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JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

A construção de Jesus

A surpresa de um retrato

Coordenação da coleção: José Tolentino Mendonça

Capa Carlos VasconcelosImagem da capa Philippe LEJEUNE (1924-2014)

Le Repas de Simon, 1950© Musées de la Ville de Boulogne-Billancourt – Photo: Philippe Fuzeau

Pré-impressão Paulinas Editora – Prior VelhoImpressão e acabamentos Artipol – Artes Tipográficas, Lda. – Águeda

Depósito legal 398 626/15ISBN 978-989-673-482-4

© Setembro 2015, Inst. Miss. Filhas de São PauloRua Francisco Salgado Zenha, 112685-332 Prior VelhoTel. 219 405 640 – Fax 219 405 649e-mail: [email protected]

SEM VALOR COMERCIAL

COLEÇÃO

POÉTICAS DO VIVER CRENTE Série JTM

As obras de um autor de referência, empenhado em fazer

dia logar a experiência cristã com os desafios de um mundo

que se entreabre em modos sempre novos.

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Vou contar como cheguei até aqui. Como, entretantos episódios que os Evangelhos relatam, aqueleda pecadora que se arrisca por um território hostilapenas para tocar em Jesus (Lc 7,36-50) acabou portornar-se o meu objeto de trabalho bíblico duranteanos, mas não só de trabalho: também de emoção, deimaginação, de afeto e de fé. O convívio com essetexto mudou completamente o meu olhar sobre Jesuse, com isso, posso dizê-lo, mudou também a minhavida. Passei a dar valor à necessidade de consolaçãoque todos os humanos transportam; às linguagenscom que o corpo e a alma se expressam e que, por-ventura, não sabemos atender devidamente ainda; àsingularidade irredutível da narrativa biográfica;àquela porção de vida íntima que se comunica melhorcom silêncio e lágrimas do que por palavras; ao per-fume e ao dom; à hospitalidade de Deus que Jesus re -vela, e que é a expressão, por excelência, da sua incon-dicional misericórdia.

* * *

Não se pode imaginar uma história sem persona-gens. Não raro, é em torno delas que se desenvolve aação ou se estrutura a economia narrativa. Os seuspercursos, sujeitos a transformações, aprofundamen-tos, revisões, são, por assim dizer, o motor da intrigae o seu poder impressivo. Seymour Chatman chama--lhes «os existentes da história», pois mesmo quandoa sua existência antecede e ultrapassa as fronteiras doespaço ficcional, enquanto personagens, elas podemser reconstruídas pelo leitor através de traços explíci-tos ou implícitos que, progressivamente, vão sendofornecidos pelo texto. Isto, sem esquecer que, emtudo o que nos é dito e mostrado sobre as persona-gens, permanece uma porção insolúvel de obscuri-dade, de indecisão. As personagens, quando verdadei-ras, são percetíveis, mas também impenetráveis.Como esses vultos em certas pinturas que sugerem eevocam a realidade em vez de afirmá-la diretamente.

* * *

Enquanto personagem, Jesus é construído gra-dualmente pelo processo narrativo. Facto que emnada se intromete com a prioridade temporal que,4

obviamente, Jesus tem sobre o Evangelho. Não é aexist ência histórica de Jesus que se pretende obser-var, mas a sua revelação narrativa, urdida por alguémque, mais do que uma simples biografia, pretendeuavizinhar o leitor da misteriosa e inalienável singula-ridade da sua pessoa. Há, assim, que deixar-se condu-zir por traços de caracterização que estão dispersosno relato, por aquilo que a personagem diz e faz (ou,simplesmente, por aquilo que ela silencia), pela in-tera ção com os outros atores e o modo como estes a descrevem, pelos aditamentos e comentários donarrador.

* * *

O episódio do Evangelho de Lucas que vamos ana-lisar (Lc 7,36-50) está construído sobre esta curiosaes trutura ternária, pois as relações entre as persona-gens sendo explicitamente binárias, têm sempre umterceiro no horizonte. Assim se percebe que o convitedo fariseu a Jesus possibilite a intromissão da peca-dora; no segundo quadro, que Jesus dialogue com ofariseu, mas estando voltado («voltando-se para amu lher») para a pecadora; no último quadro, queJesus fale com a mulher, mas que o que Ele diga des-perte a reação dos comensais. Trata-se, à primeira

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vista, de uma estrutura simples, mas, como veremos,de maneira nenhuma elementar.

* * *

O episódio mostra-nos que Jesus não julga apenasos factos, possibilita também a sua transformação. Oseu espaço de intervenção é o mais amplo: Ele conhe -ce elementos que as outras personagens ignoram,conta uma história que, aparentemente, se subtrai aocontexto, mas que afinal o encena, contorna os obs-táculos que aprisionam a situação e recria, de novo,uma possibilidade para o imprevisto. Retorna ao pas-sado da narração e desvela um significado que abala opresente. Explica. Resolve. A verdade é revelada pro-gressivamente não pelo narrador ou por outra perso-nagem, mas pelo próprio Jesus.

* * *

Os fariseus representavam, no judaísmo comum,não só o devotado zelo por Deus e pela sua Lei, mastambém a perseguição obediente dos mandamentosna vida quotidiana. Para os fariseus, manter a purezaritual em torno da mesa e da refeição, fugindo detodo o contacto que os pudesse contaminar, é um

ponto central. O que vai acontecer neste relato bíbliconão é, portanto, um discreto inciden te que se possa,delicadamente, contornar, mas é alguma coisa quepõe profundamente em causa os valores daquele cor-reto anfitrião.

* * *

A mulher vem de mais longe, mas expõe-se intei-ramente, confiando mais nas lágrimas do que naspalavras, sem se abrigar à falsa sombra das autojusti-ficações, sem julgar ninguém, humilhando-se apenas.E a autenticidade da sua declaração sem palavras, per-mite que Jesus se revele a ela, desencadeando no seupercurso uma transformação.

* * *

A mulher entra e sai em silêncio, mas o leitorsente que a sua passagem se revestiu de uma eloquên -cia ímpar. Em vez de palavras ela utilizou uma lingua-gem plástica, talvez mais contundente que a verbal.Representou, como atriz solitária, no palco da casa dofariseu, o seu monólogo ferido: com o seu pranto pro-longado, os cabelos a arrastar-se pelo chão do hóspe -de, numa coreografia humilde e lancinante, os beijos

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e o perfume que mais ninguém ali teve a preocupaçãode ofertar a Jesus. A qualidade penitencial do perso-na gem é testemunhada pelo território simbólico emque ela opera, os pés de Jesus, sete vezes referidos, epela convulsão da sua figura (pense-se que descobriro cabelo diante de um homem estranho era conside-rado, para uma mulher, uma grande desonra).

* * *

A mulher inominada não cumpre os rituais dehospitalidade ao serviço da casa do fariseu. Em rela-ção ao fariseu ela é uma intrusa, e não uma associada.O seu nexo é com Jesus: os seus gestos, tão distantes,na sua emotividade, daquela delicada indiferença quese requer a quem habitualmente presta, aos hóspe-des, esse serviço, são interpretados por Jesus comouma forma de acolhimento na fé: por isso, de peca-dora a mulher passará a perdoada. E a transformaçãodo estatuto da mulher derrama um perfume novonão só na perícope, mas pelo próprio Evangelho.

* * *

As parábolas de Jesus distinguem-se das que osra binos contavam, porque não eram apenas a argu-

mentação de uma sabedoria, ou a procura judicativade uma didática moral. A sabedoria paradoxal quecontêm é uma provocação que profeticamente anun-cia o Reino.

* * *

Não se explicita claramente o que seja a fé: o quesabemos é que esta não pode ser desligada dos atos deamor que a intrusa realiza em casa do fariseu. A fénão é uma abstração, é uma narrativa. Se o ligameentre fé e «toque» não é precisado, ele acaba por serbem sublinhado pela repetição que o discurso deJesus faz de todos os gestos daquela pecadora. Semuma única palavra, a mulher toca a realidade pro-funda de Jesus. Entabula com Ele uma relação quetranscende o formalismo do pacto de hospitalidadeoferecido pelo dono da casa. Traz um impressionantere gime de verdade para o centro do relato. Expõe-se.Confia. Indiferente ao peso do juízo social que pesasobre si, ela entrega-se ao silêncio de Jesus, ao podertransformador da sua palavra. E Jesus diz-lhe: «a tuafé te salvou» (v. 50). A fé, note-se, é «a tua fé»: trazagarradas à sua formulação as marcas mais íntimas eimpronunciáveis do vivido. Não tem o sentido de umavirtude interior abstrata, mas ligam-se a expressões

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existenciais concretas. A fé da mulher é aquele seumodo de estar presente, inteiramente presente aJesus.

* * *

Na comunicação sem palavras que a mulhermantém com Jesus, o perfume ganha um valor icó-nico. O seu referente semântico é o odor. Um refe-rente subtil que flui como uma espécie de pretextopara a intimidade se expressar, para o pacto autobio-gráfico acontecer. Atrás dele seguem-se memórias,confidências silenciosas, lágrimas… Ele entreabre,por assim dizer, o mundo secreto das identidades ouajuda a tornar evidente o espaço interior. Se, comoescreve Bernard Marcadé, os perfumes «são umaespécie de epifanias da alma», a mulher derrama nãoapenas perfume sobre os pés de Jesus, mas o dialetosilencioso e pungente da própria existência. O per-fume está em vez dela. Ela está no perfume.

* * *

Há o tempo das ações, que muitas vezes é umtem po verbal ou adverbial que testemunha aquilo queas personagens realizam, mas há também um tempo

das personagens, na medida em que a existência seidentifica com a temporalidade. A vida tem sempreuma qualidade a assinalar, uma quantidade de tempodeterminada. Compreender uma personagem é sersensível ao fenómeno de temporalidade (de tempora-lidades, porque são plurais as dimensões do tempo)que a atravessam.

A narrativa é uma operação sobre o tempo. Mashá ainda outra forma: uma transparência ou filigranaque a consciência empresta ao tempo à medida queele é contado e que pode ser chamada de revelação.

* * *

Entre os poderes que o caracterizam, no relatolucano, está efetivamente o de curar. A sua ação, pro-porcionando a libertação de males que atormentam ohomem, configuram-no como taumaturgo, atuandocom sucesso sobre doenças (4,37-40; 5,12-26; 6,6-11;7,1-10; 8,43-48; 13,10-17; 14,1-6; 17,11-19; 18,35--53), demónios (4,33-36.41; 8,26-39; 9,37-45), forçasdestruidoras da natureza (8,22-25) ou a própriamorte (7,11-17; 8,40-42.49-56). Não há debilidadeque Jesus não consiga vencer, mesmo quando a enfer-midade dura há vários anos (8,43;13,16) ou o mal setorna irreversível (8,49). Uma energia salutar é tão

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pa tente nele, que o relato quase a personifica: «E opoder do Senhor estava com Ele para curar» (5,17);«saía dele um poder que a todos curava» (6,19); «bemsei que saiu de mim um poder» (8,46). Esta sua famaespalhava-se cada vez mais, e muitos o procuravampara serem curados das suas enfermidades (5,15).

Contudo, como escreve Oepke, se fora do cristia-nismo os milagres são, de modo geral, contados por simesmos, nos relatos evangélicos, «a narração visasempre alguma coisa que objetivamente está fora domilagre». O milagre fornece o enquadramento, mas éo que emerge a propósito do milagre que acaba porcapturar o enfoque da história.

* * *

Não só o agir e o falar de Jesus o caracterizamcomo alguém com autoridade, como Ele parece atri-buir-se, a si mesmo, uma autoridade que lhe seriaprópria. Jesus não é o simples intérprete da Torá oudas Tradições dos Pais, mas sim um protagonista quese tornará intrigante, precisamente pelo modo comose apresenta «poderoso em obras e palavras». No en -si namento que desenvolve, não apela ao prestígio dosmestres que o precederam e contraria mesmo aquiloque se julgava fixado. Em relação ao repouso sabático,

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por exemplo, adota uma atitude que se desvia dasprescrições, tal como quanto à pureza ritual. Ele nãodepende das instâncias históricas que representavama autoridade, nomeadamente a religiosa. Retoma,certamente, a Lei, mas à sua maneira e sem lhe pare-cer submetido. Escolhe os discípulos com autoridade,e os mandata, pedindo-lhes uma ligação incondicio-nal e exclusiva à sua pessoa. Não admira que tudo oque lhe diz respeito, inédito pelo poder que reclama,tenha sido, do princípio ao fim do seu ministériopúblico, questionado na sua autoridade; tenha susci-tado perplexidades e conflitos, que dão conta da difi-culdade que os vários atores sentem em compreendere aceitar Jesus.

* * *

Na verdade, podemos dizer, é a complexidade daprópria identidade de Jesus que determina a crise domo delo profético. Os «dramáticos mal-entendidossobre a sua qualidade de profeta e a natureza da visitadivina», como aponta M. R. Ternant, radicam no factode que o título de profeta se torna escasso para abar-car o significado messiânico de Jesus na sua globali-dade. Sem dúvida que os arquétipos proféticos cita-dos contribuem para o conhecimento de Jesus, mas

de forma a não aprisioná-lo nessas referências, unica-mente. A condição paradoxal da identidade de Jesusobriga a transcender o próprio paradigma profético.Apesar de todas as semelhanças com a tradição profé-tica veterotestamentária, a especificidade de Jesusobriga a que a designação «profeta» lhe possa ser apli-cada apenas analogicamente. Pode-se dizer sempremais acerca de Jesus.

* * *

Em Jesus temos a superação da ideia de pecadoraplicada restritivamente a singulares ou a grupos. Nanova visão, toda a acentuação da autonomia humana,mesmo sob o manto protetor do culto, do cumpri-men to da Lei ou da total dedicação a Deus, torna ohomem pecador e necessitado da graça de Deus. Defacto, o sentido do arrependimento na boca de Jesusnão refere simplesmente aquela radical renúncia aopecado pela esperança do perdão, anunciada por JoãoBatista, mas a emergência de uma nova itinerância,que simbolicamente se revê na deslocação daquelamulher, intrusa e pecadora. Com a colaboração dorelato de Lc 7,36-50 acontece um facto importante noensinamento de Jesus: o pecador deixa de ser o repre-sentante de uma categoria social ou religiosa (5,29;14

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7,36-50) para passar a ser o símbolo do homem ca -rente de Deus. A intrusa é tomada como paradigmado crente.

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Jesus revela-se não apenas o hermeneuta do cora-ção humano, capaz de iluminar o resíduo mais deci-sivo de cada coração, mas também o intérprete com-petente do desígnio de Deus nas circunstâncias dahistória. Como escreve Segalla, «Jesus, particular-men te em Lucas, é o ícone do Pai: de um Pai infinita-mente e inesperadamente misericordioso». No seumodo de agir com os pecadores, Jesus interpreta amisericórdia de Deus e declara que a pessoa é salva.Aceitando que isso passa tanto por buscar, como porser buscado. Tanto por festejar amorosamente o seuregresso, como por ser o recetáculo das lágrimas doencontro. O seu ministério é atuação salvadora.

* * *

Mas a construção do relato supõe também a cons-trução que o texto faz do leitor. Na verdade, o leitornão é apenas um produtor ou um consumidor, mas éum produto do próprio texto. As técnicas narrativassão ao mesmo tempo uma forma de pedir a colabora-

ção do leitor para a construção do texto e uma ma -neira de construí-lo. O leitor, trabalhado pela arte danarrativa, é construído à medida que constrói o texto.Instaura-se, assim, um jogo de circularidades. A lei-tura é uma correspondência secreta e vital, uma prá-tica de correlação. Lemo-nos a nós próprios no livroque temos diante de nós. Porque o leitor, ao fim decontas, não está apenas a enfrentar o dilema da iden-tidade de Jesus: ele como que é conduzido a interro-gar-se sobre si mesmo à luz daquela identidade. E aoEvangelho não interessou mostrar quem Jesus é, naobjetividade acabada de um conceito ou de um dis-curso, mas sim colher esta resposta mostrando quemJesus se torna na vida daqueles e daquelas que cru -zam o seu caminho.

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O confronto com a pessoa de Jesus conduz neces-sariamente a uma opção pelo que Ele constitui. Lucasnão nos coloca perante doutrinas ou virtudes morais:apresenta-nos uma pessoa como único referencial. Doque se trata, é de reconhecer ou não uma pessoa,escolher ou não segui-lo. Nesse sentido, a técnica nar-rativa tem uma finalidade cristológica evidente: apro cura da identidade de Jesus não é apenas um16

assunto dos atores do relato, ela estende-se tambémaos leitores, que devem, por sua vez, decidir-se ou nãono itinerário dos discípulos, o da fé.

* * *

A arte narrativa de Lucas é muito mais que a habi-lidade de urdir bem um relato, criando uma segurasequência em progressivo élan de resolução. É muitomais que a mestria de uma oficina de prolepses e ana-lepses, onde a modelação consciente de uma históriapor outra determina uma provocadora e disseminadasugestão tipológica, que nos faz reconhecer o grandetalento e cultura do narrador. O segredo da arte nar-rativa de Lucas é o centro narrativo que ele escolhe: arevelação da identidade messiânica de Jesus.

O Evangelho, porém, não aposta na apresentaçãode conclusões acabadas acerca de Jesus: sugere, antes,o caminho aberto, silencioso e paciente das pergun-tas. De forma insistente, e num propósito claro deenvolver o leitor, vai repetindo que o enigma Jesusestá e não está resolvido, para que precisamente esteinterstício se revele como possibilidade de inscreveruma nova demanda. A narrativa evangélica apre-senta-se assim como o limiar de uma história aberta,infinita, onde a cristologia nos remete para a ecle-

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siologia. O seu presente é já o inventário do nossofuturo.

* * *

Porque existem as histórias? Porque resistem elasao inelutável manto do esquecimento?

Que poder é o seu? Porque nos atraem, porquetornamos a elas, mesmo quando séculos se somarama outros séculos, e o mundo que as gerou nos apareceenigmático, secreto, distante? Que trânsito nos trazassim suspensos: apenas um comércio de artifício,que as frágeis histórias encenam, ou a circulaçãoimpalpável mas presente da própria verdade? Porquecontou Jesus histórias? Porque as contamos nós paradizer Jesus? Uma coisa temos por certa: há históriasque são contadas para que um encontro aconteça.

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