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Como surgiu o convite para dirigir o Serviço Internacional da Fundação Calouste Gulbenkian? Durante cerca de dez anos fui diplo- mata no Ministério dos Negócios Es- trangeiros. Estava na Embaixada de Portugal em Paris, quando fui convi- dado para vir para o Serviço Interna- cional da Fundação Calouste Gulben- kian. Embora desde muito jovem me interessasse pelos assuntos culturais, foi um grande desafio, na medida em que a minha actividade não estava di- rectamente relacionada com esta área. Deixei a embaixada no dia 30 de Se- tembro de 1992 e comecei a trabalhar na Fundação a 1 de Outubro. Como tem início um processo de res- tauro e que tipos de apoio são dispo- nibilizados pela Fundação? Os processos são todos diferentes, mas têm um esqueleto comum. A primeira condição está relacionada com o facto do processo se iniciar sempre por um convite por parte do proprietário do monumento (Estado, Igreja, Câmaras Municipais,...) – pois trata-se de patri- mónio que actualmente não pertence a Portugal, o que, normalmente, se tra- duz numa primeira viagem de pros- pecção para verificar o que está em causa, qual o estado do edifício e se é possível recuperá-lo. A segunda condição prende-se com os acordos que poderão vir a ser estabele- cidos em relação ao que a Fundação po- de fazer, já que, em princípio, a entida- de local deverá garantir uma parte dos custos da intervenção. Assim, as auto- ridades locais têm de assegurar uma parte dos custos, seja através de mate- riais, de mão-de-obra ou de facilidades alfandegárias, para que haja alguma forma de compromisso que demons- tre o seu empenho no restauro. Aterceira condição implica que as auto- ridades se comprometam na manu- tenção do monumento e no seu bom funcionamento após a inauguração dos trabalhos. Depois de garantidas estas condições preliminares podemos então dar início à concretização dos trabalhos. O apoio pode efectivar-se a diversos níveis: financeiro, técnico, ou financei- ro e técnico. Depende das circunstân- cias especiais dos países, da disponibi- lidade dos proprietários dos edifícios. No entanto, a decisão de prestar apoio é sempre tomada depois dos parece- res dos nossos consultores (museólo- gos, historiadores, arquitectos). Há algumas directrizes ao nível do restauro e manutenção de obras ar- quitectónicas que a Fundação faça questão que sejam cumpridas? Somos uma fundação portuguesa que, ao nível internacional, entre outras áreas, se ocupa da promoção da cultu- ra e da História de Portugal. Enquanto tal, a nossa missão passa obrigatoria- Pedra & Cal n.º 28 Outubro . Novembro . Dezembro 2005 ENTREVISTA Tema de Capa 9 Monumentos, documentos e in- fluências linguísticas são alguns dos vestígios da presença portu- guesa espalhados pelos diversos continentes. Através do seu Serviço Interna- cional, dirigido por João Pedro Garcia, a Fundação Calouste Gulbenkian apoia a recuperação do Património Histórico cons- truído pelos portugueses no mundo. João Pedro Garcia, Fundação Calouste Gulbenkian Conservação do Património Português no Mundo TELMO MILLER

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Page 1: João Pedro Garcia, Fundação Calouste Gulbenkian ... · de fazer, já que, em princípio, a entida-de local deverá garantir uma parte dos custos da intervenção. Assim, as auto-ridades

Como surgiu o convite para dirigir oServiço Internacional da FundaçãoCalouste Gulbenkian?Durante cerca de dez anos fui diplo-mata no Ministério dos Negócios Es-trangeiros. Estava na Embaixada dePortugal em Paris, quando fui convi-dado para vir para o Serviço Interna-cional da Fundação Calouste Gulben-kian. Embora desde muito jovem meinteressasse pelos assuntos culturais,foi um grande desafio, na medida emque a minha actividade não estava di-rectamente relacionada com esta área.Deixei a embaixada no dia 30 de Se-tembro de 1992 e comecei a trabalharna Fundação a 1 de Outubro.

Como tem início um processo de res-tauro e que tipos de apoio são dispo-nibilizados pela Fundação?Os processos são todos diferentes, mastêm um esqueleto comum. Aprimeiracondição está relacionada com o facto

do processo se iniciar sempre por umconvite por parte do proprietário domonumento (Estado, Igreja, CâmarasMunicipais,...) – pois trata-se de patri-mónio que actualmente não pertenceaPortugal, o que, normalmente, se tra-duz numa primeira viagem de pros-pecção para verificar o que está emcausa, qual o estado do edifício e se épossível recuperá-lo. Asegunda condição prende-se com osacordos que poderão vir a ser estabele-cidos em relação ao que a Fundação po-de fazer, já que, em princípio, a entida-de local deverá garantir uma parte doscustos da intervenção. Assim, as auto-ridades locais têm de assegurar umaparte dos custos, seja através de mate-riais, de mão-de-obra ou de facilidadesalfandegárias, para que haja algumaforma de compromisso que demons-tre o seu empenho no restauro. Aterceira condição implica que as auto-ridades se comprometam na manu-

tenção do monumento e no seu bomfuncionamento após a inauguração dostrabalhos. Depois de garantidas estascondições preliminares podemos entãodar início à concretização dos trabalhos.O apoio pode efectivar-se a diversosníveis: financeiro, técnico, ou financei-ro e técnico. Depende das circunstân-cias especiais dos países, da disponibi-lidade dos proprietários dos edifícios.No entanto, a decisão de prestar apoioé sempre tomada depois dos parece-res dos nossos consultores (museólo-gos, historiadores, arquitectos).

Há algumas directrizes ao nível dorestauro e manutenção de obras ar-quitectónicas que a Fundação façaquestão que sejam cumpridas?Somos uma fundação portuguesa que,ao nível internacional, entre outrasáreas, se ocupa da promoção da cultu-ra e da História de Portugal. Enquantotal, a nossa missão passa obrigatoria-

Pedra & Cal n.º 28 Outubro . Novembro . Dezembro 2005

ENTREVISTATema de Capa

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Monumentos, documentos e in-

fluências linguísticas são alguns

dos vestígios da presença portu-

guesa espalhados pelos diversos

continentes.

Através do seu Serviço Interna-

cional, dirigido por João Pedro

Garcia, a Fundação Calouste

Gulbenkian apoia a recuperação

do Património Histórico cons-

truído pelos portugueses no

mundo.

João Pedro Garcia, Fundação Calouste Gulbenkian

Conservação do PatrimónioPortuguês no Mundo

TELMOMILLER

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ENTREVISTA

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mente por valorizar a componenteportuguesa. Preservar o monumentosignifica assegurar-lhe o futuro. Paracumprir esse objectivo e no caso da ar-quitectura, isso passa pelo respeito epela aplicação das recomendações in-

ternacionais sobre o restauro de mo-numentos. Refira-se que o arquitectoJoão Campos, nosso principal consul-tor nesta área, é membro do ICOMOSe está naturalmente a par das directri-zes emanadas por aquele órgão.

Durante um processo de restauro háobstáculos a ultrapassar?Todos os processos são diferentes, nãopodendo fazer-se comparações, nemfalar de um caso tipo. Construir e or-ganizar um museu em Cochim é dife-

Palácio da Água (Taman Sari, Indonésia) – Vista das piscinas e do pavilhão do Sultão (antes e depois da intervenção, respectivamente)

Forte de Jesus em Mombaça (Quénia), antes e depois da intervenção, respectivamente

Igreja do Santo Rosário (Dhaka, Bangladesh) – Vista exterior a partir do cemitério (antes e depois do restauro, respectivamente)

RUIOCHÔA

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rente de restaurar um palácio na In-donésia. Umprojecto pode apresentar vicissitu-des de vária ordem, desde os aspectospolíticos (uma revolução armada porexemplo, impediria o acesso ao monu-mento) às causas naturais, como ummaremoto (veja-se os estragos do re-cente tsunamino Índico que felizmentenão trouxe consequências para qual-quer dos monumentos que restaurá-mos na região). Ou seja, há processosmais lentos e outros mais rápidos. Todo o trabalho tem dificuldades e en-volve algumas vezes questões sobrecritérios de valorização de determina-do aspecto, mais histórico ou mais tu-rístico, do monumento. Mas as moti-vações de ambas as partes levam sem-pre ao encontro da solução ideal. Re-corde-se que está em causa patrimó-nio que exerce um apelo tão forte paraPortugal como para o país onde se lo-caliza. Por exemplo, foi com surpresaque recebemos um pedido do Irão pa-ra a reabilitação da fortaleza de Or-muz, um marco com forte carga políti-ca, histórica e diplomática.

Quais as acções mais marcantes que aFundação já efectuou?As acções mais marcantes inscrevem--se em duas ordens de classificação: ob-jectiva, face à reconhecida importânciado monumento, e subjectiva, ou seja,encarada de um ponto de vista pessoal.O Forte de Jesus, em Mombaça, noQuénia, é uma fortaleza imponentíssi-ma, que começámos a restaurar em1958, quando o Quénia ainda erainglês. O Quénia tem imensas particu-laridades étnicas e religiosas. Todavia,o Forte é visitado por diversas escolasde todas as comunidades da cidade,funcionando como um elemento depacificação dos conflitos latentes nopaís. Decorridos mais de quarentaanos desde a primeira intervenção, foinecessário um novo arranjo e realizartrabalhos de estabilização, tendo estaúltima fase de reconstrução ficadoconcluída em 2001. É de salientar também o Forte de SãoJoão Baptista de Ajudá, no Benim, umenclave português que em 1960 se tor-

nou independente. Além de que visi-tar o Benim foi uma experiência como-vente, nomeadamente o facto de, nafachada principal do Forte, ver dese-nhado o escudo português tendo porbaixo escrito “Forte de S. João Baptistade Ajudá” e, na entrada, deparar coma frase “Bem-vindo seja quem vier porbem” escrita num azulejo.Posso, ainda, referir a Torre de Arzila,mandada construir por D. Manuel I edesenhada pelo mesmo arquitecto doMosteiro dos Jerónimos, Diogo Boy-tac, que, para o efeito, teve de inter-romper os trabalhos que aqui dirigiapara partir para Marrocos e construira fortaleza onde a torre se inscreve. Alenda diz que foi lá que D. Sebastiãopassou a última noite antes da batalhade Alcácer Quibir.No segundo caso, e de um ponto devista subjectivo, destaco o museu daDiocese de Cochim, na Índia, onde noJardim do Paço Episcopal existia umterreno vago. Ali viemos a construir omuseu que é um dos mais modernos eo primeiro totalmente acessível a defi-cientes motores em todo o país. Bene-ficiou das mais diversas tecnologiasmuseológicas. Em Fevereiro de 2001inaugurámos um edifício arejado que,não sendo muito grande, permiteapresentar ao público objectos impor-tantes da História religiosa indo-por-

tuguesa, de uma forma atraente e pe-dagógica. Este projecto levou-me à Ín-dia 26 vezes, acompanhado pela nossaconsultora para a área das artes deco-rativas (a Senhora D. Maria HelenaMendes Pinto, uma pessoa notável).Destaco, também, a Igreja do SantoRosário em Dacca, no Bangladesh. De-pois de formalizado o acordo, antes decomeçarmos as obras de restauro, oempreiteiro anunciou o dia em que iaser inaugurada a obra e disse tambémquanto ia custar. Num país onde exis-tem tantas dificuldades, inaugurámosefectivamente a Igreja exactamente nodia em que o empreiteiro comunicarae custou precisamente o que fora pre-visto. Esta experiência ficou marcadana minha memória até hoje.

Está em curso algum processo? Qual,onde e de que forma está a decorrer?Entregámos recentemente às autori-dades de Marrocos o projecto para res-taurar a Catedral de Safim; tambémentregámos ao Governo do Irão o pro-jecto de restauro de duas fortalezas – de Ormuz e de Queshm. Estamosactualmente à espera de uma respostaquanto à continuidade da nossa parti-cipação nos projectos e quanto à parti-cipação local. Depois disso, entrar-se--á em nova fase de negociações, em queserá definido o apoio da Fundação.

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“ (…) Há que proporcionar

as condições para que

ospaíses se interessem

pelo património comum:

já recuperámos

vários monumentos

-mais de trinta - mas

os portugueses estiveram

um pouco por todo

omundo, o que significa

que ainda há muito

para fazer. (…)”

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ENTREVISTA

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Tema de Capa

Quem são os responsáveis dos pro-jectos feitos pela Fundação?Os responsáveis são os nossos arqui-tectos, pois são eles que os elaboram.Por vezes nem existem plantas dosedifícios que se pretendem recuperar,exigindo, por isso, um levantamentoarquitectónico, embora todo o traba-lho feito pela Fundação, incluindo levantamentos e projectos, fique nosnossos arquivos. Além disso, para ca-da monumento intervencionado aFundação manda executar uma ma-queta, o que permite uma melhorapreciação das propostas e uma visua-lização global do projecto.

A Fundação considera importantemostrar à sociedade o trabalho queefectua em termos de recuperação dopatrimónio? De que modo é feita es-sa divulgação?Adivulgação é muito importante. Nãose trata apenas de “publicitar” o tra-balho realizado, mas é igualmenteuma forma de mobilizar o interesse pa-ra um património que a todos respeita.Divulgamos a nossa acção através deentrevistas e de artigos na imprensa. Temos também uma exposição itene-rante com projectos, maquetes e foto-grafias dos monumentos, antes e de-pois da intervenção. Aexposição já foiapresentada em várias cidades estran-geiras (Bilbau, Barcelona, Paris) e, emPortugal, esteve em Lisboa e no Porto.Existe uma brochura que é distribuídagratuitamente ao público que a visita.Foi também há alguns anos publicadoum excelente livro que aborda os pro-jectos da Fundação, da autoria de Ma-ria João Avillez, com fotografias de RuiOchôa, do qual foi feita uma edição eminglês para divulgação internacional.Por sua vez, a página do Serviço no si-te da Fundação é um instrumento ca-da vez mais consultado.

Qual a relevância da colaboração doGoverno Português (por exemplo, doMinistério dos Negócios Estrangei-ros) nestas iniciativas da Fundação?Temos tido pontualmente uma exce-lente colaboração do Ministério dos

Negócios Estrangeiros, ao nível dasembaixadas e dos consulados portu-gueses nos países onde decorrem asnossas intervenções. Para exemplifi-car, posso referir o caso específico daFortaleza de Ormuz, em que recebe-mos um apoio extraordinário do entãoembaixador de Portugal em Teerão,José Manuel Arsénio, que acompa-nhou sempre as nossas missões e faci-litou todos os contactos com as autori-dades daquele País.

Como tem sido encarada pelas popu-lações e autoridades locais a acção daFundação na conservação e restaurode construções históricas no seu ter-ritório?São as autoridades daqueles paísesque nos pedem para restaurar o mo-numento, havendo um diálogo per-manente até chegarmos à inaugu-ração. Assim, encaram bem a nossa co-laboração, não só porque são elas quenos pedem para restaurar o monu-mento, mas também porque vão assis-tindo a toda a evolução. Em relação às populações, há muitoscasos em que estas encaram com ale-gria a renovação dos edifícios. Veja-seo já mencionado exemplo do Forte deJesus em Mombaça, no Quénia, ondetodas as comunidades (cristãs, muçul-manas, animistas) sentem que o Forteé um monumento importante.

Eem relação à sociedade portuguesa,esta tem demonstrado estar preocu-pada com a salvaguarda e valorizaçãodo património e interessada nasacções da Fundação?Pelo número de pessoas que têm vi-sitado as nossas exposições, é possí-vel afirmar que a nossa acção é tidacomo significativa. Esse interessetambém pode ser comprovado pelospedidos que nos chegam (nomeada-mente das universidades) para pro-ferirmos conferências sobre esta te-mática.Além disso, a própria comunicaçãosocial tem estado atenta ao nosso tra-balho, o que reflecte o interesse da so-ciedade civil.

Que medidas são necessárias tomarde forma a valorizar e incrementar asacções de conservação e restauro dopatrimónio português espalhado pe-lo mundo?Há que proporcionar as condições paraque os países se interessem pelo patri-mónio comum: já recuperámos váriosmonumentos – mais de trinta – mas osportugueses estiveram um pouco portodo o mundo, o que significa que ain-da há muito para fazer.

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Exposição Itinerante do Serviço Internacional da Fundação Calouste Gulbenkian

DORA FERREIRA,Loja da Imagem