jogar ou trabalhar? relações sociais, espaço e tempo no...
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Jogar ou trabalhar? Relações sociais, espaço e tempo no trabalho na Internet
"Prepared for delivery at the 2001 meeting of the Latin American Studies Association, Washington, DC, September 6-8, 2001"
Panel “Changing Working-Class Lifestyles in Latin America”
Gisélia Franco Potengy
Instituto de Estudos da Cultura e Educação Continuada Av. Princesa Isabel , 323, sl. 709
Rio de Janeiro - RJ CEP: 22. 011.010
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Jogar ou trabalhar? Relações sociais, espaço e tempo no trabalho na Internet
Gisélia Franco Potengy1
"é um ambiente todo,
dentro do qual estou inserido e
sem o qual eu não respiro"
RESUMO : Este artigo resulta de duas pesquisas qualitativas realizadas entre profissionais de classe média no
Rio de Janeiro (Brasil) entre os anos de 1996/2001. Trata das mudanças da relação com o tempo e o espaço entre
os profissionais que trabalham com tecnologias de Informação, ligados às redes de comunicação, como a
Internet. Destaca-se como a extrema variedade das relações de trabalho e a possibilidade dada pela tecnologia
permite que os tempos e os espaços de trabalho, doméstico e de lazer se misturem, imbricando-se uns nos outros.
Esta situação se reflete sobre o sentido que o profissional empresta a seu trabalho. Relativiza-se a idéia do
trabalho autônomo, criativo e livre de controles, ressaltando-se o controle do tempo e do espaço de trabalho; e as
jornadas muito longas e crescente intensidade do ritmo de trabalho.
Seja destinado ao lazer ou ao trabalho a entrada do computador na casa, reino do
privado e da família, modificou radicalmente a dinâmica das relações sociais. As novas
tecnologias de informação, possíveis pelo uso do computador, confundiram as esferas de
trabalho e lazer, estes espaços e tempos, antes tão delimitados; muitas vezes, não se sabe
quando começa um e termina o outro - com um simples clicar passa-se de um jogo para o
trabalho, de um site para outro na Internet.
Esta mudança da organização do tempo e do espaço de trabalho leva a uma
reconfiguração do seu sentido no modelo do industrialismo. Antes da massificação das novas
tecnologias de informação o trabalho era realizado em um determinado espaço, em um tempo
destinado às atividades da produção, e o lazer e a domesticidade vivenciado em outros
espaços e momentos; com o uso das ferramentas de informatização houve um imbricamento,
uma "mistura" das várias esferas da vida no que se refere ao tempo e ao espaço, antes tão
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delimitadas – espaço de trabalho e espaços de casa e lazer, tempo de trabalho e tempo de casa
e lazer. Pretendemos, neste artigo, examinar como os profissionais envolvidos com estas
mudanças vêm reconfigurando o sentido do trabalho, a partir de duas pesquisas qualitativas,2
com entrevistas abertas com roteiros pré estabelecidos realizadas na cidade do Rio de Janeiro
(Brasil), Na primeira, (1996/1998) analisamos as conseqüências da reestruturação produtiva, a
transformação das relações de trabalho e a nova organizações das identidades em um campo
de atividades em expansão com variados níveis de qualificação, reconstruindo as trajetórias de
trabalho de 35 profissionais da micro-informática. Na segunda pesquisa (1999/2001)
prosseguimos com esta reflexão estudando os profissionais que como empregados, conta-
própria ou empresários estão incorporados ao universo das empresas ligadas à Tecnologia da
Informação, com ênfase nas chamadas "empresas pontocom" ou de organizações que têm
algum segmento voltado para a Internet.. São atores sociais da chamada "Nova Economia".
Nesta ocasião realizamos 28 entrevistas. Neste artigo não pretendemos tratar das relações dos
indivíduos com a realidade virtual mas analisar suas relações com o tempo e o espaço, a partir
das mudanças que vêm acontecendo no mundo do trabalho e das condições específicas de
realização de suas tarefas.
Castells faz uma distinção crucial em relação à mão-de-obra que se distingue em
relação à capacidade de atingir níveis educacionais mais altos, ou seja, os conhecimentos
incorporados à informação. Enquanto a mão-de-obra autoprogramável, através de um
processo de educação ou instrução, adquiriu a capacidade de reprogramar-se para as
diferentes tarefas em contínua mudança no processo produtivo, a mão-de-obra genérica só é
capaz de receber e executar sinais a fim de desempenhar determinada tarefa sem nenhum
recurso de reprogramação.(Castells, v. 3:. 504).
No universo que observamos a mão de obra genérica está, de uma maneira geral,
1 Doctorat en Sociologie et Économie Rurales. Mestrado em Antropologia Social. 2 Estas duas pesquisas realizadas em colaboração com Elisa Castro e João Paulo de Macedo Castro, fazem parte de dois projetos mais amplos, apoiados pelo CNPq/CCDT e FINEP e coordenados pela Dra. Vanilda Paiva, onde também foram estudados os professores dos diferentes graus de ensino, os programas de demissão voluntária e
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empregada em tarefas que exigem força física, como na estruturação de redes corporativas,
onde é necessário fazer obras ou, por exemplo, na montagem de computadores cujas tarefas
são rotinizadas. Nesta categoria encontram-se, também, os digitadores que preenchem
formulários ou que alimentam os sites, com salários mais baixos, considerando a média dos
salários da mão de obra auto programável. De qualquer forma, a escolaridade mais baixa que
encontramos foi o 2º grau, com algumas exceções que confirmam a regra. Esta é apenas uma
primeira distinção em um universo extremamente diversificado em relação à formas de
relações de trabalho, especialidades, jornadas e local de trabalho, formas de organização e
controle do trabalho e salários.
Uma das peculiaridades do mercado de trabalho ligado às tecnologias de informação é
a diversificação das atividades em função da proliferação dos serviços, surgidos a partir da
massificação da Internet, constituindo-se uma vasta área de atuação para profissionais de
diferentes formações e trajetórias. Não somente novas atividades se desenvolveram como
também profissões antigas foram transformadas e enquadradas em novas exigências. Estes
movimentos tornaram-se possíveis somente a partir do momento em que as redes de
informação, particularmente a Internet, assumiram uma dimensão importante no quadro da
economia mundial.
Como uma das características das redes como espaço de trabalho é a conjugação de
diferentes especialidades em um único projeto, houve um aumento considerável da migração
entre atividades, decorrendo daí, um maior esforço de adaptação a esta nova linguagem, por
parte dos mais diferentes profissionais, com formações bem diversificadas, como aqueles
ligados à informática, desenho industrial, desenho gráfico, marketing, psicologia, jornalismo,
recursos humanos, etc. Todas estas especialidades, e outras mais, podem ser absorvidas e
inseridas no conjunto da produção das redes de informação.
Para a maior parte dos profissionais neste campo de atividades, a jornada de trabalho é
os serviços pessoais
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longa, o ritmo é intenso, os prazos são exíguos e as exigências de qualidade são altas. Estas
atividades são muito instáveis e obedecem a variados critérios de normatização por serem
“recentes” e terem nascido ou se desenvolvido em um ambiente social no qual há uma grande
ênfase na desregulamentação e na flexibilidade, como veremos pela descrição que um de
nossos entrevistados, jovem engenheiro, faz sobre a estratégia de contratação de uma
empresa:
" Durante a minha faculdade... A empresa FXTP volta e meia requisitava free-lancers para
fazer trabalhos de engenharia de software de localização, que eles chamam de engenharia de
localização. E eu entrei lá. Como era trabalho remunerado por hora e eu era novo, tinha 18
ou 19 anos, eu trabalhava muito (...) Cheguei a trabalhar 22 horas num dia só. A FXTP sub-
contratava outra empresa, que chamava garotos da faculdade, que estivessem de férias e
quisessem trabalhar o quanto quisessem. (...) Eram uns 30 ou 40 reais por hora. Era uma
coisa bastante grande para um garoto de 18 ou 19 anos. Eles pagavam as horas todas. E a
gente trabalhava com RPA (recibo que regulariza o trabalho esporádico). E aí eu trabalhei
duas vezes assim, por períodos um de 15 dias e o outro de um mês, uma vez fazendo teste,
mas acabei querendo aprender como é que era engenharia de localização e me tornando um
bom engenheiro de localização e entrei para trabalhar."
As jovens empresas da Internet nasceram no contexto do trabalho flexibilizado e as
antigas empresas que utilizam a rede para seus negócios estão rapidamente se adaptando aos
novos tempos de flexibilidade e reengenharia. Trabalha-se em equipe, por projeto nas mais
variadas relações de trabalho: estágios não remunerados e remunerados, assalariamento com
todas as garantias, contratos por "projeto", trabalho independente (conta-própria), que,
eventualmente, também contrata trabalho de outras pessoas, através de terceirizações e
quarteirizações, empresas dentro de empresas, etc. A proteção social tornou-se cada vez mais
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rara, e o empregado assume totalmente os riscos.
Encontramos conta próprias (trabalhadores independentes) trabalhando em casa;
pequenas empresas que não possuem sede e funcionam na residência de um dos sócios;
empresas com sede fixa e que compreendem pessoas jurídicas no seu interior.
Na onda do empreendedorismo as empresas (indo de pequenas a médio porte) podem
se constituir a partir da externalização dos serviços de outras, formando cadeias de empresas
ligadas umas às outras. Uma forma comum de contratação é aquela em que o profissional
funda sua própria empresa, juridicamente legalizada para poder realizar um contrato com uma
firma contratadora de mão-de-obra. Esta última "prestadora de serviços" é quem oferece a
mão-de-obra para uma outra empresa onde o trabalho será, finalmente, realizado. O
profissional, sob a forma de uma empresa legalizada, trabalhará recebendo a remuneração
sob a forma de um contrato entre empresas, e poderá realizar várias tarefas específicas para
várias firmas ou uma tarefa específica em uma "equipe", responsável por um "site", por
exemplo, com uma estrutura hierárquica, obedecendo a prazos e a exigências de horários e
de qualidade ditadas pela última empresa na cadeia, e no espaço por ela organizado. Neste
caso, não há autonomia do trabalhador, ele está integrado em uma "equipe", que tem um
objetivo comum de cumprir as tarefas do grupo mas, onde convivem diferentes relações de
trabalho.
Todas estas formas de flexibilizações visam um enxugamento da folha de pagamentos
e têm como conseqüência uma exposição maior do trabalhador a riscos, por exemplo, não há
ganho quando não pode trabalhar por doença, recaindo sobre ele próprio a responsabilidade
dos riscos de saúde e previdência na velhice.
Para compreender esta diversidade elaboramos uma formalização a partir do discurso
dos entrevistados. Tomamos algumas categorias consideradas como tipos-ideais como o
"emprego" (assalariado, com todas as garantias), o "conta-própria", a "empresa dentro da
empresa" e a "empresa".
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Utilizando estes tipos-ideais podemos construir vários continuum levando em
consideração a liberdade ou a "sujeição", e o maior ou menor risco em relação a perdas de
direitos, apoiados no discurso dos entrevistados. Por exemplo, a situação do profissional que
trabalha como assalariado (isto é, com a "carteira assinada", o que lhe dá todas as garantias
jurídicas) é percebida como mais segura porque pode contar com o salário todo mês e é
"protegido" pela legislação trabalhista, entretanto, não tem "liberdade", isto é, não dispõe do
seu próprio tempo, na medida em que ao vender sua força de trabalho, vende uma parte do
seu tempo e também tem sempre presente o risco do desemprego. Ao contrário, a situação do
conta própria aponta para uma forte valorização da liberdade no que diz respeito a horário de
trabalho e controle direto do empregador, mas está exposto à incerteza de não saber a quantia
com a qual poderá contar, no final do mês, ao mesmo tempo que a procura por trabalho é
renovada a cada dia. O fazer seu próprio negócio, montar uma empresa, ser um
empreendedor aponta tanto para uma valorização em termos de status porque passa a comprar
a força de trabalho de outros e deixa de vender sua própria força de trabalho, como para uma
imagem de "liberdade", de autonomia em relação a controles e à vigilância patronal, embora
tenha todas as incertezas próprias do conta própria, por fim, a empresa dentro da empresa
aponta para uma valorização na mudança de status que passa de empregado-subordinado para
empregador, de quem vende o trabalho para aquele que compra o trabalho, embora esta
relação esconda relações de subordinação.
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LIBERDADE ( TEMPO LIVRE) _ + |_____________________|__________________|___________________________| Carteira Empresa Conta Própria Empresa assinada dentro da
empresa
SEGURANÇA + _
|_____________________|__________________|______________________| Carteira Empresa Conta- Própria Empresa assinada dentro da
empresa
Tanto o empregado quanto o empresário se vêm com pouca segurança e assumindo
muitos riscos. O primeiro, porque mesmo com as leis trabalhistas lhe assegurando algum tipo
de proteção social, está sempre assumindo o risco do desemprego e o segundo, porque é
inerente à sua própria condição o risco da falência, de não dar certo o negócio próprio, e de
ficar sem nada. E, cada um se vê como assumindo maiores riscos do que o outro.
As redefinições espaciais e temporais envolvidas no planejamento e na execução dos
serviços ou, dito de outra forma, a variabilidade de espaços onde o trabalho é alocado
(empresa, casa, cliente etc.), de tempos (jornadas flexíveis) e os tipos de demandas (clientes)
criam arranjos de organização do trabalho que combinam práticas gerenciais conhecidas com
outras formas de controle do trabalho.
As tecnologias da informação possibilitaram a proliferação de empresas que rompem
com algumas características do trabalho tradicional como, por exemplo, prescindir de um
espaço físico “especial”, uma sede. Não raro, encontramos empresas “virtuais” que só
“contratam” mão-de-obra quando possuem demandas de mercado, mantendo alguns destes
contratados como "funcionários remotos", trabalhando em casa ou em qualquer outro espaço
de sua conveniência, fora das vistas do empregador.
Esta vivência da indefinição dos espaços e dos tempos de trabalho e doméstico parece
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provocar, pelo menos, duas reações opostas entre os profissionais da área: uma intensa
incorporação ao dia a dia doméstico do uso do computador ou uma minimização do seu uso.
A diferença entre os dois comportamentos remete a questão às relações de trabalho
estabelecidas. Aqueles que “criam” seu próprio trabalho, como o trabalhador independente ou
por conta própria dado que as condições ambientais de trabalho dependem unicamente deles
costumam separar um espaço considerável da casa para o trabalho, reproduzindo o escritório
no âmbito doméstico. Na medida em que a tecnologia permite, com a conexão dos
computadores em rede, que seja possível trabalhar em casa, de forma virtual, estes
profissionais defendem a constituição de um espaço especial de trabalho na casa utilizando
vários argumentos : o primeiro é de um melhor uso do seu tempo, sem desgastes em
deslocamentos nas cidades com tráfego difícil e cheio de engarrafamentos, além de ficarem
mais tempo com a família. Em seguida, porque conseguem uma maior autonomia no seu
trabalho, longe do controle dos " chefes" e coordenadores. Estas justificativas ajudam na
construção de uma imagem do trabalho que se quer autônomo, "livre" de ingerências e do
controle quotidiano do empregador.
Aparentemente, esta visão ideal do trabalho em casa não leva em consideração a
dificuldade de sua realização quando entram em cena as relações domésticas, como a atenção
requisitada por filhos pequenos ou pelas exigências do trabalho doméstico, como relata este
entrevistado :
“Acho maravilhoso poder trabalhar em casa.... Lógico que não é ficar o dia inteiro em casa,
mas se puder ficar mais tempo e ter o seu ambiente de trabalho dentro de casa é muito bom...
Separar isso é complicado eu, por exemplo, tenho uma filha pequena de dois anos e para ela
entender que aquilo ali é o meu ambiente de trabalho... achei que ia ser supercomplicado, o
que faço: fecho a porta e ela é proibida de entrar. Para ela entender que quando entrar ali
não pode ficar pedindo para sentar no meu colo, ficar querendo usar o computador, eu forço
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a barra para não querer, se ela ficar sentada no meu colo mexendo nas coisas, de um
momento em diante ela não pode, então ela tem que entender que nunca pode, foi a forma
que eu encontrei... engraçado que ela já entendeu isso, às vezes ela fala: 'vai para o trabalho
pai', significa entrar no quarto. Eu não sou tão rigoroso... deixo ela entrar se ela pedir... é
maravilhoso deixar ela entrar... só que tenho que tentar de alguma forma trabalhar e se ela
ficar ali o tempo todo não consigo” .
Assim, apesar do "home-office" representar maior conforto e bem estar, não somente
dificulta a separação dos espaços de trabalho e doméstico, como obriga o indivíduo a repensar
as relações entre os dois espaços, a redefinir as relações sociais e afetivas aí estabelecidas.
Essa dificuldade, ditada pela tradição cultural da separação do espaço do trabalho, não impede
que se valorize positivamente os novos tempos. A sobreposição do espaço e do tempo, da
esfera da produção e da reprodução, no trabalho domiciliar (isto é, realizado no lar para
realização de um ganho) nos leva a concordar com Bruschini (1995) que chama a atenção
para a maior dificuldade que as mulheres têm de definir, no interior da casa, estes espaços e
estes tempos. Assim, os homens parecem delimitar melhor o espaço profissional, preservando
sua identidade na atividade produtiva, fonte principal de sua identidade. As mulheres cuja
fonte principal de identidade parece se efetivar no trabalho da reprodução tendem a misturar
espaços e tempos, muitas vezes obrigadas pela forma pela qual se efetua a divisão do trabalho
doméstico entre os sexos.
Estes profissionais contam também com a dificuldade daqueles componentes da
família não iniciados em informática em compreender o que fazem tanto tempo no
computador como aparece neste relato:
“as pessoas não conseguem entender o que você está vendo ali, é parecido com quando você
joga xadrez, o camarada não consegue entender como você consegue ficar parado tantas
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horas, diante de algo que para ele é a mesma coisa, uma tela que é igualzinha o tempo todo.
Acham que você está brincando ali... que você está vendo algum joguinho”.
O uso do tempo no "home-office" não somente é intensificado como, facilmente, se
adapta às mais diversas circunstâncias ditadas pela globalização, como se pode ver neste
relato de um profissional que é empregado, como Diretor de Vendas para a América Latina
de uma empresa com sede no Vale do Silício, sobre o tempo que gasta para as tarefas que
realiza
:
"E você, como é que você trabalha, como é o teu dia? Você me disse que tem home-office?
Home-office é um canto do meu quarto onde tem uma mesinha, tem um laptop ligado à
Internet,uma impressora e um scanner. E é com isso que eu faço os projetos de telefonia IP
para toda a América Latina. Eu recebo dos vendedores as especificações técnicas dos
clientes, dimensiono a rede, vejo qual é o equipamento mais adequado para ser utilizado,
monto o projeto, dimensiono o preço, otimizo as soluções com o pessoal de vendas e o
cliente, estabeleço um preço que vai para a mão do vendedor. Na verdade, é um tipo de
diretor muito bem remunerado, mas que trabalha muito; eu começo a trabalhar às sete e
meia da manhã e o expediente na Califórnia começa ao meio dia, aí tem o fuso horário... ,
dependendo do horário de verão 11 horas da noite eu ainda estou conversando no telefone
com o pessoal da Califórnia, que eu sei que só trabalha no expediente deles, para obter as
informações que preciso eu tenho que trabalhar no expediente deles. Então eu faço a vez do
Brasil aqui, o expediente normalmente de 9 às 18 hs., então, às 7:30 hs. eu já estou baixando
e-mail, já estou respondendo correspondência, e faço o expediente da Califórnia também. E
assim é com todos os outros quatro empregados."
Os trabalhadores por conta própria (totalmente ou complementar a um emprego) e
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aqueles que recebem uma remuneração por tarefa ou por projeto investem mais em
equipamentos ou envidam esforços no sentido de conseguir um ambiente tranqüilo e eficiente.
Desta forma, encontramos um profissional que trabalhando como gerente de projeto para uma
cooperativa, e ganhando por projeto, tem em sua casa 3 micros ligados em rede, um outro
micro e duas impressoras. Usa muito a Internet. Tem fax. Todo este equipamento fica em um
dos 3 quartos da casa e é utilizado por ele e pelos dois filhos que fazem Mestrado em
Informática.
Outro entrevistado que trabalha como conta própria, com contrato de gestão em uma
empresa, tem 3 microcomputadores ligados em rede e costuma trabalhar muito em casa.
Percebe-se, em seu relato, a difusão do computador na família. Em sua casa há um micro no
seu escritório e um em cada quarto dos filhos mais velhos, tem acesso à Internet 24 horas,
através de cabo. Atualmente todos os membros da família usam computador e Internet. Outro
entrevistado, gerente de informática da direção de uma empresa, com contrato por tempo
determinado e em tempo parcial, e com mais duas atividades por conta própria, relata o tipo
de utilização que faz do seu computador em casa e a relação que tem com o trabalho:
“O meu computador de casa não desliga nunca. Então, se eu quiser ligar daqui (da
Universidade) para minha casa e pegar um arquivo e trazer para cá eu trago! Quando eu
chego em casa, quero ligar para cá, eu ligo para a Internet, entro aqui, mexo tudo que eu
tenho que mexer, e volto... e, quando eu vou para o jornal... no monitor do computador... eu
tenho acesso a Internet pleno, total, absoluto. Então... a Internet é inviável para se estudar,
ela... é a minha grande diversão! A parte lúdica da história é isso, o resto é ter que descobrir
uma informação, etc.”
Como vemos, mesmo aqueles que têm um ambiente de trabalho fora de casa, a
possibilidade de se conectar em rede torna o ambiente doméstico uma extensão do escritório
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ou como um entrevistado, com 45 anos, solteiro, doutor em Informática e pesquisador na
Universidade, que se auto define como um viciado em computador. Tem 3 computadores em
casa. Usa muito a Internet. Tem CD Room. Compra muito periférico.
Entretanto, os mais jovens que começaram entusiasticamente sua relação com o
computador, e estão hoje inseridos em formas de relações de trabalho flexibilizadas, não têm
a mesma relação com o equipamento. Se antes o computador era um instrumento de lazer,
misturando-se ao tempo de trabalho, o que fazia com que permanecessem, por longos
períodos, à sua frente, hoje ele perdeu um pouco o atrativo. Estes mesmos profissionais não se
divertem tanto mais com ele, em alguns casos restringindo o seu uso intensivo ao local de
trabalho, passando a ser bem menor a utilização do equipamento no âmbito doméstico.
Embora, com a Internet, tenha voltado a ser usado como um dos principais meios de
comunicação; o que mais os atrai atualmente é a possibilidade de acessar a rede formada por
amigos ou de participar dos mais variados "chats". Esta comunicação é vista como lazer e
mantida de forma regular, seja para trabalho, seja para “bater papo.”
A extrema intensidade do trabalho vivida por todos os entrevistados aparece quando
vemos que é comum as tarefas serem realizadas, em grande parte, em casa, sem respeito a
horários domésticos, utilizando-se a noite e os finais de semana. Como relata este
entrevistado, com 41 anos, duas filhas, mulher arquiteta, morando em apartamento de 4
quartos em um bairro de alta classe média no Rio de Janeiro. Com três atividades diferentes
(uma onde é assalariado e mais duas complementares) constata, neste trecho, o ritmo do
trabalho que experimenta e a enorme importância que o computador passou a ter em sua vida
:
“Eu não tenho dia típico na minha vida... porque eu tenho a sensação nítida e clara, que não
tenho mais trégua...trabalho de manhã, de tarde e de noite... quantas horas trabalho por dia é
difícil dizer...geralmente fico no computador até uma hora, uma e meia, duas da manhã...
quase todo dia”.
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Ou, como relata esta entrevistada que trabalha como assalariada mas também
realiza atividades complementares:
Eu acho que os horários de trabalho ficam meio confusos. Porque às vezes durante a semana
eu tenho um monte de coisa para fazer, mas eu quero adiantar um trabalho. Eu me programo
para sábado à noite, eu não vou sair, eu vou ficar... o trabalho invade essas horas
tradicionalmente tidas como horas de lazer. Às vezes sexta de noite, sábado de noite,
domingo..... Eu tenho um amigo que é tradutor, trabalha também com clientes na Internet. E
ele trabalha em casa, e diz sentir falta do contato com outras pessoas. É uma coisa que eu
não tenho tanto porque eu tenho o meu ambiente.... Essa coisa de você sair de casa, ir até um
lugar, encontrar pessoas, trocar informações, sair para almoçar junto, isso acaba sendo um
espaço de lazer e a partir dali você tem a idéia de ir a um show, de ir ao cinema. Quando
você está trabalhando só dentro de casa, já é uma outra realidade que não é a minha."
A intensidade do trabalho se conecta ao exercício de várias atividades, incluindo a de
informática ou ao estabelecimento de várias relações e vínculos, com diferentes “clientes”.
Desta forma, seja o trabalho realizado parcial ou totalmente no espaço do lar ou de uma ou
várias empresas, muitos vínculos e vários compromissos são estabelecidos o que torna o
quotidiano extremamente estafante, tendendo a criar uma imagem de vida cotidiana
estressante, não existindo tempo livre. Foi esta imagem que apareceu, claramente, no
momento em que iniciamos os primeiros contatos para realizar a pesquisa de campo. A
primeira resposta dos entrevistados era sempre de hesitação, alegando total falta de tempo.
Mesmo considerando que a jornada de trabalho gira, normalmente, em torno de 10 horas
diárias, pudemos perceber uma fuga do trabalho e o uso do tempo de lazer. Um dos
entrevistados que mais negociou o tempo de duração da entrevista, concedeu um dos
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depoimentos mais longos. Durante a entrevista, enquanto o telefone tocava, deixou a
secretária eletrônica ligada ou desmarcou compromissos. O fato da entrevista ter como tema
central as trajetórias de vida e profissional parece ter gerado um interesse maior do que as
atividades que deveria realizar naquele dia, fazendo-o escolher a atividade extra-cotidiana.
Da mesma maneira, a primeira resposta dos jovens ao serem perguntados sobre tempo
livre é de que trabalham o tempo todo. No entanto, ao pedirmos, de forma mais explícita, que
detalhassem o seu cotidiano e outros interesses, além da informática, constatamos que muitos
têm uma segunda atividade, como música, esporte, ou dança e que o fim de semana nem
sempre é invadido pelo trabalho, costumando saírem para barzinhos, para dançar, viajar, etc.
Os que têm família constituída ou estão constituindo afirmavam que procuram delimitar
melhor o tempo de trabalho e o tempo de lazer. Essa é uma geração cujos pais, pelo menos
nas classes média e alta, ocupavam o tempo dos filhos com atividades saudáveis e criativas,
que os mantivessem dentro de casa ou no âmbito de um espaço seguro, como um clube. Com
isso, muitos adquiriram o hábito de praticar esporte ou de ter hobbies. Os entrevistados
tendem a fortalecer esta imagem de intensidade do trabalho na área, por constituir um
elemento que lhes confere mais legitimidade e prestígio social. A oposição trabalho/tempo
livre, é valorativamente percebida. Assim, o trabalho enobrece e o tempo livre representa
“vagabundagem”. Uma imagem de “modernidade”, onde uma vida cotidiana ocupada e de
múltiplas atividades é símbolo de status.
Este tipo de relação com o tempo, todavia, não pode ser debitada unicamente ao uso
do computador. Em alguns casos, ele apenas possibilitou que as pessoas pudessem aplicar no
quotidiano suas formas preferidas de se relacionar com o tempo, criando novos modelos de
disciplina de trabalho. Assim, entrevistamos um engenheiro que abandonou uma carreira em
empresa estatal e passou a trabalhar por conta própria e relata como sempre viveu sua relação
com o tempo :
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“Para mim é infinitamente melhor, porque sou indisciplinado em termos de horário, gosto de
trabalhar à noite, não gosto de trabalhar 7 horas da manhã. Não gosto de sentar e alguém
dizer agora você faz isto... se por um lado, preciso de muito tempo para ver uma determinada
coisa, fazer uma massa crítica de informações, também ando muito rápido e quero andar no
meu ritmo, não no ritmo que alguém me diz que tenho que andar, então se estiver a fim de
estudar 20 horas num dia, vou estudar 20 horas num dia! Mesmo que no dia seguinte durma
o dia inteiro. Se eu tiver... que passar de uma sexta a uma segunda trabalhando, durmo 2 a 3
horas por dia e passo a semana inteira sem fazer nada... Porque eu acho que quem manda
nesse ritmo é o problema, é a questão, não o que eu quero, quando resolver, descanso. Mas
enquanto não resolver a questão não descanso. Então trabalho em cima dela. Isso para mim
é fantástico.”
A relação diferenciada que cada pessoa tem com o tempo pode ou não combinar com a
flexibilidade permitida pelo trabalho por conta própria e pelas possibilidades abertas pelo
uso do computador, facilitando ou provocando necessidades de adaptação e de maior
disciplina, como um outro entrevistado, (40 anos, atualmente trabalhando como gerente de
projeto em uma cooperativa de trabalho) que prefere ter um horário fixo, opinando que o
flexível exige muita disciplina.
Entre os solteiros, que moram sozinhos, a solidão do trabalho em casa pode ser
percebida como algo inerente ao trabalho no computador sendo, portanto, irrelevante o espaço
em que a tarefa é realizada. Outros, preferem, que as tarefas fossem realizadas fora de casa. E
outros opinam que a necessidade de isolamento depende da tarefa exigir maior ou menor
concentração.
A intensidade do trabalho realizado no espaço doméstico é regulada também por
outros fatores, como a pressão familiar. Assim, o marido de uma entrevistada sempre reclama
muito quando ela tem que trabalhar em casa, nos finais de semana. Outros que trabalham
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muito durante a semana - com até três atividades diferentes para manter o padrão de vida -
sofrem a pressão familiar, mas pensam que não têm escolha. Podemos perceber a dimensão
que o computador pode passar a ter na vida destes profissionais através do relato do
quotidiano de um dos nossos entrevistados que, como muitos outros, transformaram o
computador em algo mais do que somente um instrumento de trabalho :
“É quando estou com as minhas filhas, tenho uma hora da noite em que a gente fica junto, eu
vejo dever... vejo como está a cognição delas... Enfim, contas da casa.... Mas, terminada essa
parte, as meninas vão fazer o dever, ou enfim, vão ver algum filme, e eu vou para o
computador... fico até uma hora, uma hora e meia. Já houve reclamação, claro!... não tenho
alternativa... tenho três empregos com os quais eu mexo diretamente com computador todo o
tempo... não tenho como escrever matérias... sem ser dentro do computador... não tenho
como fazer a revista... sem estar dentro do computador, não posso escrever coisas para a
rede daqui, ou entrar na rede daqui sem estar no computador. Então... ele não é um
instrumento de trabalho... é muito mais do que isso... é um ambiente todo, dentro do qual eu
estou inserido e sem o qual eu não respiro”
A renovação da função do lar como espaço de trabalho envolve inevitavelmente os
outros membros da família, havendo muitos casos em que, muitas das atividades do projeto
do trabalhador são divididas entre os outros componentes. Em uma das famílias, todos os dois
filhos que fazem Mestrado em Informática, trabalham com o pai que tem uma prestadora de
serviços de informática , em casa e sua mulher funciona como secretária.
As circunstâncias que envolvem o trabalho realizado no âmbito doméstico torna difícil
a mensuração da jornada de trabalho. Um dos entrevistados que teve muita dificuldade em
precisar as horas de trabalho, gosta que o trabalho seja realizado em casa, com os filhos
ajudando a programar ícones e a mulher atuando como secretária, e ele indo à empresa
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somente para reuniões. Dessa forma, o quotidiano doméstico e a esfera de lazer se confundem
com o trabalho e com a família. No seu entender “a casa é meio empresa também... Essa é a
verdadeira empresa familiar”.
Um outro entrevistado que está montando um provedor de Internet, almeja trabalhar
confeccionando home pages, com a mulher, que é “designer” e que no momento tem um
emprego estável.
Nas atividades ligadas à Internet as formas de controle do empregador sobre o trabalho
do seu empregado, estão conectadas obrigatoriamente a questões relativas ao tempo e ao
espaço. Os serviços realizados utilizando as ferramentas informatizadas dispensam que o
trabalho seja realizado em um espaço e em um tempo organizado e controlado pelo
empregador, sendo passível de ser realizado nas instalações de um cliente ou nos mais
diferentes espaços, dependendo apenas de um computador. Desta forma, em teoria, não
somente os trabalhadores por conta própria ou aqueles que são contratados para realizar uma
determinada tarefa mas, também aquelas que têm um contrato regular, não flexibilizado,
protegido pelas leis trabalhistas podem trabalhar "em casa", não mais apenas no espaço da
empresa. Entretanto, esta não é uma situação que agrade ao empregadores, que preferem que
o empregado esteja disponível para eventuais tarefas, o que traz mais segurança ao realizar
um contrato, pois sabe que pode contar com a mão-de-obra necessária ao projeto.
Desta forma, é necessário assegurar um bom ambiente de trabalho para que o
profissional se sinta atraído em fazer sua tarefa nas instalações da empresa. Em muitas das
jovens micro empresas voltadas para a Internet, dado que as jornadas de trabalho são
freqüentemente muito longas, procura-se proporcionar uma ambiente extremamente amigável,
de brincadeira, um verdadeiro play-ground, em que o profissional se sinta à vontade, como se
estivesse em casa ou no seu lazer. Além das fortes tonalidades do ambiente, os móveis são
coloridos e maquillados (micros com capas de animais, por exemplo). Pode-se parar o
trabalho para jogos virtuais, andar de bicicleta ergonômica, pular na cama elástica ou tomar
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um banho de piscina. O ambiente torna-se tão amigável que encontramos um caso em que
dois jovens empresários alugaram uma casa ampla onde moram e têm uma empresa, onde
trabalham com seus 9 funcionários estagiários, em tempo parcial. Muitos, depois do
expediente, permanecem ou voltam para o ambiente de trabalho, para se divertir. Aliás, a
própria noção de expediente e da, conseqüente oposição entre tempo de trabalho e tempo de
lazer é mal aplicada aqui, diluída pelas inúmeras possibilidades das tecnologias de
comunicação. Esta forma de gestão do trabalho certamente, de um lado contribui para
reforçar os laços da equipe, e de outro permite que a mão-de-obra esteja sempre disponível,
para eventuais tarefas, além de constituir um controle que conta com a cumplicidade do
próprio profissional, como podemos ver no relato abaixo::
"As pessoas aqui trabalham em tempo parcial, até porque todo mundo estuda, então não tem
outro jeito. O pessoal faz horário, um dia vem de manhã, um dia vem à tarde. É flexível.
Eu acho ótimo trabalhar e morar no mesmo lugar. Eu sou viciado nisso. Eu acho que se tiver
que mudar, que fazer diferente vou entrar em parafuso.
P: Mas, como é que vocês organizam o tempo de lazer e o tempo de trabalho de vocês?
R: A gente não organiza. Temos coisas a serem feitas. A gente faz, trabalha um número alto
de horas sendo que não são seguidas, não são tradicionais, não é de nove às seis. Às vezes,
de dez às cinco, pára, e volta de nove à meia noite. Tem dia que sete horas da manhã eu já
estou aqui, às vezes, começo a trabalhar de manhã cedinho. E, a gente pára para ver um
vídeo. No meu aniversário parou todo mundo. Ficou vendo vídeo. Comeu bolo. Então a gente
gosta disso. Eu gosto de acordar, não perder muito tempo, ir lá. Eu gosto de dia de domingo
acordar, sentar no micro, trabalhar. Tem que fazer alguma coisa, eu saio, volto. É o esquema
que funciona para a gente. A gente tem uma disciplina suficiente para saber as coisas que
têm que serem feitas. E elas são feitas. Até mais rápido porque a gente está aqui. Corta
totalmente o tempo de deslocamento. Mas, os clientes te acham o tempo inteiro. Isso, às
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vezes, pode ser meio ruim.
P: E as pessoas elas podem trabalhar em casa, caso não consigam terminar alguma coisa
aqui?
R: Isso acontece, mas não é muito comum não.
P: Vocês não incentivam?
R: Não. Porque a nossa estrutura está bem montada. Então, você tem os micros todos em
rede, tem um servidor que tem backup diário. Então a gente não vai ter risco de perder
nada. Tem acesso à Internet centralizado. Chega, ás vezes, um cliente na hora e ele quer
alguma coisa para daqui há uma hora, está aqui. Então a gente não incentiva. Agora, tem
alguns tipos de serviços que, realmente, fazem pouca diferença você estar aqui ou não. E, às
vezes, uma pessoa fala: 'eu estou meio doente, me manda para eu fazer em casa’. Não vou
falar não. Faz. O Paulo, que é meio maluco, fala assim: 'Esse final de semana eu não vou
fazer nada. Vou levar umas coisas para fazer em casa'. Quer fazer, faz. Tudo bem. Ele leva
faz e traz. Mas não é uma coisa que a gente gosta muito. A parte de cima da casa é o
escritório e em baixo é a casa. Aqui está a área toda, montada. E lá em baixo também tem
micro, ligado à rede. Mas são micros pessoais.
P: Vocês fazem algum tipo de distinção entre o trabalho e a diversão?
R1: Com certeza. Mas é psicológico. É mais psicológico do que físico. Tem finais de semana
que eu passo sentado trabalhando mas, ao mesmo tempo, eu estou tendo lazer do lado de
fora, então é muito psicológico e não de espaço mesmo. Porque às vezes trabalho e paro
meia hora para assistir um seriado, e volto."
Esta forma de lidar com o tempo e o espaço está certamente ligada à imagem que a
empresa "ponto com" tem de autonomia e maior liberdade, como mostra este outro
entrevistado que trabalha, como assalariado, com todos os direitos trabalhistas em uma
empresa de suporte à Internet:
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"O pessoal aí no tempo de folga sai. Ou então, depois do expediente vai a um cinema, mesmo
em dias de semana. O ambiente de trabalho, pela pouca experiência que eu tenho com outras
corporações, outros modelos de gestão, o modelo Internet é muito solto. É muito aquela
coisa: a gente tem um bando de moleques trabalhando junto, deixa os moleques trabalharem
da forma que eles quiserem e produzir à vontade.
Tem autonomia? Exatamente. Às vezes, o pessoal aqui leva o vídeo que a gente usa para
fazer digitalização de imagens para a sala de reunião, pega um vídeo, traz uma pizza e a
gente fica aqui às vezes 6ª feira até 1 ou 2 horas da manhã vendo vídeo, comendo pizza e
batendo papo com o próprio pessoal do trabalho. O pessoal tem muita liberdade.
O teleporto ( local onde se localizam muitas empresas de TI) fica aberto a noite inteira e tem
restrições de acesso, mas se tiver autorização dos seus gerentes, pode entrar."
Outra razão das empresas preferirem ter o empregado "sob as suas vistas" está ligada à
necessidade de manter uma imagem de credibilidade, como podemos ver por este relato de
um empresário, com mais de 50 anos, cuja firma fornece soluções para a Internet:
"A minha preferência é sempre que o funcionário esteja sentado aqui, eu estou vendo ele
fisicamente ali e também, por um outro lado, muitas vezes eu trago um cliente aqui isso dá
um status. É, tem um monte de mesa, um monte de computador, um monte de gente
trabalhando, se fosse uma situação diferente, com todo mundo em casa e eu trago um cliente
aqui, o cliente vai falar: ‘Que empresinha é esta’, não é? É uma questão de status também”.
Para alcançar a credibilidade utiliza-se uma lógica muito formalizada. Ou seja, a
confiabilidade do serviço é avaliada de acordo com alguns critérios próximos àqueles
utilizados pelas bolsas de valores para avaliar as ações de uma determinada empresa, tais
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como possuir uma sede, ter um logotipo, poder mostrar uma quantidade razoável de
funcionários e de sócios.
Este tipo de preocupação com os critérios de avaliação surgiu de forma bem nítida na
experiência de Dulce, que possui uma empresa, funcionando em sua casa. Quando indagada
se achava que existia algum tipo de discriminação em função da localização da empresa sua
resposta foi taxativa:
“Eu acho que tem. Porque volta e meia as pessoas perguntam: quantos empregados vocês
tem? Onde é que vocês trabalham? Onde a empresa funciona? Eu sinto que embora todo
mundo saiba que o que eu preciso é de um micro computador e de uma rede para trabalhar,
todo mundo ainda acha que tem uma estrutura formal. Valida alguma coisa. Como se isso
conferisse credibilidade. Atualmente a gente já está num estágio que o portfolio dá
credibilidade, porque tem um monte de Globosat e de Rede Globo. As pessoas pensam:
prestou serviço para a Globosat, não são loucos. Mas perguntam na primeira entrevista:
onde é que vocês funcionam? Qual o tamanho da empresa? Qual o meu cargo na empresa,
como se uma empresa pequena na verdade tivesse...Não tem cargo. Eu cuido do dinheiro, eu
cuido dos projetos, eu cuido de tudo o que tem que ser cuidado numa empresa pequena. Às
vezes, eu ocupo todo o quadro. (...) Eu tenho medo que descubram que é em casa, e que isso
deprecie o trabalho, como se fossemos menos profissionais por trabalhar em casa.”
Em uma outra situação, um entrevistado que tem uma empresa em casa nos contou
que, às vezes, quando é necessário um comportamento mais formal com o cliente, o espaço
doméstico utilizado como empresa cria uma confusão de papéis e relações:
“Teve uma situação que eu considero que foi calamitosa. Logo no início. um desses clientes
que a gente herdou, era um pessoal de redes de ONGs. De repente, uma dessas pessoas
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resolve vir ao Brasil e como tínhamos montado a empresa, resolve conhece-la. Eu marquei
uma reunião aqui em casa. A coisa ganhou uma tal informalidade e a pessoa era tão formal,
que ficou incompatível. De repente, eu me levantei e perguntei se ele queria um cafezinho e
fui fazer o cafezinho na cozinha. Ficou aquela confusão, não sabia se estava fazendo uma
visita pessoal ou à minha empresa. Hoje a gente não teria mais esse problema, porque existe
essa idéia de alugar salas para reuniões, naquele tempo a gente não conhecia nada disso"
É muito comum a prestação de serviços por projeto mesmo nas pequenas empresas
que não têm funcionários; ou entre aqueles que trabalham por conta-própria mas, nesse caso,
o controle do ritmo e do tempo de trabalho depende muito dos prazos que são acertados com o
contratante, através de um contrato legalmente registrado ou informalmente acordado entre as
partes, numa relação que pressupõe confiança no atendimento de prazos e especificações do
serviço a ser executado. Como muitas empresas de pequeno porte e trabalhadores por conta-
própria repassam serviços, normalmente acontece uma combinação das duas situações.
A negociação do serviço por projeto com empresas que não têm sede pode criar uma
situação que terá reflexos sobre as relações de trabalho. O fato da empresa não manter um
núcleo fixo de funcionários e não ter uma sede pode dificultar a negociação de projetos
maiores e melhor remunerados, como mostra o relato abaixo:
“Mas ele teve uma equipe virtual, agora é que eles estão se estabelecendo. E eles são
obrigados a se estabelecer. Você não consegue pegar um projeto maior, se não tiver um
endereço. Existe, assim, um ritual... Então, você quando vai lidar com o cliente, ele quer ser
atendido por uma secretária de voz bonita, que vai dizer que vai falar com a secretária dele,
que vai botar um no telefone, que vai falar com outro... Ou então você não pode dizer que o
projeto vai custar mais do que não sei quanto. O cara não admite pagar, se você não tem
essa parafernália toda.”
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No entanto, existem maneiras de burlar estes critérios e estas imagens estabelecidas
pelos clientes, como atesta este relato:
“A gente quando se apresenta dá o endereço da X (sala comercial pertencente à mãe de um
dos sócios). Mas quando a gente manda o contrato dá o endereço daqui [casa], isso é como
se fosse uma sala comercial. Geralmente, os clientes querem que a gente vá na empresa
deles. Então não tem esse problema sempre. Já marquei muitas reuniões no centro da cidade
assim, primeira reunião, duas ou três. Mas aí a partir daí a coisa flui na reunião no cliente
ou por Internet”
Uma outra estratégia para dar um ar de seriedade a empresa, e atender a estas
expectativas, é geralmente encontrada nas empresas virtuais que só existem de forma
estruturada na Internet:
“Eu tenho a certeza que muitos clientes se soubessem realmente o que é a minha empresa
ficariam decepcionados. Na nossa empresa nós temos cobrança bancária, a gente emite nota
fiscal por computador... o que deixa a impressão de que é uma empresa grande. Na nossa
página tem e-mails para tratar de assuntos comerciais, suporte, produtos (...). Na verdade,
todos eles quem responde sou eu, alguns são meu sócio. A impressão é que tem vários
departamentos e isso que eles sentem que é uma empresa grande, na verdade não é. A gente
está na briga e tem que usar as armas que possui e a Internet permite isso.”
Estes últimos trechos nos remetem novamente à questão da organização do espaço de
trabalho. Os três entrevistados citados têm empresas localizadas no espaço doméstico,
entretanto, dois deles estão procurando estabelecer alugar uma sala comercial. No caso de um
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deles, devido a duas preocupações básicas : de um lado, é importante para a imagem da
empresa o cliente saber quantos funcionários existem, por isso o endereço tem que ter um ar
de comercial. Outra preocupação diz respeito à distribuição de tarefas, uma vez que
realizando-as no espaço da casa pode dividir tudo somente com o sócio. Quando o trabalho
exige um tempo mais curto, e/ou apresenta uma dificuldade maior, são obrigados a
terceirizarem, ou seja, contratam pessoas por fora. Esta forma de contratação permite uma
diminuição dos custos mas implica em uma perda de controle sobre o trabalho, que fica
dependendo do contratado. A solução para resolver estes dois problemas seria alugar um local
exclusivo para a empresa e contratar funcionários permanentes.
No caso do outro entrevistado, a situação é um pouco diferente pois sua empresa,
como ele mesmo define é virtual, existindo apenas na Internet, composta por três sócios que
trabalham cada um na sua casa, e se comunicam via telefone ou e-mail. O problema “é
quando o cliente te vê, aí a imagem se concretiza. Enquanto ele vê nossa empresa pela
Internet acha o maior barato.” As empresas virtuais são tomadas na mídia de negócios como
as empresas do futuro, dado suas características de agilidade, de interação e baixo custo. No
entanto, elas parecem esbarrar no princípio básico da transação econômica, a confiabilidade,
uma vez que a confiança ainda é estabelecida a partir de critérios inexistentes na Internet,
como número de funcionários e local do estabelecimento. Desta forma, percebe-se que o
contato face a face ainda é uma marca das transações via Internet, e que os valores
tradicionais, como a importância da materialidade, ainda ordenam as transações das
empresas.
Quando o serviço é oferecido para o interior da rede – naqueles de catalogação e
indexação das informações – como os sites de busca, portais temáticos, etc., o grau de
sucesso da empresa é definido pela forma como consegue operacionalizar seus serviços na
própria rede. Não interessa ao usuário, que em alguns casos paga pelo serviço, saber o
tamanho da empresa, se é doméstica ou não, se opera na cidade do Rio de Janeiro ou São
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Paulo, mas importa saber a sua eficiência, a partir de outros critérios como estética da página,
rapidez, agilidade nas respostas, interação, organização, disposição e tipo do conteúdo. O que
corrobora a idéia de Rifkin (2000) de que o importante é o acesso a estes serviços.
Nas empresas de maior porte, como foi dito, a alocação das pessoas por projeto tem
conseqüências bastante significativas, pois define não só as formas de organização da rotina
de trabalho, mas também o próprio local e os prazos de entrega. Quando um serviço é
prestado dentro das instalações físicas do cliente, situação muito recorrente, segue padrões
acordados com o contratante do serviço, como mostra este entrevistado:
“As pessoas que ficam no cliente têm horário rígido, porque você obedece ao cliente; as
pessoas que ficam no escritório, existe um horário mais flexível, (..) Vamos dar um exemplo:
vamos imaginar que eu tenha um cliente que peça para fazer um serviço amanhã à noite,
você pode acertar com um analista para não vir trabalhar durante o dia, e vir à noite para
fazer o serviço”.
Desta forma, a imagem de um trabalho auto dirigido, criativo e com margens
consideráveis de autonomia, quanto à tempo e espaço, não é aplicável a maioria dos
profissionais inseridos no trabalho com a Internet. Seja em virtude das exigências de
atendimento impostas pelo mercado, dos mecanismos técnicos de controle do trabalho, como
o time sheet (ferramenta eletrônica de controle do trabalho, incorporado ao computador) ou da
concentração da maior parte dos trabalhadores na área técnica e de suporte. O controle do
trabalho resulta numa combinação de fatores internos às empresas como, por exemplo, as
hierarquias, com fatores externos como, por exemplo, as ferramentas eletrônicas.
Em resumo, o trabalho realizado no ambiente doméstico ou no espaço da empresa
exige jornadas muito longas e crescente intensidade dos ritmos de trabalho. Diluem-se as
fronteiras entre os espaços público e privado, entre os tempos de trabalho e de lazer com
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conseqüente superposição entre os tempos e os espaços. A valorização da autonomia no
trabalho implica ademais na necessidade de reconfiguração ideológica das relações dos
indivíduos entre si, com outros grupos, com o tempo, o espaço e a família e de reorganização
das formas de relacionamento familiar e das rotinas domésticas.
Por outro lado, a aparência de falta de controle do trabalho, de autonomia, esconde
uma realidade de controle total, estrito e implícito que, dependendo do caso, pode ser feito
através de planilha eletrônica no próprio computador e/ou através do cumprimento de metas
em um determinado projeto. As formas de controle podem variar, mas têm em comum o fato
de envolver uma apreciação sobre o tempo despendido, a qualidade e a possibilidade de
transparência para o contratante. Trata-se de uma sofisticação do Panóptico, mais sutil e mais
aterrorizador, na medida em que impessoal, assemelhando-se a um não controle, ao mesmo
tempo, que totalizador, abrangendo todas as atividades do profissional.
.
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