joão do vale, o musical · 2020-05-06 · 5 eu troco o samba por um beijo seu, meu amor samba é...

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1 João do Vale, O Musical Felipe Correa Prólogo (Entra o Locutor e se posiciona. Há no palco um rádio) Locutor Rádio Nacional do Rio de Janeiro, de plantão pelo Brasil, comandando uma grande rede de emissoras integradas na Guanabara ministério da educação e cultura, em São Paulo pela Rádio Nacional e em Brasília pela rádio nacional do Distrito Federal além de muitas outras emissoras do interior, as quais, inclusive, pediríamos a gentileza de telegrafar enviando seus prefixos para que pudéssemos mencioná-los aqui. E senhoras e senhores, continuando com essa série de depoimentos ao microfone da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, nesta madrugada de 1° de Abril de 1964, vamos trazer o deputado Rubens Paiva, representante do estado de São Paulo no Congresso Nacional. (Durante a fala de Rubens Paiva os atores se aproximam do Rádio um a um) Rubens Paiva (voz) Meus patrícios, me dirijo especialmente a todos os trabalhadores, a todos os estudantes e a todo povo de São Paulo tão infelicitado por esse governo fascista e golpista que, neste momento, vem traindo o seu mandato e se pondo ao lado das forças da reação. Desejo conclamar todos os trabalhadores de São Paulo, todos os trabalhadores portuários e metalúrgicos, da baixada santista, de Santos, da capital e das cidades industriais de São Paulo em especial. Todos os universitários que se unam em torno dos seus órgãos representativos. Obedecendo a palavra de Ordem do Comando Geral dos Trabalhadores, do Fórum Sindical de Debates, dos sindicatos, da União Nacional dos Estudantes, das uniões estaduais e dos grêmios estudantis, para que todos, em greve geral, deem sua solidariedade integral à legalidade que ora representa o presidente João Goulart (...) (Atores posicionados começam a cantar “Opinião” de Zé Kéti.) Todos

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Page 1: João do Vale, O Musical · 2020-05-06 · 5 Eu troco o samba por um beijo seu, meu amor Samba é bom, batido na mão Samba é bom, batido na mão João do Vale – Tava jogando baralho,

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João do Vale, O Musical

Felipe Correa

Prólogo (Entra o Locutor e se posiciona. Há no palco um rádio)

Locutor – Rádio Nacional do Rio de Janeiro, de plantão pelo Brasil, comandando uma

grande rede de emissoras integradas na Guanabara ministério da educação e cultura,

em São Paulo pela Rádio Nacional e em Brasília pela rádio nacional do Distrito

Federal além de muitas outras emissoras do interior, as quais, inclusive, pediríamos a

gentileza de telegrafar enviando seus prefixos para que pudéssemos mencioná-los aqui.

E senhoras e senhores, continuando com essa série de depoimentos ao microfone da

Rádio Nacional do Rio de Janeiro, nesta madrugada de 1° de Abril de 1964, vamos

trazer o deputado Rubens Paiva, representante do estado de São Paulo no Congresso

Nacional.

(Durante a fala de Rubens Paiva os atores se aproximam do Rádio um a um)

Rubens Paiva – (voz) Meus patrícios, me dirijo especialmente a todos os

trabalhadores, a todos os estudantes e a todo povo de São Paulo tão infelicitado por

esse governo fascista e golpista que, neste momento, vem traindo o seu mandato e se

pondo ao lado das forças da reação. Desejo conclamar todos os trabalhadores de São

Paulo, todos os trabalhadores portuários e metalúrgicos, da baixada santista, de

Santos, da capital e das cidades industriais de São Paulo em especial. Todos os

universitários que se unam em torno dos seus órgãos representativos. Obedecendo a

palavra de Ordem do Comando Geral dos Trabalhadores, do Fórum Sindical de

Debates, dos sindicatos, da União Nacional dos Estudantes, das uniões estaduais e dos

grêmios estudantis, para que todos, em greve geral, deem sua solidariedade integral à

legalidade que ora representa o presidente João Goulart (...)

(Atores posicionados começam a cantar “Opinião” de Zé Kéti.)

Todos –

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Podem me prender, podem me bater

Podem até deixar-me sem comer

Que eu não mudo de opinião.

Daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não.

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Se não tem água, eu furo um poço

Se não tem carne, eu compro um osso e ponho na sopa

E deixo andar, deixo andar

Fale de mim quem quiser falar

Aqui eu não pago aluguel

Se eu morrer amanhã, seu doutor

Estou pertinho do céu

João do Vale, Zé Keti e Nara Leão –

Podem me prender, podem me bater

Podem até deixar-me sem comer

Que eu não mudo de opinião

Daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não...

Podem me prender, podem me bater, que eu não mudo de opinião, que eu não mudo de

opinião...

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Cena I (Sentam-se no tablado. Trecho do Show Opinião. Os atores-cantores falam e

cantam uns para os outros)

João do Vale – Meu nome é João Batista Vale. Pobre no Maranhão é Batista ou

Ribamar. Eu sai Batista. Tenho 230 músicas gravadas, fora as que vendi. Mas as

músicas que eu fiz com mais alma, são desconhecidas. Minha terra tem muita coisa

engraçada, mas o que tem mais é muito sacrifício pra gente viver...

Zé Kéti – Meu nome... José Flores de Jesus. Moro em Bento Ribeiro uma hora mais ou

menos de trem até a cidade, quando não atrasa. Vida de sambista vou te contar: passei

oito anos no estúdio de rádio atrás de cantor... (bate palmas como que chamando a

atenção de alguém) Ei, moço, tenho um sambinha aí pro senhor...! Ninguém me dava

bola. A Voz do Morro – “eu sou o samba”, eu já tinha ele fazia sete anos na gaveta,

quando foi feita a primeira gravação. Com os direitos autorais, comprei móveis ao estilo

francês e ganhei um tutu legal que só durou três meses e dava pra eu ir à feira todos os

domingos e trazer duas bolsas, cheias de compras...

(Os três cantam um trecho da música “Coisa com Coisa” de Zé Kéti)

Ele come dois quilos de carne por dia,

Meu Deus, que horror

E na hora da coisa ela fica com coisa e não quer amor.

Nara Leão – Meu nome é Nara Lofego Leão, nasci em Vitória, mas sempre vivi em

Copacabana. Eu não acho que porque sempre vivi em Copacabana eu só possa cantar

determinado estilo de música, mas é mais ou menos assim, eu quero cantar toda música

que ajude a gente a ser mais brasileiro, que faça todo mundo se sentir mais livre, que

ensine a aceitar tudo, menos o que pode ser mudado.

Todos –

Samba, samba, samba

É tudo que eu posso oferecer

Foi tudo que aprendi, não tive professor

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Eu troco o samba por um beijo seu, meu amor

Samba é bom, batido na mão

Samba é bom, batido na mão

João do Vale – Tava jogando baralho, na porta do cemitério

Todo mundo tava rindo, só defunto tava sério

Nara Leão – Quando eu tinha doze anos, ganhei um violão. Eu era muito mais tímida

naquela época, chorava e me escondia atrás do sofá. Aí eu comecei a colecionar apelido,

caramujo, belina, jacarezinho do pântano, Preta Garba, Bernarda Eremita, Guta da

Imprensa...

Zé Keti – Esse negócio de apelido... Você sabe por que me chamam Zé Keti?

Nara Leão – Hum...

Zé Keti – É o seguinte: Quando minha mãe ficou sozinha pra me sustentar, ela foi ser

empregada doméstica. Quando minha mãe voltava diziam assim pra ela: “Ô, Dona

Leonor, o Zé ficou quieto, o Zé ficou quietinho!” Zé Quietinho, Zé Quietinho, e acabou

Zé Keti. Aí então comecei a escrever meu apelido com “k” porque “k” tava dando sorte.

Tava por cima. Kennedy, Khrushchov e Kubitschek. (à Nara Leão) É minha

camaradinha, mas parece que a sorte michou, hein?

João do Vale – O apelido mais engraçado que eu me lembro é João Piston. João Piston

tinha esse apelido porque ele tava do nosso tamanho, uns onze anos, da nossa curriola, e

ainda chupava dedo. (imita como é) Aí ficou João Piston. Sempre firme no Piston. Mas

apelido de lascar o cano mesmo, quem punha era o Cego Aderaldo. Lá no Maranhão

todo mundo conhece seus verso e apelido de có!

(João canta um diálogo extraído do livro “Eu Sou o Cego Aderaldo”)

João do Vale –

(...)Cego, agora puxe uma

De tuas velhas toadas

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Nara Leão –

Amigo José Pretinho

Não sei o que hei de cantar

Só sei que depois da luta

O senhor vencido está

quem a paca cara compra

cara paca pagará

João do Vale –

Cego, o teu peito é de aço

Foi bom ferreiro que fez

Pensei que o cego não tinha

Nesse verso rapidez

Cego se não for maçada

repita a paca outra vez

Nara Leão –

Digo uma, digo dez

No cantar não tenho pompa

Presentemente não acho

Quem hoje o meu mapa rompa

Pagará a paca cara

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Quem a paca cara compra

João do Vale –

Eu tô me vendo apertado

Que só um pinto no ovo

Esse cego vem danado

Satisfazendo esse povo

Cego, se não for maçada

Repita a paca de novo

Nara Leão –

Arre, com tanta maçada

Desse preto capivara!

Não há quem cuspa pra cima

Que não lhe caia na cara

Quem a paca cara compra

Pagará a paca cara

João do Vale –

Demore Cego Aderaldo

Cantarei a paca já

Tema assim só um borrego

No bico de um carcará

Quem a paca caca compra

Caca caca cacará

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Cena II João do Vale – De Fortaleza, eu escrevi essa carta pro meu pai:

(Saem Zé Kéti e Nara Leão. Transição no tempo. Fortaleza, nos tempos em que

João foi ajudante de caminhão. Um quarto de Pensão)

João do Vale – Perdão, pai, por ter fugido de casa... Mas também não tinha outro jeito,

pai. Pedreiras num dava pra mim viver feliz... Juntei setenta mil réis, pai. Eu vou pro sul

arriscar... Quem sabe lá melhora... Eu sei fazer verso... Posso até lhe ajudar a criar meus

irmãos... Dê lembrança a tia Ágda, tia Palmira, tia Pituca e os amigos que ficaram...

Lêpinha, Diôro e João Piston, pai... Eu peço que o senhor me abençoe, e diga à mãe que

reze por mim... Deus Ajudando... Breve a gente se vê...

(Entra o Caminhoneiro)

Caminhoneiro – Ainda acordado, neguinho? Tá muito acomodado pr’um ajudante de

caminhão...

João do Vale – Tô sem sono, seu moço...

Caminhoneiro – A viagem vai ser longa e a gente pega estrada cedo.

João do Vale – Se preocupe não, vô tá de pé bem cedinho...

Caminhoneiro – Ah, seu nego, mal tu começou a trabalhar tu já tá assim? Desse jeito

num vai durar nem uma semana!

(Silêncio)

Caminhoneiro – Escuta, Neguinho, tu num tem pai nem mãe, não?

João do Vale – Tenho sim, sinhô.

Caminhoneiro – E o que foi que aconteceu que tu anda por aí largado?

João do Vale – Eles ficaram no Maranhão... Eu fugi de casa, seu moço, pra arrumar

uma coisa meió na vida!

Caminhoneiro – Tua terra deve de ser uma desgraça só pra tu tê fugido de lá...

(Performance da canção “Todos Cantam a sua Terra” de João do Vale e Julinho.

Atores entram e dançam)

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Todo mundo canta sua terra

Eu também vou cantar a minha

Modéstia à parte seu moço

Minha terra é uma belezinha

A praia de olho d'água

Lençóis e Aracagi

Praias bonitas assim

Eu juro que nunca vi

Minha terra tem beleza

Que em versos não sei dizer

Mesmo porque não tem graça

Só se vendo pode crer

Acho bonito até

O jornaleiro a gritar imparcial

Diário

Olha o Globo

Jornal do povo descobriu outro roubo

E os meninos que vendem derrê sol a cantar

Derrê sol derrê ê ê ê ê ê ê sol

E fruta lá tem: juçara

Abricó e buriti

Tem tanja, mangaba e manga

E a gostosa sapoti

E o caboclo da maioba

Vendendo bacuri

Tinha tanta coisa pra falar

Quando estava fazendo esse baião

Que quase me esqueço de dizer

Que essa terra é tão linda é o Maranhão

Ô Maranhão, ô Maranhão.

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(Todos saem com exceção de João e o Caminhoneiro)

Caminhoneiro – Então porquê que tu não ficô por lá mesmo? Tu num sabe nem lê, teu

lugar é no mato, na roça, segurando um cabo de enxada.

(Silêncio)

Caminhoneiro – Tu tem culhão, vou lhe dizer... Não é todo home que tem essa corage

não.

João do Vale – Não fugi por corage, não seu moço, é que eu tenho um sonho, e se der

tudo certo vô podê ajudar minha família...

Caminhoneiro – Se tu quer ajudar tua família tu tem é que voltar pra tua terra, por aqui

tu num vai consegui nada não!

João do Vale – Num vô sê ajudante de caminhão pra sempre, é só pra ajuntar um

dinheirinho, daí eu vô mimbora, vô pro Rio ganhá a vida!

Caminhoneiro – Vai fazê o que lá, home?

João do Vale – Vô pra lá pra ser artista!

Caminhoneiro – Artista?! Conta outra, neguinho, artista de quê que tu é?

João do Vale – Eu sei fazê verso, sabia? Eu vou pra sê cantô!

Caminhoneiro – Volta pro chão neguinho, um preto véi que nem tu num tem cara de

artista não! Tu num vai conseguí nada na vida, pode escrevê o que tô dizendo.

(Caminhoneiro faz menção de sair, mas é detido por João)

João do Vale – Peraí, peraí, peraí, siô... (canta o trecho de uma música)

Coló quebrou a perna

Eu também quebrei a minha

Coló colou a dele

E eu colei com mariquinha

Coló colou de tarde

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E eu colei de manhãzinha...

Caminhoneiro – Quem fez essa música?

João do Vale – Eu merminho!

Caminhoneiro – Conversa, neguinho!

João do Vale – Tô lhe dizendo, eu sei fazê verso!

Caminhoneiro – (interrompe) Deixa de conversa, seu nego, procura é dormi que

sonho num enche barriga! (sai)

João do Vale – (diz a si mesmo) Meu vô leu a minha sorte... (João canta baixinho o

trecho de sua música enquanto vai adormecendo)

Coló quebrou a perna

Eu também quebrei a minha

Coló colou a dele

E eu colei com mariquinha...

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Cena III (Barulho do motor de caminhão, João entra em cena, junto dele o Caminhoneiro,

na época em que pisou pela primeira vez no Rio de Janeiro no ano de 1950. João se

admira com as coisas que vê: pessoas elegantes passando por ele, sons de

automóveis, luzes das casas noturnas.)

Caminhoneiro – Pronto, tá entregue... Tem certeza que vai querer ficar por aqui,

neguinho? Tu num tem dinheiro, num tem parente, vai vivê de quê?

João do Vale – Vô arranjá um trabaio, aprendí a batê massa em Salvador, passá fome é

que eu não passo!

Caminhoneiro – Tu que sabe, a vida é tua... Eu vô tomá meu rumo, neguinho, boa

sorte! Cidade grande sempre tem emprego pra peão, talvez tu arranje alguma coisa...

João do Vale – Brigado seu moço, agradicido pela carona!

(Se despedem. Caminhoneiro sai. João procura nos bolsos algum dinheiro,

encontra algumas moedas)

João do Vale – Pelo menos um prato de comida deve dá de comprá!

(O Mendigo entra em cena, embrulhado num cobertor sujo e rasgado, se detém

diante de João)

Mendigo – Boa noite, sinhô! Posso ficá por aqui?

João do Vale – Claro que pode siô, eu lá sô dono da rua?

Mendigo – É que as pessoa foge de mim, quando chego perto...

João do Vale – Por conta de quê?

Mendigo – Com nojo, pensando que eu sô ladrão, mas num sô ladrão não sinhô, só num

tenho casa, nem família, nem emprego...

João do Vale – E numa cidade grande dessa num tem emprego, não?

Mendigo – Prum home analfabeto que nem eu? Difícil...

(Silêncio)

Mendigo – E o sinhô é de fora, né? Num fala como o pessoal daqui cheio dos xis...

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João do Vale – Sô do Maranhão... Vim pra cá porque tenho um sonho de sê alguém na

vida...

Mendigo – O sinhô tem esperança no zóio, eu num sei o que é isso faz tempo...

João do Vale – Tu nunca sonhô em sê alguma coisa na vida?

Mendigo – Se sonhei? Várias vezes, mas aí eu acordo, ai vejo que a realidade é outra...

Não me engano mais com isso não, quem disse que o destino tem obrigação de ser

generoso com gente pobre?!

(Silêncio)

Mendigo – Ou eu sonho ou eu encho a barriga, num dá pra fazê as duas coisa ao mesmo

tempo... Aqui tem muita gente, muito granfino, mas achá um pra te estendê a mão é

difícil... Quem tá de bucho cheio tá pouco se fudendo pra quem num tem nada pra

cumê...

João do Vale – E eu pensano que só no sertão tinha miséria .... Siô, lá o pouco que a

gente tem a gente dividi. .. Um matuto que nem eu achava que em cidade grande todo

mundo era rico...

Mendigo – Aqui a miséria e a riqueza são irmã, uma depende da outra e ai de quem se

queixa, eles jogam os cachorro de farda em cima da gente!

(Silêncio)

Mendigo – Num perde tempo ouvindo um fracassado como eu. .. Me conta aí sua

história...

João do Vale – (Canta “Minha História” de Raimundo Evangelista e João do Vale)

Seu moço quer saber, eu vou cantar num baião

Minha história pra o senhor, seu moço, preste atenção

Eu vendia pirulito, arroz doce, mungunzá

Enquanto eu ia vender doce, meus colegas iam estudar

A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar

A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar

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E quando era de noitinha, a meninada ia brincar

Vixe, como eu tinha inveja, de ver o Zezinho contar:

- O professor raiou comigo, porque eu não quis estudar

- O professor raiou comigo, porque eu não quis estudar

Hoje todo são "doutô", eu continuo joão-ninguém

Mas quem nasce pra pataca, nunca pode ser vintém

Ver meus amigos "doutô", basta pra me sentir bem

Ver meus amigos "doutô", basta pra me sentir bem

Mas todos eles quando ouvem, um baiãozinho que eu fiz,

Ficam tudo satisfeito, batem palmas e pedem bis

E dizem: - João foi meu colega, como eu me sinto feliz

E dizem: - João foi meu colega, como eu me sinto feliz

Mas o negócio não é bem eu, é Mané, Pedro e Romão,

Que também foram meus colegas, e continuam no sertão

Não puderam estudar, e nem sabem fazer baião

Mendigo – Escuta, você vai viver de quê aqui?

João do Vale – Vô procura emprego de pedreiro, batê massa, essas coisa...

Mendigo – Tem uma obra grande aqui perto, na Rua Barão de Ipanema, em

Copacabana, eles tão precisando de peão, tu pode conseguí alguma coisa por lá...

João do Vale – E por quê tu num vai também home de Deus, tu deve de sabê batê uma

massa, num deve?

Mendigo – Sei sim, sinhô, mas o povo de lá num qué nem olhá pra minha cara,

andaram dizendo que eu andei robando fruta na feira...

João do Vale – História home, andam falano isso de ti e tu num faz nada?

Mendigo – Porque é verdade...

(Silêncio)

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João do Vale – Mas tu num disse que tu num era ladrão, home de Deus?

Mendigo – Num sô... Mas o estômago tá aqui, ai quando eu vejo, já fiz...

(Silêncio)

João do Vale – (Dá as únicas moedas que tem ao Mendigo) Toma aqui ó, num é

muita coisa mais é tudo que posso dá...

Mendigo – Brigado, sinhô, se Deus quiser ainda vou ouvir suas música na rádio...

João do Vale – Se Deus quisé... Seu moço, se Deus quisé...

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Cena IV (Entrada da Rádio Tupi, o Porteiro está em cena. João entra, vindo da obra, todo

sujo de cimento e poeira. Em algum momento Luiz Vieira entra e vai em direção

ao porteiro)

João do Vale – Boa noite, seu moço, desculpa as ropa, é que trabaiei o dia inteiro e nem

deu tempo pra...

Porteiro – O senhor quer o que aqui?

João do Vale – Não é que o faço uns negócio de umas letra de uns baião aí e queria

mostrá pro Zé Gonzaga.

Porteiro – O Senhor num vai consegui isso, não, desse jeito que o senhor está aí não vai

não!

(João hesita)

Luiz Vieira – (ao porteiro) Boa noite, meu querido, chegou alguma coisa pra mim aí?

Porteiro – O rapaz do correio até agora não passou...

Luiz Vieira – Tudo bem, quando ele chegar você me avisa.

Porteiro – Sim, senhor.

Luiz Vieira – Obrigado, querido.

(Luiz vai saindo)

Porteiro – (discretamente à João) Esse cara aí faz baião, ele atende todo mundo, é

capaz de falar até com o senhor.

(João do Vale corre atrás de Luiz)

João do Vale – Oh, Seu moço (limpa as mão nas calças e cumprimenta Luiz Vieira)

desculpa o jeito, é que eu tô vindo duma obra... É que eu queria mostrá umas música pro

Zé Gonzaga, será que o sinhô pode me ajudá?

Luiz Vieira – Qual é seu nome?

João do Vale – João Batista Vale.

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Luiz Vieira – Luiz Vieira.

João do Vale – Então, é que eu tenho umas coisa aí pra mostrá pro Zé Gonzaga... Uns

baiãozin... (Tira dos bolsos um pilha de papéis amassados) Oia aqui...

(João entrega os papéis nas mãos de Luiz Vieira)

Luiz Vieira – Negócio amassado da porra, hein? Eu vou falar com Zé... O senhor passa

aqui amanhã no mesmo horário, tudo bem?

João do Vale – Tudo bem sim, sinhô!

(João sai de cena. Luiz Vieira permanece sozinho, examinando os papeis, empolga-

se com o que lê, cantarola os primeiros versos de “Estrela Miúda” de João do Vale

e Luiz Vieira)

Luiz Vieira –

Estrela miúda que alumeia o mar

Alumiar terra e mar

Pra meu bem vem me buscar

Há mais de mês que ela não

Que ela não vem me olhar...

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Cena V (Dia seguinte. Interior da Rádio Tupi. Estão em cena Zé Gonzaga e Luiz Vieira. Zé

lê o trecho de “Estrela Miúda” no papel)

Zé Gonzaga – E como é que você conheceu esse homem?

Luiz Vieira – Aqui mesmo, na portaria da rádio... Por aí a gente vê que o cara tem

alguma coisa. O Sujeito é ignorante, mas tem talento pra compor.

Zé Gonzaga – É João de que mesmo?

Luiz Vieira – Diz que João Batista Vale... Zé, essa letra tem umas imagens poéticas

incríveis. Acho que vô tentar trabalhar esse cara. Eu disse pra ele vir aqui hoje, daqui a

pouco tá batendo aí...

Zé Gonzaga – Se acha que o sujeito tem futuro, então lança o homem, eu mesmo posso

gravar algumas músicas dele...

Luiz Vieira – Pode ser, mas tô pensando em apresentar a Marlene pro João. Que acha?

Zé Gonzaga – Tá mesmo empolgado com esse sujeito, hein?

Luiz Vieira – Eu tenho faro pra essas coisas...

(João entra em cena)

Luiz Vieira – To lhe dizendo, olha aí. (à João) Tava falando de ti. Vamo entrando,

vamo entrando!

(João se aproxima)

Luiz Vieira – João, esse aqui é o Zé Gonzaga!

(Cumprimentam-se)

Zé Gonzaga – Muito prazer, João, fiquei sabendo que você tá querendo falar comigo a

um tempo, não é isso? Pois agora eu que faço questão de falar com você. Eu vi a letra

que você fez. Gostei.

João do Vale – Bondade sua, faço só umas coisa aí, uns baião...

Luiz Vieira – Não acredite nele não, Zé, é modesto esse nego.

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Luiz Vieira – Agora imagina isso na voz da Marlene, vai ficar bonito que só vendo!

(Zé Gonzaga relendo os primeiros versos de “Estrela Miúda” que aos poucos vão

sendo substituídos pela voz de Marlene)

Zé Gonzaga –

Estrela miúda que alumeia o mar

Alumiar terra e mar

Pra meu bem vem me buscar

Há mais de mês que ela não

Que ela não vem me olhar

Marlene (voz) –

A garça perdeu a pena

Ao passar no igarapé

Eu também perdi meu lenço

Atrás de quem não me quer

Estrela miúda que alumeia o mar

Alumiar terra e mar

Pra meu bem vem me buscar

Há mais de mês que ela não

Que ela não vem me olhar

A onda quebrou na praia

E voltou a correr no mar

Meu amor foi como a onda

E não voltou pra me beijar.

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Cena VI (Canteiro de obras, João está batendo massa em companhia do Pedreiro. Ainda

pode-se ouvir a voz de Marlene cantando “Estrela Miúda”, da Rádio de uma casa

qualquer. João para de bater a massa por um momento e se aproxima de seu

colega, o Pedreiro)

João do Vale (cantarola junto com a voz do rádio) –

Estrela miúda que alumeia o mar

Alumiar terra e mar

Pra meu bem vem me buscar

Há mais de mês que ela não

Que ela não vem me olhar...

Pedreiro – Te cala aí, neguinho, deixa que só ela canta!

João do Vale – Hei, home, tá ouvindo essa música?

Pedreiro – Claro, que tô, siô, num sô surdo. É a Marlene que tá cantando.

João do Vale – Sim, mas tu sabe por acaso quem é o compositô dessa música?

(Pedreiro dá de ombros)

João do Vale – Advinha?

Pedreiro – E eu lá sei? É a Marlene, num é não?

João do Vale – Hum, Hum... Ó, sou eu merminho!

Pedreiro – Hum, conversa neguinho, tu tá é delirando, siô, faz mais massa aí, anda!

Fica falando besteira aí e deixa a massa secá!

João do Vale – Tô te falando home, foi eu que escrevi a música, mostrei ela pra

Marlene lá na Rádio Nacional!

Pedreiro – Para de mintí home, onde já se viu um compositô de rádio sê ajudante de

pedreiro?

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João do Vale – Cabra besta, tô lhe dizendo a verdade, agora se tu num quisé acreditá o

pobrema é teu!

Pedreiro – Preto véi doido, quem nasce pra pataca nunca pode sê vintém!

João do Vale – Diacho!!!

Pedreiro – Conheceu Marlene... Esse nego é uma piada... Vai sonhando, neguinho, vai

sonhando... Um preto que nem tu nunca que ia sê compositô de rádio!

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Cena VII

(Escritório da Rádio, estão em cena o Secretário organizando algumas cédulas de

dinheiro. João do Vale entra no escritório)

João do Vale – Opa, seu moço... Boa noite...

Secretária – Boa noite, o que o senhor deseja?

João do Vale – Sabe quê que é, é que eu sô compositô, vim pegá o dinheirinho dos

direito autoral!

(Silêncio. Secretária mira João dos pés à cabeça)

João do Vale – Fui eu que fiz aquela música que a Marlene tá cantando, num sabe?

Aquele que toca todo dia na Rádio...

Estrela miúda que alumeia o mar

Alumiar terra e mar...

(Silêncio)

Secretária – Um instantinho só... Vou chamar o patrão...

(João aguarda. Ele ouve a voz da Secretária conversando com o Dono da

Gravadora)

Dono da Gravadora (voz) – Quem?

Secretária (voz) – É um homem estranho dizendo que é compositor, eu logo

desconfiei, o sujeito tá todo sujo, eu nem perguntei o nome, pensei logo em chamar o

segurança, onde já se viu, um nego desse ser compositor?

Dono da Gravadora (voz) – E o que ele quer?

Secretária (voz) – Diz que quer dinheiro de uns direitos autorais, se não me engano de

uma música que a Marlene tá cantando agora...

Dono da Gravadora (voz) – Da Marlene...? Peraí...Deixa eu ver a cara desse nego!

(O Dono da Gravadora e a Secretária aparecem)

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Dono da Gravadora – Ah, é você João... Desculpa, é que minha secretária aqui

esqueceu de perguntar o seu nome! (sussurra ao Secretário) Foi ele mesmo que

compôs a música da Marlene... Por que não perguntou logo o nome do homem?

João do Vale – (à secretária) É que um preto assim que nem eu e ainda por cima sujo,

dizenu sê compositô de música… Não é todo dia que aparece aqui, num é mermo? Se

eu fosse branco e tivesse vestido de granfino, já taria lá dentro tomando café com

biscoito.

Secretária (sussurrando) – É que eu pensei que...

Dono da Gravadora – Psiuuu! (a João) Então, João, eu estava lhe esperando desde

cedo. Você precisa assinar uns recibos, eu preciso dos seus documentos...

(Secretária se detém quando recebe e analisa os documentos das mãos de João)

Secretária – Ihhhh... Tem um problema!

Dono da Gravadora – O quê que foi agora?

Secretária – Parece que ele é menor de idade!

Dono da Gravadora – Estais brincando que você é menor de idade?

João do vale – Sô sim, sinhô!

(Secretária cochicha algo no ouvido do patrão)

Secretária – É o seguinte, menino, nós não podemos dar uma quantia dessa para um

menor de idade...

João do Vale – Não? Então vô ficá sem meu dinheiro?

Dono da Gravadora – Não, rapaz, não é bem assim, faz o seguinte, você pode trazer

alguém aqui de maior, alguém mais responsável...

João do Vale – Vou lhe dizer uma coisa, moço, vim do Maranhão sozinho, tô morando

no Rio sozinho, trabalho e fiz a música, sei onde meto meu nariz! Agora se isso num é

sê responsável, e num sei mais quê que é!

(Silêncio)

Dono da Gravadora (à Secretária) – Paga o garoto!

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Secretária – Mas, patrão...

Dono da Gravadora – Não discute, paga, paga logo!

(A Secretária dá à João a quantia de dinheiro)

Dono da Gravadora – João.

João do Vale – Sinhô?

Dono da Gravadora – Aceita um café com biscoito?

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Cena VIII (Casa de Luiz Vieira. João do Vale e Luiz Vieira em cena)

Luiz Vieira – Quer dizer que não queriam te pagar é, João?

João do Vale – Num tô te dizendo? Disseram que eu tinha chamá alguém mais

responsável, falei umas boas pra ele e o homi tratou logo de me pagá!

Luiz Vieira – João, falando sobre aquele assunto do outro dia, sobre a gente fazer mais

umas músicas juntos, tá lembrado?

João do Vale – Tô lembrado sim, sinhô. E já tenho uma coisa pra lhe mostrá, uma

composição que fiz... Ouve só... Peraí... (canta)

Agora vejo os produto industrializado

Que antes num tinha

Enquanto na roça tudo tá parado

Mas os patrão qué matéria-prima...

Luiz Vieira – Não, não, peraí João... Mas o quê que é isso?

João do Vale – Ainda num terminei...

Enquanto na roça tudo tá parado

Mas os patrão qué matéria-prima...

(Silêncio)

João do Vale – Num tá ficando bom, não?

Luiz Vieira – João do céu, cadê as coisa que você costuma fazer, a sua poesia

autêntica? Você lá sabe o que é matéria-prima?

João do Vale – Claro que eu sei...

Luiz Vieira – Então o que é?

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João do Vale – Matéria-prima é... É... O paralama do automóvel...

(Silêncio)

Luiz Vieira – É o seguinte, escreva só as coisas que você tem certeza que existam, não

diga bobagem! Isso tá horrível, escuta, vá pra casa e me escreva a poesia do verdadeiro

João, sertanejo, com essência nordestina, pé no chão, autêntico...

João do Vale – Mas num dá pra aproveitar nada dessa música? E seu mudar...

Luiz Vieira – Deixe disso, João, jogue isso fora! Faz o seguinte, vá pra casa e só me

apareça aqui quando tiver tirado esse negócio de matéria-prima da cabeça, entendeu?

João do Vale – Sim, sinhô!

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Cena IX (Casa de Luiz Viera. João havia passado a noite em claro. Luiz Viera está em cena,

em seguida João aparece cantando “Na Asa do Vento” de João do Vale e Luiz

Vieira)

João do Vale –

Deu meia noite, a lua faz um claro

Eu assubo nos aro, vou brincar no vento leste,

A aranha tece puxando o fio da teia

A ciência da abeia, da aranha e a minha

Muita gente desconhece

Muita gente desconhece, oila lá, viu?

Muita gente desconhece

Muita gente desconhece, oila lá, tá?

Muita gente desconhece

A lua é clara, o sol tem rastro vermelho

É o mar um grande espelho onde os dois vão se mirar

Rosa amarela quando murcha perde o cheiro

O amor é bandoleiro, pode inté custar dinheiro

É fulô que não tem cheiro e todo mundo quer cheirar

Todo mundo quer cheirar, oila lá, viu?

Todo mundo quer cheirar

Todo mundo quer cheirar, oila tá, tá?

Todo mundo quer cheirar

João do Vale – Essa segunda parte tá bonita que só!

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Luiz Viera – Então… Eu tentei manter a linha poética da primeira parte que você

compôs.

João do Vale – Linha poética?

Luiz Viera – É… A força das imagens, das palavras… A poesia mesmo. O borogodó!

João do Vale – Hummmm...

Luiz Viera – Num é?

João do Vale – É.

Luiz Viera – (ri) Tá certo… João, me conta, onde é que você arranjou este vento leste,

rapaz?

João do Vale – O sinhô disse pra eu escrevê só o que eu soubesse, o que eu tenho

certeza que existe, e esse vento existe!

Luiz Viera – Eu sei que existe, João, eu quero saber onde que você foi buscar esse

vento leste!

João do Vale – Eu tava na obra de noite, escutando a rádio quando ouví um sujeito

falando, “Atenção! Aviso aos navegantes, vento leste soprando pra sudoeste!”.

(Luiz Vieira ri e dá um abraço em João)

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Cena X Locutor (voz) – Rádio Nacional do Rio de Janeiro, um rinoceronte é eleito vereador de

São Paulo com mais cem mil votos... É senhoras e senhores, parece que os eleitores não

confiam mais em seus candidatos hominídeos. Ou como diriam os bichos de George

Orwell, “Quatro patas, bom. Duas pernas ruim!” Boa sorte ao novo vereador. O

cinema brasileiro experimenta desde 1954 o novo sistema de projeção em Cinemascope,

foi sem dúvida um enorme salto de qualidade E por falar em cinema, João do Vale é

convidado pelo diretor Roberto Farias a participar como assistente de direção do filme

“Rico Ri à Toa”, inclusive com algumas músicas de sua autoria. Luz, câmera, ação...

(Set de gravações do filme “Rico ri à Toa” Cena em que a Marinês canta “Peba na

Pimenta” de João do Vale, José Batista e Adelino Rivera. Marinês está com

indumentária típica do Nordeste, assim como os dois que acompanham com seus

instrumentos, entram dançando)

Marinês –

Seu Malaquia preparou

Cinco peba na pimenta

Só do povo de Campinas

Seu Malaquia convidou mais de quarenta

Entre todos os convidados

Pra comer peba foi também Maria Benta

Benta foi logo dizendo

Se ardê, num quero não

Seu Malaquia então lhe disse

Pode comê sem susto

Pimentão não arde não

Benta começou a comê

A pimenta era da braba

Danou-se a ardê

Ela chorava, se maldizia

Se eu soubesse, desse peba não comia

Ai, ai, ai seu Malaquia

Ai, ai, você disse que não ardia

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Ai, ai, tá ardendo pra daná

Ai, ai, tá me dando uma agonia

Ai, ai, que tá bom eu sei que tá

Ai, ai, mas tá fazendo uma arrelia

Depois houve arrasta-pé

O forró tava esquentando

O sanfoneiro então me disse

Tem gente aí que tá dançando soluçando

Procurei pra ver quem era

Pois não era Benta

Que inda estava reclamando?

(Saem dançando.)

Diretor – Corta....

(O elenco descontrai-se, uns bebem água, outros conversam enquanto ouvem as

instruções do diretor)

Diretor – Dois minutinhos para a próxima cena...

Ator – Qual?

Diretor – Zé da Onça! Vamo lá, vamo lá, sem demora, pessoal!

(Atores apressam-se para formar o quadro da cena em que Zé Gonzaga canta “Zé

da Onça” de João do Vale, com a atriz que interpreta Dorinha – a mesma atriz que

interpretou Marinês na cena anterior. Ela é auxiliada por um figurinista e um

maquiador para a troca de seu vestuário. Estão presentes Zé Fubica, o

protagonista do filme, Zé Gonzaga e outros atores que compõem a cena).

Diretor – Tudo certo com a troca de figurino? Vamos agilizar, pessoal! Se a gente não

começar agora vamos ter que pagar hora extra para os técnicos!

Técnicos (todos) – Opaaaaaa!!!

Diretor – Mas não temos dinheiro pra isso!

Técnicos (todos) – Ahhhhh...

Figurinista – Ela tá pronta!

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Diretor – Perfeito! Vão para suas posições. Vamos rodar! Claquete, ok? Luz. Câmera.

Ação!

(A Claquete se posiciona. Os atores soltam uma gargalhada e iniciam a cena)

Ator I – E a escola de samba, hein?

Ator II – Já vem vindo por aí...

Zé Fubica – Como é bom a gente sê pobre hein?

(Mais risadas)

Zé Fubica – Eu só quero vê a cara da Isabel quando souber que o dinheiro acabô todo!

(Entra uma atriz interpretando Dorinha, personagem do filme)

Ator II – Ei, Dorinha, canta um troço ai pra nós, canta!

Zé Fubica – Vem, vem cá...

(Ela se aproxima dançando. Canta “Zé da Onça”)

Dorinha –

Zé da onça, eu vim cá te dizê

Que meu marido tá passando má

Eu tenho medo que meu benzim morra

Zé da Onça

Eu não sei cumé que vou ficá

Com ele a vida já não era boa

Zé da Onça

E agora é que vai piorá

Todos –

Com ele a vida já não era boa

Zé da Onça

E agora é que vai piorá

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Zé Gonzaga –

Sá Chiquinha se ele morrê

Não tenha medo de ficá sozinha

A despesa do enterro eu faço

Sá Chiquinha

A senhora é muito boazinha

Mas se a senhora quisé casá

Sá Chiquinha

A primeira preferença é minha

Todos –

Mas se a senhora quisé casá

Sá Chiquinha

A primeira preferença é minha

Dorinha –

Agora que eu fiquei sabendo

Zé da Onça, mesmo quem tu sois

Me falá isso no meio do povo

Zé da Onça

Essa conversa era só pra nóis dois

Mas se é verdade o que tu tá falando

Zé da Onça

A reposta eu te dou depois

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Todos –

Mas se é verdade o que tu tá falando

Zé da Onça

A reposta eu te dou depois

Zé Gonzaga –

Sá Chiquinha eu vô esperar

Que seu marido bata o caprinode

Se tal coisa vir acontecê

Sá Chiquinha

Damo certinho que só boca de bode

Se a senhora quisé qualquer coisa

Sá Chiquinha

É só dizer que eu tô as suas orde

Todos –

Se a senhora quis é qualquer coisa

Sá Chiquinha

É só dizer que eu tô as suas ordem

Zé Gonzaga e Dorinha –

Mas se a senhora quis é se casá

Sá Chiquinha

A primeira preferença é minha

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Cena XI (Uma nova fase na vida de João, quando suas composições tornaram-se sucesso

pelo Brasil, ainda na década de 50. Recepção da gravadora. A Secretária está à

espera de João, só que dessa vez muito mais simpática ao compositor. João passa a

andar mais bem vestido, sem a sujeira do barro e da areia)

Secretário – Oh, Seu João, já tava aqui esperando pelo senhor, minha mulher não cansa

de ouvir suas músicas na rádio... Eu sempre digo “Ó, essas músicas aí são do meu

amigo, João do Vale” Digo isso pra todo mundo, pode perguntar...

(Silêncio)

João do Vale – Uhum... Intão, os meus documento tão aqui e...

Secretário – Que isso, seu João, não carece disso aqui não, desde quando um homem

feito o senhor precisa de apresentações?

(O Dono da Gravadora aparece)

Dono da Gravadora – Já tá incomodando o nosso ilustre amigo de novo, é?

Secretário – Nunca! Eu tava acabando de dizer que até lá em casa se ouve as músicas

do João, não é, João?

João do Vale – Foi sim sinhora...

Secretário – Então como eu disse, o minha, ela...

Dono da Gravadora – Psiuuu! Dê logo o dinheiro do homem!

(Secretária dá a João um envelope com as cédulas. João confere e guarda a

importância)

Dono da Gravadora – (à Secretária) Agora vá lá pra dentro que eu preciso conversar

a sós com o João, coisa de gente grande.

(Secretária sai)

Dono da Gravadora – Então, João, já pensou no que vai fazer com essa dinheirama

toda...

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(A Secretária interrompe o diálogo trazendo consigo uma bandeja com café e

biscoito, em seguida se retira)

João do Vale – Intão... Vô enviá uma parte pra minha mãe lá no Maranhão como

sempre faço. O resto vô ajuntá pra comprá um caminhão, um sonho que tenho faz

tempo!

Dono da Gravadora – A tua mãe não pergunta de onde sai essa dinheirama toda, não?

João do Vale – Ô e se pergunta, ficô preocupada que só vendo, achô que eu tava

fazendo alguma traquinage aqui no Rio, tive que explicar tim-tim por tim-tim pra ela se

convencê!

Dono da Gravadora – Sei... Sei... Mudando de assunto, você ficou sabendo que o Luíz

Gonzaga quer fazer contigo uma parceria, não ficou?

João do Vale – Soube sim, ele já inté falô comigo, já tá tudo acertado, mas teve aí umas

história que num entendí direito, diz que num posso fazê parceria por conta de uma lei

danada aí...

Dono da Gravadora – Então, João, é o seguinte: Essa lei proíbe que pessoas de

gravadoras diferentes façam esse tipo de parceria.

João do Vale – Conversa, home, num pode por conta de quê?

Dono da Gravadora – Burocracias do estado, o que interessa, João, é que nós já

pensamos numa manobra pra que a gente possa firmar essa parceria sem passar por

cima da lei. É o seguinte: A parceria vai ser entre você e Helena Gonzaga, mulher do

Luiz...

João do Vale – E ela virô compositora, foi?

Dono da Gravadora – Não, João, é só de faixada, a composição vai ser com o Luiz, vai

ser com ele o negócio, a parceria com a Helena vai ser só no papel, entendeu?

João do Vale – Uhum...

Dono da Gravadora – João, tem muita gente procurando gravar suas músicas, muito

artista de peso, além de Luiz Gonzaga tem outras parcerias que precisamos fechar nos

próximos meses...

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(João do Vale e o Dono da Gravadora continuam conversando. Atores entram

para formar um quadro estático em seguida cantam “Morenas do Grotão” de João

do Vale e José Cândido)

Atores –

Foi no pagode que fizeram no grotão

E veio o povo de Pedreiras pra dançar

Mas, quando foi lá pra alta madrugada

O povo de Pedreiras começou a porfiar

Querendo ser o terror do lugar

Na dança do côco, o maioral

E começou a discussão

Eu quero ver, eu quero ver

Quem tira o couro

Das morenas do grotão

Eu quero ver, eu quero ver

Quem tira o couro

Das morenas do grotão

Mas as morenas que no côco é de amargar

Sapatearam e não deixaram-se vencer

E a casa deixou o chão adentro

E o povo dançando

Acompanhou ela descer

Quando veio rompendo o dia

Já estavam bem longe

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Mas eu ainda ouvia

Eu quero ver, eu quero ver

Quem tira o coro das morenas do grotão

(Rádio muda de estação. Festa para. Em seguida João começa a cantar “Canto da

Ema” de João do Vale, Aires Viana e Alventino Cavalcante)

A ema gemeu

No tronco do juremá

A ema gemeu

No tronco do juremá

Foi um sinal bem triste, morena

Fiquei a imaginar

Será que o nosso amor, morena

Que vai se acabar?

Você bem sabe

Que a ema quando canta

Vem trazendo no seu canto

Um bucado de azar

Eu tenho medo

Pois acho que é muito cedo

Muito cedo, meu benzinho

Para esse amor se acabar

Vem morena (vem, vem ,vem)

Me beijar (me beijar)

Dá-me um beijo (dá-me um beijo)

Pra esse medo (se acabar)

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(Um dos atores canta “De Teresina a São Luís” De João do Vale e Helena

Gonzaga)

Peguei o trem em Teresina

Pra São Luiz do Maranhão

Atravessei o Parnaíba

Ai, ai que dor no coração

O trem danou-se naquelas brenhas

Soltando brasa, comendo lenha

Comendo lenha e soltando brasa

Tanto queima como atrasa

Tanto queima como atrasa

Bom dia Caxias

Terra morena de Gonçalves Dias

Dona Sinhá avisa pra seu Dá

Que eu tô muito avexado

Dessa vez não vou ficar

O trem danou-se naquelas brenhas

Soltando brasa, comendo lenha

Comendo lenha e soltando brasa

Tanto queima como atrasa

Tanto queima como atrasa

Boa tarde Codó, do folclore e do catimbó

Gostei de ver cabroxas de bom trato

Vendendo aos passageiros

"De comer" mostrando o prato

O trem danou-se naquelas brenhas

Soltando brasa, comendo lenha

Comendo lenha e soltando brasa

Tanto queima como atrasa

Tanto queima como atrasa

Alô Croatá, os cearenses acabam de chegar

Pra meus irmãos uma safra bem feliz

Vocês vão para pedreiras e eu vou pra São Luis.

O trem danou-se naquelas brenhas

Soltando brasa, comendo lenha

Soltando brasa, comendo lenha

Comendo lenha e soltando brasa

Tanto queima como atrasa

Tanto queima como atrasa

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(O Locutor interrompe a cena. Os militares tomam o poder naquele ano de 1964)

Locutor (voz) – Interrompemos essa transmissão para fazer um pronunciamento ao

vivo, hoje, dia 02 de abril de 1964, tropas do exército marcharam rumo à Brasília e...

destituíram a legalidade que ora representava a figura do presidente João Goulart...

Resistência, essa é a palavra de ordem nesses tempos obscuros em que perseguições

políticas e agressões por parte da polícia se tornaram frequentes... A sociedade atônita,

assiste os desmandos desse governo fascista...

Cena XII

(Transição. Zicartola, bar onde vários artistas e intelectuais se reuniam, João, Zé

Kéti, Nara Leão bebem)

Nara Leão – Pois eu digo e repito, as forças armadas têm que acabar, são a pior escória

desse país!

João do Vale – Não cutuca onça com vara curta, mulhé!

Nara Leão – Cutucando ou não, ela vai devorar é todo mundo!

Zé Kéti – O João tá certo, Nara, num momento delicado desse é melhor agir com

prudência, porque os home agora tem a máquina a favor deles!

Nara Leão – E só por isso a gente vai ficar quietinho, apanhando? É isso é que eles

querem, Zé, um rebanho dócil que caminha calado pro matadouro!

Zé Kéti – Tem gente que anda sumindo aí, Nara, todo mundo sabe que os milico tão por

trás disso... A gente tá com a espada em cima do pescoço...

Nara Leão – Covardes! Não aceitam a democracia e partem pro jogo sujo, pro golpe...

Eu não vou me calar... Não vou mesmo... Não consigo ficar de braços cruzados diante

de tudo isso...

Zé Kéti – Não adianta bater de frente, é perigoso demais... Vamo atacar a fera nas

entrelinhas, na malandragem... Com verso e música!

Nara Leão – Eu não tenho sangue de barata, Zé... Além do mais, isso não é um

problema só meu, nem seu, nem do João... Mas de todo mundo que vai sofrer com a

censura, com a miséria, com a injustiça... Esse governo golpista tá fazendo do estado

uma máquina de repressão... E a gente não pode Temer...

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(João do Vale e Zé Kéti acenam com a cabeça)

Zé Kéti – Mas não vamo desanimar.... Eu não trouxe vocês aqui pra isso...

Nara Leão – Zé, eu...

Zé Kéti – Nara, calma...

João do Vale – Eita mulhé braba, siô!

(Nara desarma. Eles riem)

Zé Kéti – Ô, João, eu não falei que você ia gostar do Zicartola?

João do Vale – Tem cachaça e tripinha de porco feito eu gosto...

Nara Leão – Faz tempo que eu ouço suas músicas, João, mas nunca soube de quem

eram, eu até perguntava pro Zé Kéti (Ao Zé) Não é, Zé?

João do Vale – Ah, o pessoal me conhece mais no Maranhão, em Pedreiras... Aqui

muita gente disconhece...

Nara e Zé Kéti – (cantarolam um trecho de “Na Asa do Vento”)

Muita gente desconhece oilala, viu

Muita gente desconhece...

(Riem)

Nara Leão – Mas isso tá mudando, tem muita gente cantando as suas músicas aqui no

Zicartola, João... Por falar em cantar, porque você mesmo não solta a voz, hein?

Zé Kéti – Eu já falei pra ele, mas o homem é teimoso...

João do Vale – Ah, num tenho jeito pra isso, não... Nem tenho voz...

Zé Kéti – Ah, não me vem com essa, João, eu sei que você pode cantar igual a qualquer

um aqui...

João do Vale – A Domingas, minha esposa, vive dizendo a mesma coisa, mas num levo

a sério não, essa coisa de cantá num é comigo....

Zé Kéti – Peraí, resolvo já essa história ... (levanta-se)

João do Vale – Quê que tu vai aprontá, homi?

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Nara Leão – Zé...

(Zé Kéti vai até o microfone, no palquinho do bar)

Zé Kéti – Boa noite, meus amigos e minhas amigas, lembrando que essa semana tem a

Ordem do Cartola Dourada, um projeto criado aqui no Zicartola para homenagear os

grandes nomes da nossa música, gostaria de agradecer ao Cartola e a Zica, sua

digníssima esposa, por nos proporcionar esse lugar maravilhoso e aconchegante....

Agora, pessoal, eu quero apresentar a vocês, um amigo muito ilustre, um grande

compositor. ... E um grande cantor também. Vocês com certeza já devem ter ouvido

alguma música dele. .. Sobe aqui, João!

João do Vale – Diacho, agora é que foi!

Nara Leão – (como que o apresentando ao público) João do Vale!

(Aplausos. João do Vale hesita, todos em cena passam a gritar seu nome. Ele então

decide ir até o palco, toma nas mãos o microfone)

João do Vale – Que música que eu canto?

Zé Kéti – Canta aquele seu samba aí, João!

João do Vale – Tá bem.... Essa música fiz pr’um amigo meu. ...Neiva Moreira, quando

ele saiu pro exílio, fui no aeroporto pra me dispidí, mas num cheguei a tempo, vi ele

embarcando de longe, voltei de lá triste e indignado. Fiquei com aquilo na cabeça....

(Canta “Voz do Povo” de João do Vale e Luiz Vieira)

Meu samba é a voz do povo

Se alguém gostou

Eu posso cantar de novo

Eu fui pedir aumento ao patrão

Fui piorar minha situação

O meu nome foi pra lista

Na mesma hora

Dos que iam ser mandado embora

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Eu sou a flô que o vento jogou no chão

Mas ficou um galho

Pra outra flô brotar

As minhas folha o vento pode levar

Mas o meu perfume fica boiando no ar

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Cena XIII

Locutor (voz) – Um grupo de artistas ligados ao Centro Popular de Cultura da UNE –

CPC (posto na ilegalidade) reúne-se com o intuito de criar um foco de resistência à

situação. O show Opinião, escrito por Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo

Pontes, será dirigido por Augusto Boal e protagonizado por Zé Kéti, João do Vale e

Nara Leão. Resistência, essa é a palavra de ordem. Senhoras e senhoras, ou resistimos

a esse governo fascista e golpista ou pereceremos todos (como que lutando para não

ser calado) Não se rendam ao atual estado de coisas... É isso que eles querem. É isso

que eles...

(É calado à força. Ouve-se barulhos. O Locutor é silenciado. Continuação do show

Opinião. Nara Leão entra em cena, cantando trechos de “Pisa na Fulô” De João do

Vale, Ernesto Pires e Silveira Júnior)

Nara Leão –

Pisa na fulô, pisa na fulô

Pisa na fulô

Não maltrata o meu amor...

João do Vale, Zé Keti e Nara Leão – Pisa na fulô, pisa na fulô

Pisa na fulô

Não maltrata o meu amor...

João do Vale, Zé Keti e Nara Leão –

Um dia desses

Fui dançar lá em Pedreiras

Na rua da Golada

Eu gostei da brincadeira

Zé Cachngá era o tocador

Mas só tocava

Pisa na fulô

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Pisa na fulô, pisa na fulô...

Seu Serafim cochichava com Dió

Sou capaz de jurar

Que nunca vi forró mió

Inté vovó

Garrou na mão do vovô

vamos embora meu veinho

Pisa na fulô

Pisa na fulô, pisa na fulô...

Eu vi menina que nem tinha doze anos

Agarrar seu par

E também sair dançando

Satisfeita, dizendo

"Meu amor, ai como

É gostoso pisa na fulô"

Pisa na fulô, pisa na fulô...

De magrugada Zeca Cachangá

Disse ao dono da casa

"Não precisa me pagar

Mas por favor

Arranja outro tocador

Que eu também quero

Pisa na fulô"

Voz – Nara...

Nara Leão – Hein...

Voz – Você vai cantar baião, Nara?

Nara Leão – Vou.

Voz – Baião, Nara?

Nara Leão – É.

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Voz – Nara, Baião?

Nara Leão – É, Baião!

Voz – Nara!

Nara Leão – Por que, a constituição proíbe cantar Baião?

Voz – Nara, você é Bossa Nova. Tem voz de Copacabana, jeito de Copacabana.

Nara Leão – Eu tento. (tenta cantar “Sina de Caboclo”)

Mas plantar pra divi...

Voz – (interrompe) Nara!

Nara Leão – Que é?

Voz – Vai dividir o dinheiro com os pobres, é?

Nara Leão – Ah, não me enche!

Voz – Você pensa que música é Cruz Vermelha, é?

Nara Leão – Não. Música é pra cantar. Cantar o que a gente acha que tem que cantar.

Com o jeito que tiver. Do jeito que for. Aquilo que a gente sente, canta!

Voz – Você não sente nada disso, Nara, deixa de frescura. Você tem uma cabeceira de

mármore que custa uma fortuna. Você pelo menos já viu um lavrador na vida, Nara?

Nara Leão – Não, mas todo dia vejo gente que vive às custas dele!

Nara Leão – (interrompe a Voz. Canta “Sina de Caboclo” de João do Vale e

Jocastro Bezerra de Aquino)

Mas plantar pra dividir

Num faço mais isso não

Eu sô um pobre caboclo

Ganho a vida na enxada

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O que eu colho é dividido

Com quem não plantou nada

Se assim continuar

Vou deixar o meu sertão

Mesmo os olho cheio d’água

E com dor no coração

Vou pro Rio carregar massa

Pros pedreiro em construção

Deus até tá ajudando

Tá chovendo no sertão

Mas plantar pra dividir

Num faço mais isso não

João do Vale –

Quer ver eu bater, enxada no chão

Com força e coragem, com satisfação

É só me dar terra pra ver como é

Eu planto feijão, arroz e café

Vai ser bom pra mim e bom pro doutor

Eu mando feijão, ele manda trator

Vocês vão ver o que é produção

Modéstia à parte, eu bato no peito

Eu sou bom lavrador

Mas plantar pra dividir

João do Vale – (grita)

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Num faço mais isso não!

Cena XIV

(Cena final do Show Opinião. Zé Kéti entra lendo a sentença de Tiradentes,

extraídas dos autos da devassa da Inconfidência Mineira)

Zé Keti – “Que seja conduzido pelas ruas públicas ao local da forca e ali morra morte

natural para sempre... E que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e seja pregada em

um poste alto até que o tempo a consuma. Seu corpo será dividido em quatro quartos e

pregado em poste pelo caminho de Minas, aonde o réu teve as suas infames práticas.

Declaram o réu infame seus filhos e netos, sendo seus bens confiscados, a casa em que

vivia será arrasada e salgada para que nunca mais no chão se edifique!”

Nara Leão –

Foi no ano de 1789, em Minas Gerais que o fato se deu

E havia o derrame do ouro

que era um tesouro

que os brasileiros tinham que pagar

Esse ouro ia longe, distante passava no mar

Ia pra Portugal para o rei gastar

Um mineiro que é bom brasileiro e que é altaneiro garrou a

pensar Se esse ouro é ouro da terra, o da nossa terra porque que

ele vai Se juntaram numa reunião resolveram fazer uma

conspiração

Manoel da Costa, Antônio Gonzaga, Oliveira Rolim e tem mais um nome

Que é o nome do homem que foi mais herói esse fica pro fim

E o nome do homem que foi mais herói aprenda quem quiser

Joaquim José da Silva Xavier

E que foi chamado em todos os tempos por toda essa gente de o Tiradentes

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Nara Leão –

Coro –

Nara Leão –

De o Tiradentes

De o Tiradentes

De o Tiradentes

Se saber mais tu queiras te digo o alferes era um militar

Coro –

E havia entre os conjurados um homem danado veja o que ele fez

O seu nome é triste sem glória ficou na história Silvério dos Reis

Silvério dos Reis

Silvério dos Reis

Silvério dos Reis

Nara Leão –

Escondido feito um bandido esse traidor

foi correndo falar com o governador

Contou tudo fez uma torcena que o Visconde de Barbacena soltou os milico na rua

mandou sentá a pua

pegar e bater, matar e prender

Coro –

Nara Leão –

Matar e prender

Matar e prender

Matar e prender

Foi então que pegaram todos os conjurados

Encarcerados numa prisão

Depois de um tempão foram todos soltados

Só o Tiradentes morreu enfocado

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Coro –

Nara Leão –

Coro –

Chamando pra si a culpa por inteiro

A culpa de tudo

Foi homem peitudo

Foi bom brasileiro

Foi bom brasileiro

Foi bom brasileiro

Foi bom brasileiro

Essa história bem verdadeira

Foi a luta primeira que se deu no Brasil

E depois outras tantas houveram

Que por fim fizeram

Um Brasil mais decente

Um Brasil independente

(Aqui João, canta “dependente”)

Independente

Independente

Independente

Independente

Independente

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Cena XV

(Nara interrompe a cena)

Nara Leão – Para, para, para....

Zé Kéti – O que foi, Nara, o que tá acontecendo?

Nara Leão – Calma, deixe eu respirar...

(Silêncio)

Nara Leão – Eu tô vendo umas hélices de ventilador, tem alguma coisa errada

comigo...

(Silêncio)

Zé Kéti – Como assim, Nara .. ?

(Silêncio)

Nara Leão – Eu preciso ir embora!

João do Vale – Que conversa é essa mulhé, tu num pode saí daqui assim...

Nara Leão – Eu não tô me sentindo bem....

Zé Kéti – O que cê tá sentindo?

Nara Leão – Já vai passar.... Eu já senti isso antes.... É que agora..... Veio forte.

Zé Kéti – Isso deve ser cansaço. ... Vamo fazer o seguinte: eu vou te levar em casa,

assim você descansa. Quando você se senti melhor a gente se fala e continua os ensaios,

tudo bem?

João do Vale – Se tu pricisá de mais tempo, a gente cancela o show, sem pobrema....

Nara Leão – Não, isso não... O show não precisa ser cancelado...

João do Vale – Mas sem tu no show, num vai prestá, mulhé...

Zé Kéti – É verdade, se sair um desanda a coisa toda...

Nara Leão – Eu vim pensando nisso. .. Eu fiz uns exames e ainda tô esperando o

resultado. Se eu precisar me ausentar por um tempo. .. Eu conheci uma moça quando eu

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passei pela Bahia, ela tinha um perfil muito interessante... Eu vi ela cantar, tinha uma

presença forte, um vozeirão...

Zé Kéti – Calma. Não vamo pensar nisso agora. Eu te levo pra casa e depois a gente vê

como faz...

Cena XVI (Delegacia da ditadura, estão presentes o Delegado e um Espião que presenciou

umas das apresentações do Opinião no ano de 1965)

Delegado – (Examinando o documento confidencial) Opinião... Então esse é o tal

espetáculo com conteúdo subversivo...

Espião – Isso mesmo Delegado, e foi apresentada em Belo Horizonte, em duas sessões.

Eu estava lá disfarçado, o público era, em sua maioria, estudantes...

Delegado – Todos comunistas! E quanto à divulgação?

Espião – A propaganda foi feita através de cartazes expostos nas vitrines das casas

comerciais... Não houve propaganda pela imprensa escrita. Os noticiários de TV

fizeram referência à peça. Anunciando que todas as entradas já haviam sido vendidas e

que os responsáveis não tinham obtido alvará para apresentação, e que tinham dúvidas

quanto à concessão, tendo em vista seu conteúdo subversivo!

Delegado – E o alvará?

Espião – Só foi concedido no dia da apresentação, por não ter sido solicitado antes.

Delegado – Esses comunistas estão aí contaminando as mentes pra aderir sua causa!

Espião – A frequência, salvo raras exceções, foi de estudantes. Teve intensa

propaganda e venda de ingressos nas escolas. Parece ter havido a preocupação de fazer

crer que a peça ia ser proibida, notícia que circulou com insistência nos meios

estudantis.

Delegado – Lotou?

Espião – Casa praticamente lotada nas duas sessões. Não foram vendidos lugares

numerados, provocando confusão na entrada e retardando o início do show.

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Delegado – Baderneiros!

Espião – A venda dos ingressos e programas, e a organização das filas de entrada foram

feitas por estudantes. O policiamento ostensivo foi de apenas dois soldados da Polícia

Militar.

Delegado – Isso é o de menos. E a peça, como foi a peça?

Espião – Ela se iniciou com a apresentação do poeta-cantor João do Vale, indivíduo

negro, altura mediana, físico bastante desenvolvido e muito simpático... Uma pele de

ébano que transpirava...

(Delegado o repreende com o olhar)

Espião – Subversão!

Delegado – Sei... Continue...

Espião – João do Vale, segundo o apresentador, teria sido agraciado pela Academia de

Letras de São Paulo com o título de “Poeta do Povo”, que só teria sido concedido

anteriormente a Castro Alves. A entonação enfática ao título “Poeta do Povo” provocou

enorme salva de palmas por parte dos estudantes.

Delegado – Mas que pretensão desse negro!

Espião – Ele roubou o espetáculo. Dotado de grande poder de atrair simpatias, fazendo

exploração da miséria do povo, o que também fez o tal Zé Kéti, outro negro simpático...

Ressaltando o problema da reforma agrária, satirizando o nosso governo por gestos e

palavras dúbias, o poeta dominou a plateia. É bom artista e é bom elemento para incutir

ideias subversivas. Usa dos gestos com propriedade e aproveita a condição de homem

de cor para, com voz forte e grave, salientar os aspectos que emocionam o auditório...

Canta de camisa aberta e descalço.... Revelando aquele. ... Pectoral de homem rude do

campo...

Delegado – Prossiga homem, prossiga...

Espião – O show se constituiu em músicas, prosa e verso, em termos populares e com

predominância de gírias, tudo com fundo político-social, falando da gente do morro, dos

pobres, da criança abandonada, do lavrador, do nordestino, trazendo sempre uma

mensagem de insatisfação e discordância em relação ao atual estado de coisas.

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Delegado – Gente sem importância. ... E as músicas?

Espião – Dentre as músicas merecem destaque: a do lavrador que não quer dividir o

fruto de seu trabalho com o patrão; teve o tema da Inconfidência Mineira, chegando até

o presente ano, quando o negro João do Vale, troca a palavra independente, por

“dependente”. Ah, e teve um tal de “Carcará” que levantou os ânimos...

Delegado – Hum...

Espião – É claro, tive que fingir empolgação para não levantar suspeitas....

Delegado – Essa peça não tem valor artístico. Como instrumento de subversão,

entretanto atinge seu objetivo.

Espião – De acordo, Delegado. A simples menção de “povo”, “terra de todos”,

“desigualdades”, “sofrimento” e expressões semelhantes, levou os estudantes a se

empolgarem, principalmente quando o negro abria a camisa e a boca...

Delegado – Esse negro é uma ameaça ... Temos que dar um jeito de “convidá-lo” para

um interrogatório...

Espião – Sob qual acusação?

Delegado – É... Põe aí... Conspiração comunista...

Espião – Delegado...

Delegado – Hum...

Espião – Posso interrogá-lo?

Delegado – Não!

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Cena XVII (Maria Bethânia se destaca como que no meio de uma das apresentações do

Opinião)

Maria Bethânia – Meu nome é Maria Bethânia Viana Teles Veloso. Tenho esse nome

de latifundiária baiana, mas sou baiana só. Tenho 18 anos, não consigo sair do ginásio

por causa da matemática. Sou filha de um bom sujeito, funcionário do Correio, eu e

mais oito irmãos... Agora sou cantora, mas até os 12 anos eu era meia-esquerda do time

de Santo Amaro onde nasci.

(Canta a música “Carcará” de João do Vale e José Cândido)

Carcará

Lá no sertão

É um bicho que avoa que nem avião

É um pássaro malvado

Tem o bico volteado que nem gavião

Carcará

Quando vê roça queimada

Sai voando, cantando,

Carcará

Vai fazer sua caçada

Carcará come inté cobra queimada

Quando chega o tempo da invernada

O sertão não tem mais roça queimada

Carcará mesmo assim num passa fome

Os burrego que nasce na baixada

Em 1950 mais de dois milhões de nordestinos viviam fora dos seus estados natais. 10%

da população do Ceará emigrou. 13% do Piauí! 15% da Bahia!! 17% de Alagoas!!!"

Carcará

Pega, mata e come

Carcará

Num vai morrer de fome

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Carcará

Mais coragem do que home

Carcará

Pega, mata e come

Carcará é malvado, é valentão

É a águia de lá do meu sertão

Os burrego novinho num pode andá

Ele puxa o umbigo inté matá

Carcará

Pega, mata e come

Carcará

Num vai morrer de fome

Carcará

Mais coragem do que home

Carcará

Pega, mata e come

Carcará

Num vai morrer de fome

Carcará

Mais coragem do que home

Carcará

Pega, mata e come

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Cena XVIII

(Porões do DOI-CODI. João está sentado numa cadeira, sendo rodeado pelo

Interrogador)

Interrogador – Então você quer que eu acredite que você estava lá só visitando um

amigo, que por acaso estava ligado com movimentos subversivos...

João do Vale – É como eu tô lhe dizendo, sô homi de palavra, se eu tivesse metido com

essas coisa comunista aí, eu falava sem medo...

Interrogador – Conversa, neguinho, você só vai sair daqui quando me contar essa

história direitinho...

João do Vale –

Moço, eu lhe disse tudo

Nem sei porque tô aqui

Só lhe disse a verdade

Num sô homi de mintí

Tenho Deus de tistimunha

E Jesus pra garantí

Interrogador –

Olha aqui, ô seu neguinho

Não me vem com essa não

Sei que tu é esperto

Um cabra sonso do sertão

Aqui não tem nem padre

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Pra lhe dá absolvição

João do Vale –

Então vem cá me fala

O que devo lhe dizê

Tô com a minha alma limpa

Num tenho nada que temê

Eu sô homi de corage

Num tenho medo de morrê

Interrogador –

Não se faça de valente

Já conheço isso aí

Muitos cabras destemidos

Já passaram por aqui

Saíram falando fino

Com o ouvido a zunir

João do Vale –

Tu se escondi nessa farda

Nas asinha do patrão

C’um bocado de soldado

Pistola, tanque e canhão

Quero vê se tu é homi

Só no braço e no facão

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Interrogador –

Vê se fala tudo, nego

O que eu quero saber

Tô perdendo a paciência

Cê sabe o que quero dizer

Então vê se colabora

Ou o coro vai comer

João do Vale –

Arre, como tu é teimoso

Uma mula empacada

Fui preso por engano

Tava lá na hora errada

Mas a políça chegô

Distribuindo bordoada

Interrogador –

Veja bem, ô seu neguinho

Cê tá pensando o quê

Você acha que eu sou bobo

Nessa história não vou crer

Então vê se conta tudo

Que eu alivio pra você

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João do Vale –

O sinhô deve ser surdo

Mas eu volto a repití

Eu tô limpo nessa história

Mas eu paro por aqui

Se quisé me processá

Eu não posso lhe impidí

Interrogador –

Você tá é delirando

Ninguém vai te processar

O destino aqui é outro

Eu vou é te suicidar

De joelhos numa cela

E depois fotografar

João do Vale –

Isso é muita covardia

Mas num vai adiantá

O Brasil é muito grande

Muita gente pra calá

Esse sistema tá é podre

Tá pra mode despencá

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Interrogador –

Despencá o que, neguinho

A gente tá só começando

Vê se lava essa boca

64 foi o ano!

O Brasil saiu da lama

E todo mundo apoiando

João do Vale –

Todo mundo comentado

Que a imprensa tá calada

“64 foi ano”

Não me venha com piada

Foram um bando de fulêro

Que fizeram essa maçada

(O Interrogador parte pra cima de João)

Interrogador – Seu preto insolente!

(Batidas na porta interrompem a ação do Interrogador. O Delegado entra)

Delegado – Libera o homem!

Interrogador – Como é? Eu ainda não terminei com ele!

Delegado – Recebi ordens diretas lá de cima. Parece que ele tem costas quentes, um

figurão lá do Maranhão enviou uma solicitação para que ele fosse solto desde que

voltasse para a terra dele!

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Interrogador – Tem sorte, hein, nego... Mas eu te juro que se você voltar pra cá de

novo, ninguém nunca mais vai te achar...

(João sai com o Delegado)

Interrogador – Vai, vai... Volta pro buraco de onde tu saiu!

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Cena XIX (Locutor entra. Fala como se tivesse sendo vigiado)

Locutor (voz) – E depois de assinado o famigerado Ato Institucional N° 5... (como se

estivesse recebendo ameaças da censura) Quer dizer, da medida de segurança...

Grandes nomes da nossa música sofrem perseguições políticas e... (ao censor) Não?

(recebendo “instruções”) Enfim, Chico Buarque foi “convidado” a se retirar do país,

assim como Gilberto Gil e Caetano Veloso... O primeiro foi para a Itália, já os dois

últimos se exilaram... Hum... Se dirigiram espontaneamente para Londres... Já o nosso

João, bem... Esse foi para Pedreiras mesmo... Em prisão domiciliar, proibido de ir a

qualquer lugar sem prévia autorização. Diante disso não restou a João outra opção além

de se embrenhar nas matas caçando pebas e tamanduás.... Nessa época uma história

curiosa aconteceu quando uma expedição do Projeto Rondon chegou naquelas

brenhas Perdidos naquele sertão e sedentos, o grupo deu de cara com um matuto todo

mal-ajambrado...

(Transição. Domingas entra. João já está de volta à sua casa no Rio de Janeiro. Ele

prossegue a história que o Locutor havia começado.)

João do Vale – Era eu. Eles ficaro tudo me incarando com aqueles zoião assim ó....

Domingas – Vai ver eu os homi até pensaram que tu era uma entidade do mato....

João do Vale – Só pode.... Até que um deles tomou corage e veio me perguntar onde

tinha água boa de beber.... Eu disse que a gente tava pertinho do Rio Mearim...

Domingas – Aí eles foram embora?!

João do Vale – Escuta...

Domingas – Hum....

João do Vale – O sujeito ficou todo escabriado achando que água num era boa de

beber... Eu cheguei pra ele e disse assim: Siô, isso aqui num é o Rio Tietê, não. Eles

ficaro se olhando como quem diz assim “Donde que esse matuto conhece o Rio Tietê?”

Domingas – E por que tu não disse logo de cara que tu era tu, homi?

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João do Vale – Que nada, queria deixa eles matando a cabeça .... Conversa vai, conversa

vem os homi acabaro descobrindo que eu era eu.... Inté me deram um dinheirinho pra

guiar eles lá naquelas brenha....

Domingas – São Benedito faz muita hora extra pra ti, viu? Vou te contá.... Eu aqui

sozinha no Rio, agoniada ... Ah, mas graças a Deus que tu voltou, homi, não via a hora

desse aperreio todo acabar...

João do Vale – Que nada mulhé, graças a São Benedito que os milico num me fizeram

nada demais, fiquei exilado na minha Pedreiras, sossegado, caçando minhas peba....

Domingas – Vê se não te mete em confusão, aqui a selva é outra. Baixaram um tal de

AI não sei das quantas aí que ninguém pode dizer um “ai”, que a polícia mete logo a

porrada em todo mundo!

João do Vale – Diacho, todo lugar que eu vô tem milico me vigiando, me censurando.

Sô um homi da música, Domingas, se eles me impede de fazê meu trabaio, vô vivê de

quê?

Domingas – Tem calma, homem, com um tempo eles esquecem e tu pode tocar tua vida

adiante, agora não pode é dar motivo pra eles, se não complica...

João do Vale – Num esquenta não, mulhé, vô bebê meu chá de macaco quietinho!

Domingas – Não brinca com coisa séria, João... Já foi sorte o Sarney ter livrado a sua...

João do Vale – Ah, mas eu num vô ficá socado em casa, não. Mas num vô de jeito

nenhum!

Domingas – Psiuuu! Fale baixo que o Riva tá dormindo...

João do Vale – Eita é mermo...

Domingas – Ah, chegou umas cartas aí pra ti, de um tal professor, acho que é gringo,

um Thomas num sei das quantas!

João do Vale – Ah, é o Dr. Thomas, Domingas, o homi que eu disse que qué istudá

minhas música! O que me convidô pra fazê uns show lá nos Estados Unidos... Já inté

me comprô as passage...

Domingas – E você sabe lá fala inglês, João?

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João do Vale – O homi disse que num precisa, não, porque ele vai sê meu tradutô lá...

Domingas – Isso é aprontação tua, né, João?

João do Vale – É nada, mulhé, tô lhe dizendo que o homi inté passô minhas música pro

inglês, era uns negócio de Stépe on dê Flôuer (*Step on the Flower) On dê uingue ofe

dê uinde (*On the Wing of the Wind) Vóice ofe dê pióple (*Voice of the People)

Domingas – Olha lá, João, não vai me aprontá lá nos estrangeiro...

João do Vale – Se preocupe não, minha abelhinha companheira, vô com todo

cuidado. ... Domingas, esse ano Pedreiras completa cem anos, e o prefeito qué que eu vá

pra lá como convidado de honra... O padre de lá inté me pediu uma música pro

centenário...

Domingas – E tu fez?

João do Vale – Hum...

João do Vale – (canta “Aniversário de Pedreiras” de João do Vale e Adélio de

Sousa. Ritmo de tambor-de-criola)

Oh! Pedreiras, princesa do Mearim

Todo mundo festejando

Oh! Bate o tambor pra mim

Benedito completando

Seu Primeiro centenário

Parabéns a Benedito, pelo seu aniversário

Meu senhor São Benedito

Hoje canto em seu louvor

Vou pagar minha promessa

Que eu fiz para o senhor

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Eu bati na vossa porta

E o milagre a mim chegou

Toda Pedreiras festeja com carinho e com fervor

Cem anos de milagre e festa

Do seu santo protetor

Padroeiro da cidade, padroeiro do amor

No dia da procissão

É aí que a gente vê

Gente pagando promessa

Muito grato a vosmicê

Pé no chão, mão na cabeça

Que é pro senhor proteger

Quando chega a sua festa

Eu fico de pé ligeiro

E quando o sino bate

Meu coração bate primeiro

Pra assisti a vossa missa

Do meu santo padroeiro

Oh! Pedreiras, princesa do Mearim...

João do Vale – Essa é a minha Pedreiras, a cidade do meu coração. Quando eu morrer,

nem que eu teja na China, quero que me levem pra lá!

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Cena XX (Aeroporto de Nova York. Quando ele aguardava o voo para Nashville onde

deveria encontrar o Professor Thomas)

João do Vale – Esse voo ainda vai demora que só o diacho!

(João vai até o bar do aeroporto, onde está o Atendente)

João do Vale – Ei, seu moço...

Atendente – What can I do for you, sir?

João do Vale – Me vê um uísquin aí...

Atendente – I’m sorry...?

João do Vale – Um uísquin!

Atendente – I’m sorry, I don’t understand you...

João do Vale – Uísque!!!

Atendente – Oh, I’m sorry.... What kind... Scotch?

(João balança a cabeça que sim. Começa a catar os dólares no bolso)

João Vale – Vish Maria, como é que se mexe com esse dinheiro?

(Atendente retorna com um copo de uísque)

João do Vale – Quanto custa?

Atendente – Five dollar sir!

João do Vale – (dando algumas notas na mão do Atendente) Vê se isso aí serve!

(Atendente recebe o dinheiro e dá a bebida a João)

João do Vale – Obrigado!

Atendente – You’re welcome, sir.

(As horas passam, João bebe várias doses de uísque e perde a noção do tempo.)

Alto-Falante – This is the final boarding call for passenger João do Vale, booked on

flight 234A to Nashville. Please proceed to gate 3 immediately. The final checks are

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being completed and the captain will order for the doors of the aircraft to close in

approximately five minutes time.

Atendente – Hey, sir, are you listening to this?... João do Vale... Is this your name?

João do Vale – Sô eu, por que que tá falando meu nome, hein?

Atendente – I’m sorry sir, but you’re about to lose your flight!

Alto-Falante – I repeat: This is the final boarding call for João do Vale booked on

flight 234A to Nashville. Please proceed to gate 3 immediately...

Atendente – I’m sorry, but I think you didn’t understand me... I said you are about to

lose your flight...

João do Vale – Sei, também gostei muito daqui, é um lugá danado de bunito!

Atendente – Listen to me, your flight... Your plane... You have to go to the gate

number three... Hurry up!

João do Vale – Moço, num tô entendendo nada que o sinhô tá falando, mas tá

engraçado como quê!

Atendente – Oh My...

João do Vale – (num sobressalto) Meu voo!!!

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Cena XXI Locutor – Catete, o velho bairro do Rio de Janeiro, que já abrigou o palácio

presidencial, foi agraciado no final dos anos 70 pela mais efervescente e pujante festa

nordestina da cidade, o Forró Forrado. Casa lotada nas noites de terça e quinta... Em

pouco tempo o lugar viraria ponto de encontro de artistas e intelectuais de peso, além, é

claro, dos shows memoráveis de João do Vale e seus convidados. .... Um festão de

arromba!

(Forró Forrado, uma casa de forró que João e outros artistas costumavam

frequentar. Estão presentes João e Chico Buarque.)

Chico Buarque – Me conta essa história direito, João, e aí, ficou por isso mesmo?

João do Vale – Nada, fiquei agoniado, procurei falá com tudo mundo, aí na confusão

conseguiram encontrá um funcionário que falava português, daí o homem me orientou e

me colocou no avião certo!

Chico Buarque – Conseguiu encontrar o tal professor!

João do Vale – Ora se não. ... Fiz umas música numa faculdade lá e quando fui embora

ganhei diploma de mestre em cultura popular, vê se pode, camarada Chico?

Chico Buarque – Se tratando de ti, João eu não duvido! Mudando de assunto, o pessoal

já disse que vem em peso hoje aqui no Forró Forrado!

João do Vale – Quem?

Chico Buarque – O Luiz Gonzaga, Elza Soares, Jackson do Pandeiro, Moreira da

Silva, Elke Maravilha, Clara Nunes, Djavan...

João do Vale – Moço, isso vai tá danado de bom. .. Camarada, se aprochegue um

pouco... A Domingas, num sabe? Tá braba comigo...

Chico Buarque – Mas porque, homem?

João do Vale – Semana passada, tu num se alembra, eu tava com o meu amigo Rogério

du Maranhão bebendo inté umas hora...

Chico Buarque – Já sei, você não voltou pra casa...

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João do Vale – Pois é... Fui durmí na casa do Rogério, só que quando acordei, isso foi

umas sete hora da manhã, moço tava tudo trancado... Fui na porta do quintal, a mesma

coisa, tinha grade pra todo lado... E eu agoniado, Chico, pra sair dali...

Chico Buarque – E o que foi que você fez, João?

João do Vale – Moço, eu comecei a esmurrá a porta do quarto, mas o homem num

acordava de jeito nenhum... Aí eu disistí e fiquei na sala esperando....

Chico Buarque – E o sujeito não acordou?

João do Vale – Acordô.... Depois de eu ficá na sala inté umas hora...

Chico Buarque – E o que você falou pra ele, João?

João do Vale – “Tu hospeda, mas tu tranca, Diabo!”

Chico Buarque – Eita, João, quando eu penso que já ouví de tudo, você me aparece...

Voz – (à João) Ei, João, deixa de papo, bora cantar, homem!

João do Vale – Opa, vumbora...

(João tira os sapatos, abre a camisa e canta “Matuto Transviado ou Coroné

Antonio Bento” de João do Vale e Luiz Wanderley)

João do Vale – Eita forró forrado danado de bom, menino!

Coroné Antônio Bento

No dia do casamento

Da sua filha Juliana

Ele não quis sanfoneiro

Foi pro Rio de Janeiro

E convidou Bené Nunes

Pra tocar,

João do Vale – Quando eu fiz essa música, ela não passava assim de um reles baião,

mas depois que Tim Maia gravou, aí as menininha da.... (tentando lembrar) da PUC

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estudaram ela... E descobriram que era um rock rural, aí fiquei sendo compositô de rock

rural...

Olê, lê, olá, lá

Nesse dia Bodocó

Faltou pouco pra virá

João do Vale – (convida como fez em um dos shows do Forró Forrado) Sobe aqui,

sobe, vamo aqui... Vamo Aqui...

(Chico Buarque, Zé Keti assim como outros atores e atrizes sobem no palco)

Todo mundo que mora por ali

Esse dia num pôde arresisti

Quando ouvia o toque do piano

Rebolava, saia arrequebrando

Inté Zé Macaxera que era o noivo

Dançou a noite inteira sem pará

Que é costume de todos que se casa

Ficá doido pra festa se acabá.

Nesse dia Bodocó

Faltou pouco pra virá

Meia-noite o Bené se enfezou

E tocou um tal de rock'n'roll

Os matutos caíram no salão

Não quiseram mais xote nem baião

Era briga se falassem no xaxado

Foi aí que eu vi que no sertão

Também tem os matuto transviado

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Nesse dia Bodocó

Faltou pouco pra virá.

(João é cercado por jornalistas, todos falam ao mesmo tempo, atabalhoados, furo

de reportagem)

Jornalista – Senhor João, e os boatos sobre o seu novo LP, o senhor pode nos dar mais

detalhes acerca desse projeto?

João do Vale – Tô lançando um disco aqui no Forró Forrado. São alguns dos meus

sucessos, escolhidos pela Editora Abril, que é responsável pelo lançamento.

Jornalista – O senhor estaria assim tentando apagar sua imagem de “Compositor do

Carcará”?

João do Vale – Hum....

Jornalista – É que é uma de suas músicas mais conhecidas....

João do Vale – Olha, vou dizer uma coisa, sou muito ciumento, gosto de todas as

minhas músicas. É como se todas fossem minhas filha de carne. Por isso que esse

negócio de “compositô de Carcará” me deixa brabo como quê. Num quero continuar

esmagado por essa música. Quero que todo mundo conheça o resto do meu trabalho. Eu,

pra falar a verdade só lancei um LP, embora tenha feito mais de 400 músicas.

Jornalista – E o senhor nunca recebeu outras propostas?

João do Vale – Muitas, mas nunca quis sabê!

Jornalista – Por que?

João do Vale – Porque eu peço dinheiro adiantado e eles nunca me dão. Então num tem

acerto e eu continuo aqui, animando esse povo nesse forró lascado de bom!

(Os jornalistas bombardeiam João com perguntas, cansado João sai de cena)

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Cena XXII Locutor – Em março de 1979, João Figueiredo, o último dos generais no poder, assume

a presidência da república, jurando conduzir o Brasil à democracia. “É para abrir

mesmo. Quem não quiser que abra eu prendo e arrebento!” Disse, ao ser questionado

sobre a abertura política. Insatisfeitos com o abrandamento do regime, os militares mais

radicais da chamada “linha dura” promovem uma série de atentados à bomba, como na

famosa noite de 30 de Abril de 1981, véspera do dia do trabalhador, no pavilhão do

Riocentro, Barra da Tijuca. Um artefato explodiu dentro de um automóvel enquanto era

manipulado por dois agentes ligados ao DOI-CODI. É claro, na versão oficial, as

bombas teriam sido implantadas por grupos de esquerda... Mais uma mentira inventada

pelos militares para tentar encobrir seus malfeitos. O fiasco do atentado do Riocentro só

veio a desgastar ainda mais o já decadente regime militar brasileiro. Enquanto isso, João

do Vale, o guerreiro do sertão, se dedicava ativamente às Diretas Já, pois assim como a

maioria da população brasileira, ansiava por respirar novos ares na política ..... Neste ano

de 1981 será gravado o LP “João do Vale Convida” o projeto é uma iniciativa de Chico

Buarque, Fagner e Fernando Faro, um reconhecimento justo a tão importante nome da

música brasileira. Alguns artistas ainda estão sendo contatados, enquanto outros já

confirmaram sua presença, como Tom Jobim, Alceu Valença, Zé Ramalho e Nara Leão.

(Gravadora. A equipe técnica organiza os preparativos finais. Quadro em que João

do Vale e Nara Leão cantam “Pipira” de João do Vale e José Batista. Locutor

observa a cena)

Nara Leão –

Mané, tem um viveiro

Tem passarinho de toda qualidade

Zabelê, canário, corrupião

Pipira, sabiá tem azulão

João do Vale –

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Rosinha, tava brincando

Pipira, lhe biliscou

O dedo inchava, ela chorava

Nara Leão –

Ai ai, ai dor

João do Vale –

O que é menina?

Nara Leão –

Foi a pipira do mané que biliscou

João do Vale –

O que é menina?

Nara Leão –

Foi a pipira do mané que biliscou

João do Vale e Nara Leão –

Já vi menina da carne remosa

Pipira do bico venenoso

Deixou todo mundo em alvoroço

João do Vale –

Que a menina tá inchando

Do dedo até o pé do pescoço

Nara Leão –

Que a menina tá inchando

Do dedo até o pé do pescoço

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João do Vale e Nara Leão –

Eu via disso lá no bacabal

Ninguém pode ver o trem engordando

Censura ai meu Deus que é um horror

Nara Leão –

Fica o povo comentando

Mais um que a pipira biliscou

João do Vale –

E tu também ta engordando

Mais uma que a pipira biliscou

Nara Leão e João do Vale –

E tu também ta engordando

Mais uma que a pipira biliscou

(João do Vale e Nara Leão recuam permanece o Locutor)

Locutor – No entanto... Aqueles anos não foram muito generosos com o poeta-

cantador...

Cena XXIII (Segunda metade dos anos 80. Época em que João sofreu um AVC. Hospital,

Domingas está em cena, esperando notícias de João. Chico Buarque chega)

Chico Buarque – Me ligaram do hospital, nem acreditei no que me disseram, como é

que tá o João, Domingas?

Domingas – Tá mal, Chico, o médico disse que a situação dele é grave... Ele teve um

derrame, tá em coma, Chico, em coma... Não sei o que vou fazer se....

Chico Buarque – Tem calma, Domingas, João é um sujeito forte, ele vai sair dessa,

tenha fé que vai dar tudo certo!

Domingas – Deus te ouça...

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Chico Buarque – A gente pode pedir transferência pra outro hospital, um mais bem

equipado, as chances de recuperação vão ser bem maiores...

Domingas – Transferido no estado em que ele tá, Chico? Pode ser perigoso, fora que a

gente não tem todo esse dinheiro...

Chico Buarque – Pode deixar que disso eu cuido, o importante é que ele se recupere

logo...

Domingas – Ô, Chico, não sei nem como lhe agradecer, olha eu juro que devolvo tudo

assim que puder...

Chico Buarque – Não fala isso, João é meu amigo, meu irmão, ele faria o mesmo no

meu lugar, disso eu tenho certeza...

(A Médica chega)

Chico Buarque – E o João, doutora? Como é que ele tá? Ele vai ficar bem?

Médica – Na situação em que ele se encontra é difícil prever, mas a situação do João é

delicadíssima...

Chico Buarque – Ele vai ficar com alguma sequela, doutora?

Médica – Nossa prioridade é fazer com que ele sobreviva, não podemos arriscar

qualquer previsão no estado em que ele se encontra.

Domingas – Aí meu Deus...

Chico Buarque – Doutora, uma transferência para outro hospital é viável nesse

momento? Quer dizer, com todo respeito ao seu trabalho...

Médica – Entendo o que quer dizer... Sem dúvida, uma transferência agora seria

arriscada, mas aqui não temos a menor condição de operá-lo, se alguém da família ou

amigos tiver condição de mantê-lo num hospital mais bem aparelhado eu não vejo o

porquê...

Chico Buarque – Então pode preparar a transferência....

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Cena XXIV (Quarto do hospital, João está em uma cadeira de rodas com metade do corpo

paralisado e com dificuldades na fala. Está perdido em sua própria consciência

debilitada. Entram em cena o Coletor e a Diretora)

Coletor – É o seguinte, senhora, eu sou o novo coletor de impostos da cidade e vim

matricular meu filho na escola...

Diretora – Infelizmente, senhor, nós aqui não temos mais vaga...

Coletor – Acho que a senhora não entendeu... Eu vim matricular meu filho na escola, se

tem vaga ou não esse é um problema que a senhora vai ter que resolver... Caso contrário

terei que recorrer a instâncias superiores, e se isso acontecer, é seu emprego que estará

em jogo...

Diretora – Pra falar a verdade, acho que posso dar um jeito, tem um aluno que foi

matriculado recentemente, não lembro bem o nome dele... É um pretinho que fica por aí

vendendo pirulito... Acho que ele pode “ceder” a vaga pro seu filho... Acho não, ele vai

ceder...

Coletor – Bom ouvir isso, afinal meu filho não pode perder o ano letivo...

Diretora – Invento uma desculpa qualquer pra tirar ele daqui...

Coletor – Então estamos acertados...

Cena XXV Locutor – Um último pedido. ... João do Vale em seus últimos anos de vida tinha um

último desejo. ... E assim o Poeta do Povo foi levado ao Lago da Onça onde veria, pela

última vez, a casa em que nascera...

(Locutor pega João pelo braço a determinado ponto do palco.)

João do Vale – Mais ali...

Locutor – (à João) Aqui?

(João caminha debilmente até o centro do palco. 14:00, sol escaldante)

João do Vale – Foi aqui bem nesse lugar aqui que ficava a casinha onde eu nasci...

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(João faz menção de deitar-se)

Locutor – (à João) Vai fazer o que, João?

(João deita-se)

Locutor – (à João) Vamo sair daqui senão você vai acabar morrendo esturricado nesse

sol....

João do Vale – Me deixa aqui.... No meu chãozinho....

(Canta-se Uricuri, João do Vale e José Cândido)

Uricuri madurou

Oi, é sinal que arapuá

Já fez mel

Catingueira fulorô

Lá no sertão vai cair chuva

A granel

Arapuá esperando

Uricuri maduricê

Catingueira fulorando

Sertanejo esperando chover

Lá no sertão

Quase ninguém tem estudo

Um ou outro que lá aprendeu ler

Mas doutor tem homem capaz de fazer tudo

Que antecipa o que vai acontecê

Catingueira fulora vai chover

Andorinha voou

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Vai ter verão

Gavião se cantar é estiada

Vai haver boa safra no sertão

Se o galo cantar fora de hora

É mulher dando o fora, pode crer

Acauã se cantar perto de casa

É agouro

É alguém que vai morrer

São segredos que o sertanejo sabe

E não teve o prazer de aprender a ler

Cena XXVI

(Pedreiras. Em cena está uma turma de Dominó)

Jogador I – Bati!

Jogador II – Conversa, de novo?

Jogador III – Tô lhe dizendo que esse aí tem sorte...

Jogador I – Mais sorte que eu só o João, ô homi pra ter sorte....

Jogador III – Ele deve de tá chegando por essas horas...

Jogador I – Ele pouco tá vindo.

Jogador II – Ele deve é de tá batendo perna pela Rua da Golada feito ele gosta de

fazê... Já, já tá batendo aí...

Jogador III – Vamo deixá o lugarzinho dele aí...

Jogador I – Vamo, vamo sim...

(Silêncio. Continuam jogando)

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Jogador III – João é um bicho danado, né... Saiu daqui sozinho e ganhou a vida feito

disse que ia fazê...

Jogador I – Ele também teve sorte...

Jogador II – Sorte nada, teve foi talento... e corage.

Jogador III – Muita gente cantô as música dele...

Jogador I – Muita gente comprô as música dele...

Jogador II – Quem...?

Jogador III – Ele nunca disse... Nunca quis revelá nenhum nome... Mas o pessoal por

aí diz que até gente graúda comprô.... Muito compositô de peso...

Jogador I – Muito “Comprositô”....

Jogador II – É, “comprositô” deve de tê muito por aí...

Jogador III – Por falá em “comprositá”, você alembra do caminhão que João comprô?

Jogador I – Se lembro, aquilo deu foi um prejuízo que só vendo. .. Diz que ele tava

dirigindo o bichão lá pros rumo de Brasilía, se num me engano pra fazê entrega de

carga, num é que no meio da estrada o danado do caminhão num dá prego? Rapaz isso

foi de madrugada....

Jogador II – Éguas, de madrugada?

Jogador I – Hum, hum, mas num to te dizendo? No meio do nada e sem uma alma viva

pra fazê companhia... Aí João andô minino, andô, andô, andô.... Andô. ... Até que

encontrô um sujeito num sei lá das quanta...

Jogador III – E era alma penada, era?

Jogador I – Nada... O sujeito morava numa casinha na beira da estrada .... João ficô

hospedado na casa do homem, um frio de lascá ... E vocês sabem como é que João é, né?

“Ei, seu moço, num tem nenhuma cachacinha aí pra gente, não?

Jogador II – E tinha, tinha?

Jogador I – Ah, tinha muito.... A única coisa que João achô por lá foi álcool... Puro...

Aí João pensou...

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Jogador III – Ah, meu Deus...

Jogador I – Ouve só. ... Ai diz que João: “Siô, é o seguinte, me vê esse álcool aí num

copo, joga um açúcar, espreme um limãozinho dentro e trás aqui pro seu preto!”

Jogador II – E prestô, prestô?

Jogador I – Diz que ficô uma Pitu!

Jogador III – E o caminhão? Que fim levô?

Jogador I – Mininu, vendo o prejuízo que tava dano, João tratou logo de vendê o

bichão.

Jogador II – E o carro, o Simca Chambord? Disse que o João tava lá ganhando um tutu

legal aí resolveu compra o carro, mas aí...

Jogador III – Aí, um dia, ele parou o carro e uns homi passaram dizendo assim “Ô,

neguinho, tá dirigindo o carro do patrão, é?”

Jogador II – Rapaz, João ficô muito brabo. Fora que, quando souberam que ele tinha

comprado o carro, os istudante cassaro o título de “Poeta do Povo”, porque diz que João

tava se aburguesando...

Jogador I – Pra cês vê como é, né? Branco pode ter tudo, mas se preto compra um

carrinho, o céu disaba... “É burguês!” “É traidô de sua gente!” Todo mundo tem direito

de tê suas coisinha, ora mais...

Jogador III – E quando João se meteu a sê jogadô de futebol?

Jogador II – Ah, disso eu me alembro, ele pediu pro Chico Anysio apresentá ele pro

técnico do Bangu, mas na hora do teste, moço, o homem era um perna de pau...

Jogador III – Um carcará de chuteiras!

Jogador I – Graças a Deus, o João num deixô os verso pela bola!

Jogador II – Já pensou? Inda bem que o Chico Anysio alertô o home .... O negócio dele

era música, sempre foi...

Jogador III – João tinha muitos amigo, né?

Jogador I – A gente colhe o que planta...

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Jogador III – Por falá em amigo, vocês se alembram quando João encontro o Dotô

Jackson Lago lá no Rio de Janeiro?

Jogador I – Como foi isso, hein?

Jogador III – Menino, isso foi depois de um show aí que João fez, foi uma alegria só,

João levou o Dr. Jackson prum buteco aí já se viu, tome cachaça. Meninu os homi

beberam, beberam, beberam.... E beberam mais ainda .... Aí lá pelas tanta João abre os

zoião: “Eita que deixei um filho meu doente em casa e a Domingas me pediu pra

procura um médico pra ele!”

Jogador II – E o Dr. Jackson num era médico não, não?

Jogador III – Se era, e dos bons... Mas aí... Olha só. ... Chegando lá o João, morto de

bêbado, foi apresentando: “Olha, Domingas esse é o dotô que veio ver nosso filho!”

Jogador I – Vish....

Jogador II – Ela acreditô, acreditô?

Jogador III – Menino, isso foi uma história, foi depois de muita conversa que ela

deixou o Dr. Jackson medicar a criança, mas deu tudo certo graças a Deus. ... O Dr.

Jackson gostava muito do João inté arrumô um cantinho pra ele ficá aqui em Pedreiras...

Não era muita coisa, mas melhó do que nada...

Jogador II – E o título de comendador que o João ganhou....

Jogador I – (interrompendo) E aquela aposentadoria?

Jogador III – Foi o Sarney que arrumô pra ele!

Jogador III – Não era muita coisa, mas melhó do que nada...

Jogador II – Num tem graça jogá dominó sem o João...

(Silêncio)

Jogador IV entra e senta-se no lugar de João)

Jogador I, II e III – Não!!!

Jogador IV – (Num sobressalto) Éeeegua! Que foi???

Jogador I – Esse lugar é de João, num sabe?

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Jogador IV – E carecia desse berro?

Jogador II – Pegue outra cadêra!

Jogador IV – Larga de ser abestado, que eu vô sentá aqui sim...

Jogador III – Se tu sentá nessa cadêra, tu vai arrumá um pobrema sério pa tua vida!

(Silêncio)

Jogador IV – Tá é doido... (Descontraindo) Quero esse pobrema não.

Jogador I – Deixa o lugarzinho dele aí...

Jogador IV – (Saindo para pegar outra cadeira) Num sei pra que isso. João morreu

tem mais de ano.

(Silêncio)

Jogador III – Num interessa... Enquanto eu tiver aqui e tiver força pra me sentar nessa

mesa, o lugar de João é certo. É pra gente se alembrá do João aqui mais nós, rindo e

bebendo o chazinho de macaco dele...

Jogador IV– Mas o homi nem tá mais aqui...

Jogador III – Quem disse que não? Quando alguém canta “Pisa na Fulô”, por acaso,

num se alembra do poeta-cantadô...?

Jogador I – E na Rua da Golada? Arrumô logo três namorada e na Tresidela no mato

casou com ela... Tem quem num se alembre...?

Jogador II – O homi atravessou o Mearim e conquistou o mundo inteiro nas asas de um

carcará... Isso ninguém nunca vai esquecê!

Jogador III – Enquanto tivé gente se alembrando, o João vai tá vivo... A cadeira fica.

(Cantam “Oh, João Cadê Você?” de Damião Sousa)

Andam falando que João do Vale Morreu

Que ele desapareceu, foi morar não sei aonde

Eu quero lhe encontrar, eu vou lhe procurar

Page 83: João do Vale, O Musical · 2020-05-06 · 5 Eu troco o samba por um beijo seu, meu amor Samba é bom, batido na mão Samba é bom, batido na mão João do Vale – Tava jogando baralho,

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Alguém me mostra aonde ele se esconde

Já procurei em Tresidela, em Pedreiras

Já atravessei a procura desse homem

Não está no Rio nem está em São Luís

Mas o mundo inteiro diz que já ouviu falar seu nome

Oh, João cadê você onde você está, João

Será que dorme no colo das morenas do grotão (bis)

Oh, João cadê você, aonde você está

Será que você voou nas asas do Carcará

Ainda me lembro do seu tempo de menino

Que para um filho de grã-fino perdeu o banco escolar

Vendia pirulito depois tornou-se um mito

Cantou pra Benedito, seu padroeiro exemplar

Cantou pipira, sabiá, corrupião

Peba, onça, gavião, seriema e zambelê

Peguei o trem vou pisando na fulô

Na terra, no céu vou me encontrar com você.

Já encontrei Esmagado, João Piston e Zé Kéti

Diôro, Tom, Gonzaguinha e Gonzagão

Andei igual a um bobo, percorri todo globo

Avistei Ari Lobo só não encontrei João

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Andei de trem, de avião, andei a pé

Lá no alto São José me disse que ele mora

Sai correndo em busca do camarada

Achei a casa fechada, ele tinha ido embora

FIM