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Joaquim de Meio Neto Criador do Banco Palmas

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Revist ntrevista

Entrevista com Joaquim de Meio Neto, realizada no dia 28 de novembro de 2013.

Analu - Joaquim, na pré-entrevista, vocêfalou que os seus pais (Jaci Abiquara Luna deMeIo e Célio Xavier de Meto), ao contrário devocê, não tinham uma grande preocupaçãocom as causas sociais.

Joaquim (interrompendo) - É!Analu - A sua mãe (era) uma pessoa mais

contida, porque era dona-de-casa, bem maiscaseira; e o seu pai era um viajante apaixonadopelos militares, como você mesmo tinha dito.Então, eu queria saber de onde vem esseolhar sensível e o cuidado com o próximo doJoaquim.

Joaquim - Você respirou fundo, não é?(brincando com Analu) Não sei! Eu costumodizer - até brinquei na vez passada (referindo-se à pré-entrevista) - que, geralmente, quandoas pessoas recebem uma pergunta dessas,dizem: "Ah, um dia eu estava andando narua e vi um clarão na minha frente. Vi uma luzque me iluminou. Ouvi uma voz que vinha doalém. Joaquim, Joaquim!" Eu não vi nada! Nãohouve clarão, não houve voz do além, ninguém(me empurrou) para isso. Eu acho que foiuma coisa que a vida foi colocando assim. Eu,muito jovem, adolescente ... Minha vó! Lá vema história da minha avó! Minha avó me levavapara a Igreja como toda vó faz. Leva o filho delapara a Igreja, o netinho. Eu a acompanhavae via os padres falando, fui me envolvendocom aquele negócio de "coroinha", Fui para oseminário, mas tudo de forma bem tradicional,bem conservadora, enfim.

Eu acho que a minha inspiração, a minhavida política, a minha guinada para o social,para compreender e querer me envolver comas questões sociais ou pelas causas sociais dejustiça, de liberdade e de igualdade é no Pará.Lá eu me envolvo no MLPA (Movimento deLibertação dos Presos do Araguaia). Nesseperíodo, a Igreja Católica - estamos falando doperíodo da ditadura militar (1964-1985) - eraa grande voz ou (uma) das poucas vozes queconseguiam falar ainda com certa autonomia.E eu conheci esse movimento porque euvivia no seminário o dia inteiro e, no fim desemana, eu saía para a paróquia para fazertrabalhos pastorais. Essa paróquia que eu ia,que era a Paróquia do Coqueiro, onde, até

hoje, meus pais moram, tinha dois padresda Teologia da Libertação e, através dessespadres, veio o conhecimento do MLPA, queera de pessoas ligadas à Teologia da Libertação(movimento de teologia política na IgrejaCatólica, surgido nos anos 1950-1960, cujolema era a opção preferencial pelos pobres,numa visão marxista). Eram líderes queestavam se organizando para libertar os presospolíticos. Mas as reuniões eram às segundas-feiras à noite. E às segundas-feiras eu (estava)trancado no seminário. Eu fugia do seminário!Literalmente eu fugia. Pulava o muro, aquelenegócio todo, para ir para a reunião. Lá que euconheci, de forma concreta, vários militantespolíticos, vários companheiros que faziamuma discussão diferenciada da sociedade, domundo - muito fortemente também a Teologiada Libertação, que tinha muitos padres queeram desse movimento. Eu começo ali,digamos assim, a minha abertura de formaçãode uma consciência crítica ou de uma vontadesocial, de "incomodaçào", de um status quo,de um desejo de mudar o mundo.

Paulo Jefferson - Joaquim, nas conversasque você teve com os meninos (da produção)antes...

Joaquim (interrompendo) - Falei diferente,não foi? Isso acontece muito. O cara mentemuito e não sabe o que mentiu da vez passada(brincando com Paulo Jefferson e todos riem).

Paulo Jefferson - Você falou que os seuspais ajudaram muito pouco ou quase nada naformação da sua personalidade, e eu queriasaber se você acha, então, que o ser quevocê é hoje foi constituído mais pela Igreja,por exemplo, por esses movimentos, no casoo MLPA, de que você participou, do que naprópria casa, no seio da família.

Joaquim - Primeiramente, eu queria dizer:a minha personalidade de hoje, o que eu sou,o que eu penso, a minha missão, a minhatarefa, minha visão de vida, foram feitas pelospobres, de forma geral, em vários momentos.Ora os pobres que lutavam por água ou porenergia aqui no (Conjunto) Palmeiras, ora ospobres que lutavam pela liberdade política.Mas eu formei a minha personalidade, a minhamissão, inclusive os meus conhecimentos

JOAOU M DE MELO ETO 107

Joaquim nasceu emPernambuco e tem 51anos "muito bem vividos",como ele mesmo diz. Onome dele foi sugerido porJoyce, que o conheceu pormeio de uma reportagemproduzida na disciplina deRadiojornalismo I.

Ele é o terceiro filho deuma família de quatro ir-mãos, mas, atualmente,apenas a caçula tambémestá viva. Durante a infân-cia, sempre foi o mais bemcomportado e estudiosoda casa.

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A equipe de produçãodemorou a conseguir ocontato dele. Depois devárias ligações para oBanco Palmas, sem mui-to sucesso, finalmenteconseguiram os númerosdo celular de Joaquim. Oprimeiro nunca atendia,mas o segundo felizmen-te deu certo

No primeiro contatopor telefone, Joaquimparecia apressado, masJéssica Maria exercitou opoder de síntese para ex-plicar a proposta da Re-vista Entrevista em pou-cos minutos. Os detalhesiriam depois, por e-rnail.

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teóricos, podemos colocar assim, no meio dospobres. Eu diria que, se eu pudesse dedicarquem me formou, a minha personalidade, foia luta política no meio dos pobres. Portanto, ospobres que fizeram isso nas suas mais diversascategorias. Os meus pais, não. Os meus pais...Eu não tenho nenhum problema com eles,me dou muito bem até hoje, mas é aquelahistória: minha mãe era uma doméstica, umapessoa muito simples, do povo, analfabeta.Minha mãe tem 80 anos, então imagina 40, 50,60 anos atrás, era a mulher do lar. E meu paiera um funcionário público aposentado, masviveu a ditadura militar e foi influenciado pelosmilitares, com essa história de "Vamos quevamos, Brasil!", "Ame-o ou deixe-o!", "Esse éo país que vai para frente!" (slogans políticosda época ditatorial). Vocês são tão jovens quenem viveram esse momento, não é, professor?(dirige-se ao professor Rona/do). Mas aditadura militar era uma ideologia muito fortenas pessoas. "Ame o Brasil ou deixe-o", quemé contra o governo, quem é contra isso tudo, émelhor ir embora do que trair sua pátria. Ele (opai) tinha esse amor! Não podia ouvir o HinoNacional que se postava com a mão no peito(põe a mão no peito, imitando o gesto). Amavaos militares, a "briosa" Revolução de 64. E elenão era militar ...

Joyce (interrompendo) - E você seidentificava com essa questão dos militaresantes dessa virada de pensamento que vocêdeu?

Joaquim (interrompendo) - Não, nunca!Não, nunca! Eu saí de casa muito cedo. Fuipara o seminário com 15, 16 (anos) - eu soupéssimo para as datas, mas 15, 16 anos, poraí. Cada vez eu digo uma data diferente. E(como) um adolescente, evidentemente, nãotinha a visão social de mudar o mundo, porquemeus pais... Misericórdia, né? Era um jovem àtoa, vamos dizer assim. Um adolescente semmuita posição política. A influência deles noque eu sou hoje é zero! Nenhuma, nenhuma!Nem influência do ponto de vista ideológico,

liA minhapersonalidade de

hoje, o que eu sou,o que eu penso, aminha missão, a

minha tarefa, minhavisão de vida, foramfeitas pelos pobres."

da visão de mundo, de pensamento, neminfluência do ponto de vista moral, porque euacho que fiquei pouco tempo em casa. O meuconceito de solidariedade, de respeito pelooutro, de valorização das pessoas - aí depois,muitos anos atrás, com a economia solidária,de valorizar as relações sociais, as redes, acolaboração, a cooperação como resultadoeconômico de vida das pessoas - foi vindocom o tempo. Não teve influência nenhumados pais.

Jéssica Maria (interrompendo) - Joaquim ...Joaquim (interrompendo e continuando a

resposta anterior) - Nenhuma. (Se você pedir:)"Me dê uma referência sua da sua casa". Minhareferência é um bem-querer, porque eu gostodeles e muito, dos meus irmãos. É gostar! Mas,realmente, eles (os pais) não me ensinaramnada. Estou sendo bem honesto! Bem honestoe sem mágoas e sem traumas! Acho que temfamílias que são mais influenciadas, e é bomque sejam. Eu sou, de certa forma, talvez, umpouco reacionário. Não me entendo assim,mas eu sou um defensor da família. Emboranão vendo a família (com frequência), nãomorei com eles, saí de casa muito cedo, eu souum defensor.

Jéssica Maria (interrompendo) - Joaquim ...Joaquim (interrompendo) - Eu acho que

a família ... Eu lhe dou a palavra (refere-se àJéssica), mas eu preciso dizer isso, porque omeu discurso foi muito parecendo que eu soucontra a família. Eu acho que o trabalho hojepara resgatar essa família como laço, comoreferência da juventude é uma coisa muitoforte. Referência como respeito!

Jéssica Maria - Na conversa que você tevecom a gente (antes da entrevista), você disseque teve uma infância incomum, que viajavabastante e morou em vários lugares, mas,apesar disso, mantinha-se estudioso, apesardessa troca constante de escola. A minhapergunta é: o que de bom essa experiência depassar por vários lugares trouxe para você?

Joaquim - O desapego! Nunca ninguém mefez essa pergunta assim, mas, de testa, achoque o desapego. Meu primeiro amigo ... Sabeaquele amigo que você guarda lembrança dainfância? Foi bem com 15, 16 anos. Cada anoeu morava num Estado diferente. Não davanem tempo de fazer amizade. Nem na escola- meus amigos de infância, amigos da escola,basicamente, eu não tenho nenhum, porquenão dava nem tempo de fazer amizade. Cadaano era em um canto diferente. Mas isso éuma coisa boa, porque a gente deu desapego.Quer dizer, você é livre, completamente, parapoder ir, vir e não está preso, não botou dentrode si nada que você não possa tirar. Uma daspiores coisas da vida é quando botam dentrode você o que você não pode tirar. "Gosto tantodaquilo. Sou tão apegado àquilo". Eu acho que

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depois, quando eu vou para o seminário muitocedo, é um pouco disso. Eu vou numa boa.(Pensei.) "Saí de casa. Deixa, esquece". A ideiade que ninguém é de ninguém, de que nada éde nada, que nós somos um coletivo humanono planeta Terra. Somos bilhões de pessoas,irmãos! Todo mundo tem de tomar de contade todo mundo. Essa é a ideia de desapego,da liberdade, de não ficar preso ao dia a dia, àspessoas, aos objetos, ao local, a um territóriosó, à minha cidade, à minha mãe, ao meu pai.

William - Joaquim, você falou que o contatocom os pobres construiu a sua personalidade.

Joaquim -Isso! Certamente.William - E, na sua infância, você passou

por Pernambuco, onde nasceu, pelo Piauí epelo Maranhão até chegar ao Pará.

Joaquim - E Ceará!William -Isso. Nesses lugares, você chegou

a ver a pobreza? A partir daí foi que começouesse contato com os pobres?

Joaquim - Como meus pais eram pobres- não eram miseráveis, nunca passei fomena minha infância, mas eram pobres. Imaginameu pai aposentado, minha mãe doméstica. Arenda que tinha era dele. Eles eram pobres. Agente sempre morou em bairros pobres, maseu nunca vi a pobreza ou, talvez, se eu via, nãoenxergava. Uma coisa évocê estar aqui, no meiode um bairro como esse (refere-se ao ConjuntoPalmeiras), e vê as pessoas passando fome,um sendo esfaqueado, o outro apanhandoda mulher, mas aquilo ali já é cotidiano. Vocênão liga mais para aquilo. Você não vê! Ou, sevocê vê, você não enxerga, você não reflete,você não sente. Esse conceito "pobreza",para mim ... Porque pobreza é ideológico. Tempobre, porque tem rico. A pobreza não é umadádiva. A pobreza não é uma coisa natural. "Eusou pobre". "Eu sou rico". "Ah, que maravilha.Deus fez assim: você pobre e eu rico. Que coisaboa".

Não... Alguém é rico, porque tomou dopobre. Em linhas gerais, é isso! Alguém érico, porque, de alguma forma - não estoufalando se foi ele, o pai ou a mãe ou não seiquem ... A cidade se divide em classes sociaisnão porque Deus criou ou porque é natural serassim. Porque é uma sociedade organizada

de um jeito, desigualmente, que uns ficamricos e outros ficam pobres. Esse conceitoque eu estou chamando de pobreza é umacoisa que você adquire quando você adquireconsciência crítica. No mais, você vê aquiloali como uma coisa natural. Se me perguntar:"Você viu a pobreza?" Certamente, talvez.Como eu morava em bairros pobres, eu vi, masaquilo não me tocava, não me influenciava.Eu era completamente alheio àquilo ali e,talvez, quem sabe, eu aceitava aquilo comouma coisa comum, qualquer, natural, banal.Passei a me revoltar com isso e dizer que issonão pode ser assim, que isso está errado,que pode ser diferente, a partir de quando euconheço o MLPA, a Teologia da Libertação, aparóquia. As pessoas diziam: "Epa! Isso nãoé assim. Isso está assim no momento, mas éporque é um desarranjo da sociedade. Alguémprovocou. Isso é construído. Isso não é umacoisa natural." Ser pobre não é uma coisanatural. Estou falando de pobreza econômicaaqui mesmo, é pobreza que as pessoas nãotêm comida, roupa, saúde, educação. É umabarbárie! É uma coisa terrível que tem de sermudada. E provocada! A pobreza... O Ceará éum Estado extremamente pobre. Fortaleza éuma cidade brutalmente dividida! É a quintacidade mais desigual do mundo (sinaliza coma mão)! Por que é assim? Deus fez a pobrezaassim? Foi Deus quem criou isso? Foi umacoisa naturalmente que foi acontecendo

liA pobreza não é umadádiva. A pobreza nãoé uma coisa natural.

(...) A cidade se divideem classes sociaisnão porque Deus. ,CriOUou porque enatural ser assim."

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Apesar da pressa, Joa-quim mostrou-se interes-sado em participar do pro-jeto. Prontamente, aceitouo convite para ser um dosentrevistados da ediçãonúmero 31.

Nas primeiras tentati-vas de marcar a pré-en-trevista, Joaquim estavaviajando. Por isso, logono início do processode produção, a equipese dedicou a pesquisa rmateriais já publicadossobre a trajetória dele.

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Para conseguir mais in-formações sobre Joaquim,a equipe resolveu visitar oBanco Palmas em buscade pessoas que convives-sem com ele e pudessemcontar detalhes da perso-nalidade do entrevistado.

No caminho até o Con-junto Palmeiras, a equipede produção se perdeu.Analu, a motorista oficialdo grupo, não conseguiaachar a Avenida PompílioGomes, que dá acessoao bairro.

assim? Como vocês estão aqui, mas meio quenaturalmente. Nem eu convidei vocês - claroque vocês me selecionaram -, mas ninguémtrabalhou dois, três anos para este encontroacontecer. Foi uma coisa natural! Foi indo eaconteceu. E a pobreza é assim? Foi uma coisanatural? Não! Não é assim! Foi uma coisaprovocada. Tem toda uma praça política de leis,de legislação, de regras econômicas, de formasde se organizar a economia e a sociedade, quecria o Apartheid (regime político de segregaçãoracial que ocorreu de 1948 a 1994 na África doSul): uns ficam muito ricos e os outros ficammuito pobres.

Jéssica Maria - Joaquim, na pré-entrevistavocê disse que era o santinho de casa.Trabalhar ajudando o outro foi uma escolhaabsolutamente consciente ou você acreditaque teve uma predestinação?

Joaquim - Trabalhar com o outro?Jéssica Maria - Ajudando o próximo.Joaquim Eu não acredito em

predestinação. Também não quero desacreditarnem desrespeitar quem acredita. Isso vai parao lado mais espiritual, que tem um caminhoque já era traçado e tinha de ser assim. Euacho que não. Eu acho que eu fui conhecendoa minha realidade. Eu fui conhecendo apobreza e pessoas e movimentos. Falei aqui daTeologia da Libertação, já falei do Movimentode Libertação dos Presos do Araguaia, depoisfiquei clandestino em partidos políticos ...Esses movimentos me trouxeram leituras quefiz, diálogos, debates. Fui me abrindo paraessa nova concepção, acho que foi uma coisaconstruída também. Fui fazendo a opção deviver com essas pessoas, de lutar por essaspessoas, de dedicar minha vida a essas pessoas,a abrir mão de uma série de outras coisas quepoderiam ter me trazido mais conforto material- melhores empregos ou ter estudado mais,entrado para a Universidade ou ter aceitadooutros convites de viagens. Eu fiz uma opçãode ficar nessa militância que me dá prazer ...

Jéssica Maria (interrompendo) - Nemo Joaquim seminarista via isso como umchamado de Deus?

Joaquim - Quando eu estava no seminário?Jéssica Maria - Isso.Joaquim - Tinha, tinha! Sim, aí tinha.

Perfeitamente! Você fez uma pergunta beminteligente. Por que eu fui para o seminário?

Joyce (interrompendo) - Eu queria saberjustamente isso. Porque você saiu de casacom 16 anos para o seminário. Eu sei quevocê ia à Igreja com a sua avó e achava amissa bonita e gostava, mas o que determinoumesmo? Porque é uma escolha radical. Vocêafirma na pré-entrevista que foi um choquena sua casa. O que determinou a sua entradapara o seminário?

Joaquim - Eu vou para o seminário muito

por influência da minha avó. Eu vejo os padrese vejo os coroinhas e vejo aquele rituallitúrgico,acho aquilo muito bonito e tenho vontade de meenvolver com aquilo, de ser padre. Não foi umafuga. Eu não fugi de casa. Eu não tinha motivosde fugir de casa. Embora (fosse de) uma famíliamuito simples, era uma convivência razoável.Eu fui porque eu queria ser padre. Quando euestava na Igreja, dentro do Seminário São PioX, em Belém, eu tinha uma certeza muito forte- porque eu sou muito forte nessas coisas dasemoções. Eu tinha certeza que eu ainda iria serum padre para fazer aquilo que eu via na igrejada minha avó, que era celebrar missa, fazertodos os sacramentos. Eu tinha uma certezatal (enfático) que eu queria ser um padre. Eunão saio do seminário até eu desistir de meordenar, já em Fortaleza. Mas eu nunca percoa fé. O que muda para mim é a visão do padre.Até chegar ao Palmeiras eu tinha a ideia (de)que ser padre era celebrar missa, fazer aquelafesta bonita. Eu entro no seminário com essaperspectiva. Lá dentro do seminário, por causadas minhas fugas, eu conheço outro modelode sociedade, portanto, outro modelo de serpadre, e venho para Fortaleza para ser esseoutro padre, diferente. Mas eu acreditava queo padre poderia contribuir. Só em determinadomomento pensei diferente do outro. Mas eutenho muita certeza que ia ser um bom padre eacho que seria até hoje.

Bárbara - Joaquim, no início você disseque seus pais não tiveram muita influênciana construção da sua personalidade, mascomentou que foi através da sua avó quevocê acabou entrando na Igreja e se tornandocoroinha e, mais tarde, entrando no seminário.Além disso, a sua avó teve outras influênciasnas suas escolhas?

Joaquim - Nenhuma! Nenhuma! Talvezvocês digam: "Esse cara tem de fazer análise,porque ele veio puto com a família dele" (brincaJoaquim, arrancando risos dos entrevistadores).Mas eu não tenho nada ... De ponta a ponta daminha vida, desde que eu me entendo porgente, sei lá, criancinha, eu nunca tive problemacom a minha família. Nunca! Nem briga, nemde relacionamentos, nem discussões, nada.A distância me deu muito bem. Eu não diriaque a minha avó me influenciou a entrar noseminário. Ela me deu conselhos: "Meu filho,vá para o seminário. É uma coisa muito boa.Você vai estar perto de Deus, vai ser um bompadre." Foi a influência. Eu ia com a minhaavó porque eu era o santinho da casa. Eu eraa pessoa mais quietinha da casa. Dos irmãos,eu era o que estudava mais, o que era maissanto, que não gostava de trelar. A minha avóia religiosamente à missa todo domingo e euera a companhia dela. Ela era minha avó, umasenhora meio idosa. Eu ia fazendo companhia aela. Acompanhando-a. Lá eu via a missa, eu via

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as coisas, o cálice, a hóstia ... Pense numa missaem 1978, por aí, bem tradicional. O padre,muitos sacerdotezinhos, muitos coroinhas.Eu achava aquilo lindo! Achava muito pertode Deus. Depois fui ser coroinha. Eu diria queminha avó contribuiu porque eu ia com ela. Elafoi quem me apresentou, digamos, ao rituallitúrgico, mas não me influenciou do ponto devista que ela não me aconselhou a ir para lá(missa).

Depois disso eu fui para o seminário, eela ficou morando com meus pais. Eu lá, eela cá. Ela morreu poucos anos depois, demaneira que não teve influências. Para mim,influência é uma palavra muito forte. Eu tivemuita influência do Leonardo Boft (teólogobrasileiro, escritor, professor universitário eexpoente da Teologia da Libertação no Brasil),que é um cara que nem me conhece, talvez.Já estive com ele em debates, palestras, masnão tenho uma relação pessoal com ele. Masele é um cara que me influenciou, porque euli os livros (dele). Chorava com as coisas dele!Quando foi perseguido e expulso pela SantaSé, eu fiz uma campanha na paróquia. Pregavafoto dele, a condenação dele na parede. Ele meinfluenciava. As coisas que ele disse ... A visão"que Deus não tinha ... Dos 12 sacerdotes, 11eram casados." Leonardo Boft dizia lá naquelelivro dele Igreja: Carisma e Poder: "A Igreja éputa e santa. A Igreja é poder ... O Vaticano éum sacrilégio." Porque a palavra Igreja vem deekk/esia, quer dizer, o povo reunido. A estruturada Igreja é poder, é um sacrilégio, é coisa dosatanás. Aquilo me incendiava! Quando eu vimpara Fortaleza fazer a experiência dos padres naperiferia, era com uma influência muito forte.Eram esses conceitos na cabeça. A Igreja erauma outra coisa. Não era aquele templo queeu conhecia, que eu entrei, aquele padre quecuidava da beleza e da estética sem nenhumaraiz com os pobres, com nada. Isso é umainfluência, digamos assim. Por isso que eu digoque ela (avó) não me influenciou, ela contribuiu.

.Carnila - Joaquim, você falou que, antes demanter contato com os movimentos e essasleituras, você era um jovem à toa. Quandovocê entra no seminário você começa a tercontato com esse pensamento da Teologiada Libertação e agora você falou do LeonardoBoff. Eu queria saber qual a maior contribuiçãoque a Teologia da Libertação trouxe para você.

Joaquim - Eu diria duas certezas: a certezade que a sociedade, o mundo pode ser diferente,que esse mundo que está aí não é um mundodado, é um mundo construído. Esse é ummundo de classes. Esta é uma certeza: que ospobres podem construir uma nova sociedade,uma nova relação econômica, um novo modeloeconômico a partir de sua organização. ATeologia da Libertação é muito segura no Livrodo Êxodo, que Jesus diz: "Eu vi, ouvi e desci

para libertar o meu povo." Lá na passagemdo Mar Vermelho é o Jesus que desce paralibertar o seu povo. Tinha uma palavra muitoforte que era lutar contra a pobreza. Então, essacerteza de que a comunidade organizada, queos pobres organizados podem construir umanova sociedade com justiça, com igualdade,com bem-estar para todo mundo, e essa éa sociedade prometida nos Evangelhos, naBíblia. Essa é a sociedade sonhada por Deus,criada por Deus. Isso veio da Teologia daLibertação muito fortemente. Foi na leitura doLeonardo Boft, que ele dizia isso muito grande:"A cidade que está aí é a cidade do demônio.Os homens... Essa não é a natureza que eufiz." Tem uma música que ele cantava muito:"Não é essa aí a natureza que eu fiz / cheia depedaços, por grandes ricaços / destruída pelohomem que eu fiz." Era o princípio de resgataro projeto original de Deus. "Ele é Pai, ele é Paide bondade." Não tem um pai no mundo ouuma mãe, se tiver dois irmãos aqui, que diga:"Quero que esse aqui fique passando fomee essa aqui fique muito bem numa casa compiscina." Não tem pai e mãe que queiram issopara dois irmãos.

Analu (interrompendo) - Joaquim!Joaquim - Já te dou a palavra, porque agora

eu tô pregando (faz o sinal da cruz)! Virei meioque pastor (todos caem na gargalhada). Não foiDeus que criou esse mundo que tem o pobree o rico. Foi alguém contra a vontade de Deus,então nossa construção é do homem. É isso oque diz a Teologia da Libertação.

Raíssa - Quando você teve a experiência deatuar junto à população mais pobre e morava noseminário, onde vivia confortavelmente, vocêteve conflitos com os padres mais reacionários.

E E~O t:TO '11

Após algumas paradas,pedidos de informaçãoe a ajuda da guia oficialdo grupo, Jéssica Maria,finalmente os três es-tavam no rumo certo. Oapoio moral de Williamtambém foi fundamental,acredita ele.

Ao chegar ao Conjun-to Palmeiras, uma pintu-ra em um muro chamouatenção: "Bem-vindo aobairro da economia soli-dária". A partir dali, nãodemorou para acharem aRua Vai paraíso, onde ficao Banco Palmas.

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Logo na fachada dobanco, os dizeres de PaulSinger traduziam o espí-rito empreendedor queexiste no Conjunto Pal-meiras: "Ninguém superaa pobreza sozinho".

Como banco comuni-tário, o Palmas atua comduas linhas de crédito queestimulam a criação deuma rede local de produ-ção e consumo. Desde2000, além do real, a moe-da social palmas circula nocomércio do bairro.

1/(. .. ) eu nuncaperco a fé. O que

muda para mim é avisão do padre. Atéchegar ao Palmeiraseu tinha a ideia (de)que ser padre eracelebrar missa."

Conflitos ideológicos, em relação a essa vidaconfortável que você tinha no seminário e àforma como você atuava com as pessoas maispobres. Como é que você se sentia vivendoconfortavelmente e atuando com a populaçãomais pobre?

Joaquim - Louco! Completamente louco!É por isso que eu faço a loucura de vir paraFortaleza sem nada, com a mala na cabeça.Era uma contradição gigantesca, além disso,fugido. Você imagina um cara santinho comoeu era... Eu era um cara comportado. Não eraum cara irresponsável, piradão, malucão. Eraum cara dentro dos padrões, mesmo dentrodo seminário. Tinha um contato nos fins desemana com uma paróquia que não tinhamuitos pobres, mas era uma Paróquia deTeologia da Libertação muito forte, eu tinhao contato com o MLPA, que discutia comose libertar... Admitia-se até um ato suicida,que a gente invadia o quartel para libertar ospadres à força enfrentando o fuzil dos militares.Voltava para o seminário e passava a semanatoda comendo, rezando, dormindo, estudando,tudo pago, era de graça. Você imagina eu,muito jovem, 18 ou 20 anos, que estava como pensamento muito mais aberto, muito maisafeito. com muito mais coragem, com muitomais rebeldia. "Juventude sem rebeldia é umavelhice precoce." Isso era uma poesia quea gente tinha e gostava muito de dizer isso.Ser jovem era ser rebelde, aquilo ali era umacoisa que, completamente, me enlouquecia.No seminário a gente fazia teatro, música,tudo da Libertação. E os padres tinham umaloucura. Eles, se pudessem me matar, eles mematavam, de preferência com um cálice. "Lá vaio Jesus, tu aceitas o nome." (brinca Joaquim,fazendo toda a equipe rir). Eles queriam mematar. Agora tinha uma coisa: eu tirava asmelhores notas no seminário. Os caras faziamuma teologia pelega, bem reacionária, só queeu lia. Eu lia a minha, que eu queria, e a deles.Os alunos todos santinhos. Só tinha santo.

Todos quietinhos e tiravam notas menores. Eeu tirava as maiores. Tirava quase 10! Isso, paraum seminário, é muito importante. A eficiência.Um padre inteligente era muito importante,então eu era o melhor seminarista que tinha.Iam expulsar o seminarista que tirava 10? Nãopodia. "Não, é porque ele é doido. Falamuita ...nNão tinham argumentos para me expulsar eficavam loucos. Eu sabia muito como fazer acoisa.

Luana - Você falou que veio para Fortalezapara participar do (projeto) Padres na Favelaa convite do Dom Aloísio (Lorscheider, entãoarcebispo de Fortaleza). E você falou das suasinfluências, que influência para você é umapalavra muito forte. Eu queria saber qual ainfluência que o Dom Aloísio tem na sua vida.

Joaquim - Nossa! Todas! Muitas! Todasnão, muitas. Primeiro, de escutar. Dom Aloísioé um cara sábio, sábio na sua teoria, noseu conhecimento teórico, que ele estudoumuito, e sábio de sabedoria de vida, sábiona sua experiência com os pobres, e de umahumildade! É um cara forte, um gaúcho forte.Mas, fisicamente, Dom Aloísio é um gaúchoalto, forte, um homenzarrão, uma presençaimponente muito grande. Um conhecimentoteológico, filosófico profundo. Estudou naAlemanha, estudou os manuais de Karl Marx,estudou com Manfredo Oliveira, que é umdos maiores filósofos do Brasil, de Fortaleza(professor da Universidade Federal do Ceará -UFC). Era um cara que sabia muito, conheciamuito e com uma capacidade, com umahumildade de ouvir as pessoas!

Dom Aloísio fazia pastoral assim: ele iapara o meio de uma favela e sentava, do jeitoque nós estamos aqui (estávamos em círculo),na cadeira, e o povo da comunidade ficavafalando com ele as coisas, os problemas dacomunidade, os dilemas da vida, as pobrezas,as agruras, brigas, intrigas, tráfico, drogas.Ele passava horas ouvindo aquele povo nacomunidade, conversando, tomando umcafezinho, sentado no chão, sentado em cimade panos, de redes. Essa capacidade de ouvir,de escutar os mais pobres, de aprender com osmais pobres, de ver os pobres como grandesportadores de conhecimento, que ensinam eque você tem muito de aprender com eles e deescutar e de aprender, e ter muita paciência ehumildade. Isso, para mim, era a grande lição doDom Aloísio. É próprio do sábio - a humildade.Dom Aloísio era o exemplo disso, do serviço.Ele era grande, porque se colocava pequeno.Ouvir, escutar, caminhar no meio dos pobres,eu fazia isso com ele adoravelmente. Eu achavaa coisa linda como era que aquele homem, comaquela sabedoria, internacional ... Tudo que eleera, passava três, quatro, cinco horas numafavela das mais pobres, em barracos, sentado,ouvindo, conversando alegremente com as

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pessoas. Isso era outra coisa de Dom Aloísio.Era capaz de se alegrar ao ver a cidade. Umacoisa é conversar com os pobres tristinhos:"Que pena, os bichinhos. Foi, criatura". Quenada! Era presença viva, de alegria, de vamosque vamos, vamos mudar isso aqui, "Comoé que a gente pode fazer?" (Joaquim brinca,dizendo que não aprendeu com Dom Aloísio,porque ele só fala, não escuta).

Roberta - Num dos diálogos que você tevecom o Dom Aloísio logo quando você chegaem Fortaleza, você diz que queria ser igual aopovo. E ele, diante da sabedoria dele, disseque talvez você não precisasse ser igual aopovo, mas se aproximar dele, viver um poucodaquelas experiências. Para ser igual ao povovocê teria de viver como eles, e isso geraalgumas reflexões.

Joaquim -Imensas!Roberta - Depois das experiências que

você teve aqui na comunidade, depois de anosdesse diálogo, você acredita que é igual aopovo hoje ou você ainda está tangenciando?

Joaquim - Olha, talvez eu possa responderse eu pegar as coisas que Dom Aloísio medisse. Estou falando de 1980, estamos em2013, então faz 23... Ouantos anos?

William - Trinta e três anos.Joaquim - Trinta e três anos. Então, talvez,

responder as perguntas que ele me fez 33 anosatrás sirva para agora. Ele me disse: "Vocêquer ser igual ao povo?" "É, quero morar comoo povo, ser igual ao povo." "Tudo bem, poisentão você precisa ter duas ou três mulheres,porque os pobres são assim, eles estão comuma, duas, três mulheres." Hoje eu não tenhomais essas três mulheres, aliás, eu não tenhonenhuma. A bichinha morreu (sinaliza parao quadro com a foto de Sandrinha, sua ex-mulher). Eu não tenho três mulheres. "Vocêquer ser igual ao povo? Então vai ter detomar cachas:atodo dia." "O que é isso, DomAloísio!?" "E! Os pobres na favela tomamcachaça. Bebem! Você não quer ser igual aeles? Igualzinho?" "É!" "Tem de beber cachaçatodo dia." Até hoje eu não bebo. Bebo bempouquinho, só nos fins de semana e é uma

frescura. Tem de ser uma cervejinha gelada.Drogas. Os pobres usam drogas. E muitasdrogas, de vários tipos. Eu não uso drogas.Eles comem muito mal, eles passam fome, elesnão têm plano de saúde, eles não têm casa,eles moram em barracos insalubres, eles têmuma vida muito mais perigosa. Então, eu tenhocompromisso com o povo total, total! Cempor cento. Eu não tenho outro compromissona minha vida com ninguém. Nem com mãe,nem com filho, nem com mulher, com nada!A minha vida é dedicada a isso, mas eu estoumuito longe de ser igual ao povo. Muito longede ser igual ao povo. Eu tenho uma vida muitomelhor do que a que o povo tem. Desde suasrelações sociais, em casa, com a família. Euestudei! Eu fiz Teologia. A maioria do povo nãoestudou. Eu tenho plano de saúde, eu tenhocasa, até um carro eu tenho, por mais queseja velho, mas estou muito distante de serigual ao povo. Isso não reduz nenhum poucoo meu compromisso com ele (o povo). Minharesponsabilidade ... O meu compromisso comele em defender a causa. Mas eu estou longede ser igual ao povo. Todos vocês. Vocês são aelite. Vocês são a elite no meio do povo. Vocêscursam universidade, vocês têm uma família,vocês comem todo dia, vocês têm um pai,uma mãe ou uma avó que cria vocês. Se vocêssaírem daqui e forem andar no Palmeiras, nasfavelas, vocês vão ver o que é o povo, comoé que o povo mora, como é que o povo vive.Apesar dos números que mentem muito. Amaior mentira deste país, a maior mentira destepaís, e talvez a academia seja a responsável porisso ou os acadêmicos. Não a academia, masos acadêmicos, que fazem os estudos, é dizerque o Brasil superou a pobreza. O Brasil é umpaís que tem milhões de pobres, milhões depessoas vivendo na extrema pobreza. Porqueaquela ideia de que pobre superado quandoR$ 70... Mais do que isso deixou de ser pobre,é uma das maiores aberrações à situação depobreza que o povo vive. O Brasil tem milhõesde pessoas vivendo em extrema pobreza. Euestou falando de pobreza rasteira. Claro quepobreza também são as relações sociais ... Mas

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Antes da existência dobanco Palmas, os 32 milmoradores do ConjuntoPalmeiras tinham de sedeslocar consideravelmen-te para fazerem qualquertransação financeira. Aagência bancária mais pró-xima fica a sete quilôme-tros da comunidade.

A atendente Juliana foiquem recepcionou os es-tudantes, que aproveita-ram para visitar o InstitutoPalmas e a Associação deMoradores do ConjuntoPalmeiras, a qual, infeliz-mente, estava fechada.

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De volta ao banco, aequipe ficou surpresacom a chegada de Jo-aquim. Não esperavamencontrá-I o, pois acre-ditavam que ele estariaviajando, conforme haviainformado por telefone

A primeira entrevista foirealizada com Otaciana,funcionária do Banco Pal-mas. Ela convive com Jo-aquim desde 2000. Muitoreceptiva, mostrou-sebastante comunicativa edisposta a ajudar a equipe.

IINão foi Deus quecriou esse mundo quetem o pobre e o rico.Foi alguém contra a

vontade de Deus, então- ,nossa construção edo homem. E isso oque diz a Teologia da

Libertação."estou falando de pobreza física, econômica,material. Existem milhões de pessoas vivendoem extrema pobreza. Muito diferente de nósque estamos nesta sala.

William - Joaquim, você falou que, quandochega a Fortaleza e vai para o (projeto) "Padresna Favela", a sua vida começa ali. Naquelaépoca, por que você queria ser igual ao povo?

Joaquim - Era uma ilusão sociológica. Erauma ilusão sociológica (de) que eu seria igualao povo. O que Dom Aloísio quis dizer com"você jamais será igual ao povo" não era que euia ser burguês, ou que eu não teria dedicação àluta do povo, ou que eu não seria um grandemilitante. Ele quis dizer o seguinte: para vocêser um grande defensor do povo, das causaspopulares, não precisa você viver como elesvivem, ou ser como eles são. Não precisa isso.Se você for igual a eles, excelente! Você já éigual a eles. Mas não precisa você ser. Vocêimagina, eu era um seminarista! Então, eu vivimaterialmente falando ... Hoje, materialmente,eu tenho bem mais bens materiais do queeu tinha em 1984. Em 1984 eu tinha bemmenos dinheiro, era bem mais pobre ... Umanoção rasteira de pobreza sem dinheiro, bensmateriais. Em 1984 eu não tinha um plano desaúde, não tinha um emprego, eu não tinhauma carteira assinada, eu não tinha uma casapara morar, eu não tinha um carro, enfim.Coisas que eu tenho hoje. Em 1984 eu nãotinha. Mesmo não tendo, eu não era igual aopovo. Primeiro, eu tinha a proteção do bispo.Quem é do povo que tem a proteção do bispo?Se eu adoecesse, me desse uma gastrite, ouuma úlcera, e tivesse de fazer uma cirurgia, ocardeal me pegava e botava em um hospital.Ou ia deixar eu morrer à míngua? O pobremorre à míngua. Se eu fosse preso pela polícia,certamente o cardeal botava um advogadopara tentar me soltar. Eu tinha proteção daIgreja. Eu estudava filosofia e teologia. Olhaque privilégio, em relação ao povo. A gente

tem de entender que ser igual ao povo é ter ascaracterísticas de vida ... Para ser igual ao povo,não basta não ter as coisas que o povo nãotem. É toda uma história, uma dinâmica, umavida, relações sociais que você tem. Foi issoque Dom Aloísio quis dizer. "Jamais você seráigual ao povo, meu filho".

Joyce - A sua primeira experiência aqui emFortaleza foi no Jangurussu.

Joaquim - Que hoje é (bairro) João Paulo 11.Joyce - É a partir dessa experiência que

você toma o real conhecimento, consciênciaverdadeira da condição do povo?

Joaquim - Eu diria que eu radicalizo aliminha fé, já que nós estamos levando a coisapara o campo religioso. Eu radicalizo ali minhafé. Ali eu digo: "Olha, a humanidade é umabarbárie, a sociedade é extremamente dividida,o ser humano está se acabando como espécie.Eu vou, daqui para frente, dedicar-me a isso.Pronto". Se eu pudesse fazer um esforço,(lembrar) de um momento, digamos assim,que você se define, em definitivo você tomauma decisão, é ali. Eu digo: "A minha vida vaiser essa". E assim o foi, de lá para cá. Hoje comos bancos comunitários, antigamente comas lutas do bairro. Cada momento com umahistória diferente. Mas assim o foi, de formalinear, sem ter paradas, sem ter tido crises.

Paulo Jefferson - Você falou agora que suaexperiência na rampa (de lixo) do Jangurussu,vivendo com catadores, foi a primeira grandeexperiência que você teve diretamente comos pobres. E pelo visto foi muito marcantena sua vida. Mas você construiu mesmo asua militância, digamos assim, junto com ospobres, aqui no Palmeiras. Inclusive resultounisso tudo que hoje tem aqui, como o Banco,o Instituto Palmas. Eu queria saber o que é queo Palmeiras teve de diferente, por exemplo, doJangurussu.

Joaquim - Evidentemente que o tempo. Euestou, desde (19)84 para cá, (há) 30 anos noPalmeiras. Lá (no Jangurussu) eu fiquei seis,sete meses.

Paulo Jefferson (interrompendo) - Masvocê resolveu se fixar aqui (Palmeiras)?

Joaquim - É. A vida me levou para ficar aqui.Mas eu digo: a grande diferença do Palmeiraspara o Jangurussu talvez fosse que o Palmeirasera um bairro pobre como lá, mas onde aspessoas queriam mudar a situação. Tinha umaluta social muito forte para transformar a favelaem um bairro popular. Eles estavam em um graude pobreza não tão grave (enfático) como noJangurussu, onde os rampeiros, os catadoresjá não sonham mais. Eles já se entregarampara aquela vida total de miséria, de pobreza;destruição do ser humano como ser. Eles sãobichos, animais. Na rampa você não sabe oque é o ser humano, o que é o bicho, o que éo caminhão do lixo. É uma coisa só. Eles não

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sonham mais. Eles não têm mais estratégia devida, de luta. O Palmeiras, não. Era um bairromuito pobre, mas as pessoas estavam lutandopara ter água, para ter esgoto, para ter creche,para ter as coisas. Eles tinham sonhos, que lá(no Jangurussu), pelo aguçamento da desgraçahumana ... É porque hoje não tem mais (o aterrosanitário foi desativado há 15 anos). Fortalezanão tem mais lixão. Mas, quando você temum lixão tradicional, onde as pessoas vivemdaquilo, a maior felicidade é quando chegao caminhão do supermercado, que chegamos produtos estragados. O supermercadonão quer mais. Frango estragado, verduras,frutas vêm no caminhão. E eles (os catadores)mapeiam, sabem os caminhões que vãochegar, que horas, de onde vêm. Quando vêmos caminhões de lixo que trazem os produtosdos mercadinhos, dos supermercados, eles seamontoam uns em cima dos outros, jogam-se em cima do lixo para catar. Frango, carnepodre, lixo podre. E aquilo é para comer e paravender, porque ao redor da rampa tem umasbodegas que vendem tudo podre, que é oprato de luxo das famílias que moram ali. Terum frango podre para comer na hora da janta éuma felicidade gigantesca! É a vida! O que umapessoa que vive assim quer, sonha, pensa?Bebe exaustivamente, porque tem de bebermesmo para poder suportar. Come lixo. A vidasexual privada não existe, porque são todos,quase, uma família só. Cinquenta, 100, 200pessoas vivendo abertamente umas na frentedas outras. (No) Palmeiras, não. Palmeiras eraum bairro muito pobre, mas tinha sonhos, pelomenos. Sonhos que lá (no Jangurussu) nãotinha.

Jéssica Maria - Joaquim, nessa experiênciade morar seis, sete meses no aterro doJangurussu, você disse que radicalizou sua fé.Como você fez para manter a fé ante o caos?

Joaquim - Perto deles. Para ser honestocom os catadores, mais uma vez, eu não moreidentro da rampa, no meio deles. A gentemorava - que era uma coisa assim (imita comas mãos um monte) - na parte de baixo. Elesmoravam ali por baixo, mas eu não moravaem cima da rampa não. Como foi para manterminha fé?

Jéssica Maria - (Manter) a fé ante o caos,em uma situação de pobreza extrema.

Joaquim - Acho que aí vai entrar umaspecto muito forte da tua decisão de vida, datua fé. Eu me decidi a fazer isso. Eu me decidia fazer isso.

Luana - Joaquim, mas em nenhummomento você fraquejou? Porque é umsituação muito difícil. Você mesmo falou que aspessoas que viviam lá (no Jangurussu) tinhamde beber para aguentar. Como é que você faziapara aguentar? Em nenhum momento vocêpensou em desistir, mesmo tendo sido sua

decisão de vida?Joaquim - Nem lá (no Jangurussu), nem cá

(no Palmeiras). Você imagina o que era a rampado Jangurussu e o que é o Palmeiras hoje. Éum filé mignon, é uma Aldeota (bairro nobre deFortaleza). Mas nem lá, nem cá. Porque lá erauma situação muito difícil, aqui também é, hoje.Eu acho que não (fraquejet). Até certo momento,até o final dos anos 1980, era aquela coisa dosacerdócio, que eu estava no seminário. Depois,eu deixei de ser padre, mas eu carrego essacoisa como missão e uma crença. Eu acreditoaté hoje (enfático), eu acredito até hoje! E obanco comunitário é isso, (prova) que é possívelse criar ... Mais do que isso. Eu acho que a únicapossibilidade de se criar uma sociedade, vamoschamar de justa, igualitária, humana, socialista,o nome que você quiser dar, é organizando ascomunidades das suas mais diversas formas.Criando bancos (comunitários), criandoprodutos, criando economia, criando cultura,criando arte, criando liberdade, criando vida,criando educação. Nenhum governo, por melhorque seja, por mais bem intencionado que seja,será possível de criar a nova sociedade quenós sonhamos, cada qual de um jeito. Só quemfaz a mudança, só quem será capaz de fazer atransformação é o povo. Só o povo organizadoem suas comunidades, nas suas mais diversascomunidades, será capaz de criar uma novasociedade, nova relação social, do ponto de vistaecológico, humano, psicológico, educacional.Não é o governo que vai fazer, porque elesnão determinam. Isso não é feito por decreto,isso é feito por organização, isso é feito pelamobilização, isso é feito através de um processode conscientização que vem das periferias, quevem do povo. Essa crença eu tenho até hoje.Isso que aguentou, que não fez romper, que nãofez mudar o caminho. Essa crença. Porque euacredito mesmo nisso (enfático).

Durante a conversacom Otaciana, Joaquimapareceu na sala sinali-zando que estava dispo-nível. A entrevista tevede ser interrompida paraaproveitar o tempo vagodele.

Na pré-entrevista comJoaquim, os telefonesdele tocaram por duasvezes. Nesse momen-to, a equipe aproveitavapara discutir as próximasperguntas a serem feitas.O telefone de JéssicaMaria não ficou atrás, to-cou três vezes.

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ara ser igual ao povo, não basta não ter,coísas que o pOVO não tem. E to a umatória, uma dinârb.ica,uma vida, relações

sociais <Fe você tem."

OAQUIM DE MELO ETO 117

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No fim da pré-entrevis-ta, Joaquim brincou coma equipe de produção,perguntando se aindaprecisaria participar daentrevista com o restanteda turma. Eles riram e dis-seram que sim.

nos livros, e não conhecem. Aí a frase do FreiBetto (escritor e religioso bresileiro, adeptoda Teologia da Libertação), que a gente gostamuito: "a cabeça pensa onde os pés pisam". Acabeça pensa onde os pés pisam. Então, se vocênão pisou, se você não viu, a cabeça só pensa oque você imagina, o que você leu. A gravidade,a brutalidade da miséria ... Estamos falando dolixão, mas você encontra no Palmeiras aindahoje. Se você nunca foi, você só pode imaginar.Por mais esforço mental que você faça, vocênão consegue chegar nem perto do que é. Nemperto do que é. Essa cabeça formatada, eu nãoestou dizendo que são vocês, mas a maioria,hoje, dessa juventude que serão os futurosmédicos, advogados, doutores, só conhece ocaminho de casa para o shopping, do shoppingpara a universidade, e fica por ali.

Na universidade me chamam muito paradar palestra, e eu vou. A primeira coisa queeu faço: mostro o mapa de Fortaleza e façouma brincadeira. Geralmente é faculdadeparticular que me chama (pergunto): "Ondeé que vocês moram?" Geralmente mora do(estádio) Castelão para lá (em direção ao litoral).(Pergunto): "Onde é que vocês andam?". Elesandam (na) praia, no shopping. A zona norteda cidade. Sabem nem onde é o ConjuntoPalmeiras, onde é a periferia, onde é a favela.Se você for falar das coisas daqui não vãoentender, é difícil demais. Nunca pisou. Nãotem ideia, não tem dimensão. Tem medo. Temmedo. Porque ouviu no rádio que é violento.Mas não dimensiona o que é. Vai (fala comRoberta, que demonstra querer perguntar).

Roberta - Ouais seriam as estratégias quevocê, como uma liderança notável aqui noConjunto Palmeiras, utilizou para que essatransformação possa hoje ser vista de umaforma concreta?

Joaquim- Debate. Utilizei e utilizo. Conversarcom a comunidade, debater, mostrar, ensinar,levar conhecimento. Porque a gente vive emuma sociedade (que pensa) assim: "Aos pobresa assistência". Eles são tão pobres, eles são tãodescabidos de conhecimento, de inteligência,de tecnologia, que eles merecem só que agente dê assistência. Então vamos levar bolsa,assistência, um médico, os serviços. Vocêtem de partir de outra perspectiva. Eles sãoprodutores de conhecimento, de tecnologia ede serviços. Para isso, tem de dar oportunidade.

Por exemplo, como é que tudo começouaqui? Com esses mapas (de produção econsumo local). A gente mostrou para o povo. Efizemos com eles esse estudo socioeconômico.Visitamos casa a casa e mostramos quantocada qual consome, o que gasta, onde gasta, equal é o preço. Elesviram que tinham R$6 milhõesde reais por mês sendo gastos aqui no bairro,mas R$ 5 milhões fora do bairro. Porque elescompravam roupa, calçado, cortavam cabelo

Quando eu não acreditar eu estoucompletamente destruído. Nada mais. Porqueo sofrimento é tão grande (enfático)! Estaraqui hoje, no Palmeiras, (assim) como estar noJangurussu, é um sofrimento violento. Físico,eu estou falando. Você imagina que, por dia,aparecem aqui pessoas desesperadas, que nãotêm o que comer, que o marido deixou, ou ofilho foi esfaqueado. Quer ir para o hospital, nãotem vaga; a mulher quer fazer uma cirurgia eestá três meses na fila de espera. "0 meninovai morrer" (diz), e não tem acesso no hospital.E elas vêm aqui falar com a gente, porquea gente é referência, né? Isso é uma dorincomensurável. Então, por que não desiste?Por que não sai desse perrengue danado?Porque a gente acredita. Eu acredito que épossível se criar uma nova humanidade, quenós estamos contribuindo para isso. Eu tenhocrença.

Analu - Para o Joaquim, que já tinha umaexperiência religiosa, o que foi mais difícil dever junto à comunidade pobre?

Joaquim - Eu acho que o aguçamento dapobreza, até onde pode chegar o descaso coma vida humana. Como é que um ser humanopode estar tão desprezado, tão alheio à políticapública, tão esquecido pelo Estado àquele ponto.Porque eles são verdadeiros moribundos. Hojeem dia, os lixões estão até mais humanizados,mas antigamente eram verdadeiros seresmoribundos. Loucos, completamente sujosfisicamente, deteriorados na pele, nos olhos,cabelos. Quase que malucos, quase queandroides, vivendo dentro do lixo. Como épossível? Até que ponto chegam a crueldade ea pobreza! O quanto a miséria humana é capazde destruir a pessoa humana! O aguçamentodisso, a profundidade que chega a pobreza, oua destruição que a miséria e a pobreza fazemno ser humano é uma coisa muito forte de vocêver, e você só dimensiona quando você vê.Esse é o grande problema dos nossos teóricose o grande problema de quem faz as políticaspublicas no nosso país: eles não conhecema pobreza, eles só leem a pobreza. Eles nãovão nas favelas, nas periferias, nos bairrospobres. Eles estudam nas universidades, vãopara os governos, fazem as políticas que leram

"Sá O pOVO organizadoem suas comunidades,nas suas mais diversas

comunidades, serácapaz de criar uma

nova sociedade (... )"

Na volta para casa,Analu, William e JéssicaMaria comemoram asinformações levantadas.Animados, já pensavamna construção da pauta enas primeiras perguntas.

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fora do bairro. Tudo isso podia ser feito aqui.Aqui ao lado (do Banco Palmas) a gente temuma fábrica de aplicativo de celular. Nósestamos pegando jovens da comunidade,ensinando eles a criar aplicativo. Ano que vemvamos criar um programa de computação. Ouseja, você é capaz de fazer tecnologia. Não sóconsumir os produtos que os ricos produzem.Não só consumir o tablet, não só consumir osmartphone. Como é que a gente pode produzirsmartphone e tablet? Essa que é a crença. Ospobres podem ser produtores. Nós podemosproduzir. Quando começou o Banco Palmas,15 anos atrás, você pega os vídeos de minhaspalestras, eu dizia: "No meu bairro não tem umuniversitário. Não tem uma pessoa cursandoa universidade". Isso (eu falava) geralmentequando eu estava nas universidades. "Vocêssão privilegiados" (falava aos universitáriosnas palestras). O que é que nós fizemos? Nóscriamos uma Escola Cooperativa Palmas,uma escola pré-vestibular. E dissemos: "Nóssomos capazes de ensinar uns aos outros epassar no vestibular". Uns já são professoresda universidade, morando aqui. Outros nomestrado (enfático), morando aqui.

Camila - Joaquim, você falou que chegou aconcluir o curso de Teologia.

Joaquim - (interrompendo) Foi, somente.Camila - Mas decidiu não se ordenar padre,

porque, (conforme) você disse, acreditava quepoderia dar uma contribuição maior para ospobres fora da igreja, do que como padre.

Joaquim - (interrompendo) Exatamente.Camila - Por que você acreditava nisso?Joaquim - Porque o clero é engessado.

E o clero de Fortaleza é muito conservador.Depois de Dom Aloísio, piorou, ficou muitoconservador, cheio de regras, de instituições,de limites. É um clero muito ligado à celebraçãoitúrgica, a fazer missas. Uma contribuição

dessas que eu dou 24 horas, em reuniões, emcomunidades, participando de caminhadas,de protesto, reivindicando, criando projetos,organizando a comunidade, não ia dar para&azer dentro da igreja porque ela é muito'mitada, muito cheia de regras, muito cheia denormas. O tempo maior é para as celebrações,

o tempo maior é para a parte litúrgica e nãopara a vida social, comunitária. Você imaginase eu fosse padre hoje!

Raíssa - Mas em nenhum momento vocêpensou em seguir na Igreja como padre parater esse espaço de disputa?

Joaquim - Eu preferi que não. Eu acheique disputando na sociedade eu teria muitomais vantagem, ia conseguir muito mais doque disputando por dentro da igreja. Finalda década de 1980, a Teologia da Libertaçãocomeça a declinar muito. O Ratzinger (PapaBento XVI, que pediu renúncia em fevereirode 2013), era o coordenador da Cúria Romana(órgão administrativo da Igreja Católica), daSagrada Congregação para Doutrina da Fé (tema função de difundir a doutrina católica). Elecoordenou no mundo todo um movimento queperseguiu a Teologia da Libertação. LeonardoBoff, Óscar Romero (José Oscar Beozzo, bispoda Igreja Católica em EI Salvador, denuncioua perseguição de membros da Igreja Católicaque tinham trabalhado em favor dos pobres),Beozzo (autor de livros e artigos sobre a históriada Igreja Católica no Brasil e na AméricaLatina), Libanio (CarlosAlberto Libânio Christo,mais conhecido como Frei Betto, padre jesuíta,escritor e teólogo brasileiro), Carlos Mesters(membro fundador do Centro de EstudosBíblicos, CEBI, que tem como objetivo dedifundir a leitura da Bíblia nos meios populares).Todos os teólogos da Teologia da Libertaçãoforam perseguidos. E era esse momento muitoruim, de um novo brotar dentro da igreja. Agente achava que era muito mais fácil fortaleceras comunidades, as CEBs (ComunidadesEclesiais de Base), a periferia, o movimentosocial, do que insistir e ficar brigando dentrode uma igreja que hegemonicamente ... Agora,com o Papa Francisco (sucessor do PapaBento XV!), talvez, possa ter uma retomada.Uma igreja que declinou completamente paraum tipo de pastoral e de teologia de manter ostatus quo. Não estou fazendo nenhuma criticaa quem pense, quem goste assim, mas eutinha feito outro tipo de opção de vida. Muitomais radical, muito mais forte, muito maislutadora. Eu avaliei que era melhor ficar fora,

OU DE E~O ETO 119

Ao organizar o mate-rial de produção, surpre-sa! Depois de compilarentrevistas anteriores,reportagens, artigos edocumentá rios, o arquivoultrapassava as 100 pági-nas. A recepção da turmanão foi muito positiva. Eramuita coisa para ler empouco tempo.

Na reunião de pauta,dois dias antes da entre-vista, alguns tópicos fo-ram reordenados. Depoisde mais de três horas nasala, foram feitas todas asalterações necessárias.Um novo documento tevede ser enviado para todos.

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Um dia antes da entre-vista, Joaquim mandouum e-mail para JéssicaMaria confirmando a con-versa do dia seguinte; elarespondeu prontamente.Na manhã que antecedeua entrevista, William ligoupara reafirmar o encontro.

Para chegar ao Conjun-to Palmeiras, a turma sedividiu em três carros. Osmotoristas foram o pro-fessor Ronaldo Salgado,o fotógrafo Nathanael eAnalu. Cada um da equipede produção foi em umcarro. Assim, ninguém seperderia no caminho.

que contribuiria muito mais e evitaria muitodesgaste pessoal, estar lá dentro brigando, doque ficando fora.

William - Joaquim, terminado o curso deTeologia, você já estava pronto para se ordenar(padre), mas demorou a publicizar a decisãode que, na verdade, não era esse caminho quevocê queria seguir. Quando foi falar para o DomAloísio, comunicar sua decisão, você diz que,antes mesmo de você falar, ele já sabia paraque você tinha ido até lá. Em algum momento,esse respeito, essa figura de referência queDom Aloísio representa para você o fez pensarem não sair ...

Joaquim (interrompendo) - Ah, muito.William (continua a pergunta) - Da vida

religiosa?Joaquim - Muito. Muito. Muito. Porque Dom

Aloísio apostou nisso. Ele foi muito criticadotambém, pelos padres da Diocese de Fortaleza.Porque os padres queriam, evidentemente, umseminarista certinho. O clero era extremamenteconservador, e ele bancou isso, assim mesmo,no peito. Nós éramos oito e apenas três seordenaram (dos que eram bancados por DomAloísio). E eu sabia que, ao não me ordenar,ia fazer peso político contrário a ele, que tinhaapostado tanto nisso. Não para ele, porque nasua grande sabedoria ele queria formar pessoas,padres ou não, comprometidos com a fé cristãe comprometidos com as comunidades. Maseu sabia que os outros iam dizer: "Té vendo?Tanto dinheiro gasto. Pagamos o estudo docara e agora nada. Cadê que se ordenou?" Eusabia que seria ruim para ele. Mas ele estavatão acima disso. Ele estava pouco ligando parao que o clero estava pensando (Joaquim som).Ele estava feliz da vida porque tinha criado umcristão para contribuir com a humanidade. E foiisso que ele me disse: "Vá! Tire o espinho doseu coração. Fique tranqüilo. Não só tem umjeito de a gente servir a Deus" Aí eu corrijo umpouco a tua pergunta. Eu não mudei o caminho.O caminho é o mesmo. De 1980 para cá é omesmo, que é a luta pela igualdade, pela justiça,a partir da organização dos menos favorecidos,dos mais pobres. Eu mudei a forma. Até entãoeu tinha uma militância ligada à Igreja, comosendo seminarista ou padre (Joaquim não seordenou padre, mas chegou a exercer funções,como celebrar casamentos e batismos). E a

forma agora foi como líder comunitário, mas ocaminho é o mesmo. E ele estava feliz. E, seestivesse vivo, acho que ele continuaria muitofeliz, por ver tudo isso que aconteceu.

Jéssica Maria - Como você avalia a suacontribuição na mobilização e na organizaçãodos moradores do Conjunto Palmeiras?Quanto você credita a si mesmo na construçãodo conjunto, a urbanização do conjunto hoje?

Joaquim - É difícil falar de si próprio, né?Eu acho que eu me dediquei muito, de lá paracá. Eu fiquei aqui, não saí nenhum dia, dei umacontinuidade permanente. Evidentemente queo fato de eu ter estudado teologia, de eu terconvivido com Dom Aloísio, com ManfredoOliveira, com tantos acadêmicos de grandenome... Eu acho que eu tive uma posiçãoprivilegiada no bairro, de ter um conhecimentoteórico, embora pequeno, mas muito maiore muito diferente do que eles têm aqui; deter passado por uma espiritualidade muitoforte, por uma crença muito forte de que épossível mudar o mundo, e isso vem meajudar muito na comunidade a estimular ealegrar a comunidade. E é uma comunidademaravilhosa! O Palmeiras é um celeiro delideranças comunitárias, pessoas que estãoaqui há 20, 30 anos, mais anos do que eu. SeuAugusto Barros, dona Marinete Brito (liderescomunitários do Conjunto Palmeiras), enfim.Eu encontrei um bairro muito forte, de liderançamuito forte e eu contribuo. Se eu fosse fazerum esforço, eu diria que tenho a capacidade dealegrar a comunidade muito grande. É um dosdons que eu tenho, de alegrar, de chegar e dizer:"Vamos, gente. Vai ser legal, vai dar certo". Decerta forma, de criar, de ver uma coisa e seiluminar para a ideia muito fortemente. Isso nãoé nada se não tiver uma comunidade corajosaque queira chegar junto. O Palmeiras é umbairro que tem, no mínimo, 10, 15 liderançasque estão aqui há muito tempo. Outra felicidadeé que a gente conseguiu passar - e aí vem daTeologia da Libertação - para a comunidadeesse orgulho de ser daqui. Nós gostamos doConjunto Palmeiras.

Roberta - Você, no início da entrevista, disseque as viagens que fez na infância trouxerama experiência do desapego. Você acha que éapegado ao Conjunto Palmeiras?

Joaquim - Não, apaixonado! Apegado não,

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apaixonado por aqui! Acho que esse é o cantomais lindo do mundo, esse é o canto maislindo do planeta Terra. E é aqui que a gente feztudo, é aqui que a gente vive. O primeiro cantopara tu gostares e te apaixonares é o teu, senão tu sonhas em ir embora. O melhor cantodo mundo é esse aqui, é isso que eu digo paratodo mundo. A única forma de a gente ser feliz,e crescer, e melhorar, é acreditando que aqui éo melhor lugar. Eu não sou apegado a aqui, eusou apaixonado. Eu gosto daqui. Mas eu sairiadaqui e moraria em qualquer canto. Não vejonecessidade disso, mas se fosse preciso euiria. Eu não sou apegado a nada, gente. (Pededesculpas a Luana que nesse momento fazmenção de perguntá-Io. Diz que já conclui).

Eu estou me lembrando agora da Sandrinha,ela foi minha companheira durante 23 anosSandra faleceu em junho de 2013). A gente

vivia uma vida muito linda, muito apaixonada,de compartilhar tudo: teoria, conhecimentos,discussões, palavras, enfim. Mesmo assim,dizia sempre isso. A gente tem uma frase, nãosei de quem é essa frase, que dizia assim: "Nãobote para dentro de você aquilo que você nãopode tirar". Nada. Nem o dinheiro, nem o amor,nem a paixão, nada. Se você não consegue tirar

que é o seu canto?Joaquim - Porque foi aqui onde a história

me colocou. Foi aqui onde eu militei. Esseé o bairro que eu construí com os meuscompanheiros. Construímos, ele todo, emmutirão. Foi aqui que nós criamos o primeirobanco comunitário do Brasil, e hoje se espalhoupara a humanidade. Tudo que eu sei eu devoao povo do Palmeiras, de certa forma. Aquique eu aprendi tudo, aqui que eu construíminha casa. Aqui é meu lugar, minha vida,minha tribo, meu povo. Eu tenho medo dessapalavra "apegado" ser mal compreendida.Quando eu digo que eu não sou apegadoé porque, às vezes, apegado é um pouco depaixão, de amor, de carinho. Não é que eu nãotenha isso. É que eu não estou, digamos assim,dependente, talvez seja a palavra. Por mais quevocê goste, você não pode criar dependência.Mas eu tenho um apego sim (risos). Eu tenhoapego, eu gosto muito (risos). Mas se vocêdisser: "Olha, tem uma tarefa para você fazeragora na humanidade". E muitas pessoas meperguntam isso. (Comentam:) "Não vai chegarnunca o momento de você dizer: chegou?Você fez, agora você tem de fazer em outrocanto. Tantos cantos na humanidade precisam

liA única forma de a gente ser feliz,e crescer, e melhorar, é acreditando

que aqui é o melhor lugar. Eu não souapegado a aqui, eu sou apaixonado"

de você, libertar-se dela, não bote para dentrode você, porque você sofre muito quando vocêperde. Eu dizia isso muito com a Sandrinha. Agente nunca pensou que ela ia morrer, nem elapensava que eu ia morrer. Mas eu dizia isso.

gente pode ser extremamente apaixonado,a gente não pode ser ligado, porque, se umdia você se separar, você se acaba. Você temQue ter a si próprio como a coisa mais sagradae mais divina. Então, eu gosto muito doPalmeiras, mas eu não digo: "Sem ele eu nãoiveria, ou sem ele eu ficaria em depressão,

ou sem ele ficaria muito triste" Não. Não podeser assim. Se você quer ser um militante, se

ocê quer ser um revolucionário, se você querudar o mundo, você não pode deixar que

ada lhe domine. Não é que você não vá sofrer,em ter suas paixões, mas você não pode se

deixar dominar.Luana - Joaquim, você falou que é

apaixonado por aqui, mas não é apegado. Vocêasceu em Pernambuco, viveu por um bom

empo no Pará. Por que escolher o Palmeiras?Por que o Conjunto Palmeiras para fincaraízes? Você disse que ele é o seu canto. Por

de pessoas assim, com essa visão. Você nãotem de fazer outras coisas?" Eu acho que não,acho que tenho de continuar aqui, né? (risos).

Mas sair de Belém foi mais traumático, euacho, e vim para cá. Porque em Belém, quandoeu estava no seminário, eu começava a fazerminhas relações de amizade, minhas primeirasamizades, antes de vir para cá. Na paróquiaonde eu estava, no próprio movimentoclandestino, no MLPA. No seminário menos,porque os seminaristas eram muito santos, eeu não gostava tanto (Joaquim sorri). Mas nacomunidade onde eu morava, os meus pais, osmeus irmãos. Embora eu não tivesse relaçõesprofundas, mas eu morei com eles a minhavida inteira, até 15, 16 anos ... E eu vim para cásem nada, não conhecia ninguém, (era) jovem.Aí eu acho que foi mais difícil do que (seria)deixar o Palmeiras.

JéssicaMaria-O Banco Palmasfoifundandoem 1998, e foi uma experiência inédita noBrasil. O primeiro banco comunitário (do País)surgiu aqui no Conjunto Palmeiras. Como umteólogo, sem experiência em economia ou emáreas afins, teve a ideia de investir na economia

Antes de dar imcio àentrevista, Joaquim fezquestão de mostrar todosos espaços do banco aosentrevistadores. Apresen-tou funcionários e expli-cou o que funcionava emcada ambiente.

Na data da entrevista, obanco já estava decoradopara o Natal. Dali a algunsdias, 100 crianças do bair-ro apresentariam m recitalà comunidade. Orgulhoso,Joaquim dizia que a ideiaera "iluminar as ruas doPalmeiras festejando o Je-sus na periferia".

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Enquanto Joaquim mos-trava as instalações dobanco aos alunos, o pro-fessor Ronaldo tomou a li-berdade de reposicionar ascadeiras e os sofás da salapara acomodar entrevista-do e entrevista dores.

A entrevista foi reali-zada no escritório de Jo-aquim. De cara, os olha-res atentos dos alunos sevoltaram para a foto daesposa, Sandra, afixadaem um quadro na pare-de, ao lado dos mapas deconsumo e produção doConjunto Palmeiras.

solidária como elemento de transformaçãosocial?

Joaquim - A gente brinca e diz: "O BancoPalmas só surgiu porque não tinha nenhumeconomista, se tivesse economista não tinhacriado". O que a gente tinha para criar o banco?Duas experiências. Uma é a certeza de que acomunidade é possível, daí vinha a Teologiada Libertação, daí vinham as CEBs. E a leiturado Paul Singer (economista que trabalha oconceito de economia solidária). Eu lia muito àépoca, por curiosidade, a leitura do professorPaul Singer, um dos maiores economistas domundo, brasileiro, que falava das cooperativaseuropeias. Eu era muito influenciado pelahistória de que o povo conseguia juntar dinheirocom o outro, criar cooperativas de crédito naEuropa. Eu lia muito sobre essas coisas e daíveio a ideia. Se a gente construiu um bairro,se a gente construiu tudo isso, porque a gentenão pode criar um projeto nosso de geração derenda? O nome "banco" veio depois.

Na época fizemos um mapeamento (daprodução edo consumo do Conjunto Palmeiras),ouvimos essa história toda de que a gente jáconsumia localmente, já tinha muito dinheiroaqui no bairro. Foi toda uma construção deum ano. Não se tinha o conceito de economiasolidária, esses conceitos vieram muito depois.A gente criou o banco como um fundo decrédito para emprestar para a produção epara o consumo, essa é a lógica que a gentetinha. Se a gente produzisse e consumisse aquimesmo, nós íamos gerar renda. Nós éramoscapazes de produzir e consumir, isso era todaa teoria que se tinha localmente, por causa dosestudos que a gente tinha feito. Já que a genteia consumir, e produzir, e emprestar dinheiro,a gente batizou de banco. Na inocência, e foi asorte. Depois, deu certo. Edois anos depois queeu vim entrar em contato com os economistasda economia solidária. Eu digo que a genteamanheceu rebatizando os nomes tudim quetinha dado. Virou banco, virou prosumidores(consumidor que produz conteúdo), redes,

cadeias produtivas. Tudo isso veio depois.Porque depois eu entro em contato comos economistas da economia solidária, osfóruns, as redes de economia solidária. Eu fuiconhecendo tudo aquilo muito depois de criaro Banco Palmas. A gente só rebatizou. "Moedasocial local circulante". Fomos colocandonossas criatividades, inteligências, batizandotudo e foi se redefinindo. Mas quando foi criado,a gente não tinha nenhum dos conceitos.

Jéssica Maria - No primeiro dia, o Banco(Palmas) quebrou porque emprestou os doismil (reais) que tinha e ficou sem dinheirono caixa. Sobre as dificuldades iniciais doprojeto, a criação de uma nova moeda geroudesconfianças na população?

Joaquim - Também (enfático)! Também!Imagina você pegar um pedaço de papel edizer: "Isso aqui agora vale dinheiro!" E paraum comerciante vender as coisas dele por umpedaço véi de papel. Era acostumado com odinheiro ... Quinhentos anos que o Brasil temdinheiro. Muda de nome, mas o Governo que fazo dinheiro, não é o povo. Então, evidentemente,no começo, as pessoas ficaram (pensando):"Vai dar certo? Não vai (dar certo)?" Mas tevequatro comerciantes que aceitaram, foi muitacoisa. Hoje são 240 (comerciantes). Quando eleaceitou o dinheiro, o que era mais importante?Era dizer que ele tava aceitando a possibilidadede uma nova regra, de uma nova economia,de um novo projeto. Ele aceitou o dinheirodo bairro, correu todo o risco (de não darcerto). Isso era o mais espetacular. Então tevedesconfiança, teve medo, que, aos poucos,foram sendo superados.

O problema disso era o governo. O governobrasileiro, quando nós lançamos a moeda,nos processou (enfático, batendo na mesa). OBanco Central abriu dois processos criminaiscontra o Banco Palmas. Isso a gente tem de dizersempre, em toda entrevista, em todo canto quese vá. Quando nós lançamos a moeda Palmas,o Banco Central mandou processar, mandouprender (enfático)! (Por) crime contra o Estado,

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falsificação de moeda. E, naquela época, em2003, se a gente tivesse recuado, se a gentetivesse tido medo e tivesse acabado com amoeda e com o banco, hoje, no Brasil, não sefalava mais nisso e nem vocês estariam aqui,me entrevistando. Nós enfrentamos o BrancoCentral. Você imagina o que é um pobre deuma associação, sem nenhum advogado,sem nada, liso (sem dinheiro), enfrentar umprocesso do Branco Central do Brasil com seucorpo de advogados, dizendo que você eracriminoso! E nós enfrentamos e fomos aojulgamento, e o juiz, com muita moral, muitapersonalidade, absolveu. "Não se vê crimenessa moeda. Isso é para criar uma geração derenda para os mais pobres" Nós enfrentamoso Banco Central e depois fomos para cima doBanco Central e fizemos disso um fato político.

Hoje o Banco Central reconhece, tem umalei que normatiza, tem uma lei que reconheceque é importante a moeda social. O maiorproblema nosso não foi o povo. O povo foi, aospoucos, acreditando, e acreditou (enfático)! Foio governo (enfático)! O governo tentou acabarcom essa experiência criminalmente, dizendoque a gente era bandido. Nós ganhamos najustiça. Se o juiz tivesse dito que era crime, agente tava preso! É bom que se tenha notíciadisso. É um fato relevante na nossa história.Falsificação de moeda no Brasil, crime contrao sistema financeiro nacional dá 20, 30 anos decadeia. Se o juiz tivesse entendido que a gentetava fabricando dinheiro, como o Banco Centralentendeu na época, a gente poderia estar hojeno presídio por crime contra o Estado! Olhao prejuízo para a humanidade! Não só paraeconomia solidária, para a humanidade toda,que seria isso! Ter o grande líder, que criou obanco, preso. Mas ninguém mais quer saberdisso. Hoje, acabou o problema, o BancoCentral é amigo, enfim. Na semana passada,fizemos lá o congresso (Joaquim refere-seao V Fórum Banco Central Sobre InclusãoFinanceira) com eles e tudo mais.

Mas essa capacidade de resistir, de enfrentar,vem da tua primeira pergunta. "Por que é que tunão foge da missão?" Porque a gente acreditana missão. Isso aqui não é brincadeira, não écharme, não é transitório. Por isso que tá aquiaté hoje também, né? Porque para nós é umamissão, é uma causa, é uma crença. Eu acredito,em se tratando de banco, que é possível umoutro modelo que não seja controlado pelogoverno. Que a comunidade pode criar seubanco, pode dar certo e ser melhor para o povodo que os bancos oficiais. Venha segunda-feirade manhã aqui, neste banco. Qualquer coisaque você faz numa agência bancária você fazaqui. E vá numa agência bancária para vocêver a quantidade de gente na fila. Parece umfuracão. E (veja) como o povo é tratado aqui.

o ar-condicionado, com café, com água, com

carinho, com cheiro no rosto (risos da Luana eda Analu). É, porque eles são da comunidade.Os atendentes são da comunidade, o povoé da comunidade. (Quando) entram aqui éuma brincadeira! Uma vem com o meninodebaixo do braço, a outra vem com o cachorro,(dizendo) "Ah, mulher, não sei o quê ..." É avida comunitária, a relação comunitária, são aspessoas criando vida a partir do nada. Agoravá numa agência bancária. Lotada, imparcial,o povo vem reclamando da vida. Então, épossível um outro modelo de banco. Essa éuma crença. Agora eu vou com ela (olhandopara a Joyce). Vai.

Joyce - Então, vocês foram inocentadosporque justamente o juiz entendeu a questão, né?

Joaquim-É.Joyce - Você até menciona que o juiz falou

que o Banco Central deveria se envergonhar deestar processando vocês. A minha questão é:por que uma instituição financeira interpretoua situação como crime contra o Estado quandoela era a mais apropriada a visualizar o projetoque estava se desenvolvendo?

Joaquim - Porque ela é feita para o rico! OBanco Central nasceu, foi criado pelo governo,para tomar conta dos bancos ricos, dosgrandes bancos oficiais, públicos e privados.Ele tá ali para servir à banca. Ele tá ali paraservir aos interesses dos banqueiros. Issodeveria ser proibido, né? O Banco Central tálá para fiscalizar, e quem é o presidente? É umparceiro. É sempre um cara que vem de umainstituição financeira. Quer ver a palhaçada paraaprimorar esse debate? Quando a comunidadecriou a moeda (Palmas), que não tem lucronenhum, porque a gente não vende a moeda,só troca, para gerar renda, o Banco Centralcria a insensatez de proibir isso, com medodisso aqui se espalhar e querer superar a outramoeda (o real). Eles poderiam ter esperadoum pouquinho mais, porque hoje, com 103(bancos comunitários em todo o Brasil), talvez

"Tudo que eu sei eudevo ao povo do

Palmeiras, de certaforma. Aqui que euaprendi tudo, aqui

que eu construí minhacasa. Aqui é meu lugar,

minha vida, minhatribo, meu povo."

JO;~QlJIM OE ELO ETO 123

Dentro da sala de Joa-quim, o espaço estava umpouco apertado, o quegerou algumas dificulda-des para que o fotógrafoNathanael conseguissecaptar as imagens de di-versos ângulos.

A equipe de produçâolevou algumas ediçõesda Revista Entrevista parapresenteá-Io. Ele folheouas revistas, comentandoalguns dos entrevistados.Sobre esta edição, brin-cou: "Minha foto vai sera primeira, né?" A turmatoda riu.

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Joaquim disse estarnervoso e aproveitou paraexplicar o dedo machu-cado. Professor Ronaldo,sempre atento, pergun-tou se era uma estratégiapara se familiarizar coma turma. Joaquim sorriu,afirmando que sim.

Duas funcionárias dobanco levaram água a to-dos que estavam na sala,para a alegria dos dez en-trevistadores. Analu, aten-ciosa, repunha a água nocopo de Joaquim sempreque acabava.

fosse melhor de processar, né? (risos) Naquelaépoca era só um, (o BC) não pegou. Porqueninguém podia fazer outra moeda. Era crimecontra o Estado, porque só o Banco Centralpodia fazer a moeda

Joyce (interrompendo) - E só em 2011 elesreconhecem a legitimidade do projeto, né? Porque oito anos depois de vocês terem sido ...

Joaquim (interrompendo e sobrepondoo tom de voz à pergunta da Joyce) - Pressãopolítica, pressão política. Vários bancos(comunitários) surgindo no Brasil, a pobrezagigantesca, e nós desafiamos (o BancoCentral). Essa história que eu tô contandopara vocês eu contei em milhares de locaisna minha vida, nacional e internacionalmente.O mundo todo (estava) chamando o BancoPalmas para dar palestras, para querer saberdessa nova moeda, dessa nova economia, enão poderia o Banco Central frear, porque asmoedas papocaram em tudo quanto é cantoe nós o provocamos diretamente. Porque oBanco Central, eu sei que é um papo que nãointeressa muito, mas só para dizer, o BancoCentral tem duas funções constitucionalmente,duas funções. Uma: fiscalizar o sistemafinanceiro. Fiscalizar para que não tenha roubo,suborno ... Duas: garantir que todo brasileirotenha acesso aos serviços financeiros. O queé acesso? É crédito, conta corrente, seguro,transferência bancária, é tudo. Cinquenta e seispor cento dos brasileiros estão fora do sistemafinanceiro. Por que nós começamos a dizeristo: ele (o Banco Central) não tá cumprindo odever constitucional dele, e nós estamos comalternativas (bate na mesa), que são os bancoscomunitários, que abrem conta corrente, dãocrédito (bate na mesa novamente). Houve umenfrentamento muito forte, e o Brasil comendopó, porque, na América Latina, era um dospaíses que mais tinham exclusão financeira. Aíjuntaram e botaram dentro do departamentode inclusão financeira as moedas sociais doBrasil.

Analu Joaquim, diante de tantasdificuldades que você tá falando, (como)por exemplo, o processo do Banco Central,também teve a desconfiança por parte dacomunidade e o banco, logo no primeiro dia,quebrou, porque emprestou todo o dinheiro docaixa. Lembrando dessas dificuldades, algumdia você pensou que essa experiência poderianão dar certo? Você chegou a acreditar nisso?

Joaquim - Nunca, eu confesso que nunca.Aperreios tiveram todos. Esse do BancoCentral foi um aperreio desmantelado, vocêimagina! Dinheiro para emprestar a gente nãotinha, nenhum centavo. A gente ficou muitosanos com doações internacionais, porque oBrasil não acreditava que o banco fosse darcerto. Em 2005 foi o primeiro acordo com ogoverno brasileiro, quando a gente conseguiu

"Ouando nós lançamosa moeda Palmas, o

Banco Central mandouprocessar, mandouprender! (Por) crime

contra o Estado,falsificação de moeda."

o primeiro dinheiro emprestado com o Bancodo Brasil. Hoje, temos (parcerias) com oBNDES (Banco Nacional de DesenvolvimentoEconômico e Social), com todos os bancos.Mas (na época) não tinha dinheiro para fazero banco, todo mundo acreditava que não iadar certo e todo mundo queria que não dessecerto. O governo brasileiro investiu para quenão desse certo, porque ele acha que o podervem dos bancos, que o controle tem de ser dosbancos. Comunidade criar banco? E se essamoda pega? E se essa moda pega? Em 2007,a deputada (federal, pelo Partido SocialistaBrasileiro) de São Paulo, Luiza Erundina,botou no Congresso Nacional uma lei queregulamentava os bancos comunitários. Diziaassim: "Os bancos comunitários precisamentrar no sistema brasileiro e podem fazerpoupança, podem se exercer como banco".Até hoje a lei não foi aprovada, porque oMinistério da Fazenda e o Banco do Brasilforam contra, diziam que isso era um absurdo,porque, se a comunidade começasse a poupare a depositar nesses bancos comunitários, iacomeçar a esvaziar a poupança desses bancos(oficiais), ia começar uma economia paralela.Como é que os bancos ficavam nisso? O BancoCentral enlouqueceu também: "Que negócioé esse?" E até hoje. Estamos há oito anosbrigando com o Congresso Nacional e a lei nãosai. Porque o governo acha que não, é ilegal,e hoje temos o apoio do governo, hoje temosprojeto com o Senai, com a Secretária Nacionalde Economia Solidária, com o BNDES, coma Caixa Econômica, mas os grandes tobbies,os grandes bancos, o Ministério da Fazenda,deixam acontecer pequenininho, "porque, seo negócio crescer, chega perto da gente, né]"(pensam) Eu apontei para o fotógrafo, coitado.Ele não fala nada, né? (todos se voltam para ofotógrafo Nathanael e caem na gargalhada).

Bárbara - Qual o sentimento, hoje, ao olharpara essa sua criação e o impacto positivoque ela teve, não só na vida das pessoasque moram no Conjunto Palmeiras, mas navida das pessoas, enfim, de cidades diversasque antigamente tinham um acesso muito

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dificultado a qualquer banco e hoje têm issomais facilitado, graças a essa sua criação,que alcançou esses outros espaços... Qual osentimento?

Joaquim - Essa é a maior felicidade. Esteano fez 15 anos de Banco Palmas e, no livro(Banco Palmas 15 anos: resistindo e inovando)que a gente lançou (no início de 2013) e emoutros programas de reportagem, as pessoassempre perguntam isso: "Quinze anos, ok.Qual foi a maior contribuição?" E eu tenhodito o seguinte: a maior contribuição foi quea gente pautou o Brasil nesse tema. Hoje,além de serem 103 (bancos comunitários) noBrasil, o governo reconhece, tá no PPA, PlanoPlurianual do Ministério (Joaquim confunde-se,na verdade é do Governo) Federal. Eu estavaontem em Brasília, no Ministério do Trabalho,com ministros e várias outras pessoas,discutindo bancos comunitários. O Brasilbotou para dentro de sua agenda esse tema, OBNDES apeia, a Petrobrás (também), o BancoCentral criou um departamento que cuidados bancos comunitários. Nós convencemoso Brasil de que é possível um outro modelode banco! Não sei se isso vai estourar daquia anos - eu espero que nós sejamos 500 milbancos daqui a poucos anos -, ou de repentepode até ir para trás, mas hoje o Brasil tem issoem pauta. A minha grande alegria é que a gentepautou o Brasil. São dezenas de universidadesque têm incubadoras de bancos comunitários:a Federal da Bahia, a Federal de São Paulo, aFederal Fluminense ... E esse modelo começouaqui no Nordeste, no Ceará, nos grotões, parairritar o pessoal do Sul. Eu falei isso no Quemse importa, aquele documentá rio (dirigidopor Mara Mourão, o longa-metragem de 93minutos foi filmado em sete países e mostra otrabalho de 18 empreendedores sociais cujasideias visionárias já transformaram milhões devidas): foi nos grotões do Nordeste, na favelade Fortaleza, que nasceu a tecnologia que omundo copiou. Não foi no eixo Sul-Sudeste.Então, essa é a grande alegria: eu acho que agente já pautou o Brasil. Se o Banco Palmasterminar amanhã, terminou aqui, mas o Brasiljá tá parido, isso já se viralizou no Brasil inteiro.

Raíssa - Mas trazendo especificamente paraa realidade do Conjunto Palmeiras...

Joaquim (interrompendo) - Tá certo, trago.Raíssa - Porque o Banco tem 15 anos de

atuação na inclusão financeira e econômicados moradores do Conjunto Palmeiras, masuma pesquisa recente divulgada nos jornaismostrou que o Palmeiras ainda figura comoum dos bairros mais pobres de Fortaleza.Especificamente para a realidade do bairro,qual é a maior contribuição do banco?

Joaquim - Gerou milhares de empregos. OBanco Palmas gerou 1.800 postos de trabalho,de quando começou para cá. Elejogou, de 2010para cá, 12 milhões (de reais) de crédito nobairro, através de microcrédito, e o comérciocresceu 30%. Agora, tua pergunta é muitomais ampla, porque um banco comunitárionão pode ser avaliado simplesmente pelosnúmeros econômicos. Ele é uma resistência,é uma nova forma de se organizar umaeconomia. Para mim, tão importante quantotantos empregos eu gerei é (saber) quantaspessoas começaram a militar e se organizar nacomunidade, ou quantas pessoas começarama acreditar que é possível uma sociedademais justa. Esse é o papel também do bancocomunitário. Por isso que é banco comunitário.Ele não é comunitário simplesmente porque éna comunidade, porque o papel de qualquerbanco do mundo é fazer intermediaçãofinanceira, ele empresta dinheiro para ganhardinheiro, ele pega numa ponta e empresta naoutra, em geral, isso é um banco. Um banco

"Ele (O Banco Palmas)traz credibilidade,reconhecimento

para comunidade,.reorganiza aspessoas."

Durante a conversa,várias tentativas de in-terromper o entrevistadoforam feitas pelos alunos.Joaquim pedia semprepara aguardar, pois iriaconcluir o raciocínio.

Ao final de cada ques-tionamento, ele olhava fi-xamente para quem haviaperguntado e, só depoisde alguns segundos, co-meçava a falar. As respos-tas sempre vinham acom-panhadas do bom humorcaracterístico de Joaquim.

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Ao concluir uma res-posta, Joaquim, por ve-zes, indicava que já podiaser perguntado novamen-te. Ele falava "vai", apon-tando para quem estavacom a mão levantada, de-monstrando interesse emquestioná-Io.

Com uma hora de con-versa, o professor Ronal-do sinalizou para JéssicaMaria, por meio de umaanotação em seu insepa-rável caderninho, que aentrevista já havia chega-do ao meio.

comunitário não é comunitário porque ele éda comunidade. Isso é um elemento, ele épropriedade comunitária, mas é porque elegera, reorganiza a economia local, colocandoas pessoas para comprarem e venderemumas para as outras, a colaborarem entresi, a cooperarem, a criarem relações sociais,a criarem ambientes onde a fraternidade, asolidariedade e a luta se tornem muito maisfortes. Tem toda essa contribuição. Hoje obairro é muito mais organizado, muito maisfortalecido, muito mais respeitado. Ele (oBancoPalmas) traz credibilidade, reconhecimentopara comunidade, reorganiza as pessoas.

Agora, os dados de pobreza que o Ipece(Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômicado Ceará) lançou têm de ser muito bemcompreendidos. Primeiro que ele fala em PIB(Produto Interno Bruto). PIB não é pobreza.Quando a gente fala que uma região é maispobre (do) que outra, o que ele faz? Ele tira amédia. O que é o PIB, como é que se medeo PIB? Eu conto o que tu ganha, o que tuganha, o que tu ganha (apontando para osentrevistadores como exemplo) e divido portodo mundo, não é assim? Se ele ganhar 10,ela 20, soma e divide por todo mundo, e temo PIBper capita. As pessoas apressadamentechamam de pobreza. O que o Ipece tiroufoi o PIB. No PIBper capita, pode ser que aspessoas sejam muito pobres, como pode serque as pessoas são muito iguais. Então, talvez(o Palmeiras) seja o bairro onde a renda é maisbem dividida. Porque, se você vai na Aldeota,o cara tem um real, o outro ganha um milhão(de reais), quando você tira o PIB, um milhãoe um real dividido por um dá quase 1 milhão,mas tem o miserável lá que não saiu no PIB.O PIB não é pobreza, é a renda dividida. OPalmeiras é muito igual, não há ricos aqui.São todos igualmente pobres, não tem classemédia, por isso que o PIB dá muito baixo, oque não quer dizer que é o bairro mais pobreeconomicamente. Ele tem o PIB menor porquenão têm pobres e ricos aqui dentro.

IIUm banco comunitário(...) reorganiza aeconomia local,

colocando as pessoaspara comprarem e

venderem umas parasoutras, a colaborarem

entre si,a cooperarem."

Joyce - o Conjunto Palmeiras é umacomunidade extensa, né? São mais de 30mil moradores. E, apesar do histórico de luta,de solidariedade, também existe exclusão.Apesar de você ter falado também que nãotem rico, não tem pobre, existem áreas quesão mais favorecidas, do ponto de vista dedesenvolvimento mesmo. O banco consegue,hoje, servir democraticamente a toda apopulação do Palmeiras? Eu digo, consegueintegrar novas demandas das pessoas quechegaram depois dos antigos moradores?Consegue atingir além dessa parcela maisantiga?

Joaquim - Ele é um banco comunitário,(portanto) tem limites. Nossa carteira decréditos, hoje, é (de) 3 milhões de reais. Umcorrespondente bancário atende, em média, 6mil pessoas por mês, então a gente faz 24 miloperações, por crédito, com o dinheiro que agente tem. Por ano, 2.500/3.000 pessoas, aítem mais de 1000 famílias no seguro, entãotem um limite. A gente pode crescer muitomais, atender muito mais, mas certamente temduas pessoas que gostariam de ser atendidas,que o banco não consegue com o limite queele tem, de estruturas, de funcionários e dedinheiro. No ano que vem (2014), vamoslançar o Banco da Periferia, a gente tá com aideia, porque o Banco Palmas deu certo noPalmeiras. Por que a gente não pode levar issopara todas as periferias de Fortaleza? As maispobres. A gente quer lançar um banco em cadaperiferia dessa, vai ser um conglomerado de30 bancos comunitários, com um tronco sóorganizado a partir do Palmas, mas espalhado;a gente quer atender 1 milhão de pessoas,claro que depende de recursos, de novosprojetos, estamos negociando com isso. Então,ele tem limite de atendimento ainda bastanteacentuado, embora atenda a muitas pessoas.Portanto,como a gente está há muitos anosnessa caminhada, a gente já tem um acúmulode questões que foram levantadas, que a gentefica muito sensível. A gente precisa definircrescimento para desenvolvimento. Entãonão é que o Palmeiras não seja desenvolvido,ele é extremamente desenvolvido, ele não écrescido.

Camila - Nós falamos sobre a contribuiçãodo Banco Palmas para o Conjunto Palmeiras.Mas e para você, na sua vida, quais são osimpactos desse projeto?

Joaquim - Do Banco Palmas? Todo! É doque eu vivo! A primeira contribuição boa é queele me emprega (risos). Eu sou empregadodo banco, um assalariado, tenho carteiraassinada aqui, então meu emprego é no BancoPalmas. E (e/e) me levou para o mundo todo.Hoje eu dou palestras, viajo o mundo todo - omundo todo é exagero! Alguns países já meconvidaram, me escutam muito, eu tenho a

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oportunidade de conhecer muitas pessoas,muitas experiências, para contar essa históriado Conjunto Palmeiras. O Banco Palmas, hoje,é uma parte integrante dessa história. E todoo conhecimento que eu tenho de economia ...Todos os nossos funcionários são pessoas dacomunidade, que começaram com a gente e,hoje, uma geração de pessoas que se criaramaqui discute economia com qualquer um. Eleme ensinou, me levou para o mundo, me deuoportunidades. Hoje, é meu patrão, foi aquique eu me casei duas vezes, então tudo queeu tenho. na vida foi aqui. Eu devo muito aele - não é que eu deva, porque eu tambémcontribuí muito. Eu partilho muito com eletodas as coisas que eu tive, que tenho. É umprojeto em vida, então estamos quites.

Analu - Joaquim, naquele dia que eu, oWilliam e a Maria viemos aqui no Banco Palmas,nós tivemos a oportunidade de conversar coma Otaciana (funcionária do Banco, conheceuJoaquim em 2000), e uma coisa muitointeressante que ela disse...

Joaquim (brincando e interrompendo) - Elamente muito, tem de ter cuidado, hein? (risosde todos)

Analu - Não, mas com relação a isso achoque ela não mentiu. Ela colocou uma coisamuito interessante sobre a sua personalidade,(disse) que você é uma pessoa muito divertida,que até a desgraça você dá um jeito de deixarum pouco mais divertida. Eu até perguntei seela achava que você era um eterno otimistae ela disse que sim. Ser essa pessoa tão alto-astral, de bem, divertida, otimista, o ajudou,de alguma forma, nesse tempo todo em quevocê vem construindo sua carreira, a lidar como sofrimento do outro?

Joaquim - Muito, muito, muito mesmo.Porque, primeiramente, eu acho que ser alegreé uma obrigação do líder. Alegrar as pessoas,trazer prazer para elas, fazer os outros felizes,acolher. Tem gente que é assim. Alegria éuma das coisas mais nobres do ser humano!Eu dei aula (durante) muitos anos da minhavida. Depois que eu saí da Igreja, dei aula aquinas escolas do Palmeiras. Era professor do1° grau do Ensino Fundamental. Dava aulanuma escola pública, tinha contrato com aPrefeitura (de Fortaleza) e minha maior alegriaera que minhas aulas eram muito prazerosas.Os alunos gostavam de ir para a sala de aula.E eu dizia assim: "No dia que eu não vier parasala de aula, o diretor disser: 'o professor nãoveio' e os alunos comemorarem: 'oba!', é umadesgraça aquilo ali, é porque a aula é muitoruim, não tem prazer nas pessoas". As minhasaulas eram muito prazerosas. (Ocontato com) aOtaciana surgiu daí, nem me lembro mais. Masquase todos eles foram meus alunos. Então,ser alegre e alegrar as pessoas é uma virtude,uma obrigação de um líder. Ele tem de trazer

prazer, alegrar. É um líder, é referência. Se euchego na reunião triste, cabisbaixo, para baixo,desanimado, o que os outros vão fazer? Estardizendo: "Vai dar certo, vamos que vamos,é isso aí" ajuda a superar as dificuldades. E aalegria vem da certeza (de que) você tem deestar de bem com a vida.

Roberta - Algo o fraqueja?Joaquim - Muitas coisas. Fraquejo? Sei lá, o

que é fraquejar? Entristece, dificulta, acho quesim. Desde coisas bobas - eu tenho medo dealtura, por exemplo, e sou obrigado a andarde avião, imagina, né? A dificuldade? Às vezestenho pânico de altura, por exemplo. Eu viajomuito e às vezes fico com pânico dentro doavião. Mas eu vou, não tem esse negócionão. Claro, muitas coisas da vida. Deixa-meextremamente angustiado essa coisa poucaque o povo precisa para ser feliz e não tem.E o povo espera muito de você, porque vocêé referência. Então essa dificuldade, essaausência de política pública, essa certeza quese pode fazer muito mais e a gente não temoportunidade para dar para as pessoas quequerem fazer as coisas e às vezes se perdemna vida ...A desigualdade, eu diria, a brutalidadeda desigualdade, é uma coisa que entristecemuito. E a dificuldade que os pobres têm parater acesso às coisas. Eu sou muito poucoexigente com a vida. O que eu tenho acho queé suficiente, embora tenha muito pouco, eusonho em estudar, passear, viajar e eu acho quea vida me deu a luta, o trabalho, o cotidiano. Euacho que a desigualdade me entristece muito, aimpossibilidade de fazer muito mais coisas quea gente poderia fazer na comunidade.

Jéssica Maria - Joaquim, o lema dobairro é: "Deus construiu o mundo e nósconstruímos o Conjunto Palmeiras". Ementrevista anterior, você disse que quemresolve os nossos problemas somos nós. Etambém vamos lembrar da sua decisão deatuar junto à comunidade, não se tornandopadre, porque teria uma maior facilidade pararesolver problemas e atuar junto à população.A pergunta que eu faço para você é: em algummomento a fé na capacidade do homem detransformar a realidade suplantou a fé nasinstituições religiosas?

Joaquim - A pergunta da menina é umafilosofia de vida, né? Não é uma pergunta!(risos) Mas eu acho que sim. (pausa) Como é?(mais risos de todos) Eu pensei tão alto, penseitanto na resposta que ia dar, que esqueci daorigem da pergunta. Só o finalzinho, filha, diga aí.

Jéssica Maria Se, em algummomento, a fé na capacidade do homemde transformar a realidade suplantou a fénas instituições religiosas.

Joaquim - Ah, sim, tá certo! Eu achoque sim! Acho que a capacidade, naquelaépoca e hoje, da sociedade livre, organizada

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Dois meninos, meioencabulados, abriram aporta da sala quase ao fimda conversa. Eles foramao banco na tentativa deconversar com Joaquim,que, devido à entrevista,não pode atendê-Ios nomomento.

Quando William anun-ciou para a turma que fa-ria a última pergunta, porconta do tempo que jáhavia estourado, Joaquimreagiu dizendo: "Olha aí.tá vendo? Nem doeu, né?"Todos riram.

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Ao fim da entrevista, elecomentou: "Agora meusonho é ver a revista, es-perar que fique boa e que(eu) seja convidado paraa festa (de lançamento)".Jéssica Maria respondeu:"Mas não já foi convidado,Joaquim?"

Logo depois, para des-contrair as emoções daboa conversa, os alunos,o professor Ronaldo eJoaquim se espalharampela fachada do BancoPalmas para mais um re-gistro de Nathanael.

em comunidade, se encontrar e resolver seusproblemas, é muito maior do que a instituiçãoda Igreja, do que as instituições religiosas.Hegemonicamente, as instituições hoje aindacontinuam muito presas à Igreja templo, à Igrejainstituição - as suas regras, as suas normas,os seus cânones, a sua vida. Ela é muito paradentro de si própria, para o seu próprio ego,para sua própria instituição. Eu acho que issoé muito menos produtivo, dá muito menosresultado, como estratégia de solução, de lutapela igualdade, do que a sociedade organizada,com absoluta certeza. E eu te peço desculpaspor não ter entendido - vou ser bem honesto-, é porque eu ainda estava facada na perguntadela (aponta para a Roberta), da tristeza.

Roberta - Muitas reflexões, essa pergunta?Joaquim - É, porque eu acho que uma

das minhas maiores tristezas foi a morte daSandrinha agora, há pouco tempo, em 14de junho. (Com) a Sandra, eu passei 23 anosconstruindo quase tudo isso que nós estamosfalando aqui e eu achei a maior tristeza da minhavida quando ela morreu (fica em silêncio). Eeu volto para pergunta do sorriso, que era umadas coisas que a Sandra também me dizia, euaté boto isso nas palestras: "Por mais cruel queseja a saudade e a dor, não perca a capacidadede sorrir e alegrar as pessoas". Aqui já era elabem doentinha, já para morrer. E eu boto issoquando eu falo hoje em público, no PowerPoint,como último slide. Boto a foto dela e digo isso:por mais cruel que seja a saudade, não perca acapacidade de brincar e de fazer humor. Mas(se) vou falar de uma tristeza, (de algo) queentristece, eu acho que a perda da Sandra foi,disparadamente, a maior tristeza da minha vida.Efoi este ano. Mas eu tô aqui conversando comvocês e sorrindo, né? Mas estamos bem, foi sóum parêntese, porque eu fiquei com isso nacabeça que eu não tinha falado. Pode ir.

Raíssa - Joaquim ...Joaquim - Vai lá.Raíssa - Você conta varras adversidades

pelas quais já passou e você acabou de contara maior dor que você já teve na sua vida. Evocê demonstra um equilíbrio emocional muitogrande. Durante a entrevista, isso fica ...

Joaquim (interrompendo) - Queira Deus!Obrigado.

Raíssa - (continua a pergunta) Fica muitoclaro. Trabalhar com os mais pobres tambémlhe trouxe esse equilíbrio emocional? Ouestudar no seminário... De onde vem esseequilíbrio, essa sua serenidade?

Joaquim - Primeiro, (gostaria de) agradecermuito, porque não me considero uma pessoaserena e equilibrada. Eu acho que sou muitolouco, muito explosivo, muito ansioso. Maseu entendo muito bem a tua questão. Eu achoque os pobres, embora tenham uma dor eum sofrimento muito profundo, têm uma

capacidade de resistir à dor enormemente.Para suportar a vida que eles têm, de penúriatotal, de ausência de saúde, de educação, deesporte, de compreensão, de violência, deespancamento, eu acho que eles têm umacapacidade de superação e de suportar aadversidade, suportar dores, muito forte. Issoajuda muito a gente a entender e deixar pormenos coisas que poderiam parecer um bicho-papão. E se alegrar! E se alegar! Não é fácil,mas acho que os pobres são muito isso.

Como é que o pobre consegue rir? Venhaaqui para reunião das mulheres do BolsaFamília! Você diz uma piadinha, elas achamgraça demais! A peça - eu acho que falei davez passada (refere-se ao primeiro contatoda produção da entrevista). As mulheresfizeram uma peça de educação financeira eapresentaram no Banco Central, os banqueirosficaram tudo babando. A peça traz a mulherpobre da favela, completamente caracterizada,gorda, os cabelos sofridos, a pele estragadapelo tempo, extremamente natural, sem umapintura, sem nada. Ela é ela mesma ali. Elaentra com a vassoura, pega a vassoura, vaipro meio e começa a dançar: "Naná, rebola,não sei o quê ..." e faz aquela dança, numaalegria danada, e o pessoal, os engravatados,totalmente presos e sofridos começam a achargraça daquela mulher simples e extremamentefeliz, brincando, e ela brinca com eles, pegana cintura e roda. Só os pobres têm essanaturalidade. Eles conseguem, com muitopouco, serem felizes e suportar a pobreza,suportar o sofrimento. Essa é uma riquezamuito grande. Que não é alienação! Eu tôfalando de outra coisa: não é porque é alienado,porque é assim. É que é da natureza dele. Atépelo próprio espírito mais solidário, de se juntarpara superar. Para superar a dor ele brinca, né?Ele tem essa comédia.

William - Joaquim, você fala que o povoespera muito de você como líder, porque vocêé uma referência para comunidade. E vocêdisse, na pré-entrevista, que nada foi tão fortequanto a sua missão. Nem os estudos, nem osamores que o Palmeiras lhe deu, nem os filhosque não vieram por decisão sua e da esposa.

Joaquim - Das (esposas. Joaquim teveoutro relacionamento antes de Sandra, comOora).

William - As escolhas priorizaram sempreo próximo. Então quando é que o Joaquimprioriza a si?

Joaquim - Nunca (pausa). Nunca! A própriapergunta já responde. A minha prioridade éessa missão, é essa luta coletiva, essa vida,esse processo contínuo na luta pela justiça, naorganização dos pobres, na organização dopovo como capacidade única de chegar a essesonho. Então, eu tento viver bem, tento mecuidar, na medida do possível. Ir ao dentista,

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cortar o cabelo, tomar banho, essas coisastodas. Mas não pensar (com ênfase) em si. Euacho que preciso estar bem para melhor servir.Preciso estar o melhor possível, no que der,sem exagero e sem esperar muito da estéticada coisa. Hoje eu digo que eu tenho de estaro melhor possível para melhor cumprir essaminha missão. Eu acho que isso sim. Agoraeu não tenho nenhum pensamento para mim.De dizer assim: "Não, ano que vem eu vou mededicar a fazer um curso, vou me dedicar acorrer de manhã cedo para ficar mais em forma,bonito e tal, vou me dedicar a visitar parentesou fazer viagens". Eu não tenho nenhum planodesses, nenhum pensamento. Então pensa aí:"O que é que o senhor pensa? O senhor pensaalguma coisa?" (rindo). Eu acho que o ano quevem tem de ser o ano (nesse momento, doisgarotos aparecem na porta da sala e Joaquimpede, educadamente, para que aguardematé a conversa acabar} ... Aí eu acho que anoque vem a gente tinha de fazer mais bancoscomunitários, é o Banco da Periferia, são 30bancos integrados, né? Estamos lutando parafazer o banco eletrônico, que é a moeda socialeletrônica. Esses são os grandes sonhos, sãoos grandes pensamentos. E é assim que euvivo feliz, isso que me anima a caminhar,isso que me anima a ir para frente cada vezmais. Quando eu digo assim: "Eu não tenhopensamentos para mim", eu realmente nãotenho. E não me entristece. Se me entristecesse,eu os teria. A gente tem de ser feliz. Cada um éfeliz de um jeito, né? E se você me perguntar:"E você é feliz?" Uma mulher tá fazendo umdocumentário sobre minha vida e disse assim:"Mas eu preciso de alguma coisa, de algummomento em que você caia, porque um filme éassim: ele vai, tem uma decaída e depois sobe.Qual é o momento? Eu tenho de encontrar umador de barriga em você, alguma coisa. Não épossível, né? Tem de ter algum momento ruimque aconteceu, alguma tragédia, e você tem decontar que é para o filme ter emoção" (risos detodos). Eu digo: "Danou-se! Lascou-se, agora!Eu não sei!" Não é que não tenha coisas ruins,difíceis, mas cada qual é feliz de um jeito, né?Essa foi a forma que eu me encontrei. Não éuma coisa de agora, que eu decidi: "Agora,daqui para frente ..." Foi sempre, a vida inteirafoi assim.

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Com a decupagem daentrevista, o trabalho daequipe de produção nãoterminou. Foi necessárioconfirmar alguns nomescitados por Joaquim du-rante a conversa, paramelhor referenciá-los,

Após esta última entre-vista, o trabalho em equi-pe acabou aproximan-do os entrevistadores.Terminado o processo,ficou a certeza de que arealização das tarefas deprodução em conjuntoestimulou a cooperação esó (con)firmou os laços deamizade, inclusive com oprofessor Ronaldo.