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1 JESUS, ROMA E O REINO DE DEUS NA TRADIÇÃO MARCANA: PERSPECTIVAS EXEGÉTICAS DO DISCURSO DO REINO DE DEUS EM MARCOS Vinícius de Moraes Fontes da Paixão 1 RESUMO O presente estudo visa analisar a pregação de Jesus na perspectiva marcana sobre o Reino de Deus e perceber a partir de um fragmento bíblico (Mc 1. 14-15) uma tensão entre a pregação do Reino de Deus e o Império romano. Partindo de um apontamento exegético deste texto pretendemos perceber, sob um olhar teológico, histórico e sociopolítico do projeto do Reino de Deus na tradição marcana e, à luz de uma metodologia científica e teoria social que dê respaldos e subsídios convincentes, que a pregação do Reino que Jesus propôs possui um profundo apelo político anti império e não exclusivamente religioso. Palavras chave: Jesus. Reino de Deus. Império Romano. Evangelho de Marcos. 1. INTRODUÇÃO A personagem histórica Jesus de Nazaré é uma das mais importantes em todo o mundo. Uma parte considerável da humanidade professa a fé cristã e aqueles que não professam já ouviram falar desta personagem tão famosa. No entanto, o Jesus da história, aquele judeu camponês do Mediterrâneo que viveu há dois mil anos, ainda é desconhecido (e provavelmente, continuará). Seus ensinos e discursos ainda arrebatam pessoas em diferentes lugares no mundo até aos nossos dias. Podemos perceber na história moderna até hoje, em um primeiro momento, à luz das certezas positivistas, em busca de conhecimento histórico preciso e objetivo, que se tentou desven9cilhar Jesus de toda crença religiosa ou tradição cristã, no entanto, com o passar do tempo, buscou-se entender o homem em seu contexto e circunstância, impregnados de 1 Bacharel em Teologia pela Faculdade Evangélica de Ciências, Tecnologia e Biotecnologia da CGADB (2016). Pós-graduado em Teologia pela UNESA (2017). Pós- graduado em Teologia Bíblica pela Faculdade Batista do Sul (2019).

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JESUS, ROMA E O REINO DE DEUS NA TRADIÇÃO MARCANA:

PERSPECTIVAS EXEGÉTICAS DO DISCURSO DO REINO DE DEUS EM

MARCOS

Vinícius de Moraes Fontes da Paixão1

RESUMO

O presente estudo visa analisar a pregação de Jesus na perspectiva marcana sobre o Reino de

Deus e perceber a partir de um fragmento bíblico (Mc 1. 14-15) uma tensão entre a pregação

do Reino de Deus e o Império romano. Partindo de um apontamento exegético deste texto

pretendemos perceber, sob um olhar teológico, histórico e sociopolítico do projeto do Reino de

Deus na tradição marcana e, à luz de uma metodologia científica e teoria social que dê respaldos

e subsídios convincentes, que a pregação do Reino que Jesus propôs possui um profundo apelo

político anti império e não exclusivamente religioso.

Palavras chave: Jesus. Reino de Deus. Império Romano. Evangelho de Marcos.

1. INTRODUÇÃO

A personagem histórica Jesus de Nazaré é uma das mais importantes em todo o mundo.

Uma parte considerável da humanidade professa a fé cristã e aqueles que não professam já

ouviram falar desta personagem tão famosa. No entanto, o Jesus da história, aquele judeu

camponês do Mediterrâneo que viveu há dois mil anos, ainda é desconhecido (e provavelmente,

continuará). Seus ensinos e discursos ainda arrebatam pessoas em diferentes lugares no mundo

até aos nossos dias.

Podemos perceber na história moderna até hoje, em um primeiro momento, à luz das

certezas positivistas, em busca de conhecimento histórico preciso e objetivo, que se tentou

desven9cilhar Jesus de toda crença religiosa ou tradição cristã, no entanto, com o passar do

tempo, buscou-se entender o homem em seu contexto e circunstância, impregnados de

1 Bacharel em Teologia pela Faculdade Evangélica de Ciências, Tecnologia e

Biotecnologia da CGADB (2016). Pós-graduado em Teologia pela UNESA (2017). Pós-

graduado em Teologia Bíblica pela Faculdade Batista do Sul (2019).

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espiritualidade. Posteriormente, buscou-se na teoria social um ferramental que permitisse

melhor entender essas circunstancias históricas.

Essas e outras transformações históricas e avanços das pesquisas científicas,

arqueológicas e historiográficas estão proporcionando ao pesquisador moderno ferramentas

mais contundentes e esclarecedoras na pesquisa de personagens históricas do passado e também

um novo olhar aos textos sagrados.

Portanto, utilizando de produções científicas afins que alguns historiadores e teólogos

teceram nestes últimos anos em suas pesquisas, este trabalho será uma pequena reflexão sob

um olhar teológico, histórico e sociopolítico do projeto do Reino de Deus na tradição marcana

e, à luz de uma metodologia científica e teoria social que dê respaldos e subsídios convincentes,

que a pregação do Reino que Jesus propôs possui um profundo apelo político anti império e não

exclusivamente religioso. Em suma, esta é a proposta deste presente trabalho monográfico.

Iremos, portanto, partir de um texto bíblico para chegarmos a ideia central do trabalho,

então, no primeiro capítulo vamos analisar, de forma resumida, exegeticamente o texto de Mc

1. 14-15, percebendo-o dentro da tradição de Marcos, para que possamos deixar claro o texto e

assim, por conseguinte, refletir de forma mais profunda a ideia do autor(es) bíblico(s).

Logo, nossa proposta, no primeiro capítulo, será realizar uma pequena pesquisa do

Evangelho de Marcos e algumas observações exegéticas do texto afim de aclarar nossa proposta

de análise da temática Reino de Deus e sua tensão com o Império Romano.

Posteriormente, já no segundo capítulo, iremos tentar perceber à luz de diferentes

autores contemporâneos que adotam a nossa metodologia histórica crítica o que eles percebem

sobre a uma possível proposição sócio política em Marcos na pregação do Reino de Deus.

Dois autores ganharão uma considerável ênfase no desenvolvimento nesse momento. O

primeiro, Jonh Dominic Crossan2, cuja metodologia de pesquisa do Jesus histórico é bastante

interessante e próxima daquilo que iremos seguir nesta pesquisa. E o outro, cuja a base teórica

fundamentará nossa reflexão de perspectiva política, será Richard Horsley3 com sua proposição

de uma análise social de relação de poder (e tensão) que Roma exercia sobre Israel no século I.

2 É um teólogo conhecido por ser o co-fundador do controverso Jesus Seminar. Crossan é uma figura

importante no campo da arqueologia bíblica, antropologia, Novo Testamento e Alta Crítica. Ele é também

conhecido por ter aparecido na televisão em documentários sobre Jesus e a Bíblia. Ele é especialmente influente

no campo dos estudos sobre o Jesus histórico, embora receba muitas críticas por parte de outros estudiosos por

causa de sua metodologia. 3 Professor de Artes Liberais e Estudos da Religião da Universidade de Massachusetts, Boston.

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E por último, no terceiro capítulo, entraremos na reflexão propriamente dito sobre essa

relação do discurso do Reino de Deus em Marcos e o Império Romano analisando os diferentes

movimentos de protesto, messiânicos populares e de resistência ao Império Romano que de

alguma forma influenciaram a tradição marcana e desconstruir um Jesus despolitizado que

estava não apenas com um discurso religioso, mas também um discurso de protesto político em

suas pregações.

Sabendo que não iremos esgotar completamente o assunto pois é muito extenso e

complexo, nem tão pouco afirmar que essas reflexões possuem uma resposta definitiva e

absoluta na presente pesquisa, nossa proposta é levantar proposições que já estão em pauta no

cenário acadêmico tendo em vista uma possível contribuição para temáticas afins.

2 “O TEMPO ESTÁ CUMPRIDO, O REINO DE DEUS ESTÁ

PRÓXIMO”

O livro de Marcos vai ser o principal vetor que nos conduzirá às ideias basilares deste

presente trabalho monográfico, para tanto, precisamos realizar, neste primeiro capítulo, uma

visão panorâmica da tradição marcana para nos situarmos e desenvolvermos melhor nossas

proposições. Iremos realizar também uma breve analise exegética do fragmento bíblico chave

de nossa pesquisa, a saber: Mc 1. 14-15.

2.1 Autoria, fontes, data e lugar da composição – Evangelho de Marcos

Marcos, como fonte, é pioneiro no gênero literário conhecido como “evangelho”. Ele

está subjacente aos outros dois evangelhos sinóticos como a forma mais antiga de evangelho.

Se procurarmos a forma mais original e antiga da tradição de Jesus, deveremos olhar para o

evangelho de Marcos.

O título

“Marcos”, dado ao Evangelho, provavelmente foi posto no período da patrística pela

intepretação dos pais da Igreja de que João Marcos o seu autor (cf. At 15. 37; Cl 4.10; II Tm

4.11; I Pe 5.13). A mais antiga afirmação explícita que identifica Marcos como autor do

Evangelho vem de Pápias de Hierápolis por volta de 140 d.C. (BROWN, FITZMYER,

MURPHY, 2011 p. 65)

Ainda ao tratar sobre a autoria, alguns pais da igreja nos dão algumas informações

importantes. Tertuliano (193-216 d.C) em seu tratado contra Marcion IV.5, fala que o

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Evangelho de Marcos publicou pode afirmar-se ser de Pedro de quem Marcos foi intérprete.

(HENDRIKSEN, 1987, p. 19)

Clemente de Alexandria em sua obra intitulada Hypotyposeis (cerca de 190-200

d.C.) coloca o assunto da seguinte maneira:

Uma vez que Pedro pregou a palavra publicamente em Roma e anunciado o

evangelho pelo Espírito, aos presentes, que eram muitos; estes suplicaram a Marcos,

que durante muito tempo o havia seguido e recordava o que (Pedro) havia ensinado,

para que registrasse suas palavras. Marcos fez o que lhe foi pedido, e comunicou o

evangelho aqueles que lhe haviam solicitado. Quando Pedro o soube, não o impediu ativamente este empenho, nem o incentivou.4

Em suma, Hendriksen de forma muito didática organiza seu argumento a partir dos

pontos geográficos da localização dos diferentes Pais da igreja, demonstrando como a tradição

afirmou unanimemente a autoria do segundo Evangelho como pertencendo a Marcos. Ele

coloca assim:

a evidência se estende através de vários séculos, desde Eusébio até Pápias.

Vem de todas as regiões. Da Ásia, África e Europa; ou seja, desde o leste (Pápias de

Hierápolis, Eusébio de Cesaréia); do sul (Clemente de Alexandria, Tertuliano de

Cártago); e do oeste (Justino, o Mártir e o autor do Fragmento de Muratori de Roma).

Às vezes, há duas regiões representadas por uma só testemunha: o leste e oeste (Irineu

da Ásia Menor, Roma e Lião); o sul e o leste (Orígenes de Alexandria e Cesaréia).

Ortodoxo e heterodoxo, textos gregos antigos e versões remotas acrescentam seu peso

a mesma conclusão.5

Para a exegese de perspectiva ortodoxa e tradicional, Marcos é um convertido do

Judaísmo:

[…] Chamado João Marcos (At 12,12-25; 15,37), primo ou sobrinho de

Barnabé (Cl 4,10), com quem está em estreita relação (At 15,36-40), bem como com

Pedro, que após a sua milagrosa saída da prisão refugiou-se ao lado da mãe de Marcos, Maria, proprietária de uma casa que se tornou centro de oração para a comunidade

cristã (At 12,12). Segue Paulo na primeira viagem missionária, ainda que depois o

abandone (At 12,25; 13,5) e volta para Chipre junto com Barnabé. Estará novamente

próximo do apóstolo dos gentios, prisioneiro em Roma (Fl 24), de quem ele se torna

valoroso colaborador (2Tm 4,11). Está ligado à figura e à pregação de Pedro, de quem

é reconhecido ‘intérprete’ (ermeneutés) por Papias, mais que um tradutor ou ‘porta-

voz'.6

Orígenes que viveu cerca de 210-250 d.C., também é citado por Eusébio (HE, VI,

xiv.6,7), como segue:

4 HENDRIKSEN, Guilhermo. El Evangelio según San Marcos. Grand Rapids: SLC. 1987. p. 176. 5 Guilhermo Hendriksen, El Evangelio Según San Marcos, p. 21 6 MARCONCINI, B. Os Evangelhos sinóticos: formação, redação, teologia. São Paulo: Paulinas, 2001.

p.91

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em segundo lugar, o [Evangelho] segundo Marcos, quem o escreveu de

acordo com as instruções de Pedro, e também a quem Pedro em sua epístola geral lhe

reconhece como a seu filho, dizendo “aquela que está na Babilônia, também eleita,

envia-lhes saudações, e também Marcos, meu filho (1Pe 5:13).7

Santo Irineu diz que o Evangelho de Marcos foi escrito em Roma, segundo o

testemunho de Pedro, mas depois da morte do apóstolo. Logo, mediante estas informações e

outras que se correlacionam, pode-se concluir que possivelmente o Evangelho de Marcos tem

ligação com Pedro e sua morte, então isso nos situa em Roma nas proximidades do ano 64 d.C.

(DELORME, 1982, p.9)

Já na exegese moderna, aberta as descobertas historiográficas e pesquisas baseadas em

uma metodologia histórico crítica, não se atribui a autoria de Marcos com tanta veemência. Há

certa cautela em definir com precisão quem escreveu o evangelho que leva o nome de Marcos.

É nesse espírito de temeridade atrelado às novas pesquisas redacionais que surge o elemento da

pseudonímia.

A redação dos Evangelhos usou um recurso que nos chocaria hoje, ao atribuir

a um apóstolo ou a um discípulo determinado a autoria do texto a fim de vesti-lo de

maior peso e autoridade, embora ele não tenha sido o real, ou pelo menos, o autor

completo do texto. Alguma vinculação se buscou com ele, mas de difícil acesso para

nós hoje 8

Marcos não é um historiador, nem um mero compilador (transmissor de uma tradição),

ou divulgador, mas um autor que conscientemente reelaborou a tradição com algumas

peculiaridades literárias de sua composição. O autor do Evangelho, diferente do que

tradicionalmente é propagado, não tinha a preocupação de detalhar com exatidão a vida de

Jesus, mas sim construir uma teologia baseada nos diferentes ditos da tradição de Jesus para a

sua comunidade. Marcos é, a grosso modo, um narrador que conta o que chegou ao seu

conhecimento.

É óbvio que devemos ter em mente que estas proposições são de caráter hipotético,

entretanto, pode nos guiar a novos olhares ao texto Sagrado. Talvez, seja possível conciliar as

duas opiniões no sentido de ver João Marcos como um dos autores do longo processo de

composição do evangelho de Marcos.

7 Guilhermo Hendriksen, El Evangelio Según San Marcos, p. 19 8 LIBANIO, J.B. Linguagens sobre Jesus: linguagens narrativa e exegética moderna.v.2. São Paulo:

Paulus, 2012. p.87

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2.1.1 Estrutura, conteúdo do livro, teologia – visão panorâmica

O evangelho de Marcos se divide, em uma perspectiva panorâmica, em duas partes

complementares. Na primeira parte (1. 2-9, 10), ficamos sabendo quem é Jesus de Nazaré: o

Cristo, o Rei do Novo povo de Deus. A segunda parte (9. 14-16,8) nos orienta pouco a pouco

para o drama da morte de Jesus, ressurreição e comissionamento.

Podemos verificar, em suma, a estrutura dos capítulos e seu conteúdo no esboço abaixo:

I – Prólogo (1. 1-15)

II – A autoridade de Jesus é revelada na Galileia (1. 16 – 3.6)

III- Jesus é rejeitado na Galileia (3.7 – 6. 6a)

IV- Jesus é incompreendido pelos discípulos na Galileia e seu entorno (6.6b – 8.21)

V- Jesus instrui seus discípulos no caminho para Jerusalém (8.22 – 10.52)

VI- A primeira parte da semana da paixão em Jerusalém (11.1- 13.37)

VII- A morte de Jesus em Jerusalém (14.1 – 16.20)

Ainda sobre a estrutura do livro de Marcos há uma indicação de Papias, bispo de

hierápolis, por volta do ano 140 d.C (já citado anteriormente) onde ele fala que o livro de

Marcos reproduziu narrações sem ordem, pois para o mesmo o Evangelho é como se fosse uma

colcha de retalhos. (DELORME, 1982, p.9)

Sobre o aspecto geográfico do livro, podemos dizer que o autor coloca Jesus em

movimento da Galileia para Jerusalém. Num segundo momento, o foco é a cidade de

Jerusalém. Talvez haja uma espécie de oposição narrativa entre Galileia e Jerusalém - aceitação

versus rejeição, ordem versus caos. (BROWN, FITZMYER, MURPHY, 2011 p. 66)

A marca da concepção teológica do significado da Galileia, como o lugar da atividade

escatológica e querigmática de Jesus e do ponto de partida da evangelização dos gentios, é

guiada em sua marcha pelo Ressuscitado. Com isso dá a entender claramente que, Marcos está

se dirigindo aos cristãos provenientes da gentilidade, que não têm mais ligação com Jerusalém

ou com os judeus de lá.

A leitura de Marcos nos mostra que ele foi escrito provavelmente para cristãos vindos

do paganismo greco-romano, já que explica muitas vezes costumes judaicos. Um exemplo é

Mc 7. 2-4, que nos mostra a tradição judaica de lavar cuidadosamente as mãos antes das

refeições.

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O autor de Marcos escreveu o seu evangelho também para aprofundar a fé dos membros

da sua comunidade que provavelmente estavam vivendo profundas perseguições e opressões.

O ambiente de perseguição é notório em Marcos, isso nos leva a pensar que foi escrito, como

já dito anteriormente, em Roma durante o governo de Nero (64 d.C), período este bastante

difícil para aquelas primeiras comunidades cristãs.

Podemos perceber no conteúdo do livro várias tradições a disposição de Marcos: ditos,

parábolas, controvérsias, relatos de curas, exorcismos e, provavelmente, uma narrativa da

paixão. Essas tradições são bem utilizadas a fim de mostrar a teologia e a perspectiva do autor

para os seus leitores.

Uma característica peculiar deste Evangelho é o segredo messiânico9, onde o autor

faz questão de fazer Jesus esconder sua identidade messiânica que só se torna claro a todos

com sua morte e ressurreição.

O interessante é que Marcos coloca no prólogo do seu Evangelho que Jesus era o

Cristo (messias), porém só no final do Evangelho que isso se torna claro e não um segredo por

parte de Jesus. Isso é proposital em Marcos, e não percebemos isso nos outros evangelhos. A

preocupação de Jesus em ocultar sua verdadeira identidade se torna mola dramática deste

evangelho. (DELORME, 1982, p.24)

O assunto discipulado é muito corrente neste evangelho pois parece que o autor quer

mostrar que ser verdadeiro discípulo é “estar com” Jesus, compartilhando sua missão de pregar

e curar (3.14-15). Na primeira metade do Evangelho os discípulos são os exemplos a serem

seguidos, entretanto, na segunda metade eles começam a ser exemplos negativos, o efeito desta

radical mudança é colocar Jesus como o único modelo a ser seguido. (BROWN, FITZMYER,

MURPHY, 2011 p. 68)

O tema central da teologia marcana é o basicamente o Reino de Deus. Já no prólogo

do Evangelho vemos essa temática: “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo”

(Mc 1.15). Entretanto, iremos nos ater e desdobrar melhor mais tarde esse tema “Reino de

Deus”, pois é parte fundamental deste presente trabalho.

2.1.1.1 Apontamentos exegéticos do fragmento Mc 1.14-15

9 W. Wrede afirmava que esse segredo messiânico era um artifício de cunho literário para amenizar as

tensões teológicas entre os primeiros cristãos, entretanto, esse segredo messiânico é algo ainda muito discutido

entre os estudiosos do NT. (William Wrede.The Oxford dictionary of the Christian church. New York: Oxford

University Press, 2005)

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Devemos então, para chegarmos a problemática central desta pesquisa, analisar o

fragmento escolhido e fazer uma exegese para retirarmos algumas conclusões.

2.1.1.1.1 O propósito da exegese deste fragmento para a pesquisa

Quando se lê um texto bíblico sem realizar devidas ferramentas exegéticas e

metodológicas podemos retirar qualquer conclusão e alterar sua intepretação. Isso é comum na

história das religiões que possuem livros sagrados principalmente nos fenômenos de

fundamentalismos e também presente na interpretação de qualquer texto de um livro, jornal,

revista, artigo, etc.

É óbvio para nós que não iremos esgotar o que o texto quis dizer aos seus primeiros

leitores e nem ter a ingênua pretensão de dizer que temos a intepretação única e exclusiva do

mesmo, nossa proposta é andar por um método científico ao olhar o texto e retirar conclusões

a fim de enriquecer a temática do presente trabalho.

Uma simples leitura não garante a compreensão exata do texto, pois a compreensão

adquirida à primeira leitura tem uma conotação ainda muito pessoal e subjetiva. (EGGER,

2005, p. 10)

Visto que o presente trabalho não tem o interesse em apenas se ater ao texto, mas sim ao

assunto proposto pelo mesmo, teremos que analisá-lo de forma científica e à luz de uma

metodologia histórica-crítica. O método histórico crítico que é o método mais utilizado em

análises diacrônicas da Bíblia. (WEGNER, 2012, p. 30).

Este método possui suas vantagens pois lida com fontes históricas, que, no caso da

Bíblia, datam de milênios anteriores a nossa era. Os métodos de análise diacrônica permitem

compreender a obra escrita mostrando a pré-história da redação definitiva do texto. (EGGER,

2005, p.155)

Além disso, ele é, como o próprio nome explicita, crítico pois necessita em sua análise

emitir uma série de juízos sobre as fontes que tem por objeto de estudo, isso pode acarretar ao

trabalho exegético profundas reflexões que enriquecem o resultado da pesquisa.

A leitura científica certifica-se do sentido do texto através do mais completo possível

registro sistemático dos fenômenos do texto, confrontando-os com os motivos e contra

determinada compreensão.

A exegese bíblica define-se como forma científica de leitura dos textos Sagrados e,

enquanto tal, apresenta as mesmas características que devem valer para a leitura científica de

qualquer outra obra literária. (EGGER, 2005, p.15).

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2.1.1.1.1.1 Análise das formas do texto bíblico em estudo

A perícope se inicia no versículo 14 e termina no versículo 1510, conforme o texto abaixo11:

14- “Após, porém, o ter sido entregue [a prisão] o João, foi Jesus para a Galileia,

proclamando o Evangelho do Deus. 15- e dizendo que foi cumprido o tempo [determinado] e

aproximou-se o Reino de Deus: arrependei-vos e crede em o Evangelho.”

Visto que o autor de Marcos está em um ambiente romano e de profundas perseguições

podemos dizer que esta perícope tem um gênero literário de pregação com a intenção de

anunciar o principal assunto dentro dos discursos proféticos de Jesus em Marcos, a saber: O

Reino de Deus. A fim de informar aquela comunidade a principal catequese de Jesus logo no

início de seu ministério até a sua morte. (WEGNER, 2012, p. 210-216)

2.1.1.1.1.1.1 Comparação sinótica do texto bíblico em estudo

Esta análise se constitui em uma captação dos interesses e características de vocábulos, bem

como o estilo literário e o pensamento teológico de cada autor. Os ditos e as narrativas sobre

Jesus, antes de serem redigidas, passaram por um longo e diversificado processo de

transmissão dentro das primeiras comunidades cristãs, dando origem ao que poderíamos

chamar de “pré-textos” dos evangelhos. (WEGNER, 2012, p.156)

Iremos apenas nos ater, nesta comparação sinótica, as diferenças de cunho teológico de

Marcos ante as outras passagens similares a esta na perspectiva dos outro Evangelhos e tentar

assim, responder estas perguntas básicas que nos nortearão neste presente tópico.

Nossa análise se baseará, essencialmente, em uma comparação de um texto com outros

textos que se repetem em outro livro, logo, o critério que iremos utilizar são basicamente:

Alteração que este texto sofreu comparado ao outro similar em outro Evangelho, e as repetições

de ideias, palavras, estilos, ideais e destaques teológicos que vão estar presentes nas entrelinhas

do texto. (WEGNER, 2012, p.158-159)

Esse exercício comparativo será útil para perceber as diferenças que cada autor dos

Evangelhos sinóticos tiveram ao tratar sobre a primeira pregação de Jesus sobre o Reino de

Deus. Cada um com sua visão, programa, perspectiva, ideologia e teologia. Isso pode nos

10 Referência retirada da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2010. 11 Para nos aproximarmos da língua original deste fragmento bíblico iremos utilizar essa obra: LUZ,

Waldyr Carvalho. Novo Testamento Interlinear. 1° edição. São Paulo: Hagnos. 2010.

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mostrar diferentes reflexões e contrapontos a respeito da temática Reino de Deus nos livros

sinóticos.

Nesta perspectiva vamos montar um simples quadro comparativo com os textos já

transliterados12 da língua original para a língua portuguesa para que tenhamos uma visão do

texto grego e suas variações, isso enriquecerá nossa análise exegética. Os textos similares a

este de Marcos são: Mateus 4. 12-17 e Lucas 4. 14-15, conforme o quadro abaixo:

+ Legenda aplicada para análise redacional:

a) Negrito – Coincidências literárias entre Mt, Lc e Mc;

b) Itálico – Uso de sinônimos ou modificações em tempos verbais, sem alteração de

sentido.

c) Sublinhado – acréscimos em Mt e Lc;

+ Levantamento e avaliação das concordâncias e diferenças;

a) Coincidências literárias Mt, Lc e Mc:

12 LUZ, Waldyr Carvalho. Novo Testamento Interlinear. 1° edição. São Paulo: Hagnos. 2010

Tradução literal (Mt 4. 12-17)

12- Tendo ouvido, porém, que João foi

entregue [a prisão], retirou-se para a Galileia. 13-

E, tendo deixado a Nazaré, tendo ido, passou a

residir em Cafarnaum, a à beira-mar em [os] confins

de Zebulóm e Neftali. 14- para que fosse cumprido

o tendo sido dito através de Isaías, o profeta,

dizendo: 15 – “Terra de Zebulón e terra de Naftali,

caminho de mar, do outro lado do Jordão, Galileia

das gentes, 16 - o povo o assentado em treva luz viu

grande, e aos assentados em região e sombra de

morte luz despontou-lhes.” 17- A partir de então,

começou o Jesus [a] pregar e dizer: “mudai a

mente, aproximou-se, pois, o Reino dos Céus.”

Tradução literal (Lc 4. 14-15)

14 – E virou de volta o Jesus em o poder

do Espírito para a Galileia, e fama saiu fora por

toda a região em torno a respeito de Ele. 15- E ele

ensinava em as sinagogas deles, sendo glorificado

por todos.

Tradução literal (Mc 1. 14-15)

14- “Após, porém, o ter sido entregue [a

prisão] o João, foi Jesus para a Galileia,

proclamando o Evangelho do Deus. 15- e dizendo

que foi cumprido o tempo [determinado] e

aproximou-se o Reino de Deus: arrependei-vos e

crede em o Evangelho.”

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Em todas as passagens aparece o “caminho ministerial” de Jesus iniciando seu ministério

na Galileia, região pobre daquele contexto antigo Palestino. Como dito anteriormente, a cidade

de Jerusalém sempre aparecerá na tradição marcana em oposição à Galileia. É desta região

humilde que o Evangelho se expande pela primeira vez e é dali que deve difundir-se depois da

ressurreição (Mc 16.7).

Há um outro levantamento de cunho teológico que podemos perceber sobre a parte galilaica

em Marcos, ele nos mostra uma oposição dentro da região da Galileia. A oposição entre as

duas margens do Lago nos capítulos 4 e 5 está bem clara: uma parte do lago fica na parte dos

judeus, e o outro lado, dos pagãos (região de Decápolis). Essa dualidade iremos encontrar em

outras ocasiões quando Jesus está na Galileia. (p.Ex: 6. 53; 7.1-23, 24-26; 8. 10-13)

(DELORME, 1982, p.14-15)

b) O uso de sinônimos ou modificações em tempos verbais, sem alteração de sentido:

Somente em Lucas que não encontramos a pregação inaugural do Reino de Deus. Tanto

em Mateus quanto em Marcos a palavra grega “metanoeite” (Arrepender, mudar a mente)

aparece no discurso de Jesus, apenas percebemos a modificação em Mateus para Reino dos

céus.

Ainda sobre o sentido da palavra “metanoeite” trate-se de uma ideia familiar dos profetas

do V.T, que às vezes também associavam a ideia de “mudança de rumo” com cura, de forma

positiva ou negativa (p. Ex: Os 6.1 e Is 6.10). Na literatura rabínica, o verbo retornar é

sinônimo de arrepender-se. O termo grego metanóia substitui a noção semítica metafórica de

mudança de rumo por uma mais abstrata de mudança espiritual. (VERMES, 2006, p. 309)

O termo “cumpriu-se o tempo” é definição teológica do momento da aparição de Jesus. Essa

ideia não aparece em Mateus, onde o verbo “cumprir” só é usado em conexão com a realização

de profecias bíblicas.

A causa conclusiva de Marcos, “crede no Evangelho”, com toda a probabilidade é uma

interpolação inspirada pela igreja para dar ênfase ao apelo missionário presente nesta tradição.

(VERMES, 2006, p. 310)

Sabendo que a tradição matiana está escrevendo para judeus e os mesmos evitam o uso

direto do nome de Deus, ele provavelmente modifica para Reino dos Céus, entretanto, em

outros textos de Lucas aparece a expressão Reino de Deus (p.Ex: Lc 6. 20) assim como em

Marcos. É provável, segundo os critérios ditos acima, que Reino dos céus em Mateus seja

acréscimo posterior.

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12

c) Acréscimos em Mt e Lc;

Para compreendermos melhor as diferenças redacionais entre os Evangelhos iremos nos

basear na denominada teoria (ou hipótese) das duas fontes. A teoria das duas fontes sustenta

que Mt e Lc se utilizaram Mc e a fonte Q para redigir seus evangelhos, conforme imagem

abaixo: (WEGNER, 2012, p.159).

A Teoria das duas fontes traz à tona a tradição transmitida isoladamente ou em pequenos

grupos de unidades de tradição oral utilizadas pelos evangelistas. Assim, ele teria combinado

entre si pequenas coleções de diversas tradições e unidades dispersas da tradição, resultando

disso tudo uma apresentação mais ou menos coerente.

Quando Mt, Lc e Mc trazem um texto paralelo, quase igual, presume-se que Mt e Lc estejam

reproduzindo o texto de Mc, e Mt e Lc corrigiram Marcos independemente um do outro, no

mesmo sentido, por razões estilísticas e teológicas. (KONINGS, 2005, pg xiv-xv)

Em Mateus vemos a modificação em comparação à Marcos que Jesus foi residir em

Cafarnaum à beira do mar nos confins da terra de Zebulom e Naftali colocando um texto do

A.T como cumprimento dessa ação de Jesus. Isso possui profundas razões teológicas pois

Mateus quer sempre colocar Jesus como um grande profeta vindo de Deus, assim como

Moisés. (CROSSAN, 1996, p. 26)

Já a modificação em Lucas tem a intenção de exaltar Jesus acima de João Batista que o

batizou e o antecedeu. Como Crossan afirma: “João é a condensação e a consumação do

passado de seu povo, mas Jesus é muito maior, muito maior que João”. (CROSSAN, Dominic.

Jesús: uma biografía revolucionária, p. 27)

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13

Após realizarmos esta concisa exegese da perícope com o intuito de aclarar nossa

interpretação do contexto histórico e a intenção do autor, iremos neste próximo capítulo, tentar

perceber, à luz de alguns autores modernos que se utilizam da metodologia proposta nesta

presente pesquisa, um possível discurso sociopolítico de Jesus no seu projeto de reino de Deus

na perspectiva marcana.

3 “O REINO DE DEUS” - UM DISCURSO SOCIOPOLÍTICO DE

JESUS EM MARCOS

Será que podemos pensar que as comunidades que compilaram os Evangelhos tinham

apenas em mente propostas de cunho religioso? Com o avanço das pesquisas científicas ao

decorrer dos anos, principalmente a partir do século XX, as observações e interpretações aos

textos sagrados mudaram consideravelmente. As descobertas arqueológicas, científicas,

históricas, filológicas, historiográficas, entre outras, mudaram o cenário da pesquisa bíblica nos

trazendo à luz perspectivas diversas dos textos antigos.

3.1 O reino de Deus nos ditos de Jesus em Marcos e nos sinóticos – visão panorâmica

O tema reino de Deus constitui o anúncio querigmático mais importante em toda a

tradição sinótica. Em Mateus aparece cinquenta e cinco vezes, em Lucas trinta e oito vezes,

em Marcos aparece apenas quatorze vezes. No Evangelho de João só aparece esta expressão

cinco vezes em toda a sua narrativa.

A perícope em estudo, conforme vimos no capítulo anterior, está dentro do bloco de

ditos de Jesus cujo tema central é o Reino de Deus. E esse discurso sobre o Reino de Deus nos

Evangelhos Sinóticos revitaliza a tradicional metáfora israelita do rei no contexto de uma

expectativa apocalíptica modificada. (THEISSEN; MERZ, 2002, p.269)

Numa perspectiva mais abrangente, ao falar da tradição sinótica e o discurso do Reino

de Deus, na fonte dos ditos estão as três bem-aventuranças (Lc 6.20s.; Mt 5. 3s.6) destinadas

aos pobres, famintos, entristecidos e perseguidos. Enquanto a última forma poderia espelhar

provavelmente as experiências de perseguições pós-pascais, as primeiras devem ser autênticas

na seguinte forma: “Bem-aventurado os pobres, pois deles é o Reino de Deus. Bem-aventurado

os (agora) famintos, pois serão saciados. Bem-aventurado os que (agora) choram, pois serão

consolados. ” (THEISSEN; MERZ, 2002, p.277)

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Sobre as bem-aventuranças onde o Reino de Deus é mencionado em Mt e Lc podemos

dizer que geralmente a versão mais curta, de Lucas, é a mais estimada pelos estudiosos do

Evangelho, mas a opinião mais razoável é que pelo menos parte Lucas e Mateus podem ambos

refletir versões que se originam em Jesus. (VERMES, 2006, p. 355)

Logo, pela simples frequência das expressões Reino de Deus – que figuram não

menos de duzentas vezes nos Evangelhos Sinóticos – é razoável inferir que os conceitos que

refletem desempenham papel importante no ensinamento de Jesus. E mediante a opinião de

vários estudiosos (P.ex: R. Bultmann, Cristopher Rowland, Norman Perrin, E.P. Sanders,

Antony Harvey, J. Jeremias), que afirmam que esta temática era central nos ditos de Jesus nos

Evangelhos, podemos concluir que possivelmente o termo Reino de Deus é ensino genuíno de

Jesus. (VERMES, 1995, p.113)

Todos esses escritos foram formulados em memórias de ditos e podemos saber sua

historicidade por dois tipos de discurso muito presentes na tradição sinótica, a saber: aforismo

e parábola. Assim, por exemplo, o que Jesus disse sobre o Reino e as crianças, benção e

miséria, é difícil de esquecer depois que se ouve uma vez. O impacto dessas imagens nas

memórias daqueles ouvintes formulou um possível conjunto de ditos, que posteriormente veio

ser os Evangelhos com algumas interpolações. (CROSSAN, 2008, p. 33)

Percebendo essa perícope à luz destas perspectivas, podemos dizer que é um dito que

tem um cunho, não apenas religioso, mas se analisarmos o contexto estrutural onde Jesus

estava inserido, e o contexto político de intensa perseguição em Marcos, possivelmente ele é

histórico, pois a proposição Reino de Deus tem uma conotação sócio-política e isso o coloca

dentro do contexto vital quando o mesmo foi preferido.

Mediante ao exposto, podemos dizer que é provável que este discurso, já que se

apresenta em Mateus, Marcos e Lucas, seja histórico em sua essência, e não pós pascal. Em

resumo, o núcleo do dito sobre o arrependimento e a proximidade do Reino pertence

provavelmente ao autêntico ensinamento de Jesus. (VERMES, 2006, p. 310-311)

Analisando esta terminologia reino de Deus (βασιλεία τοῦ Θεοῦ), em uma visão

neotestamentária, alguns autores como J. D. Crossan13, vão notar uma perspectiva

androcêntrica no termo, pois o mesmo está carregado de um preconceito histórico, e de um

caráter basicamente físico. Estamos falando, na verdade, de poder e domínio, ou seja, de um

Estado, e não de um lugar. E a concepção de Estado nesta assimilação com o Reino não é de

uma nação ou um império, mas uma maneira de viver o dia a dia sob o controle Divino.

13 CROSSAN, Jonh Dominic. O Jesus histórico. A vida de um camponês judeu do mediterrâneo. 1°

edição. Rio de Janeiro: Imago. 1994. p. 303

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O termo usado nos sinóticos não significa exatamente reino, mas reinado. O primeiro

significa, em tese, um sistema abstrato, um sistema de autoridade. Em contrapartida, o segundo

significa essa autoridade ou domínio sendo concretamente exercida. Em outras palavras,

reinado de Deus, nunca poderá significar um fim, mas o início de uma situação prolongada na

história.

No judaísmo do tempo de Jesus, o reino de Deus designava a revelação definitiva do

Senhorio de Deus no final da história e seu reconhecimento por parte de toda a criação. Grande

parte dos ensinos de Jesus nos evangelhos tinham como objetivo aprofundar a compreensão

dos seus ouvintes sobre a vinda do Reino e prepará-los para isso. Suas miraculosas curas e

exorcismos são antecipações deste reinado de Deus. Por enquanto este reino está em grande

medida oculto, mas na perspectiva sinótica, em Jesus, ele é inaugurado e antecipado na história

(Mc 1. 15).

Há autores, como exemplo Theissen e Merz14, que colocam este discurso do reino de

Deus como uma linguagem escatólogica de Jesus. Ditos sobre o reinado futuro de Deus

figuram em (quase) todas as correntes de tradição: Em Mc (P.ex: 10. 15,23; 14.25), Q (Lc 6.20;

11.2; 13.28s; entre outros), Mt (21.31) e Lc (14.15). Em face a estes testemunhos, fora outras

literaturas aprócrifas, não se pode negar a Jesus uma expectativa futura em seus ditos sobre o

reino de Deus.

Como no restante da literatura judaica do período, a descrição do reino sempre vem

por intermédio de comparações. Ele o assemelha a uma farta colheita (Mc 4. 26-29), a menor

das sementes que germinada se torna uma grande árvore (Mc 4. 30-32 e paralelos), a um

tesouro escondido num campo ou a uma valiosa pérola (Mt 13. 44-46), ao processo de

fermentação de uma pequena porção de fermento (Mt 13. 33; Lc 12. 20-21). Os Evangelhos

apresentam um Jesus com uma inclinação existencial, só se interessando pela ação que levasse

diretamente a meta. A sistemática descrição do Reino não o ocupava, mas sim com os modos

e meios que que assegurariam a aceitação no Reino. (VERMES, 2006, p.457)

3.1.1 Βασιλεία τοῦ θεοῦ e sua clave sociopolítica na tradição sinótica

Podemos inicialmente partir, para entendermos melhor a temática central deste

presente tópico, de um pressuposto teórico e hipotético que a pregação de Jesus teve grande

influência ideológica de João Batista.

14 THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico. Um manual. 1° edição. São Paulo: Loyola. 2002.

p. 276.

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João Batista deu origem a um movimento profético-escatológico de pertinência sui

generis. Diferentemente de grupos proféticos que apareciam e rapidamente eram eliminados

pelo poder policial de Roma, João Batista, pelo visto não só atuou por um tempo maior mas

sua mensagem foi disseminada mesmo após o seu martírio pelos seus discípulos e, sobretudo,

através do ministério de Jesus de Nazaré. (STEGEMANN, 2004, p. 196)

De acordo com os Evangelhos sinóticos, João Batista, provinha de uma linhagem

sacerdotal da região rural da Judéia, mas atuou na Peréia, na margem oriental do Jordão

defronte de Jericó, no tempo de Herodes Antipas que, posteriormente, o decapitou. Sua atuação

profética foi no deserto (Mc 1.4) cujo simbolismo profético escatológico fica ainda mais

evidente pois ali ele pregava e ainda batizava para arrependimento de pecados.

O seu vestuário e sua alimentação ajustam-se aos dos moradores do deserto naquele

tempo. Entretanto, seu vestuário faz lembrar um outro profeta do A.T chamado Elias (cf. 2 Rs

1.8; Zc 13.4). Mas aqui é preciso analisar com cuidado se não é uma interpretação posterior de

João feita por escribas do movimento de Jesus. (STEGEMANN, 2004, p. 197)

Basicamente a mensagem de João Batista é, segundo a tradição sinótica, o anúncio de

um juízo universal sobre Israel do qual não escapará ninguém que não se arrependa e faça

penitência submetendo-se ao batismo para perdão de pecados.

Essa mensagem se adequava ao contexto das concepções apocalípticas da primeira

fase do judaísmo sobre um juízo futuro de aniquilação onde apenas os justos de Israel seriam

salvos. Porém João Batista não vincula essa salvação a uma justiça existente, como era comum

nos primeiros movimentos de concepções apocalípticas daquele contexto, mas ao

arrependimento e batismo. E o batismo no Jordão é um ato simbólico desse processo para se

alcançar a salvação. (STEGEMANN, 2004, p. 1197)

A pregação de João Batista sobre temática Reino de Deus pode ser vista tanto em Q

como, mais ainda em Lucas, onde podemos analisar informações que nos levam ao seu possível

conteúdo. Em Mt 3.7 o que está próximo para João Batista não é, pois, o reinado de Deus, mas

sua ira. Em outras palavras, o que está próximo, para o anúncio de João, o que é iminente, é o

juízo final de Deus, com a extrema severidade que vê nele o profeta (Mt 3. 10-12).

Encontramos na proposta que acompanha o anúncio de João Batista elementos de seu

profetismo escatológico. A transformação de mentalidade e de conduta, confissão de pecados

e batismo para conseguir perdão era elementos que marcaram seus anúncios proféticos. A um

grupo de pessoas comuns, João responde que se trata de repartir o que se tem, seja roupa ou

comida. A um grupo de coletores de impostos, que cobre impostos de maneira justa como o

Estado romano solicita. A um grupo de soldados que não extorquissem e se contentassem com

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seus salários (cf.Lc3. 10-18). Logo, vemos em sua pregação um anúncio escatológico da ira

iminente de Deus, em outras palavras, todos devem se arrepender e mudar suas condutas pois

o juízo de Deus está próximo.

3.1.1.1 O reino de Deus de João Batista e de Jesus – diferenças entre os seus discursos

Esse é o profeta que chamou a atenção de Jesus e a quem esse acudiu, tocado – a

menos que o consideremos falaz – por sua mensagem. Provavelmente foi também seu discípulo

até que encontrou sua própria vocação profética, com seu anúncio, sua proposta e seu estilo de

vida correspondentes. (SEGUNDO, 2011, p. 145)

Os anúncios proféticos de João Batista que vemos nos evangelhos sinóticos são

semelhantes com o de Jesus (P.Ex: Mc 1.15; 13). Jesus como João Batista, pregaria o próximo

fim. Ambos seriam escatológicos em suas pregações.

Entretanto, podemos perceber uma pequena diferença nos discursos de ambos. João

Batista tem uma ênfase na ira iminente de Deus (cf. Mt 3.7-10), enquanto Jesus teria apenas

absorvido o caráter escatológico de sua mensagem, porém elaborou ao invés da ira de Deus, o

Reino de Deus (cf. Mc 1.15). Nesta perspectiva, podemos entender que Jesus substituiu em

seu discurso escatológico a ira de Deus por reino de Deus.

Não é necessário perceber antagonismos em seus respectivos anúncios proféticos

dentro da tradição sinótica. Jesus reformulou a mensagem de João Batista agregando elementos

de esperança ao invés de desespero de um fim iminente. A alegria de que fala Jesus é mais a

de um início do que a de um final, pois o reinado de Deus entre os homens. Daí, entende-se

teologicamente, o reino como o governo divino entre homens, como uma recuperação da

humanidade plena que fora perdida pela sua alienação diante de Deus. (SEGUNDO, 2011, p.

147-150)

3.1.1.1.1 O reino de Deus em marcos

O Evangelho de Marcos possui uma peculiaridade, ele reflete as realidades diárias de

doença, pobreza e exploração que caracteriza a existência dos “outros 95%” da Palestina do I

século. Ele retrata o mundo daquele contexto antigo romano de baixo para cima. (MYERS,

1992, p. 66)

O domínio romano sobre a Palestina iniciou-se por volta de 62 a.C., após a anexação

da Síria por Pompeu. Seguindo o costume de utilizar lideranças locais para governar os

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territórios dominados, os romanos nomeiam Herodes, um idumeu, rei da Judéia, que ficaria no

poder aproximadamente entre 37 a.C a 4 d.C. Durante o seu governo os cidadãos da Palestina

foram rigorosamente subjugados e isso gerou um lugar de pobres, miseráveis e de grandes

injustiças sociais. (LEIPOLDT, J; GRUNDMANN, W., 1973, p.174)

Em meados do século I da era cristã, calcula-se aproximadamente entre 50 e 80

milhões os habitantes do império romano, dos quais cerca de 90% viviam no campo. Porém a

terra, a principal fonte de sobrevivência para a população do império, inclusive da Palestina,

era muito mal distribuída. Sêneca indica que os pobres constituíam maior parte da população

e que a situação tinha poucas chances de ser mudadas. (ALFÖLDY. 1989, p.123-124)

Entretanto, temos que relembrar que Marcos escreve sua carta em meio uma profunda

tensão de guerra, invasões, conflitos, protestos e domínio policial de Roma. Esse é o mundo

de Marcos, de profundas desigualdades sociais, políticas, econômicas, religiosas, onde um

camponês começa a anunciar um Reino de Deus dando esperança aos seus discípulos e a toda

aquela multidão de pobres da Galiléia, e em especial a comunidade marcana.

No período de 67 e 70 d.C. os judeus da Palestina tinham se rebelado contra a invasão

romana. Jerusalém, a capital, estava cercada pelos exércitos romanos, ameaçada de destruição

total. O Templo seria profanado (Mc 13,14); muitos cristãos, em sua maioria eram judeus, não

sabiam se deveria rebelar-se contra o Império Romano.

3.1.1.1.1.1 O Reino com “gênese” na Galileia

Sob o Império Romano, as condições de vida na Galileia, onde Jesus vivia e cumpria

sua Missão, eram as piores possíveis. Nas décadas anteriores ao nascimento de Jesus, os

exércitos romanos invadiram a região queimando aldeias e eliminando os incapazes.

Imperador instalou, na administração da Galileia, o filho de Herodes Antipas, que

fora educado na corte imperial. Através de impostos extorquidos deles mesmo, os galileus

eram explorados e condenados ao empobrecimento. Reconhece-se, portanto, que para

compreender Jesus nesse contexto histórico, urge a necessidade de se ter uma ideia mais clara,

de como as práticas imperiais romanas afetavam os habitantes da Galileia. Estima-se que até a

época de Jesus, os galileus, samaritanos e judeus viveram sob o domínio de um Império um

ano após outro, durante 600 anos (HORSLEY, 2012, p. 22)

Deve-se destacar que as camadas inferiores nas cidades se diferenciavam das camadas

inferiores rurais. Nas cidades essas camadas eram mais uniformes que as rurais e detinham

uma posição mais favorável. Na Judéia e no Egito a situação da população rural livre era mais

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desfavorável que a dos escravos nas propriedades de senhores romanos. Filo (De spec. leg.

3,159) descreve um quadro sombrio da camada rural, destacando os pesados impostos a que

era sujeitada. Em casos de fuga de camponeses para não pagarem impostos, suas famílias ou

vizinhos eram brutalmente maltratados e mesmo torturados até a morte. (ALFÖLDY. 1989,

p.149)

Os tributos decretados pelos romanos, acrescidos do imposto e dos dízimos devidos

ao templo, tinham conduzido a um acentuado empobrecimento da população, agravado ainda

por frequentes guerras ou revoltas bem como condições climáticas adversas e, por conseguinte,

safras frustradas. A situação era de tal forma precária que muitos, especialmente jovens,

emigravam em busca de melhores condições de vida no exterior, engrossando assim o

expressivo contingente do judaísmo da diáspora.

Outro fator decisivo desse empobrecimento era a concentração de terra e capital na

mão de minorias: O latifúndio devorava o pequeno campesinato, a cultura grega da polis

reprimia a tradicional cultura rural.

O agravamento da situação de opressão se dá, sobretudo a partir de 66 d.C., quando

“o procurador romano Floro roubou parte do dinheiro do templo”. Alguns judeus então saíram

às ruas de Jerusalém pedindo esmolas aos romanos. O procurador não gostou da atitude dos

judeus e mandou soldados a Jerusalém para saquearem a cidade e ofenderem o povo com

gestos ostensivos. Esse fato acirrou as tensões entre as classes dominantes e as expectativas

populares. (MOSCONI, 2001, p. 20)

Na Palestina e, principalmente na Galileia, essa realidade conflitiva afetava a vida do

povo, sobretudo dos mais pobres. Instala-se uma situação de desconforto generalizado gerando

revoltas de todos os lados.

Entretanto, Marcos coloca Jesus iniciando sua pregação do Reino na Galileia, isso é

um tanto que sugestivo, pois colocá-lo pregando a mensagem das boas novas do Reino entre

os mais pobres daquele contexto nos faz pensar um pouco sobre o intuito de Marcos.

3.1.1.1.1.1.1 A situação social dos pobres como ponto central do Reino em Marcos15

Cientes de que estamos falando de uma região pobre do contexto Palestino do século

I, a Galileia em Marcos se torna uma cidade modelo ou uma espécie de quartel general de seu

15 Essa leitura onde se percebe a situação social dos pobres como principal chave hermenêutica para o

entendimento de Marcos é feita por Ched Myers. (MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Edições

Paulinas. 1992.p.80)

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ministério. Os pobres e os marginalizados foram alvos da pregação de Jesus sobre o reino de

Deus em grande parte das narrativas de Marcos.

Como podemos provar a hipótese que realmente os pobres foram o alvo da pregação

de Jesus sobre o reino de Deus? Vimos, no tópico anterior (3.2), as evidências externas que

mostram o contexto vital da pobre Galileia no tempo de Jesus que perdurou até o tempo de

Marcos, entretanto, não podemos ignorar as evidências internas do próprio testemunho

sinótico.

Uma primeira reflexão que podemos fazer a esse respeito é que a maior parte do

ministério público de Jesus, segundo as narrativas dos evangelhos sinóticos, foi entre regiões

mais humildes da Palestina (P.Ex: Mc 1.14; Mt 4.23). E esteve em contato direto em grande

parte do seu ministério com os marginalizados, prostitutas, pescadores, endemoniados,

enfermos e camponeses. (P. Ex: Mt 4. 23-24, 8. 14-17; Mc 1.32-34; Lc 4. 40-41).

Uma segunda análise que podemos fazer sobre esse possível público alvo de Jesus em

seus discursos sobre o Reino, é tentar perceber nas narrativas sinóticas como Jesus encarava a

entrada no reino de Deus, e percebemos algo em comum nos Evangelhos. Podemos ver em

algumas passagens bíblicas que uma precondição diz respeito a bens mundanos, e que os ricos

dificilmente entrarão no reino (Mc 10. 23-25). Na primeira bem aventurança, principalmente

na versão de Lucas, Jesus declarou que os pobres por ele instruídos eram cidadãos do reino.

(VERMES, 1995, p.132)

Ao destinar o reino de Deus as classes sujas, degradadas e dispensáveis, e não a classe

camponesa ou dos artesãos, a leitura sociopolítica começa a vir à tona, ainda mais

fundamentada pelo próprio contexto histórico de pobreza e de julgo do império romano que

Jesus viveu como muitos outros judeus como ele presenciaram em seus dias.

3.1.1.1.1.1.1.1 O discurso do Reino de Deus como um protesto sócio político

Esse tipo de mensagem profética (e por que não dizer de protesto?) de cunho

sociopolítico não era, à luz da história, uma novidade naquele contexto do I século.

Enquanto que, naquele contexto antigo na Palestina, os taumaturgos representavam

uma resposta à necessidade individual realizando milagres dentre o povo, os movimentos

profético-carismáticos desenvolveram, digamos, um conceito de libertação para a necessidade

interior e exterior de todo o povo. Esses movimentos carismáticos eram comuns em meio a

crises socioeconômicas no contexto da Palestina desde a diáspora. (STEGEMANN, 2004, p.

191-192)

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Daí, podemos ver, ao longo do processo histórico dos Judeus desde a diáspora até

mesmo depois o tempo de Jesus, esses vultos populares de líderes que realizavam grandes

feitos a favor do oprimido povo Judeu. Podemos citar apenas como exemplo um homem

chamado Onias, o circunvagante, e Hanina ben Dosa. Ambos se caracterizam por milagres

através da oração na tradição do profeta veterotestamentário Elias. Esses movimentos se

assemelham um pouco com a descrição de Jesus na tradição sinótica.

Nestes vultos sociais de protesto de perspectivas sociopolítica daquele contexto, os

profetas milenaristas agiam basicamente sem nenhuma violência, pois acreditavam na

intervenção da justiça divina sobre os seus opressores. Já os líderes messiânicos recorriam à

violência humana, mas por trás dela, segundo suas crenças, se escondia a justiça divina.

(CROSSAN, 1994, p.203)

Mediante o exposto, e em caráter conclusivo, podemos refletir sobre a seguinte

pergunta: Será que os discursos sobre o reino de Deus do Jesus histórico nos evangelhos

sinóticos, e em especial em Marcos, estavam carregados, mesmo que indiretamente, de uma

ideologia sociopolítica? Como qualquer judeu camponês, pobre, e vivendo em um contexto de

opressão romana, é provável que este argumento seja verdadeiro.

Nesta perspectiva iremos caminhar para o terceiro capítulo, onde iremos aprofundar

esta problemática destes movimentos sociais, a fim de refletirmos sobre uma possível tensão

entre o projeto reino de Deus em Marcos e o Império Romano.

4 O REINO DEUS E SUA RELAÇÃO COM O IMPÉRIO ROMANO

A possibilidade de que o discurso de Jesus sobre o reino de Deus na perspectiva da

tradição marcana tenha uma conotação sócio política, principalmente mediante ao que foi

exposto no capítulo anterior, é grande. Nesta perspectiva iremos neste presente capítulo tentar

perceber, a partir dos pensamentos de diferentes autores modernos e também a partir daquilo

que vimos nos capítulos anteriores desta pesquisa, um discurso anti império romano nos ditos

proféticos do Jesus histórico em seu programa de reino de Deus.

4.1 Uma breve análise dos movimentos de resistência e protesto no contexto do

Mediterrâneo Antigo

Ao estudarmos as Escrituras Sagradas à luz das novas abordagens hermenêuticas e

histórico-exegéticas, principalmente os escritos neotestamentários, perceberemos que o

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cristianismo começou possivelmente como uma religião anti-imperialista e consolidou

diversas formas de protesto em seus discursos.

A fé na eleição de Israel e de sua terra implica, em princípio, a autonomia política. Se

abstrairmos as influências políticas dos saduceus e fariseus exerceram sobre a classe dominante

como membros do estrato superior, o comportamento da maioria do povo judaico no período

herodiano-romano foi predominantemente apolítico ou pré-político. Entretanto,

ocasionalmente aconteciam resistências anti-romanas e demonstrações de massa não violenta

contra ações romanas que feriam os sentimentos religiosos da população judaica.

(STEGEMANN, 2004, p. 199)

Para os judeus palestinos, as Sagradas Escrituras (leia-se aqui, Torá) eram muito mais

do que alguns livros de cunho religioso, mas eram a sua própria história como nação escolhida

por Deus a partir de Abraão. As principais festas de sua cultura incluíam eventos que Deus

concedeu vitórias contra povos inimigos concedendo a eles liberdade. Entretanto, essas festas

tinham que ser comemoradas debaixo de uma opressão romana, e isso tornava a festa mera

fantasia, pois a liberdade festejada era uma mentira. (HORSLEY, 2010, p.31)

Antes e depois do ministério terreno de Jesus, durante gerações, os povos da Galiléia

e da Judéia insurgiram-se com repetidas rebeliões e protestos contra o império romano e seus

governantes. Esses movimentos de resistência eram comuns naquele contexto de tamanha

opressão romana sobre os judeus camponeses. Talvez isso possa ter origem em sua própria

história como nação, as grandes narrativas veterotestamentárias documentavam os livramentos

de nações estrangeiras que Deus dera ao seu povo e isso gerou provavelmente um espírito de

resistência e de luta contra qualquer nação estrangeira que queira afrontá-los.

Muitos camponeses, no contexto do Mediterrâneo do século I, foram inspirados por

esperanças apocalípticas e não admitiam ser privados de sua liberdade do domínio opressivo

estrangeiro e nacional. E é aí que os movimentos messiânicos, cujo o principal objetivo era a

restauração da justiça sócio econômica, entravam em cena com revoltas armadas muitas vezes

combatidas pelo Império Romano com profunda truculência (HANSON; HORSLEY; 1995, p.

63, 115).

Os protestos populares e alguns movimentos de resistência eclodiram com muita

frequência durante a vida de Jesus. Os movimentos messiânicos populares da Galiléia e na

Judéia procuravam estabelecer a independência da população tanto com relação a Jerusalém

quanto com o domínio romano. (HORSLEY, 2004. p. 92).

Fariseus radicais e outros grupos religiosos defendiam o não pagamento do tributo

romano. Profetas populares lideravam movimentos de protesto contra os tributos entre abusos

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de cunho socioeconômico que Roma impunha sobre as classes desfavorecidas daquele

contexto.

4.1.1 Comunidade Qumrã, Quarta filosofia e os Sicários

Podemos perceber, apenas como exemplo e de forma panorâmica, muitos

movimentos de resistência alistados em algumas historiografias antigas de alguns movimentos

ideológicos daquele contexto do Mediterrâneo que podem nos mostrar esse pensamento anti

império entre os judeus. Dentre alguns deles está a comunidade de Qumrã, a Quarta filosofia

e os Sicários. Alguns autores os denominam com grupos rebeldes anti romanos.16

A comunidade Qumrã foi um grupo de escribas e sacerdotes que promoveram um

êxodo para as solitárias regiões de Qumrã onde formaram uma comunidade utópica que

mantinha regras e disciplinas rigorosas no que tange ao seu relacionamento com Deus à luz

dos escritos da Lei e dos Profetas.

Essa comunidade de Qumrã não foi apenas um grupo que se separou da sociedade

como, por exemplo (sabendo do risco de ser anacrônico), os movimentos monásticos do século

IV que aparentemente se separaram da sociedade para terem uma vida longe das sutilezas do

pecado e estar mais perto de Criador, entretanto, a comunidade de Qumrã elaboraram um

cenário de guerra santa contra os romanos.

O motivo da segregação da comunidade Qumrã fica claro no texto de 4QMMT que

em uma carta (ou na cópia de uma carta) à aristocracia sacerdotal em Jerusalém, datada da fase

inicial da comunidade, são arrolados pelo próprio Mestre da justiça, provavelmente um líder

influente, pontos de interpretação da Torá que tinham uma ênfase grande em questões de ascese

e pureza cultual, fora a reivindicação desse líder de ser o único mestre e intérprete da Torá,

desprezando qualquer outro grupo que a utilizavam como base de sua crença. (STEGEMANN,

2004, p. 181-182)

A retirada desta comunidade para o deserto corresponde provavelmente a um

simbolismo histórico-salvífico que foi atualizado por outros grupos naquele contexto.

Internamente, a comunidade de Qumrã era organizada segundo uma hierarquia rígida. Em sua

cúpula estavam os sacerdotes que detinham o poder das principais decisões desta comunidade.

No rolo da guerra dos filhos da Luz contra os filhos das trevas, os kittim (romanos)

estão totalmente sob o poder do príncipe das trevas. Embora, não houvessem provavelmente

16 STEGMANN, Ekkehard W.; STEGMANN, Wolfgang. História social do protocristianismo – Os

primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. São Paulo: Sinodal. 2004. p. 208.

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armas para lutar, tudo indica que os membros dessa comunidade treinavam regularmente para

o papel que eventualmente desempenhariam na batalha final, quando os filhos da luz

derrotariam os kittim e os filhos das trevas. (HORSLEY, 2004. p. 46).

Um outro movimento de resistência daquele contexto da Palestina nos primeiros

séculos da era cristã foi liderado por Judas, Sadoc e seus grupos de seguidores que lutou contra

o domínio imperial romano foi a Quarta filosofia. Eles diziam, numa perspectiva panorâmica,

que deviam lealdade exclusiva apenas a Deus como Senhor e Mestre, daí não aceitavam a

taxação de tributos que significaria para eles naquele contexto reconhecer César como Senhor.

Essa era a motivação básica dos membros desta ideologia de cunho político: paixão irrefreável

pela liberdade de Israel.

Um dos aspectos mais importantes que podemos compreender sobre a Quarta filosofia

não eram as suas ideias ou sua disposição ideológica escatológica, mas sua insistência na

prática ou realização concreta de seus ideais naquele contexto. Eles insistiam na realização

concreta da liberdade judaica e do domínio de seu Deus.

A Quarta filosofia era uma espécie de reavivamento da noção mais antiga (bíblica)

dos israelitas de que Deus era o governante único e exclusivo de todas as dimensões de sua

vida. (HORSLEY, 2010. p. 77).

Os Sicários foram também um movimento de resistência daquele contexto do

Mediterrâneo antigo. Eram um grupo que tinha uma ação mais violenta comparada aos outros

dois que vimos anteriormente. Alguns historiadores chegam a compará-los aos terroristas

anticoloniais do século XX pois se utilizavam de táticas como assassinatos e sequestros

furtivos. (HORSLEY, 2004. p. 48-49)

Este movimento de resistência surgiu em Jerusalém no tempo do procurador Félix

como uma nova espécie de salteadores. Em todo o caso, porém, eles se diferenciavam do

banditismo social pelo fato de o alvo de suas ações serem exclusivamente o estrato superior

judaico como alvo de seus ataques. Os bandidos agiam, basicamente, nas áreas do campo e nos

pequenos povoados, enquanto os Sicários operavam suas ações em Jerusalém.

(STEGEMANN, 2004, p. 208-209)

Logo, mediante ao exposto, podemos compreender que muitos grupos de movimentos

populares de resistência eram comuns naquele contexto de domínio do Império Romano. Estes

movimentos de resistência não eram únicos, pois ainda temos dados históricos de movimentos

populares de protesto em massa que representavam uma ameaça grande à ordem imperial

romana na Palestina.

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4.1.1.1 Movimentos messiânicos populares

O messianismo é, na religião hebraica, a crença no caráter salvador e redentor de um

personagem que aparecerá no futuro, designado por messias, palavra que, no Antigo

Testamento, significava inicialmente ‘o ungido’ em geral. O termo personalizou-se até ganhar,

no judaísmo intertestamentário, o sentido de ‘o ungido’ por excelência, identificado com um

futuro rei da casa de Davi, prometido por Deus, predito pelos profetas e esperado pelo povo,

que virá libertar do jugo estrangeiro, restaurando a antiga glória de Israel.

Não podemos confundir o banditismo social com os movimentos messiânico

populares daquele contexto. É claro, que temos que confessar certas semelhanças em algumas

condições essenciais entre eles, porém uma tradição entre os judeus de realeza popular e

protótipos históricos de um ungido popular era muito comum no imaginário de então.

(HORSLEY; HANSON. 1995. p. 93)

Quando Jesus fora executado na cruz pelos romanos sua acusação, segundo a tradição

sinótica, foi que Ele era o rei dos judeus. Mediante a diferentes pesquisas históricas daquele

contexto essa acusação de Jesus, de ser rei dos judeus, não era uma novidade, pelo contrário,

era muito comum líderes populares, oriundos dentre os camponeses, que foram proclamados

reis pelos seus seguidores.

Temos que, inicialmente, entender que o termo messias está para nós, ocidentais em

tempos modernos, associado a doutrina cristológica da tradição cristã católica. Esse termo se

origina do termo em hebraico משיח (Mashíach), que posteriormente se tornou no grego do

Novo Testamento Cristo, que basicamente é uma síntese de várias linhas de esperança judaica

e de conceitos filosóficos gregos. (HORSLEY; HANSON. 1995. p. 89-90)

Na sequência da evolução gradual que vinha do Antigo Testamento, firma-se na tradição

rabínica, entre o séc. II a.C. e o séc. II d.C., um conceito de messias que se conservou até hoje

essencialmente idêntico. Trata-se de um redentor humano para Israel, eleito por Deus e, por

intermédio de Israel, para toda a humanidade. Mensageiro de Deus e instrumento humano de

sua vontade, por Deus será enviado no momento justo. No cumprimento de sua missão, a de

redimir Israel libertando-o de sofrimentos, humilhação e opressão seculares, o Messias

aparecerá, na linhagem que vem de Moisés, como o maior de todos os profetas da justiça.

Condenado à existência de pequena nação numa terra distante e pobre, o povo judeu,

desde o tempo de sua volta do exílio babilônico (586-539 a.C.), tinha se tornado uma

comunidade religiosa, reunida em torno do Templo de Jerusalém. Privado de sua independência

política, depois de uma série de dominações estrangeiras, encontrava-se, no início da era cristã,

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sob o jugo dos romanos. Graças à sua religião, conseguira isolar-se das potências estrangeiras,

resistindo à influência de suas culturas e religiões. Sua força vital reside justamente naquilo que

sempre se subtraiu aos governos estrangeiros que se sucediam: a sua religião.

Com efeito, o povo judeu não procura sua realização da mesma maneira que os outros

povos da terra. A Aliança e a condição de povo eleito determinam-lhe a vida: a Lei e a esperança

conferem-lhe o verdadeiro sentido. Israel considera-se o “povo eleito” de Javé, um povo santo,

que foi separado deste mundo, de seus interesses e ideais, e cujo centro de existência se encontra

em Javé. Esse Deus, por sua vez, é um Deus que exige o direito e a justiça e que pune o pecado,

mas, ao mesmo tempo, ama seu povo como um pai ama o seu primogênito, como um marido

ama a sua mulher. Israel vive da certeza de que cada coisa lhe vem do seu deus. É esse também

o sentido de sua esperança messiânica.

Assim, o povo hebreu, durante séculos subjugado por impérios opressores, possuía uma

grande e consoladora esperança: a da redenção, a ser alcançada num fiat, por um Messias divino

insistentemente anunciado por todos os grandes profetas, desde a mais remota antiguidade

judaica.

Nessa situação, o povo judeu não esqueceu seu passado, o êxodo e a terra prometida.

Pelo êxodo, o povo libertara-se da opressão. E embora o povo tivesse hesitado na dura

caminhada no deserto, o seu destino passou a ser Canaã, para onde Javé mesmo parecia guiá-

los. Somente a um ‘povo escolhido’ poderia suceder esse milagre. Bastava crer, e crer era

obedecer. A conquista e a posse de uma terra própria significavam selar o pacto que Deus fizera

com o povo.

4.1.1.1.1 Protestos populares em massa de resistência à ordem imperial romana

Esses movimentos populares israelitas em cidades pré-industriais, como por exemplo

a antiga Jerusalém do I século, que eram desprovidas dos instrumentos políticos modernos da

democracia as manifestações de protestos em massa se tornavam um importante recurso de

exigir ao Império Romano corrigirem as injustiças sociais que eles impunham sobre aquela

sociedade israelita. (HORSLEY, 2004. p. 52).

As massas que faziam parte dessa manobra de protestos populares em massa eram

compostas por pessoas ordinárias da cidade, pelos pobres urbanos de residência e trabalhos

fixos. Logo, podemos compreender que, os principais integrantes destas manifestações em

massa, não era aristocracia judaica, tão pouco os membros do sinédrio de Jerusalém, era a

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população camponesa desprovida de sua total liberdade econômica e religiosa tão sonhada por

eles desde sua gênese na Palestina que produziam estes atos de resistência.

Muitas destas ações de resistência em massa foram suscitadas por ações de algumas

autoridades romanas que nutriam sentimentos antijudaicos. Podemos citar, como um de muitos

exemplos, a história de Pilatos e os estandartes romanos. Contrariando a costumeira discrição

dos procuradores romanos, ele mandou levar para Jerusalém os estandartes em que havia

imagens de César. Isso era uma afronta às leis da Torá que acabou gerando uma impressionante

demonstração não violenta de resistência povo de Jerusalém e do interior da Judéia na sede do

procurador em Cesaréia. (STEGEMANN, 2004, p. 200)

Outro tipo de ativistas políticos que lutavam em prol a libertação político-religiosa de

Israel no período herodiano-romano são geralmente reunidos sob o conceito mais amplo dos

zelotes. Mesmo sendo um conceito problemático pois, por exemplo, para Josefo não eram

todos os Zelotas combatentes políticos, mas uma parcela temporal e socialmente bastante

restrita dos mesmos. (STEGEMANN, 2004, p. 201)

Outro conceito, que foi mencionado anteriormente, porém ainda não bem definido foi

o banditismo social. Essas ações podem ser encontradas em sociedade de estrutura agrária

como reação à tradicional desestabilização, opressão e exploração social motivas por pesadas

cargas tributárias, assim como carestias ou crises semelhantes.

Na transição do banditismo social pré-político e pré-ideológico para um movimento

mais amplo de caráter nacional ou religioso mais consciente situam-se os fenômenos do anti-

reinado. Esses movimentos agiam tendo como seus principais alvos os palácios reais e as casas

de campo dos ricos, bem como transportes romanos. (STEGEMANN, 2004, p. 207)

Em suma, podemos considerar em seu conjunto, que as diversas formações de grupos

na terra de Israel no período herodiano-romano evidenciam um sonho utópico em comum no

coração deles: Liberdade do julgo romano.

Nesta perspectiva, podemos ver um pouco, mesmo que separados pelo tempo e

espaço, o pano de fundo sócio político daquele contexto do Mediterrâneo antigo, e daí, lançar

luz na temática pretendida neste presente capítulo.

4.1.1.1.1.1 O reino de Deus – uma revolução social não violenta

Podemos perceber, mediante ao exposto, o quanto o Império romano incomodava os

israelitas até muito antes do período que Jesus nasceu. Esse sonho de libertação política estava

muito presente no imaginário dos judeus camponeses do Mediterrâneo antigo.

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As primeiras comunidades de cristãos não estão isentas desse pensamento anti

império, e podemos perceber isso na tradição sinótica, em especial no Evangelho de Marcos.

4.1.1.1.1.1.1 O Reino de Deus na história

Vimos que a principal pregação de Jesus na tradição sinótica, principalmente em

Marcos, é a presença do reino de Deus: “O reino de Deus já chegou a vós” (Lc 11.20); “O

reino de Deus está em vosso meio” (Lc 17.21); “Cumpriu-se o tempo, e o reino de Deus está

próximo” (Mc 1.15); “Bem aventurado os pobres por que dos tais é o reino de Deus” (Lc

6.20), etc.

Como já foi elucidado anteriormente quando foi refletido o que seria o reino de Deus

na tradição sinótica, vimos que ele não deve ser interpretado como um domínio que venha a

existir no mundo. Entender o reino de Deus como o governo ou domínio de Deus tem sido um

corretivo importante para este mal-entendido do senso comum. (HORSLEY, 2010, p.149)

Outro mal-entendido sobre o reino de Deus na tradição sinótica é confundi-lo ou

assimilá-lo exclusivamente com o conceito de eschaton. Os ditos de Jesus sobre o reino de

Deus na tradição sinótica quase não se referem ao ato divino último, final, escatológico e todo-

transformador da realidade do mundo. Diferentemente da tradição paulina, que percebe que

haverá um fim, uma descontinuidade histórica com a parusia. A ação de Deus na vinda do

reino de Deus seria final não em um sentido último ou como o fim dessa história, mas somente

no sentido de finalmente! Ou até que enfim! (HORSLEY, 2010, p.150)

A ação libertadora deste reino de Deus pensado por Jesus na tradição sinótica deve

ser compreendida, em suma, como uma transformação de realidades sociais, políticas,

econômicas que serão ou que já estão sendo transformadas pelo domínio de Deus na mente

dos homens.

O reino de Deus acarreta claramente uma atuação divina contínua, bem como a reação

e engajamento das pessoas a essa atuação. O reino de Deus não pode ser concebido como

intervenção divina na história (e na experiência humana) sem engajamento pessoal. Isso seria

uma análise da tradição sinótica um tanto que anacrônica, pois como a maioria dos judeus

palestinos daquele contexto, Jesus parece ter concebido Javé como integralmente envolvido na

história da vida humana. (HORSLEY, 2010, p.150-151)

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4.1.1.1.1.1.1.1 A renovação sociopolítica de Israel com a implantação do reino de Deus

É surpreendente a proximidade dos ditos de Jesus sobre o programa reino de Deus

com os movimentos populares de sua época. Todos esses movimentos indicam que aquelas

tradições israelitas típicas de resistência popular e independência estavam muito mais vivas na

Judéia e na Galiléia no tempo de Jesus. (HORSLEY, 2004. p. 92)

Vemos na tradição sinótica nos ditos de Jesus sobre o reino de Deus anúncios de uma

possível renovação de Israel onde o domínio de Deus seria uma ação libertadora contra as

forças sociopolíticas opressoras.

A sequência dos discursos em Q começa com João Batista proclamando a vinda de

um profeta que batizará com Espírito e fogo. Isso nos leva entender uma pretensa renovação

de Israel. E posteriormente, Jesus declarando que os Doze seriam como representantes do povo

onde iriam sentar em tronos no reino para estabelecer a justiça para as tribos de Israel (Lc 22.

28-30). (HORSLEY, 2004. p. 92-93).

Podemos perceber outros exemplos ao longo dos textos dos Evangelhos que mostra

uma ideologia de restauração de Israel. Um de muitos exemplos que poderíamos citar é a

parábola do banquete (Lc 13. 28-29) que retrata uma ideia de reunião e restauração de Israel,

onde alguns serão excluídos e outros reunidos na mesa no reino de Deus.

No Evangelho de Marcos podemos ver algumas narrativas que possuem uma proposta

de renovação para Israel. Nos primeiros capítulos o programa de curas e exorcismos de Jesus

se torna tão ameaçador, que os fariseus e herodianos planejam destruí-lo (Mc 3. 1-5). Em outra

parte, Jesus entra em Jerusalém e realiza uma demonstração profética veemente no templo e,

em seguida, profere uma série de condenações ao templo, aos sumos sacerdotes e aos escribas,

concluindo com o anúncio da destruição do templo. (Mc 11. 27; 13.2). Isso tudo é uma

demonstração de quanto o escritor quer mostrar a oposição (renovação) que Jesus tinha ao

templo e aos sumos sacerdotes. (HORSLEY, 2004. p. 97).

Outro fragmento das narrativas Marcanas que podemos observar uma ideia de

renovação e mudança de mentalidade entre os líderes religiosos e ricos é Mc 11. 15-17. Nesta

narrativa Jesus derruba as mesas dos cambistas impedindo operações normais de câmbio e

venda de animais para sacrifício. Na narrativa ele recita uma profecia que está em Jr 7. 1-5 que

diz que os cambistas fizeram do templo um “covil de ladrões”. Isso pode nos levar a pensar

numa possível crítica da tradição Marcana à aristocracia religiosa de Jerusalém que se aliara

aos intentos econômicos do Império romano.

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O reino de Deus, na tradição sinótica, não diz respeito a um resto de pessoas bem-

aventuradas em beatitudes imóveis, mas uma interação social que trará, por consequência, uma

restauração de toda a sociedade à luz do domínio de Deus em todos os âmbitos. A inteireza

pessoal está integralmente inserida na renovação da vida social, e aparentemente até mesmo

em certas transformações no padrão da vida político religiosa.

Vale ressaltar que o reino de Deus nos discursos de Jesus é uma metáfora e um

símbolo de origem política. Na pregação e na atuação de Jesus, o reino inclui claramente as

questões sociais, econômica e política das relações humanas no padrão divino. A própria

palavra salvação, antes do seu significado espiritual que temos hoje na tradição cristã, traz uma

ideia de paz e prosperidade que o imperador fornecia aos seus súditos através da obediência às

suas diretrizes políticas. Por isso precisamos entender que naquele contexto as dimensões

sociopolíticas eram inseparáveis das religiosas. (HORSLEY, 2010. p. 151-152)

Logo, podemos compreender que o conjunto de discursos de Jesus sobre o programa

reino nos leva a compreender uma possível busca de uma renovação daquele estado que Israel

estava mediante ao domínio do Império Romano. A tradição sinótica evoca uma profunda

mudança não apenas no pensar religioso individual, mas uma mudança de caráter sociopolítica

que inicia no indivíduo que introjeta dentro de si os valores do reino pregado por Jesus.

A chave para a emergência de um movimento a partir da missão de Jesus, porém, foi

sua renovação da comunidade da aliança, chamando as pessoas para uma ação conjunta e

comunitária com o propósito de deter a desintegração das comunidades e para revitalizar sua

cooperação em prol aos desfavorecidos e oprimidos pelo jugo romano. (HORSLEY, 2004. p.

131)

4.1.1.1.1.1.1.1.1 O reino de Deus e sua tensão com o império romano

É fácil compreender que em alguns discursos de Jesus ele se opunha claramente à

ordem imperial romana e aos seus efeitos sobre os povos subjugados. Em alguns de seus

discursos nos Evangelhos, todos aqueles que se alinhavam com o império romano se tornavam

alvo de profunda repreensão.

Os sumos sacerdotes, os herodianos e outros exploradores em Jerusalém estavam,

segundo Jesus, sob o julgamento de Deus. Os herodianos eram uma espécie de partido político

que favorecia a autoridade dos Herodes, sob o governo de Roma. Os seus membros mostraram

forte hostilidade para com Jesus, em diversas ocasiões. (Mc 3.6; 12.13)

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Os Evangelhos narram que quando Jesus entrou na capital, em Jerusalém, poucos dias

antes da celebração da Páscoa, havia estourado um grande conflito devido a sua chegada. O

povo que veio em peregrinação da região da Galiléia, tomou as ruas da cidade santa, aclamando

a Jesus como o “bendito que veio em nome do Senhor” (Mc. 11.9). Isso incomodou muito os

partidários da lei e os religiosos, pois o povo aclamava Jesus como o Messias-Rei,

introduzindo-o para dentro da cidade e do Templo (Mc. 11.8-11).

Jesus estava ao lado do povo, sabia do sofrimento que eles passavam, por isso que ele

não reclamou e nem repreendeu os manifestantes. Porém, Jesus, trazendo a memória do povo,

enquanto andava em cima do jumentinho, evocava a profecia do profeta Zacarias, mostrando

que ele não era um messias guerreiro (Mc 11.7; Mt. 21.5; Zc. 9.9,10), e era contra qualquer

tipo de violência. A partir deste episódio, Jesus enfrenta as autoridades e rompe totalmente

com o sistema religioso oficial. (Mc 11.12; 12.44)

Vemos Jesus contra os sumos sacerdotes, os escribas e os anciãos (Mc. 11.27; 12.12).

Eles tentam interrogar Jesus dizendo: “Com que autoridade fazes tais coisas?” (Mc 11.28).

Em seguida eles se recusam a pronunciar-se sobre a origem de João Batista, e Jesus aproveita

e responde: “Nem eu vou dizer a vocês com que autoridade faço essas coisas” (Mc 11.33).

Desta forma, Jesus demonstrou aos legalistas que as suas ações não dependem da permissão

deles, e através de uma parábola, anuncia que vão perder o mandato e a condição de povo eleito

(Mc. 12.1-12).

Nesta oposição podemos perceber que Jesus desloca a autoridade sacerdotal,

mostrando que Deus é que está no controle e age conforme tem que ser. O sacerdócio santo

deve presidir no coração daqueles que tem um encontro genuíno com Deus e que vive nas

diretrizes do reino de Deus.

Vemos outros momentos, no Evangelho de Marcos, a clara oposição que Jesus teve

com os partidários fariseus e herodianos (Mc. 12.13-17). Os fariseus manipulavam a sinagoga

e o sinédrio, enquanto os herodianos pertenciam a elite e serviam de bom grado aos interesses

de Roma. Eles tentaram confundir Jesus lhe perguntando se ele era a favor ou contra o

pagamento de impostos aos romanos (Mc. 12.14). Percebendo a má intenção deles, Jesus não

responde a questão e nem discute, mas exige deles que “deem a Deus o que é de Deus”, a

saber, o povo, por eles desviado do caminho do reino (Mc. 12.13-17).

Essa característica do movimento de Jesus é marcante nos Evangelho, em especial em

Marcos. Todos aqueles que se aliam aos interesses de Roma e vão contra as concepções do

reino que Jesus pregava era alvo de sua oposição profética.

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Compreender o movimento de Jesus como um movimento única e exclusivamente

religioso sem nenhuma perspectiva política é um tanto que reducionista e, por que não dizer,

anacrônico. Ainda mais mediante as provas apresentadas do pano de fundo histórico que

permeava naquele contexto de agitação política do antigo Mediterrâneo.

Existiu um outro personagem histórico daquele contexto chamado também Jesus

(Yeshua) que profetizou a destruição do Templo em meados do século I d.C de modo

semelhante ao Jesus dos Evangelhos. No caso de Jesus ben-Ananias que perambulava

pregando a todos e não a um grupo em particular, o governador mandou o açoitar e depois

soltá-lo, pois o viu apenas como um louco. (HORSLEY, 2004. p. 133)

No caso de Jesus ben-José, porém, o governador, segunda a narrativa dos Evangelhos,

mandou açoitá-lo e, posteriormente, adotou o método de execução mais comum para

desordeiros políticos e rebeldes das províncias, a crucificação.

Percepções despolitizadas de Jesus têm profundas dificuldades em perceber os ditos

de Jesus com um caráter sociopolítico e não apenas espiritual ou religioso. Mas, como exposto

no presente trabalho, mediante diferentes percepções de autores modernos, a pregação e

atuação de Jesus teve muita, em seu conteúdo, perspectiva política e social.

É óbvio que precisamos entender que os discursos em Q não dão uma indicação

sequer de Jesus como Messias popular, e não oferecem a menor pista de que ele foi executado

pelos romanos por este motivo, mas sim como um profeta, como os do A.T. (Lc 11. 49-51).

Jesus, sem dúvida, é representado no papel de profeta nos discursos em Q. (HORSLEY, 2004.

p. 135)

Entretanto, isso não retira o tom sócio político em seus discursos contra a ordem

imperial romana. E os romanos, naturalmente, exterminavam tanto líderes populares

messiânicos como líderes populares proféticos que pudessem gerar algum tipo de rebuliço

público contra sua política de ordem.

Daí, o que podemos perceber do método de crucificação que Jesus passou é que ele

foi tido pelos romanos como um sublevador político. Por isso, o fato de que muitos seguidores

de Jesus após sua morte, como Paulo e outros, se identificavam tanto com a cruz sugerindo

que assumiram o ideal de oposição que Jesus tinha do domínio imperial romano e contra

qualquer outro modo de subjugação humana. (HORSLEY, 2004. p. 135)

O reino que o Evangelho de Marcos provavelmente imaginou não seria estabelecido

nas cidades, com sus palácios, templos, fóruns, construídos a custo tão alta e com tamanha

opulência. Seria um reino onde os demônios chamados legião, os tetrarcas, governadores,

proprietários de terras desumanos e arrogantes e o tributo de César não tomariam parte. Esse

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movimento do reino ia continuar, mesmo após a destruição de Jerusalém no ano 70 d.C, através

das comunidades cristãs nas aldeias, nas cidades da Galileia e nas colinas mais distantes da

Palestina. (HORSLEY; SILBERMAN, 2000, p. 225)

Segundo um dos autores que estamos nos fundamentando nesse presente capítulo,

Richard A. Horsley, Jesus só pode ser compreendido dentro do contexto do imperialismo

romano de sua época, e a sua pregação da chegada do "reino de Deus" significa a expectativa

da libertação política e social aqui e agora, que na tradição camponesa, Deus providenciaria

para aqueles que eram fiéis à aliança.

“Isto é, o reino de Deus não é apenas o tema que abarca a declaração profética

de Jesus sobre o julgamento contra os governantes romanos e os seus dependentes em

Jerusalém, mas esse aspecto de julgamento do reino tinha uma contraparte construtiva

de libertação, novas forças e renovação para o povo. No discurso político moderno,

no aspecto de julgamento do Reino de Deus, Jesus proclamava que Deus estava no

processo de efetuar a 'revolução política' que transtornaria a ordem imperial romana

na Palestina. Então, no aspecto construtivo, na confiança de que Deus estava cuidando

da ordem política dominante, Jesus e o seu movimento estavam realizando a

'revolução social' que Deus estava tornando possível e forte nas comunidades rurais

da Galileia" (HORSLEY. 2004. p. 109).

Os discursos do reino de Deus na tradição marcana estão recheados de um imaginário

sociopolítico em suas entrelinhas justamente pelo contexto histórico na qual foram construídos.

Essa imagem de Jesus desinteressado pela situação política de seu tempo, não pode ser mais

refutada atualmente por consequência do conjunto de diferentes pesquisas sobre a figura do

Jesus da história que viveu na Palestina há dois mil anos atrás que revelam uma outra face de

Jesus que pretendemos mostrar neste presente trabalho monográfico.

Depois de 63 a.C., a Palestina se tornou parte da província romana da Síria. Herodes

Magno (37 - 4 a.C.), por concessão de Otaviano, conserva o título de rei sobre toda a região da

Palestina. Antes de sua morte, prevendo uma luta pela sucessão, Herodes repartiu o reino entre

seus filhos Arquelau, Herodes Antipas e Filipe. Por denúncia dos próprios judeus, Arquelau é

deposto pelo imperador Augusto, e a parte central da Palestina se torna procuradoria romana.

O procurador era um romano nomeado diretamente pelo imperador, com poderes civis,

militares e judiciários, a fim de administrar uma região que poderia causar dificuldades para o

império.

No tempo de Jesus, numa Palestina em profundas mudanças sócio políticas, a mesma

está dividida numa procuradoria que engloba a Judéia e a Samaria, e em regiões periféricas

que formam tetrarquias. Na época da atividade de Jesus o procurador era Pöncio Pilatos. As

tetrarquias eram governadas por Herodes Antipas (Galiléia e Peréia), Filipe (Ituréia e e

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Traconítide) e Lisânias (Abilene). A Decápole era um território que dependia diretamente do

legado da Síria.

A dependência da Palestina em relação ao império se verifica a nível econômico e

político. No nível econômico, os romanos cobram uma série de impostos: o tributo, que é um

imposto pessoal sobre as terras; uma contribuição anual para o sustento dos soldados que

ocupavam a Palestina; um imposto sobre a compra e venda de todos os produtos.

No nível político, Roma permite que os países dominados mantenham governo

próprio, mas submetido à aprovação e nomeação imperial [reis, etnarcas, tetrarcas]. Nos

lugares de conflito o imperador intervinha mais diretamente, nomeando um procurador

romano, que tinha sob seu comando tropas auxiliares, administrava a cobrança de impostos e

detinha a jurisdição exclusiva em sentenças capitais. Para a Judéia e Samaria havia um

procurador (exceto durante os reinados de Herodes Magno e de Agripa). Por outro lado, os

países podiam gerir suas questões internas. Para a Judéia e Samaria, o órgão administrativo era

o Sinédrio, chefiado pelo sumo sacerdote. Entretanto, o procurador reservava para si o poder

de nomear ou depor o sumo sacerdote.

No nível ideológico, Roma permite que os judeus sigam seus costumes e religião, de

acordo com a estrutura interna do judaísmo. Entretanto, mesmo com essa liberdade que os

romanos concediam aos judeus, eles se sentiam ainda como em um cativeiro.

As descrições padrão da palestina judaica do século I d.C, o contexto de vida do judeu

Jesus, tendem a ser simplista e, por vezes, um tanto que distorcido. Em um momento de

profundas mudanças sociais e agitação política é que o ministério de Jesus foi desenvolvido.

Logo, precisamos compreender que as imagens de um Jesus despolitizado como foi construído

pela tradição cristã, não possui sustentação histórica.

Jesus, provavelmente, compartilhava dos mesmos sentimentos e interesses básicos

que os (outros) líderes e movimentos populares. Além disso, a Quarta Filosofia, os sicários e

provavelmente a maioria dos fariseus entre os grupos letrados, com toda a probabilidade

também compartilhavam esses interesses do povo comum, com certas variações. (HORSLEY;

HANSON. 1995. p. 209)

Logo, podemos entender, em caráter conclusivo, que o discurso de Jesus sobre o

Reino de Deus na tradição marcana está permeado de um tom sócio político de protesto, e não

exclusivamente religioso, contra a truculenta dominação do Império Romano contra os

camponeses pobres da Palestina do século I.

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5 CONCLUSÃO

Se essas pequenas e variadas evidências parecem sugerir que Jesus foi realmente

compreendido como rei popular de perspectivas políticas por seus seguidores, a tradição

sinótica, em suma, mostra Jesus morrendo como um profeta messiânico, como muitos antes

dele (Lc 11. 49-51; 13;34).

Entretanto, nessa presente pesquisa retiramos propositalmente todo o apelo religiosos

do texto de Marcos a fim de descobrir novas perspectivas.

O programa de Jesus baseia-se, como vimos anteriormente, na pregação de uma

renovação comunitária da família e clãs tradicionais inspirados nos moldes da antiga aliança

de Israel com Iahweh na dimensão do seu reino. Numa terra romanizada, socialmente assolada

pelo desmantelamento das instituições, a alternativa era revigorar os antigos modelos de

integração comunitária. Nas aldeias agrárias da Galiléia, a família fornecia um ambiente

singular usado para reeducar a consciência coletiva.

De um lado, os governantes mergulhados num mar de corrupção e privilégios, de

outro, a imensa maioria da população, refém das altas taxas de impostos e tendo que produzir

para sustentar as classes dirigentes. Eles estavam divididos por um enorme abismo social.

Nessa perspectiva precisamos compreender que a presença do reino de Deus

intermedeia a libertação de Deus a uma campesinato judaico desencorajado e ofereceu alguma

orientação fundamental para a renovação do povo.

Jesus aproveitou a desestrutura patente da classe rural para arregimentar pregadores

viandantes. Fazendo profetas de camponeses e pescadores expropriados, ele formou um

movimento que se dedicava às curas, exorcismos, e à proclamação do Reino de Deus, que tinha

uma possível perspectiva escatológica mas, acima de tudo, de mudança em sua realidade

histórica.

Eles diziam que chegariam novos tempos, em que não haveria imperadores, tetrarcas

ou centuriões, mas uma grande irmandade aldeã guiada pelo próprio Deus, e onde as injustiças

seriam extintas através da perfeita prática da Lei. Também diziam que esse tempo já se

aproximara, que o tempo já estava cumprido (Mc 1,15), dando sinais disso por meio de curas

milagrosas.

Quem cresse deveria começar a experimentar o Reino de Deus imediatamente,

fazendo ao próximo o que gostariam que também lhes fizessem e não se sujeitando a homens

que no momento eram os primeiros, mas que logo seriam os últimos (Mc 10,31).

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Aproximadamente dois anos após dar vida a um movimento que adaptara a

expectativa do reino de Deus ao cotidiano dos camponeses, Jesus também é condenado como

subversivo e assassinado por morte de cruz. Independente das interpretações soteriológicas ou

cristológicas dadas à sua morte, não podemos nos esquecer que ela foi, assim como a do seu

predecessor, João Batista, um ato de contenção de uma ameaça política real. A tradição cristã

nem sempre entende o que o Império Romano viu de pronto: que o Reino de Deus não era

outra coisa senão a proposta de uma teocracia, cujo estabelecimento exigia a destruição do

Império.

Na Galiléia, os camponeses que ouviram Jesus talvez só tenham sabido de sua morte

por ouvir falar, e mantiveram com maior fidelidade as características originais do programa de

renovação social da comunidade camponesa por meio da Lei interpretada através do amor ao

próximo.

Os pobres, ou seja, o povo galileu, principal alvo de suas pregações e curas em

Marcos, que é esmagado por impostos e pela violência policial romana, é digno de entrar no

reino de Deus proposto por Jesus. Um reino de igualdade social, justiça, equidade onde Deus

é Senhor e dono de tudo.

O cristianismo, a partir dos apóstolos e principalmente a partir de Constantino, ganhou

contornos e perspectivas diferentes do que Jesus pretendia em seu programa reino de Deus. O

Cristianismo se alastrou de forma rápida no desenrolar da história depois da morte de Jesus na

cruz, como diz Rodney Stark 17:

Nos vinte anos depois da crucificação, o Cristianismo foi transformado de

uma fé da Galileia rural em um movimento urbano que ultrapassou os limites da

Palestina. No começo ele esteve a cargo de pregadores itinerantes e pelas bases cristãs

que dividiam sua fé com seus parente e amigos. Logo eles foram alistados por

missionários profissionais, como Paulo e seus associados. Assim, enquanto os

ministros de Jesus foram primariamente às áreas rurais e arredores das cidades, o

movimento de Jesus rapidamente se alastrou para as cidades greco-romanas.

Quem sabe, poderíamos em uma outra pesquisa, analisar em qual momento, ou qual

motivo, houve tamanho distanciamento do movimento de Jesus com a ideologia da tradição

cristã naquele contexto pós pascal, principalmente a partir do século IV d.C com a conversão

do Imperador Constantino. E o por que Paulo quase não tratou da temática reino de Deus em

seus escritos já que é muito presente nos ditos de Jesus (Fonte Q).

17 STARK, Rodney. Cities of God; The Real Story of How Christianity Became an Urban Movement

and Conquered Rome. New York: HarperCollins, 2006. p. 25 (tradução nossa)

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O que essa pesquisa nos deixa também como inspiração para outras reflexões é uma

análise histórica-teológica, à luz da presente metodologia utilizada nesse trabalho

monográfico, das diferentes facetas do Reino de Deus nas outras tradições sinóticas pois cada

uma carrega em seu conteúdo teológico ideologias e discursos diferentes.

Vale ressaltar que nesta presente pesquisa não pretendíamos passar uma imagem de

um certo apoio ideológico marxista tampouco um discurso alinhado com a Teologia da

Libertação caminhamos por uma metodologia histórica crítica para mostrar que possivelmente

o projeto de reino de Deus não é apenas uma esperança escapista de um post-mortem que, por

consequência, desengaja o indivíduo desta realidade que o mundo apresenta com suas

desigualdades, atrocidades, guerras, disputas egoístas de poder, ganância, etc.

Esse projeto reino de Deus anunciado por Jesus na tradição marcana, se visto dentro

dessa ótica que apresentamos, nos estimula a caminharmos para o desenvolvimento e

construção de um mundo melhor, mais humano.

Os cristianismos construídos ao longo da história, salvo suas exceções, assimilaram,

principalmente no Ocidente, a proposta de Jesus do reino de Deus de forma muito apolitizada,

voltada para um futuro escatológico e com profundos traços da filosofia plantonista e

neoplatonista, isso digo a grosso modo, é claro.

Os pobres hoje, em mundo globalizado e com uma política capitalista, são os que

vivem à margem de uma oportunidade concreta na vida de viverem com esperança e com

dignidade. Estes devem ser o alvo do reino de Deus sonhado por Jesus em seu contexto e

continuado pelos cristãos. Isso extrapola um projeto (ou ideologia) político de esquerda.

Nesse sentido, o reino de Deus nos inspira a nos engajarmos em uma tarefa na

realidade de melhoria social, igualdade e paz mundial. Isso deve projetar a igreja cristã para

frente, pois a salvação começa aqui e o reino de Deus também.

Que esse desafio que se iniciou na mente de Jesus, como vimos nesta pesquisa, em

seus discursos contra a truculência que o Império Romano implementou sobre os camponeses

judeus do Mediterrâneo antigo se manifeste através de homens e mulheres que sonham, mesmo

que seja para alguns uma mera utopia, o sonho do reino de Deus que traz consigo não uma

mera luta de classes ou uma irrelevante esperança política de libertação dos pobres em um

mundo de política neoliberal, mas sim um projeto maior, a saber: um tempo de paz, igualdade

e justiça entre todos os homens, pois esse é o sonho de Jesus ao tratar sobre o Reino de Deus

nesta perícope estudada.

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