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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS ECONÔMICAS
JONATHAS FRAGOSO CARVALHO
POLÍTICA DE CRÉDITO HABITACIONAL VERSUS DÉFICIT HABITACIONAL BRASILEIRO: UM BREVE ESTUDO COMPARATIVO
SALVADOR 2011
JONATHAS FRAGOSO CARVALHO
POLÍTICA DE CRÉDITO HABITACIONAL VERSUS DÉFICIT HABITACIONAL BRASILEIRO: UM BREVE ESTUDO COMPARATIVO
Versão final do trabalho de conclusão de curso apresentado no Curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Ciências Econômicas. Orientador: Prof. Antônio Renildo Santana Souza.
SALVADOR 2011
Ficha catalográfica elaborada por Joana Barbosa Guedes CRB 5-707 Carvalho, Jonathas Fragoso C331 Política de credito habitacional versus déficit habitacional brasileiro: um breve estudo comparativo / Jonathas Fragoso Carvalho. – Salvador, 2011. 52f. tab. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Economia) – Faculdade de Ciências Econômicas da UFBA, 2011. Orientador: Prof. Antonio Renildo Santana Souza 1. Política habitacional - Brasil. 2. Crédito habitacional. 3. Déficit Habitacional. 4. Sistema financeiro da habitação. I. Carvalho, Jonathas Fragoso. II. Souza, Antonio Renildo Santana. III. Título. CDD – 351.865
JONATHAS FRAGOSO CARVALHO
POLÍTICA DE CRÉDITO HABITACIONAL VERSUS DÉFICIT HABITACIONAL
BRASILEIRO: UM BREVE ESTUDO COMPARATIVO Versão final do trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Economia, Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal da Bahia.
Aprovada em 5 de Dezembro de 2011.
Banca Examinadora Orientador: ____________________________ Prof. Antônio Renildo Santana Souza Faculdade de Ciências Econômicas - UFBA ____________________________ Prof. Gilca Garcia de Oliveira Faculdade de Ciências Econômicas - UFBA ____________________________ Gerson Aureliano Alves Neto Gerente Geral da Ag. Araújo Pinho Caixa Econômica Federal
Dedico este trabalho a Izadora Alves de Miranda Santos, principal motivadora da minha formação.
(...) nunca foi tão grande a distância entre o país que poderíamos ser e o país que somos. Celso Furtado
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo apresentar um breve retrospecto histórico das principais políticas de crédito habitacional no país fazendo um comparativo com a situação do déficit habitacional. São discutidas suas principais características e sua eficácia quanto ao resultado esperado. Tal pesquisa torna-se bastante relevante à medida que o Brasil apresenta déficit de quase seis milhões de moradias, mesmo possuindo longo histórico de programas habitacionais. Primeiramente é apresentada uma discussão sobre a construção do déficit habitacional brasileiro enquanto fenômeno histórico e social. Em seguida, é realizada uma análise dos principais momentos das políticas habitacionais no país: a criação do Banco Nacional da Habitação (BNH) e montagem do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), nos anos 60; a crise e reestruturação institucional do SFH, nos anos 80; e os recentes programas de subsídios para aquisição de imóveis pelo “Programa Minha Casa Minha Vida”. Portanto, trata-se de um trabalho de natureza histórica e social, tendo seus elementos de análise associados ao âmbito da Economia Política. Palavras-chave: Política habitacional brasileira. Crédito habitacional. Déficit habitacional. Sistema Financeiro da Habitação.
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 7 2 O DÉFICIT HABITACIONAL NO BRASIL 10 2.1 UM BREVE PANORAMA 10 2.2 A ECONOMIA POLÍTICA DA URBANIZAÇÃO 15 3 SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO: ORIGEM E
MATURAÇÃO 19
3.1 O PERÍODO PRÉ-SFH 19 3.2 CRIAÇÃO DO SFH: HORIZONTE DAS POLÍTICAS DE
CRÉDITO HABITACIONAL 20
3.3 BNH: ATUAÇÃO E DINAMISMO 22 4 CRISE E REESTRUTURAÇÃO DO SFH 25 4.1 CRISE E EXTINÇÃO DO BNH: O PARADOXO DO
MODELO EMPRESARIAL E A CRISE POLÍTICA ECONÔMICA DOS ANOS 80
25
4.2 O “PÓS-BNH”: DESAFIOS PARA A CAIXA ECONOMICA E A CRIAÇÃO DA CARTA DE CRÉDITO
31
4.3 O PROGRAMA “MINHA CASA MINHA VIDA”: NOVAS PERSPECTIVAS PARA AS POLÍTICAS DE CRÉDITO HABITACIONAL NO BRASIL.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 47 REFERÊNCIAS 50
7
1 INTRODUÇÃO O objetivo desta monografia é apresentar um breve retrospecto histórico das principais
políticas de crédito habitacional no país. Além disso, faz-se análise de cada período
descrito e compara-se com a evolução do déficit habitacional. Portanto, trata-se de uma
análise de conteúdo histórico e social, que aborda a problemática da questão
habitacional no país sob a óptica da Economia Política. O Brasil apresenta atualmente
déficit habitacional de quase seis milhões de moradias e, apesar disso, este é um tema
pouco abordado na academia, tendo seus elementos de análise restritos a um pequeno
grupo de técnicos que porventura desenvolvem trabalhos na área.
O problema de pesquisa consiste em tentar entender como, ao longo da história do país,
as políticas de crédito habitacional lidaram com o problema do déficit de moradias,
sobretudo para com as populações mais pobres. Desse modo, este trabalho tem
abordagem qualitativa, trata-se de uma pesquisa exploratória tendo como hipótese a
insuficiente atuação do Estado frente à questão habitacional no país. Este é um elemento
chave para tentar compreender a correlação existente entre o déficit habitacional e o
crédito habitacional brasileiro.
Na primeira parte deste trabalho é apresentado um panorama da situação atual do déficit
habitacional no país. São analisados os principais dados apresentados pela Fundação
João Pinheiro para o déficit de moradias no ano de 2007. Além disso, é realizada uma
construção histórica do déficit habitacional do país e são elencados os principais
elementos de sua conceituação. Dessa maneira, resgatam-se conceitos fundamentais
sobre habitação e urbanização a partir de autores como Milton Santos e Paul Singer.
Na segunda parte dessa monografia, apresenta-se a gênese das políticas habitacionais
brasileiras. São abordadas as políticas habitacionais anteriores ao período de
funcionamento do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e sua forte relação com as
políticas populistas dos governos Vargas e Dutra. Faz-se severa crítica à falta de
planejamento estratégico frente ao forte contexto de urbanização do país, que se
vislumbraria nas décadas posteriores. Discute-se também o papel dos Institutos de
Aposentadorias e Pensões e da Fundação Casa Popular enquanto instituições
ineficientes e de caráter clientelista.
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Posteriormente, o SFH é descrito nas suas principais características e dinâmicas de
funcionamento. Analisam-se suas principais fontes de financiamento, SBPE e FGTS, e
é verificada dependência deste sistema ao desempenho macroeconômico do país. Além
do mais, observa-se o funcionamento do Banco Nacional da Habitação (BNH),
enquanto executora do SFH e promotora das políticas de crédito. È constatado a
ausência do Estado como regulamentador das políticas de urbanização, deixando via
BNH-SFH tais atribuições ao mercado privado.
São demonstrados também, os motivos que levaram o SFH ao colapso com a
conseqüente extinção do BNH. São identificados os pontos de estrangulamento que
levaram ao SFH à perda de sua função social e falta de capacidade financiadora, dentre
eles, os mecanismos de correção monetária. É dado destaque às contradições existentes
entre os objetivos sociais e a lógica empresarial de funcionamento do BNH, que foi na
prática a grande responsável por sua extinção.
Na terceira seção é visto o período conhecido como Pós-BNH, que compreende as
gestões dos anos 90 com enfoque nas políticas habitacionais do governo Fernando
Henrique Cardoso (FHC). Examina-se a dinâmica de funcionamento das políticas de
crédito após a extinção do BNH, com baixos investimentos no setor, crises
institucionais e falta de proposta política clara.
Posteriormente, são apresentados os recentes esforços para reestruturação do setor
habitacional no país. Com grandes reformulações institucionais e aumento significativo
no aporte de recursos direcionados as políticas de crédito habitacional. O governo Lula
inaugurou um novo paradigma no tratamento à questão da habitação no país lançando
um programa ousado e pretensioso, o Minha Casa Minha Vida (MCMV). Todas estas
medidas são amplamente discutidas e analisadas neste trabalho, visando investigar até
que ponto o MCMV apresenta uma proposta clara e consistente de enfrentamento ao
déficit habitacional.
Nas considerações finais, procura-se discutir se o caminho das políticas de crédito
habitacional foi a melhor alternativa de enfrentamento ao déficit de moradia e quais são
os principais entraves para o sucesso de uma política nacional de acesso a habitação.
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Coloca-se em questão o problema fundiário do país e a extrema necessidade de
redemocratização do espaço urbano como medidas fundamentais no combate ao déficit
habitacional brasileiro.
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2 O DÉFICIT HABITACIONAL NO BRASIL
Este capítulo inicial tem como objetivo fazer um breve panorama da situação do déficit
habitacional no Brasil, sua evolução e sua forte relação com o recente processo de
industrialização e urbanização do país. Inicialmente será apresentado o estudo da
Fundação João Pinheiro (FJP) realizado em 2007 sobre a questão habitacional
brasileira, bem como os principais conceitos e características do déficit habitacional.
Em seguida tentar-se-á demonstrar os mecanismos que estiveram por trás do processo
de urbanização do país, dentre os aspectos econômicos políticos e sociais. A
comparação entre as políticas habitacionais e a evolução do déficit será realizada
paulatinamente ao longo de todo este trabalho, quando já terão sido feitas melhor
abordagem e análise dos dois temas.
2.1 UM BREVE PANORAMA
O número exato sobre o déficit habitacional brasileiro sempre foi motivo de
discordância entre os pesquisadores do tema. Isso decorre por conta das diferentes
metodologias empregadas para o cálculo exato deste número. É somente a partir de
1995 que os estudos sobre o déficit habitacional ficaram centralizados nas mãos de um
único centro de pesquisa, a FJP. Dessa forma, neste trabalho, serão adotadas as mesmas
conceituações e análises utilizadas pela FJP para discutir o déficit habitacional:
(...), a metodologia utilizada pela Fundação João Pinheiro a partir de 1995 – com mais de uma década de experiência e aprimoramento, portanto – foi um importante marco para a rediscussão do chamado “déficit habitacional”, por sua abordagem, amplitude e pela divulgação dos resultados. Seu principal mérito foi rearticular inúmeras contribuições realizadas anteriormente de forma inovadora. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2007, p.14).
Apoiada na experiência e credibilidade atribuída à Fundação é trazida para dentro deste
trabalho uma melhor conceituação e caracterização do déficit habitacional no país,
mostrando como o mesmo está inserido dentro de um conceito mais amplo de
“necessidade habitacional”, que tanto abrange a concepção de déficit habitacional, como
também das inadequações das moradias existentes.
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Assim, de acordo com a FJP, o déficit habitacional é definido como: “A noção mais
imediata e intuitiva de necessidade de construção de novas moradias para a solução de
problemas sociais e específicos de habitação detectados em certo momento.”
(FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2007, p.15).
Dessa forma este conceito está ligado às deficiências de estoque de moradias e engloba
também, por questões estruturais de construção ou desgaste, as unidades habitacionais
que não apresentam condições de serem habitadas. É, portanto, um conceito que procura
abranger não somente as famílias não proprietárias de unidades habitacionais, mas
também a qualidade e tipo de propriedade. Outro aspecto que se incorpora ao conceito
de déficit habitacional é a coabitação familiar, onde mais de uma família ocupa a
mesma unidade habitacional.
A tabela 1 mostra um retrato da situação habitacional brasileira:
Tabela 1 - Déficit Habitacional (1) E Percentual Em Relação Aos Domicílios Particulares Permanentes, Por Situação Do Domicílio, Segundo Regiões Geográficas, Unidades Da Federação E Regiões Metropolitanas (RMs) - Brasil – 2007
Especificação Déficit Habitacional Percentual dos domicílios particulares permanentes
Total Urbana Rural Total Urbana Rural Total Rural de
extensão urbana
Total Rural de extensão urbana
Norte 652.684 487.357 165.327 4.782 16,7 16,2 18,4 14,1 Rondônia 52.472 42.561 9.911 3.072 11,6 13,6 7,1 10,8
Acre 21.063 17.263 3.800 - 12,6 14,1 8,4 - Amazonas 146.268 117.496 28.772 1.530 18,6 18,9 17,4 45,5 Roraima 16.379 14.458 1.921 - 14,7 15,9 9,3 -
Pará 317.089 223.645 93.444 180 17,1 15,6 22,3 8,3 RM Belém 92.734 90.817 1.917 180 16,5 16,5 14,4 8,3
Amapá 30.449 28.853 1.596 - 20,2 20,3 18,0 - Tocantins 68.964 43.081 25.883 - 18,2 16,4 15,2 - Nordeste 2.144.384 1.461.669 682.715 6.216 15,0 13,9 18,2 7,4 Maranhão 461.396 240.415 220.981 1.742 29,5 22,0 46,7 11,1
Piauí 139.318 76.157 63.161 - 16,9 14,7 20,5 - Ceará 314.949 227.096 87.853 - 13,9 12,8 18,1 -
RM Fortaleza 124.282 119.970 4.312 - 12,9 12,8 17,0 -
Rio Grande do Norte
117.647 85.191 32.456 1.375 14,0 13,7 15,0 5,9
Paraíba 122.166 98.034 24.132 - 12,2 12,2 11,9 - Pernambuco 281.486 224.956 56.530 2.065 11,7 11,9 11,0 6,6 RM Recife 133.059 129.892 3.167 - 12,2 12,2 13,3 -
Alagoas 123.245 89.128 34.117 1.034 14,8 15,1 14,2 8,0 Sergipe 73.499 60.907 12.592 - 13,0 13,0 12,9 - Bahia 510.677 359.784 150.893 - 12,9 13,1 12,4 -
RM Salvador 141.025 138.946 2.079 - 13,7 13,7 12,3 -
12
Sudeste 2.335.415 2.222.957 112.458 9.398 9,3 9,5 6,1 5,9 Minas Gerais 521.085 465.206 55.879 - 8,8 9,1 6,7 -
RM Belo
Horizonte
129.404 129.171 233 - 8,5 8,6 1,2 -
Espírito Santo 101.124 90.079 11.045 - 9,4 10,1 6,1 - Rio de Janeiro 475.901 471.872 7.029 889 9,1 9,3 4,4 5,0
RM Rio de
Janeiro
378.797 376.139 2.658 - 9,5 9,5 10,6 -
São Paulo 1.234.306 1.195.800 38.506 8.509 9,6 9,8 5,8 6,0 RM São Paulo 628.624 611.936 16.688 7.594 10,3 10,4 7,8 5,9
Sul 703.167 617.333 85.834 - 7,9 8,3 6,0 - Paraná 272.542 240.825 31.717 - 8,3 8,6 6,7 -
RM Curitiba 91.444 85.007 6.437 - 8,9 9,1 7,2 -
Santa Catarina 145.363 125.297 20.066 - 7,6 7,9 6,3 - Rio Grande do
Sul 285.261 251.211 34.050 - 7,8 8,3 5,3 -
RM Porto Alegre 136.030 128.784 7.246 - 9,7 9,7 10,0 -
Centro-Oeste 436.995 390.447 46.548 217 10,5 10,8 8,3 3,1 Mato Grosso do
Sul 76.027 63.762 12.265 - 10,5 10,1 12,7 -
Mato Grosso 86.679 66.636 20.316 - 9,8 10,0 9,1 - Goiás 167.042 155.119 11.923 - 9,2 9,6 5,8 -
Distrito Federal 107.248 105.202 2.046 217 14,6 15,1 5,3 3,1
Brasil 6.272.645 5.179.763 1.092.882 20.613 11,1 10,8 12,9 7,1 Total das RMs 1.855.399 1.810.662 44.737 7.774 10,5 10,5 8,9 5,7
Demais áreas 4.417.246 3.369.101 1.048.145 12.839 11,4 11,0 13,1 8,4 Fonte: Fundação João Pinheiro, 2007, p.25
Verifica-se um déficit habitacional estimado em cerca de seis milhões de unidades
habitacionais, dos quais 82,6% concentram-se nas áreas urbanas. Destaque para as
regiões Sudeste e Nordeste que representam respectivamente 37,2% e 34,2% do déficit
habitacional brasileiro. As regiões metropolitanas aparecem em grande evidência nos
dados, responsáveis por 29,6% do total de moradias. Outro fato importante é a
distribuição regional e a composição do déficit, que varia em cada região. Enquanto no
Sudeste o problema encontra-se fortemente na área urbana, no Nordeste este problema é
mais representativo na área rural. Estas diferenças regionais somadas à grandeza do
território brasileiro mostram que dificilmente uma política habitacional generalista
sanaria os grandes problemas habitacionais de cada região.
O Mapa 1 permite uma melhor visualização de um dado expressivo, o déficit
habitacional relativo, comparado à quantidade de moradias existentes. Neste quadro as
regiões Norte e Nordeste ganham destaque. Percentualmente, a situação é mais crítica
no Maranhão, onde o déficit representa 29,5% do estoque de domicílios, Amapá,
20,2%, Amazonas, 18,6%, Roraima, 11,6%, Pará, 17,1% e Tocantins, 18,2%. Exceto o
Maranhão, todos os estados localizam-se na região Norte. Deve-se ressaltar também o
déficit relativo do Distrito Federal, de 14,6%. Em relação às regiões localizadas no
Nordeste e Norte o déficit é sempre superior a 12%.
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Mapa 1 - Déficit Habitacional Total Em Relação Ao Total Dos Domicílios, Segundo Unidades Da Federação – Brasil -2007.
Fonte: Fundação João Pinheiro, 2007, p.26
Outra metodologia empregada pela FJP é de grande relevância para os objetivos deste
trabalho, que é a composição do déficit habitacional por faixa de renda. A Tabela 2 dá
estas informações:
Tabela 2 - Distribuição Percentual Do Déficit Habitacional Urbano (1), Por Faixas De Renda Média Familiar Mensal, Segundo Regiões Geográficas, Unidades Da Federação E Regiões Metropolitanas (RMs) - Brasil – 2007
Especificação Faixas de renda média familiar mensal (em salários mínimos)
Até 3 Mais de 3 a 5 Mais de 5 a 10 Mais de 10 Total (2)
Norte 89,7 6,1 3,2 1,0 100,0
Rondônia 91,1 4,4 3,7 0,8 100,0
Acre 87,5 6,3 4,1 2,1 100,0
Amazonas 86,7 8,3 3,6 1,4 100,0
Roraima 88,3 8,1 3,0 0,6 100,0
Pará 91,8 4,5 2,7 1,0 100,0
RM Belém 88,1 6,7 3,8 1,4 100,0
Amapá 84,8 10,4 4,7 0,1 100,0
Tocantins 91,2 6,3 2,2 0,3 100,0
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Nordeste 95,9 2,7 1,0 0,4 100,0
Maranhão 96,0 2,4 1,5 0,1 100,0
Piauí 98,3 1,5 0,1 0,1 100,0
Ceará 95,8 3,1 0,7 0,4 100,0
RM Fortaleza 95,1 3,1 1,2 0,6 100,0
Rio Grande do Norte 93,6 5,1 1,3 - 100,0 Paraíba 95,3 2,6 1,1 1,0 100,0
Pernambuco 96,3 2,0 1,6 0,1 100,0
RM Recife 95,6 2,5 1,8 0,1 100,0
Alagoas 96,4 2,7 0,2 0,7 100,0
Sergipe 95,7 3,5 0,8 - 100,0
Bahia 95,7 2,7 1,0 0,6 100,0
RM Salvador 94,8 3,3 1,3 0,6 100,0
Sudeste 86,7 7,9 4,3 1,1 100,0
Minas Gerais 92,4 4,6 1,9 1,1 100,0
RM Belo Horizonte 89,2 6,4 3,3 1,1 100,0
Espírito Santo 89,9 7,8 2,2 0,1 100,0
Rio de Janeiro 89,9 6,9 2,0 1,2 100,0
RM Rio de Janeiro 89,9 6,9 1,9 1,3 100,0
São Paulo 83,0 9,6 6,2 1,2 100,0
RM São Paulo 81,2 9,1 7,9 1,8 100,0
Sul 84,8 10,0 4,1 1,1 100,0 Paraná 86,8 8,9 2,9 1,4 100,0
RM Curitiba 80,3 12,0 6,0 1,7 100,0
Santa Catarina 77,1 13,9 7,1 1,9 100,0
Rio Grande do Sul 86,5 9,2 3,8 0,5 100,0
RM Porto Alegre 87,8 8,5 3,4 0,3 100,0
Centro-Oeste 88,4 7,0 2,7 1,9 100,0
Mato Grosso do Sul 88,4 8,0 2,3 1,3 100,0
Mato Grosso 89,2 6,0 3,5 1,3 100,0
Goiás 90,8 6,4 1,4 1,4 100,0
Distrito Federal 84,5 8,0 4,3 3,2 100,0
Brasil 89,4 6,5 3,1 1,0 100,0
Total das RMs 87,3 7,1 4,4 1,2 100,0
Fonte: Fundação João Pinheiro, 2007, p.29
Era razoavelmente esperado o fato de o déficit habitacional estar concentrado entre as
famílias que ganham até 3 salários mínimos; 89,4% do total. No Nordeste este número
chega a 95,9% mostrando em primeira análise que a capacidade financeira das famílias
ainda é o principal obstáculo de acesso ao bem “moradia”. Desta parte da população
com menor poder aquisitivo, a FJP analisa a composição da renda dentre os 10% mais
pobres para que se tente evitar equívocos de generalização. Chegam- se as seguintes
conclusões:
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O que primeiro chama atenção é a grande diversidade da renda recebida pela parcela mais pobre da população. Nas unidades da Federação da região Nordeste, os valores são em média bastante inferiores aos das demais, principalmente as localizadas no Sul do país. Enquanto em algumas delas, como Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, eles equivalem a pouco mais de meio salário mínimo – em torno de 220 reais , em Santa Catarina, os mais pobres recebem 1,6 salário mínimo – 600 reais. Entre as regiões metropolitanas, a de Recife tem renda média de 262 reais – 0,7 salário mínimo. No outro extremo, nas RMs de São Paulo e Curitiba ela é de 500 reais – 1,3 salário mínimo. (...). Esse é um indicador de que a universalização dos programas públicos que privilegia a classe até três salários mínimos de renda pode levar a que, dependendo da região a se considerar, parcela da população nas piores condições não consiga ser atendida. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2007 p.32).
Em uma análise preliminar, verifica-se que o problema do déficit habitacional brasileiro
está concentrado principalmente nas áreas urbanas e atinge maciçamente a população
mais pobre do país. Em primeira vista, a renda é a principal variável que define quem
tem acesso ou não ao bem “moradia”. As diferentes configurações do déficit
habitacional em cada região coloca em evidência a dificuldade de implementação de
políticas habitacionais generalistas e centralizadas. Significativa parte da população
pode não ser atendida se estas diferenças não forem levadas em consideração.
Neste ponto um questionamento torna-se necessário e norteará a construção deste
trabalho. Como ao longo de vários anos de política habitacional no país, chegou-se a um
patamar tão expressivo de déficit habitacional, com pouco mais de seis milhões de
moradias? Como será visto ao longo deste trabalho, o conturbado processo de
urbanização brasileira e a qualidade das políticas públicas engendradas pelos
governantes do país aparecem como elementos significativos na explicação deste
quadro.
2.2 A ECONOMIA POLÍTICA DA URBANIZAÇÃO
Como visto na seção anterior, o problema habitacional é essencialmente da cidade. É,
portanto, no contexto do processo de urbanização do país que os elementos inerentes a
origem do déficit habitacional vão surgir. Desse modo, é oportuno estudar, ainda que de
maneira resumida, o contexto da urbanização brasileira.
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Sabe-se que na maior parte da história do Brasil o país apresentava uma população
essencialmente rural. A configuração do espaço brasileiro e sua relação campo x cidade
sofreria uma inversão bastante rápida e recente. Para o contexto da cidade, as
conseqüências deste fenômeno não seriam das melhores. “Em 1940, a taxa de
urbanização brasileira era de 26,3%; em 1980 alcança 68,86%; e em 2000, ela passou
para 81,2%” (GOMES, 2003, p.2). O elemento que impulsiona esta nova configuração
do espaço brasileiro é a industrialização. Nas palavras de Milton Santos:
A partir dos anos 1940-1950, é essa lógica da industrialização que prevalece: o termo industrialização não pode ser tomado, aqui, em seu sentido estrito, isto é, como criação de atividades industriais nos lugares, mas em sua ampla significação, como processo social complexo, que tanto inclui a formação de um mercado nacional, quanto os esforços de equipamento do território para torná-lo integrado (...) e ativa o processo de urbanização. Essa nova base econômica ultrapassa o nível regional, para situar-se na escala do país; por isso, a partir daí, uma urbanização cada vez mais envolvente e mais presente no território dá-se com o crescimento demográfico sustentado das cidades médias e maiores, incluídas, naturalmente, as capitais de estados. (SANTOS, 2002, p. 30).
Posteriormente Santos complementa:
O forte movimento de urbanização que se verifica a partir do fim da Segunda Guerra Mundial é contemporâneo de um forte crescimento demográfico, resultado de uma natalidade elevada e de uma mortalidade em descenso, cujas causas essenciais são os progressos sanitários, a melhoria relativa nos padrões de vida e a própria urbanização. (SANTOS, 2002, p. 34).
Desse modo, verifica-se que associado ao movimento de urbanização, um elevado nível
de crescimento demográfico contribuiu ainda mais para a configuração de uma estrutura
populacional urbana no país. As conseqüências deste fenômeno ficariam evidentes mais
tarde na forma de déficit habitacional.
Nesse cenário é que o processo de urbanização foi desencadeado no Brasil, passando as cidades brasileiras, especialmente as grandes e médias, a requisitarem uma série de serviços e equipamentos que se colocavam na pauta de reivindicação da população, a qual deixava o campo para morar na cidade. Neste momento já estava presente a questão do déficit de moradia. (GOMES, 2003, p.2).
17
No contexto da industrialização brasileira, as migrações internas surgem como
conseqüência imediata e tiveram significativa contribuição no aumento brusco da
demanda habitacional no país. Paul Singer explica este fenômeno:
Toda esta transferência de atividade do campo à cidade parece ser motivada por uma exigência técnica da produção industrial: a aglomeração espacial das atividades – que se traduz em sua urbanização – parece ser um requisito de sua crescente especialização e conseqüente complementaridade. (SINGER, 1977, p.33).
Singer parte de um pressuposto teórico em que, num processo de industrialização de
determinado país, a concentração de capital e a concentração espacial possui um nexo
casual comum. Contudo, os arranjos institucionais que criam condições propícias a
industrialização e permitem que as empresas desfrutem das economias da aglomeração
espacial também geram “deseconomias” para o conjunto da sociedade, “em particular as
classes mais pobres” (SINGER, 1977, p.33).
Vê-se, portanto, que o processo de urbanização e concentração espacial é um fenômeno
que está ligado ao desenvolvimento do capitalismo industrial do país, e que as
desigualdades geradas pelo sistema são transferidas para o contexto da cidade. Apesar
de Singer não apresentar formalmente um conceito de déficit habitacional, ele evidencia
este processo em seu pensamento:
A carência dos serviços urbanos, sintoma visível do congestionamento, recai sobre as camadas mais pobres da população, pois o mercado imobiliário encarece o solo das áreas melhor servidas, que ficam de modo “reservadas” aos indivíduos dotados de mais recursos e... às empresas naturalmente. (SINGER, 1977, p.48).
E em seguida Singer pontua:
O surgimento de populações marginais, pelo menos do ponto de vista da moradia (...), tem levado muitos investigadores a encarar as migrações como um fenômeno social nefasto, cujas dimensões é preciso reduzir de modo a se poder começar a solucionar a problemática que elas suscitam. (SINGER, 1977, p.48).
É notório que as cidades não possuíam estrutura social e urbana adequada para receber o
grande contingente causado pelo processo de migração. O deslocamento espacial deste
grupo populacional não significaria mudança em sua classe econômica e nem garantiria
18
melhora de condições de renda no lugar de destino. A marginalização desta população
ficaria, portanto, evidenciada.
O déficit habitacional, definido anteriormente como necessidade imediata de construção
de novas moradias, ganha agora um significado mais amplo, pois carrega consigo
elementos histórico-sociais e econômicos na sua construção. O déficit de novas
moradias não surge espontaneamente em um determinado ponto da história do país, mas
é gerado a partir dos condicionantes sociais enfrentados ao longo do conturbado
processo de urbanização brasileira.
As políticas públicas relacionadas à habitação surgem como uma tentativa de sanar as
fortes conseqüências geradas pelo rápido processo de urbanização. Como veremos nos
capítulos seguintes, o crédito habitacional foi a principal ferramenta adotada pelos
governantes na tentativa de conter o déficit habitacional. Contudo, o Estado brasileiro
não apresentaria uma estratégia concisa e planejada de reformulação urbana do país.
Apenas fomentaria, através do crédito, o mercado habitacional de capacidade financeira
para ofertar e demandar unidades habitacionais.
19
3 SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO: ORIGEM E MATURAÇÃO 3.1 O PERÍODO PRÉ-SFH As políticas públicas para a habitação no Brasil são inauguradas no primeiro Governo
da Era Vargas, mais especificamente com a formação, em 1933, das carteiras prediais
dos Institutos de Aposentadorias e Pensões. Sua atuação, contudo, era limitada apenas a
associados e não tinha força de política pública propriamente dita. As políticas de
moradia são consolidadas no Governo do presidente Dutra, através do Decreto-lei n.º
9.218, de 1º de maio de 1946, que criou a Fundação da Casa Popular. È desse período
(décadas de 30 a 40) que se vislumbra uma ação mais acentuada do Estado na direção
de políticas públicas de moradia.
Anteriormente, a estrutura habitacional no país foi deixada a deriva dos mecanismos
alocativos do mercado. A habitação é um bem que tradicionalmente esteve caracterizada
pelo seu grande valor agregado e pela estrutura de concentração de terra, a
comercialização desse bem esteve bastante restrito a uma pequena aristocracia urbana
que dispunha de recursos suficientes para adquiri-lo (BONDUKI, 1994). Verifica-se
neste período, uma sociedade basicamente agrícola com baixo grau de urbanização. È
dentro da lógica de industrialização brasileira e conseqüentemente no projeto de
urbanização que as políticas estatais de acesso a moradia começam a entrar nas agendas
políticas do Governo.
Entre as medidas mais importantes implementadas pelo governo no que diz respeito à questão habitacional, estiveram o decreto-lei do inquilinato, em 1942, que, congelando os aluguéis, passou a regulamentar as relações entre locadores e inquilinos, a criação das carteiras prediais dos Institutos de Aposentadoria e Previdência e da Fundação da Casa Popular, que deram início à produção estatal de moradias subsidiadas e, em parte, viabilizaram o financiamento da promoção imobiliária, e o Decreto-Lei n.° 58, que regulamentou a venda de lotes urbanos a prestações. (BONDUKI, 1998, p.711).
Com base neste trecho percebe-se que a política habitacional brasileira não nasceu
calcada em um amplo plano nacional de desenvolvimento urbano, tampouco foi
produzido por uma integração de setores do governo que promovessem enfrentamento
legítimo ao problema de moradias que se iniciava com a urbanização no país. Ao
contrário, este movimento do Governo indica que sua intenção era de legitimar seu
20
poder político depois do golpe de 1930. Com o surgimento no Brasil de uma nova
classe, as massas urbanas, projetos habitacionais serviriam para fortalecer as relações
políticas dentro das cidades, principalmente em São Paulo.
Não era de se esperar que a implementação de programas de moradias por parte do
Governo Getúlio, e posteriormente no Governo Dutra, traria algum efeito sobre o
processo de urbanização no país, pois não trouxe consigo nenhum planejamento
consistente para as décadas subseqüentes (BONDUKI, 1994). Tampouco se pensou nos
efeitos migratórios campo-cidade que se “embrionavam” no meio das políticas estatais
de industrialização. As décadas de 30 a 40, portanto, foram caracterizadas pelo
nascimento das políticas habitacionais no Brasil, como um elemento de legitimação dos
governos autoritários e distante de solucionar ou preparar o país para desafios urbanos
futuros.
3.2 CRIAÇÃO DO SFH: HORIZONTE DAS POLÍTICAS DE CRÉDITO
HABITACIONAL. Anteriormente à criação do SFH, o país começava a experimentar um processo mais
acentuado de urbanização, com políticas industriais cada vez mais intensivas em
capitais, pouca geração de postos de trabalho, migrações cada vez mais numerosas do
campo para a cidade, inchaço das principais cidades do país e um ambiente
macroeconômico instável.
A situação do setor habitacional brasileiro no período imediatamente anterior à entrada em funcionamento do SFH era das mais graves. O crescimento explosivo da demanda por habitações urbanas (derivado da intensificação do processo de urbanização do país), em um contexto fortemente inibidor do investimento na área (marcado por forte aceleração inflacionária, taxas de juros nominais fixas e leis populistas no mercado de aluguéis), acabou por gerar um déficit habitacional estimado em oito milhões de habitações. (SANTOS, 1999, p. 10).
Este cenário, entretanto, não representou o período de urbanização plena do país, a
grande massa de trabalhadores ainda estava no campo, mas já significaria o início das
fortes migrações rurais no país, Singer (1977) ressalta este processo. Indica também,
que os problemas sociais emergentes teriam sua forte concentração na área urbana, e o
seu enfrentamento deveria estar focado nos grandes centros urbanos em emergência.
21
O SFH nasce em 21 de agosto de 1964, instituído pela Lei n.º 4.380, fazia parte do
então Plano Nacional de Habitação, engendrado pelo recém constituído Governo
Militar. Foi uma tentativa de resposta aos problemas apresentados pelas antigas
políticas de programas habitacionais. Como aponta Santos (1999), constituía-se
basicamente em um mecanismo de captação de poupança de longo prazo para
investimentos habitacionais, cuja idéia central era que a aplicação de um mecanismo de
correção monetária sobre os saldos devedores e as prestações dos financiamentos
habitacionais viabilizaria tais investimentos (caracteristicamente de longo prazo),
mesmo em uma economia cronicamente inflacionária.
A iniciativa adotada para atenuar os problemas da habitação seria dar um forte estímulo
financeiro e creditício ao mercado, dotando os dois lados, demanda e oferta, de
potencial econômico para construir, vender e comprar unidades habitacionais. O
problema habitacional seria enfrentado sob a égide financeira, e este seria seu principal
foco. Pouco se daria ênfase nas políticas de urbanização e democratização das cidades
(ROYER, 2009).
A fim de entender o funcionamento do SFH, é conveniente dividi-lo em dois subsistemas (baseados nas suas principais fontes de recursos): o SBPE e o BNH-FGTS. No primeiro caso, os recursos das cadernetas de poupança e dos demais títulos imobiliários eram captados pelas associações de poupança e empréstimo (também chamadas de agentes financeiros do SFH) e serviam para financiar investimentos habitacionais propostos por empreendedores ou construtoras. Recebido o financiamento, o empreendedor responsabilizava-se pela venda das unidades habitacionais construídas aos consumidores finais (basicamente das classes de renda média e alta) e esses últimos, por sua vez, responsabilizavam-se pelo pagamento do empréstimo às instituições financeiras, tornando-se, assim, mutuários do sistema. O empreendedor, portanto, era apenas um intermediário do processo, dado que após a venda do imóvel ele repassava sua dívida com as instituições financeiras para os mutuários. (SANTOS, 1999, p.11).
Já em relação ao financiamento com os recursos do FGTS Santos pontua:
Já a arrecadação do FGTS, totalmente gerida pelo BNH, era destinada “prioritariamente à construção de casas de interesse social (conjuntos populares e cooperativas)” [Azevedo,1995, p.293], ainda que posteriormente tenham sido canalizados também para os setores de saneamento e desenvolvimento urbano. Os principais responsáveis pela construção dessas unidades habitacionais eram as Companhias de Habitação (COHAB), isto é, “empresas mistas sob o controleacionário dos governos estaduais e/ou municipais” [Azevedo, 1988, p.111] que associavam “a execução de programas setoriais de construção de habitações às atividades financeiras referentes à comercialização” (IBMEC, 1974, p.14).6 Em outras palavras, obtinham financiamentos do BNH mediante apresentação de projetos
22
tecnicamente compatíveis com a orientação do banco, e supervisionavam a construção de moradias destinadas às camadas mais pobres da população, de acordo com as prioridades estabelecidas pelos governos locais (os estados, no caso). (SANTOS, 1999, p.11).
Como visto, o SFH foi projetado com uma estrutura baseada na vultosa captação de
recursos através dos sistemas de poupança e na arrecadação compulsória do FGTS,
também criado em 1964. Sua dinâmica, portanto, depende do nível de renda e emprego,
e do retorno dos financiamentos através da adimplência dos mutuários (SANTOS,
1999). Seu funcionamento estaria subordinado às variações no ambiente
macroeconômico do país. È desta dependência que o SFH passaria por crises internas de
gestão de recursos e perderia paulatinamente sua capacidade financiadora.
3.3 BNH: ATUAÇÃO E DINAMISMO O Banco Nacional da Habitação (BNH) foi criado para centralizar as políticas
habitacionais do governo, foi dotado, portanto das atribuições de “orientar disciplinar e
controlar” o SFH (AZEVEDO; ANDRADE, 1981). Era importante que o BNH fosse
uma instituição forte e eficiente, no ponto de vista social, além disso, precisava também
preencher as grandes lacunas e descrédito popular deixadas pela Fundação da Casa
Popular.
O BNH apresenta três importantes inovações em relação ao seu sucessor, a FCP.
Primeiro sua característica de instituição financeira, e não mais como órgão autárquico
do governo; segundo, seu mecanismo de correção monetária, que ao corrigir os saldos
devedores daria sustentabilidade aos financiamentos de longo prazo; terceiro, porque
constitui um sistema que tenta articular o setor público com o setor privado - traz para
dentro de sua dinâmica os mecanismos de mercado (SANTOS, 1999).
Em teoria, o BNH nasce para ser eficiente, como uma instituição capacitada para
gerenciar a forte demanda habitacional, e suficientemente solúvel para estimular a
escassa oferta de moradias no país. Para isso, seus mecanismos de funcionamento
23
deveriam garantir a constante liquidez de seu sistema como também, garantir a
sustentabilidade atuarial de longo prazo.
Os principais pressupostos em que o BNH esteve assentado foram: a) Que grandes
subsídios levam inevitavelmente a políticas clientelistas; b) A capacidade administrativa
do Estado está mais “comprometida” em relação à do setor privado; c) A eficiência do
sistema dependeria da centralização normativa e descentralização executiva.
(AZEVEDO; ANDRADE, 1981)
Em outras palavras, foi desapropriada do Estado a função de ser o provedor da criação
das unidades habitacionais, seu novo papel seria de intermediar e fomentar o setor
privado. Este último, orientado pela eficiência alocativa de mercado daria cabo de
resolver os problemas de déficit habitacional no país (ROYER, 2009).
Contudo não foi isso que se verificou nos anos seguintes, como aponta Sérgio de
Azevedo (2004); a maior parte dos conjuntos habitacionais construídos no país nos
últimos anos não contou com recursos governamentais. Mesmo no período do BNH
apenas 26% das novas habitações foram financiadas com recursos do SFH. Dessa forma
o BNH apresentou desempenho muito fora do esperado e mostrou péssimo desempenho
social. O mercado, neste caso, não conseguiu produzir e distribuir eficientemente a
produção de moradias no país, que viu seu déficit habitacional crescer de forma cada
vez mais acentuada: “A opção por uma base empresarial de atuação, se eliminou o risco
do ‘distributivismo’ na política habitacional, tornou ainda mais difícil o acesso das
camadas de renda baixa à casa própria.” (AZEVEDO; ANDRADE, 1981, p.62).“
Levantam-se questões importantes sobre o conflito entre objetivo e operacionalização
do Banco Nacional da Habitação, tais contradições são explicitadas no livro “Habitação
e Poder”:
Como realizar objetivos tão diversos, como os procurados pela política habitacional com um único e mesmo instrumental de política? Como garantir atratividade para os empresários do setor nos investimentos destinados às populações de baixo poder aquisitivo, sem onerar excessivamente a casa? Como assegurar o acesso à casa própria por parte das classes baixas, sujeitas na sistemática BNH, à correção monetária, se, em decorrência da política maior de desenvolvimento, optou-se pelo congelamento de salários? (AZEVEDO; ANDRADE, 1981, p.62).
24
A função social do BNH, diante das políticas de correção monetária das prestações,
estava colocada em cheque. Como na maioria dos casos, apenas os agentes de classe
mais favorecidas dispunham de instrumentos financeiros que os protegiam do processo
corrosivo da inflação, os agentes de classe mais baixa por estarem desprotegidos
sofriam mais fortemente com os reajustes das prestações.
Com aguda crise econômica, os mutuários de menor renda também ficaram mais expostos a inadimplência e o desempenho da política habitacional neste período se mostrou profundamente perverso. Sendo que das unidades financiadas apenas 33,3% foram destinadas as classes populares. A política habitacional teve um caráter ‘redistributivo as avessas’, pois baseou-se num sistema financeiro abastecidos de capitais sub-remunerados, oriundos de pequenos poupadores e de recursos dos assalariados. [ Tal recurso financiava as classes mais favorecidas]. (AZEVEDO, 2004, p. 92).
Logo nos primeiros anos de criação, o SFH mostrava suas imensas contradições
internas, sua finalidade social sempre era colocada em questão quando
contrabalanceado pela necessidade de equilíbrio financeiro do sistema. Neste caso, o
fator político tem bastante peso, na medida em que se decidem qual segmento
beneficiar. Foi visto que o capital financeiro e as classes mais favorecidas não foram
penalizados, verificou-se também, que as políticas habitacionais desenvolvidas se
mostraram ineficientes para resolver os problemas de moradias no país. Ficou
evidenciada a forte necessidade de reestruturação das políticas habitacionais, e também
da ampliação da intervenção estatal na provisão de moradias e desenvolvimento urbano.
25
4 CRISE E REESTRUTURAÇÃO DO SFH 4.1 CRISE E EXTINÇÃO DO BNH: O PARADOXO DO MODELO EMPRESARIAL E A CRISE POLÍTICA ECONÔMICA DOS ANOS 80
Como já mencionado no capítulo anterior, o BNH surge como uma instituição com
grandes objetivos sociais, mas com dinâmica empresarial de funcionamento. Era preciso
garantir a solvência e sustentabilidade aos mecanismos de financiamento e
concomitantemente garantir o cumprimento das metas sociais do banco. Desse modo,
em um ambiente predominantemente inflacionário, a correção monetária ganha papel de
protagonista no maior paradoxo do sistema. Como garantir prestações acessíveis e que
acompanhem o ritmo de crescimento do salário dos trabalhadores e, ao mesmo tempo,
corrigir os saldos devedores para fazer frente ao crescimento inflacionário da época?
Os agentes financeiros vinculados ao BNH obedeciam a dois planos distintos de
financiamento, o Plano A – destinado a erradicação das favelas e às classes de baixa
renda – e o Plano B voltado para os demais setores da população. Cada plano seguia um
estilo diferente de correção monetária das prestações (AZEVEDO; ANDRADE, 1981).
O reajustamento das prestações do plano A far-se-ia com a elevação do salário mínimo, e sua vigência se daria dois meses após sua fixação em lei. O valor da nova prestação seria calculado multiplicando-se a prestação anterior pela razão entre o novo valor do maior salário mínimo vigente no País e o seu valor imediatamente anterior. No plano B, o reajustamento da prestação seria trimestral e sua vigência se daria no primeiro dia de cada trimestre civil. O valor da nova prestação seria calculado multiplicando-se a prestação anterior pela razão entre o valor da UPC [ Unidade Padrão de Capital que variava de acordo com o índice da ORTN do semestre anterior] do trimestre que se inicia, e o da UPC do trimestre anterior. (AZEVEDO; ANDRADE, 1981, p. 68).
A partir desse raciocínio é possível inferir que, no plano B, a correção das prestações e
dos saldos devedores acontecia de forma linear, de maneira a não afetar o prazo
contratado para liquidação do financiamento. No plano A, porém, como as correções do
saldo devedor e das prestações se davam de maneiras distintas, o prazo para quitação
não necessariamente seria o mesmo do prazo contratado, dando aos mutuários do plano
A uma sensação perene de incerteza frente ao tamanho real de suas dívidas. Tal fato fica
evidenciado a seguir:
26
Ao vincular o reajuste das prestações com a elevação do salário mínimo, o BNH buscava tornar viável a compra da moradia por parte dos trabalhadores de baixa renda. Estes dificilmente poderiam arcar com o aumento das mensalidades de três em três meses, como o plano B. Entretanto, em seu afã de levar às últimas conseqüências uma atitude empresarial, o BNH manteve o cálculo de saldos devedores baseado na UPC, cujos índices de crescimento, embora menores que a taxa de inflação, eram maiores que os fatores de correções dos salários. Tal procedimento levava tecnicamente à possibilidade de que o resgate final da dívida se estendesse com prazo excessivamente longo, muito além do previsto no financiamento inicial. Aos olhos do mutuário parecia que a dívida era uma coisa infindável e que, por mais que ele pagasse, ela continuava sempre crescendo. (AZEVEDO; ANDRADE, 1981, p. 69).
A partir deste ponto, verifica-se no sistema do BNH uma série de remendos que
buscavam conciliar as duas tarefas aparentemente paradoxais. Primeiro o grande
objetivo social de fornecer crédito habitacional à população de baixa renda, e segundo,
manter concomitantemente a sustentabilidade empresarial do sistema.
Com o intuito de sanar a questão do excessivo alongamento dos prazos das prestações, o
Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS) criado por intermédio da
Resolução nº 25, de 16.6.1967, do Conselho de Administração do Banco Nacional da
Habitação ‐ BNH, teria a importante missão de manter o equilíbrio atuarial do sistema e
ao mesmo tempo garantir que as prestações “acessíveis” aos mutuários de menor faixa
de renda. Dentre os principais objetivos do FCVS tem-se:
I ‐ garantir o equilíbrio da Apólice do Seguro Habitacional do Sistema Financeiro da Habitação ‐ SH/SFH; II ‐ garantir o limite de prazo para amortização dos financiamentos habitacionais, contraídos pelos mutuários no SFH, observada a legislação de regência; III ‐ assumir, em nome do mutuário, os descontos concedidos nas liquidações antecipadas, nas transferências de contratos de financiamento habitacional e nas renegociações com extinção da responsabilidade do Fundo, observada a legislação de regência; IV ‐ cobrir o saldo devedor de financiamento imobiliário, total ou parcial, em caso de morte ou invalidez permanente do mutuário, as despesas de recuperação ou indenização decorrentes de danos físicos ao imóvel e as perdas de responsabilidade civil do construtor, observadas as mesmas condições atualmente existentes na Apólice do SH/SFH, concernentes aos contratos de financiamento que estiverem averbados na Apólice do SH/SFH referida no inciso I deste artigo; e V ‐ liquidar as operações remanescentes do extinto Seguro de Crédito. (BRASIL, 1967).
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Como observado anteriormente, por conta da assimetria existente entre as correções
monetárias das prestações e a correção do saldo devedor, ao final do prazo de
financiamento, eventuais resíduos da dívida seriam quitados pelo FCVS. Dessa maneira,
quando o BNH estabelece que se salde a dívida residual no prazo máximo de
financiamento, ele estava de fato abrindo o caminho para a concessão de subsídios de
parte das moradias e de certa maneira reconhecendo a “inexequibilidade da aplicação de
uma política estritamente empresarial para as famílias de baixa renda”. (AZEVEDO;
ANDRADE, 1981, p. 82).
Por outro lado, a implementação do FCVS acirrava ainda mais a dependência do
sistema frente ao desempenho macroeconômico do país, já que este era acionado em
situação de forte crescimento inflacionário. A situação atuarial do BNH ficaria mais
fragilizada com o ingresso dos mutuários de classe média na concessão destes subsídios.
(...) a contribuição dos novos mutuários para o FCVS não foi suficiente para que o mesmo pudesse financiar integralmente o descompasso gerado pelo plano de equivalência salarial. A partir de 1979, com a inflação anual aproximando-se dos três dígitos a situação dos mutuários, principalmente de classes média e alta se complicou, pois o reajuste das suas prestações, excepcionalmente, ficou acima da correção salarial. A partir das reivindicações das classes média e alta, em 1985 foi concebido um subsídio a todos os mutuários do sistema e o FCVS sofreu no início desequilíbrio financeiro mais conhecido com o “rombo do FCVS”. O desequilíbrio aumentou mais ainda em decorrência do plano cruzado de março de 1986 que estabeleceu uma regra de reajuste de prestações com base nos doze meses anteriores e subseqüente congelamento das mesmas por um ano. Outros planos econômicos contribuíram em menor escala para gerar um passivo total para o governo de R$ 76,4 milhões em dezembro de 2003 (Banco Central do Brasil, 2004). (ROSSBACH, 2005, p. 104).
O FCVS não foi suficiente para amortecer o grande impacto financeiro causado pela
forte inflação da época, tampouco conseguiu se adaptar as constantes mudanças de
políticas econômicas adotadas com a finalidade de se reduzir a inflação. Santos (1999)
complementa este pensamento:
Em 1983, porém, a política salarial foi mudada e instituiu reajustes diferenciados para as várias classes de renda. Os setores de menor renda continuavam a ter seus salários reajustados pela correção monetária plena, enquanto redutores eram aplicados aos salários das classes de maior poder aquisitivo. Uma vez que o reajuste da prestação da casa própria voltou a acompanhar o reajuste do salário-mínimo, o aumento real da prestação da casa própria para os mutuários de renda média e alta foi inevitável. Esse fato fez que tais setores, de “grande (capacidade de) vocalização das suas
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reivindicações junto a imprensa escrita e falada” [Azevedo, 1995,p.294], provocassem grande grita popular, que desembocou na criação de inúmeras associações de mutuários, aumento de ações na justiça e, principalmente, em um assustador aumento na inadimplência do sistema (...), para o qual contribuiu ainda a recessão da economia. (SANTOS, 1999, p.14).
Com o FCVS exaurido na sua capacidade de prover o SFH de fôlego financeiro que
garantisse solvência ao sistema, o BNH sofreria uma série de crises institucionais, o que
culminariam em sua extinção. Antes disso, algumas reformulações importantes
aconteceriam no intuito de garantir minimamente ao sistema seu funcionamento, como
foi o caso da transformação do BNH numa empresa pública em 1973, deixando de ser
autarquia. Outra mudança a ser destacada é a diversificação dos financiamentos
concedidos pelo BNH, dando forte enfoque ao setor de urbanização e de infra-estrutura
urbana (ROYER, 2009). Além disso, o BNH desenvolveu programas alternativos e não
convencionais, que teriam como objetivo recuperação de áreas urbanas degradadas,
destinados especialmente às populações de renda mensal inferior a três salários
mínimos:
O reconhecimento por parte do BNH “da incapacidade do sistema de solucionar as necessidades de uma significativa parcela da população de mais baixa renda do país e do conseqüente aumento da auto-construção e do número de habitações informais” foi, segundo Silveira e Malpezzi (1991, p.94), o principal responsável pela criação de programas habitacionais especiais destinados às populações de renda mensal inferior a três salários-mínimos. Tais programas, entre os quais se destacam PROFILURB, PRO-MORAR e João de Barro, visavam basicamente auxiliar a autoconstrução e/ou atuar na reurbanização de áreas habitacionais degradadas. (SANTOS, 1999, p.16).
Apesar das diversas tentativas de recuperação da capacidade financiadora do BNH, bem
como de consolidar os objetivos sociais dos quais o BNH estava proposto, ao final do
período do governo militar, o BNH apresentava desempenho social muito abaixo do que
foi pensado em sua criação.
(...) o sistema foi incapaz de atender às populações de baixa renda. Com efeito, somente 33,5% das unidades habitacionais financiadas pelo SFH ao longo da existência do BNH foram destinadas à habitação de interesse social e, dado que o valor médio dos financiamentos de interesse social é inferior ao valor médio dos financiamentos para as classes de renda mais elevada, é lícito supor que uma parcela ainda menor do valor total dos financiamentos foi direcionada para os primeiros. (SANTOS, 1999, p. 17).
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Além do mais, o ambiente macroeconômico nos anos imediatamente posteriores ao
final da ditadura militar eram os piores possíveis. Em um clima de perene incerteza, a
população via os níveis de desemprego e inflação subirem assustadoramente. (ROYER,
2009). O SFH, que tinha seu dinamismo atrelado ao desempenho macroeconômico do
país, via suas contas entrarem em profundo colapso com perda substancial de seu poder
de financiamento. Segundo Bonduki:
A crise do modelo econômico implementado pelo regime militar, a partir do início dos anos 80, gerou recessão, inflação, desemprego e queda dos níveis salariais. Este processo teve enorme repercussão no Sistema Financeiro da Habitação (SFH), com a redução da sua capacidade de investimento, devido à retração dos saldos do FGTS e da poupança e forte aumento na inadimplência, gerado por um cada vez maior descompasso entre o aumento das prestações e a capacidade de pagamento dos mutuários. (BONDUKI, 2008, p. 74).
A configuração política e o clima de efervescência social exigiam profundas mudanças
na configuração do estado brasileiro. As antigas instituições – com uma imagem
fortemente ligada ao governo militar – necessitariam de profundas reformulações para
que pudessem recuperar a aceitação da população. O BNH, que foi uma das fontes de
legitimação do regime frente às massas urbanas, foi alvo de severas críticas e estava em
situação de total descrédito popular. As várias crises institucionais e os diversos
impasses gerados entre os mutuários tornariam o BNH umas das instituições mais
vulneráveis politicamente ao fim do regime.
Com o fim do regime militar, em 1985, esperava-se que todo o SFH, incluindo o BNH e seus agentes promotores públicos, as Cohab´s, passassem por uma profunda reestruturação, na perspectiva da formulação de uma nova política habitacional para o país. No entanto, por conveniência política do novo governo, o BNH foi extinto em 1986 sem encontrar resistências: ele havia se tornando uma das instituições mais odiadas do país. (BONDUKI, 2008, p. 75).
Royer (2009) possui análise similar:
Além disso, o auge da crise financeira e institucional do sistema coincidiu com a crise do regime militar, que levou à abertura gradual do país no final da década de70. Assim como outras políticas públicas afetadas pela crise econômica do período pós-milagre, a política habitacional foi duramente atingida no seu duplo aspecto de constituição. De um lado, a crise econômica acarretava altas taxas de inadimplência e diminuição do nível de empreendimento, pela escassez do financiamento público e pela progressiva queda do poder aquisitivo da população. De outro, as políticas do BNH, por estarem diretamente ligadas ao regime, uma das fontes de sua legitimação, passaram a ser questionadas juntamente com ele, tornando-se símbolo do passado que se queria enterrar. (ROYER, 2009, p. 59).
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Pode-se notar que o fim do BNH se deu por conveniência política numa atitude de
abandono total às “lembranças” do antigo regime. Faltou, portanto, coragem política aos
novos dirigentes que frustraram todas as expectativas sociais de uma possível
reformulação do sistema (BONDUKI, 2008). Ressalta-se também, que a extinção do
BNH significou a perda de um patrimônio intangível, constituído na vasta experiência
dos funcionários e técnicos que acumularam conhecimento durante mais de vinte anos
de exercício.
A lacuna deixada pelo BNH dificilmente seria preenchida sem a criação de políticas
habitacionais mais consistentes e sem uma robusta reestruturação do Sistema Financeiro
da Habitação. Como será tratado mais adiante, as políticas habitacionais neste período
foram relegadas a um segundo plano, com uma estrutura administrativa confusa e por
ações governamentais descontínuas. Dessa maneira Bonduki pontua:
A política habitacional do regime militar podia ser equivocada, como já ressaltamos, mas era articulada e coerente. Na redemocratização, ao invés de uma transformação, ocorreu um esvaziamento e pode-se dizer que deixou propriamente de existir uma política nacional de habitação. (...) o setor do governo federal responsável pela gestão da política habitacional esteve subordinado a sete ministérios ou estruturas administrativas diferentes, caracterizando descontinuidade e ausência de estratégia para enfrentar o problema. (BONDUKI, 2008, p. 76).
Até este ponto foi possível perceber a dimensão das incongruências existentes no
funcionamento do BNH, que iniciou suas atividades buscando aproximação política do
governo frente às massas urbanas e trazia consigo objetivos sociais bem definidos,
apesar da concepção empresarial a qual o SFH estava inserido. O BNH surgiu como
grande instrumento de política habitacional para a população de baixa renda com um
bem estruturado desenho de funcionamento, mas com a presença tímida do Estado na
confecção dos projetos urbanos.
Os problemas referentes à forte dependência do desempenho econômico no país ficaram
logo evidenciados nos primeiros anos de financiamento do BNH. A forte inflação do
período desequilibrou as contas do SFH que precisou de constantes reformulações. Os
elevados índices de inadimplência, aliado aos grandes subsídios concedidos pelo BNH,
forçavam os gestores a adotarem medidas cautelosas nos financiamentos para a
população de baixa-renda. O foco dos programas de crédito paulatinamente deixaria de
31
ser as classes menos desfavorecidas, dando lugar ao aumento expressivo nos
financiamentos destinado as classes medias e alta. (AZEVEDO; ANDRADE, 1981).
O desempenho econômico e social do BNH foi colocado em cheque, devido ao volume
de financiamento às classes de menor renda estar abaixo das expectativas iniciais e com
taxas de retorno negativas ocasionadas pelos altos índices de inadimplência. O fim do
regime militar e a reestruturação do Estado brasileiro colocaram o BNH em situação
ainda mais vulnerável. As fortes críticas colocadas sobre a instituição somadas ao
grande descrédito popular existente fizeram, que por conveniência política, se
decretasse o fim do Banco Nacional da Habitação. Vê-se, portanto, que o BNH não
conseguiu sobreviver ao paradoxo no qual estava inserido e acabou por desenvolver nas
“engrenagens” de seu próprio funcionamento os elementos que acirrariam suas
contradições e levariam conseqüentemente à sua extinção.
4.2. O “PÓS-BNH”: DESAFIOS PARA A CAIXA ECONOMICA E A CRIAÇÃO
DA CARTA DE CRÉDITO
O fim do BNH alterou significativamente a dinâmica das políticas habitacionais no
Brasil. Para alguns autores o período que compreende a extinção do Banco Nacional de
Habitação até a criação das cartas de crédito pelo Governo de Fernando Henrique
Cardoso em 1995, foi um momento de total ausência de políticas nacionalmente
articuladas para geração de moradias e combate ao déficit habitacional. O BNH deixava
uma enorme lacuna nos programas nacionais de habitação e colocava um grande desafio
para os governos posteriores.
Além do mais, o ambiente político econômico que se configurava, daria espaço para
políticas de privatizações e estabilidade econômica. Desse modo, qual seria o novo
papel do Estado frente às necessidades habitacionais da população? O setor habitacional
continuava sendo estratégico para fortes intervenções do Estado? Esta seção mostra
como o Estado brasileiro assumiu uma postura passiva frente aos problemas de moradia
no país, e como as políticas habitacionais ficaram em segundo plano nas agendas dos
governos da década de 90.
32
Em 1986, o Decreto-Lei nº. 2.291/86 extinguiu o BNH e inaugurou uma série de
mudanças no SFH. As antigas atribuições do banco passariam agora para a
administração do então Ministério de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente
(MDU), o Conselho Monetário Nacional (CMN), o Banco Central do Brasil (Bacen) e a
Caixa Econômica Federal (CEF). O MDU ficou com a incumbência de formular
propostas de políticas habitacionais e de desenvolvimento urbano; o CMN passaria a ser
o órgão centralizador e disciplinador do SFH e teria agora atuações com caráter de
política monetária e não mais de política habitacional; à CEF caberia incorporar o ativo,
passivo, pessoal e bens do antigo BNH (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2004).
Essa nova configuração dificultava a ação centralizada do Estado e se traduziria mais
tarde em desorganização e adormecimento no funcionamento do SFH (SANTOS,
1999). E de acordo com Rodrigues:
Com o fim do BNH, a CEF herdou um prejuízo de R$ 2,5 bilhões. Nesta época, o Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS) já se apresentava como um fator de preocupação (...) A solução encontrada pelo Governo Federal foi securitizar a dívida do FCVS: o Tesouro Nacional emitiu títulos públicos que permitiram a União saldar as dívidas. (RODRIGUES, 2009, p. 87).
Com o CMN assumindo o papel de órgão centralizador e normativo do SFH, as ações
ligadas às políticas de crédito habitacional ficariam subordinadas as políticas monetárias
do Governo Federal. O ambiente de elevado índice inflacionário não contribuía para
liberações expressivas de crédito para moradias. Além disso, associado ao esgotamento
atuarial do SFH, políticas equivocadas e marcadas por fortes suspeitas de corrupção
levariam, em 1990, à interrupção dos financiamentos com recursos do FGTS.
(BONDUKI, 2008).
Santos (1999) avalia que a nova configuração do SFH e a inclusão da CEF no circuito
do financiamento de moradias agravaria ainda mais a situação das políticas de crédito
habitacional no país:
O setor sofreu também profunda crise institucional, iniciada com a extinção do BNH, que foi incorporado à Caixa Econômica Federal, um banco sem qualquer tradição prévia na gestão de programas habitacionais. Note-se que na CEF a questão habitacional foi relegada a um interesse setorial, enquanto o BNH, que possuía um efetivo de funcionários qualificados que acumulavam a memória técnica de mais de vinte anos de funcionamento do setor, tinha o problema habitacional como atividade-fim.(...) A maneira como o governo incorporou o antigo BNH à Caixa Econômica Federal torna explícita a falta de proposta clara para o setor. Em outras palavras, nenhuma
33
solução foi encaminhada para os controvertidos temas que permeavam o debate anterior. Nesse sentido, a pura desarticulação institucional do banco, sem o enfrentamento de questões substantivas, somente agravou os problemas existentes (SANTOS, 1999, p. 19).
A falta de uma proposta clara e a grave crise existente, fariam com que a
responsabilidade sobre o setor habitacional passasse pouco a pouco para os estados e
municípios. Cada um desenvolveria soluções “criativas”, contudo, isoladas e pouco
efetivas. O problema da falta de financiamento estimulava a criação de programas locais
e regionais que buscavam novas alternativas na obtenção de recursos, como pontua
Bonduki:
Neste quadro, intensificou-se a necessidade de uma intervenção governamental com recursos oriundos de outras origens e a parceria com a sociedade organizada. Para fazer frente à situação, vários Municípios e Estados, além da própria União lançaram programas habitacionais financiados com fontes alternativas, em particular recursos orçamentários, adotando princípios e pressupostos diversos dos adotados anteriormente. Abriu-se assim uma nova fase na política habitacional no Brasil, que denominou de pós-BNH. (BONDUKI, 2008, p. 77).
O pós-BNH, portanto, foi marcado por grave confusão institucional e fortalecimento de
programas alternativos ou até mesmo de mutirões comunitários. Somado aos aspectos
negativos do período houve também uma equivocada desarticulação entre as iniciativas
habitacionais e de saneamento que comprometiam a eficiência social das políticas. A
ausência de controle rígido sobre a qualidade das habitações mostrava a
irresponsabilidade na gestão dos recursos destinados ao setor de moradias (SANTOS,
1999).
As políticas de credito habitacional somente reapareceriam com a retomada dos
financiamentos utilizando os recursos do FGTS em 1995. Inovações no sistema de
crédito habitacional abririam a possibilidade de intervenções diferentes daquelas
adotadas anteriormente pelo BNH, uma dose de esperança se acenderia:
Em 1995, ocorre uma retomada nos financiamentos de habitação e saneamento com base nos recursos do FGTS, depois de vários anos de paralisação dos financiamentos, num contexto de alterações significativas na concepção vigente sobre política habitacional. Se, por um lado, é exagerado dizer que se estruturou de fato uma política habitacional, os documentos elaborados pelo governo mostram que os pressupostos gerais que presidiram a formulação dos programas são fundamentalmente diversos daqueles que vigoraram desde o período do BNH. (BONDUKI, 2008, p. 78).
34
Como mencionado anteriormente, os projetos engendrados pelos governos dos anos 90,
em especial o FHC, não se preocuparam em reestruturar o modelo de financiamento
habitacional em larga escala. Mas, deram maior enfoque a programas voltados para a
melhoria em áreas habitacionais degradadas. Os dois principais programas foram o Pró-
Moradia e o Habitar Brasil. Em ambos os programas, os municípios deveriam
apresentar seus projetos às instâncias federais que analisariam a qualidade do programa
antes da liberação dos recursos (SANTOS, 1999). Apesar da grande vantagem da não
exigência de contrapartida financeira da população atendida, o programa abria a
possibilidade de subordinação dos municípios à linha ideológica do governo federal, já
que poderia optar por atender prioritariamente os municípios que compartilhassem dos
mesmos princípios políticos do governo federal.
A retomada dos financiamentos com recursos do FGTS abriram espaço para uma ação
inovadora no SFH, que é a “Carta de Crédito”. Esta “representa uma importante
mudança na estratégia de concessão de financiamentos imobiliários que, no modelo
vigente até 1994, eram majoritariamente direcionados às empresas construtoras.”
(SANTOS, 1999, p. 25). Como se pode observar, a carta era ofertada diretamente ao
consumidor final, sem a intermediação de construtoras ou órgãos governamentais. Os
consumidores poderiam optar por financiar imóveis novos, usados, ou até mesmo a
aquisição de terreno e construção.
O desenho de funcionamento da carta de crédito vem ganhando melhorias até os dias
atuais, mas sua configuração básica ainda permanece inalterada.
O cidadão procura uma agência da Caixa Econômica Federal e, após comprovar, entre outras coisas, que sua renda familiar está dentro da faixa-alvo do programa, que não é proprietário de nenhum imóvel na região onde mora e que tem capacidade de pagamento (a prestação mensal não deve ultrapassar 30% da renda familiar), recebe uma carta do banco que lhe garante, por um mês, um crédito a ser utilizado em uma das modalidades do programa (aquisição/reforma de imóveis, compra de materiais de construção,etc). (SANTOS, 1999, p. 25).
Embora apresente mudanças substanciais na forma de pensar a política de crédito
habitacional no país, as Cartas de Crédito trouxeram conseqüências desaprováveis do
ponto de vista econômico, social e urbano. Primeiramente, o financiamento de imóveis
usados pouco afeta a cadeia produtiva de moradias e por isso traz baixos impactos na
35
economia. Outra questão é que a simples revenda de imóveis não traz em si uma nova
proposta de planejamento urbano, pois não é preciso redesenhar a estrutura espacial
para comercializar imóveis usados (ROLNIK; CLINK, 2011). Sobre o financiamento de
material de construção Bonduki opina:
O financiamento para material de construção, embora tenha o mérito de apoiar o enorme conjunto de famílias de baixa renda que auto-empreeende a construção da casa própria e de gerar um atendimento massivo (567 mil beneficiados no período, a de maior alcance quantitativo), tende a estimular a produção informal da moradia, agravando os problemas urbanos. Ademais, o baixo valor do financiamento e a ausência de assessoria técnica não permitem que as famílias beneficiadas alcancem condições adequadas de habitabilidade. (BONDUKI, 2008, p. 79).
O modelo da carta de crédito como principal ferramenta de financiamento habitacional
expressa a nova visão bancária do SFH. A CEF priorizaria modelos de financiamentos
que evitassem rombos ou desequilíbrios financeiros. Dessa maneira a gestão da carta de
crédito permitiria melhor acompanhamento dos saldos devedores. Contudo, ainda era
um projeto tímido de financiamento e não representou uma medida séria de
enfrentamento do déficit habitacional.
Pela mesma razão de natureza financeira, a implementação desses programas não significou interferir positivamente no combate ao déficit habitacional, em particular nos segmentos de baixa renda. De uma maneira geral, pode-se dizer que se manteve ou mesmo se acentuou uma característica tradicional das políticas habitacionais no Brasil, ou seja, um atendimento privilegiado para as camadas de renda média. Entre 1995 e 2003, 78,84% do total dos recursos foram destinados a famílias com renda superior a 5 SM, sendo que apenas 8,47% foram destinados para a baixíssima renda (até 3 SM) onde se concentram 83,2% do déficit quantitativo. (BONDUKI, 2008, p. 80).
Como explanado neste capítulo, o período “Pós-BNH” foi marcado pela grande crise
institucional do SFH, grandes desequilíbrios atuariais, perda de objetivos nas políticas
habitacionais e grande descrédito popular frente aos programas habitacionais. O
esgotamento financeiro do sistema levaria a paralisação de grandes financiamentos
habitacionais e a priorização de políticas paliativas de recuperação de zonas
habitacionais degradadas. De fato não houve no período uma proposta habitacional clara
e nacionalmente articulada.
A proposta de enfrentamento efetivo do déficit habitacional tornou-se algo do passado.
O medo de cair em um grande emaranhado de dívidas, como foi o caso do FCVS, e a
36
nova proposta de contenção fiscal presente nos governos dos anos 90 levaram ao
desenvolvimento de programas habitacionais tímidos, que pouco afetariam no volume
de déficit habitacional no país.
Outra inovação do período foi a criação do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) em
1997. Baseado nos preceitos do sistema norte-americano, o SFI dava maior flexibilidade
jurídica ao mercado imobiliário e fomentava o desenvolvimento do mercado secundário
de títulos hipotecários (BRASIL, 1997). Contudo, por não se tratar de política
habitacional propriamente dita, o SFI não será objeto de explanação neste trabalho.
4.3 O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA: NOVAS PERSPECTIVAS
PARA AS POLÍTICAS DE CRÉDITO HABITACIONAL NO BRASIL.
Desde a criação do BNH, ainda no contexto do regime militar, o Brasil não
experimentaria uma política habitacional tão pretensiosa como o ”Minha Casa Minha
Vida” (MCMV). Projeto ousado do então presidente Luis Inácio Lula da Silva, é a
tentativa mais consistente e inovadora de combate ao déficit habitacional brasileiro após
a extinção do BNH e inaugura um novo momento nas políticas federais de provisão de
moradias. Contudo, a política habitacional do governo Lula, não se resumiu a criação
deste programa. Nestes últimos anos constataram-se uma série de reformulações
institucionais e alterações no modus operandis das políticas federais de habitação no
país.
Neste tópico, será analisado o processo de reestruturação das políticas habitacionais
brasileiras, sua reorganização institucional e o incremento de novas concepções na
forma de fazer política de moradias no Brasil. Se avaliará também, até que ponto a
política do governo Lula não foi mera repetição dos seus antecessores cometendo os
mesmos equívocos no tratamento à questão habitacional. Desse modo, a política de
crédito habitacional do governo lula, com enfoque no MCMV, será estudada em sua
lógica de funcionamento, contexto sócio-político de criação, objetivos e discussão de
seus primeiros resultados.
37
Quando o presidente Lula assume o governo em 1º de janeiro de 2003, encontra as
políticas governamentais relacionadas à questão habitacional totalmente desarticuladas,
com atribuições de formulação das políticas urbanas e habitacionais segregadas entre
diversos ministérios e órgãos da administração central. Como visto anteriormente, as
medidas adotadas até então eram vistas como tímidas, desarticuladas e descontínuas.
Com irrisórios efeitos destes programas frente ao crescente déficit habitacional
brasileiro, o país necessitava de uma profunda reformulação na maneira de gerir a
questão habitacional com reformas institucionais que permitissem planejar políticas de
longo prazo e com um programa que traçasse metas ousadas e tangíveis. Além disso, o
desfavorável contexto econômico frente a crise financeira internacional que se
aproximava forçava ao governo brasileiro medidas que estimulassem o crédito e a
geração de emprego, as políticas de crédito habitacional seriam uma excelente
alternativa.
A Caixa Econômica Federal continuou sendo o principal órgão executor das políticas de
crédito habitacional no país, mantendo a tradição de um banco público estar diretamente
ligado a questão habitacional. Mas agora, sob uma nova coordenação, a do Ministério
das Cidades, criado em 2003 pelo governo LULA. As políticas habitacionais passariam
a ser centralizadas sob a coordenação de um único órgão facilitando a gestão unificada
dos projetos ligados à habitação. A CEF apesar de estar vinculado ao organograma do
Ministério da Fazenda teria de estar perfeitamente alinhada com a dinâmica de
funcionamento do Ministério das Cidades.
O Ministério das Cidades foi criado com o caráter de órgão coordenador, gestor e formulador da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, envolvendo, de forma integrada, as políticas ligadas à cidade, ocupando um vazio institucional e resgatando para si a coordenação política e técnica das questões urbanas. Coube-lhe, ainda, a incumbência de articular e qualificar os diferentes entes federativos na montagem de uma estratégia nacional para equacionar os problemas urbanos das cidades brasileiras, alavancando mudanças com o apoio dos instrumentos legais estabelecidos pelo Estatuto das Cidades. (BONDUKI, 2008 p. 96)
A criação do Ministério das Cidades, em 2003, representou um marco institucional para
a questão urbana no país. Significou a consolidação de uma base institucional sólida
sobre a qual os programas habitacionais poderiam ser construídos. Além disso, tentava-
38
se unificar sob uma única coordenação projetos que antes estavam fragmentados entre
diferentes ministérios e secretarias do governo. Sobre esta questão Naime pontua:
As políticas urbanas ganharam tratamento integrado com a criação do Ministério das Cidades (MCidades) em 2003, atendendo a reivindicações de diversos movimentos que se articulavam em torno da Reforma Urbana. A proposta era implementar uma política de desenvolvimento urbano de longo prazo, integrando as áreas de habitação, saneamento ambiental e transporte urbano e mobilidade, tendo o uso e ocupação do solo como política transversal. Com isso, objetivava-se reverter a fragmentação na execução dessas políticas, bem como o processo histórico de acúmulo dos problemas urbanos. (NAIME, 2010, p. 2).
Um elemento novo ligado a criação do Mcidades foi a iniciativa do governo Lula de
criação do Conselho Nacional das Cidades (CNC) que se reunia através da Conferência
Nacional das Cidades. Nestas conferências se garantia a participação de inúmeros
segmentos da sociedade para discutir e formular novas propostas para o setor urbano e
habitacional no país. Como pontua Bonduki:
O regulamento das conferencias estabelecia a participação de todos os segmentos da sociedade, o que permitiu criar fóruns de debate na maior parte das cidades do país, com a presença, além do poder público, nos três níveis de governo, de movimentos sociais, entidades empresariais, sindicatos, Universidades, associações profissionais, concessionárias de serviços públicos, entidades de representantes de vereadores, ONG’s e institutos de pesquisa. As conferências possibilitaram o início da construção de uma verdadeira política nacional para as cidades, ou seja, uma política não-limitada à ação do governo federal, mas capaz de envolver o conjunto de instituições públicas e privadas, relacionadas com a questão urbana. Este processo teve continuidade com a realização da 2a Conferencia Nacional das Cidades em 2005. (BONDUKI, 2008, p. 97)
Um novo arranjo institucional estava em formação, a integração das políticas
habitacionais com os vários setores da sociedade diminuiriam os riscos de se criar
estratégias de enfretamento ao déficit que não se relacionassem com a realidade
brasileira. O Mcidades teria por grande resonsabilidade “consolidar em nível federal os
princípios defendidos pelos movimentos sociais de luta pela Reforma Urbana,
materializando-os na definição das políticas setoriais e da Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano” (NAIME, 2010, p.3).
O Ministério das Cidades, portanto, teve papel fundamental na reorganização
institucional dos programas de moradias no país e na integração dos vários agentes
sociais envolvidos na questão de moradias do país:
39
A criação do Ministério das Cidades e o processo de formulação da PNDU, com participação social, tende a ser um forte impulso para incluir a questão urbana na agenda política brasileira. O Ministério das Cidades articula transversalmente a questão financeira e fundiária buscando definir políticas gerais e setoriais integradas – habitação, saneamento ambiental e transportes – para as cidades, sem desconhecer as competências municipais e estaduais. A Política Nacional de Habitação articula terra e financiamento sendo, portanto, dependente da cooperação entre diferentes esferas da federação. (MARICATO, 2006, p. 219)
A Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, (PNDU) seria criada a partir das
formulações advindas do CNC. A participação dos movimentos sociais organizados
representou profundo avanço na concepção e formulação destas políticas. Contudo as
políticas urbanas efetivamente adotadas posteriormente pelo Mcidade expressavam a
correlação de forças existentes entre os movimentos sociais e as grandes construtoras.
Como será abordado mais a seguir, essa contradição foi marcante na política
habitacional do governo Lula.
Em 2004 com bases institucionais e concepções ideológicas já solidificadas o país lança
o Plano Nacional da Habitação (PNH). Tinha como principal objetivo retomar o
processo de planejamento do setor habitacional, garantir o acesso de todo segmento da
população a moradia digna e reinserir o Estado como forte agente na gestão política e na
regulação dos agentes privados. (BRASIL, 2004). O PNH foi estruturado em três
principais eixos de atuação, conforme o Quadro I.
Estes eixos englobavam concepções de políticas já anteriormente adotadas, o que
realmente adicionou-se como novidade foi a forma de operacionalizar a política e a
redefinição de prioridades. Vemos uma inversão de preferência quanto ao público alvo
das políticas, que deixavam de focar na classe-média para dar atenção aos segmentos
mais vulneráveis da sociedade. Além do mais a questão fundiária ganhou um papel de
grande relevância, pois na concepção do MCidades (2004) não existe a possibilidade de
combate eficiente ao déficit habitacional sem resolver primeiro os grande gargalos
existente na questão fundiária das grandes cidades.
Como visto anteriormente, a crise financeira que levou a extinção BNH deixou um
trauma crônico nos governos posteriores. A questão habitacional foi deixada em
segundo plano. A forte crise econômica levou a um “enxugamento” na oferta de crédito
40
habitacional do país. Os anos 90 ficaram caracterizados como um período de baixíssimo
investimento de recursos nas políticas de crédito habitacional. O PNH tentava reverter
este paradigma, com a intenção de dar maior aporte financeiro e garantir a execução dos
programas habitacionais.
Quadro 1 - Eixos estruturantes da Política Nacional de Habitação Integração urbana de
assentamentos precários
� Urbanização em áreas precárias
� Intervenção em cortiços
� Regularização fundiária
� Melhoria da qualidade habitacional
Produção habitacional � Aquisição de imóveis novos ou usados
� Locação social pública ou privada
� Reabilitação em áreas urbanas centrais
� Melhoria habitacional
Integração da política
habitacional à política de
desenvolvimento urbano
� Política fundiária e imobiliária para habitação
� Regularização fundiária
� Uso de terrenos e imóveis públicos para habitação
� Revisão da legislação federal de parcelamento do solo para
habitação
� Impacto da política de financiamento habitacional sobre o valor
do solo urbano
� Mobilidade e transporte urbano
� Infra-estrutura urbana e saneamento ambiental
Fonte: Elaborado a partir de informações retiradas do artigo de Jéssica Naime, “A política de Habitação Social do Governo Lula”, e baseado nas informações do PNH (Ministério das Cidades, 2004).
A criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), em 2005,
complementaria o FGTS na obtenção dos recursos necessários para investimentos no
setor. (MARICATO 2006). O Sistema Nacional da Habitação (SNH) aparece como uma
ferramenta inovadora do PNH e subdivide-se em dois sistemas secundários – o de
habitação de mercado e o de interesse social (SNHIS). (BURNET, 2009). O SNH
aparece integrado às instituições responsáveis pelas políticas habitacionais e se agregam
às estruturas estabelecidas anteriormente pelo Mcidades. Garantindo desse modo, os
recursos necessários para a execução de um plano habitacional mais ousado e
consistente.
41
Primeira lei de iniciativa popular pós-CF/1988, a Lei Federal n° 11.124 que regulamentou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social foi aprovada em 16 de junho de 2005, após 13 anos de tramitação no Congresso Nacional. Fazem parte do SNHIS o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e seu Conselho Gestor (CGFNHIS). O SNHIS é responsável pela coordenação de todos os programas e projetos destinados à habitação de interesse social, e reúne conselhos, órgãos e instituições da Administração Pública direta e indireta dos entes federados que estejam relacionados à implementação de programas habitacionais, além do Ministério das Cidades, CEF e o Conselho das Cidades (BRASIL/MCID, 2008). (NAIME, 2010, p.6).
A lei Federal nº 11.124/2005 trazia em sua concepção a articulação da União, Estados e
Municípios, os segmentos populacionais a terem atendimento prioritário, além de
organizar a articulação entre os diversos programas de habitação:
A concepção do Plano Nacional de Habitação foi guiada pelo objetivo de (i) estabelecer diretrizes e metas físico-financeiras, linhas de financiamento, articulação entre fontes de recursos, áreas prioritárias de intervenção e segmentos de público-alvo, mecanismos e instrumentos de articulação com outros planos, programas e ações, bem como mecanismos e instrumentos de regulamentação e fomento à produção de mercado e ampliação da cadeia produtiva; e ii) orientar a atuação de atores públicos, privados e demais agentes sociais na elaboração dos planos plurianuais, das leis de diretrizes orçamentárias e dos orçamentos anuais e, também, a elaboração e a criação dos fundos e planos estaduais e municipais de habitação (BRASIL/MCID, 2008). (NAIME, 2010, p.7)
A busca pela reestruturação do sistema de habitação no governo Lula é bastante
significativa. Parte de uma nova maneira de conceber a política habitacional, colocando
o Estado novamente como agente decisivo na elaboração, regulamentação e execução
das políticas habitacionais. Apesar de não romper totalmente com o modelo
anteriormente adotado, deu a política habitacional brasileira nova roupagem, nova
estrutura institucional e novas prioridades.
Na esfera do SNHIS os programas habitacionais são classificados de acordo com a
origem dos recursos e faixa de renda do publico alvo do programa. De acordo com
Fernandes e Silveira (2010) e consultas ao site do MCIDADES, Brasil (2009) pode-se
elencar seis programas principais que estão vinculados ao organograma do SHNIS. O
primeiro é o FHNIS, seus recursos estão destinados especialmente para programas de
urbanização, regularização e integração de assentamentos precários. Já os recursos do
Orçamento Geral da União são destinados para intervenções em favelas e subsídios a
aquisição de habitação de interesse social. Os recursos oriundos dos FGTS são
42
administrados pelo Conselho Curador e são destinados aos programas “Carta de
Crédito” e ao “Pró-Moradia”. O Fundo de Arrendamento Residencial foi criado
exclusivamente para aplicação do PAR, Programa de Arrendamento Residencial, se
trata de arrendamento com opção de compra destinada a população de baixa renda.
Outro programa está relacionado ao Fundo de Desenvolvimento Social que se destina
ao Programa de Crédito Solidário, que estabelece condições especiais de financiamento
com subsídios para populações de vulnerabilidade socioeconômica. E por último tem-se
o Programa Minha Casa Minha Vida, que utiliza recursos da União e do FGTS para
financiamento e subsídio de moradias e constitui-se o maior programa habitacional em
metas e volumes de recursos criados até então.
Em 2009 o PMCMV ganhou desenho de funcionamento que mantém suas linhas gerais
até os dias atuais, sendo que algumas pequenas alterações foram implementadas em
2011. Nos Quadros 2 e 3 são apresentadas as principais características e objetivos do
programa. O MCMV previa a construção de um milhão de moradias novas e subdividi-
se em duas frentes de atuação, financiamento paras famílias com renda de até 3 salários
mínimos, e outra modalidade oferecida para famílias que tenham renda de 3 até 10
salários mínimos. O programa destina seus recursos para financiamentos de imóveis
novos, construção e recuperação de áreas urbanas degradadas (BRASIL,2009). Desse
modo o programa prioriza linhas de financiamento que impactem na cadeia produtiva da
construção civil, e dessa maneira estimulem o investimento, o emprego e a renda.
(HIRATA 2009).
Um grande elemento que diferencia o MCMV dos demais programas é quantidade de
recursos, de acordo com Fernandes e Silveira (2010) aproximadamente 34 bilhões de
reais. Apesar desta movimentação do governo em relação a questão habitacional, o
programa continua apostando no mercado privado de moradias sob o fomento e
regulamentação do Estado como a principal saída para enfrentamento ao déficit
habitacional.
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Quadro 2 - Programa Minha Casa Minha Vida (de 0 até 3 salários mínimos) De 0 até 3 salários mínimos
Objetivos Aquisição de empreendimentos na planta, para famílias com renda bruta de até 3 salários mínimos, pelo fundo do programa habitacional.
Abrangência Capitais e respectivas regiões metropolitanas, municípios com mais de 100 mil habitantes, podendo contemplar em condições especiais municípios entre 50 e 100 mil habitantes, de acordo com o seu déficit habitacional.
Funcionamento União aloca recursos por área do território nacional e solicita apresentação de projetos. • Estados e municípios realizam cadastramento da demanda e após triagem indicam famílias para seleção, utilizando as informações do cadastro único. • Construtoras apresentam projetos às superintendências regionais da CAIXA, podendo fazê-los em parceria com estados, municípios, cooperativas, movimentos sociais ou independentemente. • Após análise simplificada, a CAIXA contrata a operação, acompanha a execução da obra pela construtora, libera recursos conforme cronograma e, concluído o empreendimento, realiza a sua comercialização.
Análise do beneficiário
Enquadramento por renda familiar: • Documentos pessoais. • Comprovação de renda (formal ou informal) somente para enquadramento no programa. • Verificação do CADÚNICO – Cadastro Único. • Verificação do CADMUT – Cadastro Nacional de Mutuários. Não há análise de risco de crédito
Condições Não ter sido beneficiado anteriormente em programas de habitação social do governo. • Não possuir casa própria ou financiamento em qualquer UF. • Estar enquadrado na faixa de renda familiar do programa. • Pagamento de 10% da renda durante 10 anos, com prestação mínima de R$ 50,00, corrigida pela TR e registro do imóvel em nome da mulher. Sem entrada e sem pagamento durante a obra. • Sem cobrança de seguro por Morte e Invalidez Permanente – MIP e Danos Físicos do Imóvel – DFI.
Operacionalização O beneficiário dirige-se à prefeitura, estado ou movimento social para cadastrar-se. • Após seleção é convocado para apresentação da documentação pessoal (na CAIXA, correspondente imobiliário, prefeitura ou outros credenciados). • Assinatura do contrato ocorre
Fonte: Elaboração Própria a partir da cartilha MCMV elaborada pela Caixa Econômica Federal (2009).
Para Leme (2011) o programa MCMV conferiu à questão habitacional um papel de
primeira grandeza na política social do governo. O que não havia ocorrido desde a
época da ditadura. A meta de construir um milhão de moradias, facilitando o acesso as
linhas de financiamentos através de políticas de subsídios e redução de custos
contratuais representa impacto direto de 14% no déficit habitacional brasileiro.
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Quadro 3 - Programa Minha Casa Minha Vida (de 3 até 10 salários mínimos)
De 3 até 10 salários mínimos Objetivo Financiamento às empresas da construção civil do mercado imobiliário para
produção de habitação popular visando ao atendimento de famílias com renda acima de 3 e até 10 salários mínimos, priorizando a faixa acima de 3 e até 6 salários mínimos.
Abrangência Capitais e respectivas regiões metropolitanas, municípios com mais de 100 mil habitantes, podendo contemplar em condições especiais, municípios entre 50 e 100 mil habitantes, de acordo com o seu déficit habitacional.
Funcionamento União e FGTS alocam recursos por área do território nacional, sujeitos a revisão periódica. • Construtoras/incorporadoras apresentam projetos de empreendimentos às superintendências regionais da CAIXA. • A CAIXA realiza pré-análise e autoriza o lançamento e comercialização. • Após conclusão da análise e comprovação da comercialização mínima exigida, é assinado o Contrato de Financiamento à Produção. • Durante a obra a CAIXA financia o mutuário pessoa física e o montante é abatido da dívida da construtora/incorporadora. • Os recursos são liberados conforme cronograma, após vistorias realizadas pela CAIXA. • Concluído o empreendimento, a construtora/incorporadora entrega as unidades aos mutuários.
Condições • Prazo para pagamento: até 30 anos. • Financiamento: até 100%. Fundo Garantidor – cobertura em caso de perda de capacidade de pagamento, proporcional à renda familiar • Subsídio de até R$ 17.000,00 para famílias com renda de até 6 salários mínimos. • Não ser proprietário, cessionário ou promitente comprador de outro imóvel residencial urbano ou rural, situado no atual local de domicílio, nem onde pretende fixá-lo.
Operacionalização A partir do lançamento do empreendimento, o beneficiário procura a construtora/ incorporadora para aquisição do imóvel. Também pode procurar as agências da CAIXA e obter Carta de Crédito para aquisição do imóvel novo dentro do Programa Minha Casa, Minha Vida.
Fonte: Elaboração Própria a partir da cartilha MCMV elaborada pela Caixa Econômica Federal (2009).
O fato de o programa prever a produção de moradias novas esteve diretamente ligado a
intenção do governo em estimular a cadeia produtiva do país através da construção civil.
A crise financeira de 2008 aparecia como um grande desafio a ser enfrentado, dessa
forma o MCMV teve papel de suma importância não só no combate ao déficit
habitacional, mas também como política anticíclica de estimulo ao investimento
privado, geração de postos de trabalho e aumento da renda nacional.
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Do ponto de vista da adoção de medidas para tentar impedir que os impactos de uma crise mundial sejam ainda mais drásticos para o país, a criação de um programa habitacional pode aquecer a construção civil e os setores ligados a ela , pode relativizar o aumento do desemprego, ao mesmo tempo em que pode amenizar a gravidade do déficit habitacional. È importante considerar que o setor da construção civil emprega um número considerável de trabalhadores e utiliza materiais de diferentes ramos industriais. (HIRATA, 2009 p.3).
Apesar dos grandes avanços estabelecidos pela política habitacional do governo Lula,
alguns elementos da velha política continuaram presentes. È bastante possível enxergar
semelhanças entre o pacote adotado por Lula tendo o MCMV como referência e o
programa habitacional do Governo Militar tendo o BNH como principal ícone. Desse
modo Hirata faz o seguinte alerta:
(...) é possível considerar que possa haver um impacto semelhante ao que ocorreu no período de vigência do BNH. (...) isto é, a dar condições para as pessoas adquirirem [seu imóvel] no mercado de habitação. Entretanto, para a população de 3 salários mínimos, a política de financiamento sozinha não viabiliza o acesso a moradia. (...) Na maioria das cidades do país, vai ser provavelmente impossível que esta população tenha a casa construída nas áreas não periféricas, que apresentam infra-estrutura consolidada e oportunidades de trabalho. Isto porque estas regiões apresentam o m² muito mais caro. (HIRATA, 2009, p.4).
A lógica empresarial de funcionamento do SFH ainda se faz presente no MCMV.
Apesar de prever grande volume de subsídios para as famílias que ganhem até 3 salários
mínimos não estabelece uma reforma fundiária nas grandes cidades. A divisão dos lotes
urbanos se fará através dos mecanismos alocativos de mercado, que continuará
garantindo os melhores equipamentos da cidade para quem pode pagar, e afastará dos
centros urbanos as famílias de menor renda.
A disputa pelo espaço urbano entre as grandes construtoras e por organizações sociais
mostram como é difícil conciliar duas perspectivas diferentes quanto à questão
habitacional no país. Deixar aos cuidados do mercado a provisão de moradias é
estabelecer um injusto quebra de braços entre as construtoras e os movimentos sociais
ligados a habitação. Sobre esta questão Naime faz importantes considerações:
A um primeiro olhar, a política habitacional parece ter acomodado os interesses dos diversos grupos da sociedade. Mas, como um de seus resultados, observou-se a partir de 2006 um grande boom imobiliário no país,
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que elevou os preços generalizados dos imóveis e do custo da terra urbana. Na ausência de mecanismos efetivos de controle do custo da terra, o mercado imobiliário reagiu aos investimentos no setor elevando os preços, beneficiando os proprietários de terra e impactando negativamente sobre a capacidade das camadas mais pobres de aquisição de terra urbana. Não tendo sido garantidas reservas de áreas para habitação social, os espaços urbanos passam a ser disputados por organizações de moradores e por construtoras e incorporadoras imobiliárias, com consideráveis vantagens estruturais para os dois últimos grupos. Em face da constatada incapacidade de os municípios brasileiros destinarem terras em volume satisfatório para habitação social, o que deveria ter sido garantido em seus planos diretores, o problema da terra urbanizada e bem localizada para todos ainda se configura como um gargalo, se não o principal, da política habitacional. (NAIME, 2010, p.17).
Assim como na época do BNH, o Estado não é o grande provedor na produção de
moradias. Tenta-se assumir o papel de “facilitador” na produção e aquisição de
moradias. Nas palavras de Naime:
Trata-se de assumir um papel mais de facilitador: a produção não é feita diretamente pelo Estado, que se restringe a gerar as condições (materiais, institucionais e legais) para a efetivação dos projetos de produção habitacional. E os agentes não estatais, por sua vez, têm buscado cada vez mais ampliar a sua participação nesse processo, como é o caso dos movimentos de luta por moradia, que reivindicaram a adoção de programa de autogestão com repasse de recursos diretamente para as entidades; e também das empresas do setor da construção civil que, cada vez mais atreladas ao capital financeiro, transformam sua capacidade de mobilizar recursos em influência política para a definição de políticas públicas que movimentem suas engrenagens. (NAIME, 2010, p.16).
As parcerias com os Estados e Municípios parecem ser a melhor solução deste
problema. Contudo, esta é uma questão de natureza política e se relaciona diretamente
com a regulamentação da propriedade no país. O programa MCMV em si, já representa
um profundo avanço no tratamento à questão habitacional do país, pois é fruto de
reformas institucionais sem precedentes que dialogaram com diversos segmentos da
sociedade. Todavia, os problemas da questão fundiária no país permanecem vivos, o
acesso a terra parece ser o principal entrave que multiplica o déficit habitacional e
exclui grande parte da população do direito a moradia digna. Este último governo
mostrou um amadurecimento significativo com relação à questão habitacional no país,
contudo as velhas estruturas excludentes continuam a ser o principal problema, e ,
permaneceram intocadas pelas políticas habitacionais no Brasil.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão inicial deste trabalho mostrou que o problema do déficit habitacional
brasileiro está concentrado principalmente nas áreas urbanas e atinge maciçamente a
população mais pobre do país. A renda apareceu como a principal variável que define
quem tem acesso ou não acesso ao bem “moradia”. As diferentes configurações do
déficit habitacional em cada região colocam em evidência a dificuldade de implantação
de políticas habitacionais generalistas e centralizadas. Significativa parte da população
pode não ser atendida se estas diferenças não forem levadas em consideração.
O déficit habitacional no país não pode ser encarado enquanto um número frio. Este
fenômeno não surgiu espontaneamente em um determinado ponto da história do país,
mas foi gerado a partir dos condicionantes sociais enfrentados ao longo da conturbada
urbanização brasileira. O processo desordenado e acelerado de industrialização
pressionou cada vez mais fortemente as migrações campo-cidade. Em menos de 20 anos
o país que tinha uma população essencialmente rural viu esse cenário se inverter,
chegando ao final do último século com taxa de urbanização de mais de 80%. De um
lado o processo rápido de urbanização do país, e de outro a ausência de políticas
habitacionais eficientes contribuíram para a configuração atual do déficit habitacional.
As políticas habitacionais no país não nasceram calcadas em um plano nacionalmente
articulado de combate ao déficit de moradias, serviram como ferramenta política de
legitimação dos governos frente ás emergentes massas urbanas. O BNH apesar de
possuir objetivos sociais bem definidos tinha sua lógica empresarial de funcionamento,
este foi o grande paradoxo de funcionamento do sistema. Os mecanismos de correção
monetária deram sustentabilidade financeira ao sistema, mas afastaram as classes menos
favorecidas do acesso à moradia.
O BNH não conseguiu resolver suas contradições internas, perdeu sua capacidade
financiadora e seus objetivos sociais. O fim do regime militar e a reestruturação do
Estado brasileiro colocaram o BNH em situação ainda mais vulnerável. As fortes
críticas colocadas sobre a instituição somadas ao grande descrédito popular existente
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fizeram que por conveniência política se decretasse o fim do Banco Nacional da
Habitação.
Vê-se, portanto, que o BNH não conseguiu sobreviver ao paradoxo no qual estava
inserido e tampouco conseguiu cumprir o objetivo pelo qual foi criado que era acabar
com o déficit habitacional no país através de políticas de crédito. Portanto, o BNH
acabou por desenvolver nas “engrenagens” de seu próprio funcionamento os elementos
que acirrariam suas contradições e levariam conseqüentemente à sua extinção.
O período “Pós-BNH” foi marcado pela grande crise institucional do SFH, grandes
desequilíbrios atuariais, perda de objetivos nas políticas e grande descrédito popular
frente aos programas habitacionais. O esgotamento financeiro do sistema levaria à
paralisação de grandes financiamentos habitacionais e a priorização de políticas
paliativas de recuperação de zonas habitacionais degradadas. De fato não houve no
período uma proposta habitacional clara e nacionalmente articulada.
O Governo Lula, representou uma mudança de paradigma nas políticas habitacionais
brasileira. Em um ambiente de grande desarticulação e falta de investimento no setor,
Lula conseguiu dar novo significado as políticas de moradia. Construiu um novo
arcabouço institucional paras as políticas habitacionais e deu ao segmento maior aporte
de recursos. Outro ponto a destacar foi a possibilidade de os vários segmentos da
sociedade civil poderem participar da discussão e elaboração destas políticas. Além
disso, o público-alvo dos programas foi definido. As classes de menor renda, onde o
déficit habitacional esteve concentrado, ganhou papel de grande relevância em seus
programas.
A busca pela reestruturação do sistema de habitação no governo Lula foi bastante
significativa. Partiu de uma nova maneira de conceber a política habitacional, colocando
o Estado novamente como agente decisivo na elaboração, regulamentação e execução
das políticas habitacionais. Apesar de não romper totalmente com o modelo
anteriormente adotado, deu a política habitacional brasileira nova roupagem, nova
estrutura institucional e novas prioridades.
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Apesar dos grandes avanços estabelecidos pela política habitacional do governo Lula,
alguns elementos da velha política continuaram presentes. È bastante possível enxergar
semelhanças entre o pacote adotado por Lula tendo o MCMV como referência e o
programa habitacional do Governo Militar tendo o BNH como principal ícone. A lógica
empresarial de funcionamento do SFH ainda se faz presente no MCMV. Apesar de
prever grande volume de subsídios para as famílias que ganhem até 3 salários mínimos,
não estabelece uma reforma fundiária nas grandes cidades. A divisão dos lotes urbanos
se faz através dos mecanismos de mercado, que continuarão garantindo os melhores
equipamentos da cidade para quem pode pagar, e afastará dos centros urbanos as
famílias de menor renda.
A opção pelo crédito habitacional como principal política de enfrentamento ao déficit de
moradias, não foi e continua não sendo, a melhor escolha adotada pelos governantes. O
processo conturbado de urbanização no país fomentou o desenvolvimento agudo do
déficit de moradias e conferiu às cidades um ambiente de grande injustiça social.
As políticas de crédito habitacional vivenciada ao longo de todos estes anos, pouco
deram ênfase a necessidade de reforma urbana e redemocratização do espaço urbano.
Mas, foram calcadas apenas em amplos projetos de produção maciça de novas unidades
habitacionais. Os problemas da questão fundiária ainda permanecem vivos. O acesso a
terra urbana parece ser o principal entrave que multiplica o déficit habitacional e exclui
grande parte da população do direito a moradia digna. Este último governo mostrou um
amadurecimento significativo com relação à questão habitacional no país, contudo as
velhas estruturas excludentes continuam a ser o principal problema, e, permaneceram
intocadas pelas políticas de crédito habitacional no Brasil.
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REFERÊNCIAS
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