jean-paul dubois a s ucessão - público

18
JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão

Upload: others

Post on 11-Apr-2022

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

ISBN 978-989-676-227-8

07263.10

JEAN-PAUL DUBOISA Sucessão

JEAN

-PAU

L DU

BO

ISA

Sucessão

JEAN-PAUL DUBOISA SucessãoTradução de Joana Cabral

Paul Katrakilis vive em Miami há alguns anos. Nunca conheceu tamanha felicidade. Ainda assim, sempre se sentiu deslocado do mundo que o rodeia. Nem a cesta punta, o desporto cuja beleza o entusiasma e que pratica como profissional, depois de abandonar uma carreira como médico, consegue libertá-lo do peso que carrega sobre os ombros. Quando o consulado de França o chama para lhe comunicar a morte do pai, decide-se por fim a enfrentar a memória de uma família que tentou em vão deixar para trás. Porque os Katrakilis são tudo menos banais: o avô, Spyridon, ex-médico de Stálin, fugiu da URSS com uma lamela do cérebro do ditador; o pai, Adrian, médico também, sempre foi um homem estranho, aparentemente insensível; a mãe, Anna, e o seu irmão Jules, tio de Paul, descendiam de prestigiados relojoeiros e viveram como marido e mulher na grande mansão familiar. É toda uma dinastia que, de uma maneira ou de outra, sempre pareceu condenada à extin-ção. Paul tem agora de voltar a França para tratar da casa. Quando lhe caem nas mãos dois cadernos negros que pertenceram ao pai, percebe enfim que sentido dar à sua herança.

A Sucessão, romance finalista do Prémio Goncourt 2016, é uma his-tória comovente, em que a tristeza da perda e a evocação nostálgica da felicidade se entrelaçam na perfeição.

9 7 8 9 8 9 6 7 6 2 2 7 8

1 0

© Ulf Andersen, 2011

Jean-Paul Dubois nasceu em Toulouse em 1950. Escritor e jornalista, publicou nu-merosos romances várias vezes premiados, entre eles Une vie française (2004, Prémio Femina e Prémio FNAC de Romance) e Le cas Sneijder (2011, Prémio Alexandre Vialatte 2012).

SUCES_20173363_CP.indd 1 16/08/2018 11:02

Page 2: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

Traduzido do francês porJoana Cabral

A SucessãoJEAN-PAUL DUBOIS

SUCES_20173363_F01_13.indd 3 13/08/2018 10:17

Page 3: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

9

A Sucessão

Todos os dias, a felicidade

Foram anos maravilhosos. Quatro anos espantosos durante os quais fui submetido a uma aprendizagem fulgurante e a uma prática intensa da felicidade. Tivera de aguardar vinte e oito anos para sentir todos os dias essa alegria que consiste em estar vivo de madrugada, correr para me educar o fôlego, respirar livremente, nadar sem medo e não esperar nada mais de um dia senão que me acompanhe como quem passeia uma sombra e que, chegada a noite, me deixe nas mesmas condições, sim-plesmente satisfeito, atordoado de quietude e de paz – longe do território desarticulado que eu abandonara e, sobretudo, longe daqueles que me tinham trazido ao mundo por vias naturais, que me tinham educado, formado, escangalhado e, sem dúvida alguma, transmitido o pior dos seus genes, a borra dos seus cromossomas.

Sobre este último aspeto, sei perfeitamente de que estou a falar.

De meados de novembro de 1983 a 20 de dezembro de 1987, fui, portanto, um homem profundamente feliz, completamente satisfeito, a viver modestamente dos rendimentos obtidos pela prática da única profissão que alguma vez sonhei exercer desde a minha infância: jogador de pelota basca.

Na Flórida, e sobretudo no Jai-alai de Miami, pertenci àquele pequeno grupo de profissionais da pelota basca remu-nerados ao ano para dançar nas paredes, manipular a grande

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 9 01/08/2018 15:50

Page 4: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

10

jean-paul dubois

chistera, fender o ar com uma cesta punta e propulsar a 300 km/h bolas de madeira, cobertas com pele de cabra cosida, contra o maior frontão do mundo – um Vaticano povoado por cem papas de mãos de vime, roçado pelos aviões do aeroporto de Miami International e frequentado na altura pelo que existia de melhor numa cidade que, é preciso reconhecê-lo, nunca fora muito exi-gente quanto ao fabrico da sua aristocracia.

Para praticar nessa arena com três paredes pintadas com o verde profundo dos oceanos bascos, para jogar nesse ritmo, nesse nível, fazer simplesmente parte da liturgia, teria outrora dado fortunas. E eis que, pelo contrário, era remunerado por con-trato, ao ano, para metralhar essas paredes e provocar os urros de alegria de dez ou quinze mil indivíduos que tinham apos-tado em mim durante uma quiniela, antes de optar em seguida por outro jogador. Para essa multidão de apostadores, eu não era senão um suporte de aposta mútua, um cão de cinódromo, um cavaleco de hipódromo. Mas essa condição convinha-me. Nunca jogava para eles, mas sim para mim. Como quando era criança, autista, desligado do mundo, aninhado na minha luva, agarrado à minha pelota, martelando sem fim os frontões livres de Hendaia, de Saint-Jean-de-Luz ou de Itxassou.

E a verdade é que, consciente de onde vinha, ficava satis-feito mesmo com o estatuto de modesto trotador cagando dóla-res aqui e acolá. Passara a minha infância a trabalhar, a estudar, a aprender coisas inúteis e sem sentido sob o olhar estranho de uma pequena família de quatro pessoas totalmente desconcer-tantes, desnorteadas e até, por vezes, aterradoras.

O meu avô, Spyridon Katrakilis, entre outros feitos de armas, afirmava ter sido um dos médicos de Estaline e possuir uma lamela fina do seu cérebro, furtada durante a autópsia que ele próprio praticara alguns dias após a hemorragia cerebral de Vissariónovitch Djugashvili. Suicidar-se-ia em 1974 em cir-cunstâncias invulgares.

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 10 01/08/2018 15:50

Page 5: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

11

A Sucessão

O meu pai, Adrian Katrakilis, igualmente médico, fazia valer singularidades menos exóticas, mas era, mesmo assim, um homem bastante inquietante. Dizia com frequência coi-sas incompreensíveis, gritava «strofinaccio» a plenos pulmões e sem razão – palavra que, em italiano, quer dizer «trapo» – e tinha por hábito receber os seus pacientes de calções assim que chegava a Primavera. Essa excentricidade não era coisa recente, pois, durante os seus estudos, quando estava de banco no hospital, ficara conhecido por ter examinado os pacientes de cuecas.

A minha mãe, Anna Gallieni, não parecia reparar nas sin-gularidades do marido e não se ralava de modo algum com isso. Tinha com que se entreter com o seu irmão mais novo, Jules, com quem geria uma pequena loja de família dedicada ao conserto de relógios de todo o tipo. Com esse irmão, ela vivia connosco na casa comum. Com esse irmão, no sofá, também via televisão todos os serões até que Jules adormecesse e pou-sasse a cabeça grande no ombro da irmã. Jules estava sempre colado a Anna, e Anna estava sempre junto de Jules.

Jules acabou com a vida na primavera de 1981. A minha mãe seguiu-lhe os passos no princípio do verão, numa encenação que deixou o meu pai perplexo, sem que, contudo, o parecesse afetar.

Portanto, em criança, cresci entre Spyridon, que marinava diante da sua fatia de cerebelo, um pai pouco vestido que vivia como um solteiro, e uma mãe praticamente casada com o pró-prio irmão que gostava de dormir apoiado na irmã, frente às litanias da televisão. Eu não sabia o que andava a fazer no meio dessas pessoas e, pelos vistos, elas também não.

É óbvio que o suicídio de todos os membros da minha família irá, de certo modo, arrumar a confusão desses laços, desses vínculos desordenados, dessa inaptidão para amar e para dar a uma criança uma imagem de confiança e de felicidade,

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 11 01/08/2018 15:50

Page 6: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

12

jean-paul dubois

por mais pequena que seja. O mais estranho é que a morte atravessou várias vezes a nossa casa, mas os sobreviventes mal repararam nela, vendo-a passar como uma vaga mulher-a-dias.

Chamo-me Paul Katrakilis e sou médico. Nunca exerci. Alugo um apartamento na Hialeah Drive, possuo um velho carro com chão rendilhado e um velho barco pouco mais estan-que, equipado com um diesel Volvo ao qual confio com regu-laridade o meu destino. Está amarrado numa marina do sul da cidade, sem água nem eletricidade.

Só gosto de uma coisa: da pelota basca – embora tenha nascido em Toulouse. Constroem-se por lá todos os aviões do mundo e, porém, a maior parte dos jogadores de pelota pensa ou considera que essa cidade não passa de um longínquo subúr-bio de Bayonne ou de Guernica. E quando um filipino ou um argentino me pergunta se, na minha terra, existe um grande Jai-alai, não há como inventar: «Não, apenas um frontão livre.»

O inverno, em Miami, é a época alta. Os americanos dos grandes lagos e das regiões das planícies, os canadianos des-gastados pelo frio, todos eles acreditam desde sempre no verão eterno da Flórida. Então, cingidos dos seus missais e da sua fé meteorológica, enchem os hotéis, os bares, os restaurantes cuba-nos, judeus ou argentinos, os casinos dos índios seminolas e as discotecas habitadas por nude girls que festejam o Natal todas as noites desde que o mundo é mundo.

No dia 19 de dezembro de 1987, tínhamos jogado durante a manhã e enchido o Jai-alai à noite, multiplicando as quinielas até à uma da manhã. Por momentos, a multidão rugia como um motor de avião; por outros, emitia um ruído de fundo abafado e grave, evocando o ronco produtivo de uma fábrica a traba-lhar. E essa fábrica produzia dinheiro e toda a espécie de coisas que fazem parte do mundo, mas de que não se fala e que não

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 12 01/08/2018 15:50

Page 7: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

13

A Sucessão

se mostram. Essa fábrica também produzia histórias e lendas, boatos e crimes. No espaço de poucos anos, provavelmente demasiado atormentados pela máfia, três diretores de Jai-alai da Flórida tinham perdido a vida em circunstâncias bastante diversas. O primeiro fora abatido com uma bala na cabeça no seu percurso de golfe; o segundo, cuidadosamente despedaçado para poder ser arrumado na bagageira da sua viatura fechada; quanto ao terceiro, nunca foi encontrado e é provável que tenha contribuído para a solidez dos alicerces de um dos edifícios que cresciam diariamente nas areias férteis das margens do oceano.

Quando se saía do frontão, a noite lá fora cheirava mesmo a noite. Uma noite do Sul, urbana e cozinhada, estimulante e desleixada, perfumada com o pollo asado dos food trucks e com o querosene transpirante dos 747 vizinhos, um cheiro difuso, peculiar, muito distante dos mangais, e que se difundia como um nevoeiro persistente e invisível à medida que caía a noite.

Eu ganhara alguns pontos na defesa e recebera um prémio de 60 dólares. Montantes que não tinham nada de extraordiná-rio, mas que, ao fim do mês, me permitiam por vezes duplicar o meu salário de 1800 dólares. As maiores vedetas podiam ganhar entre 8 e 10 000 dólares por mês. Eram elas quem fazia as mul-tidões levantarem-se e cantarem as suas apostas. Nós éramos os aprendizes, os pequenos funcionários da empresa, a classe ope-rária de um mundo esquisito que partia todos os dias para a lida com o capacete de mineiro colorido e o estranho instrumento de trabalho, cuja alma era revestida de castanheiro cortado na lua descendente e o corpo, de uma armadura loira entrançada de vime.

Em três anos, eu comprara três carros e voltara a vender dois. Um velho Mercury Brougham que cheirava perpetua-mente a peixe velho e que só se via em circulação nas telenove-las antigas filmadas no México. Um Wagoneer de 1964, com um tablier de falsa nogueira de plástico aplicada na parte de

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 13 01/08/2018 15:50

Page 8: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

14

jean-paul dubois

baixo das portas e na bagageira traseira. Com o magro produto destas vendas, adquirira um Karmann Ghia de 1961, cujo chão era devorado pela ferrugem – que atacava também os guarda--lamas e o contorno dos faróis.

Nessa noite, foi com Joey Epifanio, o meu último parceiro de quiniela, que saí para jantar. Adorava aquele jogador de origem cubana. Tinha uma alcunha que lhe ficava a matar: «Nervioso». E era verdade que dificilmente se concebia um ser humano mais agitado. Acho que posso afirmar nunca o ter visto em posição estática. Mesmo nos balneários, ele encontrava forma de ir e vir, de se agitar, de remexer constantemente em alguma coisa com as mãos ou os pés, de se pendurar numa porta, de jogar à bola com copos de plástico vazios até deixarem de servir. Nervioso tinha uma energia excecional. Era uma espécie de grande hamster compulsivo, alimentado por uma pilha a combustível que ele não hesitava em recarregar com algumas linhas de cocaína sempre que a situação o exigisse. Epifanio era um bom jogador de pelota basca, um bom avançado de jogo franco, dormia muito pouco, vivia muitíssimo e, segundo o próprio, passava todo o seu tempo livre a quimbar y singar, duas palavras que significam em cubano «praticar o ato sexual».

No carro, a caminho de uma cantina aberta toda a noite, Epifanio olhava a estrada desfilar por baixo dos seus pés pelos buracos provocados no chão pela corrosão. Estava subjugado por aquela espécie de tapete rolante vertiginoso, que sibilava e deslizava à sua frente. Sentia-se que ele teria gostado de que tudo na vida andasse a essa velocidade, ao ritmo dele, para que se sentisse finalmente em consonância com o mundo.

À mesa, enquanto devorava fígados de frango grelhados com feijão preto, Nervioso explicava-me, agitando os gémeos contra os pés da cadeira, que não gostava muito da época alta, ou seja, do inverno. Dizia que aquela cidade era feita para o verão, quando chovia a potes, quando as trovoadas rebentavam

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 14 01/08/2018 15:50

Page 9: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

15

A Sucessão

contra o mar e limavam os edifícios, quando os tornados pro-jetavam os semáforos, arrancavam os telhados, cisalhavam os sinais de trânsito e punham todo o mundo maluco. Gostava do barulho das sirenes da polícia que tentavam fazer frente à situação, dos urros das ambulâncias abafados pela potência das rajadas de vento, daquela fúria que todos tinham de enfrentar custasse o que custasse. Naqueles momentos, Epifanio contava que saía para o meio do caos. Saía e afrontava a tempestade, com a loucura do seu turbilhão interior, o seu ciclone pessoal, ao que se acrescentava aquilo que tinha tomado para a ocasião. Saía e avançava, mais e mais ainda, embora lhe custasse, sem se preocupar com o esforço exigido por cada passo, e ia até ao fim, até desfalecer ou até que a tempestade desistisse antes dele. Até à hora, fora sempre ela quem cedera primeiro.

Eis por que eu fora feliz aqui durante quatro anos. Cada dia tinha-me oferecido pequenos momentos como aquele, refeições tomadas na companhia de bascos, argentinos, cubanos, de jo-gadores chegados de Manila ou do Peru, ou mesmo de Nova Iorque, habitados por uma fé cega, por um desejo imarcescível, que vinham procurar aqui a origem de um mundo pequenís-simo que cabia na palma da mão, um mundo tão pequeno que quase não respirava, mas pelo qual estavam dispostos a enfren-tar todos os monstros da Criação, mesmo que se parecessem com aqueles relâmpagos incríveis que Epifanio conseguia apa-gar e meter no bolso.

Dei boleia a Joey até casa. Como à ida, ficou a olhar para a estrada a desfilar pelo chão. Depois, quando chegou à frente do prédio, viu que a luz estava acesa no seu apartamento. Esfregou as mãos como se estivesse prestes a enfrentar a nevasca e, com um sorriso comilão de antigo habanero, disse-me: «Quimbar y singar.»

*

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 15 01/08/2018 15:50

Page 10: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

16

jean-paul dubois

Na Hialeah Drive, essa avenida sem graça, não se passa nada de particular, a não ser o vaivém das pessoas que vão e vêm à frente do meu prédio. Estamos no inverno, a temperatura está amena, e não quero outra coisa senão estar aqui. O fale-cido Spyridon Katrakilis e os defuntos quase-gémeos Gallieni vagueiam nos seus universos complexos de lógicas côncavas e ilegíveis. Quanto ao sobrevivente, esse pai de pernas nuas, conti-nua na terra, mas há muito tempo que a minha mente o colocou em órbita.

Na manhã de 20 de dezembro de 1987, fui até ao meu barco. Chamava-se Señor Cansado. Um casco de tábuas trincadas, com uma cabina minimalista para abrigo durante as tempestades e uma linha de eixo que nos levava a passear a seis nós. Um barco vindo de outro mundo, algo que ainda flutuava, mas que já não tinha lugar nas marinas de Coconut Grove onde os Evinrude su-perpotentes conviviam com os últimos modelos da Mariner ou da Mercury. Estava atracado na parte sul da cidade, num pontão improvisado no final de um parque de estacionamento público. O seu antigo proprietário trocara-o pelo velho Jeep Wagoneer. Era um empregado do Jai-alai que estava prestes a reformar-se. Tinha uma cabana para os lados dos Everglades, um bungalow de madeira que se afundava lentamente nos pântanos. Quando me entregou as chaves do Señor Cansado, disse-me: «Este barco nunca te abandonará. É como a minha mulher. O que quero dizer com isso é que hás de carregá-lo sempre às costas.»

O céu estava cinzento com, aqui e acolá, manchas escuras que lembravam nódoas negras. O vento vinha de oeste, uma brisa leve que, nessa época, não queria dizer nada de especial. Livre das amarras, o Señor Cansado afastou-se devagar da terra em direção a Fisher Island. Meia hora depois, virou à esquerda para alcançar Biscayne Bay, esse pequeno mar interior que se-para Miami de Miami Beach. O ar tinha um sabor. Deixava um travo na língua e no nariz. Não tinha nada que ver com o

SUC

ES-2

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 16 01/08/2018 15:50

Page 11: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

17

A Sucessão

que se podia sentir no alto-mar. Havia aqui sinais humanos que alteravam a potência do iodo e do sal, resíduos da atividade que formigava de um lado e doutro da baía, mesmo ao domingo, mesmo no dia 20 de dezembro, mesmo no meio do inverno. A água estava lisa como o pano de um bilhar. Não havia ne-nhuma marulhada.

Assim que eu punha o pé no meu barco, sentia-me comple-tamente feliz. Com bastante mérito até, pois, apesar da minha posição de capitão, sofria de enjoos crónicos. E nenhuma me-dicina tinha conseguido refrear as minhas náuseas. Quando o mar se tornava mais forte, sentia dentro de mim as coisas a irem para todos os lados e não podia conter a vontade de lançar à água o pouco que tivera a fraqueza de ingerir. Vomitava com a aplicação e a constância de um inglês em férias. No meu próprio barco. Porém, acima de tudo, gostava de navegar. Trazia sempre comigo um pacote de Fisherman’s Friend, rebuçados de uma menta tão forte que conseguia levantar uma âncora. Na parte de trás da embalagem, estavam impressas algumas palavras: «Never be without a friend, pensava o farmacêutico James Lofthouse quando, em 1865, inventou os rebuçados Fisherman’s Friend para os marinheiros que, fossem quais fossem as condições me-teorológicas, iam para o alto-mar.» Alusões cheias de sentido e de promessas para o médico que eu era. Imaginava pescadores macilentos e lívidos, debruçados sobre a amurada e, de repente, revigorados, com o estômago bem ancorado graças aos rebu-çados de James Lofthouse. Fosse qual fosse o estado do mar, assim que me afastava do pontão, tinha na boca este remédio composto de sorbitol, aspartame, estearato de magnésio e óleo de menta, de que esperava milagres.

Enquanto deixava North Bay Village à direita, avistei no centro da baía alguma coisa que nadava à superfície, a uma cen-tena de metros do barco. A lógica diria que se tratava de um peixe de boas dimensões, mas, mesmo ao longe, era evidente

SUC

ES-2

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 17 01/08/2018 15:50

Page 12: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

18

jean-paul dubois

que era outra espécie de animal que, pelo que tudo indicava, não gostava de água.

Dirigi-me para ele e desliguei o motor quando me encon-trei perto. Era um cão. Um cão pequeno, com cerca de quinze quilos, que sacudia as patas da frente para ficar à superfície, de olhos bem abertos, cravados no mundo, agarrados à vida como dois anzóis. Manobrei devagar até que ele se encontrasse junto ao costado do barco, debrucei-me para a água, agarrei nas patas dele e puxei-o para dentro do barco. O animal já quase não tinha forças para se sacudir. Envolvi-o numa grande toalha de banho e deitei-o ao meu lado no assento do posto de pilotagem. Então, alguma coisa aconteceu no seu olhar: com o cansaço a varrer-lhe o medo, levantou debilmente a cabeça, observou-me durante um momento bastante longo e, como se vivêssemos juntos desde sempre, pousou a bochecha contra a minha coxa e adormeceu de repente.

Tendo em conta o sítio da baía onde nos encontrávamos e a distância que nos separava das margens mais próximas, era óbvio que o bicho, no melhor dos casos um rafeiro da rua – seja como for, não era um cão de água –, não tinha chegado ali a nado. Tinha sido lançado à água. À minha volta, três barcos navegavam na baía. Todos se dirigiam para norte. Com os seis nós que conseguia tirar do meu velho motor Volvo, não tinha alternativa senão dar meia-volta, voltar para o pontão e ver como podia tratar desse cão.

Depois de atracar o barco e desligar o motor, o animal acor-dou e espreguiçou-se como se acabasse de passar um belo dia na praia. Tinha o pelo ainda colado, não se parecia com nada e não tinha coleira nem tatuagem. Saltou para fora do barco, sentou--se no pontão e olhou para mim, como quem dissesse: «Bem, e agora, o que se faz?»

Abri a porta do Karmann e ele pulou para o lugar do pas-sageiro. É assim que a vida constrói um encontro entre um

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 18 01/08/2018 15:50

Page 13: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

19

A Sucessão

homem e um cão, cruzando as suas trajetórias improváveis, num domingo de inverno, no meio de uma baía, embora a ló-gica mandasse que o homem continuasse a navegar para norte olhando à sua frente e que o cão, quanto a ele, se afogasse, um pouco adiante, já sem forças.

Enquanto guiava para casa, fazia-lhe festas no focinho. Ele não se mostrava desconfiado. Sabia que um tipo que o tinha salvado das águas não podia ser verdadeiramente mau. Nin-guém estava à procura dele nem o viria reclamar. Podia ficar comigo se assim quisesse. Chamar-se-ia Watson.

Havia dois ou três dias que não tinha aberto a caixa do correio. Encontrei pouca coisa: três cartas, entre as quais uma enviada de França. No envelope, reconheci imediatamente a letra do meu pai. Dentro dele, duas fotos. Na primeira, o seu descapotável Triumph Vitesse MK2 de 1969, visto de lado. Na segunda, uma imagem muito nítida, em plano próximo, do conta-quilómetros – que, na verdade, indicava milhas –, e em que se lia «77777».

Nada mais. Nem uma palavra.A última mensagem do meu pai datava dos princípios da

minha instalação aqui, em Miami, em 1983. Nada de Triumph daquela vez, nem de brincadeiras com hodómetros, apenas umas palavras: «Um dia, hás de ser o meu sucessor.»

Preparei uma refeição de boas-vindas para Watson antes de me instalar no sofá a examinar em pormenor as duas foto-grafias enviadas por Adrian Katrakilis, como se fosse possível descobrir nelas um sinal, um indício suscetível de me ajudar a decifrar os meandros do cérebro do meu pai. Após quatro anos de silêncio, de ignorância e de indiferença, ele enviava-me imagens do seu velho carro.

Direção à direita. Azul escuro. Volante com três linhas finas de metal. Conta-quilómetros Smith. Quatro velocidades

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 19 01/08/2018 15:50

Page 14: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

20

jean-paul dubois

sincronizadas. Overdrive. 2 litros. 6 cilindros. Carburadores de óleo SU.

Lembrava-me da época da sua aquisição e das suas circuns-tâncias, que sempre achara infinitamente tristes.

Lembrava-me da última vez em que vira a minha mãe sen-tada no interior.

Lembrava-me do ruído tão peculiar do seu tubo de escape.Lembrava-me da forma bicuda e afiada das suas asas tra-

seiras e da disposição franzida dos quatro faróis dianteiros, que davam ao carro uma expressão teimosa, determinada e perpe-tuamente contrariada.

77777 milhas. 125 169 quilómetros. E depois?Como um cão de trenó, Watson deu três ou quatros voltas

sobre si mesmo antes de se esparramar ao meu lado no sofá, com o pelo ainda húmido, o cheiro da baía a vir do fundo da sua memória e a flutuar à nossa volta, simultaneamente invisível e palpável, como para nos lembrar o que nos unia e, sobretudo, donde vínhamos, ele e eu.

Eram 15h30. Ainda não o sabia, mas sobrava-me muito pouco tempo para aproveitar dessa vida que tinha arranjado com os instrumentos da minha infância e da minha juventude.

Algumas horas, no máximo.Do meu lugar, via piscar a luz do atendedor de chamadas,

pousado numa mesinha na entrada. Piscava desde que entrara em casa. Piscava como o fizera centenas de vezes desde que vivia ali. E sempre para me dar notícias sem verdadeiro relevo, tipos que me perguntavam se podia ir buscá-los quando fosse para o Jai-alai ou que me convidavam para beber uma cerveja depois do trabalho, Nervioso que me queria contar o seu último serão passado a quimbar y singar ou ainda Friendly Auto Repair na NW 2nd Avenue a comunicar-me que o carro estava pronto. O fluxo telefónico comum de uma vidinha diária.

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 20 01/08/2018 15:50

Page 15: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

21

A Sucessão

Há pouco mais de dois anos, uma mulher também me li-gava de vez em quando. Chamava-se Soraya Luengo e traba-lhava no Miami City Hall onde era funcionária do serviço de compras. Da simples resma de papel à reabilitação do parque dos camiões dos bombeiros, todas as encomendas da cidade eram avalizadas por esses escritórios. Soraya era uma agente entre muitos, encarregada de receber os representantes das companhias que vinham apresentar propostas. Segundo as re-gras em vigor na câmara, as conversas podiam ter lugar em inglês ou em espanhol, pois, tendo em conta a população de Miami, o bilinguismo era uma obrigação legal na adminis-tração. Com um certo orgulho, Soraya afirmava que Miami era a verdadeira capital da América Latina. E para o provar, repetia a cada um a sua anedota favorita: «Reagan encontra-se com Castro. O presidente cubano pergunta ao seu homólogo americano: “Quando é que nos vão devolver Guantánamo?” E Reagan responde: “Quando nos tiverem devolvido Miami.”» No bairro de Little Habana, a sua pequena história teria co-nhecido algum sucesso, mas, azar o dela, a maior parte dos seus interlocutores já a tinham ouvido.

Não saberia qualificar ao certo a natureza da nossa relação. Pela minha parte, era simples: gostava de estar com ela. Gostava de comer, tomar banho, andar de barco, conversar, foder com ela e até, de vez em quando, fumar os seus cigarros hechos a mano. No que lhe dizia respeito, diria que o sentimento principal que dominava nela quando olhava para mim era o de perplexidade. Ela não percebia que um homem da minha idade, licenciado em medicina, tivesse deixado o seu país, a sua cidade, a sua família, para se instalar em Miami e jogar à cesta punta, esse jogo pueril, dizia ela, «para pastores». «Que um basco faça daquilo a sua profissão já me parece esquisito. Mas tu não és basco. E ainda por cima és médico. Qual é o teu problema?» What’s wrong with you?, era a sua expressão inglesa preferida. E, na sua língua, os

SUCES_20173363_F01_13.indd 21 10/08/2018 14:19

Page 16: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

22

jean-paul dubois

erres de «wrong» rolavam, agarrando-se por todos os lados. Li-mitava-me a sorrir-lhe e, wrong ou não wrong, naquela mesma noite, ou no dia seguinte, enfiava a luva de vime para lançar, receber e voltar a lançar, tantas vezes quanto as que o meu braço aguentava, saltando para «a parede esquerda» se fosse preciso, e trazer para casa a pelota perdida, como fazem todos os pastores.

Quando levava Soraya Luengo a passear no mar, sen-tia que havia entre nós algo de irreconciliável, uma espécie de fratura ontológica. Primeiro, como todo e qualquer ilhéu – os seus genes eram cubanos –, ela considerava o oceano como uma massa fluida feita de contrariedades – dizia dolor en el culo («cha-tices») – e, de um modo muito secundário, como um espaço de refrigério breve. A ideia de ver passar um tubarão nas proximi-dades aterrorizava-a, assim como a de partilhar o banho com uma manta. Por isso, quando me via a afastar para o alto-mar no meu barquito, com mais ou menos diesel e os meus Fisherman’s Friend como único sustento, quando me via ora acionar a bomba de fundo para manter o lugar seco, ora vomitar borda fora a tor-rada com doce de cereja do meu pequeno-almoço, levantava a voz para cobrir o barulho do motor e repetir o seu suave mantra: «What’s wrong with you?»

Qual era o meu problema naqueles anos? Sinceramente, não fazia a menor ideia. Encarava cada dia como uma felicidade simples, um tributo da sorte. Era como se fosse um jogador feliz a ganhar um primeiro prémio aceitável todas as manhãs, assim que acordava. Na verdade, ainda sinto uma certa vergo-nha de o dizer, mas não havia nada, absolutamente nada, de errado comigo.

Numa noite de verão, o calor era húmido, sufocante, Soraya não apareceu ao nosso encontro e não atendeu as minhas cha-madas. No dia seguinte, tentei ligar-lhe de novo – em vão. Nos dias que se seguiram, fui várias vezes até a casa dela, mas a porta manteve-se sempre fechada. Fui então ao seu escritório no City

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 22 01/08/2018 15:50

Page 17: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

23

A Sucessão

Hall e pedi para a chamarem. Responderam-me que havia três dias que ela não aparecia no trabalho. O porteiro do prédio, que eu conhecia, tinha um duplicado da chave do apartamento dela e aceitou ir dar uma vista de olhos. Disse-me que não estava ninguém e que tudo parecia normal. Uma semana passou, e depois outra. Nunca mais apareceu no escritório. Nem em casa dela. Pouco tempo depois, o porteiro informou-me de que uma empresa de mudanças tinha esvaziado o apartamento. Sem mo-rada para encaminhar o correio.

Nunca soube o que tinha acontecido. Contei tudo à polícia local, mas a minha história visivelmente não interessou nin-guém. «Não faltam nesta cidade pessoas que vão e vêm, que se vão embora sem avisar ninguém.»

Nos meses que se seguiram ao seu desaparecimento, mui-tas vezes, antes de adormecer, pensava em Soraya Luengo e murmurava-lhe: «What’s wrong with you?»

Quando o atendedor de chamadas piscava na penumbra, por um instante, imaginava o melhor. Desta vez, foi o pior. Do alta voz da máquina saía uma voz francesa, terrivelmente francesa, simultaneamente precisa e distante, confiante, quase teatral, uma voz que me pedia para me apresentar assim que possível no consulado de França, 1395 Brickell Avenue. O tom era quase cominativo. A chamada fora gravada enquanto estava a andar de barco. Tentei ligar à representação francesa, mas um atendedor obstinado despejou uma série de frases feitas e a litania dos horários de abertura dos escritórios.

Watson seguira-me e saltou para dentro do carro. Tinha colocado no chão uma tábua de aglomerado para evitar que ele caísse nos buracos. Fabricara-lhe uma coleira com um velho lenço e, em jeito de trela, usara um pedaço de amarra reapro-veitado. Ainda o Karmann não tinha andado cem metros, já o meu cão – as fórmulas de adoção caninas são por aqui muito rápidas – dormia como uma pedra nesta terra.

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 23 01/08/2018 15:50

Page 18: JEAN-PAUL DUBOIS A S ucessão - Público

24

jean-paul dubois

No consulado, tive de tocar à campainha, aguardar, ser me-tido num hall, aguardar outra vez, antes de ser levado por um homem mudo para uma sala que não se parecia nem com um escritório, nem com uma arrecadação. Nada estava previsto para nos sentarmos, não havia nem janela, nem ventilação, apenas um candeeiro de pé pousado na prateleira de uma biblioteca vazia.

O cão estava ao meu lado. Imóvel. A olhar fixamente para mim como se eu fosse o centro do mundo.

A parte de baixo da porta arrastou-se contra o soalho, abriu-se e um homem que não tinha nada de um diplomata, mesmo em zona pré-tropical, entrou e disse: «Bom dia. Quem é o senhor?» Pasmado com a pergunta, enunciei o meu nome. Deitou um breve olhar de desilusão na direção de Watson e prosseguiu: «Tem o seu passaporte?» Agarrou no documento e folheou-o como quem consulta gravuras de Audubon.

«Senhor Katrakilis, pedimos-lhe para passar no consu-lado para lhe dar uma triste notícia. Quisemos encontrar-nos consigo para lhe comunicar o falecimento do senhor Adrian Katrakilis, o seu pai. A morte foi declarada ontem, às 16h10, hora francesa. Em nome da delegação, apresento-lhe os nossos pêsames. Não temos possibilidade de lhe dar mais informações sobre as circunstâncias do falecimento do seu pai, mas tem aqui alguns documentos e medidas a tomar, dirigidos a franceses no estrangeiro confrontados com a mesma situação.» O tipo esten-deu-me a mão e ouvi-me a perguntar-lhe: «Quem é o senhor?» Respondeu-me alguma coisa, mas as palavras desconjuntaram--se antes mesmo de saírem da sua boca.

Estava no Karmann. Parado. Watson aguardava que ar-rancássemos. Eu tinha os olhos fixos no conta-quilómetros. Havia muito tempo que ultrapassara o patamar dos 77777.

SUCES_20173363_F01_13_2P.indd 24 01/08/2018 15:50