joaquim manuel de macedo - as mulheres de mantilha

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AS MULHERES DE MANTILHA Joaquim Manuel de Macedo Romance histrico INTRODUO Os quatro anos que correram de 1763 a 1767 no foram por certo dos mais suaves e agradveis para os habitantes da cidade de So Sebastio do Rio de Janeiro, embora muito ufanos e orgulhosos devessem eles estar em conseqncia da definitiva mudana da capital do Brasil que passara da primognita de Cabral para a bela filha de Mem de S, assumindo com carter de permanncia o chefe da grande colnia portuguesa da Amrica a graduao e hierarquia de vice-rei. Mas o primeiro vice-rei que d. Jos ou por ele o marqus de Pombal despachou para o Rio de Janeiro, e que governou o Brasil desde 16 de outubro de 1763 at 21 de novembro de 1767, foi d. Antnio lvares da Cunha, conde do mesmo ttulo, homem talvez animado de boas intenes, porm to facilmente irritvel como violento e dspota. No da nossa conta o que fez o conde da Cunha em Mazago e Angola que tambm governara; no Rio de Janeiro porm deixou ingrata e turva memria pelos desabrimentos e escandalosos abusos da sua administrao. verdade que lhe podem dar como circunstncia atenuante da aspereza e despotismo do seu governo as prevenes bem ou mal fundadas que trouxera contra o corpo do comrcio e talvez contra toda a populao da nova capital do Brasil. E precisamente eram os naturais de Portugal habitantes da cidade os mais suspeitos ao vice-rei, que alis estendia a todos sem exceo o rigor e as violncias que, ou provinham do seu gnio, ou adotara por sistema. Os negociantes estabelecidos no Rio de Janeiro eram todos portugueses, e tendo sofrido grandes prejuzos com a tomada da colnia do Sacramento pelos espanhis em 1762, vingaram-se no governador geral conde de Bobadela, atando-o e flagelando-o no pelourinho da maledicncia, e injuriando-o e caluniando-o to furiosamente em pasquins e cartas annimas que o brioso Gomes Freire de Andrade apaixonou-se a ponto de adoecer gravemente, vindo a morrer no dia 1 de janeiro de 1763. O conde de Bobadela fora muito amado pelos brasileiros e com especialidade pelos fluminenses, a estes porm a lembrana desse amor no serviu de escudo contra os golpes do asprrimo rigor do vice-rei, que incessante lembrava a morte de Bobadela, e por isso agradava sempre a1

opresso em que desconfiado tinha o povo. provvel que tambm uma sinistra medida tomada pelo governo de Lisboa e executada pelo conde da Cunha concorresse muito para o desgosto profundo que causou a sua administrao. Ou porque se quisesse prevenir o muito descaminho do ouro em p e em folhetas, ou porque, como parece mais verdadeiro, se resolvesse sob aquele pretexto sacrificar os interesses legtimos dos colonos aos interesses egostas dos ourives da metrpole, a Carta Rgia de 30 de julho de 1766 mandou extinguir o ofcio de ourives nas capitanias de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, e foi o conde da Cunha o infeliz executor desse assassinato da ourivesaria que principalmente no Rio de Janeiro tinha chegado a um grau de perfeio que exclua o concurso dos produtos respectivos da metrpole. A Carta Rgia de 30 de julho de 1766 era a pobreza para muitos, e a iniqidade para todos. Um castial de prata amassado, uma colher de prata quebrada, uma jia de ouro precisando de conserto, deviam ou perder-se, ou ir pedir conserto a Portugal. O governo de Lisboa sentenciara morte a ourivesaria do Brasil, e o conde da Cunha era o algoz que enforcava a vtima no patbulo levantado pelo despotismo. Ora, em fato de execuo de sentena de morte, dos juizes se maldiz, mas do carrasco tem-se horror. Ao conde da Cunha sobreveio quase no fim do seu governo essa infelicidade. Mas uma outra ainda maior o perseguiria desde 1763. Era opinio corrente e averiguada que muitas vezes e em muitos casos a bolsa aberta em segredo poupava vexames e at iludia a justia do vice-rei. Escndalo to revoltante ajuntava-se experincia de extorses do fisco sem regra, s crueldades do mais arbitrrio e atroz recrutamento, que deixava mes, vivas e irms rfs ao desamparo, filhos sem pais e esposas sem maridos, os atentados contra a propriedade, e contra a liberdade individual, privando-se em proveito das obras pblicas os senhores dos servios de seus escravos, e coagindo-se homens livres, sob pretexto de que eram vadios, a ir trabalhar nas obras do rei. Tudo isso se mandava e tudo isso se cumpria com energia tirnica, e sem que houvesse para as vtimas o direito de queixa: porque a queixa era insulto e crime punidos imediatamente e com descomedimento brutal. E, pior ainda, era ponto incontroverso a impunidade do ajudante oficial-de-sala e dos protegidos do vice-rei que atentavam contra a honra das famlias, desrespeitando a inocncia de donzelas, a honestidade de esposas, e o recato de vivas. De duas destas acusaes o conde da Cunha defendeu-se,2

confessando-se enganado, e descarregando as culpas da corruo por dinheiro e depravao por luxria sobre o ajudante oficial-de-sala, tenentecoronel do regimento velho, que se chamava Alexandre Cardoso de Meneses, e a quem despediu mal recomendado para Lisboa. Mas a to infames crimes no bastava esse simples banimento, e a suavidade do castigo dado por quem to severo com todos se mostrava, no de grande proveito e de convincente defesa para a memria do conde da Cunha, que alis foi de improviso, sem que o esperasse, e menos airosamente substitudo em novembro de 1767 no vice-reinado do Brasil pelo conde de Azambuja, o que indicia que o marqus de Pombal desagradou-se da sua administrao. Como quer que seja, Alexandre de Meneses, o ajudante oficial-desala, foi a asa-negra do vice-reinado do conde da Cunha. Como escrevemos sempre e somente para aqueles que sabem to pouco que ainda sabem menos do que ns, e no para aqueles que nos podem ensinar, vamos, porque isso preciso, dizer o que era e o que podia naqueles tempos o ajudante oficial-de-sala do vice-rei. A melhor lio o exemplo, dizer o que nos nossos dias e nos nossos costumes corresponde hoje quele cargo da poca colonial. O exemplo e a explicao saem ingenuamente e sem malcia alguma. O ajudante oficial-de-sala do vice-rei era ento o que hoje em dia o oficial-de-gabinete do ministro de Estado ou do presidente de provncia. Ora, o oficial-de-gabinete meio ministro e meio presidente de provncia, e s vezes no meio, todo, e sem responsabilidade perante os juzos daqueles de quem est na confiana: era tal e qual assim o ajudante oficial-de-sala do vice-rei. O mais humilde, e especialmente os mais humildes dos pretendentes do nosso tempo sabem de quantos milagres e de quantos abusos capaz um oficial-de-gabinete, que sendo hbil toma-se em vez de mo direita do ministro ou presidente de provncia, cabea e rbitro do ministro ou presidente de provncia que for menos hbil que ele. E do-se casos em que a ilustrao e superiores habilitaes do ministro ou do presidente de provncia cedem firmeza e energia do oficial-de-gabinete que ou pela simpatia e confiana que inspira, ou pela influncia da idade mais vigorosa, do entusiasmo mais fascinador, ou do prestgio da prtica e dos conhecimentos minuciosos da administrao, governa, fingindo submeter-se, e, quando lhe convm, abusa impunemente, escondendo-se atrs da pobre e inocente sombra do responsvel, cuja confiana explora. O ajudante oficial-de-sala do vice-rei era pois exatamente como hoje um oficial-de-gabinete de ministro de Estado, ou de presidente de provncia. O conde da Cunha era um dspota; no h porm fundamento para3

julgar-se que tivesse sido concussionrio, nem devasso; era um violento opressor; mas no vendia a justia, nem atacava a moral das famlias. Entretanto, Alexandre de Meneses abusava da confiana que merecera do vice-rei, e explorando a importncia oficial, alimentava indignamente os instintos da sua ambio, e da sua lascvia. Gula de ouro, e sede de prazeres sensuais, dois golfes em que se afoga a honra, duas fontes de corruo que infamam os corrutores e os corrompidos. Os habitantes da cidade de So Sebastio do Rio de Janeiro estavam pois sofrendo muito: o despotismo cruel do conde da Cunha e o desenfreamento de Alexandre de Meneses, que era imitado por alguns companheiros e protegidos seus, traziam a todos em susto contnuo e em tristes incertezas da vida. Mas os fluminenses tiveram sempre e tem ainda hoje alguns pontos de semelhana com os franceses: dir-se-ia que estes, tendo sido os primeiros ocupadores do Rio de Janeiro, deixaram nesta parte do Brasil o seu gosto pelo sarcasmo e pela zombaria contra o governo que detestam e que s obrigados toleram. Antes de se revoltar levam anos a ridicularizar a opresso. Com o seu rir sarcstico desacreditam, solapam, diluem o poder que ho de mais tarde e oportunamente destruir de todo, e quando no podem destru-lo, vingam-se ao menos, ferindo-o com as setas do epigrama e da zombaria. No governo do conde da Cunha os fluminenses sofriam muito e riam-se ainda mais. Eis aqui uma das cantigas desse tempo, cantiga que devemos memria de um velho octogenrio, fiel herdeiro de recordaes que lhe foram legadas. No preciso dizer que de 1763 a 1767 somente em segredo e em sociedade bem retirada e cautelosa se ousava cantar a copia audaciosa que alis todos sabiam de cor. Ei-la a vai: Um dia o conde da Cunha Em dois seu nome cortou: Do primeiro se enjoou, O segundo nada impunha; Mas o Meneses matreiro Dele fez comprida unha, Furtando o u do primeiro. parte o que de menos polido e decoroso se pode adivinhar na cantiga, a est a condenao do vice-rei e do seu oficial-de-sala4

sentenciada, lavrada pelo povo a rir. Salvo o perigo das perseguies, e vinganas tomadas nos parentes, e das sedues impunes com que indignamente se celebrizavam Alexandre de Meneses e seus scios de perverses, o belo sexo poderia apenas queixar-se da indiferena, com que o tratava o vice-rei conde da Cunha que alis por fim, e como se h de ver, bem pudera ter sido declarado o benemrito das moas solteiras, mas esposo fiel, recatado e de costumes austeros em relao famlia, nem sequer tinha olhos para ver e dizer que havia na capital da colnia algumas ou muitas senhoras bonitas. Entretanto andava tambm o belo sexo descontente da situao: primeiro, porque indiretamente as mes, as esposas e as filhas recebiam por contrapancada os golpes que o despotismo desfechava em seus pais, esposos e filhos, segundo, porque o bispo d. fr. Antnio do Desterro inocentemente as contrariava e semeava espinhos na vida de flores a que elas se julgavam com direito incontestvel. Na opinio das senhoras o bispo d. fr. Antnio do Desterro completava o vice-rei conde da Cunha. Havia injustia nesse juzo: o vice-rei era dspota; o bispo era severo, e devia s-lo. Queixavam-se, murmuravam do bispo por causa do Recolhimento do Parto e do Recolhimento de Itaipu, onde muitas vezes abusiva e cruelmente alguns pais desterravam as filhas, alguns maridos encarceravam as esposas, essas injustas violncias porm no estavam na inteno do virtuoso prelado. Murmuravam ainda do bispo porque ele sabiamente acabara com os penitentes de aoites nas procisses do enterro, como os ajuntamentos de povo e conversaes profanas s portas e nos adros das igrejas antes e depois das festas, e com as solenidades religiosas que se celebravam noite, e de que abusavam os namorados e os libertinos em proveito de seus amores inocentes ou condenveis. O fr. Antnio do Desterro, que prestou os mais importantes servios sua diocese, foi um bispo modelo na sua poca e a severidade de que usou, de grande socorro moralidade, ao ensino, santidade do culto, e aos costumes do sculo. No pensavam assim naquele tempo as senhoras ameaadas pelas casas de severo recolhimento e contrariadas pelas justas providncias que obstavam a fcil turibulao1 sua beleza nos trios e s portas das igrejas, e nem pensavam assim as moas estouvadas e alguns padres que viviam vida desregrada, que o venerando bispo corrigiu com a mais santa energia. O bispo d. fr. Antnio do Desterro no podia escapar aos golpes do epigrama e do ridculo que eram as armas de oposio dos desgostosos.1

Relativo ao turbulo, vaso onde nas igrejas se queima o incenso. 5

Esse sbio e honestssimo prelado, zeloso da moralidade do seu rebanho, fulminara um dia com os raios da sua reprovao as cantigas demasiadamente livres que eram cantadas em companhias pouco discretas, e at recebidas e ouvidas com repreensvel tolerncia em sociedades estimveis. Com efeito, o lundu, a cantiga folgazona, sarcstica, ertica e muito popular, exagerava os seus direitos, e ia s vezes at a licena, ofendendo, arranhando os ouvidos da decncia, e contribuindo insensivelmente para a corruo dos costumes. O bispo d. fr. Antnio do Desterro fulminou o lundu demasiado livre, s vezes at quase obsceno. A oposio popular reagiu, considerando condenado em absoluto todo e qualquer lundu, e desrespeitosa atacou o bispo com a arma do lundu. Em toda parte cantou-se com aplauso o seguinte lundu que se compunha de muitas copias, cada qual mais extravagante e zombeteira: J no se canta o lundu Que o no quer o senhor bispo: Mas eu j pedi licena Da Bahia ao arcebispo. E hei de cantar, E hei de danar, Saracotear, Com as moas brincar. E impunemente, Cantando o lundu, Ao bispo furente2 Direi uh! uh! uh! Fr. Antnio do Desterro Quer desterrar a alegria; Mas eu sou patusco velho, E teimarei na folia. E hei de cantar, E hei de danar, Saracotear, Com as moas brincar. E impunemente, Cantando o lundu,2

Enfurecido. 6

Ao bispo furente Direi uh! uh! uh! Era com semelhantes cantigas ou lundus, e muitas vezes com pasquins em verso e prosa que se pregavam noite nas portas das igrejas, nas paredes das casas, e nos muros, que os desgostosos justa ou injustamente se pronunciavam, visto como no tinham tribuna parlamentar, onde se falasse por eles, nem imprensa, que fosse livre rgo da opinio de cada um. Estas breves informaes que acabamos de escrever do idia embora um pouco obscura da situao, costumes, prevenes, antipatias e disposio dos nimos dos habitantes da cidade de So Sebastio do Rio de Janeiro na poca em que se vai passar o romance histrico que tomamos sobre ns escrever. I Ainda mesmo durante o carrancudo vice-reinado do conde da Cunha a cidade de So Sebastio do Rio de Janeiro tinha seus dias e suas noites excepcionais de folgana e de alegria. O basto desptico do vice-rei ficava suspenso, deixando que os pobres colonos gozassem, algumas vezes por ano, horas de inocentes folguedos consagrados por motivos que eram santos e legitimados pelos costumes, que so leis imperiosas embora no sejam decretadas pelo poder. Ao governo opressor at importa muito que o povo se entregue a festas e divertimentos; enquanto o povo brinca, no reflete: pueri ludunt. Uma daquelas noites excepcionais era a de 5 de janeiro, a noite da vspera do dia dos Reis ou das cantatas dos Reis, que alis se repetiam animadas na noite seguinte. Filha de uma recordao profundamente religiosa, de uma lio do Evangelho, da visita e das oferendas dos Reis Magos ao bero humilde de Belm, onde acabava de nascer da Virgem imaculada Deus feito homem, Jesus Cristo enfim, esse costume do povo portugus passara ao brasileiro, e era como um reflexo do jbilo da igreja no regozijo profano, mas puro pela origem, e cheio de enlevos para todos no sculo passado, para todos ainda por muitos anos no sculo atual, para muitos ainda agora mesmo nos municpios e nas parquias do interior, onde se recolhem a ltimo, a extremo asilo, antes de aniquilarem-se completamente as usanas e os costumes rudes porm ricos de poesia caracterstica da vida brasileira no passado. Deus nos livre de maldizer da civilizao: a civilizao Sol; mas o Sol tem manchas; no assunto de que muito de passagem tocamos, a civilizao tem europeado demasiadamente o Brasil.7

Avivemos um pouco a lembrana da festa profana dos Reis que em suma era na cidade do Rio de Janeiro como em toda parte do Brasil. A festa popular da noite dos Reis era a que rematava as festas do Natal, que, acompanhando as sagradas comemoraes da igreja, comeavam na noite de 25 de dezembro pela exposio dos presepes, onde se figurava a cidade de Belm, o lugar humilde do bero do Menino Deus, um campo cheio de pastores e de multido de animais, rvores, flores, rios, fontes e cascatas, tudo em mais ou menos bem feita miniatura, e tudo perturbado por mais ou menos anacronismos e impropriedades, que alis no preocupavam nem aos mais entendidos em histria natural e na arqueologia. Os presepes conservavam-se abertos at a terminao das alegres folias dos Reis, e todas as noites eram visitados por multido de curiosos, e amadores. Hoje em dia ainda se observam na capital do imprio e em capitais de provncias fracos arremedos dos antigos presepes. As cantatas dos Reis se preparavam com esmero e muita antecedncia: organizavam-se sociedades mulas3 umas das outras, como agora para os passeios de carnaval em relao aos homens; combinavam-se alegres mancebos e tambm velhos folgazes, jovens senhoras estimveis, de ordinrio parentas daqueles, ensaiavam danas alegricas, quase sempre pastoris, ajustavam suas vozes, tomando de cor a msica das cantatas, e enfim na noite de 5 e de 6 de janeiro saIam a obsequiar seus amigos e pessoas de distino, cantando os Reis em suas casas. Quer estivesse aberta ou no a casa obsequiada, a cantata se entoava na rua e porta, e comeando quase sempre por um infalvel: Acordai, se estais dormindo... ou algum outro verso com o mesmo pensamento; o dono da casa recebia os visitantes que repetiam a cantata na sala, onde em seguida executavam suas danas; ceias lautas, mesas de banquetes, ou cobertas de doces, se patenteavam aos cantadores dos Reis que assim passavam duas noites em regalada festana. A ningum se prevenia e todos se preveniam: nas noites dos Reis cada chefe de famlia tinha mesa pronta para ser oferecida s sociedades obsequiadoras, e mesas que em muitas casas se renovavam com ostentao; pois que os cantadores dos Reis uns aos outros se sucediam, e as pessoas mais distintas se reputavam menos consideradas, se no lhes entoassem porta trs ou quatro cantatas. Com estas boas sociedades de cantadores dos Reis contrastavam muitas vezes bandas especuladoras dos Reis, que os cantavam, pedindo3

Rivais. 8

tributos de favor; ainda no presente sculo essa explorao se denunciava na quadrinha velha, j antes repetida cem vezes com a mais desgraada msica: Pedir Reis do costume E o dar bizarria; O negar mofineza, O aceitar cortesia. Mas aos prprios pedidores dos Reis no se fechavam as casas, e para eles era certa a colheita de pingues4 presentes que serviam depois para multiplicar os jantares e as folganas dos especuladores da festa, estes porm tinham ao menos a prudncia e bom juzo de se afastarem das boas sociedades que em caso algum consentiriam em reunir-se com eles. E havia casos de reunio das sociedades de cantatas dos Reis. Na cidade do Rio de Janeiro era quase obrigada, era de costume a reunio dessas sociedades no grande ptio do convento de Nossa Senhora da Ajuda. Ali se terminava a festa, a folia de cada uma das duas noites pelas razes mais justas e convenientes. Em primeiro lugar essa concentrao das sociedades dos Reis no ptio do convento da Ajuda era moda no sculo passado e a moda lei; em segundo o presepe do convento da Ajuda passava por ser o mais famoso ou pelo menos um dos mais famosos da cidade, e portanto atraa numerosa concorrncia; em terceiro as freiras da Ajuda eram, como ainda hoje o so habilssimas e delicadas mestras de doces e de empadas, que ento no poupavam ao regalo das sociedades, que recebiam os presentes em tabuleiros e bandejas cobertas com riqussimas toalhas perfumadas; em quarto e ltimo lugar era de costume que o ptio do convento da Ajuda se transformasse nessas noites em outeiro potico; as freiras que estavam s grades davam motes e muitos bons e maus poetas glosavam de improviso. Por todas estas razes as boas sociedades de cantatas dos Reis se reuniam de acordo no ptio do convento da Ajuda, quando muito alm da meia-noite haviam terminado as suas visitas e cantatas de obsquio, e nesse ptio cada uma delas por sua vez entoava seus cantos, e todas em amiga efuso danavam alegremente. II s duas horas da madrugada do dia 6 de janeiro de 1766, apinhavase o povo da cidade, que j era capital do Brasil, no ptio do convento da Ajuda. Quatro sociedades de cantatas dos Reis tinham-se encontrado ali, e4

Abundantes. 9

estreitado jubilosamente seus laos de fraternidade; todas cantaram por sua vez, e de cada vez houve trs a aplaudir a que cantara, e todas quatro se fizeram uma s na execuo das suas danas; as freiras batiam palmas, e a multido de curiosos louvava as sociedades, admirava o presepe, e vitoriava as pobres freiras, que estavam das grades a olhar para o mundo, de que se achavam perptua e desumanamente banidas. O concurso imenso ostentava no ptio do convento da Ajuda o que havia de mais nobre ou de mais belo e distinto na populao da capital. Pouparemos aos leitores deste romance a descrio dos cales e dos sapatos com fivelas, e dos grandes jalecos, casacas e cabeleiras com rabicho dos velhos e dos mancebos elegantes da poca; relativamente ao belo sexo limitar-nos-emos a dar uma noticia curiosa s nossas leitoras: as damas elegantes daquele tempo vestiam-se um pouco ou muito moda da atualidade, calavam sapatos de saltos de cor fantasia, como os tm as botinas dos ps mimosos de hoje, traziam vestidos estreitos e como os nesgados de agora e arrastando caudas mais ou menos longas como exatamente se observava h pouco tempo; mas tambm usavam trazer ricos pendentes s orelhas, e profuso de ouro e pedras preciosas com especialidade no colo e nos dedos cheios de anis; em muitas a protetora e romanesca mantilha escondia a parte superior do corpo, a cabea e quase totalmente o rosto; mas no modo de traj-la e na graa dos movimentos as moas sabiam atraioar-se. Quanto aos dotes fsicos das senhoras dava-se o caso de todos os tempos e de todas as cidades grandes ou pequenas, havia feias e bonitas e poucas formosas, mas os belos olhos, a cintura delicada e fina e os ps mimosos to comuns nas brasileiras faziam-se admirar, como tambm hoje se admiram. No se reparava ento; agora porm muito se notaria naquela numerosa reunio a falta de variedades de tipos; a razo era simples: o Brasil colnia s se comunicava com a metrpole; no se admitia comrcio estrangeiro e por exceo apenas alguma famlia espanhola se misturava com as famlias portuguesas e brasileiras; mas ainda assim a raa era no fundo a mesma, e os caracteres fsicos obedeciam s leis da sua origem natural: umas senhoras eram mais engraadas, mais esbeltas, mais bonitas do que outras somente por aquele segredo, alis explicvel, que faz com que a mesma rvore, ou o mesmo arbusto, apresente flores mais ou menos defeituosas e mais ou menos perfeitas. Encantonado em um dos ngulos do ptio estava um grave ancio trajando com a sria elegncia dos homens ricos, tendo a seu lado, mas um pouco para trs, uma senhora trazendo rica mantilha e que como ele observava zelosa duas belas meninas de dezoito a vinte anos de idade, vestidas com esmero, sem mantilhas, e unidas uma a outra e com as mos dadas, como a medo de se separarem embora estivessem entre o ancio e a senhora que as guardavam, sentinelas vista, cuidando ainda mais delas do10

que do presepe que j tinham apreciado bastante, e das cantatas e danas que as duas donzelas aplaudiam com inocente encantamento. O ancio era conhecido de todos e portanto sabiam muitos e adivinharam os outros que a senhora de mantilha era a esposa e as meninas as duas filhas de Jernimo Lrio, portugus e rico negociante da praa do Rio de Janeiro. Muito raramente Jernimo Lrio mostrava a famlia em pblico; mas a fama da beleza das filhas corria pela cidade ainda mais porque se ajuntava com a fama, a riqueza do pai, e as duas donzelas tinham recebido de um bem inspirado admirador, uma denominao que foi adotada, e que no podia chamar-se alcunha, porque em suma era o plural do sobrenome de Jernimo, e tinha alguma coisa de potico; pois lembrava duas flores irms: chamavam s duas meninas os dois lrios. Muitos amigos tinham cumprimentado Jernimo e sua famlia; os velhos gracejaram com as donzelas e lhes ofereceram doces; as moas as saudaram respeitosas, contentando-se com o direito geral de contempl-las distncia, e sempre com precauo para no ofender o exagerado melindre dos pais. A despeito das duas desconfiadas sentinelas, grupos de mancebos e mancebos isolados aqui e ali, prestavam aos dois lrios o devido culto beleza. Jernimo e sua esposa maldiziam em monosslabos que lhes escapavam, do que lhes parecia atrevida licena de mocidade desmoralizada; como porm suas filhas s tinham olhos para as danas, deixavam-se ficar no ptio. Mas de sbito pai e me estremeceram: entrara no ptio j atopetado de povo um grupo de oficiais militares, frente dos quais vinha o oficialde-sala do vice-rei conde da Cunha; Jernimo Lrio olhou para as duas filhas, como se um abutre se tivesse aproximado do ninho, onde se achavam inocentes e ainda implumes avezinhas; pensou logo em retirar-se, mas o oficial-de-sala do vice-rei avanou para ele, e foi apertar-lhe a mo. No havia recurso possvel fora de cerimonioso acolhimento; o oficial-de-sala do vice-rei era a cabea e o brao do violento conde da Cunha; a imediata retirada de Jernimo poderia parecer ofensa, e a ofensa no ficaria impune; o ancio no teve sorrisos; mas simulou voluntria tolerncia, recebendo os cumprimentos do muito respeitoso oficial, que ousava j dirigir olhos ardentes e cobiosos s duas meninas, quando felizmente para o zeloso pai comeou a ltima parte da folgana pblica. Dez vozes gritaram: Motes! motes!... As freiras acudiram ou j estavam s grades; uma delas disse com voz alta e argentina: Deus no bero da humildade. Ouamos! exclamou Jernimo, puxando com fora o brao do oficial-de-sala; ouamos! Eu aposto que Mariano Antunes que vai improvisar.11

O oficial-de-sala cedeu ao puxo e fingiu atender; Mariano Antunes ou outro qualquer mostrou-se na escada do tablado das danas, e bateu palmas. Silncio geral. O poeta do outeiro improvisou: Enquanto os grandes da terra Ostentando v nobreza, Em vaidade sempre acesa Trazem sempre o mundo em guerra; Enquanto as naes aterra De cem reis a potestade, A celeste majestade Dos reis o orgulho fulmina, Mostrando em lio divina Deus no bero da humildade. A multido batia palmas ao poeta. Que insolente, murmurou o oficial-de-sala, pondo as mos no copo da espada; falar dos reis assim!. Em comparao com Deus... tolera-se, disse Jernimo. Subira ao tablado outro poeta, bateu palmas, e logo disse em voz altissonante. Foi um poeta infeliz O que h pouco improvisou; Outra explicao vos dou Do que o Evangelho nos diz: Deus mostrar ao mundo quis Que s avessas da verdade, Aviltando a dignidade O mundo vil vai e vem, E assim nasceu em Belm Deus no bero da humildade. O segundo improvisador foi como o primeiro vivamente vitoriado; acudiram outros poetas, renovaram-se os motes das freiras e as glosas dos poetas do outeiro. Ainda uma voz de freira proclamou da grade, donde estava olhando e ouvindo: Viva o bispo e o vice-rei. O mote era uma provocao ao desgosto geral do povo; no houve poeta que subisse os degraus do tablado; mas do meio da multido compacta algum bateu palmas, e rompendo o silncio que imediatamente12

se fez, falou em voz alta, mas fanhosa, e como para disfar-la: Quando em casas e conventos Prende o bispo as raparigas, E o vice-rei por intriga Recruta moos aos centos; Quando o bispo faz tormentos, E o vice-rei no tem lei, Quando o pastor mata a grei E todo povo infeliz, Maldito seja quem diz Viva o bispo e o vice-rei! Estrondosa aclamao vitoriou o poeta; mas o atrevimento inslito deste provocou as frias da gente oficial que estava na reunio popular. O poeta reproduzira em seus rudssimos versos a opinio e o sentimento de todos, e fora por isso entusistica e espontaneamente festejado; logo porm o oficial-de-sala desembainhou a espada, e imitado pelos oficiais que o seguiam, um e outros lanaram-se no encalo do revoltado e audacioso improvisador. A importncia oficial do homem que frente dos seus sequazes se atirava contra o povo em procura do rgo do povo, o susto e o terror das famlias, o movimento da multido que procurava fugir e que se esmagava no mpeto da fuga, o choro das crianas, os gritos e clamores das mulheres, os gemidos da gente que se pisava, e de alguns que eram feridos pelas espadas dos agressores, os brados de misericrdia! soltados pelas freiras, o furor de muitos do povo que atiravam pedradas sobre os oficiais que loucamente perturbavam a ordem do divertimento pblico produziram assustadora confuso, e fizeram recear lamentveis conseqncias. No fim de poucos minutos o ptio do convento da Ajuda estava quase deserto; as freiras tinham-se retirado das grades; todo o povo conseguira fugir e o oficial-de-sala do vice-rei conde da Cunha sem ter podido encontrar o poeta revoltador via apenas diante de si e de seus companheiros de prazeres e de orgia uns oito pobres feridos e esmagados que estendidos no cho bradavam por socorro. Que faremos destes miserveis? perguntou ao oficial-de-sala um dos seus sequazes. Pois que nenhum deles parece ter sido o poeta que nos escapou, deixemo-los, que h de haver quem deles se ocupe, e vamos acabar a noite, onde nos espera melhor folia. Os oficiais retiraram-se e quando no se ouviu mais o tinir das bainhas das espadas, seis homens e duas mulheres de mantilha que jaziam por terra foram-se levantando: nenhum deles tinha sofrido ferimento grave,13

nem contuso que molestasse muito; o mais infeliz tinha recebido um leve golpe na fronte, os outros apenas arranhes sem conseqncia, mas haviam como de concerto gemido e bradado dolorosa e aflitivamente para se verem livres do oficial-de-sala. Um a um esgueiraram-se os seis homens que nem sequer olharam para as duas mulheres de mantilha; estas porm quando se julgaram ss, levantaram-se tambm, e depois de observar o ptio, que acharam deserto, disse uma dessas outra: Ah! Guido Vaz! fizeste-la bonita! De que escapamos!... Se nos descobrem, pelo menos ramos expulsos do seminrio e tnhamos fardas s costas! Mas que inspirao, Manuel Dias! Que dcima! Nunca farei outra igual!... As duas mulheres de mantilha eram dois estudantes do seminrio de So Jos! III D. Antnio lvares da Cunha, conde do mesmo titulo, era um varo de costumes rgidos e de carter severo, honesto, bem intencionado, mas dspota no governo; nomeado primeiro vice-rei do Brasil na capital do Rio de Janeiro trouxe, infelizmente, para o desempenho de to alto cargo, prevenes contra os negociantes portugueses desta cidade, e vendo por isso em todos e em tudo indcios de oposio e desobedincia exagerou o sistema de rigor at a opresso e o despotismo cruel; por maior desdita sua chamou para oficial-de-sala o tenente-coronel do regimento velho, Alexandre Cardoso de Meneses, e dentro em pouco vivamente impressionado pela inteligncia, atividade e energia deste, aplaudiu-se na escolha que fizera e depositou no escolhido a mais plena e cega confiana. Alexandre Cardoso reunia felizes condies para agradar e tornar-se o brao direito do vice-rei: suficientemente instrudo e talentoso poupava o conde da Cunha a muito trabalho; infatigvel e diligente dava asas ao do governo; sempre de acordo com o vice-rei, dspota como ele, e fazendo executar todas as suas ordens e resolues com a prontido e o rigor que aprendera na disciplina militar, nada deixava a desejar ao chefe do governo da grande colnia; alm de tudo isso moo ainda, pois que apenas ia tocar os quarenta anos, muito agradvel de feies, tendo elegante figura, graa no falar e nas maneiras, e como belo lavor de tudo isso, bravura natural abrilhantando o dever do soldado, exercia uma espcie de fascinao sobre o velho Conde da Cunha. O vice-rei tinha dito a si mesmo cem vezes: tenho o meu homem! Pudera antes dizer: tenho a meu lado um mau gnio. Alexandre Cardoso era com efeito o mau gnio do conde da Cunha.14

Em pouco tempo estudara e conhecera as fraquezas do carter do seu chefe, que era sobretudo orgulhoso, soberbo e dominador; ps-lhe de freio as fraquezas e dirigiu-as em seu proveito: adulou sem exagerao nas lisonjas, admirou incessantemente a sabedoria de consumado administrador, deu sempre conselhos sem dizer que os dava, nunca pretendeu parecer mais do que submisso e dedicado executor das ordens do vice-rei, e este deixou-se mil vezes arrastar e dominar pelo seu oficial-desala sem pensar que o fazia. Alexandre Cardoso abusava em nome do conde da Cunha e o conde da Cunha carregava com a responsabilidade dos abusos. A fascinao era to forte que ningum se animava a queixar-se do oficial-de-sala depois que dez ou vinte exemplos demonstraram que as queixas alm de desatendidas eram fundamentos para cruis perseguies. Alexandre Cardoso no podia ser perfeito, e julgava-se o melhor dos homens, porque os seus principais senes, a que no chamava vcios, eram trs amores que o obrigavam ainda a um quarto amor; amava as mulheres bonitas, amava o luxo, amava o jogo, e por causa das mulheres, do luxo e do jogo, amava o dinheiro. Os trs amores eram exigentes e o soldo de tenente-coronel no os satisfazia; o oficial-de-sala do vice-rei conde da Cunha ps a justia e a administrao venda em seu proveito: dava empregos e empreitadas de obras pblicas a preo ajustado, como negcio seu; fazia prender e soltar, recrutava e dispensava do servio militar, ameaava e anulava a ameaa a troco de favores pecunirios, explorava enfim o governo de que era oficial, centuplicando os lucros legais com os lucros da prevaricao e da infmia. Era fcil assim amontoar tesouros; mas a Alexandre Cardoso nunca sobrava o dinheiro; porque ele tinha as mos sempre abertas para animar seus trs amores: ao luxo, e ao jogo no h riqueza que chegue, e o amor das mulheres tambm um abismo que nunca se enche de ouro. Alexandre Cardoso abusando das suas vantagens e da sua influncia de oficial-de-sala do vice-rei tornou-se o perigoso inimigo das famlias, o sedutor ousado que levava a desonra aos lares domsticos; para essa guerra imoral e pervertida tinha ele por armas seus dotes pessoais, o seu poder no governo da colnia, a ameaa de perseguio aos pais, e de recrutamento aos irmos das donzelas, cuja beleza o encantava: as famlias pobres de ordinrio eram vtimas da violncia, quando no cediam garantia de proteo; as ricas nem sempre escapavam audcia daquele amor das mulheres e precisavam s vezes lutar contra o ressentimento e o furor do desenfreado e impune oficial-de-sala do vice-rei. Pior que tudo isso ainda Alexandre Cardoso por suas paixes do jogo e da luxria, tinha scios de jogo e de orgias e estendia sobre eles o encanto da sua impunidade; era portanto o chefe de uma banda de mancebos imorais, corrompidos e audazes, recrutados principalmente na oficialidade15

dos corpos militares da guarnio da cidade do Rio de Janeiro, e essa banda perigosa, ousada, petulante , era o terror das famlias, e o testemunho vivo da perverso do governo. O conde da Cunha, retirado, quase sepulto na solido da casa que tinha de ser no sculo seguinte palcio de reis e de imperadores, ignorava completamente as tropelias e os crimes do seu oficial-de-sala e dos sequazes que este comandava, e era fora que os ignorasse, porque semelhana dos pais extremosos e cegos, que se irritam quando lhes denunciam os abusos e os vcios dos filhos, reputava caluniosas as censuras e acusaes que se faziam ao seu querido oficial-de-sala, e violento se revoltava contra os censores e acusadores dele. A obstinao e a parcialidade do vice-rei abriram fontes de suspeitas e de calnias; porque muitos supuseram e alguns propalaram que o conde da Cunha ganhava como scio principal nas toleradas prevaricaes de Alexandre Cardoso, cuja desenvoltura permitia em ateno aos lucros que lhe dava a sociedade infame. A probidade do Conde da Cunha triunfou dos botes dessa calnia atroz, mas desculpvel por circunstncias atenuantes; porm certo que o oficial-de-sala Alexandre Cardoso foi o mau gnio do primeiro vice-rei mandado capital do Brasil. IV A cidade do Rio de Janeiro era naqueles tempos muito diferente do que hoje: o aspecto ainda das melhores casas era triste e indicava a educao clausural das famlias: abundavam as casas trreas e de um s pavimento, e essas reservavam as portas e batentes das janelas para se trancarem noite, mas de dia tinham os vos das portas e janelas defendidos aos olhos curiosos por peneiros ou tecidos de palha firmados em um quadrado de sarrafos, quase penduravam, ou se podiam mover encaixilhados; as casas de dois ou mais pavimentos, quase todas uniformemente de trs portas eram de sacadas com grades de madeira mais ou menos completas e sombrias: mais ou menos porque essas grades ou eram da altura de meio corpo do homem, ou tinham a altura do p-direito do pavimento que sombreavam, de modo que simularam triste priso; em regra abriam-se pequenos postigos nesse engradamento, postigos maiores e cmodos na altura em que deviam ser as janelas, para que as senhoras deles se aproveitassem, olhando a rua, e pequenos postigos rentes ou quase rentes com o assoalho para que as senhoras ou as escravas debruando-se vissem menos expostas ao pblico, o que se passava na rua, ou chamassem os pregoeiros vendedores de quanto podiam precisar a mesa da famlia. No sculo passado e ainda no principio do atual havia quitandeiros ambulantes de todos os gneros da alimentao geral dos habitantes da16

cidade: os escravos vindos da frica, negros e negras, corriam as ruas da cidade que hoje se chama velha, apregoando alm do peixe e das verduras, o feijo, a farinha, o arroz, o guandu5, o milho verde e seco, e tudo j medido em tabuleiros pirmides, de que eram base a poro avultada e necessrio famlia numerosa, e pice o quinho de cinco ou dez ris que convinha aos pobres. Tudo se vendia pelas ruas e at os refrescos utilssimos em pas de tanto calor; ningum ento se lembrava do gelo, ningum desejava os sorvetes do nosso tempo; no havia confeitarias; mas era certo o popular alu6, a inocente e refrigerante cerveja do arroz, apregoado nas horas mais calmosas dos dias de vero e em todas as estaes. Os humildes postigos inferiores das casas de sobrado serviam pois principalmente s recatadssimas chefes de famlia e s suas escravas para chamarem os pregoeiros vendedores de todos esses produtos agrcolas e do industrial, o rude mas utilssimo alu, que muito aproveitavam s famlias. Em todos esses costumes estampava-se o atraso e a rudeza da sociedade colonial do Rio de Janeiro; mas indisputavelmente, se a civilizao tivesse poupado alguns deles, limitando-se a destruir os peneiros e as grades de pau, e outros semelhantes, o povo pobre pelo menos teria mais facilidade na vida. Ponhamos porm de parte estas inteis memrias do passado, e no passado sigamos apenas os fatos que servem ao romance que nos propusemos a escrever. Na rua que agora se chama do Hospcio7 e que no ltimo sculo se chamava do Alecrim, desde o ponto em que cortada pela Rua da Vala8 at o Campo de Santana, levantava-se uma casa de sobrado com sacadas de grades de pau e meia altura e que na madrugada de 6 de janeiro de 1766 se mostrava refulgente de luz e ruidosa de alegria e de festana. Era a casa de d. Maria de..., notabilidade feminina, que por sua formosura, sua independncia audaciosa, sua natureza ardente e indomvel, suas paixes e seus desvarios fceis desde o conde de Bobadela at o vicereinado do marqus do Lavradio, influiu algumas vezes mais do que se pode supor no governo da grande colnia portuguesa da Amrica. Maria de..., da mais nobre estirpe luso-brasileira, nobre por seus avs, rica pela opulncia de seus pais, tinha direito a pretender esposo da mais alta hierarquia na colnia portuguesa; o mais orgulhoso dos nobres mandados ao Brasil seria apenas igual a ela; a natureza lhe dera o encanto de irresistvel formosura; a fortuna sublimara esse dom natural com a condio da riqueza e da fidalguia da famlia.Guando. Andu. Vagem de semente comestvel originria da frica. Bebida feita de farinha de arroz ou milho, ou casca de abacaxi ou gengibre, acar, caldo de cana e suco de limo. 7 Atual Buenos Aires. 8 Atual Uruguaiana.6 5

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Infelizmente a bela mulher, que ainda se distinguia pelos encantos do esprito mais cultivado do que ento era usual no seu sexo, mentira educao e aos exemplos dos seus maiores, e nodoara um nome ilustre: a vaidade, o mpeto das paixes, o desprezo do santo dever do recato a tornaram famosa, como as Lenclos9 e as Marion Delorme10, zombando da reprovao pblica e da repugnncia com que a olhava a sociedade. O primeiro amor de Maria de... foi o segredo da sua perdio: aos quinze anos deixou-se seduzir por um mancebo pouco mais velho, ou pouco menos criana que ela; um ano tinha j de durao o seu amor secreto e criminoso, quando foi descoberto pela famlia que aflitssima se precipitou em imprudente vingana: o amante no foi julgado digno de lavar a mancha pelo casamento; e imediatamente passou a ser preso para assentar praa por ordem do conde de Bobadela, a quem o pai da seduzida dirigira queixa particular sob diversos fundamentos que dissimulavam a desonra da filha. Maria era ardente, colrica, arrebatada; sabendo que destino se preparava ao amante, no verteu lgrimas inteis nem protestou em vo no lar domstico: encerrou-se em seu quarto, vestiu-se com apuro de elegncia que amava muito por vaidosa, e aproveitando hora oportuna, saiu da casa sozinha, arrostando os costumes do tempo, e atrevidamente foi falar ao governador, conde de Bobadela, que a recebeu e ouviu-lhe a histria da sua paixo e da sua franqueza, e o formal pedido da sua interveno para que ela se casasse com o mancebo recrutado. O conde de Bobadela tinha todos os prejuzos da aristocracia para no aceder ao empenho da jovem fidalga seduzida por mancebo de humilde e desprezada condio; mas admirado da afoiteza e da energia daquela menina delicada, e ainda mais da sua peregrina beleza, assegurou-lhe decidida proteo atenuadora do ressentimento de seus pais. Dentro em pouco tempo o protetor se tornou amante: Maria, repelida pela famlia honestssima, teve casa prpria, vida reprovada, mas luxo e riqueza que ostentava sem corar. Ou fosse que s um nico amor, o primeiro, tivesse ela verdadeiramente sentido, e que pelo infortnio desse lhe houvesse ficado o corao endoidecido, ou fosse que envenenado sangue lhe abrasasse a natureza com o fogo da luxria, Maria no soube ser fiel a amante algum, e a todos atraioava menos pela torpeza do interesse, do que pelos delrios do capricho, e pelas inconstncias da sensualidade. O conde de Bobadela apaixonado e cativo resistiu alguns anos aos desatinos da famosa moa; mas por fim quebrou as cadeias que o prendiam, deixando-a porm rica, e protegida sempre pelo seu favor at o dia em que morreu. No vice-reinado do conde da Cunha, Maria foi amante de Alexandre9 10

Ninon de Lenclos (1620-1705), clebre cortes francesa. Marion de Lorme (1613-1650), clebre cortes francesa. 18

Cardoso: tinha tomado gosto ao amor do chefe do governo da colnia; em falta do vice-rei que era de austeros costumes, contentou-se com o oficialde-sala que era quase vice-rei pelo poder da sua influncia. Na noite das cantatas dos Reis, Alexandre Cardoso e seus companheiros, retirando-se do ptio do convento da Ajuda depois da intil desordem que haviam feito, tinham-se dirigido Rua do Alecrim e entrado na casa de Maria de... V Havia sarau e ceia esplndida que bem se pudera chamar almoo pela hora adiantada da noite; mas na noite dos Reis a mesa no tinha hora, estava sempre posta e renovada at o amanhecer. Apesar de sua m reputao, e graas sua riqueza, ao seu esprito e sua influncia, Maria tinha crculo numeroso e agradvel, embora no formado por senhoras de classe elevada e de educao escrupulosa. Os mancebos mais distintos, muitos homens ricos, e os oficiais dos regimentos da guarnio da cidade freqentavam a sua casa, e no faltavam s suas reunies; por isso mesmo acudiam tambm a estas muitas jovens de procedimento equvoco, e algumas famlias sem protetor zeloso, e pouco exigentes e melindrosas, ou por dependncia da bela e rica libertina, ou pelo desejo de atrair noivos para as filhas, ou enfim pelas aparncias e exterioridade de boa companhia, que a elegante pervertida zelava em sua casa. Alexandre Cardoso e seus companheiros entraram na sala, quando Maria danava o minuete com um requinte de enlevadora e provocante graa que nenhuma outra possua como ela. Maria contava ento vinte e quatro anos e no parecia ter vinte; era de estatura regular, esbelta, ligeira e um pouco lasciva, no afetada, naturalmente lasciva nos movimentos; seus cabelos eram louros, seus olhos grandes e de celeste azul, o rosto oval, branco, as faces docemente coradas, o nariz pequeno e bem-feito, os lbios admirveis de suave rubor e no finos nem demasiadamente grossos, bordando pequena boca, escondendo lindssimos dentes, e servindo a sorrisos cheios de magia; tinha o colo alto e elegante, como a fronte, o peito encarnado a no deixar adivinhar as clavculas, e de alvura deslumbrante, os seios pequenos, a cintura fina, os braos admirveis, as mos e os ps de maravilhosa delicadeza, e em seus modos e na expresso mbil de sua fisionomia certo que de graa indizvel, de inocncia que ela no tinha, de malcia que lhe sobrava, de contradio caprichosa, de mistura do bem que se adora e do mal que cativa, de anjo cujos ps se devem beijar e de demnio a cuja tentao se obedece fora de encantamento irresistvel. Maria chegara nessa poca ao apogeu da sua formosura e 19

conscincia experiente do poder dos seus enfeitiadores dotes fsicos. Sem interromper o seu minuete11 ela viu entrar Alexandre Cardoso e em vez de saud-lo com um sorriso, encrespou passageira e levemente os superclios e a fronte, como se um ressentimento do nimo lhe viesse ondear nos superclios e na fronte; logo porm serenou e seu rosto foi todo, como pouco antes, espelho de bonana, e cu de alegria. Acabado o minuete no meio de palmas batidas em aplauso, conforme era de uso, Maria recebeu as saudaes dos recm-chegados, e logo depois conduziu todos os seus convidados para a mesa da ceia que foi longa e ruidosamente festejada. Entre os brindes que se faziam, falaram todos dos divertimentos da noite, comparando as diversas sociedades dos cantadores dos Reis disputando sobre o merecimento de cada uma delas para o ganho da primazia. Cada qual referia os episdios interessantes ou grotescos que havia observado; s Maria, um pouco pensativa, ouvia e no falava, e Alexandre Cardoso e seus companheiros discorriam sobre tudo, guardando porm reserva acerca do tumulto do ptio do convento da Ajuda, porque no lhes convinha propalar o improviso injurioso do poeta que atacara o bispo e o vice-rei antes de comunicarem a este o inslito caso. Fao um protesto, disse Alexandre Cardoso elevando a voz. Um protesto? Sim; contra o silncio obstinado da encantadora fada que nos hospeda. Ah! disse Maria, interrompendo-o; so tantos os que protestam contra o oficial-de-sala do senhor vice-rei, que bem se lhe pode permitir que ele tambm proteste alguma vez. Alexandre Cardoso corou e prosseguiu: Aqui cada um de ns tem contado o que viu de melhor e de pior nesta noite de folia e de divertimentos caractersticos: que viu, que sabe e guarda consigo a bela Maria?... Aposto que ela dir o que ningum disse ainda, porque seus lindos olhos vem sempre mais do que os dos outros com a luz divina que radia neles. Eu?.. pobre mulher que no saiu de sua casa, o que eu dissesse agora, vinte bocas j o tm repetido. Fale! fale! Vs outros que to tarde chegastes, sois os que tendes mais a contar; tenente-coronel Alexandre Cardoso, capito Aires de Brito, alferes Constncio Lessa, vs todos, que chegastes to tarde, dizei-nos: que aconteceu por a?... Responda, quem pergunta.11

Dana de salo, leve e graciosa, de origem francesa. 20

Posso eu adivinhar? Como fada que . Maria sorriu: Pois bem, disse ela; ensaiarei um sortilgio... E deitando no clice algumas gotas de vinho, fingiu que murmurava palavras cabalsticas, depois tocou com os lbios no vinho, e exclamou: Vejo longe daqui, e a vs que eu vejo, senhores oficiais recmchegados! E ento? Jogastes a banca at s dez horas da noite; o senhor tenente-coronel Alexandre Cardoso ganhou mais de mil cruzados; mau sinal; feliz no jogo, infeliz no amor. Sinistro agouro! Sastes a correr a cidade e a visitar os presepes; tenente Gonalo Pereira, no foi decente nem digno que na ladeira de Santo Antnio abraasses fora uma mulher de mantilha: recebeste justo castigo nas risadas dos teus amigos, quando descobrindo o rosto da vtima, encontraste em vez de um fresco semblante de moa, a cara enrugada de uma velha. Ah! um espio nos seguiu!... Poupo-vos a muito mais que estou vendo e que pudera dizer, e agora vos observo na vossa ltima estao... Onde? H apenas uma hora, no ptio do convento da Ajuda. Os oficiais comeavam a perturbar-se. Ali Alexandre Cardoso estava embevecido a contemplar um dos dois lrios... feliz no jogo, infeliz no amor... o lrio indiferente no pendia para ele, que perdido e cego no viu, no soube ver, se bem perto para algum a furto pendia o lrio... eu tambm no sei se houve pendor.. mas to natural... Alexandre Cardoso fingiu sorrir; mas estava confundido. saber muito e at demais! disse o tenente Gonalo Pereira. Se eu sou fada! respondeu sem olhar o interruptor a soberba moa. Depois continuou: As freiras davam motes, e os poetas glosavam.. Basta... basta... No; agora hei de ir at o fim, e hei de dizer-vos o que no sabeis, embora estivsseis l, e eu no sasse daqui. Ouamo-la, disse Alexandre Cardoso, seriamente. Maria compreendeu a seriedade do oficial-de-sala, e sem constrangimento aparente, mediu suas palavras para no dizer mais do que lhe convinha. Uma freira deu por fim o mote: Viva o bispo e o vice-rei.21

E um poeta que no se quis mostrar glosou do meio da multido, improvisando com voz fanhosa uma dcima assim: Maldito seja quem diz Viva o bispo e o vice-rei. Ah!... exclamou com hipcrita horror a assemblia. Vs, nobres oficiais, vos atirastes de espada em punho contra o poeta audacioso, houve tumulto, desordem, ferimentos, contuses de inocentes, e tudo em vo, porque o misterioso improvisador escapou sem ser ao menos conhecido, e, o que foi ainda pior... Acabe... Quando Alexandre Cardoso voltou ao seu posto de embevecida contemplao, o lrio tinha fugido com o poeta... feliz no jogo, infeliz no amor... pacincia! Evidentemente os mal disfarados cimes de Maria saam-lhe do corao para cair dos lbios transformados em epigramas pelo ressentimento. Alexandre Cardoso sentiu a natureza dos golpes que sobre ele descarregava a terrvel e ciumenta amante; mas dominado pelo desejo ardente de conhecer o desconhecido, aquilo que Maria sem sair de casa sabia do que se passara no ptio do convento da Ajuda, mais do que os oficiais l tinham estado, disse: A histria do poeta e do nosso empenho para castig-lo exata, confesso-o; mas que que podemos ignorar e que a bela fada adivinha?... Vs no pudestes saber e eu sei quem foi o poeta que improvisou a dcima revoltante... Quem foi?... perguntou Alexandre Card Uma mulher de mantilha. No... Sim; eu nunca minto, nem quando erro, ou me comprometo: o poeta que improvisou a dcima foi uma mulher de mantilha. E o seu nome?... Maria fez um movimento com o brao, e tocou no clice encantado, que caiu sobre a mesa e quebrou-se, entornando as gotas de vinho. Ah! exclamou a prfida sereia, cobrindo o rosto com as mos mimosas, que o no podiam esconder de todo. O nome dessa mulher de mantilha... tornou a perguntar, alterado, Alexandre Cardoso. No viu que se quebrou o copo?... respondeu Maria; agora acabou o encanto; no adivinho mais, esqueci tudo. Uma hora depois, todos os convidados tinham-se retirado; o ltimo,22

Alexandre Cardoso, teimava em demorar-se. Tenho sono, disse-lhe Maria; quero ficar s e dormir. Maria! Feliz no jogo, infeliz no amor... No jogarei mais... No me importa que jogues ou no!... Mas o resto desta noite?... Disse a palavra: um resto... e eu rejeito o resto... Maria!... V sonhar com o lrio. Alexandre Cardoso beijou a mo gelada da amante ciumenta e colrica, e retirou-se. VI Jernimo Lrio era negociante de grosso trfico, de bem merecida fama de probidade e de austeros costumes; portugus de nascimento e muito pobre, viera para o Brasil procurar fortuna; sabendo apenas ler e escrever e as quatro espcies de aritmtica, comeara por varredor do armazm e arranjador de fardos na casa comercial de outro portugus que o recebeu; ativo e fiel, agradou ao amo, que nunca deixou, foi gradualmente subindo at primeiro caixeiro depois de oito anos de labor e de provas; no fim de doze anos, chegou a scio com direito tera parte dos lucros da casa e trs anos depois casou com a filha nica do seu patro, a qual viu pela primeira vez no dia do casamento; ainda viveu algum tempo sob a tutela do sogro e por morte deste, que j era vivo, herdou-lhe toda a riqueza e ficou nico representante da casa. No casamento por aquele modo realizado haveria que notar a manifestao franca do interesse material, servindo de base ou razo exclusiva da unio de dois coraes, de um homem e de uma mulher que no se conheciam; mas no sculo passado eram freqentes os casamentos feitos assim, e no havia ento quem se lembrasse de censurar essa prtica absurda e muitas vezes fatal; especialmente na nobreza e no comrcio rico a autoridade dos pais no queria em tal ponto reconhecer limites, e amesquinhava at o extremo a condio da mulher que, alis era educada com preciso cuidado para no revoltar-se contra a inaudita prepotncia; basta lembrar que era de regra que as filhas no aprendessem a ler e ainda menos a escrever. Se os costumes da poca escusavam a Jernimo Lrio o se ter sujeitado ao casamento com uma noiva a quem nunca tinha visto, nada mais h no seu proceder que possa desmerec-lo. certo que ainda hoje, s vezes a inveja, s vezes a irreflexo ou a murmurao indesculpvel, atiram contra a opulncia de quem comeara pauprrimo a lembrana de seus23

rudes e abatidos servios no princpio da mais afadigosa vida; eis a o que deprimir aquilo mesmo que d direito, que obriga o elogio! Nada mais belo nem mais nobre do que a riqueza filha do trabalho e da economia. O homem que assim enriquece, anda e deve andar de cabea levantada, e digno de servir de exemplo aos outros homens. Jernimo foi um esposo modelo para sua dedicao e fidelidade honestssima e dcil senhora, com quem se casara; viveu feliz e teve de sua unio duas filhas: Irene e Ins; dera primeira o nome de sua me, segunda o nome de sua esposa; amou-as extremosamente, mas sem comprometer com os carinhos a sua gravidade de pai; a me educou as filhas no sacrrio do lar domstico; ensinou-lhes quanto sabia, a rezar, a coser, e a bordar, a tocar o cravo e a guitarra, a danar o minuete, e danas do tempo, a preparar delicadssimos doces, a governar a casa e nada mais; no sabendo ler, deixou-as na mesma triste ignorncia. O pai foi contando os anos, e medindo a altura e o desenvolvimento das meninas, e dobrando de cuidados logo que as sentiu chegadas idade em que a natureza revela jovem mulher uma sbita revoluo na vida, embora a inocncia no compreenda nem explique o misterioso segredo pensou no futuro das filhas, e em prudente silncio estudou solcito e perseverante os costumes e o procedimento dos seus caixeiros, e dos mais estimados fez logo a um scio em pequena parte dos lucros, a outro guardalivros da sua casa comercial. Jernimo tinha o seu armazm na Rua Direita, onde passava os dias, dirigindo as transaes; chegava j almoado, s oito horas da manh; ao meio-dia em ponto, jantava s ou com negociantes e amigos, que lhe aceitavam a mesa; todos os caixeiros e empregados da casa comercial jantavam a parte; s duas horas da tarde comeavam a arrefecer os negcios; das trs em diante, s os havia para os armazns de retalho, e ento retirava-se o negociante para o seio de sua famlia, que morava em uma grande chcara da Gamboa. Por mais que eu me exponha a no me perdoarem certas digresses, teimarei nelas, porque so indispensveis para o conhecimento do estado e dos costumes da cidade do Rio de Janeiro, no sculo passado. A retirada diria e constante de Jernimo Lrio para passar a noite na sua chcara da Gamboa, onde fazia morar a famlia, era uma das raras excees que em semelhante prtica se observava na cidade. verdade que muitos negociantes e homens ricos possuam chcaras nas vizinhanas do outeiro da Glria, no caminho depois chamado Rua de Mata-Cavalos, e agora Rua do Riachuelo, em memria da mais gloriosa vitria e tambm na Gamboa e no Saco do Alferes; essas chcaras, porm, serviam s para o gozo dos domingos e dos dias santificados, que eram muitos at perto da metade do sculo atual. Ento as famlias faziam os seus farnis, convidavam os amigos e na tarde da vspera dos dias sem24

trabalho, l iam para Mata-Cavalos ou para a Gamboa, como atualmente se vai para Petrpolis e para Nova Friburgo. Aqueles lugares eram solides, retiros mal povoados, para onde no havia ruas, e apenas azinhagas12 difceis, e tinham fama de perigosos pela lembrana dos roubos e assassinatos que algumas vezes ali fcil e impunemente se davam. Bem poucos, bem raros eram aqueles que tinham suas famlias morando em chcaras, e entre esses contava-se Jernimo, que provavelmente, como os outros, assim procedia pelo justo receio da insalubridade e das molstias contagiosas que com freqncia eram o flagelo da cidade. Duas causas principais contribuam para empestar a capital do Brasil: a vala que deu to feio nome rua que apenas ultimamente recebeu o de Uruguaiana, em lembrana de outra importante vitria, era vala aberta, imunda, que servia para escoamento das guas e para despejos, sendo, portanto, foco perene de infeces. O trfico de africanos escravos j era ento muito importante; os mseros filhos dfrica, guardados em multido, em depsitos, dentro da cidade, propagavam nela suas molstias, e, sem o pensar, vingavam-se da escravido, envenenando os senhores com os germes da peste que espalhavam. O conde da Cunha acertara de combater aquela primeira causa de infeces mortferas, mandando cobrir a vala sinistra com grandes lajes, melhoramento incontestvel que a ele se deve, embora realizado a alto e violento pagar de sacrifcios pelos particulares, cujos escravos foram tomados fora para servios dessa, como de outras obras. Continuava, porm, ainda a influncia, maligna, mortfera, dos depsitos de escravos africanos no centro da cidade, e, pois que o podia, Jernimo Lrio praticava prudentemente, conservando a famlia longe dos focos de molstias contagiosas. Por isso, sujeitava-se ele a ir todas as tardes, e algumas vezes noite, para a chcara da Gamboa, marchando a cavalo, levando boas pistolas e seguido de dois pajens prontos para defend-lo em algum encontro arriscado, por uma azinhaga quase sempre deserta, que poucos anos depois se alargou sem corrigir sua tortuosidade para dar lugar rua que se chamou do Valongo at o ano de 1849, em que tomou o nome de Rua da Imperatriz em lembrana da passagem que fez por ela, aps o seu desembarque na capital do Imprio, a virtuosa senhora que a augusta esposa do atual imperador do Brasil. A azinhaga que dava caminho para a Gamboa, Saco do Alferes e outros pontos, muito pouco povoados, era, como dissemos, suspeita de maus encontros, e dada a hiptese de algum caso sinistro, era intil gritar12

Caminho estreito ou atalho entre muros ou propriedades, fora dos povoados. 25

ali ah! quem del-rei! pois que no havia socorro possvel da autoridade naqueles confins solitrios do Campo do Rosrio; em tais apertos, cada qual devia contar exclusivamente com os seus prprios recursos. Jernimo Lrio sabia bem que a sua condio de negociante rico era um perigo demais, e, portanto, no se esquecia nunca de renovar as escovas das suas pistolas e de se fazer acompanhar sempre de dois e noite, por trs ou quatro pajens escravos que mereciam a sua plena confiana, por valentes e dedicados. VII Irene contava dezessete anos. Ins ia fazer dezesseis e, embora resplendessem com todo o vio da mocidade, que to doce se ostenta sob a e influncia do nosso clima, eram ambas inocentes e puras, como os amores da infncia; duas avezinhas irms nascidas no mesmo ninho, criadas presas, mas no meio de mil desvelos na mesma gaiola, tinham asas para voar, e no conheciam, nem sabiam desejar o espao; eram lindas com seus longos cabelos pretos, suas frontes lisas e altas, sua tez moreno-clara, e com a delicadeza e justas propores de seus corpos esbeltos; ambas se pareciam muito: Irene, porm, tinha os olhos pardos e de suavssimo brilho, e a cor um pouco menos morena que Ins, cujos olhos eram negros, maiores e mais ardentes, alm de que esta lastimava-se de um buozinho mimoso que lhe ornava o lbio superior. Irene era um pouco menos alegre de gnio, Ins mais viva e curiosa; qualquer das duas, muito acanhadas diante de estranhos, amando com temor o pai, com expanso a expansiva me e com enlevo indizvel uma outra direis duas belas flores abertas luz da mesma aurora em dois pednculos unidos no mesmo ramo. Jernimo Lrio e sua esposa guardavam no retiro domstico os dois belos frutos de sua unio. S os amigos ntimos e suas famlias eram admitidos companhia das duas meninas; fora dessas relaes prediletas e escrupulosamente escolhidas a muralha do zelo defendia Irene e Ins a toda e qualquer sociedade. Se algum homem velho ou moo ia passar um domingo ou dia santificado na chcara da Gamboa, desde que no era dos excetuados pela amizade, Irene e Ins no se mostravam nem mesa do jantar. Todavia, muitas vezes por santo dever, e algumas por notvel contradio entre esses costumes de clausura domstica e os costumes de certos folguedos tradicionais, Jernimo Lrio levava a mulher e as filhas, onde a multido concorria. Por santo dever, em todos os domingos e dias santificados, a famlia Lrio, embarcando em suas cadeirinhas que eram levadas aos ombros de

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escravos possantes, trajando vstia13 e calas brancas, mas com os ps descalos, descia porta da Igreja da Matriz da parquia do Sacramento para assistir ao sagrado sacrifcio da Missa, e alm do cumprimento do preceito do declogo, Jernimo concorria, com sua esposa e filhas, s grandes solenidades religiosas, e a todas as procisses, em que o culto catlico se ostentava nas ruas, nem sempre com proveito real da religio. E tambm, por obedincia ao imprio tradicional dos costumes, as duas meninas, sistematicamente clausuradas, eram no entanto vistas, olhadas e admiradas atravs de seus vus, que muitas vezes cediam ao mpeto da curiosidade, em divertimentos profanos e pblicos, como os presepes da festa do Natal, a serrao da velha, as corridas de touros e outros, que, por herana do passado, se usavam no sculo dcimo-oitavo. Assim, pois, Jernimo, contraditoriamente escondia as filhas em casa, e as mostrava nas Igrejas e nos grandes espetculos pblicos. Os vus transparentes e de finssima renda, mal podem eclipsar a beleza, e tanto mais que o sopro de uma aragem traioeira, aproveitando um descuido feliz, enrola ou levanta o vu, e patenteia o rosto que se reserva e procura ocultar-se na sombra. A lindeza e as graas naturais das duas filhas de Jernimo Lrio eram desde algum tempo geralmente conhecidas e apregoadas no Rio de Janeiro, e, como j dissemos, o povo, ou antes primeiro os mancebos entusiastas e depois todos adotaram a denominao dada por algum apaixonado ou simples admirador do belo s duas meninas, que foram conhecidas pelo nome potico_ os dois lrios. Irene e Ins no eram brancas, como o lrio; mas a denominao ou amorosa alcunha fizera do nome da famlia um nome de flores. No lar domstico eram outros mpetos ou nomes familiares dados s meninas ou pelos pais ou pelas escravas: a Irene chamavam nhanh, diminutivo feminino que quer dizer filha do senhor; a Ins, que recebera no batismo o nome de sua me, a quem os escravos tratavam por sinh, corruo do nome senhora chamavam sinhazinha, que, como se v, o diminutivo de sinh. Tenho quase a certeza de que hoje haver de sobra quem me censure por estas explicaes do que todos sabem, visto como ainda atualmente existe o cancro da escravido, ainda h populao escrava, e portanto, ainda h tambm nas famlias nhanhs e sinhazinhas, h senhores pais de nhonhs e sinhs, ou senhoras mes de sinhazinhas; mas no sculo vigsimo os romancistas historiadores, que so os professores da histria do povo, ho de agradecer estes e outros esclarecimentos da vida ntima das famlias do nosso tempo. E uma vez que tocamos neste assunto, que parece mais que muito13

Tipo de casaco ou jaqueta que no se aperta na cintura. 27

insignificante e que por certo o no , deixem-me escrever uma pgina alheia ao romance, e toda reveladora dos costumes domsticos da antiga colnia e ainda do nosso tempo. O nhonh, a nhanh e a sinhazinha, os filhos e as filhas dos senhores e das sinhs ou senhoras so de ordinrio elos de amor que prendem, como eram e prendiam, alguns escravos aos senhores e fontes de reconhecimento dos senhores que aproveitava aos escravos. Aleitados s vezes por escravas, o filho e a filha do senhor, o nhonh e a nhanh e a sinhazinha eram e so os protetores de suas amas de leite, que freqentemente por esse servio recebiam e recebem a sua emancipao, merecendo ainda depois continuados benefcios. O nhonh, a nhnh, a sinhazinha tm nos escravos e escravas de sua idade companheiros e scios nos brincos e travessuras da infncia, e sabem am-los ento, e proteg-los depois, tornando-se providncias desses desgraados pela escravido. O nhonh, a nhanh, a sinhazinha so os anjos de compaixo e de caridade, que impem o seu celeste veto de lgrimas aos castigos que seus pais querem impor aos escravos; so os agentes do bem, e os pais os deixam ser, e se aplaudem de que eles o sejam, e exageram furores fingidos e desarmados por aquela anglica influncia, para tambm exagerar a influncia dos filhos, e a poderosa e santa interveno destes a favor daqueles infelizes. O nhonh, a nhanh, a sinhazinha em casa de seus pais significam alegria da famlia, patronagem dos escravos, perdo de castigos, emancipao para um ou outro, e esperana para muitos desses mseros condenados. O nhonh o travesso que assegura impunidade aos cmplices; a nhanh quem s vezes acalenta em seus braos a filha ou o filho da escrava de sua predileo: o nhonh, a nhanh, a sinhazinha so quase sempre amados pelos escravos da casa Cada escravo traz ao nhonh o passarinho que apanhou no lao, nhanh uma fruta e uma flor silvestre, um ninho de beija-flores, pombinhas-rolas a criar, o pouco, que muito, porque tudo quanto ele pode dar. E essa afeio que alguns escravos tributavam aos senhores moos a quem tinham visto nascer e crescer, era (como ainda se observa) talvez o nico sentimento generoso contrastador do dio que todos os escravos naturalmente votam aos senhores. VIII A fama da beleza dos dois lrios tinha chegado aos ouvidos de Alexandre Cardoso, que em breve mais de uma vez, pelos prprios olhos, se convenceu da verdade que todas as vozes proclamavam; impressionou-se28

principalmente da graa e dos encantos de Ins, e amando-a ou presumindo am-la, o sedutor costumeiro e impune planejou essa nova e difcil conquista. As duas meninas tinham aprendido que no lhes era lcito nas igrejas e nos espetculos pblicos, olhar com ateno para mancebo algum e ou obedeciam risca a exageradamente austera lio, ou Alexandre Cardoso apesar de seus dotes naturais e do seu bonito uniforme militar, no conseguia delas a glria almejada do mais furtivo reparo. Jernimo, ancio venerando por suas virtudes, e negociante de grande considerao pela sua riqueza, no era homem contra cuja famlia se tentasse escandalosa violncia ofensiva da honra. O leo fez-se raposa: para as diversas obras de abertura de ruas, de melhoramento da Vala, fundao do arsenal junto ao monte de So Bento, reconstruo e aumento de fortalezas, edificao de armazns para guarda de plvora que se retirou da cidade, o vice-rei mandava prender homens bem ou mal declarados vadios, e escravos apanhados nas ruas, e os empregava naqueles trabalhos, alm de pedir, o que era exigir e mandar, o concurso dos negociantes e proprietrios em tributos de materiais ou de dinheiro que se recebiam como voluntrios donativos. Provando a m fortuna dos seus companheiros do comrcio e dos proprietrios desde 1763 at 1765, Jernimo notou que a comear da semana santa desse ltimo ano, era ele poupado s costumadas exigncias e arbitrariedades do governo; no lhe pediam mais donativos, e nenhum dos seus caixeiros, como nenhum dos seus escravos era agarrado para o servio das obras do rei; o nobre ancio, sem explicar o motivo do seu ressentimento, sem falar e menos queixar-se em silncio contra a exceo obsequiosa, e para as obras em andamento e a cada nova obra do governo mandou o dobro dos donativos que de ordinrio fazia, e o dobro do maior nmero de escravos que fora lhe haviam tomado para aqueles ou outros trabalhos nos trs primeiros anos. Poucos meses depois, em um dia prenderam quatro escravos de Jernimo para os trabalhos pblicos; mas logo depois, no mesmo dia, dois soldados acompanharam os escravos casa comercial do negociante, a quem os entregaram, com o seguinte bilhete: O senhor Vice-Rei condena como injusta a priso destes escravos do mais dedicado vassalo del-Rei nosso Senhor na cidade de So Sebastio do Rio de Janeiro. Alexandre Cardoso de Meneses, oficial-de-sala. Na manh seguinte, Jernimo enviou oito trabalhadores para as obras do rei. Passados alguns dias, um mancebo, afilhado de batismo de Jernimo, foi recrutado e no fim de algumas horas levou ao negociante este outro bilhete: A bno do padrinho benemrito poupa este excelente soldado ao29

tribunal da guerra. Alexandre Cardoso. Algumas horas depois, Jernimo tinha, a elevado preo, conseguido contratar para o servio do exrcito dois portugueses recm-chegados do reino, e os mandava diretamente a Alexandre Cardoso. O oficial-de-sala, vencido na luta dos favores, recorreu a outro meio: obteve do vice-rei ordem para uma visita oficial de agradecimento a Jernimo, e na manh de um domingo, apresentou-se na chcara da Gamboa, para desempenhar a comisso, e foi recebido com respeito e considerao, cercado de obsquios, instado, como era de regra inaltervel, para aceitar o jantar, a que polidamente se recusou, retirando-se sem ter visto nem a mulher, nem as filhas do negociante. Jernimo foi, na manh seguinte, cortejar o vice-rei conde da Cunha, e visitar Alexandre Cardoso, a quem convidou para jantar em sua chcara em dia aprazado: deu-lhe com efeito o mais rico banquete a que concorreram todos os homens notveis por sua posio oficial, nobreza e riqueza da cidade do Rio de Janeiro; mas faltaram mesa a mulher e as filhas do zeloso e austero ancio. Alexandre Cardoso voltou trs vezes chcara da Gamboa e ali trs vezes aceitou o jantar de Jernimo: nem uma s vez, porm, mereceu ser recebido na sociedade da famlia; a senhora Ins e suas filhas nunca lhe apareceram. Naquele tempo, semelhante reserva no era motivo de queixa ou de reparo; porque a absteno da presena das senhoras no recebimento e nas honras que se faziam ao hspede, entrava nos costumes de muitas casas, mas evidentemente essa prtica anunciava ao hspede que ele era um homem obsequiado, talvez bem aceito pelo dono da casa, no era, porm ainda um amigo, cavalheiro da confiana ntima da famlia. Alexandre Cardoso, inteligente e atilado, compreendeu o procedimento do pai de Ins; adivinhou que Jernimo pressentira o seu amor ou a sua paixo condenvel e que nem lhe aprovava o amor honesto, nem toleraria culto menos respeitoso a qualquer de suas duas filhas; simulou, porm, desconhecer a contrariedade, e, cultivando suas relaes com o nobre velho, tornou impossvel um rompimento, esmerando-se em escrupulosas delicadezas. A oposio, os obstculos, a resistncia produziram seus naturais resultados: Alexandre Cardoso amou ou desejou mil vezes mais ardentemente Ins e por Ins sacrificaria tudo. Amante feliz de Maria de...Alexandre Cardoso, preso ainda nos laos dessa encantadora sereia, vaidoso da sua posse muito invejada, mas saciada de gozos impuros, no hesitaria em esquecer a Vnus da inconstncia e da libertinagem pela flor mimosa, cndida e rescendente de inocncia e de pureza.30

Na noite dos Reis, em 1766, ainda Alexandre Cardoso contemplara inutilmente e sem merecer ao menos passageiro olhar, o lindo rosto e a figura graciosa de Ins. O afortunado sedutor de vinte mseras vtimas comeava a irritar-se contra a iseno e fria indiferena da filha de Jernimo. Talvez que essa irritao houvesse contribudo para o mpeto de furor oficial que fizera Alexandre Cardoso arrancar da espada e acometer desastradamente a multido em cujo seio se escondia o poeta improvisador da dcima terrvel. E para mais vivo incitamento da paixo de Alexandre Cardoso, a ciumenta Maria lhe lanara no corao veneno semelhante ao que a estava abrasando, dizendo-lhe mesa da ceia festiva: feliz no jogo, infeliz no amor... O lrio indiferente no pendia para ele, que, perdido e cego, no viu, no soube ver, se bem perto, para algum a furto, pendia o lrio... IX Alexandre Cardoso sara da casa de Maria de... quando a aurora vinha j rompendo; parecia, pois, natural, que a bela mulher tivesse sono e quisesse dormir, como dissera, ao despedi-lo seca e enregeladamente. Todavia, apenas a porta da rua se fechou sobre o oficial-de-sala do vice-rei, Maria, que se deixara ficar sentada, voltou os olhos para o corredor que se estendia at sala de jantar, e para o qual abria uma porta cada um dos aposentos interiores do sobrado, e poucos momentos depois apareceu diante dela, e foi sentar-se em uma cadeira fronteira da sua, um bonito mancebo que certamente ainda no contava trinta anos de idade. Era um homem de estatura regular e to bem feito de formas, como desejaria s-lo uma mulher; tinha os cabelos pretos, finos e crespos, e os olhos to negros e belos, como eram belos e brancos os dentes; o rosto oval ostentava encantos e graas demais para o seu sexo; longe de ser um tipo de beleza varonil, dir-se-ia um erro da natureza que lhe dera formosura feminina e sexo masculino. Maria, disse ele seriamente; no me sujeitarei segunda vez a situao to mesquinha e aviltante! Maria pareceu no t-lo ouvido, porque no lhe respondeu; mas perguntou-lhe: ngelo, sabes jogar?... Tambm ngelo no respondeu pergunta de Maria, e continuou, insistindo no seu protesto. Por que excluir-me da sala e da mesa dos teus convidados e imporme essa cruel priso de duas ou trs horas em um quarto retirado, que nem ao menos o do teu leito!... Envergonhas-te da minha companhia, ou pensas que me causam medo os teus amigos de bigodes e espadas?...

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Maria tornou-lhe: ngelo, sabes jogar a banca14?... O mancebo levantou-se colrico: demais!...exclamou. Senta-te e ouve, tornou-lhe Maria com voz imperiosa. ngelo sentou-se. Deixei-te naquele quarto, porque me convinha que no te vissem hoje em minha casa: muito me serviste hoje; mas se te encontrassem aqui, no poderias servir-me amanh; pois adivinhariam em ti o amigo, que h tempo me ps ao fato de quanto se passou no ptio do convento da Ajuda. ngelo curvou a cabea e disse: Entendo: pensaste bem em ti mesma, zelando o teu espio. Maria encrespou os superclios, e falou em tom severo: Tens vinte e sete anos, ngelo, e aos vinte e cinco, na idade em que o homem deve assumir uma posio na sociedade, eras o filho mimoso de pais sem fortuna, um pobre moo sem ofcio, sem hbito do trabalho, e portanto um condenado s provaes dos desvalidos; eu te encontrei, te distingui, e te amei porque eras e s belo; fiz por ti o que teus pais no poderiam fazer. Mas eu tambm te amei, Maria! E o amor fogo que se apaga... - O teu... Pois seja assim, o meu: arrefecido o meu amor, nem por isso te faltou minha proteo; de amante furtiva ou mal encoberta, eu me tornei tua amiga manifesta; dei-te um emprego que te assegura posio medocre, mas suficiente para a vida do homem modesto, e no poupei nem poupo favores que te facilitem aparncias de abastana que no possuis. Lanas-me em rosto os benefcios, Maria? No; somente lembro os fundamentos da gratido que tenho exigido e exijo ainda. E poderias julgar-me ingrato? Tambm no: ainda precisas muito de mim para que to cedo me voltasses as costas. Lembrei-te o casamento com a filha mais nova do negociante Jernimo, que te tornaria esposo de uma linda moa e herdeira de grande fortuna... Inspirao do cime... J o neguei? certo, inspirao do cime; mas inspirao que te pode aproveitar; prometi auxiliar-te neste empenho, e sabes que o tenho feito; que mais quererias que fizesse por ti a amante de dois anos, que saciada do teu amor, hoje faz muito ainda, amparando-te, protegendo-te com a sua amizade?14

Tipo de jogo em que o banqueiro distribui as cartas em vrios montes, ganhando quem tiver a menor. 32

Tua franqueza cruel e desalmada!... Que importa? Eu sou melhor do que as que fingem e mentem; eu no te devo nada, ngelo; porque paguei-te o que me deste; e tu me deves muito, porque no te pedindo mais, e quando debalde mais me quererias dar, ainda te dou e te prometo; eu, porm, preciso de ti contra Alexandre Cardoso, de quem jurei vingar-me; nada mais claro e nada mais franco; entendamo-nos pois; queres continuar a servir-me?... ngelo respondeu submisso: Estou pronto. J te fiz rival de Alexandre Cardoso, aconselhando-te o amor e o casamento com Ins Lrio: neste empenho tu me serves e eu te sirvo; agora tenho outro. Qual? - O jogo. O jogo? Sabes jogar? Conheo as cartas do baralho, e mais ou menos compreendo os jogos. Jogas a banca? - Mal. preciso que a saibas jogar honesta e desonestamente; porque eu quero que ganhes o dinheiro de Alexandre Cardoso. O famoso jogador?! Serei tua scia nas perdas e lucros e tomo minha conta o capital necessrio; entrarei com cinco mil cruzados para a sociedade, e tu com a tua simples participao no jogo, que muitas vezes se dar em minha casa. Aceito a proposta sem modificao alguma, disse ngelo. Eu, porm, exijo mais alguma coisa, tornou Maria. O qu?... Que ganhes sempre a Alexandre Cardoso. Isso desejo eu; mas o meio?... ngelo, tens as mos finas, e a sutileza das organizaes delicadas; tudo fcil no jogo, a quem sobram essas condies: irs amanh, quero dizer, hoje mesmo, ao Outeiro da Glria, ensinar-te-o ali a casa do velho Placncio Guedes, o mais hbil jogador, adivinhador e empalmador de cartas, que a fama apregoa; um velho que deixou de jogar somente porque todos se esquivam de o fazer com ele; entregar-lhe-s um bilhete de recomendao que vou escrever-lhe; durante quinze dias ou um ms praticars com Placncio Guedes a ganhar sempre ao jogo, e especialmente ao jogo da banca, e quando o velho Placncio te disser: podes jogar tu, de sociedade comigo, que fornecerei o dinheiro, jogars sempre contra Alexandre Cardoso. ngelo no respondia.33

Explique-me claramente, disse Maria; cumpre-te agora responder; queres ou no?... aceitas ou no?... Quero e aceito, respondeu enfim, sobriamente, o mancebo. Maria levantou-se, e abrindo uma rica escrivaninha de jacarand, escreveu algumas linhas em uma folha de papel, que dobrou e veio a entregar a ngelo. Amanh te apresentars com este bilhete ao velho Placncio. Agora deixa-me; preciso descansar. ngelo saiu. X Depois da retirada de ngelo, Maria deixou-se como esquecida na sala, em sombria meditao. A entrevista confidencial que acabava de ter com o msero mancebo que se prestava a ser instrumento cego e indigno de planos sinistros, indicava bem que um abismo de odiento ressentimento j separava o corao de Maria do de Alexandre Cardoso, se que algum dia ela amara verdadeiramente o ajudante oficial-de-sala; mas a paixo deste pela filha de Jernimo Lrio, explicando muito, no explica bastante os sentimentos que agitavam e moviam os dissimulados furores da bela cortes. Alm dos cimes e das apreenses de perda de influncia que essa paixo provocava, a vaidade de Maria tinha recebido da mo de Alexandre a Cardoso o golpe mais profundo e doloroso. indispensvel voltar um pouco atrs para se apanhar a ponta do fio desta intriga que promete desenvolver-se. No sculo dcimo oitavo e ainda em princpios do atual, eram muito notveis e curiosas as cerimnias da festa de Nossa Senhora do Rosrio a em diversas capitais do Brasil e especialmente na do Rio de Janeiro. Eram os pretos livres, emancipados, e em grande parte os escravos que tomavam a si as solenidades da devoo de Nossa Senhora do Rosrio, e os senhores de escravos devotos concorriam por eles com elevadas quantias, Os principais festeiros tomavam o ttulo de rei e rainha, e se apresentavam na igreja trajando vestidos magnficos e com sinais e aparato de realeza, tendo corte mais ou menos numerosa de prncipes e criados de ambos os sexos, trazendo tambm vestidos apropriados e s vezes ricamente extravagantes. Acabada a missa solene da manh, e o Te-Deum ao anoitecer, o rei e a rainha de Nossa Senhora do Rosrio, com toda a sua corte, danavam pelas ruas ou em tablados, horas inteiras, as suas danas dfrica, algumas das quais j modificadas pela influncia dos costumes da colnia portuguesa da Amrica e sempre ao som dos seus rudes instrumentos34

especiais. parte o ridculo da cmica realeza que se misturava assim com o divino culto, era pelo menos divertido, aquele espetculo que os pretos davam nas ruas, e tornava-se notvel a despesa que faziam os senhores para vestir com riqueza e luxo os seus escravos que deviam ser prncipes ou criados e principalmente rei e rainha da festa de Nossa Senhora do Rosrio. Em 1765 a festa foi brilhante e ostentosa na cidade de So Sebastio do Rio de Janeiro, cujos habitantes, terminadas na Igreja do Rosrio as sagradas solenidades, acudiram em massa ao campo do mesmo nome, ainda pouco povoado, para assistir s danas e gozar a iluminao. Foi na noite desse dia que Alexandre Cardoso viu pela primeira vez a famlia Jernimo Lrio, sentindo-se arrebatado na contemplao da beleza de Ins. Ou porque houvesse notado esse arrebatamento ou por outro qualquer motivo, Maria retirara-se cedo do campo do Rosrio, onde ostentara formosura e esplndido luxo. s onze horas da noite, as danas tinham terminado; ia, porm, comear o fogo de artifcio e a muldido se aumentava ainda. Em algumas barracas improvisadas, muitas famlias ceavam alegremente e em uma casa de um s pavimento, porm espaosa e transformada nesse dia em casa de pasto, Alexandre Cardoso e uns vinte oficiais dos regimentos velho e novo dominavam absolutamente; raros paisanos, e esses, amigos dos oficiais, ali se achavam; mas em compensao, abundavam na sala imensa, alegres moas, que faziam tolerar uma dzia de mulheres de mantilha, sem dvida velhas mes ou parentes que as acompanhavam. Desde que se respeitava a mantilha, a mulher que a trazia, guardava com facilidade o incgnito; ora, os oficiais, tendo em conta de velhas as mantilhadas, as deixavam em tranqilo abandono. A ceia era abundante, embora muito trivial, e mais de cem garrafas j tinham sido despejadas. De sbito, viram entrar na sala e logo recuar, um oficial do regimento novo. O tenente Gonalo Pereira! gritaram uns. O tenente anacoreta! bradaram outros. Vo busc-lo preso ordem de Baco e Vnus! exclamou Alexandre Cardoso. Alguns oficiais saram e pouco depois voltaram com o tenente Gonalo Pereira, que no quisera negar-se ao convite de camaradas, mas que, sentando-se mesa, ceou e bebeu com sobriedade e decncia. As cabeas comeavam a tontear. Alexandre Cardoso bebia, e requestava uma bela e travessa morena que fizera sentar a seu lado.35

A morena, que bebera j trs clices de vinho, principiava a tornar-se eloqente. Alexandre Cardoso acabava de jurar-lhe amor eterno sob a condio de merecer-lhe um beijo diante da assemblia. Um beijo a preo de amor eterno, valia a pena; mas, quantos amores eternos capaz de sentir o senhor tenente-coronel em uma noite? A morena falava em voz alta. Por que o perguntas, meu anjo? Porque ainda h duas horas, era um dos dois lrios que o transportava; agora sou eu que o cativo; e dentro em pouco... Dentro em pouco?... uma coisa que todos sabem... dentro em pouco a famosa Maria lhe tomar contas desta noite. E a morena, empunhando o copo, exclamou: Viva o sulto! Os oficiais e as moas beberam, e depois desataram a rir. Alexandre Cardoso tinha afogado a dignidade em vinho. Meu anjo, disse ele: o lrio mais novo a mais formosa; tu, porm, s a mais linda e voluptuosa... a vitria tua. E Maria?... um livro de histria antiga, que s vezes releio pela fora do hbito. bela... E toda ela no vale os olhos que tens... palavra de honra! Sei que no posso comparar-me com ela! Sou bonita; porm Maria formosa... Toma-lhe o luxo e a riqueza, e vers que a aniquilas, eclipsandolhe as graas! s um querubim! No , senhores?... Pois bem; dou-lhe um beijo, se, a seu convite, todos aqui me proclamarem mais bela que Maria. Como te chamas?... perguntou Alexandre Cardoso, enchendo pela vigsima vez o copo Eduvirges. Viva Eduvirges, mil vezes mais bela que Maria! Exclamou Alexandre Cardoso. Viva Eduvirges, mais bela que Maria! responderam quase todos, bebendo. Ouviste! Mas aquele senhor no bebeu, e, portanto, no dou-lhe o beijo, disse Eduvirges, mostrando Gonalo Pereira. tenente Gonalo Pereira! Quer estorvar-me o gozo de um beijo?... No, sr. tenente-coronel, respondeu Gonalo; beije mil vezes Eduvirges; mas eu no direi que Eduvirges mais bela que Maria.36

Est vendo?... disse Eduvirges um pouco ressentida, mas fingindose calma; perdeu o beijo. E voltando-se para Gonalo Pereira, acrescentou: Obrigada, sr. Tenente; pois que salvou-me da seduo. Que lambida aquela Eduvirges! Murmurou outra moa de iguais costumes, ao ouvido do oficial que ficava ao lado. Mas eu protesto contra a injustia de que sou vtima, tornou Alexandre Cardoso com palavra j difcil pelo excesso das libaes; protesto duas vezes: primeiro, contra o Tenente, que se improvisa cavaleiro de dama que no sua; e contra Eduvirges, que me sacrifica impertinncia e abelhudice de um cavaleiro que no seu. O sr. tenente-coronel est sem dvida gracejando, quando fala em impertinncia e abelhudice, respondeu Gonalo, corando. Alexandre Cardoso, muito ocupado de Eduvirges, no ouviu a resposta do tenente, a quem outros oficiais trataram de serenar. Estou no meu direito, negando-lhe o beijo, disse Eduvirges, falando sempre em alta voz, e a rir sem saber de que ou somente para melhor mostrar seus dentes lindssimos; estou no meu direito, pois que se declarou uma opinio contra mim, e eu exigia por condio todas a meu favor. Alexandre Cardoso insistia ridiculamente. Agora, sr. tenente-coronel, s lhe daria um beijo, se diante de Maria, o senhor fosse capaz de declarar-me mais famosa que ela... Sou capaz... Na sua presena... no creio. O vinho tinha j embotado todos os sentimentos de delicadeza e de generosidade no nimo de Alexandre Cardoso; pois que ele ousou responder: J estou muito aborrecido de Maria... tomei-a por vaidade, e conservo-a por... eu sei? por costume. fcil dize-lo aqui; mas diante dela... Pois mandem-na chamar! exclamou Alexandre Cardoso. Uma das incgnitas e supostas velhas ergueu-se, atirou com fora mantilha para trs, e disse: Eduvirges teve a idia de abater Maria sem compreender a superioridade da cortes formosa, instruda e espirituosa, sobre a bonita; mas, ignorante e rude rapariga de vida alegre, teve porm essa idia, e notando a hesitao de Alexandre Cardoso, pisou-lhe com fora o p para que ele a olhasse, sorriu-se provocadoramente e depois fechou os olhos, alongou um pouco o pescoo para o oficial, e com um leve movimento extensor dos lbios no lhe ofereceu, pediu-lhe um beijo. Alexandre Cardoso balbuciou sem conscincia e com um tom rouquenho: Eduvirges mais bela que Maria.37

E beijou trs vezes os lbios de Eduvirges. Quando Alexandre Cardoso, Eduvirges e os scios de orgia procuraram com os olhos a formosa cortes, acharam somente a mantilha negra, que ela deixara esquecida, ou desprezada no cho. Sabe que aquela mantilha preta? perguntou um oficial a Gonalo Pereira. Que ? a mortalha em que se enterrou o amor de Alexandre Cardoso e Maria. O oficial que vira na mantilha deixada por Maria a mortalha do amor da cortes e do ajudante oficial-de-sala do vice-rei, enganara-se completamente. A ligao de Alexandre Cardoso e Eduvirges acabara no fim de uma semana, e to friamente, como se tivesse durado fora um sculo. Alexandre Cardoso, envergonhado da cena de embriaguez em que se dera em espetculo, no procurara dar desculpas a Maria do seu escandaloso procedimento. Em verdade ele no sentia mais a paixo em que se abrasara pela esplndida cortes; esta porm o prendia pelo seu esprito e pelas aparncias de comedimento, ostentao de luxo e de elegncia, e delicadezas de fino trato com que cobria de lavor as misrias do vcio. Saudoso de Maria, Alexandre Cardoso no pde resistir lembrana dos seus encantos por mais de oito dias e receoso de justificvel repulsa, no ousou ir logo casa da sua amante; escreveu-lhe, pois, um bilhete pouco mais ou menos assim concebido: Maria oito dias tm me parecido oitenta anos: no posso mais. Um homem que se embriaga uma vez no bbado; mas basta uma hora de embriaguez para enlouquec-lo; preciso ajoelhar-me a teus mimosos ps e limpar neles os lbios, que o sacrilgio nodoou. Maria! sers to santa que possa perdoar-me?... Alexandre. Uma hora depois o ajudante oficial-de-sala do vice-rei recebeu a seguinte resposta: Alexandre Vnus perdoa a Baco. Vem Maria. A mo de Maria tinha intencionalmente errado, escrevendo; em vez de Vnus, a deusa dos compassivos amores, deveria ter escrito Juno a deusa das implacveis vinganas. A famosa cortes to caprichosa em seus amores, como violenta em seu dio, conservando viva e sempre profundamente dolorosa a memria da orgia da noite da festa de Nossa Senhora do Rosrio, nem uma s vez, nem38

sequer por um s instante lembrou-se de vingar-se em Eduvirges; muito vaidosa e soberba esqueceu em sua vida miservel a bonita mas pobre e desgraada vtima da devassido; em seu orgulho de rica e nobre, em sua presuno de formosssima e fascin