16 - aprender a escrever - j.l. zorzi.doc

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JAIME LUIZ ZORZI Fonoaudiólogo Mestre em Distúrbios da Comunicação pela PUC-SP Doutor em Educação pela UNICAMP Professor do Curso de Fonoaudiologia da PUC-SP Professor do Cefac — Curso de Especialização em Fonoaudiologia Clínica Z88a Zorzi, Jaime Luiz Aprender a escrever: a apropriação do sistema ortográfico / Jaime Luiz Zorzi. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. 1. Educação — Escrita — Ortografia. I. Título.

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Jaime Luiz Zorzi

Fonoaudilogo

Mestre em Distrbios da Comunicao pela PUC-SP

Doutor em Educao pela UNICAMP

Professor do Curso de Fonoaudiologia da PUC-SP

Professor do Cefac Curso de Especializao em Fonoaudiologia Clnica

SUMRIO

1. Vivenciando os problemas de aprendizagem da escrita...............................................

2. O aprendizado da ortografia no contexto escolar.........................................................

3. Objetivos.......................................................................................................................

4. Desenvolvendo procedimentos de pesquisa.................................................................

a. Populao Seleo dos Sujeitos........................................................................

b. Procedimentos......................................................................................................

5. A produo da escrita e os erros ortogrficos...............................................................

a. Classificao das alteraes ortogrficas.............................................................

1. Alteraes ou erros decorrentes da possibilidade de representaes mltiplas.....................................................................................................

2. Alteraes ortogrficas decorrentes de apoio na oralidade..........................

3. Omisses de letras........................................................................................

4. Alteraes caracterizadas por juno ou separao no convencional das palavras......................................................................................................

5. Alteraes decorrentes de confuso entre as terminaes am e o..............

6. Generalizao de regras................................................................................

7. Alteraes caracterizadas por substituies envolvendo a grafia de fonemas surdos e sonoros...........................................................................

8. Acrscimo de letras.......................................................................................

9. Letras parecidas............................................................................................

10. Inverso de letras..........................................................................................

11. Outras............................................................................................................

b. Anlise dos erros ortogrficos..............................................................................

1. Representaes mltiplas..............................................................................

2. Apoio na oralidade........................................................................................

3. Omisso de letras..........................................................................................

4. Juno-separao: alteraes na segmentao das palavras.........................

5. Confuso entre as terminaes am e o.......................................................

6. Generalizao de regras................................................................................

7. Substituies envolvendo a grafia de fonemas surdos e sonoros.................

8. Acrscimo de letras.......................................................................................

9. Confuso entre letras parecidas....................................................................

10. Inverses de letras.........................................................................................

11. Outros erros..................................................................................................

12. Agrupando erros que apresentam influncia da lngua oral.........................

6. A trajetria dos erros ortogrficos................................................................................

7. As caractersticas do sistema ortogrfico e suas influncias no processo de apropriao..................................................................................................................

8. Uma seqncia de apropriao.....................................................................................

9. Os erros e os distrbios de aprendizagem da escrita....................................................

10. Consideraes finais.....................................................................................................

11. Bibliografia...................................................................................................................

12. Anexo Roteiro de observao ortogrfica.................................................................

Localizao das tabelas e grficos

Tabela IQuadro de freqncia de erros ortogrficos nas quatro primeiras sries e mdia geral, por aluno, em cada tipo de erro....................................................................

Tabela IIQuadro comparativo do nmero mdio de erros ortogrficos nas quatro sries....

Tabela IIIQuadro comparativo de freqncia dos erros nas quatro sries.............................

Tabela IVNmero e porcentagem de alunos cometendo erros em cada uma das sries.........

Tabela VNmero mximo e mnimo de erros cometidos pelos alunos da primeira quarta sries.......................................................................................................................

Tabela VIQuadro ilustrativo dos contextos de ocorrncia das omisses................................

Tabela VIIQuadro de ocorrncia de erros relativos a trocas surdas-sonoras...........................

Tabela VIIIQuadros demonstrativos da quantidade de erros produzidos pelas crianas que apresentaram trocas surdas-sonoras........................................................................

Tabela IXQuadro ilustrativo das direes das trocas entre consoantes surdas e sonoras.......

Tabela XTotal de freqncia das alteraes ortogrficas com influncia da oralidade........

Tabela XIQuadro comparativo da produo de erros de dois alunos em relao mdia de erros da primeira srie............................................................................................

Tabela XIIQuadro comparativo da produo de erros de dois alunos em relao mdia de erros da segunda srie.............................................................................................

Tabela XIII Quadro comparativo da produo de erros de dois alunos em relao mdia de erros da terceira srie..............................................................................................

Tabela XIVQuadro comparativo da produo de erros de dois alunos em relao mdia de erros da quarta srie................................................................................................

Grfico IIlustrao da diminuio de freqncia do conjunto de erros ortogrficos observados da primeira quarta sries...................................................................

Grfico IIMdia de erros por aluno, por srie, nas quatro sries, ilustrando a diminuio gradativa de cada tipo de erro.................................................................................

Grfico IIIIlustrao de freqncia de cada tipo de erro, totalizando da primeira quarta sries.......................................................................................................................

1 - Vivenciando os problemas de aprendizagem na escrita

Quando penso nas questes envolvendo a escrita, a imagem de duas pessoas com as quais convivi na infncia me vm mente. Isto porque pude acompanhar, ainda pequeno, as dificuldades que elas encontravam em termos de aprendizagem da lngua escrita. Quanta cpia, quanto castigo, quanta briga na hora de fazer as lies. No conseguiram completar o 1 grau. Embora no me recorde exatamente em que ponto pararam, longe sei que no foram. A escola lhes parecia hostil. Era o local onde expunham socialmente algumas de suas fraquezas. Das piores talvez, pois tais fraquezas no so facilmente aceitas ou perdoadas e lhes restava o ttulo de pouco inteligentes, de "alunos fracos". At hoje, praticamente, ler e escrever no faz muita parte de suas rotinas. Suas vidas poderiam ter tido outro destino caso no tivessem apresentado tal tipo de problema?

A pergunta que me fao a seguinte: poderia ter sido diferente? Onde estava localizado o problema? Neles prprios, no sistema de ensino (incompreensivo e intolerante) ou em ambos os plos do processo de ensino-aprendizagem? Difcil responder.

O segundo fator a me colocar em contato com os problemas de aprendizagem da leitura-escrita foi o curso de Fonoaudiologia. Ainda no segundo ano da graduao, comecei a trabalhar regularmente como estagirio do setor de Fonoaudiologia em uma instituio voltada para o atendimento de crianas excepcionais. Apesar da diversidade de problemas e das variaes dos mesmos, a maior parte das crianas ali atendidas apresentava grandes limitaes quanto ao domnio da escrita, mesmo as que portavam dificuldades menos acentuadas. Fazamos grandes esforos para nelas desenvolver capacidades lingsticas, habilidades perceptuais visuais e auditivas, motricidade e, mesmo assim, pouco conseguamos de significativo.

Do ponto de vista do atendimento pedaggico, uma boa parte conseguia realizar cpias e at mesmo "escrever espontaneamente" um certo nmero de palavras sistematicamente treinadas. Porm, no iam muito alm. Lembro-me de ouvir dizer que elas apresentavam dificuldade de "fixao". Na realidade, no conseguiam generalizar a aprendizagem. O problema no era somente de ordem ortogrfica, mas, sobretudo, ligado ao sentido ou significao da escrita. Foram praticamente trs anos de trabalho nessa instituio, sempre tentando compreender e contornar as dificuldades que, diariamente, observava nas crianas.

Terminada minha graduao em Fonoaudiologia, como parte da herana do aprendizado acadmico, levei a noo de que os problemas de escrita eram derivados de alteraes no chamado sistema funcional da linguagem, tambm conhecido como funes psiconeurolgicas. Tais funes diziam respeito, basicamente, a aspectos perceptuais e motores: esquema corporal, noo de cores noes espaciais, noes temporais, ritmo, lateralidade, motricidade fina e habilidades perceptuais e auditivas como memria, anlise-sntese, discriminao, fechamento e assim por diante. Deveria ter sido uma grande frmula, pois tudo explicava, tudo resolvia. Ou seja, os problemas eram causados por falhas desses processos, o que demandava, para super-los, treinar sistematicamente tais habilidades.

Grande frmula, grande esperana, grande fracasso. No h receitas to simplistas que possam dar conta de fatos to complexos como os envolvidos na aprendizagem em geral e, particularmente, da escrita. No foi preciso muito tempo de trabalho, como formado, para confirmar suspeitas, antes j levantadas com os excepcionais, de que esse caminho no era suficiente para dar conta de compreender os distrbios ou dificuldades de aprendizagem.

O trabalho clnico tem-me permitido contato freqente com um grande nmero de crianas que so encaminhadas por escolas, psiclogos ou mdicos, com a queixa de que apresentam, em graus diversos, dificuldades quanto alfabetizao. Em geral, os problemas referidos dizem respeito a alteraes ou trocas de letras na leitura e, principalmente, na escrita. De fato, via de regra, tais crianas fazem, em seus escritos, uma srie de erros, sistematicamente repetidos em determinados tipos de construo de palavras. Porm, nem sempre a alterao de ordem ortogrfica o problema principal da criana Talvez seja o mais observvel com maior facilidade: no difcil constatar que, ao invs de escrever "cabea", a criana escreveu "cabesa" ou "cabessa". O mais difcil afirmar que ela apresenta dificuldades para elaborar narrativas. Que falta sentido ou coerncia ao seu texto, que os temas so pouco explorados, que h uma forte influncia de estilos orais de linguagem. Tal avaliao parece mais subjetiva. Pode-se at pensar que o que mais chama a ateno no a dificuldade de construo textual, mas, sim, se a criana escreve de modo ortograficamente correto ou no. Escrever errado chama a ateno da escola e da famlia.

Se o apelo a fatores perceptuais ou de ordem psiconeurolgica no d conta, por si s, de explicar as alteraes de escrita, nem mesmo suficiente para sustentar com xito uma proposta teraputica, o que fazer? Creio que uma resposta amplamente satisfatria ainda no foi encontrada, porm novos caminhos para anlise e compreenso pareceram surgir ao final da dcada de 70 e, principalmente, no incio da dcada de 80. O contato com a psicolingstica, com a teoria piagetiana e com as descobertas de Ferreiro e Teberosky (1979) me ajudaram a pensar a aprendizagem da escrita de modos diferentes daqueles que at ento havia aprendido.

Compreender o processo de aquisio da linguagem escrita e, principalmente, os distrbios que podem afet-la sempre despertaram meu interesse quer talvez por uma atrao originada ainda na infncia, quer por problemas profissionais enfrentados no dia-a-dia da clnica fonoaudiolgica. Porm, meu projeto de partir para um estudo mais sistemtico acerca da linguagem escrita acabou sendo adiado. Por ocasio do mestrado, como tema de pesquisa, investi no estudo dos chamados "atrasos de aquisio da linguagem oral" que afetam crianas ainda pequenas. Procurei relacionar tais atrasos na rea da linguagem com atrasos que tambm podem alterar todo o funcionamento simblico da criana e que, via de regra, podem ser conseqncias de atrasos no prprio desenvolvi mento cognitivo.

O trabalho com crianas apresentando tais distrbios de aquisio da linguagem , em geral, de longo prazo o que significa v-las crescer. Significa tambm v-las chegar idade de serem alfabetizadas. Significa igualmente, com muita freqncia, v-las com poucos recursos, quer de ordem lingstica, quer de ordem cognitiva, para dar conta das exigncias implcitas na aprendizagem da lngua escrita.

Para mim, muitas vezes pareceu natural seguir o curso do desenvolvimento comeando primeiro com a aquisio da linguagem oral em crianas pequenas para chegar, um dia, a entender melhor a formao ou a aprendizagem de uma nova modalidade de linguagem, ou seja, a escrita.

E creio que assim se deu. Chegou a hora de investir mais tempo e energia neste campo. Creio tambm que o trabalho que tive a oportunidade de desenvolver em uma instituio voltada para o atendimento de crianas vindas de escolas da rede pblica, com queixas de distrbios de aprendizagem, reforou esta antiga necessidade. Tambm foi muito favorvel a oportunidade de estar trabalhando em um grupo multidisciplinar envolvendo psiclogos, psicopedagogos, pedagogos psiquiatras e neuropediatras.

Neste local, tive a oportunidade de avaliar e conhecer centenas de crianas Muitas delas ali presentes com uma queixa no procedente, ou seja, que se no iam bem em termos do desenvolvimento escolar, no era porque apresentavam distrbios de aprendizagem. Provavelmente fossem vtimas de distrbios de "ensinagem". Porm, por outro lado, revelou-se tambm, com clareza, que podem existir problemas que afetam a criana e suas possibilidades de aprendizagem. Alguma delas, por exemplo, tinham caractersticas tpicas de alteraes neurolgicas que podem provocar uma srie de transtornos, at mesmo deficincias mentais em graus variados. H, de fato, problemas que podem estar centrados na criana. Porm seguramente, devem existir em um nmero muito inferior quele comumente imaginado no meio educacional quando se pensa em justificar o chamado "fracasso escolar".

Creio que este trabalho no se restringe a objetivos unicamente acadmicos ou de pesquisa. Estou certo de que ele poder ser til, de alguma forma, no sentido de ajudar os educadores e outros profissionais envolvidos com a questo da aprendizagem a melhor compreenderem o processo de apropriao da escrita e, acima de tudo, que possam tornar esta escrita mais acessvel quelas crianas que, como meus parceiros de infncia e os pacientes que tenho atendido, encontraram grande dificuldade em sua aquisio.

2. O aprendizado da ortografia no contexto escolar

Em certo momento de sua vida, a criana comea a vivenciar situaes formais de ensino que tm por objetivo a aprendizagem da leitura e da escrita. Tradicionalmente, as propostas de alfabetizao empregadas para esta finalidade tm como pressuposto que a criana comea realmente a aprender alguma coisa sobre a escrita a partir de sua exposio sistemtica a um determinado mtodo.

De modo geral, ainda revelando uma forte influncia de uma noo de lngua na qual escrever bem escrever ortograficamente certo, os mtodos tendem a se basear na crena de que o ponto crucial da alfabetizao diz respeito ao domnio de uma "mecnica": codificar sons em letras para poder escrever e, inversamente, decodificar letras em sons para poder ler. A escrita tende a ser tomada como uma transcrio da oralidade e, neste sentido, grande importncia tambm assume uma idia de que para escrever bem necessrio saber falar bem, assim como ouvir bem para falar bem.

Como aponta Mayrink-Sabinson (1985), tradicionalmente a escola alfabetiza tendo como pressuposto que a escrita espelha a oralidade e, por esta razo, estrutura as atividades escolares tendo como objetivo levar as crianas descoberta de um princpio alfabtico, de correspondncias regulares entre sons e letras. A escrita traduz a oralidade como se fossem uma mesma lngua. E talvez esteja nesta forma de conceber a escrita a grande contradio desses mtodos: se a lngua escrita traduz a lngua oral, a nica lngua seria a oral. Mas todos os mtodos e todas as avaliaes tomam como base a lngua escrita, ou melhor, a lngua escrita ortograficamente correta. A lngua que se ensina, a oral, no a lngua avaliada, a escrita. Nessa avaliao, a ortografia tem prevalecido sobre o funcionamento dessas lnguas.

Tanto que, ao refletir forte preocupao com a ortografia, a avaliao sobre o domnio da "escrita correta" parece ser o ponto central da alfabetizao. Sons devem ser associados a smbolos grficos e, o modo de pronncia correta, a referncia para a escrita das palavras que, ento, devem ser memorizadas ou fixadas na sua forma adequada. Com a finalidade de facilitar tal processo praticamente rotina que os mtodos possuam uma hierarquia de apresentao dos elementos da escrita, que, do ponto de vista de quem ensina, deve ir do mais simples ao mais complexo. Em geral, h como que um recorte da linguagem escrita, no qual se procura mostrar, de incio, aquilo que regular e que tem maior correspondncia com a oralidade, com a crena de que a compreenso por parte das crianas est sendo facilitada. Famlias silbicas simples, formadas por consoante-vogal, palavras em que aparecem as mesmas slabas duplicadas, como em "baba", "vov", "nen" e assim por diante, so selecionadas para garantir a "fixao" e a "automatizao" da escrita. Porm, tal recorte tende a tomar artificial a lngua a ser aprendida.

Mais especificamente, como apontam Barreto et al. (1990), a tradio pedaggica, empregando principalmente mtodos analtico-sintticos, formulou, ao longo do tempo, uma hierarquia de dificuldades na elaborao das cartilhas. Elas iniciam a alfabetizao, em geral, conforme Da Silva (1991), com palavras-chave, depois as slabas-chave, as famlias silbicas simples, ou regulares, compostas de consoante e vogal, a formao de palavras e, finalmente, a escrita de frases. Via de regra, tais frases limitam-se a grupos de sentenas isoladas, que tm por objetivo a "fixao" de padres ortogrficos j trabalhados. Com freqncia, as chamadas slabas complexas, que no seguem o padro regular de formao consoante-vogal, so apresentadas mais tarde, em razo de sua composio ser considerada de mais difcil compreenso. A busca desta chamada "automatizao" dos padres ortogrficos considerada por Faraco (1984) como uma das sete "pragas" do ensino do portugus, porque no leva o aluno a compreender como que funciona tal sistema.

Neste contexto, no qual fica evidente o controle sobre a produo escrita com o intuito de se evitarem problemas, qualquer desvio daquilo que ensinado como modelo correto pode ser visto negativamente. Esteban (1992) afirma que somente se aceita como demonstrao de saber aquilo que reproduz exatamente o que foi ensinado...Qualquer escrita que fuja de tais limites tida como no saber. A escola no consegue conceber o erro como algo inerente ao processo de aprendizagem. Este um problema muito srio que tem sido abordado sistematicamente e de modo muito claro por uma srie de autores como Gnerre e Cagliari (1985), Carraher (1986), Cagliari (1989, 1990), Pacheco e Leme (1989), Rego (1990), Carraher (1990) e Teberosky (1991) que procuram dar uma outra interpretao s alteraes ou dificuldades ortogrficas.

Deste modo, apesar das indicaes em sentido contrrio, certas produes de escrita tm sido consideradas como erros. O erro, por sua vez, como apontam Moyss e Collares (1985 e 1992), pode ser interpretado como indcio de dificuldades centradas na prpria criana que, por algum motivo, em geral visto como patolgico, no estaria conseguindo associar ou "fixar" adequadamente a forma de escrever que lhe apresentada.

Nessa perspectiva, portanto, em que a lngua escrita, como transcrio da oralidade, ensinada por meio de princpios de memorizao e automatizao, o errar tende a ser visto como uma falha. Para os que trabalham com este tipo de postura parece difcil conceber o erro como resultante de um processo de interao, no qual a criana atua sobre a linguagem escrita com a finalidade de apropriar-se dela, processo este ocorrendo desde muito cedo, conforme bem evidenciaram Ferreiro e Teberosky (1979). Tidos como dificuldades, os erros ortogrficos correspondem a uma das grandes preocupaes pedaggicas: no devem ocorrer. Muitas patologias podem estar sendo artificialmente criadas a partir da viso de erro enquanto sintoma inegvel, ou evidente, de distrbio.

Em seu estudo sobre dislexia, Cuba dos Santos (1975) descreve uma srie de alteraes ortogrficas presentes na escrita de crianas por ela estudadas, como reveladores da presena de tal tipo de problema. Tambm abordando o tema dislexia, Newton e Thomson (1975) chamam a ateno para dificuldades quanto ao espelhamento de letras e ordenao das mesmas dentro das palavras. Tarnopol e Tarnopol (1981) apresentam vrios artigos, de diversos pases, nos quais os erros ortogrficos so considerados como sintomas de distrbios de aprendizagem. Mais recentemente, Ellis (1995) faz referncia s graves dificuldades na aprendizagem da ortografia no caso de crianas dislxicas. Nesses estudos, via de regra, inexistem referncias que permitam distinguir quando o erro pode ser considerado patolgico e quando ele pode estar revelando, simplesmente, um momento particular da apropriao do sistema de escrita pela criana.

Acreditamos que este tipo de viso tem influenciado a prtica fonoaudiolgica (Zorzi, 1996). Muitas crianas tm sido encaminhadas para tratamento fonoaudiolgico por apresentarem trocas ortogrficas. Vistas, em geral, como distrbios, tais trocas tendem a ser interpretadas como alteraes do processo perceptivo visual, quando envolvem as chamadas "trocas pedaggicas" (s, ss, ; j, g; ch, x) ou como falhas do processo perceptivo auditivo, quando dizem respeito s chamadas "trocas auditivas" (f, v; p, b; t, d).

Por outro lado, em abordagem na atualidade bastante difundida e pouco implementada, a escrita no se reduz a uma simples transcrio da oralidade, nem sequer depende exclusivamente de processos perceptivos envolvendo discriminao e memria.

A escrita pode ser vista como uma representao simblica, correspondendo aquisio de uma nova lngua. Dada a complexidade de tal sistema de representao, possvel observar-se um processo de apropriao gradual pela criana. De acordo com Ferreiro (1979, 1995), as crianas no so aprendizes passivos, mas, sim, ativos. Isto quer dizer que constroem conhecimentos, que transformam a lngua escrita em um objeto de conhecimento. A escrita torna-se no somente um instrumento simblico utilizado para a comunicao, mas tambm algo a ser compreendido, ou seja, ela tematizada, transformando-se em um contedo sobre o qual o pensamento dirigido. E, para poder adquirir conhecimentos sobre a escrita, as crianas atuam da mesma maneira que o fazem com relao a outros temas ou assuntos: procuram assimilar as informaes que o meio lhes fornece.

Neste sentido, a criana age sobre a linguagem formulando hipteses, procurando descobrir e organizar suas propriedades. Conseqentemente, aprender a escrever no se reduz a associar letras e sons ou a fixar a forma das palavras. Corresponde, na realidade, a um processo de conceitualizao da linguagem. Como diz Vygotsky (1979), "A linguagem escrita uma funo lingstica distinta, que difere da linguagem oral tanto pela sua estrutura como pela sua funo. At os seus estgios mais elementares de desenvolvimento exigem um alto nvel de abstrao" (pg. 131). Ou, ainda, voltando s palavras de Ferreiro (1979) tematizar a linguagem escrita implica graus variveis de tomada de conscincia de suas propriedades. Podemos dizer que, de usurio, que sabe como utilizar a linguagem, a criana passar a uma espcie de analista, que sabe sobre essa mesma linguagem.

Considerando-se, assim, a aprendizagem da escrita como um processo de formao de conhecimentos, os erros que surgem na produo grfica das crianas podem ser reveladores da apropriao de uma nova linguagem e surgiriam como indicadores das possveis hipteses ortogrficas que elas estariam utilizando para a escrita. Ou seja, os erros podem corresponder a tentativas de compreender e dar sentido s propriedades caractersticas do sistema de escrita.

Pesquisas realizadas at o momento tm estudado esta trajetria por meio dos "erros" de escrita, mesmo no os considerando, na realidade, como tais. Nesse sentido, com o propsito de buscar elementos indicadores do processo de apropriao do sistema de escrita, passvel de se tomar como referncia o modelo ortogrfico a fim de podermos categorizar e compreender possveis etapas dessa trajetria. Ou seja, a produo escrita da criana pode ser um indcio do quanto ela conseguiu se apropriar do sistema ortogrfico, se entendermos os "erros" como etapas de apropriao.

Observa-se, em Cagliari (1987, 1989), por exemplo, uma tendncia de se considerarem determinados "erros" como um fato inerente aprendizagem da escrita. Na anlise desses erros esto questes que passam pela concepo de lngua, pela abordagem metodolgica e, finalmente, pela prpria relao com a oralidade. Quando se acredita, por exemplo, que escrever "cabesa" decorre de uma falta de fixao da forma correta que "cabea'', tal modo de interpretar tem influncia numa maneira de conceber a linguagem na qual no se leva em considerao que a combinao de letras "sa", da mesma forma que "a", corresponde a uma alternativa para se escrever o som sa" .

So observveis, ainda, outros "erros" provavelmente provocados ou determinados por questes metodolgicas, ou seja, por prticas como as que so apontadas por Da Silva (1991). o que pode acontecer, por exemplo, quando so apresentadas somente slabas que seguem o padro de construo consoante-vogal limitando a escrita a palavras que tm tal regularidade, como o caso de "sa, se, si, so, su". Habituada a tal padro, a criana pode vir a inverter letras em slabas do tipo vogal-consoante ("escova" escrita como "secova") ou mesmo a omitir letras em slabas do tipo consoante-vogal-consoante ("susto" escrita como "suto"). Haveria uma tendncia em "ajustar" as palavras aos padres mais conhecidos de escrita.

A oralidade, por exemplo, quando comea a ser usada como referncia inicial da escrita, se traduz na tendncia de a criana escrever do modo como fala. Desta forma, "cadeira" produzida como "cadera", "comprar" como "compra" e assim por diante. No de imediato que a criana compreender a variao possvel entre formas de falar e formas de escrever, diferenciando as caractersticas de cada uma das duas lnguas.

Ainda: a prpria tendncia de escrever apoiando na oralidade pode ser acentuada com ditados que procuram levar a criana a ficar atenta forma como as palavras so articuladas para da escrev-las. Quando se orienta a criana para que ela preste ateno no modo de pronunciar as palavras, para que possa verificar que "cala" se escreve com "l" e no com "u", o que est sendo feito, na realidade, reforar a idia de uma correspondncia estreita entre fala e escrita, o que no real.

As relaes entre escrita e oralidade podem ser discutidas de um ponto de vista da oralidade para a escrita ou da escrita para a oralidade. Tais relaes tm se evidenciado quando a oralidade entendida como uma primeira lngua, ou, como descreve Kato (1986), a "fala 1" que, inicialmente, serve de apoio para o primeiro nvel de escrita, a "escrita 1". Portanto, em suas fases iniciais, a escrita sofre grande influncia da oralidade. Porm, na medida em que a escrita vai se tornando mais independente da oralidade e adquirindo as caractersticas formais que a definem como modelo de lngua padro, "escrita nvel 2", pode produzir transformaes na prpria oralidade que, assim, atingiria outro nvel, "fala 2". Como que num processo inverso, a escrita toma-se "apoio" para a oralidade.

Na medida em que fatos dessa natureza comeam a ser considerados, o erro, at ento tido como algo que indicava problemas de aprendizado por parte da criana pode ser visto como algo inerente ao processo de transformao de um sistema oral para um sistema escrito de linguagem. Ademais, como foi apontado, evidenciou-se tambm que certos tipos de erros podem ser acentuados ou mesmo induzidos por mtodos de alfabetizao. Tal tendncia tem permitido considerar como compreensvel, por exemplo, que uma criana venha a cometer "enganos" quando lida com letras como r, c ou g que podem ter mais do que um som, ou ainda, quando precisa decidir sobre a forma de representar um som que pode ser escrito por vrias letras, como o caso de /s/.

Sendo o erro ortogrfico entendido desta nova maneira, a nfase escolar sobre o domnio das formas consideradas corretas de escrita tem sido questionada sistematicamente. Gnerre e Cagliari (1985) apontam a relao artificial que as crianas acabam desenvolvendo com a escrita, uma vez que a produo das mesmas controlada pela escola, que tem como justificativa, para tal controle, a criana de que elas ainda no dominam a ortografia. Para tais autores, o no-domnio completo da ortografia no pode justificar tal procedimento, uma vez que as crianas podem, apesar dos conhecimentos mais limitados, escrever textos.

Por outro lado, as crianas descobrirem as funes da escrita, tambm enfatizadas por Rego (1990), e usarem-na de forma diversificada, o caminho que pode lev-las compreenso da necessidade de se escreverem as palavras de determinadas formas, de acordo com as convenes ortogrficas.

Nesta mesma direo, Kramer (1986) salienta que a escrita corresponde a uma construo de significados, afirmando que a prioridade pedaggica deve estar voltada para os usos sociais da lngua escrita e no para exerccios visando automatizao ou memorizao dos significantes, criticando o uso meramente escolar que se faz da escrita. Carraher (1986) chama a ateno para os perigos da insistncia exagerada na correo ortogrfica quando a criana est iniciando a aprendizagem, uma vez que dominar a escrita no se limita a saber escrever palavras corretamente.

De acordo com Varlotta (1990), a ortografia deve ser vista apenas como um dos elementos que compem um texto e no o mais importante. Barreto et al. (1990) tambm reforam o fato de que escrever slabas, palavras e frases isoladas no tem o mesmo sentido de se escreverem textos.

A lngua, tanto oral quanto escrita, apresenta-se na forma de textos, sendo que decompor os textos em suas partes tem um efeito positivo para a anlise da linguagem, mas no corresponde linguagem propriamente dita. Como apontam Silva et al. (1986), o ensino da escrita acaba se transformando em uma repetio sem fim de atividades com fragmentos de linguagem que no levam em considerao a condio de falante que o aluno j possui. Os exerccios apropriam-se da lngua da criana, negando-a e destituindo-a de sentido. A lngua acaba por transformar-se em lies e tarefas. De acordo com Moyss (1985), exige-se da criana uma linguagem escolar, supostamente neutra e com etapas a serem atingidas. Deseja-se ensinar a criana a ler e a escrever, porm sem que se considere que tal objetivo s atingido quando ela, de fato, l e escreve, o que a levar a apropriar-se dos usos e dos valores que a lngua escrita tem. Ou ainda, como afirma Geraldi (1985), a escola no cria situaes de produo de texto nas quais o sujeito realmente diz suas palavras. Simula-se o uso da escrita com o objetivo de exercit-la para que seja usada, algum dia, no futuro.

Quando se fala na necessidade de a criana compreender os usos e as funes sociais da lngua escrita, no se est negando a necessidade de que venha a ter um domnio sobre a forma de escrever as palavras.

A importncia do trabalho com a ortografia tambm tem sido apontada com muita freqncia. Faraco (1992) afirma que conhecer mais profundamente as relaes entre a escrita e sua estrutura fonolgica necessrio para que se possa trabalhar com a alfabetizao e levar as crianas a uma aprendizagem adequada. De acordo com Cagliari (1989), a escola, embora se proponha a ensinar a escrita, no explica o que ela e tampouco como funciona. Em suas palavras, " preciso dizer, logo no incio, o que a escrita, as maneiras possveis de escrever, a arbitrariedade dos smbolos, a convencionalidade (...) as relaes variveis entre letras e sons - que permitem a leitura. Enfim, preciso no camuflar a complexidade da lngua'' (pg.97).

A aprendizagem da ortografia necessariamente leva a um trabalho reflexivo sobre a escrita, favorecendo uma atividade consciente sobre a representao grfica, conforme nos lembram Carraher (1992) e Salgado (1992). Para esse ltimo autor, (...) escrever corretamente significa fazer um uso consciente e premeditado de nossa lngua; o erro no mais do que o desconhecimento ou a no-conscincia dessa arbitrariedade convencional e, a partir de um ponto de vista educativo, o que deve motivar a busca de metodologia mais adequada para garantir a aprendizagem" (pg. 29).

Estas questes nos levam a considerar que a aprendizagem da escrita envolve, simultaneamente, mltiplos aspectos: os usos, as funes e a natureza da lngua escrita. Aprender a escrever implica compreender os diferentes usos que as pessoas fazem da escrita, que no se reduzem aos usos que a escola faz ao solicitar cpias, ditados, completar frases, redaes, leitura de textos em voz alta e assim por diante. Implica compreender as funes sociais da escrita, ou seja, que as pessoas lem e escrevem para dar ou receber informaes, para questionar, para convencer, para instruir, para se organizarem no tempo e no espao, assim como para o prprio lazer ou diverso.

A escrita, ainda, apresenta uma srie de propriedades lingsticas, espaciais e temporais, que caracterizam sua natureza alfabtica. Assim sendo, aprender a lngua escrita tambm envolve a compreenso de aspectos como:

A relao entre letras e sons, ou seja, as letras representam sons: um som pode ser representado por uma letra, uma mesma letra pode representar vrios sons e um mesmo som pode ser escrito por vrias letras.

A correspondncia quantitativa entre letras e sons: cada palavra se escreve com um certo nmero de letras, que nem sempre corresponde ao nmero de fonemas que a compem.

As variaes entre o modo de pronunciar as palavras e a maneira de escrev-las.

A posio de cada letra no espao grfico e a direo da escrita.. Isto quer dizer que a escrita organizada de maneira que as letras mantenham relaes espaciais e temporais entre si, sucedendo-se umas s outras numa ordem determinada e seguindo o sentido da esquerda para a direita, o que caracteriza a horizontalidade. Tambm se distribui de cima para baixo no espao grfico, caracterizando uma organizao verticalizada.

A linearidade, que corresponde ao fato de uma letra ser escrita aps a outra.

A segmentao, que se define pela ocorrncia de pausas ou separaes. Ou seja, a linearidade quebrada em funo do carter descontnuo da escrita, na medida em que tal descontinuidade marca a segmentao dos elementos da escrita.

Tais caractersticas, que dizem respeito natureza alfabtica da escrita, so marcadas pelo seu carter convencional ou arbitrrio. Como nos fazem lembrar Silva et al. (1986), no devemos confundir a conveno com simples regras de ortografia que determinam o certo e o errado. A conveno deve ser entendida como resultado de um trabalho conjunto; partilhado por todos.

O agir do sujeito sobre a lngua acaba por conduzi-lo na direo da conveno que se estabelece no porque seja um instrumento lingstico, uma norma pedaggica, mas sim, porque pertence a todos e se constri no sentido de possibilitar a interao. Os smbolos so criados para que possam ser entendidos e s podem receber significao na medida em que sejam compreendidos quanto sua natureza, seus usos e funes.

Hoje estamos cientes de que os erros ortogrficos produzidos pelas crianas, reveladores do que se considera uma forma no convencional de escrever, so inerentes ao processo de construo de conhecimentos a respeito da escrita. Tambm sabemos que no tem efeito querer resolv-los isoladamente, ou seja, sem que a criana os compreenda no contexto social da escrita. Porm, isto no implica que as questes ligadas ao aprendizado da ortografia estejam resolvidas, que no se deva mais perder tempo discutindo um problema que j foi bem compreendido e bem explicado.

Mesmo considerando tudo o que se tem dito a respeito dos erros ortogrficos, professores e pais, como tambm observou Varlotta (1990) e, podemos acrescentar, profissionais que lidam com os chamados distrbios de aprendizagem, ainda apresentam muitas dvidas a respeito do que o erro ortogrfico, o que significa e, sobretudo, como lidar com ele.

Apesar do discurso muito presente em grande parte das escolas de que o erro faz parte do processo de construo da escrita, tem sido possvel encontrar, na atividade clnica, crianas muito novas, muitas vezes ainda em idade pr-escolar que esto "deixando" seus professores muito ansiosos porque espelham letras, omitem partes das palavras, substituem letras ou porque no conseguem memorizar ou fixar as palavras na sua forma correta. Tambm possvel observar crianas com dificuldades reais que, mesmo apresentando melhoras significativas em termos de produo de escrita, continuam sendo vistas nas escolas como maus alunos ou como incapazes de aprender porque, ainda que esporadicamente, apresentam um ou outro erro. Tais erros ocorrem principalmente no ditado de palavras, em geral pouco usuais, e que so preparadas pela professora para exerccios de fixao ortogrfica. Contrariamente ao discurso, na prtica no se entende o erro como um processo construtivo.

Tal ansiedade se estende aos pais e tambm aos profissionais que acabam por receber tais crianas para resolver os seus problemas de aprendizagem. Curiosamente, muitos alunos esto at ameaados de reprovao em razo dos erros que produzem, embora possam estar tendo um bom aproveitamento em relao ao contedo curricular. Este no um tipo de problema que se restrinja s escolas pblicas. O "medo" do erro nas escolas particulares tambm imenso. a eterna viso do erro como indicador de problemas, indiscriminadamente.

Neste sentido, no que diz respeito s patologias, por exemplo, a forma de se pensar o erro do ponto de vista de uma construo tem servido para aprofundar o questionamento dos chamados distrbios de aprendizagem, distrbios da ateno e, principalmente, da dislexia, patologia clssica do desenvolvimento da leitura escrita, cuja sintomatologia definida, principalmente, pelo modo de interpretar os erros ortogrficos, como apontei em trabalho anterior (Zorzi, 1996).

Se, partindo de um viso construtivista, tomarmos os erros ortogrficos como refletindo a apropriao gradual da escrita ou sendo determinados pelo prprio mtodo de alfabetizao, poderemos deduzir que no existem os chamados distrbios ou patologias da leitura escrita? Sero tais erros fatos "normais", esperados e, desta forma, devendo ser simplesmente aceitos? Caso a resposta possa ser afirmativa, que tipos de erros, com que freqncia e at quando devemos esperar a ocorrncia dos mesmos? Porm, a experincia at nos permite antecipar que h situaes nas quais os erros podem indicar dificuldades de aprendizagem. Nestes casos, que tipos de indcios poderiam ser reveladores de problemas?

Estas so algumas das questes que podem ser levantadas. Sabemos que a criana no consegue, de imediato, compreender as caractersticas ortogrficas da escrita. Porm, faz-se necessrio ir alm da mera constatao do erro como revelador de hipteses. Para isso, precisamos compreender uma srie de outros problemas:

Como a criana vai organizando o sistema ortogrfico?

Que papel tem sua memria oral, ou seja, as referncias acsticas e articulatrias que servem de base para a oralidade, no domnio da escrita?

Haveria uma tendncia evolutiva das crianas de, aos poucos, elaborar e testar hipteses, confrontando-as com outras escritas e assim, ir modificando-as para transformar "sua escrita" em escrita? Mas como se caracterizaria esta progresso, caso ela ocorra?

As crianas percorreriam trajetos diferentes? Apresentariam as mesmas dificuldades ou hipteses?

Qual o ritmo de apropriao do sistema ortogrfico?

Que tipos de erros so mais comuns?

Por que eles estariam ocorrendo?

H certos aspectos da linguagem escrita de mais difcil apropriao do que outros?

possvel desenvolver procedimentos pedaggicos que auxiliem a criana em sua trajetria de construo de conhecimentos?

Se pensarmos novamente na questo do patolgico:

At quando podemos considerar a ocorrncia de erros como um fato natural, ou melhor, como parte do processo de aprendizagem e, a partir de quando e em que tipo de configurao podem ser significativos como indcios de que a apropriao da escrita no estaria se processando adequadamente?

Que tipos de elementos poderiam nos fazer pensar, de fato, em um possvel distrbio?

Embora a questo da aprendizagem da escrita no se reduza ao domnio ortogrfico, sabemos da importncia que existe na compreenso ou na apreenso deste aspecto ligado natureza alfabtica da lngua escrita e que deve ser mais bem entendido, at mesmo para ser abordado com mais critrios nas propostas metodolgicas e para que se possa tambm compreender, mais claramente, o que pode significar em termos de normalidade ou patologia no desenvolvimento da escrita.

No h dvidas em afirmar que se faz necessrio investir mais em pesquisas nesta rea para que ns educadores, fonoaudilogos e todos os que lidam com o desenvolvimento possamos aprofundar nosso saber acerca das caractersticas da escrita e para que, assim, possamos criar situaes que realmente facilitem tal aprendizagem.

Neste sentido, este trabalho tem como propsito analisar aspectos da apropriao do sistema ortogrfico pelas crianas, levando em considerao a trajetria dos erros que produzem quando escrevem.

3. Objetivos

Compreender como se d a apropriao progressiva do sistema ortogrfico, levando-se em considerao as caractersticas lingsticas e a trajetria dos erros produzidos por crianas que esto aprendendo a escrever o campo em que se situa este livro.

Pretende-se, com estas anlises, apontar caminhos que possam ajudar o educador a se colocar melhor como o interlocutor, por excelncia, na interao que a criana estabelece com a escrita na medida em que ele possa compreender, mais claramente, a produo grfica de seus alunos. Pretende-se, tambm, que as questes levantadas por este trabalho possam contribuir para uma maior clareza dos chamados distrbios da leitura e da escrita, to comuns na atividade clnica de fonoaudilogos, psicopedagogos e psiclogos.

A primeira hiptese que dirige este trabalho a de que todas as crianas em processo de aprendizagem da escrita, quando tm oportunidade de escrever espontaneamente ou quando entram em contato com palavras pouco familiares, se confrontam com os princpios do sistema de escrita e "produzem erros". Tais erros, entendidos como "conflitos obstculos", no processo de apropriao da escrita, se modificam e diminuem na dinmica do prprio processo.

A segunda hiptese deste trabalho a de que o sistema ortogrfico apresenta caractersticas ou propriedades diversas, com maior ou menor complexidade, o que resultaria em apropriaes diferentes por parte de quem aprende a escrever.

Assim, certas propriedades da linguagem escrita exerceriam influncia nos modos de apropriao do sistema ortogrfico. Em outras palavras, existem determinadas caractersticas da prpria linguagem que podem ser consideradas como focos de conflitos no processo de aprendizagem. Elas seriam responsveis pela maior parte dos erros encontrados na produo de escrita das crianas, uma vez que, em virtude da complexidade que apresentam, poderiam estar impondo maiores restries, ou obstculos, quanto sua apropriao.

O objetivo geral deste estudo o de caracterizar o domnio progressivo do sistema ortogrfico no decurso das quatro primeiras sries do primeiro grau.

Mais especificamente, tem como propsitos:

Classificar a produo ortogrfica de acordo com sua possvel natureza lingstica.

Analisar quais os erros de escrita mais comuns nas fases iniciais de seu ensino formal.

Verificar a ocorrncia de cada tipo de erro em cada uma das sries, relacionado-os apropriao do sistema de escrita.

Acompanhar a possvel trajetria destes erros, isto , como tendem a se apresentar ou ser superados at a quarta srie do 1 grau.

4. Desenvolvendo procedimentos de pesquisa

Este trabalho envolveu a obteno e anlise de produo de escrita de estudantes das quatro primeiras sries iniciais do 1 grau para que fosse possvel acompanhar, por este perodo, a trajetria de apropriao do sistema de escrita e os erros presentes na alfabetizao.

A. POPULAO - SELEO DOS SUJEITOSEm razo deste trabalho ter como objetivo analisar o processo de apropriao sistema ortogrfico durante as etapas iniciais da alfabetizao, a sua populao foi constituda por crianas das primeiras sries do 1 grau de escolas da cidade de So Paulo, tendo sido feita uma opo por instituies de ensino particular.

A seleo das escolas ocorreu a partir dos seguintes critrios: todas elas deveriam ter, no mnimo, duas classes de cada srie; as classes deveriam ter entre 20 e 30 crianas e seus professores estarem disponveis a colaborar com a realizao do trabalho. A partir desses critrios, foram selecionadas cinco escolas: quatro delas localizadas na zona sul da cidade e uma na zona oeste.

De cada uma das cinco escolas foram escolhidas quatro classes, uma de cada srie, o que totalizou 20 classes: cinco de primeira srie; cinco de segunda srie; cinco de terceira srie e cinco de quarta srie, todas do 1 grau.

Todas as escolas que colaboraram para a realizao desta pesquisa apresentavam tradio de empregar, principalmente, mtodos analtico-sintticos como proposta para a alfabetizao de seus alunos. Porm, para a maior parte de tais escolas, j estava havendo modificaes, em graus variados, sobretudo nos programas de primeira e segunda sries, em razo de influncias da teoria construtivista de Ferreiro e Teberosky. De uma maneira geral, pode-se dizer que a maior parte das crianas foi alfabetizada a partir de uma metodologia inspirada, basicamente, em moldes mais tradicionais de ensino.

Desta seleo resultou um conJunto de 514 crianas, sendo 232 do sexo masculino e 282 do feminino, residentes na cidade de So Paulo, com idade variando entre 7 e 11 anos, e que estavam freqentando desde a primeira at a quarta srie do 1 grau, o que totalizou uma mdia de 103 alunos por escola. Cada srie foi representada por 129 alunos, em mdia, provenientes das cinco escolas.

Optou-se por trabalhar com esta populao de crianas provenientes de escolas particulares porque, teoricamente, deveriam apresentar as condies "ideais" de aprendizagem: em sua maioria j haviam passado por uma experincia pr-escolar com o objetivo de prepar-las para a alfabetizao; estavam freqentando escolas tidas como possuidoras de condies pedaggicas favorveis; vinham de famlias com boas condies econmicas que, em geral, atribuem valores positivos ao aprendizado escolar e que, comumente, tm familiaridade com o tipo de linguagem que a escola exige e valoriza.

A questo dos erros foi sendo tratada, neste trabalho, do ponto de vista conceitual, isto , como fazendo parte do processo de apropriao de uma nova linguagem, o que significa considerar que poderiam ocorrer em qualquer situao de aprendizagem, inclusive naquelas tidas como "privilegiadas" como era o caso das crianas que participaram desta pesquisa. Em sntese, a escolha destas escolas teve a pretenso de evitar que problemas relativos ao desenvolvimento de uma nova linguagem, assim como possveis desvios metodolgicos, pudessem ser atribudos exclusivamente a fatores sociais, econmicos ou pedaggicos.

B. PROCEDIMENTOSDe cada uma das escolas foi colhido material escrito de 103 alunos em mdia, aproximadamente 26 de cada uma das sries. A coleta de dados foi realizada no segundo semestre, no final do ano letivo, isso porque houve uma preocupao de garantir que cada criana j tivesse vivenciado um certo tempo de contato com a linguagem escrita, uma vez que a maior parte delas iniciou a alfabetizao na pr-escola, o que significa, praticamente, dois anos de experincia escolar com a escrita.

Foi elaborado um roteiro de observao ortogrfica, tendo sido os professores de cada uma das classes previamente orientados quanto ao modo de aplic-lo. A obteno dos dados deu-se em situao de sala de aula, sendo o professor o responsvel por apresentar a situao e dirigi-la. Em primeiro lugar, foram propostos trs ditados: um conjunto de palavras, um conjunto de frases e um texto (ver no Anexo). As frases e o texto foram extrados de livros infantis comumente encontrados em livrarias. Pretendeu-se, assim, garantir um mnimo de produo grfica por parte das crianas e que contivesse palavras com vrios tipos de caractersticas ortogrficas, de modo a permitir verificar como estariam compreendendo tais noes de escrita. As crianas realizaram um tipo de ditado por dia.

Numa segunda etapa, todas as crianas foram solicitadas a construir textos a partir de temas sugeridos (conforme relao de temas no Anexo), o que resultou em duas "redaes", realizadas em dias distintos.

De modo geral, de cada uma das crianas foi possvel coletar cinco textos, trs ditados (palavras, frases e texto) e 2 redaes. Desta forma, o total de material coletado foi de, aproximadamente, 2.570 amostras de produo de escrita.

O objetivo de colher os dois tipos de produo grfica ditados e narrativas foi o de poder garantir a coleta de uma amostra mnima de escrita, uma vez que algumas crianas tendem a escrever muito pouco espontaneamente, o que limitaria a possibilidade de uma anlise mais extensiva de seus conhecimentos ortogrficos.

5. A produo da escrita e os erros ortogrficos

A. CLASSIFICAO DAS ALTERAES ORTOGRFICAS

A anlise da produo de escrita dos 514 alunos selecionados para este estudo permitiu detectar 21.196 modos de escrever as palavras, divergindo da forma ortogrfica convencional, e que foram considerados como "erros" ou "alteraes ortogrficas''. Este nmero corresponde a uma mdia geral de 41,2 alteraes para cada um dos sujeitos. Tal quantidade, somada diversidade de tipos de alteraes encontradas, causou, de imediato, dificuldades quanto a critrios de classificao das mesmas. Dvidas em como interpretar ou considerar tais erros foram muito grandes e acabaram por motivar a busca de modos de classificao que j tivessem sido empregados e que pudessem auxiliar na pesquisa.

Cagliari (1989), em estudo anterior, tambm voltado para a anlise das alteraes ortogrficas, apresenta a seguinte classificao para os erros observados em sua amostra:

1. Transcrio fontica: correspondem quelas alteraes decorrentes de uma transcrio do modo de falar.

2. Uso indevido de letras: a letra que utilizada para escrever urna palavra, embora pudesse ser uma opo de escrita, no corresponde ao que determinado pela ortografia. Por exemplo, grafar dise no lugar de disse.

3. Hipercorreo: corresponde generalizao de algumas formas possveis de escrita, como, por exemplo, a compreenso de que o modo de falar no corresponde ao modo de escrever.

4. Modificao da estrutura segmental das palavras: abrangem trocas, supresso, acrscimo e inverso de letras.

5. Juntura intervocabular e segmentao: categoria que abrange a escrita de palavras que no so segmentadas da forma convencional.

6. Forma morfolgica diferente a variedade dialetal da criana pode dificultar o conhecimento da grafia convencional quando n modo de falar muito diferente do modo de escrever.

7. Forma estranha de traar as letras: traado irregular ou com pouca preciso das letras, podendo fazer com que as letras no fiquem bem diferenciadas umas das outras.

8. Uso indevido de letras maisculas e minsculas.

9. Acentos grficos.

10. Sinais de pontuao.

11. Problemas sintticos: correspondem a modos de escrever que so influenciados por padres sintticos do dialeto que a criana usa. Por exemplo quando ela escreve "Eles compro dois sorvete".

Tambm interessada nas alteraes da ortografia, Carraher (1990), em sua anlise, emprega oito categorias para explicar os erros, algumas delas coincidentes com aquelas utilizadas por Cagliari (1989):

1. Erros tipo "transcrio da fala".

2. Erros por supercorreo (hipergeneralizao).

3. Erros por desconsiderar as regras contextuais: a criana no considera o fato de que o valor de uma letra pode depender de seu contexto de ocorrncia, como, por exemplo, a letra m s pode ser usada antes de p e b.

4. Erros por ausncia de nasalizao: a criana no emprega marcadores para indicar a nasalizao.

5. Erros ligados origem da palavra: o modo de escrever a palavra depende no somente da forma como ela pronunciada, mas tambm da sua origem, como, por exemplo, quando h necessidade de decidir se uma palavra escrita com ou com ss.

6. Erros por troca de letras, principalmente entre consoantes sonoras e surdas.

7. Erros nas slabas de estruturas complexas que envolvem, por exemplo, consoante-vogal-consoante, consoante-consoante-vogal e assim por diante.

8. Ausncia de segmentao e segmentao indevida das palavras.

No entanto, as categorizaes propostas nestes estudos anteriores de Cagliari (1989) e Carraher (1990) acerca dos chamados erros ortogrficos, embora tenham sido tomadas como referncia para a elaborao de um modelo de classificao, no foram suficientes para dar conta dos erros encontrados, uma vez que os mesmos no estavam sendo vistos como "erros-produtos" de uma produo de textos. Em nossa perspectiva de processo de apropriao, esse erro no seria um produto, mas se constituiria em um "obstculo-conflito" a ser superado. Alm do mais, a trajetria de tais erros se configuraria em um movimento em busca da escrita, o que possibilitaria que um mesmo "erro" pudesse ser analisado de diferentes formas. Por isso, foi a partir da anlise sistemtica das alteraes e da busca do que poderiam apresentar em comum que essas categorias foram sendo modificadas, ou ampliadas, para tornarem possvel a classificao da grande quantidade e diversidade de erros que estavam sendo observados

Desta forma, foi desenvolvido, em razo dos dados deste trabalho, um novo quadro classificatrio composto por 10 categorias ou tipos de alteraes ortogrficas que foram mais comumente encontradas na escrita das crianas em geral. Uma dcima primeira categoria foi utilizada para dar conta de certas idiossincrasias, ou seja, de certos modos particulares e pouco freqentes de escrever palavras que eram encontrados em uma ou outra criana, e que no podiam ser considerados como dificuldades comuns maioria dos sujeitos.

1. Alteraes ou erros decorrentes da possibilidade de representaes mltiplas

O sistema de escrita da lngua portuguesa, assim como todos os demais sistemas de escrita alfabtica, apresenta como caracterstica bsica uma correspondncia entre sons e letras. Algumas destas correspondncias so consideradas como biunvocas, ou seja, a um determinado som corresponde uma determinada letra. O som ou fonema /p/ grafado unicamente com a letra p; o fonema /v/ escrito somente com a letra v, assim como para se escrever o fonema /f/ emprega-se, exclusivamente, a letra f. Em tais casos, h uma espcie de relao estvel entre o som e o smbolo que pode represent-lo.

Porm, por outro lado, existem outros tipos de relaes entre letras e sons nas quais no se observa tal estabilidade nas formas de grafar. Encontramos casos nos quais, para um mesmo som, podem corresponder diversas letras ou, inversamente, situaes nas quais uma mesma letra pode estar representando diferentes sons. O fonema /s/, por exemplo, pode ser representado por uma diversidade de letras como s, ss, c, , entre outras. A letra c, por sua vez, pode escrever o fonema /s/, assim como o fonema /k/.

A estes tipos de correspondncias, nas quais um mesmo som pode ser escrito por vrias letras ou uma mesma letra pode representar diferentes sons, foi atribudo o nome de "correspondncias mltiplas".

Foram classificadas, nesta categoria, aquelas alteraes ortogrficas decorrentes da confuso que pode ser gerada pelo fato de no haver formas fixas ou nicas de representao grfica de certos sons. Mais especificamente, puderam ser observadas alteraes com relao s seguintes correspondncias.

a. Erros envolvendo a grafia do fonema /s/ porque o mesmo pode ser escrito por uma diversidade de letras: s (salada, pasta, lpis); ss (passear); c (cimento); (pedao); sc (descer); s (nasa); xc (excesso); x (explicar) e z (nariz).

Exemplos:

caador - casador

ser cera

travesseiro - traveseiro

cresceu creseu

explicao esplicaso

servio serviso

sentindo centindo

apareceu - paresseu

b. Erros relativos grafia do fonema /z/, que pode ser representado pelas letras: z (zero); s (casar) e x (examinar).

Exemplos:

presente - prezente

fazer - faser

tristeza tristesa

exemplo esemplo

c. Erros envolvendo a grafia do fonema //, que pode ser grafado com as letras: x (enxugar) e ch (chegar).

Exemplos:

manchar - manxar

churrasco - xurasco

machucado - maxucado

bruxa - brucha

d. Erros envolvendo escrita do fonema //, que pode ser representado pelas letras: j (janela) e g (geladeira).

Exemplos:

tijolo - tigolo

jornal - gornal

gelatina - jelatina

girassol jirassou

e. Erros relativos grafia do fonema /k/ que pode ser escrito com as letras q (querer); c (carro) e k (Ktia).

Exemplos:seqestrador secuestrador

explicao expliquao

caador qasador

quarto cuarto

f. Erros provocados pelo fato de a letra r poder representar os sons /(/ e /r/, dependendo do contexto grfico: quando em posio inicial de slaba escreve o som /(/ (rede) e quando aparece no final de slaba (barco) ou no interior das palavras e entre vogais (parede) grafa o som /r/.

Exemplos:

churrasco - churasco

cachorra - cachora

macarro - macaro

arrependido arenpemdido

g. Erros relativos ao fato de que a letra g pode representar o som // (geladeira) quando acompanhada das vogais e e i, assim como o som /g/ quando antecede as vogais a, o e u (galinha, gola, guloso) ou nas construes silbicas com gue e gui (guerra, guitarra).

Exemplos:

j - ga

seguir- segir

jornal - gornau

sangue sange

h. Erros produzidos porque a letra c pode representar tanto o som /k/ (coisa) quanto o som /s/ (cinema).

Exemplos:

quero - cero

quebrado - cebrado

i. Erros decorrentes do uso das letras m e n para indicar a nasalidade das vogais nasais, que podem ser escritas das seguintes formas:

, am e an

irm, samba e canta

em e en

sempre, pente

im e in

limbo, pinta

om e on

pombo, conto

um e un

Cumbica, junto

As letras m e n, embora sejam distintas, nessa posio final de slaba esto grafando o trao de nasalidade das vogais, podendo ser consideradas, portanto, como letras distintas representando o mesmo som.

Exemplos:

perguntou - pergumtou

conselho - comselho

combinar - conbinar

tambm tanben

2. Alteraes ortogrficas decorrentes de apoio na oralidade

O sistema alfabtico que caracteriza a escrita implica correspondncias entre sons e letras, ou seja, os sons da fala so representados por letras e, inversamente, as letras se transformam em sons. H, desta forma, uma relao entre sons e letras. Podemos encontrar palavras que so escritas praticamente do modo como so faladas, no havendo discrepncias entre a forma de falar e a forma de escrever: dizemos "pata" e escrevemos pata, pronunciamos "calada" e tambm escrevemos calada. Nestes casos, a escrita se assemelha a uma transcrio fontica. Porm, a escrita alfabtica no significa escrita fontica. Freqentemente encontramos palavras que podem ser pronunciadas de uma forma, mas que so escritas de outra maneira. Podemos ouvir uma criana dizendo "Minha mi t compranu leitchi pr nis tom" mas que, para ser escrito como um enunciado convencional, dever se transformar em Minha me est comprando leite para ns tomarmos. O padro acstico-articulatrio no coincide com o padro visual ou ortogrfico, ou seja, nem sempre se escreve da maneira como se fala.

Foram classificadas nesta categoria aquelas palavras grafadas erroneamente, devido a um apoio no modo de falar para decidir o modo de escrita, quando h uma discrepncia entre os mesmos.

Exemplos:

trabalhar - trabaliar

dormir - durmi

quente - queiti

se importa - sinporta

Uma questo poderia ser levantada em relao aos erros ortogrficos envolvendo a representao de ditongos em palavras como "soltou", que acaba sendo escrita como soutou; "palpite" que escrita como paupite; "falta" como fauta e assim por diante. Nestes casos, a letra 1 acaba sendo substituda pela letra u. Em palavras nas quais h ocorrncia de ditongos deste tipo, observamos que a semivogal /w/ pode ser representada pela letra l ou pela letra u: em papel, a semivogal /w/ representada pelo l, enquanto que em chapu, a mesma semivogal escrita com a letra u; em sol, a semivogal grafada com l, mas, em sou, escrita com u. Desta forma, possvel pensarmos que este um caso de erro em decorrncia de representaes mltiplas, ou seja, um mesmo fonema, no caso uma semivogal, pode ser escrito por mais do que uma letra l ou u, dependendo da palavra.

Apesar de estarmos frente a um caso que envolve representao mltipla, a anlise dos erros das crianas levou-nos a crer que, inicialmente, elas estavam decidindo a forma de escrever as palavras tomando como referncia a oralidade. Principalmente nas sries iniciais a tendncia foi, de modo mais sistemtico, de empregar a letra u para escrever a semivogal, tomando como possvel referncia suas caractersticas fonticas que a aproximam da vogal /u/. Ou seja, o som da semivogal estaria sendo assimilado ao som da vogal /u/ e, assim, a letra a empregar deveria ser a letra u. E foi esta a tendncia observada: de a letra u ser a mais freqentemente empregada para escrever palavras deste tipo. No foi constatado, de incio, um conflito de representao. Este conflito comeou a ser mais visvel sobretudo nas sries mais avanadas, quando surgiram, com mais freqncia, erros como o da palavra "perguntou" que foi escrita na forma de perguntol.

Embora os sujeitos deste trabalho no tenham sido questionados diretamente acerca dos motivos que poderiam t-los levado a utilizar uma letra ou outra para escrever as semivogais, caberia aqui acrescentar que tem sido possvel, em situaes de terapia, com outras crianas, perguntar-lhes por que usam preferencialmente a letra u para escrever palavras como jornal, cala, bolso e assim por diante. Frente questo "Por que voc usou esta letra (u) para escrever esta palavra?", a resposta mais comumente encontrada tem sido algo como " por causa que a gente fala /u/". Ou seja, aparentemente se escreve como se fala.

Em razo desta influncia que a oralidade parece estar exercendo no modo de escrever palavras contendo ditongos com a semivogal /w/, tal tipo de erro foi considerado nesta categoria de alteraes.

3. Omisses de letras

Palavras grafadas de modo incompleto, em funo da omisso de uma ou mais letras, foram consideradas dentro deste tipo de alterao ortogrfica. Palavras escritas como bombero (bombeiro) nas quais h omisso da letra i; palavras como tisora (tesoura), nas quais a letra u tambm omitida ou em palavras do tipo come (comer), nas quais a letra r est ausente, no foram tidas como omisses, mas, sim como escritas apoiadas na oralidade.

Exemplos de omisses:

sangue - sague

coitada coida

queimar quemar

comprou compou

4. Alteraes caracterizadas por juno ou separao no convencional das palavras

Quando usamos a linguagem oral, as palavras que formam os enunciados podem se suceder sem um limite claro de separao entre elas. No pronunciamos as palavras uma a uma, isoladamente, mas sim em espcies de blocos com tempos de pausas variveis entre si. Assim, as palavras faladas no se apresentam como unidades.

Por outro lado, a escrita impe critrios exatos de segmentao ou de separao de uma palavra das outras. Quando as crianas usam padres de oralidade para segmentar a escrita ou quando no esto seguras a respeito do ponto em que uma palavra comea e do ponto em que termina, podem surgir alteraes no modo de escrever. Problemas quanto segmentao resultam em palavras unidas entre si ou fracionadas em um menor nmero de slabas do que deveriam ter.

Exemplos:

s vezes - asvezes

se perder - siperder

naquele na quele

quatrocentos quatro sentos

5. Alteraes decorrentes de confuso entre ns terminaes am e o

Palavras que terminam com am e que so grafadas como o, e vice-versa, foram classificadas nesta categoria. Nestes casos tambm se observa uma influncia de padres de pronncia, ou seja, as palavras que terminam com am so foneticamente semelhantes quelas que terminam com o: "falaram" pronunciada como "falaro", da mesma forma que "falaro" pronunciada como "falaram". Na realidade, a diferena no fontica, mas, sim, em relao posio da slaba tnica dentro da palavra falaram uma palavra paroxtona enquanto falaro, oxtona. Quando a criana toma como base para a escrita a maneira como as palavras so pronunciadas, podem surgir erros deste tipo: am pode virar o ou pode haver dvidas quanto forma adequada de grafar.

Exemplos:

comeram - comero

saram - sairoVemos reproduzir-se aqui uma situao semelhante quela analisada no caso do apoio na oralidade quanto escrita das semivogais. Neste caso de distino entre am e o tambm encontramos uma representao mltipla, ou seja, para escrever o ditongo nasal /w/ que aparece na pronncia de palavras como "cantaro", "comeram" e assim por diante, temos duas possibilidades: am ou o, dependendo da tonicidade das palavras.

Porm, tambm foi ntida neste tipo de erro a influncia de padres orais, principalmente porque a tendncia muito mais acentuada foi a de encontrar palavras que deveriam ser escritas com am sendo escritas com o. Isto se deve ao fato de que, muito provavelmente, a forma escrita o esteja mais prxima do som do ditongo /w/. Foi possvel at observar crianas que fazem uma transcrio praticamente literal do modo de pronncia: "compraram" se transforma em "comprarau"; "assustam" em "assustau" e assim por diante.

Provavelmente, antes que a criana se d conta do conflito que pode haver pelo fato de um mesmo ditongo poder ser escrito de duas formas diferentes, ela esteja tomando a oralidade como referncia para suas decises a respeito do modo de escrever as palavras. Apesar desta relao com a oralidade, optou-se por criar uma categoria de erros parte, em funo de suas particularidades e de sua freqncia significativa.

6. Generalizao de regras

Foram classificados dentro deste tipo de alteraes formas de grafar palavras que parecem reveladoras do modo como as crianas generalizam certos procedimentos de escrita, porm aplicando-os a situaes nem sempre apropriadas. Uma criana pode compreender por exemplo, que embora certas palavras sejam pronunciadas com o som de /i/ ou com o som de /u/, elas podem ser escritas com as letras e, o ou l: "mininu" grafa-se com e e com o menino; "sautu" escreve-se com 1 e com o salto. Nestes casos, o fonema /i/ transformou-se na letra e enquanto que o fonema /u/ transformou-se em o e em l.

Alteraes caracterizadas como generalizao dizem respeito ao uso de tais princpios de escrita convencional em situaes nem sempre apropriadas: "cinema'' passa a ser escrito como "cenema", "caiu" escrito como "caio" e "chapu" substitudo por "chapel".

Exemplos:

fugiu - fugio

emagreceu -emagresel

cimento cemento

tesoura tesolra

7. Alteraes caracterizadas por substituies envolvendo a grafia de fonemas surdos e sonoros

Nesta categoria foram inseridas as alteraes de escrita dizendo respeito a determinadas substituies de grupos de letras que representam em comum o fato de representarem fonemas que se diferenciam pelo trao de sonoridade. Os fonemas /p/, /t/, /k/, /f/, /s/ e // so considerados surdos pelo fato de no apresentarem vibrao de pregas vocais quando produzidos. Contrariamente os fonemas /b/, /d/ , /g/, /v/, /z/ e // so considerados sonoros por serem produzidos com vibrao das pregas vocais. O trao de sonoridade corresponde nica distino entre os pares destes dois conjuntos de fonemas: /p/ x /b/; /t/ x /d/; /k/ x /g/; /f/ x /v/; /s/ h /z/ e // x //.

O grupo de alteraes ortogrficas aqui descrito diz respeito quelas palavras que apresentam trocas entre as letras p / b; t / d; q - c / g; f / v; ch - x / j - g e grupo de letras que representam o som /s/ versus o grupo de letras que representam o som /z/.

Exemplos:

pegando - peganto

perdido - perdito

jornal - chornal

fome - vome

8. Acrscimo de letras

Contrariamente ao caso das omisses, surgiram palavras que apresentavam mais letras do que convencionalmente deveriam ter, sendo, por esta razo, consideradas como alteraes decorrentes do aumento ou acrscimo de letras.

Exemplos:

machucar - manchugar

apareceu - papareceu

estava - estatava

fugiu - fuigiu

9. Letras parecidas

Nesta categoria foram includas palavras escritas erroneamente em razo do uso de letras incorretas, mas cuja grafia apresentava alguma semelhana com a letra que deveria ser utilizada. Tal o caso de trocas entre m e n (quando em posio inicial de slaba) e dos dgrafos nh, ch, lh e cl.

Exemplos:

tinha - timha

cachorro - caclorro

caminho - caminlo

medo - nedo

10. Inverso de letras

Palavras apresentando letras em posio invertida no interior da slaba, ou mesmo slabas em posio distinta daquela que deveriam ocupar dentro da palavra, foram consideradas como alteraes decorrentes de inverses de posio.

Exemplos:

pobre - pober

acordou - arcodou

fraquinho - farquinho

enxugar - enxugra11. Outras

Nesta categoria foram includas aquelas alteraes observadas em uma outra criana em particular, parecendo estar restritas sua forma de escrever, isto seus erros ou enganos no eram partilhados de uma forma mais freqente ou tal como as categorias anteriores.

Exemplos:

sangue jange

preciso - parcicho

bruxa - gurcha

labirintos britos

Quadro ilustrativo das categorias empregadas em estudos anteriores e nesta pesquisa para a classificao dos erros ortogrficos

Categorias empregadas na classificao dos erros ortogrficos

Cagliari - 1989Carraher - 1990Zorzi - 1997

Transcrio fonticaTranscrio da falaApoio na oralidade

Uso indevido de letrasErros ligados origem das palavrasRepresentaes mltiplas

HipercorreoSupercorreoGeneralizao de regras

Modificao da estrutura segmental: trocas, supresso, acrscimo e inversoErros nas slabas de estruturas complexasOmisso de letras

Juntura intervocabular e segmentaoAusncia de segmentao e segmentao indevidaJuno / separao no convencional de palavras

Forma morfolgica diferenteErros por desconsiderar as regras contextuaisConfuso entre as terminaes am e o

Forma estranha de traar as letrasErros por ausncia de nasalizao Trocas surdas / sonoras

Uso indevido de maisculas e minsculasErros por trocas de letrasAcrscimo de letras

Acentos grficosLetras parecidas

Sinais de pontuaoInverso de letras

Problemas sintticosOutras trocas

B. ANLISE DOS ERROS ORTOGRFICOS

As 21.196 alteraes ortogrficas registradas foram classificadas de acordo com os critrios anteriormente expostos, o que permitiu traar um quadro geral de ocorrncia de tais alteraes nos 514 alunos de primeira a quarta sries de escolas particulares que participaram desta pesquisa.

Conforme mostra a Tabela I, possvel observar diferentes tipos de alteraes ocorrendo em diferentes freqncias, o que resulta em uma hierarquia de ocorrncias. Em primeiro lugar, as alteraes relativas possibilidade de representaes mltiplas (47,5%) de ocorrncias; em segundo lugar, as alteraes decorrentes do apoio na oralidade (16,8%); em terceiro lugar, as omisses de letras (9,6%); em quarto lugar, as junes e separaes no convencionais, ou erros de segmentao (7,8%); em quinto lugar, as confuses entre as terminaes am e o (5,2%); em sexto lugar, as generalizaes de regras (4,6%); em stima posio, as trocas entre surdas e sonoras (3,8%); em oitavo lugar, os acrscimos de letras e as confuses entre letras parecidas (ambos com 1,4% das ocorrncias) e, finalmente, na ltima posio, considerando-se as 10 categorias de erros analisveis, as inverses de letras (0,6%).

1. Representaes mltiplas

As alteraes classificadas como decorrentes de possibilidades de representaes mltiplas, como pode ser visto, apresentam uma porcentagem muito alta de ocorrncias. O total de erros deste tipo nas quatro sries, de acordo com a Tabela I, corresponde praticamente a quase metade de todas as alteraes produzidas, mais especificamente 47,5%. A estes valores correspondem, em mdia, 19,7 erros por aluno. Esta alterao atingiu, na primeira srie, 21,1% do total de erros; 12,6% na segunda; 8,5% na terceira e 5,3% na quarta. Observe-se tambm que o valor percentual total de 47,5% muito superior freqncia do segundo tipo de alteraes, ou seja, de escrita com apoio na oralidade, com 16,8% de todas as ocorrncias.

A primeira pergunta que a leitura da Tabela I pode gerar diz respeito ao por que de tal discrepncia entre os valores indicativos das freqncias das alteraes. A resposta pode ser procurada na natureza da prpria lngua escrita ou, mais precisamente, nas caractersticas que definem a escrita alfabtica. O fato de um mesmo fonema poder ser representado por diversas letras ou, inversamente, uma mesma letra poder ser usada para grafar diferentes fonemas, contraria um princpio de correspondncias biunvocas entre sons e letras: para cada som uma letra e vice-versa. Como foi apontado anteriormente, a no existncia de formas nicas ou fixas de grafar as palavras pode gerar confuses, ou seja, as alteraes que aqui so apontadas.

Tabela I

Quadro de freqncia de erros ortogrficos nas quatro primeiras sries e mdia geral, por aluno, em cada tipo de erro

1s.

127 alunos2s.

127 alunos3s.

129 alunos4s.

131 alunosTotais

514 alunosMdia por aluno

1. Representaes mltiplas 4.474

21,1%2.679

12,6%1.803

8,5%1.119

5,3%10.075

47,5%19,7

2. Apoio na oralidade1.466

6,9%974

4,6%693

3,3%425

2%3.558

16,8%7

3. Omisses878

4,2%517

2,4%367

1,7%266

1,3%2.028

9,6%4

4. Juno-separao666

3,1%391

1,9%384

1,8%212

1%1.653

7,8%3,2

5. Confuso am x o435

2,1%295

1,4%240

1,1%129

0,6%1.099

5,2%2,2

6. Generalizao358

1,7%283

1,3%183

0,9%157

0,7%981

4,6%1,9

7. Trocas surdas/sonoras281

1,3%288

1,4%146

0,7%96

0,4%811

3,8%1,6

8. Acrscimo de letras124

0,6%70

0,3%61

0,3%41

0,2%296

1,4%0,6

9. Letras parecidas129

0,6%79

0,4%51

0,2%31

0,1%290

1,3%0,5

10. Inverses78

0,4%31

0,1%21

0,1%11

0,05%141

0,6%0,3

11. Outras alteraes137

0,6%72

0,3%37

0,2%18

0,08%264

1,2%0,5

N de erros por srie9.0265.6793.9862.50521,196

% de erros por srie42,6%26,8%18,8%11,8%100%

Porm, apontar a natureza da alterao no explica de imediato sua freqncia de ocorrncia. Podemos pensar que uma porcentagem to elevada de erros deste tipo possa ser decorrente da prpria freqncia de palavras da lngua que apresentam como caracterstica a possibilidade de mltiplas formas de representao. So palavras envolvendo as letras que representam o som /s/ (s, ss, c, , sc, s, x, z), o som /z/ (z, s, x), o som // (x, ch), o som // (j, g), o som /k/ (c, q, k), as letras m e n em final de slaba (representando as vogais nasais), o uso da letra g (que pode ter os sons de // e /g/), o uso da letra r (grafando os sons /r/ e /(/ ) e o uso da letra c (escrevendo os sons /k/ e /s/).

Tabela II

Quadro comparativo do nmero mdio de erros ortogrficos nas quatro sries

1 srie

127 alunos2 srie

127 alunos3 srie

129 alunos4 srie

131 alunos

mdiamdiamdiamdia

1. Representaes mltiplas35,221,1148,5

2. Apoio na oralidade11,57,75,43,2

3. Omisses6,94,12,82

4. Juno / Separao5,23,131,6

5. Confuso am x o3,42,31,91,0

6. Generalizao de regras2,82,21,41,2

7. Trocas surdas / sonoras2,22,31,10,7

8. Acrscimo de letras1,00,50,50,3

9. Letras parecidas1,00,60,40,2

10. Inverses0,60,20,20,08

11. Outras1,10,60,30,1

Mdia total de erros por srie70,944,73118,9

Tabela III

Quadro comparativo de freqncia dos erros nas quatro sries

1 srie

9.026 erros2 srie

5.679 erros3 srie

3.986 erros4 srie

2.505 erros

%%%%

1. Representaes mltiplas49,647,245,244,7

2. Apoio na oralidade16,217,117,417

3. Omisses9,79,19,210,6

4. Juno / Separao7,46,99,68,4

5. Confuso am x o4,85,265,1

6. Generalizao de regras454,66,3

7. Trocas surdas / sonoras3,15,13,73,8

8. Acrscimo de letras1,41,21,51,6

9. Letras parecidas1,41,41,31,2

10. Inverses0,90,50,50,4

11. Outras1,51,30,90,7

Tabela IV

Nmero e porcentagem de alunos cometendo erros em cada uma das sries

1 srie2 srie3 srie4 srie

127 alunos%127 alunos%129 alunos%131 alunos%

1. Representaes mltiplas12710012710012899,212494,7

2. Apoio na oralidade12699,212396,811589,110680,9

3. Omisses12598,411590,511488,410076,3

4. Juno / Separao12396,811187,411286,88665,6

5. Confuso am x o12195,310280,367526247,3

6. Generalizao de regras10985,810683,58162,87456,5

7. Trocas surdas / sonoras7155,96248,85038,83829

8. Acrscimo de letras6954,34837,83728,72720,6

9. Letras parecidas47373426,82821,72216,8

10. Inverses2519,71915129,3107,6

11. Outras5744,94031,42620,11511,4

Tabela V

Nmero mximo e mnimo de erros cometidos pelos alunos da primeira quarta sries

1 srie2 srie3 srie4 srie

Mx.Mn.Mx.Mn.Mx.Mn.Mx.Mn.

1. Representaes mltiplas758751520350

2. Apoio na oralidade630330260120

3. Omisses600290210160

4. Juno / Separao320190220100

5. Confuso am x o1209016090

6. Generalizao de regras1602208070

7. Trocas surdas / sonoras200410200250

8. Acrscimo de letras80604030

9. Letras parecidas902306040

10. Inverses210308020

11. Outras140704030

Grande nmero de fonemas com diversas possibilidades de grafia e alta incidncia dos mesmos nas palavras da lngua pode estar contribuindo para a elevada freqncia observada de alteraes. Tais fatos parecem tomar estes aspectos da escrita como de difcil apreenso por parte dos aprendizes que devem decidir, dentre as possibilidades de representao, qual a letra que deve ser usada naquele momento particular. Acrescente-se, ainda, que no h regras gerais que dem conta de quando deve ser usada uma letra ou outra. Muitas vezes, a forma de escrever determinada pela origem da palavra e no por uma regra ortogrfica clara e geral. Por exemplo, general escreve-se com a letra g, enquanto jeito escrito com j; seminrio escreve-se com s enquanto que para grafar cemitrio emprega-se o c.

Amostra de erros decorrentes da possibilidade de representaes mltiplas

TravesseiroTraveceiroSSsoJunqueiraGunqueira

CimentoCimemtoSimpticoSinpaticoPassearPasiar

QueixoQueichoComearamComesaramPossoPoso

GirassolGirasolArrancouArancouSeCi

CompraramConpraraoDissoDisoEsquecidoEsquesido

ExplicaoEsplicasoEmagreceuEmagreeuCachorraCachora

AssaltouAsaultouAndouAmdolMachucadoMaxucado

SossegadaSocegadaSessesCesoesAchoAxo

ConselhosComselhosPassearamPasearauAniversrioAniverssario

SofresseSofreceSempreSenpreSimpticoCinpatico

SentiuSemtiuGirassolGiraouEmagreceuEmagreseu

AssustamAsustamAssaltouAsatolZeladorSelador

PrecisoPresizoTijolo TigoloClariceQuarise

AzulAsulJornalGornalCristinaQuistena

VentoVemtoGuerraGeraCasseCaise

CresceuCreceuSangueageTempoTenpo

PerguntouPergumtouCombinarConbinarVocVose

TristezaTristesaSimpticoCipaticoQuartoCuarto

ForamForanPijamaPigamaTambmTanbm

DiversoFivercoComearamComesarosSentindoCemtindo

RussaRuaTemTenArrependidoArepemdido

IngressoImgreoSimSinProcurarProqurar

SeqestradorSecuestradorFelizFelisGirassolGirrasol

ConseguiramComceguiramSempreCnpreTristeTrizte

EncontraramEmcomtraroQuandoCondoMesadaMezada

CaadorCassadorPassearPasiarViajaroViagaro

MangueiraMangeiraFimFinSoltouCoutou

VizinhoVisinhoGelatinaJelatinaBandejaBandeiga

CozinheiraQozinheiraDeixaDeichaConseguiuCom sigio

NingumNingemFazFasQue jQuega

PrecisoPressisoDisseDiseMe ajudarMiagudar

ApareceuAparesseuVezVesSeguirSigir

ComearamComessaroPassearPasearConselhosConelhos

AconteceuAcontesseuComeouComesouBagunaBagumsa

PedaoPedassoBaixoBaichoRaaRassa

FeitioFeitissoEm cimaEmsimaBagunadoBagumsamdo

EmagreceuEmagresseuFelizesFelisesChegouXegou

ExplicaoExpliquaoSangueCengeAbraaramAbrasaram

MacarroMacaroCachorroCachoroSinalCinal

CuSuCaadorQasadorTrouxeTrouse

Observando a Tabela II possvel verificarmos que, no geral, h uma diminuio progressiva na quantidade mdia de erros de um ano escolar para o outro, porm, com a maior incidncia de alteraes sempre concentrada nas representaes mltiplas. Na primeira srie, este tipo de alterao correspondeu a uma mdia de 35,2 erros por aluno; na segunda srie correspondeu a uma mdia de 21,1 erros por aluno; na terceira, a uma mdia de 14 erros por aluno e, na quarta srie, a uma mdia de 8,5 erros por aluno.

Se observarmos a Tabela III, veremos que este tipo de alterao representaes mltiplas no somente o de maior ocorrncia quando comparamos o total de erros das quatro sries conjuntamente (Tabela I), mas tambm quando analisamos a freqncia em cada uma das sries. Este o tipo de alterao que, sistematicamente, mais aconteceu em qualquer uma das sries estudadas. Na primeira srie, correspondeu a 49,6% dos 9026 erros; na segunda srie abrangeu 47,2% dos 5679 erros; na terceira srie, atingiu o ndice de 45,2% dos 3986 erros produzidos e, na quarta srie, correspondeu a 44,7% dos 2505 erros registrados. Podemos supor, portanto, que, em qualquer momento, a maior dificuldade dos alunos estava centrada neste tipo de situao. Embora tenha havido uma diminuio gradativa da freqncia de tais alteraes, elas foram as dificuldades mais observadas em cada a das sries.

A cada srie, pois, diminui o nmero de erros deste tipo, assim como a mdia alteraes por criana, porm sempre permanecendo como a rea de maior contrao de dificuldades. Isto pode significar que, embora pouco a pouco as crianas compreendam as formas convencionais de escrita das palavras, o fato de haver possibilidades mltiplas ou diversificadas de representao sempre se apresenta como uma situao de risco permanente de erro.

Verificando o nmero de alunos em cada uma das sries que apresenta tal tipo de alterao ortogrfica, conforme as tabelas IV e V podemos constatar que a ocorrncia de 100% nas duas primeiras sries e que, somente na terceira e quarta sries, encontraremos algumas poucas crianas que no cometeram erros deste tipo: 1 dos alunos de terceira srie (total de 129) e 7 alunos de quarta srie (total de 131). Na primeira srie, o menor nmero de erros encontrado em uma das crianas foi 8, enquanto o mximo foi de 75. Na segunda srie, o menor nmero de erros encontrados entre os alunos foi 1 e o mximo foi tambm 75. Quanto terceira srie, houve uma criana que no apresentou erros e a que mais produziu este tipo de alteraes cometeu 52 erros. Finalmente, na quarta srie, o mximo de erros foi 35 e o mnimo zero.

Estes dados: alta freqncia de ocorrncia, nmero mdio de erros por aluno mais elevado do que nas outras alteraes e o fato de ser uma dificuldade que pode ser observada praticamente em todos os alunos de todas as sries, levam-nos ar questionar se tais alteraes podem ser simplesmente atribudas a falhas dos alunos ou se devem ser atribudas a determinadas propriedades ou caractersticas da lngua escrita que se apresentam de uma forma particularmente complexa e de difcil e lenta assimilao. Mesmo na quarta srie, 94,6% das crianas avaliadas apresentaram alteraes ortogrficas em razo das representaes mltiplas.

Sabemos que as habilidades necessrias para poder escrever palavras que apresentem tais caractersticas no parecem limitadas a uma questo de memorizar como elas devem ser gafadas. Isto pode ser plausvel para dar conta das palavras que possam ter sido mais treinadas ou que so mais sistematicamente utilizadas. O que dizer daquelas palavras que a criana viu escritas poucas vezes ou que nunca teve a oportunidade de ver grafadas?

Nestes casos, podemos imaginar algumas possibilidades. Quando a criana desconhece que pode haver formas diversas de escrita de um mesmo som, ela pode tomar como referncia ou opo uma determinada letra como que acreditando que para tal som deve-se empregar tal letra. Hipotetizando uma pseudocorrespondncia biunvoca, a criana pode tender a escrever as palavras que tenham o som /s/, por exemplo, utilizando sistematicamente a letra s como se houvesse uma representao estvel entre ambos.

O surgimento de tais hipteses na criana pode advir, por um lado, do fato de que, na realidade, encontramos algumas correspondncias biunvocas. Por exemplo, para escrever o som /v/ usamos sistematicamente a letra v, para grafar o som /p/, empregamos sempre a letra p, para escrever o som /f/ usamos a letra f, e assim por diante. Generalizando tal conhecimento ou constatao, a criana poder acreditar que, para escrever o som /s/ ela deve usar a letra s, para escrever o som /z/ deve empregar constantemente a letra z ou que, para escrever o som /k/, necessrio usar a letra c.

Tal tendncia, que pode ser decorrente de uma generalizao espontnea, pode tambm, por outro lado, ser acentuada por determinadas formas ou mtodos de alfabetizao que no explicitem a existncia de formas de grafar que no so fixas. Muitas vezes, h uma tendncia de se comear ensinando apenas as correspondncias estveis, trabalhando-se unicamente palavras que constantemente so grafadas da mesma forma. Quando apresentado o som /s/ para a criana, sua grafia fica limitada a palavras escritas com a letra s acompanhada de alguma vogal, formando o grupo silbico "sa, se, si, so, su" . Desta forma, h um treino de palavras contendo o fonema /s/ e que se escrevem sempre com a letra s, como o caso de sapo, semana, stio, sopa e sumiu. Tal forma de ensino pode acabar reforando a crena na existncia de uma escrita na qual para cada som existe somente uma letra.

Quando a criana j tem noo de que um mesmo som pode ser escrito por diferentes letras, embora possa no conhecer exatamente qual a letra correta que grafa a palavra que deseja escrever, comear a apresentar dvidas quanto s grafias possveis. E poder procurar resolver tais dvidas, quer perguntando para algum, quer consultando um dicionrio, quer ficando atenta ao modo como a palavras aparecem grafadas nos textos que l. Este fato indica que a criana compreende de modo mais avanado o sistema ortogrfico. Tal compreenso parece ser necessria para que