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28 Algomais DEZ/2013 rio são francisco A MORTE DO VELHO CHICO Livro de pesquisador da UNIVASF com mais 99 coautores alerta sobre os riscos para o rio com as obras da transposição O rei do baião Luiz Gonzaga cantou e foi seguido por tan- tos outros artistas que entoa- vam a célebre frase da música Riacho do Navio: “O Rio São Francisco vai bater no ‘mei’ do mar”. Mas do jeito que o rio está sendo maltratado pelas obras da transposição é capaz de nos próximos anos não ter água para che- gar na sua foz, em Alagoas e Sergipe. Essa é pelo menos a percepção do pesquisador e professor da Universi- dade Federal do Vale do São Francisco José Alves de Siqueira e de mais 99 pesquisadores, que juntos desenvol- veram um estudo sobre as caatingas ao longo dos mais de 2,8 mil quilô- metros de extensão do rio conhecido como da integração nacional e que banha cidades em Minas Gerais, Ba- hia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco. A conclusão das pesquisas foi publi- cada no livro “Flora das Caatingas do Rio São Francisco – História Natural e Conservação”, lançado com apoio do Ministério da Integração Nacional. Além das águas, quem também sofre com o descaso e falta de atenção é o bioma da caatinga, que já está amea- çado na região. Juliana Godoy Fotos: José A. Siqueira

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Page 1: rio são francisco A MORTE DO VELHO CHICO › arquivos › Revista Algo Mais...vam a célebre frase da música Riacho do Navio: “O Rio São Francisco vai bater no ‘mei’ do mar”

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rio são francisco

A MORTE DO VELHO CHICOLivro de pesquisador da UNIVASF com mais 99 coautores alerta sobre os riscos para o rio com as obras da transposição

O rei do baião Luiz Gonzaga cantou e foi seguido por tan-tos outros artistas que entoa-

vam a célebre frase da música Riacho do Navio: “O Rio São Francisco vai bater no ‘mei’ do mar”. Mas do jeito que o rio está sendo maltratado pelas obras da transposição é capaz de nos próximos anos não ter água para che-gar na sua foz, em Alagoas e Sergipe. Essa é pelo menos a percepção do pesquisador e professor da Universi-dade Federal do Vale do São Francisco José Alves de Siqueira e de mais 99 pesquisadores, que juntos desenvol-veram um estudo sobre as caatingas ao longo dos mais de 2,8 mil quilô-metros de extensão do rio conhecido como da integração nacional e que banha cidades em Minas Gerais, Ba-hia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco. A conclusão das pesquisas foi publi-cada no livro “Flora das Caatingas do Rio São Francisco – História Natural e Conservação”, lançado com apoio do Ministério da Integração Nacional. Além das águas, quem também sofre com o descaso e falta de atenção é o bioma da caatinga, que já está amea-çado na região.

Juliana Godoy

Fotos: José A. Siqueira

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Ao longo de quatro anos, José Si-queira se reuniu com 99 coautores para estudar um dos ecossistemas brasileiros menos conhecidos cienti-ficamente, a caatinga. Ao percorrer mais de 340 mil quilômetros em 212 expedições, os participantes pesqui-saram, analisaram e aprenderam para lançar um sinal de alerta ao País so-bre o bioma. Com esforços contínuos para conhecer os mecanismos que regulam e organizam as comunidades florísticas nas caatingas do São Fran-cisco, o que permitiu identificar 1.031 espécies de plantas. “Estão na obra, ainda, os aspectos biogeográficos, as relações com o clima, o solo, os de-safios, as oportunidades, a história e a ecologia de uma vasta flora”, de acordo com a apresentação do livro, que conta com mais de 500 páginas.

Pesquisador do Centro de Refe-rência para Recuperação de Áreas Degradadas da Caatinga (Crad), José Siqueira foi quem esteve à frente de

paisagemVeGetAção típIcA dA cAAtINGA começA A SoFrer com ImpActoS AmbIeNtAIS cAUSAdoS peLo homem. mArGem do São FrANcISco tAmbém ApreSeNtA SINAIS do mAL, com meNoS de 2% de mAtA cILIAr.

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todo o trabalho. Reunido com os de-mais pesquisadores aproveitou uma oportunidade lançada pelo Governo Federal em 2006, que por conta das obras da transposição do São Fran-cisco abriu vagas para um programa de revitalização da área. Com o in-vestimento feito, Siqueira montou o centro de referência e começou a ir a fundo nos estudos e acabou se tor-nando responsável pelo programa de conservação da fauna e flora da pró-pria obra. “É importante destacar que a obra civil da transposição está cus-tando mais de R$ 10 bilhões e é feita em sua totalidade dentro da área de caatinga. Envolvi-me com o projeto e tive a ideia de registrar o que esta-va acontecendo dentro do bioma”, relata o professor, que além dos pro-blemas da região aproveitou a ocasião para expor ao grande público as be-lezas do ecossistema, que por conta da seca, acaba sendo estereotipado. “Temos a maior biodiversidade do mundo ao nosso lado e ela está sendo queimada para virar lenha”, pontua.

Hoje, no centro, já existem labo-ratórios, viveiro e a maior estufa em número de sementes do mundo, são cerca de 15 milhões de espécies e 100 mil mudas por ciclo, a cada três me-ses. Para se ter uma ideia da dimen-são, esse é o número de mudas que foi proposto para arborizar a cidade do Recife em quatro anos. Apesar disso, o rio sofre com as interferências hu-manas. Mesmo sendo um bioma que deveria ter, pelo menos, 10% de sua área preservada, a caatinga atinge atualmente apenas 2%. “O estudo e o livro acabam sendo ousados justa-mente por mostrar as problemáticas do São Francisco”, analisa o pesqui-sador que alerta para a possibilidade de extinção do rio.

Para chegar a conclusão, Siqueira foi lá atrás, no século 19, para reler os relatos documentados por von Mar-tius e Spix, pesquisadores alemães que realizaram expedições pelo Bra-sil para estudo da nossa fauna e flora e que ficaram impressionados com a exuberância do rio da integração nacional. Após a análise, foi possí-vel perceber a mudança drástica na paisagem. Das margens recheadas de vegetação e quase intocáveis, os mais de 2,8 mil quilômetros do São Fran-

cisco passaram a exibir menos de 2% da sua mata ciliar. “Pode-se concluir que a conservação do São Francisco e da caatinga se tornou um dos desafios mais emblemáticos para biólogos de conservação, sobretudo por se tratar de dois 'endemismos' genuinamente brasileiros”, analisa José Siqueira no primeiro capítulo da publicação.

Para alertar a população e ajudar o rio a continuar seu curso, Siqueira e os pesquisadores listaram alguns dos dramas vividos pelo Velho Chico. A primeira, sem nenhuma dúvida, seria a questão da preservação das margens

e das próprias águas. Sem a mata ci-liar, haverá problemas que repercuti-rão na questão hidroviária e na pesca dos moradores da região. Outro pon-to que Siqueira alega ser esquecido é a ausência de instituições de ensino e pesquisa na área. “Sem conhecimen-to você não chega a lugar nenhum. É preciso estudar para desenvolver e preservar o ambiente”, diz. Mas o ponto mais crítico, de acordo com os pesquisadores, é a falta de uma unidade de conservação integral. “A gente precisa estruturar um grande parque da caatinga, porque do jeito

plantas. anamaria heterophylla é UmA dAS AqUÁtIcAS orIGINÁrIAS dA cAAtINGA.

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que estamos indo só nos restam pou-cos espaços de vegetação selvagem”, avalia.

É importante ressaltar que o des-matamento do bioma não vem só das queimadas, mas está acontecendo, principalmente, por conta das obras da transposição do Rio São Francis-co. Apesar de contar com engenhei-ros, biólogos e ambientalistas, um detalhe no meio de toda construção vem sendo deixado de lado. As fe-ridas abertas no meio da vegetação nativa. Ao abrir um espaço no meio da caatinga é preciso atenção para não deixar plantas exóticas invasoras no espaço. “Do ponto de vista civil

é viável, mas por trás da obra existe toda uma complexidade, porque ela passa por dentro da caatinga preser-vada causando feridas (cortes) com 300 metros de largura e na roda do caminhão estão as invasoras, que vão funcionar como células canceríge-nas”, avisa Siqueira. O que acontece é que essas plantas exóticas entram e competem no ambiente natural com as nativas da região, destruindo e trazendo prejuízos para o bioma e até mesmo no consumo dessa água. “A caatinga é responsável pela retirada do dióxido de carbono, é uma farmá-cia natural. Precisamos conservar sua biodiversidade não só pelo rio. Por-

que ao perdê-la, perdemos também questões culturais, como a tradição do vaqueiro e das carrancas”, afirma.

No livro, José Siqueira relembra outros momentos históricos de mu-danças econômicas que prejudicaram (e muito) o curso do rio. “Os vários ciclos econômicos, como o do gado, nos séculos 17 e 18; das hidrovias (so-bretudo os vapores do São Francis-co); das hidroelétricas construídas pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco – Chesf (Renaux, 2003); das ferrovias e dos polos de irriga-ção Petrolina – Juazeiro subtraíram recursos naturais finitos, especial-mente a água do São Francisco, mas

patrimôniorIo São FrANcISco, qUe bANhA cINco eStAdoS do pAíS, INcLUINdo perNAmbUco, eStÁ AmeAçAdo peLA FALtA de cUIdAdo NAS obrAS dA trANSpoSIção.

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não trouxeram desenvolvimento econômico. (…) Isso nos permite afirmar, com certa margem de se-gurança, que a flora atual e futura do Rio São Francisco e da caatinga como um todo será dominada por ecossistemas simplificados”, escreve o autor, que ainda pontua exemplos de casos semelhantes à transposi-ção em outros países. “A informação disponível sobre megaempreendi-mentos fracassados em outras partes do mundo, como é o caso do Ever-glades, na Flórida (EUA), que deve-ria balizar as decisões e os projetos governamentais de maneira a evitar implicações para as gerações futuras.

Ao que parece, todo saber disponível ainda é insuficiente para estancar a sangria das águas do São Francisco, assim como a erosão biológica e ge-nética de organismos únicos em todo o planeta”.

A solução para evitar maiores problemas e desgastes do bioma seria a criação de um parque de preserva-ção da caatinga selvagem. Para isso, é preciso uma injeção de recursos em uma das últimas áreas puramente do ecossistema, o Boqueirão da Onça, no norte da Bahia. “Com pesquisas notamos que a região é de duas a três vezes mais rica em sítios arqueológi-cos, que são insubstituíveis, do que a Serra da Capivara, no Piauí”, avalia Siqueira. De acordo com o pesquisa-dor, é preciso salvar a área o quanto antes para evitar extinção de espécies e desgaste ainda maior para natureza e o rio.

desperdíciobIomA Vem perdeNdo eSpAço com qUeImAdAS pArA prodUção de LeNhA Ao INVéS doS 10% de preSerVAção qUe deVerIA ter, coNtA ApeNAS com 2%.

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O parque também seria uma forma de preservar as espécies dependentes do Velho Chico saudáveis. “Onde os processos ecológicos ocorrem natu-ralmente obedecendo aos ciclos na-turais das cheias, das estações do ano, do dia e da noite”. O livro cita alguns exemplos dos impactos sobre a biodi-versidade decorrentes da conversão do uso da água das bacias hidrográfi-cas complexas como o São Francisco. “O caso do pato mergulhão é dos mais bem documentados. Hoje ele se en-contra criticamente em extinção, pois sofre com a perda do habitat associado aos seus hábitos comportamentais”, conta a publicação.

aquáticas. O mito de que a caatin-ga é um bioma apenas de seca, com queimadas e chão batido é deixado de lado ao se chegar às margens do Rio São Francisco. Além da mata ciliar

em terra, muitas são as espécies de plantas aquáticas que se instalaram na região. Com o estudo foi possível, inclusive, catalogar vegetações nun-ca vistas no Velho Chico, no Nordeste e no Brasil. A única preocupação de acordo com os pesquisadores são as plantas invasoras, que já atingem 5% do bioma. Um número ainda peque-no, mas que já acende o sinal de aler-ta para preservação da região.

Com o estudo feito ao longo de mais de 340 mil quilômetros foi pos-sível detectar e catalogar mais de 200 espécies aquáticas. É importante res-saltar que o nome, apesar de fazer re-ferência direta a água não impõe que as plantas vivam totalmente dentro dos rios, lagos e açudes. Para ganhar esse nome, elas precisam depender de H²O para completar seu ciclo de vida. “Não é que precisem estar dentro da

aquáticahydrothrix gardineri FoI UmA dAS eSpécIeS excLUSIVAS dA cAAtINGA qUe FoI eNcoNtrAdA dUrANte AS 212 expedIçõeS dA peSqUISA.

solução. boqUeIrão dA oNçA deVerIA Se trANSFormAr em UNIdAde de coNSerVAção

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água, elas podem simplesmente estar perto”, afirma a professora e pesqui-sadora do Crad, Jaciane Campelo.

Assim como na vegetação terres-tre, a preocupação com as aquáticas também está nas plantas invasoras ou subespontâneas, que podem vir em cascos de barco, correntes de água ou até mesmo em bicos de pássaros. Como qualquer mudança no ambien-te pode favorecer o desenvolvimento dessas espécies, elas podem se tornar perigosas. “A área em que as plantas nativas estão é o ambiente ideal para elas, quando você provoca mudanças desestabiliza toda área”, avalia Jaciane.

Com o estudo foi possível des-cobrir duas espécies chave da caa-tinga, que são a Anamaria Hetero-phylla e a Hydrothrix Gardineri. “É preciso muita atenção com elas para não comprometer sua sobrevivência. Um dos papéis mais importantes das plantas aquáticas é se transformar em biomassa, fertilizante e ser como um filtro biológico para a água”.

Outras descobertas também têm grande importância para a natureza. Em uma das 212 expedições da pes-quisa foi possível detectar duas espé-cies nunca vistas no Brasil: a Azolla Pinnta e Physalis Pruinasa. Apesar de ser comemorado o descobrimen-to, ele traz preocupação para os bió-

logos. “Como não temos nenhum registro delas no País não sabemos como se comportam e quais são seus riscos. É preciso cuidado e atenção para monitorá-las e ver o desenvol-vimento”, avalia Jaciane. Além de-las, foram encontradas, ainda, outras

nove espécies nunca vistas no Nor-deste e outras seis que nunca foram citadas na caatinga. “Isso significa que o bioma requer ainda mais estu-dos. Se em uma pesquisa consegui-mos identificar tudo isso, é sinal de que ainda há muito mais”, acredita a pesquisadora.

O conhecimento, de acordo com ela, é necessário para manter a pre-servação do bioma e garantir seus benefícios, que são inúmeros. “Para isso precisamos nos focar, além do rio, nas lagoas temporárias, que são tão importantes quanto eles e forma-das através das chuvas”, alerta.

pesquisadorJoSé A. SIqUeIrA reUNIU mAIS 99 peSqUISAdoreS pArA deSVeNdAr probLemÁtIcAS dA cAAtINGA e do rIo São FrANcISco. peSqUISA VIroU Um LIVro.

descréditopoUcA GeNte SAbe, mAS A cAAtINGA é repLetA de eSpécIeS de pLANtAS AqUÁtIcAS. dUrANte o eStUdo FoI poSSíVeL docUmeNtAr ALGUmAS.