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Jardim, a grande fraude uma radiografia da «Madeira Nova» Ribeiro Cardoso

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Jardim, a grandefraude

uma radiografia da «Madeira Nova»

RibeiroCardoso

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Índice

Uma declaração prévia ................................................................ 11À laia de prólogo ......................................................................... 13

I Da infância até AbrilUma família às direitas ......................................................... 21Coimbra anos 60 .................................................................. 27O bravo soldado Schweik ..................................................... 33Vidas em contraste ............................................................... 41O patriota Jardim antes de Abril .......................................... 47

II Quatro anos para chegar a Presidente do GovernoÀs ordens do bispo ............................................................... 55Reescrever a História............................................................ 67Oportunistas e Flama em acção............................................ 73Assalto à rádio e sequestro do Prof. Simões.......................... 79«Um doido ainda mais doido» .............................................. 87Uma espécie de Santíssima Trindade.................................... 99Flama 2009: rabo escondido com gato de fora ..................... 105Presidente do Governo, finalmente ...................................... 113

III A camarilhaJaime Ramos, Comandante Zero.......................................... 121Uma senhora Fundação ........................................................ 131

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Cunha e Silva, o grande contemporâneo ............................. 141Albuquerque: «Música da Câmara» ..................................... 157Guilherme & Mendonça, estranha forma de vida................ 165

IV A Santa AliançaUma Igreja de joelhos .......................................................... 173 Machico, para nunca esquecer ............................................. 179O «crime» do padre Edgar ................................................... 185Os «azares» do padre Frederico ............................................ 193

V Um arremedo de ParlamentoAssembleia Legislativa da Madeira, um bando de loucos .... 199 Farwest à madeirense .......................................................... 203Orçamento e incompatibilidades ........................................ 209Imunidades e outras barbaridades ....................................... 215A congratulação, a estátua e o tosão ..................................... 225O fantástico caso da bandeira nazi ...................................... 229

VI Trinta e um anos de poder autocráticoO regime jardinista no concreto........................................... 235O subsidiozinho .................................................................. 239«Madeira Nova», a teia......................................................... 245Prepotências, perseguições e ameaças I ................................ 253Prepotências, perseguições e ameaças II............................... 265O défice democrático ........................................................... 277Expropriações a esmo........................................................... 283Um regime sempre em obras................................................ 291A «nomenklatura» e o futebol profissional ........................... 299Eleições à moda de Jardim................................................... 307

VII Relações com o Poder JudicialJustiça ajardinada?................................................................ 319Um Procurador de alto lá com ele........................................ 327Há lodo no cais .................................................................... 335

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JARDIM, A GRANDE FRAUDE 9

As férias do juiz e outras histórias...................................... 341Contas em Tribunal ........................................................... 347

VIII A atracção fatal pelos media O homem que morde o cão ............................................... 355«Bastardos, para não lhes chamar filhos da puta»............... 365Tentações do diabo ............................................................ 373Jornal da Madeira, manipular e gastar à tripa-forra ........... 381«Telejardim», o sonho ........................................................ 389A luta para ter a ANOP na mão ........................................ 395Uma testemunha chamada Jaime Gama ............................ 403

IX Jardim himselfBobo ou para levar a sério? ................................................ 415À solta no Chão da Lagoa ................................................ 419Sempre em guerra ............................................................. 427Miudezas caseiras .............................................................. 441Extravagâncias de soba ...................................................... 451A telenovela «Delfins & Sucessão» ................................... 459

X Lei de Finanças Regionais e inundaçõesSerenata à chuva ................................................................ 469

XI Os resultadosOportunidade irrepetível perdida ...................................... 481Proibido falar de pobreza .................................................. 487Educação, o desastre .......................................................... 493Desemprego e situação social ............................................ 499Ilha submersa num mar de dívidas .................................... 503

XII Opiniões sobre Jardim«Fascista grotesco», «bobo» e «tiranete» ............................ 513Ensaio sobre a cegueira ..................................................... 519

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Uma declaração prévia

Este é o trabalho de um cidadão, por acaso jornalista, empe-nhado em divulgar uma realidade que o preocupa.

Quero contudo declarar, à partida, que não persigo a isençãonem a objectividade absolutas, mito e quimera que por aí corrempara acalmar consciências, enganando-as.

Procuro apenas dar uma visão de conjunto daquilo a que opoder instalado na Quinta Vigia chama «Madeira Nova» — combase em testemunhos de dezenas de protagonista dessa realidade,mas fundamentalmente em notícias, reportagens, entrevistas e opi-niões publicadas, escolhendo-as segundo os meus critérios e deacordo com o meu modo de ver o mundo.

Isto é, seleccionei o que me pareceu mais relevante. Outro cida-dão poderia naturalmente fazer outras escolhas.

Quero ainda deixar claro que este acto de cidadania tem doisobjectivos:

— ajudar a caracterizar o homem e o político que há maistempo está no Poder no nosso país e, simultaneamente, retratar osurpreendente regime por si criado no seio, mas à margem, doPortugal de Abril.

— prestar uma homenagem aos jornalistas, com relevo para osmadeirenses, que, em muitos casos, correram e correm riscos de

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toda a ordem, que foram trazendo até nós pedaços dessa reali-dade.

Isto sem prejuízo de apontar muitas culpas ao jornalismo acríticoe sensacionalista que por aí abunda e que, junto de Jardim, funcionaapenas como pé de microfone fortemente amplificador dos seusdislates.

Ribeiro Cardoso

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À laia de prólogo

Conheci Alberto João Jardim em Coimbra, nos anos 60 doséculo passado. Por um motivo fortuito: a minha namorada deentão, hoje minha mulher, vivia em casa de D. Isaura, senhora quealugava quartos a estudantes do sexo feminino, e onde residiamvárias madeirenses. Ângela, a mais velha de todas as residentesnaquele lar acidental, tinha um namoro atribulado com um des-conhecido Alberto João — e lá em casa todas sabiam do compor-tamento pueril desse jovem. Por essa via, eu ia ficando ao correnteda maneira de ser de Alberto João, que vivia ali a dois passos, no«Farol das Ilhas», uma casa de estudantes madeirenses do sexomasculino.

Nesses tempos longínquos, os nossos contactos eram apenassuperficiais — nada nos ligava, ele não frequentava os meios asso-ciativos académicos, e já nessa altura representava o que nós, narepública «Ninho dos Matulões», onde eu vivia, combatíamos fron-talmente.

Em 1975, quando regressei de Moçambique, para onde tinhasido mobilizado dois anos antes, de Alberto João quase nada sesabia no Continente — a não ser que, no Funchal, ele era o directordo Jornal da Madeira, o diário da Igreja Católica, onde cumpria asordens do bispo.

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Porém, o que eu não imaginava — nem sequer punha a hipó-tese... — é que fosse possível, em tempo de democracia em Portugal,uma pessoa com as suas características chegar a Presidente doGoverno Regional da Madeira.

Aí por 1979/1980, reencontrei-me com Alberto João nos velhosestúdios da RTP no Lumiar: o recém-presidente do GovernoRegional da Madeira ia ser entrevistado na RTP2, no programaCartas na Mesa, onde eu era um dos jornalistas residentes. Tolentinode Nóbrega, já nessa altura nome incontornável do jornalismomadeirense, foi outro entrevistador.

Da entrevista não reza a história. A partir de então, contudo,passámos a ter contactos espaçados mas regulares — sob a formade entrevistas por telefone ou em conversas pessoais quando ia àMadeira em serviço profissional. Tive sempre o cuidado de nãofomentar o tratamento por tu para manter alguma distância, masera com muita curiosidade e boa disposição que falava com o des-bocado Alberto João, e com ele discutia a situação política ou... aprofissão de jornalista, para si uma verdadeira obsessão.

Lembro-me, por exemplo, de uma noite em que, no Funchal,conversámos sobre tudo o que nos vinha à cabeça. Sempre amiga-velmente provocador, Alberto João resolveu atacar-me pela viaprofissional.

«Você tem a mania que os jornalistas são uns seres impolutos, querespeitam escrupulosamente um código de ética, que têm a obrigação dedenunciar os podres desses malvados dos políticos, não é?»

«Não diria tanto», respondi. «Não ponho as mãos no fogo portodos os meus camaradas...»

«Vou propor-lhe uma coisa: vamos visitar as instalações da ANOPno Funchal. Tenho as chaves comigo...», respondeu.

«Mas como é que o Presidente do Governo Regional tem aschaves da agência nacional de notícias?», perguntei, fazendo-mesurpreendido apesar de bem conhecer o segredo de polichineloque todos os jornalistas madeirenses comentavam nos bastidores... mas sem se atreverem a escrever uma linha sobre o assunto.

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Perante a minha resposta, o rosto de Alberto João iluminou--se com o sorriso de gaiato que estivesse a fazer uma partida.Enquanto balançava as chaves na mão levantada, limitou-se adizer, satisfeito:

«Sei apenas que tenho aqui as chaves. Conhece a Maria Virgínia?É uma jóia de pessoa, uma excelente jornalista, dou-me muito bem comela...» — e o sorriso continuava a abrir-se. De resto, como segura-mente o faria, se estivesse ali connosco a própria Maria Virgínia,a responsável pela delegação da ANOP no Funchal, mulher expe-riente e divertida que eu bem conhecia.

(Maria Virgínia, passado pouco tempo, seria nomeada directora daRTP-Madeira. Uma promoção sem dúvida justa, tal a qualidade dosserviços informativos, presumo, que prestava à Madeira e que Jardimmuito apreciava.)

Continuámos a conversar. Nessa noite longínqua — já nemme consigo lembrar exactamente do ano em que aconteceu —comecei a perceber melhor a figura de Alberto João e as relações,no arquipélago, do poder político com certa comunicação social.E a minha curiosidade em conhecer melhor aquele homem e osseus métodos, nasceu aí.

Uma mancha negra no Portugal de AbrilHá mais de vinte anos que não me encontro com Alberto João

Jardim, mas continuei e continuo a seguir com atenção o seu per-curso político, repetindo sem cessar a pergunta que me acompanhadesde 1978: Qual a explicação para a subida ao poder de umhomem com as características de Alberto João e, mais estranhoainda, como é que nele se consegue manter há mais de três déca-das?

A resposta a essas duas situações é complexa, tão diversificadossão os factores que, a meu ver, estão na sua origem: o facto de aMadeira ser uma ilha, a pobreza ali reinante há séculos, a naturezadaquele povo esculpida pelo isolamento e uma sobrevivência dura,o papel da Igreja, a família a que pertencia Alberto João, as suas

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características pessoais, a sua formação e ligação políticas, a influên-cia de uma forte e conservadora diáspora, o para si traumático 25de Abril.

Mas há uma outra interrogação que me acompanha desde sem-pre: o porquê do fechar d”olhos dos sucessivos presidentes da República e primeiros-ministros portugueses, tantas vezes coni-ventes e cúmplices com as práticas do Senhor da Ilha — semesquecer, é óbvio, o escandaloso comportamento dos líderes nacio-nais do PSD.

Falando claro: suspeito de que aquela realidade insular é umaimperdoável mancha negra no Portugal de Abril. Uma nódoaque só é possível pelo incompreensível e inaceitável posiciona-mento do Poder Central, cujos titulares maiores já há muitoparece terem dado a Madeira como um caso perdido — suportamsem um ai a má educação e os insultos de Jardim; curvam-seperante a sua permanente chantagem; continuam, ou pelo menoscontinuaram até Sócrates, a abrir os cordões à bolsa e a alimentaruma autonomia não sustentada; assobiam para o lado quantoao esbanjamento de dinheiros públicos e à dívida monstruosado arquipélago; e pactuam com o simulacro de democracia exis-tente na região.

Porém, o mais surpreendente e incompreensível é que a Madeira,com 35 anos de maiorias absolutas e que há muito vive irrespon-savelmente acima das suas possibilidades — nunca nenhuma par-cela do país recebeu, proporcionalmente, tanto dinheiro do exterior— continua a ser uma das regiões mais atrasadas de Portugal, como maior número de pobres, a maior percentagem de analfabetos ede abandono escolar, o maior número de funcionários públicospor metro quadrado, sem indústria, sem agricultura, sem pescas— e de novo a braços com um desemprego e uma emigraçãomaciços. E como adiante veremos, com múltiplas histórias de per-seguição a cidadãos, por um lado, e uma tremenda e continuadapressão — e nalguns casos manipulação e controlo efectivos —sobre a comunição social local, por outro.

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Mas isso é o que os turistas e os «cubanos» que lá chegam nãovêem, não sabem e nem querem saber — pelo contrário, ficamextasiados com os numerosos túneis, viadutos e auto-estradas, como ar moderno, com os hotéis magníficos, restaurantes excelentes,paisagens soberbas.

Pior ainda: não imaginam, nem sequer suspeitam, de que osenhor da ilha, tiranete bajulado por aqueles a quem distribuibenesses, é há muito um homem só, sem recuo, fechado e perdidono seu labirinto de quilómetros de vias-rápidas e túneis construídosa preços desmedidos com dinheiro fácil vindo de Bruxelas e Lisboa— e com a consciência de que, quando sair de cena, o que delibe-radamente tem protelado, o castelo por si construído ruirá na areiaque não existe na ilha.

Depois de largos meses a ler o que, nos últimos 36 anos, foisendo publicado em jornais e livros sobre a Madeira e Jardim, eapós ter entrevistado cerca de seis dezenas de personalidades doarquipélago e do continente — muitas das quais me pediram paranão serem citadas — convido-vos a viajarem comigo nas páginasseguintes, onde tentarei dar um pequeno contributo para se saberquem é Alberto João Jardim e em que se traduz, três décadas emeia depois de Abril, a autonomia e a chamada «Madeira Nova».

Uma nota final: este trabalho desenvolveu-se entre o Verão de2008 e meados de 2010.

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I

DA INFÂNCIA ATÉ ABRIL

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Uma família às direitas

Depois de largo tempo de amores contrariados de Marceliana,doméstica, e Alberto Gonçalves, funcionário das Finanças, Alberto JoãoJardim nasceu no Funchal a 4 de Fevereiro de 1942. De pequenino setorce o destino.

O avô materno, que durante anos proibiu impiedosamente onamoro do casal, era o conhecido tenente Cardoso, militar severo,conservador e salazarista convicto. Dirigia a «Sopa dos Pobres»,que ficaria popularmente conhecida como «A Sopa do Cardoso»,tendo sido também vereador da Câmara e vogal dos bombeiros.

Este avô teve a sua importância na formação de Alberto João— viviam na mesma casa, impunha respeito e ordem e foi com eleque aprendeu as primeiras letras. «Aos cinco anos já lê os jornaislocais, sobe para cima das cadeiras e treina discursos», escreveu FelíciaCabrita num excelente e bem documentado texto («O Barão deQuebra Costas», Felícia Cabrita, Expresso, 28-08-1993).

Além disso, o avô gostava de jogar bridge em casa com amigosque, do ponto de vista político, quase o faziam parecer um peri-goso revolucionário. As visitas caseiras iam de legionários até aovisconde de Porto da Cruz, o homem da propaganda nazi viarádio para a Madeira, que achava que Salazar tinha desviosesquerdistas.

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Neste ambiente foi crescendo e bebendo Alberto João, aindapor cima menino da mamã e de duas criadas que giravam perma-nentemente à sua volta.

O pequeno Alberto João, filho único ultramimado, em famíliaera chamado de Janinha — e mais tarde, já no Liceu, onde che-gava sempre muito arranjadinho, foi apelidado de Ofélia, DonaBranca e Branca de Neve. Por outros motivos, nos primeiros anosdo Liceu teve mesmo direito ao cognome de Barão de Quebra Costas, numa referência directa ao local onde se situava a sua casa.

Contudo, o pai de Alberto João navegava noutras águas quetambém deixaram marca indelével na natureza e carácter dorebento. Pai babado, boémio, frequentador de bares e tascas,popular, surgia como feliz contraponto do avô Cardoso: faziatodas as vontades ao miúdo, levava-o com ele nas suas andanças,dava-lhe prendas, mostrava-lhe outros mundos.

A vida, porém, é muitas vezes madrasta, e aos onze anos deidade Alberto João, repentinamente, ficou órfão de pai. O equilí-brio quebra-se: ficam a mãe e o avô a impor-lhe regras, desapareceo escape libertador paterno.

Nos primeiros tempos ainda se manteve rapaz aprumado eestudioso. Porém, com o andar da carruagem, Alberto Joãocomeça a dar largas à veia paterna. Desleixa-se nos estudos, adoradar nas vistas, torna-se no brincalhão de serviço sempre a pregarpartidas aos professores, anda permanentemente de cabeça no ar,as notas deixam de ser o que eram, disciplinas como CiênciasNaturais, Físico-Químicas e Desenho são um tormento.

Num livro absolutamente inenarrável, pago pelo próprio Pre-sidente do Governo Regional, publicado em 1997, Jardim diz apropósito da sua infância e início da adolescência:

«Aquilo era um ambiente em que eu era muito mimado. Primeiropor ser filho único, por ser a única criança dentro de casa, e depois por-que com a morte do pai toda a gente me queria proteger e tratar demim, as empregadas mimavam-me muito, eu lembro-me que de

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manhã, antes de ir para o Liceu, elas nem me deixavam atar os ataca-dores dos sapatos porque me podia fazer mal às costas, as pessoas tinhama mania que eu podia adoecer, enchiam-me de sobretudos e de pull-overs, e é claro que à mais pequena corrente de ar aí é que eu adoeciamesmo, e passava a vida doente. Tinha muitos primos, mas tinhaalguma dificuldade em brincar, porque eu aprendi a ler com quatro oucinco anos. [...] Quando comecei a ver que me estava a tornar numacriança desadaptada, porque aquela educação muito resguardadaestava a fazer de mim quase um mariquinhas, [...] percebi que haviaqualquer coisa que não estava bem, e então passei a ficar fora de casa,ia para os acampamentos da então Mocidade Portuguesa, [...] e omenino bem comportadinho de repente tornou-se um inferno dentro doLiceu.» (Alberto João, o Homem, 1997, Teresa Mascarenhas e Ana Macedo eSousa, Edições Golfinho)

Entretanto, quase a terminar o ensino secundário e já senhorde grande basófia, Alberto João desperta para os encantos do sexofeminino.

Porém, aqui as coisas não lhe correm de feição: era poucoatraente, nada convincente e tinha atracção por raparigas maisvelhas. De resto é nesse tempo que surgem as primeiras tentativas,goradas, de cair nas boas graças de Ângela, um pouco mais velhae que o olha como quem diz «cresce e aparece»...

Fosse como fosse, apesar desse revés junto das meninas madei-renses, o jovem Alberto João não desanimava e ia encontrandoalgum consolo nas turistas que, já nesse tempo, aportavam aosmagotes ao Funchal — ao mesmo tempo que se entregava comafinco à Mocidade Portuguesa, onde chega rapida mente aComandante de Castelo, sempre muito obediente e militarista.

Lisboa, a boémia e os vivas a SalazarLiceu feito, chega então a altura de Alberto João ir para Lisboa

para a Faculdade de Direito da Universidade Clássica. Estamosno início da década de 60 e aí começam os empenhos, que lheforam acolchoando a vida, junto de gente bem colocada no

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regime: o rapaz, graças à influência da mulher do reitor do Liceudo Funchal, aboletou-se na capital portuguesa numa casa daMocidade, na Avenida Visconde Valmor.

Uma vez na cidade grande, Alberto João deslumbrou-se com aboémia e a noite. Eram mais fáceis os caminhos para o Cais doSodré, do que para a Cidade Universitária. Como viria a acontecermais tarde em Coimbra, também em Lisboa os movimentos asso-ciativos lhe passaram ao lado. Ou melhor: combateu-os... à suamaneira.

Voltando ao livro Alberto João, o Homem. Quando as duas auto-ras lhe perguntaram se ainda tinha amigos dos tempos da juven-tude, Jardim respondeu:

«Sim, falo com todos, dou-me bem com todos, tratamo-nos todos portu. [...] Onde eu encontrei alguma adversidade foi nos meus colegas daFaculdade. Porque aquilo eram os anos 60, o ambiente que se vivia nasUniversidades eram as lutas das Associações Académicas, claramentedominadas pelos radicais de esquerda. Eram os comunistas, eram outrosainda mais radicais que foram depois para o Partido Socialista, e poroutro lado havia os de direita, nitidamente encostados ao regime, e fas-cismo e comunismo para mim são dois regimes igualmente maus, eutenho horror a todas as formas de ditadura, abomino todos os sistemasde extremismo radical. Por outro lado, a proibição do direito de asso-ciação impedia que nós, os moderados, nos pudéssemos reunir, ou pudés-semos fazer qualquer coisa. Mas o meu percurso político antes do 25 deAbril foi um percurso de defesa de uma liberalização sem revolução.Quando apareceu a Ala Liberal eu revi-me neles, achei que era amudança do regime para uma democracia, mas sem passar por revolu-ções. Nunca andei nas lutas académicas, andei atrás de umas farras,festas, copos, umas pequenas giras, eram coisas que me interessavammuito mais do que a contestação política, de forma que eles nunca con-taram comigo para fazer revoluções, e isso é uma coisa que muitos delesainda não me perdoam, e hoje tenho mais adversários políticos noshomens da minha geração do que nos mais velhos ou nos mais novos.»(Alberto João, o Homem, ob. cit.)

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À pergunta seguinte — «Os seus colaboradores políticos mais pró-ximos são quase todos de uma geração mais nova. Porquê?» — o donodo PPD/PSD da Madeira respondeu com a sensibilidade de umdiplomata do mais fino recorte:

«Justamente por esse motivo. Os políticos da minha geração nãoperdoam que o homem que governa a Madeira há mais de vinte anosseja um homem que não alinhou com eles nas lutas académicas, e algunsdeles ainda hoje têm complexos em relação a mim, por causa disso, por-que eles fartaram-se de berrar e de gritar e não chegaram a ladonenhum, e eu estou onde estou, sem nunca ter andado de braço no ar.Porque as lutas académicas eram muito massificadas, sabe, e eu tenhoum grande respeito pelo povo, o povo soberano que trabalha, que cons-trói uma nação, mas tenho um desprezo imenso pelas massas que nãosabem pensar, as massas que gritam, ululam. A votação de braço no ar,por exemplo, é uma coisa que eu considero desprezível.» (Ibidem)

Mas se em 1997 o «moderado» Jardim disse o que atrás setranscreve, no início da década de 60, já em Lisboa, ofereceu-separa fazer um discurso de homenagem ao ditador Salazar quedecorreu em São Bento, na sede da Liga 28 de Maio peranteuma assistência selecta de legionários, onde se encontravam,entre outros, Casal Ribeiro e o general Santos Costa, que fica-ram satisfeitos ao ouvir o jovem madeirense a gritar «Viva Sala-zar, abaixo o reviralho» — como se pode ler no texto de FelíciaCabrita que, a propósito, ouviu em 1993 o orador, que, sem hesi-tação, lhe disse: «Achei aquilo divertidíssimo. Salazar era na alturauma figura credível.»

Tão credível — pelo menos para si — que nessa homenagemao ditador pelos seus 33 anos de poder, Jardim ainda disse: «Digno sucessor de escola de Sagres que é o Prof. Dr. Oliveira Salazar,o nosso inteiro apoio e admiração ao que tem feito para bem da Pátria.»(«Jardim I, o colonialista», Tolentino de Nóbrega, Público, 04-02-2003)

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