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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES – SÃO PAULO JOSÉ IVO DA SILVA FANTASIA EM TRÊS MOVIMENTOS EM FORMA DE CHÔROS DE HEITOR VILLA-LOBOS: ANÁLISE E CONTEXTUALIZAÇÃO DE SEU ÚLTIMO PERÍODO SÃO PAULO 2008

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

    INSTITUTO DE ARTES – SÃO PAULO

    JOSÉ IVO DA SILVA

    FANTASIA EM TRÊS MOVIMENTOS EM FORMA DE

    CHÔROS DE HEITOR VILLA-LOBOS:

    ANÁLISE E CONTEXTUALIZAÇÃO DE SEU ÚLTIMO

    PERÍODO

    SÃO PAULO

    2008

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  • 2

    JOSÉ IVO DA SILVA

    FANTASIA EM TRÊS MOVIMENTOS EM FORMA DE CHÔROS

    DE HEITOR VILLA-LOBOS:

    ANÁLISE E CONTEXTUALIZAÇÃO DE SEU ÚLTIMO PERÌODO

    Dissertação de mestrado apresentado no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como exigência para o título de mestre em música. Orientador: Prof. Dr. Marcos Fernandes Pupo Nogueira

    SÃO PAULO

    2008

  • 3

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. Marcos Pupo Nogueira __________________________________

    Profª. Dra. Valerie Ann Albright __________________________________

    Prof. Dr. Paulo de Tarso Salles __________________________________

  • 4

    Dedicatória

    Em memória de Ricardo Rizek, professor e amigo,

    silenciosamente presente neste trabalho.

    À Lucia Faria,

    uma ouvinte paciente e grande incentivadora.

  • 5

    Agradecimentos

    A realização deste trabalho só foi possível graças à colaboração direta ou indireta de

    muitas pessoas e instituições. Manifesto minha gratidão a todas elas e de modo particular:

    Ao meu orientador Prof. Dr. Marcos Pupo Nogueira, pela confiança e pelas pacientes

    correções de curso durante todo o processo de confecção deste trabalho, o que certamente o

    dotou de qualidade e relevância.

    À Profª. Dra. Valerie Albright e ao Prof. Dr. Vitor Gabriel, pelas valiosas sugestões em

    meu exame de qualificação.

    Aos meus amigos que incentivaram e foram “bons ouvidos” durante o período de

    confecção deste trabalho: Paulo de Tarso Salles, Gilberto Assis Rosa, Sérgio Molina, Orlando

    Marcos Mancini, Itamar Vidal, César Henrique Franco e Alexandre Franciscini.

    Ao maestro Abel Rocha, Sérgio Wontroba e ao staff da Banda Sinfônica do Estado de

    São Paulo.

    À Cláudia Leopoldino e Pedro Belchior, do Museu Villa-Lobos, que gentilmente

    atenderam minhas solicitações.

    À Lucia Faria e Luciana Soldi pelas preciosas revisões e correções da língua

    portuguesa.

    Ao Julio César Lancia pelas revisões das citações traduzidas da língua inglesa.

    Aos funcionários da Secretaria e da Biblioteca da UNESP.

  • 6

    Resumo

    Esta pesquisa aborda, analiticamente, a Fantasia em três movimentos em forma de chôros,

    de Heitor Villa-Lobos, uma das obras de sua produção sinfônica para orquestra de sopros. Inserida

    em seu último período de produção musical, esta obra foi comissionada pela American Wind

    Symphony Orchestra e composta em 1958. A contextualização deste período é o assunto do início

    deste trabalho. Em seguida, procede-se à análise em duas etapas: a primeira tem o foco

    direcionado para os termos “fantasia” e “forma de chôros”, sugeridos no título; e a segunda etapa

    é a análise dos procedimentos e técnicas composicionais utilizados pelo compositor brasileiro

    nesta obra, principalmente, material escalar, textura e tendências pandiatônicas. O principal

    objetivo desse trabalho é evidenciar procedimentos musicais presentes nesta fase do compositor.

    Palavras-chave: Villa-Lobos, fantasia, análise musical, orquestra de sopros.

  • 7

    Abstract

    This research analytically approaches Heitor Villa-Lobos’s Fantasia em três movimentos

    em forma de chôros, one of his symphonic pieces for wind orchestra. From the latter period of his

    production, this piece was commissioned by the American Wind Symphony Orchestra and

    composed in 1958. The first section of this study contextualizes the period. A two-stage analysis

    follows: the first part focuses the words “fantasia” and “forma de chôros” as suggested in the title;

    the second part analyzes the compositional procedures and techniques used by the Brazilian

    composer in the piece, mainly scale material, texture and pandiatonic tendencies. The main

    purpose of this work is to make evident the musical procedures used by the composer at that time

    of his life.

    Keywords: Villa-Lobos, fantasia, musical analysis, wind orchestra.

  • 8

    SUMÁRIO Dedicatória Agradecimentos Resumo Abstract Sumário Introdução .................................................................................................... 10

    1. Primeiro Capítulo - Villa-Lobos: Último período de sua produção musical

    1.1 Fases produtivas de Villa-Lobos ........................................................ 17

    1.2 Panamericanismo e “Política de Boa Vizinhança”...............................22

    1.3 Primeiras obras de Villa-Lobos ouvidas nos Estados Unidos ....... 24

    1.4 Negociações para a primeira viagem aos Estados Unidos ........... 26

    1.5 Produção musical do último período .................................................. 29

    1.6 American Wind Symphony Orchestra ................................................ 36

    2. Segundo Capítulo - Fantasia em três movimentos em forma de chôros

    2.1 O termo “fantasia”: conceito e transformações da Renascença ao

    Barroco ................................................................................................. 41

    2.1.1 Alguns traços da assimilação dos procedimentos da “fantasia”

    presentes nas Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos ............... 51

    2.1.2 A “fantasia” nos períodos clássico e romântico ....................... 55

    2.1.3 Alguns traços românticos nas primeiras “fantasias”

    de Villa-Lobos ......................................................................... 60

    2.1.4 D’Indy e Villa-Lobos ............................................................... 61

    2.1.5 Outras “fantasia” de Villa-Lobos ............................................. 64

    2.2 O termo “forma de chôros”.................................................................. 70

  • 9

    3. Terceiro Capítulo – Análise da Fantasia em três movimentos em

    forma de Chôros ........................................................................................ 74

    3.1 Forma: uma conformidade externa da organização temática ............... 75

    3.2 Primeiro Movimento – Andante quase Adagio ................................ 78

    3.2.1 Aspectos temáticos ................................................................... 80

    3.2.2 O uso de modos menores ......................................................... 82

    3.2.3 O uso de modos derivados da menor harmônica e melódica ... 86

    3.2.4 Variações no acompanhamento ................................................. 95

    3.2.5 Material contrastante e derivações temáticas .......................... 102

    3.3 Segundo Movimento - Allegretto (scherzando) e o conceito de textura

    .............................................................................................................. 107

    3.3.1 Aspectos formais ..................................................................... 114

    3.3.2 Motivo textural e seus desdobramentos na primeira seção ..... 115

    3.3.3 Afinidades temáticas entre primeiro e segundo movimentos .. 121

    3.3.4 O emprego de paralelismo ....................................................... 122

    3.3.5 Paralelismo aplicado ao tema da seção B ................................ 125

    3.3.6 Última seção do segundo movimento ...................................... 129

    3.4 Terceiro movimento - Molto Allegro .............................................. 135

    3.4.1 Tendência pandiatônica ........................................................... 136

    3.4.2 O uso de escalas pentatônicas .................................................. 146

    3.4.3 Variações melódicas ................................................................ 148

    3.4.4 Polirritmia e tendências pandiatônicas .................................... 151

    4. Conclusões ................................................................................................ 156

    5. Referências bibliográficas ....................................................................... 160

    5.1 – Partituras e CD .............................................................................. 167

    6. Anexo 1 – Partitura da Fantasia em três movimentos em forma de chôros

    Anexo 2 – CD Fantasia Amazônica

  • 10

    Introdução

    “Toda ocasião em que um coral (de louvores) patriótico cantava maravilhas do autor do

    ‘Descobrimento do Brasil’, glorificando-o como o músico maior das Américas, eu – por meu turno –

    sempre exigi que as loas correspondessem à verdade, e o fato é que desde a base das argumentações

    dos Novos Compositores Seriais, duvidei. Uma ou outra coisa do Villa chegava-me, mas a

    responsabilidade da consciência da História me impedia de dizer amém a mais esta glória nacional,

    de cujo cimo esplendia Rui Barbosa, a Águia de Haia, Marechais diversos da terra mar e ar, e quase

    uma vintena do Forte, e vocês sabem quanto mais. Assim foi que desde início dos anos sessenta tive

    que matar Villa-Lobos. Parricídio ou Regicídio. Para que a verdade que se fizera em mim:

    triunfasse.”(Willy Corrêa de Oliveira, 2008)1.

    Em 13 de outubro de 1992, a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo promovia a

    estréia brasileira da Fantasia em três movimentos em forma de chôros2 de Heitor Villa-Lobos.

    Ao se considerar que esta obra foi escrita em 1958 e obteve sua estréia mundial em 29 de junho

    desse mesmo ano, nos Estados Unidos, o que causaria esse hiato de 34 anos antes de ser ouvida

    em seu país?

    A Fantasia em três movimentos, juntamente com o Concerto Grosso para flauta, oboé,

    clarineta, fagote e orquestra de sopros (1959) são obras para orquestra de sopros que integram

    uma lista de composições comissionadas por entidades norte-americanas no último período da

    produção musical do compositor brasileiro. Elas foram encomendadas por Mrs. S. J. Anathan,

    para a American Wind Symphony Orchestra, sediada em Pittsburgh.

    A resposta mais natural à questão formulada acima seria a de que não havia nenhum

    grupo brasileiro com a formação sinfônica de sopros necessária para a realização desta obra até

    o final da década de 80. Mas, também é possível considerar que nesse período houve uma

    concentração de interesses em obras consideradas mais significativas, entre a imensa produção

    musical de Villa-Lobos. É o caso, por exemplo, dos ciclos das Bachianas Brasileiras e dos

    1 Em artigo “Com Villa-Lobos”: O Estado de São Paulo (OLIVEIRA, 2008 p. 7). 2 Na partitura a palavra “chôros” obedece à ortografia antiga, com acento circunflexo, por este motivo está acentuação será mantida no texto desta dissertação sempre que tiver como referência esta obra.

  • 11

    Choros, de caráter marcadamente nacional. Esses fatos, entre outros, podem ter mergulhado a

    última fase do compositor em desconhecimento e a distanciado da crítica especializada.

    No entanto, outro fator contribuiu para a falta de divulgação e realização de obras desse

    último período villalobiano, como a divergência de opiniões sobre a figura de Villa-Lobos na

    cultura nacional. De um lado, havia uma bibliografia impregnada de superlativos e juízos

    fantasiosos direcionados a um herói nacional, cuja incompreensão técnica de seu trabalho

    impedia uma avaliação objetiva da sua produção musical. Por outro, um natural reflexo da

    geração musical posterior, manifestada na epígrafe, com o relato do compositor Willy Corrêa,

    para quem a vanguarda brasileira precisou estabelecer a “morte simbólica de Villa-Lobos” por

    razões principalmente ideológicas. Eero Tarasti identifica que o estilo tardio de Villa-Lobos,

    nos anos 50, “foram criticados com ouvidos da vanguarda européia, serealista e darmatadtiana

    – cujos pendores meio ‘totalitários’ só foram notados depois.” (TARASTI, 2006, p. 47). Talvez

    essa geração tivesse mais condições de oferecer uma contribuição objetiva para o entendimento

    da obra de Villa-Lobos.

    Assim, foram popularizadas opiniões sobre Villa-Lobos estranhamente divididas entre

    uma “genialidade inspirada” de cunho romântico e autodidata contra a de um compositor

    nacionalista, sem formação acadêmica consistente que, às vezes, compunha uma obra-prima,

    garimpada de uma quantidade de obras quase inexplicável. Essas duas vertentes tinham em

    comum a identificação da “intuição” como explicação para a qualidade desta produção e o

    reconhecimento internacional alcançado nesse processo.

    Neste sentido, uma bibliografia cercada de mitificação, municiada pela própria

    personalidade do compositor, traduz as contradições de um Brasil em busca de identidade. A

    primeira biografia escrita sobre Villa-Lobos, pelo jovem Vasco Mariz na década de 40, contava

    com a enorme admiração do biógrafo, ampliada pela presença viva do biografado:

    Digo que o livro era imaturo porque, com a minha juventude (tinha 25 anos), era difícil não ceder aos conselhos cautelosos de amigos e colegas interessados no assunto. Minhas entrevistas com Villa-Lobos causaram-me profunda impressão, tão grande que achei melhor, por prudência, qualificar os elogios ou até agravar as restrições, a fim de não parecer dominado pela personalidade gigantesca do biografado. (MARIZ, 1989, p. 7).

  • 12

    Essa biografia tornou-se uma fonte inicial relevante para conhecer Villa-Lobos, e,

    apesar de ter sofrido algumas modificações em suas reedições, segundo Paulo Renato

    Guérios3, a concepção original é mantida nas edições subseqüentes.

    Neste hiato temporal, marcado entre a estréia mundial e a estréia brasileira da Fantasia

    em três movimentos, outras obras foram escritas sobre Villa-Lobos. Entre elas, uma coleção de

    12 volumes sob o título Presença de Villa-Lobos que reúne depoimentos, opiniões e

    comentários de pessoas que conviveram com ele ou estudaram sua obra. Alguns autores

    brasileiros, em outras publicações, reafirmavam as qualidades contidas no ciclo dos Choros e

    nas Bachianas Brasileiras, como Adhemar Nóbrega e José Maria Neves. Outros, como José

    Miguel Wisnik, iniciam uma retomada sobre a significação da obra do compositor Villa-Lobos

    contextualizada na cultura brasileira, em O coro dos contrários, de 1977, que se detinha, como

    foco principal, na música em torno da Semana de 22. Um pouco mais tarde, em 1986, Bruno

    Kiefer publicava Villa-Lobos e o modernismo na música brasileira, que, embora trate também

    da Semana de 22, realiza uma abordagem analítica mais profunda e permite uma avaliação

    histórica mais contextualizada da produção musical de Villa-Lobos e avança sobre a produção

    da década de 20.

    O prestígio internacional alcançado pela música de Villa-Lobos referendou um

    conjunto de estudos sobre ele fora do Brasil. Lisa Peppercorn4, a autora com maior número de

    obras catalogadas sobre o compositor, escreveu mais de 25 títulos que tratam de aspectos

    bibliográficos e analíticos. Essas publicações variam entre quatro livros – dois deles em língua

    inglesa, um em alemão e outro em português - e vários artigos publicados entre 1940 e 1991,

    escritos em inglês, alemão, italiano e holandês.

    Entretanto, os trabalhos mais importantes publicados fora do Brasil foram: Heitor Villa-

    Lobos – the search of Brazil’s musical soul, de Gerard Béhague5, de 1994, e Heitor Villa-

    3 Paulo Renato Guérios aborda questões sociológicas em tangência com a biografia de Villa-Lobos em sua Dissertação de Mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS), posteriormente transformada em livro com o título Heitor Villa-Lobos - O caminho sinuoso da predestinação. 4 Lisa Peppercorn acompanhou a trajetória de Villa-Lobos a partir do final da década de 30, quando era correspondente musical do The New York Times e Musical America no Rio de Janeiro, onde o conheceu pessoalmente. 5 Formado como músico pelo Conservatório Nacional de Música na década de 50, pós-graduado na Universidade de Paris na década de 60 em etnomusicologia, foi responsável pelo verbete “Heitor Villa-Lobos” e mais de 120 verbetes no The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Escreveu uma monografia sobre Villa-Lobos para participar de um concurso promovido pela OEA em comemoração de 100 anos de nascimento do compositor, em 1987. O seu trabalho ganhou o primeiro prêmio e foi publicado em 1994 com algumas revisões.

  • 13

    Lobos – the life and works, do finlandês Eero Tarasti6, publicado em 1995, livros que se

    tornaram referência para qualquer pesquisador cujo assunto seja Villa-Lobos.

    Com linguagem analítica profunda e atualizada, quatro trabalhos acadêmicos brasileiros

    revisitaram a obra de Villa-Lobos no novo milênio: em 2002, a tese de doutoramento de

    Valerie Ann Albright, Aproximações entre duas culturas americanas na linguagem de Ives e

    Villa-Lobos; e a tese de doutoramento de Gilmar Roberto Jardim, Bachianas Brasileiras n.° 7:

    O estilo Antropofágico de Heitor Villa-Lobos, transformado em livro em 2005; em 2003, a

    dissertação de Renata Botti, Aspectos de textura na música de Heitor Villa-Lobos; e em 2005,

    a tese de doutoramento de Paulo de Tarso Salles, Processos composicionais de Villa-Lobos:

    um guia teórico.

    Outras pesquisas somam-se a essas importantes contribuições citadas acima, mas, ainda

    assim, não há uma abordagem analítica minuciosa sobre o último período da produção de

    Villa-Lobos. Esta última fase do compositor brasileiro não tem despertado grande interesse de

    pesquisadores, que concentram suas investigações em obras consideradas mais significativas

    na trajetória do compositor.

    Neste sentido, este trabalho propõe uma visita aos últimos 14 anos da produção musical

    de Villa-Lobos, ao realizar uma análise da Fantasia em três movimentos em forma de chôros.

    Essa obra representa a intersecção de fatores que caracterizam esse período, ou seja, a

    ampliação geográfica de sua atuação para os Estados Unidos, e foi comissionada por uma

    entidade norte-americana e composta em 1958. Neste sentido, a proposição para esta análise é

    avaliar se há alguma transformação estilística como conseqüência desta ampliação geográfica,

    conforme sugere Lisa Peppercorn, com referência aos Estados Unidos. Ela supõe, como uma

    hipótese, que as inúmeras encomendas recebidas por Villa-Lobos durante este período tenham

    condicionado seu processo criativo a compor “inspirado” nos Estados Unidos, recorrendo a

    formas tradicionais, em decorrência do conservadorismo das orquestras e dos empresários

    norte-americanos. Seguem-se duas afirmações de Peppercorn sobre esse momento final

    villalobiano, “[...] depois da primeira visita aos Estados Unidos, a sua tendência era cada vez

    mais a de voltar às formas tradicionais às quais acabou retornando totalmente.”

    (PEPPERCORN, 2000, p.136) e “A operação parece não ter afetado em nada a sua carreira

    6 Musicólogo e semiólogo finlandês, veio ao Brasil interessado em Lévi-Strauss e os índios do Brasil em 1976, e acabou por várias razões se envolvendo com a música de Villa-Lobos e escreveu um livro sobre a vida e a obra do compositor brasileiro, considerado um dos mais livros completos sobre o assunto.

  • 14

    como regente – mas seus efeitos podem ser percebidos nas obras que compôs nos seus últimos

    anos de vida: a maioria, embora não todas, testemunham um declínio da sua capacidade

    criativa.” (Ibidem, idem, p. 143).

    Essa avaliação de Peppercorn é questionada por Maria de Fátima Granja Tacuchian7,

    que considera problemático estabelecer uma relação direta sem uma reflexão mais aprofundada

    sobre as obras deste último período (TACUCHIAN, 1998a, p. 175-176).

    A partir dessas considerações estrutura-se este trabalho em três capítulos. O primeiro

    capítulo procura definir a última fase produtiva de Villa-Lobos, fundamentado em quatro

    pesquisadores com obras importantes sobre o compositor: Lisa Peppercorn, autora que possui o

    maior número de publicações sobre Villa-Lobos, sejam artigos, sejam livros, e cuja abordagem

    é mais biográfica, embora faça alguns comentários analíticos sobre algumas obras; Gérard

    Béhague, autor do livro Heitor Villa-Lobos: The Search for Brazil's Musical Soul, responsável

    pelo verbete “Heitor Villa-Lobos” e mais de 120 verbetes no The New Grove Dictionary of

    Music and Musicians, como coordenador dos verbetes sobre a América Latina; Paulo de Tarso

    Salles, que escreveu sua tese de doutoramento, pelo Instituto de Artes da UNICAMP, intitulada

    Processos composicionais de Villa-Lobos: um guia Teórico, cuja investigação analítica dos

    procedimentos composicionais do compositor brasileiro permite um olhar mais profundo sobre

    a produção musical e suas transformações estilísticas; com complemento a esses três autores

    consideram-se alguns questionamentos sobre datações de algumas obras, realizados por

    Guérios em seu livro Heitor Villa-Lobos: O caminho sinuoso da predestinação.

    A partir da definição do último período, procede-se a um esclarecimento quanto à

    aproximação e a ampliação das atividades musicais de Villa-Lobos relacionadas aos Estados

    Unidos, com apoio, principalmente, dos trabalhos de Lisa Peppercorn e Maria de Fátima

    Granja Tacuchian. E, por fim, passa-se a relacionar a produção musical desse período, com

    enfoque nas obras comissionadas. Finalizando este capítulo, aborda-se o grupo que

    encomendou a Fantasia em três movimentos, a “American Wind Symphony Orchestra”.

    No segundo capítulo, é investigada a utilização de nomes como “fantasia” e “forma de

    chôros”, para avaliar qual a proposição formal realizada por Villa-Lobos ao usar tais termos.

    Para o termo “fantasia” é realizada uma digressão histórica desde suas primeiras ocorrências

    7 Autora de Panamericanismo, propaganda e música erudita: Estados Unidos e Brasil (1939-1948), tese de doutoramento apresentada no Departamento de História da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas de Universidade de São Paulo.

  • 15

    em música, na Renascença. Posteriormente, comparam-se os procedimentos utilizados em sua

    estrutura aos empregados nas obras de Villa-Lobos que recebem o título de “fantasia”,

    investigando a assimilação desses procedimentos históricos à concepção musical deste gênero

    pelo compositor brasileiro. O apoio teórico para realização deste capítulo considerou vários

    autores. O verbete “Fantasia” do The New Grove Dictionary of Music and Musicians ofereceu

    uma linha aproximativa de transformação enriquecida por outras publicações de autores como

    Manfred Bukofzer, Rudolph Reti, Charles Rosen e Wallace Berry. Os comentários sobre as

    “fantasias” escritas por Villa-Lobos foram tirados de publicações de Bruno Kiefer, Adhemar

    Nóbrega, Eero Tarasti, Gérard Béhague, Lúcia Silva Barranechea, Cristina Capparelli Gerling,

    entre outros. A abordagem referente a “forma de chôros” é relacionada diretamente a estudos

    sobre produção do ciclo dos Choros.

    O terceiro capítulo analisa a Fantasia em três movimentos. Esta análise poderia

    direcionar seu foco unicamente para a utilização de texturas musicais como procedimento

    composicional, mas o emprego de outros recursos de igual relevância sugere outras

    abordagens. Assim, no primeiro movimento, o emprego de modos diatônicos e sintéticos,

    fundamentados em estudiosos como Vincent Persichetti, Daniel Raessler e Elliot Antokoletz,

    aproxima Villa-Lobos das pesquisas de Ferrucio Busoni e Béla Bartók. No segundo

    movimento, a presença de um motivo com características homofônicas particulares propõe um

    enfoque de textura musical como elemento ordenador da estrutura. Apresenta o conceito sobre

    textura de Wallace Berry com uma abordagem específica sobre motivo textural. O último

    movimento apresenta uma tendência à escrita “pandiatônica” e a utilização de escalas

    pentatônicas, fundamentadas novamente nos estudos formulados por Persichetti, e ampliados

    para Nicolas Slonimsky e Stefan Kostka.

    Villa-Lobos dizia que suas obras existiam para serem executadas e não analisadas. A

    dificuldade de realização de uma das etapas do processo de criação, ou seja, a difusão e

    execução da produção musical, problema que afeta até hoje a vida dos compositores,

    especialmente no Brasil, pode ter gerado tal ponto de vista. Sabe-se que Villa-Lobos trabalhou

    muito pela execução de suas nos vários lugares por onde passou. Seguindo-se esse raciocínio, a

    análise seria um procedimento, hierarquicamente, posterior a sua execução. Não obstante, hoje,

    nos primórdios do século XXI, Villa-Lobos é o compositor erudito brasileiro mais tocado no

    mundo e a relevância de sua obra vem sendo fortalecida por trabalhos analíticos apresentados

  • 16

    nos últimos anos, que, por sua vez, formam um corpo teórico importante para a sua

    compreensão.

  • 17

    Primeiro Capítulo

    1. Villa-Lobos: Último período de sua produção musical

    1.1 Fases Criativas de Villa-Lobos

    Existem alguns caminhos para se compreender a produção musical de um compositor

    como um todo. Um deles é traçar sua trajetória produtiva e dividi-la cronologicamente em

    fases. Na verdade, são poucos os compositores com uma linearidade evolutiva claramente

    definida, pois há muitas variantes que desencaminham tal processo; mas, em razão de uma

    estratégia pedagógica direcionada à busca de entendimento desse processo criativo, costuma-se

    dividir cronologicamente a obra de um artista em fases para demonstrar as preocupações e

    realizações, durante os vários períodos da sua vida criativa.

    Inicialmente, podem-se destacar em um compositor as bases de sua formação e suas

    influências mais importantes; em seguida, evidenciar, por meio da análise de suas obras mais

    significativas, os gestos que determinam seu domínio particular do material musical e o

    diferenciam de seus contemporâneos. Por fim, assinalar de que maneira as proposições do

    continuum de transformações inseridas na história alinharam sua linguagem e, a partir delas,

    de que forma estabeleceram ou não uma efetiva contribuição ao repertório universal.

    Quando o compositor é Heitor Villa-Lobos a tarefa se torna mais complexa. Ao avaliar

    as considerações feitas por estudiosos sobre suas fases, percebem-se as várias dificuldades com

    as quais eles se depararam. As mudanças de estilo repentinas e a grande variedade estilística

    presente em suas composições são, sem dúvida, os primeiros fatores de dificuldade para traçar

    uma possível linearidade ou uma cronologia clara neste processo. No entanto, as alterações de

    datas em várias de suas obras tornam-se o fator de maior dificuldade a ser considerado. Um

    simples esboço é tomado como o momento de sua “concepção espiritual”, termo utilizado pelo

    próprio compositor para justificar as datas de algumas de suas obras, mesmo que estas obras

    sejam escritas integralmente 12 anos mais tarde, como é o caso do Choros n.° 11

  • 18

    (PEPPERCORN, 1992, p. 16). Dessa maneira, tais obras acabaram mascaradas com datas

    anteriores ao momento estilístico no qual foram compostas.

    Mesmo diante de algumas imprecisões como essas, ainda assim será útil neste estudo

    definir o último período da produção de Villa-Lobos, buscando contextualizar o presente

    objeto dessa pesquisa, isto é, a Fantasia em três movimentos em forma de chôros, escrita em

    1958. É óbvio que, como uma obra comissionada nos últimos anos de vida, não há qualquer

    possibilidade de antecipação em sua data. Assim, para determinar os interesses musicais do

    compositor brasileiro nesta fase, propõe-se a delimitação deste último momento villalobiano,

    com uma breve contextualização histórica e a análise da Fantasia em três movimentos. Leva-se

    em conta também que o último período da produção musical de Villa-Lobos não tem tido

    grande interesse da comunidade musical, por considerar que sua contribuição mais

    significativa está concentrada em obras de fases anteriores.

    A definição deste último período fundamenta-se na reflexão comparativa de pesquisas

    realizadas por quatro estudiosos da obra de Villa-Lobos: Lisa Peppercorn, Gérard Béhague,

    Paulo de Tarso Salles e, por fim, consideram-se alguns fatos abordados por Paulo Renato

    Guérios, como uma proposição para reavaliação das datas de algumas obras na trajetória

    produtiva do compositor brasileiro.

    Lisa Peppercorn acompanhou a trajetória de Villa-Lobos a partir do final da década de

    30, quando era correspondente do jornal The New York Times no Rio de Janeiro, onde o

    conheceu pessoalmente. Escreveu vários artigos e estudos sobre o compositor brasileiro, em

    um do quais, publicado em 1979 com o título “The Fifteen-Year Periods in Villa-Lobos’s life”,

    ela sugeriu uma divisão em ciclos de quinze anos na vida do compositor brasileiro, e os

    organizou em quatro fases delimitadas por diferenças causadas, principalmente, por

    acontecimentos externos. A primeira fase dessa seqüência cíclica ordenada por ela começa em

    1900, quando o compositor tinha 13 anos, e segue até 1915. É um período marcado pela

    formação e escolhas profissionais de Villa-Lobos. Na segunda etapa, de 1915 a 1930,

    considera seu mais importante período criativo. De 1930 a 1945, Peppercorn estabelece como

    terceira fase, quando Villa-Lobos se fixou no Brasil, fazendo viagens curtas, ligadas ao sistema

    educacional que idealizara junto ao governo de Getúlio Vargas, e escrevendo as Bachianas

    Brasileiras. Finalmente, a autora considera os anos de 1945 a 1959 como a quarta fase, período

    em que Villa-Lobos entra definitivamente no mundo musical norte-americano e divide suas

  • 19

    atividades entre Brasil, Europa e Estados Unidos. Neste período, Peppercorn enfatiza o

    tratamento recebido por Villa-Lobos nos Estados Unidos, onde foi homenageado em várias

    oportunidades e tratado como uma verdadeira celebridade do mundo da música, e considerado

    como um dos mais importantes compositores das Américas. Tal prestígio refletiu-se em

    inúmeras obras comissionadas durante este período, o que se tornou, sem dúvida, um

    diferencial claro desta fase (PEPPERCORN, 1992, p. 69-88). Gérard Béhague parte de uma

    análise mais geral da produção villalobiana, separa em três fases com uma ordenação distinta

    de Peppercorn. Ele denomina o primeiro período criativo até 1922, como definição estilística.

    A seguir, os anos 20, a fase das experimentações e, por fim, dos anos 30 aos 50, como uma

    continuação, embora com menor ênfase na de renovação de sua linguagem (BÉHAGUE, 1994,

    p. 104). Paulo de Tarso Salles, partindo de um trabalho de cunho analítico direcionado aos

    processos composicionais de Villa-Lobos, propõe a seguinte reflexão cronológica: de 1900 a

    1917 – a adoção de modelos franceses e wagnerianos com o compositor estabelecido no Brasil;

    de 1917 a 1929 – a transição para formas e estruturas mais livres em ambiente musical

    parisiense; de 1930 a 1948 – o retorno ao Brasil em plena revolução varguista como símbolo

    da cultura brasileira; e o seu último período criativo, de 1948 a 1959, marcado pelo diagnóstico

    de sua doença, obras comissionadas, principalmente por instituições norte-americanas, e o

    trânsito entre Brasil-EUA-Europa (SALLES, 2005a, p. 15).

    Observam-se nestes três pesquisadores algumas divergências na proposição das fases

    produtivas do compositor brasileiro. Eles possivelmente partiram de catálogos oferecidos pelo

    Museu Villa-Lobos, com uma fonte comum, uma variedade de fontes bibliográficas e reflexões

    pessoais de seus trabalhos. A comparação entre os resultados obtidos por esses estudiosos

    mostra uma proximidade entre Peppercorn e Salles, com pequenas diferenças de 2 ou 3 anos

    em cada período, e também na divisão em quatro fases distintas. Béhague já propõe três

    períodos, sendo o primeiro e o último período mais longos, e trata de maneira indiferenciada

    algumas mudanças.

    A visão de Salles oferece uma divisão mais próxima das mudanças objetivas

    empreendidas na produção musical e na estrutura das obras do compositor brasileiro, exceto as

    considerações dirigidas à última fase, quando aponta um fato externo como determinante para

    o período em questão, o diagnóstico da doença em 1948, a seu ver, uma sentença sombria que

    afetaria a produção posterior de Villa-Lobos. Assim, para definir este último período, propõe-

  • 20

    se uma aproximação com a última fase descrita por Lisa Peppercorn, isto é, a partir de 1945,

    pouco tempo depois de sua primeira viagem aos EUA, e após o ciclo das Bachianas

    Brasileiras, que terá como marco inicial a realização de suas primeiras encomendas para

    instituições norte-americanas.

    Contudo, a trajetória de Villa-Lobos nos propõe outros questionamentos, em 19 de

    setembro de 1922, José Rodrigues Barbosa escreveu um artigo para o jornal O Estado de São

    Paulo, com o título “Um século de música brasileira” (CASTAGNA, 2007, p. 106-109). Neste

    texto, no verbete “Heitor Villa-Lobos” consta, além de uma curta biografia do compositor, um

    catálogo com as obras compostas até aquela data, porém com a ausência de obras como

    Uirapuru, Amazonas, Trio para oboé, clarineta e fagote, entre outras. Segundo o catálogo do

    Museu Villa-Lobos de 1989, essas três obras foram datadas como antes de 1922. Com uma

    semelhante organização das obras do referido verbete, Paulo Renato Guérios cita um catálogo

    de 1923, no verso de um programa de concerto realizado em São Paulo em 21 de abril, antes da

    primeira viagem a Paris e supostamente feito pelo próprio Villa-Lobos.

    [...] há um documento importante que não é referido por nenhum estudioso do compositor: o programa do concerto realizado em 21 de abril de 1923 em São Paulo, dois meses antes de sua partida para a Europa. Esse programa é extremamente interessante por conter um catálogo das composições que Villa-Lobos tinha produzido até então – catálogo que só poderia ter sido elaborado pelo próprio compositor. O catálogo interessa mais pelas obras que não estão ali presentes do que pelas que estão relacionadas. Entre as músicas de câmara, por exemplo, não constam o Trio para oboé, clarineta e fagote, o Nonetto, as Canções típicas brasileiras (atribuídas a 1919), nas quais Villa-Lobos utiliza cantos indígenas, nem Uirapuru e Amazonas – constam, no entanto, o Tédio de alvorada e Myremis, que foram inclusive executados neste dia. (GUÉRIOS, 2003, p. 138).

    O poema sinfônico Tédio de Alvorada (1916) com estréia em 1918, por exemplo, foi

    transformado em Uirapuru (datada por Villa-Lobos como 1917), com estréia realizada

    somente em 1935. Em uma análise realizada por Salles são comparadas as duas partituras. As

    conclusões desta análise apontam para um contato de Villa-Lobos com a obra de Igor

    Stravinsky, principalmente O pássaro de Fogo e A Sagração da Primavera, somado às

    influências de juventude como Wagner, Franck, D’Indy, entre outros, e a politonalidade

    presente em Darius Milhaud. Finaliza Salles dizendo “que as ampliações da orquestração

    revelam uma sofisticação da técnica de Villa-Lobos, não apenas com relação ao colorido, mas

    em relação ao delineamento mais equilibrado da massa orquestral.” (SALLES, 2005b, p. 2-9).

  • 21

    Mesmo com as dificuldades para se estabelecerem referências corretas nas datações de

    algumas obras, percebe-se que o ambiente parisiense propiciou uma transformação qualitativa

    na obra de Villa-Lobos, mesmo tendo ele dito que foi a Paris para mostrar seu trabalho8.

    Neste ponto é interessante notar que, sem levar em conta qualquer ordem cronológica,

    Villa-Lobos adotou uma maneira para classificar sua própria obra, como nos lembra o

    musicólogo Adhemar Nóbrega. Segundo ele, aproximadamente em 1947, Villa-Lobos fez uma

    ordenação de sua obra, em que qualifica cinco grupos a partir do nível de aproveitamento ou

    não do folclore, revelando alguns critérios nos processos de composição. Esta classificação,

    relatada por Nóbrega, foi reproduzida literalmente como o compositor a ditou, tendo sido

    acrescentadas posteriormente apenas as datas, para situar cada obra no tempo. (NÓBREGA,

    1971, p. 15-30). Tal ordenação é descrita sucintamente por Béhague da seguinte maneira:

    [...] O critério básico refere-se à relativa presença ou ausência de elementos da música folclórica ou de influência. O Grupo 1, ‘com intervenção indireta do folclore’, por exemplo, corresponde a algumas obras como as primeiras duas sinfonias (1916, 1917), o ballet O Papagaio do Moleque (1932), as quatro peças para piano que compõem o Ciclo brasileiro (1936) bem como algumas canções solo da década de 10. Ao Grupo 2, “com alguma intervenção direta do folclore”, pertencem algumas peças como a Prole do Bebê (1918) a Lenda do Caboclo (1920), e trabalhos de música de câmara como o Trio para sopros (1921) e o Sexteto Místico (1917). Os Choros são listados sob o Grupo 3, “com influência folclórica transfigurada”, enquanto o Grupo 4, “com influência folclórica transfigurada e permeada com atmosfera musical de Bach”, a missa-oratório Vidapura (1919) e os Prelúdios para violão. Finalmente, como Grupo 5, “em controle total do universalismo”, são listadas as sexta e sétima sinfonias (1944, 1945) e várias obras de música de câmara da década de 40. (BÉHAGUE, 1994, p. 44)9.

    Esta maneira de relacionar as obras tiraria de pauta as discussões sobre as antecipações

    realizadas pelo compositor brasileiro. Porém, após descrever tal classificação, Béhague

    considerou que a identificação de Villa-Lobos com o folclore não pode ser minimizada, mas

    utilizar somente o critério de ausência ou presença da música folclórica, como dicotomia entre 8 A afirmação que teria sido feita por Villa-Lobos em uma entrevista concedida ao chegar em Paris era: “Eu não vim aqui para aprender; mas mostrar o que fiz” (GUÉRIOS, 2003, p. 128). 9 [...] The basic criteria refer to the relative presence or absence of folk-music elements or influence. To Group 1, “with indirect folk intervention,” for example, correspond such works as the first two symphonics (1916, 1917), the ballet O Papagaio do Moleque (1932), the four piano pieces that make up the Ciclo Brasileiro (1936), as well as several solo songs of the 1910s. To Group 2, “with some direct folk intervention,” belong such piano pieces as the Prole do Bebê n°.1 (1918), Lenda do Caboclo (1920), and chamber music works as the Trio for woodwinds (1921) and the Sexteto Místico (1917). The Choros are listed under Group 3, “with transfigured folk influence,” while Group 4, “with transfigured folk influence permeated with the musical atmosphere of Bach,” includes the Bachianas, the mass-oratorio Vidapura (1919), and the guitar preludes. Finally, with Group 5, “in total control of universalism”, are listed the Sixth and Seventh symphonies (1944, 1945), the First piano concerto (1945) and several chamber music works of the 1940s.

  • 22

    nacional e universal, é uma simplificação para as várias questões presentes na obra de Villa-

    Lobos (BÉHAGUE, 1994, p. 44).

    Assim, a partir da reflexão e considerações sobre todos estes fatos toma-se como base

    de ordenação cronológica a proposta de Lisa Peppercorn, na qual se delimita esta última fase

    criativa de Villa-Lobos de 1945, após o ciclo das Bachianas Brasileiras, até sua morte em

    novembro de 1959. O trânsito entre EUA-Europa-América do Sul durante este período marca a

    ampliação das atividades musicais do compositor brasileiro para os Estados Unidos, lugar onde

    recebeu grande reconhecimento e atuou como compositor e regente. O final da Segunda

    Grande Guerra também favoreceu esse trânsito intercontinental. No entanto, as obras

    comissionadas, principalmente por entidades culturais e grupos orquestrais norte-americanos,

    impõem-se como ponto de referência importante na produção musical deste período.

    1.2 Panamericanismo e “Política de Boa Vizinhança”

    A primeira viagem de Villa-Lobos aos Estados Unidos abre uma página sobre as

    relações entre os países do continente americano, destacadamente Brasil e EUA, durante a

    Segunda Guerra Mundial. Para compreensão deste período, proceder-se-á a uma pequena

    digressão histórica e política para se definir Panamericanismo e, posteriormente, a “Política de

    Boa Vizinhança” estabelecida pelos Estados Unidos junto aos demais países do continente

    americano.

    O Panamericanismo surgiu no século XIX como manifestação premente da integração

    dos países americanos. Com objetivos de união e cooperação, em 1826, Simon Bolívar

    defendeu tais idéias no I Congresso Internacional realizado na então província colombiana do

    Panamá. Em seu início as propostas tinham em vista os países hispano-americanos e tinham o

    apoio da Grã-Bretanha e não dos Estados Unidos, que por sua vez disputavam território com o

    México. O México passou, então, por volta de 1830, a pressionar os países latino-americanos a

    se organizarem contra a posição imperialista de seu vizinho. Entretanto, a idéia de um

    continente amplamente integrado já estava presente na Doutrina Monroe nos Estados Unidos

    em dezembro de 1823. Tal doutrina declarava repúdio aos movimentos neo-colonialistas de

  • 23

    países europeus contra nações americanas. Assim, vê-se claramente que, enquanto havia um

    repúdio ao imperialismo norte-americano, esse mesmo país assumia um estratégico

    paternalismo, colocando-se como protetor do hemisfério (TACUCHIAN, 1998a, p.7).

    Oficialmente, a idéia do Panamericanismo foi apresentada em 1889 na Conferência

    Panamericana em Washington, à qual compareceram dezessete países. A intenção era

    fortalecer as relações dos EUA com os vizinhos do sul, tentando superar conflitos, com

    objetivos comerciais. Deste encontro foi criado o Escritório Internacional das Repúblicas

    Americanas, que em 1910 se tornou a Pan American Union (PAU), sediada em Washington.

    Mais tarde, em 1948, foi dissolvida e transformada em Organização dos Estados Americanos

    (OEA), que serviu como um reforço da liderança dos Estados Unidos no continente (Ibidem,

    idem, p.7).

    A partir de 1933, a “política de boa vizinhança” foi estabelecida pelo presidente

    Franklin Delano Roosevelt, que iniciou nova estratégia política com os países americanos,

    motivado pelos efeitos da crise econômica de 1929, como o elevado índice de desemprego e a

    queda nas exportações de mais de 60% para países do continente americano (ADAMS, 1979,

    p.292). Tornou-se célebre a afirmação de Roosevelt sobre a necessidade de os Estados Unidos

    exercerem o papel de "bons vizinhos" em relação aos demais países, o que já deixava claro em

    seu discurso de posse em 4 de março de 1933: "No campo da política mundial, eu dedicarei

    esta nação à política da boa vizinhança, uma vizinhança que resulte do respeito mútuo e,

    devido a isso, respeite o direito dos outros, uma vizinhança que respeite suas obrigações e

    respeite a santidade dos seus acordos para com todos os seus vizinhos do mundo inteiro”

    (DUROSELLE, 2001, p. 256). Assim a idéia do Panamericanismo é retomada.

    A ascensão de ditaduras na Europa, no final da década de 20, evidencia o fascismo na

    Itália e o crescimento do nacional-socialismo na Alemanha. Em 1933, a chegada de Adolf

    Hitler ao poder na Alemanha aponta para um futuro sombrio para a humanidade. A América do

    Sul, na década de 30, recebia imigrantes alemães e italianos, e o Brasil, por sua vez, mantinha

    relações comerciais com a Alemanha. O Brasil vivia sob a ditadura de Getúlio Vargas após a

    revolução de 1930. Todos estes fatos somados formavam um contexto ameaçador aos norte-

    americanos quando estourou a Segunda Guerra, o que deflagrou uma política de aproximação

    mais agressiva direcionada aos países sul-americanos e mais diretamente ao Brasil (MOURA,

    1984, p. 37).

  • 24

    Com isso, uma campanha de penetração gradativa da cultura norte-americana no Brasil

    se tornava real. A estratégia dos Estados Unidos era promover uma cooperação interamericana

    e a solidariedade hemisférica para enfrentar o desafio do Eixo. Assim, em agosto de 1940, foi

    criada uma agência de coordenação dos negócios interamericanos, sob a chefia de Nelson

    Rockefeller, chamada Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA). Essa

    iniciativa se diferenciava dos programas de colaboração já em funcionamento, por estar

    diretamente vinculada ao Conselho de Defesa Nacional dos Estados Unidos (MOURA, 1984,

    p. 40). O OCIAA contava com as divisões de comunicações, relações culturais, saúde,

    comércio e finanças, para alcançar seus objetivos. Cada uma dessas seções se subdividia em:

    rádio, cinema, imprensa, arte, música, literatura, exportação, transporte, políticas sanitárias e

    finanças.

    As ações desta “superagência” abrangiam várias áreas. Na saúde, houve uma ação para

    o controle da malária com treinamento de enfermeiras e educação médica. Na comunicação e

    informação procurava-se veicular na imprensa brasileira notícias favoráveis aos Estados

    Unidos e, paralelamente divulgar o Brasil nos Estados Unidos. A recepção e transmissão de

    radiofotos foram difundidas no Brasil como técnicas mais modernas nesta área. O rádio foi um

    dos mais importantes meios para a propaganda na guerra. O OCIAA apresentava programas

    transmitidos diretamente dos Estados Unidos. O cinema também desempenhava um papel de

    difusor cultural e ideológico. O nascimento da personagem “Zé Carioca” data desta época,

    caracterizando o estereótipo do brasileiro simpático. Carmem Miranda se torna símbolo da

    cultura brasileira nos Estados Unidos. A coca-cola começa a substituir o suco de frutas nas

    mesas brasileiras. Com isso, apesar de algumas resistências, o OCIAA conseguiu erradicar

    gradualmente a influência do Eixo no Brasil e dar força ao discurso panamericanista de

    solidariedade continental (MOURA, 1984, p. 43).

    1.3 Primeiras obras de Villa-Lobos ouvidas nos Estados Unidos

    A música de Villa-Lobos chegou timidamente ao solo norte-americano em meados dos

    anos 20, executada por Artur Rubinstein.

  • 25

    No final de novembro de 1928, no Carnegie Hall, em Nova York, a Orquestra da

    Filadélfia tocou as Danças Características Africanas, de Villa-Lobos, com regência de

    Leopold Stokowsky. Esta é considerada por Peppercorn a primeira apresentação da música de

    Villa-Lobos em solo norte-americano (PEPPERCORN, 1992, p. xii).

    Em janeiro de 1930, também no Carnegie Hall, Hugh Ross10 regeu a estréia americana

    do Choros n.° 10, com a Philharmonic Symphony Orchestra.

    Em 1938, na preparação para Feira Mundial de New York, que aconteceria de 1939 a

    1949, Armando Vital Leite Ribeiro, na qualidade de Comissário-Geral do Brasil, resolveu

    mostrar a produção musical brasileira, especialmente a moderna, e contatou o então Reitor da

    Universidade do Brasil, Professor Leitão da Cunha. Os professores Guilherme Fontainha e

    Luiz Heitor foram indicados para a organização do programa. Villa-Lobos e Francisco

    Mignone se propuseram, gratuitamente, a reger a orquestra para a gravação de vários discos.

    Num árduo trabalho, foram 31 discos duplos com música de Carlos Gomes, Francisco Braga,

    Henrique Oswald, Alexandre Levi, Camargo Guarnieri, Radamés Gnatalli, Lorenzo Fernandes

    e Francisco Mignone, sendo que 10 discos se compunham de músicas de Villa-Lobos. Além

    das gravações também foram organizadas coleções de partituras que compreendiam obras de

    Carlos Gomes, Francisco Braga, Henrique Oswald, Alexandre Levi, Francisco Mignone,

    Luciano Gallet, Barroso Neto, Frutuoso Vianna, Lorenzo Fernandez, João Nunes e Villa-

    Lobos. As partituras de Villa-Lobos levadas foram Momoprecoce, Bachianas Brasileiras 1, 2 e

    5, Amazonas (redução para piano), 1ª. Suite do Descobrimento do Brasil, Cirandas, Prole do

    Bebê e Suíte Floral (RIBEIRO, 1965, p. 21-22).

    Houve três concertos com músicas e artistas brasileiros no “Music Hall”, construído

    especialmente para a Feira Mundial, sendo dois inteiramente dedicados a obras de Villa-Lobos.

    No primeiro concerto, Bidu Sayão cantou a Ária das Bachianas Brasileiras n.° 5, e obteve

    grande sucesso. A primeira parte terminou com o Choros n.° 8, que deixou a platéia surpresa.

    No segundo concerto foram executados, de Villa-Lobos, Caixinha de Boas-Festas e o Choros

    n.° 10 sob a regência de Hugh Ross. Este foi, até aquele momento, o contato mais efetivo do

    povo norte-americano com a música de Villa-Lobos. Embora não pudesse estar presente

    10 Ross foi regente da Schola Cantorum de Nova York e amigo próximo de Villa-Lobos. Eles se encontraram pela primeira vez em Paris no final dos anos 20. Sempre este próximo de Villa-Lobos no período em que esteve nos Estados Unidos, sendo também um dos responsáveis pela encomenda da ópera “Yerma”.

  • 26

    fisicamente aos concertos, Villa-Lobos ouviu-os pelo rádio e seu julgamento a respeito da

    execução foi curioso; disse a Armando Vidal Ribeiro que desejava uma regência “menos reta,

    mais curva” (RIBEIRO, 1965, p. 23).

    Esses concertos contaram com a presença da soprano brasileira Elsie Houston (1902-

    1943), interprete e divulgadora da música brasileira, considerada pelo próprio Villa-Lobos

    como uma das maiores intérpretes de sua música. Houston participou deste evento cantando

    canções populares e temas de macumba. Ela viveu nos Estados Unidos de 1937 até sua morte,

    em 1943, e chegou a ter um programa de rádio sobre música brasileira na NBC, embora não

    haja documentação, Houston deve ter divulgado a música de Villa-Lobos em seus programas,

    considerando-se que as obras do compositor brasileiro quase sempre estiveram incluídas nos

    seus recitais11.

    1.4 Negociações para primeira viagem aos Estados Unidos

    A busca pela integração panamericana continuava firme como propósito norte-

    americano. Na América do Sul, Villa-Lobos se tornara um símbolo importante na área da

    música, como compositor, e já projetava seu sistema de educação musical, em plena realização

    no Brasil. Desse modo, com um nome já constituído de forma incontestável, tornou-se alvo de

    interesse de um projeto para levá-lo aos Estados Unidos.

    Neste período Villa-Lobos estava envolvido com seu projeto de educação, trabalhando

    na Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA), órgão da Secretaria de

    Educação e Cultura da prefeitura do então Distrito Federal no Rio de Janeiro, ligado ao

    governo de Getúlio Vargas e fortemente identificado com o nacionalismo. Em sua produção

    musical, encontrava-se compondo o ciclo das Bachianas. Em virtude da projeção de Villa-

    Lobos com perfil de educador, Charles Seeger12, diretor da Divisão de Música da Pan

    American Union, iniciava suas tentativas para levá-lo aos Estados Unidos.

    11 Artigo em jornal e data não identificados, sob o título “Elsie Houston na hora brasileira da NBC todas as sextas-feiras a partir do dia 15 de maio”. (BERTEVELLI, 2000, p. 75) 12 Louis Charles Seeger (1886-1979), musicólogo e professor norte-americano nascido no México, concentrou-se na etnomusicologia em geral e em sua teoria, tendo exercido influência como escritor altamente prescritivo e

  • 27

    Em meados de 1941, encontramos o comitê de música do OCIAA iniciando articulações para visita de Villa-Lobos ao país. A proposta inicial era convidá-lo a reger um coral de três mil estudantes e participar da conferência bienal da associação de educadores da música, Music Educators National Conference, programada para março de 1942, em Milwukee e, após o evento, para uma apresentação como regente, em Washington, nas comemorações do dia Panamericano, em 14 de abril. Enquanto isso, Charles Seeger insistia junto ao educador John Beattie, sobre a visita, considerando ser a mesma de ‘primordial importância [...] seu incontestável sucesso trará repercussões benéficas aos interesses das relações interamericanas’. (TACUCHIAN, 1998b, p. 244).

    Contudo, a proposta inicial de levar Villa-Lobos como educador mudou, porque ele se

    recusou a atrelar sua carreira somente ao seu projeto de educação. Além disso, John Beattie,

    educador enviado ao Brasil para fazer o convite formalmente a Villa-Lobos, mostrou-se

    decepcionado com os métodos de ensino do compositor brasileiro. Com parecer semelhante de

    Lincoln Kirstein, diretor do American Ballet Caravan, em turnê pela América do Sul, Seeger

    suspende o projeto inicial de convidar Villa-Lobos como educador (TACUCHIAN, 1998b, p.

    244-245). Começa, então, um período de negociações para apresentá-lo, conforme

    manifestação de seu desejo, como compositor e artista.

    As negociações duraram meses e foram realizadas por cartas entre o diretor da Pan

    American Union (PAU), Charles Seeger, e Heitor Villa-Lobos13. Assim o convite foi

    formalizado em 18 de abril de 1944 com um contrato com a Jassen Symphony Orchestra de

    Los Angeles. Nessas negociações, Villa-Lobos condicionou seu convite à participação em

    outros concertos em grandes centros musicais norte-americanos, como Nova York, Chicago,

    Boston e Filadélfia. Seeger uniu esforços e montou uma programação com o envolvimento de

    orquestras norte-americanas e visitas a diversas cidades14.

    Finalmente, a conjugação de todos estes fatores levou Villa-Lobos para os Estados

    Unidos no final de 1944. Em 26 de novembro, do mesmo ano, Villa-Lobos dirigiu um

    programa integralmente de obras orquestrais suas com a Jassen Symphony Orchestra em Los

    filosófico. Exerceu atividades na organização e desenvolvimento dos Composers Colectives, e trabalhou como crítico de música para vários jornais e periódicos. 13 Este conjunto de cartas encontra-se na Columbus Memorial Library da OEA, Washington DC, abrangendo correspondência entre Seeger e Villa-Lobos, Seeger e Departamento de Estado, com empresários norte-americanos e instituições musicais no período de 15/08/43 a 15/03/45. Cópias destas correspondências encontram-se no volume 2 da tese de doutorado de Maria de Fátima Granja Tacuchian: Panamericanismo, propaganda e música erudita: Estados Unidos e Brasil (1939-1948), Universidade de São Paulo, 1998, 2v. 14 idem, Carta de Villa-Lobos a Seeger, 18/08/44 na mesma coleção.

  • 28

    Angeles. O evento foi patrocinado por um grupo de instituições do qual faziam parte: Southern

    California Council of Inter-American Affairs, Motion Pictures Society for the Americas (seção

    de música) e Occidental College, instituições que representavam diferentes segmentos da

    comunidade, abrangendo setores oficiais, a indústria cinematográfica e orgãos educacionais.

    Em uma cerimônia de gala, alguns dias antes do primeiro concerto, o compositor foi

    homenageado pelo Occidental College com o título honorário de Doctorate in Law. Durante

    algumas semanas seguiu-se programação semelhante em outras cidades, como Nova York,

    Chicago, Boston e Filadélfia (Ibidem, idem, p. 244).

    Peppercorn comentou a volta de Villa-Lobos dos Estados Unidos da seguinte maneira:

    Villa-Lobos voltou para o Brasil satisfeito com a recepção que teve nos Estados Unidos. O caráter direto e franco do povo americano e o seu alto nível cultural o haviam deixado surpreso e emocionado, e o grande interesse de pessoas de todas as idades por música – e isto incluía a música moderna – sensibilizou-o profundamente. Ele percebeu como seus preconceitos haviam sido infundados: fora recebido com uma disposição e simpatia com as quais jamais sonhara. Não demorou muito e ele começou, talvez por intuição, talvez intencionalmente, a compor inspirado nos Estados Unidos. (PEPPERCORN, 2000, p. 135).

    A sugestão romântica utilizada por Peppercorn, quando diz que Villa-Lobos começou

    “a compor inspirado nos Estados Unidos”, poderia supor um aprofundamento na cultura

    musical norte-americana por parte de Villa-Lobos. Mas aqui, ela atribui a essa fase do

    compositor brasileiro, a partir da primeira visita aos Estados Unidos, uma tendência crescente

    de se “voltar às formas musicais tradicionais às quais acabou voltando totalmente”

    (PEPPERCORN, 1998, p. 136). As hipóteses levantadas por ela para a escolha de tal caminho

    por Villa-Lobos incluem: a de procurar descobrir que tipo de música que teria mais

    probabilidade de sucesso em seus variados estilos de composição; o conservadorismo das

    orquestras e dos empresários norte-americanos ter estimulado, através das inúmeras

    encomendas, a utilização de formas tradicionais neste período; ou a busca de um

    distanciamento do nacionalismo do período anterior. A interpretação firmada por Peppercorn

    de que Villa-Lobos tenha se voltado totalmente para as formas tradicionais, em seu último

    período, está fundamentada no fato de a produção musical desta fase ser representada, em sua

    maior parte, por sinfonias, concertos, poemas sinfônicos, quartetos de cordas e óperas. Essa

    premissa é, entretanto, questionada por Maria de Fátima Granja Tacuchian, que considera

    problemático estabelecer uma relação direta sem uma reflexão mais profunda sobre as obras

  • 29

    produzidas neste último período; todavia não nega que Villa-Lobos tenha sido um artista

    envolvido com o contexto que o cercava (Tacuchian, 1998a: 175-176).

    De fato, a quantidade de obras comissionadas desse período é diferencial na trajetória

    de Villa-Lobos e o maior número dessas encomendas veio dos Estados Unidos, mas para

    determinar um estilo formal tradicional nas composições deste período é necessário examinar

    essa produção comissionada.

    1.5 Produção musical do último período

    As três primeiras obras de Villa-Lobos comissionadas neste período datam de 1945. A

    primeira delas foi encomendada pela Elizabeth Sprague Coolidge Foundation, da Livraria do

    Congresso, Washington, D.C., respondida com o Trio para Violino, Viola e Violoncelo, com

    estréia em 30 de outubro de 1945, realizada pelo Albeneri Trio, no Coolidge Auditorium. O

    segundo convite veio de Ellen Ballon (1898-1969), pianista canadense, filha de russos, para

    compor um concerto para piano e orquestra. Em resposta a este convite Villa-Lobos escreveu

    seu Concerto n.° 1 para piano e orquestra15. O poema sinfônico Madona foi a terceira obra

    encomendada neste período, porém, desta vez, a iniciativa foi da Fundação Koussevitzky,

    dedicada a Natalie Koussevitzky, esposa falecida do famoso regente da Orquestra Sinfônica de

    Boston, Serge Koussevitzky (PEPPERCORN, 1992, p. 198).

    Villa-Lobos escreveu também em 1945 a Sinfonia n.° 7, para comemorar o final da

    guerra. Sua estréia foi em Londres, em 26 de março de 1949, com a execução da Orquestra

    Sinfônica da BBC, regida pelo próprio compositor (PEPPERCORN, 2000, p. 139).

    A “aventura musical” Magdalena, comissionada por Edwin Lester, presidente da Los

    Angeles Civic Light Opera Association, foi escrita entre janeiro e março de 1947. Sua primeira

    apresentação foi em 26 de julho de 1948, na Philharmonic Hall em Los Angeles. Em sua

    temporada teve 32 performances em Los Angeles e São Francisco e 72 no Ziegfeld Theatre de

    Nova York. Segundo Tacuchian:

    15 Esta obra foi composta em um período de 20 dias e sem piano, conforme Jorge Dodsworth Martins em Presença de Villa-Lobos (MARTINS, 1969, p. 111).

  • 30

    Magdalena tem sido uma das obras mais controvertidas do autor, pois para avaliá-la não há consenso, seja na recepção do público e da imprensa especializada, na época de sua encenação ou na forma como tem sido mencionada em trabalhos teórico-analíticos, incluindo-se aqui as diferentes classificações que recebeu, como ‘opereta’, ‘ópera ligeira’, ‘comédia musical’ ou ‘aventura musical’. (TACUCHIAN, 1998a, p. 177).

    A partitura original de Magdalena sofreu drásticas alterações para se adaptar ao

    espetáculo musical. O descontentamento de Villa-Lobos foi grande, mas as receitas o ajudaram

    a custear as despesas de hospital relacionadas à cirurgia a que precisou se submeter, devido ao

    câncer de bexiga diagnosticado neste ínterim. Villa-Lobos não esteve presente na estréia, pois

    estava no hospital, mas seu amigo Hugh Ross lembra tê-lo ouvido dizer, antes da estréia,

    zangado: “Na primeira apresentação, vou me levantar no meu camarote e dizer: ‘Povo de Nova

    York, esta não é minha música’.” E Ross continua: “Ele só não fez isso porque, infelizmente,

    estava no hospital na hora.” (PEPPERCORN, 2000, p.140)16.

    O musical Magdalena (1947) e a trilha sonora para o filme Green Mansions (1958) da

    MGM, tornaram-se para Villa-Lobos acontecimentos incomuns para um artista latino-

    americano, o de integrar um espaço, até então ocupado predominantemente por artistas norte-

    americanos ou um seleto grupo de europeus (TACUCHIAN, 1998a, p.176-177).

    Neste último período criativo, além dos concertos para piano n.° 1, 3, 4 e 5, outros

    concertos foram encomendados por instrumentistas virtuoses, como o Concerto para harpa e

    orquestra, em 1955, para Nicanor Zabaleta, e o Concerto para harmônica e orquestra, em

    1955, para John Sebastian. O Concerto para violão e orquestra, inicialmente intitulado

    Fantasia Concertante, foi transformado em concerto a pedido de André Segóvia, e a ele

    dedicado.

    Seguem-se a estas obras comissionadas outras como: Hommage à Chopin, de 1949; a

    Sinfonia n.° 10, intitulada Sumé Pater Patrium para solo, coro misto e orquestra composta em

    1953/54; a Sinfonia n.° 11, de 1955; a Fantasia Concertante para piano, clarineta e fagote, de

    1953; a Ouverture Alvorada na Floresta Tropical, de 1953; os poemas sinfônicos Erosão, de

    1950, e Gênesis, de 1954; o balé The Emperor Jones, em 1956; a ópera Yerma, The Unfruitful,

    peça de Lorca de 1955/56; Magnificat Aleluia, para coro misto e orquestra, de 1958.

    Para ilustrar e estabelecer um parâmetro comparativo entre as obras escritas neste

    último período villalobiano, segue uma lista das obras mais significativas, em sua maioria

    16 Carta de Hugh Ross para Peppercorn, Nova York, 16 de outubro de 1973 (PEPPERCORN, 1992, p. 94).

  • 31

    orquestrais, distinguindo as obras comissionadas por norte-americanos em vermelho, as

    comissionadas por outros países em negrito e obras não comissionadas sem nenhum

    destaque17.

    Título Instrumentação Editora Ano

    Trio para violino,

    viola e violoncelo

    Max-Eschig 1945

    Concerto para

    Piano e Orq. n.° 1

    Piano e Orquestra Max-Eschig 1945

    Fantasia para

    Violoncelo

    Orquestra Max-Eschig 1945

    Madona

    Orquestra Max-Eschig 1945

    Quarteto de Cordas

    n.° 9

    Peer-Southern 1945

    Sinfonia n.° 7 Orquestra Manuscrita 1945

    Quarteto de Cordas

    n.° 10

    Peer-Southern 1946

    Magdalena

    (Aventura Musical

    em 2 atos) 18

    Coros e Orquestra Manuscrita 1947

    Quarteto de Cordas

    n.° 11

    Peer-Southern 1947

    Big-Ben Canto e Orquestra Southern Music Pub.

    Comp.

    1948

    Concerto para Piano

    e Orq. n.° 2

    Piano e Orquestra Max-Eschig 1948

    17 Estas informações foram obtidas do catálogo de 1989, editado pelo Museu Villa-Lobos. 18 Embora não conste como obra encomendada no catálogo de 1989, segundo Peppercorn, foi encomendada por Edwin Lester (PEPPERCORN, 1992, p. 198).

  • 32

    Fantasia para

    Saxofone

    Saxofone Soprano

    ou Tenor (3 trps. e

    cordas)

    Southern Music Pub.

    Comp.

    1948

    Erosão

    (Poema Sinfônico)

    Orquestra Max-Eschig 1950

    Quarteto de Cordas

    n.° 12

    Associated Music

    Pub.

    1950

    Samba Clássico Canto e Orquestra Max-Eschig 1950

    Sinfonia n.° 8

    Orquestra Max-Eschig 1950

    Concerto para

    Violão e Orquestra

    Violão e Orquestra

    Max-Eschig 1951

    Quarteto de Cordas

    n.° 13

    Max-Eschig 1951

    Rudá (Dio

    D’Amore) Bailado

    Orquestra Max-Eschig 1951

    Concerto para

    Piano e Orq. n.° 3

    Piano e Orquestra Max-Eschig 1952/1957

    Concerto para

    Piano e Orq. n.° 4

    Piano e Orquestra

    Max-Eschig 1952

    Ouvertude

    L’Homme tel...

    Orquestra Max-Eschig 1952

    Sinfonia n.° 9 Orquestra Max-Eschig 1952

    Sinfonia Ameríndia

    n.° 10

    Coro, Cantores e

    Orquestra

    Max-Eschig 1952

    Concerto para

    Harmônica e Orq.

    Harmônica (Gaita) e

    Orquestra

    Max-Eschig 1953

    Concerto para

    Violoncelo e Orq.

    n.° 2

    Piano e Orquestra Max-Eschig 1953

  • 33

    Fantasia

    Concertante

    Piano, Clarineta e

    Fagote

    Max-Eschig 1953

    Odisséia de uma

    Raça

    Orquestra Israeli music.Pub. 1953

    Quarteto de Cordas

    n.° 14

    Max-Eschig 1953

    Concerto para

    Piano e Orq. n.° 5

    Piano e Orquestra Max-Eschig 1954

    Gênesis

    Orquestra Max-Eschig 1954

    Quarteto de Cordas

    n.° 15

    Max-Eschig 1954

    Quarteto de Cordas

    n.° 16

    Max-Eschig 1954

    Yerma (Ópera em

    3 atos)

    Coro, Cantores

    Solistas e Orq.

    Manuscrita 1955/1956

    Sinfonia n.° 11 Orquestra Max-Eschig 1955

    Canção das Águas

    Claras

    Canto e Orquestra Max-Eschig 1956

    The Emperor Jones Canto e Orquestra Manuscrita 1956

    A Menina das

    Nuvens (Aventura

    Musical em 3 atos)

    Coro, Cantores e

    Orquestra

    Manuscrita 1957/1958

    Quarteto de Cordas

    n.° 17

    Max-Eschig 1957

    Quinteto

    Instrumental

    Flauta, Violino,

    Viola, Cello e

    Harpa

    Max-Eschig 1957

    Poema sem Palavras Canto e Orquestra Max-Eschig 1957

    Sinfonia n.° 12 Orquestra Max-Eschig 1957

  • 34

    Modinhas e Canções

    (Álbum n.°2)

    Canto e Orquestra Manuscrita e Max-

    Eschig (Canto e

    Piano)

    1958/1959

    Floresta do

    Amazonas

    Cair da Tarde,

    Canção do Amor

    Canto e Orquestra Manuscrita 1958

    Fantasia Concertante 32 Violoncelos Max-Eschig 1958

    Fantasia em 3 Mov.

    (em forma de

    chôros)

    Orq. de Sopros C. F. Peters Corp. 1958

    Floresta do

    Amazonas (Filme

    Green Mansions)

    Coro e Orquestra Manuscrita 1958

    Francette e Piá Orquestra Manuscrita 1958

    Magnificat Alleluia Coro e Orquestra Max-Eschig 1958

    Melodia

    Sentimental

    Floresta do

    Amazonas

    Canto e Orquestra Manuscrita 1958

    Sete Vezes Canto e Orquestra Max-Eschig 1958

    Veleiros Canto e Orquestra Manuscrita 1958

    Canção do Poeta do

    Século XVIII

    Canto e Orquestra Manuscrita 1959

    Concerto Grosso Orq. de Sopros C. F. Peters Corp. 1959

    Suite For Chamber

    Orchestra n.° 1

    Orquestra de

    Câmara

    Max-Eschig 1959

    Suite For Chamber

    Orchestra n.° 2

    Orquestra de

    Câmara

    Max-Eschig 1959

  • 35

    Ao examinar este quadro, percebe-se realmente uma grande quantidade de obras com a

    utilização de formas instrumentais originárias do período clássico, no entanto associar o

    emprego de seus títulos à utilização de formas tradicionais, como propõe Peppercorn, implica o

    risco de estabelecer um juízo equivocado, se não forem investigadas as aplicações estruturais

    realizadas nessas composições. A hipótese, sugerida por ela, de que o conservadorismo das

    orquestras e agentes norte-americanos tivesse estimulado a produção de formas tradicionais

    nesse período é enfraquecida , ao se observar a quantidade de obras com essas características

    entre as obras comissionadas por eles (todas as obras em vermelho no quadro). Entre as cinco

    sinfonias escritas neste período, apenas a Sinfonia n.° 11 foi comissionada por norte-

    americanos, ele escreveu 12 sinfonias em toda sua obra. Os cinco poemas sinfônicos foram

    comissionados por entidades norte-americanas, no entanto, possuem estruturas mais ou menos

    livres. O The Emperor Jones, considerado como poema sinfônico no catálogo de 1989, foi

    escrito para ballet, com partes vocais para contralto e barítono solistas. Os concertos para piano

    e orquestra números 1, 3, 4 e 5 foram encomendados, mas nenhum por norte-americanos.

    Outras encomendas feitas por norte-americanos foram uma obra para cinema, a Floresta do

    Amazonas, e o musical Magdalena, que possuem roteiros preestabelecidos. O trio para violino,

    viola e violoncelo, a primeira obra comissionada neste período, necessitaria ser analisado, mas

    não faz parte da tradição camerística clássica. Os nove quartetos de cordas foram iniciativas

    musicais de Villa-Lobos, nenhum foi encomendado, tendo sido escritos 17 no total. O

    Magnificat Alleluia foi encomendado pela Associação Italiana de Santa Cecília para o

    suplemento musical “Lourdiano”, ofertado ao Papa Pio XII. Seguem-se outros títulos com

    denominações características de períodos pré-clássicos como as suítes para orquestra de

    câmara, o concerto grosso e, por fim, uma grande quantidade de fantasias escritas por Villa-

    Lobos nesse período, somando-se cinco: a Fantasia para saxofone, a Fantasia para violoncelo,

    a Fantasia Concertante para trio, a Fantasia Concertante para orquestra de violoncelos e a

    Fantasia em três movimentos em forma de chôros. Entre elas duas foram comissionadas por

    norte-americanos. Em 1953, a Fantasia Concertante para piano, clarinete e fagote,

    encomendada pelo pianista norte-americano Eugene Liszt, e, m 1958, a Fantasia em três

    movimentos em forma de chôros, comissionada pela American Wind Symphony Orchestra.

    O número de obras comissionadas por norte-americanos, com títulos que poderiam

    significar a utilização de formas clássicas, é insuficiente para justificar tal generalização feita

  • 36

    por Peppercorn sobre a produção da última fase do compositor brasileiro. No entanto, a

    diminuição de obras com caráter nacional e a busca do que Villa-Lobos considerou como “as

    formas universais do Poema Sinfônico, da Sinfonia, da Rapsódia, da Serenata Clássica, do

    Concerto e da Fantasia” (VILLA-LOBOS, 1950, p. 204) podem significar uma direção seguida

    pelo compositor brasileiro nesse último período.

    Neste sentido, pode-se considerar que a Fantasia em três movimentos em forma de

    chôros reune elementos necessários para um exame minucioso dos procedimentos

    composicionais empregados por Villa-Lobos nos seus últimos anos de vida. Além dos

    aspectos já apontados, isto é, ter sido comissionada por uma entidade norte-americana, a

    American Wind Symphony Orchestra, composta em 1958, e é também um gênero considerado

    por ele como uma “forma universal”.

    1.6 American Wind Symphony Orchestra

    O convite recebido por Villa-Lobos para escrever para a American Wind Simphony

    Orchestra ocorreu em um momento importante de transformação desta espécie de conjunto

    instrumental. Em meados do século XX, nos Estados Unidos era realizada uma ampla discussão

    sobre bandas de sopros pela College Band Directors National Association (CBDNA), tendo como

    assuntos principais, repertório, padronizações instrumentais para sopros e percussão e formação

    de regentes. A forte tradição de bandas de sopros nos Estados Unidos desencadeou a formação de

    um grande número delas, e havia vários tipos de bandas espalhadas por todo o país, desde bandas

    militares, bandas de estudantes (High School Bands), até as bandas profissionais de concerto.

    A partir dessas discussões nasceu a American Wind Symphony Orchestra (AWSO). A

    concepção e criação da AWSO foi responsabilidade de Robert Austin Boudreau, no ano de 1957.

    No início de suas atividades, como Wind Symphony Boudreau, foram selecionados músicos de

    universidades de música e conservatórios de vários Estados norte-americanos e, mais tarde,

    também músicos de outros países.

    Tal concepção para a formação de uma orquestra de sopros propunha uma instrumentação

    distinta dos grupos de sopros já existentes, que mantinham um padrão instrumental aproximado

  • 37

    nos vários tipos de bandas em atividade. Boudreau dobrou a seção de madeiras das orquestras

    sinfônicas e enriqueceu o naipe de percussão, sem saxofones ou eufônios muito utilizados nas

    bandas de sopros. A instrumentação original consistia de: 6 flautas, 2 piccolos, 6 oboés, 2 corne

    ingês, 6 clarinetas, 2 clarinetas baixo, 6 fagotes, 2 contrafagotes, 6 trompas, 6 trompetes, 6

    trombones, 2 tubas, percussão, harpa, piano e contrabaixo (único representante da família das

    cordas).

    No entanto, um dos principais problemas enfrentados por Boudreau foi repertório. Assim,

    colocou em prática um projeto para construção de um repertório original para seu conjunto de

    sopros. Boudreau convidou e incentivou importantes compositores dos Estados Unidos e do

    mundo, especialmente compositores da Europa, América do Sul e América Central, para

    escreverem para a AWSO. Esse projeto, nos Estados Unidos, nasceu não somente da necessidade

    específica de ampliação da literatura para um grupo de sopros, mas também da busca de qualidade

    artística neste segmento musical, que possuía em seu repertório com muitas obras transcritas de

    peças orquestrais e obras de entretenimento ligadas às suas heranças cívicas, destinadas a vários

    outros tipos de agrupamento de sopros.

    Algumas obras importantes haviam sido escritas antes da existência da AWSO, que

    funcionaram como modelos para busca de qualidade e utilização de recursos específicos e

    modernos para instrumentos de sopros. Igor Stravinsky escrevera a Sinfonia para sopros, em

    1920, e o Concerto para piano e instrumentos de sopros, em 1923-24. Edgar Varèse criou peças

    revolucionárias para madeiras, metais e percussão, Octandre e Hiperprism, em 1923, Intégrales,

    em 1925, e somente para percussão Ionisation, em 1931. Arnold Schoenberg, respondendo à

    sugestão de seu editor Carl Engel, compôs para banda de sopros completa o Tema com variações,

    op. 43a19, em 1943. Entre várias peças para sopros, Paul Hindemith escreve em 1951 a Sinfonia

    em Sib. E em 1955-56, Oliver Messiaen compõe Oiseaux Exotiques.

    Cada uma dessas obras possui uma instrumentação diferente, com distintas preocupações

    artísticas relativas à utilização dos instrumentos de sopros; somente Schoenbrg e Hindemith

    seguem um padrão instrumental aproximado de bandas de concerto, enquanto as outras peças

    apresentam concepções independentes. Neste sentido, a Eastman Wind Ensemble, criada por

    Frederick Fennell, em 1952, introduz uma concepção flexível de instrumentação e repertório para

    19 Schoenberg escreveu uma versão para orquestra, op. 43b, a pedido de Serge Koussevitzky, cuja estréia aconteceu antes da versão para banda, realizada somente em 1946 pela Goldman Band, regida por Richard Franko Goldman, no Central Park em Nova York.

  • 38

    grupo de sopros. Tal concepção permite a realização de uma variedade de obras com diferentes

    formações sem prender-se a uma padronização de instrumentação específica. Como conseqüência,

    amplia-se consideravelmente seu repertório, tornando-o ao mesmo tempo eclético e dinâmico,

    possibilitando ao público ouvir peças novas, com as quais não estava familiarizado, juntamente

    com obras do repertório tradicional, “O primeiro concerto da Eastman Wind Ensemble foi um

    exemplo perfeito de sua implementação desta formula: Mozart – Serenade n.° 10 em Sib, K. 370a;

    Riegger – Noneto para Metais, e Hindemith – Sinfonia em Sib.” (BATTISTI, 2002, p.58)20. Esta

    concepção introduzida por Fennell estava presente nas idéias iniciais para formação da AWSO por

    Boudreau, porém sua instrumentação era distinta.

    Neste primeiro período de obras comissionadas para a AWSO, encontram-se duas peças de

    Villa-Lobos, a Fantasia em três movimentos em forma de chôros, que obteve sua primeira

    performance em 29 de junho de 1958, em Pittisburgh, e o Concerto Grosso para flauta, oboé,

    clarineta, fagote e orquestra de sopros, apresentado pela primeira vez em 5 de julho de 1959, na

    mesma cidade. Essas obras foram comissionadas por Mrs. S. J. Anathan. Durante um período de

    mais de 40 anos, entre 1957 e 2002, as obras encomendadas pela AWSO ultrapassaram o número

    de 400, das quais aproximadamente 150 foram editadas pela C. F. Peters Corporation. Outros

    grupos tiveram iniciativas semelhantes, porém com menor intensidade. Hoje, o repertório para

    orquestra de sopros conta com obras de compositores como: Vincent Persichetti, Karel Husa, Igor

    Stravinsky, Arnold Schoenberg, Paul Hindemith, Edgar Varèse, Oliver Messian, K. Penderecki,

    Heitor Villa-Lobos, Percy Grainer, Gordon Jacob, William Schuman, Walter Piston, Samuel

    Barber, Aaron Copland, Alfred Reed, Morton Gould, Robert Russel Bennett, Norman Dello Joio,

    David Maslanka entre outros (BATTISTI, 2002, p. 53-64).

    No Brasil, a criação da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo em 1989, iniciativa do

    maestro Roberto Farias, permitiu também uma considerável ampliação do repertório brasileiro

    para esta formação instrumental, por meio de um projeto semelhante de obras comissionadas, além

    da realização de obras importantes para sopros da literatura já existente. A Banda Sinfônica foi

    responsável por mais de 70 obras comissionadas até 2008. Além disso, este grupo foi responsável

    pela estréia brasileira da Fantasia em três movimentos, de Villa-Lobos, em 13 de outubro de 1992,

    sob a regência do maestro Graham Griffiths, como regente convidado, em um concerto

    20 “The first concert of the Eastman Wind Ensemble was a perfect example of this formula: Mozart – Serenade n.° 10 in B-flat, K. 370a; Rigger – Nonet for Brass, and Hindemith - Symphony in B-flat.

  • 39

    comemorativo dos 500 anos do descobrimento da América. Mais tarde, em 2005, a Fantasia foi

    incluída no CD Fantasia Amazônica, deste mesmo grupo sinfônico, sob a regência do maestro

    Abel Rocha.

    No entanto, o padrão instrumental estabelecido para a Banda Sinfônica do Estado de São

    Paulo foi o padrão das bandas de concerto, tendo Villa-Lobos escrito para a AWSO completa, isso

    trouxe dificuldades para realização de obra mesmo com a padronização de uma banda de

    concertos. Desta forma, foi necessário realizar algumas adaptações na instrumentação para

    execução da Fantasia em três movimentos de Villa-Lobos21. No quadro abaixo é possível

    comparar a adaptação da instrumentação original da AWSO com a instrumentação utilizada pela

    Banda Sinfônica do Estado de São Paulo na gravação realizada em 2005.

    AWSO Banda Sinfônica do Estado de São Paulo

    2 piccolos 2 piccolos

    6 flautas 6 flautas

    6 oboés 1,2,3,5 oboés

    4 e 6 redução - saxofone soprano

    2 corne inglês corne inglês

    6 clarinetas em Sib 12 clarinetas

    clarineta em Mib (requinta) clarineta em Mib (requinta)

    clarineta alto em Mib clarineta alto em Mib

    clarineta baixo em Mib clarineta baixo em Mib

    clarineta contrabaixo em Mib Voz dobrada com contrabaixo ou fagote

    6 fagotes 1,2, 5 fagotes

    3 e 4 redução para saxofone tenor

    6 para saxofone barítono

    2 contrafagotes contrafagote

    6 trompas 6 trompas

    3 trompetes em Sib 3 trompetes em Sib

    21 Conforme informações constatadas no arquivo da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo.

  • 40

    flugelhorn em Sib flugelhorn em Sib

    2 trompetes em Dó 2 trompetes em Dó

    4 trombones 4 trombones

    2 trombones baixo trombone baixo

    tuba tuba

    2 contrabaixo (cordas) 4 contrabaixo (cordas)

    tímpano tímpano

    Percussão – (4 percussionistas)

    caixa clara, bombo, pandeiro, tambour de

    provence, matraca, castanhola, coco, pratos,

    chocalho, tamtam, triângulo,

    vibrafone, xilofone e celesta

    idem

    A gravação dessa obra realizada pela Banda Sinfônica do Estado de São Paulo consta

    como anexo deste trabalho nas faixas 1, 2 e 3 do CD “Fantasia Amazônica”.

  • 41

    Segundo Capítulo

    2. Fantasia em três movimentos em forma de chôros

    O título Fantasia em três movimentos em forma de chôros propõe duas investigações

    iniciais antes de abordar a composição em sua sintaxe estrutural. São elas as duas proposições

    utilizadas por Villa-Lobos no título desta obra, isto é, os termos “fantasia” e “forma de

    chôros”.

    No primeiro capítulo desta dissertação foi citada uma classificação feita por Villa-Lobos

    de sua própria obra. Dentre os grupos nos quais estão subdivididas suas obras, há um nomeado

    “controle total do universalismo”, endereçado às peças cuja relação com a tradição é

    estabelecida a partir do alinhamento de algumas obras a títulos como sinfonia, concerto ou

    quarteto de cordas, sem sugestões temáticas relacionadas ao folclore, compreendidas como

    modelos sugeridos pela história, segundo o entendimento de Villa-Lobos, “a música pela

    música” ou “a música universal”. Assim, até que ponto a utilização do termo “fantasia” é um

    indício para estabelecer esse diálogo com a tradição? Para responder a tal indagação será

    ilustrativamente interessante relacionar as transformações e estruturas apresentadas pela

    fantasia no decorrer da história da música, como procedimento musical, a algumas peças que

    Villa-Lobos nomeou como “fantasia” em sua produção.

    2.1 O termo “fantasia”: conceito e transformações

    da Renascença ao Barroco

    O conceito do termo “fantasia”, de modo geral, traz como principal referência a

    imaginação. Em sua utilização na música, deixou rastros desde a renascença como um

  • 42

    procedimento composicional livre com recursos