jorge mautner: história, testemunho e narrativas de si · 2017-07-05 · cacos do passado, mas sem...
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Jorge Mautner: História, Testemunho e Narrativas de Si
REGINALDO SOUSA CHAVES*
Como formar uma imagem de si diante da História?
Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não é
somente o cacho de uva que se amorena, acaba de cair
um raio de sol sobre a minha vida: olhei para trás,
olhei para frente, nunca vi tantas e tão boas coisas de
uma vez... Como não haveria de estar grato a minha
vida inteira? – E por isso me conto a minha vida.
(Friedrich Nietzsche, Ecce Homo)
O escritor Jorge Mautner é um fabuloso narrador de si mesmo. Pois esse dia, de
que fala Nietzsche, de bons presságios, e no qual se pode contar uma vida, ele o
encontrou incontáveis vezes. Há nele uma incansável pulsão narrativa (GAGNEBIN,
2014: 222-223). Entre sua produção escritural – e mais especificamente na sua
autobiografia – temos uma vida em jogo no espaço da escritura. O que nos impõe como
ponto de partida a difícil e complexa questão: como é possível a um sujeito construir
uma imagem de si diante da História? Walter Benjamin nos deixou um sugestivo texto
onde esse problema se coloca de modo explícito:
* Especialista em História Cultural (UFPI) e Mestre em História do Brasil (UFPI). Doutorando em
História Social (UFC). Professor Assistente II da Universidade Estadual do Piauí. Atualmente desenvolve
junto ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará a tese Jorge
Mautner: Demiurgo e Devorador da Cultura brasileira sob a orientação do Prof. Dr. Francisco Régis
Lopes Ramos.
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Torso. Só quem fosse capaz de contemplar o seu próprio passado como fruto
de contrariedades e da necessidade estaria em condições de, em cada
momento presente, tirar dele o máximo partido. Pois aquilo que vivemos um
dia é, na melhor das hipóteses, comparável àquela bela estátua a que o
transporte quebrou todos os membros, e agora mais não tem para oferecer
do que o precioso bloco a partir do qual terá de ser esculpida a forma futura
(BENJAMIN, 2013: 38)
Do mesmo modo Jorge Mautner construiu narrativas autobiográficas através dos
cacos do passado, mas sem a pretensão de uma unidade e congruência das
temporalidades, pois o que está muitas vezes em jogo em sua literatura é o problema da
memória. Como escritor da rememoração, por traços e rastros do seu passado, ele
inventa uma imagem de si diante da História através do lembrar e do esquecer.
Nesse sentido o objetivo deste artigo é então abordar as memórias de Mautner,
levando em consideração que os relatos das suas lembranças estão no centro de sua
produção escritural desde as suas primeiras linhas. É desse material heterogêneo que
nos ocuparemos realizando uma intepretação transversal deles com o objetivo de divisar
em que consiste essa construção de si apontando suas roturas, falhas, repetições,
esquecimentos, traumas e aspectos políticos.
Seguiremos uma fração de tempo que corresponde ao período da chegada dos
seus pais ao Rio de Janeiro – que fugiam da Áustria em função da perseguição nazista
ao seu pai que era judeu –, seu nascimento e as primeiras experiências na cidade de São
Paulo. Logo, discutiremos aqui sua infância, vivida entre os anos quarenta e o início da
década de cinquenta, tal como é rememorada por ele. Como ponto de partida devemos
então abordar dois aspectos extremamente problemáticos dessa escrita: sua dimensão
autobiográfica e o lugar que ela ocupa como literatura de testemunho.
Autobiografia e Literatura de Testemunho
A produção escritural de Mautner é marcadamente autobiográfica. Ele nos diz
em 1962 a propósito da publicação de seu primeiro romance: “Deus da Chuva e da
Morte pode ser autobiografia.” (NEVES, 1962) Já no ano seguinte podemos divisar
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enfáticas declarações a respeito de sua escrita de si: “Eu sou a minha obra.”
(MAUTNER, 2002b: 513); “Minha vida é o que escrevo” (MAUTNER, 2002b: 547).
Mas, a sua escrita de si é devedora de Nietzsche onde o “eu” se mostra como
“multidão” (DAMIÃO, 2006: 119-145):
autobiográfico no sentido da totalidade. Sentido em que eu me reparto, sou
divido, já não sou eu, eu sou todos e tudo. Já estou desindividualizado e então
as coisas que por mim passam e que eu recebo são mensagens de todos os
lugares, que retransmito com racionalidade, vivência, emoção, sangue,
irracionalismo e análise dialética histórica para o papel. É um todo
inseparável. (NEVES, 1962)
Com efeito, em Mautner a autobiografia – em muitos aspectos proustiana – faz
desmoronar o ideal de estabilidade, unidade do sujeito que narra, etc. Isso ocorre porque
“o autos não é mais o mesmo, o bios explode em várias vidas que se entrecruzam e a
grafia segue o entrelaçamento de diversos tempos que não são ordenados por nenhuma
linearidade exclusiva” (GAGNEBIN, 2011: 78). Assim muito embora haja um “eu” nos
textos de Mautner não há um subjetivismo: sua autobiografia não se dá como um mero
relato de sua vida. Ela é uma autoanálise, mas igualmente um diagnóstico do mundo
histórico.
Sua infância – fração de tempo no qual nos detemos – coincide então, ponto a
ponto, com a tentativa de sua família de se erguer entre as ruínas da guerra no Brasil do
fim da Era Vargas. Não é exagero então dizer que se trata de uma escrita das memórias
de infância marcada pelas catástrofes do século XX: guerras, totalitarismos, holocausto,
imigração em massa, etc. Assim suas autobiografias remetem a sua experiência no
espaço onde se encontram as memórias individual e coletiva.
Nesse sentido a pressuposição de um gênero específico – embora válida – não é
aplicável ao nosso literato sem problemas. A condição de que exista nessa escritura a
identidade entre autor, narrador e personagem não se sustenta várias razões. O tecido
autobiográfico mautneriano sempre se encontra como que disseminado em sua vasta
obra. Isso na medida em que, por exemplo, na sua literatura os personagens
frequentemente se chamam, deliberadamente, Jorge.
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Mautner não reconhece em suas obras nenhum pacto autobiográfico (LEJEUNE,
2014). Na obra que mais estaria próxima de respeitar as convenções do gênero – que se
institui também como um pacto referencial e de leitura –, que é O Filho do Holocausto,
as memórias explodem com tal brilho imaginativo, ao apresentar os fragmentos da sua
vida (especialmente a infância), que se chega a duvidar que os limites do protocolo
textual autobiográfico sejam mantidos. O que podemos dizer é que Mautner opera
continuamente a transgressão desse pacto produzindo burlas das normativas desse tipo
de discurso.
Assim a proposta de Paul de Man de que não existe o gênero autobiográfico é
mais apropriada a obra de Mautner. Nessa visada a autobiografia é mais uma figura de
leitura e não um contrato. Por fim, “haveria um ‘momento autobiográfico’, e não um
gênero autobiográfico constituído por normas determinadas; assim, o texto que resulta
desse momento, o qual pode estar incluído em qualquer tipo de escrita, será sempre
insuficiente para revelar o momento de apreensão cognitiva do sujeito.” (DAMIÃO,
2006: 39) Esse tipo de compreensão mostra-se muito mais apropriada para uma obra em
que há uma proliferação desmedida do “momento autobiográfico” (DE MAN, 2012).
Nesse sentido as disseminações das escritas de si em Mautner podem ser lidas como um
arquivo de uma vida – isso se pensarmos em arquivo como potencialidade, inclusão e
exclusão, memória e esquecimento, pista e apagamento, etc.
Entretanto, temos em cena ainda um outro problema. Na diversidade tão grande
de discursos por ele produzidos, situados entre a ficção e a não ficção, a questão que nos
importa não é, propriamente, da existência de um suposto regime factual: não desejamos
aqui estabelecer uma discussão acerca da referencialidade do texto literário – per si
irresolvível. Sendo preferível e profícuo compreender os textos literários mautnerianos
no entrecruzamento entre o irônico e antirônico, quer dizer, entre uma pretensão de
busca pelo “real” e seu abandono (SELIGMAN-SILVA, 2003: 371-372).
Em sua dimensão antirônica vemos a tentativa de dar uma relato de sua infância
marcada pelo problema da tentativa de sua família de reconstrução de suas vidas sob os
escombros das guerras e das perseguições. Do outro lado – o irônico – lemos o livre
desfiar de uma linguagem que se dobra sobre si mesma infinitamente na vertigem
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autoreferencial. O que significa um desafio para o pesquisador já que algumas vezes as
fronteiras entre um e outro momento do texto não estão dados de uma vez por todas.
Com efeito, um cotejamento com seus outros relatos são imprescindíveis para
acessar esse ponto onde emergem os testemunhos. Nesse contexto, cindidas entre o
exclusivamente irônico e o testemunhal, encontram-se basicamente os seus romances
dos anos sessenta. Livros onde vemos várias camadas de significação onde a deriva
irônica abre espaço ao testemunho – especialmente nos romances Deus da Chuva e da
Morte (1962) e Kaos (1963). No campo estrito de uma literatura do testemunho, se
localizam sua autobiografia O Filho do Holocausto (2006) e seus ensaios histórico-
culturais como Fragmentos de Sabonete (1973) e Panfletos da Nova Era (1980).
Bem entendido, na literatura de testemunho não se trata de uma representação da
realidade, mas de uma abordagem do “real” pela esfera da literatura. Aqui tomamos
distância do realismo em favor da ideia de que o “real” narrado por Mautner é da ordem
do trauma cultural – cicatrizes na memória que desafiam as formas convencionais de
simbolização: “real” e “referência” não são aqui equivalentes. Encontramos na verdade
tentativas várias de comunicação do que foram experiência limites: como os campos de
extermínio nazistas. Mesmo quando as escritas das memórias parecem entrar no registro
da imaginação o teor de uma verdade ética se faz presente como uma tradução da dor e
da morte (SELIGMAN-SILVA, 2003).
Assim devemos partir da ideia de que no caso dessa literatura há uma relação
estreita entre trauma individual e coletivo. A exemplo dos sonhos coletados pela judia
Charlotte Beradt entre 1933 e 1939 – portanto na Alemanha sob o Terceiro Reich – que
tem, na condição de narrativas oníricas sobreviventes, algo a nos dizer sobre o terror da
perseguição antissemita (DIDI-HUBERMAN, 2014: 137-138). Ou mesmo o romance
gráfico Maus de Art Spiegelman (SPIEGELMAN, 2005). Em todos esses casos
transmitir o intransmissível, do sofrimento das experiências das catástrofes históricas, se
revela uma tarefa urgente, complexa e que desafia as convenções representacionais.
Afinal, como o horror e o genocídio podem ser comunicados pela linguagem? Com
quais meios literários se podem dar visibilidade a dor da imigração em massa? A escrita
literária pode nesse sentido buscar romper as formas de simbolização estabelecidas. E,
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com isso, acessar esses estratos traumáticos da história sem que o realismo seja
conservado em sua tranquilidade.
Por isso temos em Mautner literatura de testemunho mesmo quando as memórias
da Shoah de sua família ecoam através de imagens, da imaginação, da poesia enfim,
para além das representações realistas. Nessa literatura predominam não o esforço de
convocação, pelo sujeito soberano, das lembranças; mas a irrupção de uma memória
involuntária que toma de assalto o sujeito (GAGNEBIN, 2006: 145-160). Como ele
mesmo diz em 1962: “Recordar um passado é quase um brincar com a morte, um estalar
do coração.” (MAUTNER, 2002a: 60)
Em outra oportunidade Mautner – citando Marcel Proust e seguindo sua trilha –
se vê como “supercronista social” do “tempo nostálgico chamado saudade”, ou seja, um
“tempo mautneriano”: “com batuque.” (MAUTNER, 2002: 213) Tomando então como
parâmetro de intepretação essas perspectivas passemos então para a discussão em torno
dessas memórias de infância. Mas, igualmente, daquilo que foi transmitido a ele
posteriormente já que as lembranças da sua família, repetidas tantas vezes, se tornaram
as suas também. São como rastros indispensáveis de sua tarefa pessoal de rememoração.
O desmoronamento do mundo: O Filho da Guerra
Belezas são coisas acesas por dentro.
Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento.
Lágrimas negras caem, saem, doem.
(Jorge Mautner)
A infância de Mautner – tal como é rememorada – está mergulhada em um
ambiente íntimo repleto de cicatrizes históricas. Isso quer dizer que os sofrimentos de
toda a sua família – na verdade toda uma geração de judeus que se tornaram refugiados
em razão da perseguição antissemita nazista – fazem parte de suas próprias memórias.
Histórias repetidas cotidianamente quase como narrativas domésticas. O Brasil se
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mostra então nos seus relatos como espaço de acolhimento que impedira que ele e seus
pais fossem mortos em campos de extermínio: “Já pensaram como se ama a terra que te
possibilita nascer, sabendo que o contrário você seria cinza de forno crematório nazista,
na terra dos vampiros?” (MAUTNER, 2002c: 197). Um personagem do romance Kaos
(1963) nos diz:
E ouça meu amigo, o Brasil é a melhor terra do mundo, aqui existe a paz e a
liberdade! O que adianta a Rússia ter Sputnik e os USA ter tanto aço se aqui
no Brasil é que existe a paz e a liberdade e a felicidade? Brasil é a melhor
coisa do mundo, nós precisamos preservar esta coisas! Veja só, brasileiro no
fim de um jogo, Corinthians, São Paulo, meu filho, Getúlio já disse: orgulhe-
se deste país, meu filho a guerra é horrível. (MAUTNER, 2002b: 435)
No entanto as aflições na idílica Terra Brasilis – sua família desembarcou na
então capital federal, o Rio de Janeiro, onde ele nasceu em 1941 – não deixam
obviamente de ter lugar nessas rememorações. Nesse sentido em Deus da Chuva e da
Morte (1962) lemos, em várias passagens, as narrações que nos dão a dimensão do
trauma histórico de toda uma geração de imigrantes judeus. Nesse romance Mautner
fala de todas os problemas relativos a sua identidade fraturada entre o universo cultural
europeu, trazido pelos pais, e o brasileiro.
O pai, Paul Mautner, era um “judeu de uma cultura refinadíssima e aristocrata (e
por isto mesmo fraco, e niilista).” A sua mãe, Anna Illich, uma católica “austríaca de
nascimento e eslava de descendência”, “abandona a Áustria por causa de Adolph Hitler
e por causa de” seu marido. Ela “poderia ter permanecido na Áustria, mas ela fez isso
por amor.” (MAUTNER, 2002a: 63) O que “representou um grande sacrifício: deixar
toda a família dela, pais, irmãos (muitos) e um grande número de primos e primas
porque os eslavos costumam ter famílias grandes.” (MAUTNER, 2002a: 64)
Ela está, a essa altura, grávida do próprio Mautner tendo que enfrentar uma
duríssima viagem em um navio terceira classe repleto de imigrantes em meio a miséria e
a agonia. Antes porém de subir ao navio Paul tem todo o seu dinheiro roubado por outro
judeu refugiado. O que os coloca em uma situação de extrema penúria. Trata-se de um
contexto familiar dramático quando da chegada ao Brasil:
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Minha mãe grávida, sem nenhum tostão, longe dos seus (e ela tinha uma
verdadeira adoração fanática pelo pai e pela mãe e pelos irmãos como os
eslavos costumam ter). Ela é obrigada a dormir em pensões coletivas. Meu
pai obtém emprego mas gasta todo o dinheiro que ganha jogando no Cassino
e na loteria. Minha mãe está no auge do desespero e diz para ele: “É para
isto que eu saí da Áustria”? Ele ganha bastante porque trabalha na
Interamericana junto com David Nasser e Carlos Lacerda. Ele compra um
apartamento. Mas continua jogando e jogando. Os dirigentes da
Interamericana não gostam que um de seus empregados gasta dinheiros
jogando (...) que nem num delírio. Ele chega ao ponto de jogar o próprio
apartamento que comprara. Aí minha mãe está no auge do desespero. Ela diz
“Você me fez voltar a dormir em pensões coletivas, grávida como eu estou,
eu te odeio!” Dias depois ela recebe uma carta noticiando a morte por
fuzilamento da irmã dela pessoa de quem ela mais gosta. (Compreenda a
família eslava). E depois recebe uma carta noticiando a morte do pai e da
mãe dela. Um outro irmão é enforcado por batalhar na resistência
Iuguslava. E finalmente a filha dela que está na Inglaterra, minha irmã Susi
manda uma carta dizendo que não quer mais saber da mãe dela que a deixa
na Inglaterra, enquanto se diverte no Brasil “indo a bailes e levando vida
social e mundana.” (...) Minha mãe grávida, na miséria, desprezada pela
filha, enganada pelo marido, com parentes e pais trucidados quer se
suicidar. Impedem-na de se suicidar e ela é recolhida por muitos dias numa
Clínica de Doentes Nervosos. Verão. O Rio de Janeiro fervilha. Já é
Carnaval. Minha mãe se torna paralítica e não consegue se mover nem um
pouco. O doutor Rosentein médico estrangeiro conhecido e também
imigrante diz a ela: “tua doença, tua paralisia é um caso essencialmente teu.
Eu não posso fazer nada. Se você não tiver forças por si própria eu não
posso fazer nada. Mas lembre-se do filho que vai nascer.” E minha mãe
rezou porque ela é muito católica e eslava e levantou-se. Eu nasci dias
depois no dia 17 de Janeiro de 1941. (MAUTNER, 2002a: 64)
Aflições sem amenidades: são as memórias da dor transmitidas a ele. Mas, não
há apenas relatos de sofrimento. Essa infância é também atravessada por momentos
efusivos de deslumbramento no descobrimento da cultura brasileira – da sua formação
identitária fissurada. Lembranças proustianas do Rio de Janeiro surgem então nos
rastros ofuscantes do brilho do passado reencontrado no retorno do seu pai das viagens
que realizava como caixeiro viajante:
depois o trem parou e era de madrugada e o céu cintilava de estrelas! O frio
desaparecera e eu seria capaz de jurar que era verão! Eu olho para o alto e
um manto azul dançante cravejado de pedrarias olhava para mim e eu me
lembrei do Rio de Janeiro, das noites de lá, das noites de verão, eu na minha
casa em Santa Tereza, minha mãe no fundo da sala atrás de mim e eu e
minha babá olhando pra um rubi enorme que meu pai mostrava. E depois
águas-marinhas, os topázios, os rubis, os diamantes que apareciam na mão
dele em cima de uma flanela branca! Sim! Joias. O céu e mão coberta por
uma flanela e por joias. Tudo brilhava! E a vida também! É que meu pai
naquele tempo era caixeiro viajante (MAUTNER, 2002a: 188)
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Mautner, constantemente, escreve sobre a sua babá “preta, alta, magra e
inteligente”, “espírita e quase macumbeira”: Lúcia. Nostalgicamente relembra que, no
Rio de Janeiro, quando ele tinha cinco ou seis anos, ela o leva para a igreja da Glória
onde encontra o quadro de São Jorge. Nas festas religiosas ele também encontra, ao lado
da babá, “o povo: mulatos, pretos, brancos, macumbeiros.” Primeiro dos elementos de
alusão a brasilidade para uma criança que aprendia a língua alemã em casa. Não demora
muito para as crises e desencontros separarem Anna e Paul Mautner.
Em seguida sua mãe conheceu o seu novo marido em uma pensão miserável para
imigrantes pobres. Eles decidem ir para São Paulo onde morava o, agora, padrasto de
Mautner: Henri Müller. Antes de ir, Lúcia dá ao pequeno Mautner um fetiche. E, numa
tentativa constante de construir-destruir o texto-memória, ele dirá: “as imagens
religiosas da minha infância (...) [estão] se confundindo e com tendências de se
mesclarem numa só, unidade religiosa.” (MAUTNER, 2002a: 85)
A Politização da Vida
Justapostos a essas recordações, envoltas em alegrias e tristezas, Mautner nos
mostra, em sua produção escritural, o quanto suas memórias de infância são acionadas
em razão de seu conteúdo político. É possível vislumbrar um processo de politização da
vida e do espaço da casa onde se discutia a criação do Estado de Israel, o comunismo
Soviético, etc. nas reuniões familiares. Os desentendimentos domésticos – onde o
padrasto de Mautner é acusado de nazista, ou quando Ana Mautner diz a seu ex-marido
que ele não passa de um judeu – mostram o quanto a política invadiu o mundo privado
de Jorge Mautner.
Mesmo um simples momento de diversão com brinquedos estava tomado pelas
memórias familiares da guerra: “Quando criança, eu brincava com os soldados de
chumbo para formação da falange macedônica, seguia ordens de artilharia de Napoleão,
fingia que era espião e anotava todos os aviões que subiam e desciam.” (MAUTNER,
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2013: 102) De fato, são nos infinitamente pequenos eventos infantis que a politização se
mostra em toda a sua espessura.
Com efeito, o episódio em que a mãe de Mautner exige que ele cuide
zelosamente de Pitz, seu cachorrinho basset, sob a pena de não o encontrar caso
ignorasse seus deveres, mostra as pequenas fissuras da guerra nas suas memórias de
infância. Nessa lembrança é o fantasma da “morte, organizada, racionalizada descoberta
na Alemanha” que vem à tona (DURAS, 1986: 59). Assim, como ele recorrentemente
se mostra negligente para com suas obrigações, ocorre o inesperado para a criança:
Quando naquele certo dia, ao entardecer, cheguei do colégio e, ao procurar
meu querido Pitz, não o encontrei em nenhum lugar, comecei a sentir as
dores dos horrores do pesadelo da morte medonha do ser querido. Comecei
a chorar, e chorei por muitos dias, revoltado com a execução sumária por
parte da minha mãe e do meu padrasto. Meditei muito sobre a importância e
permanência do Demônio Mefistófeles na cultura germânico-austríaca,
mesmo por parte de algumas vítimas do Holocausto, exercendo cruel
disciplina e impiedoso julgamento como era o caso de minha mãe. Que
decepção, que trauma, que dor, e, mesmo assim, quem dera o tempo voltasse.
(MAUTNER, 2006: 110-111)
Lembranças que se confundem com as da guerra, pois um mero problema
familiar desencadeia uma constelação de reflexões sobre a Shoah e a cultura germânica.
Algo semelhante pode ser observada nas lembranças mautnerianas das visitas, quando
criança, à casa dos pais do seu padrasto. A mãe, chamada Memér, que lhe ensinava
francês, era antissemita assim como o pai era um simpatizante nazista. Certa vez – ele
nos conta –, em que estava tomando lições, fora severamente repreendido por sua então
professora. Ela se mostrava frequentemente irritada com a incontornável presença do
“pequeno judeu mestiço”.
Diante disso o vovô Henri liberta a pequena criança do castigo em que fora
colocado, lhe dá bombons, e em seguida toma-o no colo carinhosamente:
Eu me lembro, sentado em seu colo, sentindo-o afagar meus cabelos e bem a
nossa frente uma enorme bandeira nazista com a medonha suástica bem
grande grudada na parede e ele, o vovô Henri, pai deu me padrasto, pintor
alemão nazista, consolando o menino mestiço judeu! Em que labirinto de
emoções fui eu colocado! (MAUTNER, 2006: 48)
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Para ficar em mais um paradigmático fragmento de memória citamos um
episódio que ocorreu no limiar da infância para a adolescência de Mautner: a criação do
seu primeiro partido. Constituído quando ele tinha apenas doze anos – formado por seus
amigos e a refugiada húngara Elisabete de Fiori – “era um partido autoritário, ditatorial,
se bem que tivesse em sua intenção, como em todos os outros do seu estilo em que os
fins justificam os meios, a promessa da grande liberdade posterior.” As sessões de
cinema do bairro, organizado pelo pai do seu amigo Rony, o senhor Dushenes, forneceu
“o núcleo do poder central para que, por meio de uma pequena organização,” ele
“pudesse exercer” a sua própria vontade e de seus aliados e “impô-la à maioria.”
(MAUTNER, 2006: 73-79)
Logo surgiram atritos entre seu grupo e o restante das crianças das ruas Sílvia e
Itapeva. O grupo de Mautner era formado por refugiados do Holocausto e do regime
stalinista além de dois afrodescendentes, todos defensores das ideias democráticas,
socialistas, antinazistas. Os adversários, inconscientemente, “refletiam ideias de
preconceito, racismo e de autoritarismo de grosseria fascista.” (MAUTNER, 2006: 80)
Houve então uma crescente hostilidade entre estes últimos e o grupo
mautneriano que falava mais de uma língua, lia, tinham mais brinquedos e nutriam
curiosidades intelectuais. Tudo culminou com a perseguição de Mautner e a posterior
criação efetiva do partido com seus planos de vingança. O estratagema foi inspirado nos
relatos de Paul Mautner sobre a criação da polícia política durante a Revolução
Francesa por Joseph Fouché – de quem mais tarde Mautner leria sobre sua vida através
de Stefan Zweig.
Foi feito em seguida uma lista negra para então colocar em prática uma
retaliação que consistia em proibir o grupo adversário de participar das projeções de
filmes no bairro. Com a descoberta da repressão do partido pelo organizador das sessões
eles foram instruídos a adotar o pacifismo e reatar com seus antigos colegas o que
resultou em um entendimento geral. Mautner assim acreditava combater o estado de
ódio contra as minorias imigrantes tomando como preceito a lição de seu pai “de que o
nazismo não foi derrotado, apenas perdeu uma batalha” (MAUTNER, 2007: 89).
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Considerações Finais: Infância e História
Que jamais a voz da criança
nela se cale, que caia como um
presente dos céus oferecendo
às palavras ressecadas o brilho
de seu riso, o sal das lágrimas,
sua todo-poderosa selvageria
(Louis-René de Forêts)
Maurice Blanchot – falando da poesia de Louis-René de Forêts que entrelaça
infância e escritura – nos remete às palavras do Rabino Nahman de Breslav, “É proibido
ser velho!”, para depois esclarecer:
O que podemos, em primeiro lugar, entender como: é proibido renunciar a
se renovar, proibido ater-se a uma resposta que já não faria a pergunta –
por fim (mas é sem fim) escrevendo apenas para apagar o que já foi escrito
ou, mais exatamente, escrevendo através do próprio apagamento, mantendo
juntos o esgotamento e o inesgotável: o desaparecimento do que não se
exaure. (BLANCHOT, 2011: 41-41)
Em Jorge Mautner vemos então que essa exigência de uma interminável
escritura da infância é justamente o seu contínuo desaparecimento inacabável: a criança
indestrutível que habita o sujeito que ele é. As rememorações do seu universo infantil
são a inexaurível “origem” dos questionamentos políticos individuais, mas também de
todos aqueles que sobreviveram, como refugiados no Brasil, às catástrofes do século
XX. Por meio de uma incessante evocação de suas lembranças – que muitas vezes se
repetem exaustivamente nos seus romances, ensaios e entrevistas – Mautner constrói
uma imagem de si diante da História, mesmo que seja apenas como um torso
fragmentado.
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Isso ocorre porque, como nos ensina Walter Benjamin, “um acontecimento
vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que um
acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio
antes e depois” (BENJAMIN, 1994: 37). A proliferação incansável das memórias
mautnerianas confirma essa ideia, pois são lembranças inesgotáveis. Nesse sentido
podemos finalmente compreender que Mautner, na sua literatura testemunhal e
autobiográfica, não teme imergir no mundo das imagens poéticas e a partir daí abordar
continuamente traumas culturais e históricos incomensuráveis: “Dos sete para oito até
os meus quinze anos vivi entre sobressaltos e maravilhas, mas mesmo dentro das
maravilhas havia sobressaltos, cacos de escombros despedaçados querendo se
reconstruir.” (MAUTNER, 2006: 49)
Referências Bibliográficas:
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Barrento. Belo Horizonte: Autêntica: 2013.
_________. A Imagem de Proust. Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. (v. I).
Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BLANCHOT, Maurice. Uma voz vinda de outro lugar. Tradução: Adriana Lisboa. Rio de
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DAMIÃO, Carla Milani. Sobre o Declínio da “Sinceridade”. Filosofia e autobiografia de
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DE MAN, Paul. Autobiografia como Des-figuração. Tradução:
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DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-lumes. Tradução: Vera Casa Nova e
Márcia Arbex. Belo Horizonte: UFMG, 2014.
DÜRAS, Marguerite. A Dor. Tradução: Vera Adami. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Limiar, aura e rememoração. Ensaios sobre Walter Benjamin.
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_______. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2011.
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LEJEUNE, Philippe. O Pacto Autobiográfico. In: _____. O Pacto Autobiográfico: de
Rousseau à Internet. Organizadora: Jovita Maria Gerheim Noronha. Tradução: Jovita Maria
Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Neves. 2ª Ed. Belo Horizonte: UFMG, 2014.
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