jobim - a história da literatura e as trocas e transferências

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VEREDAS Revista da Associação Internacional de Lusitanistas VOLUME 10 SANTIAGO DE COMPOSTELA 2008

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Revista Verdedas

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  • VEREDASRevista da Associao Internacional de Lusitanistas

    VOLUME 10

    SANTIAGO DE COMPOSTELA2008

  • A AIL Associao Internacional de Lusitanistas tem por finalidade o fomento dos estudos de lngua, literatura e cultura dos pases de lngua portuguesa. Organiza congressos trienais dos scios e participantes inte-ressados, bem como co-patrocina eventos cientficos em escala local. Pu-blica a revista Veredas e colabora com instituies nacionais e internacio-nais vinculadas lusofonia. A sua sede se localiza-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em Portugal, e seus rgos directivos so a Assembleia Geral dos scios, um Conselho Directivo e um Conse-lho Fiscal, com mandato de trs anos. O seu patrimnio formado polas quotas dos associados e subsdios, doaes e patrocnios de entidades na-cionais ou estrangeiras, pblicas, privadas ou cooperativas. Podem ser membros da AIL docentes universitrios, pesquisadores e estudiosos acei-tos polo Conselho Directivo e cuja admisso seja ratificada pola Assem-bleia Geral.

    Conselho Directivo Presidente: Elias Torres Feij, Univ. de Santiago de Compostela [email protected]. Vice-Presidente: Cristina Robalo Cordeiro, Univ. de Coimbra [email protected]. Vice-Presidente: Regina Zilberman, UFRGS; FAPA; CNPQ [email protected] Secretria-Geral: M. Carmen Villarino Pardo [email protected] Vogais: Anna Maria Kalewska (Univ. de Varsvia); Benjamin Abdala Junior (Univ. So Paulo); Claudius Armbruster (Univ. Colnia); Helena Rebelo (Univ. da Madeira); Mirella Mrcia Longo Vieira de Lima (Univ. Federal da Bahia); Onsimo Teotnio de Almeida (Univ. Brown); Petar Petrov (Univ. Algarve); Raquel Bello Vzquez (Univ. Santiago de Compostela); Sebastio Tavares de Pinho (Univ. Coimbra); Teresa Cristina Cerdeira da Silva (Univ. Fed. do Rio de Janeiro); Thomas Earle (Univ. Oxford).

    Conselho Fiscal Ftima Viegas Brauer-Figueiredo (Univ. Hamburgo); Isabel Pires de Lima (Univ. Porto); Laura Calcavante Padilha (Univ. Fed. Fluminense).

    Associe-se pela homepage da AIL: www.lusitanistasail.netInformaes polos e-mails:[email protected]

  • VeredasRevista de publicao semestral

    Volume 10 Dezembro de 2008

    Director: Regina Zilberman

    Director Executivo:Benjamin Abdala Junior

    Conselho Redactorial:Anbal Pinto de Castro, Axel Schnberger, Claudio Guilln, Cleonice Berardinel-li, Fernando Gil, Francisco Bethencourt, Helder Macedo, J. Romero de Maga-lhes, Jorge Couto, Maria Alzira Seixo, Marie-Hlne Piwnick, Ria Lemaire. Por inerncia: Anna Maria Kalewska, Claudius Armbruster, Cristina Robalo Cordei-ro, Elias J. Torres Feij, Ftima Viegas Brauer-Figueiredo, Helena Rebelo, Isabel Pires de Lima, Laura Cavalcante Padilha, M. Carmen Villarino Pardo, Mirella Mrcia Longo Vieira de Lima, Onsimo Teotnio de Almeida, Petar Petrov, Ra-quel Bello Vzquez, Sebastio Tavares de Pinho, Teresa Cristina Cerdeira da Silva, Thomas Earle.

    Redaco: VEREDAS: Revista da Associao Internacional de Lusitanistas Endereo eletrnico: [email protected]

    Realizao: Coordenao: Elias J. Torres Feij Reviso: Laura Blanco de la Barrera Desenho da Capa: Atelier Henrique Cayatte Lisboa, Portugal

    Impresso e acabamento: Unidixital, Santiago de Compostela, Galiza ISSN 0874-5102

    AS ACTIVIDADES DA ASSOCIAO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS TM O APOIO REGULAR DO INSTITUTO CAMES E DA

    CONSELHARIA DA CULTURA DA JUNTA DA GALIZA

  • SUMRIO

    EDITORIAL .......................................................................... 07

    APRESENTAO .................................................................. 09

    ANNA KLOBUCKASobre a hiptese de uma herstory da literatura portuguesa 13

    ARTURO CASASConstituiom de umha Histria literria de base sistmica: o sistema cultural como objecto de anlise histrica no programa de investigaom de Itamar Even-Zohar ................................................................................. 27

    BENJAMIN ABDALA JUNIORHistria da literatura brasileira, de Slvio Romero............ 57

    FERNANDO CABO ASEGUINOLAZALiteraturas regionais e Histria Literria. Perspectivas comparatistas ..................................................................... 87

    JOS LUS JOBIMA Histria da Literatura e as trocas e transferncias literrias e culturais ........................................................... 105

    MARGARIDA CALAFATE RIBEIROUm desafio a partir do sul reescrever as histrias da literatura? ........................................................................... 117

    MARIA DE FTIMA MARINHOA construo da memria................................................... 135

    MARIA EUNICE MOREIRAOlhar de Juan Valera: Literatura e cultura na capital do Imprio Brasileiro no Sculo XIX ..................................... 149

  • ONSIMO TEOTNIO ALMEIDA E LEONOR SIMAS-ALMEIDACnone, cnones em reflexes dialogadas ........................ 165

    PAULO MOTTA OLIVEIRAA ascenso do romance em portugus: para alm das histrias literrias nacionais .............................................. 173

    PEDRO SERRATransies & passagens. Figuras de uma crtica cultural da razo histrica peninsular ............................................. 183

    RAQUEL BELLO VZQUEZA Histria da Literatura e algumhas novas tcnicas de estudo. A autonomia da disciplina em causa ..................... 253

    REGINA ZILBERMANHistoricidade e materialidade da literatura ........................ 269

    VANDA ANASTCIOPensar para alm das etiquetas .......................................... 287

    ZAHID LUPINACCI MUZARTSob o signo do gtico: O romance feminino no Brasil, sculo XIX ......................................................................... 295

    OS/AS AUTORES/AS ............................................................ 309

  • EDITORIAL

    Na Assembleia Geral da AIL, celebrada no Funchal com motivo do IX Congresso da Associao, foi eleita uma nova direco, que a transcrita neste nmero. Por razes operativas e atendendo ao desejo do Prof. Benjamin Abdala Jnior de cessar sua responsabilidade como director executivo da revista, o Presidente nomeou a Profa. Raquel Bello Vzquez, da Universidade de Santiago de Compostela, como Directora executiva da revista Veredas, comunicada a toda a Direco e vogais na reunio celebrada na Universidade do Algarve em 26 de Janeiro de 2009. Em ateno ao facto de os nmeros 10 e 11 da revista, correspondentes a Dezembro de 2008 e Maio de 2009 respectivamente, estarem prontos durante o perodo em que a Profa. Regina Zilberman foi Presidente da AIL e directora da revista e o Prof. Benjamin Abdala Jnior director executivo, os seus nomes aparecem como tais nos referidos nmeros. A direco da revista agradece sincera e vivamente o seu magnfico labor frente da nossa publicao. E igualmente agradece Profa. Raquel Bello Vzquez a sua dedicao desde o primeiro dia na preparao da edio e distribuio destes nmeros e na planificao do futuro da Veredas.

  • APRESENTAO

    A revista Veredas convoca neste nmero uma reflexo colectiva sobre a historiografia literria, disciplina regrada j antiga que, nos seus perto de 150 anos de histria (para o caso portugus, podemos tomar como ponto de referncia 1860, data do preenchimento por Antnio Pedro Lopes de Mendona da primeira vaga de Literatura Moderna no Curso Superior de Letras da Universidade de Lisboa), tem sido objecto de algumas reformulaes mas talvez nenhuma da importncia das que comearam a ser geradas nos finais do sculo passado.

    Os considerveis avanos metodolgicos produzidos nos ltimos 30 anos, com a incorporao de elementos de anlise de disciplinas como a sociologia, a estatstica, a cincia poltica, a economia, etc. e com a definitiva formulao da Literatura como mais um dos processos culturais, entendidos, por sua vez, como processos sociais, mostram de forma cada vez mais acusada a distncia que se abre entre as formulaes tericas e as aplicaes prticas.

    A posta em questo das funes da literatura, das funes do seu ensino, o mesmo questionamento da pertinncia do uso de um cnone literrio (ou a pertinncia da sua existncia mesma) provocou tambm um ataque, desde diferentes ngulos, prpria ideia da Histria Literria, tal e como a conhecamos, centrada na sucesso de autores e obras nuns casos essa sucesso mais adornada de contexto, noutros menos-, mas sem mudanas substanciais quanto sua concepo. A isto h que acrescentar ainda novas propostas de geografia literria, que focam a importncia de um novo eixo, o espacial, para a anlise da produo cultural, mbito este no qual se esto a produzir alguns dos debates mais inflamados dos ltimos tempos.

    Como transferir as inovaes terico-metodolgicas para a Historiografia Literria e as suas aplicaes (as didcticas, por

  • exemplo), como combinar a viso temporal da Historiografia com as novas achegas espaciais, em que medida os avanos metodolgicos no sentido de estudar a literatura como mais um processo social afectam as dimenses do campo que delimitamos para os nossos estudos... Estes so apenas alguns dos desafios que a investigao recente tem colocado sobre a mesa da Histria da Literatura.

    neste estado de cousas, que se faz necessria uma reflexo da perspectiva da lusitanstica sobre quais so as possveis vias de redefinio da Histria da Literatura. Muitos dos estudiosos reunidos neste nmero tm reflectido sobre estes assuntos em trabalhos individuais, mas a revista Veredas, na sua vontade de ser um referente para as Cincias Humanas do mbito da Lusofonia, no podia ficar margem deste debate.

    No presente nmero contamos com as reflexes de especialistas de diferentes espaos geogrficos e tambm com diferentes reas de especializao, que propem focagens mais tericas ou mais de caso, em funo dos seus diferentes interesses investigadores, mas todas elas pondo em questo a sobrevivncia de um modelo de historiografia literria definitivamente superado, julgo que definitivamente.

    O artigo de Regina Zilberman pode funcionar de quadro referencial para esta reflexo, j que nos coloca precisamente frente prpria evoluo da historicidade da disciplina literria. Ao lado deste, o trabalho de Arturo Casas servir para focar metodologicamente a questo a partir de um dos quadros tericos de maior sucesso nos ltimos anos, as formulaes sistmicas de Itamar Even-Zohar, aplicadas Historiografia Literria.

    Bejamin Abdala Jnior, por seu turno, faz uma reviso crtica da Histria da Literatura Brasileira de Slvio Romero luz, precisamente, das chaves polticas, ideolgicas e sociais do Brasil da dcada de 60, dando especial destaque a como as questes relativas com a mestiagem e a hibridao foram assumidas pola historiografia literria.

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  • Na linha da anlise desta historiografia encontra-se tambm o texto de Raquel Bello Vzquez, que prope uma reviso terica geral sobre esta questo tendo presentes os avanos metodolgicos produzidos nas ltimas dcadas. E as histrias da literatura aparecem tambm em questo no trabalho de Jos Lus Jobim, que foca a ausncia do fenmeno da transferncia, o que provoca graves erros de anlise nas relaes entre diferentes espaos culturais. Isto faz-se especialmente patente atravs do caso escolhido, as relaes entre os espaos europeus e as suas ex-colnias latino-americanas.

    Um grupo de trabalhos trazem-nos os desafios colocados s aparentemente pacficas cronologias das literaturas nacionais europeias tanto polas literaturas que emergem dentro das prprias fronteiras dos estados-nao europeus, como o texto de Fernando Cabo Aseguinolaza, que trata, do ponto de vista do comparatismo, as relaes, neste caso, as literaturas regionais e a Histrias da Literatura, como polas literaturas surgidas em antigas colnias que s conseguiram a sua independncia no sc. XX. o caso de Margarida Calafate Ribeiro e o seu estudo sobre as literaturas africanas de lngua portuguesa.

    Numa linha tambm comparatista, inscreve-se o texto de Pedro Serra, centrado nas relaes entre os dous estados ibricos nos processos de transio e revoluo das dcadas de 70.

    Mas h outros desafios para a histria da literatura, alm dos geogrficos. Assim, apresentamos neste nmero alguns trabalhos que focam, atravs do estudo de algum gnero literrio especfico, os espaos de indefinio da Historiografia tradicional. o caso do artigo de Ftima Marinho sobre as relaes entre Histria e Literatura, atravs, particularmente, do romance histrico e a funo desenvolvida neste pola memria, ou do de Paulo Motta Oliveira, que foca os desencontros entre a cronologia do romance portugus de Oitocentos e a cronologia assumida para outros sistemas literrios.

    H, como bem conhecido, um outro ngulo de crtica, talvez dos mais sucedidos quanto sua repercusso social, que o que procede da anlise de gnero e da crtica feminista. Este o que

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  • nos oferece Anna Klobucka, que estuda a possvel aplicao do conceito herstory literatura portuguesa.

    Pegando em elementos do convvio difcil ou impossvel entre as cronologias dos diferentes espaos de produo, e tambm no interesse por constituir uma tradio literria feminina, est o trabalho de Zahid Lupinacci Muzart, que escolhe o romance brasileiro escrito por mulheres como o seu caso de estudo.

    O desvendamento dos processos de formao de sistemas literrios nacionais e as relaes destes processos com os da prpria conformao da nao, so focados no trabalho de Maria Eunice Moreira, inscrevendo-se noutro dos elementos que tm fundamentado a crtica contra a Historiografia literria: a sua vinculao no expressa nem reconhecida com o sustentamento poltico e identitrio das naes. Numa linha similar, encontra-se o trabalho de Onsimo Teotnio de Almeida e de Leonor Simas-Almeida, que nos oferece uma reflexo sobre o cnone na literatura portuguesa em confronto com as discusses to vivas e persistentes que se tm produzido no espao norte-americano.

    Finalmente, podemos encontrar nestas Veredas outra via de ataque a algumha historiografia tradicional, que a do modo em que as etiquetas para definir os gneros, os perodos, as cronologias, etc. so escolhidas e utilizadas. Estas, como evidencia Vanda Anastcio, servem mais para ocultar do que para analisar os processos sociais e culturais que correm em paralelo produo literria.

    Todos estes contributos sero, com certeza, mais do que concluses, incios de debates frutferos em colquios, congressos, departamentos universitrios e futuros nmeros desta e doutras revistas, e com essa finalidade que so aqui trazidos: para pr em conjunto trabalhos muito diferentes, mas que tm similares objectivos, e para levantar discusses novas sobre assuntos que levam entre ns j alguns tempos.

    Elias J. Torres Feij Universidade de Santiago de Compostela

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  • VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 13-25

    Sobre a hiptese de uma herstory da literatura

    portuguesa

    ANNA KLOBUCKA

    University of Massachusetts Dartmouth, EUA

    The teleological and emancipatory premises of the narrative model that structu-red nineteenth-century national literary histories and has remained influential to the present day have been challenged, in recent decades, by theorists suspicious of that models identitarian and developmental claims. Feminist literary histories of womens writing have responded to this challenge by evoking the central pa-radox of feminism: it does its work even as it recognizes the instability and po-tential impossibility of its subject (Erkkila 1992, 4). I argue in this brief article that a putative herstory of Portuguese literature is uniquely well positioned to ta-ke advantage of the poststructuralist questioning and reinvention of the literary-historical genre, precisely because it appears to lack conditions for the producti-on of a traditionally designed history of the Portuguese womens writing. Ano-ther important advantage of the Portuguese cultural context is the theoretical and methodological blueprint provided, for this and many other feminist endeavors, by Novas Cartas Portuguesas (1972) by Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa and Maria Teresa Horta.

    A conscincia da esperana inerente no passado e o reco-nhecimento correlato do conformismo que incessantemente ameaa imobilizar o futuro da tradio, noes relevadas por Walter Ben-jamin nas Teses sobre a Filosofia da Histria (1969: 255), tm sido subjacentes aos trabalhos da crtica feminista e, muito particu-

  • ANNA KLOBUCKA

    larmente, da sua vertente histrico-literria. Tal como o projecto global de investigao histrica baptizado em ingls com o rtulo, eloquente e intraduzvel, de herstory, a histria literria feminista abrange a recolha de informaes e a formulao de questionamen-tos sobre o protagonismo de mulheres no campo da produo cultu-ral; a reviso do conhecimento histrico institucionalizado luz de programas de investigao que legitimam a nfase no gnero sexual como o filtro epistemolgico decisivamente relevante; e a descons-truo e reterritorializao das macro-narrativas identitrias com o objectivo poltico da renegociao global do contrato social e sim-blico que tem regido as relaes entre os sexos.1 Os vectores e os produtos desta polifacetada agenda crtica entram, por sua vez, nu-ma relao de tenso com os desafios surgidos, tambm durante as ltimas dcadas, no campo da teoria crtica e, especialmente, da teo-ria da histria literria. O modelo narrativo e teleolgico, de cunho emancipatrio, seguido explcita ou implicitamente pelas realiza-es cannicas da escrita histrico-literria feminista reflecte, muta-tis mutandis, os pressupostos e (prospectivamente) os efeitos identi-trios do processo da constituio das histrias literrias nacionais desde os incios do sculo dezanove.2 Enquanto tal, torna-se vulne-rvel s crticas como a de Stephen Greenblatt ao observar que o padro nacionalista da histria literria, embora minado na sua a-

    1 Em relao area disciplinar global da histria de mulheres, o captulo Womens History em Joan Wallach Scott, Gender and the Politics of History (edio revista; New York: Columbia University Press, 1999) oferece um resumo sucinto, abundantemente ilustrado com referncias bibliogrficas, da investigao desenvolvida neste campo desde os anos setenta do sculo vinte. Em portugus, veja-se o artigo de Gisela Bock, Histria, Histria das Mulheres, Histria do Gnero, Penlope 4 (Nov. 1989), 157-87. Ana Paula Ferreira prope uma traduo de herstory (literalmente, histria dela, por oposio a history que seria histria dele) no trabalho em que considera a emergncia de uma histria-mulher (12) no romance Ora esguardae de Olga Gonalves. 2 Por realizaes cannicas da escrita histrico-literria feminista entendo sobretudo tais obras fundacionais da crtica literria feminista anglo-americana como ALiterature of Their Own (1977) de Elaine Showalter e The Madwoman in the Attic (1979) de Sandra M. Gilbert e Susan Gubar, junto com vrios outros estudos que empreendem a construo de uma tradio literria feminina, surgidos sobretudo nos anos oitenta, em ingls (embora visando por vezes objectos de investigao noanglfonos), na esteira daqueles ensaios pioneiros. Arriscarei a afirmao de que, no obstante a expanso progressiva da investigao histrico-literria feminista em outras reas lingusticas e culturais, este o nico conjunto coerente de publicaes a que se pode atribuir a designao hoje em dia j um tanto desvanecida de um modelo propriamente cannico (isto , detentor de autoridade institucionalizada e legitimador enquanto referncia).

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  • SOBRE A HIPTESE DE UMA HERSTORY DA LITERATURA PORTUGUESA

    cepo original tanto pela crtica filosfica e ideolgica das suas premissas como pelos avanos da globalizao,

    is not at all disappearing; rather it has migrated from the center to what was at one time the periphery where it is now flourishing. (...) What we are witnessing is the pragmatic, highly strategic appropriation of the national model of literary historywith its teleological, developmental narrative of progressin order to confer authority upon an emergent group. (54-55)

    O grupo emergente de Greenblatt constitudo, no caso, pelas literaturas latino-americanas ps-coloniais (a referncia espe-cfica The Cambridge History of Latin American Literature, 1996, organizada por Roberto Gonzlez Echevarra e Enrique Pupo-Walker), mas o fenmeno da re-inscrio dos padres fundacionais da histria literria, vinculados consolidao do nacionalismo cul-tural (e, segundo Greenblatt, fatalmente maculados por esta descen-dncia), estende-se de forma ao mesmo tempo geral e diversificada a those writing the new literary histories based on race, gender, sexual choice, or any number of other identitarian categories (Hut-cheon, 2002: 3). David Perkins fundamenta a equiparao entre as histories of regions, social classes, women, ethnic groups, and so on e as histrias literrias nacionais oitocentistas, enumerando as suas caractersticas comuns:

    They assert that the group in question has a literary tradition and that the works in it are valuable. Thus, in the strife of cultural politics, they confer cultural importance on the social group. They create a sense of continuity between past members of the group and present ones and, by describing a shared past, reinforce the sense of community in the present. They define the identity of the group in a certain way in opposition to other definitions of this contested concept. (181)

    Respondendo a estes e outros diagnsticos e preocupadas em afastar potenciais acusaes de ingenuidade histrico-terica ou nostalgia conservadora (Hutcheon, 2002: 15), as narrativas histricas da tradio literria feminina que continuam a ser escritas e publicadas tm procurado manter a precria aliana entre a credi-

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  • ANNA KLOBUCKA

    bilidade do seu enquadramento conceptual e ideolgico e a eficcia poltica dos seus resultados atravs da cultivao auto-consciente e vigilante daquilo que tem vindo a ser reconhecido como o parado-xo central do feminismo. Peo emprestada esta expresso a Betsy Erkkila que, nas pginas iniciais do seu The Wicked Sisters: Women Poets, Literary History & Discord (1992), prope a model of wo-mens literary history that engages the central paradox of feminism: it does its work even as it recognizes the instability and potential impossibility of its subject (1992: 4). As exigncias da aco pol-tica feminista parecem impor a aderncia posto que qualificada como provisria, estratgica ou sur rasure aos modelos da investi-gao e escrita histrico-literria alicerados nas noes de continu-idade, comunidade e, sobretudo, progresso e consolidao emanci-patria. De acordo com Linda Hutcheon,

    through the very structure of this kind of literary history, [feminist historians] can embody the progressivist intentions of their political agendas. Their scholarly work is designed to identify, reevaluate and then institutionalize a usable pastusable, that is, for the future, for interventionist rather than purely conservationist (or, for that matter, conservative) purposes. (p. 11)

    Consequentemente, ao mesmo tempo que defende o des-mantelamento das narrativas exclusivistas e singulares da identi-dade contnua, cujo poder descritivo e ideolgico perde a legitimi-dade em confronto com as realidades demogrficas desterritoriali-zadas dos nossos tempos (2002: 3), Hutcheon acaba por concluir a sua anlise com uma narrativa metahistrica de cunho precisamente evolutivo e emancipatrio: Such a familiar bedrock narrative of development, one that historically guarantees a sense of cultural legitimacy, may have to be laid down first, before competing, cor-recting, or even counterdiscursive narratives can be articulated (2002: 13).3 Por outras palavras, o modelo do desenvolvimento te-

    3 Valer a pena lembrar neste ponto que o argumento evocado por Hutcheon preciso atender s prioridades no tem sido aplicado unicamente discusso da problemtica histrico-literria dentro do campo intelectual feminista. Para dar apenas um exemplo, cite-se a rplica de Nancy K. Miller celebrada crtica a que Michel Foucault submetera a noo de autoria (Quest-ce quun auteur?, 1969): What matter who is speaking? I would answer it matters, for example, to women who have lost and still

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  • SOBRE A HIPTESE DE UMA HERSTORY DA LITERATURA PORTUGUESA

    leolgico, deslegitimado enquanto padro do pensamento histrico-literrio, continuaria vlido a nvel metaterico, com os grupos emergentes a seguirem nos passos epistemolgicos (afinal de efi-ccia poltica comprovada) dos protagonistas histricos contra cuja dominao consagrada se insurgem.4

    Qual ser a pertinncia das consideraes resumidas acima para o hipottico projecto da articulao de uma tradio literria feminina no contexto portugus? Em primeiro lugar, observe-se que os modelos da epistemologia histrico-literria feminista que cons-tituem o mbito referencial das citadas interrogaes tericas e ide-olgicas se adequam particularmente mal dada a sua nfase na i-dentificao e narrativizao diacrnica de um repertrio relativa-mente robusto (posto que historicamente negligenciado) das obras de autoria feminina ao campo da produo literria em Portugal desde a Idade Mdia at aos incios do sculo vinte. A masculinida-de normativa do sujeito da escrita figura neste campo como uma circunstncia avassaladora, sendo legitimada e reforada pela au-sncia absoluta ou, no melhor dos casos, escassez marcada de mu-lheres escritoras, portadoras potenciais de contra-discursos enraza-dos numa postura diferencial em relao ao discurso masculino do-minante. No livro de Isabel Allegro de Magalhes O Tempo das Mulheres (1987), que foi na altura da sua publicao uma proposta pioneira de formulao de uma potica da autoria feminina na fic-o portuguesa contempornea, a constatao desta ausncia torna-se praticamente um Leitmotiv da parte introdutria do estudo, dedi-cada a identificar os antecedentes da actual posio feminina den-tro das letras portuguesas (Magalhes, 1987: 103). Assim, a Idade Mdia no legou a obra literria de nenhuma daquelas mulheres poetisas e rainhas que ilustram a literatura medieval doutros pases

    routinely lose their proper name in marriage, and whose signature not merely their voice has not been worth the paper it was written on; women for whom the signature by virtue of its power in the world of circulation is not immaterial. Only those who have it can play with not having it (75; sublinhado original). 4 Greenblatt denuncia vivamente o risco de oportunismo cnico inerente nesta concesso: How is it possible to keep this defense from becoming an apology for the most corrosive and ultimately self-defeating cynicism? It is one thing to celebrate powerful literary achievements and to understand how new work can build upon the work of the past; it is quite another thing to endorse a theory of evolutionary progress or steady, organic development that one knows is bankrupt (58).

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  • ANNA KLOBUCKA

    (1987: 103); se no sculo XVI surgem, embora em nmero muito reduzido, alguns escritos de mulheres (1987: 131), j no sculo seguinte se verifica, de novo, uma aparente ausncia das mulheres na vida cultural do pas (1987: 145). Tambm a poca das Luzes portuguesa no reflectiu, neste sentido, a importante influncia cul-tural feminina que se registava contemporaneamente em Frana ou em Inglaterra; nem o sculo XIX parece ter tido em Portugal mu-lheres como as que outros lugares da Europa viram crescer (1987: 171). Se, como repetidamente sugere a prpria autora, tal imagem negativa pode derivar, em certa medida, de uma negligncia secular por parte do discurso cannico da histria literria, no deixa de ser verdade que ela contribui para o estabelecimento de um padro dif-cil de ignorar, tanto no plano histrico como no simblico.5 Este padro, por sua vez, cria condies muito especficas para a emer-gncia em massa do fenmeno da autoria feminina a partir das pri-meiras dcadas do sculo vinte. Por comparao com outros pases europeus, como sustenta Graa Abranches,

    na cultura portuguesa foi muito mais profundo e prolongado o mutismo cultural que lhes [s mulheres] foi imposto e mais absolutista o domnio de um texto social masculino, monolgico e homossocial. Este contexto determinou uma compresso/ acelerao histrica do processo de acesso das mulheres posio de sujeitos loquentes e representantes (os caminhos e os atalhos paralelos desse desaprender a no falar galgariam em poucas dcadas o que em outras culturas se mediu em sculos) e marcou de vrios modos a produo literria das mulheres portuguesas ao longo destes anos e sua recepo por parte da crtica. (p. 2)

    5 O importante estudo recente de Chatarina Edfeldt sobre as representaes da autoria feminina no discurso da histria literria portuguesa do sculo vinte questiona de forma muito vigorosa a naturalizao deste saber recebido, defendendo o argumento, a meu ver inteiramente convincente, de que a sua aceitao pacfica contribui para inviabilizar o prospectivo valor acadmico de projectos de recuperao arqueolgica que tiverem por objecto a escrita feminina nas dcadas e nos sculos anteriores aos meados do sculo passado. Para uma apresentao eloquente de um programa de investigao que visa a escrita de autoria feminina no barroco portugus, ver Anabela Galhardo Couto, Literatura de autoria feminina: um patrimnio da palavra a reinventar, em Zlia Osrio de Castro (dir.), Antnio Ferreira de Sousa e Marlia Favinha (orgs.), Falar de Mulheres: Da Igualdade Paridade ( Lisboa: Livros Horizonte, 2003), 43-52.

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  • SOBRE A HIPTESE DE UMA HERSTORY DA LITERATURA PORTUGUESA

    A tradio multissecular de a autoria literria ser largamente sinnima com a autoria masculina , portanto, um dado inelidvel no contexto cultural portugus, tornando fundamentalmente invi-vel a construo de macro-narrativas evolutivas da tradio da es-crita feminina antes do sculo vinte (sem inviabilizar, contudo, co-mo quero deixar bem claro, outras formas de investigao histrica do protagonismo cultural e literrio feminino). Esta presumvel de-ficincia pode, entretanto, converter-se numa oportunidade frtil se atendermos s alternativas mais recentemente propostas aos mode-los fundacionais da histria literria, e que rejeitam as suas premis-sas de continuidade genealgica (patriarcal) e territorial (nacionalis-ta ou regionalista). Inspiradas na transversalidade programtica dos estudos comparatistas e no questionamento epistemolgico ps-moderno, as realizaes concretas de tais modelos alternativos in-cluem, por exemplo, a muito comentada New History of French Li-terature, organizada por Denis Hollier, uma colagem fragmentria de pequenos ensaios, dispostos cronologicamente, mas sem qual-quer pretenso periodolgica, genolgica ou evolutiva.6 Uma hip-tese estruturante distinta representada pela Comparative History of East-Central European Cultures que apresenta a informao his-trica base de uma grelha nodal de pontos de convergncia en-tre vrias culturas tnicas (os pontos nodais podendo coincidir com cidades como Gdansk/Danzig, pessoas como Franz Kafka, rios co-mo o Danbio, etc.) (Hutcheon, 2002: 8).7 Estas e outras propostas recentes da renovao da escrita histrico-literria constituem, a meu ver, repositrios muito teis de inspirao para uma prospecti-va histria do protagonismo literrio das mulheres no contexto por-tugus. Ao mesmo tempo, urge reconhecermos a importncia cruci-al que para tal projecto poder ter a dimenso metodolgica (O-wen, 1995: 190) das sempre pertinentes Novas Cartas Portuguesas de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da

    6 Cambridge: Harvard University Press, 1989. Veja-se os comentrios em ambos os casos crticos, embora em sentidos e com concluses diferentes sobre a New Historyde Hollier em Perkins 57-59 e Greenblatt 59-60. 7 A verso definitiva deste projecto (organizada por Marcel Cornis-Pope e John Neubauer), mantendo embora a inteno revisionista e a estrutura nodal da apresentao, diverge ligeiramente da descrio apresentada no artigo citado de Linda Hutcheon, inclusivemente no que diz respeito ao ttulo que passou a ser History of the Literary Cultures of East-Central Europe (Amsterdam: John Benjamins, 2004-2007).

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  • ANNA KLOBUCKA

    Costa. Bastar lembrar a maneira originalssima de que as autoras ficcionalizam a inventada linhagem histrica das descendentes fe-mininas de Mariana Alcoforado atravs de uma sucesso de sobri-nhas, filhas de irms e tambm, muito provavelmente, de irmos, desestabilizando o que em mos menos geis e subtis poderia vir a constituir-se como uma sequncia genealgica rigidamente matrili-near, mero reflexo (as)simtrico da linhagem patriarcal.8

    Outro desafio que tambm, simultaneamente, uma oportu-nidade tem a ver com o aspecto paradoxal da inscrio da diferena sexual no discurso da histria literria portuguesa. Este discurso representa uma herana cultural que se autoconstri como extre-mamente escassa em mulheres escritoras ou, de modo mais global, em evidncia emprica do protagonismo feminino na produo lite-rria e, ao mesmo tempo, intensamente apaixonada pelo mito da prpria androginia metafsica. J a lrica medieval galaico-portuguesa tal como a lemos hoje em dia, atravs dos mltiplos filtros da tradio editorial e interpretativa que a tem acompanhado ao longo dos sculos oferece a verso inicial da distribuio das prerrogativas: se o sexo do sujeito representado, ou da persona lri-ca, pode ser masculino ou feminino (a linha divisria entre os gne-ros dos falantes coincidindo com a distino entre os gneros liter-rios de cantiga de amigo e cantiga de amor), o lugar do sujeito re-presentante, ou do poeta, cabe invariavelmente aos homens trovado-res.9 Por sua vez, este exemplo da organizao assimtrica do dis-curso diferencialmente sexuado que a poesia galaico-portuguesa proporciona no raro tem sido apresentado pela crtica e histria literria como uma imagem da simetria perfeita de dois ponto[s] de

    8 Para uma anlise mais extensa deste aspecto das Novas Cartas, remeto para o meu estudo Mariana Alcoforado: Formao de um Mito Cultural (150-52). 9 As questes suscitadas pela organizao e interpretao da poesia medieval galaico-portuguesa (e europeia em geral) em relao diferenciao sexuada dos discursos lricos apresentam-se demasiado numerosas e complexas para poderem ser aqui consideradas. Como dois exemplos de abordagem crtica revisionista que, coincidindo em desafiar a perspectiva histrico-literria tradicional, oferecem ao mesmo tempo leituras divergentes do protagonismo discursivo feminino na poesia medieval, veja-se Ria Lemaire, Passions et positions. Contribuition une smiotique du sujet dans la posie lyrique mdivale en langues romanes (Amsterdam: Rodopi, 1988) e Ana Paula Ferreira, Tell Woman What She Wants: The Cantigas dAmigo as Strategies of Containment, Portuguese Studies 9 (1993), 23-38.

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  • SOBRE A HIPTESE DE UMA HERSTORY DA LITERATURA PORTUGUESA

    vista sentimenta[is] equivalentes (Saraiva e Lopes, 1996: 48). O apelo utpico da postulada relao igualitria verifica-se to pode-roso que at a autora de O Tempo das Mulheres afirma no importar que as cantigas de amigo sejam obra de homens, uma vez que as mulheres no so apenas a fonte e o pblico desta poesia, elas no so apenas as suas personagens centrais, mas so ainda o filtro atra-vs do qual se olha a vida (Magalhes, 1987: 108). semelhante a perspectiva que Maria Graciete Besse, num estudo mais recente, as-sume ao sustentar que as cantigas de amigo desenham uma socieda-de matriarcal caracterizada pela ausncia do Pai ou do Amante, atra-vs do ponto de vista dos poetas que observam o mundo com olhos de mulher, revelando um certo conhecimento da psicologia femini-na (Besse, 2001: 16). As evidncias histricas da desigualdade en-tre os homens e as mulheres quanto ao nvel de acesso e formas de participao na vida cultural entram, deste modo, numa relao de contradio com a idealizada representao do equilbrio entre os dois pontos de vista ou duas formas de sensibilidade a participa-rem, de modo no apenas paritrio mas at harmoniosamente fundi-do (no ventriloquismo transexuado ou andrgino das cantigas de amigo), na articulao das origens do discurso literrio nacional.

    Tal contradio no se encontra limitada ao contexto da poe-sia medieval galaico-portuguesa, sendo embora nesta que se possa procurar a sua expresso inicial. Um exemplo eloquente do conflito entre os planos histrico e simblico da categorizao sexualmente diferenciada do discurso literrio proporcionado pela seguinte constatao de Agostinho de Campos no seu prefcio ao livro Es-critoras de Portugal (1924) de Thereza Leito de Barros (a histria pioneira da literatura de autoria feminina em Portugal): Direi (...) que do livro Escritoras de Portugal ressalta aos meus olhos, com nitidez nova e grande, a tese seguinte: que a literatura portuguesa, essencialmente lrica e, dentro do lirismo, essencialmente amorosa, pode chamar-se (embora exercida quase s por homens at os pri-mrdios do sculo actual) uma literatura feminil ou mulheril. Penso, claro, na poesia lrica (Barros, 1924: I, 9-10). No obstante o e-vidente excesso retrico do prefaciador, que reduz as letras portu-guesas poesia lrica para as poder apresentar em seguida como uma literatura feminil exercida por homens, a declarao oferece

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    um reflexo til da percepo enrazada na conscincia cultural por-tuguesa e para a qual a viso cannica das origens da literatura na-cional tem proporcionado um solo frtil. Luciana Stegagno Picchio formulou um diagnstico particularmente apto da situao, dizendo parecer que per secoli la letteratura femminile in Portogallo altro non sia stato che una letteratura quale i letterati uomini, portoghesi o no, immaginavano potuto essere una letteratura femminile porto-ghese se le letterate portoghesi non fossero state donne e cio, per costituzione e definizione, incapaci di letteratura (Picchio, 1980: 6-7). Se as mulheres podiam ser consideradas, pura e simplesmente, incapazes de literatura, os homens letrados tinham, pelo contrrio, razes historicamente consagradas para confiar na prpria capaci-dade de protagonizarem, no discurso literrio e no s, uma espcie de polifonia identitria, fazendo-se porta-vozes da experincia hu-mana em toda a sua diversidade, inclusive a de gnero. Longe de se encontrar excludo do espao textual da tradio literria portugue-sa, o sujeito discursivo feminino manteve nela uma posio impor-tante, desde a lrica medieval, atravs da narrativa romanesca da Menina e Moa e epistologrfica das Cartas Portuguesas, at a-ventura efmera, mas no contexto claramente significativa, de Vio-lante de Cysneiros, colaboradora inventada do grupo de Orpheu.Importa notar que todos estes casos da dramatizao do protago-nismo literrio feminino viriam a adquirir uma relevncia histrica que ultrapassa os limites do significado que teriam tido no tempo e no lugar da sua gnese: as caractersticas temticas e dicursivas das cantigas de amigo galaico-portuguesas chegaram a contribuir para a definio tanto das razes da literatura portuguesa em geral, como da prpria identidade nacional, o que aconteceria tambm com a voz portuguesssima de Soror Mariana, cuja criao hoje em dia quase universalmente atribuda a um autor no apenas masculino mas tambm estrangeiro (Gabriel-Joseph Lavergne de Guillera-gues). Quanto produo lrica e persona potica de Violante de Cysneiros (heternimo de Armando Crtes-Rodrigues), estas ins-creveram-se numa experincia artstica colectiva de importncia decisiva para a formulao da modernidade literria portuguesa que foi a publicao, em 1915, dos dois nmeros da revista Orpheu.10

    10 Para uma anlise aprofundada do fenmeno Violante de Cysneiros e da sua

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  • SOBRE A HIPTESE DE UMA HERSTORY DA LITERATURA PORTUGUESA

    Esta presena destacada das vozes disfaradamente femininas em alguns espaos textuais que foram cruciais para a autodeterminao identitria da cultura literria nacional tem um peso simblico dif-cil de sobreestimar, mesmo ou especialmente se a colocarmos em confronto com o estatuto efectivamente verificvel do protagonismo cultural das mulheres na histria portuguesa.

    Se uma das dificuldades principais que tal quadro de refe-rncia representa para uma hiptese da interveno histrico-literria feminista se encontra sintomaticamente reflectida nos co-mentrios acima citados de Isabel Allegro de Magalhes e Maria Graciete Besse sobre as cantigas de amigo, nos quais a seduo da utopia paritria se sobrepe vigilncia crtica, as oportunidades nele inerentes tm estado a ser realizadas, a meu ver, sobretudo na dimenso histrica, e inclusivemente histrico-literria, dos textos narrativos, poticos e dramticos abundantemente produzidos, ao longo dos ltimos cem anos, por escritoras portuguesas. (A flexibi-lidade genolgica das Novas Cartas Portuguesas, com o seu apa-gamento programtico das fronteiras entre a escrita literria e crti-ca, deve ser evocada neste contexto como mais um contributo me-todolgico importante da obra das trs Marias.) Dadas as limita-es de espao a que este breve ensaio obedece, mencionarei apenas um nico exemplo: a obra potica de Adlia Lopes, em cuja ampla rbita intertextual se misturam e interagem de muitas e profcuas maneiras textos, autoras, autores, pocas, discursos e personagens da histria literria portuguesa e ocidental, um perpetuum mobile significante posto em movimento desde a epgrafe do seu primeiro livro de poesia, Um jogo bastante perigoso (1985), que foi uma ci-tao de Menina e Moa (e mais, pois conto de mulher, no pode leixar de ser triste). Como salienta Elfriede Engelmeyer no seu posfcio Obra de Adlia Lopes, a propsito de outra interveno proemial da autora, com as duas epgrafes que antecedem esta edi-o das suas obras completas, citaes de Sophia de Mello Breyner Andresen e Agustina Bessa-Lus, Adlia Lopes assume a tradio da literatura de mulheres em Portugal. (...) Como ela prpria acentua, o

    relao para com a questo da autoria feminina na poca de Orpheu ver Anna Klobucka, A mulher que nunca foi: para um retrato bio-grfico de Violante de Cysneiros. Colquio/Letras 117/118 (1990), 103-14.

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    facto de na sua lngua materna existir uma linhagem de textos escri-tos por mulheres foi determinante para a sua prpria produo lite-rria (Engelmeyer, 2000: 470). Penso que este programa potico juntamente com muitos outros casos de compromisso intertextual marcados pela ateno que dedicam ao gnero sexual, protagoniza-dos por autoras e autores portugueses, que poderiam ser aqui evo-cados merece ser lido e explorado como um discurso complexo e srio (no menos srio por ser, muitas vezes, satrico) sobre a tradi-o literria e cultural das mulheres portuguesas, tradio que, para Adlia Lopes, engloba tanto as elevadas linhagens do parentesco potico desta auto-nomeada freira poetisa barroca (Engelmeyer, 2000, 339) como os desastres das meninas exemplares da Condessa de Sgur, para mencionar apenas uma das suas referncias recorren-tes. Em poemas como A coleco Barbara Azul (2000:129), U-ma afirmao de Pessoa sobre Milton (2000 145), Patronymica Romanica (2000, 339) ou Emily Dickinson/S. Joo da Cruz (2000: 383) Adlia Lopes escreve uma herstory literria, histria esta sempre descontnua e problematizante, frequentemente trans-nacional, assumidamente arrojada na nfase nada discreta que colo-ca no gnero sexual enquanto um factor centralmente relevante nos jogos de poder de autoria e autoridade cultural. Aprendermos a con-jugar esta e outras herstories de forma atenta e imaginativa com ou-tros discursos histrico-literrios global e localmente disponveis poder render resultados muito produtivos para o campo da teoria e crtica luso-feministas.

    REFERNCIAS ABRANCHES, Graa. Des-aprendendo para dizer: polticas, escritas e poticas de mulheres portuguesas do sculo XX (manuscrito). Traduo alem: Verlernen um zu sprechen: Politik und Poetik portugiesische Frauen im 20. Jahrhundert. Henry Thorau, org. Portugiesische Literatur. Frankfurt am Main: Suhrkampf, 1997. 204-235. BARROS, Thereza Leito de. Escritoras de Portugal. Vol. I-II. Lisboa: s.e., 1924. BENJAMIN, Walter. Illuminations. New York: Schocken Books, 1969. BESSE, Maria Graciete. Percursos no feminino. Lisboa: Ulmeiro, 2001. EDFELDT, Chatarina. Uma histria na Histria. Representaes da autoria feminina na Histria da Literatura Portuguesa do sculo XX. Montijo: Cmara Municipal do Montijo, 2006.ENGELMEYER, Elfriede. Posfcio. Adlia Lopes, Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000. 469-72. ERKKILA, Betsy. The Wicked Sisters: Women Poets, Literary History & Discord.Oxford: Oxford University Press, 1992.

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  • SOBRE A HIPTESE DE UMA HERSTORY DA LITERATURA PORTUGUESA

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  • VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 27-55

    Constituiom de umha Histria literria de base sistmica: o sistema cultural como objecto de anlise histrica no programa de

    investigaom de Itamar Even-Zohar

    ARTURO CASAS

    Universidade de Santiago de Compostela

    This article presents a series of considerations, founded on Itamar Even-Zohars theory of polysystemic culture, regarding the delimitation of Literary Historys object of study. My purpose is to organically analyze the four principle challenges of dynamic functionalism and the systemic model in their application to diachronic history. These challenges are as follows: 1) to understand polysystemic, extrasystemic and subsystemic interactions as well as the borders between systemic cultures as an alternative to traditional comparative methodology; 2) to incorporate as object of study not only products/texts but also what Pierre Bourdieus theory of social fields describes as espace des possibles; 3) to test a sequential model capable of elucidating dynamic polychronics and systemic changes; and 4) to configure a critical selection of data that is susceptible to historicization and put it into dialogue with other concurrent historiographic models.

    O propsito das pginas que seguem fixar de maneira esquemtica umha posiom sobre algumhas linhas de desenvolvimento da Histria literria (HL) e sobre a percepom da sua crise como disciplina, para depois concretar um corpo de propostas referido a umha mudana de rumo na definiom e

  • ARTURO CASAS

    delimitaom do objecto de estudo, que o ser tambm nas opons metodolgicas adoptadas nesse giro heurstico. A posiom que se vai fixar vem marcada por um carcter scio-semitico e sistmico, e vincula-se a dous factos constatveis. Em primeiro lugar, que a HL deixou de existir como disciplina unificada ou ainda coesa. A inegvel resistncia de modelos e prticas tardo-positivistas, afianados sobretodo no campo educativo, administra uns procedimentos e umha autoridade herdados, mas esta deve dedicar cada vez maiores esforos a justificar-se e aqueles som percebidos desde os sectores menos acomodadios como claramente inerciais por estarem esgotados os seus programas-base. O segundo facto tem que ver com as novas prioridades da HL, concentradas a dia de hoje no estabelecimento de um objecto de estudo pluralizado e inter-relacionado no campo sociocultural, irredutvel a narrativas lineais e incmodo com a autoridade discursiva central, ligada a frmulas obsoletas e, a fim de contas, deshistorizantes.1 Umha conseqncia a traslaom a plano secundrio do debate propriamente metodolgico, em algumha medida posposto enquanto nom exista um acordo de mnimos relativo a que o que a HL deve historiar e com que escala deve faz-lo.2

    Contodo, a cartografia internacional da HL nom se move em bloco. Trs os processos de descolonizaom, e tambm pola emergncia de programas nacionalistas em espaos geoculturais ou administrativos submetidos ou assimilados, existem entidades (nom s nacionais) que empreendrom processos aprazados de construom nos que a HL adquiriu de novo um claro sentido social-pragmtico. Essa planificaom historiogrfica convive no tempo ou ainda no

    1 Deshistorizantes porque sustentam a ideia de que a evoluom literria obedece a ajustes autnomos que nom precisam atender as relaons histricas do delimitado apenas como contexto.2 Resulta indicativo o incio de um breve artigo de M.L. Gasprov, vinculado com a escola de Tartu e autor de A History of European Versification (1996). O original russo do artigo, de 2003, comea assim: A la pregunta cmo escribir la historia de la literatura rusa? me hubiera gustado responder enseguida: no hace falta escribirla de ninguna manera, ya que ahora mismo no la escribiramos bien: no hay material (Gasprov 2007). Outra perspectiva da complexidade da tarefa a anotada por Heidrun Olinto (1996: 42-43) tendo vista as recentes teorias alems sobre umha mudana no programa tradicional da HL, em especial as devidas a S.J. Schmidt. Neste caso, a atenom dirige-se dvida sobre a existncia de historiadores preparados (epistemolgica, intelectual, academicamente) para assumir tal repto.

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    espao com movimentos de signo contrrio que afectam outras entidades (digamos de novo nacionais). Em ocasions, ocorrer at que no mesmo espao geocultural e em simultaneidade distintos agentes activem processos inversos e que se acabem encontrando no conflito de discursos, estratgias e programas, em parte dirigidos a destacar a contingncia ou a ilegitimidade das planificaons alternativas prpria. Sabemos bem que a HL de base nacional um plano performativo validado por necessidades de coesom sociocultural e poltica especficas, amide muito marcadas polas urgncias histricas. Cobertas essas necessidades, a HL nacional esgota-se como projecto e cede espao a planos alternativos, entre o regional e o mundial, entre a regionalizaom a escala menor ou maior que a prpria naom e a mundializaom da perspectiva histrica. Em umha ordem complementar, a HL nacional tolera contra-discursos destinados a reverter silncios e ocultaons. De facto, a aporia da estabilizaom nacional (ou da ultimaom de um processo dado de construom nacional) conduz com freqncia assunom poltica de que toda Histria (literria) um projecto frustrado que ou bem se deveria refutar ou bem se deveria desconstruir.3 Porm, se a crise nacional se acentuar aparece com freqncia umha rectificaom de signo unitrio e patritico. Um caso claro o representado pola Hungria de finais do sculo XIX, quando os modelos historiogrficos nacionalistas de Zsigmond Bodnr e de Zsolt Bethy tentrom frustrar qualquer alternativa nom nacional-estatal e qualquer movimento de integraom da produom cultural das plurais minorias lingsticas e etno-nacionais, algo que sim contemplara meio sculo antes, polo menos parcialmente, o modelo historiogrfico de Ferenc Toldy.

    3 legtima (e pertinente) a dvida sobre a funcionalidade de qualquer automatismo que postule umha reconduom a termos historiogrfico-literrios do binmio crtica da identidade/crtica da diferena. As prticas contra-historiogrficas ou as que se formulam como supletrias de um discurso histrico (cannico, oficial...) de referncia, includo todo o que Dominick LaCapra (2004) delimita como giro experiencial da historiografia, se nom se resolvem em termos relacionais, podem auto-limitar-se e postular-se subsidirias de raiz. O melhor campo de provas, como sugere Mario J. Valds (em Hutcheon & Valds 2002: 65), poderia ser o usurio geral da HL: comprovar em que medida recebe e em que grau assume as contra-propostas parciais. As contradions que surgem desse campo conformam um dos apoios da posiom de Valds em favor de umha histria efectiva, noom proveniente da hermenutica da conscincia histrica de Paul Ricoeur. Para Valds (2002: 67), Effective literary history begins with the recognition that history, and literary history in particular, is effective insofar as it is used and is of use to would-be readers; it is a concept deeply aligned with the idea that we are affected in the present by our sense of the past.

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    Em termos gerais, a resistncia mudana heurstica e metodolgica na HL carece de comparaom no marco das prticas historiogrficas e das disciplinas humanstico-sociais. A partir da demorada crise do positivismo, as iniciativas de dinamizaom originrom-se basicamente fora da comunidade acadmica dos fillogos-historiadores. A intransigncia corporativa experimentou-se com freqncia como umha luita por preservar o domnio epistmico-ideolgico e o controlo didctico dos saberes literrios e da sua institucionalizaom. Tambm, ao mesmo tempo, como umha estratgia autonomizadora e monopolizadora para deixar o literrio margem da confluncia com outros produtos culturais ou sociais e, em sentido amplo, para preserv-lo, em sentido escolstico (Bourdieu 1994), da prpria histria. Apesar disto, a HL nom est esgotada como disciplina. Paradoxalmente, e ante todo, por ser Histria.

    Desde as correcons aplicadas na parte final do sculo XVIII, de forma sucessiva como catlogo, erudiom enciclopedista ou histria filosfico-causal, as mudanas na HL incorporrom-se quase sempre da mao de assimilaons provenientes do debate metodolgico referido Histria reconhecida como disciplina-quadro. Esse debate implicou de modo progressivo a abertura das distintas historiografias a outras cincias humanas e, bastante mais adiante, um questionamento profundo da centralidade do acontecimento histrico, algo previsto em algum modo j por Voltaire e por Madame de Stal. Por contra, a incidncia efectiva da teoria literria e da nascente comparatstica no processo disciplinar da HL resultou modesta, discreta e diferida. As excepons som escassas. A nica clara no mbito da romanstica europeia, j no sculo XX, seria a da estilstica idealista, em realidade um processo de retroalimentaom da prpria historiografia umha vez considerada a repercussom da leitura crtica que Croce formulou sobre o pensamento de Hegel, com resultados tam dspares como os oferecidos por Spitzer e por Vossler. Noutros espaos haveria que mencionar o peso do materialismo histrico e do pensamento sociolgico marxista, assim como a muito adiada influncia dos debates protagonizados polo crculo Bakhtine. E pouco mais at aos derradeiros vinte anos do passado sculo. Resulta neste sentido mais que significativo o tempo que se demorou em assimilar o legado ltimo das posions funcionalistas de Jakobson, Tinianov e

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    Sklovski sobre a nom equiparabilidade de sincronia e sistema, sobre a determinaom iniludivelmente sistmica de toda evoluom e sobre a possibilidade de umha histria do sistema literrio superadora da histria gentica da literatura e do imanentismo lingstico-literrio de linhagem saussureana (Steiner 2001: 99). As posions dos formalistas russos seriam reelaboradas nos primeiros anos 40 por Felix Vodika (1995) no quadro das investigaons da Escola de Praga. Estas ltimas permaneceriam inaplicadas na prtica, entre outros motivos pola complexidade de umha combinatria eficaz das dimensons sociolgica, fenomenolgica e esttico-axiolgica, propostas polo terico checo em dependncia de um propsito de fundo reconstrutivo. Vodika, em efeito, perfilou a tarefa inicial da HL na reconstruom da norma literria em um espao-tempo dado e na hierarquizaom do conglomerado formado por obras e valores estticos tal como sucessivamente se concretizam no gosto de pblico e crtica.

    Em umha srie de trabalhos publicados nestes ltimos anos salientei a indissociabilidade do curso da HL e o correspondente matriz que por antonomsia reconhecemos como Histria. Trata-se de laos evidentes, mas amide desvalorizados no que representam desde um ponto de vista operacional e funcional. De umha srie de dez consideraons anotadas em umha publicaom do ano 2000, interessa-me agora recuperar em particular a que abria a relaom. Insistia na existncia de um conjunto de problemas/respostas iniludveis partilhados pola Histria e a HL, como mnimo no tocante a duas esferas: as implicaons entre narraom e construom (com posions como as de Ricoeur, White, Gadamer, Koselleck, Derrida, Skinner, Schmidt, Ankersmit) e a funom social e institucional das disciplinas histricas. Tambm assinalava algumhas noons com capacidade de articulaom do discurso historiogrfico e de centrar possveis leis disciplinares da HL, entre elas as de mudana literria,desenvolvimento gradual, explosom cultural e processo inter-literrio, para as que os referentes tericos seriam Vodika, a Escola de Tartu, a Escola de Bratislava, a teoria dos polissistemas, Bourdieu, Wallerstein e Martindale. Algumhas dessas noons serm retomadas aqui, fundamentalmente desde as premissas da semitica pragmtica e das teorias sistmicas, tendo presentes assim mesmo as observaons

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    de Bourdieu, nas suas Mditations pascaliennes (1997), em torno s prticas deshistorizantes e s resistncias historicisation nos programas habituais aplicados por filsofos e fillogos para a constituiom de umha histria da filosofia ou de umha histria da literatura. O esquecimento da histria nesses mbitos associa-se para Bourdieu prevalncia de umha tradiom (Kant, Hegel, Heidegger) que em realidade ritualizou a correlaom texto-cnon-exegeta e que se desentendeu da anlise da produom-recepom e dos processos de canonizaom em sociedades histricas concretas. A propsito da mudana literria/cultural e das descontinuidades na histria, um referente iniludvel , por suposto, Foucault, se bem de Saussure a Lotman ou Martindale existe umha linha de reflexom sustentada no sculo XX sobre a apariom do aleatrio e do casual nos processos lingstico-culturais.

    *

    A opom sistmica em HL pressupom tomar conscincia da existncia de polo menos quatro reptos de importante calado e nom simples resoluom: 1) a explicaom dos limites sistmicos ou de campo e as interacons sistema-extra-sistema, sistema-polissistema e sistema-subsistema; 2) a incorporaom efectiva de todo quanto se entende como produto sistmico,4 o qual, em boa lgica, deveria implicar tambm a introduom relacional do que na teoria dos campos sociais se define como espao dos possveis;5 3) a decisom sobre o modo apropriado de incorporar a diacronia sistmica,6 que no

    4 By product I mean any performed set of signs and/or materials, i.e., including a given behavior. Thus, any outcome of any action, or activity, can be considered a product, whatever its ontological manifestation may be, be it a semiotic or a physical object: an utterance, a text, an artifact, an edifice, an image, or an event. In other terms, the product, the item negotiated and handled between the participating factors in a culture, is the concrete instance of culture. Obviously, a culture product is any implemented item of the repertoire of culture (Even-Zohar 2005: 25). 5 Nas pginas introdutrias ao seu trabalho de 1990 Even-Zohar chamou a atenom sobre o facto de que Bourdieu alcana-sse conclusons prximas in some areas superior s do funcionalismo dinmico sem que se produzisse nengumha conexom ou aproximaom terica efectiva (Even-Zohar 1990: 3). 6 Incorporaom que em si mesma constitui j umha prova de notvel complexidade para o modelo sistmico, muito mais rodado e melhor testado em coordenadas sincrnicas; as quais, por suposto, som tambm histricas, segundo reitera Even-Zohar em distintos lugares. De todos os modos, tem interesse lembrar que a partir de 1968 as formulaons pioneiras das

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    fundamental obedecer ou bem a um critrio seqenciador da dialctica continuidade/mudana que percorra com detalhe um trecho temporal soluom que cabe ver como a tradicional ou bem a um critrio comparativo de cortes temporais nom consecutivos que se lem como sucessom discreta de momentos-estados submetidos a contraste sistmico, dando passo assim ao que com Itamar Even-Zohar podemos chamar policronia dinmica; e 4) a reconduom do factor crtico que toda histria cultural assume ainda que s seja por duas razons, polas implicaons derivadas de considerar ou nom considerar selectivamente determinados factores, produtos e agentes participantes nas actividades literrias e, em segundo lugar, pola representaom da diferena em relaom com o que Michel de Certeau (1975: 63-120) chamou a operaom historiogrfica, que nom s habilita discursivamente o que j nom est senom que ademais constitui umha historizaom do actual, o qual faria inesquivvel a vertente crtica. Parte das consideraons feitas, com atenom particular ao alvo da heterogeneidade, complicado sempre de encaixar em qualquer narraom/descriom historiogrfica, conflui nas observaons que seguem, pertencentes ao artigo System, Dynamics, and Interference in Culture: A Synoptic View, de Even-Zohar (1990: 87):

    The system concept had, however, to undergo several modifications in order to accommodate the conception of stratified heterogeneity. Firstly, it became necessary to recognize that both synchrony and diachrony should be admitted as systemic dimensions, and therefore that the idea of system need not be exclusively identified with static synchrony (but could be viewed as dynamic polychrony). Secondly, it was necessary to recognize that the idea of system does not imply that there can be observed/hypothesized for any number of phenomena just onesystem, i.e., one network of relations. To speak of an activity, be it language, literature, culture, or history in general, as single systems is a heuristic simplification rather than an adequate theory.

    teorias sistmicas de Ludwig von Bertalanffy no marco de umha biologia organsmica discriminavam entre os significativamente denominados nvel estrutural e nvel funcional dos sistemas, respectivamente atentos s suas vertentes esttica e dinmica.

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    Lotman e Uspenski (2000: 190), na sua anlise dos processos de autoconscincia e modelizaom cultural, mencionam assim mesmo o erro habitual em muitas histrias literrias de superpor sobre a descriom rigorosa da literatura/cultura umha uniformizaom destinada a alcanar a unidade orgnica e a eliminaom de contradions. Regressarei a isto mais adiante, em particular ideia limitativa dos sistemas nicos, que em efeito sustenta boa parte das plasmaons historiogrficas literrias ou nom, sistmicas ou nom as que estamos habituados. Um sistema nico entender-se aqui como aquele que exclui a relevncia emprica de redes de correlaom alheias considerada para a postulaom do sistema como entidade existente. Por exemplo, as naons e as literaturas nacionais apresentam-se quase sempre, na prtica historiogrfica e na historiogrfico-literria respectivamente, como sistemas nicos. mais, na maior parte das operaons histricas/historiogrficas d-se por suposto que sem reduom de campo nom h objecto. Por suposto, em termos prticos h algo de razovel em umha decisom deste tipo, mas o certo que, por abuso nom s heurstico, resulta corrente que o excludo passe a ler-se como inexistente.

    comprovvel que as dinmicas identitrias costumam conjugar com percia essa classe de operativos. O anterior pressupom que por umha decisom limitativa e simplificadora, ao tempo assumida como legtima e at como apoditicamente fundamentada, deixam de observar-se e de valorar-se como pertinentes redes concorrentes doutros factores correlacionados. Como lgico, essas redes podem incorporar por desdobramento alguns dos factores j considerados para postular a existncia do sistema pr-dado (associados agora a outros factores e/ou a outras redes) ou, alternativamente, outros factores nom incorporados mas que em efeito existem, intervm e interactuam. E nom s o fazem com outros presentes em algumha das redes excludas senom tambm, com muita probabilidade, com os prprios factores integrados na rede constituinte do suposto sistema nico. Umha comunidade de consumidores CC adscrita a um sistema cultural SC1pode perfeitamente simultanear actividades de consumo perceptveis, e at determinantes no mercado e/ou no repertrio, em um sistema cultural SC2 diferente; e em tal medida que at possa

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    chegar a questionar-se a adscriom primria de CC a SC1. Portanto, o sistema nico nom s ignora a existncia de possveis redes alternativas rede sustentadora do sistema senom que ademais exclui que algum dos seus factores possa s-lo, em simultaneidade, doutro sistema.

    Umha nova exemplificaom dotar de maior claridade o que se quer dizer. Na sua reformulaom da teoria dos polissistemas, Even-Zohar (2005: 31) apresenta a instituiom e o mercado como os intermedirios entre as foras sociais e os repertrios culturais. A questom que em situaons culturais desenvolvidas e nom submetidas a umha excepcional pressom uniformizadora e censora nom existe possibilidade de um mercado nico nem de umha instituiom nica, como tampouco de um repertrio nico. Evidentemente, isto assim em sociedades multiculturais caracterizadas ou nom por processos de hibridaom, mas assim tambm em sociedades supostamente coesas. O mercado sempre plural, o mesmo que o repertrio. Segundo acaba de ver-se, sectores do mercado de um suposto sistema nico participarm em mercados alternativos e/ou extra-sistmicos, e o mercado desse suposto sistema nico ser participado por consumidores associados de raiz a outros sistemas. Isto nom umha rareza, mais bem a norma. A aceitaom de que todo sistema em realidade um polissistema ou sistema de sistemas nom suficiente para desocupar-se deste complexo assunto, com bvias repercussons na traslaom diacrnica do problema e com evidente incidncia na historizaom correspondente. De facto, em umha HL de base sistmica nom s seria inadmissvel a postulaom de um sistema nico, tambm resultaria inaceitvel o critrio de localizaom nica aplicado aos objectos de anlise. Todo acto histrico e todo sujeito histrico formam parte de planos histricos plurais, polo que nengumha realidade histrica pertence a um plano-relato nico. Um dos problemas, entom, o da adjectivaom identitria da HL sistmica, pois ainda que seja em um nvel secundrio esse tipo de chaves (territoriais, culturais, sociais, lingsticas...) acabam por aparecer. E quando nom o fazem simplesmente devido a algumha classe de mal-entendido conceptual ou impostura epistemolgica (p.e., a que leva a identificar sistema literrio e literatura nacional, tam corrente). Em realidade, o problema dista de ser novo. Qualquer historiografia

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    literria deve geri-lo optando por algum critrio de axializaom e vertebraom. A diferena radica em que umha HL nom sistmica e/ou nom emprica promover a naturalizaom de tal critrio, enquanto que o operativo irrenuncivel de umha HL sistmica devera ser sempre o contrrio: renunciar a camuflar a decisom, sac-la luz ao lado da complexidade de base e mesmo aprofundar na sua problematizaom relacional e funcional. Antes de regressar a este terreno perfilarm-se outras anlises parciais que contribuam a estabelecer um marco de observaom conjunta.

    Resulta claro que especificar o objecto de umha histria determinada tem conseqncias sobre a classe de conhecimento que se aspira a constituir e sobre o tipo de discurso associado a tal eleiom. A histria da biologia e a histria da arquitectura, por exemplo, compartirm alguns operativos e decisons. E sem dvida divergirm noutros. Nom s por atenderem realidades objectivamente diferenciadas senom tambm porque noons como organismo ou construom som problemticas de seu e porque nom estm dadas de antemao de maneira inequvoca, contando cada umha delas com umha histria conceptual prpria (Koselleck) ao longo do tempo. E noutro plano, ademais, porque os discursos habilitados para informar sobre a diacronia conceptual associada a essas noons e sua evoluom som igualmente plurais. Nesta ordem de cousas, se se considera o tempo transcorrido desde a Ilustraom, costuma-se aceitar como lgico que em termos comparativos a histria da biologia, obrigada a incorporar os processos especficos da bioqumica, da biologia molecular, da genmica e doutras disciplinas convergentes, ampliasse o seu ncleo de atenons bastante mais do que precisou fazer a histria da arquitectura.

    A este respeito cabe ainda umha observaom complementar, usual como tema recorrente de debate em prticas historiogrficas do tipo das citadas mas quase ausente na esfera da historiografia literria. Trata-se da questom da idoneidade do perfil autorial associado ao campo de especializaom. Em definitiva, simplificando algo as cousas, da decisom sobre se a histria da arquitectura deveria ser responsabilidade de um historiador ou de um arquitecto. Ou sobre se a histria da biologia corresponderia a um historiador ou a um bilogo, ou em geral a algum versado em

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    cincias experimentais. Essa classe de correlaom nom tam clara na historiografia literria. Existem por suposto casos de histrias literrias feitas por poetas e escritores (de Ronald de Carvalho a Max Aub ou Emma Donoghue), mas o debate sobre se a HL poderia corresponder plena ou parcialmente aos historiadores (promovido em termos tericos por Lucien Febvre, Roland Barthes e tantos outros) resultou descontnuo e muitas vezes foi calado antes de tempo polos poderes corporativos e as inrcias acadmicas.

    Em todo caso, depois da experincia da escola de Annales parece consolidada umha compreensom das diversas formas da historiografia como programas que s garantem rigor e utilidade a partir da constituiom de grupos de trabalho colaborativo interdisciplinares e plurais. Lembre-se que das quatro grandes vertentes programticas anunciadas por Lucien Febvre em 1947 ao se fazer cargo da sexta secom da cole Pratique des Hautes tudes de Paris, umha se orientava precisamente procura de um reencontro entre as cincias humanas e outra promoom da investigaom colectiva entre equipas de historiadores e outros especialistas. Nessa linha, pode conjecturar-se que em um futuro nom distante se contemplar como anacrnica e pouco fivel qualquer postulaom de umha autoridade e de um discurso historiogrficos ligados individualidade do sbio/informador. Provavelmente, acabou para sempre o tempo das narrativas historiogrficas unipessoais e o das expectativas associadas.7 E nom me parece que essa prevenom demore em estender-se assim mesmo aos grupos de historiadores submetidos a umha coerncia epistemolgica blindada e a umha coesom programtica e estratgica percebidas como excessivamente rgidas, disciplinadas e autotlicas. provvel, porm, que os leitores futuros demandem de maneira incondicional resolver por si prprios as contradions que os dados e as interpretaons cruzadas das equipas de historiadores ponham sobre a mesa. Assim as cousas, parece provado que o maior repto pblico (social, poltico) da HL a

    7 Refiro-me com esta ltima expressom a situaons como a vivida pola academia e a intelectualidade espanhola e latino-americana que a finais do sculo XIX esperrom longamente por umha proposta historiogrfico-literria de Menndez Pelayo que nunca chegaria a concretar-se. Gonzlez-Milln (2006) compilou os documentos epistolares referidos a essa espera no perodo 1877-1901. Inclui correspondncia sobretodo com Juan Valera, Gumersindo Laverde Ruiz e o colombiano Miguel Caro.

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    renegociaom da autoridade narrativo-historiogrfica e administrativo-institucional que est nas suas prprias razes disciplinares. E a este respeito, nom me resistirei a deixar anotada umha advertncia destinada a evitar possveis simplificaons.

    Trata-se do seguinte: sem dvida, existem formas de autoridade margem do relato omnisciente e fora dos mecanismos de controlo do narrador-historiador. A renncia narrativa no ofcio do historiador, que como tem lembrado Peter Burke umha reclamaom presente j no sculo XVIII,8 nom pressupom de seu a desactivaom daqueles mecanismos nem a superaom de dependncias deterministas, explicativas, causais ou teleolgicas. Tampouco pressupom necessariamente umha suspensom da seqencialidade, a linearidade, a continuidade ou o causalismo. Assim, pois, a suposiom segundo a qual a mudana de rumo expressada por Lawrence Stone (1981) como passagem de um modo analtico a outro descritivo representaria umha correcom mas nom umha impugnaom dos excessos da historiografia narrativa deve calibrar-se com atenom.

    Igual que trs toda narrativa h sempre um eu-narrador(-focalizador), h tambm, sempre, trs todo discurso descritivo um eu-descritor(-focalizador). A opom em prol da descriom nom pressupom de seu um seguro de objectividade ou de nom-intervenom sobre a matria da anlise. Mais ainda: nom evidente a existncia de dous princpios construtivos ou estruturas formais contrapostos na HL (narrar/descrever) no sentido exposto por exemplo por Remo Ceserani (1990: 17-32) se essa oposiom se extrapolar fora do paradigma do historicismo teleolgico nacionalista prprio do sculo XIX.

    Voltemos agora brevemente ao debate aberto a propsito da historizaom da biologia e da arquitectura. Com a noom de literaturae com a historicidade associada som precisas algumhas aclaraons e certas precauons comparveis s associadas aos conceitos antes mencionados de organismo vivo e construom. De facto, os resultados da HL dificilmente podem homologar-se quando se consideram prticas suficientemente afastadas no tempo. Isto assim, de entrada,

    8 O escocs John Millar constitui um bom exemplo, sumamente interessante ademais desde o ponto de vista sistmico.

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    porque aquilo ao que fai referncia o nome literatura constitui domnios muito distintos a finais do sculo XVIII e a comeos dos sculos XX ou XXI. Porm, existe umha tendncia inercial e essencialista, inconveniente em suma, a pensar que essas diferenas som apenas de matiz. Em conseqncia, assimila-se que o rtulo Histria literria nom s conserva vigncia plena senom ademais que legtimo falar de continuidade epistemolgica e funcional entre prticas historiogrficas separadas por duzentos anos e por considerarem objectos de estudo tam dissmeis como os que por caso aparecem no modelo de Girolamo Tiraboschi (Storia della letteratura italiana, 1772-1781) e no dirigido por Alberto Asor Rosa (Letteratura italiana, 1982-1996). Neste quadro, talvez conviria comear por explicitar que s por umha espcie de pacto nom escrito aceitamos que se fale de umha nica disciplina apesar de os campos objecto de historizaom diferirem tanto. Isto explicaria, contemplado desde um prisma diferente, a renncia ao uso da palavra histria em determinados projectos plenamente historiogrficos. E at o feito de que haja quem opte por preterir o rtulo literatura em favor doutros como cultura literria, quando nom vida literria ou campo literrio.

    As modalidades historiogrficas entendidas como prticas discursivas possuem de seu umha dimensom performativa com umha dobre vertente, a dirigida comunidade referenciada (sujeito da histria, chamou-se-lhe em certa altura) e a dirigida comunidade referente, reguladora e institucionalizadora da operaom e do conhecimento historiogrficos. Enquanto a primeira se configura com agentes histricos vinculados pola sua relaom directa com o objecto prefixado e por algumha forma de conexom de contigidade e continuidade que os une no espao-tempo como grupo (cultural, lingstico, religioso, social, nacional), a segunda integra os agentes que documentam, constroem, discursivizam a histria e que participam em um dilogo cientfico e em umha pugna epistemolgica e ideolgica polo controlo do saber e da sua incidncia na esfera pblica. Sergio Sevilla (2000: 140-159) vincula acertadamente esta performatividade com umha mudana epistemolgica pola qual a theoria antes duplicado conceptual do real passou a tratar-se como poiesis: a historiografia afrontou assim um giro retrico-pragmtico, de modo tal que o imaginrio passa a ser o que constitui a

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    realidade social, e a teoria a que produz, em sentido poitico, o mundo (White, Durkheim, Mauss, Castoriadis).

    Nada do anterior exclui a marca crtica do conhecimento histrico: ser sempre a intervenom historiogrfica a que para comear questione as conexons de contigidade e continuidade e a prpria existncia da comunidade postulada como objecto especfico de atenom. Descontinuidades e alteridades podem encaixar assim, mediante procedimentos diversos, na srie historiogrfica, originando at a refutaom de objectos/identidades considerados e acordados por consenso como existentes noutros momentos e/ou desde outras perspectivas; ou, contrariamente, reclamando a incorporaom de objectos/identidades inobservados ou excludos pola comunidade reguladora do saber histrico.

    Um aspecto destacado da dimensom prxico-agencial dos historiadores e dos seus discursos radica na possibilidade de umha aplicaom nom excludente de mtodos e de escalas, assunto que volta convocar a ideia de pluralidade e que me parece oportuno destacar. As escalas, por exemplo, aplicadas sobre um mesmo ncleo de referncia submetido a umha contemplaom em diferentes nveis, originam propostas nom necessariamente antitticas nem contraditrias (tampouco necessariamente complementrias, lidas desde um ponto de vista informativo). As cartografias e as escalas, contempladas em chave de aplicaom histrico-literria, sinalam a inexistncia de comunidades isoladas ou impermeveis fronte ao seu exterior/ limites ou fronte a outras comunidades.9 E nom s isso, senom que ademais ponhem em questom a prpria identidade comunitria se esta se postular sobre bases monoparametrais (lngua, religiom, gnero, unidade administrativa). Dito com maior precisom: o que ponhem em questom o consenso sobre a postulaom/invenom de umha entidade funcionalmente admitida como sujeito histrico.

    O anterior nom significa que fique impugnada qualquer prtica historiogrfica de escala nica, seja esta menor ou maior. Nem muito menos. Mas sim introduz umha reserva de forte calado

    9 Considere-se a este respeito o enunciado do primeiro princpio da interferncia literria/cultural em Even-Zohar, que em Polysystem Studies formulou como Literatures are never in non-interference (Even-Zohar 1990: 59) e em Papers in Culture Researchcomo Interference is always imminent (Even-Zohar 2005: 57).

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    heurstico e epistemolgico, que pode traduzir-se nos termos seguintes: quanto aqui se diga o resultado de informar/interpretar como se a escala activada fosse a nica ou a mais apropriada para a finalidade estabelecida. Obviamente, essa finalidade susceptvel de variaom, pois depender de critrios diversificados e irredutveis que vam desde umha suposiom de nom-intencionalidade ou intencionalidade nom marcada at algumha classe de compromisso a priori (acadmico, sectrio, ideolgico). E que dizer sobre os mtodos? Como mnimo, outro tanto.

    Regressemos questom da performatividade, agora em associaom com os princpios construtivistas que a teoria dos polissistemas assume. Qui convenha comear por umha afirmaom: nom h possibilidade (nunca a houvo) de umha historiografia (literria) nom performativa. Isto assim porque toda histria umha tomada de posiom por parte de algum agente que intervm como sujeito de um acto comunicativo-performativo. Um complemento necessrio para esta afirmaom o seguinte: cada vez mais limitado o espao para umha Histria (literria) nom emprica. Essa possibilidade existiu no passado, de facto h mostras numerosas dela; porm, apesar do carcter performativo da intervenom do historiador e em condions de normalidade hoje resultaria anacrnica e intelectualmente recusvel umha alternativa que se evadisse dos dados em direcom a algumha ordem metafsica ou transcendente, ou at a um manifesto ponto de fuga teleolgico. Como bvio, isso nom anula as conseqncias do relativismo discursivo nem as derivadas do conhecido como giro lingstico. Tampouco as devidas marca construtivista referida correlaom entre a teoria e os seus objectos, que leva a Even-Zohar (1990: 3) a afirmar que o nico modo adequado ou vivel de observar um determinado objecto de investigaom atravs do estabelecimento de hipteses segundo as quais aquele est efectivamente sujeito a um conjunto localizvel e relativamente sucinto de leis, cujo descobrimento e formulaom deveria constituir o objectivo de toda cincia.

    A teoria dos polissistemas de Itamar Even-Zohar apresentava-se em 1978 como umha aproximaom propcia anlise da metodologia histrico-cultural e concreom de alternativas

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    aplicveis em particular ao tratamento historiogrfico dos sistemas dependentes ou minorizados, talvez porque essa era j desde dez anos antes umha das preocupaons bsicas do prprio Benjamin Harshav (Hrushovski), comparatista e professor de Potica na Universidade de Tel Aviv e um dos referentes da Unidade para a Investigaom da Cultura.10 Porm, a perspectiva histrica evidencia-se com menor nfase nas posteriores compilaons de trabalhos de Even-Zohar (1990, 2005, 2007), se bem costuma deixar-se clara a dupla possibilidade programtica apresentada como umha teoria dos sistemas estticos e umha teoria dos sistemas dinmicos. Um aspecto destacvel dessa alternativa o que se expressa com firmeza nestes termos: it must be admitted that both synchrony and diachrony are historical, but the exclusive identification of the latter with history is untenable (Even-Zohar 1990: 11).

    *

    A nossa atenom deve cingir-se neste momento resposta que umha HL de fundamentaom sistmica est capacitada para oferecer srie de quatro reptos heurstico-metodolgicos antes citados, que nom estar de mais sinalar que som convergentes e interdependentes. Resumiremo-los deste modo: 1) concretizar em perspectiva dinmica os limites sistmicos e as interacons polissistmicas, extra-sistmicas e subsistmicas; 2) incorporar com sentido relacional nom s produtos senom tambm possveis; 3) optar entre o modelo da seqenciaom tradicional ou o da policronia dinmica para dar conta da evoluom e das mudanas sistmicas; e 4) conformar umha selecom (crtica?) de dados heterogneos historizveis e ajustar, se nom umha histria efectiva em sentido pleno, sim polo menos um dilogo com os constructos historiogrficos prvios ou concorrentes.

    A questom dos limites na teoria de sistemas fulcral desde que Niklas Luhmann assumiu os postulados de Humberto Maturana e Francisco Varela sobre a autopoiese. Como sinala Maldonado Alemn

    10 Os epgrafes histria da literatura, histria cultural ou modelo histrico vertebram o sumrio e os contedos de Papers in Historical Poetics (Even-Zohar 1978). Sobre isto mesmo, veja-se a anlise parcialmente divergente de Gonzlez-Milln (2001: 306), quem considera que em Even-Zohar h umha incorporaom de um horizonte histrico sobre o modelo inicialmente constitudo, mas que foi obstaculizado pola mediacin dun esquema heurstico excesivamente sistemtico e abstracto.

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    (2006: 19-23), em Luhmann os sistemas sociais autopoiticos som sistemas autnomos que se organizam de forma auto-produtora, auto-reguladora e auto-referencial e que estabelecem uns limites diferenciadores com o seu entorno. Assim entendida, claro que a autopoiese mantm pontos de convergncia com o que noutras plataformas tericas podem representar a cultura como sistema semitico modelizante na semiosfera (Lotman), o habitus no campo social (Bourdieu), o repertrio no sistema cultural (Even-Zohar) ou a vida textual e a vida antropo-social nas coordenadas da instituiom literria (Moisan). Maldonado Alemn (2006: 27) aponta que seriam trs as relaons de que deveria ocupar-se umha histria dos sistemas literrios: as intra-sistmicas, as extra-sistmicas e as intersistmicas. Em todo o caso, insistirei de novo na advertncia sobre o que antes interpretei como umha espcie de reduom aos princpios de sistema e localizaom nicos, mediante a qual o analista tender equivocadamente a ignorar a existncia de redes sistmicas alternativas considerada como referncia autopoitica de base, ou tambm pertena a umha rede sistmica outra de algum factor ou relaom supostamente intra-sistmico. Dito em palavras mais categricas: em um espao social determinado nom tem por que haver um nico sistema social/cultural ( mais, esse caso seria excepcional),11 e um factor sistmico dado pode associar-se simultaneamente (a maioria o fazem) a diversas redes sistmicas, em definitiva, a diversos sistemas.

    Na concreom dos lmites sistmicos seria produtivo fixar-se nom s nas interferncias e no que caberia denominar dimensiom relacional paratctica mbito do que se vem ocupando assim mesmo a historiografia comparatista com desigual fortuna senom tambm na dimensom relacional hipotctica, mais pendente das junturas-

    11 Lembre-se a difana posiom de Even-Zohar ao respeito e as suas reservas sobre qualquer reduom da heterogeneidade nos estudos literrios: The acuteness of heterogeneity in culture is perhaps most palpable, as it were, in such cases as when a certain society is bi- or multilingual (a state that used to be common in most European communities up to recent times). Within the realm of literature, for instance, this is manifested in a situation where a community possesses two (or more) literary systems, two literatures, as it were. For students of literature, to overcome such cases by confining themselves to only one of these, ignoring the other, is naturally more convenient than dealing with them both. Actually, this is a common practice in literary studies; how inadequate the results are cannot be overstated (Even-Zohar 1990: 12).

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    disjunturas e dos encaixes polissistema-sistema-subsistema que de umha visom intersistmica central-central ou central-radial. O relevante entender que o sistema cultural sempre um sistema complexo em razom de limites, inter-relaons e hierarquizaons.12

    Em umha publicaom anterior explorei a rendibilidade operativa da noom de delegaom sistmica, prxima de subsistema13 e igualmente receptiva ao modelo bourdiano dos campos sociais e ao que poderamos catalogar como umha topologia de sistemas (Casas 2003: 74-75). Por afectar s relaons intersistmicas hipotcticas tentarei redefinir o conceito com maior precisom. Umha delegaom sistmica o resultado de umha interferncia entre sistemas culturais que projecta escala e com carcter global o centro do sistema fonte no centro ou na periferia do sistema receptor.14 Do que se trata, pois, de que se exporta ou desloca em escala menor a outro sistema o conjunto de caractersticas funcionais que definem o centro do sistema fonte.

    A existncia da delegaom sistmica liga-se a dous possveis factores: o prestgio do sistema fonte e/ou um certo grau de proximidade sistmica. Tal proximidade pode ser de ndole geogrfica, lingstica, poltico-administrativa, cultural, ideolgica, religiosa.... A marca de globalidade pressupom que a projecom escala do centro do sistema fonte nom se limita a elementos de repertrio, senom tambm de mercado, de consumo e sobretodo

    12 Tambm privilegiando nisto a atenom a Lotman que a fronteira semiosfrica um factor simultneo de organizaom (cara a dentro) e de desorganizaom (cara a fora). 13 Empregada esta por Elias Torres Feij em distintos trabalhos a partir do ano 2000 e aplicada nas investigaons sistmico-culturais do Grupo Galabra, por ele dirigido. Sobre a teorizaom de Torres Feij, muito conectada com o modelo de Even-Zohar, volverei mais adiante.14 Nom poria inconveniente a substituir sistema receptor por cultura receptora se se registra insuficincia sistmica. Em processos histricos de colonizaom ou de expansom imperialista a delegaom sistmica formaria parte do aparato de assimilaom cultural que sucede fase de maior rigor na aculturaom das comunidades submetidas. Nestes casos, acaba sempre por aparecer e estabelecer-se umha burocracia intelectual que um dos mecanismos mais efectivos na consolidaom da hegemonia e que, sua vez, acabar sendo alvo preferente das reacons contra-hegemnicas de resistncia cultural. Doutra banda, nos processos modernos e contemporneos de centralizaom derivados da constituiom de estados que planificam umha homogeneizaom cultural (pratica