jornal resistência agosto 3013

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Como a figura tão representativa de Eugene Delacroix, que ilustra a capa desta edição, o jornal RESISTÊNCIA tem alimentado a perspectiva da liberdade para as po- pulações mais excluídas da sociedade ao longo dos 35 anos de sua criação. A SDDH, que completa 36 no dia 8 de agosto de 2013, fez questão de homenagear agora tanto a memória de quem se mantém firme na luta por direi- tos humanos na Amazônia paraense quanto as mulheres que têm participado deste processo. Ainda que com idas e vindas, a publicação segue nas ruas, como ferramenta de denúncia, reflexão e promoção de uma cultura mais justa. JORNAL RESISTÊNCIA – SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS TRAJETÓRIA DE GLÓRIAS E DERROTAS: A FORÇA DA MEMÓRIA E A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NAS LUTAS SOCIAIS TRAVADAS NO PARÁ ANO 35 – AGOSTO/2013

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Edição especial de aniversário de 36 anos da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos.

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Page 1: Jornal Resistência Agosto 3013

SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH1

Como a figura tão representativa de Eugene Delacroix, que ilustra a capa desta edição, o jornal RESISTÊNCIA tem alimentado a perspectiva da liberdade para as po-pulações mais excluídas da sociedade ao longo dos 35 anos de sua criação. A SDDH, que completa 36 no dia 8 de agosto de 2013, fez questão de homenagear agora tanto

a memória de quem se mantém firme na luta por direi-tos humanos na Amazônia paraense quanto as mulheres que têm participado deste processo. Ainda que com idas e vindas, a publicação segue nas ruas, como ferramenta de denúncia, reflexão e promoção de uma cultura mais justa.

JORNAL RESISTÊNCIA – SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS

TRAJETÓRIA DEGLÓRIAS E DERROTAS:A FORÇA DA MEMÓRIAE A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NAS LUTAS SOCIAIS TRAVADASNO PARÁ

ANO 35 – AGOSTO/2013

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SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH2

A cada retorno de trabalhos de campo pelo Brasil, meu sentimento é de tristeza e de ceticismo sobre o futuro das Ongs. Tendo acompanhado como ator o surgimento do setor no Brasil nos anos 80, é com

tristeza que verifico um processo de crise e dificuldades para lidar com ela nos últimos anos.

A situação é muito séria e a cada dia as Ongs se vêem obrigadas a cortar, reduzir, enxugar, deixar de fazer, focar, desligar pessoas e assim por diante, em um movi-mento de regressão no seu papel político e nas suas condições de existência. Pen-so que as Ongs têm de pensar rapidamen-te em estratégias de inovação como setor – mudar para não perder relevância e, até mesmo, para não desaparecer.

Visite uma Ong e você verá que o qua-dro, via de regra, é: orçamentos em redu-ção gradual ano a ano; redução da equipe; saída de pes-soas mais antigas da instituição; venda de ativos; mudança do tipo de vínculo contratual com profissionais (de CLT para autônomos ou mesmo para Pessoas Jurídicas); e crescente desmotivação. O pior de tudo é que há resistência em admi-tir a real situação e dificuldade em estabelecer estratégias de mudança. A cultura organizacional, muitas vezes eivada de valores e princípios que já não são conectados com os novos tempos e novos desafios, representa enorme barreira à inovação. As lideranças, em muitos casos, representam visões conservadoras, impedindo reais mudanças. Poten-ciais novas lideranças se vêem desestimuladas.

Um dos principais fatores desta mudança de cenário das Ongs é a nova dinâmica imposta à gestão financeira, base-ada em projetos com foco definido, de curta duração, mui-tas vezes voltados à prestação de serviços via editais, com limitada contribuição à cobertura dos custos institucionais. Neste sistema, as energias das organizações são desafia-das ao máximo para a realização das ações-fim dos proje-tos, restando muito pouco (de energia e de recursos) para o conjunto da dinâmica institucional.

A observação das organizações e a escuta às suas lide-ranças neste momento revela um sentimento de impotência e de perplexidade. Faz-se cada vez mais o que é possível, e cada vez menos o que se gostaria de fazer.

Muitas vezes, novas iniciativas são tentadas, mas elas são conduzidas dentro dos marcos da cul-tura organizacional vigente, resultando na limitação de suas possibilidades e efeitos.

Por outro lado, a percepção pública so-bre as Ongs, alimentada por certa mídia, hoje se mistura com malandragem, saca-nagem, enriquecimento e corrupção, lon-ge da imagem que antes esteve exclusiva-mente associada ao altruísmo, dedicação e defesa do interesse público.

Não são todas as Ongs que passam por uma situação crítica; tampouco todos os tipos de OSCs. Me refiro aqui àquelas

organizações auto-identificadas como “Ongs”, com atitude crítica e proativa na mobilização social em prol de uma so-ciedade melhor para todos/as. Este campo ético-político de organizações e redes, expressão de um tecido social demo-cratizante, está em perigo.

Cabe ao setor e a seus aliados a promoção de iniciativas em prol das condições de sustentabilidade do setor como um todo.

A atual mobilização em torno de um novo marco regulató-rio é vital, mas não resolverá de todo o problema.

Para superar este período de mudanças e de crise, as Ongs que quiserem permanecer como protagonistas em seus territórios e campos temáticos terão de ajustar suas formas de organização & gestão, e para isso terão de en-frentar e reverter aqueles padrões e mitos internos que se tornaram obstáculos à inovação.

Como parte dos periódicos que cir-cularam no Pará com o caráter de furar o cerco da grande imprensa, o Resis-tência foi às ruas e também deixou de ir a elas uma série de vezes desde 8 de fevereiro de 1978. Ainda assim, nesses 35 anos de idas e vindas e, acima de tudo, de continuidade aos seus princí-pios de construção de uma cultura de direitos humanos na região, contribuí-mos significativamente com a socieda-de, para que ela fosse protagonista na formação de um cotidiano mais justo e um fluxo de informações capaz de em-poderar os cidadãos. Assim, conside-ramos que esta é, legitimamente, uma edição comemorativa tanto do jornal quanto da própria SDDH, que criou o Resistência um ano após ter sido fun-dada e agora em agosto completa, por-tanto, seus 36 bem vividos anos.

Justo é que, neste momento, reto-memos um pouco dessa história, da história de homens e mulheres valo-rosos, que não elegiam uma ou outra tarefa, mas que se uniam para enfren-tar a batalha contra violações de todo gênero, fosse em qualquer linha de tra-balho que estivesse por ser executada. Infelizmente, a equipe se deparou, na atualidade, com os mesmos temas de tantas décadas atrás, e que, portanto, já deveriam ter sido vencidas, mas es-tão vivas, a fazer sangrar uma socieda-de que marca passo na luta por direitos básicos.

Nesta edição, antes de chegar à bela narrativa sobre a arte da grafitagem em Belém, reproduzimos uma análise so-bre o novo lugar ocupado pelas organi-zações não-governamentais no Brasil; tratamos das conquistas alcançadas no processo histórico da “Fazenda Ubá” e das derrotas no caso da Fazenda Prin-cesa. Resgatamos ainda parte da me-mória das lutas populares por meio do acervo da entidade, boa parte exposto nos nossos quatro saraus da memória, um projeto desenvolvido pela SDDH e que recuperou centenas de fotos de um arquivo que remonta a milhares de fo-tografias de época. Artigos de pessoas que viveram esta época contribuem de forma determinante para a compreen-são destes momentos.

Analisamos a preocupação com os recentes retrocessos levados a cabo pelo Governo Brasileiro na conjuntura de direitos humanos da América latina, em um artigo que sinaliza os desafios contra este inesperado ataque ao sis-tema de garantias de direitos humanos patrocinado pelo novo candidato à po-tência imperialista no continente.

Também expomos a dramática situ-ação que massacra comunidades indí-genas de Altamira à Colômbia, do Mato Grosso do Sul ao México, demonstran-do que nossos desafios ultrapassam fronteiras.

Que a leitura também seja arma de prevenção e enfrentamento às viola-ções!

O Jornal Resistência é uma publicação da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH). SDDH – Presidente Marco Apolo Santana Leão. Vice-presidente Elisety Maia Secretário Geral Marcelo Costa. Conse-lho Fiscal Marcelo Freitas, Antônia Melo e Aldalice Otterloo. Coordenação Ampliada Renata Soraia Sampaio (coordenadora administrativa-financeira); Marcelo Moreira (coordenador do Provita); Roberta Amanajás (coordenado-ra do PAJ Internacional); Anna Lins (coordenadora do PAJ nacional); Erika Morhy (coordenadora de Comunicação). Sede Av. Gov. José Malcher, 1381 – Nazaré – Belém – Pará - CEP: 66060-230.Apoio institucional: Fundação Ford, Fundação Heinrich Böll (HBS), Pão Para o Mundo (PPM), amigas, amigos, conselheiros e conselheiras da SDDH.

EDITORIAL

Expediente

Jornal Resistência,35 anos de lutas na Amazônia

O fim das Ongs como nós asconhecemos

O PIOR DE TUDOÉ QUE HÁ RESISTÊNCIA

EM ADMITIR A REALSITUAÇÃO E

DIFICULDADE EMESTABELECERESTRATÉGIASDE MUDANÇA

Foto: D3 Comunicação

Domingos Armani*

A sustentabilidade das organizações não-governamentais (Ong´s) de defesa de direitos, importantes por seu papel autônomo e crítico na sociedade civil, está ameaçada.

JORNAL RESISTÊNCIACoordenação geral: Erika Morhy (DRT-PA 1325)Editora: Erika MorhyEditor-assistente: Jones SantosProjeto gráfico/diagramação/capa: [email protected] MÍDIAS VIRTUAISCoordenação geral: Erika MorhySite: www.sddh.org.bridealização e realização: Ruy SposatiBlog: jornalresistenciaonline.blogspot.comFacebook: Jornal ResistênciaTwitter: @resistenciaSDDH

*Domingos Armani é sociólogo e mestre em Ciência Política. Texto originalmente publicado em junho de 2012, na sua web-site: domingosarmani.wordpress.com/

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SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH3

Com uma série de falhas e desí-dias por parte do Estado, o longo tempo no processo do crime na

Fazenda Princesa – mais de 20 anos entre o momento da denúncia do Mi-nistério Público até a data da decisão judicial - favoreceu sobremaneira os acusados. Um deles, José Gomes de Souza, foi recentemente isento de pena pela extinção de sua punibilida-de por prescrição.

O crime foi praticado no dia 27 de setembro de 1986, no município de Marabá, quando cinco trabalhadores rurais – Manoel Barbosa da Costa, José Barbosa da Costa, Ezequiel Pe-reira da Casta, José Pereira de Olivei-ra e Francisco Oliveira da Silva - foram assassinados dentro da área conheci-da como Fazenda Princesa.

O caso ficou conhecido nacional e

internacionalmente em razão da cruel-dade usada pelos assassinos para matar as vítimas. Os cinco trabalha-dores foram seqüestrados em suas casas, amarrados, torturados durante dois dias e assassinados com vários tiros. Depois de mortos, os corpos fo-ram presos uns aos outros com cordas e amarrados a pedras no fundo do rio Itacaiunas. Os corpos só foram loca-lizados mais de uma semana após o crime. O caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, onde tramita um processo contra o Estado brasileiro.

Os acusados – Marlon Lopes Pid-de, João Lopes Pidde, Lourival Santos da Rocha e José Gomes de Souza -, foram denunciados por homicídio qua-lificado ainda no ano de 1986. A fuga dos acusados impediu inicialmente o

andamento do processo. Somente no final de 2006 o acusado de ser man-dante do crime, Marlon Lopes, foi pre-so pela Polícia Federal.

Logo após sua prisão, advogados da Comissão Pastoral da Terra e da SDDH - que atuam na Assistência da Acusação, em conjunto com o Minis-tério Público - ingressaram com Pedi-do de Desaforamento do julgamento para a comarca da capital em junho de 2007, mas somente em fevereiro de 2010 o Tribunal de Justiça julgou o pedido, ou seja, quase três anos para julgar um recurso que deveria ser jul-gado em menos de seis meses.

Em seguida, a defesa de Marlon interpôs os recursos Especial e Extra-ordinário contra a decisão do tribunal que desaforou o julgamento para Be-lém. Novamente o tribunal demorou mais de um ano apenas para se ma-nifestar sobre se admitia ou não os recursos. Somando os dois prazos, o processo passou mais de quatro anos nos corredores do tribunal, resultando na prescrição.

Um dos processos mais longos e emblemáticos da luta pela terra na Amazônia, a “Chacina da Fazenda Ubá” faz parte da

história de resistência dos trabalhado-res do campo e também da história da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), ainda que a União e o Estado do Pará tenham pedido, oficialmente, desculpas a fa-miliares das vítimas da chacina, que também já foram indenizados enquan-to aguardam o cumprimento de outros termos que fazem parte do acordo as-sinado pelo Brasil em reconhecimento de sua responsabilidade no caso.

Em junho de 1985, oito agriculto-res, entre eles uma mulher grávida, foram mortos por pistoleiros na ocu-pação da Fazenda Ubá, localizada em São João do Araguaia, onde hoje há um assentamento de reforma agrária com o mesmo nome no Pará. O jul-gamento do mandante das mortes, o fazendeiro José Edmundo Vergolino, foi realizado 21 anos após o crime, em dezembro de 2006. Outros dois acu-sados de participação foram julgados em 2011, à revelia de sua presença, e continuam foragidos.

João Evangelista Vilarina, Fran-cisco Pereira Alves, Januária Ferreira Lima, uma mulher conhecida apenas como Francisca (grávida e que jamais foi identificada) e Luís Carlos Pereira de Sousa foram friamente executados no dia 13 de junho de 1985 por um bando de pistoleiros comandados por Sebastião Pereira Dias, conhecido por Sebastião da Terezona, o pistoleiro mais temido de todo o Sudeste do Es-tado naquela época. No dia seguinte, os corpos foram encontrados por ou-tros acampados, na própria terra que ocupavam.

Cinco dias depois, o mesmo bando de pistoleiros apareceu de novo no lo-cal. Dessa vez, as vítimas foram José Pereira da Silva, Valdemar Alves de Almeida e Nelson Ribeiro. Suas casas foram queimadas e os corpos amarra-dos e afundados no rio.

“Eles pegaram esta mulher (Fran-cisca), viajaram com ela mais ou me-nos uns mil metros pra ela mostrar onde estavam dois homens trabalhan-do e eu não sei como eles resistiram,

(de branco) Advogada da SDDH Roberta Amanajás ao lado de Marina Ferreira da Silva, viúva de José Pereira da Silva, mais conhecido como Zé Pretinho, líder dos trabalhadores rurais na região e um dos oito assassinados. Dona Marina e sua família foram testemunhas diretas do crime e participaram da cerimônia em que o governo brasileiro pede desculpas aos familiares d as vítimas, num ato realizado dentro do Assentamento Fazenda Ubá, em São João do Araguaia, em agosto de 2012.

Como Assistente de Acusação no pro-cesso, a SDDH acompanhou todo o trâ-mite processual referente à chacina da Fazenda Ubá. Um dos momentos mais emblemáticos dessa trajetória foi a bus-ca por uma testemunha-chave para a condenação do mandante do crime. Seu Messias, como é conhecido, foi a única pessoa que presenciou o “acordo” feito entre o mandante e os pistoleiros e seu depoimento foi crucial para ligar o man-dante ao crime.

Depois de depor à polícia, ainda no inquérito de 1985, Seu Messias “sumiu no mundo”, com medo de represálias dos criminosos. Nem polícia, nem Ministério Público ou a Justiça conseguiu localizá-lo. Em 2006, quando finalmente foi marca-do o julgamento de Edmundo Vergolino, uma equipe da SDDH se mobilizou para encontrar Messias. A busca durou meses. As informações sobre o paradeiro da tes-temunha eram desencontradas e a SDDH teve que correr atrás de muitas pistas.

“Rodamos muitos quilômetros, mui-tas estradas vicinais, conversamos com

muitas pessoas que nos indicavam ‘olha a família dele mora em tal lugar’ ou ‘ele foi visto em certo município’. Isso ia au-mentando nossas esperanças, não es-távamos dispostos a desistir de encon-trá-lo. Até que, com o sol já se pondo, encontramos o senhor Messias em uma certa localidade que não revelamos para manter a sua segurança”, conta Anna Cláudia Lins, uma das advogadas da SDDH que atuou no processo.

Anna conta que a testemunha levou um susto quando foi encontrada. “Isso ainda não acabou?”, perguntou ele. Messias falou também do medo que ti-nha de testemunhar no tribunal. “As au-toridades estavam todas do lado do Seu Vergolino, eu era um alvo fácil, e acho que ainda sou, por isso fui embora neste mundo de meu Deus”, disse ele à equi-pe da SDDH. Depois de longas horas de conversa, e da garantia de que sua se-gurança seria mantida, Messias decidiu testemunhar e foi uma peça importante para o resultado do julgamento.

O caso entra para a galeria da im-punidade dos crimes no campo, já que a mesma desídia ocorreu no caso Ga-briel Pimenta, advogado popular morto em Marabá, em 1985. Os acusados por sua morte receberam também a indulgência do poder público ao ter a extinção de culpabilidade decretada por conta da prescrição. Não se trata de mera apologia à educação pela pu-nição e recompensa, mas tão somente constatação de que o aparato estatal responsável especificamente para o fim de acusar e punir demora demasia-damente quando não se trata de fatos que lhe atingem os interesses.

A impunidade segue implacável e com a conivência injustificável do apa-rato de Estado. Espera-se agora que o júri seja imediatamente marcado e que os acusados sejam julgados, pois justiça que tarda é justiça falha e ainda enaltece a impunidade.

Fazenda Ubá: quase três décadas de resistência

Fazenda Princesa:impunidade segue ilesa

História à parte: a buscada testemunha-chave

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Mais do mesmo:caso Gabriel Pimenta

porque ela clamava pra eles não ma-tarem ela. Não sei como eles resisti-ram pra não ouvir aquilo, aquele cla-mor”, contou Raimundo Bicada, uma das testemunhas do crime.

O inquérito policial foi instaurado em 15 de junho de 1985 e demorou seis meses para ser concluído. Esse inquérito apontou como mandante José Edmundo Vergolino, proprietário

da área ocupada. O crime foi executa-do pelos pistoleiros Raimundo Lopes Barros, Valdir Pereira Araújo e Sebas-tião da Terezona.

Apesar de a denúncia ter sido apre-sentada pelo Ministério Público ainda em dezembro do mesmo ano do crime, a instrução do processo na Justiça de-morou mais de dez anos, intercalando períodos de completa inatividade pro-cessual, com prazos abusivos. “Pode-mos citar o imenso prazo no qual se deu a fase de alegações finais, per-durando por 1.280 dias, sendo que o prazo legal seria em torno de 25 dias. Tudo isso sem nenhuma manifesta-ção por parte dos juízes da causa, que nada ou pouco fizeram para reverter esse quadro”, diz um dos documentos apresentados à Comissão Interameri-cana de Direitos Humanos (CIDH) na denúncia internacional contra o Brasil.

A falha do Estado brasileiro na de-fesa à vida dos trabalhadores assas-sinados e a morosidade na condução do processo pelo judiciário brasileiro foram considerados uma violação da Convenção Americana de Direitos Hu-manos, da qual o Brasil é signatário. A denúncia contra o Estado foi à CIDH/OEA, em 1999, pela SDDH, Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Movimento Nacional de Direi-tos Humanos (MNDH).

Em março de 2010, familiares das vítimas e o Estado chegaram a um “Acordo de Solução Amistosa” para o caso. Entre outras coisas, esse acordo determinou o pagamento de indeniza-ção e de pensão vitalícia às famílias das vítimas e um pedido formal de desculpas, além da construção de um memorial em homenagem à luta pela posse de terra.

“O acordo obriga o Estado brasilei-ro a reconhecer sua responsabilidade internacional por ter violado direitos humanos desses trabalhadores. É um ato simbólico, de extrema importância no nosso contexto de luta pela terra, onde ainda hoje os trabalhadores ru-rais são vítimas de violência e os cri-mes permanecem impunes”, diz o pre-sidente da SDDH, o advogado Marco Apolo Santana Leão.

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SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH4

Fortalecimento do SistemaInteramericano de Direitos Humanos?

Quando os sistemas regionais – Organização dos Estados Ameri-canos (OEA) e Conselho de Euro-

pa – foram criados, ao lado do sistema global de proteção dos direitos huma-nos – sistema da Organização das Na-ções Unidas (ONU) – restava certa a hegemonia de alguns Estados sobre o controle e o funcionamento de tais sis-temas. Os países do hemisfério norte, pautados por suas políticas liberais e expansionistas, definiam os princípios e as diretrizes de tais sistemas, base-ados na democracia, na promoção da paz e dos direitos humanos.

Diante do novo contexto internacio-nal, resultado de mais um ciclo de cri-se criado pelo capital, surgem novos países, como o Brasil, que emergem perante a comunidade internacional como potências político-econômicas e assumem posição relevante.

Isso se torna evidente mediante as reformas recentes que serão con-cretizadas pela OEA no seu sistema regional de proteção – Sistema Intera-mericano de Direitos Humanos (SIDH) –, mas precisamente em um dos seus órgãos: Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Muitas das reformas ocorridas no

SIDH resultam de pressões dos seus Estados-partes, como a que exigiu da CIDH a definição de critérios para a seleção dos Estados que seriam ob-jeto de relatórios temáticos, ou seja, de exposição perante a comunidade internacional.

A mais recente mudança atinge di-retamente a Comissão Interamericana e motivou a alteração do seu regula-mento sobre mandato e eleição da sua Secretaria Executiva. Tais medi-das se apresentam como uma reação da CIDH ante a criação, em 2011, do Grupo de Trabalho Especial (GTE) da OEA para tratar sobre o SIDH, em es-pecial da CIDH.

O GTE surge no contexto político retromencionado e ainda devido à re-ação enérgica de países frente a reco-mendações e medidas adotadas pela CIDH, como pela polêmica internacio-nal causada, em 2011, pela concessão de medidas cautelares no caso Belo Monte vs. Brasil. O GTE, que teve seu relatório aprovado pela Assem-bléia Geral da OEA em junho de 2012, analisou diversos temas, dentre eles: trâmite de petições individuais e, ob-viamente, medidas cautelares.

Em seu relatório, o GTE aponta vá-

rias recomendações para CIDH, ora gerais - como fortalecer os mecanismos de consulta e de solução amistosa - e ora mais es-pecíficas, com vistas a restringir o papel de prote-ção de direitos humanos da CIDH, recomendando: adotar critérios rigorosos para admissibilidade de petição individual; verificar a importância do capítulo IV do seu relatório anual, que versa justamente sobre relatórios acerca dos Estados; reunir em um úni-co capítulo a atuação das relatorias; e sobre as medidas cautelares, uma lis-ta extensa de recomendações, como: definir critérios objetivos de concessão e de situações que envolvam gravida-de e urgência, bem como o caráter temporal das medidas; motivar e fun-damentar a concessão; requerer infor-mações do Estado; e individualizar os beneficiários das medidas.

Com efeito, verifica-se que tais re-comendações, intituladas como “for-talecimento do sistema interamerica-no”, visam estimular mais o caráter de promoção de direitos humanos que a

CIDH assume principal-mente durante a égide de regimes autoritários dos anos 60 e 70, do que ao revés, seu papel de proteção de direitos, evidenciado para a con-solidação das democra-cias latino-americanas recentes.

Tais medidas geram incertezas quanto à au-tonomia e independência devida à Comissão Inte-

ramericana, pela atuação importante que lhe é inerente diante dos casos de violações de direitos humanos ex-perimentados pelas Américas. Cum-pre esclarecer ainda que, embora tais recomendações do GTE possam en-sejar em controle e/ou limitações, aos Estados-partes do SIDH cabem cum-prir, de boa fé, o disposto na Conven-ção Americana de Direitos Humanos que outrora aderiram, incluindo o ca-ráter de proteção de direitos da CIDH.

Cristina Terezo*

CartaCapital: Qual contradição?

JoãoBatistaAfonso: Durante toda a fase de investigação das polícias Civil e Fede-ral, em nenhum momento se encontrou qualquer indício de vínculo dos pistolei-ros que executaram o crime com outra pessoa dentro do assentamento que não fosse José Rodrigues Moreira. Os exe-cutores não tinham motivação pessoal para assassinar o casal. Eles não esta-vam em conflito com o casal, não dispu-tavam terra com eles, nem eram madei-reiros que queriam roubar madeira do lote do casal. Apenas atuaram no caso como assalariados do crime. Pegaram uma empreitada de morte.

Quem tinha conflito latente com o ca-

sal era o acusado de ser o mandante, José Rodrigues Moreira. Ele comprou ilegalmente uma área de terra dentro da reserva extrativista na qual já havia três famílias residindo e as expulsou. O casal deu apoio às famílias, tanto com relação às ameaças que sofriam de expulsão por parte de José Rodrigues, quanto para o seu retorno ao local. A partir daí as ame-aças de Moreira se direcionaram não só às famílias, mas ao casal. É nesse mo-mento em que passa a aparecer na cena do crime as pessoas dos executores.

CC: Como o senhor analisa a sentença?

JBA: Condenar os executores sem con-denar o mandante não tem sustentação. É uma sentença sem embasamento pro-

batório suficiente. Pelo fato de a senten-ça dos jurados confrontarem e inclusive contrariarem as provas existentes nos autos, é que a acusação irá apelar e re-querer a anulação do julgamento. Outro aspecto que pode ter influenciado a de-cisão dos jurados foi o comportamento do juiz [Murilo Lemos Simão] na condu-ção da sessão do Tribunal do Júri.

CC: Como o juiz conduziu o processo?

JBA: Durante a sessão, o juiz permi-tiu que José Rodrigues protagonizasse uma cena incomum. O acusado ficou de joelhos, fazendo uma oração, pedindo benção para todo mundo, para o próprio juiz, para os jurados, para os advoga-dos, numa espécie de culto. De joelhos

e chorando copiosamente. Essa mani-festação foi permitida pelo juiz e esse tipo de ação pode ter influenciado algum jurado na votação.

CC: Com relação aos conflitos noBrasil. O que sentença representa?

JBA: Uma das principais causas da con-tinuidade dos conflitos e morte no campo é a impunidade. Ou seja, se alguém as-sassina ou manda matar uma liderança e não é exemplarmente investigado e punido, vai continuar praticando outros crimes. Então, a absolvição do mandan-te tem um efeito infelizmente muito ne-gativo que só fortalece esse estado de impunidade.

Ainda que não tenha atuado no proces-so que condenou os dois assassinos dos extrativistas José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo e absolveu o acusa-do de ser o mandante do crime, ocorrido em 2011, dentro da reserva agroextrativista (Re-sex) Praialta-Piranheira, na cidade paraense de Nova Ipixuna, a SDDH emitiu nota ma-nifestando sua solidariedade aos familiares do casal e a todos os ativistas dos direitos humanos na Amazônia. Após o resultado do júri realizado em Marabá, a entidade se uniu a uma série de outras entidades afins denunciando a contradição do desfecho, anunciado no dia 04 de abril de 2013, e elencando algumas medidas que precisam ser tomadas. Assim, o jornal RESISTÊNCIA publica parte da entrevista concedida pelo advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Pará e Assistente de Acusação no processo, João Batista Afonso, à revista Carta Capital, e sugere a leitura completa disponível no site da publicação.

Contraditório julgamento do caso deassassinato dos extrativistas José e Maria

Representantes do Conselho Nacional de Extrativistas manifestam indignação durante enterro do casal assassinado.

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*Cristina Terezo é conselheira da SDDH, doutora em Direito pela UFPA, Visiting Scholar da American Uni-versity, coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da Amazônia/UFPA.

TAIS MEDIDAS SE APRESENTAM COMO

UMA REAÇÃO DA CIDH ANTE A CRIAÇÃO, EM 2011, DO GRUPO DE

TRABALHO ESPECIAL (GTE) DA OEA PARA

TRATAR SOBRE O SIDH, EM ESPECIAL DA CIDH.

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SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH5

Uma das maiores tiranias pratica-das nesse início do século XXI,

que começou sob a égi-de do pensamento neoli-beral, é o que o ensaísta Adauto Novaes chama de uma “laboriosa cons-trução do esquecimento da política”, em que o es-paço das revoluções po-líticas aparentemente foi sendo abandonado para ceder lugar às revolu-ções técnicas e mentais, presididas pela lógica do fugaz, do veloz e do volátil, aprisionando-nos em presentes perpétuos. A política, que desde os gregos era obra comum dos que habitavam a ci-dade, em prol do bem coletivo, princípio e base da vida em sociedade, aos poucos foi sendo deliberadamente “es-quecida” na época con-temporânea, de elogio ao individualismo.

Os aparatos globais da mídia e da indústria cultural investem maci-çamente para que o ho-mem comum se transfor-me em mero espectador da cena política, e não sujeito dela. A política cada vez mais é mos-trada como “coisa dos outros” e confundida com “os políticos” – os sórdidos, os corruptos, todos postos em um mesmo balaio. A des-qualificação, a meu ver, é proposital, não que não existam bons mo-tivos para desacreditar da maioria dos políticos. Quanto mais maculada a imagem da política – tomada pelos “políticos” – mais distância se quer dela.

Nesse cenário, a lon-gevidade de um jornal como o Resistência, sur-gido há três décadas e meia para desempenhar um papel importantíssi-mo em plena ditadura militar – tão importan-te quanto a atuação da

entidade que o criou, a SDDH, fundada em 1977 – é um respiro que merece ser celebrado e nos ajuda a acreditar que a utopia e o projeto de uma outra sociedade continuam a pulsar e a nos mover, a despeito de todas as forças con-trárias.

O agora aparente-mente distante ano de 1977, ainda parece tão próximo para todos nós que nos lançamos de corpo e alma na luta con-tra a opressão perpetra-da pela ditadura do pós-64 e todas as demais que varriam o continente então, no auge da Guer-ra Fria.

Nove anos após a decretação do AI-5, em 1968, a imprensa brasi-leira vivia amordaçada e todas as liberdades democráticas foram su-primidas. Pouco mais de dois anos antes do sur-gimento do Resistência (que nasceu em feverei-ro de 1978, no ano se-guinte ao da criação da SDDH), o jornalista Vla-dimir Herzog fora assas-sinado nas dependên-cias do DOI-CODI, em São Paulo, em um dos episódios-símbolo dos horrores do regime mili-tar brasileiro. Em agosto daquele mesmo ano de 1975, o general-presi-dente Ernesto Geisel, como que prenunciando o ato extremo consuma-do meses depois com a morte de Vlado, afirmara que “os órgãos de se-gurança acompanham atentamente a infiltração comunista em órgãos de comunicação”.

Foi nesse contexto de completo obscuran-tismo que o Resistência se ergueu como uma co-rajosa voz a denunciar a barbárie instituída pela ditadura, em especial o modelo desenvolvimen-tista imposto à Amazô-nia, orquestrado pelos

interesses do grande capital multinacional. Implantação dos gran-des projetos, massacre de índios e posseiros, das lideranças políticas comprometidas com as causas populares (como o assassinato do ex-pre-sidente da SDDH, Pau-lo Fonteles), destruição dos ecossistemas, tudo para satisfazer à ganân-cia do grande capital.

Não fosse o jornal Resistência e mais cer-ca de 150 periódicos da imprensa alternativa – entre eles o Nanico, tam-bém publicado em Be-lém, de vida curta, porém fecunda – que existiram no país entre 1964 e os anos 1980 – certamente a história desse período de triste memória teria sido outra, mais bárbara ainda do que foi. O jor-nal e seus congêneres foram peças-chave para a derrubada da ditadura. E hoje, quando vivemos sob outra forma de di-tadura – a do mercado, da eficácia técnica, do saber instrumental do marketing e da tentativa de fazer valer um pensa-mento único – é preciso, mais que nunca, resistir.

Que a memorável história do jornal Resis-tência seja inspiradora para a atuação do jor-nal nos anos que virão, pois causas sociais de todas as ordens, urgen-tes como as do tempo da ditadura, estão aí a cla-mar por vozes que lhes representem.

Resistir, mais que nunca, é preciso.

Rosaly Seixas Brito*

*Rosaly Seixas Brito é jornalista e profes-sora da Faculdade de Comunicação da UFPA. Nos anos 1980, integrou o Núcleo de Imprensa da SDDH e participou, como cola-boradora, da redação do jornal Resistência.Referência: NOVAES, Adauto (org.). O esque-cimento da política. Rio de Janeiro: Agir, 2007.

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Jornal chegou a ser vendido na calçada do Bar do Parque (foto 2), na Praça da República, em Belém, e também na feira do Ver-o-Peso (foto 3). Rosaly Brito (centro da foto 4) em reunião, à época como colaboradora do jornal.

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SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH6

Durante um dos quatro saraus da Memória que a SDDH realizou em 2012, por ocasião dos seus 35 anos, registramos a

narrativa de mulheres que participaram do processo de construção não só da entidade, mas da luta por direitos huma-

nos na região amazônica. Por ocasião dos 35 anos do Jornal Resistência, como homenagem às próprias mulheres,

tão saudadas no mês de março, e como forma de democratizar essas informações preciosas para reconstrução da nossa

história de lutas, publicamos trechos de algumas dessas memórias, que tantas vezes se perdem com o tempo. Seguem

segmentadas por temas escolhidos aleatoriamente, conforme a livre fala das narradoras diante das fotografias de arqui-

vo da SDDH apresentadas na ocasião.

Seguem trechos da narrativa de seis ativistas do Pará que revelam fatos históricos

SDDH registra depoimento de mulheres

PROCESSO DE ORGANIZAÇÃO

GRAÇA COSTA: A história da organização das mulheres no Pará tem muito a ver com a forma como, naquele momento, as organizações de esquerda, recém-saídas da clandestinidade, usavam para mobilizar os movimentos sociais.Na década de 1970, nós nos reuníamos nas igrejas; não tínhamos outro lugar. E nós sabemos que o Sul do Pará foi uma

região onde nossos companheiros que voltaram para a ação política atuavam bastante. Este tipo de encontro combinou com o processo de organização do MMCC, o Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade.

VERA TAVARES: Mas em Conceição do Araguaia, final da década de 1970 (78-79), principalmente no Sul do Pará, tinha um movimento muito forte que era o MEB – Movimento de Educação de Base. Já existiam muitos agentes leigos, agentes de pastorais, que faziam todos esses enca-minhamentos. Eu lembro muito bem que, em Conceição do Araguaia, tinham dois

agentes: o padre Ricardo Rezende, que era seminarista naquela época, uma pessoa muito progressista; e a Heloi-sa, que era uma leiga, enfermeira, que também trabalhava lá. Lembro que, em 1980, eu estava em Cametá e ela veio de Conceição do Araguaia para o primeiro Encontro de Mulheres do Baixo Tocantins. Então esse movimento esta-va configurando algo que depois vem a ser o MMCC.

SANDRA FONSECA: Nesse tempo eu trabalhava na Pastoral da Terra. Quem coordenava a Pastoral Regional Norte II era o Manoel Berg e a Iza [Cunha] aqui em Belém. Então esse trabalho em Conceição do Araguaia e Marabá era acompanhado pela pastoral daqui de Belém. E o Ricardo e a Isa moravam lá em Conceição. E aí você já tem o MEB, que trabalhava com

“Paulo Freire”, e têm os camponeses, que se reuniam. Geralmente faziam comemoração no dia do lavrador, dia 25 de julho. Nós participávamos das reuniões e fazíamos acompanhamento desse processo de organização.

É muito interessante lembrar da Helô, porque, das mulheres da equipe de Conceição do Araguaia, era a que mais caminhava naquela região toda. A Iza também ia de vez em quando. E tinha ainda o apoio do Manoel Berg, que sempre foi uma pessoa muito especial, o Mano, que construiu um processo democrático dentro da instituição, da CPT. Então sempre teve espaço para todas nós.Esse período vinha marcado pela presença do Aristides e do Chico, que foram presos depois. Eles moravam em São Geraldo do Araguaia, que ficava de fronte de Xambioá, e trabalhavam com a comunidade, envolvendo homens e mulheres. É quando começa também o MMCC, quando a companheira Isa começa a organizar a questão da mulher rural. O MMCC começa mais pelo campo, depois que junta com a cidade e vira o movimento de mulheres do campo e da cidade.

VERA TAVERES: Acho que a SDDH acabou sendo uma incubadora de muitos movimentos naquele momento. Movimento social! A Fase era uma instituição de asses-soria. Chegamos a fazer reunião de construção da SDDH

com umas 500 pessoas ou mais. A gente enchia a Igreja de Nossa Senhora Aparecida. Depois des-sas reuniões embrionárias, de constituição da SDDH, nas paróquias, a gente se fixou na Igreja Aparecida, porque tivemos nosso primeiro escritório lá. O padre João Maria nos deu uma sala lá em cima.

QUESTÃO DE GÊNERO

SANDRA FONSECA: Nesse período, o Porantin, por exemplo, que era o jornal do Sine, colo-ca o debate sobre a questão do racismo e a questão de gênero. Mas o debate vinha como uma questão das minorias. As mulheres como minoria. E começamos a ter uma série de pro-blemas com a reprodução de relações machistas. Foi quando a Eunice Guedes, já bem depois, traz a discus-são de gênero. Nós fizemos curso com ela. Acho que até hoje é uma dificuldade a gente debater questão de gênero e de racismo para além da contradição capital-trabalho.

MARGA ROTHE: Lembro de uma reunião que a gente teve lá na igreja da Aparecida, onde o Partido dos Trabalhadores (PT) tinha decidido botar mais mulheres para concorrer. Uma companheira levantou e disse: eu falei com meu ma-rido que, naquele dia, quem iria para reunião era eu, porque iriam discutir a cota de mulheres no partido. O marido disse que não, “você não pode ir, você vai fi-car com as crianças, porque eu já tenho um compro-misso”. E ela disse: então tu te viras, porque eu vou. Isso mostrou como o PT estava impregnado daque-

las ideias machistas e do domínio do homem sobre a mulher. Isso foi um processo longo e acho que a esquerda está muito atrasada, muito mais que a direita, às vezes, ainda hoje. Porque são relações herda-das, históricas, que vêm de longa data, e as mulheres também ainda não querem brigar. Falo também como pastora, porque nas igrejas é assim ou pior, em todas as religiões. Acho que no candomblé e na umbanda é menos, mas nas outras religiões, onde secularmente o domínio é do homem, é uma lástima até hoje.

SANDRA FONSECA: A luta contra violência doméstica se colocou como a nossa principal luta. Nessa época, não tinha delegacia de mulheres. A Socorro Gomes foi uma grande liderança; foi com a gente pra rua, pela implantação da primeira delegacia de mulheres no Pará. Daí foi implantada a primeira DCCIM - Delegacia Contra Crime de Integridade a Mulher, que foi lá na [travessa] Quintino [Bocaiúva].

ELISETY MAIA: Como operária da castanha, minha mãe, dona Anésia, participou das atividades junto com Isa Cunha. Eu era da Pastoral da Juventude. Nosso grupo foi expulso da igreja, porque discutíamos a Teologia da Libertação, que era a teoria do Instituto Pastoral da Terra (Ipar), onde a Isa era professora. Se falava da emancipação da mulher, a partir da visão da Bíblia. A gente descobriu

que a igreja, ao mesmo tempo em que despertava, ela oprimia as mulheres.

VIDAS CONCILIADAS

DOMINGAS DE PAULA: Eu fazia assim: os meninos iam comigo. Já tinha o carro certo pra botar o Everson, a Lene e a Shirlei, na hora que a confusão ficava ruim. Era no carro do Jaime Teixeira, do Jaime Santos, que na época era da Fase... Sempre andamos juntos. Lembro que, em uma das reu-niões nossas na igreja, Emerson e Shirlei se meteram no armário do padre. Acabei a reunião numa confusão, porque a gente não os achava e fiquei desesperada.

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SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH7

defensoras dos direitos humanosVERA TAVARES: Casei e um dia fui ter meu filho. Eu morava no Panorama XXI e, como o hos-pital era mais próximo da casa da Isa, que morava na Bom Jardim, eu peguei a mala do bebê

e fui pra casa da Isa. O Mateus me liga umas 3 horas da tarde e diz assim: Olhe, largue tudo que você ´tá fazendo e venha pra cá pra praça, porque a porrada ´tá comendo

solta! Eu digo: Menino, eu ´to pra parir! “Não, não vai parir hoje, não. O Hermógenes ´tá passando aí e vai te pegar!”. Estava só eu e Nazaré Padi-lha, que morava lá. E fui eu pra Praça do Relógio, naquela grande passeata de 30 de junho de 1981, pelo direito de morar. Uma passeata imensa, be-líssima. Quando cheguei na praça, arranjaram um lugar pra mim. Já tinham alguns estagiários e já tinha gente presa. Meu papel era pegar uma máquina de datilografia – e Mateus tinha dito “venha, que vai ter todas as condições” - sentar no banco da praça para a gente poder arbitrar fiança e HC [habeas corpus]. Quando eu olhei, vi a Marga arredando um carro, na-quele jipe! Vinha polícia com cavalaria e o Ademir Andra-de subiu no capô do carro, porque a polícia ia pra cima.

Umas 6 horas da tarde, comecei a sentir dor. Eu disse: Hermógenes, eu acho que eu já vou parir. Corri pra casa. Quando eu tava pra sair, chegou Humberto. Eu já estava chorando de dor. Primeiro filho. E ele dizia: Ah, mas não tem como agora. Fui eu e mais três pro hospital. E a Carolina nasceu assim: bem, saudável e

super tranqüila, às 9 horas da noite.

ELISETY MAIA: Passei um ano em São Paulo, mobili-zando mulheres e jovens e voltamos. Foi quando fui con-tratada para trabalhar no MMCC, para articular as mulhe-

res da castanha. Nessa época, o MMCC, o CIPES - Centro Intercânbio de Pesquisa Econômico e Social e a SDDH funcionavam no mesmo prédio onde os padres tinham sido

presos. Na frente onde a gente fazia as vigílias. Eram três salas. Uma sala era do CIPES, outra do MMCC, outra sala da SDDH. Havia esse intercâmbio entre essas três entidades. O

CIPES trabalhava já com o método Paulo Freire, os círculos de cultura, e foi aí que eu fui participar, implantando, junto às ope-

rárias da castanha, a alfabetização para as mulheres. Uma das primeiras questões era que as operárias da castanha não sabiam nem ler e nem escrever. O método Paulo Freire, aqui no Pará, foi através do CIPES, que era referência nacional pra essa questão da capacitação e eu fui uma das pessoas que trabalhou nesse processo.

FERIDA ABERTA

MARGA ROTHE: O Jaime [Teixeira] estava fazendo levantamento da evasão de divisas na região do Salgado. Estava com a filha adolescente

no carro e foi assassinado na frente dela. Eles queriam as notas, que eram a comprovação do desvio de verba, do desvio de impostos não arrecadados. Ele foi assassinado acho que num fim de semana.

VERA TAVARES: Final da tarde de um domingo.

MARGA ROTHE: Parou pra comprar uma pamonha, naquela área que têm os vendedores.

VERA TAVARES: Em Santa Maria.

MARGA ROTHE: Foi muito difícil, porque a família não queria mais nenhuma conversa com a gente. Ela ficou traumatizada. Nós também tentamos locali-zar a mulher e a filha, mas, pelo que me lembro, foi muito difícil.

VERA TAVARES: Nós acompanhamos todinho o processo por aqui, desde a hora em que a gente soube da notícia, a gente acompanhou até o julga-mento. O Jaime era fiscal de renda, na Secretaria Estadual da Fazenda. O problema é que a investigação não conseguiu comprovar que foi crime de encomenda. Até descobriram o autor, mas ficou como crime por roubo, latrocínio, na verdade.

SANDRA FONSECA: O Jaime foi uma das pessoas responsáveis pela organização sindical em Belém. A maioria dos sindicatos, na época, a

Fase – Federação de Órgão para Assistência Social e Educacional – tinha uma equipe que era de assessoria sindical, que era o Jaime, a Edilza Veiga e o padre Afonso

Horry.Eles acompanharam os metalúrgicos; a construção civil; a organização do pessoal do setor da alimentação. Foi quando começou a organização desse pessoal, inclusive das mulhe-

res. O Jaime era uma pessoa fantástica. Antes de ser assassinado, talvez por isso tenha sido tão difícil pra Regina, esposa do Jaime, o Comando de Caça aos Comunistas também atacou

a casa do Jaime, lá na Nova Marambaia. Apedrejaram a casa. Já existia o CIPES e ele dava acompanhamento pra nós também. Eu chamava o Jaime de Jaiminho, só pra ter uma ideia.

Eu fui a primeira tesoureira mulher, de uma diretoria só de homens, na SDDH.

DOMINGAS DE PAULA: Eu me dava muito com a esposa [do Jaime Teixeira]. Ela fi-cou magoada com o movimento. Acho que uns quatro anos atrás, teve uma caminha-da que a gente se encontrou, mas depois não a vi mais.

TERRA NO CAMPO E NA CIDADE

MARGA ROTHE: O Tribunal da Terra foi organizado pela Isa e uma turma da esquerda tentou boicotar, lamentavel-mente. A gente meteu a cara, mas foi mais mérito da Isa, porque ela contactou o pessoal do interior. Vieram várias pessoas que já tinham sofrido atentado. Foi o primeiro Tribunal da Terra.

VERA TAVARES: Do Brasil, eu acho.

MARGA ROTHE: A Iva, acho que tinha 15 anos. Os acusa-dos eram o latifúndio e outros dois que não lembro agora. As vítimas eram todas reais.

GRAÇA COSTA: Em 1979, eu estava grávida do meu se-gundo filho e levou porrada lá naquela prisão do Bira [Ubi-ratan Moraes Diniz], na barriga. Eu estava de 8 meses. No Jurunas, na passagem Santana, o pessoal ocupava uma área que a Polícia Militar dizia que era dela. O pes-soal ligou, dizendo: olha, venham pra cá, porque chegou muita gente do Exército, pra tirar o pessoal da ocupação! Eu e Bira fomos pra lá. Levamos uma máquina fotográ-fica. Entramos numa casa e assistimos cenas horríveis. Eles tiravam as crianças das redes cortando com facão os punhos das redes. E o Bira foi fazendo foto. Era um colega que trabalhava na Fase, professor da universidade e grande militante dessa luta pelos direitos humanos. E todos os caras do Exército tinham um esparadrapo para não aparecer o nome. Um soldado foi dizer pro coman-dante dele que ele não queria: era pra botar uma senhora – ela estava em período de parto e o marido, na feira; ela pedia pra ele esperar o marido. “Tira ela, tira ela”. Nós já tínhamos tirado bastante foto e o Bira quis ser um pouco mais ousado. Ele foi tentar tirar uma foto na cara de um tenente. Prenderam o Bira e o Bira jogou a máquina pra mim. Tentei entrar numa casa, mas não consegui, porque vieram todos aqueles guardas pra cima de mim. Digo pro meu filho que ele levou umas porradas naquele dia, porque os caras queriam tirar a máquina e tiraram. Esse dia também foi de muita mobilização, porque todo mundo tinha ido atrás, pra saber onde o Bira tinha sido preso. Achamos. Depois ficamos na Almirante Barroso, enfrente aquele quartel, até tantas horas da noite, quando se con-seguiu soltar o Bira.

Narradoras:DOMINGAS DE PAULA: educadora popularELISETY MAIA: historiadoraGRAÇA COSTA: educadora popularMARGA ROTHE: pastora luteranaSANDRA FONSECA: assistente socialVERA TAVARES: advogada

A agência de notícias Pública e o jornal Diário do Pará divulgam histórias de dez mulheres cujas vidas estão ameaçadas por luta-rem pelos seus direitos e pela preservação da floresta amazônica no Brasil. Acesse http://www.apublica.org/ e conheça um pouco da trajetória dessas mulheres #MarcadasParaMorrer.

1 - Laísa Santos Sampaio 2 - Maria Joel da Costa 3 - Maria Regina Gonçalves 4 - Maria do Carmo Pinheiro Chaves5 - Zuldemir dos Santos de Jesus6 - Cleude Conceição7 - Nádia Pinho da Silva8 - Graciete Souza Machado9 - Késia Furtado de Araújo10 - Maria Raimunda César de Souza

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SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH8

A Sociedade Paraense de De-fesa dos Direitos Humanos (SPDDH**) surge na Amazônia como uma necessidade social

e política do momento histórico vivido pelo Brasil, caracterizado pela ditadu-ra militar, que, no caso da Amazônia, assumiu características bastante es-pecíficas, em razão dos conflitos pela posse da terra e em razão da Guer-rilha do Araguaia e a modernização forçada, que se pautou na implemen-tação de empresas mineradoras, em grande parte delas, e latifúndios para a criação de gado. Tudo isso gerou um cenário local, no período de 1970, com mais de 500 assassinatos, ocorridos em áreas rurais.

O advogado e ex-preso político, militante do Partido Comunista do Bra-sil, Paulo Fontelles, que foi o primeiro presidente da SPDDH, foi brutalmente assassinado nesse período. Queriam calar a voz daquele que dedicou sua vida à defesa de uma sociedade sem classes, em defesa dos operários e em defesa dos camponeses, estudan-tes e, naquela época, das minorias, entendidas como mulheres e índios.

As mulheres, nesse contexto, parti-cipavam dos sindicatos rurais e urba-nos, das associações profissionais e começavam a organizar os primeiros grupos de mulheres, com finalidades mais voltadas para o debate da condi-ção da sua, uma vez que nas décadas anteriores elas se organizaram, mas, sendo em sua grande maioria, uma forma de apoio aos processos políticos eleitorais. São as mulheres militantes dos diferentes partidos políticos da es-querda brasileira que começam a dar visibilidade ao fato de que havia uma

situação específica: a condição de mulher, infelizmente, este de-bate dessa condição específica, vem à tona a partir dos estupros cometidos no perío-do da ditadura militar, como forma de aniqui-lamento psicológico e de torturas cometidas contra as mulheres grávidas.

As torturas como choque elétrico na va-gina e mesmo os cho-ques elétricos no pênis e o fato de que muitos casais foram obrigados a se tortura-rem traziam para o debate político es-tas questões, a questão da condição específica da mulher, da sexualidade, da dignidade humana, da violação dos direitos humanos.

Assim surgiu a SPDDH, com uma diretoria ainda majoritariamente mas-culina, mas que funcionava com nú-cleos de apoio, dos quais participavam as mulheres, e mulheres de diferentes idades, e que expressavam os mais diversos tipos da sociodiversidade amazônica, tendo como pano de fun-do, no processo de sua participação política, a defesa dos direitos huma-nos, a emancipação da sociedade e a liberdade das mulheres.

As mulheres camponesas reivin-dicavam o direito de acessar o FNO, fundo de apoio à agricultura familiar que somente os homens podiam as-sinar e receber; reivindicavam melho-ria da saúde, de escolas. As mulheres das áreas urbanas reivindicavam liber-

dade sexual, autono-mia, salários melho-res, saúde, escolas e participação das mulheres nas mais diversas instâncias de poder.

Nesse contexto, a SPDDH tinha uma diretoria que se dis-solvia no conjunto de seus núcleos e dos movimentos sociais camponeses, operá-rios e urbanos que eclodiam em todo o Pará; relações não-- h i e r a r q u i z a d a s ,

não-burocratizadas, possibilitaram a participação de um contingente enor-me de militantes e amigos da SPDDH, de diferentes segmentos sociais, que, em conjunto, lutavam pela defesa dos direitos humanos e agiam em defe-sa, principalmente, dos camponeses, quase sempre ameaçados de morte.

Nesse processo de eclosão dos movimentos sociais amazônicos e de repressão, as mulheres camponesas tomaram a frente de muitas lutas, la-vando roupa na beira do rio, pilando favas, plantando cana-de-açúcar, plantando mandioca, preparando uru-cum, pescando, catando caranguejo, pescando camarões, plantando. As mulheres de todas as áreas rurais do Pará lutaram, a grande maioria, ao lado de seus companheiros, outras so-zinhas, muitas anônimas até hoje, mas que faziam o café e os almoços nos grandes encontros e sempre com um jeito meio calmo, muito puro, começa-ram a conversar sobre essas questões

QUERIAM CALAR A VOZ DAQUELE QUE DEDICOU SUA VIDA À DEFESA DE UMA SOCIEDADE SEM

CLASSES, EM DEFESA DOS OPERÁRIOS E EM DEFESA DOS CAMPONESES, ES-TUDANTES E, NAQUELA ÉPOCA, DAS MINORIAS, ENTENDIDAS COMO MU-

LHERES E ÍNDIOS.

Mulheres são protagonistas na construção da SPDDH

Sandra Fonseca*

Desafiando o modelo que foi im-posto à região, da modernização forçada, as mulheres desfralda-

ram a bandeira da luta contra a violên-cia doméstica e foram às ruas, quei-maram presidentes, ocuparam praças, cantaram, amaram, brigaram, mas conquistaram aquilo que se desdobra hoje em um dos maiores avanços da luta das mulheres, que foi a convenção de Belém, que subsidia hoje os encon-tros nacionais de mulheres, e o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica.

Nesse período, a questão da violên-cia doméstica não estava incluída na pauta da luta em defesa dos direitos

humanos. A SPDDH traz para si esse debate, apoiando os mais diferentes grupos de mulheres e também nessa esfera, como ator social coletivo, faz avançar a luta em prol dos direitos hu-manos.

Somos todas caboclas, caboclos; nós mulheres temos até hoje o hábito de andar de mãos dadas, em um gesto puro, de fraternidade, da nossa cultu-ra ribeirinha, hábito originário da prá-tica indígena de embalar os filhos na rede e das práticas das mulheres ne-gras que inventaram o dengo, palavra de origem Yorubana. Reconhecer em nossa herança não só um poder guer-reiro, mas um poder guerreiro consti-

tuído na doçura, no romantismo das luas cheias, pode nos possibilitar no-vos avanços, uma vez que precisamos compreender que nossos inimigos são o capitalismo, o racismo, o machismo e todos os preconceitos. Precisamos lutar contra a desumanização da so-ciedade de mercados; precisamos ir de mãos dadas, como dizia Carlos Drumond de Andrade, reinventar na-gôs, latinos, tupis, realizando sempre novas conquistas.

A SPDDH é isto: um espaço físico e de pessoas; uma ONG; é um pouco de cada uma de nós, em nossas angús-tias, em nossas esperanças, em nos-sa capacidade guerreira, de ter gente

trocando, aprendendo, socializando saberes e experiências; partilhando. Um espaço aconchegante para nós mulheres amazônicas, um espaço de construção, de solidariedade e de luta. Uma ONG construída por mui-tas, muitas mulheres, anônimas, não--anônimas, negras, não-negras e que foram e são - e as novas gerações se-rão também - sujeitos políticos, donas de sua história, de si mesmas e de sua sexualidade.

Assembleia da SDDH em 27/07/1982

“As mulheres desfraldaram a bandeira da luta contra a violência doméstica”

*Sandra Fonseca. Tesoureira da 2º Diretoria da SPDDH na década de 1970; única diretora mulher na época. Atualmente, conselheira da entidade e profes-sora da Universidade Federal do Pará (UFPA).**A entidade deixou de usar a sigla SPDDH, adotando apenas SDDH, para simplificá-la.

de direitos humanos, isso no período de 1970, quando não havia celulares, computadores. Acho que esses mo-mentos nos remetem a pensar sobre nossa cultura ribeirinha, sobre nos-sa condição de mulheres amazôni-cas, nossa pureza, nossa capacidade guerreira, nossa capacidade de amar e compreender nossos companheiros; mulheres urbanas, operárias, profes-soras, artistas, donas de casa, costu-reiras, estudantes foram às ruas, em passeatas, pelo direito de morar, por escola para todos; passeatas reprimi-das a bombas de gás lacrimogêneo, cavalaria e cassetetes e prisões. Nós somos caboclas guerreiras, ainda que tenhamos tido que ver nossos amigos, companheiros de luta, serem assas-sinados; nós continuamos juntas, em meio à complexidade de nossas diver-gências teóricas e políticas, mas isto é lindo, não é? Nós somos cidadãs hoje, somos detentoras de direitos, nós te-mos opinião própria.

A SPDDH é isto: ela surge da luta, de muito sangue derramado e de muitas, muitas mulheres negras, não-negras, que lavavam roupa na beira do rio, pi-lavam favas, eram operárias, comerciá-rias, professoras, artistas, profissionais do sexo, e que liam o jornal Resistência, que vendiam o jornal, participavam, de-batiam, se posicionavam. Vejam a vida dessas mulheres, a nossa vida já não era mais a cozinha, o cuidado somente com os filhos e maridos, ou cursos de etiqueta; nós tínhamos uma posição po-lítica, uma posição sobre nossos corpos, sobre o número de filhos, e a SPDDH, foi esse espaço, um espaço de constituição de sujeitos políticos que se engajaram na luta pelos direitos humanos e que, posteriormente, passam a se constituir como sujeitos políticos mulheres, enca-minhando uma das principais lutas espe-cíficas da mulher, que, no caso da Ama-zônia, foi a violência doméstica, que se coloca no cenário local a partir do fato de que uma dona de casa, em Abaetetuba, município da Mesorregião do Tocantins, foi cortada a golpes de faca.

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Page 9: Jornal Resistência Agosto 3013

SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH9

Estavam no escritório da SPDDH a Presidente, historiadora Izabel Marques Tavares da Cunha; o Coordenador do Núcleo de Im-

prensa, engenheiro agrônomo e verea-dor do PMDB Humberto Rocha Cunha; o gerente da gráfica, engenheiro e eco-nomista Daniel Ferreira Veiga; e a Sra. Jolane Manescky. No parque gráfico, encontravam-se operários, clientes e funcionários. Aqueles que se apresen-taram como autoridades, foi-lhes pedi-do que exibissem o mandato de busca e apreensão, assim como apresentas-sem documentos de identificação. Os policiais se recusaram e argumentaram que tudo isso era dispensável porque estavam acompanhados de autoridade (viemos a saber depois que quem era o responsável pela operação é o dele-gado do DOPS, Dr. José Maria Rosário Teixeira. A presidente da entidade falou que, nesse caso não iriam eles escri-tório da SPDDH, que ela mesma era presidente, que os membros da enti-dade iam comunicar ao governador pe-emedebista Jader Barbalho, que esse ato era arbitrário, incompatível com um governo que se afirma democrático, que atitudes como essa eram compa-ráveis aos dos piores anos da ditadura. Mesmo assim, os policiais começaram a pegar papéis, remexer nos armários, nos arquivos, nas pastas, no arquivo fo-tográfico, amontoando pastas, papéis, fotos, recortes, jornais e tudo que con-sideravam “subversivos”. Apreenderam inclusive um cartaz de recente debate promovido pela SPDDH que trazia le-tras em cor vermelha e nome de par-tidos clandestinos que participaram do debate, o qual foi amplamente noticiado pela imprensa escrita e falada.

Enquanto remexiam os papéis, Iza-bel Cunha e Humberto falaram que iam comunicar o fato ao seu advogado Dr. José Carlos Castro e ao presidente da Câmara Municipal de Belém e se diri-giram ao escritório do gerente Daniel Veiga, em outra sala, a fim de usarem o telefone. Os policiais invadiram a sala e começaram a espancar o Coordena-dor do Núcleo de Imprensa, vereador do PMDB Humberto Rocha Cunha. Este tentava defender o telefone, uma vez que os policiais queriam talvez da-nificar os fios, para cortar a instalação telefônica. Somente um dos policiais,

A SDDH completou 35 anos dia 08 de agosto do ano passado e agora, em 2013, é o jornal Re-sistência que chega às três décadas e meia de existência. Assim, toca-nos publicar informações históricas como temos feito sempre, que fizeram parte não só da construção da entidade, mas que fazem parte da luta por uma cultura de direi-tos humanos na Amazônia, sempre em paralelo com nossa realidade mais atual.

Se atualmente a entidade tem dificuldade de colocar nas ruas, com regularidade, a publica-ção, a história nos mostra que, no princípio, não

foi diferente. Portanto, muitos desafios continu-am, assim como ciclos de violência e impunida-de, que se repetem no cotidiano e nas matérias do jornal.

Segue, como escrito originalmente, parte de um precioso documento dos arquivos da enti-dade, intitulado “Invasão e incêndio da gráfica Suyá, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos”, assinado pela historiadora e então presidente da SDDH, Izabel Marques Ta-vares da Cunha, em Belém, Outubro de 1984:

“A invasão da sede daSPDDH: gráfica e escritório

SDDH e Jornal Resistência:histórias que se cruzam até hoje

No dia 12 de outubro de 1984 às 7 horas da manhã a presidente Izabel Tavares da Cunha, recebeu um telefonema vindo de uma sócia da entidade, de que a gráfica es-tava pegando fogo. Imediatamen-te, os diretores da entidade: Izabel Cunha – Presidente, Pastora Mar-ga Rothe – Vice-Presidente, José Maria Pedroso – 2º Tesoureiro, Cícero Vieira de Menezes – 1º Te-soureiro, Edilene Franco – 1ª Se-cretária e Humberto Cunha – Co-ordenador do Núcleo de Imprensa e o gerente Daniel Veiga se dirigi-ram para a sede. Ao chegarem ao local, os bombeiros já haviam se retirado, a porta estava fechada com ripas de madeira, pregadas na mesma. Ao entrarem no inte-rior da gráfica, depararam:1 - O forro da sala da frente o for-ro estava todo no chão, segundo a versão dos bombeiros corria peri-go de desabar;2 - A parte dos fundos da gráfica todo incendiada, o teto dos fundos desabando até quase ao meio;3 - O laboratório de fotomecânica destruído;4 - O arquivo de jornal arrombado.

Foram acionados os jornais e compareceram jornalistas locais do Diário do Pará e O Liberal. Jornalistas nacionais da Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Cor-reio Braziliense, O Globo, Revista Veja e TV Globo.

O gerente Daniel Veiga e a Vice-presidente Marga Rothe se dirigiram à Central de Polícia a fim de registrar ocorrência”

Incêndio na Gráfica da SPDDHNo dia 10 de outubro de 1984, cerca de 17 horas, entraram na sede da SPDDH 6 (seis) homens que se diziam policiais

(posteriormente identificados como pertencentes ao DOPS) e, como eram “autoridades”, iam fazer um serviço de busca e apreensão, porque haviam recebido denúncia de que a gráfica estava imprimindo material subversivo.

APÓS ALGEMAR, PASSARAM A TORTURA-LO, BATENDO SEGUIDAMENTE NAS ALGEMAS DURANTE VÁRIOS MINUTOS, ATÉ PRENDER TOTALMENTE A CIRCULAÇÃO DO SANGUE.

alto, forte, moreno, barbudo, cabelo liso, interferiu, ficando entre Humberto e um outro policial, baixo, moreno claro, meio magro, que batia em Humberto. A inter-ferência foi no sentido de fazer lembrar que Humberto era verea-dor. Mas o delegado José Maria gritava que vereador ali não exis-tia imunidade parlamentar nem PMDB e ordenou que Humberto fosse algema-do, “nem que seja preciso dar porrada”. A algema de metal velha e enferrujada foi colocada à força, visto que Humber-to resistiu em ser algemado. Após al-gemar, passaram a tortura-lo, batendo seguidamente nas algemas durante vá-rios minutos, até prender totalmente a circulação do sangue. A algema come-çou a doer, havendo tentativa do policial moreno e barbudo já referido, em afrou-xar as algemas, mas como esta havia sido colocada e ainda por cima batida com força a chave não mais conseguia abri-la. Humberto foi colocado na sala de composição, que fica próxima à en-trada, como não havia nenhum policial por perto, saiu em direção à Frutuoso Guimarães e na altura da travessa Aris-tides Lobo pegou um taxi que o deixou no Ginásio do Sesc, onde se realizava o Congresso Estadual de Vereadores, único fórum onde se podia denunciar a invasão naquele momento. Grande foi o impacto entre os vereadores ao ver entrar Humberto Algemado com as mãos para trás. Ainda no Ginásio do Sesc, os vereadores conseguiram uma serra e separaram as algemas, liberan-do os braços e mãos. Daí foi levado para o Departamento de Vigilância Ge-ral, já acompanhado do presidente do PMDB, deputado federal Vicente Quei-roz, recebendo também todo o apoio do presidente da Câmara Municipal de Belém, vereador Emanuel Ó de Almei-da, do presidente da União dos Verea-dores, José Colares, e dos 300 ou mais vereadores presentes. Na DVG, na pre-sença dos vereadores Romero Xime-nes e Paulo Fonteles e muitas pessoas ligadas às entidades democráticas, foi necessário usar todos os recursos para desmontar as algemas. Os pulsos e as mãos de Humberto estavam inchados, vermelhos e feridos. Atualmente, quatro

dias depois, as mãos estão sem tato e o corpo todo dolorido. Esse trabalho de retirada das algemas durou 3 horas.

Enquanto isso, na gráfica Suyá a re-vista se estendia por todo o parque grá-fico. Os policiais remexeram tudo, des-de as máquinas, laboratório fotográfico, laboratório revelador e sala de desenho. Subiram e remexeram em um velho só-tão onde, estranhamente, um incêndio irrompera 30 horas depois, destruindo parte do parque gráfico e das casas vi-zinhas. Quando a polícia descobriu que o vereador Humberto Cunha havia saí-do, terminaram abruptamente a opera-ção. O delegado José Maria deu voz de prisão ao gerente Daniel Veiga e à pre-sidente da entidade Izabel Cunha. Esta se negou a acatar tal ordem, dizendo que não havia nenhum flagrante e nem tão pouco mandado de prisão, além de nenhum policial ter-se identificado. Sentou-se em uma das mesas no es-critório da SPDDH e de lá foi arrancada por um policial baixo, cabelos encarpi-nhados, bigodinho e cor morena clara. Foi arrastada pelos ombros, no que a presidente protestou, sofreu empurrões e foi jogada dentro de um carro branco, chapa particular, enquanto Daniel Veiga era levado em outro carro, também de capa particular. No DOPS, para onde foram levados, Daniel prestou depoi-mento como gerente e Izabel negou-se a se identificar e exigiu a presença de seu advogado Dr. José Carlos Castro. Quando este chegou, a presidente foi li-berada sem nenhuma explicação, nem por que foi presa, nem por que queriam qualifica-la. O Dr. José Carlos Castro ainda deu assistência ao gerente Da-niel Veiga, até o mesmo ser liberado.

Ainda não foi possível fazer um balanço de tudo o que os policiais le-varam. Contudo, sumiu uma pasta contendo diversos documentos da en-tidade, inclusive os documentos de pro-priedade das máquinas. E mais, sumiu toda a listagem de assinantes do jornal “Resistência”.

Iza Cunha, que presidiu a SDDH, em reunião do MMCC no bairro do Jurunas, em Belém.

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No estado de Cauca, encontram-se três cordilheiras colom-

bianas e se origina a cor-dilheira dos Andes. É tido como lugar energético, de acordo com as crenças dos yanaconas e dos indígenas do continente, abya yala (latino-américa, segundo a cosmovisão de nossos po-vos originários); vivem ao sudoeste do país, no entor-no de 6 grupos de povos originários (Guambianos, Paeces, Totoroes, Co-conucos e Yanaconas), que têm lutado contra a violência política do estado e a violência que se tem gerado entre os grupos armados: as Farc [Forças Ar-madas Revolucionárias da Colômbia] e o Exército.

Durante mais de 100 anos, esses indígenas têm buscado soberania sobre os territórios ancestrais e uma reforma agrária que permita aos indí-genas a autonomia sobre seus territó-rios, livres de um conflito imposto pelo governo nacional. Apesar disso, até o dia de hoje, ninguém garantia a possi-bilidade de os indígenas determinarem suas próprias decisões, sem contar com a pressão dos grupos armados e a exclusão a que o estado os têm sub-metido.

Desde 1962, Alvaro Gomez Hurta-do, filho de Laureano Gomez, dirigen-te do partido conservador e conhecido franquista, denominava as zonas cam-pesinas de refúgio como repúblicas in-dependentes e, a partir deste conceito falangista, proveniente de primo de Ri-vera, bombardearam os campesinos e indígenas que, nessa época, cansados da violência estatal e do abandono em que se encontravam, criaram as Farc. Por um lado, se encontravam as re-sistências armadas de muitos grupos nesta região contra a violência impos-ta pela frente nacional e a cooperação norte-americana, mas os indígenas buscavam outra solução.

Em 1971, os grupos indígenas se organizaram na Cric [Associação de Cabildos Indígenas do Norte de Cau-ca], já que, por influência de grupos ar-mados na região, necessitavam conso-lidar sua posição frente o abandono do Estado e dos grupos armados. Ainda assim, nem o Estado nem os grupos armados respeitaram os indígenas.

Posteriormente, surgiria, em 1994, a Asin, uma organização de apoio a grupos indígenas de várias regiões do país, abrindo a possibilidade de parti-cipação em conselhos de caráter co-munitário “para enfrentar a guerra com paz”. Tem buscado sempre o respeito ao território indígena e, como dizia um líder indígena de inicio do século XX, Manuel Quintin Lame: “Assim como a Mãe Terra é uma só, o ser humano é um só e deve se comportar como tal. Seja de um lado ou de outro, há exces-sos. O comportamento do ser humano deve se ajustar às exigências da Mãe Terra, que não tem filhos de esquerda ou de direita. É curioso ver como os ho-mens não entendem que a Pachama-ma não quer rivalidade, apenas quer respeito e harmonia. Quer a todos os seus filhos por igual, sem fazer distin-ção de partido político nem de classe.

Hoje em dia, o ministro de Defesa, Juan Carlos Pinzon, se vale do mes-mo significado de repúblicas indepen-dentes, mudando os conceitos. Para as forças militares e para o estado co-lombiano, os indígenas não são mais que um punhado de terroristas, que pretendem acabar nos cárceres co-lombianos. Tomando como desculpa a

infiltração das Farc e da “violência dos indígenas contra o exército”, desviando a culpa e a responsabilidade jurídica e constitucional do estado para com os indígenas, argumentam que as forças militares “cuidam do povo”, enquanto o problema são os narcotraficantes e a guerrilha. Os números mostram algo importante: 26 indíge-nas feridos com balas de borracha, balas de fuzil, explosivos e “recalzadas” (gases lacrimogêneos cheios de pregos, vidros e bolas de gude). Um in-dígena foi assassinado à queima-roupa pelos mi-litares; mais de 1000 ex-pulsos de suas terras por conta de combates entre a guerrilha das Farc e o exército estatal.

Por sua vez, os indígenas se valiam de bastões de madeira (que represen-tam as lutas do povo Páez e seus már-tires), reclamando uma vida de paz e desarmando os que vivem armados.

O estado, afirmando que os indíge-nas são terroristas, estimula atitudes segregacionistas e de discriminação, que têm posto em risco os indígenas e suas lideranças, assim como os têm convertido em objetivos militares de suas forças encobertas, como são os paramilitares ou o que eles têm cha-mado de Bacrim (bandos criminosos; os mesmos paramilitares, sendo que o estado lhes trocou o nome com base em falsas desmobilizações realizadas no governo de Álvaro Uribe Velez).

Uma luta desigual

O mais indignante no que está acontecendo em Cauca é que os meios de comunicação, como Caracol e RCN, estão parcializando a infor-mação, gerando uma forma mediática de racismo contra os indígenas, mos-trando esses povos como culpáveis ou como vítimas que serão redimidas pelo “estado salvador”.

Recentemente, os indígenas tira-ram os militares de seu território pelos braços e pernas. Mas os comandantes do exército, o presidente e o ministro de Defesa acusam os indígenas de violentar os militares e que devem ser julgados pelo código penal colombia-no, diante do qual pretendem apontá-

-los por: lesão pessoal, motim, terrorismo, se-qüestro e tentativa de homicídio contra funcio-nários públicos. Por ou-tro lado, o caso dos in-dígenas fica inconcluso, ilegítimo, estigmatizado e agora judicializado.

Se a população não quer os militares no seu território é porque a luta do exército, que defende os interesses do esta-

do, não é legítima. Como expressam seus próprios líderes: “tanto o exército como a guerrilha nos matam; ninguém nos defende”. São os próprios indíge-nas, por exemplo, que têm construído seus espaços de educação, de saúde e condições de trabalho.

Não se pode esquecer que, na Co-lômbia, como terceiro país mais desi-gual do mundo, Cauca é um dos esta-dos com uma das taxas mais altas de mortalidade por fome e falta de hospi-tais públicos.

Soberania indígena no estadode Cauca (Colômbia): hora zero

Acesse o site http://www.xinguvivo.org.br/ e acompanhe o desenrolar da luta indígena

no Pará, estado brasileiro que já concentra alguns dos principais impactos das obras da

Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

Jesús Reyes“Não quero ver um só indígena nas bases milita-res”, afirmou Juan Manuel Santos, presidente da Colômbia. Com esta ordem, o dia 18 de julho de 2012, às 5h, foram despejados entre 100 e 150 indígenas que buscam a paz e uma saída políti-ca ao conflito armado no país.

Que pedem os indígenas?

“ASSIM COMOA MÃE TERRA É UMA SÓ, O SERHUMANO É UMSÓ E DEVE SECOMPORTARCOMO TAL”

*Jesús Reyes é sociólogo e mestrando em Ciência Política na Faculdade Latino-Americana de Ciên-cia Sociais (Flacso-Argentina).

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Em 1991, se reformava a composição política que, por mais de um século, havia imperado na Colômbia. Desde 1886 não

havia uma assembléia constituinte onde se ge-rasse uma nova normativa. Participaram dois in-dígenas somente. Mas, ainda assim, consegui-ram um artigo segundo o qual hoje reivindicam e buscam como opção para afastar a violência de seus campos.

“Artigo 330. Em conformidade com a Consti-tuição e as leis, os territórios indígenas serão governados por conselhos formados e regu-lamentados segundo os usos e costumes de suas comunidades e exercerão as seguintes funções:1. Zelar pela aplicação das normas legais sobre usos do solo e povoado de seus territórios;2. Definir as políticas e os planos e os progra-mas de desenvolvimento econômico e social dentro de seu território, em harmonia com o Plano Nacional de Desenvolvimento;

3. Promover as inversões públicas em seus territórios e zelar pela sua devida execução;4. Receber e distribuir recursos;5. Zelar pela preservação dos recursos naturais;6. Coordenar os programas e projetos promo-vidos pelas diferentes comunidades em seu território;7. Colaborar com a manutenção da ordem públi-ca de seu território de acordo com as instruções e disposições do Governo Nacional;8. Representar os territórios diante do Governo Nacional e as demais entidades as quais inte-grem; e9. As que indiquem a Constituição e a lei”.

Em três postulados se firmam as exigências básicas dos indígenas do norte de Cauca:a. Saída dos atores armados que estão nos seus territórios ancestrais;b. Reforma agraria;c. Solução política para o conflito armado.

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SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH11

“Naquele momento, nós trabalhávamos a denúncia às graves violações dos direitos humanos, na falta de um instrumento mais específico, porque os jornais locais não noticiavam. Hoje a SDDH fecha um ciclo e abre um novo, como começou o primeiro: voltando-se para sua memória e um projeto de comunicação mais amplo; à proposta de divulgar não mais uma denúncia de violações aos direi-tos humanos, porque a grande mídia e a sociedade de uma maneira geral têm seus espaços para veicular essas denúncias; sinal que a SDDH, assim como muitas outras

instituições cumpriram seu papel. Contar a nossa história e ser o registro vivo dela é talvez hoje um dos desafios que a SDDH tem e é exatamente o desafio que a originou”. Marcelo Freitas – advogado, ex-presidente da SDDH e da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Pará

“Acho interessante ressaltar que, no movimento, nós não éramos tanta gente; as pessoas que estavam mobi-lizando, que estavam à frente das entidades. Por isso, a gente acabava sendo da direção da SDDH, da CUT, do sindicato, da Igreja. A gente se conhecia, tinha muita diver-gência, mas a gente se encontrava, conversava, sentava pra discutir, mas também pra celebrar, comemorar. E uma

coisa importante, que eu acho que o movimento carece, que é a alegria” – Alberdan Batista – produtor cultural, ex-gerente da Gráfica da SDDH e ex-vice-presidente do Sindicato dos Gráficos do Pará.

“Ermelinda Garcia foi a primeira presidente da Associa-ção dos Professores do Estado do Pará. Mas, nesta oca-sião, ela já estava na condição de advogada, pela SDDH, junto com José Carlos Castro. Nesta foto, depois dela, é minha irmã, Eliana. Eu trabalhava n´O Liberal à noite e, de dia, na gráfica. Nesse dia, passava um pouquinho de duas horas. A porta abria às duas. Achei estranho. Do outro lado da rua, o office boy gritou: ei, Paulo, têm uns homens aí, batendo no Macklouf. Muitos sofreram violência física, outros constrangimentos (...) O grande material explosivo, perigoso, era o que a gente estava preparando para a ma-

nifestação no dia do Círio, pedindo a libertação dos presos do Araguaia; trabalhadores rurais que estavam arrolados no processo, junto com os dois padres franceses” – Pau-lo Roberto Ferreira, jornalista e ex-membro do Núcleo de Imprensa da SDDH.

Advogada Ermelinda Garcia; Eliana Ferreira Oliveira; advogado José Carlos Castro; e jornalista Paulo Roberto Ferreira, levados à Polícia Federal, após uma das várias invasões e apreensões de “material subversivo” que o regime militar fez à gráfica da SDDH, que por fim foi incendiada, em 12 de outubro de 1984.

35 anos: parte da história da SDDH

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Humberto Cunha, na passeata dos Bancários. De megafone, de sonoro ou via telefone boca-a-boca.

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vam e simplesmente são universais e locais. E mais, positivam a construção de identidade da juventude periférica de Belém que, na raiz de suas socia-bilidades urbanas, vez ou outra vai se confrontar com uma lata de spray em seu caminho. Caberá a cada um a es-colha que seja pelo certo!

Final dos anos 1980, início de 1990. Começam a surgir pela cidade as primeiras “tags” (assinatura) em

forma de pichação, praticadas, na sua maior parte, por adolescentes e jovens da classe média, loucos por uma gran-de dose de adrenalina e imersos num processo de sociabilidade típico das faixas etárias transitórias. Saíram dis-seminando a semente da arte urbana e subversiva na cidade de Belém. O que se sucedeu a esse período, infe-lizmente, não foi tão glamoroso e ro-mântico como muitos vêem hoje. Foi um período sangrento, sombrio e trau-mático!

Logo após esse início “rebelde” e inconseqüente, houve um pequeno período transitório, dominado pela gangue Nativos. Enquanto isso, se disseminava a cultura da violência entre gangues juvenis, na disputa por território; a fase da Terror e da União, uma espécie de Re x Pa macabro; e onde arrastões e agressões foram paulatinamente se unindo à prática da pichação, por meio da demarcação de território, marketing coletivo (os sím-bolos da gangue) e marketing pessoal (consideração). Chegamos à era de domínio de duas principais gangues e suas alianças pela zona metropolita-na: a Van, Vandalismo; e a QS, Quick Silver; Demy e BOB, foram os picha-dores que mais deixaram suas marcas nas “telas” da cidade; foi mais de uma década de estratégias de aliança com as gangues menores de ruas e bair-ros para garantir a prática de lazer, as festas de “house” e aparelhagem, o ir e vir pela cidade e a prática da pi-

chação. Queimar ou atropelar era lei nessa era; era incitar a rivalidade e o confronto, e, cada vez mais, se tornar considerado nas ruas.

Foi uma época traumática. Até hoje alguns tentam reviver isso, nas peri-ferias, mas estão longe de ter a força nefasta que tiveram outrora, pois a utilização da lata de spray como ma-nifestação artística urbana estava co-meçando a experimentar outra lingua-gem no final da década de 1990, o que mudaria completamente o conceito da arte urbana, o hip hop!

Dois rumos caminhavam juntos nesse período: o grafite do hip hop, encabeçado principalmente pelo es-critor Spiro; e as resignificações na pintura, utilizando técnicas de spray e aerografia. Isso deu muito o que falar entre os grafiteiros, mas roupa suja se lava em casa - já dizia minha avó. Outra polêmica era a tese, defendida principalmente por quem nada tinha de vivência na cultura de rua, que defendia o grafite como uma espécie de estágio avançado da pichação, ou seja, o grafiteiro era a evolução do pi-chador. É lógico que para a maioria dos adeptos da cultura hip hop isso era uma discussão inútil, pois a picha-ção em si não era o nosso problema, e sim a cultura de violência criada em torno dela. Não era o estilo que preci-sava mudar, atendendo a uma espécie de darwinismo social urbano, e sim a postura do artista ainda não conscien-te de sua arte e utilização. Era preciso romper alienação do trabalho artístico dos jovens de Belém.

O Spray e Belém: o panorama urbano da capital paraense através do grafite

Grão a grão, a visão do grafite como elemento da cultura hip hop foi se estabelecendo na cidade e as gangues foram ce-

dendo lugar às crews (coletivo de gra-fiteiros) e bombers, que passaram a colorir nossa cidade através de ações permitidas, ou não, mas sempre priori-zando o direito do outro, seja à proprie-dade, seja à informação; e foi através de suas ações que nomes como Ge-léia, Dime, Georg e Cely começaram a ser conhecidos pelos transeuntes da floresta de concreto.

Grafiteiros passaram a integrar cole-tivos e núcleos de hip hop, onde passa-ram a propor e gerenciar sua arte-edu-cação, não mais ligada exclusivamente à esfera institucional, como nos tempos do Cores de Belém (1997-2004), proje-to pioneiro na instrumentalização e pro-

dução do grafite na cidade.O Cosp Tinta Crew teve um papel

fundamental neste processo. Trouxe vários artistas para dentro do hip hop, bem como levou o hip hop para núcle-os artísticos da cidade. Tornou o grafi-te em Belém uma forma de expressão artística respeitada; garantiu seu es-paço em galerias de arte. O reconhe-cimento de sua importância perante o Estado, através do apoio de suas secretarias para suas ações ocorri-das em bairros periféricos de Belém, chamadas de “Mutirão de grafite”, de-monstra o quanto a forma de ser visto foi sendo modificada, por conta de sua maneira de se apresentar, tratando de questões como a do meio ambiente, a da violência, a da educação, a do ra-cismo, entre outros assuntos, de forma simples e objetiva; levando a arte para

as ruas, alcançando as pessoas, fa-zendo com que os indivíduos se identi-fiquem, se vejam refletidos nesta arte.

Junto com o Cosp Tinta Crew, Drika Chagas também se destaca como re-ferência de grafite que, associado às artes plásticas “tradicionais”, faz das suas obras uma ponte da cultura de rua com o erudito, que, para muitos, parece inalcançável, e, para outros, constitui pasteurização exótica.

Hoje, seja na intervenção através do bomb, seja na produção autoriza-da, seja na galeria, seja no mutirão na comunidade, o grafite em Belém trans-pira a atmosfera polifônica, amazônica e urbana, embalado pelo rap e pelo re-ggae, na combinação com o sagrado afro-ameríndio, na fé em Nazaré, no boto que encanta, nas cores da nos-sa cidade, denunciam, informam, lou-

Grafite tambémé instrumentode afirmação dedireitos

Por Bruno “B.O.” Borda e Lúcia Maciel

Os “Mutirões de Grafite” organizados pelo Cospe Tinta Crew aproximam bairros da periferia à arte urbana

O grafite é uma das expressões da cultura de resistência hip hop

Drika Chagas levou o grafite para galerias de arte, misturando a “cultura de rua” com as expressões artísticas tradicionais

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O percurso do grafite de Belém: das disputas de gangues aos crews de hip hop e galerias de arte