jesus ‘nÃo’ morreu pelos pecados: epistemologia e

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1001 , Goiânia, v. 18, p. 1001-1021, 2020. Eduardo Sales de Lima** JESUS ‘NÃO’ MORREU PELOS PECADOS: EPISTEMOLOGIA E INTOLERÂNCIA* ––––––––––––––––– * Recebido em: 30.01.2020. Aprovado em: 15.07.2020. ** Doutor e Mestre em Teologia (Faculdades EST), com ênfase em Biblia. Professor de Bíblia no Unicesumar. E-mail: [email protected] DOI 10.18224/cam.v18i3.8022 Resumo: no desenvolvimento dos cristianismos, a interpretação sacrificial da morte de Jesus, utilizada como mensagem de esperança, pode ter contribuído como atenuadora da violência oculta nos instrumentos reguladores da ‘tolerância/ intolerância’. Para compreender esse fenômeno estudaremos o tema da ‘tole- rância/intolerância’ seguindo premissas epistemológicas. O método de análi- se observou relações epistemológicas entre a ‘coisa-social’ e a Bíblia. Assim, a pesquisa em perspectiva pós/de-colonial, desenvolveu-se, primeiro, sobre a relação das epistemologias com a ‘coisa social’; em seguida, relacionou pesquisas e leituras bíblicas identificando dominação/resistência; em tercei- ro, a partir de leituras do exílio babilônico, textos paulinos e dos evangelhos, identificou-se outra epistemologia possível. Por fim, pretende-se verificar que, num sentido geral, ‘tolerância/intolerância’ estão comprometidas com epis- temologias legais, mas também com possíveis epistemologias e resistência às lógicas totalitárias. Palavras-chave: Tolerância. Intolerância. Bíblia. Epistemologia. Relações Sociais. A partir da formação e desenvolvimento das comunidades cristãs, preservou-se diferentes narrativas da morte de Jesus, primeiro, nas tradições bíblicas e, posteriormente, nos sistemas teológicos. Em ambos a teologia cumpriu um papel harmonizador, fornecendo sentido para a realidade. Assim, um assassinato violento e cruel como a crucificação tornou-se uma mensagem de esperança e inclusão. Essa harmonização se deu pela aplicação do ideal sacrificial/ purificador comum nas epistemologias do mundo antigo. O sacrifício para

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1001 , Goiânia, v. 18, p. 1001-1021, 2020.

Eduardo Sales de Lima**

JESUS ‘NÃO’ MORREU PELOS

PECADOS: EPISTEMOLOGIA

E INTOLERÂNCIA*

–––––––––––––––––* Recebido em: 30.01.2020. Aprovado em: 15.07.2020.

** Doutor e Mestre em Teologia (Faculdades EST), com ênfase em Biblia. Professor de Bíblia

no Unicesumar. E-mail: [email protected]

DOI 10.18224/cam.v18i3.8022

Resumo: no desenvolvimento dos cristianismos, a interpretação sacrificial da morte de Jesus, utilizada como mensagem de esperança, pode ter contribuído como atenuadora da violência oculta nos instrumentos reguladores da ‘tolerância/intolerância’. Para compreender esse fenômeno estudaremos o tema da ‘tole-rância/intolerância’ seguindo premissas epistemológicas. O método de análi-se observou relações epistemológicas entre a ‘coisa-social’ e a Bíblia. Assim, a pesquisa em perspectiva pós/de-colonial, desenvolveu-se, primeiro, sobre a relação das epistemologias com a ‘coisa social’; em seguida, relacionou pesquisas e leituras bíblicas identificando dominação/resistência; em tercei-ro, a partir de leituras do exílio babilônico, textos paulinos e dos evangelhos, identificou-se outra epistemologia possível. Por fim, pretende-se verificar que, num sentido geral, ‘tolerância/intolerância’ estão comprometidas com epis-temologias legais, mas também com possíveis epistemologias e resistência às lógicas totalitárias.

Palavras-chave: Tolerância. Intolerância. Bíblia. Epistemologia. Relações Sociais.

A partir da formação e desenvolvimento das comunidades cristãs, preservou-se diferentes narrativas da morte de Jesus, primeiro, nas tradições bíblicas e, posteriormente, nos sistemas teológicos. Em ambos a teologia cumpriu um papel harmonizador, fornecendo sentido para a realidade. Assim, um assassinato violento e cruel como a crucificação tornou-se uma mensagem de esperança e inclusão. Essa harmonização se deu pela aplicação do ideal sacrificial/purificador comum nas epistemologias do mundo antigo. O sacrifício para

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purificação possibilitava a aceitação e inclusão dos pecadores (os gregos1), tornava-os aceitáveis para grupos judeus-cristãos e para alguns grupos do judaísmo.

Os testemunhos bíblicos da morte de Jesus que não foram harmonizados por sistemas teológicos interpretaram-na a partir de outro olhar, mais histórico, como ato de violência (período em que não havia uma cristologia elaborada). Nessa linha, também surgiram interpretações que identificaram o martírio de Jesus como “sofrimento dos profetas”, como tragédia e violência contra o clamor por jus-tiça. Outra leitura, seguiu o “esquema de contraste” (BARTH, 1997, p. 29-30), onde a ressurreição é uma resposta de Deus à violência da cruz (At 2,23s; 3,13s; 4,10; 5,30; 10,39s; 13,27s). Essas leituras podem ser lidas conforme 1Ts 2,15, que usa o termo apokteinanton (mataram), e At 7,52, que usa os ter-mos apekteinan (mataram) e foneis (assassinos), termos esses que enfatizam o caráter criminoso do ato. Nos evangelhos, as parábolas também não tratam da “morte” de Jesus como uma oferta para purificação, mas como um ato vio-lento e criminoso (Mt 21, 38-39). Mesmo com essas ênfases, a interpretação trágica da “morte” de Jesus não prosperou diante das diversas teologias que espiritualizaram-na.

A interpretação espiritualizada da morte de Cristo pelos nossos pecados (1Co 15,3), usada por Paulo para aproximar as comunidades judaicas e gentílicas (Rm 5,6-10), auxiliou sistemas de ‘tolerância/intolerância’2 na ocultação da violência no sagrado. Serviu criando sistemas de tolerância que tornam a intolerância aceitável. Isso pode ser notado na alteração da linguagem descritiva da narra-tiva onde o termo “assassinato” é substituído por “morte” (Rm 5,10) e também no abandono das memórias da intolerância levada ao extremo na cruz pelas memórias da graça como tolerância divina (o assassinato violento na cruz tor-nado em símbolo de perdão). Essa interpretação espiritualizada ocultou a vio-lência e criminalização da lei3 ao identificar a “morte” de Jesus com ideais de justiça divina (Rm 5), promovendo a ‘aceitação’ a violência como vontade de Deus. A intolerância legitimada pela tolerância.

Nesse artigo, a compreensão do sentido de ‘tolerância/intolerância’ é o tema princi-pal. A leitura pela via religiosa justifica-se pelas epistemologias que configu-raram os imaginários cristãos em todo o mundo. Assim, para essa compreen-são, pretende-se um olhar para a Bíblia a fim de ler outras histórias possíveis e, por meio de análise comparativa seguindo pressupostos pós/de-coloniais, confrontar parcialmente os conceitos e epistemologias de imaginários bí-blicos relacionados com propostas de ‘tolerância/intolerância’. O objetivo é entender como leituras bíblicas podem ter influenciado as epistemologias que guiam o cenário atual na configuração do sentido de ‘tolerância/intole-rância’.

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A ‘COISA SOCIAL’: FUNDAMENTOS PARA ‘TOLERÂNCIA/INTOLERÂNCIA’

Os imaginários culturais fundamentam os mais variados discursos atuais. Hannah Arendt (1993), numa reflexão provocativa, afirmou que o preconceito é um sistema de proteção necessário para se viver em sociedade. Ao iniciar qualquer relação, os conceitos são articulados antecipadamente para regular o discurso; dessa forma, o “preconceito desempenha um grande papel na ‘coisa social’ pura; na verdade, não existe nenhuma estrutura social que não se baseie mais ou menos em preconceitos” (ARENDT, 1993, p.10). Assim, essa ‘coisa social’ influencia e define a substituição do juízo como ato pessoal pelo preconceito como juízo já formatado. São os elementos históricos pessoais e coletivos que formatam os preconceitos a partir de juízos que antecedem às relações. Essa afirmação pode ser comprovada a partir do imaginário que se formou, por exemplo, sobre o livro The Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde (O estra-nho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde), de Robert Louis Stevenson, que narra a história de um homem que ‘trombou’ com uma adolescente e foi tratado como um monstro. Entretanto, a narrativa de Stevenson recebeu diversas traduções com outro título mais influente: “o Médico e o Monstro”. Stevenson, por outro lado, não está escrevendo um livro de terror, mas uma denúncia da sociedade como responsável pela criação do “Monstro”. Nessa linha, o preconceito uti-liza um juízo formado, ‘aceito’ socialmente como seguro e se opõe a outros juízos, tornando-se base comum para uma determinada relação. O perigo não é o preconceito em si, mas a ausência de juízo.

Essa ‘coisa social’ forma e articula as visões de mundo, epistemologias, cosmologias e teologias, resultando na coordenação controlada da vida. Segundo Himke-lammert (1984, p. 28), em religião, essa relação pode ser percebida na iden-tificação dos discursos políticos com a razão utópica presente na esperança religiosa. Nos discursos prontos, as metanarrativas4, tornam-se instrumentos de poder mediante a regulação do conteúdo da ‘verdade’ (FOUCAULT, 2014, p. 54). Nesse papel, a ‘coisa social’ tem forte poder alienante e legitima-se pela confiança no contrato social onde o direito pessoal é delegado ao Estado a fim de regular a vida (HOBBES, 2005, p. 82). Contudo, o Estado também não é algo em si, recebe sentido de outras estruturas que o compõem, como o ‘poder do capital’5, considerado a principal estrutura reguladora do Estado e, por consequência, da vida.

Nesse espaço de formação ideológica, formam-se os diferentes sentidos para o concei-to de ‘tolerância/intolerância’. Nas formações conceituais, Arendt (1993, p. 28) identificou uma posição dupla: primeiro, as estruturas de poder impõem suas lógicas para controle da vida e, segundo, a pessoa assume uma postura “idiota” (superlativo de idion – próprio, individual), onde só percebe e se im-

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porta consigo mesma. Situação em que a ‘coisa social’ estabelece uma relação de dominação ideológica.

Diante desses argumentos, resulta que a ‘coisa social’ também influenciou os cris-tianismos. As imposições dos interesses das estruturas de poder encontraram no “idiotismo” (idion) social uma possibilidade de traduzir a fé cristã, antes vivida na esfera pública, em perspectivas metafísicas, seguindo leituras priva-das da realidade. A imposição dos juízos formatados desenvolveu formas de anular o juízo individual e passou a fornecer o sentido pronto para os limites da ‘tolerância/intolerância’, uma proposta de regulação epistemológica. Com isso, a história da humanidade assistiu a domesticação (política) do que seria o ‘espírito cristão’ (preservado nos evangelhos).

EPISTEMOLOGIA LEGAL: O SENTIDO DE ‘TOLERÂNCIA/INTOLERÂNCIA’

A compreensão do sentido de ‘tolerância/intolerância’, em si, já é algo complicado. Em dezembro de 2019, em contexto brasileiro, surgiu uma polêmica sobre o filme A primeira Tentação de Cristo, do programa “Porta dos Fundos”, que propôs leituras dos evangelhos entendidas por algumas comunidades cristãs como ofensivas. A questão chegou a ser tramitada nos tribunais. Qual foi a postura de intolerância? Dos cristãos contra a liberdade de expressão cultural ou do “Porta dos Fundos” contra uma expressão de fé? Outro exemplo foi a solicitação de retirar os crucifixos presentes nas paredes dos órgãos públicos (não apenas no Brasil, mas também em outros países), uma intolerância com as outras religiões, ou intolerâncias das outras religiões com o cristianismo?

Uma tentativa de delimitação do sentido de ‘tolerância/intolerância’ foi desenvolvida por Rainer Forst (2009, p. 15), ao defini-la como um conceito dependente. Depende do contexto, da objeção, do componente de aceitação, dos limites especificados, da vontade e aceitação e, por isso, gerador de duas concepções possíveis: a de permissão, onde tolerar é permitir a diferença e, a concepção de respeito, onde tolerar é respeitar as diferenças. Forst analisou diversos con-ceitos filosóficos sobre o tema, mas não desenvolveu análise epistêmica na formação, elaboração e aplicação do conceito.

O artigo de Aurenéa Maria de Oliveira (2008) aborda o tema, considerando as altera-ções epistemológicas, muito embora não proponha essa abordagem. Seu olhar identifica as alterações sociais que influenciam o sentido de ‘tolerância/in-tolerância’ e por isso precisam ser revistos em códigos consagrados, como a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Outro artigo relevante sobre a temática foi elaborado por Clodoaldo Meneguello Car-doso (2003), que aborda os limites para tolerância, pensados de uma perspec-tiva latino-americana. Desenvolve sua compreensão do termo ‘tolerância/into-

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lerância’ a partir das ideias de identidade e diversidade religiosa, enfatizando a declaração do Encontro sobre Tolerância na América Latina e no Caribe de 1994 no Rio de Janeiro. Apresenta um sentido de tolerância comprometido com as culturas e a história de exploração dos povos latino-americanos e cari-benhos6. O fundamento desse ideal encontra-se numa epistemologia plural que valoriza e respeita a diversidade e identidade de cada povo, livre das formas de dominação econômicas e ideológicas (CARDOSO, 2003, p.128).

Como nos artigos citados acima, as propostas de reflexão sobre o tema da ‘tolerân-cia/intolerância’ remetem aos parâmetros sociais estabelecidos. Suas análises tratam da ‘tolerância/intolerância’ em relação ao parâmetro legal/vivencial7, delimitador das definições, limites e padrões para a ‘tolerância/intolerância’. Verificou-se que a epistemologia foi considerada necessária para compreensão e elaboração dos conceitos de ‘tolerância/intolerância’. A proposta decolonial de Cardoso diferenciou-se por entender a necessidade de filtrar a ‘coisa social’ pelo contexto latino-americano e caribenho para elaboração de conceitos re-gulados e reguladores coerentes.

A teologia, como campo de pesquisa, tem na Bíblia um banco de memórias com textos das estruturas de poder e dos movimentos de resistência gerados em momen-tos de dominação colonial. Nestes é possível identificar flutuações epistemo-lógicas nas disputas de poder sobre o sentido do termo ‘tolerância/intolerân-cia’. Nos resquícios escavados dos antigos reinos (cuja tradição é fundamental para composição da Bíblia) encontramos uma relação de proximidade entre o templo e o castelo do rei, onde a religião funcionava como aparato ideológi-co e atuava tanto na legislação, como na imposição de penalidades sobre os pecados (LIVERANI, 2005, p. 264). Essa atuação também estava relacionada com os mecanismos de supressão do castigo, como o perdão e ofertas de paz legitimadas por sacrifícios. Tradições que deram sentido e auxiliam a compre-ensão de mundo e, por sua vez, do sentido de ‘tolerância/intolerância’ em sua relação com a lei.

Assim, na busca pelo sentido de ‘tolerância/intolerância’, a orientação epistemológica da ‘coisa social’ brasileira, ainda que delimitada pelo elemento legal, é deve-dora das influências do cristianismo colonizador europeu.

TOLERÂNCIA/INTOLERÂNCIA NA BÍBLIA: EPISTEMOLOGIAS LEGAIS

Os ideais de ‘tolerância/intolerância’ podem ser lidos na Bíblia desde o início da histó-ria do povo hebreu, eram mecanismos reguladores das relações sociais.

No pentateuco e nos livros históricos, também conhecidos como deuteronomistas (Js, Jz, Sm, Rs e, posteriormente Ed, Ne, Cr), as leis serviram de paradigma episte-mológico. Entretanto, devido à violência legitimada por sistemas de tolerância

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da intolerância, sua utilização foi questionada por profetas de resistência (Mq 3,11; Jr 8,8; 18,18). A crítica ocorreu porque as leis também não surgiram como uma grandeza final, antes, desenvolveram-se em processos sociais in-ternos e externos (ZIMMERLI, 1980, p. 80) influenciadas por epistemologias imperialistas com suas configurações coloniais conforme pode ser identifica-do, por exemplo, em Ed 7,25-26. Sistemas que forneciam uma estrutura regu-latória, em que a violação era punida como um direito do ‘Estado’. A ‘tolerân-cia/intolerância’ surge nesse sistema como uma espécie de extensão/restrição dos sistemas regulatórios, permitindo ou negando certa violação. Assim, as diferentes posturas sociais frente ao assassinato e à sonegação de impostos, por exemplo, indicam a existência de sistemas regulatórios da ‘tolerância/in-tolerância’.

Por exemplo, o consagrado texto de Gênesis 3 sobre a ‘queda’ segue a lógica de ‘to-lerância/intolerância’ a partir de um determinado sistema legal, influenciado por determinadas epistemologias imperialistas8. Nesse texto, ocorre uma apli-cação rigorosa da lei, não há espaço para tolerância (não se admitem erros) e o primeiro casal é expulso do paraíso, porque comeu uma fruta. Leituras posteriores, inclusive, teologizaram todo o sofrimento da humanidade como resultado desse ‘pecado’, o que seria a intolerância levada ao extremo. A par-tir desse exemplo, pode-se deduzir que na Bíblia há textos com influências de imaginários legais e sistemas regulatórios que relacionavam a imagem de Deus à intransigência da lei fixada textualmente, sem espaço para tolerância, perdão ou sacrifício. Essa leitura radical, totalitária/intolerante, adentrou os imaginários populares (coisa social) via religião e fundamentou sistemas jurí-dicos pela influência da moral religiosa. Dessa perspectiva, a intolerância não surge como algo errado, mas pelo cumprimento estrito da lei, espaço onde, ser intolerante não configura algo ruim, mas algo rigidamente justo9.

Para fundamentar essa proposição, podemos citar o texto de Números 15,32-36, que narra a aplicação rigorosa da lei sobre um homem que buscava lenha no sá-bado. Texto muito parecido pode ser lido na narrativa de João 8,1-11, quando uma mulher flagrada em adultério foi colocada diante de Jesus para ser julgada de acordo com a “lei de Moisés”, o que está em jogo não é o pecado, mas os sistemas de ‘tolerância/intolerância’. Atitudes que podem ser entendidas como intolerantes, mas que são previstas legalmente. Esse sentido de intolerância também pode ser lido no livro do profeta Jonas 1,9 revelando a tradição e a lei como fundamentos para animar a fé e legitimar relações de ‘tolerância/intolerância’, o que foi retratado na indisposição de grupos dentre os judeus representados por Jonas contra o povo assírio.

Ampliando a discussão, as leituras do escritor deuteronomista permitem, em algumas passagens, certa arbitrariedade no que tange às hierarquias. As ambiguidades

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da vida propiciaram o surgimento de propostas de atenuação da aplicação le-gal. Assim, foi a rigidez da lei e suas penalidades que permitiram o perdão, seja por pagamento ou por graça. As narrativas sobre o personagem Davi, por exemplo, com toda a violência e opressão ligada ao seu nome (2Sm 11, estu-pro e assassinato premeditado) são exemplos de interpretação da tolerância/graça da parte de Deus, estendidas a humanidade (Rm 4,4-9). Qual o parâme-tro para definir a ‘tolerância/intolerância’? No texto bíblico, a definição dos parâmetros de ‘tolerância/intolerância’ estava além do controle do “Estado” e das relações éticas, pois na prática, eram definidos por razões particulares, interesses e arbitrariedades regidos por quem governava.

Na atualidade, a ‘coisa social’ parece seguir os sistemas de ‘tolerância/intolerância’ bíblicos, na continuidade das relações com os sistemas legais e suas formas de atenuação dirigida por certa arbitrariedade, permitindo regalias àqueles que exercem alguma forma de controle dos sistemas de verdade impressos na ‘coisa social’. Em outras palavras, os sistemas de ‘tolerância/intolerância’ são fortemente determinados pelas formas de poder, principalmente o capital (exemplo das fianças permitindo regalias a criminosos ricos).

TOLERÂNCIA/INTOLERÂNCIA: RELEITURAS E CONFRONTOS EPISTEMOLÓGICOS

Na Bíblia, diversos textos de resistência às formas de dominação que identificaram e denunciaram as regalias nos sistemas legais foram preservados (profetas dos séculos VII-VIII, por exemplo). Dentre as principais denúncias está a arbitra-riedade na aplicação do conceito ‘tolerância/intolerância’ denunciada junto com as manipulações do sagrado.

A denúncia do profeta Miquéias exemplifica a relação entre necessidade, manipulação legal e justificação religiosa:

Os seus cabeças dão as sentenças por suborno, os seus sacerdotes ensinam por interesse, e os seus profetas adivinham por dinheiro; e ainda se encostam ao SENHOR, dizendo: Não está o SENHOR no meio de nós? Nenhum mal nos so-brevirá (Mq 3,11).

Os sistemas legal e religioso estavam subjugados a uma lógica de poder que ditava o sentido. Não adiantava confrontar os sistemas jurídico e religioso, pois eram manipulados por estruturas maiores que coordenavam a epistemologia: o in-teresse, o desejo e a ganância (NIETZSCHE, 2011, p.13), vozes em conluio que abafavam e abafam o grito dos inocentes. Essa forma de manipulação do sagrado em favor de uns e condenação de outros pode ser lida nos textos em

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que os profetas questionavam o perdão como ‘mecanismo’ de tolerância. Sua crítica auxilia na compreensão de que nem toda tolerância é saudável e justa, o que concorda com a crítica de Hanah Arendt apresentada acima. Assim, eles identificaram mecanismos de tolerância10 que privilegiavam uma minoria em detrimento da maioria explorada11. No texto de Isaias 1,15-18, por exemplo, o perdão foi tratado como um sistema de manipulação da tolerância divina me-diante o sacrifício, permitindo a manutenção da injustiça e violência para com o povo. Essa denúncia também pode ser lida em Jeremias 7,1-16. Nessa pers-pectiva, o perdão não era um instrumento de libertação, mas um mecanismo de tolerância legal pela aceitação da violência. Por isso, Jeremias 7,16 apresenta a palavra de Deus como denúncia, pedindo que “não intercedas por este povo, nem levantes por ele clamor ou oração, nem me importunes, porque eu não te ouvirei”, uma crítica a utilização do perdão para legitimação da violência. Dessa forma, a preocupação com as “intolerâncias cotidianas” desaparecem frente a tolerância com sistemas de legitimação da exploração e violência.

Dessa forma, os profetas questionaram a episteme legal como fundamento para propo-sição de ‘tolerância/intolerância’. Criticaram a partir de outra epistemologia, baseada num ideal zeloso da vida e da justiça pela aliança de irmãos (ex. Am 1,9). O cuidado de irmãos, mensagem central nos profetas de resistência no Primeiro e Segundo Testamentos, deveria ser o fundamento para o sentido do termo ‘tolerância/intolerância’, como esboça a denúncia de Miquéias 3,1-3:

Disse eu: Ouvi, agora, vós, cabeças de Jacó, e vós, chefes da casa de Israel: Não é a vós outros que pertence saber o juízo? Os que aborreceis o bem e amais o mal; e deles arrancais a pele e a carne de cima dos seus ossos; que comeis a car-ne do meu povo, e lhes arrancais a pele, e lhes esmiuçais os ossos, e os repartis como para a panela e como carne no meio do caldeirão?

A crítica dos profetas também utilizou termos comuns ao discurso da episteme domi-nante. Eles articulavam a intolerância divina como discurso contra os opresso-res do povo, principalmente para defender o direito de irmãos. Como a tolerân-cia divina era um discurso articulado pelas elites para manutenção dos sistemas de exploração violentos (escravidão comercial), os profetas de resistência cla-maram pela intervenção divina, de forma intolerante/justa-retribuição, contra esses que manipulavam o imaginário de Deus para tirar vantagem do povo, explorando e violentando os mais fracos (ex. Am 1-2). Nessa perspectiva a intolerante intervenção divina era necessária.

Assim, a Bíblia, o livro mais lido no mundo, inundou o imaginário popular com ideais de ‘tolerância/intolerância’. Entrementes, as diferenças epistemológicas e a arbitrariedade também confundiram o sentido do termo e sua relação com

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o sagrado. No fim, as propostas da episteme fundada nas leis e nos sistemas arbitrários desenvolveram-se muito mais, em razão da influência estrutural a serviço do aparato legal que, inclusive, tinha na Bíblia o seu mais forte aliado.

TOLERÂNCIA/INTOLERÂNCIA: CONTEXTOS DE IMIGRAÇÃO E EXÍLIO

Diante desses conflitos conceituais, o povo judeu, principalmente devido à realidade de exílio, desenvolveu releituras para auxiliar em situações de imigração e sofrimento. Um exemplo na Bíblia é a ênfase em apoiar e cuidar de quem era do mesmo povo. No Pentateuco, temos outros exemplos, várias leis que foram desenvolvidas e adaptadas de forma a articular a tolerância segundo a episte-me dirigida pelo cuidado, pela aliança de irmãos, independe da moralidade. A partir dessa leitura, também foram possibilitadas relações de cuidado para com os estrangeiros (Lv 19,33-34; Dt 10,19), proibição da cobrança de juros (Ex 22,25; Lv 25,36-37; Dt 23,19), atenção para com as necessidades sociais, inclusive, cuidados para com os escravos, arrendamento de terras, sistemas de resgate (Ex 23,11; Lv 25,23-34; Dt 15,11; 32,36)12. Diversas questões rece-beram releituras tolerantes (relativizações da lei) fundadas no cuidado como princípio epistêmico. No começo essas regras estavam voltadas apenas para apoio à comunidade no exílio e retorno do povo, mas, em situações pontuais, foi estendida a outros povos (testemunhos presentes no segundo e terceiro Isaias 40-66). Entretanto, é mais fácil entender que as estruturas de poder valorizaram os sistemas que privilegiavam minorias em detrimento do povo.

A multiplicidade dos judaísmos e a dominação grega proporcionaram maior amplitude para tratamento do conceito de ‘tolerância/intolerância’ no texto bíblico. No texto de Macabeus, as narrativas relacionadas com a dominação grega promo-veram movimentos de radicalização contra os gregos (1Mc 7) e, possivelmen-te, contra outros judaísmos aproximados da cultura grega. Robertson (1920, p. 23) identificou 26 (vinte e seis) ramos diferentes dentro do judaísmo, o que possibilitou leituras diversas. A radicalização por parte de Anthioco contra os costumes judaicos (PERDUE; CARTER; BAKER, 2015, p. 185) propiciou o contexto para o desenvolvimento de posturas intolerantes contra os gregos. Nessa perspectiva, o rigor da lei servia de fundamento para algumas comuni-dades de fé (p.ex. grupos radicais, inclusive, errantes), que identificavam os gregos e sua cultura como afronta ao próprio Deus dos Judeus (At 21, 28s). De outro lado, grupos como os saduceus podem ser contados entre aqueles de maior tolerância às dominações imperialistas, o que se deve ao relacionamento político dos saduceus com os gregos e romanos.

O contexto após a dominação grega dificultou a inclusão dos gentios (gregos) nas co-munidades judaico-cristãs. A resposta de intolerância das comunidades judai-

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cas e judaico-cristãs era natural depois da intolerância que sofreram. Desde o retorno do exílio, em especial na apocalíptica, foram produzidos textos com sentimentos de vingança, desejando o rebaixamento e destruição dos povos inimigos (Sl 137,8-9; Zc 1,18-21). Esses textos não podem ser lidos dentro da dinâmica de ‘tolerância/intolerância’ sem considerar a influência do contexto violento em que foram produzidos.

O imaginário contextual de elaboração da Bíblia envolve vários conflitos, não apenas da dominação grega, mas também do imperialismo romano. Nesse cenário, vá-rios movimentos de resistência, principalmente zelosos pelas tradições e pela lei judaica, insurgiram e foram ‘pacificados’ pela imposição da pax romana13. Nesse contexto, a radicalidade da lei como padrão ideológico e classificatório foi justificada frente ao sentimento de vingança para com os dominadores/exploradores do povo.

TOLERÂNCIA/INTOLERÂNCIA: PAULO E A EPISTEMOLOGIA DA GRAÇA

Quanto ao tema da ‘tolerância/intolerância’, a Bíblia não representa um todo harmô-nico. No contexto de escrita do Segundo Testamento, a epistemologia legal e as lógicas arbitrárias exerciam forte papel na ‘coisa social’. Dessa feita, Paulo escandaliza a comunidade ao questionar a lei como sistema regulador da vida (Rm 2,12-27; 3,19-31; 4,13-16; 6,14-15; 7; 8,2)14.

Havia uma ferida aberta na relação greco-judaica, o que fez da ação paulina uma pas-toral, antes de uma teologia. Paulo coloca-se entre judeus e gentios com a difícil missão de aproximá-los (STENDAHL, 1976, p. 22s). Nesse período não existia cristianismo, e os judeus-cristãos eram considerados (também se consideravam) como um ramo do judaísmo. Assim, herdaram a estrutura e imaginário da cultura judaica, com um agravante: as diferenças e as regulações político-ideológicas que surgiram durante a dominação grega e no período dos Macabeus podem ter dificultado as relações entre judeus-cristãos e gen-tios (gregos). Assim, com a proposta de dominação cultural (helenização), as leituras teológico-legitimatórias identificaram os estrangeiros, em especial, os gregos, como impuros (At 21,28s); outros textos que apresentam conflitos nas comunidades, como Mt 10,5-6, são leituras que também configuravam o imaginário à época dos textos paulinos.

A resposta de Paulo para essa crise judaico-cristã e gentílica foi a ‘Graça’, não como teologia, mas como prática de tolerância frente às diferenças culturais, a Graça como aceitação. As crises que surgiram do confronto judeu-cristão com os gentios encenaram um contexto de fronteira (MIGNOLO, 2015) e disputa por território ideológico. Diante disso, Paulo desenvolve o conceito de ‘Graça’ como resposta para a realidade de fronteira onde as comunidades judaico-

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cristãs viviam. Sua proposta apresenta uma releitura da lei quanto às posturas intolerantes de ambos os povos (Rm 1-3)15. Sem romper com as características culturais e sociais de judeus e gregos, Paulo preserva a fronteira como local teológico de identificação, ou seja, há diferenças, mas não perante Deus. Assim, não rompe com as características culturais individuais, mas identifica um novo local onde as diferenças de ambos são equalizadas, um espaço de “Graça”. Com isso anuncia outra epistemologia para o conceito de ‘tolerância/intolerância’ retomando o cuidado e valorização do outro (1Co 10,23).

O ‘afrouxamento’ da lei nos textos de Paulo pode estar ligado à ideologia de dominação. A crítica era contra o uso epistêmico de um sistema legal, como lógica reguladora da vida16. Seu enfraquecimento era necessário para que a vida surgisse como princípio normativo. Nesse sentido, podemos entender as citações de 2Coríntios 3,7-18, onde a lei é chamada de “ministério (diakonía) da morte” (v.7) e “ministério da condenação” (v.9). O problema não é a lei, mas a disposição intolerante para com as violações da lei. Nessa proposta, a utilização condenatória da lei seria substituída por uma nova disposição da parte de Deus que não nos vê a partir da lei, mas a partir de Cristo como padrão contra-epistêmico (v.18), uma proposta de epistemologia da Graça em resposta a epistemologia legal. Essa afronta de Paulo ao controle do sistema legal também era uma proposta de releitura do conceito de tolerância. Ao contestar a lei como princípio classificatório, integrou toda humanidade na relação com Deus (relação de tolerância Rm 3,25). Deus não se relaciona com a humanidade por um sistema legal, mas por Graça. Sua proposta rompe com as epistemes de controle baseadas em classificações étnicas, sociais, regionais, religiosas e de gênero17, a proposta de Paulo decolonializa o imaginário de Deus.

Essa leitura de fronteira pode ser identificada, por exemplo, em Romanos 14 e 15,1-7 como fundamento para uma teologia da tolerância. Nesse trecho, os textos não são desenvolvidos segundo a retórica grega, mas como leituras prático-pasto-rais. A episteme que orienta o sentido de ‘tolerância/intolerância’ vai além da relação legal e se propõe a cuidar dos grupos judaico-gentílicos.

Nesse texto de Paulo, identificamos princípios de outra episteme para nortear o conceito ‘tolerância/intolerância’: Primeiro, diferente da episteme legal (influenciada pela riqueza e pelo poder), a tolerância é desenvolvida a partir da inversão e justaposição das relações de poder, onde os “fortes” devem suportar os “fracos” (Rm 14,1; 15,1). Essa inversão, também pode ser lida no evangelho de Lucas 10,25-37, na parábola conhecida como o “bom” samaritano, onde o ideal configurador da episteme é invertido e aquele considerado impuro é valorizado em detrimento daquele que se considerava puro. Em segundo lugar, as leis que regulamentam as relações com o sagrado devem ser respeitadas

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em cada comunidade. A relação de cada pessoa para com Deus não autoriza a intolerância com os diferentes (Rm 14,2-8). Assim, a epistemologia do cristianismo paulino não era um regime totalitarista. Para Paulo, “a fé que tens, tem-na para ti mesmo perante Deus” (Rm 14,22), não como forma de condenar os diferentes. Em terceiro, Cristo é o padrão de tolerância que deve ser usado nas relações com os diferentes, principalmente frente às injúrias e sofrimentos (Rm 15,2-3), uma proposta de inclusão e aceitação dos diferentes, mesmo que implique em sofrimento pessoal. O desenvolvimento de uma cristologia centrada na “obra salvífica de Cristo” sem considerar o enfrentamento com as estruturas de poder é, no mínimo, uma perversão do evangelho. Em quarto lugar, a tolerância deve ser desenvolvida como prática de acolhimento: “acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo nos acolheu” (Rm 15,7). Nessa proposta, Paulo apresenta outra episteme para fundamentar o sentido de ‘tolerância/intolerância’, centrada no cuidado, e não na relação legal. Essa inversão não é uma proposta idealizada, utópica, mas uma alteração da episteme que regula as ações, do direito para o dever. Cuidar do outro é um imperativo nos textos paulinos.

Devido à leitura de fronteira, Paulo rompe com o sistema lei/classificação sem negar os elementos da tradição, cultura e teologia dos judeus ou dos gregos. Paulo apresenta-se como cidadão de vários mundos e não deixa que uma epistemo-logia totalitária guie seu pensamento teológico. Antes, desenvolve uma pro-posta teológica, onde a morte de Jesus “para perdoar os pecados” (BARTH, 1997, 112ss) é uma afronta a epistemologia legal como sistema classificatório totalitário, possibilitando a inclusão dos gentios na aliança com Deus sem a obrigatoriedade de cumprimento da lei mosaica. Assim, a epistemologia le-gal, voltada para lei como paradigma de direito que sustentava os limites da ‘tolerância/intolerância’ deveria ser substituída pela epistemologia da graça, voltada para o cuidado e a vida como paradigmas do dever.

OS EVANGELHOS: JESUS NÃO MORREU POR NOSSOS PECADOS

Nos evangelhos, o sentido de ‘tolerância/intolerância’ está relacionado com o testemunho da comunidade sobre a ação de Jesus e as perseguições que sofreu/sofreram. Para essa compreensão, as narrativas da morte de Jesus servem de paradigma. As elaborações das teologias sobre a morte de Jesus desenvolveram-se com a for-mação das comunidades cristãs em seus diversos contextos. Nas cartas paulinas, as elaborações teológicas sobre a morte de Cristo já podiam ser lidas e, prova-velmente, faziam parte das reuniões litúrgicas da comunidade, como ‘a morte de Jesus por nossos pecados’ conectada, inclusive, com a Ceia do Senhor.

Entretanto, as leituras dos evangelhos sinóticos não desenvolvem as explicações sacri-

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ficiais da morte de Cristo permitindo uma possível interpretação ‘histórica’. As poucas afirmações sobre ‘a morte de Cristo pelos nossos pecados’ e, inclu-sive, o pouquíssimo uso do termo ‘pecado’ nos evangelhos sinóticos apontam para outra direção na interpretação comunitária. O evangelho de João também é uma testemunha importante, pois, no que difere, inclui explicações espiritu-alizadas da morte de Cristo, enfatizando ainda mais a sua pouca utilização dos evangelhos sinóticos.

Nos evangelhos, as poucas referências à morte sacrificial aparecem relacionadas com expressões litúrgicas, introduções e conclusões dos evangelhos. Em Mateus 1,21, o nome de Jesus está relacionado com a missão de “salvar seu povo dos pecados deles”; na celebração da “ceia do Senhor” (Mt 26,28), faz-se uma referência ao “sangue” da nova aliança derramado em favor de muitos, “para remissão de pecados”. No evangelho de Marcos 14,24, o sangue é derramado em “favor de muitos” e, em Lucas 22,20, é “derramado em favor de vós”. No evangelho de Lucas (como Mateus), aparece na identificação de Jesus com a missão de “redimir o povo dos seus pecados” (Lc 1,77). Em Lucas 24,47, a prática comunitária de “pregar arrependimento para remissão de pecados a todas as nações” e, em João 1,29, é “o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Não há leituras de fronteira, nem compreensão do sacrifício de Jesus para purificação e unificação de dois povos. A crise entre as comunidades gen-tílica e judaica desenvolveu-se em outra perspectiva, e a graça como tolerância para com os gentios (em relação à lei de Moisés) recebe um tratamento mais distanciado, perdendo parte do acento da teologia paulina.

As consequências da Guerra Judaica acirraram as crises entre judeus e judeus-cris-tãos, encenando um ponto de ruptura (Jo 9,22; 12,42; 16,2). Theissen (2009, p.226s) e Stegemann e Stegemann (2004) apontam para um momento de rom-pimento entre judeus e cristãos (judeus e gentios). Com isso, é possível que a crise comunitária tenha mudado da necessidade de unidade pregada por Paulo, para necessidade de separação que estava sendo vivenciada no final do séc. I.

Diante desse novo cenário, as relações de ‘tolerância/intolerância’ seguiram em outras perspectivas. A ‘Graça’ precisava ser lida além do conceito de ‘tolerância/intolerância’ para com a lei de Moisés e além da necessidade de inclusão pregada por Paulo. Nos evangelhos18, o problema mudou de acento, ampliando o horizonte da necessidade de inclusão dos gentios nas comunidades judaicas para a reclassificação social diante das epistemologias imperialistas. Como Paulo, também buscavam leituras que não diferenciassem as pessoas diante de Deus: mulheres ou homens, escravos ou senhores, adultos ou crianças; que não diferenciassem os cargos políticos: centuriões romanos ou prostitutas, fariseus ou publicanos; as condições sociais: pobres (penes), miseráveis (ptoxoi) e ricos, muito embora essas relações sejam enfatizadas na dimensão histórico-

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social do texto. Na relação com Deus e com o próximo não poderia haver diferença, assim, os evangelhos atuam no questionamento dos parâmetros que regulavam o sentido de ‘tolerância/intolerância’ na ‘coisa social’. Dessa forma, também seguiram a epistemologia do cuidado desenvolvida nos profetas e nas cartas paulinas, mesmo que situações adversas, como as perseguições romanas contra os judeus, perseguições dos judeus contra os judeus-cristãos e dos judeus-cristãos contra os cristãos-gentios tenham tornado o contexto por demais ambíguio19.

Assim, a partir de uma leitura pós/de-colonial20 entendemos que Paulo apresentou uma teologia de fronteira, preservando as diferenças e propondo aproximações. Por outro lado, os evangelhos, inclusive Mateus com suas ambiguidades, tiveram maior dificuldade em sustentar o pensamento de fronteira (devido à Guerra Judaica), mas, ainda assim, dentre discursos de separação e crítica a grupos ju-daicos, apresentaram ideais pós/de-coloniais que questionaram a classificação social imperialista e religiosa com a defesa de propostas inclusivas (não totali-tárias). Estavam percorrendo um caminho ambíguo de amor e ódio em relação aos colonizadores, mas, ainda assim, puderam compartilhar testemunhos de compreensão do ser humano além dos parâmetros legais e étnicos limitado-res sociais da ‘tolerância/intolerância’ (STEGEMANN; STEGEMANN, 2004, p.269s).

Dessa perspectiva, os evangelhos testemunharam como as estruturas de poder, para fixar ‘fronteiras ideológicas’, agiram de forma intolerante para com os dife-rentes. Romper com as fronteiras representa rompimento com os paradigmas de controle. E isso não acontece apenas em relação às tradições judaicas, mas está presente em diversos povos onde a vivência e exclusão de uma sociedade foi/é determinada pela quantidade de acertos e erros em relação ao estatuto legal vigente.

Paulo também criticou o ideal legal como base de uma relação classificatória de Deus para com a humanidade, por que, “não há acepção” (Rm 2,11; Ef 6,9; Cl 3,25) e, com isso, propunha uma nova relação entre judeus e gentios. Nos evan-gelhos, diversas outras formas de classificação social foram questionadas e afrontadas. Os evangelhos, em seu contexto, são intolerantes com as formas de classificação social que legitimavam a violência e a exploração. Nessa postura, sua teologia foi além da inclusão na Aliança, ela adentrou a esfera pública ao questionar os fundamentos da ideologia imperialista e suas formas de explo-ração social por classificação ideológica. Para os evangelistas a epistemologia da Graça precisava ser usada para (re)configuração da ‘coisa social’.

Com a práxis e o testemunho de Jesus no meio do povo, os textos paulinos e evangé-licos apresentaram a epistemologia da Graça como proposta de transforma-ção das relações sociais. A relação não classificatória de Deus para com a

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comunidade é o paradigma para configuração das relações sociais. Com essa proposta, os evangelhos também romperam com o sentido legal aplicado aos termos ‘tolerância/intolerância’, propondo a superação das fronteiras ideoló-gicas configuradoras da identidade e da cultura. Assim, a intolerância, antes entendida como violação das formulações sociais que serviam de princípios reguladores (leis e tradições), sob a ótica dos evangelhos, é remetida a outro paradigma anterior às formulações sociais. Pela reconfiguração epistemoló-gica, a intolerância não seria decidida a partir de uma lei ou de um código social, mas a partir da própria vida como princípio maior. Nisto, também se aproximam do paradigma paulino.

ELE PERDOOU NOSSOS PECADOS, POR ISSO MORREU

Nos evangelhos, a proposta religiosa de “morte sacrificial” usada, inclusive, na teologia paulina (para leitura das comunidades judaico-cristãs), foi substituída pelo martírio do justo, que sofreu violência em razão de suas convicções (BARTH, 1997, p. 34,39). Dentre as diversas explicações da morte de Jesus, a explicação espiritualizada de morte por nossos pecados foi mais desenvolvida e propaga-da na tradição da igreja (BARTH, 1997, p.43s). Essa proposta serviu como te-ologia fronteiriça para aproximação de judeus e gentios. O sacrifício de Jesus como proposta de acesso e inclusão dos gentios era compreensível para os ju-deus que entendiam o sacrifício como sistema de purificação e perdão. Simul-taneamente, contudo, uma leitura espiritualizada da morte de Jesus, o Cristo, ocultava a opressão imperial. Leandro Otto Hofstätter (2003, p.11s) apresen-ta como a espiritualização do pecado, tratado em perspectiva particularista, oculta as violências presentes no pecado estrutural21. Nisto entende-se que a preocupação com as estruturas classificatórias sociais foi transferida para classificação da relação com Deus e a ação regulatória da ‘coisa social’ foi ocultada no discurso religioso, perpetuando a imposição legal como sistema coordenador da vida.

Dessa forma entende-se que a mensagem dos evangelhos possuía valoração subversiva em relação às ideologias de controle imperialistas. Como as relações de Deus para com a comunidade não partiam de uma estrutura classificatória baseada em elementos legais, as relações sociais também deveriam seguir esse padrão. Essa mudança de paradigma pode ser interpretada a partir das relações de Je-sus apresentadas nos evangelhos, onde a existência de fronteiras classificató-rias é enfatizada pela ação de Jesus na superação dessas fronteiras. Guiado por outra epistemologia Jesus fundamenta o sentido de ‘tolerância/intolerância’, baseado na vida, e, não na classificação social. Dessa forma, pode-se afirmar que Ele não morreu para perdoar nossos pecados (para satisfazer exigência da

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lei- episteme legal), antes, Ele nos perdoou, por isso morreu (epistemologia da graça). Para os evangelistas, não foi um pagamento para legitimação da lei, purificação ou para satisfazer a “justiça” de Deus (morreu para nos perdoar), mas um rompimento com a lei enquanto sistema classificatório. Por isso, Jesus foi assassinado para preservação da ‘coisa social’ dominante.

Os evangelhos revelam que ‘tolerância/intolerância’ são estruturas que enfatizam a lei como sistema classificatório. Dessa forma, não há solução ou interpretação que resolva ou dissolva a questão se não for tratada na base, na episteme que fundamenta essas práticas. ‘Tolerância/intolerância’ são parâmetros que preci-sam ser regulados pelo valor inerente à vida e guiados pelo ‘meu dever’ e não pelo ‘meu direito’. Isso porque a lei é regulamentada por paradigmas sociais subjugados a epistemologias exploratórias geralmente reguladas pelo desejo, vontade e ganância como padrões impostos desde as formações dos primeiros reinos/impérios22.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo é resultado parcial da pesquisa, e tratou da compreensão do termo

‘tolerância/intolerância’. O resultado foi a identificação de conflitos na definição do termo, onde a proposta dominante dirigida pela episteme sócio-econômica pode ser reconhecida por sua longa duração. Estudos recentes têm abordado os limites dessa tolerância, mas sem considerar as epistemologias que fundamentam as lógicas sociais.

Na base da formação epistemológica está a razão econômica ditando conceitos e pro-postas classificatórias. Dentre estas, as divisas de território, a posse e o direito sobre a terra etc., que atuam como parâmetros classificatórios configuradores do direito à vida. Assim, a ‘tolerância/intolerância’, subjugada ao sistema le-gal, sustenta mecanismos de violência e exclusão. Segundo essa leitura, a lei/mercado legitima o direito de construir muros territoriais para privatizar o ‘direito’ de alguns à terra e a vida.

Verificou-se que o texto bíblico serve de testemunha das disputas de poder epistemo-lógico que regem o sentido de ‘tolerância/intolerância’. Não obstante o seu distanciamento das sociedades atuais, apresenta duas propostas em epistemo-logias diferentes: a episteme legal e a episteme voltada para o cuidado. As disputas são apresentadas pelos representantes do poder que justificam seu direito de posse e exploração, contra as formas populares de resistência que apresentaram propostas de releitura em outra epistemologia, centrada na pes-soa, valorizando a vida como único princípio classificatório de valor.

As teologias exerceram papel importante nas formulações conceituais, seja recebendo ou doando sentido para a ‘coisa social’. Neste artigo, essas teologias foram

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abordadas a partir de sua função como estrutura legitimatória, onde, por vezes, podem assumir razões epistemológicas violentas, como em alguns testemu-nhos sobre a morte sacrificial de Cristo, ocultando o sentido violento e trágico da cruz.

No Segundo Testamento, os olhares de Paulo e dos evangelhos confrontaram as epis-temologias de controle, propondo outra leitura possível, guiada pelo cuidado e pela valorização da vida. Nessas propostas, a ‘tolerância/intolerância’ não é regulada pelo ‘meu direito’, mas pelo ‘meu dever’.

Em conclusão, esse trabalho serve de fonte para refletir sobre a possibilidade de outros paradigmas, assim como confrontar respostas simplistas quanto aos limites da ‘tolerância/intolerância’. Dentre as possibilidades, no testemunho bíblico, duas posições podem ser estudadas. A proposta de conciliação paulina pela preservação das fronteiras, onde ‘tolerância/intolerância’ se manifestam pelo respeito e preservação das diferenças, numa epistemologia da graça. Nela, meu dever/diaconia para com o outro sobrepõe-se ao meu direito. A segunda proposta é a dos evangelhos, que prima pela superação das fronteiras utiliza-das como paradigmas de controle social, onde a ‘tolerância/intolerância’ surge na identificação com o outro, por uma epistemologia do cuidado, onde a vida possui valor superior à epistemologia legal.

JESUS DID ‘NOT’ DIE FOR SINS: EPISTEMOLOGY AND INTOLERANCE

Abstract: In the theological development of Christianity, the sacrificial interpretation of Jesus’ death, used as a message of hope, may also have contributed to mi-tigate the violence on the cross. To understand this phenomenon we will study the theme of ‘tolerance / intolerance’ following epistemological premises. The method of analysis observed epistemologies between the ‘social thing’ and the Bible. Post / de-colonial research was developed, first, on the relationship of epistemologies and the ‘social thing’; then, he approached other research and Bible reading, identifying influences of domination / resistance; finally, the readings of Jewish exile, Pauline texts and gospels were linked to another pos-sible epistemology. It was found that, in general, ‘tolerance / intolerance’ are committed to legal epistemologies, but that it is possible to identify another epistemology in addition to the legitimate theologies of violence.

Keywords: Tolerance. Intolerance. Bible. Epistemology. Social Relationships.

Notas

1 Os textos bíblicos demonstram forte rejeição dos gregos por parte de grupos judeus-cristãos

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(Atos 6,1; 15; 21,28). Entretanto, segundo Perdue, Cartes e Baker (2015, p. 185), essa

rejeição não deve ser interpretada simplesmente como resultado da ação decolonizadora

dos Macabeus, o que Emil Schürer (1985, p. 54-55) também percebe pela identificação de

maior presença dos gregos no Israel colonizado, entendendo a radicalidade decolonizadora

vinculada mais a religião do que a sociedade.

2 A utilização de ‘tolerância/intolerância’ é uma referência ao termo enquanto temática, com

sentido de abrangência, como um sistema de ‘tolerância/intolerância’ que recebe regulação

da ‘coisa social’, podendo ter sentidos diferentes em diferentes contextos, regidos pelas

diferentes epistemologias. Assim, ‘tolerância’ e ‘intolerância’ não possuem uma definição

em si, mas definições dependentes, cuja carga valorativa depende da episteme de controle.

Para facilitar a compreensão do leitor, em diversas referências apresento os termos ‘tole-

rância’ e ‘intolerância’ ligados a termos que auxiliam na compreensão do sentido. E, nos

momentos que parecem isolados possuem sentido geral de aceitação e não-aceitação.

3 As referências à ‘lei’ são utilizadas nesse trabalho com sentido geral de sistema de normas

e condutas regulados socialmente.

4 Metanarrativa: termo usado a partir do francês métarécit e, nesse trabalho, está sendo usado

para designar as grandes narrativas que influenciaram a epistemologia mundial. Foi o

filósofo francês Jean-François Lyotard (1924-1998) quem tratou do tema em relação à pós-

modernidade, desenvolvendo a ideia de que as grandes narrativas estão sendo questionadas e

abandonadas. (LYOTARD, 2013, p. 38-9). Segundo uma leitura pós/de-colonial, percebe-se

que as grandes narrativas não acabaram, apenas deram lugar a novas metanarrativas.

5 O conceito de “poder do capital” é usado para referir ao que Karl Marx apresentou em seu

livro “O Capital” como o poder autocrático do capital. “[...] de modo que o capital, como

um legislador privado e por vontade própria, exerce seu poder autocrático sobre seus tra-

balhadores, é apenas a caricatura capitalista da regulação social do processo de trabalho”

(MARX, 2013, p.608).

6 Esse conceito para a temática da ‘tolerância/intolerância’ entende o termo a partir de uma

epistemologia crítica aos totalitarismos, uma das principais interpretações para o termo,

sendo que, em muitos textos o termo intolerância é utilizado como referência ao poder

totalitário, que não permite o diferente. Dessa perspectiva uma pessoa totalitária, que não

aceita as diferenças, é considerada intolerante.

7 A utilização da lei como parâmetro social é fundamental para compreensão da ‘tolerância/

intolerância’. A episteme nacional recebe configuração legal de forma que existem padrões

gerais de tolerância e intolerância. Por exemplo, há diferentes regimes de tolerância para

com pessoas que consomem e que vendem drogas, da mesma forma, há diferença nos re-

gimes de tolerância para as chamadas drogas lícitas das ilícitas, no tratamento de crimes

acidentais e propositais, nos crimes cometidos por menores e maiores de idade etc.

8 Para um aprofundamento sobre as influências das epistemologias imperialistas na história

de Israel, veja Perdue, Carter e Baker (2015).

9 Nesse sentido, pode-se afirmar que ser tolerante não é, necessariamente, uma virtude e, ser

intolerante, não configura um defeito. Por exemplo, não se deseja que um político corrupto

seja jugado por um juiz tolerante e que disputas sindicais sejam julgadas por juízes intole-

rantes.

10 Ver sobre relações de poder político, religioso, econômico e militar, no contexto profético,

no artigo a tese de Richter Reimer (2006).

1019 , Goiânia, v. 18, p. 1001-1021, 2020.

11 A continuidade desses mecanismos podem ser observados nos atuais incentivos fiscais

aos grandes empreendedores que conseguem empréstimos a juros baixíssimos, inclusive

com direito a anistia de dívidas (agronegócio), enquanto a população que mais precisa é

explorada com taxas de juros exorbitantes.

12 Crüsemann (2002) oferece relevantes subsídios e argumentos para compreender tradições

proféticas nesse sentido. E a análise de Brueggemann (1983) contextualiza a ação dos

profetas em parâmetros próximos aos ideais pós/de-coloniais.

13 Acerca dos mecanismos romanos para ‘pacificação’, ver Wengst (1991).

14 Tamez (1995) contribuiu significativamente na análise exegética e hermenêutica de Paulo

para o contexto latino-americano.

15 Intolerância gera intolerância. Segundo Fanon (1968, p.53) […] a violência é atmosférica,

escala aqui e ali, e aqui e ali derrota o regime colonial. Essa violência triunfante desempe-

nha não somente informador como também operativo para o colonizado.” Dessa forma, a

abordagem de Paulo reconhece a intolerância de ambos os grupos como dificultador das

relações comunitárias.

16 A disposição crítica para com a lei pode ser identificada na tradição dos profetas em Jr

8,8 e 18,18. Também eram comuns as diferenças de interpretação nos diversos judaísmos

à época dos escritos do Segundo Testamento. As possíveis relativizações da lei na prática

de Jesus registradas no evangelho de Marcos, por exemplo, como em Mc 2,27; 7,15 e 19b,

parecem não impactar a comunidade judaica, ou ter mínima influência. Nos textos paulinos,

por outro lado, o acento é mais enfático, provocando questionamentos quanto à origem da

crítica legal nas comunidades cristãs.

17 Schottroff (2008, p. 179-205) coloca referenciais hermenêuticos e epistêmicos relevantes

para releituras também de textos paulinos, principalmente no que se refere à sua pastoral-

-teologia para grupos vulnerabilizados em seus contextos.

18 Destaque-se as diferenças presentes no evangelho de Mateus em relação aos outros evangelhos.

Em perspectiva pós/de-colonial pode-se entender as classificações como resultantes das dinâmicas

de cada comunidade, uma vez que tinham desafios particulares na configuração das lógicas de

fronteira. Assim, em Mateus a pastoral assume a ambiguidade como paradigma e apresenta textos

de valorização, como a inclusão das mulheres na genealogia de Jesus (Mt 1,3-6 e 16); crítica

a leitura classificatória baseada na ‘aliança’ (Mt 3,9); a centralidade do ministério de Jesus na

Galiléia (Mt 4,12), a escolha de pescadores como discípulos (Mt 4,18) que ignora totalmente o

elemento religiosos; no cuidado, principalmente aos que sofriam diante da opressão imperialista

(Mt 5, 3-12); na purificação dos leprosos (Mt 8,2-3), na cura do servo do Centurião Romano

(Mt 8,5ss), na libertação dos endomoniados (Mt 8,28ss), em todas as curas e multiplicação de

pães, não houve classificação, muito embora a centralidade na Galiléia seja crítica ao judaísmo.

Dessa forma, o Evangelho de Mateus é o mais judaico e, ao mesmo tempo, um dos principais

críticos do judaísmo (Mt 5,11-12 e 17-20; Mt 23). Entrementes, possui leituras totalitárias, como

a necessidade de identificação de Jesus com o Messias (Mt 1,22-23;2,1-6; etc.), limitações nas

mudanças culturais, como as restrições alimentares (Mt 15,1-6 cf Mc 7,1-13); preservação e

proximidade da Torá escrita (Mt 5,17-19); limitações na narrativa da Mulher Cananéia (Mt

15,21-28 cf Mc 7,24-30). Todas essas leituras precisam ser compreendidas a partir da forma-

ção ambígua de espaços fronteiriços. Nestes, o evangelho de Mateus ainda possui disputas por

questões de identidade, comuns ao período Paulino, mas, estas cedem lugar para leituras mais

amplas, críticas a noção particularista de aliança, aos totalitarismos tradicionais e abertas (não

1020 , Goiânia, v. 18, p. 1001-1021, 2020.

sem conflitos) para inclusão e aceitação de outros povos.

19 Essa perspectiva de relações sociais, de classe, etnia e gênero nos evangelhos e em Paulo

está contemplada em Richter Reimer (2013).

20 A utilização do termo pós/de-colonial tem sentido abrangente e procura descrever os diversos

estudos, sejam os pós-coloniais, decoloniais e descoloniais. A proposta de uma definição

única se mostra reducionais e seguindo a epistemologia eurocêntrica. Assim, a proposta do

termo pós/de-colonial não agrega ou define o sentido, apenas indica a abrangência incluindo

todo o bloco de pesquisas (LIMA, 2020, p.17).

21 Por pecado estrutural, Hofstätter desenvolve a proposta conhecida na Teologia da Libertação

de mecanismos estruturais que financiam e desenvolvem a realidade de pecado, impondo

uma epistemologia de controle sobre o povo (HOFSTÄTTER, 2003, p. 13).

22 A continuidade desses sistemas de tolerância controlada por estruturas de poder pode

ser identificada em toda história, pelas diferenças sociais (distribuição injusta de renda)

em todo mundo, sustentadas por leis que apoiam e impulsionam o direito em detrimento

do dever, que valorizam os sistemas econômicos em detrimento do cuidado e respeito à

vida.

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