jornalismo popular e representação das periferias
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CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
Artigo científico produzido pelos alunos do curso de Jornalismo - 1º semestre de 2010
Jornalismo Popular e Representação das Periferias
Fernanda Sayão Jader Moraes
Resumo: O trabalho pretende analisar a cobertura do noticiário das periferias cariocas nos jornais destinados às classes populares. Ao propor uma releitura das notícias, objetiva avaliar em que medida esses veículos colaboram para o reforço dos estereótipos acerca dessas comunidades. O foco recai sobre questões como o preconceito e a estigmatização dos moradores da periferia, que é retratada nestes veículos apenas como local de pobreza e violência, sem explorar outros aspectos na vida das comunidades. Os jornais, que têm como público-alvo os moradores das periferias, colaboram para a disseminação de ideias preconceituosas, com grande espaço destinado à editoria Polícia, em oposição à cobertura de outros temas. E para exemplificar as questões levantadas foi analisado o jornal Meia Hora, do grupo O Dia. Palavras-chave: Estigmatização; Violência; Periferias; Jornalismo Popular
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Introdução
Jornalismo popular – do Publick Occurrences ao Meia Hora
A narrativa do sensacional, através de linguagem popular, é um artifício
usado através dos séculos e instrumento capturado pelos principais meios de
comunicação ao longo da história. No jornalismo, mais especificamente, é
possível notar traços populares-sensacionalistas desde o surgimento da
imprensa.
O jornalismo popular, como atualmente é conhecido o segmento do
jornalismo destinado às classes mais populares e que, em geral, faz uso do
sensacionalismo para reportar os fatos do cotidiano, não possui uma data de
início definida e historiadores divergem ao apontar em que momento este tipo
de jornalismo teria nascido.
Contudo, é possível perceber características populares desde a origem
do jornalismo em muitos países. Angrimani (1994) exemplifica a afirmação com
as experiências vistas na França e nos Estados Unidos. De acordo com ele, o
sensacionalismo está na origem do processo em ambos os países. E, de fato,
é impossível desassociar jornalismo sensacional e jornalismo popular, ainda
que – e é importante destacar isso – existam outros recursos (utilizados por
jornais destinados às classes mais altas) para explorar as sensações no leitor
para além das estratégias sensacionalistas diretas1.
Na França, entre os séculos XVI e XVII surgiram os primeiros jornais
daquele país – Nouvelles Ordinaires e Gazette de France. Angrimani
argumenta que o Gazette, principalmente, já trazia em seu conteúdo fait divers
e notícias sensacionais, de forma bem próxima do que se vê hoje nos jornais
populares.
1 DUARTE, Maurício. Cidadania obstruída. Jornais cariocas e a construção discursiva da violência no Rio. Tese de Doutorado de Comunicação pela ECO/UFRJ, 2003.
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Antes mesmo desses dois jornais, já haviam surgido brochuras, que eram chamadas de occasionnels, onde predominavam “o exagero, a falsidade ou inverossimilhança (...) imprecisões e inexatidões”. Esses occasionnels relatavam também fait divers (ANGRIMANI, 1994, p. 19)
O primeiro jornal americano, Publick Occurrences, de 1690, também é
classificado por especialistas como um bom exemplo de jornalismo popular.
Mais tarde, no fim do século XIX surgiram outros dois jornais que acabaram por
moldar o gênero, com características ainda hoje utilizadas: World e Journal.
No Brasil, um dos primeiros veículos que pode ser caracterizado como
jornalismo popular é o Última Hora, do Rio de Janeiro, nascido na década de
1950, com o intuito de apoiar o presidente Getúlio Vargas – por quem também
foi apoiado. O jornal, na época, tinha um papel importante no jogo político do
país.
A partir dos anos 70/80, contudo, o Última Hora passa a adotar um estilo
diferente daquele visto nos anos 50. Seu conteúdo, então, fica marcado como
“predominantemente sensacionalista, com destaque para matérias policiais e
fait divers, construídas em tom melodramático e com forte apelo popular,
principalmente por carregar marcas da linguagem coloquial e da oralidade”
(DINIZ E ENNE, 2005, p. 6)
Novos veículos surgiram nas décadas seguintes (como o Extra, nos
anos 90), e outros ainda se reformularam (como O Dia, que possuía linha mais
conservadora), para atender às classes mais baixas em termos de
estratificação socioeconômica.
No início dos anos 2000 um tipo ainda mais específico de jornalismo
popular teve um verdadeiro boom em todo o país – jornais voltados para a
periferia, em formato tabloide, com linguagem coloquial e uso acentuado de
gírias, manchetes escandalosas, preço acessível às classes mais baixas
(geralmente em torno de R$ 0,50), entre outras características.
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E é neste contexto que surge, em 2005, no Rio de Janeiro, um dos mais
emblemáticos veículos desta nova fase do jornalismo popular no país – o Meia
Hora. Com circulação em todo o território fluminense, seu público é formado
basicamente pelas classes mais populares.
As reportagens também se referem aos acontecimentos dessas
comunidades populares, com acentuado destaque às notícias violentas. A
periferia, portanto, está sendo retratada de forma diária nestes veículos e esses
retratos contribuem na definição da forma com que a sociedade enxerga essas
comunidades e, num sentido mais restrito, como as próprias comunidades se
enxergam.
O discurso e o estigma
A partir do próprio conceito de discurso, definido aqui como uma prática
social, um espaço de materialização das formações ideológicas2, faz-se
necessário atentar para o caráter de construção social de todo discurso. Como
observam Diniz e Enne, “as identidades sociais são forjadas, em larga medida,
a partir dos discursos sociais, e a mídia desempenha papel central neste
processo” (DINIZ E ENNE, 2005, p. 10)
Em sua obra O medo e a cidade imaginada na reportagem policial do
Globo, por exemplo, Letícia Cantarela Matheus afirma que as cidades (e as
periferias, mais especificamente) são em grande parte constituídas pelas
histórias contadas sobre elas. Neste sentido, o jornalismo desempenha papel
chave na narrativa sobre os acontecimentos e na caracterização destas áreas.
Através de uma série de entrevistas realizadas pelo Centro de Estudos
de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes, com diversos
profissionais de imprensa do país, que deu origem ao livro Mídia e Violência,
2 Segundo Michel Foucault, a prática do discurso não poderá ser entendida separadamente das práticas que não são discursivas
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constatou-se que os veículos de comunicação têm “grande responsabilidade na
caracterização dos territórios populares como espaços exclusivos da violência”
(PAIVA E RAMOS, 2007, p. 77).
A cultura, o esporte, a economia e as dificuldades cotidianas enfrentadas pelos moradores desses locais aparecem muito pouco em jornais e revistas, especialmente quando se considera o imenso número de reportagens e notas sobre operações policiais, tiroteios, invasões, execuções etc. [...] verificam-se tanto uma constante ligação entre os moradores de favelas e o crime, quanto a dificuldade de enxergar essas comunidades na sua variedade e complexidade (PAIVA E RAMOS, 2007, p. 77-78)
É ponto pacífico que os jornais populares, cujo público é formado
basicamente por moradores das periferias, carregam a mesma visão
estereotipada dessas comunidades e acabam por reforçar os estigmas e
preconceitos acerca das periferias. Para o presidente do Sindicato dos
Jornalistas do Rio de Janeiro, Aziz Filho, estes veículos seguem a mesma linha
de difusão de outros mais robustos, com a periferia sendo apresentada sempre
a partir da violência. Buscando chamar a atenção para essa situação, ele usa
um exemplo da discrepância entre a realidade de uma favela carioca e
cobertura da imprensa sobre a região.
No início de 1990, apenas 0,57% da população da Maré tinha concluído o Ensino Superior. Em 2000, este percentual aumentou para 1,64%, e certamente hoje é ainda maior [...] a população de universitários da Maré é muito maior do que a dos traficantes de drogas, por exemplo. Mas 87% das reportagens sobre esta comunidade e as outras só enfatizam a violência e a criminalidade (PAIVA E RAMOS, 2007, p. 94)
É importante reconhecer a importância da crônica policial e não se pode
negar que a imprensa deve, sim, cobrir casos policiais nas periferias. Contudo,
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ao transformar a violência num monotema, tais veículos acabam por fazer uma
fragmentação do real que pode ser confundida com o próprio real.
A partir de pressupostos, nem sempre tão claros, os veículos escolhem
priorizar determinado tema e nem sempre dão conta da complexidade e
diversidade existente nas periferias. O próprio conceito de periferia, aliás,
precisa ser constantemente questionado: “os termos ‘centro’ e ‘periferia’ são
categorias criadas, em geral, por aqueles que encontram-se nesse ‘centro’
imaginado – os centros de poder – em detrimento dos que são postos de
‘periferia’” (CHAVES, 2007, p. 60)
No jornalismo popular, que teoricamente dialoga com estas periferias,
acontece uma relação paradoxal, que pode explicar parcialmente a visão
estereotipada de tais veículos com as comunidades populares: os jornalistas
destes jornais não têm relação nenhuma com o meio de onde escrevem. São,
em sua maioria, compostos por jovens de classe média, que já têm seus
próprios preconceitos com relação àquelas comunidades que serão cobertas.
O surgimento dos novos jornalistas, a partir da regulamentação da lei da
obrigatoriedade do diploma universitário para o exercício da profissão, na
década de 70, modificou as configurações das redações brasileiras. Com a
nova lei, os jornalistas da antiga, muitas vezes de origem humilde, começaram
a sair de cena.
Os novos jornalistas são pessoas que conseguiram concluir o curso superior e, portanto, pertencem na maioria à classe média. Iniciam-se na vida profissional tecnicamente mais bem preparados. Por outro lado, trazem pouca ou nenhuma experiência relacionada ao cotidiano dos moradores de favelas e economias. (PAIVA E RAMOS, 2007, p. 78)
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Para as estudiosas, “uma presença maior de indivíduos ligados a essas
comunidades poderia estimular, nos dias de hoje, uma cobertura plural e
menos estigmatizante dos espaços populares” (PAIVA E RAMOS, 2007, p. 79)
A questão é levantada ainda em outros estudos, que também vêem na
ausência de jornalistas oriundos das periferias como uma das principais
deficiências dos meios de comunicação. Como exemplo positivo, fora do Brasil,
o tradicional jornal norte-americano The New York Times possui uma política
de contratação que inclui jornalistas hispanos e afro-americanos em seu
quadro, como forma de privilegiar a diversidade existente no país.
Entretanto não é razoável atribuir somente aos jornalistas determinadas
formas de enxergar as periferias. A escolha das pautas, a repetição de certos
estigmas e a caracterização dos espaços populares como territórios da
violência se baseiam principalmente na linha editorial escolhida pelo veículo, e
não em visões individuais.
Segundo Guilherme Canela, coordenador de Relações Acadêmicas e de
Pesquisas da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), a imprensa
constantemente, na busca daquilo que hipoteticamente interessa ao leitor,
subestima o seu público “ao acreditar que ele não se interessaria por uma
cobertura mais aprofundada, contextualizada e complexa dos temas”.
A linha editorial de tais jornais privilegia recortes limitados da realidade.
Se num passado recente, a favela já foi alvo principal de discursos positivos,
com o samba e a boemia alegre como manchete, hoje as notícias
sensacionalistas sobre os horrores desse universo e de seus moradores mais
hediondos (traficantes, bandidos, criminosos) dominam os jornais. E se
observam essas características de forma ainda mais contundente na imprensa
popular.
Com a escolha por uma forma de retratar as comunidades a partir do
sensacional, com narrativas marcadas pela pessoalidade, os jornais buscam se
aproximar de seu público, na busca pelo envolvimento emocional com o leitor
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da história. Numa crítica a essas práticas, o pesquisador Danilo Angrimani,
autor de uma das maiores referências contemporâneas sobre o tema, o livro
“Espreme que sai sangue”, decreta que quem optar pela via sensacionalista
entra “em rota de colisão com a credibilidade” (ANGRIMANI, 1994, p. 23).
Em outro pólo, a principal estudiosa na área do jornalismo popular no
país, Márcia Franz Amaral3, adverte que é preciso olhar os veículos populares
para além do sensacionalismo, pois o termo “não dá conta de importantes
características dos novos jornais populares” (AMARAL, 2006, p. 24).
Amaral defende que nos últimos anos o segmento passou por
significativas modificações, mas admite que isso nem sempre foi sinônimo de
melhora na qualidade dos jornais. Em uma de suas entrevistas sobre o tema,
faz um convite à especialistas e estudiosos da comunicação:
Se achamos que nessa imprensa se faz pouco jornalismo, temos mais um motivo para compreender seu funcionamento para então sistematizarmos nossas críticas e, fundamentalmente, estabelecermos novos patamares de um jornalismo que pode sim buscar o reconhecimento do público popular, porém sem se deslocar de seu lugar de serviço público, de produtor de conhecimento, de construtor da cidadania. (MARTINS, 2007, p. 6)
“Nunca foi tão fácil ler jornal”4
O Meia Hora é um dos principais expoentes deste novo jornalismo
popular, que explodiu em todo o país no início desta década. Fundado no ano
de 2005 no Rio de Janeiro, o jornal atingiu rapidamente tiragem de mais de 200
mil exemplares diários5. No ano passado, contudo, o jornal teve queda de
3 Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Universidade Federal de Santa Maria, autora de diversos artigos sobre o tema e do livro Jornalismo Popular. 4 Slogan do Meia Hora. 5 Segundo dados do IVC (Instituto Verificador de preços), o Meia Hora obteve circulação diária de 50.810 exemplares em outubro de 2005, seu primeiro mês nas bancas; seis meses depois,
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19,8% na circulação6, muito superior à média dos veículos impressos
brasileiros – a circulação dos vinte maiores jornais do país caiu 6,9% em 2009.
Uma análise simples do jornal permite identificar alguns dos principais
vícios da imprensa popular no retrato das periferias. Nas páginas do diário,
estão impressas notícias carregadas de sensacionalismo e grande margem de
estereótipo nos casos retratados. É possível, com base nisto, afirmar que o
jornal reforça os estigmas sobre as comunidades periféricas do Rio de Janeiro.
Contudo, é importante reconhecer que o veículo também exerce papel
destacado na prestação de serviços a seus leitores. Colunas e suplementos
diários e semanais, como Serviços, Voz do Povo, Saúde, Empregos, entre
outras, revelam a preocupação do jornal em servir seus leitores com algo mais
que os fait-divers que, em geral, caracterizam o segmento popular.
o Meia Hora se vale de discursos sobre a realidade das periferias cariocas para fidelizar seus leitores, que encontram nele o ‘seu mundo’ de uma maneira extremamente pessoal e próxima. O jornal não está falando do Congresso, de notícias da capital, da economia mundial. Está falando do ‘quintal’ do seu leitor e esse pode ser considerado um dos trunfos para o sucesso de vendas (PAULA, 2010, p. 10)
Assim, é importante destacar o papel do jornal no processo de
estigmatização da periferia, ao fazer um mesmo recorte dessas áreas, pautado
quase que exclusivamente nas cenas de violência, mas também é justo admitir
que o Meia Hora exerce um papel que ultrapassa esse caráter sensacional e
muitas vezes é um legítimo porta-voz da população das periferias, além de
fornecer informações relevantes para os moradores destas áreas.
já eram 102.158 jornais/dia; em 2007, pouco mais de dois anos após seu lançamento, o veículo chegou a tiragem diária 205.768 6 Uma das explicações para a queda pode ser o aumento no preço do exemplar. Devido à crise econômica mundial, o diário passou a custar R$ 0,70, enquanto seu principal concorrente (Expresso) permaneceu com o preço anterior de R$ 0,50. Ainda assim, o Meia Hora continua a ocupar a sexta posição entre os jornais mais lidos do país, posição em que está desde 2007.
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Levantadas as edições do mês de abril de 2010, é possível quantificar (e
qualificar) a narrativa sobre a periferia, seus moradores e o dia a dia dessas
regiões. É possível, ainda, fazer uma análise sobre a relação entre as notícias
sobre a periferia e temas como violência, prestação de serviços, cultura, entre
outros.
Na pesquisa, foi identificado que é alto o número de páginas dedicadas
à editoria Polícia no caderno principal do Meia Hora – 43% das páginas estão
inseridas nesta editoria. Se forem desconsideradas as colunas fixas Serviços e
Voz do Povo, que também estão no caderno principal, o percentual de páginas
destinadas à Polícia sobe para 53%. Ou seja, mais da metade do jornal
(caderno principal) dedica-se ao tema.
Sobre a periferia, especificamente, o percentual é ainda maior: 78% das
matérias publicadas sobre as comunidades pobres do Rio estão na editoria
Polícia, com grande destaque para operações policiais, tiroteios, tráfico e
homicídios. As notícias sobre a periferia que não têm relação com violência
geralmente são de acontecimentos pontuais, como a morte do violonista do
AfroReggae.
O percentual de notícias sobre violência, contudo, poderia ser ainda
maior: o mês analisado foi marcado pela tragédia das chuvas, que deixou
centenas de vítimas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. As matérias
referentes ao tema, ainda que trágicas, não apareceram na editoria Polícia.
Dentro deste universo de 22% das matérias sobre a periferia que não tem
relação com violência, portanto, também estão as notícias sobre a tragédia.
Outro importante dado da pesquisa dá conta de que a absoluta maioria
das matérias de Polícia dá voz apenas à versão oficial, aos boletins de
ocorrências. Das 103 matérias coletadas no período, apenas duas traziam
também a versão dos moradores.
Em pesquisa realizada pelo CESeC com jornais fluminenses, em 2006,
este problema também foi identificado. Enquanto na média dos veículos um
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percentual de 63,5% das matérias policiais possuíam apenas uma fonte, no
Meia Hora 81,7% das notícias traziam essa característica. “O resultado é um
conjunto de matérias em que predomina a pouca contextualização e a
pluralidade, muito dependente da perspectiva de delegados e oficiais de Polícia
Militar” (PAIVA E RAMOS, 2007, p.39).
Ainda é frequente ler nos jornais notícias que classificam de ‘traficantes’ pessoas mortas por policiais, baseadas obviamente em informações da própria polícia. [...] os riscos desta prática são evidentes. [...] A experiência tem ensinado aos jornais a medir as palavras ao atribuir culpa. (PAIVA E RAMOS, 2007, p. 66)
Um fragmento do livro Cabeça de Porco, de Luiz Eduardo Soares, MV
Bill e Celso Athayde, expressa essa situação de maneira bem peculiar, quase
poética, e também reflete sobre os riscos de dar voz a uma única fonte – em
geral, as oficiais.
Quem está ali na esquina não é o Pedro, o Roberto ou a Maria, com suas respectivas idades e histórias de vida, seus defeitos e qualidades, suas emoções e medos, suas ambições e desejos. Quem está ali é o ‘moleque perigoso’ ou a ‘guria perdida’, cujo comportamento passa a ser previsível. Lançar sobre uma pessoa um estigma corresponde a acusá-la simplesmente pelo fato de ela existir (ATHAYDE, MV Bill e SOARES, 2005)
Por fim, na análise do Meia Hora também merecem destaque as
manchetes, que no segmento popular adquirem uma importância acentuada.
De acordo com Angrimani: “A manchete deve provocar comoção, chocar,
despertar a carga pulsional dos leitores” (ANGRIMANI, 1994, p. 16)
As notícias violentas, majoritariamente oriundas da editoria Polícia7, são
maioria entre as manchetes analisadas (50%), seguida de Esportes (34%).
7 Algumas, como no dia 08 de abril, apesar de retratarem fatos violentos, fazem referências a outras editorias. Na data, o jornal estampou a seguinte manchete: “Canibais comem
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Outras notícias, de diferentes editorias, ocupam este espaço em apenas 16%
das edições – no mês, esses casos foram quase que exclusivamente
dedicados às enchentes e as consequências da tragédia.
As manchetes são todas escritas em caixa alta e, geralmente, em cores
gritantes (amarelo/vermelho sob o fundo preto). São bastante utilizados
adjetivos chulos, como ‘covardão’, e gírias diversas. Além disso muitas vezes
possuem uma dose de ironia – como em “Na Páscoa, Aleijadinho do Chapadão
ganhou foi cana dura”, no dia 06 de abril.
O uso excessivo destes adjetivos, expressos principalmente na capa do
jornal, corroboram os pré-julgamentos. Apesar de estabelecer uma relação de
proximidade entre as histórias contadas e os leitores, tais artifícios só
colaboram com a estigmatização dos moradores das periferias, caracterizados
como bandidos, marginais, traficantes.
Conclusão - O jornalista tem de estar perto das pessoas
O boom dos jornais populares mudou a relação de leitura das classes C,
D e E. O texto, com suas especificidades que buscam atrair a atenção do
público, cumpriu sua missão e potencializou este público para o jornalismo
impresso. “[...] o jornalismo popular, feito nos moldes atuais, é responsável por
fazer ler uma população que não tinha leitura como hábito diário e só tinha a
televisão como quadro de referência midiático principal”. (PAULA, 2010, p.13)
As comunidades também nunca tiveram tanto espaço quanto nestes
jornais. Além de gerar interesse nos leitores, esta questão demonstra que as
periferias ganham importância neste novo jornalismo. Em algumas colunas, os
jornais tentam, inclusive, fazer denúncias, prestar serviços e manter uma
relação de elo entre a população e o poder público.
adolescente com batatas”. O fato aconteceu na Rússia e foi tratada apenas numa pequena nota, na editora De tudo um pouco.
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o jornal e a coluna ratificam o papel da mídia como mediadora e fiscalizadora do poder público. Ao ler a coluna, e estando ‘cansado’ de reclamar, o leitor renova as esperanças de ver seu pedido atendido. Ele sabe que pode ‘contar’ com o Meia Hora como defensor de seus direitos (PAULA, 2010, p. 9).
Entretanto, temáticas locais não relacionadas à violência ainda ocupam
uma parcela pequena do espaço no jornal. Assim, a exposição de assuntos de
comunidades periféricas não contribui para a formação de uma imagem realista
sobre o local e a população, com todas as suas pluralidades. O que se observa
é o reforço de estereótipos sobre as comunidades mais populares. Não se
defende que sejam omitidas questões relacionadas com a violência, mas uma
cobertura abrangente, que ofereça dimensões sobre os diferentes aspectos da
cultura da periferia, seria interessante.
Os meios de comunicação teriam, nesse ponto, papel fundamental no estabelecimento da paz ou da ‘ordem’, pois na mesma medida em que são capazes e eficientes em provocar a sensação de medo e insegurança na população, podem igualmente ajudar a reverter o estado de terror com discursos menos alarmantes e mais esclarecedores, impulsionadores de atitudes mais resolutivas que reativas. Em especial, contribuiriam com a desconstrução de estereótipos estigmatizantes sobre violência e segurança pública, abrindo caminhos para resoluções menos hostis e segregatórias (CHAVES, 2007, p. 71-72)
Ao considerar estas questões, conclui-se que é necessário implementar
um jornalismo com diversidade de temas, que retrate as variadas esferas da
periferia. Assim, a violência deixa de ser um retrato da periferia, e passa a ser
encarada como um dos vários componentes do dia a dia nas comunidades.
Neste sentido, o melhor caminho para uma cobertura mais plural e que
dê conta da diversidade existente nas periferias é uma relação mais próxima
entre os jornalistas e seus veículos com essas comunidades. É preciso que a
imprensa se aproxime do cotidiano e veja de perto o dia a dia dessas regiões
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para poder fornecer um painel mais completo sobre as localidades que busca
retratar.
Mudar o olhar de preconceito e estigma é o desafio para o jornalismo,
sobretudo para a imprensa popular que, por conta de suas peculiaridades, teria
maiores condições de representar de forma mais justa o cotidiano das
periferias. Ainda hoje, “a balança do estigma e do preconceito pende –
historicamente – para o lado dos que – historicamente – não detêm os meios
de produção” (CHAVES, 2007, p.64)
Ainda que muitos profissionais apontem dificuldades para entrar e
circular nas favelas, principalmente as dominadas pelo tráfico de drogas, deve
ser prioridade para os veículos encontrar maneiras de driblar os obstáculos
para acabar com a disparidade no tratamento dos centros e das periferias, que
acaba consolidando coberturas de qualidade em umas áreas e em outras não.
Como analisa Caco Barcellos, jornalista da TV Globo e um dos
principais repórteres investigativos da história recente da imprensa brasileira,
as pessoas ainda têm medo de ir às periferias e mudar isso é um passo
importante para a construção de uma imprensa mais plural e jornalisticamente
responsável.
Temos de refletir sobre esse medo. O que nasceu primeiro? Esse muro virtual existe porque eles construíram ou fomos nós que o construímos? Acho que fomos nós. Tenho certeza de que não estou exagerando. Nós temos uma imprensa maravilhosa, capaz de produzir textos de alta qualidade, brilhantes, mas que na cobertura do universo da minoria não tem a mesma eficácia, o mesmo brilho. É impossível cobrir direito um universo se você não o frequenta. É preciso estar perto das pessoas. Não bastam a internet, as fontes de pesquisa. Estas são fundamentais, mas são acessórios. O jornalista tem de estar perto das pessoas (PAIVA E RAMOS, 2007, P.85)
Referências bibliográficas
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ANGRIMANI, Danilo. Espreme que sai sangue – Um estudo do sensacionalismo na imprensa. São Paulo: Summus Editorial, 1994 ATHAYDE, Celso; MV Bill; SOARES, Luiz Eduardo. Cabeça de porco. In: CHAVES, Sarah Nery Siqueira. ‘Tenho Cara de Pobre’: Regina Casé e a periferia na TV. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007 CHAVES, Sarah Nery Siqueira. ‘Tenho Cara de Pobre’: Regina Casé e a periferia na TV. 2007. 110f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007 DINIZ, Betina Peppe; ENNE, Ana Lucia. Reportagem policial na imprensa carioca dos anos 80: o caso Mão Branca e a mitificação da violência na periferia. Texto apresentado no III Encontro da Rede Alfredo de Carvalho. Anais. Novo Hamburgo, RS, abril de 2005 FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. MARTINS, Maura Oliveira. Considerações sobre o fenômeno do jornalismo popular. Cadernos da Escola de Comunicação – UniBrasil. Curitiba: 2007, julho. MATHEUS, Letícia Cantarela. O medo e a cidade imaginada na reportagem policial do Globo. Trabalho apresentado ao NP 21 – Comunicação e culturas urbanas, do XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. PAULA, Francislene Pereira de. Jornalismo Popular e Didáticas da brasilidade: apropriações jornalísticas do discurso sobre o que é ser brasileiro. Trabalho apresentado no IJ 1 – Jornalismo do XV Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste. Anais. Vitória, ES, maio de 2010. PAIVA, Anabela; RAMOS, Silvia. Mídia e Violência – Novas tendências na cobertura de criminalidade e segurança no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007.