john carpenter- o medo é só o começo

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JOHN CARPENTER O MEDO É SÓ O COMEÇO

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John Carpenter é capaz de proporcionar experiências cinematográficas memoráveis. Mas é também dono de tamanha personalidade como diretor que pôde assimilar o cinema de autor sem sucumbir a dogmas que diminuíssem sua autenticidade.

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JOHN CARPENTER

O MEDO É SÓ O COMEÇO

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PREfáCiOPor Ilda Santiago

Paixão na vida é fundamental. E o traço mais marcante que anima o

entusiasmo e a energia de Mario Abbade é a paixão incontrolada e in-

controlável pelo cinema e por seus autores.

Certamente, John Carpenter se alinha entre esses grandes diretores,

capazes de mobilizar um trabalho incessante e a vontade sem limites

que Mario tem de falar, discutir, partilhar filmes, fotos e informações

que reúne em seu arquivo.

Carpenter criou um universo próprio que instiga legiões de seguidores.

Os filmes do cineasta, um mestre do terror — apesar de ter se aventu-

rado em outros gêneros —, são clássicos reconhecidos mesmo pelos

não aficionados.

A paixão não faz sentido se não for partilhada. Abbade é um “seguidor”

que não considera suficiente amar e rever os filmes do mestre. Para o

crítico e amante do cinema, partilhar é necessário, essencial para que esse

amor se realize. E somente faz sentido quando os filmes são vistos por

muitos e as reflexões e informações servem para criar novos apaixonados.

Tenho o prazer de ver em ação a vontade de realizar de Mario, nos

projetos em conjunto dentro do Festival do Rio. Como na retrospectiva

John Carpenter.

É essa força que permite ao cinema viver e reviver a cada dia. Como na

obra de John Carpenter.

Ilda Santiago é diretora do Festival do Rio.

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APRESENTAÇãOPor Mario Abbade

John Carpenter é capaz de proporcionar experiências cinematográ-

ficas memoráveis. Mas é também dono de tamanha personalidade

como diretor que pôde assimilar o cinema de autor sem sucumbir

a dogmas que diminuíssem sua autenticidade. Carpenter se firmou,

assim, como um grande realizador de filmes de gênero. Apesar de o

diretor ter sido consagrado com os títulos — merecidos — de Mestre

do Horror e Príncipe das Sombras, seria injusto limitar John Carpenter

a essa categoria, não pelo preconceito que costuma subestimar o gê-

nero, mas porque o cineasta também assinou ótimos longas de ação

e de ficção científica.

No pós-revisionismo que reconheceu o engenho de filmes seus an-

tes vítimas de julgamentos rasos, Carpenter surge como um visio-

nário. Sua obra sobressai graças à sua assinatura visual, sonora e

temática. John Carpenter criou recursos tão imitados a ponto de se

tornarem a cartilha do gênero. Além do uso que fez da steadycam

— e de outras inventividades —, Carpenter se tornou um mestre no

formato Scope. O diretor usou cada centímetro quadrado da tela dei-

xando um espaço negativo que materializa e intensifica a sensação

de perigo iminente.

Sua competência no set também tem como característica fazer com

que um filme pareça sempre ter custado milhões de dólares a mais

do que de fato consumiu. Outra habilidade do diretor é a forma como

apresenta uma visão crítica da sociedade.

Carpenter tem em Howard Hawks — sua máxima inspiração — um par-

ceiro silencioso de trabalho, do mesmo modo que Claude Chabrol e

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Brian De Palma tiveram Alfred Hitchcock. Mas, a partir dessa parceria, o

talento do Mestre do Horror reinventou o western. A Mostra John Car-

penter — O Medo É Só o Começo é uma oportunidade de redescobrir

o gênio de seu cinema.

Mario Abbade é jornalista, crítico de cinema de O Globo, presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ) e curador da Mostra John Carpenter — O Medo É Só o Começo do Festival do Rio 2012.

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BiOgRAfiAPor Leonardo Luiz Ferreira

John Howard Carpenter nasceu no dia 16 de janeiro de 1948 na cida-

de de Carthage, Nova York. Ainda na infância, sua família se mudou

para Kentucky, onde seu pai se tornou o chefe do departamento de

música na universidade local. Durante a década de 1950, ele desen-

volve sua paixão por cinema — especialmente por faroestes de John

Ford e Howard Hawks e filmes de gênero de baixo orçamento, entre

eles O Planeta Proibido (1956), de Fred M. Wilcox —, que marcam

decisivamente a sua escolha em se tornar realizador cinematográfico.

Antes mesmo de ingressar no ensino médio, Carpenter já começava a

realizar suas primeiras experiências em curtas rodados em 8mm. Ao

largo das filmagens caseiras, ele entra para a Western university of

Kentucky, mas logo, em 1968, é transferido para a uSC (university of

Southern California´s School of Cinematic Arts).

No princípio do curso de cinema, Carpenter rodou um curta-metra-

gem intitulado Captain Voyeur (1969), no qual apresenta a história

da obsessão de um funcionário por uma colega de trabalho. O filme

foi redescoberto, em 2011, nos arquivos da universidade e revelou

como maior interesse alguns elementos que surgiriam em Hallowe-

en — A Noite do Terror. A incursão seguinte foi no curta The Resur-

rection of Broncho Billy (1970), de James Rokos, em que Carpenter

coescreveu, montou e compôs a trilha sonora. A obra recebeu o Os-

car da categoria e devido ao êxito chegou a ser ampliada para 35mm

e distribuída em salas de cinema dos Estados unidos e do Canadá.

Após esse inesperado sucesso inicial, o diretor decide se dedicar a

um projeto pessoal que envolvia um dos gêneros que o levaram à

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realização de cinema, a ficção científica. Para tirar as ideias de sua

cabeça, ele formou uma parceria com Dan O´Bannon e juntos escre-

veram o roteiro de Dark Star. O cineasta se desdobrou em diversas

funções para que sua paródia de ficção funcionasse na tela. O cine-

ma da economia em que a genialidade dribla as dificuldades ganhava

mais um representante no então jovem John Carpenter. A péssima

distribuição do longa, que foi exibido em alguns drive-ins, acabou

por decretar o seu fracasso. Anos mais tarde se transformou em cult

e sempre foi ressaltado como um dos precursores da saga Star Wars,

de George Lucas. O renomado crítico Roger Ebert chegou a dizer que

Dark Star era um dos filmes mais loucos que viu na vida, com uma

estranha combinação de ópera espacial, bombas inteligentes e bolas

de praia de outro mundo.

Apenas dois anos depois de seu debut, Carpenter surge com Assalto

à 13ª DP (1976). um thriller policial realista em que une Hawks à sua

visão pessoal de mundo. Ele chegou a declarar na época que o con-

sidera seu verdadeiro primeiro filme profissional, pois tinha equipe e

cronograma. É corriqueiro, com o passar dos anos, encontrar decla-

rações de Carpenter em que diminui seus curtas e o próprio Dark

Star. Assalto à 13ª DP marca o seu primeiro trabalho com Debra Hill,

que será sua parceira em diversos momentos da carreira. Trabalhando

com um parco orçamento, apenas uS$ 100 mil, o cineasta investiu

em atores desconhecidos e o filme foi recebido de maneira indiferen-

te nos Estados unidos. Tudo começa a mudar após sua exibição no

Festival de Londres, de onde sai consagrado com prestígio crítico. A

reavaliação positiva da crítica europeia faz com que o longa seja re-

lançado nos Estados unidos e hoje seja considerado um dos grandes

exploitations dos anos 70.

A experiência televisiva com Alguém me Vigia (1978) é ofuscada

pelo lançamento próximo de Halloween — A Noite do Terror, que é

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o grande divisor de águas na carreira de Carpenter e redefine todo o

horror americano. Originalmente uma ideia do produtor irwin Yablas

sobre um filme em que babás eram ameaçadas por um perseguidor,

John transformou esse argumento em uma história macabra e psica-

nalítica envolvendo um serial killer e a noite de halloween: “o hallo-

ween não foi tema de nenhum filme até então. Minha ideia sempre

foi fazer um longa de terror à moda antiga, que envolvesse uma casa

assombrada”, revelou o diretor na época de lançamento. Ele decla-

rou ainda que as principais inspirações foram o uso da música e das

cores do clássico Suspiria (1977), de Dario Argento, e o horror de O

Exorcista (1973), de William Friedkin. Anos depois, o diretor disse que

foi Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, que lhe serviu de referência

e ponto de partida.

Buscando um cinema particular e autoral, Carpenter decide não se

envolver com a direção do segundo episódio da franquia Halloween.

Ele não quer se repetir e passa a se reinventar, desde então, a cada

filme com uma mescla de gêneros, muitas vezes no mesmo trabalho,

que vão desde o faroeste até o humor negro. Seu estilo de iluminação

e trilha sonora é minimalista, em que a luz não chama atenção para

si em cena e a música nasce de poucos acordes para criar e susten-

tar a tensão. Assim como Alfred Hitchcock, a assinatura dos títulos

de seus filmes vem precedida de seu nome, como John Carpenter´s

Halloween.

Os seus protagonistas masculinos são verdadeiros anti-heróis, outra

característica arquetípica de faroestes, como o mais famoso Snake

Plissken, interpretado pelo amigo Kurt Russell, em Fuga de Nova York

(1981) e Fuga de Los Angeles (1996). Apesar de incluir muitas mortes

em seus filmes, ele evita a violência gráfica, com algumas exceções,

tão em voga no cinema de terror dos anos 80 até os dias de hoje. Para

trabalhar o espaço cinematográfico na tela, Carpenter optou por rodar

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suas obras em Cinemascope, técnica de filmagem e projeção para alar-

gar as bordas do quadro, e com lentes Panavision.

Por ter uma visão pessoal muito clara e ser considerado uma pessoa

ranzinza na indústria cinematográfica, quase não aparece publica-

mente e evita dar entrevistas sobre seu trabalho. Carpenter recu-

sou uma série de projetos que poderiam ser transformados em suas

mãos: O Rapto do Menino Dourado (1986), de Michael Ritchie, Top

Gun — Ases Indomáveis (1986), de Tony Scott, Armados e Perigosos

(1986), de Mark L. Lester, Atração Fatal (1987), de Adryan Line, Mutant

Chronicles (2008), e Zumbilândia (2009), de Ruben Fleischer. Devido ao

fracasso comercial de O Enigma de Outro Mundo, foi retirado do posto

de diretor do longa Chamas da Vingança (1984), que acabou dirigido

por Mark L. Lester, quando Carpenter já tinha escrito uma versão final

para o roteiro.

As grandes paixões de John Carpenter são Elvis Presley, os antigos

Cadillacs, o basquete, Howard Hawks e os Beach Boys. Em uma en-

trevista recente também elegeu alguns de seus filmes favoritos: Pa-

raíso Infernal (1939), Onde Começa o Inferno (1959), ambos dirigidos

por Howard Hawks, Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, Um Corpo

que Cai (1958), de Alfred Hitchcock, e Blow-up: Depois Daquele Beijo

(1966), de Michelangelo Antonioni.

Desiludido com o cinema após a recepção negativa de Fantasmas

de Marte (2001), que foi exaltado apenas na prestigiosa Cahiers du

Cinéma e em outras poucas publicações, Carpenter resolveu tirar

férias e se dedicar à família e a pequenos projetos pessoais que

não chegaram a se concretizar. O retorno ao ofício só acontece por

meio de convite para a série de televisão Mestres do Horror, com

a obra-prima Pesadelo Mortal (2005). Desde então, só mais dois

filmes, reclusão e silêncio por parte de um dos principais nomes do

horror contemporâneo, que decreta a sua posição no cinema com

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uma amarga e realista declaração: “na França, eu sou um autor; na

Alemanha, um cineasta; no Reino unido, um diretor de cinema de

gênero; e, nos Estados unidos, eu sou um vagabundo”. Mas John

Carpenter, sem dúvida, ainda vive em cada (re)descoberta de seu

genial corpo de trabalho.

Leonardo Luiz Ferreira é jornalista, crítico de cinema, codiretor do documentário Chantal Akerman, de Cá (2010) e membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ).

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fORTuNA CRíTiCA

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DARk STARDark Star

EuA, 1974.

Roteiro: John Carpenter e Dan O´Bannon

Elenco: Brian Narelle, Dan O´Bannon, Dre Pahich, Cal Kuniholm

Duração: 83 minutos

Sinopse: A tripulação da nave Dark Star está numa missão de 20 anos que consiste em abrir uma trilha no espaço destruindo planetas que estão no caminho das rotas de navegação. Só que, perto do fim da jor-nada, tudo começa a sair da rota com a aparição de um alienígena e de uma bomba inteligente que acha que é Deus.

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ODark Star não esconde a influência de 2001: Uma Odisseia no Espaço

(1968), de Stanley Kubrick. Mas, enquanto 2001 fora uma superprodu-

ção em cinerama, John Carpenter realizou a sua ficção científica como

um média-metragem em 16mm dentro do curso de cinema da univer-

sity of Southern California. Quando Jack H. Harris assistiu ao filme de 45

minutos, julgou-o com qualidades para ser lançado comercialmente. O

produtor pagou o blow-up para 35mm e as filmagens adicionais para

converter Dark Star em longa-metragem.

O filme já denota várias características do estilo de Carpenter, como os

hibridismos de gêneros. Em várias cenas a comédia cede lugar ao hor-

ror, como na luta entre Pinback e o mascote alienígena da espaçonave,

uma patética bola de plástico munida de pés. Aqui também fica clara

a marca de O’Bannon, que depois, em parceria com Ronald Shusett,

ampliaria o conceito da ameaça alienígena dentro de uma espaçonave

para o roteiro de Alien, O Oitavo Passageiro (1979), de Ridley Scott.

Apesar de produzido com um orçamento final de parcos uS$ 60 mil,

o filme não deixa transparecer a sua carência de recursos. Se a ponte

de comando é tão estreita que mal cabem três astronautas, isso não

parece economia em direção de arte, mas estratégia para enfatizar a

ambiência claustrofóbica. E, se os trajes dos astronautas são compos-

tos por capacetes de brinquedo e mochilas de isopor, os detalhes são

encobertos por sujeira, antecipando o conceito de “futuro usado” que

George Lucas adotaria em Guerra Nas Estrelas (1977).

O roteiro de Cameron e O’Bannon recorre às melhores fontes da ficção

científica literária. O conceito do comandante morto e congelado, cujos

pensamentos o Tenente Doolittle pode acessar eletronicamente, é ins-

pirado no conto “O Que Dizem Os Mortos”, de Philip K. Dick. Já o destino

de Doolittle é referência ao final de “Caleidoscópio”, de Ray Bradbury.

Como uma boa ficção científica, o filme flerta com inquietações filosófi-

cas. Os poderes “divinos” possibilitados pela tecnociência — criação de

inteligência artificial, viagens intergalácticas e reconfiguração do cos-

mos por meio da destruição de planetas instáveis — contrastam com a

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O existência vazia e monótona dos astronautas. O epílogo exemplifica o

clássico embate criador-criatura: a discussão filosófica entre Doolittle e

uma bomba atômica inteligente, que deseja explodir sem se desconec-

tar da nave. Recorrendo ao conceito da dúvida hiperbólica cartesiana,

Doolittle convence a bomba de que ela não pode provar que o universo

percebido por seu aparato sensor realmente existe. Assim, a bomba

não tem razão para obedecer ao comando que ordena a sua detonação.

inicialmente, o argumento funciona. Mas, ao aprofundar a discussão fe-

nomenológica, a bomba, citando o Gênesis, conclui que existem apenas

Ela e a escuridão. E sentencia: “Faça-se a luz!”.

Dark Star não foi um sucesso de bilheteria, mas logo se tornou cult,

provando que John Carpenter era capaz de fazer joias cinematográficas

com baixo orçamento e grandes ambições. Nascia uma estrela sombria.

Fátima Regis é Doutora em Comunicação e Cultura pela uFRJ, professora da Faculdade de Comunicação Social da uERJ e autora do livro “Nós, Ciborgues: tecnologias da informação e subjetividade homem-máquina”. Curitiba (PuC-PR): Editora Champagnat, 2012.