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JOSANNE PINHEIRO TAVARES O TEATRO NA RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE FLORIANÓPOLIS - SC 2007

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JOSANNE PINHEIRO TAVARES

O TEATRO NA RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE

FLORIANÓPOLIS - SC

2007

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC

CENTRO DE ARTES – CEART

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO -

MESTRADO

JOSANNE PINHEIRO TAVARES

O TEATRO NA RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro (Mestrado) do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Orientadora: Prof. Dra. Márcia Pompeo Nogueira

FLORIANÓPOLIS - SC

2007

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JOSANNE PINHEIRO TAVARES

O TEATRO NA RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de mestre no curso de pós-graduação em Teatro na UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina.

Banca Examinadora:

Orientadora: ________________________________________________

Profª Dra. Márcia Pompeo Nogueira UDESC

Membro: ________________________________________________

Profº Dr. Renan Tavares UNIRIO

Membro: _________________________________________________ Profª Dra. Cristiana Tramonte

UFSC

Suplente: _________________________________________________ Prof.ª Dra. Maria Brígida Miranda UDESC

Florianópolis – SC, 13/02/2007

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AGRADECIMENTOS

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Teatro – PPGT/ UDESC.

À Profª. Dra. Marcia Pompeo Nogueira pela atenção e consideração que sempre teve

com meu trabalho.

Ao Profº Dr. José Ronaldo Faleiro pela gentileza e pelo empréstimo de livros.

Aos meus pais e irmãos, cunhados, sobrinhas pela generosidade contagiante e pelo

carinho.

A minhas irmãs Juliana pelas traduções e Joanne Paula pela atenção com os entraves

da formatação.

Aos meus filhos e marido Diogo, Henrique, Amanda e Tito pela sinceridade,

dedicação e paciência.

A minha amiga Janaína pelo incentivo e por acompanhar a minha caminhada.

A todas as pessoas que estiveram envolvidas nos processos teatrais realizados no

Canto da Lagoa por me ensinarem a olhar o mundo com mais esperança.

À pesquisadora, educadora e amiga Mari pela atenção, paciência e dedicação durante

a pesquisa de campo e pelo lindo trabalho que vem desenvolvendo na comunidade do Canto

da Lagoa.

Aos meus colegas do Mestrado: Adriano, Afonso, Roseli, Ana Menk, Ana Lara,

Moira, Yve, Yftah, Nado, Cida, Ismênia, Elis.

Aos meus amigos de longas datas.

Aos meus colegas de trabalho da Escola de Educação Básica Nereu Ramos.

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RESUMO

A hipótese desenvolvida nessa dissertação é de que o teatro poderia contribuir para a relação escola-comunidade.

Num primeiro momento, tentamos conhecer o tipo de relação escola-comunidade que vem se constituindo ao longo do século XX. Nesse longo processo, marcado pelo autoritarismo, mantêm-se ações contraditórias ora paternalistas, ora de controle social. Ainda hoje, estudos indicam a presença dos condicionantes do autoritarismo que dificultam a participação da comunidade na escola.

Num segundo momento, buscamos um tipo de teatro que possa contribuir para o pleno exercício da cidadania, colaborando para a conscientização e mobilização do coletivo escola-comunidade. Para essa investigação utilizamos três modelos de teatro na relação escola-comunidade: - o teatro elaborado na escola e apresentado para a comunidade; - o teatro elaborado na escola com a colaboração da comunidade; - o teatro realizado por um coletivo que congrega escola e comunidade.

Completa-se o ciclo de investigações com um Estudo de Caso de experiências teatrais realizadas na Escola Desdobrada João Francisco Garcez e NEI- Núcleo de Educação Infantil do Canto da Lagoa, ambas instituições pertencentes à rede pública municipal de Florianópolis. Identificamos, a partir de sua investigação, que pais, família, moradores do bairro, ex-alunos, diretora, professores se tornaram companheiros jogando, refletindo, decidindo, criando, construindo todas as etapas da elaboração de uma peça teatral.

Uma das conseqüências decorrentes desse movimento coletivo foi a mudança significativa que aconteceu na escola de ensino fundamental do bairro que encontrava-se em péssimas condições.

Nesse estudo se evidencia a possibilidade do teatro ser utilizado como meio de fortalecer as relações entre membros internos e externos à instituição educacional para que, juntos, possam alcançar conquistas políticas e pedagógicas vistas como prioritárias para o aumento da qualidade de ensino.

Palavras-chave: Teatro na relação escola-comunidade.

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ABSTRACT

The assumption developed in this dissertation is that the theatre could contribute to the school-community relationship. In the first instance, we try to know the sort of school-community relationship that has been constituted over the 20th century. In this long process, marked by authoritarianism, it sustains contradictory actions, sometimes paternalist, sometimes of social control. Until the present day, studies indicate the presence authoritarianism’s conditionings, which difficult the community’s participation in school. Secondly, we aim a type of theatre that can contribute to the full-blown exercise of citizenship, co-operating to lead consciousness and mobilization of the school-community collectivity. To this investigation, we use three models of theatre in the school-community relation: - the theatre elaborated at school and presented to the community; - the theatre elaborated at school with community’s collaboration; - the theatre produced by a collective congregated by school and community. We complete the investigations’ cycle with a Case Study of theatrical experience performed at “Escola Desdobrada João Francisco Garcez” (School João Francisco Garcez) and “NEI – Núcleo de Educação Infantil” (Nursery School) of Canto da Lagoa, both institutions belonging to the public municipal network of Florianópolis. We identify, through this investigation, that parents, family, neighborhood, ex-students, principal and teachers became fellows playing, reflecting, deciding, creating and building all the elaboration’s stages of a theatre play. One of the consequences originated from this collective movement was the meaningful change that happened at the elementary school of the neighborhood, which was in really bad conditions. In this study, it becomes evident the possibility to use the theatre as a way to strengthen the relations between internal and external members of the educational institution, in order to, together, get political and pedagogical conquests seen as priorities to the increase in teaching’s quality.

Key-words: Theatre in the school-community relation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 08

CAPÍTULO 1: A RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE................................................. 17 1.1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 17

1.2 A RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE NAS CORRENTES EDUCACIONAIS....... 18 1.2.1 Escola Tradicional ........................................................................................................... 19 1.2.2 Escola Nova..................................................................................................................... 20 1.2.2.1 A relação escola-comunidade na Escola Nova............................................................. 23 1.2.3 Pedagogia Tecnicista ....................................................................................................... 24 1.2.3.1 A relação escola-comunidade na Pedagogia Tecnicista ............................................... 25 1.2.4 Pedagogia Libertadora e sua ligação intrínseca com a relação escola-comunidade........ 26

1.3 CAMINHOS DA RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE............................................... 28

1.4 PERSPECTIVAS ATUAIS DA RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE........................ 30

1.5 ENTRAVES PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA RELAÇÃO MAIS DEMOCRÁTICA ................................................................................................................... 32

CAPÍTULO 2: EM BUSCA DE UMA PRÁTICA TEATRAL QUE CONTRIBUA PARA O PLENO EXERCÍCIO DA CIDADANIA ........................................................... 37

2.1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 37

2.2 O TEATRO ELABORADO NA ESCOLA E APRESENTADO PARA A COMUNIDADE ...................................................................................................................... 38 2.2.1 Origens do teatro elaborado na escola e apresentado para a comunidade....................... 39 2.2.2 O jogo e a democratização do acesso ao fazer teatral ..................................................... 43 2.2.3 O Jogo Teatral como experiência artística ..................................................................... 44 2.2.4 A comunidade como platéia ........................................................................................... 48

2.3 O TEATRO ELABORADO NA ESCOLA E APRESENTADO COM A COLABORAÇÃO DA COMUNIDADE ................................................................................ 49 2.3.1 Origens da colaboração da comunidade na prática teatral ............................................. 50 2.3.2 Teatro, festa e colaboração como avanço na relação entre escola e comunidade .......... 51

2.4 O TEATRO QUE É REALIZADO POR UM COLETIVO QUE CONGREGA ESCOLA E COMUNIDADE ................................................................................................................... 54 2.4.1 Augusto Boal e Paulo Freire: caminhos entrelaçados por uma ideologia ..................... 55

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2.4.2 O método de Boal: exercícios, jogos e técnicas para devolver a “ação ao povo” ......... 57 2.4.3 A contribuição de Freire para práticas teatrais da escola com a comunidade ................. 60

2.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAPÍTULO .................................................................... 64

CAPÍTULO 3: ANÁLISE DAS EXPERIÊNCIAS DESENVOLVIDAS NA ESCOLA DESDOBRADA MUNICIPAL JOÃO FRANCISCO GARCEZ E NO NEI CANTO DA LAGOA............................................................................................................................. 69

3.1 TEATRO NA ESCOLA DO CANTO: O INÍCIO DA PESQUISA ................................ 69

3.2 O CONTEXTO DA ESCOLA ........................................................................................... 73

3.3 AS EXPERIÊNCIAS ......................................................................................................... 76 3.3.1 Uma história da Ilha ...................................................................................................... 76 3.3.2 Teatro da festa junina: casamento caipira..................................................................... 85

3.4 ANÁLISE DAS EXPERIÊNCIAS..................................................................................... 88 3.4.1 O teatro elaborado no NEI e apresentado para a comunidade do Canto da Lagoa ......... 88 3.4.2 O teatro elaborado no NEI com a colaboração da comunidade do Canto da Lagoa ....... 93 3.4.3 O teatro realizado por um coletivo que congrega o NEI e a comunidade ....................... 97

3.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAPÍTULO..................................................................... 99

CONCLUSÃO....................................................................................................................... 102

REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 108

ANEXOS ............................................................................................................................... 112

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INTRODUÇÃO

Durante o período de 1985 a 2004 trabalhei como professora de Artes na rede pública

estadual de Santa Catarina. Essa experiência não esteve limitada a uma escola, foram vários

estabelecimentos de ensino, em várias cidades do estado. Nesse período as experiências

teatrais que presenciei nas escolas foram elaboradas por professores e estudantes. O modo de

realizar uma atividade teatral, somente com membros internos à instituição educacional,

sempre foi uma prática comum a todas as escolas em que trabalhei. Em 2004, fazendo a

disciplina de mestrado Teatro para o desenvolvimento com a Prof. Dra. Márcia Pompeo

Nogueira, da UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina, [eu e os demais colegas da

turma] fomos convidados a participar do evento Abraço a Mãe Conceição. Esse evento

acontece no Centrinho da Lagoa da Conceição, bairro localizado no município de

Florianópolis. No dia desse evento, que aconteceria no sábado, próximo ao dia das mães,

entre as atividades costumeiras seria feito uma apresentação teatral. Através dessa

apresentação seriam apontados os problemas da poluição da Lagoa da Conceição. Em março

desse ano, nós, alunos do mestrado em parceria com os alunos da graduação do Centro de

Artes da UDESC, IV Estágio da disciplina Teatro Comunidade, também sob a orientação de

Nogueira, começamos a nos preparar para o que chamamos Projeto Abraçando. Nosso

propósito nesse projeto era fazer oficinas teatrais em várias comunidades ligadas a Bacia da

lagoa. Através dessa oficina tentaríamos identificar as particularidades dos problemas

causados pela poluição nas várias localidades que estão ligadas à lagoa. Escolhemos [eu e

Manoela Galdeano Rangel, aluna da graduação] desenvolver a oficina com um grupo de

adultos na Escola Desdobrada Municipal João Francisco Garcez, conhecida no bairro Canto

da Lagoa como Escola do Canto. A escolha de fazermos uma oficina com adultos surgiu da

oportunidade de realizar um trabalho diferente, já que tínhamos [eu e Manoela] alguma

experiência no trabalho teatral com crianças e adolescentes, mas muito pouco contato com um

grupo mais maduro. Num primeiro momento, a minha impressão era de que a escola cederia

uma sala de aula para ser desenvolvido o trabalho com pessoas que viviam no bairro. Como

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não tínhamos muito tempo para desenvolver as oficinas, Nogueira contactou a diretora da

escola Marilde Juçara Fonseca e esta organizou um grupo para a atividade. Iniciamos o

primeiro contato com a diretora fazendo uma visita à escola e ficamos sabendo que as

pessoas que participariam da experiência teatral eram os pais dos alunos, os quais tinham sido

convidados através de bilhetes que as crianças levaram para casa. Fiquei preocupada, pois

com a experiência que tinha, sabia que muitas vezes os pais, distanciados das atividades

realizadas na escola, não chegavam a ler os recados vindos da instituição e tive receio do

grupo não se formar. A diretora garantiu que a comunicação com os pais através de bilhetes

era um meio utilizado com freqüência na escola. No dia do primeiro encontro, lá estavam

nove mulheres. Todas tinham afinidade com a diretora, a qual também estava presente para a

prática teatral. A partir desse dia comecei a observar, mais atentamente, a relação que existia

entre aquelas mulheres. Com o passar dos encontros, fui percebendo que a escola não estava

apenas cedendo um espaço para o grupo fazer a oficina teatral, aquele era mais um momento

em que escola e comunidade1 estavam compartilhando a discussão de um tema que dizia

respeito a todos.

A descoberta de que foram realizadas várias experiências teatrais entre membros

internos e externos da escola, antes desse encontro, foi aguçando minha curiosidade sobre o

tipo de relação que existia entre escola e comunidade. Havia proximidade entre as pessoas,

respeito às opiniões de todos os participantes, e a diretora dividia o espaço como mais um

membro do grupo. É a partir dessas observações que surge a hipótese do teatro ser utilizado

como meio de contribuir para a relação da escola com a comunidade.

A pesquisa bibliografia foi o primeiro passo para compreender como a relação escola-

comunidade tem se efetivado de fato nas escolas públicas. Tentamos2, então, encontrar

algumas resposta para essa questão. A pesquisa bibliográfica nos mostra que a relação escola-

comunidade não é assunto novo, há muito tempo essa questão vem sendo proposta sob

diversos pretextos. No primeiro capítulo, apresentamos quatro correntes pedagógicas e sua

tentativa de lidar com essa relação: Escola Tradicional; Escola Nova; Pedagogia Tecnicista;

1 O significado de “comunidade” no âmbito dessa pesquisa é sustentado pelo pensamento de Paro (1995, 2001). Esse autor não utiliza “comunidade” como um termo sociológico rigoroso. Para ele “comunidade” significa o “conjunto de pais/família que, ou por residirem no âmbito regional servido por determinada escola, ou por terem fácil acesso físico a ela, são usuários, efetivos ou potenciais, de seus serviços” (Paro, 2001, 1995, p. 15). 2 Quando utilizo a primeira pessoa do plural quero evidenciar a participação da orientadora dessa pesquisa Prof Dra. Márcia Pompeo Nogueira, que sempre esteve atenta as minhas colocações e preocupações, colaborando nas observações, indicando caminhos para pesquisa. Por esse motivo, com exceção da descrição do episódio do Projeto Abraçando e da coleta de dados na pesquisa de campo, o discurso mantido durante essa pesquisa é feito com a utilização da primeira pessoa do plural.

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e Pedagogia Libertadora. O que constatamos, nesse percurso, é que a aproximação dos pais

com a escola se fez de acordo com a visão que os teóricos da educação tinham da população

menos favorecida. Para alguns deles, a população possuía uma “cultura inferior”, criando um

sentido preconceituoso para a participação: ora paternalista, ora de controle (SPÓSITO, 1993,

2002). Somente a Pedagogia Libertadora, proposta por Paulo Freire (1997, 1999, 2003),

trouxe um novo entendimento de como poderia ser estabelecida uma relação escola-

comunidade mais democrática. Freire demonstra seu comprometimento com as pessoas da

população, volta-se para elas com humildade, ouvindo, conversando, pois entende que os

dois lados, escola e comunidade, têm coisas importantes para serem ditas. Porém, a teoria

freireana não alcança as escolas de forma globalizada. Mesmo depois da implantação da

gestão democrática nas escolas públicas, persistem alguns condicionantes internos e externos

à participação popular (PARO, 1995, 2001). Esses condicionantes dizem respeito à hierarquia

autoritária nos estabelecimentos de ensino, na figura de um diretor que não consegue construir

relações mais democráticas no cotidiano da escola; às inúmeras dificuldades encontradas

pelos educadores no trabalho diário escolar, como a falta de: material pedagógico, espaço

físico, remuneração adequada, levando-os a conceber princípios democráticos somente na

teoria; à dificuldade em definir interesses coletivos entre escola e comunidade o que

conseqüentemente dificulta a elaboração do Projeto Político Pedagógico da unidade escolar;

escolas que se fecham às solicitações da comunidade. Acreditamos que a superação da

situação vivida pelas escolas públicas depende, em grande parte, do aumento do exercício

democrático tanto na sala de aula, no cotidiano da escola, como nas relações que a escola

mantém com as pessoas que vivem no seu entorno. Um movimento entre escola e

comunidade com princípios mais democráticos facilitaria a definição das prioridades e por

força de uma ação coletiva poderia haver mais pressão junto aos órgãos públicos exigindo que

se cumprisse aquilo que é direito de todo cidadão, uma educação de qualidade. Assim, é

preciso que a “abertura dos portões e muros escolares” (SPÓSITO, 2002) inclua propostas de

trabalho que aproximem escola e comunidade no sentido de estabelecer um diálogo sem

imposições hierárquicas nem paternalistas; criar um espaço de discussão mais amplo,

paralelo aos canais representativos, em que possam ser estabelecidos os “interesses coletivos”

do grupo; e fortalecer a comunicação entre as pessoas que vivem no entorno da escola

respeitando suas crenças, expressões e manifestações.

Diante desse contexto, imaginamos que o teatro poderia, não só, ser um meio para

aproximar escola e comunidade, mas poderia contribuir para o que Gadotti (2001) e Romão

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(2000) identificam como pleno exercício da cidadania: a conscientização e mobilização dos

cidadãos para a conquista dos direitos políticos, civis e sociais.

Assim, chegamos nas questões centrais da pesquisa: seria possível definir formas de

aproximação entre escola e comunidade através do teatro? Dentre essas formas de

aproximação haveria um tipo de prática teatral que favoreceria a comunhão de interesses da

escola e da comunidade? Essa prática teatral poderia contribuir enquanto exercício de

democracia, fortalecendo a voz da comunidade e seu poder de reivindicação de uma melhor

qualidade de ensino? Na busca de uma resposta para essas questões, desenvolvemos o

segundo capítulo.

A estratégia utilizada para composição do segundo capítulo foi a organização de

modelos que indicam diferentes maneiras utilizadas para elaborar práticas teatrais na relação

escola-comunidade. Temos então, num primeiro modelo, o teatro elaborado na escola e

apresentado para a comunidade, num segundo modelo, o teatro elaborado na escola com a

colaboração da comunidade e, por último, o teatro que congrega um coletivo escola e

comunidade. Com esses modelos apresentamos uma reflexão sobre a trajetória, ou pistas da

trajetória, de algumas formas usuais de elaboração de práticas teatrais na relação escola-

comunidade. Em cada modelo, apontamos, também, possíveis avanços decorrentes dessa

trajetória. Para evidenciarmos esses avanços apresentamos teorias propostas por vários

autores.

Viola Spolin (1999, 2001) aparece no primeiro modelo como referência sobre o uso do

Jogo Teatral como metodologia que facilita o envolvimento de não-atores, crianças, jovens

ou adultos, em atividades teatrais. Spolin acreditava que todas as pessoas são capazes de atuar

e que, através do jogo, o sujeito pode exercitar a cooperação, a troca de informações,

tomando decisões individuais e coletivas, enquanto se intera da linguagem teatral. Os Jogos

Teatrais também são um meio de construção de processos teatrais que tanto podem ser

transformados em espetáculo, sendo apresentado para a comunidade, como podem servir para

a construção de processos que não visam à produção de uma peça teatral. A questão que

deixamos em aberto nesse modelo é: de que maneira poderiam ser incluídas questões de

interesse da comunidade nas atividades teatrais? Um processo baseado no jogo pode incluir

mais facilmente elementos da cultura local, ou dados sobre problemas da escola e da

comunidade?

Passamos, na seqüência, para o segundo modelo. Destacamos ali a colaboração da

família e vizinhos durante um processo teatral, sendo essa uma maneira de aproximar escola e

comunidade. As festas surgem nesse modelo como um momento de integração entre escola e

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comunidade em que o teatro pode representar parte da festa. Giacalone (1998) define

elementos que subsidiam essa reflexão. Jellicoe (1987) reforça o segundo modelo com a idéia

de avanços no tipo de colaboração o qual pode ser promovido no processo teatral. A questão

que desponta nesse modelo é a maneira como são abertas as possibilidades de colaboração da

comunidade em processos teatrais realizados em estabelecimentos de ensino poderia

modificar a relação entre escola e comunidade?

O terceiro modelo traz indicações de uma aproximação mais intensa da comunidade

com a atividade teatral realizada na escola. Isso porque esse modelo sugere que pais, família e

vizinhos do bairro estejam envolvidos com a própria criação do processo teatral. Membros

internos e externos à unidade educacional podem, a partir dessa proposta, dividir a

responsabilidade na construção de projetos teatrais. Utilizamos duas teorias para sustentar a

discussão sobre essa possibilidade: Teatro do Oprimido de Augusto Boal (1988a), Pedagogia

do Oprimido de Paulo Freire (2003). Esses dois autores comungam com a idéia de que é

preciso oferecer às pessoas instrumentos que as auxiliem na conscientização de que somos

sujeitos políticos e temos responsabilidade na construção de uma sociedade melhor. Boal

pensa que o homem comum, o trabalhador, de espectador passivo pode se transformar em

protagonista da cena teatral, reconhecendo-se como um sujeito político que reflete sobre a sua

atuação no contexto em que vive. Em Freire, encontramos o método dialógico voltado para

uma educação humanizadora. Esse autor também propõe a abertura de espaços em que as

pessoas possam refletir sobre seus problemas de uma maneira conscientizadora. As estratégias

boalina e freireana para desenvolver uma atividade com um grupo ou moradores de uma

localidade podem ser combinadas, pois possuem uma estreita ligação em seus propósitos. O

objetivo desses autores é respeitar a cultura local, levando para o centro das discussões

problemas identificados pelos moradores de determinada localidade ou grupo. Para eles,

observa-se o modo de pensar das pessoas sobre seus problemas e juntos educador e educando

ou artistas, não-atores e coordenadores de projetos teatrais refletem sobre as possíveis

soluções. O que nos instiga nesse modelo de teatro na relação escola-comunidade é como no

cotidiano de uma instituição de ensino seria possível desenvolver práticas teatrais nas quais

pessoas comuns, não atores, trabalhadores de várias áreas se encontrem para dialogar sobre

suas reais necessidades, apresentando idéias, opinando e decidindo sobre questões que dizem

respeito ao coletivo escola-comunidade? A história viva dessas pessoas poderia ser utilizada

como matéria de interesse comum tanto para a escola como para a comunidade?

O terceiro capítulo é o momento de encontrarmos os conceitos reunidos nos dois

capítulos anteriores com as experiências teatrais realizadas no Canto da Lagoa. As

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experiências que foram selecionadas para a análise, propriamente dita, referem-se a um

período em que se inicia o envolvimento dos pais na elaboração de atividades teatrais no NEI

Núcleo de Educação Infantil – Canto da Lagoa3. Os processos selecionados foram a peça

teatral Uma história da Ilha e a peça teatral Teatro da festa junina: casamento caipira. Essas

peças foram desenvolvidas no NEI, no período de 1994 a 1995. Embora elas sejam destacadas

como centro da análise sobre um tipo de teatro que pode contribuir para a relação escola-

comunidade, a oficina teatral realizada na Escola do Canto no Projeto Abraçando é

evidenciada nesse capítulo como uma experiência que ajudou na formulação das primeiras

observações e impressões de nossa hipótese.

Além das teorias do primeiro e segundo capítulos a obra de Marilde Juçara Fonseca:

A participação da família na instituição de Educação Infantil, limites e possibilidades

(FONSECA, PPG/UFSC-Dis, 2000) serve como guia para construção do terceiro capítulo.

Essa autora analisa, nessa obra, a participação dos pais no NEI, fornecendo dados sobre o

contexto da escola e sobre as formas de participação dos pais na escola, comentando, ainda

que muito sucintamente, sobre a experiência teatral Uma história da Ilha. É, também, no

terceiro capítulo que apresentamos os resultados obtidos nas entrevistas realizadas com as

pessoas ligadas às experiências teatrais. Foram feitas entrevistas com a diretora Marilde

Juçara Fonseca4, pais, mães, coordenadores de processos teatrais e pessoas da comunidade

que estiveram envolvidos com as experiências teatrais. Nas entrevistas, foi possível perceber

como se formou um coletivo disposto a lutar para transformar uma escola multisseriada da

rede estadual de ensino de Santa Catarina, que contava com apenas nove alunos inscritos e

estava em péssimas condições, numa escola de qualidade. Pais e professores unidos

enfrentaram diversas reuniões nas Secretarias de Educação que culminaram na doação da

escolinha estadual para a administração pública municipal em 1995. Essas conquistas

marcam a história das instituições educacionais do Canto da Lagoa.

O Estudo de Caso foi o método mais adequado que encontramos para investigar um

tipo de teatro capaz de contribuir para a relação da escola e comunidade. Isso porque a

problemática inicial dessa pesquisa surge a partir da observação de uma atividade que

queríamos investigar, e esse método, enquanto uma análise qualitativa, ajuda a responder o

“como” e o “porquê” o teatro no NEI e Escola do Canto contribui para as conquistas do 3 Tanto o NEI como a Escola do Canto são instituições educacionais da rede pública municipal de Florianópolis, e ficam próximas uma da outra. Essas instituições possuem uma ligação com o histórico da relação do teatro realizado com escola e comunidade. 4 Desde 2005 Fonseca não é mais diretora da Escola do Canto, mas ainda trabalha nesse estabelecimento de ensino.

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coletivo escola-comunidade. A ordem da investigação fica definida nessa seqüência: no

primeiro capítulo, apresentamos a pesquisa bibliográfica a respeito da relação escola

comunidade, no segundo capítulo, apresentamos uma pesquisa bibliográfica a respeito do

tipo de teatro que pode favorecer o encontro da escola e da comunidade fazendo com que esse

encontro fortaleça as ações do coletivo para o pleno exercício da cidadania e, por fim,

apresentamos, no terceiro capítulo a descrição e a análise do objeto selecionado para o

Estudo de Caso: as peças teatrais Uma história da Ilha e Teatro da festa junina. O que

obtivemos a partir desse material é “...uma seqüência lógica que conecta os dados empíricos

às questões iniciais de estudo da pesquisa e, por fim, às suas conclusões” (YIN, 1989, p.27

apud BRESSAN, 2000).

Já dissemos anteriormente que as duas peças teatrais selecionadas para o Estudo de

Caso indicam o início do envolvimento da comunidade em atividades teatrais no NEI e Escola

do Canto. Por esse motivo, escolhemos compreender como esse processo foi construído. Isso

daria margem para entendermos o tipo de relação que ainda hoje se percebe entre os membros

internos e externos da Escola do Canto.

Sobre a condução do Estudo de Caso, utilizamos entrevistas, análise de documentos,

análise de dados arquivados e observação direta.

Utilizei entrevistas semi-estruturadas, para melhor explorar as informações dos

entrevistados. Dessa forma, pude estimular o fluxo natural de informações garantindo um

clima de confiança junto ao entrevistado, para que esse se sentisse à vontade para se

expressar livremente, com o apoio de um roteiro flexível (LÜDKE,1986). Iniciei as

entrevistas em agosto de 2005 e no decorrer da pesquisa fui buscando mais informações,

fazendo contatos, indo até a casa dos entrevistados. Entrevistei, no total, treze pessoas, das

quais dez foram indicadas por Fonseca. Uma dificuldade estava no fato das experiências

terem acontecido há muito tempo. Por esse motivo muitas pessoas que estiveram envolvidas

com as experiências não tinham mais contato com a escola, tanto professores como pais que

não moram mais no bairro, o que tornou impossível o contato com tais pessoas. Alguns

entrevistados não puderam nos dar informações precisas, pois confundiam os trabalhos

teatrais nos quais haviam participado.

Apesar das adversidades encontradas na pesquisa de campo a maioria dos

entrevistados me recebeu em casa e todos estavam abertos para as questões que levantei. Foi

um dos melhores momentos do trabalho de pesquisa. Fiz um acordo com os pais e pessoas

que vivem no bairro quanto à preservação de suas identidades no momento de expor seus

comentários na dissertação. Por isso utilizei nomes fictícios para identificar essas pessoas na

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pesquisa. Não foi utilizado o mesmo artifício para os profissionais que estiveram envolvidos

nos processos teatrais, todos foram apresentados com seus nomes originais. Porque no folder

da apresentação teatral esses profissionais são citados com seus nomes originais. As únicas

exceções aconteceram com Lecinho Vieira e Reonaldo Manoel Gonçalves, ambos aparecem

com seus nomes originais. Lecinho não era profissional das instituições educacionais e não foi

entrevistado, mas é citado pelos entrevistados e aparece em destaque no folder como um dos

responsáveis pela direção da peça Uma história da Ilha. Reonaldo Manoel Gonçalves, o

Nado, que não era pai, nem morador do bairro, nem membro da escola. Era um amigo que

atuou como um autêntico profissional dialógico.

No Estudo de Caso, também está presente o material encontrado nos arquivos da

escola, os quais foram redigitados e fotocopiados estão apresentados nos ANEXOS A, B, C.

Não consegui fotos com boa qualidade para colocar no trabalho. As imagens de uma fita de

vídeo do ensaio da peça Teatro na festa junina, comentada no terceiro capítulo, não

permitiram produzir boas fotos. Todas as fotografias que foram tiradas no dia da apresentação

de Uma história da Ilha apresentaram problemas por causa de um defeito na máquina

fotográfica do NEI. Diz Fonseca que não havia naquela época as facilidades tecnológicas tão

acessíveis nos dias de hoje. Os poucos registros das experiências justificam-se diante da

hipótese de que não havia uma grande expectativa com o resultado que seria apresentado.

Naquele momento, o que importava era a experimentação, a descoberta diante da nova

possibilidade que o grupo estava criando. A apresentação foi conseqüência de um trabalho

que foi crescendo no decorrer dessas experimentações e o resultado final foi muito maior do

que o esperado.

A observação direta, que é a visita ao local de estudo, quando o observador faz a

coleta de evidências para o Estudo de Caso, aconteceu em várias ocasiões (BRESSAN, 2000).

Durante a oficina do Projeto Abraçando, no início e no fim das atividades, eu sempre

conversava com as pessoas e observava o movimento que acontecia na escola. Nossos

encontros eram às 7 horas da noite, não havia aula com os alunos nesse período, mas muitos

moradores do bairro faziam atividades ali: curso de capoeira, estudo do Evangelho, alguns

meninos jogavam vôlei na quadra de esportes. No Projeto Bruxas5, desenvolvido no período

de agosto a dezembro de 2004, pelas alunas da graduação em Cênicas da UDESC: Mariana 5 O Projeto Bruxas surgiu em decorrência do entusiasmo das pessoas que participaram do Projeto Abraçando. O tema “bruxas” foi uma escolha das pessoas que desejavam fazer a atividade teatral. Esse processo não teve uma apresentação pública, e o seu objetivo central foi encontrar a bruxa que cada pessoa guarda dentro de si. Os participantes trouxeram objetos pessoais significativos, roupas, lembranças, e cada um elaborou, ao longo do processo, seu personagem. Trata-se de um projeto fruto da disciplina Estágio V- Teatro Comunidade, sob a supervisão da Prof. Dra. Maria Brígida Miranda.

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Andrade Godinho e Mauren Kelli Oltramari, a observação direta foi constante, pois observei

as atividades, com um olhar distanciado, registrando o que via. Nos encontros eu chegava

antes e ficava conversando com as mães e as crianças que as acompanhavam. Como algumas

entrevistas aconteceram na Escola do Canto, estive várias vezes nesse estabelecimento de

ensino e passava algum tempo andando pela escola, conversando com a merendeira, com as

professoras na sala dos professores, observando as crianças. Procurei, durante o terceiro

capítulo, registrar um pouco das evidências e impressões que tive durante a observação direta.

A observação participante, segundo Bressan (2000), é “um tipo especial de

observação, na qual o observador deixa de ser um membro passivo e pode assumir vários

papéis na situação do caso em estudo e pode participar e influenciar nos eventos em estudo”.

Esse tipo de observação aconteceu por ocasião da minha atuação como coordenadora da

oficina do Projeto Abraçando, junto com Manoela. Naquele momento, enquanto

coordenadora, pude observar algumas situações que em outras circunstâncias seria impossível

perceber. Mas essa experiência, assim como o Projeto Bruxas, não estão entre as práticas

teatrais analisadas no Estudo de Caso, pois estenderia demais o trabalho desta dissertação.

Para finalizar, a idéia central deste trabalho gira em torno da hipótese de que

existe um tipo de teatro que pode promover um exercício democrático entre seus

participantes, membros internos e externos dos estabelecimentos de ensino, sem deixar de

ser uma proposta artística, dando voz à comunidade para que possam discutir suas

prioridades e vislumbrar conquistas na qualidade de ensino. Diante da situação precária em

que se encontram as instituições de ensino, a abertura dos muros da escola para o encontro

teatral com a comunidade é mais uma proposta para a construção da escola que queremos.

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CAPÍTULO 1 - A RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE

1.1 INTRODUÇÃO

Uma idéia corrente, nos dias atuais, é que todas as crianças e adolescentes têm direito

ao ensino escolar. Compreendemos como ensino escolar o espaço de apropriação, de um

saber historicamente acumulado. Como conseqüência de uma luta histórica para a ampliação

do acesso ao saber, hoje, a grande maioria das crianças brasileiras tem a possibilidade de

freqüentar uma escola.

A pesquisa realizada pela Fundação Carlos Chagas revela que “a esmagadora maioria

da população escolar brasileira não domina nem mesmo 50% (48,3 % é a média nacional)

dos conteúdos que se espera que tenham aprendido nas escolas” (OLIVEIRA, 1994, p.4).

Isso se deve, em grande parte, aos problemas presentes nas escolas. Problemas esses que se

tem arrastado por décadas1. Podemos citar entre eles: a precariedade do espaço físico, a falta

de professores, a defasagem nos equipamentos e instrumentos educacionais, os baixos salários

dos educadores e a falta de segurança, tais aspectos contribuem para que o ensino dirigido às

classes menos favorecidas torne-se ineficiente.

A universalização do saber é considerada algo desejável do ponto de vista social, no

sentido de oferecer melhoria da qualidade de vida da população. Não só especialistas em

educação, mas também os pais, conferem à educação escolar o papel de efetivar a melhoria

da qualidade de vida. Isso pode ser comprovado pela quantidade de pais que todos os anos

fazem filas para matricular seus filhos, principalmente nas grandes cidades, onde a

concentração de crianças é maior.

1 Sobre esse assunto indicamos RIBEIRO, 1990; TEXEIRA,1976; GADOTTI e ROMÃO, 2001; GADOTTI, 2000; LIBÂNEO, 1985; PINTO, 1986.

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Como muitos especialistas e pais, acreditamos que não basta às crianças ocuparem

um banco escolar, seria preciso que o ensino a elas oferecido trouxesse, também, uma

oportunidade digna de acesso ao saber historicamente acumulado.

Uma das alternativas para a melhoria da qualidade de ensino é o aumento da

participação da sociedade civil nas decisões tomadas sobre a coisa pública como meio de

minimizar os problemas sociais. Dessa forma, a aproximação entre escola e comunidade

tem sido vista como uma fértil contribuição para o aumento das conquistas políticas e

pedagógicas nas instituições de ensino. O princípio desse pensamento está na idéia de uma

participação que amplie o direito de decisão dos sujeitos envolvidos no processo educacional:

pais/família, alunos, professores, funcionários e direção, permitindo sua atuação enquanto

sujeitos políticos. Essa alternativa parte da promoção de uma escola mais aberta, que receba

a comunidade não apenas para repassar aos pais as queixas que se tem sobre os filhos, mas

que juntos, membros internos e externos da instituição, possam decidir sobre os destinos da

educação realizada em cada estabelecimento.

Entretanto a participação dos pais na escola não é recente. Entender como essa relação

tem sido constituída e como de fato ela se efetiva na atualidade é o foco de nossa investigação

nesse primeiro capítulo.

1.2 A RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE NAS CORRENTES EDUCACIONAIS

O século XX foi cenário de inúmeras experiências na área da educação. Isso porque

uma sociedade em mudança exige também mudanças de paradigmas educacionais. Nesse

sentido, a história revela o nascimento de várias correntes educacionais como resposta aos

anseios políticos, econômicos e intelectuais de grupos diversos, e a relação da escola com a

comunidade foi influenciada por esse contexto.

Alguns autores brasileiros classificaram em correntes educacionais as experiências

realizadas no âmbito da educação. Apesar de concordarmos com José Carlos Libâneo quando

diz que “as tendências [educacionais] não aparecem em sua forma pura, nem sempre são

mutuamente exclusivas, nem conseguem captar toda a riqueza da prática concreta” (1985, p.

20), selecionamos, como ele também o fez, algumas correntes educacionais para nortear

nossa análise da relação escola-comunidade. Essas correntes pedagógicas nos permitem

observar os diferentes conceitos pedagógicos assumidos por cada tendência educacional e

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de que forma esses conceitos influenciaram a relação entre a escola e a comunidade.

Destacamos, assim, as seguintes tendências pedagógicas:

Pedagogia Tradicional ou Escola Tradicional

Pedagogia Renovada Progressivista ou Escola Nova

Pedagogia Tecnicista

Pedagogia Libertadora

1.2.1 Escola Tradicional

Enquanto alguns dos nossos vizinhos na América Latina já tinham criado sistemas de

educação pública durante o século XIX, a idéia de democratização do ensino no Brasil

começa a se expandir somente nas primeiras décadas do século XX. A monarquia mantém-se

no poder, através de artimanhas políticas, até 1889, quando, sob o patrocínio intelectual do

liberalismo, o Brasil se torna um país republicano. Segue então um período de arranjos e

contradições que se estende pela Primeira República2 (PATTO, 1996 e PINTO, 1986).

Durante o período da Primeira República, é a Escola Tradicional, classista e acadêmica,

responsável pela formação da elite, que terá evidência.

A tendência Tradicional de educação se caracterizava por acentuar o ensino

literário, com base em modelos que representam o que de mais alto a humanidade já atingiu

em realizações artísticas e científicas. Dessa forma, a Escola Tradicional requisita

receptividade e passividade dos alunos, e o professor é a figura central no processo

educacional. Outra característica marcante da Escola Tradicional é o fato de que os conteúdos,

os procedimentos didáticos e a relação professor-aluno não têm “nenhuma relação com o

cotidiano do aluno e muito menos com as realidades sociais.” (LIBÂNEO, 1985, p.22). Nesse

sentido Spósito afirma:

Ao mesmo tempo que se instituiu como meio especializado para a transmissão de parcela do conhecimento sistematizado e da cultura da sociedade, a escola foi concebida pelas teorias pedagógicas como meio protegido sem interferência do mundo externo, consubstanciado na idéia de ‘clausura’. (SPÓSITO,1993, p.165)

2 A Primeira República corresponde o período de 1989 a 1930.

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Nessa forma Tradicional de escola, a relação escola-comunidade é praticamente

inexistente. Como diz Di Giorgi, o ideal é afastar a criança da influência da família e da

comunidade. Desconfia-se da família, na medida em que o calor humano nela presente não

permite que a criança avance no sentido da autonomia moral. Os pequenos dramas

domésticos, as brigas, reconciliações, etc., são vistos como enormes entraves para que cada

um possa se aproximar da grandeza humana, da essência do Homem, que constitui objetivo

maior desse tipo de educação (DI GIORGI, 1986, p.20).

Entre os membros da Igreja Católica, tida como religião oficial no Brasil, incluíam-se

muitos dos defensores desse tipo de pedagogia. Incentivavam os métodos aplicados na Escola

Tradicional, divulgando orientações para que os pais educassem seus filhos com base nessa

pedagogia.

É preciso que a mãe controle o contato dos filhos com o mundo (...) Há um conjunto extenso e repetitivo de orientações práticas cujo objetivo é guiar as mães para que mantenham uma autoridade inquestionável, pregando o dar ordens com firmeza de modo a “exigir a obediência pronta”, o corrigir todos os “pequenos defeitos”, não perdoa de imediato se a criança erra, mesmo se houver arrependimento, sendo necessário esperar o “fruto da correção”, o não elogiá-lo a não ser por ações de extrema correção e o não dar explicações, pois a ordem fica “acabada depois [que] se começa um diálogo.” (Revista Família Cristã apud BITENCOURT; IOKOI, 1996, p.192)3

A Escola Tradicional, com o auxílio da Igreja, incentivava a família a manter um

regime rigoroso de obediência às regras e à hierarquia social. Sob a ótica tradicionalista, a

ordem social só podia ser mantida através do autoritarismo, como forma de controlar os

impulsos da criança. Essa influência marcou gerações, e, ainda hoje, podemos encontrar

pessoas que tomam alguns dos princípios rígidos da Escola Tradicional como prática ideal

para a educação de jovens e crianças.

1.2.2 Escola Nova

Até 1930, o grosso da população brasileira encontrava-se excluído da escola. A partir

dessa data, uma pressão de vários segmentos da sociedade projeta, no atendimento escolar e

particularmente na “erradicação” do analfabetismo, um meio de colocar o Brasil mais

próximo do mundo desenvolvido. Dentre as manifestações de apoio ao projeto de expansão 3 Texto retirado de um exemplar da Revista Família Cristã que circulou em 1935.

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do ensino, um duplo interesse pode ser percebido: por um lado, a influência de grupos

populares exigindo escola para seus filhos. Por outro lado, havia o interesse dos coronéis

para ver aumentado o número de votantes, ampliando seu curral eleitoral. Ambos, grupos

populares e membros da hegemonia política da época, cada um a sua maneira, pareciam

compreender a democratização da educação como um instrumento político. Assim, cria-se um

forte movimento de “entusiasmo pela educação”. A Pedagogia da Escola Nova vem

responder a esse “entusiasmo”, tendo Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fernando de

Azevedo como alguns de seus maiores defensores. É nesse processo que se ergue a bandeira

da democratização da educação pública, gratuita e laica no Brasil.

Nascido em um momento histórico marcado por profundas convulsões sociais, o

movimento escolanovista não tinha como característica a uniformidade e idéias homogêneas.

Além de abrigar correntes que tinham pensamentos diversos4, o movimento escolanovista

teve vários representantes, e cada um deles possuía uma maneira particular de conceber a

educação, dentro de um quadro geral que era a oposição ao ensino Tradicional. Desse modo,

esse movimento sofreu transformações internas, mas é nesse período, primeiras décadas do

século XX, que a relação escola-comunidade começa a ganhar contornos mais definidos.

Para refletirmos sobre esse cenário, tomemos como referência o pensamento de Jonh

Dewey, teórico americano que influenciou profundamente o pensamento de renovadores da

educação no Brasil.

Dewey não acreditava que o homem sozinho pudesse alcançar a vida democrática5,

era preciso algum tipo de restrição externa. Isso porque entendia liberdade não como laissez-

4Além de Dewey que defendia o pragmatismo, Claperède defendia a educação funcional; Ferrière defendia a pedagogia reacionária e elitista era coordenador do Bureau Internacional dês Écoles Nouvelles, pregava que a direção do processo escolar fosse feita apenas pelos alunos com o objetivo de fazer surgirem “os chefes naturais”, os quais poderiam , então executar seu poder para, depois, melhor exercerem seu papel de mando na sociedade, enquanto os demais interiorizariam desde pequenos seu papel subalternos – pregava ele que a escola deveria funcionar como mecanismos de “seleção natural”; já Celestin Freinet defendia como centro de sua metodologia a questão do trabalho. Nesse cenário, havia também a influência dos movimentos que deram origem à Escola Nova como o Plano Dalton de Helena Parkhurst, Maria Montessori e a Pedagogia Montessori, Decroly e os centros de interesse e Roger Cousinet que defendia o jogo como base do Método Pedagógico Cousinet, estimulando o trabalho em grupo (DI GIORGI, 1986). 5 Cunha registra em seu artigo John Dewey: filosofia polítca e educação, o nascimento de uma concepção ambígua de democracia e liberdade dentro do movimento liberal. Diz Cunha “Dewey posiciona-se contra o velho liberalismo e a favor de políticas que incluam iniciativas governamentais reguladoras, a exemplo do que se encontrava em andamento sob o New Deal. Dewey considera que os velhos liberais não levaram em conta a necessidade dessas iniciativas por não perceberem que o problema da democracia não se resolve apenas por intermédio do sufrágio universal e do governo representativo. A democracia é muito mais do que um regime garantido por certos procedimentos formais, como se fosse um jogo que se ganha apenas por seguir as regras: “o problema da democracia faz-se o problema de uma forma de organização social, estendida a todas as áreas e modos de vida, em que as potencialidades dos indivíduos não somente estejam livres de constrangimento mecânico externo, mas sejam estimuladas e dirigidas” (DEWEY, 1970 apud CUNHA, 2001)

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faire, e, sim, como um imperativo moral, um projeto, uma experiência que deve ser levada

adiante a fim de construir uma sociedade mais socializada. Dewey se apóia na idéia de que

“Vida, experiência, aprendizagem – não se podem separar.” (DEWEY, 1978, p.16). Para ele,

a educação é uma ferramenta poderosa a serviço da democracia, e a escola um espaço

regulador, onde os indivíduos devem ter acesso ao conhecimento acumulado pela experiência

humana. Mas Dewey acreditava que nem todas as experiências vividas pelo homem são

válidas, algumas podem ser negativas. Dessa forma, a escola deve constituir-se como um

fator de “reconstrução social”, e as atividades devem ser organizadas para transformar a

escola numa sociedade em miniatura, preparando os alunos para a vida.

Em oposição aos princípios da Escola Tradicional, o interesse da criança é parte central

da teoria da Educação Nova. Em vez de impor os modelos a serem seguidos, em que o

aluno tem que se esforçar ao máximo para alcançar o gênio criador, como fazia a Escola

Tradicional, pelo pensamento de Dewey, a escola deveria estar livre de tais modelos.

Contudo isso não significa uma educação espontaneísta, na qual o aluno só faz o que quer

sem a interferência do adulto, mas uma educação que estimule a curiosidade e a sensibilidade

infantis. Por conta disso, era importante que o dia-a-dia dentro de uma escola renovada tivesse

várias atividades como desenhos, brincadeiras, trabalho em argila, teatro, jogos, excursões.

Essas atividades representam um dos três eixos básicos que deveriam sustentar a Educação

Nova. Além disso, havia o estímulo ao trabalho, incluindo aulas de marcenaria, corte e

costura, por exemplo, e o estudo propriamente dito (DI GIORGI, 1986).

No Brasil, Anísio Teixeira foi o grande divulgador das idéias de Dewey, mas essa não

foi a única corrente abraçada pelos nossos renovadores. Fernando de Azevedo e Lourenço

Filho desenvolveram, cada um a sua maneira, seus próprios conceitos sobre a Educação Nova.

Alguns fundamentos da Escola Tradicional foram mantidos por esses teóricos em meio a

teses propriamente reformistas, que eles defendiam. O autoritarismo é, no discurso de

Lourenço Filho, necessário para a sociedade.

A liberdade em excesso é a escravidão às paixões. Não será a liberdade no mundo futuro, como não o foi tempo nenhum. Demais o que a observação científica nos ensina, é que a educação, recurso pelo qual a sociedade se perpetua, tem de ser sempre, em grande parte, obra da autoridade. (LOURENÇO FILHO, 1974, p.115)

Outra contradição da educação renovada é que se por um lado defendia a

democratização do acesso a uma escola pública gratuita, laica e não classista, por outro

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passou a propor uma escola dual: uma escola para as elites e outra escola para as massas. Essa

proposta pode ser comprovada pelo Manifesto dos Pioneiros, documento que refletia os

ideais dos reformadores brasileiros. Como afirma Patto:

A brecha deixada pelo Manifesto [dos Pioneiros] ao preconizar o ensino profissionalizante, “de preferência manual”, aos trabalhadores braçais – criando uma evidente cisão no discurso democratizante que de um lado grifava a necessidade de distribuir o alunado pelas várias modalidades de ensino de acordo e somente de acordo com suas aptidões e de outro associava um tipo de ensino a uma classe social – (...) Tudo se passa, tanto no âmbito do discurso educacional como no da legislação, como se as faculdades e aptidões das classes trabalhadoras fossem inferiores e como se seus integrantes tivessem como vocação o trabalho braçal. (PATTO, 1996, p. 102)

1.2.2.1 A relação escola-comunidade na Escola Nova

A aproximação dos pais, família e comunidade aparece como necessária, nos

princípios da Escola Nova, a partir de 1919. As estratégias de aproximação comungam com

o projeto proposto pelos renovadores: um novo modelo na organização das escolas, mas

incluindo as concepções autoritárias. Sendo a escola um espaço para a “reconstrução social”,

e havendo duas vertentes educacionais explícitas no discurso escolanovista, somente as

famílias “sãs”, ou a elite, poderiam colaborar com a escola, enquanto as famílias das classes

menos favorecidas precisariam de ajuda (SPÓSITO, 1993).

Para os reformistas, o ensino das elites, a antiga escola secundária, não precisava da

promoção de canais que aproximassem escola e família. Considera-se a existência de uma

harmonia entre a proposta pedagógica da escola e os interesses dos pais desses alunos que

freqüentam a escola. O que equivale dizer, sob a ótica dos reformistas, é que a elite se

interessava pelo estudo de seus filhos, ao passo que as famílias pobres não tinham o mesmo

interesse. Dentro dessa perspectiva, “somente a escola para os pobres precisou ser redefinida,

tendo em vista sua abertura para a população.” (SPÓSITO, 2002, p.47)

A abertura da escola para a população acabou por promover “iniciativas sanitárias,

melhoria do nível de higiene e saúde dessas populações, e de educação moral e cívica –

despertar os pais para a necessidade de moralização dos costumes e hábitos de seus filhos.”

(SPÓSITO, 2002, p.47). Além disso, chegou a fazer parte do discurso dos reformadores a

idéia de educar os pais, através das crianças, sendo aqueles considerados desqualificados para

orientar seus filhos (FARIA FILHO, 2000).

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As APMs - Associações de Pais e Mestres são criadas ainda no início do movimento.

Essas associações são introduzidas para dar continuidade aos objetivos de “ver saneada a

sociedade brasileira, pela força do civismo e das campanhas de higienização6(...)” (SPOSITO,

1993, p.169). Pretendiam os pensadores da Escola Nova elevar o nível cultural da população,

por eles considerada insuficiente.

1.2.3 Pedagogia Tecnicista

A escola, na década de 1970, reflete as medidas utilizadas na década anterior para

encobrir a transição de uma política democrática para uma ditadura militar. Medidas que

visam à centralização e modernização da administração pública, que torna a administração

escolar mais burocratizada. Nessa época, aumenta o controle social pelo Conselho de

Segurança Nacional, que fiscaliza inclusive as ações educacionais. A hierarquia autoritária,

dentro das instituições de ensino torna-se ainda mais severa nesse período. Outro fator

preponderante é o aumento do número de crianças e adolescentes nas escolas brasileiras por

conta, principalmente, de três medidas: o aumento da escolaridade obrigatória de quatro para

oito anos, a criação dos cursos de profissionalização em nível médio, e a eliminação de parte

do esquema seletivo das escolas. Com isso, as escolas “incham” e os recursos destinados à

educação não sustentam as próprias medidas tomadas pelo Estado. Os princípios educacionais

que passam a vigorar nesse novo momento político nacional são: “objetividade, racionalidade

e neutralidade, condição necessária a um determinado modo de pensar a cientificidade (...)”

(ALMEIDA, 2003, p.10). Tudo em função de uma escola que formasse a mão-de-obra

necessária para o desenvolvimento industrial do país, dentro de um contexto que visava à

produtividade e à eficácia educacional.

Estando essa tendência pedagógica baseada em princípios modeladores do

comportamento humano, com base na psicologia behaviorista, muitos incentivos e 6 As campanhas de higienização são fruto de um processo que nasceu na Europa por volta dos séculos XVIII e XIX, antes do surgimento das teorias de Pasteur. Naquela época eram utilizadas estratégias de desodorização do meio social e sua higienização, principalmente nos espaços públicos. Isso aconteceu por causa do intenso desenvolvimento urbano promovido pela industrialização. No Brasil, também produziu-se normas higiênicas que atingiram a organização familiar desde o século XIX. Por ordem médica, solicita-se de forma constante a presença de intervenções disciplinares para a aplicação das regras de higienização social. As atividades educativas no âmbito das teses renovadoras caminham juntas com a educação moral, civismo e busca de saúde. Cooperam com a escola as ligas de bondade, dando assistência aos necessitados; o serviço de práticas cívicas; os pelotões de saúde. Práticas essas vistas por Fernando de Azevedo como forma de melhoramento da sociedade. Como afirma Spósito (1993, p.173), “a relação da escola com o meio social é claramente delineada por Fernando de Azevedo já em 1922: a criação dos círculos de pais oferece várias possibilidades de integração que se completariam com a criação de um ‘corpo de enfermeiras escolares’ cujas atribuições seriam a de ‘visitar as famílias dos alunos a fim de conhecer o estado social e sanitário do meio em que vivem.”

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recompensas são oferecidas aos alunos, levando a uma grande competitividade entre eles.

Um exemplo desse tipo de recompensa era o fato de que os bons alunos pertenciam à turma

A, enquanto os alunos mais fracos ficavam na turma B, ou C. Assim se mantinha um

ambiente controlador, que rotulava os alunos como mais ou menos eficientes e produtivos.

Também se exigia dos professores a operacionalização dos objetivos, como instrumento para

medir comportamentos e controlar os alunos. Nessa época, são criados os testes de múltipla-

escolha, em que o aluno escolhe a opção já programada pelo educador. O uso da tecnologia

aplicada à educação é estimulado pelo uso das máquinas de ensinar através da instrução

programada com o tele-ensino, e múltiplos recursos audiovisuais, imperando a racionalidade

da máquina sobre o trabalho humano. Na Pedagogia Tecnicista, a escola se torna altamente

burocratizada.

1.2.3.1 A Relação Escola-Comunidade na Pedagogia Tecnicista

Numa política que toma ações contraditórias, ao mesmo tempo que reprimia

movimentos populares, o Estado institucionaliza a participação da população em canais de

interação com as instituições públicas, ditando normas e controlando o movimento de

participação. “Ao eliminar a cidadania, (...) colocando-a ‘em recesso’, o Estado repõe em seu

lugar uma caricatura de participação política e social, ou cidadania sob ‘tutela”

(GUILHERME apud SPÓSITO, 1993, p.163). Assim, a participação da família é considerada

de grande importância, a ponto de ser obrigatória a criação das APMs - Associações de Pais

e Mestres. As APMs passam a ser tuteladas por regras burocráticas, ou seja, estabelecem uma

condição de “cidadania sob controle” (SPÓSITO, 2002).

A idéia de integração dos pais na vida da unidade escolar, desde a sua origem, faz-se

sob o conceito de colaboração7, implicando trabalho conjunto, mas não tendo o sentido de

participação nas decisões sobre os bens públicos. Esse conceito foi apregoado ainda na Escola

Nova, agora na Pedagogia Tecnicista esse ideal é retomado e ampliado. Logo todas as

famílias atendidas pela escola devem colaborar com a manutenção dos estabelecimentos de

ensino. As APMs, única associação criada para integração dos pais com a escola nesse

período, torna-se cada vez mais burocratizada afastando a família das unidades escolares.

Esse burocratização foi fundamental para que a participação decaísse: 7 Colaborar significa trabalhar em comum com uma ou mais pessoa. Já participação política, tomada em seu sentido estrito, significa a existência de situação em que o indivíduo contribui direta ou indiretamente para a decisão política. (Bobbio e outros, Dicionário de política, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1986, p. 888.)

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Os mesmos documentos que propunham as técnicas para cativar os pais, listavam as exigências para o funcionamento das APMs, contendo grande número de atividades burocráticas que poderiam ser executadas apenas pelos que tivessem domínio completo do código escrito, regras de escrituração contábil e tempo disponível. O conteúdo dessas exigências acabava, de fato, por privilegiar a presença do diretor (...) em virtude de suas atribuições e esfera de poder, para atender às recomendações. (SPÓSITO, 1993, p. 179)

O motivo apontado pelas autoridades para a falta de participação dos pais acabou

recaindo sobre a própria população, pois considerava-se a convivência com pessoas de ‘baixo

nível sócio-econômico’ como o grande entrave para a participação. Surge o Projeto de

Dinamização das APMs, em que as festas são identificadas como um meio de aproximação

entre escola e comunidade. As festas, nessa perspectiva, tinham como objetivo ‘despertar o

sentimento patriótico e comportamentos sociais; incrementar as campanhas e datas cívicas;

preservar as tradições folclóricas; identificar manifestações populares como componentes da

cultura de um povo.’8 As festas também serviam para angariar fundos, suprindo as

deficiências da escola.

Os pais são encorajados, através das associações, a manifestarem seu patriotismo,

sendo atribuído a eles algumas responsabilidades na conservação dos campos de recreio e das

salas de aula. Contudo mantém-se a idéia de que a escola é do governo, isolada da

comunidade.

1.2.4 Pedagogia Libertadora e sua ligação intrínseca com a relação escola-comunidade

A Pedagogia Libertadora tem na teoria de Paulo Freire a base central de sua tese.

Paulo Freire é defensor não só da democratização do ensino, como tantos outros pensadores o

foram, mas também é defensor de práticas democráticas dentro da escola pública. Defende,

por exemplo, a “ingerência crescente tanto dos educandos como de suas famílias nos

destinos da escola.” (FREIRE, 1999, p.23).

Durante algum tempo, teóricos da educação afirmaram que “não é próprio da

pedagogia libertadora falar em ensino escolar, já que sua marca é a atuação ‘não-formal”

8 Tais informações foram retiradas do Relatório de Atividades da Comissão de Festas/Projeto Dinamização da APM. Dentre as atividades que visavam à dinamização incluía-se a formação de uma Comissão de Festas que teria por objetivos a “formação cívica e sócio-comunitária”, aproveitando-se das datas comemorativas do decorrer do ano. Citado por SPOSITO, 1993, p.195)

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(LIBÂNEO, 1985, p.33). Entretanto, nos dias atuais, elementos da Pedagogia Libertadora

são adotados por professores e educadores não só no Brasil, mas em muitos outros países.

A proposta de educação freireana está centrada no diálogo com a realidade,

privilegiando a ação e reflexão, para a conscientização do indivíduo e do coletivo ao qual

esse faz parte. Freire cria esse discurso a partir de constatações feitas como um educador que

percebe a distância existente entre o discurso dos intelectuais e a realidade vivida pelas

classes menos favorecidas. Não é voltando-se para estas pessoas e dizendo-lhes como devem

agir em situações difíceis que os problemas podem ser resolvidos. O meio pelo qual as

pessoas vivem e os fatos que ocorrem no dia-a-dia real de cada indivíduo está repleto de

complexidade, que o discurso dos intelectuais não consegue alcançar. Por isso é preciso a

troca de informações através do diálogo. É preciso que o intelectual entenda a intrincada

lógica construída pelos indivíduos que residem em determinada localidade, ouvindo-os. Quem

são as pessoas que circulam pela comunidade e que a habitam? Pelo que anseiam? Qual o

interesse delas? Essas perguntas devem fazer parte de um primeiro contato com a

comunidade. Somente ouvindo as pessoas é que tais perguntas podem ser respondidas. Depois

desse contato, os interessados em atuar em determinada comunidade podem discutir com as

pessoas o melhor modo de juntos promoverem uma verdadeira educação. Logo, para Freire, a

escola democrática deve atender a todos os indivíduos que por ali circulam, suas experiências

e necessidades devem ser ouvidas. Assim, “a escola deve ser também um centro irradiador da

cultura popular, à disposição da comunidade, não para consumi-la, mas para recriá-la”

(FREIRE, 1999, p.16). Os problemas existentes no bairro não podem ser negados pelos

profissionais que atuam na escola, pois seu papel deve ser marcado pelo ato de ouvir e

trabalhar, junto com a comunidade, as necessidades ali existentes. Como diz Freire, a “escola

é também um espaço de organização política das classes populares” (FREIRE, 1999, p.16).

Importa para esse educador que a escola favoreça não só o conhecimento sistematizado, mas

que favoreça também um espaço de discussão, fortalecendo não só o sujeito, como também a

coletividade que a escola representa.

Numa experiência à frente da Secretaria de Educação de São Paulo, entre 1989 e 1991,

Freire mais uma vez dá exemplo do seu modo de pensar e agir. Em sua rotina como

Secretário de Educação, tinha por hábito discutir o destino da educação pública da cidade

com os dois lados por ela interessados. Num momento, discutia premissas epistemológicas do

novo modelo de educação com a equipe de trabalho. Num outro momento visitava uma

escola e ouvia pacientemente o zelador, o professor, o vigia, o pai de família e as crianças. É

assim que, no auge dos seus setenta anos, Paulo Freire colocava em prática a sua idéia de

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educação popular. Dizia Freire que não devemos chamar o povo à escola para receber

instruções, postulados, receitas, ameaças, repreensões e punições, mas para participar

coletivamente da construção de um saber, que vai além do saber de pura experiência feito, que

leve em conta as suas necessidades e o torne instrumento de luta, possibilitando-lhe

transformar-se em sujeito de sua própria história (FREIRE, 1999, p.16).

Logo falar em democracia e não permitir que os homens tenham liberdade, por conta

de ações autoritárias, e que com isso não possam expor o seu pensamento é uma farsa, diz

Freire. Somente, assim, o diálogo pode quebrar o isolamento e provocar a comunicação.

Afinal “sem ele não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação.” (FREIRE,

2003, p.83)

1.3 CAMINHOS DA RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE

As idéias de Freire, no âmbito da educação pública, não foram suficientes para

confirmamos uma tradição de participação nas decisões sobre a escola pública. Se na Escola

Tradicional os hábitos e costumes da família e da comunidade deveriam ser distanciados da

escola, a partir do movimento escolanovista cria-se a expectativa de um sistema educacional

mais democrático. Esse movimento previa a construção de uma escola pública, gratuita, laica

e que rompesse com o postulado da Escola Tradicional de escola classista, voltada apenas

para as elites. Mas essa expectativa se confirma apenas em partes. O processo histórico

revelou que os renovadores também se preocupavam com a formação de novas elites

intelectuais, concebendo a democracia como “o governo dos mais capazes numa harmoniosa

combinação entre elites e massas.” (AZEVEDO apud SPÓSITO, 1993, p.172). Criaram assim

uma cisão no pensamento pedagógico que se refletiu na relação escola-comunidade. A

integração entre escola e comunidade era necessária na concepção dos renovadores, mas as

famílias das classes menos favorecidas precisavam ser instruídas, principalmente nas questões

relativas à saúde. Essas famílias deveriam ser ajudadas, denotando o caráter assistencialista

que a relação entre escola-comunidade assumiu. São criados os canais de participação como

as APMs para colaborar com a escola, e serviam para orientar os pais das classes menos

favorecidas sobre os hábitos morais, sanitaristas e de higienização.

Na Pedagogia Tecnicista, essa participação dos pais foi vista também como de

extrema importância para organização das instituições de ensino. Os órgãos governamentais

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transformam as APMs em instituições obrigatórias nas escolas. Extremamente burocráticas,

como era o desejo do Estado, as APMs passaram a ter o diretor de escola como figura

central.

Uma importante averiguação feita por Spósito (1993), quando investiga documentos

relacionados às teses do Congresso das APMs realizadas em São Paulo em 1980, é que

mesmo em uma época marcada por forte presença de movimentos populares, estranhamente

esses movimentos mantinham-se fora do discurso dos educadores. As regras criadas pelas

APMs não permitiam abrir espaço para a atuação dos movimentos populares dentro da

escola. Na história das APMs, que marca a relação entre a escola e comunidade, denotamos

que o chamamento para a participação sempre aconteceu de cima para baixo, os pais eram

requisitados apenas para colaborar, nunca para serem ouvidos sobre suas reais necessidades

em relação ao processo educacional.

Contudo surge do outro extremo da linha uma proposta para evitar os desígnios

manipulativos e hegemonistas que podem surgir por trás da participação. Essa proposta surge

no conceito de participação popular com raízes na Pedagogia Libertadora. Ela está centrada

numa ação democrática baseada no diálogo, na comunicação, na troca de informações como

fonte do entendimento entre dirigentes e dirigidos, para a formação de cidadania. A Pedagogia

Libertadora se constrói sob esse prisma porque não foi criada dentro de quatro paredes, ela é

fruto do contato direto da teoria com a prática, do intelectual com o “povo”, como

convencionalmente Freire chama a “comunidade”.

Posicionamo-nos a favor do pensamento freireano porque defendemos a idéia de

democratização como um direito do cidadão de opinar sobre os rumos da sociedade. Quando

falamos em ampliar o direito de decisão do cidadão sobre o espaço público, estamos propondo

ampliar o próprio conceito que costumeiramente se tem de atuação democrática. Porque,

quando falamos em processo democrático imediatamente nos lembramos do voto como o

meio mais adequado de exercitarmos nosso direito como cidadãos. No entanto, a democracia

não se resume no direito ao voto. Democracia é também uma disposição para ouvir os

argumentos e considerar o ponto de vista do outro, porque um movimento democrático se

manifesta não só nas eleições e em reuniões públicas, mas também continuamente em muitos

aspectos diferentes da vida cotidiana, quando buscamos o acordo completo e dispomo-nos a

permitir que qualquer pessoa se associe e participe (LUCAS, 1985).

Paulo Freire argumenta sobre o significado da participação como exercício da

democracia dizendo:

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Para nós, a participação não pode ser reduzida a uma pura colaboração que setores populacionais devessem e pudessem dar à administração pública. Participação ou colaboração, por exemplo, através dos chamados mutirões por meio dos quais se reparam escolas, creches, ou se limpam ruas ou praças. A participação para nós, sem negar este tipo de colaboração, vai mais além. Implica, por parte das classes populares, um “estar presente na História e não simplesmente nela estar representadas”. Implica a participação política das classes populares através de suas representações ao nível das opções, das decisões e não só do fazer o já programado. (FREIRE, 1999, p.75)

Com a abertura política, na década de 1980, novos rumos são dados para a educação,

diante de um entusiasmo que atingia vários movimentos sociais, professores, intelectuais. A

redemocratização do ensino torna-se o eixo norteador do pensamento educacional brasileiro.

Nessa nova fase, volta-se a reforçar a necessidade da aproximação da comunidade com a

escola. Mas existiria um espaço para a participação da comunidade na escola nos moldes da

perspectiva libertadora? Quais seriam as perspectivas atuais da relação escola-comunidade?

1.4 PERSPECTIVAS ATUAIS DA RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE

A partir de 1980, algumas perspectivas educacionais começam a girar em torno dos

princípios de uma educação crítica que pudesse dar conta de reverter o atraso educacional no

qual a escola estava imersa. Surge a possibilidade de uma Gestão Democrática, como

“condição necessária da reforma educacional brasileira.” (GADOTTI; ROMÃO, 2001, p.18).

Inicia-se, com isso, um novo momento para a relação escola-comunidade.

O movimento em prol de uma gestão democrática ganha respaldo na Constituição

Nacional de 1988. Através desse dispositivo a gestão democrática do ensino público é

identificada como um dos preceitos no qual a educação deve ser gestada. Os argumentos

dessa lei, promovendo o fim do analfabetismo, a universalidade do ensino fundamental e

melhorias na qualidade da educação declaram que a “ educação, direito de todos, e dever do

Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade(...)”9

(CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA,1988, p.91). Essa proposta de Gestão parte de uma

9 Item selecionado do Capítulo III Da Educação, Da Cultura e Do Desporto – Seção I da Educação –Artigo 205. Constituição Brasileira, 1988. Os Conselhos de escola são considerados como um avanço da gestão escolar, é canal criado com função deliberativa no Estado de São Paulo em 1983 . É aprovado na Assembléia Legislativa depois de ter sido encaminhado como Projeto de Lei pelo Deputado estadual Paulo Frateschi.

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tentativa de renovar as relações dentro da escola, para tornar o ambiente mais favorável ao

ensino, tornando a sociedade civil também responsável pelo ensino público. Sob os princípios

de autonomia, descentralização e da participação de todos os membros componentes da

comunidade escolar: pais, alunos, professores, direção e demais funcionários, a gestão

democrática passa a ser compreendida como um movimento que privilegia as peculiaridades

de cada estabelecimento. Portanto o Estado oficialmente é o mantenedor da escola, mas

através da participação dos vários segmentos internos e externos a ela, as particularidades de

cada estabelecimento devem ser respeitadas.

A implementação da gestão democrática animada pela constituição brasileira

promoveu a incorporação de elementos próprios de um processo democrático. Vários canais

institucionais são criados para a efetivação dessa proposta. A eleição para diretores de escola,

como forma de democracia representativa10 é um desses elementos. O PPP - Projeto Político

Pedagógico da escola faz parte de um trabalho inovador, porque entre outras concepções

apóia-se no envolvimento de membros internos e externos à escola (GADOTTI, 2001, p.33)

Foi criado para que as ações realizadas na gestão democrática possam ser sistematizadas,

avaliadas, redefinidas nessa nova perspectiva educacional.

Outro canal institucional, criado para efetivar a gestão democrática, são os Conselhos

de Escola - CE ou Conselhos Deliberativos11 – CD, também sob a forma de democracia

representativa.

Os Conselhos ou Colegiados de escola podem ser considerados como um avanço em

relação às propostas anteriores de aproximação da comunidade com a escola, devido à sua

função deliberativa, podendo agir sobre os destinos da instituição pública. Foi proposto por

um deputado do PT (Partido dos Trabalhadores) paulista em 1983, e aos poucos outros

Conselhos Estaduais de Educação absorveram a idéia de um Conselho formado por membros

internos e externos da escola: o diretor, pais, alunos, professores e funcionários do

estabelecimento educacional, eleitos por voto, com o poder de deliberar sobre os assuntos

ligados à unidade escolar. A implantação dos CDs partem da necessidade de um novo

instrumento de aproximação entre a escola e a comunidade, já que as APMs mostravam-se

ineficientes, não atraíam os pais a participarem. Todavia as APMs continuam asseguradas,

com a função de ampliar e manter o equipamento escolar. Cabe notar que, por mais que esses

10 Referente ao pensamento de BOBBIO (1986, p.44) a expressão “democracia representativa” significa genericamente que as deliberações coletivas, isto é , as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem mas por pessoas eleitas para essa finalidade. 11 No Estado de Santa Catarina, o Conselho de Escola é conhecido como Conselho Deliberativo.

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canais tenham evoluído, a participação dos pais, nos moldes da educação libertador, continua

distante da realidade educacional da maioria das escolas.

Numa leitura crítica sobre o assunto, o prof. Vitor Henrique Paro diz que depois de

duas décadas de propostas e averiguações os canais institucionais criados especificamente

para garantir a participação dos vários setores internos e externos à escola, como os Conselhos

Deliberativos, têm-se apresentado como “instrumentos imperfeitos”, não correspondendo de

modo satisfatório aos objetivos previstos na sua formulação: congregar opiniões para a

resolução dos problemas educacionais (PARO, 2001, p.12).

Uma hipótese levantada por Spósito (2002) é que a democracia representativa possui

paradoxos. Mecanismos formais e ritualistas da representação podem distanciar do processo

decisório a vontade dos demais representados, colaborando para a exclusão das reais

necessidades da comunidade escolar.

A prática democrática não se resume na indicação de representantes que

imediatamente se desligam de seus representados. Como já comentamos anteriormente, a

democracia não se resume no direito ao voto. Democracia é também uma disposição para

ouvir os argumentos e considerar o ponto de vista de outro. Como vivemos em uma sociedade

que se diz democrática, mas que ainda precisa de muito esforço para efetivá-la, acreditamos

que a democratização do ensino, ainda está sendo construída.

Assim, torna-se evidente que a idéia de gestão democrática deveria potencializar os

movimentos de participação popular, mas para isso se concretizar alguns obstáculos precisam

ser superados. Fatores que entravam a participação no cotidiano da escola precisam ser

reavaliados, para que conquistemos a abertura de novos espaços de participação, mais

adequados à situação de cada estabelecimento de ensino.

1.5 ENTRAVES PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA RELAÇÃO MAIS DEMOCRÁTICA

Face à situação de calamidade em que ainda se encontra a escola pública, uma das

alternativas apontadas para minimizar os problemas educacionais brasileiros é a articulação de

movimentos que façam pressão em todos os níveis e instâncias da sociedade civil. “Somente

com a participação da população – profissionais ou não da educação – é que propostas,

estratégias e procedimentos ganham substância epistemológica e política (...)” (ROMÃO,

2000, p. 74). Juntos, alunos, professores, funcionários, vizinhos da escola poderão constituir

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um núcleo de pressão e exigir o atendimento dos direitos da população e defender seus

interesses em termos educacionais. Núcleo de pressão não significa um núcleo isolado, até

porque a escola tem sido questionada pelo seu afastamento do cotidiano vivido pelas pessoas

que a constituem, se pondo em “clausura”. Nessa perspectiva, Paro (2001) aponta para uma

escola que se une com associações educativas mais amplas ou a outras entidades da

sociedade civil, como meio imprescindível para alcançar uma escola verdadeiramente

universal e de boa qualidade no Brasil. Paro (1995) chega a essas conclusões depois de

analisar uma escola pública paulista e encontrar ali condicionantes do autoritarismo que

entravam e/ou facilitam a participação da comunidade na instituição. Segundo esse autor,

existem condicionantes internos e externos à participação, que estão ligados à prática

autoritária que ainda permeia as relações ditas democráticas.

O autoritarismo na prática educacional pode ser observado na contradição existente

entre o discurso e a atuação de muitos educadores diante da relação dita democrática nas

escolas públicas. Segundo Paro:

(...) esse fenômeno mostra-se particularmente sério quando atentamos para o comportamento de pessoas que, de uma forma ou de outra, se convenceram, um dia, da importância da democracia, mas, ao depararem com as dificuldades da prática, foram adotando paulatinamente atitudes cada vez mais distantes do discurso democrático, acomodando-se a elas, mas sem renunciar ao antigo discurso liberal, que acaba servindo tão-somente como uma espécie de escudo a evitar que revejam criticamente seu comportamento. (PARO, 2001, p.18)

Uma escola que mantém relações autoritárias em suas práticas internas demonstram

pouca probabilidade de uma relação democrática com a comunidade. Como afirma Paro

(2001), não pode haver democracia plena sem pessoas democráticas para exercê-la.

Outro obstáculo apontado por Paro (1995, 2001) são os condicionantes institucionais,

ligados à organização formal da escola pública, na qual ainda persiste a distribuição

hierárquica da autoridade. Nesse caso, na figura do diretor está centrado o poder de comandar

a escola. Todavia, quando nos referimos à distribuição hierárquica da autoridade não estamos

querendo dizer que as escolas podem ser gestadas sem a presença de uma autoridade, de

alguém que responda pela unidade escolar. O que queremos evidenciar com essa afirmação é

que a rigidez das instruções reguladas por critérios hierárquicos, em que o fluxo do poder

procedem do alto para baixo, são mais adequadas aos sistemas autocráticos, diferente da

relação pertinente aos sistemas democráticos, de baixo para cima (BOBBIO,1986). Por isso

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não cabe mais falar em movimento democrático tendo a frente dos estabelecimentos de ensino

diretores que reneguem a participação da comunidade.

Somados a esse quadro de condicionantes, também estão os interesses dos diversos

grupos que se encontram na escola. Os alunos, os pais, os agentes de serviços gerais, os

professores formam grupos que manifestam diferentes desejos e circulam pelos

estabelecimentos de ensino. Paro (1995, 2001) coloca o interesse imediato de cada grupo

como um condicionante sócio-politico, porque todos esses grupos possuem seus interesses

particulares.

Os “interesses coletivos” deveriam ser o alvo das discussões em uma escola, mas os

grupos nem sempre conseguem percebê-los. Falta, muitas vezes, clareza em atitudes e

práticas, que os levem a agir de comum acordo. Isso talvez porque concepções ambíguas de

participação criadas por várias correntes pedagógicas, reforçadas pelo discurso neoliberal,

estejam impregnadas nas ações educacional. Para isso seria preciso inicialmente que os

envolvidos no processo educacional se conscientizassem de qual proposta democrática

querem seguir, para depois definir quais os interesses coletivos devem ser tomados como

prioridade da escola. Isso só poderá acontecer se as relações entre a escola e a comunidade

não mais se constituírem de forma burocrática, hierárquica e autoritária. Nesse sentido, o

PPP da escola pode contemplar aspectos para a construção da escola mais democrática,

criando outros espaços de participação.

Quando Paro (1995, 2001) lança um olhar atento para a comunidade, que está no

entorno da escola, observa ali também condicionantes os quais entravam a participação. Num

primeiro momento, são as condições objetivas de vida da população, como a falta de tempo e

cansaço após o trabalho, que caracterizam a não participação dos pais. Porém o mesmo

autor observa que a comunidade na qual realiza a pesquisa não era solicitada sobre a

escolha do melhor horário para as reuniões, nem sequer sobre as melhores formas de

receber essa família. Se não houver negociação entre escola e comunidade sobre horários e

atividades desenvolvidas por ela, mais um problema somar-se-á às dificuldades já

comentadas: a falta de compromisso de ambos os lados, escola e comunidade, com a

educação. É claro que, em muitos casos, é a escola que vive seu processo educacional

distante da comunidade onde se encontra. No preconceito encontrado muitas vezes no

discurso de professores, de que os pais não se interessam pela escola dos seus filhos, como

afirma Paro (1995, 2001), percebemos um motivo para o agravamento da situação de não-

participação. Mais uma vez torna-se evidente que é preciso a conscientização de que uma

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teoria só se efetiva quando associada a uma prática. Dizer que somos democráticos não

significa que estejamos agindo como tal.

A participação popular pode ser um instrumento “capaz de garantir que os objetivos

de um desenvolvimento mais humano e mais eficiente, objetivos esses que são importantes do

ponto de vista moral, humanitário, social, cultural e econômico, possam ser atingidos

pacificamente.” ( UNRISD apud RAHNEMA, 2000, p.197). Como o processo democrático

dentro das escolas públicas ainda está sendo construído e persistem algumas marcas

históricas de imposição de normas e de hierarquização do espaço público, dificultando a

aproximação da comunidade. Acreditamos que seja imprescindível a promoção de outras

atividades, além das reuniões de APMs e Conselhos Deliberativos. É preciso que, em outros

momentos, talvez menos formais, a escola abra suas portas para a comunidade, para que de

fato as relações no espaço público fortaleçam o exercício da cidadania, ampliando o próprio

Projeto Político da escola. Entendemos por cidadania, ou uma “concepção plena de

cidadania”, a mobilização da sociedade para a conquista dos direitos que fundamentam a

democracia: direitos civis (segurança e locomoção); direitos sociais (trabalho, salário justo,

saúde, educação, habitação, etc); direitos políticos (liberdade de expressão, de voto, de

participação em partidos políticos e sindicatos, etc.) que devem ser garantidos pelo Estado

Gadotti (2001). Essa é a concepção de cidadania proposta pelos coordenadores do Instituto

Paulo Freire e que parte do pressuposto que “todos são capazes de ensinar e aprender e que,

portanto, são capazes de participar do processo de formulação de políticas públicas.”

(ROMÃO, 2000, p.73)

Por fim, compreendemos que a participação popular nas decisões tomadas sobre a

escola pública, pode contribuir para o aumento das conquistas políticas e pedagógicas do

estabelecimento, porque “a democracia só se efetiva por atos e relações que se dão no nível

da realidade concreta.” (PARO, 2001, p.18). Dessa forma, evidenciamos alguns aspectos que

consideramos relevantes para o exercício da cidadania:

- uma aproximação dialógica entre escola e comunidade, livre de imposições

hierárquicas e paternalistas;

- a abertura de espaço de ampla discussão, paralelo aos canais representativos, em

que possam ser estabelecidos os “interesses coletivos” do grupo;

- o respeito às crenças, expressões e manifestações da comunidade, fortalecendo a

comunicação entre as pessoas que vivem no entorno da escola.

A democracia e a cidadania que desejamos “implica sobretudo, recobrar nossa

liberdade interna, ou seja, aprender a ouvir e compartilhar” (RAHNEMA, 2000, p.206). É

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essa liberdade interna que permite o indivíduo ganhar força e participar do universo amplo do

qual somos apenas uma parte. Livres, os indivíduos podem questionar a realidade e a partir

daí querer entendê-la e transformá-la. Por mais utópica que essa proposta possa parecer ,

muitas vezes a utopia parece “guiar os passos da práxis” (GUINSBURG, 2001). Somente

alcançaremos a vitória sobre os sistemas autoritários se a democracia não manobrar em

retirada, mas passar à ofensiva e dispuser a realizar aquilo que tem sido sua meta no espírito

dos que lutaram pela liberdade no decurso dos séculos (FROMM, 1981).

Diante dos entraves apontados para a efetivação da participação democrática da escola

perguntamos: o teatro pode ser utilizado como exercício da cidadania, conscientizando e

mobilizando escola e comunidade para o potencial da participação popular? Quando o teatro,

na relação escola-comunidade, pode assumir esse papel, favorecendo uma aproximação sem

imposições hierárquicas, autoritárias e paternalistas? O próximo capítulo tem por objetivo

apresentar alguns momentos em que pessoas ligadas à educação e ao teatro propuseram

mudanças na função da arte teatral e nos processos educacionais, possibilitando o

aparecimento de um tipo de teatro que vai ao encontro dos questionamentos levantados.

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CAPÍTULO 2 - EM BUSCA DE UMA PRÁTICA TEATRAL QUE CONTRIBUA PARA O PLENO EXERCÍCIO DA CIDADANIA

2.1 INTRODUÇÃO

Dado o cenário de crise em que se encontra a escola pública, muitas propostas surgem

com o objetivo de alterar o quadro de falta de qualidade no ensino. Alguns autores como Paro

(1995, 2001), Freire (1995, 1997, 2003), Gadotti (2001), Romão (2000), Spósito (1993, 2002)

defendem que a organização conjunta das forças internas e externas à escola podem

representar uma pressão maior sobre o poder público, exigindo que se cumpram os direitos de

todas as crianças e jovens desse país, por uma escola de qualidade. O encontro entre escola e

comunidade para esse fim tem sido denominado por Gadotti (2001) como um “pleno

exercício da cidadania”. Em outras palavras, uma ação conjunta da escola e comunidade como

um pleno exercício da cidadania representa a tomada de consciência dos direitos e deveres

sociais da população e a mobilização para a conquista de tais direitos, contribuindo para

minimizar os problemas sociais.

No entanto os condicionantes e entraves que, como vimos no primeiro capítulo,

limitam o relacionamento entre escola e comunidade, indicam a necessidade de promover a

aproximação da população nas instituições educacionais. A abertura dos portões para receber

a comunidade dentro da escola e a criação de novos espaços para dar voz a população são

propostas com as quais compartilhamos.

Porém tais espaços só poderiam promover um fortalecimento da relação entre escola e

comunidade se fosse estabelecida uma relação através de diálogo sem imposições hierárquicas

nem paternalistas, respeitando as crenças, expressões e manifestações da comunidade. Dessa

forma, os interesses latentes na comunidade podem emergir para serem discutidos. A escola

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não seria mais um território exclusivo do diretor, professores, alunos e funcionários,

passando a congregar também manifestações da comunidade.

Desse ponto de vista, em vez de chamar a comunidade somente para o que já foi

programado na escola, haveria um maior comprometimento das forças internas e externas nas

decisões e nos encaminhamentos sobre o futuro da escola.

A hipótese que levantamos é de que o teatro além de ser um meio de aproximação da

comunidade na escola também pode contribuir para o pleno exercício da cidadania. O

levantamento teórico que segue, nesse capítulo, tem por objetivo responder as seguintes

questões: seria possível definir diferentes formas de aproximação entre escola e comunidade

através do teatro? Dentre essas formas de aproximação haveria um tipo de prática teatral que

favoreceria a comunhão de interesses da escola e da comunidade? Essa prática teatral poderia

contribuir, enquanto exercício de democracia, fortalecendo a voz da comunidade e seu poder

de reivindicação de uma melhor qualidade de ensino?

A fim de sistematizarmos a investigação sobre a hipótese levantada, analisamos, nesse

capítulo, três modelos de práticas teatrais no âmbito escolar, que possibilitam a aproximação

entre a escola e a comunidade:

- O teatro elaborado na escola e apresentado para a comunidade;

- O teatro elaborado na escola com a colaboração da comunidade;

- O teatro realizado por um coletivo que congrega escola e comunidade.

Um estudo sobre cada modelo pode permitir que compreendamos como o teatro tem

sido utilizado na relação escola-comunidade e quando essa interação contribui para diminuir

as distâncias entre os membros internos e externos da unidade escolar. Para isso, tentamos

identificar, por intermédio de pesquisas tanto no campo educacional quanto no campo teatral,

quais as origens e os avanços obtidos nessa relação.

2.2 O TEATRO ELABORADO NA ESCOLA E APRESENTADO PARA A COMUNIDADE

O modelo de prática teatral que vamos analisar tem como princípio a elaboração de

uma peça no interior da escola que é representada aos pais, família ou pessoas que vivem no

entorno da unidade escolar. Nesse modelo, a participação dos pais se resume a assistir ao que

foi produzido na escola.

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2.2.1 Origens do teatro elaborado na escola e apresentado para a comunidade

A prática teatral escolar elaborada especificamente para uma apresentação tem suas

raízes ainda no Renascimento. Leon Chancerel (1962) cita a importância dos espetáculos

escolares apresentados em 1549 para comunidade parisiense:

Sabido es que los espectáculos escolares están en los orígenes de nuestro teatro clásico, que las primeras tragedias y comedias, llamadas “regulares”, del Renacimiento, fueron representadas por escolares en colegios; que tales representaciones ocupan un lugar importante en la historia de la literatura dramática; que se cuidaban mucho los montajes; que se desplegaba cierto fasto en las decoraciones y los trajes, y que la representación de una tragedia en el colegio Louis-le-Grand, presidida por el rey, constituía un gran acontecimiento parisiense. (CHANCEREL, 1962, p.25)

Durante um longo período as manifestações teatrais realizadas pelos alunos foram

reguladas dentro dos rigorosos princípios da educação tradicional e religiosa. A Escola

Tradicional, dirigida à elite, realizava um tipo de teatro que interessava para esse grupo

“privilegiado”, porque era o tipo de teatro a que estavam acostumados.

A elite européia dos século XVIII e XIX usufruía de uma arquitetura teatral luxuosa, e

convencionalmente assistia a produções centradas no texto dramático. Em alguns casos,

destacavam-se também o ator ou a atriz que com seu magnetismo e carisma deixavam o

público perplexo.

Essa tendência do teatro europeu era uma referência para as escolas da época,

influenciando, inclusive, os currículos escolares. Um exemplo dessa influência é apontada

por Santana (2003) quando refere-se à educação maranhense no século XIX. Diz esse autor

que os colégios e posteriormente os liceus, incluíam conteúdos como “declamação de poemas,

leitura de obras clássicas em voz alta e dramatização de peças de autores de grande

notoriedade como Martins Penna, Gonçalves Magalhães e Gonçalves Dias.” (SANTANA,

2003, p.24). Esses elementos curriculares serviam para instruir o estudante fazendo com que

esse desenvolvesse habilidades como ter uma dicção clara e harmoniosa, próprias para a

formação de um indivíduo que futuramente exerceria uma posição social de prestígio. Essa

postura pedagógica é típica da Escola Tradicional, pois via a criança como um adulto em

miniatura devendo ser preparado para se destacar na sociedade. A tendência educacional

tradicional valorizava a cultura geral, o contato com os clássicos, o que tornava o contato dos

alunos com o texto literário um exercício central na prática teatral.

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Guimarães Rosa ilustra muito bem esse tipo de teatro no conto intitulado

Pirlimpsiquice (ROSA, 1964, pp.39-48). Nesse conto, os jovens estudantes de uma escola

com características tradicionais, dirigida por padres, são selecionados para representar uma

peça teatral. A escolha dos alunos aptos para a representação trazia como critério inicial serem

bons alunos. Os meninos, considerados pelos professores como “mal-comportados

incorrigíveis”, não podiam fazer parte da encenação e eram excluídos. O drama Os Filhos do

Doutor Famoso, peça escolhida pelo padre Prefeito e pelo Dr. Perdigão, o ensaiador,

precisava de doze personagens. Dos doze meninos escolhidos, apenas um não fazia parte dos

“Filhos de Maria”. É feito um teste de leitura para que o ensaiador pudesse definir os papéis.

Para tal, “cada um teve de ler do texto alguma passagem, extraindo de si a melhor bonita voz,

que pudesse; leu-se desabaladamente” (ROSA, 1964, p.39). A partir da leitura os papéis

foram definidos, sendo que o “papel principal” ficou com o melhor leitor. O menino que narra

esse conto, mesmo sendo um bom recitador, era retraído, por isto ficou com a função de

Ponto.1

Mesmo sendo uma obra de ficção, Rosa esboça, nesse texto, a realidade de um

momento em que o teatro nas escolas privilegiava o aluno talentoso, que se destacava ao

declamar textos, ganhando status de aluno habilidoso e dedicado. Nessa abordagem, o foco

do trabalho teatral está na dicção clara e harmoniosa não na improvisação e no trabalho

corporal.

Um aluno agitado no conto de Guimarães Rosa, o Zé Boné, é o único entre os doze

escolhidos para o teatro, que não se caracterizava pelo bom comportamento, porque era muito

ativo: “varava os recreios reproduzindo fitas de cinema: corria e pulava, à celerada, cá e lá,

fingia galopes, tiros disparava, assaltava a mala-posta, intimando e pondo mãos ao alto, e

beijava afinal-figurado a um tempo de mocinho, moça, bandido e xerife” (ROSA, 1964, p.40)

Por essa peculiaridade, Zé Boné, que na peça da escola fazia o papel de policial, era criticado

por entrar marchando nos ensaios, fazendo continência e não conseguindo ficar atento ao

texto que deveria declamar. Por conta disso o ensaiador intima Zé Boné a representar mudo,

proibindo-o de falar durante a apresentação.

Para guardar segredo sobre a peça que montavam, os meninos escolhidos para o teatro

decidiram inventar uma outra história, paralela ao drama proposto pelo diretor, para despistar

os outros alunos. Era uma brincadeira, que motivava até aqueles garotos que não puderam

fazer parte do drama oficial.

1 A pessoa encarregada do Ponto fica escondida em uma caixa na boca de cena, ela tem a função de dizer o texto para quem esquece a fala durante o espetáculo.

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A outra história, por nós tramada, prosseguia, aumentava, nunca terminava, com singulares-em-extraordinários episódios, que um ou outro vinha e propunha: o “fuzilado”, o “trem de duelo”, a máscara : “fuça de cachorro”, e, principalmente, o “estouro da bomba”. Ouviam, gostavam, exigiam mais. (...) Já, entre nós, era a “nossa estória”, que, às vezes, chegávamos a preferir a outra, a “estória de verdade”, do drama. (ROSA, 1964, p.41)

A peça que fingiam fazer despertava tanto o interesse dos alunos que um outro grupo,

dos “excluídos”, criou uma terceira estória.

Aquele movimento que acontecia longe dos olhos do ensaiador e do diretor da escola

tinha características muito diferentes dos preceitos exigidos durante os ensaios oficiais pelo

Dr. Perdigão: -“Representar é aprender a viver além dos levianos sentimentos, na verdadeira

dignidade’ (...) Lembrem-se: circunspecção e majestade’ (...) ‘Longa é a arte e breve a vida...

– um preconício dos gregos!” (ROSA, 1964, pp.42-43)

Textos decorados na “ponta da língua”, chegou o dia da apresentação. Como cita o

narrador, nesse dia chegaram também as roupas “novinhas nos embrulhos, [...] os fraques do

Doutor Famoso e do Amigo, a batina do Filho Padre, a farda do Filho Capitão, só trajes.”

(ROSA, 1964, p.41). Chegavam também as visitas, pais, parentes de fora, para assistir ao

espetáculo. O teatro estava cheio, não cabia mais ninguém. Estava tudo pronto, não fosse o

fato de que o garoto que fazia o papel principal teve que viajar porque o pai estava entre a

vida e a morte. Esse menino é substituído pelo menino do Ponto, já que este sabia todo o

texto do espetáculo. Ao substituí-lo, entretanto, faltavam informações sobre o que deveria

fazer. A cortina não fecha, e os meninos não sabiam como resolver o problema. Vêm as vaias!

No desespero, os meninos descobrem uma saída: improvisam a história criada pelos

“excluídos” do drama oficial, aqueles alunos que não puderam tomar parte do teatro. Zé Boné,

o menino que deveria estar mudo no drama oficial, comanda toda a improvisação. Todos

aceitam o jogo, deixando perplexos os padres da escola. A platéia delira e os jovens atores

não param de criar:

O quê: aquilo nunca parava, não tinha começo nem fim? Não havia tempo decorrido. E como ajuizado terminar, então? Precisava. E fiz uma força, comigo, para me soltar do encantamento. Não podia, não me conseguia –para fora do ocorrido, contínuo, de incessar. Sempre batiam, um ror, novas palmas. Entendi. Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito – o milmaravilhoso- a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E como terminar? (...) Cheguei para frente, falando sempre, para a beira da beirada. Ainda olhei,

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antes. Tremeluzi. Dei a cambalhota. De propósito, me despenquei. E caí. (ROSA, 1964, p.47)

Em Pirlimpsiquice o autor faz uma crítica a um teatro típico da Escola Tradicional. Os

limites desse teatro são apontados pelos pioneiros da Escola Nova, movimento que trouxe um

novo sentido para o papel educacional do teatro. Na Escola Nova não se privilegia mais

algumas crianças pelo bom comportamento e habilidade na leitura, porque todos deveriam ter

a oportunidade de participar de um processo teatral. Propõe-se a derrubada da noção de

talento.

A concepção educacional escolanovista valoriza o processo expressivo e espontâneo

do aluno. Isso porque assume um novo entendimento sobre a especificidade da infância:

A idéia evolucionista do desenvolvimento infantil e o fato de que a mente da criança é qualitativamente diferente da mente adulta, desenvolvida anteriormente por Rousseau e articulada por Pestalozzi e Froebel, considera a infância como estado de finalidade intrínseca e não só como condição transitória, de preparação para a vida adulta.(KOUDELA, 2001, pp.18-19)

No centro das teorias escolanovistas, está o respeito aos interesses das crianças. As

atividades teatrais influenciadas pelo movimento renovador passam a focar o processo de

criação, a ênfase deixa de ser o texto teatral e o produto final. A partir desse movimento o

teatro na escola ganha um novo objetivo “provocar nas crianças o desejo de expressar-se, e

proporcionar-lhes os meios adequados para isto.” (DASTÉ, 1978, p.141). A partir daquele

momento toma o centro das discussões sobre teatro na escola a possibilidade da construção de

um processo tendo por base novas atividades e metodologias2 de ensino do teatro.

Na trajetória das pesquisas sobre teatro na escola, em busca de uma abordagem

adequada para o ambiente educacional, somaram-se esforços de muitos pesquisadores que

atestaram a arte como forma de conhecimento inerente a sua própria natureza e linguagem.

Isso se deu em reconhecimento à compreensão de que a arte veicula um conhecimento imprescindível à formação humana, tema que é recorrente na literatura desse século – autores como Benjamim, Bronowski, Dewey, Munro, Piaget, Read, Vygotsky, Wallon, dentre outros, utilizando caminhos diferentes deixaram um vasto legado de idéias sobre cognição e arte, destacando suas implicações na educação. (SANTANA, 2000, p.22)

2 As mudanças que surgiram a partir do novo modo de pensar o teatro nas escolas permitiram que as atividades dramáticas ganhassem novas concepções e uma maior valorização no âmbito educacional. A partir disso surgem em vários países da Europa e Estados Unidos propostas como: Creative Dramatics que teve como uma de suas principais representante Winifred Ward; Child Drama representado por Peter Slade; (Ver Koudela 2001). O Jogo Dramático francês que tem Leon Chancerel como pioneiro. (Ver Pupo, 1985; Chancerel, 1962)

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No conto de Rosa (1964), os garotos da escola tradicional tiveram uma experiência

com a improvisação teatral. Quando os meninos deixaram o texto que haviam decorado de

lado e mergulharam na própria criação baseada em um grande jogo, descobrem as delícias do

fazer teatral. Utilizando o movimento corporal espontâneo que era reprimido pelo ensaiador,

aqueles garotos criaram personagens e ações a partir de suas referências. De acordo com uma

temática significativa para jovens em idade escolar, os alunos “transviveram” a ação

ficcional, sentindo-se livres dentro do divertido jogo que criaram.

É sob a influência do movimento escolanovista que o uso dos jogos se tornam

perspectiva de um fazer teatral mais prazeroso, cooperativo, que favorece a expressão da

criança.

2.2.2 O jogo e a democratização do acesso ao fazer teatral

O uso dos jogos torna-se um marco no teatro para crianças, jovens, e adultos atores e

não atores no século XX. Mas por que a utilização do jogo? Que aspectos desse tipo de

atividade são favoráveis ao fazer teatral?

Johan Huizinga (1990) aponta que a liberdade é a primeira característica do jogo.

Segundo esse autor, o jogo não é ‘vida corrente’ nem ‘vida real’ é uma ação fictícia. O jogo

acontece em um tempo e um espaço circunscrito no qual se desenrola de acordo com regras

determinadas. Assim o jogo é capaz de envolver os jogadores, que se tornam membros da

ficção criada nesse espaço-tempo.

O divertimento, segundo esse autor, é a própria essência do jogo, e nesse sentido

compreende-se tensão e alegria como elementos que convergem para a diversão. Esse autor

também acrescenta que a universalidade do jogo faz com que essa atividade transcenda as

possíveis barreiras da língua falada, aproximando as pessoas de qualquer nacionalidade.

A existência do jogo não está ligada a qualquer grau determinado de civilização, ou a qualquer concepção de universo. Todo ser pensante é capaz de entender à primeira vista que o jogo possui uma realidade autônoma, mesmo que sua língua não possua um termo geral capaz de defini-lo. (HUIZINGA, 1990, p.6)

Através do princípio lúdico que compõe o jogo: na ficção, na máscara assumida para

jogar, na atividade livre, gratuita, regrada, nas convenções criadas em torno do jogo, alguns

autores identificam a proximidade entre o jogo e o teatro (PUPO, 2001; PAVIS, 1999 etc). No

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entanto, mesmo apresentando pontos de contato com o teatro, o jogo precisou passar por uma

sistematização para tornar-se um meio apropriado de ensino da arte teatral. Essa

sistematização foi elaborada de forma semelhante por pesquisadores de vários países, mas

entre as muitas propostas criadas para o uso do jogo destaca-se no cenário brasileiro a vertente

americana representada por Viola Spolin3. Essa autora é responsável pela formulação de um

manual que orienta, tanto professores quanto diretores teatrais, na elaboração de um processo

artístico com a utilização de Jogos Teatrais.

2.2.3 O Jogo Teatral como experiência artística

Spolin (2001) estudou com a socióloga e professora Neva L. Boyd, que foi sua

grande referência. De 1924 a 1927, Spolin estudou na Recreational Training School em

Chicago´s Hull House, fundada por Boyd. Essa instituição era “constituída por voluntários,

destinada à integração e desenvolvimento cultural de filhos de imigrantes” (PUPO, 2006,

p.136). Lá teve um treinamento em jogos, na arte de contar histórias, em danças e canções

folclóricas. Como sublinha Pupo (2006), nesse período Spolin toma consciência da

importância do jogo e da noção de situação-problema dentro de atividades visando à inserção

social daquelas crianças em situação de vulnerabilidade social. Mais tarde, como professora

de drama em Chicago WPA (Works Progress Administration) desenvolveu jogos “não

verbais e não psicológicos” para ajudar no treinamento de alunos de drama e no trabalho

comunitário com imigrantes analfabetos e seus filhos. Em 1946, Spolin muda para Califórnia

para dirigir o Young Actors Company em Hollywood, onde fica até 1955. É nessa época que

escreve Improvisação para o Teatro, cuja versão final é publicada em 1963. Spolin contou

com a contribuição do filho, Paul Sills, para a formulação de sua obra. Sills estava à frente

do Second City, um dos grupos que protagonizou o movimento de renovação teatral norte

americana dos anos de 1960. 4

O livro de Spolin é um manual, o primeiro no gênero, que pode auxiliar tanto

professores, coordenadores de projetos comunitários, como diretores e atores na construção de

um processo teatral com base nos jogos improvisados. Para Spolin, o jogo prescinde da

3 Uma outra corrente que utiliza os jogos em atividades teatrais é de origem francesa: Jogos Dramáticos. Dentre os autores franceses que escreveram acerca do assunto Desgranges destaca: Leon Chancerel (1953), Pierre Leenhardt (1973) e, especialmente, Jean-Pierre Ryngaert (1991). No Brasil, atualmente, Maria Lúcia de Souza Barros Pupo se destaca na produção teórica sobre esse tema. 4 Os jogos teatrais chegam ao Brasil na década de 1970, trazidos por Ingrid Dormien Koudela . A esse respeito ver KOUDELA, I. D.Jogos teatrais. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

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noção de talento ou qualquer pré-requisito anterior ao próprio ato de jogar. Spolin acreditava

que a criança, o jovem ou o adulto não ator, enfim, todas as pessoas podem aprender algo

sobre teatro através da experiência proporcionada pelos jogos.

Com esse manual, Spolin cria um “sistema de atuação estrutural ao isolar em

segmentos técnicas teatrais complexas.” (KOUDELA in SPOLIN, 2001, p.24) Três elementos

da linguagem teatral são selecionados vez a vez como foco de investigação: a percepção

espacial e cenográfica, o espaço ficcional (ONDE), a construção do personagem (QUEM) e

elementos do desenvolvimento da ação dramática (O QUE). Todo o processo está baseado na

proposição de problemas a serem solucionados através do “foco” do jogo. A resolução de

problemas está fundada na idéia de que é o jogador, juntamente com o grupo, quem deve

encontrar suas próprias respostas para as situações vividas na cena. Um exemplo desse tipo de

jogo é:

Mostrar o Quem por meio do uso de um objeto

Dois jogadores - Os jogadores estabelecem um objeto, que vai mostrar Quem eles são. Eles usam esse objeto durante uma atividade. Foco: mostrar o Quem por meio do uso de um objeto.

EXEMPLO: Quem – dois físicos. Objeto – quadro-negro, A e B permanecem sentados calmamente, olhando para algo que está a curta distância diante deles. A levanta-se e caminha até o objeto. Pega um pedaço de giz e escreve alguns números – obviamente uma equação. B observa enquanto escreve, murmura sons indefinidos. A olha para B com interrogação . B concentra-se no quadro-negro e então ergue-se, vai até ele e escreve uma outra equação. B vira-se para A com interrogação. A: “você tem razão, esta é a solução”. (SPOLIN, 2001, p. 125)

Nesse jogo, o “foco” está em estabelecer um objeto e, mantendo uma relação com o

objeto os jogadores devem comunicar, para os demais participantes, quem são os

personagens que o estão utilizando. Durante todo o jogo, desde a escolha do objeto até o

encerramento da atividade, são os participantes que tomam todas as decisões. Todos os

problemas são resolvidos pelos jogadores.

A liberdade pessoal que os jogadores usufruem na área do jogo está fundada no

limite imposto pela regra, que também garante a cooperação e participação de todos. Dessa

forma, também o tema para a elaboração de um processo teatral pode emergir do próprio

grupo. A aprendizagem se dá num nível de complexidade crescente, de acordo com o nível de

cada grupo que se dispõe a investigar a linguagem teatral.

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Um ponto fundamental, nesse aprendizado, é a constante intervenção do professor-

diretor dando instruções para que os participantes mantenham o “foco” de investigação

durante as atividades. Essa intervenção, ou “instrução”, faz com que o participante elabore

soluções centradas no foco do problema proposto, sem desviar seu aprendizado para outros

fins. Cada elemento da linguagem teatral é cuidadosamente exercitado e revisado. Aos poucos

os participantes vão desenvolvendo uma familiaridade com o fazer teatral, conscientizando-se

da função de cada um desses elementos.

A interligação entre foco, instrução, elementos estruturais da linguagem teatral se

completa com a avaliação. A avaliação é imprescindível na construção de um processo teatral,

pois está relacionada com a participação da platéia enquanto parte concreta do treinamento

teatral. Porque “(...) sem platéia não existe teatro.” (SPOLIN, 2001, p.11) Para que o

participante aprenda a comunicar-se com a platéia durante as oficinas teatrais existe sempre o

momento da avaliação. Enquanto um grupo atua, tentando solucionar um problema proposto

pelo Jogo Teatral (sempre observando o foco, que pode ser um objeto, uma pessoa, ou uma

ação na área do jogo), a outra parte do grupo assiste a ele e se manifesta no final. Não para

fazer julgamentos do que estava certo ou errado, mas para apresentar sua “leitura” do que foi

realizado no espaço do jogo, identificando se o problema foi solucionado. Assim como

destaca Pupo:

Na medida em que visa ao desenvolvimento da capacidade de jogo numa perspectiva de comunicação teatral, [o Jogo Teatral] têm na platéia - interna ao próprio grupo de jogadores – um elemento essencial para a avaliação do crescimento dos participantes. (PUPO, 2005, p. 24)

Os encaminhamentos propostos por Spolin (2001) seguem no intuito de preparar o

participante para uma ação cênica não mecânica, não artificial. É por isso que essa autora

insiste na idéia de corporificação de um objeto ou tornar real uma ação através do

equipamento sensorial (físico) dos jogadores. Isso significa que o participante não deve

colocar em cena seus sentimentos, mas tentar comunicar fisicamente no jogo um sentimento

ou uma intenção prevista para determinada cena. Um exemplo de corporificação está presente

no jogo Exagero Físico:

Dois ou mais jogadores - Estabelecem Onde, Quem e O que. Cada ator deve assumir uma qualidade física exagerada que vai manter durante a cena. EXEMPLOS: altura de dois metros, altura de 0,50 m, peso de 100 quilos, sapatos tamanho 50, um peito muito largo, dedo indicador de 30 cm de comprimento, as pernas e pés são de molas, as pernas se pés são de rodinha.

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(...) Os atores andam pelo palco e assumem qualidades exageradas de acordo com a instrução. (SPOLIN, 2001, p. 239)

Nessa atividade, o participante deve escolher um lugar, um personagem e uma ação

assumindo uma qualidade física exagerada. Através de movimentos corporais o jogador deve

mostrar a qualidade física escolhida tomando cuidado para não contar através de sinais ou

palavras que está muito alto, muito gordo ou que os pés estão grandes. O foco, nesse

exercício, é o jogador comunicar onde ele está, quem ele é e o que está fazendo através dos

exageros físicos, colocando todo o corpo a serviço dessa comunicação.

A cada encontro, o coordenador vai incluindo novos desafios e acrescentando outros

aspectos da encenação. É através da forma como cada grupo resolve os problemas que o

coordenador avalia quais os jogos adequados às necessidades dos jogadores.

Um processo baseado nos Jogos Teatrais não precisa partir de um texto pronto, ele

pode ser criado pelos próprios atores como parte da experiência criativa. Mesmo quando se

escolhe um trabalho com um determinado texto, ele é apropriado como mais um elemento no

jogo. Os “signos que emergem a partir do ato de jogar têm a propriedade de iluminar uma

determinada leitura daquele texto, dentre outras possíveis.” (PUPO, 2001, p. 186)

Assim os Jogos Teatrais são conduzidos sempre com base na experiência cênica e na

análise crítica. Eles reúnem valores artísticos através do ato de jogar, associando elementos

próprios da linguagem teatral.

A cooperação entre os participantes que atuam no jogo, fazendo acordos, partilhando

da construção de um projeto cênico, superando possíveis limitações se expondo para o grupo,

imaginando, refletindo, avaliando, agindo, isso permite que se chegue à conclusão de que o

Jogo Teatral fundamenta-se na idéia de que a depuração estética da comunicação teatral é

indissociável do crescimento pessoal do jogador (PUPO, 2001, 2005).

A prática teatral elaborada a partir do sistema spoliniano é uma atividade que está

ligada à proposta contemporânea de teatro. O teatro contemporâneo tem por princípio o

trabalho coletivo, o envolvimento de todo o grupo de participantes na pesquisa teatral,

valorizando a criação coletiva.

A trabalho baseado nos Jogos Teatrais tem na ação coletiva uma de suas características

principais. Os jogos de improvisação organizados por Spolin são um convite à participação

do indivíduo no grupo. Todos os participantes têm a oportunidade de jogar, ou atuar na área

de jogo, através dos princípios de liberdade e divertimento presentes no jogo, e que são

mantidos no Jogo Teatral. As regras têm papel fundamental no Jogo Teatral e favorecem uma

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relação democrática entre os jogadores. Desde que o jogador queira se envolver com a

atividade proposta no Jogo Teatral, pouco importa se ele tem ou não talento. Não existe

apenas uma resposta correta para os problemas propostos nos exercícios, o caminho para a

resolução de tais problemas vem do envolvimento do aluno na atividade e dos acordos

mútuos que vão sendo estabelecidos entre os jogadores. São acordos feitos entre os

participantes ou entre as equipes que jogam. Esses acordos geram novas descobertas que

surgem para resolver situações na área do jogo e que enfatizam a criação coletiva.

Ao elaborar práticas teatrais na escola, hoje os professores ou responsáveis pelo

processo têm nos jogos uma grande contribuição para desenvolver seu trabalho. Através do

Jogo Teatral é possível “fazer com que os participantes de qualquer idade adquiram

consciência sobre a significação do teatro e possam, através dele, emitir um discurso sobre o

mundo” (PUPO, 2001, p.182).

2.2.4 A comunidade como platéia

Os princípios teatrais tradicionais e renovadores nos ajudam a avaliar o sentido e a

finalidade do trabalho teatral que ainda hoje é realizado na escola. Assim, quando uma

encenação está centrada no texto literário, nas exigências de um professor-diretor, resultando

em uma representação artificial, sem expressividade por parte do aluno-ator podemos

identificar o grau de envolvimento dessa prática teatral com os princípios de um teatro

tradicional. Porém a passagem desse quadro para uma outra relação nas práticas teatrais que

preserve a liberdade do jogador, aguce a sua expressividade, permitindo que esse ganhe

autonomia nas oficinas teatrais ou mesmo numa representação, identifica a presença de uma

proposta teatral que caminha com o processo inovador do teatro no século XX. O uso do jogo

como meio de envolver o participante no exercício do ver e fazer teatro é uma dessas

propostas.

A primeira colocação que podemos fazer é que as sensações captadas pela platéia,

através de uma representação do tipo tradicional, é diferente das sensações captadas pelo

espectador que assiste a uma representação mais expressiva dos jogadores em cena. O Jogo

Teatral posto em cena articulado com elementos cênicos (acessórios, objetos, figurino, etc)

que indiquem uma forma criativa e inovadora para determinada representação pode provocar

muito mais o espectador em sua reflexões sobre o que está vendo. O Jogo Teatral, segundo as

indicações de Spolin, leva-nos a pensar na forma de construir um processo teatral que

colabore tanto para a aprendizagem da linguagem dramática dos atores como para a recepção

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dessa peça. Mas quanto ao conteúdo da peça teatral a ser apresentada para a comunidade: De

que maneira poderiam ser incluídas questões de interesse da comunidade? Um processo

baseado no jogo poderia incluir mais facilmente elementos da cultura local, ou dados sobre

problemas da escola e da comunidade?

Entendemos que a comunidade como platéia, apenas assistindo ao que é elaborado

pelos membros internos à escola, ainda é um modo distanciado de relação com pais, família

e vizinhos que vivem no entorno da escola.

2.3 O TEATRO ELABORADO NA ESCOLA E APRESENTADO COM A COLABORAÇÃO DA COMUNIDADE

A característica desse modelo de atividade dramática realizada na escola é que ela

acontece com a ajuda da comunidade: na preparação dos figurinos, na confecção do cenários

ou outras tarefas do processo teatral.

O sentido de colaborar pode estar ligado à questão financeira que envolve o processo

dramático. Por exemplo, não tendo verba para comprar as roupas do figurino de uma

representação, os professores ou direção de uma escola recorrem aos pais ou a comunidade

para que estes ajudem de alguma maneira na montagem da peça. As mães costuram os

figurinos, os pais constroem o palco, a avó empresta uma peça de roupa antiga.

Outra possibilidade é que o grupo gestor da escola entenda que é necessária a

aproximação entre escola e comunidade promovendo esse tipo de encontro através da ajuda

dos pais no processo teatral. Um exemplo dessa situação é quando as mães são convidadas

para passar as roupas do espetáculo, ou a escola convida os pais para juntos elaborarem os

figurinos dos seus filhos, no intuito de manter os pais mais próximos da atividade teatral e da

escola. De uma forma ou de outra, essa ajuda amplia a aproximação da família e escola. Qual

seria a origem desse tipo de aproximação, e quais os benefícios da colaboração da

comunidade em práticas teatrais?

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2.3.1 Origens da colaboração da comunidade na prática teatral

A falta de estudo sobre esse assunto torna difícil precisar em que momento o teatro

na relação escola-comunidade começou a ser feito com a colaboração dos pais, membros da

família ou vizinhos da escola.

Um breve olhar sobre o papel do teatro nas escolas brasileiras, no auge da Pedagogia

Tecnicista, importada dos EUA, pode mostrar algumas características das práticas teatrais e a

participação permitida naquele momento.

Como conseqüência das medidas governamentais ocorridas durante a ditadura militar

nesse período as escolas tornam-se superlotadas, demandando maiores gastos com a

educação. O investimento em educação não aumenta em relação ao “inchaço” provocado na

rede pública. A participação dos pais, diante dessa situação, é vista pelo poder público como

necessária pela colaboração que pode ser dada para manutenção dos estabelecimentos de

ensino. Não esquecendo que, ao mesmo tempo em que se promove a participação dos pais

cria-se um controle burocrático sobre essa participação, limitando o envolvimento desses nas

atividades realizadas na escola. Supomos que diante dessa situação a ajuda da comunidade,

na realização de práticas teatrais na escola, tenha se tornado cada vez mais necessária como

meio de colaborar com os gastos.

No apogeu da Pedagogia Tecnicista, o pensamento em torno das atividades teatrais na

escola era de que para essa arte cabia um papel meramente instrumental. Utilizado para

desenvolver bons hábitos, atitudes e habilidades. Os conteúdos eram pautados na

dramatização de fundo psicológico, quando não assumiam o papel de atividade coadjuvante

de outras matérias do currículo.

O aporte teórico para a prática teatral nas escolas era quase inexistente, em

conseqüência da falta de professores formados para esse área de ensino. Com a LDB 5692/71,

torna-se obrigatório o ensino da arte nas escolas, e surgem cursos nas universidades

brasileiras para formação dos professores de Educação Artística. Inicia-se uma nova

polêmica: a polivalência desse profissional. Isso porque o estudante de Educação Artística

estudava três áreas da arte: música, teatro e artes plásticas, tendo de aplicá-las na sala de aula.

Aquilo que aparentemente parecia ser uma solução para o problema do ensino da arte nas

escolas causou grande polêmica entre os profissionais dessa área. A polivalência do professor

de arte, que se traduz por uma formação superficial nas linguagens artísticas, pode ser

entendida como um máscara colocada na formação do professor para encobrir as reais

intenções do Estado. Num tempo de severa censura, a arte não poderia ser totalmente liberada

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nas escolas havendo, assim, a necessidade de um controle sobre a formação desses

profissionais.

Sem a presença de profissionais capacitados para o ensino do teatro nas escolas, as

atividades teatrais se mantiveram ligadas às representações em festividades comemorativas.

As festas na escola também faziam parte das estratégias criadas para aproximar os pais,

estimulando a colaboração, como meio de angariar fundos para melhoria dos

estabelecimentos de ensino. O teatro nessas festas se torna um entretenimento.

As festividades reforçavam a idéia de moral e civismo, e o teatro era um meio eficaz

de manter viva, na lembrança das pessoas, os feitos dos heróis brasileiros: o Descobrimento

do Brasil, A história de Tiradentes, Dia da Independência, Proclamação da República.

Também festejava-se o “Dia das Mães” , “Dia dos Pais”, e as “Festas Natalinas”, etc. A mais

comum das festas era a “Festa Junina”.

Supomos que uma montagem teatral elaborada para ser apresentada durante uma festa

precisasse de alguns recursos para: construir os cenários, os figurinos, a maquiagem, os

adereços e objetos cenográficos, a ajuda das famílias era imprescindível para que as escolas

públicas realizassem tal tarefa. Os pais e a comunidade entram em cena, não para

compartilhar idéias e dar opiniões, mas para garantir o sucesso das representações ajudando

naquilo que a escola decide fazer.

Com o fim da ditadura militar, as escola brasileiras começam a viver um outro

momento que tem como foco a formação de um ambiente educacional mais democrático,

requisitando uma outra forma de participação da comunidade. Também as festas nas escolas

vão, aos poucos, democratizando-se. A colaboração da família, pais, vizinhos começa a ser

construída de outro modo.

2.3.2 Teatro, festa e colaboração como avanço na relação entre escola e comunidade

Liberada dos limites impostos pela ditadura militar, a festa na escola ganha mais

liberdade; revelando-se, portanto, como uma forma de aproximar a escola da comunidade.

A festa evidencia-se como um espaço-tempo em que é possível o encontro das pessoas

que vivem numa localidade, combinando as mais diversas formas de expressar os bens

culturais do grupo que ali reside. Possui um caráter comunicativo, que geralmente manifesta-

se de forma lúdica e espetacular. O lúdico está presente nos jogos, nas brincadeiras, nas

danças, momento de suspensão e de transgressão da vida cotidiana. A espetacularidade é

decorrente da combinação entre a dança, a história da localidade, o jogo, os trajes típicos,

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naquilo que o grupo considera importante ser lembrado, comemorado e reproduzido. Assim,

torna-se imprescindível observar a festa como um ato coletivo pertencendo a um espaço-

tempo que favorece a aproximação entre os indivíduos. Amaral recorre à Durkheim para

salientar que a festa é necessária para a manutenção da coletividade:

Durkheim diz [que], com o tempo, a consciência coletiva tende a perder suas forças. Logo, são imprescindíveis tanto as cerimônias festivas quanto os rituais religiosos para reavivar os "laços sociais" que correm, sempre, o risco de se desfazerem. Neste sentido, poderíamos imaginar que, quanto mais festas um dado grupo ou sociedade realizam, maiores seriam as forças na direção do rompimento social às quais elas resistem. As festas seriam uma força no sentido contrário ao da dissolução social. (DURKHEIM, 1968, p.536 APUD AMARAL, 1998, sem paginação)

Giacalone (1998) faz uma síntese definindo alguns modelos de festas. Dessas

categorias duas em especial, ao nosso ver, se enquadram no tipo de festas realizadas na

escola. A festa realizada com periodicidade calendarial5 que é usada para comemorar um

tempo cíclico. É um retorno com determinado ritmo temporal, capaz de renovar o cotidiano

de determinada localidade, ou grupo. Compreende um tempo de abundância e desperdício, de

tensões e liberações. Também destacamos a festa que apresenta conexão com um evento

fundante. Esse tipo de festa relaciona-se com um ato de fundação, seja de caráter laico ou

religioso, e celebra a história de um grupo.

A festa significa também “destruição das diferenças entre os indivíduos” (AMARAL,

1998). As pessoas se envolvem com o ritmo da dança, com o prazer da culinária, com o

desperdício, os excessos, a liberação das tensões. No auge da festa, não se afirmam

hierarquias que comandem a diversão e tenham controle sobre os conflitos ocasionais por

conta dos excessos. Giacalone (1998) afirma que a festa, como qualquer evento coletivo,

possui um “estatuto do viver coletivo”, enraizado na vivência de grupo. Por isso cada grupo

cria, ao longo de sua convivência, símbolos e regras que organizam e garantem a

passividade, ou não, dentro do ambiente festivo entre os participantes. Afinal, a festa é uma

experiência possível para todas as pessoas, uma experiência que faz emergir as diferenças,

mas também as semelhanças. Antes de qualquer coisa, a função da festa é de socialização, de

agregação.

A linguagem utilizada no espaço-tempo da festa é polissêmica, pois se exprime de

várias formas: escrita, falada, corporal, musical, visual (GIACALONE, 1998, p.132). A

5 Giacalone apresenta outras categorias de festa: a ritualização dos comportamentos, a gratuidade econômica, a variabilidade de significados e rituais alimentares. (GIACALONE, 1998)

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ludicidade, a representação do imaginário, a variedade de linguagens utilizadas para

comunicar e dar forma às vivências dos grupos e as experiências humanas criam uma

multiplicidade de modos de representação. Logo o teatro pode integrar-se à festa

complementando a espetacularidade ali presente.

Se a escola solicita a colaboração da comunidade na realização de uma festa ou de

um teatro que se torna uma festa haveria uma maneira adequada de ser estabelecida essa

relação de colaboração? É Ann Jellicoe (1987) que nos traz referências para refletir sobre

essa questão. Jellicoe descrevendo o trabalho teatral realizado com não-atores, pessoas de

comunidades rurais no interior da Inglaterra revela os benefícios da colaboração. Diz essa

autora que a relação a ser construída depende de confiança e credibilidade. Esses dois

elementos têm que ser conquistados pelas pessoas que orientam e planejam um projeto com

comunidade. Afirma Jellicoe:

Eu descobri que (...) as pessoas são muito cautelosas para se comprometerem até que estejam certas de que elas não parecerão tolas; que as pessoas irão começar hesitantemente a se doar de alguma maneira; que uma vez que as pessoas estejam seguras, elas darão e dividirão generosamente seu tempo, energia, talentos, habilidades e entusiasmo, e, quando fizerem isto, tornar-se-ão mais a vontade e amigáveis com os outros (...)6 (JELLICOE, 1987, p.8)

Aos poucos, Jellicoe foi descobrindo que grupos com os quais desenvolveu projetos

teatrais sentiam-se satisfeitos em fazer parte do trabalho realizado na localidade onde viviam.

A ajuda da comunidade no trabalho teatral faz com que as pessoas se sintam compartilhando

de uma experiência, sendo responsáveis de alguma forma por ela. A partir do momento que

uma família, o pai, a mãe, o tio, a avó dedicam seu tempo para construir uma peça do

vestuário para seu filho, ou participam de reuniões para decidir como podem ajudar, a

aproximação começa a ganhar um sentido de comprometimento com a unidade escolar.

Jellicoe diz que, quando terminava a apresentação da peça na comunidade, ela notava

uma grande amizade entre as pessoas. Cada pessoa atuava e se comprometia de uma maneira

diferente, mas “havia a mesma vontade de ajudar quando chegava a hora de limpar o palco;

até o policial local vinha no seu dia de folga para ajudar a desmontar os andaimes, e as

6 I discovered that (…) people are very cautious to commit themselves until they are certain they won’t be made to look foolish; that people will begin tentatively to give – in whatever way is in their nature; that once people are secure they will give and share unstintingly their time, energy, talents, skills and enthusiasm and as they do so they will become more warm and friendly towards each other. (JELLICOE, 1987, p.8)

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equipes de homens, mulheres e crianças traziam escovas e baldes e lavaram tudo.”7

(JELLICOE, 1987, p.14)

Ao promover o aumento do comprometimento da comunidade com a prática teatral

realizada na escola, modificamos também uma relação distante dos pais que, ao serem

chamados somente para assistirem a uma encenação na escola, não sabem quanto trabalho foi

despendido para a organização da atividade teatral. Se há uma participação dos pais durante a

elaboração do processo teatral, todo o trabalho passa a ser mais valorizado. A maneira como

são abertas as possibilidades de colaboração da comunidade em processos teatrais realizados

em estabelecimentos de ensino poderia modificar a relação entre escola e comunidade?

2.4 O TEATRO QUE É REALIZADO POR UM COLETIVO QUE CONGREGA ESCOLA E COMUNIDADE

Nesse último modelo, a proposta é a própria comunidade participar da construção da

prática teatral que é elaborada junto com os membros internos da escola. São os pais, a

família, os vizinhos do bairro atuando como não-atores em trabalhos realizados em conjunto

com a escola. Refletir sobre esse tipo de prática teatral, em função de sua originalidade, nos

fez percorrer alguns caminhos em busca de um referencial teórico. Buscamos auxílio em duas

teorias para sustentar os princípios de uma prática teatral realizada entre membros externos e

internos à escola. São elas a teoria do Teatro do Oprimido de Augusto Boal (1988) e a teoria

da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire (2003). Nas interfaces do trabalho desses autores

interessa-nos observar aspectos metodológicos que permitam aos participantes de um

processo artístico refletirem sobre o contexto em que vivem, observando os problemas ali

existentes tentando encontrar possíveis soluções. Contribuindo para que cada participante do

processo forme um discurso sobre a sua relação com os homens e com o mundo que o rodeia.

7“ There was the same willing help when it came to clearing up after the play; even the local police sergeant weighed in to dismantle the scaffolding on his day off, and teams of men, women and children brought brushes and buckets and scrubbed away in a long line across the hall.” (JELLICOE, 1987, p.14)

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2.4.1 Augusto Boal e Paulo Freire: caminhos entrelaçados por uma ideologia

A proposta de Teatro do Oprimido de Boal cria uma nova forma de aproximação entre

o teatro e a população, abrindo a possibilidade de não-artistas participarem de experiências

teatrais. Trata-se de um tipo de teatro comunidade8 que abre espaço para o espectador ser o

protagonista da ação teatral.

O Teatro do Oprimido nasce a partir de uma experiência vivida pelo autor no interior

do Nordeste brasileiro. Conta Boal que, no início da década de 1960, ele, e os demais

membros do Grupo Arena de São Paulo, indignados com a miséria que se espalhava pelo

Brasil criavam peças contra as injustiças sociais. O objetivo dessas peças era “exortar os

oprimidos a lutar contra a opressão” (BOAL, 1996, p.17). Como heróis, os atores, segundo

Boal, usavam a arte para ensinar os camponeses como esses deveriam lutar pelas suas terras,

ensinavam os negros a lutar contra o preconceito, ensinavam as mulheres a lutar contra a

opressão. Foi assim que, em uma determinada localidade nordestina, fazendo o que lhes

parecia inadiável, chegava ao fim mais uma apresentação do Grupo Arena. O espetáculo

emocionou a platéia de camponeses com o texto que dizia: ‘Derramemos nosso sangue pela

liberdade’ (BOAL, 1996, p.17). Naquele momento, um senhor chamado Virgílio, aproximou-

se, elogiou o grupo pela mensagem, dizendo que pensava como eles, e completou:

(...) vamos todos juntos, vocês com esses fuzis de vocês e nós com o nosso, vamos desalojar os jagunços do coronel que invadiram a roça de um companheiro nosso, puseram fogo na casa e ameaçaram a família inteira (...) (BOAL, 1996, p.18)

O grupo todo entrou em pânico. Tentaram justificar a proposta teatral e completaram

dizendo que os fuzis eram objetos cenográficos e não armas de verdade. Virgílio insistiu

dizendo que teria armas para todos. Continuaram argumentando com todas as explicações

que estavam ao seu alcance. Foi quando Virgílio percebeu que o discurso do Teatro Arena

estava distante da prática, concluindo: “Então aquele sangue que vocês acham que a gente

deve derramar é o nosso, não é o de vocês...?” (BOAL, 1996, p.19)

As palavras de Che Guevara: ‘Ser solidário significa correr o mesmo risco’ (BOAL,

1996, p.20) deram o sentido para aquela cena, diz Boal. Não era o gênero teatral Agit-Prop9

8 Ainda hoje não existe uma definição precisa para a terminologia ‘teatro comunidade”. Mas a concepção de um teatro realizado com pessoas comuns, adultos, jovens ou crianças que pertencem a um determinado grupo social, comunidade, ou localidade, discutindo temas relacionados ao seu modo de vida, a suas necessidades, tem ganhado espaço nas teorias teatrais.

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que apresentava problemas. O obstáculo estava no fato de que, enquanto artistas, não eram

capazes de seguir o próprio conselho. A partir dessa experiência, Boal percebe que não

basta ter a atitude de dizer para as classes populares o que é preciso fazer para sua libertação.

É preciso saber o que de fato existe por trás das angústias de cada um, ou o discurso perde o

sentido. Boal conclui que séculos de submissão e exploração, vividas pela população

brasileira, não poderiam ser resolvidos apenas com palavras ditas durante um espetáculo.

Quando passou a ter esse entendimento começou a pesquisar uma nova possibilidade de

produção teatral, já não mais voltada a mensagens. O teatro, nessa nova perspectiva, é

concebido de modo a permitir que a população tenha, através dessa arte, um espaço para

discutir seus problemas. No entanto, Boal reconhece que o teatro não é o lugar para realizar

transformações, é um espaço para o ensaio de possíveis mudanças. Assim, nasce o Teatro do

Oprimido em que pessoas comuns, não atores, podem tornar-se protagonistas da cena teatral.

Em entrevista a Fernando Peixoto, Boal afirma:

Eu já fiz muito teatro de agitação e propaganda. Eu chegava diante da platéia trazendo a palavra de ordem. Trazendo a santa verdade. Meus espetáculos procuravam dizer ao povo como o povo deveria transformar a sociedade, como deveria fazer a revolução. (...) Trabalhava com certezas. Hoje vejo que isso é um absurdo. Hoje eu não sei como ensinar a fazer revolução. Não sei como fazê-la. É juntos que todos precisamos encontrar o caminho. (...) Também não procuramos convencer os espectadores para que aceitem ou sigam nossas idéias e nossas propostas políticas. Ao contrário, o que eu procuro hoje é aprender do público e com o público. (...) Não sei mais que os espectadores. Como antes eu pensava que sabia. Não quero dar lições a ninguém. Nós aprendemos uns com os outros, juntos. Neste sentido, o teatro do oprimido é pedagógico. O que eu procuro é estimular e fortificar o potencial de transformação da realidade que o espectador possui. Não esvazia-lo ou promover a catarse. Assim, as técnicas são tomadas emprestadas ao teatro. Para ensaiar situações. Para ajudar o espectador a encontrar suas próprias soluções, que somente ele poderá encontrar. (BOAL apud PEIXOTO, 1983 p.129)

9 Por conta das mudanças políticas que culminam com a revolução russa (1917), surge uma nova proposta teatral. Na Rússia pós-revolucionária, artistas, intelectuais e trabalhadores, diante do novo momento político, mobilizam-se para “impedir os avanços das forças contra-revolucionárias e informar a população das novas idéias e dos novos acontecimentos”(GARCIA, 1990, p.5). Através do novo Estado, um grande impulso é dado para a formação de grupos que recorrem ao teatro como um poderoso meio de comunicação. São criados organismos culturais fazendo a mediação entre Estado e população. Inicia-se assim o Agit-prop – teatro de agitação e propaganda. A utilização de troupes ambulantes garante a rápida difusão desse tipo de manifestação. O grande impulso dado ao movimento foi através da intervenção direta de célebres personalidades do teatro russo, como Meyerhold e Maiakóvski. A efervescência deste período promove a expansão de um movimento teatral com proporções nunca antes registradas. O Agit-prop com seus “operários-atores” e “trabalhadores do teatro” cria uma nova perspectiva teatral, uma arte proletária que anseia por um “espaço cultural próprio, fora da cultura hegemônica das outras classes (...) em oposição à cultura burguesa” (GARCIA, 1990, p.7)

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Freire, assim como Boal, afirma que a educação é um caminho para a humanização

das relações entre os homens. Sua proposta difere de muitos educadores que assumem uma

pedagogia “bancária”. Com isso quer dizer que tais educadores “enchem” seus alunos com

conteúdos que são “retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram

e em cuja visão ganhariam significação” (Freire, 2003, p. 57). A palavra nesses discursos é

vazia, pois não apresenta uma dimensão concreta. Freire apresenta um método baseado na

relação dialógica entre educador e educando. O diálogo, para Freire, é a chave para ser

construído um processo educacional mais democrático. Ou seja, a ação educacional através

do diálogo não deve ter imposições de conteúdos com sentidos estranhos ao universo em que

o educando se encontra, mas permitam que o educando traga do seu próprio contexto as

informações que se tornam o objeto de estudo. O diálogo deve estar cercado por amor,

humildade e fé no ser humano, e na sua capacidade de entender e mudar a sua visão de

mundo, diz Freire:

Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição - um conjunto de informes a ser depositado nos educandos - , mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada. (FREIRE, 2003, pp.83-84)

A proposta de Boal abrindo a possibilidade para não artistas participarem da cena

teatral pode ser associada à postura do educador freireano frente ao educando. Nesse sentido,

Boal e Freire compartilham de um mesmo ideal, pois têm por finalidade a libertação dos

homens através da palavra que pode se tornar ação para uma transformação. Dessa forma,

teatro e educação estreitam ainda mais seus laços de afinidade.

2.4.2 O método de Boal: exercícios, jogos e técnicas para devolver a “ação ao povo”

O método criado por Boal tem por princípio a superação da relação espectador-ator. O

espectador não mais assiste acomodado em uma cadeira à cena teatral. Esse não mais delega

poderes ao ator, assume ele mesmo o papel do protagonista, alterando a ação dramática,

sugerindo soluções e, por final, discutindo formas de mudar determinada situação.

O Teatro do Oprimido tem como princípio fundamental a “transformação do

espectador, ser passivo, recipiente, depositário, em protagonista da ação dramática, sujeito,

criador, transformador.” (BOAL, 1988b, p.18). Para conseguir que uma pessoa comum, um

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trabalhador de qualquer área profissional se envolva em um tão complexo processo teatral,

Boal reúne uma série de exercícios, jogos, e técnicas que possibilitam o envolvimento de

qualquer pessoa com o fazer teatral.10

Boal apresenta em suas obras: O teatro do oprimido e outras poéticas políticas

(1988a), O arco-íris do desejo: método Boal de teatro e tearapia (1996), Stop: c’est magique!

(1980), Técnicas latino-amerinas de teatro popular: uma revolução copernicana ao contrário

(1988b) e Jogos para atores e não-atores (1999) vários exercícios, jogos e técnicas. Essas

atividades não possuem a mesma organização apresentada no manual spoliniano que

direciona seu sistema para aprendizagem da linguagem teatral, portanto há, por parte dessa

autora uma maior preocupação com a forma como o jogador se expõe no processo teatral. O

objetivo principal dos exercícios, jogos e técnicas no Teatro do oprimido é fazer com que o

espectador ou o grupo de espectadores possam apresentar aspectos do seu contexto que

estejam ligados a alguma opressão que este sofre, ou sofreu, provocando uma reflexão sobre

tal opressão e discutindo possíveis soluções para o problema. O que denota uma maior

preocupação de Boal com o conteúdo a ser discutido, sempre ligado à questões trazidas pelos

participantes. O que não significa dizer que Boal esteja interessado apenas com o conteúdo

do processo teatral, é que a sua preocupação com o trabalho desenvolvido com o não-ator não

se concentra na forma que o trabalho teatral pode assumir.

O processo teatral, geralmente, começa com exercícios que preparam o não-ator para

as atividades subseqüentes. Nesse primeiro momento, é proposto o conhecimento do corpo,

para que cada um observe as limitações e as possibilidades do seu corpo. Um exemplo de

exercício proposto por Boal é:

Exercícios musculares: o ator, depois de relaxar todos os músculos do corpo e tomar consciência de cada um deles, concentra-se nele mentalmente, andava uns passos, curvava-se, apanhava no chão um objeto qualquer – um livro, por exemplo – e, movendo-se muito lentamente, tentava memorizar todas as estruturas musculares que intervinham na realização desses movimentos. (BOAL, 1999, p.62)

Em uma etapa subseqüente o propósito é tornar o corpo mais expressivo. Boal (1988a)

diz que as pessoas vivem no seu cotidiano atividades que condicionam seus corpos

provocando uma “alienação muscular”, e os jogos servem para fazer com que as pessoas se

liberem desse condicionamento. Ao ‘desfazer’ as estruturas musculares, que são as marcas

10 Nesse sentido, Boal e Spolin comungam de uma mesmo princípio, utilizar jogos e exercícios meio de envolver não-atores com o fazer teatral.

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dos rituais vividos no cotidianos de cada indivíduo, as pessoas podem tomar consciência do

seu corpo.

Em seguida são apresentadas as técnicas. O Teatro-Fórum é o mais complexa técnica

de composição do Teatro do Oprimido porque a platéia participa da ação dramática. Para que

o espectador se sinta motivado a participar da ação dramática é preciso, diz Boal, que o tema

discutido seja do seu interesse. Por isso o Teatro-Forúm pode ser realizado por pessoas que

possuem afinidade de interesse: trabalhadores de uma fábrica, fiéis de uma mesma igreja,

estudantes de uma mesma universidade, moradores de um mesmo quarteirão, assentados de

um acampamento dos sem-terra. O Teatro-Fórum inicia-se com uma apresentação

convencional feita por atores. Boal esclarece que no Teatro-Fórum:

O espetáculo é um jogo artístico e intelectual entre artistas e espect-atores. É necessário que o curinga explique aos espectadores as regras do jogo e os convide a fazer alguns exercícios de aquecimento e de comunhão teatral. (BOAL, 1999, p.30)

O texto a ser representado deve ser claro e as personagens bem definidas. As cenas

devem representar um conflito que se deseja resolver. Quando termina a apresentação o

curinga, mediador do debate, pergunta aos espectadores se esses concordam com as soluções

dadas pelos protagonistas para o conflito da peça. Qualquer pessoa da platéia, que esteja

insatisfeita com o resultado apresentado para o conflito, pode assumir o papel do

protagonista, apresentando uma outra forma de lidar com o problema, tentando modificar os

rumos da história encenada. Os atores, preparados para possíveis mudanças, recomeçam a

encenação junto com o não-ator. Cabe lembrar que:

A partir do momento em que o especto-ator toma o lugar do protagonista e propõe uma nova solução, todos os outros atores se transformam em agentes de opressão – ou, se já exercitam essa opressão, a intensificam, a fim de mostrar ao espect-ator o quanto será difícil transformar a realidade-, salvo, é claro, os personagens aliados do protagonista. O jogo consiste nessa luta entre o espect-ator – que tenta uma nova solução para mudar – e os atores que tentam oprimi-lo, como seria o caso na realidade verdadeira, obriga-lo a aceitar o mundo tal como está. (BOAL, 1999, pp.32-33)

O jogo pode ser repetido várias vezes e essas reapresentações serão a matéria para que

todo o grupo envolvido no processo participe da busca de uma possível solução para o

problema apresentado. No Teatro-Fórum não há um vencedor, aquele que consegue dar a

melhor resposta para o problema. O objetivo principal dessa atividade artística é que todos

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podem aprender com a situação de opressão apresentada e as propostas que se desencadeiam

daquela experiência. Dessa forma, as pessoas comuns, trabalhadores ou estudantes, podem

exercitar uma ação para a vida real dando voz a suas angústias e necessidades (BOAL, 1999,

p.32). Para Boal, o teatro é um instrumento que as pessoas podem utilizar para atuarem,

agirem e reagirem em função de suas próprias histórias.

Hoje, no Brasil, os jogos, exercícios e técnicas descritos nas obras de Boal são

material utilizado por muitos professores, diretores, animadores, ou orientadores de práticas

teatrais, nas escolas, nas associações de bairro, nas instituições religiosas, por grupos teatrais

amadores ou profissionais. O que faz aumentar ainda mais a possibilidade de que práticas

teatrais sejam desenvolvidas entre a escola e a comunidade. O material proposto por Boal

pode ser trazido para o grupo pelo coordenador de um processo teatral e servir para elaborar

coletivamente conclusões e possíveis soluções para os problemas apresentados pelo grupo.

2.4.3 A contribuição de Freire para práticas teatrais da escola com a comunidade

A contribuição de Freire para o teatro realizado em comunidades parte da metodologia

dialógica criada por esse autor. O que chamaremos nesse tópico de abordagem dialógica11

parte da teoria de Freire, mas também é influenciada por Boal. A abordagem dialógica no

teatro realizado com não-atores visa a fazer com que os moradores de determinada localidade

se encontrem para identificar, refletir e buscar possíveis soluções para problemas presentes

no seu cotidiano. Esse processo está baseado no respeito as crenças, expressões, enfim o

respeito a cultura local onde vivem os sujeitos que participam das atividades. Nogueira (2002)

apresenta cinco etapas para a realização de uma abordagem dialógica: Preparação para a

interação com comunidades; Identificação do conteúdo; Reunião com as pessoas da

comunidade; Dramatizando os problemas; Continuidade depois da oficina teatral.

A interação com os moradores de uma determinada localidade, para a realização de

uma oficina teatral, começa com o pedido de autorização pelos coordenadores. São os

primeiros contatos, quando os coordenadores começam a conhecer o grupo de pessoas com

11 Também conhecido como teatro para o desenvolvimento de comunidades, essa abordagem foi sendo desenvolvida e aprimorada, principalmente na década de 1980, por coordenadores de processos teatrais de vários continentes: africano, europeu, americano. Os coordenadores que participavam de conferências e congressos internacionais trocavam informações sobre processos teatrais com comunidade sistematizando alguns procedimentos tendo como teorias fundamentais O teatro do oprimido de Boal e a Método dialógico de Freire. Nogueira (2002) apresenta cinco etapas para a abordagem dialógica. Essas etapas foram definidas a partir de dois worshops que aconteceram em Zimbabwe e Nigéria nos de 1980. Sobre esse assunto ver NOGUEIRA, Márcia Pompeo.Towards poetically correct theatre for developmente: a dialogical approach. Exeter: exeter University, 2002.

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os quais pretendem tecer uma relação dialógica. O papel dos coordenadores nesse momento

não é de um especialista que se apresenta para orientar as pessoas na resolução de seus

problemas, mas de um profissional que está abrindo um espaço para que as pessoas se

reúnam para discutir sobre seus próprios problemas.

Num segundo momento, é preciso identificar os possíveis conteúdos que podem

surgir durante a oficina. Para isso os coordenadores têm que observar o movimento da

cultura local, das expressões próprias do grupo que se reunirá para uma experiência artística.

Esse fator é matéria importante para que ali se desenvolva uma prática teatral sem imposições.

Pois quem “atua sobre os homens para doutriná-los, adaptá-los cada vez mais à realidade que

deve permanecer intocada, são os dominadores” (FREIRE, 2003, p.85). Nessa etapa, os

coordenadores são observadores, que circulam pela localidade, conversam com as pessoas, e

se reservam a perguntar e observar. Assim, os coordenadores vão se inteirando dos

movimentos que acontecem na localidade, o trabalho que as pessoas realizam, as atividades

costumeiras nos momentos de lazer, as queixas, as reclamações, enfim, vão formando uma

visão mais abrangente da localidade e das pessoas que ali vivem.

É chegada a hora da reunião, momento em que as pessoas comprovam que desejam

participar das discussões a respeito de seus próprios problemas. Nesse primeiro contato mais

direto, é importante que haja descontração. É momento para a troca de músicas, danças e

jogos entre os coordenadores e os participantes do projeto. Essa etapa pode ser identificada

como o início do reconhecimento de que pessoas diferentes, com conhecimentos diferentes,

podem estabelecer uma relação de respeito. Nesse sentido, a invasão cultural, conceito criado

por Freire, define o que se pretende combater com a utilização de uma abordagem dialógica.

A invasão cultural (...) serve a conquista. Desrespeito as potencialidades do ser a que condiciona, a invasão cultural é a penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos, impondo a esses sua visão do mundo, enquanto lhes freiam a criatividade, ao inibirem sua expansão. (FREIRE, 2003, p.149)

Sem invasão cultural as barreiras entre coordenadores e não-atores podem ser

rompidas. O diálogo se torna franco, o que facilita o envolvimento das pessoas no processo

teatral. Com o diálogo como guia o processo segue na busca do conteúdo do processo teatral,

que não pode ser imposto pelo orientador, deve ser fruto desse diálogo entre orientadores e

grupo. Inicia-se a identificação de um problema. Pode ser proposto que o grupo se divida em

sub-grupos para refletirem sobre os problemas que enfrentam no dia-a-dia, e depois,

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novamente reunidos no grande grupo selecionem aquele problema que mais os aflige.

Existem outras formas de chegar a esse problema foco. O coordenador, que age como

mediador o processo, pode propor que as pessoas em grupos façam desenhos das situações

que lhes aflige, ou criem uma cena teatral representando um momento de opressão. Em

qualquer uma das propostas de identificação dos problemas, o coordenador está atento ao

movimento do grupo, articulando as reflexões. No final dessa reunião, o clima deve voltar à

descontração inicial, com jogos, danças e música

Na dramatização do problema, podem ser propostas diferentes maneiras de

representação. Podem ser utilizadas, por exemplo, técnicas boalinas como o Teatro-Forum.

Importa que a proposta seja acessível à todas as pessoas presentes no encontro. Como

podemos observar a dramatização a partir da abordagem dialógica não está centrada em

uma forma teatral específica, esse método baseia-se no modo como o conteúdo das

dramatizações é escolhido e como o trabalho com esse conteúdo pode permitir que as pessoas

discutam possíveis soluções para seus problemas.

Cada sujeito que se envolve com a dramatização improvisa, cria imagens para

mostrar seu modo de pensar o problema selecionado para a discussão, faz acordos com os

demais companheiros de grupo, se posiciona diante do problema. Cada pequeno grupo

elabora, então, um recorte do problema, partes de um todo complexo. Como nessa etapa

intercalam-se momentos de análise e representação, fazendo e refazendo a dramatização

novos detalhes vão surgindo, revelando várias faces do problema. Aparecem personagens que

estão direta ou indiretamente envolvidos nesse problema, os locais onde os problemas

aparecem de forma mais graves, e as possíveis causas desse problema. A análise, ou leitura

crítica que o grupo vai fazendo, intercalando apresentações e comentários, no fim de um

encontro permite aos participantes, mediados pelos coordenadores, tecer conclusões, e discutir

possíveis soluções. A dramatização, como construção fictícia, permite aos participantes

encontrarem uma forma diferente de ver o seu contexto, fazendo emergir aspectos ainda não

declarados verbalmente. Os moradores da comunidade podem dar voz as suas angústias,

elaborarem suas argumentações e sugerir soluções, isso ajuda a dar confiança ao grupo,

aumentando sua auto-estima. Dessa forma, nessa fase de dramatização, o grupo se fortalece.

A continuidade depois da oficina seria um meio de serem sustentadas as discussões e

reflexões dos moradores sobre seus problemas, e a partir daí poderiam surgir possíveis

mudanças na comunidade. Esse é um princípio no qual se baseiam as teorias do teatro para o

desenvolvimento de comunidades. Também a continuidade das interações, dos encontros e

dramatizações em busca de conteúdos que dizem respeito à realidade dos moradores do bairro

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poderia estar vinculada a outras organizações, ou associações da localidade, isso talvez

garantisse maior sustentabilidade nesse tipo de projeto teatral.

Ainda a respeito das contribuições que o método freireano oferece ao teatro a ser

realizado por um coletivo que congrega escola e comunidade cabe evidenciar um

instrumento, utilizado por esse autor para a educação conscientizadora: o conceito de

codificação. É com base nesse conceito que os coordenadores de um projeto teatral, a partir da

abordagem dialógica, encontram meios para dar encaminhamento à experiência de investigar

um problema, refletir sobre ela e encontrar possíveis soluções.

Como ficou evidente, até esse ponto, o conteúdo levado para uma experiência teatral

deve respeitar a particular visão do mundo que a população tenha. Porém, observa Freire

(2003), que a complexidade da trama social em que vivem os moradores de uma localidade

pode fazer com que esses, diante de um problema, adaptem-se a ele, não conseguindo

percebê-lo de modo crítico. A codificação através do teatro seria, então, um meio de recortar

um problema que parece muito grande, insolúvel, em pequenas partes, ou, episódios que

podem ser representadas. É o próprio morador, ou o coordenador, que identifica esse episódio

dentro de um quadro maior. Uma a uma as partes do problema são reconstruídas de forma

lúdica. Como isso é feito? Em pequenos grupos os moradores identificam peculiaridades do

problema a partir da visão particular que cada um tem de determinado aspecto ligado ao

problema foco. Refletem sobre os episódios apontados, discutem, e elaboram uma

apresentação. Cada pequeno grupo, então, apresenta uma parte do problema. A análise das

muitas situações apresentadas permite que os moradores, junto com os coordenadores,

elaborem uma leitura crítica do problema maior. Nesse momento, são os próprios moradores

descodificando, termo utilizado por Freire, o problema. “A codificação de uma situação

existencial é a representação desta, com alguns de seus elementos constitutivos, em interação.

A descodificação é a análise da situação codificada.” (FREIRE, 2003, p.97). Parte também

desse coletivo, que se reúne para vivenciar uma experiência teatral, pensar sobre possíveis

soluções para o problema.

Um aspecto importante que precisa ser lembrado é que o teatro, como meio de

codificação de um problema vivido por moradores de um bairro, dá uma percepção

distanciada da situação vivida no cotidiano de cada um. Justamente por permitir uma

observação a distância que os moradores, fora do problema concreto, conseguem fazer

abstrações que desvelam “profundos relacionamentos dos atores sociais que passam

frequentemente despercebido” (NOGUEIRA, 2002, p. 79). A codificação é também, segundo

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essa autora, uma forma de focar o diálogo entre os coordenadores do processo e os

moradores que participam do projeto.

Lembramos que não pretendemos aqui definir em toda a sua complexidade o conceito

de codificação freireano. Nosso propósito foi apresentar, em linhas gerais, como a codificação

pode ser utilizada nas experiências teatrais com comunidades dentro de uma abordagem

dialógica. A definição desse conceito na sua amplitude precisaria de um espaço textual que

não cabe para essa pesquisa.

A contribuição de Freire está centrada, então, na abordagem dialógica, que consiste no

planejamento consciente de um coordenador que ao chegar a uma comunidade não impõe

suas perspectivas às pessoas, mas dialoga com elas. Na identificação de um problema e na sua

decodificação o método de Freire pode ser integrado ao processo teatral, ajudando na

investigação de um tema que o grupo, formado por membros internos e externos à escola,

queiram discutir. O papel do orientador se torna muito importante na realização de um

processo teatral, garantindo a democracia no processo de criação.

2.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAPÍTULO

Ao abrir esse capítulo, levantamos três questionamentos: É possível definir diferentes

formas de aproximação entre escola e comunidade através do teatro? Dentre essas formas de

aproximação haveria um tipo de prática teatral que favoreceria a comunhão de interesses da

escola e da comunidade? Essa prática teatral poderia contribuir, enquanto exercício de

democracia, fortalecendo a voz da comunidade e seu poder de reivindicação de uma melhor

qualidade de ensino?

No decorrer das argumentações oferecidas, através dos modelos de teatro na relação

escola-comunidade, foi possível identificar diferentes momentos em que práticas teatrais

promovem aproximação entre escola e comunidade. Essas formas de aproximação podem ser

promovidas isoladamente, mas elementos presentes nos três modelos podem coexistir dentro

de um mesmo processo teatral. Assim um teatro que congrega o coletivo escola-comunidade

pode ser apresentado para uma comunidade maior que vive no bairro. O uso dos jogos como

meio de envolver não-atores no processo teatral pode estar presente nos três modelos de

teatro na relação escola-comunidade. Nada impede que o primeiro modelo - teatro realizado

na escola para ser apresentado para a comunidade- possa ser elaborado com base nas teorias

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freireana e boalina. A divisão em modelos foi utilizada para sistematizar o capítulo já que o

nosso objeto de estudo é a busca por um tipo de prática teatral que passa a contribuir para

exercício o da cidadania, tornando a relação escola-comunidade mais democrática,

mobilizando e conscientizando os não-atores do seu potencial de atuação. Percebemos que a

cada modelo surgia uma maior probabilidade de avanço tanto na aproximação entre escola e

comunidade como na formação de um coletivo capaz de desenvolver o exercício da

democracia. Mas é o terceiro modelo que se torna indicador de maior aproximação e

participação da comunidade na escola. Através das abordagens metodológicas ali

apresentadas é possível pensarmos que membros internos e externos à escola podem tornar-

se conscientes do seu papel de construtores de um projeto que comungue interesses da escola

e da comunidade.

O encontro dos autores que selecionamos para sustentar essa proposta permite-nos

pensar em práticas teatrais que sejam emancipadoras, e que os sujeitos envolvidos no

processo se sintam responsáveis pela construção do evento como um projeto coletivo. É nas

interfaces das teorias apresentadas ao longo do capítulo que percebemos uma mesma

intenção por parte de cada um desses autores na construção de um processo que, sendo

educacional ou artístico, permite que as pessoas se conscientizem do seu potencial de sujeitos

político. Um processo em que todos possam experimentar diferentes maneiras de pronunciar

seu discurso, sobre as mais diversas questões, ao mesmo tempo que exercitem a escuta e a

crítica.

Em cada discurso boalino, freireano ou spoliniano encontramos um termo diferente

que corresponde ao papel do orientador. O orientador é chamado por Spolin (2001) de

professor-diretor, para Boal (1988a) o orientador é o coringa, para Freire (2003) é o educador

ou investigador. Mas todos eles consentem com a idéia de que a atitude de quem dirige a

atividade não pode ser de autoritarismo, impondo seus conceitos sobre as conclusões do grupo

ou sobre o tema a ser abordado. Presente em seus discursos, está a idéia de que não importa se

o participante está fazendo certo ou errado, o grupo age e decide por acordos mútuos

combinados à visão de mundo pertinente aos próprios participantes.

Qualquer pessoa que se coloca no papel de orientador tem a sua história particular de

vida e sua forma de perceber o mundo, que pode ser reproduzida diante de um grupo. Como a

“sociedade autoritária produz uma pedagogia autoritária, uma hierarquização autoritária, uma

família autoritária, um teatro autoritário” (BOAL, 1980, p. 27), essas marcas do autoritarismo

podem afetar o andamento de um processo teatral com não-atores. A partir de uma

intervenção autoritária, o grupo não teria liberdade, durante o processo, para desenvolver suas

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próprias concepções, correndo o risco de assumir como suas as concepções do orientador. Por

outro lado, se a intervenção for espontaneísta, baseada na pura experimentação, sem promover

uma reflexão sobre as ações realizadas, há o risco de cópia de cenas televisivas ou de

repetição de algo realizado anteriormente. Ambas as formas de intervenção autoritária ou

espontaneísta supõe o risco de que o grupo não chegue a conscientizar-se de que independente

da sua condição social, formação acadêmica ou experiências de vida, todas as pessoas são

capazes de atuar. Tanto em práticas autoritárias como em práticas espontaneístas o grupo

não seria levado a momentos de tensão e conflito próprios do exercício democrático. Não

conquistando autonomia em seu discurso e não atingindo desenvolvimento pessoal

Em princípio, é no uso do jogo proposto por Spolin e Boal e na codificação proposta

por Freire que o orientador encontra meios para alcançar a tarefa de provocar o não-ator para

o exercício da atuação. Experimentando as múltiplas formas de comunicação resultantes do

ato de jogar o não-ator tem a possibilidade de emancipar-se do autoritarismo presente nas

relações sociais cotidianas.

A necessidade de criar parceria e ao mesmo tempo de assegurar o toque do diretor sobre a produção exige uma abordagem não autoritária. Durante o jogo todos se encontram no tempo presente, envolvidos uns com os outros, fora da subjetividade, prontos para a livre relação, comunicação, resposta, experienciação, experimentação e fluência para novos horizontes do eu. A direção [ou orientação] não vem de fora, mas das necessidades dos jogadores e das necessidades do momento. (SPOLIN, 1999, p.19)

Num segundo momento, a avaliação, proposta por Spolin e Boal, ou na

descodificação, proposta por Freire, é que o orientador deve tomar o cuidado para não avançar

em suas próprias considerações sobre o tema abordado. Como diz Spolin “nem sempre

podemos ser bem-sucedidos em todas as nossas tentativas de eliminar o vocabulário

autoritário da atmosfera de trabalho.” (SPOLIN, 1999, p.24). Entretanto, no momento da

avaliação ou descodificação, as palavras do orientador são muito importantes. A sugestão de

Spolin é:

Ao transcender as crítica (opinião pessoal) e ao avaliar com base no que funciona e o que não funciona, você [orientador] descobrirá sua nova função como guia, pois as necessidades do teatro são o verdadeiro mestre. (SPOLIN, 1999, p.24)

O professor-diretor deve fazer parte da platéia junto com os alunos-atores no sentido mais profundo da palavra, para que a Avaliação tenha significado. (SPOLIN, 2001, p.26)

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É no conjunto de ações e reflexões, no jogar e avaliar, que se manifesta uma

metodologia conscientizadora. Ela, no entanto, deve ser conscientizadora para ambos:

orientador e participantes da prática teatral. Além de possibilitar ao orientador uma apreensão

dos desejos ou necessidades latentes no grupo, uma metodologia concientizadora “insere ou

começa a inserir os homens numa forma crítica de pensarem seu mundo” (FREIRE, 2003,

p.97).

Kühner (1975) relatando etapas de um trabalho teatral com um grupo de operários do

Rio de Janeiro reflete sobre as dificuldades encontradas pelo grupo por conta do autoritarismo

de um diretor. Essa autora começa a perceber o impacto do autoritarismo sobre o grupo

quando nota que as pessoas, tendo experimentado anteriormente outros métodos de trabalho

se ressentiam da falta de um texto para ser decorado e que servisse de apoio para a prática

teatral. Aqueles operários, que haviam inclusive sido premiados, segundo Kühner, sentiam-se

inseguros sem uma marcação de cena definida por um diretor, e esperavam a avaliação dela,

como diretora, para que estabelecesse o “certo” ou o “errado” a ser feito nas atividades

propostas.

(...) surgia visível, a dificuldade de se expressarem, de assumirem aquela liberdade parcial de dizer em seus próprios termos, improvisar ou realizar ao vivo e a partir de si mesmos o que tinham acabado de ouvir. Deixávamos, assim que cada coisa ouvida apenas agisse como estímulo à criação. E só nos preocupávamos em vencer aquele medo e insegurança, reduzir quaisquer formas de censura, (...) liberando-os dos padrões anteriores, baseados em marcações, inflexões, posturas, etc. (KÜHNER, 1975, p.114)

A imposição de técnicas e procedimentos por parte do diretor-professor ou

coordenador de um processo teatral, sem permitir o que o ator-jogador faça suas próprias

descobertas pode criar uma dependência do indivíduo e do próprio grupo em relação aos

meios aplicados pelo dirigente do trabalho dramático. Os indivíduos não alcançam autonomia

para fazer escolhas ou para avaliar nem a sua própria performance, nem a performance do

outro. Sem desenvolver sua autonomia, seu ponto de vista, o participante sempre tenderá a

repetir as considerações do condutor e dificilmente se revelará um sujeito crítico e consciente

do movimento ao seu redor.

No entanto é possível, no cotidiano das instituições de ensino, elaborar práticas teatrais

nas quais membros internos e externos à unidade escolar atuem juntos no processo teatral

refletindo, dialogando, opinando, criando opções e comunicando suas idéias? E ainda: o

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conteúdo desse trabalho teatral, sendo um tema da história viva das pessoas que vivem no

entorno da escola, contribuiria para a comunhão de interesses entre escola e comunidade?

Através dessas e outras questões levantadas durante esse capítulo vimos que os

questionamentos não se esgotam com a teoria apresentada. Por esse motivo encaminhamo-nos

para o Estudo de Caso em que apresentamos experiências teatrais realizadas com a escola e a

comunidade.

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CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DAS EXPERIÊNCIAS DESENVOLVIDAS NA ESCOLA DESDOBRADA MUNICIPAL JOÃO FRANCISCO GARCEZ E NEI DO CANTO DA LAGOA

3.1 TEATRO NA ESCOLA DO CANTO: O INÍCIO DA PESQUISA

Em 2004, participei de duas experiências teatrais na Escola Desdobrada Municipal

João Francisco Garcez, mais conhecida na comunidade como Escola do Canto. A primeira

foi uma oficina de teatro associada a um projeto maior que acontecia em várias localidades

ligadas à Lagoa da Conceição o Projeto Abraçando a Mãe Conceição. Nessa oficina, que

denominamos Projeto Abraçando, eu, aluna do mestrado na disciplina Teatro para o

desenvolvimento ministrada pela Prof. Dra. Márcia Pompeo Nogueira da UDESC, e Manoela

Galdeano Rangel, aluna da disciplina Estágio IV – Teatro Comunidade do curso de Artes

Cênicas da UDESC – também sob orientação de Nogueira, atuamos como coordenadoras das

atividades. O Projeto Abraçando foi uma experiência instigante. Foram apenas quatro

encontros com a comunidade. Utilizamos basicamente as teorias de Boal e Freire para

realização dessa oficina,. O nosso papel como coordenadoras, do processo teatral na Escola

do Canto tinha como propósito principal identificar problemas relacionadas à poluição da

Lagoa da Conceição. Nesse caso investigaríamos as especificidades do problema da poluição,

do ponto de vista das pessoas que vivem no Canto da Lagoa, utilizando o teatro como

instrumento para essa reflexão.

No primeiro encontro, havia muito movimento ao nosso redor, as crianças brincavam

pela escola esperando as mães que estavam na oficina; um grupo ensaiava capoeira no pátio

interno; e numa outra sala de aula estava um outro grupo fazendo estudo do Evangelho. Tudo

acontecia ao mesmo tempo. Na oficina as pessoas se mostravam atentas e participativas à

proposta de trabalho. O grupo era formado por nove mulheres: sete mães, a diretora da escola,

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e uma pessoa da comunidade. Os jogos e as brincadeiras que utilizamos no primeiro encontro

tiveram o propósito de iniciar o que Boal (1988a) chama de “conhecimento do corpo”:

Seqüência de exercícios em que se começa a conhecer o próprio corpo, suas limitações e suas possibilidades, suas deformações sociais e suas possibilidades de recuperação. (BOAL, 1988a, p. 143)

Segundo esse autor, quando um orientador se propõe a fazer teatro com não-atores, ou

mesmo atores iniciantes, é preciso que comece com algo não estranho aos participantes, e que

sejam atividades que mexam com o corpo. Por isso começamos com uma dança circular, que

já era conhecida de alguns. A dança circular apresentada ao grupo era uma referência aos

elementais da natureza: a terra, o fogo, a água e o ar, às divindades, aos nossos antepassados,

a nós e nossos semelhantes. Essa dança aprendemos na universidade com artistas da Lagoa

que participam da organização do evento Abraço na Mãe Conceição desde seu início. Em

todos os encontro na escola começávamos com essa dança. Em seguida passamos para os

exercícios: jogar seu nome, jogar o nome do companheiro. As brincadeiras ou jogos, com os

nomes das pessoas, foram importantes para a integração dessas com um grupo. Cada jogo

exigia um pouco mais de envolvimento dos participantes. Então, propusemos um jogo de

lançar um objeto para o alto e pegar o objeto do companheiro (no caso o objeto jogado foi um

pé de sapato)1. O jogo dos sapatos tinha como foco o grupo encontrar um ritmo próprio. Esse

foco exigiu empenho e superação das pessoas. Alguns participantes manifestaram o desejo de

desistir, quando não conseguiam realizar a atividade, mas o grupo reagia, incentivavam as

colegas a tentar novamente. Havia acordos, nós desaceleramos as batidas que davam o ritmo,

e aos poucos as pessoas foram percebendo que era preciso concentração. Era preciso estarem

atentas ao som das palmas, a força com que jogavam o sapato, a largura das passadas.

Observar-se e observar o outro era a chave para atingirem o foco do jogo. Apesar de exigente,

o jogo foi uma grande diversão.

Como o objetivo desse primeiro encontro era uma apresentação do projeto, depois

desse primeiro momento sentamos em círculo para buscar junto no grupo histórias de cada

um com o bairro, e as ligações das pessoas com a lagoa.

Os nossos encontros foram limitados, em decorrência do tempo, mas mesmo assim os

jogos foram material constante durante a oficina. Utilizávamos jogos para o aquecimento

1 O grupo fica em pé no círculo, e cada pessoa tem nas mãos um pé de sapato. O orientador dá um comando, uma batida de palmas, por exemplo, todos ao mesmo tempo tem que jogar seu sapato para cima, andar um passo para direita e pegar o sapato do colega que está caindo. O jogo acaba quando o grupo der uma volta inteira no círculo chegando novamente no seu sapato.

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inicial, para envolvermos o grupo nas atividades centrais, e para finalizarmos a oficina. O

segundo encontro teve como proposta a celebração da lagoa. A atividade central foi a

construção de cenas com momentos inesquecíveis vividos na localidade. No terceiro encontro

a proposta eram os riscos que a lagoa sofre. A atividade central desse encontro era fazer a

leitura de um problema vivido pelos participantes através de uma atividade adaptada por

Boal: o teatro – jornal. Selecionamos para a oficina a modalidade: teatro-jornal com ação

paralela.: a notícia é lida por um participante, enquanto que em cena se desenrolam ações que

explicam a notícia ou que a critiquem. (BOAL, 1988b, p.45). A atividade desenvolvida na

oficina partiu da divisão dos participantes em grupos. Dentro dos grupos cada pessoa

pensava e comentava com seus colegas um problema que considerava grave na localidade em

relação á poluição da lagoa. O grupo escolhia uma situação e registrava como se fosse uma

manchete de jornal. Depois cada grupo fazia a apresentação da notícia. Enquanto uma pessoa

lia o restante do grupo encenava a situação. As manchetes apresentadas pelos grupo foram:

- SUIÇA FICA CEGA APÓS MERGULHAR NA LAGOA;

- COMO CHEGAR ATÉ A LAGOA?;

- MORADORES DA LAGOA SOFREM ESCORIAÇÕES AO

PASSEAREM PELA PRAIA DO MAR DE DENTRO.

Na primeira manchete, o grupo relatou um fato real, que nunca apareceu na mídia

escrita ou falada da capital. Uma turista que depois de mergulhar na lagoa tem um problema

ocular que foi medicado por vários especialistas no Brasil. Quando retornou à Suíça a senhora

descobre que a infecção era grave demais. Já havia afetado sua visão e ela acabou ficando

cega de uma vista por causa da poluição da lagoa.

Na segunda manchete, o grupo denuncia que no Canto da Lagoa não é possível ver a

própria lagoa. Os acessos foram privatizados. Os moradores constroem casas na beira da

lagoa e colocam cães enormes que atacam até pescadores que passam de canoa. Também

utilizam o Jet sky de forma abusiva, atrapalhando o passeio de barco das pessoas.

Com a terceira manchete o grupo satiriza uma situação real criando personagens

fictícios. É a história do seu Juvenal que ao sair da missa pisou nas fezes de um “dog

alemão”. Seu Juvenal caiu, machucou-se, e a sua esposa também.

Depois das apresentações o grupo volta para o grande círculo e juntos, com a ajuda

das coordenadoras, tentam identificar as causas desses problemas. A lista de causas fica

assim definida: - as pessoas que têm poder financeiro compram terrenos que não poderiam

ser vendidos, pois estão nas margens da lagoa; - a máquina administrativa não funciona, pois

não faz o que deveria fazer, saneamento básico com qualidade (esgotos tratados), para não

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poluir a lagoa; - existe um ciclo vicioso X virtuoso; - a poluição é em grande parte falta de

vontade política para resolver as questões prioritárias da localidade. O resultado dessa

atividade foi levado para a universidade onde, junto com os demais alunos de mestrado e

graduação, fizemos uma análise de todos os resultados das oficinas que aconteceram em

outras localidades.

As crianças, que não entravam na sala onde estávamos, sentiam-se atraídas pelas

atividades, ouviam os risos e o movimento e resolveram participar ativamente a partir do

terceiro encontro, quando foram chamadas para o encerramento da oficina. Durante a oficina

as pessoas demonstraram interesse em representar a comunidade no dia do evento Abraço na

Mãe Conceição. O grupo da Escola do Canto se reuniu na UDESC com os demais

participantes para um ensaio geral. No dia do evento, no Centrinho da Lagoa, todos estavam

animados com a experiência. Com a estratégia de colocar em cena professores da UDESC,

alunos e pessoas da comunidade, adultos e crianças vindos do Canto da Lagoa se sentiram

seguros e amparados, ao mesmo tempo que estavam excitados por estarem no centro de um

evento que reuniu centenas de pessoas. Com as performances os não-atores puderam contar as

suas angústias, e revelaram sua insatisfação com o poder público e as pessoas que dominam a

Lagoa.

Depois do impacto da oficina realizada na escola e da apresentação feita na Pracinha

da Lagoa da Conceição houve uma solicitação do grupo para que as atividades teatrais na

escola continuassem. No segundo semestre de 2004, outras alunas da UDESC: Mariana

Andrade Godinho e Mauren Kelli Oltramari, da disciplina Estágio V- Teatro Comunidade, da

turma de graduação em Artes Cênicas da UDESC, sob a supervisão da Prof. Dra. Maria

Brígida Miranda iniciaram o Projeto Bruxas2. Nesse segundo projeto, estive presente como

observadora das atividades.

Em ambos os processos, a forma como as mães se sentiam pertencendo ao espaço

educacional pareceu-me algo inédito. Na relação entre os participantes, pais ou profissionais

da escola, o diálogo estava sempre presente. Discutiam-se os problemas e as sugestões de

todos eram ouvidas, até que chegassem a uma posição em que todos estivessem de acordo.

Os acordo eram pacífico, havia tolerância com a história particular de cada sujeito que estava

envolvido com as atividades. As pessoas da comunidade que chegavam na escola eram

espontâneas e tinham liberdade para conversar sobre vários assunto com a diretora. Assuntos

referentes à escola, fatos ocorridos no bairro, ou mesmo questões particulares. Até mesmo as

2 A idéia inicial era incluir esse projeto nas análises a serem apresentadas nesse capítulo, mas por uma estratégia metodológica, decidimos apenas citar o acontecimento desse projeto.

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pessoas que moravam há pouco tempo no bairro compartilhavam dessa liberdade. No

contato com essas experiências percebemos que a comunidade tinha uma história construída

junto com a escola. Na conversa com os participantes, descobri que, nessa história, o teatro

esteve sempre presente. A recuperação de um pedaço dessa história pareceu-me uma maneira

apropriada de responder as indagações sobre o papel do teatro na relação escola-comunidade.

3.2 O CONTEXTO DA ESCOLA

O Canto da Lagoa, bairro em que se encontram as instituições educacionais em

questão, localiza-se entre a serra e a Lagoa da Conceição. Limita-se a uma estrada principal,

com diversas servidões, em direção ao morro ou à lagoa. Esse bairro tem sofrido muitas

transformações nas últimas décadas. Até a década de 1980, a maioria dos moradores eram

pessoas nascidas na localidade e a principal atividade desses era a pesca. Também cultivavam

produtos agrícolas, produziam, por exemplo, farinha que vendiam na feira no centro da

cidade. As mulheres, além do trabalho doméstico, faziam renda e auxiliavam no trabalho da

lavoura. A partir dessa época, com a fama nacional de cidade com qualidade de vida, houve

um intenso crescimento demográfico na região. Chegam no Canto da Lagoa migrantes

vindos de vários estados, principalmente, São Paulo e Rio Grande do Sul. Muitos desses

novos moradores, identificados na comunidade como os “de fora”, têm um poder aquisitivo

maior do que os “de dentro”, os “nativos”.3 As mudanças na comunidade se tornam visíveis a

começar pelo acesso ao bairro, que agora é asfaltado, pelas exuberantes construções as

margens da Lagoa, com muros altos e que ocupam um espaço antes não habitado, pelo

aumento de casas e apartamentos construídos para serem alugados para os turistas, pelos

restaurantes e bares, pelas marinas com lanchas voadeiras e jet skis. Um desenvolvimento que

trouxe vantagens e desvantagens para a comunidade. Contudo queremos evidenciar nesse

contexto as mudanças ocorridas nas instituições educacionais ali existentes: a Escola do

3 Segundo Fantin (1999, p. 42) “É lugar comum classificar como nativos aqueles que nasceram na ilha cujas famílias são hegemonicamente açorianas e já estão vivendo na cidade há várias gerações.” Ao que Fonseca (2000, p. 37) acrescenta “ Observei, durante as conversas que mantinha durante as entrevistas com pessoas nascidas do local que, muitas vezes, estes nascidos no centro de Florianópolis eram considerados ‘de fora’, embora soubessem de sua origem da ilha. Isso demonstra que esta categoria ‘nativo’, para a população, está bastante relacionada com a herança cultural.”

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Canto o e o NEI4 do Canto. O crescimento que alterou a vida da comunidade beneficiou as

instituições de ensino?

No início da década de 1980, quando começaram a ocorrer mudanças significativas no

bairro, havia uma pequena escola estadual que atendia as crianças. Em 1985, foi cedido uma

sala dessa escola para o funcionamento do NEI. Em pouco tempo foi construído, próximo à

escola, um prédio para o funcionamento do NEI. No entanto a escola que atendia as crianças

de 1ª a 4ª série estava em péssimas condições. Para termos uma idéia, em 1995, essa escola,

mantida pelo Estado, ainda era uma escola rural, multisseriada (crianças de séries diferentes

estudando na mesma sala), com apenas uma professora e uma merendeira. Esta escola, a única

escola pública do Canto da Lagoa, tinha apenas 9 alunos.

Por essas referências podemos afirmar que o “progresso” que atingia o Canto da Lagoa

não melhorou a qualidade da educação das crianças da localidade. Enquanto cresciam os

investimentos no bairro, a escola parecia estar abandonada pelo poder público. Diante da

situação em que se encontrava a escola e pelo número de crianças que a freqüentavam, muito

provavelmente os pais preferiam matricular seus filhos em escolas que ficavam em outros

bairros.

Em 1995, um fato novo alterou a história dessa instituição de ensino. A partir de

reivindicações da comunidade e da luta assumida pela diretoria da APP do NEI, a escola de

ensino fundamental foi doada ao Município. Valdir, pai de duas alunas que estudaram na

escola e assíduo membro da APP, diz: “Nós batalhamos muito. Toda reunião que tinha era

com a Secretária da Educação, era com o pessoal da prefeitura. Tivemos que trabalhar. Hoje,

é outra escola. Agora todo mundo quer colocar seu filho aqui, antes ninguém queria colocar.

Tem gente que diz que a melhor escola que tem na Ilha é essa aqui. Porque é bem

organizada.” (Valdir, entrevista pessoal concedida em 17-05-2006). Esse episódio, sempre

lembrado nas conversas que tive com pessoas da comunidade, marca a história do próprio

bairro, motivo de orgulho para as pessoas.

Atualmente a Escola do Canto possui 4 turmas de Séries Iniciais do Ensino

Fundamental – 1ª a 4ª série. No final de 2006 a escola tinha 89 alunos, contando com o

trabalho de 15 profissionais, entre professores e funcionários. A escola possui duas salas de

aula, banheiros, sala da direção, um pátio coberto e um pátio aberto com parquinho, a

brinquedoteca5, a biblioteca e uma quadra de esportes. O que teria ocasionado esta mudança?

4 Núcleo de Educação Infantil. Pertence a rede municipal de ensino e atende crianças menores de 6 anos.

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Intuímos por esses dados que a participação da comunidade, junto com a equipe

gestora do NEI, foi decisiva para melhorar a qualidade na educação das crianças do bairro.

Sabemos que o envolvimento dos pais na luta pela qualidade de ensino é fundamental, mas

muito difícil de acontecer. Quando esta participação começou? O que teria favoreceido esta

participação transformadora?

Uma pista que encontramos foi, ainda em 1994, a construção do Projeto Político

Pedagógico (PPP). É através do PPP que os profissionais da unidade escolar traçam os

princípios norteadores que servem de suporte para a proposta curricular. Neste ano, o NEI do

Canto da Lagoa elabora seu PPP e o constrói levando em consideração a realidade local e

estabelecendo os propósitos da participação dos pais. Várias reuniões com os pais são

organizadas:

As reuniões têm como objetivo esclarecer às famílias sobre os princípios que norteiam a prática pedagógica, conhecer as expectativas da população e ampliar o diálogo com os familiares, para que esses possam participar das decisões e da resolução dos problemas enfrentados na instituição de Educação Infantil (Registro da Coordenadora, 1995, apud, FONSECA, p. 44)

Quando as portas da instituição de ensino foram abertas e a comunidade passou a ser

ouvida, sendo permitido também aos moradores do bairro participarem das decisões ali

tomadas, o coletivo formado por membros internos e externos do NEI foi se fortalecendo. A

conquista da doação da Escola do Canto surgiu desse movimento. Juntos faziam reuniões,

mutirões, festas e buscavam a melhor maneira de resolverem o que consideravam problemas

prioritários. Em meio a essas modalidades de participação, havia um trabalho teatral sendo

realizado pela escola e comunidade. A primeira experiência dessa natureza foi realizada em

1994 com a peça Uma história da Ilha, e em 1995, outra peça teatral se destaca é o Teatro da

festa junina: casamento caipira. 6

Essas duas práticas teatrais foram, portanto, feitas durante o período de transformação

vivido pela escola, teriam elas contribuído para essas mudanças? Qual o papel do teatro nesse

episódio de conquista da escola pela comunidade? Que tipo de prática teatral foi

desenvolvido? Como foi o envolvimento da comunidade no fazer teatral?

5 A brinquedoteca é uma sala com muitos brinquedos, bonecos do Boi-de-Mamão das crianças que os pais ajudaram a construir, figurinos para teatro, fantoches, tambores. A conquista desse espaço foi através de um projeto em parceria com a comunidade, a Fundação ABRINQ e a Prefeitura. A Prefeitura providenciou o material para a construção da sala, os pais construíram a sala em regime de mutirão e a Fundação ABRINQ, através do Programa “Crer para Ver” financiou todos os jogos e brinquedos. 6 Entre esses dois trabalhos teatrais foi realizada a peça Educação não é mole não.

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Através de entrevistas com os envolvidos nos processos teatrais encontrei a maior

parte das informações sobre as experiências. Entrevistei 13 pessoas para a construção desse

Estudo de Caso. Iniciei as entrevistas em agosto de 2005 e a primeira pessoa entrevistada foi

Marilde Juçara Fonseca, também conhecida como Mari, pela comunidade. Mari esteve

presente como diretora7 em todas as experiências teatrais comentadas nessa pesquisa. Era

articuladora dos processos teatrais e moradora do bairro, por isso pode dar informações de

como encontrar as pessoas que participaram das atividades teatrais e onde moravam. Ela

forneceu uma lista de pessoas que haviam participado das experiências e forneceu também

números de telefone. Sua colaboração foi fundamental para a organização desse estudo de

Caso.

Conhecer as pessoas, o lugar onde moram, o que fazem no dia-a-dia, saber

particularmente o que pensam sobre o teatro na relação escola-comunidade, como foi a sua

participação na escola, foi fundamental para a construção dessa dissertação. Trouxe clareza da

relação que mantinham com a instituição de ensino e como se sentiam motivados a participar

das experiências teatrais. As entrevistas trouxeram também algumas certezas sobre as

conquistas que foram sendo alcançadas ao longo do processo de participação.

3.3 AS EXPERIÊNCIAS

3.3.1 Uma história da Ilha

A primeira peça de teatro realizada na escola com a participação dos pais foi Uma

história da Ilha. A apresentação dessa peça foi feita na festa de encerramento do ano letivo de

1994. Uma história da Ilha foi o resultado de um processo pedagógico que teve início na sala

de atividades do NEI, envolvendo crianças do terceiro período8. Em seguida, também

começaram a participar do processo crianças do segundo período, do primeiro período, do

7 Marilde Juçara Fonseca foi diretora do Nei durante as experiências teatrais Uma história da Ilha e Teatro da festa junina. Ainda era diretora quando foi desenvolvido na Escola do Canto o Projeto Abraçando e o Projeto Bruxas. 8 O grupo do terceiro período tinha aproximadamente 20 crianças. Nem todas puderam participar no dia da apresentação, mas todas estiveram envolvidas do processo teatral.

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maternal II9, e suas respectivas professoras, as crianças da escola estadual, o professor de

música do NEI, a merendeira, a diretora, pais, mães, amigos e vizinhos da instituição. O

processo teatral se expandiu em conseqüência do envolvimento da comunidade nas atividades

desenvolvidas no NEI.

Em uma sala de aula do NEI, as professoras Valdelene Vereondina Vieira (Lena) e

Januária Silvestre Quirino (Jane) iniciam o projeto com os alunos do terceiro período

crianças com idade entre quatro a cinco anos. A proposta pedagógica utilizada pelas

professoras inclui os “projetos específicos”. Esses projetos constituíam uma alternativa

curricular que faziam parte do PPP do NEI. Os projetos partiam de “situações e vivências

contextualizadas na história daquele bairro e nas manifestações culturais das famílias

moradoras, considerando as diferentes influências ali existentes.” (FONSECA, 2000, p. 43).

A migração foi o tema escolhido para aquele momento. Esse tema havia sido

identificado pelos educadores como tema de interesse dos pais, através de questionários

enviados às famílias e também por questões relacionadas à realidade da população. Acerca

disso Freire diz que: “Será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o

conjunto de aspirações do povo, que podemos organizar o conteúdo programático da

educação ou da ação política.” (FREIRE, 2003, p.86). Com base nessa concepção os

educadores seguem a proposta de ensino.

Dispostos em círculo, na roda em que iniciavam as atividades, as crianças ouvem as

questões lançadas pelas professoras: será que o Canto da Lagoa sempre foi desse jeito que é

hoje? Quem vivia aqui nesse lugar antes? As questões levantadas pelas professoras

provocaram as crianças, que mesmo muito pequenas, foram levadas a pensar sobre os

contrastes entre o tempo atual e o tempo passado.

Já no início do projeto a família é solicitada a colaborar com o processo de

aprendizagem. A comunicação com a família é feita através de bilhetes que as crianças

levavam para casa pedindo a ajuda da família e de entrevistas realizadas pelas próprias

crianças. Depois de algum tempo de pesquisa, os alunos e a professora chegam à conclusão

que os primeiros habitantes da Ilha foram os índios Carijós. Mas as crianças tinham

dificuldade em compreender que os índios não desfrutavam das possibilidades do mundo

atual, era um outro tempo: sem ônibus, sem restaurante, sem mercado, sem televisão. As

professoras levaram os alunos para a Universidade Federal de Santa Catarina, onde

9 O grupo do segundo período também tinha aproximadamente 20 crianças, o primeiro período 15 crianças e o maternal 12 crianças. No total haviam 67 crianças do NEI envolvidas no processo teatral Uma história da Ilha.

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conheceram uma antropóloga que explicou como viviam os Carijós. O estudo não parou por

aí, as crianças pesquisavam em livros, em casa com a família, reunindo figuras e textos para o

trabalho na sala de aula. As professoras reuniram o material e construía junto com eles

painéis, textos coletivos, contava histórias. Descobriram com a pesquisa que os índios Carijós

faziam canoas de garapuvu, a comida era preparada no fogo de chão, eram ótimos ceramistas

e faziam suas próprias panelas. Viviam em aldeias e organizavam-se em várias casas como

um bairro.

A partir da movimentação gerada pelo projeto, surge a idéia de fazer uma peça de

teatro com as crianças. Para os educadores esse seria um meio de tornar ainda mais eficiente a

aprendizagem. Segundo Koudela, “a imaginação dramática está no centro da criatividade

humana e, assim sendo, deve estar no centro de qualquer forma de educação.”(KOUDELA,

2001, p.29)

Vicente Macedo, o professor de música da escola e Mari, diretora do NEI, reuniram os

dados coletados na pesquisa e fizeram um roteiro sobre a vida dos índios. Como as crianças

eram muito pequenas foram criadas várias melodias adaptando-as a esse roteiro.

As pessoas que estavam envolvidas no processo: professores, funcionários da

instituição, diretora, perceberam que o trabalho não poderia ficar somente na história dos

índios. Era preciso pensar que vieram outras pessoas para a Ilha. A proposta foi aos poucos

ganhando corpo, e as crianças da outra escola, que ainda pertencia ao Estado, foram

convidadas para participar do projeto.

Em função do entusiasmo que tomava conta do projeto teatral a opinião dos pais

também precisava ser ouvida, e essa prática fazia parte do próprio projeto da escola:

A participação da comunidade é fundamental neste processo. A democracia só é significativa quando as decisões são tomadas coletivamente, respeitando as divergências, reconhecendo-se como responsáveis e favorecendo para que os pais e as mães possam assumir seu papel de cidadão (PPP.: 1994 apud FONSECA, 2000, p. 48)

Um grupo de pais que freqüentava as reuniões da escola manifestou durante um

desses encontros o desejo latente em fazer teatro e decidiram que tomariam parte do trabalho

de teatro dando continuidade à história da migração. Daquele momento em diante

começaram a se reunir e convidaram outras pessoas para fazer parte do processo: “Chamamos

quem queria participar. Mandamos bilhetes para casa dizendo que daríamos continuidade

naquele trabalho dos índios que as crianças já fizeram.” (Mari, entrevista pessoal concedida

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em 29-08-2005). Os pais já conheciam o tema e estavam envolvidos com a coleta de dados

bem como com os resultados, isso facilitou o envolvimento deles com o fazer teatral.

Nessa fase do processo, uniu-se ao grupo Reonaldo Manoel Gonçalves, conhecido na

comunidade como Nado, a convite da diretora. Ele colabora com a composição das melodias

para a apresentação que o grupo decide fazer e passa a freqüentar os ensaios que estavam

acontecendo na escola.

Nado se torna um colaborador do processo teatral, talvez mais do que isto “um amigo

colaborador”. O grupo que se formou reunia-se para estudar a seqüência da peça teatral. A

continuação da história ficou assim:

Dias Velho foi um dos primeiros habitantes que chegou na Ilha (depois da passagem dos navegadores e dos bandeirantes), ele montou sua casa lá na praça da Figueira. Veio ele e a família, e trouxeram alguns índios. Ele ficou morando aqui durante um tempo. Um dia, uns piratas chegaram aqui na Ilha, tiveram problemas com o navio e desceram as pratarias. Dias Velho roubou essas pratarias dos piratas. Doze anos depois os piratas voltaram e mataram ele e a família. A Ilha ficou durante mais um tempo sem ninguém. Depois vieram os espanhóis e toda aquela história dos fortes, que a gente não colocou na peça. Contamos a chegada dos açorianos. (Mari, entrevista concedida em 29-08-2005)

O roteiro inicial foi ampliado, e as músicas continuaram a fazer parte das cenas. Parte

era narrada e parte cantada.

As crianças não tinham textos para decorar, aprenderam as músicas na sala de aula

com as professoras. Nado lembra que: “as aulas que as crianças faziam eram aulas de dança,

de brincar de conhecer um pouco mais da sua comunidade.” (Entrevista pessoal concedida em

06-06-2006). A seqüência das cenas foi organizada na seguinte ordem: primeiro entravam as

meninas, sentavam e ficavam fazendo cerâmica no canto do palco, eram as índias. Depois

chegavam os índios que faziam as canoas, e os índios que faziam o fogo. Todos da instituição

de Educação Infantil. Os bandeirantes, que eram as crianças maiores, da escolinha estadual,

entravam na cena com uma corda esticada levando todos os índios embora. Os indiozinhos

iam girando e se embaralhando enquanto eram expulsos de sua terra. Devido à idade das

crianças envolvidas no processo teatral o caráter lúdico se tornou fundamental na

apresentação. Através de elementos simbólicos, como a corda utilizada para representar o

modo como os índios foram expulsos ou mortos, os participantes revelam uma enorme

sensibilidade na produção teatral. Demonstram respeito à manifestação singela dos pequenos

atores sem tirar a força trágica daquele fato histórico.

A primeira música que as crianças cantavam dizia assim:

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MÚSICA: Entrada

Era uma vez, vejam vocês Haviam muitos índios Subindo, subindo e descendo Os morros da Lagoa. Eles viviam, viviam a sonhar Com a terra mais bonita Acreditavam no sol E na Deusa Lua Existiam também animais Podem acreditar como o tamanduá, a paca e o tatu.

Na seqüência, apresentavam a música referente à arte do índio:

MÚSICA: Cerâmicas e esteiras

A arte faz parte da vida do índio Trançando daqui Trançando dali Trançando de cá Trançando de lá Da palha do milho surgiu a esteira Pro velho índio poder repousar E a índia nova trabalhar os utensílios do seu lar Do barro bruto nasceu a cerâmica Amassa de cá Amassa de lá Modela daqui Modela dali Da bola de barro surgiu o jarro Pra água potável poder carregar Da bola de barro surgiu um prato Pro carijó se alimentar. Trabalha daqui Trabalha dali Trabalha de cá Trabalha de lá

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Depois entram cantando as músicas da canoa, do fogo, da caça e pesca:

MÚSICA: Canoa

Eles faziam canoas de garapuvu E eram escultores Usavam também o bambu Com poucas ferramentas De pau e pedra lascada Eles transformavam troncos em canoas

MÚSICA: Fogo

Fogão não existia na tribo dos Carijós Mas o índio sabia fazer um fogo de chão Juntava palha seca e lenha de montão Esfregava dois pauzinhos e fazia um fogueirão.

MÚSICA: Caça e pesca

Caçar, pescar, pra tribo alimentar O peixe e a caça eram fartos de montão Caçavam a paca, o veado e o tatu Pescavam tainha, anchova e camarão Usavam suas armas com muita habilidade Com força e coragem para sobreviver.

Na segunda parte da apresentação, chega Dias Velho. O grupo de adultos fez a

fachada de uma casinha (de papelão). A casa era colocada na cena, Dias Velho (um pai),

entrava na casa e ficava na janela. Chegam os piratas, também adultos, que levam Dias Velho.

A terceira cena: os navegadores, são os açorianos chegando à Ilha. Foi feito uma caravela

imensa, cheia de escotilhazinhas (também uma fachada). Os pais, por trás dessa caravela,

carregavam o barco através do oceano. As crianças ficavam na frente com um lençol azul

mexendo, como se fosse o movimento do mar. Novamente o caráter lúdico aparece para

envolver a garotada no movimento cênico. Algumas mães apareciam em cena representando

as rendeiras. Num lugar visível para a platéia, de um lado do palco, ficava o grupo que

cantava e tocava tambores formado por adultos: a merendeira do NEI, a diretora, o professor

de música, uma mãe e o Nado.

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Existia uma preocupação com o amadorismo do grupo, não havia especialistas em

teatro, por isso a necessidade em representar com música ao vivo. No caso de alguém

enganar-se com alguma coisa o pessoal do coro resolvia na hora. (ANEXO A)

MÚSICA: Bandeirantes

Os bandeirantes começam a descer Vieram de São Paulo Para matar ou morrer Homens rudes, buscam riquezas Chegam na Ilha e não vêem sua beleza Provocam morte, destruição E os índios levam para a escravidão. Os Carijós, povo nativo Os bandeirantes não deixam nenhum vivo Navegadores que aqui passavam Não viam mais os índios que acenavam Continua assim a história musicada: E sem mais índios, sem bandeirantes Dias Velho vem fazer a sua parte Acompanhado de sua família Chega aqui para colonizar a Ilha Uma morada, uma casinha E uma igreja pra rezar a ladainha Uma casa, uma capela, E Dias Velho olha o mar pela janela E fica atento aos invasores Aos piratas e também exploradores E sua filha: Pai tenho medo E assim nasceu Nossa Senhora do Desterro Pressentimento de sua filha Quando os piratas invadem a sua Ilha E Dias Velho assassinado Neste momento acabou-se o seu reinado

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E tanta gente que aqui passou E nossa lha deserta ficou

A vinda dos açorianos marca um outro momento da peça teatral:

MÚSICA: A saída dos açorianos de sua terra natal e a viagem para o Brasil

Vocês terão diz a coroa Uma terra farta e uma comida muito boa Açorianos gente lograda Essas pessoas no porão não comem nada Eram um grupo de açorianos Que na viajem faziam muitos planos Muitos morrem em alto mar E o seu sonho não puderam realizar Muitos morrem adoecidos Pobre coitados estão sendo iludidos E eram de todas as idades E receberam de Portugal a falsidade De açores para o Brasil Pisam na terra que nenhum deles sentiu

MÚSICA: A chegada dos açorianos no Brasil

Mata fechada não tenho casa E como fica pra família sua morada Enquanto isso em Portugal A coroa faz a festa afinal Botado um povo pra responder Que aquela terra é nossa pra valer Foi prometido muitas condição Quando chegaram viram sua situação E a saudade desse povo sofrido Lembram da terra que não deviam ter saído

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E sua vida, seu dia a dia É trabalhar e rezar pra mãe Maria

MÚSICA: Das rendeiras

Rendeira, velha rendeira, com quem aprendeu a rendar? Foi com a onda faceira na praia bordando o mar A onda bordando o mar Rendeira, renda, renda Açores ficando longe Rendeira, renda, renda Amores ficando perto Rendeira, renda , renda

MUSICA: Do pescador

Minha canoa, no balanço do mar no balanço do mar Se Deus ajuda lá na praia vai chegar, lá na praia vai chegar Se o mar é bom minha canoa leva-la a correr Minha família hoje tem o que comer Os meus filhinhos hoje tem o que comer Se o peixe é bom minha canoa levá-la a correr

Os meus filhinhos hoje tem o que comer Os meus filhinhos hoje tem o que comer Quem me ensinou a nadar, a nadar Conhece as ondas do mar, do mar Sabe que vento vai dar, vai dar E onde se pode chegar.

A música teve um lugar especial na apresentação. Foi através dela que o grupo

conseguiu a integração de todos na apresentação, podendo colocar no mesmo palco cenas

constituídas com crianças de quatro e cinco anos, cenas com crianças maiores com até dez

anos de idade e cenas com adultos. O teatro musical, segundo Pavis (2003), tem na música

uma forma integrada, na qual música e atuação são parceiros iguais que desabrocham e se

completam em um gênero novo. ( PAVIS, 2003, p.133)

Contam os entrevistados que havia também uma réplica da ponte Hercílio Luz como

parte central do cenário da peça. Foi Lecinho Vieira, um dos pais que fazia parte do grupo,

quem projetou essa réplica e os demais participantes ajudaram nessa construção.

Para o dia da apresentação foi feito um folder convidando a comunidade.

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Foi pedido um palco para a Prefeitura, cujas as dimensões não foram mencionadas. O

palco foi colocado em frente ao posto de saúde, que fica ao lado da instituição. Contam os

entrevistados que o palco era tão grande que não tinha espaço para a platéia, as pessoas

ficaram na estrada da Rua Geral do Canto da Lagoa. Cada convidado levou uma cadeira de

praia, o trânsito parou, foi um evento imenso. Os pais e pessoas da comunidade enfeitaram o

palco com bambu, colocaram iluminação, porque a apresentação seria à noite. O evento se

tornou uma festa. Um grande número de pessoas estavam mobilizadas com o processo

teatral, como diz Mari: “Estava todo mundo do bairro sabendo que ia ter a apresentação,

porque tinha muita gente envolvida. O trabalho tomou uma proporção que nem a gente tinha

noção. Aquela apresentação foi muito maior que a gente imaginava, cresceu, empolgou todo

mundo” (Entrevista concedida em 29-08-2005).

3.3.2 Teatro da festa junina: casamento caipira

Um fato curioso, observado durante a pesquisa de campo, é que as pessoas

entrevistadas não possuíam imagens de vídeo ou fotos das experiências teatrais. Nos arquivos

do NEI e Escola do Canto, também, não havia nenhum registro fotográfico das peças teatrais.

O que dificultava um pouco o entendimento dos relatos feitos pelas pessoas. Quase no final

das investigações Nado encontrou em seus documentos uma fita de filmadora, em péssimas

condições, e que nos emprestou para que pudéssemos recuperar algumas imagens, coisa a

qual felizmente aconteceu com o trabalho realizado no NEI em 1995. Nessa fita, aparecem

imagens de um ensaio da peça Teatro na festa junina: casamento caipira. Faziam parte do

grupo 16 pessoas: pais, mães, a diretora, ex-alunas do NEI, o Nado e seus amigos da Barra. O

ensaio foi realizado durante a noite, as pessoas ensaiavam num pátio aberto, sem cobertura,

sem piso, no chão de terra batida. A iluminação era muito precária, apenas uma lâmpada

iluminava o canto do cenário improvisado. Parecia fazer frio, as pessoas usavam roupas

quentes. Um ambiente bastante precário para o ensaio de uma peça teatral. Surpreende-nos

ver, durante o ensaio, crianças que correndo e brincando invadem o cenário na troca de cenas,

brincam com os personagens, são os filhos que acompanham os adultos na divertida função de

fazer teatro. Vale lembrar que as crianças não participaram dessa peça. Em nenhum momento,

as crianças, que são pequenas (cinco, seis anos), são repreendidas, elas parecem fazer parte de

um mágico momento. O elemento lúdico está sempre presente, tem cavaleiro laçando boi, tem

boi pastando no campo, tem travessia na Lagoa de canoa, tem assombração, tem diálogos

sérios entre os personagens, tem muita brincadeira e muito respeito. Ensaiam as cenas,

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dançam e aquilo que, às vezes, parece ser um caos, tem uma organização própria. Alguém

inicia uma dança, e os outros vão fazendo a formação, em poucos minutos todos estão

cantando, dançando e se divertindo. Quando assistimos a essas imagens, compreendemos o

entusiasmo dos entrevistados ao relatarem os episódios dessas experiências. Afinal, o que eles

diziam sobre a diversão, sobre os procedimentos nos ensaios, sobre humildade, sobre

tolerância, foi mesmo como descreveram.

As festas juninas realizadas no NEI e Escola do Canto são abertas ao público e

envolvem os pais e as mães. Estes colaboram na venda de comidas típicas com o objetivo de

angariar fundos para as instituições. As festas juninas na comunidade sempre foram um

momento esperado por todos. Como observa uma mãe:

Quando tem as Festas Juninas, que convidam os pais para participarem, para fazerem um casamento caipira, ou pra dançarem, eu vejo que eles gostam disso. Tem um grupinho que está sempre pronto, tem outros que precisam insistir um pouco pra que participem, mas eu vejo que o pessoal aqui do Canto é festeiro, eles gostam de atuar, representar, ou fazer alguma coisa junto com a comunidade.(Entrevista pessoal com Mariana, em 06/09/2005)

As crianças fazem apresentações de quadrilha, pau-de-fita e apresentam a brincadeira

do Boi-de-Mamão. Os pais também costumam fazer apresentações de quadrilha e casamento

caipira.

Segundo Amaral (1998), as festas juninas são uma herança portuguesa no Brasil,

acrescida dos costumes franceses. Os casamentos caipiras dentro das festas juninas acontecem

em decorrência de antigos hábitos trazidos também da Europa que foram sendo modificados

de acordo com a realidade brasileira (AMARAL, 1998, sem paginação).

A organização de uma peça teatral para ser apresentada na festa junina foi motivada

pelo sucesso de Uma história da Ilha. Mari conta que: “Depois de Uma história da Ilha a

coisa ficou muito forte. O tempo todo eu ouvia dos pais: nós temos que fazer teatro. Depois eu

comecei a fazer curso com a Biange10, lá na UFSC, pra aprender um pouco sobre teatro.”

(Mari, entrevista concedida em 29-08-2005). Ao perceber o interesse dos pais por teatro, a

diretora procura maior entendimento sobre essa arte.

O Nado fez contado com os “guris” da Barra11. Esses começaram a fazer parte do

movimento teatral do NEI, junto com os pais. Com isso o grupo de “amigos colaboradores”

10 Prof. Dra. Beatriz Ângela Cabral, também conhecida como Biange. É professora do curso de Artes Cênicas da UDESC.

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aumentou. A presença dos jovens trouxe mais vigor ao grupo, pois vinham dispostos a

interagir com os novos amigos. O movimento agora era de interação entre comunidades, e a

interação dessas comunidades com a instituição de Educação Infantil. .

Não satisfeitos com os tradicionais casamentos caipiras apresentados nas Festas

Juninas, os pais, junto com a direção da escola e outras pessoas da comunidade, criaram a

peça Teatro da Festa Junina. Já no primeiro encontro havia a idéia central de um casamento

caipira que deveria ser diferente, esse era um princípio com que todos concordavam. Juntos

começaram a levantar as primeiras hipóteses de possíveis personagens, lugares e de ações

para compor a história. As cenas foram construídas com base nos costumes da região,

representando os típicos conflitos vividos por muitas famílias da localidade.

Conta Davi, um pai que participou da atividade teatral, que “Era tudo sobre essa

região. Foi mais isso, as famílias daqui e todo mundo aqui conhecia aquela família, como eles

eram. Então a gente fez o seu Manoel Izidoro, que tinha o engenho de farinha. Eu fazia o

Manoel Izidoro.” (Entrevista pessoal concedida em 30-09-2005). Assim foi escolhido o que se

considerou o melhor pré-texto para iniciar o trabalho.

O roteiro ficou assim: “Tinha a Flor, a filha da família, que era jovem. Essa moça

conheceu um cara da Barra. Os homens da Barra, antigamente, vinham cortejar as mulheres

do Canto, e o pessoal daqui não suportava, porque eles vinham tirar suas mulheres, segundo

participantes esse era um fato verídico. O pai da noiva foi convidado para ser festeiro da Festa

do Divino12 e aceitou. A cena começa com o pai sentado na mesa combinando com a família

os planos para a festa. Na festa do Divino, tinha que gastar bastante, às vezes, precisava até

vender um terreninho. Nisso a moça conta que está grávida de um cara da Barra. O pai disse:

‘- Eu não vou fazer duas festa, ela vai ter que casar na Festa do Divino.’ Começou assim a

história, e essa peça também era um musical.” (Mari, entrevista pessoal concedida em 29-8-

2005).

Uma característica dessa apresentação é que as cenas eram intercaladas com

brincadeiras tradicionais. A unidade teatral era quebrada e, por alguns instantes, o grupo que

atuava se divertia com uma brincadeira que possuía alguma relação com a cena representada.

11A Barra da Lagoa é uma localidade de Florianópolis. Conta a diretora que os “guris” , jovens que moravam na Barra, muitas vezes vinham de canoa pela Lagoa da Conceição e desembarcavam no pátio do NEI, que está construída as margens da Lagoa. A chegada dos “guris” movimentava os encontros, traziam tambores e cantavam enquanto navegavam pelas águas. 12 A Festa do Divino Espírito Santo é uma festa religiosa que acontece todos os anos em várias comunidades da Ilha e em outras regiões do país.

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Como na apresentação de Uma história da Ilha o grupo se preocupava em transmitir para a

platéia diversão, encantamento, acentuando o caráter festivo daquele evento.

Os encontros para preparação da peça eram semanais. O grupo ocupava o pátio do NEI

durante uma noite na semana, traziam bolo e ficavam até onze horas, meia-noite, “ensaiando

e brincando”, dizem os entrevistados.

A peça teatral foi apresentada durante a Festa Junina da escola em 1995, e

reapresentada na Festa Junina da AMPOLA (Associação dos Moradores do Porto da Lagoa).

A festa na escola, naquele ano, foi mais movimentada, não era só a escola chamando a

comunidade para o festejar, eram os pais, os novos os amigos, divulgando uma prática teatral

realizada por um coletivo que congrega escola e comunidade. Se os encontros festivos

aproximam as pessoas, os laços sociais tornaram-se mais abrangentes e intensos durantes

essas apresentações.

3.4 A ANÁLISE DAS EXPERIÊNCIAS

No segundo capítulo, utilizamos três modelos de teatro na relação escola-comunidade

como meio de sistematizar o estudo sobre um tipo de teatro que poderia promover o exercício

da cidadania. Retomamos elementos que consideramos essenciais em cada um desses

modelos para fazermos a análise das práticas teatrais desenvolvidas no NEI. Partindo desse

princípio definimos os seguinte tópicos para análise:

- O teatro elaborado no NEI e apresentado para a comunidade do Canto da Lagoa;

- O teatro elaborado no NEI com a colaboração da comunidade do Canto da Lagoa;

- O teatro realizado por um coletivo que congrega o NEI e a comunidade

3.4.1 O teatro elaborado no NEI e apresentado para a comunidade do Canto da Lagoa

No primeiro modelo desenvolvido no segundo capítulo, fazemos uma reflexão sobre os

avanços que foram acontecendo em relação a um tipo de teatro que tradicionalmente era

realizado em escolas centrado no talento de alguns e na declamação de textos, para um outro

tipo de teatro que utiliza os jogos como meio envolver qualquer pessoa com fazer teatral. O

jogo, como metodologia teatral, possibilita ao sujeito que participa do processo teatral

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momentos de experimentação, criação e liberdade. A teoria spoliniana é utilizada como

referência nesse momento. A conclusão a respeito desse modelo de teatro é que a metodologia

dos jogos favorece tanto o envolvimento dos não-atores com o fazer teatral quanto a relação

desses com a platéia. Assim, um processo teatral que tem o Jogo Teatral como metodologia

permite ao grupo decidir sobre o modo como quer explorar a forma e o conteúdo a serem

apresentados e esse fator poderia garantir que questões sobre a cultura local pudessem ser

postas em cena contribuindo para a aproximação entre escola e comunidade.

Com referência a essa proposta, articulada no capítulo anterior, podemos dizer que

tanto no processo teatral de Uma história da Ilha quanto no processo teatral do Teatro da

festa junina: casamento caipira não foi utilizada uma metodologia teatral específica. O grupo

encontrou caminhos durante o processo que estavam ligados em parte a um fazer teatral

tradicional, decorar textos, e em parte estava ligado ao lúdico, a diversão, a liberdade de

expor idéias e criar situações, aos acordos, às trocas, enfim, a uma profunda ligação com o

jogo.

O primeiro encontro dos membros internos e externos do NEI foi um momento de

descobertas, de experimentações, não havia um caminho traçado para seguirem, não havia um

coordenador com experiência em teatro para orientá-los no início dos trabalhos. Na primeira

experiência, os adultos que se reúnem para fazer teatro não pertenciam a um grupo teatral, ou

tinham experiência com teatro profissional. Alguns haviam experimentado o fazer teatral na

escola quando crianças, na comunidade, em festas juninas ou na Igreja. Um pai disse em

entrevista que nunca tinha feito teatro antes da peça Uma História da Ilha. Demonstrando

uma certa resistência inicial a participar do processo ressalta : “Eu não queria, mas

começaram a me convidar. Então eu fui. Começamos a ensaiar, decorar o texto.” (Valdir,

entrevista pessoal concedida em 19-05-2006).13 Além disso, durante as entrevista, percebemos

que as pessoas têm conceitos diferentes a respeito de teatro. Alguns preferem fazer teatro a

partir de um texto, para que possam refletir sobre o seu personagem, pensar isoladamente a

forma de construí-lo e depois fazer os ensaios. Na fala de um pai, fica clara a sua preferência

pelo texto clássico que permite o aprimoramento do personagem. “Eu fiz teatro durante nove

anos no Anabá14. Dois anos eu fiz um pastor e durante sete anos eu fiz José (...) Eu gosto de

andar sozinho pela rua pensando no meu personagem” (Davi, entrevista pessoal concedida em

13 Valdir participou de várias apresentações teatrais no NEI e Escola do Canto enquanto suas filhas foram alunas nessas instituições. 14 Escola da rede particular de ensino do município de Florianópolis, que segue metodologia Antroposófica, Em que esse pai trabalhou durante nove anos.

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30-09-2005). Outros preferem participar de experiências baseadas somente no improviso, sem

nenhum texto prévio, criar no ato da representação. Beatriz, uma mãe de crianças que

estudaram no NEI e Escola do Canto diz: “Eu não tenho muita paciência, aquela coisa séria,

aquela coisa parada [se refere à exercícios de concentração para preparação do personagem].

Eu sou muito de improvisos. Eu gosto muito de escrever, tenho muitas idéias, eu tenho muito

assunto (...) Essas coisas divertem, distraem. Se eu achar engraçado, provavelmente tu

também vais achar (...) e, às vezes, na brincadeira qualquer coisa que tu faça pode virar uma

piada, pode virar um versinho (...) (Entrevista pessoal concedida em 06-09-2005) Outros

preferem pensar a prática teatral como uma terapia, um momento de se soltar, de brincar, de

esquecer os problemas do cotidiano. Podemos confirmar esse fato na fala de uma mãe sobre

um processo teatral vivenciado na Escola do Canto:

(...) a gente fazia brincadeiras nas aulas, exercícios de concentração (...) fazia pequenas esquetes, que a gente inventava. Eram brincadeiras com fala, brincadeiras sem fala, só com o corpo. Para mim, era tipo sair de casa para brincar, eu vinha aqui e esquecia do mundo (...) O movimento de teatro é importante para as pessoas aprenderem a se expressar, aprenderem a essência das coisas. Não sei, acho que o teatro tem muito a ver com terapia mesmo, eu acho. (Mariana, entrevista pessoal concedida em 06-09-2005)

Um aspecto que permite pensarmos sobre o meio que as pessoas encontraram para se

adequar ao trabalho teatral é o fato de que estavam realizando a atividade numa instituição

de Educação Infantil. Espaço esse no qual a linguagem lúdica é primordial. Esse aspecto pode

ter colaborado para que houvesse muita diversão durante o processo. Uma característica dos

encontros eram as brincadeiras, sempre tinha muita “palhaçada”, como diz o Nado. “Nas

rodas de aquecimento nós fazíamos cirandas, brincávamos.” (Nado, entrevista pessoal

concedida em 06-06-2006).

A respeito do uso do jogo podemos citar também a influência que o Nado teve durante

a preparação de Uma história da Ilha. Ele tinha uma vivência prática do trabalho com Jogos

Teatrais a partir de sua vivência semanal, de março de 94 a dezembro de 95, no projeto de

Ratones15 que utilizava o sistema de Viola Spolin como um de seus fundamentos. Nado

entendia que era através da “consciência sensorial”, do envolvimento físico, que cada um

podia descobrir a sua expressividade. Disse na entrevista que tinha sempre em mente uma

regra de Spolin “mostrar e não contar”. Embora não tivessem feito uso do manual spoliniano 15 Ratones é uma comunidade que fica no interior da Ilha de Florianópolis. Sobre o projeto de Ratones ver NOGUEIRA, Márcia Pompeo. “Criando ou dramatizando histórias.” In: Experiências interculturais/CABRAL, Beatriz. Florianópolis: Imprensa Universitária, 1999.

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para desenvolver o processo teatral, o grupo interagia através do jogo, aceito pelos

participantes e pelos estímulos provocados pelo Nado.

Quando eu era bandeirante eu ficava brincando, e cutucava os outros, aí eles entravam no jogo. Eu pegava um pedaço pau, pra fazer que era a arma, e ficava provocando, aí aquele cara entrava no jogo. Um comentava: - Que legal que ficou! Outro comentava outra coisa. Alguém já dizia que parecia com fulano, que não estava ali, mas que morava na comunidade. Então já começavam a incorporar o jeito daquele fulano da comunidade, era um jogo, uma brincadeira. Ninguém dizia: Olha o corpo tem que estar assim, ou faz assim. Era no jogo, na brincadeira mesmo.(...) (Nado, entrevista pessoal concedida em 06-06-2006)

Isso levou a uma “multiplicidade de imagens e associações, que são experimentadas

corporalmente, através da linguagem gestual” (KOUDELA, p. 1999, p.119).

Sobre o conteúdo utilizado para compor a peça Uma história da Ilha podemos dizer

que, embora os pais não tivessem escolhido o tema da peça, indiretamente, essa idéia dizia

respeito a uma questão latente na comunidade16. Quando a questão da migração foi levada

para a sala de aula os professores e direção já haviam definido esse tema como um assunto de

interesse dos pais. Talvez isso explique, em parte, a familiaridade dos pais com Uma História

da Ilha. A própria comunidade naquele momento, 1994, era formada por muitas pessoas que

vinham de outros lugares. Falar de migração era tratar de uma temática universal para os

moradores. Esse tema , segundo a opinião do Nado, gerou um sentido de pertencimento para o

grupo:

(...) a história [utilizada em Uma história da Ilha] foi feita com muito “pertencimento”, contavam a sua própria história, um pouco anterior a ela, a época dos Carijós, os índios, os açorianos. Me parece que eles se sentiam muito parte do que estava acontecendo, eles estavam contando a sua história. O linguajar, o jeito... Então eles adentraram aquele mundo ali de uma forma muito fácil. Se para alguns o teatro é uma linguagem muito difícil, para eles foi muito fácil. (Nado, entrevista concedida em 06-06-2006)

Mesmo havendo no grupo algumas pessoas “de fora”, que não nasceram no Canto da

Lagoa, conhecer um pouco a história da localidade fez com que se sentissem pertencendo

também aquele espaço.

16 Uma pesquisa feita em 1994, para compor o perfil da comunidade a ser definido no PPP do NEI, contou com a participação de professores, funcionários, pais, crianças e foi mais além contou também com a participação de representantes das entidades locais: Associação de Moradores, Comissão da Igreja, Intendência, Delegacia, Posto de Saúde, Centro Cultural. Nessa pesquisa o tema migração surgiu como uma das características da comunidade. (FONSECA, 2000)

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Na segunda experiência, Teatro na festa junina: casamento caipira, o grupo já se

sentia mais preparado para realizar uma apresentação. O caráter lúdico, os jogos, a diversão,

continuaram sendo uma característica do trabalho, mesmo não havendo crianças fazendo parte

do processo teatral. No primeiro encontro foi feito um trabalho de improvisação, os

participantes se dividiram em dois grupo, cada grupo criou uma família, e um lugar onde vivia

essa família. A estrutura cênica “ONDE, QUEM, O QUE” que Spolin (2001) define como

centro de sua proposta para a construção de um processo teatral estão presentes nesse

primeiro encontro do grupo. O que nos faz perceber que, mesmo não definindo uma

metodologia para o trabalho, o grupo ia incorporando ao processo noções sobre a linguagem

teatral oferecidas pelo Nado. Os participantes adquiriam, mesmo informalmente,

conhecimentos essenciais para a organização de uma representação teatral. Isso porque,

diferente do trabalho de Uma história da Ilha nessa prática teatral não havia um texto, ou

fragmento de texto pré-estabelecido. Todo o processo se originou das improvisações, das

brincadeiras, dos jogos internos realizados pelo grupo e, principalmente, pelos diálogo

constante entre os participantes. Esse movimento gerou a textualidade que deu forma à peça

teatral.

As falas emitidas em situação de improvisação, apesar de não serem previsíveis quando resultam tão somente das relações estabelecidas ao longo do jogo, designam, sem dúvida, ordenação referente a alguma textualidade. (PUPO, 2001, p.185)

Dentro das cenas que foram sendo criadas havia sempre aspectos de identificação com

a comunidade, o nome de determinado lugar, o tipo físico de algum morador que todos

conheciam, que se tornava a característica física ou psicológica de um personagens. Inclusive

fatos verídicos eram incorporados às cenas.

O sucesso da peça Uma história da Ilha e a familiaridade do público com o tema

proposto naquele trabalho colaborou para que nesse novo projeto o grupo decidisse por

escolher situações da história local. Mariana, mãe de crianças que estudaram no NEI assistiu a

algumas representações e comenta: “Eu me lembro que a comunidade participava muito, ou

seja, falava, ou gritava, fazia comentários junto com as pessoas que estavam no evento. Não

era uma coisa comportada, brincavam com os personagens, faziam comentários (...)”

(Mariana, entrevista pessoal concedida em 06-09-2005). Parece que na peça do Casamento

caipira houve uma manutenção do sentido de pertencimento criado em Uma história da Ilha,

tanto para os que atuavam quanto para os que a ela assistiam.

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Em ambas as experiências o grupo criou uma espécie de “jogo interno”, um jogo

particular. Estipulavam regras, criavam códigos de comunicação, de que todos participavam.

Dessa forma, as pessoas se sentiam pertencendo ao grupo, e pertencendo a uma nova história,

que estavam escrevendo, uma história de união entre escola e comunidade.

Mesmo sendo uma experiência desenvolvida sem o suporte de uma metodologia

específica, incluindo por vezes, algumas práticas de um teatro tradicional, o grupo sempre

avaliava as expressões que iam surgindo. A avaliação era um fator importante para as relações

que iam sendo estabelecidas pelos participantes naqueles processos teatrais. A avaliação

quando não é feita de forma autoritária, quando não é uma censura ao modo como o

participante age, e sim uma ajuda para solucionar problemas “remove a carga de ansiedade e

culpa dos jogadores. O medo do julgamento (próprio e dos outros) lentamente abandona os

jogadores na medida em que bom/mau, certo/errado revelam ser as correntes que nos

prendem, e logo desaparecem do vocabulário de todos.” (SPOLIN, 2001, p. 24). Improvisar,

jogar, brincar, parece ter sido a regra geral aceita pelo grupo, associada ao respeito, humildade

e doação. Em troca se divertiam, aprendiam e ensinavam.

Se a apresentação era uma necessidade para o grupo, o processo em si determinava o

grande envolvimento das pessoas com o fazer teatral, denotando um momento de

crescimento pessoal para os participantes. “ Parece-me que a apresentação foi apenas um

fragmento daquilo que já acontecia nos ensaios. Toda vez que nos encontrávamos para os

ensaios era uma espécie de apresentação fechada. Era uma apresentação para eles mesmos.”

(Nado, entrevista concedida em 06-06-2006)

3.4.2 O teatro elaborado no NEI com a colaboração da comunidade do Canto da Lagoa

O segundo modelo, apresentado no segundo capítulo, tem como referência a

colaboração das famílias em atividades realizadas na escola constituindo uma forma de

aproximação da comunidade. Na proposta apresentada nesse modelo teatral, festa e

colaboração podem ser considerados como um avanço nas relações entre escola e comunidade

quando nessa relação é permitido aos pais, família e vizinhos que vivem no entorno das

unidades escolares, que participem também das decisões ali tomadas.

Um sentido de colaboração que foi tomado pela Escola Tecnicista, e que ainda é

mantido em muitos estabelecimentos de ensino, é a ajuda da comunidade com aquilo que foi

decidido dentro da unidade escolar. A comunidade colabora com a escola, mas isso não

significa necessariamente que esteja tomando parte das decisões. Um exemplo disso é o pai

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ser chamado para ajudar a fazer o quentão da festa junina ou a vendê-lo, ou ser solicitado à

mãe que faça o figurino que seu filho irá usar na peça organizada pelo professor dentro da

escola. O pai comparece na festa, colabora com o que pode, e a mãe faz o figurino e vai

assistir à peça de que o filho faz parte. A função exercida por esses pais é muito importante

para o andamento das atividades escolares, porém parece limitada em vista do tipo de

colaboração que vimos acontecer no Canto da Lagoa.

Antes de serem desenvolvidas as experiências teatrais em análise, os pais já

colaboravam nas atividades do NEI. Eram assíduos freqüentadores de reuniões e ajudavam

nas festas e mutirões. A família também ajudava na preparação do figurino das crianças

quando tinha uma apresentação teatral. Diz Valdir: “Eu ia [nas reuniões] porque gostava de

falar, dar opiniões. Naquela época, às vezes, tinha pais que iam conversar com os professores

sobre os filhos. Eu ia lá para conversar com a Mari [diretora], ia ajudar. Quando começou o

NEI todos os pais ajudavam, cortavam a grama, limpavam, faziam a horta.” (Valdir,

entrevista pessoal concedida em 17-05-2006). Nesse ambiente de colaboração evidencia-se “a

confiança e a credibilidade” (JELLICOE, 1987). Os membros internos do NEI confiaram e

acreditaram naquilo que os pais podiam fazer pela instituição, e os pais se dispuseram a

participar ativamente das atividades ali realizadas. A relação construída entre escola e

comunidade, sob tais princípios, mobilizou os pais para a construção da peça teatral Uma

história da Ilha. A partir desse episódio, escola e comunidade passam a viver uma

experiência inédita. Nado comenta que:

Naquele período, de 1994 a 1997, implementou-se uma política de permitir que a escola estivesse aberta para a comunidade. Tanto é que muitas pessoas da comunidade tinham acesso à escola, mesmo não sendo aluno ou pai. Tinha crianças que estudaram ali, cresceram e voltavam depois de grandes, para fazer atividades na escola. (Nado, entrevista pessoal concedida em 06-06-2006)

As conquistas da comunidade, APP e direção do NEI, nesse período de 1994 e 1997,

se confirmam principalmente na doação da Escola do Canto para o município, na construção

de uma casinha de estuque em 1995 no pátio da escola, e na intensa participação dos pais no

NEI. Daniel afirma que: “A escola ali do Canto era uma loucura, era uma família, ia todo

mundo, todo mundo fazia mutirão, fazia teatro. As pessoas tinham gosto.” (Daniel, entrevista

pessoal concedida em 30-09-2005). Mais tarde os pais estiveram presentes na construção da

brinquedoteca na Escola do Canto, que atende também as crianças do NEI, na confecção das

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figuras do Boi-de-Mamão das crianças, e as conquistas continuaram. Ainda hoje os pais

participam das decisões tomadas sobre as instituições de ensino.

Retornando ao período em que aconteceram as experiências que estamos analisando,

verificamos que além dos pais e membros da família das crianças, que eram atendidas no

NEI, muitas pessoas do bairro foram tocadas pelo processo teatral. Durante as pesquisas

realizadas para a composição de Uma história da Ilha houve um grande movimento no bairro

em busca de objetos, roupas, histórias. Mari diz que:

As roupas dos personagens, conseguimos tudo emprestado, era uma coisa muito legal. Porque eles [as crianças] foram nas casas pedir as roupas das avós com aquelas saias compridas. Foram pedir as roupas da Dona Chiquita que era benzedeira aqui do Canto. As crianças foram nas casas para saber como eram as roupas, fizeram pesquisas. As rendeiras falaram que antigamente usavam espinho de bergamoteira para fazer renda, no lugar do alfinete. Então [pais e alunos] saíram pelo Canto da Lagoa para arrumar espinhos de bergamoteira para fazer as rendas.” (Mari, entrevista pessoal concedida em 30-08-2005)

Quando os objetos, as roupas e as histórias dos moradores do bairro foram para o

palco já não cabia mais dizer que o processo teatral tinha sido construído por um grupo de

pais e membros internos da instituição. O processo era de todos, dos que atuaram e dos que

colaboraram. Muitas pessoas se sentiam contando aquela história, contando a sua própria

história. Nado conclui que: “A peça, fez a escola se movimentar e movimentar a comunidade.

O pai que foi buscar coisas no mato pra fazer o cenário. Cada um arregaçou as mangas,

montaram comissões, e se lançaram para que a peça acontecesse.” (Nado, entrevista pessoal

concedida em 06-06-2006)

Ambas as peças elaboradas no NEI com a participação dos pais e amigos da escola e

apresentadas para os moradores do Canto da Lagoa tornaram-se um evento festivo.

Percebemos que os projetos teatrais em análise pertencem a duas categorias de festa,

indicadas por Giacalone (1998): festas do calendário da escola , fim de ano e festa junina,

comemorando um tempo cíclico, promovido pela escola e esperado pela comunidade; e festas

que apresentam conexão com elementos fundantes, ou seja, celebram a história da

localidade. Isso, consoante Giacalone, assegura a sobrevivência das instituições. Porque de

tempos em tempos reavivam a memória dos moradores e reforçam o contato das novas

gerações com os hábitos e costumes da localidade.

Um aspecto que ao longo da pesquisa pareceu-nos inquietante é o fato de que havia

indivíduos com hábitos e crenças diferentes, pois tinha os “nativos’ e os “de fora”. Havia a

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dona de casa, o pedreiro, o jardineiro, o professor da universidade, a diarista discutindo as

temáticas das peças.

Sobre esse tema Fonseca (2000) justifica que a festa se fez necessária a fim de que

fossem construídos códigos interpretativos dos significados culturais para que tivessem uma

raiz possível de universalização e comunicação.

A tarefa de universalizar os saberes, os significados culturais locais, foi assumida pelas instituições locais. No caso do NEI – Canto da Lagoa, este compromisso era resultado da intenção de ampliar a participação, princípio do Projeto Político Pedagógico. Um dos caminhos encontrados foi a utilização da festa como um espaço pedagógico de participação. (FONSECA, 2000, p.89)

Portanto a intenção dos membros internos da escola era de unir a todos, os “nativos”

que podiam se identificar com os costumes e crenças da localidade com os “de fora” que

passavam a compreender melhor a formação desses costumes e crenças.

Quando nos encontramos diante de um espaço “outro”, somos tomados por aquilo que De Martino chamava de ‘angústia territorial’, isto é, a dificuldade de movimentar-se e administrar uma dimensão espacial, corporal e lingüística da qual nos escapam os códigos de orientação dos diversos conceitos de limite, como na situação de emigração e perda das raízes. (GIACALONE, 1998, p.131)

Diz Fonseca que a escola não permanece estática com a diversidade social das

famílias, essas mudanças, ao contrário, fazem com que a escola sofra influências, ao mesmo

tempo que interfere na nova ordem social e cultural que ali se forma.

Do ponto de vista dos pais “de fora” observamos o respeito em relação à cultura local.

Fonseca (2000) afirma em sua pesquisa que, na fala de muitos entrevistados, aparece um

contentamento por parte dos pais “de fora” em vencerem certa resistência aos hábitos locais

e passarem a aprender com as diferenças. Na fala de uma mãe, entrevistada por Fonseca, é

possível identificar como esse movimento acontece:

Na escolinha, eu conheci melhor o povo daqui, porque se não fosse no NEI, eu só me relacionava com eles quando ia no comércio. Porque a gente que chegou meio de pára-quedas se juntava com aqueles que também tinham vindo de fora. Acho que tanto nós que viemos de fora, quanto aqueles que já viviam aqui estão aprendendo. Estamos conhecendo as diferentes culturas e assim a gente para de pensar que a nossa é a melhor e respeita mais até o jeito devagar do ‘nativo’. No início, eu me incomodava muito, reclamava até da lerdeza que me atendiam no mercado da esquina, porque estava acostumada com outro ritmo de vida. Depois, eu comecei a ver que o tempo deles é que era diferente do nosso (Cibele, paulista, apud FONSECA, 2000, p.39)

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Giacalone (1998) diz que:

Diferença significa descoberta, reapropriação da própria especificidade, particularidade. Diferença não é, e não pode ser, igual a desigualdade, porque o conceito de igualdade jurídica e social das democracias ocidentais se realiza exatamente quando existe o respeito às diferenças: mulheres, crianças, pobres, imigrantes (...) A festa [e o teatro] se transmite com qualquer forma de linguagem, verbal e não verbal; a cada qual pode ser dada a oportunidade de se expressar na modalidade mais correspondente e aprender outras através da relação e da troca. (GIACALONE, 1998, p. 143)

Em resumo, a escola pode se tornar um ponto de encontro de culturas diversas e

dependendo do tipo de relação que ali é construída proporcionar-se-á um exercício de

cidadania. Teatro, festa e colaboração nas situações que temos analisado demonstram ser um

meio para ampliar esse exercício.

3.4.3 O teatro realizado por um coletivo que congrega o NEI e a comunidade

O terceiro modelo apresentado no capítulo anterior traz a teoria de Boal (1988a) e

Freire (2003) como proposta para um trabalho a ser desenvolvi entre escola e comunidade.

Na interfase do trabalho desses autores encontramos elementos que consideramos importante

para pensarmos o trabalho teatral com não-atores, numa relação dialógica, evidenciando a

história individual e coletiva das pessoas que participam da atividade teatral.

O método criado por Boal foi utilizado apenas na experiência realizada em 2004, mas

conceitos boalinos como transformar o espectador em protagonista da ação dramática, dando

voz ao homem comum, trabalhador de qualquer profissão, para que esse decida o que quer

dizer através do teatro nos leva a pensar também nas experiências que estão sendo analisadas.

Durante um longo tempo a comunidade foi vista apenas como platéia, assistindo experiências

realizadas na escola. Diante da possibilidade do teatro ser realizado por um coletivo que

congrega escola e comunidade de espectador o pai, a mãe, o tio, a avó, o vizinho passam a

ser protagonistas da cena, e a própria história da comunidade pode tornar-se um espetáculo.

Nasce ali a oportunidade do indivíduo ter voz para dizer das suas angústias, suas necessidades

e desejos. Podemos afirmar que esses elementos criavam um tipo de teatro que era construído

a partir do respeito aos participantes, ao seu modo de pensar, permitindo que o grupo

revelasse sua capacidade de comunicar-se criativamente.

A aplicação da metodologia dialógica de Freire (2003) pode ser constatada em várias

fases das experiências. Podemos dizer que já num período anterior às experiências teatrais,

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com a implantação do PPP do NEI, em 1994, a concepção freireana de dialogicidade estava

sendo aplicada em relação à comunidade. Ouvir os pais, família, e vizinhos da escola,

permitindo que esses participassem das decisões tomadas na instituição comprova essa

afirmação.

A temática utilizada nas experiências, tratando de questões que dizem respeito a

situações reais das pessoas que vivem no bairro, também indica a proximidade com o

pensamento freireano. Diz Freire: “(...) a investigação do tema gerador, (...) além de nos

possibilitar a sua apreensão, insere ou começa a inserir os homens numa forma crítica de

pensarem seu mundo.” (FREIRE, 2003, p.97) Durante meses aqueles pais, professores e

demais pessoas, que estiveram envolvidas na discussão da temática de Uma história da Ilha e

Teatro da festa junina: casamento caipira, discutiram sobre situações reais, fizeram

pesquisas, planejaram ações para serem representadas, definiram e construíram cenários

ligados ao tema central da peça, criaram músicas, aprenderam brincadeiras novas. Essas

provavelmente são algumas das muitas situações com as quais o grupo esteve comprometido,

momentos em que o ensinar e o aprender se faziam constantes. Provavelmente, o movimento

gerado pelas atividades vivenciadas levou cada indivíduo a ter um novo olhar sobre a história

do bairro e os construtores dessa história.

Em relação a forma como a diretora se relacionava com os pais sempre “atenta a fala

deles”, como ela mesmo diz, denota que não havia uma hierarquia autoritária impondo idéias

e normas. Na posição de diretora da instituição educacional Mari atuava como articuladora

das experiências teatrais revesando funções com Daniel e Lecinho. Ela mandava os bilhetes

avisando dos ensaios, trouxe o encarte de um jornal da cidade contando a história da Ilha, o

qual serviu de fragmento textual para elaboração da primeira peça. Ainda ajudou na

elaboração das letras das músicas, contando com a colaboração do professor de música e do

Nado. Mantinha contato com todas as pessoas, e estava em todos os ensaios. Lecinho foi ator

no espetáculo, idealizou, projetou e construiu, com a colaboração de outros pais, a réplica da

ponte Hercílio Luz e se destacou como articulador do processo. Já Daniel disse na entrevista

que todos colaboravam, em sua percepção não havia um diretor do espetáculo. “Não tinha

professor nenhum [...] Não tinha uma pessoa coordenando, ‘faz isso, faz aquilo’. Cada um

fazia do seu jeito.”(Daniel, entrevista pessoal concedida em 30-09-2005). Fazer cada um do

seu jeito significa, também, que aquelas pessoas tinham liberdade para experimentar e

descobrir novas possibilidades.

A presença do Nado, que não conhecia as pessoas que estavam participando da peça

Uma história da Ilha, quando foi convidado por Mari para colaborar com as atividades, é

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outra confirmação de que naquele ambiente se exercitava o respeito, a tolerância em busca de

um bem comum, princípios da teoria freireana. Falando sobre o seu relacionamento com o

grupo na primeira experiência teatral Nado comenta:

Eu ficava observando o grupo, e aos poucos eu entrava mais na brincadeira. (...) Eu até via que dava pra fazer diferente, mas eu não gostava de dizer: Oh! desse jeito é melhor. Eu acho que dirigir, indicando como fazer, perdia completamente a graça da história. A gente interagia. Quando a gente chega nos lugares, acho que tem um funcionamento daquele lugar.” (Nado, entrevista pessoal concedida em 06-06-2006)

Nado tinha nesse momento uma preocupação em respeitar o tempo de descoberta de

cada pessoa. Aos poucos, Nado se tornou mais um membro do grupo, não era um visitante

com mais conhecimento tentando impor um modo correto de organizar um processo teatral.

A base do discurso de Freire, o diálogo, esteve sempre presente na organização das

peças teatrais. Foi o meio utilizado para resolver os problemas, encontrar saídas para as

adversidades, criar novas possibilidades, contrapor idéias, trocar informações, descobrir

caminhos. Mari conta que havia idéias divergentes, que eram mediadas pelos participantes.

Mas nenhum dos seis entrevistados que estiveram diretamente ligados aos processos em

análise falaram sobre problemas graves, desunião, brigas ou desistentes.

As teorias de Spolin (2001), Boal (1988a) e Freire (2003), mesmo sendo

desenvolvidas a partir da história particular de cada um dos autores, e trazidas para essa

análise apenas parcialmente, apontam caminhos para a construção de uma relação entre escola

e comunidade. Uma relação que está para além da preparação de espetáculos. Um tipo de

relação que promove um pleno exercício de cidadania.

3.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAPÍTULO

O capítulo que apresentamos trouxe como conclusiva a idéia de que os processos

teatrais não são a única forma de promover aproximação entre escola e comunidade. Outras

atividades realizadas com a participação dos pais também possibilitam o encontro da escola e

comunidade. Nas reuniões e nos mutirões, por exemplo, as pessoas trocam informações,

resolvem problemas sobre a melhoria da instituição, ou discutem sobre o futuro da escola. De

acordo com as políticas públicas da administração municipal, implantadas entre 1993 e 1996,

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os gestores de escolas da Rede Pública Municipal, além do quadro de funcionários, podiam

contratar outros profissionais através da Secretaria Municipal de Educação, na Divisão de

Projetos Especiais.17 O projeto de “Danças Populares” e o projeto do “Boi-de-Mamão” das

crianças, desenvolvidos nesse período, eram extra-curriculares e a comunidade era convidada

a participar. As atividades que foram abertas para a comunidade trouxeram um impulso para a

aproximação da comunidade com o NEI, aumentando a participação dos pais. A partir de

1997, com as mudanças na administração municipal, os projetos especiais são extintos.

Mesmo com as mudanças nas políticas públicas, a direção da Escola do Canto mantém ainda

hoje o objetivo de integrar escola e comunidade. Ainda são realizadas as festas juninas com a

colaboração dos pais, apresentação de quadrilha e Boi-de-Mamão, o “Dia da família na

escola” e outras atividades que são propostas durante o ano, como um passeio com

formandos ou mural que uma mãe decide fazer para a escola. 18

No caso do NEI, o teatro nessa instituição, feito junto com a comunidade, dentro de

alguns princípios, permitiu um intenso envolvimento dos pais, família e vizinhos com as

instituições de ensino. Os princípios em que as práticas teatrais estavam fundamentadas

fizeram surgir uma relação mais democrática entre escola e comunidade.

Tais princípios dizem respeito a não imposição de uma hierarquia autoritária, ao

respeito às crenças e hábitos das pessoas que vivem na localidade e à construção de uma

relação dialógica entre membros internos e externos da instituição de ensino. Com isso, as

experiências teatrais foram além daquilo que usualmente as escolas brasileiras já vêm

realizando: elaboram peças teatrais, organizam festas e apresentações artísticas, chamando os

pais para colaborar. O que vemos acontecer nas instituições educacionais do Canto da Lagoa

não parte de uma invenção criada pelos membros internos e externos à escola. O novo ali

presente é a possibilidade de uma participação mais ativa da comunidade em eventos que as

instituição educacionais já realizam. O novo está na relação construída entre escola e

comunidade partindo de uma metodologia dialógica de ouvir a comunidade sem impor regras,

mas trocando informações. O novo está também na possibilidade de um movimento lúdico,

com jogos, brincadeiras e diversão fazendo parte da relação que os pais e família constroem

com a escola. Sob essas condições, abrir as portas da escola não significa somente deixar a

17 Na gestão da Frente Popular (1993-1996), foi criada na Secretaria de Educação uma divisão de Projetos Especiais, com o objetivo de expandir as propostas das instituições educativas para além da sala de aula, oferecendo aos alunos atividades extracurriculares, com professores contratados pelo município. (FONSECA, 2000, p. 45) 18 Em 2006, depois do período de aula, a escola continuou sendo aberta para o grupo de capoeira e para o estudo do Evangelho.

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comunidade utilizar o espaço público, mas permitir que a comunidade tome parte nas decisões

ali tomadas. Os entrevistados comentam que aliado ao fato de gostarem de fazer teatro está o

desejo de conquistarem uma educação de qualidade para seus filhos. Nado diz que:

Os pais do Canto tinham uma política de brincadeira, de muita gozação. Nesse brincar não tinha essa coisa dos “de dentro” e os “de fora”. O Daniel que é do Canto brincava com o Pedro que é gaúcho. Ali se construía uma relação muito horizontal, no fazer. O cara que limpava jardim com o cara que era doutor na Universidade Federal. Ali a idéia era uma educação de qualidade para os seus filhos. O objetivo era esse. Isso vai contribuir, então vamos trabalhar. A ponto de muitos pais tirarem os seus filhos de escolas particulares e colocarem lá por causa da qualidade de ensino. (Nado, entrevista pessoal concedida em 06-06-2006)

O papel desempenhado pelo teatro nesse movimento foi contribuir para que as pessoas

exercitassem seu potencial enquanto cidadãos, que possuem responsabilidades, mas tem

direitos a serem reivindicados. O teatro possibilitou a organização de um coletivo que se

fortalecia a cada encontro, a cada obstáculo vencido, a cada apresentação realizada. As

pessoas puderam, através do teatro, ir além do fazer cotidiano e romperam algumas barreiras

como: falar em público, expressar suas idéias, defender seus argumentos, superar as

diferenças, fazer descobertas, criar possibilidades, transformar discurso em ação. Vivenciaram

um momento em que era possível experimentar, ousar, criar, avaliar, refletir, agir.

Podemos dizer que a transformação que a Escola do Canto sofreu, tornando-se uma

escola em que os pais tem orgulho em dizer que é um estabelecimento de qualidade, teve um

bravo grupo mobilizado por essa conquista. O papel do teatro foi potencializar essa

mobilização de escola e comunidade. Naquele coletivo que foi se formando durante as

experiências teatrais não havia mais os “de dentro” e os “de fora”, não havia mais separação

entre escola e comunidade. Havia um grupo preocupado em construir uma escola com

qualidade. Havia um grupo que era mais que comunidade e escola, como muitos entrevistados

afirmam: era uma família.

Concluindo, em meio ao movimento participativo, houve a luta e a conquista da

Escola do Canto. Mais do que isso, de 1995 até os dias atuais, a escola tem crescido e se

modificado. Certamente essas conquistas foram fruto de um pleno exercício de cidadania.

Fazer teatral num coletivo que congrega escola e comunidade fez parte desse exercício. Não

queremos dizer com isso que as práticas teatrais realizadas nas instituições educacionais do

Canto da Lagoa foram o único meio para tais conquistas, mas, com certeza, contribuíram

para essa transformação.

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CONCLUSÃO

Durante o tempo em que estivemos elaborando e redigindo essa pesquisa uma questão

central guiou nossas investigações: o teatro pode contribuir para a relação escola-

comunidade? É a partir dessa questão que apresentamos nossas conclusões tendo sempre em

vista o que disseram os entrevistados, as informações obtidas nos dados encontrados nos

arquivos, as reflexões sobre as observações feitas e a revisão do material bibliográfico.

O cenário trazido para o estudo da questão em foco aponta para a possibilidade da

participação dos pais, que vivem no entorno da escola, contribuírem para o alcance de

conquistas políticas e pedagógicas, melhorando a qualidade do ensino, o que tem sido

amplamente discutido no âmbito educacional. No entanto a polêmica que esse assunto causa

ainda nas unidades escolares justifica-se pelo histórico dessa relação. Episódios de

paternalismo, em que a comunidade é vista como objeto de cuidado da escola, incapaz de

tomar decisões, somaram-se a episódios de controle das ações populares. Essa marca do

autoritarismo persiste nas práticas educacionais, ainda hoje, o que dificulta a participação da

comunidade.

Tendo essa idéia em mente, através dessa pesquisa entendemos que para superar os

condicionantes do autoritarismo é preciso ir além dos mecanismos formais e ritualistas da

representação dos pais na escola. Ou seja, o processo decisório deve ir além do direito ao

voto para a escolha dos representantes do Conselho Deliberativo e dos representantes da APP.

Considerando que o exercício da democracia se dá pelos acordos estabelecidos na resolução

dos conflitos, divergências e tensões, que surgem a partir das diferentes opiniões dos

envolvidos no processo democrático, a participação nas decisões a respeito da escola pode ser

estimulada, também, em atividades menos formais. O teatro, nessa pesquisa, possui esse

caráter. Ser uma atividade informal, paralela aos canais formais de participação, tendo como

objetivo inicial promover o encontro entre membros internos e externos à instituição

educacional. Através do relato de Laura, uma moradora do bairro que participou do Projeto

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Abraçando e Projeto Bruxas, é possível perceber a importância da atividade não formal no

espaço educacional.

Eu noto que nas reuniões quem sempre fala são os mesmos. Muitas vezes a linguagem utilizada na escola inibe aquele que não está preparado para se expor, dar opiniões, [será] que estou certo ou errado? Várias vezes eu escutei reclamações que as mães tinham para fazer e eu dizia: “- Leva para a escola [essa reclamação].” Elas me respondiam: “- Eu não tenho coragem, fala você.” Eu acho que qualquer atividade que puxa para o informal são espaços que tu consegue se entrosar mais. [No teatro] tu chama aqueles que as vezes não vão, porque não tem espaço para falar. (Laura, entrevista pessoal concedida em 22-03-2006)

A partir dessa perspectiva buscamos compreender os caminhos do teatro na relação

escola-comunidade e quais os princípios que definem o tipo de teatro capaz de contribuir para

o exercício pleno da cidadania.

A complexa trama vivida no cotidiano das escolas costuma apresentar contradições

entre atitudes e práticas, porém as pessoas envolvidas no processo pedagógico nem sempre

conseguem percebê-las. Desse ponto de vista, seria preciso que os membros internos da

instituição definissem quais as ações que poderiam ser realizadas para a construção de uma

relação mais democrática entre escola e comunidade.

A contradição entre teoria e prática é percebida por Elenice que disse, em uma

entrevista, não entender a organização da nova escola que sua filha precisou freqüentar

quando saiu da Escola do Canto para cursar a 5ª série do Ensino Fundamental. Ela reclama da

falta de respeito com os pais, a direção da escola muda o dia das atividades já programadas e

não pede a opinião deles. Isso causa transtorno, comenta Elenice, porque já deixou o trabalho

de diarista por um dia para participar de uma atividade que não aconteceu. Conta Elenice

que: “Eles [a direção da escola] só falam isso: ‘A gente quer que os pais venham participar.’

Tudo bem, mas o que eles querem que eu vá fazer lá [...] Na Escola do Canto eu estava

sempre participando, estava sempre lá, sabia de tudo o que estava acontecendo.” (Elenice

participou do Projeto Abraçando e do Projeto Bruxas) (Entrevista pessoal concedida em 27-

03-2006).

Retornando ao período das experiências analisadas percebemos que no NEI, já em

1994, o PPP- Projeto Político Pedagógico é elaborado com base no princípio de que as

relações entre escola e comunidade precisam acontecer num movimento democrático, tendo

como princípio ouvir a comunidade e permitir que a família esteja mais próxima da instituição

de ensino. O grupo gestor abre as portas da instituição para ouvir a comunidade e

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questionários são utilizados para identificar os desejos e as necessidades latentes no bairro. A

partir dessas ações foram encontrados os “interesses coletivos” (Paro, 1995, 2001) da

instituição de ensino e da comunidade.

A aproximação da comunidade não ficou apenas registrada nas páginas do PPP e no

discurso dos professores. Ultrapassou o discurso e se fez prática. Pais, famíliares, amigos

colaboradores, ex-alunos da escola, pessoas que vivem no bairro puderam participar

ativamente das atividades que juntos decidiam fazer: mutirões, festas e peças teatrais. Essas

ações coletivas, definidas no PPP da instituição, foram alimentadas por interesses comuns,

diagnosticados pelos membros internos da instituição. A peça teatral Uma história da Ilha

surgiu como um instrumento para refletir sobre a migração, um tema de interesse coletivo no

Canto da Lagoa. È assim que o teatro no NEI feito junto à comunidade começa a se tornar

uma atividade costumeira.

O conteúdo das experiências analisadas está ligado às crenças, expressões, e hábitos

da comunidade. Como em uma abordagem dialógica, antes das experiências teatrais

começarem, o PPP já trazia um perfil dos moradores do bairro. O que os profissionais do NEI

queriam de fato era ouvir a comunidade, conhecer as suas preocupações, seus desejos e suas

necessidades. A resposta a esse modo dialógico de tratamento foi o comprometimento dos

pais com o processo artístico.

Todo esse movimento só aconteceu porque as relações entre os membros internos do

NEI e membros externos a essa instituição não estavam firmadas sobre bases burocráticas,

hierárquicas e autoritárias. Como afirma Paro (2001), não pode haver democracia plena sem

pessoas democráticas para exercê-la. Havia por parte da equipe do NEI um interesse real de

que os pais colaborassem com o processo pedagógico e participassem das decisões sobre o

futuro da instituição. No NEI a verticalização, marca de uma hierarquia autoritária, que

dificulta a aproximação da comunidade, foi substituída por uma relação horizontal, de trocas e

de descobertas realizadas pelo movimento coletivo. Nas peças Uma história da Ilha e Teatro

da festa junina: casamento caipira essa relação horizontal se mantinha. O diálogo era a

maneira de estabelecer os acordos na definição de conteúdo e forma a serem utilizados nos

processos teatrais. Juntos, membros do NEI e da comunidade pesquisaram dados, trocaram

informações, discutiram pontos de vistas.

O grupo envolvido no processo distanciou-se do cotidiano e revisitou sua história,

ensinando e aprendendo com ela. Os moradores, que assistiam aos trabalhos teatrais, se

encantavam com o envolvimento das pessoas em cena, se identificavam com os tipos que

eram criados e com as passagens históricas que eram recriadas. Nessa cena, construída com os

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temas do seu cotidiano o trabalhador, o não-ator, se reconhece como produtor de sua história,

sendo responsável por ela. O tema escolhido fez o grupo se sentir pertencendo aquele espaço

educacional.

Os “nativos” e os “de fora” se encontram durante o processo teatral. Nesse encontro

reconhecem suas diferenças. Mas essa diferença se transformou em ensinar e aprender, no

respeito a história construída pelos que sempre viveram no bairro e no respeito pelas novas

informações, trazidas pelos novos moradores.

Motivada pelo teatro, a comunidade descobre uma nova maneira de participar na

escola: brincando, jogando, cantando, criando formas de contar a história do bairro,

festejando. Laura, falando de suas impressões sobre o fazer teatral com adultos na escola

comenta: “as pessoas gostam da prática. Na prática tu põe o teu sentimento, o teu mundo e tu

não diferencia o ‘eu entendo’ do ‘eu não entendo’[a pessoa se permite experimentar]” (Laura,

entrevista pessoal concedida em 22-03-2006).

É no conjunto de ações e reflexões, no jogar e avaliar, que se manifesta uma

metodologia conscientizadora. O teatro, baseado numa relação dialógica, permitiu que as

pessoas se aproximassem e se sentissem fazendo parte do movimento. Em meio a essas

concepções a atitude dos participantes era emancipadora, ousavam, discutiam, decidiam,

resolviam suas diferenças, enfim se sentiam responsáveis pelo processo. Isso fortaleceu a

comunicação entre os funcionários da unidade escolar e o grupo que participava das ações

coletivas. Mesmo não sendo possível colocar em cena todos os pais da instituição de ensino,

destacando-se um grupo mais ativo, o movimento teatral ganha força. Entusiasmando-se com

as próprias descobertas, o grupo se viu diante da possibilidade de construir projetos para

melhorar a qualidade da escola.

No final de 1995 comprova-se uma das maiores conquistas da comunidade do Canto

da Lagoa: a doação da escolinha multisseriada para a rede pública municipal. Essa conquista,

como já dizíamos anteriormente, foi fruto de um movimento de participação que deu voz para

a comunidade. Com a auto-estima elevada, sendo responsáveis por projetos que encantavam

os moradores do bairro, trazendo a história da localidade para o centro das atenções, pais,

vizinhos da escola, amigos colaboradores, direção e APP do NEI, abraçaram a causa de

recuperação da escola e foram até o fim com o propósito que firmaram.

Um episódio relatado por Daniel, um pai, revela o alcance das decisões da

comunidade sobre o espaço público e a preocupação com a qualidade do ensino. Conta-nos

ele que durante o processo teatral Uma história da Ilha o grupo se deparou com problemas

financeiros. Planejaram a construção de cenários e objetos cênicos que teriam um custo

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elevado e a instituição de Educação Infantil não tinha dinheiro para cobrir essas despesas. Os

pais fizeram alguns ofícios pedindo ajuda para entidades, associações, etc. Mas a data da

apresentação se aproximava e nenhuma ajuda chegava. O grupo decidiu trazer de casa o

material que podiam, improvisaram, e alguma coisa foi comprada com seu próprio dinheiro.

Passado algum tempo da apresentação a diretora recebe o aviso de uma doação tardia do

Banco BESC. O valor era animador. O grupo se reúne e duas opções foram levantadas:

utilizar o dinheiro para montar novos espetáculos, ou comprar material para escola. Em

assembléia os pais decidem que todo o dinheiro da doação deveria ser utilizado para a

melhoria das instalações e compra de material pedagógico. (Daniel, entrevista pessoal

concedida em 30-09-2005)

Certamente o mérito dessa conquista não é apenas do estímulo que o teatro provocou

na comunidade. Havia, naquele momento, outras atividades sendo promovidas na escola. Mas

foi o movimento teatral que conseguiu mobilizar o grupo durante meses, com os ensaios

semanais.

Durante os últimos 12 anos, membros da Escola do Canto, do NEI e a comunidade

vêm alcançando conquistas na qualidade de ensino. O movimento promovido pelo teatro, em

muitos momentos, potencializou a participação com vistas à realização dessas conquistas.

Tanto nas experiências analisadas, quanto nas que acontecem em 2004 com Projeto

Abraçando e Projeto Bruxas, as crianças estavam sempre acompanhando seus pais. O

movimento de refletir, analisar, decidir, criar, encontrar soluções, fazer novos amigos, ser

solidário, era uma outra aprendizagem paralela que as crianças tinham. Esse acontecimento,

em nossa opinião, é outra grande conquista, pedagógica, que se efetiva na Escola do Canto.

Diz Daniel que nesse movimento criado pelo teatro “os pais ficavam envolvidos, as crianças

ficavam envolvidas. Então as crianças sentiam que aquilo ali era como a casa delas, a família

delas. Quando os pais estão mais afastados, não fazem nada na escola, as crianças estão lá

depositadas.” (Daniel, entrevista concedida em 30-09-2005)

A partir dessas reflexões podemos concluir que a prática teatral é capaz de favorecer

os interesses do coletivo escola-comunidade, porque dá voz aos membros externos da escola.

Que tipo de prática teatral pode cumprir esse papel? Quais os princípios necessários ao

teatro que visa ao exercício da democracia?

Em primeiro lugar destacamos o respeito às crenças, expressões e hábitos da

comunidade, o que permite aos moradores do bairro perceberem que a instituição educacional

valoriza seu modo de pensar, com isso começa a integração da escola com o bairro. Em

segundo lugar destacamos o diálogo franco entre as pessoas sem imposição de hierarquias

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autoritárias, quando a comunicação se amplia. Por fim, destacamos o teatro como uma forma

de abrir canais para uma ampla discussão dos interesses comuns entre escola e comunidade,

paralelos aos canais formais já existentes. Consultar a comunidade e entender quais os seus

desejos e necessidades é um aspecto decisivo para que as distâncias entre escola e

comunidade sejam diminuídas e a luta por mudanças na qualidade de ensino se efetive.

O jogo em todo esse processo teve um papel preponderante. No ato de jogar os

participantes estão livres para a experimentação. Isso abre a possibilidade para que todos

possam participar, descobrindo formas de ir além das suas limitações. Através do jogo é

possível também discutir temas polêmicos com liberdade de expressão. Enfim, o jogo como

metodologia do teatro, que congrega escola e comunidade, dá voz a todos os envolvidos no

processo teatral.

O futuro das instituições educacionais não se faz sozinho, precisa ser construído.

Somos todos responsáveis por essa construção: pais, moradores que vivem no entorno da

escola, alunos, professores, diretores de escola, artistas, pessoas ligadas à universidade e ao

poder público. Não só os intelectuais podem dizer o que é melhor para as escolas brasileiras,

ou a melhor forma de fazer teatro. As necessidades, os desejos da população precisariam ser

ouvidas para que o nosso futuro possa ser construído em terreno sólido e não mais centrado

em discursos distantes do que se vive nas comunidades e nas escolas. Participar de práticas

teatrais pode ser uma oportunidade para as pessoas dizerem dos seus anseios, das suas

dúvidas, das possíveis soluções. Ou pelo menos terem recobrada a liberdade pessoal, princípio

de uma relação mais democrática.

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Graduação em Artes Cênicas. Rio de Janeiro, 2006. RAHNEMA, Majid. “Participação.” In: SADERS, W. Dicionário do Desenvolvimento: guia para o desenvolvimento como poder. São Paulo: Vozes, 2000. RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da educação brasileira: a organização escolar. 10ª ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1990. ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil ( 1930/ 1973). 18ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1978. ROMÃO, José Eustáquio. Dialética da diferença: o projeto da escola cidadã frente ao Projeto Pedagógico Neoliberal. São Paulo: Cortez, 2000. ROSA, João Guimarães. “Pirlimpsiquice.” In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Livraria Editora, 1964. SANTANA, Arão Paranaguá de. Teatro e formação de professores. São Luís: EDUFMA, 2000. ______ “A presença do teatro na educação ludovicense.” In: Visões da Ilha: apontamentos sobre teatro e educação. SANTANA, Arão Paranaguá de (coord.); SOUZA, Luiz Roberto de, RIBEIRO, Tânia Cristina Costa. São Luís, MA, 2003. SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. ______ O jogo teatral no livro do diretor. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999. SPÓSITO, Marília Pontes. “Educação, gestão democrática e participação popular.” In: Gestão democrática/ BASTOS, João Baptista(org) 3ªed. Rio de Janeiro: DP&A: SEPE, 2002. ______ A ilusão fecunda: a luta por educação nos movimentos populares. São Paulo: HUCITEC, 1993.

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ANEXOS

ANEXO A - Roteiro completo da peça Uma história da Ilha.

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ANEXO A

PEÇA TEATRAL : UMA HISTÓRIA DA ILHA

I ATO

NARRADOR: Este trabalho que vamos apresentar é o resultado de uma pesquisa do NEI – Canto da Lagoa, partindo da idéia de explorarmos o meio em que estamos vivendo e aprender um pouco da nossa história. Ao iniciarmos as pesquisas com as crianças, solicitamos a participação dos pais sob forma de entrevistas, feitas pelos próprios filhos. As primeiras indagações foram sobre os primeiros moradores da ilha, logo em seguida foi sobre como devia ser esta terra há 500 anos atrás, será que aqueles índios que aqui viviam almoçavam nos restaurantes do Canto, faziam compras na venda na dona Lídia e da dona França. Sentíamos às vezes dificuldade entre as crianças de compreender esta história do ontem e do hoje. Aos poucos fomos fazendo poucas descobertas e foi aí que tivemos a idéia de mostrar à vocês, através da representação e da música. [Entram as crianças do Maternal e do I Período]

MÚSICA: Entrada

Era uma vez, vejam vocês Haviam muitos índios Subindo, subindo e descendo Os morros da Lagoa. Eles viviam, viviam a sonhar Com a terra mais bonita Acreditavam no sol E na Deusa Lua Existiam também animais Podem acreditar como o tamanduá, a paca e o tatu.

NARRADOR: Há muito tempo, bem antes do homem branco chegar, nossa terra era habitada pelos índios Carijós. Eles pertenciam à grande família da língua indígena Tupi-Guarani, que se espalhava por toda a parte do Brasil. Os Carijós eram muitos, moravam em pequenas aldeias de cabanas de pau-a-pique. Durante mais de 300 anos, dominaram o litoral de Santa Catarina, inclusive a Ilha, que na época era chamada de Meiembipe. Os Carijós eram grandes artesões. Trabalhavam o barro fazendo utensílios e utilizavam as fibras vegetais para fazerem esteiras e cestos.

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MÚSICA: Cerâmicas e esteiras

A arte faz parte da vida do índio Trançando daqui Trançando dali Trançando de cá Trançando de lá Da palha do milho surgiu a esteira Pro velho índio poder repousar E a índia nova trabalhar os utensílios do seu lar Do barro bruto nasceu a cerâmica Amassa de cá Amassa de lá Modela daqui Modela dali Da bola de barro surgiu o jarro Pra água potável poder carregar Da bola de barro surgiu um prato Pro carijó se alimentar. Trabalha daqui Trabalha dali Trabalha de cá Trabalha de lá

NARRADOR: Além de fazer utensílios domésticos, eles faziam suas próprias ferramentas de trabalho e utilizavam de recursos da natureza como pedras, dentes, ossos, cipó, troncos de árvores e conchas. Com as pedras amarradas com cipó, faziam martelos e machadinhas. Conchas também eram utilizadas para raspar superfícies mais moles. Inspirados nesse trabalho dos índios, criamos mais uma cantiga que vamos apresentar agora.

MÚSICA: Canoa

Eles faziam canoas de garapuvu E eram escultores Usavam também o bambu Com poucas ferramentas De pau e pedra lascada Eles transformavam troncos em canoas

MÚSICA: Fogo

Fogão não existia na tribo dos Carijós Mas o índio sabia fazer um fogo de chão

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Juntava palha seca e lenha de montão Esfregava dois pauzinhos e fazia um fogueirão.

NARRADOR: Além de já conhecerem a agricultura e cultivarem a mandioca, eles se alimentavam de frutas silvestres como araçá, pitanga e palmito. Também fazia parte de sua refeição o peixe assado na folha da bananeira e pequenos animais que caçavam. Essas atividades faziam deles valentes caçadores, que vocês verão agora.

MÚSICA: Caça e pesca

Caçar, pescar, pra tribo alimentar O peixe e a caça eram fartos de montão Caçavam a paca, o veado e o tatu Pescavam tainha, anchova e camarão Usavam suas armas com muita habilidade Com força e coragem para sobreviver.

II ATO

[Alguns índios permanecem no palco e conforme a música vai tocando os bandeirantes vão entrando e com uma corda esticada vão fazendo um arrastão e tirando os índios do palco]

MÚSICA: Bandeirantes

Os bandeirantes começam a descer Vieram de São Paulo Para matar ou morrer Homens rudes, buscam riquezas Chegam na Ilha e não vêem sua beleza Provocam morte, destruição E os índios levam para a escravidão. Os Carijós, povo nativo Os bandeirantes não deixam nenhum vivo Navegadores que aqui passavam Não viam mais os índios que acenavam

E sem mais índios, sem bandeirantes Dias Velho vem fazer a sua parte Acompanhado de sua família Chega aqui para colonizar a Ilha Uma morada, uma casinha

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E uma igreja pra rezar a ladainha Uma casa, uma capela, E Dias Velho olha o mar pela janela E fica atento aos invasores Aos piratas e também exploradores E sua filha: Pai tenho medo E assim nasceu Nossa Senhora do Desterro Pressentimento de sua filha Quando os piratas invadem a sua Ilha E Dias Velho assassinado Neste momento acabou-se o seu reinado E tanta gente que aqui passou E nossa lha deserta ficou

NARRADOR: No dia 6 de Janeiro de 1748, chegam na Ilha os primeiros grupos de famílias açorianas. Portugal precisava povoar as terras do Sul do Brasil, que estavam sendo reivindicadas pela Espanha. A maioria da população do Arquipélago dos Açores era muito pobre, quase miserável. A terra lá era escassa para o cultivo. O governo português fez muitas promessas. Mesmo assim muito açorianos não queriam vir e alguns foram embarcados à força pelo governo português. [Entra uma caravela de papelão com os açorianos por trás espiando pelas escotilhas, feitas no papelão]

MÚSICA: A saída dos açorianos de sua terra natal e a viagem para o Brasil

Vocês terão diz a coroa Uma terra farta e uma comida muito boa Açorianos gente lograda Essas pessoas no porão não comem nada Eram um grupo de açorianos Que na viajem faziam muitos planos Muitos morrem em alto mar E o seu sonho não puderam realizar Muitos morrem adoecidos Pobre coitados estão sendo iludidos E eram de todas as idades E receberam de Portugal a falsidade

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De açores para o Brasil Pisam na terra que nenhum deles sentiu

[A caravela para no fundo do palco onde já estão mocozeadas algumas malas e caixas, os açorianos pegam as malas e saem de trás do barco admirados. Levam as malas para o meio do palco e sentam sobre as bagagens tristonhos, enquanto a música continua.]

NARRADOR: Aparece um emissário do rei que inicia a leitura de um documento.

EMISSÁRIO: Sou um emissário do rei e cá estou para legalizar o assentamento de suas famílias. Bem vindos à Nossa Sra. do Desterro. Como podem ver, é uma bela ilha e neste momento vou dar a leitura de um documento que garante a posse de ¼ de légua à cada família que cá está. Todos aqui lembram os números que receberam lá em Portugal? AÇORIANOS: Sim. EMISSÁRIO: Pois bem, iniciaremos então o assentamento e peço a todos muita atenção: - Responsável pela família 271. AÇORIANO 271: Sou eu, sim senhor EMISSÁRIO: Cá está o documento que lhe confere as terras prometidas [entrega-lhe um saco] e cá estão as armas e algumas ferramentas. AÇORIANO 271: Mas estas armas estão velhas e não temos munição. TODOS OS AÇORIANOS: Estamos sendo enganados! EMISSÁRIO: Acalmem-se lá. Deixem-me terminar a leitura dos assentamentos e depois resolveremos tudo isso. E para quê armas, vocês não precisar. AÇORIANOS: Pois bem. Veremos no que isso vai dar. EMISSÁRIO: Responsável pela família 272. AÇORIANO 272: Está muito bom. EMISSÁRIO: Agora a última família a ser assentada. Responsável pela família 326. AÇORIANO 326: Cá estou, senhor. EMISSÁRIO: Como se chama? AÇORIANO 326: Me chamo........... EMISSÁRIO: Assine cá. AÇORIANO 326: Não foi isso que acertamos quando saímos de nossa terra em Açores. Nos foi prometido além das terras ferramentas para que pudéssemos trabalhar, uma mula, uma vaca, um boi, sementes e armas para que pudéssemos nos defender e defender nossas terras e nossa família dos animais selvagens que devem ter nessas matas. EMISSÁRIO: Pois bem, não sei do que tanto estão a se queixar. Moravam em ilhas de terras vulcânicas que nada produziam e agora estão a cá num lugar que segundo informações que tenho basta que se ponham a trabalhar e plantar que em pouco tempo estarão a colher. AÇORIANOS: Mas não temos ferramentas e essas sementes são poucas. E os animais que o rei prometeu nos dar? EMISSÁRIO: Pois bem, o Rei anda um tanto ocupado com outros problemas que estão a tomar seu tempo e eu tão pouco posso me demorar pois tenho mais de 100 famílias para assentar pôr cá.

[O EMISSÁRIO VAI SAINDO E OS AÇORIANOS TENTAM CHAMÁ-LO MAS ELE NÃO LHES DÁ OUVIDOS E SAI DO PALCO APRESSADO. VOLTAM TODOS OS AÇORIANOS PARA PERTO DAS MALAS E COMEÇAM A TIRAR SUAS COISAS DE

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DENTRO, ARRUMANDO, INICIANDO A HABITAÇÃO ENQUANTO CANTA A MÚSICA ABAIXO]

MÚSICA: A chegada dos açorianos no Brasil

Mata fechada não tenho casa E como fica pra família sua morada Enquanto isso em Portugal A coroa faz a festa afinal Botado um povo pra responder Que aquela terra é nossa pra valer Foi prometido muitas condição Quando chegaram viram sua situação E a saudade desse povo sofrido Lembram da terra que não deviam ter saído E sua vida, seu dia-a-dia É trabalhar e rezar pra mãe Maria

NARRADOR: Depois do primeiro impacto e sem outra alternativas senão refazer suas vidas os açorianos continuam seus costumes agora numa nova terra. As mulheres trouxeram em sua bagagem o bilro para fazer rendas e ensinarão a suas filhas transmitindo essa cultura. [A família de Açorianos está toda reunida neste momento, sentada sobre as malas. Quando começa a música das rendeiras, as mulheres rendeiras puxam o bilro de dentro de uma mala levam para um lugar no palco e começam a rendar. As filhas chegam mais perto como se tivessem aprendendo. Os homens e as crianças durante toda a música das rendeiras, ficam mexendo nas bagagens]

MÚSICA: Das rendeiras

Rendeira, velha rendeira, com quem aprendeu a rendar? Foi com a onda faceira na praia bordando o mar A onda bordando o mar Rendeira, renda, renda Açores ficando longe Rendeira, renda, renda Amores ficando perto Rendeira, renda , renda

NARRADOR: Na Ilha de Nossa Senhora do Desterro como no Arquipélago dos Açores uma forma de sobrevivência era a pesca e logo os Açorianos iniciam essa atividade.

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[Quando começa a música do pescador, os pais pescadores tiram as redes e começam a usá-las durante toda a música, as rendeiras continuam rendando e as crianças com seus brinquedos, brincando no palco]

MUSICA: Do pescador

Minha canoa, no balanço do mar no balanço do mar Se Deus ajuda lá na praia vai chegar, lá na praia vai chegar Se o mar é bom minha canoa levá-la a correr Minha família hoje tem o que comer Os meus filhinhos hoje tem o que comer Se o peixe é bom minha canoa levá-la a correr

Os meus filhinhos hoje tem o que comer Os meus filhinhos hoje tem o que comer Quem me ensinou a nadar, a nadar Conhece as ondas do mar, do mar Sabe que vento vai dar, vai dar E onde se pode chegar. FINAL...