jorge mautner: história, testemunho e narrativas de si · 2017-07-05 · cacos do passado, mas sem...

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1 Jorge Mautner: História, Testemunho e Narrativas de Si REGINALDO SOUSA CHAVES * Como formar uma imagem de si diante da História? Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não é somente o cacho de uva que se amorena, acaba de cair um raio de sol sobre a minha vida: olhei para trás, olhei para frente, nunca vi tantas e tão boas coisas de uma vez... Como não haveria de estar grato a minha vida inteira? E por isso me conto a minha vida. (Friedrich Nietzsche, Ecce Homo) O escritor Jorge Mautner é um fabuloso narrador de si mesmo. Pois esse dia, de que fala Nietzsche, de bons presságios, e no qual se pode contar uma vida, ele o encontrou incontáveis vezes. Há nele uma incansável pulsão narrativa (GAGNEBIN, 2014: 222-223). Entre sua produção escritural e mais especificamente na sua autobiografia temos uma vida em jogo no espaço da escritura. O que nos impõe como ponto de partida a difícil e complexa questão: como é possível a um sujeito construir uma imagem de si diante da História? Walter Benjamin nos deixou um sugestivo texto onde esse problema se coloca de modo explícito: * Especialista em História Cultural (UFPI) e Mestre em História do Brasil (UFPI). Doutorando em História Social (UFC). Professor Assistente II da Universidade Estadual do Piauí. Atualmente desenvolve junto ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará a tese Jorge Mautner: Demiurgo e Devorador da Cultura brasileira sob a orientação do Prof. Dr. Francisco Régis Lopes Ramos.

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Page 1: Jorge Mautner: História, Testemunho e Narrativas de Si · 2017-07-05 · cacos do passado, mas sem a pretensão de uma unidade e congruência das temporalidades, pois o que está

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Jorge Mautner: História, Testemunho e Narrativas de Si

REGINALDO SOUSA CHAVES*

Como formar uma imagem de si diante da História?

Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não é

somente o cacho de uva que se amorena, acaba de cair

um raio de sol sobre a minha vida: olhei para trás,

olhei para frente, nunca vi tantas e tão boas coisas de

uma vez... Como não haveria de estar grato a minha

vida inteira? – E por isso me conto a minha vida.

(Friedrich Nietzsche, Ecce Homo)

O escritor Jorge Mautner é um fabuloso narrador de si mesmo. Pois esse dia, de

que fala Nietzsche, de bons presságios, e no qual se pode contar uma vida, ele o

encontrou incontáveis vezes. Há nele uma incansável pulsão narrativa (GAGNEBIN,

2014: 222-223). Entre sua produção escritural – e mais especificamente na sua

autobiografia – temos uma vida em jogo no espaço da escritura. O que nos impõe como

ponto de partida a difícil e complexa questão: como é possível a um sujeito construir

uma imagem de si diante da História? Walter Benjamin nos deixou um sugestivo texto

onde esse problema se coloca de modo explícito:

* Especialista em História Cultural (UFPI) e Mestre em História do Brasil (UFPI). Doutorando em

História Social (UFC). Professor Assistente II da Universidade Estadual do Piauí. Atualmente desenvolve

junto ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará a tese Jorge

Mautner: Demiurgo e Devorador da Cultura brasileira sob a orientação do Prof. Dr. Francisco Régis

Lopes Ramos.

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Torso. Só quem fosse capaz de contemplar o seu próprio passado como fruto

de contrariedades e da necessidade estaria em condições de, em cada

momento presente, tirar dele o máximo partido. Pois aquilo que vivemos um

dia é, na melhor das hipóteses, comparável àquela bela estátua a que o

transporte quebrou todos os membros, e agora mais não tem para oferecer

do que o precioso bloco a partir do qual terá de ser esculpida a forma futura

(BENJAMIN, 2013: 38)

Do mesmo modo Jorge Mautner construiu narrativas autobiográficas através dos

cacos do passado, mas sem a pretensão de uma unidade e congruência das

temporalidades, pois o que está muitas vezes em jogo em sua literatura é o problema da

memória. Como escritor da rememoração, por traços e rastros do seu passado, ele

inventa uma imagem de si diante da História através do lembrar e do esquecer.

Nesse sentido o objetivo deste artigo é então abordar as memórias de Mautner,

levando em consideração que os relatos das suas lembranças estão no centro de sua

produção escritural desde as suas primeiras linhas. É desse material heterogêneo que

nos ocuparemos realizando uma intepretação transversal deles com o objetivo de divisar

em que consiste essa construção de si apontando suas roturas, falhas, repetições,

esquecimentos, traumas e aspectos políticos.

Seguiremos uma fração de tempo que corresponde ao período da chegada dos

seus pais ao Rio de Janeiro – que fugiam da Áustria em função da perseguição nazista

ao seu pai que era judeu –, seu nascimento e as primeiras experiências na cidade de São

Paulo. Logo, discutiremos aqui sua infância, vivida entre os anos quarenta e o início da

década de cinquenta, tal como é rememorada por ele. Como ponto de partida devemos

então abordar dois aspectos extremamente problemáticos dessa escrita: sua dimensão

autobiográfica e o lugar que ela ocupa como literatura de testemunho.

Autobiografia e Literatura de Testemunho

A produção escritural de Mautner é marcadamente autobiográfica. Ele nos diz

em 1962 a propósito da publicação de seu primeiro romance: “Deus da Chuva e da

Morte pode ser autobiografia.” (NEVES, 1962) Já no ano seguinte podemos divisar

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enfáticas declarações a respeito de sua escrita de si: “Eu sou a minha obra.”

(MAUTNER, 2002b: 513); “Minha vida é o que escrevo” (MAUTNER, 2002b: 547).

Mas, a sua escrita de si é devedora de Nietzsche onde o “eu” se mostra como

“multidão” (DAMIÃO, 2006: 119-145):

autobiográfico no sentido da totalidade. Sentido em que eu me reparto, sou

divido, já não sou eu, eu sou todos e tudo. Já estou desindividualizado e então

as coisas que por mim passam e que eu recebo são mensagens de todos os

lugares, que retransmito com racionalidade, vivência, emoção, sangue,

irracionalismo e análise dialética histórica para o papel. É um todo

inseparável. (NEVES, 1962)

Com efeito, em Mautner a autobiografia – em muitos aspectos proustiana – faz

desmoronar o ideal de estabilidade, unidade do sujeito que narra, etc. Isso ocorre porque

“o autos não é mais o mesmo, o bios explode em várias vidas que se entrecruzam e a

grafia segue o entrelaçamento de diversos tempos que não são ordenados por nenhuma

linearidade exclusiva” (GAGNEBIN, 2011: 78). Assim muito embora haja um “eu” nos

textos de Mautner não há um subjetivismo: sua autobiografia não se dá como um mero

relato de sua vida. Ela é uma autoanálise, mas igualmente um diagnóstico do mundo

histórico.

Sua infância – fração de tempo no qual nos detemos – coincide então, ponto a

ponto, com a tentativa de sua família de se erguer entre as ruínas da guerra no Brasil do

fim da Era Vargas. Não é exagero então dizer que se trata de uma escrita das memórias

de infância marcada pelas catástrofes do século XX: guerras, totalitarismos, holocausto,

imigração em massa, etc. Assim suas autobiografias remetem a sua experiência no

espaço onde se encontram as memórias individual e coletiva.

Nesse sentido a pressuposição de um gênero específico – embora válida – não é

aplicável ao nosso literato sem problemas. A condição de que exista nessa escritura a

identidade entre autor, narrador e personagem não se sustenta várias razões. O tecido

autobiográfico mautneriano sempre se encontra como que disseminado em sua vasta

obra. Isso na medida em que, por exemplo, na sua literatura os personagens

frequentemente se chamam, deliberadamente, Jorge.

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Mautner não reconhece em suas obras nenhum pacto autobiográfico (LEJEUNE,

2014). Na obra que mais estaria próxima de respeitar as convenções do gênero – que se

institui também como um pacto referencial e de leitura –, que é O Filho do Holocausto,

as memórias explodem com tal brilho imaginativo, ao apresentar os fragmentos da sua

vida (especialmente a infância), que se chega a duvidar que os limites do protocolo

textual autobiográfico sejam mantidos. O que podemos dizer é que Mautner opera

continuamente a transgressão desse pacto produzindo burlas das normativas desse tipo

de discurso.

Assim a proposta de Paul de Man de que não existe o gênero autobiográfico é

mais apropriada a obra de Mautner. Nessa visada a autobiografia é mais uma figura de

leitura e não um contrato. Por fim, “haveria um ‘momento autobiográfico’, e não um

gênero autobiográfico constituído por normas determinadas; assim, o texto que resulta

desse momento, o qual pode estar incluído em qualquer tipo de escrita, será sempre

insuficiente para revelar o momento de apreensão cognitiva do sujeito.” (DAMIÃO,

2006: 39) Esse tipo de compreensão mostra-se muito mais apropriada para uma obra em

que há uma proliferação desmedida do “momento autobiográfico” (DE MAN, 2012).

Nesse sentido as disseminações das escritas de si em Mautner podem ser lidas como um

arquivo de uma vida – isso se pensarmos em arquivo como potencialidade, inclusão e

exclusão, memória e esquecimento, pista e apagamento, etc.

Entretanto, temos em cena ainda um outro problema. Na diversidade tão grande

de discursos por ele produzidos, situados entre a ficção e a não ficção, a questão que nos

importa não é, propriamente, da existência de um suposto regime factual: não desejamos

aqui estabelecer uma discussão acerca da referencialidade do texto literário – per si

irresolvível. Sendo preferível e profícuo compreender os textos literários mautnerianos

no entrecruzamento entre o irônico e antirônico, quer dizer, entre uma pretensão de

busca pelo “real” e seu abandono (SELIGMAN-SILVA, 2003: 371-372).

Em sua dimensão antirônica vemos a tentativa de dar uma relato de sua infância

marcada pelo problema da tentativa de sua família de reconstrução de suas vidas sob os

escombros das guerras e das perseguições. Do outro lado – o irônico – lemos o livre

desfiar de uma linguagem que se dobra sobre si mesma infinitamente na vertigem

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autoreferencial. O que significa um desafio para o pesquisador já que algumas vezes as

fronteiras entre um e outro momento do texto não estão dados de uma vez por todas.

Com efeito, um cotejamento com seus outros relatos são imprescindíveis para

acessar esse ponto onde emergem os testemunhos. Nesse contexto, cindidas entre o

exclusivamente irônico e o testemunhal, encontram-se basicamente os seus romances

dos anos sessenta. Livros onde vemos várias camadas de significação onde a deriva

irônica abre espaço ao testemunho – especialmente nos romances Deus da Chuva e da

Morte (1962) e Kaos (1963). No campo estrito de uma literatura do testemunho, se

localizam sua autobiografia O Filho do Holocausto (2006) e seus ensaios histórico-

culturais como Fragmentos de Sabonete (1973) e Panfletos da Nova Era (1980).

Bem entendido, na literatura de testemunho não se trata de uma representação da

realidade, mas de uma abordagem do “real” pela esfera da literatura. Aqui tomamos

distância do realismo em favor da ideia de que o “real” narrado por Mautner é da ordem

do trauma cultural – cicatrizes na memória que desafiam as formas convencionais de

simbolização: “real” e “referência” não são aqui equivalentes. Encontramos na verdade

tentativas várias de comunicação do que foram experiência limites: como os campos de

extermínio nazistas. Mesmo quando as escritas das memórias parecem entrar no registro

da imaginação o teor de uma verdade ética se faz presente como uma tradução da dor e

da morte (SELIGMAN-SILVA, 2003).

Assim devemos partir da ideia de que no caso dessa literatura há uma relação

estreita entre trauma individual e coletivo. A exemplo dos sonhos coletados pela judia

Charlotte Beradt entre 1933 e 1939 – portanto na Alemanha sob o Terceiro Reich – que

tem, na condição de narrativas oníricas sobreviventes, algo a nos dizer sobre o terror da

perseguição antissemita (DIDI-HUBERMAN, 2014: 137-138). Ou mesmo o romance

gráfico Maus de Art Spiegelman (SPIEGELMAN, 2005). Em todos esses casos

transmitir o intransmissível, do sofrimento das experiências das catástrofes históricas, se

revela uma tarefa urgente, complexa e que desafia as convenções representacionais.

Afinal, como o horror e o genocídio podem ser comunicados pela linguagem? Com

quais meios literários se podem dar visibilidade a dor da imigração em massa? A escrita

literária pode nesse sentido buscar romper as formas de simbolização estabelecidas. E,

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com isso, acessar esses estratos traumáticos da história sem que o realismo seja

conservado em sua tranquilidade.

Por isso temos em Mautner literatura de testemunho mesmo quando as memórias

da Shoah de sua família ecoam através de imagens, da imaginação, da poesia enfim,

para além das representações realistas. Nessa literatura predominam não o esforço de

convocação, pelo sujeito soberano, das lembranças; mas a irrupção de uma memória

involuntária que toma de assalto o sujeito (GAGNEBIN, 2006: 145-160). Como ele

mesmo diz em 1962: “Recordar um passado é quase um brincar com a morte, um estalar

do coração.” (MAUTNER, 2002a: 60)

Em outra oportunidade Mautner – citando Marcel Proust e seguindo sua trilha –

se vê como “supercronista social” do “tempo nostálgico chamado saudade”, ou seja, um

“tempo mautneriano”: “com batuque.” (MAUTNER, 2002: 213) Tomando então como

parâmetro de intepretação essas perspectivas passemos então para a discussão em torno

dessas memórias de infância. Mas, igualmente, daquilo que foi transmitido a ele

posteriormente já que as lembranças da sua família, repetidas tantas vezes, se tornaram

as suas também. São como rastros indispensáveis de sua tarefa pessoal de rememoração.

O desmoronamento do mundo: O Filho da Guerra

Belezas são coisas acesas por dentro.

Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento.

Lágrimas negras caem, saem, doem.

(Jorge Mautner)

A infância de Mautner – tal como é rememorada – está mergulhada em um

ambiente íntimo repleto de cicatrizes históricas. Isso quer dizer que os sofrimentos de

toda a sua família – na verdade toda uma geração de judeus que se tornaram refugiados

em razão da perseguição antissemita nazista – fazem parte de suas próprias memórias.

Histórias repetidas cotidianamente quase como narrativas domésticas. O Brasil se

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mostra então nos seus relatos como espaço de acolhimento que impedira que ele e seus

pais fossem mortos em campos de extermínio: “Já pensaram como se ama a terra que te

possibilita nascer, sabendo que o contrário você seria cinza de forno crematório nazista,

na terra dos vampiros?” (MAUTNER, 2002c: 197). Um personagem do romance Kaos

(1963) nos diz:

E ouça meu amigo, o Brasil é a melhor terra do mundo, aqui existe a paz e a

liberdade! O que adianta a Rússia ter Sputnik e os USA ter tanto aço se aqui

no Brasil é que existe a paz e a liberdade e a felicidade? Brasil é a melhor

coisa do mundo, nós precisamos preservar esta coisas! Veja só, brasileiro no

fim de um jogo, Corinthians, São Paulo, meu filho, Getúlio já disse: orgulhe-

se deste país, meu filho a guerra é horrível. (MAUTNER, 2002b: 435)

No entanto as aflições na idílica Terra Brasilis – sua família desembarcou na

então capital federal, o Rio de Janeiro, onde ele nasceu em 1941 – não deixam

obviamente de ter lugar nessas rememorações. Nesse sentido em Deus da Chuva e da

Morte (1962) lemos, em várias passagens, as narrações que nos dão a dimensão do

trauma histórico de toda uma geração de imigrantes judeus. Nesse romance Mautner

fala de todas os problemas relativos a sua identidade fraturada entre o universo cultural

europeu, trazido pelos pais, e o brasileiro.

O pai, Paul Mautner, era um “judeu de uma cultura refinadíssima e aristocrata (e

por isto mesmo fraco, e niilista).” A sua mãe, Anna Illich, uma católica “austríaca de

nascimento e eslava de descendência”, “abandona a Áustria por causa de Adolph Hitler

e por causa de” seu marido. Ela “poderia ter permanecido na Áustria, mas ela fez isso

por amor.” (MAUTNER, 2002a: 63) O que “representou um grande sacrifício: deixar

toda a família dela, pais, irmãos (muitos) e um grande número de primos e primas

porque os eslavos costumam ter famílias grandes.” (MAUTNER, 2002a: 64)

Ela está, a essa altura, grávida do próprio Mautner tendo que enfrentar uma

duríssima viagem em um navio terceira classe repleto de imigrantes em meio a miséria e

a agonia. Antes porém de subir ao navio Paul tem todo o seu dinheiro roubado por outro

judeu refugiado. O que os coloca em uma situação de extrema penúria. Trata-se de um

contexto familiar dramático quando da chegada ao Brasil:

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Minha mãe grávida, sem nenhum tostão, longe dos seus (e ela tinha uma

verdadeira adoração fanática pelo pai e pela mãe e pelos irmãos como os

eslavos costumam ter). Ela é obrigada a dormir em pensões coletivas. Meu

pai obtém emprego mas gasta todo o dinheiro que ganha jogando no Cassino

e na loteria. Minha mãe está no auge do desespero e diz para ele: “É para

isto que eu saí da Áustria”? Ele ganha bastante porque trabalha na

Interamericana junto com David Nasser e Carlos Lacerda. Ele compra um

apartamento. Mas continua jogando e jogando. Os dirigentes da

Interamericana não gostam que um de seus empregados gasta dinheiros

jogando (...) que nem num delírio. Ele chega ao ponto de jogar o próprio

apartamento que comprara. Aí minha mãe está no auge do desespero. Ela diz

“Você me fez voltar a dormir em pensões coletivas, grávida como eu estou,

eu te odeio!” Dias depois ela recebe uma carta noticiando a morte por

fuzilamento da irmã dela pessoa de quem ela mais gosta. (Compreenda a

família eslava). E depois recebe uma carta noticiando a morte do pai e da

mãe dela. Um outro irmão é enforcado por batalhar na resistência

Iuguslava. E finalmente a filha dela que está na Inglaterra, minha irmã Susi

manda uma carta dizendo que não quer mais saber da mãe dela que a deixa

na Inglaterra, enquanto se diverte no Brasil “indo a bailes e levando vida

social e mundana.” (...) Minha mãe grávida, na miséria, desprezada pela

filha, enganada pelo marido, com parentes e pais trucidados quer se

suicidar. Impedem-na de se suicidar e ela é recolhida por muitos dias numa

Clínica de Doentes Nervosos. Verão. O Rio de Janeiro fervilha. Já é

Carnaval. Minha mãe se torna paralítica e não consegue se mover nem um

pouco. O doutor Rosentein médico estrangeiro conhecido e também

imigrante diz a ela: “tua doença, tua paralisia é um caso essencialmente teu.

Eu não posso fazer nada. Se você não tiver forças por si própria eu não

posso fazer nada. Mas lembre-se do filho que vai nascer.” E minha mãe

rezou porque ela é muito católica e eslava e levantou-se. Eu nasci dias

depois no dia 17 de Janeiro de 1941. (MAUTNER, 2002a: 64)

Aflições sem amenidades: são as memórias da dor transmitidas a ele. Mas, não

há apenas relatos de sofrimento. Essa infância é também atravessada por momentos

efusivos de deslumbramento no descobrimento da cultura brasileira – da sua formação

identitária fissurada. Lembranças proustianas do Rio de Janeiro surgem então nos

rastros ofuscantes do brilho do passado reencontrado no retorno do seu pai das viagens

que realizava como caixeiro viajante:

depois o trem parou e era de madrugada e o céu cintilava de estrelas! O frio

desaparecera e eu seria capaz de jurar que era verão! Eu olho para o alto e

um manto azul dançante cravejado de pedrarias olhava para mim e eu me

lembrei do Rio de Janeiro, das noites de lá, das noites de verão, eu na minha

casa em Santa Tereza, minha mãe no fundo da sala atrás de mim e eu e

minha babá olhando pra um rubi enorme que meu pai mostrava. E depois

águas-marinhas, os topázios, os rubis, os diamantes que apareciam na mão

dele em cima de uma flanela branca! Sim! Joias. O céu e mão coberta por

uma flanela e por joias. Tudo brilhava! E a vida também! É que meu pai

naquele tempo era caixeiro viajante (MAUTNER, 2002a: 188)

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Mautner, constantemente, escreve sobre a sua babá “preta, alta, magra e

inteligente”, “espírita e quase macumbeira”: Lúcia. Nostalgicamente relembra que, no

Rio de Janeiro, quando ele tinha cinco ou seis anos, ela o leva para a igreja da Glória

onde encontra o quadro de São Jorge. Nas festas religiosas ele também encontra, ao lado

da babá, “o povo: mulatos, pretos, brancos, macumbeiros.” Primeiro dos elementos de

alusão a brasilidade para uma criança que aprendia a língua alemã em casa. Não demora

muito para as crises e desencontros separarem Anna e Paul Mautner.

Em seguida sua mãe conheceu o seu novo marido em uma pensão miserável para

imigrantes pobres. Eles decidem ir para São Paulo onde morava o, agora, padrasto de

Mautner: Henri Müller. Antes de ir, Lúcia dá ao pequeno Mautner um fetiche. E, numa

tentativa constante de construir-destruir o texto-memória, ele dirá: “as imagens

religiosas da minha infância (...) [estão] se confundindo e com tendências de se

mesclarem numa só, unidade religiosa.” (MAUTNER, 2002a: 85)

A Politização da Vida

Justapostos a essas recordações, envoltas em alegrias e tristezas, Mautner nos

mostra, em sua produção escritural, o quanto suas memórias de infância são acionadas

em razão de seu conteúdo político. É possível vislumbrar um processo de politização da

vida e do espaço da casa onde se discutia a criação do Estado de Israel, o comunismo

Soviético, etc. nas reuniões familiares. Os desentendimentos domésticos – onde o

padrasto de Mautner é acusado de nazista, ou quando Ana Mautner diz a seu ex-marido

que ele não passa de um judeu – mostram o quanto a política invadiu o mundo privado

de Jorge Mautner.

Mesmo um simples momento de diversão com brinquedos estava tomado pelas

memórias familiares da guerra: “Quando criança, eu brincava com os soldados de

chumbo para formação da falange macedônica, seguia ordens de artilharia de Napoleão,

fingia que era espião e anotava todos os aviões que subiam e desciam.” (MAUTNER,

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2013: 102) De fato, são nos infinitamente pequenos eventos infantis que a politização se

mostra em toda a sua espessura.

Com efeito, o episódio em que a mãe de Mautner exige que ele cuide

zelosamente de Pitz, seu cachorrinho basset, sob a pena de não o encontrar caso

ignorasse seus deveres, mostra as pequenas fissuras da guerra nas suas memórias de

infância. Nessa lembrança é o fantasma da “morte, organizada, racionalizada descoberta

na Alemanha” que vem à tona (DURAS, 1986: 59). Assim, como ele recorrentemente

se mostra negligente para com suas obrigações, ocorre o inesperado para a criança:

Quando naquele certo dia, ao entardecer, cheguei do colégio e, ao procurar

meu querido Pitz, não o encontrei em nenhum lugar, comecei a sentir as

dores dos horrores do pesadelo da morte medonha do ser querido. Comecei

a chorar, e chorei por muitos dias, revoltado com a execução sumária por

parte da minha mãe e do meu padrasto. Meditei muito sobre a importância e

permanência do Demônio Mefistófeles na cultura germânico-austríaca,

mesmo por parte de algumas vítimas do Holocausto, exercendo cruel

disciplina e impiedoso julgamento como era o caso de minha mãe. Que

decepção, que trauma, que dor, e, mesmo assim, quem dera o tempo voltasse.

(MAUTNER, 2006: 110-111)

Lembranças que se confundem com as da guerra, pois um mero problema

familiar desencadeia uma constelação de reflexões sobre a Shoah e a cultura germânica.

Algo semelhante pode ser observada nas lembranças mautnerianas das visitas, quando

criança, à casa dos pais do seu padrasto. A mãe, chamada Memér, que lhe ensinava

francês, era antissemita assim como o pai era um simpatizante nazista. Certa vez – ele

nos conta –, em que estava tomando lições, fora severamente repreendido por sua então

professora. Ela se mostrava frequentemente irritada com a incontornável presença do

“pequeno judeu mestiço”.

Diante disso o vovô Henri liberta a pequena criança do castigo em que fora

colocado, lhe dá bombons, e em seguida toma-o no colo carinhosamente:

Eu me lembro, sentado em seu colo, sentindo-o afagar meus cabelos e bem a

nossa frente uma enorme bandeira nazista com a medonha suástica bem

grande grudada na parede e ele, o vovô Henri, pai deu me padrasto, pintor

alemão nazista, consolando o menino mestiço judeu! Em que labirinto de

emoções fui eu colocado! (MAUTNER, 2006: 48)

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Para ficar em mais um paradigmático fragmento de memória citamos um

episódio que ocorreu no limiar da infância para a adolescência de Mautner: a criação do

seu primeiro partido. Constituído quando ele tinha apenas doze anos – formado por seus

amigos e a refugiada húngara Elisabete de Fiori – “era um partido autoritário, ditatorial,

se bem que tivesse em sua intenção, como em todos os outros do seu estilo em que os

fins justificam os meios, a promessa da grande liberdade posterior.” As sessões de

cinema do bairro, organizado pelo pai do seu amigo Rony, o senhor Dushenes, forneceu

“o núcleo do poder central para que, por meio de uma pequena organização,” ele

“pudesse exercer” a sua própria vontade e de seus aliados e “impô-la à maioria.”

(MAUTNER, 2006: 73-79)

Logo surgiram atritos entre seu grupo e o restante das crianças das ruas Sílvia e

Itapeva. O grupo de Mautner era formado por refugiados do Holocausto e do regime

stalinista além de dois afrodescendentes, todos defensores das ideias democráticas,

socialistas, antinazistas. Os adversários, inconscientemente, “refletiam ideias de

preconceito, racismo e de autoritarismo de grosseria fascista.” (MAUTNER, 2006: 80)

Houve então uma crescente hostilidade entre estes últimos e o grupo

mautneriano que falava mais de uma língua, lia, tinham mais brinquedos e nutriam

curiosidades intelectuais. Tudo culminou com a perseguição de Mautner e a posterior

criação efetiva do partido com seus planos de vingança. O estratagema foi inspirado nos

relatos de Paul Mautner sobre a criação da polícia política durante a Revolução

Francesa por Joseph Fouché – de quem mais tarde Mautner leria sobre sua vida através

de Stefan Zweig.

Foi feito em seguida uma lista negra para então colocar em prática uma

retaliação que consistia em proibir o grupo adversário de participar das projeções de

filmes no bairro. Com a descoberta da repressão do partido pelo organizador das sessões

eles foram instruídos a adotar o pacifismo e reatar com seus antigos colegas o que

resultou em um entendimento geral. Mautner assim acreditava combater o estado de

ódio contra as minorias imigrantes tomando como preceito a lição de seu pai “de que o

nazismo não foi derrotado, apenas perdeu uma batalha” (MAUTNER, 2007: 89).

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Considerações Finais: Infância e História

Que jamais a voz da criança

nela se cale, que caia como um

presente dos céus oferecendo

às palavras ressecadas o brilho

de seu riso, o sal das lágrimas,

sua todo-poderosa selvageria

(Louis-René de Forêts)

Maurice Blanchot – falando da poesia de Louis-René de Forêts que entrelaça

infância e escritura – nos remete às palavras do Rabino Nahman de Breslav, “É proibido

ser velho!”, para depois esclarecer:

O que podemos, em primeiro lugar, entender como: é proibido renunciar a

se renovar, proibido ater-se a uma resposta que já não faria a pergunta –

por fim (mas é sem fim) escrevendo apenas para apagar o que já foi escrito

ou, mais exatamente, escrevendo através do próprio apagamento, mantendo

juntos o esgotamento e o inesgotável: o desaparecimento do que não se

exaure. (BLANCHOT, 2011: 41-41)

Em Jorge Mautner vemos então que essa exigência de uma interminável

escritura da infância é justamente o seu contínuo desaparecimento inacabável: a criança

indestrutível que habita o sujeito que ele é. As rememorações do seu universo infantil

são a inexaurível “origem” dos questionamentos políticos individuais, mas também de

todos aqueles que sobreviveram, como refugiados no Brasil, às catástrofes do século

XX. Por meio de uma incessante evocação de suas lembranças – que muitas vezes se

repetem exaustivamente nos seus romances, ensaios e entrevistas – Mautner constrói

uma imagem de si diante da História, mesmo que seja apenas como um torso

fragmentado.

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Isso ocorre porque, como nos ensina Walter Benjamin, “um acontecimento

vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que um

acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio

antes e depois” (BENJAMIN, 1994: 37). A proliferação incansável das memórias

mautnerianas confirma essa ideia, pois são lembranças inesgotáveis. Nesse sentido

podemos finalmente compreender que Mautner, na sua literatura testemunhal e

autobiográfica, não teme imergir no mundo das imagens poéticas e a partir daí abordar

continuamente traumas culturais e históricos incomensuráveis: “Dos sete para oito até

os meus quinze anos vivi entre sobressaltos e maravilhas, mas mesmo dentro das

maravilhas havia sobressaltos, cacos de escombros despedaçados querendo se

reconstruir.” (MAUTNER, 2006: 49)

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