jornal a parada n.4 - r. pouso alegre, n.4
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Jornal A Parada n.4 - r. pouso alegre, n.4TRANSCRIPT
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Nº 4
Agosto de 2006
é vivo nas pontas de papilas e dedos o gosto táctil dos metais, o
metal das chaves, cada chave de cada lugar onde morei, sua
dentição impressa na minha
EDIÇÃO Daniel Bilac, Valquíria Rabelo CONSELHO EDITORIAL Chico
Lopes, Daniel Bilac, Deivid Junio, Flávio Gonçalves, Valquíria Rabelo
CAPA e ILUSTRAÇÕES Daniel Bilac TEXTOS Adriana Versiani, Ana
Sílvia Ribeiro, Anderson Nunes, Bruno Ramalho, Chico Lopes, Deivid
Junio, Eugênio Macedo, Fernanda Cosso, Flávia Almeida, Flávio
Gonçalves, Guilherme Santos, José Aloise Bahia, Jovino Machado, Léo
Kildare Louback, Marco Anhapoci, Maria Luiza Falcão, Mirous, Ricardo
Muzafir, Samir Honorato, Valquíria Rabelo PROJETO GRÁFICO Daniel
Bilac, Valquíria Rabelo DIAGRAMAÇÃO Valquíria Rabelo
caro leitor,
este número do “a parada” traz poesias e
prosas diversas, de autores ainda mais diversos
que, juntos, ajudam a compor, através de
dezesseis páginas, as nuances desse endereço
fantástico: r. pouso alegre, nº4.
além disso, a edição apresenta sensíveis
mudanças em relação às anteriores. não só o
jornal, mas o projeto passa por uma fase muito
vindoura de reformulação.
foi criado um conselho editorial, formado
pelos membros mais ativos, que será importante
para legitimar nossas ações enquanto uma
organização coletiva, como também para ampliar
as possibilidades de novas realizações.
r. pouso alegre, nº 4
no jornal, a estrutura foi e está sendo
repensada. alguns espaços foram extintos e
outros, criados. A primeira novidade (e
esperamos que outras surjam nas próximas
edições) é um espaço de entrevistas, inaugurado
por wilmar silva, poeta, editor e curador do
projeto “terças poéticas”, no qual o jornal
“a parada” se apresentará no dia 29 de agosto.
fechamos este número com a poesia visual
de adriana versiani, ocaso do poeta - na crença
de que o nosso próprio ocaso ainda tarda, e
muito, a vir.
os editores
pele, uma mordida eterna, o clique das fechaduras ecoando no aposento: sala vazia?
Contato: [email protected]
Tiragem: 5.000Iniciativa Independente
Apoio Cultural:
O texto que percorre as páginas desta edição pertence a Marco Anhapoci.
Pergunta quando não há respostaSamir Honorato
Todos ali esperavam a resposta dele. No caso, a minha resposta, porque ele, a quem aguardavam de forma
inquietante, era eu.
Parecia um tribunal, mas podia ser qualquer outro tipo de lugar – uma sala de aula ou de interrogatório.
Meu pai, como um bom advogado que era, inquiria a si próprio quais eram as minhas chances de responder
aquela pergunta, enquanto ansiava que o tempo encurtasse, na medida em que ele mesmo não adivinhava o que
eu poderia responder, não conseguindo nem supor que tipo de resposta caberia para tal pergunta. Pergunta
que, inclusive, fora levantada por mim, após ter percebido, num piscar de tristes olhos, que, juntamente
com o esvair do tempo, a morte também se aproxima.
Minha mãe, perdida entre os pontos mal feitos do crochê e o trejeito involuntário de seus
atormentados olhos, fingia não ser afligida por aquilo que fora solto de repente no ar e que, nesse
instante, pungia as suas lembranças tenras de maneira tão exacerbada que temi que pulasse de sua
boca o seu coração falido.
Meu irmão e minha irmã, ambos mais velhos, sentavam-se diante da tv, trocando de canais
incontroladamente, talvez, a procura de algo, ali na telinha, que fornecesse força e luz para as suas
cabeças tonteadas, confusas depois da colisão que meu indagar causara.
Confesso que nem lembro mais o que perguntei. Decerto que para livrar-me de pensar em demasia
acerca de tudo. Hábito esse que tem me custado algumas rugas, no alvorecer dos meus vinte anos.
Deve ter sido algo terrível. Algo de dimensão gigantesca, de proporção análoga às perturbações minhas
e daqueles que a mim circundavam. Mas o quê? – o que é viver? E para quê? Para quê? Agora eu
lembro. Eu me lembro...
ImagemNaAçãoDeivid Juznio
Num segundofechei os olhose encontrei um mundo
quarto obscuro? porta dos fundos? eu sabia, como nunca soube das linhas da palma
3
Bombardeio à Ilha da Esperança IIChico Lopes
À noite,pontos luminosos cruzam o céu.Uma criança acreditaserem estrelas-cadentese conta aos mísseiso desejo de que a guerra acabe.
...e pede a eles,em segredo,um amanhã melhor.
Destino (fragmento)
Mirous
Nasci condenado a ser triste,a ter amigos imagináriose amores platônicos
Primeiro amorDeivid Junio
Pulei murosroubei amorasbrinquei de amoresCom pinga-fogome queimei
Mas hoje,onde moras?
Migalhas de pão
Valquíria Rabelo
Migalhas de pão Migalhas de pão Migalhas de pão
hidrocoresMarco Anhapoci
uma bolinha, dois olhinhos,corpo de palitinhos, trancinhas:as hidrocores das suas íris são relâmpagos
seu retrato mais nítidoé ainda aquele desenho de canetinhano avesso dos meus olhos
o que dizem? Sou tristeza fria. Confesso, mas não peçoperdão. Digo o que resta dizer: ‘Adeus’.
Queria ter chorado. Mas foi atrás do orgulho queme escondi. Foi como aprendi. Estou de volta, ou finjoestar. Sei que não há mais; nem restos, nem nada. Nadamais apropriado que morrer numa roda. Assim a gentevive, rodando sem saber o porquê, sorrindo bobamentea cada volta. Mas não é agora que vou fraquejar. Carregoo retrato nosso, pra não esquecer, e só. Mas não sei sequero lembrar. Memória é dor. É luto. É preto e branco.
***
Estava sentada na calçada. Uma senhora paroupra conversar comigo, como se eu fosse criança. Talvezfosse mesmo. Como menina, me portei. Talvez fosselouca a velha, mas nem sua loucura nem sua velhiceme incomodavam. Ela pediu pra entrar. Deixei. Pediuum prato de comida. Eu dei. Não tive coragem demandá-la embora. Dormiu no sofá. Na manhã seguinte,encontrei-a ali, sentada, o olhar atormentado. Percebias lágrimas no rosto, já secas, e o retrato preso na mão.Compreendi. E foi aí que conheci a mesquinhez, justoa minha. E foi então que eu não era mais criança.
Silêncio. Só o que queria. Já não queria mais osom das máquinas, das próprias reclamações, doconhecido sinal da fábrica. Nem do jantar fazia questão.Fim de expediente. O caminho pra casa. O ronco domotor do carro. O buzinaço. O trânsito. A lembrançade que tinha de comprar pão. Padaria, fila, moedas. Ogasto e o desgaste. O ronco do carro de novo. Lar. Ochoro da esposa. O descaso - amargo. A briga. As malas.O adeus. A porta batendo. O abandono no quarto.Solidão. Fim. O pão em vão. Silêncio? A campainha dotelefone. Uma voz cobrando o aluguel. Despejo ou fuga?Vergonha. Barulhenta vergonha. Tudo era barulho. Quese danasse o pão. A idéia (súbita). O carro outra vez.O parque. A roda gigante. O ponto (calculado) maisalto. O salto. Silêncio. O nada.
***
Não, nunca fui mãe. Mas assim me acusam.Como, se mal suporto a criança que sou? minha própriainfantilidade? Sou menina, sem inocência. Sou sócaprichos. Mas não choro feito criança. Daquele jeito,sem pudor. Vou embora. Porque não me contento compouco. E você é pouco. E o amor é menos. E de mim,
de minha mão ou das letras do meu nome ou do aniversário de minha
4
Valquíria Rabelo
Cartomantes
Velha infância sempre novaDeivid Junio
Sempre rimam criança com esperançaNão há que serPego-me distraído, debruçadoolhando a brincadeira das crianças na calçadaResolvi não fechar a janela por séculos:criança rima com saudade
FotografiasBruno Ramalho
Sorrisos em estaticidade,em falsa felicidade(e, às vezes, não),fazem o belo das fotografias,retratos da vida na farta ilusão.
Pensamentos assimsão sempre tão vise as pessoas não foram(ou mesmo não são)mais do que em fotografiasde um álbum de família,personagens fracassadas da ficção.
mãe, tudo o que havia atrás de cada porta: o cheiro de cada hálito que
Quando menina, esperava o ano inteiro por qualquer data digna decomemoração. Em especial, por meu aniversário. Os dias de véspera se arrastavam
lentos, como que por teimosia ao meu desejo. Nunca me importei muito com a festa,embora me agradasse encontrar a família reunida nessas raras ocasiões, visto que todos
nós morávamos muito longe. Ainda assim, confesso que me alegravam muito mais os presentesque os convidados. Ganhava de tudo: bonecas, ursos de pelúcia, jogos de tabuleiros e, às vezes,indesejadas roupas. Queria mesmo brincar, sem a menor preocupação em conservar os objetos.Tanto que, um ano depois, tudo que havia ganhado estava rasgado, quebrado ou faltando algumapeça. E os brinquedos que ficavam inteiros nesse intervalo de tempo denunciavam o seu poucouso.
Adorava presentes, fossem caros ou simples. Mas nunca gostei de dá-los. Queria todos paramim, de forma que minha mãe, todas as vezes em que eu era convidada para festas de colegas, sevia obrigada a comprá-los em duplicata. Sempre fui um pouco egoísta.
Nos aniversários alheios, nunca ficava dançando as músicas bobas com as meninas nemjogando bola. Na verdade, misturava-me com as pessoas mais velhas e conversava de igual paraigual. Achavam-me muito precoce. Não apenas por minha postura ou pelos assuntos quecompreendia, mas pelo meu desinteresse pelos da minha idade.
Deve ter sido por volta dessa época que aprendi alguns ofícios, como o bordado e a canastra.Convivia tanto com as senhoras que até das rodas de baralho eu participava. Jogava muito bem,apesar de não ter a maldade das adversárias, que por vezes roubavam ou mentiam estrategicamente.Travessuras. Mas se eu não tinha a malícia era por não ter um passado mais vasto do que oconfirmado pelos bolos de glacê coroados com velas de um só dígito. Apesar da minha ingenuidade,as velhinhas diziam que eu tinha futuro. Não sei se blefavam.
5
Atrás da GamelaGuilherme Santos
Era tarde. Ou cedo, você pode pensar. O sol já ia parecer, e o marido nãovoltara. Melhor mesmo se nunca voltasse. Lembrava-se agora do casamento. Moçapobre, o homem tinha-lhe parecido honesto, tinha posses, violência também,descobriu depois. Arrependimento enchera-lhe os anos e envelhecera-lhe as feições.
A porta abriu-se de súbito. A respiração fétida do homem cambaleante encheua casa como um veneno que se espalha pelo ar. A massa suja veio em sua direçãocom um olhar vermelho. Abraçou-a, quis-lhe os favores da carne.
Negou enojada. Indagou-o a respeito do atraso, dos olhos vermelhos, docheiro imundo.
Dor.Num instante viu-se ao chão segurando o lábio cortado e a face violentada.
Mais horas de dor e vergonha passaria a pobre mulher.Atrás da gamela de água achou seu refúgio mais uma vez, enquanto o corpo
satisfeito do marido já inconsciente cobria a cama. Lágrimas percorriam-lhe a face.Não podia mais suportar o que os anos lhe haviam dado. Pegou de uma faca dacozinha o cabo de madeira, alisou a lâmina. Hesitação.
Cravado o instrumento penoso no coração sem vida do homem, cujo olhardesesperado transmitia a sensação da iminência da morte e traía-lhe a inocência,pôs-se a pensar. Que havia de fazer agora?
Chamou à casa um cunhado. Mostrou-lhe o incidente, deu-lhe provas dedefesa, foi convincente. Pediu que lhe fizesse companhia, que a ajudasse a acalmaros ânimos. O homem concordou, não era daquele tempo que lhe punha os olhos,o sem vergonha. Seduziu-o. Fê-lo dormir ali.
À noite, apavorada, ligou para a polícia. O cunhado, seu amante, dominadopela loucura do ciúme, atacou-lhe o marido, subjugou-a e ocupava o sofá de suacasa.
RemoerValquíria Rabelo
O homem tossiu de lado,entortando o chapéu- imaginário, já que não o usava.Tirou os sapatos que não calçavae as meias guardadasfazia tempo.
Afrouxou a gravata que sentia no pescoço,desabotoou a camisa no tronco nu,e usou a voz seca para dizero que já não valia.
As palavras retumbaram no quartoem que ele um dia viveu,no qual a luz se acendeue a moça que lhe amava sorria.
E tudo era perfeito,a não serpor não ser,por não ter sido.Dormiu outra vezsossegado pela voze pelas mãos da mãe mortaque dizia ‘’já passou,já passou’’.
senti, meu pai embriagado, os perfumes doces das mulheres maquiladas, o cigarro de
6
MemóriaBruno Ramalho
Um homem,três mulheres,um quadrado.
Um lunático,uma amiga,uma amada,uma irmã.
Um homem,três presentese a memória.
Um poeta,três mulheres,quatro estrofese uma história.
SaudadesRicardo Muzafir
Joguei fora suas lembranças
Meu passado não mais te pertence
Joguei fora seu amor
Mudei os móveis de lugar
Quebrei o espelho, que te refletia
Tranquei o quarto de dispensa
Com os pertences de sua vida
Queimei seus retratos
Numa fogueira incandescente
Que durou o dia inteiro
Até o seu rosto fugir da minha mente!
Joguei fora seus pecados
Meu futuro não mais te pertence
Seu sexo adoeceu
Troquei o quarto de lugar
Da sala fiz meu escritório
Do nosso retrato retalhei seu rosto
Cortei nossa alma
Separei nosso sangue
Dividi nossas vidas
E agora vivo meu presente sem você!
Divido minha vida com o cão
Animal dócil, amigo e fiel
companheiro
E agora, cadê você?
O cão late e eu choro.
Cadê você?
Olhos VermelhosGuilherme Santos
Estava lá em seu barco ind’agora. Os peixes não se renderam. Malditos. Que
apodreçam lá mesmo onde estiverem. Ah...Que fazer agora? O cansaço o dominava.
Saiu da margem lamacenta. A tristeza o carregava.
Há alguns anos, casara-se com uma rapariga muito bem afeiçoada. A família
pobre dera-lhe a mão dela sem questionar. Naquela época tinha posses, seu barco
ainda rendia bem. As posses... foram-se no jogo, o barco vai bem obrigado, só não
tem peixes.
Na rua escura sentou-se sem cerimônia. A cabeça entre as mãos pesava
toneladas. Como contar à mulher que não teriam jantar? Pois não contaria.
Entrou num bar sujo qualquer que havia por ali. Bebeu, brigou, riu, caiu, chorou,
e bebeu. Hora de voltar para casa.
Abriu a porta meio sem jeito, não queria acordar ninguém, mas que se há de
fazer? A mulher veio perguntar onde estivera. Ela era tão bonita! E desce sermão!
Olhos vermelhos?! Será que ela enlouqueceu? Não queria, mas teve de lhe
bater. A danada tinha que aprender quem é que manda!
E depois disso, cheio de carinho, veio ter com ela, em privacidade. E já bem
depois, satisfeito e feliz, dormiu.
Que se sucedeu depois então é que não se sabe. Verdade que ainda se o
perguntou muito depois daquela noite. De fato, o que houve o homem nunca vai
saber. Fato é que não acordou mais.
Dar ao sono a fadiga da manhã
Dormir trabalhando
para acordar sonhando e passar o dia
assim
etéreo
Eugênio Macedo
7
meu tio, ou mesmo o cheiro que vinha da rua, das árvores, da grama, da terra, dos
muros de chapisco, do asfalto molhado de uma chuva fina caída há mais de quinze
Crie um verso
Sinais
Fernanda Cosso
Livre.
Liberta.
Libélula.
Asas ao vento...
Rápidas fugas
Passos de balé
O que faz
sozinha no brejo?
- Mando sinais nas ondas do lago. . .
Esconde-esconde
Deivid Junio
Entre a casa e o muro do vizinho
há um beco
Hoje não mais me cabe
Só uma sombra
por lá assombra
e tenho medo...
Meu Deus,
será lá que deixei minha infância?
bem viveu
quem pouco
se escondeu
e a alegria que estava aqui?!
gato comeu
Jovino Machado
8
Sente
Ana Sílvia Ribeiro
Percorre a face
Percorre um rio
Percorre morna
Percorre curva
Estala ao mar
Confunde o mar
Busca o mar
O mar é o peito
O mar é onda
O mar é dor
Aos meus vinte anos
Chico Lopes
Desejo crônico
que me assola ao fundo:
voltar no tempo,
brincar de bola
e chutar o mundo.
9
anos, eu sabia; o número de pregos nas paredes, cada detalhe das molduras, das
Um cubo rubro
Anderson Nunes
Traçam-se linhas retas
Desenhos da mais fina perfeição
Tudo se encaixa, reto
Sem nenhuma emoção
O homem não cabe aí,
Em sua própria prisão racional.
Ele busca mais, fugindo de si
Feito louco ou animal
Onde está a verdade?
Na obra inteiriça?
Nos pedaços que restaram?
Razão, intelecto
Paixão, instinto
Pó, homem, pó?
Crie um verso
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10 Em entrevista a Daniel Bilac e a Valquíria Rabelo, do Jornal A
Parada, o poeta, ator/perfomer e editor, Wilmar Silva, curador
das Terças Poéticas (um projeto de extensão do Suplemento Literário)
fala a respeito dos novos suportes; apresentações e performances;
da necessidade de novas posturas em relação à poesia e das Terças
Poéticas (TP), que completou um ano em julho de 2006.
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Wilmar Silva lançará, em Setembro de 2006, o livro
“Estilhaços no lago de púrpura”. No mesmo mês, se
apresentará no evento “Cabaré Voltaire”, com sua
perfomance “Subida ao Paraíso”. Para entrar em contato
com
W.S.,
envie
um
para:
silencioso das gavetas, o arrastar escandaloso das cadeiras, o gemido de cada dobradiça
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Sobre vôoLéo Kildare Louback
Não estava preparada para aquele acontecimento: pisei num pássaro morto no meio de um cruzamento.Dilacerei. A pressa era tanta que fingi não ter visto. Vi. Senti. Relembrei a dor de ser destroçada. Andei apassos largos para, cansada, esquecer. Ofeguei-me. Quem terá feito mal àquela criatura tão singela e indefesa,que tanto se deu a vida toda e nunca foi notada na sua notável insignificância. As patinhas estiradas, durascomo as estacas que abrem caminho à força, nos invadindo sem o pingo de piedade. Buraco qualquer. Tantapena. Cobrem o chão em volta. Umas já voaram para longe demais para serem vistas. Apenas sentidas. Ocheiro indica seu paradeiro. O corpo esmagado. Muito peso em cima. Sufocava. Acho que foi atropelamento.Claro. Seqüelas nítidas. Dizem que ela estava distraída, olhando obsessivamente um corpo caído. Asas quebradase as vísceras jogadas. Se bem que já não voava mais fazia tempo. No máximo, vôo de falcão adestrado. Vai evem constante e contra a própria vontade.
Segui caminho totalmente incomodada. A imagem pulsando forte. Acho que era andorinha. Eu beija-flor.Milhares de batidas por minuto davam o tom da vida que pairava aparentemente imóvel. Pisei nele semquerer? Terrível demais matar mais que se pode suportar. O motivo ninguém sabe. Talvez descarga elétricados fios da iluminação pública. Ele tem direito a um enterro digno, com cortejo e tudo. É tão bonito. Sempresonhei com isso. Queira voltar lá se tivesse forças. Levaria o pequenino no colo até o sepulcro e rezaria,pedindo aos anjos do senhor que um dia me dessem as graças de ser como ele. Mas ninguém há de dar-lheatenção. Nunca deram. Ficará caído, até ser devorado pelos monstros que habitam a escuridão do mundo,esperando, observando o momento de se darem à luz. Sorte deles, que sempre terão motivos para viver.Vida que nasce e renasce a cada dia diante da morte dos infelizes que sonham alcançar os céus e repousar, umdia sequer, naquela nuvem com formato do urso de pelúcia que ganhei da minha avó.
das portas, das janelas, o que vinha pelas janelas, e a janela do meu quarto se inundando
12
Aurora da minha vidaDeivid Junio
Sou adulto de maioridadeNossa! Nem havia notadoOntem mesmo fui dormir com oito anos...
Entre esmaltes e cicatrizesmeu baú tem mais azul.Tem fotos de atrizes,bobagens, bilhetes, versos, rimas,medalhinha de São Dimas.Tem alhos, bugalhos, retalhos, atalhos.Os filhotes de fantasmasbrincam com a sua letra de criançasuavizando a dor do mundo.Meu baú não tem tampa nem fundo,mas sangra.
Jovino Machado
AnjosMaria Luiza Falcão
Vão chegando devagar,De pontos diversos vêm.
Agrupam-se, pouco a pouco,
Em quase círculo, irmãos,
Partilham o objeto da fé.
Sentados, pernas unidas,
Cabeça pendenteUne-se às mãos,
Assim permanecem,
Tempo passando,
Em contrição.
Finda a vigília,
Erguem-se e vão.Circulam, sem destino,
Começam outra oração.
E seguem, há mais pedidos,
Agradecem, ou não.
Um se destaca,
Parece aflito,O corpo contorce,
Talvez em transe.
Não olham ao alto,
E eu estranho:
Afinal, onde anda aquele Deus?
No céu deles, estrela é néon,E pisca, é notícia,
Gira veloz num telão.
Cansados agora,
Quem sabe, aflitos,
Por um milagre
Não pedido.Absolvição, Luz Divina,
Pra sair da escuridão.
Não é um enxame,
Nem a vida é mel.
Não é um bando,
Pois ave, só no céu.Mas são anjos,
Tortos, perdidos,
Asas podadas,
Pés e corpo no chão.
Almas presas, submissas,
Ao vício:
Perdição
de um sol de oito horas da manhã dos meus oito anos que lambia minhas
13
AcasoFlávia Almeida
Pensava que jamais voltaria ali desde que tudo terminara.
Voltou. Não por vontade ou curiosidade de ver se tudo
permanecera intocável; voltou por acaso. Passava na porta e
decidiu entrar, num impulso repentino e impensado. Antes de
entrar, sentiu um frio na barriga, um sorriso incontível inundando
o rosto, talvez uma lágrima, talvez uma angústia. Mas estava tudo
igual: concreto aparente, chão de pedras, pessoas. Passou da
porta, já não sentia nada – estava tudo igual. É que as lembranças
são mais bonitas nas fotos, pensou. Já não era o seu lugar. Mais
tarde, em casa, pegaria as fotos, todas as lembranças, e já não
sentiria nada; destruíra a magia naquele acaso. Jurou nunca mais
entrar lá, mas era tarde demais.
Aos Meus Nove AnosChico Lopes
Piloto sonhos no vazio dessa tarde,manobro pássaros na imensidão do mar dourado,ultrapasso o vento na corrida ao infinito,capturo estrelas no universo prateado.
Salvo rainhas de impérios ilusórios,destruo monstros que vêm da escuridão,desafio bruxos em caldeiras escaldantese quiméricas fadas sem varinhas de condão.
Levo comigo meu dragão de doze faces,jorrando água de narinas grandiosas,lavando a lua de lunáticos lascivose o Universo de estrelas desonrosas.
Viajo longe montado em devaneios,na noite escura meu Sol brilha mais forte,navego nuvens de secas tempestades,zombo do tempo e desafio a sorte.
Meu rumo certo, eu nunca o conheço,a liberdade é sempre minha guia,faço do nada minha musa inspiradorae desse nada é que meu mundo então se cria.
canelas e meus pés, meus braços e mãos, minhas orelhas e face, dentes e pálpebras, eu
14
O que é, o que é?Flávio Gonçalves
“Azus; eles são azus!” – falou de repente
aquela menina que todos os dias vinha sentar-
se à sua porta.
Olhou para ela intrigado. Então, lembrou-
se da pergunta que lhe havia feito e sorriu. A
menina retribuiu o sorriso e ele, observando
aquele rostinho puro e ingênuo a mirá-lo,
perdeu-se em pensamentos. Imaginou o quanto
seria bom poder voltar a ser criança como ela,
a sorrir como ela, a levar a vida como se só
existisse a alegria, a brincadeira, o agora.
Imaginou o quanto seria bom voltar a sonhar
azul.
Quis ser atriz, artista, arteira, moleca... quis ser personagem de um
livro qualquer, escritora, poeta, professora. Cresci. Quis mais nada,
não. Percebi que as minhas querências eram coisas de gente pequena
na idade e grande na alma. Porque quando a gente cresce na idade,
a alma parece que fica menor. E então, meus sonhos de criança já
não cabiam mais em mim. Passei a ansiar coisas menores: uma
carreira estável, um amor não-durável, ou qualquer coisa assim que
tentasse me fazer uma pessoa feliz. Sei não, mas acho que ainda
quero de volta as minhas querências da infância. Ser feliz é algo
grande demais pra quem tem alma pequena.
Flávia Almeida
Barco de papelMarco Anhapoci
Foi navegando no meu barco de papel
Que eu pesquei um peixe de origami
As flores não caem do céu
Não
Mais um dia de trabalho terminava. Estacionou o carro na garagem,acionou o alarme, como sempre fazia, e dirigiu-se às escadas. Subiu a passoslentos, o cansaço pesando nos ombros, nas costas, no corpo todo. Com obraço esquerdo suspendia a velha maleta preta, tão típica dos executivos. Decabeça baixa, contava os degraus, tentando desvencilhar-se dos inúmerospensamentos desagradáveis que lhe ocorriam.
“Vinte e dois (não quero saber!), vinte e três, vinte e quatro (tá, medeixa em paz!), vinte e cinco (eu já ouvi, agora dá pra calar a boca!), vinte e...,vinte e..., droga, perdi a conta por sua causa!”. Aquele homenzinho de vermelhoem seu ombro não dava sossego. Tagarelava sem parar, relembrando-lheseus problemas, instigando sua ira, insinuando pérfidas conspirações contraele: seus colegas de trabalho, sua mulher, seus parentes, seus amigos, todosqueriam sua ruína. Onde estava o outro homenzinho, o de roupa branca, quecostumava aparecer em seu outro ombro para desmentir o de vermelho?Pensando sobre isso, ele reparou que esse outro homenzinho andava meiosumido ultimamente.
Chegando a um patamar, depois de uma longa subida, parou emfrente à primeira porta à direita e, tirando do bolso sua chave, experimentoua fechadura. Forçou a chave para um lado, para o outro; nada. Ergueu acabeça, tentando identificar o número. Não conseguia enxergar direito naquelapenumbra em que se encontrava o corredor, a visão prejudicada pelo excessode álcool em seu organismo. “Devo ter me enganado”.
Andou lentamente até a próxima porta e repetiu o mesmoprocedimento com a chave. Nada outra vez. Mais alguns passos vagarosos,nova tentativa na porta seguinte e outro resultado frustrante. A essa altura,começou a ficar em dúvida se queria realmente chegar em casa. O homenzinhode vermelho não perdeu a oportunidade e disparou a falar em seu ouvido,reforçando a idéia e acrescentando outras mais maléficas. Após algunssegundos de reflexão, decidiu-se por tentar ainda a última porta. Avançoupara a fechadura, sem muito ânimo, e encaixou mais uma vez a chave. E maisuma vez teve também que retirá-la, sem conseguir abrir a porta.
Desconsolado, olhou para o lado e viu uma janela. Caminhoutropegamente até a mesma e a abriu. Postou a maleta no chão, apoiou asmãos no parapeito e, chegando o corpo para frente, começou a observar apaisagem exterior. Girou a cabeça mansamente de um lado para o outro,mirando sem muita atenção a movimentação da cidade. Olhou, então, parabaixo e, de repente, seus pensamentos começaram a concentrar-se, tomandouma forma mais coesa. O homenzinho de vermelho, agora bem mais agitado,gesticulando muito, continuava seu discurso repleto de sugestões malignas.
Quando finalmente suas idéias se definiram e sua mente clareou-se umpouco, percebeu o que deveria fazer. “Por que eu não pensei nisso antes?!” -disse em voz alta para si mesmo. Desapertou o nó da gravata, tirou o paletó,abriu um pouco a camisa, afrouxou o cinto e olhou novamente para baixo,pela janela, certificando-se do seu destino. Agora sim iria para o seu lar deverdade, para o lugar certo, o lugar que lhe pertencia!
Quando pegou sua maleta, já com a decisão sobre seus próximos atosfirme na cabeça, o homenzinho de branco apareceu em seu outro ombro ecomeçou a lhe falar com voz calma e bondosa. Exasperado com a presençado rival, o homenzinho de vermelho começou a gritar, desdenhando dascoisas que seu opositor dizia. Ficaram, então, os dois homenzinhos a prelecionarsimultaneamente, procurando, cada um, conquistar a atenção do homem cujacabeça encontrava-se entre eles.
Tentando abster-se do incômodo causado por aquela confusão depalavras que ocorria ao pé de seus ouvidos, ele procurou focar seuspensamentos apenas no seu objetivo. Imaginou-se aliviado, descansando empaz, a tensão e a angústia do dia-a-dia simplesmente esquecidas. Apenas maisalguns passos, alguns instantes, e estaria tudo consumado.
Com essas idéias na mente, começou a caminhar, desceu as escadas atéo andar de baixo, dirigiu-se à primeira porta do lado direito, colocou suachave na fechadura, destrancou a porta e entrou. Estava em casa.
Lar Doce LarFlávio Gonçalves
sabia. hoje, outras gentes e coisas habitam lugares que eu soube e agora não sei,
BalbuciarDeivid Junio
o bebêainda sem tamanhomas tão grande diante do orgulho dos paisjápoeticamentebalbucia:gugu...dadáma mapa pacomeça a engatinhardepois dá seus primeiros passos seus primeiros tropeços seus primeiros versosgugu dadandoma mamandopa papando
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cafagesteMarco Anhapoci
depois de ana carolina,
engessei meu coração.
passou uma semana:
- assina meu gesso, mariana?
ocaso do poetaAdriana Versiani
Arte
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Poema dos trinta anosJovino Machado
aos sete perdi a infâncianão perdi a elegânciaaos dezessete perdi a virgindadenão perdi a dignidadeaos vinte e sete perdi a ingenuidadenão perdi a vaidade
não perdi a fégosto de caféando a pé
Com viverLéo Kildare Louback
Eu morreria de saudades se soubesse de que se trata esse sentimento que tanto atormenta oshomens. Mas ele, depois de muito tentar e pouco entender, conseguiu cortar meu rabo. E dasaudade conheci apenas o medo e a dor. Fugi, para talvez nunca mais.
Tela (Para Marco Llobus)
José Aloise Bahia
pintar no rosto um humor qualquer
reinvenção do corpo
ressentimento de mundo
reintenção do espírito
ressensação de nada
reimitação do não
no olhar oblíquo a mancha da palavra
aparência de cor afogadas matizes
que eu era e não sou mais.
volto somente em visitas clandestinas durante dias de chuva querendo encontrar asportas fechadas para poder enxergar, através delas, para sempre, a mesma casa.
(m.a.)16