joão barrento - limiares sobre walter benjamin

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    pela cidade e os seus avatares (dos Futuristas a Alfred Dblin e s utopias urbanas futurantes de Yona Friedmann, Paolo Soleri ou o grupo Archigram).

    O trabalho do flneur

    Virar para fora o forro do tempo acima de tudo o trabalho do flneur melanclico, um trabalho do olhar e da rememorao sobre a superfcie do mundo (da cidade, o nico possvel no mbito da Modernidade) cheia de sinais opacos. Com o flneur, a inteligncia familiariza-se com o mercado (GS V, 70) um casamento impensvel hoje! e o prazer de olhar celebra o seu triunfo (OE III, 71), que tambm o triunfo da distraco, motivo central da experincia da cidade em Benjamin (e no apenas dela, tambm do cinema). Como se, aqum e alm da observao atenta (que mais a do detective), fosse a prpria cidade a tornar-se sujeito activo da experincia e a agir sobre o flneur distrado e atento, absorto e disponvel. tambm assim que Georg Simmel e Freud vem os efeitos dos estmulos fortes da grande cidade sobre os transeuntes no incio do sculo XX (que Benjamin descreve com recurso categoria do choque):

    A base psicolgica sobre a qual se destaca o tipo da personalidade urbana a intensificao da actividade dos nervos que resulta da alternncia rpida e ininterrupta de impresses exteriores e interiores. [...] A grande cidade gera j nos fundamentos sensveis da vida psquica, no volume de conscincia que exige de ns devido nossa natureza como seres de diferena, uma oposio acentuda em relao pequena cidade e vida no campo [...]58

    58 Georg Simmel, As grandes cidades e a vida intelectual. In: J. Barrento, Literatura Alem. Textos e Contextos. Vol. II: O sculo XIX. Lisboa, Presena, 1989, p. 283.

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    assim que os Expressionistas, na poesia ou no teatro, sonham transfiguraes mticas e fazem nascer a metfora da cidade-monstro da mente de homens lcidos no meio da multido annima:

    No terrao do Caf Josty

    Praa de Potsdam: eternos gritosDos glaciares das lavinas febrisPelas ruas fora: carros em carrisOs automveis e os homens-detritos.

    Do asfalto escorre gente todo o dia,geis como lagartos, formigando.Cintila a ideia, a fronte, as mos pairandoQual luz do Sol em floresta sombria.

    A praa uma caverna chuva e trazCom a noite brancos morcegos esvoaando,E as manchas de leo, medusas lils,

    Sob os rodados, vo-se multiplicando. Brota Berlim, que o dia em brilhos vesteDa noite feita fumo, pstula de peste.59

    assim que Pessoa/Bernardo Soares se deixa dominar pelas atmosferas de Lisboa, que so os seus prprios estados de alma:

    Por entre a casaria, em intercalaes de luz e sombra ou, antes, de luz e de menos luz a manh desata-se sobre a cidade. Parece que no vem do sol mas da cidade, e que dos muros e dos telhados que a luz do alto se desprende no delles physicamente, mas delles por estarem alli. [...] Agora, luz ampla e alta, a paisagem da cidade como de

    59 Poema do expressionista Paul Boldt, em: Joo Barrento, A Alma e o Caos. 100 poemas expressionistas. Lisboa, Relgio dgua, 2001, p. 55.

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    um campo de casas natural, extensa, combinada. Mas, ainda no ver disto tudo, poderei eu esquecer que existo? A minha conscincia da cidade , por dentro, a minha conscincia de mim.60

    Hoje, com a indstria da cultura e o seu consumo organizado (por grandes instituies, gestores culturais, publicitrios e shoppings), morreu a experincia da flnerie nas grandes cidades. Benjamin antecipa j este estado de coisas, ao ver no flneur uma figura que anuncia o mal-estar dos habitantes futuros das nossas metrpoles (Paris, capitale du XIXme sicle, GS V, 69) ns prprios, transeuntes motorizados e alienados das ruas das cidades de hoje. Nelas, o transeunte deixou de ser um esprito disponvel, para se transformar em cidado controlado e apressado, neutralizado numa ps-modernidade desencantada, no no sentido que Max Weber deu expresso Entzauberung der Welt (a perda da magia do mundo), antes no de um tdio inconsciente (e no cultivado, como o spleen de Baudelaire) ou de um entusiasmo artificial que dominam as massas acomodadas e auto-satisfeitas, em existncias sem exterior, sem contraponto reactivo. O flneur de Baudelaire, esse botnico do asfalto (OE III, 38), figura prpria de povos com imaginao (OE III, 51) e de pocas que conhecem o tempo que se evola das coisas, a aura temporal que lhes amplifica os sentidos, protesta ainda com o seu passo de tartaruga contra a diviso do trabalho (e ser vencido pelo taylorismo). Hoje, esfumou-se totalmente a sua capacidade de contemplao e de sonho, at da prpria mercadoria, reduzida ao mais nu e cru valor de troca, no seu mais trivial ou mundano valor de culto. O shopping no a passage: os prprios nomes o dizem, nas suas origens anglo-saxnica e parisiense. Num

    60 F. Pessoa, Livro do Desassossego, por Bernardo Soares. Prefcio e organizao de Jacinto do Prado Coelho. Lisboa, tica, 1982, v. I, p. 123-24.

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    compra-se e vende-se, no esprito de um pragmatismo que impede o olhar livre sobre as coisas, na outra flana-se, alimenta-se o olhar, o desejo e a imaginao. J o grande armazm, aonde vai dar o homem da multido do conto de Poe, lembra Benjamin, a forma decadente de uma flnerie que transformou o exterior (a passagem, a rua) em interior. No grande armazm e no centro comercial o contrrio que acontece: um interior gigantesco transforma-se em exterior, modelo reduzido da quadrcula da cidade moderna. A, a atraco fatal da alma da mercadoria consegue transformar o flneur em comprador. O consumo desconhece a dure e provoca o declnio da aura do objecto, porque no sabe retribuir o olhar: Ter a experincia da aura de um fenmeno significa dot-lo da capacidade de retribuir o olhar. (OE III, 142). O que a aura exige, a retribuio do olhar, a conscincia da distino entre ver e sonhar (como a faz Bernardo Soares no Livro do Desassossego, ao escrever: Ver talvez sonhar, mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, que distinguimos sonhar de ver), tornou-se impossvel ao ritmo do tempo sem tempo de uma cidade onde no h paragem e no se d qualquer oportunidade memria involuntria. A aura dos objectos na flnerie, alis, rapidamente se esfuma e transforma: perde o carcter nico e ganha a face do sempre-igual e repetitivo. Benjamin diagnostica (com a ajuda de Nietzsche e Blanqui) esta transformao ainda no sculo XIX, com o fracasso da Comuna de Paris em 1871. Um dos resultados mais impressionantes desse fracasso a cosmoviso infernal de Blanqui (em L ternit par les astres, 1872), com a sua perspectiva niilista, grande sntese de todas as fantasmagorias do sculo numa especulao ltima de carcter csmico, que desmistifica a ideia de progresso e de modernidade como iluso da Histria.61

    61 Para o desenvolvimento desta temtica, ver o ltimo ensaio deste volume, Ler o que no foi escrito. Conversa inacabada entre Walter Benjamin e Paul Celan.

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    Mas tambm essa face do sempre-igual se pode transformar j se transformou em motivo de culto, nomeadamente em formas da melancolia urbana moderna, num spleen dos subrbios diferente do de Baudelaire, visto por Benjamin como o sentimento da catstrofe permanente (OE III, 154). O nosso menos ambicioso, dispensa a filosofia da Histria e confunde-se com a revolta dos excludos. um exerccio da viso no plano do horizonte a que temos acesso (Delfim Sardo em Cimncio) no universo urbano/suburbano de hoje. Um horizonte que cria expectativas e mobiliza para a aco e a ira sob a gide de um no future, tambm diferente do dique contra o pessimismo que , para Benjamin, o spleen baudelairiano, indiferente ao futuro (OE III, 151). A nova flnerie nocturna e violenta, desesperada e ressentida. O seu mbil j no o da experincia do olhar (embora se continue o culto da deriva, mas agora na horda, no gang). Este spleen remete para outros horizontes, e tem outras implicaes que vo para alm de meros exerccios da viso. Impe poltica e ao pensamento arquitectnico e urbanstico de hoje um compromisso com a histria e com o humano, que ser, ou realizado ou abortado. E o resultado ser, ou um campo de runas, ou uma paisagem-outra (aquela que uma autora como Maria Gabriela Llansol inventa como mais-paisagem, propiciadora da recuperao da capacidade do olhar recproco original). A cidade actual, em que o cerne histrico se esvazia ( noite) e os subrbios so desertos (de dia), uma paisagem sem a medida humana (de que fala o fragmento de Hlderlin Em azul ameno [...], e que, de outro modo, os novos tipos humanos ainda emprestam Paris de Baudelaire), um territrio marcado por um duplo vazio. Um grande texto/tecido espera de ser reescrito, no esprito de uma nova polis que fosse construda e vivida imagem de um paradigma humano, to humano que custa a crer que se impor um dia, to viciados estamos em noes estreitas do

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    humano. Benjamin fala de um novo mundo a nascer das runas da velha cidade. Ns s podemos falar de um mundo em devir para o incerto, neste momento final de uma modernidade que a si mesma se superou para entrar na fase da sua decadncia que sempre marcou a ponta final das chamadas grandes pocas e dos grandes imprios. Nesses momentos vive-se em falso, em universos de iluso e fantasmagoria, como o das passagens do sculo XIX, espelho do mundo burgus que as gerou e do luxo industrial da mercadoria produzida em srie. Nisto, no so diferentes dos grandes shoppings da vida no mundo contemporneo, em que se vive imerso em bunkers artificiais, bolhas sem sada (uma imagem sugerida pelo filsofo alemo Peter Sloterdijk), grandes catacumbas fericas da mercadoria glamorosa e desalmada. Ou, para os novos protagonistas migrantes da vida herica da grande cidade de hoje, na ferie (nada dialctica) da noite uma das grandes fantasmagorias, i. e., iluses de vida, do nosso tempo.

    Ver e ler: a alegoria

    Virar para fora o forro incandescente e colorido do tempo [...] Regresso a esta imagem dialctica e explico melhor a ideia que a informa (a de uma tenso entre o ver e o ler na ordem do emprico), a partir de dois fragmentos (no das Passagens, mas de um ncleo de textos e fragmentos includo, j tardiamente, no volume VI da edio crtica alem, em 1985). O primeiro apresenta o acto de percepo como um acto de leitura de sinais na superfcie absoluta do mundo:

    Percepo leitura

    Legvel apenas o que se manifesta na superfcie.

    [...]

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    H trs configuraes na superfcie absoluta: sinal, percepo e smbolo. A primeira e a terceira tm de se manifestar na forma da segunda. (GS VI, 32).

    O segundo fragmento (Baudelaire II), que tenho de transcrever aqui no essencial, remete directamente para Baudelaire e os modos de percepo presentes nas alegorias da cidade, atravs das quais o poeta chega ao fundo do desconhecido para encontrar o novo (como lemos no poema das Flores do Mal Le voyage), ao significado (simblico) essencial das imagens dialcticas da superfcie:

    Uma imagem, para dar o modo de ver as coisas prprio de Baudelaire: comparemos o tempo, o tempo terreno, a um fotgrafo um fotgrafo que capta a essncia das coisas. Mas a natureza constitutiva deste tempo terreno e do seu aparelho s lhe permite fixar na chapa o negativo da essncia. Ningum capaz de ler essas chapas, ningum consegue extrair do negativo da essncia das coisas, tal como o tempo a mostra, a sua verdadeira essncia. E o elixir para a revelao ningum o conhece. Aqui entra Baudelaire: tambm ele no dispe do lquido vivo em que essas chapas teriam de ser mergulhadas para mostrarem a verdadeira imagem das coisas. Mas s ele, num esforo intelectual enorme, consegue ler essas chapas. S ele est em condies de extrair do negativo da essncia uma intuio (Ahnung) da imagem que esse negativo esconde. a partir dessa intuio que o negativo da essncia fala em toda a sua poesia. (GS VI, 133).

    Os dois fragmentos articulam-se e completam-se. Se o primeiro sugere que o trabalho do olhar leitura de sinais manifestos e intuio de smbolos ocultos na superfcie absoluta do mundo (na ordem fenomnica), tal como acontece na construo alegrica em Baudelaire, o segundo pressupe a existncia de uma essncia (mas negativa, em clara rotura

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    com a metafsica idealista) no revelvel, apenas apreensvel como negativo fotogrfico (reverso de uma imagem dialctica) pelo esprito de um poeta como Baudelaire. Da se deduz que as vises da cidade que encontramos na sua poesia so lampejos do negativo da essncia das coisas, trazido superfcie absoluta, nica e visvel, da escrita. Estamos perante uma subtil descrio, cifrada, do processo da alegoria em Baudelaire (Dirio, 203-205), tal como Benjamin a apresenta: como uma babel de enigmas (OE III, 19), espelho do impulso destrutivo, tambm ele negativo, de Baudelaire, construo fictcia das runas do mundo dedicada pelo pensamento do alegorista cismtico lembrana (Erinnerung, rememorao subjectiva) da velha Paris, figura-chave da alegoria moderna, e por ele colocada ao servio da ausncia da aparncia e do declnio da aura (OE III, 165). Numa tal viso da cidade moderna, a percepo no oferece significaes (como j as no oferecia para a contemplao da natureza na alegoria barroca), mas sugere uma srie de possveis interpretaes, chaves de leitura. O olhar que l sinais e neles intui smbolos tende, assim, para ser a chave pura do real. Num outro fragmento sobre a percepo, Benjamin conclui: O real apercebido uma chave pura da superfcie absoluta com as suas configuraes (GS VI, 33).

    Para alm de constiturem uma chave para a alegoria baudelairiana que o mesmo dizer, para a primeira viso moderna da grande cidade na literatura , estes fragmentos evidenciam tambm dois mtodos distintos, um deles testemunho da relao ainda ambivalente de Baudelaire com o romntico, o outro fundamento do mtodo benjaminiano nos seus principais conjuntos de textos sobre o universo urbano. O mtodo baudelairiano ainda romntico, na medida em que a percepo intuitiva da essncia acontece a partir dos fragmentos da superfcie, numa espcie de potenciao transcendental

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    ou revelao rfica. A diferena que agora essa potenciao corresponde a uma desfigurao que destri a harmonia do mundo. Por isso, a prtica potica e a imagem da cidade que dela resulta em Baudelaire no so romnticas, mas modernas: o seu modo expressivo e construtivo no desemboca na reconciliao aproblemtica do smbolo (apesar do assumir transitrio de uma teoria das correspondncias que opera pela imaginao, e no pelo pensamento, como no alegorista) serve-se antes da alegoria, que destri o universo familiar para o salvar para novas significaes.

    J o segundo mtodo, mais aplicvel ao caminho que o prprio Benjamin segue para ler a cidade (a Paris de Baudelaire, as suas prprias vivncias de Berlim, Moscovo, e outras) se aproxima dos procedimentos surrealistas: faz convergir imagens cruzadas e inesperadas para sugerir um universo mais profundo, com ligaes imperceptveis, como no sonho. A imagem sobre-real da cidade em Baudelaire e Benjamin o resultado de um trabalho de percepo anamnsica que recupera imagens do passado para construir uma viso do espao urbano em chave de futuro, anywhere out of this world, como diz o ttulo de um dos poemas em prosa de Baudelaire (em que a cidade de referncia, curiosamente, Lisboa). Aqui, o presente o espao neutro, mas activo, onde essa operao possvel, algo assim como um catalizador do tempo.

    As formas da memria

    Este trabalho da memria atravs do olhar (que fundamenta, segundo Benjamin, o interesse renovado de Baudelaire pela alegoria como sendo de ordem ptica e no lingustica [OE III, 183], e explica aquela capacidade de captao do negativo da essncia enquanto imagem com efeito de estranhamento,

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    como acontece na alegoria), esse trabalho plasma-se, nos textos maiores de Benjamin sobre cidades, ou sobre a superfcie absoluta do mundo e da sua Histria, em trs formas particulares de memria que correspondem a diferentes faces e fases do olhar sobre cidades a Paris de Baudelaire, objecto do arquelogo da Modernidade, alfobre urbano de tipos humanos modernos e hericos, grande animal mutante, o claro paradoxo de um organismo inorgnico; a Berlim de 1900, labirinto de derivas interiores e exteriores da memria transfiguradora da infncia; e a outra Berlim, a dos anos vinte da gestao da barbrie, cenrio febril de encontros inesperados, entre a casa burguesa (que ser tambm o centro de Infncia Berlinense: 1900) e o dinamismo social de um momento histrico de grandes mudanas, como o encontramos tambm na obra fotogrfica de August Sander ou sociolgica de Siegfried Kracauer. A cada uma destas faces correspondem formas de escrita prprias: o ensaio sociolgico que opera de forma insuficiente e no convincente, no dizer de Adorno, que nos anos trinta no entendeu o mtodo de Benjamin a mediao entre manifestaes da base social e econmica e a superestrutura da criao potica de Baudelaire; o mtodo do escavar e recordar, prprio da escrita das memrias que, longe de se limitarem a fazer o inventrio dos achados, assinalam, no terreno do presente, o lugar exacto em que se guardam as coisas do passado (OE II, 220); e a montagem surrealista. E de cada forma de escrita emerge uma forma prpria de memria: a da infncia, alimentada sobretudo pela imaginao (uma forma de memria projectiva sobre uma infncia vivida em espaos protegidos, mas num dilogo permanente com a morte [B. Witte], provvel reflexo da obsesso do suicdio em Benjamin, nos anos de escrita de Infncia Berlinense: 1900); a memria involuntria do flneur, alimentada pelo olhar que descobre nos pormenores, em lugares de passagem, vestgios frteis do

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    passado e da sua prpria experincia; e finalmente, a um nvel-outro em que o mundo funciona como superfcie absoluta da Histria, a memria crtica do sujeito dessa Histria, tal como a encontramos nas Teses e em alguns outros fragmentos: esta a memria da catstrofe, a que continuamos a chamar progresso. O Anjo o portador dessa memria de um passado humano disponvel que, recuperado e actualizado, abrir a porta para um futuro de recorte messinico, mas constitutivamente profano, como sugere o Fragmento teolgico-poltico. Em qualquer dos casos, as configuraes do acto de rememorar (Erinnerung e no Gedchtnis, lembrana viva e no arquivo) em Benjamin no se mostram recuperveis pela vaga de teorias ps-modernas de uma memria cultural identitria, como armazm disponvel de dados do passado. O instrumento do trabalho sobre o passado (a lembrana subjectiva) em Benjamin a escrita, e tem vida e imperativos prprios. No o sujeito que dispe da sua memria, a sua memria (involuntria, recordao ou rememorao, presentificao anamnsica) que dispe dele, sob as mais diversas formas e nas mais diversas linguagens.62

    Perguntas: Benjamin e ns

    Aparentemente, no podamos estar mais distantes da experincia e da viso da grande cidade nos escritos de Benjamin, que a captam na hora do nascimento para a Modernidade na Paris do sculo XIX, para chegarem a uma Berlim de entre duas guerras que explode num contexto contraditrio e dinmico de superao problemtica de um estilo de vida vindo do mundo burgus de um sculo XIX em runas. As relaes que estabeleci

    62 Vd., a este propsito: V. Bors/G. Krumeich/B. Witte (Ed.). Medialitt und Gedchtnis [Os media e a memria]. Stuttggart, Metzler, 2001.

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    at aqui recorreram quase sempre mais a contrastes do que a afinidades ou aproximaes. Mas no h dvida de que ainda somos, em vrios aspectos, herdeiros das imagens da cidade em Walter Benjamin.

    Escrever a histria do pensamento (e da escrita) da modernidade urbana nos ltimos duzentos anos significa diria Benjamin dar s datas a sua fisionomia (OE III, 155). As datas significativas deste percurso so a segunda metade do sculo XIX, os anos entre as Grandes Guerras do sculo XX e a nossa actualidade. Se tivssemos de responder pergunta: Vimos dessas origens?, a resposta teria de ser afirmativa. O que de mais intrnseco existe na civilizao urbana de hoje participa ainda desses comeos: est a, de novo, a dialctica dos opostos (antigo-moderno) prpria das pocas de mudana (ou de decadncia?), hoje sob a forma de um paradigma global a querer impor-se a formas de cultura locais que lhe resistem; reconfigura-se e extrema-se o ciclo eternamente igual da mercadoria; reaparecem at formas prprias de melancolia e escrita alegrica em alguns poetas contemporneos da realidade urbana e da Histria (Manuel de Freitas ou Rui Pires Cabral entre ns, Durs Grnbein ou Marcel Beyer no espao alemo), representando, como j Baudelaire, o seu papel de mimo para uma plateia social que cada vez mais os desconhece e lhes concede algum espao de manobra apenas nesse papel de mimo (OE III, 157); alguns dos tipos hericos da fauna parisiense que povoam a poesia de Baudelaire regressaram para lutar por um estatuto de reconhecimento, e marcam a vida da cidade moderna (a lsbica e o sem-abrigo, a prostituta e o artista ou o delinquente).

    Mas a questo essencial para responder pergunta: O que liga Walter Benjamin e a sua viso da cidade ao nosso tempo? no passa pelos aspectos empricos, fenomnicos, da grande cidade ontem e hoje, na hora da sua gnese e no momento de

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    crise aguda que atravessa. antes a de saber que nervos e ncleos no aparentes, que tendncias latentes numa fase inicial da civilizao urbana continuam a e esto hoje mais expostos (e mais desgastados). No tanto aquilo que nos separa e que muito, como tinha de ser , como aquilo que constitui o fundo matricial, modificado, mas nico, dessa civilizao na modernidade e na nossa contemporaneidade a nica de que dispomos, nas metrpoles e nas megacidades de hoje, para viver, criar e morrer.

    Por esse fundo perpassam imagens que reconhecemos como as de Baudelaire e Benjamin, apenas com um tnue deslocamento, uma visvel intensificao. O inventrio podia ser extenso, mas anotemos apenas algumas delas: os labirintos do flneur so as ratoeiras do trnsito de hoje (ou os corredores do centro comercial); a floresta onde ele se perde por gosto a selva que nos consome; cidade como campo de alegorias que emergem do meio da multido corresponde o reino sempre-igual dos rostos tristes, ablicos ou agressivos, das massas hbridas de hoje; o choque produtivo amorteceu na sequncia entediante e mortfera de acontecimentos de rotina, mas cresceu quantitativamente; a cidade-texto e palimpsesto gerou espaos de redes saturadas e asfixiantes; a paisagem do inorgnico acentua-se em cenrios de pesadelo

    E, tal como em Baudelaire, a vida anterior, o objecto da experincia no estado da similitude, sinnimo do belo (OE III, 135), continua a ser o sonho de algo de irremediavelmente perdido, e hoje mais distante. na beleza lembra Maria Filomena Molder que Baudelaire vislumbra a sada do crculo infernal. E Benjamin tomou-a incansavelmente como objecto da sua procura, respondendo ao pedido que cada coisa nos faz de reconhecermos aquele ponto, aquele n, aquela salincia quase escondida, aquela ruga indelvel (Dirio, 206-207), que no se

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    encontram em mais nenhuma coisa, o que exige um afundar-se nos pormenores de cada coisa.63 No lugar desta busca de beleza e da retribuio do olhar mais ainda no mundo actual destitudo de memria instala-se o reverso dessa vida anterior, o Nada festivo, um outro apocalipse alegre (Hermann Broch). nesse deserto de experincia que nos encontramos: destitudos da tradio que ainda nos poderia falar e insensveis aura das coisas que nos olham.

    63 Maria Filomena Molder, Semear na Neve. Estudos sobre Walter Benjamin. Lisboa, Relgio dgua, 1999, p. 130.

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    Limiar, Fronteira e mtodo

    Auf der Grenze liegen immer die seltsamsten Geschpfe (A fronteira o lugar das mais estranhas criaturas)

    (Lichtenberg)

    Die Schwelle ist ganz scharf von der Grenze zu scheiden. (O limiar deve distinguir-se claramente da fronteira)

    (Walter Benjamin, O Livro das Passagens, O 2a,1)

    No limiar

    No momento em que escrevo estas linhas, ocupo-me, quase a tempo inteiro, de dois grandes clssicos no lidos, ou pouco lidos, Walter Benjamin e Robert Musil (mas nesse tempo tem de caber ainda a ocupao com uma outra obra tambm ainda no lida, o imenso esplio deixado pela escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol). Todos eles, cada um sua maneira, revolucionrios conservadores, para usar uma expresso de Thomas Mann a propsito de Lutero. Todos eles, de igual modo, autores de

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    obras de rotura, no cannicas, transversais, na fronteira entre formas e gneros e sobretudo entre a escrita e o pensamento. No caso de Walter Benjamin, um pensamento reverberante, em trnsito, rizomtico, servido por um mtodo em que se cruzam a fenomenologia e a hermenutica crtica (ou a crtica filosfica, como ele prprio prefere dizer), o marxismo e o messianismo, para levar prtica, na leitura que faz dos mais diversos objectos, uma verdadeira quadratura do crculo: encontrar o corpo da ideia, materializar a metafsica (por ex. na anlise dos adereos de cena no teatro barroco, da importncia do gesto na prosa de Kafka, das imagens que sustentam o pensamento no Surrealismo, em toda a estrutura alegrica, e no simblica, da vida moderna na grande cidade ou da mercadoria nas nossas vidas). Voltaremos a este mtodo, essencial para se entender o movimento do seu pensamento.

    Benjamin e foi mais lido do que Musil, que nunca teve grande presena entre ns, nem na universidade, nem nos escaparates das livrarias. Mas tem sido lido de forma parcial, unilateral, quase sempre com referncia aos mesmos textos (A obra de arte [...], A tarefa do tradutor, Pequena histria da fotografia, alguns dos ensaios sobre Baudelaire), conceitos (aura, alegoria, melancolia) ou constelaes metafricas (o anjo da Histria para a ideia de progresso, o flneur para a deriva moderna [...]). Uma leitura em que facilmente se extrapolam e instrumentalizam conceitos, praticando aquilo a que Benjamin chama a barbrie da linguagem das frmulas (carta a Hofmannsthal, 13 de Janeiro de 1924), e a que contrape a necessidade de libertar as palavras da carapaa dos conceitos pela fora magntica do pensar. Com poucas excepes a maior certamente a de Maria Filomena Molder , este autor no tem sido pensado e assimilado assim em Portugal, nunca foi verdadeiramente actual, e menos ainda actuante na cena

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    filosfica e terica portuguesa. O que posso fazer aqui apenas procurar expor alguns dos modos desse pensamento que recusa a segurana dos instrumentrios lingusticos e conceptuais dos sistemas filosficos e das escolas crticas que tinha sua disposio, e arrisca pensar a contrapelo e isto significa usar um mtodo que mais imagtico do que conceptual, que no separa o pensamento da forma do pensamento, e sobretudo que escolhe como objecto e lugar privilegiado desse pensamento, no o espao interior e j delimitado dos saberes, mas o limiar, a fronteira, o lugar-entre, o pequeno ou grande desvio, a relao, os contextos. E neste trabalho e neste pensamento no h temas triviais nem abordagens simplistas, apesar de Benjamin se ter ocupado, como nenhum outro filsofo, de objectos com que convivemos diariamente: a cidade, a mercadoria, o cinema, a moda, a fotografia, os interiores da casa o que no impede que todas essas anlises revelem um nvel de complexidade e de profundidade invulgares e comparveis a poucos outros no carcter nico das suas deambulaes. A existirem semelhanas ser com alguns dos ensaios de sociologia da cultura de um autor como Georg Simmel, que no entanto pratica um tipo de anlise sociolgica eivada de um simbolismo e de um certo impressionismo a que o pensamento de Benjamin avesso.

    Walter Benjamin , de facto, um pensador mltiplo e no situvel, um dos grandes polgrafos do sculo XX, um filsofo atpico, pensador para-doxal por excelncia (i. e.: que pensa sempre nas margens, no limiar da doxa), filsofo da histria, da linguagem, da poltica, da ideologia, da esttica, socilogo, historiador da literatura e da arte, crtico, cronista e contista, poeta e coleccionador, teorizador dos novos media (a fotografia, o cinema, a publicidade) e autor de alguns dos grandes ensaios literrios do sc. XX, sobre Kafka e Proust, Goethe e Brecht, o Barroco e o Surrealismo. E, o que era quase inevitvel, um

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    fragmentarista (mas no um autor do fragmento como forma) que s escreveu dois livros, numa obra imensa duas teses acadmicas, uma das quais, um dos livros do sculo, foi recusada pela Universidade de Frankfurt. Autor de fragmentos, portanto, mas no assistemtico, nem aforstico, como outros de uma tradio filosfica contra-corrente, em que Nietzsche o grande exemplo. Se a condio textual desta Obra o fragmento, como escrevi no posfcio edio portuguesa em curso, essa exigncia fragmentria (Blanchot) ditada muitas vezes pelos prprios objectos, e que a de todo o pensamento que no se fecha no significa, no entanto, que esta obra no se estruture em torno de constelaes sistemticas bem visveis. sobre algumas dessas constelaes de fronteira, e de alguns dos seus conceitos-chave, que tentarei anotar algumas ideias, partindo da convico de que o objecto preferencial do pensamento de Benjamin o limiar (ou ento esse pensamento, na sua forma tpica, que transforma qualquer objecto numa figura-limite), e de que toda a sua obra aquilo a que um crtico, nos anos oitenta (Winfried Menninghaus), chamou j Schwellenkunde uma cincia ou um saber dos limiares.

    Mtodo desvio

    A forma que melhor serve um retrato intelectual de Walter Benjamin , como se disse, a montagem, uma forma que ele prprio praticou, em livros como Rua de Sentido nico e acima de tudo nesse gigantesco arquivo da modernidade, um enorme painel feito de citaes e fragmentos que d pelo nome de O Livro das Passagens, e a que o autor, j em 1927, chamava uma fantasia dialctica. A prpria noo de Obra, pela sua diversidade, complexidade e movimento contnuo, refractria ao sentido mais corrente de obra como coisa acabada: para Benjamin, toda a obra acabada apenas a mscara

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    morturia da sua inteno. Daqui, a sua marca de gua constitutiva: a da escolha de zonas-limite, a da prtica das passagens, a da interveno em zonas-limiar, transversais aos saberes institudos. Daqui, tambm, o seu mtodo (Dirio, 16-19), que se ajusta a esses objectos tornados esquivos pelo olhar de quem sobre eles pensa e escreve: o mtodo da destruio-salvao (o de arrancar os objectos aos seus contextos habituais para neles encontrar novas significaes um mtodo que corresponde exactamente configurao e ao trabalho da alegoria, uma das categorias centrais de Benjamin para reinterpretar, quer o teatro barroco, quer a modernidade de Baudelaire). o que lemos num fragmento de Parque Central, a propsito do impulso destrutivo de Baudelaire:

    Aquilo que atingido pela inteno alegrica arrancado aos contextos orgnicos da vida: destrudo e conservado ao mesmo tempo. A alegoria agarra-se s runas. a imagem do desassossego petrificado. O impulso destrutivo de Baudelaire no est nunca interessado na eliminao daquilo que lhe caiu nas mos. (OE III, 161).

    Esse mtodo assenta muitas vezes apenas num ligeiro, mas decisivo, desvio do olhar que permite ver o objecto a outra luz quer se trate de um objecto sensvel (artstico ou literrio) ou filosfico, abstracto: por exemplo, uma filosofia da Histria lida a contrapelo das vises, quer teleolgicas, quer cclicas do sc. XIX (Hegel, Nietzsche), e cruzando pontos de vista messinicos (mas no escatolgicos) e materialistas (mas contaminados pela teologia, e no ortodoxos). Por exemplo, nas Teses Sobre o conceito da Histria e no Fragmento teolgico-poltico, onde, numa nica pgina, se transita, na busca de sentido do humano, entre o sagrado e o profano, a transcendncia e a imanncia, o messianismo a a dynamis da histria: e no limiar entre uma e outra coisa que a ordem do profano capaz de suscitar a vinda do reino messinico.

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    Este ltimo texto, uma das mais enigmticas pginas de Benjamin, vem dizer-nos (como as Teses) que na histria no h lugar para a morte, porque a sua matria o passado e os seres futuros que o habitam matria viva e transformvel. O Fragmento diz claramente, rejeitando o messianismo religioso e afirmando um ponto de vista eudemonista: O reino de Deus no telos da dynamis histrica [...]. E: A ordem do profano tem de se orientar pela ideia de felicidade. De acordo com esta viso da histria, a salvao no vir s no fim dos tempos, ela est sempre j a, ou mostra-se por uma nesga estreita que se abre no tempo no linear, em cada momento de esperana e utopia da histria humana no seu plano imanente, em cada um dos pequenos desvios que se podem dar no acontecer humano. Mais do que isso no podemos esperar que acontea. E quando isso acontece, estamos num espao-tempo de mudana, nos limiares entre mundos. Benjamin vai buscar a ideia das mudanas na histria como resultado de pequenas deslocaes a uma parbola hassdica do judasmo do Leste (que, afinal, se revelou ser uma leitura da Cabala pelo amigo Gershom Scholem), segundo a qual a vinda do Messias no corresponderia a uma mudana violenta do mundo, mas apenas a um ligeiro ajustamento. Esta ideia vem na linha do citado Fragmento teolgico-poltico, onde o reino messinico (que mais no do que a nostalgia de felicidade no mundo) visto como estando j presente na ordem da imanncia (como em Kafka, quando sugere que o Juzo Final acontece j aqui).

    No projecto do humano que orienta toda a sua Obra, tambm a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol encontra um nome para esse minimalismo messinico, como lhe chamou Hans Blumenberg, lembrado por Antnio Guerreiro em pginas muito pertinentes para esta questo dos pequenos desvios da Histria e suas incalculveis consequncias.64 Llansol fala

    64 Cf. Antnio Guerreiro, Histria e apocalipse. In: O Acento Agudo do Presente. Lisboa, Livros Cotovia, 2000, p. 120.

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    do modo leve de mudar, quando anota em Finita: Augusto lembra-me muitas vezes que quem escolhe a palavra, decide o real; // mas, neste aviso, sinto, sobretudo, o voluntarismo, porque no me desprendo da viso do eterno retorno do mtuo, que se revela no modo leve de mudar.65 Seculariza-se aqui o messinico e o escatolgico (o eterno retorno do mtuo , em Llansol, a frmula da sua viso eudemonista e redentora do humano), mas ao mesmo tempo sacraliza-se a categoria do profano e a ordem da imanncia, que, no sendo categorias de tal reino, so indcio da sua proximidade. O historiador, diz Benjamin numa das notas para as Teses, precisa de saber ler o que no foi escrito (veja-se o ltimo ensaio deste livro).

    Tambm Benjamin um leitor de indcios, operando um desvio em relao s leituras dominantes (de factos ou de quimeras) que, por pequeno que seja, implica, naturalmente, riscos. A permanncia no limiar contm o perigo da indeciso (nada que Benjamin no conhecesse bem), a topografia dos limiares (Menninghaus), fsicos e simblicos, integra os extremos da proteco e do medo do desconhecido (entre estes dois extremos se move tambm o acto de escrita para M. G. Llansol). Mas o mtodo seguido implica e integra esses riscos, e largamente compensado pela salvao que propicia do que h de mais essencial nos objectos quase sempre textos de que se ocupa: aquilo a que chama o seu contedo de verdade.

    Se tivesse de resumir numa frase o mtodo de Benjamin, diria que ele pretende descobrir o mais distante pela observao incansvel e implacvel do mais prximo. E isto exige um desvio, seguindo por vezes os mais imprevisveis caminhos que levam percepo do modo de ser simples das coisas (OE I, 22). Mas ser bom desfazer aqui uma possvel confuso que poder nascer

    65 Maria Gabriela Llansol, Finita. Dirio II. 2. ed. Lisboa, Assrio & Alvim, 2005, p. 43.

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    facilmente em leitores portugueses, entre o modo de ser simples das coisas e o mistrio das coisas as coisas no terem mistrio nenhum, do nosso Alberto Caeiro uma inveno literria de Fernando Pessoa que, no o esqueamos, no tem autonomia, parte de uma constelao pessoana muito mais complexa e tambm ela constituda por zonas heteronmicas que so limiares umas das outras! De facto, aquilo que neste confronto se esboa a oposio entre o alegrico e o elementar, entre a disponibilidade (da coisa) para a significao toda e qualquer, aquela que o olhar alegrico lhe queira impor e a recusa de significar por parte da coisa que porque simplesmente est a (ou ento por deciso daquele que, fora dela, lhe atribui essa condio elementar de ser, sem mais e sem metafsica). Poderamos dizer que Caeiro antigo e oriental (pr-socrtico e mstico, apesar do epicurismo que sempre se lhe aponta), e que os objectos de que se ocupa Benjamin so uma das mais tpicas manifestaes do esprito moderno ocidental (o esprito da alegoria moderna, ps-medieval: a do Barroco e a de Baudelaire). Por alguma razo este modo alegrico atravessa vrias modernidades, desde o Barroco (para Benjamin um primeiro momento fundamental da disjuno, do desmembramento e da fragmentao da viso classicista totalizante do Renascimento), passando pelo Romantismo e pelas fantasmagorias urbanas da grande cidade do sculo XIX, cujo arqutipo a Paris de Baudelaire, at aos movimentos modernos e mais ainda aos ps-modernos, no sculo XX. Hoje, estamos em condies de constatar como na ps-modernidade contra Caeiro e todos os purismos modernistas as coisas perderam definitivamente a sua inocncia. Da, o fascnio de todos os gestos que apontam para a salvao dessa inocncia originria, e de que os Modernismos esto cheios.

    Os dois polos da interpretao (a coisa/fragmento e o seu contedo de verdade) encontram-se para Benjamin numa correlao em que a Ideia, uma mnada (ou uma circunferncia

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    perfurada por vrios raios que a abrem para o exterior, para as coisas), recebe o fulgor dos fenmenos e mantm os conceitos distncia. A relao entre a elaborao microlgica e a escala do todo, de um ponto de vista plstico e mental, escreve Benjamin, demonstra que o contedo de verdade se deixa apreender apenas atravs da mais exacta descida ao nvel dos pormenores de um contedo material (OE I, 15). Aplicado a obras de arte concretas (mas que preciso situar no tempo), obras que so elas mesmas Ideias, mnadas na noite da ocultao de sentidos e da intensidade, uma noite que a interpretao abrir e salvar, o mtodo (e o desafio) de Benjamin transforma-se numa segunda quadratura do crculo: tentar fazer uma histria (estabelecer uma cadeia) daquilo que nico, irredutvel a relaes, isolado e sem janelas (a expresso de Adorno para a obra-mnada autnoma), isto , centrado sobre si prprio. O impossvel a que o mtodo de Benjamin aspira seria qualquer coisa como uma onto-histria da arte (Dirio, 77-81).

    Neste mtodo (em que o objecto/a obra no acidente histrico, mas substncia de um passado para a iluminao de um presente) no tem lugar o Eu: Benjamin decidiu um dia, ainda nos anos vinte, no usar a palavra eu nos seus escritos. Mas que significa dizer Eu, ou silenciar o Eu? Voltamos ao incio deste livro. Quando Walter Benjamin pergunta Sou eu aquele que se chama W. B., ou chamo-me simplesmente W. B.?, e se decide pela primeira hiptese, est a decidir-se pelo Ser, e no pelo Nome, a introduzir entre si e si, num limiar da conscincia, uma distncia preenchida por uma histria que uma acumulao de experincia (Erfahrung), diferente da mera vivncia pessoal (Erlebnis), e que lhe permite chegar a um terceiro, mais autntico, um Selbst: o si-prprio que nome prprio este , para o indivduo W. B., o seu contedo de verdade (Maria Filomena Molder desenvolveu j este tema num dos seus mais brilhantes

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    ensaios, em que se interroga sobre a questo do indivduo em Benjamin).66

    Limiar e fronteira

    Mas voltemos ao nosso fio condutor, o do limiar. Um mtodo como este leva necessariamente a uma forma de pensamento que se situa nessa zona e a escolhe para praticar aquilo a que j chammos uma cincia ou um saber das passagens, dos limiares.

    O que ento um limiar, no contexto que aqui nos interessa? Limiar vem do latim limes, que deu limite em portugus, e que era o termo usado para designar as fronteiras do Imprio Romano. Em Benjamin, porm, no linha, mas zona, e correponde ao hibridismo que encontramos naquilo a que ele chamava uma imagem de pensamento, nem imagem (eidtica, nua) nem conceito, mas o instrumento de um pensamento imagtico (Bilddenken) que espelha a prpria fisionomia filosfica deste pensador (e eu pouco mais posso fazer aqui do que esboar essa fisionomia). Ele prprio nos diz o que isso de ter uma fisionomia filosfica, num pequeno fragmento sobre a traduo (j referido atrs) em que conta como descobriu um dia em Paris uma traduo francesa de Nietzsche, procurou algumas passagens que conhecia bem no original e constatou, surpreendido, que essas passagens no estavam l! Encontrou-as, claro, mas ao olh-las tive a penosa sensao de que nem elas me reconheceram, nem eu as reconheci a elas (GS VI, 157-160).

    O limiar , assim, uma marca que atrai pelo que promete (em Walter Benjamin incita a uma reflexo sobre o secreto),

    66 Maria Filomena Molder, Aquele que acaba de despertar, in: Semear na Neve. Estudos sobre Walter Benjamin. Lisboa, Relgio dgua 1999, p. 119 segs. O tema retomado no seu ltimo livro, O Qumico e o Alquimista. Benjamin leitor de Baudelaire. Lisboa, Relgio dgua, 2011.

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    diferentemente da fronteira, que um lugar que pode assustar pelo que esconde, o desconhecido do outro lado; o limiar uma linha (ampla, mais uma zona, como diz Benjamin) de passagens mltiplas, a fronteira uma linha nica de barragem, num caso mais trao de unio, no outro de separao; enquanto a fronteira muitas vezes apenas um lugar burocrtico, o limiar um lugar onde fervilha a imaginao (e na obra de Benjamin, o livro de memrias Infncia Berlinense: 1900 disso o melhor exemplo, cheio de figuras que so guardies dos limiares, de portas, portes, varandas, campainhas, corredores que constituem objectos privilegiados do fascnio da criana e do filsofo que mais tarde os transformou em imagens de pensamento, tal como Proust, um dos autores de Benjamin, deles faz a matria que no romance alimenta a memria involuntria). Alguns exemplos, colhidos ao acaso:

    Os senhores dos umbrais: Entre as Caritides e os Atlantes, os putti e as Pomonas que nessa altura olhavam para mim, os que mais me atraam eram os daquela estirpe poeirenta dos senhores dos umbrais, que guardam a entrada na existncia ou numa casa. Porque esses sabem da arte da espera. (OE II, 84);

    No limiar entre mito e conto de fadas (o mundo de Kafka ou de Ulisses): Para os incompletos e desastrados h esperana. O que de mais delicadamente libertador se reconhece no agir destes mensageiros uma lei que, de forma duradoura e sombria, domina o mundo de tais criaturas. Nenhuma delas tem lugar fixo, nem um perfil claro e inconfundvel [...] No possvel falar aqui de ordens e hierarquias [...] Entre os antepassados que Kafka tem na Antiguidade, no se pode esquecer o grego, Ulisses, que se situa no limiar entre o mito e o conto de fadas [...] (Kafka, GS II/2, 415);

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    O Surrealismo: no limiar entre viglia e sono: Tudo aquilo em que tocava era assimilado. A vida s parecia digna de ser vivida no ponto em que o limiar entre a viglia e o sono era percorrido por cada um, como sob as passadas de imagens que iam e vinham, em massa, a linguagem ela mesma e mais nada, onde o som e a imagem, a imagem e o som, se confundiam com uma exactido automtica e de forma to feliz que nem uma fresta ficava aberta para a insignificncia do sentido (O Surrealismo, GS II/1, 296);

    As portas das cidades: Sobre a topografia mitolgica de Paris: que carcter lhe conferem as suas portas? importante atentar na sua dualidade: portas-limite e arcos triunfais [...] As portas monumentais desenvolveram-se a partir do crculo de experincia do limiar: quem passa sob os seus arcos sofre uma metamorfose [...] (Das Passagen-Werk, C 2 a, 3);

    Passagens: [...] ainda hoje algumas passagens conser- vam, na luz crua e nos seus cantos escuros, um passado que se espacializou. [...] Dos arcos da entrada se poderia tambm dizer que so de sada, pois nestes estranhos e hbridos lugares, a um tempo casa e rua, cada arco entrada e sada (Das Passagen-Werk, GS V/2, 1041);

    A magia do limiar: A magia dos limiares. entrada da pista de patinagem no gelo, da cervejaria, do court de tnis, dos lugares de passeio: os penates. A galinha que pe ovos de chocolate dourados, a mquina que grava o nosso nome, jogos de azar, mquinas de ler a sina, e sobretudo de baloiar: todos estes mulos contemporneos do orculo dlfico gni seauton so os novos guardies dos limiares. Curiosamente, no abundam nas cidades so antes parte dos lugares de passeio, dos restaurantes dos arredores. Os

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    passeios de domingo tarde no se limitam a ir a esses lugares, dirigem-se tambm aos misteriosos limiares. claro que esta mesma magia domina tambm, escondida, os interiores das casas burguesas. As cadeiras junto desses limiares, as fotografias enquadrando a ombreira de uma porta, so os deuses decadentes do lar, e as foras que eles tm de apaziguar ainda hoje atingem o mais fundo de ns quando a campainha toca. (Das Passagen-Werk, I 1 a, 4).

    A constelao do limiar informa toda a Obra de Walter Benjamin, e articula-se, como j se foi percebendo, com alguns conceitos-chave e instrumentos filosficos ao nvel de reas de pensamento (filosofia da Histria, da linguagem e da traduo), gneros filosficos e literrios (ensaio versus tratado; fragmento versus citao, memorialismo e crtica) e objectos (a passage e as suas mltiplas significaes, a loggia e o seu estatuto de lugar-entre a casa e a cidade). Concretamente, e para escolher apenas alguns desses conceitos-chave:

    a ideia, e o seu lugar entre empiria e conceito; o vestgio: o limiar o lugar onde se detectam vestgios

    do que est para l deles e pode ser antecmara, por exemplo da

    aura: porta de entrada para uma vida-outra da obra, janela que abre para o horizonte de uma (visionada) unicidade do objecto (particularmente na arte);

    a obra, porque toda a obra inacabada e se fica pelo limiar da sua intencionalidade;

    a citao, como limiar da obra; ou o fragmento, como sua promessa; a crtica, se por isso se entender uma noo de crtica

    filosfica que est para l da crtica historicista e imanente, e aqum da pura reflexo filosfica, no encalo de um contedo de verdade;

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    o Schein (brilho, ou aparncia), que tanto pode corresponder ao brilho enganador da fantasmagoria mercantil, entre valor de troca e valor de uso, como bela aparncia esttica da obra clssico-romntica no limiar da sua destruio pelas dissonncias modernas (j em Baudelaire);

    a alegoria moderna, limiar de todas as significaes possveis, dispositivo por excelncia do transitrio e da fractura (o smbolo, pelo contrrio, no conhece estes limiares abruptos, vive de correspondncias harmnicas).

    O limiar, todos os limiares, transformam-se assim em lugares de vida e de pensamento escrito, enquanto a fronteira acabaria por ser, para Benjamin, lugar de morte.

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    Ler o que no foi escrito: conversa inacabada entre Walter Benjamin e

    Paul Celan67

    Se quisermos olhar a histria como um texto, aplica-se a ela o que um autor recente diz dos textos literrios: em ambos o passado

    depositou imagens comparveis s que foram fixadas numa chapa sensvel luz. S o futuro tem reveladores suficientemente fortes para fazer emergir a imagem em todos os seus pormenores. [...] O mtodo

    histrico um mtodo filolgico, e assenta sobre o livro da vida. Hofmannsthal fala de ler o que nunca foi escrito.

    O leitor que assim l o verdadeiro historiador. (Walter Benjamin, A imagem dialctica, OE IV, 159)

    Fala tambm tu, fala em ltimo lugar,

    diz a tua sentena.

    Fala Mas no separes o No do Sim.

    D tambm sentido tua sentena: d-lhe a sombra.

    [...] Fala verdade quem diz sombra.

    (Paul Celan, Fala tambm tu)

    67 Verso reformulada de um ensaio j publicado no Brasil, em: Joo Barrento, O Arco da Palavra. Ensaios. So Paulo, Escrituras, 2006.

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    Estvamos em 1999. A estao de televiso SIC vinha anunciando, dia a dia, enigmaticamente e em contagem decrescente representada entre rodas e engrenagens do tempo, um qualquer evento que presumi ser a vinda de um Messias meditico, ou uma apocatstase secularizada, como convm a este nosso sculo profano. Li aquele misterioso calendrio como uma alegoria do nosso tempo, hoje perfeitamente redutvel sua vertente mais publicitria, que tanto gosta de criar expectativas para logo as desfazer com certezas. Com a preciso dos relgios digitais que, infalveis, no ano anterior tinham feito coincidir todos os seus redondos zeros com a abertura triunfal das portas da Expo 98, tambm aquele esfngico mecanismo da SIC nos arrastava inexoravelmente para o que os seus promotores queriam que fosse a certeza do novo e do diferente: quando tambm estes nmeros se reduzirem a zeros, estaremos pensavam eles no prximo milnio. Acontece, porm, que no dia 1 de janeiro de 2000 essa certeza foi um engano, e a grande viragem mais no representou do que o eterno retorno do mesmo. O novo milnio s comeou, de facto, em 2001, e a mudana no foi, nem em 2000, nem em 2001, nada de comparvel quela mudana na respirao (Atemwende) que, para Paul Celan, o poema traz consigo quando entra nas nossas vidas para as transformar, ou seja, para lhes dar um sentido e um destino, uma mudana que pode ser a prpria essncia da poesia, como se l em O Meridiano:

    Poesia: qualquer coisa que pode significar uma mudana na respirao. Quem sabe se a poesia no faz o caminho tambm o caminho da arte com vista a uma tal mudana? Talvez ela consiga, j que o estranho, ou seja o abismo e a cabea de Medusa, o abismo e os autmatos, parecem ir numa e na mesma direco talvez ela consiga ento a distinguir entre estranheza e estranheza, talvez a cabea de Medusa se atrofie precisamente a, talvez

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    precisamente a fracassem os autmatos neste breve e nico momento.68

    Walter Benjamin ver tambm em qualquer coisa de semelhante, num sopro quase imperceptvel, no uma essncia, mas um sinal, o sinal das grandes transformaes na ordem do profano, ou seja de uma histria humana de cariz eudemonista, visando a felicidade neste mundo. No j citado Fragmento teolgico-poltico, provavelmente em 1920 ou 1921, escreve:

    A ordem do profano tem de se orientar pela ideia de felicidade. A relao desta ordem com o messinico um dos axiomas essenciais da filosofia da histria. [...] O profano no [...] categoria de tal reino, mas uma categoria e das mais decisivas da mais imperceptvel forma da vinda prxima desse reino. Pois na felicidade tudo o que terreno aspira sua dissoluo, mas s na felicidade ele est destinado a encontrar a sua dissoluo. (OE IV, 21)

    De uma forma ou de outra, a Histria repetir-se-, a suspenso momentnea do Tempo no significar nenhuma das duas coisas que informaram a viso melanclica, revolucionria a contrapelo, mas ainda assim utpica, dos dois autores que aqui ponho em dilogo. Nem o desejo de eternizar a Revoluo, que Walter Benjamin lembra numa das teses Sobre o Conceito da Histria (a XV), quando escreve que os revolucionrios de 1830, em vrios lugares de Paris, disparavam em simultneo contra os relgios das torres para fazer parar o tempo:

    A Grande Revoluo introduziu um novo calendrio. O dia com que se inicia um calendrio funciona como um

    68 Paul Celan, O Meridiano. In: Arte Potica. Edio e traduo de Joo Barrento. Lisboa, Livros Cotovia, 1996, p. 43, 54.

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    dispositivo de concentrao do tempo histrico. E , no fundo, sempre o mesmo dia que se repete, sob a forma dos dias feriados, que so dias de comemorao. Isto quer dizer que os calendrios no contam o tempo como os relgios. So monumentos de uma conscincia histrica da qual parecem ter desaparecido todos os vestgios na Europa dos ltimos cem anos. Na Revoluo de Julho aconteceu ainda um incidente em que esta conscincia ganhou expresso. Chegada a noite do primeiro dia de luta, aconteceu que, em vrios locais de Paris, vrias pessoas, independentemente umas das outras e ao mesmo tempo, comearam a disparar contra os relgios das torres. Uma testemunha ocular, que talvez deva o seu poder divinatrio fora da rima, escreveu nessa altura:

    Qui le croirait! on dit quirrits contre lheure De nouveaux Josus, au pied de chaque tour, Tiraient sur les cadrans pour arrter le jour. [Incrvel! Irritados com a hora, dir-se-ia, Os novos Josus, aos ps de cada torre, Alvejam os relgios, para suspender o dia.] (OE IV, 18);

    nem a esperana messinica mas mais derivada da experincia pessoal do que de um misticismo judaico que no assimilou de raiz de uma apocatstase, de um recomeo absoluto sob o signo dos justos, uma obsesso que alimentava j o imaginrio de Kafka como reverso do impenetrvel tdio dos dias, e que Paul Celan anuncia repetidas vezes, por exemplo, num poema tardio, de Julho de 1968, na imagem do homem justo desprovido de ponteiros (entzeigert) que um dia sair dos pntanos da Histria. O pequeno poema, quase intraduzvel, revelador daquele mtodo de um estranhamento emprico com que Celan faz o pormenor realista, organizado em sistema potico, saltar para um outro nvel, meta-histrico ou metafsico: neste caso, o pntano

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    metfora do sculo, da sua barbrie e da sua esperana, e o justo de que aqui se fala uma figura que tem tempo, porque est fora do tempo (no tem ponteiros), suporte daquela luz (messinica) que tantas vezes ilumina as paisagens de morte desta poesia. Cito o poema, na traduo possvel, e prescindindo do comentrio de pormenor que melhor lhe iluminaria o sentido:

    Hochmoor, uhrglasfrmig (einer hat Zeit),

    Pntano do planalto, em forma de ampulheta (algum a tem tempo),

    soviel Ritter, sonnentauschtig, tanta borboleta, atrada pelo orvalho solar,aus dem Lagg stehen die Sabbatkerzen nach oben,

    saindo da vala, sobem, erectas, as velas do sabbat,

    Schwingmoor wenn du vertorfst entzeigere ich den Gerechten.

    orla do pntano, quando te trans-formares em turfa eu retirarei os ponteiros ao justo.

    O ltimo sculo, febril de novidade e de progresso, foi, na dimenso mais puramente humana da sua histria, um sculo do eterno retorno da cegueira. Disso falam, nos mais diversos planos e ao longo de toda a sua obra, Walter Benjamin e Paul Celan. Benjamin toma como referncia para aquela que deveria ser a ltima parte dO Livro das Passagens sobre Baudelaire, a arqueologia do sculo XX no XIX e uma arrasadora filosofia da Histria que lhe est subjacente (ou a sustenta) , um livrinho escrito pelo revolucionrio da Comuna Louis-Auguste Blanqui durante uma parte dos mais de trinta anos que passou encarcerado. A obra chamava-se L ternit par les astres: hypothse astronomique, e foi publicada em 1872. Benjamin descobre-a na Biblioteca Nacional de Paris e refere-se a ela, em carta a Max Horkheimer (de 6 de Janeiro de 1938), como um estranho achado, cuja influncia sobre o meu trabalho ser determinante. O adjectivo

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    de peso, perguntamo-nos em que medida pode este achado o desconcertante tratado de um revolucionrio desiludido que prope um itinerrio a um tempo sideral e familiar pelas galxias da histria humana ter sido determinante para a construo de uma leitura materialista dos vectores de desenvolvimento e das contradies e ideologias do capitalismo tardio por Walter Benjamin nos ltimos anos de vida. A verdade que as analogias so mais que bvias, quer com a teologia da Histria de Benjamin (sobretudo nas Teses, mas tambm j em escritos dos anos vinte, como o referido Fragmento teolgico-poltico), quer tambm com a teoria da modernidade ou o pensamento da Histria em outros autores do sculo XIX Baudelaire e a sua dialctica do antigo e do moderno (do antigo no moderno), Jules Laforgue e a sua ideia do tempo como ternullit, naturalmente Nietzsche e o eterno retorno, que Blanqui antecipa , e tambm em obras do nosso sculo, em particular a de Borges, com os seus tempos circulares, espaos vertiginosos, desdobramentos e bifurcaes em universos paralelos.

    A carta a Horkheimer elucidativa da cosmoviso infernal de Blanqui e da sua perspectiva, j niilista, da histria e da sociedade:

    Dei nas ltimas semanas com um estranho achado, cuja influncia sobre o meu trabalho ser determinante: veio-me parar s mos a obra que Blanqui escreveu na sua ltima priso, o Fort du Taureau, e que seria a derradeira. uma especulao cosmolgica, traz o ttulo Lternit par les astres e, ao que me parece, ficou at hoje esquecida. [...] Se o inferno um objecto teolgico, ento podemos dizer que esta especulao teolgica. A viso do mundo que Blanqui nela desenvolve, retirando s cincias naturais mecanicistas o que nelas so dados, , de facto, infernal e tambm, sob a forma de uma viso natural do mundo, o complemento da ordem social que Blanqui,

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    no fim da vida, teve de reconhecer como vencedora. O mais assustador que falta a esta especulao toda e qualquer ironia. Representa uma sujeio sem reservas, mas ao mesmo tempo a mais terrvel acusao contra uma sociedade que lana ao cu esta imagem do cosmos como projeco de si. (OE III, 363-364).

    Para Benjamin, o interesse do livro de Blanqui estava no facto de ele ser uma sntese de todas as fantasmagorias do sculo XIX (para aquele, coisas como a noo de progresso, as utopias polticas, o fetichismo da mercadoria, a moda, o cortejo infernal dos tipos urbanos ou o interior burgus), que a apareceriam subsumidas numa fantasmagoria ltima, de carcter csmico. A pretexto de discutir a hiptese cosmognica mecanicista de Laplace (que afirmava a eterna permanncia do sistema solar: vd. Exposition du systme du monde, 1796; e a Mchanique cleste, 5 volumes, 1799-1825), e por um processo que Peirce diria de abduo (um insight sbito, uma viso interior totalizante), Blanqui transpe a sua leitura desencantada do processo histrico do seu tempo para a esfera dos astros, estabelecendo uma analogia entre a histria humana e a eterna repetio da natureza csmica, atravs das figuras da suspenso do tempo, da permanncia, da semelhana entre os corpos em rotao eterna, das Terras-ssias, desmistificando assim a ideia de progresso e de modernidade como a grande fantasmagoria da Histria. Uma Histria que desafia a prpria ideia, paradoxal, de uma eternidade actual e sempre fugidia, sustentada por uma noo do Agora como tempo suspenso e que corresponde, tanto ideia do moderno em Baudelaire (veja-se Le peintre de la vie moderne, ou o soneto une passante) como desconstruo, por Benjamin, da ideia de histria como um contnuo. Benjamin deixaria esta ideia claramente expressa nas Teses XIV e XV de Sobre o Conceito da Histria:

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    A histria objecto de uma construo cujo lugar constitudo, no por um tempo vazio e homogneo, mas por um tempo preenchido pelo Agora (Jetztzeit). Assim, para Robespierre a Roma antiga era um passado carregado de Agora, que ele arrancou ao contnuo da histria. E a Revoluo Francesa foi entendida como uma Roma que regressa. Ele citava a velha Roma tal como a moda cita um traje antigo. A moda fareja o actual onde quer que se mova na selva do outrora. Ela o salto de tigre para o passado. S que ele se d numa arena em que a classe dominante quem comanda. O mesmo salto, mas sob o cu livre da histria, o salto dialctico com que Marx definiu a revoluo. [...]A conscincia de destruir o contnuo da histria prpria das classes revolucionrias no momento da sua aco. (OE IV, 17-18).

    E em Blanqui podemos ler:

    Todos os astros so repeties de uma combinao original, ou tipo. No possvel a formao de novos tipos. O seu nmero esgotou-se necessariamente desde a origem das coisas embora as coisas nunca tenham tido uma origem. Isto significa que um nmero fixo de combinaes originais existe em toda a eternidade, e no mais susceptvel de aumentar ou diminuir do que a matria. e permanecer o mesmo at ao fim das coisas, que, tal como no podem comear, tambm no acabaro. Eternidade dos tipos actuais no passado como no futuro, e nem um astro que no seja um tipo repetido at ao infinito, no tempo e no espao esta a realidade.A nossa Terra, bem como os outros corpos celestes, a repetio de uma combinao primordial, que se reproduz sempre da mesma maneira e existe simultaneamente em milhes de exemplares idnticos. [...] Consequentemente, todos os factos acontecidos ou por acontecer no nosso globo, antes da sua morte, acontecem exactamente

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    como nos milhes de outros seus semelhantes. E como o mesmo se passa com todos os sistemas estelares, o universo inteiro a repetio permanente, sem fim, de um material e de um pessoal sempre renovado e sempre o mesmo. [...]O nmero dos nossos ssias infinito, no tempo e no espao [...] E no se trata de fantasmas, a actualidade eternizada. E no entanto h nisso um problema maior: o progresso no existe [...] No fundo, ela melanclica, esta eternidade do homem pelos astros [...] Aquilo a que chamamos progresso est enclausurado em cada Terra, e desvanece-se com ela. Sempre e por toda a parte, no campo terrestre, o mesmo drama, o mesmo dcor, sobre o mesmo palco estreito, uma humanidade ruidosa, enfatuada da sua grandeza, julgando-se o universo e vivendo na sua priso como num espao sem fim, para em breve soobrar com o globo que suportou com o mais profundo desprezo o fardo do seu orgulho. E a mesma monotonia, o mesmo imobilismo nos outros astros. O universo repete-se sem fim e marca passo sem sair do mesmo lugar. Imperturbvel, a eternidade representa, at ao infinito, o mesmo espectculo.69

    Benjamin comenta e conclui, na sinopse do livro sobre Baudelaire (Paris, capital do sculo XIX), retomando ideias da carta a Horkheimer:

    Este livro fecha as fantasmagorias do sculo acrescen- tando-lhes uma ltima, de carcter csmico, que contm implicitamente a crtica de todas as outras. As reflexes ingnuas de um autodidacta, que constituem a parte principal deste escrito, abrem caminho a uma especulao que desmente cruelmente o entusiasmo revolucionrio do autor. [...] A concepo do universo que Blanqui

    69 Louis-Auguste Blanqui, Lternit par les astres [1872]. Paris-Genebra, ditions Slatkine, 1996, p. 126-127; 148-152.

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    desenvolve neste livro, com dados que vai buscar s cincias naturais mecanicistas, revela-se como uma viso do inferno. [...] Este escrito apresenta a ideia do eterno retorno das coisas dez anos antes do Zaratustra, de forma no menos pattica e com um forte poder de alucinao. (Das Passagen-Werk, GS V/1, p. 75).

    *A Histria como pntano, a Histria, uma fantasmagoria

    csmica do eterno retorno do mesmo. So leituras marcadas, em Celan e Benjamin, por um pensamento negativo e da crise, instalado desde o sculo XIX, tutelado por Nietzsche, e que a histria do ltimo sculo at h bem pouco tempo alimentou e legitimou de forma gritante e no apenas com as duas Grandes Guerras, o nazismo e o estalinismno, tambm com as guerras do Vietename, dos Balcs, do Iraque, com os genocdios do Cambodja ou do Ruanda. Mas um pensamento e uma obra no so mnadas cristalizadas e deriva num espao vazio de relaes. So, como Benjamin queria, momentos vivos do passado disposio de um Agora. E parte integrante e activa da configurao desse presente. Por isso, teremos de nos perguntar: de que lugar de sentido, ou no-sentido, falamos quando nos pomos a falar com a obra destes dois autores? Que razo ou desrazo nos assiste, ao p-los em dilogo, a eles que nunca se encontraram? O judasmo no base segura de dilogo para dois autores que nunca o assumiram de raiz, mas apenas, num caso como no outro, atravs da influncia e das obras de Gershom Scholem, amigo e interlocutor de Walter Benjamin, desde os anos da Sua, no fim da primeira guerra (1917-1920), e fonte decisiva para a compreenso do lugar da Cabala e do misticismo judaico na poesia de Celan. H tambm alguma presena intertextual de Benjamin na obra de Paul Celan: de primeiro grau, quando no discurso O Meridiano, citado o ensaio de Benjamin sobre Kafka:

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    Cada coisa, cada indivduo , para o poema que se dirige para o Outro, figura desse Outro.

    A ateno que o poema procura dedicar a tudo aquilo com que se encontra, o seu sentido apuradssimo do pormenor, do perfil, da estrutura, da cor, mas tambm das comoes e das aluses tudo isso, ao que penso, no nenhuma conquista do olho que diariamente concorre com aparelhagens cada vez mais perfeitas (ou com elas corre), antes uma forma de concentrao que tem presentes todos os nossos dados.

    A ateno permitam-me que cite aqui, seguindo o ensaio de Benjamin sobre Kafka, uma frase de Malebranche , a ateno a orao natural da alma.70

    ou de segundo grau, quando em vrios poemas se alude a motivos benjaminianos.

    Mas h sobretudo uma diferena essencial: Benjamin , em muitos aspectos desde logo por nascimento um autor do sculo XIX, no tanto pelo seu mtodo, alegrico, assistemtico, da montagem, que iminentemente moderno, e mesmo ps-moderno, mas pelos focos de interesse dominantes da sua obra. Walter Benjamin filho de uma poca e de uma gerao a que nasceu na ltima dcada do sculo XIX que se formou no esprito filosfico dos grandes debates de ideias alimentados pela crtica da cultura e da linguagem, o cepticismo e o relativismo, a conscincia negativa e o agudizar das contradies do capitalismo tardio. , como sugere Hans Mayer na sua monografia Der Zeitgenosse Walter Benjamin (Walter Benjamin, Nosso Contemporneo), uma gerao de solitrios e desencantados votados ao fracasso, como no o fora a dos nascidos nos anos setenta e oitenta, mais slidos e at eufricos, e de que Thomas Mann poderia ser tomado como o melhor representante um termo muitas vezes aplicado ao

    70 Paul Celan, op. cit., p. 57.

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    autor dA Montanha Mgica (como antes dele a Goethe), mas absolutamente inadequado a Walter Benjamin:

    A gerao dos anos noventa demonstra claramente que na sua experincia a viso idealista j tinha perdido o brilho. [...] Era evidente nela a recusa da comunidade, a tendncia para a oposio. A relao crtica com a sua gerao dos anos noventa determinou desde o incio a vida de Benjamin, em termos de evoluo concreta e intelectual. De forma decidida, recusou-se durante toda uma curta vida a tomar decises de Ou ou. O seu forte no eram as decises. Sabia bem de mais que tambm a deciso da no deciso podia ser entendida como uma deciso. Na vida tardia de Walter Benjamin alternaram os esforos no sentido de um No-s-mas-tambm (por exemplo entre Hofmannsthal e Brecht) com a recusa definitiva de um Nem nem, demonstrvel na sua polmica contra o Expressionismo tardio, mas tambm contra a Nova Objectividade nascente.71

    Benjamin nasce em 1892, Celan em 1920. Quando Benjamin se suicida em Port-Bou, em Setembro de 1940, Cernowitz, onde Celan se encontra de novo, depois de um ano perdido a estudar medicina em Tours, ocupada pelas tropas soviticas, e logo depois pelas alems. A morte prematura de Walter Benjamin coincide com os comeos literrios de Paul Celan e da via crucis do poeta, cujos primeiros poemas, contemporneos da deportao e morte dos pais, em 1942, do j conta do advento da barbrie nazi: so poemas com ttulos como Finsternis (Trevas), Winter (Inverno), Schwarze Flocken (Flocos Negros). E apesar disso, no poeta como no filsofo, as experincias diversas da histria do sculo daro origem a um percurso semelhante, um percurso que em ambos

    71 Hans Mayer, Der Zeitgenosse Walter Benjamin. Frankfurt a.M., Jdischer Verlag, 1992, p. 13-14.

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    vai do negro ao branco: da viso negativa da histria (presente) na paisagem de devastao que o Anjo da Histria tem sua frente, no olhar do alegorista melanclico e na mortificao do mundo (em Benjamin), ou no metaforismo da morte, das trevas, do amargo (em Celan). Viso negativa na qual haver, no entanto, lugar para a utopia e a esperana messinica nas configuraes vrias de uma redeno neste mundo. Em Benjamin, ela dada pelas imagens da palhinha, da lmpada eterna, da pequena porta por onde pode vir o Messias, chamado num momento de Eingedenken (presentificao anamnsica) do passado e da sua latncia utpica, como se poder ler nas Teses e no Fragmento Teolgico-Poltico:

    A. O historicismo limitou-se a estabelecer um nexo causal entre vrios momentos da histria. Mas um facto, por ser causa de outro, no se transforma por isso em facto histrico. Tornou-se nisso postumamente, em circunstncias que podem estar a milnios de distncia dele. O historiador que partir desta ideia desfia os acontecimentos pelos dedos como um rosrio. Apreende a constelao em que a sua prpria poca se insere, relacionando-se com uma determinada poca anterior. Com isso, ele fundamenta um conceito de presente como Agora (Jetztzeit), um tempo no qual se incrustaram estilhaos do messinico.

    B. O tempo que os ugures interrogavam para saber o que ele trazia no seu ventre no era certamente visto como tempo homogneo ou vazio. Quem tiver isto presente, talvez possa fazer uma ideia de como o tempo passado foi experienciado na presentificao anamnsica (Eingedenken) exactamente dessa maneira. Como se sabe, os Judeus estavam proibidos de investigar o futuro. A Tora e as oraes, pelo contrrio, ensinam a prtica dessa presentificao anamnsica. Isto retirava ao futuro o seu carcter mgico, que era aquilo que procuravam os

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    que recorriam aos ugures. Mas isso no significa que, para os Judeus, o tempo fosse homogneo e vazio, pois nele cada segundo era a porta estreita por onde podia entrar o Messias. (OE IV, 20).

    S o prprio Messias consuma todo o acontecer histrico, nomeadamente no sentido de que s ele prprio redime, consuma, concretiza a sua relao com o messinico. Por isso, nada de histrico pode, a partir de si mesmo, pretender entrar em relao com o messinico. Por isso, o reino de Deus no o telos da dinmica histrica e no pode ser institudo como objectivo. De um ponto de vista histrico, ele no objectivo (Ziel), mas fim (Ende). Por isso, a ordem do profano no pode ser construda sobre a ideia do reino de Deus, por isso a teocracia no tem um sentido poltico, mas apenas sentido religioso. O grande mrito de Esprito da Utopia, de Ernst Bloch, foi o de ter negado firmemente o significado poltico da teocracia. (OE IV, 21).

    Em Celan, as configuraes da redeno surgem no metaforismo da luz, do canto, e mesmo do amor, em particular na poesia do esplio:

    Sobre verde carregado,traado pelo dedo da vida:o rasto luminoso da moque agarrou a noite e a madrugada da palavraem redor da qual agora se ergue o brilhoda gratido de lonjuras reunidas.

    Ao subir datela,desejoso de mudana:um azul que tudo inunda.

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    Nas suas margens, branco como o dia:o tempo desta imagem.

    Que cresce como o teu olhar quer.72

    Ou, de forma mais pregnante ainda, no poema A morte:

    A morte uma flor que s abre uma vez.Mas quando abre, nada se abre com ela.Abre sempre que quer, e fora de estao.

    E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes.Deixa-me ser o caule forte da sua alegria.73

    Benjamin no conheceu a plena dimenso de Auschwitz, nem assistiu ao desenrolar da era do trabalhador, como Ernst Jnger (1932) e Heidegger a tematizaram embora tenha escrito, em 1930, sobre a mstica da guerra em Jnger como a deliberada transposio da arte pela arte para o plano da guerra e desmistificado o conceito de mobilizao total como a ltima expresso do idealismo alemo com vestes hericas (vd. Theorien des deutschen Faschismus [Teorias do Fascismo Alemo], de 1930). Mas ainda nestas opinies sobre um autor do sculo XX o seu ponto de vista e o seu sentido da histria so mais marcados por uma modernidade que a da grande era dos imprios que termina com as tempestades de ao da Primeira Guerra e v as consequncias da derrocada prolongarem-se pelos anos vinte. Uma modernidade em relao qual Benjamin foi sempre contemporneo, mas no militante. De facto, ele no do seu tempo: acompanha-o distncia, observa-o criticamente, rejeita-o, ultrapassa-o, refugia-se em origens que faz saltar, no

    72 Paul Celan, A Morte uma Flor. Poemas do esplio. Traduo, posfcio e notas de Joo Barrento. Lisboa, Livros Cotovia, 1998, p. 27.73 Id., ibid., p. 15.

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    para esse presente, mas para um futuro, iluminando o mundo profano com sinais de salvao. Poucos.

    J Paul Celan um filho de Auschwitz: a sua vida, a sua obra e a sua morte tm uma nica origem (no sentido no genealgico, mas dialctico que Benjamin d ao termo) e um nico sentido: o de contradizer o conhecido dictum de Adorno sobre a impossibilidade da poesia depois de Auschwitz. Adorno, alis, no s reviu mais tarde a sua afirmao, como se enganou redondamente ao propor uma leitura da poesia de Celan como se ele fosse irmo gmeo de Samuel Beckett e corifeu de um hermetismo desumanizado que a relao deste poeta com a Histria e com a lngua desmente: a lngua, que tambm a lngua dos assassinos, foi a nica coisa que ficou da tragdia global da histria e da cultura, e ela que o poeta se prope salvar para usos mais humanos e solidrios, mas no contaminados pela doxa e a desconversa a das ideologias e a do sempre nomeado mas sem nome (CELAN, 1998, p. 83), no quotidiano e na sua bulimia dos factos, no eterno retorno dos reality shows do nosso descontentamento, em que nenhum caso tem nome prprio, porque todos se anulam no sempre igual da conversa desfiada (voltarei questo do nome e do sempre igual).

    Por outro lado, ler Celan como aquele poeta que, no sculo XX, ter levado Mallarm s ltimas consequncias, certamente falso e redutor. Ele prprio o no legitima, quando deixa, nesse texto-chave que O Meridiano, o testemunho de uma concepo no autnoma, mas, a seu modo, empenhada da poesia: a sua contra-palavra, entendida no duplo sentido do alemo Gegen-Wort, ao mesmo tempo palavra-contra e palavra do encontro, a palavra que faz romper o arame, a palavra que j no se curva diante dos cavalos de parada nem dos pilares da Histria, um acto de liberdade. um passo. (Arte Potica, p. 45). Se a arte provoca um esquecimento de si, um distanciamento do Eu,

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    como se diz ainda em O Meridiano (1998, p. 51) e nisto Celan moderno como o foram Pessoa, Valry, Eliot ou Gottfried Benn , isso no significa, no entanto, a sua remisso para a esfera de uma monolgica e absoluta autonomia, mas antes, e pelo contrrio, a necessidade de caminhar ao encontro de um Outro, de um radicalmente Outro, em nome de quem o poema fala. Fala na linguagem de um aparente silncio. Mas o silncio do poema, tal como o dos dois judeus que se encontram no Dilogo na Montanha, loquaz: o silncio no silncio, nenhuma palavra se calou ali, nenhuma frase; apenas uma pausa (1998, p. 37). Do mesmo modo, o Eu que fala no poema ou no Dilogo no est s. o que parece querer dizer o final dessa conversa inacabada entre o judeu grande e o pequeno (Celan e Adorno?):

    [...] eu sei, meu irmo, eu sei que me encontrei contigo aqui, e que conversmos muito, e as dobras alm, tu sabes que elas no esto l para os homens nem para ns, que fomos andando e nos encontrmos [...], ns, com os nossos nomes, os indizveis, ns com a nossa sombra, a prpria e a estranha, tu aqui e eu aqui. (1988, p. 40).

    Caminhar para esse Outro, com o seu 20 de Janeiro inscrito em cada linha, isso que faz o poema: e esse momento, o 20 de Janeiro em que Lenz, na novela de Bchner com o mesmo ttulo, se decide a abandonar o mundo e ir para a montanha, corresponde memria daquelas datas que significaram que significam uma mudana na respirao, ou a deciso de andar de cabea para baixo, tendo o cu por abismo (Arte Potica, p. 53), como queria ainda Lenz; e corresponde tambm, agora em Walter Benjamin, quela vontade melhor, quele mtodo, que nele desvio de seguir vestgios para chegar experincia da aura, a uma iluminao profana ou epifania na Histria (sobre isto escreveu Maria Filomena Molder, que aquele que se entrega

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    perseguio de vestgios, arrisca-se a sucumbir sua aura74). Tambm este mtodo benjaminiano se alimenta da distncia e do olhar crtico sobre o objecto, salvando-o para um Agora. E tambm nele se d uma despersonalizao, na escrita sem Eu do ensaio de Benjamin. S assim ele foi, e , actual, contemporneo sem ser propriamente militante da sua contemporaneidade. O nosso tempo de viragem do milnio, por mais distante que parea estar daquele em que Benjamin viveu e escreveu, o do ovo da serpente em gestao, filho dele e um prolongamento seu, apesar de as suas marcas de superfcie serem de sinal contrrio. O nosso tempo um tempo sem memria e sem projecto; e como, sem isso, nenhum presente se suporta a si prprio, este um tempo (do) vazio. O de Walter Benjamin foi um tempo excessivamente carregado, quer de memria (saqueou todo o passado para fins ideolgicos), quer de projecto, um projecto que haveria de preencher todo o resto do sculo. Mas trata-se de uma memria e de um projecto que, tendo nascido no bero do niilismo e querendo super-lo, se afirmaram de forma negativa e monstruosa. S agora comeamos a deixar para trs as sequelas desse projecto, mas num vazio de perspectivas.

    ainda entre vestgio e aura que se move o poema para Paul Celan: nele, os vestgios encontram-se quase sempre na mais dolorosa memria do sculo, a aura est espera no rosto, sem sujeito, de muitos Outros. E no lugar do encontro entre vestgio e aura, no momento da sua total indistino, que nasce a poesia das vtimas, como j se chamou de Celan. No seu emudecimento, margem de si prprio por ser fala prpria que no pode deixar de estar presa linguagem da tribo e lngua dos assassinos, num lance nico em que se encontram o J-no (ser essa linguagem) e o Ainda-e-sempre (estar preso a ela), o

    74 Maria Filomena Molder, Semear na Neve. Estudos sobre Walter Benjamin. Lisboa, Relgio dgua, 1999, p. 59.

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    poema d testemunho de um Outro, de um ente singular, e , na sua essncia mais funda, presena e evidncia (Arte Potica, p. 56). O poema, diz-se em O Meridiano, fala, e ao falar

    mantm viva a memria das suas datas, mas fala. claro que fala sempre e apenas em causa prpria, a mais prpria que se possa imaginar.

    Mas penso [...] que desde sempre uma das esperanas do poema precisamente a de, deste modo, falar tambm em causa alheia no, esta palavra j a no posso usar agora , a de, deste modo, falar em nome de um Outro, quem sabe se em nome de um radicalmente Outro. [...]

    O poema detm-se ou alimenta esperanas uma palavra que temos de relacionar com a criatura quando se encontra com tais pensamentos.

    Ningum pode dizer quanto tempo durar ainda esta pausa na respirao o alimentar esperanas e o pensamento. O reino do que veloz, que sempre foi o do l fora, ganhou mais velocidade. O poema sabe isso, mas mantm a sua rota em direco quele Outro. (p. 55)

    Num poema originalmente intitulado Atemkristall (Cristal de respirao, ou de sopro) fala-se igualmente desse modo de dar testemunho, prprio do poema:

    Varrida pelovento dardejante da tua Palavraa variegada desconversa da vidavivida as cemlnguas do im-poema, o niilema.

    [...]

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    Fundona fenda do temponofavo de geloespera, cristal de sopro,o teu testemunhoirrefutvel.75

    O poema d testemunho de um ente singular, e no do Ser de uma qualquer ontologia abstracta e neutra, como se l tambm em Levinas, que explica essa relao ao Outro como uma relao des-inter-essada (isto , de des-inter-esse, de sada da ordem do Ser para a ordem do que est a ser). Esse tipo de relao tambm o fundamento da poesia dita hermtica de Paul Celan, que, assim, se encaminharia e no s na visvel rarefaco progressiva da linguagem nos ltimos livros para o lugar por excelncia do silncio, para a ideia da linguagem tal como a entende Giorgio Agamben num dos fragmentos de Ideia da Prosa:

    Um belo rosto talvez o nico lugar no qual existe verdadeiramente silncio [...] A beleza humana abre o rosto ao silncio. Mas o silncio aquele que aqui se faz no simplesmente suspenso do discurso, mas silncio da prpria palavra, a palavra a tornar-se visvel: ideia da linguagem. Por isso, no silncio do rosto o homem est verdadeiramente em casa.76

    Mas preciso que fique desde j claro que esse Outro no releva aqui da psicanlise, nem aquele Outro que atravessa todo um sculo como figura do desassossego, do cortejo infernal

    75 Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde. Antologia Potica. Seleco, traduo e introduo de Joo Barrento e Yvette Centeno. 2. ed. Lisboa, Livros Cotovia, p. 125.76 Giorgio Agamben, Ideia da Prosa. Traduo e introduo de Joo Barrento. Lisboa, Livros Cotovia, p. 87.

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    do sempre igual nos tipos urbanos da modernidade desde Baudelaire, ou aquela alteridade da mo que nos escreve (esta figura no aparece em Paul Celan); antes aquele que, numa poesia das vtimas, como a de Celan ou Mandelstam, assume um perfil tico e de solidariedade mas sem a mnima cedncia a uma retrica ideologicamente minada. At porque Celan no tem iluses, e sabe que a poesia que quer ser uma mudana na respirao em direco ao Outro se arrisca sempre a ir na mesma direco que o olhar de Medusa, o mundo s avessas, os autmatos da arte e as mscaras da Histria: esse o seu estigma do J-no e Ainda-e-sempre, a que aludi. Referi j noutro lugar a natureza especial desse encontro do poema com o Outro como sendo, no um programa, no mera nomeao, mas acontecimento puro, incontornvel e necessrio. Retomo o que a, no posfcio Arte Potica de Paul Celan, escrevi a propsito do termo alemo para acontecimento (Er-eignis):

    O termo alemo Ereignis contm o sentido de um acontecer prprio (eigen), singular e concreto, visvel (na raiz do conceito est tambm o verbo ugen, desaparecido na sua forma simples, e que significava ver, apreender com o olhar); e nele est tambm, no prefixo, a ideia de fora sbita que irrompe, uma quase revelao de algo que vem de uma origem (a partcula Er- aparentada com aquela outra que tem o sentido de origem: Ur-).77

    Penso que Celan, ao falar do mistrio do encontro que inerente relao com os seus poemas, pretendia dizer que cada um desses poemas um acontecimento originrio, no sentido que tambm Walter Benjamin j dera ao conceito de origem (Ur-sprung: salto a partir de um comeo). Convir demarcar, atravs de um pequeno excurso que se me afigura til, a figura

    77 Paul Celan, Arte Potica, p. 81.

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    do originrio em Walter Benjamin e Paul Celan, em relao ideologia da origem, ou das origens, num espao de modernidade que remonta ao Romantismo e vem at aos movimentos modernos do incio do sculo XX. A origem uma paradoxal mitologia da modernidade, uma constelao essencialista em que tambm Benjamin se integra, embora numa posio de rejeio das vanguardas suas contemporneas. Tal mitologia est presente desde o Romantismo e as suas Idades de Ouro (Novalis, Hlderlin), desde O cisne e outras alegorias de Baudelaire, desde Nietzsche e toda a arte moderna correndo atrs do mito do elementar, dos Dadaistas espezinhando espectacularmente as categorias da arte e da obra (burguesas, idealistas) para as substituir pelas de vida e de Nada, categorias mais que suspeitas ou esgotadas, desde Schopenhauer, Dilthey e Bergson, at ao protofascista Ludwig Klages, que Benjamin ainda admira na sua juventude. O grande paradoxo foi o de uma modernidade que se volta constantemente para trs, mas ao mesmo tempo se proclama antipassadista, uma contradio que s pode ser explicada luz da dialctica da Aufklrung e de uma destruio da razo desde o Romantismo.

    A novidade em Benjamin, nesta constelao, a da introduo de uma forte componente messinica. Na literatura, a partir de Proust, esta mitologia posta a funcionar com o simples toque de uma colher numa xcara de ch (e antes, em Mallarm, de um acorde musical). A falcia do (re)comeo, as miragens do regresso, informam igualmente todas as utopias modernas (que so, de facto, ucronias regressivas), de Fourier a Morris e de Bellamy ao movimento hippie, a grande utopia ednica do sculo XX. O olhar para diante no pode deixar de constatar que o caminho da Histria para trs o prprio marxismo, lido como forma secularizada do messianismo lanado no mundo por um judeu alemo, cabe tambm aqui. H sempre uma Arcdia ou uma Idade

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    de Ouro, bem conhecidas de outras eras, nossa espera entre os modernos. No centro, de braos (e pernas) abertos para receber os adeptos, a Arte. A mitologia da origem uma mitologia esttica. porta desse paraso ficam as figuras do Mal a mulher e o saber, Kundry e Gurnemanz. E como na cena primitiva, sombra da rvore do Conhecimento (e da Vida!). S o puro, o pobre tolo (Parsifal), o bobo da corte na sociedade burguesa (ou seu demnio) o artista , espera ter lugar nesse paraso.

    Tambm a psicanlise se tornar um dos maiores campos de trabalho arqueolgico do sculo. At hoje, o seu mtodo fundamental o da etiologia, toda a tpica freudiana do psiquismo um esquema totalmente dominado pela presena fantasmtica de uma instncia originria (o inconsciente ou a infncia), e tambm as categorias com que a se opera so de orientao originria: regresso, recalcamento, sublimao, pulso, latncia. Entre os filsofos, Heidegger est intrinsecamente contaminado pela mitologia das origens (e no s da obra de arte): o seu mtodo o de um fascinante, mas por vezes ominoso, onto-etimologismo. Ainda Adorno, apesar da vivacidade com que repudia as teorias puristas para a arte moderna, ao ver essa arte como historicamente imanente e a palavra como manifestao no mimtica (no mediatizada) da negatividade do real, se faz eco da nostalgia da palavra original (a parole essentielle de Mallarm? a palavra meridional de Gottfried Benn?), que atravessa igualmente os primeiros ensaios de Benjamin sobre a linguagem, e depois sobre a traduo. A teoria adorniana do carcter-de-linguagem da arte (Sprachcharakter der Kunst), que parece vir na mesma linha do que Benjamin via, por exemplo na poesia de Hlderlin, como o mutismo da palavra, o branco-de-linguagem da expresso (Sprachlosigkeit des Ausdrucks), leva a uma espcie de animismo esttico. A u