john w wenham o enigma do mal

207
cn O ENIGMA DO MAL r: H:v t'-;. ■ ia*-'..- ‘ . • •• '••- .«<V n' -Nf . •. J- John W. Wenham

Upload: janio-bastos

Post on 24-Nov-2015

384 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

  • c n

    O ENIGMA DO MAL

    r:

    H:v

    t '- ;. ia*-'..-

    . ' - . < V n ' -Nf . . J -

    John W. Wenham

  • 0 ENIGMA 0 0 MAL

    Muitas pessoas acham difcil harmonizar a crena na bondade de Deus com a presena de tanto mal no mundo.

    Mesmo que recorram ajuda da Bblia, elas apontam para os problemas morais levantados no apenas pelo Antigo Testamento, mas tambm pelo Novo: por exemplo, guerras, doenas, fomes, salmos imprecatrios e terrveis quadros de inferno e tormento.

    Em vista destas coisas, como podemos afirmar que Deus bom?

    O Enigma do Mal comeou como uma tentativa do autor no sentido de responder a algumas destas difceis questes morais sobre a Bblia. No processo de escrev-lo, ele alcanou uma compreenso mais profunda sobre o que significa a bondade de Deus, mesmo diante da presena do mal.

    O Rev. John W. Wenham, M.A., B.D., foi diretor da Latimer House, em Oxford, na Inglaterra.

  • o ENIGMA DO MAL

    John W. Wen ham

    Traduo de Mrcio Loureiro Redondo

    SOCIEDADE RELIGIOSA EDIES VIDA NOVA Caixa Postal 21486 04698 So Paulo-SP

  • Ttulo do original em ingls: The Enigma o f Evil

    Copyright John W. Wenham 1985

    1 edio inglesa 1974, sob o ttulo The Goodness o f God 2 edio inglesa 1985, ambas publicadas por Inter-Varsity Press, Leicester, Inglaterra.

    Reviso de estilo: Robinson Norberto Malkomes Reviso de provas: Vera Lcia dos Santos Barba Arte de capa; Diane Barnhaf t

    1 edio em portugus: outubro

    MAZINHO RODRIGUES

    Publicado no Brasil coro a devida autorizao e com todos os direitos reservados porSOCIEDADE RELIGIOSA EDIES VIDA NOVA Caixa Postal 21486 04698 So Paulo-SP

  • CONTEDO

    Prefcio Edio em Portugus..................................... ................... 6Introduo; Um Deus B om ?.............................................................. 7

    1 Uma Seqncia de Pedras de Tropeo............................................ 132 O Inferno.............................................................................................273 Algumas Solues Inadequadas....................................................... 434 Aspectos Positivos de um Mundo Deformado:

    A Liberdade e Seu Preo .......................................................... 505 Aspectos Positivos de um Mundo Deformado:

    A Retribuio Benfica.............................................................. 596 Aspectos Positivos de um Mundo Deformado:

    Males Aparentes; Bnos R eais ...............................................747 Santos de Segunda Categoria e Leis Imperfeitas? .........................928 As Abominaes dos Pagos ..........................................................1229 Maldies .......................................................................................149

    10 O Deus com quem Temos de T r a ta r ...........................................174Estudo Adicional: A Doutrina do Deus B om ..............................182Notas Adicionais:

    O Mal no Mundo da N atu reza ...............................................196O Destino da Filha de Jeft ...................................................207

    Swluif]imZa Socofio,,, 9 ,15 ,

  • PREFACIO A EDIO EM PORTUGUS

    o assunto srio e, entre os que pensam sobre ele, no h quem no tenha levantado a questo de como pode existir o mal num mundo criado pelo Deus da Bblia. Entre os problemas mais desafiantes que o cristianismo tem de enfrentar, no existe um quebra-cabea mais difcil de ser solucionado do que o enigma do mal.

    Recomendamos este livro do Prof. Wenham, devido ao equilbrio e sabedoria que ele demonstra nesta discusso to complexa. Quem j sofreu um acidente srio, ou j enfrentou uma grave doena, quer saber onde fica nosso Deus Todo-poderoso e infinitamente bondoso em toda a experincia do mal que a vida proporciona. E o que dizer do sofrimento de animais e crianas inocentes? Neste livro, um dos aspectos mais notveis a profundidade bblica com que o autor harmoniza a bondade de Deus com a manifestao do mal na criao.

    O tema de O Enigma do Mal importante, porque com muita freqncia os no-cristos se escondem atrs das pedras de tropeo levantadas pela existncia do mal no mundo. Esperamos que as respostas bblicas sirvam para as perguntas que so feitas e forneam uma base apologtica de alto nvel (1 Pe 3.15). Oferecemos mais este livro aos amados leitores, desejando que seja til para a educao na justia (2 Tm 3.16).

    A Deus toda a glria!Os Editores

  • INTRODUO

    UM DEUS BOM?

    Considere a bondade de Deus, diz o professor cristo.Todavia, quando comeamos a reparar na Bblia, as coisas parecem

    distantes de qualquer bondade.O Livro contm muitas coisas horrveis. H tirania, crueldade,

    mutilao olhos arrancados, mos decepadas engano, licenciosidade, guerra. No apenas guerra, mas guerra enviada por Deus. A Assria, uma das mais cruis naes de toda a histria, chamada de a vara da ira de Deus. Deus um Deus irado e opera vingana. Um homem cegado, outro fica mudo, um outro coberto de lepra, outro cai morto, outro falece em grande agonia, outro enlouquece. Populaes inteiras so devastadas por pestes, fome, inundaes ou fogo e enxofre. Com a plena permisso de Deus, o diabo e um exrcito de outros espritos poderosos e malignos invadem a terra, tentando e atormentando as pessoas, at o ponto de roubar a sade, a riqueza e a famlia de um homem inocente. H salmos de imprecao. H descries terrveis do inferno, nas quais um homem suplica por um pouco de gua para refrescar a ponta de sua lngua e nas quais a fumaa do tormento se levanta eternamente de um lago de fogo. H guerra na terra, guerra no cu e guerra no corao humano.

    Lord Platt, escrevendo ao jornal The Times^ a respeito de uma nova traduo da Bblia (TJie New English Bible, publicada na Inglaterra), afirmou: Talvez agora que a Bblia est escrita numa linguagem que todos podem compreender, o Antigo Testamento seja visto como realmente , uma crnica obscena da crueldade perpetrada pelo homem contra o homem, ou talvez pior ainda, do homem contra a mulher, e do egosmo e da avareza humanos, com o apoio de sua religio. uma histria de terror como nenhuma outra. Espera-se que esse livro, por ser totalmente inapropriado para o ensino das crianas nas escolas, seja proibido.

  • Considere a bondade de Deus, diz o professor cristo.Todavia, quando comeamos a reparar no mundo real e concreto, o

    mundo da histria, o naundo contemporneo em que vivemos, as coisas parecem distantes de qualquer bondade.

    H um relato interminvel da desumanidade praticada pelo homem contra o prprio homem. Cada perodo da histria tem conhecido a opresso, a tortura e o assassinato de prisioneiros: a Espanha teve a inquisio; a Gr-Bretanha traficava escravos atravs do Oceano Atlntico; a Alemanha teve suas cmeras de gs; a Rssia, seus campos de trabalhos forados, na Sibria. Um mundo destrudo pela guerra vive agora debaixo da ameaa protetora da bomba de hidrognio. Mas esse ainda um mundo marcado pelo medo, pela concupiscncia, pela ambio

    . e pela tenso racial. um mundo onde o homem comum se sente como um peo de foras irresistveis e impessoais que dirigem a sua vida. Ser concebvel que uma bondosa Providncia de poder ilimitado esteja no controle de tudo isso? Como Deus pode observar silenciosamente, enquanto as bombas so lanadas sobre cidades indefesas, enquanto as vivas e os rfos clamam aos cus por proteo? Como Deus suporta ver as multides do oriente que, h sculos, vivem na pobreza e se alimentam de migalhas?

    Alm disso, a maldade humana no parece ser, de modo algum, a nica causa da misria humana. Criancinhas nascem deformadas, tanto fsica como mentalmente. Elas herdam enfermidades; herdam tendncias insanidade. Por que Deus permite que uma aflio aparentemente sem propsito acometa o enfermo, s vezes no produzindo purificao, mas uma profunda amargura? Por que permite que um de seus servos fiis experimente o sofrimento no limite entre a sade mental e a insanidade? Sei que este mundo cheio de animais predadores, de parasitas, de vrus, de bactrias, obra de um Criador bom? Faz parte do plano de Deus que uma partcula de energia do espao exterior venha provocar uma mutao terrvel num feto? Os homens se encontram num mundo de terremotos e tempestades; num mundo caracterizado pelos cataclismas, onde o luto e a tristeza inconsolvel podem chegar sem prvio aviso. um mundo que tem em comum apenas a expectativa da morte; um mundo que, para muitos, sem propsito ou esperana, contra o qual h um dio profundo e desesperado.

    Um Deus bom? essa a pergunta.Poder parecer estranho considerar os aspectos mais difceis da f

    crist como pontos de partida teis para uma averiguao sobre o carter de Deus. Assim mesmo, tal como R. E. D. Clark destacou, de modo to

  • Introduo - 9

    decidido, um princpio geralmente aceito nas cincias que somente atravs do estudo do incomum, do estranho e do aparentem ente inexplicvel, o homem pode progredir rumo a um conhecimento novo. O cientista cuja mente s percorre os caminhos planos das teorias bem aceitas, tem pouqussima chance de descobrir novos e importantes princpios. Um aspecto importante do mtodo cientfico dar ateno s coisas que a cincia no consegue explicar, ou que tem dificuldade de faz-lo. S desta maneira ser possvel descobrir se os princpios conhecidos fazem justia aos fatos, ou se novos princpios ainda tem de ser descobertos... Freqentemente acontecer de a boa teoria, baseada em fenmenos que anteriormente pareciam estranhos e incomuns, nos ajudar a compreender o comum e o trivial. ^Este livro comeou com um esforo defensivo, com uma atitude de responder a algumas das mais difceis indagaes sobre a Bblia, mas conduziu a uma compreenso mais aprofundada daquilo que a bondade de Deus realmente significa. Dessa maneira tornou-se uma apresentao positiva do carter do Deus vivo, aquele com quem temos de tratar.

    Num livro escrito anteriormente, Christ and the Bible (Cristo e a Bblia),^ defendida a idia de que os evangelhos apresentam um relato completo e bem claro acerca da atitude de Jesus diante do Antigo Testamento. (Se os evangelhos no nos dessem uma idia exata a seu respeito, no disporamos de base suficiente para nos chamarmos cristos.) Ele ensinou que a histria do Antigo Testamento era verdadeira, que seu ensino tinha autoridade final e que a forma de suas palavras era inspirada. Ele considerava Deus como seu autor, de modo que aquilo que o Antigo Testamento dizia. Deus dizia.

    provvel que muitos homens e mulheres pensadores, que (tal como Lord Platt) tm um conhecimento apenas superficial do Antigo Testamento, considerem que esta concluso provoque uma grande perplexidade. Alis, talvez at encarem tal idia com incredulidade e horror. Voc no pode acreditar no Deus tribal do Antigo Testamento, e monstruoso querer envolver Cristo numa crena dessas. Ainda assim aparentemente inevitvel a evidncia de que Cristo de fato cria dessa maneira. Ao que parece, os cristos ou devem levar a srio esse fato ou, ento, devem esvaziar virtualmente de qualquer contetido a afirmao de que crem em Cristo como seu mestre.

    Este livro escrito para cristos. No foi escrito com o objetivo de alcanar o no-cristo que encontra dificuldade em crer por causa do problema do mal, embora se espere que tais pessoas encontrem algo de valor no livro. um livro para cristos, mas no para cristos que estejam procurando respostas fceis. pouco provvel que respostas fceis

  • possam ser respostas certas; respostas que fazem justia aos fatos s podem ser profundamente perturbadoras. A inteno demonstrar que, em suas tentativas de entender os caminhos de Deus, o cristo deve evitar respostas fceis, especialmente aquelas respostas que ignoram os aspectos desagradveis da Bblia. Devemos olhar para a realidade, encar-la firmemente, at que percebamos que no h sada alguma; at que percebamos que somos crianas, que somos tolos, que somos, l no ntimo, rebeldes presunosos e obstinados, para quem tudo dar errado, a menos que estejamos dispostos a desistir de ficar dizendo a Deus como ele deve ser e o que ele deve fazer; at que percebamos que s podemos conhecer aquilo que Deus deseja nos contar. Devemos ouvir e tentar entender.

    Deus e a sua revelao no necessitam de qualquer defesa. A apologtica, naquilo em que vlida, consiste de duas coisas: esclarecer os mal-entendidos da revelao e revelar os pontos fracos das alternativas existentes revelao. Estas duas coisas tentaremos fazer da melhor maneira possvel, mas teremos falhado em apresentar nossa mensagem caso algum leitor pense que agora tem todas as respostas e que agora entende Deus. Uma lio importante a ser aprendida que o ser humano pecador e finito enxerga obscuramente, como que atravs de um vidro. No Cristo apresentado na Bblia, ele chega a enxergar bastante, mas existem inmeros detalhes que ele no enxerga nem entende. Este livro ter alcanado seu propsito, mesmo que no final seus leitores achem que devem rejeitar muitas de suas explicaes falveis e ignorantes, contanto que ele os tenha levado a considerar Cristo de todo o corao como o seu mestre, e a perceber que qualquer outra autoridade (quer suas prprias idias, quer as de qualquer outro ser humano) no tem valor algum quando comparada com Cristo.

    O raciocnio est elaborado da seguinte maneira: o captulo 1 mostra que o problema no pode ser solucionado removendo-se as pores desagradveis da Bblia, pois esse no um problema exclusivo do Antigo Testamento, mas tambm do Novo Testamento; e no apenas um problema do Novo Testamento, mas a sua origem se encontra de um modo mais destacado na pessoa do prprio Jesus. Jesus, o Novo Testamento e o Antigo Testamento esto todos juntos nesta questo. Alm do mais, caso algum se sentisse tentado a tornar a Bblia mais liberal atravs do uso de tesouras crticas, ter um problema adicional, o qual no solucionvel por tais meios fceis: o problema da Providncia. Cada cristo, liberal ou conservador, tem de enfrentar o problema do mal e o problema da maneira de Deus governar o seu mundo. E impossvel livrar-se dos fatos da histria. Este problema, que surge do mundo real e concreto, e que no permite

  • qualquer escape, pode fornecer um ponto de partida para um novo exame do problema bblico.

    O captulo 2 procura atenuar o problema bblico em seu ponto mais difcil, atravs de um novo exame dos ensinos de Jesus acerca do inferno. O captulo 3 analisa algumas solues inadequadas que negam a perfeio tanto da soberania de Deus como de sua bondade.

    Os captulos 4 a 6 sustentam que o problema da Providncia e o problema da Bblia caminham paralelamente bem prximos um do outro, e que nove princpios que nos capacitam a lidar com o primeiro tambm nos ajudam a lidar com o ltimo. Quando levados a srio, estes princpios (liberdade, dissuaso, punio, retribuio adiada, solidariedade corporativa, limitao do sofrimento, santificao atravs da dor, expiao, finitude) ajudam a explicar as dificuldades bblicas.

    O captulo 7 procura demonstrar que o registro dos pecados cometidos pelos homens de Deus refora o valor da Bblia, em vez de conspurc-la, e tambm que as limitaes das leis da Bblia refletem a sabedoria de Deus, no sua imperfeio. Grande parte do problema no surge pela falta de moralidade na Bblia, mas pela severidade de seus padres morais. Esta severidade vista no fato de que os pecados dos santos so expostos sem qualquer misericrdia, e tambm na severidade de algumas leis do Antigo Testamento. Nesse captulo visto que a incompreenso fruto de uma falha em reconhecer que uma legislao sbia para uma raa decada no est interessada em teorias estapafrdias de como a vida deveria ser num mundo perfeito, mas nas realidades da vida, tal como ela . Nisto a Bblia , ao mesmo tempo, equilibrada e severa.

    luz destes princpios, os dois mais difceis problemas (a ordem divina para eliminar os pagos da terra prometida, e as maldies bblicas) so, ento, examinados em alguma profundidade nos captulos 8 e 9. Tambm se descobre qual a funo desses problemas dentro de uma descrio coerente das atividades de Deus.

    O captulo final mostra como a bondade de Deus pode ser vista em toda sua plenitude atravs da combinao perfeita de bondade e severidade reveladas em Jesus Cristo. Assim sendo, um estudo dos problemas morais da Bblia nos conduz ao cerne do tesmo bblico e, portanto, ao cerne do debate religioso contemporneo. Num estudo adicional, A doutrina do Deus bom, visto como o tesmo bblico oferece uma pedra de toque dada por Deus para avaliar todas as tentativas de melhorar o ensino da Bblia. Na verdade, todas as melhorias feitas pelos homens so vistas como deformaes. A Bblia, sem diluies e enfeites,

  • leva-nos ao nico Deus, o Deus que , o Deus que revelou a si prprio em palavra e ao, o Deus com quem temos de tratar.

    NOTAS INTRODUO

    1. Edio de 3 de maro de 1970.2. R. E. D. Clark, The Universe: Plan or Accident? (O Universo: Pr-concebido ou

    por acaso?), 3a. ed. (Exeter, 1961), pp. 7s.3. J. W. Wenham, Christ and the Bible (Cristo e a Bblia; Londres, 1972). Nesse

    livro tambm se defende que Jesus no apenas confirmou diretamente o Antigo Testamento, mas que tambm confirmou indiretamente o Novo Testamento. Nesse livro tambm se discute a confiabilidade dos ditos de Jesus registrados nos evangelhos.

  • UMA SEQNCIA DE PEDRAS DE TROPEO

    A PEDRA DE TROPEO DO ANTIGO TESTAMENTO

    Vamos voltar um pouco e analisar esta dificuldade com mais detalhes. Com freqncia tal dificuldade expressa algo assim: Se aceitarmos a idia de que todo o Antigo Testamento foi escrito sob a inspirao de Deus e de que sua histria e doutrina so verdadeiras, no certo que isso nos deixar com crenas bem pouco dignas quanto ao carter e conduta de Deus? Os heris do Antigo Testamento so profundamente subcristos. Abrao um polgamo; Jac, um covarde, um mentiroso e um avarento; Sanso um homem lascivo; Jeft aparentemente matou sua prpria filha. Davi (um homem segundo o corao de Deus) foi um assassino e adltero. O Deus do Antigo Testamento parece arbitrrio, cruel e injusto. Ele um Deus de vingana, um Deus ciumento. Ele transforma a mulher de L numa esttua de sal; fora Abrao a oferecer seu prprio filho em sacrifcio; envia serpentes para picarem os israelitas desobedientes; faz o cho se abrir e engolir Cor, Dat e Abiro; a pedido de seu servo Elias, envia fogo do cu para destruir uma centena de soldados; para vingar Ehseu das crianas que o ridicularizavam, envia um urso para aniquilar quarenta delas. Ele parece ter seus favoritos, preferindo o desprezvel Jac ao viril Esa. Ele endurece o corao do Fara e, ento, envia-lhe pragas, por este permanecer imutvel diante da calamidade. Talvez o mais surpreendente de tudo que ele ordena o extermnio total, por parte dos israelitas, de todos os homens, mulheres e crianas que moravam na terra de Cana; Deus no apenas d essa ordem, mas o Antigo Testamento se dedica a constantemente lembrar o fato de que a desobedincia dos israelitas a esta ordem foi uma das principais causas de seus infortnios

  • subseqentes. Acrescente-se a isto a idia insuportvel de que Deus ps um esprito mentiroso na boca dos profetas de Israel; de que ele inspirou os sentimentos dos que escreveram os salmos imprecatrios (Feliz aquele que pegar teus filhos e esmag-los contra a pedra), e o resultado final ser inteiramente incompatvel com as idias crists.

    Dizem que a nica posio que o cristo pode tomar em s conscincia considerar a Bblia como o relato do desenvolvimento do homem a partir de concepes falsas e primitivas de Deus at uma compreenso amadurecida e esclarecida. Esse processo faz parte do relato da evoluo, a maravilhosa histria do desenvolvimento progressivo de um universo, debaixo da mo orientadora de Deus. A Bblia um relato bem verdico do que os homens tm pensado acerca de Deus. Mas, de outro lado, oferece um relato bem inverdico de como Deus realmente . As concepes inferiores devem ser constantemente testadas pelas mais elevadas.

    Este ponto de vista apresentado de maneira provocante e agradvel por Bernard Shaw em The Adventures ofthe Black Girl in her Search for God (As Aventuras da Jovem Negra em sua Busca de Deus), escrito durante o auge do liberalismo. Ele diz:

    O estudo desta histria do desenvolvimento de uma hiptese, a partir de uma idolatria selvagem at uma metafsica bem elaborada, algo to interessante, instrutivo e confortador como qualquer outro estudo pode ser para uma mente aberta e um intelecto sincero. Mas pomos tudo a perder com essa atitude indolente e indecente de no jogar fora a gua suja quando obtemos a gua limpa. A Bblia nos apresenta uma sucesso de deuses, cada um dos quais representa uma melhora significativa em relao ao deus anterior, assinalando uma Ascenso do Homem a uma concepo mais nobre e mais profunda da Natureza, em que cada passo envolve uma purificao da gua da vida e conclama a um completo esvaziamento e limpeza do utenslio, antes de ser novamente enchido por gua fresca e mais pura. Todavia, desperdiamos a bno simplesmente por atirarmos a gua da nova fonte para dentro do contedo do recipiente velho e sujo, e repetimos esta tolice at que nossas mentes se encontrem numa tal condio de imundcia que passamos a ser objetos de piedade para os ateus de mente superficial mas lcida, os quais se satisfazem sem metafsica e conseguem enxergar em tudo isto apenas confuso e absurdos.^

  • Existem grandes diferenas de opinies sobre como a atividade divina deve ser entendida neste processo. Shaw defendia um pantesmo rudimentar. Outros aceitaro uma srie de encontros bem pessoais entre indivduos selecionados e o Deus pessoal, o qual se nos tornou conhecido atravs de Cristo. Todavia, todos eles tm isto em comum, que o leitor m oderno deve distinguir aquelas partes da Bblia que parecem corretamente apresentar uma descrio de Deus e aquelas partes que erradamente o fazem. Alguns podero denominar isto de processo de revelao progressiva, mas grande parte do que apresentado como revelao, na verdade no o . O livro de Deuternomio, por exemplo, d incio, com as palavras de Moiss, ordem para matar os cananeus: Estes, pois, so os mandamentos, os estatutos e os juzos que mandou o Senhor teu Deus se te ensinassem. Os defensores desta idia argumentaro que Moiss, sem dvida alguma, pensava que essa era a vontade de Deus; mas claro que no era. Um Deus de amor no poderia e no iria ensinar algo to cruel. Cabe ao leitor consciente detectar tais erros nas Escrituras e distinguir cuidadosamente entre a suposta revelao e a genuna.

    A maioria dos cristos provavelmente apresentar esta idia de uma maneira mais moderada. Mas, por mais moderada que seja, a idia apresenta uma dupla dificuldade. Em primeiro lugar, como saberemos o que jogar fora e o que guardar? Se acompanharmos Bernard Shavi', isso ser bem simples. Ele praticamente se desfez de tudo, com exceo de uns poucos textos, os quais interpretou erroneamente.^ Outros talvez defendam que a razo e a conscincia (visto que nos foram dadas por Deus) so um guia suficiente. Mas ainda assim muitos descobriram a falibilidade tanto de uma como de outra. Descobriram que, medida que seu conhecimento progrediu e sua vida espiritual se tornou mais profunda, seus pontos de vista sobre o que deveria ser aceito e o que deveria ser rejeitado mudaram. Coisas que outrora consideraram repulsivas e indignas da Palavra de Deus, agora descobrem que so profundamente instrutivas. Coisas que outrora consideraram ridculas, agora descobrem que so importantes. Esta foi a experincia de Coleridge ao estudar Plato. Ele se sentiu profundamente desorientado pela aparente falta de coerncia de sentido em considerveis trechos de Timeu. No pde, todavia, dar uma opinio desdenhosa, porque tudo o que ele conseguia entender o levava a ter um sentimento de profundo respeito diante da excepcional capacidade inventiva do autor. Ele tambm se recordava de inm eras passagens, agora com pletam ente inteligveis, as quais anteriormente tinham sido totalmente ininteligveis. Ele concluiu que a ignorncia estava nele mesmo. Se este foi o caso ocorrido com a obra de um grande pensador humano, ser que o processo no tem implicaes

  • muito mais amplas quando lidamos com a revelao divina? De fato, uma vez que Deus Deus e o homem homem, no seria uma impossibilidade lgica para o homem estabelecer qualquer critrio pelo qual pudesse determinar os limites da Palavra de Deus? Os pensamentos de Deus sempre sero mais elevados que os dos homens. O homem no pode se arvorar em juiz das coisas divinas. Possivelmente nenhum critrio possa ser correto, a no ser que o prprio Deus tenha dado esse critrio.

    Todavia, como costumam dizer, Jesus Cristo no ele mesmo o prprio critrio dado por Deus? O cristo no julga a Bblia a partir de sua p r p ria m aneira de pensar. Seus ju lgam entos baseiam -se no conhecimento que tem da amorosa paternidade de Deus, conforme demonstrada nos ensinos de Cristo, o Verbo Encarnado de Deus. Mas aqui se encontra a segunda dificuldade: Tesi aceitou o Antigo Testamento como verdadeiro, tendo autoridade e sendo inspirado. , portanto, impossvel usar o Jesus da histria como um padro de comparao para criticar o Antigo Testamento. O nico Jesus que pode ser usado com tal propsito um Jesus de fico. Parece prudente, ento, analisar o que o Novo Testamento (e o prprio Cristo) tem a dizer sobre estas questes que provocam repulsa.

    A PEDRA DE TROPEO DO NOVO TESTAMENTO

    De imediato fica claro que falacioso considerar isto como um problema essencialmente do Antigo Testamento, e jogar o Antigo Testamento sanguinrio contra oeducado Novo Testamento. possvel que o fenmeno seja mais grosseiro no Antigo Testamento do que no Novo, mas dentre os dois o Novo Testamento mais severo, pois o Antigo Testamento raramente fala de algo alm de juzos temporais. A morte de Uz, por causa de uma infrao aparentemente sem importncia da lei mosaica, de fato algo temvel, mas a passagem que descreve esse acontecimento no sugere que a pena seja de condenao eterna, enquanto que nos Evangelhos o Filho do homem pronuncia punio eterna. Para os escritores do Antigo Testamento, a ira que estava para se manifestar era geralmente um julgamento a nvel histrico; para os escritores do Novo Testamento geralmente um julgamento alm-tmulo embora, mesmo aqui, no se encontre um contraste marcante. o Novo Testamento que registra a morte repentina de Ananias e Safira, a cegueira repentina de Elimas e o fim terrvel de Herodes Agripa, a quem um anjo do Senhor feriu e, comido de vermes, expirou. A destruio de Jerusalm descrita no Novo Testamento como um juzo divino de modo to claro como as destruies da Babilnia e de Nnive o foram no Antigo

  • Testamento.^ Mas a nfase recai sobre a vida depois da morte, de maneira que encontramos em cada um dos quatro evangelhos, em Atos, nas cartas de Paulo, em Hebreus, Tiago, Pedro, Joo, Judas e no livro de Apocalipse um ensino claro e incisivo acerca do juzo e da ira vindoura.

    Omitindo, por enquanto, as palavras de nosso Senhor, aqui esto uns poucos exemplos do ensino do Novo Testamento:

    Joo Batista: Raa de vboras, quem vos induziu a fugir da ira vindoura?... ele... limpar completamente a sua eira... queimar a palha em fogo inextinguvel.

    Joo, o evangelista: O que... se mantm rebelde contra o Filho no ver a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus.

    Atos: Dissertando ele acerca da justia, do domnio prprio e do juzo vindouro, ficou Flix amedrontado.

    Paulo em suas cartas: A base de sua grande exposio doutrinria na epstola aos romanos a terrvel passagem sobre a ira de Deus: Acumulas contra ti mesmo ira para o dia da ira e da revelao do justo juzo de Deus, que retribuir a cada um segundo o seu procedimento: Dar... ira e indignao aos facciosos que desobedecem verdade, e obedecem injustia. Tribulao e angstia viro sobre a alma de qualquer homem que faz o mal... no dia em que Deus, por meio de Cristo Jesus, julgar os segredos dos homens. Ningum vos engane com palavras vs; porque por estas cousas vem a ira de Deus sobre os filhos da desobedincia. O Senhor, contra todas estas cousas, como antes vos avisamos e testificamos claramente, o vingador.

    Hebreus: Porque, se vivermos deliberadamente em pecado, depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade, j no resta sacrifcio pelos pecados; pelo contrrio, certa expectao horrvel de juzo e fogo vingador prestes a consumir os adversrios. Sem misericrdia morre pelo depoimento de duas ou trs testemunhas quem tiver rejeitado a lei de Moiss. De quanto mais severo castigo julgais vs ser considerado digno aquele que calcou aos ps o Filho de Deus?... Horrvel cousa cair nas mos do Deus vivo.

    Ora, no tendes chegado ao fogo palpvel e ardente, e escurido, e s trevas, e tempestade, e ao clangor da trombeta, e ao som de palavras tais que, quantos o ouviram e suplicaram que no se lhes falasse mais, pois j no suportavam o que lhes era ordenado... Mas tendes chegado... a Deus,

  • O Juiz de todos... Tende cuidado, no recuseis ao que fala. Pois, se no escaparam aqueles que recusaram ouvir quem divinamente os advertia sobre a terra, muito menos ns, os que nos desviamos daquele que dos cus nos adverte... Por isso, recebendo ns um reino inabalvel, retenhamos a graa, pela qual sirvamos a Deus de modo agradvel, com reverncia e santo temor; porque o nosso Deus fogo consumidor.

    Tiago: Porque o juzo sem misericrdia com aquele que no usou de misericrdia.

    1 Pedro: Porque a ocasio de comear o juzo pela casa de Deus chegada; ora, se primeiro vem por ns, qual ser o fim daqueles que no obedecem ao evangelho de Deus? E, se com dificuldade que o justo salvo, onde vai comparecer o mpio, sim, o pecador?

    2 Pedro: Repentina destruio... o juzo lavrado h longo tempo no tarda, e a sua destruio no dorme... O Senhor sabe... reservar, sob castigo, os injustos para o dia do juzo... na sua destruio tambm ho de ser destrudos... Para eles est reservada a negrido das trevas... os cus que agora existem, e a terra, pela mesma palavra tm sido entesourados para fogo, estando reservados para o dia do juzo e destruio dos homens mpios.

    Judas: Sodoma e Gomorra... so postas para exemplo do fogo eterno, sofrendo punio. Eis que veio o Serihor entre suas santas mirades, para exercer juzo contra todos e para fazer convictos todos os mpios, acerca de todas as obras mpias que impiamente praticaram, e acerca de todas as palavras insolentes que mpios pecadores proferiram contra ele.

    O livro de Apocalipse: Est repleto de juzos descritos nas cores mais vivas. Citaremos apenas umas poucas frases marcantes: o vinho da clera de Deus, preparado, sem mistura, do clice da sua ira; atormentado com fogo e enxofre; a fumaa do seu tormento sobe pelos sculos dos sculos, e no tm descanso algum, nem de dia nem de noite; o anjo passou a sua foice na terra e vindimou a videira da terra, e lanou-a no grande lagar da clera de Deus. Sai da sua boca uma espada afiada, para com ela ferir as naes; e ele mesmo as reger com cetro de ferro, e pessoalmente pisa o lagar do vinho da ira do Deus Todo-poderoso; a segunda morte, o lago de fogo.^

    Certamente no se pode dizer que a severidade de Deus seja um problema basicamente do Antigo Testamento. Os textos citados acima no

  • passam de uma pequena frao do total, mas revelam, sem sombra de dvida, que o problema do juzo divino encontra sua expresso mais sigificativa no Novo Testamento.

    A PEDRA DE TROPEO DO ENSINO DE CRISTO

    Alm do mais, da mesma forma como falacioso tentar estabelecer uma separao entre o Antigo e o Novo Testamentos, tambm igualmente falacioso tentar provar um contraste entre o ensino de nosso Senhor e o ensino dos escritores do Novo Testamento. A tentao de proceder dessa maneira tem sido muito forte, e a tendncia para sentimentalizar a pessoa de Jesus tem sido tolerada a tal ponto, nos ltimos cem anos, que uma idia mental totalmente errnea de Jesus se tornou uma idia comum a quase todos os telogos, pregadores, membros de igreja e no-cristos. A maioria de nossos contemporneos pensa sinceramente que Cristo ensinou que Deus era o Pai amoroso de toda a humanidade, que iria fazer com que no fim tudo desse certo para todas as pessoas, no importa o que fizessem. A crena de que Jesus ensinou o amor de Deus como ningum antes o fez e de que, atravs de sua vida e aes, ele demonstrou o amor como ningum antes autntica. Nele no havia qualquer sinal de insensibilidade, ou de ausncia de interesse pelos outros, ou de falta de desejo de se dar ao mximo em favor daqueles em necessidade. Todavia, ele no ensinou que, no final, tudo ficaria bem para todas as pessoas, no importa o que fizessem. Com grande sinceridade, ele conclamou cada um a se arrepender e, com grande compaixo, convidou aqueles sobrecarregados por preocupaes e tristezas a virem at ele para receberem descanso. No entanto, este mesmo Jesus pronunciou as mais terrveis advertncias, no uma nem duas vezes, mas repetidamente.

    Sem qualquer sinal de crueldade e com uma grandeza de compaixo e preocupao, com freqncia, ele se referiu ao juzo. Advertiu as pessoas a respeito da perdio e da destruio, do perigo de perderem suas almas. Cristo falou de pecados que no seriam perdoados. Freqentemente falou do inferno. Relacionado a isto, vrias vezes falou de fogo. Em algumas ocasies, falou de fogo eterno ou punio eterna. Referiu-se a isto como sendo um lugar de choro e ranger de dentes. Algumas vezes falou de trevas exteriores; outras, falou de tormento. Para sentirmos o peso total deste ensino de Cristo, as passagens relevantes^ devem ser verificadas e escritas por extenso. Faz-lo receber uma impresso marcante e indelvel, a qual permanece na mente para o resto da vida.

    Definitivamente no se pode fugir a estas afirmaes. Elas so de uma intensidade a provocar grande temor. Aqui estamos diante do terror final

  • do universo de Deus; por causa desse terror estamos como que surpreendidos, ansiando escapar, mas, tal como num pesadelo, somos incapazes de nos mover. No podemos fugir, pois sabemos quem disse estas coisas, sabemos de sua ternura, sabemos da autoridade de suas palavras e sabemos que esta a maneira de falar (no importa se mais ou menos simblica) que ele considerou como a mais adequada para descrever o preo da impenitncia. o Amor que fala dessa maneira; o prprio Deus. o teste final de nosso arrependimento para com Deus e de nossa f em Jesus Cristo que aceitemos nossa condio de criaturas e nossa pecaminosidade quando confrontados com este ensino; que ns, real e sinceramente, reconheamos que nossos pensamentos so limitados pela ignorncia e pervertidos pelo pecado; que aceitemos (embora com relutncia e protestos) seu ensino e que reafirmemos (embora com hesitao) nossa confiana em seu amor.

    O NOVO TESTAMENTO RESSALTA O ANTIGO

    Vale tambm notar a freqncia com que dificuldades especficas do Antigo Testamento so mencionadas, reafirmadas e ento incorporadas ao ensino do Novo Testamento, muitas vezes pelo nosso Senhor em pessoa. Em vez de suavizar as caractersticas desagradveis do Antigo Testamento, na verdade o Novo Testamento as acentua ainda mais. Repetidas vezes, as personagens e os incidentes mais desagradveis do Antigo Testamento so aceitos pelo Novo, sem pedido de desculpas e sem abrandamento, algumas vezes para repetir uma velha lio, outras vezes para ensinar uma nova mais severa do que a primeira. Em outras oportunidades, onde no h referncia especfica ao Antigo Testamento, deparamo-nos com idias paralelas, as quais nos lembram que nossa dificuldade do Antigo Testamento uma dificuldade comum aos dois Testamentos.

    No apenas no Antigo Testamento que Raabe, Sanso e Jeft so considerados exemplos de f, mas tambm no Novo. O sacrifcio de Isaque pode causar dificuldades ao leitor moderno do Antigo Testamento, mas o Novo Testamento aceita esse ato como um exemplo supremo tanto de f como de obras. O Deus do Antigo Testamento um Deus zeloso? Da mesma forma o Deus do Novo: Ou provocaremos zelos no Senhor? (1 Corntios). O Deus do Antigo Testamento um Deus de vingana? Da mesma forma o Deus do Novo: A mim me pertence a vingana; eu retribuirei uma citao do Antigo Testamento encontrada em Romanos e em Hebreus. O Senhor... o vingador, afirma 1 Tessalonicenses. A lei de Moiss exige a morte sem misericrdia para o transgressor? De quanto

  • mais severo castigo, indaga o Novo Testamento, julgais vs ser considerado digno aquele que calcou aos ps o Filho de Deus? Deus envia um esprito de mentira para enganar os falsos profetas de Israel? Paulo fala da apostasia iminente, daqueles que recusam o amor da verdade para serem salvos: por este motivo, pois, que Deus lhes manda a operao do erro, para darem crdito mentira, a fim de serem julgados todos quantos no deram crdito verdade; antes, pelo contrrio, deleitaram-se com a injustia. O Antigo Testamento impreca seus antemas? Paulo (o autor de passagens notveis a respeito do amor) pde escrever: Se algum prega evangelho que v alm daquele que recebestes, seja antema; se algum no ama ao Senhor, seja antema. Vamos encontrar os salmos imprecatrios repudiados pelo Novo Testamento? Ao contrrio, vemo-los honrados com uma freqncia de citao bem acima da mdia.^^

    O Antigo Testamento aparentemente se gloria com a queda dos inimigos do povo de Deus. O livro de Apocalipse rene num nico captulo uma riqueza de descries e frases do Antigo Testamento e as emprega num impressionante quadro da queda de Babilnia, a Grande, no qual uma voz dos cus declara:

    Dai-lhe em retribuio como tambm ela retribuiu, pagai-lhe em dobro segundo as suas obras, e, no clice em que ela misturou bebidas, misturai dobrado para ela.Quanto a si mesma se glorificou e viveu em luxria, dai-lhe em igual medida tormento e pranto, porque diz consigo mesma: Estou sentada como rainha.Viva no sou. Pranto, nunca hei de ver!Por isso em um s dia sobreviro os seus flagelos,morte, pranto e fome,e ser consumida no fogo,porque poderoso o Senhor Deus que a julgou.

    Da terra surge o grito:

    Exultai sobre ela, cus,e vs, santos, apstolos e profetas,porque Deus contra ela julgou a vossa causa.

    E a multido nos cus exclama com uma forte voz:

  • Aleluia! A salvao, e a glria e o poder so do nosso Deus. porquanto verdadeiros e justos so os seus juzos, pois julgou a grande meretriz que corrompia a terra com a sua prostituio, e das mos dela vingou o sangue dos seus servos.

    E mais uma vez exclamam:

    Aleluia! E a sua fumaa sobe pelos sculos dos sculos.^ ^

    Vrias das mais surpreendentes referncias a Deus endurecer os coraes ou cegar os olhos so aproveitadas pelo Novo Testamento, algumas vezes dentro do contexto de uma anlise da eleio divina, como em Romanos: A Escritura diz a Fara: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder, e para que o meu nome seja anunciado por toda a terra. Logo, tem ele misericrdia de quem quer, e tambm endurece a quem lhe apraz. No mesmo contexto, Malaquias citado; Amei a Jac, porm me aborreci de Esa. De modo semelhante, a Carta aos Hebreus relembra que Esa no achou lugar de arrependimento, embora, com lgrimas, o tivesse buscado. O Evangelho de Joo se refere a alguns que ouviram Cristo pregar: Por isso no podiam crer, porque Isaas disse ainda:

    Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o corao,para que no vejam com os olhos nem entendam com ocorao,e se convertam e sejam por mim curados.

    O Dilvio, a destruio de Sodoma e Gomorra, e as vrias catstrofes no deserto parecem ter causado uma impresso bem especial na igreja apostlica, em parte, sem dvida alguma, porque o nosso Senhor as mencionou pessoalmente, para ilustrar seu ensino acerca do juzo e da perdio. Em duas passagens ele se refere ao dilvio e em quatro a Sodoma. Ele compara a morte provocada pela mordida da serpente com a morte provocada pela descrena. Em cada um desses casos o ensino do Antigo Testamento no suavizado, mas os juzos histricos so usados como ilustraes dos juzos ainda mais solenes da era vindoura.

  • A PEDRA DE TROPEO DA PROVIDNCIA

    Estas consideraes ajudam a demonstrar a coerncia da posio bblica: a dificuldade moral da Bblia no apenas um problema do Antigo Testamento, nem mesmo do Novo Testamento, um problema comum ao ensino do Antigo Testamento, do Novo Testamento e do prprio Cristo. Mas, at aqui, nossas concluses tm sido em grande parte negativas e, primeira vista, parecem longe de ajudar a defender a f crist. Fizemos pouco mais do que acrescentar bem conhecida dificuldade do Antigo Testamento duas dificuldades bem mais srias: a dificuldade moral do Novo Testamento e a dificuldade moral do ensino de Cristo. Todavia, devemos dar ainda mais um passo em direo ao abismo, antes de podermos ter a esperana de ver a luz. Devemos reconhecer que existe no apenas a dificuldade moral da Bblia, mas que tambm h todo um complexo de dificuldades no mundo ao nosso redor, s quais j nos referimos no incio e que podemos descrever como sendo a dificuldade moral da Providncia.

    Eis uma dificuldade que confronta cada cristo, quer ele considere toda a Bblia verdadeira ou no; e uma dificuldade ainda mais difcil de se solucionar do que a dificuldade bblica. No pode ser ignorada sem mais nem menos, atravs de uma frmula superficial. O problema est conosco e exige nossa ateno diariamente. uma outra pedra de tropeo de primeira magnitude.

    Entretanto, esta pedra de tropeo talvez no seja completamente uma desvantagem. Apesar de sua aparente dificuldade, parece ter um lugar em todo o quadro que estamos pintando. Pois o ponto importante a se destacar : as dificuldades morais da Providncia so muito semelhantes, em intensidade e amplitude, s dificuldades bblicas}^ Portanto , se as dificuldades de um lado no so insuperveis, razovel supor que elas talvez no sejam insuperveis no outro.

    Fica bem claro que a intensidade e a amplitude do mal que se vem na Bblia so bem semelhantes queles vistos no mundo. No que diz respeito ao pecado humano e a seus resultados, a Bblia descreve fielmente o mundo: medo, concupiscncia, ambio, insensibihdade, cinismo, tenses raciais, opresso, aprisionamento, guerra e tortura esto todos na Bblia. Deformao fsica, enfermidade, sofrimento do inocente, luto e morte tambm esto todos l, da mesma forma como os desastres da natureza e as grandes foras impessoais da histria mundial, e o sofrimento dos animais. A lista de um confere com a lista de outro. (As modernas ameaas sobrevivncia da raa, por exemplo, fazem lembrar o dilvio de

  • No). O que falta Bblia e que um estudo cientfico moderno do mundo oferece um conhecimento acerca de algumas das foras naturais que determinam as doenas e problemas hereditrios mentais e fsicos, e tambm as catstrofes do mundo fsico. O que falta ao estudo cientfico e que a Bblia oferece algum conhecimento das foras espirituais que governam o mundo; e a Bblia tambm oferece algumas idias acerca do mundo vindouro. As nicas dificuldades peculiares Bblia so aquelas que parecem sugerir que Deus o autor de alguns males ou que Ele os aprova.

    Todavia, se as mesmas espcies de dificuldades que encontramos na Bblia tambm so encontradas na Providncia, conclui-se que as tentativas de tornar a Bblia aceitvel s preferncias modernas, dela retirando tudo que parea selvagem e sanguinrio, iro nos colocar em dificuldades insuperveis quanto questo da Providncia. Podemos ver com os nossos prprios olhos que Deus permite a guerra, a fome, a doena, a tortura e a misria, e isso numa intensidade inimaginvel. Embora seja profundamente difcil compreender a questo, isso tudo coerente com o que vemos na Bblia. de fato mais fcil aceitar o Deus da Bblia do que aceitar um Deus melhorado, cujo carter deixou de provocar temor. O Deus da teologia liberal no apenas est distanciado da Bblia, mas tambm do mundo, tal como o vemos.

    No provvel que o reconhecimento de uma certa coerncia constante dentro da Bblia e de uma coerncia constante entre a Bblia e o mundo da natureza torne a f mais aceitvel aos de fora, pelo menos por enquanto. Mas servir a um propsito bem til, caso ajude a solucionar a controvrsia entre os de dentro. Revela a maneira mais promissora de lidar com ambos os problemas e deixa claro que no se ganhar nada fugindo da Bblia. Se o cristianismo verdadeiro em sua totalidade, a posio de fora ser encontrada numa ousada declarao de f; f no Deus vivo que falou atravs de Jesus Cristo; f em Jesus Cristo como mestre; f nas Escrituras, as quais ele autenticou; f no amor perfeito de Deus, 0 qual Jesus Cristo revelou. No final, a doutrina bbhca em sua inteireza falar mais profundamente s necessidades dos no convencidos do que qualquer verso diluda do ensino cristo.

    NOTAS AO CAPTULO 1

    1. G. B. Shaw, TheAdventures of the Black Girl in her Search for God (As aventuras da Jovem Negra em sua busca de Deus; Edimburgo, 1932), pp. 69s.

    2. Dt 6 e 7.3. Ele disse acerca dos discpulos: H horas em que se tentado a dizer que no

    havia nenhum cristo entre eles {Black Girl [Jovem Negra], p. 72). A idia que Shaw

  • fazia de um cristo estava bem distante daquela ensinada pelo Novo Testamento, por isso ele percebeu com acerto que no Novo Testamento no havia quase nada do que ele tinha escolhido chamar de cristianismo. Caso ele tivesse avanado imi pouco mais em seu raciocnio, teria descoberto que no havia absolutamente nada em comum entre o seu cristianismo e o cristianismo do Novo Testamento.

    4. S. T. Coleridge, Biographia Literaria (Biografia Literria), captulo 2, pargrafo 2 (Everynians, pp. 134s.).

    5. Esta questo discutida amplamente em Christ and the Bible (Cristo e a Bbha).6. Muitas referncias bbhcas so includas nas notas de rodap para benefcio

    daqueles que desejam estudar mais profundamente os assuntos tratados. Todavia, para evitar sobrecarregar a pgina com niimeros de remisso s notas de rodap, as referncias bbhcas so freqentemente reunidas, num pargrafo de cada vez: 2 Sm 6:7; Mt 25:41-46. At 5.1-11; 13.11; 12.21-23. Mt 23.34-38; 24.15-21; Mc 13.14-20; Lc 21.20-24.

    7. Mt 3.7-12; cf. Lc 3.7-17. Jo 3.36; cf. 1 Jo 5.12,16. At 24.25. Rm 1.18-2.16; Ef 5.6; 1 Ts 4.6. Hb 10.26-31; 12.18-29. Tg 2.13. 1 Pe 4.17s. 2 Pe 2.1-3.7. Jd 7,1415. Ap 14.10-20; 19.15; 20.14.

    8. As referncias mais importantes so: Juzo: Mt 10.15; cf. 11.21-24; Lc 10.12-15. Mt 12.36,41,42; Lc 11.31,32. Jo 5.26-29; 12.48. Perdio, destruio, perder a prpria alma: Mt 16.26; Mc 8.36,37; Lc 9.25. Mt 22.2,7; Lc 13.3,5; Jo 12.25; 17.12. Pecados no perdoados: Mt 6.15; 12.31; cf. Mc 3.29; Lc 12.10. Jo 8.24; Mt 7.23. Inferno: Mt 5.29,30; 10.28; cf. Lc 12.5. Mt 23,33-36; Lc 11.50,51. Fogo: Mt 5.22; Jo 15.6. Fogo eterno, punio eterna: Mt 18.6-8; cf Lc 17.1,2; Mc 9.42-48. Mt 25.41-46. Choro e ranger de dentes: Mt 13.30-42,49,50; 24.50,51; cf. Mt 25.26-30; Lc 13.24-28. Trevas exteriores: Mt 8.12; 22.13. Tormento: Lc 16.22-28; Mt 18.34,35 (verdugos: Grego torturadores).

    9. Hb 11.31s.; Tg 2.25. Hb 11.17; Tg 2.21.1 Co 10.22. Rm 12.19; Hb 10.30; 1 Ts 4.6. Hb 10.29. 2 Ts 2.11s. 1 Co 13; Rm 12.9-21; G11.9; 1 Co 16.22.

    10. Veja pp. 157ss.11. Ap 18.6-19.3.12. Rm 9.13,17s.; Ml 1.2s.; Hb 12.17; Jo 12.39s. Esta passagem de Isaas 6.10 (junto

    com Is 29.10) tambm mencionada em Rm 11.8:

    Deus lhes deu esprito de entorpecimento, olhos para no ver e ouvidos para no ouvir.

    13. Mt 24.37,38; Lc 17.26,27; outras referncias do Novo Testamento so Hb 11.7; 1 Pe 3.20; 2 Pe 2.5. Mt 10.15; 11.23,24; Lc 10.12; 17.28-32; cf. Rm 9.29; 2 Pe 2.6,7; Jd 7; Ap11.8. Jo 3.14; cf. 1 Co 10.5; Jd 5,11 (a revolta de Cor).

    14. Este um caso particular do princpio enunciado de modo to claro na obra de Joseph Bxtt, Analogy (Analogia). O ttulo completo da obra de Butler era The Analogy of Religion, Natural and Revealed, to the Constitution and Course of Nature (A Analogia entre a Religio, Natural e Revelada, e a Estrutura e o Andamento da Natureza). Nessa obra ele mostrou que existe uma grande semelhana entre a ao de Deus, tal como registrada na Bblia, e a ao de Deus, tal como observada na maneira providencial como organizou o mundo. Butler (cujo livro foi publicado em 1736) estava refutando objees levantadas pelos destas contra a f crist. Tal como os cristos, os destas criam que o universo e o homem foram criados por Deus, e que Deus havia dado a um e a outro leis que governassem sua prpria natureza; mas, ao contrrio dos cristos, eles consideravam que a prpria estrutura interior do homem e o mundo ordeiro ao seu redor forneciam todo o material bsico e todas as potenciaUdades necessrios ao homem para que ele efetuasse

  • a sua prpria salvao. Os destas no viam qualquer necessidade das doutrinas redentoras que esto no cerne da f crist, nem acreditavam nelas. Butlcr passou a demonstrsu-, e o fez de modo muito eficaz, que as dificuldades que o desta encontrava na f crist tambm eram encontradas na natureza, e que, conseqentemente, se as dificuldades no invalidavam suas crenas numa, certamente tambm no poderiam faz-lo noutra. Neste aspecto, conforme afirma na introduo, estava seguindo uma idia de Orgenes, que, quinze sculos antes, havia observado com uma sagacidade singular que aquele que cr que as Escrituras vieram daquele que o Autor da Natureza bem pode esperar encontrar nas Escrituras o mesmo tipo de dificuldades encontradas na estrutura da Natureza. Ele desenvolveu a analogia em relao a uma crena, numa vida futura, no governo de Deus atravs de recompensas e punies, em nosso estado de provao, na credibilidade de que a revelao deva conter coisas que parecem passveis de objeo, na indicao de um Mediador e na redeno do mundo por ele mesmo. Na quahdade de um sistema completo e estruturado de apologtica, a obra de Butler est sujeita a srias objees, mas neste ponto em particular ele tambm revela uma sagacidade singular.

  • o INFERNO

    O terror final do universo de Deus o inferno. As outras dificuldades da Bblia e da Providncia so bem reais, mas, por mais desconcertantes que sejam, suas aparentes insensibilidades e injustias so apenas temporrias, acabando-se por ocasio da morte. Os terrores do inferno, por outro lado, pertencem a um mundo que existe depois da morte. Para um nico ser suportar o sofrimento sem qualquer esperana e para sempre, ou mesmo deixar de existir e para sempre ser castigado e no experimentar as alegrias do cu, mais assustador do que qualquer sofrimento temporal.

    AS ILUSTRAES BBLICAS

    Teria sido mais fcil fugir totalmente ao assunto do inferno com o argumento correto de que esse um assunto grande demais para receber um tratamento adequado. Caso este livro no passasse de um simples exerccio acadmico, teria sido razovel raciocinar: Este um livro para cristos; os cristos so consagrados aos ensinos de Cristo; Cristo ensinou a existncia do inferno com uma riqueza de ilustraes aterrorizadoras; melhor permitir que estas ilustraes falem por si mesmas, deixando que comentrios mais profundos sejam feitos por aqueles que podem tratar destas questes em profundidade.

    Entretanto, este no um simples exerccio acadmico, uma tentativa de atender ao clamor do corao do homem contemporneo, o qual deseja saber o que crer a respeito de Deus. Se as ilustraes bblicas no forem analisadas, no h qualquer garantia de que ele interpretar corretamente as ilustraes do primeiro sculo. O homem do sculo vinte no se aproxima da Bblia com uma mente vazia, nem pode faz-lo. A

  • prpria palavra inferno chega at ns carregada de associaes literrias e artsticas de muitos sculos. A filosofia platnica claramente teve uma grande influncia no pensamento cristo e a mitologia grega, na arte crist. Ainda hoje Satans representado semelhana de Pan, uma deidade pag com cauda e chifres, em vez de como o prncipe deste mundo e o anjo de luz descritos na Bblia.

    A erudio moderna, ainda que possa ter muitas falhas, tem se esforado para enxergar o Novo Testamento com os olhos de uma pessoa do primeiro sculo. Hoje, aceito o fato de que o pensamento medieval, embora poca se acreditasse que estivesse em perfeita harmonia com a Bblia, era em muitos aspectos bem estranho Bblia. Um grande nmero de estudiosos responsveis acredita que a doutrina do inferno, tal como tradicionalm ente ensinada, enquadra-se nesta categoria. Parece, portanto, profundamente desejvel que este assunto no seja evitado. Infelizmente, o assunto to amplo que no ser nem mesmo possvel resumir o debate a respeito de modo que o leitor possa chegar a uma concluso ponderada a este respeito. O mximo que se pode fazer esboar as alternativas e fazer meno de livros onde a questo tratada de modo mais exaustivo.

    A ORTODOXIA TRADICIONAL

    A ortodoxia tradicional (tal como a chamaremos, mas sem levantar quaisquer questes) teve, segundo dizem, sua primeira formulao oficial no Segundo Conclio de Constantinopla, em 553. D entre as suas resolues encontram-se os nove antemas do Imperador Justiniano contra Orgenes, o ltimo dos quais declara: Se algum disser ou pensar que a punio dos demnios e dos homens mpios apenas temporria e um dia cessar... seja antema.^ A ortodoxia tradicional foi baseada em vrios trechos bblicos aparentemente claros, em sua maior parte baseada no prprio ensino de Jesus, encontrado nos evangelhos. Jesus falou do homem rico no Hades, atormentado pelo fogo, que desejava que o mendigo Lzaro molhasse a ponta do seu dedo na gua, a fim de refrescar a sua lngua, e falou do grande abismo existente entre ambos e que ningum poderia atravessar. Jesus tambm falou do fogo inextinguvel, do verme que no morre e do choro e ranger de dentes do Geena. O mais surpreendente de tudo que ele empregou exatamente o mesmo adjetivo na mesma sentena em que fala de vida eterna e de castigo eterno. Depois de declarar que no dia do juzo o Filho do homem diria queles que estivessem sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos, ele conclui a solene

  • o Inferno - 29

    afirmao com as palavras: E iro estes para o castigo eterno, porm os justos para a vida eterna.

    O mesmo ensino, s que declarado com expresses ainda mais fortes, encontrado no livro de Apocalipse, onde se afirma a respeito daqueles que adoram a besta que a fumaa do seu tormento sobe pelos sculos dos sculos. Mais adiante afirma: o diabo, o sedutor deles, foi lanado para dentro do lago do fogo e enxofre, onde tambm se encontram no s a besta como o falso profeta; e sero atormentados de dia e de noite pelos sculos dos sculos. ^ Esta expresso pelos sculos dos sculos empregada repetidamente em Apocalipse em referncia ao reinado de Deus e dos santos; parece lgico, portanto, inferir que os tormentos dos perdidos sejam to infindveis quanto a alegria dos redimidos.

    O TRATAMENTO DADO PELA ORTODOXIA TRADICIONAL S DIFICULDADES

    Para a ortodoxia tradicional claro que a doutrina era difcil. Conciliar a idia de um tormento pelos sculos dos sculos com o amor (ou mesmo com a justia) de Deus no algo to fcil. Na verdade, o oposto que fcil, descrevendo a doutrina como revoltante e incrvel. Todavia, os tradicionalistas argumentaram acertadamente que no se pode confiar em argumentos filosficos elaborados por seres humanos pecadores, acerca da maneira como um Deus santo deve estruturar o mundo vindouro. provvel que essas pessoas cheguem a idias erradas, pois argumentos semelhantes, caso empregados quanto maneira de Deus estruturar o mundo atual, levariam a uma negao da existncia de Deus. Para um cristo uma nica sentena da revelao deve, no final, superar as mais fortes concluses da filosofia humana.

    Quanto durao do inferno, pareceu aos tradicionalistas que eles tinham no uma nica sentena explcita da revelao, mas toda uma coleo de afirmaes, as quais somente uma pessoa incorrigivelmente perversa poderia ter esperana de explicar satisfatoriamente. Uma pequena obra clssica do lado tradicionalista foi a de M. Horbery: An Enquiry into the Scripture conceming the Duration o f Future Punishment (Uma pesquisa nas Escrituras a respeito da Durao da Punio Futura), publicado pela primeira vez em 1744 e reimpresso em 1878. Ele escreveu: Embora no seja uma questo to simples, como qualquer doutrina poderia ser ensinada de modo mais especfico... como ele a poderia ter apresentado em palavras mais explcitas ou de uma maneira mais prtica? Um escritor moderno, W. Hendriksen, afirma: As passagens... so to numerosas que, na verdade, para se ficar surpreso

  • diante do fato de que, apesar de tudo isto, haja hoje pessoas que afirmem que aceitam as Escrituras e, ainda assim, rejeitem a idia de um tormento que jamais acaba.

    AGOSTINHO E AQUINO

    Apesar disso, cristos conscientes, que, com freqncia, eram pessoas de uma piedade sincera e que se importavam profundamente com seus semelhantes, fizeram o melhor ao seu alcance para conciliar sua crena na soberara e bondade de Deus com o conceito de um tormento infindvel (e da idia implcita de pecado infindvel). Agostinho, que tem sido a maior influncia individual no pensamento cristo desde os tempos do Novo Testamento, foi o arqui-inimigo da religio maniquesta, que ensinava uma doutrina dualista da coexistncia eterna do bem e do mal. Ele teve de refutar a acusao de que o tormento eterno subentendia a eternidade do mal. Ele o fez afirmando que, embora o pecado no punido fosse um mal, o pecado convementemente punido era um bem. Desta forma, a existncia de almas sofrendo sua justa punio durante toda a eternidade era um bem e no um mal, e, em conseqncia. Deus e os santos poderiam desfrutar uma alegria pura e infindvel apesar da existncia do inferno.

    De modo semelhante, Aquino, no suplemento de sua Summa Theologica (a mais famosa de todas as obras de teologia da Idade Mdia), defendeu a justia da puro e a felicidade dos santos ao contempl-la. Ele mencionado como tendo dito: Isto tambm age em favor da justia divina, que... eles sejam atormentados de muitas maneiras e com o tormento sendo provocado por muitas fontes. Pode-se conhecer melhor cada coisa comparando-a com o seu contrrio, porque quando os contrrios so postos um ao lado do outro tornam-se mais evidentes. Portanto, a fim de que a felicidade dos santos possa lhes ser mais prazerosa e para que possam render graas mais abundantemente a Deus por essa felicidade, eles tm permisso para ver perfeitamente os sofrimentos dos am aldioados. E le acrescentou, ento, mais uma justificativa (freqentemente tambm empregada por outros autores) porque a punio de pecado mortal eterna. Ao pecar, a pessoa ofende a Deus, que infinito. Por conseguinte, visto que a punio no pode ser infinita em intensidade, pois a criatura incapaz de uma qualidade infinita, deve precisar ser infinita pelo menos na durao.^

  • AUTORES MODERNOS

    Quase todos os mais influentes pensadores do perodo da Reforma permaneceram na mesma tradio, tal como aconteceu com a maioria dos eruditos desde aquela poca, os quais tm se apegado estritamente verdade e coerncia da Bblia. Um bom representante no sculo XIX foi Charles Hodge, um escritor lcido e de grande influncia. Em seu propsito, sua abordagem era estrita e exclusivamente bblica. Seus mais im portantes argum entos (os quais esto de modo in teressan te apresentados na seguinte ordem) so:

    1. uma pressuposio quase insupervel que a Bblia ensine a punio sem fim dos definitivamente impenitentes, que todas as igrejas crists tenham entendido dessa forma... aquilo que o g rande corpo de le ito re s com peten tes de um livro compreensvel entende como sendo seu significado, deve ser seu significado.2. A doutrina da perpetuidade da punio futura dos mpios foi sustentada pelos judeus da velha dispensao e pelos da poca de Cristo. Nem nosso Senhor nem seus apstolos jamais negaram essa doutrina... Eles mesmos... ensinaram essa doutrina da maneira mais explcita e solene.3. Somos juizes incompetentes para determinar a penalidade que o pecado merece. No possumos uma idia adequada de sua culpa inerente, da dignidade da pessoa contra a qual cometido, ou do alcance do mal que ele provoca.4. Como sabemos que as razes... que constrangeram Deus a permitir que seus filhos fossem pecadores e infelizes por milhares de anos, no podero constrang-lo a permitir que alguns deles permaneam infelizes para sempre?5. Temos razes para crer... que o nmero dos definitivamente perdidos ser bem insignificante em comparao com o grande nmero de salvos.

    Um aspecto agradvel do debate moderno a respeito a preocupao iiumana que comea a se revelar. Tentativas sinceras tm sido feitas no sentido de atenuar a doutrina, seja (como Hodge) argumentando que o nmero dos perdidos comparativamente pequeno (B. B. Warfield tam bm fala sobre eles como sendo um corpo relativam ente insignificante), seja argumentando que o grau de sofrimento poder ser

  • bem menor do que geralmente se afirma. Horbery cita o arcebispo King, com quem concorda, como tendo dito: ... no inferno poder haver alguns cuja condio seria prefervel ao estado de no existncia. Um escritor popular, H. Silvester, embora formalmente repudiando a idia de aniquilao e defendendo um inferno eterno, declara; A idia do inferno no pode estar lado a lado com a do cu. O cu ser, o inferno se encaminha para o no ser. ^De fato, esta noo soa como um repdio d o u tr in a tra d ic io n a l, v isto que um m ovim en to de d u rao indefinidamente longa em direo a no ser parece um lento processo de aniquilao, a qual deve em algum momento chegar a seu fim.

    Estas tentativas de atenuar a doutrina do sofrimento eterno tm elas mesmas atrado crticas. Afirma-se que, em princpio, no faz diferena se uma ou se so bilhes de pessoas que sofrem, ou se a angstia intensa ou superficial; um ser humano vivendo em pecado, numa condio que pode ser apropriadamente descrita como tormento, sem esperana, para todo o sempre. Para a lgica humana comum, isso se parece com um dualismo definitivo, no qual a perfeio da criao de Deus se encontra permanentemente marcada por uma ndoa terrvel. Alm disso, mais do que duvidoso que a Bblia ensine que o nmero dos definitivamente perdidos ser bem insignificante. Jesus se referiu aos muitos que estavam no caminho da destruio e aos poucos que estavam no caminho para a vida, aos muitos que so chamados e aos poucos que so escolhidos.^ Da mesma forma, mais do que duvidoso que as tentativas de amenizar a intensidade do sofrimento do inferno sejam justificveis, visto que o prprio Jesus empregou expresses terrveis para descrev-lo.

    Tais consideraes tm despertado esforos intensos para encontrar alternativas ao ensino da ortodoxia tradicional. Estes esforos dividem-se em duas categorias, as quais podem ser rotuladas de universalismo e imortalidade condicional respectivamente. O universalismo ensina que no final todos os homens sero salvos. A imortalidade condicional (assim chamada porque defende que o homem no imortal por natureza, mas que ele pode se tornar imortal com a condio de ter f em Cristo) ensina que os pecadores no arrependidos, quando tiverem sofrido o devido castigo de seus pecados, deixaro de existir.

    O UNIVERSALISMO

    Por mais que possamos desejar que o universalismo seja verdadeiro, parece impossvel harmoniz-lo com muitas passagens na Bblia. Para aqueles que consideram a Bblia como um livro cheio de contradies

  • internas, um argumento plausvel (mas no mais do qe plausvel) poder ser levantado, de que Paulo era um universalista, e isto com base em certos textos bem conhecidos, tais como: Porque assim como em Ado todos morrem, assim tambm todos sero vivificados em Cristo e para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho. Paulo ensina uma reconciliao final de todas as coisas com Deus, mas s depois que o julgamento tiver sido realizado, o que significar tribulao e angstia... sobre a alma de qualquer homem que faz o mal; estes sofrero penalidade de eterna destruio, banidos da face do Senhor. ^No restante da Bblia quase no h nada que possa, ainda que de modo plausvel, ser citado em favor do universahsmo.

    O universalimo geralmente visto em termos do homem como um ser livre vivendo para sempre dentro da influncia do amor infinitamente paciente de Deus. Em seu egosmo e orgulho, o homem pode resistir longamente atrao amorosa de Deus, mas no final o Amor obter uma resposta espontnea e completa.^ Todavia, esta verdade tremendamente importante (caso fosse de fato uma verdade) no encontrada em qualquer lugar na Bblia, e , na realidade, negada por ela. De fato, uma doutrina do purgatrio, s que com o purgatrio sendo considerado como destino no apenas dos batizados que morrem em pecado venial (conforme ensinado pela teologia medieval), mas de todos os que morrem sem condies de ir para o cu.

    Entretanto, em nenhum lugar a Bblia ensina a existncia de um local para uma lenta purgao depois da morte. Pelo contrrio, ensina que no fim desta era, por ocasio da segunda vinda de Cristo, haver uma transformao imediata e instantnea para aqueles que esto em comunho com Cristo, de modo que se tornem semelhantes a ele;^^ enquanto que aqueles que no pertencem a Cristo tero de enfrentar o julgam ento estando em seus pecados. Esta instantaneidade tem implicaes de longo alcance, pois o que acontece com aqueles que estiverem vivos quando da vinda de Cristo estabelece, em princpio, o que acontecer com todos os homens: sero julgados com base na condio em que estiverem quando sua vida terrena terminar. A doutrina de um purgatrio de durao ilimitada tem, na verdade, afinidades com aquelas religies orientais que ensinam uma demorada transmigrao das almas, em vez de com a Bbha.

    Se o purgatrio como lugar intermedirio entre o cu e o inferno negado e o processo de purificao posto no cu (como aparentemente afirmado no relatrio de 1971 da Comisso de Doutrina da Igreja da Inglaterra, intitulado Prayer and the Departed [A Orao e os Mortos], a doutrina bblica ainda mais seriamente minada. O cu deixa de ser um

  • lugar de pureza e alegria perfeitas e torna-se um lugar onde pecadores que progridem lentamente continuam, s Deus sabe durante quanto tempo, na peregrinao moral, caindo, sofrendo, tentando de novo. Uma das grandes consolaes da Bblia est em sua insistncia de que a luta moral no dura para sempre, mas que termina para toda a raa humana no dia do juzo.

    A IMORTALIDADE CONDICIONAL

    A outra alternativa, a possibilidade de que os perdidos no final deixem de existir, requer uma anlise muito mais sria. Os condicionalistas ( asSim que os defensores da imortalidade condicional so chamados) aguardam a ressurreio de todos os homens, a qual ser seguida por uma sentena justa de acordo com os merecimentos de cada um, o que significar angstia (mas no tormento sem fim) para aqueles fora de Criste, finalmente se encerrando na segunda morte. Alguns, embora nem todos, crem que no h uma existncia consciente de uma alma sem o corpo entre a morte e a ressurreio, mas que, no momento da morte, todos passam para um sono da alma em completa inconscincia. Isto significa que o primeiro lampejo de conscincia do redimido depois da morte seriam as boas vindas ao paraso, isto , ao cu, boas vindas a serem dadas por Cristo.

    O condicionalista tenta provar sua afirmao levantando perguntas fundamentais. Por exemplo, a Bblia ensina que a alma imortal? Antes, ela no ensina que a alma que pecar morrer?^^ As expresses mais comumente usadas, morte, destruio, perecer e a metfora do fogo que consome matria vegetal, no sugerem um fim? (A descrio da Geena baseada no depsito de lixo no Vale de Hinom, fora de Jerusalm, onde o fogo lento queimava incessantemente e onde os vermes consumiam incansavelmente o lixo podre.) A Bblia no chega a ensinar que o homem mortal e que o pecado uma fora autodestruidora, cuja recompensa final a destruio completa do corpo e da alma? A imortalidade no parte do dom da vida eterna, dada queles que se tornam participantes da natureza divina atravs da unio com Cristo?^"* A insistncia do universalista na eternidade de todas as almas no uma tendncia em direo ao pantesmo? E a insistncia do tradicionalista na eternidade das almas em pecado no uma tendncia em direo ao dualismo? Estas so algumas das perguntas que os condicionalistas tendem a fazer.

    Alguns, como L. E. Froom, desafiam a fidedignidade da afirmao de Hodge de que o tormento sem fim tenha sido virtualmente a nica posio

  • doutrinria das principais correntes do cristianismo, baseada numa crena m onocrom tica existente no judasm o do prim eiro sculo. Eles concordam que a partir do sculo sexto at a Reforma, o tormento sem fim representou a ortodoxia aceita, com poucas vozes discordantes, e que depois da Reforma continuou a ser dominante nas principais igrejas, pelo menos at o sculo XIX, embora com um volume cada vez maior de discordncia. Eles negam que o torm ento interminvel fosse to largamente aceito pelos judeus do primeiro sculo, de modo que os ouvintes de Jesus obrigatoriamente tivessem interpretado seu ensino neste sentido, sem ter havido alguma rejeio especfica da parte de Jesus. Eles afirmam que a imortalidade condicional foi geralmente aceita na igreja primitiva at que os pensadores tentaram casar a doutrina platnica da imortalidade da alma com o ensino da Bblia. Este jugo desigual, dizem, gerou dois frutos bastardos: o universalismo (tal como ensinado por Clemente e por Orgenes de Alexandria) e o tormento eterno (tal como ensinado por Tertuliano e por Agostinho).

    Quanto aos textos bblicos principais, que parecem to inexcusveis, afirmam que o fogo inextinguvel e o verme que no morre significam apenas fogo que no se extingue e vermes que no morrem, at que seu trabalho de destruio se complete. Eles tm tratado da questo da punio eterna de duas maneiras distintas. Alguns raciocinam que a punio eterna em seus resultados (como a punio do fogo eterno que destruiu Sodoma e Gomorra e que mencionada em Judas 7), mas no em seu sofrimento. um ato de conseqncias eternas, no uma ao eterna. Outros afirmam que o conceito subjacente palavra grega ainios o do pensamento judaico da poca, que falava de duas eras em contraste: esta era presente e a era vindoura. A vida eterna a vida da era vindoura e a punio eterna a punio da era vindoura. A primeira tornou-se possvel com a vinda de Jesus e o incio de seu reinado; a ltima ser administrada por Jesus, na qualidade de Filho do homem, quando ele pronunciar o juzo final. A meno feita por Cristo vida eterna e ao castigo eterno basicamente no tem a ver com a eternidade dos dois destinos, mas com a inevitabilidade do que acontece quando se consuma o advento da nova era. Este dois pontos de vista no so mutuamente exclusivos, e podem ser sustentados simultaneamente.

    Os condicionalistas tambm negam que o Apocalipse de Joo, obra repleta de simbolismo, tenha o objetivo de nos descrever um estado final que inclua a continuao do pecado e do sofrimento. A fumaa do tormento que sobe para sempre representa a lembrana do triunfo da justia de Deus, no um queimar contnuo das pessoas afligidas. Quanto parbola do rico e de Lzaro, observam que o cenrio o Hades, no a

  • Geena (o Hades ser lanado um ipara dentro do lago de fogo)/^ e que a passagem mais figurada do que literal. Seria arriscado para qualquer escola de pensamento extrair concluses literais a partir dessa passagem a respeito da topografia do mundo vindouro.

    Caso se diga que o condicionalismo desvaloriza o impacto da intimidao bblica, visto que crer na aniquilao no passa de crer naquilo que o ateu cr e muitas pessoas em tormentos podero receber bem a aniquilao, os condicionalistas respondero dizendo o seguinte: (1 )0 ateu no tem concepo alguma da maravilha e da bem-aventurana do cu; (2) ele, portanto, no faz qualquer idia do que significa desprezar o cu, desprezar o prprio propsito para o qual foi feito; (3) ele no percebe o que estar envolvido no pavor de aguardar o juzo e na angstia e no remorso de se apresentar nu diante de Deus para ver o seu verdadeiro eu revelado e ouvir o Juiz sentenciar: Apartai-vos; (4) questionvel se algum de fato deseja a aniquilao. O ser humano se apega tenazmente vida e discutvel que a perspectva de aniquilao seja o mais temvel de todos os destinos. Certamente a mais final de todas as tragdias. Se o propsito da Bblia descrever o horror do justo juzo e da destruio final seu linguajar no exagerado.^^

    A ORTODOXIA TRADICIONAL NO DEVE SER ABANDONADA IMPENSADAMENTE

    Esta linha de raciocnio atrativa e pode ser demonstrada face grande quantidade de pesquisa j realizada, e tem recebido o apoio de um largo espectro de pensadores cristos. Parece sbio, todavia, apresentar cinco advertncias queles que possam ser tentados a muito facilmente abandonar o ponto de vista tradicional.

    1. Cuidado com a enorme atrao que naturalmente exerce qualquer caminho que signifique uma sada para a idia de pecado e de sofrimento eternos. A tentao de distorcer o que podem ser afirmaes bem claras das Escrituras muito forte. a situao ideal para uma racionalizao inconsciente.

    2. Cuidado com a influncia generalizada e insidiosa do atual Zeitgeist liberal sobre todo nosso pensamento. O mundo e a igreja modernos tm quase nenhuma utilidade para uma submisso disciplinada da mente revelao de Deus, com o resultado de que o pensamento cristo foi invadido em milhares de pontos por idias contrrias sua f, que foi dada p o r D eus. U m a d o u trin a como a do to rm en to in te rm in v e l inevitavelmente seria um alvo natural para um ataque incansvel dentro

  • de um contexto de opinies dedicadas eliminao d^qualquer coisa que seja considerada ofensiva aos sentimentos modernos. ' .

    3. Observe que o moderno ressurgimento do condicionalismo foi provocado primeira e principalmente por socinianos e arianos, os quais rejeitam algumas doutrinas fundamentais como a deidade de Cristo, e que hoje esse pensamento constitui um elemento importante no ensino das tcstemunhas-de-jeov. Cuidado com tais companhias.

    4. Observe que a aceitao do condicionalismo, ainda que possa ser reconhecida como uma interpretao possvel da Bbha, no resolve todas as dificuldades. Talvez nunca seja fcil aceitar a idia de que Deus tieterminar a aniquilao de seres feitos sua prpria imagem, nem que ele determinar sofrimento que no trar qualquer benefcio a quem sofre.^ Pode-se, todavia, afirmar que estas dificuldades so semelhantes cm carter quelas apresentadas por outros julgamentos temporais e podem ser analisadas junto com estes, e que no introduzem um problema de uma diferente ordem de magnitude, o que ocorre com a idia de sofrimento interminvel.

    5. Cuidado com um enfraquecimento do zelo pela evangelizao. O evangelho deve ser pregado com um sentimento de urgncia e profunda dedicao. Aquele que tem crido que a alternativa f em Cristo a aflio interminvel no inferno bem poder achar que a repentina perda de confiana nesta doutrina far com que perca a motivao, com prejuzo do seu zelo evangelstico. Na concluso de seu estudo sobre este assunto, o evangelista R. ATorrey escreveu o seguinte:

    Idias superficiais acerca do pecado, da santidade de Deus, e da glria de Jesus Cristo e de sua reinvidicao sobre ns esto na raiz de todas as teorias fracas a respeito do destino dos impenitentes. Quando enxergamos o pecado em toda sua hediondez e enormidade, a santidade de Deus em toda a sua perfeio, e a glria de Jesus Cristo em toda a sua infinitude, nada menos que uma doutrina de que aqueles que persistem na escolha do pecado, que amam as trevas em vez da luz, e que insistem na rejeio do Filho de Deus, sofrero tormento eterno, satisfar as exigncias de nossas prprias intuies morais... quanto mais intimamente os homens andarem com Deus e quanto mais consagrados se tornarem ao seu servio, maior a probabiHdade de que creiam nesta doutrina... Se de alguma maneira voc enfraquecer a doutrina, ela enfraquecer seu zelo. Repetidas vezes este autor tem se deparado com esta doutrina terrvel e tem tentado encontrar alguma sada para

  • isso, mas quando ele tem falhado, o que sempre tem acontecido ao final, quando honesto com a Bblia e consigo mesmo, tem retornado a seu trabalho, sentindo um peso ainda maior pelas almas e tendo uma determinao aumentada de se dedicar e de se gastar em favor da salvao delas.

    Um desafio como este merece a mais sincera busca de corao bem como a mais consciente busca nas Escrituras. Caso o ponto de vista de Torrey seja rejeitado, deve ser encontrado um outro ponto de vista que desperte pelo menos um zelo to grande pela glria de Deus e pela salvao dos homens.

    A NECESSIDADE DE UM NOVO ESTUDO

    Embora tenha dito tudo isto, uma longa tradio de f dentro da igreja crist no decisiva. Os erros penetram imperceptivelmente e no so facilmente abandonados, principalmente se so elevados posio de ortodoxia. primeira insinuao de suposta heresia, o mais provvel que os piedosos tapem seus ouvidos e ataquem o ofensor bem intencionado. Todavia, neste assunto o problema bem real, e bblico. Plato antevia uma punio eterna, mas o problema no era crucial para ele, visto que no dispunha de qualquer conhecimento do Deus da revelao crist. devido a seu conhecimento do Deus da Bblia, do Deus da justia e do amor e da onipotncia, que o cristo se v com problemas. Para ele difcil imaginar que esse Deus tolere o tormento interminvel.

    Um estudo da literatura existente revela um notvel fracasso da ortodoxia tradicional em tratar com os slidos argumentos apresentados pelos condicionalistas. Em parte, isto se deve a um crculo vicioso, no qual a suspeita de heresia torna difcil aos condicionalistas encontrarem editoras respeitveis, o que resulta em que seus livros no so lidos e o que, por sua vez, faz com que seus pontos de vista permaneam indevidamente suspeitos, H. E. Guillebaud, mais conhecido devido a seu livro sobre a expiao, Why the Cross? (Por que a Cruz?), incluiu nessa obra um apndice sobre a punio eterna, no qual parece considerar a posio tradicional como comprovada. Ele, ento, se dedicou a um estudo mais completo dos problemas morais da Bblia. Este estudo resultou em dois manuscritos, um dos quais foi publicado em 1941, logo aps sua morte, com o ttulo Some Moral Difficulties o f the Bible (Algumas Dificuldades Morais da Bblia). O outro manuscrito tratava da doutrina do inferno e chegou a concluses condicionaHstas. Mas no se conseguiu encontrar nenhuma editora para este manuscrito at 1964, quando foi.

  • ento, impresso particularmente, sem ajuda de qualquer ^itora, com o ttulo lh e Righteous Judge (O Justo Juiz). Poucos anos depois, B. F. C. Atkinson, um erudito na lngua grega e autor de inmeros livros sobre temas bblicos, publicou, tambm particularmente, uma obra intitulada Life and Immortality: A n Examination o f the Nature and Meaning o f Life and Death as they are revealed in the Scriptures (A Vida e a Imortalidade: Uma anlise da Natureza e Significado da Vida e da Morte conforme reveladas nas Escrituras). Este foi o fruto de toda uma vida de estudos e uma obra notvel de argumentos bem defendidos. Ainda mais notvel a massiva obra de L. E. Froom, The Conditionalist Faith o f our Fathers (A F Condicionalista de Nossos Pais), que uma exposio bem organizada e lcida com 2.476 pginas, publicada pela editora dos adventistas do stimo dia.

    Estes livros no esto acima de qualquer crtica, mas tambm no podem ser facilmente ignorados. Eles tratam uma grande poro de temas difceis e controversos (e nem sempre concordam entre si), e so notavelmente apropriados para iniciar um debate amplo e proftmdo. importante que o estigma de heresia no seja aplicado a este ponto de vista, pelo menos at que tenha havido um debate livre e exaustivo. Deve haver o debate, para que os cristos possam ser renovados numa mente comum com vistas fiel proclamao do evangelho.

    preciso enfatizar que nosso resumo do debate nesta breve descrio (em que no se apresentou detalhadamente nenhum argumento) no oferece qualquer base para deciso quanto a um tema to srio e complexo. O objetivo foi o de desestimular aqueles que sustentam a ortodoxia tradicional de a abandonarem irrefletidamente e, ao mesmo tempo, incentivar uma anlise cuidadosa da posio, da imortalidade condicional. Se aps um novo estudo a ortodoxia tradicional conseguisse sustentar a sua posio, isso tornaria, pelo menos superficialmente, a tarefa de defender o ensino de Cristo mais difcil do que para a imortalidade condicional, mas relativamente poderia apenas tornar mais fcil a aceitao dos duros fatos das Escrituras e da Providncia. Pois se nos sentirmos obrigados a aceitar o sofrimento interminvel de um ser humano, no podemos levantar grande objeo aos sofrimentos passageiros da existncia terrena do homem, por maior que seja o nmero das pessoas e por mais que estejam sofrendo durante a vida terrena. Todavia, no que diz respeito tese deste livro, no nos consideraremos obrigados a defender a idia do tormento eterno, at que os argumentos dos condicionalistas seja refutados. Presumiremos que as realidades do juzo so pelo menos to terrveis quanto os condicionalistas as descrevem

  • e tentaremos ver como isto se encaixa no modelo, ou padro, de outros julgamentos encontrados na Bblia e na histria.

    E que fique bem claro que estas realidades so de fato terrveis. Jesus e seus discpulos ensinaram vez aps vez, empregando expresses impressionantes, que h juzo e punio irreversveis para os que no se arrependem. Advertncias e convites amorosos se mesclam para nos encorajar a que fujamos da ira vindoura.

    NOTAS AO CAPTULO 2

    1. Nicene andPost-Nicene Fathers (Os Pais Nicenos e Ps-nicenos), Srie Segunda, Vol. 14, The Seven Ecumenical Councils (Os Sete Conclios Ecumnicos), p. 320. Os antemas de Justiniano foram adotados por um snodo ocorrido anteriormente, em 543, em Constantinopla. H alguma dvida sobre se estes antemas foram adotados pelo conclio ecumnico de 553, ou se mais tarde foram interpolados em seus registros.

    2. Lc 16.19-31; Mc 9.43,48; Mt 8.12; 25.41,46; Ap 14.11; 20.10.3. M. Horbery, An Enquiry into the Scripture Doctrine concerning the Duration of

    Future Punishment (Um Estudo da Doutrina Bblica a respeito da Durao da Punio Futura; Londres, 1878), pp. 55s.; W. Hendriksen, The Bible on the Life Hereafter (O que a Bblia diz acerca da Vida aps a Morte; Grand Rapids, 1959), pp. 197s. Outras abordagens recentes, do ponto de vista da ortodoxia tradicional, so L. Boettner, Immortality (Imortalidade; Filadlfia, 1956); J. A. Motyer, After Death (Depois da Morte; Londres, 1965). Obras de vulto do sculo passado incluem E. M. Goulburn, Everlasting Punishment (Punio Eterna; Londres, 1880); E. B. Pusey, What is o f Faith as to Everlasting Punishment? (O que Devemos crer Quanto Punio Eterna?; 3a. ed,, Oxford, 1881; S. D. Salmond, The Christian Doctrine of Immortality (A Doutrina Crist da Imortalidade; 3a. d., Edimburgo, 1897).

    4. John Baillie,ylni/ the Life Everlasting (E a Vida Eterna; Londres, 1934), p. 244, fala de sua firme confiana de que o universo no um lugar menos admirvel e belo, pelo fato de ter uma cmara de horrores eternamente presente em seu meio, na medida em que cada horror de sofrimento perfeitamente contrabalanado em cada horror do pecado.

    5. Aquino, Summa TTieologica, parte 3, traduo em ingls preparada pelos dominicanos, 1922, pp. 169,107,203.

    6. C. Hodge, Systematic Theology (Teologia Sistemtica; Londres, 1873), vol. III, pp. 870-880.

    7. B. B. Warfield, no artigo Predestination (Predestinao), no Hastings Dictionary of the Bible (Dicionrio Hastings da Bblia), vol. IV, p. 63. Horbery, op. cit., p. 154, nota 1. H. SA\e,&ttr, Arguing with God (Discutindo com Deus; Londres, 1971), p.90. U. E. Simon, The End is Not Yet (Ainda no o Fim; Welwyn, 1964), p. 207, faz a importante afirmao: O cu no deve ser visto como a contrapartida do inferno. Caso venha a sugerir um paralelismo Deus-Satans, Cu-Inferno, Bem-Mal, nossa predileo por disposies simtricas deve ser evitada.

    8. Mt 7.13s.; 22.14.9.1 Co 15.22-28; Fp 2.10; veja tambm Rm 5.18; Ef 1.20-23; Cl 1.20; Rm 2.1-10; 2 Ts

    1.9.

  • 10. Esta idia defendida de modo atraente por J. A. T. Robinson, In the End, God... (No fim, Deus...; Londres, 1950), captulos 8 e 9, sendo um de seus mais convincentes escritos. The World to Come and Final Destiny (O Mundo Vindouro e o Destino Final; Edimburgo, 1918), obra de J. H. Leckie, um estudo cuidadoso e completo que, em ltima anlise, se inclina para o universalismo.

    I L l C o 15.51s.; IJo 3.2.12. Prayer and the Departed (A Orao e os Mortos): Relatrio da Comisso

    Arquiepiscopal da Doutrina Crist (Londres, 1971).13. Ez 18.4, Rm 6.23, etc. s vezes se diz que a Bblia no ensina a imortalidade da

    alma, mas que a admite implicitamente. Todavia, estranho que uma verdade to importmte no seja explicitamente ensinada. O nus da prova recai sobre aqueles que afirmam que a Bblia admite implicitamente a imortalidade da alma.

    14. S o Senhor tem imortalidade (1 Tm 6.16); os que praticam o bem procuram a imortaUdade (Rm 2.7); a imortalidade revelada atravs do evangelho (2 Tm 1.10); aqueles que estiverem em Cristo se revestiro da imortahdade (1 Co 15.54); eles tm se tornado participantes da natureza divina (2 Pe 1.4).

    15. Ap 20.14.16. Os condicionalistas consideram que sua doutrina age de modo mais dissuasivo

    do que o ensino tradicional, argumentando que este ltimo no crvel para aqueles que o ouvem e, portanto, simplesmente no aceito. Horbery (p. 274) cita, embora discordando, um autor que coloca a questo da seguinte maneira: Apenas imaginamos que cremos nisso... Nada que seja demasiadamente enfatizado, ou que parea exagerado, causa surpresa Mente. Caso um professor diga a seu aluno que seu pai o enforcar se no estudar, ele rir diante da ameaa. Tal ameaa exageradamente desproporcional tanto aos seus prprios demritos, como idia que ele faz da eqidade de seu pai.

    17. Os adventistas do stimo dia tambm crem desta forma, mas eles se enquadram numa categoria diferente da dos testemunhas-de-jeov e cristadelfianos, visto que na essncia esto dentro da larga corrente do evangelicalismo tradicional, tendo algumas excentricidades que podem ser consideradas como mais ou menos perifricas.

    18. Algumas vezes se diz: inconcebvel que Deus agisse em prol da cura de um ser humano e, ento, tendo fracassado em seus esforos, viesse a decapit-lo. Isto uma incompreenso do processo normal de julgamento. possvel que no seja necessrio imaginar Deus determinando a aplicao de castigos extras por ocasio do julgamento final, mas, antes, em cada pessoa sofrer as conseqncias naturais e auto-destruidoras de suas prprias escolhas erradas. Quando a metfora se refere ao castigo pesado e ao castigo leve (Lc 12.47s.), pode estar indicando apenas que os pecadores no arrependidos suportaro inevitavelmente diferentes graus de sofrimento de acordo com o grau de culpa que tiverem. Talvez seja mais apropriado pensar no seu fim como uma eutansia misericordiosa do que como uma execuo insensvel.

    19. R. A. Torrey, What the Bible Teaches (O que a Bblia Ensina; Londres, s.d.), pp. 311-313.

    20. Plato, Leis, 904s.21. H. E. Guillebaud, The Righteous Judge; (O Justo Juiz); B. F. C. Atkinson, Life

    and Immortality (A Vida e a Imortalidade; ambos os livros podem ser adquiridos atravs do rev. B. L. Bateson, 26 Summershard, South Petherton, Somerset, TA13 5 DP, Inglaterra, ao preo de 25 e 50 pnies, respectivamente; mais despesas postais). L. E. Froom, The Conditionalist Faith of our Fathers (A F Condicionalista de Nossos Pais), 2 volumes (Review and Herald Publishing Association, Washington, D.C., Estados Unidos, 1966, 1965). De uma gerao anterior, os livros de J. A. Beet so bem argumentados: The Last

  • Things (As ltimas Coisas; Londres, 1897, edio revista em 1905); The Immortality of the Soul (A Imortalidade da Alma; Londres, 1901).

  • ALGUMAS SOLUES INADEQUADAS

    Se, algumas vezes, a m aior dificuldade da Bblia se tornou insuportvel devido a alguma afirmao exagerada, outras dificuldades se tornaram insolveis devido a um tratamento demasiado simplista. Nenhuma soluo que negue a soberania absoluta de Deus ou a sua perfeita bondade pode estar correta.

    A NEGAO DA SOBERANIA DE DEUS

    algo aceito por todos os crentes em Cristo que Deus criou todas as coisas, que sustenta todas as coisas, que conhece todas as coisas, que est em todos os lugares. Sabemos que at mesmo os mais hediondos crimes da histria so cometidos com o conhecimento e a permisso por parte de Deus. Como Jesus mesmo disse: Nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima no te fosse dada. Mas a Bblia vai alm. Ela no apenas apresenta Deus como algum que permite o mal, mas tambm como algum que o controla. O Deus Todo-poderoso o Pantokmfr, o Governante de todas as coisas. Por mais que tentemos exphcar as dificuldades que nos cercam, no temos permisso de atribuir esses problemas incompetncia de Deus.

    A onipotncia de Deus parece ser um resultado necessrio da sua condio de Criador. Pensar que a partir do nada Deus criou todas as minsculas partculas de nosso vasto universo (isto para no mencionar nada a respeito das maravilhas do mundo no material) e que, ainda assim, no tem um conhecimento e um controle perfeitos sobre tudo o que criou parece absurdo. Austin Farrer, todavia, em seu livr