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8 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 25 a 31 de agosto de 2008 Ana Cláudia Suriani da Silva m 1861 o nome de Ma- chado de Assis saiu pela primeira vez impresso na folha de rosto de um li- vro, não na posição de autor, mas antes de tra- dutor de um ensaio cujo título, autor e língua originais foram omitidos. Tra- ta-se de Queda que as mulheres têm para os tolos, livrinho publicado pela tipografia de Paula Brito, na época pa- trão e amigo de Machado e um dos pri- meiros a reconhecer e apostar no ta- lento do jovem escritor. Através da pesquisa pioneira de Jean-Michel Mas- sa, sabemos hoje que Queda é tradu- ção do ensaio De l´amour des femmes pour les sots (1858), do belga Victor- Georges Hénaux. Antes de sair em livro, essa mesma tradução havia sido publicada em cin- co fascículos entre os meses de abril e maio de 1861 na revista carioca bisse- manal A Marmota, do mesmo Paula Brito. Na publicação seriada não ha- via nenhuma indicação do autor da obra nem de que se tratava de uma tra- dução. Na verdade, esse tipo de omis- são era prática muito comum nos peri- ódicos ou revistas brasileiras, pelo menos na primeira metade do século XIX. Segundo nos informa Jussara Quadros, os nomes dos autores origi- nais, como o de E. T. A. Hoffmann, perdiam-se freqüentemente entre uma pletora de escritores anônimos e pseu- dônimos. A atividade da tradução ou adaptação livre fazia parte da formação do escritor brasileiro, sobretudo daque- le que vivia da sua colaboração com a imprensa, como Machado de Assis. Es- ses primeiros livros publicados em por- tuguês – como Queda (mesmo que este represente um exemplo tardio) – são por conseguinte produtos da incipiente li- teratura brasileira, entre plágios, adap- tações e traduções não identificadas. O caso de Queda é especialmente interessante porque, em primeiro lugar, comprova que a prática de se publica- rem traduções ou adaptações sem a in- dicação do autor e título originais en- trou pela segunda metade do século XIX. Em segundo, o que é mais ób- vio, mas não custa mencionar, porque o seu tradutor veio a ser um dos maio- res escritores da literatura brasileira. Por mais controverso que seja o tema de De l´amour des femmes pour les sots, o que fez com que o ensaio fosse debatido e contestado na imprensa bel- ga da época, é muito improvável que o ensaio tivesse causado tanta polêmica entre os críticos brasileiros até hoje se seu tradutor não se tornasse duas dé- cadas mais tarde o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas , Quincas Borba e Dom Casmurro. Queda discute o que determina as mulheres na escolha de um amante ou de um marido. Segundo Hénaux, as mulheres escolhem um amante ou um marido com pleno conhecimento do que fazem. Comparam, examinam e só decidem depois de verificar nele a qua- lidade da toleima. Hénaux cita exem- plos da Antigüidade para comprovar que esse tem sido o critério de escolha das mulheres de todos os tempos. Ele distingue a toleima adquirida da tolei- ma inata e conclui que os tolos mais bem sucedidos são aqueles a quem a fortuna, ou a posição social, cedo leva à prática do mundo. Grande parte do ensaio é uma caracterização desses dois tipos masculinos, de como cada um se comporta perante a mulher amada ou a ser conquistada. O homem de espíri- to, de um lado, é delicado, tímido, res- peitoso, considera as mulheres entes de mais elevada natureza que a sua. Ele não fatiga a mulher amada com sua pre- sença insistente e nem a bombardeia com declarações de amor ou cartas vul- gares. O tolo, do outro, não tem nenhum escrúpulo. Tem o sangue-frio, é auda- cioso, conquistador e sente-se seguro da conquista. Importuna aquela que ama para fazer-se notar. Lisonjeia-a com bi- lhetes amorosos, pequenas provas de amor, como ramalhetes de flores e fru- tas a serem compartilhadas num jantar. A polêmica em torno de Queda teve início alguns anos depois da morte de Machado de Assis e ganhou contornos muito diferentes no Brasil: desviou-se do tema da misoginia em si para se concentrar na questão da originalida- de e imitação na literatura. A groso modo os críticos se divi- E dem em três times. O primeiro, do qual fizeram parte Lúcia Miguel-Pereira e por muito tempo Galante de Sousa, con- sidera Queda texto original de Macha- do. O segundo time aposta que o ensaio é uma adaptação ou imitação. O tercei- ro defende que é uma tradução. Fazem parte deste último Agrippino Grieco e, como já sabemos, Jean-Michel Mas- sa. Em seu La jeunesse de Machado de Assis (1839-1870), de 1969, o críti- co francês tentou investigar por que Queda foi considerado texto original do estreante escritor brasileiro: Os críticos [Lúcia Miguel Pereira e Luís Viana Filho] observaram que a peça [Desencantos] retomava um tema já tratado nos treze capítulos de Que- da que as mulheres têm para os tolos, texto em prosa cujo título indica sem dissimulação as clássicas intenções misóginas. Mas o raciocínio dos críti- cos sobre as duas obras foi falseado por um erro. Queda foi publicado em abril-maio de 1861, nas oficinas de Paula Brito. Na página de rosto lê-se: “pequena obrinha, traduzida pelo Sr. Machado de Assis”. Apesar da evidên- cia e num refinamento sutil, pretendeu- se ver na obra um trabalho original. Seria honroso para ele escrever, aos vinte anos, esta “sátira em prosa”, mas, por não acreditar em Machado de Assis, a crítica embarafustou por um caminho sem saída. Queda é sem a menor dúvida uma tradução, e Desen- cantos é uma adaptação dramática. A originalidade de Machado de Assis foi transpor a prosa satírica para a prosa cênica e, com alguns acréscimos, dela ter feito uma peça curta para o teatro. cionais dos romances e contos da se- gunda fase: de Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Memo- rial de Aires e “O imortal”. A tradução de Queda teria gerado a escrita de Res- surreição (1872), uma vez que esse romance é tido como uma versão nar- rativa de Desencantos. Além disso, dado que Ressurreição é, de acordo com Helen Caldwell, o germe de Dom Casmurro, podemos deduzir que o ro- mance mais controverso de toda a lite- ratura brasileira tenha sido delineado de acordo com a teoria sobre tipos masculinos e femininos que o escritor havia traduzido aos 22 anos. Dessa for- ma, teria sido a partir da tradução pa- lavra por palavra que o jovem Macha- do pôde refletir sobre as idéias de De l’amour e fazer posteriormente emer- gir obras do seu próprio cunho. Sendo assim, por mais que a con- trovérsia sobre a autoria de Queda fi- que resolvida, há ainda muito a ser pesquisado sobre, por exemplo, o do- mínio que o jovem escritor possuía do francês, sobre a sua atividade enquan- to tradutor, e sobre o próprio papel que as traduções desempenharam na sua criação literária. Como bem observa o autor de uma carta contra De l’amour, publicada no Journal de Liège em 14 de julho de 1859, falta no ensaio um capítulo: aquele que diferencia as mu- lheres tolas das mulheres de espírito. Segundo o autor ou autora da carta, Hénaux não deveria confundir todas as mulheres num só anátema. Será que Machado não pressentiu essa mesma falha em Hénaux? O que me faz apos- tar nessa hipótese é a constatação de que o escritor brasileiro dedicou gran- de parte de sua obra contista e roma- nesca (pelo menos durante o início de sua carreira e, depois, dos anos 80 aos 90) ao estudo da alma feminina, nas suas diversas manifestações. Essa pode ter sido uma de suas portas de entrada no processo de recriação a partir das idéias de De l’amour. Machado talvez tenha percebido um dos defeitos iden- tificados por um outro oponente de Hénaux em artigo publicado no jornal La Tribune em 7 de agosto de 1858, segundo o ou a qual Hénaux conhece muito pouco as mulheres: a alma fe- minina seria na verdade inatingível. Não é essa no final das contas a men- sagem de Dom Casmurro? A edição bilíngüe de Queda que as mulheres têm para os tolos que eu pu- blico pela Editora da Unicamp neste ano do centenário da morte do escritor segue intencionalmente os princípios tradicionais da crítica textual para ofe- recer uma base mais segura para pes- quisas futuras. Estabelece definitiva- mente o texto traduzido por Machado e traz em espelho o texto de Victor Hénaux, o que permite que original e tradução sejam lidos lado a lado por um público que agora não se restringe mais ao próprio Machado e a uma meia dúzia (ou menos) de críticos. Texto original, tradução, adaptação ou imitação? Ana Cláudia Suriani da Silva é mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp e doutora em Letras Modernas pela Universidade de Oxford. Ensina português na Universidade de Birmingham e é Honorary Research Fellow de Birkbeck College, Universidade de Londres. Publicou Linha reta e linha curva: edição crítica e genética de um conto de Machado de Assis pela Editora da Unicamp, em 2003, e vários artigos sobre a obra de Machado de Assis e sobre a relação entre a literatura e a imprensa. Na sua tese complementar, Macha- do de Assis, traducteur, Massa afirma que comparou a tradução com a quarta edição de De l’amour des femmes pour les sots, pertencente à Biblioteca Naci- onal de Paris. Ele não publicou, no en- tanto, um exame detalhado dos dois tex- tos que sustentasse o seu argumento. O resultado disso é que a controvérsia a respeito da autoria de Queda ainda per- siste. E como se vê no quadro abaixo (que está longe de ser completo), há além do mais um quarto time, o qual deve ser desconsiderado, porque provavelmente nem chegou a ler o ensaio, já que errou na classificação do gênero literário, considerando Queda peça de teatro. Os críticos de Machado de Assis assumiram sucessivamente uma atitu- de defensiva ao considerarem Queda obra original, adaptação, ou imitação, e não tradução. Isso se deveu em parte devido ao difícil acesso ao ensaio de Victor Hénaux, mas também por acre- ditarem que a tradução é uma ativida- de inferior em comparação à criação literária. O esclarecimento dos dados bibliográficos e a comprovação de que Queda não é obra original de Macha- do não diminui, no entanto, o papel que essa tradução desempenhou na ativi- dade criadora do grande escritor bra- sileiro, como já haviam indicado aque- les mesmos críticos. Eles viram no su- posto ensaio da juventude idéias que seriam posteriormente desenvolvidas pelo escritor em seus romances. Maia Neto, por exemplo, conside- ra Queda um dos pontos de partida para a construção do ceticismo do es- critor, o qual evolui da primeira para a segunda fase. Sua hipótese é de que o escritor brasileiro desenvolve a visão do mundo cética “como uma alternati- va teórica e prática ao homem de espí- rito quando a vida exterior se torna hegemônica, ou seja, quando a alter- nativa para a verdade e moralidade na paz doméstica do casamento não está mais disponível”. Maia Neto argumenta que as idéias apresentadas em Queda acompanham a criação artística de Machado, da pu- blicação da peça Desencantos (1861) até seu último romance Memorial de Aires (1908). As suas principais per- sonagens céticas são os autores fic- Quem é Quem é Na seqüência, capas dos livros do belga Victor-Georges Hénaux, a tradução de Machado e a edição bilíngüe da Editora da Unicamp Fac-símile da revista A Marmota: tradução publicada em fascículos e sem crédito Acima e abaixo, manuscrito de Memorial de Aires: para crítico, Queda influenciou segunda fase do escritor Manuscritos: Academia Brasileira de Letras Fotos: Editora da Unicamp/Reprodução 65 anos de especulações 65 anos de especulações

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8 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 25 a 31 de agosto de 2008

Ana Cláudia Suriani da Silva

m 1861 o nome de Ma-chado de Assis saiu pelaprimeira vez impresso nafolha de rosto de um li-vro, não na posição deautor, mas antes de tra-

dutor de um ensaio cujo título, autor elíngua originais foram omitidos. Tra-ta-se de Queda que as mulheres têmpara os tolos, livrinho publicado pelatipografia de Paula Brito, na época pa-trão e amigo de Machado e um dos pri-meiros a reconhecer e apostar no ta-lento do jovem escritor. Através dapesquisa pioneira de Jean-Michel Mas-sa, sabemos hoje que Queda é tradu-ção do ensaio De l´amour des femmespour les sots (1858), do belga Victor-Georges Hénaux.

Antes de sair em livro, essa mesmatradução havia sido publicada em cin-co fascículos entre os meses de abril emaio de 1861 na revista carioca bisse-manal A Marmota, do mesmo PaulaBrito. Na publicação seriada não ha-via nenhuma indicação do autor daobra nem de que se tratava de uma tra-dução. Na verdade, esse tipo de omis-são era prática muito comum nos peri-ódicos ou revistas brasileiras, pelomenos na primeira metade do séculoXIX. Segundo nos informa JussaraQuadros, os nomes dos autores origi-nais, como o de E. T. A. Hoffmann,perdiam-se freqüentemente entre umapletora de escritores anônimos e pseu-dônimos. A atividade da tradução ouadaptação livre fazia parte da formaçãodo escritor brasileiro, sobretudo daque-le que vivia da sua colaboração com aimprensa, como Machado de Assis. Es-ses primeiros livros publicados em por-tuguês – como Queda (mesmo que esterepresente um exemplo tardio) – são porconseguinte produtos da incipiente li-teratura brasileira, entre plágios, adap-tações e traduções não identificadas.

O caso de Queda é especialmenteinteressante porque, em primeiro lugar,comprova que a prática de se publica-rem traduções ou adaptações sem a in-dicação do autor e título originais en-trou pela segunda metade do séculoXIX. Em segundo, o que é mais ób-vio, mas não custa mencionar, porqueo seu tradutor veio a ser um dos maio-res escritores da literatura brasileira.Por mais controverso que seja o temade De l´amour des femmes pour lessots, o que fez com que o ensaio fossedebatido e contestado na imprensa bel-ga da época, é muito improvável que oensaio tivesse causado tanta polêmicaentre os críticos brasileiros até hoje seseu tradutor não se tornasse duas dé-cadas mais tarde o autor de Memóriaspóstumas de Brás Cubas, QuincasBorba e Dom Casmurro.

Queda discute o que determina asmulheres na escolha de um amante oude um marido. Segundo Hénaux, asmulheres escolhem um amante ou ummarido com pleno conhecimento doque fazem. Comparam, examinam e sódecidem depois de verificar nele a qua-lidade da toleima. Hénaux cita exem-plos da Antigüidade para comprovarque esse tem sido o critério de escolhadas mulheres de todos os tempos. Eledistingue a toleima adquirida da tolei-ma inata e conclui que os tolos maisbem sucedidos são aqueles a quem afortuna, ou a posição social, cedo levaà prática do mundo. Grande parte doensaio é uma caracterização desses doistipos masculinos, de como cada um secomporta perante a mulher amada oua ser conquistada. O homem de espíri-to, de um lado, é delicado, tímido, res-peitoso, considera as mulheres entes demais elevada natureza que a sua. Elenão fatiga a mulher amada com sua pre-sença insistente e nem a bombardeiacom declarações de amor ou cartas vul-gares. O tolo, do outro, não tem nenhumescrúpulo. Tem o sangue-frio, é auda-cioso, conquistador e sente-se seguro daconquista. Importuna aquela que amapara fazer-se notar. Lisonjeia-a com bi-lhetes amorosos, pequenas provas deamor, como ramalhetes de flores e fru-tas a serem compartilhadas num jantar.

A polêmica em torno de Queda teveinício alguns anos depois da morte deMachado de Assis e ganhou contornosmuito diferentes no Brasil: desviou-sedo tema da misoginia em si para seconcentrar na questão da originalida-de e imitação na literatura.

A groso modo os críticos se divi-

E

dem em três times. O primeiro, do qualfizeram parte Lúcia Miguel-Pereira epor muito tempo Galante de Sousa, con-sidera Queda texto original de Macha-do. O segundo time aposta que o ensaioé uma adaptação ou imitação. O tercei-ro defende que é uma tradução. Fazemparte deste último Agrippino Grieco e,como já sabemos, Jean-Michel Mas-sa. Em seu La jeunesse de Machadode Assis (1839-1870), de 1969, o críti-co francês tentou investigar por queQueda foi considerado texto originaldo estreante escritor brasileiro:

Os críticos [Lúcia Miguel Pereirae Luís Viana Filho] observaram que apeça [Desencantos] retomava um temajá tratado nos treze capítulos de Que-da que as mulheres têm para os tolos,texto em prosa cujo título indica semdissimulação as clássicas intençõesmisóginas. Mas o raciocínio dos críti-cos sobre as duas obras foi falseadopor um erro. Queda foi publicado emabril-maio de 1861, nas oficinas dePaula Brito. Na página de rosto lê-se:“pequena obrinha, traduzida pelo Sr.Machado de Assis”. Apesar da evidên-cia e num refinamento sutil, pretendeu-se ver na obra um trabalho original.Seria honroso para ele escrever, aosvinte anos, esta “sátira em prosa”,mas, por não acreditar em Machadode Assis, a crítica embarafustou porum caminho sem saída. Queda é sem amenor dúvida uma tradução, e Desen-cantos é uma adaptação dramática. Aoriginalidade de Machado de Assis foitranspor a prosa satírica para a prosacênica e, com alguns acréscimos, delater feito uma peça curta para o teatro.

cionais dos romances e contos da se-gunda fase: de Memórias póstumas deBrás Cubas, Dom Casmurro, Memo-rial de Aires e “O imortal”. A traduçãode Queda teria gerado a escrita de Res-surreição (1872), uma vez que esseromance é tido como uma versão nar-rativa de Desencantos. Além disso,dado que Ressurreição é, de acordocom Helen Caldwell, o germe de DomCasmurro, podemos deduzir que o ro-mance mais controverso de toda a lite-ratura brasileira tenha sido delineadode acordo com a teoria sobre tiposmasculinos e femininos que o escritorhavia traduzido aos 22 anos. Dessa for-ma, teria sido a partir da tradução pa-lavra por palavra que o jovem Macha-do pôde refletir sobre as idéias de Del’amour e fazer posteriormente emer-gir obras do seu próprio cunho.

Sendo assim, por mais que a con-trovérsia sobre a autoria de Queda fi-que resolvida, há ainda muito a serpesquisado sobre, por exemplo, o do-mínio que o jovem escritor possuía dofrancês, sobre a sua atividade enquan-to tradutor, e sobre o próprio papel queas traduções desempenharam na suacriação literária. Como bem observa oautor de uma carta contra De l’amour,publicada no Journal de Liège em 14de julho de 1859, falta no ensaio umcapítulo: aquele que diferencia as mu-lheres tolas das mulheres de espírito.Segundo o autor ou autora da carta,Hénaux não deveria confundir todas asmulheres num só anátema. Será queMachado não pressentiu essa mesmafalha em Hénaux? O que me faz apos-tar nessa hipótese é a constatação deque o escritor brasileiro dedicou gran-de parte de sua obra contista e roma-nesca (pelo menos durante o início desua carreira e, depois, dos anos 80 aos90) ao estudo da alma feminina, nassuas diversas manifestações. Essa podeter sido uma de suas portas de entradano processo de recriação a partir dasidéias de De l’amour. Machado talveztenha percebido um dos defeitos iden-tificados por um outro oponente deHénaux em artigo publicado no jornalLa Tribune em 7 de agosto de 1858,segundo o ou a qual Hénaux conhecemuito pouco as mulheres: a alma fe-minina seria na verdade inatingível.Não é essa no final das contas a men-sagem de Dom Casmurro?

A edição bilíngüe de Queda que asmulheres têm para os tolos que eu pu-blico pela Editora da Unicamp nesteano do centenário da morte do escritorsegue intencionalmente os princípiostradicionais da crítica textual para ofe-recer uma base mais segura para pes-quisas futuras. Estabelece definitiva-mente o texto traduzido por Machadoe traz em espelho o texto de VictorHénaux, o que permite que original etradução sejam lidos lado a lado porum público que agora não se restringemais ao próprio Machado e a uma meiadúzia (ou menos) de críticos.

Texto original, tradução, adaptação ou imitação?

Ana Cláudia Suriani da Silva émestre em Teoria e HistóriaLiterária pela Unicamp e doutoraem Letras Modernas pelaUniversidade de Oxford. Ensinaportuguês na Universidade deBirmingham e é HonoraryResearch Fellow de BirkbeckCollege, Universidade deLondres. Publicou Linha reta elinha curva: edição crítica egenética de um conto deMachado de Assis pela Editorada Unicamp, em 2003, e váriosartigos sobre a obra de Machadode Assis e sobre a relação entrea literatura e a imprensa.

Na sua tese complementar, Macha-do de Assis, traducteur, Massa afirmaque comparou a tradução com a quartaedição de De l’amour des femmes pourles sots, pertencente à Biblioteca Naci-onal de Paris. Ele não publicou, no en-tanto, um exame detalhado dos dois tex-tos que sustentasse o seu argumento. Oresultado disso é que a controvérsia arespeito da autoria de Queda ainda per-siste. E como se vê no quadro abaixo(que está longe de ser completo), há alémdo mais um quarto time, o qual deve serdesconsiderado, porque provavelmentenem chegou a ler o ensaio, já que errouna classificação do gênero literário,considerando Queda peça de teatro.

Os críticos de Machado de Assisassumiram sucessivamente uma atitu-de defensiva ao considerarem Quedaobra original, adaptação, ou imitação,e não tradução. Isso se deveu em partedevido ao difícil acesso ao ensaio deVictor Hénaux, mas também por acre-ditarem que a tradução é uma ativida-de inferior em comparação à criaçãoliterária. O esclarecimento dos dadosbibliográficos e a comprovação de queQueda não é obra original de Macha-do não diminui, no entanto, o papel queessa tradução desempenhou na ativi-dade criadora do grande escritor bra-sileiro, como já haviam indicado aque-les mesmos críticos. Eles viram no su-posto ensaio da juventude idéias queseriam posteriormente desenvolvidaspelo escritor em seus romances.

Maia Neto, por exemplo, conside-ra Queda um dos pontos de partidapara a construção do ceticismo do es-critor, o qual evolui da primeira para a

segunda fase. Sua hipótese é de que oescritor brasileiro desenvolve a visãodo mundo cética “como uma alternati-va teórica e prática ao homem de espí-rito quando a vida exterior se tornahegemônica, ou seja, quando a alter-nativa para a verdade e moralidade napaz doméstica do casamento não estámais disponível”.

Maia Neto argumenta que as idéiasapresentadas em Queda acompanhama criação artística de Machado, da pu-blicação da peça Desencantos (1861)até seu último romance Memorial deAires (1908). As suas principais per-sonagens céticas são os autores fic-

Quem éQuem é

Na seqüência, capas dos livros do belga Victor-Georges Hénaux, atradução de Machado e a edição bilíngüe da Editora da Unicamp

Fac-símile da revista A Marmota: tradução publicada em fascículos e sem crédito

Acima e abaixo, manuscrito de Memorial deAires: para crítico, Queda influenciou segundafase do escritor

Manuscritos: Academia Brasileira de Letras

Fotos: Editora da Unicamp/Reprodução

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