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IMAGENS DO VELHO CHICO NA CULTURA DO VALE DO SO FRANCISCO Jayro Luna

Edupe2009

SUMRIO Apresentao. Benedito Gomes Bezerra 3 Introduo - 6 O Rio Como Smbolo 8 O Rio So Francisco como tema da MPB 13 O Cime, de Caetano Veloso 29 Do So Francisco ao Mississipi 35 Imagens do Velho Chico na Poesia Brasileira 42 Por Uma Mitologia das Carrancas do Vale do So Francisco 53 A Lenda do Nego Dgua e o Rio So Francisco 58 Algumas Consideraes Acerca das Representaes Pictricas do Rio So Francisco 63 Mamulengo Revisitado 77 A Simbologia do Rei e do Castelo na Cultura Brasileira 79 Frexeiras: A F e a Inveno do Mundo Mgico 91

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APRESENTAO O Rio So Francisco representa um dos elementos de maior peso simblico na cultura e imaginrio nordestino, fato que se reflete na msica, na literatura, na pintura e nas artes em geral. Ultimamente, o Velho Chico tem sido objeto de acalorada e polmica discusso, em virtude do projeto de transposio de guas idealizado pelo governo federal. lamentvel, contudo, que o foco das reflexes sobre o Rio tenha se concentrado de modo quase exclusivo nos aspectos polticos e ideolgicos da questo. O livro do professor Jayro Luna, a propsito, vem preencher essa lacuna, trazendo para a comunidade acadmica e o pblico em geral um amplo e variado conjunto de textos debruados sobre a riqueza cultural constituda em torno do So Francisco. O propsito do autor , como ele mesmo afirma, levantar aspectos que ajudem a montar um painel interpretativo do significado do Rio So Francisco na cultura da regio, bebendo para isso nas inmeras fontes disponveis. Duas particularidades devem ser ressaltadas no trabalho do autor. A primeira que no se trata, de forma alguma, de pesquisa meramente bibliogrfica, fruto de observao distanciada. Em muitos textos, o leitor perceber a argcia do observador integrado ao objeto de sua investigao, examinando de perto aquilo de que fala, no sem trair a paixo do autor pelos aspectos culturais em questo. A segunda particularidade o ponto de vista do autor, construdo a partir da regio do Agreste Meridional, onde se situa a Universidade de Pernambuco, Campus de Garanhuns, de modo que relaes muito pertinentes e interessantes so demonstradas entre a riqueza cultural dessa regio e o imaginrio do Rio, prprio do serto cujas terras suas guas percorrem. Da a presena, por exemplo, de um captulo que trata do santurio de Santa Quitria em Frexeiras, localidade prxima a Garanhuns. O livro se organiza em onze captulos que tratam do imaginrio e da cultura do Velho Chico sob variados ngulos. A maioria dos captulos enfoca as diferentes maneiras como o Rio So Francisco representado em diversas expresses artsticas, como a MPB, a poesia, a arte popular das carrancas, a pintura e a escultura. Outros tratam de manifestaes culturais direta ou indiretamente ligadas ao Rio. O primeiro captulo, intitulado O rio como smbolo, estabelece as bases para muito do que ser dito nos demais, demonstrando a centralidade da simbologia do rio em diversas culturas do mundo e de outras regies brasileiras. O segundo captulo explora o Rio So Francisco como tema privilegiado da Msica Popular Brasileira, abrangendo desde a chamada msica de raiz, passando pelos temas de escola de samba e por Luiz Gonzaga at a msica engajada de S e Guarabira, lembrando de forma crtica a profecia de Antonio Conselheiro: O serto vai virar mar/ d no corao/ o medo que algum dia/ o mar tambm vire serto. No terceiro captulo, o autor analisa especificamente a letra da msica O cime, de Caetano Veloso, cujo tema, comum a outras composies da MPB, a relao entre as cidades de Petrolina, em Pernambuco, e Juazeiro, na Bahia, separadas pelo So Francisco, mas unidas pela ponte ali construda na dcada de 1950. O quarto captulo traa um interessante paralelo entre o imaginrio do Rio So Francisco e do Rio Mississipi (nos Estados Unidos) conforme representado pela msica em ambos os contextos. Conforme demonstra o autor, as imagens de ambos os rios so 3

construdas de maneira bastante diferente. Se, no caso do So Francisco, predominam as imagens poticas inspiradas numa cultura medieval transportada para o serto nordestino, no caso americano do Mississipi, predomina a crtica social retratando os dramas dos ribeirinhos pobres, negros geralmente, acossados pelas constantes cheias do rio e abandonados pelos representantes do poder. J no quinto captulo, o autor se volta para as imagens do Velho Chico na obra dos poetas brasileiros, comeando por Castro Alves e sua obra A cachoeira de Paulo Afonso e culminando com Joo Cabral de Melo Neto e o serto sem rio. Sobressai, na poesia brasileira, o retrato dos dramas sociais desde a colonizao at a transposio, tendo como palco e piv o grande rio do povo nordestino. O sexto captulo, Por uma mitologia das carrancas do Vale do So Francisco, mostra como as carrancas sofreram um desvio em sua funo original de proteger as embarcaes contra perigos concretos e imaginrios, transformando-se em objetos artesanais destinados ao comrcio, cujo valor monetrio se define pelo talento e renome do mestre escultor. O autor ressalta as peculiaridades das carrancas como objeto artstico para o qual convergem elementos da herana indgena e negra, no crist, bem como as influncias prprias do colonizador europeu e cristo. No stimo captulo, o autor apresenta a lenda do Nego dgua como parte do imaginrio do povo ribeirinho, cuja funo parecer ser sobretudo intimidar as crianas, evitando que se arrisquem demasiadamente nas guas do Rio. Uma preocupao central do autor traar um paralelo entre o imaginrio popular e a representao artstica do Nego d gua, que no caso do artista Ledo-Ivo Gomes de Oliveira, criador de uma colossal esttua do personagem, substitui os traos populares por traos inspirados na simetria da arte clssica, operando uma espcie de recriao eventualmente sujeita a polmica. Como no podia deixar de ser, o Rio tambm tem sido representado na arte pictrica, tema do captulo oitavo, intitulado Algumas consideraes acerca de algumas representaes pictricas do So Francisco. A partir do sculo XVII, pintores estrangeiros e nacionais tm oferecido suas vises do Velho Chico, constituindo um rico painel de representao pela pintura, com estilos variados e diferentes posturas de engajamento em relao ao Rio. Os ltimos trs captulos abrangem temticas no ligadas diretamente ao Velho Chico, mas includas na obra, creio eu, por fazer parte de uma cultura comum, como um complemento bastante interessante dessa mostra da cultura nordestina que o livro de Jayro Luna. O captulo nono, dessa forma, traz uma breve abordagem sobre a arte do mamulengo, especificando tipologias e resgatando o nome de artistas situados no Agreste Meridional. J o captulo dcimo brinda o leitor com um alentado estudo da simbologia do rei, do castelo e do palcio na cultura brasileira. O estudo inclui desde o pitoresco uso do termo rei para praticamente qualquer atividade desenvolvida pelas pessoas (rei do samba rei do futebol, rei da juventude etc) at uma apresentao dos principais castelos existentes em terras brasileiras, com um oportuno destaque para o Castelo de Joo Capo, ponto turstico da cidade de Garanhuns em Pernambuco. Fechando o volume, o captulo dcimo primeiro apresenta o santurio popular de Frexeiras como uma curiosa representao do sincretismo religioso e cultural brasileiro, capaz de reunir num mesmo espao santas, deusas greco-romanas e super-heris de origem estrangeira. A cultura popular nordestina se mostra a como uma cultura de resistncia

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inclusive contra a dominao religiosa, evidenciando a capacidade do povo de moldar e cultivar seus prprios santos e santurios. Em suma, a leitura de Imagens do Velho Chico na cultura do Vale do So Francisco proporcionar ao leitor uma rica e profunda imerso na herana cultural do Nordeste, com especial destaque para os elementos culturais construdos em torno do Rio So Francisco. Ser uma experincia significativa para quem j conhece e ama essa cultura. Para quem no a conhece, sem dvida ser uma descoberta apaixonante. Est de parabns a Universidade de Pernambuco, notadamente seu campus de Garanhuns, por trazer essa obra ao pblico brasileiro. Com certeza, o livro ser de grande utilidade para pesquisadores, alunos e demais pessoas interessadas na arte popular e na cultura nordestina de modo geral, alm de oferecer a todo o povo brasileiro uma nova e abrangente viso acerca do Rio So Francisco.

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Introduo

Este livro resultado de um projeto de pesquisa realizado na UPE/FACETEG durante o perodo 2007-2009, com apoio do CNPq. O projeto visava pesquisar as imagens na cultura do Vale do Rio So Francisco, abordando a produo literria (prosa e poesia) bem como as manifestaes de literatura popular (cordel, contos, mitos e lendas, arte popular) procurando nas diversas manifestaes levantar aspectos que ajudem a montar um painel interpretativo do significado do Rio So Francisco na cultura da regio, isto , a construo do imaginrio acerca do arqutipo que o Rio So Francisco preenche na regio do Polgono das Secas. Ainda, tendo em vista a proximidade da implantao do projeto de transposio do Rio So Francisco, buscamos observar as primeiras e possveis alteraes nesse significado em funo de uma nova dimenso regional do vale do Rio So Francisco, possivelmente interferindo na paisagem sertaneja semirida do Cear, Paraba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Completou-se o projeto com a formao de um acervo bibliogrfico, iconogrfico e artstico da cultura da regio do Vale do So Francisco, tendo como subtema as modificaes que o projeto de transposio do rio So Francisco potencialmente poder causar nessa mesma cultura. Acresce ainda, que o projeto incluiu uma parte de estudos acerca do Agreste Meridional, tendo em vista que essa micro-regio est prxima da bacia do So Francisco, na regio do baixo So Francisco, contgua do serto, prxima tambm do litoral (Zona da Mata), com destaque na micro-regio para a cidade de Garanhuns, que receber pelo projeto de transposio uma adutora para regularizao do fornecimento de gua regio, tendo em vista, pois, todos esses aspectos de localizao geogrfica, pareceu-nos pertinente fazer estudos comparativos e de influncias entre as duas regies, a do Vale do So Francisco e a do Agreste Meridional. Embora Garanhuns esteja situada no Agreste, distante fisicamente 223 km do rio So Francisco (municpio de Paulo Afonso), a dimenso cultural e social que envolve a bacia do Rio So Francisco tem aspectos de influncia no apenas climtica e de geografia fsica sobre a regio, mas tambm no mbito cultural. A obra de transposio do leito do Rio So Francisco implica em profundas alteraes nessa situao em todo o interior do

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estado, fazendo com que a distino tpica entre as micro-regies do estado possam mesmo ser revistas. Nossa pesquisa justificou-se na medida mesma em que tem por princpio um estudo das imagens do Rio So Francisco na representao do imaginrio no apenas nas manifestaes prprias das cidades do vale, mas tambm quelas que a esse imaginrio se dirigem. E, tendo ainda por horizonte, a previso de que esse imaginrio tende a modificaes estruturais significativas de acordo com os resultados da transposio do leito do rio, nosso trabalho j aponta para uma atitude de ponta na abrangncia que a UPE/Faceteg se coloca nas questes no apenas de sua microrregio, mas sim, numa interrelao dessa microrregio com fatores externos que possam alterar e modificar de modo decisivo seu carter microrregional.

............................................................................Assim, espero que o leitor desse livro possa tomar contato com os resultados de nossa pesquisa. Neste livro acreditamos que abordamos sob um novo aspecto a questo da cultura do Vale do So Francisco, analisando tpicos referente s artes plsticas, msica popular brasileira, tradio regional do vale de um ngulo que ainda no encontramos em outras publicaes.

Prof. Jayro Luna

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O Rio Como Smbolo O rio tem marcado a presena como um dos lugares mais importantes da histria do homem. No sentido de que seja um lugar propcio agricultura, defesa de territrio, navegao pesca, desde o princpio da civilizao o rio se destaca. Os rios Tigre e Eufrates na civilizao babilnica, o rio Nilo do Egito so exemplos marcantes dessa importncia do rio na histria da civilizao. No menos importantes para o desenvolvimento de naes foram o Rio Amarelo, o Ganges, o Nger, o Mississipi, e no pensemos apenas nos grandes rios, outros de extenso consideravelmente menor tornaramse simblicos por suas posies geogrficas estratgicas fundamentais para a vida de vrios povos: o Reno, o Tibre, o Tejo, o Tamisa, o Jordo so alguns exemplos. No caso do Brasil, basta lembrarmos que o rio Ipiranga, modesto afluente do Tiet, hoje praticamente coberto pela cidade, um dos smbolos de nossa independncia. A simbologia esotrica e mstica desde tempos antigos tem trabalhado a imagem do rio. Ren Gunon observa essa aspecto, comentando o trabalho de Ananda K. Coomaraswamy, destacando duas imagens ligadas ao rio, a primeira, o que ele chama de remontar corrente e a segunda, a imagem da travessia e por conseguinte, esta se liga simbologia da ponte. Acerca da primeira imagem, Gunon comenta: O primeiro caso, remontar corrente, talvez o mais notvel sob certos aspectos, pois deve-se ento conceber o rio como identificado ao Eixo do Mundo: trata-se do rio celeste que desce para a terra, e que, na tradio hindu, designado por nomes tais como Gang [Ganges] e Saraswat, que so exatamente os nomes de certos aspectos da Shakti. Na Cabala hebraica esse rio da vida encontra sua correspondncia nos canais da rvore sefirtica, pelos quais as influncias do mundo em cima so transmitidas ao mundo de baixo, e que tm tambm relao direta com a Shekinah [Presena divina], que em suma o equivalente da Shakti. Na Cabala tambm se fala das guas que correm para o alto, expresso do retorno fonte celeste representado ento, no mais para pelo remontar da corrente, mas pela inverso de direo da prpria corrente. (GUNON: 1989, p. 300-301) Assim, alguns rios so sagrados para determinados povos, banhar-se nas guas do Ganges, por exemplo, um ritual de purificao na ndia. No Cristianismo, Jesus foi batizado por Joo Batista no Jordo. O rio como smbolo tem forte presena no desenvolvimento cultural dos mais variados povos. A histria do Egito antigo a histria da civilizao do rio Nilo. No Dicionrio de Smbolos de Chevalier e Gheerbrant, o smbolo do rio apresentando de modo a destacar o simbolismo das margens e da gua corrente: O simbolismo do rio e do fluir de suas guas , ao mesmo tempo, o da possibilidade universal e o da fluidez das formas (F.Schuon), o da fertilidade, da morte e da renovao. O curso das guas a corrente da vida e da morte. Em relao ao rio, pode-se considerar: a descida da corrente em direo ao oceano, o remontar do curso das guas, ou a travessia de uma margem outra. A descida para o oceano o ajuntamento das guas, o retorno indiferenciao, o acesso ao Nirvana; o remontar das guas significa, evidentemente, o retorno Nascente 8

divina, ao Princpio; e a travessia a de um obstculo que separa dois domnios, dois estados: o mundo fenomenal e o estado incondicionado, o mundo dos sentidos e o estado de no-vinculao. A margem oposta, ensina o Patriarca zen Hueineng, a paramita, e o estado que existe para alm do ser e do no-ser. Alis, esse estado simbolizado no s pela outra margem, como tambm pela gua corrente sem espuma. (CHEVALIER & GHEERBRANT, p. 780-781) Por esses aspectos a anlise da cultura que se desenvolve ao longo do percurso de um rio tambm, em boa medida, a anlise da prpria evoluo cultural da humanidade. O Egito dos faras e o Nilo, a Babilnia e o Tigre e Eufrates, A cultura Hindu e o Ganges, a China e o Rio Amarelo, so apenas alguns dos exemplos que envolvem essa interligao entre o rio e a cultura. Os limites europeus do Imprio romano incluam as margens do Reno e do Danbio, para alm do qual ficavam os brbaros. Assim, no caso do Brasil, pas de grandes bacias fluviais, o papel dos rios no desenvolvimento de nosso pas foi de suma importncia, desde as primeiras entradas e bandeiras que definiam grande parte de seu trajeto em funo dos rios que penetravam a floresta ainda inexplorada. O Rio Amazonas na regio Norte, ainda hoje, a principal via de comunicao entre as cidades, que por sua vez, surgiram, em quase sua totalidade em razo da proximidade navegvel com o grande rio. A simbologia indgena que destaca o papel do rio no processo mitolgico de criao do mundo. O Rio So Francisco marcou boa parte da cultura sertaneja do Nordeste Brasileiro. Rio do processo de colonizao do serto, em cujas margens surgiram algumas das principais cidades da regio do polgono das secas. Rio que determinava a existncia de duas possibilidades de serto, uma com gua e outra sem o precioso lquido. Porm, s mais recentemente as possibilidades de irrigao que o rio poderia oferecer foram exploradas, notadamente na regio de Petrolina e Juazeiro. Antes, porm, o rio da energia eltrica, que a partir da Chesf e da usina de Paulo Afonso, eletrificou praticamente toda a regio do serto, trazendo mais do que luz, a possibilidade do progresso para as cidades com a instalao de indstrias de beneficiamento da produo agro-pecuria. No caso especfico do Brasil, os rios foram muito mais encarados como caminhos do que como fronteiras. Caminhos para a descoberta dos territrios inexplorados, caminhos para a conquista do paraso selvtico. Desde a expedio de Vicente Pinzn foz do Amazonas, que julgou tratar-se dum mar, Mar Dulce, at as de Francisco Orellana e Pedro Teixeira, com exemplo do rio Amazonas, temos esse processo de busca de compreenso da enorme extenso de terra desconhecida em que se suspeitava a existncia de tesouros perdidos, de eldorados. A Literatura brasileira, a poesia e a msica no tm deixado de tratar do tema do rio. Mrio de Andrade escreve suas Enfibraturas do Ipiranga em Paulicia Desvairada (1922), Raul Bopp em Cobra Norato, cria um mundo mtico e mgico na floresta do Rio Amazonas, antes deles, Castro Alves narra em verso o drama Cachoeira de Paulo Afonso. Essas so s algumas poucas lembranas imediatas de obras poticas. No romance, lembremos de Uma Tragdia no Amazonas (1880), de Raul Pompia; Riacho Doce (1939), de Jos Lins do Rego ou ainda, Maleita (1935), de Lcio Cardoso. Assim, no caso brasileiro, o rio como imagem do caminho da colonizao do serto, como entrada dos bandeirantes, como signo representativo de um interior que lana grandes

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quantidades de gua ao mar, favorece a alegoria de ver o rio como smbolo da vida, mas da vida por viver, da vida que corre do presente para o futuro, cujo passado memria. O rio como estrada, como caminho uma estrada fludica, que necessita dum suporte para que o homem possa seguir por seu curso. A canoa, o barco so os meios utilizados para tal. Num sentido alegrico, o rio como metfora da estrada da vida tem como suporte material para sua alegrica navegao o corpo humano. Este como morada da alma, na acepo crist, o barco, a canoa que levar ao encontro com o mar, a totalidade. Muito sucesso fez o poema A barca bela de Almeida Garrett:

BARCA BELA Pescador da barca bela, Onde vais pescar com ela, Que to bela, pescador? No vs que a ltima estrela No cu nublado se vela? Colhe a vela, pescador! Deita o lano com cautela, Que a sereia canta bela... Mas cautela, pescador! No se enrede a rede nela, Que perdido remo e vela S de v-la, pescador! Pescador da barca bela, Inda tempo, foge dela, Foge dela, pescador! No Brasil, lembremos dum poema de Joo Cabral de Melo Neto:

Os rios Os rios que eu encontro vo seguindo comigo. Rios so de gua pouca, em que a gua sempre est por um fio.

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Cortados no vero que faz secar todos os rios. Rios todos com nome e que abrao como a amigos. Uns com nome de gente, outros com nome de bicho, uns com nome de santo, muitos s com apelido. Mas todos como a gente que por aqui tenho visto: a gente cuja vida se interrompe quando os rios. Seguindo o sentido dessa viso do rio como caminho, os rios brasileiros tm sido muito mais caminho que interrupes ou obstculos do caminho. A ponte, portanto, deixa de ser um aspecto corroborador do rio como obstculo, para ser sim, ponto de admirao e de contemplao do rio. A ponte, como signo da unio das duas margens, no seu pice, o ponto em que o homem pode, contemplar como observador o curso contnuo das guas que vm de distantes paragens e seguem em direo ao mar ou a rio maior. Na primeira estrofe de O Pescador, Vincius de Moraes, cita como um dos locais propcios pesca o estar sobre a ponte:

Pescador Pescador, onde vais pescar esta noitada: Nas Pedras Brancas ou na ponte da praia do Baro? Est to perto que eu no te vejo pescador, apenas Ouo a gua ponteando no peito da tua canoa... Na lira XXXVII, da Marlia de Dirceu, de Toms Antonio Gonzaga, numa das estrofes, lemos a descrio do caminho que se deve fazer para se chegar casa de Marlia : Entra nesta grande terra, Passa uma formosa ponte, Passa a segunda e a terceira Tem um palcio defronte. Os rios tm afigurado no imaginrio brasileiro como caminhos, como signo de passagem no sentido alegrico. Conhecido o conto de Guimares Rosa, A Terceira Margem do Rio, em que a alegorizao do rio como smbolo atinge um de seus mais altos graus na literatura brasileira: Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausncia: e o rio-rio-rio, o rio pondo perptuo.

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Haroldo de Campos, nas suas Galxias, apresenta-nos a idia dum contnuo aventuroso da linguagem potica como a correnteza do rio. Herclito de feso apresenta o argumento de que no possvel banhar-se no mesmo rio duas vezes. Tal concepo parte da premissa de que o tempo a tudo modifica e que a correnteza do rio a alegoria do tempo. Mas em Haroldo de Campos, a idia de uma sincronizao de acontecimentos, de momentos diversos desse rio. Seja como for, o rio um dos smbolos mais fortes da nossa cultura, e como tal, entender na sua fluidez a modificao, a evoluo, a passagem do tempo e da vida acaba por ser uma das mais ricas imagens poticas. Referncias Bibliogrficas CAMPOS, Haroldo de. Galxias. So Paulo, Ex Libris, 1984. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de Smbolos. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 2008. GARRETT, Almeida. Poesia e Teatro. Lisboa, Figueirinhas, 1944. GONZAGA, Toms Antnio. Marlia de Dirceu. So Paulo, Martin Claret, 2005. GUNON, Ren. Os Smbolos da Cincia Sagrada. So Paulo, Pensamento, 1989. MELO NETO, Joo Cabral de. Obra Completa. Rio de Janeiro, Nova Aguillar, 1994. MORAES, Vincius de. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguillar, 2004. ROSA, Guimares. Primeiras Histrias. So Paulo, Nacional, 2005.

Prpria, Sergipe

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O Rio So Francisco Como Tema da MPB Neste breve artigo comentaremos acerca de algumas letras de msica popular brasileira que colocaram como tema o Rio So Francisco, por meio desses comentrios, tentaremos perceber qual imagem do Velho Chico que est presente nessas canes, ou se, so vrias as imagens. O tema do rio na msica antigo e tem suas metforas caractersticas. O rio pode ser um smbolo conquanto represente a vida, a passagem do tempo ou a inevitabilidade do fluir dos acontecimentos, pode ainda, representar a tristeza, as mgoas, ou as lgrimas numa aplicao de hiprbole. Lailton Arajo e Wanderley Arajo, ambos da Banda Moxot, criada em 1981, tem como um de seus sucessos a msica Nilo Brasileiro. A msica, em ritmo nordestino de baio, apresenta j no ttulo a comparao entre o rio So Francisco e o Nilo. Guardadas as devidas propores, tal comparao se faz jus mediante o papel integrador que ambos os rios desempenharam. Na primeira estrofe da cano lemos: Nas entranhas da Canastra Nasce um grande aventureiro Nilo, nome milenar Filho do solo brasileiro Margeando o seu leito As carrancas vo assustar Nas lembranas, sinta voltar A criana que est em voc A estrofe cita o local de nascimento do rio, na serra da Canastra e tambm do longo percurso (um grande aventureiro), logo colocando o nome Nilo como qualificativo do So Francisco. Depois, faz referncia s carrancas, estas com seu aspecto assustador vo trazer nos adultos a lembrana dos medos que as crianas tm de caras feias. Na segunda estrofe, lemos: So Francisco fauna, flora So Francisco santo, rio So Francisco em Pirapora Soltarei o meu sorriso Agora, deixando de lado o qualificativo de Nilo, a cano passa a adotar o nome do rio acrescido de outras qualidades: fauna, flora, santo. As duas primeiras se referem riqueza natural que envolve a bacia do So Francisco, mas a terceira qualidade, a de santo, em referncia ao nome dado ao rio. Pirapora, a cidade que est prxima nascente do rio, em Minas Gerais, assim o lugar de alegria para o eu lrico, uma vez que a Natureza rica em fauna e flora se apresenta como obra santificada, obra divina. A seguir, um dstico que se desenvolve na cano como um refro: Navegarei no infinito / Navegarei com So Francisco. O infinito aqui redimensiona a figura do rio como metfora da vida, como busca da eternidade, assim no mais se navega no, mas com So Francisco. O santo, por sua vez, como protetor dos animais e da Natureza se mostra aqui como o santo catlico mais adequado a emprestar o nome ao rio. 13

Na estrofe seguinte, os compositores falam de lembranas da infncia em volta do rio, presenciando o processo de desenvolvimento da regio com a chegada das hidreltricas: As bandeiras da fortuna Velhos sonhos coloridos Esmeraldas, hidreltricas O menino viu passar Na pureza da magia Nas cidades que nasciam Em Minas Gerais, Bahia De Januria Curu Assim, as cores das bandeiras nas festas populares das cidades ribeirinhas se tornam imagens metonmicas da riqueza que vem com as hidreltricas, trazendo energia para toda a regio. Todo o processo aos olhos do menino um processo mgico. O eu lrico aqui se apresenta relembrando as imagens que estavam na conscincia do eu enquanto criana. A penltima estrofe se compe de nomes de cidades em Pernambuco, Alagoas e Bahia que ficam s margens do rio, terminando com o verso que designa a localizao regional dessas cidades: So Romo, Po de Acar Petrolndia e Petrolina Ibiraba, Brejo Grande guas to nordestinas Porm, o que so guas to nordestinas? O rio que corre uma regio semirida, e que tem a capacidade de sustentar hidreltricas, de ser navegvel, de fornecer gua para irrigao nesse aspecto um Nilo, e tambm uma viso mgica aos olhos de uma criana, a criana que est ainda vida nos compositores e que se expressa por meio do verso e da cano. O dstico final da composio: No toque da minha cantiga / Irrigaro a caatinga, a cantiga em homenagem ao rio que corta o serto semi-rido, ecoar pela caatinga. O a que se desdobra e que ecoa pela caatinga como eco da cano do rio. No carnaval paulista de 2006, a escola de samba Mocidade Alegre desfilou sob o samba-enredo Das Lgrimas de Iaty surge o Rio, do Imaginrio Indgena a Saga de Opara,Para os Olhos do Mundo um Smbolo de Integrao Nacional: Rio So Francisco". O ttulo num tom quase barroco j se prope a utilizar os aspectos lendrios e do imaginrio da colonizao da regio do So Francisco. Na primeira estrofe a cano faz referncias aos elementos da mitologia indgena (Jaci, Iaty), bem lenda do colonizador acerca do Eldorado. Assim instaura-se o conflito, entre os indgenas na luta de preservao de sua nao e cultua e a do europeu em busca da imaginada cidade de ouro no meio da mata: Um grande rio as formou Pelas lgrimas de Iaty Na consagrao do sol e da lua Homem branco veio invadir 14

E despertou das profundezas maus espritos Jacy a grande noite provocou Ao proteger o paraso do invasor Visando o Eldorado a procura de riquezas A cobia prevaleceu Batalhas e guerras sangrentas No corao da mata o ndio defendeu o que era seu Na segunda estrofe, a referncia ao ritual do Tor e a citao Iara, mito indgena das guas: Na dana do Paj Um ritual de f... O Tor Se o pescador o Velho Chico encara Se encanta nas guas... De Iara Agora dois personagens esto a colocados, no mais em sentido explcito de conflito, mas em conjuno para compor a cena: o paj e o pescador. O ritual profano do Tor apresentado como ritual de f, de modo a criar atmosfera da comunho entre a religiosidade do Paj e a do pescador cristo. Na estrofe seguinte um caleidoscpio em que imagens se misturam para contar do processo de miscigenao e de colonizao da regio do vale do So Francisco. O sertanejo, a festa do Divino, as romarias, as carrancas. Tudo resumido na idia de uma Tribo Brasil. Processo semelhante ao que o Romantismo do sculo XIX adotou para compor a histria potica do Brasil em poemas como A Confederao dos Tamoios, de Gonalves de Magalhes ou nos poemas indgenas de Gonalves Dias. A tribo indgena, j extinta, fornece com seu sacrifcio os elementos de uma sublimao do espao e do tempo conquistados. Vapor encantado, mistrios no ar L vai sertanejo, estrias contar Miscigenao... Rica cultura o tempo ultrapassou Festa do Divino, Romaria abenoou Vai a carranca todo mal espantar Vem repentista canta esse santurio Um rio de integrao nacional Terra Me , pede proteo Resgata a "Tribo Brasil" O futuro est em nossas mos Ainda nesta estrofe, o epteto de Rio da Integrao Nacional se apresenta como resultado histrico do processo de colonizao. A estrofe sugere que preciso resgatar o passado notadamente os valores do passado pr-colonial para se unir Terra Me como forma de afirmao da identidade da cultura brasileira. De fato, o sincretismo religioso e a mistura de elementos europeus, africanos e indgenas est presente na maioria das festividades folclricas da regio. E assim, conquistando essa identidade que ora se apresenta multifacetada e em mosaico, pode-se planejar um futuro mais promissor. 15

Na estrofe final, a referncia ao nome indgena do rio (Opar), o resultado direto no poema dessa busca de identidade que se supe esteja no imaginrio do ndio transposto para a cultura do colonizador: Corre nas veias do serto "Opar" a salvao Vamos preservar Vem a Morada do Samba... Navegar Numa imagem potica de alegorizao o rio transposto para a avenida onde se apresenta a escola de samba, como se o desfile da escola fosse a metfora da correnteza do rio. Em que se pese o tom ufanista da letra do samba-enredo, a composio apresenta os elementos centrais da discusso acerca da preservao cultural, notadamente indgena, diante do ritmo avassalador do processo de colonizao, hoje substitudo, pelo processo de urbanizao e de desmatamento. Retomando a idia do ttulo do samba-enredo, as lgrimas de Iaty que vo compor as guas que correm no Rio So Francisco. Segundo lenda indgena, Iaty era o nome de linda ndia que chorou a morte do amado em uma guerra, chorou tanto que suas lgrimas formaram a cachoeira de casca Dantas, e as guas seguiram os passos dos guerreiros desaparecidos, formando o curso do rio So Francisco. Jorge de Altinho, compositor popular, teve como um de seus primeiros sucessos Petrolina Juazeiro, composio gravada pelo Trio Nordestino primeiramente, mas depois por Elba Ramalho, Geraldo Azevedo e Alceu Valena. A msica tem como tema o cenrio da ponte que liga as duas cidades. Outra msica que trata do tema Cime de Caetano Veloso (esta cano analisamos em outro artigo). Numa linguagem bem popular, com ambigidades caractersticas, Jorge de Altinho comea a cano dizendo: Na margem do So Francisco, nasceu a beleza / E a natureza ela conservou. Se entendemos que o pronome ela se refere beleza, ento se diz que a Natureza incorporou a construo da ponte, por ser to bela, fazendo da ponte parte da prpria Natureza o que seria uma interessante construo potica. Por outro lado, se lemos que ela no objeto direto de natureza, mas sim sujeito do segundo verso (Ela a beleza conservou a natureza), ento se diz que a construo humana se harmonizou com a Natureza. O terceiro verso diz: Jesus abenoou com sua mo divina, o que se entende que a construo da ponte conseguiu tal relao com a Natureza devido bno de Jesus, incorporando ao discurso potico a referncia forte religiosidade do povo nordestino. A seguir se repete duas vezes os versos: Pra no morrer de saudade, / vou voltar pra Petrolina. A elipse a colocada entre esse dstico e os versos antecedentes que o compositor quer voltar Petrolina para ver a beleza da ponte, sendo esta uma obra abenoada. A seguir lemos os versos: Do outro lado do rio tem uma cidade / que em minha mocidade eu visitava todo dia. O compositor ento se coloca como morador de Petrolina e que costumava visitar a cidade do outro lado do rio. Aqui a ponte se apresenta como o elo de ligao entre os dois lugares que fizeram parte das lembranas da infncia do compositor. A seguir, apresentando explicitamente suas memrias de criana, o compositor escreve: Hoje eu me lembro que nos tempos de criana / Esquisito era a carranca e o apito do trem. Como na composio de Lalton e Wanderley Arajo, a carranca incutia medo na 16

criana pelo seu aspecto assustador. J o apito do trem era para a criana um outro motivo ligado ao adjetivo esquisito. Se primeiro esquisito se refere carranca como feio, no caso do apito do trem, se refere ao extico, ao estranho, pois o trem que vinha apitando, grande e barulhento, causava na criana esse estranhamento. Nos dois versos seguintes, Jorge de Altinho escreve: Mas achava lindo quando a ponte levantava / E o vapor passava num gostoso vai e vem. Opondo-se ao estranhamento do apito do trem e feira da carranca, o menino via beleza na engenhosidade da ponte pnsil se levantar, em grandiosidade para que o barco vapor passasse, como se tal ao significasse a harmonia entre o barco e a ponte, demonstrando como a engenhosidade humana pode se harmonizar com a beleza da Natureza. A expresso gostoso vai e vem, confere um sentido rtmico ao movimento da ponte e do trem, criando um aspecto metalingstico com a msica. O dstico final: Todas as duas eu acho uma coisa linda / Eu gosto de Juazeiro e adoro Petrolina, sugere que a ponte criou essa unio entre as duas cidades e que o menino recuperado pelas memrias do compositor se eterniza na viso que o compositor tem ao rever a ponte. Os verbos gostar e adorar tem aqui uma funo sinonmica, mas pode tambm sugerir uma graduao, uma vez que gostar, tambm pode significar amar, mas adorar tem alm do sentido de prestar culto, o de amar exageradamente. A ponte enfim faz esse elo de unio entre os dois lugares que compem as lembranas do compositor (em que se pese o fato de que biograficamente Jorge de Altinho no viveu em Petrolina ou Juazeiro, mas em Altinho, municpio prximo de Caruaru, regio do Agreste Pernambucano, mas aqui o compositor que se transfigura liricamente na imaginao duma criana que tenha vivido entre as duas cidades). O ttulo da cano Petrolina Juazeiro e no verso final temos a ordem Juazeiro Petrolina, como que simbolizando a volta depois da ida. Na sua simplicidade de compositor popular, Jorge de Altinho cria uma atmosfera de ingenuidade e de encantamento diante da ponte que liga as duas cidades. Geraldo Azevedo, que como j dissemos, gravou tambm a msica de Jorge de Altinho, comps sob o tema a msica Barcarola do So Francisco. A barcarola tem como aspecto definidor o de tratar do tema da gua, notadamente de um rio ou corrente de gua e ter um tom sentimental romntico, buclico ou infantil. No caso, a de Geraldo Azevedo, num ritmo hbrido com versos octasslabos e hexasslabos, o compositor vai criando a metfora rtmica do barco a navegar sob guas calmas: a luz do sol que encandeia Sereia de alm mar Clara como o claro do dia Mareja o meu olhar Olho d'gua, beira de rio Vento, vela a bailar Barcarola de So Francisco Me leve para o mar Era um domingo de lua Quando deixei Jatob Era quem sabe a esperana Indo outro lugar Barcarola de So Francisco 17

Velejo agora no mar Sem leme, mapa ou tesouro De prata ou luar Eu, em sonho um beija-flor Rasgando tardes vou buscar Em outro cu Noite longe que ficou em mim Noite longe que ficou em mim Quero lembrar Era um domingo... No incio da cano, o brilho do sol ilumina o corpo da sereia de alm mar, a juno da luz do sol com a silhueta da sereia encanta o eu lrico que se lana a navegar em busca de alcanar a sereia. Porm, na busca da sereia, esta se mostra inatingvel, como musa perfeita distante da realidade. O conflito entre o querer e a realidade, entre a esperana e o alcanado: Era quem sabe a esperana / Indo a outro lugar. O domingo de luar de prata, como passado, como momento inicial dessa busca esperanosa se contrape ao presente, solitrio no mar, sem tesouro de prata ou de luar, colocado na Noite longe que ficou em mim. No presente o eu lrico agora tem a esperana de voltar a ver o brilho do sol no horizonte sobre o corpo da sereia. Metfora da busca da felicidade, a cano faz do rio So Francisco o espao mgico dessa busca. Os dois lugares, rio e mar, o primeiro como incio, ponto de partida, caminho; o segundo, como destino, ponte de chegada, realizao. Geraldo Azevedo, menestrel reciclado do serto e do mundo moderno, apresenta sua barcarola recuperando o sentido lrico, mtico e buclico do cenrio das guas do So Francisco. Por sua vez, Luiz Gonzaga, em Serra do Navio, nos apresenta um outro cenrio acerca do rio So Francisco, a sua oposio como espao de guas com o serto seco. Riacho do Navio Corre pro Paje O rio Paje vai despejar No So Francisco O rio So Francisco Vai bater no mei' do mar O rio So Francisco Vai bater no mei' do mar Se eu fosse um peixe Ao contrrio do rio Nadava contra as guas E nesse desafio Saa l do mar pro Riacho do Navio Saa l do mar pro 18

Riacho do Navio Pra ver o meu brejinho Fazer umas caada Ver as "pegs" de boi Andar nas vaquejada Dormir ao som do chocalho E acordar com a passarada Sem rdio e nem notcia Das terra civilizada Sem rdio e nem notcia Riacho do Navio Corre pro Paje O rio Paje vai despejar No So Francisco O rio So Francisco Vai bater no mei' do mar O rio So Francisco Vai bater no mei' do mar Riacho do Navio, Riacho do Navio, Tando l no sinto frio. A msica tem como refro uma descrio do caminho das guas do Riacho do Navio at a foz do So Francisco. De fato, o riacho do Navio um dos principais afluentes do rio Paje, que por sua vez afluente do So Francisco. Rios de carter temporrio, o do Navio e o Paje passam meses sem gua. Bacia hidrogrfica da regio do semi-rido. Luiz Gonzaga, aps o refro, bem ritmado no baio, apresenta a estrofe em que demonstra o desejo do sertanejo longe de sua terra de voltar ao seu torro: Se eu fosse um peixe / ao contrrio do rio / nadava contra as guas. As guas, aqui, metfora da condio do imigrante do polgono das secas que procura as capitais do litoral ou do sudeste como forma de escapar da condio de flagelado da seca. Assim, tanto natural s guas irem para o mar, como o flagelado da seca deixar sua terra. Porm, se mostrando insatisfeito com a situao de degredo forado, Luiz Gonzaga prope a volta, o caminho inverso, como forma de recuperar sua identidade. Metamorfoseado em peixe, que vive nas guas, que s sobrevive nelas, arrisca-se ao fazer o caminho inverso das guas. Voltar para o serto para ver sua terra natal, reviver as caadas, as vaquejadas, a vida de vaqueiro enfim. Essa saudade do sertanejo se ope condio da vida na cidade grande. Nesse outro lugar o sertanejo se sente deslocado, sem reconhecimento, da sua necessidade de voltar e de esquecer o lugar em que fora forado a ir: Sem rdio e sem notcia das terras civilizada. A terra civilizada o espao da comunicao o rdio aqui representa essa comunicao, essa agitao tpica da cidade. O eu lrico busca a si mesmo esquecendo o mundo urbano Fugere Urbem reinventado nas circunstncias do serto. Porm a relao entre Lcus amenus e lcus horrendus aqui ambgua. O lugar agradvel, o serto, de fato inspito pelas condies climticas, ao passo que a cidade, da qual pretende fugir, inspito pela condio social em que o sertanejo se encontra.

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O caminho do rio Paje e do riacho do Navio a metfora desse desejo do sertanejo, de fato ambos os rios correm no sentido do Nordeste para o Sudoeste, ou seja, se afastam do mar, ao inverso do So Francisco, que ao pegar as guas desses rios d elas o sentido esperado de seguir em direo ao mar. Carlos Pita em 1979 lanou um disco constitudo de msicas que formam uma espcie de narrativa tendo como tema uma transposio do universo das novelas de cavalaria para o serto, com destaque para o cenrio do Rio So Francisco. Por essa poca Carlos Pita estava envolvido com o grupo de artistas liderados por Elomar, que entre outros, estavam presentes, Xangai, Drcio Marques e Fbio Paes. As faixas que compem o disco guas do So Francisco (1979) de Carlos Pita so: 1. O reino das guas Barrentas e os desafios do amor - (Carlos Pita) 2.A histria do cavaleiro enluarado com a donzela do Bem Amar - (Carlos Pita) 3. A histria do cavaleiro de couro e corda com a dama dos Rasos de Seca - (Carlos Pita) 4. A histria do cavaleiro sertanejo com a princesa do Clarear - (Carlos Pita) 5. O romance do rei do Ensolarar com a bela das Rendas de Lua - (Carlos Pita) 6. A princesa do Agreste e o cantador do elo ao mar - (Fernando Lona - Carlos Pita) 7. O arco-ris trovejou - (Patinhas - Kapenga) 8. A histria dos quatro reinos desaparecidos e os guerreiros do Mal Viver - (Carlos Pita) 9. Princesa sertaneja - (Patinhas - Gereba) 10. A rainha do Tranar e o violeiro dos Esqueces - (Fernando Lona - Carlos Pita) 11. A histria da princesa das Candeias de amor com o cego do Alumiar - (Fernando Lona - Carlos Pita) 12. O prncipe das Verdejanas e o amor do Verdejar - (Carlos Pita) Tendo como pano de fundo as razes medievais do canto repentista e da literatura de cordel, Carlos Pita vai compondo um panorama caleidoscpico de personagens caractersticos como a princesa, a rainha, o prncipe, o rei, o cavaleiro, a donzela. Compese versos acerca da arte do amor, acerca das guerras de cavalaria, enfim, um serto medieval. A primeira cano (O reino das guas Barrentas e os desafios do amor) no ritmo do repente, com violas na afinao caracterstica, em que a letra vai se formando com referncias fauna, flora, costumes, geografia e folclore da regio. As canes 2, 3 e 4 formam uma trilogia centrada na imagem das novelas de cavalaria: "Cavaleiro enluarado, De onde vens que no se chega? De que terra traz partida Corao sujo de estradas?" (A histria do cavaleiro enluarado com a donzela do Bem Amar) A terceira cano (A histria do cavaleiro de couro e corda com a dama dos Rasos de Seca) busca metaforizar o vaqueiro do serto com a figura do cavaleiro medieval, da sua armadura de couro e corda e sua dama ser uma certa dama dos Rasos de Seca. No

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mesmo tom vai a cano seguinte (A histria do cavaleiro sertanejo com a princesa do Clarear), em que o cavaleiro sertanejo um vaqueiro: Cavaleiro que passas Que vais pro Serto Qual o destino que levas? Que queres correndo o cho? Conta os caminhos que segues, Conta as guerras que te atreves, E farei a luz do Amor Clarear teu corao. A seguir, as canes do disco seguem um tom de narrativas de aventuras palacianas, em que reis de reinos imaginrios dum serto lendrio se aventuram em guerras e conquistas de amores. A cano A Princesa do Agreste e o Cantador do Elo ao Mar, presta, j no ttulo, uma homenagem ao cantador Elomar. O tema do serto medieval constante nas obras teatrais de Ariano Suassuna, na poesia pica de Marcus Accioly, na msica de Elomar Figueira de Melo, mas j se encontra latente na obra de Guimares Rosa. Fundada num imaginrio que v reis, princesas, cavaleiros e cantadores espalhados pelos confins do serto, tem tambm suas bases no sincretismo religioso que vai buscar essas figuras na religiosidade medieval vinda com o colonizador portugus, transposta para a pregao de beatos como Antnio Conselheiro e Jos Loureno, que de certa forma, defendiam a monarquia, uma monarquia messinica, com fortes elementos do sebastianismo portugus e que viam na jovem repblica a antropomorfizao de elementos demonacos e apocalpticos. Fazendo a repblica jus a essa imagem pela forma violenta com que tratou essas manifestaes sertanejas de beatos. Pedro Sampaio, compositor natural de Xique-xique, Bahia, tem a msica Rio So Francisco. A letra da composio, como outras que at aqui vimos, tem como argumento as lembranas de criana numa infncia em torno do rio: Lembro das pescarias, Quando meu pai me dizia, Esse rio um verdadeiro mar, E eu sentado na proa, Molhado garoa, te vendo passar. O Rio So Francisco personificado por Pedro Sampaio num amigo, talvez desses imaginrios que natural da infncia, que se qualifica pela bondade e pela pureza: Sei que s meu amigo, tu podes provar (...) Voc o espelho da pura bondade. Em outra composio, Assobio do Vapor, Pedro Sampaio canta a navegao no Rio So Francisco:

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Quem ouviu o assobio do vapor Quem vai partir Que arrume as trouxas por favor Vai subir o rio afora Vai chegar em Pirapora No tem camas nem retratos na parede (do vapor) S o balano que embalana A minha rede (de tric) Vou levando minha viola E as cantigas com o parceiro Loiola O assobio do vapor serve de motivao inicial para descrever a navegao pelo rio. Destacando o porto fluvial de Pirapora (MG), e o aspecto rstico da embarcao (no tem camas, nem retratos na parede) e o hbito sertanejo de dormir em redes (S balano que embalana / a minha rede). O balano da rede assim se harmoniza com o ritmo das guas do rio, de tal maneira que o dormir rede, sonhar, parte desse rio alegrico que representa o caminho da vida. O So Francisco , nesse sentido, a presentificao do rio da vida. O compositor, como menestrel, faz do rio o caminho que cruza pelo serto e pela vida para mostrar suas composies. E como um Dom Quixote ou um cavaleiro menestrel, tem como ajudante ou escudeiro, o parceiro Loiola, cujo nome tem, ainda por cima, origens medievais, assim como o do compositor, Pedro Sampaio. A dupla de msica caipira Gino e Geno criaram a msica As guas do So Francisco. O tema parte da cena das enchentes do rio. Com velocidade de guas raramente superior a 7 quilmetros por hora, o rio parece muito calmo, mas em outubro, poca em que aumentam as chuvas nas cabeceiras, ocorrem as enchentes. Uma das maiores enchentes ocorreu em 1979 em que cidades como Barra (BA), Juazeiro (BA) e Petrolina (PE) sofreram com vrios bairros alagados e segundo estimativas, cerca de 450 mil pessoas sofreram com as enchentes neste ano. Gino e Geno criam uma composio em que a enchente do So Francisco no apresentada como destrutiva, mas apenas como fora que impede o personagem de atravessar a ponte, servindo assim como libi ou desculpa para que ele retorne aos braos de sua amada: As guas do So Francisco estava por cima da ponte Este o grande motivo que eu no pude atravessar Mas isso eu achei foi bom, fui obrigado a voltar Pra casa do meu amor e passei a noite por l Fiquei a noite inteirinha Ao lado da moreninha esperando as guas baixar Enquanto as guas baixava, eu tomava caf quente Muitos beijos e abraos, aumentava o amor da gente E eu pedindo ao So Pedro, que aumentasse a enchente: So Pedro eu estou gostando As guas pode ir aumentando e meu amor fica contente Falado: " meus amigos, as guas do So Francisco me impediram de atravessar a ponte e eu voltei pra casa do meu amor, e isto eu achei bom demais" 22

Numa linguagem bem popular, com alguns erros de concordncia, a letra da cano fala desse espao lrico em que o amor o motivo principal, sendo a enchente o artifcio que permite ao eu lrico a continuao de seu encontro amoroso, de tal forma que o pedido e o agradecimento a So Pedro: So Pedro eu estou gostando / As guas pode ir aumentando e meu amor fica contente. Poderamos falar em alienao, mas no nos parece esse o tpico principal. De fato, se os compositores fazem da enchente do So Francisco motivo para um affair amoroso ao contrrio de citar a destruio que a fora das guas provoca, tal se deve ao imaginrio que envolve a cultura do vale do So Francisco, no outro o motivo que faz Carlos Pita criar composies de carter romanesco medieval. O rio So Francisco est envolto assim num imaginrio que faz do ritmo mais constante de suas guas, as guas calmas de no mais que 7 quilmetros por hora em seu maior trecho, a imagem de um cenrio pastoril, buclico cercado pelo serto quente e inspito. O prprio nome de O Velho Chico refora essa imagem, de um rio tranqilo, de guas constantes, de um rio aparentemente cercado pela civilizao de cidades, pontes, represas e barcos. Sobradinho de S e Guarabira talvez seja das mais conhecidas msicas acerca da questo das represas do Vale do So Francisco, msica que quase um hino em questo ambiental. O tema da msica acerca da construo da barragem de Sobradinho, a 40 km de Juazeiro (BA) e que deslocou pequenas cidades da regio para fora do alcance do lago a ser formado. O objetivo principal da represa, segundo a Chesf, era de regularizar a vazo do rio compreendido o trecho entre aquela regio e o delta, de modo que em Paulo Afonso e em Xingo a gua pudesse chegar com uma vazo constante. Lembremos que a grande enchente de 1979 pode ser controlada no referido trecho, assim como perodos de seca. A cano se inicia com um verso que pode ser considerado um lema da defesa do meio ambiente: O homem chega e j desfaz a natureza. O verso seguinte contextualiza a questo da construo de represas: Tira gente, pe represa, diz que tudo vai mudar. Os trs verbos com sujeito oculto (tirar, pr, dizer) nos ps de trs slabas do um ritmo de grande velocidade ao humana, e os verbos finais mudam o ritmo dos ps (vai \ mu \ dar). Este p, constitudo de uma locuo verbal, coloca a ao num futuro improvvel. Os dois versos seguintes vo agora contextualizar a regio da construo da represa (O So Francisco l pra cima da Bahia, / Diz que dia menos dia vai subir bem devagar). A expresso dia menos dia coloca o acontecimento como um tempo indefinido, porm, latente e prximo. O l pra cima da Bahia se refere ao mapa da Bahia, sua poro norte, a fronteira com Pernambuco que constituda pelo prprio rio So Francisco. A seguir, surge a referncia profecia popular de que o serto vai virar mar. A profecia atribuda ao beato Antnio Conselheiro, porm, suas origens so mais antigas, vinda desde o processo de colonizao do serto. A profecia que tem cunho apocalptico e sebastianista pode ser encontrada no discurso de cantadores, beatos e poetas anteriores e posteriores a Antnio Conselheiro. O refro da msica em versos de redondilha menor e maior faz um jogo de palavras com a profecia do beato: O serto vai virar mar D no corao O medo que algum dia O mar tambm vire serto 23

A inverso da profecia (o medo que algum dia / o mar tambm vire serto) tem um sentido apocalptico. De fato, na profecia se diz que o mar virar serto quando o serto virar mar, e a ela tem um sentido apocalptico religioso, messinico, o dia do juzo final. Porm, em S e Guarabira o sentido ecolgico. A poluio das guas e a conseqente destruio da Natureza pelo homem mesmo e no por uma ao castigadora de Deus. O homem o sujeito da ao na cano de S e Guarabira, conforme se l no primeiro verso. A seguir uma quadra em versos dodecasslabos, cita o nome das localidades atingidas pela subidas guas e compe a cena do gaiola tradicional embarcao do rio navegado por onde antes era uma cachoeira, esta por sua vez, desaparecida pelo aumento das guas: Adeus Remanso, Casa Nova, Sento S Adeus Pilo Arcado vem o rio te engolir Debaixo d'gua l se vai a vida inteira Por cima da cachoeira o Gaiola vai subir O nome das cidades tem um significado maior do que simplesmente toponmico: Remanso (se originalmente o significado uma enseada tranqila, no sentido figurado tambm descanso, tranqilidade); Casa Nova nos d a idia de casa recentemente construda, incio de uma vida nova e feliz. Sento S se refere ao lugar em que a S (igreja principal de uma diocese) se localiza, o que nos d uma idia de localizao duradoura, permanente. Pilo Arcado. Conta a tradio local que a denominao est ligada a uma lenda de pescadores que encontraram um pilo, com formato de uma curva em arco, em uma das margens do rio So Francisco, e passaram a utiliz-lo para pilar o sal que salgava o peixe. Assim, o aumento das guas vem provocar a destruio da tranqilidade local, a quebra do que parecia imvel, permanente. O verso Debaixo dgua l se vai a vida inteira faz referncia perda das razes, da tradio, da identidade. Convm ressaltar que os municpios citados foram reconstrudos em local mais seguro e que com o tempo obtiveram progresso econmico e social com a barragem de Sobradinho. E por sua vez, a construo da barragem deu origem a uma nova cidade, o de Sobradinho, com autonomia de municpio em 1989, antes originalmente era apenas a vila dos trabalhadores empregados na construo da barragem. Junto orla da represa surgiu o bairro conhecido como Chico Periquito com bares e restaurantes beira do lago. Os dois versos seguintes: Vai ter barragem no salto do Sobradinho \ E o povo vai se embora com medo de se afogar, esclarece o motivo da destruio das cidades locais, do aumento das guas, do cumprimento da profecia do beato: a construo da barragem de Sobradinho. De fato o lago artificial ali formado o segundo maior lago artificial do mundo. Assim, sob esses aspectos, relendo a letra de S e Guarabira, percebemos que a voz da letra da cano a do povo local s vsperas da construo da represa. As incertezas causadas pela modificao do cotidiano, pela destruio do antigo em face do novo. A desordem na vida local causada pelo progresso. Este medo do progresso que d fora ao discurso. Desse modo, o sentido da cano poeticamente ambguo, de tal forma que ao mesmo tempo crtica mordaz e bem fundada destruio da Natureza pelo homem, mas tambm, no contexto da construo da represa e dos benefcios que ela trouxe, o medo diante do novo. 24

J a cano de Slvio Brito, O Velho Chico literalmente uma cano engajada. O engajamento na defesa que comunidades locais do So Francisco fizeram contra o projeto federal de transposio das guas do rio, criando dois grandes canais que serviriam gua para o serto de Pernambuco e Cear, at a bacia dos rios Piranhas e Jaguaribe, e o outro indo at a Paraba, na bacia do mesmo nome. O frei Luiz Cappio se notabilizou pela campanha contra a transposio, inclusive pelo episdio de uma greve de fome contra o projeto. Slvio Brito escreveu ao frei: Querido irmo, esta musica foi composta logo aps uma viagem minha ao nordeste no ms de novembro de 2004, quando vi o rio So Francisco e fiquei muito triste ao saber que aquele rio que fornece vida para todos os seres que vivem em suas margens poderia vir a morrer. Esta minha contribuio ao movimento e eu a estou colocando disposio para ser utilizada na sua campanha Uma vida pela vida. Conte com este amigo no que puder te servir neste bom combate. 1 A cano de Slvio Brito tem como refro os versos distribudos em duas quadras de rimas cruzadas ABAB e tendo em cada quadra, trs versos octasslabos e um quarto heptasslabo: O Velho Chico t morrendo J nem tem mais navegao E ainda tem gente querendo Essa tal transposio O Velho Chico t sumindo Ta suplicando salvao Mas em seu leito t pedindo A revitalizao. Slvio Brito faz referncia ao processo de assoreamento do rio e poluio. De fato, tem se mostrado que o curso do rio So Francisco vem sofrendo continuamente com isso, tendo sua vazo prejudicada ano a ano. E apresenta como soluo para o problema a revitalizao do rio. O que se entende por revitalizao o controle das causas do assoreamento e a devida poltica de controle dos agentes poluidores locais, sejam as prprias populaes ribeirinhas, sejam principalmente as indstrias, os agrotxicos e o desmatamento da vegetao ciliada. Tais aes envolvem polticas concretas, da na cano Slvio Brito diz: Mas preciso mais boa vontade Mais ao e deciso Para fazer de verdade A revitalizao Pois ento vamos reciclar o lixo1

Silvio Brito em: http://www.umavidapelavida.com.br/musica_silvio.html.

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Chega de poluio Vamos transformar o Chico No osis do serto. Outro aspecto da cano de Slvio Brito o jogo que faz entre o nome do rio e do santo: Mas So Francisco poderoso protetor da Natureza vai transformar em caudaloso O Velho Chico com certeza. Assim, o compositor mineiro, natural de Trs Pontas, famoso por sucessos como Farofa-fa, Pare o Mundo que eu quero descer e T todo mundo louco, apresenta tambm um argumento messinico, da ao divina em defesa da Natureza. Mas tal argumento apenas simplrio e se perde no contexto geral da cano de repdio ao projeto de transposio, de tal modo que a expresso Tem gente no verso E ainda tem gente querendo, logo seguido pelo verso Essa tal transposio, em que a expresso Essa tal tem um sentido pejorativo, na linguagem popular, d um sentido de que o projeto est fundamento em razes equivocadas e de desconhecimento do verdadeiro problema do rio. Porm, de se ressaltar que de fato existe a necessidade da revitalizao, mas que ambos os projetos, o de revitalizao e o de transposio no so excludentes, sendo no mximo dependentes, ou seja, a transposio teria como pr-requisito para seu sucesso a revitalizao da bacia do rio. Morares Moreira comps a msica So Francisco, num ritmo agalopado, com predomnio de versos em redondilha maior. A cano sintetiza aspectos culturais do Vale do So Francisco. Partindo de uma comparao entre o compositor e o rio, Moraes Moreira comea a apresentar as caractersticas comuns a ambos, num processo de personificao do rio: O meu caminho eu escolho Tirando o cisco do olho Enxergo longe, me arrisco Sou como o Rio So Francisco Fao no tempo viagens No espao da noite e do dia, Indo, fluindo s margens De Pernambuco e Bahia Andando por todos os lados Sincretizando os Estados Arrematando as costuras Na integrao das culturas Ora fazendo quadras com rimas emparelhadas, ora com rimas cruzadas, vai tornando o ritmo alucinante das imagens apresentadas. O ofcio de compositor popular 26

assim emparelhado com o caminho do rio: Andando por todos os lados / Sincretizando os Estados. Percebamos o verbo a colocado: Sincretizar, ou seja, integrar elementos diferentes numa sntese. Nas duas quadras seguintes, Moraes Moreira diz que est em busca do que mais novo, ou seja, do progresso e se apresenta como ponte que unifica, comparando o papel da ponte que liga Petrolina a Juazeiro: Assim como o rio promovo O abrao que a gente precisa Em busca do que mais novo Sim ultrapasso a divisa Fazendo a ponte, sem medo Antonio sou brasileiro Joo, Geraldo Azevedo Petrolina e Juazeiro Cita nomes populares como Antonio e Joo, e presta homenagem a Geraldo Azevedo. O verso Sim, ultrapasso a divisa mais do que o sentido de ultrapassar fronteiras regionais ou estaduais, mas no sentido da avant-garde, do ir alm do comum, do previsvel. Neste sentido, se pensamos no na obra de Moraes Moreira, mas no rio com que se identifica, temos que o rio So Francisco sempre foi palco de discusses acerca do progresso, tido como rio da integrao nacional. Na quadra seguinte, Moraes Moreira nos fala da imensido do Brasil, e que o trabalho de compositor to grande quanto o percurso do rio: Por essas guas to boas Sou navegante feliz Sergipes e Alagoas Minas, imensos brasis Sergipe e Alagoas so os pequenos estados que esto na foz do So Francisco. O fato de colocar o nome dos estados no plural uma forma de torn-los substantivos comuns, fazendo referncia que na bacia do Vale do So Francisco, que se inicia em Minas Gerais, cabem vrias vezes o tamanho desses dois estados. O verso sou navegante feliz, tem um sentido metafrico, mais do que a referncia s navegaes no rio, mas sim no sentido de que a histria da sua carreira de compositor uma navegao. A parte final da cano compreende os seguintes versos: Quem pode parar a plancie, Os rios e os oceanos? Ah meu amor, acredite Tambm assim sem limite o sonho dos seres humanos Quem pode parar o planeta? E o movimento que h? 27

Ah meu amor, com certeza As foras da natureza O vento quem pode parar? Lavam na beira do rio As lavadeiras de Deus A alma dos pecadores E o corao dos ateus Aqui duas quintilhas precedem a ltima quadra. A primeira quintilha comea com uma indagao: Quem pode parar a plancie / Os rios e os oceanos? Argumentando assim que a fora da natureza, especialmente a que se expressa no rio So Francisco ainda mais forte do que a engenhosidade do homem, e que o sonho humano dominar o rio, um sonho sem limite. Referncia indireta s represas, barragens e o projeto de transposio. Por outro lado, na quadra que se segue, o compositor responde que a Natureza pode parar a rotao do planeta, superando assim a fora humana. Por fim, mais um questionamento acerca da fora da Natureza: O vento quem pode parar? A resposta implcita de que o homem no pode. A quadra final, fecha a cano com a imagem das tradicionais lavadeiras de roupa s margens do rio. Porm, num sentido figurado, a lavagem da roupa suja tambm a lavagem dos pecados e da arrogncia do homem para com a Natureza. Da lavar a alma dos pescadores e o corao dos ateus. Buscamos apresentar aqui algumas composies populares que tratam do tema do rio So Francisco, possvel que tenhamos esquecidos algumas at mais significativas que estas, mas acreditamos que conseguimos aqui apresentar o panorama da imagem do rio So Francisco na msica popular brasileira.

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Acerca de O Cime, Cano de Caetano Veloso Uma das canes mais bonitas que fazem referncia ao Rio So Francisco , sem dvida, O Cime de Caetano Veloso. Assisti a um vdeo no Youtube com Gal Costa e o prprio compositor baiano em belssimo dueto interpretando a msica. J ouvi essa msica na voz de Geraldo Azevedo que d uma interpretao um pouco mais ligeira e ao mesmo tempo, menos dramtica que a dos dois tropicalistas. Certa feita num bar beira do Rio So Francisco, do lado de Juazeiro da Bahia, prximo ponte que une a cidade baiana Petrolina, do outro lado do rio, em Pernambuco, em companhia do amigo Benedito Bezerra, tomvamos uma cerveja e ouvimos o cantor que ali se apresentava, com seu violo, fazer uma interpretao tambm bem intimista da msica. Neste breve texto pretendo fazer uma anlise da letra desta cano, nossa anlise j foi parcialmente apresentada no congresso regional da SBPC, ocorrido na UNIVASF, em 2007, assim como tambm falamos um pouco acerca disso no 11. Congresso Internacional da Abralic, na USP, em 2008. 1.1. A Forma e o Cime A letra da cano foi por ns consultada em diferentes sites, inclusive os sites que se apresentam como oficiais de Caetano Veloso (www.caetanoveloso.com.br\site) e o site (www.caetanoveloso.com.br). Buscamos encontrar a forma de transcrio da letra que mais correspondesse s necessidades poticas de uma composio versificada. Cremos que aquela que divide a cano em 5 estrofes, sendo as duas primeiras e as duas ltimas transcritas como quartetos, e a estrofe central com 5 versos, a que melhor representa essa nossa necessidade: O Cime Dorme o sol a flor do Chico meio dia Tudo esbarra embriagado de seu lume Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia S vigia um ponto negro, o meu cime O cime lanou sua flecha preta E se viu ferido justo na garganta Que nem alegre, nem triste, nem poeta Entre Petrolina e Juazeiro canta Velho Chico vens de Minas De onde o oculto do mistrio se escondeu Sei que o levas todo em ti, no me ensinas E eu sou s, eu s, eu Juazeiro nem te lembras desta tarde Petrolina nem chegaste a perceber Mais na voz que canta tudo ainda arde Tudo perda, tudo quer buscar, cad Tanta gente canta, tanta gente cala 29

Tantas almas esticadas no curtume Sobre toda a estrada, sobre toda sala Paira, monstruosa sombra do cime. Podemos contar os quartetos como formados por endecasslabos, com rimas cruzadas, e acentos predominantes na 3., 7 e 11 slabas: Dor/ me o/ sol/ a/ flor/ do/ Chi/ co/ mei/ o/ di/a (11) Tu/ do es/ bar/ ra em/ bri/ a/ ga/ do/ de/ seu/ lu/me (11) Dor /me/ pon/ te,/ Per/ nam/ bu/ co,/ Rio,/ Ba/ hi/a (11) S/ vi/ gia / um/ pon/ to/ ne/ gro, o/ meu/ ci/ /me (11) O/ ci / / me/ lan/ ou/ su/ a/ fle/ cha/ pre/ta (E) (11) E/ se/ viu/ fe/ ri/ do/ jus/ to/ na/ gar/ gan/ta (11) Que/ nem/ a/ le/ gre,/ nem/ tris/ te,/ nem/ po/ e/ta (11) En /tre/ Pe/ tro/ li/ na e/ Ju / a/ zei/ ro/ can/ta (11) Ju/ a/ zei/ ro/ nem/ te/ lem/bras/ des/ta/ tar/de (11) Pe/ tro/ li/ na/ nem/ che/gas/te a/ per/ce/ber (11) Mais/ na/ voz/ que/ can/ ta/ tu/ do/ ain/ da / ar/de (11) Tu/do / per/da,/ tu/do/ quer/ bus/car,/ ca/d (11) Tan/ ta /gen/ te/ can/ ta,/ tan/ ta/ gen/ te/ ca/la (11) Tan/ tas/ al/ mas/ es/ ti/ ca/ das/ no/ cur/ tu/me (11) So/ bre/ to/ da a es/ tra/ da,/ so/ bre/ to/ da/ sa/la (11) Pai/ ra,/ mons/ tru/ o/ sa/ som/ bra/ do/ ci/ /me. (11)

O nmero 11 do tipo palindrmico, isto , pode ser lido de trs para frente que no modifica o seu valor, tambm um smbolo da igualdade e da identificao (1=1), na numerologia um nmero de avatar, de espiritualidade e de intuio. Assim, as duas cidades, Petrolina e Juazeiro esto, uma diante da outra, em constante processo de autoidentificao e espelhamento. A ponte funciona nos dois sentidos, indo e vindo, assim como o palindrmico nmero 11. E ainda, existe, em termos numricos, o aspecto de que o nmero 11 primo, no sendo divisvel alm de por ele mesmo e pelo nmero 1. Como, o nmero 11 formado pela repetio do algarismo primeiro, esse processo de diviso assume o carter psico-simblico de que a separao entre o eu e o outro ao mesmo tempo um elo para a auto-identificao, quanto para o reconhecimento do outro. A estrofe central do poema, porm, no permite uma escanso to simtrica e regular quanto a que propomos para as demais, mas a engenhosidade de sua metrificao hbrida e o fato de estar colocada ao centro do poema d um sentido simblico forma: V/ lho /Chi/ co /vens/ de/ Mi/nas De on/ de o/ o/ cul/ to/ do/ mis/ t/ rio/ se es/ con/ deu Sei/ que/ o /le/ vas/ to/ do em/ ti,/ no/ me/ en/ si/nas E/ eu/ sou/ s,/ eu/ s,/ eu

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A estrofe pode ser escandida em dois versos heptssilabos e dois dodecasslabos, um dos quais, alexandrino. Os dois heptasslabos seriam num sentido significativo da forma da estrofe, dois hemistquios separados. Se os juntamos, temos a possibilidade de formar um verso dodecasslabo: V/ lho /Chi/ co /vens/ de/ Mi/nas /E eu/ sou/ s, eu/ s, eu Porm, para que isso ocorra, preciso que o segundo hemistquio modifique sua caracterstica de acentuao, o que implica em dizer, que tambm no processo de unio de dois seres, preciso que se modifique algumas caractersticas da individualidade, notadamente dos aspectos egostas do ser, para que tal unio seja prazerosa a ambos. O ser s eu, implica na quebra da solido tambm. Os dois versos centrais da estrofe e, por conseguinte, do poema, levam a cabo o que nos hemistquios se apresenta como possibilidade. O segundo verso da estrofe um dodecasslabo com acentos na 4., 8 e 12 slabas. Slabas pares, e o par a unio. O terceiro verso um alexandrino com eliso na 7. slaba, ou seja exatamente ao meio do poema, temos na forma, a analogia com a ponte que une (/doem/), J que esta 7. slaba a ltima do primeiro hemistquio do alexandrino e a primeira do hemistquio seguinte. Do-em (doem), do verbo doer, presente do indicativo, 3. pessoa do plural. Aqui comeamos a falar do cime. O cime doloroso, um sentimento que causa dor a ambos, ao que se encima e ao que sofre o efeito da ao enciumada do outro. O cime o processo inverso da autoidentificao na relao de unio. Para C.G. Jung, o Cime a falta de Amor 2 , em Freud, no texto Alguns mecanismos neurticos no cime, na parania e no homossexualismo, temos uma distino de trs tipos de cimes: o competitivo ou normal, o projetado e o delirante. Freud acerca da projeo do cime escreve: O cime da segunda camada, o cime projetado, deriva-se, tanto nos homens quanto nas mulheres, de sua prpria infidelidade concreta na vida real ou de impulsos no sentido dela que sucumbiram represso. fato da experincia cotidiana que a fidelidade, especialmente aquele seu grau exigido pelo matrimnio, s se mantm em face de tentaes contnuas. Qualquer pessoa que negue essas tentaes em si prpria sentir, no obstante, sua presso to fortemente que ficar contente em utilizar um mecanismo inconsciente para mitigar sua situao. Pode obter esse alvio - e, na verdade, a absolvio de sua conscincia - se projetar seus prprios impulsos infidelidade no companheiro a quem deve fidelidade. (FREUD: 1976, p. 271) Ver no outro, aquilo que temos medo em reconhecer que existe em ns mesmos, no mbito da relao amorosa ou de amizade , para Freud, o elemento causador do cime projetado. Nesse sentido, o nmero 11, do verso endecasslabo d a analogia numerolgica do que seja essa projeo. preciso reconhecer no outro aquilo que reflete de ns mesmos e saber trabalhar isso, evitando o cime. Os nomes Petrolina (gnero feminino) e Juazeiro (gnero masculino) formam, por analogia, a unio masculino-feminino da relao amorosa. A origem desse sentimento parece ter causas diferentes. Desde a antiguidade mais remota, para o homem tornou-se evidente a garantia da paternidade. As razes esto na questo do herdeiro, daquele filho2

Carl Gustav Jung, de Memrias, sonhos, reflexes, 1993.

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que continuar a obra do pai. A descoberta de uma falsa paternidade, implica na perda do que foi feito para outro. No so poucas as obras literrias que tratam da questo da descoberta da paternidade como elemento definidor da trama, como em O Arco de SantAnna de Almeida Garrett. Para a mulher, o investimento na gerao de filhos, tinha sentido diverso. Manter o marido significava a garantia de poder cri-los a bom termo perante as exigncias sociais, econmicas e morais. O homem, por seu turno, sentia-se em condio de se dedicar mulher e arrumar uma ou mais amantes, para satisfao sexual. A mulher, no lar, sentia, em geral, maior necessidade de envolvimento emocional para a prtica do sexo. Como observa Thiago de Almeida: Ainda, ao se discorrer sobre a temtica do cime necessrio lembrar que para alguns tericos, como De Steno & Salovey, 1996 e Harris & Christenfeld, 1996(a e b), pelo menos na cultura ocidental, a infidelidade sexual tem diferentes conotaes para homens e mulheres. Como o amor geralmente um pr-requisito para o envolvimento de uma mulher em um relacionamento sexual, isto faz com que se imagine que a infidelidade sexual feminina esteja associada com o envolvimento emocional com outro parceiro (De Steno & Salovey, 1996). Todavia, consoante Sheets e Wolfe (2001), a infidelidade masculina no tem tal implicao porque os homens tm mais condies de praticar sexo sem amor. (ALMEIDA: 2007 3 ) Na letra de O Cime, se tomamos o gnero das palavras Petrolina e Juazeiro para compor a analogia de um casal masculino-feminino, preciso que identifiquemos um terceiro, o causador do cime entre ambos. No havendo a possibilidade do terceiro, no existiria razo causadora do cime. Este terceiro o rio So Francisco, que se interpe entre as duas cidades: Entre Petrolina e Juazeiro canta. A estrofe central, comea por tratar diretamente do rio: Velho Chico vens de Minas. O rio o viajante que vem de longe e se coloca entre Juazeiro e Petrolina. Porm, esse cime logo superado, pois o viajante segue seu curso, a admirao que causa a um e o outro a beleza do rio, logo compreendida pelo outro, apenas, como tal, admirao. A ponte que se constri, unifica ambos, fazendo com que seja superada a dificuldade causada pela passagem do rio. Para C.G. Jung, os sentimentos que buscamos negar em ns mesmos formam uma sombra. O material reprimido forma um self negativo, a Sombra do Ego. A cano termina nesses termos: Paira, monstruosa sombra do cime. Na primeira estrofe da cano, temos rima lume/cime. O brilho do sol refletido nas guas do So Francisco em oposio ao ponto negro, intrnseco do sentimento de cime. Na ltima estrofe, esse sentimento exteriorizado pelo eu lrico, de modo que o cime pode ocultar o brilho do Sol. Na simbologia esotrica, o Sol representa os sentimentos do corao. Uma vez que possui luz prpria, que ao contrrio da lua que a reflete, essa luz vem de sua interioridade. A luz que se reflete, no caso da Lua, a luz do conhecimento que preciso adquirir exteriormente, ao passo que a luz que vem de dentro a da sabedoria.Cime romntico e infidelidade amorosa entre paulistanos: incidncias e relaes / Thiago de Almeida; orientador Ailton Amlio da Silva. -- So Paulo, 2007. 234 p. Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em Psicologia. rea de Concentrao: Psicologia Experimental) Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo.3

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A sombra do self negativo, dominada pelo cime pode, pois, eclipsar essa luz do Sol interior. 1.2. O Canto do Cime e os sentidos da percepo O cime se transforma tambm no canto do eu lrico: o meu cime (v.4). Ferindo a garganta, transforma-se em canto isolado: O cime lanou sua flecha preta / E se viu ferido justo na garganta. O cantar potico tambm se modifica, a dor causada pelo cime tira a aura da cano, transgredindo-a, reduz o valor do canto expresso de um sentimento que no de tristeza (drama, tragdia), alegria (comdia), nem potica (lrica), mas apenas a indiferena do distanciamento causada pela modificao da memria (pica). O mistrio oculto a que se refere a cano , pois, o da auto-identificao do eu lrico, que se sente diminudo pela impossibilidade de posse da beleza da Natureza. A tentativa de captar essa beleza vista ali da ponte entre Petrolina e Juazeiro, leva o poeta a opor seu ponto negro de cime ao brilho do Sol sobre as guas do rio. o reconhecimento da mimesis como um processo de imitao, mas enquanto tal, no a verdade, mas o simulacro: Mais na voz que canta tudo ainda arde /Tudo perda, tudo quer buscar, cad. Busca incessante de apreenso do belo que resulta no moto contnuo da prpria arte. Tantos so os cantadores da beleza, quanto so os que os ouvem (Tanta gente canta, tanta gente cala). Lembremos, a propsito, que de Juazeiro vieram Joo Gilberto, o criador da Bossa-Nova e Ivete Sangalo, musa da msica bahiana contempornea. A vida sob o Sol, na impossibilidade de modificar esse estado de impotncia de apreenso da verdadeira percepo da Natureza, se reduz, numa viso trgica, ao corpo e alma, endurecendo-se aos sentimentos como se fossem peles esticadas no curtume. Agora o cime o do artista diante da Natureza, e a obra de arte a expresso desse cime. A impossibilidade de posse da Natureza causa esse sentimento. O artista teme perder o que no tem, eis o mistrio. Movido por esse sentimento, se dedica a tentar aprender um modo de controlar o que no consegue conquistar, mas tal tarefa fadada ao fracasso do simulacro, restando a solido, pois que a beleza da Natureza, lhe parece fugidia como as guas do rio passando por sob a ponte e seus ps: Sei que o levas todo em ti, no me ensinas / E eu sou s, eu s, eu. Porm, o reconhecimento dessa impossibilidade (Sei que o levas), tambm o maior trunfo do artista, sua tnue possibilidade de vitria, pois a obra produzida, seu canto, substitui o bem que no se pode ter. Nessa atitude inicial de consolao, encontra artifcios para superar a dor da perda iminente pela alegria da descoberta da nova sensao, a obra materializada expondo-se aos seus sentidos. Essa obra que substitui o que se perde, na cano, representada pela ponte. A obra humana que se apresenta bela por desafiar a Natureza e conjugar-se no cenrio, unindo-se prpria Natureza, como aparente parte da cena, quando na verdade artificial. 2. Referncias Bibliografias: ALMEIDA, Thiago de. Cime romntico e infidelidade amorosa entre paulistanos: incidncias e relaes Dissertao de Mestrado, orientador Ailton Amlio da Silva. So Paulo, Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo, 2007. 234 p. FREUD, Sigmund. Alguns mecanismos neurticos no cime, na parania e no homossexualismo. In: S. Freud, Edio standard brasileira das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud, Vol. 18. Rio de Janeiro, Imago, 1976. 33

Do So Francisco ao Mississipi: O Rio e o Homem na Msica Popular.

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Neste captulo tecemos algumas consideraes acerca das representaes do rio na msica popular brasileira e norte-americana, para tanto tomamos como base o So Francisco no caso da geografia cultural brasileira e a bacia do Mississipi-Missouri no caso da norte-americana. Cabe lembrar, que este texto tem de certo modo um pr-requisito de leitura que o que se intitula O Rio So Francisco como tema de MPB, porm, de certo modo, possvel ler este sem ler aquele, se o leitor considerar que j tem alguma noo acerca das msicas que aqui sero citadas, o que no difcil para boa parte dos leitores que tm o hbito de escutar msica brasileira e msica norte-americana. O que convenhamos, relativamente comum no caso da cultura brasileira e um tanto quanto um pouco mais raro no caso da cultura norte-americana. O Rio So Francisco na msica popular brasileira tem sido representado como rio que em sua bacia guarda uma rica cultura regional. Cultura essa, que por vezes, tem uma raiz de carter medieval, qual sejam as razes da poesia de cordel e do trovar dos repentistas. Essas razes medievais aparecem em composio de Carlos Pita (no disco guas do So Francisco, 1979), em Geraldo Azevedo (Barcarola do So Francisco, msica includa em disco produzido com Elomar, Xangai e Vital Farias). Esse serto medieval tem razes histricas no processo de colonizao portuguesa, transpondo para o serto aspectos do sebastianismo messinico, da frmula e composio na medida velha, das novelas de cavalaria e poesia palaciana, povoando o serto dum imaginrio de reis, cavaleiros, princesas e encantamentos. Outro aspecto constante nas msicas que tratam do tema do rio So Francisco so as lembranas de infncia. Mesmo que o compositor no tenha passado a infncia na regio do propriamente dita do vale do rio, num processo de formao da voz lrica da letra da cano, o autor se imagina um homem que tendo deixado a regio, traz na memria lembranas da infncia vividas beira rio. Tal processo tem suas bases na corrente de imigrao sertaneja-nordestina para as capitais litorneas ou para o sudeste do pas, So Paulo e Rio de Janeiro principalmente. Como memrias dessa voz lrica imigrada, a infncia que fala feita de lembranas compostas pelas imagens dos barcos (gaiolas), das carrancas estas geralmente trazendo o medo na memria da criana e a vida ribeirinha. Outro elemento constante nas msicas acerca do rio So Francisco a referncia ponte que une Petrolina e Juazeiro. A ponte construda em 1950, tendo como nome atual, Ponte Presidente Dutra, uma das mais movimentadas do pas. Em vrias canes a ponte citada geralmente como signo de unio, de ligao. Em algumas canes se trata da questo da interferncia do homem no curso da rio, a construo de represas (Sobradinho, de S e Guarabira, p.ex.), do polmico projeto de transposio das guas do rio (O Velho Chico, de Slvio Brito, p.ex.) e da fora da natureza em resposta s interferncias (So Francisco, de Moraes Moreira, p.ex). O rio como cenrio buclico do idlio amoroso no um tema muito significativo, ocorrendo ocasionalmente, como na msica de Gino e Geno, As guas do So Francisco). O primeiro vapor a navegar as guas do rio So Francisco veio dos EUA. O vaporzinho como chamado navegou antes nas guas do Mississipi e hoje aberto visitao na cidade de Juazeiro (BA). Rebatizado no Brasil com o nome de Saldanha Marinho o vapor navegou de 1871 a 1970, atualmente recuperado pela prefeitura de Juazeiro um dos pontos tursticos da cidade. Criou-se, inclusive, uma lenda acerca do vapor. A de que em noites de lua cheia, a tripulao fantasma do barco sai pela cidade de 35

Juazeiro a seqestrar pessoas principalmente moas para uma viagem pelo rio. Espcie de recriao da lenda do Holands Voador, eternizada em pera de Wagner. Mas se o vapor navegou nas guas do Mississipi e nas guas do So Francisco, podemos dizer que simbolicamente este barco conheceu os dois rios e pode, como ningum, saber das semelhanas e das diferenas entre os dois rios. Em sua memria est ecoando as canes norte-americanas e brasileiras acerca desses rios. A bacia do Mississipi-Missouri corta a regio central dos Estados Unidos e tem a foz no sudeste no estado de Louisiana. O Missouri o maior afluente do Mississipi, tendo inclusive uma extenso maior que a do prprio Mississipi, considerando no conjunto, o percurso Mississipi-Missouri tem 6700 quilmetros. O rio est ligado sob vrios aspectos ao processo de expanso territorial dos Estados Unidos. Aps a independncia das treze colnias britnicas em 1776, vrias guerras e disputas com a Frana, a Inglaterra e a Espanha acabaram por deixar os Estados Unidos com um imenso territrio, terminando por conseguir do Mxico a Califrnia. A bacia do Mississipi-Missouri era assim uma espcie de fronteira era o Nordeste dos Estados Unidos, civilizado, urbanizado e livre com as terras dalm do rio e do sul, ainda, no mais das vezes, rudes, selvagens. A guerra civil americana bem demonstrou essa dicotomia cultural, social e poltica. A navegao a vapor e as obras de construo de canais e represas estiveram ligadas histria da ocupao daquela regio. Em 1927 houve uma grande cheia do rio Mississipi que desabrigou centenas de milhares de pessoas, s superada pela cheia de 1993. Obras de conteno e de regularizao do fluxo de guas foram construdas no intuito de estabilizar a vazo das guas durante o perodo anual de cheias. No mbito da msica popular, inmeras so as canes que tratam direta ou indiretamente do rio. Trataremos brevemente de algumas, comparando, sempre que possvel com composies brasileiras relativas ao rio So Francisco. Uma das composies mais impressionantes sobre as enchentes do Mississipi When the levee breaks, recriada pelo Led Zeppelin, mas que originalmente um blues de Menphis Minnie e Joe Maccoy. A letra direta e crtica sobre os danos que causam as enchentes do rio e mostra a incapacidade do homem de dominar a Natureza. If it keeps on rainin, levees goin to break, If it keeps on rainin, levees goin to break, When the levee breaks Ill have no place to stay. (Se continuar chovendo, as barragens iro romper Se continuar chovendo, as barragens iro romper Quando a barragem romper, no terei onde ficar) O desespero dos desabrigados, daqueles que perdem tudo por causa das inundaes retratado de forma direta nos versos dessa cano: All last night sat on the levee and moaned, All last night sat on the levee and moaned, Thinkin bout me baby and my happy home.

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(Ontem por toda noite sentei na barragem e chorei Ontem por toda noite sentei na barragem e chorei Pensando no meu bem e no meu lar feliz) Randy Newman comps Louisiana 1927, fazendo referncia histrica a uma das maiores enchentes da foz do Mississipi. A cano comea com a apresentao do quadro da tempestade e da enchente: What has happened down here is the wind have changed Clouds roll in from the north and it started to rain Rained real hard and rained for a real long time Six feet of water in the streets of Evangeline (O que aconteceu aqui que o vento tudo mudou Nuvens vieram do norte e comeou a chover Choveu de verdade muito e choveu por muito tempo mesmo Seis ps de gua nas ruas de Evangeline) Numa estrofe final, Randy Newman contextualiza historicamente a cena ao citar o presidente Coolidge, ento presidente dos EUA: President Coolidge came down in a railroad train With a little fat man with a note-pad in his hand The President say, "Little fat man isn't it a shame what the river has done to this poor crackers land." (O Presidente Coolidge veio num trem da ferrovia Com um homenzinho gordo com um bloco de nota nas mos O Presidente disse, Homenzinho gordo uma vergonha O que o rio fez com os brancos pobres dessa terra.) Calvin Coolidge era vice de Warren Harding, assumindo a presidncia com a morte deste. Sua poltica era marcada pelo conservadorismo, pela pouca ao nos problemas sociais e pelo abandono ou veto de projetos que ajudassem o campo e regies menos favorecidas. No verso final, a ironia, em 1927 a segregao racial era forte nos Estados Unidos e na fala atribuda ao presidente, se v a preocupao com os crackers, como eram chamados os brancos pobres (literalmente os quebrados sem grana, sem dinheiro), sendo Louisiana uma cidade cuja populao era em maior parte negra. A ironia tambm se apresenta no modo como se apresenta o presidente, vindo de trem com um little fat man e seu bloco de notas, o que sugere algumas solues paliativas e de gabinete, afinal no se diz que ele veio com o exrcito ou uma equipe de salvamento. Lembremos aqui da cano gravada por Gino e Geno, guas do So Francisco, em que se pede para que So Pedro aumente a enchente para que o personagem lrico da cano possa continuar com um libi para continuar nos braos de sua amada e no ter que atravessar a ponte. Vemos aqui que o idlio amoroso, numa espcie de ultra-romantismo acrnico serve de motivo para que no se veja os danos que a enchente traz s populaes 37

ribeirinhas. No contexto social, melhor se d Slvio Brito que em O Velho Chico sugere um projeto de revitalizao em oposio ao de transposio das guas, porm, o fato que os projetos no so excludentes, mas sim, complementares. Drcio Marques em cano mais ousada, Rancho Eterno Chico, em ritmo de rancho carnavalesco, com letra que critica a poltica governamental, sugerindo que a obra favorece a elite e despreza de fato a ajuda ao povo que sofre com a seca: O que ser de todos ns sem o Velho Chico As suas guas j sem foras pra seguir E vem um bando aventureiro cabotino Dar ao rio outro destino, desviar onde ele ir Mas que delrio de poder, um desatino Serto divino convivncia seu porvir Povo vizinho ao rio no tem acesso gua Como pode dar a gua se o filho no tem para si? iluso a redeno fartura dgua, Vo cobrar o olho da cara, Bombar gua pra subir Em outras duas estrofes, Drcio Marques alude ao fato de que as guas serviro para criao de camaro como produto de exportao e que nas regies que mais sofrem com a seca, o que falta vontade poltica de fazer a correta distribuio das guas dos audes:

Deixa no vingar transposio Pra criar camaro Em nome do vil metal A nao se ufana em exportao Enquanto o povo do rio tem fome em seu quintal No Cear, no falta gua, no Ors e Castanho Tm volume abissal Esbanja a elite gua de irrigao Enquanto mata de sede o irmo em seu quintal Assim, Drcio Marques apresenta um engajamento com versos mais refenhos em defesa de seu ponto de vista, fazendo duras crticas s prticas de favorecimento, de apadrinhamento e de elitizao da poltica. O grupo Creedence Clearwater Revival comps Proudy Mary, msica na qual se coloca o cenrio dos vapores que navegavam no Mississipi: Big wheel keep on turnin, Proud mary keep on burnin, Rollin, rollin, rollin on the river. (A grande roda girando, 38

Altiva Mary v queimando, Rolando, Rolando, Rolando pelo rio. Comenta-se da vida dura dos trabalhadores, de como seus momentos de lazer se faziam quando navegavam nos vapores em direo New Orleans: Cleaned a lot of plates in Memphis, Pumped a lot of pain down in New Orleans, But I never saw the good side of the city, til I hitched a ride on a river boat queen. (Limpando muitos pratos em Memphis, Sondando muita dor em New Orleans, Mas eu nunca vi o lado bom da cidade, At que eu desci o rio de barco.) O percurso de Memphis, mdio Mississipi, estado do Tennesse, at a foz, New Orleans, estado de Louisiana era o trecho mais navegado do rio pelos vapores. Ol Man River uma das canes que tratam da vida dos trabalhadores nas fazendas de algodo na bacia do Mississipi. Blues da autoria de Kern e Hammerstein, teve uma brilhante verso pelo Jeff Beck Group, com Rod Stewart cantando. O ttulo uma referncia a um dos apelidos do rio Mississipi, assim como aqui, chamamos o So Francisco de Velho Chico. He don't plant tater's, and we all know he don't pick cotton. But them that plant 'em, are soon forgotten, that Old man river, he just keeps rolling along, oh yes he does. (Ele no planta batatas, e ns sabemos que ele no colhe algodo. Mas ento o que ele planta so filhos esquecidos, Que o Rio Velho, ele apenas guarda rolando por a, sim, isso a.) Louis Armstrong gravou Moon River, msica que faz referncia a um dos personagens da literatura americana mais caractersticos do rio Mississipi, Huckleberry Finn, de Mark Twain. Nessa obra, alm das aventuras do rapaz que mora num barraco s margens do rio. Outro livro de Mark Twain, Life on the Missisipi, conta a histria do rio, e tem um captulo dedicado a um dos maiores ladres que viveram s suas margens, John Murrell. Na cano Moon River lemos: Two drifters Off to see the world There's such A lot of world to see We're after The same rainbow's end 39

Waitin' 'round the bend My huckleberry friend Moon river And me. (Dois vagabundos livres para ver o mundo, E h um bocado De coisas no mundo para ver! Ns, depois, Veremos o fim do arco-ris, Esperando-nos na curva do rio, Meu amigo Huckleberry, O Rio-lua E eu.) Assim, so temas constantes de vrias msicas que giram em torno do cenrio do Rio Mississipi, o sofrimento dos trabalhadores, a navegao dos vapores como diverso e em geral, a idia de que a vida em torno do rio dura, cheia de lamentos e dor. Tal viso tem fundamento no trabalho escravo durante os sculos XVIII e XIX, na segregao racial, instalada aps a guerra civil americana, nas constantes enchentes do rio e na situao de pobreza que boa parte da populao ribeirinha viveu em contraposio riqueza e fartura das grandes cidades americanas. No por acaso que em New Orleans e Memphis temos o bero do blues e do jazz, com suas razes musicais negras. Por outro lado, o Rio So Francisco, no Nordeste brasileiro, em que se pese a pobreza de suas populaes ribeirinhas, o sofrimento do polgono das secas e as enchentes do rio, o que domina o imaginrio de muitas das canes acerca do rio da integrao nacional um cenrio imaginrio dum serto medieval, eivado de reis, princesas, cavaleiros e natureza mgica. Tal viso parece ter suas razes no processo de colonizao portugus, que trouxe uma cultura de carter medieval, uma religiosidade catlica exacerbada e mitos messinicos de feio sebastianista. Assim temos exemplo nas composies de Carlos Pita em guas do So Fran