de caminhada de distância. Porém, colocações com essa distância eram também, raras,

o comum eram distâncias bem maiores, muitas vezes, marcadas em dias de viagem.

Page 326: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

327

seringueiros. A cobrança, por parte dos arrendatários, de fidelidade na compra da produção

e, dos seringalistas, de forma direta, ou indireta através dos seus gerentes, que mesmo não

abastecendo os barracões queriam cobrar a renda, são partes dos conflitos que estavam

estabelecidos antes da chegada dos militares e das mudanças propostas para a “ocupação da

Amazônia”. Reportamo-nos a essa questão para não ficar subentendido que antes da

chegada dos militares e dos “paulistas”, não havia conflitos na região.

Ou seja, enquanto os militares, em nome do Governo Federal, e os Governos

Estaduais e civis projetavam e executavam uma maneira de “ocupação da Amazônia”, essa

Amazônia já vivia processos de conflagração social, movidos por interesses econômicos

que, a exemplo daqueles planejados pelos militares e seus seguidores, também buscavam na

exploração dos recursos naturais e dessa mão-de-obra “espalhada” no meio da região,

incluir partes desses trabalhadores nos mecanismos de exploração do capitalismo.

Os conflitos registrados entre seringueiros e patrões (seringalistas, arrendatários,

prepostos e marreteiros), contudo, ficaram diminuídos se considerarmos os que se

sucederam às intervenções posteriores, isto é, após a venda dos seringais para os

“paulistas”.

Diante de um Estado falido pela quebra estrutural do seu sistema produtivo (o

seringal) e encorajado pela perspectiva da construção de estradas, o então Governador do

Estado do Acre, Francisco Wanderley Dantas, resolveu gastar os poucos recursos existentes

nos cofres públicos numa campanha nacional de atração de investidores para o Acre.

Prometendo terras baratas e financiamentos, através dos bancos estatais e incentivos e

isenções fiscais, garantidas pelo governo do Estado, esse Governador virou uma espécie de

agente imobiliário, funcionando como articulador da venda de terras para os “paulistas”, em

proporções e preços nunca antes praticados neste Estado.

Como demonstramos no Capítulo II, os acontecimentos posteriores a essas ações do

governo Dantas, simbolizaram não só a “pá de cal” no sistema seringal e a virada na

estrutura produtiva do Estado, na direção da pecuária, como também desencadearam os

desmatamentos e os conflitos que conflagraria boa parte do Estado, envolvendo de forma

perversa, pela desigualdade de condições de enfrentamento, principalmente as populações

extrativistas.

Page 327: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

328

Os militares e seus seguidores oficiais e civis agiram no sentido de preenchimento

de uma fronteira vazia, onde para eles o “grande deserto ocidental” era “uma terra sem

gente, para acomodar uma gente sem terras”, assim, a guerra que eles previam, isto é, que

teriam contra a natureza, virou uma área de tensões contra populações locais, não

catalogadas em seus projetos de “civilização”, especialmente os índios e os trabalhadores

no extrativismo.

Porém, no final da década de setenta, os militares já estavam em processo de

descrédito interno e externo, o que de certa forma cortou seus acessos a recursos para os

grandes investimentos na Amazônia. Este fato, aliado aos problemas político-sociais

internos e agravados pela crise econômica em que o mundo estava enredado, tiraram de

foco os militares, mas deixaram os civis que vieram na trilha de suas ações81

.

Mesmo tendo se retirado da cena principal, os militares continuaram, num segundo

plano, marcando sua passagem pelo Acre, na perspectiva de que deram azo aos projetos de

construção de estradas, difundindo uma tese desenvolvimentista, que ajudava a dissimular

seus propósitos geopolíticos, embutidos na Doutrina de Segurança Nacional e nas insólitas

justificativas da política de Contra-Insurgência.

Dessa forma, ajudaram os governantes locais e os empresários “paulistas” a

avançarem sobre as terras devolutas e as terras adquiridas a preço de liquidação, na “farra”

propiciada pelos bancos estatais que, seguindo a cartilha da expansão capitalista,

colocavam o próprio Governador como organizador desses empreendimentos, financiando-

os (com recursos do Estado) e garantindo os investimentos em infra-estrutura e,

obviamente, na manutenção da ordem, necessária para assegurar os lucros dos convidados

privilegiados.

Assim, os fazendeiros, os grileiros, os especuladores de terras e outros

“investidores” tomaram as rédeas do processo de mudança que vinha ocorrendo na

estrutura econômica e se transformaram, em curto espaço de tempo, nos principais

adversários das populações tradicionais82

.

81

- Sobre essa fase de transição buscamos referência entre outros em Guilhermo O‟Donnel (1988 e 1996),

Octávio Ianni (1992 e 1993), Noam Chomsky (1993) e José de Souza Martins (1991).

82

- Aqui nos baseamos nos estudos de Hélio Garcia Duarte (1987) e Adalberto Ferreira da Silva (1986).

Page 328: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

329

No Acre, a reconcentração da terra, primeiro, e depois os desmatamentos, marcaram

a emergência de um tipo de conflito que ainda não havia chegado aqui, devido à distância e

ao sistema produtivo dos seringais, que precisava de homens trabalhando no corte da

seringa. A modalidade que substituiu o seringal, as fazendas para criação de gado, não

precisavam dessa mão-de-obra, além do que, muitos compradores de terras as adquiriram

mesmo, só para especulação. Então faziam os processos de “limpeza humana” apenas para

garantir as posses adquiridas. O tipo de violência presente nos atos de expulsão dos

seringueiros, que é um dos elementos diferenciadores desse processo, foi relativamente

mais cruel do que a exploração e os mecanismos das dívidas a que estiveram submetidos

anteriormente.

As reações de algumas parcelas desses seringueiros também marcaram

profundamente os rumos de sua reconfiguração como categoria, principiando um

movimento na contramão do desenvolvimento, até então, apregoado como única via

possível. A organização dos sindicatos de trabalhadores rurais, seguidas das mobilizações,

conhecidas como empates configuraram as primeiras reações aos projetos modernizantes,

civilizatórios e desenvolvimentistas, assim como revelaram os seringueiros para a cena

política do Estado. Neste aspecto, os seringueiros do Acre, especialmente dessa região do

Alto Rio Acre (Brasiléia, Xapuri), se tornaram pioneiros nos processos de resistência que

ganharam importância na história recente. Gonçalves (2005), dá inclusive uma maior

dimensão a esses movimentos. Para ele:

A Amazônia participou ativamente neste processo de redemocratização do país. Nomes como os do

jornalista Lúcio Flávio Pinto, Elson Martins, Edilson Martins, Márcio de Souza entre outros, ou os

jornais como Porantim (Manaus), Varadouro (Acre), num primeiro momento, ou Jornal Pessoal

(Belém) ou a Folha do Amapá depois, procuraram expressar as aspirações amazônidas. Para não

falarmos de toda uma imprensa de mimeógrafo amplamente utilizada por movimentos comunitários

e sindicais. É a Amazônia o laboratório social de onde emerge a CPT (Comissão Pastoral da Terra)

ou o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) ambos vinculados à Igreja Católica que, por meio das

Comunidades Eclesiais de Base (Cebs), deu enorme impulso à organização da sociedade civil na

Amazônia. A Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) assim como a

Central Única dos Trabalhadores (CUT) também se fizeram presentes no apoio a esses movimentos

que emanavam em diversos pontos da Amazônia. (PORTO GONÇALVES, 2005: 128).

Esta primeira reação, como demonstramos no Capítulo II, foi motivada por uma

questão de sobrevivência, de luta pelo lugar e o espaço que haviam articulado para

reproduzirem seus meios de subsistência. Nessa fase organizativa, os seringueiros dessa

Page 329: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

330

região receberam o apoio da Igreja Católica, através de seus bispos, padres, freiras e

agentes pastorais leigos, de militantes dos partidos políticos de esquerda (clandestinos) e, a

partir de 1975, da CONTAG.

Nesse período registramos uma das fases mais conturbadas da vida política no

Estado83

, gerada pela insuficiência deste em determinar condições mínimas para assegurar

os direitos dos trabalhadores. Essas poucas condições eram ainda mais graves, por estar o

aparato governamental funcionando, deliberadamente, em favor dos grandes proprietários,

tanto os residentes, quanto os chegantes denominados na região como “paulistas”.

Destacamos também que nessa leva de chegantes, vieram muitos colonos pobres de

outras regiões, arregimentados pelas promessas do Governo Federal, através do INCRA (ou

do órgão equivalente de plantão), para ocuparem os “projetos de assentamento”, que

também foram submetidos a tratamento desumano, abandonados em glebas inacessíveis

durante os períodos de chuvas, sem acesso às cidades, sem acesso a escolas para os filhos,

sem acesso a atendimento médico e, sem acesso a créditos que os permitissem iniciar à

produção, situação agravada por não disporem de títulos das terras. (Os seringueiros já

viviam assim, sem posse e, conseqüentemente, sem titulação das terras por eles ocupadas).

Esses trabalhadores, em que pesem as condições a que foram submetidos, não

ingressaram nos processos de lutas de resistência movidos pelos seringueiros, porém, mais

tarde, os que não morreram nos primeiros anos, ou os que não conseguiram voltar para o

Centro-Sul, vieram a se tornar elementos importantes nas lutas por titulação das terras e das

reivindicações de melhoria para as populações que viviam nas áreas de floresta.

No Capítulo III, demonstramos como foi se alargando o leque de colaboradores dos

seringueiros e a importância deles para os êxitos obtidos em suas lutas. A entrada em cena

da Igreja Católica, através da CEBs, da CPT e do CIMI, ajudando na formação dos STRs,

juntamente com a CONTAG; dos partidos de esquerda, impulsionando as lutas de

resistência; das ONGs e dos ambientalistas, que ajudaram na construção do Conselho

Nacional dos Seringueiros (CNS) e na consolidação da aliança dos povos da floresta,

83

- As principais evidências das conturbações e da violência dessa fase estão registradas fundamentalmente

nos jornais Varadouro e, no jornal da Prelazia do Acre-Purus, denominado “Nós Irmãos”. O primeiro, pela

independência editorial, enfrentou os perigos e adversidades da empreitada. O segundo se respaldou no

grande respeito que a Igreja ainda mantinha nesse ambiente e, também, na nova conduta que os dirigentes

religiosos adotaram após o Concílio Vaticano II e as Conferências de Puebla e Medelín, que recomendavam a

“opção pelos pobres”. (Como não pesquisei nos arquivos policiais e judiciários, não podemos avaliar a

quantidade de informações contidas nesses arquivos, portanto, um campo aberto a novas explorações).

Page 330: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

331

incluindo os índios no processo, revestia o movimento desses povos de características

diferentes das iniciais. Esses novos atores ajudaram a estruturar e a multiplicar os focos de

atuação desses movimentos, isto é: se o surgimento do movimento se deu em relação à luta

pela terra, com a inclusão dessas parcerias ela foi sendo ampliada por outras reivindicações,

que se estendiam da luta ambiental ao combate a violência policial.

Um dos fatores mais importantes, surgidos nesse momento, foi a construção da idéia

de reserva extrativista, uma reivindicação surgida no I Encontro Nacional dos Seringueiros,

realizado em Brasília em 1985, e que se concretizou após a morte de Chico Mendes, um

dos principais defensores dessa idéia, por parte dos seringueiros.

Em linhas gerais, o final da década de oitenta foi marcado, não só pela promulgação

da nova Constituição Brasileira, em 1988, que pela primeira vez registrava a questão

ambiental como responsabilidade do Estado e dos cidadãos, mas também pelo assassinato

de Chico Mendes no final daquele ano e, para os trabalhadores extrativistas, pela

delimitação da primeira Reserva Extrativista, no final de 1989, mesmo que tenha sido numa

região menos conflagrada do Estado (Vale do Juruá), logo no início do ano seguinte, 1990,

foi criada a reserva que levou o nome do sindicalista assassinado, a Reserva Extrativista

Chico Mendes, abrangendo as áreas reivindicadas pelos seringueiros que viveram os

maiores conflitos no Acre.

Nesse sentido, desenvolvemos o entendimento de que a transição para os governos

civis, a promulgação da nova Constituição, o fortalecimento dos sindicatos e centrais

sindicais e a chegada das ONGs e ambientalistas durante a década de oitenta, permitiram

um melhor posicionamento dos trabalhadores frente ao Estado (Governo), o que o

pressionou para uma intervenção mais efetiva no controle das terras. A ação discriminatória

das terras do Estado, realizada pelo INCRA, reposicionou o quadro fundiário no Acre,

colocando o Estado como detentor de pouco mais da metade das terras, o que até então, era

impensável, pois como destacamos no capítulo II, o quadro fundiário fazia do Estado uma

anomalia, pois havia mais terra registrada nas mãos dos proprietários privados do que a

área territorial real.

Essa transição no sistema de propriedade da terra se configura como um dos

aspectos mais importantes pelos quais passou o Governo do Acre desde o início da década

de setenta. Digna de registro também são as mudanças pelas quais passaram os

Page 331: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

332

trabalhadores extrativistas a partir dessa data quando iniciaram seus processos de

resistência.

No caso do Governo, essa discriminação de terras, significou maior capacidade de

controle dos diversos níveis de conflitos em que vários segmentos de sua população

estavam envolvidos, podemos mesmo dizer, estavam conflagrados, haja vista o clima de

guerra que imperava em algumas áreas84

. O Estado, na sua esfera administrativa, passou a

ter a condição de mediar esses conflitos, por dispor agora, de meios para disciplinar a

distribuição e nomear as novas possibilidades de uso da terra, aspecto que toma forma legal

na aprovação do Zoneamento Ecológico Econômico pela Assembléia Legislativa.

Para os seringueiros, a demarcação das reservas significou, em última hipótese,

livrá-los do confronto direto com os, até então, ditos proprietários. Em outras palavras, não

é que eles passaram a ter títulos de propriedade, pois ser morador de uma reserva

extrativista é apenas uma concessão, uma permissão do Estado, mas, de outro modo,

passaram a ter como interlocutor o Governo e, não mais os “proprietários” particulares.

O fato do Estado (Governo) hoje ser responsável por 55,47% das suas terras (entre

Áreas Naturais Protegidas e áreas destinadas aos Projetos de Assentamento, etc.), o que em

termos absolutos representa mais de nove milhões de hectares, num total de pouco mais de

dezesseis milhões, não pode de fato ser desconsiderado. Para um Estado que chegou a

situação de ter um nível de concentração em torno de 97% de suas terras em mãos, ou

reivindicadas por particulares há apenas 30 anos, podemos considerar esse aspecto, como

um avanço significativo.

Esse fato por si, já ajudou a reduzir bastante os conflitos fundiários, não fossem os

estragos anteriores, causados pelas “limpezas de territórios”, promovidas pelos fazendeiros

“paulistas”, que expulsaram os moradores das florestas, tanto para as cidades do entorno,

como para o Peru e a Bolívia, e as conseqüências dessa movimentação populacional para

cidades que não tinham as mínimas condições de absorvê-las, possivelmente a qualidade de

vida dessa população seria bem melhor.

84

- Porto Gonçalves (2005: 56), escrevendo sobre a violência nos processos de “limpeza” das áreas

compradas pelos paulistas diz: “Assim, sem nenhum exagero, pode-se dizer que a ocupação recente da

Amazônia está banhada no sangue daqueles a quem só restou a alternativa de uma resistência heróica. Se

associarmos que esse processo se passava num contexto de regime ditatorial no qual, entre outros, se incluía a

censura à imprensa, pode-se compreender as dificuldades por que passaram essas populações sem que

pudessem divulgar as injustiças a que se viam submetidas”.

Page 332: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

333

Acontece que, se por um lado, diminuiu o nível de conflito no campo,

especialmente os conflitos com os trabalhadores extrativistas dessa região do Vale do Rio

Acre, onde o avanço dos fazendeiros foi maior, por outro, aumentaram os níveis de

conflitos nas cidades, que se viram, de uma hora para outra, “inchadas” e sem condições de

oferecer opções de emprego e renda para essas populações deslocadas. Sem mencionar a

piora nas condições dos que atravessaram as fronteiras com os países vizinhos, haja vista,

terem perdido quase tudo, do pouco que tinham deste lado.

Essa rarefação populacional, obviamente, contribuiu para a redução dos conflitos, o

que também precisa ser contabilizado para não relativizarmos os efeitos dos processos de

“limpeza”, pois na medida das necessidades iniciais dos novos proprietários, eles foram

bastante eficientes.

Para os trabalhadores extrativistas que permaneceram nas florestas, principalmente

após a demarcação das reservas extrativistas e a chegada da Frente Popular ao governo,

uma série de investimentos foram realizados, na tentativa de melhorar suas condições de

vida, passando pelo incremento dos subsídios para os produtos tradicionais (borracha e

castanha), chegando à introdução de novos produtos e novas técnicas para a diversificação

extrativista, denominada de neoextativismo, tudo isso dentro dos amplos conceitos de

desenvolvimento sustentável e florestania, que passaram a presidir, pelo menos

teoricamente, as ações governamentais e não governamentais atuantes nesta região.

A ascensão de uma força política, na década de noventa, que tinha sua base nos

movimentos sindicais rurais e urbanos, em setores “progressistas” da Igreja Católica, além

de setores médios e universitários, para os altos escalões do Governo do Estado, aliado ao

avanço das ONGs e dos ambientalistas, compõem o novo quadro das lutas políticas,

econômicas e socioculturais em que as populações extrativistas iriam passar a conviver.

É nesse contexto que consideramos a ampliação das fronteiras para a

sociodiversidade acreana, especialmente as fronteiras que se colocaram diante dos

trabalhadores extrativistas. Os limites das colocações, dos seringais, se considerarmos os

aspectos físicos do território, se modificaram, ou seja, se estreitaram, com as fazendas, com

os projetos de assentamento, lançados pelos governos militares, em nível nacional e, pelos

governos locais e civis. Porém, mais tarde, essas fronteiras voltaram a se expandir com as

Page 333: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

334

delimitações das reservas extrativistas, das unidades de conservação, enfim, com a nova

configuração fundiária do Estado, estabelecida nos últimos dez anos do século XX.

Todavia, há outras fronteiras que foram se estabelecendo, tão ou mais importantes

do que as fronteiras físico-territoriais. Referimo-nos às fronteiras políticas e ecológico-

ambientais, especialmente. No aspecto das fronteiras políticas, saímos da situação em que

os trabalhadores extrativistas não tinham a menor importância, ou no máximo, eram

considerados como entraves ao desenvolvimento, para uma em que passaram a figurar

como elementos decisivos para esses projetos.

Obviamente, a valorização dos trabalhadores extrativistas não foi uma dádiva das

elites governantes, na verdade, eles se fizeram ouvir, se fizeram notar, se fizeram presentes

na história devido à suas lutas. O esforço empreendido para organizar seus sindicatos, para

realizarem os empates, para construir o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), as

alianças com os povos indígenas e, como demonstramos no capitulo III, suas alianças com

os setores políticos, sindicais, religiosos e ambientalistas foram fundamentais nesse

processo de elevação de sua posição social no Estado do Acre, depois ampliada para a

Amazônia, até ganharem contornos nacional e internacional, ou seja, suas fronteiras se

expandiram, ganharam dimensões extremamente complexas, ao ponto de alguns de seus

membros, como Chico Mendes e Marina Silva, por exemplo, terem ganhado prêmios

concedidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) e ocupado importantes espaços

nos fóruns e noticiários internacionais, tendo esta última, inclusive, assumindo postos de

grande importância na República, como os cargos de Senadora e Ministra de Estado.

Estas novas fronteiras, até então não vivenciadas, não percebidas, tais como a

participação política, sindical, as lutas ambientais e as possibilidades que elas revelaram,

ajudaram a consolidar ilhas de resistência, onde a defesa do meio ambiente, da reforma

agrária, dos povos indígenas, da Amazônia, fazendo aqui uma referência ao seu

ecossistema, ganharam esses novos atores. Contudo, devemos estar cientes que esse

aprendizado, essa capacidade de participação, de organização política não se estendeu

uniformemente para todos os trabalhadores extrativistas. Além disso, aqui também

vivenciamos a formação de lideranças, que muitas vezes, se tornavam maiores do que o

próprio movimento que representavam, atuando em outras faixas fronteiriças, onde a

maioria dos seringueiros sequer sabia que existiam.

Page 334: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

335

Alguns seringueiros e lideranças indígenas viraram palestrantes em eventos

internacionais, passando a viajar por diversos países e, em alguns casos, a funcionar como

consultores e representantes ad hoc de organismos internacionais, tanto governamentais

como não governamentais, para tomada de decisão sobre questões amplas, como o

financiamento de construção de uma estrada, de uma hidrelétrica, etc., ao mesmo tempo em

que outros seringueiros e indígenas continuavam sendo submetidos às dificuldades

inerentes à manutenção de sua sobrevivência no meio da mata.

Com essa variação de atuação das lideranças e com a expansão dos pressupostos por

que lutavam, alguns dos elementos iniciais, que ajudaram a agrupar os seringueiros, como a

luta pela reforma agrária, a luta pela terra, foram sendo deixados de lado, ao mesmo tempo

em que se dava prioridade às questões ecológico-ambientais. A acomodação com o novo

formato da terra (a reserva extrativista), concebido como uma reforma agrária diferente,

adaptada às condições Amazônicas, “acalmaram” as entidades sindicais e favoreceram o

surgimento de outras propostas, tanto as oriundas do Conselho Nacional dos Seringueiros,

que se especializou em orientar a elaboração de projetos com vistas a captar recursos de

agências nacionais e/ou estrangeiras (governamentais e não governamentais), para serem

aplicados em projetos que beneficiariam algumas comunidades, algumas famílias de

determinada área, ou se submetiam aos projetos de algumas ONGs, que “sorteavam”

algumas comunidades para aplicarem seus experimentos, sob a alegação de estarem

realizando um projeto que objetivava melhorar as possibilidades de uso e/ou manejo

sustentável do ambiente, naquelas comunidades.

Com a eleição de prefeitos ligados a Frente Popular em alguns municípios, no início

da década de noventa, e do Governador do Estado no final desta mesma década, esses

projetos de uso e manejo sustentável dos recursos naturais foram ampliados por políticas

públicas, que seguiam as mesmas diretrizes dos projetos das ONGs e agências multilaterais,

ou seja, buscava-se levar benefícios para comunidades que estavam dentro do espectro de

atuação de uma reserva, por exemplo, ou criando pólos agro-florestais, mas sempre

orientando esses projetos para experiências que preenchessem os requisitos exigidos pela

ONGs e agências financiadoras.

Tanto no caso dos recursos das agências multilaterais, como das ONGs, nunca são

repassados diretamente para as comunidades, em verdade, comumente são administrados

Page 335: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

336

por estruturas montadas para essas tarefas, ou seja, o staff administrativo do governo ou da

própria ONG, onde boa parte fica retida para esses encargos, o que favorece o aparecimento

de uma espécie de “elite” entre os dirigentes de ONGs. No caso do governo, que é regido

por outra estrutura burocrática, esses recursos são repassados para essa “elite” através dos

mecanismos denominados consultorias.

Quando chegam, já reduzidos, ao ponto final de sua destinação, esses recursos

geralmente são alocados nas mãos das lideranças da comunidade, o que projeta até nesses

níveis a criação de algum tipo de hierarquia, ou seja, aquela situação recíproca originária

dos empates, foi cedendo lugar para outros modelos de organização social que criam ou

reafirmam conceitos diferenciadores entre seus membros, ao invés de incentivar práticas

cooperativas e solidárias.

O que viemos tentando ressaltar é que, com a “desqualificação” do movimento

sindical e o aparecimento de outros organismos “parceiros” dos trabalhadores extrativistas,

essas organizações ajudaram a fragmentar a base seringueira, promovendo divisão entre as

comunidades. Esse modelo de atuação, que elege comunidades específicas para “trabalhar”

os projetos financiados, foi ao longo dos anos criando uma divisão entre os seringueiros,

entre as comunidades, como se de repente houvesse algumas mais habilitadas e outras

incompatíveis para receberem esses benefícios.

Esses critérios de seleção contaminaram os próprios trabalhadores no extrativismo,

ao ponto de representantes da Associação de Moradores da Reserva Extrativista Chico

Mendes de Brasiléia (AMOREB), em 2001, por exemplo, terem se posicionado contra o

assentamento de brasileiros que estavam voltando da Bolívia, expulsos daquele país, por

entenderem que aqueles não tinham as mesmas credenciais ecológico-ambientais que eles

para morarem numa reserva. Para esses dirigentes, os brasileiros que haviam “fugido” para

a Bolívia na época dos conflitos no Acre, não mereciam morar nas reservas porque tinham

sido “covardes” nos momentos de enfrentamento, dos empates, das lutas pela demarcação

das reservas85

.

85

- Nesse processo, acompanhamos parte da “disputa” entre membros do Sindicato de Trabalhadores Rurais

de Brasiléia que eram favoráveis ao assentamento dos brasileiros retornados da Bolívia nas áreas da RESEX –

Chico Mendes, contra os representantes da Associação de Moradores da Reserva Extrativista (AMOREB),

que eram contra. Mas, nessa época o sindicato já não tinha o mesmo vigor do início da década de oitenta, por

exemplo. Haviam aparecido outros interlocutores para o movimento.

Page 336: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

337

O problema principal, a ser resolvido, pelos defensores das teses do

desenvolvimento sustentável, reside nestes aspectos: as propostas, os projetos, até mesmo

as políticas públicas voltadas para os trabalhadores extrativistas são limitadas, pouco

abrangentes. Enquanto se desenvolve um programa em uma comunidade, milhares de

outras continuam sem contato, sem perspectiva de terem suas reivindicações atendidas, mas

a questão mais grave ocorre com as milhares de pessoas que foram expulsas de suas antigas

colocações e passaram a viver perambulando pelas periferias das cidades, ou mesmo pela

zona rural e florestas, sem terem ocupação e renda definidas.

A forma clássica de atuação do Governo, neste sentido, que mesmo após as eleições

sucessivas de representantes da Frente Popular foi a de continuar a investir, ou apoiar a

iniciativa privada, na perspectiva de que esta, ao desenvolver-se, gere empregos, renda e

que absorva esse grande número de pessoas desempregadas. Mas, como já destacamos, as

grandes empresas que atuam no Acre são as dos setores pecuários, madeireiros e, por

último vem chegando a agricultura (monocultura) de exportação, todos esses são setores

que, comprovadamente, geram poucos empregos e tendem a se especializar cada vez mais,

a partir da utilização de tecnologias que dispensam a mão-de-obra menos qualificada86

.

Em termos práticos, as lutas dos seringueiros que engendraram um novo quadro

político no Acre, criaram também as condições para a construção de novos caminhos, que

deveriam ter como base os princípios da igualdade, do respeito à natureza e da geração de

oportunidades para todos. Porém, essas idéias não estavam na cabeça de todos os

segmentos da população. Até seria muito simples se essas condições fossem hegemônicas,

mas, a consolidação dessas idéias não passava apenas pelos circunscritos círculos dos

sindicalistas, dos religiosos, dos militantes de esquerda, dos membros das ONGs, dos

ambientalistas e dos ecologistas, antes convivia com uma disputa que envolvia setores

médios da sociedade até atingir os mais abastados.

É nesse contexto que vemos nascer uma contradição. A participação nos processos

eleitorais (como demonstramos no Capítulo IV), que permitiram a ascensão de militantes e

colaboradores dos sindicatos, dos trabalhadores extrativistas, dos ambientalistas, enfim,

86

- Ricardo Antunes (1995) e Márcio Pochman (2003 e 2004) desenvolveram estudos recentes que apontam

uma tendência do setor produtivo especialmente os setores primário e secundário, em reduzir os empregos e a

renda dos trabalhadores, favorecendo somente setores especializados. No caso da mão-de-obra no Acre, a que

mais precisa de emprego e renda é exatamente essa parte da população de menor escolaridade, que foi expulsa

das matas, onde se observa uma incompatibilidade crônica com a “especialização”.

Page 337: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

338

desse conjunto que representava uma contestação ao projeto desenvolvimentista para os

postos de governo, contribuíram, para desarticular os sindicatos e, por outro lado, fortaleceu

aquelas posições, vestida neste período com a armadura sustentabilista, cujos membros são

muito hábeis nos liames da estrutural estatal.

Ao ocuparem os postos de comando no Governo do Estado do Acre, os “herdeiros”

das lutas dos trabalhadores extrativistas passaram a se preocupar com questões mais

abrangentes, com outras necessidades, ou se quisermos ser mais diretos, passaram a se

preocupar com as necessidades das classes dominantes, que não haviam “deposto as

armas”, embora tivessem feito concessões no processo político, pressionados pela

inesperada reação dos trabalhadores extrativistas.

A sensação é que os trabalhadores extrativistas estão nos dois pólos: por um lado,

aparecem como sendo parte do governo, por outro, como sendo a parte que mais precisa do

governo, se o pensarmos como responsável por políticas de inclusão social e de resolução

dos problemas que envolvem os proprietários e os não-proprietários.

Porém, essa disputa de posições não conseguiu afastar o espectro fundamental da

economia capitalista, ou seja, manteve o princípio da busca de acumulação incessante de

capital, que é sua razão de existir e a razão de ser de todas as estruturas criadas pelo

capitalismo, mesmo quando forças políticas, que teoricamente representam interesses

opostos, conseguiram se apossar de uma das estruturas do Estado.

Mesmo sendo inegável que as disputas entre concepções diferentes forçaram uma

remodelagem do papel do Estado, este se manteve fiel a uma de suas principais atribuições,

que é a de disciplinar as condições de acumulação, recompensando quem consegue realizar

com êxito a “tarefa” e punindo quem não consegue, ou seja, mesmo mudando os métodos,

permaneceu como articulador da exploração capitalista.

Nesse contexto, a economia do Estado do Acre, hoje, em que pese às configurações

dos discursos, das imagens, da linguagem e da propaganda governamental que se auto-

intitula o “governo da floresta”, tem como principais produtos geradores de acumulação a

pecuária e a exploração madeireira, seguidas pela manutenção de uma, ainda,

desproporcional concentração fundiária87

.

87

- Desde 1999, o Governo do Estado, através da Secretaria de Estado de Planejamento e Desenvolvimento

Sustentável vêm publicando um “anuário de bolso” denominado “Acre em Números”, onde podemos

constatar a evolução dos principais setores produtivos do Estado, de onde recolhemos a informação sobre o

Page 338: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

339

A nova linguagem adotada pelos governantes do Estado, de valorização dos “povos

da floresta”, de investimentos em um tipo de desenvolvimento inclusivo, respeitador da

natureza (desenvolvimento sustentável, neoextrativismo, florestania, etc.), refletem as

concessões possíveis na mediação das forças que se digladiaram nas disputas por espaços,

territórios e concepções de mundo, no período em estudo, mas a persistente permanência da

grande propriedade e dos modelos econômicos implementados, contrários a esse discurso,

também demonstram as contradições e ambigüidades do mesmo.

Neste sentido, faz-se mister questionar até onde as disputas entre os diversos

agentes que passaram a interagir nesse espaço contribuíram para engendrar um re-

ordenamento, não só agrário, mas também social, político, econômico, ecológico e cultural,

gerando a organização de novos modos de vida, estabelecendo novas fronteiras para a

sociodiversidade e criando novas referências para as relações homem-natureza nesta parte

da Região Amazônica?

Não é irrelevante o fato de encontrarmos nessa parte tão distante do Brasil, um

Estado cuja composição de governo seja tão diversa e, mais, que mesmo considerando

todas as contradições existentes em seus ambientes internos e em suas políticas públicas,

consegue engendrar um nível de interlocução com segmentos sociais que vão desde

latifundiários até índios e seringueiros. Como demonstramos, permanece um razoável

desnível econômico separando esses contingentes adversos, ao mesmo tempo, impressiona

a grandeza em que se encurtaram os desníveis políticos e sociais. Além disso, está evidente

que as elites regionais, antigas e recentes, que sempre tiveram a primazia, na perspectiva de

definir unilateralmente seus graus de relacionamento com o poder central e com as

articulações empresariais nacionais e internacionais, não estão mais à vontade para

centralizar esses processos.

Os acreanos das colocações, dos varadouros, das aldeias, das beiras de rios também

conseguiram formas de se fazer visível, de se fazer ouvir. As redes de interlocução podem

não ser as mesmas das elites tradicionais, mas não é desconsiderável o poder que esses

povos conquistaram a partir de suas alianças e de suas conexões políticas.

crescimento da pecuária e da exploração madeireira. Para se ter uma idéia melhor, vamos mencionar apenas o

crescimento do rebanho bovino, que no início da década de 90 não atingia um milhão de cabeças, chega em

2006 a dois milhões e quinhentas mil cabeças, ou seja, um número quatro vezes maior do que a população do

Estado.

Page 339: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

340

No caso do Estado, mais especificamente seu braço político, também não é mais o

mesmo, mas sua estrutura ainda continua muito rígida, no sentido de manter-se na posição

de controlar as mudanças ou de impedir que elas aconteçam na direção oposta à ordem

capitalista. Mudaram métodos, não restam dúvidas, mas os propósitos, as diretrizes não são

tão flexíveis.

Diante desse quadro, é possível que a tese do desenvolvimento sustentável continue

sendo acompanhada pelo impertinente antefixo (in), que usamos no título deste trabalho,

pois, assim como os trabalhadores atravessaram muitas fronteiras no seu processo de

reconhecimento, mesmo não conseguindo conformar uma que os contemplasse na sua

plenitude, as novas forças políticas que ora ocupam os postos de comando no Governo

também não conseguiram alargar os varadouros, assim como fizeram com as avenidas das

cidades, apontando a direção de uma sociedade pós-consumista, mais solidária, mais

voltada para a redistribuição, enfim, mais recíproca.

Poderíamos também concluir que não há um culpado que possa ser nominado pela

não materialização de outra estrutura socioeconômica, para ser levado ao banco dos réus.

Os que vêem os novos ocupantes dos cargos de primeiro escalão do Governo como

culpados, podem estar superlativizando, para o bem ou para o mal, o poder do Governo em

relação ao Estado, compreendido na sua forma mais ampla. Estamos cientes de que o

Governo tem sim, melhores e maiores condições de interferir nos rumos da sociedade, mas,

ao mesmo tempo, sabemos que as camadas populares (o povo, as classes, as massas, as

multidões, como quisermos definir) são essenciais para direcionar esse governo, nesse

sentido, as condições de (in)sustentabilidade são pendulares e, os movimentos do pêndulo

podem tomar outras direções, se forças diferentes o impulsionarem.

Quantos serão na verdade os que lutam, os que querem uma sociedade pós-

consumista, mais solidária, mais recíproca, mais redistributiva? Para os que acreditam que é

possível construir uma sociedade não-individualista, não-liberal, não-predatória, os campos

de batalha estão abertos, só nos resta seguir os versos da Internacional: “Bem unidos

façamos dessa luta final uma terra sem amos...”.

Page 340: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

341

REFERÊNCIAS:

ALVES, Antônio. Artigos em Geral. Rio Branco: Coleção Arqueologia do Recente – Livro

3. s/d.

ALIER, J. Martínez. Da economia ecológica ao ecologismo popular. Blumenau: Ed. da

Furb, 1998.

ALMEIDA, Mauro W. B. Direito à floresta e ambientalismo: seringueiros e suas lutas.

Revista brasileira de Ciências Sociais, Nº 55, junho de 2004. p. 33 a 53

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade

do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade

Estadual de Campinas, 1995.

ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo. São Paulo:

Ed. da UNESP, 1996.

AUBERTIN, Catherine. (org.). Fronteiras. Brasília: Editora da UNB; Paris: ORSTOM,

1988.

BANDEIRA, Moniz. Relações Brasil-EUA no contexto da globalização. Rio de Janeiro:

SENAC, 1997.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

______. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

______. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,

1998.

______. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

______. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

BECKER, Berta K. Síntese do processo de ocupação da Amazônia. Brasília: MMA, 2001.

______. Amazônia: geopolítica na virada do terceiro milênio. Rio de Janeiro:

Garamond, 2006.

BENCHIMOL, Samuel. Um pouco antes e além depois. Manaus: Editora Umberto

Calderano, 1977.

BENJAMIN, W. Obras escolhidas. Vol. I. São Paulo: Brasiliense, 1994.

Page 341: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

342

BENTES, Rosineide. A intervenção do ambientalismo internacional na Amazônia. In.

Revista Estudos Avançados 19 (54), 2005.

BERMAN, M. Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad.

C. F. MOISÉS e A. M. IORIATTI São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

BORON, A. El Estado y las “reformas del Estado orientadas al mercado”. Los

“desempeños” de la democracia en América Latina. In. KRAWCZYK, N. R;

WANDERLEY, L. E. América Latina: Estado e reformas numa perspectiva

comparada. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras. 1996.

BURKE, Peter. A escrita da história. São Paulo: Editora da UNESP, 1992.

______. (Org.). Hibridismo cultural. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São Paulo: Hucitec, 1996.

CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil.

São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

CATTANNI, A. David. (Org.). A outra economia. Porto Alegre: Veraz Editores, 2003.

CHAVES, Maria do P. S. R e RODRIGUES, Débora C. B. Desenvolvimento sustentável:

limites e perspectivas no debate contemporâneo. In. INTERAÇÕES – Revista

Internacional de Desenvolvimento Local. Vol. 8, Nº 13, set. 2006.

CHOMSKY, Noam. Novas e velhas ordens mundiais. São Paulo: Scritta, 1996.

______. O que o tio Sam realmente quer. Brasília: Editora da UNB, 1992.

CHOSSUDOVSKY, Michel. A globalização da pobreza: impactos das reformas do FMI e

do Banco Mundial. Tradução de Marylene Pinto Michael. São Paulo: Moderna,

1999.

COELHO, Maria C. N. Desenvolvimento sustentável, economia política do meio ambiente

e a problemática ecológica da Amazônia. In. D‟INCAO A. M. & SILVEIRA I. M. A

Amazônia e a Crise da Modernização. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1994.

COSTA, Homero. Debilidade do sistema partidário e crise de representação política no

Brasil. s. d.

COSTA SOBRINHO, Pedro Vicente. Capital e trabalho na Amazônia. São Paulo: Cortez,

Rio Branco: UFAC, 1992.

Page 342: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

343

COSTA, João Craveiro. A conquista do deserto ocidental: subsídios para a história do

território do Acre. São Paulo: Editora Nacional. Brasília, Instituto Nacional do Livro,

1973.

COUTO e SILVA, Golbery. Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1967.

266 p.

CUNHA, Euclídes da. À margem da história. São Paulo: Cultrix, Brasília: Instituto

Nacional do Livro, 1975.

______. Um paraíso perdido: ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a Amazônia. Rio

de Janeiro: José Olympio, 1988.

DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1998.

D‟INCAO A. M. & SILVEIRA I. M. A Amazônia e a Crise da Modernização. Belém:

Museu Paraense Emílio Goeldi, 1994.

DUARTE, H. Garcia. Conflitos pela terra no Acre. Rio Branco: Casa da Amazônia, 1987.

135 p.

DUBY, Georges. A história continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/editora da UFRJ,

1994.

DUSSEL, Enrique. Oito ensaios sobre cultura latino-americana e libertação. São Paulo:

Paulinas, 1997.

______. Teologia da libertação e marxismo. In. LÖWI, Michael. O marxismo na América

Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. Tradutores: Claudia Schilling e Luis

Carlos Borges. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 1999. 540 p.

FOSTER, J. Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Tradução de Maria

Teresa Machado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1996.

FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. São Paulo: Rocco, 1992.

GODARD, Olivier. O desenvolvimento sustentável: Paisagem intelectual. In. CASTRO,

Edna; PITON, Florence (orgs.). Faces do trópico úmido – conceitos e questões sobre

desenvolvimento e meio ambiente. Belém: Cejup/UFPA-NAEA, 1997.

GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994.

GONÇALVES, Carlos Walter P. Amazônia, Amazônias. São Paulo: Contexto, 2005.

______. O desafio ambiental. Rio de Janeiro: Record, 2004.

Page 343: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

344

______. Os (des) caminhos do meio ambiente. São Paulo: Contexto, 2004.

GORENDER, Jacob. Gênese e Desenvolvimento do Capitalismo no Campo Brasileiro.

Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

GRZYBOWSKY, Cândido. Movimentos populares rurais no Brasil: desafios e

perspectivas. In. STÉDILE, João Pedro. A questão agrária na década de 90. Porto

Alegre: Ed. da UFRGS, 2004.

______. (org.). O testamento do homem da floresta: Chico Mendes por ele mesmo. Rio de

Janeiro: FASE, 1989.

GUERRA, Antônio Teixeira. Estudo geográfico do território do Acre. Rio de Janeiro:

IBGE, 1955. Reeditado pela gráfica do Senado em 2004.

GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. São Paulo: Paz e Terra, 1977.

HAGEMANN, Helmut. Bancos, incendiários e florestas tropicais: o papel da cooperação

para o desenvolvimento na destruição das florestas tropicais brasileiras. Rio de

Janeiro: FASE, IBASE e ISA, 1976.

HALL, Stuart. Notas sobre la desconstrucción de “lo popular”. In. SAMUEL, Raphael.

Historia popular y teoría socialista. Barcelona: Grijalbo, 1989.

______. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

HARDT Michael e NEGRI, Antônio. Multidão: guerra e democracia na era do império.

Rio de Janeiro: Record, 2005.

HARNECKER, Marta. Tornar possível o impossível: a esquerda no limiar do século XXI.

Tradução de José Colaço Barreiros. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

HOBSBAWM, Eric. J. A era dos extremos: o breve século XX - 1914 - 1991. São Paulo:

Companhia das Letras, 1997.

______. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

HOBSBAWM, E; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1997. 316 p.

HUBERMAN, L. História da riqueza do homem. São Paulo: Cortez, 1994.

IANNI, Octávio. Colonização e contra reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes,

1979. 137 p.

______. Capitalismo, violência e terrorismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

Page 344: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

345

______. Imperialismo na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.

______. A Era do globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

______. A Sociedade Global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

______. A luta pela terra. Petrópolis: Vozes, 1981. 235 p.

IGLÉSIAS, M. Piedrafitas; AQUINO, Terry Vale. Kaxinawá do rio Jordão – história,

território, economia e desenvolvimento sustentado. Rio Branco: CPI, 1994.

JOHNSON. Allan G. Dicionário de sociologia: guia prático da linguagem sociológica.

Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

KOWARICK, Marcos. Amazônia/Carajás: na trilha do saque. São Paulo: Editora Anita

Garibaldi, 1995.

KURZ, Robert. O colapso da modernização – da derrocada do socialismo de caserna à

crise da economia mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

______. Os últimos combates. Petrópolis: Vozes, 1997.

LEFF, Henrique. Saber ambiental: sustentabilidad, racionalidad, complejidad, poder.

Madrid: Siglo Veintiuno de España, 1998.

LENIN, V. I. Imperialismo, fase superior do capitalismo. São Paulo: Global, 1988.

______. O estado e a revolução. São Paulo: Hucitec, 1978. 153 p.

LEONEL, Mauro. A morte social dos rios. São Paulo: Perspectiva, 1998.

LIMA, Claudio de Araújo. Coronel de barranco. Rio de Janeiro: civilização Brasileira,

1970.

LIMA, Luis Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

LINO, Luís Geraldo; CARRASCO, Lorenzo; COSTA, Nilder; PALÁCIOS, Sílvia.

Ambientalismo, novo colonialismo. Rio de Janeiro: Capax Dei, 2005.

LÖWI, Michael. Ecologia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2005. 94 p.

______. (org). O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais.

Tradutores: Claudia Schilling e Luis Carlos Borges. São Paulo: Editora Perseu

Abramo, 1999. 540 p.

Page 345: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

346

MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana.

Tradução de Felipe José Lindoso. São Paulo: Expressão Popular: CLACSO, 2008.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Petrópolis: Vozes, 2001.

______. América Latina: dependência e integração. São Paulo: Ed. Página Aberta, 1992.

MARINS, Francisco. Território de bravos. São Paulo: Melhoramentos, 1976.

MARTINELLO, Pedro. A batalha da borracha na Segunda Guerra Mundial e as

conseqüências para o Vale Amazônico. Rio Branco: UFAC, 1988.

______. Histórico. In. CEPAMI; VICARIATO DE PANDO; DIOCESE DE RIO

BRANCO. Realidade dos seringueiros brasileiros na Bolívia. Rio Branco, 1991.

MARTINS, Edílson. Nossos índios, nossos mortos. Rio de Janeiro: Codecri, 1978.

______. Chico Mendes: um povo da floresta. Rio de Janeiro: Garamond, 1998.

MARTINS, José de S. A Reforma Agrária e os limites da democracia na “Nova

República”. São Paulo: Hucitec, 1986.

______. Fronteira: A degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec,

1997.

______. Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000.

______. A Amazônia e nós. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1971.

______. Expropriação e violência. A questão política no campo. São Paulo: Hucitec, 1991.

MARTINS, Marcos Lobato. História e meio ambiente. São Paulo: Annablume: Faculdades

Pedro Leopoldo, 2007. 144 p.

MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

351 p.

______. Formações econômicas pré-capitalistas. Tradução de João Maia. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1985.

______. O Capital. Tradução de Reginaldo Sant‟Anna. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1998. Livro I.

MARX, K; ENGELS, F. O manifesto comunista. São Paulo: Global, 1993.

Page 346: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

347

MELLO, A. Fiúza. Capitalismo, pesca e empobrecimento na Amazônia: a contraface da

modernização. In. D‟INCAO, Ângela Maria; SILVEIRA, Isolda Maciel da. (orgs.). A

Amazônia e a crise da modernização. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1994.

MENESES FILHO, Luis. Análise da participação da sociedade civil e da governança de

cinco espaços de definição de políticas públicas do Estado do Acre. Arquivo online,

2008.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Tradução Paulo César Castanheira e Sérgio

Lessa. São Paulo: Boitempo. Campinas: Editora da UNICAMP, 2002.1104 p.

MONTIBELLER FILHO, Gilberto. O mito do desenvolvimento sustentável: meio ambiente

e custos sociais no moderno sistema produtor de mercadorias. Florianópolis: Ed. da

UFSC, 2004.

MORAIS, Fernando; GONTIJO, Ricardo; CAMPOS, R. de Oliveira. Transamazônica. São

Paulo: Brasiliense, 1970.

O‟DONNEL, Guillermo. Análise do autoritarismo burocrático. São Paulo: Paz e Terra,

1996.

______. Transição do regime autoritário: América Latina. São Paulo: Vértice, 1988.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino; MARQUES, Marta, Inês M. O campo no século XXI:

território de vida, de luta e de construção da justiça social. São Paulo: Casa Amarela

e Terra e Paz, 2004.

OLIVEIRA, Ariovaldo. U. A agricultura camponesa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001.

OLIVEIRA, L. A. PINTO de. O sertanejo, o brabo e os posseiros: os cem anos de

andanças da população acreana. Belo Horizonte: UFMG/CEDEPLAR: Rio Branco,

AC: SEPLAN, 1985. 100 P.

PAULA, E. A de; SILVA, Sílvio Simione da. (org.). Trajetórias da luta camponesa na

Amazônia- Acreana. Rio Branco, AC: Edufac, 2006. 308 p.

PETRAS, James. Neoliberalismo: América Latina, Estados Unidos e Europa. Blumenau:

Editora da FURB, 1999.

PINTO, Nelson P. Alves. Política da borracha no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1984.

POCHMANN, Márcio. Reestruturação produtiva: perspectivas de desenvolvimento local

com inclusão social. Petrópolis: Vozes, 2004.

POCHMANN, Márcio; AMORIN, Ricardo. Atlas da exclusão social no Brasil. São Paulo:

Cortez, 2003.

Page 347: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

348

POSEY, Darrel A. Será que o “consumismo” verde vai salvar a Amazônia e seus

habitantes? In. D‟INCAO, Ângela Maria; SILVEIRA, Isolda Maciel da. (orgs.). A

Amazônia e a crise da modernização. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1994.

RANZI, C. Raízes do Acre: (1870/1912). Rio Branco: UFAC, 1988.

REIS, Arthur C. F. A Amazônia e a cobiça internacional. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1982.

RÊGO, José Fernandes. Amazônia: do extrativismo ao neoextrativismo. Ciência Hoje,

1999.

______. Estado e políticas públicas: a reocupação econômica da Amazônia durante o

regime militar. São Luis: Edufma; Rio Branco: UFAC, 2002.

RUIZ, R. P. Evolução histórica do extrativismo. In. MURRIETA, J. R; RUEDA, R. P.

Reservas extrativistas. Brasília: CNPT, 1995.

SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável: idéias sustentáveis. Trad.

José Lins Albuquerque Filho. Rio de Janeiro: Garamond, 2002.

SANT‟ANA Jr. Horácio Antunes de. Florestania: a saga acreana e os povos da floresta.

Rio Branco: Edufac, 2004.

SANTOS, Boaventura de Souza. (org.). Semear outras soluções: os caminhos da

biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2005.

______. (org.). A globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 2002.

SANTOS, José Tavares dos. (org.) Revoluções camponesas na América Latina. São Paulo:

Ícone, 1985.

SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1997.

______. Por Uma Outra Globalização: do pensamento único à consciência universal Rio

de Janeiro: Record, 2000.

SANTOS, Roberto. História econômica da Amazônia: 1800-1820. São Paulo: T. A.

Queiroz, 1980.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

______. Desigualdade Reexaminada. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.

Page 348: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

349

SILVA, Adalberto Ferreira da. Ocupação recente das terras do Acre: transferências de

capitais e disputa pela terra. Rio Branco: Ed. do Governo do Estado do Acre, 1986.

SILVA, José Gomes. A reforma agrária no Brasil. In. STÉDILE, João Pedro. (coord.). A

questão agrária na década de 90. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2004.

SORRENTINO, Marcos (coord.). Ambientalismo e participação na contemporaneidade.

São Paulo: EDUC/FAPESP, 2001. 229 p.

SOUZA, Luiz Alberto Gómez. As várias faces da Igreja Católica. Revista Estudos

Avançados, Nº 18, 2004. p. 77 a 95

SOUZA, Márcio de. Breve história da Amazônia. São Paulo: Melhoramentos, 1994.

______. Chico Mendes. São Paulo: Instituto Callis, 2005.

STÉDILE, João Pedro. (coord.). A questão agrária na década de 90. Porto Alegre: Ed. da

UFRGS, 2004.

SWEEZY, P. M. A transição do feudalismo para o capitalismo. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1983.

______. Teoria do desenvolvimento capitalista: princípios de economia política. Rio de

Janeiro: Zahar, 1985.

TAUSSIG, M. Xamanismo, colonialismo e homem selvagem: um estudo sobre o terror e a

cura. São Paulo: Paz e Terra, 1993.

THOMPSON, E. P. A Formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1987.

______. A Miséria da Teoria: um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar Editores,

1978.

TOCANTINS, Leandro. Amazônia: natureza, homem e o tempo: uma planificação

ecológica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

______. Estado do Acre – geografia, história e sociedade. Rio de Janeiro: Philobiblion/Rio

Branco: Assessoria de Comunicação Social do Estado do Acre, 1984.

______. Formação histórica do Acre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vol. I, II e III,

1979.

VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo Autoritário e campesinato. São Paulo: Difel,

1974.

Page 349: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

350

VIRÍLIO, P. O espaço crítico e as perspectivas do tempo real. Rio de Janeiro. Editora 34,

1995.

WALLENSTEIN. I. A reestruturação capitalista e o sistema mundo. Petrópolis: Vozes,

2000.

______. Após o liberalismo. Em busca da reconstrução do mundo. Petrópolis: Vozes, 2002.

ZHOURI, Andréa. O ativismo transnacional pela Amazônia: entre a ecologia e o

ambientalismo de resultados. In. Revista Horizontes Antropológicos. Porto Alegre,

ano 12, Nº 25, jan/jun. 2006.

OUTRAS FONTES:

1 – VIRTUAIS:

* Portal de periódicos da Capes

* www.marini.escritos.unam.mx

* www.rhr.uepg.br

* www.ibge.gov.br

* www.ac.gov.br

* www.scielo.br

* www.gta.org.br

* www.map-amazonia.net

* www.incra.gov.br

* www.revistacult.uol.com.br.

* www.maryallegretti.blogspot.com

* www.reservasextrativistas.blogspot.com

* www.altino.blogspot.com

* www.aleac.ac.gov.br/aleac/edvaldomagalhaes/

* www.map/amazonia.net

* www.gta.org.br

* www.oespiritodacoisa.blog.uol.com.br

2 – IMPRESSOS:

* Jornal Varadouro – arquivos do Centro de Documentação e informação Histórica da

UFAC – CDIH. Realização de cópias e fotografias das matérias.

* Jornal Gazeta do Acre/A Gazeta – arquivos do Museu da Borracha em Rio Branco.

Foram realizadas fotografias das matérias.

* Jornal Página 20 - arquivos do Museu da Borracha em Rio Branco. Foram realizadas

fotografias das matérias.

Page 350: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

351

* Jornal “Nós Irmãos” – arquivo da Diocese do Acre-Purus em Rio Branco. Foram

realizadas fotografias das matérias.

* Relatórios do Zoneamento Ecológico-Econômico (Três volumes da 1ª fase e um da 2ª

fase. Trabalho impresso com cópias disponíveis e também virtualmente no site do

Governo do Acre. (www.ac.gov.br).

* Relatório do Censo Demográfico – IBGE – 1970 – Sede do órgão em Rio Branco.

* Relatório sobre situação fundiária do Acre – INCRA – 1999 – Sede da Superintendência

Regional em Rio Branco.

Plano de Governo de Flaviano Melo 1987 – 1990.

Plano Plurianual 2000 – 2003 do Governo do Acre.

Plano Plurianual 2004 – 2007 do Governo do Acre.

Plano Estratégico do Governo do Acre 2007 -2010.

Plano Amazônia Sustentável – PAS 2008 – Governo Federal e Governos da

Amazônia legal.

Diário Oficial da Assembléia Legislativa do Estado do Acre no período

compreendido entre 1986 a 2008. Atenção especial para as Atas dos discursos dos

Governadores em cada início de ano legislativo.

ALEAC – ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO ACRE –

Seringueiros na Bolívia: Acre – Bolívia, Rio Branco, 1994.

Acre em Números – publicação anual desde 1999, sob responsabilidade da

Secretaria Estadual de Planejamento e Desenvolvimento Sustentável – SEPLANDS.

TESES/DISSERTAÇÕES:

ALBUQUERQUE, Gerson R. Espaço, cultura trabalho e violência no vale do Juruá – AC.

São Paulo: PUC, 2001 (Tese de Doutorado).

BASÍLIO, Sandra T. Cadiolli. A luta pela terra e a Igreja Católica no Vale do Acre e

Purus (1970 – 1980). Recife: UFPE, 2001.

CALAÇA, Manoel. Violência e resistência: o movimento dos seringueiros de Xapuri e a

proposta de reserva extrativista. Rio Claro: UNESP, 1993 (Tese de doutorado).

Page 351: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

352

ESTEVES, Benedita M. G. Do “manso” ao guardião da floresta. Estudo do processo de

transformação social do sistema seringal, a partir do caso da Reserva Extrativista

Chico Mendes. Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ, 1999. (Tese de Doutorado).

FERNANDES, Marcos Inácio. O PT no Acre: a construção de uma terceira via. Natal:

UFRGN, 1999. (dissertação de Mestrado).

MONTYSUMA, Marcos Fábio Freire. Senhores das matas: experiência extrativista na

RESEX Chico Mendes – Xapuri (1983 – 2002). São Paulo: PUC, 2003. (Tese de

doutorado).

MOURÃO, Nilson M. L. A prática educativa das comunidades eclesiais de base no Estado

do Acre: popular e transformadora ou clerical e conservadora?. São Paulo: PUC,

1988 (Dissertação de Mestrado).

PAULA, Elder Andrade de. Estado e desenvolvimento insustentável na Amazônia

Ocidental: dos missionários do progresso aos mercadores da natureza. Rio de

Janeiro: CPDA, 2003. (Tese de Doutorado).

______. Seringueiros e sindicatos: um povo da floresta em busca da liberdade. Rio de

Janeiro: CPDA/UFRJ, 1991. (Dissertação de Mestrado).

RÊGO, José Fernandes do. Estado capitalista e políticas públicas: Estado brasileiro,

processo de ocupação capitalista e extrativismo da borracha na Amazônia. Campina

Grande: UFPB, 1992. (Dissertação de Mestrado).

SILVA, J. Porfiro. Preservação e sutileza: a política de desenvolvimento do governo do

Acre (1987-1990). Rio de Janeiro: UFRRJ/CPDA, 1998. (Dissertação de Mestrado).

SILVA, Sílvio Simione da. Resistência camponesa e desenvolvimento agrário na

Amazônia-Acreana. Presidente Prudente: UNESP, 2005. (Tese de doutorado).

SOUZA, Carlos Alberto A. de. Varadouros da Liberdade: Empates no Modo de Vida dos

Seringueiros de Brasiléia. São Paulo: PUC, 1996. (Tese de Doutorado).

3 - ENTREVISTAS:

1 - SILVA, Pedro Celestino da. Seringueiro, 62 anos. Entrevista realizada no

município de Xapuri em janeiro de 2001.

2 - BARROS, Raimundo Mendes. Ex–seringueiro, é um dos fundadores do Sindicato

dos Trabalhadores Rurais de Xapuri; atualmente é vereador deste município. Morou de

Page 352: JOSE SAVIO DA COSTA MAIA - A Florestania e o Desenvolvimento Insustentável - o caso dos trabalhadores extrativistas

353

forma espontânea na Bolívia na década de sessenta. Depoimento colhido em Xapuri, em

janeiro de 2001.

3 - SILVA, Francisco Xavier da. Seringueiro, 56 anos. Depoimento concedido em

janeiro de 2001, no município de Xapuri.

4 - SILVA, José Pereira da. Seringueiro. Depoimento concedido em janeiro de 2001,

no município de Xapuri.

5 - SILVA, Raimundo Morais da. Seringueiro, 58 anos. Depoimento concedido em

janeiro de 2001, no município de Xapuri.

6 - MONTEIRO, Francisco. “O Monteirinho”. Ex-seringueiro, é sindicalista e

músico, morou na Bolívia na década de sessenta. Depoimento concedido em janeiro de

2001.

7 - AQUINO, José Maria. “O Boca”. É sindicalista e dirigente do Conselho Nacional

dos Seringueiros (CNS). Depoimento concedido em junho de 2001, no município de

Brasiléia.

8 - SILVA, Simão Pedro da. Ex-seringueiro, atualmente vive de pequeno comércio e

criação de gado. Depoimento concedido em janeiro de 2001, no município de Xapuri.

9 - SILVA, Bartolomeu Moreira da. Seringueiro, 67 anos, morou mais de vinte anos

na Bolívia e está de volta tentando “arrumar” uma terras para trabalhar no lado Brasileiro.

Depoimento concedido em junho de 2001, em Brasiléia.

10 - SILVA, Maria Carolina da. Depoimento concedido em junho de 2001, em

Brasiléia.

11 - FREITAS, Rosildo Rodrigues de. É presidente do Sindicato dos Trabalhadores

Rurais de Brasiléia, 38 anos e ex-seringueiro. Entrevista concedida em janeiro de 2001.

12 - SOUZA, Francisco Cecílio de. Depoimento concedido ao autor em 19 de janeiro

de 2001.