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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA

    Distanciamento e crtica: limites e possibilidades da teoria de sistemas de Niklas Luhmann

    Joo Paulo Bachur

    So Paulo

    2009

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA

    Distanciamento e crtica: limites e possibilidades da teoria de sistemas de Niklas Luhmann

    Joo Paulo Bachur

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao do Departamento de Cincia Poltica da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Cincia Poltica.

    Orientador: Prof. Dr. Fernando Haddad

    So Paulo

    2009

  • Um estado autntico estaria livre da ontologia da falsidade tanto quanto de sistema e contradio. Theodor W. Adorno, Negative Dialektik, 1966.

  • ndice

    Agradecimentos .............................................................................................................................. I

    Resumo ............................................................................................................................................ IV

    Abstract ............................................................................................................................................ V

    Zusammenfassung .......................................................................................................................... VI

    Niklas Luhmann: nota biogrfica ................................................................................................ VII

    Glossrio .......................................................................................................................................... XI

    Introduo: Para uma recepo crtica da teoria de sistemas sociais ..................................... 1

    I

    1. A materialidade da comunicao ............................................................................................ 17

    2. Capital e autopoiese ................................................................................................................... 72

    3. Autonomia e interdependncia ................................................................................................ 118

    Interldio: A funo da religio .................................................................................................. 174

    II

    4. Classe social, incluso e excluso ........................................................................................... 195

    5. Protesto e procedimento nem reforma, nem revoluo .................................................... 263

    Bibliografia ..................................................................................................................................... 323

  • I

    Agradecimentos

    Devo um primeiro agradecimento minha famlia, pelo apoio sempre presente ao longo

    dos anos: a meu pai, Felipe Bachur Neto, por se envolver com esta tese como se o

    doutorando fosse ele prprio, a minha me, Maria do Rosrio Silva Bachur, por insistir

    em me lembrar que toda tese tem necessariamente um fim, e aos ermes, Lus Felipe

    e Maria Carolina, pela amizade incondicional.

    A Rosa e Chico Schertel, agradeo a calorosa acolhida em Braslia.

    Sou sinceramente grato a meu orientador, professor Fernando Haddad, pelo entusiasmo

    e pela generosidade com que acompanhou a confeco deste trabalho, bem como por

    me encorajar a tomar as decises corretas no momento preciso.

    Agradeo a ateno dispensada pelos professores desta Faculdade nas inmeras

    discusses por ocasio da formulao de meu tema de pesquisa, especialmente a: Gildo

    Maral Brando, Ccero Arajo, lvaro de Vita, Ricardo Musse, Braslio Joo Sallum

    Jr., Antnio Flvio de Oliveira Pierucci e Leopoldo Garcia Pinto Waizbort.

  • II

    Devo um agradecimento especial a dois professores que acompanharam muito de perto

    a construo desta tese e que em muito contriburam para seu resultado final: Gabriel

    Cohn e Marcelo Neves. A interlocuo prxima e constante foi indispensvel para

    nortear a travessia do labirinto conceitual da teoria de sistemas sociais.

    Agradeo ainda as discusses com o professor Joo Manuel Cardoso de Mello, em

    Campinas, bem como a ajuda do professor Celso da Costa com a leitura de Laws of

    Form.

    Muitos amigos acompanharam, de perto e de longe, as agruras inerentes redao de

    uma tese de doutorado. Esta tese certamente no seria a mesma se no tivesse contado

    com a atenta leitura de verses preliminares e excertos dos captulos, bem como com as

    vrias discusses e indicaes bibliogrficas de Leandro Mahalem de Lima, Stefan

    Fornos Klein, Lus Fernando Massonetto, Slvio Rosa, Maria Paula Dallari Bucci e

    Eugnio Bucci, Gilberto Bercovici, Samuel Barbosa, Cristiano Paixo de Araujo Pinto,

    Paulo Svio, Guilherme Francisco Alfredo Cintra Guimares e Fbio Costa Morais de

    S e Silva. Menciono ainda o apoio dos amigos: Fernando e Ricardo Masini, Frederico

    Mahalem de Lima e Mateus Chagas; Gilberto, Eduardo, Daniel, Carla Zen, Fernanda

    Hamada, Flvia Tone, Haaillih e Tet; Tales Krauss Queiroz; Carol Amiga e Samuca;

    Helena, Cris e Jorge. Agradeo ainda o apoio dos colegas no convvio dirio do

    Ministrio da Educao (no correrei o risco de tentar nomear todos aqui, pois

    certamente cometeria injustias).

    Agradeo ainda a hospitalidade de Andr Gustavo Mello Arajo e de Antnio Jos

    Martins na Alemanha, no inverno de 2007, bem como a inestimvel ajuda em

    xerocopiar parte significativa da biblioteca da Universidade de Frankfurt am Main e na

    remessa de livros e materiais sem os quais esta tese teria ficado consideravelmente

    defasada.

    Devo uma palavra de agradecimento a Edith Nortrut, minha professora de alemo, pela

    ajuda com a traduo das passagens mais difceis e pela pacincia com as declinaes.

    Agradeo o apoio institucional do Soziologisches Seminar da Universidade de Lucerna,

    na Sua, pela iseno de taxas de participao no congresso Niklas Luhmanns Die

    Gesellschaft der Gesellschaft: Ten Years After, em dezembro de 2007.

  • III

    Agradeo a ajuda personalizada do pessoal da secretaria do Departamento de Cincia

    Poltica, Ana Maria Capel Sales dos Santos, Leonardo de Novaes, Mrcia Regina

    Gomes Staaks, Maria Raimunda dos Santos e Vivian Pamella Viviani.

    Agradeo a pacincia, o empenho e a eficincia do pessoal do Comut Internacional da

    Biblioteca da Faculdade em obter as referncias bibliogrficas necessrias a esta tese:

    Aline Lima Gonalves, Ana Cludia Pastor, Marta Glria dos Santos, Sandra Teixeira

    Alves, Yuka Saheki Bastos de Siqueira e Anderson de Santana.

    Por fim, agradeo o carinho e a compreenso com que a minha Laura acompanhou

    todos os momentos deste doutorado: devo grande parte de minha motivao a voc.

    Foram muitas as pessoas com as quais pude contar ao longo da redao desta tese e, se a

    tentativa de mencion-las todas sempre imperfeita, valho-me de uma desculpa

    antecipada: os eventuais esquecimentos certamente no tero sido intencionais. Por

    bvio, todos os equvocos e as insuficincias deste trabalho so de minha integral

    responsabilidade.

    Braslia, janeiro de 2009.

    J. P. Bachur

  • IV

    Resumo

    A teoria da sociedade de Niklas Luhmann, construda como teoria de sistemas sociais,

    encontra freqentes crticas voltadas contra seu pretendido distanciamento moral e

    poltico no diagnstico da sociedade contempornea. Pesa sobre a teoria de sistemas

    sociais a generalizao de um juzo prematuro conforme o qual ela se reduziria a uma

    sociologia conservadora de tendncia tecnocrata, uma herdeira radicalizada do

    positivismo. Contudo, e contrariamente a essa percepo geral, a teoria de sistemas

    sociais parece ter um potencial crtico ainda inexplorado em toda a sua extenso, e que

    pode ser ativado por uma leitura que permita expandir o alcance da teoria. Essa

    expanso pode ser promovida quando a teoria de sistemas sociais mobilizada para

    fundamentar uma teoria da comunicao de matriz materialista (captulo 1), capaz de

    permitir que sua categoria fundamental a autopoiese seja compreendida em estreita

    relao com a apresentao do capital por Karl Marx (captulo 2) e confrontada com

    uma teoria do capitalismo (captulo e 3). Na seqncia, a teoria de sistemas sociais

    empregada para dar conta das mltiplas dimenses da desigualdade social (captulo 4) e

    da dinmica dos conflitos e das contradies da sociedade atual (captulo 5). Esta tese

    prope um primeiro passo na direo de uma recepo crtica da obra terica de Niklas

    Luhmann. Trata-se de testar os limites e as possibilidades da teoria de sistemas sociais.

    Palavras-chave: Niklas Luhmann, Karl Marx, teoria de sistemas sociais, diferenciao

    funcional da sociedade, materialismo.

  • V

    Abstract

    Niklas Luhmanns theory of society, built as theory of social systems, is usually met

    with criticisms pointed against its intended moral and political distance in diagnosing

    contemporary society. Weights upon the social systems theory the generalization of a

    premature judgement according to which, this theory would be reduced to a

    conservative sociology with technocratic tendencies, a radicalised heir to positivism.

    However, and against this usual perception, the theory of social systems seems to have a

    critical potential not yet developed in its full extension and which may be activated by

    an interpretation capable of expanding its range. This extension can be carried out when

    we handle social systems theory in order to ground a materialistic theory of

    communication (chapter 1), enabling a close connection between its main conceptual

    category autopoiesis and Karl Marxs presentation of the capital (chapter 2), as well

    as a confrontation with a theory of capitalism (chapter 3). Afterwards, social systems

    theory is used to explaining the manifoldness of social inequality (chapter 4) and the

    dynamics of contemporary conflicts and societal contradictions (chapter 5). This thesis

    proposes a first step in the direction of a critical reception of Niklas Luhmanns

    theoretical work. It is a matter of testing limits and possibilities of social systems theory

    Keywords: Niklas Luhmann, Karl Marx, social systems theory, functional

    differentiation of society, materialism.

  • VI

    Zusammenfassung

    Die von Niklas Luhmann aufgestellte Theorie der Gesellschaft, als Theorie sozialer

    Systeme konzipiert, stt hufig aufgrund ihrer beabsichtigten moralischen und

    politischen Distanzierung bei Diagnosen der zeitgenssischen Gesellschaft auf Kritiken.

    Belastend gegen diese Theorie wird dabei die Verallgemeinerung eines voreiligen

    Ermessens angefhrt, demzufolge sie zu einer bloen konservativen und technokratisch

    ausgerichteten Soziologie, zu einer im Positivismus radikalisierten Erbin werde. Im

    Gegensatz dazu scheint sich jedoch in der Theorie sozialer Systeme ein kritisches

    Leistungsvermgen zu befinden, das noch nicht vllig entfaltet worden ist. Dieses

    Potential knnte mittels einer Interpretation aktiviert werden, mit der eine umfassendere

    Reichweite der Theorie ermglicht wrde. Eine derartige Expansion ist erreichbar,

    wenn die Theorie sozialer Systeme als Ausgangsbasis fr eine materialistische

    Kommunikationstheorie dient (Kapitel 1); wenn es dieselbe wiederum erlaubt, dass ihr

    grundstzlicher Begriff die Autopoiesis eine enge Beziehung zu der von Karl Marx

    vorgenommenen Darstellung des Kapitals vorweist (Kapitel 2), und dass ihr eine

    Theorie des Kapitalismus gegenbergestellt wird (Kapitel 3). Im weiteren fut auf der

    Theorie sozialer Systeme die Kennzeichnung der vielfltigsten sozialen Gegenstze

    (Kapitel 4) sowie die Dynamik von Konflikten und Widersprchen der derzeitigen

    Gesellschaft (Kapitel 5). Die vorliegende These schlgt einen ersten Schritt vor, das

    theoretische Werk von Niklas Luhmann kritisch zu betrachten. Es geht darum, die

    Grenzen und Mglichkeiten der Theorie sozialer Systeme zu berprfen.

    Schlsselwrter: Niklas Luhmann, Karl Marx, Theorie sozialer Systeme, funktionale

    Differenzierung der Gesellschaft, Materialismus.

  • VII

    Niklas Luhmann: nota biogrfica

    Niklas Luhmann (08.12.1927 - 06.11.1998) foi um intelectual com uma carreira

    acadmica relativamente heterodoxa para os padres germnicos. Tendo servido na

    fora area da Wehrmacht (1944-1945) designao das foras armadas alems no

    nazismo caiu prisioneiro de guerra por um curto perodo (1945). Terminada a guerra,

    estudou direito em Freiburg im Breisgau (1946-1949), onde obteve o doutoramento,

    tendo abandonado rapidamente a advocacia militante. Ingressou na administrao

    pblica em Lneburg, sua cidade natal, onde trabalhou por quase uma dcada (1954-

    1962), tendo l iniciado a confeco de seu clebre fichrio de leitura. Obteve licena

    para uma temporada de estudos em Harvard (1960-1961), perodo marcado pelo

    confronto com o funcionalismo estrutural de Talcott Parsons. De volta Alemanha,

    deixou o servio pblico definitivamente para uma temporada na Hochschule fr

    Verwaltungswissenschaften, em Speyer (1962-1965), instituto de pesquisa voltado

    administrao pblica. Posteriormente, assumiu um posto na Universidade de Mnster

    como chefe de departamento (1965-1968), a convite de Helmut Schelsky. Luhmann

    pde se aprofundar efetivamente no estudo da sociologia somente em Mnster, tendo

    inclusive cursado semestres acadmicos da disciplina (1965-1966). Obteve em Mnster

  • VIII

    sua Habilitation docente em 1966 (Recht und Automation in der ffentlichen

    Verwaltung. Eine verwaltungswissenschaftliche Untersuchung), junto a Dieter

    Claessens e Helmut Schelsky. Luhmann apenas consolidou definitivamente sua carreira

    acadmica na Universidade de Bielefeld, recm-criada no processo de reforma

    universitria na Alemanha. Em Bielefeld atuou como professor de sociologia at se

    aposentar (1968-1993). Ao longo de sua carreira, ocupou brevemente como palestrante

    a cadeira Theodor W. Adorno da Universidade de Frankfurt am Main (1968-1969) e

    foi co-editor da Zeitschrift fr Soziologie (1977-1980), tendo concentrado seus esforos

    na construo de uma teoria da sociedade, o que lhe ocupou por cerca de trinta anos.

    Luhmann morreu pouco antes de completar 71 anos de idade, no pequeno subrbio de

    Oerlinghausen bei Bielefeld.

    A construo de sua teoria da sociedade permite identificar quatro eixos bibliogrficos

    centrais articulados entre si, sem prejuzo da publicao de monografias e artigos

    esparsos: (i) os primeiros escritos, entre meados da dcada de 1960 e 1984; (ii) o

    conjunto de artigos publicados entre 1962 e 1994, reunidos nos seis volumes de

    Soziologische Aufklrung, coletnea cujo ttulo expressa o programa terico de

    Luhmann e j permite identificar os contornos de sua teoria geral da sociedade; (iii) os

    ensaios reunidos nos quatro volumes de Gesellschaftsstruktur und Semantik. Studien zur

    Wissenssoziologie der modernen Gesellschaft, publicados entre 1980 e 1995,

    acompanhados tematicamente de Liebe als Passion: zur Codierung von Intimitt (1982)

    e do pstumo Ideenevolution (2008), voltados anlise da relao entre estrutural social

    e semntica, ou seja, da relao entre histria social e histria das idias e dos conceitos;

    e, finalmente, (iv) o vasto conjunto monogrfico dedicado aos sistemas autopoiticos

    individualizados (economia, cincia, direito, arte, meios de comunicao de massa,

    poltica, religio e educao), com publicaes concentradas entre 1984 e 1997,

    incluindo tambm publicaes pstumas (1984 o ano da publicao de Soziale

    Systeme: Grundri einer allgemeinen Theorie, marco definitivo de sua virada

    autopoitica, considerado pelo prprio Luhmann como o captulo zero de sua teoria

    da sociedade; 1997 o ano de publicao de Die Gesellschaft der Gesellschaft, magnum

    opus que fecha seu programa terico e expressa, j no ttulo, a necessidade de que a

    teoria da sociedade seja construda tendo como modelo a prpria sociedade portanto,

    de maneira radicalmente social e, por isso, como teoria de sistemas sociais).

  • IX

    Luhmann, dotado de um estilo argumentativo irnico e provocativo, era conhecido por

    sua imensa capacidade de trabalho (no tinha equipe de pesquisa, apenas uma

    secretria) e por se dedicar redao de diversos livros e artigos ao mesmo tempo, o

    que era possvel em funo de um fichrio de leitura cultivado durante dcadas. Isso

    explica sua extensa produo e a amplitude da bibliografia mobilizada, no obstante o

    carter prolixo e s vezes redundante de seus textos.

    O sentido de um texto ou de uma obra terica no deve ser buscado nos fatos

    biogrficos do autor a comunicao escrita tem uma dinmica prpria que separa a

    compreenso do texto da inteno original de seu autor. Quando se tem de recorrer a

    elementos biogrficos para compreender o pensamento de um autor, porque segundo

    o prprio Luhmann escreveu-se mal o que se pretendeu expressar.

    Contudo, para os fins deste trabalho, h uma entrevista que merece destaque: ao discutir

    o lugar do intelectual contemporneo (na mesma ocasio em que a dimenso biogrfica

    rejeitada como explicao de uma obra terica), Luhmann toma Karl Marx como seu

    modelo de intelectual. Na mencionada entrevista, Luhmann indagado acerca do papel

    do intelectual em sua teoria de sistemas, ao que responde afirmando que o intelectual

    no tem um lugar privilegiado; sua averso a essa categoria visa a recusar uma

    personalizao excessiva da cincia, como se o intelectual pudesse se projetar para

    fora da sociedade e obter um ponto de observao puro, por assim dizer. Quanto ao

    conceito do intelectual, Luhmann oferece uma definio pouco usual: o intelectual no

    definido por seu posicionamento pessoal com relao a valores (embora esse

    posicionamento seja inevitvel, tanto para o intelectual como para qualquer outro

    indivduo), mas pelo cultivo da capacidade de comparar fenmenos heterogneos em

    termos gerais por intermdio da construo conceitual. Ao receber essa resposta, o

    entrevistador pede um exemplo de intelectual, tendo em vista uma definio to

    incomum. Ao que responde Luhmann: Ich nehme mal Karl Marx.

    E esclarece:

    Niklas Luhmann, Ich nehme mal Karl Marx [entrevista a Walter van Rossum, ps. 14-37] in Archimedes und Wir. Berlin: Merve, 1987, p. 19. Idem, ps. 26/27. A resposta se insere neste dilogo: Entrevistador: Essa uma definio to incomum do intelectual ou da intelectualidade que eu gostaria de lhe pedir um exemplo; Luhmann: Eu tomo Karl Marx.

  • X

    A idia de construir uma teoria estruturante, semelhana de Hegel, com o

    conceito de formao de classes [Klassenbildung], como aparece na literatura de

    cincias sociais, e com o conceito de economia poltica, isto , combinar

    determinados conceitos da economia monetria e a partir da fazer comparao

    histrica, um tal exemplo. Trata-se de uma construo terica genial que vincula

    elementos muito heterogneos, dizer, que transfere Hegel para a matria etc., e

    que com isso procura ento fazer poltica (...). Mas no posso imaginar que essa

    construo, sem tal intelectualidade no campo terico, na combinao de teorias

    e, ao contrrio, partindo apenas do ponto de vista "Precisamos fazer algo pelos

    trabalhadores" teria tido esse sucesso***.

    No pretendemos legitimar ou fundamentar as hipteses desenvolvidas nesta tese com

    essa passagem. Mas ela torna a tenso entre distanciamento e crtica presente na teoria

    de sistemas sociais de Niklas Luhmann certamente instigante.

    *** Ibidem.

  • XI

    Glossrio

    Em um trabalho como este, so muitas as dificuldades de traduo de termos e

    conceitos empregados constantemente por Niklas Luhmann. A teoria de sistemas sociais

    no conta ainda com tradues suficientes para que a verso de termos e conceitos seja

    unvoca. A maioria das tradues disponveis est concentrada nas obras inicias de

    Luhmann. As escassas tradues para o mundo latino e anglo-saxo foram tardias e

    ainda no oferecem uma viso de conjunto suficientemente ampla da teoria social de

    Luhmann (Sistemas sociais, por exemplo, s foi traduzido para o ingls e para o

    espanhol em 1995 e 1998, respectivamente; e A sociedade da sociedade somente foi

    traduzido para o espanhol em 2007). Por essa razo, organizamos um glossrio com os

    conceitos de mais difcil traduo, bem como alguns termos clssicos da teoria social de

    matriz alem que empregaremos com maior freqncia. Nosso glossrio foi composto

    apenas para atender s necessidades expositivas desta tese. Todas as tradues aqui

    apresentadas esto sujeitas a reviso e melhorias. Trata-se de um apoio no manuseio do

    vasto aparato conceitual luhmanniano que no pretende substituir o emprego

    contextualizado dos conceitos relacionados abaixo.

  • XII

    Abwesenheit: distncia interacional ou ausncia interacional, em complemento

    opo de verter Anwesenheit em presena interacional concreta.

    Anwesenheit: presena interacional concreta. A rigor, a traduo literal do termo

    seria simplesmente presena. Mas, luz da importncia que a distino

    Abwesenheit/Anwesenheit assume na teoria da comunicao de Luhmann, optou-

    se por uma traduo que faa justia ao contedo do conceito no contexto terico

    da teoria de sistemas sociais.

    Aufhebung: as dificuldades de traduo deste conceito j so usuais. Utilizou-se

    supra-suno, supresso ou superao de maneira razoavelmente livre, de

    acordo com o contexto, mantendo-se a expresso no original entre parnteses

    sempre que necessria uma maior preciso conceitual.

    Aufklrung: esclarecimento, para o conceito considerado mais abstratamente; ou

    Iluminismo, como marcao do processo histrico tpico do sculo XVIII.

    Ausdifferenzierung: no foi possvel encontrar uma traduo unvoca. O termo

    geralmente designa o processo de gerao de uma diferena entre sistema e

    ambiente [die Erzeugung einer Differenz von System und Umwelt cf. Die

    Gesellschaft der Gesellschaft, p. 66, nota 83], no obstante seja tambm

    empregada para expressar a diferenciao dos meios de comunicao

    simbolicamente generalizados [cf. Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft.

    Frankfurt: Suhrkamp, 1997, p. 332]. Nesta tese, o uso mais tcnico de

    Ausdifferenzierung expressa a diferenciao de um sistema social especfico

    destacando-o do ambiente. No texto, optou-se por empregar a expresso conforme

    as exigncias do contexto, seguida do termo original entre colchetes. Os usos mais

    freqentes so no sentido de expressar a diferenciao funcional de um sistema

    social especfico diante de seu ambiente. Ausdifferenzierung a diferenciao de

    um sistema social a partir do pano de fundo do ambiente que o prprio sistema,

    neste ato, produz. O conceito se ope, portanto, diferenciao interna do

    sistema, tanto em estruturas, elementos, processos e programas quanto em

    subsistemas funcionais (para a diferenciao interna, cf. Innendifferenzierung ou

    interne Differenzierung).

    Begrifflichkeit: aparato conceitual.

  • XIII

    Buchdruk: imprensa, no sentido de tipografia, entendida como tcnica de

    impresso de textos. No se utilizou simplesmente tipografia ao longo do texto

    para evitar uma conotao excessivamente mecnica das transformaes pelas

    quais passou a comunicao da sociedade historicamente.

    doppelte Kontingez: dupla contingncia, expressando a situao comunicativa em

    que a contingncia reciprocamente duplicada e que, com isso, conduz

    improbabilidade da comunicao.

    Eigengesetzlichkeit: legalidade prpria, expressando tanto a autonomia de esferas

    vitais, em termos gerais, quanto a racionalizao interna a que esto submetidas

    diferentes esferas simblicas do mundo da vida, tal como classicamente cunhado

    o conceito por Max Weber, em termos mais tcnicos.

    Entdifferenzierung: indiferenciao ou des-diferenciao.

    Erfolgsmedien: meios de sucesso comunicativo.

    Erleben: experimentar ou vivenciar. Em contraposio ao, como unidade de

    sentido, traduziu-se Erleben geralmente por vivncia.

    evolutionre Errungenschaft: aquisio evolutiva.

    Handeln: ao ou agir.

    Handlung: ao.

    Information: informao no sentido de contedo informacional, expressando o

    componente constativo (constative) da teoria da comunicao de Luhmann.

    Innendifferenzierung: diferenciao interna de um sistema em subsistemas

    funcionais (sinnimo de interne Differenzierung). ortogonal ao conceito de

    Ausdifferenzierung.

    interne Differenzierung: diferenciao interna.

    Komplexittsgeflle: desnvel de complexidade.

    Kontingenzformel: frmula de contingncia.

  • XIV

    Lebensfhrung: conduo da vida, expressando a forma pela qual os indivduos se

    comportam cotidianamente.

    Lebenswelt: mundo da vida. O conceito foi popularizado por Jrgen Habermas,

    mas deve ser entendido nesta tese em consonncia com a fenomenologia de

    Edmund Husserl, como horizonte de possibilidades.

    Medium (pl. Medien): meio (pl. meios).

    Mitwirkung: co-atuao.

    Mitteilung: elocuo. A traduo de Mitteilung uma das mais ingratas na

    apresentao da teoria de sistemas de Luhmann. preciso ter sempre em mente o

    conceito de comunicao como unidade sinttica entre trs selees: informao

    (Information), Mitteilung e compreenso (Verstehen) [Luhmann, Soziale Systeme:

    Grundri einer allgemeinen Theorie, Suhrkamp, 1984, p. 203]. A Mitteilung a

    operao pela qual um sistema observa: (i) em si mesmo, a informao

    selecionada internamente; e (ii) no ambiente, o efeito da comunicao da

    informao sobre a compreenso; expressa o componente performativo

    (performative) da teoria da comunicao de Luhmann. A traduo mais literal

    empregaria ato de comunicar, mas dificultaria o distanciamento com relao s

    teorias que assimilam a comunicao ao ato de fala. perfeitamente possvel

    traduzir Mitteilung como mensagem [cf. Marcelo Neves, A constitucionalizao

    simblica. So Paulo: Martins Fontes, 2007, ps. XIII/XIV]. Tercio Sampaio Ferraz

    Jnior traduz Information como relato e Mitteilung como cometimento [cf.

    Tercio Sampaio Ferraz Jnior, Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso,

    dominao, 2 ed. So Paulo: Atlas, p. 104]. Gabriel Cohn verte Information em

    informao, Mitteilung em enunciado e Verstehen em operao

    interpretativa [As diferenas finas: de Simmel a Luhmann in Revista Brasileira

    de Cincias Sociais v. 13, no 38, 1998, p. 60]. Optou-se nesta tese por elocuo,

    figura de linguagem que designa a maneira de expressar um contedo, a forma

    escolhida para a transmisso de uma mensagem, uma informao, mantendo-se,

    contudo, o carter prtico e objetivo dessa operao comunicativa. Por exemplo,

    quando o parlamento aprova uma lei que permite o aborto, temos: (i) uma

    informao (aborto = permitido); (ii) uma elocuo (permisso do aborto =

  • XV

    aprovao de uma lei, que pode significar derrota/vitria do governo/oposio); e

    (iii) uma compreenso (recepo dessa lei pelos meios de comunicao de massa,

    pelo sistema de ateno sade, pelo sistema jurdico etc.). Talvez a melhor

    traduo para Mitteilung fosse performance ou performance comunicativa,

    mas isso aproximaria demais o conceito de Mitteilung ao conceito de Leistung,

    que Luhmann emprega em outro contexto. Optou-se por elocuo para realar que

    o ato de comunicar algo se diferencia desse algo comunicado e da compreenso

    do contedo dessa comunicao. Em qualquer caso, preciso manter sempre

    presente que a elocuo uma operao objetiva, prtica, praticada pela

    sociedade, e no por seus indivduos.

    Objekt: objeto. Utilizado em sentido mais abstrato e geral, em oposio ao sentido

    concreto que o termo pode adquirir (reservado para Gegenstand).

    ffentlichkeit: opinio pblica ou esfera pblica, preferindo-se o primeiro termo

    para evitar vinculaes imediatas com Jrgen Habermas e favorecer a

    consonncia com Reinhart Koselleck.

    operative Geschlossenheit: fechamento operacional.

    Recht/Unrecht: lcito/ilcito ou licitude/ilicitude. A traduo espanhola

    derecho/non derecho (legal/ilegal ou direito/no-direito) problemtica

    porque sugere, com o plo no-direito, um mbito externo ao sistema jurdico.

    O cdigo lcito/ilcito exclusivamente interno ao direito, significa que tudo que

    ocorre no sistema jurdico ocorre como lcito ou ilcito.

    Selektionsdruck: presso por seleo cf. Selektionszwang.

    Selektionszwang: presso por seleo. Seguimos aqui a alternativa de algumas

    tradues inglesas (pressure to make a selection).

    Sinn: sentido.

    Sozialitt: o social. Preferimos o emprego do artigo para substantivar o adjetivo ao

    invs de empregar o neologismo socialidade, mais literal, mas menos preciso.

    Sprache: linguagem.

  • XVI

    steuern: controlar e regular, no sentido de dirigir, definir, determinar o

    funcionamento ou o andamento de determinado processo.

    Verbreitungsmedien: meios de difuso (da comunicao).

    Verfahren: procedimento juridicamente regulado. Traduziu-se Proze como

    processo, que assume uma conotao mais geral.

    Vergleichbarkeit: comparabilidade.

    Verstehen: compreenso, como um dos elementos da trade que compe a

    comunicao.

    Vorarbeit: pr-trabalho concentrado. A traduo de Vorarbeit trabalho pelo qual

    um trabalho maior preparado [eine Arbeit, durch die eine grere Arbeit

    vorbereitet wird]; e do verbo vorarbeiten trabalhar longamente em algo para

    que se disponha futuramente de mais tempo para outras coisas [eine Zeitlang an

    etwas lnger arbeiten, damit man spter mehr Zeit fr etwas anderes hat] cf.

    Langenscheidts Growrterbuch Deutsch als Fremdsprache, 6 ed. (na nova

    ortografia alem). Langenscheidt: Berlin/Mnchen/Wien/Zrich/New York, 2002.

    Por essa razo traduzimos Vorarbeit por pr-trabalho concentrado: para

    transmitir a idia de um esforo concentrado que permite poupar trabalho futuro.

    Zeichen: smbolo.

    Zufall: acaso.

    Zahlung: pagamento, entendendo-se com isso um adiantamento de capital para

    fomentar novas operaes econmicas.

    Zurechnung: imputao, atribuio ou adjudicao, indistintamente.

  • 1

    Introduo:

    Para uma recepo crtica da teoria de sistemas sociais

    Se a filosofia, que uma vez pareceu superada, manteve-se em vida porque seu instante

    de realizao efetiva fora perdido; a dialtica, que uma vez iluminara a superao da

    filosofia, permanece todavia em vida, no obstante seu instante de realizao prtica

    tenha sido efetivamente perdido; permanece em vida, contudo, no mais como dialtica

    propriamente dita, mas como a contradio imobilizada por uma sntese invivel que se

    desdobra pela reposio das condies sociais da prpria contradio. Essa dialtica

    que, desde j, pode ser apenas impropriamente considerada dialtica permanece em

    vida como negao operativa indispensvel reproduo da sociedade contempornea

    que, por isso mesmo, somente pode ser descrita como a sociedade dos sistemas

    autopoiticos funcionalmente diferenciados.

    Como transparece de imediato, nossa exposio seguir um caminho contra-intuitivo e

    pouco ortodoxo quer para os luhmannianos, quer para os marxistas.

  • 2

    O objeto deste trabalho poderia ser sinteticamente formulado como se segue: a teoria de

    sistemas sociais de Niklas Luhmann possui um potencial crtico ainda inexplorado em

    toda a sua extenso, mas que pode ser ativado por uma leitura que permita expandir o

    alcance de sua teoria da sociedade. Essa expanso pode ser promovida quando a teoria

    de sistemas sociais mobilizada para fundamentar a construo de uma teoria da

    comunicao de matriz materialista (captulo 1), capaz de permitir que sua categoria

    fundamental a autopoiese seja compreendida analogamente apresentao do

    capital por Karl Marx (captulo 2) e confrontada com uma teoria do capitalismo

    (captulo e 3). Na seqncia, a teoria de sistemas sociais empregada para dar conta das

    mltiplas dimenses da desigualdade social (captulo 4) e da dinmica dos conflitos e

    das contradies da sociedade atual (captulo 5). A partir de suas prprias premissas, a

    teoria de sistemas sociais pode ser conduzida por meio de um desenvolvimento

    imanente que acentue suas tonalidades crticas, oferecendo uma perspectiva de

    renovao da teoria social. Esta tese prope um primeiro passo na direo de uma

    recepo crtica da teoria de sistemas sociais.

    No ser possvel proceder a uma apresentao introdutria da obra de Luhmann, no

    obstante ela ainda seja pouco conhecida e difundida, mantendo-se restrita a alguns

    poucos feudos acadmicos1. Apesar de ter sido desenvolvida no ltimo quarto do sculo

    XX, a teoria de sistemas de Luhmann permaneceu obscurecida por um bom tempo, no

    sem razo, pelo impacto da teoria do agir comunicativo de Jrgen Habermas,

    equiparvel em estatura terica iniciativa luhmanniana2. A polmica envolvendo

    Habermas e Luhmann, pretensamente continuao da Positivismusstreit entre Theodor

    1 Cf., para introdues teoria de sistemas sociais: Niklas Luhmann, Einfhrung in die Systemtheorie (org. Dirk Baecker), 3 ed. Heidelberg: Carl-Auer-System, 2006; Luhmann, Einfhrung in die Theorie der Gesellschaft (org. Dirk Baecker). Heidelberg: Carl-Auer-System, 2005; Luhmann, Introduccin a la Teora de Sistemas (org. Javier Torres Nafarrate). Barcelona: Anthropos, 1996; Walter Reese-Schfer, Luhmann zur Einfhrung. Hamburg: Junius, 1992; Georg Kneer, Niklas Luhmanns Theorie sozialer Systeme: eine Einfhrung. Mnchen: Fink, 1993; Georg Kneer & Armin Nassehi, Niklas Luhmanns Theorie sozialer Systeme: eine Einfhrung, 2 ed. Mnchen: Wilhelm Fink, 1994; Detlef Hoster, Niklas Luhmann. Mnchen: Beck, 1997; Detlef Krause, Luhmann-Lexikon: eine Einfhrung in das Gesamtwerk von Niklas Luhmann. Stuttgart: Ferdinand Enke, 1999; Margot Berghaus, Luhmann leicht gemacht: eine Einfhrung in die Systemtheorie. Kln: Bhlau, 2003; Uwe Schimank, Theorien gesellschaftlicher Differenzierung, 3 ed. Wiesbaden: VS, 2007, cap. 4, ps. 123-183; Giancarlo Corsi, Elena Esposito & Claudio Baraldi, Glosario sobre la Teora Social de Niklas Luhmann, trad. M. R. Prez & C. Villalobos. Barcelona: Anthropos, 1996; e Ignacio Izuzquiza, Sodiedad sin hombres: Niklas Luhmann o la teora como escndalo. Barcelona: Anthropos, 1990. 2 Cf., essencialmente, Jrgen Habermas, Theorie des kommunikativen Handelns [1981], 2 vs., 4 ed. Frankfurt: Suhrkamp, 1995.

  • 3

    W. Adorno e Karl Popper, permitiu a generalizao de um juzo prematuro sobre a

    teoria de sistemas de Luhmann conforme o qual ela se reduziria a uma sociologia

    conservadora de vis tecnocrata, uma herdeira radicalizada do positivismo3. Em

    complemento, uma recente difuso de segunda mo refora essa percepo: trata-se do

    que se conhece hoje como direito penal do inimigo (Feindstrafrecht), ligado ao nome

    de Gnther Jakobs. Por meio do uso meramente metafrico das categorias

    luhmannianas, Jakobs inaugurara uma corrente no direito penal para legitimar a

    represso policial preventiva4. Por mais que essas circunstncias adversas pudessem

    justificar uma abordagem introdutria teoria de sistemas sociais, a preocupao

    monogrfica desta tese exige que os conceitos luhmannianos sejam incorporados

    conforme as exigncias do argumento. Trata-se de um esforo de recepo crtica que

    permita, a partir de Luhmann e para alm de suas limitaes, expandir o aparato

    conceitual da prpria teoria de sistemas sociais, tomada aqui como ponto de partida para

    uma teoria geral da sociedade.

    O aspecto desafiador dessa tarefa est em virar do avesso a teoria de sistemas sociais:

    concebida como anti-dialtica e, mais ainda, como anti-marxiana, a perspectiva adotada

    nesta tese toma radicalmente toma pela raiz a diferena sistema/ambiente, premissa fundamental da sociologia de Luhmann, e a desdobra em todas as suas conseqncias,

    mesmo ao custo de contrariar os desideratos declarados da teoria de sistemas sociais.

    Mas, antes de mais nada, por que a teoria de sistemas pode ser considerada anti-

    marxiana?

    3 O debate est registrado em Luhmann & Habermas, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie was leistet die Systemforschung? Frankfurt: Suhrkamp, 1971. Para algumas repercusses, cf. os artigos reunidos em: Franz Maciejewski (org.), Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. Beitrge zur Habermas-Luhmann-Diskussion (srie Theorie-Diskussion, suplemento 1). Frankfurt: Suhrkamp, 1973; e Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. Neue Beitrge zur Habermas-Luhmann-Diskussion (srie Theorie-Diskussion, suplemento 2). Frankfurt: Suhrkamp, 1974; bem como Hans-Joachim Giegel, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. System und Krise: Beitrag zur Habermas-Luhmann-Diskussion (srie Theorie-Diskussion, suplemento 3). Frankfurt: Suhrkamp, 1975. Para a Positivismusstreit, cf. Theodor W. Adorno (org.), Der Positivismusstreit in der deutschen Soziologie. Neuwied & Berlin: Luchterhand, 1969; bem como Hans-Joachin Dahms, Positivismusstreit: die Auseinandersetzungen der Frankfurter Schule mit dem Logischen Positivismus, dem amerikanischen Pragmatismus und dem kritischen Rationalismus. Frankfurt: Suhrkamp, 1994. 4 Cf. Gnther Jakobs, Direito penal do inimigo, trad. G. B. O. Mendes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

  • 4

    O programa terico sustentado por Luhmann por cerca de trinta anos se permite

    sintetizar como esclarecimento sociolgico (soziologische Aufklrung), pois seu

    objetivo central era escapar aos dilemas de uma teoria social ainda profundamente

    impregnada pela rotina de pensamento que se conhece como filosofia do sujeito5.

    comum referir-se ao Iluminismo e sociologia como rtulos para pocas histricas

    diferentes, atendo-se o primeiro ruptura com a tradio, cujo ponto alto poderia ser

    localizado no final do sculo XVIII, reservando-se o segundo compreenso da

    modernidade constituda, a partir de meados do sculo XIX em diante6. Nesse sentido,

    um programa de pesquisa que se apresente como esclarecimento sociolgico tem um

    contedo paradoxal, pois todo esclarecimento a partir da sociologia seria

    inevitavelmente anacrnico. Por bvio, no isso que se pretende: trata-se no de

    replicar o lan iluminista na teoria da sociedade mas, ao contrrio, de fugir s

    dificuldades e unilateralidades do que Luhmann chama de esclarecimento racional

    (Vernunftaufklrung), fundado em duas premissas de difcil sustentao: (i) a igual

    participao de todas as pessoas em uma razo comum, sem mediaes institucionais de

    qualquer espcie; e (ii) a possibilidade de construo de um estado social racional. Essas

    premissas so articuladas entre si pela reflexo racional do sujeito transcendental: se

    todo indivduo racional, possvel apontar para um estado social verdadeiro, para uma

    forma de consenso substantivo7.

    A teoria da sociedade tem de se desfazer da ingenuidade desse Iluminismo que, no

    limite, revela-se arbitrrio, totalitrio8. A desiluso do racionalismo considerando que

    o progresso tcnico e moral assegurado pelas filosofias da histria pr-revolucionrias

    rumo perfectibilidade humana no se efetivou deu lugar crtica, mas no permitiu

    que os problemas no solucionados (ou criados) pelo esclarecimento racional pudessem

    5 Cf. Luhmann, Soziologische Aufklrung [1967] in SA 1, ps. 83-115. Parece curioso formular dessa maneira o programa terico de Luhmann, principalmente em comparao a Habermas, que reivindica expressamente para si tal tarefa em diversas oportunidades. Por isso, a teoria do agir comunicativo e a teoria de sistemas sociais se apresentem como alternativas concorrentes e no exagero dizer que ambas tm o mesmo objetivo, no obstante tenham se desenvolvido por caminhos antagnicos: intersubjetividade e ato de fala no primeiro caso, comunicao como objeto social no segundo. 6 Idem, p. 83. Sociologia entendida como sinnimo para teoria social, como auto-descrio da sociedade operada pela prpria sociedade a partir de um ponto de vista interno cf. Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1997, p. 33. 7 Soziologische Aufklrung, p. 84. 8 Luhmann tangencia, neste ponto, a dialtica do esclarecimento cf. Max Horkheimer & Theodor W. Adorno, Dialektik der Aufklrung [1947]. Frankfurt: Fischer, 1969, p. 18.

  • 5

    ser enfrentados por uma teoria altura da tradio da filosofia poltica vtero-europia:

    a sociologia no esclarecimento aplicado, mas, ao contrrio, esclarecimento

    solucionado; ela a tentativa de vencer as fronteiras do esclarecimento9.

    Mas o que significa para Luhmann vencer as fronteiras do esclarecimento? Aqui o

    esclarecimento sociolgico j se permite vislumbrar como o antpoda do esprito

    hegeliano. Resolver o esclarecimento significa investigar as condies sociais para

    apreender e reduzir complexidade; tomar o esclarecimento como problema significa,

    mais especificamente, compreender a modernidade a partir do ponto de vista da

    formulao e da soluo de problemas da sociedade (e no da conscincia) esse o

    ponto de ruptura entre a teoria de sistemas sociais e a tradio da filosofia do sujeito. Se,

    para Hegel, sua (correntemente mal interpretada) afirmao de que aquilo que

    racional real; e aquilo que real racional10 no significa sancionar o estado de

    coisas tal como verificvel imediatamente, mas justamente o contrrio, i.e., se ela

    expressa a negatividade da razo que tem de destruir o estado de coisas dado para

    amold-lo s suas potencialidades; a realidade racional somente quando amoldada

    pela razo. S h realidade efetiva (Wirklichkeit), no sentido especfico que Hegel

    atribui ao termo, quando todas as possibilidades so atualizadas, quando toda potncia

    tenha se tornado ato: A realidade que atual, aquela na qual a discrepncia entre o

    possvel e o real foi superada11. por essa razo que efetividade e idia, mundo e

    pensamento, no se opem um ao outro como no empirismo, e por isso que a idia

    antes algo ao mesmo tempo absolutamente eficiente e tambm efetivo, pois que a

    transformao da realidade ter progredido conforme as possibilidades nela

    manifestas12. Reduzir complexidade significa ento tomar como pressuposto a

    impossibilidade de que todo o possvel seja atualizado; significa identificar as condies

    sociais que fazem com que a ao e a experincia humana tenham sentido tomando

    9 Soziologische Aufklrung, p. 85. 10 Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Vorrede in Grundlinien der Philosophie des Rechts, 4 ed. Hamburg: Felix Meiner, 1955, p. 14 [no original: Was vernnftig ist, das ist wirklich; und was wirklich ist, das ist vernnftig]. 11 Herbert Marcuse, Razo e revoluo: Hegel e o advento da teoria social, 5 ed., trad. M. Barroso. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 139. 12 Hegel, Enciclopdia das Cincias Filosficas em Compndio [1830], v. I: A cincia da lgica, trad. P. Meneses. So Paulo: Loyola, 1995, 142, Adendo, p. 267.

  • 6

    como ponto de partida o fato de que nem todas as possibilidades abertas podero ser

    atualizadas simultaneamente, sem bloquear ou dificultar a atualizao de outras13.

    O esclarecimento sociolgico anti-iluminista para romper com a ontologia da filosofia

    do sujeito: reduzir complexidade, portanto, no simplificar, generalizar ou

    abstrair a realidade, mas romper com uma realidade ontolgica que pode ser acessada

    ou transformada pela razo subjetiva, pela fora da idia absoluta. A linha do argumento

    luhmanniano que o simples aumento de possibilidades nada significa se no vier

    acompanhado de mecanismos que reduzam tais possibilidades a algo vivencivel e

    atualizvel para o indivduo. Vale considerar que, ao contrrio da comum suposio

    de que na teoria de sistemas sociais no h indivduos, trata-se, muito pelo contrrio,

    da preocupao com a possibilidade da experincia e da vivncia individuais dotadas de

    sentido o que Luhmann abandona a auto-evidncia da conscincia individual como

    ponto de partida seguro para essa tarefa14. A reduo da complexidade do mundo no

    pode mais ser assimilada a uma capacidade humana inata (a razo) e tem de ser

    entendida socialmente, conforme estabelecida pela sociedade. O esclarecimento

    sociolgico busca romper com a tradio metafsico-ontolgica do pensamento

    iluminista, ou melhor, com a unilateralidade absolutista da razo subjetiva:

    (...) preciso indagar ao conceito de sujeito, se ele se apresenta ento com

    pretenses de unicidade [Einmaligkeitsprtentionen], do qu se diferencia o

    sujeito: do mundo? Dos objetos? De outros sujeitos? Ou apenas de si mesmo, do

    no-eu? Quando assim se entende o sujeito (transcendental), que depende apenas

    de si mesmo, o problema do ser-no-mundo [In-der-Welt-Sein] se transforma no

    problema do ser-em-si-mesmo [In-sich-selbst-Sein]15.

    Este, com efeito, o ponto central: a nica forma de escapar s encruzilhadas da

    filosofia do sujeito est na construo de uma teoria da sociedade amparada em sistemas

    13 A questo da reduo de complexidade em Luhmann somente fica plenamente clara luz de Hegel. Nesse sentido especfico, Luhmann pode ser considerado conservador tanto quanto Hegel possa ser tido como revolucionrio. 14 Como exemplo da confuso entre eliminar o indivduo e abandonar a categoria do sujeito como ponto de partida para a teoria social, cf., e.g., Andreas Weber, Subjektlos: Zur Kritik der Systemtheorie. Konstanz: UVK, 2005, especial e curiosamente p. 98, em que se argumenta que Luhmann no consegue eliminar totalmente o sujeito porque a sua teoria foi desenvolvida por um sujeito emprico o prprio Luhmann! Cf., com maior preciso, Peter V. Zima, Theorie des Subjekts, 2 ed. Tbingen & Basel: A. Francke, 2007, ps. 324-345. 15 Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft, p. 870.

  • 7

    sociais funcionalmente diferenciados. Se, de um lado, o esclarecimento sociolgico

    aponta para uma teoria da sociedade como teoria de sistemas, de outro lado, no seria

    exagero afirmar que, dentre todos os cnones da tradio da teoria social, o

    esclarecimento sociolgico se constituiu em um programa terico voltado especialmente

    contra uma verso especfica da filosofia do sujeito a dialtica. O esclarecimento

    sociolgico cuida no apenas de oferecer uma teoria da sociedade que escape ao modelo

    da filosofia do sujeito, mas e mais importante a tarefa central oferecer um

    adversrio altura da dialtica e, mais especificamente, da dialtica histrico-

    materialista.

    O sistema se define pela diferena sistema/ambiente. O sistema essa diferena. Esta

    premissa fundamental, sobre a qual Luhmann assenta todo o desenvolvimento de sua

    teoria da sociedade, exige conceber o sistema como diferena e no como identidade16.

    A diferenciao funcional de sistemas contraria no apenas a intuio, mas a tradio da

    teoria social: no representa a construo de uma totalidade mas, ao contrrio,

    justamente sua impossibilidade. O conceito de sistema fora tradicionalmente empregado

    para designar um todo passvel de decomposio em partes que, por sua vez, poderia ser

    recomposto pela soma das suas partes ou constituir uma unidade prpria, maior que essa

    soma. Essa modelagem foi empregada para atestar que a sociedade era composta de

    indivduos, no obstante pudesse constituir uma unidade superior a eles. O problema

    que o modelo todo/partes introduz arbitrariedades tericas: se o todo ser reconstrudo a

    partir de suas partes, uma delas ter de ser o repositrio da identidade do todo e, por

    conseguinte, a sociedade tem de contar com um cume hierrquico que permita

    reconstruir o todo a partir de uma parte especial17.

    Um sistema diferenciado no uma parte da sociedade, mas uma diferena operativa,

    uma diferena sistema/ambiente replicada internamente pelo prprio sistema:

    No se trata da decomposio de um "todo" em "partes", quer dizer, nem em um

    sentido conceitual (divisio) nem no sentido de uma diviso real (partitio). O

    16 Cf. Luhmann, Soziale Systeme: Grundri einer allgemeinen Theorie [1984]. Frankfurt: Suhrkamp, 1987, ps. 30/31. 17 Cf. Soziale Systeme, ps. 20 e 27. A recusa da sociologia clssica (Weber, Simmel, Durkheim) em reconstruir a sociedade a partir da economia poltica fez com que ela no dispusesse de um conceito de sociedade cf., e.g., Thomas Schwinn, Differenzierung ohne Gesellschaft. Umstellung eines soziologischen Konzepts. Weilerwist: Velbrck Wissenschaft, 2001, ps. 31 e ss.

  • 8

    esquema todo/partes descende da tradio vtero-europia e perderia, se aplicado

    aqui, o ponto decisivo. Diferenciao do sistema no significa, precisamente, que o

    todo seja decomposto em partes e, visto nesse nvel, compreenda ento apenas as

    partes e as "relaes" entre as partes. Ao contrrio, cada sistema parcial reconstri

    o sistema integral ao qual pertence e que ajuda a operar mediante uma diferena

    prpria entre sistema e ambiente (especfica ao sistema parcial). Atravs da

    diferenciao do sistema, multiplica-se o sistema em si mesmo, por assim dizer,

    pelas diferenas sempre novas entre sistemas e ambientes no sistema. (...) [O

    processo de diferenciao] no pressupe qualquer coordenao pelo sistema

    como um todo, como o esquema do todo e suas partes sugerira18.

    Tudo se passa como se Luhmann tivesse aceitado o desafio posto por Heidegger

    metafsica ontolgica de pensar a diferena enquanto tal19 sem, contudo, procurar

    uma sada filosfica. Luhmann constri uma teoria da sociedade que, por isso, tem de

    buscar fontes epistemolgicas em ramos do conhecimento que no adotam o par

    sujeito/objeto como premissa do conhecimento, tais como a ciberntica, a teoria geral de

    sistemas e o construtivismo operacional. Compreendido o sistema enquanto diferena,

    fica dito que o sistema ele mesmo e ao mesmo tempo no o ambiente. Em termos

    hegelianos, a diferena sistema/ambiente permitiria definir o sistema como um ser-em-

    si (Ansichsein) que ao mesmo tempo um ser-para-o-outro (Sein-fr-Anders),

    vedado em qualquer hiptese o vir-a-ser (Werden) do sistema no ambiente ou do

    ambiente no sistema. claro que essa formulao hegeliana do conceito luhmanniano

    de sistema esdrxula. Mas ela serve apenas para demonstrar que, de sada, Luhmann

    bloqueia Hegel e a categoria da Aufhebung. Na Cincia da lgica, um exemplo da

    doutrina do ser deixa mais claro o significado (filosfico, seria possvel dizer) da teoria

    de sistemas:

    O ser o conceito somente em si; as determinaes do ser so determinaes

    essentes: em sua diferena so outras uma em relao s outras , e sua ulterior

    determinao (a forma do dialtico) um passar para outra coisa. Essa

    determinao progressiva , a um tempo, um pr-para-fora e portanto um

    desdobrar-se do conceito em si essente; e, ao mesmo tempo, o adentrar-se em si do

    18 Die Gesellschaft der Gesellschaft, p. 598 gr. or. 19 Martin Heidegger, Die Onto-Theo-Logische Verfassung der Metaphysik in Identitt und Differenz [1957], 13 ed. Stuttgart: Klett-Cota, 2008, ps. 62/63.

  • 9

    ser, um aprofundar-se do ser em si mesmo. A explicao do conceito na esfera do

    ser tanto se torna a totalidade do ser, quanto por isso suprassumida a imediatez do

    ser ou a forma do ser como tal20.

    A diferena sistema/ambiente mantm-se como diferena porque no h o passar para

    outra coisa que, no por acaso, Hegel considera a forma do dialtico. Por essa razo,

    o sistema social de Luhmann essa diferena: o sistema sistema na exata medida em

    que no o ambiente (se em Hegel o sistema adquire um carter de completude, passa-

    se com Luhmann justamente o contrrio: o sistema expressa a fragmentao). A

    diferena sistema/ambiente, como se pode ver, no uma metfora ou um mero

    elemento do discurso: o fundamento da construo terica de Luhmann21.

    O sistema funciona ento como paralisao do movimento. claro, movimento

    entendido aqui como o problema que deu origem filosofia, como a questo da

    passagem entre o ser e o no-ser como o vir-a-ser, portanto. Luhmann congela o

    sistema como diferena do ambiente (= no-sistema) e que, assim, constitui sua

    identidade: por isso o sistema a unidade da diferena sistema/ambiente nessa

    medida, rompe deliberadamente com a tradio dialtica22. O sistema ele mesmo e ao

    mesmo tempo no o ambiente; o sistema somente existe sendo ele mesmo e no sendo

    o ambiente fica excluda a hiptese de reconciliar, em um nvel superior, sistema e

    ambiente. Essa diferena uma negao, mas uma negao no-determinada ou

    indeterminada, i.e., uma negao entendida em sentido no-dialtico logo: no como

    Aufhebung mas como rejeio (Rejektion)23.

    Contra a dialtica de Hegel, Luhmann finca o p na diferena, na impossibilidade de um

    movimento de reconciliao; contra Marx, Luhmann ergue uma teoria geral de sistemas

    com base no primado da diferenciao funcional, de forma a impedir a reconduo e a

    reduo do social a uma instncia privilegiada de observao (a sociedade civil, o

    proletariado, a esfera pblica, o intelectual e, em termos mais gerais: a economia, o

    20 Hegel, A cincia da lgica, 84, p. 173 gr. or., subl. acr. 21 Cf. Jean Clam, Was heit, sich an Differenz statt an Identitt orientieren? Zur De-ontologisierung in Philosophie und Sozialwissenschaft. Konstanz: UVK, 2002. 22 Cf. Luhmann, Soziale Systeme, p. 82. 23 Gotthard Gnther, Cybernetic Ontology and Transjunctional Operations in Beitrge zur Grundlegung einer operationsfhigen Dialektik, v. 1. Hamburg: Felix Meiner, 1976, p. 287. Trata-se de um crtico da dialtica hegeliana to heterodoxo quanto obscuro para o habitual leitor de Hegel.

  • 10

    direito, a poltica, a cincia, etc.). De maneira geral, a estruturao de sistemas e

    subsistemas sociais que funcionam seguindo lgicas prprias no se reduz

    decomposio de um todo em partes articuladas. Ao contrrio, os sistemas so

    diferenas operacionais capazes de produzir sentido e que, nessas condies, no

    conhecem uma totalidade ontolgica subjacente os sistemas so formas fractais24.

    Por conseguinte:

    No podemos mais definir a sociedade concedendo primazia a um de seus

    domnios funcionais. Ela no pode ser descrita como sociedade civil, como

    sociedade capitalista/socialista ou como um sistema cientfico-tecnocrtico. Temos

    de substituir tais interpretaes por uma definio de sociedade que se refira

    diferenciao social. (...) A sociedade no pode mais ser compreendida de um

    nico ponto de vista dominante25.

    A teoria de sistemas sociais exclui severamente o recurso a um observador externo, um

    macro-sujeito social que detenha uma capacidade privilegiada de refletir a sociedade

    como um todo, convertendo-a assim em seu objeto. No vale recorrer nem ao

    movimento do esprito, nem ao proletariado revolucionrio. Isso no impede

    reconstrues da sociedade como um todo, mas tais reconstrues somente so

    possveis do ponto de vista da economia, da poltica, da arte, do direito, etc. e nunca

    de um ponto de vista nico e especial, determinante, em ltima instncia, de todos os

    demais. claro que, partindo da economia, do direito, da poltica, etc., sempre

    possvel construir uma observao da totalidade social; mas nunca ser possvel

    alcanar a totalidade ontolgica da sociedade porque tal totalidade no poderia ser

    observada, j que significaria a impossibilidade de que o observador pudesse marcar

    uma distino entre o que ele observa e o que ele no observa. A sociedade como um

    todo somente observvel para um determinado sistema especfico e, portanto, a

    totalidade observada pelo sistema s pode ser uma totalidade parcial,

    paradoxalmente, e que, como tal, no assegura o acesso totalidade entendida como

    categoria da teoria social. Com isso, fica vedado o acesso totalidade: os sistemas e

    24 Die Gesellschaft der Gesellschaft, p. 1.146. 25 Luhmann, Authors Preface in The Differentiation of Society, trad. S. Holmes & C. Larmore. New York: Columbia University Press, 1982, p. XII.

  • 11

    subsistemas sociais observam de fato a sociedade como totalidade, mas sempre de seu

    ponto de vista parcial e contingente26.

    Ora, a questo da totalidade indiscutivelmente sensvel ao marxismo27. Seja no

    movimento do esprito ou do capital, ou ainda na crtica de uma razo esclarecedora que

    se converte em mito e impe com isso uma totalidade ontologicamente falsa; dizer, de

    Hegel a Adorno, passando por Marx, a dialtica se deixa definir por um movimento que,

    pela negao determinada de seus momentos interiores (negao entendida aqui no

    sentido especfico da Aufhebung), orienta a reflexo totalidade expressa por esse

    movimento. A histria da filosofia permite identificar uma conexo interna entre

    dialtica e filosofia do sujeito e, por essa razo, em certo sentido, a tarefa de escapar da

    filosofia do sujeito significa, para Luhmann, escapar tambm da dialtica. Essa

    alternativa construda na teoria de sistemas sociais no apenas de maneira

    absolutamente consciente mas, sobretudo, da maneira mais conseqente possvel.

    Luhmann polemiza com Marx e com o marxismo em inmeros pontos esparsos e no

    o caso de rastre-los aqui; basta citar a seguinte passagem:

    A localizao histrica e terica dessa proposta conceitual [a teoria de sistemas

    sociais] clara: trata-se de um substituto para premissas de desenvolvimento

    dialtico, de um substituto complexo para a simplicidade de idias centrais ou

    abstraes reais cuja negao, segundo Hegel ou Marx, executou o

    desenvolvimento dialtico28.

    Com efeito, ler Luhmann contraluz de Hegel e Marx permite delinear com maior

    nitidez o alcance da teoria de sistemas sociais. Parece-nos impossvel, contudo,

    empreender uma leitura diretamente dialtica de Luhmann. Ruy Fausto, em seu texto

    sobre as significaes obscuras da dialtica, aponta como Hegel investe a dialtica na

    lgica, [tal] como Marx a investe na economia poltica29. Esse modus operandi da

    crtica pde ser mais ou menos reproduzido pela teoria crtica de Frankfurt: a dialtica

    26 Luhmann, kologische Kommunikation. Kann die moderne Gesellschaft sich auf kologische Gefhrdungen einstellen? [1986], 4 ed. Wiesbaden: VS, 2004, p. 204. 27 Cf. Martin Jay, Marxism and Totality: the Adventures of a Concept from Lukcs to Habermas. Cambridge, Polity Press, 1984. 28 Luhmann, Evolution und Geschichte [1975] in SA 2, p. 195 gr. acr. 29 Ruy Fausto, Marx: lgica e poltica. Investigaes para uma reconstituio do sentido da dialtica, t. 2. So Paulo: Brasiliense, 1987, p. 174.

  • 12

    de Marx foi recepcionada a partir de uma retomada profunda do prprio Hegel e foi

    consistentemente replicada a Weber e a Freud e combinada com aportes de

    Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche no obstante tal conjuno tenha implicado a

    rejeio de outros elementos marxianos (o fetichismo da mercadoria e a modelagem da

    sociedade capitalista a partir da relao de troca foram diretamente projetados sobre os

    processos de racionalizao, de constituio da personalidade e de crtica dominao

    intrnseca racionalidade subjetiva, muito embora tenham exigido a renncia teoria da

    revoluo e teoria de classes). No seguiremos na presente tese essa estratgia30.

    Partimos da premissa de que Luhmann opera uma ruptura com a ontologia ocidental

    descendente da filosofia da conscincia e da metafsica elaboradas no bojo do idealismo

    alemo e constri efetivamente uma rota de sada da filosofia do sujeito (no obstante

    ele no tenha sido integralmente bem-sucedido em extirpar, com isso, toda dialtica de

    sua teoria de sistemas). Portanto, se remanesce uma dialtica em Luhmann uma

    dialtica da qual a diferenciao funcional de sistemas autopoiticos no consegue se

    desvencilhar essa dialtica diferente do pensamento orientado pela contradio entre

    sujeito e objeto porque conduzida pelo paradoxo. Se h alguma dialtica nesta tese,

    ela no ultrapassa os limites das dialticas vulgares31. E, muito embora ela abra espao

    para que se socorra de Marx em inmeros pontos, cuida-se aqui apenas e to-somente

    de analisar a teoria social de Luhmann.

    Bento Prado Jr., no prefcio a um dos livros de Paulo Arantes, comenta o manejo no

    apenas da melhor tradio crtica, mas tambm de tericos em geral tidos como

    conservadores, salientando como o autor se utilizara de certo materialismo presente

    nestes ltimos, s vezes mais sensvel do que vertentes oficialmente alinhadas tradio

    marxista mais ortodoxa. Luhmann deixa um pouco dessa sensao, pelo menos para

    seus leitores menos dogmticos: por mais que ele tenha se esforado em se distanciar

    30 Essa possibilidade no est excluda a priori. Apenas preciso registrar que talvez ela venha a forar uma leitura enviesada de Luhmann (a no ser que se compartilhasse a crtica de Habermas que, como se ver, no precisa). Tudo indica que tal empreendimento seria no mximo metafrico e provavelmente no se sustentaria perante uma anlise mais rigorosa cf., e.g. Izuzquiza, Sodiedad sin hombres, p. 78: Os sujeitos na teoria de Luhmann so os sistemas. por isso que, para Izuzquiza, Muitas das afirmaes de Luhmann sobre a sociedade resultam motivo de escndalo (p. 81), sem que fique claro como o escndalo pode colaborar na construo de uma teoria da sociedade. 31 No sentido expresso por Ruy Fausto, Marx: lgica e poltica. Investigaes para uma reconstituio do sentido da dialtica, t. 1. So Paulo: Brasiliense, 1987, p. 15. A crtica dialtica da teoria de sistemas sociais, que no est posta at o momento, somente ser realizada de acordo com as necessidades do argumento, quase como uma imposio do objeto de nossa exposio.

  • 13

    radicalmente de Marx, remanesce algum materialismo digno de nota na apresentao

    da sociedade funcionalmente diferenciada.

    Desde que, aps a Dialtica negativa, o materialismo histrico perdeu a clareza de seu

    estatuto terico (se no integralmente, pelo menos em parte), talvez seja til recorrer a

    uma descrio competente da sociedade contempornea. Note-se bem: no se trata aqui

    do argumento mais que batido e formulado como palavra de ordem segundo o qual

    Marx est morto! e que nada tem de terico. O que chamamos perda de clareza do

    estatuto terico do materialismo histrico diz respeito mais precisamente

    encruzilhada em que se depara a dialtica, enquanto fora crtica historicamente

    moldada pela filosofia do sujeito, de Hegel a Adorno; e est relacionada s dificuldades

    postas ao marxismo pela discusso acerca da exausto analtica do trabalho como

    categoria fundante da teoria social, sua substituio pela categoria da interao e, por

    conseguinte, emergncia de um novo paradigma de teoria social, aos quatro ventos

    chamado comunicativo32. A sada dessa encruzilhada por uma teoria da

    intersubjetividade, tal como proposta por Habermas, por exemplo, altamente

    questionvel, por razes que no podem ser abordadas aqui. Independentemente de seus

    resultados, a discusso em torno de uma eventual segunda gerao da teoria crtica

    permitiu assimilar ou reconhecer um ponto de ruptura na tradio materialista

    representado pela preocupao com a linguagem a questo quanto ao caminho a ser

    tomado da em diante uma outra discusso33. Tendo-se em mente essas iniciativas,

    talvez a presente tese possa ser vista como um prolongamento tardio dessa discusso ou

    como uma alternativa a ela.

    32 Cf., para o paradigma comunicativo os conceitos de trabalho e interao em Habermas, Tcnica e Cincia como Ideologia [1968], trad. A. Moro. Lisboa: Edies 70, 2001, p. 57. Cf. ainda Claus Offe, Capitalismo desorganizado: transformaes contemporneas do trabalho e da poltica, trad. W. C. Brant. So Paulo: Brasiliense, 1989, especialmente o captulo Trabalho: a categoria sociolgica chave?, ps. 167-197; bem como Albrecht Wellmer, Kommunikation und Emanzipation. berlegungen zur "sprachanalytischen Wende" der kritischen Theorie in Urs Jaeggi & Axel Honneth (orgs.), Theorien des historischen Materialismus. Frankfurt: Suhrkamp, 1977, ps. 482 e ss. 33 A segunda gerao da teoria crtica contaria, alm da teoria do agir comunicativo de Jrgen Habermas, com a teoria das lutas por reconhecimento, ambas engajadas em identificar um contedo normativo para a teoria social cf. Habermas, Theorie des kommunikativen Handelns, v. 2, ps. 548 e ss.; e Axel Honneth, Luta por reconhecimento: a gramtica moral dos conflitos sociais, trad. L. Repa. So Paulo: 34, 2003. Para a crtica da pretensa herana crtica por Habermas, bem como para uma proposta que retoma trabalho e linguagem em chave dialtica, cf. Fernando Haddad, Trabalho e linguagem: para a renovao do socialismo. Rio de Janeiro: Azougue, 2004.

  • 14

    A presente proposta contraria as pretenses declaradas da teoria de sistemas de

    Luhmann e, apesar disso, pretende ser desenvolvida tomando como ponto de partida a

    sua premissa essencial (a diferena sistema/ambiente). De maneira pouco rigorosa: uma tarefa ao mesmo tempo luhmanniana e anti-luhmanniana; e por outro lado,

    provocativamente: se as premissas da teoria apresentam uma feio anti-dialtica, e se a

    teoria de sistemas sociais ser submetida a uma crtica interna rigorosa que, em seu

    ponto mais alto, nos permitir formular uma espcie de dialtica da diferenciao

    funcional, trata-se, por uma outra via, de um ponto de partida anti-marxiano que

    poder levar a concluses diretamente inspiradas por Marx. Trata-se, por outras

    palavras, de testar os limites e as possibilidades da teoria de sistemas sociais

    independentemente dos resultados a que seremos conduzidos. No importa se

    luhmanniana ou anti-luhmanniana, marxista ou anti-marxista nossa tentativa

    sobretudo anti-dogmtica. A crtica imanente no pode recuar nem mesmo diante de

    seus prprios pressupostos e pontos de partida; mesmo eles tm de ser radicalmente

    postos a prova. Visto mais de perto, nosso programa de pesquisa est formulado de tal

    modo que testar os limites e as possibilidades da teoria de sistemas sociais poderia ser

    visto igualmente como um teste para a prpria dialtica e isso, de novo,

    independentemente dos resultados que obteremos ao final de nosso percurso pelo

    labirinto conceitual luhmanniano.

    Temos em mente a inquietao clssica que remonta fundao da teoria social: como a

    ordem social possvel? e, em certo sentido, esta tese procura escrutar a resposta de

    Luhmann a essa questo34.

    A teoria de sistemas sociais de Luhmann pode oferecer modelos analticos altamente

    sofisticados e suficientemente apurados para subsidiar a compreenso da sociedade

    contempornea na medida em que seja submetida a uma recepo crtica capaz de

    alargar seu aparato conceitual a partir de suas principais premissas e de seus

    pressupostos mais elementares. Muitos crticos acentuam certo distanciamento por parte

    de Luhmann no diagnstico da sociedade contempornea, to complexa quanto

    34 Cf. Niklas Luhmann, Wie ist soziale Ordnung mglich? in Gesellschaftsstruktur und Semantik. Studien zur Wissenssoziologie der modernen Gesellschaft, v. 2. Frankfurt: Suhrkamp, 1981, ps. 195-285.

  • 15

    contraditria35. Desenvolvendo possibilidades ainda inertes da teoria de sistemas sociais

    para alm de seus limites, veremos que mesmo partindo das entranhas do funcionalismo

    luhmanniano ser possvel obter um resultado com traos dialticos; ao fim e ao cabo, o

    distanciamento pretendido por Luhmann pode ser convertido em crtica sem recurso a

    uma crtica externa, mesmo contra a orientao declarada da teoria. A teoria de

    sistemas sociais de Luhmann parece oferecer um instrumento analtico para a

    compreenso da sociedade atual de extrema valia e que pode viabilizar um quadro

    terico competente e atualizado para a crtica da sociedade capitalista contempornea,

    talvez mais rico e profcuo do que a pretensa segunda gerao da teoria crtica da

    sociedade. No se pretende argumentar que, por essa via, ser possvel renovar a teoria

    crtica da sociedade. Essa questo que no est bloqueada de sada, mas que no

    constitui o objeto desta tese conscientemente deixada em aberto. O que, espera-se,

    ficar claro, que a teoria de sistemas, polida em algumas de suas lentes, certamente

    permitir renovar um ponto de vista crtico acerca da sociedade contempornea;

    permitir abrir nova senda para uma teoria da sociedade com potencial crtico

    revigorado.

    35 Cf., e.g., Sergio Belardinelli, Una sociologia senza qualit: saggi su Luhmann. Milano: Francoangeli, 1993, ps. 7/8.

  • Parte I

  • 17

    1.

    A materialidade da comunicao

    A teoria de sistemas sociais ser apresentada neste captulo pelo vis da materialidade

    da comunicao. Parece possvel apreender a sociedade contempornea do ponto de

    vista da comunicao sem perder com isso a dimenso da materialidade dos processos

    comunicativos, mas tambm sem o recurso a uma base material exgena enraizada na

    esfera da produo, do trabalho ou dos interesses econmicos. A tarefa identificar a

    materialidade inerente prpria comunicao e, como tal, guiada por regras da

    sociedade. Tal apresentao, contra-intuitiva, sugere algum materialismo em

    Luhmann que em geral no percebido pela literatura especializada. Ao invs de

    principiarmos diretamente pelo conceito de autopoiese, apresentaremos uma via de

    acesso teoria de sistemas sociais que destaca o substrato material da comunicao e

    sua importncia para a diferenciao funcional de sistemas. Para tanto, abordaremos a

    materialidade da comunicao a fim de realar um movimento de continuidade e ruptura

    com a tradio materialista: continuidade, por conta da revitalizao do potencial crtico

    da teoria da sociedade permitida pela dimenso material da prtica social; ruptura

  • 18

    porque essa dimenso material no est na esfera da produo, mas no elemento exterior

    da comunicao, na auto-referncia objetiva que estrutura a comunicao da sociedade

    (seo I). O sentido, categoria fundamental da sociologia luhmanniana, somente pode

    ser bem compreendido tendo em conta o funcionamento dessa auto-referncia objetiva

    (seo II). Por sua vez, a apresentao da diferenciao funcional de sistemas exigir

    captar a teoria da comunicao de Luhmann ao longo dos processos de desenvolvimento

    da imprensa (seo III) e da institucionalizao de generalizaes simblicas,

    abandonando-se o ato de fala como fundamento da interao (seo IV). Sobre essa

    base, ser possvel apresentar a diferenciao dos meios de comunicao

    simbolicamente generalizados como elemento catalisador da diferenciao funcional da

    sociedade (seo V). Finalmente, veremos como a diferenciao funcional da sociedade

    orienta o comportamento humano (seo VI).

    I

    Talvez uma das mais interessantes recepes da teoria de sistemas de Luhmann possa

    ser localizada no movimento terico auto-intitulado materialidade da comunicao.

    Alis, mais precisamente, o aporte para a leitura de Luhmann por esse vis parte de

    breves apontamentos de representantes desse movimento, deixados at hoje sem os

    desdobramentos possveis. Com efeito, a indicao de um movimento parece

    exagerada para uma iniciativa de pesquisa que no logrou estabelecer uma nova

    corrente na teoria da comunicao ou na teoria social, tendo permanecido isolada,

    restrita a pesquisas especializadas e pouco difundidas na comunidade acadmica

    internacional. O movimento se resume na verdade a um pequeno nmero de artigos

    publicados em decorrncia de uma srie de colquios organizadas por Hans Ulrich

    Gumbrecht, professor de literatura na Universidade de Stanford e K. Ludwig Pfeiffer,

    professor de ingls e teoria literria na Universidade de Siegen, na Alemanha1.

    1 Cf., e.g., Hans Ulrich Gumbrecht & K. Ludwig Pfeiffer (orgs.): Materialitt der Kommunikation. Frankfurt: Suhrkamp, 1988; Schrift. Mnchen: Wilhelm Fink, 1993; e Materialities of Communication, trad. W. Whobrey. Stanford: Stanford University Press, 1994. Para a histria dos colquios, Gumbrecht, Diesseits der Hermeneutik. Die Produktion von Prsenz, trad. J. Schulte. Frankfurt: Suhrkamp, 2004, especialmente o captulo Materialitt/Das Nichthermeneutische/Prsenz Anedokten ber epistemologische Verschiebungen, ps. 17-37. A materialidade da comunicao parece ter estabelecido uma linha de pesquisa mais consistente somente no jornalismo e na teoria da comunicao cf., e.g., a

  • 19

    Entende-se por materialidade da comunicao o deslocamento da anlise do sentido

    para a prtica social que o constitui, destacando-o das tradicionais formas hermenuticas

    impregnadas pela filosofia do sujeito que assumiam o sentido como um dado da

    conscincia como intencionalidade, para falar com a fenomenologia passando assim

    a inseri-lo nas condies sociais em que ele se permite constituir. Se verdade que o

    problema da linguagem alcanou uma posio semelhante ocupada pela conscincia

    h cerca de dois sculos, seguindo o diagnstico de Hans-Georg Gadamer2, a

    materialidade da comunicao cuida de substituir a apreenso do sentido pelo sujeito

    que interpreta o mundo (com recurso apenas sua prpria conscincia) pela anlise das

    condicionantes sociais da formao do sentido e dos portadores materiais do sentido. A

    materialidade da comunicao expressa assim o conjunto de elementos materiais que

    contribuem para a emergncia do sentido, mas que no pertencem, eles mesmos,

    diretamente esfera do sentido propriamente dito: o corpo humano, a conscincia, o

    texto escrito, as novas tecnologias comunicativas e os meios de comunicao so os

    exemplos mais comuns a materialidade da comunicao expressa por isso uma

    dimenso de exterioridade.

    Essa exterioridade, junto com o corpo humano (ou, mais precisamente: corpos

    humanos), um ponto de referncia central para o programa de pesquisa chamado

    "materialidades da comunicao". (...) [Pode-se descrever] "materialidades da

    comunicao" como a totalidade dos fenmenos que contribuem para a

    constituio do sentido sem serem, eles mesmos, o sentido3.

    Na origem, a corrente da materialidade da comunicao sustentava expressamente a

    pretenso de se manter fiel ao marxismo4. O progresso dos colquios e das publicaes,

    contudo, conduziu o movimento para uma perspectiva mais ampla de crtica das

    cincias humanas como cincias do esprito (Geisteswissenschaften) fundadas na

    tradio hermenutica isto , na interpretao, investigao e atribuio de sentido por

    um sujeito ao objeto interpretado; tratava-se ento de substituir a conscincia

    hermenutica pela anlise da prtica social que produz sentido objetivamente. coletnea de Klaus Merten, Siegfried J. Schmidt & Siegfried Weischenberg (orgs.), Die Wirklichkeit der Medien. Eine Einfhrung in die Kommunikationswissenschaft. Opladen: Westdeutscher, 1994. 2 Hans-Georg Gadamer, Die Universalitt des Hermeneutischen Problems in Kleine Schriften I [1967], 2 ed. Tbingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1976, p. 101. 3 Gumbrecht, A Farewell to Interpretation, in Materialities of Communication, ps. 394-398 gr. orig. 4 Gumbrecht, Diesseits der Hermeneutik, p. 23.

  • 20

    Mas se h uma afinidade entre a materialidade da comunicao e o materialismo

    histrico e se, no obstante essa afinidade, a materialidade da comunicao tem um

    sentido especfico, qual a linha demarcatria entre um e outro? Qual a relao entre o

    materialismo e a materialidade da comunicao? E mais: se, com efeito, o materialismo

    histrico talvez no permitisse passar diretamente a Luhmann, como e por que a

    materialidade da comunicao permite alcanar nosso autor?

    No possvel nem til para o argumento desta tese repassar a histria do marxismo e

    de como o materialismo de Marx foi recepcionado no sculo XX em diferentes

    matizes5. Mas h que se mencionar pelo menos a teoria crtica da sociedade

    desenvolvida no Institut fr Sozialforschung em Frankfurt, capitaneado por Horkheimer

    e Adorno; e, de outro lado, a semitica textual do grupo Tel Quel, em Paris, nos anos

    1960 e 1970, que contava com Jacques Derrida e Julia Kristeva, dentre outros.

    Enquanto a Escola de Frankfurt se organizou como teoria da sociedade no sentido

    dialtico da crtica da economia poltica6, a semitica textual ou semanlise, para

    falar com Kristeva orientou-se anlise da linguagem como trabalho, ao estudo da

    significncia no texto que pretendia, com isso, renovar a crtica ideologia e aos

    discursos estabelecidos7. A afinidade entre esses dois movimentos e a anlise marxiana

    do fetichismo da mercadoria evidente8.

    O movimento de recuperao da dimenso material da comunicao foi motivado em

    resposta virada imaterial, por assim dizer, experimentada pelos estudos culturais na

    Frana na dcada de 1980, originados por sua vez do estruturalismo dos anos 1960.

    Entre 28 de maro e 15 de julho de 1985, o Centro Georges Pompidou, em Paris,

    apresentou uma instalao intitulada Les immatriaux, objeto do livro homnimo de

    Jean-Franois Lyotard. O projeto original, de 1983, cuidava de examinar a matria em

    todos os seus estados, mas o resultado final da pesquisa trouxe significativa mudana

    5 Basta, para tanto, fazer referncia erudita Vorlesung de Max Horkheimer, Geschichte des Materialismus [1957] in Gesammelte Schriften, v. 13. Frankfurt: Fischer Taschenbuch, 1989, ps. 397-451; bem como a Perry Anderson, Consideraes sobre o marxismo ocidental - Nas trilhas do materialismo histrico, trad. I. Tavares. So Paulo: Boitempo, 2004. 6 Horkheimer, Traditionelle und kritische Theorie in Zeitschrift fr Sozialforschung 6, 1937, p. 261, nota 1. 7 Cf. Julia Kristeva, Matire, sens, dialectique in Tel Quel 44, 1971, ps. 27 e ss.; e Introduo semanlise [1969], trad. L. H. F. Ferraz. So Paulo: Perspectiva, 1974. 8 Cf., nesse sentido, Karlheinz Barck, Materialitt, Materialismus, Performance in Materialitt der Kommunikation, p. 131.

  • 21

    de perspectiva com relao ao escopo inicial: a execuo do projeto deixou claro que as

    novas tecnologias, especialmente as chamadas tecnologias da informao e da

    comunicao, representavam materiais imateriais, conduzindo o experimento da

    perspectiva da materialidade para a perspectiva da imaterialidade e, com isso,

    crtica do materialismo, marxista inclusive. O ponto central, contudo, que a crtica ao

    materialismo (de novo: marxista inclusive) no tem necessariamente de conduzir ao

    puro imaterial9.

    certo que a materialidade da comunicao no se apresenta como substituta do

    materialismo histrico luz de sua prpria histria, o materialismo traz consigo uma

    carga (poltica, ideolgica, terica etc.) da qual ele no pode se despir de um golpe, e foi

    para renovar a capacidade crtica permitida pela dimenso material da prtica social que

    se desenvolveu o conceito de materialidade da comunicao10. Tratava-se de sustentar a

    possibilidade da crtica a partir da dimenso exterior ao sentido que, como tal, diz

    respeito s condies materiais de sua constituio. Por essa razo, ela pode parecer um

    programa terico obsoleto. Mas, se no obsoleto, ou: ainda que obsoleto, a perspectiva

    da materialidade da comunicao certamente uma aproximao improvvel teoria de

    sistemas de Luhmann. Contra a intuio e o senso comum (e, a rigor, contra o prprio

    Luhmann), a teoria de sistemas sociais permite o mais adequado tratamento da

    materialidade da comunicao. Luhmann, em seu livro sobre os meios de comunicao

    de massa, menciona a importncia das materialidades da comunicao para esse sistema

    social especfico precisamente para excluir tal dimenso de sua teoria da comunicao,

    sob o argumento de que a materialidade no pode ser comunicada11. Ora, mas s por

    isso que ela condiciona a comunicao. A materialidade da comunicao no diz

    respeito apenas ao sistema social dos meios de comunicao de massa mas, em um nvel

    mais geral, est relacionada alterao da infra-estrutura social da comunicao em

    funo da difuso da escrita e da imprensa e, por essa razo, determina a diferenciao

    funcional de sistemas a despeito da rejeio expressa do prprio Luhmann.

    9 Cf., nesse sentido, Pfeiffer, The Materiality of Communication in Materialities of Communication, ps. 1/2; e Barck, Materialitt, Materialismus, Performance, ps. 121-129. Para a crtica dos estudos culturais na Frana, cf. Terry Eagleton, After Theory. New York: Basic Books, 2003. 10 Barck, Materialitt, Materialismus, Performance, p. 128. 11 Luhmann, Die Realitt der Massenmedien [1995], 3 ed. Wiesbaden: VS, 2004, ps. 13/14, nota 5.

  • 22

    Para entender por que Luhmann oferece o melhor enquadramento para o

    desenvolvimento de uma teoria social que parte da materialidade da comunicao (e

    tambm para entender por que a escrita crucial para a diferenciao funcional da

    sociedade), vale uma breve digresso que toca o primeiro Derrida.

    A materialidade da comunicao est relacionada exterioridade da linguagem, tal

    como concebida por Derrida em sua crtica ao fonocentrismo e ao logocentrismo. Na

    tradio ocidental, a fala subsume, como modelo comunicativo totalizante, todas as

    outras formas comunicativas, fazendo com que a escrita seja imaginada como derivada

    da fala (e o gesto, por exemplo, um rudimento da fala), tendo essa tradio alcanado

    sua forma mais radical na fenomenologia de Edmund Husserl. Em seu clssico ensaio A

    voz e o fenmeno, Derrida faz uma crtica da metafsica com recurso lingstica tendo

    em mente o privilgio ininterrupto conferido fala em detrimento da escrita, como se

    essa fosse apenas a reproduo grfica daquela12. Essa , com efeito, a apresentao da

    diferena entre fala e escrita na lingstica de Ferdinand de Saussure:

    Lngua e escrita so dois sistemas distintos de signos; a nica razo de ser do

    segundo representar o primeiro; o objeto lingstico no se define pela

    combinao da palavra escrita e da palavra falada; esta ltima, por si s, constitui

    tal objeto13.

    O ponto de partida o liame originrio entre o logos e a phon que remonta aos

    primrdios da filosofia ocidental. Se, para Aristteles, os sons emitidos pela voz so

    smbolos dos estados da alma, e se as palavras escritas so os smbolos das palavras

    faladas, tem-se uma irmandade originria entre a voz e a alma: a phon tem um acesso

    privilegiado e imediato ao sentido produzido idealmente como logos14.

    Husserl enfrenta o problema da intersubjetividade partindo da conscincia individual

    orientada pela intuio, de forma que a reduo ao monlogo um pr entre parnteses

    12 Cf. Jacques Derrida, La voix et le phnomne [1967], 2 ed. Paris: Quadrige/Presses Universitaires de France, 1998. Quanto crtica de Derrida a Husserl, cf. Gumbrecht, A Farewell to Interpretation, p. 393 e ss.; e Habermas, Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt: Suhrkamp, 1985, ps. 191-218. 13 Ferdinand de Saussure, Curso de lingstica geral [1916], 27 ed., trad. A. Chelini et alii. So Paulo: Cultrix, 2006, p. 34 gr. acr. 14 Cf. Jacques Derrida, Gramatologia [1967], 2 ed., trad. M. Chnaiderman & R. J. Ribeiro. So Paulo: Perspectiva, 2006, p. 13.

  • 23

    da existncia emprica15. A fala, ento, o medium por meio do qual as conscincias

    constroem a intersubjetividade: o falante se manifesta, emite um som associado a atos

    dotados de significado e o ouvinte compreende o sentido dessa fala. Seguindo a

    premissa kantiana da filosofia da conscincia a saber: compreendendo o significado

    idntico a si mesmo como idealidade acessvel conscincia pela subjetividade

    transcendental e nessa medida independente da esfera emprica Husserl concebe um

    processo de auto-certificao da vivncia atual que somente pode ser um processo auto-

    referencial e subjetivo, enraizado na representao lingstica das palavras que

    acompanham o pensamento silencioso como palavras imaginadas, tal como se fossem

    pronunciadas pela prpria voz do sujeito desse pensamento. A reduo fenomenolgica

    do problema da intersubjetividade ao monlogo, a um expediente de ouvir-se falar,

    faz com que todo o sentido seja concebido em uma esfera de interioridade. Dessa

    maneira, a voz fenomenolgica assegura a auto-afeco pura e independente de

    qualquer exterioridade, como se o sujeito dominasse perfeitamente o significante16. O

    falante, quando se ouve em pensamento, efetua trs operaes simultneas: produz

    uma forma fontica, percebe que o significado dessa forma o afeta e entende a inteno

    de significado expressa nesse ato: Essa propriedade explica no apenas o primado da

    palavra falada, mas tambm a sugesto de que o ser do inteligvel seja a presena

    vivenciada sem corpo, por assim dizer; presentificada e certificada por