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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
INSTITUTO DE ARTES – SÃO PAULO
JOSÉ IVO DA SILVA
FANTASIA EM TRÊS MOVIMENTOS EM FORMA DE
CHÔROS DE HEITOR VILLA-LOBOS:
ANÁLISE E CONTEXTUALIZAÇÃO DE SEU ÚLTIMO
PERÍODO
SÃO PAULO
2008
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JOSÉ IVO DA SILVA
FANTASIA EM TRÊS MOVIMENTOS EM FORMA DE CHÔROS
DE HEITOR VILLA-LOBOS:
ANÁLISE E CONTEXTUALIZAÇÃO DE SEU ÚLTIMO PERÌODO
Dissertação de mestrado apresentado no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como exigência para o título de mestre em música. Orientador: Prof. Dr. Marcos Fernandes Pupo Nogueira
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
Prof. Dr. Marcos Pupo Nogueira __________________________________
Profª. Dra. Valerie Ann Albright __________________________________
Prof. Dr. Paulo de Tarso Salles __________________________________
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Dedicatória
Em memória de Ricardo Rizek, professor e amigo,
silenciosamente presente neste trabalho.
À Lucia Faria,
uma ouvinte paciente e grande incentivadora.
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Agradecimentos
A realização deste trabalho só foi possível graças à colaboração direta ou indireta de
muitas pessoas e instituições. Manifesto minha gratidão a todas elas e de modo particular:
Ao meu orientador Prof. Dr. Marcos Pupo Nogueira, pela confiança e pelas pacientes
correções de curso durante todo o processo de confecção deste trabalho, o que certamente o
dotou de qualidade e relevância.
À Profª. Dra. Valerie Albright e ao Prof. Dr. Vitor Gabriel, pelas valiosas sugestões em
meu exame de qualificação.
Aos meus amigos que incentivaram e foram “bons ouvidos” durante o período de
confecção deste trabalho: Paulo de Tarso Salles, Gilberto Assis Rosa, Sérgio Molina, Orlando
Marcos Mancini, Itamar Vidal, César Henrique Franco e Alexandre Franciscini.
Ao maestro Abel Rocha, Sérgio Wontroba e ao staff da Banda Sinfônica do Estado de
São Paulo.
À Cláudia Leopoldino e Pedro Belchior, do Museu Villa-Lobos, que gentilmente
atenderam minhas solicitações.
À Lucia Faria e Luciana Soldi pelas preciosas revisões e correções da língua
portuguesa.
Ao Julio César Lancia pelas revisões das citações traduzidas da língua inglesa.
Aos funcionários da Secretaria e da Biblioteca da UNESP.
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Resumo
Esta pesquisa aborda, analiticamente, a Fantasia em três movimentos em forma de chôros,
de Heitor Villa-Lobos, uma das obras de sua produção sinfônica para orquestra de sopros. Inserida
em seu último período de produção musical, esta obra foi comissionada pela American Wind
Symphony Orchestra e composta em 1958. A contextualização deste período é o assunto do início
deste trabalho. Em seguida, procede-se à análise em duas etapas: a primeira tem o foco
direcionado para os termos “fantasia” e “forma de chôros”, sugeridos no título; e a segunda etapa
é a análise dos procedimentos e técnicas composicionais utilizados pelo compositor brasileiro
nesta obra, principalmente, material escalar, textura e tendências pandiatônicas. O principal
objetivo desse trabalho é evidenciar procedimentos musicais presentes nesta fase do compositor.
Palavras-chave: Villa-Lobos, fantasia, análise musical, orquestra de sopros.
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Abstract
This research analytically approaches Heitor Villa-Lobos’s Fantasia em três movimentos
em forma de chôros, one of his symphonic pieces for wind orchestra. From the latter period of his
production, this piece was commissioned by the American Wind Symphony Orchestra and
composed in 1958. The first section of this study contextualizes the period. A two-stage analysis
follows: the first part focuses the words “fantasia” and “forma de chôros” as suggested in the title;
the second part analyzes the compositional procedures and techniques used by the Brazilian
composer in the piece, mainly scale material, texture and pandiatonic tendencies. The main
purpose of this work is to make evident the musical procedures used by the composer at that time
of his life.
Keywords: Villa-Lobos, fantasia, musical analysis, wind orchestra.
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SUMÁRIO Dedicatória Agradecimentos Resumo Abstract Sumário Introdução .................................................................................................... 10
1. Primeiro Capítulo - Villa-Lobos: Último período de sua produção musical
1.1 Fases produtivas de Villa-Lobos ........................................................ 17
1.2 Panamericanismo e “Política de Boa Vizinhança”...............................22
1.3 Primeiras obras de Villa-Lobos ouvidas nos Estados Unidos ....... 24
1.4 Negociações para a primeira viagem aos Estados Unidos ........... 26
1.5 Produção musical do último período .................................................. 29
1.6 American Wind Symphony Orchestra ................................................ 36
2. Segundo Capítulo - Fantasia em três movimentos em forma de chôros
2.1 O termo “fantasia”: conceito e transformações da Renascença ao
Barroco ................................................................................................. 41
2.1.1 Alguns traços da assimilação dos procedimentos da “fantasia”
presentes nas Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos ............... 51
2.1.2 A “fantasia” nos períodos clássico e romântico ....................... 55
2.1.3 Alguns traços românticos nas primeiras “fantasias”
de Villa-Lobos ......................................................................... 60
2.1.4 D’Indy e Villa-Lobos ............................................................... 61
2.1.5 Outras “fantasia” de Villa-Lobos ............................................. 64
2.2 O termo “forma de chôros”.................................................................. 70
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3. Terceiro Capítulo – Análise da Fantasia em três movimentos em
forma de Chôros ........................................................................................ 74
3.1 Forma: uma conformidade externa da organização temática ............... 75
3.2 Primeiro Movimento – Andante quase Adagio ................................ 78
3.2.1 Aspectos temáticos ................................................................... 80
3.2.2 O uso de modos menores ......................................................... 82
3.2.3 O uso de modos derivados da menor harmônica e melódica ... 86
3.2.4 Variações no acompanhamento ................................................. 95
3.2.5 Material contrastante e derivações temáticas .......................... 102
3.3 Segundo Movimento - Allegretto (scherzando) e o conceito de textura
.............................................................................................................. 107
3.3.1 Aspectos formais ..................................................................... 114
3.3.2 Motivo textural e seus desdobramentos na primeira seção ..... 115
3.3.3 Afinidades temáticas entre primeiro e segundo movimentos .. 121
3.3.4 O emprego de paralelismo ....................................................... 122
3.3.5 Paralelismo aplicado ao tema da seção B ................................ 125
3.3.6 Última seção do segundo movimento ...................................... 129
3.4 Terceiro movimento - Molto Allegro .............................................. 135
3.4.1 Tendência pandiatônica ........................................................... 136
3.4.2 O uso de escalas pentatônicas .................................................. 146
3.4.3 Variações melódicas ................................................................ 148
3.4.4 Polirritmia e tendências pandiatônicas .................................... 151
4. Conclusões ................................................................................................ 156
5. Referências bibliográficas ....................................................................... 160
5.1 – Partituras e CD .............................................................................. 167
6. Anexo 1 – Partitura da Fantasia em três movimentos em forma de chôros
Anexo 2 – CD Fantasia Amazônica
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Introdução
“Toda ocasião em que um coral (de louvores) patriótico cantava maravilhas do autor do
‘Descobrimento do Brasil’, glorificando-o como o músico maior das Américas, eu – por meu turno –
sempre exigi que as loas correspondessem à verdade, e o fato é que desde a base das argumentações
dos Novos Compositores Seriais, duvidei. Uma ou outra coisa do Villa chegava-me, mas a
responsabilidade da consciência da História me impedia de dizer amém a mais esta glória nacional,
de cujo cimo esplendia Rui Barbosa, a Águia de Haia, Marechais diversos da terra mar e ar, e quase
uma vintena do Forte, e vocês sabem quanto mais. Assim foi que desde início dos anos sessenta tive
que matar Villa-Lobos. Parricídio ou Regicídio. Para que a verdade que se fizera em mim:
triunfasse.”(Willy Corrêa de Oliveira, 2008)1.
Em 13 de outubro de 1992, a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo promovia a
estréia brasileira da Fantasia em três movimentos em forma de chôros2 de Heitor Villa-Lobos.
Ao se considerar que esta obra foi escrita em 1958 e obteve sua estréia mundial em 29 de junho
desse mesmo ano, nos Estados Unidos, o que causaria esse hiato de 34 anos antes de ser ouvida
em seu país?
A Fantasia em três movimentos, juntamente com o Concerto Grosso para flauta, oboé,
clarineta, fagote e orquestra de sopros (1959) são obras para orquestra de sopros que integram
uma lista de composições comissionadas por entidades norte-americanas no último período da
produção musical do compositor brasileiro. Elas foram encomendadas por Mrs. S. J. Anathan,
para a American Wind Symphony Orchestra, sediada em Pittsburgh.
A resposta mais natural à questão formulada acima seria a de que não havia nenhum
grupo brasileiro com a formação sinfônica de sopros necessária para a realização desta obra até
o final da década de 80. Mas, também é possível considerar que nesse período houve uma
concentração de interesses em obras consideradas mais significativas, entre a imensa produção
musical de Villa-Lobos. É o caso, por exemplo, dos ciclos das Bachianas Brasileiras e dos
1 Em artigo “Com Villa-Lobos”: O Estado de São Paulo (OLIVEIRA, 2008 p. 7). 2 Na partitura a palavra “chôros” obedece à ortografia antiga, com acento circunflexo, por este motivo está acentuação será mantida no texto desta dissertação sempre que tiver como referência esta obra.
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Choros, de caráter marcadamente nacional. Esses fatos, entre outros, podem ter mergulhado a
última fase do compositor em desconhecimento e a distanciado da crítica especializada.
No entanto, outro fator contribuiu para a falta de divulgação e realização de obras desse
último período villalobiano, como a divergência de opiniões sobre a figura de Villa-Lobos na
cultura nacional. De um lado, havia uma bibliografia impregnada de superlativos e juízos
fantasiosos direcionados a um herói nacional, cuja incompreensão técnica de seu trabalho
impedia uma avaliação objetiva da sua produção musical. Por outro, um natural reflexo da
geração musical posterior, manifestada na epígrafe, com o relato do compositor Willy Corrêa,
para quem a vanguarda brasileira precisou estabelecer a “morte simbólica de Villa-Lobos” por
razões principalmente ideológicas. Eero Tarasti identifica que o estilo tardio de Villa-Lobos,
nos anos 50, “foram criticados com ouvidos da vanguarda européia, serealista e darmatadtiana
– cujos pendores meio ‘totalitários’ só foram notados depois.” (TARASTI, 2006, p. 47). Talvez
essa geração tivesse mais condições de oferecer uma contribuição objetiva para o entendimento
da obra de Villa-Lobos.
Assim, foram popularizadas opiniões sobre Villa-Lobos estranhamente divididas entre
uma “genialidade inspirada” de cunho romântico e autodidata contra a de um compositor
nacionalista, sem formação acadêmica consistente que, às vezes, compunha uma obra-prima,
garimpada de uma quantidade de obras quase inexplicável. Essas duas vertentes tinham em
comum a identificação da “intuição” como explicação para a qualidade desta produção e o
reconhecimento internacional alcançado nesse processo.
Neste sentido, uma bibliografia cercada de mitificação, municiada pela própria
personalidade do compositor, traduz as contradições de um Brasil em busca de identidade. A
primeira biografia escrita sobre Villa-Lobos, pelo jovem Vasco Mariz na década de 40, contava
com a enorme admiração do biógrafo, ampliada pela presença viva do biografado:
Digo que o livro era imaturo porque, com a minha juventude (tinha 25 anos), era difícil não ceder aos conselhos cautelosos de amigos e colegas interessados no assunto. Minhas entrevistas com Villa-Lobos causaram-me profunda impressão, tão grande que achei melhor, por prudência, qualificar os elogios ou até agravar as restrições, a fim de não parecer dominado pela personalidade gigantesca do biografado. (MARIZ, 1989, p. 7).
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Essa biografia tornou-se uma fonte inicial relevante para conhecer Villa-Lobos, e,
apesar de ter sofrido algumas modificações em suas reedições, segundo Paulo Renato
Guérios3, a concepção original é mantida nas edições subseqüentes.
Neste hiato temporal, marcado entre a estréia mundial e a estréia brasileira da Fantasia
em três movimentos, outras obras foram escritas sobre Villa-Lobos. Entre elas, uma coleção de
12 volumes sob o título Presença de Villa-Lobos que reúne depoimentos, opiniões e
comentários de pessoas que conviveram com ele ou estudaram sua obra. Alguns autores
brasileiros, em outras publicações, reafirmavam as qualidades contidas no ciclo dos Choros e
nas Bachianas Brasileiras, como Adhemar Nóbrega e José Maria Neves. Outros, como José
Miguel Wisnik, iniciam uma retomada sobre a significação da obra do compositor Villa-Lobos
contextualizada na cultura brasileira, em O coro dos contrários, de 1977, que se detinha, como
foco principal, na música em torno da Semana de 22. Um pouco mais tarde, em 1986, Bruno
Kiefer publicava Villa-Lobos e o modernismo na música brasileira, que, embora trate também
da Semana de 22, realiza uma abordagem analítica mais profunda e permite uma avaliação
histórica mais contextualizada da produção musical de Villa-Lobos e avança sobre a produção
da década de 20.
O prestígio internacional alcançado pela música de Villa-Lobos referendou um
conjunto de estudos sobre ele fora do Brasil. Lisa Peppercorn4, a autora com maior número de
obras catalogadas sobre o compositor, escreveu mais de 25 títulos que tratam de aspectos
bibliográficos e analíticos. Essas publicações variam entre quatro livros – dois deles em língua
inglesa, um em alemão e outro em português - e vários artigos publicados entre 1940 e 1991,
escritos em inglês, alemão, italiano e holandês.
Entretanto, os trabalhos mais importantes publicados fora do Brasil foram: Heitor Villa-
Lobos – the search of Brazil’s musical soul, de Gerard Béhague5, de 1994, e Heitor Villa-
3 Paulo Renato Guérios aborda questões sociológicas em tangência com a biografia de Villa-Lobos em sua Dissertação de Mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS), posteriormente transformada em livro com o título Heitor Villa-Lobos - O caminho sinuoso da predestinação. 4 Lisa Peppercorn acompanhou a trajetória de Villa-Lobos a partir do final da década de 30, quando era correspondente musical do The New York Times e Musical America no Rio de Janeiro, onde o conheceu pessoalmente. 5 Formado como músico pelo Conservatório Nacional de Música na década de 50, pós-graduado na Universidade de Paris na década de 60 em etnomusicologia, foi responsável pelo verbete “Heitor Villa-Lobos” e mais de 120 verbetes no The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Escreveu uma monografia sobre Villa-Lobos para participar de um concurso promovido pela OEA em comemoração de 100 anos de nascimento do compositor, em 1987. O seu trabalho ganhou o primeiro prêmio e foi publicado em 1994 com algumas revisões.
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Lobos – the life and works, do finlandês Eero Tarasti6, publicado em 1995, livros que se
tornaram referência para qualquer pesquisador cujo assunto seja Villa-Lobos.
Com linguagem analítica profunda e atualizada, quatro trabalhos acadêmicos brasileiros
revisitaram a obra de Villa-Lobos no novo milênio: em 2002, a tese de doutoramento de
Valerie Ann Albright, Aproximações entre duas culturas americanas na linguagem de Ives e
Villa-Lobos; e a tese de doutoramento de Gilmar Roberto Jardim, Bachianas Brasileiras n.° 7:
O estilo Antropofágico de Heitor Villa-Lobos, transformado em livro em 2005; em 2003, a
dissertação de Renata Botti, Aspectos de textura na música de Heitor Villa-Lobos; e em 2005,
a tese de doutoramento de Paulo de Tarso Salles, Processos composicionais de Villa-Lobos:
um guia teórico.
Outras pesquisas somam-se a essas importantes contribuições citadas acima, mas, ainda
assim, não há uma abordagem analítica minuciosa sobre o último período da produção de
Villa-Lobos. Esta última fase do compositor brasileiro não tem despertado grande interesse de
pesquisadores, que concentram suas investigações em obras consideradas mais significativas
na trajetória do compositor.
Neste sentido, este trabalho propõe uma visita aos últimos 14 anos da produção musical
de Villa-Lobos, ao realizar uma análise da Fantasia em três movimentos em forma de chôros.
Essa obra representa a intersecção de fatores que caracterizam esse período, ou seja, a
ampliação geográfica de sua atuação para os Estados Unidos, e foi comissionada por uma
entidade norte-americana e composta em 1958. Neste sentido, a proposição para esta análise é
avaliar se há alguma transformação estilística como conseqüência desta ampliação geográfica,
conforme sugere Lisa Peppercorn, com referência aos Estados Unidos. Ela supõe, como uma
hipótese, que as inúmeras encomendas recebidas por Villa-Lobos durante este período tenham
condicionado seu processo criativo a compor “inspirado” nos Estados Unidos, recorrendo a
formas tradicionais, em decorrência do conservadorismo das orquestras e dos empresários
norte-americanos. Seguem-se duas afirmações de Peppercorn sobre esse momento final
villalobiano, “[...] depois da primeira visita aos Estados Unidos, a sua tendência era cada vez
mais a de voltar às formas tradicionais às quais acabou retornando totalmente.”
(PEPPERCORN, 2000, p.136) e “A operação parece não ter afetado em nada a sua carreira
6 Musicólogo e semiólogo finlandês, veio ao Brasil interessado em Lévi-Strauss e os índios do Brasil em 1976, e acabou por várias razões se envolvendo com a música de Villa-Lobos e escreveu um livro sobre a vida e a obra do compositor brasileiro, considerado um dos mais livros completos sobre o assunto.
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como regente – mas seus efeitos podem ser percebidos nas obras que compôs nos seus últimos
anos de vida: a maioria, embora não todas, testemunham um declínio da sua capacidade
criativa.” (Ibidem, idem, p. 143).
Essa avaliação de Peppercorn é questionada por Maria de Fátima Granja Tacuchian7,
que considera problemático estabelecer uma relação direta sem uma reflexão mais aprofundada
sobre as obras deste último período (TACUCHIAN, 1998a, p. 175-176).
A partir dessas considerações estrutura-se este trabalho em três capítulos. O primeiro
capítulo procura definir a última fase produtiva de Villa-Lobos, fundamentado em quatro
pesquisadores com obras importantes sobre o compositor: Lisa Peppercorn, autora que possui o
maior número de publicações sobre Villa-Lobos, sejam artigos, sejam livros, e cuja abordagem
é mais biográfica, embora faça alguns comentários analíticos sobre algumas obras; Gérard
Béhague, autor do livro Heitor Villa-Lobos: The Search for Brazil's Musical Soul, responsável
pelo verbete “Heitor Villa-Lobos” e mais de 120 verbetes no The New Grove Dictionary of
Music and Musicians, como coordenador dos verbetes sobre a América Latina; Paulo de Tarso
Salles, que escreveu sua tese de doutoramento, pelo Instituto de Artes da UNICAMP, intitulada
Processos composicionais de Villa-Lobos: um guia Teórico, cuja investigação analítica dos
procedimentos composicionais do compositor brasileiro permite um olhar mais profundo sobre
a produção musical e suas transformações estilísticas; com complemento a esses três autores
consideram-se alguns questionamentos sobre datações de algumas obras, realizados por
Guérios em seu livro Heitor Villa-Lobos: O caminho sinuoso da predestinação.
A partir da definição do último período, procede-se a um esclarecimento quanto à
aproximação e a ampliação das atividades musicais de Villa-Lobos relacionadas aos Estados
Unidos, com apoio, principalmente, dos trabalhos de Lisa Peppercorn e Maria de Fátima
Granja Tacuchian. E, por fim, passa-se a relacionar a produção musical desse período, com
enfoque nas obras comissionadas. Finalizando este capítulo, aborda-se o grupo que
encomendou a Fantasia em três movimentos, a “American Wind Symphony Orchestra”.
No segundo capítulo, é investigada a utilização de nomes como “fantasia” e “forma de
chôros”, para avaliar qual a proposição formal realizada por Villa-Lobos ao usar tais termos.
Para o termo “fantasia” é realizada uma digressão histórica desde suas primeiras ocorrências
7 Autora de Panamericanismo, propaganda e música erudita: Estados Unidos e Brasil (1939-1948), tese de doutoramento apresentada no Departamento de História da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas de Universidade de São Paulo.
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em música, na Renascença. Posteriormente, comparam-se os procedimentos utilizados em sua
estrutura aos empregados nas obras de Villa-Lobos que recebem o título de “fantasia”,
investigando a assimilação desses procedimentos históricos à concepção musical deste gênero
pelo compositor brasileiro. O apoio teórico para realização deste capítulo considerou vários
autores. O verbete “Fantasia” do The New Grove Dictionary of Music and Musicians ofereceu
uma linha aproximativa de transformação enriquecida por outras publicações de autores como
Manfred Bukofzer, Rudolph Reti, Charles Rosen e Wallace Berry. Os comentários sobre as
“fantasias” escritas por Villa-Lobos foram tirados de publicações de Bruno Kiefer, Adhemar
Nóbrega, Eero Tarasti, Gérard Béhague, Lúcia Silva Barranechea, Cristina Capparelli Gerling,
entre outros. A abordagem referente a “forma de chôros” é relacionada diretamente a estudos
sobre produção do ciclo dos Choros.
O terceiro capítulo analisa a Fantasia em três movimentos. Esta análise poderia
direcionar seu foco unicamente para a utilização de texturas musicais como procedimento
composicional, mas o emprego de outros recursos de igual relevância sugere outras
abordagens. Assim, no primeiro movimento, o emprego de modos diatônicos e sintéticos,
fundamentados em estudiosos como Vincent Persichetti, Daniel Raessler e Elliot Antokoletz,
aproxima Villa-Lobos das pesquisas de Ferrucio Busoni e Béla Bartók. No segundo
movimento, a presença de um motivo com características homofônicas particulares propõe um
enfoque de textura musical como elemento ordenador da estrutura. Apresenta o conceito sobre
textura de Wallace Berry com uma abordagem específica sobre motivo textural. O último
movimento apresenta uma tendência à escrita “pandiatônica” e a utilização de escalas
pentatônicas, fundamentadas novamente nos estudos formulados por Persichetti, e ampliados
para Nicolas Slonimsky e Stefan Kostka.
Villa-Lobos dizia que suas obras existiam para serem executadas e não analisadas. A
dificuldade de realização de uma das etapas do processo de criação, ou seja, a difusão e
execução da produção musical, problema que afeta até hoje a vida dos compositores,
especialmente no Brasil, pode ter gerado tal ponto de vista. Sabe-se que Villa-Lobos trabalhou
muito pela execução de suas nos vários lugares por onde passou. Seguindo-se esse raciocínio, a
análise seria um procedimento, hierarquicamente, posterior a sua execução. Não obstante, hoje,
nos primórdios do século XXI, Villa-Lobos é o compositor erudito brasileiro mais tocado no
mundo e a relevância de sua obra vem sendo fortalecida por trabalhos analíticos apresentados
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nos últimos anos, que, por sua vez, formam um corpo teórico importante para a sua
compreensão.
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Primeiro Capítulo
1. Villa-Lobos: Último período de sua produção musical
1.1 Fases Criativas de Villa-Lobos
Existem alguns caminhos para se compreender a produção musical de um compositor
como um todo. Um deles é traçar sua trajetória produtiva e dividi-la cronologicamente em
fases. Na verdade, são poucos os compositores com uma linearidade evolutiva claramente
definida, pois há muitas variantes que desencaminham tal processo; mas, em razão de uma
estratégia pedagógica direcionada à busca de entendimento desse processo criativo, costuma-se
dividir cronologicamente a obra de um artista em fases para demonstrar as preocupações e
realizações, durante os vários períodos da sua vida criativa.
Inicialmente, podem-se destacar em um compositor as bases de sua formação e suas
influências mais importantes; em seguida, evidenciar, por meio da análise de suas obras mais
significativas, os gestos que determinam seu domínio particular do material musical e o
diferenciam de seus contemporâneos. Por fim, assinalar de que maneira as proposições do
continuum de transformações inseridas na história alinharam sua linguagem e, a partir delas,
de que forma estabeleceram ou não uma efetiva contribuição ao repertório universal.
Quando o compositor é Heitor Villa-Lobos a tarefa se torna mais complexa. Ao avaliar
as considerações feitas por estudiosos sobre suas fases, percebem-se as várias dificuldades com
as quais eles se depararam. As mudanças de estilo repentinas e a grande variedade estilística
presente em suas composições são, sem dúvida, os primeiros fatores de dificuldade para traçar
uma possível linearidade ou uma cronologia clara neste processo. No entanto, as alterações de
datas em várias de suas obras tornam-se o fator de maior dificuldade a ser considerado. Um
simples esboço é tomado como o momento de sua “concepção espiritual”, termo utilizado pelo
próprio compositor para justificar as datas de algumas de suas obras, mesmo que estas obras
sejam escritas integralmente 12 anos mais tarde, como é o caso do Choros n.° 11
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(PEPPERCORN, 1992, p. 16). Dessa maneira, tais obras acabaram mascaradas com datas
anteriores ao momento estilístico no qual foram compostas.
Mesmo diante de algumas imprecisões como essas, ainda assim será útil neste estudo
definir o último período da produção de Villa-Lobos, buscando contextualizar o presente
objeto dessa pesquisa, isto é, a Fantasia em três movimentos em forma de chôros, escrita em
1958. É óbvio que, como uma obra comissionada nos últimos anos de vida, não há qualquer
possibilidade de antecipação em sua data. Assim, para determinar os interesses musicais do
compositor brasileiro nesta fase, propõe-se a delimitação deste último momento villalobiano,
com uma breve contextualização histórica e a análise da Fantasia em três movimentos. Leva-se
em conta também que o último período da produção musical de Villa-Lobos não tem tido
grande interesse da comunidade musical, por considerar que sua contribuição mais
significativa está concentrada em obras de fases anteriores.
A definição deste último período fundamenta-se na reflexão comparativa de pesquisas
realizadas por quatro estudiosos da obra de Villa-Lobos: Lisa Peppercorn, Gérard Béhague,
Paulo de Tarso Salles e, por fim, consideram-se alguns fatos abordados por Paulo Renato
Guérios, como uma proposição para reavaliação das datas de algumas obras na trajetória
produtiva do compositor brasileiro.
Lisa Peppercorn acompanhou a trajetória de Villa-Lobos a partir do final da década de
30, quando era correspondente do jornal The New York Times no Rio de Janeiro, onde o
conheceu pessoalmente. Escreveu vários artigos e estudos sobre o compositor brasileiro, em
um do quais, publicado em 1979 com o título “The Fifteen-Year Periods in Villa-Lobos’s life”,
ela sugeriu uma divisão em ciclos de quinze anos na vida do compositor brasileiro, e os
organizou em quatro fases delimitadas por diferenças causadas, principalmente, por
acontecimentos externos. A primeira fase dessa seqüência cíclica ordenada por ela começa em
1900, quando o compositor tinha 13 anos, e segue até 1915. É um período marcado pela
formação e escolhas profissionais de Villa-Lobos. Na segunda etapa, de 1915 a 1930,
considera seu mais importante período criativo. De 1930 a 1945, Peppercorn estabelece como
terceira fase, quando Villa-Lobos se fixou no Brasil, fazendo viagens curtas, ligadas ao sistema
educacional que idealizara junto ao governo de Getúlio Vargas, e escrevendo as Bachianas
Brasileiras. Finalmente, a autora considera os anos de 1945 a 1959 como a quarta fase, período
em que Villa-Lobos entra definitivamente no mundo musical norte-americano e divide suas
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atividades entre Brasil, Europa e Estados Unidos. Neste período, Peppercorn enfatiza o
tratamento recebido por Villa-Lobos nos Estados Unidos, onde foi homenageado em várias
oportunidades e tratado como uma verdadeira celebridade do mundo da música, e considerado
como um dos mais importantes compositores das Américas. Tal prestígio refletiu-se em
inúmeras obras comissionadas durante este período, o que se tornou, sem dúvida, um
diferencial claro desta fase (PEPPERCORN, 1992, p. 69-88). Gérard Béhague parte de uma
análise mais geral da produção villalobiana, separa em três fases com uma ordenação distinta
de Peppercorn. Ele denomina o primeiro período criativo até 1922, como definição estilística.
A seguir, os anos 20, a fase das experimentações e, por fim, dos anos 30 aos 50, como uma
continuação, embora com menor ênfase na de renovação de sua linguagem (BÉHAGUE, 1994,
p. 104). Paulo de Tarso Salles, partindo de um trabalho de cunho analítico direcionado aos
processos composicionais de Villa-Lobos, propõe a seguinte reflexão cronológica: de 1900 a
1917 – a adoção de modelos franceses e wagnerianos com o compositor estabelecido no Brasil;
de 1917 a 1929 – a transição para formas e estruturas mais livres em ambiente musical
parisiense; de 1930 a 1948 – o retorno ao Brasil em plena revolução varguista como símbolo
da cultura brasileira; e o seu último período criativo, de 1948 a 1959, marcado pelo diagnóstico
de sua doença, obras comissionadas, principalmente por instituições norte-americanas, e o
trânsito entre Brasil-EUA-Europa (SALLES, 2005a, p. 15).
Observam-se nestes três pesquisadores algumas divergências na proposição das fases
produtivas do compositor brasileiro. Eles possivelmente partiram de catálogos oferecidos pelo
Museu Villa-Lobos, com uma fonte comum, uma variedade de fontes bibliográficas e reflexões
pessoais de seus trabalhos. A comparação entre os resultados obtidos por esses estudiosos
mostra uma proximidade entre Peppercorn e Salles, com pequenas diferenças de 2 ou 3 anos
em cada período, e também na divisão em quatro fases distintas. Béhague já propõe três
períodos, sendo o primeiro e o último período mais longos, e trata de maneira indiferenciada
algumas mudanças.
A visão de Salles oferece uma divisão mais próxima das mudanças objetivas
empreendidas na produção musical e na estrutura das obras do compositor brasileiro, exceto as
considerações dirigidas à última fase, quando aponta um fato externo como determinante para
o período em questão, o diagnóstico da doença em 1948, a seu ver, uma sentença sombria que
afetaria a produção posterior de Villa-Lobos. Assim, para definir este último período, propõe-
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20
se uma aproximação com a última fase descrita por Lisa Peppercorn, isto é, a partir de 1945,
pouco tempo depois de sua primeira viagem aos EUA, e após o ciclo das Bachianas
Brasileiras, que terá como marco inicial a realização de suas primeiras encomendas para
instituições norte-americanas.
Contudo, a trajetória de Villa-Lobos nos propõe outros questionamentos, em 19 de
setembro de 1922, José Rodrigues Barbosa escreveu um artigo para o jornal O Estado de São
Paulo, com o título “Um século de música brasileira” (CASTAGNA, 2007, p. 106-109). Neste
texto, no verbete “Heitor Villa-Lobos” consta, além de uma curta biografia do compositor, um
catálogo com as obras compostas até aquela data, porém com a ausência de obras como
Uirapuru, Amazonas, Trio para oboé, clarineta e fagote, entre outras. Segundo o catálogo do
Museu Villa-Lobos de 1989, essas três obras foram datadas como antes de 1922. Com uma
semelhante organização das obras do referido verbete, Paulo Renato Guérios cita um catálogo
de 1923, no verso de um programa de concerto realizado em São Paulo em 21 de abril, antes da
primeira viagem a Paris e supostamente feito pelo próprio Villa-Lobos.
[...] há um documento importante que não é referido por nenhum estudioso do compositor: o programa do concerto realizado em 21 de abril de 1923 em São Paulo, dois meses antes de sua partida para a Europa. Esse programa é extremamente interessante por conter um catálogo das composições que Villa-Lobos tinha produzido até então – catálogo que só poderia ter sido elaborado pelo próprio compositor. O catálogo interessa mais pelas obras que não estão ali presentes do que pelas que estão relacionadas. Entre as músicas de câmara, por exemplo, não constam o Trio para oboé, clarineta e fagote, o Nonetto, as Canções típicas brasileiras (atribuídas a 1919), nas quais Villa-Lobos utiliza cantos indígenas, nem Uirapuru e Amazonas – constam, no entanto, o Tédio de alvorada e Myremis, que foram inclusive executados neste dia. (GUÉRIOS, 2003, p. 138).
O poema sinfônico Tédio de Alvorada (1916) com estréia em 1918, por exemplo, foi
transformado em Uirapuru (datada por Villa-Lobos como 1917), com estréia realizada
somente em 1935. Em uma análise realizada por Salles são comparadas as duas partituras. As
conclusões desta análise apontam para um contato de Villa-Lobos com a obra de Igor
Stravinsky, principalmente O pássaro de Fogo e A Sagração da Primavera, somado às
influências de juventude como Wagner, Franck, D’Indy, entre outros, e a politonalidade
presente em Darius Milhaud. Finaliza Salles dizendo “que as ampliações da orquestração
revelam uma sofisticação da técnica de Villa-Lobos, não apenas com relação ao colorido, mas
em relação ao delineamento mais equilibrado da massa orquestral.” (SALLES, 2005b, p. 2-9).
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Mesmo com as dificuldades para se estabelecerem referências corretas nas datações de
algumas obras, percebe-se que o ambiente parisiense propiciou uma transformação qualitativa
na obra de Villa-Lobos, mesmo tendo ele dito que foi a Paris para mostrar seu trabalho8.
Neste ponto é interessante notar que, sem levar em conta qualquer ordem cronológica,
Villa-Lobos adotou uma maneira para classificar sua própria obra, como nos lembra o
musicólogo Adhemar Nóbrega. Segundo ele, aproximadamente em 1947, Villa-Lobos fez uma
ordenação de sua obra, em que qualifica cinco grupos a partir do nível de aproveitamento ou
não do folclore, revelando alguns critérios nos processos de composição. Esta classificação,
relatada por Nóbrega, foi reproduzida literalmente como o compositor a ditou, tendo sido
acrescentadas posteriormente apenas as datas, para situar cada obra no tempo. (NÓBREGA,
1971, p. 15-30). Tal ordenação é descrita sucintamente por Béhague da seguinte maneira:
[...] O critério básico refere-se à relativa presença ou ausência de elementos da música folclórica ou de influência. O Grupo 1, ‘com intervenção indireta do folclore’, por exemplo, corresponde a algumas obras como as primeiras duas sinfonias (1916, 1917), o ballet O Papagaio do Moleque (1932), as quatro peças para piano que compõem o Ciclo brasileiro (1936) bem como algumas canções solo da década de 10. Ao Grupo 2, “com alguma intervenção direta do folclore”, pertencem algumas peças como a Prole do Bebê (1918) a Lenda do Caboclo (1920), e trabalhos de música de câmara como o Trio para sopros (1921) e o Sexteto Místico (1917). Os Choros são listados sob o Grupo 3, “com influência folclórica transfigurada”, enquanto o Grupo 4, “com influência folclórica transfigurada e permeada com atmosfera musical de Bach”, a missa-oratório Vidapura (1919) e os Prelúdios para violão. Finalmente, como Grupo 5, “em controle total do universalismo”, são listadas as sexta e sétima sinfonias (1944, 1945) e várias obras de música de câmara da década de 40. (BÉHAGUE, 1994, p. 44)9.
Esta maneira de relacionar as obras tiraria de pauta as discussões sobre as antecipações
realizadas pelo compositor brasileiro. Porém, após descrever tal classificação, Béhague
considerou que a identificação de Villa-Lobos com o folclore não pode ser minimizada, mas
utilizar somente o critério de ausência ou presença da música folclórica, como dicotomia entre 8 A afirmação que teria sido feita por Villa-Lobos em uma entrevista concedida ao chegar em Paris era: “Eu não vim aqui para aprender; mas mostrar o que fiz” (GUÉRIOS, 2003, p. 128). 9 [...] The basic criteria refer to the relative presence or absence of folk-music elements or influence. To Group 1, “with indirect folk intervention,” for example, correspond such works as the first two symphonics (1916, 1917), the ballet O Papagaio do Moleque (1932), the four piano pieces that make up the Ciclo Brasileiro (1936), as well as several solo songs of the 1910s. To Group 2, “with some direct folk intervention,” belong such piano pieces as the Prole do Bebê n°.1 (1918), Lenda do Caboclo (1920), and chamber music works as the Trio for woodwinds (1921) and the Sexteto Místico (1917). The Choros are listed under Group 3, “with transfigured folk influence,” while Group 4, “with transfigured folk influence permeated with the musical atmosphere of Bach,” includes the Bachianas, the mass-oratorio Vidapura (1919), and the guitar preludes. Finally, with Group 5, “in total control of universalism”, are listed the Sixth and Seventh symphonies (1944, 1945), the First piano concerto (1945) and several chamber music works of the 1940s.
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nacional e universal, é uma simplificação para as várias questões presentes na obra de Villa-
Lobos (BÉHAGUE, 1994, p. 44).
Assim, a partir da reflexão e considerações sobre todos estes fatos toma-se como base
de ordenação cronológica a proposta de Lisa Peppercorn, na qual se delimita esta última fase
criativa de Villa-Lobos de 1945, após o ciclo das Bachianas Brasileiras, até sua morte em
novembro de 1959. O trânsito entre EUA-Europa-América do Sul durante este período marca a
ampliação das atividades musicais do compositor brasileiro para os Estados Unidos, lugar onde
recebeu grande reconhecimento e atuou como compositor e regente. O final da Segunda
Grande Guerra também favoreceu esse trânsito intercontinental. No entanto, as obras
comissionadas, principalmente por entidades culturais e grupos orquestrais norte-americanos,
impõem-se como ponto de referência importante na produção musical deste período.
1.2 Panamericanismo e “Política de Boa Vizinhança”
A primeira viagem de Villa-Lobos aos Estados Unidos abre uma página sobre as
relações entre os países do continente americano, destacadamente Brasil e EUA, durante a
Segunda Guerra Mundial. Para compreensão deste período, proceder-se-á a uma pequena
digressão histórica e política para se definir Panamericanismo e, posteriormente, a “Política de
Boa Vizinhança” estabelecida pelos Estados Unidos junto aos demais países do continente
americano.
O Panamericanismo surgiu no século XIX como manifestação premente da integração
dos países americanos. Com objetivos de união e cooperação, em 1826, Simon Bolívar
defendeu tais idéias no I Congresso Internacional realizado na então província colombiana do
Panamá. Em seu início as propostas tinham em vista os países hispano-americanos e tinham o
apoio da Grã-Bretanha e não dos Estados Unidos, que por sua vez disputavam território com o
México. O México passou, então, por volta de 1830, a pressionar os países latino-americanos a
se organizarem contra a posição imperialista de seu vizinho. Entretanto, a idéia de um
continente amplamente integrado já estava presente na Doutrina Monroe nos Estados Unidos
em dezembro de 1823. Tal doutrina declarava repúdio aos movimentos neo-colonialistas de
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países europeus contra nações americanas. Assim, vê-se claramente que, enquanto havia um
repúdio ao imperialismo norte-americano, esse mesmo país assumia um estratégico
paternalismo, colocando-se como protetor do hemisfério (TACUCHIAN, 1998a, p.7).
Oficialmente, a idéia do Panamericanismo foi apresentada em 1889 na Conferência
Panamericana em Washington, à qual compareceram dezessete países. A intenção era
fortalecer as relações dos EUA com os vizinhos do sul, tentando superar conflitos, com
objetivos comerciais. Deste encontro foi criado o Escritório Internacional das Repúblicas
Americanas, que em 1910 se tornou a Pan American Union (PAU), sediada em Washington.
Mais tarde, em 1948, foi dissolvida e transformada em Organização dos Estados Americanos
(OEA), que serviu como um reforço da liderança dos Estados Unidos no continente (Ibidem,
idem, p.7).
A partir de 1933, a “política de boa vizinhança” foi estabelecida pelo presidente
Franklin Delano Roosevelt, que iniciou nova estratégia política com os países americanos,
motivado pelos efeitos da crise econômica de 1929, como o elevado índice de desemprego e a
queda nas exportações de mais de 60% para países do continente americano (ADAMS, 1979,
p.292). Tornou-se célebre a afirmação de Roosevelt sobre a necessidade de os Estados Unidos
exercerem o papel de "bons vizinhos" em relação aos demais países, o que já deixava claro em
seu discurso de posse em 4 de março de 1933: "No campo da política mundial, eu dedicarei
esta nação à política da boa vizinhança, uma vizinhança que resulte do respeito mútuo e,
devido a isso, respeite o direito dos outros, uma vizinhança que respeite suas obrigações e
respeite a santidade dos seus acordos para com todos os seus vizinhos do mundo inteiro”
(DUROSELLE, 2001, p. 256). Assim a idéia do Panamericanismo é retomada.
A ascensão de ditaduras na Europa, no final da década de 20, evidencia o fascismo na
Itália e o crescimento do nacional-socialismo na Alemanha. Em 1933, a chegada de Adolf
Hitler ao poder na Alemanha aponta para um futuro sombrio para a humanidade. A América do
Sul, na década de 30, recebia imigrantes alemães e italianos, e o Brasil, por sua vez, mantinha
relações comerciais com a Alemanha. O Brasil vivia sob a ditadura de Getúlio Vargas após a
revolução de 1930. Todos estes fatos somados formavam um contexto ameaçador aos norte-
americanos quando estourou a Segunda Guerra, o que deflagrou uma política de aproximação
mais agressiva direcionada aos países sul-americanos e mais diretamente ao Brasil (MOURA,
1984, p. 37).
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Com isso, uma campanha de penetração gradativa da cultura norte-americana no Brasil
se tornava real. A estratégia dos Estados Unidos era promover uma cooperação interamericana
e a solidariedade hemisférica para enfrentar o desafio do Eixo. Assim, em agosto de 1940, foi
criada uma agência de coordenação dos negócios interamericanos, sob a chefia de Nelson
Rockefeller, chamada Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA). Essa
iniciativa se diferenciava dos programas de colaboração já em funcionamento, por estar
diretamente vinculada ao Conselho de Defesa Nacional dos Estados Unidos (MOURA, 1984,
p. 40). O OCIAA contava com as divisões de comunicações, relações culturais, saúde,
comércio e finanças, para alcançar seus objetivos. Cada uma dessas seções se subdividia em:
rádio, cinema, imprensa, arte, música, literatura, exportação, transporte, políticas sanitárias e
finanças.
As ações desta “superagência” abrangiam várias áreas. Na saúde, houve uma ação para
o controle da malária com treinamento de enfermeiras e educação médica. Na comunicação e
informação procurava-se veicular na imprensa brasileira notícias favoráveis aos Estados
Unidos e, paralelamente divulgar o Brasil nos Estados Unidos. A recepção e transmissão de
radiofotos foram difundidas no Brasil como técnicas mais modernas nesta área. O rádio foi um
dos mais importantes meios para a propaganda na guerra. O OCIAA apresentava programas
transmitidos diretamente dos Estados Unidos. O cinema também desempenhava um papel de
difusor cultural e ideológico. O nascimento da personagem “Zé Carioca” data desta época,
caracterizando o estereótipo do brasileiro simpático. Carmem Miranda se torna símbolo da
cultura brasileira nos Estados Unidos. A coca-cola começa a substituir o suco de frutas nas
mesas brasileiras. Com isso, apesar de algumas resistências, o OCIAA conseguiu erradicar
gradualmente a influência do Eixo no Brasil e dar força ao discurso panamericanista de
solidariedade continental (MOURA, 1984, p. 43).
1.3 Primeiras obras de Villa-Lobos ouvidas nos Estados Unidos
A música de Villa-Lobos chegou timidamente ao solo norte-americano em meados dos
anos 20, executada por Artur Rubinstein.
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No final de novembro de 1928, no Carnegie Hall, em Nova York, a Orquestra da
Filadélfia tocou as Danças Características Africanas, de Villa-Lobos, com regência de
Leopold Stokowsky. Esta é considerada por Peppercorn a primeira apresentação da música de
Villa-Lobos em solo norte-americano (PEPPERCORN, 1992, p. xii).
Em janeiro de 1930, também no Carnegie Hall, Hugh Ross10 regeu a estréia americana
do Choros n.° 10, com a Philharmonic Symphony Orchestra.
Em 1938, na preparação para Feira Mundial de New York, que aconteceria de 1939 a
1949, Armando Vital Leite Ribeiro, na qualidade de Comissário-Geral do Brasil, resolveu
mostrar a produção musical brasileira, especialmente a moderna, e contatou o então Reitor da
Universidade do Brasil, Professor Leitão da Cunha. Os professores Guilherme Fontainha e
Luiz Heitor foram indicados para a organização do programa. Villa-Lobos e Francisco
Mignone se propuseram, gratuitamente, a reger a orquestra para a gravação de vários discos.
Num árduo trabalho, foram 31 discos duplos com música de Carlos Gomes, Francisco Braga,
Henrique Oswald, Alexandre Levi, Camargo Guarnieri, Radamés Gnatalli, Lorenzo Fernandes
e Francisco Mignone, sendo que 10 discos se compunham de músicas de Villa-Lobos. Além
das gravações também foram organizadas coleções de partituras que compreendiam obras de
Carlos Gomes, Francisco Braga, Henrique Oswald, Alexandre Levi, Francisco Mignone,
Luciano Gallet, Barroso Neto, Frutuoso Vianna, Lorenzo Fernandez, João Nunes e Villa-
Lobos. As partituras de Villa-Lobos levadas foram Momoprecoce, Bachianas Brasileiras 1, 2 e
5, Amazonas (redução para piano), 1ª. Suite do Descobrimento do Brasil, Cirandas, Prole do
Bebê e Suíte Floral (RIBEIRO, 1965, p. 21-22).
Houve três concertos com músicas e artistas brasileiros no “Music Hall”, construído
especialmente para a Feira Mundial, sendo dois inteiramente dedicados a obras de Villa-Lobos.
No primeiro concerto, Bidu Sayão cantou a Ária das Bachianas Brasileiras n.° 5, e obteve
grande sucesso. A primeira parte terminou com o Choros n.° 8, que deixou a platéia surpresa.
No segundo concerto foram executados, de Villa-Lobos, Caixinha de Boas-Festas e o Choros
n.° 10 sob a regência de Hugh Ross. Este foi, até aquele momento, o contato mais efetivo do
povo norte-americano com a música de Villa-Lobos. Embora não pudesse estar presente
10 Ross foi regente da Schola Cantorum de Nova York e amigo próximo de Villa-Lobos. Eles se encontraram pela primeira vez em Paris no final dos anos 20. Sempre este próximo de Villa-Lobos no período em que esteve nos Estados Unidos, sendo também um dos responsáveis pela encomenda da ópera “Yerma”.
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fisicamente aos concertos, Villa-Lobos ouviu-os pelo rádio e seu julgamento a respeito da
execução foi curioso; disse a Armando Vidal Ribeiro que desejava uma regência “menos reta,
mais curva” (RIBEIRO, 1965, p. 23).
Esses concertos contaram com a presença da soprano brasileira Elsie Houston (1902-
1943), interprete e divulgadora da música brasileira, considerada pelo próprio Villa-Lobos
como uma das maiores intérpretes de sua música. Houston participou deste evento cantando
canções populares e temas de macumba. Ela viveu nos Estados Unidos de 1937 até sua morte,
em 1943, e chegou a ter um programa de rádio sobre música brasileira na NBC, embora não
haja documentação, Houston deve ter divulgado a música de Villa-Lobos em seus programas,
considerando-se que as obras do compositor brasileiro quase sempre estiveram incluídas nos
seus recitais11.
1.4 Negociações para primeira viagem aos Estados Unidos
A busca pela integração panamericana continuava firme como propósito norte-
americano. Na América do Sul, Villa-Lobos se tornara um símbolo importante na área da
música, como compositor, e já projetava seu sistema de educação musical, em plena realização
no Brasil. Desse modo, com um nome já constituído de forma incontestável, tornou-se alvo de
interesse de um projeto para levá-lo aos Estados Unidos.
Neste período Villa-Lobos estava envolvido com seu projeto de educação, trabalhando
na Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA), órgão da Secretaria de
Educação e Cultura da prefeitura do então Distrito Federal no Rio de Janeiro, ligado ao
governo de Getúlio Vargas e fortemente identificado com o nacionalismo. Em sua produção
musical, encontrava-se compondo o ciclo das Bachianas. Em virtude da projeção de Villa-
Lobos com perfil de educador, Charles Seeger12, diretor da Divisão de Música da Pan
American Union, iniciava suas tentativas para levá-lo aos Estados Unidos.
11 Artigo em jornal e data não identificados, sob o título “Elsie Houston na hora brasileira da NBC todas as sextas-feiras a partir do dia 15 de maio”. (BERTEVELLI, 2000, p. 75) 12 Louis Charles Seeger (1886-1979), musicólogo e professor norte-americano nascido no México, concentrou-se na etnomusicologia em geral e em sua teoria, tendo exercido influência como escritor altamente prescritivo e
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Em meados de 1941, encontramos o comitê de música do OCIAA iniciando articulações para visita de Villa-Lobos ao país. A proposta inicial era convidá-lo a reger um coral de três mil estudantes e participar da conferência bienal da associação de educadores da música, Music Educators National Conference, programada para março de 1942, em Milwukee e, após o evento, para uma apresentação como regente, em Washington, nas comemorações do dia Panamericano, em 14 de abril. Enquanto isso, Charles Seeger insistia junto ao educador John Beattie, sobre a visita, considerando ser a mesma de ‘primordial importância [...] seu incontestável sucesso trará repercussões benéficas aos interesses das relações interamericanas’. (TACUCHIAN, 1998b, p. 244).
Contudo, a proposta inicial de levar Villa-Lobos como educador mudou, porque ele se
recusou a atrelar sua carreira somente ao seu projeto de educação. Além disso, John Beattie,
educador enviado ao Brasil para fazer o convite formalmente a Villa-Lobos, mostrou-se
decepcionado com os métodos de ensino do compositor brasileiro. Com parecer semelhante de
Lincoln Kirstein, diretor do American Ballet Caravan, em turnê pela América do Sul, Seeger
suspende o projeto inicial de convidar Villa-Lobos como educador (TACUCHIAN, 1998b, p.
244-245). Começa, então, um período de negociações para apresentá-lo, conforme
manifestação de seu desejo, como compositor e artista.
As negociações duraram meses e foram realizadas por cartas entre o diretor da Pan
American Union (PAU), Charles Seeger, e Heitor Villa-Lobos13. Assim o convite foi
formalizado em 18 de abril de 1944 com um contrato com a Jassen Symphony Orchestra de
Los Angeles. Nessas negociações, Villa-Lobos condicionou seu convite à participação em
outros concertos em grandes centros musicais norte-americanos, como Nova York, Chicago,
Boston e Filadélfia. Seeger uniu esforços e montou uma programação com o envolvimento de
orquestras norte-americanas e visitas a diversas cidades14.
Finalmente, a conjugação de todos estes fatores levou Villa-Lobos para os Estados
Unidos no final de 1944. Em 26 de novembro, do mesmo ano, Villa-Lobos dirigiu um
programa integralmente de obras orquestrais suas com a Jassen Symphony Orchestra em Los
filosófico. Exerceu atividades na organização e desenvolvimento dos Composers Colectives, e trabalhou como crítico de música para vários jornais e periódicos. 13 Este conjunto de cartas encontra-se na Columbus Memorial Library da OEA, Washington DC, abrangendo correspondência entre Seeger e Villa-Lobos, Seeger e Departamento de Estado, com empresários norte-americanos e instituições musicais no período de 15/08/43 a 15/03/45. Cópias destas correspondências encontram-se no volume 2 da tese de doutorado de Maria de Fátima Granja Tacuchian: Panamericanismo, propaganda e música erudita: Estados Unidos e Brasil (1939-1948), Universidade de São Paulo, 1998, 2v. 14 idem, Carta de Villa-Lobos a Seeger, 18/08/44 na mesma coleção.
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Angeles. O evento foi patrocinado por um grupo de instituições do qual faziam parte: Southern
California Council of Inter-American Affairs, Motion Pictures Society for the Americas (seção
de música) e Occidental College, instituições que representavam diferentes segmentos da
comunidade, abrangendo setores oficiais, a indústria cinematográfica e orgãos educacionais.
Em uma cerimônia de gala, alguns dias antes do primeiro concerto, o compositor foi
homenageado pelo Occidental College com o título honorário de Doctorate in Law. Durante
algumas semanas seguiu-se programação semelhante em outras cidades, como Nova York,
Chicago, Boston e Filadélfia (Ibidem, idem, p. 244).
Peppercorn comentou a volta de Villa-Lobos dos Estados Unidos da seguinte maneira:
Villa-Lobos voltou para o Brasil satisfeito com a recepção que teve nos Estados Unidos. O caráter direto e franco do povo americano e o seu alto nível cultural o haviam deixado surpreso e emocionado, e o grande interesse de pessoas de todas as idades por música – e isto incluía a música moderna – sensibilizou-o profundamente. Ele percebeu como seus preconceitos haviam sido infundados: fora recebido com uma disposição e simpatia com as quais jamais sonhara. Não demorou muito e ele começou, talvez por intuição, talvez intencionalmente, a compor inspirado nos Estados Unidos. (PEPPERCORN, 2000, p. 135).
A sugestão romântica utilizada por Peppercorn, quando diz que Villa-Lobos começou
“a compor inspirado nos Estados Unidos”, poderia supor um aprofundamento na cultura
musical norte-americana por parte de Villa-Lobos. Mas aqui, ela atribui a essa fase do
compositor brasileiro, a partir da primeira visita aos Estados Unidos, uma tendência crescente
de se “voltar às formas musicais tradicionais às quais acabou voltando totalmente”
(PEPPERCORN, 1998, p. 136). As hipóteses levantadas por ela para a escolha de tal caminho
por Villa-Lobos incluem: a de procurar descobrir que tipo de música que teria mais
probabilidade de sucesso em seus variados estilos de composição; o conservadorismo das
orquestras e dos empresários norte-americanos ter estimulado, através das inúmeras
encomendas, a utilização de formas tradicionais neste período; ou a busca de um
distanciamento do nacionalismo do período anterior. A interpretação firmada por Peppercorn
de que Villa-Lobos tenha se voltado totalmente para as formas tradicionais, em seu último
período, está fundamentada no fato de a produção musical desta fase ser representada, em sua
maior parte, por sinfonias, concertos, poemas sinfônicos, quartetos de cordas e óperas. Essa
premissa é, entretanto, questionada por Maria de Fátima Granja Tacuchian, que considera
problemático estabelecer uma relação direta sem uma reflexão mais profunda sobre as obras
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produzidas neste último período; todavia não nega que Villa-Lobos tenha sido um artista
envolvido com o contexto que o cercava (Tacuchian, 1998a: 175-176).
De fato, a quantidade de obras comissionadas desse período é diferencial na trajetória
de Villa-Lobos e o maior número dessas encomendas veio dos Estados Unidos, mas para
determinar um estilo formal tradicional nas composições deste período é necessário examinar
essa produção comissionada.
1.5 Produção musical do último período
As três primeiras obras de Villa-Lobos comissionadas neste período datam de 1945. A
primeira delas foi encomendada pela Elizabeth Sprague Coolidge Foundation, da Livraria do
Congresso, Washington, D.C., respondida com o Trio para Violino, Viola e Violoncelo, com
estréia em 30 de outubro de 1945, realizada pelo Albeneri Trio, no Coolidge Auditorium. O
segundo convite veio de Ellen Ballon (1898-1969), pianista canadense, filha de russos, para
compor um concerto para piano e orquestra. Em resposta a este convite Villa-Lobos escreveu
seu Concerto n.° 1 para piano e orquestra15. O poema sinfônico Madona foi a terceira obra
encomendada neste período, porém, desta vez, a iniciativa foi da Fundação Koussevitzky,
dedicada a Natalie Koussevitzky, esposa falecida do famoso regente da Orquestra Sinfônica de
Boston, Serge Koussevitzky (PEPPERCORN, 1992, p. 198).
Villa-Lobos escreveu também em 1945 a Sinfonia n.° 7, para comemorar o final da
guerra. Sua estréia foi em Londres, em 26 de março de 1949, com a execução da Orquestra
Sinfônica da BBC, regida pelo próprio compositor (PEPPERCORN, 2000, p. 139).
A “aventura musical” Magdalena, comissionada por Edwin Lester, presidente da Los
Angeles Civic Light Opera Association, foi escrita entre janeiro e março de 1947. Sua primeira
apresentação foi em 26 de julho de 1948, na Philharmonic Hall em Los Angeles. Em sua
temporada teve 32 performances em Los Angeles e São Francisco e 72 no Ziegfeld Theatre de
Nova York. Segundo Tacuchian:
15 Esta obra foi composta em um período de 20 dias e sem piano, conforme Jorge Dodsworth Martins em Presença de Villa-Lobos (MARTINS, 1969, p. 111).
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Magdalena tem sido uma das obras mais controvertidas do autor, pois para avaliá-la não há consenso, seja na recepção do público e da imprensa especializada, na época de sua encenação ou na forma como tem sido mencionada em trabalhos teórico-analíticos, incluindo-se aqui as diferentes classificações que recebeu, como ‘opereta’, ‘ópera ligeira’, ‘comédia musical’ ou ‘aventura musical’. (TACUCHIAN, 1998a, p. 177).
A partitura original de Magdalena sofreu drásticas alterações para se adaptar ao
espetáculo musical. O descontentamento de Villa-Lobos foi grande, mas as receitas o ajudaram
a custear as despesas de hospital relacionadas à cirurgia a que precisou se submeter, devido ao
câncer de bexiga diagnosticado neste ínterim. Villa-Lobos não esteve presente na estréia, pois
estava no hospital, mas seu amigo Hugh Ross lembra tê-lo ouvido dizer, antes da estréia,
zangado: “Na primeira apresentação, vou me levantar no meu camarote e dizer: ‘Povo de Nova
York, esta não é minha música’.” E Ross continua: “Ele só não fez isso porque, infelizmente,
estava no hospital na hora.” (PEPPERCORN, 2000, p.140)16.
O musical Magdalena (1947) e a trilha sonora para o filme Green Mansions (1958) da
MGM, tornaram-se para Villa-Lobos acontecimentos incomuns para um artista latino-
americano, o de integrar um espaço, até então ocupado predominantemente por artistas norte-
americanos ou um seleto grupo de europeus (TACUCHIAN, 1998a, p.176-177).
Neste último período criativo, além dos concertos para piano n.° 1, 3, 4 e 5, outros
concertos foram encomendados por instrumentistas virtuoses, como o Concerto para harpa e
orquestra, em 1955, para Nicanor Zabaleta, e o Concerto para harmônica e orquestra, em
1955, para John Sebastian. O Concerto para violão e orquestra, inicialmente intitulado
Fantasia Concertante, foi transformado em concerto a pedido de André Segóvia, e a ele
dedicado.
Seguem-se a estas obras comissionadas outras como: Hommage à Chopin, de 1949; a
Sinfonia n.° 10, intitulada Sumé Pater Patrium para solo, coro misto e orquestra composta em
1953/54; a Sinfonia n.° 11, de 1955; a Fantasia Concertante para piano, clarineta e fagote, de
1953; a Ouverture Alvorada na Floresta Tropical, de 1953; os poemas sinfônicos Erosão, de
1950, e Gênesis, de 1954; o balé The Emperor Jones, em 1956; a ópera Yerma, The Unfruitful,
peça de Lorca de 1955/56; Magnificat Aleluia, para coro misto e orquestra, de 1958.
Para ilustrar e estabelecer um parâmetro comparativo entre as obras escritas neste
último período villalobiano, segue uma lista das obras mais significativas, em sua maioria
16 Carta de Hugh Ross para Peppercorn, Nova York, 16 de outubro de 1973 (PEPPERCORN, 1992, p. 94).
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orquestrais, distinguindo as obras comissionadas por norte-americanos em vermelho, as
comissionadas por outros países em negrito e obras não comissionadas sem nenhum
destaque17.
Título Instrumentação Editora Ano
Trio para violino,
viola e violoncelo
Max-Eschig 1945
Concerto para
Piano e Orq. n.° 1
Piano e Orquestra Max-Eschig 1945
Fantasia para
Violoncelo
Orquestra Max-Eschig 1945
Madona
Orquestra Max-Eschig 1945
Quarteto de Cordas
n.° 9
Peer-Southern 1945
Sinfonia n.° 7 Orquestra Manuscrita 1945
Quarteto de Cordas
n.° 10
Peer-Southern 1946
Magdalena
(Aventura Musical
em 2 atos) 18
Coros e Orquestra Manuscrita 1947
Quarteto de Cordas
n.° 11
Peer-Southern 1947
Big-Ben Canto e Orquestra Southern Music Pub.
Comp.
1948
Concerto para Piano
e Orq. n.° 2
Piano e Orquestra Max-Eschig 1948
17 Estas informações foram obtidas do catálogo de 1989, editado pelo Museu Villa-Lobos. 18 Embora não conste como obra encomendada no catálogo de 1989, segundo Peppercorn, foi encomendada por Edwin Lester (PEPPERCORN, 1992, p. 198).
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32
Fantasia para
Saxofone
Saxofone Soprano
ou Tenor (3 trps. e
cordas)
Southern Music Pub.
Comp.
1948
Erosão
(Poema Sinfônico)
Orquestra Max-Eschig 1950
Quarteto de Cordas
n.° 12
Associated Music
Pub.
1950
Samba Clássico Canto e Orquestra Max-Eschig 1950
Sinfonia n.° 8
Orquestra Max-Eschig 1950
Concerto para
Violão e Orquestra
Violão e Orquestra
Max-Eschig 1951
Quarteto de Cordas
n.° 13
Max-Eschig 1951
Rudá (Dio
D’Amore) Bailado
Orquestra Max-Eschig 1951
Concerto para
Piano e Orq. n.° 3
Piano e Orquestra Max-Eschig 1952/1957
Concerto para
Piano e Orq. n.° 4
Piano e Orquestra
Max-Eschig 1952
Ouvertude
L’Homme tel...
Orquestra Max-Eschig 1952
Sinfonia n.° 9 Orquestra Max-Eschig 1952
Sinfonia Ameríndia
n.° 10
Coro, Cantores e
Orquestra
Max-Eschig 1952
Concerto para
Harmônica e Orq.
Harmônica (Gaita) e
Orquestra
Max-Eschig 1953
Concerto para
Violoncelo e Orq.
n.° 2
Piano e Orquestra Max-Eschig 1953
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33
Fantasia
Concertante
Piano, Clarineta e
Fagote
Max-Eschig 1953
Odisséia de uma
Raça
Orquestra Israeli music.Pub. 1953
Quarteto de Cordas
n.° 14
Max-Eschig 1953
Concerto para
Piano e Orq. n.° 5
Piano e Orquestra Max-Eschig 1954
Gênesis
Orquestra Max-Eschig 1954
Quarteto de Cordas
n.° 15
Max-Eschig 1954
Quarteto de Cordas
n.° 16
Max-Eschig 1954
Yerma (Ópera em
3 atos)
Coro, Cantores
Solistas e Orq.
Manuscrita 1955/1956
Sinfonia n.° 11 Orquestra Max-Eschig 1955
Canção das Águas
Claras
Canto e Orquestra Max-Eschig 1956
The Emperor Jones Canto e Orquestra Manuscrita 1956
A Menina das
Nuvens (Aventura
Musical em 3 atos)
Coro, Cantores e
Orquestra
Manuscrita 1957/1958
Quarteto de Cordas
n.° 17
Max-Eschig 1957
Quinteto
Instrumental
Flauta, Violino,
Viola, Cello e
Harpa
Max-Eschig 1957
Poema sem Palavras Canto e Orquestra Max-Eschig 1957
Sinfonia n.° 12 Orquestra Max-Eschig 1957
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Modinhas e Canções
(Álbum n.°2)
Canto e Orquestra Manuscrita e Max-
Eschig (Canto e
Piano)
1958/1959
Floresta do
Amazonas
Cair da Tarde,
Canção do Amor
Canto e Orquestra Manuscrita 1958
Fantasia Concertante 32 Violoncelos Max-Eschig 1958
Fantasia em 3 Mov.
(em forma de
chôros)
Orq. de Sopros C. F. Peters Corp. 1958
Floresta do
Amazonas (Filme
Green Mansions)
Coro e Orquestra Manuscrita 1958
Francette e Piá Orquestra Manuscrita 1958
Magnificat Alleluia Coro e Orquestra Max-Eschig 1958
Melodia
Sentimental
Floresta do
Amazonas
Canto e Orquestra Manuscrita 1958
Sete Vezes Canto e Orquestra Max-Eschig 1958
Veleiros Canto e Orquestra Manuscrita 1958
Canção do Poeta do
Século XVIII
Canto e Orquestra Manuscrita 1959
Concerto Grosso Orq. de Sopros C. F. Peters Corp. 1959
Suite For Chamber
Orchestra n.° 1
Orquestra de
Câmara
Max-Eschig 1959
Suite For Chamber
Orchestra n.° 2
Orquestra de
Câmara
Max-Eschig 1959
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35
Ao examinar este quadro, percebe-se realmente uma grande quantidade de obras com a
utilização de formas instrumentais originárias do período clássico, no entanto associar o
emprego de seus títulos à utilização de formas tradicionais, como propõe Peppercorn, implica o
risco de estabelecer um juízo equivocado, se não forem investigadas as aplicações estruturais
realizadas nessas composições. A hipótese, sugerida por ela, de que o conservadorismo das
orquestras e agentes norte-americanos tivesse estimulado a produção de formas tradicionais
nesse período é enfraquecida , ao se observar a quantidade de obras com essas características
entre as obras comissionadas por eles (todas as obras em vermelho no quadro). Entre as cinco
sinfonias escritas neste período, apenas a Sinfonia n.° 11 foi comissionada por norte-
americanos, ele escreveu 12 sinfonias em toda sua obra. Os cinco poemas sinfônicos foram
comissionados por entidades norte-americanas, no entanto, possuem estruturas mais ou menos
livres. O The Emperor Jones, considerado como poema sinfônico no catálogo de 1989, foi
escrito para ballet, com partes vocais para contralto e barítono solistas. Os concertos para piano
e orquestra números 1, 3, 4 e 5 foram encomendados, mas nenhum por norte-americanos.
Outras encomendas feitas por norte-americanos foram uma obra para cinema, a Floresta do
Amazonas, e o musical Magdalena, que possuem roteiros preestabelecidos. O trio para violino,
viola e violoncelo, a primeira obra comissionada neste período, necessitaria ser analisado, mas
não faz parte da tradição camerística clássica. Os nove quartetos de cordas foram iniciativas
musicais de Villa-Lobos, nenhum foi encomendado, tendo sido escritos 17 no total. O
Magnificat Alleluia foi encomendado pela Associação Italiana de Santa Cecília para o
suplemento musical “Lourdiano”, ofertado ao Papa Pio XII. Seguem-se outros títulos com
denominações características de períodos pré-clássicos como as suítes para orquestra de
câmara, o concerto grosso e, por fim, uma grande quantidade de fantasias escritas por Villa-
Lobos nesse período, somando-se cinco: a Fantasia para saxofone, a Fantasia para violoncelo,
a Fantasia Concertante para trio, a Fantasia Concertante para orquestra de violoncelos e a
Fantasia em três movimentos em forma de chôros. Entre elas duas foram comissionadas por
norte-americanos. Em 1953, a Fantasia Concertante para piano, clarinete e fagote,
encomendada pelo pianista norte-americano Eugene Liszt, e, m 1958, a Fantasia em três
movimentos em forma de chôros, comissionada pela American Wind Symphony Orchestra.
O número de obras comissionadas por norte-americanos, com títulos que poderiam
significar a utilização de formas clássicas, é insuficiente para justificar tal generalização feita
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36
por Peppercorn sobre a produção da última fase do compositor brasileiro. No entanto, a
diminuição de obras com caráter nacional e a busca do que Villa-Lobos considerou como “as
formas universais do Poema Sinfônico, da Sinfonia, da Rapsódia, da Serenata Clássica, do
Concerto e da Fantasia” (VILLA-LOBOS, 1950, p. 204) podem significar uma direção seguida
pelo compositor brasileiro nesse último período.
Neste sentido, pode-se considerar que a Fantasia em três movimentos em forma de
chôros reune elementos necessários para um exame minucioso dos procedimentos
composicionais empregados por Villa-Lobos nos seus últimos anos de vida. Além dos
aspectos já apontados, isto é, ter sido comissionada por uma entidade norte-americana, a
American Wind Symphony Orchestra, composta em 1958, e é também um gênero considerado
por ele como uma “forma universal”.
1.6 American Wind Symphony Orchestra
O convite recebido por Villa-Lobos para escrever para a American Wind Simphony
Orchestra ocorreu em um momento importante de transformação desta espécie de conjunto
instrumental. Em meados do século XX, nos Estados Unidos era realizada uma ampla discussão
sobre bandas de sopros pela College Band Directors National Association (CBDNA), tendo como
assuntos principais, repertório, padronizações instrumentais para sopros e percussão e formação
de regentes. A forte tradição de bandas de sopros nos Estados Unidos desencadeou a formação de
um grande número delas, e havia vários tipos de bandas espalhadas por todo o país, desde bandas
militares, bandas de estudantes (High School Bands), até as bandas profissionais de concerto.
A partir dessas discussões nasceu a American Wind Symphony Orchestra (AWSO). A
concepção e criação da AWSO foi responsabilidade de Robert Austin Boudreau, no ano de 1957.
No início de suas atividades, como Wind Symphony Boudreau, foram selecionados músicos de
universidades de música e conservatórios de vários Estados norte-americanos e, mais tarde,
também músicos de outros países.
Tal concepção para a formação de uma orquestra de sopros propunha uma instrumentação
distinta dos grupos de sopros já existentes, que mantinham um padrão instrumental aproximado
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37
nos vários tipos de bandas em atividade. Boudreau dobrou a seção de madeiras das orquestras
sinfônicas e enriqueceu o naipe de percussão, sem saxofones ou eufônios muito utilizados nas
bandas de sopros. A instrumentação original consistia de: 6 flautas, 2 piccolos, 6 oboés, 2 corne
ingês, 6 clarinetas, 2 clarinetas baixo, 6 fagotes, 2 contrafagotes, 6 trompas, 6 trompetes, 6
trombones, 2 tubas, percussão, harpa, piano e contrabaixo (único representante da família das
cordas).
No entanto, um dos principais problemas enfrentados por Boudreau foi repertório. Assim,
colocou em prática um projeto para construção de um repertório original para seu conjunto de
sopros. Boudreau convidou e incentivou importantes compositores dos Estados Unidos e do
mundo, especialmente compositores da Europa, América do Sul e América Central, para
escreverem para a AWSO. Esse projeto, nos Estados Unidos, nasceu não somente da necessidade
específica de ampliação da literatura para um grupo de sopros, mas também da busca de qualidade
artística neste segmento musical, que possuía em seu repertório com muitas obras transcritas de
peças orquestrais e obras de entretenimento ligadas às suas heranças cívicas, destinadas a vários
outros tipos de agrupamento de sopros.
Algumas obras importantes haviam sido escritas antes da existência da AWSO, que
funcionaram como modelos para busca de qualidade e utilização de recursos específicos e
modernos para instrumentos de sopros. Igor Stravinsky escrevera a Sinfonia para sopros, em
1920, e o Concerto para piano e instrumentos de sopros, em 1923-24. Edgar Varèse criou peças
revolucionárias para madeiras, metais e percussão, Octandre e Hiperprism, em 1923, Intégrales,
em 1925, e somente para percussão Ionisation, em 1931. Arnold Schoenberg, respondendo à
sugestão de seu editor Carl Engel, compôs para banda de sopros completa o Tema com variações,
op. 43a19, em 1943. Entre várias peças para sopros, Paul Hindemith escreve em 1951 a Sinfonia
em Sib. E em 1955-56, Oliver Messiaen compõe Oiseaux Exotiques.
Cada uma dessas obras possui uma instrumentação diferente, com distintas preocupações
artísticas relativas à utilização dos instrumentos de sopros; somente Schoenbrg e Hindemith
seguem um padrão instrumental aproximado de bandas de concerto, enquanto as outras peças
apresentam concepções independentes. Neste sentido, a Eastman Wind Ensemble, criada por
Frederick Fennell, em 1952, introduz uma concepção flexível de instrumentação e repertório para
19 Schoenberg escreveu uma versão para orquestra, op. 43b, a pedido de Serge Koussevitzky, cuja estréia aconteceu antes da versão para banda, realizada somente em 1946 pela Goldman Band, regida por Richard Franko Goldman, no Central Park em Nova York.
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38
grupo de sopros. Tal concepção permite a realização de uma variedade de obras com diferentes
formações sem prender-se a uma padronização de instrumentação específica. Como conseqüência,
amplia-se consideravelmente seu repertório, tornando-o ao mesmo tempo eclético e dinâmico,
possibilitando ao público ouvir peças novas, com as quais não estava familiarizado, juntamente
com obras do repertório tradicional, “O primeiro concerto da Eastman Wind Ensemble foi um
exemplo perfeito de sua implementação desta formula: Mozart – Serenade n.° 10 em Sib, K. 370a;
Riegger – Noneto para Metais, e Hindemith – Sinfonia em Sib.” (BATTISTI, 2002, p.58)20. Esta
concepção introduzida por Fennell estava presente nas idéias iniciais para formação da AWSO por
Boudreau, porém sua instrumentação era distinta.
Neste primeiro período de obras comissionadas para a AWSO, encontram-se duas peças de
Villa-Lobos, a Fantasia em três movimentos em forma de chôros, que obteve sua primeira
performance em 29 de junho de 1958, em Pittisburgh, e o Concerto Grosso para flauta, oboé,
clarineta, fagote e orquestra de sopros, apresentado pela primeira vez em 5 de julho de 1959, na
mesma cidade. Essas obras foram comissionadas por Mrs. S. J. Anathan. Durante um período de
mais de 40 anos, entre 1957 e 2002, as obras encomendadas pela AWSO ultrapassaram o número
de 400, das quais aproximadamente 150 foram editadas pela C. F. Peters Corporation. Outros
grupos tiveram iniciativas semelhantes, porém com menor intensidade. Hoje, o repertório para
orquestra de sopros conta com obras de compositores como: Vincent Persichetti, Karel Husa, Igor
Stravinsky, Arnold Schoenberg, Paul Hindemith, Edgar Varèse, Oliver Messian, K. Penderecki,
Heitor Villa-Lobos, Percy Grainer, Gordon Jacob, William Schuman, Walter Piston, Samuel
Barber, Aaron Copland, Alfred Reed, Morton Gould, Robert Russel Bennett, Norman Dello Joio,
David Maslanka entre outros (BATTISTI, 2002, p. 53-64).
No Brasil, a criação da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo em 1989, iniciativa do
maestro Roberto Farias, permitiu também uma considerável ampliação do repertório brasileiro
para esta formação instrumental, por meio de um projeto semelhante de obras comissionadas, além
da realização de obras importantes para sopros da literatura já existente. A Banda Sinfônica foi
responsável por mais de 70 obras comissionadas até 2008. Além disso, este grupo foi responsável
pela estréia brasileira da Fantasia em três movimentos, de Villa-Lobos, em 13 de outubro de 1992,
sob a regência do maestro Graham Griffiths, como regente convidado, em um concerto
20 “The first concert of the Eastman Wind Ensemble was a perfect example of this formula: Mozart – Serenade n.° 10 in B-flat, K. 370a; Rigger – Nonet for Brass, and Hindemith - Symphony in B-flat.
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comemorativo dos 500 anos do descobrimento da América. Mais tarde, em 2005, a Fantasia foi
incluída no CD Fantasia Amazônica, deste mesmo grupo sinfônico, sob a regência do maestro
Abel Rocha.
No entanto, o padrão instrumental estabelecido para a Banda Sinfônica do Estado de São
Paulo foi o padrão das bandas de concerto, tendo Villa-Lobos escrito para a AWSO completa, isso
trouxe dificuldades para realização de obra mesmo com a padronização de uma banda de
concertos. Desta forma, foi necessário realizar algumas adaptações na instrumentação para
execução da Fantasia em três movimentos de Villa-Lobos21. No quadro abaixo é possível
comparar a adaptação da instrumentação original da AWSO com a instrumentação utilizada pela
Banda Sinfônica do Estado de São Paulo na gravação realizada em 2005.
AWSO Banda Sinfônica do Estado de São Paulo
2 piccolos 2 piccolos
6 flautas 6 flautas
6 oboés 1,2,3,5 oboés
4 e 6 redução - saxofone soprano
2 corne inglês corne inglês
6 clarinetas em Sib 12 clarinetas
clarineta em Mib (requinta) clarineta em Mib (requinta)
clarineta alto em Mib clarineta alto em Mib
clarineta baixo em Mib clarineta baixo em Mib
clarineta contrabaixo em Mib Voz dobrada com contrabaixo ou fagote
6 fagotes 1,2, 5 fagotes
3 e 4 redução para saxofone tenor
6 para saxofone barítono
2 contrafagotes contrafagote
6 trompas 6 trompas
3 trompetes em Sib 3 trompetes em Sib
21 Conforme informações constatadas no arquivo da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo.
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flugelhorn em Sib flugelhorn em Sib
2 trompetes em Dó 2 trompetes em Dó
4 trombones 4 trombones
2 trombones baixo trombone baixo
tuba tuba
2 contrabaixo (cordas) 4 contrabaixo (cordas)
tímpano tímpano
Percussão – (4 percussionistas)
caixa clara, bombo, pandeiro, tambour de
provence, matraca, castanhola, coco, pratos,
chocalho, tamtam, triângulo,
vibrafone, xilofone e celesta
idem
A gravação dessa obra realizada pela Banda Sinfônica do Estado de São Paulo consta
como anexo deste trabalho nas faixas 1, 2 e 3 do CD “Fantasia Amazônica”.
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Segundo Capítulo
2. Fantasia em três movimentos em forma de chôros
O título Fantasia em três movimentos em forma de chôros propõe duas investigações
iniciais antes de abordar a composição em sua sintaxe estrutural. São elas as duas proposições
utilizadas por Villa-Lobos no título desta obra, isto é, os termos “fantasia” e “forma de
chôros”.
No primeiro capítulo desta dissertação foi citada uma classificação feita por Villa-Lobos
de sua própria obra. Dentre os grupos nos quais estão subdivididas suas obras, há um nomeado
“controle total do universalismo”, endereçado às peças cuja relação com a tradição é
estabelecida a partir do alinhamento de algumas obras a títulos como sinfonia, concerto ou
quarteto de cordas, sem sugestões temáticas relacionadas ao folclore, compreendidas como
modelos sugeridos pela história, segundo o entendimento de Villa-Lobos, “a música pela
música” ou “a música universal”. Assim, até que ponto a utilização do termo “fantasia” é um
indício para estabelecer esse diálogo com a tradição? Para responder a tal indagação será
ilustrativamente interessante relacionar as transformações e estruturas apresentadas pela
fantasia no decorrer da história da música, como procedimento musical, a algumas peças que
Villa-Lobos nomeou como “fantasia” em sua produção.
2.1 O termo “fantasia”: conceito e transformações
da Renascença ao Barroco
O conceito do termo “fantasia”, de modo geral, traz como principal referência a
imaginação. Em sua utilização na música, deixou rastros desde a renascença como um
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procedimento composicional livre com recursos