j.l. borges: os caminhos de uma escrita

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ÍCONE - Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 1, p. 105-120, dez. 2007. http://www.slmb.ueg.br/iconeletras 105 J.L. BORGES: OS CAMINHOS DE UMA ESCRITA. PARA UMA LEITURA DE PIERRE MENARD AUTOR DEL QUIJOTE. Maria Laura Moneta Carignano (UNESP/FCLAr) RESUMO: O trabalho a seguir tem por objetivo apresentar de maneira panorâmica alguns dos traços mais importantes da obra de J.L. Borges, para, finalmente, concentrar-nos na análise de um dos seus textos mais significativos: Pierre Menard autor del Quijote. Assim, estabeleceremos, num primeiro momento, o que chamaremos de “etapas” da literatura borgeana. PALAVRAS-CHAVE: Borges, ficção, história. 1- As etapas de Borges Esta classificação responde a uma tentativa de apresentação de sua obra que permita visualizar seus diferentes aspetos. Portanto, é necessário lembrar que se trata de uma classificação com fins pedagógicos e que na verdade, na obra de Borges, o que chamaremos de etapas podem aparecer misturados em um mesmo livro. Contudo, a crítica em geral concorda em estabelecer grandes e diferentes momentos na sua produção: o primeiro mais importante é sua etapa vanguardista que nele adquire os traços do criollismo, o segundo, o período que inaugura Historia universal de la infâmia dos anos quarenta onde começa e se define seu projeto escritural: a cuentística ficcional e a ensaística também ficcional, ambos gêneros negando, na maioria das vezes, as especificidades genéricas e se apresentando como verdadeiros híbridos literários. Antes de começar a análise das características de cada uma delas, alguns dados e datas podem nos ajudar. 2- Etapa vanguardista: A relação de Borges com as vanguardas possui dois momentos que correspondem, por sua vez, ao que poderíamos chamar de um primeiro momento de implantação e um segundo de resposta criativa, inaugurando a especificidade da vanguarda argentina. Algumas datas são significativas para traçar este percurso: em 1919 Borges se traslada para Europa onde conhece a poetas espanhóis importantes que serão de grande influência: Rafael Cansinos Asséns, Ramón Gómez de la Serna e Guillermo de Torre. Participa do movimento de

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J.L. BORGES: OS CAMINHOS DE UMA ESCRITA

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    J.L. BORGES: OS CAMINHOS DE UMA ESCRITA.

    PARA UMA LEITURA DE PIERRE MENARD AUTOR DEL QUIJOTE.

    Maria Laura Moneta Carignano (UNESP/FCLAr)

    RESUMO: O trabalho a seguir tem por objetivo apresentar de maneira panormica alguns dos traos mais importantes da obra de J.L. Borges, para, finalmente, concentrar-nos na anlise de um dos seus textos mais significativos: Pierre Menard autor del Quijote. Assim, estabeleceremos, num primeiro momento, o que chamaremos de etapas da literatura borgeana.

    PALAVRAS-CHAVE: Borges, fico, histria.

    1- As etapas de Borges

    Esta classificao responde a uma tentativa de apresentao de sua obra que permita

    visualizar seus diferentes aspetos. Portanto, necessrio lembrar que se trata de uma classificao

    com fins pedaggicos e que na verdade, na obra de Borges, o que chamaremos de etapas podem

    aparecer misturados em um mesmo livro. Contudo, a crtica em geral concorda em estabelecer

    grandes e diferentes momentos na sua produo: o primeiro mais importante sua etapa

    vanguardista que nele adquire os traos do criollismo, o segundo, o perodo que inaugura

    Historia universal de la infmia dos anos quarenta onde comea e se define seu projeto escritural:

    a cuentstica ficcional e a ensastica tambm ficcional, ambos gneros negando, na maioria das

    vezes, as especificidades genricas e se apresentando como verdadeiros hbridos literrios. Antes

    de comear a anlise das caractersticas de cada uma delas, alguns dados e datas podem nos

    ajudar.

    2- Etapa vanguardista:

    A relao de Borges com as vanguardas possui dois momentos que correspondem, por sua

    vez, ao que poderamos chamar de um primeiro momento de implantao e um segundo de

    resposta criativa, inaugurando a especificidade da vanguarda argentina.

    Algumas datas so significativas para traar este percurso: em 1919 Borges se traslada

    para Europa onde conhece a poetas espanhis importantes que sero de grande influncia: Rafael

    Cansinos Assns, Ramn Gmez de la Serna e Guillermo de Torre. Participa do movimento de

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    vanguarda espanhol Ultrasmo que levar para Argentina. Em 1921, regressa para Buenos Aires

    e o jovem poeta re-descobre sua cidade natal. Comea a escrever poemas sobre este

    descobrimento que tambm uma de suas invenes, um dos seus mitos. Funda a Revista

    Prisma e logo depois Proa (que ter duas etapas: 1922, 1924). Ambas as revistas mantm o tom

    vanguardista e ultrasta que o poeta importa da Espanha.

    Em 1924 colabora ativamente com a primeira revista de vanguarda argentina chamada

    Martin Fierro e escreve seus primeiros livros de poesia nos que o grande tema o descobrimento

    por parte do poeta da sua cidade natal: Buenos Aires. Aqui, sua obra comea a se afastar dos

    movimentos espanhis e a ter caractersticas prprias. Os livros correspondentes a esta etapa so:

    Fervor de Buenos Aires (1923), Luna de Enfrente.(1925), Cuaderno San Martn (1929)

    3- Criollismo vanguardista: o caso rioplatense.

    O termo criollismo usado pela crtica para definir certas manifestaes literrias do final

    do sculo XIX e comeos do XX na Amrica Latina. O incio da modernizao e a crise das

    repblicas oligrquicas produzem a necessidade da reconciliao com a herana cultural hispano-

    lusitana, esquecida e combatida pelo positivismo do sculo XIX. Emerge, ento, uma gerao

    que colocar a discusso do ethos latino-americano, das suas especificidades sociais e culturais

    no mbito maior das condies histricas do nosso continente. No sculo XX, o termo adquire o

    sentido mais preciso de nacionalismo esttico, que abarcaria, segundo a histria literria, desde

    1900 a 1950 aproximadamente.

    O criollismo rioplatense mostra certas diferenas com respeito ao resto do continente

    devido ao desenvolvimento capitalista dessa regio, relativamente anterior, segundo aponta

    William Rowe no seu artigo sobre o tema intitulado El criollismo .

    A literatura argentina tinha criado uma concepo telrico-biolgica do Ser nacional, cujo

    representante mais notrio foi Leopoldo Lugones. O criollismo de Lugones e sua canonizao da

    gauchesca e do Martn Fierro em 1910 a propsito do Centenrio, como livro representante da

    cultura argentina, uma resposta imigrao massiva do comeo do sculo e ao conseqente

    cosmopolitismo da paisagem de Buenos Aires.

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    A gerao vanguardista retoma a questo criolla e nacional, mas a partir de uma esttica

    oposta da gerao modernista. Esta mistura entre vertentes nacionalistas e vanguardistas,

    prpria da vanguarda argentina e de Borges especificamente, receber o nome de vanguardismo

    criollista por parte da crtica Beatriz Sarlo.

    No caso especfico de Borges, isto nos leva a diferenciar os distintos momentos ou etapas

    da sua escrita. Um primeiro Borges ultrasta, um segundo criollista e um terceiro que recusa

    ambos os passados e cria uma linguagem nova e completamente prpria, austera e afastada

    desses experimentalismos.

    Rejeitando a esttica modernista rubeniana e lugoniana, Borges cria uma genealogia, uma

    espcie de tradio que, ao mesmo tempo, nomeia seus precursores na linha de um resgate do

    criollo. Essa genealogia da literatura argentina aparece explicitamente no texto El tamao de

    mi esperanza publicado em 1926, no qual traa a linhagem dos verdadeiros homens que nesta

    terra sentem-se viver e morrer, no dos que acreditam que o sol e a lua esto na Europa

    (SCHWARTZ, 1995, p.573). A literatura gauchesca aparece em primeiro plano, mas tambm o

    arrabal, as chiruzas e o tango. Num gesto contraditrio, tipicamente vanguardista,

    Borges condena e redime o passado, teatralizando la oposicin, nas palavras de Pezzoni:

    Al mismo tiempo, si condena la fastuosa fantasmagoria mitolgica rubeniana, aspira a resucitar otra visin del mito: el tiempo inmvil ahistrico. Un tiempo original vislumbrado en el instante fugaz en el cual surge la novedad. La estrategia vanguardista de la oposicin se desdobla en esttica y an tica de la contradiccin (PEZZONI, 1998, p. 69)

    Em outras palavras, Borges volta ao passado, mas a partir duma linguagem futura que

    separa sua escrita de qualquer tradicionalismo ou regionalismo vulgar. Trs so os livros desta

    etapa de Borges em que o autor reinventa um passado ligado ao mundo telrico e criollo e funda

    o espao simblico das orillas e do arrabal com seus compadritos e orilleros. Imagem

    de uma Buenos Aires quase desaparecida na urbe cosmopolita em que a cidade est se

    transformando nessa dcada movimentada dos anos 20. Fervor de Buenos Aires de 1923, Luna

    de enfrente de 1925, Cuaderno San Martn de 1929, so os livros de Borges correspondentes

    etapa que a crtica tem chamado de criollista. H neles uma tenso que prpria de toda sua

    obra - entre o nacional e o cosmopolita, entre a tradio e a vanguarda, entre o passado e a

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    linguagem moderna. Mas, esta vertente relacionada aos temas prprios da cultura argentina,

    sua tradio cultural e literria, continua ao longo de toda sua obra, alm da poesia dos anos

    vinte, embora afastada da linguagem programtica e experimental dos seus primeiros livros.

    Contos como Hombre de la esquina rosada, El sur, El fin, El pual, s para nomear alguns,

    resultam de uma re-atualizao da tradio gauchesca. Borges re-l a gauchesca e consegue

    colocar esta tradio no centro de seu sistema dialogando com a mais alta tradio europia, em

    um processo de descentramento que afeta a ambas as tradies.

    No criollismo latino-americano os mitos rurais e selvticos aparecem como metforas

    nacionalistas na tentativa de definio de uma identidade que d conta da totalidade da nao,

    questo problemtica para os pases do nosso continente, cujas formaes sociais apresentam

    uma enorme diversidade de raas, culturas e civilizaes.

    O interessante desse movimento que esta literatura, baseada na mitologizao dos

    aspectos telricos, foi sempre escrita na e a partir da cidade, devolvendo uma imagem

    geralmente idealizada e altamente imaginada. Os escritores criollistas so de origem urbana e

    geralmente pertencem a fraes cultas da sociedade.

    As vanguardas retomam essa vertente criollista, mas atualizando-a com as problemticas

    do mundo moderno. Segundo Schwartz, no Brasil, as lendas indgenas serviram a Mario de

    Andrade na criao de Macunama, fazendo-as conviver com o capitalismo selvagem de So

    Paulo. Tambm a imagem do ndio sincrtico brbaro tecnificado de Oswald de Andrade

    representa esta mistura de passado arcaico e modernidade.

    No caso argentino, expressou-se na revalorizao do passado associado literatura

    gauchesca, ao campo (oposto ao espao perverso da cidade) e ao gaucho como prottipo

    nacional. Embora esse passado fosse j, na poca das vanguardas, algo que tinha desaparecido

    como resultado dos processos de transformao socioeconmicos.

    Borges representa, nessa dcada, o mais fiel expoente dessa vertente da literatura

    preocupada pelo nacional e pelo resgate de um passado quase extinto no qual se encontrariam as

    verdadeiras entranhas da argentinidade. A linguagem programaticamente acriollada dos ensaios

    caractersticos dessa poca (El idioma infinito (1925), El tamao de mi esperanza (1926), El

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    idioma de los argentinos (1927), Nuestras imposibilidades (1932) do conta desse projeto

    esttico de mitologizao nacionalista.

    A restaurao desses smbolos gauchescos opera-se na procura da consolidao de uma

    identidade rioplatense que se sentia ameaada pelo cosmopolitismo imigratrio, mas tambm

    pela necessidade de diferenciar-se do passado colonial castio espanhol. Segundo Sarlo:

    Frente a la heterogeneidad hubo reacciones diferentes: la defensa de una elite del espritu que se convirtiera en instrumento de purificacin o, por lo menos, de denuncia del carcter artificioso y viciado de la sociedad argentina; el recurso a mitos del pasado que apoyaran una lnea del presente, lo que implic la reivindicacin del pasado y la discusin de la herencia; el reconocimiento del presente como diverso y la apuesta a que era posible, sobre esa diversidad, construir una cultura, (SARLO, 1995, p. 49)

    Em Borges, a pergunta pelo passado e pelo nacional no somente se estabelece na

    reivindicao da linhagem gauchesca. Partcipe tambm da incluso vanguardista da cidade na

    literatura, Borges imagina em suas poesias um passado que se localiza na linha fronteiria entre a

    cidade e o campo. A inveno desse espao, mais mtico que real, nas margens, nos bairros, na

    periferia que apaga os limites das casas com a plancie.

    Borges reinventa desde a nostalgia, os espaos simblicos de las orillas y el arrabal e as

    figuras arquetpicas do orillero (descendente da linhagem hispano criolla) e do compadrito (do

    qual Borges no gosta muito por ser a representao teatralizada do outro), imaginando uma

    cidade oposta ou inversa s cidades modernas que as vanguardas tentam sublimar. As orillas de

    Borges no correspondem a uma representao realista da Buenos Aires dos anos 20; elas so um

    desvio temporal, um anacronismo que permite a Borges criar uma outra verso da tradio purista

    criolla, no j localizada no campo, mas nessa espcie de no lugar que representa tambm a

    situao do autor no meio do caminho entre dois momentos e duas estticas que se contrapem.

    A contradio borgeana pode-se ler nesse gesto de proposta e negao do novo. A memria

    e a lembrana junto ao repdio pelas estticas enquistadas. Mas, fundamentalmente, a busca de

    uma tradio, que em Borges supe a necessidade de criao de um mito que virasse potica e

    transcendental a paisagem rioplatense. Esse mito , segundo Pezzoni, o mito da origem, que,

    como tal, insiste no ahistrico projetando-se nas sombras do primordial e possibilitando, assim, a

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    imagem de uma argentinidade espessa e remota. O gesto borgeano cria, ento, uma das mais

    fortes fabularias da identidade nacional.

    4- A partir dos anos 40: a fico universalista.

    Esta etapa, que j o mais autentico e original Borges, caracteriza-se pela relao com a

    literatura fantstica, a apropriao e valorizao de gneros menores como o policial e o romance

    de aventuras, pela criao tipicamente borgeana do sistema de citas e referencias que funcionam

    como tcnica literria dentro dos seus contos, a utilizao da fico para desenvolver problemas

    tericos-filosficos, a utilizao do ensaio para propor um exerccio da leitura absolutamente

    moderno que quebra esteretipos e preconceitos assim como prope uma teoria da leitura

    propriamente dita. Os grandes temas desta etapa so: a teoria da intertextualidade, os limites da

    iluso referencial, a relao entre conhecimento e linguagem, os dilemas da representao e da

    narrao. Tambm as formas que contribuem a desestabilizar as relaes, a desnaturalizar as

    relaes entre linguagem e pensamento, entre lngua e realidade, entre representao e realidade,

    mas tambm entre caos e forma. Da a presena de espelhos, labirintos e arquiteturas

    monstruosas, a utilizao da tcnica barroca da estrutura em abismo, a questo do infinito e da

    possibilidade de ser representado: todos eles ao servio da destruio do empirismo que acredita

    na possibilidade de captao do real pela linguagem. Da tambm a utilizao sistemtica do

    paradoxo nas fices borgeanas como forma privilegiada para questionar as pretenses de

    captao do real tanto pelos sentidos quanto pela razo. Diz B. Sarlo em relao estima de

    Borges pelos paradoxos:

    Borges admira las paradojas no porque sean incongruentes respecto de la experiencia sino por su demostracin irnica de la fuerza y los lmites de la lgica. Las paradojas no slo trabajan con las inconsistencias o las contradicciones sino que, obedeciendo a una dura coherencia formal, indican los lmites de la lgica (sus escndalos) cuando se trata de aprehender la naturaleza de lo real y organizar un diseo ideal cuya pretensin sea representarlo. Las paradojas tienen la virtud de denunciar los obstculos contra los que se construye la literatura (o la filosofa). (SARLO, p.139)

    Mas isto no significa que Borges recuse a possibilidade da representao. Muito pelo

    contrrio, sua obra a tentativa de criar uma literatura cuja forma seja o mais precisa e perfeita

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    possvel, baseada exclusivamente nas regras da prpria construo, isto , na linguagem, e

    desvinculada da natureza inalcanvel do real. Para Borges o mundo (o real) e a linguagem

    pertencem a lgicas diferentes e o primeiro no pode ser simplesmente captado pela linguagem,

    como si esta ltima fosse simples copia do real. A literatura para Borges tem que se construir a

    partir de suas prprias regras e no tentando imitar o mundo, a realidade. Da a crtica que Borges

    vai levantar contra o realismo, fundamentalmente francs e russo. E, por contraposio, da

    tambm seu gosto pela literatura fantstica, o gnero policial e o romance de aventura (sua leitura

    de Stevenson, Chesterton); todos gneros que rechaando o real se constroem a base de fortes e

    severas regras formais criando a prpria verossimilhana. Para Borges, a literatura ,

    fundamentalmente, linguagem e por isso a importncia da perfeio formal que ele admira em

    Kafka e Kipling e que caracteriza seus contos de enredos perfeitos e linguagem austera e afastada

    de qualquer experimentalismo.

    Para Sarlo, Borges constri sua arte ficcional sobre duas bases: primeiro, o mandato de

    construir tramas perfeitas e, segundo, na liberdade (severa e cheia de regras) da literatura

    fantstica que se desentende da anlise psicolgica e da mimese realista. Esta escolha o afasta das

    duras tarefas do romance para transform-lo no perfeito contista. A importncia da trama (que o

    que lhe interessa a Borges) se esfuma na novela que fica presa da referencialidade, da construo

    psicolgica da personagem e da lgica dos acontecimentos. Na literatura fantstica, pelo

    contrrio, ele se sente livre para se dedicar exclusivamente s prprias leis internas do texto e

    despreocupar-se das imposies da mimeses realista e de suas necessidade de dar conta do real.

    5- Anlise de Pierre Menard autor del Quijote:

    Analisaremos um conto de Jorge Luis Borges que prope uma reviso das relaes entre

    histria e literatura e que tambm parece desembocar numa revalorizao do papel do leitor e em

    uma teoria da leitura como verdadeira operao de criao de sentido.

    Pierre Menard autor del Quijote um conto de J. L. Borges publicado em Sur em maio

    de 1939.. O texto um dos melhores exemplos, e por isso o encolhemos para analis-lo, da fico

    borgeana. Um texto hbrido, que parece um ensaio que tambm um conto de fico e que joga

    com os limites entre os gneros atravs da ironia da maioria de seus enunciados. interessante

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    que embora ficcional, o texto vai apresentar como argumento de sua trama um problema da teoria

    literria: a relao entre histria e fico, mas tambm vai sugerir uma teoria da intertextualidade

    e da leitura. E mais interessante ainda o fato de que este texto foi escrito muitos anos antes que

    a teoria literria conseguisse enfrentar estes problemas e criar uma teoria que explicasse a

    complexa relao entre historia e fico, que se criasse uma teoria da intertextualidade e que se

    falasse do papel da leitura na formao do sentido.

    Numa primeira leitura, o conto-ensaio apresenta-se como uma pardia do gnero

    ensastico, j que o relato, servindo-se dos mtodos da pseudo-crtica, questiona ao mesmo tempo

    o conhecimento que produz.

    A introduo pardica, em que o enunciador presume justificar sua autoridade na defesa

    de Menard, introduz-nos no tom irnico que atravessa todo o relato. No tom cerimonial de quem

    aspira resgatar algum das omisses e adies imperdoveis que a crtica costuma fazer com a

    obra de alguns escritores, o narrador informa-nos sobre a obra visvel de Menard, para,

    finalmente, apresentar-nos a escandalosa e incrvel obra pela que Menard merece ser

    reconsiderado.

    A enumerao das obras precisa de certa ateno, j que todas elas remetem a um uso

    insolente da literatura. Como podemos observar na lista da sua produo que o texto expe,

    Menard dedicou-se a estudos incoerentes, heterclitos, contraditrios, relacionados todos con la

    traduccin, la parfrasis, la variacin y el pastiche (Sarlo, 1998, p.78). conhecido o gosto de

    Borges por estas prticas literrias que implicam o uso e abuso das fontes, o jogo irreverente com

    a literatura, a variao infinita das verses sobre um mesmo tema.A lista incongruente e

    caprichosa segundo:

    una estrategia que juega en el limite desestabilizador e inseguro entre verdad y ficcin, a travs de atribuciones falsas, desplazamientos, citas abiertas y ocultas, desarrollos hiperblicos, paradojas, mezcla de invencin y conocimiento, falsa erudicin. (SARLO, 1998, p. 78)

    O texto um exemplo clssico da utilizao irnica que Borges realiza desses

    procedimentos na construo de seus relatos. Alm de ser uma pardia do gnero ensaio, Pierre

    Menard... um dos tantos relatos que pem em cena um problema terico-filosfico. Porm,

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    necessrio assinalar que o problema no antecede nem sucede ao relato, pelo contrrio, ele o

    conforma poeticamente: Borges imagina la puesta en escena de una pregunta no planteada

    abiertamente en la trama, sino presentada como ficcin en el desarrollo de un argumento que es

    al mismo tiempo, terico y narrativo. (SARLO, 1998, p. 130)

    Beatriz Sarlo assinalou o carter filosficonarrativo desses relatos (e inclusive de seus

    ensaios) atribuindo-lhes a designao de fices metodolgicas, nas quais as formas das idias

    oferecem a trama do argumento. Contudo, o que os torna assombrosos, e deixa-nos perplexos,

    que neles, em vez de uma resposta, enfrentamo-nos, geralmente, com a constatao de uma

    contradio lgica, que faz com que o leitor saia do espao de senso comum e das explicaes

    previsveis: Borges trabaja basicamente con la paradoja, los escndalos lgicos y los dilemas, presentados en

    situacin filosfico-narrativa: una ficcin filosfica reduplicada en una filosofa ficcional. (SARLO, 1998,

    p.131)

    Um conto, que uma pardia a um ensaio, que a formulao de um problema terico,

    que no se formula explicitamente e que se concretiza ficcionalmente na escandalosa tentativa de

    Menard. Os planos incluem-se como nas caixas chinesas para dar forma a um relato que isso e

    algo mais...

    O que Menard se props (o que d inicio e propsito ao falso ensaio) foi a paradoxal

    tarefa de escrever o Quixote em pleno sculo XX. Diz o narrador:

    No quera componer otro Quijote lo cual es fcil- sino el Quijote. Intil agregar que no encar nunca una transposicin mecnica del original; no se propona copiarlo. Su admirable ambicin era producir unas pginas que coincidieran palabra por palabra y lnea por lnea- con las de Miguel de Cervantes. (BORGES, 1992, p. 132)

    As opes de Menard, no momento de escolher como realizar essa tarefa, encaminham-

    nos para a irrefutvel e incrvel distino entre os dois livros. Num primeiro momento Menard se

    prope SER Cervantes, recuperar, como se fosse possvel, a totalidade da histria:

    El mtodo inicial que imagino era relativamente sencillo. Conocer bien el espaol, recuperar la f catlica, guerrear contra los moros o contra el turco, olvidar la historia de Europa entre los aos de 1602 y de 1918, ser Miguel de Cervantes. (BORGES, 1992, p. 132)

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    Lgicamente, a empresa resulta impossvel e, ento, Menard resolve seguir siendo Pierre

    Menard y llegar al Quijote a travs de las experiencias de Pierre Menard (BORGES, 1992, p.

    132). Visto assim, a novela de Menard infinitamente mais rica: ele teve que estudar essa poca,

    aprender espanhol antigo, embeber-se do sentido religioso, trabalho incomparavelmente mais

    complexo que a espontnea contingncia do livro de Cervantes: Menard enriquece por

    desplazamientos y anacronismos, los captulos del Quijote de Cervantes. Los hace menos

    previsibles, ms originales y sorprendentes (SARLO, 1998, p.78).

    O curso da histria faz da obra de Cervantes e da obra de Menard duas obras

    completamente distintas embora totalmente idnticas em cada uma de suas frases. O paradoxo

    deixa-nos perplejos. O narrador convida-nos a comprovar:

    Es una revelacin cotejar el Don Quijote de Menard con el de Cervantes. ste, por ejemplo, escribi ( Don quijote, primera parte, noveno captulo) : La verdad, cuya madre es la historia, mula del tiempo, depsito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo precedente, advertencia de lo por venir. Redactada en el siglo XVII, redactada por el ingenio lego Cervantes, esa enumeracin es un mero elogio retrico de la historia. Menard, en cambio, escribe: La verdad, cuya madre es la historia, mula del tiempo, depsito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo precedente, advertencia de lo por venir. La historia, madre de la verdad; la idea es asombrosa. Menard, contemporneo de William James, no define la historia como una indagacin de la realidad sino como su origen. La verdad histrica para l, no es lo que sucedi: es lo que juzgamos que sucedi. (BORGES, 1992, p.135)

    A empresa complexa e contraditria que empreende Menard o avesso de um problema

    terico que expe surpreendentemente as relaes entre HISTRIA e FICO, AUTOR e

    LEITOR. Os livros de Cervantes e de Menard, mesmo que contenham exatamente as mesmas

    frases, so diferentes. O que os diferencia o momento de enunciao de cada um, o contexto, o

    tempo, enfim, a histria: No en vano han transcurrido trescientos aos, cargados de

    complejsimos hechos. Entre ellos para mencionar uno solo: el mismo Quijote (BORGES,

    1992, p.134).

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    Isto implica dizer que a obcecada e ilgica escrita de Menard no a mesma

    que a de Cervantes, em funo da relao entre o processo de produo e o processo de recepo

    ou leitura. Esses processos inscrevem-se no mbito de um determinado espao cultural que

    imprime s palavras seu sentido histrico. Isto supe tambm dizer que as palavras no possuem

    um sentido nico, substancial e imutvel, seno que elas carregam-se de sentido em relao ao

    tempo e sociedade em que so produzidas. As palavras e a literatura adquirem sobre el huir de

    los sentidos um sentido histrico (SARLO, 1998, p.79) atravs da relao que se estabelece

    entre elas e o momento de enunciao:

    La enunciacin (Menard escribe en el siglo XX) modifica al enunciado (sus frases idnticas a la novela de Cervantes). La paradoja cmica de Menard muestra, por medio de su escndalo lgico que todos los textos son la reescritura de otros textos, en un despliegue especular, desviado e infinito de sentidos. (SARLO, 1998, p.79)

    O texto apresenta tambm uma teoria da literatura relacionada ao conceito de

    intertextualidade. A operao de Menard leva aos limites a idia de insero de um texto num

    novo contexto. A estratgia (exagerada e at cmica por hiperblica) de Menard, aponta para a

    idia de que a literatura constri-se a partir da assimilao e da transformao de outros textos.

    Mas esse processo implica sempre um olhar crtico que abre, transforma os sentidos, negando a

    univocidade e a clausura dum nico sentido fixo do texto: a intertextualidade simples

    atualizao do funcionamento textual,verificao da leitura pela escrita. a recusa do ponto

    final que poderia fechar o sentido e paralisar a forma.(Laurent Jenny, 1979, p.46)

    Isto leva-nos a modificar a viso que a crtica tradicional tinha como um de seus

    pressupostos bsicos: o texto como reflexo da histria. Com a experincia de Menard, podemos

    pensar, pelo contrrio, que o sentido histrico de um texto no est na sua capacidade de copiar

    ou refletir a realidade, seno no processo de leitura e no contexto de produo do texto, que o

    que nos permite dar significao aos enunciados:

    El proceso y las condiciones histricas de enunciacin modifican todos los enunciados. El sentido es un efecto frgil (y no sustancial) relacionado con la enunciacin: emerge en la actividad de escribir y leer y no est enlazado a las palabras sino a los contextos de las palabras. (SARLO, 1998, p.80)

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    O mtodo de Menard no s modifica a viso das relaes entre histria e fico, mas

    tambm nega algumas outras categorias da crtica tradicional: Borges destruye, por un lado, la

    idea de identidad fija de un texto; por el otro, la idea de autor; finalmente, la de escritura

    original (SARLO, 1998, p.78).

    O contexto de produo do Quijote de Menard (pleno sculo XX) o que atribui um

    sentido surpreendentemente diferente do que possua no sculo XVII. A encarnao da

    literatura na histria opera-se neste sentido e no na que, por banal, rejeita Menard. A atualizao

    da obra, que permite resignific-la em funo da leitura (que sempre histrica e, portanto, difere

    cada vez), no precisa das modificaes do contexto da personagem para se atualizar no presente

    do leitor. Menard nega-se a realizar a opo de colocar a personagem do Quixote na atualidade

    (nesse sentido, Borges coincide com Bakhtin):

    Otro es uno de esos libros parasitarios que sitan a Cristo em um bulevard, a Hamlet em la Cannebire o a Don Quijote em Wall Street. Como todo hombre de buen gusto, Menard abominaba de esos carnavales intiles, solo aptos- deca- para ocasionar el plebeyo placer del anacronismo o (lo que es peor) para embelesarnos con la idea primaria de que todas la pocas son iguales o de que son distintas. (BORGES, 1992, p.131)

    nesse sentido que Octavio Paz fala da encarnao da poesia (da fico, da literatura)

    na histria, de como esse ato irredutvel inserta-se no mundo e reencarna , cada vez que a

    leitura o re-engendra:

    Puede concluirse que el poema es histrico de dos maneras: la primera, como producto social; la segunda, como creacin que trasciende lo histrico pero que, para ser efectivamente, necesita encarnar de nuevo en la historia y repetirse entre los hombres Y esta segunda manera le viene de ser una categora temporal especial: un tiempo que es siempre presente, un presente potencial y que no puede realmente realizarse sino hacindose presente de una manera concreta en un aqu y ahora determinados. (.....) La segunda manera de ser histrico del poema es, por tanto, polmica y contradictoria: aquello que lo hace nico y separa del resto de las obras humanas es su trasmutar el tiempo sin abstraerlo; y esa misma opcin lo lleva, para cumplirse plenamente, a regresar al tiempo.(PAZ, 1998, p.187)

    A crtica tradicional entendia essa relao - a da obra com a histria - como uma relao

    de REFLEXO, e por isso seu empenho em procurar na obra as marcas da poca, como se a

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    literatura possusse a capacidade de deixar transparecer o real, de faz-lo visvel, como se cada

    texto servisse como documento que mostrasse a realidade (complexa palavra) de um momento

    histrico determinado.

    O estruturalismo e o ps-estruturalismo tm demonstrado que a relao entre HISTRIA

    e FICCO muito mais complicada e que de nenhum modo supe a simples transposio do

    real ao mundo das palavras. Tambm Borges esforou-se em: destacar la autonomia de la obra literria y su derecho a ser valorada inclusive eticamente desde nuestra realidad, no a travs de las ideas del autor

    que h conseguido incorporarla al mundo. (PEZZONI, 1998, p.17).

    O que est em jogo no fundo da discusso sobre a relao entre literatura e realidade a

    relao entre o real e a linguagem. O paradoxo de Menard denuncia, por um lado, a

    ingenuidade do argumento que define a literatura como reflexo do real e, por outro, demonstra

    seu carter histrico, negando que a literatura seja atemporal -essncia anacrnica e imutvel-,

    mas tambm negando que ela se limite a ser documento.

    Se a literatura representa, como que ela opera essa relao com o real? Ou, para

    formul-lo de outro modo, como a relao entre linguagem e realidade? O tema da

    especificidade do real e de seu signo verbal um dos temas preferidos de Borges e aparece

    tematizado em vrios de seus contos e ensaios.

    Face concepo que supe que as palavras designam diretamente a realidade, a linguagem, para

    Borges, cumpre a funo de significar no a realidade mesma, mas nossas noes ideais numa

    mtua influncia entre o homem e o real, atravs da trama da linguagem:

    El mundo aparencial es un tropel de percepciones .El lenguaje es un ordenamiento eficaz de esa enigmtica abundancia del mundo. Dicho sea con otras palabras: los sustantivos se los inventamos a la realidad....todo sustantivo es abreviatura (...) La lengua es edificadora de realidades. (BORGES apud PEZZONI, 1998, p.51)

    Segundo essa linha de pensamento, a linguagem no faz mais que criar, recortando e

    transformando a realidade em vez de refleti-la. Desta forma, Borges argumenta contra a idia de

    que a linguagem seja cpia do real mas, ao mesmo tempo, aceita a necessidade de buscar un

    orden independiente del desconocido y secreto orden real (SARLO, 1998, p.133).

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    Finalmente, o problema da capacidade de representar da linguagem e por extenso da

    literatura - leva-nos questo do realismo e do romance histrico, j que a obra de Menard, por

    estar situada sculos antes da experincia do autor, assim pode ser designada.Sobre este ponto,

    Borges rejeita o realismo que se pretende como tal, simplesmente por apostar na cor local e no

    costumbrismo:

    El Quijote es realista; este realismo, sin embargo, difiere esencialmente del que ejerci el siglo XIX... Para Cervantes son antinmias lo real y lo potico. Cervantes ha creado para nosotros la poesa de la Espaa del siglo XVII, pero ni aquel siglo, ni aquella Espaa eran poticas para l. (BORGES, 1992, p.134)

    O verdadeiro realismo no necessita, para Borges, apegar-se realidade nem busca copi-

    la (tarefa impossvel e banal por redundante e previsvel). A realidade que escolhe Menard no

    precisa dos traos tpicos (no pior dos sentidos da palavra) da Espanha do sculo XVII para ser

    realista:

    .Menard elige como realidad la tierra de Carmen durante el siglo de Lepanto y de Lope. Qu espaoladas no habra aconsejado esa eleccin a Maurice Barrs o al Doctor Rodrguez Larreta! Menard, con toda naturalidad, las elude. En su obra no hay gitaneras ni conquistadores ni msticos ni Felipe II ni autos de f. Desatiende o proscribe el color local. Ese desdn indica un sentido nuevo de la novela histrica. Ese desdn condena a Salammb inapelablemente. (BORGES,1992, p. 134)

    A relao entre HISTRIA e FICO uma relao irrefutvel; ambas se engendram e

    se transformam mutuamente; o que no significa, contudo, que a literatura tenha que mostrar o

    que se supe prprio de um determinado tempo (reduo bvia da realidade que desemboca no

    pitoresco e na ambientao). Pelo contrrio, esta brecha, esse abismo entre elas, onde realidade

    e fico enfrentam-se, aniquilam-se mutuamente, o que abre a possibilidade do relato.

    Para que um romance seja histrico, segundo Borges, no precisa dos atributos pitorescos

    e ambientais que dem estatuto de autenticidade ambio histrica; pelo contrrio, a literatura

    separa-se da realidade no sentido de ser s reflexo dela - e adquire estatuto prprio re-criando a

    realidade, assimilando a dimenso histrica no nvel figurativo mais que no temtico. No texto

    Crtica e Sociologia, Antonio Candido parece apontar na mesma direo. Segundo ele, o

    histrico assimilado na estrutura da obra e no nos simples dados de marcao ambiental e

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    temporal. Tambm ele vai alm das dicotomias, formulando a integridade da obra mediante a

    interpretao em uma integrao de texto e contexto.

    A obra de Menard refora o iniludvel sentido histrico da literatura, a intrnseca relao

    de texto e contexto, de histria e fico; mas no porque ela tematiza vulgarmente que reflete

    a realidade; mas porque ela inscreve-se no histrico atravs dos processos de escrita e leitura,

    to circunscritos a um contexto temporal que podem mudar abruptamente o sentido: assim, as

    mesmas palavras, as mesmas frases de Cervantes, ditas por Menard, trs sculos depois, resultam

    escandalosamente diferentes: Menard (acaso sin quererlo) ha enriquecido mediante uma

    tcnica nueva el arte detenido y rudimentario de la lectura: la tcnica del anacronismo

    deliberado y de las atribuciones errneas.(BORGES, 1992,.p.136). E isto significa a abertura

    multiplicidade de sentidos no ato criativo da leitura, longe dos falsos anacronismos que tiram o

    carter histrico da literatura (definindo-a como uma essncia imutvel), mas tambm da priso

    do reducionismo historicista (que faz dela pretexto da poca e do ambiente).

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BORGES, J.L. Ficcionario. Una antologa de sus textos. Mxico: Ed. Fondo de Cultura

    Econmico, 1992.

    CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. So Paulo: Ed. Nacional, 1985.

    CAMPAGNON, Antoine. O demnio da teoria. Literatura e senso comum. Belo Horizonte:

    Ed.UFMG, 1999.

    JENNY, Laurent. A estratgia da forma. In:___Poetique. Coimbra: Ed. Livraria Almeida,1979

    PAZ, Octavio. El arco y la lira. Mxico: Ed. Fondo de Cultura Econmico,1998.

    PEZZONI, Enrique. El texto y sus voces. Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 1998.

    ROWE, William. El criollismo. In: PIZARRO, Ana (Org.). Amrica Latina: Palavra, Literatura

    e Cultura. Vol. II. So Paulo: Campinas Memorial, Ed. da UNICAMP, 1995.

    SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orrillas. Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 1998.

    SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas Latinoamericanas. So Paulo: Edusp, 1995.

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