1994 ANO DA FAMLIA

CARTA DO PAPA JOO PAULO II S FAMLIAS

Queridas Famlias!

1. A celebrao do Ano da Famlia oferece-me o feliz ensejo de bater porta da vossa casa, no desejo de vos apresentar as mais afectuosas saudaes e conversar convosco. Fao-o atravs desta Carta, que inicio com as palavras da Encclica Redemptor hominis, publicada nos primeiros dias do meu Ministrio Petrino. Escrevia ento : o homem a via da Igreja (1).

Com esta afirmao, queria sobretudo aludir s mltiplas estradas ao longo das quais caminha o homem, e ao mesmo tempo sublinhar quo vivo e profundo o desejo da Igreja de o acompanhar no percurso das vias da sua existncia terrena. A Igreja toma parte nas alegrias e nas esperanas, nas tristezas e nas angstias (2) do caminho quotidiano dos homens, profundamente convicta de que foi o prprio Cristo Quem a introduziu em todas estas sendas: foi Ele que confiou o homem Igreja; confiou-o como via da sua misso e ministrio.

A famlia: via da Igreja

2. Dentre essas numerosas estradas, a primeira e a mais importante a famlia: uma via comum, mesmo se permanece particular, nica e irrepetvel, como irrepetvel cada homem; uma via da qual o ser humano no pode separar-se. Com efeito, normalmente ele vem ao mundo no seio de uma famlia, podendo-se dizer que a ela deve o prprio facto de existir como homem. Quando falta a famlia logo chegada da pessoa ao mundo, acaba por criar-se uma inquietante e dolorosa carncia que pesar depois sobre toda a vida. A Igreja une-se com afectuosa solicitude a quantos vivem tais situaes, porque est bem ciente do papel fundamental que a famlia chamada a desempenhar. Ela sabe, ainda, que normalmente o homem sai da famlia para realizar, por sua vez num novo ncleo familiar, a prpria vocao de vida. Mesmo quando opta por ficar sozinho, a famlia permanece, por assim dizer, o seu horizonte existencial, como aquela comunidade fundamental onde se radica toda a rede das suas relaes sociais, desde as mais imediatas e prximas at s mais distantes. Porventura no usamos a expresso famlia humana, para nos referirmos ao conjunto dos homens que vivem no mundo?

A famlia tem a sua origem naquele mesmo amor com que o Criador abraa o mundo criado, como se afirma j ao princpio, no livro do Gnesis (1, 1). Uma suprema confirmao disso mesmo, no-la oferece Jesus no Evangelho: Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho unignito (Jo 3, 16). O Filho unignito, consubstancial ao Pai, Deus de Deus, Luz da Luz, entrou na histria dos homens atravs da famlia: Pela sua encarnao, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mos humanas, (...) amou com um corao humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-Se verdadeiramente um de ns, semelhante a ns em tudo, excepto no pecado (3). Se certo que Cristo revela plenamente o homem a si mesmo (4), f-lo a comear da famlia onde Ele escolheu nascer e crescer. Sabe-se que

o Redentor passou grande parte da sua vida no recanto escondido de Nazar, submisso (Lc 2, 51) como filho do homem a Maria, sua Me, e a Jos, o carpinteiro. Esta sua obedincia filial no j a primeira manifestao daquela obedincia ao Pai at morte (Fil 2, 8), por meio da qual redimiu o mundo?

O mistrio divino da Encarnao do Verbo est, pois, em estreita relao com a famlia humana. No apenas com uma a de Nazar , mas de certo forma com cada famlia, analogamente a quanto afirma o Conclio Vaticano II do Filho de Deus que, na encarnao, Se uniu de certo modo com cada homem (5). Seguindo a Cristo que veio ao mundo para servir (Mt 20, 28), a Igreja considera o servio famlia uma das suas obrigaes essenciais. Neste sentido, tanto o homem como a famlia constituem a via da Igreja.

O Ano da Famlia

3. Por isso mesmo, a Igreja sada com alegria a iniciativa promovida pela Organizao das Naes Unidas, de fazer de 1994 o Ano Internacional da Famlia. Tal iniciativa pe em realce o quanto seja fundamental a questo familiar para os Estados que so membros da ONU. Se a Igreja deseja tomar parte nela, f-lo porque ela mesma foi enviada por Cristo a todas as naes (Mt 28, 19). No a primeira vez, alis, que a Igreja assume como prpria uma iniciativa internacional da ONU. Basta recordar, por exemplo, o Ano Internacional da Juventude em 1985. Tambm deste modo ela se faz presente no mundo, realizando a inteno grata ao Papa Joo XXIII e inspiradora da Constituio conciliar Gaudium et spes.

Na festa da Sagrada Famlia de 1993, teve incio em toda a Comunidade eclesial o Ano da Famlia, como uma das etapas significativas no itinerrio de preparao para o Grande Jubileu do ano 2000, que assinalar o fim do segundo e o incio do terceiro Milnio do nascimento de Jesus Cristo. Este Ano deve orientar os nossos pensamentos e os nossos coraes para Nazar, onde, no passado dia 26 de Dezembro, aquele foi oficialmente inaugurado com a solene Celebrao Eucarstica presidida pelo Legado Pontifcio.

Ao longo deste Ano, importante redescobrir os testemunhos do amor e da solicitude da Igreja pela famlia: amor e solicitude expressos desde os primrdios do cristianismo, quando a famlia era significativamente considerada como igreja domstica. Nos nossos tempos, voltamos frequentemente a esta expresso igreja domstica, que o Conclio assumiu (6) e cujo contedo desejamos permanea sempre vivo e actual. Este desejo no esmorece com a conscincia das novas condies das famlias no mundo de hoje. Por isso mesmo, mais significativo que nunca o ttulo escolhido pelo Conclio, na Constituio pastoral Gaudium et spes, para indicar as tarefas da Igreja na situao actual: A promoo da dignidade do matrimnio e da famlia (7). Depois do Conclio, um outro ponto importante de referncia a Exortao apostlica Familiaris consortio do ano 1981. Neste texto, encara-se uma vasta e complexa experincia relativa famlia, que, no meio de povos e pases diversos, permanece sempre e em todo o lado a via da Igreja. De certo modo, torna-se-lo ainda mais precisamente l onde a famlia sofre crises internas, ou est sujeita a influncias culturais, sociais e econmicas nocivas, que lhe minam a estabilidade interna, quando no obstaculizam mesmo a sua prpria formao.

A orao

4. Com a presente Carta, quereria dirigir-me no famlia em abstracto, mas a cada famlia concreta de cada regio da terra, qualquer que seja a longitude e latitude geogrfica, onde se encontre, ou a diversidade e complexidade da sua cultura e da sua histria. O amor com que Deus amou o mundo (Jo 3, 16), o amor com que Cristo amou at ao fim a todos e cada um (Jo 13, 1), torna possvel dirigir esta mensagem a toda a famlia, clula vital da grande e universal famlia humana. O Pai, Criador do universo, e o Verbo encarnado, Redentor da humanidade, constituem a fonte desta abertura universal aos homens como a irmos e irms, e impele a abra-los todos com a orao que comea pelas ternas palavras: Pai nosso.

A orao faz com que o Filho de Deus habite no meio de ns: Onde estiverem reunidos, em meu Nome, dois ou trs, Eu estou no meio deles (Mt 18, 20). Esta Carta s Famlias quer ser sobretudo uma splica dirigida a Cristo, para que permanea em cada famlia humana; uma splica feita a Ele, atravs da famlia restrita dos pais e filhos, para que habite na grande famlia das naes, a fim de que todos, juntos com Ele, possamos dizer com verdade: Pai nosso! preciso que a orao se torne o elemento predominante do Ano da Famlia na Igreja: orao da famlia, orao pela famlia, orao com a famlia.

Significativo que, precisamente na orao e pela orao, o homem descubra, de modo to simples e ao mesmo tempo profundo, a sua tpica subjectividade: na orao, o eu humano percebe mais facilmente a profundidade do seu ser pessoa. Isto vale tambm para a famlia, que no apenas a clula fundamental da sociedade, mas possui mesmo uma prpria e peculiar subjectividade. Esta obtm a sua primeira e fundamental confirmao, e consolida-se, quando os membros da famlia se encontram na invocao comum: Pai nosso. A orao refora a estabilidade e a solidez espiritual da famlia, ajudando a fazer com que esta participe da fortaleza de Deus. Na solene bno nupcial durante o rito do matrimnio, o celebrante invoca deste modo o Senhor: Efunde sobre eles (os recm-casados) a graa do Esprito Santo, a fim de que, em virtude do teu amor derramado nos seus coraes, perseverem fiis na aliana conjugal (8). desta efuso do Esprito Santo que dimana a fora interior das famlias, bem como o poder susceptvel de as unificar no amor e na verdade.

O amor e a solicitude por todas as famlias

5. Que o Ano da Famlia se torne uma comum e incessante orao de cada uma das igrejas domsticas e de todo o Povo de Deus! Desta orao, beneficiem tambm as famlias em dificuldade ou em perigo, as famlias desanimadas ou divididas, e aquelas que se encontram nas situaes que a Familiaris consortio qualifica como irregulares (9). Possam sentir-se todas abraadas pelo amor e pela solicitude dos irmos e das irms!

A orao, no Ano da Famlia, constitua sobretudo um testemunho encorajador por parte das famlias que realizam na comunho domstica a sua vocao de vida humana e crist. E so tantas em cada nao, diocese e parquia! Pode-se razoavelmente pensar que elas constituem a regra, mesmo tendo presente as no poucas situaes irregulares. E a experincia demonstra como o papel de uma famlia coerente com a norma moral importante para o homem, que nela nasce e se forma, ingressar sem

hesitaes pela estrada do bem, inscrito sempre no seu corao. Nos nossos dias, infelizmente, vrios programas sustentados por meios muito poderosos parecem apostados na desagregao das famlias. s vezes, at parece que se procure, por todas as formas possveis, apresentar como regulares e atraentes, conferindo-lhes externas aparncias de fascnio, situaes que, de facto, so irregulares. Estas, efectivamente, contradizem a verdade e o amor que devem inspirar e guiar a recproca relao entre homens e mulheres, sendo assim causa de tenses e divises nas famlias, com graves consequncias especialmente sobre os filhos. Fica obscurecida a conscincia moral, aparece deformado o que verdadeiro, bom e belo, e a liberdade acaba suplantada por uma verdadeira e prpria escravido . Perante tudo isto, como ressoam actuais e incentivadoras as palavras do apstolo Paulo acerca da liberdade com que Cristo nos libertou, e da escravido causada pelo pecado (cf. Gl 5, 1)!

Damo-nos, assim, conta de quanto seja oportuno e at necessrio na Igreja um Ano da Famlia; quo indispensvel seja o testemunho de todas as famlias que vivem dia-a-dia a sua vocao; quanta urgncia exista de uma grande orao das famlias, que aumente e atravesse o mundo inteiro, e na qual se exprima a aco de graas pelo amor na verdade, pela efuso da graa do Esprito Santo (10), pela presena de Cristo entre os pais e os filhos: Cristo Redentor e Esposo, que nos amou at ao fim (cf. Jo 13, 1). Estamos intimamente persuadidos de que este amor maior que tudo (cf. 1 Cor 13, 13), e cremos que ele capaz de superar vitoriosamente tudo o que no amor.

Neste ano, eleve-se incessante a orao da Igreja, a orao das famlias, igrejas domsticas! E faa-se ouvir primeiro a Deus e depois tambm aos homens, para que estes no caiam na dvida, e quantos vacilam por causa da fragilidade humana no cedam seduo tentadora de bens s aparentes, como so aqueles propostos em toda a tentao.

Em Can da Galileia, onde Jesus foi convidado para um banquete de npcias, a sua Me, tambm Ela presente, dirigiu-se aos serventes, dizendo: Fazei o que Ele vos disser (Jo 2, 5). Tambm a ns, entrados no Ano da Famlia, Maria nos dirige as mesmas palavras. E aquilo que Cristo nos diz neste momento histrico particular, constitui um forte apelo a uma grande orao com as famlias e pelas famlias. Por esta orao, a Virgem Me convida a unirmo-nos aos sentimentos do Filho, que ama cada uma das famlias. Este amor foi por Ele expresso ao incio da sua misso de Redentor, precisamente com a sua presena santificadora em Can da Galileia, presena que ainda agora continua.

Rezemos pelas famlias de todo o mundo. Por Ele, com Ele e n'Ele, rezemos ao Pai, do Qual toda a paternidade, nos Cus como na Terra, toma o nome (Ef 3, 15).

I

A CIVILIZAO DO AMOR

Ele os criou homem e mulher

6. O cosmos, imenso e to diversificado, o mundo de todos os seres vivos est inscrito na paternidade de Deus como sua fonte (cf. Ef 3, 14-16). Naturalmente, est l inscrito

segundo o princpio da analogia que nos permite individuar, j ao incio do livro do Gnesis, a realidade da paternidade e maternidade, e, consequentemente, da famlia humana tambm. A chave interpretativa est na expresso imagem e semelhana de Deus, que o texto bblico acentua com grande relevo (Gn 1, 26). Deus cria em virtude da sua palavra: Faa-se! (por exemplo, Gn 1, 3). significativo que esta palavra de Deus, no caso da criao do homem, seja completada pelos seguintes termos: Faamos o homem nossa imagem, nossa semelhana (Gn 1, 26). Antes de criar o homem, o Criador como que reentra em Si mesmo para procurar o modelo e a inspirao no mistrio do seu Ser, que j aqui Se manifesta de algum modo como o Ns divino. Deste mistrio deriva, por via de criao, o ser humano: Deus criou o homem sua imagem, criou-o imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher (Gn 1, 27).

Abenoando os novos seres, Deus diz-lhes: Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra (Gn 1, 28). O livro do Gnesis usa expresses j empregues no contexto da criao dos outros seres vivos: Multiplicai-vos, mas bem claro o seu sentido analgico. No esta a analogia da gerao e da paternidade e maternidade, que se h-de ler luz de todo o contexto? Nenhum dos seres vivos, excepo do homem, foi criado imagem e semelhana de Deus. A paternidade e a maternidade humana, mesmo sendo biologicamente semelhantes s de outros seres da natureza, tm em si mesmas de modo essencial e exclusivo uma semelhana com Deus, sobre a qual se funda a famlia, concebida como comunidade de vida humana, como comunidade de pessoas unidas no amor (Communio personarum).

luz do Novo Testamento, possvel vislumbrar como o modelo originrio da famlia deve ser procurado no prprio Deus, no mistrio trinitrio da sua vida. O Ns divino constitui o modelo eterno do ns humano; e, em primeiro lugar, daquele ns que formado pelo homem e pela mulher, criados imagem e semelhana de Deus. As palavras do livro do Gnesis encerram em si aquela verdade sobre o homem, que corresponde prpria experincia da humanidade. O ser humano criado, desde o princpio, como homem e mulher: a vida da colectividade humana tanto das pequenas comunidades como da sociedade inteira est marcada por esta dualidade primordial. Dela derivam a masculinidade e a feminilidade dos simples indivduos, tal como da recebe cada comunidade a prpria riqueza caracterstica, no recproco complemento das pessoas. A isto mesmo parece aludir a citao do livro do Gnesis: Ele os criou homem e mulher (Gn 1, 27). Esta tambm a primeira afirmao da igual dignidade do homem e da mulher: ambos so, igualmente, pessoas. Esta sua constituio, com a dignidade especfica que da deriva, define desde o princpio as caractersticas do bem comum da humanidade, em todas as dimenses e mbitos da vida. A este bem comum, ambos, o homem e a mulher, do o prprio contributo, graas ao qual se constata, nas prprias razes da convivncia humana, o carcter de comunho e complementariedade.

A aliana conjugal

7. A famlia foi sempre considerada como a primeira e fundamental expresso da natureza social do homem. No seu ncleo essencial, tampouco esta viso mudou hoje. Se bem que, em nossos dias, prefere-se ressaltar na famlia, que constitui a mais pequena e primordial comunidade humana, quanto provm do contributo pessoal do homem e da mulher. A famlia realmente uma comunidade de pessoas, para quem o

modo prprio de existirem e viverem juntas a comunho: comunho de pessoas. Tambm aqui, sempre ressalvando a absoluta transcendncia do Criador relativamente criatura, emerge a referncia exemplar ao Ns divino. Somente as pessoas so capazes de viver em comunho. A famlia tem incio na comunho conjugal, que o Conclio Vaticano II classifica como aliana, na qual o homem e a mulher mutuamente se do e recebem um ao outro (11).

O livro do Gnesis abre-nos a esta verdade quando, referindo-se constituio da famlia mediante o matrimnio, afirma que o homem deixar o pai e a me para se unir sua mulher; e os dois sero uma s carne (Gn 2, 24). No Evangelho, Cristo, em polmica com os fariseus, enuncia as mesmas palavras e acrescenta: Portanto, j no so dois, mas uma s carne. Pois bem, o que Deus uniu, no o separe o homem (Mt 19, 6). Ele revela novamente o contedo normativo de um facto que existe j ao princpio (Mt 19, 8) e que conserva sempre em si esse contedo. Se o Mestre o confirma agora, f-lo para tornar claro e inequivocvel a todos, no limiar da Nova Aliana, o carcter indissolvel do matrimnio, qual fundamento do bem comum da famlia.

Quando, juntamente com o Apstolo, dobramos os joelhos diante do Pai, do Qual toda a paternidade e maternidade recebe o nome (cf. Ef 3, 14-15), tomamos conscincia de que o facto de se tornarem pais faz com que a famlia, j constituda pela aliana conjugal do matrimnio, se realize em sentido pleno e especfico (12). A maternidade implica necessariamente a paternidade e, vice-versa, a paternidade implica necessariamente a maternidade: o fruto da dualidade obsequiada pelo Criador ao ser humano, desde o princpio.

Fiz referncia a dois conceitos afins entre si, mas no idnticos: o conceito de comunho e o de comunidade. A comunho diz respeito relao pessoal entre o eu e o tu. A comunidade, pelo contrrio, supera este esquema na direco de uma sociedade, de um ns. A famlia, comunidade de pessoas, , pois, a primeira sociedade humana. Ela surge no momento em que se realiza a aliana do matrimnio, que abre os cnjuges a uma perene comunho de amor e de vida, e completa-se plenamente e de modo especfico com a gerao dos filhos: a comunho dos cnjuges d incio comunidade familiar. A comunidade familiar est totalmente permeada daquilo que constitui a essncia prpria da comunho. Poder haver, no plano humano, uma outra comunho comparvel quela que acaba por se estabelecer entre a me e o filho, por ela primeiro levado no seio e depois dado luz?

Na famlia assim constituda, manifesta-se uma nova unidade, na qual encontra pleno cumprimento a relao de comunho dos pais. A experincia ensina que esse cumprimento representa, no entanto, uma tarefa e um desafio. A tarefa empenha os cnjuges, na actuao da sua aliana originria. Os filhos, por eles gerados, deveriam est aqui o desafio consolidar tal aliana, enriquecendo e arraigando a comunho conjugal do pai e da me. Quando tal no sucede, h que perguntar-se se o egosmo, que, por causa da inclinao humana para o mal, se esconde inclusive no amor do homem e da mulher, no seja mais forte do que este amor. preciso que os esposos estejam bem cientes disso. necessrio que, desde o princpio, eles tenham os coraes e os pensamentos voltados para aquele Deus, do Qual toda a paternidade toma o nome, a fim de que a sua paternidade e maternidade tirem daquela fonte a fora de se renovarem continuamente no amor.

Paternidade e maternidade representam em si mesmas uma particular confirmao do amor, cuja extenso e profundidade original permitem descobrir. Isso, porm, no acontece automaticamente. , antes, um dever confiado a ambos: ao marido e esposa. Nas suas vidas, a paternidade e a maternidade constituem uma novidade e uma riqueza to sublime que apenas de joelhos possvel abeirar-se delas.

A experincia ensina que o amor humano, por sua natureza orientado para a paternidade e a maternidade, s vezes afectado por uma profunda crise, que o deixa seriamente ameaado. H que tomar em considerao, nesses casos, o recurso aos servios oferecidos pelos consultrios matrimoniais e familiares, mediante os quais possvel valer-se, entre outras coisas, da ajuda de psiclogos e psicoterapeutas especificamente preparados. No se pode esquecer, todavia, que continuam sempre vlidas as palavras do Apstolo: Dobro os joelhos diante do Pai, do Qual toda a paternidade, nos Cus como na Terra, toma o nome. O matrimnio, o matrimnio sacramento, uma aliana de pessoas no amor. E o amor pode ser aprofundado e guardado apenas pelo Amor, aquele Amor que derramado em nossos coraes pelo Esprito Santo, que nos foi concedido (Rom 5, 5). A orao no Ano da Famlia no deveria concentrar-se sobre o ponto crucial e decisivo da passagem do amor conjugal gerao e, por isso, paternidade e maternidade? No precisamente ento que se torna indispensvel a efuso da graa do Esprito Santo, invocada na celebrao litrgica do sacramento do matrimnio?

O Apstolo, dobrando os joelhos diante do Pai, implora-Lhe que vos conceda (...) que sejais poderosamente fortalecidos pelo seu Esprito quanto ao crescimento do homem interior (Ef 3, 16). Esta fora do homem interior necessria na vida familiar, especialmente nos seus momentos crticos, ou seja, quando o amor, que no rito litrgico do consentimento conjugal foi expresso pelas palavras: Prometo ser-te fiel, (...) por toda a nossa vida, chamado a superar um difcil exame.

A unio dos dois

8. Somente as pessoas so capazes de pronunciar tais palavras; apenas elas conseguem viver em comunho sobre a base da escolha recproca, que , ou deveria ser, plenamente consciente e livre. O livro do Gnesis, ao falar do homem que deixa o pai e a me para se unir sua mulher (cf. Gn 2, 24), pe em evidncia a opo consciente e livre que d origem ao matrimnio, tornando marido um filho, e esposa uma filha. Como entender adequadamente esta escolha recproca, se no se tem presente a verdade plena da pessoa, ou seja, do ser racional e livre? O Conclio Vaticano II fala da semelhana com Deus, usando termos muito significativos. Ele faz referncia no apenas imagem e semelhana divina que todo o ser humano j possui enquanto tal, mas tambm e sobretudo a uma certa analogia entre a unio das pessoas divinas entre Si e a unio dos filhos de Deus na verdade e no amor (13).

Esta formulao, particularmente rica e sugestiva, confirma sobretudo o que decide a identidade ntima de cada homem e de cada mulher. Tal identidade consiste na capacidade de viver na verdade e no amor; melhor ainda, consiste na necessidade da verdade e do amor qual dimenso constitutiva da vida da pessoa. Essa necessidade de verdade e de amor abre o homem quer a Deus quer s criaturas: abre-o s outras pessoas, vida em comunho, em particular, ao matrimnio e famlia. Nas palavras do Conclio, a comunho das pessoas, em certo sentido, deriva do mistrio do Ns

trinitrio e, por conseguinte, tambm a comunho conjugal deve ser referida ao mesmo mistrio. A famlia, que tem incio no amor do homem e da mulher, dimana radicalmente do mistrio de Deus. Isto corresponde essncia mais ntima do homem e da mulher, sua constitutiva e autntica dignidade de pessoa.

No matrimnio, o homem e a mulher unem-se entre si to firmemente que se tornam segundo as palavras do livro do Gnesis uma s carne (Gn 2, 24). Homem e mulher por constituio fsica, os dois sujeitos humanos, apesar de somaticamente diferentes, participam de modo igual na capacidade de viver na verdade e no amor. Esta capacidade, caracterstica do ser humano enquanto pessoa, tem uma dimenso conjuntamente espiritual e corprea. atravs do corpo tambm que o homem e a mulher esto predispostos para formarem uma comunho de pessoas no matrimnio. Quando, em virtude da aliana conjugal, eles se unem de tal maneira que se tornam uma s carne (Gn 2, 24), a sua unio deve-se realizar na verdade e no amor, pondo assim em evidncia a maturidade prpria de pessoas criadas imagem e semelhana de Deus.

A famlia, que da deriva, obtm a sua solidez interior da aliana entre os cnjuges, que Cristo elevou a Sacramento. Ela recebe a prpria ndole comunitria, ou melhor, as suas caractersticas de comunho, daquela comunho fundamental dos cnjuges que se prolonga nos filhos. Estais dispostos a receber amorosamente da mo de Deus os filhos e a educ-los...? pergunta o celebrante durante o rito do matrimnio (14). A resposta dos noivos corresponde mais ntima verdade do amor que os une. Assim a sua unio, em vez de os fechar em si mesmos, abre-os a uma nova vida, a uma nova pessoa. Como pais, sero capazes de dar a vida a um ser semelhante a eles, no apenas osso dos seus ossos e carne da sua carne (cf. Gn 2, 23), mas imagem e semelhana de Deus, isto , pessoa.

Ao perguntar: Estais dispostos?, a Igreja recorda aos noivos que eles se encontram perante o poder criador de Deus. So chamados a tornar-se pais, ou seja, a cooperar com o Criador no dom da vida. Cooperar com Deus no chamamento vida de novos seres humanos, significa contribuir para a transmisso daquela imagem e semelhana divina, de que portador todo o nascido de mulher.

A genealogia da pessoa

9. Atravs da comunho de pessoas, que se realiza no matrimnio, o homem e a mulher do incio famlia. Com a famlia est ligada a genealogia de cada homem: a genealogia da pessoa. A paternidade e a maternidade humana esto radicadas na biologia e, ao mesmo tempo, superam-na. O Apstolo, dobrando os joelhos diante do Pai, do Qual toda a paternidade 1, nos Cus como na Terra, toma o nome, em certo sentido coloca diante do nosso olhar o mundo inteiro dos seres vivos, desde os espirituais nos cus at aos corporais na terra. Toda a gerao encontra o seu modelo originrio na Paternidade de Deus. Todavia, no caso do homem, esta dimenso csmica de semelhana com Deus no basta para definir adequadamente a relao de paternidade e maternidade. Quando da unio conjugal dos dois nasce um novo homem, este traz consigo ao mundo uma particular imagem e semelhana do prprio Deus: na biologia da gerao est inscrita a genealogia da pessoa.

Ao afirmarmos que os cnjuges, enquanto pais, so colaboradores de Deus Criador na concepo e gerao de um novo ser humano (15), no nos referimos apenas s leis da biologia; pretendemos sobretudo sublinhar que, na paternidade e maternidade humana, o prprio Deus est presente de um modo diverso do que se verifica em qualquer outra gerao sobre a terra. Efectivamente, s de Deus pode provir aquela imagem e semelhana que prpria do ser humano, tal como aconteceu na criao. A gerao a continuao da criao (16).

Assim, pois, tanto na concepo como no nascimento de um novo homem, os pais encontram-se diante de um grande mistrio (Ef 5, 32). Tambm o novo ser humano, no diversamente dos pais, chamado existncia como pessoa, chamado vida na verdade e no amor. Tal chamamento no se abre s a quanto existe no tempo, mas em Deus abre- -se eternidade. Esta a dimenso da genealogia da pessoa, que Cristo nos revelou definitivamente, projectando a luz do seu Evangelho sobre o viver e o morrer humano e, portanto, sobre o significado da famlia humana.

Como afirma o Conclio, o homem a nica criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma (17). A origem do homem no obedece apenas s leis da biologia, mas sim e directamente vontade criadora de Deus: a esta vontade que se fica a dever a genealogia dos filhos e filhas das famlias humanas. Deus quis o homem desde o princpio e Deus o quer em cada concepo e nascimento humano. Deus quer o homem como um ser semelhante a Si, como pessoa. Este homem, cada homem, criado por Deus por si mesmo. Isto aplica-se a todos, incluindo aqueles que nascem com doenas ou deficincias. Na constituio pessoal de cada um, est inscrita a vontade de Deus que quer o homem como fim, em certo sentido, de si mesmo. Deus entrega o homem a si mesmo, confiando-o contemporaneamente famlia e sociedade, como sua tarefa. Os pais, diante de um novo ser humano, tm, ou deveriam ter, plena conscincia do facto que Deus quer este homem por si mesmo.

Esta sinttica expresso muito rica e profunda. Desde o momento da concepo, e do nascimento depois, o novo ser est destinado a exprimir em plenitude a sua humanidade a encontrar-se como pessoa (18). Isto diz respeito absolutamente a todos, tambm aos doentes crnicos e deficientes. Ser homem a sua vocao fundamental: ser homem medida do dom recebido. medida daquele talento que a humanidade prpria e, s depois, medida dos outros talentos. Neste sentido, Deus quer cada homem por si mesmo. Mas, no desgnio de Deus, a vocao da pessoa ultrapassa os confins do tempo. Vai ao encontro da vontade do Pai, revelada no Verbo encarnado: Deus quer oferecer ao homem a participao na sua prpria vida divina. Cristo diz: Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundncia (Jo 10, 10).

O destino ltimo do homem no est em contraste com a afirmao de que Deus quer o homem por si mesmo? Se criado para a vida divina, existe o homem verdadeiramente por si mesmo? Esta uma pergunta-chave, com grande importncia tanto ao desabrochar como ao findar da existncia terrena: importante por toda a durao da vida. Poderia parecer que, destinando o homem vida divina, Deus o subtraia definitivamente ao seu existir por si mesmo (19). Qual a relao que existe entre a vida da pessoa e a participao na vida trinitria? Responde- -nos S. Agostinho com as clebres palavras: O nosso corao est inquieto, enquanto no repousa em Ti (20). Este corao inquieto indica que, de facto, no h contradio entre uma finalidade e a outra, mas sim uma ligao, uma coordenao, uma unidade profunda.

Pela sua prpria genealogia, a pessoa, criada imagem e semelhana de Deus, precisamente participando na vida d'Ele que existe por si mesma e se realiza. O contedo de tal realizao a plenitude da vida em Deus, a mesma de que fala Cristo (cf. Jo 6, 37-40), que nos redimiu exactamente para nos introduzir nela (cf. Mc 10, 45).

Os cnjuges desejam os filhos para si, vendo neles o coroamento do seu amor recproco. Desejam-nos para a famlia, qual dom preciosssimo (21). um desejo, em certa medida, compreensvel. Todavia, no amor conjugal e no amor paterno e materno, deve inscrever-se a verdade do homem, expressa de maneira sinttica e precisa pelo Conclio com a afirmao de que Deus quer o homem por si mesmo. necessrio, por isso, que a vontade dos pais se harmonize com o querer de Deus: neste sentido, eles devem querer a nova criatura humana como a quer o Criador: por si mesma. A vontade humana est sempre e inevitavelmente sujeita lei do tempo e da caducidade. A vontade divina, pelo contrrio, eterna. Antes que fosses formado no ventre de tua me, Eu j te conhecia l-se no livro do profeta Jeremias; antes que sasses do seio materno, Eu te consagrei (1, 5). Portanto, a genealogia da pessoa est unida primariamente com a eternidade de Deus e, s depois, com a paternidade e a maternidade humana, que se realizam no tempo. No instante mesmo da concepo, o homem j est ordenado para a eternidade em Deus.

O bem comumdo matrimnio e da famlia

10. O consentimento matrimonial define e torna estvel o bem que comum ao matrimnio e famlia. Recebo-te por minha esposa por meu esposo , e prometo ser-te fiel e amar-te e honrar-te, tanto na prosperidade como na provao, por toda a nossa vida (22). O matrimnio uma singular comunho de pessoas. Na base de tal comunho, a famlia chamada a tornar-se comunidade de pessoas. um compromisso que os noivos assumem diante de Deus e da Igreja, como lhes recorda o celebrante no momento em que mutuamente trocam o consentimento (23). Desse compromisso, so testemunhas quantos participam no rito; neles se encontram representadas, em certo sentido, a Igreja e a sociedade, mbitos vitais da nova famlia.

As palavras do consentimento matrimonial definem aquilo que constitui o bem comum do casal e da famlia. Antes de mais, o bem comum dos esposos: o amor, a fidelidade, a honra, a permanncia da sua unio at morte por toda a nossa vida. O bem de ambos, que simultaneamente o bem de cada um, deve tornar-se depois o bem dos filhos. Por sua natureza, o bem comum ao mesmo tempo que une as diversas pessoas, assegura o verdadeiro bem de cada uma. Se a Igreja, como alis o Estado, recebe o consentimento dos cnjuges expresso atravs das palavras acima referidas, f-lo porque aquele est escrito nos seus coraes (Rom 2, 15). So os esposos que se do reciprocamente o consentimento matrimonial, jurando, isto , confirmando diante de Deus a verdade do seu consentimento. Enquanto baptizados, eles so na Igreja os ministros do sacramento do matrimnio. S. Paulo ensina que o seu compromisso recproco um grande mistrio (Ef 5, 32).

Assim, as palavras do consentimento exprimem aquilo que constitui o bem comum dos cnjuges e indicam o que deve ser o bem comum da futura famlia. Desejando p-lo em evidncia, a Igreja pergunta- -lhes se esto dispostos a acolher e a educar crist mente os filhos que Deus lhes quiser dar. A pergunta refere-se ao bem comum do futuro ncleo familiar, tendo presente a genealogia das pessoas, inscrita na prpria constituio do

matrimnio e da famlia. A pergunta sobre os filhos e a sua educao est estritamente ligada com o consentimento conjugal, com o juramento de amor, de respeito conjugal, de fidelidade at morte. O acolhimento e a educao dos filhos duas das finalidades principais da famlia esto condicionados pelo cumprimento desse compromisso. A paternidade e a maternidade representam uma tarefa de natureza conjuntamente fsica e espiritual; atravs daquelas, passa realmente a genealogia da pessoa, que tem o seu princpio eterno em Deus e a Ele deve conduzir.

O Ano da Famlia, ano de particular orao das famlias, deveria tornar cada famlia consciente de tudo isto, de um modo novo e profundo. Existe uma grande riqueza de motivos bblicos, que pode servir de substrato a essa orao. s palavras da Sagrada Escritura, necessrio juntar sempre a recordao pessoal dos cnjuges-pais, e a dos filhos e netos. Mediante a genealogia das pessoas, a comunho conjugal torna-se comunho das geraes. A unio sacramental dos dois, selada pela aliana estipulada diante de Deus, perdura e consolida-se na sucesso das geraes. Essa unio sacramental deve tornar-se unio de orao. Mas, para que isto possa transparecer significativamente no Ano da Famlia, indispensvel que a orao se torne um hbito arraigado na vida quotidiana de cada famlia. A orao aco de graas, louvor a Deus, pedido de perdo, splica e invocao. Em cadauma destas formas, a orao da famlia tem muito que dizer a Deus. Tambm tem tanto que dizer aos homens, a comear pela recproca comunho das pessoas unidas por laos familiares.

Que o homem, para Vos lembrardes dele? (Sal 8, 5), pergunta-se o Salmista. A orao o espao onde, do modo mais simples, se manifesta a recordao criadora e paterna de Deus: no apenas e nem tanto a recordao de Deus por parte do homem, como sobretudo a recordao do homem por parte de Deus. Por isso, a orao da comunidade familiar pode tornar-se lugar da recordao comum e recproca: efectivamente, a famlia comunidade de geraes. Na orao, todos devem estar presentes: aqueles que vivem e os que j morreram, como tambm quantos ainda devem vir ao mundo. necessrio que na famlia se reze por cada um, na medida do bem que a famlia constitui para ele e do bem que ele constitui para a famlia. A orao corrobora mais solidamente um tal bem, precisamente como bem comum familiar. Mais ainda, aquela d tambm incio a este bem, de um modo sempre renovado. Na orao, a famlia reencontra-se como o primeiro ns, no qual cada um eu e tu; cada um para o outro respectivamente marido ou esposa, pai ou me, filho ou filha, irmo ou irm, av ou neto.

So assim as famlias, s quais me dirijo com esta Carta? Certamente no poucas so assim, mas os tempos em que vivemos manifestam a tendncia para restringir o ncleo familiar ao mbito de duas geraes. Isso sucede frequentemente por causa do acanhamento das moradias disponveis, sobretudo nas grandes cidades. Mas tambm e no raro, o mesmo se fica a dever convico de que mais geraes em conjunto so obstculo intimidade e tornam demasiado difcil a vida. Mas, no precisamente este o ponto fraco? H pouca vida humana nas famlias dos nossos dias. Faltam as pessoas com quem criar e partilhar o bem comum; e contudo, o bem, por sua natureza, exige ser criado e partilhado com os outros, porque bonum est diffusivum sui, o bem tende a difundir-se (24). Quanto mais for comum o bem, tanto mais ele ser prprio: meu teu nosso. Esta a lgica intrnseca do viver no bem, na verdade e no amor. Se o homem sabe acolher esta lgica e segui-la, a sua existncia torna-se verdadeiramente um dom sincero.

O dom sincero de si

11. Depois de afirmar que o homem a nica criatura sobre a terra querida por Deus por si mesma, o Conclio acrescenta que ele no se pode encontrar plenamente a no ser no sincero dom de si mesmo (25). Poderia parecer uma contradio, mas no o de facto. Trata-se, antes, do grande e maravilhoso paradoxo da existncia humana: uma existncia chamada a servir a verdade no amor. O amor faz com que o homem se realize atravs do dom sincero de si: amar significa dar e receber aquilo que no se pode comprar nem vender, mas apenas livre e reciprocamente oferecer.

Por sua natureza, o dom da pessoa exige ser duradouro e irrevogvel. A indissolubilidade do matrimnio deriva primariamente da essncia de tal dom: dom da pessoa pessoa. Nesta doao recproca, manifesta-se o carcter esponsal do amor. Ao prestarem o consentimento matrimonial, os noivos identificam-se pelo seu nome prprio: Eu... recebo-te por minha esposa (por meu esposo) a ti... e prometo ser-te fiel (...) por toda a nossa vida. Semelhante dom obriga muito mais forte e profundamente que tudo quanto possa ser comprado de qualquer modo e por qualquer preo. Dobrando os joelhos diante do Pai, do Qual provm toda a paternidade e maternidade, os futuros pais tornam-se conscientes de terem sido redimidos. Foram realmente comprados por um alto preo, pelo preo do dom mais sincero possvel, o sangue de Cristo, no qual participam por meio do sacramento. Coroamento litrgico do consentimento matrimonial a Eucaristia sacrifcio do corpo entregue e do sangue derramado , que no consentimento dos cnjuges encontra, de certo modo, uma sua expresso.

Quando no matrimnio, o homem e a mulher se do e recebem reciprocamente na unio de uma s carne, a lgica do dom sincero entra na vida deles. Sem ela, o matrimnio seria vazio, enquanto a comunho das pessoas, edificada sobre tal lgica, se torna comunho dos pais. Quando transmitem a vida ao filho, um novo tu humano se insere na rbita do ns dos cnjuges, uma pessoa que eles chamaro com um nome novo: nosso filho...; nossa filha.... Gerei um homem com o auxlio do Senhor (Gn 4, 1), diz Eva, a primeira mulher da histria: um ser humano, primeiramente esperado durante nove meses e depois manifestado aos pais, aos irmos e s irms. O processo da concepo e do desenvolvimento no ventre materno, do parto, do nascimento serve para criar como que um espao adequado, para que a nova criatura possa manifestar-se como dom : pois, tal ela desde o princpio. Poder-se-ia, porventura, qualificar de outro modo este ser frgil e indefeso, dependente em tudo de seus pais e completamente confiado a eles? O recm-nascido d-se aos pais pelo facto mesmo de vir existncia. O seu existir j um dom, o primeiro dom do Criador criatura.

No recm-nascido, realiza-se o bem comum da famlia. Tal como o bem comum dos esposos encontra cumprimento no amor esponsal, pronto a dar e a acolher a nova vida, assim o bem comum da famlia se realiza mediante o mesmo amor esponsal concretizado no recm-nascido. Na genealogia da pessoa est inscrita a genealogia da famlia, que poder ser recordada graas anotao registada no Livro dos Baptizados, mesmo se essa no passa de uma consequncia social do facto de ter vindo ao mundo um homem (Jo 16, 21).

Mas, mesmo verdade que o novo ser humano constitui um dom para os pais? Um dom para a sociedade? primeira vista, nada o parece indicar. Por vezes, o nascimento de

um homem parece reduzir-se a um simples dado, registado como tantos outros nas estatsticas demogrficas. Certamente o nascimento de um filho significa para os pais ulteriores canseiras, novos encargos econmicos, outros condicionamentos prticos: motivos estes que podem induzi-los na tentao de no desejarem um outro nascimento (26). Em alguns ambientes sociais e culturais ento, a tentao faz-se ainda mais forte. Mas, o filho no um dom? Vem s para consumir, e no para dar? Eis algumas perguntas inquietantes, de que o homem de hoje tem dificuldade em libertar-se. O filho vem ocupar espao, quando espao no mundo parece haver cada vez menos. Mas, mesmo verdade que ele no d nada famlia e sociedade? Porventura no uma parcela daquele bem comum, sem o qual as comunidades humanas se fragmentam e correm o risco de morrer? Como neg-lo? A criana faz de si um dom aos irmos, s irms, aos pais, famlia inteira. A sua vida torna-se dom para os prprios doadores da vida, que no podero deixar de sentir a presena do filho, a sua participao na existncia deles, o seu contributo para o bem comum deles e da famlia. No obstante toda a complexidade, ou mesmo a eventual patologia, da estrutura psicolgica em certas pessoas, esta verdade permanece bvia na sua simplicidade e profundidade. O bem comum da sociedade inteira reside no homem, que, como foi recordado, a via da Igreja (27). Ele sobretudo a glria de Deus: Gloria Dei vivens homo, segundo a conhecida afirmao de S. Ireneu (28), que poderia ser traduzida tambm assim: A glria de Deus que o homem viva. Dir-se-ia que estamos aqui perante a definio mais elevada do homem: a glria de Deus o bem comum de tudo aquilo que existe; o bem comum do gnero humano.

Sim! O homem um bem comum: bem comum da famlia e da humanidade, dos diversos grupos e das mltiplas estruturas sociais. Mas h que fazer uma significativa distino de grau e modalidade: o homem bem comum, por exemplo, da Nao a que pertence, ou do Estado de que cidado; mas, -o de um modo muito mais concreto, nico e irrepetvel para a sua famlia; -o no apenas enquanto indivduo que faz parte da multido humana, mas ainda como este homem. Deus Criador chama-o existncia por si mesmo : e ao vir ao mundo, o homem comea na famlia a sua grande aventura, a aventura da vida. Este homem tem, em qualquer caso, direito prpria afirmao por causa da sua dignidade humana. Precisamente esta dignidade que estabelece o lugar da pessoa no meio dos homens, e antes de mais na famlia. Efectivamente, esta, mais do que qualquer outra realidade social, o ambiente onde o homem pode existir por si mesmo, mediante o dom sincero de si. Por isso, a famlia permanece uma instituio social que no se pode nem deve substituir: o santurio da vida (29).

Alm disso, o facto de estar a ser dado luz um menino, de ter vindo ao mundo um homem (Jo 16, 21) constitui um sinal pascal. o prprio Jesus que o diz aos discpulos, antes da paixo e morte, como refere o evangelista Joo, ao comparar a tristeza causada pela sua partida ao sofrimento de uma mulher parturiente: A mulher, quando est para dar luz, sente tristeza (isto , sofre), porque chegada a sua hora; mas depois de ter dado luz o menino, j se no lembra da aflio, peloprazer de ter vindo ao mundo um homem (Jo 16, 21). A hora da morte de Cristo (cf. Jo 13, 1) ali comparada hora da mulher no parto; o nascimento de um novo homem encontra a sua rplica perfeita na vitria da vida sobre a morte, operada pela ressurreio do Senhor. Uma confrontao dos dois eventos presta-se a diversas reflexes. Como a ressurreio de Cristo a manifestao da vida de alm-tmulo, assim tambm o nascimento de uma criana manifestao da vida, desde sempre destinada, por meio

de Cristo, plenitude da vida que se encontra no prprio Deus: Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundncia (Jo 10, 10). Eis assim desvendado no seu valor mais profundo o verdadeiro significado da expresso de S. Ireneu: Gloria Dei vivens homo.

a verdade evanglica do dom de si, sem o qual o homem no se pode encontrar plenamente, e que permite avaliar quo profundamente este dom sincero esteja radicado no dom de Deus Criador e Redentor, na graa do Esprito Santo, cuja efuso sobre os esposos implorada pelo celebrante no rito do matrimnio. Sem tal efuso seria verdadeiramente difcil compreender tudo isto e cumpri-lo como vocao do homem. E, no entanto, h tanta gente que o intui! Muitos homens e mulheres fazem prpria esta verdade, chegando a vislumbrar que s nela encontram a Verdade e a Vida (Jo 14, 6). Sem esta verdade, a vida dos cnjuges e da famlia no consegue atingir um sentido plenamente humano.

Eis por que a Igreja nunca se cansa de ensinar e testemunhar tal verdade! Embora manifeste uma materna compreenso pelas no poucas e complexas situaes de crise, em que as famlias se vem envolvidas, como tambm pela fragilidade moral de todo o ser humano, a Igreja est convencida de que deve absolutamente permanecer fiel verdade relativa ao amor humano: caso contrrio, atraioar-se-ia a si prpria. Afastar-se desta verdade salvfica, seria como fechar f os olhos do corao (Ef 1, 18), que, pelo contrrio, devem permanecer sempre abertos luz, com que o Evangelho ilumina as vicissitudes humanas (cf. 2 Tm 1, 10). A conscincia daquele dom sincero de si, pelo qual o homem encontra-se a si mesmo, deve ser solidamente renovada e constantemente garantida, defronte s muitas oposies que a Igreja encontra por parte dos fautores de uma falsa civilizao do progresso (30). A famlia exprime sempre uma nova dimenso do bem para os homens, e, por isso, suscita uma nova responsabilidade. Trata-se da responsabilidade por aquele singular bem comum, no qual est includo o bem do homem: de cada membro da comunidade familiar; um bem certamente difcil (bonum arduum), mas fascinante.

A paternidadee a maternidade responsvel

12. No delineamento da presente Carta s Famlias, chegado o momento de acenar a duas questes conexas entre si. Uma, mais genrica, diz respeito civilizao do amor; a outra, mais especfica, refere-se paternidade e maternidade responsvel.

Dissemos j que o matrimnio suscita uma singular responsabilidade pelo bem comum: primeiro dos cnjuges, depois da famlia. Este bem comum constitudo pelo homem, pelo valor da pessoa e por quanto representa a medida da sua dignidade. O homem possui em si esta dimenso em qualquer sistema social, econmico e poltico. No mbito do matrimnio e da famlia, porm, esta responsabilidade torna-se, por muitas razes, ainda mais empenhativa. No sem motivo que a Constituio pastoralGaudium et spes fala de promoo da dignidade do matrimnio e da famlia. O Conclio v em tal promoo uma tarefa tanto da Igreja como do Estado; todavia, ela permanece, em cada cultura, primariamente um dever das pessoas que, unidas em matrimnio, formam uma famlia especfica. A paternidade e maternidade responsvel exprimem o compromisso concreto de actuar esse dever, que, no mundo contemporneo, reveste novas caractersticas.

De modo particular, paternidade e maternidade responsvel referem-se directamente ao momento em que o homem e a mulher, unindo-se numa s carne, podem tornar-se pais. momento impregnado de um valor peculiar, quer pela sua relao interpessoal quer pelo seu servio vida: eles podem-se tornar progenitores pai e me , comunicando a vida a um novo ser humano. As duas dimenses da unio conjugal, a unitiva e a procriadora, no podem ser separadas artificialmente sem atentar contra a verdade ntima do prprio acto conjugal (31).

Este o ensinamento constante da Igreja, e os sinais dos tempos, de que hoje somos testemunhas, oferecem novos motivos para reafirm-lo com particular vigor. S. Paulo, to atento s necessidades pastorais do seu tempo, exige clara e firmemente que se insista oportuna e inoportunamente (cf. 2 Tim 4, 2), sem qualquer temor pelo facto de j no se suportar a s doutrina (cf. 2 Tim 4, 3). As suas palavras so bem conhecidas de quantos, compreendendo profundamente as vicissitudes do nosso tempo, esperam que a Igreja no s no abandone a s doutrina, mas antes, a anuncie com renovado vigor, perscrutando nos actuais sinais dos tempos as razes para um ulteriore providencial aprofundamento da mesma.

Muitas destas razes encontram-se j nas prprias cincias que, partindo do antigo tronco da antropologia, se desenvolveram em vrias especializaes, tais como a biologia, a psicologia, a sociologia e as suas posteriores ramificaes. De certo modo, todas giram volta da medicina, simultaneamente cincia e arte (ars medica) ao servio da vida e da sade do homem. Mas as razes, a que se acena aqui, emergem sobretudo da experincia humana que mltipla e, em certo sentido, precede e segue a prpria cincia.

Os cnjuges aprendem por experincia prpria o que significam a paternidade e a maternidade responsvel; aprendem-no tambm graas experincia de outros casais que vivem em condies anlogas, e tornam-se assim mais abertos aos dados das cincias. Poder-se-ia dizer que os peritos como que aprendem dos cnjuges, para serem depois, por sua vez, capazes de instru-los competentemente acerca do significado da procriao responsvel e dos modos de a realizar.

Este argumento foi tratado amplamente nos Documentos conciliares, na Encclica Humanae vitae, nas Proposies do Snodo dos Bispos de 1980, na Exortao apostlica Familiaris consortio, e em intervenes anlogas at Instruo Donum vitae da Congregao para a Doutrina da F. A Igreja ensina a verdade moral acerca da paternidade e maternidade responsvel, defendendo-a das vises e tendncias errneas hoje difusas. Por que motivo faz isto a Igreja? Ser, talvez, porque no se d conta das problemticas invocadas por quantos aconselham cedncias neste mbito e procuram convenc-la inclusivamente com presses indevidas, quando no mesmo com ameaas? No raro, de facto, o Magistrio da Igreja acusado de estar superado j e fechado s instncias do esprito dos tempos modernos; de realizar uma aco nociva para a humanidade, e inclusive para a prpria Igreja. Ao manter-se obstinadamente nas prprias posies diz-se , a Igreja acabar por perder popularidade e os fiis afastar-se-o cada vez mais dela.

Mas como possvel sustentar que a Igreja, especialmente o Episcopado em comunho com o Papa, seja insensvel a problemas to graves e actuais? Foi precisamente neles que Paulo VI entreviu questes de tal forma vitais que o impeliram a publicar a

Encclica Humanae vitae! O fundamento sobre o qual se baseia a doutrina da Igreja acerca da paternidade e maternidade responsvel bem amplo e slido. O Conclio indica-o, antes de mais, no ensinamento sobre o homem, quando afirma que ele a nica criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma e que no pode encontrar-se plenamente a no ser no dom sincero de si mesmo (32). Isto porque ele foi criado imagem e semelhana de Deus e redimido pelo Filho unignito do Pai, feito homem por ns e para nossa salvao.

O Conclio Vaticano II, particularmente atento ao problema do homem e da sua vocao, afirma que a unio conjugal, referida na Bblia pela expresso uma s carne, pode ser compreendida e explicada plenamente apenas recorrendo aos valores da pessoa e do dom. Cada homem e cada mulher realizam-se em plenitude mediante o dom sincero de si e, no caso dos esposos, o momento da unio conjugal constitui uma experincia muito particular disso mesmo. ento que o homem e a mulher, na verdade da sua masculinidade e feminilidade, se tornam recproco dom. Toda a vida no matrimnio dom; mas isso torna-se singularmente evidente quando os cnjuges, oferecendo-se reciprocamente no amor, realizam aquele encontro que faz dos dois uma s carne (Gn 2, 24).

Eles vivem, ento, um momento de especial responsabilidade, tambm em razo da potencialidade procriadora conexa com o acto conjugal. Os esposos podem, naquele momento, tornar-se pai e me, dando incio ao processo de uma nova vida humana, que depois se desenvolver no seio da mulher. Se a mulher a primeira que d conta de ter-se tornado me, o homem com quem se uniu em uma s carne toma conscincia, por sua vez e atravs do testemunho dela, de ter-se tornado pai. Da potencial e, em seguida, efectiva paternidade e maternidade, ambos so responsveis. O homem no pode deixar de reconhecer ou no aceitar o resultado de uma deciso que foi tambm sua. No se pode esconder por detrs de expresses como: no sei, no queria, foste tu que quiseste. A unio conjugal comporta em todo o caso a responsabilidade do homem e da mulher, responsabilidade potencial que se torna efectiva quando as circunstncias o impuserem. Isto vale sobretudo para o homem que, apesar de ser tambm ele artfice do desencadeamento do processo gerador, fica biologicamente distanciado do mesmo: na mulher, de facto, que aquele se desenvolve. Como poderia o homem no se sentir comprometido nele? Impe-se que ambos, o homem e a mulher, assumam conjuntamente, perante si mesmos e os outros, a responsabilidade da nova vida por eles suscitada.

Esta uma concluso partilhada pelas prprias cincias humanas. Mas preciso ir mais longe, analisando o significado do acto conjugal luz dos referidos valores da pessoa e do dom. o que faz a Igreja com o seu constante ensinamento, em particular no Conclio Vaticano II.

No momento do acto conjugal, o homem e a mulher so chamados a confirmar de modo responsvel o dom recproco, que de si fizeram na aliana matrimonial. Ora, a lgica do dom ao outro na totalidade de si mesmo comporta a potencial abertura procriao: o matrimnio chamado assim a realizar-se ainda mais plenamente como famlia. Sem dvida, o dom recproco do homem e da mulher no tem como nico fim o nascimento dos filhos, mas em si mesmo mtua comunho de amor e de vida. Deve ser sempregarantida a verdade ntima de tal dom. ntima no sinnimo de subjectiva : significa, sim, essencialmente coerente com a verdade objectiva daquele e daquela que

se do. Jamais a pessoa pode ser considerada um meio para alcanar um fim; nunca, sobretudo, um meio de prazer. Ela e deve ser apenas o fim de todo o acto. Somente ento, a aco corresponde verdadeira dignidade da pessoa.

Ao concluir a nossa reflexo sobre este argumento to importante e delicado, desejo dirigir uma palavra de particular encorajamento sobretudo a vs, carssimos cnjuges, e a todos aqueles que vos ajudam a compreender e a pr em prtica o ensinamento da Igreja sobre o matrimnio, sobre a maternidade e paternidade responsvel. Penso de modo especial nos Pastores, nos muitos peritos, telogos, filsofos, escritores e editores, que no se acomodam ao conformismo cultural dominante, mas esto corajosamente decididos a ir contra a corrente. Aquela palavra de encorajamento vai ainda para um grupo cada vez mais numeroso de peritos, mdicos e educadores, verdadeiros apstolos leigos, para os quais a promoo da dignidade do matrimnio e da famlia se tornou uma tarefa importante da sua vida. Em nome da Igreja, digo a todos o meu obrigado! Sem eles, que poderiam fazer os Sacerdotes, os Bispos e at mesmo o prprio Sucessor de Pedro? Disto me fui convencendo sempre mais, desde os primeiros anos do meu sacerdcio, quando comecei a sentar-me no confessionrio, para partilhar as preocupaes, os medos e as esperanas de tantos esposos: encontrei casos difceis de revolta e recusa, mas ao mesmo tempo tantas pessoas admiravelmente responsveis e generosas! Enquanto escrevo esta Carta, tenho presente todos estes cnjuges e abrao-os com o meu afecto e a minha orao.

As duas civilizaes

13. Queridas famlias, a questo da paternidade e da maternidade responsvel insere-se na temtica global da civilizao do amor, de que desejo falar-vos agora. De quanto ficou dito, resulta claramente que a famlia est na base daquela que Paulo VI designou como civilizao do amor (33), expresso que entrou depois no ensinamento da Igreja e se tornou j familiar. Hoje difcil pensar numa interveno da Igreja, ou ento sobre a Igreja, que prescinda da referncia civilizao do amor. A expresso est ligada com a tradio da igreja domstica do cristianismo nos seus primrdios, mas possui uma precisa referncia tambm poca contempornea. Etimologicamente o termo civilizao deriva da palavra latina civis (cidado), sublinhando a dimenso poltica da existncia de cada indivduo. Todavia o sentido mais profundo do termo civilizao no tanto poltico como sobretudo humanstico. A civilizao pertence histria do homem, porque corresponde s suas exigncias espirituais e morais: criado imagem e semelhana de Deus, ele recebeu o mundo das mos do Criador com o compromisso de o plasmar prpria imagem e semelhana. Precisamente do cumprimento desta tarefa provm a civilizao, que, em ltima anlise, no seno a humanizao do mundo.

Portanto, civilizao tem, de certo modo, o mesmo significado que cultura. Assim poder-se-ia dizer tambm: cultura do amor, embora seja prefervel ater- -se expresso tornada j familiar. A civilizao do amor, no sentido actual do termo, inspira-se nas palavras da Constituio conciliar Gaudium et spes: Cristo (...) revela plenamente o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocao sublime (34). Por isso pode- -se afirmar que a civilizao do amor parte da revelao de Deus que amor, como diz S. Joo (Jo 4, 8.16), e aparece magistralmente descrita pelo apstolo Paulo no hino caridade da Primeira Carta aos Corntios (13, 1-13). Tal civilizao est intimamente conexa com o amor derramado em nossos coraes pelo Esprito Santo,

que nos foi concedido (Rom 5, 5), e cresce graas quele cultivo constante de que fala to incisivamente a alegoria evanglica da videira e dos ramos: Eu sou a videira verdadeira e meu Pai o agricultor. Toda a vara que em Mim no d fruto, Ele corta-a, e limpa toda aquela que d fruto, para que d mais fruto (Jo 15, 1-2).

luz destes e doutros textos do Novo Testamento, possvel compreender o que se entende por civilizao do amor, e por que a famlia est organicamente unida com tal civilizao. Se a primeira via da Igreja a famlia, importa acrescentar que tambm a civilizao do amor via da Igreja, que caminha no mundo e chama a seguir por tal via as famlias e as outras instituies sociais, nacionais e internacionais, precisamente por causa das famlias e atravs das famlias. A famlia depende realmente e por diversos motivos da civilizao do amor, onde encontra as razes do seu ser famlia. E, ao mesmo tempo, a famlia o centro e o corao da civilizao do amor.

No existe, todavia, verdadeiro amor sem a conscincia de que Deus Amor, e que o homem a nica criatura na terra, chamada por Deus existncia por si mesma. O homem, criado imagem e semelhana de Deus, no pode encontrar-se plenamente seno pelo dom sincero de si. Sem um tal conceito do homem, da pessoa e da comunho de pessoas na famlia, no pode existir a civilizao do amor; e vice-versa, sem a civilizao do amor impossvel um tal conceito de pessoa e de comunho de pessoas. A famlia constitui a clula fundamental da sociedade. Mas tem necessidade de Cristo videira da qual os ramos extraem a linfa para que esta clula no fique exposta ameaa de uma espcie de desenraizamento cultural, que pode vir tanto do interior como do exterior. De facto, se por um lado existe a civilizao do amor, por outro lado permanece a possibilidade de uma anti-civilizao destruidora, como se confirma hoje por tantas tendncias e situaes concretas.

Quem pode negar que a nossa seja uma poca de grande crise, que se exprime sobretudo como profunda crise da verdade? Crise da verdade significa, em primeiro lugar, crise de conceitos. Os termos amor, liberdade, dom sincero, e at mesmo os de pessoa, direitos da pessoa, significaro na realidade aquilo que por sua natureza contm? Eis porque se revela to significativa e importante para a Igreja e para o mundo sobretudo no Ocidente a Encclica sobre o esplendor da verdade (Veritatis splendor). Somente se a verdade acerca da liberdade e da comunho das pessoas no matrimnio e na famlia readquirir o seu esplendor, que se desencadear verdadeiramente a edificao da civilizao do amor, e ser ento possvel falar eficazmente como faz o Conclio de promoo da dignidade do matrimnio e da famlia (35).

Porque assim to importante o esplendor da verdade? -o, primariamente, por contraste: o desenvolvimento da civilizao contempornea est ligado a um progresso cientfico-tecnolgico que se actua de modo frequentemente unilateral, apresentando por conseguinte caractersticas puramente positivistas. O positivismo, como se sabe, tem como seus frutos o agnosticismo no campo terico e o utilitarismo no campo prtico e tico. Nos nossos tempos, a histria em certo sentido repete-se. O utilitarismo uma civilizao da produo e do desfrutamento, uma civilizao das coisas e no das pessoas ; uma civilizao onde as pessoas se usam como se usam as coisas. No contexto da civilizao do desfrutamento, a mulher pode tornar-se para o homem um objecto, os filhos um obstculo para os pais, a famlia uma instituio embaraante para a liberdade dos membros que a compem. Para convencer-se disto, basta examinar

certos programas de educao sexual introduzidos nas escolas, no obstante o frequente parecer contrrio e at os protestos de muitos pais; ou ento, as tendncias pr-abortistas que em vo procuram esconder-se atrs do chamado direito de escolha (pro choice) por parte de ambos os cnjuges, e particularmente por parte da mulher. So apenas dois exemplos dos muitos que se poderiam recordar.

Em semelhante situao cultural, claro que a famlia no pode deixar de sentir-se ameaada, porque insidiada nos seus prprios alicerces. Tudo o que seja contrrio civilizao do amor, contrrio verdade integral do homem e torna-se para ele uma ameaa: no lhe permite encontrar-se a si mesmo e sentir-se seguro como cnjuge, como pai, como filho. O chamado sexo seguro, propagandeado pela civilizao tcnica, na realidade , sob o perfil das exigncias globais da pessoa, radicalmente no-seguro, e mais, gravemente perigoso. A pessoa ali, de facto, encontra-se em perigo, tal como em perigo fica, por sua vez, a famlia. Qual o perigo? a perda da verdade acerca de si prpria, a que se junta o risco da perda da liberdade e, consequentemente, perda do prprio amor. Conhecereis a verdade diz Jesus e a verdade libertar-vos- (Jo 8, 32): a verdade, somente a verdade, vos preparar para um amor, que se possa chamar belo.

A famlia contempornea, como a de sempre, vai procura do belo amor. Um amor no belo, ou seja, reduzido mera satisfao da concupiscncia (cf. Jo 2, 16), ou a um uso recproco do homem e da mulher, torna as pessoas escravas das suas fraquezas. No conduzem a esta escravido certos programas culturais modernos? So programas que jogam com as fraquezas do homem, tornando-o assim sempre mais dbil e indefeso.

A civilizao do amor evoca a alegria: alegria, para alm do mais, porque um homem vem ao mundo (cf. 1 Jo 16, 21) e, consequentemente, porque os cnjuges se tornam pais. Civilizao do amor significa comprazer-se com a verdade (cf. 1 Cor 13, 6). Mas uma civilizao, inspirada numa mentalidade consumista e anti-natalista, no uma civilizao do amor nem o poder ser nunca. Se a famlia to importante para a civilizao do amor, isto fica-se a dever especial proximidade e intensidade dos laos que nela se instauram entre as pessoas e as geraes. Apesar disso, ela continua vulnervel e pode facilmente sucumbir aos perigos que enfraquecem ou at destroem a sua unio e estabilidade. Devido a tais perigos, as famlias cessam de testemunhar a favor da civilizao do amor e podem at mesmo tornar-se a sua negao, uma espcie de contra-testemunho. Uma famlia desfeita pode, por sua vez, reforar uma especfica forma de anticivilizao, destruindo o amor nos vrios mbitos em que se exprime, com inevitveis repercusses sobre o conjunto da vida social.

O amor exigente

14. Aquele amor, ao qual o apstolo Paulo dedicou um hino na Primeira Carta aos Corntios aquele amor que paciente, benigno, e tudo suporta (1 Cor 13, 4.7) , sem dvida, um amor exigente. Mas nisto mesmo est a sua beleza: no facto de ser exigente, porque deste modo constri o verdadeiro bem do homem e irradia-o tambm sobre os outros. Na verdade, o bem, diz S. Toms, por sua natureza difusivo (36). O amor verdadeiro, quando cria o bem das pessoas e das comunidades, cria e d-lo aos outros. Somente quem, em nome do amor, sabe ser exigente consigo prprio, pode tambm exigir o amor dos outros. Porque o amor

exigente. -o em todas as situaes humanas; ainda mais o para quem se abre ao Evangelho. No isso que Cristo proclama no seu mandamento? preciso que os homens de hoje descubram este amor exigente, porque nele est o alicerce verdadeiramente firme da famlia, um alicerce que capaz de tudo suportar. Segundo o Apstolo, o amor no capaz de suportar tudo, se cede s invejas, se se ufana, se se ensoberbece, se inconveniente (cf. 1 Cor 13, 4-5). O verdadeiro amor, ensina S. Paulo, diverso: tudo cr, tudo espera, tudo suporta (1 Cor 13, 7). Um amor assim tudo suportar. Actua nele a poderosa fora do prprio Deus, que amor (1 Jo 4, 8.16). Nele actua a poderosa fora de Cristo, Redentor do homem e Salvador do mundo.

Meditando o captulo 13 da Primeira Carta de Paulo aos Corntios, encaminhamo-nos pela via que, mais imediata e incisivamente, nos faz compreender a verdade plena acerca da civilizao do amor. Nenhum outro texto bblico exprime tal verdade de um modo mais simples e profundo que o hino caridade.

Os perigos que gravam sobre o amor constituem uma ameaa tambm para a civilizao do amor, porque favorecem quanto susceptvel de eficazmente a contrariar. H que pensar, antes de mais, no egosmo, no s no egosmo do indivduo, mas tambm naquele do casal ou, num mbito ainda mais vasto, no egosmo social, por exemplo de classe ou de nao (nacionalismo). O egosmo, em todas as suas formas, ope- -se directa e radicalmente civilizao do amor. Porventura significa isto que o amor se pode definir simplesmente como anti-egosmo? Seria uma definio demasiado pobre e, em ltima anlise, apenas negativa, mesmo se verdade que, para realizar o amor e a civilizao do amor, devem ser superadas as vrias formas de egosmo. Mais correcto falar de altrusmo, que a anttese do egosmo. Mas ainda mais rico e completo o conceito de amor ilustrado por S. Paulo. O hino caridade da Primeira Carta aos Corntios permanece como a magna charta da civilizao do amor. Ali no questo tanto de simples manifestaes (quer de egosmo quer de altrusmo), quanto sobretudo da aceitao radical do conceito de homem como pessoa que se encontra atravs do dom sincero de si mesmo dom que, obviamente, para os outros: esta constitui a dimenso mais importante da civilizao do amor.

Entramos, assim, no ncleo mesmo da verdade evanglica sobre a liberdade. A pessoa realiza-se mediante o exerccio da liberdade na verdade. A liberdade no pode ser entendida como faculdade de fazer o que quer que seja: ela significa dom de si. Mais: significa disciplina interior do dom. No conceito de dom, no est inscrita apenas a livre iniciativa do sujeito, mas tambm a dimenso do dever. Tudo isto se realiza na comunho das pessoas. Estamos, assim, no corao mesmo de cada famlia.

Achamo-nos tambm em presena dos indcios da anttese entre o individualismo e o personalismo. O amor, a civilizao do amor alia-se com o personalismo. Por que razo, exactamente com o personalismo? Por que o individualismo ameaa a civilizao do amor? Encontramos a chave da resposta na expresso conciliar: um dom sincero. O individualismo supe um uso da liberdade onde o sujeito faz o que quer, estabelecendo ele mesmo a verdade daquilo que lhe agrada ou se lhe torna til. No admite que outros queiram ou exijam algo dele, em nome de uma verdade objectiva. No quer dar a outrem sobre a base da verdade, no quer tornar-se um dom sincero. O individualismo permanece, por conseguinte, egocntrico e egosta. A anttese com o personalismo verifica-se no apenas no terreno da teoria, mas ainda mais

sobre aquele do ethos (procedimento). O ethos do personalismo altrusta: leva a pessoa a fazer-se dom para os outros e a encontrar alegria no doar-se. a alegria de que fala Cristo (cf. Jo 15, 11; 16, 20.22).

Portanto, preciso que as sociedades humanas, e nelas as famlias, que frequentemente vivem num contexto de luta entre a civilizao do amor e as suas antteses, procurem o seu alicerce estvel numa justa viso do homem e de quanto decide a plena realizao da sua humanidade. Sem dvida, contrrio civilizao do amor o chamado amor livre , tanto mais perigoso por ser habitualmente proposto como fruto de um sentimento verdadeiro, quando efectivamente destri o amor. Quantas famlias levadas runa precisamente pelo amor livre! Seguir em qualquer caso o verdadeiro impulso afectivo, em nome de um amor livre de condicionamentos, na realidade significa tornar o homem escravo daqueles instintos humanos, que S. Toms chama paixes da alma (passiones animae) (37). O amor livre explora as fraquezas humanas, conferindo-lhes uma certa moldura de nobreza com a ajuda da seduo e com o favor da opinio pblica. Procura-se assim tranquilizar a conscincia, criando um libi moral. Mas no se tomam em considerao todas as consequncias que da derivam, especialmente quando a pag-las so, para alm do cnjuge, os filhos, privados do pai ou da me e condenados a serem, de facto, rfos de pais vivos.

Na base do utilitarismo tico, est, como se sabe, a procura desenfreada do mximo de felicidade: mas de uma felicidade utilitarista , vista apenas como prazer, como imediata satisfao e vantagem exclusiva do prprio indivduo, fora das exigncias objectivas do verdadeiro bem ou mesmo contra elas.

O programa do utilitarismo, fundado sobre uma liberdade orientada em sentido individualista, ou seja, uma liberdade sem responsabilidade, constitui a anttese do amor, tambm como expresso da civilizao humana, considerada no seu todo. Quando um tal conceito de liberdade encontra aceitao na sociedade, aliando-se facilmente com as mais variadas formas de fraqueza humana, rapidamente se revela como uma sistemtica e permanente ameaa para a famlia. A propsito, poder-se-iam citar muitas consequncias nefastas, documentveis a nvel estatstico, mesmo se no poucas delas permanecem escondidas nos coraes dos homens e das mulheres, como feridas dolorosas e sangrentas.

O amor dos cnjuges e dos pais possui a capacidade de curar semelhantes feridas, se as insdias recordadas no o privarem da sua fora de regenerao, to benfica e salutar para as comunidades humanas. Tal capacidade depende da graa divina do perdo e da reconciliao, que assegura o vigor espiritual para comear sempre de novo. Por isso mesmo, os membros da famlia tm necessidade de encontrar Cristo na Igreja, por meio do admirvel sacramento da Penitncia e da Reconciliao.

Neste contexto, damo-nos conta de quo importante seja a orao com as famlias e pelas famlias, em particular por aquelas ameaadas de diviso. necessrio rezar para que os cnjugesamem a sua vocao, mesmo quando a estrada se torna difcil ou conhece trechos estreitos e ngremes, aparentemente insuperveis; rezar, a fim de que mesmo ento permaneam fiis sua aliana com Deus.

A famlia a via da Igreja. Nesta Carta, desejamos professar e anunciar juntos esta via, que, atravs da vida conjugal e familiar, conduz ao reino dos Cus (cf. Mt 7, 14).

importante que a comunho das pessoas na famlia se torne preparao para a comunho dos Santos. Eis porque a Igreja confessa e anuncia o amor que tudo suporta (1 Cor 13, 7), vendo nele, com S. Paulo, a virtude maior (1 Cor 13, 13). O Apstolo no coloca limites a ningum. Amar vocao de todos, tambm dos esposos e das famlias. Na Igreja, de facto, todos so igualmente chamados perfeio da santidade (cf. Mt 5, 48) (38).

O quarto mandamento: Honra o teu pai e a tua me

15. O quarto mandamento do Declogo refere-se famlia, sua solidez interior; poderamos dizer, sua solidariedade.

Na sua formulao, no se fala explicitamente da famlia. Mas, de facto, mesmo dela que se trata. Para exprimir a comunho entre as geraes, o divino Legislador no encontrou palavra mais apropriada que esta: Honra... (x 20, 12). Estamos perante um outro modo de exprimir o que a famlia. Tal formulao no exalta artificialmente a famlia, mas pe em evidncia a sua subjectividade e os direitos que da derivam. A famlia uma comunidade de relaes interpessoais particularmente intensas: entre cnjuges, entre pais e filhos, entre geraes. uma comunidade que h-de ser garantida de modo muito particular. E Deus no encontra garantia melhor que esta: Honra.

Honra o teu pai e a tua me, para que os teus dias se prolonguem na terra que o Senhor, teu Deus, te dar (x 20, 12). Este mandamento aparece depois dos trs preceitos fundamentais, que se referem ao relacionamento do homem e do povo de Israel com Deus: Shem, Izrael... , Escuta, Israel! O Senhor, nosso Deus, o nico Senhor! (Dt 6, 4). No ters outro deus alm de Mim (x 20, 3). Eis o primeiro e o maior mandamento, o mandamento do amor a Deus acima de todas as coisas: Ele h-de ser amado com todo o teu corao, com toda a tua alma e com todas as tuas foras (Dt 6, 5; cf. Mt 22, 37). significativo que o quarto mandamento esteja inserido precisamente nesse contexto: Honra o teu pai e a tua me, porque eles so para ti, em determinado sentido, os representantes do Senhor, aqueles que te deram a vida, que te introduziram na existncia humana: numa estirpe, numa nao, numa cultura. Depois de Deus, so eles os teus primeiros benfeitores. Se Deus s bom, antes, o prprio Bem, os pais participam de modo singular desta bondade suprema. E por isso: honra os teus pais! H aqui uma certa analogia com o culto devido a Deus.

O quarto mandamento est em estreita ligao com o mandamento do amor. Entre honra e ama, o vnculo profundo. A honra, no seu ncleo essencial, est relacionada com a virtude da justia, mas esta, por sua vez, no pode explanar-se plenamente sem fazer apelo ao amor: de Deus e do prximo. E quem mais prximo que os prprios familiares, que os pais e os filhos?

Ser unilateral o sistema interpessoal indicado pelo quarto mandamento? Ele s empenha os filhos a honrarem os pais? Em sentido literal, sim. Indirectamente, porm, podemos falar tambm da honra devida aos filhos por parte dos pais. Honra quer dizer: reconhece! Isto , deixa-te guiar pelo convicto reconhecimento da pessoa, da do pai e da me primeiro, e depois da dos outros membros da famlia. A honra um procedimento essencialmente desinteressado. Poder-se-ia dizer que um dom sincero da pessoa pessoa, e neste sentido a honra desemboca no amor. Se o quarto

mandamento exige honrar o pai e a me, f- -lo tambm em ateno ao bem da famlia. Mas por isto mesmo, pe exigncias aos prprios pais. Pais parece recordar-lhes o preceito divino , agi de modo que o vosso procedimento merea a honra (e o amor) da parte dos vossos filhos! No deixeis cair num vazio moral a exigncia divina de eles vos honrarem a vs! Em resumo, trata-se de honra recproca. O mandamento honra o teu pai e a tua me diz indirectamente aos pais: Honrai os vossos filhos e as vossas filhas. Eles merecem-no porque existem, merecem-no por aquilo que so: isto vale desde o primeiro instante da concepo. Assim este mandamento, ao exprimir a unio ntima da famlia, pe em evidncia o alicerce da sua solidez interior.

O mandamento continua: para que os teus dias se prolonguem na terra que o Senhor, teu Deus, te dar. Este para que poderia dar a impresso de um clculo utilitarista: honrar, tendo em vista a futura longevidade. Digamos, entretanto, que isto no diminui o significado essencial do imperativo honra , por sua natureza conexo com um procedimento desinteressado. Honrar no significa nunca: prev as vantagens. difcil, contudo, no reconhecer que do procedimento de honra recproca entre os membros da comunidade familiar, derivam tambm vantagens de vria natureza. A honra certamente til, como til todo o verdadeiro bem.

A famlia realiza, antes de mais, o bem de estarem juntos, bem por excelncia do matrimnio (da a sua indissolubilidade) e da comunidade familiar. Poder-se-ia defini-lo, alm disso, como o bem da subjectividade. Na verdade, a pessoa um sujeito, e o mesmo se diga da famlia porque formada de pessoas, que, ligadas por um profundo vnculo de comunho, formam um nico sujeito comunitrio. Antes, a famlia sujeito mais do que qualquer outra instituio social: -o mais que a nao, que o estado, mais que a sociedade e do que as organizaes internacionais. Estas sociedades, especialmente as naes, gozam de subjectividade prpria somente enquanto a recebem das pessoas e das suas famlias. Estas sero observaes meramente tericas, formuladas com o objectivo de exaltar a famlia na opinio pblica? No, trata-se, antes, de um outro modo de exprimir o que a famlia. E tambm isto se deduz do quarto mandamento.

Trata-se de uma verdade que merece ser destacada e aprofundada: de facto, ela assinala a importncia deste mandamento tambm para o moderno sistema dos direitos do homem. As legislaes institucionais usam a linguagem jurdica. Deus, pelo contrrio, diz: Honra. Todos os direitos do homem so, em ltima anlise, frgeis e ineficazes, se faltar, na sua base, o imperativo: honra; por outras palavras, se faltar o reconhecimento do homem pelo simples facto de ele ser homem, este homem. Por si ss, os direitos no bastam.

Assim, no exagerado insistir que a vida das naes, dos estados, das organizaes internacionais passa atravs da famlia e fundamenta-se sobre o quarto mandamento do Declogo. A poca em que vivemos, apesar das mltiplas Declaraes de tipo jurdico que foram elaboradas, continua notavelmente ameaada pela alienao, qual fruto das premissas iluministas, segundo as quais o homem mais homem se for apenas homem. No difcil notar como a alienao de tudo quanto pertence de vrios modos plena riqueza do homem, insidia a nossa poca. E isto chama em causa a famlia. Na verdade, a afirmao da pessoa est em grande medida relacionada com a famlia e, por conseguinte, com o quarto mandamento. No desgnio de Deus, a famlia a primeira escola do ser homem em seus vrios aspectos.

S homem! este o imperativo que nela se transmite: homem como filho da ptria, como cidado do estado, e, dir-se-ia hoje, como cidado do mundo. Aquele que entregou humanidade o quarto mandamento um Deus benvolo para com o homem (filanthropos, diziam os gregos). O Criador do universo o Deus do amor e da vida: Ele quer que o homem tenha a vida e a tenha em abundncia, como proclama Cristo (cf. Jo 10, 10): que tenha a vida, sobretudo graas famlia.

Aparece agora claro que a civilizao do amor est intimamente ligada com a famlia. Para muitos, a civilizao do amor constitui ainda uma pura utopia. Pensa-se, com efeito, que o amor no possa ser pretendido de ningum nem imposto a ningum: seria uma livre opo, que os homens podiam aceitar ou rejeitar.

Em tudo isto h alguma verdade. E, contudo, resta o facto que Jesus Cristo nos deixou o mandamento do amor, tal como j Deus no monte Sinai tinha ordenado: Honra o teu pai e a tua me. Portanto, o amor no uma utopia: dado ao homem como tarefa a cumprir com a ajuda da graa divina. confiado ao homem e mulher, no sacramento do matrimnio, como princpio fontal do seu dever e torna-se para eles o fundamento do mtuo compromisso: do conjugal primeiro, do paterno e materno depois. Na celebrao do sacramento, os cnjuges do-se e recebem- -se reciprocamente, declarando a sua disponibilidade para acolherem e educarem os filhos. Eis aqui os pilares da civilizao humana, que no pode ser definida de outro modo seno como civilizao do amor.

De tal amor, expresso e fonte a famlia. Por ela passa a principal corrente da civilizao do amor, que l encontra as suas bases sociais.

Os Padres da Igreja, no decurso da tradio crist, falaram da famlia como igreja domstica, pequena igreja. Referiam-se assim civilizao do amor como a um possvel sistema de vida e convivncia humana: estarem juntos como famlia, serem uns para os outros, criarem um espao comunitrio para a afirmao de cada homem enquanto tal, para a afirmao deste homem em concreto. s vezes, trata-se de pessoas com deficincias fsicas ou psquicas, das quais a sociedade dita progressista prefere libertar-se. Tambm a famlia se pode tornar semelhante a uma tal sociedade. E torna-se-lo de facto, quando rapidamente se desembaraa de quem ancio, ou vtima de deformaes, ou afectado pela doena. Comporta-se assim, porque falta a f naquele Deus para o Qual todos vivem (Lc 20, 38) e todos so chamados plenitude da vida.

Sim, a civilizao do amor possvel, no uma utopia! Mas s possvel graas a uma constante e viva referncia a Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, do Qual provm toda a paternidade 1 no mundo (cf. Ef 3, 14-15), do Qual provm cada famlia humana.

A educao

16. Em que consiste a educao? Para responder a esta questo, h que recordar duas verdades fundamentais: a primeira que o homem chamado a viver na verdade e no amor; a segunda que cada homem realiza-se atravs do dom sincero de si. Isto vale tanto para quem educa, como para quem educado. Assim, a educao constitui um processo singular, no qual a recproca comunho das pessoas aparece impregnada de grande significado. O educador uma pessoa que gera em sentido espiritual. Nesta

perspectiva, a educao pode ser considerada um verdadeiro e prprio apostolado. uma comunicao vital, que no s constri uma relao profunda entre educador e educando, mas f-los ambos participar na verdade e no amor, meta final qual cada homem chamado por Deus Pai, Filho e Esprito Santo.

A paternidade e a maternidade supem a coexistncia e a interaco de sujeitos autnomos. Isto particularmente evidente na me, quando concebe um novo ser humano. Os primeiros meses da sua presena no ventre materno criam um lao especial, que j reveste um seu valor educativo. J durante o perodo pr-natal, a me estrutura no apenas o organismo do filho, mas indirectamente toda a sua humanidade. Mesmo se se trata de um processo que se orienta da me para o filho, no se esquea a influncia especfica que o nascituro exerce sobre a me. Nesta influncia recproca, que se manifestar externamente aps o nascimento da criana, o pai no toma parte directamente. Porm, ele deve empenhar-se responsavelmente a prestar a sua solicitude e apoio durante a gravidez e, se possvel, tambm no momento do parto.

Para a civilizao do amor, essencial que o homem sinta a maternidade da mulher, sua esposa, como um dom: isto, de facto, influi imenso no processo educativo inteiro. Muito depende da sua disponibilidade para tomar parte de forma adequada nesta primeira fase do dom da humanidade, e deixar-se envolver como marido e pai na maternidade da mulher.

A educao , assim, sobretudo uma oferta de humanidade por parte de ambos os pais: estes comunicam juntos a sua humanidade madura ao recm- -nascido, o qual, por sua vez, lhes d a novidade e o frescor da humanidade que traz consigo ao mundo. Isto verifica-se tambm no caso de crianas afectadas por deficincias psquicas ou fsicas: antes, neste caso a sua situao pode desenvolver uma fora educativa muito particular.

Com razo, pois, pergunta a Igreja durante o rito do matrimnio: Estais dispostos a receber amorosamente da mo de Deus os filhos e a educ-los segundo a lei de Cristo e da Igreja? (39). O amor conjugal exprime-se na educao como verdadeiro amor de pais. A comunho de pessoas, que ao incio da famlia se manifesta como amor conjugal, completa-se e aperfeioa-se quando se estende aos filhos com a educao. A potencial riqueza, constituda por cada homem que nasce e cresce na famlia, deve ser responsavelmente assumida de modo que no degenere nem se dissipe, mas, ao contrrio, se realize numa humanidade cada vez mais madura. Tambm este um dinamismo de reciprocidade, no qual os pais-educadores so, por sua vez, em certa medida educados. Mestres de humanidade dos prprios filhos, tambm a aprendem deles. Aqui emerge com destaque a estrutura orgnica da famlia e revela-se o sentido fundamental do quarto mandamento.

O ns dos pais, do marido e da esposa, desenvolve-se, por meio da educao, no ns da famlia, que se enxerta sobre as geraes precedentes e se abre a um gradual alargamento. A este respeito, desempenham um papel singular, por um lado, os pais dos pais e, por outro, os filhos dos filhos.

Se os pais, ao darem a vida, tomam parte na obra criadora de Deus, pela educao tornam-se participantes da sua pedagogia conjuntamente paterna e materna. A paternidade divina, segundo S. Paulo, constitui o modelo originrio de toda a paternidade e maternidade no cosmos (cf. Ef 3, 14-15), especialmente da maternidade e

paternidade humana. Sobre a pedagogia divina nos instruiu plenamente o Verbo eterno do Pai que, ao encarnar-se, revelou ao homem a verdadeira e integral dimenso da sua vocao: a filiao divina. E revelou assim tambm qual o verdadeiro significado da educao do homem. Por meio de Cristo, toda a educao, na famlia e fora dela, inserida na dimenso salvfica da pedagogia divina, que se dirige aos homens e s famlias e culmina no mistrio pascal da morte e ressurreio do Senhor. Daqui, do corao da nossa redeno parte todo o processo de educao crist que, ao mesmo tempo, sempre educao para a plena humanidade.

Os pais so os primeiros e principais educadores dos prprios filhos e tm tambm neste campo uma competncia fundamental: so educadores porque pais. Eles partilham a sua misso educadora com outras pessoas e instituies, tais como a Igreja e o Estado; todavia, isto deve verificar-se sempre na correcta aplicao do princpio da subsidiariedade. Este implica a legitimidade e mesmo o nus de oferecer uma ajuda aos pais, mas encontra no direito prevalecente deles e nas suas efectivas possibilidades o seu limite intrnseco e intransponvel. O princpio da subsidiariedade pe-se, assim, ao servio do amor dos pais, indo ao encontro do bem do ncleo familiar. Na verdade, os pais no so capazes de satisfazer por si ss a todas as exigncias do processo educativo inteiro, especialmente no que toca instruo e ao amplo sector da sociabilizao. A subsidiariedade completa assim o amor paterno e materno, confirmando o seu carcter fundamental, porque qualquer outro participante no processo educativo no pode operar seno em nome dos pais, com o seu consenso e, em certa medida, at mesmo por seu encargo.

O itinerrio educativo conduz fase da auto-educao, que se atinge quando, graas a um adequado nvel de maturidade psico-fsica, o homem comea a educar-se por si s. A auto-educao supera, com o passar do tempo, as metas anteriormente alcanadas no processo educativo, no qual, todavia, continua a mergulhar as suas razes. O adolescente encontra novas pessoas e novos ambientes, em particular os professores e os companheiros de escola, os quais exercem sobre a sua vida um influxo que pode revelar-se educador ou o contrrio. Nesta etapa, ele distancia-se, em certa medida, da educao recebida em famlia, assumindo por vezes uma atitude crtica no confronto dos pais. Apesar de tudo, porm, o processo de auto-educao no pode deixar de estar marcado pelo influxo educativo exercido pela famlia e pela escola sobre a criana e o adolescente. Mesmo quando se transforma e se encaminha pela sua prpria estrada, o jovem continua a permanecer intimamente ligado com as suas razes existenciais.

Neste horizonte, delinea-se de um modo novo o significado do quarto mandamento: Honra o teu pai e a tua me (x 20, 12); ele permanece ligado organicamente com todo o processo de educao. A paternidade e maternidade, dado primeiro e fundamental no dom da humanidade, abrem perante os pais e os filhos novas e mais profundas perspectivas. Gerar segundo a carne significa dar incio a uma posterior gerao, gradual e complexa, atravs do inteiro processo educativo. O mandamento do Declogo exige ao filho que honre o pai e a me. Mas, como atrs se disse, o mesmo mandamento impe aos pais um dever, em certo sentido, simtrico. Tambm eles devem honrar os prprios filhos, tanto pequenos como grandes, e tal atitude indispensvel ao longo de todo o percurso educativo, inclusivamente o escolar. O princpio de prestar a honra, ou seja, o reconhecimento e o respeito do homem como homem, a condio fundamental de todo o autntico processo educativo.

No mbito da educao, a Igreja tem um papel especfico a desempenhar. luz da tradio e do magistrio conciliar, pode-se justamente dizer que no questo apenas de confiar Igreja a educao religiosa e moral da pessoa, mas de promover todo o processo educativo da pessoa juntamente com a Igreja. A famlia chamada a cumprir a sua tarefa educativa em Igreja, participando assim na vida e misso eclesial. A Igreja deseja educar sobretudo atravs da famlia, para isso habilitada pelo sacramento do matrimnio com a graa de estado que dele se obtm e o especfico carisma que prprio da inteira comunidade familiar.

Um dos campos onde a famlia insubstituvel, certamente o da educao religiosa, graas qual a famlia cresce como igreja domstica. A educao religiosa e a catequese dos filhos colocam a famlia no mbito da Igreja como um verdadeiro sujeito de evangelizao e de apostolado. Trata-se de um direito intimamente conexo com o princpio da liberdade religiosa. As famlias e, mais em concreto, os pais tm a faculdade de livremente escolherem para os seus filhos um determinado modelo de educao religiosa e moral segundo as prprias convices. Mas ainda quando eles confiam tais obrigaes a instituies eclesisticas ou a escolas geridas por pessoal religioso, necessrio que a sua presena educativa continue a ser constante e activa.

Tampouco se